Download PDF
ads:
Pedro Pereira dos Santos
Educador Social: análise das representações sociais sobre a criança e o
adolescente em situação de rua
Mestrado em Educação: Currículo
PONTÍFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
SÃO PAULO-PUC/SP
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Pedro Pereira dos Santos
Educador Social: análise das representações sociais sobre a criança e o
adolescente em situação de rua
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação: Currículo, sob a
orientação da Profª. Drª. Marina Graziela Feldmann.
Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP
2007
ads:
FICHA CATALOGRÁFICA
Educador Social: análise das representações sociais sobre a criança e o adolescente em situação
de rua./ produzido por Pedro Pereira dos Santos-São Paulo: PUC/SP, 2007.
Pedro Pereira dos Santos
Educador Social: análise das representações sociais sobre a criança e o
adolescente em situação de rua
São Paulo, _____de dezembro de 2007.
A Comissão Julgadora
______________________________________________________________
Profª. Drª. e orientadora Marina Graziela Feldmann - Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo-PUC/SP
_____________________________________________________________
Profª. Drª.Regina Lúcia Giffoni Luz de Brito-Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo-PUC/SP
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Adolfo Ignácio Calderon Flores-Universidade de Mogi das Cruzes
Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP
2007
Aos que acreditam na arte de transitar: à esposa Antônia da Costa do Nascimento, aos filhos Ana
Beatriz e Pedro Henrique, aos meus pais e primeiros mestres Manoel de Jesus e Aldeni Pereira
dos Santos, aos irmãos, aos amigos, às crianças e aos adolescentes em situação de rua, à
Secretaria de Educação de Maracanaú-CE, aos sujeitos participantes da pesquisa, aos
componentes da banca examinadora Profª. Drª. Regina Lúcia Giffoni Luz de Brito e Prof. Dr.
Adolfo Ignácio Calderon Flores pelas contribuições, ao Programa Internacional de Bolsas de Pós-
Graduação da Fundação Ford pelo apoio financeiro durante o período de dois anos em que fui
bolsista, à equipe da Fundação Carlos Chagas e à Profª. Drª. Marina Graziela Feldmann,
orientadora e companheira que com paciência ajudou-me a percorrer essa trajetória de forma
processual. A ela e a todos, sou grato.
RESUMO
A presente pesquisa tem como propósito identificar e analisar as representações dos educadores
sociais sobre a criança e o adolescente em situação de rua. Em conformidade com tal objetivo,
pretende-se contribuir com o educador no sentido de refletir com ele sobre os diversos olhares
rotulantes, construídos socialmente acerca dos educandos das classes populares, em especial,
daqueles que se encontram em situação de rua.
Espera-se que a reflexão em torno dos estereótipos contribua para que a prática educativa do
educador seja capaz de promover a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, imanentes e
transcendentes, no sentido de que são condicionados pelos fatores sócio-histórico e cultural,
todavia são também capazes de ir além de tais condicionamentos.
Para tanto, realizou-se a investigação na Fundação da Criança e da Família Cidadã-FUNCI-em
Fortaleza-CE, tendo como lócus de pesquisa um de seus projetos: o Ponte de Encontro. Deste,
nove educadores participaram da pesquisa qualitativa que se desenvolveu por meio da técnica de
Grupo Focal, utilizada para a captura dos dados, que foram interpretados pela Análise de
Conteúdo.
Para a efetivação deste trabalho dissertativo, adotou-se a Teoria das Representações Sociais de
Moscovici (1995, 2001, 2003,2005). Todavia, o universo mental (pensamento) de um sujeito
social traz fortes influências de outras fontes teóricas que devem ser reconhecidas e valorizadas
na sua trajetória. Citam-se, então, algumas delas: Makarenko (1986), Freire (1987, 1992, 1996,
2004, 2005, 2006), Costa (1989, 1991, 1999), Rizzini (1997, 2003), Graciani (2001), Lucchini
(2003) e Oliveira (2004). Recentemente dialogou-se também com Brito (1998), Feldmann (1984,
1999), Sacristán (1999, 2002), Fazenda (2001, 2003, 2004, 2006) e Japiassú (2006). Todos esses
autores e outros não citados neste resumo, mas presentes neste trabalho, contribuíram na tessitura
de idéias que, entrelaçadas, constituem o universo mental do pesquisador.
O meu envolvimento com o tema data de 1999, período em que atuei como educador de rua em
Fortaleza-CE. Este trabalho surge como uma pequena contribuição aos educadores sociais e
àqueles desejosos de conhecer um pouco o trabalho a fim de superar as representações sociais
que consideram as crianças e adolescentes como vítimas e agressores sociais.
Palavras-chave: Educador social. Criança e adolescente em situação de rua. Representações
sociais.
ABSTRACT
The present research has the purpose of identify and analyze the representation of the social
educators about the homeless children and teenager. According to this objective, we try to reflect
with the educator about the many tagging looks, socially built for the students of the popular
classes; specially for those who are homeless.
We hope that the reflection about the stereotypes helps the educative practice of the educator to
be able to promote the children and the teenager as subjects with rights, in the sense that they are
conditioned by social-historical and cultural facts, however being capable of going further these
conditions.
In order to it, the investigation in the Fundação da Criança e da Família Cidadã – FUNCI has
been conducted in Fortaleza – CE, having one of its projects as the locus of the research: the
Ponte de Encontro. Here, nine educators have taken part of a research about quality that has been
developed by the technic of Grupo Focal, utilized for the capture of the data, which has been
analyzed by Análise de Conteúdo.
For this paper, the Moscovici’s Theory of the Social Representations (1995, 2001, 2003, 2005)
has been adopted. However, the mental universe (thoughts) of a social subject brings great
influences of others theoretical sourceswhich must be recognized and valorized in their trajectory.
We quote some of them, then: Makarenko (1986), Freire (1987, 1992, 1996, 2004, 2005, 2006),
Costa (1989, 1991, 1999), Rizzini (1997, 2003) Graciani (2001), Lucchini (2003) e Oliveira
(2004). Recently, we have dialogued with Brito (1998), Feldmann (1984, 1999), Sacristán (1999,
2002), Fazenda (2001, 2003, 2004, 2006) and Japiassú (2006). All these authors and others who
are not mentioned in this abstract, but are in the paper, have contributed in the net of ideas which
constitute the mental universe of the researcher. My involvement with this theme begins in 1999,
when I acted as a street educator in Fortaleza – CE. This work is created to be a small
contribution to the social educators and to those who wish to know this work and to get over the
social representations that consider children and teenagers as victims and social aggressors.
Key-Words: Social Educator. Homeless children and teenagers. Social Representations.
SUMÁRIO
Introdução: a trajetória como educador: os transitares................................................................08
1. Da síntese entre o equilíbrio e o desequilíbrio de viver.............................................................08
1.1 O sujeito como feixe de potencialidades..................................................................................10
1.2 A vida como arte de transitar....................................................................................................10
1.3 As lições aprendidas na trajetória de vida................................................................................15
1.4 Do transitar da religião à rua....................................................................................................16
1.5 Da experiência no trabalho de formação de educadores sociais..............................................20
Capítulo I-Da educação social européia à educação social de rua: um olhar
panorâmico....................................................................................................................................25
1. Algumas considerações básicas sobre a educação social européia............................................33
2.Da educação social no Brasil ao educador social institucionalizado...........................................36
2.1 Da pedagogia social de rua como pedagogia do direito, princípios, metodologia e
desafios...........................................................................................................................................42
2.1.1 Dos princípios da pedagogia social de rua............................................................................43
2.1.2 Da metodologia mais utilizada pelo educador que atua na
rua...................................................................................................................................................47
2.1.3 Dos desafios enfrentados pela pedagogia social e pelo educador atuante no espaço
rua...................................................................................................................................................50
Capítulo II-A criança e o adolescente em situação de rua no Brasil: trajetória....................55
2. A fundação do Brasil e a violência contra crianças e adolescentes...........................................55
2.1 A criança no Império: um ser para o mando, outro para a obediência.....................................59
2.2 A criança e o adolescente das classes populares e a estigmatização........................................67
2.2.1 A criança e o adolescente das classes populares na Terra da Luz: o tornar-se ao útil ao
projeto civilizador...........................................................................................................................68
2.3 A criança e o adolescente em situação de rua: para além do “menor”.....................................72
Capítulo III-A Teoria das Representações Sociais....................................................................77
3.Dialogando com os autores sobre as Representações Sociais.....................................................77
3.1 Da definição de Representações Sociais..................................................................................79
Capitulo IV -Da metodologia de pesquisa..................................................................................85
4. A organização dos dados coletados............................................................................................90
Capítulo V-Análise e interpretação dos dados...........................................................................96
5. Da representação social sobre a criança e o adolescente como vítimas sociais.........................98
5.1 Alguns aspectos facilitadores e dificultadores da representação social sobre a criança e o
adolescente em situação de rua como vítimas sociais..................................................................106
5.2 Da representação social sobre a criança e o adolescente como agressores sociais ou em vias
de ser.............................................................................................................................................109
5.2.1Aspectos positivos, negativos, pontos de convergências e divergências entre as duas
primeiras representações...............................................................................................................116
5.3 Da representação social sobre a criança e o adolescente como sujeitos de direitos...............118
5.4 Da representação social sobre a criança e o adolescente em situação de rua como sujeitos
imanentes e transcendentes...........................................................................................................128
Conclusão....................................................................................................................................136
Referências..................................................................................................................................148
1
Introdução
A trajetória como educador: os transitares
Só existe o mundo da ordem para quem nunca se dispôs ver. (Novaes, 2006).
Desde a Grécia antiga, discutia-se sobre o fundamento da transição, da mudança na
sociedade. Parmênides (final do século VI e início do século V a. C) dizia que o fundamento
lógico ontológico caracterizava-se pela imobilidade, enquanto Heráclito afirmava que o ser
fundante da realidade definia-se pela mutabilidade, sendo os jogos de contrários (noite - dia;
nascer-morrer) a expressão da sua dinamicidade.
1. Da síntese entre o equilíbrio e o desequilíbrio de viver
Do pensamento de Parmênides surge no campo político, social, cultural e
econômico, a crença de que é conservando-se que se evolui. Ao contrário dessa idéia,
Heráclito brada: não, evolui-se mudando.
Do embate de ideais entre esses dois pensadores, o primeiro deles ficou conhecido
na tradição filosófica ocidental como o pai da permanência, enquanto o segundo, como o
defensor da mudança. Afinal, o mundo é só equilíbrio ou desequilíbrio?
Hegel (1989), na sua obra Introdução à História da Filosofia, considera Heráclito o
criador do pensamento dialético, porém alerta que o pensador grego foi extremista tanto
quanto o seu opositor (Parmênides), pois focalizou apenas a mudança, esquecendo-se de que
havia também a estabilidade. O filósofo alemão sintetiza o pensamento dos dois pensadores e
defende que o mundo é resultado de um movimento dialético que se constitui de tese, antítese
e síntese ou afirmação, negação e superação (negação da negação).
Com base no exposto, indaga-se: qual a relação desse pensamento com a práxis de
um educador social
1
? Respondo essa questão, com o objetivo de demonstrar a relação entre a
minha história de vida e o tema a que me proponho pesquisar. Todavia, antes de adentrar
nessa questão, ouso fazer duas considerações.
1
O termo será definido mais adiante neste trabalho.
2
A primeira diz respeito à forma como alguns sujeitos falam de si, concebendo-se ora
como vítimas da sociedade, ora como desbravadores invencíveis que superam todos os
obstáculos da vida, assemelhando-se a alguns heróis de filmes americanos, que sozinhos
conquistam os seus ideais e os do seu país.
Entendo que essas duas concepções são extremistas na medida em que, na primeira
delas, o sujeito desconhece o poder que possui e culpabiliza o contexto político, social e
cultural do qual faz parte, considerando-o como a razão de todos os seus fracassos e
insucessos; enquanto, na segunda, há um endeusamento do potencial individual em
detrimento do valor das interações sociais.
Oponho-me a esses dois tipos de acepções acerca da postura do sujeito no mundo,
porque uma tende ao objetivismo (a sociedade como um elemento determinante do
indivíduo); a outra, ao subjetivismo (o sujeito para além do bem e do mal, como senhor de si e
da história).
Contrapondo-me ainda a essa idéia, entendo, em consonância com Sacristán (2002),
que os sujeitos sociais são portadores de duas dimensões fundamentais: a individual (sonhos e
projetos pessoais) e a coletiva (crenças, valores e saberes compartilhados na sociedade em que
habita), nenhuma delas sendo mais importante que a outra.
O autor alerta que a supervalorização das habilidades individuais (característica
predominante da tendência liberal) gera o individualismo, enquanto a ênfase demasiada no
social ocasiona o comunitarismo, entendido como o predomínio da sociedade sobre o
indivíduo.
Compreendo que esse pensamento torna-se relevante na minha trajetória porque me
possibilita compreender que as conquistas que tive não foram resultados apenas de esforço
pessoal, nem presente de sujeitos que se compadeceram de mim porque caridosos, e nem de
revoltas impensadas contra a sociedade em que vivo, mas de uma longa espera vigiada
2
e de
lutas compartilhadas com outros atores sociais. Esse olhar sobre mim mesmo faz com que eu
me entenda como um sujeito histórico portador de uma autonomia relativa diante dos fatos e
acontecimentos. Por isso, luto insistentemente e acredito na vida. Essa é a primeira
consideração que faço.
2
Esse é um dos princípios da Interdisciplinaridade, apresentado por Fazenda (2001) e significa uma espera
paciente e atenta que nega a passividade e que, em seguida, instiga os sujeitos históricos a agirem com clareza,
determinação e rigor. Essa postura se opõe ao espontaneísmo e às ações humanas impensadas que negam o
passado e deturpam o presente.
3
A segunda é que a crença no meu potencial transformador não é restritiva na medida
em que acredito em mim, desacreditando no outro, mas é expansiva a todos os seres humanos,
independentemente de cor, raça, religião e condição social.
1.1 O sujeito como feixe de potencialidades
Essa concepção acerca do ser humano foi construída a partir da díade consenso-
dissenso com alguns autores que contribuíram e contribuem com a minha formação enquanto
educador. Dentre eles, destaco alguns como o filósofo cearense Oliveira (2001), que defende
a idéia de que o humano é um ser paradoxal na medida em que recebe as influências do
contexto sócio-histórico no qual está inserido, todavia é o único ser capaz de questionar e
superar os condicionamentos que o envolvem.
Penso também, em consonância com Neto (2002, p.177), que relata que: “o
sujeito não é algo estagnado e alienante, mas rico em possibilidades e estratégias de ação”.
Nessa mesma perspectiva, Freire (1996) defende a inventividade humana que supera as
situações-limite, compreendidas como um conjunto de fatores de natureza sócio-político-
econômica e cultural que pode impossibilitar o desenvolvimento do potencial humano. O
autor reconhece que o sujeito histórico é condicionado por tais fatores, mas não determinado
por eles, sendo capaz de agir de forma individual e coletiva para transformar o contexto em
que se encontra.
Essa concepção acerca do ser humano como transformador e também
transformado pelas circunstâncias do seu ambiente social torna-se relevante para que eu o
compreenda como feixe de potencialidades e não, de carências.
É essa crença que fundamenta a concepção antropológica que norteia o meu
pensamento. Acredito, ainda em consonância com Neto (2002, p. 176), “que o ser humano
não pode ser tratado como coisa, que ele não é, mas como um feixe de pulsões, que reage à
exterioridade, independentemente da forma como esta se organiza”.
1.2 A vida como arte de transitar
Feitas essas duas considerações, apresento-me, retomando o pensamento de
Parmênides e Heráclito, sintetizado na perspectiva hegeliana em que a mudança e a
permanência são dimensões peculiares do processo histórico e, de acordo com esse
entendimento, defino metaforicamente a minha trajetória de vida como uma árdua e
maravilhosa arte de transitar entre o equilíbrio e o desequilíbrio de viver.
4
Compreendo o transitar como um processo no qual se faz um caminho de forma
intencional e relativamente consciente, em que constantemente se constrói sonhos, idéias,
valores e saberes, modificando-os de acordo com os desafios que se apresentam no percurso
existencial, visando promover o desenvolvimento da pessoa no contexto em que se encontra.
Um dos significados de transitar, definido no Dicionário Aurélio, é “fazer caminho, passar,
andar, mudar de lugar, remover-se, transferir-se”. (FERREIRA, 2004, p. 1977).
Adoto esta acepção, porque entendo que fui desafiado, em 1984, a transitar aos
nove anos de idade, período em que deixei a vida no campo ao lado dos meus pais, na cidade
de Goianorte, no Estado do Tocantins
3
, para iniciar os meus estudos, morando com a minha
avó em Conceição do Araguaia, no Estado do Pará, onde fiquei durante dois anos estudando.
Ao iniciar os estudos, fui logo promovido para a 2ª série, pois já tinha sido alfabetizado pela
minha mãe por meio de dois livros que possuíamos em casa: a Bíblia para criança e a
Tabuada.
No final de 1985, eu estava muito feliz por ter concluído a 3ª série e obtido os
melhores resultados da minha turma. Outro fator que me deixava empolgado para prosseguir
os estudos era o de perceber a alegria da minha avó, Maria Joana dos Santos, que me elogiava
e dizia que de uma família de aproximadamente vinte e cinco netos, eu era o único naquele
contexto a ler, escrever e contar.
Penso que o entusiasmo daquela saudosa senhora com o meu êxito nos estudos
deu-se por vários motivos, dentre os quais destaco dois. Primeiro, ela era uma camponesa
analfabeta que mudou para a cidade e eu fui uma espécie de leitor-intérprete que devia ler
tudo que lhe interessava, como: receita médica, nome de ruas, de placas, mercados e outros.
Essa tarefa cansava-me bastante, mas foi fundamental para que eu me interessasse mais pelos
estudos.
Um segundo motivo da valorização dos meus estudos pela avó, era o orgulho e o
sonho dela em ver um neto estudado, formado, dizia. Ela tinha uma forte admiração pela
leitura de tal forma que, ao ler a história de Jó, personagem bíblico e símbolo da paciência e
da perseverança em superar os obstáculos da vida, emocionava-se e os seus olhos brilhavam
3
O Estado do Tocantins é o mais novo da federação e possui 139 municípios. Criado em 27 de julho de 1988,
teve como seu primeiro governador José Wilson Siqueira Campos, que tomou posse em 1ª de janeiro de 1989. O
Estado se originou da junção das regiões norte e central, que antes pertenciam ao Estado de Goiás. Em 2000, a
população do Tocantins correspondia a 1.157.098 e a densidade demográfica era de 4,15 habitantes por km2.
Palmas é a capital do Estado e foi fundada em 01/01/1990. Informações obtidas em:
http://www.brasilrepublica.com/tocantins.htm. Acesso em: 04 abr. 2007.
5
quando eu lia. Ao me ouvir, falava: “Meu filho, quando a gente não sabe ler, a gente não
compreende a vida”.
As palavras dela marcaram-me profundamente e me prepararam para enfrentar a
vida, concebendo-a como um bailar entre o equilíbrio (Parmênides) e o desequilíbrio
(Heráclito) de viver. Penso assim, porque no final de 1985, o meu pai Manoel de Jesus dos
Santos visitou-me na casa da avó e eu os ouvi discutindo no quarto, porque meu pai queria
levar-me de volta para a fazenda, pois entendia que, como filho mais velho, deveria eu
trabalhar com ele no campo, ajudando-o a garantir a subsistência da família; enquanto a avó
dizia que jamais me deixaria retornar, porque queria ver o neto dela formado.
Como resultado dessa divergência, tive que voltar à fazenda que ficava distante
sete quilômetros da escola, no Estado do Tocantins. De 1986 a 1990, eu e mais quatro irmãos
percorremos essa distância todos os dias a pé e ainda trabalhávamos no roçado. O único
tempo que tínhamos para estudar era à noite e no trabalho quando se tinha um pequeno
período para descansar. Nesse momento, eu tirava do bolso algumas folhas contendo as
tarefas da escola e me concentrava bastante no estudo, de quinze a vinte minutos. Em seguida,
retornava ao trabalho e ficava pensando no que havia lido de tal forma que, no final do dia, a
lição estava aprendida e uma parte do roçado limpo, pronto para plantar.
Foi nessa tensão entre trabalhar e estudar
4
que concluí a 8ª série em 1990, ano em
que houve uma festa de formatura e, pela primeira vez, o meu pai reconheceu que de fato eu
deveria continuar os estudos, porque antes ele pensava que apenas até a 4ª série seria o
bastante.
Entendo que esse pensamento defendido naquela época por ele explicitava bem o
dualismo da organização escolar brasileira, retratado por Feldmann (1984) no seu trabalho a
Estrutura do Ensino de 1ª Grau: a proposta e a realidade, em que a autora reconhece que o
ensino no Brasil foi marcado pela dicotomia entre a escola da elite e a escola para as camadas
populares, sendo que a primeira tinha a função de preparar os filhos dos sujeitos privilegiados
4
Essa tensão vivida pelos alunos da classe popular, que se manifesta pelo desejo de estudar e, ao mesmo tempo,
trabalhar para garantir o necessário a sua subsistência, expressa-se em partes de dois trabalhos lidos por mim. O
primeiro deles é o de Feldmann (1999) intitulado Escola Pública: Representações, Desafios e Perspectivas, em
que a autora visa identificar as representações que os alunos trabalhadores tem da escola pública, destacando as
suas expectativas em relação ao estudo como uma ferramenta de inserção no mercado de trabalho. Outro é o de
Abramowicz (1996) denominado Avaliando a avaliação da aprendizagem: um novo olhar. A autora objetiva
entender a percepção dos estudantes trabalhadores sobre o processo de avaliação que os têm como sujeitos
participantes. A pesquisa integra a tese de doutoramento da autora e foi desenvolvida numa faculdade particular
de São Paulo. Identificou-se nesse trabalho que o percurso escolar dos alunos trabalhadores é marcado pelo
desejo de conquista de ascensão e valorização sociais perpassados pelo sacrifício que se manifesta na tentativa
de conciliar estudo–trabalho.
6
para terem acesso aos bens culturais; enquanto a segunda possibilitava aos alunos menos
privilegiados a capacidade de ler, escrever e contar.
O fato de o sistema educacional brasileiro ter uma marca discriminatória
contribuiu provavelmente para que o meu mestre
5
internalizasse a idéia de que seus filhos não
deviam saber outras habilidades além daquelas preconizadas pela sociedade instituída. Além
disso, havia outro fator que também o influenciou para que defendesse o não prosseguimento
dos estudos dos filhos, que era a idéia prevalente no sertão do Tocantins de que quanto mais
filhos trabalhando na lavoura com os pais, maior seria a possibilidade de contratação da
família pelos latifúndios, que pagavam o preço da diária do chefe de família e ainda lhe dava
alguns trocados a mais pelo trabalho das crianças.
Nesse contexto, o estudo de um filho poderia trazer sérias conseqüências, pois
reduzia o montante necessário à subsistência da família, além de causar sérios problemas para
o aluno, porque esse se sentia culpado pela crise financeira dos seus genitores.
O sentimento de culpa esteve presente nos meus estudos de tal forma que
constantemente pensava em desistir, porque entendia que devia trabalhar o dia todo no campo.
Não abandonei a escola devido ao incentivo de minha mãe, professores e alguns amigos.
Nesse sentido, eu vivia um conflito terrível porque, ao mesmo tempo em que devia ser
produtivo na plantação, também havia uma cobrança do sistema de ensino que me exigia bons
resultados.
Foi nesse transitar conflituoso entre a luta pela subsistência e a necessidade de
reflexão sistematizada, que concluí o 1ª grau sem nenhuma nota abaixo da média exigida pelo
sistema educacional e, em 1991, iniciei o magistério no período noturno, pois recebi uma
proposta para trabalhar como professor de uma escola rural próxima à fazenda onde eu
morava.
5
Refiro-me ao meu pai, que naquele contexto não percebia o valor dos estudos, porém o embate com os filhos e
a esposa, defensores da escolarização, associado às transformações de cunho político, social e cultural no país,
contribuíram para que ele metamorfoseasse o seu pensamento de tal forma que, atualmente, é o sujeito mais
empolgado com a formação dos filhos. Apesar de ele não ter percebido naquele contexto o valor dos estudos,
reconheço o seu valor na luta pelas melhores condições de vida no campo, pois tinha uma participação ativa na
Pastoral da Terra, nas novenas e encontros dos trabalhadores rurais coordenados pela Igreja católica. Essa sua
militância e o fato de estar morando com a sua família na fazenda de um latifundiário fizeram com que fosse
ameaçado de morte em 1988. Mesmo assim, protegido pelos religiosos e advogados da referida Igreja lutou ao
lado dos trabalhadores. Tenho uma profunda admiração por ele, pois o tenho como uma figura que representa a
resistência e a utopia, entendida como a possibilidade daquilo que ainda não é, mas que poderá ser. Sobre a
definição ver More (2005).
7
Lecionei durante dois anos pela Prefeitura Municipal de Goianorte e desisti dos
estudos e do trabalho em seguida, porque numa conversa com uma irmã religiosa
6
formada
em Pedagogia e professora no curso de magistério, ela me disse que a formação naquela
escola jamais me prepararia para o ingresso numa universidade devido à baixa qualidade do
ensino. Decepcionado, abandonei os estudos e todas as atividades de coordenação que eu
assumi de grupos de jovens da Igreja Católica
7
e pedi informação acerca de colégios que me
preparassem para o ingresso na academia.
Esse foi um dos momentos mais desafiadores da minha vida, porque papai dizia
que eu estava fazendo uma loucura e que ele não tinha condições de me ajudar
financeiramente nos estudos e, por outro lado, a minha mãe, que era o meu porto seguro, ficou
indecisa com a minha ruptura brusca, pois eu não tinha feito nenhum comentário com ela
sobre o assunto.
Nesse dilema entre o permanecer em casa -zona de equilíbrio - o sair dela - ponto
de desequilíbrio-, apostei em prosseguir os estudos fora do aconchego do lar e ingressei no
Colégio Agrícola em 1993. O referido colégio ficava numa fazenda afastada quatro
quilômetros da cidade de Pedro Afonso e a aproximadamente duzentos e cinqüenta do local
onde os meus pais moravam, o que fez com que eu tivesse contato com eles apenas no final de
cada semestre.
No Colégio Estadual Agrícola
8
, o currículo do curso Técnico em Agropecuária era
organizado em duas grandes áreas de formação: a geral e a especial. Na primeira delas havia
quatorze disciplinas, dentre elas: Língua Portuguesa, Literatura Brasileira, Língua Estrangeira
Moderna (Inglês), Matemática, Geografia, História, Organização Social e Política do Brasil,
Física, Química, Biologia, Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e
Programa de Saúde. Na especial havia mais quatorze disciplinas, como: Redação e Expressão,
Administração e Economia Rural, Cooperativismo, Desenho e Topografia, Zootecnia I, II e
6
No meu entender, a primeira ordem religiosa a se estabelecer em Goianorte foi a das irmãs franciscanas na
década de 80. Essas irmãs exerceram uma forte influência religiosa na região, atuando diretamente nas áreas da
saúde e educação e foram as primeiras professoras a atuarem no magistério como graduadas. Todos os outros
professores que lecionavam no magistério tinham essa mesma formação. Atualmente, essa cidade tem uma
população estimada em 4.608 habitantes (IBGE, 2006), com uma área territorial de 1.801 km2. Ainda hoje, os
alunos que pretendem obter uma formação superior mudam-se para as maiores cidades do Estado, como Porto
Nacional, Araguaína, Gurupi e Palmas (capital), onde se encontram as faculdades e universidades. Os dados
referentes a Goianorte foram obtidos em: <
http://www.ibge.gov.br-IBGE-cidades@>. Acesso em: 04 abr.2007.
7
Engajei-me nas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica em 1988 e, ao mesmo tempo, assumi o cargo
de coordenador do grupo de jovens da cidade de Goianorte, participando ativamente com outros grupos da região
norte.
8
O colégio ficava próximo a Pedro Afonso, pequena cidade com uma população estimada em 9.017 habitantes
em 01/07/2006.
8
III, Agricultura I, II e III, Irrigação e Drenagem, Construção e Instalação Rural, Mecânica
Agrícola e Estágio Supervisionado.
O corpo docente era constituído por professores graduados em diversas áreas
como Agronomia, Letras, Veterinária, Administração e História, e o curso tinha duração de
três anos, sendo que após esse período o aluno saía habilitado para atuar como Técnico em
Agropecuária nas grandes fazendas e indústrias da região.
Durante o período de formação nesse colégio, dediquei-me de forma disciplinada
aos estudos
9
ao mesmo tempo em que continuei engajado nos movimentos populares da Igreja
Católica. Como resultado da convivência com os religiosos e da identificação comprometida
com os trabalhos desenvolvidos pela Igreja nas comunidades rurais, ingressei na vida religiosa
no final de 1995, em Fortaleza
10
, onde fui seminarista da Congregação Redentorista do Norte
do Brasil, formando-me em Filosofia no Seminário Regional da Prainha (antiga Faculdade de
Filosofia de Fortaleza).
1.3 As lições aprendidas na trajetória de vida
Antes de adentrar na outra etapa de minha vida, sintetizo algumas lições que
aprendi nessa trajetória apresentada, na qual me considero um sujeito aprendente
11
. Dentre
elas, destaco:
Que a crença na vida como possibilidade de transitar entre desafios e
conquistas não é uma dádiva de alguém para outros sujeitos sociais, mas é
uma conquista que se dá de forma progressiva e que exige o amor-próprio, a
disciplina, a ousadia e a resiliência entendida como a capacidade de o sujeito
resistir aos fatores obstaculizadores do seu desenvolvimento, superando-os
de forma criativa.
Que a conquista de um ideal não é produto da ação de um sujeito
isolado, mas de uma crença compartilhada com outros sujeitos sociais.
9
Nesse período, fiz amizade com a bibliotecária e com o diretor do Colégio que me permitiram dormir na
biblioteca e, à noite, eu podia me deliciar com os livros de Machado de Assis, Rachel de Queiroz, José de
Alencar, as poesias de Castro Alves, Fagundes Varela, Casimiro de Abreu e Manuel Bandeira. Estes autores
tornaram-se os meus melhores amigos, com quem dialogava na madrugada.
10
Fortaleza é a capital do Estado do Ceará e se “limita ao norte pelo Oceano Atlântico, ao sul pelos municípios
de Pacatuba, Eusébio, Maracanaú e Itaitinga; a leste por Aquiraz e Oceano Atlântico e a oeste pelo município de
Caucaia”. Fortaleza tem 2.141.402 habitantes, sendo a quinta cidade mais populosa do país. (Conselho
Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente - COMDICA, 2004).
11
O termo é de Fagali e Vale (1993) e se refere ao sujeito que se encontra sempre em processo de formação.
9
Que o ser humano é condicionado pelos diversos fatores políticos,
sociais, culturais e econômicos, mas não é determinado por eles e, por esse
motivo, deve acreditar na possibilidade de mudança.
Que o sonho impossível de hoje pode ser possível de concretizar no
amanhã não tão distante, mas exige outros fatores como a perseverança
aliada à força de vontade e à solidariedade autêntica de sujeitos co-
responsáveis pela transformação histórica.
Que a história não é determinação, é transitar do que é para o que deve
ser e que sendo, torna-se devir. É no bailar dialético-histórico que o ser
humano torna-se um relampejo de existência, mas que, mesmo com uma
existência provisória, é capaz de encantar-se com a provisoriedade do existir.
1.4 Do transitar da religião à rua
É a partir desse conjunto de saberes construídos de forma individual e coletiva
que, neste momento, compartilho outra etapa da minha trajetória. Em 1999, por motivos de
divergências ideológicas, solicitei aos padres redentoristas o meu afastamento da Comunidade
religiosa e, em seguida, fui contratado pela Fundação da Criança e da Família Cidadã
12
-
FUNCI- uma Organização Governamental fundada em 1994 e vinculada à Prefeitura
Municipal de Fortaleza- para trabalhar como educador social com crianças e adolescentes em
situação de rua.
Nesse trabalho, deparei-me com vários desafios dentre os quais destaco dois. O
primeiro deles diz respeito ao meu contato com a realidade desumanizadora vivenciada pelas
crianças e jovens em situação de moradia na rua. Senti-me pasmo diante de alguns problemas
mais comuns que esses sujeitos enfrentavam, como o uso indevido de drogas, a prostituição
infanto-juvenil, a ameaça de morte pelos traficantes e/ou transeuntes, a violência doméstica, a
baixo auto-estima, a pobreza e a mendicância de suas famílias.
Essa realidade de abandono dos familiares das crianças e jovens em situação de rua foi
explicitada através de alguns resultados de uma pesquisa realizada em 1998, denominada
Tendências Atuais da Família da Criança e do Adolescente em Situação de Risco em
Fortaleza. Quatrocentas e uma (401) famílias participaram da pesquisa, sendo que 292 delas,
correspondendo a 72,8% do total, disseram sobreviver com uma renda per capita de 50% do
12
Essa Instituição é o lócus da pesquisa e será indicada a sua missão na metodologia deste trabalho.
10
salário mínimo. Por outro lado, a pesquisa mostrou que, do total pesquisado, 153 famílias
(38%) sobreviviam com a renda per capita equivalente a 25% do salário mínimo.
Num segundo estudo realizado pela Equipe Interinstitucional
13
em 2002, intitulado O
Perfil da Criança e do Adolescente Morador de Rua de Fortaleza, foram contactados
trezentos e sessenta e sete (367) crianças e adolescentes. Desses, trezentos e sete (307) - o que
corresponde ao percentual de 84% - usavam drogas. Apenas 18 (5%) afirmaram que nunca
usaram qualquer tipo de droga. Treze crianças/adolescentes (4%) declararam que deixaram de
usar drogas; 29 dos entrevistados (8%) não responderam.
Mesmo diante desse contexto, na prática educativa desenvolvida na rua, percebi
através de observações e registro de falas de crianças e jovens, alguns de seus sonhos,
potencialidades e desejos de mudança. Sonhavam com uma escola que os concebesse como
sujeitos portadores de idéias e valores, com uma sociedade mais humana e reivindicavam
carinho e atenção dos familiares, educadores e demais pessoas. Muitos denunciavam os tipos
de violência que sofriam na rua, entre as mais comuns a física e a psicológica. Parece-me que
essas atitudes sinalizam a necessidade e a vontade de esses sujeitos serem considerados como
cidadãos e de superarem os obstáculos que os impediam de viver a sua vocação ontológica
(FREIRE, 1996), que é ser sujeito da história e não, objeto dela.
Cônscio das potencialidades desses sujeitos, vi-me diante de um segundo desafio que
se referia à minha formação. Eu era recém-formado em Filosofia e conseguia identificar
alguns fatores econômicos, políticos, sociais e culturais que contribuíam, e ainda contribuem,
para que a criança e o jovem estivessem na rua. Porém, o trabalho educativo com esses
educandos exigia de mim o domínio de outros saberes que pudessem retratar as problemáticas
vivenciadas por eles na rua. E, nesse sentido, além de conhecer aspectos da história dos
educandos, eu deveria também realizar oficinas educativas, abordando temas como:
Dsts/AIDS, identidade, prevenção às drogas, violência doméstica, auto-estima e Estatuto da
Criança e do Adolescente.
Esse conjunto de temas desafiava-me, porque a minha formação filosófica, que
considero de suma importância, naquele contexto ajudava-me bastante, mas exigia também o
domínio de outros conhecimentos complementares e interdisciplinares para que eu pudesse
13
A Equipe Interinstitucional é composta por um conjunto de entidades que trabalham em parcerias,
desenvolvendo um trabalho socioeducativo junto às crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social
em Fortaleza: Associação Curumins, Pastoral do Menor, Casa do Menor São Miguel Arcanjo, Pequeno
Nazareno, Fundação da Criança e da Família Cidadã, e outras.
11
atender às especificidades das demandas. Isso fez com que eu participasse de cursos de
formação para educadores sociais e dedicasse a minha leitura mais para essa área de atuação.
Com essa intenção, dediquei-me à leitura de alguns educadores como Freire (1987;
1992; 1996; 2004; 2005; 2006), Graciani (2001), Costa (1991; 1999), Rizzini (1997; 2003;
2004), Lucchini (2003) e Makarenko (1986), que me ajudaram e ajudam na prática educativa
com crianças e adolescentes em situação de rua.
Das contribuições desses autores, destaco a importância deles para a compreensão da
lógica acumulacionista do mercado, que tem como paradigma fundante a racionalidade
instrumental, entendida como uma forma de pensamento que reduz o ser humano a um
instrumento de produção de bens materiais, e o seu valor é restrito à sua capacidade de
produzir e consumir os produtos do mercado.
Nessa lógica utilitarista, na qual o ter suplanta o ser social, as crianças e adolescentes
em situação de rua são considerados desprovidos de valores, improdutivos para o mercado
capitalista, marginais em potencial e perigosos ao convívio social.
Outra contribuição foi a de Antônio Carlos Gomes da Costa no seu livro Pedagogia
da Presença (1991), em que destaca a importância de o educador tornar-se presente de forma
solidária e significativa na vida do educando em situação de risco. Nessa perspectiva, o autor
alerta também para que o educador fique atento a alguns mitos que perpassam a sua prática
educativa.
Dentre eles, Costa destaca o da não-conflitividade, em que em nome de uma pseudo-
harmonia, alguns educadores evitam discutir os conflitos vividos pelos educandos, o que os
impede de ter consciência dos seus limites e possibilidades para poderem desenvolver-se de
forma integral. Outro mito é o da horizontalidade através do qual o educador se diz igual ao
educando, desconhecendo o poder presente na relação educador-educando. Para o referido
autor, o desafio encontra-se na capacidade de o educador transformar o poder em serviço a
favor da promoção da dignidade e da autonomia do educando.
O terceiro é o da naturalidade por meio do qual alguns educadores entendem que na
sua prática não se faz necessário planejar, porque é uma perda de tempo e que tudo flui
naturalmente. Os defensores dessa idéia acreditam que são educadores por vocação e que
nasceram como certos dons especiais.
Contrapondo-se a essa prática pedagógica, o mesmo autor defende a intencionalidade
do trabalho educativo, entendendo-o como ação conscientemente planejada, sistematizada,
12
avaliada e com finalidade definida a tal ponto que possibilite ao educando tornar-se
consciente dos reais fatores que o levaram à situação degradante em que vive.
O quarto mito é o da suavidade, caracterizado pela crença do educador na existência
de um processo educativo que se efetiva sem estabelecer limites para a vida do educando e,
nesse sentido, torna-se licencioso. Em consonância com Freire (1987), Costa (1991) opõe-se à
licenciosidade e defende a necessidade de estabelecer os limites para que os educandos
entendam que são sujeitos pertencentes a um convívio social em que todos têm direitos e
deveres.
O diálogo estabelecido com os autores ensinou-me a compreender também que:
por mais que a prática educativa na rua seja marcada pelo inusitado, ainda
assim exige do educador um rigoroso planejamento das atividades para que
ele possa, de fato, superar os mitos que perpassam o seu fazer educativo, que
deve ser alicerçado no tripé ação-reflexão-ação;
o fim do trabalho educativo na rua é o transitar relativamente consciente do
educando para as instituições de atendimento que o promovam como sujeito
da história;
na rua não se educa apenas para os valores instituídos pela sociedade e nem
para os do universo da rua, educa-se para a participação ativa na sociedade;
os educandos são portadores de sonhos e saberes forjados na rua e que se bem
orientados pelos educadores, familiares e outras pessoas da sociedade civil,
podem assumir-se enquanto cidadãos críticos e participativos na sociedade;
o educador é um propagador de uma nova concepção da criança e do
adolescente em situação de rua, em que eles deverão ser concebidos não
como carências, mas como potencialidades de sonhos, de desejos e saberes
instituintes;
a rua é um espaço marcado dialeticamente pela díade consenso-dissenso;
amor-ódio; paz-guerra. Sem essa compreensão, diaboliza-se a rua e os sujeitos
que nela vivem e se perde a visão de totalidade, radicalidade e de construção
crítica da realidade;
o educador é um articulador junto às diversas instituições da sociedade civil
para promover a efetivação dos direitos e melhores condições de vida para
13
todas as crianças, como preconizado pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA, 1990).
Essa aprendizagem em construção, com base no diálogo com os autores acima e no
confronto das suas idéias com o espaço rua, possibilitou-me confirmar uma crença que tenho
no humano como devir existencial e a ter uma certa clareza acerca dos fatores que
obstaculizam o seu desenvolvimento enquanto sujeito histórico.
1.5 Da experiência no trabalho de formação de educadores sociais
A partir desse trabalho educativo com crianças e adolescentes em situação de rua, fui
convidado, em 2003, por uma coordenadora de Programas Sociais da Fundação da Criança e
da Família Cidadã-FUNCI, para trabalhar na Equipe Sócio-Pedagógica, responsável pela
formação do educador social. A equipe era composta por quatro pedagogos, que
acompanhavam o trabalho do educador e promoviam encontros de formação, através dos
quais percebemos o quanto o profissional que atuava na área da educação social necessitava
de uma consistente formação teórica que norteasse a sua prática educativa.
Diante dessa constatação, a equipe sócio-pedagógica sistematizou um curso de
formação
14
continuada entendida como aquela que se realiza no lócus de trabalho e que visa
refletir com os educadores sobre os desafios emergentes da sua práxis educativa (LUCK,
2000). Com tal intuito, organizou-se então seis módulos com temáticas que abordavam o
conjunto de problemas enfrentados pelo educador na rua. Os temas abrangiam: prevenção ao
uso indevido de drogas, gênero, sexualidade, cidadania (Estatuto da Criança e do
Adolescente-ECA, Lei Orgânica da Assistência Social-LOAS) e psicologia da criança e do
adolescente.
O período de estudo de cada módulo correspondia a dois meses e a discussão sobre os
temas era mediada pela equipe sócio-pedagógica e pelos palestrantes advindos de
Organizações Não-Governamentais (ONGs) e Organizações Governamentais (OGs) de
Fortaleza.
Por meio dessa primeira experiência com a formação do educador social, tive a
oportunidade de perceber, nos grupos de formação, algumas dificuldades, reivindicações e
conquistas presentes na sua prática educativa, que foram registradas no Caderno de Registro
da Equipe de formação. Dentre as dificuldades, percebia-se que no trabalho educativo do
14
Os encontros de formação aconteciam nas três primeiras sextas-feiras de cada mês. Foram organizados seis
grupos de educadores, sendo que cada um tinha quinze participantes.
14
educador social pouco se considerava a história de vida dos educandos em situação de rua,
desprezando os seus sonhos, crenças e saberes, o que contribuía para que muitos desistissem
do tipo de acolhimento oferecido pela instituição. Outro entrave é que, parece, havia também
uma prática educativa descolada de uma sólida fundamentação teórica.
Quanto às reivindicações, esses profissionais reclamavam por um maior
reconhecimento e valorização da sua profissão, tanto pela instituição que os contratava para a
realização de suas atividades quanto pela sociedade, e solicitavam também um curso
acadêmico que melhor pudesse capacitá-los para atender aos desafios que perpassavam a sua
profissão
15
.
No que diz respeito às conquistas, muitos educadores demonstravam que tinham
consciência acerca dos fatores políticos, econômicos, sociais e culturais que contribuíam para
que a criança e o adolescente estivessem na rua e, a partir daí, denunciavam em diversos
espaços como seminários, reuniões da Equipe Interinstitucional e em jornais como o Diário
do Nordeste, exigindo, da sociedade e do Estado, uma ação mais efetiva para solucionar e/ou
minimizar a situação desumana na qual se encontravam as crianças e os jovens.
Ao lutar pela efetivação dos direitos dos sujeitos que se encontravam na rua, os
educadores sociais preocuparam-se também com a valorização da sua profissão, fundando no
dia 07 de janeiro de 2004 a Associação dos Educadores Sociais do Estado do Ceará-AESC,
que teve um valor significativo para o educador social ao representar as suas demandas
referentes às questões salariais, formação e a sua segurança no momento de realização da
prática educativa na rua.
Era comum os educadores serem ameaçados de morte pelos traficantes que se
revoltavam, pois os seus ganhos ilícitos eram reduzidos com a saída dos meninos em situação
de rua para as instituições de atendimento como escolas e projetos sociais. Nesse contexto, a
Associação promoveu encontros através dos quais explicitava as demandas dos educadores
para as instituições que os contratavam e exigia delas a segurança e a valorização desses
profissionais.
Em 2004, tive uma segunda experiência com a formação do educador social na Casa
do Menor São Miguel Arcanjo - uma Organização- Não Governamental (ONG) que atua com
15
Em alguns países como Portugal e Espanha já existem cursos de Graduação e Pós-Graduação (strictu sensu)
para educadores sociais, porém faz-se necessária uma séria observação sobre as especificidades das propostas
educativas desses países, para que não se faça uma transposição cultural para a realidade brasileira. Esse assunto
será discutido com maior profundidade no próximo capítulo.
15
crianças, adolescentes e famílias em situação de risco e vulnerabilidade social. Nessa
Instituição, identifiquei, a partir de conversas informais com os educadores e de registros de
suas falas durante o Curso Básico de Formação
16
, alguns pontos fortes da sua prática
educativa, dentre eles a reivindicação por melhores condições de vida para as crianças e
adolescentes em situação de rua e a paixão pela sua profissão. Por outro lado, percebi alguns
desafios como a licenciosidade e/ou o autoritarismo, que ainda persistiam no trabalho
educativo de alguns desses profissionais.
Porém, de todos esses desafios, algo que me marcou profundamente no trabalho de
rua e que também foi explicitado pelos educadores no Curso de Formação é o olhar rotulante
da sociedade brasileira sobre as crianças e jovens da classe popular, em especial, aqueles que
se encontram em situação de rua.
Os educadores sociais percebiam claramente essa estigmatização de populares em
relação à criança e ao adolescente e a criticavam em alguns momentos da formação.
Entendiam o olhar estigmatizador como desumano, porque negava as potencialidades e
enfatizava apenas os aspectos negativos da vida dos educandos em situação de rua,
concebendo-os como trombadinha, cheira-cola, mirins e outros adjetivos com sentido
pejorativo.
Naquele contexto, estava relativamente claro como grande parte da sociedade
percebia os meninos e meninas que se encontram em situação de rua, todavia, com base nos
estudos freireanos, perguntava-me: será que o educador, que é um sujeito social portador de
uma cultura que enfatiza os aspectos negativos dos educandos em situação de rua, ao criticar
essa idéia, ele de fato a superou de tal forma que os concebe como feixe de potencialidades?
Em outros termos, quais as representações sociais que o educador tem sobre a criança e o
adolescente em situação de rua?
16
O trabalho de formação com os educadores sociais foi organizado didaticamente em nove módulos: a)
Identidade do educador social; b) Prevenção ao uso indevido de drogas; c) Gênero; d) Sexualidade; e) História
da criança e do adolescente no Brasil; f) Cidadania (Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA e Lei Orgânica
da Assistência Social - LOAS); g)Psicologia da infância e da adolescência; h) As possíveis contribuições para a
formação do educador social a partir da pedagogia freireana e i) Planejamento e elaboração de projetos sociais.
A formação teve início em 12 de novembro de 2004, com carga horária de cento e trinta horas-aula, e atendeu
quarenta e dois educadores, sendo que, desses, apenas trinta concluíram o curso em dezembro de 2005.
A realização do Curso tornou-se possível por meio de parcerias com quatro núcleos da Universidade Federal do
Ceará-UFC ( Núcleo de Psicologia Comunitária-NUCOM; Centro de Assistência Jurídica Universitário-CAJU;
Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Criança-NUCEPEC; Núcleo de Estudo sobre Gênero, Idade e Família-
NEGIF) e outras parcerias com o Grupo de Apoio às Comunidades Carentes-GACC e a Associação Francesa
Entre Aide (Entre e Ajude). A partir do investimento financeiro dessa última Instituição, estruturou-se uma mini-
biblioteca para pesquisa dos educadores sociais e uma sala de leitura para as crianças e os adolescentes atendidos
pela Casa do Menor São Miguel Arcanjo.
16
A partir dessa indagação matricial, que se constitui como problema desta pesquisa,
definiu-se então o seu objetivo principal: identificar e analisar as representações sociais dos
educadores sobre a infância e a adolescência em situação de rua.
Com esse intuito, o trabalho dissertativo sistematiza-se em torno de mais três
questionamentos inter-relacionados com o problema dessa investigação, sendo que cada um
deles corresponde a um objetivo específico. Assim, o conjunto de indagações foi organizado
da seguinte forma:
Nesta introdução, a pergunta que respondo é: por que faço o que faço?
Tenho como objetivo específico compartilhar a minha trajetória na qual
explicito conquistas e desafios e demonstro as motivações que tenho e a
profunda relação entre mim e o que pesquiso.
No primeiro capítulo, intitulado Da educação social européia à educação
social de rua: olhar panorâmico, objetivo responder uma segunda questão:
de onde surge o fazer educativo
17
do educador social e a quem se destina?
Neste capítulo, viso construir uma perspectiva panorâmica da Educação
social européia e da Educação social de rua no Brasil, destacando a origem
do educador de rua, as suas funções e o processo de institucionalização da
sua profissão, bem como a finalidade do seu trabalho educativo.
No segundo capítulo, denominado de A criança e o adolescente em
situação de rua no Brasil: trajetória histórica, objetivo responder o
seguinte questionamento: como os sujeitos do fazer educativo do educador
foram concebidos na sociedade brasileira? Objetivo dialogar com os
autores a fim de obter resposta para tal indagação.
No terceiro capítulo, intitulado Referencial Teórico: as representações
sociais, dialogo com os autores como Moscovici (1995, 2001, 2003,2005) e
Jodelet (2001, 2005), tendo como finalidade demonstrar a importância do
referencial teórico para a investigação.
No quarto capítulo, em que se apresenta a Metodologia deste trabalho que
tem como modalidade a pesquisa qualitativa, intenciono demonstrar a
relevância dela para a compreensão do problema, adotando o Grupo Focal
(GATTI, 2005) como técnica de captura dos dados, organizando-os
17
Como fazer educativo entendo a prática educativa consistente por que alicerçada no tripé ação-reflexão-ação.
17
segundo as quatro dimensões das representações sociais: a informacional, a
imagética, a afetiva e a atitudinal.
No quinto capítulo, Análise e interpretação dos dados, identifico e analiso
as representações dos educadores sociais, destacando o seu período
histórico de emergência, os sentimentos e imagens dos educadores
atribuídos a cada uma delas, o seu núcleo central e algumas práticas sociais
que as explicitam no contexto atual.
Entendo que esta pesquisa pode tornar-se relevante na medida em que visa contribuir
para que o educador, ao rever os tipos de representações sociais que subjazem a sua prática
educativa, promova-a com uma maior qualidade a fim de que ela seja uma ferramenta de
inclusão dos educandos que se encontram em situação de rua, concebendo-os junto com a
sociedade como sujeitos de direitos e imanentes e transcendentes.
Assim sendo, remete-se, nesse momento, para o primeiro capítulo do trabalho e nele
se tece uma visão panorâmica sobre a Educação social européia e a Educação social no Brasil,
identificando as suas áreas de atuação e as funções desenvolvidas pelos educadores,
principalmente daqueles que atuam no espaço rua.
18
Capítulo I- Da educação social européia à educação social de rua: um olhar panorâmico
Como definido anteriormente no objetivo deste capítulo, far-se-á então um breve
resgate histórico da Educação social a fim de demonstrar de onde surge e a quem se destina o
fazer educativo do educador social, em especial, daquele atuante no espaço rua. Essa tarefa
torna-se relevante para este trabalho por três razões básicas. Primeiro, porque possibilita
entender como se configurou historicamente a ação educativa do educador social; segundo,
pelo fato de se destacar algumas de suas atribuições, desafios e saberes que alicerçam a sua
prática educativa e, terceiro, é que essa discussão proporciona conhecer um pouco o educador
social para, posteriormente neste trabalho, analisar as suas representações sociais sobre a
criança e o adolescente em situação de rua.
Com esta intenção, discorre-se então sobre a Educação social européia. Essa surgiu
na Alemanha no século XIX e tinha como objetivo principal contrapor-se à educação escolar,
que na época era considerada elitista e verbalista, enfatizando apenas o desenvolvimento
individual em detrimento da dimensão social. Nesse contexto, entendia-se a Educação social
como uma nova proposta educativa que, fundamentada num conjunto de conhecimentos e
habilidades, preocupava-se em promover o desenvolvimento das pessoas, principalmente das
mais marginalizadas, contribuindo para que essas pudessem participar ativamente do seu
grupo social.
Nessa perspectiva, a expressão Pedagogia Social foi utilizada na Alemanha, pela
primeira vez, aproximadamente na metade do século XIX, pelo editor da Revista Pedagógica
Karl Mager
18
. Em 1844, ele a concebia como uma forma alternativa de promover o
compromisso e o desenvolvimento humanos no convívio social.
A Pedagogia Social tornou-se mais popular na Alemanha a partir do trabalho de
Friedrich Diesterweg, educador prussiano, que proferiu várias palestras nas quais defendia a
idéia de que ‘se aprende fazer, fazendo’. Esse educador
19
acreditava que todas as pessoas
tinham a capacidade para se desenvolver de forma integral, incluindo as dimensões individual
e coletiva.
18
Essas informações foram obtidas no site: http://www.indef.org/index.htm. Acesso em: 02/03/2007. O trabalho
original está em inglês com o título: Social Pedagogy.
19
Diesterweg foi bastante influenciado pelo pensamento de Rousseau, Pestalozzi e Froebel.
19
No século XX, Paul Nartop
20
considerado o pai da Educação social, publicou um
livro intitulado Pedagogia social, no qual ele fazia uma dicotomia entre a educação escolar e
a extra-escolar, entendendo que a primeira delas não contribuía o bastante para a construção
de valores como a solidariedade, a compaixão e o respeito pelos marginalizados.
De acordo com essa perspectiva, sentia-se a necessidade de uma educação diferente
daquela do espaço escolar que promovesse um trabalho educativo para potencializar os
sujeitos sociais, a fim de esses se engajarem em sua comunidade, superando o individualismo.
Nesse sentido, Petrus (2003, p.54), parafraseando o pensamento de Nartop, diz que ele: “... se
referia não só à educação em suas formas tradicionais e à educação individual, mas também à
educação do homem que vive em comunidade. Daí o desejo de que a pedagogia social, como
ciência social, bebesse do direito, da política e da economia”.
Parece que na trajetória da educação social houve sempre um confronto desta com a
instituição escolar que enfatizava o desenvolvimento individual, enquanto aquela, o social.
Para Petrus (2003), o desafio atual encontra-se em saber conciliar e perceber a importância
dessas duas áreas de produção do conhecimento.
Na Espanha, a denominação pedagogia social surge pela primeira vez em 1915
numa palestra ministrada por dois educadores espanhóis, Ortega e Gasset, cujo tema era
Pedagogía social como programa político, mas somente em 1960 é que se consolida com o
apoio de duas universidades, a de Complutense e a de Barcelona, que a adotaram como
disciplina optativa no curso de Pedagogia.
Esse saber emergente tornou-se mais significativo naquele país somente no período
pós-guerra em que os educadores passaram a trabalhar com crianças órfãs, vítimas do
confronto armado.(RIBEIRO, 2006).
Outro fator ainda determinante para a divulgação e consolidação da Pedagogia Social
na Espanha foi o movimento Pioneiros, formado pelos educadores sociais, que realizavam um
trabalho educativo na cidade de Logroño. Esses eram todos voluntários e eles mesmos se
denominavam educadores especializados, porque atendiam crianças em situação de
marginalidade
21
ou tidas como delinqüentes. Esse mesmo grupo de profissionais se organizou
20
Essa reflexão encontra-se no site: http://www.deusto.es/estudios/titulaciones/asignaturas.asp. Acesso em: 10
dez.2006. O texto tem como título: Aparición de La Educación Social.
21
De acordo com Ferreira (1983), parafraseando Cardoso (1973), a marginalidade é entendida não como um ‘
não-pertencer’, mas como uma forma de participação do sujeito social no sistema capitalista em que ele
permanece como subserviente, tornando-se incapaz de interagir de forma ativa nas decisões da sociedade em que
vive.
20
e fundou a Federación de Associaciones de Educadores Especializados, que visava fortalecer
a categoria profissional e garantir um melhor atendimento às crianças e aos jovens.
Esse primeiro movimento de organização profissional contribuiu bastante para a
divulgação dos trabalhos desenvolvidos pelos educadores sociais que, unidos aos professores
universitários, reivindicaram um maior reconhecimento profissional, o que resultou na
aprovação, pelo Ministério da Educação espanhola, do bacharelado em Educação Social em
1991.
A partir desse marco histórico importante para a consolidação dos trabalhos do
educador social, percebe-se que a Espanha tornou-se um dos países que mais desenvolveu a
Educação Social, oferecendo cursos em nível até mesmo de pós-graduação como o Mestrado
e o Doutorado.
A título de exemplificação das várias universidades que trabalham com a formação
do educador social na Espanha, a de Deusto
22
ministra um curso em nível de bacharelado com
duração de três anos e com um currículo organizado com as seguintes disciplinas: Estatística,
Pedagogia do ócio, Pedagogia social I, Psicologia básica, Serviços sociais, Psicologia
comunitária, Educação cidadã, Intervenção socioeducativa com pessoas portadoras de
necessidades especiais, Ética fundamental profissional e programas de intervenção em meio
aberto, Programas de intervenção educativa com a terceira idade, Intervenção educativa
familiar, Animação sociocultural, Gestão de centros educativos, Didática Geral, e outras.
Com esse currículo de formação, a referida Universidade define a educação social
como uma das áreas da Ciência da educação que estuda a ação educativa nos espaços extra-
escolares, possibilitando aos educadores sociais atuarem em quatro áreas principais:
a) Exclusão social-envolvendo questões referentes à violência infantil, à violência
contra a mulher, à drogadição
23
e aos sem-teto.
b) Formação e inserção para o mercado de trabalho. Cabe ao educador: orientar os
sujeitos para a busca do primeiro emprego e possibilitar a formação deles para a inserção no
mercado de trabalho. As pessoas atendidas são: jovens e adultos das classes menos
privilegiadas da Espanha, incluindo os imigrantes.
22
A Universidade de Deusto oferece o bacharelado e, neste trabalho, foram apresentadas apenas algumas
disciplinas, que compõem o currículo de formação do educador social. Para aqueles que desejam maiores
detalhes, consultar o site: <
http://nuevosestudiantes.deusto.es/servlet/Satellite/Estudio/>. Acesso em: 16
abr.2007.
23
No caso da toxicodependência, os educadores trabalham nas comunidades terapêuticas, fazendo parte da
equipe multidisciplinar formada por médicos, psicólogos e assistentes sociais.
21
c) Ócio, tempo livre e desenvolvimento comunitário. Nessa área, o educador social
atua como um animador que promove eventos em diversos espaços, como: clubes, abrigos de
idosos, centros culturais, brinquedotecas, e outros.
d) Educação cidadã – desenvolvida em diversos espaços de discussão sobre os
direitos humanos e visa estimular a participação ativa dos sujeitos sociais na sociedade,
mediante processo de conscientização. Os espaços de efetivação desse tipo de educação são:
ONGs, Associações, institutos e outras entidades engajadas na efetivação dos direitos
humanos.
Para Trilla (2003), professor e diretor do Departamento de Teoria e História da
Educação da Universidade de Barcelona, essas áreas de atuação do educador social podem ser
sintetizadas apenas em três: educação especializada (EE), que se destina a atender pessoas que
se encontram em situação de vulnerabilidade social, crianças, jovens e adultos; a educação de
pessoas adultas (EPA) que atende, em especial, adultos da terceira idade. E a terceira área, a
mais ampla em relação às duas anteriores, atende diversos tipos de sujeitos sociais, como
crianças, adolescentes, jovens, adultos ou idosos. Esse espaço de atuação da educação social é
definido como animação sociocultural (ASC) e tem como objetivo desenvolver atividades
lúdico-recreativas.
Reconhecendo esses três âmbitos de atuação do educador social, o autor afirma que
o conceito de educação social que mais traduz o seu sentido é aquele que contempla três
características básicas, que são: “a) dirigem-se prioritariamente ao desenvolvimento da
sociabilidade dos sujeitos; b) tem como destinatários privilegiados indivíduos ou grupos em
situação de conflito social; c) tem lugar em contextos ou por meios educativos não-formais”.
(2003, p.28).
Essa compreensão do autor torna-se importante na medida em que demarca o campo
de atuação do educador social - o contexto extra-escolar-, todavia entende-se que há uma
tendência de ainda continuar o dualismo historicamente construído entre educação escolar e
educação social. Compreende-se que o grande desafio encontra-se numa possível interação
entre os dois tipos de educação e que, mesmo com as divergências entre elas, possa encontrar
os elementos comuns que as unam e contribuam para a solução e/ou minimização dos
problemas sociais.
22
Defensor do princípio de complementaridade-reciprocidade entre educação escolar e
extra-escolar, Petrus (2003, p.55) entende que a educação social, quando focaliza as questões
referentes às problemáticas da marginalização e de socialização,
[...] deveria educar para a participação social, o qual pode incidir, em primeiro lugar,
nas estruturas cognitivas e afetivas do sujeito. O desafio atual da educação social é
incidir no repertório de condutas dos cidadãos, o qual supõe introduzir mudanças no
seio da família, nas relações com os colegas da mesma idade e nas instituições
escolares e sociais.
Para tal fim, Romans (2003), em consonância com o autor acima, define algumas
funções e competências que devem ser assumidas pelo educador social e aponta algumas de
suas competências, entendidas como um conjunto de conhecimentos (saber), habilidades
sociais (saber-estar), atitudes (saber-ser) e aptidões (saber-fazer) que lhe permitem
desenvolver com qualidade o seu trabalho educativo.
Quanto às funções a serem desenvolvidas pelo educador social, apresentam-se
algumas que são enumeradas pelo autor, como:
identificar e analisar as causas de problemas sociais que envolvem a
sociedade em que atua;
promover uma convivência relacional com os educandos, pautada no
diálogo;
organizar e participar ativamente da vida da comunidade a que pertence;
promover atividades de grupo para que a sociedade aprenda a solucionar de
forma co-responsável os problemas que a envolvem;
informar, orientar e assessorar todos os sujeitos sociais que dependem de
apoio para que os seus direitos sejam de fato efetivados;
catalisar as demandas emergentes da comunidade, entendida como um
organismo vivo que se constrói e se transforma de forma dinâmica mediante
o processo de interação social;
envolver-se com as famílias dos sujeitos atendidos, de tal forma que elas se
comprometam com o processo educativo dos educandos tidos em situação
de risco;
participar ativamente de projetos em âmbitos local, nacional e internacional;
23
liderar equipes de trabalho e gerir de forma cooperativa a instituição,
identificando as potencialidades e os obstáculos que a perpassam,
estabelecendo prioridades e metas.
Essas funções, para serem exercidas, exigem competências tanto em nível de
formação do educador, da instituição que o contrata (pública ou privada), como também da
equipe de trabalho. Essas competências abrangem um corpo teórico de conhecimentos gerais
construídos na academia mediante o estudo referente à Educação Social, como também
engloba os saberes específicos
24
, aqueles exigidos pelas instituições que contratam o educador
social, desafiando-o à formação continuada que se dá no espaço de trabalho (ROMANS,
2003).
A competência do educador social possibilita-lhe ser capaz de: trabalhar em equipe,
elaborar projetos de intervenção e prevenção na comunidade, gerir projetos sociais, intervir no
processo educativo, diagnosticar os obstáculos e as potencialidades da comunidade, construir
estratégias de participação ativa da sociedade para solucionar os problemas que a envolvem e
reconhecer a necessidade da formação continuada.
A partir dessas competências, percebe-se que a responsabilidade do educador social
na Espanha não se restringe apenas a uma abordagem pedagógica desenvolvida
prioritariamente no espaço extra-escolar, mas assume também outras atividades como a
gestão de projetos de atendimento aos educandos (crianças, adolescentes, jovens, adultos e
idosos).
Outro país que vem se destacando na área da Educação Social é Portugal, que tem o
Conselho Nacional de Educadores Sociais (CNES) que objetiva promover a divulgação dos
diversos trabalhos desenvolvidos pelos educadores sociais, a fim de consolidar a profissão
que ainda é bastante recente, pois só a partir da década de 80 é que algumas escolas de
formação passaram a ministrar cursos em nível de bacharelado.
Atualmente, a profissão educador social está em processo de consolidação na
sociedade portuguesa e o CNES
25
é o órgão principal de articulação dos educadores sociais,
24
Os saberes específicos envolvem o conhecimento do contexto no qual se atua, considerando os aspectos
econômicos, sociais, políticos e culturais, as demandas da instituição e da população atendida, o conhecimento
de metodologias mais adequadas para o problema em estudo e a identificação das reais possibilidades e
dificuldades na solução e/ou minimização do problema.
25
Para obter maiores informações sobre o Conselho Nacional de Educação social em Portugal, acessar o site:
http://apes.pt.la/ Acesso em: 02 jan.2007.
24
que já obtêm das universidades uma formação em nível de Licenciatura, Mestrado e
Doutorado
26
.
Em Portugal, os educadores sociais desenvolvem o seu trabalho educativo em
diversas áreas, sendo que algumas delas são: penitenciária, instituições de tratamento a
toxicodependência, meio ambiente, educação de adultos e educação para o tempo livre e o
trabalho com pessoas de terceira idade (CARVALHO E BAPTISTA, 2004).
Nessas áreas, exige-se que os profissionais sejam capazes de: auscultar
27
os
conteúdos implícitos nas demandas dos educandos, aceitá-los com suas potencialidades e
limites, possibilitando-lhes a superação dos entraves de forma processual, agir
antecipadamente quando perceber que as pessoas apresentam sinais de desespero, descrença
diante da vida, aprender a transformar com os educandos os dramas vividos por eles; conciliar
a dimensão individual com a coletiva de tal forma que nenhuma se sobreponha à outra,
construir uma visão sistêmica para uma análise mais adequada da realidade; mediar o
processo de construção de conhecimentos dos educandos e avaliar a prática educativa,
identificando os obstáculos que a perpassam e que devem ser superados processualmente
(CAPUL E LEMAY, 2003).
No Uruguai, a educação social emerge no regime ditatorial em 1985, com o objetivo
de atuar com crianças e adolescentes que viviam na rua e que não eram atendidos pelo sistema
escolar.
Devido às diversidades de problemas enfrentados por esses profissionais, exige-se
deles uma sólida formação acadêmica para que possam atender aos desafios no espaço-rua.
Para tal fim, há um currículo em construção, entendido como um conjunto de saberes que
garante a intencionalidade da prática pedagógica e aberto às demandas advindas do trabalho
desenvolvido com os aprendentes tidos como sujeitos sociais.
Ainda nesse país, os educadores sociais atuam em equipe multidisciplinar formada
por médicos, assistentes sociais, psicólogos e sociólogos, visando promover o
desenvolvimento integral dos atendidos (RIBEIRO, 2006).
26
Dentre as diversas universidades de Portugal que ministram o curso em Educação Social, cita-se a
Universidade Portucalense. Para conhecer o currículo do Programa de Mestrado em Educação Social, acesse:
http: //www.uportu.pt/site-scripts/ Acesso em: 03 fev. 2007
27
É a capacidade de o sujeito que ouve captar sentidos além daqueles explícitos pela linguagem verbal dos
sujeitos falantes.
25
Iriarte (2005), um dos educadores sociais pioneiros no Uruguai, define o profissional
da Educação Social como um agente mediador de transformação da vida de jovens que se
encontram em situação de marginalização. Nesse sentido, o educador profissional é desafiado
a pensar o local associado ao global, a trabalhar em equipe, a se envolver com a comunidade
na solução dos problemas, a construir com os jovens um projeto de vida que os torne ativos e
participativos na sociedade, a fazer e consolidar parcerias com diversas instituições de
natureza privada ou pública e a gerir projetos sociais.
No Uruguai, percebe-se que o marco teórico por excelência que norteia o trabalho do
educador social é a Pedagogia freireana. Essa influência torna-se explícita no I Congresso
Mundial de Educação Social, promovido pela Associação Internacional dos Educadores
Sociais
28
(AIEJI), em que a maioria dos trabalhos apresentados tinha como aporte teórico o
pensamento de Freire.
A Associação Internacional foi fundada na Alemanha em 19 de março de 1951 e
atualmente tem sede na Suíça. No início do seu trabalho, objetivava integrar, compartilhar e
divulgar as experiências dos educadores sociais com jovens vítimas do pós-guerra. Com a
proliferação das instituições de iniciativas privadas e a crise do estado de bem-estar social, o
que contribuiu significativamente para o aumento da pobreza e da intolerância contra os
imigrantes que se aventuravam para conseguir melhores condições de vida nos países
europeus, a Associação ampliou a sua missão, porém manteve a idéia central que antes era a
de fortalecer a profissão do educador social e expandir a filosofia da Educação Social nos
mais diversos paises, dentre eles Bélgica, França, Países Baixos e Alemanha. Além desses
países, outros vinte e três se associaram até 1991.
28
Para um maior esclarecimento acerca do histórico, objetivos, metas, parcerias e congressos desenvolvidos pela
AIEJI, acessar:
http://www.aieji.net/spanish/pages/creation.asp. Acesso em: 27 dez.2006.
26
1. Algumas considerações básicas sobre a educação social européia
A partir dessa visão panorâmica acerca da educação social, construída nas leituras de
livros, artigos, site de pesquisa, troca de e-mails com profissionais de países como Uruguai e
Portugal
29
, objetiva-se nesse momento tecer algumas considerações ainda que preliminares
30
acerca desse tipo de educação, destacando os desafios enfrentados na profissão de Educador
Social. Dentre eles, destaca-se que:
a finalidade do trabalho educativo da Educação Social ainda exige uma
resposta mais consistente à questão: educa-se para quem e para que
tipo de sociedade?
Sobre essa questão, Petrus (2003), pesquisador em Educação Social da Universidade
de Barcelona, instiga o leitor a fazer a indagação anterior, quando aponta fatores que
contribuíram para uma relativa estruturação da Educação Social na Europa, destacando a
globalização, os avanços da área tecnológica, o desenvolvimento dos meios de comunicação e
da sociedade da informação.
O autor reconhece, ainda nesse contexto de mudança, que “o desafio atual da
educação social é incidir no repertório de condutas dos cidadãos, o qual supõe introduzir
mudanças no seio da família, nas relações com os colegas da mesma idade e nas instituições
escolares e sociais” (2003, p. 56).
Parece que a preocupação que predomina na Educação Social européia, de acordo
com as obras lidas, ainda é com a integração do indivíduo à sociedade, deixando de lado a
problematização das causas reais dos problemas sociais. É nesse sentido que o termo
adaptação social é bastante utilizado pelos autores Capul e Lemay (2003), na sua obra Da
Educação à intervenção social, e nenhuma vez aparece o termo conscientização política dos
sujeitos sociais.
Em conversas via e-mail e MSN com alguns educadores do Uruguai, que
participaram do I Congresso Mundial de Educação Social na América Latina, promovido pela
AIEJI, foi destacado que eles sentem a necessidade de rever de forma crítica esse tipo de
educação naquele país, pois ela possui um caráter marcante do pensamento neoliberal. Talvez,
29
Os educadores portugueses possuem um Código deontológico que orienta a atuação do Educador Social. Para
se conhecer os direitos e deveres desse profissional, acesse: http://apes.pt.la/. Acesso em: 20 nov.2006.
30
Uso esse termo, porque penso que os questionamentos levantados deverão ser aprofundados em pesquisas
posteriores.
27
por esse motivo, os educandos (crianças, jovens e adultos) são mais definidos como usuários
das instituições de atendimento do que como cidadãos ativos e participantes na sociedade.
Ainda sobre essa questão, Rotger (2003) destaca dois fatores que contribuíram para
a gradual emergência da Educação Social na Europa, como as diversas formas de participação
democrática e a consciência da população acerca dos direitos básicos garantidos legalmente
pelo estado de bem-estar social. Nesse contexto, segundo o autor, a Educação Social emergiu
tendo como fundamento o principio de igualdade de oportunidades, e com base nele,
potencializava as pessoas a lutarem pela efetivação dos seus direitos.
Todavia, fatos como o crescente aumento das instituições de iniciativa privada
alicerçadas na proposta neoliberal, o que ocasionou a redução das responsabilidades do
Estado e a supressão de vários direitos sociais conquistados pela população, e o
conservadorismo de grupos privilegiados no continente europeu, contribuíram para que a
Educação Social reduzisse a sua força instigativa no sentido de promover a luta dos sujeitos
pela efetivação dos seus direitos, tendendo-se mais a intervir nos resultados maléficos do
sistema capitalista.
Nesse cenário, mesmo reconhecendo essa limitação, Rotger
31
entende que existem
problemas como o analfabetismo, a pobreza, a violência nos grandes centros urbanos e a
desigualdade social que não podem ser enfrentados apenas pela educação escolar. Por esse
motivo, o autor defende a Educação Social como um fator decisivo que pode abordar essas
questões que antecedem o espaço escolar, contribuindo para a efetivação dos direitos
humanos.
Partindo-se do exposto, percebe-se que a Educação Social, pelo fato de estar situada
no contexto capitalista, tende a conservar os seus valores embora não se possa afirmar que
toda ela seja apenas perpetuadora do status quo, pois pensar assim poderia incidir num
reducionismo epistemológico. O que se destaca é que esse tipo de educação possui várias
facetas que estão de acordo com as tendências pedagógicas, as concepções antropológicas e as
ideologias que a subjazem.
31
A pesar del riesco que supone esta visión de la educación como factor de ajuste social, um analises de su
función demuestra que los déficit sociales y culturales prévios a la educacion escolar, las situaciones econômicas
marginales, (...) el analfabetismo, el conflicto social(...) son factores de desigualdad que deben tener um
tratamiento educativo que va mucho más alá de lo escolar. Em outras palavras: la educación social es un decisivo
factor para que los derechos humanos y la igualdade de oportunidades dejen de ser meros planteamientos
teóricos y devengan em realidad. (ROTGER, 2003 p. 15).
28
Ciente dessas questões, o que se pretende é chamar a atenção para não se fazer uma
transposição desse tipo de educação para a realidade brasileira, despida de uma reflexão
crítica e radical, que permita analisar rigorosamente os princípios e os pressupostos
metodológicos que alicerçam essa área de atuação profissional.
A segunda consideração refere-se à imprecisa definição das responsabilidades do
educador social, o que ocasiona um intenso conflito com outros profissionais como o
Assistente Social e o Pedagogo.
O fato de a profissão ser nova e se encontrar em processo de construção faz com que
o educador enfrente diversos problemas, dentre eles: a desvalorização profissional pelo fato
de a sociedade praticamente desconhecer o valor do seu trabalho, a falta de demarcação da
área de atuação, as tensões entre os educadores veteranos (desprovidos de teoria acadêmica e
detentores de uma vasta experiência profissional) e os educadores novos (com formação
acadêmica, porém sem a experiência na área de atuação), a ausência de acompanhamento
psicológico para o educador que lida constantemente com os problemas mais desafiadores da
existência humana: a descrença na vida e a baixo auto-estima (ROMANS, 2003).
A terceira consideração diz respeito às possíveis contribuições da Educação Social à
reformulação da Pedagogia no Brasil. O curso de Pedagogia, que visa formar educadores para
atuar em diversos espaços educativos, necessita rever urgentemente o currículo de formação
para que possa atender as demandas dos educandos atendidos em outros contextos diferentes
do espaço da sala de aula. Nessa perspectiva, a Educação Social contribui com alguns temas
emergentes, como: toxicodependência, tipos de família, andragogia, tipos de violência
doméstica, resiliência, idoso, educação na penitenciária, educação ambiental, que podem
ampliar a formação do pedagogo.
A partir dessas três considerações, ainda falta saber como se definiu a educação
social no Brasil.
29
2. Da educação social no Brasil ao educador social institucionalizado
No país, a Educação Social mantém uma certa relação com aquela outra da vertente
européia no sentido de atuar para além do espaço escolar e trabalhar também tanto com os
aspectos preventivos como interventivos, porém o que predomina é uma forte presença da
pedagogia freireana pautada na idéia de que educar é um ato genuinamente político.
A Educação Social emergiu no final da década de 70, num contexto marcado pelo
desencanto da população brasileira com o discurso ideológico do milagre econômico,
caracterizado pelo contraste entre a crença demasiada no desenvolvimento econômico do país
e o crescente agravamento dos problemas sociais.
Nesse contexto marcado pela bipolaridade, crescimento econômico versus
desenvolvimento social aliado ainda à repressão ditatorial, a Educação Social identificou-se
com as lutas de resistências das classes populares e teve tanto a política, entendida como a
arte de transformar os sonhos de uma nação, quanto a espiritualidade das Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica como os pilares fundantes.
É dessa síntese de saberes advindos da Teologia da Libertação, da Pedagogia do
Oprimido, de Paulo Freire, e depois da Pedagogia da Presença de Antônio Carlos Gomes da
Costa, que se construiu o substrato teórico dos primeiros educadores sociais de rua no Brasil
no final da década de 70, período em que esses educadores pioneiros foram denominados de
Agentes da Pastoral
32
. Essa instituição tem como missão a promoção e a defesa dos direitos
da criança e do adolescente em situação de risco no país e como objetivo geral
...estimular um processo que visa à sensibilização, à conscientização crítica e à
mobilização da sociedade (...) na busca de uma resposta transformadora, global,
unitária e integrada da criança e dos adolescentes empobrecidos e em situação de
risco, promovendo (...) a participação das crianças e adolescentes como protagonistas
do mesmo processo (PASTORAL DO MENOR, 2005 p. 06).
Em consonância com a missão e o objetivo geral da Pastoral do Menor, exigia-se do
Agente o seguinte perfil:
ter um projeto de vida alicerçado na fé e na esperança de transformação
social;
ser comprometido com um projeto de sociedade em que se faça presente a
fraternidade e a justiça;
32
Os educadores receberam essa denominação devido atuarem pela Pastoral do Menor fundada em 1977. Esta
integrava a Comissão Episcopal para a Caridade, a Justiça e a Paz Social da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil-CNBB. Conferir em Projeto Político Pedagógico da Pastoral do Menor (2005)
30
demonstrar o desejo de estar em permanente processo de formação pessoal;
ter vocação para o trabalho com crianças e adolescentes em situação de rua ;
ser um sujeito crítico diante da realidade, social, econômica, religiosa e
cultural do país;
ter capacidade de respeitar a história de vida e a individualidade dos sujeitos
que se encontram na rua;
demonstrar clareza quanto ao motivo que o leva a ser um militante na causa
de crianças e jovens moradores de rua e
ser mediador de um processo educativo que se fundamente na fé ( Palavra de
Deus) e na vida dos meninos, objetivando que eles superem os diversos
fatores que os impedem de viver dignamente.
No trabalho de rua que teve início na Praça da Sé, os educadores sociais pioneiros
afirmavam que o seu trabalho era expressão de uma vocação, um chamamento de Deus, de
uma profunda identificação com um projeto salvífico em que as crianças em situação de rua
simbolizavam o Cristo crucificado e abandonado na cruz.
Nesse contexto, pode-se dizer que ainda não se falava em profissionalização do
educador social, pois a sua ida à rua era entendida como uma missão e uma doação do seu
tempo em prol dos meninos tidos como vítimas das injustiças sociais e não se exigia uma
titulação acadêmica para esse trabalho
33
.
Com essa proposta de trabalho desenvolvido na rua, a Pastoral
34
tornou-se referência
nas discussões sobre os meninos e meninas de rua e contribuiu de forma significativa junto
com diversos segmentos da sociedade civil na elaboração do art. 227 da Constituição Federal
de 1988, que resultou no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990).
33
Mesmo sem exigir formação superior, Vangrelino (2004) destaca que a Pastoral demonstrava preocupação
com a formação dos agentes, pois organizava grupos de estudos que tinham como referencial teórico a
Pedagogia Libertadora de Paulo Freire.
34
A Pastoral sempre demonstrou um profundo envolvimento com a criança e o adolescente em situação de rua
no Brasil. Esse compromisso explicita-se nos temas das assembléias nacionais promovidas de três em três anos,
sendo que nelas se ouvem as demandas dos educandos e se atualiza a proposta pedagógica da instituição. A
primeira assembléia realizou-se em 1993 e tinha como lema ‘Crianças e adolescentes como protagonistas do
processo de mudança’ e o tema ‘Identidade e Organização da Pastoral do Menor’; a segunda em 1996 teve o
lema ‘Em nossa Mística, Justiça e Paz Abraçarão’ e o tema: Projeto sócio-político da Pastoral do Menor; a
terceira em 1999, tendo o lema ‘Resgatando Dívidas com Crianças e adolescentes’ e o tema: ‘Cidadania e o
Novo Milênio’; em 2002, acontece a 4ª Assembléia com o tema: ‘Solidariedade, Caminho para a Paz’ e o lema
‘Conquistando Direitos, Semeando a Paz’ e por último, em 2005 houve a 5ª Assembléia que teve como tema “
Mística da Pastoral do Menor” e o Lema ‘Seguir Jesus no compromisso com as crianças e adolescentes
empobrecidos’. Conferir em Princípios, Diretrizes e Organização da Pastoral do Menor (2005).
31
Outro momento que contribuiu para uma maior consistência da educação social de
rua foi o surgimento do Projeto alternativas de Atendimento aos Meninos e Meninas de rua
em 1982 e que visava sistematizar, divulgar e estimular trocas de experiências dos educadores
sociais de rua entre si e com outras instituições da sociedade civil. Esse Projeto possibilitou
uma maior visibilidade desses profissionais no país, porque obteve apoio de organismos
internacionais como o UNICEF, que patrocinou várias publicações sobre a prática educativa
na rua.
O mesmo Projeto patrocinou ainda, em 1984, o I Seminário Latino-Americano de
Alternativas Comunitárias para crianças de rua em Brasília e das discussões dos participantes
emergiu a idéia de criação de uma organização não-governamental que pudesse mobilizar em
nível nacional as crianças e os adolescentes em situação de rua.
A partir desse Seminário, houve um amadurecimento da proposta de articulação dos
meninos em situação de rua e, em 1984, criou-se o Movimento Nacional de Meninos e
Meninas de Rua (MNMMR), que se propôs a consolidar uma prática educativa libertadora
que considerasse os meninos e meninas como sujeitos críticos e atuantes no contexto histórico
que os desumaniza. O Movimento ainda hoje objetiva divulgar o seu trabalho em nível
nacional, investir na formação dos educadores sociais para atuarem com maior qualidade na
comunidade e lutar pela defesa dos direitos das crianças e adolescentes em situação de rua,
respeitando, ouvindo e acolhendo as suas sugestões para a implantação de políticas públicas
(MOVIMENTO NACIONAL DE MENINOS E MENINAS DE RUA, 1985).
Para o Movimento Nacional
35
, o educador social deve acreditar no potencial
transformador dos meninos e meninas de rua, concebendo-os como sujeitos históricos,
valorizar a participação deles na elaboração de propostas que melhor atendam as suas
demandas e colaborar com os educandos na construção de projetos de vida.
O terceiro momento da Educação Social de rua é marcado pela institucionalização da
profissão Educador Social pela Secretaria do Menor de São Paulo, criada pelo Decreto 27.981
de 23/12/1987 no governo de Orestes Quércia.
A Secretaria foi coordenada por Alda Marco Antônio, a qual definiu que o público
específico a ser atendido deveria ser os meninos e meninas tidos de rua, aquelas vítimas de
35
Atualmente, o Movimento estrutura-se em três níveis de comissão: local, com cem comissões; estadual, com
vinte e três e nacional, com um Conselho. As ações desenvolvidas pelo MNMMR são realizadas em projetos,
como: Fortalecimento e Interiorização do Movimento, Conquista e Defesa da Criança e do Adolescente,
Formação e Organização de Meninos e Meninas e Formação de Educadores.
32
violência doméstica e crianças e adolescentes advindos de comunidades pobres da cidade de
São Paulo. Tendo definido o público beneficiário dos trabalhos promovidos pela Secretaria,
Alda desafiou o caráter universalista de programas estatais e implantou uma prática de caráter
particular, voltada a atender prioritariamente a infância e a juventude de classes sociais menos
privilegiadas.
Tendo estabelecido o seu âmbito de atuação, a Secretaria, enquanto programa do
Governo do Estado, criou um conjunto de projetos destinados a atender os meninos ditos de
rua, como as casas abertas, espaço em que se desenvolviam atividades educativas nas quais se
permitia um maior conhecimento da criança atendida; os clubes da turma, nos quais havia as
atividades de lazer e esporte; a Casa Renascer, que atendia os sujeitos usuários de drogas com
idade até quatorze anos; as casas- moradia, destinadas ao acolhimento de adolescentes com
idade superior a quatorze anos, em preparação para a inserção no mercado de trabalho e que
não tinham nenhuma possibilidade de retorno para a casa dos seus genitores e o Programa de
Incentivo ao Trabalho, que objetivava garantir o estágio dos meninos nas empresas de
natureza estatal.
Além dos projetos mencionados, havia também os de caráter preventivo,
desenvolvidos nas comunidades periféricas e visavam complementar as atividades escolares
como o Circo-Escola, a Turma Faz-Arte e o Clube da Turma. Para atender os casos
específicos de violência familiar, criaram também projetos como o SOS Criança, Serviço de
Advocacia da Criança e a Rede Criança que capacitavam os funcionários do Estado para
aprenderem a lidar com os meninos em situação de rua (GREGORI e SILVA, 2000).
Entende-se que alguns fatores contribuíram para a criação da estrutura
organizacional da Secretaria do Menor de São Paulo, tais como: o desejo de Alda Marco
Antônio e de toda a sua equipe de superar o modelo de atendimento desenvolvido pela
Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM), a insatisfação e a preocupação da
população em relação ao número crescente de crianças nas ruas, a impossibilidade de
instituições como a Pastoral do Menor atenderem o aumento demasiado dos meninos ditos de
rua e o interesse do Governo Quércia por essa questão, já que poderia servir-lhe como
estratégia política.
Diante desse conjunto de razões, a Secretaria defendeu uma proposta tida como
inovadora por enfatizar a idéia de um atendimento profissional aos educandos ditos de rua, em
detrimento daquele com base no voluntarismo e na vocação dos educadores (GREGORI e
SILVA, 2000).
33
Com essa intenção, a referida instituição estabeleceu duas exigências básicas para o
contrato do educador de rua, sendo que a primeira delas é que esse profissional estivesse
cursando ou já tivesse concluído uma graduação, geralmente nas áreas de Pedagogia,
Sociologia, Psicologia e Serviço social e, a segunda, é que tivesse experiência na área de
atuação com crianças e adolescentes em situação de rua. Foi de acordo com esses critérios
estabelecidos que alguns educadores advindos de instituições como Pastoral do Menor e
Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, foram contratados pela Secretaria.
A partir da institucionalização da profissão, definiram sete tarefas básicas do
educador. São elas: observar a dinâmica das crianças e adolescentes em situação de rua, a fim
de identificar os seus valores e os contatos que eles mantinham com outros sujeitos sociais;
perceber que recursos e instituições existiam na comunidade dos atendidos para posterior
encaminhamento; desenvolver atividades educativas que valorizassem a história de vida dos
meninos, esclarecê-los acerca das regras nos estabelecimentos de acolhimento da Secretaria;
fornecer informações básicas para que os educandos e suas famílias tivessem acesso a alguns
serviços de atendimento, como: saúde, educação, apoio psicológico e amparo legal; registrar a
prática pedagógica e prestar conta dela a partir de relatórios, e participar dos momentos de
formação (OLIVEIRA, 2004).
Pode-se dizer que a Secretaria, além de estabelecer as funções acima, possibilitou
algumas conquistas significativas para o educador, tais como: um maior reconhecimento
profissional na medida em que, pela primeira vez, apareceu a denominação Educador Social
de Rua na carteira de trabalho, introduziu a idéia da formação profissional dos educadores em
detrimento da idéia antes prevalente de vocação, tornou o educador mais conhecido no
mercado de trabalho e divulgou as suas experiências com crianças e adolescentes tidos de rua,
tanto em nível nacional como internacional.
Porém, esses avanços foram acompanhados também de alguns elementos
obstaculizadores. Dentre eles, destaca-se que houve uma despolitização do fazer educativo do
educador porque ele se limitou apenas aos encaminhamentos dos aprendentes para as
instituições de atendimentos, descartando a dimensão político-transformadora presente na
ação educativa dos primeiros educadores. Além desse obstáculo, a Secretaria não se
preocupou com o intercâmbio dos seus profissionais com outros de instituições tradicionais
como a Pastoral do Menor e o MNMMR (OLIVEIRA, 2004).
A ausência de interação entre os educadores dificultou a consolidação da profissão,
pois os dividiu entre os profissionalizados e sistematizadores da Educação Social atuantes na
34
Secretaria, e os outros, oriundos de instituões não-governamentais, considerados como
meros leigos atuantes por vocação e carentes de fundamentação teórico-científica
(OLIVEIRA, 2004).
Como resultado do aparthaid entre os educadores, enfatizou-se cada vez mais a
bipolaridade científico x senso comum, competentes x incompetentes, os comprometidos com
a causa x os técnicos descomprometidos e os que privilegiavam o conhecimento científico x
os que valorizavam a capacidade de amar os educandos.
Essa questão talvez tenha sido um dos “calcanhares de Aquiles” da Secretaria do
Menor que, ao promover o reconhecimento profissional do educador para a sociedade,
paradoxalmente o torna desconhecido de tal forma que não conseguiu de fato consolidar a sua
própria categoria
36
.
Atualmente no país, existem movimentos de educadores que, de forma ainda
embrionária, procuram superar algumas das divergências já mencionadas e estabelecer idéias
compartilhadas entre eles, tendo como fim o fortalecimento da categoria, ainda em processo
de consolidação. Como exemplo de iniciativas nessa direção, encontram-se a Associação de
Educadores Sociais do Estado do Ceará (AESC) e o I Congresso Internacional de Pedagogia
Social no Brasil, promovido Prof. Dr. Roberto da Silva e sua equipe da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP).
Embora existam essas iniciativas, parece que há muitos questionamentos
desafiadores que ainda permanecem sem resposta no campo da Pedagogia Social em fase de
construção, o que dificulta definir com uma maior precisão o educador social, que ás vezes
ainda trabalha como um auxiliar do trabalho do assistente social. Para entender relativamente
esses desafios, apresenta-se em seguida uma nova fase da Educação Social que marca outro
momento da Pedagogia Social de rua.
36
Obviamente existiram outros fatores que atrapalharam a consolidação da profissão, dentre eles o confronto
com outras profissões e o fato de ela ser nova no contexto brasileiro.
35
2.1 Da pedagogia social de rua como pedagogia do direito, princípios, metodologia e
desafios
A nova fase da Educação e da Pedagogia social de rua foi inicialmente forjada num
contexto marcado pelas manifestações e luta dos movimentos populares contra a Ditadura
Militar, em 1985, e se manifestou de forma mais explícita no processo de participação ativa
de diversos movimentos sociais na Comissão Nacional Criança
37
Constituinte, em que se
tinha como meta principal a elaboração de uma proposta de políticas públicas para as crianças
e adolescentes, que deveria ser incluída na nova Carta Magna de 1988 (PINHEIRO, 2006).
É nesse contexto de luta pela garantia dos direitos de crianças e jovens do país que a
Pedagogia Social foi tida como Pedagogia do direito, alicerçada na Doutrina da Proteção que
concebe os sujeitos sociais na fase da infância, da adolescência e da juventude como pessoas
de direitos em condição peculiar de desenvolvimento (OLIVEIRA, 2004; ECA, 1990).
De acordo com essa perspectiva emergente, a Pedagogia Social é entendida como um
instrumento de empoderamento de todos os sujeitos sociais
38
e que visa:
garantir as informações necessárias para que os cidadãos possam
participar de forma ativa nas decisões da sociedade brasileira;
construir um conhecimento pertinente que permita ao cidadão acessar
as instâncias de decisões públicas e privadas, a fim de exigir a
efetivação dos seus direitos e mediar também o acesso de outros
sujeitos sociais;
desenvolver a capacidade de o cidadão resolver os problemas que
envolvem a sua comunidade por meio do diálogo autêntico e do
confronto democrático de idéias;
possibilitar aos sujeitos sociais a participação e o engajamento de forma
co-responsável na sociedade com poder de negociar, discernir e
escolher criticamente as melhores propostas para o seu
desenvolvimento pessoal e social (COSTA, 1989).
37
A Comissão foi formada por mais de 600 organizações públicas e privadas engajadas na luta pela garantia dos
direitos da criança e do adolescente no país e contribuiu de forma significativa para a elaboração do artigo 227
da Constituição de 1988, que se consolidou no Estatuto da Criança e do Adolescente (PINHEIRO, 2006).
38
Essa síntese dos objetivos centrais da Pedagogia Social, na perspectiva de Costa (1991, 1999), foi elaborada a
partir da leitura dos seus livros e de sua palestra no I Congresso Internacional de Pedagogia Social e Simpósio de
Pós-graduação, realizado nos dias 08, 09,10 e 11 de março de 2006. O vídeo com todas as palestras sobre o
assunto em discussão encontra-se disponível no site:
http://pedagogiasocial.incubadora.fapesp.br/portal. Acesso
em: 03 mar.2007.
36
Numa perspectiva de caráter mais particular do que universal, Oliveira (2004)
diferencia-se de Costa na medida em que entende que a Educação Social direciona aos
sujeitos menos privilegiados da sociedade e tem como intencionalidade desvelar os fatores
que obstaculizam o ser humano de se desenvolver enquanto sujeito
39
, instigar os oprimidos a
lutarem pela sua libertação de forma coletiva, crítica e participativa e construir focos de
resistência daqueles que se encontram em situação de desvantagem nas relações de poder.
Em consonância com essa compreensão, Gadotti (2001) afirma que essa educação
funda uma pedagogia social em construção que exige o compromisso profissional aliado a
uma consistente formação teórico-técnico-científica, amor pelos excluídos e coragem de
denunciar as injustiças que lhes impedem de ser sujeitos históricos.
O fato de a Educação Social de Rua ter como um dos pilares o compromisso político
e ético com os esfarrapados do mundo (FREIRE, 2005), faz com que ela seja caracterizada
como um sistema filosófico e campo profissional (OLIVIERA, 2004), que tem como meta
transformar a realidade social excludente.
De acordo com esse entendimento acerca da educação social, Oliveira (2004) define
o educador social de rua como um profissional que desenvolve um trabalho remunerado ou
não e que procura construir um vínculo afetivo com as crianças e adolescentes que se
encontram na rua, realizando uma prática educativa que seja sinônimo de inclusão social
desses sujeitos.
Em consonância com esse autor, Rizzini e Butter (2003) acrescentam que o
educador é o sujeito que serve de referência e fonte de inspiração para as crianças e
adolescentes em situação de rua.
2.1.1 Dos princípios da Pedagogia Social de rua
Em conformidade com esse pensamento, Graciani (2001) define quatro pilares que
sustentam a Pedagogia Social de rua: a intencionalidade, a globalidade, a radicalidade e a
transdisciplinaridade.
Quanto à intencionalidade, a autora a entende como um conjunto de objetivos, idéias,
valores e conhecimentos que são definidos conscientemente por meio da parceria estabelecida
entre o educador e os educandos em situação de rua. É o conjunto de intenções estabelecido
de forma consciente por esses sujeitos sociais que garante a diretividade democrática da
39
Considera-se como sujeito aquele que pensa criticamente o seu contexto histórico e age individual e
coletivamente para transformá-lo.
37
prática educativa, que se opõe ao espontaneísmo, ao fazer pedagógico desprovido de uma
reflexão rigorosa e sistemática.
É essa intencionalidade que faz com que no processo educativo sejam exigidos do
educador os objetivos definidos conscientemente, assim como a metodologia e as técnicas
para alcançar um determinado fim, que é a aprendizagem significativa dos educandos.
A globalidade é outro pilar que sustenta a Pedagogia Social e é entendida como uma
visão totalizadora, que o educador deve ter ao trabalhar com crianças e adolescentes que se
encontram no espaço rua. Exige-se desse profissional um olhar relacional, no sentido de
compreender que a situação da criança não é resultado apenas de um único fator, mas de um
conjunto deles como o sócio-econômico-político e cultural. Essa perspectiva global permite-
lhe compreender que as famílias dos sujeitos em situação de rua não podem ser apenas
responsabilizadas pela realidade dos seus filhos, já que existem outros elementos que
contribuem para a permanência deles na rua.
A globalidade ainda amplia o olhar do sujeito social acerca do que se estuda,
evitando-se assim o reducionismo epistemológico do fenômeno pesquisado, porque enfatiza a
idéia de que o autêntico sentido das partes encontra-se na relação delas com o todo e deste
com aquelas. Assim sendo, o educador, ao analisar a situação do menino em situação de rua,
é desafiado a compreendê-la como apenas a ponta do iceberg do descaso social (parte), que só
faz sentido se situada devidamente num contexto mais amplo em nível nacional e até mesmo
internacional.
O terceiro pilar é a radicalidade, compreendida como um processo em que o sujeito,
ao se dispor a conhecer um objeto cognoscível, procura ir à raiz daquilo que se quer saber,
evitando a superficialidade. Nesse caso, o educador que atua no espaço rua é instigado a
captar os reais fatores que geram as dificuldades vividas pelos sujeitos da sua prática
educativa, inscitando-os a lutarem para superá-las mediante o processo de conscientização.
O quarto princípio da Pedagogia Social de rua é a transdisciplinaridade, entendida
como uma racionalidade que é, ao mesmo tempo, relacional na medida em que é resultado da
interação de diversas áreas do conhecimento e relacionante no sentido de orquestrar, religar e
articular os diversos tipos de saberes a fim de superar a sua fragmentação.
38
Essa racionalidade opõe-se à razão moderna embasada na fragmentação do saber e
que se consolidou a partir do pensamento do francês René Descartes
40
(1596-1650),
mentalidade esta que se caracterizou pela hipervalorização da razão analítica que enfatizou o
valor das partes em detrimento de uma racionalidade globalizante, defensora da inter-relação
delas para uma maior compreensão do todo.
Foi esse pensamento moderno, alicerçado no paradigma antropocêntrico, que
promoveu algumas conquistas significativas para a sociedade como a liberdade de
pensamento, a valorização da individualidade e a crença no poder transformador do sujeito,
mas gerou também várias mazelas, dentre as quais o individualismo, a perda do vínculo entre
o homem e a natureza, entendida por ele como um objeto que devia estar à mercê da sua
vontade de conquista, o capitalismo e o reducionismo epistemológico que limitou o
significado da verdade àquilo que apenas podia ser comprovado, medido e quantificado
empiricamente.
Essa forma de pensar, embora desejante de globalidade, trouxe ainda outras
conseqüências como a perda de vínculo entre as dimensões cognitiva, emocional e espiritual,
o que restringiu a compreensão do sentido e da complexidade da vida.
No campo político, essa lógica da particularidade também ocasionou sérios
problemas, sendo que um deles ainda é o partidarismo, que reduz o projeto de nação aos
interesses de alguns grupos políticos. Na área econômica, percebe-se que os que detêm o
poder de compra lutam de forma desenfreada pelo acúmulo de riquezas, enquanto outros seres
humanos são praticamente demitidos do direito de viver dignamente, o que demonstra um
desequilíbrio entre o desenvolvimento econômico e o social.
Na educação, essa racionalidade fragmentada explicita-se na forma hierárquica de
organização das diversas áreas do saber que compõem o currículo do espaço educativo em
que cada disciplina não se relaciona com as demais, impedindo que docentes e discentes
construam uma visão global e relacional do contexto no qual estão inseridos
41
.
Em contraposição ao enclausuramento do saber e de acordo com o pensamento
transdisciplinar cuja ênfase é a totalidade, em que as partes se encontram inter-relacionadas de
tal forma que compõem um todo dinâmico e sistêmico, o educador social torna-se desafiado a
dialogar com diversas áreas do conhecimento para ampliar a sua compreensão acerca da
40
Confere em Severino (1994).
41
Alguns trabalhos lidos criticam a fragmentação das áreas do saber, tais como os de Fazenda (2001; 2003;
2004; 2006) e o do filósofo Japiassú (2006).
39
realidade complexa em que atua. Assim sendo, a transdisciplinaridade, entendida como uma
simbiose de saberes construídos a partir das disciplinas, porém para além delas, é o pilar que
sustenta a Pedagogia Social e contribui para que o educador não estacione na sua área de
atuação e petrifique o saber que já domina.
A perspectiva transdisciplinar faz ainda do educador um sistematizador e
problematizador da sua prática, reconhecendo que necessita de saberes complementares. É
essa consciência acerca da relatividade do seu saber e da sua incompletude enquanto sujeito
aprendente que o faz um sedento gnosiológico que, ao desenvolver o seu fazer educativo,
volta-se sobre ele, problematiza-o e o recria dialeticamente.
A partir desses princípios, Graciani (2001, p.29), inspirada no pensamento de
Gramsci, define o educador social como um... intelectual orgânico comprometido com a luta
das camadas populares, que elabora junto com os movimentos um saber militante, captado na
vida emergente dos marginalizados urbanos de rua”.
Para Graciani (2001), cabe ao educador possibilitar ao educando o desenvolvimento
da sua auto-estima, o sentimento de pertença, a autovalorização e a autodeterminação
42
. A
partir de tal propósito, esse profissional deve mobilizar a sociedade a fim de que essa
promova, garanta e proteja os direitos das crianças e dos adolescentes em situação de rua;
participar de forma comprometida na comunidade e ser um organizador das atividades
educativas de tal forma que elas possam contribuir para a emancipação dos educandos.
Em consonância com os autores lidos e com o pensamento da autora, pode-se dizer
que a Pedagogia Social é uma invenção de saberes em construção que visa provocar
alterações em quatro dimensões básicas: na relacional, na medida em que objetiva fundar
novas relações entre os indivíduos com base em valores como o respeito, a solidariedade, a
co-responsabilidade e a amorosidade; na cultural, na qual intenta provocar mudanças de
mentalidade na sociedade brasileira para que esta conceba e promova as crianças e
adolescentes em situação de rua como sujeitos da história e não objetos dela e na institucional,
que tende a modificar a mentalidade unilateral presente em diversas instituições da sociedade
civil que ainda concebe os sujeitos oriundos das classes sociais menos favorecidas apenas
como feixe de negatividades, desconsiderando as suas potencialidades. As modificações no
campo institucional devem possibilitar a construção de um olhar relacional em que o humano
42
Para ter acesso à palestra proferida por Graciani no I Congresso Internacional de Pedagogia Social e Simpósio
de Pós-Graduação, procurar no site:<
http://www. usp.br/pedagogiasocial>.
40
seja visto como existência dialética perpassada de limites, mas também de forças explícitas e
latentes a serem valorizadas e desenvolvidas gradualmente.
Essas intencionalidades que subjazem à Pedagogia Social fazem dela uma força
utópica no sentido de que, ao analisar o contexto histórico e identificar nele os fatores
impeditivos da emancipação das pessoas que se encontram na rua, anuncia também a
possibilidade de transformação de suas vidas por meio da conscientização, processo em que
esses sujeitos se percebem como cidadãos emergentes que lutam pela concretização dos seus
direitos.
2.1.2 Da metodologia mais utilizada pelo educador que atua na rua
Dito isso, procura-se saber como se desenvolve a prática educativa do educador
atuante no espaço rua. Obviamente que a metodologia utilizada por esse profissional pode
variar de acordo com a proposta pedagógica orientadora da sua ação educativa e adotada pela
instituição em que ele atua.
Ainda nessa direção faz-se duas observações sobre a metodologia. A primeira é que
ela possui geralmente quatro etapas que não são lineares e, dependendo da receptividade do
grupo de crianças em relação ao trabalho do educador, pode-se iniciar a prática educativa não
necessariamente pelo primeiro momento da metodologia. A segunda observação é que ela
não é única, mas entende-se que seja a mais usual, porque autores como Vangrelino (1994),
Braga (1994), Nascimento (1997), Graciani (2001) e Oliveira (2004) concordam com a idéia
de que a etapa inicial do trabalho educativo deve visar à construção de uma boa relação de
confiança e respeito entre educando e educador.
Em consonância com esse pensamento, o Projeto Axé, na Bahia e o Da Rua para a
Cidadania, em Fortaleza, adotaram a denominação paquera pedagógica para definir a
primeira etapa da metodologia de trabalho do educador, sendo que nela objetiva-se enfatizar a
necessidade de uma tessitura dos laços afetivos entre o educador e os aprendentes em situação
de rua.
Nessa etapa, Braga (1994), advogada e membro do Projeto Axé, entende que é o
primeiro momento em que o educador aproxima-se da criança e do jovem em situação de rua
e objetiva construir vínculos afetivos com eles, para conquistar a sua confiança, conhecer a
sua história de vida perpassada pelos sonhos, potencialidades e limites. Essa é a ocasião da
conquista, da troca de olhares, da curiosidade, em que os educandos querem saber também
quem é o educador e quais as suas intenções na rua. As perguntas mais comuns feitas para o
41
educador são: quem é você? O que veio fazer aqui? Você trabalha com quem e em que
projeto? Faz tempo que trabalha? Gosta do que faz? O seu trabalho contribui em quê?
Esse conjunto de perguntas demonstra que o educador que observa o espaço da rua
também é observado pelos educandos e questionado por eles. É nessa aproximação que o
educador consegue construir uma visão ainda superficial acerca do espaço rua e dos meninos,
que, desconfiados, dificilmente falam de si e os seus verdadeiros nomes.
Esse é o momento da conquista amorosa, baseada no respeito, no olhar sincero do
educador em relação ao educando e deste com aquele. Etapa em que os jogos como quebra-
cabeça, futebol de campo, de salão e teatro de bonecos tornam-se atividades pedagógicas que
visam promover a tessitura dos laços afetivos entre educando-educador e comunidade.
A segunda etapa do trabalho na rua é denominada por Braga (1994) de namoro
pedagógico, tido como um momento importante para a consolidação dos vínculos afetivos em
que cada vez mais o educador torna-se presença significativa para o educando. A presença é
entendida como “uma habilidade que se adquire fundamentalmente pelo exercício cotidiano
do trabalho social e educativo. Entretanto, sem uma base teórica sólida e articulada, fica muito
mais difícil para o educador proceder à leitura, à organização e à apropriação e domínios
plenos do seu aprendizado” (COSTA, 1991, p.18).
O namoro pedagógico exige o estar com, que pressupõe um autêntico compromisso
entre o educando e o educador, sendo que este deverá ter uma consistente formação teórica
que lhe possibilite entender as diversas formas de comunicação dos aprendentes. É nessa
etapa que o educador entende que um olhar, um sorriso e as marcas da violência no corpo do
menino podem significar muito no espaço rua, algo que no primeiro momento ele não
consegue captar.
Nessa etapa o educando adquire uma maior confiança no educador e, dessa forma,
compartilha a sua história de vida, fala de seus sonhos e explicita os seus limites. As marcas
no corpo têm um profundo significado para ele, pois no seu físico encontra-se o registro de
fatos e de situações-limite vividas. Pode-se dizer, de forma metafórica, que o corpo torna-se
uma espécie de livro-registro que só é aberto e lido pelo educador e educando quando se
consolidam os vínculos afetivos
.
Assim, a leitura mais aprofundada do contexto rua permite ao educador compreender
que o choro, a raiva, o medo, a angústia e a descrença na vida são sentimentos portadores de
mensagens implícitas que devem ser registradas no Caderno Registro de Observações para
42
serem analisadas a fim de, posteriormente, construir uma proposta de intervenção
43
que
possibilite ao educando lidar melhor com os desafios que subjazem a sua existência.
Nessa etapa ainda cabe ao educador:
aprender a acreditar profundamente no educando em situação de rua, como
devir existencial
44
, para que este se sinta acolhido e amado como sujeito
histórico;
identificar e valorizar os sonhos , os valores e os desejos instituintes das
crianças e adolescentes;
provocar fome de conhecimento
45
no educando para que este lute e acredite
em si a ponto de se perceber como capaz de ir além dos fatores obstaculizadores.
É no namoro pedagógico que o educador consegue, às vezes junto com os
aprendentes, mapear a sua área de atuação, identificando nela a quantidade de meninos, os
tipos de contatos que eles mantêm no espaço rua, refletir criticamente com eles sobre a rua e
as possibilidades de se viver fora dela e identificar as instituições de encaminhamento.
Nessa etapa, as atividades lúdico-pedagógicas como roda de capoeira, teatro de
bonecos e contação de história visam promover o desejo do educando em querer transitar da
43
Entende-se que esses sentimentos, se deixados de lado pelo educador, podem trazer conseqüências terríveis
para o educando, dentre elas o suicídio.
44
Inspiro-me em Sartre (1987), no seu trabalho intitulado o Existencialismo é um humanismo, em que o autor
defende a idéia de que o ser humano é possibilidade de invento de si mesmo. É um projeto existencial que se faz
e refaz constantemente. Há várias críticas a esse pensamento, pois muitos estudiosos
compreendiam/compreendem que Sartre enfatizou de forma exacerbada o poder do sujeito, deixando de lado os
fatores sócio-político-econômico e sociais que o condicionam. Diante dessa consideração, o autor existencialista
defendeu-se de seus opositores na obra citada, afirmando que de forma alguma negava os fatores condicionantes,
porém entendia que o sujeito não era determinado por eles e nem por um Ser supremo (Deus) e, por isso mesmo,
combatia a idéia fatalista de mundo. Mesmo com as suas justificativas, parece que Sarte (1987) exagerou
quando entendeu que a liberdade do sujeito dependia mais dele do que da sociedade. Talvez esse seja o aspecto
em que, neste trabalho dissertativo, diferencia-se do autor, uma vez que se entende a liberdade relativa dos
sujeitos sociais como uma conquista que não é resultado apenas de uma subjetividade desejante, mas também da
sua interação com a dimensão social já instituída por códigos de condutas. Nesse caso, a hominização
compreendida como um processo pelo qual o filhote humano apreende, internaliza e ressignifica o estilo de vida
no contexto social do qual faz parte, é conflituoso, porque se dá numa luta intensa e permanente entre a
subjetividade (sonhos, desejos e valores peculiares de cada sujeito) e a objetividade ( idéias, normas e condutas
instituídas pelo grupo social). É nesse embate entre viver o que se quer e o que se deve é que o sujeito social tece
a sua autonomia relativa, assim também como a sua liberdade que exige limites e responsabilidades
compartilhadas com outros sujeitos. Dessa forma, compartilha-se com Sartre da idéia de que o humano é um
projeto existencial paradoxal na medida em que é condicionado e condicionante, porém se diferencia do autor na
medida em que se compreende a liberdade como um construto social que depende tanto da dimensão subjetiva
quanto da objetiva. Percebe-se que, mesmo adotando essa compreensão, o assunto é complexo e não está isento
de polêmicas, porém a concepção do humano como devir torna-se de suma importância para o educador atuante
no espaço rua, que tem como compromisso histórico acreditar nos sujeitos como possibilidade de ser.
45
Conhecimento entendido aqui em seu sentido pleno, que envolve as dimensões cognitiva, emocional e
espiritual.
43
rua para as instituições que melhor possam garantir a efetivação dos seus sonhos e
potencialidades, antes desconhecidos tanto pelos aprendentes com também pelo educador. Na
rua ainda se desenvolvem as oficinas pedagógicas com diversos temas como sexualidade,
afetividade, drogas e violência doméstica, visando possibilitar o processo de axeização
46
dos
educandos e educadores.
É acreditando em si e tendo o educador como co-parceiro na construção do projeto
de vida, que o educando se dispõe a ir para uma instituição de atendimento que lhe possibilite
superar de forma gradual os seus desafios.
Essa é a terceira etapa do trabalho pedagógico do educador conhecida como
encaminhamento, em que ele mantém contato com a instituição que acolhe o educando e que
se responsabiliza pelo seu processo educativo, envolvendo a sua família, a comunidade em
geral e, em especial, a escola.
O quarto momento do trabalho do educador é a articulação e a mobilização, em que
se pretende não só garantir os direitos da criança e do adolescente, mas também compartilhar
a experiência do educador forjada na rua com outros profissionais como médicos, policiais,
assistentes sociais, advogados, juízes, conselheiros tutelares e docentes atuantes nas escolas e
universidades.
Nessa etapa, pode-se dizer que o educador que atua no espaço rua torna-se um
tecedor de parcerias com diversos órgãos governamentais ou não, tendo uma dupla
preocupação: promover a criança e o adolescente e a si a próprio enquanto profissional
emergente.
2.1.3 Dos desafios enfrentados pela pedagogia social e pelo educador atuante no espaço
rua
Com a intenção exposta acima, pode-se dizer, de acordo com Canário (2006) quando
reflete sobre as incertezas que perpassam o espaço escolar na sociedade atual, que o educador
atuante no espaço rua encontra-se hoje no olho do furação, na medida em que algumas
questões desafiadoras tanto o envolvem como também a Pedagogia Social de rua, que
alicerça a sua prática educativa. Dentre os desafios, destaca-se que:
46
A palavra axé no candomblé significa força transformadora que incide sobre o mundo e faz com que as coisas
se modifiquem. Axeização é o processo de mudança de concepções de vida, de ser humano e de mundo, que
tanto o educador que atua no espaço rua quanto os educandos experimentam nessa aventura educativa (Braga,
1994).
44
a Pedagogia Social de rua, que ainda se encontra em fase de construção,
parece que não definiu de fato o que a diferencia da Pedagogia. Como visto
anteriormente, a primeira delas alicerça-se basicamente em quatro princípios
básicos como a intencionalidade, a globalidade, a radicalidade e a
transdisciplinaridade, categorias que são também pilares da Pedagogia e que,
por esse motivo, não define com precisão a diferença entre essas duas áreas
de construção de conhecimento.
Essa ausência de demarcação ocasiona sérios problemas para o educador que, além de
atuar no espaço rua, participa também de equipes multidisciplinares, geralmente formadas por
pedagogos, assistentes sociais, sociólogos, historiadores e psicólogos. O calcanhar de Aquiles
do educador emergente encontra-se no fato de ele não saber o que o aproxima e o diferencia
do assistente social, e principalmente do pedagogo, o que gera dissabores entre esses
profissionais que se confrontam não só pelo fato de defenderem pontos de vista diferentes
acerca da natureza do processo educativo
47
como também pela falta de delimitação do campo
de atuação.
Desse embate, parece que os educadores atuantes no espaço rua geralmente
concebem a pedagogia instituída como arcaica e antiquada para abordar os problemas
complexos atuais, principalmente, aqueles referentes à realidade das crianças e dos
adolescentes em situação de rua. A partir dessa compreensão, entendem e reduzem a
Pedagogia à tendência tradicionalista, não a concebendo numa perspectiva global como uma
ciência da prática educativa que pode se desenvolver nos espaços escolares e extra-escolares.
Porém, mesmo com uma visão reducionista acerca da Pedagogia, pode-se dizer que
os educadores sociais, ao criticá-la, explicitam a necessidade de ela atuar de forma dialógica
para além dos muros da escola, formando profissionais para trabalharem nos diversos espaços
educativos.
Essa demanda do educador atuante na rua já é mencionada nas Diretrizes
Curriculares Nacionais do Curso de Licenciatura em Pedagogia, o que exige a mobilização
desses profissionais a fim de dialogar com a academia para que no currículo de Pedagogia
seja contemplada a sua formação.
47
O conflito entre pedagogos, assistentes sociais e educador social por não ter definido com maior precisão a sua
área de atuação, foi identificado e registrado mediante leituras de trabalhos referentes ao tema em questão e por
meio da minha participação em assembléias e reuniões dos educadores sociais, promovidas pela Associação de
Educadores Sociais do Estado do Ceará (AESC).
45
Entende-se que essa tarefa não é nada fácil, porque pode haver fortes embates
ideológicos com alguns acadêmicos defensores da sua fatia de conhecimento, porém a
demanda desse profissional está posta, desafia e instiga os profissionais de diversas áreas do
conhecimento, principalmente a Pedagogia e pedagogos que, se dispostos a dialogarem,
podem renovar e ampliar o seu campo de atuação como também do educador emergente.
Um segundo desafio, que ainda diz respeito à área de atuação do educador,
manifesta-se quando a Pedagogia Social define o seu espaço de trabalho
como sendo a rua. Porém, como explicar essa questão se as Diretrizes
Curriculares Nacionais (2005) mencionam que o Curso de Licenciatura em
Pedagogia visa também formar o pedagogo para atuar em espaços não –
escolares?
Sendo assim, o que diferenciaria o trabalho do pedagogo para o do educador social,
já que ambos podem atuar num mesmo espaço? Essas duas questões são instigantes e exigem
que outros pesquisadores possam estudar sobre elas a fim de delimitar com maior exatidão a
área de atuação do educador social, contribuindo para a consolidação da sua profissão. Dito
isso, pode-se então dizer que as indagações acima objetivam explicitar a imprecisa definição
do espaço de trabalho do educador e instigar outros investigadores para que, cientes de tal
desafio, possam desenvolver pesquisas e aprofundar a discussão sobre o exposto, já que não
se tem a intenção de respondê-lo neste trabalho por exigir outra pesquisa.
O terceiro desafio encontra-se na idéia de que a Pedagogia emergente é
provisória. Graciani (2001, p. 285) afirma que a “Pedagogia Social de Rua –
desenvolvida pelos Educadores de Rua- é uma pedagogia especial e tenderá a
desaparecer quando não mais existirem crianças e adolescentes nas ruas do
Brasil”. Percebe-se a humildade da autora e o seu sonho de não mais existir
crianças e adolescentes em situação de rua, porém num país onde há uma
grande concentração de renda e, paradoxalmente, a ampliação da miséria,
infelizmente parece que o fim dessa Pedagogia prolongar-se-á. Mesmo
assim, indaga-se: ao desaparecer a Pedagogia que alicerça a prática do
educador, este também desaparecerá? Se sim, até que ponto esse pensamento
contribuiria para a profissionalização e a consolidação de uma categoria de
educadores ainda emergentes? Se não, como ficará o trabalho desse
profissional com o fim da Pedagogia que norteia a sua ação educativa?
46
Essas questões tornam-se desafiadoras, porque tendem a fragilizar a discussão em
torno da profissionalização do educador social. A provisoriedade da Pedagogia parece que
engloba também a prática do educador social. Essa idéia alicerça-se na crença de que os
marginalizados urbanos deixarão de ser e de que uma nova sociedade se estabelecerá com
base no respeito, na solidariedade, na compaixão e na valorização da dignidade humana.
Parece que é essa utopia que sustenta a Pedagogia Social, que tem como sujeitos da
sua prática educativa aqueles que se encontram em situação de rua. Assim, defender a sua
própria provisoriedade significa, acima de tudo, acreditar no poder de seus destinatários se
modificarem como também o contexto em que se encontram. Nesse sentido, a passagem
desses sujeitos de um contexto social excludente para uma sociedade inclusiva sinalizaria o
êxito da Pedagogia Social que cumprindo a sua função emancipadora, desapareceria.
Essa compreensão acerca do caráter efêmero da Pedagogia Social possibilitou-lhe
não entrar em contradição com os seus próprios princípios, pois caso defendesse a sua
continuidade, estaria reconhecendo que a situação de miséria social continuaria e, desse
modo, fundada numa utopia que preza pela transformação da sociedade, porém afirmando a
permanência da sua área de saber, negaria a si mesma e sucumbiria.
Diante desse dilema, a Pedagogia Social sabiamente optou pela sua provisoriedade
para que pudesse existir por mais tempo, sendo coerente com a sua proposta que é
proporcionar uma metamorfose consciente dos sujeitos sociais para que atuem criticamente no
seu entorno social. Problema resolvido? Ainda não.
É que, ao se defender como saber provisório, a Pedagogia Social de rua parece que
tornou efêmero também o educador. E nesse caso, como promover a profissionalização desse
sujeito que é transitório numa sociedade do descartável? Ora, se já é difícil promover o
reconhecimento dos profissionais que há mais tempo lutam pela sua permanência no mercado
de trabalho, imagine aqueles emergentes que são tidos como provisórios. Pergunta-se: o que
fazer então? Eis o dilema do educador: acreditar na provisoriedade do seu fazer educativo e
descartar a si mesmo ou afirmar-se enquanto categoria profissional, reconhecendo a existência
contínua da miséria de outros sujeitos sociais? Entende-se que essa questão coloca de fato o
educador social, como diz Canário (2006), no olho do furação.
À guisa de resposta ao desafio, pode-se pensar em ampliar a área de atuação desse
profissional, possibilitando-lhe que desenvolva a sua prática educativa tanto nos espaços
escolar como no extra-escolar. Sendo assim, os sujeitos da sua ação educativa seriam os
47
educandos como sujeitos de direitos que lutam para a construção e a efetivação da sua
cidadania.
Entende-se que ampliando e diversificando o campo de atuação do educador, ele
poderia lutar pela sua formação no Curso de Licenciatura em Pedagogia, além de contribuir
por meio de sua experiência forjada na rua com a renovação dessa ciência no âmbito escolar.
É de acordo com essa perspectiva que o presente trabalho concebe esse educador como um
pedagogo emergente, que desafia a universidade a repensar o currículo de formação de
educadores para atuar na contemporaneidade.
A partir desses desafios apresentados, objetiva-se ainda entender como os sujeitos da
prática educativa do educador atuante no espaço rua foram concebidos historicamente pela
sociedade brasileira. Esse é um assunto para ser discutido no próximo capítulo.
48
Capítulo II-A criança e o adolescente em situação de rua no Brasil: trajetória
A infância e a adolescência das classes populares e, particularmente, das que vivem
em situação de rua no Brasil, foram concebidas historicamente ora como símbolo do mal
(agressor, trombadinha, pervertido, gatuno), ora como vítima (coitado, abandonado, carente)
da sociedade. Essa ótica negativa implantou-se no imaginário social brasileiro de tal forma
que a maioria das pessoas os entende como feixes de carências.
Objetivando compreender esses significados violentamente estigmatizadores
atribuídos a esses sujeitos sociais, realizou-se um estudo com base na História Social da
criança no Brasil, em dissertações, em teses e livros pertinentes ao assunto abordado.
2. O “descobrimento
48
” do Brasil e a violência contra crianças e adolescentes
O Brasil foi “descoberto” pelos portugueses em 1500 e o processo de povoamento do
país se inciou em 1534, por meio do sistema de Capitanias Hereditárias, que tinha o intuito
de povoar e defender o território basileiro contra os invasores franceses, ingleses e holandeses
que praticavam o comércio ilegal de madeira.
Com esse intuito, várias embarcações marítimas partiram de Portugal para o Brasil,
conduzindo homens, pouquíssmas mulheres e algumas crianças que já eram exploradas pelo
fato de trabalharem nas embarcações lusitanas e serem violentadas sexualmente pelos
tripulantes adultos.
Para Ramos (2004), essa violência manifestava-se também no caso de naufrágio ou
ataques em alto mar, pois os marinheiros preocupavam-se mais em recuperar a alimentação e
a preservar a vida dos nobres do que a das crianças.
48
A palavra está entre aspas, porque não se encontrou outra mais adequada. Todavia, faz-se a seguinte
consideração: parece que o termo “descobrimento” não retrata bem o período de chegada dos portugueses a uma
colônia que recebeu denominações tais como: Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz e, por último, Brasil.
Entende-se que o termo “descobrir” pressupõe que o Brasil antes já existia e pouco ajuda a compreender o
processo violento da colonização do país. Talvez as denominações mais adequadas sejam “invenção ou invasão”,
porque parecem deixar mais claro que quem “inventa ou invade” é portador de intenções, o que possibilita a
discussão sobre a ideologia do colonizador. Por outro lado, o termo “descobrir” pouco permite discutir sobre o
processo violento da colonização, pois quem “descobre” não invade e não destrói a cultura de quem é violentado,
apenas a desvela e a manifesta para outrem. Desta feita, conserva-se o termo “descobrimento” devido ser o mais
utilizado pela maioria dos historiadores, porém se chama a atenção para o fato de “o descobrir” na perspectiva do
colonizador poder opor-se ao “invadir” na perspectiva do colonizado.
49
Ainda segundo o autor, dentre as crianças que tinham as piores condições de vida,
encontravam-se os grumetes ( marinheiros aprendizes menos favorecidos econômica e
socialmente) que trabalhavam nas embarcações e se engajavam na aventura marítima com o
consentimento dos pais, que, mesmo cônscios dos perigos de naufrágio e do risco de vida do
seu filho, desejavam que ele fosse um marinheiro, porque esse era o único caminho para que a
sua família pudesse obter o reconhecimento e a ascensão social.
Diferente dos grumetes, existiam os pagens, geralmente filhos de nobres, e tinham
como objetivo principal obter as melhores funções na Marinha portuguesa. Esses possuíam
certos privilégios, como melhores espaços para dormir, boa alimentação e não eram tão
explorados como os grumetes, mas mesmo assim não estavam totalmente isentos dos atos
violentos praticados nas embarcações.
Nesse contexto, percebe-se que, desde o início do projeto colonizador português, as
crianças tornaram-se co-partícipes e se arriscavam sozinhas ou acompanhadas de seus
familiares, objetivando conseguir melhores condições de vida (grumetes) ou validar o status
quo da sua família (pagens) , sonhos que às vezes eram concretizados ou tranformados em
pesadelo devido aos naufrágios e aos diversos tipos de violência a que eram submetidas.
Essa violência presente na aventura marítima contra crianças e adolescentes
manifestou-se também no processo de catequização promovido pelos padres da Companhia de
Jesus, que chegaram ao Brasil na mesma embarcação de Tomé de Sousa, em 1549, liderados
pelo padre Manoel da Nóbrega.
Koshiba e Pereira (1996) afirmam que os jesuítas visavam desenvolver um trabalho
catequético que tinha dois objetivos básicos, sendo que o primeiro deles referia-se à tentativa
de garantir a hegemonia da Igreja Católica, pois a religião protestante expandia-se na Europa
e, o segundo, dizia respeito ao processo de domesticação dos nativos para que eles aceitassem
a ideologia da Coroa portuguesa e negassem a sua cultura.
Guiados por esses fins, os religiosos refutaram as crenças e os valores dos povos
indígenas, considerados como selvagens e carentes dos costumes europeus e dos saberes da
fé, sendo forçados a internalizar relativamente a ótica de mundo (agir, pensar e sentir) do
colonizador.
Diante de tal situação, o povo indígena não foi totalmente passivo e lutou para
defender a sua cultura, em parte soterrada pela proposta colonizadora. Mesmo assim, percebe-
se a resistência dos nativos, o que demonstra que o humano é fonte de iniciativa e de
50
resistência aos problemas oriundos de fatores de ordem econômica, política e cultural que
obstaculizam-no ser um sujeito social.
Talvez essa caraterística peculiar do ser humano tenha sido um dos elementos que
contribuiu para que alguns índios adultos não aceitassem de forma indiferente a
evangelização dos jesuítas, que tiveram que alterar a sua estratégia catequizadora, iniciando-a
pelas crianças índígenas (curumins), tidas como um meio para converter os pais arredios a
aceitarem a doutrina cristã.
Mudando a forma de educar, os jesuítas lograram êxitos, pois percebiam que, além
de a criança indígena assimilar os conteúdos da fé, elas também corrigiam os seus pais a tal
ponto de denunciá-los aos religiosos, caso não seguissem os preceitos da Igreja.
De acordo com o exposto, pode-se dizer que a criança teve uma importante função
para a propagação da doutrina religiosa, embora negando aspectos da sua cultura. Parece que
nesse contexto, ela representou um elo entre os representantes de um poder opressor (jesuítas)
e os índios, que resistiam à opressão.
Para Chambouleyron (2004), o método de ensino adotado pelos padres para que a
criança indígena internalizasse os ensinamentos da religião baseava-se na memorização de
perguntas referentes ao catecismo, sendo que os temas mais estudados eram a origem do
mundo, o pecado original, a ressurreição e a paixão de Cristo.
O trabalho evangelizador estava de acordo também com um dos objetivos de Manoel
da Nóbrega que, preocupado com a pouca quantidade de padres para converter os índios,
acreditava que dever-se-ia escolher as crianças indígenas e mestiças mais inteligentes para
que elas se tornassem religiosas e pudessem perpetuar a Ordem e os ensinamentos sagrados.
Acreditando nessa possibilidade, Nóbrega escreveu em 1552 ao provincial português, padre
Rodrigues, afirmando que no Brasil já existiam duas crianças que sabiam escrever, contar e
ler e que desejava enviá-las a Portugal para estudarem a fim de serem religiosos.
Essa idéia foi bastante criticada pelos padres Everardo Mercuriano e Cláudio
Aquaviva, já que alegavam que os filhos de índíos e negros eram inaptos para a vocação
religiosa. Enfrentando essa oposição, Nóbrega conseguiu fazer predominar a sua proposta e,
em 1556, enviou um menino de nome Cipriano para a Companhia de Jesus em Portugal.
Mesmo logrando alguns êxitos no trabalho de catequização, os jesuítas
preocupavam- se com muitas crianças indígenas que abandonavam os ensinamentos religiosos
e retornavam aos costumes e valores da sua cultura. Esse fato acontecia devido a dois fatores
51
básicos: primeiro, as famílias indígenas eram nômades e, geralmente, nos lugares em que
permaneciam por um longo tempo, não existiam religiosos, o que contibuía para que os seus
filhos esquecessem o que haviam aprendido; segundo é que na puberdade, período da vida
que foi compreendido pelos jesuítas como a passagem da inocência infântil à perversidade e
aos vícios, algumas crianças tornavam-se mais independentes e retornavam aos seus
costumes e tradições.
Diante desses desafios que perpassavam o trabalho catequético, os religiosos
enfrentavam um outro que era a dificuldade de aprenderem a língua do povo indígena para
melhor dominá-los, de acordo tanto com a perspectiva religiosa quanto política da Metrópole.
Para solucionar esse problema, os padres Nóbrega e Anchieta solicitaram ao Colégio de Jesus
dos Meninos Órfãos de Lisboa que enviasse órfãos de bom comportamento e que fossem
capazes de aprender a língua dos nativos
49
.
Chambouleyron (2002) afirma que, ao chegarem ao Brasil, os jovens órfãos
portugueses tiveram como missão auxiliar o trabalho catequético, que visava civilizar os
nativos para que obtivessem a salvação da alma.
Dentre esses catequizadores, alguns se tornaram padres e outros tiveram
dificuldades em seguir a vida religiosa, porque mantiveram casos amorosos com as indígenas,
o que era proibido pela Igreja. Esses foram forçados pelos religiosos a retornarem a Portugal,
sendo que aqueles que resistiram à ordem permaneceram no Brasil e perambularam sem
destino na colônia, pois não eram acolhidos nem pelos constumes do povo nativo, nem pelos
da moral cristã.
Para Leite (2003), os ex-catequizadores foram os primeiros meninos abandonados a
viverem na rua na história do país, e o fato de terem fugido com as índigenas despertou um
certo descontentamento por parte de Anchieta, que os definiu pejorativamanete como jovens
desviados, bandidos e patifes incapazes de viver a moral religiosa da época.
Esse fato revela que aqueles que viviam outros valores, contrários aos da religião,
eram concebidos pelos padres como seres inferiores, desprovidos de potencialidades para o
“Reino” dos céus, que na verdade estava relacionado ao poder político da Metropóle.
49
Conforme os estudos realizados em Leite (2003), Chambouleyron (2002) e Priori (2002), percebe-se que
alguns religiosos não aceitavam a vinda dos órfãos para a colônia, inclusive Dom Pero Fernandez, o primeiro
bispo do Brasil, pois afirmava que eles não possuíam condutas condizentes com a moral cristã da época. Dos
doze órfãos, dois deles se ordenaram: padre Simão Gonçalves e Antõnio de Pina.
52
Esse entendimento caracteriza bem a mentalidade do colonizador, que geralmente
percebe o colonizado como um objeto seu, um executor das suas idéias e do seu estilo de vida.
Para aquele que detém o poder de mando, o bom é geralmente o obediente aos seus ditames
autoritários, os maus são os que lhes desobedecem e que rompem com a ideologia do
dominador. Nesse sentido, os órfãos desviados foram maus para uma colônia que se
estruturava a serviço dos interesses do Governo português.
Ainda segundo a autora, por volta de 1570 foram fundados os primeiros internatos
que atendiam órfãos, sendo um masculino e outro feminino, o que deu início no Brasil a uma
política de internamento e recolhimento de crianças abandonadas.
Sobre a educação jesuítica, Ribeiro (2003) entende que ela domesticava os nativos e
os tornava adeptos cada vez mais da cultura do dominador, sendo que aqueles que se
opuseram ao projeto colonizador foram demonizados e estereotipados.
Esse olhar negativo acerca das pessoas que não correspondiam ao modelo de
sociedade preconizado pelos que detinham o poder econômico, político e cultural tornou-se
também presente no Brasil Império.
2.1 A criança no Império: um ser para o mando, outro para obediência
Nesse período, a educação das crianças da elite visava prepará-las para assumirem os
cargos de maior importância no país e, com esse intuito, muitas se formaram em advocacia,
engenharia e medicina, exercendo a sua profissão, enquanto outras se tornaram dirigentes
políticos.
Para conquistar o poder de mando, essas crianças tinham uma rotina de trabalho
análoga à do adulto. Aos sete anos iam à escola e seguiam uma rígida disciplina de estudos,
sendo castigadas com a palmatória (principal instrumento de correção) caso o seu
comportamento não fosse condizente com as normas e valores da época, que deveriam ser
internalizados no ambiente escolar.
A formação escolar da criança da elite iniciava-se aos sete anos e objetivava
preservar os costumes e as crenças que garantiam o status quo da elite imperial. De acordo
com o exposto, Mauad (2004) relata que havia ainda uma diferença entre a educação dos
meninos, que exigia deles a aquisição de habilidades intelectuais, e a das meninas, em que
predominavam os atributos manuais.
53
Com o objetivo de exemplificar a formação dos meninos da elite imperial, elaborou-
se o quadro abaixo que apresenta algumas disciplinas oferecidas no período oitocentista pelo
Externato Pedro II, o lócus priviliegiado de formação de alunos filhos de ricos cafeicultores e
dos da elite urbana, tendo como base o pensamento da autora citada:
Disciplinas religião, filosofia, retórica, cronologia, história natural, geografia descritiva,
latim, matemática, língua alemã, geologia, língua ingles, gramática geral e
nacional, desenho caligráfico linear e figurado, música vocal, astrologia etc.
Estudavam-se essas disciplinas durante sete anos, sendo que, após esse período, os
que desejassem e tivessem condições financeiras, poderiam continuar os estudos no país ou
fora dele.
Para Mauad (2004), a educação da menina iniciava-se aos sete e geralmente
terminava aos quatorze anos de idade. Em 1870, o currículo do Colégio para Meninas de
Taulois e Riviere, no Largo do Machado, Rio de Janeiro, era organizado com as seguintes
disciplinas:
Disciplinas línguas nacionais, história antiga e moderna, mitologia, música, costura,
crochê, desenho e bordado
Percebe-se que a elite imperial, que tanto se preocupava com a formação dos jovens
para serem governantes e/ou assumirem outras funções consideradas importantes na época,
tinha bastante dificuldade para conceber a mulher como um ser capaz de assumir outras
funções que não fossem aquelas predominantemente de natureza doméstica.
Mesmo percebendo a importância da escola para a ascensão e manutenção do status
social, alguns pais entravam em conflito com o espaço escolar, porque o acusavam de ensinar
apenas os conteúdos formais, esquecendo-se dos valores morais e espirituais. Nesse embate,
estabeleceu-se uma distinção entre a função da escola, que se resumia a ensinar as disciplinas,
e a da família, que era a de educar conforme os ensinamentos divinos(PRIORI, 2004).
De acordo com esse entendimento, pode-se dizer que o processo formativo das
crianças no Império abarcava duas dimensões, sendo que uma delas focava os conteúdos
escolares e a outra, os da fé.
Parece que o conflito entre a escola (instrução) e as famílias da elite
imperial(defensoras dos valores religiosos e dos “bons costumes”) demonstra a forte
54
influência do catolicismo que, naquele contexto, contribuiu bastante para que os pais
lidassem melhor com um dos problemas mais grave da época: a mortalidade infantil
50
.
Priori (2004) relata que os fatores como a ausência de vacinação, a alimentação
inadequada das crianças
51
, o vestuário impróprio para o tipo de clima, a falta de tratamento
médico e o descuido com o cordão umbilical contribuíram para a alta taxa de mortalidade.
Segundo os dados obtidos por Mauad (2004) no Boletim Mensal de Inspetoria Geral de
Higiene de 1872, num mês (indefinido) na cidade do Rio de Janeiro, faleceram quarenta e
uma crianças de zero a três meses, quarenta e cinco de um a três anos, vinte e cinco de um a
dois anos, trinta e cinco de um a cinco anos e cinqüenta e três de cinco a quinze anos.
Cônscios do risco de vida dos recém-nascidos, os pais preocupavam-se em batizar o
mais rápido possível os seus filhos, pois temiam que eles morressem pagãos. Este fato revela
a marca da religião na vida social, mas também a insegurança dos familiares em relação às
reais possibilidades de vida da criança.
Com o advento da literatura médica no século XVIII, a infância foi concebida como
uma fase da vida diferenciada da do adulto e os pais foram orientados com temas referentes à
importância da amamentação
52
, à higiene infantil, ao tipo de vestuário adequado para a
criança e ao uso de medicamentos. No início houve uma forte resistência das famílias em
aceitar as orientações médicas, porque acreditavam mais na medicina caseira, que tinha a avó
como uma figura importante para cuidar das crianças, pelo fato de ela ter acumulado uma
vasta experiência no decorrer da vida.
Mesmo com os problemas que perpassavam o cotidiano familiar da elite imperial,
percebe-se o carinho dos pais pelos filhos e o seu sonho de que eles se tornassem pessoas
renomadas na sociedade.
50
Não se pretende resumir a função da religião apenas ao fato de ela ensinar o ser humano a lidar com a morte.
O que se quer destacar é que, no contexto do Brasil Império, no qual existiam poucos médicos, medicamentos e
pouco controle das doenças, como febre tifóide e meningite, a religião pode ter ajudado as pessoas a lidarem
melhor com a perda do ente querido, no sentido de elas acreditarem na possibilidade de uma outra vida.
51
Quanto ao tipo de alimentação era comum as mães darem aos filhos papa de farinha de mandioca, mingau de
tapioca e leite de gado.
52
Mauad (2004) relata que na família imperial, a mãe era a principal responsável pela educação dos filhos,
porém elas não gostavam de amamentar. Possivelmente isso acontecia devido a dois fatores: primeiro, a
amamentação era entendida como algo muito cansativo e logo foi relacionada ao trabalho escravo, o que,
conseqüentemente, “agredia” a dignidade das parturientes nobres, que contratavam as amas de leite e, segundo,
porque possivelmente essa postura pode ter sido herdada de Portugal, onde geralmente a mulher da elite não
amamentava.
55
Esses sonhos construídos pelo mundo adulto guiavam o cotidiano das crianças que,
mesmo seguindo disciplinas rígidas, conseguiam rompê-las por meio dos momentos de
diversão, como a brincadeira e os passeios em sítios e fazendas.
Oposto ao estilo de vida das crianças da elite, encontravam-se os filhos de escravos,
que desde cedo aprendiam a servir ao seu proprietário e a obedecer aos seus ditames. Essa
criança escrava era paulatinamente adestrada para ser obediente e produtiva no sistema
escravagista, uma vez que aos sete anos de idade iniciava-se no trabalho, desenvolvendo
atividades como abanar o seu senhor, levar correspondência para ele e carregar os seus
pertences.
Góes e Florentino (2004) relatam que o número de escravos em 1789 era equivalente
à metade da população mundial e que nesse período, no Rio de Janeiro, havia sessenta e cinco
mil deles que trabalhavam nas áreas rurais, sendo que esse número aumentou em 1808 para
cento e dez mil.
Essa imensa quantidade de escravos adultos, violentados física, psicológica e
espiritualmente nas fazendas em que trabalhavam, dificilmente conseguia viver até os
cinqüenta anos de idade, o que contribuía para que aumentasse o número de crianças órfãs.
A terrível violência sofrida pelos escravos adultos estendia-se às crianças negras que,
por meio de brincadeiras, aprendiam a carregar os filhos dos senhores nas costas, o que revela
que desde cedo eram treinadas para serem subservientes.
Uma outra forma de adestrar as crianças escravas era por meio de descasos e ofensas
praticados pelos homens, crianças e mulheres livres. Ainda segundo Góes e Florentino
(2004), esse olhar negativo acerca dos filhos de escravos foi explicitado pela inglesa Maria
Graham, educadora da princesa D. Maria da Glória, que entendia que o crioulo só tinha valor
quando fosse capaz de trabalhar e gerar lucros para o seu dono, devendo ser bastante
obediente e prestativo.
Em consonância com o exposto, Pardal (2005) acrescenta que havia uma diferença
entre a criança branca e a criança negra: até os seis anos de idade elas poderiam conviver
juntas e, após esse período, separavam-se, porque a primeira deveria aperfeiçoar as suas
habilidades intelectuais, enquanto a segunda aprenderia um ofício ou seria introduzida de
imediato no trabalho.
A incorporação da criança negra ao trabalho começava muito antes de seis anos, pois
a sua mãe geralmente era forçada a trabalhar três dias após o parto e, por esse motivo, tinha
56
que levar o filho com ela. Assim, a escrava assumia uma dupla responsabilidade na medida
em que, além de atuar na lavoura, era também responsável pela educação do seu filho, que
deveria ter um comportamento condizente à moral do senhor.
Ainda sobre o contexto da escravidão, Scarano (2004), analisando as
correspondências que partiram de Portugal, do Rio de Janeiro e da Bahia para as regiões das
Minas Gerais no século XVIII, relata que pouco fazem referência aos escravos, pobres,
mulheres e mesmo aos filhos das pessoas consideradas importantes, o que demonstra que as
preocupações prevalentes naquele período centravam mais em torno de questões políticas e
econômicas do que acerca dos problemas cotidianos vivenciados pelas pessoas menos
privilegiadas e pelo público infantil, entendidos como um assunto secundário.
Nas Minas Gerais, por exemplo, a produtividade e a acumulação de riqueza eram
palavras-chave para os mineradores, que, para atingirem os seus propósitos, submetiam os
escravos a precárias condições de trabalho, nas quais a sua vida útil se estenderia no máximo
a sete anos. Essa exacerbada exploração vivida pelos trabalhadores, associada à ausência de
cuidados com a sáude e à má alimentação, contribuiu para uma elevada taxa de mortalidade
tanto de adultos como de crianças negras
53
e brancas.
Para a autora, no final do período setecentista em que houve a decadência da
mineração, muitos escravos adultos, idosos e crianças foram alforriados e seus proprietários
não lhes garantiram nenhuma condição para se manterem e, por esse motivo, pediam esmola e
viviam perambulando pelas vilas e lugarejos.
Essa realidade demonstra que a prática de o humano ser abandonado nas ruas não é
algo tão recente na história do Brasil, porque os negros, os brancos pobres, os índios e os
mestiços já faziam parte dessa realidade violenta em que aqueles que detinham o poder
subjugavam-nos e exploravam a sua força de trabalho. No contexto das minas, o que se
percebe é que a alforria, entendida como uma forma de conquista da liberdade dos escravos,
tornou-se um instrumento de isenção da responsabilidade dos proprietários que negavam a
liberdade dos cativos, na medida em que os abandonavam sem condições de sobreviverem
dignamente.
53
Scarano (2004) apresenta dados da Comarca de Serro Frio de 1776, demonstrando que a mortalidade de
crioulos e pretos foi de 596, o que superou a taxa de natalidade de 544. Percebe-se também que a mortalidade
entre as crianças brancas, ainda que inferior em relação às de cor, torna-se bastante elevada, sendo que de 473
nascidos, morreram 246.
57
Nesse quadro de negação da liberdade, observa-se que as crianças negras assumiram
algumas funções como: participar de encenações teatrais para alegrar os seus donos, cantar
tanto nas procissões e celebrações católicas quanto nas festas religiosas africanas, trabalhar
com arquitetos, pedreiros e pintores na construção de casas e realizar trabalhos domésticos.
A participação das crianças de cor nas festividades católicas, juntamente com os seus
seus pais, contribuiu para que nos quilombos houvesse uma mistura de vários elementos
religiosos do catolicismo com os da cultura africana.
Para Goes e Florentino (2004), essa convivência da criança negra e de seus
familiares com a cultura européia e indígena fez com que eles pudessem reinventar o seu
mundo e ampliar as suas estratégias de sobrevivência num sistema repressivo.
Esse fato demonstra que jamais o povo negro foi um receptor passivo dos valores
daqueles que o dominavam e que soube aproveitar bem alguns elementos da própria religião
católica para poder sobreviver. Foi o caso, por exemplo, do compadrio, em que, no ato do
batismo, os negros fortaleciam os vínculos afetivos entre si, pois, em torno da criança
batizada, os pais e padrinhos uniam-se e construíam estratégias de luta e de resistência ao
poder opressor.
Ainda por meio do batismo, muitos proprietários de terra apadrinhavam os filhos
dos escravos e os protegiam de agressões, enquanto outros também aproveitavam do vínculo
estabelecido com a criança negra e os seus pais e exploravam-nos bastante no trabalho.
Todavia, essa foi uma estratégia adotada pelos negros e que, em muitos casos, funcionou para
minimizar a violência praticada contra a infância e a adolescência escravas.
Mesmo sendo resistentes, Scarano ( 2004) destaca que os quilombos durante o século
XVIII em Minas Gerais foram atacados por grupos de brancos preconceituosos, já que
entendiam que as comunidades negras eram perigosas e ameaçadoras à ordem vigente. Nos
ataques, muitas crianças e jovens morreram assassinados ou “foram aprisionados quando seu
território invadido e suas habitações destruídas se tornaram escravos e integraram o miserável
grupo de cativos ou não sobreviveram às lutas.A ferocidade dos ataques levou a muitos
crimes, mesmo contra a infância” ( id. Ib, p. 130)
Nesse contexto conflituoso, a falta de recursos financeiros associada a má
alimentação e às péssimas condições de higiene nos quilombos contribuiram para que doenças
comuns como diarréia, febre, malária, sarna e sarampo atacassem as crianças, o que resultou
num elevado índice de mortalidade.
58
Um outro acontecimento histórico que ainda retrata as marcas da violência praticada
contra a criança e o adolescente no país foi a Guerra do Paraguai(1865-1870), marcada por
intensas disputas pela região do rio Prata, considerado ideal para a navegação comercial e
para a consolidação do poder econômico de países como o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o
Paraguai.
Antes da Guerra, o Brasil já tinha se confrontado, em 1851, com os blancos
uruguaios, que invadiram de forma fraudulenta e com o apoio dos argentinos algumas
fazendas que faziam divisa com o Rio Grande do Sul, o que fez com que o império brasileiro
reagisse contra os governos de Manuel de Oribe (uruguaio) e o de Manuel Rosas (argentino)
em 1852.
Em 1864, os brasileiros atacaram novamente o Uruguai de Atanásio Aguirre
(representante dos blancos uruguaios), aliado do presidente paraguaio Francisco Solano López
que nesse mesmo ano intensificou o conflito, quando ordenou a apreensão do navio brasileiro
Marquês de Olinda, que navegava no rio Paraguai, e declarou guerra ao Brasil.
Com uma forte armada militar, López lançou uma terrível ofensiva ao país que, para
se defender, firmou o Tratado da Tríplice Aliança constituído pela Argentina e o Uruguai, o
que possibilitou pôr fim ao embate em 1870, período em que López foi morto em Cerro
Corá
54
.
A vitória obtida pelo Brasil nesse confronto armado custou a vida de muitas crianças
pobres, abandonadas, órfãs e escravas, enviadas ao campo de batalha, e que lá foram expostas
a todo tipo de perigo.
Para Venâncio (2004), o recrutamento no país teve duas fases, sendo que na primeira
delas as crianças
55
recebiam um treinamento prévio na Companhia de Aprendizes, onde
aprendiam a lidar com armas e a se tornarem soldados exemplares para a nação. Na segunda,
os combatentes infantis foram recrutados e enviados para a Guerra do Paraguai
56
sem
senhuma preparação.
54
As informações acerca da Guerra do Paraguai foram obtidas em:
http://br.geocities.com/vinicrashbr/história/brasil/guerradoparaguai.htm. Acesso em: 02 nov.2006.
55
Vale destacar que a criança como um ser em fase de desenvolvimento peculiar e diferente do adulto foi uma
concepção que se consolidou mais no século XIX com a aparição da Pedagogia, Psicologia e Pediatria. Antes,
ela era vista como um pequeno adulto. Talvez esse seja também um dos motivos que explique o porquê da
participação delas nas guerras.
56
A Guerra do Paraguai aconteceu no século XIX no Brasil e o governo imperial foi surpreendido, pois pensava
que eliminaria a batalha em apenas seis meses, quando na verdade se prolongou durante cinco anos e quatro
59
Para o autor, as crianças órfãs, abandonadas e pobres foram convocadas para atuarem
como soldados ideais, pois os comandantes das Forças Armadas acreditavam na ídéia de que
elas serem desprovidas de bens materiais e algumas assistidas pelo poder público, tornariam-
se fiéis soldados, capazes de morrer pela pátria, porque a concebiam como uma mãe que os
amava e os amparava.
A partir dessa estratégia desumana, que usava a miséria como uma forma de obter
fidelidade aos interesses dominantes do país, formou-se um exército dos excluídos,
constituído de crianças pobres
57
, dos enjeitados da Roda dos Expostos
58
e das crianças que
perambulavam pelas ruas, sendo que muitas foram capturadas à força pela polícia e enviadas
para a Companhia de Aprendizes Marinheiros.
A postura violenta adotada pelos soldados na captura dos pequenos combatentes foi
alvo de revolta e crítica de muitos pais que pediam e lutavam para que fossem devolvidas à
família as crianças desaparecidas e enclausuradas na Companhia.
É nesse contexto que Venâncio (2004) afirma que, pelo uso da força policial, 789
foram recrutados em 1865, o que representou um aumento de 20% em relação ao período
anterior e que, em 1864, no Arsenal do Rio de Janeiro, contabilizavam-se 116 recrutas, sendo
que no ano seguinte esse número aumentou para 269.
A crescente quantidade de crianças nessas instiuições militares parece indicar que
houve, no Brasil do século XIX , uma varredura nas ruas das capitais e os meninos das classes
sociais menos favorecidas foram forçados a lutar em defesa do país.
No campo de guerra, estes combatentes assumiam algumas funções como limpar os
pavimentos das embarcações, abastecer com munição as armas dos soldados, ajudar no
manejamento das velas e lutar contra os adversários paraguaios.
Desta feita, entende-se que a Guerra do Paraguai é um dos episódios que expressa a
violência sofrida tanto pela criança quanto pelos adolescentes menos privilegiados do país. O
desrespeito em relação a esses sujeitos, como visto anteriormente neste trabalho, manifesta-se
desde a “descoberta” do país nas grandes navegações, nas imposições de ensinamentos
meses. Esse imprevisto fez com que as Forças Armadas recrutassem escravos, crianças e prisioneiros para
atuarem no conflito armado.
57
A Companhia foi a primeira instituição pública criada em 1840 para “salvaguardar” as crianças desamparadas
do país. Nela, muitas famílias pobres matriculavam os seus filhos, porque acreditavam que esse era o único meio
de garantir a escolaridade deles.
58
A Roda dos Expostos será discutida mais adiante neste trabalho.
60
religiosos pelos jesuítas, nas relações desiguais entre os filhos das elites e os dos pobres
brancos e dos escravos.
Nesse sentido, compartilha-se com Neto (2003) quando diz que desde a fundação do
Brasil há uma política do genocídio, entendida como uma prática social da elite brasileira que
nega as condições básicas para que o público infanto-juvenil pobre possa realizar-se enquanto
sujeito crítico e participativo. Essa política sustenta-se na idéia de que as crianças e
adolescentes pobres são sujeitos carentes e perigosos para o convívio social e que só terão
valor se atenderem ao padrão de conduta considerado válido pela sociedade dominante.
2.2 A criança e o adolescente das classes populares e a estigmatização
O dicionário Aurélio da Língua Portuguesa apresenta vários significados para o
termo estigma ,sendo que um deles se refere à cicatriz, sinal ou marca que, quando atribuída
a um sujeito, pode caracterizá-lo negativamente. Essa definição torna-se importante na
medida em que contribui para que se pense a criança e o jovem pobres no início do século XX
no Brasil e, em especial, na cidade de São Paulo.
Nesse período, estava sendo construído um outro modelo de sociedade brasileira com
base no regime republicano, que exigia um novo tipo de trabalhador que atendesse às
demandas impostas pela sociedade moderna. Embora o país ainda tivesse como mola
propulsora para o seu desenvolvimento a vocação agrária, fazia-se necessário desenvolvê-la e,
ao mesmo tempo, investir nas indústrias emergentes para poder gerar riquezas e assim
consolidar o modo capitalista de produção.
Com essa preocupação, o Brasil tornou-se uma porta de entrada para imigrantes de
várias partes do mundo que vieram em busca de trabalho e de realização dos seus projetos de
vida, sendo que muitos desses recém-chegados trabalharam como empregados, enquanto
outros se tornaram proprietários de fazendas e/ou indústrias.
A crença no desenvolvimento foi alicerçada no pensamento positivista
59
que
apregoava a idéia de que a ordem era condição sine qua non para se obter o progresso da
59
Comte (1798-1857) é considerado o pai do positivismo, uma doutrina filosófica criada no século XIX que se
opôs ao idealismo hegeliano e que tem como fonte da verdade a experiência. O conhecimento positivo é aquele
que pode ser medido, quantificado e comprovado empiricamente. Segundo o autor, existem três estados de
desenvolvimento da humanidade, sendo que na Antigüidade o que predominou foi o estado teológico ou
mitológico, no qual os deuses direcionavam e determinavam a ação do ser humano; na Idade Média o que
marcou foi o estado metafísico no qual o homem substituiu todos os deuses por Deus único e supremo que
comandava todos os acontecimentos do mundo e, na Modernidade, o que a caracteriza é o estado positivo que
considera o homem como um sujeito capaz de descobrir as leis invariáveis que regem o universo e, a partir daí,
intervir nela modificando-as cientificamente. O pensamento de Comte tornou-se presente no cenário brasileiro
61
nação brasileira e, com base nesse ideal, aquele sujeito que tinha comportamento averso à
modernização, deveria ser reeducado e ressocializado para garantir a paz social e o
desenvolvimento do país.
O sonho do país civilizado fez com que alguns médicos, políticos e estudiosos
concebessem a criança como o futuro do Brasil e que, por esse motivo, a sua formação não
deveria ficar mais a cargo do âmbito privado ( família e igreja), mas sim do Estado
(RIZINNI, 1997).
Pode-se dizer que, nesse contexto, a concepção de infância diferiu daquela do
período medieval, em que a criança era considerada como um “adulto de tamanho
reduzido
60
”e da Idade Moderna ( séc. XVII) que foi compreendida, com base na tradição
cristã européia, como uma fase da vida caracterizada pela pureza, inocência e dependência,
para, na fase da industrialização (final do século XIX no Brasil ), ser concebida como
possibilidade de desenvolvimento de um país que queria superar os resquícios da escravidão e
se inserir no mercado mundial.
Com essa intenção, a infância adquiriu basicamente dois sentidos: o da ordem e o da
desordem, sendo que, no primeiro deles, encontravam-se as crianças advindas de famílias
abastadas e que tinham uma formação intelectual e moral condizente com os propósitos da
sociedade instituinte, enquanto, no segundo, estavam aquelas oriundas das classes populares e
que foram concebidas como expressão do atraso da nação.
Santos (2004), refletindo sobre a criminalidade no início do século XX em São
Paulo, afirma que essas crianças e jovens pobres foram estereotipados como marginais em
potencial, gatunos, vadios e malandros e que a sua classe social foi considerada como o berço
da marginalidade.
2.2.1 A criança e o adolescente das classes populares na Terra da Luz
61
: o tornar-se útil
ao projeto civilizador
Esse significado negativo atribuído às crianças e jovens oriundos das classes menos
favorecidas no Brasil também se manifestou em Fortaleza, cenário desta dissertação, na
em 1869 a partir do trabalho de Tobias Barreto e Sílvio Romero. Para um aprofundamento acerca do assunto,
recomendam-se as obras de Oliveira et al (1993); Comte ( 2006); Aranha e Martins(1993).
60
O termo é de Áries (1981) e é usado por ele quando se refere à condição da criança na Idade Média. Com base
em estudos iconográficos, o autor afirma que no período medieval não havia uma distinção entre as
especificidades da criança e as do adulto.
61
Uma das razões do epíteto “Terra da Luz” é que a província do Ceará foi a primeira a abolir a escravidão em
1884, fato que representou para a elite fortalezense, seguidora dos ideais iluministas, uma conquista histórica
rumo ao progresso e à civilidade.
62
segunda metade do século XIX, período no qual os grupos mais influentes, como os
comerciantes e os profissionais liberais ( engenheiros, médicos e doutrores recém-formados
nas academias), desejavam remodelar a cidade de acordo com os padrões europeus. Com essa
intenção, a elite fortalezense, fundamentada numa racionalidade cientificista ao transformar o
lócus urbano, impôs também novos padrões de conduta que deveriam ser internalizados por
todos os habitantes, em especial, aqueles advindos das classes populares.
O ideal civilizador implantou-se de tal forma que todos os sujeitos contrários a ele
foram estereotipados como impotentes e enclausurados para serem recuperados e devolvidos à
sociedade sedenta de ordem e civilidade.
Sebastião Pontes, no seu livro Fortaleza Belle Époque: reformas urbanas e controle
social( 1993), analisa bem o processo de remodelação da capital cearense e a disciplinarização
dos atores sociais para se adequarem ao novo projeto de sociedade almejado pelos grupos
dominantes. Apesar de o autor não ter como enfoque do seu trabalho a infância e a
adolescência, a sua obra apresenta trechos importantes para se compreender o significado
negativo atribuído aos sujeitos das classes populares e, em especial, às crianças e aos
adolescentes desse segmento social denominado comumente de despossuídos, miseráveis,
indigentes e outros.
Pontes(1993) relata que os sujeitos tidos como ameaçadores e inúteis à proposta
urbanística civilizadora foram banidos violentamente do espaço urbano e internados “em asilo
onde se realizava a disciplinarização moral e social por meio de catequese e do trabalho
adestrador do corpo e da mente, esta filantropia higiênica institucionalizada teve, sem dúvida,
decisiva participação no processo de normalização social de Fortaleza”. (p. 63)
Ainda segundo o autor, a elite da cidade da terra da luz, com medo dos sujeitos que
perambulavam
62
pela cidade e que ameaçam o modelo de sociedade em processo de
consolidação, criou várias instituições disciplinadoras, dentre elas: o Lazareto da Barra Funda,
afastado da cidade sete quilômetros e construído entre 1856 e 1857; a Companhia de
Aprendizes Marinheiros em 1865; o Colégio das Órfãs em 1867; a Colônia Christina em
1880; a Cadeia pública em 1882 e a construção dos asilos de Mendicidade e o de Alienados
ambos em 1886.
62
Os estudos realizados em outras fontes de pesquisa como Osterne (1991); Oliveira (1983) e Soares (1984)
atestam que o período no qual os grupos dominantes de Fortaleza sentiam-se mais aterrorizados e ameaçados era
quando havia grandes secas, principalmente a de 1977-79 na qual os retirantes do sertão nordestino buscavam
estratégias de sobrevivência na cidade.
63
Socorro Osterne (1991), no subtítulo : Meninos ocupados ‘vadiagem reprimida’. A
higiene, a educação e o trabalho como estratégia disciplinar, no livro Menino trabalhador:
identidade no confronto família-rua, entende que a inserção precoce de crianças e
adolescentes no mercado de trabalho não foi apenas uma forma de eles contribuirem para o
sustento de suas famílias, mas também uma estrátégia adotada pela elite fortalezense para
combater a vadiagem desses sujeitos oriundos da classe popular.
A autora, parafraseando o pensamento de Rago (1985), denomina as instituições
citadas acima de empresas de moralização, pois essas visavam controlar e reprimir os
comportamentos indesejados à onda civilizatória.
Osterne (1991, p.39) afirma ainda que o enclausuramento de crianças e adolescentes
em espaços de disciplinamento como escolas públicas e institutos profissionalizantes, “
surgiu como uma forma de adestar e controlar um crescente contingente populacional tido
como selvagem, rebelde e ameaçador, na percepção dos médicos, filantropos e classe
dominante”.
Pelo exposto, parece que o desejo modernizador que visava consolidar o sistema
capitalista perpassou os grandes centros urbanos brasileiros no início do século XX e, com
base na ética puritana do trabalho, marcou de forma pejorativa todos aqueles que não estavam
habilitados para contribuir com tal propósito.
A demonização dos sujeitos que não produziam de acordo com o exigido pelo
sistema capitalista é um assunto tratado por Marx Weber na obra Ética Protestante e o
Espírito do Capitalismo(2004). Weber parte da idéia de que dentre os vários fatores
(políticos, econômicos e sociais) que contribuíram para o desenvolvimento capitalista, a ética
protestante teve um papel de suma importância, porque ela endeusava o lucro obtido por meio
do trabalho e o tinha como um sinal da bênção de Deus. Nesse sentido, os sermões religiosos
enfatizavam que o bom cristão era o produtivo e o mau era aquele que não atendia aos
ditames do sistema capitalista que ainda estava se consolidando na Europa.
Essa maneira depreciativa de conceber aqueles que não atendiam às imposições do
modo de produção capitalista parece que influenciou também a elite de Fortaleza a tal ponto
que a infância, a adolescência e os adultos advindos da classe popular foram tidos como
entraves ao projeto remodelador da cidade e só seriam úteis caso modificassem os seus
hábitos, valores e atitudes.
64
Em conformidade com o exposto, encontra-se o pensamento de Josinete Sousa
(1999) expresso no seu trabalho Da “infância desvalida” à “infância delinqüente”: Fortaleza
(1865-1928 ). Na sua dissertação, a autora analisa o processo de construção da imagem da
infância delinquente em Fortaleza no início do século XX, considerando o contexto de
urbanização pelo qual estava passando a cidade naquele período, as primeiras iniciativas no
campo jurídico para definir as noções de infância delinqüente e criminosa
63
, bem como as
práticas de contenção, prevenção e punição.
Com essa intenção, Sousa (1999) reconhece que historicamente houve várias
imagens de crianças e adolescentes, como a angelical (a criança como símbolo da pureza e da
ingenuidade), a que compreendia a infância como futuro da nação e garantia do progresso, e a
do menino obediente, entre outras. Porém, a referida autora entende que essas imagens
coexistiam com outras duas que são as da infância desvalida e da delinqüente, que se referiam
geralmente aos oriundos da população pobre.
Quanto à primeira imagem referente à infância da classe popular, a autora entende
que ela possivelmente foi a que prevaleceu no século XIX, época em que o Ceará foi assolado
por diversos problemas relativos a fatores climáticos (secas) e doenças como a meningite e a
varíola, que dizimaram muitos pais de família o que, conseqüentemente, aumentou o número
de órfãos que perambulavam pela cidade. É neste contexto que a imagem infância desvalida
predominou, já que os retirantes infantis foram concebidos não tanto como agressores, mas
como vítimas dos fenômenos climáticos e de epidemias. A partir dessa compreensão, os
governantes geralmente não eram tidos como culpados e nem reponsabilizados pela situação
de miséria do povo cearense, porque fatores como a escassez de chuva e as doenças
justificavam o caos social.
A imagem da infância delinqüente parece que só se manifestou com maior
intensidade a partir do início do século XX em Fortaleza, quando entra em voga o desejo de
uma nova civilização urbanística, preconizada pelos grupos de maior prestígio social na
época, dentre os quais se destacam os médicos, os políticos, os religiosos, os comerciantes e
os policiais. Nesse aspecto, embora com objetos de estudo diferentes, Pontes (1993), Osterne
( 1991) e Sousa (1999) concordam num ponto: a diabolização de crianças e jovens das classes
populares é resultado de uma sociedade capitalista que ainda se encontrava em consolidação e
63
As discussões no campo jurídico a que a autora refere-se dizem respeito ao Código de Menores de 1927,
denominado de Melo Matos, que foi o primeiro juiz de menores no Brasil. O documento indicou um avanço na
medida em que o “menor” tornou-se um assunto de preocupação não mais do âmbito privado, mas da esfera
pública, em que o Estado brasileiro pela primeira vez na história foi responsabilizado.
65
sedenta por um modelo europeu civilizador, em que os hábitos e os valores das classes menos
privilegiadas foram considerados como inadequados e, por isso, deveriam ser modificados,
caso necessário fosse, de forma repressiva.
Essa crença no poder remodelador da cidade, associada ao descaso dos saberes
populares e à legislação específica em vigor no país ( Código de Menores de 1927) que
tratava a questão do menor como símbolo do mal, parece ter contribuído para a construção da
imagem da criança desvalida e delinqüente não só em Fortaleza, mas em todo o país.
Obviamente, não se pode pensar que a criança concebida como desvalida (séc. XIX) tenha
deixado de existir no século XX e no momento histórico atual, porém o que se destaca é que
a imagem delinquente parece que prevaleceu neste último período. É nesse sentido, que Sousa
(1999, p.75) afirma:
No decorrer das primeiras décadas do século XX, vemos que essa infância,
considerada até então como desvalida, sem valor, adquiriu toda uma positivdade a
partir do discurso republicano, que passou a lhe atribuir um lugar na construção da
nação republicana. Para as crianças que não se enquadravam nesse novo papel que
lhes estava sendo imposto, vai tomando forma toda uma rede de significados que
passou a situá-las, enfaticamente, no campo da delinqüência e criminalidade. Para
essas (...), a polícia será continuamente acionada para reprimir seus
comportamentos e atitudes ou simplesmente mantê-las na ‘ordem’.
2. 3 A criança e o adolescente em situação de rua: para além do “menor”
Entende-se que esses diversos significados estereotipados, construídos
historicamente acerca da criança e do adolescente das classes populares no Brasil, parecem
sintetizados na categoria menor que englobou tanto a infância e a adolescência órfãs e
desvalidas como também os delinqüentes. Nesse sentido, Sousa Neto (2005) compreende que
o termo menor foi utilizado inicialmente como um jargão legal jurídico que se referia aos
indivíduos na faixa etária de 0-18 anos, porém expandiu-se, tornando-se também uma
categoria sociológica que designava de forma estigmatizadora as crianças e jovens
empobrecidos.
Essa categoria menorista estigmatizante presente no Código de Menores de 1927 foi
consolidada pelo Código de 1979 (Lei nº 6.697 de 1º de outubro de 1979), alicerçado na
Doutrina da Situação Irregular em que se conservaram as marcas discriminatórias das
crianças e jovens das camadas populares. Esse último código tornou-se um instrumento legal
normatizador do público infanto-juvenil pobre, que era o que tinha a maior probabilidade de
ser enquadrado numa das situações indicadoras de irregularidades.
66
O Código de 1979 visava assistir, proteger e vigiar todos aqueles com faixa etária
até 18 anos idade que se encontravam em situação irregular, definindo-os como menor:
I- privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória,
ainda que eventualmente, em razão de:
a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;
b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las;
II- vítimas de maus ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;
III- em perigo moral, devido a:
a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes;
b) exploração em atividade contrária aos bons constumes;
IV- privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou
responsável;
V- com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária
VI- autor de infração penal. (CÓDIGO DE MENORES DE 1979, p..7-8)
Pelo exposto, percebe-se que as palavras que mais se repetem na doutrina da
situação irregular são pais ou responsável, bons costumes e família. A ênfase nesses termos
demonstra que a mentalidade dominante entendia o problema do menor
64
como sendo
predominantemente uma questão de incompetência familiar em legitimar os costumes válidos
para a sociedade da época, que ainda se encontrava sob a tutela do regime militar(1964-1985),
fundado na violência e na preservação do estilo de vida da elite dominante.
Nesse contexto, o Código de 1979 estabelecia três situações em que os sujeitos eram
considerados irregulares: a carência, o abandono e a delinqüência e, nesse sentido, conservou-
se o teor discriminatório do primeiro Código de Menores.
Parece que esse conjunto de denominações com sentido pejorativo tornou-se
extensivo, no início da década de 80 no Brasil, a outro grupo marginalizado denominado de
menor de rua. Essa conceituação inicialmente referia-se a crianças e jovens que moravam ou
perambulavam pela rua. Com pesquisas e estudos desenvolvidos por diversas universidades
do país, dentre elas as que se situavam nas cidades de São Paulo
65
e do Rio de Janeiro, tornou
64
Vale destacar que a palavra menor encontra-se em itálico em diversas partes do texto pelo fato de ela expressar
um conjunto de rótulos atribuídos às crianças das classes populares e não por ser adotada neste estudo como uma
categoria para se compreender as crianças e adolescentes em situação de rua.
65
Na metade da década de 80, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo já demonstrava interesse em
estudar a realidade dos meninos tidos como de rua, sendo que em 1993 a instituição já possuía dois projetos: a)
o Força Jovem, que se destinava a atender os meninos que se encontravam em praças e cortiços, formado por
alunos de graduação e pós-graduação de diversas áreas como Psicologia, Fonoaudiologia e Filosofia; b) o
Prostituição e Cidadania, que destinava-se a atender as pessoas envolvidas na prostituição, independentemente
da faixa etária, e era formado por, praticamente, estudantes de Psicologia. Essas informações foram obtidas no
trabalho de Oliveira (1994).
67
–se possível conhecer melhor a realidade das crianças das classes populares e, em particular,
dos que se encontravam nas ruas e, dessa forma, tentar superar gradativamente os
preconceitos construídos acerca desses sujeitos
66
.
Entende-se que a produção acadêmica aliada aos saberes dos movimentos populares
que lutavam pela redemocratização do país, à Pastoral do Menor, ao Movimento Nacional de
Meninos e Meninas de Rua-MNMMR-(1985), à influência da literatura freireana, à Teologia
da Libertação, aos documentos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos da
Criança, adotada pela ONU em 1959, e à Convenção das Nações Unidas sobre os direitos da
criança, entre outros, contribuíram para a mudança de compreensão acerca do menor dito de
rua.
Parece que a partir da influência do conjunto de idéias advindas dos documentos
citados acima e das contribuições de diversas áreas do saber para compreender melhor a
realidade dos sujeitos que vivem na rua, a expressão menor de rua foi modificando-se
gradativamente para crianças de rua- os que vivem nela e a têm como lócus de moradia e de
referência identitária-(LUCCHINI, 2003), criança na rua e de rua ( os primeiros são os que
vêem a rua como um espaço para angariar os meios básicos para garantir a sobrevivência da
família, enquanto os últimos a concebem como o espaço de moradia e os vínculos familiares
encontram-se fragilizados (RIZZINI e BUTLER, 2003; GRACIANI, 1997), menin@s de rua
- apresenta-se uma preocupação com o gênero-(MNMM 1985, ROSSATO,2003), criança e
adolescente em situação de rua- abrangem tanto os que moram na rua quanto os que a têm
como lócus de luta para obter recursos para a sobrevivência, porém enfatizam o aspecto da
transitoriedade no sentido de que compreende que o menino não é de rua, ele está nela,
podendo deixá-la desde que um conjunto de ações desenvolvidas de forma articulada possa
contribuir para a sua emancipação. Nesse sentido, dá-se ênfase nas potencialidades dos
sujeitos e não nas suas dificuldades (LEITE, 1998, 2003).
Sem desconhecer e/ou desmerecer o valor das outras definições, adota-se neste
trabalho a última delas pelo fato de ser compreendida como mais abrangente e de possibilitar
uma leitura mais complexa acerca da realidade da criança e do adolescente em situação de
66
Um ano após a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, Fausto e Cervini (1991) publicam um
livro O trabalho e a rua: crianças e adolescentes no Brasil urbano dos anos 80. Este trabalho tornou-se um
marco significativo na medida em que desvela que o fato de a criança estar na rua não significa necessariamente
que ela seja abandonada e nem que a sua família seja desestruturada. Nesse sentido, a ida do menino à rua foi
compreendida como uma questão de luta pelo sustento da família, o que demonstrou a impotência do poder
estatal em garantir a efetivação dos direitos básicos desses segmentos.
68
rua, na medida em que enfatiza as suas potencialidades, opondo-se aos estereótipos
construídos socialmente.
Compreende-se que, nessa direção, encontra-se o trabalho do pedagogo Maurício
Holanda Maia (1994) que escreveu Menor Carente Infrator: reflexões sobre uma
conceituação pequena pobre violenta. Contrapondo-se aos estigmas construídos sobre a
criança e o adolescente ditos como menores carentes infratores de rua, Maia (1994) apresenta
uma enorme contribuição no seu trabalho por desafiar o leitor a pensar além dos estereótipos
(vítima, agressor) e conceber os educandos como sujeitos resistentes e portadores de sonhos,
valores e saberes construídos no universo da rua
67
.
A hipótese basilar do autor é que, ao definir os educandos em situação de rua como
carentes infratores, sempre se faz a partir de um modelo instituído por um determinado grupo
social privilegiado. Nessa perspectiva, o dito menor é entendido em relação a um sujeito
maior, a família desestruturada é compreendida quando comparada à outra tida como
estruturada e carente sempre o é, quando associado a alguém forte, eficiente, habilidoso e
competente.
Em consonância com esse aspecto do pensamento de Maia, Pinheiro (2006),
parafraseando Chauí(1990), entende que o conceito menor está relacionado à ideologia de
classe e que para o pensamento burguês, o menor sempre se refere aos filhos dos
trabalhadores da classe popular, compreendidos como inferiores, inaptos e inadequados ao
modelo de sociedade dominante.
Por fim, entende-se por meio do diálogo estabelecido com os autores acima que a
trajetória da criança e do adolescente no país parece demonstrar que:
geralmente a infância e a adolescência menos privilegiadas foram/são
expostas a diversos tipos de violência, como a exploração sexual que já se
manifestava no período das grandes navegações, a desconsideração e a
negação dos seus saberes que se explicita desde o processo de catequização,
a sua inserção precoce no trabalho, faltando-lhes oportunidades para o estudo
e a sua captura para participar da guerra, o que contrariava os pais que
reagiam a fim de impedir tal suplício;
67
Quando o autor se refere aos saberes dos educandos em situação de rua e à necessidade de as instituições de
atendimento os valorizarem, ele está propondo-os como ponto de partida para o trabalho educativo. É nesse
sentido que enfatiza a importância de se conhecer a história de vida dos educandos, identificando os seus sonhos,
saberes, habilidades e representações.
69
houve a diabolização dos sujeitos considerados inaptos ao ideal civilizador,
sendo que para esses criaram-se espaços de confinamento, a fim de se
reeducarem e se tornarem úteis à Nação, que se consolidava para atender aos
interesses do sistema capitalista;
existem várias concepções de crianças e adolescentes, porém em relação
àqueles oriundos das classes populares, em especial aos que se encontram
atualmente em situação de rua, parece que dois olhares são mais recorrentes:
o de vítima e o de agressor.
Sendo assim, relativamente cônscio desses olhares rotulantes acerca dos que se
encontram em situação de rua, indaga-se: será que com o advento do Estatuto da Criança e do
Adolescente, o educador os concebe para além dos estereótipos construídos historicamente?
Como, então, os educadores sociais que trabalham com esses sujeitos os representam? Com o
intuito de obter resposta a essa questão é que se adota a Teoria das Representações Sociais.
70
Capítulo III- A Teoria das Representações Sociais
3. Dialogando com os autores sobre as Representações Sociais
De acordo com a proposta já anunciada no final do capítulo anterior, objetiva-se no
momento dialogar com os autores que abordam as representações sociais, a fim de
compreendê-las, adotando-as como referencial teórico do trabalho de pesquisa. Com tal
intenção, optou-se por desenvolver esta parte do trabalho em dois momentos. No primeiro
deles, busca-se entender as razões básicas que possibilitaram o surgimento da Teoria das
Representações Sociais, as suas dimensões, o seu processo de formação e a sua finalidade. No
segundo, indica-se a relevância do referencial teórico adotado para identificar as
representações sociais dos educadores atuantes no espaço rua sobre os sujeitos de sua prática
educativa.
Com tal intenção, entende-se que a Teoria das Representações Sociais originou-se a
partir do pensamento do francês Serge Moscovici que em 1961 escreveu uma obra intitulada
La Psychanalyse: son image et son public. Nesse trabalho, o autor teve como pretensão básica
demonstrar que havia um limite entre a ciência e o senso comum, que a seu modo
ressignificava os saberes científicos a fim de que esses se tornassem acessíveis às pessoas
leigas e aos profissionais difusores do conhecimento na vida social.
Farr (1995) entende que Moscovici preocupou-se em explicitar, no seu primeiro
trabalho, que a Psicanálise incorporada pelos franceses leigos que a utilizavam diferenciava-
se do entendimento construído e compartilhado pela comunidade de psicanalistas.
Identificando essa diferença de compreensão, Moscovici entendeu que a ciência tanto
modificava, influenciava e criava novos paradigmas de interpretação de mundo para uma
determinada sociedade, como também era influenciada e modificada pelo saber comum que
alicerçava a prática dos sujeitos sociais.
Dessa forma, o pensador francês percebeu que havia um sistema de pensamento pré-
existente que, ao acolher o saber científico não-familiar, selecionava-o, modificava-o e o
incorporava de tal forma que os sujeitos sociais podiam interpretar e intervir na sua realidade.
A preocupação em compreender a incorporação da Psicanálise pelo pensamento
leigo e pela forma de divulgação dela nos meios midiáticos fez com que Moscovici se
dedicasse de forma atenta aos estudos das representações sociais (PESTANA, 2006).
71
Além desses motivos apresentados, percebe-se que existiram outros que despertaram
o autor para a elaboração da teoria das representações sociais. O primeiro deles refere-se ao
seu desejo de renovar a Psicologia Social, pois entendia que a sociedade francesa, marcada
por uma forte presença dos meios de comunicação, tornava-se cada vez mais complexa e as
suas categorias de análise estavam obsoletas para a interpretação dessa realidade.
Em segundo lugar, Moscovici percebia que havia uma tradição científica da sua
época que entendia o conhecimento popular como algo fragmentado e sem sentido. Opondo-
se a essa forma de pensar, o autor definiu como objeto de estudo o saber comum, procurando
identificar nele o seu processo de produção e circulação, os seus conteúdos, a sua finalidade e
os seus obstáculos e potencialidades para o acolhimento do pensamento científico. Nessa
perspectiva, entende-se que Moscovici instigou uma reviravolta do olhar na medida em que
atribui sentido ao senso comum, concebendo como um tipo de saber específico que é tanto
construído pelos sujeitos sociais como também é construtor dinâmico do seu universo
representacional (MOSCOVICI, 2003).
Em terceiro lugar, percebe-se que a Teoria das Representações Sociais é resultado
do esforço do autor que, na década de 60, visava superar a dicotomia prevalente entre os
fenômenos psicológicos e os sociais, entendimento que foi criticado por Moscovici que, ao ler
as representações coletivas de Durkheim (1978), percebeu que o sociólogo as entendia como
um sistema de pensamento que, construído por diversas gerações, exercia um poder coercitivo
sobre os indivíduos (MINAYO, 1995).
Em relação a esse pensamento, Moscovici percebia que de fato a sociedade em
alguns momentos tende a coagir os sujeitos sociais, porém discordava de Durkheim pelo fato
de entender que ele enfatizou de forma exacerbada o aspecto objetivo em detrimento do
subjetivo.
Com o propósito de superar esse apartheid entre o aspecto individual e o coletivo,
Moscovici entendia que a Psicologia Social devia alicerçar-se na Teoria das Representações,
porque esta considerava/considera que os aspectos psicológicos e sociológicos são
constitutivos da vida humana e que jamais podem ser vistos de forma desvinculada. Essa
visão contribuiu para que o psicólogo social e outros pesquisadores adeptos da teoria tivessem
uma visão mais ampla do fenômeno pesquisado, considerando-o em suas dimensões internas
e externas.
72
3.1 Da definição das Representações Sociais
Entende-se que essas foram as razões básicas que contribuíram para a emergência do
estudo das representações sociais. Mas afinal, o que são? Como são definidas?
As representações são uma invenção dos sujeitos sociais que, desafiados pelas
mudanças ocorridas nas dimensões sócio-histórico-política e cultural, tecem de forma
comunicativa redes de saberes, de valores e de práticas que orientam as suas atitudes e
comportamentos, a fim de lidarem coletivamente com os fenômenos inusitados do seu
contexto social, interpretando-os, classificando-os e nomeando-os para que a mudança e/ou a
permanência ocorram sem afetar de forma brusca o equilíbrio social.
Compreende-se que esse entendimento está em conformidade com o pensamento de
Jodelet (2001, p.22) que define a representação social como:
...uma forma de conhecimento socialmente elaborada e compartilhada, com um
objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um
conjunto social. Igualmente designada como saber de senso comum ou ainda de
saber ingênuo, natural, esta forma de conhecimento é diferenciada, entre outras do
conhecimento científico. Entretanto, é tida como um objeto de estudo tão legítimo
quanto este, devido a sua importância à vida social
.
Do diálogo estabelecido com os autores, compreende-se que as representações são
constructos mentais e simbólicos elaborados pelos sujeitos para apreender, interpretar e
organizar a sua realidade social. São elas que permitem aos indivíduos enfrentarem a
complexidade do mundo, situando-se nele, criando-o, recriando-o e sendo criados por ele.
Nesse sentido, pode-se dizer que a concepção antropológica que subjaz à Teoria das
Representações Sociais funda-se na idéia de que o humano é um sujeito histórico,
paradoxalmente sujeitado por ela.
Nessa perspectiva, as representações sociais que guiam a ação dos sujeitos coletivos
são categorias redutoras, esquematizadoras e explicativas da realidade social em que se
encontram e que, dependendo do seu contexto histórico específico, podem contribuir tanto
para o processo de emancipação quanto de alienação do ser humano (PINHEIRO, 2006).
Desta feita, entende-se que as representações sociais possuem quatro dimensões
básicas: a informacional, a imagética, a atitudinal e a justificadora. Na primeira delas,
encontram-se os conhecimentos e saberes construídos pelos sujeitos sociais, o que lhes
permite a comunicação, a análise, a interpretação e a explicação do contexto em que se
encontram. Nessa dimensão, a representação tem uma função cognitiva no sentido de que se
73
constitui de um emaranhado de conhecimentos tecidos no campo social que garantem ação do
indivíduo no mundo.
Na dimensão imagética, está presente a idéia de que a representação social ao se
constituir como uma forma de saber partícula, contribui também para a elaboração de
mentalidades sociais que classificam o referente de acordo com uma imagem que se tem dele.
Nesse sentido, o conjunto de idéias que o sujeito social tem do seu objeto cognoscível está
intimamente acompanhado de uma imagem que se tem do que é representado.
Vale destacar ainda que essas imagens não são homogêneas, pois tanto as idéias
quanto a imagem que o sujeito representante tem do objeto dependem do seu grau de
familiarização com o referente, do seu nível afetivo, do seu nível cognitivo, de sua interação
social e de sua postura ideológica. Esses fatores podem reduzir, suplementar ou negar
aspectos dos objetos conhecidos, contribuindo para que cada sujeito do conhecimento perceba
apenas fragmentos comuns compartilhados com outros sujeitos acerca do referente
(JODELET, 2001; GRIZE, 2001). Assim sendo, uma representação é constituída da unidade
de fragmentos de conteúdos e imagens compartilhados por sujeitos, mas que em algum
momento eles podem divergir pelo fato de não conceberem da mesma forma o objeto de sua
representação.
Nesse sentido, o que sustenta uma representação é um consenso relativo entre
sujeitos sociais acerca de alguns aspectos do referente, formando uma imagem dele que
permita classificá-lo, denominá-lo, nomeá-lo, atribuindo-lhe uma identidade. Dessa forma, ao
classificar uma pessoa, atribui-lhe também uma imagem como menino em situação de rua,
empresário, professora, estudante e advogado.
Sá (1996), parafraseando Abric (1994 a), afirma que essa classificação que tem
como base os conteúdos associados à imagem do referente permite ao poder instituído exercer
o controle sobre as pessoas, para que se cumpram as normas vigentes em uma determinada
sociedade.
Em conformidade com o que foi dito, destaca-se que outra dimensão da
representação social é a atitudinal em que os saberes, as crenças e os valores formam um
quadro de referência que permite aos indivíduos agirem no seu contexto social de acordo com
comportamentos e práticas instituídas. Essa dimensão da representação visa orientar a ação
dos sujeitos de acordo com os tipos de conhecimentos, informações e finalidades
considerados mais pertinentes para o grupo social.
74
A quarta dimensão da representação é a justificatória em que, com base nos
conhecimentos, crenças, práticas e valores instituídos, os sujeitos explicam o porquê das suas
decisões, de suas condutas, de suas escolhas e de suas concepções de mundo em uma dada
situação. É a partir dessa dimensão, que o indivíduo justifica até mesmo o motivo de ter
deixado um aporte teórico e ter adotado outro e de escolher uma ideologia em detrimento de
outra.
Em síntese, pode-se dizer que as representações sociais são constructos mentais
dinâmicos que, com base nos saberes (envolvem os aspectos cognitivos, afetivos e
ideológicos) que geram as imagens (dimensão imagética que também cria novos saberes),
criam atitudes (dimensão atitudinal) que justificam (dimensão justificatória) a forma de
existência de determinados grupos sociais (JODELET, 2001; GUARESCHI, 2003; DOTTA,
2006; JOVCHELOVITCH, 2000 E; MOSCOVICI, 2003).
Uma questão se impõe: como se formam as representações sociais? Para Moscovici
(2001), esse sistema mental que orienta a vida dos sujeitos sociais constitui-se de dois
processos inter-relacionados: a ancoragem e a objetivação.
A ancoragem é o processo pelo qual os sujeitos sociais, alicerçados pelos saberes,
crenças, valores e práticas já adotados e consolidados, avaliam os fenômenos desconhecidos
que se apresentam no seu contexto social, classificando-os e os nomeando a fim de torná-los
parte do seu esquema representacional. Assim, o objetivo da ancoragem é tornar o objeto tido
como incomum acessível à compreensão de uma comunidade de indivíduos, permitindo-lhes
representá-lo de tal forma que se torne parte do seu mundo interior (estrutura mental) e
exterior (realidade social). A relativa correspondência entre o pensamento e o objeto
representado faz com que aquele que o representa sinta-se mais seguro porque o que era antes
ameaçador tornou-se assimilado e possível de explicação.
O processo de ancoragem é intencional na medida em que os sujeitos que nomeiam
o tido como estranho, fazem-no por meio de um pensamento pré-existente e com propósitos e
intenções definidos consciente ou inconscientemente. O ato de classificar
68
e nomear podem
ser vistos de forma positiva ou negativa, variando segundo os interesses de cada grupo social.
68
Classificar significa que algo antes estranho foi confinado pela estrutura mental interpretativa do sujeito
cognoscente. Moscovici (2003) refere-se analogicamente à classificação como uma espécie de rede que separa
os peixes pequenos dos grandes. Assim como a rede, os pescadores (os sujeitos) definem pela classificação quem
é quem e o que pode ser permitido ou não para os diferentes indivíduos. Por exemplo, definem o papel da mulher
e o que ela pode e não pode em relação ao homem na sociedade, da babá em relação à empregadora, da criança
de rua em relação às exigências da sociedade. Além da classificação do referente, nomeia-o também. Nomear é o
ato pelo qual o anônimo torna-se conhecido.
75
Por exemplo, classificar as crianças e adolescentes de classes sociais menos favorecidas como
menor pode ser uma forma positiva de grupos privilegiados que vêem esses sujeitos como
inferiores em relação aos seus filhos e, dessa forma, mantêm o seu status quo. Na contramão
desse pensamento, os familiares e os ditos menores podem perceber essa classificação como
algo negativo, porque a entendem como uma forma estigmatizante que os inferioriza em
relação a outro tipo de infância e de adolescência implicitamente tidas como maior.
Assim, as categorias criança, adolescente e menor adquirem sentido positivo e
negativo, dependendo do ponto de vista e da ideologia adotados pelo sujeito. Porém, cabe
destacar que classificar e nomear não se resumem apenas em rotular de forma pejorativa o
objeto inusitado, uma vez que se pretende também explicar o que se desconhece até mesmo
para buscar uma possível solução
69
. Portanto, entende-se a ancoragem em consonância com
Moscovici (2003, p.61) como “um processo que transforma algo estranho e perturbador, que
nos intriga, em nosso sistema particular de categorias e o compara com um paradigma de uma
categoria que nós pensamos ser apropriada”.
A ancoragem é um pilar que explicita a forma como os sujeitos sociais constroem a
sua estrutura mental para compreender o mundo que os cerca, intervindo nele a fim de
transformá-lo.
O segundo processo é muito mais complexo que o primeiro e contribui para a
construção das representações: a objetivação. Ela é caracterizada como uma atividade mental
dos sujeitos sociais que, pela abstração de um determinado objeto cognoscível, atribui-lhe um
novo conceito, reproduzido em uma figura (imagem) que, retirada do cotidiano, favorece a
assimilação e a compreensão dos indivíduos acerca de aspectos da sua realidade. É esse
movimento que reproduz o conceito em uma imagem que contribui para que o novo
conhecimento gerado por meio do objeto estudado seja assimilado pelos sujeitos sociais. Esse
processo possui três etapas, sendo que na primeira delas angariam-se os valores instituídos e
os possíveis de serem assimilados pelo grupo social; na segunda, organizam-se os conteúdos
69
Jodelet (2001) refere-se à idéia acima quando relata que, na década de 80, havia duas representações sobre a
AIDS: uma que se sustentava num discurso de cunho moralista e religioso que, entendia a doença como um
problema advindo da decadência moral da sociedade e da ausência de preceitos divinos na vida dos portadores
do vírus, e outra que tinha como fundamento o conhecimento científico da medicina, que compreendia a AIDS
como uma doença contraída pelas vias de contaminação e que para evitá-la fazia-se necessária a prevenção pelo
uso da camisinha. Percebe-se que são representações diferentes que, ao classificar o sujeito portador do vírus,
buscavam minimizar e/ou solucionar o fenômeno pouco conhecido nos anos 80, embora a primeira delas tenha
mais estereotipado do que de fato contribuído para a saída do problema. O que se destaca é que ambas tentavam
dar uma resposta a seu modo ao que ainda não era bastante familiar.
76
que podem favorecer a incorporação da representação instituinte e, na terceira, procura-se
naturalizá-la de tal forma para que se torne realidade concreta na vida dos indivíduos.
Moscovici (2003, p.71) entende que objetivar significa “descobrir a qualidade
icônica de uma idéia (...) é reproduzir um conceito em uma imagem”, a fim de que ela possa
ser incorporada pelos indivíduos e sirva de base para a sua ação.
Esses dois processos consolidam a representação social e contribuem para a sua
familiarização no convívio social. Familiarizar significa que a estrutura mental de
interpretação de mundo dos indivíduos lhes garante uma relativa segurança para lidar com a
complexidade do real. Familiarizados, os sujeitos pouco desconfiam do seu mundo e de suas
concepções acerca dele e agem mais guiados pelas imagens que têm da realidade do que pela
reflexão sobre elas.
Dessa forma, a naturalização da realidade pelos sujeitos sociais demonstra que no
familiar há a prevalência da imagem sobre o conteúdo, do óbvio sobre os sentidos subjacentes
da realidade, do tido normal sobre o anormal, da imagem sobre o ato reflexivo. Afirma
Moscovici (2003, p.55):
A mudança como tal somente é percebida e aceita desde que ela apresente um tipo de
vivência e evite o murchar do diálogo, sob o peso da repetição. Em seu todo, a
dinâmica das relações é uma dinâmica de familiarização, onde os objetos, as pessoas
e acontecimentos são percebidos e compreendidos em relação a prévios encontros e
paradigmas. Como resultado disso, a memória prevalece sobre a dedução, o passado
sobre o presente, a resposta sobre o estímulo e as imagens sobre a realidade.
Esse é o motivo maior de o sujeito social criar as representações sociais: o de
familiarizar-se com o seu contexto a ponto de construir uma certa zona de conforto que lhe
possibilita lidar com as adversidades de fenômenos. Porém, no familiar, o indivíduo tende a
tomar decisões precipitadas em relação ao referente inusitado (pessoas e objetos),
classificando-o pela aparência (imagem), demitindo a reflexão rigorosa, radical e global.
Entende-se, assim, que uma pesquisa em representação social visa compreender a
emergência do objeto pesquisado, datá-lo, situá-lo, compreendendo o seu processo de
construção e a sua finalidade. Em seguida, problematiza-o para que o tido como familiar para
os grupos sociais torne-se não-familiar e o óbvio em não-óbvio, a fim de que as pessoas
possam intervir e modificar as suas práticas sociais.
De acordo com essa perspectiva é que se adota a teoria das representações sociais
como aporte teórico relevante para este trabalho investigativo, que visa: 1- compreender e
analisar as representações sociais do educador social sobre as crianças e os adolescentes em
77
situação de rua e 2- contribuir para que, ciente dessas representações, o educador possa
promover a sua ação educativa não como instrumento de conservação dos valores
familiarizados e tidos como óbvios, mas como uma ferramenta de transformação social.
78
Capítulo IV -Da metodologia de pesquisa
Com tal propósito anteriormente estabelecido, preocupou-se em tecer a interação
entre os objetivos, o referencial teórico e o problema de pesquisa definido pela seguinte
indagação: quais as representações sociais mais recorrentes do educador sobre a criança e o
adolescente em situação de rua?
Objetivando obter respostas a essa questão, é que se construiu a metodologia deste
trabalho investigativo, sustentado na pesquisa qualitativa em conformidade com o pensamento
de Ludke e André (1986).
Tais autoras, parafraseando Bogdan e Biklen (1982), entendem que essa modalidade
de pesquisa é definida pelos seguintes atributos: exige a interação do pesquisador com o
contexto pesquisado, para ele compreender o problema no local em que se manifesta, inclui os
dados descritivos e transcritivos (história oral, fotos, desenhos e outros documentos) na
análise do objeto de estudo, centra-se no processo na medida em que o pesquisador visa
entender as manifestações do problema no cotidiano e nas interações dos sujeitos, preocupa-se
em captar a concepção de mundo dos participantes da investigação e valorizar os seus pontos
de vista acerca do tema estudado e, por último, a análise é feita de forma indutiva pelo
pesquisador que, dialogando com os dados obtidos e a teoria adotada, faz as abstrações.
Esse tipo de pesquisa é alicerçado em alguns pressupostos básicos como a relação
entre o sujeito pesquisador e o seu objeto de pesquisa, a indissociabilidade entre os aspectos
subjetivos e objetivos e a construção intencional do conhecimento pelo investigador que, com
base numa determinada teoria, dialoga com os sujeitos participantes a fim de compreender o
fenômeno estudado, identificando as suas causas e conseqüências para um dado contexto
(CHIZZOTTI, 2005).
De acordo com esse entendimento acerca da pesquisa qualitativa e tendo-a como
referência para efetivação do propósito deste trabalho, optou-se então pelo diálogo, a
colaboração e a interação ativa dos participantes na investigação para a identificação das
representações sociais que subjazem à prática do educador que trabalha na rua.
Definida essa intenção, trabalhou-se com o Grupo Focal, entendido como uma
técnica na qual os participantes são convidados a participar de uma discussão coletiva acerca
de um tema proposto pelo pesquisador, manifestando suas idéias, crenças, valores e atitudes
(GATTI, 2005).
79
Segundo a autora referida, para o desenvolvimento dessa técnica o pesquisador-
mediador deve estar atento a algumas questões básicas, como: não intervir diretamente na
discussão do grupo, intimidando os participantes a exporem o seu ponto de vista acerca do
tema discutido; saber valorizar a fala de cada sujeito sem estabelecer juízo de valores sobre a
resposta obtida; permitir a interação dos sujeitos para que eles possam se sentir à vontade para
expor suas idéias; ficar atento para que não se distanciem do assunto discutido; ser flexível e
conquistar a confiança do grupo para que se atinjam os objetivos do trabalho.
Considerando os cuidados mencionados, desenvolveu-se a técnica do Grupo Focal
com os educadores atuantes no espaço rua, tendo como questão basilar relacionada ao
problema da pesquisa e norteadora da discussão a seguinte pergunta: para você, quem é a
criança e o adolescente em situação de rua?
Tendo esse questionamento como mola propulsora para a coleta de dados desta
investigação, objetivou-se identificar as representações do educador por meio da conversação
com eles, pois como diz Dotta (2006) parafraseando Moscovici (2001) é na fala, nos
encontros e gestos que se forma e se explicita o universo representacional dos sujeitos sociais.
Com essa finalidade, definiu-se como cenário desta pesquisa a cidade de Fortaleza-
CE, tendo como lócus de investigação o projeto Ponte de Encontro da Fundação da Criança e
da Família Cidadã (FUNCI), fundada em 1986 e situada na rua Pedro I, s/n- Parque da
Criança. Tal instituição é uma Organização Governamental vinculada à Prefeitura Municipal,
que trabalha com crianças, adolescentes e famílias em situação de risco e vulnerabilidade
social.
Dos setenta e cinco educadores sociais que trabalham no Projeto investigado,
realizou-se a pesquisa apenas com nove, objeto desta pesquisa, sendo três deles do sexo
masculino e seis do feminino. Objetivando facilitar a compreensão acerca de algumas
informações básicas sobre os participantes da pesquisa, elaborou-se o quadro abaixo:
Educadores Escolaridade Gênero Tempo de atuação na rua
A Ensino médio Masculino Aproximadamente seis meses
B Ensino médio Feminino Dezessete dias
C Ensino médio Feminino Sete anos
D Ensino médio Masculino Sete meses, porém atuou oito
anos em comunidades periféricas
80
E Ensino médio Feminino Sete meses
F Bacharel em Filosofia e cursa licenciatura
específica em Português
Masculino Sete anos em abrigos e um ano
na rua
G Graduação em Pedagogia Feminino Quinze dias, porém já teve
experiências em abrigos
H Graduada em Pedagogia e Especialista em
Gestão escolar
Feminino Um ano
I Concluindo Pedagogia Feminino Quinze dias
Pelo quadro acima, percebe-se que, dos sujeitos participantes da pesquisa, cinco têm
o ensino médio e três deles têm formação superior completa, sendo que, destes, um é formado
em Filosofia e está cursando licenciatura específica em Português, outro é formado em
Pedagogia, com especialização em Gestão Escolar, e o terceiro apenas em Pedagogia. O
quarto educador (I) está concluindo o mesmo curso.
O tempo de atuação dos educadores no trabalho de rua varia muito, sendo que um
deles (I) tinha apenas quinze e outro (B), dezessete dias de atuação. Outro educador (D)
possuía uma experiência de oito anos na área social, atuando em comunidades periféricas de
Fortaleza, mas há sete meses trabalha na rua.
Dos educadores que tinham mais experiência com crianças e adolescentes em
situação de rua, destacaram-se dois: o primeiro (F), com formação superior, trabalhou sete
anos em abrigos e atualmente um ano na rua, e o segundo (C), com ensino médio, atua há sete
anos. Ainda sobre os sujeitos da pesquisa, destaca-se que um deles (A) viveu na rua quando
adolescente e outro (D) envolveu-se desde adolescente com trabalhos comunitários que
atendiam jovens em situação de vulnerabilidade social, em um bairro periférico de Fortaleza,
tornando-se, em seguida, uma liderança e uma referência para outros jovens na comunidade.
A idéia de reunir os sujeitos da pesquisa com experiências tão diferentes e vividas
com intensidade visou captar os múltiplos olhares deles sobre a criança e o adolescente em
situação de rua.
Entende-se que cada sujeito, ao mesmo tempo em que é individual, pois elabora a
seu modo as crenças, os valores e os saberes do seu tempo histórico, torna-se também social,
no sentido de que compartilha, de forma relativa, do universo nocional e valorativo do grupo
social do qual faz parte (JODELET, 2005).
Partindo dessa idéia de que o humano é individual e coletivo, percebeu-se que
81
mesmo com as especificidades de cada trajetória dos participantes da pesquisa parece que
entre eles existem alguns pontos de intersecção, como: a intensa identificação e
responsabilidade com os sujeitos da sua prática educativa, explicitadas em alguns momentos
das sessões do Grupo Focal, nas quais os educadores se emocionaram ao falar dos meninos, o
envolvimento da maioria dos sujeitos participantes com projetos sociais e com as
Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica (CEB´s) e a idéia prevalente de que ser
educador é uma questão de vocação, uma missão que exige doação e amor pelo excluído.
Quanto aos critérios que definiram a participação dos sujeitos na pesquisa, adotaram-
se basicamente quatro: a escolaridade (mínimo ensino médio), o tempo de atuação como
educador social (menos de um mês a sete anos ou mais), o gênero e o seu envolvimento com a
luta em prol da valorização e promoção da criança e do adolescente em situação de rua.
Desta feita, foram realizadas duas sessões de Grupo focal com os participantes da
pesquisa, sendo que cada uma delas teve a duração de, aproximadamente, duas horas e meia
(2h 30 min.). Na primeira delas, houve dois momentos: primeiro organizou-se o grupo em
círculo, solicitou-se a permissão para gravar os encontros em dois gravadores digitais e se
compartilhou com os participantes um pouco da trajetória do pesquisador. Em seguida, pediu-
se que os participantes falassem um pouco sobre a sua vida profissional, destacando o período
de trabalho, as suas motivações, os desafios enfrentados e as conquistas obtidas na profissão.
O primeiro momento, com duração de trinta minutos, visava propiciar uma maior
interação entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa, de modo que estabelecessem uma
comunicação aberta e confiável para a realização da etapa posterior do trabalho.
No segundo momento, que teve duração de duas horas e quinze minutos, solicitou-se
ao grupo que respondesse à questão sobre quem é a criança e o adolescente em situação de
rua. Porém, antes dessa indagação ser respondida pelos educadores, fez-se uma breve
consideração no sentido de explicitar para o grupo que não haveria nenhuma intervenção
valorativa por parte do pesquisador acerca das respostas obtidas, pois o que se pretendia de
fato era captar os diversos olhares sobre a infância e a adolescência em situação de rua.
Ainda nessa primeira sessão, o pesquisador atentou para que as respostas do
educador apresentassem o máximo de clareza em relação à pergunta a ser respondida. Com
esse intuito, retomou-se, em alguns momentos, a fala do educador com expressões do tipo-
lembro-me de que você disse... - e solicitou-se que ele explicasse melhor o que queria dizer.
82
Após esse primeiro momento, ouviu-se várias vezes a fala dos educadores para
posterior transcrição, que foi da forma mais fidedigna possível, razão pela qual se obteve um
rico material coletado, totalizando vinte e cinco páginas, lidas a fim de captar os termos
explicitados pelos educadores, que ainda não expressavam uma maior clareza para o
pesquisador, como: o menino está quebrado, o menino fez escolhas forçadas, ele é alguém que
falta um pouco de gerência, ele é um ser brutalizado, ele não tem família e ele é um
camaleão.
Todos esses termos referentes à definição de criança e de adolescente em situação de
rua foram anotados num Caderno de Registro e, em seguida, marcou-se mais uma sessão na
qual os sujeitos da pesquisa explicaram o que de fato queriam dizer, além de responderem
mais três questões sobre que tipo de imagem/símbolo eles relacionavam aos educandos, que
tipo de sentimento tinham em relação a eles e qual a intencionalidade do seu trabalho.
A partir dessa etapa, transcreveu-se os esclarecimentos e as respostas dos educadores
aos três últimos questionamentos, o que contabilizou ao todo trinta e cinco páginas, sendo
que, posteriormente, fez-se a leitura flutuante na qual se buscou conhecer de forma processual
e com maior precisão todo o material coletado, a fim de se ter dele uma visão global e unitária
para posterior classificação e análise.
A leitura flutuante é caracterizada por Spink (2003), parafraseando Potter e
Whetherell (1987), como uma atividade em que o pesquisador, ao ler o material de estudo,
deve escutar atentamente os detalhes do discurso (as pausas, as indecisões e o silêncio) dos
entrevistados, procurando entender os sentidos subjacentes às mensagens.
Essa atividade faz parte da técnica Análise de Conteúdo, definida por Bardin (2004,
p.37) como:
...um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter procedimentos
sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores
(quantitativos ou não) que permitem a inferência de conhecimentos relativos às
condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens.
A referida autora afirma ainda que a Análise de Conteúdo tem como ponto de partida
a mensagem, seja ela verbal ou simbólica, e objetiva interpretá-la para captar os seus sentidos
latentes. Assim, entende-se que a fala dos sujeitos sociais, os textos escritos e os diversos
símbolos utilizados pela sociedade expressam algumas intenções explícitas, porém por detrás
de cada mensagem encontra-se a plataforma de um iceberg em que valores, idéias e saberes
construídos pela tradição estão submersos e devem ser desvendados.
83
De acordo com essa perspectiva, Franco (2005) afirma que a responsabilidade do
analista é partir da mensagem para identificar o emissor, entendendo as suas intenções
explícitas e implícitas e as conseqüências delas para o receptor.
Essa tarefa exige do pesquisador uma postura análoga à de um detetive que, ao
procurar entender um determinado tipo de problema, deve ter instrumentos que o auxiliem na
investigação. Condizente com esse pensamento, Bardin (2004) entende que para analisar os
conteúdos das mensagens tornam-se necessárias algumas regras básicas que orientem o
trabalho do investigador, dentre elas:
Exaustividade-significa que ao analisar uma mensagem devem ser
considerados todos os elementos dela para que se possa compreendê-la em
sua totalidade, o que exige o esforço do pesquisador para a aquisição de
informações pertinentes que esclareçam as razões e as possíveis
conseqüências do conteúdo da mensagem.
Pertinência- que o conteúdo do material a ser analisado seja significativo
para os objetivos do trabalho investigativo. Dessa forma, todo material
coletado deve ser rico em informações que permitam ao pesquisador
compreender o seu objeto de análise.
Homogeneidade- implica que todo o material a ser analisado (mensagem
verbal/simbólica/documentos) deve obedecer aos mesmos critérios de
análise, a tal ponto que permita uma interpretação coerente com o objeto de
estudo do pesquisador.
4. A organização dos dados coletados
De acordo com tais regras, organizou-se e classificou-se o conteúdo do material
coletado no Grupo Focal, adotando como critérios as quatro dimensões da representação
social: a informacional, a imagética, a afetiva e a atitudinal (Moscovici, 2003; Jodelet, 2001).
Em conformidade com o exposto, classificou-se então o material analisado por meio
de quatro perguntas, sendo que cada uma delas correspondeu a uma dimensão da
representação social.
Quanto à dimensão cognitiva, indagou-se: como na resposta dada à questão matriz o
educador definiu a criança e o adolescente em situação de rua? Essa indagação objetivou
84
captar, na resposta do educador, os conceitos mais recorrentes usados por ele para definir os
sujeitos da sua prática educativa.
No que se refere à dimensão imagética, perguntou-se: que imagem/símbolo o
educador destacou na sua resposta para se referir aos sujeitos da sua prática educativa? Esta
pergunta objetivou explicitar as imagens emergentes dos sujeitos em situação de rua na
prática do educador.
Quanto à dimensão afetiva, procurou-se observar os gestos, o silêncio, os
sentimentos e os índices retidos
70
pelo educador social expressos nas sessões do Grupo Focal.
A questão que possibilitou captar essa dimensão foi: que tipos de sentimento mais freqüentes
o educador expressou ao se referir à criança e ao adolescente em situação de rua? Por meio
dessa pergunta, buscou-se identificar os sentimentos mais recorrentes do educador em relação
aos sujeitos da sua prática educativa.
No que diz respeito à dimensão atitudinal, procurou-se perceber no material coletado
a finalidade da prática do educador social e, para tal propósito, questionou-se: a partir das
sessões, qual é a intencionalidade do trabalho do educador atuante no espaço rua?
Esse conjunto de indagações que norteou a realização do Grupo Focal explicitou
alguns conceitos, imagens, afetos e intenções que, numa perspectiva de conjunto, subjazem ao
universo representacional do educador social e guiam o seu olhar acerca dos sujeitos da sua
ação educativa.
Para tal finalidade, quatro quadros-síntese foram organizados, correspondendo a cada
dimensão da representação social, e o material coletado foi relacionado a cada um deles,
segundo os aspectos informacional, imagético, afetivo e atitudinal.
Como resultado desse trabalho, são apresentados abaixo fragmentos de falas dos
educadores acompanhados de indicação alfabética (educador A ao I), de acordo com o
número de participantes da pesquisa, explicitando as suas definições sobre a criança e o
adolescente em situação de rua:
Educador H:
Eu vejo a criança de rua como um ser humano integral (...) vitimizado por falta de
políticas públicas (...) carente de tudo e que (...) a escola precisava salvar essas
70
O termo é utilizado por Bardin (2006) e se refere às falas indicadoras do estado emocional dos sujeitos sociais
(hã...é...hum..) . Expressões entendidas como detalhes insignificantes para algumas pessoas, mas que podem
revelar dúvidas, inquietações, desconfiança e descontentamento dos pesquisados em relação ao que se discute.
Spink (2003) aborda essa questão e a denomina de investimentos afetivos, porque revela os indicadores do estado
emocional do sujeito pesquisado no que se refere ao objeto de estudo.
85
crianças (...). Então, eu vejo assim esse menino como vítima de tudo isso, de um
país. É um ser com potencial, claro, tem uma carga de poder que pode ser
desenvolvido, mas possuem valores que não são importantes para nós e vivem
numa situação totalmente desfavorecida
.
Educador-C:
É uma pessoa que foi negada todos os direitos (...) possui potenciais enormes (...,),
mas está quebrada [fragilizada] e talvez pode usar esse potencial de forma negativa (...) ele é mais vítima de um
sistema
.
Educador-B:
Vejo um menino muito agressivo, acho que em conseqüência das drogas, da fome,
ele se torna mais agressivo ainda
.
Educador -A:
É alguém (...) que o ambiente de casa se tornou impossibilitado ou menos atraente
do que o da rua' (...) devido a pobreza, o conflito familiar e a atração da rua que
oferece liberdade, falta de regras e “ganho fácil”. É alguém que falta um pouco de
gerência [acompanhamento], de orientação (...), mas espera aí irmão (pausa longa),
eu sinto um pouco de falta (...) a gente sempre fala dos meninos que foram pra rua,
dos que vivem na droga e, às vezes, eu sinto falta dessa galera que venceu.
Educador-D: O menino em situação de rua pra mim é um sujeito de direito que precisa de
orientação (...) de um novo olhar para a situação é...deixa eu pensar é....Mas o menino é um sujeito de escolhas
forçadas
.
Educador-E:
Como eu vejo a criança e o adolescente? É difícil responder (longa pausa), mas eu
ainda continuo falando que a base é a família (...). Eu definiria, deixa eu ver[silêncio] , como uma pessoa que
seja explorada de seus direitos(...) ele não tem família
.
Educador-F:
É um ser humano (...), mas um ser humano carregado de mazelas que está
precisando de apoio, de orientação (...) porque tudo tem negligência da comunidade
(...) da falta de políticas públicas (...), é um ser desprovido de amor, carinho, de
oportunidades e os seus valores devem ser revitalizados”. Mas muitos conseguem
superar tudo isso, como um menino que tinha a mãe alcoólatra e vivia brigando
com ela (...) hoje, ele superou tudo, está casado, estuda, né?Está empregado.
Educador-I:
É assim, eu vou lá pra Bíblia, né? Quando Deus diz assim que nós somos imagem e
semelhança dele. E assim uma coisa que aprendi é tentar vê, embora seja difícil, vê
essa pessoa como imagem e semelhança de Deus (...) e também uma coisa que estou
aprendendo é conhecer a história pra mim não rotular, pra mim não estereotipar a
criança que está ali, né? Pra nossa sociedade, a criança que está ali é um marginal,
mas eu vejo esse menino como uma grande vítima, uma grande vítima do meu erro,
do nosso erro
.
Educador-G:
Hoje, eu vejo os meninos com outros olhos, né? Eu sempre costumo falar (...) que
antigamente eu tinha o menino como aquele está matando, roubando (...) e hoje percebo que aquele menino tem
sonhos, que aquele menino tem também desejos, né?
Dessas definições acima, que não foram colocadas em ordem alfabética pelo fato de
se trabalhar com a idéia de dualidade entre o linear e o não-linear, atentou-se em identificar
fragmentos de falas dos educadores que tendam a ser mais recorrentes, agrupando-os por
86
aproximação e diferenciação. Percebeu-se, então, que o termo vítima foi o mais usado de
forma direta ou indireta pela maioria dos educadores para se referir à criança e ao adolescente
em situação de rua. Sendo assim, a vítima, nas palavras dos educadores, é aquela pessoa que:
fez escolhas forçadas, é resultado do meu erro, do nosso erro, uma pessoa quebrada, não é
um marginal, não tem família, desprovido de todas as condições.
Noutra perspectiva, os educadores referem-se também aos educandos em situação de
rua de forma mais indireta como um sujeito perigoso ou que pode se tornar. Essa questão é
expressa pelas seguintes frases: vejo o menino como muito agressivo, talvez pode usar esse
potencial de forma negativa, ele é um ser humano carregado de mazelas, eu tinha o menino
como aquele que está roubando, matando.
Num terceiro agrupamento dos termos mais utilizados pelos sujeitos da pesquisa
para definir a criança e o adolescente em situação de rua, percebeu-se que, de forma implícita,
surgiram expressões como falta de políticas públicas, pessoa explorada de seus direitos,
direitos negados, têm potenciais enormes, sonhos e desejos que parecem indicar uma idéia de
que os educandos em situação de rua são sujeitos de direitos, definição explicitada pelo
educador D, embora reconhecendo uma certa fragilidade da rede de promoção, proteção e
garantia dos direitos.
Por último, ainda de forma bastante tímida e com pouca recorrência na definição de
criança e de adolescente, embora presente nos exemplos de conquistas obtidas na prática
educativa dos educadores, principalmente daqueles que moraram ou moram nos bairros
periféricos ou daquele que viveu na rua de Fortaleza, surgiram outras frases como a galera
que venceu (educador A), ele estuda, está casado e empregado (educador F, referindo-se ao
menino em situação de rua) e exemplos de êxitos e de resistência como, a menina que comia
a casca de melancia que encontrava na rua (...) hoje estuda, participa de uma companhia de
dança e viaja para outros países, o menino que foi pra rua e lutou contra o machismo do pai,
conseguiu com outras pessoas modificar as relações no lar (...), voltou pra casa e se engajou
em movimentos sociais.
Esses e outros exemplos de superação parecem indicar nos depoimentos dos
educadores que muitas crianças e adolescentes em situação de rua, mesmo diante de um
conjunto de situações impróprias para o seu desenvolvimento, resistem de forma análoga ao
mandacaru do sertão nordestino que, mesmo sem chuva, insiste em viver. Porém, uma grande
parte desses sujeitos ainda se diferencia do mandacaru no sentido de, além de lutar pela sua
87
sobrevivência, comprometer-se com a luta pela valorização de outros sujeitos que se
encontram em situação de violência e abandono.
Os quatro agrupamentos das falas dos educadores, construídos tanto pela
diferenciação como também por analogia, tiveram como objetivo possibilitar uma primeira
síntese dos dados coletados de tal forma que pudessem ser categorizados. Com esta intenção,
compartilhou-se com Bardin (2006) da idéia de categorização, entendida como um processo
que, por diferenciação, classificam-se os elementos que constituem um conjunto, sendo que,
em seguida, reagrupam-nos por analogia de acordo com critérios previamente definidos.
Segundo a autora, como resultado desse processo surgem as categorias que, tendo
um título abrangente, reúnem vários elementos que compartilham caracteres comuns,
possibilitando a condensação simplificada dos dados brutos e a sua passagem para dados
organizados, a fim de construir uma idéia capaz de interpretar e compreender o objeto de
estudo.
Há duas formas de categorização, uma é a prévia, na qual o pesquisador elabora com
antecedência as categorias e os elementos encontrados referentes ao objeto de estudo são
relacionados, “encaixados” no quadro categórico, e outra forma é a processual, em que o
sistema de categorias não existe antecipadamente, resultando da classificação analógica e
progressiva dos elementos encontrados (BARDIN, 2006).
Seguindo então essa segunda maneira de categorização sugerida por Bardin (2006),
reuniram-se assim os elementos comuns das falas dos educadores em quatro agrupamentos já
apresentados acima e sintetizados na Figura 1.
88
Figura 1- Quadro-síntese dos agrupamentos dos fragmentos de falas dos educadores
sobre a criança e o adolescente em situação de rua.
Legenda:
___________________________________________
Quem é a criança e o adolescente em situação de rua.
Desta síntese dos agrupamentos, emergiram quatro categorias referentes aos
educandos que freqüentam ou moram na rua:
1. A criança e o adolescente em situação de rua como vítimas sociais;
2. A criança e o adolescente em situação de rua como agressores ou em vias de
ser;
3. A criança e o adolescente como sujeito de direitos e
4. A criança e o adolescente como seres imanentes e transcendentes.
A criança e o
adolescente em situação
de rua
Freqüentam
ou moram na
rua
3
São sujeitos de direitos, com
sonhos, desejos e potencialidades,
embora tenham poucas
oportunidades.
1
Carente de todas as
condições básicas para o
seu desenvolvimento:
negação de amor, de
carinho tanto da família
quanto da sociedade. São
vítimas da sociedade, de
um sistema que os
fragilizou.
4
Alguns são resistentes,
corajosos e vencedores,
pois superaram um
conjunto de obstáculos e
atualmente estão
comprometidos na sua
comunidade.
2
São ou podem ser
violentos, pois
trazem consigo
muitas mazelas e os
seus valores devem
ser revitalizados.
Causas:
1- Conflito familiar
2- Violência doméstica
3- A atração, o sabor da rua: “ganho fácil”,
o lúdico, a ausência de regras e limites
instituídos na família e na sociedade
4- Extrema pobreza da família; desemprego
5- Ausência de políticas públicas
6- Fatores sócio-econômicos
89
Capítulo V-Análise e interpretação dos dados
Jodelet (2001), parafraseando Moscovici (1976), no seu trabalho intitulado Loucuras
e Representações Sociais refere-se às representações sociais como ‘teorias’ construídas no
cotidiano dos sujeitos sociais para lhes possibilitar compreender o seu mundo a ponto de
poder agir sobre ele, transformando-o. Nesse sentido, as representações, ao mesmo tempo em
que servem de mapas no sentido de nortear as ações dos sujeitos, formam condutas e tecem
comunicações por meio de conceitos, imagens e afetos que interligados guiam as práticas
sociais (JODELET, 2006).
Partindo-se dessa idéia de que as representações não se reduzem apenas à dimensão
cognitiva, analisa-se a primeira representação e as demais considerando os seguintes
elementos constitutivos: o seu período histórico de emergência, o seu núcleo central,
incluindo os sentimentos e imagens mais recorrentes, instituições e práticas sociais que mais a
explicitam e a sua manifestação recente
71
.
Porém, antes de apresentá-las, serão feitas duas considerações básicas válidas para
todas elas. Primeiro, ao se discutir sobre uma forma representacional de criança e adolescente
em situação de rua, não se tem nenhuma intenção de afirmar que ela é ou foi a única num
determinado período histórico do país, porque o que se percebe é que, embora uma possa se
sobrepor às outras, elas coexistem. Nesse sentido, entende-se que não existe uma
representação homogênea numa realidade social, mas representações que competem num
intenso jogo de poder e que, dependendo do resultado dessa disputa, uma tende a se tornar
mais recorrente que as outras.
De acordo com o exposto, uma segunda observação faz-se necessária. É que não se
pode pensar que um determinado educador veja a criança e o adolescente em situação de rua
apenas como vítimas e o outro, como agressores sociais. Primeiro, porque o universo nocional
e normativo do educador é complexo para ser reduzido a duas representações; segundo, que
esta forma de pensamento estático pode acarretar problemas futuros para os educadores,
estereotipando-os como uns que vêem os sujeitos da sua prática educativa como vítimas
versus outros que os consideram como agressores e assim por diante.
Contrapondo-se a essa mentalidade, enfatiza-se que as quatro representações
71
Para a elaboração dos elementos constitutivos das representações sociais que serão apresentadas, inspirei-me
basicamente nos trabalhos das professoras Ângela Pinheiro (2006), da Universidade Federal do Ceará-UFC, e
Lígia Leite (1988) da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ.
90
coexistem e subjazem ao universo representacional dos sujeitos da pesquisa, podendo detectá-
las por meio de fragmentos mais recorrentes de suas falas, todavia, sem a intenção de afirmar
que o educador A ou B tenha apenas uma ou duas das representações, embora algumas delas
possam se manifestar com maior intensidade em alguns momentos de suas conversações.
Feitas tais observações é que se apresenta a primeira representação.
91
5. Da representação social sobre a criança e o adolescente em situação de rua como
vítimas sociais
Parece que essa representação se manifesta de forma bem sintetizada na fala de um
dos sujeitos participantes da pesquisa quando diz:
Tem uma história que eu gosto muito, que é assim: tinham dois educadores no rio e
caíram dois meninos (...) então eles salvaram e logo em seguida caíram quatro e
eles só conseguiram salvar dois e ficaram dois [no rio]. E logo em seguida, caíram
oito [crianças] e aí um deles [educador] foi embora e outro gritou [pedindo
socorro]:- macho
72
! E o outro respondeu: -não, macho. Espera aí, eu vou ver quem
está jogando [as crianças no rio].(educador C)
Essas poucas linhas trazem um conjunto de elementos importantes que
exemplificam o que neste trabalho se considera crianças e adolescentes em situação de rua
como vítimas sociais.
Recapitulando a história, percebe-se que nela há dois sujeitos educadores no rio que
vêem, num primeiro momento, dois meninos caírem. Assustados e sensibilizados, conseguem
salvá-los
73
, porém em seguida caem quatro crianças e depois o dobro, o que assustou ainda
mais um dos educadores que imediatamente, inconformado com tal situação, não atendeu o
pedido de socorro do seu colega e foi à raiz do problema (“quem está jogando” as crianças no
rio).
Algumas imagens emergem do exemplo do educador C, sendo que uma delas refere-
se à figura de alguém que tem poder e age de forma maléfica sobre outros sujeitos que,
desprotegidos, não têm capacidade de reagir e, conseqüentemente, afogam-se ou tragicamente
morrem afogados, porque os que são compadecidos (os educadores) não conseguem salvar
todos. Dessa forma, nessa luta trágica definem-se três tipos de personagens, sendo que um
primeiro deles agride (o agressor), o segundo sofre a agressão (as vítimas) e o terceiro (os
educadores) que, mesmo reconhecendo os seus limites, assume duas tarefas que são salvar os
vitimizados e combater o opressor.
72
A expressão acima é bastante utilizada em Fortaleza e em outras cidades do estado do Ceará para designar um
sujeito forte, que não foge da luta cotidiana mesmo com suas dificuldades.
73
O termo salvar utilizado pelo educador faz lembrar a tendência salvacionista inspirada no pensamento de
Comênio que defendia a educação como um instrumento redentor dos problemas enfrentados pelo ser humano,
entendimento esse criticado tanto por Saviani (2006) quanto por Freire (2005). Os autores diferenciam-se quanto
ao aporte teórico adotado, porém convergem no sentido de entender que a educação é propulsora de mudanças,
embora não seja redentora porque condicionada pelos fatores políticos, econômicos, sociais e culturais.
92
Como resultado desse confronto entre o que agride e os que combatem a agressão, o
que se percebe é que na história acima em nenhum momento explicitam-se as potencialidades
dos sujeitos tidos como vitimizados que, geralmente, são concebidos como hospedeiros de
carências, como bem exemplificam fragmentos de falas dos sujeitos da pesquisa:
Educador -B: “Ele não tem lazer, não tem estudo, alimentação não tem, aí você vai
na casa. A casa dele é precária né?”
Educador-H: “Ele é desprovido de tudo que possa imaginar (...) e tem valores
destorcidos”.
Educador -F: “É um ser humano desprovido de amor, de carinho, de oportunidades”.
Educador E: “A gente nota que ele não tem perseverança, não tem perspectiva (...) e
a gente tenta resgatar”.
Educador -D: “Eu vejo (...) sem perspectiva, sem nenhuma perspectiva, a maioria
não está nem aí”.
Educador-E: “É alguém (...) que está debilitado de carinho, de amor, de escuta”.
Tidos como despossuídos no sentido de lhes faltar um conjunto de condições
propícias para o seu desenvolvimento, devido à omissão tanto da família como da sociedade
civil e do Estado, a criança e o adolescente em situação de rua são representados como
vítimas sociais pelos participantes do trabalho investigativo, embora estes em alguns
momentos destacaram também algumas potencialidades desses sujeitos.
Tendo percebido tal representação dos educadores, concorda-se com Moscovici
(2003) quando diz que para o pesquisador não basta apenas identificar uma determinada
representação social, pois se deve também explicar a sua origem e as possíveis conseqüências
para os sujeitos sociais.
Conforme a orientação do autor, objetiva-se então, a partir deste momento, tecer
idéias que possam relativamente expressar o embrião da representação criança e adolescente
em situação de rua como vítimas sociais e, posteriormente, indicar algumas de suas
conseqüências.
Parece que tal representação encontra-se desde a “descoberta” do Brasil pelos
colonizadores portugueses, que tendo como modelo a vida européia alicerçada numa
perspectiva cientificista, desprezaram os saberes construídos pelos povos indígenas e,
posteriormente, pelos negros tidos como carentes de civilidade.
93
Negando-se a cultura desses povos, os “descobridores” do Brasil defenderam a idéia
de que a colônia era uma terra fértil em que tudo que se planta nela, dá. Essa compreensão
inaugurou um mito que ainda prevalece no país, tido como um lócus da prosperidade, da
harmonia e da produtividade.
De acordo com tal entendimento e com o propósito do trabalho, considera-se o mito
como uma representação social paradoxal que, ao mesmo tempo em que revela certos
aspectos da realidade, oculta outros que podem ser também interpretados pela forma de
comunicação não-verbal. Nesse sentido e em consonância com Leite (1998, p.76), entende-se
que o mito “remete ao limite da fala, é o mistério daquilo que não é dito, mas que
simultaneamente, também é dito através dos sentimentos e dos sentidos”.
Retomando o mito do país produtivo, pode-se dizer que ele já se manifestava na fala
de Pero Vaz de Caminha quando afirma que o Brasil
74
é um país que possui “ agoas sam
mujtas jmfimdas. E em tal maneira he graciosa que querendoa aproveitar darsea neela tudo
per bem das agoas que tem” (VAZ, 2005, p.66).
Esse pensamento expresso na carta do cronista ao rei de Portugal D. Manuel
explicita a crença dos colonizadores na capacidade produtiva da terra, porém inaugura
também uma forma de pensar que entende que se a terra é fértil e os que semeiam não
conseguem fazê-la produzir, então o problema não está no solo, mas na incompetência
daquele que não sabe plantar.
Dessa compreensão, emergem duas conseqüências básicas: a primeira é a de que o
não germinar da semente ou mesmo o seu raquitismo ao nascer refletem a inabilidade de
quem a semeou; a segunda é que a semente é uma vítima de quem a semeou, tornando-se
quando muito uma árvore pouco frutífera ou infrutífera.
Assim sendo, a vítima (a semente) é resultado da irresponsabilidade do semeador
que não cuidou devidamente dela. E a terra? Esta não tem problema algum, pois como diz
Vaz (2005, p.116) “ela é graciosa que, querendo aproveitá-la, tudo dará nela, por causa das
águas que tem.”
Com base ainda nessa crença, surge um segundo mito que se funda numa convicção
de que para o semeador vencer na vida basta ser esforçado, porque o seu êxito depende apenas
da sua vontade e do seu interesse pessoais. Como conseqüência dessa convicção, culpou-se o
74
Em 1500, denominado primeiramente Ilha de Vera Cruz, posteriormente Terra de Santa Cruz e Brasil após a
descoberta do pau-brasil em 1511.
94
semeador pelo seu fracasso e não se consideraram os fatores externos que também contribuem
para o seu sucesso ou insucesso no convívio social.
Esses dois mitos que emergiram no período da “descoberta” do país e que ainda
subjazem ao universo representacional do brasileiro, parece que influenciam não só uma
grande parte da população como também os sujeitos da pesquisa, que ainda tendem a
conceber a criança e o adolescente das camadas populares como vítimas sociais, em especial,
os que se encontram em situação de rua.
Esta representação social manifestou-se de forma mais explicita na Roda dos
Expostos, cujo objetivo era acolher as crianças órfãs (vítimas da fatalidade devido à morte dos
seus pais) e abandonadas (vítimas da irresponsabilidade dos seus genitores). A referida
instituição provavelmente tenha sido instalada em Salvador antes do século XVII e no Rio de
Janeiro em 1738 e era vinculada às santas casas de misericórdia.
O nome roda era atribuído devido existir nos muros dos conventos um aparelho
giratório de forma cilíndrica pelo qual os religiosos recebiam vários tipos de doações e
também crianças indesejadas que eram abandonadas pelos pais. Estes, anonimamente, iam à
roda e batiam um sino ao lado, comunicando aos frades e irmãs que haviam deixado os seus
filhos para serem acolhidos.
O motivo da criação da Roda dos Expostos foi o alto índice de abandono de crianças
no século XVII, que eram deixadas nas portas das Igrejas, das casas de famílias abastadas e
até mesmo jogadas nas ruas das cidades (SILVA, 1988).
Dentre os fatores que contribuíam para o abandono, cita-se a rigorosa moral
religiosa que impedia que as mulheres tivessem filhos fora do casamento, sendo obrigadas a
abandoná-los na Roda dos Expostos para não macular a honra da sua família. Silva (1998, p.
38) afirma que o “terrível espetáculo de crianças mortas de frio e de fome, ou devoradas por
cães ou porcos, inspirou aos governos das cidades a idéia de criação das rodas”.
Nesse contexto, os pais foram considerados metaforicamente como semeadores
inábeis, que numa terra produtiva (país), não souberam semear e nem cuidar devidamente de
sua semente (criança), abandonado-a de forma desumana. Sendo assim,
...o abandonado é aquele concebido como vitimado, deixado por seus pais,
culpabilizados pelo abandono e pela situação de carência e risco social a que era
submetido. O abandonado como vítima desprotegida deveria submeter-se à proteção
dada pela sociedade e a ela ser eternamente grato
(NUNES, 2005, p.82).
95
Essa concepção acerca dos abandonados nas rodas tornou-se também extensiva aos
meninos e meninas em situação de rua, que ainda são concebidos como vítimas da sociedade
e da inabilidade familiar, como expressou um dos educadores participantes da pesquisa ao se
referir à família dos educandos que se encontram em situação de rua: “...eu penso que nem
todo homem, nem toda mulher não nasceu pra ser pai, nem nasceu pra ser mãe não(...). eu
penso muito nisso, porque é assim, às vezes, aconteceu um acidente” (educador I).
Embora o educador faça referência ao descaso social quando acrescenta, em
seguida, que a ida do menino à rua não é de responsabilidade “nem de A e nem de B, somos
todos nós”, mesmo assim ainda acentua de forma bastante severa a incompetência dos pais
que geram filhos por acidente.
Obviamente em alguns casos não se descarta a possibilidade de existir a negligência
familiar, porém alguns cuidados devem ser tomados para não correr o risco de conceber os
meninos em situação de rua como resultado da decadência de valores de sua família, pois esta
se diferencia do modelo padrão consolidado na teoria sociológica, em que o grupo familiar é
tido como a célula mater responsável pela socialização dos filhos de acordo com os valores
instituídos pela sociedade.
Para Ferreira (1979), nesse tipo de família os pais são os provedores, enquanto os
filhos tornam-se consumidores da renda familiar, o que lhes garante um maior tempo para o
estudo e outras preocupações. Diferenciando-se desse modelo de família, encontra-se a dos
educandos em situação de rua na qual os pais não são os únicos provedores, pois os filhos são
forçados desde cedo a se preocuparem não só com os estudos, mas também em garantir as
mínimas condições de sobrevivência na luta cotidiana.
Ainda segundo a autora, como os provedores são pais e filhos, a relação entre eles
torna-se pouco hierarquizada e os valores dominantes como respeito, obediência e autoridade
existem na medida em que não atrapalham as funções de cada um deles na família.
Conforme o exposto, entende-se que frases provenientes das falas dos educadores
pesquisados como “eles necessitam revitalizar os seus valores” (educador F), “eles não têm
referência familiar. É um ser de referência apagada” (educador E) e “possuem valores que não
são importantes” (educador H), parecem indicar um certo desconhecimento dos entrevistados
acerca do modo de vida da família dos sujeitos que se encontram na rua, contribuindo para a
validação do pensamento instituído na sociedade que os considera como produto da
irresponsabilidade familiar.
96
Opondo-se a esse pensamento dominante na sociedade atual, a professora Lígia
Leite (1998) entende que a família (semeador) das crianças e adolescentes (sementes) em
situação de rua ainda é tida como desestruturada e inapta
75
, a única responsável pelo insucesso
dos seus filhos. Estes tidos como vítimas (sementes) da incompetência familiar são
concebidos pela maioria da sociedade brasileira (solo) como sementes doentes que, mesmo
semeadas numa terra fértil, dificilmente conseguem nascer e darem bons frutos.
Concorda-se com a autora, porém em relação à culpa direcionada aos pais das
crianças abandonadas na Roda, parece que no contexto atual há uma diferença no sentido de
que ela continua, mas não tão acentuada quanto antes, porque devido à luta de vários
movimentos sociais em prol dos sujeitos tidos como menores, a culpabilização ampliou-se de
forma a incluir também a sociedade civil e o Estado.
É o que se depreende do pensamento de Marques (1976, p.22) quando afirma que:
O menor é vítima da irresponsabilidade dos pais que o geraram e o abandonaram. O
menor é vítima da dissolução da família e do mau exemplo dos pais. O menor é
vítima de uma gestação atribulada e muitas vezes não requerida. O menor é vítima
da subnutrição da infância, do analfabetismo, das estruturas sociais injustas que o
marginalizam. O menor é vítima do mau contato inicial com a polícia, muitas vezes
traduzido em violências abomináveis e desnecessárias. O menor é vítima da
incompreensão dos adultos e das distorções dos meios de comunicação de massa. O
menor é vítima da falta de preparação profissional, que o coloca na situação de
subemprego permanente. O menor é vítima daqueles que deveriam assisti-lo nos
institutos de tratamento e mal preparados contribuem para a maior deformação da
sua personalidade.
Entende-se, pelo pensamento do autor, que o tido menor é resultado de um conjunto
de negação, o que o faz ser um feixe de carências. Ele se torna assim, porque a sociedade que
antes era entendida como terra produtiva traiu a sua natureza a tal ponto de contribuir com a
situação excludente dos ditos abandonados.
De acordo com essa perspectiva, parece que esses sujeitos tornaram-se vítimas de
um triplo abandono, sendo o primeiro da família, o segundo da sociedade civil e o terceiro do
Estado. Assim sendo, a semente foi negada pelo semeador e pela terra que também a rejeitou,
mas, arrependida, tenta se redimir da crueldade que cometeu.
75
Considera-se essa denominação com uma forma preconceituosa em que o sujeito representante,
diferenciando-se do seu referente, classifica-o em relação ao modelo de família nuclear (pais e filhos) instituído
pela sociedade, considerando-o como único e válido. Atualmente os estudos, principalmente em Sociologia,
Serviço Social, Psicologia, História Social e outras áreas do conhecimento, apontam para outros tipos de família,
diferentes do padrão nuclear.
97
Dessa tríplice violência, a única saída para a sociedade que adoeceu a semente é
considerá-la como vítima e curá-la da doença que a acometeu. Nesse sentido, a prática social
curativa não se baseia na repressão, mas no amor incondicional, pois alguém que já sofreu
tanta negação deve ser tutelado e não punido. Dessa forma, “se o menor é vítima, assim
deveria ser tratado e, não rotulado facilmente de infrator de normas instituídas pela mesma
sociedade que as desrespeitou” (MARQUES, 1976 p. 22).
Esta forma de conceber o tido menor é expressa por meio da representação que o
considera como vítima social. De acordo com esse universo representacional, a prática social
mais adotada é aquela de enfoque assistencialista e, geralmente, é predominante nas
instituições de caráter religioso e filantrópico, embora não se restringindo apenas a elas,
porque, como lembra bem Silva (2003) parafraseando Rossato (2003), existem também
instituições públicas estatais que manifestam tipos de práticas semelhantes.
Em consonância com essa perspectiva, observa-se também que o núcleo dessa
representação é a valorização e a preservação da vida da criança que, embora ameaçada, deve
ser salva pelas pessoas ditas de bem. Assim, as almas caridosas e beneméritas,
compadecendo-se dos infelizes sociais à mercê de piedade (LÍGIA, 1998), objetivam salvá-los
do caos social, garantindo-lhes as condições básicas para a sua sobrevivência. Alguns valores
fundamentais que norteiam essa prática são o amor ao próximo, a caridade, o perdão e a
compaixão pelos excluídos e abandonados.
Foi com base nesses valores que a Campanha da Fraternidade de 1987 convocou
todos os cristãos e, em especial, os católicos, para que amassem e promovessem o menor tido
como vítima indefesa das injustiças sociais, porque o ato de amá-lo significava
simbolicamente acolher o Cristo crucificado e abandonado na cruz (CNBB, 1987).
A campanha teve grande importância para a sociedade brasileira, na medida em que
possibilitou a discussão em nível nacional, principalmente nas Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs), porém o rótulo criança vítima prevaleceu, contrapondo-se a outro estereótipo
que a definia como terror social.
Os valores que serviram de sustentáculos para a CF-87 parece que ainda se
manifestam com bastante vigor na fala dos participantes da pesquisa, que expressaram um
conjunto de investimentos afetivos em relação aos educandos em situação de rua, tendo por
eles alguns sentimentos mais recorrentes, como pena, empatia, compaixão, ternura, tristeza e
indignação.
98
Essa variação de sentimentos indica o nível de envolvimento dos educadores com os
sujeitos da sua prática educativa, sendo que em nenhum momento da entrevista eles
demonstraram acomodação no sentido de entenderem que a realidade da rua é inalterada,
postura criticada e definida por Martin Baró (1993), apud Jovchelovitch, (2001) como
‘síndrome fatalista’ em que os sujeitos perdem a noção de tempo histórico como processo
dinâmico e o vêem como um continuum em que as coisas que são, continuarão sendo.
Ao contrário do exposto, mesmo os educadores que manifestaram sentimentos como
pena em relação ao menino e impotência diante dos complexos desafios enfrentados na rua,
vêem o seu trabalho educativo como uma missão, uma causa nobre que fundada na
compaixão
76
, visa transformar a vida do sujeito vitimizado, representado simbolicamente
como o herói de guerra que não teve escolhas e foi obrigado a lutar (educador H), o sofredor
sem referência familiar (educador E) e o pássaro acorrentado que tenta ser livre (educador I).
Parece que todas essas imagens se referem à representação do sujeito como vítima
social e se sustenta na idéia de que o sistema econômico, político e social sobrepõe-se à
subjetividade e a domestica, pensamento este criticado por Moscovici (2003) ao ler Durkheim
(1978) que enfatizava o poder do coletivo sobre o indivíduo.
Como percebido, a representação social infância vítima influencia diretamente numa
forma de proteção social pela qual alguns indivíduos, movidos pelos valores já mencionados
anteriormente, compadecem-se e assumem a responsabilidade de outrem, que abandonaram a
criança. É nesse sentido que Pinheiro (2006) entende que a infância torna-se um objeto de
proteção à espera de sujeitos compadecidos.
Em consonância com a autora citada, entende-se que essa representação ainda se
manifesta com bastante intensidade na prática educativa da maioria dos sujeitos pesquisados,
que objetivam salvar a criança tida como vítima, nos orfanatos nos quais as crianças ficam à
espera de um sujeito caridoso que as adote e as proteja, e na prática não tão rara de as pessoas
deixarem crianças nas portas das casas de outros sujeitos considerados bem-sucedidos para
acolhê-las.
Nesse último caso, parece que se pode fazer uma analogia entre a porta da residência
que acolhe a criança abandonada e o dispositivo da Roda dos Expostos. Em ambos os casos,
76
Sobre a compaixão, Boff (2001) a denomina como um profundo sentimento que o humano tem e que lhe
possibilita sair do seu próprio universo para acolher o outro com as suas conquistas e desafios. É a capacidade de
compartilhar paixões no sentido de se envolver e construir um caminho com o outro. É de acordo com essa
perspectiva que alguns educadores entendem a compaixão, inclusive citando o referido autor.
99
quem abandona continua anônimo, um desconhecido que transfere a responsabilidade para
outro que, sensibilizado, assume a proteção.
À guisa de síntese, percebe-se que alguns elementos podem ser destacados como
significativos nessa representação: o seu núcleo central, que é a vida como uma dádiva a ser
preservada; a proteção social que se restringe ao campo da benesse e da caridade de alguém
que se compadece diante dos tidos como vitimados e, geralmente, a culpabilização dos pais e
da sociedade.
Esta representação manifesta-se com bastante força no espaço rua, onde alguns
educadores e uma grande parte da população ainda tendem a conceber a criança e o
adolescente como uma vítima social, portadores de carências e pouco enfatizando os seus
sonhos, as suas potencialidades e os seus saberes. Essa mentalidade é portadora de aspectos
positivos e negativos.
5.1 Alguns aspectos facilitadores e dificultadores da representação social sobre a criança
e o adolescente em situação de rua como vítimas sociais
Parte-se do pensamento de Moscovici (2003) de que as representações sociais são
resultado da ação de sujeitos que classificam algo tido como não-familiar ao seu contexto
social, a fim de conviver com ele de tal forma que não seja ameaçador ao seu universo mental.
Assim, familiarizando-se com o que antes era insólito, habitua-se a ele a tal ponto de conceber
alguns de seus aspectos e outros não.
Sobre essa questão, no prefácio da obra Loucuras e Representações de Jodelet
(2005), Moscovici (2005) refere-se à habituação como a capacidade de os habitantes de uma
colônia francesa denominada Ainay-le-Château acolherem os loucos antes tidos como
estranhos e, depois de um longo período de convivência, familiarizaram-se com eles,
permitindo-lhes fazer parte do cotidiano da colônia, embora assumindo o que Jodelet (2005)
denomina de status de diferente
77
.
Notoriamente, este trabalho não tem a intenção de pesquisar sobre a loucura, porém,
na referência acima, o que se procura destacar é a domação do tido estranho (pensionistas) a
ponto de ele ser acolhido numa comunidade que, após anos, diz ter se acostumado a ponto de
não vê-los como excêntricos.
77
A autora usa o termo para se referir às regras estabelecidas pelo grupo de acolhimento dos loucos
(pensionistas), que os colocava numa posição de subserviência, delimitando o seu espaço de participação na
comunidade e até mesmo o tipo de comida para eles.
100
Essa passagem do incomum ao comum dá-se por meio da categorização de alguém
ou alguma coisa, o que faz com que os sujeitos sociais utilizem os paradigmas armazenados
na sua memória para apreender o inusitado, nomeá-lo, a fim de tornar relativamente
compreensível alguns de seus aspectos.
Essa compreensão relativa dos sujeitos sociais acerca do seu referente depende de
um conjunto de fatores, tais como: os aspectos cognitivos (o conhecimento prévio
armazenado deve ter alguns elementos em comum com os do objeto inabitual), o nível de
investimento afetivo (identificação ou não com o referente), os valores de cada sujeito e os
seus interesses em classificá-los (JODELET, 2001).
Assim, uma representação não é neutra, porque construída e compartilhada pelos
sujeitos sociais, ela traz em si aspectos positivos e negativos para aquele que foi classificado.
Dessa forma, questiona-se o que a representação criança e adolescente como vítimas sociais
tem de aspectos facilitadores e dificultadores tanto para os educandos quanto para os
educadores.
Quanto ao primeiro aspecto do discurso vitimizador, pode-se citar o fato de ele:
revelar a influência dos fatores externos (econômico, social, político e cultural) que
condicionam os sujeitos sociais; de sensibilizar a sociedade para que mude de postura a fim de
solucionar o problema da criança abandonada; de enfatizar a necessidade de uma pedagogia
caritativa em detrimento de outra repressiva; de expressar a negligência da família e da
sociedade e de pretender banir a idéia de punição como meio de defesa social.
Todavia, mesmo contendo essas boas intenções, essa representação apresenta um
conjunto de elementos obstaculizadores da emancipação dos sujeitos sociais, dentre os quais
se destacam: a primazia dos fatores externos sobre os indivíduos, não enfocando a sua
capacidade de superar os desafios; a prevalência da objetividade sobre a subjetividade; a
ênfase demasiada nas carências das crianças e adolescentes em situação de rua, de tal forma
que pouco se discute acerca das suas potencialidades; o sentimento de pena que dificulta a
promoção de uma consciência que considere esses personagens como sujeitos de direitos; não
se desenvolve a idéia de co-responsabilidade na construção de uma nova sociedade, na
medida em que um é o agressor e o outro é a vítima da agressão.
Outros desafios dessa representação encontram-se no fato de ela atribuir aos
familiares as razões dos insucessos de seus filhos, de prevalecer uma relação de submissão
entre os tidos como compadecidos (doador de graças) e os desafortunados (destinatários do
101
amor, da bondade e da sensibilidade de outrem). Nessa relação, uns salvam e outros esperam
a graça, o que dificulta a compreensão de que a liberdade relativa é uma conquista e não uma
dádiva dos mais privilegiados aos menos favorecidos.
Entende-se que essa representação subjaz a uma das tendências da política oficial de
atendimento aos meninos e meninas em situação de rua, que se explicita por meio de uma
prática salvacionista e de cunho assistencialista que ainda continua, apesar de confrontos com
outras representações.
Do embate entre elas, parece que o discurso salvacionista defende a idéia de que é
possível salvar sem reprimir, enquanto o repressivo sustenta-se numa outra: a de que é preciso
reprimir para salvar dos vícios ou da predisposição para.
102
5.2 Da representação social sobre a criança e o adolescente em situação de rua como
agressores sociais ou em vias de ser
Opondo-se à representação anterior, esta se manifesta de forma bastante sutil na fala
dos educadores atuantes no espaço rua. Infere-se que uma das razões dessa sutileza talvez seja
devido aos debates sobre os direitos humanos no Brasil, que se intensificaram no período pós-
ditadura militar, e à aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990) que
impulsionou o debate crítico acerca de práticas coercitivas, substituindo-as pelas educativas.
Outra possível razão de os educadores não manifestarem de forma tão explícita essa
representação pode ser também devido a sua formação, pois a maioria deles, antes de atuar na
rua, era envolvida nos grupos da Igreja Católica, trazendo consigo marcas fortíssimas da
Teologia da Libertação.
Com essa formação, os educadores tendem a ver os educandos em situação de rua
como presença profética que, mesmo desprovida de um conjunto de condições básicas, não só
denuncia a injustiça social como também incomoda aqueles que a geraram. Nesse caso, o que
se depreende dos fragmentos de fala dos educadores é que o profeta ferido tanto angustia
aqueles que os defendem como também incomoda os tidos causadores da ferida:
Eu acho que ele é um profeta, porque ele denuncia uma situação que está errada e
não é só na família dele, não. É na sociedade inteira (...) e a denúncia se dá no
momento que o menino incomoda extremamente a sociedade (...). Ele denuncia,
alguns vêem, outros não. Outros querem matar (educador C).
Esse pensamento expresso pelo educador opõe-se ao que considera os educandos
em situação de rua como agressores ou em vias de ser, pois os concebe como resultado de
causas estruturais de natureza sócio-político-econômica e da decadência moral e ética da
sociedade (CF-1987).
Todavia, a pesquisa aponta que, mesmo contrapondo-se a essa mentalidade
repressiva, os sujeitos da pesquisa ainda representam sutilmente a criança e o adolescente em
situação de rua como perigosos ou em vias de ser. Nesse caso, indaga-se: por que será que, ao
negar essa representação em fragmentos de sua fala, os educadores a mencionam?
Para obter resposta a essa questão, retomou-se a leitura sobre representações sociais
e, por meio do diálogo com autores como Moscovici (2003), Jodelet (2001; 2005), Guareschi
(2003) e Farr (2003), pôde-se inferir o seguinte: o educador atuante no espaço rua é um filhote
103
da história e como tal ele a influencia e é influenciado por ela, tendo consciência de alguns
fatores que o condicionam e de outros, não.
Em conformidade com essa perspectiva, ele se torna metaforicamente falando um
tripulante consciente-insconsciente do seu tempo histórico, herdeiro de uma cultura e
transformador de alguns aspectos dela, sendo o seu universo mental um constructo resultado
de uma tessitura de idéias passadas mescladas com as do presente, o que o faz projetar no seu
contexto sócio-político-econômico e cultural.
Assim, o educador como um sujeito social, criador da e criado pela história, guarda
consigo “experiências e idéias passadas (...) não mortas, mas continuam a ser ativas, a mudar
e a infiltrar (...) experiências e idéias atuais”( MOSCOVICI, 2003, p.37-8).
Deduz-se, então, que é possível o educador ter representações diferentes e às vezes
contraditórias sobre a criança e o adolescente em situação de rua, porque o seu constructo
mental é complexo e produto de idéias herdadas consciente e inconscientemente, reelaboradas
por ele no seu grupo social.
Sendo assim, percebe-se que, ao conceber a criança como vítima, o educador pode
vê-la também como agressora, embora negando de forma intencional ou não essa
representação. É o que se deduz de fragmentos de falas dos participantes da pesquisa quando
dizem que o menino não é perigoso, porém em outros momentos da entrevista afirmam que
ele: “... pode te ferrar (...) se aproveitam da situação e a favor dele, não interessa se vai te
ferrar ou não, porque ninguém pensou nele, também ninguém perguntou se ia ferrar com ele”
(educador-C).
Pelo exposto, a criança e o adolescente em situação de rua são representados como
sujeitos que ferrados, ou seja, agredidos pela sociedade que os violentou, reagem de tal forma
que a agridem também, porque nenhum sujeito demonstrou compaixão por eles.
Noutro momento, o educador F define a criança e o adolescente em situação de rua
como sujeitos de direitos, mas em seguida lhes atribui a imagem de um camaleão que se
adapta ao contexto social para dele obter algo para si:
Os meninos tentam se adaptar a cada ambiente que estão. Se eles estão num ambiente
que é violento e agressivo (...) mesmo que ele seja uma pessoa boa, ele tenta estar de
igual pra igual (...), pois também adquirem aquela carga de violência. Então, a
imagem do menino, né? Ele tenta se adaptar sempre no sentido de tirar proveito
(educador - F).
104
A perspectiva utilitarista, representada simbolicamente pela imagem do camaleão,
demonstra que a criança e o adolescente, ao habitar a rua para conseguir os meios básicos para
a sua sobrevivência, tornam-se sujeitos estratégicos que surpreendem ou podem surpreender
agressivamente até mesmo aqueles que lidam com ele. Assim, o educador I diz: “quando eu
comecei, né, as pessoas diziam que eu tinha peito de aço (...), mas tenho medo (...) porque a
gente nunca sabe qual é a reação que ele vai ter quando a gente chegar” [no espaço da rua].
Entende-se que o educador atuante no espaço rua elabora as suas estratégias de
trabalho com o menino a partir da convivência com ele, porém nem sempre elas funcionam no
sentido de lhes dar segurança. Assim, o medo aparece como uma forma de precaução, de
proteção, porque, dependendo do momento dos educandos, eles podem agir violentamente.
É o que acrescenta o educador-A ao dizer que, quando vai para as atividades na rua,
procura não usar tênis e nem roupas de “grife”, porque ele pode despertar nos educandos o
desejo de possuir tais objetos, tornando-os mais violentos ainda a ponto de praticarem furtos
ou roubos para obtê-los. Por outro lado, o educador, ao usar roupas “simples”, previne-se
também, pois “o menino está ali naquela situação e você (...) com o tênis. Mesmo que ele não
te roube, o que é pouco provável, mas quando passar outro na frente, tchau”.
Parece que o “simples”, como modo de ser do educador, coloca-o diante de um
dilema, porque, ao mesmo tempo em que ele procura ser um mediador na construção de
sonhos com os educandos, pode limitá-los de sonhar, na medida em que, ao se preocupar em
proteger a sociedade e a si mesmo, impede-os de pensar na possibilidade de até mesmo se
vestirem de uma forma diferente daquela a que estão acostumados.
Como conseqüência da maneira “simples” de se vestir, o educador então corre o
risco de não só validar o status quo dos grupos que relativamente dominam, como também
contribuir para consolidar o que Paugam (2006) denomina de identidade negativa, entendida
como um modo de ser em que os menos privilegiados se vêem não só como diferentes, mas
como inferiores e impotentes em relação aos demais sujeitos do seu grupo social.
Dito isso, percebe-se que o “simples”, ao mesmo tempo em que protege o educador
e outros sujeitos sociais, diferencia a criança e o adolescente em situação de rua de outros
tipos de infância e adolescência, atribuindo-lhes o que Jodelet (2005) define como status
privativo por serem concebidos como sub-cidadãos, impedidos de usufruir as mesmas
condições que outros.
105
Espera-se que se tenha demonstrado que a representação criança e adolescente em
situação de rua como agressores ou em vias de ser ainda se manifesta no universo
representacional do educador, embora este a negue em outros momentos de sua fala. Duas
indagações emergem: que práticas podem ser adotadas então para educar um sujeito tido
como perigoso ou em potencial?
Guiado por essa questão, objetiva-se agora compreender a gênese dessa
representação e minimamente poder contribuir com os educadores, no sentido de eles
continuarem refletindo sobre a sua prática educativa, tornando-a cada vez mais uma
ferramenta de empoderamento dos educandos.
Estabelecida tal intenção, concorda-se com Moscovici (2003) quando diz que quanto
mais se questiona e compreende a origem de uma representação, mais os sujeitos ficam
cientes dela podendo, assim, modificar as suas práticas, e quanto menos se discute mais
fossilizada ela se torna, garantindo, assim, relativamente o equilíbrio do grupo social.
Objetivando então analisá-la a fim de que não se petrifique no fazer educativo do educador é
que se discute sobre a sua manifestação no cenário brasileiro.
Parece que ela se tornou mais acentuada no final do século XIX e início do XX,
períodos marcados não só pela abolição da escravatura, como também pela emergência do
governo republicano e, posteriormente, pelo processo de industrialização e urbanização.
Nesse contexto, há a presença marcante dos médicos higienistas que, preocupados
com o alto índice de mortalidade, intervieram de forma rigorosa na área social, objetivando
modificar não só os hábitos alimentares, mas também as condutas dos sujeitos das classes
populares, para que eles pudessem contribuir para o desenvolvimento de uma Nação forte que
se encontrava a caminho do progresso (PINHEIRO, 2006).
Em conformidade com tal ideologia, a imagem predominante e condizente com ela
foi a da criança como símbolo da esperança e do futuro da Pátria. Opondo-se a essa
concepção de infância, havia paradoxalmente outra voltada à infância da classe popular, que
não atendendo aos propósitos civilizatórios, foi concebida como agressora ou em vias de
impedir ou atrapalhar a concretização do ideal de um país robusto.
Dentre esses sujeitos, principalmente, os abandonados e os órfãos que antes eram
acolhidos pelas instituições privadas de caridade, em 1927 tornaram-se propriedade do Estado
que os assumiu legalmente, tendo como objetivo torná-los úteis ao ideal almejado: uma Nação
forte e consolidada de acordo com os moldes europeus.
106
Nesse contexto, o agressor ou em vias de ser foi aquele sujeito que transgredia ou
que poderia transgredir os valores tidos como válidos pela utopia civilizatória. Considerado
como impotente para a sociedade, deveria ser reeducado e inserido no mercado de trabalho a
fim de poder contribuir para o desenvolvimento cultural, político, social e, principalmente,
econômico do país.
De acordo com esse quadro, o trabalho foi entendido como um instrumento básico
para capacitar os sujeitos sociais tidos como em vias de se tornar empecilho para o progresso
da Nação, como também uma forma de correção daqueles sujeitos que tinham praticado
algum tipo de ato infracional.
Para os primeiros, criou-se um conjunto de medidas que visava ampará-los e
prepará-los para o mercado de trabalho. Com esse intuito, surgiram instituições como a
Legião Brasileira de Assistência (LBA) em 1942 que se preocupava em apoiar e orientar as
mães sobre os cuidados higiênicos e alimentares na infância. Na mesma linha de intervenção
social, em 1946, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), o Serviço Social
da Indústria (SESI), o Serviço Social do Comércio (SESC) e o Serviço Nacional do Comércio
(SENAC) visavam qualificar os jovens de classes populares para atuarem nas áreas comercial
e industrial (Nunes, 2005).
Para aqueles tidos como agressores, surgem instituições diversas dentre elas o
Serviço de Atendimento ao Menor
78
(SAM) em 1941, visando à ressocialização e à integração
dos tidos menores ao convívio social, sendo que, de acordo com essa proposta, aqueles que
demonstravam resistência e dificuldade em aceitá-la eram confinados e privados de sua
liberdade.
Em consonância com essa perspectiva, pode-se dizer que o SAM iniciou um
atendimento de cunho repressivo, que corrigia os tidos agressores por meio de uma rigorosa
disciplina para torná-los dóceis e úteis à sociedade. Essa concepção foi explicitada na fala do
diretor geral do Departamento de Assistência Social do Rio Grande do Sul, Alberto Kumb,
que, ao participar do I Fórum Nacional do Menor
79
realizado em São Paulo em 1966, afirmou:
...o Governo do Estado, quando olha para uma criança que está em abandono ou se
transviou, para uma criança que é ‘delinqüente juvenil’, procura olhá-la em função
do que pode ser amanhã, como ser útil à sua comunidade. Para alcançá-la para
78
O SAM foi criado pelo Decreto-lei 3.799 e era subordinado tanto ao Ministério da Justiça quanto ao de
Negócios Interiores, articulando-se também com o trabalho do juizado (Nunes, 2005).
79
O I Fórum Nacional foi realizado em São Paulo do dia 13 a 18 de dezembro de 1965. Nele, os governadores
de cada Estado e os seus representantes compartilharam as experiências obtidas por meio dos trabalhos
desenvolvidos com o tido menor.
107
tratá-la, busca recolhê-la para torná-la capaz, busca atendê-la naquilo que ela
precisa, conforme a sua individualidade exige, para que se torne útil a si e á pátria.
(FÓRUM NACIONAL DO MENOR, 1966, p.88).
O discurso tende a enfatizar a correção e o confinamento do dito agressor para torná-
lo produtivo à sociedade. Nesse caso, a sua validade dependia de outros sujeitos que, cientes
do processo de desenvolvimento do país, corrigiam-no a ponto de guiá-lo e libertá-lo dos
vícios obstaculizadores da vida social.
Parece que tal pensamento, ou resquícios dele, ainda se manifesta quando alguns
sujeitos da pesquisa mencionam que quanto mais “os meninos ficarem atrevidos, aí é que o
povo não vai ver mesmo” (educador-G), pois, como acrescentam outros educadores, esses
sujeitos têm valores inadequados (educador H) e distorcidos para o grupo social do qual faz
parte.
Para esses sujeitos tidos como portadores de contra-valores é que se defendeu
geralmente uma prática repressiva, como bem explicitada por Kumb quando afirma:
... precisamos fazer com que as medidas aplicáveis àqueles que faltaram ou que
infringiram a lei, sejam as adequadas para que venham a ser reeducados e
recuperados (...). Ora, se nós estamos diante de pessoas que não estão com a sua
liberdade em plena vigência, vamos a elas aplicar medidas que se revoltam, que se
inibem (..,) essas pessoas, como seres humanos só podem ser julgados por nós, para
receberem em nome do Estado, aquelas medidas que as libertem”. (FÓRUM
NACIONAL DO MENOR, 1966, p.89).
Pelo exposto, percebe-se que o núcleo dessa representação sobre a criança e o
adolescente das classes menos privilegiadas do país centra-se tanto na prevenção da
marginalização (combate à predisposição para a desordem) quanto na correção dos desvios já
instalados nos indivíduos para torná-los úteis como mão-de-obra produtiva, embora
mantendo-os numa condição subalterna devido a não possuírem uma formação que lhes
permita assumir outras funções de maior status na sociedade.
Para esses sujeitos, defendeu-se uma escola que mais manteve a sua condição de
subalternização do que a sua promoção enquanto sujeitos históricos atuantes e críticos na
sociedade. Tratados como subcidadãos, quando muito conseguiam cursar uma escola agrícola
que, no entender de Chaves (1966), deveria destinar-se aos menores, porque estes não
conseguiam desenvolver atividades mais complexas, por causa do baixo coeficiente
intelectual.
108
Entende-se que com a abolição do SAM e a implantação em seu lugar da Fundação
Nacional do Bem-Estar do Menor
80
(FUNABEM) na década de 60, a representação social
crianças e adolescentes como agressores ou em via de ser tornou-se ainda mais vigorosa, uma
vez que o governo autoritário concebia o dito menor como um problema de segurança
nacional, associando-o fortemente à imagem de bandido em potencial ou a sujeito anti-social,
adulto disfarçado de criança.
Esse olhar estereotipado, consolidado num cenário em que o país enfrentava
diversos problemas como o do êxodo rural (o que contribuiu para o inchamento das grandes
cidades) e o do agravamento das desigualdades sociais, possibilitou que crianças e jovens da
classe popular transitassem do campo para as favelas e destas para o centro das metrópoles,
para, além de outros motivos, garantirem a subsistência familiar.
Essa luta para angariar os meios básicos para sobreviver, aliada a alguns fatores
como a desagregação familiar, a brusca concentração de renda por grupos que detinham tanto
o capital econômico quanto o cultural ou apenas um deles no país, a debilidade do sistema
capitalista em promover empregos para todos, a desqualificação profissional dos provedores
do lar, a baixa e inconstante renda familiar e a violência no lar contribuíram para que,
aproximadamente no final da década de 70, surgisse o fenômeno menino em situação de rua,
que herdou também o estigma agressor ou em vias de ser.
Tais sujeitos marcados com esse rótulo, já familiarizado e relativamente aceito pela
sociedade brasileira, perambulam pelas ruas do país, sendo definidos pela carência, pela falta
de valores tidos como adequados para a sua inserção no convívio social. Assim sendo,
muitas instituições de atendimento preocupam-se em doar-lhes fatias de saberes, de valores
ditos válidos sem se preocupar em saber quais as potencialidades que eles têm.
A representação criança e adolescente como agressores ou com predisposição para
parece que teve o seu vigor reduzido na década de 80 com a efervescência de movimentos que
lutavam contra a repressão e em prol da democratização do país, porém ela ainda se manifesta
quando grupos defensores de práticas repressivas sustentam a redução da inimputabilidade
penal.
80
A FUNABEM executava a Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM), coordenava e estabelecia as
diretrizes gerais a serem seguidas pelas Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor (FEBEM). Além dessas
atribuições, encarregava-se de desenvolver estudos, pesquisas, seminários, cursos e congressos sobre o dito
menor, a fim de que a comunidade pudesse atuar juntamente com o poder público. Conferir em Nunes (2005) e
Silva (1966).
109
Essas posturas conservadoras tendem, de forma reducionista e superficial convencer
a opinião pública de que o jovem infrator deve ser trancafiado e punido pelo sistema prisional
e que a infração cometida por ele é problema do Estatuto da Criança e do Adolescente.
As investidas contra o ECA (1990) parece demonstrarem que uma lei que considera
todas as crianças e adolescentes como cidadãs, independentemente de credo, raça ou classe
social, incomoda alguns setores conservadores que defendem ainda práticas coercitivas
alicerçadas na mentalidade menorista do Código de 1979.
Entende-se que essas manifestações explicitam a existência da representação em
estudo, que também se faz presente no universo mental do educador, embora este a critique,
negando-a relativamente.
5.2.1 Alguns aspectos positivos, negativos, pontos de convergência e divergência entre
as duas primeiras representações
Dito isso, percebe-se que essa representação revela aspectos positivos tanto para o
educador quanto para os educandos, na medida em que demonstra, implicitamente, que o
sujeito pode interferir na sociedade com o intuito de modificá-la. Porém, ao mesmo tempo em
que reconhece essa força transformadora da subjetividade, nega-a, estereotipando-a.
Dessa forma, a capacidade de ruptura dos ditos agressores é contida e a sua inserção
no grupo social a que pertence depende da mudança do seu comportamento conforme o
instituído. Caso contrário, como diz Moscovici (2003, p. 56), “eles serão exilados do nosso
universo (...) e incomodam exatamente porque estão aqui, sem estar aqui”. É essa mobilidade
do referente inabitual que faz com que os sujeitos sociais adotem práticas, às vezes,
coercitivas para domá-lo a ponto de apreendê-lo na sua rede mental.
Assim, entende-se que essa mentalidade promove uma postura autoritária no sentido
de que a mudança de valores daquele que agride depende de outro sujeito que, ciente e de
acordo com as normas vigentes, adota geralmente uma prática corretivo-repressiva. Nesse
sentido, a reeducação, o resgate daquele que viola as regras sociais depende, em alguns casos,
da sua punição: cura-se pela dor.
Do estudo das representações crianças e adolescentes como vítimas sociais e
como agressores ou em vias de ser parece emergirem alguns pontos de convergências e de
divergências. Quanto aos primeiros, percebe-se que as duas representações enfatizam um
conjunto de carências presentes na infância e na adolescência, mais precisamente da classe
popular e, em especial, dos sujeitos em situação de rua, como: a falta de apoio familiar, de
110
condições socioeconômicas, de qualificação para o mercado de trabalho e de postura
condizente com os valores instituídos na sociedade vigente.
Além disso, ambas compartilham de um conjunto de dicotomias revelador da
desigualdade, como: infância e adolescência vitimadas x os que não são vítimas, agressor x os
que não agridem, família estruturada a favor da Pátria x família desestruturada traidora do
progresso e crianças e adolescentes como artífices do país x os que impedem ou dificultam a
sua construção.
Mesmo com esses pontos de intersecção, identificam-se alguns pontos de
divergências, como: a primeira representação sustenta-se numa subjetividade submissa, na
medida em que o sujeito é entendido como subjugado aos ditames do grupo social, tornando-
se vítima dele ou de sua família; a segunda alicerça-se na prevenção, na contenção, no
combate e na correção de uma subjetividade revoltada, porque deseja o rompimento da ordem
estabelecida.
Considerando os dois tipos de representação acima e a influência delas no espaço
rua, Leite (1998), opondo-se a elas vê os meninos como cidadãos em condição peculiar de
desenvolvimento.
Compartilhando com o pensamento da autora e tendo-o como prelúdio é que se
discute a próxima representação.
111
5.3 Da representação social sobre a criança e o adolescente em situação de rua como
sujeitos de direitos
Antes de discutir sobre a origem desta representação que se manifesta por meio do
diálogo estabelecido com os educadores sociais e com os autores que abordam o tema em
estudo, convém analisar uma questão emergida no trabalho investigativo. Essa se refere à
oposição entre a dimensão cognitiva (conceitual) e a imagética (imagem) da criança e do
adolescente em situação de rua explicitada nas falas dos educadores.
Essa questão tornou-se uma das mais desafiadoras do trabalho de pesquisa, porque
exigiu tanto uma leitura criteriosa dos trabalhos em representações sociais como também do
material coletado, a fim de obter respostas provisórias para o desafio apresentado.
Assim, com o objetivo de exemplificar essa tensão entre as dimensões, citam-se
trechos de falas dos participantes da pesquisa. Por exemplo, o educador D, ao mesmo tempo
em que definiu (dimensão informacional) a criança e o adolescente em situação de rua como
sujeitos de direitos, em seguida apresentou a seguinte imagem (dimensão imagética): “É uma
coisa assim. Hum... (longo silêncio), eu sei que é duro, mas é como se fosse um parasita
mesmo (...) que chega num lugar, consome né? Comunga, tira de um outro e depois sai, cai
fora (sorriso)”.
A pausa no início e o sorriso um pouco “desconcertado” no final da fala do educador
pareciam explicitar um certo constrangimento seu pelo fato de poucos minutos antes, na
sessão de Grupo Focal, ter definido os que se encontram em situação de rua como sujeitos de
direitos e, em seguida, atribuir-lhes uma imagem de um parasita que vive em função de
outrem e que perambula em locais diferentes para garantir a sua subsistência.
Percebe-se que a imagem acima (dimensão imagética) remete-se à idéia de
heteronomia, enquanto o sujeito de direitos (dimensão informacional) refere-se à de
autonomia como expressa pelo mesmo educador quando fala sobre a finalidade do seu
trabalho educativo: “o menino em situação de rua pra mim é um sujeito de direito que precisa
de orientação (...) de um novo olhar para a situação [vivida por ele] e o trabalho é de buscar
esse protagonismo, ele enquanto sujeito de sua ação”.
Essa oposição apresentou-se em outras falas como a do educador-A, quando afirmou
que o seu trabalho visava promover os educandos enquanto sujeitos de direitos, porém
atribuiu-lhes a imagem de primata: “... a imagem que eu vejo mais (...) uma imagem de
112
primata (...) de um bicho. Por quê? Vamos ver se você não é natureza: procura comida, anda
em bandos, só os mais fortes sobrevivem”.
Na mesma direção, o educador-B conferiu aos educandos a imagem de uma pessoa
agressiva e perigosa para o convívio social, porém posteriormente os definiu como sujeito de
direito.
Existem outros exemplos, porém entende-se que os já citados demonstram um certo
conflito entre o conteúdo de uma definição e a imagem que não corresponde ao que foi
definido. Quais as razões de tal tensão?
Por meio das leituras feitas em representações sociais, deduziu-se o seguinte:
o confronto entre a imagem e o conceito é possível quando a representação
social expressa pelo sujeito social (o educador) ainda não está consolidada no
epicentro do seu universo representativo, mas na periferia dele, assumindo
uma condição secundária em relação à outra que ainda vigora. Nesse caso,
pode ocorrer de um educador, por exemplo, definir-se enquanto freireano
(dimensão cognitiva), porém, se no centro do seu universo mental ainda
permanecer com vigor a pedagogia tradicionalista, ele poderá então conceber
o educando (dimensão imagética) não como um sujeito crítico e
participativo, mas como um depósito de saberes tidos como válidos. Dessa
forma é que se entende que o conceito pode trair a imagem ou o inverso, pois
ambos não convergem, sinalizando representações diferentes de educando.
que outro possível motivo de haver o conflito entre o conceito e a imagem é
a coerção que um determinado grupo pode exercer sobre alguns de seus
novos participantes, estabelecendo para eles regras que, se adotadas
devidamente, servem como condição de sua participação na equipe. Por
exemplo, um grupo de educadores no qual a maioria se define como
construtivista pode exercer uma coerção para que os novos integrantes
também se definam por tal aporte teórico. Objetivando então serem
acolhidos, alguns podem tentar seguir a orientação do grupo, pois, como
afirma Jodelet (2001), partilhar uma idéia ou uma linguagem é uma forma de
afirmar o vínculo social e de construir o sentimento de pertença, todavia, se
no seu núcleo representativo prevalecer outro tipo de marco teórico, ele
113
possivelmente o utilizará mais na sua prática educativa e, nesse caso, a
dimensão informacional conflitará mais uma vez com a imagética.
O exposto pode acontecer também com o educador social no sentido de ele
concordar que de fato a infância e a adolescência em situação de rua são sujeitos de direito,
porque caso pense o contrário, ele pode não ser aceito em determinados grupos tidos como
progressistas. Porém, se no seu construto mental a representação defendida pelo grupo de
acolhimento não estiver consolidada, ele tenderá a recorrer aos esquemas mentais anteriores
para desenvolver a sua prática educativa. Caso isso aconteça, a sua postura poderá indicar um
referencial que não é o da equipe que o acolheu, embora ele expresse o desejo de adotá-lo e
até superficialmente o discuta como uma estratégia de se sentir acolhido.
Desta feita, infere-se então que um esquema mental nunca é totalmente descartável
pelo sujeito social, porque este necessita conservar alguns de seus aspectos para acolher,
conscientemente ou não, o novo que se apresenta no seu convívio social.
outra possível razão do conflito entre a imagem e o conceito pode ser o fato
de a representação criança e adolescente em situação de rua como sujeito de
direito ser bastante recente na sociedade brasileira, o que exigirá um maior
investimento não só na formação do educador social, como também na
promoção de debates e discussão com a sociedade civil, para que esta
perceba os educandos em situação de rua como cidadãos.
Tendo explicitado, mas não esgotado, as possíveis razões do embate entre o conceito
e a imagem é que se discute a emergência da representação criança e adolescente como
sujeitos de direitos.
Esta é mais recente e emergiu aproximadamente no início da década de 80, período
em que o atendimento à infância e juventude tidas como infratoras sofreu severas críticas dos
grupos progressistas do país, que se opuseram às práticas repressivas - corretivas
desenvolvidas pela Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, denunciando-a juntamente
com outras instituições fechadas por violação dos direitos humanos.
Essa violência foi contestada nesses espaços de atendimento e, com a intensificação
da luta pela efetivação dos direitos humanos e pela democratização do país que ainda se
encontrava no Regime Militar (1964-1985), a criança e o adolescente passaram a ser
concebidos não como objetos de proteção (vítima) e de intervenção (agressor) do Estado, mas
como cidadãos em condição especial de desenvolvimento (PINHEIRO, 2006).
114
Entende-se que essa representação social da infância e adolescência tem como pilar
fundamental a noção de cidadania, entendida como uma forma processual de se fazer sujeito
portador de direitos e deveres na sociedade que, regida pelos princípios de igualdade formal e
material, possibilita aos cidadãos atuarem de forma crítica e participativa na transformação
social.
Em conformidade com essa compreensão de cidadania, Sacristan (2002, p. 146)
define-a como:
... uma forma inventada (...) de exercer a sociabilidade da pessoa no seio da sociedade
juridicamente regulada, que reúne e garante aos indivíduos certas prerrogativas, como
a igualdade, a liberdade, a autonomia e os direitos de participação. É uma forma de
ser pessoa em sociedade que parte do reconhecimento do indivíduo como possuidor
de certas possibilidades e de certos direitos.
A cidadania como construto social e processual desenvolveu-se basicamente em três
fases. A primeira delas (séc. XVII) se caracterizou pela conquista dos Direitos Civis-
igualdade formal - decorrente das Revoluções Americana, em 1776, e Francesa, em 1789. A
segunda correspondeu à conquista do cidadão em poder escolher os seus representantes, como
também ser escolhido para representar a sua sociedade. Esta fase foi forjada no início do
século XIX, em que houve a conquista dos direitos políticos por meio dos quais os sujeitos
sociais puderam votar, serem votados e se mobilizarem a favor ou contra uma determinada
situação que contrariasse os interesses do seu grupo social. No final do século XIX, a terceira
fase da cidadania foi caracterizada pela conquista dos direitos sociais e nela o Estado se
comprometeu em garantir o bem-estar e a seguridade dos cidadãos.
A partir desse breve quadro histórico, Costa (1989) entende que a cidadania é um
processo que envolve tanto os direitos civis quanto os políticos e os sociais, sendo que negar
ou não garantir um deles significa fragilizá-la, tornando-a incompleta para a garantia do
desenvolvimento pleno dos sujeitos sociais.
Ainda nessa perspectiva, Pinheiro (2005) compreende a cidadania como uma
conquista histórica em construção, formada pelos três tipos de direitos acima e que inclui
também as responsabilidades dos cidadãos e a compreensão dos seus limites e possibilidades
no mundo em que vivem, fortalecendo o seu sentimento de pertença para participar
ativamente das decisões da sociedade.
De acordo com o exposto, o conceito de democracia torna-se mais amplo no sentido
de que a participação da sociedade civil não se restringe apenas à escolha dos seus
115
governantes, pois se exige dela uma participação
81
ativa capaz de interferir nas propostas de
seus representantes, a fim de que nelas estejam presentes as reais demandas do povo.
Assim, a democracia
82
, que antes era mais representativa, atualmente, com todos os
entraves possíveis, tende a desenvolver a sua outra dimensão que é a participativa, o que pode
contribuir para a ampliação da autonomia dos sujeitos sociais para a tomada de decisão. Nesse
sentido, o governante já não é mais apenas aquela figura que governa para o povo,
representando-o, mas aquele que é capaz de gerir os sonhos de uma nação, envolvendo-a no
processo decisório.
Em consonância com essa perspectiva cidadã é que os sujeitos menos privilegiados
lutam não pela sua integração aos valores da sociedade instituída, mas pela sua inclusão,
compreendida como um processo no qual se exige a inserção da pessoa no mercado de
trabalho, o conhecimento intelectual pertinente para que ela possa participar, decidir e intervir
no contexto social em que se encontra, percebendo-se como sujeito em condição de igualdade
perante os demais e respeitando as diferenças (SACRISTÁN, 2000).
Essa compreensão sustenta a representação social que entende os meninos em
situação de rua como sujeitos de direitos que, embora estejam em condição de desvantagem
em relação a outras crianças e adolescentes oriundos de classes sociais privilegiadas,
amparados pela lei 8.069/90(ECA), podem lutar pela sua emancipação histórica que é
resultado da co-responsabilidade da família, do Estado e da sociedade civil organizada.
Ambos são responsáveis pelo desenvolvimento integral da infância e da adolescência no país,
pois como preconiza o art. 4º do Estatuto:
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público
assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária
(ECA, 1990, p. 67).
Nesse artigo, há um aposto para destacar que a infância e juventude devem ser
tratadas como absoluta prioridade, o que significa dizer que terão primazia nas decisões
relativas à elaboração e implementação de políticas sociais públicas, nos atendimentos em
81
Compartilha-se com Luck (2000) no sentido de que se entende a participação como uma articulação sinérgica
de força dos sujeitos sociais que tendem a intervir de forma intencional, processual e competente na dinâmica
social, organizando-se politicamente para transformá-la.
82
Conceitos como democracia, participação e autonomia foram trabalhados na disciplina Formação de
educadores: formação de professores e gestão, ministrada pela professora Regina Lúcia Giffoni Luz de Brito,
tendo como uma das fundamentações teóricas a sua tese de doutoramento denominada Escola, Cultura e Clima:
Ambigüidades para a Administração Escolar, defendida na PUC/SP em 1998.
116
qualquer estabelecimento público e na destinação de verbas para atender as suas necessidades
básicas.
Esse entendimento é compartilhado pelos sujeitos dessa investigação, no entanto
eles destacam também alguns elementos obstaculizadores da proposta preconizada pelo ECA,
como a ausência de políticas públicas voltadas às demandas da criança e do adolescente, a
pouca articulação da sociedade civil, do município e do Estado na implementação eficiente e
eficaz de ações que garantam a efetivação dos direitos da criança e do adolescente e a
dificuldade de articulação entre as instituições de atendimento.
Ciente dos desafios apresentados, parece que alguns educadores tendem a conceber a
cidadania como algo muito distante do seu cotidiano, o que pode acarretar uma certa
descrença sua na possibilidade de lutar pela garantia dos direitos da infância e da
adolescência, conforme comprova o educador F:
A nossa finalidade mesmo é garantir os direitos e aí a gente vai buscando várias
alternativas. Emancipar o próprio menino, que ele tem que ser também sujeitos de
direitos pra conquistar o seu espaço (...) mostrar ele realmente como protagonista e
que ele lute. Mas não dá as condições. Você só diz, mas não dá as condições. É
bonita esta fala, mas...
Outro educador dizia, nas sessões de Grupo Focal, que diante do aumento gradual
de crianças e adolescentes em situação de rua, ele inicialmente se angustiava bastante, porém
“hoje eu me angustio bem menos (...), pois existe uma fábrica de fazer menino (...) porque
você tira um e vem outro em seu lugar” (educador-D).
Ainda um terceiro educador relata que diante das dificuldades enfrentadas na rua
com a criança e o adolescente, ele se sente impotente e frustrado pelo fato de não perceber um
conjunto de ações articuladas que deveriam servir de suporte para o êxito do seu trabalho:
“Às vezes, eu fico assim arrasada, sabe? Minha auto-estima fica lá embaixo, porque
eu digo:- meu Deus, a gente poderia fazer melhor pra eles e a gente não consegue...”
(educador-E).
Pelos discursos acima, percebe-se que o educador demonstra os seus investimentos
afetivos em relação aos educandos, comprometendo-se com eles a ponto de se sentirem
frustrados quando os resultados esperados não correspondem as suas expectativas e, às vezes,
desanimados pelo fato de perceberem que se encontram praticamente sem o apoio de grande
parte da sociedade que, ao discriminar os meninos, envolve-os também nesse processo:
117
“A gente leva porrada junto com o menino. Às vezes porrada psicológica que é a
pior:- vocês estão defendendo marginal (...). Vocês estão do lado dele. Isso é uma porrada
psicológica”(educador-C).
Entende-se, por meio da fala acima, que a violência na rua vivida pelos meninos, às
vezes, é extensiva ao educador que sofre dois tipos de “porrada” (violência), uma física e
outra psicológica, entendida esta última como uma postura inóspita de grande parte dos
sujeitos sociais, que expressa um sentimento de descrédito em relação não só àqueles menos
privilegiados como também aos que acreditam e lutam por eles.
Desvalorizados como profissionais pela maioria da sociedade e convivendo
diariamente com diversos tipos de violência na rua, parece que alguns participantes da
pesquisa tendem a compreender a cidadania não como um processo pelo qual os sujeitos
sociais lutam cotidianamente para a efetivação dos seus direitos, mas como algo longínquo
que é possível ser alcançado, porém diante dos problemas sentem-se impotentes a ponto de
pensar em desistir.
Compreende-se que o desânimo explicitado em alguns momentos pelo educador
sinaliza os vários elementos obstaculizadores da sua prática educativa. Dentre os já
mencionados, acrescentam-se mais três: o entrave na articulação com outros sujeitos sociais
como policiais, comerciantes e populares, que geralmente desconhecem o trabalho de rua, a
dificuldade em manter o equilíbrio emocional diante de situações desumanizantes vividas
pelos educandos
83
e um certo constrangimento ao ver o retorno do educando ao espaço rua
depois de um longo trabalho de conquista.
Todavia, mesmo diante desses desafios, os educadores sociais não se limitam ao que
Jodelet (2005) denomina submissão silenciosa, entendida como um tipo de postura assumida
por alguns sujeitos sociais que, sem protesto, relativamente aceitam o que é determinado por
outrem. Ao contrário, o que se percebe é uma intensa luta na qual não se pode perder a
capacidade de esperançar, compreendida como um sonho possível que não é ponto de
chegada, mas o motor que conduz ao desejado, a tal ponto que, lá chegando, deseja-se mais.
(FREIRE, 1992).
83
Alguns educadores vivem um intenso conflito emocional quando percebem que muitos educandos querem sair
das ruas, porém faltam vagas nas instituições de atendimento, o que contribui para que permaneçam no espaço
rua. Nesse caso e quando os educandos estão ameaçados de morte pelos traficantes, muitos educadores os levam
para a sua casa como forma de protegê-los, mesmo colocando em risco a vida da sua família.
118
Parece que com base nessa utopia que não é ilusão, mas superação desta, é que os
sujeitos da pesquisa lutam de acordo com o ECA (1990) de tal forma que, às vezes, colocam a
própria vida em risco, como no caso do educador D que diz:
A gente usa a arma que tem. Quais são as armas? O ECA, o próprio ECA. Já
aconteceu de estar no terminal conversando com o adolescente e o guarda chegar
com o cassetete e tentar agredir o menino. Aí o que foi que eu fiz? Me coloquei na
frente(...) e falei o artigo do ECA, falei tudo. Ele baixou a bola (...). Ele [o guarda]
foi notificado e veio falar comigo. Eu disse: - Estamos para garantir os direitos dos
meninos e o cumprimento dos deveres também. Não passar a mão na cabeça do
menino”.
Entende-se que mesmo os educadores identificando os obstáculos que perpassam a
sua prática educativa na rua compreendem o ECA como um instrumento legal (arma) de
garantia dos direitos não só dos que se encontram na rua, mas de todas as crianças e
adolescentes.
Em conformidade com o exposto, pode-se dizer, então, que o Estatuto em 1990
inaugurou outro olhar acerca da criança e do adolescente, concebendo-os como sujeitos de
direitos e não mais como menores vítimas ou responsáveis pelos problemas sociais (FROTA,
2005).
Essa concepção sustenta-se numa nova representação que tem como núcleo central a
criança e o adolescente como cidadãos que tecem e reinventam uma nova forma de ser na
sociedade, tendo como base dois princípios. O primeiro deles é o da igualdade, no qual todas
as crianças são tidas como sujeitos de direitos humanos, civis e sociais e o segundo é o do
respeito às diferenças, pelo qual são concebidas como diferentes, porque se encontram em
condição peculiar de desenvolvimento, mas não inferiores em relação aos adultos
84
.
De acordo com essa ótica, as práticas sociais não são mais aquelas alicerçadas na
repressão e no confinamento peculiares à política menorista, mas outras que estimulam as
potencialidades da pessoa em processo de desenvolvimento para que ela atue criticamente no
seu convívio social.
Para Nunes (2005), o ECA contrapõe-se ao ciclo da apreensão, triagem e
confinamento fundamentado na Doutrina da situação irregular e estabelece dois tipos de
medidas. A primeira delas é a denominada de proteção voltada para as crianças e adolescentes
que correm risco ou já tiveram os seus direitos violados, devido à omissão ou à ação da
84
Esse pensamento lembra o filósofo Rousseau (1999) no seu trabalho intitulado Emílio ou da Educação em que
relata que o fato de a criança ser diferente do adulto não significa que ela seja inferior. Entende-se que o
pensador foi um dos primeiros a destacar e demonstrar a importância de se respeitar cada fase de
desenvolvimento humano, principalmente a infância e a adolescência.
119
sociedade, do Estado ou dos pais ou responsáveis. A segunda é intitulada de socioeducativa,
destinada àqueles que já cometeram atos infracionais. Tais medidas visam substituir as penas
aplicadas de acordo com o Código de 1979 por práticas educativas em meio aberto,
envolvendo a participação dos familiares, da sociedade e do Estado.
Com tal proposta o que se pretende de fato é substituir o isolamento como forma de
punição por medidas educativas que variam de acordo com o tipo de ato infracional cometido.
Assim sendo, as medidas aplicadas geralmente pelo juiz da Vara da Infância e da
Adolescência podem ser: advertência, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida,
semiliberdade e, como último recurso, internamento em instituição educativa que deve
respeitar os princípios de brevidade e excepcionalidade
85
.
Todavia, mesmo com todos os pontos que sinalizam os avanços no Estatuto como a
universalização dos direitos da criança e do adolescente, a concepção de que eles são sujeitos
de direitos, a punição dos sujeitos que desrespeitam os seus direitos, a mudança da prática
corretiva à educativa
86
e a participação co-responsável da tríade família-sociedade-Estado,
para garantir o desenvolvimento integral da infância e da juventude, o que se percebe é que
existem fatores que dificultam a efetivação dessas intencionalidades, como já explicitados
pelos educadores participantes desta investigação.
Além dos citados, outro fator que deve ser mencionado é a política neoliberal
implantada no Brasil nos anos 90, defensora da privatização, que mantém o Estado
subserviente às demandas do mercado, o que ocasionou tanto a redução dos serviços públicos
como também dos direitos sociais e dos investimentos em políticas públicas que pudessem
garantir a materialização dos direitos da infância e da juventude no país.
Criticando essa realidade e compartilhando com Nunes (2005), entende-se que o
ECA, de acordo com o contexto acima, é portador de uma modernização conservadora,
porque, ao mesmo tempo em que reconhece a criança e o adolescente como cidadãos em
85
Esses princípios indicam que a internação deve ser vista como a última das medidas socioeducativas a ser
adotada e que deve ser de caráter provisório não ultrapassando três anos. Apesar das críticas direcionadas ao
tempo de permanência do infrator na instituição de atendimento, o que se percebe é que os legisladores não o
ampliaram devido a terem como base um terceiro princípio que é a condição peculiar de desenvolvimento da
criança e do adolescente, o que reforça uma crença na sua capacidade de superar os problemas enfrentados por
ele (ECA, 1990).
86
Quando se diz que o Estatuto defende um enfoque educativo, consideram-se também os elementos coercitivos
explicitados, por exemplo, nas medidas socioeducativas quando o juiz determina para o adolescente autor de um
ato infracional que ele deve cumprir uma determinada medida. Porém, essa decisão, embora coercitiva, deve ter
um cunho educativo na medida em que o jovem deve aprender por meio dela a exercer a sua cidadania. Sobre
essa questão, pesquisar em Volpi (2002).
120
desenvolvimento, esbarra com a ausência de condições socioeconômicas para implementação
dos seus direitos que devem ser traduzidos em políticas públicas.
Como resultado desse avanço/retrocesso, o que se vê em pleno século XXI é a
permanência de mentalidades conservadoras que ainda concebem a infância e a adolescência
das classes menos favorecidas como negação de potencialidades, sementes doentes e
incapazes, ou revoltosos e perigosos para a sociedade instituída. Esses olhares estereotipados
entrecruzam-se, debatem-se na arena social com o outro que se apóia na concepção da criança
como sujeito de direitos.
É no bailar e no confronto dessas representações que os sujeitos sociais,
principalmente os educadores, olham para o menino em situação de rua e dizem: - Ele é
vítima. Outros, desconfiados, expressam:- Cuidado, são perigosos. Outros falam: - São
sujeitos de direitos que, embora expressem o ápice da exclusão social, devem lutar com outros
sujeitos co-responsáveis para se fazer de fato cidadãos. Outros ainda, timidamente dizem: -
Eles superam ou podem superar. Se tiverem oportunidades, transcendem.
Tendo apresentado tal representação, analisa-se a última delas.
121
5.4 Da representação social sobre a criança e o adolescente em situação de rua como
sujeitos imanentes e transcendentes
A penúltima representação enfatiza os direitos da criança e do adolescente, exigindo
legalmente a participação co-responsável da tríade família-sociedade civil e Estado. Vários
trabalhos sobre a infância e a adolescência em situação de rua, que datam dos anos 90 até o
momento atual, destacam-nas como cidadãs, porém ainda enfatizam muito as suas
dificuldades como o uso indevido de drogas, a violência doméstica, a prostituição, o roubo, o
furto e outros.
Compreende-se que a discussão sobre o conjunto de entraves enfrentados pelos que
estão na rua faz-se necessária para que a sociedade perceba esses sujeitos e se comprometa em
prol da valorização deles, porém como promovê-los quando se ressaltam de forma demasiada
os seus problemas? Por que será que, ao falar deles, enfatizam-se os obstáculos e raríssimas
vezes demonstram-se na literatura as suas conquistas, a sua luta, a sua resistência de
mandacuru? Como empoderar um sujeito, envolvendo-o no processo quando se desconhece
ou pouco se explicita o poder que ele tem?
É notório que os sujeitos que estão na rua possuem as suas dificuldades e
representam o ápice do descaso social, mas eles também são portadores de sonhos, saberes
idéias e valores desconsiderados por grande parte da sociedade. Na rua existe a miséria e,
paradoxalmente, o embrião, o germe da sua superação presente em cada sujeito que lá se
encontra.
Assim sendo, a prática educativa que enfatiza as carências e menospreza o embrião
de potencialidades de cada educando em situação de rua corre o risco de fracassar, pois,
focalizando o seu não-saber, esquece ou menos considera o que eles já sabem.
Os sujeitos sociais no entendimento de Moscovici(2003) possuem no seu universo
mental saberes armazenados e ressignificados na trajetória de vida. Assim, a assimilação de
novos conhecimentos pressupõe a valorização dos já existentes, porque a construção de um
novo esquema mental dá-se com base no anterior.
Desconhecer esse processo é, de certa forma, violentar o universo mental dos
aprendentes em situação de rua. Parece que a desconsideração dos seus saberes reflete a
posição de toda uma tradição “científica” que menospreza e desqualifica o conhecimento
popular. Para Guareschi(2006) parafraseando Moscovici(1998), os defensores dessa tradição
122
posicionam-se de duas formas: primeiro, acreditam que a ciência deva purificar o
conhecimento espontâneo a ponto de substituí-lo; segundo, que o conhecimento científico
iluminará os sujeitos a ponto de dissipar a ignorância do conhecimento não- científico por
meio da educação e da comunicação.
Como conseqüências dessa postura, consolida-se a idéia de que o pensamento
popular é errôneo e perigoso, porque deforma o outro tido como rigoroso e elaborado, há o
abandono dos saberes dos grupos menos privilegiados e, em caso de extrema violência o
epistemicídio, entendido como o soterramento dos conhecimentos, dos sonhos e das idéias de
um determinado grupo social.
Partindo do exposto, questiona-se: ao perceber os educandos em situação de rua
como carentes que possuem valores distorcidos, cheios de mazelas e desprovidos de saberes,
não estariam os sujeitos sociais alicerçados nessa perspectiva cientificista que despreza os
saberes dos menos privilegiados? Será que, ao focalizarem as carências, não estariam
soterrando as suas potencialidades?
Considerando as questões acima como instigadoras do processo reflexivo, discute-se
essa última representação, que emergiu no momento em que se debatia sobre a definição da
criança e do adolescente em situação de rua. Como mencionado na metodologia deste
trabalho, um dos participantes da pesquisa é um ex-menino em situação de rua que, na
primeira sessão do Grupo Focal, interrompeu a fala de um dos participantes e fez a seguinte
observação, seguida de uma pergunta: “ Eu sinto falta(...) a gente sempre fala dos meninos
que foram pra rua, dos que vivem nas drogas e, às vezes, eu sinto falta dessa galera que
venceu. Onde está essa galera?”
A questão levantada pelo educador silenciou o grupo por alguns instantes ao mesmo
tempo em que possibilitou a emergência de alguns exemplos de superação dos que se
encontram/encontravam na rua. Os participantes olharam entre si e ficaram como se tivessem
sido pegos de surpresa e, em seguida, irrompeu o silêncio:
“ É verdade. Eu não tinha pensado nisso(...)o que mais me emocionou uma vez, né?
Foi eu almoçar na casa de uma amiga e lá encontrar com uma nenina que morava
na rua. Na hora do almoço, ela queria comer a casca da melancia, por que né?
Porque dizia que na rua, ela comia (...). Hoje, ela estuda, faz balé e participa de uma
companhia de dança que já se apresentou em outros países” (educador- E).
123
Em seguida, o educador-D diz: “ tem um adolescente que eu tenho um carinho
danado por ele, sabe? Ele de 7 a 14 anos era na rua. Hoje, ele está em casa, ele está
estudando”.
O educador- F também acrescenta:
“É um outro exemplo é de um menino que estava no abrigo. A mãe dele era
alcoólatra e ele (...) tinha um grande conflito com ela e conseguiu superar as dificuldades e
hoje ele é educador. Trabalha numa casa de recuperação de usuários de drogas”.
Em seguida, ele acrescenta ainda uma imagem à criança e ao adolescente em
situação de rua: “Eu vejo ele como uma águia no sentido de a águia(...) buscar altura, ela (...)
busca vôos, tem asas, então vamos voar(...). Então, se ele tem oportunidade(...) aquela
possibilidade dele (...) se convergem(sic), ele vai mesmo diante das dificuldades dele”.
Pelos depoimentos, percebe-se que a ênfase é na capacidade de os educandos terem
superado ou que podem superar, mesmo enfrentando grandes desafios. Nessa última fala do
educador, ele reconhece o poder dos sujeitos em situação de rua e destaca que eles precisam
de oportunidades. Essa observação é interessante no sentido de que a conquista dos que vivem
na rua exige também a participação co-responsável de outros sujeitos sociais.
Dito isto, pode-se perguntar: o que diferencia então o sujeito de direito do imanente
e transcendente? Não seria o caso dessa primeira representação já incluir a segunda?
Entende-se que essas duas representações são complementares e se relacionam
dialeticamente, porém a primeira delas enfatiza o aspecto legal e pouco se discute sobre o
poder de transformação, o ir além, o vôo da águia, a ascendência do sujeito social que, mesmo
num contexto desumanizante, cria estratégias de superação. Por esse motivo, sentiu-se a
necessidade de discutir sobre o ser situado, porém para além do contexto que o limita.
Tal assunto já foi estudado por filósofos, sendo um deles Platão que, no livro VII da
sua obra A República, já retrata na alegoria da caverna duas dimensões da vida do ser humano
que são a imanência e a transcendência.
Na alegoria, Platão narra que havia sujeitos acorrentados dentro de uma caverna e
que jamais tinham saído dela. Prisioneiros, divertiam-se com as sombras que, projetadas pela
luz do sol na parede da caverna, convenciam-nos a tal ponto de pensarem que a única
realidade existente era aquela em que se encontravam. Certo dia, um dos prisioneiros rompeu
o grilhão que o prendia, escalou a parede da caverna e conseguiu sair dela, descobrindo,
124
depois de um árduo período de adaptação, outro mundo diferente do que aquele que conhecia.
Contente com a descoberta, retornou à caverna, onde os outros sujeitos ainda permaneciam
acorrentados, e procurou orientá-los no sentido de que havia outro mundo além daquele da
escuridão. Porém, os prisioneiros consideraram-no louco e o mataram, porque entendiam que
o que dizia não estava em conformidade com o mundo a que estavam habituados.
A alegoria é rica em detalhes, porém destacam-se dois deles, mais relevantes para
elucidar essa última representação. O primeiro é a imagem dos sujeitos acorrentados que
relutaram em deixar a caverna. Estes representam a imanência como uma dimensão da vida
em que o humano é situado, datado e influenciado pelo fatores sociais, políticos, econômicos
e culturais.
O segundo detalhe refere-se à imagem do sujeito que, mesmo na escuridão da
caverna, rompeu a corrente e transcendeu o lócus que o aprisionava. Ele exemplifica a
transcendência como outra dimensão, entendida como o ir além dos grilhões, dos limites que
condicionam o sujeito a viver na sua caverna existencial.
Dito isso, pode-se dizer que a alegoria possui basicamente duas dimensões. Uma
delas é a epistemológica, que se manifesta quando o sujeito sai da caverna para conhecer o
além dela, e a segunda é a política, simbolizada pelo retorno do sujeito à caverna, tendo como
fim promover a saída dos que estavam aprisonados.
Nesse sentido, entende-se que Platão já explicitava, de acordo com o seu contexto
histórico, a preocupação de que o conhecimento construído fora da caverna deveria estar a
serviço da transformação dela e dos sujeitos que nela se encontravam.
Todavia, parece que a alegoria acima não consegue ainda abarcar o sentido que os
sujeitos da pesquisa quiseram atribuir aos educandos em situação de rua, considerando-os
como águias.
Um dos motivos para tal afirmação é que a metáfora platônica, com toda a sua
riqueza de detalhes apresenta alguns aspectos desafiadores para se pensar a transcendência no
contexto atual, já que ela dá a entender que a superação dos acorrentados depende apenas de
um sujeito que retorna para libertá-los. Por outro lado, parece que a alegoria sinaliza a
existência de uma possível dicotomia entre o iluminado e os que viviam nas trevas, sendo o
primeiro a condição de possibilidade de iluminação dos demais. E outro aspecto desafiador
diz respeito à transcendência, que tende a ser uma conquista individual, na medida em que os
prisioneiros não participam do processo de liberdade daquele que saiu da caverna.
125
Por essas razões, compreende-se que o ir além entendido pelos participantes da
investigação diferencia-se do exposto, porque exige a participação dos sujeitos sociais para
garantir as possíveis condições para o transcender daqueles que se encontram na rua.
Feita tal consideração, percebe-se que, numa perspectiva mais atual, a trancendência
é entendida como a capacidade humana de racionalmente ir além dos condicionamentos
sociais, históricos e culturais. Assim, o ser humano como filho do seu tempo histórico é visto
como o único dos seres que, mesmo condicionado, é capaz de questionar o seu próprio
condicionamento, transcendendo-o.
Em conformidade com esse entendimento, Vaz (1992, p.99) afirma que:
[...]a experiência dos limites, da contigência e do perene fluir (...) constitui como tal
na medida em que esse horizonte e, nele as contingências desse viver e os limites
desse ver são transgredidos(...) na direção da misteriosa e iluminada profundidade
do ser que se estende para além do precário estar, viver ou ver nos limites do mundo
e que é , enquanto tal propriamente transcendente
.
Compartilhando com o autor, Oliveira(2001, p.9) entende a transcendência como a
capacidade de o humano problematizar o seu cotidiano a ponto de denunciar o que é e
anunciar o que deve ser. Nesse sentido, ela possibilita tanto a leitura crítica da realidade como
também a sua transformação.
O ser humano é o ser que pode levantar a questão da validade de sua práxis, o que
significa transcender a facticidade na direção da tematização da esfera normativa, a
qual lhe abre a possibilidade de afirmar que o que é não deveria ser, e que algo que
ainda não é deve ser. É isso precisamente que manifesta o caráter paradoxal de nosso
ser: sempre determinado e sempre para além de qualquer determinação, pois sempre
capaz de levantar a questão da validade de qualquer determinação e assim de iniciar
o processo de superação.
Tendo os dois autores como fonte de inspiração, concorda-se com eles no sentido de
que concebem o humano como um ser de possibilidades de transformação do contexto social.
Entretanto, distancia-se um pouco deles na medida em que, nesta investigação, compreende-
se a transcendência como a capacidade de os sujeitos sociais, que são feixes pulsantes de
razão-emoção, superarem de forma relativamente consciente alguns condicionamentos que os
envolvem, ressignificando o seu modo de existir.
De acordo com essa definição, entende-se que a superação(transcendência) dos
sujeitos sociais, em especial, dos que se encontram na rua exige que:
conceba-os não como vítimas (subjetividade submissa), nem como
agressores ou em vias de ser (subjetividade revoltada), mas como sujeitos de
direitos e forças instituintes que, forjadas na luta pela sobrevivência,
resistem de forma análoga ao mandacaru do sertão nordestino que, sedento
126
em continuar a vida, enfrenta a seca e, esperançoso, conserva em si as
últimas gotas d’áqua até que a chuva chegue e o realimente;
entenda-se que mesmo metaforicamente comparando-os ao mandacaru, eles
se diferenciam no sentido de que, além da resistência, muitos deles ainda se
comprometem com a luta em prol da valorização de outros sujeitos que se
encontram numa situação desfavorável;
o entendimento de que não é o fato de os mandacarus em situação de rua
serem resistentes que impedirá o comprometimento de outros sujeitos
sociais, pois se é verdade que os mandacarus vivem na seca, também o é o
fato de se desenvolverem melhor em terra fértil;
com base no exposto, o humano mandacaru seja compreendido como
mistério não no sentido de que não se possa conhecê-lo, mas no de que
quanto mais se conhece mais ainda se precisa conhecer. Assim, ele é tido
como uma fonte inesgotável de possibilidades e não pode ser reduzido a
estereótipos;
respeite o universo mental dos educandos no sentido de considerar os seus
saberes e, por meio do diálogo autêntico, acrescentar outros que sejam
relevantes tanto para ele quanto para a sociedade;
se tenha a compreensão de que uma sociedade democrática e pluralista deve
respeitar, valorizar e promover os saberes das classes populares, pois a
negação deles é, em última instância, o aniquilamento do universo mental de
um grupo social (GUARESCHI, 2006);
se compreenda que a inclusão dos aprendentes em situação de rua, caso seja
desprovida de conhecimento sistematizado, torna-se uma falácia na
sociedade da informação;
que se enfatize de forma rigorosa e amorosa a produção imaterial com os
menos privilegiados, principalmente, com aqueles que se encontram em
situação de rua, porque a sua transcendência exige a consideração da
sapiência que já possuem aliada, ao saber científico;
127
o fortalecimento de uma prática educativa que tenha como foco a produção
imaterial, a fim de tornar os sujeitos cada vez mais críticos, participativos na
sociedade;
a valorização dos profissionais em termos salariais, de reconhecimento social e
de formação continuada, entendida como aquela que é organizada de acordo
com as demandas emergidas no lócus de trabalho e que visa, em parceria
com os educadores, fortalecer a sua autonomia relativa (LUCK, 2000).
o acesso às novas tecnologias, uma vez os mandacarus de hoje não são os
mesmos da seca descrita por Rachel de Queiroz no seu livro O Quinze. Eles
são exigentes e necessitam ampliar as suas estratégias de sobrevivência.
Enfim, a transcendência é um transitar que não é por acaso, porque exige uma
intencionalidade, mesmo reconhecendo que não se tem o controle de todos os fatores
condicionantes.
A transcendência está intimamanete relacionada à imanência, sendo esta entendida
como a morada humana, como o solo no qual se constroem os valores, as crenças e os
saberes que, entrelaçados, constituem uma rede nocional e normativa dos sujeitos sociais,
possiblitando-lhes compreender relativamente o seu mundo.
Desta feita, situados e datados, os sujeitos tendem a viver de forma convencional,
porém, em conformidade com Moscovici (2003, p. 35), acredita-se que “podemos, através de
um esforço, tornar-nos conscientes do aspecto convencional da realidade e então escapar de
algumas exigências que ela impõe em nossas percepções e pensamentos”.
O escapar é o transcender, ir para além de alguns condicionamentos. É o que
demonstra um dos participantes da pesquisa, quando fala da sua motivação para trabalhar com
os educandos em situação de rua:
A minha motivação vem da minha história devido uma série de questões(...). Eu
venho de uma casa, onde a falação que eu mais escutava a meu respeito era: -Você
não é nada, você não é nada. E quando ouvia dizer que eu era alguma coisa: - Você é
doido. Então eu precisava de alguma coisa para me sentir valorizado(...) até que
chegou uma diretora(...), ela me responsabilizou das coisas e aquele líder da bagunça
mudou (educador-A).
Pelo depoimento percebe-se que o transcender do educador exigiu uma outra
presença que se tornou significativa na sua vida: a diretora. Provavelmente outras pessoas
128
participaram do seu processo de superação, mas ele destaca aquela que marcou mais a sua
trajetória.
Entende-se que, assim como o educador, as crianças e os adolescentes em situação
de rua podem também contar as suas histórias de êxito, de superação desde que as condições
já mencionadas sejam garantidas pela sociedade brasileira. Sem elas, corre-se o risco,
metaforicamente falando, dos mandacarus em situação de rua continuarem vivendo na “seca”,
sem a garantia dos seus direitos.
Transcender rima com aprender numa escola de qualidade. Transcendência rima
com consciência crítica dos sujeitos sociais, a fim de lutarem contra todos os tipos de
preconceitos. Amorosidade rima com rigorosidade (FREIRE, 2006) dos educadores no
sentido de, gradativamente, irem superando os estereótipos que ainda perpassam a sua prática
educativa, lutando coletivamente em prol da valorização profissional. Por último, a imanência
rima também com a decência ética que uma sociedade deve ter para que os seus filhos não
morem nas ruas.
129
Conclusão
O trabalho investigativo visou identificar e analisar as representações sociais mais
recorrentes do educador social sobre a criança e o adolescente em situação de rua. A intenção
é de que se possa contribuir para que os educadores continuem refletindo sobre a sua prática
educativa, tendo-a como um instrumento de promoção dos educandos em situação de rua,
concebendo-os para além dos estereótipos vítimas e agressores fossilizados historicamente.
Na Introdução deste trabalho, fez-se uma breve discussão sobre a permanência
(Parmênides) e a mudança (Heráclito) sintetizadas por Hegel (1989), e que como objetivo
demonstrar o transitar do pesquisador e a sua relação com o objeto da pesquisa. Neste
momento, retoma-se esse mesmo pensamento, todavia com um outro escopo: o de explicitar o
que, pela pesquisa, permanece como desafio e o que emerge como possibilidade de mudança
na prática educativa do educador atuante no espaço rua.
Em conformidade com o exposto, percebe-se que o primeiro aspecto que ainda
permanece é a coexistência de representações portadoras de sentidos pejorativos ( vítimas e
agressores ou em vias de serem) com as que consideram a infância e a adolescência em
situação de rua tanto como sujeitos de direitos quanto sujeitos imanentes e transcendentes.
Essas representações expressam as diversas faces (imagens) dos aprendentes em
situação de rua, manifestando a sua complexidade, o que gera dificuldades para o educador
definir a intencionalidade da sua prática educativa.
Identificou-se esse desafio na dimensão atitudinal que se refere à finalidade do
trabalho educativo. Alguns educadores não conseguiram definir o porquê do seu trabalho,
pois ficaram confusos, principalmente aqueles que atribuíram imagens como parasitas, bicho
bruto e outras aos educandos. As falas abaixo sinalizam esse momento de tensão:
Eu vejo o nosso trabalho (...) de esclarecimento do menino. Esclarecer o nosso papel
para o menino (...) eu viso buscar melhoria, a gente se apresenta pro menino, né? Eu
viso buscar melhoria pra ele. O que mais? Hum, hum (silêncio). E agora...é muito
difícil. Ajuda gente [pede ajuda ao grupo] ( educador- E).
Outro educador diz: “A coisa agora pegou. Pra que mesmo, gente, o nosso trabalho?
Nossa!” (educador-C).
130
O educador- D responde: “ A coisa maior é essa garantia de direitos (...) porque
embora a gente não vá pegar o menino e levar pro abrigo (...) mas a gente está ali nas
atividades pedagógicas com ele, ou seja, com jogos”.
Por meio dos depoimentos, pôde-se inferir que a multiplicidade de imagens dos
educandos interfere diretamente na finalidade da prática do educador de tal forma que este
tem problema para definir o seu trabalho. Por outro lado, parece que quanto mais a imagem
dos educandos foi relacionada à de animais, menos clareza o educador teve da
intencionalidade da sua prática educativa. Afinal, como planejar uma atividade para atender
educandos que metaforicamente foram relacionados à imagem de animais? Uma questão
curiosa: será que se o foco do trabalho investigativo fosse com outros tipos de crianças e
adolescentes essas imagens seriam as mesmas?
Entende-se que essa questão não pode ser entendida como forma de culpabilizar o
educador, mas ser interpretada como uma demanda emergente para a sua formação. Nesse
sentido, arrisca-se em afirmar que os entrevistados, para modificar a sua ação educativa e
superar os estereótipos que subjazem a ela, precisariam de um estudo mais aprofundado sobre
a infância e a adolescência, a fim de compreendê-las como uma construção social. Em
conformidade com tal perspectiva, essas fases da vida não podem ser compreendidas de forma
homogênea, pois apresentam diferenças significiativas e variações de acordo com o tipo de
classe social e o contexto de cada período histórico (ARIÈS, 1981).
Outro aspecto que permanece no trabalho do educador é o que foi nomeado pelo
pesquisador de dilema do herói ferido. Corforme Nóvoa (2007), o dilema é uma dúvida, uma
hesitação que o sujeito tem diante de uma tomada de decisão. É o que expressa um dos
participantes, ex- menino em situação de rua, que diz que superou um conjunto de
dificuldades. Isso faz bem para ele, porque se vê como “jovem vencedor”, porém não
consegue superar todos os desafios, como demonstra:
Como cuidar de alguém que tem (...) uma ferida aberta se tu tem outra desse tamanho
[faz o gesto mostrando o tamanho da ferida]. Tem que ter cuidado. Até que ponto tu
consegue contribuir? Porque tudo isso que falei, eu ainda vivo muito isso, essa
questão (...). Então isso é um desafio mesmo. Às vezes, você me procura. Onde é que
ele está? No banheiro, chorando. Hum, é...(emociona-se, longa pausa). É uma coisa
que você não dribla, sabe? Então pra mim é um grande desafio (educador-D).
Esse educador, no final da segunda sessão, denominou a pesquisa de capacitação,
porque disse que foi o único momento que teve para falar sobre as suas motivações, os seus
desafios e a sua concepção de criança e adolescente em situação de rua.
131
Em Fortaleza é comum tanto nas Organizações Governamentais (OGs) como nas
Organizações Não-Governamentais (ONGs) até que os sujeitos atendidos, após um longo
período de acompanhamento, tornem-se educadores. Entende-se que há vários interesses por
detrás dessa questão, porém não é o caso de discuti-los nesta pesquisa. Talvez esse fosse um
tema para outros trabalhos se aprofundarem no intuito de entender os porquês do
envolvimento dos educandos na prática educativa.
Retomando a questão, percebe-se que a passagem do educando a educador é
comemorada por outros profissionais mais experientes como uma conquista e um indicador de
êxito do seu trabalho educativo.
Entretanto, o educador iniciante vive um intenso dilema ao atuar na rua, porque
muitas vezes ele se depara com situações de extrema miséria e naquele momento não
consegue responder enquanto profissional. Parece que, quando isso acontece, há de certa
forma um desespero seu no sentido de querer ajudar o educando, mas não saber como. Assim,
na angústia, o que tende a prevalecer não é a função de educador, mas de um pai, de um
amigo ou de um irmão:
O meu sentimento é de busca, porque quando eu vejo o menino naquela situação, a
primeira vontade que dá é de aproximar. Então é um sentimento de busca mesmo,
pra ver que papel vai dar pra desenvolver: se é papel de irmão, de amigo, de
profissional (educador- A).
Observa-se que o último sujeito a ser citado pelo educador é o profissional, pois em
primeiro lugar o que se mantém é uma relação análoga à familiar. Dotta (2006), citando
Souza (1996), relata que a perda de prestígio social do professor fez com que ele buscasse
explicações na dimensão individual (na vocação, na doação e no amor incondicional) para
justificar a sua função na sociedade. Concorda-se com a autora, porém acrescenta-se outro
fator: parece que quanto menos recursos teóricos, técnicos e metodológicos os sujeitos da
pesquisa possuíam, mais entendiam a sua prática educativa como uma questão de vocação,
relacionando-a a graus de parentesco.
Esse fato torna-se presente no dilema do herói ferido que, ao ver os educandos em
situação de rua, sente o desejo de ajudá-los e, ao voltar sobre si mesmo, percebe que superou
vários desafios, no entanto sente-se incapaz de lidar com as suas dificuldades (feridas) e as
dos sujeitos da sua prática educativa.
Como já visto na última representação, a transcendência é um processo exigente no
qual o sujeito social supera de forma gradual os desafios que se apresentam na sua vida.
132
Nessa direção, entende-se que, para modificar a ação educativa do educador de tal forma que
ele aprenda a lidar com o desafio acima, faz-se necessário um acompanhamento sistemático
da instituição que contrata os ex-meninos em situação de rua, possibilitando-lhes a formação
continuada, na qual possam trocar informações com os profissionais mais experientes,
aprofundar teoricamente a discussão sobre os problemas vivenciados tanto pelas crianças e
adolescentes em situação de rua quanto pelos educadores e participar de terapia, a fim de lidar
melhor com a sua trajetória pessoal, não a confundindo com a dos aprendentes.
Outro desafio que persiste no trabalho educativo refere-se à dificuldade dos
educadores compreenderem a rua como lócus paradoxal, porque nela há de fato os diversos
tipos de violência, porém os educandos ressignificam esse espaço e constroem significados e
tipos de relações que são diferentes daquelas mantidas pelo educador.
Essa é uma das situações mais complicadas que subjazem à prática do educador,
porque a rua, como espaço diabólico, em última instância não é a rua, mas os sujeitos que
nela se encontram. A rua por si mesma não é boa nem má, mas adquiriu esse aspecto
pejorativo na sociedade capitalista que, sedenta por força de trabalho em prol da acumulação
da riqueza, diabolizou não só o ócio, mas também a rua onde as pessoas compartilhavam o
seu cotidiano (PASSETTI, 2004).
Todavia, parece que muitos dos participantes não entendem essa questão e
concebem a rua como lócus do perigo e os educandos provenientes dela como aqueles que
precisam ser “salvos” ou “curados” das impurezas que adquiriram.
Como conseqüência dessa forma de pensar, pouco se consideram os saberes dos
aprendentes. Alguns participantes afirmam que os meninos têm valores, mas inválidos para a
sociedade. Sendo assim, na tentativa de construir saberes válidos, corre-se o risco de negar
relativamente aspectos do universo mental dos educandos.
Pensando na contramão, pode-se perguntar: o que deve fazer então o educador?
Dizer que a rua é maravilhosa para os que nela se encontram? Não estaria ele, nesse caso,
validando uma situação de injustiça?
A situação é complexa e não se pretende defender a idéia de que a morada do ser
humano seja a rua. O que se enfatiza é que, por meio do diálogo, a prática educativa do
educador deve compreender e considerar o estilo de vida dos aprendentes e os seus saberes
forjados na rua, agregando outros que sejam significativos para eles e para o contexto atual.
133
Mesmo assim, reconhece-se que a tarefa não é fácil, porque os saberes acrescentados são
grávidos de intencionalidades subjacentes.
Ainda nessa direção, muitos educadores afirmaram que a criança e o adolescente em
situação de rua são elétricos, ativos e que não conseguem se concentrar nas atividades
pedagógicas. Essa é uma constatação interessante e que deve ser bem aprofundada pelos
participantes da investigação, porque a vida na rua é resultado de um longo processo de idas e
vindas do menino, marcado pelo imediatismo, pelos diversos tipos de violência (física,
psicológica, sexual, doméstica, negligência e abandono) e por constantes confrontos diários
com populares.
Em conformidade com esse contexto, o tempo, como geralmente é entendido pelo
educador, como uma forma disciplinadora e disciplinada de se organizar a atividade diária,
difere da compreensão dos educandos em situação de rua.
Para Keil e Viola (1997), o tempo deles é presenteísta na medida em que,
preocupados em adquirir as mínimas condições para sobreviver, enfatizam demasiadamente o
momento presente, preocupando-se pouco com a possibilidade de se construir um projeto de
vida.
Tal questão foi identificada por Ferreira (1979) no seu trabalho Meninos de rua:
valores e expectativas de menores marginalizados em São Paulo. Nessa obra, a autora
identifica algumas aspirações, expectativas e sonhos dos meninos em situação de rua, como:
pretendem ser profissionais da área de saúde, engenheiros, administradores de empresa e
mecânicos, querem estudar, ser ricos e conseguir um bom emprego. Todavia, mesmo
expressando tais própositos, os sujeitos em situação de rua destacam uma quase
impossibilidade de realizar os seus sonhos devido às condições subjetivas e objetivas
disponíveis na rua.
Ainda segundo Ferreira (1979), essa relativa descrença dos que vivem na rua sobre a
possibilidade de efetivação dos seus sonhos está relacionada à noção de tempo imediatista em
que o presente é entendido como plenitude de agoras que deve ser vivido intensamente,
porque, devido ao ambiente de insegurança da rua, não se sabe se é possível viver depois.
Assim sendo, há uma imposição do tempo presente de tal forma que dificulta a
construção de um olhar projetivo dos aprendentes e que poderia ser materializado num
planejamento a curto, a médio e a longo prazo, a fim de orientar as suas vidas para que
superassem a marginalização em que se encontram.
134
Esse viver presenteísta parece que contribui ainda para que os educandos em
situação de rua sejam definidos, conforme alguns sujeitos da pesquisa, como elétricos e
ativos, com dificuldades para se concentrar tanto na escola quanto nas atividades promovidas
pelos projetos sociais que os atendem.
Entende-se que tal questão torna-se desafiadora para a prática educativa do educador
atuante não só no espaço rua como também no escolar, já que ambos geralmente
desconhecem o tempo continuum dos aprendentes em situação de rua e trabalham, em grande
parte, com outro tido como disciplinado, porque cada parte do dia é programada para se
desenvolver as ações dos sujeitos sociais, e disciplinador, na medida em que as pessoas
modificam em função do tempo a sua rotina, os seus hábitos, atitudes e relacionamentos
interpessoais.
Essa acepção de tempo, que é predominante na prática dos educadores pesquisados,
parece que colide com a dos sujeitos da sua ação educativa. Esse embate pode acarretar um
conjunto de dificuldades, tais como: conflito na relação educador-educando, porque o
primeiro pode exigir uma rápida mudança de vida do aprendente que lida com outro tipo de
tempo e que, de início, não está preparado para atender a certas exigências, nem das
instituições de atendimento e nem do sistema educativo, e a baixa auto-estima do educando,
por não atender às expectativas do grupo social que o acolhe, culminando com a sua
desistência e o seu retorno às ruas.
Entende-se que essa dissonância entre o tempo instituído e o instiuinte pode
ocasionar o abandono do atendimento dos aprendentes, todavia existem outros fatores como a
desconsideração dos saberes dos educandos pela instituição de retaguarda, a inadequação da
metodologia de trabalho do educador e da sua linguagem, que não permite uma boa
comunicação com os sujeitos da prática educativa, e a proibição de forma brusca do uso de
drogas nos espaços de acolhimento.
Mesmo considerando tais fatores e outros não mencionados, destaca-se que a
questão do tempo é relevante para o estudo dos sujeitos desta investigação, para que eles
compreendam os reais motivos da inquietude e desconcentração dos educandos, respeitando a
sua individualidade no processo de superação dos desafios.
Desta feita, sugere-se então que, com base na relação dialógica, a ação educativa dos
sujeitos investigados considere os tempos do aprendente em situação de rua e o das
instituições que os acolhem. Esse é mais um dos desafios que o educador e a sua equipe de
135
trabalho, formada por profissionais de diversas áreas do conhecimento, são instigados a
superar.
Outra questão que ainda permanece no trabalho do educador, mas que pode ser
modificada, é a idéia pouco clara acerca da rualização, entendida como um longo processo
por meio do qual alguns sujeitos sociais familiarizam-se com a rua, concebendo-a tanto como
um espaço de luta pela sua sobrevivência como também de moradia.
Duas pesquisas desenvolvidas na França pelo Instituto CSA, no período de 1995 a
1997, contando com uma amostra de aproximadamente trezentos moradores de rua a cada
ano, trabalhos esses citados por Paugan (2006), demonstram que fatores como desemprego
(46%), conflito familiar (55%), desavenças com a figura paterna (29%) e dificuldade na
convivência com o cônjuge (26%) são os que mais contribuem para que os entrevistados
morem na rua.
O trabalho ainda aponta que a ruptura dos vínculos sociais desses sujeitos dá-se por
um longo período e que os seus primeiros dias na rua são marcados por tensões e conflitos
intensos, de tal forma que muitos tendem a procurar os albergues para se sentir mais seguros.
Por outro lado, os que mais tempo têm de convivência na rua são os que menos procuram os
espaços de acolhimento, o que demonstra que criaram as suas estratégias de sobrevivência a
ponto de permanecerem por um tempo maior.
Sendo assim, a relação que estes últimos mantêm com a rua torna-se diferente
daquela dos iniciantes. Para eles, a rua é o seu habitat, a sua morada carregada de
significados. É o lócus da dor, do sofrimento, da angústia e dos momentos de alegria
compartilhados com outros sujeitos que lá se encontram.
Dessa forma, a rua para os que moram nela já não é mais um espaço público como
entendido por outros sujeitos sociais. Ela é o lócus privado grávido de valores, de crenças e de
saberes e, nesse caso, a árvore, o bar, a escola, o banco da praça onde o sujeito dormiu, tudo
isso tem um sentido enorme para ele. Assim, a retirada brusca dos que se encontram em
situação de rua significa uma forma de abortar significados construídos com sacríficio na luta
pela sobrevivência.
Alguns podem indagar: então, o que fazer? Seria melhor deixá-los na rua? A
resposta é não. Mas deve-se levar em consideração que a desrualização, entendida como um
processo no qual os sujeitos deixam o espaço rua, é lenta, sistemática, gradual e exigente no
sentido de ter que lhes garantir um conjunto de condições para que consigam transcender.
136
Mesmo assim, o educador é desafiado a entender que, nessa transição, haverá conquistas
como também dificuldades no sentido de muitos dos educandos retornarem para a rua até
conseguir superar de fato os seus desafios.
É um processo que não é nada fácil, porque o retorno dos aprendentes às ruas pode
representar para o educador o insucesso da sua ação educativa. Nesse caso, cabe a ele avaliar
o seu trabalho, mas considerando também outros fatores, a fim de superar o sentimento de
culpa que geralmente perpassa a sua prática educativa.
Outra questão emergente nesta pesquisa refere-se à atração que o educando tem pela
rua, manifestada por um dos participantes nos seguintes termos: “ Existem meninos que ainda
não pegaram sabor pela rua”(educador-G), e que com estes o trabalho pedagógico torna-se
mais fácil.
O gosto é um dos fatores que contribuem para a permanência dos educandos na rua e
assunto discutido por Oliveira(1989), no seu trabalho intitulado Se essa rua fosse minha: um
estudo sobre a trajetória dos meninos de rua do Recife. A autora pontua alguns elementos
impulsionadores de crianças e jovens para o centro de Recife, como a extrema pobreza das
famílias, a morte do provedor do lar, o que faz com que os seus filhos lutem, desde cedo, para
garantir a subsistência, a ineficiência do poder estatal em assegurar as condições básicas para
o desenvolvimento da infância e da adolescência, enquanto sujeitos de direitos, o conflito
familiar e o tamanho inadequado do espaço de moradia em relação à quantidade de pessoas.
Tais fatores contribuem para que alguns educandos adquiram o sabor pelo espaço
rua, que deve ser entendido pelo educador e por outros sujeitos sociais como resultado de
uma lógica perversa do sistema capitalista que expulsa os sujeitos sociais das reais
possibilidades de vida digna, doando-lhes fatias de condições que compõem o seu cardápio
na luta cotidiana.
Nessa direção, o pensamento da autora supracitada é bastante significativo para que
se entenda o porquê da atração dos meninos pela rua, que pode significar para eles:
...o quintal inexistente, o terraço e a varanda negados, a praça não construída e as
calçadas imaginárias. Sendo assim, a área de ‘lazer’ procurada ultrapassa o seu
meio, indo além da vizinhança chegando até às ruas centrais da cidade. Esse novo
espaço conquistado é o palco de representação de novas experiências sob o estigma
da marginalização e da perseguição constante dos órgãos oficiais de controle e
repressão; é aí onde se dá o processo de aprendizagem das vicissitudes da vida com
a possibilidade de se auferir uma ‘liberdade’ negada no espaço de origem
(OLIVEIRA, 1989 p. 36).
137
Essa questão ainda é pouco discutida pelos participantes da pesquisa, que percebem
que a rua exerce forte poder sobre os sujeitos que lá se encontram, porém sentem dificuldade
para explicar os motivos desse “encantamento forçado” dos aprendentes. Sendo assim,
recomenda-se que a formação do educador reflita com base numa consistente fundamentação
teórica sobre a fascinação dos educandos pela rua, objetivando promover uma ação educativa
capaz de identificar, analisar e estabelecer estratégias de superação dos diversos fatores que
colaboram para que seres humanos habitem a rua.
Dessa forma, compreende-se que o grande desafio do educador e de toda a
sociedade é mudar o cardápio instituído dos educandos, substituindo-o por outro que lhes
garanta efetivamente os direitos preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA- 1990).
Parece que essa compreensão sobre a relação estabelecida entre o menino e a rua é
um dos aspectos de que o educador tem menos clareza, o que exigirá investimentos por parte
da instituição que o contrata, como também a sua busca incansável para fortalecer teórica e
tecnicamente a sua prática educativa, rica de saberes experienciais.
Sobre o educador social, destaca-se que, por meio da interpretação dos dados
coletados nesta pesquisa e do diálogo com o trabalho de Vangrelino (2004), denominado
Processos de formação de educadores sociais na área da infância e juventude, percebe-se
que esse profissional sofre discriminação pela maioria da população brasileira devido atuar
com as crianças e adolescentes em situação de rua. Todos os entrevistados confirmaram essa
dificuldade e outras já mencionadas, entretanto demonstraram também um intenso desejo de
continuar a luta em prol da promoção dos educandos, embora ainda tímidos no tocante à
valorização da sua profissão. Compreende-se que essa luta seja de suma importância, porque a
garantia dos direitos dos educandos não pode se contrapor à dos direitos dos educadores.
Espera-se que todos os desafios apontados tenham exemplificado a complexidade do
trabalho do educador atuante no espaço rua, entendido nesta investigação como um
profissional-cidadão crítico, reflexivo, radical e comprometido politicamente com a superação
dos fatores condicionantes que obstaculizam o desenvolvimento dos sujeitos sociais,
principalmente das crianças e dos adolescentes em situação de rua, lutando junto com eles
pela sua participação ativa na sociedade em que se encontram.
De acordo com tal entendimento, a prática educativa desse profissional exige um
conjunto de saberes, compreendidos como idéias-força de natureza teórico- técnico-científica
138
que mobilizam a ação educativa do educador, a fim de este não apenas pensar a realidade,
mas transformá-la em comunhão com outros sujeitos sociais.
Em consonância com o exposto e por meio do diálogo com os sujeitos desta
investigação, ousa-se então apontar alguns saberes que podem fundamentar a sua prática
educativa, tais como:
acreditar nas crianças e adolescentes em situação de rua como feixe de
potencialidades, não os reduzindo aos estereótipos vítimas e agressores
sociais ou em vias de ser;
promover uma ação educativa que possibilite a conscientização dos
aprendentes e de seus familiares, a fim de eles entenderem os diversos
fatores que os conduzem ao espaço rua, lutando para se tornarem cidadãos
participativos na sociedade;
trabalhar em equipe para construir de forma coletiva um novo olhar sobre a
criança e o adolescente em situação de rua, considerando-os como sujeitos
de direitos e imanentes e transcendentes;
relacionar teoria e prática para entender a realidade complexa da rua de tal
forma que se possa criar, com a participação dos educandos, possibilidades
de desrualização;
articular por meio de associações de educadores sociais com outros
profissionais atuantes em diversos espaços educativos (escolas, ONGs,
OGs e universidades) para envolvê-los na discussão sobre o
reconhecimento social do seu trabalho e da sua valorização enquanto
profissionais, superando a discriminação que sofrem na sociedade atual;
valorizar e participar ativamente da formação continuada, entendida como
aquela que não substitui e nem serve para compensar a inconsistência
teórica da formação inicial aligeirada, pois ela deve ser vista como um
processo sistemático, dinâmico e intencional que capta os desafios no lócus
de trabalho do educador, instigando-o para superá-los de forma crítica,
reflexiva e investigativa. Entende-se que essa formação visa ainda valorizar
a experiência educativa do educador para que ele fortaleça a sua identidade
profissional, envolvendo-o nos grupos de formação com outros sujeitos
sociais, como policiais, professores, conselheiros tutelares, juízes da Vara
139
da Infância e da Adolescência, profissionais da Delegacia da Criança e do
Adolescente e gestores de projetos sociais, para que todos possam
desenvolver uma ação articulada em prol da promoção, garantia e defesa
dos direitos da criança e do adolescente enquanto sujeitos cidadãos em
desenvolvimento;
articular-se em nível nacional e internacional com outros educadores
atuantes não só nos espaços extra-escolares, mas também com aqueles que
atuam no lócus escolar, objetivando compartilhar com eles as suas
experiências educativas e envolvê-los na luta pela valorização profissional,
porque ambos se encontram desvalorizados na sociedade da informação e
necessitam consolidar a sua identidade profissional. Sendo assim, entende-
se que o reconhecimento da profissão desses educadores, embora atuem
em áreas ( escolar e extra-escolar) e com aportes teóricos diferentes, exige
a parceria e não a dicotomia entre eles, já que todos devem promover a
qualidade de vida do sujeito social por meio da educação no país. Esta é
uma tarefa difícil e utópica, porém necessária para se consolidar uma rede
nacional de educadores no país
87
que se contraponha às políticas
neoliberiais enfraquecedoras dos direitos sociais;
aliar afetividade e rigorosidade na prática educativa que visa problematizar
os fatores sociais, econômicos, políticos e culturais que obstaculizam o
desenvolvimento dos sujeitos sociais, em especial, da criança e do
adolescente;
respeitar os saberes dos educandos e, pelo diálogo, acrescentar outros
conhecimentos pertinentes para a inclusão deles na sociedade atual;
87
Essa idéia já vem sendo discutida pelas instituições representativas dos profissionais da educação,
principalmente pela Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE). Todavia, o
enfoque das discussões ainda é sobre a valorização tanto da educação pública como dos profissionais que nela
atuam. Assim sendo, parece que há um silêncio nas discussões acerca da inserção de profissionais que atuam no
espaço extra-escolar: rua, penitenciária, hospitais, Movimento dos Sem-Terra e Ongs. Surge uma indagação: se
que esses movimentos que lutam contra a política neoliberal, ao enfatizar a valorização dos educadores atuantes
no espaço escolar, não fragmentam o movimento contra-hegemônico e, por isso, valida a proposta neoliberal que
se alicerça na lógica de que é preciso dividir os cidadãos para melhor dominá-los? A proposta não deveria
envolver todos os profissionais da educação tanto os que atuam na escola quanto os que atuam fora dela, a fim de
consolidar a luta em prol da valorização da vida que se dá pela educação pública de qualidade? Entende-se que
essa contra-hegemonia que deve ser tecida com pontos convergentes na arena social não é de um educador
específico, mas de todos eles que, envolvendo as famílias dos educandos e a sociedade civil, consolidam ações
estratégicas de superação das dificuldades que perpassam a política educacional do país e a ação educativa do
educador.
140
acessar as novas tecnologias para adquirir dados e informações relevantes
para uma maior consistência da prática educativa voltada à produção
imaterial.
Compreende-se que esses saberes entrelaçados podem contribuir para uma
consistente ação educativa no espaço rua, porém essa sólida formação é processual e não
depende unicamente do educador, já que exige também o compromisso da instituição que o
contrata em promover e garantir, em parceria com as universidades, tanto a formação inicial
quanto a continuada desse profissional.
Por fim, mesmo esforçando-se em dialogar com o material coletado nas sessões de
Grupo Focal, com a literatura pertinente ao assunto pesquisado e com a vivência do
pesquisador, há muitos pontos a serem discutidos e aprofundados. Humildemente se
reconhece tal limitação que será relativamente superada no decorrer da trajetória de vida que
ainda exigirá uma longa espera vigiada.
Destaca-se ainda a indignação do pesquisador que estudou as representações sociais
do educador sobre a criança e o adolescente em situação de rua. A sua revolta incontida dá-se
pelo fato de, infelizmente, existirem seres humanos morando na rua, fato que retrata uma
sociedade que não tem o mínimo de decência ética. Pela oposição à negação da vida do ser
humano, conjuga-se então:
Que eu transcenda
Que tu transcendas
Que ele transcenda
Que nós transcendamos
Que vós transcendais
Que eles transcendam.
141
REFERÊNCIAS
ABRAMOWICZ, Mere. Avaliando a avaliação da aprendizagem: um novo. São Paulo:
Lúmem, 1996.
AGUERRA do Paraguai. Disponível em: http://br.geocities.com./vinicrashbr/historia/brasil/
guerradoparaguai.htm. Acesso em: 02 nov. 2006.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda, MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução
à filosofia. 2 ed. São Paulo: Moderna, 1993.
ARDUINI, Juvenal. Antropologia: ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus,
2002.
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
ASSOCIAÇÃO DOS EDUCADORES SOCIAIS DO ESTADO DO CEARÁ-AESC.
Estatuto social da Associação dos educadores sociais do Ceará, 2004.
ASOCIACIÓN INTERNACIONAL DE EDUCADORES SOCIALES-AIEJI. Disponível em:
<
http://www.aieji.net/spanish/pages/creation.asp>. Acesso em: 27 dez. 2006.
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: EDIÇÕES 70, 2006.
BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1997.
_____________. Saber cuidar: a ética do humano-compaixão pela terra. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2001.
BRAGA, Nívea Almeida. A Experiência do Projeto Axé. In: Adolescentes e crianças no
Brasil: parias ou jovens cidadãos? Rio Grande do Sul: Gráfica Editora, 1994.
BRASIL. Estatuto da criança e do adolescente (ECA). São Paulo: Escala, 2004.
BRITO, R. L.G.L. Escola, Cultura e Clima: Ambigüidades para a Administração Escolar.
1998. Tese (Doutorado em Educação)- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 1998.
142
CANÁRIO, Rui. A Escola tem futuro? Das promessas às incertezas. Porto Alegre: Artmed,
2006.
CAPUL, Maurice; LEMAY, Michel. Da educação à intervenção social. Portugal: Porto
editora, 2003.
CARVALHO, Adalberto dias de; BAPTISTA, Isabel. Educação social: fundamentos e
estratégias. Portugal: Porto editora, 2004.
CASTRO, Silva. A carta de Pero Vaz de Caminha: o descobrimento do Brasil. Porto
Alegre: L&PM, 2003.
CENTRO DE PASTORAL POPULAR. Campanha da fraternidade-87: quem acolhe o
menor a mim acolhe. Brasília: Editora Ave Maria. 1987.
CHAMBOULEYRON, Rafael. Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista. In: PRIORE,
Mary Del (org). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 55-79.
CHAUÍ, Marilena. Brasil: O Mito fundador e sociedade autoritária. 5 ed. Editora Fundação
Perseu Abramo:São Paulo. 2004.
CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 7 ed. São Paulo: Cortez,
2005.
COMTE, Augusto. Discurso sobre o espírito positivo. São Paulo: Escala, 2005.
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB)- Pastoral do menor:
princípios, diretrizes e organização. 2005.
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB)- Pastoral do menor:
projeto político da Pastoral do Menor. 2005.
I CONGRESSO INTERNACIONAL DE PEDAGOGIA SOCIAL E SIMPÓSIO DE PÓS-
GRADUAÇÃO. Disponível em:<
http://pedagogiasocial.incubadora.fapesp.br/portal>. Acesso
em: 03 marc.2007.
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO SOCIAL DE PORTUGAL. Código
deontológico para a profissão de educador social de Portugal. Disponível em:
<
http://apes.pt.la>/ Acesso em: 02 jan.2007
143
CONSELHO Municipal de Defesa dos direitos da criança e do adolescente – COMDICA.
Diagnóstico sobre a situação das crianças e adolescentes em Fortaleza, 2004.
CONSELHO MUNICIPAL DE DEFESA DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE – COMDICA. Personagens em foco: esses meninos e meninas moradores
de rua. Fortaleza, 2001.
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO: CONSELHO PLENO. Diretrizes
Curriculares Nacionais para o curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura. Brasília,
2005.
CONSELHO NACIONAL DE EDUCADORES SOCIAIS. A profissão de educador social
em Portugal. Disponível em: <
http://apes.pt.la/> Acesso em: 02 jan. 2007
COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Por uma pedagogia da presença. Brasília. Ministério da
Ação Social: Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência, 1991.
___________________________.Aventura pedagógica: caminhos e descaminhos de uma
ação educativa. Belo Horizonte: Modus Faciendi, 1999.
___________________________. Infância, Juventude e Política Social no Brasil. In: Brasil
Criança Urgente. São Paulo: Columbus, 1989.
DOTTA, Thomas Leanete. Representações sociais do ser professor. Campinas, SP: Editora.
Alínea, 2006.
DUVEEN, Gerard. Crianças enquanto atores sociais: as Representações Sociais em
desenvolvimento. In: GUARESCHI, A. Pedrinho, SANDRA, Jovchelovitch. (orgs.) Textos
em Representações sociais. 8 ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 1995.
EQUIPE INTERINSTITUCIONAL. Relatório sobre o perfil da criança e do adolescente
morador de rua de Fortaleza. 2002.
ESTADO do Tocantins. Disponível em: <http://www.brasilrepublica.com/tocantins.htm.>.
Acesso em 04 abr. 2007.
FAGALI, Eloísa quadros; VALE, Zélia Del Rio. Psicopedagogia Institucional Aplicada: A
aprendizagem escolar dinâmica e construção na sala de aula. 8 ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
1993.
144
FARR, Robert. M. Representações sociais: Teoria e sua história. In: GUARESCHI, A.
Pedrinho, SANDRA, Jovchelovitch. (orgs.) Textos em Representações sociais. 8 ed.
Petrópolis, Rj: Vozes, 1995.
FAZENDA, Ivani C. A. Dicionário em construção: interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez,
2001.
_______________(Org). Metodologia da pesquisa educacional. 9 ed. São Paulo:Cortez,
2004.
______________ Interdisciplinaridade: qual o sentido? São Paulo: Paulus, 2003.
______________(Org) Interdisciplinaridade na formação de professores: da teoria à
prática.Canoas: Ulbra, 2006.
FELDMANN, M. G. Escola Pública: representações, desafios e perspectivas. In: ALONSO,
M. (Org). O trabalho docente: teoria e prática. São Paulo: Pioneira, 1999.
________________.Estrutura do ensino de 1º grau: a proposta e a realidade. Petrópolis:
vozes, 1984.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa.
3 ed. Curitiba: Positivo, 2004.
FERREIRA, Benedito Genésio. Um mundo “menor” no maior: um estudo do trabalho do
menor na indústria de Fortaleza. 1983. 208 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia do
desenvolvimento)- Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 1983.
FERREIRA, Rosa Maria Fisher. Meninos da rua: expectativas e valores de menores
marginalizados em são Paulo. São Paulo: Ibrex, 1979.
FREIRE, Paulo. Educadores de rua: uma abordagem crítica. 2 ed. São Paulo: Projeto:
Alternativas de Atendimento aos Meninos de Rua,1987.
____________. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
___________.Educação e mudança. 28 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2005.
___________. Pedagogia do oprimido. 32 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
145
___________. Pedagogia da esperança: um reencontro com pedagogia do oprimido. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1992.
___________. Pedagogia da tolerância. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
___________.Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. 16 ed. São Paulo: Olho
Dágua, 2006.
FROTA, Maria Monte Coelho. A invenção da infância e da adolescência. Universidade
Federal do Ceará. [s.d].
GADOTTI, Moacir. Prefácio: Pedagogia dos direitos e Pedagogia Social de Rua. In:
GRACIANI, Maria Stela Santos. Pedagogia social de rua. São Paulo: Cortez - Instituto
Paulo Freire, 2001.
GIROUX, Henry A. Cruzando as fronteiras do discurso educacional: novas políticas em
educação. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. I Fórum Nacional do Menor. Imprensa
Oficial do Estado Serviços de Artes Gráficas. São Paulo. 1966.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA-IBGE. Governo do estado
do Tocantins. Disponível em: <http: www.Brasilrepublica.com/tocantins.htm> Acesso em:
04 abr. 2007.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA-IBGE. Cidades.
Disponível em: <
http://www.ibge.gov.br-IBGE-cidades@>. Acesso em: 04 abr.2007.
IRIARTE, Alberto Pérez. Educador hoy, em Uruguay: ante la realización del Congresso de
la AIEJI em Montevideo. Disponível em:<
http://www.cfeeuy.org>.Acesso em: 17 abr. 2007.
GÓES, José Roberto de; FLORENTINO, Manolo. Crianças escravas, crianças dos escravos.
In: PRIORE, Mary Del (org). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.
p. 177- 190.
GRACIANI, Maria Stela Santos. Pedagogia social de rua. São Paulo. Cortez - Instituto
Paulo Freire, 2001.
146
GREGORI, Maria Filomena; SILVA, Cátia Aida. Meninos de rua e instituições: tramas,
disputas e desmanches. São Paulo: Contexto, 2000.
GRIZE, Jean-Blaise. Lógica natural e representações sociais. In: JODELET, Denise.
Representações Sociais: um domínio em expansão. In: JODELET, Denise. As
Representações Sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ. 2001.
GUARESCHI, A. Pedrinho, SANDRA, Jovchelovitch. (orgs.) Textos em Representações
sociais. 8 ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 1995.
______________________.Pressupostos psicossociais da exclusão: competitividade e
culpabilização. In: SAWAIA, Bader (Org.). As Artimanhas da Exclusão: Análise
psicossocial e ética da desigualdade social. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 2006.
JAPIASSÚ, Hilton. O Sonho transdisciplinar e as razões da filosofia. Rio de Janeiro:
Imago, 2006.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Introdução à História da Filosofia. São Paulo: Abril
Cultural, 1980.
_________________________. Crítica Moderna. In: SOUZA, José Cavalcante de. Os Pré-
socráticos. 4 ed. São Paulo: Nova Cultural,1989.
JODELET, Denise. Representações Sociais: um domínio em expansão. In: ______________.
As Representações Sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ. 2001.
KEIL, Ivete Manetezeder Keil; VIOLA, Sólon Annes. Ensinar e aprender: notas de um
processo de intervenção com crianças e adolescentes em situação de rua no município de
Canoas-RS. In: GONZÁLEZ, Rodrigo Stumpf; VIOLA, Eduardo Annes (orgs.). Educação e
direitos: experiências e desafios na defesa de crianças e adolescentes. Porto Alegre: Centro
La Salle de Ensino superior(CELES), 1997.
_______________.Loucuras e Representações Sociais. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.
KOSHIBA, Luiz; PEREIRA, Denise Manzi Frayse. História do Brasil. 7 ed., São Paulo:
Atual, 1996.
LEITE, Lígia Costa. Meninos de Rua: a infância excluída no Brasil. São Paulo: Atual, 2003.
147
_______________. A Razão dos Invencíveis: meninos de rua-o rompimento da ordem
(1554-1994). Rio de Janeiro: Editora UFRJ/IPUB, 1998.
LUCCHINI, Ricardo. A criança em situação de rua: uma realidade complexa. In: RIZZINI,
Ireni. Vidas nas Ruas: trajetórias inevitáveis? Rio de Janeiro: Ed. Puc - Rio; São Paulo:
Loyola, 2003.
LUCK, Heloísa. Gestão escolar e formação de gestores. Brasília: Em aberto, 2000.
LUDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. 2
reimpr.São Paulo: EPU,1986. p. 11-17.
MAIA, Maurício Holanda. “Menor carente infrator”: reflexões sobre uma conceituação
pequena pobre e violenta. 1994. 100 f. Dissertação (Mestrado em Educação)- Universidade
Federal do Ceará, Fortaleza, 1994.
MAKARENKO, Anton Semiónovitch. Poema pedagógico. 2 ed. São Paulo:
Brasiliense,1986.
MARQUES, João Benedito de Azevedo. Marginalização: menor e criminalidade. São Paulo:
McGraw-Hil do Brasil, 1976.
MAUAD, Ana Maria. A vida das crianças de elite durante o império. In: PRIORE, Mary Del
(org). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 137- 174.
MINAYO, Maria Cecília de Souza. O Conceito de Representações Sociais dentro da
sociologia clássica. In: GUARESCHI, A. Pedrinho, SANDRA, Jovchelovitch. (orgs.) Textos
em Representações sociais. 8 ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 1995.
MORE, Tomas. A Utopia. São Paulo: Martin Claret, 2005.
MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em Psicologia social. 4 ed.
Petrópolis:Rj, Vozes, 2003.
________________. Das Representações coletivas às representações sociais: elementos para
uma história. In: JODELET, Denise. As Representações Sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ.
2001.
________________. Fenômeno das Representações sociais. In: MOSCOVICI, Serge.
Representações sociais: investigações em Psicologia social. 4 ed. Petrópolis:Rj, Vozes, 2003.
148
_______________. Introdução. In: A. GUARESCHI, Pedrinho, SANDRA, Jovchelovitch.
(Orgs.) Textos em Representações sociais. 8 ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 1995.
______________. Prefácio. In: JODELET, Denise. Loucuras e Representações sociais. Rio
de Janeiro: Vozes, 2005.
MOVIMENTO NACIONAL DE MENINOS E MENINAS DE RUA. Movimento Nacional
de Meninos e Meninas de rua. Brasília, 1985.
NASCIMENTO, Maria Fajardo do. O Fazer pedagógico da Educação social. In: González,
Rodrigo Stumpf; VIOLA, Solon Eduardo Annes (orgs.). Educação e direitos: experiências e
desafios na defesa de crianças e adolescentes. Porto Alegre: Centro La Salle de Ensino
superior(CELES), 1997.
BRASIL. Novo código de Menores de 1979. São Paulo: Atlas, 1980.
NOGUEIRA, Wangrelino. Meninos de rua: a triste realidade brasileira. . In: Adolescentes e
crianças no Brasil: parias ou jovens cidadãos? Rio Grande do Sul: Gráfica Editora, 1994.
____________________. O Estatuto da Criança: conquistas e problemas conjunturais. . In:
Adolescentes e crianças no Brasil: parias ou jovens cidadãos? Rio Grande do Sul: Gráfica
Editora, 1994.
NOVAIS, Adauto. De olhos vendados. In: NOVAES, Adauto et al. O Olhar. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988.
NUNES, Deise Gonçalves. Reconhecimento da Infância no Brasil: da menoridade à
cidadania. In: VASCONCELLOS, Vera Maria Ramos de (org). Educação da Infância:
história e política. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
OLIVEIRA, Cleide de Fátima Galiza de. Se essa rua fosse minha: estudo sobre a trajetória e
vivência dos meninos de rua do Recife. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Brasília:
UNICEF, 1989.
OLIVEIRA, Manfredo. Desafios Éticos da Globalização. São Paulo: Paulinas, 2001.
OLIVEIRA, Walter Ferreira de. Educação social de rua: as bases políticas pedagógicas para
uma educação popular. Porto alegre: Artmed, 2004.
149
OSTERNE, Maria do socorro Ferreira. Meninos ocupados “vadiagem” reprimida. A higiene,
a educação e o trabalho como estratégia disciplinar. In:____________.Menino Trabalhador:
identidade no confronto Família –rua. Fortaleza: [s.n),1999.
PARDAL, Maria Vittoria de Carvalho. O Cuidado às crianças pequenas no Brasil escravista.
In: VASCONCELLOS, Vera Maria de (org.). Educação da infância: história e política. Rio
de Janeiro: DP&A, 2005.
PASSETI, Edson. Crianças carentes e políticas públicas. In: PRIORE, Mary Del (org).
História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2002.
PAUGAM, Serge. O enfraquecimento e a ruptura dos vínculos sociais: uma dimensão
essencial do processo de desqualificação. In: SAWAIA, Bader (org.). As Artimanhas da
Exclusão: Análise psicossocial e ética da desigualdade social. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 2006.
PINHEIRO, Ângela. Criança e Adolescente no Brasil: porque o abismo entre a lei e a
realidade. Fortaleza: Editora UFC, 2006.
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2004.
PONTE, Rogério Sebastião. Fortaleza Belle Époque: reformas urbanas e controle social
1860-1930. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha/ multigraf Editora, 1993.
PRIORE, Mary Del. O cotidiano da criança livre no Brasil entre a colônia e o império. In:
________________.História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto,2002. p. 84-105.
RAMOS, Fábio Pestana. A História trágico-marítima das crianças nas embarcações
portuguesas do século XVI. In: PRIORE, Mary Del (org). História das Crianças no Brasil.
São Paulo: Contexto,2002. p. 19-54.
RIBEIRO, Maria Luisa Santos. História da educação brasileira: a organização escolar. 19
ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2003.
RIBEIRO, Marlene. Exclusão e educação social: conceitos em superfície e fundo.
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 02 abr. 2007.
RIOS, Dermival Ribeiro. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Difusão
Cultural do Livro, 2000.
RIZZINI, Ireni. O Século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no
150
Brasil. Rio de Janeiro: USU, 1997.
____________e BUTLER, Udi Mandel. Crianças e Adolescentes que vivem e trabalham nas
ruas revisitando a literatura. In: RIZZINI, Ireni. Vidas nas Ruas: trajetórias inevitáveis? Rio
de Janeiro: Ed. Puc - Rio; São Paulo: Loyola, 2003.
____________.IRMA, Rizzini. A Institucionalização de Crianças no Brasil: Percurso
histórico e desafios do presente. Rio de Janeiro: Ed. PUC - Rio, 2004.
____________(coord.) Vidas nas ruas: trajetórias inevitáveis? Rio de Janeiro: Ed. Puc - Rio;
São Paulo: Loyola, 2003.
ROMANS, Mercê; PETRUS, Antoni; TRILLA, Jaume. Profissão: Educador Social. Porto
Alegre: ARTMED, 2003.
ROTGER, Antônio Petrus. Concepto de la educación social. In: PETRUS, Antônio
(coordinador). Pedagogía social. Barcelona: Ariel, 2005.
ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio ou da Educação. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
SÁ, Celso Pereira. Núcleo Central das representações sociais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
SACRISTÁN, Gimeno. Que cultura considerar na educação e para quem? In: ___________.
Educar e conviver na cultura global: as exigências da cidadania. Porto Alegre: Artmed,
2002.
_________________A estrutura da prática educativa: chaves do profissionalismo docente. In:
_________________. Poderes instáveis em educação. Porto Alegre: Artes Médicas Sul,
1999.
SANTOS, Sueli de Paula. Educadores sociais, adolescentes em situação de rua e Políticas
públicas: a construção do sentido e do significado a partir da dialética exclusão/inclusão.
2004. 137 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia social)- Programa de Pós-graduação em
Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP, São Paulo, 2004.
SANTOS, Marco Antônio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In:
PRIORE, Maria Del (org). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p
210- 229.
151
SCARANO, Julita. Criança esquecida das Minas Gerais. In: PRIORE, Maria Del (org).
História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 107-136
SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. 38 ed.Campinas, SP: Autores Associados, 2006.
SAWAIA, Bader Burihan. O Sofrimento ético-político como categoria de análise da Dialética
exclusão/inclusão. In: ___________(Org.). As Artimanhas da Exclusão: Análise
psicossocial e ética da desigualdade social. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 2006.
SARTRE, Jean-Paul. O Humanismo é um Existencialismo. 3 ed. São Paulo: Nova Cultural,
1987.
SEMIN, Gun R. Protótipos e Representações Sociais. In: JODELET, Denise. As
Representações Sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ. 2001.
SEVERINO, Antônio Joaquim. Filosofia. São Paulo: Cortez, 1994.
SILVA, Antônio Ozaí da. Menin@s de rua: um olhar político-pedagógico crítico.
Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br/031/31res rossato. htm>. Acesso em:
03 fev.2007.
SILVA, Mário Altenfelder. Conferência proferida pelo Dr.Mário Altenfelder Silva. In: I
Fórum Nacional do Menor. Imprensa Oficial do Estado Serviços de Artes Gráficas. São
Paulo. 1966.
SILVA, Roberto da. Os filhos do governo: a formação da identidade criminosa em crianças
órfãs e abandonadas. 2 ed. São Paulo: Ática, 1988.
SOCIAL Pedagogy. Disponível em: <
http://www.indef.org/index.htm> Acesso em: 02
marc. 2007.
SINPRO SP - Sindicato dos professores de São Paulo. NÓVOA, Antônio. Desafios do
trabalho do professor no mundo contemporâneo. São Paulo, 2007.
SOUZA, Josinete Lopes de. Da infância “desvalida” à infância “delinqüente”: Fortaleza
(1865-1928). 1999.210 f. Dissertação (Mestrado em História)- Pontifica Universidade
Católica de São Paulo-PUC/SP, São Paulo, 1999.
SOUSA NETO, João Clemente de. Crianças e Adolescentes Abandonados: Estratégias de
sobrevivência. 2 ed. São Paulo: Arte Impressa, 2002.
152
___________________________.A trajetória do menor a cidadão: filantropia,
municipalização, políticas sociais. São Paulo: Arte imprensa, 2003.
SPINK, Mary Jane. Desvendando as teorias implícitas: uma metodologia de análise das
representações sociais. In: A.GUARESCHI, Pedrinho, SANDRA, Jovchelovitch. (Orgs.)
Textos em Representações sociais. 8 ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 1995.
TRILLA, Jaume. Os âmbitos da Educação social. In: Profissão Educador Social. Porto
Alegre: Artmed, 2003.
UNICEF. Tendências atuais da família da criança e do adolescente em situação de risco
em Fortaleza, 1998.
UNICEF. Relatório da situação da Infância e Adolescência Brasileiras: Diversidade e
equidade pela garantia dos direitos de cada Criança e Adolescente. São Paulo: [s.n], 2003.
UNIVERSIDADE DE DEUSTO. Educación social. Disponível em:
<
http://nuevosestudiantes.deusto.es/servlet/Satellite/Estudio/>. Acesso em: 16 abr.2007.
UNIVERSIDADE DE DEUSTO. Aparición de la educación social. Disponível em: <http:
//www.deusto.es/estudios/> Acesso em: 10 de dez. 2006.
UNIVERSIDADE PORTUCALENSE. Licenciatura em Educação social. Disponível em:
<http: //www.uportu.pt/site-scripts/> Acesso em 03 fev. 2007.
VANGRELINO, Ana Cristina dos Santos. Processo de Formação de Educadores Sociais
na área da Infância e Juventude. 2004. 149 f. Dissertação (Mestrado em Educação)-Centro
de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, 2004.
VAZ, Henrique C.L. Antropologia Filosófica II. São Paulo: Loyola, 1992.
VENÂNCIO, Renato Pinto. Os aprendizes da guerra. In: PRIORE, Mary Del (org). História
das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 192- 208.
VOLPI, Mário (org.). Adolescente e ato infracional. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2002.
WEBER, Marx. Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Companhia das
letras, 2004.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo