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RIVIANE MEDINO DA ROCHA
A MÁSCARA IRÔNICA DA PERSONAGEM DE ESTORVO DE CHICO BUARQUE
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
PUC-SP
SÃO PAULO
2007
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RIVIANE MEDINO DA ROCHA
Dissertação apresentada como exigência parcial
para obtenção do grau de Mestre em Literatura e
Crítica Literária à Comissão Julgadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
sob a orientação da Profª. Dra. Maria José Gordo
Palo.
São Paulo
2007
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Banca Examinadora:
__________________________________________________
__________________________________________________
__________________________________________________
Dedico à minha avó Julieta Bezerra, ao meu
tio Gilmar Bezerra, à minha tia Regina
Moreira, à minha tia Gilvanete Bezerra e ao
meu pai Gilson Bezerra.
Agradecimentos
Agradeço aos meus familiares pelo apoio.
Ao amigo e conselheiro Sérgio Annibal.
Aos meus amigos pela paciência: Rosângela Neves, Caroline Soares Corrêa,
Cleo Cardozo, Henriqueta, Yedda Blanco e Vladimir Luiz.
Aos meus professores e em especial à minha orientadora Profª Dra. Maria
José Gordo Palo.
“Talvez o mundo não seja pequeno, nem a
vida um fato consumado”.
(Chico Buarque)
RESUMO
O objetivo desta dissertação é a leitura da personagem em Estorvo, de Chico Buarque,
romance contemporâneo. Em forma de enredo, a personagem é resultado da mixagem autor-
narrador, vivendo o conflito da fragmentação de sua individualidade.
Teorias fundamentais foram suportes da revisão do conceito do processo narrativo e de
personagem: Mikhail Bakhtin, Walter Benjamin, além do conceito de imitação de Aristóteles,
Antonio Candido, Brait, Schwartz, Muecke, Costa Pinto, Massi e outros mais. Fez-se
necessário, por uma metodologia comparativa, aproximar algumas características de duas
obras modernas de Franz Kafka Metamorfose de 1915 e O Processo de 1925, de modo a
dar suporte à caracterização da personagem contemporânea de Estorvo.
O primeiro capítulo intitulado A personagem-narrador em figuração tem por foco a
personagem no texto romanesco e seus elementos essenciais narrativos. Discutimos a
tomada de consciência de sua individualidade inacabada, vivendo o dilema da diluição de
suas capacidades, por ela própria desconhecidas.
O segundo capítulo intitulado O Intertexto em Estorvo, traçamos alguns paralelos entre
as personagens, kafkiana e buarqueana, com o objetivo de criar uma intertextualidade
metodológica de definição das suas características psicológicas e metafóricas. Chegamos a
descrever algumas divergências e convergências que nos auxiliaram a melhor caracterizar os
pontos de vista do narrador-personagem em fusão de Eus fragmentados pelo próprio relato
em Estorvo, em duplicidade funcional: em tempo e espaço.
O terceiro capítulo, com tulo O Cronotopo em Estorvo, faz uso do conceito de
cronotopo psicológico e metafórico sob a ação transformadora da ironia, e a contaminação da
personagem pela performance ambígua de narrador em primeira pessoa. Característica essa
que dá a desfiguração à personagem irônica, entre duas consciências: a individual e a pública.
PALAVRAS-CHAVE: Personagem fragmentada, ironia; alegoria; Estorvo; Chico Buarque.
ABSTRACT
The objective of this dissertation is the understanding of the character in Estorvo, by
Chico Buarque, a contemporary novel. Considering the plot form, the character is resulted by
the mixture of author-narrator, living the conflict of the fragmentation of his individuality. Basic
theories had been supports for the revision of the narrative and character process: Mikhail
Bakhtin, Walter Benjamin, besides the concept of imitation of Aristoteles, Antonio Candido,
Brait, Schwartz, Muecke, Coast Young chicken, Massi and others. It also was necessary, by a
comparative methodology, to approach some characteristics of two modern workmanships of
Franz Kafka - Metamorphosis of 1915 and the Process of 1925, in order to give support to the
characterization of the contemporary character in Estorvo.
The first chapter “A personagem-narrador em figuração focuses the character in the
novel text and the essential narrative elements. It is discussed the taking of conscience of his
unfinished individuality, living the dilemma of the dilution of his capacities, unknown to himself.
The second chapter O Intertexto em Estorvo”, points out some parallels between the
characters, kafkiana and buarquiana, with the objective to create a methodological
intertextuality of definition about his psychological and metaphorical characteristics. It is
described some divergences and convergences that helps to characterize the points of view of
the narrator-character in fusing of fragment selves broken up by the proper story in Estorvo, in
functional duplicity: in time and space.
The third chapter, O Cronotopo em Estorvo”, uses the psychological and metaphorical
concept of chronoscope under the transforming action of the irony, and the contamination of
the character by the ambiguous performance of the narrator in first person which gives the
disfigurement to the ironic character, between two consciences: individual and public.
KEY WORDS: fragment character, irony, allegory, Estorvo, Chico Buarque.
SUMÁRIO
Introdução...........................................................................................................................10
Capítulo 1 - A personagem-narrador e sua figuração
1.1 – O herói contemporâneo em Estorvo.......................................................14
1.2 – A máscara alegórica como ironia............................................................38
Capítulo 2 – O intertexto em Estorvo
2. 1 – Estorvo e Kafka........................................................................................49
2. 2 – O herói problemático...............................................................................55
Capítulo 3 – O cronotopo em Estorvo
3.1 – O cronotopo: Bakhtin e Genette .............................................................60
3.2 – O cronotopo interno em Estorvo.............................................................62
3.3 – O cronotopo metafórico...........................................................................64
Considerações Finais........................................................................................................71
Referências Bibliográficas................................................................................................74
10
INTRODUÇÃO
A música e a literatura sempre tiveram grande influência em Chico Buarque
1
.
Cresceu ouvindo as músicas de Noël Rosa, Ataulfo Alves, Dorival Caymmi e também
músicas italianas e francesas. A literatura também foi muito importante para a sua
formação intelectual: Camus, Flaubert, Dostoiévski, Tolstói , Sartre, Kafka, etc.
Seu amigo Sérgio Milliet
2
, um dos grandes críticos literários da época,
reconhecia no Chico ainda universitário a erudição:
Ele era já naquela época, sem ter ainda completado seus estudos
universitários, um erudito. Essa erudição, que nos humilhava um
pouco, ele a disfarçava, entretanto, com uma boa dose de
humour.
A vida social e musical de Chico Buarque de Hollanda ficou muito marcada,
quando, aos 22 anos, ele participou, com a música A Banda, do Festival da Música
Popular Brasileira da TV Record, em 1966. A partir daquele momento, nasceu, no
Brasil, um grande ícone da MPB. O sucesso de Chico Buarque decolou em um Brasil
em modernização, sob a supervisão do regime militar.
Nos anos 60, as idéia de esquerda e a oposição ao governo fizeram-se
presentes na música e nas reuniões entre Chico e seus amigos, na rua Maranhão. Foi
então que o sico enveredou pela música de cunho sociopolítico, tornando-se um
grande desafeto dos militares da época, até que, em uma manhã, Chico foi acordado,
em casa, pela polícia para ser interrogado.
1
Chico Buarque de Hollanda nasceu em 19 de junho de 1944, no Catete, centro do Rio de Janeiro, filho do
historiador Sérgio Buarque de Hollanda e Maria Amélia Alvim Buarque de Holanda. Aos dois anos de
idade, mudou-se para São Paulo, porque seu pai havia sido convidado para dirigir o Museu do Ipiranga.
Entre 1953 e 54, a família mudou-se para a Itália, porque seu pai fora convidado para ser professor da
Universidade de Roma.
2
Citado por Francisco de Assis Barbosa no texto “Verdes Anos de Sérgio Buarque de Holanda Ensaio
Sobre sua Formação Intelectual até Raízes do Brasil”, que integra o livro Sérgio Buarque
- Vida e Obra
(Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo/Edusp, 1988, p. 30).
11
Ao ser levado ao Ministério do Exército, foi liberado com a condição de deixar o
Brasil. Em 3 de janeiro de 1969, Chico foi para a França com a esposa, a atriz Marieta
Severo. De lá, Chico e Marieta partiram para Roma, onde nasceu a primeira filha, Sílvia.
Na década 70, Chico retornou ao Brasil e lançou a música Apesar de você, que
escondia na letra, camuflada pelo romantismo, um cunho de protesto, um tipo de
manifesto contra a ditadura.
Ao contrário do que desejavam os militares, o cantor irreverente torna-se mais e
mais querido pelos jovens. Outras produções artísticas, na área teatral, também tiveram
peso importante na ideologia de Chico: Ópera do Malandro, Gota d’Água, Roda Viva e
Calabar. Essas obras têm, como pano de fundo, o ideal de um Brasil nacional-popular.
Embora para alguns críticos o escritor Chico Buarque se tenha tornado escritor
somente com Estorvo, é conveniente acrescentar que, em 1974, com a obra Fazendo
Modelo, se havia revelado como tal. Apesar de Fazenda Modelo ter sido a estréia de
Chico na literatura brasileira, a narrativa não obteve, na época, grande repercussão e
não foi reconhecida como grande obra. Fazenda Modelo tem sido lido como uma
espécie de paródia, inspirada no romance de George Orwell, A revolução dos bichos.
Após o período febril dos movimentos estudantis e a queda da ditadura na
década de 80, Chico Buarque, na cada de 90, transformou-se num cantor, intérprete
e escritor mais preocupado com o homem social-urbano, deixando em segundo plano a
questão política. O grande marco dessa preocupação de Chico ocorreu com o
lançamento de Estorvo, em 1991. Ao contrário do primeiro, Fazenda Modelo, trata-se
de um romance complexo e surpreendente. Em 1995, lançou outro livro: Benjamim.
Para melhor abordar o romance Estorvo, é necessário observar a presença da
personagem buarqueana no romance. A morte do homem (Eu) em Estorvo é uma
espécie de fio condutor que une as personagens a uma idéia central, em que o ser
humano é surpreendido pelo acaso e inesperado. Além do mais, outras características
também surgem em um ambiente inóspito, que contribui para levar a personagem à
lenta decadência e, conseqüentemente, à morte física, moral e social.
Em Estorvo temos uma personagem que não é identificada nem pelo autor, nem
por ela mesma. Sua vida é uma fuga sem fim.
12
No romance Benjamim a morte do eu é uma espécie de crítica ao sistema que
anula o direito do homem de escolha e de defesa, que a personagem é levada à
morte, apesar de inocente.
Em Budapeste, último romance de Chico, o autor mostra-nos a morte moral e
ética da personagem que leva a vida escrevendo livros para outros assinarem a autoria
(ghostwritter).
Apesar de esses vários temas constituírem os romances de Chico Buarque, ater-
nos-emos apenas a Estorvo, deixando, em caráter especial, as referências feitas a
Benjamim e a Budapeste.
A narrativa de Estorvo é composta de onze capítulos breves, com estruturas
frasais simples e curtas e ritmo acelerado semelhança do ritmo caótico dos grandes
centros urbanos). É nesse cenário que situamos a personagem anônima de Estorvo
que é o próprio narrador de sua confusa e célere história. Temos, em Estorvo, a
configuração de um tipo de personagem: a personagem-narrador, a que relata e vive a
história.
Como conseqüência, o homem introduz-se em primeira pessoa no romance e
tem a possibilidade de vivenciar, no presente, a própria história. Observamos que ele é
um herói contemporâneo, distante do modelo heróico-épico do passado.
No primeiro capítulo intitulado A personagem-narrador em configuração tem por
foco a personagem no texto romanesco e seus elementos essenciais narrativos.
No segundo capítulo intitulado O intertexto em Estorvo traçamos alguns paralelos
entre as personagens, kafkiana e buarqueana, com o objetivo de criar uma
intertextualidade metodológica de definição das suas características psicológicas e
metafóricas.
No terceiro capítulo, com o título O cronotopo em Estorvo, aborda-se o conceito
de cronotopo psicológico e metafórico sob a ação transformadora da ironia e a
contaminação de personagem pela performance ambígua de narrador em primeira
pessoa. Característica essa que a desfiguração à personagem irônica, entre duas
consciências: a individual e a pública.
13
CAPÍTULO I
A PERSONAGEM-NARRADOR E SUA FIGURAÇÃO
14
1.1 . O herói contemporâneo em Estorvo
Todo texto romanesco estrutura-se no conjunto de elementos essenciais da
narrativa: narrador, personagem, espaço, tempo e enredo. Segundo Antonio Candido
(1987), a personagem é o elemento que assume a posição de maior importância no
enredo. É por meio dele que os outros elementos constituintes da narrativa aliam-se e
atrelam-se às habilidades do narrador ao trabalhar a linguagem figurativa para tecer o
sentido do texto. Assim, Candido, a respeito da justaposição desses elementos
descritivos, afirma o seguinte:
Tais aspectos esquemáticos, ligados à seleção cuidadosa e
precisa da palavra certa com suas conotações peculiares, podem
referir-se à aparência física ou aos processos psíquicos de um
objeto ou personagem (ou de ambientes ou pessoas históricas,
etc), podem salientar momentos visuais, táteis, auditivos, etc.
(CANDIDO, 1987, p. 14).
Em um romance, a personagem vive os fatos no enredo. A personagem e o
enredo, ligados, exprimem os intuitos do romance e os significados de valores. Assim
a personagem representa uma possibilidade de adesão afetiva e intelectual ao leitor.
Por esse motivo, a personagem (ser fictício) torna-se real.
Tome-se a palavra “idéia” como sinônimo dos mencionados
valores e significados, e ter-se-á uma expressão sintética do que
foi dito. Portanto, os três elementos centrais dum desenvolvimento
novelístico (o enredo e a personagem, que representam a sua
matéria; as “idéias”, que representam o seu significado, - e que
são no conjunto elaborados pela técnica), estes três elementos
existem intimamente ligados, inseparáveis, nos romances bem
realizados. No meio deles, avulta a personagem que representa a
possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos
mecanismos de identificações, projeções, transferência etc.
(CANDIDO, 1987, p.54)
15
Antonio CANDIDO (1987) ainda nos assinala que é por meio da aceitação ou
não da verdade por parte do leitor que a personagem (ser fictício) comunica, por sua
performance no romance, a impressão de verdade existencial. Verificamos que o ser
ficcional se torna vivo quando consegue concretizar as idéias e afinidades dos seres
reais. A aproximação entre o ser real e o ficcional dá-se pela semelhança entre as
afinidades e os valores que o animam, criando o processo de verossimilhança:
Como pode existir o que não existe? No entanto a criação literária
repousa sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhança no
romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é,
algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão
da mais lídima verdade existencial. (CANDIDO, 1987, p. 55)
E, em um trecho à frente, acrescenta:
Graças ao vigor dos detalhes, à veracidade’ de dados
insignificantes, à coerência interna, à lógica das motivações, à
casualidade dos eventos, etc. tende a constituir-se a
verossimilhança do mundo imaginário. (CANDIDO, 1987, p. 20-21)
A verossimilhança, no conceito aristotélico, o representa a verdade,
porque para Aristóteles o artista e o poeta são meros criadores. Assim, a
probabilidade de verossimilhança entre a obra e a realidade assume mais um
caráter subjetivo do leitor do que propriamente o retrato objetivo criado como base
para a representação.
Para reafirmar a importância da personagem fictícia sob o crivo da
verossimilhança, é necessário, portanto, retomarmos o conceito de imitação
apresentado por Aristóteles sob dois aspectos: a personagem como representação e
como construção, conforme BRAIT (2002, p.29) afirma:
O conceito de verossimilhança, enquanto representação do real,
imitação de um objeto ou pessoa, sempre preocupou os
estudiosos da literatura, a partir do conceito de mimese
apresentada pela Poética de Aristóteles. A verossimilhança, para
16
Aristóteles, é concebida a partir de dois fatores interessantes a se
conhecer: 1) A personagem como representação humana na
ficção; 2) A construção da personagem subordinada às leis
particulares que regem o texto.
Aristóteles, em Poética, atesta:
Como a imitação se aplica a uma ação e a ação supõe
personagens que agem, é absolutamente necessário que estas
personagens sejam tais ou tais pelo caráter e pelo pensamento
(pois é segundo estas diferenças de caráter e pensamento que
falam da natureza de seus atos); daí resulta naturalmente que
são duas as causas que decidem os atos: o pensamento e o
caráter; e de acordo com estas influências, o fim é alcançado ou
falhando. (ARISTÓTELES, 2004, p. 36).
Aristóteles não só preocupa-se com a questão da arte da imitação na
poesia, mas também com os aspectos ou recursos lingüísticos utilizados pelos
poetas para elaboração de suas obras, ou seja, a linguagem como apreensão da
realidade. Neste caso, a mimese assume um conceito mais amplo do que a
reprodução, a mera fotografia de uma imagem real. Antonio Candido assim se
pronuncia:
Geralmente, da leitura de um romance fica a impressão duma
série de fatos, organizados em enredo, e de personagens que
vivem estes fatos. É uma impressão praticamente indissolúvel:
quando pensamos no enredo, pensamos simultaneamente nas
personagens; quando pensamos nestas, pensamos
simultaneamente na vida que vivem, nos problemas em que se
enredam, na linha do seu destino traçada conforme uma certa
duração temporal, referida a determinadas condições de
ambiente. O enredo existe através das personagens; as
personagens vivem o enredo. Enredo e personagem exprimem,
ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele,
os significados e valores que o animam. (CANDIDO, 1987, p. 53 -
54).
17
Percebemos, pela citação de Candido, que a existência da personagem na
narrativa, como objeto significativo de representação e imitação da realidade
depende do enredo para ter vida e viver a trama proposta como personagem de
ficção. É por meio do enredo que o personagem assume sua existência (ficcional) e
se aproxima do mundo real do leitor. Assim, a obra alcança por completo a
verossimilhança interna, a imitação do real. Segundo MESQUITA (1987, p. 7), a
palavra enredo pode ter variações de sentido, no entanto nunca perde o de arranjo
de uma história:
A apresentação/representação de situações, de personagens nela
envolvidos e as sucessivas transformações que vão ocorrendo
entre elas, criando-se novas situações, até se chegar ao final - o
desfecho do enredo (sic). Podemos dizer que, essencialmente, o
enredo contém a história. É o corpo de uma narrativa.
O reconhecimento da personagem como ser ficcional que vive sua vida a partir
do enredo, é possível pela representação, segundo Greimas, conceito de
personagem derivado de persona, (a máscara do teatro romano).
Tradicionalmente, a personagem tomou para si, no teatro grego e romano e na
literatura clássica, a máscara do herói épico. Segundo KOTHE (2000, p. 12) os heróis
épicos ou os chamados heróis de classe alta voltam-se para o passado e narram os
grandes feitos e as conquista do seu povo como sinônimo de bravura e de memória
histórica. Porém sabe-se que a vida desses heróis depende também dos aspectos
axiológicos em que eles se inserem (sociedade, cultura, normas etc), para sua vida ter
sentido dentro da obra.
A personagem de ficção, em seus ciclos de existência nos teatros populares,
sempre dependeu dos aspectos axiológicos para ter vida dentro de determinada obra
e em determinada época. E, também por motivos estéticos, ela vestiu as diversas
máscaras sociais. Nesse caso, sua representação sofreu as modificações permitidas
pelas convenções estéticas e ideológicas de uma sociedade literária, assim como
suas necessidades psicológicas.
18
A personagem, antes nomeada persona, modificou-se e migrou da arte teatral
para a literatura e assumiu características muito mais complexas que as do herói
clássico (épico e anti-herói épico), do trágico, do baixo (cômico, tragicômico, satírico e
picaresco), do alto (nacionais e históricos) e do moderno (herói da decadência, do
avesso, proletário, burguês).
Em sintonia com as máscaras, o romance foi dividido em categorias, de acordo
com o herói e o tipo do enredo: romance clássico, de viagem, de cavalaria, de
aventura, picaresco, de época, autobiográfico, de fluxo de consciência, de memória,
de cunho psicológico moderno.
Observamos, aqui, um fator importante: a vida da personagem atrelada aos
fatos do enredo depende do contexto social em que está inserta em complexidade
de natureza artística e literária.
Segundo BAKHTIN (1993), foi na Idade Média que surgiu a figura do homem
que tomou para si formas folclóricas e semifolclóricas como representantes das
figuras populares no teatro. Essas personagens ou máscaras surgiram em um
ambiente não literário e representavam os heróis baixos, desclassificados,
desonrados, discriminados pela elite nobre. Por esse motivo, as personagens foram
idealizadas e concebidas nos teatros ao ar livre, nas praças destinadas ao povo.
Também se mantiveram vivas e ativas na história literária e artística. Conforme
BAKHTIN (1993, p. 276):
(...) a própria existência dessas personagens tem um significado
que não é literal, mas figurado: a própria aparência delas, tudo o
que fazem, e dizem não tem sentido direto e imediato, mas sim
figurado e, às vezes, invertido. Não se pode entendê-las
literalmente, elas não são o que parecem ser; finalmente, em
último lugar – que também provém do anterior , a existência
delas é o reflexo de alguma outra existência, reflexo direto por
sinal. Elas são os saltimbancos da vida, sua existência, coincide
com o seu papel; aliás, fora desse papel, elas não existiriam.
Literalmente, elas não apresentam sentido de imediato porque sua existência
depende da existência de outros, ou seja, no universo ficcional, elas são os outros. E
suas representações no teatro da vida real admitem funcionalidade por causa do
19
povo. O narrador e a personagem unem-se e vestem a máscara do outro para o outro
ser desmascarado diante da sociedade; o que, na concepção de Bakhtin, encontra na
máscara uma função figurativa:
O romancista precisa de alguma espécie de máscara consistente
na forma e no gênero que determine tanto a sua posição para ver
a vida, como também a posição para tornar blica essa vida.
(BAKHTIN, 1993, p. 277).
E, a seguir, acrescenta:
Um elemento muito importante a esse respeito é o sentido
indireto, figurado de toda a imagem do homem, seu aspecto
totalmente alegórico que, evidentemente, está ligado à
metamorfose do rei e do deus que se encontra no inferno, na
morte (cf. o traço análogo da metamorfose do deus e do rei em
escravo, em criminoso e em bufão, nas saturnais romanas e nas
paixões cristãs). Aqui o homem apresenta-se em estado alegórico.
Para o romance, tal estado alegórico tem um importante
significador formador. (BAKHTIN, 1993, p. 277)
Dando um grande salto para o mundo contemporâneo, na década de 90, a figura
do homem no romance tornou-se complexa. Especificamente a ficção brasileira
ambientou-se na cidade e da periferia. Ao contrário da narrativa convencional, a
personagem tomou para si aspectos das várias sociedades: guetos, tribos e grupos.
O homem é múltiplo, no romance moderno, porque ele perdeu a subjetividade e
fragmentou-se em um mundo, onde a certeza cedeu lugar à relatividade. Tudo passou
a ser relativo: a salvação, o amor, a razão, a lei, as opiniões.
De acordo com BRAIT (2002, p. 37):
A partir da segunda metade do século XVIII, a concepção de
personagem herdada de Aristóteles e Horácio entra em declínio,
sendo substituída por uma visão psicologizante que entende a
personagem como a representação do universo psicológico de
seu criador. Essa mudança de perspectiva se a partir de uma
série de circunstâncias que cercam o final do século XIX. É nesse
momento que o sistema de valores da estética clássica começa a
declinar, perdendo a sua homogeneidade e a sua rigidez. É
também nesse momento que o romance se desenvolve e se
20
modifica, coincidindo com a afirmação de um novo blico o
público burguês -, caracterizado, entre outras coisas, por um gosto
artístico particular.
Os escritores contemporâneos brasileiros concentram-se em solo urbano, porém
passam a freqüentar lugares inóspitos, até então desconhecidos. O romance da década
de 90 voltou-se para a periferia com todos os desvios éticos e morais. É nesse
ambiente degradante que encontraremos as diversas figuras literárias como
representações do homem solitário e vulnerável.
Com o crescimento das cidades brasileiras, a literatura também importou, para o
seu universo ficcional, o urbano. Esse processo acelerado em que se encontra a ficção
contemporânea brasileira tem uma explicação política e também uma histórica do ponto
de vista do jornalista Costa PINTO:
Até meados dos anos 50, o Brasil era um país rural ou, pelo
menos, tinha um imaginário rural. Sob a renovação representada
pelo modernismo de 22 e por seus correlatos na sociologia
(Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Jr.),
continuou pulsando a preocupação com uma suposta ‘identidade
nacional’ (resquício mítico de um mundo estável, natural e,
portanto ‘agrário’ ...).
Quando essa modernização entrou em rota de naufrágio, a
problemática realidade urbana eclodiu como uma experiência ao
mesmo tempo incontornável e irredimível, passando a habitat
predominante na literatura brasileira a partir dos anos 60. (PINTO,
2004, p. 83)
Manuel da Costa Pinto, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada,
também, jornalista da Folha de São Paulo, escreve a respeito de Estorvo e ressalta
uma característica, que, segundo ele, é fundamental no reconhecimento da obra como
produto de época (a década de 90):
A ficção brasileira contemporânea está concentrada em solo
urbano. (...). Assim, se os autores da chamada Geração 90
freqüentam os mesmos lugares inóspitos que os escritores da
periferia ruas deterioradas, botecos esquálidos, casas
traumatizadas pelo desemprego, pela violência e pela loucura –,
21
uma percepção geral do isolamento e da vulnerabilidade do
sujeito moderno (e urbano). (PINTO, 2004, p. 82).
O romance Estorvo foi lançado em 1991 no Brasil e com ele surgiu um tipo de
literatura complexa e surpreendente. Segundo Fernando Barros da SILVA (2004,
p. 116):
O escritor que surge em 1991 com Estorvo é bastante complexo e
surpreendente – e sua obra será uma espécie de contraponto
áspero e corrosivo do compositor que, queira ou não, está
conectado a uma tradição popular e cultural que transmite algo de
maneira afetiva. A forma literária irá permitir a Chico uma figuração
mais aguda e despida de lirismo da experiência da desagregação
social – assunto recorrente do autor desde os anos 80.
A respeito da obra Estorvo, vejamos o depoimento de dois críticos da literatura
brasileira:
Estorvo é um livro brilhante, escrito com engenho e mão leve. Em
poucas linhas o leitor sabe que está diante da lógica de uma
forma. A narrativa corre em ritmo acelerado, na primeira pessoa e
no presente: a ação que presenciamos consiste no que o
narrador, que é o protagonista, faz, e imagina.
(SCHWARTZ,1991, p. 1)
E mais,
A metamorfose de Chico Buarque é demasiado pessoal para se
acomodar a esse paralelismo por muito honroso que eles lhe
sejam. Além disso, em Estorvo todo o movimento descritivo se faz
ao contrário do processo kafkiano, ou seja, de fora para dentro. É
um olhar que incide no real objetivo para depois o descobrir
imensamente desconforme e desfigurado na sua organização.
(PIRES, 1991, p.2)
Em Estorvo, a figura do herói é caracterizada pelo próprio narrador, ele é o
próprio discurso, um monólogo interior, uma auto-análise. Do ponto de vista de Brait, a
personagem-narrador, em seu discurso, dirige-se aos ouvintes propondo um aparente
22
diálogo, mas o seu discurso continua sendo um monólogo. A falsa impressão de
diálogo entre o interlocutor e a personagem-narrador torna-se polêmica, porque a
personagem-narrador, por seu monólogo, permite a aceitação ou não das verdades ou
idéias ditas por ele ao seu leitor.
Embora o personagem-narrador se dirija a outros, o modelo da
novela não é o diálogo, mas sim o monólogo. A interlocução é,
portanto, falsa. Trata-se de uma invenção do narrador para testar
seu próprio discurso, afinal, estamos diante de um homem mau,
um paradoxalista, como ele próprio se define. (...). A contrapalavra
do interlocutor provoca o narrador, polemiza com ele, ao mesmo
tempo em que lhe permite adentrar no fundo de sua memória.
(MACHADO, 1995, p. 143)
Temos, como exemplo, o trecho abaixo:
fora, bochechando com underberg, me animo mais ou menos
para a nova jornada. O céu amanhece encarnado, e vem por
um sol rancoroso. Livro-me da garrafa quando estoura a voz do
velho, que despertou mal-humorado e ameaça tocar fogo na casa.
As crianças pipocam das janelas e disparam a caminho do pomar,
trocando rasteiras e safanões. (CHICO BUARQUE, 2004, p. 80)
A personagem-narrador, por meio de sua subjetividade, assiste a si mesma
expondo-se ao máximo e revela ao leitor a sua tomada de consciência perante os fatos.
No trecho acima, o narrador aborda o seu eu (pensamento interno) e os fatos (externo).
Vejamos outro exemplo:
Na bancada uma toalha, um vidro de creme rinse, um aparelho
de barba descartável e um travesseiro de espuma listrado. Estiro a
toalha, deito-me nela, o travesseiro regurgita na minha orelha, e
penso que vou dormir. Penso que estou dormindo quando um
rapaz de turbante me aparece na porta. (CHICO BUARQUE, 2004,
p. 127)
A tomada de consciência pela personagem-narrador em Estorvo não exercita
sua individualidade como também induz a multiplicidade de interpretação, por isso, ela
23
e os fatos que a cercam passam uma idéia de inacabamento, instabilidade. O relato da
personagem-narrador segue o caminho infinito dos pensamentos humanos:
Estou para ingressar no sonho quando lembro que quem tem meu
endereço é minha mulher; deixei recado na casa dela, uma
mensagem formal, aliás, um comunicado irônico, aliás um aviso
áspero, e minha ex-mulher nem iria anotar meu endereço na
agenda, para quê?, para dar ao homem do olho mágico que pode
ser o seu namorado, e imagino aquele homem de terno e gravata
e barba na cama da minha ex-mulher. Um namorado dela, o que
viria cobrar de mim, conselho?, pensão?, confidência?,
satisfação?, Um ciumento retroativo? (...). (CHICO BUARQUE,
2004, p. 29)
O trecho acima é um emaranhado de pensamentos e suposições sem fim, assim
como ocorre conosco pelo complexo funcionamento do cérebro. Dessa forma, o leitor
vive e sente as emoções da personagem-narrador e liga-se às questões estéticas do
romance: a verossimilhança.
Graças à seleção dos aspectos esquemáticos preparados e ao
‘potencial’ das zonas indeterminadas, as personagens atingem a
uma validade universal que em nada diminui a sua concreção
individual; e à mercê desse fato liga-se na experiência estética, à
contemplação, a intensa participação emocional. Assim, o leitor
contempla e ao mesmo tempo vive as possibilidades humanas
que a sua vida pessoal dificilmente lhe permite viver e contemplar,
visto o desenvolvimento individual se caracterizar pela crescente
redução de possibilidades. (CANDIDO, 1987, p. 46)
Nas palavras de MILTON (1996, p. 33), temos a narrativa de caráter
autobiográfico que supõe uma auto-análise, empreendida por alguém em busca da
própria identidade (...). Vejamos a citação em Estorvo:
“Ela atende com ‘oi’ e eu digo ‘oi’, sou eu, querendo correr risco de
ouvir ‘eu quem?’. Mas ela diz um ‘que é que você quer?’ (...)”.
(CHICO BUARQUE, 2004, p. 36)
24
O romance Estorvo começa com um olhar sonolento do narrador (personagem)
observando, por um olho-mágico, um sujeito o conhecido, mas também não
desconhecido. Assim, é estabelecida a vertigem entre a imagem (o homem de barba e
paletó) e o olho do narrador.
Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, o consigo definir
aquele sujeito através do olho mágico. Estou zonzo, o entendo
o sujeito ali parado de terno e gravata, seu rosto intumescido pela
lente.(...). Vou regulando a vista, e começo a achar que conheço
aquele rosto de um tempo distante e confuso. Ou senão cheguei
dormindo ao olho mágico, e conheço aquele rosto de quando ele
ainda pertencia ao sonho. (CHICO BUARQUE, 2004, p.7).
Nessa primeira cena, realidade e sonho fundem-se e provocam uma alucinação.
Do ponto de vista de Massi, o olho mágico tem um valor simbólico na narrativa, pois ele
representa o movimento circular do enredo.
Estorvo começa com um significativo emblema visual: um olho
mágico. Trata-se de uma escolha fundamental para a organização
simbólica da narrativa, representada pelo movimento circular do
enredo. Ele delimita o campo de visão do personagem e do leitor:
revela um contorno, projeta um foco e, simultaneamente,
distancia, oculta.(MASSI, 1991, p. 3)
Observa-se também o movimento circular na narrativa através da ciclização dos
fatos, porque tudo parece repetir-se ao redor da personagem: as cenas, as ruas, as
pessoas, etc. Além disso, o espaço é sempre limitado: a personagem parece rodar e
passar sempre pelos mesmos lugares.
A narrativa trata de uma personagem presa ao ambiente, à medida que os fatos
e as ações se desenrolam:
Consigo uma vaga no banheiro e separo o dinheiro da passagem.
O homem do guichê examina cada nota, frente e verso, embora
elas não sejam muito velhas, nem novas demais. Com o bilhete na
mão, ando de plataforma em plataforma a fim de não ficar tão
exposto. Ando no meio do povo em linha reta, mas parece que
cruzo sempre com as mesmas pessoas. (CHICO BUARQUE,
2004, p. 21)
25
E, mais
Encontrar aberta a cancela do sítio me perturba. Penso nos
portões dos condomínios, e por um instante aquela cancela
escancarada é mais impenetrável. Sinto que, ao cruzar a cancela,
não estarei entrando em algum lugar, mas saindo de todos os
outros. (CHICO BUARQUE, 2004, p. 32)
Para MASSI (1991, p. 3): “Este entrelaçamento entre movimento e imobilidade,
entre dentro e fora, provoca no leitor a sensação de que a alucinação do protagonista
dissolve a realidade”.
Voltando ao início do romance Estorvo, ocorreu um distúrbio visual na
personagem, visto que ela não sabia se conhecia ou não o sujeito de barba e paletó do
outro lado da porta. O distúrbio visual, talvez fruto do sono e do olho mágico, provocou
na personagem uma perturbação, que tornou tudo turvo e confuso. O mundo externo é
vivenciado pelo leitor por meio da visão internalizada do narrador, por isso a realidade é
distorcida. Para corroborar, temos a concepção de Bakhtin a respeito do sonho:
De um ponto de vista plástico-pictural, o mundo do sonho é
plenamente idêntico ao mundo da percepção real: nele a
personagem central não está externamente expressa, não se situa
no mesmo plano das outras personagens; enquanto estas são
expressas externamente, aquela é vivenciada de dentro.
(BAKHTIN, 2003, p.27)
A questão da identidade aparece também nesse primeiro momento. A
personagem tem a impressão de que já viu aquele homem em algum lugar, porém não
tem certeza e por isso não consegue identificá-lo. A identidade apresenta-se ambígua,
uma neurose:
Mas enquanto estou ali ele não toca a companhia, não olha o
relógio, não acende o cigarro, não tira o olho do olho mágico.
Agora me parece claro que ele está me vendo o tempo todo.
Através do olho mágico me vê como se eu fosse um homem
côncavo. Assim ele me viu chegar, grudar o olho no buraco e
tentar decifrá-lo, me viu fugir em câmera lenta, os movimentos
largos, me viu voltar com a fisionomia contraída e ver que ele me
26
e me conhece melhor do que eu a ele. (CHICO BUARQUE,
2004, p. 8 – 9)
No trecho acima, a ambigüidade da identidade não se limita apenas ao
conhecimento ou não do homem de barba que se encontra do lado de fora do
apartamento, mas também à dualidade entre o ser e o não ser a pessoa do outro lado
da porta. Assim nos afirma SANTAELLA (1996, p. 52): “... a imagem do outro que seu
olhar projeta e se cruza na imagem do seu eu projetado pelo olhar do outro (...) nos
perdemos no outro enquanto o outro se perde em nós (...)”.
Dessa maneira, percebemos que o olho mágico assume a configuração de um
espelho, em que a intimidade e a afinidade são fundamentais para a contemplação do
outro.
O que temos no dilema do narrador, em frente ao olho mágico, em reconhecer o
outro ou a si mesmo, o se trata da insuficiência de sua memória, mas de um caráter
emotivo: a resistência em contemplar-se. O medo do narrador de ver, possivelmente, a
sua verdadeira identidade produz nele uma sensação de deformidade e distorção.
O dilema da identidade em relação ao protagonista e ao homem, separados pelo
olho mágico, provoca a impressão de que o olho funciona como um espelho cujo
homem de barba pode ser o próprio protagonista. MASSI (1991, p. 6): “A impressão
inicial é de que o olho funciona como um espelho e ‘aquele sujeito’ pode ser o próprio
protagonista.”
O olho mágico em Estorvo funciona como um objeto intermediador entre o eu e o
outro, entre o ser e a aparência. O olho mágico é o espelho denunciador da possível
realidade, o denunciador daquilo que vemos, mas não queremos. De acordo com
Bakhtin:
É necessário algum novo esforço para me imaginar a mim mesmo
nitidamente em face, desligar-me por completo de minha auto-
sensação interior; conseguindo isto, somos afetados em nossa
imagem externa por algum vazio original, por algo imaginário e um
estado de solidão um tanto terrível dessa imagem. (BAKHTIN,
2003, p. 28)
27
E como solução para a aproximação da imagem real e a do sonho, Bakhtin
afirma:
É preciso reconstruir radicalmente toda a arquitetônica do mundo
do sonho, introduzindo-lhe um elemento absolutamente novo, para
vivificar e incorporar minha imagem externa ao conjunto de
concepções. (BAKHTIN, 2003, p. 28)
É bom lembrar que a troca de olhares entre o narrador e o homem parado à
porta promoveu uma grande fuga do narrador em busca de algo perdido, possivelmente
a busca de sua origem (identidade e identificação).
O relacionamento entre o eu e outro “é a troca de olhares entre o eu e o outro, a
única instância em que, num lampejo, a fenda da alteridade estreita-se até a fina
película da quase identidade”. (SANTAELLA, 1996, p. 68).
Olho para o outro lado e encaro a vidraça que, com a luz fria do
banco e uma coluna por trás, virou espelho. Eu não olhava o
espelho tanto tempo que ele me toma por outra pessoa.
(CHICO BUARQUE, 2004, p.108)
Ademais, o espelho revela o lado oculto, a outra face do homem.
Procuro imaginar aquele homem escanhoado e em mangas de
camisa, desconto a deformação do olho mágico, e é sempre
alguém conhecido mas muito difícil de reconhecer. E o rosto do
sujeito assim frontal e estático embaralha ainda mais o meu
julgamento. Não é bem um rosto, é mais a identidade de um rosto,
que difere do rosto verdadeiro quanto mais você conhece a
pessoa. Aquela imobilidade é o seu melhor disfarce, para mim.
(CHICO BUARQUE, 2004, p. 8)
No trecho anterior, observamos o oculto revelado pelo espelho: o disfarce. O
disfarce esconde a verdadeira face, o homem em seu estado natural.
A fim de corroborar a simbologia do espelho em Estorvo, Santaella assevera
que:
28
Um espelho é um objeto capaz de refletir tudo aquilo que se
coloca à sua frente. Diante de um espelho, qualquer coisa é
imediatamente duplicada. (...). A imagem especular é um duplo
daquilo que está refletido. (SANTAELLA, 1996, p. 45-46)
Por essa citação, temos o processo da duplicação do homem por meio do olho
mágico, objeto produzido com espelho.
A partir dessa experiência de olho, do outro e de si mesmo, o protagonista
promove uma fuga desenfreada pela cidade. O leitor não sabe ao certo o porquê da
fuga do narrador (personagem). Essa fuga desesperada não parece levá-lo a lugar
algum, que o narrador vai e volta sempre aos mesmos lugares, como num círculo
vicioso. A simbologia do círculo, apresentada na forma do olho gico, é retomada no
espaço do romance: o protagonista anda sempre em círculos. Na narrativa, em várias
passagens, a personagem-narrador sempre faz alusões à simbologia circular.
Exemplos:
Faz o giro da sala, pára na entrada do banheiro, sai andando de
costas, anda que nem bada, entra no quarto e mergulha na
cama aos prantos. Pensei que fosse dizer ‘tá satisteito?’, mas não
diz mais nada, fica deitada de bruços, soluça com o corpo inteiro,
e não sei o que fazer. (CHICO BUARQUE, 2004, p. 55)
E, ainda:
Vejo circunferências que se dilatam exageradamente, até que se
rompem feito bolhas e dão vida a novas rodas de conversa. Vejo
rodas sonolentas, que permanecem rodas pela geometria, não
pelo assunto. Tento acompanhar assuntos que saem de uma roda
para animar a outra, a outra, e a outra, como uma engrenagem.
(CHICO BUARQUE, 2004, p.59)
O que temos em Estorvo é uma alusão também à dualidade existente no enredo:
entre o espaço interno e o externo. De acordo com Massi, o entra-e-sai da personagem
visa a deslocar a atenção do leitor, envolvendo-o no torvelinho da prosa.
29
O protagonista está permanentemente entrando e saindo de
algum lugar, deslocando-se incessantemente e toda esta
movimentação visa deslocar a atenção do leitor, envolve-lo (sic)
no torvelinho da prosa. O emblema principal é que o personagem
está num beco sem saída, andando em círculos: do condomínio
da irmã ao sítio da família, da butique da ex-mulher ao edifício de
um velho amigo e, novamente, do apartamento da ex-mulher ao
condomínio da irmã. (MASSI, 1991, p.6)
A idéia de uma atmosfera romanesca turva é lançada pelo próprio autor no título
do romance: Estorvo. O vocábulo estorvo prenuncia ao leitor uma impressão de algo
embaraçoso, importuno.
Dependendo do ponto de vista do leitor, o vocábulo estorvo na narrativa pode ser
concebido por duas óticas interpretativas fundamentais: a vida do próprio narrador
(personagem), ou ao ambiente em que ele se encontra.
No entanto o autor não se limita ao título do romance como uma espécie de
premonição e estende o significado do vocábulo estorvo nas epígrafes. Vejamos o
campo semântico e lexical escolhido por Chico Buarque que marca com sinonímias
verbais o narrador (personagem) e/ou o espaço físico do romance: estorvo, estorvar,
exturbare, distúrbio, perturbação, torvação, turva, torvelinho, turbulência, turbilhão,
trovão, truble, trápola, atropelo, tropel, torpor, estupor, estropiar, estrupício, estrovenga,
estorvo.
No final das epígrafes, temos, mais uma vez, a ocorrência de ciclo, de
movimento circular: a epígrafe começa e finaliza com o título do romance.
Todos os acontecimentos conspiram contra o protagonista. Sua sorte e seu
caminho, aparentemente, estão traçados e nada pode ser mudado. Assim nos afirma o
próprio protagonista:
Do orelhão da rodoviária, ligo para minha mãe e desligo em
seguida. Não quero ir para a casa dela de jeito nenhum. Mas ao
mesmo tempo quero encostar num canto, tenho de tomar um
banho, preciso lavar a cabeça. (CHICO BUARQUE, 2004, p. 35)
A vida do protagonista de Estorvo passeia pela atmosfera sombria dos grandes
centros urbanos, sem saída, sem rumo. Podemos dizer que ele é um joão-ninguém ou
mesmo o filho desgarrado da família, que caminha solitário rumo à marginalidade.
30
Segundo Roberto Schwartz, as duas leituras a respeito da classe social a que a
personagem pertence são possíveis e dependem do ponto de vista do leitor:
Dependendo do ponto de vista, o narrador é um João-ninguém ou
um filho-família desgarrado. O primeiro mora num quarto-e-sala,
anda de jeans, camiseta branca e tênis, bebe água na pia de
mictórios fedidos, e arrasta a sua mala pelas calçadas.
(SCHWARTZ, 2000, p.1).
Se considerarmos a hipótese de que o protagonista de Estorvo é um filho de
família rica, porém desgarrado, devemos atentar a certos pormenores: a mãe dele não
acha ético uma senhora atender ao telefone, o pai tem o costume de gritar com os
empregados e a irmã, casada com um milionário, vive em boa condição social.
No entanto, entre essas citações, uma faz-nos aproximar mais de uma das
interpretações. Ao lembrar-se do grande amigo poeta, a personagem recorda o
conselho dado por este, em uma noite, a respeito de largar os bens da família. Vejamos
o exemplo:
Era noite, e estávamos jantando na varanda quando ele decidiu
que eu era um bosta, sem mais nem menos. Disse assim mesmo:
‘você é um bosta’. E disse que eu devia fazer igual ao escritor
russo que renunciou a tudo, que andava vestido como um
camponês, que cozinhava seu arroz, que abandonou suas terras e
morreu numa estação de trem. Disse que eu também devia
renunciar às terras, mesmo que para isso tivesse de enfrentar
minha família, que era outra bosta. Também eram bosta toda lei
vigente e todos os governantes. (CHICO BUARQUE, 2004, p. 83).
Duas leituras são possíveis por esse fragmento: a primeira pode ser uma espécie
de alegoria, representação de uma história a fim de configurar uma situação presente.
Nesse caso, as terras representam o apogeu familiar, a dependência financeira e
mesmo afetiva. Por um segundo aspecto, temos as terras no sentido propriamente dito,
os bens familiares.
31
Apesar de encontrarmos em Estorvo o dilema sobre a verdadeira origem social
do seu protagonista, o que notamos ao longo da narrativa que ele caminha pelas ruas e
vive como um joão-ninguém.
Segundo nos assegura SCWHARTZ (2000, p. 1):
Note-se que a tônica do romance não está no antagonismo, mas
na fluidez e na dissolução das fronteiras entre as categorias
sociais estaríamos nos tornando uma sociedade sem classes,
sob o signo da delinqüência? -, o que o deixa de assinalar um
momento nacional.
O narrador (anônimo) percorre a cidade em uma peregrinação alucinada, em
busca de sua identidade e de identificação com um grupo social. Porém, quanto mais o
narrador avança em busca disso, mais ele se perde no seu eu e mais se desencontra
de si e do mundo.
O velho sentado no tamborete faz um grande esforço para erguer
a cabeça, e é o tempo que eu necessitava para reconhecer o
nosso antigo caseiro. Deixou crescer os cabelos que, à parte as
raízes brancas, parecem ter mergulhado num balde de asfalto. A
pele do seu rosto resultou mais pálida e murcha do que era, e
ele me fita com um ar interrogativo que não consigo interpretar;
talvez se pergunte quem sou eu, talvez me pergunte se a tintura
lhe cai bem. Penso em lhe dar um tapa nas costas e dizer
quantos anos, meu tio’, mas a intimidade soaria falsa. (CHICO
BUARQUE, 2004, p. 25).
Percebemos, por esse trecho, a necessidade de o narrador ser reconhecido ao
encontrar-se com o antigo caseiro da família. O narrador espera a pergunta do velho:
“talvez se pergunte quem sou eu (...)”. Ao mesmo tempo, pretende ter com o velho
alguma identificação: “Penso em lhe dar um tapa nas costas e dizer: ‘há quantos anos,
meu tio’”.Todavia nenhuma dessas situações ocorre. O que vemos no narrador é a
própria angústia da probabilidade presumida pelo advérbio talvez.
A incerteza dos fatos está presente no próprio discurso do narrador, porque, na
maioria das vezes, o advérbio de probabilidade ou o verbo no imperfeito do subjuntivo
(forma condicional) aparece como negação de suas certezas do início ao fim da
narrativa:
32
Não terá perdido um fio sequer dos cabelos negros, que lhe cairão
ns testa exatamente como da última vez que o vi. Eu quase
desejarei abraçá-lo, entrar como entrava no seu apartamento,
espichar-me no sofá da sala e dormir até amanhã. Mas, ao fitá-lo
com maior atenção, talvez volte a me intrigar a sua estatura; meu
amigo era muito mais alto, coisa à toa, mas era. (CHICO
BUARQUE, 2004, p. 45)
E, ainda
Se mamãe não atender, andarei até a casa do meu amigo; ele não
se importará de me hospedar até a volta da minha irmã. Se meu
amigo tiver morrido, baterei à porta da minha ex-mulher. Ela sem
dúvida estará atarefada, e poderá se embaraçar com a visita
imprevista. Poderá abrir uma nesga da porta e fincar o pé atrás.
Mas, quando olhar a mancha viva na minha camisa, talvez faça
uma careta e me deixe passar. (CHICO BUARQUE, 2004, P 152)
O protagonista de Estorvo não parece ter interesse pessoal. Trata-se de um ser
extremamente desorientado que age como um objeto, um suposto produto do meio
contemporâneo. É um homem inacabado em seu devir, fragmentado, produto de um
meio no qual vive seu conflito íntimo pelos sonhos e lembranças.
Na figura do narrador-personagem, constatamos as diferentes máscaras que ele
assume na ficção do romance Estorvo, em diferentes momentos históricos e sociais. E
pressentimos que ele também sofre o processo de metamorfose de acordo com a
ciência, com a filosofia social vigente a cada momento, e adapta-se aos novos modos
do discurso ficcional.
A dualidade discursiva é de grande coerência no romance.
Estorvo é o relato exemplar de uma falha, de uma vertigem, de
uma de possessão’... (NUNES, 1991, p.1)
A modificação do romance contemporâneo não se limitou apenas à metamorfose
da personagem, mas sim a todos os elementos que constituem a narrativa, em
particular o narrador.
33
O surgimento de um novo tipo de narrador (narrador-personagem) ou vice-versa
na narrativa contemporânea é reflexo de uma nova concepção de homem. Para
entendermos melhor o narrador do romance contemporâneo, faz-se necessário
entender antes o homem contemporâneo.
A função do narrador na sociedade é um fato anterior à narrativa escrita. Os
narradores surgiram em razão da necessidade de o povo ouvir e compartilhar as
experiências vividas por alguém. Com o advento dos viajantes por terra e por mar, o
ato de contar tornou-se uma condição de artífice. Por isso, a figura do narrador, na
imaginação do povo, sempre foi ou é vista como a de alguém que vem de longe.
Vejamos o que Benjamin nos diz a respeito dos antigos narradores:
A experiência que anda de boca em boca é a fonte onde beberam
todos os narradores. (...) Quando alguém faz uma viagem, então
tem alguma coisa para contar, diz a voz do povo, e imagina o
narrador como alguém que vem de longe. (BENJAMIN, 1983,
p. 58)
Uma outra característica que Benjamin nos acrescenta a respeito da função do
narrador para o povo é o fato de o narrador ser uma espécie de conselheiro. No
entanto, na sociedade contemporânea, o ato de “dar conselhos” tornou-se algo
obsoleto. Para BENJAMIN (1983, p. 59): “A arte de narrar tende para o fim porque o
lado épico da verdade, a sabedoria, está agonizando”.
A arte de narrar não é mais um hábito entre um grupo de pessoas. Com a
chegada da escrita e a importância exagerada dada à questão da individualidade, o
homem passou a ser um ouvinte solitário e o autor-narrador, um ser apenas ficcional.
Isso porque o conceito de individualidade modificou também a narrativa literária. O que
temos, então, na contemporaneidade, é o leitor e o narrador solitários. Benjamin, assim
assevera:
A matriz do romance é o individuo em sua solidão, o homem que
não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações, a
quem ninguém pode dar conselhos, e não sabe dar conselhos a
ninguém. (BENJAMIN, 1983, p.59).
34
O romance Estorvo é narrado em primeira pessoa, portanto temos uma
personagem que narra e vive juntamente as suas próprias experiências. Nesse sentido,
ele é a personagem-narrador e tem um discurso ambíguo e híbrido.
A fusão existente entre a personagem e o narrador às figuras funções
diversas daquelas dos romances convencionais, pelo discurso polifônico. A
personagem passa à função de agente do discurso, e o leitor, à de co-autor.
O narrador-personagem faz surgir um discurso autônomo, no qual ele, mesmo
se revela ao leitor por meio de sua própria concepção inacabada de mundo e de si
mesmo. Vejamos uma citação em que o narrador relembra o amigo:
Mas hoje além do gesto, descubro um brilho em seus olhos que
me incomoda. O brilho deve ser reflexo do horizonte que ele
olhava, mas na minha lembrança não entra o horizonte, e os olhos
brilham por brilhar. (CHICO BUARQUE, 2004, p. 80).
O narrador em Estorvo, ao colocar-se em condição de personagem, produz um
discurso individual e único, mas multiplica-o, dando origem ao discurso polifônico, que,
no romance, é provocado pelas vozes internas e externas das personagens, do
narrador e do autor. Parafraseando MACHADO (1995, p. 131), o romance polifônico é
caracterizado pelos processos de transmissão da palavra de outrem quer como fala,
quer como discurso não-pronunciado ou pensamento. Todavia a polifonia não é só uma
habilidade literária do narrador e da personagem; ela também pode ser marcada pela
participação do autor.
De acordo com Machado, o discurso do autor pode estar diluído no da
personagem.
Como uma realização primordial do dialogismo, a polifonia, não é
apenas expressão de um discurso bifocalizado. Na verdade, a
polifonia marca o posicionamento radical inusitado do autor no
romance. (MACHADO, 1995, p. 132)
35
O discurso polifônico em Estorvo depende da posição do narrador em relação
aos elementos axiológicos da obra, quando são relatadas suas idéias pela própria fala
ou pensamento. O diálogo entre personagens no romance é escasso. O que vale é a
dialética do próprio monólogo interior do narrador-personagem. Como exemplo, temos
o seguinte trecho:
Sento-me de frente para uma moça que creio conhecer e o me
lembro de onde. Ela também me olha, mas o me cumprimenta,
não sorri, aliás, me a impressão de estar com os olhos
marejados. Quando vejo as muletas apoiadas no braço do seu
sofá, atino que é a irmã de um antigo conhecido meu, um que
dava festas numa casa com amendoeiras. Ela continua me
olhando sem cumprimentar, e não entendo por que decidiu chorar
na agência bancária. (CHICO BUARQUE, 2004, p. 107)
O romance Estorvo reflete nosso próprio modo de ver a realidade e, até mesmo,
os sonhos. O jogo de palavras traz a referência em relação à distorção da lente voltada
para o próprio discurso do narrador, o que se observa no primeiro capítulo do romance:
Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, o consigo definir
aquele sujeito através do olho mágico. Estou zonzo, o entendo
o sujeito ali parado de terno e gravata, seu rosto intumescido pela
lente (...) Vou regulando a vista, e começo a achar que aquele
rosto é de um tempo confuso e distante. (CHICO BUARQUE,
2004, p. 7)
Ou ainda,
Assim que ponho os pés dentro, apesar do ar fresco, sinto que
posso ter dado um mau passo. Logo na entrada um segurança
dentro de uma cápsula de aço, seus olhos como um casal de
peixes gravitando no visor. Também são do banco os dois vigias
armados na esquina, que julgara guardas de trânsito. (CHICO
BUARQUE, 2004, p. 106)
36
Nas palavras de MILTON (1986, p. 33), a autobiografia supõe uma auto-análise,
empreendida por alguém em busca da própria identidade social, ao contrário dos
narradores clássicos em que a primeira pessoa anula o narrador onisciente.
Em Estorvo, o narrador sofre uma variação no foco narrativo e apresenta-se
como um ser envolvido pelas experiências do protagonista. O que temos é a fusão ou a
hibridização do discurso do narrador e da personagem principal.
Ambos os discursos podem espelhar-se ou refratar: ora narrador, ora
personagem. Essa é uma das grandes diferenças que distancia Estorvo, como
narrativa contemporânea, das narrativas canônicas. Assim nos assinala MACHADO:
Se perdermos de vista a posição do narrador, simplesmente não
conseguimos ouvir as vozes que se embaralham num tenso
diálogo ao longo da narrativa. A grande novidade desse processo
narrativo é que, ao invés de o discurso do narrador ser o suporte
dos demais discursos, ele se confunde com a voz de seu
personagem.(MACHADO, 1995, p. 132 – 133)
Isso se dá de maneira intrínseca, criando a imagem de um discurso unívoco.
Nesse caso, o narrador passa a ter, ao mesmo tempo, uma perspectiva interna e
externa dos fatos e do próprio protagonista.
O narrador da obra é aparentemente ausente. Essa suposta ausência é
igualmente um tipo de máscara utilizado pelo autor na trajetória da realidade diegética.
Logo, a personagem assume o papel de fio condutor da crítica do narrador-câmera e
funciona como uma espécie de espelho pelo qual é possível contemplar sua imagem
por diversos ângulos e posições: uma imagem em construção.
Assim como o homem, a personagem que caracterizamos com aspectos pós-
modernos parece estar diluída no espaço tridimensional das imagens das telas dos
computadores, nas imagens distorcidas das vitrines e dos edifícios vitrificados das
grandes metrópoles, dos televisores e das mídias em geral, responsáveis por co-
construir a imagem refletida nas coisas e nos seres.
Portanto o ser fictício vive de maneira fragmentada, multifacetado, perdido em
seu próprio eu. Ademais, a personagem anônima de Estorvo possui um discurso
37
intimista e uma subjetividade altamente reflexiva e angustiada, comum à realidade
contemporânea em ressonância.
Todavia essa estranheza verificada na personagem advém do fato de a
instância narrativa ocupar um lugar acima da média e distante da produção em série da
massa humana contemporânea. Observemos, na citação, a ausência do narrador no
discurso:
“Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, o consigo definir
aquele sujeito através do olho gico.” (CHICO BUARQUE, 2004,
p. 7)
A complexidade da personagem clássica distingue-se da personagem moderna
pelo fato de termos o privilégio de co-participar da sua história e de construirmos,
juntos, um sentido que nos dê a imagem da linguagem do mundo contemporâneo.
O surgimento do romance contemporâneo e seu devir trazem em si uma direção
diferenciada do modelo épico de personagem, agora inacabada, o que Machado
registra em sua fala:
O romance surge para representar o presente em toda sua
instabilidade, inacabamento e evolução (...). O devir abre uma
outra orientação para a configuração do personagem: o homem,
diferentemente do herói épico, deixa de ser revelado por inteiro,
acabado. (MACHADO, 1995, p. 140).
Verificamos o inacabamento da personagem moderna pelo imaginário ficcional,
como CANDIDO (1987, p. 21) enfatiza: É, porém, a personagem que com mais nitidez
torna patente à ficção, e através dela a camada imaginária se adensa e se cristaliza”.
38
1.2 . A máscara alegórica como ironia
Com efeito, a narração em primeira pessoa, no romance contemporâneo,
revela-nos a visão e a voz do protagonista em relação ao mundo que o cerca, que
reforça o laço ficção-verossimilhança, porém em planos paródicos impessoais sobre um
plano social e histórico. Tais críticas são feitas de forma velada pelo narrador.
Observemos os fragmentos extraídos de Estorvo:
Ela preenche o cheque, e seus cabelos castanhos não permitem
ver se está mesmo sorrindo, nem se esse sorriso quer dizer que
eu sou um pobre diabo. A assinatura negligente, junto com o
sorriso que o posso ver, quer dizer que aquele dinheiro não lhe
fará falta. O ruído ríspido do cheque destacado de um golpe
pode querer dizer que esta é a última vez. Mas a maneira de
encobrir e pousar o cheque ao lado do pires, como quem passa
uma carta boa, retirar a palma acariciando a toalha, como quem
paga alguma coisa e diz ‘esquece’, significa que poderei contar
com ela sempre que precisar. (CHICO BUARQUE, 2004, p. 17)
Apesar de nosso olhar crítico ser guiado a contemplar as máscaras da própria
voz discursiva da personagem de Estorvo, o nosso olhar é bifocal, porque, segundo
BRAIT (2002, p. 60 - 61):
A condição da narrativa por um narrador em primeira pessoa
implica, necessariamente, a sua condição de personagem
envolvida com os “acontecimentos” que estão sendo narrados. Por
esse processo, os recursos selecionados pelo escritor para
descrever, definir, construir os seres fictícios que dão a impressão
de vida chegam diretamente ao leitor através de uma
personagem. Vemos tudo através da perspectiva da personagem,
que, arcando com a tarefa de ‘conhecer-se’ e expressar esse
conhecimento, conduz os traços e os atributos que presentificam
as demais personagens.
39
Trata-se da própria personagem narrando e vivendo a própria existência,
ironicamente, no contexto. Nas palavras de MACHADO :
A principal conseqüência deste processo é a possibilidade de o
homem introduzir-se a si próprio no romance. O devir abre uma
outra orientação para a configuração do personagem: o homem,
diferentemente do herói épico, deixa de ser revelado por inteiro,
acabado. A entidade épica se desagrega na medida em que o
homem aparente entra em choque com o homem interior; a
dimensão subjetiva do homem torna-se objeto de experiência e de
representação. (MACHADO, 1995, p.141)
O protagonista de Estorvo vive uma fusão existencial entre a seriedade e a
ironia da vida. Ambas podem ser encontradas na mesma linha de reflexão. Um outro
modo ficcional é reconstruído, ordenando, do ponto de vista do novo homem, um
mundo a que ele procura adequar-se e em que quer ser reconhecido, mesmo que pelas
subversões das normas literárias e sociais. A linguagem social representa e é
representada, entrando na modalidade de livre criação.
Assim como os fatos na narrativa deixam de ser narrados, mas vividos e
refletidos na mente da personagem, outro fato interessante ocorre em Estorvo: o
narrador-personagem está sempre ironizando ou colocando em debate as próprias
idéias. Isso ocorre porque, segundo Machado, a concepção do novo romance, através
do discurso polifônico, mostra outra maneira de apreender os fenômenos sociais e
axiológicos do romance.
A posição do narrador no romance polifônico mostra também uma
outra possibilidade de apreensão de fenômenos sociais, como
aqueles retratados no romance Crime e Castigo. Seguindo o
princípio da coexistência e interação, Dostoiévski mostra como a
mente discursiva de Raskólnikov se transforma numa arena
contrastes entre visões de mundo que desafiam suas próprias
idéias, como o que ocorre na cena (...). (MACHADO, 1995, p. 134)
40
No caso do romance, a apreensão dos fatos é mostrada por meio da máscara
alegórica cujo produto final é a ironia. Em três momentos do romance, o autor coloca
em contraste a realidade e a religião. As críticas feitas pelo autor, através do narrador-
personagem, são a confirmação do hibridismo existente no discurso narrativo.
Nos fragmentos abaixo, o autor critica a atitude das personagens pelas atitudes e
a cegueira religiosa em que elas se encontram.
No primeiro exemplo, o narrador-personagem, em hibridização com a voz
autoral, utiliza-se de uma história popular muito comum e, de forma inversa, contradiz a
verdadeira mensagem bíblica: A parábola do filho pródigo (MARCOS 21: 28-32). A
parábola refere-se a um filho desgarrado e mau, que exige a partilha da herança pelo
pai e parte, mas gasta toda a herança e, lembrando-se do pai rico, resolve voltar para
casa.
O autor apossa-se dessa parábola e inverte a mensagem original em um tom
irônico não-revelado, apenas citado. Nesse caso, o leitor, conhecedor da parábola,
coloca-se em um dilema a respeito do relato, do presente e do passado da
personagem:
O porteiro quer porque quer carregar a mala, quer correr para me
abrir o elevador, quer me chamar de patrãozinho e diz que o bom
filho a casa torna. (CHICO BUARQUE, 2004, p.99)
Nos dois exemplos abaixo, verificamos uma ironia mais sagaz contra a
religiosidade do homem contemporâneo. Nesses casos, o autor coloca em evidência o
choque entre o dogma da religião cristã e a verdadeira realidade de seus supostos
seguidores. O discurso irônico forma-se a partir da autodepreciação, como dissemos,
velada:
Mas é de mulher feita o pequeno corpo que caminha, que escolhe
cada passo com um critério de corpo, e que portanto caminha com
orgulho que com direção, a camiseta até os joelhos com a
inscrição: ‘Só Jesus Salva’. (CHICO BUARQUE, 2004, p. 28)
41
Ou ainda,
Passados cinco anos, a porta ainda é de abrir por dentro, enfiando
a mão pelo buraco de um vidro quebrado. Em seu quarto nos
fundos do térreo, o zelador não perde o programa do pastor Azéa,
muito menos agora que é pela televisão. (CHICO BUARQUE,
2004, p. 110)
Temos, nessas citações, uma crítica a respeito da verdade dogmática em
contraste com a vida das personagens.
A fim de corroborar com o nosso pensamento MUECKE (1995, p. 54) afirma:
Que a ironia e o logro são vizinhos próximos está claro a partir do
termo latino que designa a ironia: dissimulatio (bem como ironia).
Em Teofrasto, tanto o Eiron quanto o Alazon eram divas, esquivas,
autodepreciativas, o outro por trás de uma fachada de elogios.
E a respeito do homem irônico moderno e sua performance acrescenta:
Mas o ironista moderno, quer desempenhe um papel eirônico quer
um alazônico, dissimula ou, antes, finge, não para ser acreditado,
mas, como se disse, para ser entendido. (MUECKE, 1995, p. 54)
Chamamos de performance a máscara alegórica utilizada como meio para
introduzir, no romance, um discurso irônico.
Amigo mesmo me lembro de um. Era alguns anos mais velho e
dizia que eu tinha um futuro. Vivia lendo os jornais, as revistas
especializadas, depois me contava que era tudo mentira. Recebia
correspondência do estrangeiro, ouvia os clássicos, ia publicar em
breve um tratado polêmico sobre o sei mais a matéria. Inventou
e queria me ensinar uma língua chamada desesperanto. (CHICO
BUARQUE, 2004, p. 43)
42
No trecho acima, o vocábulo original, esperanto, é uma língua artificial (derivada
do latim), criada por Zamenhof para facilitar o entendimento universal entre os homens
e é trocado propositalmente pelo neologismo desesperanto. Trata-se, portanto, de uma
mensagem irônica escondida atrás de uma máscara ingênua: uma troca de palavra.
A respeito do jogo de palavras e os chistes de reflexão, ALBERTINI (1999, p.
17), apóia-se em Freud ao dizer:
O jogo de palavras funciona da mesma palavra ou de palavra
semelhante, o que é possível porque a idéia da palavra está
isolada de sua relação com a idéia da coisa.
Percebemos que a palavra desesperanto foi utilizada como um modo de
desfazer o próprio sentido do significado: esperança. Trata-se de um jogo sarcástico
por parte da personagem para demonstrar o seu desespero interior.
Em um tom quase solene e jocoso, o protagonista de Estorvo promove uma
imagem caricaturesca de um homem de uma perna só. Percebemos essa ironia no tom
solene com que o malandro de Estorvo destrói a concepção de um homem da lei,
idealizado pela sociedade, forte, perfeito e sem defeitos. Vejamos o exemplo:
Na garagem lotada de automóveis largos e sóbrios, o táxi amarelo
é quase uma arrogância. (...). Esse sujeito leva um susto quando o
delegado toca a buzina, que ribomba na garagem, e acorre
pulando num só. O que traz nas os é uma perna mecânica,
que introduz pela janela e deposita no assento do lado, antes de
se postar ao volante. (CHICO BUARQUE, 2004, p.139)
A narrativa Estorvo recorre a esse estilo irônico a fim de promover um jogo entre
os cenários (ambientes) e promover um contraste na perspectiva da personagem, um
riso involuntário, provocado pelo elemento-surpresa. Conhecendo os objetivos
estabelecidos pela sociedade em relação à função dos objetos, a personagem infringe-
43
os, como, por exemplo, a pia da cozinha é utilizada pelo protagonista como vaso
sanitário em Estorvo, em razão do caráter emergencial de uma necessidade fisiológica.
Custo a atinar com a fechadura, que deve ter sido trocada e agora
abre para a direita, e são três voltas, e suporto mesmo, estou a
poucos metros do alvo, a urina foi avisada e avança pelo seu
canal. Atravesso a sala correndo, baixando o zíper, entro no
banheiro e não é, é a cozinha, mas a esta altura não mais para
conter a grossa mijada no mármore da pia e em sua cuba de aço
inoxidável repleta de louças de ontem e copos com restos de
vinho. (CHICO BUARQUE, 2004, p. 50)
Em Estorvo, a alegoria como discurso metafórico contextualiza a ironia. A
moldura alegórica utilizada por Chico Buarque para apresentar as próprias idéias
sociais torna-se mais eficaz e menos comprometida, porque o discurso irônico é lido
como uma amostra descomprometida e ingênua. No entanto essa aparente
ingenuidade é ornamentada pela máscara alegórica. Segundo Muecke:
“Um sentido de ironia implica não a capacidade de ver contrastes
irônicos, mas também o poder de moldá-los na mente de alguém.
Inclui a capacidade, quando confrontada de algum modo com
alguma coisa, de imaginar ou lembrar ou observar alguma cosia
que formaria um contraste irônico”. (MUECKE, 1995, p. 62 )
A alegoria é uma figura de linguagem muito utilizada para representar alguma
mensagem de difícil aceitação. Ela serve para atenuar a dureza, a verdade cruel. A
alegoria não pertence apenas à linguagem verbal; podemos também vê-la nas
esculturas, nas pinturas, no teatro, como expressões não-verbais. Podemos citar, como
exemplo alegórico não-verbalizado, o cinema de mudo de Charles Chaplin.
No livro A alegoria, de Hansen (2006), encontramos um dos vários conceitos
sobre o sentido e a função da alegoria a partir da retórica antiga:
44
A alegoria (gregos allós = outro; agourein = falar) diz b para
significar a. A Retórica antiga assim a constitui, teorizando-a como
modalidade da elocução, isto é, como arnatus ou ornamento do
discurso. (HANSEN, 2006, p. 7)
A alegoria tem por objetivo expressar algo para dar significado a outra coisa, em
geral por meio de símbolos morais. Etimologicamente, a palavra alegoria vem do grego
allegoría que significa “dizer o outro”, “dizer alguma coisa diferente do sentido literal”.
Segundo o Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia (2005):
Alegoria: aquilo que representa uma coisa para dar a idéia de
outra através de uma ilação moral. Etimológicamente, o termo
provém do grego Allegoría que significa “dizer o outro”, “dizer
alguma coisa diferente do sentido literal”, e veio substituir ao
tempo de Plutarco (c. 46- 120 d.C.) um termo mais antigo:
hypónoia, que queria dizer “significação oculta” e que era utilizado
para interpretar, por exemplo, os mitos de Homero como
personificações de princípios morais ou forças sobrenaturais,
método que teve como especialista Aristarco de Samotrácia.
(c.215- 143 a. C.).
Existe, na escritura de Estorvo, um jogo de alegorias, cujas imagens se tornam
reflexos e aparências; tudo “pode ser” e “não ser”. Esse duplo jogo do próprio discurso
do protagonista-narrador abre o “leque” do sentido da obra.
Agora, ele percebeu que é inútil, que não me engana mais, que
eu não abro mesmo, que sou capaz de morrer ali em silêncio,
posso vira um esqueleto em diante do esqueleto dele, então
abana a cabeça e sai do meu campo de visão. E é nesse último
vislumbre que o identifico com toda a evidência, voltando a
esquecê-lo. (CHICO BUARQUE, 2004, p. 9)
Embora o discurso do protagonista sugira uma aparente escolha interpretativa, o
próprio relato é intimista. Nesse caso, nada melhor do que um discurso do dizer e não
dizer para induzir a denúncia como um fato, uma realidade cruel. A alegoria em Estorvo
45
é a figura de linguagem dada à ironia, que, de acordo com Lausberg (Cf.
LAUSBERG, apud HANSEN, 2006, p.7):
A alegoria é a metáfora continuada como tropo de pensamento, e
consiste na substituição do pensamento em causa por outro
pensamento, que está ligado, numa relação de semelhança, a
esse mesmo pensamento.
O protagonista de Estorvo transmite-nos a idéia de agonizar em seu próprio
estado de dormência latente, em diferentes lugares: na rua, no apartamento, no sítio.
Sua vida é uma constante agonia, que suscita um pedido de socorro. Todavia o pedido
de socorro não é para si, visto que ele tem consciência de estar entre a vida e a morte.
Temos a morte não literal, mas a morte do eu, do homem que pode escolher o seu
próprio destino.
A dialética da transgressão no conceito contemporâneo é levada ao extremo, ao
infinito. No teatro beckettiano, o herói representa o macho questionador, solitário e
capaz de submeter-se a um auto-escrutínio.
O silêncio do herói contemporâneo é o seu grande discurso, porque retrata, na
contemporaneidade, o grande dilema do ser: a alienação da razão e a morte do eu. Em
Estorvo, o silêncio fica apenas no plano dialógico, entre a personagem e os outros, e
serve também como máscara para o leitor ver o universo através da situação caótica da
personagem-narrador e participar dessa visão e dessa alienação.
Ouço tocar uma, duas, cinco vezes, telefone de casa de velho.
Mamãe atende, mas não fala, nunca fala nada quando atende o
telefone, porque acha vulgar mulher dizer alô. Eu digo ‘mamãe’, e
posso senti-la colar o fone na orelha, para travar o tremor da mão
esquerda. O copeiro entra com um carrinho, pergunta ‘terminou?’,
mas também não tenho muito assunto, e o copeiro amassa o
guardanapo que eu deixara intacto à minha frente, em forma de
canoa. Mamãe não deve ter entendido que era eu, e pouco depois
cai a linha. O copeiro passa um tipo de espátula na toalha azul-
celeste, catando as migalhas de cream cracker, enquanto eu
invento umas palavras no bocal. (CHICO BUARQUE, 2004, p. 19)
46
A narrativa de Estorvo discute as fronteiras existentes entre o romance moderno
e o contemporâneo. A fim de retratarmos a construção e a transformação da
personagem de Estorvo, precisaremos fazer uma possível aproximação intertextual
entre dois romances de Franz Kafka: A metamorfose (1915) e O Processo (1925),
escolhidas, em princípio, por uma relação cronológica e, depois, pelo fato de serem
análogas quanto à temática: a alienação e a morte do eu.
A vida da personagem (se vai ou não sobreviver ao caos em que se encontra
diluída) leva-a a preocupar-se em encontrar uma testemunha ocular. O leitor pode ser
essa testemunha e ver a face, mesmo distorcida pela scara, do verdadeiro agressor
da liberdade humana: a violência, o capitalismo, a droga.
Podemos destacar o discurso irônico do sentimento de “coita” e desventura
com que a própria personagem se identifica: “eu sou um pobre diabo”.
E mais
Na verdade não sei se cheguei a tocar a campainha, mas estou
desistindo de molestar minha mãe. Cedo ou tarde ela de abrir a
porta, na esperança de uma carta do exterior ou dessas revistas
que assina. (CHICO BUARQUE, 2004, p. 101)
A suposta ausência do narrador onisciente no romance contemporâneo
condiciona a história a múltiplas interpretações. O narrador participante da história
não tem a posse da verdade única, porque os fatos antes narrados agora são parte de
um mesmo discurso, refletido na consciência da personagem, lugar onde tudo é
relativo. Os fatos não são mais divididos entre o passado e o presente, todo
pensamento passado da personagem é presentificado no relato do protagonista.
A narrativa contemporânea com a ausência do narrador onisciente anulou o
distanciamento entre a fala do narrador e da personagem. A retirada do narrador
onisciente na narrativa criou um tipo narrador híbrido que também pode ser chamado
de homodiegético que é uma unidade de tempo que interfere na quebra da cronologia
na narrativa. Isso será mais bem explicado no terceiro capítulo, quando discorreremos
sobre o conceito de cronotopo e a sua presença no romance.
47
Com a hibridização dos discursos, a personagem ganha uma consciência em
fluxo livre e, por eles, a necessidade de construção de uma terceira voz: a
interpretativa, porque, como vimos anteriormente, a obra torna-se aberta e inacabada.
A dualidade das vozes narrativas do narrador e da personagem, em Estorvo,
suscita maior flexibilidade, oferecida pela ironia no corpo textual.
Segundo Muecke, o traço básico de toda ironia é constante entre uma realidade
e uma aparência.
Nos logros existe uma aparência que é mostrada e uma realidade
que é sonegada, mas a ironia o significado real deve ser inferido
ou do que diz o ironista ou do contexto em que o diz, é ‘sonegado’
apenas no fraco sentido de que ele não está explicito ou não
pretende ser imediatamente apreensível. (MUECKE, 1995, p. 54)
Bakhtin também adotou a perspectiva do riso como fundamental para a definição
de seu método crítico, resgatando-o como uma força criadora da literatura e suas
formas expressivas. O riso, que está na base da delimitação dos gêneros poéticos, é
ambivalente e destrona o sério com humor irônico. E a personagem, então, passa a
observá-lo pelo cronotopo metafórico.
48
CAPÍTULO II
O INTERTEXTO EM ESTORVO
49
2.1. Estorvo e Kafka
Neste segundo capítulo, o objetivo é fazer um possível diálogo intertextual de
duas obras kafkianas, A metamorfose (1915) e O Processo (1925), com a obra
Estorvo (1991). Alguns critérios foram observados para traçarmos um paralelo das
semelhanças formais percebidas nesses romances.
A narrativa de Estorvo é contemporânea e afasta-se do projeto literário moderno,
no entanto é necessário discutirmos as fronteiras entre o romance moderno e o
contemporâneo e suas personagens, porque, a fim de retratar, com mais objetividade,
a construção e a transformação da personagem de Estorvo, originária do modelo da
narrativa do pós-guerra, precisamos confrontar arquétipos e seus usos.
De acordo com JENNY (2001, p. 5):
Fora da intertextualidade, a obra literária seria muito simplesmente
incompreensível, tal como a palavra duma língua ainda
desconhecida. De facto, se apreende o sentido e a estrutura
duma obra literária se a relacionarmos com seus arquétipos por
sua vez abstraídos de longas séries de textos, de que constituem,
por assim dizer, a constante. Esses arquétipos, provenientes de
outros tantos ‘gestos literários’, codificam as formas de uso dessa
‘linguagem secundária’ (Lotman) que é a literatura.
Podemos chegar a duas conclusões a partir dessa citação: a primeira é a idéia
de que um texto muitas vezes remete a outro pela forma ou pelo código; a segunda é
a definição, mesmo que incompleta, da função da literatura e sua infinita
transformação. Há necessidade de se abstrair uma constante.
Para traçar o diálogo intertextual entre as personagens de A metamorfose e O
processo com a de Estorvo, levaremos em consideração um fator temporal: as obras
kafkianas pertencem ao começo do século XX e Estorvo ao final do século.
50
Ao estudarmos esse paralelo entre as obras, encontramos pontos próximos, seja
por fatores axiológicos, seja por estilos. Vejamos alguns elementos convergentes
encontrados entre as personagens de A metamorfose, O processo e Estorvo:
a) A personagem é retratada pelo ângulo psicológico; o eu torna-se
fragmentado pelo fato temporal psicológico que se confunde com o tempo
cronológico do relato.
Vejamos um exemplo dessa personagem em A metamorfose:
‘Meu Deus!’, pensou então. ‘Quão trabalhosa é a profissão que
escolhi! Um dia sim e outro também, em viagem. A preocupação
dos negócios é maior quando se trabalha fora do que quando se
trabalha no escritório, e não falemos desta praga de viagens:
cuidar das conexões dos trens; a comida ruim, irregular; relações
que mudam sempre, que não duram nunca, que não chegam
nunca a ser verdadeiramente cordiais, e nas quais o coração
nunca pode ter participação. Ao diabo tudo isso!’. (KAFKA, 1999,
p. 18)
Em Estorvo vemos a mesma composição híbrida entre o tempo do relato e o
psicológico da personagem-narrador:
Mas a maneira de encobrir e pousar o cheque ao lado do pires,
como quem passa uma carta boa, e de retirar a palma acariciando
a toalha, como quem apaga alguma coisa e diz ‘esquece’, significa
que poderei contar com ela sempre que precisar. (CHICO
BUARQUE, 2004, p.19)
b) O herói oscila, em geral, entre a realidade e o sonho, e a realidade e a
alucinação. Temos exemplos melhores em A metamorfose e Estorvo.
‘Bem’, pensou, ‘que acontecerá se eu continuar dormindo um
pouco mais e me esquecer de todas as fantasias?’. Mas isto era
algo absolutamente irrealizável porque Gregor tinha o costume de
dormir sobre o lado direito, e seu atual estado não lhe permitiria
adotar essa postura. (KAFKA, 1999, p. 17)
51
Da mesma maneira sonolenta com que a personagem de A metamorfose
acorda, acorda a personagem de Estorvo:
Escorreguei de volta para a cama, e creio que o sujeito acabará
desistindo, convencido de que não há ninguém em casa. Mas nem
bem ultrapasso a divisória imaginária do meu quarto-e-sala, e a
campainha toca outra vez. Não posso dormir com a imagem
daquele homem fixo na minha porta. (CHICO BUARQUE, 2004,
p.8)
O herói também oscila entre a negação e auto-afirmação, entre consciência e
alienação; nesse caso, a personagem Josef K. assemelha-se melhor à de Estorvo:
K. ficou calado e pôs-se a pensar; ‘Deixar-me-ei intimidar pela
conversa destes empregados inferiores, pois eles próprios
admitem que o são. De qualquer modo, estão falando de coisas
que de maneira alguma compreendem. (KAFKA, 2005, 42)
Já em Estorvo:
Mas ainda não é um sonho e nada devo ao proprietário, pois
minha irmã é avalista, adiantou seis meses a título de fiança, e
quando mamãe morrer, meu quinhão na herança o paga o que
devo à mana, por isso ela pode ter dado meu endereço a um
advogado, um oficial de justiça, um tabelião barbudo no olho
mágico. (CHICO BUARQUE, 2004, p. 29)
Pontos divergentes:
Em Kafka:
a) A linguagem decorrente é a metafísica voltada para o existencialismo:
Assim permaneceu toda a noite, parte em um semi-sonho, do qual
o despertava em sobressalto a fome, e parte também assaltado
por preocupações e esperanças não muito definidas, mas cuja
conclusão era sempre a necessidade imediata de ter calma e
paciência (...). (KAFKA, 1999, p. 33)
52
b) A personagem vive e auto-afirma-se no próprio sistema organizacional:
A que departamento oficial pertenciam? Entretanto, K. vivia em um
estado constitucional no qual reinava a paz, no qual todas as leis
estavam em vigor, de modo que quem eram aqueles que se
atreviam a invadir a sua casa?. (KAFKA, 2005, p.40)
c) O mundo fictício é objetivo, atendendo à regra social em que a personagem
se insere:
“Quando numa daquelas tardes K. passava pelo corredor que
separava seu escritório da escadinha principal (esta era a vez em
que K. era um dos últimos a ir-se embora para casa pois no bando
apenas ficavam os encarregados de despachar a
correspondência) (...). (KAFKA, 2005, p. 113)
d) A narração kafkiana prioriza o herói e, nesse caso, os fatos são projetados
pela visão externa do narrador:
- Venha aqui - disse a enfermeira, assinalando uma arca escura
de madeira entalhada. Antes de sentar-se, K. examinou a sala.
Tratava-se de um quarto alto e espaçoso onde sem vidas os
clientes do defensor dos pobres teriam que se supor perdidos.
(KAFKA, 2005, p.136)
e) A história é relatada pelo narrador onisciente:
Gregor, assim, não chegou a penetrar na sala; do interior de seu
quarto, permaneceu apoiado na folha fechada da porta, de modo
que apenas se via a metade superior do corpo, com a cabeça
inclinada meio de lado, espiando para fora. (KAFKA, 1999, p. 27)
53
Em Estorvo:
a) Impera a narrativa irônica, uma espécie de máscara alegórica da
personagem-narrador:
O baixinho de axilas encharcadas usa uma cinta anatômica por
baixo da roupa, deformando o abdômen que supõe disfarçar; é
esse o marido da minha irmã, e aponta para mim. (CHICO
BUARQUE, 2004, p. 60)
b) O universo fictício é subjetivo:
Acordo sem saber se dormi pouco ou demais. É um meio de tarde,
mas não sei de que dia. Pulo a janela e saio pela varanda, do lado
oposto à cozinha. Não quero cruzar com o velho nem ninguém.
(CHICO BUARQUE, 2004, p. 89)
c) A narração é projetada pelo campo de visão do herói-narrador. Como o herói
é o próprio narrador, temos uma narrativa híbrida:
Olho para o chão, e estou descalço, não tive tempo de me vestir
direito. Os dois comparsas começam a esfregar suas botas nas
tábuas da varanda, como se apagassem charutos, e com isso
produzem um chiado desagradável. (CHICO BUARQUE, 2004, p.
33)
Os pontos de convergência e divergência servem como base para destacarmos
a complexidade da personagem contemporânea em Estorvo em relação às
personagens kafkianas.
A descentralização do sujeito no mundo ocidental, no século XX, tem sua origem
na descoberta do inconsciente por Freud. Ele formulou o conceito de que o homem é
formado pelos processos psíquicos e simbólicos do inconsciente, uma identidade
diferenciada do modelo de Descartes, cujo sujeito é provido de identidade fixa e
unificada.
54
O segundo dos grandes ‘descentramentos’ no pensamento
ocidental do culo XX vem da descoberta do inconsciente de
Freud. Teoria de Freud de que nossas identidades, nossa
sexualidade e a estrutura de nossos desejos são formadas com
base em processos psíquicos e simbólicos do inconsciente, que
funciona de acordo com uma “lógica” muito diferente daquela da
Razão, arrasa com o conceito do sujeito cognoscente e racional
provido de uma identidade fixa e unificada – o “penso, logo existo”,
do Freud de Descartes. (HALL, 2004, p. 36)
A literatura contemporânea também sofre modificações em relação às narrativas
anteriores, especificamente, do século XVIII. Muitos escritores como Marcel Proust,
Virgínia Woolf, Thomas Mann e James Joyce deram às suas narrativas uma
concepção modificada, violando assim as normas que regiam as ficções anteriores,
principalmente, revelando uma nova configuração para a personagem e sua
representação psicológica e emotiva. BRAIT (2002, p. 39), em relação ao sujeito da
nova ficção, acrescenta:
O herói problemático, também denominado demoníaco, está ao
mesmo tempo em comunhão e em oposição ao mundo,
encarnando-se num gênero literário, o romance, situado entre a
tragédia e a poesia lírica, de um lado, e a epopéia e o conto, de
outro.
Logo, o que vemos é a certeza da negação da identidade do narrador e
percebemos que, quanto mais o narrador busca aproximar-se de uma possível
identificação com alguém ou afirma sua identidade, mais distante ele fica. O que temos
é a representação de um sujeito deslocado e descentrado de si mesmo.
55
2.2. O herói problemático
O deslocamento do sujeito em relação à realidade vivida provoca a fragmentação
do seu ser, porque não acordo entre o eu do narrador e a realidade que o cerca. Ele
torna-se um sujeito solitário e estranho ao próprio mundo. Assim, o narrador de Estorvo
é uma vítima de um sistema social burocrático, como o protagonista Josef K., de O
processo, de Franz Kafka. Na opinião de Stuart Hall, no mundo contemporâneo se
encontra o homem alienado e deslocado como um produto do sistema burocrático:
Encontramos, aqui, a figura do individuo isolado, exilado ou
alienado, colocado contra o pano-de-fundo da multidão ou da
metrópole anônima e impessoal. (HALL, 2004, p. 32)
Em favor do homem no mundo contemporâneo, o sujeito-autor deixou de existir
como indiduo e assumiu uma identidade fragmentada pela coletividade. A pluralidade
do ser é fruto da política universal da globalização das instituições: da família, da
religião, da moral. Tanto em Kafka quanto em Buarque, encontramos uma narrativa
predisposta à exaltação do consciente humano como visão de mundo não-idealizado,
que não se propõe ver as normas ou as formas básicas que ordenam a realidade
empírica. Por isso, em ambas as narrativas, tudo é sonho. Assim nos diz ROSENFELD:
A visão do mundo a partir de uma consciência, que não se atém
às formas sicas que ordenam a realidade empírica, suscita
freqüentemente a impressão de sonho e pesadelo. (ROSENFELD,
2006, p. 230)
Entre a realidade e o sonho, a personagem interage consigo mesma, em
monólogo interior. Vejamos dois fragmentos, em A metamorfose e em Estorvo:
Todos esses pensamentos agora completamente inúteis
agitavam-se em sua mente enquanto ele, colocado à porta, ouvia
o que se dizia ao lado. (KAFKA, 1999, p. 37)
56
Com uma voz até delicada, pergunta quem sou eu e o que faço,
naquela propriedade. Várias coisas passam pela minha cabeça,
mas não encontro uma boa resposta. (CHICO BUARQUE, 2004,
p. 32)
Segundo CONNOR (1993), em Pós-modernismo e literatura, Hassan, nomeia a
literatura pós-1914 de “a literatura do silêncio”, que consiste no desmembramento, mas
ainda assim continua, de alguma forma, a cantar com “uma lira sem cordas”.
O narrador de Estorvo luta contra o novo ideal contemporâneo, o senso-comum,
ele não concebe os fatos como naturais. A sua fuga é produto da não aceitação de uma
coletividade doentia, degradante.
O silêncio do herói contemporâneo é o seu grande discurso, porque retrata, na
contemporaneidade, o grande dilema do ser: a alienação da razão e a morte do eu.
A questão da animalização humana também se faz presente em Ode aos Ratos
(2001),
música de Edu Lobo em parceria com Chico Buarque, cuja letra, de forma
metafórica, protagoniza e aproxima o ser humano do animal.
Vejamos o que nos diz essa letra:
Rato de rua
Irrequieta criatura
Tribo em frenética
Proliferação
Lúbrico, libidinoso
Transeunte
Boca de estômago
Atrás do seu quinhão
Vão aos magotes
A dar com um pau
Levando o terror
Do parking ao living
Do shopping center ao léu
Do cano de esgoto
Pro topo do arranha-céu
57
Na letra, o rato e o homem convivem no mesmo espaço e tempo. Ambos são
protagonistas de uma única situação e vivência. Assim como na letra dessa música, o
homem do subsolo urbano vê-se obrigado a dividir o espaço, os medos, a fuga acirrada
dos predadores, o alimento, etc.
Tanto no romance Estorvo quanto na música: Ode aos ratos, o homem
confunde-se com um rato, um sobrevivente dos dejetos sociais. Ambos são estorvos
sociais, sobreviventes, produtos das próprias mazelas.
Percebemos, de maneira mais nítida, a ambigüidade que aproxima o homem do
animal, no capítulo 5 do livro Estorvo:
Escurece de repente, e levo uns segundos para entender que uma
vaca malhada encostou a cabeça no vidro da janela. A cabeça da
vaca enquadra-se na janela com exatidão, e se estabelece. É uma
vaca fatigada. Sua pálpebra de quando e quando lambe o olho,
num movimento grave que aprendo a prever. Também me
familiarizo com a baba no canto da boca, que pende a meio palmo
e sobe, pende e sobe de novo. E às vezes a vaca malhada
meneia o queixo para frente, de leve, como quem pergunta ‘e aí?’,
ou ‘como é que é?’, ou ‘o que é que você acha?. (CHICO
BUARQUE, 2004, p. 73).
Ressaltam-se dois momentos importantes no que diz respeito à personagem no
papel do animal em Estorvo: no primeiro, o protagonista encontra-se enjaulado,
enquanto a vaca o observa pelo lado de fora. O que temos é uma inversão de valores
por meio da condição espacial dos fatos. Nesse caso, o protagonista torna-se vítima da
violência dos gêmeos e passa à condição de animal; no segundo, o protagonista
assume o lugar do animal no plano psicológico e sente-se interpelado a respeito de sua
condição de preso: “e aí?”, ou “como é que é?”.
Retomando o texto de Kafka, o interessante na transformação de Gregor é a
maneira como a família se comporta ao saber da nova condição dele: o espanto e a
comiseração transformam-se em desprezo e indiferença. No entanto mais interessante
nessa narrativa fantástica é a possível leitura bifocal, porque, se mudarmos nosso foco
de atenção, descobriremos que a família de Gregor, também, animaliza.-se.
58
Percebemos que, no intertexto dos romances: Estorvo, de Chico Buarque, A
metamorfose, de Kafka e na letra da música Ode aos ratos, de Chico Buarque e Edu
Lobo, um jogo de espelhos e de inversões, proposto pelos protagonistas. A refração
é um jogo de espelho, cujo objeto é o mesmo, mas depende da direção do olhar. Vê-se
um mesmo objeto, ao mesmo tempo, de maneira bifocal, de duas maneiras diferentes:
“Quem é o animal em Estorvo? O protagonista ou os outros?”.
Em Estorvo, o jogo de espelho proposto pelo discurso plural funciona como uma
espécie de alegoria proposta pelo próprio protagonista por meio de incertezas e
devaneios. Embora, a alegoria não seja o centro de nossa investigação, ela é um tipo
de máscara utilizada em Estorvo, por isso é necessário citá-la enquanto elemento
representativo e figurativo.
Logo, a dualidade de sentidos, presente em Estorvo, é fruto de um jogo
alegórico. Nesse caso, o jogo metafórico do espelho é capaz de refletir a realidade e os
objetos duplicados. Assim afirma SANTAELLA:
Um espelho é um objeto capaz de refletir tudo aquilo que se
coloca à sua frente. Diante de um espelho, qualquer coisa é
imediatamente duplicada. (...) A imagem espetacular é um duplo
daquilo que está nela refletido. (SANTAELLA, 1996, p. 45-46).
59
CAPÍTULO III
O CRONOTOPO EM ESTORVO
60
3.1. O cronotopo: Bakhtin e Genette
Cronotopo é um termo utilizado para representar a fusão do tempo e do espaço
em um romance. O termo cronotopo é proveniente do grego (cronos = tempo e topos =
espaço).
A questão do tempo no romance sempre provocou preocupações em críticos e
estudiosos da literatura, no entanto essa questão (cronos) ainda não foi totalmente
resolvida em razão da complexidade no que concerne a sua aplicação na obra.
Entre os estudiosos e críticos que buscam compreender melhor a questão do
tempo da narrativa, encontramos dois: Mikhail Bakhtin e Gérard Genette. O primeiro
analisou o tempo sob os aspectos externos (o tempo como formador dos gêneros
literários) e rard Genette estudou-o sob os internos (o tempo como elemento
estruturador da obra).
O cronotopo (termo utilizado por Bakhtin para classificar o tempo da ficção) é o
organizador dos fatos temáticos e representa melhor o homem fictício que vive
determinado momento histórico e social. Conforme MACHADO, em citação de J.
Bender & D. E. Wellbery, 1991, p. 42-44:
Com base nesta concepção, encontramos duas linhas de
compreensão do tempo nos estudos literários. Uma focaliza o
tempo como medida de movimento e como duração, revelando um
caráter estrutural. Outra se volta para o conjunto da composição,
entendendo o tempo como agente formador dos gêneros literários.
(MACHADO, 1995, p. 243)
A veracidade dos fatos narrados depende da duração do tempo e do lugar em
que eles ocorrem em relação à personagem.
De acordo com MACHADO (1995, p.255):
Ao representar o homem vivendo situações, o cronotopo torna-se
o centro organizador dos principais acontecimentos temáticos do
romance. É que os nós do enredo são feitos e desfeitos. As
ações nunca são imagens vazias, mas encarnam a dimensão do
tempo e do lugar em que acontecem.
61
As personagens na narrativa agem de acordo com a duração e a mudança do
tempo, de extrema importância para se compreender a história. Para Machado, o tempo
no romance afasta-se do modelo épico que valoriza o tempo cronológico em um
passado absoluto e fechado, porque o tempo romanesco apresenta maior flexibilidade
entre o passado e o presente (narrado), graças à capacidade de conter os aspectos da
contemporaneidade:
Diferente da épica, que valoriza o tempo imanente, fechado em si mesmo o
passado absoluto –, o romance representa o passado em trânsito para o presente,
graças à capacidade de entender a contemporaneidade. (cf. MACHADO, 1995, p. 255).
O estudo do cronotopo em Bakhtin visa a dividir e classificar as obras
dependendo do momento da publicação e dos aspectos sociais internos que a regem,
ou seja, o cronotopo, para Bakhtin, assume uma teoria sobre os gêneros literários em
relação à organização temporal dentro do romance.
Em literatura, o processo de assimilação do tempo, do espaço e do individuo
histórico real que se revela neles tem fluído complexa e intermitentemente.
Assimilaram-se os aspectos isolados de tempo e de espaço acessíveis em dado estágio
histórico do desenvolvimento da humanidade, elaboraram-se também os métodos de
gênero, correspondentes ao reflexo e à confecção artística dos aspectos assimilados da
realidade.
A análise de Genette (1987) assume aspectos mais internos porque ele busca
estruturar e perceber as diferentes modalidades cronológicas e suas formas
organizacionais em relação à verossimilhança da obra. Para isso, ele divide o
cronotopo da narrativa em subgêneros para melhor distinguí-los em suas
funcionalidades.
De acordo com Genette, o relato pode dividir-se da seguinte forma: seqüência
normal, seqüência anacrônica e duração. A normal refere-se à seguinte ordem:
analepse, retrospectiva de fatos passados, principalmente no início do romance;
prolepse é o relato do advir e pode também ter interferência dependendo da fusão das
vozes do narrador, da personagem e/ou do autor. Nesse caso, a performance do
62
narrador e da personagem pode dividir o tempo da prolepse em heterodiegética e
homodiegética. A última unidade de tempo é a duração que tem por função relacionar o
tempo de leitura e o tempo dos fatos acontecidos.
Bakhtin e Genette, apesar de possuírem métodos interpretativos distintos do
cronotopo no romance, completam-se e atendem às análises mais complexas, um no
plano histórico-social e o outro no plano interno da escritura.
Para a análise do cronotopo no romance Estorvo, ater-nos-emos às duas teorias:
para a análise interna, utilizaremos Genette e, para a externa, Bakhtin.
3.2. O cronotopo interno em Estorvo
Seguindo o método analítico de Genette, observamos a pluralidade temporal em
que se encontra a narrativa contemporânea de Chico. Nela encontramos a fusão do
tempo-espaço (cronotopo) em várias instâncias: o psicológico e o da narrativa.
Em Estorvo, há a recorrência dessas duas instâncias de maneira visível, em uma
cadeia seqüencial e complexa.
Genette divide o cronotopo da estrutura da narrativa em vários subgêneros para
melhor compreender-se o tempo-espaço no texto.
Na seqüência normal, o relato caminha naturalmente pelos fatos vividos pela
personagem no romance. O presente e o passado são bem distintos e bem limitados
pelos advérbios e pelos verbos no presente e no pretérito. Como exemplo da
seqüência normal, em Estorvo, temos:
a) No presente fictício – refere-se ao fato vivido pela personagem no momento:
Agora é o caseiro velho quem irrompe no pátio com um copo de
underberg na mão, e assobia para as motos com dois dedos na
boca. As crianças riem, aplaudem, atiram limões no velho. (CHICO
BUARQUE, 2004, p. 31)
E, também
63
Hoje encontro a porta encostada, o quarto escuro, e arrependo-me
um pouco de ter entrado. Os metais da orquestra chegam cá em
cima com toda a potencia, mas estou certo de ter ouvido um
suspiro, um suspiro de voz conhecida. (CHICO BUARQUE, 2004,
p. 63)
Nesses trechos, a personagem-narrador vive o momento do fato relatado pelos
advérbios que indicam tempo presente: “Agora, hoje”, assim como o verbo utilizado na
primeira pessoa do singular do Presente do Indicativo.
A mesma estrutura frasal para relatar um evento vivido pela personagem é
encontrada ao relembrar o passado. Vejamos alguns excertos:
No bar, quando bebia além da conta, ou quando chegava cheio
de estimulantes no pensamento, dizia poemas. Havia noites,
geralmente, noites de sábado quando lotava o bar, que ele
deixava cair na testa a franja negra e cismava de declamar em
francês. (CHICO BUARQUE, 2004, p. 43)
E mais
Era um domingo no início deste verão, e eu viera visitar minha
irmã de surpresa. Ela estava na piscina com uns amigos, e lembro
que usava um maiô inteiro, cor de vinho. (CHICO BUARQUE,
2004, p. 62)
O passado nesses dois trechos é inferido pelos verbos no pretérito perfeito, no
imperfeito e no mais-que-perfeito, acompanhado de advérbios que indicam ocorrência
de passado: “quando, era um domingo, havia noites”.
Em Estorvo, a quebra da cronologia da seqüência normal é uma constante,
porque se trata de romance psicológico em que o narrador-personagem, em geral,
interrompe o tempo vivido e transporta-se anacronicamente, caracterizando no romance
o tempo do subjetivo.
A analepse, em Estorvo é muito utilizada pelo narrador no meio do parágrafo
narrativo:
64
À medida que fala, minha irmã espalha uma película de geléia
grená na torrada, como que esmaltando a torrada, depois analisa,
desiste do grená e arremata com geléia cor de laranja, vai morder,
muda de idéia, toma um gole de chá e se admira de como uma
pessoa pode envelhecer da noite para o dia, pois quando papai
morreu a gente pensou que mamãe fosse baquear, qual nada,
continuou a mil, ia ao teatro, jantava fora, tomava seu uisquinho,
jogava tênis, puxa, pensar que até o ano passado mamãe jogava
tênis. (CHICO BUARQUE, 2004. p. 15)
Verificamos, nesse fragmento, a interrupção do relato vivido pela personagem
para remeter a um fato passado.
A ocorrência da prolepse em Estorvo também pode ser constatada em alguns
fragmentos. Como exemplo, temos:
Quando o irmão a vir entrar com lágrimas nos olhos, vai entender
que o empréstimo foi recusado. Irritado com o capitalismo, dirá
que são sabe para que serve um banco, se não libera dinheiro
nem para uma cliente aleijada. Julgando-se atingida, ela dirá
baixinho que a culpa é toda dele, que se endividou dando festa
atrás de festa. Ele di“tudo bem, tudo bem” pensando em jogar
na cara dela a fatura dos remédios importados, sem falar nessa
fisioterapia que não adianta nada. (CHICO BUARQUE, 2004, p.
109)
As ocorrências anacrônicas (analepse e prolepse) foram analisadas no plano
psicológico da personagem-narrador, não no percurso natural do enredo narrativo.
3.3. O cronotopo metafórico
O cronotopo metafórico é o mais complexo de todos porque tem origem no
próprio conceito de alegoria, abordado no primeiro capítulo e também porque o relato
assume característica própria de romance autobiográfico. O tempo metafórico em
65
Estorvo é uma representação do próprio discurso alegórico, porque, como foi
explicado, o conceito de alegoria tem origem no teatro público grego.
Etimologicamente, a alegoria provém da junção de dois vocábulos gregos: allos =
outro e agourein = ágora, assembléia. De acordo como LAUSBERG (1976, p. 283) “a
allegoria (inversio) é a metáfora que é continuada como tropo de pensamento e
consiste na substituição do pensamento que está ligado numa relação de semelhança a
esse mesmo pensamento”.
Para Bakhtin, o cronotopo biográfico, na Grécia Antiga, o representa o homem
público, mas o da praça pública, em todas as instâncias do Estado. O homem grego
não conhecia a divisão de mundo (mudo e invisível). A concepção de mundo (“solitário
e interior”) para a arte encontrava-se no mesmo plano do mundo “exterior”, da
coletividade.
Segundo assinala MACHADO (1995, p. 266):
A época grega conheceu dois tipos de biografias: o tipo platônico,
em que o homem busca o verdadeiro conhecimento, e a biografia
retórica, baseada no encômio, discurso civil, fúnebre e laudatório.
É este ato verbal cívico-político de glorificação pública, que
sugeriu a Bakhtin a imagem do cronotopo biográfico.
Do ponto de vista de Machado, o cronotopo da praça pública possui
singularidade não apenas pelo fato da consciência biográfica ou autobiográfica, porém
por dar prioridade ao todo oral, em busca do conhecimento. Ela cita Platão no que
diz respeito ao discurso público: “a reflexão é uma conversa do homem consigo mesmo,
de onde, quase naturalmente, passa para conversa com o outro, em voz alta”. Logo,
O cronotopo da praça pública tem um significado particular não só
pelo fato de situar o local de constituição da consciência biográfica
e autobiográfica do homem, mas sobretudo pelo estabelecimento
de um método oral de busca do conhecimento, que teve em
Platão o primeiro realizador. (MACHADO, 1995, p. 266)
66
Para Bakhtin, o homem grego conheceu a primeira manifestação de identidade
através do primeiro encômio, no entanto a imagem desse homem é extremamente
plástica e simplificada. O encômio é o primeiro ato determinante da abordagem
autobiográfica e biográfica do homem grego.
A partir dos encômios biográficos, surgiram os primeiros atos autobiográficos de
Isócrates, que exerceu grande influência nos escritos literários no mundo.
A partir dos esquemas biográficos do encômio surgiu também a
primeira autobiografia sob a forma de discurso de defesa, a
autobiografia de Isócrates, que exerceu enorme influência em toda
a literatura mundial (sobretudo através dos humanistas italianos e
ingleses). (BAKHTIN, 1993, p.255)
Foi na Grécia Antiga, com o primeiro encômio que surgiu a conscientização do
homem e de sua imagem, apoiando-se em aspectos individuais, voltados tanto para os
outros como para si mesmo. Assim, ele conheceu a própria identidade e consciência
apenas em sua intimidade.
A conscientização do homem apóia-se, aqui, somente sobre os
aspectos de sua personalidade e de sua vida que são voltados
para o exterior, concernentes tanto aos outros como a si próprio,
sendo que apenas neles a consciência procura seu apoio e sua
unidade, ela não conhece absolutamente outros aspectos
intimamente pessoais, “por si só”, individuais e irrepetíveis.
(BAKHTIN, 1993, p. 255)
Como Bakhtin alerta, também não podemos esquecer que o aparecimento do
primeiro encômio autobiográfico demonstrava a desagregação do grego como
homem público.
na Roma Antiga, a autobiografia era um documento memorial de consciência
familiar e ancestral, porém sua função retomava o caráter blico. A autobiografia quis
transmitir, representar a tradição histórica de alguém, fosse pessoa pública ou não. Dois
pontos são fundamentais para entendermos a concretização da tomada de consciência
autobiográfica entre os gregos e os romanos: 1) Ao contrário da concepção de
67
autobiografia grega que assumia caráter oral e vivo na ágora, os romanos imaginavam
a autobiografia como um documento histórico e de memória. 2) O tempo-espaço entre a
concepção e a função do ato autobiográfico é distinto para os gregos, o encômio era
oral, na ágora e era apenas um ato público; entre os romanos, o documento
autobiográfico era formalizado em um papel, dando-lhe assim uma característica de
atemporalidade. Por esses motivos, Bakhtin assevera que a autobiografia é o cronotopo
do homem público.
A historicidade específica da consciência autobiográfica dos
romanos se distingue da grega, que se orientava para os
contemporâneos vivos, presentes na praça pública. A consciência
romana sente-se, antes de mais nada, como entre os
antepassados mortos e os descendentes que ainda não
participam da vida pública. (BAKHTIN, 1995, p. 258)
O romance Estorvo tem muitas semelhanças com a teorização do cronotopo do
homem público de Bakhtin, entre elas, a narração do romance em primeira pessoa do
singular, do início ao fim, confere à obra um ato vivo do discurso como na ágora grega.
“Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, não consigo definir o
sujeito através do olho mágico.” (CHICO BUARQUE, 2004, p.7)
Ou ainda:
Dessa noite eu não me esqueço porque terminou na cidade, num
apartamento de cobertura perto da praia, onde uns estudantes de
antropologia comemoravam a formatura. (CHICO BUARQUE,
2004, p.83)
Bakhtin encontra, nas narrativas biográficas e autobiográficas antigas, duas
possíveis vertentes: uma, que ele nomeia de energética, cuja essência e existência do
homem é a força ativa; outra tem um caráter analítico, ou seja, os traços biográficos da
68
vida da personagem pelos fatos que ocorrem em épocas diferentes. Nesse caso, para
Bakhtin, ambas retratam a imagem do homem exterior, o homem público. (Cf.
BAKHTIN, apud MACHADO, 1995, p.267).
Foi na Idade Média que surgiu a figura do trapaceiro, do bufão e do bobo em
formas folclóricas e semifolclóricas. Essas personagens ou máscaras existiram em um
ambiente não literário e representavam os heróis baixos, desclassificados, desonrados,
discriminados pela elite nobre. Por esse motivo, as personagens foram idealizadas e
concebidas nos teatros ao ar livre, nas praças, que eram destinados ao povo e também
se mantiveram vivas e ativas na história literária e artística.
Dentro do universo literal, elas não apresentam sentido de imediato porque sua
existência depende da existência de outros, ou seja, no universo ficcional, elas são os
outros e suas representações no teatro da vida real só admitem uma funcionalidade por
meio do povo. O trapaceiro, o bufão o bobo precisam vestir a máscara do outro para
esse outro ser desmascarado diante da sociedade.
É por essas figuras, esses seres mascarados, que surgem, de acordo com
Bakhtin, os cronotopos especiais, porque, ao mesmo tempo que elas existem no papel
público como máscaras representativas, sua verdadeira existência se encontra
descontextualizada desse papel. As personagens parecem agir alheias ao mundo, com
a máscara do avesso.
A partir da máscara alegórica, o homem de Estorvo apresenta-se como um ser
irônico. A personagem apropria-se da figura de linguagem do teatro grego, transforma-
a e adapta-a ao seu tempo. (C.f BAKHTIN, apud MACHADO,1995, p.267):
Na luta contra o convencionalismo e a inadequação de todas as
formas de vida existentes, por um homem verdadeiro, essas
máscaras adquirem um significado excepcional. Elas dão o direito
de não compreender, de confundir, de arremedar, de hiperbolizar
a vida; o direito de falar parodiando, de não ser literal, de não ser
o próprio indivíduo; o direito de conduzir a vida pelo cronotopo
intermediário dos palcos teatrais, de representar a vida como uma
comédia e as pessoas como atores; o direito de arrancar as
máscaras dos outros, finalmente, o direito de tornar pública a vida
privada com todos os seus segredos mais íntimos.
69
Em Estorvo, a alegoria é encontrada como scara representativa do
discurso irônico, concentrada na imagem do homem que fala e pelo discurso exprime
os sentimentos e as preocupações históricas.
Agora, ele percebeu que é inútil, que não me engana mais, que
eu não abro mesmo, que sou capaz de morrer ali em silêncio,
posso virar um esqueleto em diante do esqueleto dele, então
abana a cabeça e sai do meu campo de visão. É e nesse último
vislumbre que o identifico com toda a evidência, voltando a
esquecê-lo. (CHICO BUARQUE, 2004, p. 9)
É por esse jogo alegórico que encontramos o cronotopo metafórico em Estorvo,
porque o tempo e o espaço se escondem por trás da origem e de sua função nos
teatros da antiga Grécia, mas também assume tempo e espaço dentro de sua própria
inversão. O narrador é o homem que se exterioriza e se apresenta como uma figura
alegórica na narrativa de Estorvo e ele o pode, pela representação, ocupar o mesmo
cronotopo da estrutura narrativa, porque para BAKHTIN (1988, p.177):
O romancista precisa de alguma espécie de máscara consistente
na forma e no gênero que determine tanto sua posição para ver a
vida, como também a posição para tornar pública essa vida.
O jogo irônico proposto pelo narrador-personagem possui aspectos da alegoria
criada pelos poetas gregos como um dispositivo retórico, como um modo de ornamentar
discursos para interpretação linguagem figurada, própria desse tipo de discurso. Por
isso, dizemos que o tempo e o espaço, no discurso alegórico, situam-se em um
cronotopo diferenciado, no caso, chamado metafórico.
O tempo e o espaço (cronotopo) metafórico de Estorvo remetem a um tempo
histórico e a um espaço público gora) da Grécia Antiga, como uma alegoria do poeta
que fala em praça pública. Analisando a função da alegoria dentro de um romance,
chegamos a um ponto comum: o romance como o espaço de papel (ágora), onde
70
narrador, personagem e também autor discorrem sobre os próprios pensamentos para
o público (leitor).
Todavia a performance da alegoria no relato da narrativa enquadra-se em um
tempo (cronos) fictício e um espaço (texto) e ocupa um tempo e um espaço plural,
descentralizador e diferenciado do cronotopo narrativo.
71
CONSIDERAÇÕES FINAIS
72
O homem é um ser que está em constante transformação, em sua maneira de
pensar, agir e expressar-se sob as mais variadas formas de linguagem. A literatura tem
sido uma dessas formas de refleti-lo à semelhança de sua imagem real, pela palavra.
Ele passa a existir por causa do enredo e exprime os objetivos do romance. Essa visão
dele decorre e desfigura-o em significados e valores. Por meio da trama e do enredo, a
personagem passa a existir ficcionalmente e, cada vez mais, o autor tenta aproximar-se
da realidade e gerar variações de sentido. O resultado último é o romance
contemporâneo.
Em Estorvo, de Chico Buarque, a arte de narrar vincula o conceito de
individualidade à realidade, o que modifica a personagem, na cena contemporânea,
onde o leitor e o narrador estão solitários.
Observamos, neste estudo, o surgir de uma concepção de personagem em fusão
autoral, expressão e representação de uma identidade em fragmentação. Como um
sistema complexo em desfiguração, o Eu (narrador-personagem) recebe as marcas de
um universo descentralizado, como um sujeito estranho a si mesmo e ao outro social.
Suas indagações refletem, em círculo, as próprias máscaras num jogo de espelhos, em
muitas faces que se confundem, ora pela emoção, ora pela dúvida.
Desse discurso plural, Estorvo passa a caracterizar-se pela fragmentação do
tempo e do espaço, pela ação de mixagem do narrador-personagem em primeira
pessoa, resultando na fusão do tempo do relato e do tempo da imaginação. Com ele, a
personagem dilui-se e sofre o próprio estranhamento, ao apagar-se sob as máscaras
do Eu anônimo.
Dois cronotopos corroboram a estruturação de sua nova identidade: o alegórico e
o metafórico ambos partilham do conflito entre o sonho e a realidade amorfa do
sujeito contemporâneo, em que a visão da personagem perde sua própria idealização
pela consciência globalizada da sociedade vigente.
Em Estorvo, as duas realidades geram a trama do sujeito em interação consigo
próprio, em monólogo interior (conhecer-se), sob o foco do olho mágico, que o
fragmenta, duplica, retira-lhe a identidade e o coloca, anacronicamente, na sociedade
contemporânea com uma consciência plural no cenário público. Alegoria e ironia
73
convertem suas imagens analógicas em máscaras de uma personagem que ri de si
mesma e do mundo – assemelham-se metaforicamente.
À luz de Bakhtin, o romancista Chico Buarque faz da máscara irônica a sua
personagem, consistente na forma e no gênero híbrido de Estorvo, em modos diversos
de ver o homem solitário, os quais definem sua visão de homem no palco da vida, em
busca de um valor universal, jamais alcançado.
74
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