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Vanessa Sattamini Varão Monteiro
Canudos:
as crianças do sertão como butim de guerra
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em História Social da Cultura, do
Departamento de História da PUC-Rio.
Orientadora: Profª. Margarida de Souza Neves
Rio de Janeiro
Abril de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510855/CA
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Vanessa Sattamini Varão Monteiro
Canudos:
as crianças do sertão como butim de guerra
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós
-
Graduação em História Social da Cultura do
Departamento de História do Centro de Ciências
Sociais da PUC-
Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Profª. Margarida de Souza Neves
Orientadora
Departamento de História
PUC-Rio
Profª. Márcia de Almeida Gonçalves
Departamento de História
PUC-Rio
Profª. Adriana de Resende Barreto Vianna
PPGAS-Museu Nacional
UFRJ
Profº João Pontes Nogueira
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 12 de abril de 2007.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510855/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a
reprodução total ou parcial do trabalho sem
autorização da universidade, da autora e da
orientadora.
Vanessa Sattamini Varão Monteiro
Graduou-se em Jornalismo pela FACHA- RJ em
1996.Graduou-se em História pela PUC- RJ em
2004. Possui artigos publicados na área de
Historia, especificamente sobre os órfãos da
Guerra de Canudos.
Ficha Catalográfica
CDD: 900
Monteiro, Vanessa Sattamini Varão
Canudos : as crianças do sertão como
butim de guerra / Vanessa Sattamini Varão
Monteiro ; orientadora: Margarida de Souza
Neves. – 2007.
119 f. : il. (col.) ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em História)–
Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
Inclui bibliografia
1. História Teses. 2. Guerra de
Canudos. 3. Órfãos. 4. Infância. 5. Fotografia.
6. Antonio Conselheiro. 7. Sertão. 8. Memória
I. Neves, Margarida de Souza. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de História. III. Título.
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Para meu marido, Marcus,
pelo amor e apoio incondicional aos meus sonhos.
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Agradecimentos
À minha orientadora Professora Margarida de Souza Neves, por ter acreditado desde
o início na realização deste trabalho, pela dedicação incansável, pela amizade, pela
generosidade em dividir conhecimentos acadêmicos e lições de vida.
À Professora Nádia Aparecida Cursi, e aos alunos da Escola Estadual Abílio Manoel
pela cumplicidade e carinho.
À Prefeitura da cidade de Bebedouro pelo apoio durante minha estadia.
A todos aqueles que tornaram possível a realização desta pesquisa pela paciência e
disponibilidade em ajudar pesquisadores: Antônio Olavo, Oleone Coelho Fontes, os
funcionários do Núcleo de Estudos dos Sertões da UFBA, Prof. Luis Paulo Neiva da
UNEB, Diógenes e todos os funcionários do Centro de Referência em Educação
Mário Covas, os funcionários da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, os
funcionários do Arquivo Público de São Paulo, os funcionários dos cartórios de Serra
Negra e Amparo.
À Juan Carlos pelo primoroso site.
À Paulo Fontenelle pelo lindo documentário e as dicas sobre Canudos.
À José Américo Amorim pelos passeios e a horas de prosa em Canudos.
Aos meus queridos amigos da Bahia: Laís, Luís e Verônica pelo apoio e
companheirismo.
Aos meus professores: Adriana Vianna, Márcia Gonçalves, Luís Reznik, Isabela
Fernandes, Maisa Mader, Ângela Perricone Pastura e a Emanuel Bouzon (in
memoriam) pelas importantes contribuições, palavras de apoio e pela amizade.
Aos funcionários do Departamento de História da PUC- Rio: Edna, Anair, Cleusa e
Cláudio pela ajuda inestimável todos esses anos.
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A todos os professores do Departamento de História.
Ao meu pai por ter me ensinado o amor pelos livros.
À minha mãe e Reinaldo pelo apoio de todas as horas.
As minhas irmãs, Valéria, Júlia e Paula, por estarem sempre ao meu lado.
Aos meus amigos: Teca, Eliane, Gabriel, Débora, Guilherme e Marise por tornarem
essa jornada menos solitária e pela paciência comigo durante as horas de aflição e
ansiedade que surgiram no decorrer deste trabalho.
À Olga pela ajuda e compreensão.
À Lisa pela valiosa dica, pelo carinho, apoio e disponibilidade.
À Jú por manter tudo funcionando enquanto eu estava imersa na pesquisa e pelos
cafezinhos para afastar o sono.
E ainda e sempre ao Marcus, pelo companheirismo, por todas as expedições, por
compreender todas as renúncias que este trabalho muitas vezes impôs, pelo carinho, e
amor nos pequenos e grandes gestos.
A todos os amigos e familiares que de uma forma ou de outra me estimularam e
ajudaram durante a realização deste trabalho.
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Resumo
Monteiro, Vanessa Sattamini Varão; Neves, Margarida de Souza. Canudos:
as crianças do sertão como butim de guerra. Rio de Janeiro, 2007. 119p.
Dissertação de Mestrado Departamento de História, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
Este trabalho tem por objeto as crianças sobreviventes da guerra de Canudos,
que foram distribuídas e levadas por soldados a título de lembrança viva. O objetivo
primordial é a tentativa de ouvir o eco desta memória apagada. O próprio Euclides da
Cunha trouxe para o Paulo um jaguncinho de Canudos. Movida pelo
questionamento do professor Calasans: Qual teria sido depois de 1908, o destino do
jaguncinho ( de Euclides) que se fez professor primário em São Paulo? Empreendi
uma pesquisa seguindo as pegadas deste menino até a vida adulta. É no eixo em que
se cruzam o desenraizamento de crianças, vistas como filhas do atraso do sertão, com
a utopia republicana do progresso e da civilização que estruturo esta análise. É ainda,
a partir do entendimento da memória, enquanto instrumento de dominação, que
proponho uma reflexão sobre a relação entre história, memória e esquecimento na
guerra de Canudos e especificamente no caso dos órfãos.
Palavras-Chave
Guerra de Canudos, órfãos, infância, fotografia, Antônio Conselheiro, sertão,
memória.
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Résumé
Monteiro,Vanessa Sattamini Varão; Neves, Margarida de Souza. Canudos:
Les enfants du sertão comme butin de la guerre. Rio de Janeiro, 2007.
119p. Dissertation Departamento de História, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
Cette dissertation a pour sujet les enfants survivants de la guerre de Canudos
qui ont été distribués et emmenés par les soldats en tant que souvenir vivant. Le but
primordial est la tentative d’entendre l’écho de cette mémoire effacée. Euclides da
Cunha lui-même a emmené à São Paulo um petit enfant de Canudos. Encouragée par
le questionnement du Professeur José Calasans: Quelle aurait été, depuis 1908, la
destinée du petit enfant (d’ Euclides), qui est devenu instituteur à São Paulo? J’ai fait
une recherche en suivant les pistes de ce garçon jusqu’a à la vie adulte.C’est
justement dans les axes se croisent le déracinement des enfants vus comme
résultats du retard du sertão et l´utopie républicaine du progrès et de la civilisation où
je construis cette analyse. C’est encore à partir de la compréhension de la mémoire en
tant qu´outil de domination que je propose une réflexion sur la relation entre l’
histoire, la mémoire et l’oubli pendant la guerre de Canudos en me penchant sur le
cas des orphelins.
Mots clefs
La guerre de Canudos, orphelins,
enfance, photographie, Antônio Conselheiro, sertão,
mémoire.
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Sumário
1 O início 11
1.1 Primeira parada: Salvador 12
1.2 Destino: Canudos 13
1.3 Segunda parada: Canudos 14
1.4 De volta ao Rio: a busca 16
1.5 A Dissertação 17
2 Um panorama de contrastes 21
3 A Memória de Canudos 40
3.1 A fotografia como construção de memória 44
3.2 Registros de Guerra 48
3.3 A vitória da civilização 72
4 As Crianças de Belo Monte 78
4.1 A criança como questão para História 78
4.2 Butim de guerra 85
4.3 Comitê Patriótico da Bahia 87
5 CONCLUSÃO 102
5.1 Bebedouro 102
5.2 De volta a São Paulo 105
5.3 Resposta ao Professor Calasans 108
5.4 Um olhar para o fim e outro para o futuro 108
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 114
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Lista de Figuras
Figura 1 - Fotografia Vaza Barris ao Sul
1
52
Figura 2 - Fotografia Questura Policial Em Canudos 54
Figura 3 - Fotografia 30º Batalhão de Infantaria 56
Figura 4 - Fotografia Refeição na Bateria do Perigo 59
Figura 5 - Fotografia Corpo Sanitário em Canudos 62
Figura 6 - Fotografia Um Conselherista Preso 64
Figura 7 - Fotografia Rendição de Conselheristas 68
em 2 de outubro
Figura 8 - Fotografia Detalhe da foto Rendição de Conselheristas 69
em 2 de Outubro
Figura 9 - Fotografia Prisão dos Conselheristas pela cavalaria 71
Figura 10 - Fotografia Meninos de Canudos 74
no Liceu Salesiano de Salvador
(acervo arquivo Liceu Salesiano de Salvador)
Figura 11 - Fotografia Euclides da Cunha aos 10 anos de idade 77
(acervo Casa Euclidiana- São José do Rio Pardo / SP)
Figura 12 - Fotografia Ludgero Prestes 113
(acervo Escola Estadual Abílio Manoel- Bebedouro / SP)
1
A titulação aqui adotada para as fotos de Flávio de Barros (fotos 1 a 9) corresponde ao encontrado
em Almeida (1997).
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1. O início
As aulas por vezes podem suscitar algo completamente inesperado e
acabar abrindo novos campos de pesquisa e investigação. Tudo começou a partir
de uma frase dita pela professora Margarida de Souza Neves em uma aula de
Brasil III na graduação. Ao falar sobre Canudos, ela disse que a república não
poupou esforços para varrer Canudos do mapa e que Canudos tinha de ser
apagado inclusive dos corações e das mentes dos canudinhos, ou seja, dos
corações e das mentes daquelas crianças a quem a guerra legara a condição de
orfandade. Apesar de toda a violência da guerra de números assustadores, do
incêndio que devastou o que sobrara da Aldeia Sagrada de Antônio Conselheiro,
das mortes, dos assassinatos que não pouparam mulheres e crianças, naquele
momento, esta pareceu-me a maior e mais cruel das violências empreendidas pelo
governo republicano. Tirar de crianças que já haviam perdido tudo, o direito sobre
a sua própria história de vida.
Algum tempo depois, quando no decorrer do curso chegou o momento de
definir o tema da monografia, constatei que o estranho mecanismo de seleção que
é nossa própria memória havia escolhido não esquecer daquela frase, mesmo
tendo se passado um ano. O tema havia sido definido. A professora Margarida
alertou-me sobre a dificuldade que iria enfrentar, já que o material de pesquisa era
escasso, mas aceitou o desafio de me orientar.
Após muita pesquisa e ajudas providenciais de amigos e professores,
chegamos ao material que serviu de base para a monografia: as fotos de Flávio de
Barros, o livro do Comitê Patriótico da Bahia e o livro comemorativo do
centenário do Liceu Salesiano de Salvador.
O caminho estava só começando, acreditava que tinha muito mais a
descobrir. Assim, parti para o processo seleção do mestrado. Aprovada, comecei o
curso, e seis meses depois nas férias de julho de 2005 embarquei para Salvador.
Na bagagem alguns contatos com o pessoal responsável pelo acervo do professor
José Calasans na UFBA, uma reserva em um apart-hotel em Ondina, em frente ao
campus da Universidade, para uma estadia de 10 dias, voucher de aluguel de
carro, edição recente de guia de viagem, mapas rodoviários da Bahia, laptop,um
cartão do Hotel Brasil em Nova Canudos e a firme determinação de ir até lá. Na
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verdade, tinha pouco tempo e deveria ficar somente em Salvador para garimpar o
máximo de documentação. Sem dúvida, isto seria mais lógico, mas não iria
desperdiçar a oportunidade de conhecer o palco do conflito estando o perto de
lá.
1.1 Primeira parada: Salvador
Cheguei a Salvador numa tarde nublada e chuvosa de julho. No dia
seguinte parti ansiosa para UFBA, a poucos metros dali. Durante uma semana
chegava ao Núcleo dos Estudos dos Sertões as 9 da manhã e saía às 17 horas,
quando fechava. Depois aproveitava o final da tarde para fazer um pouco de
turismo, que ninguém é de ferro, e afinal eu estava em Salvador.
No final da primeira semana, havia vasculhado todo o arquivo,
comprado várias publicações que não chegam ao Rio e copiado tudo que achava
que poderia me interessar, sempre com a ajuda inestimável dos funcionários que
entendiam minha ânsia em reunir o máximo de material possível no curto espaço
de tempo que dispunha. Me despedi da UFBA e do Centro de Estudos dos Sertões
sabendo que havia feito o melhor possível, mas com aquela estranha sensação de
angústia, que não abandona o pesquisador, de que se pudesse passar um ano ali
ainda iria descobrir mais. Pode ser que sim, pode ser que não, de qualquer
maneira, ainda tinha outras instituições para visitar.
No quarto do hotel, com a lista telefônica na mão, mapeei os lugares onde
ainda precisava ir. Na manhã seguinte parti para o Colégio Salesiano, que sabia
que havia recebido doações para abrigar os órfãos de Canudos. Decepção total,
fora o livro do centenário do colégio, que os salesianos já haviam me enviado para
o Rio de Janeiro, nenhum outro material sobre as crianças: fichas de matrícula,
boletins escolares, relatórios, nada. Dali segui direto para o Instituto Histórico e
Geográfico da Bahia, onde consegui um bom material que constava de recortes de
jornais da época sobre o trabalho do Comitê Patriótico da Bahia, organização da
sociedade civil que socorreu as mulheres e crianças vítimas da guerra. No
decorrer desta segunda semana, ainda estive no Instituto Antônio Conselheiro, no
Pelourinho, e no arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Salvador, onde
fotografei atas de reunião que citavam a entrada de crianças de Canudos nos asilos
ligados à instituição.
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Acabava a segunda semana e resolvi ir à noite a uma livraria grande que
tinham me indicado. Passeando entre as estantes, deparei-me com mais um dos
livros que nunca tinha visto no Rio, era uma compilação de recortes de jornais
sobre Canudos na época do centenário em 1997, e comprei-o. No hotel, folheando
a aquisição, vi algo inusitado: uma etiqueta com o telefone e o endereço do autor
Raimundo Gama. Cheia de pudor tomei coragem e liguei. Afinal, se uma pessoa
disponibiliza assim seus dados deve esperar que alguém ligue. Raimundo foi
muito gentil. Ele me explicou que morava em Feira de Santana, mas me deu o
telefone de outro autor e estudioso de Canudos que morava em Salvador. Liguei
então, para Oleone Coelho Fontes. Dois dias depois, estava sentada na sala de sua
casa conversando, sem parar de pensar como eram atenciosos e acessíveis os
baianos. Oleone me indicou vários outros livros, além de ligar na hora para
Antônio Olavo, historiador e idealizador do site www.portfolium.com.br, que eu
havia utilizado muito por ocasião da elaboração da monografia de final de
graduação. Antônio Olavo, além de ser muito simpático por telefone, me disse que
chegando a Canudos procurasse um amigo seu, Américo. Dali, da casa de
Oleone, sai feliz e carregada de livros para me preparar para a segunda parte da
viagem. Finalmente eu iria a Canudos.
1.2 Destino: Canudos
Dia 13 de julho, munida de oito litros de água mineral, uma dúzia de
refrigerantes, sanduíches, repelentes, quinas fotográficas e mapas, saí de Lauro
de Freitas às 7:30hs da manhã em direção a Feira de Santana. Em Feira de
Santana peguei a BR116 e segui em direção a Monte Santo. Trezentos e cinqüenta
quilômetros separam Salvador de Monte Santo. Na estrada você tem que escolher
em que buraco cair. Por todo o caminho havia meninos com pás na beira da
estrada tapando os buracos com terra em troca de moedas. A cerca de 15 km de
Tucano o asfalto some completamente para reaparecer muito depois. Em
Tucano começa o chamado sertão do Conselheiro, ou seja, a região por onde ele
peregrinou antes de estabelecer-se em Belo Monte. Nesta região surgiram as
primeiras placas indicando Canudos. Depois de mais ou menos oito horas de
viagem deparei-me com o ude do Cocorobó, quase não podia acreditar - eu
estava em Canudos!
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1.3 Segunda Parada: Canudos
Parada na beira do açude, contemplava o lugar, lembrava das palavras de
Euclides descrevendo a região. Era muito emocionante estar ali. Eu podia ver,
tocar, sentir meu objeto de estudo, a paisagem tantas vezes imaginada se
concretizava diante dos meus olhos. Ali, onde havia sido a aldeia sagrada de
Conselheiro, nada restara, o açude alagou em 1968 o local onde os canudenses
moraram. Hoje apenas o açude, uma estátua de Conselheiro e um minúsculo
museu com objetos da guerra: são balas, mochilas de couro, canecas, espingardas,
facões, botas, misturados a objetos contemporâneos como um inacreditável Buda
de porcelana e uma fotografia colorida de uma família que o tenho idéia de
quem seja. Fragmentos de outros tempos pendurados nas paredes.
Turistas chamam a atenção no pequeno povoado de pescadores que se
formou à beira do açude, rapidamente estávamos cercados de crianças, um menino
de uns seis anos de idade, com a o cheia de cartuchos de bala que ele
assegurava serem da guerra, tentava me vender o lote. Segundo sua versão ele os
retirava do fundo da água. Dividida entre a consciência da importância da
preservação dos sítios arqueológicos e a tentação do souvenir, escolhi o crime leve
- comprei um só. Se a relíquia é verdadeira, não faço idéia, também não importa.
A pobreza ali é absoluta, casas de pau a pique, que lembram em tudo as
casas do povoado de Belo Monte, misturam-se com as de alvenaria, crianças de
pés descalços, muito pouco comércio, infra-estrutura turística nenhuma. Para que
eu pudesse entrar no museu um garoto foi buscar a chave que fica guardada na
casa de alguém.
Segui viagem para Nova Canudos. No caminho, está o Parque Estadual,
local onde as tropas acamparam na tomada final ao povoado, o parque é grande e
entramos de carro. Da janela via o alto do Mário, o Vale da Morte e o Alto da
Favela e todas as cenas lidas passavam como filme na minha cabeça. Preferi não
andar a pé, pode parecer estranho, mas, as narrativas das atrocidades cometidas
ali, estavam ainda muito vivas em mim. Na saída encontro Américo, o amigo
do Antônio Olavo, que entrava no parque com um casal de turistas. Me identifico
e marcamos um encontro no hotel, à noite.
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Após o passeio no parque tomei o rumo de Nova Canudos, localidade para
onde foi transferida a população por ocasião da construção do açude. No caminho
a paisagem impressiona: chão seco, rachado, a terra vermelha, cactos e
mandacarus dominam as margens da estrada, mas é inverno, época de chuva, o
sertão está verde, o céu carregado de nuvens cinzas, e secretamente agradeço a
temperatura amena.
No centro de Nova Canudos há uma larga rua principal de mão dupla onde
vemos uma agência bancária, mercadinhos, bares, muitos bares, um ao lado do
outro, igreja, escola, o hotel, restaurantes. A cidade é pequena, mas muito mais
movimentada que o povoado à beira do açude. Depois de instalados no hotel,
fomos almoçar no Tia Lea, quase cinco da tarde e ela teve de improvisar a
refeição. O cardápio, a princípio, assusta os recém chegados - carne de bode, mas
a simpatia nos cativou.
No princípio da noite chega Américo, bom papo, poeta de o cheia,
guia local, conversamos sobre Canudos de ontem e de hoje. Articulado,
preocupado com seu povo e sua terra me dá informações de quem nasceu, se criou
ali e conviveu, ainda criança, com os poucos homens de Conselheiro que
sobreviveram. Marcamos um passeio juntos pela cidade no dia seguinte. De
noite foi difícil dormir, as ruas ficam desertas pelas 10hs, e eu, tomada pela
emoção de estar ali, não queria nem fechar os olhos.
Na manhã seguinte, no café, Américo estava a postos. Fomos para a
igreja local e, dentro, no altar estava o cruzeiro de madeira erguido por
Conselheiro à frente da igreja de Santo Antônio em Belo Monte e uma placa:
edificada em 1893 por AMMC (Antônio Mendes Maciel Conselheiro). No centro
do Cruzeiro, uma foto de Dona Zezinha que foi a guardiã da relíquia por toda
vida. por aquele momento a viagem tinha valido a pena, na pequena igreja
mal iluminada deixei de lado a racionalidade historiográfica que tinha me levado
até ali, diante da grande cruz talhada em madeira que tinha resistido à guerra e ao
tempo agradeci. Do lado direito do altar, toras de madeira descansavam num
cavalete. Américo esclareceu que tratava-se da famosa madeira que
Conselheiro comprara em Juazeiro para a construção da igreja nova e que nunca
recebera. Conselheiro mandou seus homens buscarem a encomenda, espalhou-se o
boato que os conselheristas invadiriam a cidade e teve início o conflito. Muito
tempo depois, os herdeiros do comerciante doaram a madeira para a cidade. Ao
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lado da igreja, na sede do Instituto Popular Memorial de Canudos, documentos
como a certidão de batismo de Conselheiro, o papel de doação da madeira, postais
da cidade e livros de cordel.
Dali seguimos para o Memorial Antônio Conselheiro, um prédio
imponente, moderno administrado pela UNEB (Universidade Estadual da Bahia)
que destoa da paisagem rústica e pobre do sertão. Muito bem cuidado, guarda
alguns objetos e crânios desenterrados num trabalho arqueológico no Vale da
morte, além dos figurinos utilizados no filme de 1997, dirigido por Sérgio
Rezende sobre Canudos. No tio externo há uma estátua do conselheiro e a
planta Canudos que deu origem ao nome da região. Enquanto andava por lá,
encontrei Luis Paulo Neiva, um dos diretores da UNEB que estava ali por conta
de uma reunião com prefeito. Vendo que eu não era dali, se apresentou e me
perguntou de onde eu era. Passadas as apresentações começamos a conversar e ele
me pergunta se eu tinha visto uma coleção de nove Cd-Rooms com cerca de
32.000 documentos sobre Canudos. Respondi que tinha visto o material no
Instituto Antônio Conselheiro, no Pelourinho, mas que tinham me orientado a, ao
chegar ao Rio de Janeiro, pedir à PUC que solicitasse formalmente as cópias,
através de ofício. Ele levantou e foi dar um telefonema. Na volta, me olhou e
disse: passe daqui a duas horas no campus da UNEB de Euclides da Cunha e
pegue as suas cópias. Eu, completamente pasma, agradeci penhoradamente, ele
me explicou então que o material foi feito pelo Centro Euclides da Cunha da
UNEB e distribuído a várias instituições. Saí feliz e agradecida, sem deixar de
pensar como a vida guarda surpresas. Que ironia! Canudos, e o Salvador, havia
me dado o maior número de documentos para a pesquisa.
1.4 De volta ao Rio: A busca
De volta ao Rio, hora de analisar o material conseguido. Durante este
processo, uma pergunta desperta minha atenção. Lendo Quase biografias de
jagunços do professor Calasans, que havia comprado na UFBA, verifico que ele
termina um dos artigos perguntando quem podia dar notícias sobre o menino que
Euclides da Cunha havia trazido de Canudos e entregue a um amigo em o
Paulo. A última notícia que se tinha é que o menino havia se formado professor
primário em 1908. O nome do garoto passara a ser Ludgero Prestes, que o do
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amigo de Euclides que o criou era Gabriel Prestes e o único documento era uma
carta de Ludgero para Euclides contando da formatura em 1908. E isto era tudo o
que eu sabia. Procurei em livros, sites, artigos e nada. Ludgero, após formado, não
havia deixado rastros. Sobre o pai adotivo, muitas informações. Era um
importante educador paulista, com livro publicado, acervo em museu no interior
de São Paulo, mas Ludgero parecia ter desaparecido.
Durante meses, volta e meia, a pergunta de Calasans vinha a minha mente,
procurava sem sucesso uma resposta enquanto pensava, inconformada, que
ninguém desaparece assim, não se vive uma vida inteira sem deixar pistas, eu com
certeza não estava sabendo como e onde procurar. Quando achei que já tinha feito
o possível lancei mão de um recurso que normalmente os historiadores não vêem
com bons olhos, mas não tinha nada a perder. Abri o computador e digitei na barra
de busca do google – Ludgero Prestes. Em segundos na tela à minha frente
páginas e páginas de citações. pra imaginar quantos Prestes o mecanismo de
pesquisa selecionou? Não lembro ao certo o número, mas eram muitos. Fui de um
por um, de site em site, até que cheguei ao Prestes que procurava Ludgero. È
difícil encontrar palavras para descrever o que senti: atônita, chocada, não sei,
sobretudo eufórica, comecei a puxar o fio da meada. Neste momento era preciso
cuidado, pois poderia ser um homônimo. A possibilidade me parecia remota: o
nome é incomum, as idades eram compatíveis, mas não podia descartar a eventual
coincidência. Sete meses e duas viagens depois cheguei à confirmação- O
Ludgero citado no Google era o jaguncinho de Euclides. Eu finalmente havia
encontrado o destino de uma criança de Canudos e, além da importante
descoberta, isso dava fôlego a este trabalho. A busca e a subseqüente confirmação
estão mais detalhadas na conclusão desta dissertação.
1.5 A Dissertação
Optei por iniciar esta introdução contando o percurso trilhado desde a
graduação porque a pesquisa de campo foi parte importante deste trabalho. Diria
mesmo que sem ela o teria sido possível continuar com o tema. A pesquisa
enriqueceu o trabalho, trouxe descobertas, proporcionou o encontro com outros
estudiosos interessados pelo tema, tornou este percurso do mestrado menos
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solitário, enriqueceu o trabalho mas, também, estreitou minha ligação com o tema,
de tal forma que chegou a gerar alguma dificuldade.
Canudos é um tema que leva necessariamente a nos depararmos com
assuntos difíceis como a fé, o sonho, a guerra, a violência e a morte. Seja nas
fontes escritas registradas, preferencialmente, pelos vencedores, como na
oralidade, tardiamente registrada, dos vencidos. O tom é constantemente
marcado pela apologia, pela paixão que temas como este costumam suscitar.
Como historiadora, muito deixei de acreditar na ficção da neutralidade, mas
fundamentalmente depois de ter ido a Canudos e ter tido a experiência única de
pisar, olhar, respirar, ouvir e guardar em mim de cor de coração - meu objeto de
pesquisa. Tive muitas vezes dificuldade de achar o tom, de não me deixar levar
pelo maniqueísmo fácil e perigoso do bem e do mal, do opressor e do oprimido.
Pude constatar, em Nova Canudos, que não a bibliografia da época está
marcada por esta dicotomia, como ahoje parte da população se divide entre os
que acham que Antonio Conselheiro foi um homem bom, justo, quase santo e
aqueles que acham que o Conselheiro trouxe uma espécie de maldição para o
lugar.
Feita esta ressalva, o objetivo desta dissertação de mestrado foi seguir as
pistas, tênues, mas existentes, das crianças de Canudos analisando o
desenraizamento e o apagamento da memória destas crianças. O material de
pesquisa, ainda que não seja extenso, é contundente. O Livro do Comitê
Patriótico da Bahia, originado a partir do relatório final das atividades desta
organização da sociedade civil que socorreu as vítimas da guerra, denuncia os
excessos cometidos pelos pretensos representantes da civilização contra as
mulheres e crianças sertanejas durante o conflito. O secretário do Comitê
presenciou a prática de venda de crianças sertanejas, efetivamente órfãs ou,
apenas, separadas de suas famílias. Ele associou o que viu a uma nova escravidão
que se vai estabelecendo com estas desgraçadas vítimas de Canudos
1
.
Assim, utilizei documentos que mencionam, mesmo que secundariamente,
as crianças de Canudos. São, sobretudo, relatos de época: livros, jornais, relatórios
e cartas, fotografias e depoimentos para aprofundar a reflexão. Além de ter
empreendido uma pesquisa seguindo as pegadas de um destes canudinhos – como
1
Lélis PIEDADE, Histórico e Relatório do Comitê Patriótico da Bahia (1897-1901).
Antônio OLAVO (org.) Salvador: Portfolium, 2002, 2ed, p.211.
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eram chamados, no pós-guerra, os órfãos de Canudos - o menino trazido por
Euclides da Cunha, até a vida adulta.
Ao lidar com o tema, transitei pelos caminhos da memória e por conceitos
como memória e esquecimento, ressentimento, lugar de memória, relíquias,
alteridade e dialoguei com autores como Jacques Le Goff
2
, Michael Pollack
3
,
Robert Darton
4
, Pierre Nora
5
, David Lowenthal
6
,
e
Edward
Said
7
. Canudos teimou
em permanecer viva. Mesmo que na história oficial que a República nascente
pretendeu construir não houvesse lugar para a memória daquele grupo minoritário,
como não houve lugar para a outra ordem que Canudos pretendeu instaurar. A
aldeia conselherista continuou a representar a delimitação de uma fronteira, um
pertencimento, foi um amálgama que unificou uma comunidade afetiva e lhe deu
identidade. As relações familiares e a transmissão oral garantiram que esta
memória sobrevivesse silenciosamente, dando coesão, continuidade e sentido
àquelas existências. Portanto, utilizei sempre que possível, relatos de
sobreviventes e de seus descendentes.
Outro suporte de memória muito presente nesta dissertação é a fotografia.
Como Canudos teve a particularidade de ter sido um conflito fotografado, escolhi
entre a coleção de Flávio de Barros, fundamentalmente as fotos que registram
crianças Canudenses para propor leituras, muitas vezes diversas daquela
intencionada pelo fotógrafo na ocasião. Utilizei também uma foto de crianças
canudenses encaminhadas para um colégio após a guerra e uma foto de Euclides
da Cunha ainda menino, numa tentativa de ler nestas imagens o contraste entre
sociedades tão díspares.
2
Jacques Le Goff: Historiador francês dedicou-se principalmente a historia medieval, foi
colaborador da chamada École des Annales, liderada por um pequeno grupo de
historiadores reformistas, reunidos ao redor de Marc Bloch e Lucien Febvre. É um dos
principais expoentes da chamada historia das mentalidades. Foi presidente de 1972 a
1977 da École des Hautes Etudes em Sciences Sociales.
3
Michael Pollack: Antropólogo, Pesquisador do Centre National Recherches Scientifiques –
CNRS ligado ao Institut d’ Histoire du Temps Present e ao Groupe de Sociologie
Politique et Morale.
4
Robert Darton: É professor de História da Princeton University.
5
Pierre Nora: Historiador francês foi diretor da Escola de Altos Estudos. É dele a expressão
Lugares de memória.
6
David Lowenthal: Geógrafo, professor da University College London.
7
Edward Said: (01/11/1935 – 25/09/2003) Foi intelectual,crítico literário e ativista da causa
palestina. Lecionou nas Universidades de Columbia, Havard e Yale. Em 1978 publicou
sua obra mais conhecida, intitulada Orientalismo, na qual analisava a visão ocidental
sobre o mundo oriental, mais concretamente o mundo árabe.
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20
Outro conceito crucial abordado foi o de infância. Este é um objeto muito
recente como objeto de estudo dos historiadores, embora venha crescendo o
número de trabalhos e pesquisas nos últimos anos no Brasil. Recorri
principalmente às produções de Phillippe Ariès, Mary Del Priore, Irma e Irene
Rizzini e Adriana Viana
8
para buscar um aprofundamento no tema da infância e
dos mecanismos de assistência e controle dos pobres e dos órfãos.
A dissertação está dividida em três capítulos. O primeiro capítulo é um
panorama introdutório no qual abordo a trajetória de Antônio Conselheiro, a
criação e a vida em Belo Monte, a guerra propriamente dita e introduzo a questão
central dessa dissertação, que são as crianças de Canudos. No segundo capítulo,
trato da questão da memória, da fotografia como suporte de memória e procuro
realizar, na esteira de uma proposta de Geertz, uma descrição densa das fotos do
conflito e das demais fotografias já citadas. O terceiro capítulo traz o tema da
infância, e nele trabalho com a distribuição das crianças após a guerra, com a
atuação do Comitê Patriótico da Bahia no socorro aos órfãos de Canudos. Na
conclusão relato o encontro com a documentação que me permitiu chegar a
Ludgero Prestes, o menino que Euclides trouxe de Canudos e entregou a Gabriel
Prestes.
8
A Profª Adriana de Resende B. Vianna ao participar da minha banca de qualificação do mestrado
construiu a imagem das crianças canudenses como butim de guerra. A imagem é tão
pertinente e expressiva que acabou dando título a esta dissertação.
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