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ELIANA MARIA DE JESUS
ESTRATÉGIAS CONVERSACIONAIS NA INTERAÇÃO DE
DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA, DE PLÍNIO MARCOS
Mestrado em Língua Portuguesa
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP
São Paulo – 2007
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ELIANA MARIA DE JESUS
ESTRATÉGIAS CONVERSACIONAIS NA INTERAÇÃO DE
DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA, DE PLÍNIO MARCOS
Dissertação apresentada ao Programa de
Estudos Pós-graduados em Língua
Portuguesa da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, para obtenção do
título de Mestre em Língua Portuguesa,
sob orientação do Prof. Dr. Dino Preti.
São Paulo - 2007
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BANCA EXAMINADORA
Aos meus pais (in memória), Maria de Lurdes de Jesus e Valdemar Bispo de Jesus,
pelas doces lembranças.
AGRADECIMENTOS
A todos aqueles que tiveram grande importância na realização deste trabalho de
pesquisa. É com carinho e respeito que agradeço:
ao Professor Doutor Dino Preti, meu orientador, pelo exemplo de profissionalismo,
pela atenção e pelo excelente trabalho de orientação;
aos Professores Doutores Ana Rosa Ferreira Dias e Luiz Antônio da Silva, pelo
estímulo, dedicação e contribuições preciosas no exame de qualificação;
aos Professores Doutores Regina Célia Pagliuchi da Silveira, João Hilton Sayeg-
Siqueira, Luiz Antônio Ferreira com os quais pude conviver ao longo do curso e que
trouxeram valiosas contribuições para minha formação acadêmica;
aos colegas Valter Pinheiro Rodrigues, Rosangela Xavier dos Anjos, Adriana
Catharino, pela generosidade e pela preciosa convivência;
ao Professor Orlando Lopes de Souza, pela paciência e pelas valiosas orientações
tecnológicas;
à Professora Maria Aparecida dos Santos, pela solidariedade nos momentos de
ausência;
ao meu esposo José Venega, companheiro de todas as horas, pelo incentivo e pela
compreensão;
à S. E. E., pelo apoio financeiro.
RESUMO
A partir do tema “Estratégias conversacionais na interação de Dois perdidos numa
noite suja, de Plínio Marcos”, esta pesquisa coloca em pauta questões relativas às
interações verbais, particularmente, as que se referem às estratégias conversacionais,
especificamente, a preservação da face, frame e footing, na tentativa de aproximação dos
diálogos de um texto literário aos modelos ideais de estratégias conversacionais próprios da
interação face a face.
Escolhemos para a realização dos nossos estudos um corpus literário,
especificamente um texto teatral, por acreditarmos que os diálogos analisados retratam a
espontaneidade da linguagem.
Consideramos nos exemplos selecionados para a análise, não apenas os aspectos
relacionados à identidade social das personagens, mas também as características da situação
de comunicação em que os diálogos ocorrem
Nesta pesquisa, apoiamo-nos teoricamente, na Análise da Conversação na
perspectiva sociointeracionista. Buscamos observar os mecanismos empregados para se
formular/reformular as estratégias adotadas durante o desenvolvimento da interação
conversacional.
Constatamos, tal como defendem Tannen, Lakoff e Preti, que o diálogo de ficção
apresenta, de fato, um material fértil para os estudos lingüísticos voltados à língua oral.
Palavras-chave: análise da conversação, estratégias conversacionais, interação.
ABSTRACT
From the theme “Estratégias conversacionais na interação de Dois perdidos numa
noite suja”, de Plínio Marcos, this research puts in matter questions related to verbal
interactions, particularly, the ones that are related to the conversational strategy,
specificaly, the preservation of the face, frame and footing, as an attempt to the approaching
of the dialogues of a literary work to the ideal models of the conversational strategy typical
of the interation face to face.
We have chosen for the accomplishment of our study one literary corpus, specified,
a theatrical text, because the dialogues analised retract the spontaneity of the language.
In this reaserch, we stand by theorically, in Analysis of the Conversation in a
socialinteractionist perspective. We observed the mechanisms employed to
formulate/reformulate the strategies adopted during the development of the conversational
interaction.
We’ve found out, as defend Tannen, Lakoff and Preti, that the dialogue of fiction
presents, in fact, a fertile material for the linguistics studies related to the oral language,
Key-words: analysis of conversation, conversational strategies, interaction.
Primeira montagem da peça Dois Perdidos Numa Noite Suja
*
:
*
(http://www.pliniomarcos.com/cinema.htm acesso em 01/10/2007)
Primeira adaptação para o cinema de Dois Perdidos Numa Noite Suja
*
:
Direção: Braz Chediak
Atores: Emiliano Queiroz e Nelson Xavier, e outros
Ano: 1970
*
(http://www.pliniomarcos.com/cinema.htm acesso em 01/10/2007)
Segunda adaptação para o cinema de Dois Perdidos Numa Noite Suja
*
:
Direção: José Joffily
Atores: Débora Falabella e Roberto Bomtempo
Ano: 2002
*
(http://www.pliniomarcos.com/cinema.htm acesso em 01/10/2007)
A língua constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza através da interação
verbal social dos locutores.
Mikhail Bakhtin
SUMÁRIO
Considerações iniciais
1. Justificativa e objetivo....................................................................................... 14
2. Problema............................................................................................................ 16
3. Procedimentos metodológicos........................................................................... 16
1 - Corpus
1.1. Apresentação............................................................................................ 18
1.2. Contextualização histórica e política........................................................ 19
1.3. Plínio Marcos e sua dramaturgia.............................................................. 23
2 - Referencial teórico
2.1. Língua falada e língua escrita................................................................. 26
2.2. A Análise da Conversação...................................................................... 29
2.3. A perspectiva sociointeracionista........................................................... 32
2.4. Interação................................................................................................. 37
2.4.1. Interação e situação comunicativa....................................................... 39
2.4.2. Interação e conhecimentos partilhados............................................... 42
2.5. Fala - escrita e o texto teatral.................................................................. 44
2.5.1. Fala – escrita........................................................................................ 44
2.5.2. O texto teatral...................................................................................... 49
2.6. Estratégias conversacionais.................................................................... 53
2.7. Preservação da face................................................................................. 58
2.8. Frame...................................................................................................... 62
2.9. Footing.................................................................................................... 64
3 - Estratégias conversacionais na interação de Dois perdidos numa noite suja, de Plínio
Marcos
3.1. O texto................................................................................................. 66
3.2. Interação.............................................................................................. 67
3.3. Estratégias conversacionais................................................................. 73
3.4. Preservação da face.............................................................................. 77
3.5. Frame................................................................................................... 91
3.6. Footing................................................................................................. 95
Considerações finais........................................................................................... 100
Referências bibliográficas.................................................................................. 103
Anexo................................................................................................................. 110
14
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1. Justificativa e objetivo
A língua é uma forma de comunicação que se manifesta na sociedade. Além de ser
usada como meio de conversação, também é um meio de interação entre os seus falantes.
Desse modo, Preti afirma que “a língua funciona como um elemento de interação entre o
indivíduo e a sociedade em que ele atua.” (2003: 12)
Por ser considerada um instrumento de interação social, a língua é empregada pelo
homem para estabelecer contatos sociais com as pessoas. Esse contato não se resume em
uma troca de idéias ou informações, mas também em um desempenho de papéis, uma
atuação sobre o outro, como um “jogo de subjetividades, um jogo de representações em que
o conhecimento se dá através de um processo de negociação de trocas, de normas
compartilhadas, de concessões.” (Brait, 2003: 221)
O presente trabalho de pesquisa vincula-se à linha de pesquisa Texto e Discurso nas
Modalidades Oral e Escrita do Programa de Estudos Pós-graduados em Língua Portuguesa
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e baseia-se nos princípios da Análise da
Conversação na perspectiva sociointeracionista.
A Análise da Conversação tem por objetivo “ descrever o comportamento verbal
dos interlocutores durante a interação, visando a compreender como se processa a
organização do ato conversacional” (Preti, 1991: 16). A visão sociointeracionista indica que
é possível haver posições intermediárias na relação fala/escrita, já que para se classificar
um gênero textual como pertencente à fala ou à escrita, deve-se levar em conta não o meio
de produção, mas sim o contexto, a formulação e as condições de produção.
Ao longo das últimas décadas a língua falada tem sido objeto de estudos, inclusive
das teorias sobre variações lingüísticas. A metodologia usada para esses estudos, como
15
forma de documentar com eficiência os meios para a análise das interações face a face no
diálogo oral, tem sido as gravações em fitas magnéticas.
No entanto, nem sempre é possível ao pesquisador recorrer aos recursos
tecnológicos para registrar as características de uma conversação face a face. Desse modo,
alguns estudos de variações lingüísticas têm como fonte diálogos escritos e publicados pela
imprensa, revistas, crônicas, propagandas e textos literários.
Essas fontes servem de modelos de diálogos espontâneos que, memorizados pelos
escritores, podem revelar-nos o funcionamento da língua oral praticada em diferentes
épocas e em diversas situações comunicativas.
Assim, embora os diálogos construídos não sejam a representação fiel da
conversação natural, acreditamos que podem ser observados e analisados como fontes de
linguagem oral, já que apresentam modelos ideais de estratégias conversacionais (cf.
Tannen, 1996: 140).
A partir do tema “Estratégias conversacionais na interação: um estudo dos diálogos
construídos em Dois perdidos numa noite suja”, este trabalho coloca em pauta questões
relativas às interações verbais, particularmente, as que se referem às estratégias
conversacionais, mais especificamente, a preservação da face, frame e footing, como uma
tentativa de aproximação dos diálogos de um texto literário aos modelos ideais de
estratégias conversacionais próprios da interação face a face.
Serão considerados nos exemplos selecionados para a análise, não apenas os
aspectos relacionados à identidade social das personagens, mas também as características
da situação de comunicação em que os diálogos ocorrem.
Escolhemos para a realização dos nossos estudos um corpus literário,
especificamente um texto teatral, por acreditarmos que os diálogos analisados retratam a
espontaneidade da linguagem.
16
Esclarecemos que nosso foco de pesquisa está voltado para os aspectos lingüísticos
e que questões de ordem estética e literária não constituem objeto de estudo de nosso
trabalho.
A escolha da obra do dramaturgo Plínio Marcos justifica-se pela forma como o
escritor retrata em suas personagens a problemática de tipos sociais que estão muito
próximos da vida real. Para isso, usa uma linguagem crítica, ofensiva e agressiva.
2. Problema
Partindo do referencial teórico da Análise da Conversação, como o autor de um
texto literário constrói o diálogo das personagens de modo a aproximar suas falas aos
modelos ideais de estratégias conversacionais próprios da interação face a face?
Verificamos como, em função da situação de comunicação, são construídos os
diálogos, levando em consideração os objetivos que se pretende atingir, bem como a
manutenção da interação.
3. Procedimentos metodológicos
Nosso trabalho está organizado em três capítulos. O primeiro destina-se a
apresentação do corpus. Em Dois perdidos numa noite suja (1992), o autor vale-se de uma
linguagem coloquial muito próxima de uma conversação espontânea. A peça, em dois atos,
sendo o primeiro composto por cinco quadros e o segundo com apenas um quadro,
apresenta duas personagens: Paco e Tonho. Ambos dividem um quarto de uma
hospedaria, local onde se passa a história. Ainda nesse capítulo, apresentamos um
contexto da dramaturgia e da atuação de Plínio Marcos, frente ao regime autoritário que
marcou a história política do país, na época.
17
No segundo capítulo, abordamos os conceitos teóricos usados para a análise.
Fazemos um levantamento de aspectos relevantes da língua falada e da língua escrita,
observando a presença das duas modalidades no diálogo construído, bem como uma
comparação entre fala/escrita e o texto teatral. Situamos, historicamente, os estudos em
Análise da Conversação e o seu desenvolvimento como ciência lingüística. Identificamos,
ainda, a tendência sociointeracionista dos estudos em Análise da Conversação. Nessa etapa,
adotamos principalmente, os estudos de Marcuschi (2003, 2004), Koch (1998, 2000),
Fávero & Andrade (1998), Preti (2003a), Ryngaert (1996) e Urbano (2005).
Ainda a propósito do segundo capítulo, apresentamos as propostas teóricas
utilizadas para a análise (interação, estratégias conversacionais, preservação da face, frame
e footing). Recorremos nessa etapa aos estudos de Marcuschi (1989, 1998), Fávero &
Aquino (2002), Brait (2003), Brown & Levinson (1987), Goffman (1970, 1981, 2004),
Preti (1983, 2002, 2003b, 2004, 2005), Tannen (1996) e Urbano (1998, 2000, 2002).
No terceiro capítulo, tratamos da análise do corpus. Para tanto, selecionamos alguns
diálogos que julgamos serem os mais significativos às teorias apresentadas no capítulo
anterior.
18
1 – CORPUS
1.1. Apresentação
A produção literária de Plínio Marcos retrata um escritor consciente, preocupado
com os problemas sociais. Suas obras buscam demonstrar a difícil realidade dos indivíduos
que vivem à margem da sociedade.
O autor pertence a uma época em que havia uma grande repressão a movimentos
artísticos que não estivessem de acordo com as regras estabelecidas pela ditadura militar,
que foi instaurada em 1964. Mesmo assim, sua obra trata de temas polêmicos, com uma
linguagem marcante, revestida de um vocabulário popular, gíria e da linguagem obscena,
na intenção de retratar as mazelas sociais e dar voz aos excluídos.
Em Dois perdidos numa noite suja, encenada pela primeira vez em 1966, revela o
inconformismo interior das personagens diante da dura realidade enfrentada no dia-a-dia
dos grandes centros urbanos.
A peça, composta por dois atos, sendo o primeiro ato formado por cinco quadros e o
segundo ato por apenas um quadro, narra o drama vivido por dois moradores de uma
hospedaria de “última categoria” (Paco e Tonho). A história revela os extremos da
exploração do subemprego, da mão de obra barata, da falta de liberdade de expressão e da
exclusão social, que leva o indivíduo à perda da sua identidade.
Na intenção de aproximar os diálogos construídos a essa dura realidade, o autor
utiliza características da linguagem oral, como as estratégias conversacionais, em que as
personagens expostas a diversas situações de comunicação procuram atingir seus objetivos.
19
Embora seja um texto de ficção, ao desenvolver uma temática social e retratar
problemas cotidianos, o autor cria diálogos com uma linguagem muito próxima da
realidade, na tentativa de envolver e sensibilizar o leitor quanto aos conflitos humanos.
Seus textos foram marcantes por darem voz a personagens marginalizadas e
excluídas que, indignadas, denunciavam a indiferença da sociedade e das autoridades da
época. Esta indignação retratada pelo autor pode ser percebida na linguagem dos seus
personagens, já que refletem os papéis sociais que representam.
Acreditamos que, nesse corpus, será possível analisar como o autor de um texto
literário se utiliza da estratégia da preservação da face para aproximar características da
conversação espontânea face a face do diálogo das personagens.
1.2. Contextualização histórica e política
As manifestações artísticas sempre ocorrem paralelamente aos acontecimentos
históricos de uma sociedade. O artista, na construção de sua obra, procura retratar na ficção
temas da realidade que o rodeia. Assim, na criação de suas personagens é comum
percebermos a ideologia, os questionamentos e a posição do autor diante dos fatos.
A obra de Plínio Marcos apresenta um artista preocupado com as injustiças e as
mazelas sociais, temas que se tornaram uma constante em seu trabalho. Ao dar voz aos
excluídos, aos oprimidos, aos que vivem à margem da sociedade, o autor denuncia
problemas que sempre estiveram presentes em nossa história.
Mesmo diante de um governo opressor, o autor não se intimidou em descrever os
problemas sociais que afligiam as classes menos favorecidas, tendo sido censurado e
perseguido pela ditadura, que via sua obra como exemplo de pornografia e subversão.
20
Em 31 de março de 1964, com o intuito de acabar com a corrupção, proteger a pátria
do comunismo e restabelecer a democracia, os militares tomam o poder e instauram o
regime da ditadura militar. Denominados Comando Supremo da Revolução, os ministros
militares passam a editar Atos Institucionais (daqui por diante AIs), que permitem o
funcionamento monitorado do congresso e do judiciário.
Com o surgimento dos chamados AIs, tem início um período marcado pelo
autoritarismo, repressão, censura, perseguições e torturas. O AI-1 sancionava a cassação de
mandatos, a suspensão de direitos políticos e a extinção de organizações de classe.
Em 11 de abril, indicado pelas forças armadas, o general Humberto de Alencar
Castello Branco é eleito presidente do Brasil. Dentre os seus projetos de governo estava o
“fortalecimento do Executivo e a segurança do Estado, para a qual foram criados órgãos
como o Serviço Nacional de Informações (SNI).” (Alencar, 1985: 312).
Assim, todos os outros presidentes que sucederam Castello Branco deram
continuidade aos princípios do regime militar imposto em 1964:
- General Artur da Costa e Silva (1967 – 1969);
- Governo da Junta Militar – formada pelos ministros Aurélio de Lira Tavares, Augusto
Rademaker e Márcio de Souza e Melo (1969);
- General Emílio Garrastazu Médici (1969 – 1974);
- General Ernesto Geisel (1974 – 1979);
- João Batista de Oliveira Figueiredo (1980 – 1985).
Por meio dos AIs, o governo controlava e perseguia qualquer tipo de manifestação
contra o regime:
Milhares foram presos através do Brasil na “Operação Limpeza”, inclusive
membros de organizações católicas, como o Movimento de Educação de Base
(MEB), a Juventude Operária Católica (JUC) e outras cujas atividades de
organização ou caritativas atraíram suspeitas da inteligência militar ou do DOPS, a
21
polícia política. Partidos de esquerda também foram atingidos (...) Outros alvos
foram oficiais e praças das três armas considerados pelos setores de inteligência
dos rebeldes como favoráveis à esquerda, assim como os organizadores do
proletariado tanto urbano como rural... (Skidmore, 1988: 55-6)
Movidos pela insatisfação geral, começam a surgir movimentos de manifestos
contra a ditadura militar. Mesmo diante de toda a truculência do governo, a arte sobreviveu.
O teatro passa a representar a voz do povo. “No palco, a relação entre artistas e público se
estabelece em clima de cumplicidade que se justifica pela comunhão de idéias e de sonhos
de libertação que não podem ser sufocados”. (Almeida, 2003: 42).
Com a criação AI-5, o governo “aumentou a concentração de poderes, cerceou ainda
mais as manifestações populares, estabeleceu controle rígido sobre os meios de
comunicação, implementou as perseguições políticas cassando mandato de parlamentares e
prendendo opositores”. (Soares, 2001: 41).
Nesse período, ocorreram manifestações marcantes dos estudantes organizados em
torno da UNE (União Nacional dos Estudantes), que promovia passeatas em protesto contra
o regime militar, por melhores condições de ensino e liberdade.
A reação do governo foi violenta, e mesmo com a utilização do AI-5, não conseguiu
intimidar os manifestantes. Os protestos começaram a surgir de outros setores da sociedade
(sindicatos, intelectuais, meio artístico e cultural).
Soares (2001: 43), apoiado em Galvão (1999: 147-51), declara que “no meio
artístico e cultural, talvez o teatro tenha sido o mais atingido. Dramaturgos, teatrólogos,
artistas foram presos e exilados e casas de espetáculos foram invadidas, depredadas e
impedidas de funcionar”.
Em meio ao conturbado momento político, economicamente, tem início no país uma
nova etapa do ponto de vista de seu desenvolvimento. Com o aumento das exportações, o
22
crescimento industrial passa a oferecer oportunidades de emprego, sobretudo para a mão de
obra qualificada.
Neste período, houve uma certa euforia nacional em que a presença de um governo
caracterizado por uma ditadura extremamente repressiva, apoiada pelos AIs e pela Lei de
Segurança Nacional passou despercebida.
Embora tenha sido um período em que foram registrados bons índices de
crescimento econômico, o suposto “milagre econômico” só beneficiava os latifundiários,
grandes empresários e industriais, aumentando de forma expressiva o desemprego e o
subemprego no país.
Com o descontentamento geral da nação em relação à opressão sofrida ao longo dos
anos da ditadura e o crescimento político da oposição, os movimentos populares vinham
crescendo e ganhando força.
Diante disso, o governo passa a acenar com medidas liberais, buscando a
redemocratização. Assim, tem início o processo de abertura, cuja primeira medida foi a
extinção do AI-5.
A ditadura militar passa a apresentar sinais de desgaste, já que com o crescimento
da dívida externa o desenvolvimento econômico não se concretizou. Além disso, as
manifestações populares, as greves e a oposição exigiam o retorno do país à democracia.
Nesse contexto, inicia-se o processo democrático, tendo como ponto de partida o
movimento das “Diretas-Já”, e se concretiza com a organização dos partidos políticos,
decretando o fim da ditadura militar.
Mesmo diante da perseguição do governo, a arte sobreviveu, sobretudo o teatro,
que resistiu à censura buscando recursos expressivos que pudessem dar sustentação ao seu
papel de retratar e denunciar, por meio de suas criações, as injustiças sociais.
23
Assim, para Almeida (2003: 49),
é fundamental que se entenda que a função da Arte (em particular do
teatro) não se restringe apenas a imitar, a repetir a realidade, mas a
debruçar-se sobre ela para sentir de perto suas reais necessidades e
transportá-las para os cenários da vida artística, apontando caminhos e
direções que conduzam a uma possível transformação.
1.3. Plínio Marcos e sua dramaturgia
Considerado um dos maiores dramaturgos brasileiro, Plínio Marcos deu início a sua
carreira artística ainda na adolescência, ao trabalhar como palhaço Frajola, atuando no
Pavilhão Teatro Liberdade, em Santos, sua cidade natal.
Já aos 22 anos, escreveu sua primeira peça, Barrela, que além do sucesso,
aproximou o escritor da jornalista Patrícia Galvão (Pagu) que, interessada pelo seu
trabalho, o convidou para integrar várias companhias de teatro.
Como ator, trabalhou no Teatro de Arena, na Companhia Teatral de Cacilda Becker,
e na década de 60 atuou na telenovela Beto Rockefeller da extinta TV Tupi, aproveitando-se
da importância deste veículo de comunicação para projetar-se nacionalmente e fugir da
opressão militar, como ele mesmo afirmou: “Só fiz Beto Rockefeller (encarnando o
personagem Vitório, melhor amigo de Beto Rockefeller) para não ficar órfão. Quando me
ofereceram o papel, pensei: se aceitá-lo, ganharei evidência. E, enquanto estiver em
evidência, os milicos não me pegarão.
1
Vivendo em uma época marcada por um governo opressor e uma forte censura a
qualquer tipo de manifestação, artística ou civil, Plínio Marcos não se intimidou e produziu
1
(http://www.pliniomarcos.com/dados/censura.htm acesso em 01/11/2006)
24
obras de temas realistas, tornando público o submundo e a miséria humana ignorada, por
interesses particulares, pela sociedade burguesa e pelos governantes.
A forma irreverente como usou a linguagem, procurando dar voz a personagens que
denunciavam as injustiças sociopolíticas e econômicas vigentes, fez com que se tornasse
um dos autores mais perseguidos pelo regime militar.
Com relação à perseguição pela censura, Almeida (2003: 54), apoiada em Guillén
(1989: 144), explica como Plínio Marcos a definia:
A censura não fecha o olho. A censura nunca proíbe o espetáculo com a colocação
política. O que eles proíbem é o espetáculo com conotações sociais, o que é uma
diferença muito grande. Algumas pessoas vão dizer ‘existe o espetáculo, todo
espetáculo é político’, mas o problema social é que eles não querem que aborde no
palco. Por exemplo: problemas de presídio, eles não querem que aborde: problema
do menor abandonado, eles não querem que aborde: problema da prostituição, eles
não querem mais que aborde: problema do homem deslocado do seu espaço de
terra pra tentar viver em outros centros, eles não querem que aborde. Agora, esse
negócio de discurso muito bem feito, muito bem dito, isso não tem importância
nenhuma. Eu mesmo cansei de fazer Brecht para operário e não aconteceu nada.
Mesmo vendo sua obra ser alvo de perseguição do regime autoritário, o autor
prosseguiu obstinado em continuar sua luta, denunciando as injustiças do seu tempo. Sua
persistência e empenho referendaram o sucesso da sua produção artística.
Assim, Plínio Marcos se consagrou e teve seu trabalho reconhecido e premiado,
alcançando projeção internacional, já que suas peças foram encenadas em alguns países da
Europa.
Dentro da sua produção artística, vale destacar: Barrela, Dois perdidos numa noite
suja, Navalha na carne, O abajur lilás, Quando as máquinas param, Balada de um
palhaço, Uma reportagem maldita (Querô).
25
Por retratar os conflitos humanos e as injustiças sociais, sua obra continua atual,
visto que esses temas “permanecem vivos e sem solução”. (Almeida, 2003: 55).
26
2. REFERENCIAL TEÓRICO
2.1. Língua falada e língua escrita
Os estudos de textos orais, até a década de 80, foram direcionados para a
perspectiva dicotômica das modalidades falada e escrita da língua. Essas modalidades se
caracterizavam de acordo com suas ocorrências, em interferências ou possíveis influências
da fala sobre a escrita ou vice-versa (cf. Rodrigues, 2003: 15-37).
Os estudiosos desenvolviam suas atividades sobre o material lingüístico oriundo de
textos orais e textos escritos, a partir de uma perspectiva teórico-metodológico dicotômica.
De acordo com Marcuschi, é por essa perspectiva “que conhecemos as dicotomias
que dividem a língua falada e a língua escrita em dois blocos distintos, atribuindo-lhes
propriedades típicas” (2004: 27).
A respeito do caráter dicotômico dos estudos de língua falada e língua escrita, Preti,
apoiado em Marcuschi (1993), afirma:
Um consenso a que se chegou nesses estudos é que a língua falada não é
“desorganizada” como se costumava afirmar e tem uma gramática própria
que os falantes aprendem no uso diário e cujas categorias de análise
diferem da gramática da língua escrita. Assim, na organização textual e
interacional da fala, temos marcadores conversacionais, repetições e
paráfrases, parentéticas, sobreposições, anacolutos, hesitações, correções,
freqüência de construções impessoais de fundo atenuador, etc. Na sintaxe,
há predominância de períodos curtos, justaposição, frases incompletas
(frases mínimas, suficientes para a compreensão do falante e que se
interrompem quando isso acontece), baixa ocorrência de subordinação,
anacolutos. (2004: 125)
27
Pesquisas lingüísticas atuais dão conta de uma nova perspectiva sobre a distinção
que se fazia entre língua falada e língua escrita. De acordo com essa nova perspectiva,
ambas devem ser observadas como modalidades do mesmo sistema, o lingüístico.
A partir da aplicação das teorias da Análise da Conversação, os estudos da oralidade
deixam de ser pautados em observações feitas em modelos construídos para a análise de
textos escritos.
Com relação ao tratamento teórico-científico das modalidades falada e escrita da
língua, nos dias atuais, Marcuschi afirma que “predomina a posição de que se pode
conceber oralidade e letramento como atividades interativas e complementares no contexto
das práticas sociais e culturais” (2004: 16). Para ele, não são apenas as regras e morfologia
da língua que determinam a variação em suas diversas possibilidades de manifestação, a
variação está relacionada aos usos que fazemos da língua (id.).
Podemos considerar que oralidade e letramento são práticas sociais, enquanto que
fala e escrita são modalidades de uso da língua.
Apesar de muitas vezes ser concebida como uma possibilidade de representação da
fala, a escrita não abarca todos os fenômenos da oralidade (gestos, expressões faciais,
elementos paralingüísticos etc). Entretanto, garantida por constituir-se de elementos
próprios, a língua escrita também apresenta propriedades específicas (tipos de letras
diferenciados, paragrafação, pontuação, continuidade e seqüência discursiva sem
interrupções etc.).
Ainda sobre a concepção dos textos oral e escrito, Rath (apud Marcuschi, 2003: 62),
considera que “tanto na produção oral como na escrita o sistema lingüístico é o mesmo para
a construção das frases, mas as regras de sua efetivação bem como os meios empregados
são diversos e específicos, o que acaba por evidenciar produtos lingüísticos diferenciados.
Estudos realizados por Marcuschi demonstram que oralidade e escrita, apesar de
diferentes em sua formação e específicas em sua realização, não representam uma
28
dicotomia absoluta. Ambas permitem a organização de idéias num continuum coeso e
coerente com idéias e reflexões abstratas, que podem variar tanto no nível formal e
informal, quanto em variedades de estilo e dialeto. Essas modalidades terão a variação nas
diversas categorias e serão determinadas, entre outros fatores, pelas limitações dos recursos
disponíveis para sua realização, tais como: sonoridade e grafia (cf. Marcuschi, 2003.: 17)
Apesar de, atualmente, os estudos terem avançado e superado dicotomias entre fala
e escrita, há no senso comum, maior valorização da língua escrita. Com referência à
superioridade da escrita com relação à oralidade, Marcuschi considera que, apesar da
primazia da oralidade, a penetração da escrita em qualquer sociedade ganhará um valor
social maior do que a fala, talvez pelo seu aspecto institucional (id.).
Para o autor, o essencial não é identificar a verdadeira importância de uma
modalidade em relação à outra, mas sim a tentativa de esclarecimento da natureza prática
social que as envolve. Ambas devem ser pensadas como meio de realização de ações
sociais eficientes, e suas variações deverão adequar-se aos objetivos de seus enunciadores
(cf. op. cit. 18). Nessa perspectiva, não cabe considerar uma modalidade superior ou
inferior à outra.
A propósito dessa concepção, Marcuschi considera:
As relações entre fala e escrita não são óbvias nem lineares, pois elas
refletem um constante dinamismo fundado no continuum que se manifesta
entre essas duas modalidades de uso da língua. Também não se pode
postular polaridades estritas e dicotomias estanques (op. cit.: 34).
De acordo com Barros, fala e escrita são realizações de um mesmo sistema com
características próprias, que podem formar posições intermediárias, ou seja, formas
complementares de leitura do mundo (cf. 2000: 58). Assim as diferenças entre as
modalidades falada e escrita da língua devem ser analisadas sob o ponto de vista dos usos e
não do sistema.
29
A partir dessas considerações, é possível afirmar que a relação entre a situação
comunicativa e os interlocutores indicará em que grau os textos falados ou escritos
apresentarão variações oral e escrita. Portanto, independente de seu modo de realização, a
situação interacional e fatores como conhecimento partilhado, intimidade, envolvimento
emocional, privacidade, cooperação, dialogicidade, espontaneidade entre interlocutores
determinarão maior proximidade com a oralidade ou com a escrita.
Desse modo, as relações entre a oralidade e a escrita na produção textual discursiva
ocorrerão somente dentro do efetivo uso lingüístico.
2.2. A Análise da Conversação
Os estudos em Análise da Conversação iniciaram-se na década de 60 com os
pesquisadores americanos H. Sacks, E. Schegloff e G. Jefferson (1974) (cf. Koch, 2000:
67). Até meados da década de 70, essas pesquisas consistiam na descrição das estruturas da
conversação e nos mecanismos que a organizam.
Inicialmente, a Análise da Conversação (daqui por diante AC) é usada por
sociólogos que trabalham teoricamente sob a influência da Etnometodologia, daí a
preocupação com a descrição da estrutura e organização da conversação. Diferentemente da
Análise do Discurso, no que se refere ao trabalho com dados empíricos, a AC realiza suas
análises com dados e contextos reais de ocorrência (cf. op. cit.).
De acordo com Coulon (1995: 39), a AC representa um dos campos “mais ricos e
mais desenvolvidos” da Etnometodologia. Ele destaca o caráter empírico que a vertente
etnometodológica dos estudos de análise da linguagem revela:
A linguagem natural torna-se um objeto de estudo que é, simultaneamente,
situacional e transcendente. Além de se manifestar unicamente através da
interação, obedece também à estrutura social que é subjacente a qualquer
30
troca social e, ao mesmo tempo, a revela. É a razão pela qual a AC presta
uma atenção especial ao estudo das amostras obtidas no decorrer de
interações verbais naturais, isto é, que se manifestam espontaneamente na
vida cotidiana. (op. cit.: 40)
As pesquisas realizadas na perspectiva etnometodológica utilizaram a língua falada
com a finalidade de realizar uma investigação sociológica. Desse modo, o estudo descritivo
das estruturas da conversação e de seus mecanismos de organização não tinha como
objetivo apresentar um estudo para fins lingüísticos, mas sim desenvolver ações
investigativas no que diz respeito às ações ou atividades sociais dos indivíduos envolvidos.
Para Kerbrat-Orecchioni (2006: 17-24), os estudos da AC apresentam característica
transdisciplinar, pois relacionam-se com diversas disciplinas. Na tentativa de uma melhor
compreensão dessa relação, a autora agrupa as variadas correntes teóricas em quatro
grandes tipos de abordagem:
1. Psicológica/psiquiátrica: preocupação de ordem terapêutica, representada pela
escola de Palo Alto;
2. Etnosociológicas: consideradas as mais importantes, divididas em três correntes:
a) Etnografia da comunicação: domínio das condições de uso adequado da
língua, representada por D. Hymes e J. Gumperz;
b) Etnometodologia: descreve os “métodos” (procedimentos, saberes e
técnicas), forjada por H. Garfinkel e desenvolvida por Sacks, Schegloff e
Jefferson;
c) Sociológicas: adotam uma perspectiva resolutamente interacionista,
desenvolvida por W. Labov, J. Fishman e E. Goffman;
3. Lingüística: prioridade às produções efetivas (corpora “autênticos”), deve
considerar também os discursos orais e dialogados como forma de realização da
linguagem, representada pelos trabalhos do grupo chamado “Escola de Genebra”;
31
4. Filosófica: apresenta como seu principal representante F. Jacques, que busca definir
uma “canônica do diálogo”.
A propósito dessas correntes, Silva (2005: 34-36) acrescenta que o fato do estudo
das conversações tornar-se objeto de pesquisa de diversas correntes teóricas dificulta
determinar com clareza aquela que tem por objetivo o ato conversacional. Desse modo, a
opção por determinada corrente em detrimento de outra, depende do conceito que se
pretende dá ao objeto de estudo.
O autor, apoiado nas palavras de Pomerantz e Fehr (2000: 104), observa que “a
preocupação com a perspectiva conversacional gerou muitas correntes de pesquisa”, fato
que criou uma dificuldade em delimitar cada corrente, e acrescenta:
Todos esses projetos (incluindo a Análise da Conversação) surgiram, em
parte, como resultado da incipiente noção de que a linguagem e a fala
supõem algo mais que uma representação do mundo. Todos compartilham
o critério de que a linguagem pode ser usada para pôr em prática ações
sociais. Em todos eles, registram-se e analisam-se instâncias da fala em
interação, e considera-se o papel do contexto na produção do sentido. Em
todos, considera-se a importância de captar a perspectiva dos participantes
nas seqüências interativas. (Silva, 2005.: 36)
A realização dos trabalhos dos pesquisadores etnometodólogos, visando aos
interesses sociológicos, parece ter fornecido a consolidação de pesquisas em linhas de
interesses lingüísticos como a própria AC.
O estudo de ações sociais com base empírica, segundo Marcuschi (2003: 7), “dá à
AC uma vocação naturalística com poucas análises quantitativas, prevalecendo ainda as
descrições e interpretações qualitativas.”
A respeito dessa vocação, Marcuschi (op. cit.: 8) acrescenta que
32
a AC estabeleceu desde o início sua preocupação básica com a vinculação
situacional e, em conseqüência, com o caráter pragmático da conversação
e de toda a atividade lingüística diária. Em outros termos, a vinculação
contextual da ação e interação social faz com que toda a atividade de fala
seja vista ligada à realização local, mas de uma forma complexa, uma vez
que a contextualidade é reflexiva e o contexto de agora é, em princípio, o
emulador do contexto seguinte. Nesse processo, são os próprios
interlocutores que fornecem ao analista as evidências das atividades por
eles desenvolvidas.
Assim, as investigações sociológicas realizadas ao longo do tempo, possibilitaram à
AC firmar-se como ciência lingüística que investiga enunciados produzidos em situações
reais de ocorrência, refletindo a respeito de conhecimentos práticos revelados
fundamentalmente em eventos específicos de convívio social.
Atualmente, os estudos da AC priorizam investigações que conduzem a respostas
para questionamentos a respeito da organização da conversação e sua interação bem
sucedida ou efetivamente realizada, preocupando-se com o estudo de conhecimentos
partilhados (lingüístico, paralingüístico e socioculturais), os quais envolvem os
interlocutores em eventos comunicativos organizados e com sentido, levando sempre em
conta as especificidades de cada evento. Ao priorizar a composição do texto, há um maior
interesse pelo estudo lingüístico. (cf. Marcuschi, 2003: 6).
Os avanços nos estudos na área da conversação passam a analisar a atividade
conversacional como processo cooperativo, a partir de ações realizadas pelos interlocutores,
surgindo a concepção de linguagem como forma de ação/interação.
2.3. A perspectiva sociointeracionista
A visão sociointeracionista ocupa-se em tratar a relação entre fala e escrita dentro
de um contexto dialógico, considerando essa relação como um modo complementar de
compreensão do mundo (cf. Barros, 2000: 58).
33
De acordo com essa visão, fala e escrita são formas de representação cognitiva e
social que surgem em situações específicas.
Estudos realizados por Marcuschi (2004: 33), nessa perspectiva, revelam que as
modalidades falada e escrita da língua apresentam fundamentos que possibilitam uma
percepção da língua como um “fenômeno interativo e dinâmico”, como podemos observar
no quadro:
fala e escrita apresentam
dialogicidade
usos estratégicos
funções interacionais
envolvimento
negociação
situacionalidade
coerência
dinamicidade
Assim, dentro do modelo sociointeracionista, fala e escrita são realizações do
mesmo sistema, com características próprias, que podem formar posições intermediárias.
Como vimos anteriormente, para o autor, o importante é que ambas devem ser
pensadas como meio de realização de ações sociais eficientes, devendo suas variações
adequar-se aos objetivos de seus enunciadores (cf. op. cit.: 18).
Marcuschi ressalta ainda a possibilidade que esta perspectiva oferece nos estudos
relacionados à “compreensão na interação face a face e na interação entre leitor e texto
escrito” (cf. op. cit.: 33).
34
Com relação às estratégias de organização textual-discursiva, Marcuschi (2004: 34)
observa:
A perspectiva interacionista preocupa-se com os processos de produção de
sentido tomando-os sempre como situados em contextos sócio-
historicamente marcados por atividades de negociação ou por processos
inferenciais. Não toma as categorias lingüísticas como dadas a priori, mas
como construídas interativamente e sensíveis aos fatos culturais.
Preocupa-se com a análise dos gêneros textuais e seus usos em sociedade.
Tem muita sensibilidade para fenômenos cognitivos e processos de
textualização na oralidade e na escrita, que permitem a produção de
coerência como uma atividade do leitor/ouvinte sobre o texto recebido.
Desse modo, fala e escrita são analisadas sob o ponto de vista dos usos e não do
sistema, criando formas de produzir os sentidos do mundo que surgem dentro de um
continuum que se manifesta entre essas modalidades de uso da língua. (id.)
Ao tratar das posições intermediárias entre fala e escrita, Barros (2000: 57), afirma:
Nos estudos lingüísticos atuais instalou-se já certo consenso sobre a
insuficiência de uma distinção rígida entre escrita e fala e sobre a
existência de posições intermediárias ou de certa continuidade entre os
pontos extremos em que se caracterizam idealmente língua falada e língua
escrita.
As considerações de Barros nos ajudam a compreender que as especificidades
apresentadas nas ações dos sujeitos ao produzir textos falados e escritos, possibilitam a
existência de uma posição intermediária entre as duas modalidades da língua, apresentando
textos falados com grande semelhança com os textos escritos, ou o contrário, textos com
marcas de oralidade concebidos graficamente.
Preti (2004: 125), no entanto, alerta:
35
Mas, se observarmos qualquer desses tipos de texto em que se notam
diferenças e semelhanças entre fala e escrita, seria impossível afirmar que
existe uma perfeita correspondência entre eles, de tal forma, por exemplo,
que a linguagem de uma carta familiar pudesse ser a representação exata
da linguagem falada do dia a dia.
As considerações apresentadas nos permitem afirmar que fala e escrita não são tipos
de textos dicotomicamente antagônicos, mas concorrem em elementos identificadores que
os configuram num conjunto de traços, levando-os a serem concebidos como falados ou
escritos em maior ou menor grau.
Estudos lingüísticos realizados por Marcuschi (2004: 41) propõe um gráfico com
dois planos antagônicos que demonstram essas considerações: no alto, à direita, temos a
representação do continuum da escrita e abaixo, à esquerda, o da fala:
36
Na extremidade direita superior encontram-se os gêneros textuais cuja manifestação
dá-se em nível estritamente escrito e caracteriza, pela formalidade da linguagem
empregada, referência também de texto conceptualmente escrito. Gradativamente, da
direita para a esquerda, o gráfico mostra textos escritos que vão assumindo características
da oralidade, passando à concepção de textos falados, apesar de serem escritos.
Na parte inferior, em sua extremidade esquerda, localizam-se gêneros que são
estritamente manifestados por meio da fala. Assim como a parte superior do quadro, a
gradativa passagem de um lado para outro, nesse caso da esquerda para a direita, apresenta
um conjunto de textos que, apesar de falados, assumem concepção escrita pela formalidade
da linguagem que passam a constituir.
Nessa perspectiva, fala e escrita parecem assumir posição dicotômica quanto à
forma de manifestação, ou seja, fônica e gráfica, pois, como podemos observar, as
semelhanças entre as duas modalidades são mais acentuadas na medida em que os textos se
afastam na forma como se manifestam, oralidade à esquerda e escrita à direita, assumindo
posição conceptual mais próxima do plano oposto.
Assim, podemos observar que o modo como fala e escrita se diferenciam aparece
apenas no plano da manifestação ou da expreso. A primeira é substancialmente sonora,
enquanto a segunda é visual.
A esse respeito, Barros (cf. 2000: 74) esclarece que a fala não representa a escrita, já
que esta não possui recursos suficientes que possam dar conta de determinadas
características da oralidade. Apesar disso, a autora acrescenta que a escrita possui sinais
gráficos que permitem expressar de forma organizada o que o sujeito pretende comunicar.
Assim,
a transcrição para a escrita de um texto falado ou a leitura oral de um texto
escrito traz marcas de escrita e de fala, respectivamente (...). Não se passa
impunemente da substância sonora da fala à visual da escrita, pois há
37
conseqüências no nível da forma da expressão e no plano do conteúdo.
(op. cit.: 75)
Desse modo, o efetivo uso lingüístico da oralidade e da escrita é que estabelecerá as
reais relações entre elas na produção textual discursiva, construindo textos falados
altamente formais ou textos escritos basicamente informais, sendo o uso o fator
determinante dessas características.
2.4. Interação
A interação é um fenômeno sociocultural e discursivo que se estabelece de forma
cooperativa e recíproca, dentro de um contexto social. Assim, Brait esclarece :
A interação é um componente do processo de comunicação, de
significação, de construção de sentido e que faz parte de todo ato de
linguagem. É um fenômeno sociocultural, com características lingüísticas
e discursivas passíveis de serem observadas, descritas, analisadas e
interpretadas. (2003: 220)
Desse modo, é na interação que a linguagem se manifesta dentro de um contexto
social, que pode ir da cooperação e reciprocidade ao conflito, por meio de uma ação
conjunta entre os interlocutores. (cf. Preti, 2002: 45)
Ao analisarmos a linguagem, tomando por base a conversação, notamos que a
interação implica num estudo comportamental, já que se baseia no conjunto de ações entre
os interlocutores. Os falantes devem construir juntos o texto verbal, utilizando estratégias
que possibilitem a compreensão mútua. Para isso, devem considerar, não apenas os
recursos lingüísticos, como também os paralingüísticos tais como os gestos, as expressões
corporais, o olhar, bem como o contexto situacional em que ocorre o ato conversacional.
(cf. Brait, op. cit.: 221)
38
Marcuschi (cf. 2003: 15), apoiado em Dittmann (1979), afirma que algumas
características básicas são fundamentais para a realização organizada da conversação. Essas
características são: a presença de pelo menos dois interlocutores que estejam dispostos a
interagir por meio da fala com, no mínimo, uma troca de enunciados entre eles, sincronia
ou identidade temporal e, mesmo que apresentem opiniões diferenciadas, estejam voltados
para uma mesma tarefa.
O autor observa que, para desenvolverem essas características, os interlocutores
necessitam de habilidades e conhecimentos que vão além dos mecanismos da língua, já que
para “produzir e sustentar uma conversação, duas pessoas devem partilhar um mínimo de
conhecimentos comuns. Entre eles estão a aptidão lingüística, o envolvimento cultural e o
domínio de situações sociais” (op. cit.: 16).
Assim, a dinâmica da interação parece estar atrelada ao contexto situacional, às
características dos interlocutores no ato conversacional e às estratégias por eles utilizadas.
A propósito dessa dinâmica, Brait (2003: 221), afirma que
não apenas o que está dito, o que está explícito, mas também as formas
dessa maneira de dizer que, juntamente com outros recursos, tais como
entoação, gestualidade, expressão facial etc., permitem uma leitura dos
pressupostos, dos elementos que mesmo estando implícitos se revelam e
mostram a interação como um jogo de subjetividades, um jogo de
representações em que o conhecimento se dá através de um processo de
negociação, de trocas, de normas partilhadas, de concessões.
No processo interativo, os interlocutores participantes da situação comunicativa
revezam-se na condição de falante e de ouvinte, utilizando estratégias conversacionais e
competências comunicativas para atingirem com sucesso os objetivos estabelecidos.
Ao tratar das estratégias conversacionais, Preti (2002: 52), menciona:
39
Se tomarmos um diálogo, no início ou em vários pontos de seu
desenvolvimento, podemos observar que os falantes replanejam sua
organização discursiva, em função das necessidades de compreensão, de
envolvimento, de participação, de convencimento de seu interlocutor. As
estratégias conversacionais, portanto, consistem em táticas que se
empregam para atingir esses e outros fins na interação.
Essas considerações permitem afirmar que a utilização de estratégias discursivas
entre os interlocutores, mesmo que de forma inconsciente, colaboram na construção de
sentidos no processo interacional. Portanto, o texto conversacional é uma construção
coletiva, e sua coerência depende da ação cooperativa dos falantes.
Em geral, na fala, é comum os interlocutores apresentarem-se em situação face a
face, o que favorece um envolvimento maior entre eles.
De acordo com Rodrigues (cf. 2003: 26), apoiada em Chafe (1985), na construção
do texto conversacional, podemos observar três formas diferenciadas de envolvimento: a do
interlocutor com o que se está falando (assunto), a do falante consigo mesmo (ego-
envolvimento) e a do falante com o ouvinte (dinâmica da interação).
Os mais variados níveis de envolvimento que formam o processo interativo são
intensamente presentes no texto conversacional, e esse envolvimento será definido de
acordo com os elementos circunstanciais que envolvem os sujeitos da interação. Desse
modo, “cada interação tem suas próprias características”, resultando em discursos
“construídos e constituídos de forma diferente a cada interação” (cf. Urbano: 2002: 259).
2.4.1. Interação e situação comunicativa
Ao observarmos as estratégias discursivas utilizadas pelos falantes para se fazerem
compreender e para atingirem objetivos específicos, devemos considerar a situação
comunicativa como um importante elemento na efetivação da interação.
40
A língua, como instrumento social, requer o envolvimento de um falante e de um
ouvinte. Esse envolvimento não se dá de forma isolada; muitas vezes é composto por uma
comunidade ou um grupo específico, formando assim grupos, comunidades lingüísticas.
Comunidade lingüística, de acordo com Carvalho,
nem é outra coisa senão a comunidade humana sem outro determinativo -
a sociedade dos homens em geral ou em particular – enquanto
contemplada através de um prisma especial, o da linguagem. (291-296)
Todos os falantes de uma determinada língua obedecem a estruturas básicas de
funcionamento dessa, no entanto, tais estruturas podem sofrer variações, devido à
influência de diversos fatores. Para Marcel Cohen, a diversidade lingüística de uma
comunidade “se deve a condições sociais de ordem diversa, tais como diferenças de
origem, de profissão, de nível de vida, de religião.” (apud Preti, 2003a: 18)
Assim, a língua parece exercer um papel fundamental no desempenho social do
indivíduo. De acordo com Preti (2004: 183),
ao falarmos, podemos refletir o tempo em que vivemos (variação
diacrônica); a região em que estamos ou de onde proviemos (variação
diatópica); nossa condição sociocultural, profissão, grau de escolaridade
(variação diastrática); nosso sexo, faixa etária, ou aspecto de nossa
personalidade (variação psicofísica); a situação de comunicação de que
participamos, a forma verbal de interagirmos, decorrente do grau de
intimidade que temos com nossos interlocutores, do tema que tratamos, da
menor ou maior formalidade exigida, que resultará em registros diferentes,
numa fala tensa ou distensa (variação diafásica).
Mais do que perceber estas variações, é preciso observar como o mesmo falante
apresenta diferenças em sua linguagem, dependendo do seu ouvinte e da situação
comunicativa.
41
A propósito da situação comunicativa, Urbano (2000: 22), apoiado em Ducrot e
Todorov (1973), explica que ela é
o conjunto das circunstâncias no meio das quais se desenrola um acto de
comunicação (oral ou escrito). Deve-se entender por isto, ao mesmo
tempo, o ambiente físico e social em que se realiza este acto, a imagem
que dele têm os interlocutores, a identidade destes, a idéia que cada um
tem do outro (incluindo a representação que cada um tem do que o outro
pensa dele), os acontecimentos que precederam o acto de enunciação
(sobretudo as relações que antes tiveram os interlocutores), e sobretudo as
trocas de palavras em que se insere a enunciação em questão.
Essas considerações permitem entender a existência da interação entre o fato social
e o lingüístico, revelando a necessidade que o falante tem em adequar a sua linguagem de
acordo com o contexto específico.
Preti (2003a: 38-39), observa que as mudanças na linguagem “em função das
variações de situação”, podem apresentar alterações no “nível de fala ou registro formal”,
como sugere o esquema:
Situações de formalidade
Formal Predomínio de linguagem culta
Comportamento lingüístico mais refletido, mais
tenso
Vocabulário técnico
etc.
NÍVEIS DE Comum
FALA
(REGISTROS) Situações familiares ou de menor formalidade
Predomínio de linguagem popular
Comportamento lingüístico mais distenso
Coloquial Gíria
Linguagem afetiva, expressões obscenas, etc.
42
De acordo com o esquema, a variação de uso da língua, denominada “níveis de fala
(ou níveis de linguagem) ou registros”, depende da situação de comunicação. Os falantes
escolhem a linguagem mais adequada para expressarem suas idéias e se fazerem
compreender. (id.)
Assim, o processo interacional torna a linguagem um acontecimento social, já que
os interlocutores se comunicam com a intenção de atuarem um sobre o outro. A propósito
do uso da palavra em função do interlocutor, Bakhtin (2004: 113) afirma:
Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto
pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para
alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do
ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro.
Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última
análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte
lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa
extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o
território comum do locutor e do interlocutor.
Dessa forma, é possível compreender que a situação de comunicação está
diretamente vinculada ao ato de comunicação, pois é no convívio social que o indivíduo
estabelece relações sociais, criando condições para interagir com o outro.
2.4.2. Interação e conhecimentos partilhados
O conhecimento partilhado, seja no texto escrito ou no texto falado, apresenta
importante função interacional na comunicação. Quanto maiores forem as semelhanças
entre os conhecimentos partilhados dos sujeitos envolvidos na interação, menor será a
necessidade de se construir um enunciado denso de informações.
43
Vimos no capítulo 2.4, que, ao participarem de um evento conversacional, dois ou
mais falantes constroem juntos o texto verbal, não apenas com a intenção de trocar
informações, mas também em busca de compreensão mútua. Assim, nessa construção de
significados é fundamental o conhecimento de mundo dos interlocutores.
A respeito da relação entre os participantes de uma situação de comunicação, a fim
de estabelecer um determinado sentido no processo comunicativo, Barros (2002: 17),
afirma: “Toda comunicação é uma forma de manipulação, em sentido amplo, ou seja, deve
ser entendida como uma relação em que o destinador exerce, principalmente, um fazer
persuasivo e o destinatário, um fazer interpretativo.”
Sabemos que, na construção do texto verbal, pode haver variações na compreensão
dos enunciados, por isso, espera-se que os interlocutores possam estabelecer significados
comuns, a fim de tornarem-se parceiros na atividade comunicativa.
A propósito dessa parceria, Koch (2002: 30), observa que os falantes são parceiros
que, “diante de uma manifestação lingüística, pela atuação conjunta de uma complexa rede
de fatores de ordem situacional, cognitiva, sociocultural e interacional, são capazes de
construir, para ela, determinado sentido.
Assim, podemos observar que o processo cooperativo exerce papel importante na
construção dos sentidos, já que os participantes do diálogo sofrem influência do meio e do
outro. Ambos constroem os significados de forma colaborativa a partir da interação
lingüística.
Com relação à colaboração dos falantes na construção de sentido, Marcuschi (1998:
23) afirma que
a compreensão é um processo de sinalização múltipla: referentes comuns,
atenção centrada e interesse construído conjuntamente. Sem esses
elementos não só faltará compreensão, como não haverá engajamento
44
suficiente para o desenvolvimento de atividades cognitivamente
sintonizadas e interativamente coordenadas.
Essas considerações permitem afirmar que os conhecimentos partilhados parecem
colaborar de maneira decisiva na construção do ato comunicativo, já que a negociação que
se estabelece entre os falantes possibilita uma melhor interação.
A respeito desses conhecimentos, Marcuschi (op. cit.: 21) menciona que “numa
interação face a face, a base do sucesso das trocas é a presença de interesses comuns e
referentes partilhados, previamente existentes ou construídos no processo da interação”.
As considerações apresentadas nos permitem afirmar que, ao produzir e sustentar
uma conversação, os interlocutores devem partilhar de conhecimentos comuns, a fim de
proporcionar uma comunicação facilitada, mais completa, já que esses conhecimentos
possibilitam a construção de sentidos na interação.
2.5. Fala - escrita e o texto teatral
2.5.1. Fala - escrita
Conforme observamos no capítulo 2.1, fala e escrita apresentam características
próprias, constituindo práticas e usos da língua. Ambas possibilitam a elaboração de textos
coesos e coerentes e de raciocínios abstratos, que podem apresentar variações no nível
formal e informal, estilísticos, sociais e dialetais (cf. Marcuschi: 2004: 17).
Embora nosso trabalho esteja diretamente voltado para a perspectiva
sociointeracionista, a fim de evidenciar algumas especificidades na elaboração do texto
conversacional e do texto escrito, faz-se necessário observarmos algumas características da
perspectiva dicotômica em que se relacionam essas duas modalidades.
45
O texto conversacional é produzido por interlocutores que interagem e elaboram o
enunciado local e simultaneamente ao momento da fala.
O texto escrito, por sua vez, é construído de forma solitária, sem a presença de um
interlocutor, utilizando sinais gráficos na tentativa de representar a fala por meio visual,
podendo ser reelaborado.
A propósito dessas peculiaridades de produção dos textos escrito e falado,
Marcuschi (2003: 28) afirma:
Ao escrevermos, dispomos de mais tempo que na conversação. Podemos
voltar atrás corrigindo os equívocos, eliminando passagens supérfluas,
refazendo o estilo e polindo o texto. O leitor só recebe a versão final. Na
conversação o tempo é real, e tudo o que se fizer é definitivo.
Considerando o fato de que fala e escrita apresentam peculiaridades específicas de
realização, Fávero, Andrade & Aquino (2002: 74), afirmam que ao estabelecer relações
entre ambas, faz-se necessário considerar as condições de produção, já que essas condições
“possibilitam a efetivação de um evento comunicativo e são distintas em cada modalidade”.
A fim de demonstrar como se realizam tais condições, as autoras propõem o
seguinte quadro:
46
Fala Escrita
Interação face a face Interação à distância (espaço-temporal)
Planejamento simultâneo ou quase simultâneo à produção Planejamento anterior à produção
Criação coletiva: administrada passo a passo Criação individual
Impossibilidade de apagamento Possibilidade de revisão
Sem condições de consulta a outros textos Livre consulta
A reformulação pode ser promovida tanto pelo falante como
pelo interlocutor
A reformulação é promovida apenas pelo escritor
Acesso imediato às reações do interlocutor Sem possibilidade de acesso imediato
O falante pode processar o texto, redirecionando-o a partir
das reações do interlocutor
O escritor pode processar o texto a partir das possíveis
reações do leitor
O texto mostra todo o seu processo de criação O texto tende a esconder o seu processo de criação,
mostrando apenas o resultado
A propósito das condições de produção das duas modalidades, Akinnaso
(1982:111), citado por Urbano (2000: 86), explica que
elas são estruturalmente diferentes porque diferem quanto ao modo de
aquisição; método de produção, transmissão e recepção e nas formas em
que os elementos de estrutura são organizados. A fala é normalmente
adquirida sem instruções formais (em família, parques, na rua, etc.)
enquanto a escrita tem de ser conscientemente apreendida, geralmente na
escola.
As especificidades apresentadas na produção de textos falados e escritos devem ser
observadas pela forma como esses se expressam. Enquanto a fala utiliza sons produzidos
pelo aparelho fonador e a presença física para estabelecer a comunicação, a escrita
47
necessita de sinais gráficos capazes de representar precariamente a sonoridade da fala,
dentro de uma produção solitária.
A propósito dessas especificidades, Urbano (1998: 132), afirma:
A mais clara evidência é a língua falada ser realizada oral e auditivamente,
num continuum sonoro, e a língua escrita apresentar-se gráfica e
visualmente em seqüências de vocábulos claramente delimitados por
espaços em branco. O continuum do material sonoro é responsável, no
texto falado, pelas suas mais sensíveis propriedades: entonação, ritmo,
intensidade, dinâmica e qualidade da voz, que são reproduzidas na escrita,
direta ou indiretamente, pelas letras, pontuação, sinais diacríticos e por
descrições lingüísticas específicas (...) Outras características da expressão
oral, além do material sonoro, é o uso de vários meios auxiliares, como a
expressividade facial (incluindo olhar e gestos), a postura e as
características situacionais, que na escrita só podem ser manifestadas
também indiretamente pelo canal estritamente lingüístico.
Dentro dessas especificidades, cabe ressaltar que a escrita não deve ser considerada
como uma “representação absoluta e fiel da fala”. A esse respeito, Preti (2004: 126),
afirma:
É ilusório, pois, o diálogo com o leitor, por meio de uma carta, de um
artigo, de um texto literário. O que há é apenas a pressuposição de que um
leitor esteja recebendo nossas palavras com a intenção que lhes
atribuímos, dentro das pressupostas expectativas desse mesmo leitor. A
rigor, ninguém escreve para passar a idéia de que se trata de uma fala
transcrita.
Essas considerações nos ajudam a compreender a oposição que ambas as
modalidades de língua apresentam. Os textos escritos cujos traços se aproximam da
modalidade oral, estabelecem um maior envolvimento entre os interlocutores. Por sua vez,
os textos construídos com características próprias da modalidade escrita apresentam maior
distanciamento entre o escritor e o leitor.
48
De acordo com Urbano (2000: 89),
costuma-se considerar o grau de envolvimento entre os interlocutores em
oposição ao grau de distanciamento entre escritor e leitor. Na realidade, o
envolvimento e o distanciamento devem ser considerados em três
dimensões, ou seja, com o assunto ou tópico discursivo, consigo mesmo e
com o outro interlocutor.
Esses aspectos, envolvimento e distanciamento, característicos das duas
modalidades, demonstram diferenças na forma de produção dos textos falado e escrito. Na
fala, a comunicação se dá no momento da produção, criando um envolvimento maior entre
os participantes do texto conversacional. Por outro lado, a escrita, por ser elaborada
isoladamente, contribui para o distanciamento com o leitor.
Na produção do texto escrito a comunicação divide-se em dois tempos: “o tempo da
atividade mental (geração ou busca de idéias) e o tempo da prática verbal (realização
lingüística efetiva)”, e a sua transmissão ocorre posteriormente, (cf. Urbano: 1998: 133).
Por apresentar um intervalo temporal no decorrer da sua produção, o texto escrito pode ser
reformulado sem deixar pistas das revisões realizadas durante a sua construção.
De acordo com Koch (2000:68), os traços distintivos mais freqüentes entre as duas
modalidades são os seguintes:
Fala Escrita
1. não-planejada
2. fragmentária
3. incompleta
4. pouco elaborada
5. predominância de frases curtas, simples
ou coordenadas
6. pouco uso de passivas etc.
1. planejada
2. não-fragmentária
3. completa
4. elaborada
5. predominância de frases complexas, com
subordinação abundante
6. emprego freqüente de passivas etc.
49
Embora a fala apresente uma forma espontânea de manifestação, não significa que
ela seja elaborada de forma desorganizada. O texto verbal é formado por uma estrutura
específica, a fim de obter uma comunicação eficiente.
Com relação à organização da fala, Marcuschi (2003: 17-89) observa que o texto
conversacional apresenta elementos que contribuem para a sua organização estrutural, tais
como o turno (“é a produção de um falante enquanto ele está com a palavra”), a seqüência
(“é uma série de turnos sucessivos”) e o tópico (“o assunto da conversação”).
As considerações feitas com relação à distinção entre fala e escrita nos permitem
afirmar que além dos recursos básicos de produção, o som de um lado, e a grafia de outro,
como vimos neste capítulo nas palavras de Akinnaso ao se referir à diferença estrutural das
duas modalidades, ambas apresentam características específicas quanto ao modo de
aquisição, transmissão, recepção e organização estrutural.
2.5.2. O texto teatral
A obra teatral apresenta dois tipos distintos de textos: um texto escrito (script) que
se realiza por meio da fala, e um texto oral que se realiza no palco com a representação do
script. “Esse tipo de obra só pode ser apreendida completamente na sua materialidade
escrita e cênica.” (Urbano, 2005: 196)
Ao comentar a natureza dos textos escritos para o teatro, Ryngaert (1996: 46)
afirma que “o texto de teatro tem o bizarro estatuto de uma escrita destinada a ser falada, de
uma fala escrita que espera uma voz, um sopro, um ritmo.”
Ao produzir um texto escrito para ser expresso oralmente, o autor percorre um
caminho que se movimenta entre a representação teatral e a conversação, apresentando
50
“semelhanças e particularidades em relação aos diálogos naturais e espontâneos”, tendo
como objetivo envolver o espectador com o espetáculo. (cf. Urbano, 2005: 196-197)
A respeito desse envolvimento com o público, Ryngaert observa que “a dramaturgia
do texto inclui as técnicas da escrita e aquilo que é contado, assim como o efeito esperado
sobre o espectador.” (1996: 15)
O autor considera que “todo o jogo do diálogo” no teatro é influenciado pela
presença do público que participa do espetáculo como um “parceiro mudo”, já que a
representação e toda a fala buscam o espectador como seu destinatário. (cf. op. cit.: 12)
A propósito do texto dialogado, Ryngaert afirma ainda que “o teatro é antes de tudo
diálogo, ou seja, nele a palavra do autor é mascarada e partilhada entre vários emissores.
Essas palavras em ação assumidas pelas personagens constituem o essencial da ficção.”
(id.)
Ainda com relação ao diálogo teatral, Preti, apoiado em Lakoff (1996: 142),
explica que, para a autora, o diálogo é o principal meio de expressão das personagens e das
suas relações. (cf. Preti, 2004: 200)
Ao referir-se à preferência da autora por peças teatrais para pesquisa, acrescenta:
Os romancistas têm muitas outras técnicas de que lançam mão, mas para
um dramaturgo o diálogo e o comportamento extralingüístico
concomitante deve ser acompanhado por todo o público. A interpretação
deve ser feita pelo espectador ou ouvinte, como numa conversação real;
enquanto o romancista, graças a uma seleção e uma descrição cuidadosas,
pode realizar grande parte desse trabalho de interpretação. (id.)
Desse modo, Preti afirma que é necessário
observar os textos sempre em consonância com sua experiência de falante,
a fim de reconhecer neles uma ‘linguagem possível’ na realidade (...)
51
Assim, será possível identificar modelos de fala nos falantes representados
e nas situações retratadas no texto. É essa correlação entre personagem de
ficção (peça teatral, telenovela ou roteiro cinematográfico) e o falante real
que constitui esse ‘diálogo verossímil’, isto é, essa verdade lingüística
possível, embora nem sempre encontrada na conversação natural. (op. cit.:
201)
Ainda a propósito do diálogo teatral, Urbano (2005: 195) ressalta que “ao se passar
a fala idealizada de um contexto a outro, ainda que do contexto do escrito ‘para o do
falado’ (como é o caso do script do teatro), isso implica em recriação e mudança”. Essa
recriação pode trazer maior “espontaneidade e naturalidade” à representação, já que conta
com a atuação do ator no “momento e situação concreta da fala”.
De acordo com Ryngaert (1996: 107-108), alguns pesquisadores têm conduzido
suas análises referente ao diálogo teatral como uma conversação. Dentre eles, o autor
destaca Pierre Larthomas (1980) e Catherine Kerbrat-Orecchioni (1985). Ryngaert observa
que os estudos de Larthomas apontam semelhanças entre o diálogo de teatro e o diálogo
comum, de tal modo que “nos encontramos diante de obras cuja característica essencial é
serem escritas em forma de conversação a ser representada”. Com relação aos estudos de
Kerbrat-Orecchioni, o autor destaca que para ela um texto teatral (excetuando-se as
didascálias
2
) é “uma seqüência estruturada de réplicas a cargo de diferentes personagens
que entram em interação, ou seja, como uma espécie de ‘conversação’ ”.
Para esses estudiosos, o que diferencia a formação desses diálogos é apenas a
organização material,
já que por trás do diálogo teatral existe um autor cuja função é preordenar
as seqüências dialogadas, manifestar intenções, organizar o discurso das
personagens em função de um objetivo supremo, a comunicação com os
espectadores. (id.)
2
Originalmente, no teatro grego, as didascálias eram destinadas aos intérpretes. No teatro moderno, em que
falamos de indicações cênicas, trata-se dos textos que não se destinam a ser pronunciados no palco, mas que
ajudam o leitor a compreender e a imaginar a ação e as personagens. Esses textos são igualmente úteis ao
diretor e aos atores durante os ensaios, mesmo que eles não os respeitem. (Ryngaert, 1996: 44)
52
Urbano (2005: 197-198), considera que alguns aspectos são relevantes na distinção
e aproximação dos “scripts, oralizações no palco e falas naturais”:
- falas idealizadas nos scripts, mais espontâneas e naturais no palco;
- voz idealizada nos scripts, voz “viva” no palco;
- uso de sistemas semiológicos (verbal, gestual, visual, acústico, cenografia) no palco;
- produção retextualizada das falas idealizadas ocorre no palco;
- sobreposições de voz;
- planejamento dos scripts;
- descontinuidades (aumento da “não referencialidade” textual).
Esses aspectos do texto teatral parecem evidenciar ainda mais as características que
se aproximam das conversações cotidianas do que as idealizadas no script.
A esse respeito, Ryngaert (1996: 109-110), apoiado em Kerbrat-Orecchioni (1985)
explica que para a autora
o discurso teatral elimina muitas escórias que atravancam a conversação
ordinária (defeitos de pronúncia, inacabamentos, vacilações, lapsos e
reformulações, elementos de pura função fática, compreensão mal-
sucedida ou retardamento) e apresenta-se como muito edulcorado em
relação à vida cotidiana.
Ao destacar o papel da conversação no teatro, Ryngaert observa que
mesmo o teatro não sendo conversação, é importante para muitos autores
buscar nela seus materiais sem filtrá-los nem edulcorá-los em demasia,
mas antes ‘combiná-los’. Claro que o teatro não registra todas as
vicissitudes da fala viva proferida por sujeitos ativamente envolvidos na
conversação, mas ele encontra nesta seu alimento. (id.)
53
Ao produzir um texto teatral utilizando recursos da oralidade, o autor procura levar
ao público uma representação que se aproxima da fala espontânea.
2.6. Estratégias conversacionais
Vimos no capítulo 2.4 que os falantes devem construir juntos o texto verbal,
utilizando estratégias que possibilitem a compreensão, já que a interação depende do
conjunto de ações entre os interlocutores. Para isso, torna-se relevante a seleção correta de
estratégias conversacionais, uma vez que estas indicam os procedimentos adotados pelos
falantes a fim de atingir os seus objetivos.
Preti (2004: 151) observa que o uso de tais estratégias “podem resultar das
intenções que precedem o ato conversacional ou de alterações ocorridas durante o seu
andamento.” E acrescenta:
São formas que os falantes planejam no início ou durante o andamento do
diálogo para expressar ou não o que realmente pensam; para se fazerem
compreender de uma maneira que lhes interessa; para ocultarem intenções
não explícitas em seus atos; para revelarem sua aproximação ou
afastamento do interlocutor; para buscarem compreensão e entendimento;
etc.
Ao utilizar estratégias discursivas na interação, o falante busca fazer-se
compreender de uma forma que lhe seja conveniente, podendo revelar ou não as suas reais
intenções. Almeida (2003: 111) observa que “não apenas o que se diz, mas como se diz,
juntamente com o estilo e o tipo de estratégia a que recorrem os interlocutores são de
fundamental importância para o entendimento daquilo que se deseja.”
Para Preti (2002:52), as escolhas das estratégias conversacionais
levam sempre em conta as condições situacionais do diálogo, isto é, os
fatores pragmáticos que cercam a interação (onde ocorre o diálogo, quem
54
são os interlocutores, o grau de intimidade que os une, os conhecimentos
partilhados que pressupõem, o tema de que tratam, a presença de uma
audiência ativa ou co-participante etc.)
Marcuschi (1998: 18) observa que no processo interacional
não podemos confiar apenas nas características estruturais da interação
nem nas propriedades comunicativas da língua, nem nos contextos
situacionais imediatos de produção da interação, mas devemos estar
atentos para o que os falantes fazem com tudo isso, se queremos perceber
como eles se entendem. O importante não é a identificação das regras da
estrutura conversacional, mas a habilidade desenvolvida pelos falantes no
uso das estratégias conversacionais com o objetivo de se entenderem e
atingirem metas comuns em situações sociais de fala.
Essas considerações permitem afirmar que o uso de estratégias discursivas pelos
falantes facilita e contribui para a construção de sentidos em uma interação.
As estratégias conversacionais também estão presentes nos textos literários, pois
podem oferecer exemplos expressivos de interação, colaborando na construção das
personagens, e possibilitando que se revelem as intenções dos falantes nos diálogos de que
participam. Cabe ressaltar a importância do narrador para o desenvolvimento dessas
estratégias, já que as suas intervenções podem trazer à tona elementos situacionais de
enunciação que possibilitem uma melhor compreensão dos verdadeiros propósitos que
estão por detrás das estratégias adotadas pelas personagens.
Ao mencionar o papel do diálogo na “conversação literária”, Preti (op. cit.: 159)
afirma:
O diálogo de ficção se presta a uma análise das relações entre os
propósitos iniciais do falante na interação e as estratégias que escolhe para
desenvolvê-las, porque podemos servir-nos das informações do narrador e
do contexto. Permite, ainda, que observemos, também, o resultado dessas
55
estratégias prévias ao longo da conversação, bem como o seu processo de
replanejamento, tendo em vista o andamento da conversação.
Ainda com relação às estratégias conversacionais nos diálogos de ficção, Preti (op.
cit.: 152) observa:
Tais estratégias conversacionais, também, podem estar presentes na
escrita e, não raro, as encontramos no contexto da ‘conversação literária’
como elementos que nos permitem compreender melhor o perfil
psicológico dos interlocutores, seu real estado no diálogo, justificando as
técnicas lingüísticas que empregam para abordar certos temas, influir
sobre o ouvinte, revelar poder ou submissão, dar realidade a palavras que
escondem estados de espírito muito diferentes do que parecem
demonstrar.
Os modelos conversacionais interiorizados por escritores e representados por meio
das falas de suas personagens podem levar-nos “à revelação de estratégias conversacionais,
que podem aproximar-se ou não da fala natural ou até figurarem como modelos de uma
interação ideal.” (op. cit.: 153)
A propósito da linguagem literária, Urbano, apoiado nas palavras de Enkvist (1974)
observa que o autor de um texto literário “pode querer que aquilo que escreve seja lido
como se fosse falado com o fito de dar a ilusão de fala; ou ser lido como se fosse ouvido
por acaso, para dar a impressão de monólogo falado.” (2000: 130-131)
A esse respeito, Ilari afirma que “a expressão escrita não é nunca um registro puro e
simples da expressão falada.” Por isso, no texto escrito há a necessidade de uma
construção lingüística capaz de expressar as intenções do autor. Desse modo, o autor
transpõe uma realidade lingüística para o texto literário de acordo com os seus objetivos,
tentando criar a ilusão de uma linguagem natural. (1978: 10)
56
Essa tentativa de aproximar a realidade da fala ao texto literário não significa que o
diálogo de ficção seja a representação fiel da língua espontânea de uma interação face a
face.
A respeito dessa “artificialidade” dos diálogos ficcionais, que criam uma “ilusão da
realidade oral”, Preti observa que o que existe “é apenas a pressuposição de que um leitor
esteja recebendo nossas palavras com a intenção que lhes atribuímos, dentro das
pressupostas expectativas desse mesmo leitor.” (2004: 126)
Ao legitimar o estudo do diálogo nos textos literários, Preti (cf. op. cit.: 201)
considera que, a dificuldade que um estudioso pode enfrentar para gravar diálogos em
variadas situações de comunicação sem o conhecimento dos interlocutores, justifica a
utilização desse material para estudos lingüísticos. Além disso, a escrita literária pode
apresentar elementos “expressivos de estratégias conversacionais”, que muitas vezes não
são encontrados na fala cotidiana. (cf. op. cit.: 166)
Além de Preti, as lingüistas Tannen e Lakoff mostram-se favoráveis ao uso de
textos literários nos estudos da língua oral. As autoras trabalham com gravações
magnéticas de conversações espontâneas, mas afirmam que, freqüentemente, nessas
gravações não se encontram modelos que apresentem a espontaneidade desejada para
estudos, deparam-se com a falta de naturalidade e com a dificuldade de compreensão.
Relatam que “comparada com o diálogo em uma peça ou em um romance, a conversação
natural nos atinge com o que não esperamos, não operando por um padrão preconcebido.”
Para elas, “o diálogo artificial pode representar um modelo ou um esquema interiorizado
para a produção da conversação, um modelo de competência a que falantes têm acesso.”
(1996: 139-140)
Nesse sentido, Preti (2004: 153), acrescenta:
Os diálogos construídos na ficção podem operar, às vezes, por padrões
ideais, revelando-nos de forma mais precisa as ligações entre estados
interiores das personagens e sua expressão verbal, pois informações
57
contextuais do narrador esclarecem-nos, quem sabe, com mais precisão, os
reais estados psicológicos das personagens ao articularem certas
estratégias na conversação. Não se trata, evidentemente, de vermos em
tais textos formas mais ‘corretas’ de falar na linguagem natural, mas sim,
de encontrarmos modelos mais eficientes de comunicação em busca de
certos fins.
Ainda a propósito do diálogo literário, Tannen observa que
se estamos interessados em descobrir o modelo ideal da estratégia
conversacional, há muito a ganhar se observarmos primeiro a conversação
artificial, compreender quais são essas suposições gerais que assumem
inconscientemente, para em seguida retornar à conversação natural, para
ver como essas características podem realmente ser exemplificadas no uso
literal. (1996: 140)
Na tentativa de oferecer exemplos expressivos de estratégias conversacionais, o
autor do texto literário cria diálogos que se aproximam da realidade oral, realizando uma
documentação histórica da língua, por meio de um trabalho de construção da realidade
lingüística de uma determinada época. (cf. Preti, 2004: 188) .
Sobre isso, Preti (1984: 103) observa que “em todas as épocas, a linguagem dos
textos, com maior ou menor intensidade, na maioria ou não de seus autores, não se
desvinculou da língua falada de seu tempo.”
Ao tentarmos reproduzir a fala de uma determinada época, podemos recorrer a
documentos escritos que tentaram reconstituir ou aproximar as especificidades de “uma
linguagem possível de ter ocorrido.” (Preti, 2005: 257)
A análise dos diálogos de ficção parece apresentar-se como uma importante
alternativa para a compreensão dos processos pragmático-interacionais que caracterizam as
conversações espontâneas, já que tal análise permite que tenhamos acesso aos reais
interesses e propósitos dos falantes e as estratégias conversacionais escolhidas para atingir
58
tais propósitos, seja pelas intervenções do narrador, seja pelos diálogos das personagens,
seja pelo contexto.
2.7. Preservação da face
Observamos no capítulo 2.4 que é na interação que a linguagem se manifesta dentro de
um contexto social, que pode ir da cooperação e reciprocidade ao conflito, por meio de uma
ação conjunta entre os interlocutores. (cf. Preti, 2002: 45)
Durante a interação os participantes do ato conversacional buscam atuar de modo a
manterem uma auto-imagem por eles instituída. Para tanto, há uma espécie de acordo entre
os falantes na tentativa de que suas faces sejam preservadas.
O conceito de face foi proposto inicialmente por Goffman e é utilizado para
designar a expressão social que o indivíduo tem de si. Para o autor,
o fato de alguém entrar em contato com outros constitui uma ruptura de
um equilíbrio social pré-existente e, assim, representa uma ameaça virtual
à auto-imagem pública construída pelos participantes do ato
conversacional. Goffman denomina face a expressão social do eu
individual; o mesmo autor designa por processos de representação (face-
work) os procedimentos destinados a neutralizar as ameaças (reais ou
potenciais) à face dos interlocutores ou a restaurar a face dos mesmos.
(1970: 6-13)
A teoria da preservação da face, de acordo com Marcuschi, apoiado em Goffman
(1967), desenvolve considerações a respeito de como os sujeitos constroem sua face diante
dos interlocutores, tentando sempre manter a construção de uma face positiva. (cf. 1989:
284)
59
Fávero & Andrade, apoiadas no conceito de imagem (face) proposto por Brown e
Levinson (1987) afirmam:
A preservação da imagem pode ser concebida como um conjunto de
normas sociais que cada comunidade estabelece para orientar o
comportamento adequado de seus membros, ajustando atitudes a normas.
As formas de preservação da imagem estão vinculadas não só a
determinada cultura, mas também à língua dessa sociedade. (1998: 169-
170)
Em qualquer sociedade a interação é mediada por convenções e regras de
procedimento que podem orientar e organizar, por meio da linguagem, a conduta dos
interlocutores.
A noção de face permeia todo o processo da interação e seus participantes
encontram-se sempre diante de duas importantes decisões: a preservação da sua própria
face e o respeito pela preservação da face do outro. Para que uma interação transcorra de
forma eficiente, deve haver colaboração entre os interlocutores, a fim de que ambos possam
manter a auto-imagem, já que “a face de uma pessoa é mantida quando a face de outra que
interage também é mantida.” (Silva, 1998: 109)
Marcuschi (1989: 284) acrescenta que
toda pessoa é um ser racional e como tal usa da racionalidade para a
seleção de estratégias que visam à preservação das faces, pois o interesse
comum dos interactantes é a preservação mútua das faces diante das
ameaças potenciais, minimizando assim os riscos.
A propósito da manutenção da face, Silva observa que a interação social leva o
indivíduo a assumir uma “orientação defensiva” ao preservar a própria face, e uma
“orientação protetora” ao preservar a face do outro. No momento em que ocorre a “invasão
da territorialidade” por parte dos interlocutores, surge a perda da face. Uma vez instaurada
60
a perda da face, o indivíduo pode valer-se de certos “procedimentos (face-work), para
neutralizar as ameaças à face.” (1998: 109)
Os pesquisadores Brown & Levinson (1987: 06), baseados nos estudos de Goffman,
ampliaram o conceito de face. Para os autores, a face
é algo em que há investimento emocional e que pode ser perdida, mantida
ou intensificada e que deve ser constantemente cuidada em uma interação.
Em geral, as pessoas cooperam (e pressupõem a cooperação do outro) na
manutenção da face na interação, sendo essa cooperação baseada na
vulnerabilidade mútua da face.
3
Brown & Levinson formularam o conceito das duas faces: face negativa e face
positiva. A face negativa diz respeito ao território íntimo do indivíduo que não gostaria de
ver invadido. É o desejo de liberdade em suas ações e de não-imposição ao outro. A face
positiva concerne ao modo como o indivíduo deseja ser visto pelo outro e que gostaria de
ver preservado. (cf. op. cit.).
Marcuschi (1989: 284) observa que “a conversação, por ser uma atividade em que
se desenvolvem negociações permanentes entre os indivíduos, apresenta sempre uma
ameaça potencial à face dos interactantes.” Para ele, alguns atos podem contribuir para
ameaçar as faces:
Atos que ameaçam a face positiva
Ouvinte Falante
desaprovação, insultos, acusações; auto-humilhação, auto-confissões;
Atos que ameaçam a face negativa
Ouvinte Falante
pedidos, ordens, elogios; agradecimentos, excusas, aceitação de ofertas.
3
The face is something that is emotionally invested, and that can be lost, maintained, or enhanced, and must
be constantly attended to in interation. In general, people cooperate (and assume each other’s cooperation) in
maintaining face in interaction, such cooperation being based on the mutual vulnerability of face.
61
A necessidade de preservação da face ocorre no momento em que surge um conflito
na atividade interativa, propiciando a ameaça da face. Nesse momento, é natural “esperar que
as pessoas defendam suas faces quando ameaçadas, e, ao defender suas próprias faces,
ameacem a face dos outros.” (Brown e Levinson, 1987: 06)
De acordo com Galembeck (1999: 174), a exposição do falante de “forma direta:
pedidos, atendimento de pedidos ou recusa em fazê-lo, perguntas diretas e indiretas,
respostas, manifestação de opiniões”, em determinadas situações, implica a necessidade de
preservação da face.
Para Rosa (1992: 40), uma outra forma de preservar a face pode ser observada no
apagamento das marcas de enunciação, o qual pode ser realizado por meio da
indeterminação do sujeito ou pela utilização de expressões de impessoalidade. O uso desse
recurso implica no afastamento do locutor dos conceitos expressos, podendo preservá-lo da
responsabilidade do que está sendo dito.
Ainda em busca de preservar a face, o locutor pode valer-se dos marcadores
“hedges” que podem agir como modificadores do enunciado e, conforme Rosa (1992: 30)
servem como atenuadores de sentido. Marcuschi (2003: 74) comenta que os marcadores
hedges “afastam a indisposição do ouvinte em relação ao falante”(...). Esses modificadores
podem marcar opiniões e funcionam como atenuadores e, muitas vezes, são utilizados com
o intuito de amenizar a fala do locutor em situações que possam comprometê-lo.
Brown e Levinson observam ainda que, na tentativa de preservar a face, a polidez
funciona como um mecanismo com capacidade de administrar e manter as faces sempre
que ocorrerem atos ameaçadores da face (face threatening acts ou FTAs). A partir dessa
observação, os autores também usaram o termo face-work como um procedimento não
apenas capaz de organizar as faces, como também capaz de organizar os processos de
polidez na interação, a fim de propiciar uma boa convivência social “por meio da
satisfação das faces dos interlocutores numa interação verbal.” (1987)
62
Silva (1998: 117), apoiado em Fraser (1980), destaca que o objetivo da polidez é
“modificar um ato de fala que visa à redução dos efeitos indesejados que possa ter para o
interlocutor.” A polidez implica portanto, um comportamento respeitoso às necessidades
dos interlocutores de aprovação da face durante a interação.
Com relação aos atos ameaçadores da imagem do falante e do ouvinte, Beltzer
(1996: 2) afirma que Brown e Levinson destacam três fatores de natureza social em que
estes podem ocorrer:
1. a distância social ou dimensão horizontal, que inclui o grau de familiaridade e
contato entre os interlocutores;
2. o poder relativo do ouvinte sobre o falante, ou poder vertical;
3. o grau de imposição de um ato sobre a imagem do falante e do ouvinte.
No ato conversacional é preciso que os falantes saibam a que estratégias recorrer,
pois em uma conversação o que está em jogo é a face de cada um dos participantes. Com a
face em constante ameaça é fundamental que os interlocutores busquem interagir, adotando
procedimentos que possam evitar conflitos. Nesse caso, significa evitar as constantes
ameaças de desvalorização da imagem social de cada um.
2.8. Frame
O conceito de frame (ou enquadre) foi introduzido por Gregory Bateson e
desenvolvido por Goffman (1974). Os autores consideram o conceito de enquadre como
“um princípio básico para a compreensão do discurso oral e para a análise da
interação”.(Ribeiro e Garcez, 1998: 70)
Tannen & Wallat observam que o termo enquadre deve ser utilizado quando referir-
se aos enquadres interativos de comunicação, já que estes estão relacionados “à percepção
63
de qual atividade está sendo encenada, de qual sentido os falantes dão ao que dizem.” (op.
cit.: 124)
Para Preti (1998: 73), “a noção de frame está ligada aos mecanismos cognitivos que
influem sobre o processo de compreensão da linguagem, a partir de pistas encontradas no
texto oral ou escrito.”
De acordo com Fávero (2002: 74), o frame
deve ser visto não só como uma noção que se utiliza de esquemas
cognitivos fixos, mas também como uma noção interativa em que a
interpretação contextual é negociada pelos falantes, refletindo-se direta ou
indiretamente em suas trocas conversacionais, perdendo, assim, seu caráter
de fixidez e adquirindo maior dinamismo.
O frame parece contribuir de forma relevante na interação, pois pode organizar a
conversação e colaborar para a compreensão de determinadas situações comunicativas.
Para que isso ocorra, Preti destaca a importância dos “modelos cognitivos (esquemas de
conhecimento)
4
”, a fim de que possam ser decodificados pelo ouvinte na tentativa de
identificação do frame, para que a interação seja realizada com sucesso. (1998: 73)
Ainda com relação ao frame, Preti afirma que há frames a propósito dos mais
diferentes assuntos, como violência, humor, carnaval etc., e que os frames “incluem, não
apenas redes de vocabulários ou expressões, geralmente esteriotipadas, ligadas a um tema
central, mas também a própria estrutura de determinados tipos de discurso.” Assim, para o
autor,
na interação, existem expectativas fixadas em modelos tradicionais para o
desenvolvimento de uma entrevista, de uma narração ou de uma
4
Aqui, fazemos referência a Preti, que afirma que os “esquemas de conhecimento servem como elemento
cognitivo fundamental para preencher informações não proferidas durante a interação, em decorrência natural
de experiências anteriores compartilhadas pelos interlocutores. Por outras palavras, o falante pode deixar de
dizer algo ou mencionar pormenores de um fato, porque seu interlocutor já entendeu o que ele queria dizer e
esses implícitos fazem parte dos conhecimentos partilhados por ambos.” (Preti, 2004: 144)
64
dissertação, bem como de interações mais específicas, como uma
entrevista, uma história maliciosa ou obscena, uma piada, uma bajulação,
uma confissão etc.
(op. cit.: 74)
As considerações apresentadas nos permitem afirmar que o frame é um aspecto
importante na interação, uma vez que nele podemos encontrar pistas que auxiliam o ouvinte
na compreensão do texto verbal produzido pelo falante.
2.9. Footing
O conceito de footing foi introduzido por Goffman em 1979. Para o autor, “footing
representa o alinhamento, a postura, a posição, a projeção do ‘eu’ de um participante na sua
relação com o outro, consigo próprio e com o discurso em construção.” (1981: 128)
Goffman afirma que
a mudança de footing implica uma mudança no alinhamento que nós
assumimos para nós mesmos e para os outros presentes, expressa na
maneira em que conduzimos a produção ou a recepção de uma elocução.
Uma mudança em nosso footing é uma outra maneira de falar sobre uma
mudança em nosso enquadre dos eventos.
5
(id.)
Para Ribeiro e Garcez (1998: 70), os footings podem sinalizar os seguintes aspectos:
Pessoais Papéis sociais Papéis discursivos
uma fala afável, sedutora um executivo na posição de
chefe de setor
o falante enquanto animador
de um discurso alheio.
5
a change in footing implies a change in the alignment we take up to ourselves and the others present as
expressed in the way we manage the production or reception of an utterance. A change in our footing is
another way of talking about a change in our frame for events
65
Os autores acrescentam ainda que os footings podem ser “introduzidos, negociados,
ratificados (ou não), co-sustentados e modificados na interação.” (id.)
A propósito da mudança de footing, os autores ressaltam que ao longo de suas falas
os interlocutores “mudam constantemente seus footings”, e que estas mudanças
apresentam-se como uma “característica inerente à fala natural.” (cf. op. cit.: 75)
Em uma conversação espontânea as alterações de footings realizadas pelos falantes
ocorrem com muita freqüência. Por outro lado, os footings dos ouvintes se estruturam de
acordo com o discurso do falante.
Por seu aspecto dinâmico, os footings sustentam-se em um dialogismo comum nas
produções discursivas, já que em qualquer situação face a face, os footings dos
interlocutores indicam como são organizadas “a produção ou a recepção de um enunciado.”
(Ribeiro e Garcez, 1998: 70)
66
3. ESTRATÉGIAS CONVERSACIONAIS NA INTERAÇÃO DE
DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA, DE PLÍNIO MARCOS
Nesta análise pretendemos verificar como o autor constrói o diálogo das
personagens da peça teatral Dois perdidos numa noite suja, de modo a aproximar suas falas
de modelos ideais de estratégias conversacionais próprios da interação face a face.
Consideramos que, para esse estudo é necessário, inicialmente, entendermos como se
constrói a dinâmica da interação nos diálogos da peça.
3.1. O texto
A partir das informações reveladas nos diálogos das personagens, podemos
perceber que os acontecimentos se passam em um grande centro urbano.
A peça tem duas personagens: Paco e Tonho, que dividem um quarto de hospedaria
e trabalham juntos, fazendo “bico”, descarregando caminhões no mercado.
Paco é órfão, analfabeto, foi criado em um asilo para menores e não possui uma
profissão. Revoltado por ser explorado por meio do subemprego, parece ter perdido a ilusão
da vida, e só deseja poder comprar uma flauta, deixar de trabalhar no mercado e voltar a
tocar nos bares, como fizera tempos atrás.
Tonho, após sair do exército, deixa o interior e parte para a cidade grande na
esperança de conseguir um bom emprego, já que estudou até o ginasial e sabe datilografia.
Faz planos para o futuro, sonha em poder trabalhar em serviços burocráticos e um dia
retornar a sua cidade, a fim de mostrar aos pais que conseguiu vencer e, assim, poder
retribuir todo o esforço que eles fizeram para que ele pudesse estudar.
67
Em busca do sucesso profissional para poder ajudar seus familiares, Tonho acredita
que somente com sapatos em boas condições, já que os seus estão velhos e “estragados”,
poderá conseguir um trabalho que lhe ofereça melhores oportunidades para mudar de vida.
Paco possui sapatos novos e afirma ter ganhado de um “cara” na época em que
tocava flauta pelos bares. Ao perceber o interesse de Tonho pelos seus sapatos, Paco passa
a tratá-lo com ironia, desprezo e agressividade, deixando claro que não pretende em
hipótese alguma emprestá-los.
Na tentativa de pedir os sapatos emprestados ao colega, Tonho sabe que tipo de
interação pretende estabelecer, a fim de conseguir o que deseja, fato que resultará em um
processo interacional bastante conflituoso, visto que os dois têm objetivos distintos.
Com posições bem definidas, por um lado, Tonho expõe seus problemas e suas
dificuldades, utilizando estratégias que possam sensibilizar e convencer o colega a
emprestar-lhe os sapatos; por outro lado, Paco não cede aos apelos de Tonho e passa a usar
estratégias que lhe possibilitam, em determinados momentos, o status de poder na
interação, já que possui os sapatos desejados pelo colega.
Na tentativa de alcançarem seus objetivos, os interlocutores envolvem-se em uma
interação formada por diálogos conflituosos, que geram discussões e agressões corporais.
3.2. Interação
A linguagem é utilizada como uma forma de comunicação em sociedade. Por meio
da linguagem, os interlocutores podem realizar, de forma colaborativa, uma interação bem
sucedida. Ao falarmos, não estamos apenas realizando uma troca de informações, mas
68
também compartilhando uma relação com o outro. A respeito desse aspecto colaborativo na
interação, Hilgert afirma que “uma conversação só se estabelece com base no princípio da
cooperação.” (2002: 94)
Durante o evento interacional é preciso considerar a situação, as características dos
interlocutores, bem como as estratégias adotadas por eles na tentativa de atingirem seus
objetivos. Nesse sentido, numa interação podemos nos deparar não só com a cumplicidade
e solidariedade entre os falantes, como também com as disputas e conflitos que podem
ocorrer intencionalmente ou não, já que os interlocutores participam de um “jogo de
linguagem que se instaura por meio de um processo de negociações, trocas, normas
partilhadas, concessões.” (Fávero & Andrade, 1998: 159)
A propósito da interação, Galembeck (2002: 70) observa: “O ‘outro’ é um ser
concreto e, como tal, o discurso falado traz marcas específicas da sua presença.” Os
diálogos entre Paco e Tonho se caracterizam pela presença da linguagem obscena e da
linguagem gíria, como uma forma de agressão lingüística cujo objetivo é provocar e
ofender.
Destacamos, em nossas análises, alguns diálogos em que é possível identificar as
personagens com a realidade social que representam:
(1)
(Paco sopra a gaita. Tonho pula sobre Paco. Os dois lutam com violência. Tonho leva
vantagem e tira a gaita de Paco.)
Paco - Filho da puta!
Tonho - Antes de dormir, jogo essa merda na privada e puxo a bomba. (40)
O diálogo inicial entre Paco e Tonho parece indicar as marcas do conflito na
conversação, tornando a interação tensa, já que reflete a situação de comunicação das
personagens.
69
A situação de comunicação pode determinar em que circunstâncias ocorrem a
interação, fato que dá ao evento interacional características próprias, sendo os discursos
“construídos e constituídos de forma diferente a cada interação.” (Urbano, 2002: 259)
No diálogo seguinte, após descarregar um caminhão no lugar de outra pessoa e
receber pelo trabalho, Tonho passa a ser incitado por Paco a brigar com o sujeito que quer
“acertar as contas” com ele. Como não consegue convencer o colega a brigar, Paco passa a
humilhá-lo com expressões injuriosas:
(2)
Tonho - Mas não estou a fim de matar ninguém.
Paco - Poxa, você é um cagão.
Tonho - A única saída é bater um papo com ele.
Paco - Você não está a fim de briga, já vi tudo.
Tonho - E não estou mesmo.
Paco - Homem de merda que você é.
Tonho - Eu não posso brigar com o negrão! Será que você não se manca? O negrão é
um cara sem eira nem beira, não tem onde cair morto. Para ele tanto faz, como tanto
fez. Não conta com o azar, entendeu?
Paco - Você está é com o rabo na mão. (51)
Paco emprega em sua fala vocábulos obscenos (“você é um cagão, Homem de
merda, ...o rabo na mão”), num gesto de provocação, já que o colega não tem a menor
intenção de brigar com ninguém.
Os vocábulos obscenos, geralmente, são utilizados mais como uma forma de
expressar sentimentos de desprezo, ironia e agressividade, do que como uma forma de
informação ou comunicação (cf. Preti, 1983: 63).
Assim como os vocábulos obscenos, a gíria também pode retratar o conflito e a
tensão na interação :
70
(3)
Paco - Não dou arreglo. Mesmo que possa, não dou bandeja pra sacana
nenhum . Nunca ninguém me deu nada.
Tonho - Esse cara que te deu o sapato, não te ajudou?
Paco - Ajudou nada. Ele deu o pisa porque queria que eu andasse soprando
flauta. Se não fosse isso estava descalço até hoje. Você acha que alguém dá alguma
coisa de graça pra alguém?
Tonho - Você deve ter levado uma vida desgraçada pra não acreditar em
ninguém.
Paco - Poxa, que onda é essa? Vida desgraçada é a sua. A minha sempre foi
legal. Nunca ninguém folgou com minha cara. (67)
Tonho tenta convencer o colega a praticar uma boa ação, emprestando-lhe os
sapatos. Paco por sua vez, emprega a linguagem gíria (“Não dou arreglo...não dou bandeja
pra sacana nenhum...Ele deu o pisa...que onda é essa...Nunca ninguém folgou com minha
cara”), como uma forma de provocar Tonho e deixar o colega sem perspectiva de conseguir
o trabalho que deseja, já que sem os sapatos de Paco não pode apresentar-se
adequadamente para uma entrevista.
No diálogo seguinte, ao perceber que Tonho não vai envolver-se em briga com o
“Negrão”, Paco revolta-se com a atitude passiva do colega diante da humilhação que este
vem sofrendo no mercado e tenta mostrar a Tonho como ele agiria se estivesse em seu
lugar:
(4)
Paco - (...)O negrão é grande, mas não é dois. Você vai encarar ele?
Tonho - Sei lá! Ele não me fez nada. Nem eu pra ele.
Paco - Poxa, ele disse que você é fresco. Vai lá e briga. Ele é que quer.
Tonho - Você só pensa em briga.
Paco - Eu, não.Mas se um cara começa a dizer pra todo mundo que eu sou
fresco, e os cambaus, eu ferro o miserável. Comigo é assim. Pode ser quem for;
folgou, dou pau. (50)
71
Após incentivar Tonho a brigar com o Negrão (“...O negrão é grande, mas não é
dois” ...”Vai lá e briga...”), Paco percebe que o colega não está disposto a brigar. Começa
então a mostrar como ele, que é “macho”, reagiria nessa situação: “...eu ferro o miserável...
folgou, dou pau.”
Ao ser apelidado de “Boneca do Negrão” Tonho mostra-se bastante ofendido:
(5)
Tonho - O negrão não pode fazer isso comigo. Não é direito.
Paco - Quem mandou você afinar? Agora é dureza fazer a moçada pensar que
você é de alguma coisa. Seu apelido lá no mercado agora é “Boneca do Negrão”.
Tonho - Boneca do Negrão é a mãe! (55)
Ao responder que “Boneca do Negrão é a mãe!”, Tonho provoca Paco. Ao reagir à
provocação, Paco insulta o colega com vocábulos que reproduzem sentimentos de raiva,
provocação:
(6)
Paco - A mãe de quem?
Tonho - Sei lá! A mãe de quem falou.
Paco - Veja lá, Boneca do Negrão! Não folga comigo, não. Já tenho bronca
sua porque inveja meu sapato. Se me enche o saco, te dou umas porradas.
Depois, não adianta contar pro teu macho, que eu não tenho medo de negrão
nenhum. (55)
Diferentemente de Tonho que evita brigas, notamos que as palavras de Paco
(“...Não folga comigo... tenho bronca sua...te dou umas porradas...não tenho medo de
negrão nenhum.”), parecem indicar a atitude de alguém que não “carrega” desaforo e
quando provocado pensa logo em resolver a questão com violência.
Ao acrescentar no final do diálogo (“...eu não tenho medo de negrão nenhum.”),
Paco reforça a idéia de que com ele ninguém escapa impunemente e que se a história do
apelido tivesse acontecido com ele não “afinaria” como fez o colega.
72
Ainda no excerto (6), percebendo que Tonho ofendeu-se ao ser apelidado de
“Boneca do Negrão”, Paco insiste em humilhá-lo ao afirmar (“...não adianta contar pro teu
macho...”)
Tonho reage nervoso à provocação de Paco, desencadeando um diálogo que, nas
palavras de Paco, se caracteriza pelo uso da ironia como uma forma de ofender e hostilizar
o colega:
(7)
Tonho - Cala essa boca!
Paco - Está confiando na sorte, Boneca do Negrão!
Tonho - Não quero mais conversa com você.
Paco - Agora a Boneca só fala com o negrão. Mina certinha é assim. O negrão
está bem servido.
Tonho - Poxa, Paco, vê se me esquece. (56)
Durante a interação, Paco trata seu interlocutor com provocações: (“...Boneca do
Negrão, ...a Boneca ... Mina certinha...”). Ao utilizar essa estratégia, Paco contribui ainda
mais para o conflito na conversação, já que coloca em dúvida a masculinidade de Tonho.
Os diálogos destacados parecem reproduzir uma situação de comunicação agressiva
que permeia a interação entre as personagens.
A esse respeito, Silva (2002: 184), apoiado em Goffman, explica que o princípio
fundamental da interação está no fato de não se poder separar o verbal e o social, pois no
evento interacional está representado “o lugar onde são construídas a identidade do sujeito
e a ordem social”.
Ao participar de uma determinada comunidade, o indivíduo passa a interagir de
acordo com as relações que mantém com seus interlocutores.
A esse respeito, os estudos da Sociolingüística Interacional
73
têm mostrado como uma simples conversação a dois torna-se um universo
sociocultural em que é possível estudar, não apenas os falantes envolvidos,
mas uma série de hábitos que fazem parte do uso lingüístico de toda uma
comunidade. (Preti, 2004: 138)
Ao mencionar a interação como uma atividade social, Koch (2000: 66), baseada em
Bange, observa que “um ato de linguagem não é apenas um ato de dizer e de querer dizer,
mas, sobretudo, essencialmente um ato social pelo qual os membros de uma comunidade
‘inter-agem’.”
Ao observarmos como se dá a interação entre Paco e Tonho, podemos notar que
ambos apresentam uma linguagem marcada pela agressividade, com características
lingüísticas que estão vinculadas ao conflito social do momento.
Os diálogos destacados parecem evidenciar que a interação entre as personagens é
construída dentro de um panorama situacional que gera a tensão na conversação.
As considerações feitas com relação à interação, bem como a observação na fala
específica de cada personagem permitem-nos reafirmar, portanto, que o processo
interacional se realiza em consonância, não apenas com o aspecto discursivo, mas também
com o contexto social.
3.3. Estratégias conversacionais
Como vimos no capítulo 2.6, as estratégias conversacionais consistem em táticas e
procedimentos adotados pelos falantes para atingir aos objetivos desejados durante o ato
conversacional. Assim, torna-se relevante a escolha adequada dessas estratégias pelos
falantes para se fazerem compreender e garantir o sucesso da interação com seus
interlocutores.
74
Os participantes do ato conversacional devem construir juntos o sentido do texto
verbal, atuando um sobre o outro, o que faz a interação assemelhar-se a “um jogo de
representações”. (Brait, 2003: 221)
Na interação, não apenas os aspectos lingüísticos, extralingüísticos e estilo
contribuem para a edificação do sentido, como também o contexto. A esse respeito, Tannen
(1996: 42) considera que “qualquer estratégia lingüística pode variar em função do
contexto, dos estilos conversacionais dos participantes e da interação dos estilos e
estratégias dos participantes.”
Com relação aos fatores extralingüísticos, Bechara (1985: 26) afirma: “O contacto
com uma língua nos permite observar numerosos fatos de ordem extralingüísticos que
atuam nas relações entre palavras e coisas, língua e pensamento
.”
Podemos reafirmar, portanto, que a língua não é apenas um veículo transmissor de
informações, mas sim um instrumento que possibilita aos falantes, de acordo com objetivos
específicos, atuarem sobre os outros.
A escolha de determinados recursos lingüísticos adequados à situação comunicativa
parece estar sempre vinculada aos efeitos de sentido que se deseja produzir e aos objetivos
que se pretende alcançar na interação.
Com relação a essa escolha, Possenti (1988: 59) considera:
A seleção de um conjunto de recursos expressivos ao invés de outros tem
sempre a ver com os efeitos que o locutor quer provocar. Por efeitos
entenda-se: informar, impressionar, identificar-se, convencer, obter uma
resposta etc. Estes efeitos podem tanto ser concebidos como
alternativamente produzidos (ou intentados): como também podem ocorrer
de vários deles dar-se simultaneamente. Nunca é demais insistir, porém,
que o interlocutor não é um receptor, que ele também trabalha sobre a
língua.
75
De acordo com as intenções e em função da construção de sentidos é que os
participantes do evento conversacional determinam quais estratégias comunicativas devem
recorrer em uma situação dialógica, uma vez que nem sempre se pode esperar um
planejamento prévio dos falantes. Por essa razão, a interação face a face “é localmente
planejada, isto é, planejada ou replanejada a cada novo ‘lance’ do jogo.” (Koch, 2000: 69)
A esse respeito, Preti (2004: 157) explica que
uma conversação pode ser iniciada numa determinada direção e alterar-se
completamente, em função das intervenções de um dos interlocutores, de
sorte que, às vezes, a própria intenção que levou um falante a iniciar
determinada conversação perde-se ao longo dela, com a projeção de outro
ou outros tópicos, que nem sequer haviam sido imaginados no início.
Em Dois perdidos numa noite suja, as personagens adotam estratégias
conversacionais de acordo com os objetivos que desejam alcançar, a partir da situação
comunicativa conflituosa em que estão inseridas.
A agressividade que marca a relação entre Tonho e Paco é representada por diálogos
repletos de palavras ofensivas. Paco usa a ironia
6
como estratégia de provocação. Assim,
cada vez que Tonho expuser os seus problemas, Paco agirá com hostilidade.
Após ter agredido Paco durante uma discussão, Tonho passa a ser provocado por
ele, que promete vingança:
(8)
Tonho -
(...) E fique sabendo que posso te dar outra a hora que eu
quiser.
Paco - Duvido muito.
Tonho - Fecha essa latrina de uma vez, paspalho.
Paco - Falo quanto quiser.
6
Refiro-me à ironia como uso de palavra, expressão ou acepção de caráter sarcástico; zombaria. (HOUAISS,
Antonio e VILLAR, Mauro de Salles, 2001: 1651)
76
Tonho - Você só sabe resmungar.
Paco - Você sabe muita coisa.
Tonho - Mais do que você, eu sei.
Paco - Muito sabido. Por que, em vez de carregar caixa no
mercado, não vai ser presidente da república?
Tonho - Quem pensa que eu sou? Um estúpido de sua laia? Eu estudei.
Estou aqui por pouco tempo. Logo arranjo um serviço legal.
Paco - Vai ser lixeiro? (46)
Durante a interação, Paco sempre demonstrará desprezo pelos assuntos abordados
por Tonho, ironizando a situação em que este se encontra, já que não está interessado em
colaborar com o colega.
Embora aborrecido com a atitude de Paco, sempre que necessário, Tonho lançará
mão de novas estratégias com o intuito de convencer o colega a fazer o que ele deseja.
Depois de conversarem sobre as razões que os obrigam a conviverem juntos no mesmo
quarto de uma hospedaria, Tonho resolve se abrir com o colega:
(9)
Tonho - É... Não sei o que fazer
Paco - Você está bem estrepado. Não tem sapato. Não pode mais dar
as caras no mercado. Não quer voltar pra casa do papai.
Tonho - Não quero voltar, não. Não posso aparecer desse jeito lá em
casa.
Paco - Eu sei de uma saída pra você.
Tonho - Qual é?
Paco - Você não vai topar.
Tonho - Fala.
Paco - Compra uma bala e apaga o negrão.
Tonho - Você é louco. Não sou assassino. Eu estudei...
Paco - Eu sei, eu sei. Tem família e prefere ser a Boneca do
Negrão.
Tonho - Prefiro nada.
Paco - Então mete um caroço na testa do bruto.
(PAUSA)
Tonho - O crime não resolve.
77
Paco - Pelo menos o negrão não te torrava a paciência nunca mais.
Tonho - Eu não quero matar ninguém. Só queria me livrar dessa joça de
vida.
Paco - Dá um tiro na orelha. (63-64)
É por meio da ironia que Paco revela sua hostilidade com relação a seu interlocutor
(“Dá um tiro na orelha.”). Ao utilizar essa estratégia, além de provocar o colega, Paco
também aproveita para não ceder aos anseios de Tonho.
Muitas outras estratégias poderiam ser mencionadas, como: autodesvalorização,
humilhação, manipulação e provocação, entretanto, nosso foco de interesse está na análise
da preservação da face, frame e footing. Para tanto, inicialmente, pretendemos observar a
preservação da face como uma forma de expressar a atitude que os interlocutores assumem
frente um ao outro, tendo em vista o contexto situacional no qual ocorre a interação.
Depois, a partir dos conceitos de frame e footing, analisarmos como se dá o alinhamento
dos falantes nos diálogos construídos.
3.4. Preservação da face
Observamos no capítulo 2.7, que a exposição do falante em uma interação face a
face implica em expor sua auto-imagem pública (face). Desse modo, podemos reafirmar
que, ao iniciarem um diálogo, os interlocutores procuram interagir de forma colaborativa,
para que ambos possam manter suas faces.
A esse respeito, Galembeck (1999: 173) afirma:
Nos diálogos e nas demais formas de interação face-a-face (entrevistas,
aulas, palestras), o falante acha-se em posição vulnerável, já que expõe
publicamente sua auto-imagem (face). Dessa forma, ele corre o risco de
exibir o que deseja ver resguardado e deixar de colocar em evidência o que
tem a intenção de mostrar. Por esse motivo, o falante adota procedimentos
que lhe permitem controlar a construção dessa auto-imagem.
78
Nos estudos realizados por Goffman (1970), com relação aos procedimentos de
preservação da face, o autor explica que o simples contato com o outro, já cria uma
preocupação em preservar a face. (cf. Silva, 1998: 111)
Para Brown & Levinson (1987), quase todos os atos de linguagem que permitem
identificar na interação as trocas verbais ou intervenções, como uma ordem, um elogio,
oferecimentos, conselhos, críticas etc. são ameaçadores.
Ao expor sua face o indivíduo exibe ao outro a sua imagem, fato que pode criar uma
ameaça à auto-imagem (face). Diante da ameaça à face, os falantes realizam um árduo
trabalho de negociações permanentes, monitorando-se num esforço constante de garantir a
preservação de suas faces.
Com relação a essas “negociações” pela preservação das faces, Maingueneau (2004:
39) afirma que
uma mesma fala pode ameaçar uma face com o intuito de preservar uma
outra, os interlocutores são constantemente levados a buscar um acordo, a
negociar. Eles devem efetivamente procurar um meio de preservar suas
próprias faces sem ameaçar a de seu parceiro. Desenvolve-se, então, todo
um conjunto de estratégias discursivas para encontrar um ponto de
equilíbrio entre essas exigências contraditórias.
A negociação da face como mencionamos anteriormente, é o conjunto de ações que
as pessoas usam para manter sua auto-imagem. Esse processo de negociação é efetuado por
meio de estratégias de polidez, cujo objetivo é evitar os atos ameaçadores da face (AAF).
Brown & Levinson (1987) observam que, sempre que ocorrerem atos ameaçadores
da face, os participantes do evento conversacional devem recorrer a alguns recursos (face-
work), na tentativa de evitar o desequilíbrio na interação. Desse modo, a polidez é um
recurso que deve ser usado com o intuito de neutralizar as ameaças à face.
79
De acordo com os autores, a face que apresentamos ao outro pode ser representada
como positiva (a imagem que se expõe com o intuito de obter reconhecimento), ou negativa
(a representação individual que se deseja preservar).
Ao iniciarem um diálogo os falantes procuram interagir com eficiência. Para isso,
buscam a cooperação mútua para que possam manter suas faces. Na busca por um diálogo
eficiente, os interlocutores mantêm um “modus vivendi interacional”, evitando possíveis
conflitos na interação. (Goffman, 2004: 18)
Embora os interlocutores realizem um trabalho colaborativo durante a interação,
com a finalidade de tornar a conversação uma atividade harmoniosa e equilibrada, muitas
vezes entram em um embate conversacional em que um dos falantes pode ter a sua face
ameaçada, ou até vir a perdê-la, criando um conflito interacional.
Nos diálogos do texto em análise, Tonho e Paco recorrem a diversas estratégias em
busca de preservarem suas faces na interação. Com o desejo de satisfazer a face positiva e
resguardar a face negativa, torna-se natural a tentativa de preservação. No entanto, quando
sentem suas faces ameaçadas a interação torna-se tensa, gerando agressões verbais e
muitas vezes corporais.
Incomodado com o fato de o colega possuir os sapatos que tanto deseja, Tonho
passa a ameaçar a face de Paco ao acusá-lo de tê-los roubado:
(10)
Tonho - Onde você roubou?
Paco - Roubou o quê?
Tonho - O sapato.
Paco - Não roubei.
Tonho - Não mente.
Paco - Não sou ladrão.
Tonho - Você não me engana.
Paco - Nunca roubei nada.
Tonho - Pensa que sou bobo?
80
Paco - Você está enganado comigo.
Tonho - Deixa de onda e dá o serviço.
Paco - Que serviço?
Tonho - Está se fazendo de otário? Quero saber onde você roubou esses
sapatos.
Paco - Esses?
Tonho - É.
Paco - Mas eu não roubei.
Tonho - Passou a mão.
Paco - Não sou disso.
Tonho - Conta logo. Onde roubou?
Paco - Juro que não roubei.
Tonho - Canalha! Jurando falso.
Paco - Não enche o saco, poxa!
Tonho - Então se abre logo.
Paco - Que você quer? Não roubei e fim.
Tonho - Mentiroso! Ladrão! Ladrão de sapato!
Paco - Cala essa boca!
Tonho - Ladrão sujo!
Paco - Eu não roubei.
Tonho - Ladrão mentiroso!
Paco - Não roubei! Não roubei!
Tonho - Confessa logo, canalha!
Paco (BEM NERVOSO) - Eu não roubei! Eu não roubei! Eu não
roubei! (COMEÇA A CHORAR.) Não roubei! Poxa, nunca fui ladrão!
Nunca roubei nada! Juro! Juro! Juro que não roubei! Juro!
Tonho (GRITANDO) - Pára com isso!
Paco - Eu não roubei! (42-43)
As acusações de Tonho ameaçam a face positiva de Paco. Este recorre aos
marcadores de rejeição (“...não roubei”..., “...Não sou ladrão...”, “...Nunca roubei nada...”,
“...Não sou disso...”, “...nunca fui ladrão...”), numa atitude defensiva dos ataques do seu
interlocutor, buscando desesperadamente, resguardar sua face.
81
Os marcadores de rejeição são recursos que podem “neutralizar possíveis reações
desfavoráveis ou interpretações contrárias ou prejudiciais por parte do interlocutor.”
(Galembeck, 1999: 178)
A situação conflituosa instaurada pelas acusações de Tonho pode levar à perda da
face negativa de Paco e comprometer a interação. Mesmo defendendo-se, Paco não
consegue convencer o colega de sua inocência e acaba entregando sua face, chorando ao
final do diálogo.
A troca de ofensas entre as personagens é constante. Aproveitando-se da situação de
superioridade que exerce sobre o colega, já que possui sapatos novos, Paco passa a
ridicularizá-lo, trazendo à tona as dificuldades pelas quais Tonho passa por não ter
calçados:
(11)
Paco - De manhã, quando saio rápido com meu sapato novo e você
demora aí forrando sua droga com jornal velho, deve ficar cheio de
bronca.
Tonho - Palhaço!
Paco (GARGALHADA) – Por isso é que você é azedo. Coitadinho! Deve
ficar uma vara quando pisa num cigarro aceso. (PACO REPRESENTA
UMA PANTOMINA.) Lá vem o trouxão, todo cheio de panca. (AINDA
COM POSE.) Daí, um cara joga a bia de cigarro, o trouxão não vê e pisa
em cima. O sapato do cavalão é furado, ele queima o pé e cai da panca.
(PACO PEGA SEU PÉ E FINGE QUE ASSOPRA.) Ai! Ai! Ai! (PACO
COMEÇA A RIR E CAI NA CAMA GARGALHANDO.)
Tonho (BRAVO) - Chega!
(PACO APONTA A CARA DE TONHO E ESTOURA DE TANTO
RIR.)
Tonho - Pára com isso, Paco!
(PACO CONTINUA A RIR. TONHO PULA SOBRE ELE E, COM
FÚRIA, DÁ VIOLENTOS SOCOS NA CARA DE PACO.ESTE AINDA
RI. DEPOIS, PERDE AS FORÇAS E PÁRA; TONHO CONTINUA
BATENDO. POR FIM, PÁRA, CANSADO. OFEGANTE, VOLTA PRA
SUA CAMA...) (44)
82
Ao adotar como estratégia a provocação, Paco tenta revelar a face negativa do seu
companheiro de quarto, usando para isso a ironia: (“... forrando a sua droga com jornal
velho, deve ficar cheio de bronca.”, “... “Deve ficar uma vara quando pisa num cigarro
acesso.”, “... ele queima o pé e cai da panca.”). Indefeso, Tonho entrega sua face,
recorrendo à agressão física.
Paco sabe que o fato de ter os sapatos desejados por Tonho dá a ele o status de
poder na interação. Por isso, adota como estratégias discursivas manipular, provocar e
humilhar o colega com o uso de ironias e palavras injuriosas (“... você é azedo.
Coitadinho!”, “... lá vem o trouxão...”, “... O sapato do cavalão é furado...”), sempre
ressaltando a imagem negativa de seu interlocutor.
Tonho, por sua vez, sempre com a intenção de conseguir o que deseja, usa como
estratégia revelar ao colega suas qualidades e seus projetos para o futuro:
(12)
Paco - Falo quanto quiser.
Tonho - Você só sabe resmungar.
Paco - Você sabe muita coisa.
Tonho - Mais do que você, eu sei.
Paco - Muito sabido. Por que, em vez de carregar caixa no mercado,
não vai ser presidente da república?
Tonho - Quem pensa que eu sou? Um estúpido da sua laia? Eu estudei.
Estou aqui por pouco tempo. Logo arranjo um serviço legal.
Paco - Vai ser lixeiro?
Tonho - Não, sua besta. Vou ser funcionário público, ou outra droga
qualquer. Mas vou. Eu estudei.
Paco - Bela merda. Estudar, pra carregar caixa.
Tonho - Só preciso é ganhar uma grana pra me ajeitar um pouco. Não
posso me apresentar todo roto e com esse sapato.
Paco - Se eu tivesse estudado, nunca ia ficar assim jogado-fora.
Tonho - Fiquei assim, porque vim do interior. Não conhecia ninguém
nessa terra, foi difícil me virar. Mas logo acerto tudo.
Paco - Acho difícil. Você é muito trouxa.
83
Tonho - Você é que pensa. Eu fiz até o ginásio. Sei escrever a
máquina e tudo. Se eu tivesse boa roupa, você ia ver. Nem precisava
tanto, bastava eu ter um sapato... assim como o seu. Sabe, às vezes eu
penso que, se o seu sapato fosse meu, eu já tinha me livrado dessa vida. E
é verdade. (46)
Ao tentar convencer o colega a emprestar-lhe os sapatos, Tonho mostra sua face
positiva que, de acordo com Brown & Levinson é “aquilo que o interlocutor exibe para
obter aprovação ou reconhecimento”. (Galembeck, 1999: 174). Tonho usa como estratégia
para conseguir o que deseja a valorização de sua imagem ao relatar a Paco realizações
importantes de sua vida que podem ajudá-lo a conseguir um trabalho mais qualificado ( “Eu
estudei.”, “...Vou ser funcionário público...”, “...Eu fiz até o ginásio. Sei escrever a máquina
e tudo...”).
Ao finalizar o diálogo Tonho tenta sensibilizar Paco, deixando claro que para
concretizar seus sonhos necessita de sapatos ( “...bastava eu ter um sapato... assim como o
seu...”), colocando em risco a perda de sua face.
Pensando em conseguir o que deseja, Tonho será obrigado a reformular,
constantemente, suas estratégias, abrindo mão de suas convicções para concordar com
Paco, mesmo que para isso deixe sua face exposta à ameaça. No diálogo que se segue, Paco
afirma que o colega tem inveja dos seus sapatos:
(13)
Paco - ...É a bronca do meu pisa, que você acha legal paca (...)
Tonho - Não é nada disso.
Paco - É inveja (...)
Tonho - Deixa de bobagem, Paco.
Paco - Bobagem? Inveja é um troço que atrapalha a vida dos outros.
Tonho - (...) É, acho que você tem razão... (PAUSA) Eu acho que é
isso mesmo. Implico com você por causa do sapato.
Paco - Confessou que tem inveja de mim. Eu já sabia desde outro dia.
(58)
84
O uso do verbo de opinião (acho) pode ser considerado como um “procedimento de
preservação da face.” (Galembeck, 1999: 193) . Podemos inferir que mesmo percebendo
que sua face está sendo ameaçada (“...bronca do meu pisa...”, “...tem inveja de mim...”),
Tonho busca resguardá-la, acatando as acusações do colega (“... acho que você tem
razão...”), apenas para manter a interação. Com vistas a obter o que deseja, Tonho
replaneja suas estratégias ao longo da conversação. Na seqüência, os diálogos produzidos
por ele se caracterizam pela autodesvalorização:
(14)
Paco - Poxa, mas você não ia sair pra vender a arma?
Tonho - Desisti.
Paco - Por quê?
Tonho - Com essa pinta aqui, com esse sapato de merda, sair
oferecendo revólver por aí, além de ninguém querer comprar, era
capaz de acabar indo preso.
Paco - Preso?
Tonho - Eram capazes de pensar que eu era um ladrão que
arrumou essa arma em algum assalto. Eles sempre pensam o pior de
um cara mal vestido.
Paco - Tem disso.
Tonho - Pra você ver. (66)
A atitude de Tonho surge da necessidade de manter a sua face positiva. A propósito
dessa estratégia, Maingueneau (1996: 128) afirma: “É contudo necessário se
autodesvalorizar um pouco para valorizar o outro e ser, em compensação, valorizado por
ele. Daí um trabalho incessante de negociação entre forças contraditórias.”
A autodesvalorização de Tonho é uma estratégia usada para comover o colega, a fim
de atingir seus objetivos na interação, pois além de destacar a sua péssima aparência
(“...Eles sempre pensam o pior de um cara mal vestido.”), retoma a problemática dos
sapatos (“...com esse sapato de merda...”), sem contudo ameaçar a face de Paco, na
esperança de não ter também sua face ameaçada por ele.
85
A mudança de estratégia de Tonho não convence seu interlocutor. Paco mostra-se
irredutível e cada vez mais “senhor da situação”, humilhando e ameaçando ainda mais a
face do colega.
Em uma outra situação, ao ser questionado sobre a opção sexual de Tonho, Paco dá
informações que só contribuíram para denegrir a imagem do seu companheiro de quarto:
(15)
Paco - (...) Os caras lá me perguntaram o que eu achava de você. Eu
disse que não sabia. Que comigo você nunca desmunhecou. Também
disse que vai ver que você enrustia comigo porque sabia que eu só vou
de mulher.
Tonho - Você disse isso? Você é nojento!
Paco - Nojento é você, Boneca do Negrão.
Tonho - Como você pode dizer uma coisa dessa de mim?
Paco - Eu digo mesmo. Não ponho a mão no fogo por ninguém (66)
Diante da desmoralização feita por Paco (“... comigo você nunca desmunhecou.”,
“... vai ver que você enrustia comigo”), Tonho perde sua face positiva, revolta-se e passa a
“mal dizer” da vida que leva:
(16)
Tonho - Vida desgraçada! Tem que ser sempre assim. Cada um por si
e se dane o resto. Ninguém ajuda ninguém. (...) Desgraça de vida!
Paco - Poxa, mas é assim mesmo. (...) você acha que eu é que vou
andar dizendo por aí que você não é bicha? Quero que você se dane! (...)
Tonho - É assim mesmo. (PAUSA) Paco, uma vez na vida você podia
fazer uma coisa decente. Podia ajudar um cara que está estrepado
mesmo.
Paco - Não dou arreglo. Mesmo que possa, não dou bandeja pra
sacana nenhum (...) (67)
86
Tonho retoma a estratégia de entrega da face (“... Podia ajudar um cara que está
estrepado mesmo.”). Aqui, a estratégia utilizada serve-lhe ao propósito de obter a ajuda do
colega e tentar resguardar sua face positiva, sem ameaçar a face de seu interlocutor.
Diante de todos os acontecimentos, Tonho sente-se pressionado por não poder
trabalhar no mercado, pois seria obrigado a dividir o seu ganho com o “Negrão”. Resolve
então fazer um assalto e tenta convencer Paco a acompanhá-lo:
(17)
Paco - Um assalto?
Tonho - É. Um assalto. (...)
Tonho - Como é?
Paco - Como é o quê?
Tonho - Você topa?
Paco - Topo! (PAUSA) Você está me gozando, poxa?
Tonho - Não. Falei sério.
Paco - Pode ser uma boa pedida.
Tonho - É minha saída.
Paco - Devia ter pensado nisso antes.
Tonho - Não gosto disso. Só vou entrar nessa porque não vejo outro
jeito de me arrumar. Se não fosse aquele maldito negrão, eu acabava me
ajeitando à custa do trabalho. Também, se der certo, não me meto em
outra, pode crer. (68-69)
Tonho parece ter consciência de que praticar um roubo não é uma atitude correta,
por isso tenta justificar os seus motivos (“Não gosto disso (...) não vejo outro jeito de me
arrumar.”, “... não me meto em outra...”). Assim, procura resguardar a sua face diante do
colega, já que não é um ladrão, deixando clara a intenção de ver preservada a sua face
positiva.
Ao expor ao colega os detalhes para realizarem o assalto, Tonho mostra-se
preocupado e até pensa em desistir, pois a idéia é assaltar um casal de namorados, porém
Paco demonstra querer “ aproveitar-se” da moça.
87
Criado o impasse, ambos recorrem à mesma estratégia discursiva:
(18)
Tonho - Só estou a fim de arrumar dinheiro.
Paco - E daí? Se podemos tirar um sarro, não vamos dispensar.
Tonho - Assim micha o assalto.
Paco - Boneca é uma desgraça.
Tonho - Boneca, não. Vê lá como fala. Já me encheu o saco essa
história.
Paco - Deixa de onda. É boneca mesmo. Agora tive a prova. Não
querer mulher é o fim da picada.
Tonho - Não sou tarado.
Paco - É bicha.
Tonho - (...) Você é tarado.
Tonho - Eu só quero um sapato. Não vou desgraçar ninguém.
Paco - Não quer mulher?
Tonho - Na marra, não.
Paco - E você apanha de outro jeito?
Tonho - Claro. Sempre apanhei. Lá na minha terra eu tinha uma
namorada que era um estouro.
Paco - Lá na sua cidade todo mundo é fresco como você. Aqui
nunca te vi com mulher.
Tonho - (...) Você fala muito, mas eu também nunca te vi com uma
mulher.
Paco - Mas eu... (ENCABULA, DEPOIS FICA BRAVO.) Eu pego
mulher sempre. Quando eu tocava flauta, eu sempre me dava bem.
Pergunte pra qualquer um.
Tonho - Mentira sua! Você é até cabaço.
Paco - Eu sempre tenho mulher. Estou te dizendo. Tenho a hora que
quiser, está bem?
Tonho - Tem nada.
Paco - Não sou Boneca de Negrão.
Tonho - Não muda de assunto. (69-70-71)
88
Nesse caso, os interlocutores adotam exatamente as mesmas estratégias para
atingirem os mesmos fins: ameaçar a face positiva. Tonho e Paco optam pelo ataque como
uma estratégia de defesa na interação e ambos perdem suas faces.
Em um outro momento da interação, após realizarem o assalto que haviam
planejado, Paco agride com requintes de crueldade a vítima. Ao ser questionado sobre o seu
ato de valentia, ele explica que tipo de imagem pretende mostrar a partir desse
acontecimento:
(19)
Paco - (...) Você vai ver. Você não me conhece. Eu sou mais eu. Eu
sou Paco. Cara estrepado. Ruim como a peste. Agora vou ser mais eu.
(...)
Tonho - Você é um maluco.
Paco - Boa! Paco Maluco, o Perigoso. Assim que eu quero que os
jornais escrevam de mim. Vai ser fogo. (...) (84)
Por ter agido com violência durante o assalto, Paco acredita que criou uma boa
imagem diante do “mundo do crime”. Alegra-se ao imaginar que a partir de agora será
temido por todos. Ao explicar como deseja ver seu nome destacado nas manchetes dos
jornais (“Paco Maluco, o Perigoso.”), intensifica sua face positiva.
Após a realização do assalto Tonho percebe que os sapatos roubados não lhe
servem. Passa então a negociar com Paco a troca dos sapatos:
(20)
Tonho - A gente podia trocar de sapato.
Paco - Você é louco? Poxa, eu acho que ficou goiaba.
Tonho - Mas que tem? É uma troca legal. Você me ajuda, nós dois
ficamos com sapato e eu posso ir cuidar da minha vida.
Paco - Eu quero que sua vida se dane.
Tonho - Mas, Paco, esse sapato serve direitinho em você!
Paco - E daí? Eu sou Paco Maluco, o Perigoso. Uso o sapato que eu
quero.
89
(...)
Tonho - Ninguém quer te enganar.
Paco - E mesmo que quisesse, não ia conseguir, bichona. Você é
malandro lá pros teus machos, mas comigo,o!
(...)
Paco - Que diz, bichona? Queria me levar no bico, mas não deu, né?
(TONHO FICA SENTADO NA CAMA OLHANDO PARA O CHÃO.)
(...)
Paco - Estou falando com você, bichona. Falei que você pode arrumar
um coronel velhusco e ele te dá um sapatinho de salto alto. (RI.) Não vai
arrumar? Você vai ficar uma boneca de salto alto e brinco na orelha.
Poxa, Maria Tonha Bichona Louca, você não agradece?
(TONHO ESTÁ CONTIDO, MAS BEM NERVOSO.)
Tonho - Pelo amor de Deus, Paco, me deixa em paz! Me deixa em paz!
Paco - Ai, Ai, como a bicha é nervosa!
Tonho (NERVOSO.) - Estou te pedindo, Paco. Pelo amor de Deus, me
deixa em paz. (CHORANDO.) Minha vida é uma merda, eu já não
agüento mais. Me esquece. Não quer trocar o sapato, não troca. Mas cala
essa boca. Será que você não compreende? Eu estudei, posso ser alguma
coisa na puta da vida. Estou cansado de tudo isso. De comer mal, de
dormir nessa joça, de trabalhar no mercado, de te aturar. Estou farto! Me
deixa em paz! É só o que te peço. Pelo amor de Deus me deixa em paz!
(ESCONDE A CABEÇA ENTRE AS MÃOS E CHORA
NERVOSAMENTE.) (93-94)
Diante da situação, ofendido e ridicularizado por Paco (“... bichona”... “... boneca de
salto alto e brinco na orelha.” “... Maria Tonha Bichona Louca...”), vendo sua face positiva
ameaçada pelo colega, Tonho desiste e entrega a face chorando (“Pelo amor de Deus, Paco,
me deixa em paz! Me deixa em paz!”).
A esse ponto, a situação de conflito torna-se insustentável. Tonho vê-se sem saída e
toma uma atitude: assassinar Paco.
Ao perceber a gravidade da situação, Paco reformula suas estratégias, deixa de
provocar Tonho e passa a humilhar-se diante do colega, colocando em risco sua face:
90
(21)
Tonho (BEM PAUSADO) - Vou acabar com você, Paco.
Paco - Comigo? Poxa, comigo? Mas eu não te fiz nada.
Tonho - Você disse que eu era bicha.
Paco - Estava brincando.
Tonho - Pois é. Mas seu brinquedo me enchia o saco.
Paco - Poxa, se você não gosta, mixa a brincadeira e pronto.
Tonho - Você é muito chato, Paco.
Paco - Eu juro. Juro por Deus que corto a onda. Juro!
Tonho - Também preciso de um par de sapatos. O que eu tenho não
serve pra mim.
Paco - O meu lhe serve. A gente troca de sapato.
Tonho - Eu não preciso disso, Paco. Basta eu apontar o berro pra algum
cara e ele vira o rabo. É só eu querer.
Paco - Poxa, Tonho, nós sempre fomos parceiros. Você sempre foi
um cara legal. Não vai fazer papelão comigo agora.
Tonho - Paco, você é um monte de merda, você fede. Você é nojento.
Paco (FORÇANDO O RISO) - Você quer me gozar.
Tonho - Vou acabar com a sua raça, vagabundo.
Paco - Mas, poxa... poxa...
Tonho - Vou te apagar, canalha.
Paco - Escuta, Tonho... Eu... poxa... eu... não te fiz nada...
Tonho - Vai se acabar aqui, Paco.
Paco - Tonho, você não pode me sacanear... Não pode...
(TONHO VEM AVANÇANDO LENTAMENTE PARA JUNTO DE
PACO.)
Paco - Mas, poxa, Tonho... Nós sempre fomos amigos...
Tonho - Quem tem amigo é puta de zona. (96)
Ao perceber que sua vida está sendo ameaçada, Paco sente-se totalmente perdido.
Muda a sua postura e passa a desmentir tudo o que havia afirmado sobre Tonho (“Estava
brincando.”), chegando a comentar que o colega “sempre foi um cara legal.”
91
De um lado, com medo e sem argumento, Paco aceita todas as ofensas feitas pelo
colega. De outro, satisfeito com a humilhação do seu companheiro de quarto, Tonho adota
como estratégia ofender e ameaçar Paco até o momento em que atira contra ele.
As análises realizadas nos permitem observar que as personagens buscam, do início
ao fim dos diálogos, perseguirem seus objetivos. Tonho não desiste de tentar convencer o
colega a atender aos seus apelos. Paco insiste em insultar o seu companheiro de quarto para
não ceder aos desejos de Tonho. Para isso, travam “duras batalhas” pela
preservação/ameaça das faces.
Por sua característica dinâmica, a interação pode levar os interlocutores a
recorrerem a mudanças na linguagem, como alterações no ritmo e no tom de voz, variação
de registros, etc. que devem corresponder a modelos cognitivos que o ouvinte busca
entender, já que estão relacionados a frames. (cf. Preti, 1998: 75)
Nosso interesse em analisar os diferentes frames empregados pelas personagens nas
mais variadas situações, buscando alcançar os seus objetivos, deve-se ao fato de certos
tipos de frames serem usados para preservar a face do falante, além de exercerem papel
relevante no sucesso da interação, conforme veremos a seguir.
3.5. Frame
Conforme vimos em 2.8, o conceito de frame (ou enquadre) foi introduzido por
Bateson nas ciências sociais. Nele o autor discute a natureza da comunicação, assinalando
que nenhum enunciado do discurso poderia ser compreendido sem referência a um
enquadre. (cf. Ribeiro & Garcez, 1998: 57-70). Posteriormente, esse conceito foi
aprofundado por Goffman, que observa que, em qualquer situação face a face, os
participantes introduzem, ou mantêm, enquadres que organizam a situação e auxiliam os
92
indivíduos a se orientar em relação a ela. Desse modo, o frame é “um princípio básico
para a compreensão do discurso oral e para a análise da interação.” (id.: 70)
Os frames apresentam um caráter dinâmico, já que em uma interação, mudam
constantemente. A esse respeito, Preti (1998: 75) explica: “Os frames num contexto podem
surgir, desaparecer, ressurgir (reframes), numa sucessão necessária à interação, num
contínuo processo de ativação dos modelos guardados em escaninhos da memória.”
Para evitar que a interação seja prejudicada, o ouvinte deve estar atento e identificar
os sinais ou pistas deixadas pelo falante.
Em nossas análises podemos observar a presença de diferentes frames cada vez que
surge uma nova situação em que as personagens precisam refazer os seus discursos. Nos
diálogos abaixo, após uma briga, Paco dá pistas de que pretende se vingar de Tonho pela
agressão física sofrida :
(22)
Tonho - Agora cale a boca. Fiquei cansado de bater em você. Quero
dormir.
Paco - Se tem coragem de dormir, dorme.
Tonho - Que quer dizer com isso?
Paco - Nada. Dorme...
Tonho - Vai querer me pegar dormindo?
Paco - Não falei nada. (45)
Em uma interação, os interlocutores precisam interpretar e reconhecer que tipo de
frame o enunciado traz. Assim, ao usar a expressão (“Se tem coragem de dormir, dorme.”),
Paco ativa o frame de vingança que é imediatamente identificado por Tonho (“Vai querer
me pegar dormindo?”). Esse é um bom exemplo do que observam Tannen & Wallat (1987),
ao afirmarem que o termo enquadre (frame) está relacionado ao sentido que os participantes
constroem acerca do que está ocorrendo na situação interacional. (cf. Ribeiro & Garcez,
1998: 120-141)
93
Em um outro momento, um gesto de Tonho desperta a desconfiança de Paco:
(23)
(TONHO APONTA O REVÓLVER PARA PACO.)
Tonho - Estou pensando seriamente em conseguir um sapato igual ao
seu.
Paco - Pede pro negrão. (RI.)
(PACO VÊ O REVÓLVER NA MÃO DE TONHO, PÁRA DE RIR.)
Paco - Que é?... Poxa, não vem com idéia de jerico pra cima de
mim... Que é?... Quer roubar meu pisante?
Tonho - Não precisa ficar com medo. Não vou te roubar. O berro está
sem bala. (59)
Ao ver o revólver do colega apontado em sua direção, Paco aciona o frame de roubo
(“... Quer roubar meu pisante?”), pois sabe que tudo o que Tonho mais deseja no momento
é conseguir calçados novos. Aqui temos um exemplo de que “a compreensão e
interpretação do discurso resulta, em parte, da analogia que fazemos com conhecimentos
armazenados na memória.” ( Preti, 1998: 73)
Depois de saber que o colega tem um revólver, Paco passa a sugerir maneiras de
como Tonho poderia resolver o problema que tanto o atormenta:
(24)
Paco - Oi...
Tonho - Que é?
(PAUSA)
Paco - Sabe o que você podia fazer para se acertar?
Tonho - Fala.
Paco - Você tem um berro, os outros têm o sapato.
Tonho - E daí?
Paco - A razão pode estar do seu lado, poxa!
Tonho - Não entendo. Fala claro.
Paco - Você é um trouxa. Não manja nada. Vai morrer sendo a
Boneca do Negrão. Tem a faca e o queijo na mão e não sabe cortar. Poxa,
já vi muito cara louco, mas você é o rei. Quero que se dane!
94
(PACO SE VIRA PRA DORMIR. TONHO FICA PENSANDO.
ACENDE UM CIGARRO E FUMA...) (64)
Nesse diálogo, Paco tenta deixar pistas ao colega para que este, agora de posse de
um revólver, possa realizar o que deseja: (“Você tem um berro, os outros têm o sapato.”).
No entanto, Tonho não consegue ativar o frame assalto e não compreende a sugestão dada
por Paco. Nesse caso, podemos observar que “os frames têm ligações socioculturais e o
desconhecimento das pistas que levam a eles ou a inexistência de modelos cognitivos
(esquemas de conhecimento) pelos interlocutores poderá levar ao fracasso a interação.
(id.)
No diálogo que se segue, podemos destacar um exemplo de frame de reprodução da
voz do outro. Preti explica que esse tipo de frame busca recriar a realidade na interação e
para isso emprega “o riso ou uma voz que indique comicidade, crítica, aversão, etc. em
relação à pessoa citada.” (cf. Preti, 1998: 80). Paco relata ao colega a conversa que ouvira
no mercado:
(25)
(TONHO ESTÁ DEITADO, ENTRA PACO.)
Paco - Poxa, você fez bem em não baixar no mercado.Todo mundo
procurou paca a Boneca do Negrão. (RI.) O negrão ficou uma vara. Não
pegou no batente contando com o achaque que ia dar em você, se estrepou.
Não arrumou grana nem pra tomar uma pinga. A moçada gozou a cara
dele às pampas. Todo mundo tirou sarro. Falavam: Poxa, negrão, cadê a
Boneca? Secou? A mina te passou pra trás? (65)
Ao ativar esse frame, Paco novamente ironiza a situação em que Tonho se encontra,
mas procura isentar-se da responsabilidade do que foi dito (“... Falavam ...”). Aqui, o frame
parece ter sido empregado para preservar a face de Paco.
Assim, de acordo com os acontecimentos que ocorrem durante a interação, Paco
recorrerá a diferentes frames toda vez que desejar insultar, provocar e tentar induzir Tonho
a determinadas atitudes. Com relação ao uso de diferentes frames, Preti afirma que
95
‘enquadramos’ nossas frases dentro dos objetivos que temos em mente ao
falar. Ritmo, intensidade de voz, tom irônico, vocábulos adequados ou
aparentemente impróprios, etc. podem ser ou não percebidos em frames
(enquadramentos) diferentes, para dar idéia de ofensa, pouco caso,
carinho, humor, malícia, ironia, interesses secundários, etc. (2004: 144)
Os diálogos analisados nos permitem afirmar que o frame está relacionado aos
conhecimentos anteriores que os interlocutores possuem e que, a partir de pistas localizadas
no texto oral ou escrito, podem ser ativados, influenciando na compreensão do evento
interacional. No entanto, a ausência de “esquemas de conhecimento
7
” pode prejudicar o
sucesso da interação.
Desse modo, sempre com a intenção de atingirem seus objetivos, Paco e Tonho
adotarão como estratégia mudanças no alinhamento de suas falas. Essas mudanças de
alinhamento, de postura do falante são denominadas por Goffman de footing. Nos diálogos
que analisaremos na seqüência, destacamos alguns exemplos de footing.
3.6. Footing
Conforme observamos em 2.9, Goffman explica que os footings dos falantes são
mantidos tanto por meio de seus próprios comportamentos, quanto das escolhas lingüísticas
que esses falantes empregam para expressarem suas intenções, uma vez que “a mudança de
footing está comumente vinculada à linguagem; se não for o caso, ao menos podemos
afirmar que os marcadores paralingüísticos estarão presentes.” (1981: 128)
O autor afirma que as mudanças de footings implicam em uma alteração de
posicionamento/alinhamento, que o indivíduo assume para si próprio e para os outros,
expresso na maneira com que produz e recebe o enunciado. (id.)
7
Cf. capítulo 2, item 2.8 deste trabalho.
96
Ainda a propósito do footing, o autor acrescenta:
Footing ou alinhamento refere-se à questão situacional presente na
interação e designa a sinalização das mudanças na projeção de identidade
ou na orientação dos participantes em relação uns aos outros e em relação
ao processo interacional. (id.)
Dessa maneira, podemos destacar em nosso corpus que, de acordo com a situação e
com vistas a obter o que desejam, as personagens introduzem footings que caracterizam
mudanças na interação.
Podemos observar que os interlocutores adotam, do início ao final dos diálogos,
uma postura agressividade e as alterações de footing ocorrerão apenas quando forem
necessárias aos interesses dos interlocutores:
(26)
Tonho - Pára com essa música estúpida! Não entendeu que eu quero
silêncio?
Paco - E daí? Você não manda.
Tonho - Quer encrenca? Vai ter! Se soprar mais uma vez essa droga,
vou quebrar essa porcaria.
Paco - Estou morrendo de medo.
Tonho - Se duvida, toca esse troço.
(PACO SOPRA A GAITA. TONHO PULA SOBRE PACO. OS DOIS
LUTAM COM VIOLÊNCIA. Tonho leva vantagem e tira a gaita de paco.)
(40)
Os diálogos iniciais mostram que a interação entre Paco e Tonho será marcada pelo
conflito situacional em que estão envolvidas as personagens. Dessa maneira, apenas quando
tiverem interesses em negociar e convencer um ao outro é que haverá mudança de footing.
97
Em seguida, ao ver o colega perturbado com as ameaças do Negrão e impedido de
retornar ao trabalho, Paco introduz uma mudança de footing e passa a aconselhar o
companheiro de quarto:
(27)
Tonho - Eu só preciso de um sapato. Uma boa apresentação abre as
portas. Se eu tivesse sorte de me ajeitar logo que cheguei, a essas horas
estava longe daqui. Mas dei azar. O sapato estragou. Eu não tenho
coragem de ir procurar emprego com essa droga nos pés. Tenho que
desafogar aqui no mercado. Quando escrevo pra casa, digo que está tudo
bem, pra sossegar o pessoal. Sei que eles não podem me ajudar. Vou me
agüentando. Um dia me firmo.
Paco - Vou te dar um alô. Volta pra tua casa. Aqui você só vai
entrar bem.
Tonho - Vontade de voltar não me falta. (52)
Ao assumir um alinhamento de quem aparentemente quer ajudar, Paco na verdade
deixa claro que as histórias de Tonho não vão convencê-lo a colaborar com o colega para
resolver o problema da falta de sapatos.
Em um outro momento, Tonho adota um novo footing e dispensa ao colega um
tratamento cordial, passando a se interessar pelo instrumento que Paco toca:
(28)
Tonho - Você toca flauta?
Paco - Eu tiro tudo quanto é chorinho.
(PAUSA LONGA. TONHO PEGA O MAÇO DE CIGARROS, ACENDE
UM.)
Tonho - Quer fumar?
Paco - Vai me dar um?
Tonho - Pega. (JOGA UM CIGARRO.)
Paco - Puta milagre!
(OS DOIS FUMAM EM SILÊNCIO.)
Tonho - Onde você aprendeu a tocar flauta?
Paco - No asilo. Lá eles ensinam pra gente!
98
Tonho - Onde foi parar a sua flauta?
Paco - Passaram a mão nela. (60)
Ao assumir esse footing, Tonho provoca uma reação de estranhamento em Paco
(“Puta milagre!”). No entanto, essa é apenas uma estratégia para, em seguida, retomar o
problema dos calçados:
(29)
(PACO COMEÇA A TOCAR.)
Tonho - Eu só queria um par de sapatos. Eu, às vezes, fico morto de
vergonha quando na rua olho para os pés das pessoas que passam. Todos
calçam um pisante legal. Só eu que uso essa porcaria toda furada. Isso
me deixa na fossa... Chego até a pensar em me matar.
(PACO TIRA UM SOM MONSTRUOSO DA GAITA. PACO PÁRA DE
TOCAR E FICA OLHANDO FIXO PARA TONHO. DEPOIS CAI NA
GARGALHADA.)
Tonho - Qual é a graça?
Paco - Poxa, você é cheio de piada. (61)
Durante a interação, sempre que tentar convencer Paco a emprestar-lhe os sapatos,
Tonho introduzirá novos footings, já que essas alterações são necessárias ao “jogo
interacional”.
Após realizarem o assalto, Tonho constata que os sapatos da vítima são pequenos
demais para ele. Resolve então negociar com Paco a troca dos sapatos, adotando um novo
footing :
(30)
Tonho - Está bem. Olha, esse sapato aqui é pequeno pra mim.
Paco - Já sei disso.
Tonho - Eu sou mais alto que você, tenho o pé um pouco maior que
o seu.
Paco - Pouco maior, o cacete! Sua patola só entre numa lancha.
Tonho - O que interessa é que você é mais baixo. Esse sapato deve te
servir.
99
Paco - Quer vender? Mas eu já tenho pisa.
Tonho - Eu sei. Mas o seu sapato é um pouco grande pra você. Pra
mim, que sou mais alto, ele deve servir direitinho. (93)
Ao assumir esse footing, Tonho usa como estratégia a negociação na tentativa de
convencer Paco na troca dos sapatos (“... você é mais baixo. Esse sapato deve te servir.”,
“... seu sapato é um pouco grande pra você. Pra mim, que sou mais alto, ele deve servir
direitinho.”).
As mudanças de footing parecem constituir verdadeiras estratégias que
proporcionam um maior envolvimento interacional entre falante e ouvinte. Para que isso
ocorra, faz-se necessário que tanto falante quanto ouvinte partilhem de um conhecimento
comum, uma vez que a falta deste pode prejudicar a interação, levando-a ao insucesso.
100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve como objetivo analisar como o autor de um texto literário,
especificamente do texto teatral, constrói o diálogo das personagens de modo a aproximar
suas falas aos modelos ideais de estratégias conversacionais próprios da interação face a
face. Utilizamos como corpus a peça Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos.
Para a realização desse estudo, buscamos embasamento teórico na Análise da Conversação
na perspectiva sociointeracionista.
De acordo com os pressupostos teóricos observamos como, durante o ato
conversacional, os falantes precisam escolher de forma adequada as estratégias
conversacionais, já que elas contribuem para o sucesso da interação.
Realizamos um estudo sobre as modalidades falada e escrita da língua, as
características do texto literário teatral, a construção da interação e as estratégias
discursivas, especificamente, preservação da face, frame e footing.
Em nossas análises constatamos que os diálogos construídos apresentam Paco e
Tonho, recorrendo a diversas estratégias como: humilhação, ironia, provocação, desprezo,
manipulação e hostilidade, sempre em busca de alcançarem os seus objetivos. Observamos,
ainda, que a utilização dessas estratégias esta vinculada à própria situação de comunicação
e faz parte do replanejamento contínuo das situações face a face.
Com relação à interação, observamos que as personagens revelam em seus diálogos
um discurso tenso, formado por palavras ofensivas e injuriosas, condizente com o contexto
social no qual estão inseridas.
Verificamos ainda que, ambas as personagens insistem em perseguir seus objetivos.
Tonho não desiste de pedir os sapatos emprestados e Paco insiste em não emprestá-los.
Para prosseguir em suas insistências e convencer seu interlocutor, cada uma das
101
personagens se vê, então, obrigada a reformular, constantemente, suas estratégias ao longo
da conversação.
Assim, quando se pretende convencer um ao outro, a interação ocorre de forma
colaborativa. No entanto, quando a intenção é apenas alcançar o que deseja, não há
cooperação entre os falantes, tornando a interação conflituosa, levando-a, às vezes, ao
insucesso.
Constatamos que, em uma interação, se torna comum o uso da estratégia da
preservação da face. Nossas análises permitiram-nos observar a ocorrência de alguns
AAFs. (atos ameaçadores da face) como: provocações, ameaças e ofensas. Paco e Tonho
realizam um árduo trabalho pela preservação das faces. Para tanto empregam como
recursos marcadores de rejeição, verbo de opinião (acho) e autodesvalorização.
A propósito da preservação da face, observamos ainda que, em uma interação, ela
pode ser usada pelos falantes, não apenas para solucionar problemas e alcançar a desejada
colaboração do outro, como também para atingir seus objetivos. Cabe ressaltar que essa
estratégia possibilita ao interlocutor a adoção de frames e footings, demonstrando que os
participantes do evento conversacional estão sempre orientando-se e alinhando-se em
relação aos seus interlocutores e ao discurso, facilitando o envolvimento interacional.
Com relação aos frames e footings, verificamos nos diálogos analisados que, para
que o uso dessas estratégias seja bem sucedido na interação, os interlocutores precisam
compartilhar de um conhecimento comum.
De acordo com nossa análise, tal como defendem Tannen, Lakoff e Preti,
acreditamos que o diálogo de ficção apresenta, de fato, um material fértil para os estudos
lingüísticos voltados à língua oral.
102
O texto selecionado permitiu que se observassem de uma forma bastante clara os
mecanismos empregados para se formular/reformular as estratégias adotadas durante o
desenvolvimento da interação conversacional.
Acreditamos que o autor do texto analisado constrói os diálogos, aproveitando-se de
recursos que possibilitam uma aproximação da fala espontânea, de modo a caracterizar o
comportamento das personagens, em uma determinada situação de comunicação, por meio
de uma linguagem agressiva.
103
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Texto de apoio
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carne; Dois perdidos numa noite suja; O abajur lilás. Plínio Marcos. São Paulo: Maltese, p.
39-98.
110
ANEXO
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