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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Renato Kirchner
A TEMPORALIDADE DA PRESENÇA
A elaboração heideggeriana do conceito de tempo
Rio de Janeiro
Abril de 2007
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ii
Renato Kirchner
A TEMPORALIDADE DA PRESENÇA
A elaboração heideggeriana do conceito de tempo
Tese de Doutorado apresentada ao corpo docente
do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
(IFCS), da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em
Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Gilvan Luiz Fogel
Rio de Janeiro
Abril de 2007
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iii
Kirchner, Renato.
A temporalidade da presença: a elaboração heideggeriana do conceito de
tempo / Renato Kirchner; orientador: Gilvan Luiz Fogel. Rio de Janeiro:
UFRJ/IFCS, 2007.
ix, 250 p.
Tese (doutorado) Instituto de Filosofia e Ciências Sociais.
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Referências bibliográficas: p. 238-250.
1. Presença (Dasein). 2. Existência. 3. Ser-no-mundo. 4. Cura. 5.
Temporalidade. 6. Historicidade. 7. Fenomenologia. 8. Martin Heidegger. 9.
Teses. I. Kirchner, Renato. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Filosofia. III.
Título.
iv
Renato Kirchner
A TEMPORALIDADE DA PRESENÇA
A elaboração heideggeriana do conceito de tempo
Esta tese foi julgada adequada para a obten
ção do título de Doutor em
Filosofia, e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação em
Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Rio de Janeiro, 27 de abril de 2007.
Prof. Dr. Gilvan Luiz Fogel
UFRJ
Presidente da Banca Examinadora
Prof. Dr. Emanuel Carneiro Le
ão UFRJ
Profa. Dra. Izabela Aquino Bocayuva
UERJ
Prof. Dr. Fernando Mendes Pessoa
UFES
Prof. Dr. Fernando Santoro
UFRJ
v
AGRADECIMENTOS
A Gilvan L. Fogel, por mostrar, sempre de novo, que o decisivo na filosofia está no modo
adequado de compreender e descrever os fenômenos.
A Cássia, esposa sempre amada, a Daniel, Maria Clara e Júlia, filhos do coração, a
Cláudia e Rony, amigos inseparáveis, pela presença e convivência.
A Hermógenes Harada, Emmanuel Carneiro Leão, Marcia S.C. Schuback, pelas aulas e
seminários, pois foram fundamentais para que pudesse ter acesso ao pensamento de Heidegger.
A Wilibaldo e Emília, pai e mãe, aos irmãos, cunhados e sobrinhos que, mesmo de longe,
convivem com as incertezas e inquietações, mas também nas buscas e novas realizações.
A Écio, pela amizade e pelas longas e repetidas tentativas de compreender o pensador de
Messkirch.
A Fátima e Cleonice, pela amizade e por me motivarem a não perder a esperança de que
o caminho a percorrer seria possível.
Aos mestrandos e doutorandos, com os quais pude compartilhar, ao longo dos últimos
anos, preocupações filosóficas, agradeço.
Ao Departamento de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da Universidade do Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), à coordenação, corpo docente e secretárias, Sônia e Enedina, muito
obrigado.
vi
Die Ursprünglichkeit des Denkens besteht nicht
in der Erfindung sogenannter neuer Gedanken.
Die eigentliche Ursprünglichkeit besteht
in der Kraft, gedachte Gedanken zu empfangen,
das Empfangene auszuhalten
und das so im Verborgenen Ausgehaltene zu entfalten.
Dann gelangen die Gedanken von selber dorthin,
wohin sie gehören, in das, was ich das Anfängliche nenne.
(Martin Heidegger, Ein Wort des Dankes, 1959)
RESUMO
Kirchner, Renato. A temporalidade da presença: a elaboração heideggeriana do
conceito de tempo. Orientador: Gilvan Luiz Fogel. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/IFCS), 2007. Tese (doutorado em filosofia).
Esta investigação baseia-se na obra de Martin Heidegger. Tem o propósito de ver e
entender como este pensador elabora seu próprio conceito de tempo a partir de uma interpretação
peculiar da presença humana (menschliche Dasein), tendo em vista, também, a elaboração de
uma ontologia fundamental. A tematização heideggeriana revela que o tempo não é nem
objetivo, nem subjetivo. Sua tematização do tempo é uma tematização ontológica, razão pela
qual está relacionada com a questão pelo sentido do ser. Tendo a hermenêutica fenomenológica
como método de investigação, Heidegger mostra que o tempo cada vez e sempre se
enquanto modos próprios ou impróprios de temporalização. Na elaboração do conceito de tempo
é preciso ver e entender como ele fundamenta e descreve a temporalidade originária, a
ocupação cotidiana do tempo e a origem do conceito vulgar de tempo. A interpretação vulgar do
tempo encobre a constituição ekstática e horizontal da temporalidade originária e, desse modo,
tende a permanecer nivelada por esse encobrimento. Do ponto de vista do percurso e da
estrutura, esta investigação norteia-se pela analítica existencial e temporal realizada em Ser e
tempo e em algumas obras da juventude. O trabalho é composto de três capítulos: 1) As
primeiras elaborações heideggerianas do conceito de tempo, 2) As estruturas fundamentais do
modo de ser da presença, 3) A temporalidade como sentido ontológico da cura. Pelo
encaminhamento dado ao longo dos capítulos, caminha-se num sentido inverso ao proposto pelo
título. Parte-se do subtítulo, A elaboração heideggeriana do conceito de tempo, em direção ao
título, A temporalidade da presença. Entendemos que o contrário não seria possível, uma vez
que, para ver e entender como Heidegger elabora seu conceito de tempo, enquanto temporalidade
originária da presença, pressuposto está o caminho percorrido na analítica existencial. Desse
modo, o primeiro capítulo assume a tarefa de visualizar a tematização do tempo na aula de
habilitação, em Friburgo (1915), e na conferência de Marburgo (1924). O segundo e terceiro
capítulos, tendo por guia Ser e tempo e Os problemas fundamentais da fenomenologia,
objetivam, de um lado, apresentar as estruturas fundamentais do modo de ser da presença
(analítica existencial) e, de outro, a partir dos modos de temporalização do tempo, evidenciar a
temporalidade como sentido ontológico da cura (analítica temporal). Assim, deve-se mostrar que
a temporalidade mesma é uma explicitação de três teses que perpassam Ser e tempo: a essência
da presença revela-se como existência, a cura mostra-se como ser da presença, a temporalidade
estrutura-se como sentido ontológico da cura. Este trabalho objetiva mostrar o significado
fenonemológico dessas teses a partir da análise do fenômeno do tempo.
Palavras-chave: Fenomenologia. Ontologia fundamental. Presença humana (menschliche
Dasein). Existência. Analítica existencial. Ser-no-mundo. Cura. Analítica temporal.
Temporalidade. Temporalização. Cotidianidade. Historicidade. Intratemporalidade. Tempo
ocupado. Tempo do mundo. Conceito vulgar de tempo.
viii
ABSTRACT
Kirchner, Renato. The temporality of the human being (t)here: the Heideggerian
elaboration of the time concept. Orientador: Gilvan Luiz Fogel. Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/IFCS), 2007. Tese (doutorado
em filosofia).
This inquiry is based on Martin Heideggers works. It has the intention to see and
understand how that philosopher elaborates his proper concept of time from a peculiar
interpretation of human being (t)here (menschliche Dasein), considering, also, the elaboration
of a basic ontology. The Heideggerian thematic discloses that the time is not nor objective, nor
subjective. His thematic of the time is a ontologic one, reason why which its related with the
question for the beings sense. Using the phenomenology hermeneutics as inquiry method,
Heidegger demonstrates that the time each time and always already gives its while proper
or improper ways of temporalization. In his elaboration of the time concept its necessary to see
and to understand as Heidegger bases and describes the original temporality, the daily
occupation of the time and the origin of the vulgar time concept. That everyday interpretation
of the time hides the ekstatic and horizontal constitution of original temporality and, in this
manner, it tends to remain levelly for this covering. By the point of view of its course and its
structure, this inquiry is guided for the existencial and temporal analytic elaborated in Being
and time and other works of Heideggers early times. This work is composed by three chapters:
1) The first Heideggerian elaborations of the time concept, 2) the basic structures of the human
being (t)here, 3) the temporality as ontologic sense of the care. By the guiding given throughout
for the chapters, the work walks in an inverse direction of that proposed on its title. Starting
from the subtitle, the Heideggerian elaboration of the time concept, in direction to the
heading, the temporality of the human being (t)here. We understand that the opposite would
not be possible, once that, to see and to understand how Heidegger elaborates his concept of
time, while originary temporality of the human being (t)here, it is estimated the way covered in
the existencial analytic. So, the first chapter visualizes the thematic of the time in Heideggers
qualification lecture, in Freiburgs University (1915), and his conference of Marburgs
Universtiy (1924). The second and the third chapters, using for guide Being and time and The
basic problems of phenomenology, intend to present the basic structures of the human being
(t)here way of being (existencial analytic) and, on the other hand, from the ways of the time
temporalization, to evidence the temporality as ontologic sense of the care (temporal analytic).
Thus, it must prove that the temporality is fully expressed in the three thesis existent on Being
and time: the essence of the human being (t)here shows itself as existence, the care reveals
itself as been of the human being (t)here, the temporality structures itself as ontologic sense of
the care. This work intends to show the phenomenological meaning of these three thesis from
the analysis of the time phenomenon.
Keywords: Phenomenology. Basic ontology. Human being (t)here (menschliche Dasein).
Existence. Existencial analytic. Being-in-the-world. Care. Temporal analytic. Temporality.
Temporalization. Everydayness. Historicality. Intratemporality. Occupyed time. World time.
Vulgar time concept.
ix
SUMÁRIO
Introdução.........................................................................................................................1
Capítulo 1: As primeiras elaborações heideggerianas do conceito de tempo............10
1.1 O modo próprio da investigação filosófica..................................................................11
1.2 A dupla tarefa na elaboração da questão do ser...........................................................15
1.3 A possibilidade de uma fenomenologia do tempo.......................................................23
1.4 Ser e tempo: uma primeira aproximação fenomenológica...................................30
1.5 A interpretação heideggeriana das principais tematizações tradicionais do tempo.....43
1.6 As primeiras elaborações heideggerianas do conceito de tempo antes de Ser e tempo..60
1.6.1 A aula de habilitação O conceito de tempo na ciência histórica (Friburgo, 1915)..62
1.6.2 A conferência O conceito de tempo (Marburgo, 1924)............................................72
Capítulo 2: As estruturas fundamentais do modo de ser da presença.......................86
2.1 Analítica existencial x antropologia filosófica............................................................87
2.2 Existência como ter de ser e ser sempre minha................................................94
2.3 Ser-no-mundo como constituição fundamental da presença.....................................102
2.3.1 A mundanidade do mundo......................................................................................103
2.3.2 Ser-com e ser-si mesmo, e o impessoal..............................................................115
2.3.3 O ser-em.................................................................................................................123
2.4 A cura como ser da presença.....................................................................................132
Capítulo 3: A temporalidade como sentido ontológico da cura................................141
3.1 O poder-ser-todo e a decisão antecipadora................................................................144
3.2 A primazia do porvir e da compreensão na constituição da temporalidade..............149
3.3 A temporalidade como sentido ontológico da cura...................................................154
3.4 Temporalidade e historicidade..................................................................................169
3.5 Temporalidade e intratemporalidade como origem do conceito vulgar de tempo....179
3.5.1 O tempo ocupado...................................................................................................183
3.5.2 O tempo do mundo.................................................................................................192
3.5.3 A intratemporalidade como origem do conceito vulgar de tempo..........................203
3.6 O testemunho da existência poética enquanto temporalidade kairônica...................211
Conclusão.......................................................................................................................221
Referências bibliográficas............................................................................................238
1
INTRODUÇÃO
Heidegger não é o único nem o primeiro filósofo a ocupar-se com a temática do tempo.
Nem todos os filósofos a ocuparem-se com o tempo, porém, fizeram-no de modo temático e,
sobretudo, não transformaram o tempo em tema central de suas investigações. Heidegger
reconhece que as investigações de Aristóteles, Santo Agostinho, Kant e Hegel aproximam-se,
com maior ou menor alcance, da investigação por ele realizada na perspectiva de uma
fundamentação ontológica do tempo
1
.
O tempo é um tema central no pensamento de Heidegger e, por isso, é tão recorrente em
sua obra. Em Ser e tempo ele afirma que há muito que o tempo funciona como critério
ontológico, ou melhor, ôntico, para uma distinção ingênua das diversas regiões dos entes.
Distingue-se um ente temporal (os processos naturais e os acontecimentos da história) de um
ente não temporal (as relações numéricas e espaciais). Costuma-se opor o sentido atemporal
das proposições ao curso temporal de sua articulação e expressão. Descobre-se ainda um
abismo entre o ente temporal e o eterno supratemporal e se busca, sempre de novo, estender
uma ponte entre ambos. Heidegger parte do princípio que é necessária uma tematização
ontológico do tempo. Ela não pode eximir-se da tarefa de analisar o temporal enquanto é e está
sendo, cada vez, no tempo. Nessa perspectiva, num dos primeiros parágrafos de Ser e tempo,
Heidegger esboça sua preocupação com a temática do tempo:
Até hoje não se questionou ou investigou como o tempo chegou a desempenhar essa função
ontológica fundamental e com que direito funciona como um critério dessa espécie e, por
fim e sobretudo, como se exprime uma possível importância ontológica verdadeira do tempo
nessa utilização ontologicamente ingênua. Dentro do horizonte da compreensão vulgar, o
tempo acabou tendo, por assim dizer, por si mesmo, essa função ontológica evidente e
nela se manteve até hoje. Em contrapartida, deve-se mostrar, com base no questionamento
explícito da questão sobre o sentido do ser, que e como a problemática central de toda
ontologia se funda e lança suas raízes no fenômeno do tempo, desde que se explique e se
compreenda devidamente como isso acontece
2
.
Nesta passagem Heidegger apresenta dois aspectos fundamentais em relação ao tempo: 1)
deve ser investigado ontologicamente e, a partir disso, deve-se mostrar em que sentido a
compreensão vulgar que temos do tempo é por si mesma evidente; 2) a investigação deve
mostrar e esclarecer, também, em que sentido o fenômeno do tempo está enraizado na questão do
ser. O fundamental a perceber, então, é que Heidegger não está preocupado, primeiramente, em
1. Cf. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, p.
327-329.
2. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, § 6, p. 55-56. A epígrafe de Ser e
tempo pode ser lida em paralelo a esta citação sobre o tempo: pois é evidente que de há muito sabeis o que propriamente
quereis designar quando empregais a expressão ente. Outrora, também nós julvamos saber, agora, porém, caímos em
aporia (Platão, O sofista, 244a, segundo Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes,
2006, p. 34).
2
compreender e, por isso mesmo, tematizar o tempo ou o temporal oposto ou contraposto ao
atemporal ou supratemporal. Sua preocupação volta-se apenas para o tempo, para o
temporal, para a temporalidade, para os modos de temporalização do tempo.
Uma das afirmações mais contundentes desse posicionamento de Heidegger encontra-se na
conferência O conceito de tempo, de 1924. Logo no início da conferência ele diz: Se o filósofo
questiona o tempo, está decidido a compreender o tempo a partir do tempo
3
. Assim,
filosoficamente falando, mesmo que o filósofo se preocupasse em compreender a eternidade, o
atemporal, o supratemporal, de onde retiraria sua orientação ontológica a não ser do próprio
tempo? pergunta-se Heidegger. Com efeito, se isso se confirmar, então, não resta outro
caminho a não ser compreender o tempo a partir dele mesmo.
Entretanto, o que é o tempo? O que é o tempo nele mesmo? É possível ter acesso ao tempo
nele mesmo? É-nos permitido fazer este tipo de pergunta? Surpreendentemente, ao final da
conferência de 1924, Heidegger propõe uma mudança no modo de colocar a questão acerca do
tempo. Ou seja, da tradicional forma de perguntar o que é o tempo? ele propõe quem é o
tempo? Não se trata, certamente, de uma mera mudança ou substituição de termos, isto é, o o
quê pelo quem. A mudança heideggeriana no modo de colocar a pergunta pelo tempo deve ter
alguma razão de ser e é isso que procuramos investigar neste trabalho. Uma das pressuposições
iniciais, portanto, é encontrar nos textos anteriores a Ser e tempo e até mesmo antes da
conferência O conceito de tempo uma evidência de como Heidegger chega a este modo de
perguntar, ou seja, quem é o tempo?
A propósito, porém, não podemos perder de vista que Heidegger pretende fundar e
fundamentar uma nova ontologia, a ontologia fundamental. Sabemos que a ontologia, como
ciência do ente, ocupa-se dos entes em geral. Ente é tudo que é e há, tudo que foi e tudo que
ainda será, tudo que é visível e tudo que é invisível e, em certo sentido, tudo que é temporal e
tudo que é atemporal ou supratemporal. Dizemos, por exemplo, o homem é..., o sapato é...,
a mesa é..., o martelo é..., mas também, Deus é..., a eternidade é..., os anjos são....
Tudo que de algum modo tem caráter entitativo é ente. Aqui, novamente, surpreende-nos
Heidegger: Chamamos de ente muitas coisas e em sentidos diversos. Ente é tudo de que
falamos dessa ou daquela maneira, ente é também o que e como nós mesmos somos
4
. No
contexto em que se encontra esta afirmação, Heidegger propõe-se encontrar e identificar o ente
privilegiado pelo sentido do ser. Evidencia-se, para ele, que este ente é o próprio ente que
3. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 5; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 8/9.
4. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 2, p. 42.
3
pergunta pelo ser e, conseqüentemente, o ente que pergunta pelo ser somos nós mesmos. O ente
que nós mesmos somos é caracterizado fundamentalmente como ser-no-mundo.
Por isso Heidegger diz: deve-se procurar, na analítica existencial da presença, a
ontologia fundamental
5
, ou seja, dela e somente dela podem partir e originar-se todas as demais
ontologias. Em vista de uma ontologia fundamental é imprescindível que se tematize também o
ente que busca compreender o ser, isto é, faz-se necessária uma analítica existencial da presença
humana (menschliche Dasein). Assim, diz Heidegger, a filosofia é uma ontologia
fenomenológica e universal que parte da hermenêutica da presença, a qual, enquanto analítica da
existência, amarra o fio de todo questionamento filosófico no lugar de onde ele brota e para onde
retorna
6
. Define-se, então, de saída, a motivação principal da investigação heideggeriana a
respeito da tematização do tempo: ela é ontológica e está dentro do horizonte de investigação da
questão pelo sentido do ser.
A presente investigação procura sua orientação na investigação realizada por Heidegger
e, a partir disso, tenta ver e entender como ele elabora o conceito de tempo. Uma das perguntas
condutoras da investigação, portanto, deve ser: em que consiste a originalidade da tematização
heideggeriana do tempo? Em que sentido é possível afirmar que Heidegger elabora uma nova
concepção de tempo? Responder a estas perguntas implica esclarecer suficientemente por que
Heidegger vê a necessidade de tematizar o tempo, mas, principalmente, como ele fundamenta
ontologicamente este fenômeno.
Então, sendo o título da presente investigação A temporalidade da presença: a elaboração
heideggeriana do conceito de tempo, todo nosso empenho concentra-se, fundamentalmente, em
compreender a constituição e o modo de ser fundamental da presença humana enquanto ente
temporal. A presença é temporal na medida em que se temporaliza e, nesse sentido, a
temporalidade lhe é essencialmente constitutiva.
Nesse propósito, portanto, devemos apropriar-nos do conceito de tempo enquanto
temporalidade da presença desde o âmbito em que Heidegger desenvolve a analítica existencial e
temporal, a qual é tematizada principalmente em Ser e tempo e Os problemas fundamentais da
fenomenologia, embora seja recorrente também em outras obras, como teremos a oportunidade
de acompanhar ao longo do desenvolvimento deste trabalho. Nesse sentido, objetivamos
compreender o fenômeno do tempo desde o projeto heideggeriano de uma ontologia fundamental
e, sobretudo, como modo de ser fundamental da presença humana. Assim, o início, o percurso e a
meta desta investigação concentram-se em acompanhar e descrever como Heidegger elabora um
novo conceito de tempo enquanto temporalidade da presença humana.
5. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 7, p. 78.
4
Ler e interpretar Heidegger implica, então, re-conhecer nele o pensador de ser e tempo.
Re-conhecer é conhecer novamente e, desse modo, para conhecê-lo, de fato, precisamos re-
conhecer-nos no modo como ele tematiza o tempo. Está em jogo acompanhar como o fenômeno
do tempo se deixa e faz ver, como se mostra em si e desde si mesmo
7
. Não por acaso,
portanto, sua obra capital é intitulada Ser e tempo. As palavras ser e tempo não devem ser
vistas como uma expressão sem mais, ou seja, como palavras por si mesmas evidentes. A
expressão ser e tempo indica, pois, para duas questões fundamentais da filosofia: a questão do
ser e a questão do tempo. Não são duas questões, uma ao lado da outra, nem são independentes
uma da outra. São duas questões co-nexas. Não entraremos aqui em maiores considerações sobre
esta co-nexão, uma vez que nos ocuparemos disso especificamente ao longo do trabalho. Embora
nossa investigação se concentre na leitura e interpretação das obras da juventude de Heidegger,
ou melhor, das investigações do tempo realizadas antes da publicação de Ser e tempo, é
importante ter presente, sempre de novo, o que ele afirma na conferência Tempo e ser, de 1962:
Como, porém, nos poríamos a trabalhar de maneira conveniente no exame do estado de
coisas pelo título Ser e tempo, Tempo e ser?
Resposta: de tal modo que meditemos cautelosamente (
vorsichtig nachdenken) as coisas
aqui mencionadas. Cautelosamente quer primeiro dizer: não atacar precipitadamente as
coisas com representações não examinadas (ungeprüften Vorstellungen überfallen); mas,
antes, refletir cuidadosamente (sorgsam nachsinnen) sobre elas.
Temos, porém, nós o direito de fazer passar ser e tempo por coisas? Não são coisas, se
coisas significa algo entitativo. A palavra coisa, uma coisa, significará para nós agora
aquilo que está em questão, em sentido eminente, na medida em que nela se esconde algo
inelutável. Coisa terá aqui o sentido de questão. Ser uma questão; provavelmente a
questão do pensamento.
Tempo
uma questão; provavelmente a questão do pensamento, se efetivamente algo tal
como tempo fala no ser como presença: Ser e tempo, tempo e ser nomeiam a relação de
ambas as questões, o estado de coisas que mantém unidas entre si ambas as questões e
sustenta sua relação. Refletir a respeito deste estado de coisas é tarefa do pensamento; isso
na hipótese de que se permanece disposto a perseverar na reflexão de sua questão.
Ser uma questão, mas nada entitativo.
Tempo
uma questão, mas nada temporal
8
.
Em tese, afirma Heidegger nesta conferência: ser uma questão, porém, nada
entitativo; tempo uma questão, porém, nada temporal. Para a realização desta
investigação, tomaremos esta passagem como advertência mas, principalmente, como indicação
do caminho a percorrer. Naturalmente, esta passagem não nos fornece muitos dados, muito
menos uma explicação ou explicitação definitiva, sendo, por isso, mesmo apenas advertência e
6. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 8, p. 78.
7. Cf. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19,
p. 329.
8. Martin Heidegger, Zeit und Sein, in: Zur Sache des Denkens, Tübingen, Max Niemeyer, 1969, p. 4; tradução brasileira:
Tempo e ser, de 1962, in: Conferências e escritos filosóficos, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 457.
5
indicação para a tarefa a cumprir. Como advertência e indicação para a presente investigação a
respeito do tempo, portanto, estas palavras de Heidegger dizem-nos apenas que do tempo deve-se
falar temporalmente, ou seja, é necessário que a fala nasça, provenha, cresça a partir do próprio
fenômeno investigado, a saber, do tempo. Assim, o que é propriamente tematizado na questão do
tempo é o próprio fenômeno do tempo. Dentro de uma perspectiva fenomenológica, então,
abordar filosoficamente o fenômeno do tempo implica descrever o tempo como tempo.
Portanto, o objetivo desta investigação é nos deixarmos encaminhar na questão do tempo,
buscando evidenciar o papel desempenhado pelo tempo no propósito heideggeriano de elaborar
uma ontologia fundamental, o que implica, também, elaborar um conceito de tempo que satisfaça
este propósito. Deixar-se encaminhar, isto é, deixar-se introduzir no pensamento de Heidegger
significa movimentar-se nesta questão de maneira a deixar-se conduzir para dentro dos
fundamentos daquilo que neste questionamento é colocado em questão, para dentro do horizonte
em que se movimenta o questionamento heideggeriano.
Wittgenstein escreveu certa vez: Em cada questão filosófica séria a incerteza mergulha até
às raízes do problema. Temos de estar sempre preparados para aprender algo de totalmente
novo
9
. O que provoca este totalmente novo? Heidegger mesmo chama atenção para a
necessidade de, sempre de novo, nos confrontarmos com nossas compreensões cotidianas a
respeito das coisas. Podemos entender, então, que, em relação à compreensão usual e cotidiana
que temos do tempo, é necessário encontrar uma fundamentação teórica suficiente que a
justifique. Contudo, uma situação ainda mais instigante parece impor-se sempre de novo: em
nossas ocupações cotidianas sempre sabemos o que é tempo ou, ao menos, pressupomos saber
o que seja. Porém, quando queremos ou gostaríamos de explicá-lo, acabamos nos deparando com
um problema de difícil solução. Wittgenstein, parafraseando a célebre dificuldade agostiniana em
relação ao tempo, descrita no livro XI das Confissões, escreve: Aquilo que sabemos, se ninguém
nos pergunta, mas que já não sabemos mais, se queremos explicá-lo, é algo que devemos pensar.
(E, obviamente, é algo que, por um motivo qualquer, dificilmente pensamos.)
10
.
Sendo a presença o ente primordialmente temporal, trata-se de investigar com rigor este
ente em seu modo de ser. O que se procura, então, é despertar para a experiência de um caminho,
ou seja, a questão do tempo enquanto problema central da hermenêutica fenomenológica
heideggeriana. No fenômeno do tempo é preciso compreender a tese segundo a qual, o conceito
vulgar do tempo brota da temporalidade da presença, uma vez que, segundo Heidegger, a
9. Ludwig Wittgenstein, Anotões sobre as cores, Lisboa, Edições 70, 1987, n. 15, p. 17.
10. Cf. Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas, Petrópolis, Vozes, 1996, p. 65: Quid est ergo tempus? Si nemo ex
me quaerat, scio; si quaerenti explicare velim, nescio (Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicá-lo a quem me
fizer a pergunta, já o sei.) Cf. Santo Agostinho, Confissões, Bragança Paulista, Edusf, 2006, livro XI, cap. 14, p. 278.
6
caracterização vulgar do tempo, como seqüência de agoras, sem-começo e sem-fim, passageira e
irreversível, surge da temporalidade imprópria e decadente da presença. Em contrapartida, então,
no horizonte da compreensão vulgar do tempo, a temporalidade permanece sempre inacessível
11
.
Está em jogo, portanto, partindo de uma análise rigorosa da ocupação ou da experiência cotidiana
do tempo, demonstrar como se constitui a temporalidade da presença em sua originalidade
própria e finita. Com efeito, assim pensa Heidegger, a interpretação vulgar do tempo encobre a
constituição ekstática e horizontal da temporalidade originária e, desse modo, tende a
permanecer nivelada por esse encobrimento
12
. Numa interpretação de Platão, Heidegger ensina:
É preciso acolher este caminho. Ele conduz à antiga sentença hermenêutica de que, ao
interpretar, é necessário ir do claro para o escuro
13
. Esta idéia, ir do claro para o escuro,
poderia ser parafraseada por estas: do tempo sabido para o tempo o-sabido, do tempo
derivado para o tempo originário, do tempo ocupado para a temporalidade da presença
14
.
Assim, vê-se que, na investigação a que nos propomos empreender, é necessário nos
familiarizarmos com o modo de pensar heideggeriano. Numa primeira aproximação, é necessário
aprender a distriguir modos e níveis ônticos e ontológicos em que Heidegger se movimenta em
suas análises do fenômeno do tempo. Uma série significativa de palavras entra em cena nas
análises realizadas pelo pensador. Palavras como agora (jetzt), antes (zuvor), contado
(Gezählte), então (dann), futuro (Zukunft), outrora (damals), passado
(Vergangenheit), presente (Gegenwart), agora (Jetzt), agora-agora (jetzt-jetzt),
agora-ainda-não (Noch-nicht-jetzt), agora-não-mais (Nicht-mehr-jetzt), aguardar (Gewärtigen), a
pouco, ainda-não (Soeben-noch-nicht), atualidade (Gegenwart), atualizar (Gegenwärtigen),
conceito de tempo (Zeitbegriff), contagem do tempo (Zeitrechnung), contar com o tempo
(Rechnen mit der Zeit), ekstases (Ekstasen), fluxo contínuo de agoras (kontinuierlichen Jetzt-
Flusses), fluxo temporal (Zeitfluß), impropriedade (Uneigentlichkeit), intratemporalidade
(Innerzeitlichkeit), lapso de tempo (Gespanntheit), logo não mais (Sofort-nicht-mehr), porvir
(Zukunft), possibilidade de datação (Datierbarkeit), propriedade (Eigentlichkeit), representação
vulgar do tempo (vulgäre Zeitvorstellung), reter (Behalten), sempre já (immer schon), seqüência
de agoras (Abfolge der Jetzt, Folge der Jetzt ou jetzt-Ablauf), significância (Bedeutsamkeit),
tempo (Zeit), tempo ocupado (besorgte Zeit), tempo do mundo (Weltzeit), tempo público ou
fazer-se público do tempo (Öffentlichkeit), tempo-agora (Jetzt-Zeit), temporal (zeitlich),
Também Edmund Husserl, Lições para uma fenomenologia da conscncia interna do tempo, Lisboa, Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1994, p. 37.
11. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 81, p. 523.
12. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 81, p. 518-519.
13. Martin Heidegger, Platons: Sophistes, Frankfurt am Main,Vittorio Klostermann, 1992, p. 11.
14. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 77, p. 490-497 e Françoise
Dastur, Heidegger e a queso do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, p. 115-116.
7
temporalidade (Zeitlichkeit), temporalização (Zeitigung), vigor de ter sido (Gewesenheit), dentre
muitas outras, perfazem um conceituário bastante amplo no qual Heidegger se movimenta na
elaboração de seu conceito de tempo como temporalidade originária da presença.
Em todo processo de leitura e interpretação está em jogo, continuamente, conquistar uma
via de acesso adequada ao texto, ou seja, ao problema em questão. No caso desta investigação: o
fenômeno do tempo. Fenomenologicamente lembra-nos sempre de novo Heidegger é no
modo de acesso que se decide se, de fato, nos aproximamos ou apropriamos da experiência vista
e descrita pelo texto. O primeiro passo, portanto, consiste justamente em deixar o autor falar
através dos textos. Todo deixar-falar pressupõe uma disposição de experimentar, isto é, de
refazer e perfazer a experiência descrita pelo pensador nos textos a que nos propomos ler e
interpretar. Tal experiência pressupõe, fundamentalmente, que estejamos na força condutora do
texto, que sejamos capazes de morar no texto de modo que nos provoque a pensar. Tematizar o
tempo a partir de Heidegger não significa, portanto, superar ou ultrapassar sua obra. Trata-se de
re-fazer a experiência descrita no e pelo texto. Experiência (Erfahrung) de leitura e interpretação
fenomenológica pressupõe que sejamos movidos por um interesse bem-determinado, qual seja:
morar no texto o tempo necessário de modo a deixar o texto falar disso de que e como fala. Está
nisso também a justificativa para o aparente excesso de citações, transcrições e trechos
traduzidos por nós
15
.
A partir do que temos exposto, percebe-se que não se trata meramente de descobrir
pensamentos novos em Heidegger. A novidade consiste em nos ocuparmos novamente com a
temática do tempo, acolhendo o pensamento pensado pelo pensador e, aturando (suportando) o
pensamento que acolhemos, podermos desenvolver (elaborar), ao nosso modo, o pensamento de
Heidegger desde a intimidade que lhe é própria. Por essa razão, a presente investigação retira a
epígrafe nas palavras do próprio pensador:
A originalidade do pensar não está em descobir os novos pensamentos. A originalidade
própria do pensar esna força de se acolherem pensamentos pensados, de se aturar o que
se acolhe, e se desenvolver o que se atura no recôndito de sua intimidade. É então que os
pensamentos alcançam por si mesmos o nível a que pertencem, ao que chamo o
originário’”
16
.
O que é o tempo? Esta pergunta foi colocada pela redação do semanário alemão Die Zeit
aos seus leitores pela ocasião dos 10 anos de sua existência. Em 23 de fevereiro de 1956 o
semanário imprimiu, no número 8, página 14, também a resposta de Martin Heidegger:
O que é o TEMPO? É de se pensar que o autor de Ser e tempo o saiba. Porém, ele não o
15. Citações de obras cuja edão o corresponde à ngua portuguesa foram traduzidas por s para a elaborão deste
trabalho.
16. Martin Heidegger, Zum 80. Geburtstag von seiner Heimatstadt Messkirch, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann,
1969, p. 33-34. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão: Uma palavra de agradecimento, publicada na revista Cultura
Vozes, Homenagem a Heidegger, Petpolis, ano 71, n. 4, 1977, p. 329-331.
8
sabe, de modo que, mesmo hoje em dia, ainda pergunta. Perguntar significa: dar ouvido
àquilo que sempre de novo nos fala. A obediência à atualidade daquilo que se põe em
movimento, tanto no mais próximo como no mais distante, no andar histórico de nossa
época, parece-me ser uma atitude corajosa, prudente e fecunda do semanário O TEMPO.
Alegro-me pela ocasião de poder agradecer, através destas linhas, por muitos
posicionamentos importantes e esclarecedores e pela confiança no caminho trilhado. O
interesse vivo no trabalho realizado pelo semanário possa crescer silenciosamente em toda a
parte
17
.
O propósito deste trabalho, portanto, é ver e entender como Heidegger elabora seu próprio
conceito de tempo a partir de uma interpretação peculiar da presença humana (menschliche
Dasein), tendo em vista, também, a elaboração de uma ontologia fundamental. A tematização
heideggeriana revela que o tempo não é nem objetivo, nem subjetivo. Sua tematização do tempo é
uma tematização ontológica, razão pela qual está relacionada com a questão pelo sentido do ser.
Tendo a hermenêutica fenomenológica como método de investigação, Heidegger mostra que o
tempo cada vez e sempre se enquanto modos próprios ou impróprios de temporalização.
Na elaboração do conceito de tempo heideggeriano é preciso ver e entender como ele
fundamenta e descreve a temporalidade originária, a ocupação cotidiana do tempo e a origem do
conceito vulgar de tempo. A interpretação vulgar do tempo encobre a constituição ekstática e
horizontal da temporalidade originária e, desse modo, tende a permanecer nivelada por esse
encobrimento.
Do ponto de vista do percurso e da estrutura, este trabalho norteia-se pela analítica
existencial e temporal realizada em Ser e tempo e em algumas obras da juventude. O trabalho é
composto de três capítulos: 1) As primeiras elaborações heideggerianas do conceito de tempo, 2)
As estruturas fundamentais do modo de ser da presença, 3) A temporalidade como sentido
ontológico da cura. Pelo encaminhamento dado ao longo dos capítulos, caminha-se num sentido
inverso ao proposto pelo título. Parte-se do subtítulo, A elaboração heideggeriana do conceito de
tempo, em direção ao título, A temporalidade da presença. Entendemos que o contrário não
seria possível, uma vez que, para ver e entender como Heidegger elabora seu conceito de tempo,
enquanto temporalidade originária da presença, pressuposto está o caminho percorrido na analítica
existencial. Desse modo, o primeiro capítulo assume a tarefa de visualizar a tematização do tempo
na aula de habilitação, em Friburgo (1915), e na conferência de Marburgo (1924). O segundo e
terceiro capítulos, tendo por guia Ser e tempo e Os problemas fundamentais da fenomenologia,
objetivam, de um lado, apresentar as estruturas fundamentais do modo de ser da presença
(analítica existencial) e, de outro, a partir dos modos de temporalização do tempo, evidenciar a
temporalidade como sentido ontológico da cura (analítica temporal). Deve-se mostrar, assim, que a
17. Martin Heidegger, Aus der Erfahrung des Denkens, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 2002, p. 131 e 248. Cf.
também Martin Heidegger e Medard Boss, Seminários de Zollikon, Petrópolis: Vozes; São Paulo: ABD/EDUC, 2001.
9
temporalidade mesma é uma explicitação de três teses que perpassam Ser e tempo: a essência da
presença revela-se como existência, a cura mostra-se como ser da presença, e a temporalidade
estrutura-se como sentido ontológico da cura. Com efeito, este trabalho objetiva mostrar o
significado fenomenológico dessas teses a partir da análise do fenômeno do tempo.
Por fim, apenas uma advertência: nosso objetivo o consiste em descrever ou
circunscrever eventuais aspectos bibliográficos ou biográficos de ou sobre Heidegger. Assim,
seguindo o modo de pensar de Heidegger, não melhor orientação a não ser investigar apenas
aquilo que pertence propriamente ao fenômeno do tempo. Nessa direção, é fundamental que se
reconheça a obra pelo pensamento ou o pensamento pela obra e não a vida pela obra ou a obra
pela vida. Sendo nossa intenção filosófico-fenomenológica, devemos deixar-nos conduzir e
introduzir para dentro do pensamento de Heidegger. O decisivo, portanto, é manter-se no círculo
em que se move o pensamento deste pensador, na espera de, estando a caminho do tema
investigado, o seu pensamento nos comova em nossa própria existência investigativa. Carneiro
Leão escreveu, certa vez, num artigo sobre Heidegger, palavras que podem conduzir-nos na
investigação:
Todo pensamento procede de um núcleo de identidade... Mas nesta identidade não esem
jogo uma verdade imutável, a ser dita e possuída de uma vez para sempre. Está em jogo uma
verdade a ser sempre de novo conquistada e dita. No dizer de Heidegger, é ein Zu-denkendes
und Zu-sagendes, alguma coisa para se pensar e dizer. Trata-se de algo com o qual e pelo
qual o pensador não cessa de empenhar-se e lutar, o que novamente Heidegger chamou das
strittige des Denkens, o contencioso do pensamento
18
.
18. Emmanuel Carneiro Leão, O pensamento de Heidegger no sincio de hoje, in: Cultura Vozes, Homenagem a
Heidegger, Petrópolis, ano 71, n. 4, maio 1977, p. 285-286.
10
CAPÍTULO 1
AS PRIMEIRAS ELABORÕES HEIDEGGERIANAS DO CONCEITO DE TEMPO
Tematizar o tempo a partir de Heidegger não significa fazer uma abordagem sob este ou
aquele ponto de vista, comparar conceitos de tempo deste ou daquele pensador. Está em jogo
assumir o tempo como questão e pensá-lo desde seu fundamento. Está em jogo compreender o
tempo como tempo desde a facticidade da presença humana (menschliche Dasein), o que
significa tematizar o tempo como problema ontológico fundamental. De fato, a partir da
ontologia fundamental, proposta e elaborada por Heidegger, o tempo é tematizado de uma
maneira toda peculiar e inovadora. Daí o objetivo inicial de Heidegger de fundamentar o conceito
de tempo desde a analítica da presença humana, na medida em que ela, antecipadamente, cada
vez e sempre conta e se ocupa de algum modo com o tempo na cotidianidade, sendo, por isso
mesmo, um ente primordialmente temporal
19
.
O propósito deste primeiro capítulo consiste em mostrar como Heidegger, desde cedo, se
ocupa com a elaboração temática do conceito de tempo. Caberá ver e entender também por que,
segundo Heidegger, ao longo da tradição metafísica ocidental, o tempo nunca foi tematizado
desde a analítica existencial e temporal da presença humana. Este capítulo tem, ainda, a
finalidade de circunscrever a abrangência e os limites da tematização heideggeriana do tempo, ou
seja, o tempo enquanto questão e como esta questão, além de estar relacionada à questão do
sentido do ser é, também, uma das questões fundamentais do pensamento de Heidegger.
De fato, somente a partir de uma cuidadosa analítica existencial da presença humana será
possível compreender por que e em que medida as tematizações tradicionais do tempo diferem
essencialmente da tematização proposta por Heidegger. Ele próprio é enfático ao afirmar que a
temporalidade da presença é uma abordagem totalmente singular e inovadora
20
. É preciso
reconhecer, porém, que Heidegger não se fora da tradição metafísica ocidental e do modo
como esta tematizou o tempo, mas procura radicalizá-la, procura aprofundá-la, tendo a
fenomenologia como método de investigação
21
.
Duas tarefas devem ser cumpridas neste primeiro capítulo: a) delimitar, em linhas gerais,
como algumas conceituações de tempo foram concebidas ao longo da tradição metafísica
19. Contar com o tempo e contar o tempo são modos pelos quais o tempo é compreendido pré-cientifica ou pré-
ontologicamente, carecendo pois de uma necessária tematização.
20. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, principalmente §§ 4, 5, 7C, 9 e
10. Cf. também Françoise Dastur, Heidegger e a questão do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, p. 32 e 55s; Ernildo
Stein, Nota do tradutor, in: Conferências e escritos filoficos, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 201-202; João A. Mac
Dowell, A gênese da ontologia fundamental de M. Heidegger, São Paulo, Edições Loyola, 1993, principalmente capítulo
IV, segunda parte, A queso do sentido de ser como ontologia fundamental, p. 179-186.
21. Cf. Gilvan Fogel, Hegel e a identidade. Heidegger e a direfea, in: Cultura Vozes, ano 69, volume LXIX, n. 4, maio
1975, p. 271-278.
11
ocidental e sua conseqüente repercussão nas investigações fenomenológicas de Heidegger; b)
circunscrever o modo pelo qual Heidegger elabora seu próprio conceito de tempo. Para cumprir
estas duas tarefas, serão desenvolvidos os seguintes tópicos: 1. O modo próprio da investigação
filosófica; 2. A dupla tarefa na elaboração da questão do ser; 3. A possibilidade de uma
fenomenologia do tempo; 4 Ser e tempo: uma primeira aproximação fenomenológica; 5. A
interpretação heideggeriana das principais tematizações tradicionais do tempo; 6. As primeiras
elaborações heideggerianas do conceito de tempo antes de Ser e tempo: a) A aula de habilitação
O conceito de tempo na ciência histórica (Friburgo, 1915) e b) A conferência O conceito de
tempo (Marburgo, 1924).
1.1
O
MODO PRÓPRIO DA INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA
Na intenção de circunscrever o modo próprio em que que investigação filosófica se
movimenta, vejamos o que Heidegger escreve no livro O que provoca pensar?:
O que provoca pensar? O que provoca nadar, por exemplo, não conhecemos através de
um tratado do que seja nadar. O que provoca nadar só nos é possível dizer quando saltamos
para dentro do rio. A pergunta o que provoca pensar? não se deixa de modo algum
responder pelo que nos é possível apresentar numa determinação conceptual sobre o pensar
uma definição ou que diligentemente ampliemos seu conteúdo. No que segue nós não
pensamos sobre o pensar. Nós permaneceremos mesmo afastados da mera reflexão que
transforma o pensar em seu objeto. Grandes pensadores primeiramente Kant e depois
Hegel conheceram a esterilidade da mera reflexão, pois tiveram de experimentá-la,
refletindo-a e superando-a
22
.
Não devemos deixar-nos enganar com a aparente simplicidade deste exemplo para
descrever o modo de acesso à filosofia, ao pensamento
23
. Acessar não significa aqui pôr a mão na
maçaneta, abrir a porta e entrar. O acesso -se e acontece num salto. O salto decide-se pelo
impulso tomado
24
. O exemplo do saltar também não deve ser tomado apenas como uma
analogia. Por isso, não devemos desviar-nos da literalidade do significado da palavra saltar
(springen). No rio não se entra aos poucos. Entra-se, saltando. Saltando, já se é e está, no rio
25
.
Porém, o que tem isso a ver com a filosofia, com a tarefa do pensar? Não dá para responder
isso desde a margem, de fora, como curioso, portanto. É preciso fazer, é preciso realizar a
experiência, é preciso saltar. Nesse sentido, todo salto não nega, mas assume a própria condição
22. Martin Heidegger, Was heißt denken?, Tübingen, Max Niemeyer Verlag, 1954, p. 9.
23. Heidegger enfatiza que é possível conhecer os fisofos através de sua introdução à filosofia (Martin Heidegger,
Phänomenologie des religiösen Lebens, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1995, p. 6).
24. Para Ricoeur, na filosofia, não é possível ser introduzido pouco a pouco, como se entrasse de fora pra dentro. Isso
justamente porque, é-se de chofre jogado in media res, como em Hegel, negando a possibilidade de uma introdução à
filosofia que já não seja a própria filosofia, e como em Heidegger para quem a enunciação do esquecimento da questão do
ser, na primeira linha da primeira página de Ser e tempo, vale como esboço de prefácio (Paul Ricoeur, Autrement: lecture
dAutrement quêtre ou au-de de lessence dEmmanuel Levinas, Paris, PUF, 1997, p. 2-3).
25. Para entender isso, ver A alegria dos peixes, publicado por Thomas Merton, A via de Chuang Tzu, Petrópolis, Vozes,
12
de ser
26
. É deixar e fazer com que a forma infinitiva do verbo saltar ganhe determinação
própria enquanto filosofar, enquanto pensar. No caso da tematização ou investigação do tempo
isso significa: é necessário que o fenômeno do tempo seja verbalizado, conceituado. A
propósito, num seminário dirigido por Martin Heidegger e Eugen Fink, sobre o pensamento de
Heráclito, durante o inverno de 1966-67, na Universidade de Friburgo, Heidegger faz a seguinte
advertência: No transcurso do nosso seminário devemos tentar, através da interpretação, alcançar a
dimensão que Heclito requer. Disso resulta, com efeito, a questão: em que medida interpretamos,
isto é, em que medida podemos tornar visível a dimensão de Heráclito desde nosso pensar. A filosofia
só pode falar e dizer, mas não pintar
27
.
A idéia de que a filosofia pode falar e dizer evidencia a necessidade de darmos
atenção especial às palavras nesta investigação. Precisamos determinar exatamente seu sentido,
uma vez que são elas que possibilitam que nos expressemos a respeito do tempo. Em certo
sentido, porém, a tarefa a que nos propomos realizar implica também traduzir a experiência do
pensar de Heidegger para a nossa língua. Embora isso gere uma dificuldade própria, ela não é
certamente a única. Negligenciamos comumente que já sempre estamos a traduzir dentro de
nossa própria língua, dentro da língua materna. Falar e dizer são em si traduzir
28
, ensina
Heidegger num outro texto em que interpreta Parmênides. Em Ser e tempo, ao falar do método
fenomenológico, Heidegger lembra, por isso mesmo, que uma coisa é fazer um relatório
narrativo sobre os entes, outra coisa é apreender o ente em seu ser. Para esta última tarefa não
apenas faltam, na maioria das vezes, as palavras, mas, sobretudo, a gramática’”
29
.
Fazer a experiência do pensar implica estar na cercania, na proximidade, na intimidade, no
meio da coisa procurada, consituindo-se num modo próprio de ser. A este modo próprio de
ser denominamos investigar. In-vestigar significa seguir os vestígios e, nesse sentido, diz
respeito a um modo próprio de procurar. Na língua alemã: suchen, versuchen. Suchen no sentido
de sagire, ou seja, ich suche, gehe einer Sache nach (procuro, per-sigo alguma coisa). A
palavra latina sagire tem o sentido de ter uma grande sutileza de sentidos, ter o olfato
apurado. Investigar quer dizer, pois, seguir os vestígios
30
. A presente investigação sobre o
1999, p. 126-127.
26. Isso revela-se numa estorinha que remonta ao início da experiência do pensar: De Heclito se contam umas palavras,
ditas por ele a um grupo de estranhos que desejavam visitá-lo. Ao aproximarem-se, viram-no aquecendo-se junto ao forno.
Detiveram-se surpresos, sobretudo porque Heráclito ainda os encorajou a eles que hesitavam , fazendo-os entrar com as
palavras: pois também aqui deuses eso presentes’” (cf. Martin Heidegger, Sobre o humanismo, Rio de Janeiro, Tempo
Brasileiro, 1967, p. 86 e Martin Heidegger, Heclito. A origem do pensamento ocidental. gica. A doutrina heraclítica
do lógos, Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1998, p. 22s).
27. Martin Heidegger e Eugen Fink, Heclito, Barcelona, Editorial Ariel, 1986, p. 26 (grifo nosso).
28. Cf. Martin Heidegger, Parmenides, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1992, p. 17-18. Cf. Françoise Dastur,
Heidegger e a questão do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, p. 155-156 e Marcia Sá Cavalcante Schuback, A
perplexidade da presença, in: Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, p. 23.
29. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 7, p. 65.
30. Para a etimologia da palavra investigar, baseamo-nos aqui em Linus Brunner, Die gemeinsamen Wurzeln des
semitischen und indogermanischen Wortschatzes, Berna/Munique, A. Francke, 1969, n. 1015, p. 188 e Gerhard Wahrig,
13
tempo, portanto, coloca-se a tarefa de seguir os vestígios do tempo, do fenômeno do tempo. Com
isso já estamos falando como se o tempo deixasse vestígios. Por enquanto, porém, sejamos
cautelosos, reconhecendo apenas que o fato de experimentarmos cotidianamente que o tempo
passa é já um destes posveis vestígios. Nessa direção, podemos ler o que Carneiro Leão
escreve em Heidegger e a modernidade: a correlação de sujeito e objeto:
Vestígio é anúncio. Indica o que o se mostra em si mesmo, mas se faz representar pelas
referências que de si com a presença de outro. In-vestigar é viajar por dentro do vestígio.
Com as referências, a investigação constrói uma via de acesso para o que se anuncia nos
anúncios de vestígio. Nesse sentido pertencem sempre ao início de uma investigação
exigências preliminares: antes de viajar deve-se definir com suficiente exatidão o ponto de
partida e o ponto de chegada, o caminho e o movimento de passar de um pondo a outro. É
necessário ter bem claro o objetivo deste fazer específico que é investigar. O objetivo
estabelecido no tema determina o método, isto é, o conjunto das decisões sobre o caminho a
seguir, o nível e registro a tomar, os recursos e meios a empregar, o grau e o como fazer.
Decide, sobretudo, do necessário para a viagem chegar ao fim e atingir o objetivo. Pois desta
definição prévia depende tudo: quem investiga, para que, o que, como e onde investigar!
31
.
A partir disso, devemos seguir e orientar-nos pelos vestígios, ou seja, pelos anúncios, pelos
acenos... do tempo. De fato, nisso reside propriamente o ponto de partida e o ponto de chegada, o
início e o fim de nossa investigação. Com efeito, esta investigação busca interpretar o tempo como
tempo, e está voltada, desde o princípio para a coisa mesma, isto é, o tempo. Nossa tarefa
consiste em ver e entender como Heidegger elabora, ou melhor, tematiza, conceitua o tempo.
Porém, ao elaborar, ao tematizar, ao conceituar o tempo, não devemos nem precisamos
abandonar as pré-compreensões que temos do tempo, ou melhor, nas quais operamos ou
nos movimentamos deste ou daquele modo. Ao contrário, faz-se necessário, nesse caso, fazer
uma re-elaboração ou uma re-apropriação positiva do modo como, na ocupação cotidiana,
compreendemos ou pressupomos saber o que seja tempo. Utilizando uma expressão
repetidamente empregada por Heidegger: como numa primeira aproximação e na maior parte
das vezes (zunächst und zumeist) compreendemos ou pressupomos o que seja tempo
32
.
Sem vida, o abandono do comum e corrente e o retorno à interpretão, que se e a si
mesma em questão, é um salto (Sprung). Ora, saltar só pode quem toma o impulso devido. É nesse
impulso que tudo se decide. Pois ele significa que voltamos realmente a investigar, de fato, as
questões
33
, escreve Heidegger em Introdão à metafísica. Nesse sentido, um dos pressupostos
Deutsches Wörterbuch, Munique, Mosaik, 1980, colunas 3519 e 3632-3633. Outra possível etimologia encontra-se na raiz
indo-germânica sag- no sentido de witternd nachspüren; von der Tätigkeit des Jagdhundes, isto é, a ação, a atividade, o
modo de agir... ao modo do cachorro de caça. Daí também a relão com spüren (do antigo-alto-alemão spurian, ou seja,
eine Spur suchen, procurar uma pista, procurar um vesgio, procurar um rastro).
31. Emmanuel Carneiro Leão, Heidegger e a modernidade: a correlação de sujeito e objeto, in: Aprendendo a pensar,
Petrópolis, Vozes, 1992, p. 165.
32. Na analítica temporal, Heidegger faz algumas considerões específicas desta expressão e sua relação com a
temporalidade da presença (cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, § 71, p.
460-462).
33. Martin Heidgger, Introdução à metafísica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 197.
14
elementares nas análises heideggerianas consiste em encontrar a forma fenomenal originária, a
originalidade fenomenal (Ursprünglichkeit des Phänomens) e, assim, pensa Heidegger, qualquer
derivação fenomenal (Ableitung) deve ter uma origem de onde nasce e de onde emerge (entspringt).
Desse modo, uma análise fenomenal que não tiver a orientação adequada pode encaminhar-se
inadequadamente, podendo constituir-se num descaminho. Um modo possível de descaminho
consiste em cometer equívocos ou ainda analisar fenômenos colaterais, pseudofenômenos. Esem
jogo, nesta investigação, em todos os passos, dar um passo para trás, um passo em direção à origem
(Ursprung) do fenômeno do tempo.
À procura da originalidade fenomenal do fenômeno do tempo, Heidegger não se opõe
frontalmente às concepções vigentes ou cientificamente comprovadas como, por exemplo, a teoria
da relatividade de Einstein. Pelo contrário, pela força do próprio fenômeno, ele é levado a
analisar e a criticar fenomenologicamente as concepções tradicionais e sabidas ou
conhecidas do tempo. Tradicionais, entenda-se aqui, na acepção das tematizações filosóficas e
das tematizações científicas do tempo. sabidas ou conhecidas, na acepção do uso e da
ocupação cotidianas do tempo, modos chamados por Heidegger de pré-científicos
(vorwissenschaftlich), razão pela qual fala da necessidade de uma ciência prévia (Vorwissenschaft)
para analisar e descrever o fenômeno do tempo
34
.
A preocupação de Heidegger, na elaborão de um novo conceito de tempo é importante que
se diga isso logo de saída volta-se para a já conhecida divio do tempo passado, presente, futuro.
Fundamentalmente, porém, sua preocupação volta-se para uma apropriação fenomenológica positiva
de como, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o ser humano usa e se ocupa do
tempo e, a partir disso, trata-se de fundamentar ontologicamente como isso acontece.
Na elaboração do conceito de tempo como temporalidade da presença, em sua estrutura co-
originária de porvir (Zukunft), vigor de ter sido (Gewesenheit), atualidade (Gegenwart), revela-se
que o tempo ocupado e o tempo do mundo, como Heidegger os denomina, são modos de
temporalização da temporalidade. Isso porque, assim pensa Heidegger, o modo de compreender
o tempo como pura seqüência de agoras, que vêm e que passam, nasce ou emerge de um modo
de temporalização decadente ou impróprio da temporalidade, transformando-se de tempo finito
em tempo infinito, resultando numa pura seqüência de agoras pontuais sem-começo e sem-fim.
Diante disso, estamos então em condições de ver e entender, embora ainda de modo
totalmente preliminar: de um lado, a temporalidade originária (ursprünglichen Zeitlichkeit) é
constituída co-originalmente como porvir, vigor de ter sido, atualidade, e, de outro, a
intratemporalidade, enquanto dela nasce ou emerge (entspringt) o conceito vulgar de tempo,
15
também se constitui num modo possível de temporalização da temporalidade imprópria. Assim, a
originalidade do tempo revela que o tempo no qual a presença vive cotidianamente e com o
qual se compreende, desse ou daquele modo, é uma evidência ontológica positiva do fenômeno do
tempo, desde que, evidentemente, seja visto a partir da temporalidade originária da presença.
Considerações estranhas e infundadas, poder-se-ia pensar. De fato. Elas sempre serão e
permanecerão estranhas e, por isso, também serão e permanecerão infundadas, enquanto não
demonstrarmos e, por isso mesmo, compreendermos como Heidegger vê o fenômeno do tempo
de forma a elaborar, existencial e ontologicamente, seus próprios conceitos. A caminho de uma
evidenciação da elaboração heideggeriana do fenômeno do tempo encaminha-se a presente
investigação.
1.2
A
DUPLA TAREFA NA ELABORAÇÃO DA QUESTÃO DO SER
Como e de onde vê e entende Heidegger a necessidade de tematizar o tempo? Qual sua
relação com a analítica existencial da presença humana? Responder a estas perguntas significa
compreender o horizonte dentro do qual Heidegger esboça e planeja sua obra capital. Para um
dimensionamento apropriado da posição de Heidegger em relação à tematização do tempo é
importante levar em conta as duas tarefas por ele delineadas na introdução de Ser e tempo. Nos
§§ 5 e 6 apresenta ele o plano geral da obra
35
. Vejamos isso com mais atenção.
Os §§ 5 e 6 pertencem à introdução e constituem a primeira de duas partes do segundo
capítulo, contendo o título As duas tarefas de uma elaboração da questão do ser. Os dois
parágrafos deste capítulo introdutório são intitulados respectivamente: A analítica ontológica da
presença como liberação do horizonte para uma interpretação do sentido do ser em geral5) e
A tarefa de uma destruição da história da ontologia (§ 6)
36
.
Percebe-se que os títulos desses parágrafos são um desdobramento da primeira parte do
título do segundo capítulo. Heidegger propõe-se a elaborar duas tarefas: 1) a realização de uma
analítica da presença, visando liberar o horizonte de uma interpretação do sentido do ser
(temática apresentada no § 5); 2) uma destruição e apropriação fenomenológica positivas da
história da metafísica, entendida por ele como história da ontologia no sentido clássico (temática
apresentada no § 6). Porém, se prestarmos atenção ao esboço da obra, apresentado pelo pensador
34. Cf. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 6; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 8/9-10/11.
35. Para entender o plano inicial de Ser e tempo, convém analisar os §§ 5 e 6 e o esboço do tratado apresentado ao final do
§ 8 (cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, § 8, p. 79-80).
36. A introdão de Ser e tempo contém dois catulos. Cada um dos capítulos foi elaborado em quatro parágrafos. Am
dos §§ 5 e 6, aqui enfocados, os quatro iniciais versam sobre a necessidade, estrutura e primado da questão do ser e os dois
últimos sobre o método e o sumário da investigação.
16
ao final do § 8, percebe-se um nítido nexo entre os §§ 5 e 6 e as duas grandes partes propostas
para Ser e tempo, ou seja, o modo como Heidegger havia projetado e planejado esta obra. Daí
que, no § 8, podemos ler:
A elaboração da questão do ser divide-se, pois, em duas tarefas; a cada uma corresponde a
divisão do tratado em duas partes: Primeira parte: A interpretação da presença pela
temporalidade (Zeitlichkeit) e a explicação do tempo como horizonte transcendental da
questão do ser. Segunda parte: Linhas fundamentais de uma destruição fenomenológica da
história da ontologia, seguindo-se o fio condutor da problemática da temporaneidade
(Temporalität)
37
.
A fim de se ter uma idéia mais clara do que Heidegger compreende sob os tulos dos §§ 5
e 6, é necessário considerar o resumo que se encontra no final do § 8. Vejamos isso através de
um quadro comparativo:
§ 5. A analítica ontológica da presença
como liberação do horizonte para uma
interpretação do sentido do ser em geral.
Primeira parte: A interpretação da presença
pela temporalidade e a explicação do tempo
como horizonte transcendental da questão do
ser.
§ 6. A tarefa de uma destruição da
história da ontologia.
Segunda parte: Linhas fundamentais de uma
destrui
ção fenomenológica da história da
ontologia, seguindo-se o fio condutor da
problem
ática da temporaneidade.
O que se mostra aqui? Vejamos: 1) a tarefa da analítica e/ou interpretação da presença deve
levar necessariamente em conta o tempo, tendo a função de liberar um horizonte de interpretão do
sentido do ser; 2) a tarefa da destruição da história da ontologia orienta-se pela temporaneidade
38
.
Na conferência Que é isto a filosofia?, de 1955, fazendo referência às duas tarefas propostas
em Ser e tempo, Heidegger afirma que toda e qualquer resposta (Antwort) da filosofia é sempre
uma corresponncia (Entsprechung) a aquilo para onde a filosofia es a caminho, isto é, para o
ser do ente. Na mesma conferência, fazendo refencia explícita ao § 6 de Ser e tempo, enfatiza:
37. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 8, p. 79-80. A temporaneidade
(Temporalität) foi especificamente tratada por Heidegger no volume 24 das obras completas: Die Grundprobleme der
Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, §§ 20 e 21, p. 389-452, intitulados respectivamente:
Temporalidade e temporaneidade e Temporaneidade e ser.
38. Como já foi apontado em nossa introdução, a investigaçãoo se ocupará com o tema da temporaneidade, embora faça
parte do projeto inicial de Ser e tempo (cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes,
2006, § 8, p. 79-80). O tema da temporaneidade é considerada por Heidegger um problema específico, como segue: Daqui
surge uma problemática específica relacionada com a temporalidade. s a designamos como a problemática da
temporaneidade. O termo temporaneidade o coincide com o da temporalidade, embora seja apenas sua tradução. Ela
significa a temporalidade na medida em que se transforma em tema como condição de possibilidade da compreeno do ser
e da ontologia como tal. O termo temporaneidade deve mostrar que, na analítica existencial, a temporalidade representa o
horizonte do qual compreendemos o ser. Aquilo pelo qual perguntamos na analítica existencial, a exisncia, mostra-se
como temporalidade, e constitui, de sua parte, o horizonte para a compreensão do ser, compreeno que pertence
essencialmente à presea (Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1975, p. 323-324).
17
Este caminho para a resposta à nossa questão não representa uma ruptura com a história,
nem uma negação da história, mas uma apropriação e transformação do que foi transmitido.
Uma tal apropriação da história é designada com a expressão destruição. O sentido desta
palavra é claramente determinado em Ser e tempo (§ 6). Destruição o significa ruína, mas
desmontar, demolir e pôr-de-lado a saber, as afirmações puramente históricas sobre a
história da filosofia. Destruição significa: abrir nosso ouvido, tor-lo livre para aquilo que
na tradição do ser do ente nos inspira. Mantendo nossos ouvidos dóceis a esta inspiração,
conseguimos situar-nos na correspondência.
Mas enquanto dizemos isto, j
á se anunciou uma objeção. Eis o teor: Será primeiro
necessário fazer um esforço para atingirmos a correspondência ao ser do ente? Não estamos
nós homens já sempre numa tal correspondência, e o apenas de fato, mas do mais íntimo
de nosso ser? Não constitui esta correspondência o traço fundamental de nosso ser?
Na verdade esta é a situação. Mas se a situação é esta, então não podemos dizer que
primeiro nos devemos situar nesta correspondência. E, contudo, dizemos isto com razão.
Pois, nós residimos (halten uns auf), sem dúvida, sempre e em todo parte, na
correspondência ao ser do ente; entretanto, raramente somos atentos à inspiração do ser.
Não dúvida que a correspondência ao ser do ente permanece nossa morada (Aufenthalt)
constante. Mas só de tempos em tempos ela se torna um comportamento (Verhalten)
propriamente assumido por nós e aberto a um desenvolvimento. Só quando acontece isto,
correspondemos propriamente àquilo que concerne à filosofia que está a caminho do ser do
ente. O corresponder ao ser do ente é a filosofia; mas ela é somente então e apenas então
quando esta correspondência se exerce propriamente e assim se desenvolve e alarga este
desenvolvimento. Este corresponder se dá de diversas maneiras, dependendo sempre do
modo como fala o apelo do ser, ou do modo como é ouvido ou não ouvido um tal apelo, ou
ainda do modo como é dito e silenciado o que se ouviu. Nosso encontro pode dar
oportunidade para meditar sobre isso
39
.
Se prestarmos atenção ao teor desta passagem, percebemos que reaparece nela o que
Heidegger propunha no tratado de 1927. No âmbito da conferência mencionada, as duas tarefas
são descritas da seguinte maneira: 1) o ser humano (enquanto Dasein) sempre já está relacionado
com o ente, fato que constitui o traço fundamental de seu modo de ser; subentende-se, então e
por isso mesmo, a necessidade de se fazer uma analítica ontológica da presença, de modo a
liberar a essência deste ente; 2) o confronto com a história da metafísica tradicional não
significa ruptura ou negação dela, mas uma apropriação e transformação do que foi
transmitido, isto é, está em jogo ver e entender como, ao longo da tradição metafísica ocidental,
o ser foi compreendido e tematizado
40
.
Em Ser e tempo, Heidegger propõe-se realizar isso através de duas tarefas. Vejamos
novamente, através de um quadro, o que acabamos de dizer, comparando o conteúdo dos títulos
dos dois parágrafos, mencionados, com a explicação dada pelo filósofo na conferência de
1955:
39. Martin Heidegger, Que é isto a filosofia?, São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1971, p. 33-34; para entender a
dimensão das duas tarefas a que o pensador se propunha; tamm Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf;
Petrópolis: Vozes, 2006, § 5, p. 52-57 e § 6, p. 57-66.
40. Cf. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, §§ 7
ao 18, p. 35-320, onde Heidegger reduz a quatro as principais teses tradicionais do ser.
18
§ 5. A analítica ontológica da presença
como liberação do horizonte para uma
interpretação do sentido do ser em geral.
Pois, nós residimos (sich aufhalten), sem
d
úvida, sempre e em toda a parte, na
correspond
ência ao ser do ente; entretanto,
só raramente somos atentos à inspiração
do ser. Não dúvida que a
correspond
ência ao ser do ente permanece
nossa morada (Aufenthalt) constante.
§ 6. A tarefa de uma destruição da história
da ontologia.
Destruição significa: abrir nosso ouvido,
torná-lo livre para aquilo que na tradição
do ser do ente nos inspira. Mantendo
nossos ouvidos d
óceis a esta inspiração,
conseguimos situar-nos na
correspond
ência.
Evidencia-se aqui, segundo o plano inicial de Ser e tempo, que Heidegger tinha em vista
dar conta de duas tarefas, a saber: 1) fazer uma analítica ontológica (do modo de ser) da
presença, tendo em vista a liberação do horizonte de uma interpretação do sentido do ser em
geral; 2) realizar uma destruição da história da ontologia tradicional. Tanto analítica quanto
destruição, porém, têm sentido fenomenologicamente positivo e apropriador. Ambas as tarefas
estão relacionadas uma à outra, isto é, o modo de ser do ente chamado presença (Dasein) e o
perfazer-se da história da metafísica constituem uma só e mesma realidade fundamental, sendo
uma a face da outra. Embora ainda seja vago e indeterminado, pode-se dizer que só história
onde a presença acontece e se realiza. Pertence à presença um modo próprio de historiar-se,
denominado por Heidegger de historicidade
41
.
Assim, na tarefa de destruir a história da ontologia ou, como Heidegger mesmo diz,
de abrir nosso ouvido e torná-lo livre para aquilo que na tradição do ser do ente nos inspira
está implicada também a tarefa de realizar uma analítica ontológica da presença que,
segundo o pensador, permanece nossa morada constante. Fica evidenciado, então, que a
colocação da questão do ser pressupõe a realização de duas tarefas. Elas correm paralelas uma à
outra, estão imbricadas uma na outra, se pertencem e complementam
42
. A segunda tarefa,
idealizada por Heidegger no plano inicial de Ser e tempo, só é realizada de uma maneira indireta
e implícita, uma vez que a segunda parte do tratado deveria ocupar-se mais detidamente com a
destruição da história da metafísica e que Heidegger não levou a cabo
43
.
41. Cf., no terceiro capítulo, o tópico Temporalidade e historicidade.
42. Cf. João A. Mac Dowell, A nese da ontologia fundamental de M. Heidegger, São Paulo, Edições Loyola, 1993, p.
179-186.
43. Para Ernildo Stein, deve-se procurar um desdobramento maior nas preleções de 1927, intituladas posteriormente de Os
problemas fundamentais da fenomenologia, principalmente no que diz respeito à terceira seção, do plano inicial de Ser e
tempo, apresentado ao final do § 8 (cf. Ernildo Stein, Seis estudos sobre Ser e tempo, Petrópolis, Vozes, 1990, p. 39-40).
19
Podemos perguntar-nos, então, o que a elaboração das duas tarefas, propostas por
Heidegger, têm a ver com a temática do tempo por nós investigado? De fato, nossa tentativa de
circunscrever o âmbito do e no qual Heidegger e entende o fenômeno do tempo não pode
passar de uma mera citação de textos e compará-los entre si. Deve-se, sobretudo, conquistar uma
evidência. É preciso ver e entender como e a partir de onde Heidegger concebe e projeta sua obra
capital em duas grandes tarefas a serem executadas, as quais correspondem também às duas
partes mais amplas do plano inicialmente proposto. Do modo como ele as havia concebido e
projetado inicialmente em Ser e tempo, cada uma das tarefas seria desenvolvida em três seções
distintas
44
. Do plano original de Ser e tempo, conforme é apresentado no final do § 8, e que
deveria ser composto de duas partes, contendo cada uma três seções, apenas as duas primeiras
seções da primeira parte foram elaboradas e puplicadas no ano de 1927. Segundo uma
observação incluída à sétima edição de Ser e tempo, de 1953, o autor esclarece: A indicação
primeira metade, contida nas edições até aqui, foi suprimida. Após um quarto de século, não se
pode acrescentar a segunda metade sem se expor de maneira nova a primeira. Entretanto, o seu
caminho permanece ainda hoje um caminho necessário sempre que a questão do ser tiver que
mobilizar a nossa presença
45
.
Diante da exposição feita até aqui, muitas perguntas instigantes podem ser colocadas: O
que significa analítica ontológica da presença? O que significa horizonte de interpretação do
sentido do ser em geral? O que significa fazer uma interpretação da presença pela
temporalidade? O que significa explicar o tempo como horizonte transcendental da questão do
ser? O que significa fazer uma destruição fenomenológica da história da ontologia? O que
quer dizer temporaneidade? Que papel desempenham as duas tarefas em relação à
elaboração da questão do ser? Que questão é esta: a questão pelo sentido de ser? O que
significa tematizar o tempo pela temporalidade desde a analítica existencial da presença? O que
significa temporalidade da presença? Todas estas parecem ser perguntas importantes na
tematização heideggeriana do tempo ou, já antecipando uma formulação propriamente
heideggeriana, da temporalidade da presença.
Percebe-se que, por detrás de uma análise e comparação preliminar de textos ocultam-se
perguntas fundamentais com as quais temos necessariamente de confrontar-nos a fim de
conquistar uma devida compreensão do tema investigado. Ao conjunto dos questionamentos
44. Para uma noção do plano inicial, contendo duas partes com três seções cada uma, é indispenvel confrontar o contdo
dos §§ 5 e 6 com o sumário constante ao final do § 8 (cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf;
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 52-65 e 79-80). Segundo Ernildo Stein, ao menos três obras contêm em grande parte as análises
realizadas em Ser e tempo: a conferência O conceito de tempo, de 1924, e os volumes 20 e 24 das obras completas, a saber,
Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs e Die Grundprobleme der Phänomenologie, que reúnem prelões dadas pelo
pensador nos anos 1925 e 1927 (cf. Ernildo Stein, Seis estudos sobre Ser e tempo, Petrópolis, Vozes, 1990, p. 27-47).
45. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, p. 33.
20
assim colocados chamamos nós de problemática do tempo. Embora ainda vago e indeterminado,
podemos dizer que esta problemática aponta na direção de uma tematização fenomenológica do
tempo como temporalidade da presença.
Isso leva-nos à necessidade de determinar o sentido da palavra problema para a presente
investigação. Problema (Problem) e problemática (Problematik) são palavras bastante usuais nos
textos de Heidegger. Seu emprego, porém, não tem o sentido de problema como é o caso em que
são comumente empregadas no âmbito de ciências positivas como matemática, física, química,
biologia e antropologia
46
. Com efeito, num de seus livros Heidegger afirma: Mas, com a nossa
questão, colocamo-nos fora das ciências e o saber a que a nossa questão aspira não é nem melhor,
nem pior mas completamente diferente. Diferente das ciências, mas também diferente daquilo a
que se chama uma concepção de mundo’”
47
. Pois, enquanto nestas ciências, por exemplo, a
palavra problema supõe e suscita uma dificuldade que requer um tratamento ou uma
abordagem em vista de solução, o mesmo não ocorre no âmbito da filosofia. Na filosofia não
se busca resolver problemas, mas colocá-los (stellen) adequadamente.
Mesmo porque, em sentido grego, a palavra pro-blema possui outro significado. Pro-blema é
uma palavra composta como, por exemplo, pro-cedência, pro-gramação, pro-clamação, pro-dução,
pro-gresso. Pro-blema provém de pro-bavllw e significa, propriamente, lançar diante de, jogar
para a frente, arremessar à frente. Tem o sentido de apresentar, expor ou colocar uma questão
(eine Frage stellen)
48
. Na colocação da questão pelo sentido do ser, Heidegger entende que, na
medida em que sempre de novo é colocada, é também transmitida e legada para as gerações
vindouras mas, principalmente, chega até nós e nos atinge em nossa própria existência. De fato, o
problema do tempo, assim parece, não é um problema qualquer. Porém, como entender então
problema ou problemática na elaboração heideggeriana do conceito de tempo?
Em Der Satz vom Grund, Heidegger escreve que Vorwurf é propriamente a tradução
literal da palavra grega provblhma
49
. Vor-wurf significa pro-jeto e vor-werfen, pro-
46. Para outras considerações, cf. entrevista concedida a Richard Wisser em 24 de setembro de 1969 e transmitida pelo
canal 2 da televisão ale, onde Heidegger diz: A cncia como ciência não pode decidir o que é o movimento, o espaço, o
tempo. A ciência não pensa, ela não pode mesmo pensar nesse sentido com seus métodos (cf. Entrevista concedida por
Martin Heidegger ao professor Richard Wisser, in: O que nos faz pensar. Homenagem a Martin Heidegger por ocaso do
vigésimo aniversário de sua morte, Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-RIO, out. 1996, n. 10, vol. 1, p. 14).
Importante também o § 10 de Ser e tempo, em que o pensador delimita a tarefa da analítica da presença diante de ciências
positivas como a antropologia, a psicologia e a biologia, por exemplo, ficando claro que o problema central de Ser e tempo
não é semelhante a uma queso que se deixa confundir com problemas ao modo dos que são tratados pelas ciências
positivas. Pois estas, ao contrário da filosofia, já precisam necessariamente contar com o que deve ser tratado e investigado.
Wittgenstein diz a este respeito o seguinte: A solão do enigma da vida no espaço e no tempo está fora do espaço e do
tempo. (Não são problemas da ciência natural o que se trata de solucionar) (cf. Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-
philosophicus, São Paulo, Edusp, 1994, n. 6.4312, p. 278-279). Ao dizer que a solução do problema do tempo e do espo
es fora, Wittgenstein quer dizer primeiramente que é possível pensar e investigar este problema a partir de um âmbito
além, isto é, diferente do das ciências positivas. Mas o que quer dizer eno este além, este direfente? É isso ques de
alguma maneira procuramos investigar aqui a partir de Heidegger.
47. Cf. Martin Heidegger, Que é uma coisa?, Lisboa, Edições 70, 1992, p. 21.
48. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 2, p. 40-44.
49. Martin Heidegger, Der Satz vom Grund, Pfullingen, Günther Neske, 1957, p. 148-149.
21
jetar. Desse modo, pro-blema diz algo como: tarefa de apresentar, expor ou colocar
propriamente uma questão enquanto questão, isto é, elaborá-la ou tematizá-la como tal. A
apresentação, exposição ou colocação de uma questão, porém, filosoficamente falando, não tem
em mira a solução do problema, mas suportá-lo, literalmente, agüentar o peso daquilo que ele
carrega consigo. Trata-se, então, de assumir a coisa (do tempo), ou melhor, a causa, a questão e
nela apostar, melhor ainda, nela se postar tenaz e pacientemente.
Ortega y Gasset, filósofo espanhol, disse certa vez que, para que uma investigação tenha
um caráter problemático, precisa satisfazer a seguinte condição:
Para que o pensamento atue tem que haver um problema pela frente e para que haja um
problema tem que haver dados. Se não nos é dado alguma coisa, não se nos ocorreria pensar
nela ou sobre ela; e se nos fosse dado tudo também não teríamos por que pensar. O
problema supõe uma situação intermédia: que alguma coisa seja dada e que a coisa dada seja
incompleta, não se baste a si mesma. Se não sabemos alguma coisa não saberíamos que é
insuficiente, que é falha, que nos faltam outras coisas postuladas pelo que já temos. É isto a
consciência de problema. É saber que não sabemos bastante, é saber que ignoramos. E tal
foi, em rigor, o sentido profundo do saber o não-saber que Sócrates se atribuía como único
orgulho. Claro! Todo o começo da ciência é a consciência dos problemas
50
.
Problemático é, então, o que tem o teor de causa, de questão, ou seja, o que é ao modo de
questão (Frage). Problematizar é propriamente assumir e confrontar-se com a tarefa de expor
ou colocar uma questão fundamental e, também, de fundamentá-la. Isso significa: enquanto
tarefa de elaboração, apresentação, exposição ou colocação da temática do tempo, não , desde
o princípio, a vontade e o desejo de desfazer e anular o caráter problemático do problema, isto é,
de resolvê-lo deste ou daquele modo. Busca-se, tão-somente, entrar no problema, ver e
entender o caráter problemático e, nesse sentido, aprofundá-lo cada vez mais. Portanto, sempre
que nos referirmos ao tempo, está em jogo o fenômeno do tempo enquanto uma ou até mesmo
a questão fundamental do pensamento heideggeriano.
Diante do exposto até aqui podemos dizer que a palavra problema tem o sentido como é
empregada por Santo Agostinho nas Confissões. Ele, ao perguntar pelo tempo, diz: Se ninguém
me perguntar, eu sei; se quiser explicá-lo a quem me fizer a pergunta, já não sei
51
. De fato, toda
vez que queremos dizer clara e distintamente o que seja, torna-se um problema para nós. De
fato, todos nós, de uma maneira ou outra, sempre sabemos ou pressupomos saber o que seja
tempo. E por que isso dá-se desse modo? Porque sempre já esbarrarmos no fato de sermos no
tempo em tudo que fazemos ou deixamos de fazer. Quer dizer, uma das experiências primárias
que fazemos do tempo é de sempre sermos ou estarmos no tempo, ou melhor, que
contamos com ele antecipadamente em tudo que fazemos ou deixamos de fazer. Raras vezes,
porém, ou talvez nunca, somos levados a ocupar-nos com o tempo a ponto de fazer dele
50. Cf. José Ortega y Gasset, Que é filosofia?, Rio de Janeiro, Livro Ibero-Americano, 1961, p. 145.
22
tema ou ocupação a modo de uma investigação. As palavras tema e ocupação têm, pois,
o mesmo sentido, a mesma orientação da palavra problema descrita acima.
Porém, até que ponto o tema do tempo nos toca em nossa existência ao modo de problema,
de questão? É possível que uma tal ocupação problematizadora e questionadora nos entedie e
aborreça e, assim, é até mesmo possível que se apresente sob o modo de uma total perda de
tempo tematizar o tempo. Este não é o caso de Heidegger quando se ocupa com o tema do
tempo e também não é o caso da presente investigação. Com efeito, como seria possível
tematizar o tempo se fosse uma total perda de tempo? Teria algum sentido?
Portanto, em nossa investigação da temática do tempo, problema é sinônimo de questão
(Frage). Enquanto questão, devemos estar a caminho, devemos estar verdadeiramente
interessados no problema, na coisa do tempo. De fato, obedecendo às palavras de Heidegger na
conferência de 1955, anteriormente citadas, devemos preocupar-nos em corresponder
(entsprechen) ao problema que aqui se coloca a modo de investigação.
Desse modo, coloquemos algumas perguntas, objetivando, através delas e a partir do que
foi exposto, corresponder ao questionamento suscitado pelo tempo: Radica-se a problemática
do tempo tão essencialmente na questão pelo sentido de ser como a questão pelo sentido de ser se
radica na questão do tempo? O que é e como deve-se colocar a questão pelo sentido do ser? O
que é e como deve-se colocar a questão do tempo? Urge, portanto, que conquistemos,
investigando, clareza do que e pelo que se questiona como tempo. Mais importante ainda:
devemos, cada vez e sempre de novo, perguntar-nos se já fizemos, mas, principalmente talvez, se
acaso ainda não fizemos as perguntas mais apropriadas e fundamentais em relação ao objeto
investigado. A investigação certamente avançará mais e melhor na medida em que deixar
acompanhar-se desta disposição aberta e livre para o que é questionado e problematizado.
Apesar disso, porém, é possível que uma desconfiança sempre de novo nos acompanhe:
não é a interpretação do fenômeno do tempo, do modo como é realizada por Heidegger, uma
arbitrariedade? Tem ela alguma razão de ser ou é ela uma mera pretensão filosófica de Heidegger
e, conseqüentemente, também, de todo e qualquer investigador de Heidegger? Este tipo de
pergunta revela apenas um equívoco grosseiro, a saber, revela que se está fora da tensão do
questionamento pela temporalidade da presença. Manter a tensão pelo que se questiona é estar de
tal forma aberto e livre para o que se mostra no fenômeno do tempo, de modo que possamos,
seguindo os passos de Heidegger, acolher como ele pensa o tempo, aturar e suportar o que se
51. Cf. Santo Agostinho, Confissões, Bragança Paulista, Edusf, 2006, livro XI, cap. 14, p. 278.
23
acolhe como tempo e, a partir disso, desenvolver o que se atura e suporta do tempo desde o
âmago de sua interioridade
52
.
Assim, somos remetidos cada vez e sempre de novo para novas perguntas como: Desde
onde se justifica uma interpretação do tempo que parte da pressuposição de que o tempo deve
ser visto e entendido como fenômeno? O que quer dizer o tempo se temporaliza? Enfim, o que
é tempo como tempo?
53
Embora ainda muito vago e indeterminado, a formulação tempo como
tempo possui um nexo com o preceito fenomenológico, segundo o qual é preciso ir e ater-se à
coisa mesma. Assim, a coisa mesma do tempo, o que seria? O que significa aqui o como da
coisa mesma do tempo? Estas questões levam à necessidade de determinar a condição de
possibilidade de se falar do tempo enquanto fenômeno, isto é, levam à necessidade de ver e
entender a possibilidade de uma fenomenologia do tempo.
1.3
A
POSSIBILIDADE DE UMA FENOMENOLOGIA DO TEMPO
A investigação fenomenológica do tempo necessita de uma cientificidade própria.
Cientificamente, o método nunca é estranho à própria coisa investigada. A filosofia
fenomenológica, enquanto ciência dos fenômenos, propõe-se a descrever o fenômeno investigado.
Nesse sentido, ela procura fundar e fundamentar as condições de possibilidade de seu próprio saber
e, sobretudo, daquilo que vê e entende. Recorrendo a uma palavra do próprio Heidegger, afirmamos
na introdução que é preciso seguir o caminho que conduz a uma sentença hermenêutica, segundo a
qual, ao interpretar, é necessário ir do claro para o escuro
54
. Esta frase, aplicada ao fenômeno do
tempo assim o dizíamos, pode ser parafraseada: do tempo sabido para o tempo não-sabido,
do tempo derivado para o tempo originário, do tempo vulgarmente ocupado e conhecido para a
temporalidade da presença. O fundamental, por enquanto, é que devemos dar atenção ao fato de
que o fenômeno do tempo, justamente por ser fenômeno, resguarda uma estruturação própria. A
esta estruturação própria poderíamos chamar de fenomenalidade do tempo. Convenhamos, porém, é
ainda muito cedo para falar do tempo desta maneira.
O verbo saber provém do verbo latino scire e significa conhecer. No entanto, o
conhecimento filosófico, ou melhor, fenomenológico, como seria? Segundo a cientificidade que lhe
é própria, a ontologia fenomenológica enquanto hermenêutica fenomenológica não progride já o
havíamos sugerido anteriormente conforme acontece nas ciências positivas. Enquanto as ciências
52. Cf. aqui o conteúdo e sentido da epígrafe de nossa investigação. Título provém de titulus. Titulus significa
inscrição, sobrescrão, epígrafe, isto é, o que vem escrito em primeiro lugar (cf`. Ovídio, Remedia amoris Os
remédios do amor, 302).
53. Cf. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 5; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 8/9.
24
positivas tendem e até mesmo necessitam pro-gredir, à medida que têm clareza de seu objeto, isto
é, de sua posição fundamental (positum), a filosofia hermenêutica ou fenomenológica, de uma
maneira diversa e inversa, tende e até mesmo necessita re-gredir. Nesse sentido, o que falamos
anteriormente de pro-blema não possui o sentido de dar passos progressivos, ou seja, não possui o
sentido evolutivo de dar passos para frente. Porque, na medida em que problematizar significa
colocar a questão, está em jogo entrar na questão e, então, dar um passo para trás, significando
tematização, explicitação, aprofundamento daquilo que norteia e orienta o próprio questionamento.
De certo modo, está em jogo ver e entender e, a partir disso, descrever fenomenologicamente a
originariedade (Ursprünglichkeit) do fenômeno do tempo.
Assim, numa investigação fenomenológica está em jogo a própria maneira de dirigir-se à
coisa investigada e, portanto, é decisivo o modo como nos aproximamos do objeto investigado,
uma vez que o resultado depende de uma apreensão apropriada ou inapropriada da coisa
investigada. O método fenomenológico, segundo Heidegger, implica pôr-se a caminho do que se
pretende ver e entender, sendo, de fato, método (mevtodo"). Fundamentalmente, fenomenologia
diz respeito a um determinado conceito de método. Não significa então, em primeiro lugar,
doutrina, escola ou corrente filosófica. Está em jogo um modo radical de ver e entender e, a partir
disso, descrever o próprio fenômeno. Está em jogo um modo de deixar e fazer ver enquanto
pertence ao movimento de velamento e des-velamento próprio da coisa investigada. Em termos
fenomenológicos isso significa: ser na verdade (aj-lhvqeia), isto é, ver e entender a coisa mesma
no que e como ela é
55
.
Antes de fazer outras considerações, vejamos o que diz Heidegger do método
fenomenológico em Ser e tempo e Os problemas fundamentais da fenomenologia:
A expressão fenomenologia diz, antes de tudo, um conceito de método (Methodenbegriff).
Não caracteriza a qüididade (Was) real dos objetos da investigação filosófica mas o seu modo,
como (Wie) eles o são. Quanto maior a autenticidade de um conceito de método e quanto mais
abrangentemente determinar o movimento dos princípios de uma ciência, tanto maior a
originariedade em que ele se radica numa discussão com as coisas em si mesmas e tanto mais
se afastará do que chamamos de artifício técnico, tão numeroso em disciplinas teóricas
56
.
O todo da ontologia, porém, enquanto método não é outra coisa do que seguimento dos
passos de acesso ao ser como tal e a elaboração de suas estruturas. s designamos este
método ontológico de fenomenologia. Dito de uma maneira mais precisa, a investigação
54. Martin Heidegger, Platons: Sophistes, Frankfurt am Main,Vittorio Klostermann, 1992, p. 11.
55. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 7, p. 66. Cf. Ernildo Stein, Seis
estudos sobre Ser e tempo, Petrópolis, Vozes, 1990, p. 29 e Algumas considerações sobre o todo fenomenológico em
Ser e tempo, in: Revista Brasileira de Filosofia, XXI, n. 88, 1971, p. 111-124. Para Ernildo Stein, o fator determinante e
individualizador do método fenomenológico é a descoberta que Heidegger fez de que existe um primado da tendência para
o encobrimento. Esta convicção do filósofo assume um papel importante na autocompreensão de seu método. Ao invés de
pensar, como Husserl e outros filósofos, de que diante de nós a realidade se estende à espera da rede de nossos recursos
metodológicos que a aprisionem, Heidegger afirma que o homem e o essencial nas coisas tendem para o disfarce ou estão
efetivamente encobertos. Por isso, ele se volta para o como (cf. Ernildo Stein, Algumas considerações sobre o método
fenomenológico em Ser e tempo, in: Revista Brasileira de Filosofia, XXI, n. 88, 1971, p. 116).
56. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 7, p. 66.
25
fenomenológica significa o esforço pelo método da ontologia. [...] A fenomenologia como
tal não existe e se fosse possível que ela existisse, ela nunca se converteria numa espécie de
técnica. Pois na essência de todo e qualquer método adequado está em jogo, enquanto
caminho em prol da abertura dos objetos, orientar-se sempre de novo por eles e pelo que
através deles se abre. Justamente quando um método é adequado, quando consegue o acesso
aos objetos, o progresso idealizado com base nele e a originariedade da descoberta farão
envelhecer necessariamente o método que para isso contribuiu. Pois a única coisa nova e
verdadeira na ciência e na filosofia é apenas o perguntar adequado e o campo auxiliar com a
coisa em questão
57
.
Filosofia enquanto fenomenologia leva em conta e conta com esta necessária possibilidade de
dar cada vez de novo o passo de volta de onde parte, do fundamento, portanto
58
. Em termos
fenomenológicos, avançar na investigação requer que o investigador continuamente se volte para o
fundamento de sua possibilidade investigativa. A rigor, o que orienta é uma determinada concepção
que ele já possui do fenômeno que busca compreender e descrever, sendo necessário sempre de
novo veri-ficar ou a-veri-guar se o que se diz e descreve corresponde à verdade (aj-lhvqeia), ou
melhor, ao que foi visto e entendido no próprio fenômeno. É dentro desse espírito, desse
interesse, ou melhor, desse método que nos movimentamos na tentativa de acompanhar e
compreender as descrições fenomenológicas do fenômeno tempo realizados por Heidegger.
A abordagem do método fenomenológico tem por objetivo esclarecer a idéia ou a
necessidade de ir às coisas mesmas. Heidegger apropria-se de uma maneira peculiar desse
preceito. Ao tratar fenomenologicamente da temática do tempo, por exemplo, diz ele: deve-
se tratar o tempo temporalmente. Nesse sentido, podemos ler ao final da segunda citação
acima: Pois a única coisa nova e verdadeira na ciência e na filosofia é apenas o perguntar
adequado e o campo auxiliar com a coisa em questão. De fato, qualquer tentativa de
compreender o fenômeno tempo, a partir de Heidegger, implica uma compreensão
adequada do método utilizado em suas análises. o considerar isso, minimamente, como
acompanhar, mas, sobretudo, como compreender o que Heidegger vê, entende e descreve
em suas análises? O método fenomenológico, enquanto modo de conduzir a ou deixar-se
conduzir pela fenomenalidade do fenômeno, constitui-se como hermenêutica
fenomenológica ou, como às vezes Heidegger também costuma dizer, como fenomenologia
ontológica.
Com efeito, Heidegger realiza uma fenomenologia hermenêutica do modo de ser do ente
investigado, isto é, da presença. Podemos ver isso no § 7 de Ser e tempo, dedicado à explicitação
do método fenomenológico e, também, nos §§ 8 e 9 de Prolegômenos para a história do
conceito de tempo, que é um dos primeiros cursos de Heidegger em Marburgo e que foi
57. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 22, p.
466-467.
26
ministrado no semestre de verão de 1925
59
. Contemporaneamente, não foi por acaso que
Heidegger lecionou temas também relacionados ao fenômeno do tempo e posteriormente
publicados sob o título Os problemas fundamentais da fenomenologia. Por isso, no § 8 de Ser e
tempo, ele diz:
A fenomenologia é a via de acesso e o modo de comprovação para se determinar o que deve
constituir tema da ontologia. Ontologia é possível como fenomenologia. O conceito
fenomenológico de fenômeno propõe, como o que se mostra, o ser dos entes, o seu sentido,
suas modificações e derivados. [...] Ontologia e fenomenologia não são duas disciplinas
distintas da filosofia ao lado de outras. Ambas caracterizam a própria filosofia em seu objeto e
em seu modo de tratar. A filosofia é uma ontologia fenomenológica e universal que parte da
hermenêutica da presença, a qual, enquanto analítica da existência, amarra o fio de todo
questionamento filosófico no lugar de onde ele brota e para onde retorna
60
.
Ao dizer que o modo de tratar e de acesso não é com nada comparável, equivale, no caso
da presente investigação, a descrever o tempo temporalmente. Isso significa: fazer uma
fenomenologia do tempo implica descrever como tempo se temporaliza. Diante disso, então, é
possível que o tempo não seja nada objetivo. É possível que o tempo não seja nada subjetivo.
Essa relativização não quer dizer, porém, que o tempo seja abstrato. Por enquanto, é possível
dizer apenas que é pouco provável que o tempo seja algo coisal ou entitativo. Por outro lado,
porém, o que dizer, então, em relação a expressões como tempo como tempo, tempo pelo
tempo, tempo é tempo? Certamente não remete e nem significa uma mera tautologia. Nesse
caso, o tempo seria algo em si? E, nesse caso, o que significaria este em si? Mantenhamo-
nos fenomenologicamente cautelosos. Não sejamos apressados demais.
Evidencia-se assim que, ao investigarmos o tempo, caminhamos num campo que
requer rigor investigativo próprio. É fundamental que nos familiarizemos com e
compreendamos os conceitos próprios utilizados por Heidegger em sua tematização do tempo,
em sua elaboração do conceito de tempo. Conceitos próprios, quer dizer então: nascem,
provêm, têm a gênese do próprio fenômeno do tempo. Por esta razão, se, às vezes, em certas
passagens, nossa investigação parecer monótona e maçante, isso deve-se unicamente à
constituição do objeto investigado. Quando e se uma tal aparência tomar conta, então, não se
trata de uma aparência atrás da qual o investigador quisesse esconder algo mais verdadeiro,
algo mais real. De forma alguma. Esta aparência mostra, isto é, põe em jogo uma dificuldade
real, qual seja, a de falar do tempo temporalmente
61
. Apenas isso!
58. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, §§ 3 e 7, respectivamente p. 44s
e 65s.
59. Esta obra que é considerada por alguns estudiosos como a primeira vero de Ser e tempo: Martin Heidegger, History of
the concept of time (Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs), Indiana University Press, Bloomington, 1985, §§ 8 e 9,
p. 75-89. Cf. também Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 7, p. 65-79.
60. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 7, respectivamente p. 75 e 78.
61. Segundo Heidegger, a aparência é tamm um modo possível de mostrar-se, ou seja, há uma relação essencial entre
aparecer e mostrar-se (cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 7,
principalmente p. 67-71 e Instodução à metafísica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 125-141).
27
Nossa dificuldade maior, portanto, parece residir no fato de nos atermos única e
exclusivamente ao fenômeno do tempo, ou seja, como ele é, se constitui, ou melhor, como
se temporaliza. Nisso reside justamente a maior dificuldade, lembra-nos Heidegger sempre de
novo: falar do tempo temporalmente! Mas desde onde isso? Desde a necessidade de nos
mantermos atentos à coisa ela mesma: o tempo. Na tematização do tempo, portanto, é
importante saber obedecer ao fenômeno, a fim de ser possível ver e entender e, assim, ser
possível também descrevê-lo adequadamente
62
.
Porém, a atenção com a coisa mesma implica necessariamente: de um lado, o que (Was) se
quer ver e entender e, de outro, como (Wie) se deve agir para ver e entender o que se quer
compreender. O modo fundamental de acesso está ligado a um devido distanciamento da coisa
investigada. Distanciar-se é colocar-se num lugar próprio da filosofia enquanto fenomenologia.
No entanto e apesar disso, sempre ainda uma dúvida parece impor-se: de onde temos certeza, de
onde sabemos nós estarmos às voltas com a coisa mesma: o tempo?
Aqui apenas uma advertência de caráter metodológico: na tematização heideggeriana do
tempo, dois níveis de investigação precisam ser resguardados: a analítica existencial e temporal
da presença, num primeiro plano e, num segundo, a elaboração de uma ontologia fundamental.
Estes dois níveis revelam, por isso, a necessidade das duas tarefas de uma elaboração da questão
do ser
63
. Porém, é importante não perder de vista que, para Heidegger, os dois níveis de análise
se entrecruzam a todo momento e, nesse sentido, a meta de uma ontologia fundamental
pressupõe a constituição ontológica da presença em modos possíveis de ser e vir-a-ser.
Diante disso, poderíamos perguntar-nos: de onde provém e como se constitui a certeza
do método fenomenológico que investiga o fenômeno tempo? Primeiramente, o é
comparável com a certeza e com o saber da matemática, em que 2 + 2 é sempre,
indubitavelmente, igual a 4; nem é comparável à certeza da química, em que o número atômico
do carbono universalmente é 6 e o número atômico do urânio 92; também não é comparável à
certeza do saber da geometria, segundo a qual um metro corresponde milimetricamente aos
corretos e exatos cem centímetros ou, então, quando muito, transfere-se o mesmo modo de
certeza para uma escala submúltipla, em que o mesmo metro equivale a mil milímetros
64
.
Onde então, desde que lugar deve-se perguntar pela coisa mesma, isto é, tempo, ou
melhor, tempo como tempo? Ora, esta certeza não é uma certeza absoluta, inconcussa, para
sempre posta como certa e que nós, através de alguma artimanha qualquer, pudéssemos alcançar
62. Para pensar, o basta querer. É preciso aprender. E se aprende a pensar, esperando o inesperado. Nesta espera, a
paciência é tudo (cf. Emmanuel Carneiro Leão, Aprendendo a pensar, Petrópolis, Vozes, 1991, epígrafe, p. 5).
63. Cf., acima, o tópico A dupla tarefa na elaboração da questão do ser.
64. Cf. Martin Heidegger, Que é uma coisa?, Lisboa, Edições 70, 1992, p. 29, onde o autor afirma que encontrar o limite da
divisão mecânica ainda não significa encontrar sua esncia, isto é, suaididade.
28
de uma vez por todas. Se fosse assim, então o filósofo não passaria de um mago que, tendo uma
vez descoberto a pedra filosofal do tempo, saberia sua fórmula e, com ela, poderia desvendar
todos os segredos das possibilidades de saber e conhecer a respeito das questões suscitadas em
suas investigações como, por exemplo, a respeito do tempo. No entanto, não é assim que as
coisas acontecem na filosofia e, especificamente, no modo fenomenológico de investigar os
fenômenos.
Diante disso, podemos tirar apenas esta conclusão positiva, a saber, tratar da coisa mesma: o
tempo. Isso implica acessar de modo adequado o próprio objeto investigado. Por isso, es em jogo,
de antemão, saber que a investigação fenomenológica o é um modo possível, mas,
principalmente, privilegiado. Um modo privilegiado de ser da presea, um modo de poder-ser e,
nesse sentido, um modo de ser que co-pensa continuamente a condição de possibilidade daquilo que
se busca tematizar
65
.
O decisivo, portanto, é manter-nos, teimosa e insistentemente, nesse modo próprio que busca
tematizar o tempo temporalmente. Nesse caso, é fundamental estar na devida liberdade e disposição
de deixar continuamente pôr-se a si mesmo em jogo em todos os momentos que a investigação do
tempo requer e impõe. Nessa perspectiva, o decisivo é colocar-se na familiaridade com a coisa
mesma em questão. Somente assim é que se pode alcançar a devida clareza e evidência do
fenômeno do tempo.
Na conferência O conceito de tempo Heidegger adverte: Para corresponder ao caráter
ontológico daquilo que é tematizado aqui, devemos falar do tempo temporalmente
66
. Isso quer
dizer: a tematização do tempo somente ganhará um encaminhamento seguro e adequado se o
modo de acesso lhe corresponder, se o modo de questionar corresponder ao modo de ser do
tempo. Nesse sentido, o preceito fenomenológico de ir às coisas mesmas (zu den Sachen
selbst)
67
é somente um aceno, uma indicação. Investigar o fenômeno do tempo, em sua
peculiaridade fenomenal, requer um modo próprio de investigação.
65. Visualizar, compreender, escolher, aceder a são atitudes constitutivas do questionar e, ao mesmo tempo, modos de ser
de um determinado ente, daquele ente que nós mesmos, os que questionam, sempre somos, afirma Heidegger (cf. Martin
Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 2, p. 42-43).
66. Cf. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 27; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 38/39.
67. Às vezes, associa-se a esta expressão a própria fenomenologia enquanto corrente ou doutrina do conhecimento. E isso
tem sua razão de ser à medida que o próprio Husserl, nas prelões dadas por ele em Göttingen, no ano de 1907, por
exemplo, emprega a expressão como método da crítica do conhecimento. Para ele, a fenomenologia é a doutrina
universal das esncias o que significaria para Heidegger, e como se verá abaixo, qüididades , em que se integra a
ciência da essência do conhecimento (ver Edmund Husserl, A idéia da fenomenologia, Lisboa, Edições 70, 1986, p. 22)
(grifo nosso). No entanto, para o Heidegger de 1927, a fenomenologia não possui este sentido. Possui, antes, o sentido de
método de investigação. É por isso que, para tratar da questão do ser em Ser e tempo, ele irá utilizar-se deste método no
intuito de tratar e elaborar esta questão, fazendo mesmo a seguinte ressalva: Isso, porém, o significa que o tratado não
prescreve um ponto de vista ou uma corrente. Pois, enquanto se compreender a si mesma, a fenomenologia não é e não
pode ser uma coisa nem outra. A expressão fenomenologia diz, antes de tudo, um conceito de método. Não caracteriza a
qüididade real dos objetos da investigação filosófica mas o seu modo, como eles o são (cf. Martin Heidegger, Ser e tempo,
Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 8, p. 79-80).
29
Diante disso, devemos reconhecer que o objeto desta investigação é o fenômeno do tempo ou
o tempo em sua fenomenalidade. Do tempo deve-se falar temporalmente. O modo de falar deve ter
a natureza daquilo mesmo de que se fala. Enfim, a fala não deve ser estranha para si mesma na
medida em que se preocupa em tematizar fenomenologicamente o fenômeno do tempo. Este
fenômeno exige um rigor todo próprio e, portanto, a metodologia não pode ser emprestada de outro
modo de investigar.
Assim, no modo de acesso decide-se se nos aproximamos ou não devidamente do modo
como Heidegger elabora seu conceito de tempo. O primeiro passo, aparentemente simples, mas
talvez um dos mais difíceis, consiste justamente em deixar o autor falar através dos textos que
escreveu, mas, principalmente, é necessário ver e entender o que e como estes textos descrevem
fenomenalmente. Nesse caso, é fundamental ser capaz de ver e entender algo que esteja
previsto e pressuposto no próprio texto. Àquilo que está pré-visto e pré-sub-posto chamamos de
experiência do tempo. Falar de experiência significa falar de uma verdade que se mostra, que
se revela, mas, sobretudo, que, também e constantemente, não se mostra e se vela. Com efeito,
pelo fato de todo verdadeiro deixar-falar pressupor uma disposição de experimentar (erfahren),
isto é, de refazer e perfazer a experiência descrita no e pelos textos de Heidegger que nos
propomos ler e interpretar inicialmente não pretensão alguma de ultrapassá-lo ou superá-lo
mas, apenas ver e entender o tempo desde modos possíveis de temporalização do tempo. É este
o sentido fenomenal pleno da expressão apenas isso!, empregada anteriormente.
Assim, a experiência (Erfahrung) de leitura e interpretação fenomenológica pressupõe,
fundamentalmente, que sejamos movidos por um interesse bem-determinado de morar no texto o
tempo necessário de modo a deixá-lo falar disso de que e como fala. Mas isso ainda não é tudo.
Para onde nos remete o texto, apesar disso? Sabendo que o acesso à experiência do pensar de um
pensador como Heidegger e o modo de interpretá-lo pode dar-se de diversos modos, o decisivo é
que se dê sob um modo concreto. Nesta investigação do fenômeno do tempo almejamos realizar
uma apropriação e uma experiência do modo como Heidegger vê e entende ser o tempo.
Diante disso, podemos afirmar, provisoriamente, o seguinte: a tentativa de tematizar o
tempo a partir do tempo é uma tentativa de interpretar (auslegen) o tempo fenomenologicamente.
Para isso é preciso considerar o tempo como fenômeno. Se nos orientarmos pelo preceito
fenomenológico de ir às coisas mesmas, então, devemos ir ao tempo mesmo. Embora de
uma maneira ainda bastante vaga, devemos ter presente que esta investigação volta-se para o
tempo enquanto temporalidade da presença humanna (Dasein).
Uma coisa importante parece ter se apresentado em nossa caminhada até aqui: o modo de
acesso e de tratar do fenômeno do tempo não é com nada comparável! O modo de acesso e de
30
tratar este fenômeno alimenta-se do próprio modo como se busca compreender a coisa
investigada, vale dizer, o tempo como tempo ou melhor: tempo como temporalidade melhor
ainda: tempo como temporalidade da presença humana. Portanto: deve-se compreender o tempo
temporalmente, ou seja, a partir do quê ele é e como ele é, ou seja, desde o modo ou os
modos de constituição e estruturação da temporalidade propriamente dita
68
.
1.4
S
ER
E
TEMPO
:
UMA PRIMEIRA APROXIMAÇÃO FENOMENOLÓGICA
A partir das considerações feitas até aqui, vê-se a necessidade de fazer uma primeira
aproximação fenomenológica de ser e tempo. A intenção é conquistar uma suficiente clareza
fenomenal destes conceitos. Clareza fenomenal de conceito quer dizer, em última instância, para
que experiência indica o conceito? Por esta razão grafamos tempo entre aspas, esperando que,
oportunamente, pudéssemos mostrar o sentido pré-ontológico que os conceitos ser e tempo
resguardam no uso cotidiano.
Segundo a afirmação de Heidegger em Tempo e ser, indicamos na introdução ser uma
questão, porém, nada entitativo; tempo uma queso, porém, nada temporal. A idéia
condutora, nessa aproximação fenomenogica, é que tanto a ser como a tempo sempre
acompanha uma determinada experiência, um determinado sentido, sendo condição de possibilidade
para qualquer elaboração conceptual propriamente dita. Nossa aproximação fenomenológica partirá
de ser em dirão a tempo.
Diante da necessidade de uma repetição explícita da questão do ser, Heidegger reduz a três
os preconceitos fundamentais da palavra ser legados pela tradição metafísica: 1. Ser é o
conceito mais universal (allgemeinste): toV o[n evsti kaqovlou mavlista pavvntwn (uma
compreensão do ser já está sempre incluída em tudo que se apreende no ente); 2. O conceito de
ser é indefinível (undefinierbar) (conclusão tirada da sua máxima universalidade); 3. O ser é
o conceito evidente por si mesmo (selbstvertändliche)
69
. No contexto em que estes preconceitos
metafísicos tradicionais de ser são analisados, Heidegger pretende mostrar que, por detrás
deles, está encoberta, mas acima de tudo esquecida, a compreensão ou o sentido do ser.
Fazem-se necessários, então, uma repetição e uma devida colocação da questão. De fato, através
da análise destes preconceitos de universalidade, indefinibilidade e mera evidência, o
pensador intenciona preparar o terreno em que se poderá discutir e aprofundar adequadamente a
questão pelo sentido de ser.
68. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 5; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 8/9.
31
Na primeira parte de Introdução à metafísica, intitulada A questão fundamental da
metafísica
70
, Heidegger defronta-se com esta mesma questão. Ele formula a questão assim: Por
que há simplesmente o ente e não antes o nada? Nesta maneira de formular a questão pelo
sentido do ser, embora tenha ali uma feição leibniziana, Heidegger apresenta três razões pelas
quais compreende a dignidade da questão: A questão, por que simplesmente o ente e não
antes o nada?, se constitui para nós na primeira em dignidade antes de tudo por ser a mais vasta,
depois por ser a mais profunda e, afinal, por ser a mais originária das questões
71
.
Heidegger enfatiza que, mesmo que o ser não seja posto em questão e, talvez,
principalmente por isso, fica, por assim dizer, esquecido seu sentido. Daí nasce a necessidade de
questionamento, transformando-se a questão pelo sentido do ser em questão digna de ser
investigada. Heidegger explicita a tríplice dignidade da questão do ser nestes termos: enquanto a
mais vasta (weiteste), a questão cobre o máximo de envergadura. Não se detém a nenhum ente
de qualquer espécie. Abrange todo ente, isto é, não o ente atual no sentido mais amplo, como
também o ente que foi e o que ainda será; enquanto a mais profunda (tiefste), ela procura o
fundo do ente enquanto ente. Procurar o fundo, isso é aprofundar. O que se põe em questão entra
assim numa referência com o fundo; enquanto a mais originária (ursprünglichste), afastamo-
nos inteiramente de qualquer ente particular, enquanto este ou aquele. Intencionamos sim o ente
em seu todo mas sem qualquer preferência
72
. Esta tríplice dignidade refere-se, pois, à questão
por que simplesmente o ente e não antes o nada?, isto é, está relacionada, no caso do
contexto de Ser e tempo, à questão pelo sentido de ser. Para ver isso melhor, vejamos duas outras
passagens, sendo uma da Introdução à metafísica e outra de Ser e tempo:
Por ser a mais vasta e profunda das questões, é também a mais originária. O que se deve
entender por isso? Ao refletirmos sobre todo o âmbito do que se e em questão, o ente
como tal no seu todo, depara-se-nos facilmente o seguinte: Afastamo-nos inteiramente de
qualquer ente particular, enquanto este ou aquele. Intencionamos sim o ente em seu todo
mas sem qualquer preferência. Apenas um dentre eles sempre de novo se insinua
estranhamente: o homem, que investiga a questão
73
.
A questão sobre o sentido do ser é a mais universal e a mais vazia (universalste und
leerste); entretanto, ela abriga igualmente a possibilidade de sua mais aguda singularização
em cada presença. [...] A universalidade do conceito de ser não contradiz a especialidade
da investigação, qual seja, a de encaminhar-se, seguindo a interpretação especial de um ente
determinado, a presença. É na presença que se de encontrar o horizonte para a
compreensão e possível interpretação do ser
74
.
69. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 1, p. 38-39 e Martin Heidegger,
Platons: Sophistes, Frankfurt am Main,Vittorio Klostermann, 1992, p. 447.
70. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 34-37.
71. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 34.
72. Cf. Martin Heidegger, Introdução à metasica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 34-35.
73. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 35.
74. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 8, p. 79. Há numerosos estudos
que buscam compreender o fundamento do título dado por Heidegger à sua obra capital. Entre tais obras está a de George
Steiner, As idéias de Heidegger, Cultrix, São Paulo, 1982, p. 51-52 e 69-70. Nela o autor busca compreender a razão pela
32
A partir do que vem afirmado nestas duas passagens, como poderíamos entender o título
Ser e tempo? No penúltimo parágrafo de Kant e o problema da metafísica, de 1929, intitulado O
objetivo da ontologia fundamental, o pensador revela:
A metafísica da presença, que deve ser realizada na ontologia fundamental não pretende ser
uma nova disciplina, constituindo-se um marco ao lado das que já existem: nela se manifesta
a vontade de despertar a consciência de que o filosofar se realize como transcendência
explícita da presença.
Na explica
ção da idéia de uma ontologia fundamental se esclareceu que, se a problemática
da metafísica da presença se apresentou como Ser e tempo, é a conjunção e deste título que
implica o problema central. Nem o ser nem o tempo têm necessidade de abandonar seu
significado anterior, mesmo que eles necessitem de uma interpretação mais originária que
fundamente seu direito e seus limites
75
.
Em Introdução à metafísica, também enfatiza:
Ser e tempo, porém, é um título, queo se pode equiparar, de forma alguma, às distinções
discutidas. Aponta para uma dimensão de investigação totalmente diferente.
Nele a palavra pensar não é simplesmente substituída pela palavra tempo. Desde o seu
fundamento a essencialização do tempo é determinada segundo outras perspectivas e dentro
unicamente do âmbito da questão do ser
76
.
Ainda, na introdução, de 1949, e acrescentada à preleção Que é metasica?, de 1929,
esclarece:
[...] o tratado Ser e tempo, que tenta o retorno ao fundamento da metafísica, não traz como
título Existência e tempo, também não Consciência e tempo, mas Ser e tempo. Este
título porém, também não pode ser pensado como se correspondesse a estes outros títulos de
uso corrente: Ser e vir-a-ser, Ser e aparecer, Ser e pensar, Ser e dever. [...] Em Ser e
tempo ser não é outra coisa que tempo, na medida em que tempo é designado como pré-
nome para a verdade do ser, pré-nome cuja verdade é o acontecimento (Wesende) do ser e
assim o próprio ser
77
.
Fica patente em todas estas citações que ser e tempo indicam para uma problemática.
Por isso, tratar da problemática implicada em ser e tempo não significa fazer uma
pergunta objetiva nem, muito menos, por assim dizer, uma pergunta mágica, como se fosse
possível acioná-la através de um estalar de dedos. Está em jogo aqui a necessidade de uma
reflexão a respeito do destino histórico da presença humana ser no tempo. Para Heidegger, é
necessário fazer uma crítica fenomenológica da tradição metafísica ocidental sob novos olhos.
Não se trata-se de compreender apenas como esta questão fundante e fundamental perpassa não
só Ser e tempo e atravessa toda tradição filosófico-metafísica ocidental. Está em jogo: a que
qual Heidegger intitula sua obra principal Ser e tempo. Para Steiner, este título já significa em si mesmo um confronto com a
tradição metafísica, a qual o concebeu o ser como sendo simultaneamente temporal.
75. Martin Heidegger, Kant und das Problem der Metaphysik, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1973, § 37, p.
206.
76. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 226-227.
77. Martin Heidegger, Que é metafísica?, São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1969, p. 73-74 (cf. edição alemã: Einleitung
zu: Was ist Metaphysik? (de 1949), in: Wegmarken, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1967, p. 205). Em seu
livro Introdão à metasica, quarta parte, intitulada Delimitão do ser, o pensador desenvolveu as relações Ser e vir-a-
ser, Ser e aparecer, Ser e pensar, Ser e dever (ver Martin Heidegger, Introdução à metafísica, Rio de Janeiro,
33
sentido, a que experiência somos remetidos, cada vez e sempre de novo, quando pronunciamos a
palavra ser? Enfim, como nós mesmos, sendo o ente que questiona o ser, nos relacionamos
com ele? Nesse sentido, cabe ver e entender que é esta questão que move e comove as
realizações humanas mais elaboradas e sofisticadas mas, também e sobretudo, manifesta-se e
revela-se nos afazeres e ocupações humanos mais cotidianos.
Com efeito, seguindo uma das orientações da hermenêutica fenomenológica, segundo a qual
é necessário ser aquilo que se compreende
78
, isto é, que ser implica, cada vez e sempre de novo,
já corresponder a uma determinada compreensão, voltemos nossa atenção para uma das perguntas
colocadas acima. Escolhemos uma dentre as perguntas propostas e, sabendo que uma escolha nunca
é aleatória, devemos ter presente que escolher implica necessariamente dar primazia a uma em
detrimento de outra. Assim, seguindo a idéia de que escolher é dar primazia, damos privilégio a
uma pergunta que, segundo tudo indica, é a pergunta que subjaz a todas as demais.
Trata-se da pergunta propositadamente grifada por nós: a questão pelo sentido do ser, a
questão de ser no tempo ou, de modo mais direto e simples, ser e tempo. Procuremos manter-
nos na tensão e atenção desta pergunta. Procuremos manter esta pergunta de pé (gestellt). Ou
seja, procuremos liberar o horizonte de compreensão que ela requer (requaerere).
Por isso, no intuito de não deixar esta pergunta solta no ar, uma vez que como já foi
enfatizado o ser é cada vez e sempre de novo ser de um ente determinado, melhor ainda, que se
revela numa determinada compreensão, procuremos aproximar-nos através de um exemplo
simples. Simples é não complexo, ou melhor, sem dobras (sine plex). Com efeito, trata-se
de desdobrar, através de um exemplo, o ser de um ente. No banal, no trivial, no cotidiano da
nossa vida, como o sentido do ser nos advém e visita nossa própria existência?
Vejamos isso através de um exemplo simples. Quando retiramos da estante determinado
livro, ou melhor, este ente livro, é porque ele faz parte de nossa ocupação, ele está em nosso
campo de visão. Em algum momento, porém, o livro passa a ocupar o centro de nossa atenção.
Isso é possível porque está em jogo um determinado ver, uma determinada mirada. Mesmo no
simples ato de pegá-lo nas mãos ou de apenas olhá-lo, por exemplo, algo mais está
pressuposto. Está em jogo um determinado sentido de livro. Nós escolhemos um determinado
livro porque, de certo modo, já havíamos sido acolhidos e, nesse sentido, conduzidos por ele e
para ele. Nesse âmbito da descrição da nossa relação com o ente livro, passamos a ter dificuldade
de dizer com precisão quem é o agente e o paciente da ação no ato de pegar o livro nas mãos ou
de apenas mirá-lo com os olhos. O que é propriamente ação aqui? De fato, ato diz que nós
Tempo Brasileiro, 1969, p. 226). Cf. também Emmanuel Carneiro Leão, Ser e tempo, in: Aprendendo a pensar,
Petrópolis, Vozes, 1992, p. 211.
34
estamos numa bem-determinada abertura, numa bem-determinada perspectiva, num bem-
determinado horizonte de sentido, quando surgiu a tal necessidade de retirar da ou deixar o livro
na estante ou de apenas olhá-lo. A tal necessidade mesma aponta para a realização disso ou
daquilo como, por exemplo, retirar da ou deixar o livro na estante ou, talvez, de apenas olhar
para ele. Realização diz aqui: dar direção, dar orientação, dar lugar ao livro desde o mundo
da livraria; apreender e compreender determinado livro, deixar que determinado livro venha
ao nosso encontro como livro. Nesta realização, quer queiramos quer não, opera um
determinado sentido de ser do livro, isto é, o ser nos adveio desde uma bem-determinada
orientação de sentido. Assim, podemos dizer que nós fomos acolhidos e escolhidos pelo livro,
que fomos arrastados pela força de realização que é a realidade-livro. Isso sempre já se e
acontece quando escolhemos ou quando somos escolhidos pelos entes, para isso ou para aquilo,
desta ou daquela maneira. Ou melhor: ao escolhermos, somos também acolhidos, ou seja, ao
escolhermos determinado livro, ele se deixa acolher, somos arrastados pela abertura-livro, pelo
horizonte-livro, pela perspectiva-livro. Em suma, eu-ente aqui, eu-livro! não constitui uma
relação ao lado de outras tantas possíveis, porque, no aqui-agora (hic et nunc), é a relação. O que
possibilita esta relação banal eu-livro como qualquer outra? A possibilidade de ser possível diz
respeito à relação originária, à proto-relação, uma vez que é ela que possibilita toda e qualquer
relação de realização possível.
E o que é, então, abertura-livro, horizonte-livro, perspectiva-livro? Nada coisal, apenas
momento, instante, tempo e hora certa do livro ser livro. De livro configurar-se, de livro aparecer
como e enquanto livro. Esta hora, que é a hora da realização da realidade-livro, é a hora em que o
que menos há é livro como coisa-objeto e aquele que o olha como pessoa-sujeito. A realidade-
livro é circular, ou melhor, tanto coisa-objeto como pessoa-sujeito, que o olha, se co-
pertencem e co-respondem, se a-preendem e com-preendem. É nesse sentido que sempre se é
aquilo que se compreende. Por isso, procurando dimensionar a abertura, o horizonte, a
perspectiva desde a qual Heidegger propõe a colocação da questão de ser, ele principia pela
chamada analítica do modo primordial de ser, ou seja, pela analítica existencial da presença
humana
79
.
A partir dessa descrição do ente livro, podemos perguntar: ser, o que é? O que quer dizer
ser do ente? Que significa sentido do ser? Tem o ser algum sentido? Por enquanto,
devemos ter presente que todas as tentativas de falar e pensar são, por assim dizer, modos de ser
do próprio ser. Mas, também, quando não falamos, quando não pensamos. Por isso, se não
78. Cf. o artigo de Marcia Sá Cavalcante Schuback, Da necessidade de ser o que se compreende, in: Veredas, ano 3, n.
29, maio 1998, Rio de Janeiro, Centro Cultural Banco do Brasil, p. 29.
35
soubéssemos absolutamente nada a respeito do ser, como poderíamos estar despertos para o ser
e para a questão por ele suscitada? Poderíamos sequer ter a ou estar na intenção de determiná-lo,
de falar dele, de nele pensar. Desse modo, em que sentido constitui-se, para Heidegger, o ser ao
modo de questão? Melhor ainda: da questão das questões? Será o ser algo que está por detrás
das coisas? Isso nós também não sabemos ao certo ainda. Por enquanto, sigamos algumas
indicações dadas por Heidegger.
Por isso, se nos prendermos literalmente ao que foi enunciado no título acima, então, a
seqüência de nossa reflexão deveria ser: do ser para o tempo. Porém, deve-se determinar
ser a partir de tempo ou tempo a partir de ser? Sendo nossa preocupação
fundamentalmente ver e entender o tempo desde a obra de Heidegger, procuramos determinar
tempo a partir de ser. Isso significa: deve-se determinar primeiro o que ser significa para,
em seguida, determinar o conceito tempo, a fim de ver e entender se existe uma possível
relação entre estes fenômenos fundamentais da fenomenologia enquanto ontologia da presença.
Portanto, o que significam as palavras ser e tempo? Aparentemente ser como
tempo são palavras como tantas outras. São palavras ao lado de outras palavras como: deus,
homem, história, mundo, céu, terra, etc. E, no entanto, se se levar em conta o dimensionamento
dado até aqui à problemática do tempo, então elas não podem ser vistas mais como meras
palavras ao lado de tantas outras. É que as palavras ser e tempo estão sendo vistas desde
uma determinada compreensão de tempo. Por esta razão também, intencionalmente, as
colocamos entre aspas, isto é, deixamos provisoriamente em suspenso o sentido delas. Neste
suspender não está em jogo pura e simplesmente uma manobra do intelecto que busca saber e
averiguar se, por detrás delas algo mais ou menos real (também irreal!), mais ou menos
concreto (também abstrato!), mais ou menos objetivo (também subjetivo!), etc. A pressuposição
fundamental no ato de deixar em suspenso não deve prender-se a preconceitos infundados,
tenham eles o caráter que tiverem, mas, única e necessariamente, deve fundamentar a sub-
posição como tal. Nessa tarefa, portanto, propomo-nos radicalizar e fundamentar a sub-posição
ser a partir da sub-posição tempo.
Falávamos que ser é uma palavra, que tempo é uma palavra. Entretanto, o que significa
cada uma destas palavras? Qual o significado ou os significados possíveis de ser e de tempo?
E o que significará, nesse caso, significância? Atenhamo-nos primeiramente à palavra ser,
79. No segundo capítulo desta investigão veremos algumas das estruturas fundamentais da presença, elaboradas na
analítica existencial de Ser e tempo.
36
pois, à medida que ela nos diga alguma coisa, é possível talvez também dizer algo da palavra
tempo
80
.
Heidegger, em sempre novas investidas e retomadas, busca fundamentar o sentido da
palavra ser. Estas tentativas de fundamentação, porém, sempre já são vistas e realizadas a partir
da tradição metafísica e o fora dela. Ao falar de ser, pensa e fala, ao mesmo tempo, da
questão fundamental e orientadora de toda tradição metafísica, que é a questão do ente como
ente. Heidegger diz, logo no início de Ser e tempo, que, no solo da arrancada grega para
interpretar o ser, formou-se um dogma que não apenas declara supérflua a questão sobre o
sentido do ser como lhe sanciona a falta
81
, isto é, a palavra ser, de uma real provocação
questionadora
82
, transformou-se, ao longo da tradição metafísica, numa palavra de uso corrente e,
por isso mesmo, carece de uma real definição conceptual. Ele continua: Todo mundo emprega
este conceito constantemente e também compreende o que ele, cada vez, pretende designar.
Assim o que, encoberto, inquietava o filosofar antigo e se mantinha inquietante, transformou-se
em evidência meridiana, a ponto de acusar quem ainda levantasse a questão de cometer um erro
metodológico
83
. Assim, embora ainda hoje continuemos a empregar esta mesma palavra dentro
de uma certa evidência, mesmo que encoberta e esquecida de si mesma, porém, quando se trata
de abordar temática e explicitamente o que esta palavra cada vez designa, deparamo-nos com o
fato de que, não somente no uso cotidiano, como também e principalmente, numa abordagem
explícita, sempre nos acompanha uma certa pré-sub-posição conceptual de ser, ou melhor, que
ser é uma palavra sempre de e com sentido. Pré-sub-suposto está, cada vez e em cada caso
que esta palavra é empregada, um certo conceito orientador de sentido, ou seja, ser nunca é
uma palavra meramente encapsulada em si e para si mesma.
A fim de não nos afastarmos do âmbito de Ser e tempo, em que tal questão é colocada em
movimento, é preciso considerar que ser é um termo metafísico, vale dizer, ser é um termo
correlato de ente. Assim, ser e ente são, numa primeira aproximação, uma co-relação como, por
exemplo: aqui e ali, eu e tu, alto e baixo, acima e abaixo, próximo e distante, aberto e fechado,
movimento e repouso, céu e terra, fundo e superfície, claro e escuro, noite e dia, belo e feio,
etc.
84
Co-relação diz: relacionado com, ou seja, pré-sub-põe-se termos co- e bi-relacionados ou
80. Importante reflexão dos modos de compreensão do tempo, desde a perspectiva fenomenológica, encontra-se no livro de
Hermógenes Harada, Coisas, velhas e novas, Bragança Paulista, Edusf, 2006, p. 410-416. O capítulo com o tulo Tempo,
desenvolve os seguintes temas: tempo psicológico, difereas do tempo, o tempo como kairós, tempo e liberdade.
81. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 1, p. 37.
82. Segundo Ortega, o verbo alemão heissen significa chamar, sentido este presente ainda na forma provocar. Este
sentido está relacionado ao fato de este verbo exprimir originariamente apelo, quer dizer, fazer com que algo se mova,
que algo entre em movimento, no sentido do verbo calo e kivw ou kevlomai (cf. José Ortega y Gasset, El hombre y la
gente, Madri, Revista de Occidente, 1964, p. 145). A posição de Ortega se coaduna com o emprego de provocar em Was
het denken?, de Heidegger.
83. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 1, p. 37.
84. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 26 e 28, respectivamente p.
173s e 189s.
37
ainda de mútua imbricação. De tal modo que, ao se afirmar um dos termos, afirma-se
conjuntamente o outro e vice-versa. Dizer então que ser é e está para ente é dizer, concomitante
e simultaneamente, que ente é e está para ser e vice-versa. Numa forma tradicional isso
significa: compreender o ser como ente e ente como ser. Os gregos formularam esta questão
assim: que é isto, o ente? (tiv toV o[n;).
Entretanto, o que significa ser como ente ou ente como ser? Como é possível ter acesso
àquilo denominado por meio destas palavras? Aparentemente, ser e ente são palavras vazias e sem
significação. Mas será mesmo essa a situação, será que podemos afirmar isso a partir das descrições
e aproximações feitas até aqui? Seguindo uma indicação de Heidegger, segundo a qual é possível
descer do universal para o ente singular
85
, o acesso ao ser é possível na medida em que nos
voltamos para o ente como ente, isto é, para o ente em sua singularidade. Singularidade diz aqui:
para o modo como o ser sempre já, de algum modo, se manifesta à nossa compreensão. Nos termos
do primeiro preconceito a respeito do ser, citado acima, isso quer dizer: que uma compreensão do
ser já es sempre incluída em tudo que se apreende no ente, ou seja, que cada vez que
compreendemos ente como ente, o ser já é, de um modo ou de outro, apreendido conjuntamente, ou
seja, é co-aprendido, é com-preendido. Numa forma incansavelmente repetida em Ser e tempo, isso
quer dizer: nós nos movemos sempre já numa determinada compreensão do ser, ou melhor, ser e
compreensão de ser estão originariamente co-relacionados
86
.
Heidegger mostra que, apesar de não nos darmos conta disso, sempre já contamos
antecipada e previamente com o ser em nossos afazeres e lidas cotidianos, atribuindo-lhe
significados bem-determinados. Para mostrar isso, escolhemos duas passagens em que ele
exemplifica esta compreensão do ser vaga e mediana, na qual sempre já nos movimentamos de
algum modo.
Escolhemos um modo de dizer simples, corrente e quase descuidado, no qual o ser se diz
numa forma verbal, cujo uso é tão freqüente que mal o notamos. Dizemos: Deus é. A terra
é. A conferência é na sala de aula. Este homem é da Suábia. A taça é de prata. O
camponês está no campo. O livro é dele. Ele é da morte. Vermelho é backbord. A
miséria da fome es na Rússia. O inimigo está de retirada. O pulgão está nos vinhedos.
O cão está no jardim. Sobre todos os cimos é paz’”
87
.
Todo mundo compreende: o u é azul, eu sou feliz, etc. Mas essa compreensão comum
demonstra apenas a incompreensão. Revela que um enigma já essempre inserido a priori
em todo ater-se e ser para o ente, como ente. Esse fato de vivermos sempre numa
85. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 113.
86. Segundo Heidegger, é dessa compreensão que brota a queso explícita do sentido do ser e a tendência para o seu
conceito. Nós não sabemos o que diz ser. Masquando perguntamos o que é sers nos mantemos numa compreensão
do é, sem que possamos fixar conceitualmente o que significa esse é. Essa compreeno do ser vaga e mediada é um
fato. [...] A interpretação dessa compreeno mediana do ser pode conquistar um fio condutor com a elaboração do
conceito de ser (cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 2, p. 41.)
87. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 115 (grifo nosso).
38
compreensão do ser e o sentido do ser estar, ao mesmo tempo, envolto em obscuridade
demonstra a necessidade de princípio de se repetir a questão sobre o sentido do ser’”
88
.
Num primeiro momento, todas estas frases revelam um uso natural e habitual da palavra
ser. Ora, é tão- vazio e sem sentido o verbo ser?! Vejamos isso com mais cuidado. O que nestas
falas cotidianas, naturais e habituais sempre está de algum modo pré-sub-suposto e sub-
entendido?
Segundo a compreensão natural e habitual, as palavras possuem significados. O mesmo
deve acontecer com a palavra ser. Porém, é possível que ela não possua um significado apenas, isto
é, um significado fixo e imutável como se estivesse encapsulado na própria palavra, ao modo, por
exemplo, como encontramos os significados dicionarizados. Em geral, quando temos dúvida quanto
ao significado exato que queremos empregar, recorremos ao dicionário na busca de um modo mais
adequado de dizer o que intencionamos. Esse fato só revela que a utilização do diciorio é sempre já
epigonal, ou seja, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, não nos ocorre esta dúvida
e, assim, resguardados os limites, sabemos bem o que queremos dizer e expressar. De fato, a palavra
ser possui tantas significões possíveis quantas vezes seja possível dizer é. Nesse caso,
significado deve poder dizer algo como sinal, sendo que, toda vez que a palavra é empregada,
constitui-se uma nova constituão do é, -se uma nova presentificação do é, ou seja, o é
ganha novo sentido.
Nesse sentido, podemos dizer que significado é propriamente o que a palavra assinala ou
indica cada vez que é empregada. A expressão cada vez quer dizer então algo como: cada vez
que conjuntura de sentido. Conjuntura de sentido é o que Heidegger propriamente designa
como abertura de mundo, ou melhor, mundo de sentido. Assim, na simples frase o céu é azul,
por exemplo, pode-se ver e entender um sentido bem-determinado do é, quer dizer, o é
ganha aí uma determinação de sentido. No caso específico, o é desta frase pode querer dizer:
faz tempo bom, não está nublado e, por isso, talvez não chover, o céu está lindo, etc.
Todas essas possíveis determinações de sentido provêm do fato de sempre ter-se instaurado
mundo, sendo sentido uma determinação da mundanidade do mundo (Weltlichkeit der Welt)
89
.
Teremos a oportunidade de ver e entender este fenômeno mais detidamente no segundo capítulo
desta investigação, ocasião em que também ficará mais claro o que aqui se afirma de uma
maneira bastante vaga e indeterminada sob o ponto de vista de uma análise ontológica do
fenômeno mundo.
88. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 1, p. 39.
89. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, §§ 14 a 24, p. 110-168. Nessa
perspectiva, deve-se considerar a tese defendida por Heidegger, intitulada A doutrina das categorias e significados de Duns
Escoto. Especial atenção deve ser dada à palavra significado e respectivas variões senticas (cf. Martin Heidegger,
Die Kategorien- und Bedeutungslehre des Duns Scotus, Tübingen, J.C. Mohr (Paul Sieback), 1916).
39
Cada um dos exemplos mencionados anteriormente do emprego das palavras é e está
(ser) evidenciam modos de ser-no-mundo (In-der-Welt-sein). A rigor, é possível empregar cada
uma destas palavras porque, fundamentalmente, assim pensa Heidegger, dá-se mundo. Mundo
enquanto ser-no-mundo como constituição fundamental da presença. Portanto, toda e qualquer
experiência de mundo revela modos de ser da própria presença. Em última instância, não
palavras, nem coisas e objetos sem contexto, sem experiência, sem significado, sem sentido. Em
cada palavra pronunciada, uma bem-determinada experiência é evocada e temporalizada, um bem-
determinado sentido é evocado e temporalizado ou, no mínimo, está pressuposto e implícito.
Assim, para não deixar dúvida de que a questão do ser não é uma questão solta no ar,
Heidegger vai sucessivamente trazendo à fala modos diferenciados pelos quais o é é sempre
indicação de sentido, sempre se é e está operando num sentido, enfim, sempre se está num
envio do próprio ser. Assim, o que se evidencia tanto em relação à palavra ser como em
relação à palavra tempo, por exemplo, embora lhes corresponda uma multiplicidade
significativa enquanto possibilidade de sentidos, é que as palavras ser e tempo sempre já são
empregadas a partir de um significado bem-determinado, de um sentido bem-determinado.
A partir dessas considerações, devemos então perguntar agora: a que nos remete ainda e
sempre de novo o tempo? O que é tempo? Podemos perguntar dessa maneira? É a melhor
maneira de perguntar pelo tempo? Falávamos anteriormente que o objetivo é tematizar o tempo
como tempo. Porém, o que dizemos com esta expressão? Esta expressão pode sugerir, por
exemplo, que tempo é tempo. Daí, se dissermos que tempo é tempo, trata-se de uma mera
tautologia? Pode-se falar, a rigor, que o tempo é? Parece que, ao proceder assim, não fizemos
mais que substituir o como por um é geral, vazio e evidente por si mesmo. Porém, o que nos
diz, então, em sua essência constitutiva e correlativa, este é? Fala-nos ele algo a respeito dos
modos de temporalização do tempo? Não é este é, em geral ou de modo irrefletido, também a
forma conjugada do verbo ser, quer dizer, a forma verbal da 3
a
pessoa do singular do modo
indicativo presente? É. Mas o que dizemos e, o que parece ser mais importante, qual a maneira
de o dizermos quando o dizemos? Diz-nos este curto e seco é alguma coisa? É ele alguma
coisa? Deixa-se dizer e expressar sob a forma de alguma coisa? Enfim, qual o nosso inter-
esse quando perguntamos pelo é ao perguntarmos desse modo? E, sobretudo, quando vem
expresso sob a forma tempo é tempo? O que diz-nos este é? Diz-nos este é alguma
coisa? Remete-nos ele para alguma possível experiência real do tempo? Onde estamos nós e
em que âmbito movimentamo-nos quando colocamos a questão pelo tempo sob a forma tempo é
tempo? Colocar uma questão como esta ou não colocá-la dá isso no mesmo ou pode estar
acontecendo aqui algo totalmente diferente?
40
Uma coisa parece certa: não se trata de fazer perguntas retóricas e, sobretudo, modos de
perguntar inadequados ou que não conduzam a uma explicitação do modo de ser geral, vazio e
indiferente e, principalmente, está em jogo mostrar como e por que isso acontece. Toda vez que
pronunciamos as palavras ser e tempo, um determinado sentido é evocado, uma determinada
experiência é realizada. Assim, uma coisa parece ser inevitável: não há conceito nem significado sem
que se pressuponha-os concomitantes a uma constituição fundamental que, segundo Heidegger, é ser-
no-mundo como base de toda e qualquer estrutura de compreensão e sentido posveis. De fato, cada
vez que ser e tempoo pronunciados ou mesmo silenciados, de modo pré-científico e atemático,
de modo indireto e implícito, de modo próprio ou impróprio, acaba-se evocando sempre de novo um
determinado sentido fundamental e é isso que possibilita falarmos de ser e tempo.
Nessa perspectiva, é possível visualizar e entender, embora de modo preliminar e
aproximativo, o conceito de tempo a partir de dois textos, sendo um do livro do Eclesiastes e o
outro do soneto Cântico lírico de Luís de Camões. O texto tão conhecido do Eclesiastes (3,1-22)
remete para múltiplos horizontes de sentido pelos quais o ser humano se descobre no tempo ou
se ocupa do tempo. Vejamos o que diz a célebre passagem do Antigo Testamento:
Há um momento para tudo e um tempo
para todo prop
ósito debaixo do céu.
Tempo de nascer, e tempo de morrer;
tempo de plantar, e tempo de arrancar a planta.
Tempo de matar, e tempo de curar;
tempo de destruir, e tempo de construir.
Tempo de chorar, e tempo de rir;
tempo de gemer, e tempo de bailar.
Tempo de atirar pedras, e tempo de recolher pedras;
tempo de abra
çar, e tempo de separar.
Tempo de buscar, e tempo de perder;
tempo de guardar, e tempo de jogar fora.
Tempo de rasgar, e tempo de costurar;
tempo de calar, e tempo de falar.
Tempo de amar, e tempo de odiar;
tempo de guerra, e tempo de paz
90
.
Apesar de indicar para a oportunidade própria de cada ocupação humana possível, isto é,
que cada verbo co-implica uma ação bem-determinada, esse texto fala que toda ocupação
humana dá-se e acontece desde tempo. Não ocupação humana que se fora de tempo, mas
sempre no tempo. É por isso que, neste contexto, nos versículos 10 e 11 o autor do Eclesiastes
90. Cf. A Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulinas, 1985, p. 1169-1171.
41
também diz: Observo a tarefa que Deus deu aos homens para que dela se ocupem: tudo o que
ele fez é apropriado a seu tempo. E, no versículo 22, conclui: Observo que não felicidade
para o homem a não ser alegrar-se com suas obras: essa é a sua porção. Isso quer dizer: o
homem só é homem, ou seja, é livre para si mesmo, na medida em que se alegra realizando-se
numa ocupação, numa tarefa, numa experiência. A expressão essa é a sua porção quer então
dizer: este é seu quinhão, esta é sua sorte e sua sina, enfim, seu destino e seu fado.
Procuremos ver isso, mais explicitamente ainda, através de um soneto de Luís de Camões. O
soneto intitulado Cântico lírico traz à fala a experiência mais elementar e primigênia do tempo:
Com o tempo o prado verde reverdece,
Com o tempo cai a folha ao bosque umbroso,
Com o tempo p
ára o rio caudaloso,
Com o tempo o campo pobre se enriquece.
Com o tempo um louro morre, outro floresce,
Com o tempo um
é sereno, outro invernoso,
Com o tempo foge o mal duro e penoso,
Com o tempo torna o bem j
á quando esquece.
Com o tempo faz mudan
ça sorte avara,
Com o tempo se aniquila um grande estado,
Com o tempo torna a ser mais eminente.
Com o tempo tudo anda e tudo p
ára,
Mas s
ó aquele tempo que é passado
Com o tempo n
ão se faz tempo presente
91
.
O que norteia a experiência universal do tempo trazida à fala por Camões neste soneto?
Evidencia a necessidade vital de sempre já se contar com o tempo. Este contar com antecede
toda e qualquer ação, todo e qualquer afazer da lida cotidiana. Daí a razão desta expreso o
enfaticamente repetida ao longo do soneto: com o tempo.... Implícito está, nesta expressão, o fato de
o ser humano existir já sempre no tempo e, conseqüentemente, que o tempo é essencialmente
passagem, mudança, alteração, ou melhor, que, ao existir no tempo, o ser humano faz a experncia
de ser e não-ser e vice-versa. Mesmo que de um modo pré-científico e atemático, no uso e na vida
92
,
é dessa maneira que s experimentamos o tempo. Não somente nas coisas e na natureza, pois, mais
primordialmente, toda e qualquer experiência é possível, porque, de algum modo, somos os agentes
e os pacientes principais, ao mesmo tempo, de todas as possíveis experiências de passagens,
91. Soneto de Luís de Camões, citado por J.R. Nascimento, in: Anos dourados... Anos sonhados, Petrópolis, Vozes, 1998,
p. 101.
92. No uso e na vida é uma expressão usada por Harada para traduzir a situação cotidiana da presença (cf. Hermógenes
Harada, Coisas, velhas e novas, Bragança Paulista, Edusf, 2006, p. 80). É uma tradução posvel para a expressão numa
primeira aproximação e na maior parte das vezes (zunächst und zumeist), com a qual Heidegger busca explicitar o caráter
prévio da cotidianidade da presea (cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes,
2006, § 71, p. 460-462). Na analítica temporal, Heidegger faz algumas considerações específicas a respeito dessa expressão
e sua relação com a temporalidade da presença.
42
mudanças, alterações... existindo no tempo. É desse modo que somos e como somos desde que
existimos.
Com efeito, se prestamos ainda mais atenção aos três últimos versos do soneto,
percebemos como Camões entende ser estruturalmente tempo. Os três últimos versos dizem:
Com o tempo tudo anda e tudo pára, / Mas aquele tempo que é passado / Com o tempo não
se faz tempo presente.
Estes versos não são apenas o final de um soneto que fala, por acaso, do tempo. De fato, as
palavras de Camões, ao se darem e ganharem forma de soneto, são uma temporalização de
soneto. Enfim, estes versos sintetizam uma concepção do tempo que se faz presente, que se
presentifica, do início ao fim, isto é, em toda a força e criatividade poética de Camões a respeito
do tempo. Tentando verbalizar a concepção camoniana de tempo presente neste soneto, tentemos
interpretar os três versos finais passo a passo.
O primeiro dos versos diz: Com o tempo tudo anda e tudo pára. O que marca este verso é
ser ele uma síntese de tudo que anda e de tudo que pára. Síntese diz literalmente: proposição
reunitiva. Mas o que sintetiza esta proposição? Ela sintetiza o seguinte: com o tempo tudo anda e
tudo pára, ou seja, com o tempo, tudo o que é vivo (anda) morre (pára). Desse modo, deveríamos
ler este verso assim: com o tempo, tudo que é vivo (tudo que anda) morre (tudo pára). Ou seja:
sendo e estando na vida, enquanto movimento vital, tem-se consciência de sua consumação num
limite, num fim: a morte. No entanto, morte não significa aqui, necessariamente, o fim último e
derradeiro da vida, o último expirar, como se ela acabasse e terminasse para sempre e de uma vez
por todas neste expirar. Justamente por vida já sempre contar com o fato da morte nela implícita,
guarda, por isso, uma relação originária. Desde que e enquanto o homem é homem, ele está, a
todo momento, a cada instante, morrendo de si para si mesmo
93
.
Os outros dois versos soam assim: Mas aquele tempo que é passado / Com o tempo
não se faz tempo presente. O decisivo, aqui, é compreender adequadamente a conjunção
adversativa mas. Enquanto adversativa, esta conjunção marca uma oposão, uma
contraposição. Mas oposão, contraposição de quê e a quê? Ora, entre vida e morte! Na
medida em que a vida com o tempo vai se transformando em tempo passado, ela vai também,
simultânea e concomitantemente, andando (passando), isto é, vai se futurando, vai se
consumando e consumindo para dentro do seu contrário: a morte. E, por ser a vida
essencialmente futurização para dentro de seu contrário, ela necessariamente anda (passa)
e se torna sempre mais passado (memória). Assim, a vida é vida na morte e morte é morte na
93. Heidegger tematiza isso através dos existenciais ser-todo (Ganzsein) e ser-para-a-morte (Sein zum Tode). Cf. o primeiro
capítulo da analítica temporal, intitulado A possibilidade da presença ser-toda e o ser-para-a-morte (cf. Martin Heidegger,
Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, §§ 46-53, p. 309-344).
43
vida. Desde que e enquanto exista uma possibilidade de com o tempo se fazer tempo
presente, ou seja, desde que e enquanto exista uma possibilidade de vida realizar-se de
alguma maneira, acontece vidamorte ou mortevida.
Esta estrutura temporal, implícita nos dois últimos versos do soneto camoniano, foi vista e
explicitada por Heidegger como uma estrutura tríplice, sendo que, para ele, o futuro (Zukunft) é
pura possibilidade aberta de ser sob um modo possível de ser. O que está por vir é quem
primordialmente se realiza e se temporaliza no tempo. A presença é sempre o ente que
conta com o tempo em tudo que faz e realiza. Portanto, não tempo fora e além da relação
vida-morte ou morte-vida. Vida é, pois, essencial e estruturalmente, utópica; é, necessária e
primordialmente, não-lugar; é, fundamentalmente, carente de lugar e, portanto, carece ocupar
lugar ainda não-ocupado, não mais, porém, como fardo, como peso, mas de jovial e livre
aceitação da negação como condição inerente à própria vida.
1.5
A
INTERPRETAÇÃO HEIDEGGERIANA DAS PRINCIPAIS TEMATIZAÇÕES TRADICIONAIS
DO TEMPO
Ainda jovem, segundo ele mesmo atesta, Heidegger se pergunta: será que ao longo da
tradição metafísica ocidental o tema do tempo foi alguma vez problematizado como tal? E,
caso isso não se confirme, o que significa tal problematização? Que implicações tem, então, o
problema do tempo, no seio do pensamento ocidental e, especificamente, em relação à questão
do ser? A partir desse questionamento, é posvel ver que Heidegger, percebendo o espírito
do tempo (Zeitgeist), se confronta com as tematizações que lhe o cronologicamente mais
próximas, como as de Husserl, Bergson e Einstein, passando pelas de Hegel e Kant, até chegar
nas de Agostinho, Platão e Aristóteles.
Nesse caminho percorrido por Heidegger, é importante ter presente as investigações
fenomenológicas de Husserl. Como resultado dessas investigações, há o livro Lições para uma
fenomenologia da consciência interna do tempo. É composto por preleções ministradas por
Husserl durante os anos de 1893 a 1917, e publicadas em 1928. Numa passagem dessas
preleções, diz Husserl:
A análise da consciência do tempo é uma antiqüíssima cruz da psicologia descritiva e da
teoria do conhecimento. O primeiro que sentiu a fundo as poderosas dificuldades que aqui
residem e que com elas lutou até quase ao desespero foi Santo Agostinho. Os capítulos 14-
28 do livro XI das Confissões devem ainda hoje ser profundamente estudados por quem se
ocupar com o problema do tempo. Porquanto, nestas coisas, a época moderna, orgulhosa de
seu saber, nada mais grandioso e mais considerável trouxe do que este grande e, na verdade,
incansável pensador. Ainda hoje se pode dizer com Santo Agostinho: Se ninguém me
44
perguntar, eu sei; se quiser explicá-lo a quem me fizer a pergunta, já não sei [Si nemo a me
quaerat, scio, si quaerenti explicare velim, nescio] (cf. Confissões, livro XI, cap. 14)
94
.
As investigações de Husserl abriram as portas para Heidegger e, por assim dizer, fizeram-
no despertar para o problema do tempo de uma maneira toda nova. Uma prova disso está numa
nota editorial desta obra, da qual Heidegger foi o editor no ano de 1928. Nessa nota lê-se:
Decisiva é aqui a explicitação do caráter intencional da consciência do tempo e a crescente
clarificação principial da intencionalidade em geral. [...] Ainda hoje, esta expressão não é um
santo-e-senha, mas sim o título de um problema central
95
. Nesse contexto, além de apontar para
a importância da intencionalidade, Heidegger apresenta um Husserl profundamente atento à
necessidade de voltar para a interpretação agostiniana do tempo. Isso é manifesto nas
interpretações fenomenológicas, tanto em relação a Santo Agostinho como nas epístolas
paulinas, realizadas por Heidegger nos primeiros anos como professor de Marburgo
96
.
Agostinho tematiza o tempo no livro XI das Confissões, intitulado O homem e o tempo
97
.
Segundo Heidegger, num determinado sentido, a abordagem agostiniana do tempo é mais originária
que a de Aristóteles, pois foi ele quem viu algumas dimensões do fenômeno do tempo mais
originariamente
98
. Kurt Flasch escreve: Tempo é tempo da alma, e nunca puro tempo do mundo.
O tempo da alma é o único tempo do mundo do qual nós temos conhecimento. O tempo da alma
pode ser, ao mesmo tempo, tempo do mundo; o tempo do mundo, porém, nunca pode esclarecer o
puro tempo da alma. Somente assim se tornará compreensível a partir da essência do tempo,
porque nós homens contamos continuamente com o tempo e necessitarmos de medi-lo nesse
sentido. A pergunta, o que é o tempo, mostra-se como a pergunta: o que é o homem. Este modo de
perguntar, porém, é o perguntar mais íntimo das Confissões. É por isso que as Confissões
94. Edmund Husserl, Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa
da Moeda, 1994, p. 37.
95. Cf. Martin Heidegger, Nota prévia do editor, in: Edmund Husserl, Lições para uma fenomenologia da consciência
interna do tempo, Lisboa, Imprensa Nacional da Moeda, 1994, p. 25. A expressão santo-e-senha tem o sentido de
senha, de secreto, ou seja, acesso a iniciados. A edição de 1928 conm duas partes e foi publicado no Jahrbuch r
Philosophie und phänomenologische Forschung, vol. IX, p. 367-490. Trata-se do mesmo anuário em que havia sido
publicado Ser e tempo um ano anterior, ou seja, em 1927. Aproximadamente quarenta anos mais tarde, numa edição mais
ampla e completa, os mesmos textos seriam publicados por Rudolf Boehm, sob o título Zur Phänomenologie des inneren
Zeitbewusstseins (1893-1917), Haag, Matinus Nijhoff, 1966, que constitui o vol. X da edição das Obras completas de
Edmund Husserl. Cf. Martin Heidegger, History of the concept of time (Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs),
Indiana University Press, Bloomington, 1985, p. 92. Cf. também Martin Heidegger e Medard Boss, Seminários de Zollikon,
Petrópolis: Vozes; o Paulo: ABD/EDUC, 2001, p. 65.
96. Martin Heidegger, Phänomenologie des religiösen Lebens, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1995,
especialmente p. 87-125. Relevantes são as partes Introdução à fenomenologia da religo e Agostinho e o
neoplatonismo. Cf. também Kurt Flasch, Was ist Zeit? Augustinus von Hippo. Das XI. Buch der Confessiones, Frankfurt
am Main, Vittorio Klostermann, 1993, p. 51-63.
97. Santo Agostinho, Confissões, Bragança Paulista, Edusf, 2006, livro XI. Um comentário comparativo do conceito de
eternidade de Boécio e o conceito de tempo de agostiniano, encontra-se em Marcia Sá Cavalcante Schuback, Para ler os
medievais, Petrópolis, Vozes, 2000, cap. 3: Quando o fim está dentro do como, p. 79-117.
98. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19, p.
329.
45
alcançaram, através das considerações do tempo, sua profundidade mais própria e nesta
profundidade mais profunda, a maior amplitude. [...] que o homem se essencializa como tempo
99
.
Para Cavalcante Schuback, mesmo o radical questionamento da essência do tempo
desenvolvido por Martin Heidegger, que busca compreender o tempo a partir do tempo e da
facticidade da vida humana, está profundamente ligado à colocação de Santo Agostinho, e, mais
adiante: No entanto, ao situar o tempo na alma, Santo Agostinho não situa o tempo na
subjetividade do homem. A subjetividade é algo estranho para o espírito medieval. Santo
Agostinho situa o tempo na capacidade compreensiva da alma humana
100
. A célebre passagem de
Santo Agostinho a respeito do tempo é esta:
Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem poderá apreendê-
lo, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E
que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele
falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando
dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se
quiser explicá-lo a quem me fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem
receio de contestação, que, se nada sobrevivesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada
houvesse, não existiria o tempo presente
101
.
Heidegger, ao retomar a questão fundamental com a qual já Santo Agostinho se deparara
em suas análises do tempo, diz: Santo Agostinho [...] conduziu a pergunta ao ponto de se
perguntar: será o espírito mesmo o tempo? E Agostinho deixou a pergunta parada neste ponto
(Augustinus hat die Frage bis hieher getrieben, ob der Geist selbst die Zeit sei. Und Augustinus
hat die Frage hier stehen gelassen). Santo Agostinho chegou à evidência de que eu mesmo sou
meu tempo’”
102
, diz o filósofo de Messkirch mais adiante. que se ver e mostrar, em que
sentido Heidegger aprofunda e radicaliza a questão com a qual Santo Agostinho já se deparara.
Heidegger diz logo no início da mesma conferência O conceito de tempo, de 1924:
Santo Agostinho, em seu livro XI de suas Confissões, conduziu a pergunta ao ponto de se
perguntar: será o espírito mesmo o tempo? E Agostinho deixou a pergunta parada neste ponto.
Ele diz: In te, anime meus, tempora metior; noli mihi obstrepere: quod est; noli tibi obstrepere
turbis affectionum tuarum. In te, inquam, tempora metior; affectionem quam res praetereuntes
in te faciunt, et cum illae praeterierint manet, ipsam matior praesentem, non eas quae
praetetierunt ut fietet: ipsam matior, cum tempora metior (livro XI, cap. 27). Em forma de
99. Kurt Flasch, Was ist Zeit? Augustinus von Hippo. Das XI. Buch der Confessiones, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1993, p. 20.
100. Marcia Sá Cavalcante Schuback, Para ler os medievais, Petrópolis, Vozes, 2000, p. 82 (cf. capítulo 3: Quando o fim
está dentro do começo, item 3.2: As Confissões de Santo Agostinho e o significado da fundamentação cristã do tempo na
eternidade, p. 82-89). Sugerimos também Germano Pattaro, A concepção cristã do tempo, in: As culturas e o tempo,
Petrópolis/São Paulo, Vozes/USP, 1975, p. 197-228 e G.J. Whitrow, O tempo na história, Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
1993 e O que é tempo?, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.
101. Cf. Santo Agostinho, Confissões, Bragança Paulista, Edusf, 2006, livro XI, cap. 14, p. 278 (grifo nosso).
102. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 10-11; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 14/15. Cf. Martin Heidegger, Der
Begriff der Zeit. 1. Der Begriff der Zeit (1924); 2. Der Begriff der Zeit (Vortrag 1924), Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 2004, p. 17s. Uma das melhores interpretações da tematião agostinian do tempo encontra-se em Kurt
Flasch, Was ist Zeit? Augustinus von Hippo. Das XI. Buch der Confessiones, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann,
1993.
46
paráfrase: Em ti, ó meu espírito, meço eu os tempos; é a ti que eu meço, assim que eu meço o
tempo. Não venha me perturbar com a pergunta: como será isso então? Não me induza a
desviar meu olhar de ti por meio de uma pseudopergunta. Não te obstruas o caminho para ti,
confundindo o que pode te dizer respeito. Em ti, digo eu sempre de novo, eu meço o tempo; as
coisas que ao passarem te encontram, colocam-te numa disposição que permanece, enquanto
que as coisas desaparecem. Eu meço a disposição na presença humana (menschliche Dasein),
não as coisas que passam, para que o tempo primeiramente se manifeste. É a disposição na
qual me encontro, eu repito, que meço eu, quando eu meço o tempo
103
.
Procuremos entender melhor o que Santo Agostinho diz a respeito do tempo na tão
conhecida passagem das Confissões. A clássica formulação de Santo Agostinho, tantas vezes
citada mas nem sempre pensada, diz algo simplesmente paradoxal: Si nemo a me quaerat, scio,
si quaerenti explicare velim, nescio, isto é: Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicá-
lo a quem me fizer a pergunta, já não sei
104
. Esta formulação deve ser lida da seguinte maneira:
na ocupação mais comum de nossa vida, sempre pressupomos, ou melhor, contamos com o
tempo e, por isso, também pensamos saber o que ele seja. Todavia, quando se trata de explicá-
lo, de tematizá-lo para alguém tal como é, vemo-nos diante de um problema e,
conseqüentemente, caímos em aporia. Portanto, em geral, pensamos saber o que o tempo seja,
mas quando se trata de colocar a pergunta pelo que ele é, é preciso pensá-lo ao modo de questão,
ou seja, faz-se necessário pensar, de algum modo, porque nós, em geral, pensamos saber o que
seja tempo e, por isso, também, em geral, não sabemos o que seja ao tentarmos explicá-lo, ou
melhor, torná-lo acessível à nossa própria compreensão ou mesmo para os outros.
Agostinho diz: Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que, se nada
sobrevivesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo
presente. Poderemos compreender isso assim: tempo é a condição de possibilidade daquilo que
comumente nomeamos de presente, passado e futuro. Nesta divisão do tempo e ao pronunciá-la
dessa maneira, apreendemos e compreendemos mais do tempo do que muitas vezes somos
levados a supor. Pois, não houvesse tempo, quer dizer, não houvesse o que contar e dividir, uma
tal contagem e divisão não teria sentido, ou melhor, nem seríamos capazes de dizer qualquer
coisa a respeito do tempo, isto é, não teríamos sequer o que contar, dividir e cronometrar.
Porém, vejamos esta situação de Santo Agostinho um pouco melhor. Talvez não seja
apenas isso que ele queria dizer. Santo Agostinho diz mais: Quando falamos do tempo,
compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos
falam. É decisivo entender bem como Santo Agostinho compreende aqui o verbo
compreender. Compreender significa, literalmente, prender-se a, estar preso com, ou
103. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 10-11; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 14/15-16/17. Cf. menção à
tematização agostiniana do tempo em Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 81, p. 524 e Die
Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19, p. 325.
104. Cf. Santo Agostinho, Confissões, Bragança Paulista, Edusf, 2006, livro XI, cap. 14, p. 278.
47
melhor, ser e estar preso e atado com isso ou aquilo. Assim, ao falarmos do tempo, quer dizer,
ao pronunciá-lo, nós, de um modo ou de outro, estamos presos e atados a isso mesmo a que
chamamos tempo. A presença sempre já, de algum modo, está na abertura de compreensão de
tempo e, nesse sentido, foi atingida pelo tempo, está presa e atada a ele.
Nessa perspectiva, não haveria o que chamamos de tempo se não houvesse a possibilidade
de compreensão. Isto é, a idéia de tempo implica necessariamente uma determinada compreensão
a seu respeito. Com efeito, para entender o que a relação tempo e compreensão implica, deve-se
ler o comentário à epígrafe de Ser e tempo: A interpretação do tempo como horizonte possível
de toda e qualquer compreensão do ser em geral é sua meta provisória
105
.
Assim, à medida que analisarmos o fenômeno do tempo, perceberemos que uma
proximidade entre as duas investigações a respeito do tempo. Pois, dizem eles, quando se trata de
compreender o tempo, entra em cena o modo de ser de um ente, que é o próprio ente que
compreende, quer dizer, o homem, para Santo Agostinho, e, para Heidegger, a presença (Dasein).
Uma prova disso é possível encontrar também em Wittgenstein. Não por acaso, ao buscar
dimensionar as condições de possibilidade da compreensão, recorre curiosamente ao texto das
Confissões e justamente onde Agostinho pergunta pelo tempo. Assim, nas Investigações
filosóficas lê-se:
É que a reflexão lógica investiga a essência de todas as coisas. Ela quer ver as coisas em
seu fundamento e não deve se preocupar se o acontecimento real é deste ou daquele modo.
Ela não emerge de um interesse por fatos da natureza nem da necessidade de apreender
conexões causais, mas de uma aspiração por compreender o fundamento ou a essência de
tudo que é empírico. Não que para isto devêssemos rastrear fatos novos: para nossa
investigação é muito mais essencial que não queiramos apreender nada novo com ela.
Queremos compreender algo que já está aberto diante de nossos olhos. Porque, em um certo
sentido, é isto que parecemos não compreender.
Santo Agostinho diz (
Confissões, livro XI, cap. 14): Quid est ergo tempus? Si nemo ex me
quaerat scio; si quaerenti explicare velim, nescio. Não daria para dizer isto de uma
questão da ciência da natureza (por exemplo, da questão acerca do peso específico do
hidrogênio). Aquilo que sabemos, se ninguém nos pergunta, mas que já o sabemos mais,
se devemos explicá-lo, é algo sobre o qual devemos refletir (E, obviamente, é algo que, por
um motivo qualquer, dificilmente refletimos sobre isso.)
106
.
A partir do que vimos anteriormente, podemos afirmar agora: o motivo pelo qual
dificilmente refletimos (nachsinnen) a respeito do tempo está relacionado ao fato de, como diz
também Heidegger, não estarmos olhando devidamente para o fenômeno do tempo, uma vez que,
numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, estamos entretidos e ocupados pelo
tempo. Heidegger convida-nos, por isso, a refletir mais cuidadosamente (sorgsam nachsinnen) a
105. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, p. 34 (grifo nosso).
106. Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas, Petrópolis, Vozes, 1996, n. 89, p. 64-65.
48
respeito do tempo, antes de querer atacá-lo com representações não examinadas (ungeprüften
Vorstellungen)
107
.
Fica claro, nesta passagem, que Heidegger reclama como tarefa ontológica uma análise do
modo como o tempo é medido no espírito. Ou seja, está em jogo, para ele, fazer uma análise
fenomenológica completa do modo de ser fundamental da presença que mede o tempo e como
ela, ao contar com o tempo e ao medi-lo de alguma forma, simultaneamente se co-mede. Em toda
e qualquer tentativa de medir, de mensurar, de com-preender o tempo, o ser humano mesmo é
medido. Ao deparar-se com a questão do tempo, Heidegger procura conceituá-lo (begreifen) de
uma maneira a liberar o tempo em sua estrutura ontológica fundamental. Vemos, assim, por que
a tematização agostiniana do tempo é inspiradora para Heidegger.
O primeiro pensador moderno a deparar-se com o problema do tempo foi Kant. Kant torna-
se o patrono de Heidegger. Por isso, foi um os principais interlocutores durante os anos que
concebeu e escreveu Ser e tempo
108
. Heidegger reconhece isso em Kant e o problema da
metafísica:
Durante a elaboração da preleção que apresentei no semestre de inverno de 1927/28, sobre a
Crítica da razão pura, chamou-me a atenção o capítulo do esquematismo e vislumbrei nele uma
vinculação entre o problema das categorias, isto é, com o problema do ser da metafísica
tradicional e o fenômeno do tempo. Assim, o questionamento de Ser e tempo entrou em jogo
como antecipação para a tentativa de interpretar Kant. O texto de Kant tornou-se um refúgio para
buscar junto dele um patrono para a questão do ser por mim levantada
109
.
Porém, diz Heidegger, assumindo a posição ontológica de Descartes, Kant omite algo
essencial: uma ontologia da presença
110
. Numa nota, ao final do § 81, de Ser e tempo, Heidegger
diz que a primeira seção da seguinte parte desse trabalho mostra em que medida se em Kant
uma compreensão mais radical do tempo do que Hegel
111
. Daí, segundo o projeto original do
tratado de 1927, Heidegger intencionava tratar da doutrina kantiana do esquematismo e do
tempo como estágio preliminar da problemática da temporaneidade na primeria seção, da
segunda parte, a qual não foi publicada em Ser e tempo.
107. Martin Heidegger, Zeit und Sein, in: Zur Sache des Denkens, Tübingen, Max Niemeyer, 1969, p. 4; tradução
brasileira: Tempo e ser, de 1962, in: Conferências e escritos filosóficos, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 457.
108. Diversas obras de Heidegger atestam isso: Kant e o problema da metafísica, de 1929, Os problemas fundamentais da
fenomenologia, de 1927, Interpretação fenomenológica da Crítica da razão pura de Kant, de 1927/28, Os conceitos
fundamentais da metafísica, de 1929/30 e Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios transcendentais, de 1935/36.
Cf. Martin Heidegger, Kant und das Problem der Metaphysik, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1973, §§ 36-45, p.
198-239. Cf. ainda o texto da Disputatio de Davos entre Ernst Cassirer e Mantin Heidegger publicadas ao final deste
mesmo livro sobre Kant. Também de Heidegger: Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1975, § 21, p. 445s e Que é uma coisa?, Lisboa, Edições 70, 1992, p. 25-120.
109. Martin Heidegger, Kant und das Problem der Metaphysik, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1973, p. XIV.
Cf. Ernildo Stein, Seminário sobre a verdade, Petrópolis, Vozes, 1993, p. 73.
110. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 6, p. 62.
111. Pelo sumário apresentado no § 8, o título da primeira seção o elaborada de Ser e tempo seria: A doutrina kantiana
do esquematismo e do tempo como estágio preliminar da problemática da temporalidade (Martin Heidegger, Ser e tempo,
Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 8, p. 80 81, nota 244, p. 525).
49
A partir dessa referência, vemos que, ao lado de Kant, outro pensador moderno com o qual
Heidegger dialoga é Hegel. Ressalte-se, aqui, das obras de Heidegger: A fenomenologia do espírito
de Hegel, preleções de 1923 a 1944 e, sobretudo, os §§ 78 e 82 de Ser e tempo. Podemos ler, na
interpretação heideggeriana da Fenomenologia do espírito: em Hegel é apresentada a
problemática de Ser e tempo... Se a alusão da problemática de Ser e tempo pode ser paradoxal,
então em Hegel. Pois a tese: A essência do ser é o tempo é justamente o contrário daquilo que
Hegel procurou demonstrar em toda a sua filosofia
112
. No § 13, das preleções heideggerianas de
Hegel, principalmente no tópico b) O novo conceito de ser do em-si-permanente, a vida; ser e
tempo em Hegel Ser e tempo)
113
, Heidegger estabelece uma relação entre a concepção do
tempo de Hegel e a sua tematização. Para Heidegger, Hegel está preocupado em determinar o nexo
entre tempo e espírito:
Em seu resultado, a presente interpretação da temporalidade da presença e da pertença do
tempo do mundo à temporalidade da presença parece concordar com Hegel. Considerando,
porém, que a presente análise do tempo, já em seu ponto de partida, se distingue, em
princípio, de Hegel e que a sua meta, ou seja, a intenção de uma ontologia fundamental,
orienta-se contrariamente a ele, faz-se então necessária uma breve exposição da concepção
hegeliana da relação entre tempo e espírito, a fim de se esclarecer, indiretamente, e de se
concluir, provisoriamente, a interpretação ontológico-existencial da temporalidade da
presença, do tempo do mundo e da origem do conceito vulgar de tempo
114
.
Por isso, no § 82, Heidegger mostra em que medida a sua tematização do tempo é totalmente
nova se comparada à tematização hegeliana. A novidade principal reside justamente no fato de
realizar-se, em Ser e tempo, pela primeira vez, uma analítica ontológica da presença e,
conseqüentemente, busca-se também elaborar através dela uma ontologia fundamental. O § 82 tem
por título: A distinção do nexo ontológico-existencial entre temporalidade, presença e tempo do
mundo por oposição à concepção hegeliana da relação entre tempo e espírito. Heidegger apresenta
uma síntese do conceito hegeliano do tempo e em que medida esta abordagem pode ou não
comparar-se com analítica realizada em Ser e tempo. O pensador subdivide este § 82 em dois
tópicos, a saber: a) O conceito hegeliano de tempo e b) A interpretação hegeliana do nexo entre
tempo e espírito. Nesse parágrafo, na mais extensa nota explicativa de Ser e tempo, Heidegger
procura estabelecer um paralelo entre as compreensões do tempo de Aristóteles, Hegel e Bergson,
mostrando que estes dois filósofos dependem fundamentalmente da concepção aristotélica de
tempo. Segundo Heidegger, a concepção bergsoniana de tempo também nasce, manifestamente, de
uma interpretação do tratado sobre o tempo de Aristóteles
115
. Tanto no § 82 como no § 19 de Os
112. Cf. Martin Heidegger, Hegels Phänomenologie des Geistes, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1980, § 13, p.
208-209.
113. Cf. Martin Heidegger, Hegels Phänomenologie des Geistes, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1980, § 13, p.
203-213.
114. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 78, p. 500.
115. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 83, nota 258, p. 530.
50
problemas fundamentais da fenomenologia, Heidegger mostra que a tematização bergsoniana é
também dependente totalmente do Estagirita
116
.
Dessas considerações, é possível perceber que Heidegger, a partir de uma leitura
fenomenológica e interpretativa da tradição metafísica, mostra que o tempo nem sempre foi visto
e entendido de maneira unívoca e, portanto, que diferenças essenciais nas mais diversas
tematizações tradicionais, mas que há uma posição fundamental prevista e pressuposta. Para ele,
os diversos modos de tematizar o tempo só foram possíveis porque uma posição fundamental
em relação ao tempo e que nunca foi suficientemente elaborada pela tradição metafísica. Assim,
toda tradição metafísica, mesmo as tematizações de Bergson e Hegel, permanecem presas
fundamentalmente às investigações aristotélicas e agostinianas do tempo
117
.
Portanto, falar da interpretação heideggeriana das principais tematizações tradicionais do
tempo implica avistar a posição fundamental que norteia não o pensamento heideggeriano,
mas, também, toda tradição metafísica. Posicionamento fundamental não quer dizer, em
primeiro lugar, encontrar apenas um denominador comum nas diversas tematizações do tempo da
tradição metafísica ocidental. Fundamental, entende Heidegger, é o pensamento que orienta,
guia, perpassa e está presente em todas as principais tematizações tradicionais do tempo, sem que
elas necessariamente tematizem este fundamento. Assim, ao falar das tematizações tradicionais
do tempo como, por exemplo, de Aristóteles, Santo Agostinho, Kant e Hegel
118
é
imprescindível avistar a posição fundamental que Heidegger nelas avista e, a partir da qual,
sua própria interpretação ontológica do fenômeno do tempo.
Nesse caso, qual seria esta posição fundamental? Como Heidegger a vê e entende? De onde
e com que direito? Para compreender isso melhor, vejamos o que ele diz na conversa com
Cassirer, em Davos, e publicada ao final de Kant e o problema da metafísica:
Toda minha interpretação da temporalidade tem este propósito metafísico de perguntar: todos
estes títulos da metafísica [Heidegger refere-se aqui aos seguintes títulos metafísicos:
constância e eternidade; ele se pergunta: o que significa, nesse caso, propriamente constante e
eterno? Não será a eternidade nada mais do que aquilo que é possível em virtude de uma certa
transcendência interna do tempo?] Transcendental são a priori, a*eiv o[n, casualmente oujsiva, ou
de onde provêm? Se falam do eterno, como devem ser entendidos? Só podem ser e são
116. Os textos bergsonianos mais relevantes sobre o problema do tempo são: Essai sur le donnéss imdiates de la
conscience, de 1888; Lévolution créatrice, de 1907 e Durée et simultanéite, de 1922. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo,
Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 82, nota 258, p. 530 e Die Grundprobleme der Phänomenologie,
Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19, p. 328. Obras de Henri Bergson traduzidas para o português:
Duração e simultaneidade. São Paulo, Martins Fontes, 2006; Ensaio sobre os dados imediatos da conciência, Lisboa,
Edições 70, 1988; Matéria e memória, São Paulo, Martins Fontes, 1990; A evolução criadora, Rio de Janeiro, Delta, 1964.
Sobre o conceito bergsoniano de tempo, cf. Kurt Flasch, Was ist Zeit?, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1993, p.
27-36.
117. Cf. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, §
19, p. 329.
118. Além das indicações de Heidegger em Ser e tempo (principalmente §§ 6 e 78 a 82), orientamo-nos, para o que será
exposto, a seguir, a respeito das principais tematizações tradicionais do tempo, pelo que o pensador diz principalmente em
Os problemas fundamentais da fenomenologia (cf. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt
am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19, p. 327-329).
51
possíveis de ser entendidos devido ao fato de que, na essência do tempo, uma
transcendência interna, de modo que o tempo não só é o que possibilita a transcendência, mas
o tempo possui em si um caráter horizontal, graças ao qual, diante da atitude em relação do
futuro e da rememorização, me é dado dispor sempre de um horizonte de atualidade, porvir e
vigor de ter sido, ou seja, que se encontra aqui uma determinação temporal, ontológica e
transcendental, dentro da qual se constitui algo que é primordialmente como a constância da
substância. É a partir disso que se deve entender toda minha interpretação da temporalidade.
E para expor esta íntima estrutura da temporalidade e para mostrar que o tempo o é uma
moldura em que se desenvolvem as vivências e para aclarar este íntimo caráter da
temporalidade da presença foi preciso o esforço do meu livro [Ser e tempo]. Cada página deste
livro foi escrita para enfocar unicamente que, já desde os antigos, o problema do ser foi
interpretado sempre em relação ao tempo, num sentido bastante incompreensível, e que o
tempo sempre tem sido atribuído ao sujeito. Considerando a relação desta questão com o
tempo e considerando a questão pelo ser, foi necessário expor a temporalidade da presença,
não no sentido em que se elabora nesta ou naquela teoria, mas dentro de uma bem-determinada
problemática em que se expõe a questão da presença humana. Toda a problemática de Ser e
tempo, que trata da presença humana, o é nenhuma antropologia filosófica; para este efeito
ela é demasiadamente estreita e provisória. Parece-me que existe aqui uma problemática de
modo que, até hoje, ainda não foi desenvolvida como tal, uma problemática que se determina
por meio da seguinte pergunta: Se a possibilidade da compreensão do ser, e com isso a
possibilidade da transcendência do homem, e com isso a possibilidade do comportamento
conformador para o ente, do acontecer histórico na história do mundo do homem, deve ser
mesmo possível; e se esta possibilidade está fundada numa compreensão do ser e se esta
compreensão ontológica, de um modo ou de outro, está orientada para o tempo, então impõe-se
a tarefa: verificar a temporalidade da presença em relação à possibilidade da compreensão do
ser. Pois para isso estão orientados todos os demais problemas
119
.
Importante perceber aqui o âmbito do qual Heidegger avista a necessidade de tematizar o
tempo. Ele afirma que o tempo está relacionado intrinsecamente à compreensão do ser. Esta
compreensão é ontológica e orienta-se pelo tempo. Nasce dali a necessidade de verificar se e
como a compreensão do ser está relacionada à temporalidade da presença. Podemos afirmar
que o posicionamento fundamental que norteia o pensamento heideggeriano, em relação à sua
tematização do tempo, concentra-se nessas duas expressões. Tratam-se, pois, de duas expressões
ontológicas: compreensão e temporalidade e, principalmente, as formas genitivas do ser e
da presença, que, por sua vez, relacionam-se mutuamente. Evidencia-se aqui, para Heidegger,
que a compreensão do ser nunca se fora da presença humana, mas que está sempre
intimamente a ela relacionada. De fato, ao tratar do tempo, o pensador mostra como a presença,
sempre já, isto é, por antecipação, compreende a si mesma, em tudo que faz e como faz,
temporalizando-se. A presença é o ente que, queira ela ou não, em tudo que empreende e realiza,
sempre já se descobre sob o domínio da compreensão de ser. Ela sempre já se descobre na e como
possibilidade de empreender isso ou aquilo, de realizar-se dessa ou daquela maneira, por existir
temporalmente. A presençao seria o ente que é e como é, destituída de compreensão e
119. Martin Heidegger, Davoser Disputation, in: Kant und das Problem der Metaphysik, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1973, p. 254-255 (os acréscimos entre colchetes o nossos).
52
sentido. Estes dois existenciais revelam o imediato, o súbito, o abrupto de mundo, razão pela qual
toda e qualquer compreensão, toda e qualquer abertura de mundo é possível. Por isso, diz
Heidegger, ao final da passagem citada: impõe-se a tarefa: verificar a temporalidade da presença
em relação à possibilidade da compreensão do ser. Pois para isso estão orientados todos os demais
problemas. A palavra verificar é aqui de importância vital. Está em jogo um modo de falar do
tempo que seja verdadeiro, que revele a verdade do tempo, o fundamento do tempo. Deve-se falar
(tematizar) e, falando (tematizando), revelar o fundamento ontológico do tempo. De fato, a questão
do ser está relacionada à questão do tempo. Não o questões quaisquer ou questões ao lado de
outras tantas possíveis. São, desde seu fundamento ontológico último, a mesma questão, a questão
que orienta e fundamenta todas as demais. A partir disso, portanto, é possível compreender o título
da obra capital de Heidegger: Ser e tempo.
No livro Introdução à metasica há uma passagem esclarecedora desse posicionamento
fundamental e, conseqüentemente, do caminho percorrido por Heidegger em sua tematizão do tempo:
Mas por que justamente tempo? Porque, no princípio da filosofia ocidental, a perspectiva que
guia a abertura do ser é o tempo. Mas o é de tal modo, que permaneceu e teve de permanecer,
como perspectiva, oculto. Quando no fim a oujsiva se converte no conceito fundamental do ser
e ser significa, então, presença constante (ständige Anwesenheit), que outra coisa poderia ainda
fundamentar, de modo não des-coberto e não-revelado, a essencialização da constância e a
essencialização da presença do que o tempo? Esse tempo, porém, ainda não foi des-dobrado e
des-envolvido em sua essencialização nem poderá sê-lo (no terreno e na perspectiva da sica).
Pois, quando, no fim da filosofia grega, se introduziu com Aristóteles a reflexão sobre a
essencialização do tempo, teve ele de ser tomado como algo, de algum modo presente, oujsiva
ti". É o que se exprime no fato de o tempo ter sido apreendido a partir do agora, como o que
cada vez e só está presente. O passado é o não-mais-agora, o futuro o ainda-não-agora. O
ser, no sentido do que é objetivamente dado (presença = Anwesenheit), subministrou a
perspectiva para a determinação do tempo. E assim o tempo não chega a ser a perspectiva, que
propriamente se seguiu na interpretação do ser
120
.
Embora haja nessa citação vários elementos que mereçam explicitação temas com os quais
nos ocuparemos no terceiro capítulo de nossa investigação , devemos prestar atenção, por
enquanto, que, não por acaso, Heidegger menciona, apesar de um modo não explícito, a Física de
Aristóteles. Segundo ele, foi Aristóteles, ao lado de Santo Agostinho, quem melhor tematizou o
tempo. Vemos isso de modo manifesto numa passagem de Os problemas fundamentais da
fenomenologia:
Já se disse muitas vezes que nas interpretações do tempo da antigüidade, isto é, de Aristóteles
e de Agostinho, foi dito o essencial que se pode dizer a respeito do tempo, especialmente em
relação à compreensão vulgar do tempo. E se comparadas uma com a outra, as investigações de
Aristóteles o conceptualmente mais rigorosas e vigorosas, ao passo que Agostinho vê
algumas dimensões do fenômeno do tempo mais originariamente. Nenhuma tentativa de chegar
ao enigma do tempo deverá dispensar-se de uma discussão com Aristóteles. Pois foi ele quem,
120. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 226-227. Cf. edição alemã:
Einführung in die Metaphysik, Tübingen, Max Niemeyer, 1987, p. 157.
53
pela primeira vez e por um longo período afora, foi capaz de conceituar inequivocamente a
compreensão vulgar do tempo, e de tal modo que sua concepção do tempo corresponde ao
conceito do tempo natural. Aristóteles foi o último dos grandes filósofos que tiveram olhos
para ver, e o que é ainda mais decisivo, a energia e a persistência de orientar as investigações
sempre de novo aos fenômenos e ao que havia sido entrevisto; e isso apesar de todas estas
especulações bravias e perigosas serem sempre de novo menosprezadas desde o seu
fundamento pelo coração da compreensão comum
121
.
Vê-se claramente que Heidegger dá uma importância toda particular à tematização
aristotélica do tempo. Na forma tradicionalmente conhecida, a definição aristotélica do tempo
diz: O tempo é isso, a saber, o que é contado no movimento que se dá ao encontro no horizonte
do anterior e do posterior (tou~to gavr e*stin o& crovno", a*riqmoV" kinhvsew" kataV toV
provteron kaiV u{steron)
122
. Em sua interpretação de Aristóteles, Heidegger uma formulação
precisa a esta conceituação, nestes termos: O tempo é o que é contado na seqüência atualizante
de contagem do ponteiro no mostrador de suas variações. E isso de tal maneira que a
atualização se temporaliza na unidade ekstática de reter e aguardar, abertos horizontalmente
segundo o anterior e o posterior
123
.
Procuremos avistar alguns pontos essenciais pelos quais Heidegger interpreta a tematização
aristotélica do tempo. Em Os problemas fundamentais da fenomenologia e Ser e tempo,
Heidegger analisa e mostra, fenomenologicamente, de onde Aristóteles retira (elabora) seu
conceito de tempo. O decisivo, portanto, consiste em ver e entender de onde Aristóteles retira
sua concepção ou definição do tempo. Em Que é uma coisa?, podemos ler: Também em relação
à determinação essencial do espaço e do tempo, Platão e Aristóteles pré-indicaram o caminho
que ainda hoje percorremos
124
. Porém, é Aristóteles, sem dúvida, o principal interlocutor de
Heidegger em sua elaboração do conceito de tempo
125
. Além de Heidegger reconhecer na
121. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19,
p. 329. Cf. também Martin Heidegger e Medard Boss, Seminários de Zollikon, Petrópolis: Vozes; São Paulo: ABD/EDUC,
2001, p. 63s.
122. Cf. Aristóteles, Física D 11, 219 b 1s. Heidegger cita e comenta esta definição em Ser e tempo e Os problemas
fundamentais da fenomenologia (cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, §
81, p. 516 e Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975,
§ 19, p. 324-388).
123. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 81, p. 517.
124. Martin Heidegger, Que é uma coisa?, Lisboa, Edições 70, 1992, p. 54-55. Heidegger comenta a concepção planica
do tempo em Ser e tempo: Foi por isso que, dirigindo a visão para o tempo como seqüência de agoras, que emergem e
desaparecem, já Plao teve de chamar o tempo de imagem derivada da eternidade. A definição platônica do tempo
encontra-se no Timeu: Então pensou em compor uma imagem móvel da eternidade e, no mesmo tempo em que organizou
o céu, fez da eternidade que perdura na unidade essa imagem eterna que se movimenta de acordo com o mero e a que
chamamos tempo (cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, § 81, nota 238,
p. 520). A concepção platônica do tempo es ligada fundamentalmente à constância do tempo (imagem vel da
eternidade). Cf. Platão, Parmênides 156a-157d, tradução de Carlos Alberto Nunes, Diálogos, vol. VIII, Coleção
Amazônica, publicada pela Universidade Federal do Pará, p. 67-70. Cf. também Fédon, diálogo no qual Platão discorre
sobre a alma (mesma ed. Diálogos, vol. III-IV, p. 285-367). Para outras considerações sobre o tempo em Aristóteles e
Platão, são importantes os trabalhos G.E.R Lloyd, O tempo no pensamento grego, in: As culturas e o tempo,
Petrópolis/São Paulo, Vozes/USP, 1975, p. 136-175 e G.J. Whitrow, O tempo na hisria: conceões do tempo da pré-
história aos nossos dias, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993 e O que é tempo? Uma visão clássica sobre a natureza do
tempo, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.
125. Além de Aristóteles e Plao, os principais fisofos a se ocuparem com o tempo na antiidade foram: a) Lucrécio:
em De rerum natura (Sobre a natureza das coisas) lê-se sobre o tempo: O tempo não existe por si mesmo, mas apenas
pelos objetos sensíveis, de que resulta a noção de passado, presente e futuro. Não se pode conceber o tempo em si e
54
definição aristotélica do tempo uma definição decisiva para as abordagens posteriores do tempo,
no § 81 de Ser e tempo, intitulado A intratemporalidade e a gênese do conceito vulgar de
tempo, Heidegger também interpreta o conceito aristotélico do tempo
126
.
O que importa ver e entender aqui é que foi Aristóteles o primeiro pensador do Ocidente a
ocupar-se com o tempo de modo a transformá-lo numa investigação ontológica de fato. A
tematização mais importante encontra-se no tratado da Física
127
. Este tratado não é só,
cronologicamente falando, a primeira tematização ontológica do tempo. O que Aristóteles viu em
sua definição do tempo e se manteve até hoje , passou a ser visto, pela tradição metafísica
ocidental, como algo evidente. A partir disso, então, Heidegger propõe-se realizar uma
interpretação fenomenológica da tematização aristotélica do tempo. Ele mesmo o diz em duas
passagens importantes de Ser e tempo:
O tratado de Aristóteles sobre o tempo é a primeira interpretação desse fenômeno, legada pela
tradição. Ele determinou, de maneira essencial, toda concepção posterior do tempo, inclusive a
de Bergson. Ademais, pela análise do conceito aristotélico de tempo, tornar-se-á claro,
retrospectivamente, que a concepção kantiana do tempo se move dentro das estruturas
apresentadas por Aristóteles. Isso significa que a orientação ontológica fundamental de Kant é
grega, não obstante todas as diferenças que uma nova investigação comporta
128
.
independentemente do movimento e do repouso das coisas; b) Plotino: é um dos primeiros comentadores do pensamento
grego. De Plotino Heidegger cita explicitamente o terceiro livro das Enéadas, intitulado Peri` ai*w~vo" kai` crovvnou (Sobre o
aion e o tempo). O aion é uma forma particular intermediária entre eternidade e tempo, a qual desempenha, segundo
Heidegger, um papel importantíssimo na discuso do tempo na medievalidade (cf Martin Heidegger, Die Grundprobleme
der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19, p. 327-328; Kurt Flasch, Was ist Zeit?,
Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1993, p. 56); c) Simplício: segundo Heidegger, foi ele a fazer o primeiro
comentário importante sobre o tratado aristotélico do tempo (cf. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der
Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19, p. 325). Uma referência explícita de Heidegger ao
comentário de Simplício à sica encontra-se em A sentença de Anaximandro, in: Sendas perdidas (Holzwege), Buenos
Aires, Losada, 1979, especialmente p. 268, 280, 303; d) Boécio: em De consolatione philosophiae (Sobre a consolação da
filosofia, livro V, 6) é elaborada e descrita a lebre definição de eternidade (cf. K. Barth, Kirchliche Dogmatik II/1,
Zurique/Zollikon, 1946, p. 685-764). Marcia Schuback, num estudo primoroso, escreve: O conceito teogico clássico de
eternidade remete à definão de Boécio, enunciada nos seguintes termos: aeternitas est interminabilis vitae tota simul et
perfecta possessio. Eternidade é a posse per-feita, simultânea e total da vida interminável (cf. Marcia Cavalcante
Schuback, Para ler os medievais, Petrópolis, Vozes 2000, onde, no capítulo 3: Quando o fim está dentro do começo, p.
79-82). A autora descreve o modo como Boécio compreendeu o conceito de eternidade e como este conceito foi
importante para a tradição medieval posterior.
126. Cf. aqui Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 81, p. 516-525.
127. Aristóteles, Physique, Société DÉdition Les Belles Lettres, Paris, 1926; Physikvorlesung, Wissenschaftliche
Buchgesellschaft, Darmstadt, 1959; Physics, Chicago/London/Toronto, Encyclopaedia Britannica, 1952, p. 255-355. No
caso deste tratado, a ênfase recai principalmente sobre o livro IV, no qual Aristeles a célebre definição sobre o tempo, a
saber: O tempo é o que é contado no movimento que se ao encontro no horizonte do anterior e do posterior (tou~to
gavr e*stin o& crovno", ariqmoV" kinhvsew" kataV toV provteron kaiV u{steron) (Física D 11, 219 b 1s). No que diz
respeito ao confronto de Heidegger com as investigações sobre o tempo em Aristeles, é importante não deixar de levar em
consideração os seguintes textos de Martin Heidegger: Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006,
especialmente §§ 81 e 82, p. 516-533; Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1975, todo o amplo § 19, mas em especial p. 327-361, onde o autor faz uma das mais originais interpretações
do conceito de tempo herdado de Aristóteles; cf. também o texto intitulado Vom Wesen und Begriff der Fuvsi",
publicado em Wegmarken, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1967, p. 309-371. 1Cf. também os estudos sobre o
conceito aristotélico de tempo: Victor Goldschmidt, Temps physique et temps tragique chez Aristote, Paris, Vrin, 1982; Paul
F. Conen, Die Zeittheorie des Aristoteles, Munique, C.H. Becksche Verlagsbuchhandlung, 1964; Catherine Collobert
(introdução, tradução e comentários), Aristote: Traité du temps: Physique, livre IV,10-14, Paris, Éditions Ki, 1995;
Michael J. Hyde e Craig R. Smith, Aristotle and Heidegger on Emotion and Retoric: Question of Time and Space, in: The
Critical Turn. Rhetoric and Philosophy in Postmodern Discourse, Carbondale/Edwardswille, Southern Illinois University,
1996, p. 68-99.
128. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 6, p. 65.
55
A primeira interpretação legada pela tradição e que trata amplamente da compreensão vulgar
do tempo encontra-se na Física de Aristóteles, ou seja, no contexto de uma ontologia da
natureza. Tempo relaciona-se com lugar e movimento’”
129
.
O conceito aristotélico do tempo fundamenta toda a interpretação posterior, afirma
Heidegger. Porém, é importante evidenciar isso melhor para que nossa investigação possa seguir
passos seguros. A princípio, poder-se-ia dizer que Aristóteles viu algo mais e é dali que ele
retira ou elabora seu conceito de tempo. Está em jogo, por isso mesmo, esclarecer em que
consiste este algo mais e como Aristóteles compreendeu o tempo ao ponto de chegar a esta
concepção de tempo e não a outra. Heidegger reconhece:
Por mais que, à primeira vista, essa definição possa parecer estranha, ao se delimitar o
horizonte ontológico-existencial do qual Aristóteles a retira, ela se mostra por si mesma
evidente e autenticamente haurida. Para Aristóteles, a origem do tempo assim revelado não
constitui problema. Sua interpretação do tempo movimenta-se, sobretudo, na direção da
compreensão natural do ser. Mas como esta compreensão e o ser nela compreendido
tornam-se um problema de princípio para a presente investigação, a análise aristotélica do
tempo só poderá ser tematicamente interpretada, após se resolver a questão do ser. E isso de
maneira que ela conquiste um significado de princípio para a apropriação positiva do
questionamento crítico e delimitado da antiga ontologia.
Toda discuss
ão seguinte a respeito do conceito de tempo atém-se fundamentalmente à
definição aristotélica, ou seja, tematiza o tempo tal como ele se mostra na ocupação, guiada
por uma circunvisão. O tempo é o contado, isto é, o que se pronuncia, embora
implicitamente, na atualização do ponteiro (ou da sombra) que anda. Na atualização do que se
move em seu movimento, o que se diz é: aqui-agora, aqui-agora, etc. O que é contado são os
agora. E estes se mostram em cada agora como logo-mais-não e a pouco não-agora’”
130
.
Segundo Heidegger, há, na concepção aristotélica de tempo, alguns pontos essenciais que
devem ser destacados
131
:
1. Ela é retirada do contexto de uma ontologia da natureza. De fato, no capítulo 10 do
tratado de Aristóteles, o tempo identifica-se com a esfera celeste que, em seu movimento
circular, tudo abarca e tudo compreende dentro de si mesmo. Para compreender isso melhor, é
preciso ter presente a representação antiga do mundo, segundo a qual a terra é um disco que
flutua no oceano rodeada pela totalidade da esfera celeste. Dentro dela sobrepõem-se diversas
esferas nas quais encontram-se fixadas as estrelas. A esfera celeste mais extrema é a que abarca
tudo o que propriamente é. Ela e sua revolução identificam-se com o tempo. De acordo com
Aristóteles, o fundamento desta interpretação é a seguinte: e!n te tw/ crovnw/ panta e*stiVn kaiV
e*n th/~ tou~ o@lou sfaivra, ou seja, todo ente é no tempo, porém, tudo o que é subsistente está
dentro da cúpula celeste giratória, que é o limite externo de todo ente. O tempo e a esfera celeste
129. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 82, p. 526.
130. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 81, p. 517-518. Cf. também
Martin Heidegger, Que é uma coisa?, Lisboa, Edições 70, 1992, p. 54-55.
131. Cf. aqui os tópicos a) Estrutura do tratado aristotélico do tempo e b) Interpretação do conceito aristotélico de
tempo, desenvolvidos em Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1975, § 19, p. 330-361.
56
mais externa se identificam. Há, nesta interpretação, algo que todos nós experimentamos, a saber,
o tempo e sua relação com a revolução do céu e o tempo, por sua vez, como aquilo em que todo
ente é. Certamente dizemos: o ente é no tempo e, nesse sentido, o tempo é algo como o
movimento (kivnhsi" ti")
132
. De fato, falamos da passagem do tempo e dizemos: o tempo passa.
Para kivnhsi", Aristóteles emprega também metabolhv. Este é o conceito mais geral para
expressar movimento: literalmente, transformação
133
. O movimento está sempre no móvel e,
nesse sentido, não é algo mesmo que se move. Portanto, o movimento está sempre no móvel.
Não é algo que, por assim dizer, flutue sobre o que se move, mas que é o móvel mesmo que se
move. Portanto, o movimento está sempre ali onde está o móvel. Fica estabelecida, assim, uma
diferença entre o tempo e o movimento, ou seja, enquanto o movimento está sempre apenas no
móvel e somente ali onde o móvel se encontra, o tempo está em todas as partes (pantacou~), não
está pois em um determinado lugar e não está no móvel mesmo. Ele está, porém, junto a (parav)
e, de algum modo, ao lado de. Movimento e tempo distinguem-se na maneira de pertencerem ao
móvel e o que é no tempo é o que chamamos intratemporal;
2. É no capítulo 11, o mais decisivo, em que a célebre definição aristotélica do tempo é
exposta e analisada. Em seu resultado, o antes (Vor) e o depois (Nach) dizem respeito ao
movimento ou, dito mais sucintamente, algo contado do movimento com o qual nos encontramos
no horizonte do anterior (Früher) e do posterior (Später). Aristóteles mostra de forma mais
precisa o que está presente na experiência de um movimento e em que medida encontra-se nela,
por sua vez, o tempo. Esclarece de que modo e em que sentido o tempo é a*riqmov", quer dizer,
número, e como aparece o fenômeno fundamental do tempo, toV nu~n, ou seja, o agora;
3. A partir disso, chegamos ao terceiro ponto importante analisado por Aristóteles no capítulo
13 de seu tratado. Ele pergunta-se pela unidade do tempo em relação à multiplicidade da seqüência
de agoras. Está em jogo mostrar como o agora (toV nu~n) constitui a autêntica coesão interna do
tempo, a sunevceia, isto é, o manter unido, a continuidade. Aristóteles pergunta pela união do
tempo na multiplicidade da seqüência de agoras. Ele procura mostrar aqui, como o agora, toV nu~n,
constitui a unidade própria do tempo, que é a sunevceia, ou seja, o manter-se unido (continuum, em
latim e Stetigkei, em alemão). Trata-se da questão de que modo o agora reúne em si o tempo como
totalidade. Todas as determinações de tempo estão relacionados ao agora. Aristeles oferece uma
interpretação a algumas determinações de tempo apoiando-se no esclarecimento da sunevceia: o
132. Cf. Aristóteles, sica D 10, 218 b 6s, bem como Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie,
Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19, p. 332.
133. Metabolhv significa movimento em geral. Segundo Heidegger, transformação de qualquer coisa em qualquer coisa.
Neste sentido lato, é movimento, por exemplo, o empalidecer e o avermelhar, mas também há transformação quando um
corpo é transportado de um lugar para o outro. Este ser-deslocado, este transporte, esta transformação, chama-se farav (cf.
Martin Heidegger, Martin Heidegger, Que é uma coisa?, Lisboa, Edições 70, 1992, p. 88).
57
h]dh, o imediatamente, o a]rti, o justamente-agora ou faz-um-instante e, além disso, o pavlai, que é
o outrora ou faz tempo, e o e*xaivfnh", de repente. Imediatamente, justamente-agora, faz-um-
instante, outrora, faz tempo e de repente são todas determinações que remetem ao nu~n. O faz-um-
instante é visto retroativamente a partir de um agora, o logo-a-seguir é visto a partir do agora
igualmente para frente. Aristóteles não compreende estas determinações em sua conexão interna,
pois dá apenas exemplos de determinações de tempo sem conhecer sua sistemática
134
, diz
Heidegger.
Qual o propósito de Heidegger, então, em relação à definição aristotética de tempo? Ele faz
uma crítica positiva (interpretação fenomenal) no sentido de apropriar-se das conquistas
realizadas por Aristóteles da tematização do tempo. Para Aristóteles como para Heidegger, está
em jogo compreender o tempo em si mesmo, ou seja, ontologicamente. A diferença essencial,
entre um e outro, é a posição ontológica de fundo em que se movimentam nas suas tematizações
do tempo. Em suas análises, diz Heidegger, Aristóteles, como ninguém mais, teve olhos, energia
e persistência para manter-se voltado à coisa mesma do tempo: Aristóteles foi o último dos
grandes filósofos que tiveram olhos para ver, e o que é ainda mais decisivo, a energia e a
persistência de orientar as investigações sempre de novo aos fenômenos e ao que havia sido
entrevisto; e isso apesar de todas estas especulações bravias e perigosas serem sempre de novo
menosprezadas desde o seu fundamento pelo coração da compreensão comum
135
.
Se a concepção aristotélica de tempo concentra-se no agora, como interpretar o agora
(nu~n)? Como e o que vê Heidegger ao dizer que todas as diferentes determinações de tempo
aristotélicas remetem ao agora? O que quer dizer Heidegger de que Aristóteles não
compreendeu as diferentes determinações de tempo em sua conexão interna e que ele apenas
exemplos de determinações de tempo sem conhecer sua sistemática interna? Nesse sentido,
Heidegger reconhece que Agostinho algumas dimensões do fenômeno do tempo mais
originariamente, ou melhor, Agostinho é o primeiro grande pensador a ver, compreender e
explicar o tempo em sua sistemática interna. Sob o ponto de vista ontológico, em suas
Confissões, Agostinho procura compreender e explicar se e como se articulam e estruturam
passado-presente-futuro.
Devemos considerar, por outro lado, que Heidegger, além de interpretar a Física,
também reconhece que Aristeles entreviu o fenômeno do instante. Vemos isso no livro Os
problemas fundamentais da fenomenologia: O instante é um fenômeno fundamental da
temporalidade originária, ao passo que o agora é apenas um fenômeno do tempo derivado.
134. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19,
p. 334-335.
58
Aristóteles entreviu o fenômeno do instante, o kairov", e o delimitou no livro VI de sua
Ética a Nicômaco. Nisso, porém, ele não foi bem-sucedido, uma vez que faltou mostrar a
conexão do caráter específico do tempo do kairov" com o instante, o que ele reconhece, por
outro lado, como tempo (nu~n)
136
. Evidencia-se aqui o que Aristóteles também teria visto
como instante (kairov"), embora não tenha desdobrado toda estrutura e sistemática interna do
instante do tempo. Heidegger mostra isso à medida que tematiza o tempo como temporalidade
originária da presença, sendo o agora apenas um fenômeno do tempo derivado. Coloca-se aqui
a questão se é possível uma maneira apropriada de tematizar ontologicamente o tempo. O
instante (Augenblick) é um momento constitutivo fundamental da temporalidade, que é, em si
mesma, ekstática (ekstatisch). O e*kstatikovn é o originariamente o fora-de-si (Außer-
sich)
137
e o e*xaivfnh" é o bito, o imediato (Plötzlichkeit)
138
. Embora estes termos já
tenham sido empregados por Aristóteles, Heidegger mostra que a concepção aristotélica de
tempo, além de movimentar-se dentro de uma ontologia natural e, por isso, ficar
fundamentalmente presa ao agora do tempo, também o é fundamentada desde a presença
humana.
Segundo a interpretação de Heidegger, todas as determinações de tempo de Aristóteles
remetem, em última instância, ao agora (nu~n). Mas o que seria, então, o agora capaz de abarcar
e determinar o tempo? Esta é uma das perguntas fundamentais que Heidegger se faz ao interpretar o
conceito de tempo aristotélico. Ele o vê, então, no modo aristotélico de compreender o tempo,
uma deficiência. Pelo contrário. Reconhece apenas que Aristóteles move-se no âmbito da
compreensão natural, ou seja, que seu conceito de tempo nasce de uma ontologia que se movimenta
dentro de uma compreensão natural de mundo
139
. Assim, por exemplo, no § 81 de Ser e tempo,
Heidegger diz que o conceito aristotélico de tempo é por si mesma evidente e autenticamente
haurida. [...] Toda discussão seguinte a respeito do conceito de tempo atém-se fundamentalmente à
definição aristotélica
140
.
Por um lado, se é possível afirmar que Heidegger vê e compreende o modo como Aristóteles
e Agostinho buscam explicar o fenômeno do tempo, por outro lado, porém, busca compreender o
mesmo fenômeno de um modo novo, vale dizer, busca ver, compreender e explicar a verdadeira
possibilidade de conexão ou relação interna entre futuro-passado-presente. Isso só é possível a
135. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19,
p. 329.
136. Cf. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, §
20, p. 409.
137. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 413.
138. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 30, p. 202.
139. Cf. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, §
19, p. 329.
140. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 81, p. 517.
59
partir do fenômeno da temporalidade. A concepção genuinamente heideggeriana do tempo chama-
se, por isso, temporalidade originária da presença
141
.
Porém, em que sentido constitui-se a temporalidade originária da presença numa
concepção nova? Heidegger parte do pressuposto que é necessário fazer uma real e verdadeira
descrição fenomenal do nu~n como agora autêntico. Pois, se, como acontece em Aristóteles, o
agora desempenha uma função toda especial a ponto de ser o fio condutor de toda interpretação
posterior do tempo e, ainda, se a unidade própria do tempo é a sunevceia, isto é, o manter-se
unido (continuum ou Stetigkeit), como diz Heidegger, então deve ser possível explicitar
fenomenal e ontologicamente esta unidade interna própria do fenômeno do tempo.
Nosso objetivo não é apontar aqui todas as conseqüências da interpretação heideggeriana
da concepção aristotélica de tempo. O importante a perceber, porém, é por que Heidegger parte
fundamentalmente dessa concepção. Além disso, a tematização heideggeriana deve, em algum
momento, confrontar-se com o conceito aristotélico do tempo, mostrando de onde o conceito
aristotélico é legitimamente haurido
142
. Por isso mesmo, na tematização do tempo heideggeriana
como temporalidade originária da presença, é preciso mostrar como é possível e como surge o
fenômeno do tempo derivado. Isso é possível, pensa Heidegger, desde que o tempo seja visto
como se mostra na ocupação e, conseqüentemente, como nossa compreensão do tempo sempre se
orienta a partir da circunvisão do mundo cotidiano
143
. Com efeito, se a presença sempre já conta
com o tempo deste ou daquele modo, uma vez que sempre já é tempo de fazer ou não fazer isso
ou aquilo o fato de tomarmos (nehmen) ou nos darmos ou deixamos (lassen) tempo a todo
momento fica em questão explicar como isso acontece. Pois, seja apropriadamente tempo de...
seja inapropriadamente tempo de..., o fato é que o tempo é sempre pré-visto e, por isso
mesmo, há uma tendência natural de, por contarmos previamente com ele, não mais vermos que
ele guia e orienta nossos afazeres cotidianos. De fato, o que gostaríamos de ver não pode ser
visto, pois sendo pré-visto, também se desfaz nas ocupações de cada momento.
Demonstrar isso é possível, à medida que Heidegger analisa os fenômenos do tempo ocupado
(besorgte Zeit) e do tempo do mundo (Weltzeit) a partir da intratemporalidade (Innerzeitlichkeit).
Por isso escreve no § 6 de Ser e tempo:
sepossível avaliar essa influência depois de se ter mostrado o sentido e os limites da
antiga ontologia, a partir de uma orientação feita pela questão do ser. Em outras palavras, a
destruição se colocada diante da tarefa de interpretar o solo da antiga ontologia à luz da
problemática da temporaneidade. Torna-se, assim, evidente que a interpretação antiga do ser
141. No terceiro capítulo,pico A temporalidade como sentido ontológico da cura, nos ocuparemos desse tema
genuinamente heideggeriano.
142. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 81, p. 516-525.
143. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, § 81, p. 517. Cf. ainda §§ 19 e
20 de Os problemas fundamentais da fenomenologia, onde Heidegger demonstra toda a estruturação pressuposta à
concepção aristotélica de tempo.
60
dos entes se orienta pelo mundo e pela natureza em seu sentido mais amplo, retirando de
fato a compreensão do ser a partir do tempo. A determinação do sentido do ser como
parousiva e ou*siva, que, do ponto de vista ontológico-temporâneo, significa vigência,
representa um documento externo dessa situação, mas somente isso. O ente é entendido em
seu ser como vigência, isto é, a partir de determinado modo do tempo, do atualmente
presente’”
144
.
Revela-se, nesta passagem, algumas das tarefas que Heidegger assume e se impõe em
relação à principal tematização tradicional do tempo, a saber: 1) é necessário fazer uma análise
do agora como agora, ou seja, deve-se ver e entender o agora em toda sua estrutura e sistemática
interna. Segundo Heidegger, isso é possível a partir da descrição fenomenal da estrutura plena do
agora pronunciado no mundo das ocupações cotidianas e confrontá-la com o agora em que, o
outrora, não-mais e o então, quando da intratemporalidade; 2) é necessário mostrar e
fundamentar porque tomamos (nehmen) ou damos ou deixamos (lassen) tempo a todo momento;
3) deve-se justificar se o tempo pode ou não ser compreendido como uma pura seqüência de
agoras pontuais e em que medida esta compreensão do tempo se justifica ontologicamente. Para
Heidegger, portanto, não basta mostrar apenas como se contitui a temporalidade originária da
presença. A temporalidade originária, por isso mesmo, pode ser demonstrada, a partir da analítica
temporal, como cotidianidade, historicidade e intratemporalidade, temas com os quais Heidegger
se ocupará nos três últimos capítulos de Ser e tempo.
1.6
A
S PRIMEIRAS ELABORAÇÕES HEIDEGGERIANAS DO CONCEITO DE TEMPO ANTES DE
S
ER E TEMPO
145
Marion Heinz, num primoroso estudo sobre da obra da juventude de Heidegger (Frühwerk
Martin Heideggers), afirma que a obra inicial de Heidegger é uma filosofia do tempo, que se
diferencia fundamentalmente de todas as teorias tradicionais a respeito do tempo. O tempo não
continua sendo pensado aí como um ser atemporal, mas como verdade, isto é, como horizonte de
compreensão do ser. Heinz enfatiza um ponto fundamental: o despertar do jovem Heidegger
para a temática do tempo está ligado com a compreensão do ser, quer dizer, com a questão do
144. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 6, p. 63-64.
145. São estudos importantes da temática heideggerina do tempo: Marion Heinz, Zeitlichkeit und Temporalität im
Frühwerk Martin Heideggers, Würzburg/Amsterdam, Königshausen & Neumann/Rodopi, 1982; Françoise Dastur,
Heidegger e a questão do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997; Carlos Másmela, Martin Heidegger: El tiempo del ser,
Madri: Trotta, 2000; Ernst Wolfgang Orth, Zeit und Zeitlichkeit bei Husserl und Heidegger, Friburgo, Karl Alber, 1983;
Kurt Flasch, Was ist Zeit?, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1993; M. Fleischer, Die Zeitanalysen in Heideggers
Sein und Zeit, Würzburg, Könighausen & Neumann, 1991; Marten Rainer, Martin Heidegger: o tempo autêntico, in: Luis
A. de Boni (org.), Finitude e transcendência, Petrópolis, Vozes, 1996, p. 599-625; Jaime Montero Anzola, Reflexiones en
torno a Ser y tiempo de Mantin Heidegger, in: Franciscanum, Santafé de Bogotá, ano 37, n. 112, jan.-abr. 1996, p. 19-45;
Emmanuel Martineau, Conception vulgaire et conception aristotélicienne du temps (Sur le § 19 de Die Grundprobleme der
Phänomenologie de Heidegger, éclairant la page 432 de Sein und Zeit), in: Archives de Philosophie, vol. 43, fasc. 1, 1980,
p. 99-120.
61
ser
146
. Se isso procede, é de se esperar que os dois textos, a serem analisados, mostrem isso. Caso
isso se confirme, então, desde o início das investigações fenomenológicas de Heidegger, a
preocupação de compreender o tempo ontologicamente.
Para acompanhar a elaboração heideggeriana do conceito de tempo analisaremos dois
textos: O conceito de tempo na ciência histórica (Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft)
e O conceito de tempo (Der Begriff der Zeit). Entendemos que, embora o tempo seja tematizado
em vários outros textos da juventude ou mesmo em obras heideggerianas mais tardias
147
, nesses
dois textos é visível a preocupação do pensador em elaborar, de uma maneira direta e explícita,
um novo conceito de tempo. Tentaremos mostrar que, de um texto para outro, acontecem
mudanças conceituais significativas. Porém, a partir de uma leitura mais atenta e cuidadosa,
percebem-se algumas idéias condutoras que perpassam ou se fazem presentes nos dois textos,
mas, sobretudo, como tentaremos ver, são idéias-motoras da original conceituação heideggeriana
do fenômeno do tempo.
Sem pretender esgotar todos os aspectos de originalidade, que cada um dos textos contém,
colocamo-nos inicialmente como meta mostrar as idéias-motoras que conduzem cada um dos
textos. Além disso, embora não tenha sido esta a razão decisiva na escolha desses dois textos
para nossa análise, eles são citados em notas de rodapé de Ser e tempo: o primeiro, no § 80 e o
segundo, no § 54. Nossa proposta inicial, portanto, ao analisar estes dois textos, consiste em
avistar e evidenciar as idéias condutoras na elaboração heideggeriana de um novo conceito de
tempo e, na medida do possível, entrever como estes dois primeiros ensaios, na busca de
compreender o fenômeno do tempo, repercutem em sua obra, especificamente naquelas em que o
tempo constitui temática central de análise e interpretação.
Considerando que os dois textos a que nos propomos analisar contêm a palavra conceito
(Begriff), faremos uma rápida incursão em sua etimologia. Segundo a língua alemã, conceito
provém de begreifen (= conceituar, conceber, compreender). Há outras formas verbais em que o
radical greifen aparece. Por exemplo: ergreifen significa apanhar, agarrar; zugreifen
significa pegar com a o; angreifen significa pegar, mas também começar, iniciar,
empreender. Percebe-se então que, ao lado de conceituar, conceber, compreender, o
verbo begreifen possui como significado elementar agarrar ou pegar com as mãos, mas,
146. No texto Meu caminho para a fenomenologia e no diálogo De uma conversa da linguagem entre um japonês e um
pensador, das décadas de 50 e 60, Heidegger fala explicitamente que seu início na filosofia tem tudo a ver com as
investigações realizadas por Edmund Husserl no âmbito da fenomenologia. Não é por acaso que a publicação de Ser e
tempo (1928) é dedicada a Husserl. A dedicatória fala em admiração e amizade. Porém, em jogo estava algo maior que
amizade ou admiração. Atras de Husserl, Heidegger irá gradativamente entrar em contato com a filosofia
fenomenológica. E, como ele mesmo reconhece, estava a caminho da queso do ser.
147. Em textos mais tardios, por exemplo, onde a temática reaparece, são: Que é isto a filosofia (1955), Tempo e ser
(1962), mas especialmente importantes são as reflexões que se encontram registradas no livro Martin Heidegger e Medard
Boss, Seminários de Zollikon, Petrópolis: Vozes; o Paulo: ABD/EDUC, 2001, p. 51-102 (1964/1965).
62
também, conceber com o espírito. Estes significados se fazem presentes em nossa palavra
conceituar. Nosso verbo conceituar origina-se da forma latina cum-capere, tendo pois
semelhança com be(i)-greifen. A partir disso, podemos tirar uma conclusão provisória
importante: o simples fato de cum-capere significar agarrar ou pegar com as mãos ou conceber
com o espírito revela em si o modo pelo qual um ente privilegiado, o ser humano, apreende e
compreende a realidade. Contudo, não podemos tirar conclusões apressadas, por enquanto. Por
isso, faz-se necessária uma análise dos dois textos e averiguar se, o que aqui provisoriamente
concluímos, procede.
1.6.1 A aula de habilitação O conceito de tempo na ciência histórica (Friburgo, 1915)
O conceito de tempo na ciência histórica (Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft) é
o título da aula de habilitação dada por Heidegger, no dia 27 de julho de 1915, em Friburgo
148
. O
texto foi publicado pela primeira vez no Zeitschrift für Philosophie und philosophische Kritik,
em 1916 e, posteriormente, no primeiro volume das obras completas (Gesamtausgabe), em 1972,
pela editora Vittorio Klostermann, de Frankfurt.
Trata-se do primeiro escrito importante de Heidegger em que é explícita sua preocupação
com o tema do tempo e, também, da história. Ele criou uma nota ao § 80 de Ser e tempo, onde
reconhece: Uma primeira tentativa de se interpretar o tempo cronológico e os números na
história encontra-se na aula de habilitação, dada pelo autor na Universidade de Friburgo
(semestre de verão, 1915)
149
. Nas palavras do próprio Heidegger, trata-se de uma primeira
tentativa (Versuch) de interpretar o tempo cronológico (chronologischen Zeit) e os números na
história (Geschichtszahl). Na mesma nota lê-se: As relações entre os números históricos, o
tempo calculado astronomicamente e a temporalidade e historicidade da presença necessitam de
uma ampla investigação
150
. Esta nota, embora seja de alguns anos depois, evidencia claramente
a preocupação de Heidegger e, presumivelmente, cerca de dez anos antes da elaboração de Ser e
148. Cf. Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, São Paulo, Geração Editorial, 2000,
p. 94.
149. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 80, nota 233, p. 514; Martin
Heidegger, Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann,
1972, p. 356-375.
150. Chama atenção Heidegger mencionar vários textos relativos à cronologia ou cronometria: G. Simmel, Das Problem
der historischen Zeit. Philosophische Vorträge veröffentl. von der Kantgesellschaft, n. 12, 1916; as duas obras fundamentais
sobre a formação da cronologia histórica o: Josephus Justus Scaliger, De emendatione temporum, 1583, e Dionysius
Petavius, SJ, Opus de doctrina temporum, 1627; sobre a antiga medição do tempo, cf. G. Bilfinger, Die antiken
Stundenangaben, 1888; Der bürgerliche Tag. Untersuchungen über den Beginn des Kalendertages im klassischen Altertum
und im christlichen Mittelalter, 1888; H. Diels, Antike Technik, 2. ed., 1920, p. 155-232s: Die antike Uhr; sobre a
cronologia recente, trata Friedrich Rühl, Chronologie des Mittelalters und der Neuzeit, 1897. O mesmo texto de G.
Bilfinger é tamm citado por Heidegger no volume 64 das obras completas (cf. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit. 1.
Der Begriff der Zeit (1924); 2. Der Begriff der Zeit (Vortrag 1924). Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 2004, nota 4,
p. 68).
63
tempo. Seguindo estes esclarecimentos, procuraremos apontar algumas das idéias condutoras
presentes no texto da aula de habilitação.
Como epígrafe ao texto da aula, Heidegger cita o seguinte pensamento de Mestre Eckhart:
Tempo é o que se altera e diversifica, a eternidade se mantém simples (Zeit ist das, was sich
wandelt und mannigfaltigt, Ewigkeit hält sich einfach)
151
. Chama atenção aqui que Heidegger
não tenha grifado a palavra einfach (sim-ples). Literalmente, a palavra ein-fach diz sem
dobras, sim-ples (sine plex). Contudo, ele grifou wandelt e mannigfaltigt. Nesse caso, o
tempo é o que se trans-forma e se multi-plica. A ênfase nestas palavras revela duas idéias
importantes: 1) que o tempo muda, se altera, implica, pois, passagem entre o antes e o depois; 2)
que o tempo é múltiplo, que possui várias dimensões. Poderíamos entrar aqui em várias
considerações e aprofundá-las. No entanto, cabe prestar atenção, de passagem, apenas para o
seguinte: de certo modo, na primeira idéia, está presente a concepção aristotélica de tempo e,
nesse caso, devemos considerar que também Mestre Eckhart movimenta-se dentro dessa
concepção; na segunda idéia, quanto à multiplicidade do tempo e que o tempo certamente não é
unidimensional, podemos perceber como Heidegger mesmo confessa mais tarde que, do
mesmo modo como o ser deve ter mais de um significado, também o tempo é multifário,
ou seja, o tempo deve ter mais de uma dimensão. Esta segunda idéia remete diretamente ao
título do livro Das múltiplas significações do ser em Aristóteles de F. Brentano, publicado em
1862, no qual, Heidegger, ao lado das Investigações lógicas de Husserl, buscava uma
compreensão para a questão do ser no verão de 1907, quando ainda cursava o ginásio
152
.
Fazer essas considerações a respeito da epígrafe é importante, pois ela evidencia a dimensão em
que Heidegger se movimenta no texto da aula de habilitação, ou seja, de algum modo, ela
condensa as idéias condutoras presentes no texto. É o que procuraremos mostrar a seguir.
151. Cf. Martin Heidegger, Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1972, p. 357. Embora não Heidegger esclareça, esta epígrafe é do sermão 44, dos sermões alees
eckhartianos. Na tradução brasileira, cf. Mestre Eckhart, Sermões alees, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes,
2006, p. 252-256. Estudos importantes são os de Thomas Regehly, Historische und erfüllte Zeit. Walter Benjamins Kritik
an Heideggers Antrittsvorlesung über den Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft (1916), in: Die Zeit Heideggers,
Frankfurt am Main: Peter Lang, 2002, p. 141-152; Bernd Irlenborn, Zeitlichkeit und Zeitrechnung beim frühen
Heidegger: in: Die Zeit Heideggers, Frankfurt am Main: Peter Lang, 2002, p. 161-172; Philippe Capelle, Heidegger et
maître Eckhart, in: Revue des Sciences Religieuses, ano 70, n. 1, jan. 1996, p. 113-124.
152. Dois textos exerceram sobre o jovem Heidegger uma influência decisiva: a dissertação de Franz Brentano, Das
múltiplas significações do ser em Aristeles, de 1862, e as Investigações lógicas, de Husserl, obra publicada pela primeira
vez em 1901. Em Meu caminho para a fenomenologia, Heidegger diz: Das Investigações lógicas de Husserl esperava um
estímulo decisivo com relão às questões suscitadas pela dissertação de Brentano; e no dlogo De uma conversa da
linguagem entre um japonês e um pensador: [...] nos últimos anos do ginásio, no verão de 1907, a questão do ser me
encontrou na forma da dissertação de Franz Brentano, professor de Husserl. Cf. a respeito Martin Heidegger, Aus einem
Gespräch von der Sprache zwischen einem Japaner und einem Fragenden, in: Unterwegs zur Sprache, Stuttgart, Günther
Neske, 1997, principalmente p. 92-92; Meu caminho para a fenomenologia, in: Conferências e escritos filoficos, São
Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 493-500; também Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 8, p. 69-
70). Cf. também os estudos de Rudolf Bernet, Origine du temps et temps originaire chez Husserl et Heidegger, in: Revue
Philosophique de Louvain, vol. 85, n. 68, nov. 1987, p. 499-521; Epifània Ianniello, La conscienza del tempo come flusso
intenzionale in Husserl, in: Sapienza, vol. 50, fasc. 4, out./dez. 1997, p. 467-484.
64
O próprio título do texto denuncia que Heidegger ocupa-se com o conceito de tempo
enquanto problema relacionado à história, ou melhor, à ciência histórica. A partir disso, é
possível fazer uma interpretação do texto em dois momentos distintos: de um lado, a
preocupação de Heidegger consiste em estabelecer uma diferença básica entre o modo de
conceber o tempo nas ciências naturais e nas ciências históricas, procurando encontrar os
limites de uma em relação à outra e, de outro lado, preocupa-se ele em mostrar que o conceito
de tempo na ciência histórica possui um significado todo peculiar. Por isso afirma, ao final do
texto, que todo e qualquer número histórico só possui sentido (Sinn) e valor (Wert) no âmbito da
ciência histórica, na medida em que se levar em consideração o significado do conteúdo
histórico (inhaltlich historisch Bedeutsame).
Assim, na primeira parte do texto, fazendo uso de uma terminologia e temática próprias do
neokantismo, o autor aborda problemas que ultrapassam e não podem ser resolvidos nas estritas
fronteiras kantianas de uma teoria do conhecimento. Embora se trate ainda de uma
investigação epistemológica, procura estabelecer a especificidade do conceito de tempo da
ciência histórica em oposição ao conceito das ciências físicas. Num primeiro momento, a ênfase
recai na análise do que Heidegger chama de estrutura lógica do conceito de tempo. Deve-se
determinar, então, a estrutura do conceito de tempo. Podemos reconhecer a estrutura do
conceito de tempo da história a partir de sua fundamentação na ciência histórica, diz. A
pergunta que Heidegger se coloca é: Que estrutura (Struktur) deve ter o conceito de tempo na
ciência histórica para poder desempenhar a função (Ziel) como conceito de tempo de acordo
com a finalidade (Funktion) dessa ciência?
153
Está em jogo dar visibilidade ao conceito de
tempo histórico (historischen Zeit) a partir do conceito de tempo em geral (Zeit überhaupt).
O termo geral possui sentido ontológico veremos isso também no segundo capítulo, quando
abordaremos o conceito de mundo em geral , isto é, toda e qualquer determinação ôntica
nasce de uma determinação ontológica fundamental. Ora, a cncia histórica, é uma ciência
ôntica. Contudo, isso se tornará mais evidente na medida em que Heidegger demonstra que o
conceito de tempo histórico tem um significado todo peculiar, se comparado com o conceito de
tempo das ciências físicas. Por isso escreve:
A filosofia da natureza antiga e medieval procurava investigar a essência metafísica dos
fenômenos inerentes à realidade imediata e suas causas ocultas. Em oposição a esta
especulação metafísica sobre a natureza, a ciência de Galileu significa metodicamente algo
completamente novo. Esta pretende exercer o domínio sobre a diversificação dos fenômenos
através da lei e seu resultado novo e particular consiste como chega à lei
154
.
153. Martin Heidegger, Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1972, p. 359.
154. Martin Heidegger, Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1972, p. 361.
65
Nesse novo método reside uma dupla particularidade: a) afirma-se uma suposição ou
hipótese, que possibilita compreender os fenômenos de um âmbito determinado a partir de uma
lei geral, no caso, os fenômenos relacionados ao movimento; b) a suposição ou hipótese não
afirma, de modo algum, uma qualidade oculta (vergorgene Qualität) como causa explicativa dos
fenômenos, mas contém relações matematicamente compreensíveis, ou melhor, mensuráveis,
entre os momentos do fenômeno concebidos idealmente.
Formulado desse modo, vê-se que Galileu levou a efeito, pela primeira vez, um método
científico que alcançou predomínio e legitimidade do decorrer dos últimos séculos, de modo a
fazer-se presente e operante nas mais diversas ciências. É possível concluir, então, que define-se
aqui a finalidade da física como ciência, quer dizer, de reduzir todos os fenômenos do mundo
físico a um conceito de unidade, a saber, a leis fundamentais matematicamente fixáveis a partir
de uma dinâmica geral (allgemeinen Dynamik). Dessa metodologia resulta, conseqüentemente,
que, quando o tempo é medido, determina-se uma quantidade (Soviel). A indicação de
quantidade reúne numa unidade os pontos de tempo nela transcorridos e, assim, acaba-se fazendo
um corte na escala temporal (Zeitskala), destruindo com isso o tempo verdadeiro (eigentliche
Zeit) em seu fluir e, desse modo, o polarizamos. O fluxo (Fluß) é detido, congela-se, torna-se
superfície e, somente como superfície, é passível de mensuração. Desse modo, o tempo
transforma-se numa ordenação homogênea (homogenen Stellenordnung), transforma-se em
escala, em parâmetro (Parameter)
155
. Por isso, no texto da aula de habilitação podemos ler:
Contudo, na maioria das vezes, isso não é visto: na teoria da relatividade, na medida em
que é uma teoria física, está em jogo o problema da mensuração do tempo, porém não o
tempo em si mesmo. Na teoria da relatividade o conceito de tempo permanece intocado; nela
apenas se confirma uma medida elevada, a qual foi apresentada anteriormente como o
conceito de tempo característico das ciências naturais, a saber, como o caráter determinável
de homogêneo e quantitativo. O caráter matemático do conceito de tempo físico não pode
ser expresso de uma maneira mais precisa através disso, na medida em que ele pode ser
apresentado ao lado do espaço tridimensional enquanto quarta dimensão e, ao lado dele,
através da dimensão não-euclidiana, isto é, que ele é elaborado mais como uma geometria
tridimensional.
Se n
ós quisermos unicamente passar por cima disso, isto é, se nós quisermos representar a
estrutura do conceito de tempo na ciência histórica, então parece ser questionável, antes de
mais nada, se aqui ainda se deixa colocar um novo problema (ein neues Problem stellen
läßt). Pois, também para a ciência histórica, o tempo é igualmente um modo de ordenação à
medida que os acontecimentos resguardam seu lugar de tempo determinado e são fixados a
partir disso como sendo históricos
156
.
Para Heidegger, mesmo na teoria da relatividade, de Einstein, uma das conhecidas teorias
físicas do tempo, está em jogo o problema da mensuração do tempo (Zeitmessung) e não o
155. Cf. sobre os conceitos tempo e espaço e, também, sobre Aritóteles e Newton, Martin Heidegger, Que é uma
coisa?, Lisboa, Edições 70, 1992, §§ 5 e 18, respectivamente p. 25-33 e 86-93.
66
tempo em si mesmo (nicht um die Zeit an sich). Assim, mesmo na teoria da relatividade, o
conceito de tempo permanece inalterado e intocado
157
, ou seja, de Galileu a Einstein, a
concepção do tempo na sica não se modificou, sendo sua função básica tornar possível a
mensurabilidade do tempo. O tempo constitui-se, então, num momento essencial e necessário na
definição do movimento, que é um dos principais objetos da física. Ora, para possibilitar a
medida, o tempo deve tornar-se mensurável, o que é possível somente, se for pensado
(tomado) como um fluxo uniforme, isto é, identificado com o próprio espaço
158
.
Salvaguardados o limite e propósito de Heidegger, em sua aula de habilitação, está em
jogo, em primeiro plano, traçar uma diferença entre o conceito de tempo da física
(homogeneidade quantitiva) e o conceito de tempo da ciência histórica (heterogeneidade
quantitativa). Vejamos melhor:
Encontramo-nos aqui diante de uma alternativa: a partir do conceito anteriormente
mencionado, ou não possuímos nenhum conceito histórico, na medida em que não se mostra,
porque a nua determinação de tempo, deve poder constituir-se num conceito universal a
partir de um conceito histórico e o qual também é determinado temporalmente pela física a
partir de movimentos precedentes, ou então: temos diante de nós um conceito histórico
que de fato lhe corresponde. Desse modo, portanto, a determinação de tempo nela
encontrada é totalmente peculiar e própria, e esta só pode ser compreendida a partir da
essência da ciência histórica.
Ao menos isto parece ter-se evidenciado para n
ós: um problema no conceito de tempo da
ciência histórica (es steckt ein Problem im Zeitbegriff der Geschichtswissenschat). Pois ele
tem sentido e direito se nós perguntarmos pela estrutura do conceito de tempo histórico. Nós
só poderemos -la em sua função na ciência histórica, função esta que, por sua vez, apenas
é compreensível a partir do objetivo e do objeto da ciência histórica
159
.
Heidegger chega à evidência de que o conceito de tempo da ciência histórica deve ser
totalmente peculiar e próprio. A partir disso, acaba tendo diante dos olhos um novo problema,
que é, na verdade, o problema central da aula de habilitação. É necessário ver e entender o
sentido de uma possível estrutura do conceito de tempo histórico, a qual só pode ser
relacionada diretamente à própria história, ou melhor, ao objeto que esta se propõe investigar, na
medida em que se justificar ontologicamente seu direito. Em certo sentido, pode-se admitir,
Heidegger chega a tomar uma posição crítica naturalmente implícita em relação ao modo
como os historiadores fazem história, mas sobre isso não nos interessa falar aqui. Por ser um dos
temas relacionados à temporalidade propriamente dita, ou seja, à historicidade própria da
presença, também será abordado no terceiro capítulo de nossa investigação. Assim, é necessário
156. Martin Heidegger, Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1972, p. 366-367.
157. Cf. Martin Heidegger, Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1972, p. 366.
158. Cf. Françoise Dastur, Heidegger e a questão do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, p. 26.
159. Martin Heidegger, Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1972, p. 367.
67
ver e entender por que, segundo Heidegger, no conceito de tempo da ciência histórica reside um
problema (es steckt ein Problem im Zeitbegriff der Geschichtswissenschat)
160
. Está em jogo aqui,
entender o que o pensador vê como estrutura (Struktur) do conceito de tempo histórico e que
função (Funktion) desempenha.
Com efeito, se as ciências naturais operam com os números como meras quantidades, as
ciências históricas, ao contrário, não devem tratar tais dados com a mesma objetividade. Desse
modo, a ciência histórica, para ser rigorosa ao modo de descrever os fenômenos de seu campo de
investigação, necessita compreender os dados históricos de um modo que não seja quantitativo,
mas qualitativo, que não seja homogêneo, mas heterogêneo. Portanto, a ciência histórica não
pode descrever os fenômenos de seu campo de investigação emprestando critérios de outra
ciência, ficando pressuposto que deve possuir ou elaborar seus próprios critérios e métodos
investigativos. Daí as palavras do professor Heidegger:
O objeto histórico, enquanto histórico, é sempre passado; tomado rigorosamente, ele não
existe mais. Entre ele e o historiador há uma distância temporal (Zeitferne). O passado
(Vergangenheit) sempre tem sentido somente, na medida em que é visto a partir de um
presente (Gegenwart). O passado não apenas não é mais, considerado a partir de nós, ele era
também um outro (Anderes) como nós e nossas relações de vida hoje são no presente. O
tempo possui tanto assim já se aqui um significado totalmente original no âmbito da
história (Die Zeit hat in der Geschichte eine ganz originale Bedeutung). Somente onde esta
alteridade (Andersheit) qualitativa do tempo passado se impõe a um presente consciente,
está-se desperto para o sentido do ser histórico. Na medida em que o passado hisrico
sempre é uma alteridade de objetivação de vida humana (Menschlebens) e nós mesmos
vivemos e agimos nele, é porque nos é dada antecipadamente a possibilidade (vornherein
die Möglichkeit gegeben) de compreender o passado, de modo que ele não pode ser
comparado com nenhum outro. Mas o abismo temporal entre o historiador e seu objeto
continua existindo. Se ele quiser descrever o abismo temporal, então ele deve ter, de um
modo ou de outro, este objeto diante de si. Trata-se de superar o tempo sim, mas
acostumando-se a ver como se constitui o abismo temporal do presente em relação ao
passado. A exigência de superação do tempo e, por outro lado, a descrição de algo passado
como meta e objeto da ciência histórica necessariamente dado em conjunto, deve ser
possível somente desde que o tempo desempenhe ali uma função
161
.
Um dos questionamentos centrais aqui, em relação ao conceito de tempo na ciência
histórica, parece ser: como pode o historiador alcançar seu objeto, visto que este se encontra no
passado? Como vencer a distância temporal (Zeitferne)? A resposta é surpreendentemente
simples: O passado sempre tem sentido somente, na medida em que é visto a partir de um
presente. O passado não apenas não é mais, considerado a partir de nós, ele era também um
outro como nós e nossas relações de vida hoje são no presente. Heidegger não quer dizer apenas
que não é possível interpretar nenhum fato passado sem considerar o presente, mas toda e
160. Martin Heidegger, Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1972, p. 367.
161. Martin Heidegger, Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1972, p. 369-370.
68
qualquer interpretação do passado radica-se no presente. Melhor, todo presente já é, em certo
sentido, também passado, na medida em que, todo e qualquer agora, na medida em que o
pronunciamos e reconhecemos de algum modo, já não é mais presente, mas passado. A rigor, o
passado possui a mesma vitalidade do presente, isto é, desde que seja visto corretamente a partir
do presente. O passado, para o historiador, deve estar vitalmente presente em seu presente. É
nisso que reside o significado totalmente original no âmbito da história (Die Zeit hat in der
Geschichte eine ganz originale Bedeutung), diz Heidegger.
O conceito de tempo na ciência histórica não possui nada do caráter homogêneo do
conceito do tempo natural. O tempo histórico também não pode, por isso mesmo, ser
expresso matematicamente através de uma fila como se houvesse uma lei que
determinasse os tempos um após o outro. Os momentos do tempo físico se diferenciam
apenas através da colocação numa fila. Os tempos históricos seguem-se também um após o
outro senão eles não seriam naturalmente tempo , porém, cada qual é, em sua estrutura
conteudística um outro. O qualitativo do conceito de tempo histórico não significa outra
coisa que compactação (Verdichtung) cristalização (Kristallisation) de uma objetivação
de vida dada dentro da história. Portanto, a ciência histórica não trabalha com quantidades.
Todavia, o que são os números da história então? Com o conceito a fome em Fulda no ano
de 750, o historiador não pode começar com o número 750; a ele não pode interessar o
número como quantum, como um elemento em que a fileira numérica de 1 até o infinito tem
seu lugar determinado, sendo possível dividi-lo, por exemplo, por 50 e assim por diante. O
número 750, e todo e qualquer outro número histórico, possui sentido (Sinn) e valor
(Wert) no âmbito da ciência histórica, na medida em que se levar em consideração o
significado do conteúdo histórico (inhaltlich historisch Bedeutsame). Trecento e
quattrocento não são mais que conceitos quantitativos. Na física e na história, a pergunta
pelo quando (Wann) possui um sentido totalmente diverso
162
.
Devemos destacar duas idéias importantes nesta citação: a) embora de uma forma não
explícita, vemos nesse texto a idéia norteadora segundo a qual o tempo na ciência histórica
diferencia-se essencialmente do tempo como fila de agoras, sem-começo e sem-fim, isto é, como
se a todo agora seguisse pura e simplesmente um novo agora e, assim, indefinidamente. Decorre
dali que o conceito de tempo na ciência histórica não possui o caráter homogêneo do conceito do
tempo natural. Por isso mesmo, o tempo histórico também não pode ser expresso
matematicamente através de uma fila como se houvesse uma lei que determinasse os agoras
um após o outro. Nessa idéia manifesta-se, de algum modo, o conceito vulgar de tempo, quer
dizer, que o tempo é uma pura seqüência de agoras, sem-começo e sem-fim. E assim, pensa
Heidegger, na ciência histórica, a pergunta pelo quando (Wann) possui um sentido totalmente
diverso. Diante disso, podemos antecipar o problema com o qual Heidegger se depara: b) de um
lado, se o tempo não deve ser visto unicamente como uma mera seqüência ou fila de agoras,
sem-começo e sem-fim, quer dizer, de modo indeterminado (o quantitativo, nas ciências
naturais), de outro lado, coloca-se uma nova questão: qual o sentido do agora enquanto data
69
histórica, por exemplo? Qual a estrutura significativa do agora enquanto data histórica?
163
O
conteúdo histórico possui significado (inhaltlich historisch Bedeutsame), possui sentido (Sinn),
possui valor (Wert).
Heidegger pergunta-se nestes termos: O que são os meros da história, então?, qual o
caráter do propriamente qualitativo em história? A partir disso, Heidegger determina
propriamente como concebe o qualitativo na ciência histórica e o diz nesta frase lapidar: O
qualitativo do conceito de tempo histórico não significa outra coisa que compactação
(Verdichtung) cristalização (Kristallisation) de uma objetivação de vida dada dentro da
história. Portanto, a ciência histórica não trabalha com quantidades. Embora de modo não
explícito, pode-se ler aqui: o conceito de tempo histórico implica, de algum modo, ver que a
própria vida humana se temporaliza, se historializa. O ser humano pode voltar ao passado,
porque a vida se compacta, se cristaliza sob formas significativas, de sentido, de valor.
Assim, por exemplo, se analisarmos sob os olhos da fenomenologia, não somente e
necessariamente datas importantes como da independência do Brasil ou da abolição da
escravatura, publicamente reconhecidas e comemoradas, constituem-se compactações ou
cristalizações da vida e história humanas. De uma maneira muito mais próxima e imediata, a data
de nosso nascimento não é, a rigor, uma mera data, muito menos mero número. Evidencia-se isso
no fato de, em geral, não pensarmos necessariamente no dia do nascimento como algo perdido
num passado mais próximo ou mais distante. Pois toda vez que, na passagem de mais um ano de
vida, co-memoramos nossa existência, o que co-memoramos? Dizemos manifestamente: nossa
vida, nossa existência. Na verdade, porém, tornamos memorável cada passagem do tempo em
nossa vida e é justamente isso que dá sentido à constituição do co da co-memoração. Nesse
sentido, dizemos também às vezes: re-cordamos, isto é, reunimos e trazemos para junto do
coração, tudo que fomos e somos, mas também alimentamos a esperança de poder-ser o
ainda-não-sido em cada nova passagem do tempo em nossa vida. De fato, cada passagem de ano,
cada dia que passa, cada hora, cada segundo, cada milionésimo de segundo constituem o
(co)memorável da nossa vida, da nossa existência.
Desse modo, à procura de determinar o conceito de tempo da física, Heidegger evidencia
que o tempo nela compreendido caracteriza-se como tempo homogêneo (homogen) e quantitativo
(quantitativ). Assim, sem prejuízo algum para a própria física enquanto ciência, é possível
perguntar: se o tempo medido pela física é sempre homogêneo e quantitativo, o que é dito através
de expressões como ordenação homogênea (homogenen Stellenordnung), como tematizar o
162. Martin Heidegger, Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1972, p. 373.
70
tempo que está nela previsto e pressuposto, ou seja, que tempo é este que se revela em
expressões como tempo verdadeiro (eigentliche Zeit), tempo em geral (Zeit überhaupt),
dinâmica geral (allgemeinen Dynamik) e o tempo em si mesmo (um die Zeit an sich)? A
partir desses questionamentos, qual seria propriamente o conceito de tempo da ciência histórica?
A princípio, parece evidente que a ciência histórica não trabalha nem opera com
quantidades e, portanto, é óbvio que se opõe ao conceito do tempo da física. A questão central,
porém, consiste exatamente em mostrar e demonstrar isso. Num primeiro momento, é importante
ter presente que, quando a ciência histórica se ocupa de datação, por exemplo, ela não se ocupa
com uma mera data. É que, a toda e qualquer data histórica, sempre se atribui alguma
significação, algum valor. Por isso mesmo, não pode ser reduzida ao modelo, ou melhor, ao
parâmetro epistemológico das ciências da natureza e, em particular, à sica. Em questão está,
portanto, um modo de tematizar o tempo em si mesmo, o tempo verdadeiro, tratando-se
então de uma questão de ordem ontológica. Embora o conceito de tempo ainda não seja
abordado nesse texto da aula de habilitação como em textos posteriores, é visível que nele a
preocupação Heidegger conta, então, com 25 anos de idade com o tempo em si mesmo.
Esta expressão possui um sentido eminentemente ontológico veremos isso no próximo texto
que iremos analisar.
A partir do que acabamos de dizer, é possível perceber que estão presentes nesse texto,
embora ainda não explícitos e muito menos elaborados, conceitos importantes como
significância (Bedeutsamkeit), possibilidade de datação (Datierbarkeit), lapso de tempo
(Gespanntheit) e tempo público (Öffentlichkeit), conceitos que Heidegger elabora em vários
textos importantes da década de 1920. Não é mera casualidade, portanto, que Heidegger cite o
texto da aula de habilitação numa nota de rodapé do § 80 de Ser e tempo. Uma evidência do que
afirmamos está em frases e expressões como distância temporal (Zeitferne), separação
temporal (zeitliche Kluft), significado do conteúdo histórico (inhaltlich historisch
Bedeutsame), o tempo possui um significado totalmente original no âmbito da história (Die
Zeit hat in der Geschichte eine ganz originale Bedeutung), entre outras empregadas por
Heidegger.
De fato, nos textos contemporâneos a Ser e tempo, a preocupação de Heidegger é
determinar fenomenologicamente a constituição plena do quando (agora) do tempo sob a
forma de uma análise rigorosa do tempo ocupado e do tempo do mundo, tema que será abordado
por nós no terceiro capítulo de nossa investigação. Já acenávamos anteriormente que há em Ser e
163. Nessa perspectiva, é oportuno um estudo de A doutrina das categorias e significados de Duns Escoto (cf. Martin
Heidegger, Die Kategorien- und Bedeutungslehre des Duns Scotus, Tübingen, J.C. Mohr (Paul Sieback), 1916).
71
tempo e outros textos heideggerianos porteiores muitas passagens nas quais há indícios evidentes
da aula de habilitação de 1915. Vemos isso, por exemplo, nos §§ 78 e 80, dos quais citamos:
Todavia, mais elementar do que a constatação de que o fator tempo (Zeitfaktor) vem à
tona nas ciências da história e da natureza é que, bem antes de qualquer pesquisa temática, a
presença já conta com o tempo (mit der Zeit rechnet) e por ele se orienta (nach ihr richtet).
Aqui, novamente, permanece decisivo o contar com o seu tempo, inerente à presença,
que antecede todo uso de instrumentos de med. adequados à determinação temporal. Este
contar antecede o uso, possibilitando a utilização de relógios
164
.
A fim de assegurar uma possível compreensibilidade para a comprovação da origem do
tempo público a partir da temporalidade fática, foi preciso caracterizar, primeiramente, o
tempo interpretado na temporalidade das ocupações. E isso para esclarecer que a essência
da ocupação do tempo não reside na aplicação de determinações quantitativas de datas
(zahlenmäßigen Bestimmungen bei der Datierung). Do ponto de vista ontológico-
existencial, portanto, o decisivo na contagem do tempo (Zeitrechnung) não está na sua
quantificação (nicht in der Quantifizierung der Zeit), mas deve ser concebido, ainda mais
originariamente, a partir da temporalidade da presença que conta com o tempo (sondern muß
ursprünglicher aus der Zeitlichkeit des mit der Zeit rechnenden Daseins begriffen
werden)
165
.
Concluindo esta análise, poderíamos dizer que a possibilidade da ciência histórica é vista e
tematizada por Heidegger, mas não ainda em sua gênese ontológica como temporalidade da
presença. Heidegger vai elaborar isso em textos dos anos seguintes. Para ele, a condição de
possibilidade do conceito de tempo da ciência histórica reside no fato de o historiador poder
escolher no passado os momentos mais significativos e recontar a história a partir deles, uma vez
que o próprio tempo é constituído por momentos significativos, os quais projetam sempre de
novo uma nova luz tanto sobre o passado como sobre o futuro, mas sempre a partir do presente.
Com efeito, como o pensador dirá em Ser e tempo, “‘a presença é histórica não significa
apenas o fato ôntico de que o homem representa um átomo mais ou menos importante no fluxo
da história do mundo, sendo a bola deste jogo de circunstâncias e acontecimentos. A tese coloca
o seguinte problema: Em que medida e em quais condições ontológicas, a historicidade,
enquanto constituição essencial, pertence à subjetividade do sujeito histórico?
166
. Por isso é
que, radicada na hermenêutica da presença, a metodologia das ciências históricas do espírito
(historischen Geisteswissenschaften) só pode receber a denominação de hermenêutica em sentido
derivado
167
.
164. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, § 78, p. 498. No § 69, Heidegger
diz que o projeto matemático da natureza descobre, antecipadamente, um ser simplesmente dado que é constante
(matéria), e abre o horizonte para uma perspectiva orientadora, relativa a seus momentos constitutivos e passíveis de
determinação quantitativa (movimento, força, lugar e tempo) (p. 451).
165. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 80, 507.
166. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 73, p. 474.
167. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 3, p. 78.
72
1.6.2 A conferência O conceito de tempo (Marburgo, 1924)
O conceito de tempo (Der Begriff der Zeit) é o título da conferência pronunciada por
Heidegger, no dia 25 de julho de 1925, no Teologado de Marburgo
168
. O texto foi publicado pela
primeira vez em alemão, em 1989, pela editora Max Niemeyer, de Tübingen. Posteriormente, foi
publicado também, como anexo ao volume 64 das obras completas (Gesamtausgabe), em 2004,
pela editora Vittorio Klostermann, de Frankfurt. Esse volume contém quatro outros textos
importantes diretamente relacionados ao conteúdo da conferência, a saber: a) A colocação da
questão de Dilhey e a tendência fundamental de Yorck; b) Os caracteres ontológicos
originários da presença; c) Presença e temporalidade; d) Temporalidade e historicidade.
Dentre várias coincidências textuais, apresentamos apenas esta:
Aristóteles tratou freqüentemente ao abordar em seus escritos, que o importante é a
paideiva devida; a certeza originária de uma coisa cresce junto da intimidade com as coisas
mesmas, da certeza de tratar adequadamente da coisa. Para corresponder ao caráter
ontológico do que aqui se tematiza, devemos falar do tempo temporalmente
169
.
Numa investigação científica, ao lado de todo domínio de método e domínio do material, é
decisiva a paideiva. Justamente Aristóteles, o modelo de um investigador sensato, exige que
não somente não se deve perder de vista o tema, mas, sobretudo, que se aproprie
inicialmente da certeza originária do modo de tratar adequado
170
.
A primeira passagem é do final da conferência de 1924 e a segunda do final texto
Presença e temporalidade, do volume 64. Nosso objetivo, naturalmente, não é fazer aqui uma
análise de comparação textual. Pelo contrário, a atenção volta-se para duas idéias centrais que se
repetem nas duas passagens, a saber: a) recorrendo a Aristóteles, Heidegger enfatiza a
necessidade de conduzir adequadamente a investigação, isto é, faz-se necessária e decisiva a
paideiva devida; b) corresponder ao caráter ontológico do que é tematizado implica falar
temporalmente do tempo; está em jogo encontrar o modo adequado de tratar do tempo. Segundo
nosso entendimento, são duas orientações metodológicas importantes dentro do propósito
heideggeriano.
Devemos considerar, além disso, que as análises fenomenológicas apresentadas em Ser e
tempo são a culminância de um grandioso empenho investigativo do autor especialmente nos
primeiros anos da década de 1920. Embora só tenha sido publicado em 1927, Heidegger vinha
trabalhando em seu tratado há vários anos, especialmente desde a aula de habilitação de
Friburgo, em 1915. Encontram-se publicados muitos volumes das obras completas que
168. Cf. Rüdiger Safranski, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, São Paulo, Geração Editorial, 2000,
p. 172.
169. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 27; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 38/39.
170. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit. 1. Der Begriff der Zeit (1924); 2. Der Begriff der Zeit (Vortrag 1924),
Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 2004, p. 83.
73
evidenciam isso e que são fruto das investigações anteriores à publicação da opus maius. Entre
numerosos volumes, devem ser destacados, por ordem cronológica: Phänomenologie des
religiösen Lebens (de 1918/21, vol. 60), Zur Bestimmung der Philosophie (de 1919, vol. 56/57),
Grundprobleme der Phänomenologie (de 1919/20, vol. 58), Phänomenologische Interpretation
zu Aristoteles. Einführung in die phänomenologische Forschung (de 1921/1922, vol. 61),
Phänomenologische Interpretation zu Aristoteles (Anzeige der hermeneutischen Situation)
[Natorp-Bericht] (de 1922, vol. 6), Ontologie (Hermeneutik der Faktizität) (de 1923, vol. 63),
Der Begriff der Zeit. 1. Der Begriff der Zeit (1924); 2. Der Begriff der Zeit (Vortrag 1924) (de
1924, vol. 64), Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs (de 1925, vol. 20), Logik. Die Frage
nach der Wahrheit (de 1925/1926, vol. 21), Die Grundprobleme der Phänomenologie (de 1927,
vol. 24), Phänomenologische Interpretation von Kants Kritik der reinen Vernunft (de 1927/1928,
vol. 25), Metaphysische Anfangsgründe der Logik (de 1928, vol. 26), Die Grundbegriffe der
Metaphysik: Welt, Endlichkeit, Einsamkeit (de 1929/30, vol. 29/30), Hegels Phänomenologie des
Geistes (de 1930/1931, vol. 32).
Temos aqui mais de uma dezena de obras. São, em grande parte, do período de uma década
apenas, ou seja, de 1918 a 1931. Reúnem, em sua maioria, textos de preleções de Friburgo e
Marburgo. Nosso objetivo, contudo, não é enredar aqui em considerações de ordem bibliográfica.
Trata-se de apontar apenas, de passagem, a grande movimentação que acontece nos bastidores
da elaboração de Ser e tempo. Ora, conhecer estes bastidores só é possível entrando em cada uma
dessas obras. Cada uma delas, portanto, é um possível caminho para dentro do processo em que
Heidegger elabora o conceito de tempo como temporalidade da presença. Não por acaso, fez
questão que o lema das obras completas fosse: Caminhos não obras (Wege nicht Werke)
171
.
Gadamer escreveu, certa vez, que esta conferência é proto-forma (Urform) de Ser e
tempo
172
. De fato, para quem conhece os temas em torno dos quais gravita a analítica existencial
e temporal da presença, lendo atentamente a conferência de 1924, não terá como discordar. Da
mesma maneira, segundo nosso entendimento, a grande maioria dos volumes das obras
completas citados acima são, ao lado desta conferência, primeiras elaborações de Ser e tempo.
171. Otto Pöggeler, um dos estudiosos da obra heideggeriana, escreveu a respeito: Por fim, à frente das obras completas,
Heidegger deixou colocar apenas o seguinte mote: Caminhos não obras. Este mote o deve ser mal-entendido. Há
naturalmente, entre os filósofos, alguns em que existe uma ruptura com o que faziam numa época anterior, contribuindo
para não serem reconhecidos em suas obras tardias. [...] Atualmente, porém, aconteceu uma ruptura em relão ao
pensamento de Heidegger e que não pode ser desfeito. A única prova se a investigação do pensar de Heidegger
propriamente continua válido está no fato se ele também conduz a um novo relacionamento para com ele. Pois, se as obras
completas de Heidegger são apenas caminhos, estarão hoje em dia também em jogo novos caminhos com Heidegger (Otto
Pöggeler, Neue Wege mit Heidegger, in: Philosophische Rundschau, 29. Jahrgang, Tübingen, J.C.B. (Paul Sieback),
1982, p. 40-41).
172. Cf. H.-G. Gadamer, Martin Heidegger und die Marburger Theologie, in: Otto ggeler (ed.). Heidegger:
Perspektiven zur Deutung seines Werks, Colônia/Berlim, Kiepenheuer & Witsch, 1970, p. 169.
74
Como falamos no início deste tópico, trata-se de avistar e evidenciar as idéias condutoras
da elaboração heideggeriana do conceito de tempo, razão pela qual muitos temas conexos não
poderão ser especificamente abordados aqui. Heidegger criou uma nota ao § 54, onde diz: As
considerações anteriores e as que haverão de seguir foram apresentadas, sob forma de tese, na
conferência de Marburgo (julho de 1924) sobre o conceito de tempo
173
. Importante observar que
o § 54 é justamente o capítulo em que Heidegger tematiza a possibilidade do poder-ser próprio e
a decisão (§§ 54 a 60), capítulo este preparatório para o capítulo em que a temporalidade como
sentido ontológico da cura é tematizada (§§ 61 a 66).
Na nota o pensador diz que as considerações feitas anteriormente (vorstehenden) e as que
haverão de seguir (nachfolgenden) foram apresentadas na forma de tese na conferência de 1924.
A partir disso podemos concluir que há, na conferência, idéias segundo Heidegger, na forma
de teses (in thesenartiger Form) que dizem respeito diretamente à tematização do tempo e
outras não. Entre numerosos conceitos presentes no texto da conferência, cabe apontar apenas
alguns: ser-no-mundo (In-der-Welt-sein), ser sempre minha (Jemeinigkeit), ser em cada
caso (Jeweiligkeit), ser-com-os-outros (Mit-einander-sein), fala (Sprechen), cura (Sorge),
ocupação (Besorgen), cotidianidade (Alltäglichkeit), impessoal (Man), compreensão
(Verstehen), angústia (Angst), estar-no-fim (Zu-Ende-sein), porvir (Zukunft),
convivência (Miteinnandersein)
174
. Percebe-se que, nesses exemplos, estão em jogo conceitos
que dizem respeito a toda movimentação analítica de Ser e tempo. Consideramos ser possível
desenvolver e explicitar alguns desses conceitos em outros momentos de nossa investigação;
voltar-nos-emos, por isso, primeiramente para algumas idéias relacionadas diretamente à
tematização do tempo. Nesse sentido, esperamos ser possível mostrar que há uma mudança
considerável, não somente conceptual, mas, sobretudo, no modo de pensar e tematizar o
fenômeno do tempo, entre a aula de habilitação de 1915 e a conferência de 1924.
A primeira idéia, aparentemente sem importância, está nestas palavras, ao final da breve
introdução: O filósofo não crê. Se o filósofo pergunta pelo tempo, está decidido a compreender
o tempo a partir do tempo relacionado ao ajeiv, o qual diz respeito à eternidade, mas revela-se
como mero derivado do ser-temporal
175
. Depreende-se daqui que, embora Heidegger esteja
falando provavelmente para muitos teólogos, a abordagem do tempo a que ele se propõe não é
teológica, mas filosófica. Heidegger estabelece uma diferença essencial entre a dimensão da e
173. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 54, nota 151, p. 346.
174. Cf. especialmente as oito estruturas fundamentais da presença (cf. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen,
Max Niemeyer, 1989, p. 12-14; tradução brasileira: O conceito de tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de
Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 16/17-20/21.
175. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 6; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 8/9. Cf. também Françoise Dastur,
Heidegger e a questão do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, p. 27 e Benedito Nunes, Experiências do tempo, in:
75
o pensamento filosófico. Em dois outros textos escreve: a filosofia ela mesma é, enquanto tal,
atéia quando se compreende de modo radical; uma filosofia cristã é um ferro de madeira
(hölzernes Eisen) e uma incompreensão (Mißverständnis)
176
. Filosofia cristã, -se aqui, é o
mesmo que um círculo quadrado, um contra-senso. Para Heidegger, pensar o tempo a partir da
eternidade já não é possível. Por isso, filosoficamente, trata-se de compreender o tempo a partir
do tempo, ou seja, a partir dele mesmo. Isso evidencia-se em muitas outras passagens da analítica
temporal na forma de expressões como, por exemplo, o tempo se temporaliza.
Por isso, sem cometer equívoco metodológico, é possível realizar uma investigação
filosófica a partir de textos religiosos. De fato, Heidegger mesmo a realizou, entre 1918 e 1921,
na Universidade de Friburgo. Dessa investigação fenomenológica resultou o volume 60 das obras
completas, intitulado Fenomenologia da vida religiosa. Na primeira epístola paulina aos
Tessalonicenses, Heidegger descobre que, com o advento da experiência cristã, surge uma nova
concepção de escatologia. Esta palavra não significa mais uma coisa por vir, muito menos num
futuro distante e indeterminado, mas há nela uma relação com a parousia cristã autêntica. Assim,
a segunda vinda de Cristo não é a expectativa de um acontecimento futuro, mas o despertar para
a iminência dessa vinda, tendo um significado kairológico. Esse tempo está se realizando, no
aqui e agora, revelando assim um caráter kairônico do tempo. Com efeito, ter uma relação com a
parousia implica estar plenamente desperto no presente e não em expectativa de um
acontecimento que ainda não chegou ou que, eventualmente, nunca chegará. O quando
transforma-se, então, em como viver plenamente o presente
177
.
Por isso, na conferência, Heidegger escreve: O tratamento que se segue não é de tipo
teológico. [...] O modo de tratar também não é filosófico, à medida que não reivindica fornecer
uma determinação sistemática do tempo válida universalmente, cuja determinação devesse
voltar-se para o que está atrás do tempo, em associação com as outras categorias
178
. E, na
seqüência:
As reflexões que se seguem pertencem talvez a uma ciência prévia, cuja tarefa engloba em
si o seguinte: iniciar pesquisas sobre o que poderia finalmente significar isso que diz a
filosofia, a ciência e o discurso explicativo da presença a respeito de si mesma e sobre o
mundo. Se esclarecermos algo sobre o que é um relógio, tornar-se-á claro o tipo de
apreensão que existe na física e, com isso, o modo como o tempo ganha a oportunidade de
mostrar-se. Esta ciência prévia, no seio da qual esta observação se move, vive do
Adauto Novaes, Tempo e história, São Paulo, Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 131-140.
176. Respectivamente: Martin Heidegger, Einführung in die Metaphysik, Tübingen, Max Niemeyer, 1987, p. 6 e
Phänomenologische Interpretation zu Aristoteles. Einführung in die phänomenologische Forschung, Frankfurt am Main,
Vittorio Klostermann, 1985, p. 199.
177. Cf. Martin Heidegger, Phänomenologie des religiösen Lebens, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1995, p.
106-156. Cf. também Martin Heidegger, Ontologie (Hermeneutik der Faktizität), Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann,
1995.
178. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 6; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 8/9.
76
pressuposto talvez teimoso de que a filosofia e a ciência se movem por meio de conceitos.
Sua possibilidade subsiste na medida em que cada pesquisador esclarece para si o que
compreende e o que não compreende
179
.
O que se denomina aqui de ciência prévia (Vorwissenschaft)? Ciência prévia é sinônimo
de ciência ontológica. Portanto, não é ôntica, na medida em que esta ciência prévia deve ser
condição de possibilidade de toda e qualquer investigação ôntica. Esta ciência pretende investigar
os fundamentos e os modos pelos quais a presença lida consigo mesma e com o mundo em que
está e vive em sua cotidianidade. Heidegger deixa aparecer aqui uma idéia, já presente na aula de
habilitação de 1915, qual seja: o modo de conceber o tempo a partir da física é o que, de algum
modo, orienta o uso do relógio enquanto instrumento de medição do tempo. Por outro lado,
porém, pode também ser que, sob o ponto de vista pré-ontológico, a própria presença meça, isto
é, compreenda o tempo, sem que, necessariamente, esta compreensão tenha que estar relacionada
ao conceito da física. Ligado a isso importante observar isso aqui o pensador chama atenção,
muito rapidamente, para o tempo que vem ao encontro na cotidianidade (Alltäglichkeit), quer
dizer, o tempo natural (Naturzeit) e o tempo do mundo (Weltzeit).
Nesse contexto, Heidegger reconhece que, mesmo a teoria da relatividade, de Einstein,
encontra-se ancorada na compreensão aristotélica do tempo. Colocando na boca de Einstein as
palavras de que o espaço em si não é nada; não espaço absoluto, e remete para um antigo
enunciado aristotélico: também o tempo não é nada. O que é o tempo, então? É aquilo em que
(Worin) os acontecimentos se desenrolam. Do tratado da Física, Heidegger cita: Considerando
que o tempo não é movimento, deve ter alguma coisa a ver com o movimento
180
. O tempo é o
que vem ao encontro no ente que se modifica e, nesse sentido, toda mudança -se no tempo.
Porém, como pode o tempo ser encontrado, isto é, visto, à medida que se modifica? O que é o
tempo em si mesmo? A partir dessas considerações é possível ver uma ligação clara com a aula
de habilitação, especificamente com a epígrafe: Tempo é o que se altera e diversifica, a
eternidade se mantém simples
181
.
Na seqüência, o pensador pergunta-se: como manifesta-se, para o físico, o tempo? A partir
do caráter de mensuração. Porém, na mensuração é medido o quanto-tempo (Wielange) e o
quando (Wann), quer dizer, ela mede o de-quando-até-quando (Von-wann-bis-wann). Nesse
caso, o relógio é um exemplo notável. Ao medir, ele indica o tempo. Sendo um sistema físico, os
momentos temporais, embora sucessivos, podem ser constantemente retomados, sob a
pressuposição, é claro, de que esses momentos temporais possam ser sempre iguais e idênticos.
179. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 6; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 8/9-10/11.
180. Cf. Aristóteles, Física, livro IV, 119a 9s.
181. Cf. Martin Heidegger, Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1972, p. 357.
77
De fato, a retomada do relógio é cíclica. Assim, pelo fato de fornecer uma duração igual e
idêntica, sempre é possível, através do uso desse instrumento, recorrer ao tempo com segurança.
O que chama atenção, aqui, é que a distribuição dos espaços de duração é sempre igual e idêntica
mas, principalmente, que é indiferente e indistinta e, portanto, homogênea.
Heidegger pergunta-se: O que experimentamos do tempo por meio do relógio? Pelo
relógio, o tempo vem ao nosso encontro como algo indiferente ao ponto de poder ser fixado
como ponto-de-agora (Jetztpunkt). Com isso, através de dois pontos-de-tempo, um é anterior e
outro é posterior. Nessa acepção, nenhum dos pontos (agoras) possui privilégio sobre o outro.
Enquanto agora, um é anterior (Früher) e outro é posterior (Später). Esse tempo é
completamente igual (gleichartig) e homogêneo (homogen). Revela-se assim, mais uma vez,
que o tempo só é passível de mensuração quando concebido em sua homogeneidade, ou seja, o
anterior e o posterior só podem ser determinados a partir de um agora, sendo, porém, em si
mesmo, totalmente igual e indiferente.
Todavia e isso é, de fato, relevante aqui! Heidegger reconhece que a determinação
primária (primäre Bestimmung) evidenciada pelo uso do relógio não alcança a indicação do
quanto-tempo (Wielange), nem mesmo o quanto (Wieviel) do tempo que passa. O que ele
determina é a fixação constante do agora, ou melhor, de cada agora que passa. Diante disso, se
olho para o relógio que está no meu pulso ou em meu celular, qual a primeira coisa que digo?
Digo, por exemplo: Agora são 21 horas e, precisando melhor, dizemos: 10 minutos após isso
ou aquilo ter ocorrido e, na seqüência, certamente ainda dizemos ou pensamos: daqui a 3 horas
será meia-noite. Nessa fala do tempo, mesmo lendo o tempo no relógio, revela-se uma coisa
muito curiosa: o que é cada um dos três agoras? São eles iguais e indiferentes? Não exatamente!
Quando digo 21 horas, posso estar pensado que é a hora do término da aula; 10 minutos depois,
estarei ou terei estado na sala de professores ou na secretaria; daqui a 3 horas será meia-noite e,
provavelmente, estarei em minha casa. Por fim, mesmo que em nossa fala sejam pronunciados
números relativos às horas, estas horas não são cifras, muito menos iguais e indiferentes.
A partir dessa experiência do tempo, Heidegger faz várias perguntas de capital
importância:
O tempo agora, quando olho para o relógio: o que é este agora? Agora quando o faço;
agora, quando aqui a luz se apaga. O que é o agora? Disponho do agora? Sou eu o agora?
Cada uma das outras pessoas é o agora? Então o tempo seria eu mesmo, e todo outro seria o
tempo. Em nossa convivência (unserem Miteinander) seríamos o tempo ninguém (keiner)
e cada um (jeder). Sou eu o agora ou somente aquele que diz o agora? Com ou sem relógio
capaz de expressar algo? Agora, de tarde, amanhã, esta noite, hoje: aqui deparamo-nos com
78
um relógio que a presença humana (menschliche Dasein) desde muito tempo arranjou, o
relógio natural da alternância entre o dia e a noite
182
.
Devidamente considerado, há aqui uma série de perguntas fundamentais, em relação ao
fenômeno do tempo, vistas por Heidegger. Temas como tempo ocupado e tempo do mundo
e, também, embora implícito, da intratemporalidade, são aqui apenas evocados, mas não
desdobrados em sua constituição fenomenal. Heidegger ocupa-se desses temas principalmente no
último capítulo de Ser e tempo e no livro Os problemas fundamentais da fenomenologia.
Contudo, as perguntas essenciais que Heidegger se faz são estas duas: Sou eu o agora?
Cada uma das outras pessoas é o agora? O olho de Heidegger o que aqui? O que o
pensador evidencia? Trata-se, no fundo, de uma e mesma pergunta. Ora, se sou eu mesmo o
agora, então, o outro, cada outro, todos os outros, tantos outros quantos é possível haver, são eles
agora? Está em jogo, aqui, uma pergunta: a condição de possibilidade de toda e qualquer
individualidade experimentar tempo. Embora seja pleonástico, deve-se afirmar que cada
individualidade é singular, única, irrepetível. Em suma, além de cada indivíduo estar na
possibilidade de experimentar o agora em sua singularidade, cada singularidade experimenta a
passagem de todo e qualquer agora que lhe advém e, além disso, deve ser possível também, em
certo sentido, experimentar a passagem do agora na convivência com os outros, isto é, com os
semelhantes a mim mesmo (Mitdasein). O que evidencia esta possibilidade é que o agora
pronunciado é, no estar junto com os outros, compreensível para cada um. A questão, contudo, é
mostrar como isso acontece
183
.
Diante disso, mesmo que não digamos nem falemos, não afirmemos nem explicitemos
nada a respeito do tempo o que, certamente, acontece na maioria do tempo em nossa vida
isso, contudo, ainda não prova não ser possível experimentar o tempo da maneira como o
estamos tentando descrever aqui. Na verdade, desde que visto e entendido adequadamente, não
há absolutamente experiência humana alguma destituída de tempo. Toda experiência humana é
perpassada, transpassada pelo tempo. Heidegger chamou a experiência dessa passagem de
temporalização da presença e às possibilidades de temporalização da presença denominou
temporalidade originária. Assim, em toda e qualquer passagem do tempo, a presença se
temporaliza, seja de maneira própria ou imprópria. A presença, à medida que existe, experimenta
o tempo em sua existência. O mais importante a observar aqui, por enquanto, é que outros
182. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 10; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 14/15.
183. Na conferência de 1924 Heidegger afirma que o tempo é o adequado principium individuationis. [...] Mas em que
medida o tempo, enquanto algo próprio, é o prinpio de individuação (Individuationsprinzip), isto é, a partir de onde a
presença esno ser em cada caso? Sendo porvir ao antecipar, a presea que es na medianidade é ela mesma; na
antecipação, a presença torna-se visível enquanto o único ser que é desta vez (Diesmaligkeit) em seu único destino
(Schicksal) na possibilidade de seu próprio passar (cf. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer,
1989, p. 24-27; tradução brasileira: O conceito de tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP,
n. 2, 1997, p. 36/37). Cf. também Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 6, p. 55-56.
79
fenômenos específicos relacionados à temporalidade da presença, os quais teremos a
oportunidade de visualizar e entender melhor no terceiro capítulo de nossa investigação.
No texto a seguir, do livro A fenomenologia da vida religiosa, Heidegger diz que a
temporalidade originária nasce da experiência fática da vida e, portanto, é um equívoco partir de
teorias já prontas para enquadrar o tempo. Assim, como ele mesmo enfatiza, trata-se de não
falsificar o problema do tempo, mas de ver o fenômeno do tempo a partir da vida fática. Está em
jogo compreender o tempo de uma maneira totalmente abstraída (ganz abgesehen) de toda
consciência e tempo puros:
Por enquanto o conceito temporal ainda é tomado em sentido indeterminado, não se sabe
absolutamente nada de que tempo se fala. Enquanto o sentido do temporal ficar
indeterminado, é possível tomá-lo como algo não pré-judicativo (Präjudizierendes). Pode-se
pensar: enquanto cada objetivação se constitui na consciência, ela é temporal e, com isso,
conquista-se o esquema fundamental do que é temporal. Porém, essa determinação geral
do tempo não é fundamental, mas uma falsificação do problema do tempo. Com isso é
indicada uma moldura (Rahmen) para o fenômeno do tempo, isto é, a partir do que é
teorético (Theoretischen). Ao contrário, o problema do tempo deve ser compreendido da
maneira como experimentamos originariamente a temporalidade na experiência fática
totalmente abstraída de toda consciência e tempo puros. O caminho, portanto, é inverso.
Devemos perguntar, pelo contrário: o que é originariamente na experiência fática a
temporalidade? O que significa, na experiência tica, passado (Vergangenheit), presente
(Gegenwart) e futuro (Zukunft)? Nosso caminho parte da vida fática, isto é, parte da vida
fática na medida em que o sentido do tempo seja conquistado. Com isso o problema do que
é histórico é devidamente caracterizado
184
.
Na conferência O conceito de tempo, ao elaborar o conceito ontológico de tempo,
Heidegger volta a um tema correlato importante, o da história ou da historicidade. Nessa direção,
o filósofo volta a insistir numa idéia importante, já presente na aula de habilitação de 1915:
A consideração da história, que no presente cresce, somente nela empreendimentos não
retornáveis: isto que já foi. A consideração de algo que já foi é inesgotável. Ela se perde na
matéria. Pelo fato de esta história e temporalidade do presente não alcançar de modo algum
o passado, ela possui um outro presente. O passado permanecerá trancado para um presente
até o momento em que a presença (Dasein) mesma for histórica. Mas a presença é em si
mesma histórica na medida em que é a sua possibilidade. No ser futuro, a presença é o seu
passado; ela volta a este no como (Wie). O modo do voltar atrás é, entre outras coisas, a
consciência. Somente o como pode ser retomado. Passado experimentado como
historicidade originária é tudo menos o passar. Ele é algo para o qual sempre posso
retornar. [...] O passado, enquanto autêntica história, é retomável no como. A possibilidade
de acesso à história funda-se na possibilidade de um presente poder realmente
compreender-se como sendo algo futuro. Este é o primeiro enunciado de toda
hermenêutica. Ele diz algo sobre o ser da presença, que é a historicidade mesma. A filosofia
nunca saberá o que é a historicidade enquanto continuar a classificá-la como um objeto de
184. Martin Heidegger, Phänomenologie des religiösen Lebens: Einleitung in die Phänomenologie der Religion, Frankfurt
am Main, Vittorio Klostermann, 1995, p. 65. Cf. também Martin Heidegger, Ontologie (Hermeneutik der Faktizität),
Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1995.
80
observação. O segredo da história reside na questão de saber o que significa ser histórico
(was es heißt, geschichtlich zu sein)
185
.
Heidegger aponta aqui um método bem-determinado a partir do qual a própria ciência
histórica poderia renovar-se, isto é, repensar seus fundamentos de investigação. Assim, se bem
considerado, a idéia é basicamente a mesma se comparada à aula de habilitação, cujo tema
central era: o conceito de tempo da ciência histórica.
Nesse sentido, na conferência de 1924 reaparecem duas idéias já presentes na aula de
habilitação de 1915: a irreversibilidade (Nicht-Umkerhbarkeit) e a homogeneização
(Homogenisierung). Os termos empregados por Heidegger são novos, mas não a idéia. Para ele, o
fundamental é conquistar um modo próprio de acesso (Wie) àquilo que se busca compreender e
interpretar como já passado e, nesse caso, se o tempo é definido como tempo do relógio, então fica
mesmo perdida a esperança de tentar chegar ao seu sentido originário (ursprünglichen Sinn)
186
.
Como já visto anteriormente, está em jogo mostrar e fundamentar a razão pela qual a
presença é o ente que pode e deve fazer-se a pergunta fundamental: quem sou eu? Nessa tarefa
está a caminho Ser e tempo, obra que Heidegger estava elaborando quando pronunciou a
conferência O conceito de tempo. Esta conferência permite que vejamos e entendamos,
preliminarmente, o modo pelo qual Heidegger, ao elaborar seu conceito de tempo, também se
pergunta de um modo totalmente novo:
Queremos retomar a pergunta o que é o tempo temporalmente. O tempo é o como
(Wie). Caso realmente se investigue o que é tempo, então, não se deve precipitadamente
deixar prender-se a uma resposta, isto ou aquilo é o tempo, resposta que sempre significa um
o quê (Was). Nós não estamos olhando para a resposta, mas estamos retomando a pergunta.
O que aconteceu com a pergunta? Ela se transformou. O que é o tempo? transformou-se na
pergunta: quem (Wer) é o tempo? Ou mais de perto ainda: sou eu meu tempo? Com isto
chego à culminância da proximidade da pergunta e, se a compreendo corretamente, então,
com ela tudo se tornou mais grave. Portanto, tal pergunta que pergunta pelo cada vez meu
é o modo mais adequado de acesso e de tratar do tempo como o cada vez meu. A presença
viria à tona como o ser é no modo de ser da pergunta
187
.
Segundo nosso modo de ver e entender, esta é uma das passagens mais difíceis da
conferência, mas que nem por isso pode ser passado por cima e ir adiante. A primeira coisa a
fazer, para compreendê-la adequadamente, é considerá-la e lê-la desde o contexto da conferência.
De fato, do modo como Heidegger encaminha a conceituação do tempo na conferência de 1924,
chama atenção principalmente o modo inusitado e, portanto, totalmente novo, como formula a
questão pelo tempo. Ele pergunta: Quem é o tempo? Esse novo modo de perguntar encontra-se
neste contexto:
185. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 25-26; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 34/35-36/37.
186. Cf. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 23-24; tradução brasileira: O conceito
de tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 32/33-34/35.
81
Em resumo pode-se dizer: tempo é presença. Presença é meu ser em cada caso
(Jeweiligkeit), e ela o pode. Em sendo porvir, antecipa-se (Vorlaufen) no conhecido, porém,
indeterminado, ser-passado (Vorbei). A presença sempre é num dos modos de sua
possibilidade de ser temporal. A presença é o tempo, o tempo é temporal. A presença não é
o tempo, mas a temporalidade. A expressão fundamental: o tempo é temporal, é, a partir daí,
a determinação mais própria e ela não é nenhuma tautologia, porquanto o ser da
temporalidade significa uma realidade com nada comparável. A presença é seu passado, é
sua possibilidade no antecipar-se deste passado. Neste antecipar-se sou o tempo
propriamente, tenho tempo. Conquanto que o tempo é cada vez meu, existem muitos tempos.
O tempo é sem sentido; o tempo é temporal
188
.
Heidegger propõe uma mudança no modo de colocar a questão acerca do tempo. Da
tradicional pergunta o que é o tempo?, ele propõe: quem é o tempo? Não se trata de uma simples
substituição de termos, nem de um modismo, nem mesmo uma maneira nova e esquisita de
perguntar pelo tempo. Não se trata de responder a estas perguntas com objetividade, num curto e
grosso é isso ou aquilo ou, então, não é isso nem aquilo. Quem é o tempo? Heidegger diz que é a
presença. Ora, a presença é o ente que eu mesmo sou e, nesse sentido, é o ente que está no ser em
cada caso enquanto é ser sempre minha (Jeweiligkeit als meiniges). Heidegger emprega aqui
dois conceitos importantes, ambos relacionados à experiência que a presença faz do tempo.
Tanto Jeweiligkeit como Jemeinigkeit desempenham papéis importantes na terminologia
heideggeriana entre 1923 e 1925
189
. Etimologicamente, a expressão Je-weilig-keit contém a
palavra jeweilig, muitas vezes traduzida por respectivo. Contudo, ela possui um sentido
temporal: um tempinho, momento, lapso de tempo. Já a partícula je reúne a idéia de uma
particularização do tempo da presença em sua individualidade, o que se evidencia na expressão
eu sou. Esta expressão, por sua vez, designa propriamente o emprego heideggeriano de
Jemeinigkeit, na medida em que esta contém tanto o je como o mein, isto é, meu. De um
lado, chama atenção que, em Ser e tempo, Heidegger já não empregue mais a forma
substantivada Jeweiligkeit, mas apenas o adjetivo jeweilig e, por outro lado, dá preferência à
forma Jemeinigkeit substantivada.
Para ver e entender adequadamente esta conferência, portanto, é preciso levar em conta
todo o encaminhamento dado por Heidegger ao problema do tempo em suas investigações a
respeito do tempo, especialmente do período da década de 1920. Segundo nosso entendimento,
embora em geral se dê preferência ao textos mais conhecidos como Ser e tempo e Os problemas
fundamentais da fenomenologia, mas também a Kant e o problema da metafísica e
Prolegômenos para a história do conceito de tempo, há muitos outros, igualmente importantes,
187. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 27; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 38/39.
188. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 26; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 36/37.
82
dos quais tivemos a oportunidade de apresentar mais de uma dezena. Nosso modesto propósito,
no entanto, quis ocupar-se apenas com dois textos menos conhecidos? Por serem menores e
menos divulgados? Talvez. Nesse caso, porém, as aparências enganam. Pois, como tivemos a
oportunidade de ver, são textos pequenos, mas de uma densidade conceptual extraordinária. A
extraordinariedade, porém, não consiste nisso apenas, mas no modo como o tempo é neles
conceituado e tematizado.
A partir disso, poderíamos colocar algumas perguntas: Como é o tempo um quem? O que
seria, nesse caso, o quem ou este quem? Sou eu o quem? É o quem sempre um eu? E, nesse
caso, qual o caráter deste eu enquanto tempo? Ou é o tempo apenas um predicado, uma
categoria, um atributo de um quem? Afinal, como e qual o caráter deste quem que é ao modo
de tempo, isto é, que é temporal? Que significa existir no tempo? Em que sentido é este
quem a própria presença em sua temporalidade?
De fato, ao formular a pergunta pelo tempo empregamos pronomes interrogativos: o quê?
(Was) e quem? (Wer). Porém, em certo sentido, Heidegger coloca em jogo não os pronomes em
si, mas o modo (Wie) de perguntar pelo tempo. Em Heidegger a filosofia revive como
pensamento por renovar-se desde o modo de perguntar fundamental, que é tão antigo quanto a
própria filosofia
190
. A problemática do tempo, quer dizer, a questão do tempo é uma questão
mesmo velha. Talvez uma das mais velhas. Tão velha quanto o homem é homem (Wer).
Tão velha como homem se compreende a si mesmo (Wie). Tão velha que a filosofia é
filosofia (Was). Em Heidegger, a filosofia chega a ser sinônima de questão do ser. Nesse sentido,
poderíamos também ousar dizer: tão velha quanto a tríade homemmundolinguagem, tão
velha quanto a tríade homemsertempo, tão velha quanto a tríade homemtempohistória.
Vê-se, assim, a questão do tempo faz parte de um repertório relativamente restrito de questões
essenciais do pensamento, constituindo-se mesmo na questão primordial de toda e qualquer
tentativa de pensar. Tematizar o tempo é conceituá-lo como e enquanto a questão do
pensamento.
Pelo que tivemos a oportunidade de ver até aqui, por enquanto deve-se considerar o
seguinte: tanto a pergunta o quê como a pergunta quem são duas perguntas que apontam para
uma só e mesma questão, para um e mesmo problema central. Nessa perspectiva, a pergunta
de Heidegger não chega a ser nem pretende ser uma pergunta nova ou interessante. Apesar disso,
189. Cf. Martin Heidegger, Ontologie (Hermeneutik der Faktizität), Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1995 e
History of the concept of time (Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs), Indiana University Press, Bloomington, 1985,
§ 18, p. 152-156.
190. Questões como: O que é o tempo? O que é uma coisa? O que é o movimento? O que é essência? O que é existência?
O que é mundo? O que é o homem?, são questões velhas de milênios. O que possuem de sempre novo é apenas a
necessidade histórica de serem investigadas sempre de novo (cf. Emmanuel Carneiro Leão, A filosofia na idade da
ciência, in: Aprendendo a pensar, Petrópolis, Vozes, 1991, p. 26 (grifo nosso).
83
porém, a mudança no modo de perguntar tem sua razão de ser, tem seu fundamento. É que, ao se
perguntar pela temporalidade do tempo, já não se pode mais fazer uso de um modo de perguntar
cuja estrutura sempre indica substancialidade (ousia), qüididade (quidditas, essentia)
191
. Já não é
mais possível perguntar simplesmente pelo tempo a partir da idéia de substância, de coisa, ou
melhor, do quê o tempo em si mesmo não é. Por isso mesmo deve-se perguntar pela
temporalidade do tempo, que resulta na temporalidade da presença.
Embora haja uma tendência comum de compreender o tempo de modo impróprio o que
será explicitado quando falarmos da temporalidade, do tempo do mundo, do tempo ocupado e da
intratemporalidade como gênese do conceito vulgar do tempo , procuramos colocar-nos aqui
diante do modo como Heidegger vê e entende e, a partir disso, compreende e conceitua o
fenômeno do tempo. Portanto, para conquistar um acesso devido à coisa mesma do tempo,
isto é, daquilo que está em questão, deve-se perguntar temporalmente pela temporalidade do
tempo da presença, ou seja, quem é o tempo?
Porém, como Heidegger realiza a tarefa de liberar o tempo em sua estrutura ontológica
fundamental? O que significa explicitar o tempo em sua estruturação ontológica? Isso é possível
desde uma elaboração (Ausarbeitung) das estruturas fundamentais da presença humana como
existenciais
192
. Nesse sentido, há, no texto da conferência, muitas palavras, expressões e idéias
relativas ao modo de ser da presença, das quais destacamos rapidamente algumas, embora não
possamos analisá-las aqui. Dentre estas palavras, expressões e idéias, algumas serão tematizadas
nos próximos capítulos: a presença (Dasein) é ser-no-mundo (In-der-Welt-sein), no sentido que
lida, ocupa-se e cuida de si mesma e dos outros entes; ela é o ente que eu mesmo sou e, nesse
sentido, é o ente que está no ser cada vez enquanto é sempre meu (Jeweiligkeit als meiniges),
palavras que expressam a singularidade e a unicidade da presença; a presença sempre vive e
convive com os outros (Mit-einander-sein); a presença sempre se auto-interpreta
(Selbstauslegung); na coditianidade ninguém é si mesmo (keiner ist in der Alltäglichkeit er
selbst); pela cura, a presença sempre e a cada vez estabelece uma preocupação com o ser (Die
Sorge um das Daseins hat jeweils das Sein in die Sorge gestellt); na medianidade
(Durschnittlichkeit) da presença cotidiana não uma reflexão sobre o eu e sobre si próprio e,
mesmo assim, a presença se encontra; a autenticidade da presença é o que constitui sua
possibilidade mais extrema (äußerste Seinsmöglichkeit); o fato da presença, de repente, não ser
mais, revela que, em última instância e em sentido próprio, não posso substituir a presença dos
outros (o outro, a rigor, eu nunca sou e nem posso ser); a extrema possibilidade de si mesma, a
191. Cf. toda a quarta seção de Kant e o problema da metafídica e a Disputatio de Davos entre Ernst Cassier e Martin
Heidegger, publicadas em apêndice a este livro (cf. Martin Heidegger, Kant und das Problem der Metaphysik, Frankfurt am
Main, Vittorio Klostermann, 1973, §§ 36-45, respectivamente p. 198-239 e 246-268).
84
morte, pode ser experimentada pela presença através da consciência na antecipação; a morte é a
possibilidade mais própria enquanto estar-no-fim (Zu-Ende-sein), embora indeterminada; a
presença é junto de si mesma, pois, enquanto existe autenticamente, se mantém no antecipar; o
antecipar nada mais é do que o porvir autêntico e singular da própria presença; o fenômeno
fundamental do tempo é o futuro (das Grundphänomen der Zeit ist die Zukunft); na
cotidianidade, a presença não é o ser que eu sou, pois na cotidianidade a presença é muito mais
aquele modo de ser que se é (Man ist) e, por isso, a presença é o tempo, no qual se está com os
outros: o tempo do impessoal; o relógio que se possui, cada relógio, indica o tempo da
convivência-no-mundo (Miteinander-in-der-Welt-sein); o relógio indica o agora, mas nenhum
relógio jamais indicou o futuro ou o passado; toda mensuração do tempo implica: trazer o tempo
para o quanto (Wieviel); o fato de, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes
(zunächst und zumeist), o tempo poder ser definido, dessa ou daquela maneira, reside na própria
presença; o que a presença diz do tempo, diz a partir da cotidianidade; no porvir, a presença é o
seu passado, ou seja, ela pode voltar a ele no como (Wie).
Diante de todas essas idéias presentes no texto da conferência, é necessário manter viva a
idéia norteadora da tematização da temporalidade a partir da presença. Ela é a base de onde
nasce, cresce e se desenvolve o conceito heideggeriano do tempo. Isso significa que podemos ver
no tempo do uso cotidiano, mas principalmente no modo como o tempo já sempre de algum
modo está à mão de todo mundo, um modo derivado da temporalidade originária e própria? O
problema do tempo envolve a tese fundamental segundo a qual Heidegger propõe colocar a
própria ontologia em novas bases. A realização dessa tarefa foi chamada por ele de ontologia
fundamental. Ela está enraizada na analítica existencial e temporal da facticidade da presença.
Diante de todas essas considerações a respeito da conferência de 1924, podemos tirar duas
conseqüências importantes: 1) o ser humano não deve ser interpretado fenomenalmente no que é
e como é, passando por cima da situação primordial de ser (ser-no-mundo e experiência fática),
razão pela qual também nenhum pensador antes de Heidegger colocou a questão do ser a partir
da analítica ontológica da presença. Com efeito, se a presença o é vista e compreendida
constitutivamente como sendo temporal, então: 2) o fato de ser sempre no tempo ser visto
por Heidegger como a base para a tematização do que é histórico, então, deve-se tematizar,
fenomenologicamente falando, também a historicidade da presença de um modo todo próprio. É
por isso que, ao encaminhar-se para dentro da problemática do tempo, Heidegger confronta-se
também e necessariamente com o problema da historicidade.
Para Heidegger, o que fundamenta a temporalidade, enquanto sentido ontológico da cura, não
192. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 9, p. 88-89.
85
é o tempo natural, isto é, o modo pelo qual grande parte da tradição metafísica compreendeu e
interpretou o tempo. Está em jogo devolver o tempo ao próprio ser humano. Aristóteles e
Santo Agostinho perceberam que é o homem o ente por excelência a fazer a experiência do tempo,
nele estando a origem e o destino do próprio tempo. A preocupação de Heidegger, portanto, ao
tratar do problema do tempo, é compreender em que sentido o tempo é tempo da presença ou, mais
especificamente, em que sentido é ela mesma quem se temporaliza, sempre, desse ou daquele
modo. Em contrapartida, quanto mais o tempo é o tempo da quantidade e da mera mensurabilidade
Heidegger reconhece isso já na aula de habilitação de 1915 , menor a possibilidade de se fazer a
experiência do tempo enquanto temporalidade da presença.
Segundo Dastur, como a tese que a presença é o tempo, várias vezes repetida na conferência,
está antecipada a problemática da analítica existencial e temporal, que Heidegger desenvolve em
Ser e tempo, tratado do qual a conferência de 1924 apresenta uma notável síntese
193
.
193. Cf. Françoise Dastur, Heidegger e a questão do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, p. 29.
86
CAPÍTULO 2
AS ESTRUTURAS FUNDAMENTAIS DO MODO DE SER DA PRESENÇA
Neste capítulo propomo-nos apresentar e aprofundar algumas das estruturas fundamentais do
modo de ser da presença, tematizadas por Heidegger, principalmente, em Ser e tempo. Convém
ressaltar, porém, que não se trata de fazer um levantamento exterior dos resultados da analítica
existencial de Ser e tempo
194
. Espera-se que, ao apresentar e aprofundar as estruturas fundamentais
da presença, seja possível dimensionar a analítica existencial com a analítica temporal. Para o que
se objetiva, então, é importante não perder de vista o título dado por Heidegger para a analítica
existencial: Análise preparatória dos fundamentos da presença
195
. A partir disso, o que almeja
Heidegger na análise preparatória dos fundamentos da presença? Vejamos o esboço apresentado na
abertura:
Na questão sobre o sentido do ser, o primeiro a ser interrogado é o ente que tem o caráter da
presença. Em subcondição preparatória, a analítica existencial da presença necessita, de acordo
com seu modo próprio de ser, de uma exposição e delimitação face a investigações
aparentemente equivalentes (capítulo I). Mantendo-se o ponto de partida já estabelecido na
investigação, deve-se liberar uma estrutura fundamental da presença, o ser-no-mundo (capítulo
II). Este a priori da interpretação da presença não é uma determinação composta por adição
mas uma estrutura originária e sempre total. Não obstante, oferece perspectivas diversas dos
momentos que a constituem. Mantendo-se continuamente presente a totalidade preliminar
desta estrutura, deve-se distinguir fenomenalmente os respectivos momentos. Torna-se, pois,
objeto de análise: o mundo em sua mundanidade (capítulo III); o ser-no-mundo como ser-com
e ser-próprio (capítulo IV); o ser-em como tal (capítulo V). Com base nos resultados da análise
desta estrutura fundamental será, então, possível delinear provisoriamente o ser da presença. O
sentido existencial da presença é a cura (capítulo VI)
196
.
Mesmo que em linhas gerais, vê-se aqui um delineamento do que é desenvolvido ao longo
dos seis capítulos da analítica existencial. Nesse sentido, poderíamos sintetizar o conteúdo dos
seis capítulos da seguinte forma: 1) o modo fundamental de ser da presença é existência (ter de
ser e ser sempre minha), distinguindo-o de outras interpretações do ser do homem; 2) liberar a
estrutura fundamental e apriorística da presença (ser-no-mundo). E, procurando sempre manter a
unidade e a totalidade da estrutura ser-no-mundo, deve-se: 3) apresentar o mundo em sua
194. Além de Ser e tempo, para os temas desenvolvidos neste capítulo, obras especialmente importantes são: Martin
Heidegger, Der Begriff der Zeit, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 2004, especialmente o capítulo Os caracteres
ontológicos fundamentais da presea, p. 17-44; a conferência Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989 e
History of the concept of time (Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs), Indiana University Press, Bloomington, 1985.
195. Há inúmeros estudos sobre Heidegger nos quais grassa um total mal-entendido a respeito do sentido tanto no que diz
respeito ao caráter preparatório da analítica existencial como também da incompletude de Ser e tempo. Para entender
adequadamente porque isso ocorre, deve-se considerar que a maioria dos mal-entendidos não passam de opiniões que
provêm de fora da circularidade em que se move a investigação heideggeriiana, sendo, portanto, em geral, opines sobre
seu pensamento. Por isso, decisivo é entender o que significa o caráter preparatório e a incompletude de Ser e tempo
(cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 7, p. 79). Cf. também Marcia Sá
Cavalcante Schuback, O como de deus, Petrópolis, Vozes, 1998, p. 22, onde a autora diz: O trabalho do esrito é, ao
contrário, um trabalho reflexivo. Nasce de um embate diário, demorando-se numa atenção. A sua dificuldade o é de
língua. É a dificuldade de esperar, também do leitor, ateão, paciência e dedicação filosóficas.
87
mundanidade; 4) o ser-com e ser-próprio como modos do ser-no-mundo; 5) o ser-em como tal.
Por fim, como resultado das análises realizadas: 6) apresentar a cura como ser da presença. De
um modo geral, portanto, temos aí definidas as linhas fundamentais da analítica existencial da
presença. É em torno destes temas que gravita a analítica existencial de Ser e tempo. Caberá ver e
entender em que sentido a analítica existencial prepara o solo fenomenal para que se possa
apreender o sentido ontológico da cura como temporalidade
197
.
Para cumprir o propósito e tomando por base a analítica existencial, serão desenvolvidos os
seguintes tópicos neste segundo capítulo: 1. Analítica existencial x antropologia filosófica; 2.
Existência como ter de ser e ser sempre minha; 3. Ser-no-mundo como constituição
fundamental da presença: a) A mundanidade do mundo, b) Ser-com e ser-si mesmo, e o
impessoal e c) O ser-em; 4. A cura como ser da presença.
2.1
A
NALÍTICA EXISTENCIAL X ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA
No início de Ser e tempo, Heidegger dedica um parágrafo para circunscrever o âmbito em
que a analítica, a ser desenvolvida, se movimenta. Orientado pelas investigações realizadas por
filósofos como W. Dilthey, E. Husserl e M. Scheler, Heidegger percorre um caminho todo
próprio. Porém, em que sentido? Heidegger propõe-se realizar uma analítica existencial em vista
de uma ontologia fundamental. Inicialmente, é possível dizer que Husserl desempenha um papel
importante nas investigações por ele realizadas no contexto em acontecem as investigações de
Ser e tempo. Por isso ele diz:
Caso a investigação que haverá de seguir avance no sentido de abrir as coisas elas
mesmas, o autor o deve, em primeiro lugar, a Edmund Husserl. Durante os anos de ensino
em Friburgo, Husserl familiarizou o autor com as mais diferentes áreas da pesquisa
fenomenológica, através de uma orientação profunda e pessoal, dando-lhe acesso, com o
maior despojamento, às suas investigações ainda não publicadas
198
.
Todavia, as investigações realizadas por Heidegger entre 1915 e 1927 revelam que se
afasta gradativamente das investigações fenomenológicas de Husserl e Scheler. Um exemplo
significativo está nas interpretações fenomenológicas da vida humana (menschlische Leben).
Enquanto outros filósofos empregam palavras como vivência (Erlebnis) ou mundo da
196. O esboço de apresentação à primeira seção encontra-se em Marin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf;
Petrópolis: Vozes, 2006, p. 83.
197. Como a estrutura da temporalidade é propriamente descrita por Heidegger na analítica temporal (especialmente
capítulo terceiro: O poder-ser todo em sentido próprio da presença e a temporalidade como sentido ontológico da cura), a
analítica temporal será tratada no próximo capítulo.
198. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 8, nota 13, p. 78. Como se verá a
seguir, é possível que Heidegger estivesse referindo-se aqui à edição dos escritos sobre a consciência interna do tempo, os
quais ele mesmo ajudou a editar, juntamente com Edith Stein e o Dr. Landgrebe, e que foram publicados em 1928. Para
maiores detalhes sobre a edição destes textos, ver Pedro M.S. Alves, Introdão do tradutor, Nota editorial e
Apêndices, in: Edmund Husserl, Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo, Lisboa, Imprensa
Nacional da Moeda, 1994, p. 7-31. Esta edição contém um editorial de Heidegger.
88
vivência (Lebenswelt), para descrever a experiência originária da vida humana, Heidegger
passa a utilizar expressões como hermenêutica da facticidade e, a partir disso, acaba fazendo
análises totalmente novas no campo da fenomenologia. Isso é manifesto em palavras como
facticidade (Faktizität), ser-no-mundo (In-der-Welt-sein), circunvisão (Umsicht), mundo
circundante (Umwelt)
199
. A mudança heideggeriana fundamental, porém, não consiste apenas
numa mudança conceptual. Temos de perguntar-nos, nesse caso, qual o sentido dos conceitos que
ele emprega em suas análises. Assim, ao propor e fazer uma hermenêutica da facticidade, está
preocupado em garantir e manter a unidade estrutural do fenômeno do mundo da presença
humana (menschlische Dasein).
No § 10, intitulado A delimitação da analítica da presença face à antropologia, psicologia e
biologia, procura delimitar a analítica da presença diante das possibilidades de uma antropologia
filosófica. A respeito das investigações realizadas por M. Scheler, escreve Heidegger: Scheler
acentua explicitamente o ser da pessoa como tal, e busca determiná-lo mediante uma diferenciação
entre o ser específico dos atos face a tudo que é psíquico. Para Scheler, a pessoa nunca pode ser
pensada como uma coisa ou substância. [...] A pessoa não é um ser substancial, nos moldes de uma
coisa. [...] A pessoa não é uma coisa, uma substância, um objeto
200
.
Vemos, nesta passagem, uma crítica positiva a Scheler. Segundo Heidegger, a idéia de fundo
que conduz as pesquisas de Scheler orienta-se por uma compreensão substancialista, ou seja, de
pessoa como coisa. Justamente porque o homem não é coisa, isto é, uma substância, faz-se
necessário um novo modo de compreender o ser do homem. Por essa razão, Heidegger não somente
afasta-se da terminologia e representações da antropologia filosófica, por exemplo, mas também
das investigações filosóficas nas quais o modo de ser do homem é compreendido de modo
substancialista. Para ele, trata-se de encontrar um modo condizente com o ente investigado, a saber,
a presença humana.
Através da hermenêutica da facticidade da presença, portanto, Heidegger não procura fundar
ou fundamentar qualquer tipo de antropologia. Ainda que uma hermenêutica antropológica
procurasse descrever e pensar a essência do homem, deveria mostrar a diferença entre uma
analítica existencial da presença e uma filosofia propriamente antropológica.
Num texto de 1938, o autor fala da possibilidade de uma antropologia filosófica dentro da
perspectiva fenomenológica. É o que podemos ler na conferência A época da imagem do mundo,
publicada em Holzwege: Antropologia é aquela interpretação do homem que no fundo já sabe o
199. Cf. Hans-Georg Gadamer, Verdade e todo, Petrópolis, Vozes, 1998, principalmente p. 353-399, onde procura
estabelecer a diferença entre o modo de investigar de Dilthey e Husserl em relão a Heidegger. Veja também o artigo de
Emmanuel Carneiro Leão, O problema da história em W. Dilthey, in: Aprendendo a pensar, Petrópolis, Vozes, 1991, p.
30-40.
200. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 10, p. 91-92.
89
que o homem é e, por isso, nunca pode perguntar quem é ele. É que com esta questão ela teria de
se confessar a si mesma abalada e superada, [...] não tendo como particularidade uma outra
significação a não ser efetuar uma segurança suplementar para a autoconsciência do sujeito
201
.
Na primeira parte da quarta seção de Kant e o problema da metafísica, em que Heidegger
interpreta a pergunta kantiana O que é o homem?
202
, e considerando as investigações de
Scheler na obra A posição do homem no cosmos, podemos ler também:
Nenhuma época soube tanto e de maneira tão diversa a respeito do homem como a atual.
Nenhuma época expôs o conhecimento acerca do homem de maneira mais penetrante nem
mais fascinante como a atual. Nenhuma época, até o momento, tem sido capaz de fazer
acessível este saber com a rapidez e a facilidade como a atual. E, no entanto, nenhuma época
soube menos acerca do que o homem é. Nenhuma época fez com que o homem se tornasse
tão problemático como a nossa
203
.
Vemos nessas duas passagens como, tanto Heidegger como Scheler, a partir da pergunta
kantiana, foram despertados para a paradoxalidade em que, principalmente nos tempos
modernos, vive o homem. A pergunta que se coloca é: como compreender e descrever o homem
em sua essência, em sua totalidade? De fato, as ciências não somente a antropologia desejam
ter sob seu domínio a pergunta pelo homem, sempre porém a partir de um determinado enfoque.
Sabemos que, em nenhuma outra época, houve âmbitos tão variados ocupados em compreender e
dar uma resposta à pergunta pelo ser do homem. Todavia, o questionamento de Heidegger é mais
radical: coloca-se o homem ainda a pergunta essencial a respeito de si mesmo, isto é, a respeito
de sua própria essência, de seu modo de ser fundamental? Diante da transitoriedade e rapidez
em que hoje tudo é calculado, em que tudo é mensurado, somos ainda capazes de assumir e
suportar a pergunta essencial a respeito de nós mesmos? Em Ser e tempo, Heidegger questiona a
essência do homem nestes termos:
Está em questão todo o ser do homem, que se costuma apreender como unidade de corpo,
alma e espírito. [...] Quando, porém, se coloca a questão do ser do homem, não é possível
calculá-lo como soma dos momentos de ser, como alma, corpo e espírito que, por sua vez,
ainda devem ser determinados em seu ser. [...] ao se determinar a essência deste ente
homem, a questão de seu ser foi esquecida. Ao invés de questioná-lo, concebeu-se o ser do
homem como evidência, no sentido de ser simplesmente dado junto às demais coisas
criadas...
204
.
201. Martin. Heidegger, La época de la imagen del mundo, in: Sendas perdidas, Buenos Aires, Losada, 1979, p. 98. Cf. a
este respeito Gerd Haeffner, Heidegger: Busca do caráter filofico da antropologia filosófica, in: Revista Portuguesa de
Filosofia, vol. XXXIII, out./dez. 1977, fasc. 4, principalmente p. 265.
202. Cf. Martin Heidegger, Kant und das Problem der Metaphysik, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1973, §§ 36-
38, p. 198-212.
203. Cf. Martin Heidegger, Kant und das Problem der Metaphysik, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1973, § 37,
p. 203. Cf. também, a propósito: Battista Mondin, O homem, quem é ele? Elementos de antropologia filofica, São Paulo,
Paulinas, 1980, p. 8; Urbano Zilles, Quem é o homem?, in: Teocomunicação, Porto Alegre, PUC, ano VII, fasc. 1, n. 35,
1977, p. 5; Antônio Joaquim Severino, A filosofia contemporânea no Brasil, Petrópolis, Vozes, 1999, p. 97. É possível
encontrar a idéia de Scheler seguida por Heidegger nesta passagem: Em cerca de dez mil anos de história, a nossa é a
primeira época em que o homem se tornou completa e totalmente problemático para si mesmo; em que não sabe mais, o
que é, mas ao mesmo tempo também sabe, que o não sabe (cf. Max Scheler, Mensch und Geschichte, in: Philosophische
Weltanschauung, Berna, 1954, p. 62).
204. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 10, p. 92-93.
90
Conduzido pela pergunta kantiana pelo ser do homem, Heidegger a necessidade de
realizar uma analítica do modo de ser do homem. Uma analítica, portanto, que assuma a questão
pela essência do homem. Uma analítica capaz de descrever fundamentalmente o modo pelo
qual o homem é, em geral, compreendido, mas, sobretudo, o modo como o homem a todo
momento compreende a si mesmo. A partir desse questionamento Heidegger é levado a realizar
uma hermenêutica da facticidade da presença
205
.
Por outro lado, Heidegger não parte do zero. Ele confronta-se com as compreensões
tradicionais do ser do homem. Elas restringem-se basicamente a duas: 1. homem como soma de
corpo + alma + espírito
206
; 2. homem como animal rationale (zw~/on lovgon e!con), quer dizer,
como ser vivo dotado de razão
207
. Na tarefa que Heidegger se coloca, entra em jogo, por isso
mesmo, uma análise destas compreensões tradicionais. Pelas análises realizadas por Heidegger,
dá-se uma virada significativa e que não podemos perder de vista. Do modo de perguntar quem
é o homem? passa a perguntar-se como é o homem?
Diante disso, ele preocupa-se em esclarecer e fundamentar o modo pelo qual é possível
perguntar o que é o homem enquanto ser vivo, mas, sobretudo, quem é ele. Para Heidegger,
o homem é um ente existente. De fato, pela analítica existencial, ele mostra que a vida é um
modo próprio de ser, mas que, em sua essência, se torna acessível na presença
208
. Em termos
heideggerianos isso significa: a compreensão do ser é em si mesma uma determinação do ser
da presença. O privilégio ôntico que distingue a presença está em ser ela ontológica
209
.
Num texto de 1927, contemporâneo de Ser e tempo e Kant e os problemas da metafísica,
podemos ler uma importante passagem, e de difícil tradução, mas que poderá servir de guia para
nossa investigação:
Coisidade (Sachheit), realitas ou quidditas, é aquilo que é respondido pela pergunta: quid est
res, o que é a coisa? Já a consideração mais rudimentar mostra que: o ente que nós mesmos
somos, a presença, não pode de modo algum ser interrogado como tal através da pergunta o
que é isto? Nós conquistamos um acesso a este ente se nós perguntarmos: quem é ele? A
presença não é constituída pela qüididade (Washeit), mas caso nos seja permitido formular a
expressão pela qüisidade (Werheit). A resposta não resulta numa coisa, porém, num eu, tu,
nós. E, entretanto, nós perguntamos de um outro modo: O que é este quem e esta qüisidade da
presença o que é este quem em distinção ao o quê anteriormente mencionado num sentido
estrito de coisidade simplesmente dada? Nós perguntamos assim sem nenhuma dúvida. Mas
nisso manifesta-se apenas que este o quê, através do qual nós também perguntamos pela
205. No semestre de verão de 1923, em Friburgo, Heidegger deu uma rie de preleções sobre este tema e que foram
publicadas no volume 63 das obras completas (cf. Martin Heidegger, Ontologie (Hermeneutik der Faktizit), Frankfurt am
Main, Vittorio Klostermann, 1995). Uma obra importante sobre este tema é o de Carmen Segura Peraita, Hermenéutica de
la vida humana: em torno ao Informe Natorp de Martin Heidegger, Madri, Trotta, 2002.
206. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 10, p. 92.
207. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 10, p. 93 e § 34, p. 228. Cf.
também Martin Heidegger e Medard Boss, Zollikoner Seminare: Protololle, Zwiegespräche, Briefe, Frankfurt am Main,
Vittorio Klostermann, 1994, p. 119.
208. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 10, p. 94.
209. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 4, p. 48.
91
essência do quem, manifestamente não se deixa encobrir com o o quê no sentido da
qüisidade. Em outras palavras: o conceito fundamental de essentia, de qüididade, se torna
propriamente problemático em vista do ente por nós chamado de presença. A fundamentação
insuficiente da tese como ontológico-universal é evidente. Caso ela deva ter um significado
ontológico em geral, então ela deve sofrer uma redução e uma modificação. Deve-se mostrar
positivamente em que sentido todo e qualquer ente pode ser perguntado a respeito de seu o quê
e em que sentido, porém, o ente precisa ser interrogado através da pergunta-quem. É somente a
partir daqui que o problema da distinctio entre essentia e existentia se torna algo complexo.
Não se trata meramente de uma pergunta a respeito da relação entre qüididade e ser
simplesmente dado, mas trata-se ao mesmo tempo da pergunta da relação existente entre
qüisidade e existência. No sentido por nós aqui empregado, entende-se existência como o
modo de ser de um ente, o ente que nós mesmos somos. Compreendido de um modo geral, a
tese segundo a qual a cada ente pertence essentia e existentia, indica simplesmente para o
problema universal de articulação de cada ente em relação a um outro ente, o qual é sob o
modo constitutivo de seu ser
210
.
Heidegger continua:
O problema de articulação do ser em essentia e existentia, formulado escolasticamente, é
apenas uma pergunta de caráter mais particular e que diz respeito à diferença ontológica, isto é,
diz respeito à diferença entre ente e ser. O que se mostra agora é que a diferença ontológica
está implicada o formalmente de modo que esta diferença se faz ouvir e apresentar. Está
implicada porque sob o título ser agora já não estão apenas essentia e existentia, mas ao
mesmo tempo isidade e existência no sentido por nós aqui empregado. A articulação do ser
varia com o respectivo modo de ser de um ente determinado. Este não pode ser reduzido ao ser
simplesmente dado e à realidade no sentido utilizado pela tradição
211
.
O que estas passagens evidenciam é que Heidegger preocupa-se em tematizar a diferença
de ser e ente, que é a diferença ontológica fundamental e que o leva a ocupar-se com a chamada
questão do ser. Modos possíveis, em que a diferença ontológica se evidencia, estão pressupostos
e subentendidos em expressões como: o quê (Was) e quem (Wer), qüididade (Washeit) e
qüisidade (Werheit)
212
, ser simplesmente dado (Vorhandenheit) e existência (Existenz).
Nessas expressões está em jogo uma só e mesma questão fundamental: a questão da diferença de
ser e ente. Do modo como Heidegger encaminha a investigação, deve-se perguntar pelo quem,
pela qüisidade, pela existência, sendo este questionamento ontológico. Portanto, não se trata
de antropologia filosófica. Nesse modo de questionar, o ente que coloca a questão é o próprio
ente implicado no questionamento. Por isso, na analítica existencial, realizada por Heidegger,
duas idéias centrais são recorrentes: a compreensão do ser é em si mesma uma determinação do
ser da presença
213
e a presença é o que, sendo, está em jogo como seu próprio ser
214
.
210. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 12,
p. 169-170.
211. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 12,
p. 170.
212. A opção em traduzir o termo Werheit por qüisidade orienta-se pela já corrente e consolidada maneira de traduzir
Washeit por qüididade. De fato, assim como qüididade es relacionada à palavra latina quidditas, achamos por bem
traduzir Werheit por qüisidade. Assim como a palavra latina quis diz quem, da mesma forma o pronome interrogativo
alemão wer diz quem.
213. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 4, p. 48.
214. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 45, p. 303.
92
Nessa perspectiva, mesmo em textos mais tardios, nos quais Heidegger interpreta a
essência do homem a partir de poetas, como Sófocles, e a partir de pensadores, como
Heráclito, estão pressupostas as investigações fenomenológicas de Ser e tempo. Isso pode ser
visto, por exemplo, na interpretação do fragmento 16 de Heráclito (Como alguém poderia
manter-se encoberto face ao que nunca se deita?)
215
ou, ainda, da Antígona de Sófocles
(Muitas são as coisas estranhas, nada, porém, há de mais estranho do que o homem...)
216
.
Para visualizar isso melhor, selecionamos um texto tardio de Heidegger, a saber:
Dilucidações à poesia de Hölderlin (Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung), de 1951. Vejamos:
Quem é o homem? Aquele, que precisa testemunhar o que ele é. Testemunhar significa
responder a uma manifestação. O homem é aquele que é justamente no testemunho da
própria presença. Este testemunho não quer dizer aqui uma expressão ulterior do ser humano
e que lhe acompanha, mas este testemunho constitui a presença do homem. Todavia, o que
precisa ele testemunhar? Sua pertença à terra. Esta pertença consiste no fato de o homem ser
da terra e o aprendiz de todas as coisas. Estas, porém, estão em conflito. O que mantém
separadas as coisas em conflito e com isso, ao mesmo tempo, as aniquila é chamado por
Hölderlin de imo. O testemunho da pertença a esta interioridade acontece através do criar
um mundo e do seu surgimento, como também através da destruição do mesmo e de seu
declínio. Este testemunho do ser humano e, com isso, sua própria execução acontece a partir
da liberdade da decisão. Esta agarra o necessário e se coloca em ligação a uma pretensão
mais alta. O ser-testemunho da pertença do ente na totalidade acontece como história.
Todavia, para que seja possível história, é dada ao homem a linguagem. Esta é uma dádiva
do homem
217
.
Orientados pelo modo de perguntar o que é isto? que é essencialmente grego
218
,
Heidegger pergunta-se pela fundamentação de fundamento, pela essencialização de essência
219
.
A forma interrogativa o que é isto, o ente? (tiv toV o[n;)
220
não é essencialmente grega, mas
são os gregos que, por estarem e descobrirem-se na força dessa pergunta, constituem-se como
povo filosófico
221
. É por isso que são os primeiros a perguntar pela essência (Wesen), pela
215. Cf. Martin Heidegger, Heráclito. A origem do pensamento ocidental. Lógica. A doutrina heractica do gos,
Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1998 e Martin Heidegger e Eugen Fink, Heráclito, Barcelona, Ariel, 1986, p. 26.
216. Cf. Martin Heidegger, Introdução à metasica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 166s. Cf. comentários desta
passagem de Sófocles em: Marcia Sá Cavalcante Schuback, Arte e técnica, in: Revista Filosófica Brasileira, vol. IV, n. 2,
outubro 1988, Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia/UFRJ, 1988, p. 97 e Emmanuel Carneiro Leão, Heidegger e a
modernidade: a correlação de sujeito e objeto, in: Aprendendo a pensar, Petrópolis, Vozes, 1992, p. 186-187.
217. Martin. Heidegger, Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1951, p. 34.
218. Martin Heidegger, Que é isto a filosofia?, in: Conferências e escritos filoficos, São Paulo, Abril Cultural, 1973,
p. 213. O pensador diz aqui: Em todo caso: quando, referindo-nos à filosofia, perguntamos: que é isto?, levantamos uma
questão originariamente grega. Cf. Renato Kirchner, Quem é o tempo? A problemática do tempo na analítica existencial
de Martin Heidegger, in: Em Foco, Petrópolis, Vozes, n. 3, abr./set. 1996, p. 17, onde o autor buscava dimensionar a
necessidade de uma melhor compreensão do quem da presea desde a quidditas, uma vez que Heidegger mesmo diz:
[...] a quidditas se determina diversamente nas diversas épocas da filosofia. [...] Em todo caso: quando, referindo-nos à
filosofia, perguntamos: que é isto?, levantamos uma questão originariamente grega (cf. Martin Heidegger, Que é isto a
filosofia?, São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1971, p. 23).
219. Cf. Martin Heidegger, A esncia do fundamento, Lisboa, Edições 70, 1988.
220. Esta pergunta é a pergunta das perguntas, isto é, a protopergunta da filosofia. Cf. Aristóteles Metasica Z, 1, 1028b
(E assim pois, o que tanto outrora, como agora, como em qualquer hora, se procurou [zetoumenon] e para o que nunca se
encontrou uma saída [aporoumenon], foi o questionamento da questão: o que é o ser de todo sendo [tiv toV o[n;] ou ainda,
em outras palavras: Aquilo que desde há muito e ainda agora e sempre temos buscado, aquilo que será sempre um
problema para nós o que é o ser? significica: o que é a substância?). Cf. comentário a respeito desta passagem em
Martin Heidegger, Que é isto a filosofia?, São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1971, p. 28.
221. Martin Heidegger, Heráclito. A origem do pensamento ocidental. gica. A doutrina heraclítica do gos, Rio de
Janeiro, Relume-Dumará, 1998, p. 30, em que o pensador diz: Ainda não avaliamos de que modo originário os gregos
93
essencialidade (Wesenheit) do ente. Heidegger diz que a pergunta pelo ente é a pergunta de
todas as perguntas
222
, constituindo-se por isso na pergunta primordial, que resume-se na forma
de perguntar ôntico-ontológica da presença humana. Portanto, na questão pelo sentido do ser está
a questão fundamental e essencial da filosofia enquanto pensamento. Cada época histórica é
constituída pelo ser, sendo tarefa da filosofia tematizar sua realização e constituição históricas.
De fato, tradicionalmente, o ser pode ser investigado e tematizado a partir do modo de perguntar
que é isto? (tiv toV o[n;)
223
. Já cedo Heidegger abraça e se debruça sobre esta questão e é ela que
orienta e perpassa sua obra, quer interpretando filósofos, quer interpretando poetas.
Em Kant e o problema da metafísica, Heidegger esclarece que a analítica existencial tem
em vista uma ontologia fundamental: A metafísica da presença, que é realizada na ontologia
fundamental não pretende ser uma nova disciplina nos moldes das que existem; nela se manifesta
a vontade de despertar a consciência de que o filosofar se realize como transcendência explícita
da presença
224
.
Nessa perspectiva, devemos perguntar: o que se busca pela analítica existencial enquanto
ontologia fundamental? Heidegger parte do pressuposto de que o homem existe sempre no
mundo. Ao falar que o homem existe no mundo, não fala que ele esteja junto das coisas ao modo
de soma e, conseqüentemente, como uma coisa simplesmente dada. Ser homem é ser sempre
num sentido, numa orientação, numa situação, numa circunstância
225
. Com efeito, na formulação
foram sábios. Talvez por terem sido sábios é que originaram o pensamento, em sentido próprio. Não foram sábios porque
possuíram uma filosofia. Também há importantes considerões, a este respeito, na conferência pronunciada por
Heidegger em 1955, Que é isto a filosofia?, in: Confencias e escritos filosóficos, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p.
211-222. Já entre os gregos, atribui-se o princípio da filosofia ao espanto ou admiração (qaumavzein). Limito-me tão-
somente a indicar algumas conhecidas passagens de Platão e Aristóteles em que é registrada a origem da filosofia, ou seja,
pela pergunta essencial e norteadora da metafísica. Em Platão confira Teeteto 155d (Esta emoção, a admiração, é própria
do filósofo: nem tem a filosofia outro princípio além deste); em Aristóteles confira Metafísica I, 2, 832b, 12 (pelo espanto
os homens chegaram agora e chegaram antigamente à origem imperante do filosofar) e Metasica I, 2, 982b (é a
admiração que leva os homens a filosofar. Eles admiram-se das coisas estranhas com que esbarram; depois avançam pouco
a pouco e começam por questionar as fases da lua, o movimento do sol e dos astros, e por fim a origem do universo
inteiro). A este propósito, cf. também Marcia Sá Cavalcante Schuback, O começo de deus, Petrópolis, Vozes, 1998, p. 10-
11 e o artigo de Marten Rainer, Martin Heidegger: o tempo autêntico, in: Luis A. de Boni (org.), Finitude e
transcendência, Petrópolis, Vozes, 1996, p. 603.
222. Martin Heidegger, Heráclito. A origem do pensamento ocidental. gica. A doutrina heraclítica do gos, Rio de
Janeiro, Relume-Dumará, 1998, p. 90.
223. Não é por acaso que a obra capital de Heidegger começa confrontando-se e dialogando com O sofista de Platão, a
partir do qual deve-se colocar novamente a questão pelo sendido de ser. No comentário à epígrafe de Ser e tempo,
Heidegger diz: Será que hoje temos uma resposta para esta pergunta sobre o que queremos dizer com a palavra ente? De
forma alguma. Assim sendo, trata-se de colocar novamente a questão sobre o sentido de ser. Será que hoje estamos em
aporia por não compreendermos a expreso ser? De forma alguma. Assim, trata-se de despertar novamente uma
compreensão para o sentido dessa questão (cf. Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, comentário
à epígrafe, p. 34). Cf. também também Martin Heidegger, Parmenides, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1992 e
Platons: Sophistes, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1992.
224. Martin Heidegger, Kant und das Problem der Metaphysik, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1973, § 44, p.
235.
225. Esta é uma palavra-chave no pensamento de Ortega. Seu sentido lembra o existencial ser-em da estrutura fundamental
ser-no-mundo de Heidegger. É importante ter presente que, aproximadamente treze anos antes de Ser e tempo (1914),
Ortega já cunhara a palavra cincum-stantia. É em torno dela que gravita todo o desenvolvimento de seu pensamento
posterior quanto ao real sentido da vida e história humanas (cf. a reflexão de Luiz Felipe Alves Esteves, Sumária
introdução ao pensamento de Ortega y Gasset, in: Em torno a Galileu. Esquema das crises, Petrópolis, Vozes, 1989, p. 9).
Em seu livro intitulado Que é filosofia?, fruto de lições de 1929, mas publicado somente em 1958, diz Ortega: Viver é
encontrar-se no mundo... Heidegger, num recentíssimo e genial livro, nos fez notar todo o enorme significado dessas
palavras... (cf. José Ortega y Gasset, Que é filosofia?, Rio de Janeiro, Livro Ibero-Americano, 1961, p. 230; o livro a que
94
o homem é sempre no mundo, o é a partícula do desconcerto, da perplexidade, e ela
quer dizer: ser-no-mundo, unidade-totalidade de sentido, isto é, -se sempre já de modo tão
cedo que o ser humano chega, por assim dizer, tarde demais para apreendê-lo e compreendê-lo
em e desde seu fundamento. O ser humano só é e enquanto ser-no-mundo. Ser-no-mundo
é horizonte de sentido, condição de possibilidade de ser e, nesse sentido, ao e para ser sob um
modo possível de ser, a presença existe sendo-no-mundo.
Desse modo, tanto homem quanto mundo dão-se, doam-se, já sempre, desde sentido de ser,
desde modo de ser, desde horizonte de sentido, desde abertura de sentido. Sentido, modo,
horizonte, abertura apontam para o modo originário e elementar de ser presença (Dasein).
Esse modo de ser constitui-se como ontológico por ser sempre incontornável e inabarcável. O
ser da presença é, por isso, existência. A analítica existencial, realizada em Ser e tempo, é o
gigantesco esforço de descrever a constituição fundamental da presença como ser-no-mundo,
desdobrando-se como sentido, modo, horizonte, abertura, onde, existindo propriamente,
a presença abre-se como instante, como hora de tudo quanto há e é real.
Ao elaborar uma ontologia fundamental, portanto, Heidegger busca fundar uma ontologia
que fundamente toda e qualquer ontologia possível. Heidegger diz, porém, que a ontologia é
possível como fenomenologia
226
. Enquanto método, a fenomenologia deixa os fenômenos se
mostrarem, deixa os fenômenos falarem. Está em jogo, pois, uma descrição fenomenológica do
modo de ser da presença no que e como ela é, sendo-no-mundo. Por isso, é fundamental
compreender as caracterizações fundamentais do modo de ser da presença.
2.2
E
XISTÊNCIA
COMO
TER DE SER
E
SER SEMPRE MINHA
Nas investigações realizadas por Heidegger, em vista de uma ontologia fundamental,
colocam-se perguntas relacionadas à analítica existencial, num primeiro plano, e outras
relacionas à colocação da questão pelo sentido de ser, num segundo plano. Entre estas perguntas
estão: em qual dos entes deve-se procurar o sentido de ser? De que ente deve partir a abertura
para o ser? O ponto de partida é arbitrário ou será que um determinado ente possui o primado na
elaboração da questão de ser? Qual ou quem é este ente exemplar e em que sentido possui ele
uma primazia? Em Ser e tempo, podemos ler:
Ortega se refere aqui é, evidentemente, Ser e tempo, e que havia sido publicado apenas dois anos antes). Para uma melhor
compreensão do conceito de circun-stância orteguiano, indicamos, por exemplo, a leitura dos seguintes livros: José Ortega
y Gasset, Meditaciones del Quijote, Madri, Revista de Occidente, 1956; El hombre y la gente, Madri, Revista de Occidente,
1964.
226. Cf. Marin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 8, p. 75. Cf. também Jaime
Montero Anzola, Reflexiones en torno a Ser y tiempo de Martin Heidegger, in: Franciscanum, Santafé de Bogotá, ano 37,
n. 112, jan./abr. 1996, p. 29.
95
Caso a questão do ser deva ser colocada explicitamente e desdobrada em toda a sua
transparência, a sua elaboração exige, de acordo com as explicações feitas até aqui, a
explicitação da maneira de se visualizar o ser, de se compreender e apreender
conceitualmente o sentido, a preparação da possibilidade de uma escolha correta do ente
exemplar, a elaboração do modo genuíno de acesso a esse ente. Visualizar, compreender,
escolher, aceder a são atitudes constitutivas do questionar e, ao mesmo tempo, modos de ser
de um determinado ente, daquele ente que nós mesmos, os que questionam, sempre somos.
Elaborar a questão do ser significa, portanto, tornar transparente um ente o que questiona
em seu ser. Como modo de ser de um ente, o questionar dessa questão se acha
essencialmente determinado pelo que nela se questiona pelo ser. Designamos com o termo
presença esse ente que cada um de nós mesmos sempre somos e que, entre outras coisas,
possui em seu ser a possibilidade de questionar
227
.
A preocupação de Heidegger consiste em descobrir o ente privilegiado para a colocação da
questão do ser. Este ente é a presença: o ente que nós mesmos, deste ou daquele modo, já sempre
somos. A presença é o ente que, entre muitas outras possibilidades de ser, ou melhor, de existir,
possui em seu ser a possibilidade de questionar, ou seja, de colocar a própria questão pelo
sentido de ser. Nesse sentido, a primazia da analítica da presença deve ser vista desde a primazia
da questão do ser. Segundo Heidegger, a questão do ser possui uma tríplice primazia:
Em conseqüência, a presença possui um primado múltiplo frente a todos os outros entes: o
primeiro é um primado ôntico: a presença é um ente determinado em seu ser pela existência.
O segundo é um primado ontológico: com base em sua determinação da existência, a
presença é em si mesma ontológica. Pertence à presença, de maneira igualmente originária,
e enquanto constitutivo da compreensão da existência, uma compreensão do ser de todos os
entes que não possuem o modo de ser da presença. A presença tem, por conseguinte, um
terceiro primado que é a condição ôntico-ontológica da possibilidade de todas as ontologias.
Desse modo, a presença se mostra como o ente que, ontologicamente, deve ser o primeiro
interrogado, antes de qualquer outro
228
.
Para se entender adequadamente esta tríplice primazia, deve-se considerar, em primeiro
lugar, o contexto desta passagem. Ela é uma síntese dos §§ 3 e 4, que tratam dos primados
ôntico, ontológico e ôntico-ontológico da questão do ser. Ora, nesse contexto de Ser e tempo, a
tríplice primazia pertence necessariamente ao modo de ser do ente questionado em seu ser,
sendo, então, em primeiro lugar, uma investigação ontológica, ou melhor, do modo de ser de um
ente privilegiado: o próprio homem enquanto presença (Dasein). Não se trata, como já vimos, de
tematizar este ente sob as lentes de uma antropologia filosófica. Está em jogo um modo mais
radical de vê-lo e endendê-lo e, assim, descrevê-lo fenomenologicamente. Busca-se uma
fundamentação ontológica, vale dizer, um modo mais primordial de ser.
Entretanto, quais os modos fundamentais de ser da presença? Em que consiste o privilégio
desta escolha? É possível identificar no ente privilegiado características existenciais que
comprovem isso? Para responder a estas perguntas, é necessário ter presente:
227. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 2, p. 42-43.
228. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 4, p. 49.
96
1. A essência deste ente está em ter de ser. A qüididade (essentia) deste ente, na medida
em que dela se possa falar, há de ser concebida a partir de seu ser (existência). Neste
propósito, é tarefa ontológica mostrar que, se escolhemos a palavra existência para designar
o ser deste ente, esta não tem e nem pode ter o significado ontológico do termo tradicional
existentia. Para a ontologia tradicional, existentia designa o mesmo que ser simplesmente
dado, modo de ser que não pertence à essência do ente dotado do caráter de presença. Evita-
se uma confusão usando a expressão interpretativa ser simplesmente dado para designar
existentia e reservando-se existência como determinação ontológica exclusiva da presença.
A essência da presença está em sua existência. As características que se podem extrair
deste ente não são, portanto, propriedades simplesmente dadas de um ente simplesmente
dado que possui esta ou aquela configuração. As características constitutivas da presença
são sempre modos possíveis de ser e somente isso. Toda modalidade de ser deste ente é
primordialmente ser. Por isso, o termo presença, reservado para designá-lo, não exprime a
sua qüididade como mesa, casa, árvore, mas sim o ser.
2. O ser,
que está em jogo no ser deste ente, é sempre meu. Nesse sentido, a presença nunca
poderá ser apreendida ontologicamente como caso ou exemplar de um gênero de entes
simplesmente dados. Pois, para os entes simplesmente dados, o seu ser é indiferente ou, mais
precisamente, eles são de tal maneira que o seu ser não se lhes pode tornar nem indiferente
nem não indiferente. Dizendo-se a presença, deve-se também pronunciar sempre o pronome
pessoal, devido a seu caráter de ser sempre minha: eu sou, tu és
229
.
A partir destas duas caracterizações existenciais, evidencia-se que a essência da presença é
existência. Existência é uma determinação ontológica exclusiva do modo de ser do homem. De
um lado, a essência da presença consiste em sua existência; existindo, está sempre já em jogo o
seu próprio ser, isto é, a presença tem de ser (Zusein) de algum modo para poder ser; de outro
lado, o ser, que está sempre em jogo neste ente, revela-se como ser sempre minha
(Jemeinigkeit)
230
. Isso quer dizer: o ser que já sempre está em jogo é primordialmente
experimentado pelo próprio ente que está em jogo. Mas, quem está em jogo? Ora, este quem
é sempre um quem pessoal: um eu, um tu, diz respeito especificamente à minha vida, à
tua vida
231
.
Guiada por estas duas caracterizações fundamentais do modo de ser da presença, a analítica
heideggeriana não se preocupa em desfazer ou resolver a polaridade sujeito x objeto, que é um
esquema pelo qual se costuma compreender e descrever a realidade. A dificuldade fundamental,
no entanto, partindo-se desse esquema, reside no fato de que seria necessário justificar e
esclarecer, em última instância, como é possível relacionar o dentro (= eu, sujeito) com o
229. Marin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, § 9, p. 85-86 (grifo nosso). Cf.
também Jaime Montero Anzola, Reflexiones en torno a Ser y tiempo de Martin Heidegger, in: Franciscanum, Santafé de
Bogotá, ano 37, n. 112, jan./abr. 1996, p. 29.
230. Para maiores esclarecimentos sobre o termo Jemeinigkeit ou je meines, cf. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit,
Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 24-27; tradução brasileira: O conceito de tempo, in: Cadernos de Tradução,
Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 18/19 e 36/37-38/39. Também Martin Heidegger, Introdução à
metasica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 57. Para entender melhor a diferença fundamental entre o ente
chamado presença e demais entes, confira também Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt
am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 9, p. 90.
231. Idéia similar encontramos em Ortega y Gasset, quando diz: A vida nos é dada, visto que s o a damos a s
mesmos, senão que nos encontramos nela de uma hora para outra e sem saber como. Porém essa vida não nos é dada feita,
cada um deve fazer a sua ppria (José Ortega y Gasset, História como sistema. Mirabeau ou o potico, Brasília, Editora
Universidade de Brasília, 1982, p. 27).
97
fora (= outros-eus, objetos). No fundo, então, o ponto de partida de Heidegger consiste em
encontrar uma condição fundamental da relação sujeito x objeto, ou melhor, da co-relação
sujeitoobjeto.
A partir disso, sua preocupação volta-se para o antes (vor) da polaridade, para o meio (in)
da co-relação sujeitoobjeto. Colocam-se, então, perguntas como: o que significa fazer uma
descrição da experiência que se sempre, quer dizer, antes da e na co-relação sujeito
objeto, subjetivoobjetivo? Fundamentalmente, deve-se compreender sujeitoobjeto, subjetivo
objetivo de um modo não-epigonal, ou seja, não como resultado, mas em sua dinâmica própria
de realização e constituição. Trata-se, pois, de descrever o modo pelo qual a presença conasce ou
concresce sob as caracterizações existência e ser sempre minha. Não são, então, meros
conceitos, uma vez que remetem para modo de ser, para sentido de ser, para horizonte de
sentido da presença. Conseqüentemente, toda descrição fenomenológico-existencial que, de
saída, não assegurar a unidadetotalidade do ente investigado, certamente está fadada ao
fracasso. Assim, no intuito de descrever a fenomenalidade do ente que se busca investigar, em
seu ser, é necessário um método próprio de investigação, a fenomenologia.
Embora, num primeiro momento, as duas caraterizações ontológico-existenciais ter de
ser e ser sempre minha pareçam o apresentar uma relação direta com a questão central
investigada em Ser e tempo, Heidegger preocupa-se em monstrar, logo de saída, que o ser é
sempre o ser de um ente, isto é, que não há modo de ser fora, ou melhor, que não há modo de ser
desinteressado. Todo ente que vem ao encontro da presença revela uma face do ser e, nesse
sentido, o ser é múltiplo. Ou seja: a manifestação dos entes aponta sempre para um
determinado modo de ser, para uma experiência concreta de ser. Por isso, então, a relação ente e
ser deve ser vista e compreendida desde a constituição fundamental ser-no-mundo
232
.
De fato, as duas caracterizações ontológico-existenciais da presença resguardam a idéia
fundamental condutora da analítica existencial realizada por Heidegger em Ser e tempo. O ente
privilegiado, que é ao modo de ter de ser e ser sempre minha, é o homem enquanto ente que
existe. Por essa razão, Heidegger faz questão de afirmar isso continuamente: o homem é o único
ente que se mantém (hält sich auf) numa determinada compreensão de ser, ou seja, ele sempre já
existe a partir de um determinado modo de ser. Faz-se necessário, então, explicar o conceito
heideggeriano de existência. Ele o descreve nestes termos:
Chamamos existência ao próprio ser com o qual a presença pode se comportar (verhalten
kann) dessa ou daquela maneira e com o qual ela sempre se comporta (verhält) de alguma
maneira. Como determinação essencial desse ente não pode ser efetuada mediante a
indicação de um conteúdo qüiditativo, que sua essência reside, ao contrário, no fato de
232. Cf., neste capítulo, o tópico Ser-no-mundo como constituição fundamental da presença.
98
dever sempre possuir o próprio ser como seu, escolheu-se o termo presença para designá-lo
enquanto pura expressão de ser
233
.
Em primeiro lugar, Heidegger concebe existência de uma maneira diferente da tradicional
(existentia). Sendo existência a essência da presença, ela distingue ou diferencia homem como
homem. O homem é, nesse sentido, um ente privilegiado. Existindo, nele e através dele, o ser nele
se manifesta e, por isso mesmo, pode ele compreendê-lo e experimentá-lo desta ou daquela
maneira
234
. A partir disso, é possível entender, também, por que Heidegger, de um modo geral, não
usa a palavra homem para descrever a idéia de existência. Ele usa os termos presença (Dasein),
presença humana (menschlische Dasein) e, muito raramente, ser humano (Mensch). O decisivo,
portanto, é ter em mente que, enquanto ente existente, a presença é o ente que carece de ser para
poder ser (Zusein) e que constitui-se como cada vez meu ou ser sempre minha (je meines ou
Jemeinigkeit).
A partir disso, fica mais claro que a presença é sempre um ente concreto: um eu, um tu...
numa possibilidade determinada de ser... Nessa acepção, só e unicamente o homem, ou
melhor, a presença existe. Evidencia-se, então, por que este termo foi escolhido por Heidegger
para expressar o modo de ser do ente que, para poder ser, é essencialmente carente de ser. Por ser
radicalmente carente de ser, precisa in-sistir e per-sistir, num modo possível de ser, para poder
ser (existência)
235
.
Um tal privilégio, contudo, não diz respeito ao poder de dominação sobre outros entes,
embora também possa -lo sob um modo decadente e impróprio. Privilégio diz respeito,
sobretudo, ao modo de ser do ente que existe, isto é, enquanto lançado e jogado no mundo, está
continuamente na possibilidade, na tarefa, na responsabilidade de assumir-se dessa ou daquela
maneira. Nesse sentido, está na responsabilidade de dar sentido à totalidade dos entes, tanto aos
entes que não o ele mesmo como aos entes que são ao modo dele mesmo. Esse modo de
compreender existencialmente o ser humano, como presença, revela que ele é um ente concreto,
finito, mortal, histórico, temporal
236
.
Assim, a analítica existencial, ao tematizar a existência da presença em seus modos
fundamentais de ser, orienta-se pela idéia de existência. Existência é, afirmamos, a essência
da presença. Heidegger chama de existenciais as estruturas ontológicas constitutivas do ente
denominado presença. Os existenciais, contudo, não são partes através das quais,
analiticamente, se compõe todo o ser, quer dizer, a essência da presença. Ao contrário, em
233. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 4, p. 48.
234. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 2, p. 42-43.
235. Cf. Hermógenes Harada, Verdade e liberdade da essência da verdade (Martin Heidegger), Petrópolis, 1970, p. 71-
78. (Apostila mimiografada.)
236. Destes temas nos ocuparemos no próximo capítulo desta investigação. Para entender os conceitos finitude,
mortalidade e temporalidade, cf. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main,
Vittorio Klostermann, 1975, § 19, p. 386.
99
cada existencial todo o ser da presença é apreendido e tematizado. Existenciais são, então, os
elementos, os índices do modo de ser do ente chamado presença, cuja constituição fundamental é
ser-no-mundo.
A partir disso, é possível compreender por que Heidegger indica duas maneiras possíveis
de interpretação ontológica: Existenciais (Existenzialien) e categorias (Kategorien) são as duas
possibilidades fundamentais de caracteres ontológicos. O ente, que lhes corresponde, impõe,
cada vez, um modo diferente de se interrogar primariamente: o ente é um quem (Wer)
(existência) ou um quê (Was) (algo simplesmente dado no sentido mais amplo)
237
.
Vê-se, aqui, que existenciais e categorias são duas possibilidades fundamentais de
caracterização ontológica. A palavra existencial diz respeito às contexturas próprias do modo de
ser do ser humano, ou melhor, da presença. Os existenciais ou estruturas existenciais pertencem a
um quem (Wer) específico e determinado, ao passo que a categoria, palavra empregada por
Heidegger no sentido que a tradição metafísica a utiliza, diz respeito às contexturas próprias dos
entes simplesmente dados (Vorhandenheit). De fato, as categorias são as caracterizações pelas
quais se procura compreender o modo de ser dos demais entes, ou seja, as categorias não
perfazem as estruturas do modo de ser da presença
238
.
A partir dessa distinção, a saber, a partir destes dois modos de ser, deve-se compreender o
objetivo de Heidegger de fundar uma nova ontologia, uma ontologia fundamental, diferenciando-
a das demais ontologias da metafísica tradicional
239
. Por essa razão, faz a ressalva de que os
demais entes, que não são ao modo da presença, devem ser compreendidos a partir do modo que
lhes é próprio e constitutivo. Dessa distinção ontológica fundamental escreve Heidegger:
Todas as explicações resultantes da analítica da presença provêm de sua estrutura
existencial. Denominamos os caracteres ontológicos da presença de existenciais porque eles
se determinam a partir da existencialidade. Estes devem ser nitidamente diferenciados das
determinações ontológicas dos entes que não têm o modo de ser da presença, os quais
chamamos de categorias
240
.
237. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 9, p. 89. Cf. Emmanuel Carneiro
Leão, O pensamento de Heidegger no sincio de hoje, in: Cultura Vozes, Homenagem a Heidegger, Petrópolis, ano 71,
n. 4, maio 1977, p. 297, onde o autor tece comentários a respeito da co-presença (Mitdasein).
238. Segundo Carneiro Leão, os existenciais o as contexturas da existência em sua estrutura de articulação, isto é, são
os elementos ou índices de um modo de ser fundamental (cf. Emmanuel Carneiro Leão, Posfácio, in: Ser e tempo,
Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, p. 558). Mas o que, como e quais são os existenciais da presença? Ora,
existenciais são todas as estruturas (= con-texturas) a partir das quais Heidegger realiza a analítica existencial, isto é, uma
analítica em que se busca ir ao encontro do modo de ser do homem no que ele é e como ele é (= existência). Todavia,
como lembra o pensador no § 10 de Ser e tempo, frente às tendências metasicas tradicionais que tendem a encobrir o modo
de tratar adequado deste ente, ele procura evitar expressões como vida (Leben) e homem (Mensch) (cf. aqui
Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 10, p. 90, onde ele diz: Não é,
portanto, por capricho terminológico que evitamos o uso desses termos bem como das expressões vida e homem para
designar o ente que nós mesmos somos).
239. Um modo ontológico categorial com o qual Heidegger se defronta, ao determinar a mundanidade e espacialidade da
presença, por exemplo, é a cartesiana (cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes,
2006, §§ 19 e 20, p. 140-168).
240. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 9, p. 88-89.
100
Para entender melhor a idéia heideggeriana de existência, portanto, é importante considerar
que, no nível da analítica existencial, o pensador distingue variações no modo de ser do ente
investigado em seu ser. Os modos mais cotidianos e mais próximos são os da manualidade
(Zuhandenheit) e do ser simplesmente dado (Vorhandenheit)
241
. Por isso, no capítulo que trata da
mundanidade do mundo, Heidegger empreende esforços no intuito de descrever,
fenomenologicamente, as variações do modo de ser da presença em sua ocupação cotidiana. Está
em jogo um modo adequado de descrição do fenômeno mundanidade do mundo, mundo em
que nós mesmos, a todo momento, estamos lançados e inseridos.
Dentro do panorama da analítica existencial, manualidade e ser simplesmente dado são
duas estruturas pelas quais Heidegger mostra e descreve como nós sempre nos relacionamos,
comportamos e ocupamos com os outros entes. A manualidade revela que a presença sempre
se ocupa em função de si mesma. Tanto manualidade como ser simplesmente dado remetem para
a própria mão (Hand) de quem que se ocupa, porém, o ser simplesmente dado aponta para o
modo como a presença em geral não é, isto é, para o modo impróprio de ser ela mesma. De
fato, sendo simplesmente dada, a presença não é própria, mas imprópria e decadente. E, no
entanto, diz Heidegger, e o demonstra em suas análises, mesmo o modo impróprio e decadente
sempre ainda remete para um modo de ser fundamental que é próprio, único, singular,
irrepetível. O que significa, em última instância, que não há ser humano destituído de existência,
pois sempre ainda resta uma possibilidade de recuperar-se da impropriedade e decadência e,
assim, tornar-se ela mesma, ou seja, própria
242
.
Assim, ao dizer que a substância do homem é existência, Heidegger o entende
simplesmente substância como uma coisa corpórea, acrescida de alma e espírito. Na verdade, a
idéia de existência revela um modo que, no fundo, o é coisa nem é ao modo de coisa. E o que é
então? Modo de ser, isto é, possibilidade de ser, nada substancial, portanto, no sentido tradicional
do termo. Com efeito, mesmo que o homem se compreenda sob outros modos possíveis, ele
sempre já se compreende a partir desse modo fundamental, que é condição de toda e qualquer
possibilidade de ser.
A palavra existência constitui-se, então, como ela mesma diz, dinâmica de estruturação de
sentido. Existir provém de existere. De um lado, o ex expressa o movimento de dentro para
fora, ou melhor, necessidade vital de ter de realizar, isso ou aquilo, dessa ou daquela forma, para
poder ser sob um modo possível de ser. Isso dá-se à medida que a presença, sempre de novo,
241. Segundo Paul Ricoeur, há uma distinção entre os dois modos de ser que o o Dasein e a Vorhandenheit (cf. O si-
mesmo como um outro, Papirus, Campinas, 1991, p. 361).
242. Parafraseando uma das principais passagens do Discurso do método, de Descartes, segundo o qual o que há de mais
bem distribuído entre os homens é o bom-senso, talvez pudéssemos dizer de uma maneira heideggeriana: a existência,
enquanto esncia, é o que há de mais bem distribuído entre os homens.
101
incontornavelmente, se descobre num determinado projeto de sentido, numa determinada
ocupação, num determinado destino e envio históricos; de outro lado, o sistere expressa, por
sua vez, a dinâmica de contínua in-sistência e per-sistência na estruturação de sentido
243
.
Da caracterização existencial ser sempre minha, Introdução à metafísica:
[A caracterização, ser sempre minha (je meines) significa: a existência me foi outorgada,
a fim de que meu próprio eu seja a existência. Existência, porém, diz não apenas o cuidado
do ser do homem mas o cuidado do ser do ente, como tal, que se re-vela ekstaticamente no
próprio cuidado. A existência é sempre minha, isso não quer dizer que seja posta por mim
nem que esteja isolada num eu separado. A existência é ela mesma a partir de sua referência
essencial com o ser simplesmente. É o que significa a frase repetida com freqüência em Ser
e tempo: À existência pertence a compreensão do ser]
244
.
Je meines ou Jemeinigkeit é uma caracterização do modo de ser da presença. Sendo ela o
ente que privilegiadamente carece de dar um sentido a tudo que faz e empreende, vê-se que, em
última instância, a presença necessita dar uma determinação à sua existência no mundo, enfim,
à sua vida, aos seus afazeres e ocupações cotidianos. Nesse sentido, pode-se ler, no § 9 de Ser e
tempo, a passagem explicativa a respeito dessa caracterização existencial: Toda modalidade de
ser deste ente é primordialmente ser. Por isso, o termo presença, reservado para designá-lo, não
exprime a sua qüididade como mesa, casa, árvore, mas sim o ser
245
.
Ter de ser e ser sempre minha são, pois, as duas caracterizações fundamentais da presença,
através das quais ela sempre se decide ou se decidiu por um determinado modo de ser, seja
própria ou impropriamente. De fato, ela só é real à medida que existe numa possibilidade de ser,
seja ela própria seja ela imprópria. Nessa perspectiva, podemos ler também em Ser e tempo:
E é porque a presença é sempre essencialmente sua possibilidade que ela pode, em seu ser,
isto é, sendo, escolher-se, ganhar-se ou ainda nunca ganhar-se ou só ganhar-se
aparentemente. A presença pode perder-se ou ainda não se ter ganho porque, segundo
seu modo de ser, ela é uma possibilidade própria, ou seja, é chamada a apropriar-se de si
mesma. Os dois modos de ser propriedade (Eigentlichkeit) e impropriedade
(Uneigentlichkeit) ambos os termos foram escolhidos em seu sentido verbal rigoroso
fundam-se no fato da presença ser determinada pelo caráter de ser sempre minha. A
impropriedade da presença, porém, não diz ser menos nem um grau inferior de ser. Ao
contrário, a impropriedade pode determinar toda a concreção da presença em seus ofícios,
estímulos, interesses e prazeres
246
.
243. Cf. Hermógenes Harada, Fenomenologia do corpo: situão como exisncia corporal, in: Cultura Vozes, jan./fev.
1971, p. 22; também Martin Heidegger, A questão da cnica, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da
USP, n. 2, 1997, p. 78/79 e Sobre o humanismo, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967, p. 54.
244. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 57. Os colchetes são do
próprio original do autor. Cf. edição alemã: Einhrung in die Metaphysik, Tübingen, Max Niemeyer, 1987, p. 22.
245. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 9, p. 86. Numa nota marginal
Heidegger acrescentou a seguinte nota explicativa: ser sempre meu significa estar entregue à responsabilidade do próprio
(Jemeinigkeit meint Übereignetheit). O verbo übereignen significa transmitir, entregar, alterar, no sentido de vir a
tornar próprio.
246. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, § 9, p. 86. Sobre o sentido em que
Eigentlichkeit e Uneigentlichkeit são empregados em Ser e tempo, cf. também Martin Heidegger, Sobre o humanismo, Rio
de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967, p. 53-54. Ernildo Stein diz a respeito das duas caracterizações fundamentais da
presença: Os existenciais se distinguem das categorias, primeiro, porque articulados com a questão da temporalidade,
depois, porque, em conseqüência, possuem um caráter ontológico e prático ao mesmo tempo, isto é, definem uma dimeno
da ontologia, enquanto resultam da compreensão do ser, e ao mesmo tempo, têm um caráter prático enquanto esta
102
Finalmente, se compreendermos a analítica existencial desde o prisma da idéia de existência,
é possível dizer que os existenciais são espectros pelos quais é possível apreender cada vez e
sempre de novo todo o ser da presença. Daí, o que está em jogo, em cada um dos existenciais da
presença, é todo o ser da presença, isto é, os existenciais têm o modo de ser da estrutura de
presença. É por isso que a analítica da presença pretende ser a mais originária e a mais própria.
Também por isso que Heidegger enfatiza constantemente, em todos os passos ao longo da analítica
existencial, que não se deve fragmentar o que, de antemão, não é fragmentado, pois, ao olhá-lo
fragmentadamente, já não seria possível reconstruir ou recompor a totalidade ontológico-existencial
desse ente em seu ser mais próprio e isso, justamente porque esta totalidade da presença
(existencialidade) não é uma composição ao modo de partes
247
. Assim, a tese segundo a qual a
presença é o ente que, faticamente, existe, quer dizer: a presença é o único ente que, existindo,
está em jogo seu próprio ser
248
.
2.3
S
ER
-
NO
-
MUNDO COMO CONSTITUIÇÃO FUNDAMENTAL DA PRESENÇA
A constituição fundamental da presença é denominada por Heidegger ser-no-mundo. Ela
diz respeito à unidade originária de pertença serhomem e homemmundo
249
. Ele mesmo o
diz nestes termos: A expressão composta ser-no-mundo, na sua cunhagem, mostra que
pretende referir-se a um fenômeno de unidade. Deve-se considerar este primeiro achado em seu
todo. A impossibilidade de dissolvê-la em elementos, que podem ser posteriormente compostos,
não exclui a multiplicidade de momentos estruturais que compõem esta constituição
250
.
Já vimos que a cada um dos momentos constitutivos da presença, Heidegger denomina
existenciais. Existenciais são os elementos, os índices de constituição do modo de ser do ente
chamado presença, cuja constituição fundamental é ser-no-mundo. Deve-se explicitar, então, os
modos pelos quais a presença é o ente que existe como ser-no-mundo. Em Ser e tempo podemos ler:
A presença é um sendo, que em seu ser relaciona-se com esse ser numa compreensão. Com
isso, indica-se o conceito formal de existência. A presença existe. A presença é ademais um
sendo, que sempre eu mesmo sou. Ser sempre minha pertence à existência da presença como
compreensão do ser determina um modo de ser futuro do homem enquanto Dasein expresso, por exemplo, no
existencial fundamental do ter de ser (Zu-sein) compreender o ser (ontologia) implica ter que ser (ético-antropológico-
existencial) (Ernildo Stein, Seminário sobre a verdade, Petrópolis, Vozes, 1993, p. 72).
247. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, § 12, p. 99s. Cf. também
Françoise Dastur, Heidegger e a queso do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, p. 60-63.
248. Para ver e entender melhor estas caracterizações existenciais da presença, é sugestivo acompanhar as análises deste
livro: Martin Heidegger, Ontologie (Hermeneutik der Faktizit), Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1995.
249. Cf. Gilvan Fogel, Martin Heidegger, et coetera e a questão da técnica moderna, in: O que nos faz pensar, PUC/RJ,
vol. 2, n. 10, out. 1996, p. 47-51; Do fundamento, in: Da solidão perfeita, Petrópolis, Vozes, 1999, p. 178-184.
250. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, § 12, p. 98-99. Cf`. também § 28,
p. 189-193.
103
condição de possibilidade de propriedade e impropriedade. A presença existe sempre num
desses modos, mesmo quando existe numa indiferença modal para com esses modos
251
.
Heidegger faz uma menção explícita aqui às discussões preliminares feitas no § 9 e
vistas anteriormente: 1) a essência da presença consiste em ter de ser (Zusein) e 2) o ser, que
está em jogo neste ente, é sempre minha (Jemeinigkeit). A fusão desta dupla caracterização
resulta na idéia de que a presença é o ente que existe. A presença é o ente que, a cada vez e
sempre de novo, precisa insistir e persistir desde que se descobre jogada para ser quem é e como
é. Em outras palavras: o homem é o ente cuja constituição ontológica pertence e corresponde a
esta abertura primordial que é ser-no-mundo. Por isso Heidegger diz: Estas determinações do
ser da presença, todavia, devem agora ser vistas e compreendidas a priori, com base na
constituição ontológica que designamos de ser-no-mundo. O ponto de partida adequado para a
analítica da presença consiste em se interpretar esta constituição
252
.
A expressão ponto de partida (Ansatz) tem um sentido importante aqui, uma vez que toda
analítica existencial da presença está assentada, baseada, fundamentada na constituição ser-no-
mundo. Daí a necessidade de conquistar e manter, desde o princípio, uma clareza fenomenal.
Segundo sua expressão composta, ser-no-mundo refere-se a um fenômeno de unidade e,
por conseguinte, exige um rigoroso exame de visualização que envolve cada um dos momentos
constitutivos: 1) o em-um-mundo, que indaga a respeito da estrutura ontológica mundo; 2) o
ente que sempre é segundo o modo de ser-no-mundo, isto é, quem é e está, na cotidianidade
mediana, no mundo; e 3) o ser-em como tal
253
. A partir da necessidade de apreender este
fenômeno em sua unidade estrutural, Heidegger preocupa-se, de um lado, em determinar a idéia
de mundanidade em geral e, de outro, em desenvolver cada momento ontologicamente
constitutivo de ser-no-mundo. Tentaremos ver e entender isso através das descrições que seguem.
2.3.1 A mundanidade do mundo
Em textos e contextos diversos, Heidegger pensa a relação homemmundo. Em Ser e
tempo esta relação é pensada a partir da constituição fundamental ser-no-mundo. É através dela
que ele procura compreender e expor o modo de ser da relação homemmundo. Mundo,
existencialmente falando, é um momento constitutivo do modo de ser da presença. Como ver e
entender, então, a constituição fundamental ser-no-mundo como mundo? Primeiramente, é
preciso tornar visível o ser-no-mundo no tocante ao momento estrutural mundo. A palavra
estrutura diz aqui: o que integra e, nesse sentido, cada momento é co-estruturado, co-integrado.
Isso fica ainda mais visível na expressão mundanidade do mundo em geral (Weltlichkeit der
251. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 12, p. 98.
252. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 12, p. 98.
104
Welt überhaupt). Porém, o que quer dizer em geral? Heidegger emprega esta palavra numa
outra expressão importante: sentido do ser em geral (Sinn des Seins überhaupt). Em geral
quer dizer überhaupt. Trata-se de uma palavra composta: über-haupt. O substantivo Haupt
significa cabeça, com sentido figurado de conduzir e orientar. De fato, para Heidegger, o
adjetivo überhaupt possui aqui sentido ontológico como totalidade e, assim, significa em
geral, isto é, trata-se de um modo fundamental que se faz presente em absolutamente todas as
situações da presença, embora nem sempre explícito e elaborado sob o ponto de vista ontológico.
Vejamos isso, então, através do momento contitutivo mundo.
Sendo assim, podemos perguntar: que sentido totalizante, fundamental conduz e
orienta a análise do fenômeno do mundo em geral, procurada por Heidegger? Como constitui-
se mundo? Mundo compõe-se da totalidade dos entes? Num primeiro momento, podemos
ser levados a dizer que o que constitui o mundo é a totalidade dos entes intramundanos. Nesse
caso, o que significa intramundano? Que relação têm mundo e intramundano, porém? Ou será
mundo um caráter particular do ser da presença? Terá cada presença sempre já seu mundo? Por
outro lado, como é possível um mundo comum em que os seres humanos se ocupam com os
outros entes e, também, como convivem, se comunicam e compreendem uns com os outros?
Para responder a estas perguntas, à procura a mundanidade do mundo em geral, é preciso
distinguir, preliminarmente, diversos sentidos da palavra mundo. Heidegger mostra que, para o
propósito da analítica existencial, a palavra mundo é polissêmica, daí a necessidade de se
esclarecer a polissemia. Este esclarecimento pode dar alguma indicação para diversos
significados possíveis:
1. Mundo é usado como um conceito ôntico, significando, assim, a totalidade dos entes que se
podem simplesmente dar dentro do mundo; 2. Mundo funciona como termo ontológico e
significa o ser dos entes mencionados no item 1. Mundo pode denominar o âmbito que
sempre abarca uma multiplicidade de entes, como ocorre, por exemplo, na expressão mundo
usada pelos matemáticos, que designa o âmbito dos objetos possíveis da matemática; 3. Mundo
pode ser novamente entendido em sentido ôntico. Nesse caso, é o contexto em que uma
presença fática vive como presença, e não o ente que a presença em sua essência não é, mas
que pode vir ao seu encontro dentro do mundo. Mundo possui aqui um significado pré-
ontologicamente existenciário. Deste sentido, resultam diversas possibilidades: mundo ora
indica o mundo público do nós, ora o mundo circundante mais próximo (doméstico) e
próprio; 4. Mundo designa, por fim, o conceito existencial-ontológico da mundanidade. A
própria mundanidade pode modificar-se e transformar-se, cada vez, no conjunto de estruturas
de mundos particulares, embora inclua em si o a priori da mundanidade em geral.
Terminologicamente, tomamos a expressão mundo para designar o sentido fixado no item 3.
Quando, por vezes, for usada no sentido mencionado no item 2, marcaremos este sentido,
colocando a palavra entre aspas, mundo’”
254
.
253. Cf. Françoise Dastur, Heidegger e a questão do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, p. 60-77.
254. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 14, p. 112. Cf. também Martin
Heidegger, A essência do fundamento, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 44/45.
105
Nessa quádrupla significação da palavra mundo, devemos dar atenção especial à última.
Trata-se de um conceito a priori e, portanto, é um conceito existencial-ontológico. O
significado desta quarta acepção de mundo fundamenta as anteriores e não o contrário. A partir
disso, mundanidade passa a ser vista como um conceito ontológico e significa estrutura ou
momento constitutivo da expressão ser-no-mundo, sendo uma determinação existencial da
própria presença. A mundanidade é, então, um existencial. Mundo possui o caráter da própria
presença. Evidencia-se aqui que a descrição do fenômeno do mundo ainda não é suficientemente
clara, requerendo maiores esclarecimentos. A partir disso, fazem-se necessárias duas tarefas: 1)
esclarecer o conceito existencial-ontológico de mundo e 2) esclarecer como é possível a
presença relacionar-se com outras presenças e, também, com os entes intramundanos.
Sob o ponto de vista terminológico, uma das primeiras distinções a fazer é que mundo ou
mundano diz respeito ao modo de ser da presença. Em contrapartida, o modo de ser do ente
simplesmente dado no mundo, quer dizer, pertencente ao mundo, é intramundano. Isso ficará
mais claro, porém, à medida que se fizer um levantamento de como, ao longo da tradição, se
consolidou o conceito mundo e o que ele significa ontologicamente falando. Na medida em
que seja possível mostrar isso, a partir das duas tarefas a que nos propusemos, deve ficar claro
por que, na falta de uma análise ontológica da presença como ser-no-mundo, sempre se passou
por cima do fenômeno da mundanidade, enfatiza Heidegger.
O que significa, portanto, mundo? Mundo, enquanto constituição ontológica da
presença, o implica elencar tudo o que se dá no mundo como casas, árvores, homens, montes,
estrelas, etc. Este seria ainda um conceito ôntico, que compreende mundo como a soma dos
entes. Revela-se aqui, segundo Heidegger, que o conceito ontológico mundo não pode ser
retirado da natureza como, por exemplo, no sentido moderno das ciências físicas. Ao contrário,
é necessário partir do ser-no-mundo cotidiano e da interpretação do ente que vem ao encontro no
mundo circundante. É fundamental, por isso, perceber que mundo refere-se ao contexto em
que a presença fática vive (existe) como presença e, conseqüentemente, não ao modo do ente
que ela, em sua essência, não é.
Por isso mesmo, não por acaso, Heidegger fala inicialmente de ser-no-mundo como ser-
em
255
. Esta preocupação relaciona-se ao fato de que há uma tendência natural de entender o em
em sentido físico-espacial. Heidegger recorre a uma forma antiga da língua alemã (innan-),
registrada por Jakob Grimm. Mostra, assim, que o em do ser-em deve ser compreendido de modo
adequado:
255. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 12, p. 98-106.
106
O ser-em não pode indicar que uma coisa simplesmente dada está, espacialmente, dentro
de outra porque, em sua origem, o em não significa de forma alguma uma relação espacial
desta espécie; em deriva de innan-, morar, habitar, deter-se; an significa: estou
acostumado a, habituado a, familiarizado com, cultivo alguma coisa; possui o significado de
colo, no sentido de habito e diligo. O ente, ao qual pertence o ser-em, nesse sentido, é o ente
que sempre eu mesmo sou. A expressão sou se conecta a junto, eu sou diz, por sua vez:
eu moro, me detenho junto a... ao mundo, como alguma coisa que, deste ou daquele modo,
me é familiar. O ser, entendido como infinito de eu sou, isto é, como existencial, significa
morar junto, ser familiar com... O ser-em é, pois, a expressão formal e existencial do ser da
presença que possui a constituição essencial de ser-no-mundo
256
.
Esta citação evidencia que mundo não significa primeiramente algo como espaço em que
se encontram ou se descobrem os entes. Por exemplo, quando dizemos: a mesa está no quarto
ou o quarto dentro da casa, estes no e dentro já sempre são acessíveis, se abrem
previamente numa ocupação guiada por uma circunvisão. Para Heidegger, a circunvisão nunca é
cega para si mesma.
Circunvisão (Umsicht) quer dizer visão de conjunto. Ela apreende e compreende o todo
instrumental num conjunto de entes. Por exemplo, ao olhar ou ao pegar a caneta na mão,
conto, de um modo ou de outro, com papel e tinta. De fato, no ato de escrever, abre-se
conjuntura, mundo de sentido. Este exemplo da caneta é bastante corriqueiro e, no entanto,
revela-se aqui, isto é, na visão da ocupação cotidiana, que os entes nunca vêm ao nosso encontro
como isolados em si e para si mesmos. Quando dizemos caneta ou quando pegamos a
caneta, por exemplo, sempre ou -se mundo. Mesmo que não seja o mundo da
escrita, isso não desfaz o caráter mundano da caneta. Isso é possível porque presença existe, ela é
e está aberta como e para mundo
257
.
Mundo quer dizer, então, abertura de sentido. Abertura de estruturação de sentido. Dar uma
estruturação de sentido é o modo mais próprio da presença sempre e a cada vez descobrir-se
numa determinada perspectiva, sendo já lançada e jogada no mundo com os entes. Para apreender e
compreender os entes, a presença sempre conta com esta estrutura ontológica prévia: mundo.
Ainda assim, e principalmente por isso, devemos perguntar o que significa então ontológico?
Em A essência do fundamento, Heidegger diz que a transcendência (Transzendenz), a
ultrapassagem (Überstieg) é o que é próprio da presença humana e, decerto, não como um modo
de comportamento entre outros possíveis, ocasionalmente posto em execução, mas como
constituição fundamental deste ente antes de todo e qualquer comportamento. E mais adiante:
na ultrapassagem e por meio dela é que apenas se pode distinguir e decidir, no seio do ente,
quem e como é um si mesmo e o que o é. Mas na medida em que a presença existe como si
256. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 12, p. 100. Para a citação no
alemão, cf. Martin Heidegger, Sein und Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1986, p. 54. Cf. também Françoise Dastur,
Heidegger e a questão do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, p. 64.
107
mesma e apenas nesta medida pode referir-se ao ente, que deve, porém, antes ter sido
ultrapassado. Sendo embora no seio do ente e por ele rodeado, a presença, enquanto existente,
sempre de cada vez ultrapassou a natureza
258
.
Vemos aqui que ontológico é sinônimo de transcendência, de ultrapassagem.
Evidencia-se aqui que a presença não é ultrapassada ocasionalmente, ou seja, às vezes sim e
outras vezes não, mas sempre está ultrapassando uma e sendo ultrapassada por uma
determinada totalidade. Ser-no-mundo é pois estrutura transcendental, constitui-se em estrutura
unitária de transcendência. Nas palavras do pensador: A expressão ser-no-mundo, que
caracteriza a transcendência, denota um estado de coisas e, decerto, um que presumivelmente
com facilidade se pode discernir. No entanto, o que esta expressão significa depende se o
conceito mundo se toma num sentido pré-filosófico vulgar ou num sentido transcendental
259
. A
partir disso, ele distingue ser-no-mundo como transcendência, devendo-se atribuir
particularmente à presença humana e, em outro sentido, somente ao que é simplesmente dado, ou
melhor, ao que ocorre entre as coisas, ao que está no mundo no sentido intramundano. De
fato, mundo deve significar, então, algo diverso da integralidade ou da soma dos entes
simplesmente dados e ocorrentes no mundo. Mundo diz respeito a uma condição essencial
que determina a presença em geral, sendo uma determinação ontológica dela mesma. A presença,
então, nunca ocorre ou está meramente ao lado dos outros entes. Ela sempre já está aberta para
eles. De fato, de modo geral, não se o sentido original e essencial de mundo. Isso, porém, não
quer dizer que não se dê. A partir disso, quase sempre permanece encoberto e só com dificuldade
ou raramente chega a ser conceptualizado.
Heidegger mostra que mundo é um conceito decisivo nos começos da filosofia grega,
uma vez que revela algo essencial. Segundo Heidegger, kovsmo" não significa este ou aquele
ente que se impõe e é importuno, nem também a soma de todos os entes, mas significa estado
(Zustand), isto é, o como em que o ente, e decerto na totalidade, é. Por isso, kovsmo" ou`Jto" não
designa um reino do ente como exclusão de outros, mas este mundo do ente em contraste com
um mundo diferente do mesmo ente, o próprio ejon kataV kovsmon
260
. Mundo refere-se, então, ao
como na sua totalidade. Portanto, toda e qualquer segmentação dos entes em mundos
específicos é possível porque mundo como totalidada originária e constituidora.
Heidegger evidencia, então, que:
1. Mundo significa um como do ser (Wie des Seins) do ente mais do que o próprio ente; 2.
Este como determina o ente na sua totalidade. É, no fundo, a possibilidade de cada como em
257. Marcia Sá Cavalcante Schuback, num artigo intitulado Quando a caneta também se envergonha de hesitar (cópia
xerografada), mostra que a caneta e o computador são dois modos diversos da presença em sua ocupação cotidiana.
258. Martin Heidegger, A esncia do fundamento, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 36/37.
259. Martin Heidegger, A esncia do fundamento, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 38/39.
260. Martin Heidegger, A esncia do fundamento, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 42/43.
108
geral enquanto limite e medida; 3. Este como na sua totalidade é, de certo modo, prévio; 4.
Este como prévio na sua totalidade é em si mesmo relativo à presença humana. Por
conseguinte, o mundo pertence justamente à presença, embora englobe todo o ente e
também a presença na sua totalidade
261
.
Não é mero acaso que na irrupção do cristianismo tenha acontecido uma radicalização e, a partir
dela, uma clarificação do conceito mundo como uma nova possibilidade de compreensão
existencial, pensa Heidegger. Mundo é experimentado de modo tão originário que kovsmo" passou a
ser sinônimo do modo fundamental da existência humana. Tanto em textos canicos (por exemplo,
nas epístolas paulinas: Primeira Carta aos Coríntios e Carta aos Gálatas) como em textos o-
canônicos (por exemplo, na Carta a Diogneto), kovsmo" ou`Jto" passa a significar não apenas e,
sobretudo, não em primeiro lugar, o estado cósmico, mas uma determinada condão e situação
humana, ou melhor, um modo de sua posição no kovsmo" e, conseqüentemente, sua relação na
valoração dos bens. Kovsmo" é o ser-homem no como de uma disposição anímica desviada de Deus
e kovsmo" ou`Jto" significa a presença humana numa determinada exisncia histórica, quer dizer,
distinta de uma outra que já comou. A partir disso, mundo passa a designar o modo da presença
desviada de Deus, ou seja, o que tem apenas caráter do ser-homem. Por conseguinte, mundo passa a
funcionar, em termos paulinos, como termo regional para designar todos os homens em conjunto, sem
distinção entre sábios e loucos, justos e pecadores, judeus e gentios. Este conceito de mundo, eno,
passa a aplicar-se ao modo de ser relacionado ou não à filiação divina de Jesus.
A partir dessa mudança conceptual ocorrida do grego para a experiência cristã,
encontramos em Agostinho aplicação ambivalente, com os dois significados, isto é, enquanto
totalidade e enquanto (não-)filiação divina. De fato, para ele, como para a maioria dos
filósofos e teólogos medievais, mundo (mundus) quer dizer: a totalidade do que foi criado. Por
outro lado, porém, mundus é empregado também para dizer habitantes do mundo (mundi
habitatores). Revela-se aqui um sentido caracteristicamente existencial como amigos do
mundo, isto é, homens carnais. Em contrapartida, os justos, por não estarem no mundo,
embora habitem o mundo segundo a carne, estão com o coração em Deus. Vê-se, assim, que
Agostinho deve ter tirado o sentido de mundopresente na tradição da igreja cristã primitiva,
especilmente das epístolas paulinas.
Após essa incursão na formação ontológico-histórica do conceito mundo, é
imprescindível analisar como Santo Agostinho emprega a palavra mundo e em que sentido este
emprego pode nos fornecer uma indicação para compreender a estrutura ontológico-existencial
ser-no-mundo em sentido heideggeriano. Para termos uma maior clareza da mudança
conceptual ocorrida do mundo grego para a experiência cristã, é importante ver como se
261. Martin Heidegger, A esncia do fundamento, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 44/45.
109
manifesta em textos de Agostinho e Tomás de Aquino, por exemplo. Santo Agostinho, citado por
Heidegger em A essência do fundamento, fala no Tractatus in Joannis Evangelium:
Que significa esta expressão: o mundo foi feito por ele? O céu, a terra, o mar e tudo o que
neles existe chamam-se o mundo. Por sua vez, com outro significado, os que amam o mundo
também recebem o nome de mundo. O mundo foi feito por ele e o mundo o o conheceu.
Porventura os céus não conheceram o seu Criador, ou os anjos seu Criador, ou as estrelas
não conheceram o seu Criador, que os demônios reconheceram? Por toda a parte, todas as
coisas deram dele testemunho. Mas quem o não reconheceu? Os que ao amarem o mundo
receberam o nome de mundo. Com efeito, ao amarmos, habitamos com o coração; amando,
porém, mereceram receber o nome daquilo em que habitavam. Quando dizemos, esta casa é
má ou esta casa é boa, na que dizemos não acusamos as paredes, como também na que
dizemos boa não louvamos as paredes, mas chamamos casa aos habitantes maus, e casa
boa aos habitantes bons. Assim, chamamos mundo aos que, pelo amor, habitam o mundo.
Quem são eles? Os que amam o mundo habitam no mundo com o coração. Os que não amam
o mundo, pela carne radicam no mundo, mas com o coração habitam no céu
262
.
O que diz nesse texto mundo? No contexto em que a referida passagem de Santo
Agostinho é citada, a preocupação de Heidegger não consiste em ver e entender como o
conceito mundo foi compreendido pelas tradições grega e cristã. Assim, está em jogo ver e
entender por que Heidegger recorre a esta citação, vendo na palavra mundo um sentido
ontológico-existencial todo peculiar. Analisemos isso mais detidamente.
Mundo diz, para Santo Agostinho, a realidade do mundo dos homems na sua condição de
ser segundo a carne. Diz, pois, um modo específico de ser no mundo. Este sentido é também
muito presente em escritos medievais como é o caso de Francisco de Assis
263
. Possui,
naturalmente, um sentido teológico, mas o importante a perceber aqui é que estão em jogo modos
ontológico-existenciais de o ser humano compreender-se. A palavra reveladora aqui é coração.
Dizíamos que mundo indica modo de ser em sua totalidade e, por isso mesmo, diz algo
mais. O que, então? O homem busca (ama) sempre o melhor. Este melhor tem estrutura
de transcendência. Transcendência é o modo de ser que é amar ou habitar com o coração. A
questão que Agostinho se coloca é: como corresponder participativamente da dinâmica da
criação, isto é, na relação originária critaturaCriador? A ontologia medieval baseia-se na
compreensão de que o ser humano participa na criação, sendo a participação concretamente uma
resposta à comunicação divina. Segundo a terminologia medieval, isso significa: criação
(creatio) é comunicação e participação (comunicatio et participatio). A partir disso, Agostinho
distingue dois modos de ser: 1) os que amam o mundo habitam no mundo com o coração, ou
seja, existem no modo de ser mundano, vale dizer ainda, segundo a carne (amor corporeus et
mundanus); 2) os que não amam o mundo, pela carne radicam no mundo, mas com o coração
262. S. Agostinho, Opera (Migne), vol. IV, 1842, em Martin Heidegger, em A esncia do fundamento, Lisboa, Edições
70, 1988, p. 48/49.
263. Cf. Francisco de Assis, Fontes franciscanas e clarianas, Petrópolis, Vozes, 2004.
110
habitam no céu, ou melhor, existem no modo de ser não-mundano, vale dizer ainda, segundo o
espírito (amor caelestis et spiritualis). A expressão habitar com o coração no céu diz então:
ter toda a atenção e empenho voltados para o essencial, Deus, criador de todas as coisas.
Todavia, o mais importante, para nossa interpretação fundamental não perder de vista que
em, na língua alemã, deriva de innan- e significa: morar, habitar é dito por Agostinho
nestes termos: Quando dizemos, esta casa é ou esta casa é boa, na que dizemos má não
acusamos as paredes, como também na que dizemos boa não louvamos as paredes, mas chamamos
casa má aos habitantes maus, e casa boa aos habitantes bons. Ou seja, o qualificativo ou
boa não provém propriamente da casa em si, mas do modo como é habitada por seus
habitantes. A casa em si o existe, mas é a partir de comportamentos, de relacionamentos, de
sentidos que a ela se possam atribuir que se pode falar em existência humana.
Ora, quem habita a casa? Dizemos: seus habitantes. Assim, no modo como a casa é
habitada, determina-se se é ou boa. Com isso diz-se que os habitantes habitam a casa à
medida que a amam com o coração. Amar com o coração significa, então, habitar de tal modo
a determinar se a casa é boa ou má. Daí, dependendo do modo como os habitantes habitam a
casa, fazem dela uma casa boa ou má. Vê-se, assim, que no exemplo do modo de habitar a casa
revela-se uma constituição fundamental sem a qual não o habitar, mas todo e qualquer modo
de ser não seria possível. O modo de habitar revela uma atitude do ente, que nós mesmos, a cada
vez e sempre já somos, a presença existente. Nas palavras de Santo Agostinho, o modo mais
excelente é habitar com o coração no céu. Esta expressão, no entanto, privilegia apenas um
modo de ser (existência crística) em detrimento de outro modo de ser (existência não-crística).
No fundo, porém, cada um dos modos de ser só é possível desde abertura de sentido, isto é, como
ser-no-mundo. Nesse sentido, todo e qualquer modo de ser é um modo de habitar, de morar e
de ocupar-se da presença humana, seja crística seja não-crística
264
.
No livro Interpretação fenomenológica da Crítica da razão pura de Kant, que é uma
reunião de preleções dos anos 1923 a 1944, Heidegger tematiza a estrutura ser-no-mundo
enquanto constituição fundamental da presença nestes termos:
A presença humana é um ente que possui um mundo; dito de outro modo: o modo de ser da
presença, a existência, é determinada essencialmente através do ser-no-mundo. Mundo quer
dizer a respectiva totalidade com a qual nós sempre nos relacionamos (verhalten). Também
a relação pessoal de uma existência para com outra o é uma relação cognitiva livremente
suspensa entre eu-mesmo e tu-mesmo enquanto almas igualmente isoladas, mas cada si-
mesmo é, enquanto fático, num mundo, e o ser do si-mesmo é essencialmente determinado
através do que lhe faz comportar-se (er sich verhält) com este mundo. Por outro lado, uma
264. Cf. Martin Heidegger, Sobre o humanismo, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967, p. 49-50. Deve-se ter sempre em
mente que a tese de que a substância do homem é a existência o é só norteadora como decisiva para toda a analítica
existencial exposta em Ser e tempo. Ela é também essencial para toda a obra posterior de Heidegger. Basta lembrar, por
exemplo, que o texto de onde extraímos esta citação, dirigido ao francês Jean Beaufret, de 1946.
111
coisa natural e material, uma pedra, ou um objeto de uso como uma cadeira não possui
mundo, seu modo de ser é destituído de relação (Verhaltens) com um mundo. Um tal ente é
simplesmente dado. O ser simplesmente dado pertence decerto aos entes com os quais nós
podemos nos comportar (zu dem wir uns verhalten können)
265
.
Para entender o que vem expresso nessa passagem a respeito do conceito mundo,
enquanto momento da estrutura ser-no-mundo, é preciso ter presente o significado das palavras
Verhalten e sich verhalten, uma vez que, através delas, o pensador também conceitua o sentido
existencial mundo. Heidegger diz: Mundo quer dizer a respectiva totalidade com a qual nós
sempre nos relacionamos (verhalten). É possível tirar algumas conseqüências dessa frase: 1)
mundo é o que sempre há, é por antecipação; 2) mundo é sempre totalidade de sentido; 3)
mundo é esta totalidade primeira com a qual nos relacionamos e comportamos; 4) não houvesse
mundo, quer dizer, abertura como possibilidade de ser, nós homens não seríamos, não
existiríamos; 5) relacionar-se e comportar-se (sich verhalten) é o modo fundamental de dizer este
já-descobrir-se-jogado-no-mundo; 6) o ser-já-jogado-no-mundo constitui o ser-homem; 7) não há
homem onde não mundo ou, onde mundo não se , isto é, onde mundo se retrai ou se
retraiu, ali também não se dá e se retrai o ser-homem. Este já-descobrir-se-jogado-no-mundo é,
de um modo ou de outro, atenção e tensão de lida, ação, ocupação. Mundo implica sempre e
necessariamente inter-esse, ou melhor, já ser-em, já ser-implicado. É nesse sentido que as
palavras Verhalten e sich verhalten também expressam a essência da presença, vale dizer, a
existencialidade. Elas dizem respeito ao modo fundamental de relacionamento e comportamento
no qual eu sempre já estou e sou, quer dizer, existo.
Feitas essas considerações a respeito da mundanidade do mundo, veremos por que, segundo
Heidegger, a significância (Bedeutsamkeit) é um existencial fundamental na constituição da
mundanidade do mundo, mas principalmente na constituição do tempo ocupado e do tempo do
mundo, tematizados por Heidegger como modos específicos de temporalização da temporalidade
originária da presença. Embora, por enquanto, essas ponderações possam parecer estranhas e vagas,
elas são importantes para ver e entender aspectos fundamentais na elaboração heideggeriana do
conceito de tempo, principalmente quando analisa os fenômenos do tempo ocupado, do tempo do
mundo e da intratemporalidade como origem do conceito vulgar de tempo como veremos mais
detidamente no terceiro capítulo.
Já foi mostrado que, tanto na elaboração do conceito de tempo como no conceito de
mundo, Heidegger se confronta com a tradição. Por isso, escreve no § 14 de Ser e tempo:
Um passar de olhos pela ontologia tradicional mostrará que, junto com a ausência da
constituição da presença como ser-no-mundo, também se salta por cima do fenômeno da
265. Martin Heidegger, Phänomenologische Interpretation von Kants Kritik der reinen Vernunft, Frankfurt am Main,
Vittorio Klostermann, 1977, § 2, p. 19.
112
mundanidade. Em seu lugar, tenta-se interpretar o mundo a partir do ser de um ente
intramundano e, ademais, de um ente intramundano não descoberto como tal, ou seja, a
partir da natureza. Entendida em sentido ontológico-categorial, a natureza é um caso
limite do ser de um possível ente intramundano. A presença pode descobrir o ente
como natureza num determinado modo de seu ser-no-mundo. Esse conhecimento tem o
caráter de uma determinada desmundanizão do mundo. Enquanto conjunto categorial
das estruturas de ser de um ente determinado, que vem ao encontro dentro do mundo, a
natureza nunca poderá tornar compreensível a mundanidade. Do mesmo modo, o
fenômeno natureza, no sentido do conceito romântico de natureza, só poderá ser
apreendido ontologicamente a partir do conceito de mundo, ou seja, através da analítica
da presença
266
.
Para Heidegger, o fato de, ao longo da tradição, não se ter elaborado a constituição da
presença como ser-no-mundo, só contribuiu para que se saltasse por cima do fenômeno da
mundanidade. Não saltar por cima do fenômeno implica ver e entender a mundanidade em sua
estruturação existencial, portanto, não categorial. Assim, poderíamos perguntar: como a presença
compreende a natureza que lhe vem ao encontro intramundanamente? Uma possibilidade é
compreendê-la de modo categorial e a outra de modo existencial. A possibilidade existencial diz
respeito ao modo de ser da presença, ao passo que a possibilidade categorial diz respeito ao
modo não-dotado ou des-tituído do caráter de presença. Nessa direção, há importantes passagens
da analítica existencial e que guardam uma relação implícita com a compreensão do tempo desde
a ocupação cotidiana. Devemos dar atenção ao fato de estas passagens estarem no capítulo A
mundanidade do mundo. Vejamos três delas, importantes:
A obra a ser produzida para que (Wozu) se usa, por exemplo, o martelo, a plaina, a
agulha, possui, por sua vez, o modo de ser do instrumento. O sapato a ser produzido
destina-se a ser calçado (é um instrumento), o regio confeccionado destina-se à leitura
do tempo. A obra que se dá ao encontro, sobretudo, no modo de lidar da ocupão que
está sendo trabalhada deixa e faz vir também ao encontro, na possibilidade de emprego
constitutiva de sua essência, para que (Wozu) ela foi produzida. Por sua vez, a obra
encomendada só é, com base em seu uso e na totalidade referencial dos entes, descoberta
no uso
267
.
Nos relógios leva-se sempre em conta (im Rechnung tragen = levar em conta)
determinada constelação do sistema cósmico. Quando olhamos um regio, fazemos um
uso implícito da posição do sol segundo a qual se faz o ajuste astronômico da medição
oficial do tempo. No uso do instrumento relógio, manuseado discreta e diretamente, a
natureza do mundo circundante também está à mão. Pertence à essência da função de
descoberta de cada empenho ocupacional no mundo imediato das obras a possibilidade de
descobrir, segundo cada modo de empenho, o ente intramundano evocado na obra
268
.
Assim, por exemplo, o sol cuja luz e calor o usados cotidianamente possui seus locais
marcados e descobertos pela circunvisão, a partir da possibilidade de emprego varvel
daquilo que ele propicia: o nascente, o meio-dia, o poente, a meia-noite. Os locais deste
266. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 14, p. 113.
267. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 15, p. 111-112.
268. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 15, p. 113.
113
manual em contínua mudaa, e não obstante uniforme, tornam-se indicações
privilegiadas de suas regiões
269
.
O que chama atenção, nessas citações, não é o fato de o relógio e o sol se constituírem em
instrumentos destinado à observação, leitura ou mensuração do tempo. A questão que
Heidegger se coloca é: como é possível esses instrumentos (Zeug) se constituírem em
manuais (zuhanden) de observação, leitura e mensuração do tempo? E, sobretudo, o que guia e
orienta propriamente a presença em sua mundanidade à medida que se ocupa com
instrumentos como o relógio e o sol? É fundamental ver e entender aqui que mundo sempre se
constitui em estruturas remissivas de sentido. Pois isso, as descrições existenciais de Heidegger
são profundamente marcadas por expressões e modos de dizer como: para que (Wozu), na
perspectiva em que (Woraufhin), em função de (Worumwillen), estar junto (Wobei), estar com
(Womit), no contexto em que (Worin), destino (Wohin) e proveniência (Woher)
270
. A partir dessas
estruturas remissivas de sentido revela-se que a mundanidade do mundo da ocupação cotidiana
não é cega para si mesma, mas guiada e orientada por uma visão de conjunto, que Heidegger
chama de circunvisão (Umsicht). De fato, toda visão de conjunto é caracterizada como
significância. Be-deuten quer dizer significar. Remete para o modo pelo qual o mundo se
constitui, sendo uma estrutura ontológica. Heidegger escreve a respeito:
Chamamos de significância o todo das remissões dessa ação de significar. A significância é
o que constitui a estrutura de mundo em que a presença já é sempre como é. Em sua
familiaridade com a significância, a presença é a condição ôntica de possibilidade para se
poder descobrir os entes que num mundo vêm ao encontro no modo de ser da conjuntura
(manualidade) e que se podem anunciar em seu em-si. A presença como tal é sempre esta
presença com a qual já se descobre essencialmente um contexto de manuais
271
.
É fundamental perceber aqui que a presença, ao ocupar-se com os instrumentos que lhe vêm à
mão, descobre-se essencialmente, isto é, é ela mesma. Somente por isso, na e pela circunvisão,
ela pode construir instrumentos, utensílios, equipamentos. Nesse contexto, Heidegger evidencia
que, ao descrever a intrumentalidade dos entes da mundanidade circundante, os gregos possuíam
um termo adequado para dizer as coisas: pravgmata, ou melhor, aquilo com que se lida (pra~`xi")
na ocupação. Eles, no entanto, deixaram de esclarecer ontologicamente, justamente o caráter
pragmático como meras coisas’”
272
. No capítulo Temporalidade e cotidianidade, diz que,
numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o ser-no-mundo compreende-se a partir
daquilo de que se ocupa
273
.
269. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 22, p. 155.
270. Cf. Marcia Sá Cavalcante Schuback, Notas explicativas, in: Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis:
Vozes, 2006, p. 568-569.
271. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 18, p. 138.
272. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 15, p. 116.
273. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 68, p. 422.
114
Um aspecto essencial da experiência cotidiana do tempo relaciona-se ao fato de ser
experimentado não como coisa simplesmente dada, mas acessível à mão desde uma determinada
conjuntura significativa. Falar de conjuntura significativa é uma elaboração conceptual de como
os entes intramundanos vêm ao encontro da presença em sua ocupação cotidiana. A condição de
possibilidade de qualquer conjutura significativa revela, por isso, uma situação primordial que é
pré-científica e pré-ontológica. Nesse sentido, a expressão levar em conta (im Rechnung
tragen) não diz, primeiramente, que o tempo que vem ao encontro nos manuais relógio e sol
como medida e, conseqüentemente, como número. A ênfase interpretativa, portanto, não deve
recair no contar (rechnen), mas no levar (tragen). Existencial e ontologicamente, isso
significa: a presença pode contar o tempo, melhor ainda, pode contar com ele na medida
em que o leva, isto é, o carrega consigo. Vê-se, então, que, em certo sentido (modo), a presença
já é sempre seu próprio tempo ao modo de atribuir-lhe uma significação desde a ocupação
cotidiana.
Essa descrição vem ao encontro da concepção pré-ontológica do tempo analisada por nós no
primeiro capítulo, tanto na aproximação fenomenológica que realizamos na interpretação do livro
do Eclesiastes como no soneto de Camões. De fato, embora atemática, na ocupação cotidiana, a
presença faz a experiência existencial do tempo. Isso só se evidencia mais claramente na elaboração
conceptual do tempo na aula de habilitação de 1915 e na conferência de 1924. Nessa perspectiva,
pensa Heidegger, se há e está sempre pré-vista uma condição pré-ontológica da experiência do
tempo, como então descrevê-la ontologicamente? Isso só é possível através de uma elaboração
fenomenológica e conceptual do tempo como vem ao encontro no mundo das ocupações
cotidianas, realizada pelo pensador através da analítica temporal de Ser e tempo. Esta elaboração,
por sua vez, tem na sua raiz a temporalidade da presença.
Na análise da mundanidade do mundo, do mesmo modo que a tematização do tempo na
aula de habilitação e na conferência, Heidegger mostra que o espaço, existencialmente falando,
não deve ser visto como homogêneo e, conseqüentemente, apenas como mensurável. De fato, do
mesmo modo como o tempo, também o espaço revela-se se visto a partir do mundo circundante
da presença como totalmente diverso de coisa (res extensa):
A descoberta do espaço puramente abstrato, destituído de circunvisão, neutraliza as regiões
do mundo circundante, transformando-as em puras dimensões. Os lugares e a totalidade de
lugares, orientados pela circunvisão dos instrumentos à mão, mergulham num sistema de
coordenadas, destinado a qualquer coisa. A espacialidade do manual intramundano perde,
assim, seu caráter conjuntural. O mundo perde a especificidade dos seus em torno de, de
suas circundâncias, o mundo circundante transforma-se em mundo da natureza. O mundo
como um todo instrumental à mão perde o seu espaço, transformando-se em um contexto de
coisas extensas simplesmente dadas. O espaço homogêneo da natureza mostra-se apenas
através de um modo que descobre o ente uma vez que este vem ao encontro marcado pelo
115
caráter de uma desmundanização específica da determinação mundana do manual
274
.
Das consiederações feitas até aqui, podemos deduzir que o ente intramundano, na medida
em que vem ao encontro da presença, deixa-se liberar em seu ser a partir da circunvisão própria
da ocupação, vale dizer, possibilita que seja levado em conta (im Rechnung tragen). Por isso
Heidegger se pergunta: O que diz essa liberação prévia e como ela de ser compreendida
como distintivo ontológico do mundo? Com quais problemas se depara a questão da
mundanidade do mundo?
275
Para Heidegger, a analítica temporal da presença permanecerá
incompleta enquanto não se mostrar o modo pelo qual pertence e vem ao encontro da presença o
tempo intramundanamente compreendido.
2.3.2 Ser-com e ser-si mesmo, e o impessoal
Quem é o ente que sempre já está lançado na mundanidade do mundo? Para responder a esta
pergunta, é conveniente recordar um idéia central do primeiro pico deste segundo capítulo, que
versa sobre a diferença entre antropologia filosófica e anatica existencial. A diferença está entre
qüididade (Washeit) e qüisidade (Werheit), entre ser simplesmente dado (Vorhandenheit) e
existência (Existenz). Sendo a analítica existencial ontológica, trata-se de ver e entender em
que consiste fundamentalmente a diferença, portanto.
Na medida em que Heidegger elabora os momentos estruturais da constituição fundamental ser-
no-mundo, fundamenta, existencial e ontologicamente, em que sentido elege, já no início da analítica
existencial, a presença como o ente privilegiado. Fundamenta, assim, em que sentido só a presença é o
ente sob o modo de ser-no-mundo e de que modo a presença é o ente privilegiado na colocação da
questão do ser, sendo, eno, necessária uma alise fenomenogica deste ente no que é e como é
276
,
uma vez que a compreensão do ser é em si mesma uma determinação do ser da presença
277
. Na
base da analítica existencial está não podemos perder isso de vista a colocação da questão de ser.
Nessa perspectiva, Heidegger pergunta-se: de que modo a presença compreende-se, numa
primeira aproximação e na maior parte das vezes, isto é, na cotidianidade mediana? Constata que,
em geral, ela se compreende de modo impróprio e indiferente. Diante disso, como tematizar o
modo próprio de ser que tende a permanecer encoberto nos modos de ser impróprio e indiferente?
Para descrever fenomenologicamente em que sentido a presença é imprópria, ou seja, não é ela
mesma, Heidegger analisa o fenômeno da impessoalidade (Man). Disso, as palavras:
Impróprio e não próprio não significam, de forma alguma, propriamente não, no sentido
274. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 24, p. 167.
275. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 18, p. 133.
276. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 5, p. 52-53 e Introdução à
metasica, 2. ed. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 35. Nesta última citação diz Heidegger: Apenas um dentro
eles sempre de novo se insinua estranhamente: o homem, que investiga a questão.
277. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 4, p. 48.
116
de a presença perder todo o seu ser nesse modo de ser. Impropriedade também o diz não
mais ser e estar no mundo. Ao contrário, constitui justamente um modo especial de ser-no-
mundo em que é totalmente absorvido pelo mundo e pela co-presença dos outros no
impessoal. Não ser ele mesmo é uma possibilidade positiva dos entes que se empenham
essencialmente nas ocupações de mundo. Deve-se conceber esse não-ser como o modo mais
próximo de ser da presença, o modo em que, na maioria das vezes, ela se mantém
278
.
O que importa perceber no fenômeno da impessoalidade é que a presença mesmo sendo de
modo impróprio, não perde, em última instância, a possibilidade de ser ela mesma. Isso significa
que, embora possa perder-se, isto é, possa ser totalmente absorvida pelo mundo e pela presença
dos outros, sempre ainda resta a possibilidade de encontrar-se. Assim, o fato de a presença não
ser ela mesma na grande maioria das vezes, só comprova que no modo da impessoalidade reside
uma possibilidade fenomenal positiva. Por isso, Heidegger afirma: deve-se conceber esse não-
ser como o modo mais próximo de ser da presença. A cotidianidade, na medida em que
constitui um existencial da presença deve permitir, quer dizer, deve deixar e fazer ver, que a
presença é um ente que tem, possui mundo, ou melhor, que é ao modo de ser-no-mundo.
Ser-no-mundo é a constituição ontológica própria da presença pela qual ela sempre é e pode ser
apreendida no que é e como é.
No intuito de determinar quem é o ente na constituição fundamental ser-no-mundo,
vejamos o que Heidegger diz em Os problemas fundamentais da fenomenologia, através da
pergunta-quem:
Já a consideração mais rudimentar mostra que: o ente que nós mesmos somos, a presença,
não pode, de modo algum, ser interrogado como tal através da pergunta o que é isto? Nós
conquistamos um acesso a este ente se perguntarmos quem é ele? A presença o é
constituída pela qüididade (Washeit), mas caso nos seja permitido formular a palavra
pela qüisidade (Werheit). A resposta não resulta numa coisa, porém, num eu, tu, nós
279
.
A diferença entre qüididade e qüisidade, vista por Heidegger, não é uma diferença de grau
que possa ser associada a uma possível compreensão na evolução ou desenvolvimento do gênero
humano. Pelo contrário, está em jogo a diferença ontológica, ou seja, a diferença no modo de ser
do ente que nós mesmos sempre somos. Para Heidegger, a interpretação da presença em sua
cotidianidade não deve ser identificada com a descrição de uma fase primitiva da presença, cujo
conhecimento pudesse ser transmitido empiricamente pela antropologia
280
. Trata-se, ao
contrário, de apreender e compreender este ente no quê (Was) é, mas, principalmente, como
(Wie) é. Nas expressões o quê e como tão repetidas por Heidegger ao longo de sua análise
não tematiza a totalidade dos entes em sentido de somatório. Trata-se de apreender e
compreender o modo de ser constitutivo do ente que, sendo no que é e como é, a todo e qualquer
278. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 38, p. 240-241.
279. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 12,
p. 169-171. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 25, p. 170-173.
280. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 11, p. 95.
117
instante, faça ele o que fizer, ou não faça absolutamente nada, sempre se apreende e
compreende a si mesmo. O problema, no entanto, é mostrar os modos pelos quais a presença
pode ser si mesma como própria ou como imprópria. Por essa razão, é preciso perguntar e
fundamentar: Quem sou eu? Quem és tu? Quem somos nós?
Para a determinação e fundamentação do quem da presença, o pensador confronta-se
com as duas definições clássicas de homem legadas pela tradição metafísica já vistas e
analisadas por nós anteriormente
281
. Para o que se objetiva aqui, portanto, é importante repetir
brevemente o conteúdo dessas duas definições: 1) o homem é a soma de corpo + alma +
espírito
282
e 2) zw~/on lovgon e!con (animal rationale), ou seja, o homem é o ser vivo dotado de
razão e linguagem
283
. Segundo Heidegger, mesmo que, nessas definições, se busque
compreender o ser do homem em sua essência, há um problema fundamental não visto nelas
e, presume-se, pressuposto. A pressuposição relaciona-se ao fato de sempre acompanhar, tácita e
implicitamente, uma compreensão do ser do homem ao modo do que é simplesmente dado e
ocorrente (Vorhandenheit). Por essa razão, na determinação e fundamentação do modo de ser da
presença, é necessário fazer uma interpretação dos conceitos tradicionais do homem legados pela
tradição
284
. A partir disso justifica-se, também, a elaboração de uma ontologia fundamental, uma
vez que ela está enraizada no próprio modo de ser do homem enquanto presença.
Diante disso, é necessário ver e entender, inicialmente, o modo de ser do quem da
presença. Porém, quem é a presença em sua constituição ontológica fundamental?
285
Em
Introdução à metafísica, Heidegger apresenta algumas indicações, das quais escolhemos:
281. Cf. capítulo segundo, tópico Analítica existencial x antropologia filosófica.
282. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 10, p. 92-93. A este
propósito, o fisofo espanhol Ortega y Gasset, diz o seguinte num de seus textos: O homem não é o seu corpo, que é uma
coisa; nem é sua alma, psique, consciência ou esrito, que são também uma coisa. O homem o é coisa alguma, mas um
drama sua vida é um puro e universal acontecimento, que acontece a cada um, e no qual cada um não é, por sua vez, senão
acontecimento. Todas as coisas, sejam quais forem, são meras interpretações que se esforçam em dar o que encontram. O
homem não encontra coisas, senão que as põe e as supõe. O que ele encontra são puras dificuldades e puras facilidades para
existir (Jo Ortega y Gasset, História como sistema, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 42).
283. Para comentários de Heidegger a respeito desta mesma sentença, cf. Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis:
Vozes, 2006, § 10, p. 93 e § 34, p. 228. Uma ótima reflexão desta sentença grega é a de Emmanuel Carneiro Lo, Leitura
órfica de uma sentença grega, in: Arte e Palavra, título do volume: Orfeu, Rio de Janeiro, Fórum de Ciência e Cultura
URRJ, vol. 4, 1989, p. 21-32. Cf. também, do mesmo autor, o artigo Hermenêutica, revelação, teologia, in: Aprendendo a
pensar, Petrópolis, Vozes, 1991, principalmente p. 219-220, onde tece comentários a respeito desta sentença grega.
284. No que diz respeito à discuso sobre o modo de ser do ser humano como presença, isto é, como o ente existente e
temporal, os principais interlocutores de Heidegger são Descartes e Kant. Assim, a escolha deste ente a fim de fundamentar
a ontologia fundamental só se justificaà medida que o modo de ser deste ente possa ser questionado em seu ser. É por isso
que Heidegger diz num dos parágrafos introdutórios de Ser e tempo: Assumindo a posão ontológica de Descartes, Kant
omite algo essencial: uma ontologia da presença. No sentido das tendências mais próprias do pensamento de Descartes, essa
omissão é decisiva. Com o cogito sum, Descartes pretende dar à filosofia um fundamento novo e lido. O que, porém,
deixa indeterminado nesse princípio radical é o modo de ser res congitans ou, mais precisamente, o sentido do ser do
sum (cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 6, p. 62-63). A
importância de Kant e Descartes se evidencia na medida em que eles deveriam ocupar respectivamente o centro das análises
da primeira e segunda seções da segunda parte não publicada de Ser e tempo (cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança
Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 8, p. 80).
285. Segundo Arendt, Santo Agostinho é o primeiro a levantar a chamada questão antropológica na filosofia, pois
estabelece uma diferença entre Quem sou? e O que sou? (cf. Hannah Arendt, A condição humana, Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 1997, p. 18).
118
1. A determinação da essencialidade do homem nunca é resposta mas essencialmente
questão; 3. E é assim, porque a questão, o que é o homem, só pode ser investigada dentro da
questão sobre o ser; 7. Por ser, enquanto histórico, ele mesmo, a questão sobre o seu ser
específico tem de se transformar da forma: o que é o homem? na forma: quem é o
homem?’”
286
.
Numa outra passagem importante, da mesma obra, escreve:
À questão sobre a essencialização do ser se abotoa e vincula à questão sobre quem é o
homem. A determinação da essencialização do homem, que aqui carece, não é, entretanto,
tarefa de uma antropologia flutuante no ar, que, no fundo, se representa o homem, como
zoologia se representa o animal. Em sua perspectiva e em seu alcance a questão sobre o ser
do homem é determinada exclusivamente pela questão do ser. Nela há de se conceber e
fundamentar a essencialização do homem segundo a indicação oculta no princípio, como o
lugar, de que carece o ser para a sua abertura. O homem é a estância (sistência) em si
mesma aberta (ex). Nela o ente in-siste e se põe em obra. Daí dizermos: o ser do homem é,
no sentido rigoroso da palavra presença (Dasein). É na essencialização da presença
entendida, como tal estância da abertura do ser, que se deve fundar originariamente a
perspectiva para a abertura do ser
287
.
Nessas passagens evidencia-se uma íntima relação entre a questão da essência ontológica
da presença e a questão do ser. Se prestarmos atenção para o que vem dito ao final da segunda
citação, perceberemos que o modo de ser constitutivo da presença, enquanto existência, é o modo
primordial pelo qual o ser se lhe manifesta e lhe advém a todo e qualquer instante. Ou seja, é
essencialmente constitutiva da presença a abertura para o ser. Sem essa abertura, a presença não
poderia sequer falar isso ou aquilo, tanto de si mesma como dos demais entes. Por isso, ela é a
estância (sistência) em si mesma aberta (ex). Nela o ente in-siste e per-siste, põe-se e é posto em
jogo. Daí ser possível afirmar também: o ser da presença é, no sentido rigoroso da palavra, ek-
sistência
288
. Pensar a existência, ou melhor, o ser da presença, como o ente que propriamente
existe, implica mover as forças do pensar para esta questão ontológica fundamental. Em
Identidade e diferença, interpretando a célebre sentença de Parmênides, que ser e pensar são o
mesmo, Heidegger diz que homem e ser se co-pertencem (Ge-hörende)
289
.
Dentro das considerações feitas até aqui, podemos entrever em que perspectiva Heidegger
analisa os existenciais ser-com (Mitsein), ser-si mesmo (Selbstsein), e o impessoal (das
286. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 166-167. Cf. Martin
Heidegger, Identität und Differenz, Pfullingen, Günther Neske, 1957, p. 22, onde o pensador diz: Se compreendermos o
pensar como a característica do homem, eno refletimos sobre um comum-pertencer que se refere a homem e ser. No
mesmo instante nos surge a questão: que significa ser? Quem ou o que é o homem? (tradão brasileira em Martin
Heidegger, Identidade e diferença, in: Confencias e escritos filosóficos, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 380). Cf.
também o artigo de Emmanuel Carneiro Leão, O pensamento de Heidegger no silêncio de hoje, in: Cultura Vozes,
Homenagem a Heidegger, Petrópolis, ano 71, n. 4, maio 1977, p. 296.
287. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 226. Sobre a possibilidade de
uma determinação da essencialização do homem não se deixar restringir a uma possível antropologia, cf. as considerões
feitas por Heidegger em seu livro intitulado Kant e o problema da metafídica, principalmente toda a quarta seção, pois nela
aparece mais explicitamente uma relação com a investigação realizada em Ser e tempo (cf. Martin Heidegger, Kant und das
Problem der Metaphysik, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1973, §§ 36-45, p. 198-239).
288. Para uma melhor compreensão do termo exisncia, ver Emmanuel Carneiro Leão, O pensamento de Heidegger no
silêncio de hoje, in: Cultura Vozes, Homenagem a Heidegger, Petrópolis, ano 71, n. 4, maio 1977, principalmente p.
293-296.
119
Man), os quais são analisados no quarto capítulo de Ser e tempo (§§ 25 a 27). Nosso objetivo
naturalmente não consiste aqui em descrever cada um desses existencias em particular, o que nos
ocuparia demasiadamente. Está em jogo ver e entender como e em que sentido constituem-se em
modos fundamentais da presença ser e se compreender.
Na cotidianidade mediana (durchschnittliche Alltäglichkeit), a presença movimenta-se
através desses existenciais, quer de modo próprio quer de modo impróprio. É importante não perder
de vista que a presença existe propriamente enquanto tem de ser e é sempre minha
caracterizações já vistas anteriormente. Outro elemento importante: na maioria das vezes, a
presença não se constitui como sujeito isolado nem está totalmente perdida numa dispersão
indeterminada entre as coisas com as quais lida e se ocupa. Os existenciais ser-com e ser-si
mesmo remetem positivamente para a co-existência dos outros, denominada
heideggerianamente de co-presença (Mitdasein) e, na sua concretude, na convivência
(Miteinandersein)
290
. Da mesma forma, o existencial ser-para remete para o manual que vem ao
encontro no mundo circundante, sendo interpretado em relação aos outros em sua ocupação.
Os existenciais ser-com e ser-si mesmo, na sua modulação imprópria, remetem,
segundo Heidegger, para a decadência (Verfallen)
291
, à qual não deve ser atribuído,
pejorativamente, um significado como queda, isto é, em oposição a um estado original mais
puro e mais nobre. Decadência revela apenas um modo habitual da presença, ocupada e
preocupada, imerge no mundo e identifica-se com ele. Na cotidianidade mediana, o mundo é
tomado como soma dos entes e não como existencial. A resposta à questão quem, na
cotidianidade mediana, caracteriza-se pela imersão no mundo. Esta possui sua origem na fuga da
presença diante de sua possibilidade mais própria, quer dizer, de ser si-mesma propriamente.
Fenomenologicamente, trata-se de perceber que, à medida que a presença foge de si mesma,
acaba justamente correndo atrás de si mesma.
Entrementes, o que provoca a fuga de si mesma? O que provoca a fuga é o medo. Contudo,
o medo (Furcht) pode ser um modo, uma disposição positiva da presença encontrar-se
292
. Nesse
caso, o medo é provocado pelos entes intramundanos? Na fuga, característica da decadência, a
presença foge de si mesma, mas, fundamentalmente, não por que os entes intramundanos a
ameaçam. A fuga possui um caráter especial na medida em que a presença, voltada para o
mundo, nele submerge, nele se dispersa. Portanto, não se trata de medo (Furcht), mas de angústia
(Ansgt). É, pois, necessário distinguir estes dois modos de disposição (Befindlichkeit).
289. Cf. Martin Heidegger, Identität und Differenz, Pfullingen, Günther Neske, 1957, p. 30; tradução brasileira: Identidade
e diferença, in: Conferências e escritos filosóficos, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 384.
290. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 26, p. 170s.
291. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 38, p. 240s.
292. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 30, p. 299s.
120
Citando Agostinho e Lutero, Heidegger afirma que, ao longo da tradição, houve uma
tendência de confundir estes dois fenômenos. O que levou mais longe a análise do fenômeno da
angústia foi S. Kierkegaard e isso, mais uma vez, dentro do contexto teológico de uma exposição
psicológica do problema do pecado original
293
. Estas palavras heideggerianas estão
relacionadas à tematização kierkegaardiana no livro O conceito de angústia, de 1844.
As duas frases que abrem o capítulo terceiro dessa obra mostram os limites da tematização:
Afirmou-se constantemente nos dois primeiros capítulos que o homem é uma síntese de alma e
corpo constituída e sustentada pelo espírito. A angústia seria o instante na vida do indivíduo
294
.
Para Heidegger, embora Kierkegaard se confronte diretamente com Hegel, Platão e Aristóteles,
por exemplo, não chega a analisar nem o fenômeno da angústia, nem o fenômeno do instante a
partir de uma analítica existencial da presença. Kierkegaard não teria se desvencilhado da
dimensão da e, por isso, permaneceu no plano existenciário e, portanto, não logrou uma
analítica existencial propriamente dita.
A angústia distingue-se do medo por seu caráter totalmente indeterminado. Nesse sentido,
o que propriamente angustia a presença, não são os entes intramundanos. Conseqüentemente, sob
o prisma da analítica existencial, a angústia não pode ser tematizada a partir de nenhum ente em
particular. O que propriamente angustia, está . É esse o sentido etimológico da palavra
angústia, uma vez que tanto esta como a forma alemã Angst provêm da forma latina angustus,
que significa estreito. Na disposição que angustia, o mundo revela-se de uma maneira original
e própria. Ela abre a presença ao mundo, ao ser-com, à co-presença e, sobretudo, a si mesma
enquanto possibilidade mais própria.
Assim, os dois modos primários de propriedade e impropriedade, não devem ser
compreendidos do ponto de vista de uma valoração ou qualificação moral, seja ela negativa seja
ela positiva. Como modos de ser que são, não está ao alcance da presença escolher ser, isto é,
existir própria ou impropriamente. De forma alguma. Mesmo quando escolhe, esta escolha
se dá, por assim dizer, desde um modo de ser primordial, ou seja, desde o sentido de ser em que a
presença mesma se movimenta em seus afazeres e ocupações cotidianos.
Ora, se a presença sempre existe sob os modos de propriedade e impropriedade, ela já
está sempre inserida, já jogada na cotidianidade, ou melhor, no dia-a-dia de seus afazeres e
ocupações. Ela é sempre tão próxima de si mesma ao ponto de não se dar conta disso. Todavia, a
tarefa consiste em compreender e descrever positiva e fenomenalmente por que, na
cotidianidade, isto é, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença se furta,
293. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 40, nota 84, p. 257.
294. Cf. S.A. Kierkegaard, O conceito de angústia, Porto, Editorial Presença, 1962, p. 123.
121
se desvia de si mesma, vivendo, assim, num dos modos de ser por ela escolhido, seja esta
escolha própria seja esta escolha imprópria.
Em Ser e tempo, no § 40, Heidegger apresenta a disposição fundamental da angústia como
abertura privilegiada da presença. O fenômeno da angústia remete a presença para um modo de
ser totalmente próprio e positivo. A angústia revela (offenbart) que a presença pode ser para um
poder-ser mais próprio (zum eigensten Seinkönnen), ou seja, que ela pode ser-livre para a
liberdade de escolher e acolher a si mesma. A angústia conduz a presença para o ser-livre para...
(propensio in...), para a propriedade (Eigentlichkeit) de seu ser enquanto possibilidade de ser
aquilo que já sempre é (immer schon ist). De fato, sendo-no-mundo, a presença entrega-se, ao
mesmo tempo, à responsabilidade desse poder-ser mais próprio. Numa situação mais extrema,
porém, através da angústia, a presença é remetida para uma total insignificância
(Unbedeutsamkeit), que se mostra como uma negação significativa, como se fosse uma ausência
de mundo (Weltabwesenheit). De fato, como se fosse, pois, a rigor, mesmo que o ente
intramundano (Innerweltlichen) em si mesmo tenha pouca importância de modo a mostrar-se
como insignificante, isso só é possível porque o mundo se impõe em sua mundanidade
(Weltlichkeit). Com efeito, a insignificância não é um fenômeno negativo que advém à preseça,
mas altamente positivo
295
.
Assim, na medida em que a disposição fundamental da angústia se revela como abertura
privilegiada da presença, é oportuno fazer algumas rápidas considerações do fenômeno do
instante, do modo como foi visto por Kierkegaard. Vimos, na citação acima: A angústia seria o
instante na vida do indivíduo. Porém, qual seria uma possível relação entre angústia e instante
na vida do indivíduo?
Em O conceito de angústia o autor também se pergunta: O que é, pois, o temporal? E,
após algumas considerações, escreve: Assim entendido, o instante é, no fundo, um átomo não
do tempo, mas da eternidade. [...] O instante e o porvir determinan, por seu turno, o passado.
Não por acaso, Kierkegaard reconhece ser o instante uma bela palavra, digna de consideração.
Com efeito, nada se compara à rapidez do olhar e, não obstante, trata-se de algo que abarca o
conteúdo da eternidade
296
. Instante (Augen-blick), tanto na língua alemã como na
dinamarquesa, refere-se a uma experiência relacionada ao olhar
297
. No entanto, embora
295. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 40, p. 253-254.
296. Cf. S.A. Kierkegaard, O conceito de angústia, Porto, Editorial Presença, 1962, p. 123, 130, 134, 136 e 133 (grifo
nosso).
297. Segundo Marco Antônio Casanova, o próprio termo instante em alemão é composto a partir do substantivo olhar
(Blick). A palavra remonta a uma metáfora utilizada pela primeira vez por Lutero em sua tradução ale do Novo
Tetamento. Para descrever o caráter súbito da experiência cristã da salvação, ele cunha a expressão Augenblick: algo como
um lance de olhos. Heidegger joga com esta presença e diz que o instante (Augen-blick) é um olhar (Blick) de um tipo
singular (cf. Martin Heidegger, Os conceitos fundamentais da metafísica, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003, nota
5, p. 179).
122
Kierkegaard se faça uma pergunta essencial relacionada ao tempo, não é levado a compreender o
tempo pelo tempo, mas pela eternidade.
Nessa direção, duas referências significativas de Heidegger a Kierkegaard de como ele
teria concebido o instante:
Foi, sem dúvida, S. Kierkegaard quem viu com a maior profundidade o fenômeno
existenciário do instante, o que não significa que ele tenha logrado uma correspondente
interpretação existencial. Ele permanece preso ao conceito vulgar de tempo que determina o
instante com o auxílio do agora e da eternidade. Quando Kierkegaard fala de
temporalidade, ele quer referir-se ao ser e estar-no-tempo do homem. O tempo como
intratemporalidade conhece apenas o agora e nunca o instante experimentado
existenciariamente, o instante pressupõe uma temporalidade mais originária, embora
existencialmente não explicitada com relação ao instante’”
298
.
O que designamos aqui com a palavra instante (Augenblick) aponta para o que
Kierkegaard compreendeu realmente pela primeira vez na filosofia uma compreensão, com
a qual começa a possibilidade de uma época completamente nova da filosofia desde a
antigüidade. A possibilidade, digo. Hoje, quando, por razões diversas, Kierkegaard tornou-
se moda, chegamos a um ponto tal que a literatura sobre Kierkegaard e tudo o que tem a ver
com ela cuida de todas as formas, para que não compreendamos o que de decisivo na
filosofia kierkegaardiana
299
.
A partir dessas duas citações podemos deduzir, por ordem de prioridade: a) na expressão
desde a antigüidade, leia-se, implicitamente, que Heidegger refere-se a autores como Aristóteles e
Agostinho. De fato, no contexto em que Kierkegaard procura compreender o fenômeno do instante,
filósofos como Aristóteles e Platão são citados; b) o fato de Kierkegaard ter-se tornado moda,
proliferou de tal forma a literatura sobre ele que o essencial de sua filosofia não é mais considerado;
c) Heidegger aponta que Kierkegaard viu originalidade no modo de compreender o instante, porém,
a possibilidade de uma nova compreensão do instante não se efetivou, uma vez que, caso isso
tivesse acontecido, teria inaugurado uma nova época na filosofia; d) embora Kierkegaard tenha
concebido o instante de modo original, sua tematização é existenciária, não existencial. Desse
modo, Kierkegaard fica preso a duas idéias tradicionais, ambas relacionadas à compreensão de
homem, a saber: a) a essência de homem relaciona-se à soma de corpo + alma + espírito e b) o
tempo, também o instante, relaciona-se à eternidade. De fato, ao propor uma analítica existencial
(essência do homem) e temporal (essência do tempo), Heidegger não nega as concepções
tradicionais, mas busca compreendê-las desde uma instância mais fundamental, a saber, desde a
ontologia fundamental
300
.
Assim, embora o instante possa ser experimentado existenciariamente, é necessário
experimentá-lo e descrevê-lo existencial e ontologicamente. Nesse sentido, a tematização do
298. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 68, nota 191, p. 424.
299. Martin Heidegger, Die Grundbegriffe der Metaphysik, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1992, p. 225-226;
tradução brasileira: Os conceitos fundamentais da metafísica, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003.
300. Cf. Hans-Georg Gadamer, Verdade e método, Petrópolis, Vozes, 1998, p. 210.
123
instante pressupõe uma temporalidade mais originária. Como mencionado, Kierkegaard faz
um pergunta essencial relacionada ao tempo (o que é, pois, o temporal?), contudo, o fato de
não ter logrado uma correspondente interpretação existencial, é por ele ter permanecido preso
ao conceito vulgar de tempo que determina o instante com o auxílio do agora e da eternidade.
Justifica-se, assim, mais uma vez o modo de perguntar pelo tempo, que Heidegger já havia
colocado no início da conferência de 1924: Se o filósofo questiona o tempo, está decidido a
compreender o tempo a partir do tempo
301
. Como já tivemos a oportunidade de ver ao final do
primeiro capítulo, Heidegger propõe-se tematizar o tempo a partir do tempo. Desse modo, uma
pergunta que sintetiza esse propósito é: Quem é o tempo?
2.3.3 O ser-em
O ser-em, enquanto momento constitutivo de ser-no-mundo, é tematizado como
constituição existencial do pre
302
. Porém, o que significa ser-em na constituição fundamental
ser-no-mundo? Uma das experiências mais imediatas de ser-em está no fato de, em tudo que
fazemos ou deixamos de fazer, sermos já sempre em... Naturalmente, nem sempre é fácil de ver e
entender e, muito menos, de falar devidamente desse fenômeno. Por exemplo, sou na
compreensão, sou já na vida, sou já na morte, sou já na lida, sou já no sono, sou já no amor, etc.
Não absolutamente ocupação humana alguma destituída do fato de ser-já-sempre-jogado-no(-
mundo), isto é, numa ação, numa ocupação. Falando fenomenologicamente, isso pode ser
compreendido através da intencionalidade. Vejamos o que Heidegger diz:
A presença existe e jamais é simplesmente dada como uma coisa. Um caráter distintivo
entre entes existentes e entes simplesmente dados está justamente na intencionalidade. A
presença existe significa, entre outras coisas, que ela é um ente que não se comporta
(verhält) como um ser simplesmente dado e que ela enquanto um ente subjetivo não é
simplesmente dado. Num sentido mais amplo, uma janela, uma cadeira e, em geral, todo e
qualquer ser simplesmente dado nunca existe, porque ele não pode comportar-se (verhalten),
enquanto ser simplesmente dado, ao modo do auto-direcionamento intencional. O ser
simplesmente dado é meramente entre outros também simplesmente dado
303
.
A ênfase desta passagem recai no fato de que presença o deve ser compreendida ao modo
ente simplesmente dado (Vorhandenheit). Isso quer dizer: ela não é ao modo de entes como
janela e cadeira, por exemplo, uma vez que estes entes, a rigor, não existem. Por isso, vejamos
melhor como existência está relacionada à intencionalidade
304
. No texto citado, Heidegger fala
301. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 5; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 8/9.
302. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, §§ 29 a 34, p. 246-302.
303. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 9, p.
90.
304. Para ter uma noção mais clara do que este termo significa no âmbito da discussão sobre a temporalidade, cf. Marion
Heinz, Zeitlichkeit und Temporalität im Frühwerk Martin Heideggers, Würzburg/Amsterdam, Königshausen &
Neumann/Rodopi, 1982, p. 164-180 e Françoise Dastur, Heidegger e a questão do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997.
124
de auto-direcionamento intencional. O que significa isso? Inicialmente, auto-direcionamento
pressupõe sujeito. Porém, como entender aqui sujeito? Sujeito é, nesse caso, sub-jecto, o
que está previamente jogado. Assim, por exemplo, na frase no amor algo é amado, está em
jogo uma ação e um sujeito praticante da ação. Expliquemos os momentos pressupostos dessa
ação: 1. no amor (na ação amar), 2. algo é amado (finalidade da ação); subentendida está,
fundamentalmente, a intenção de alguém e, nesse caso, 3. o sujeito praticante da ação. De fato,
em toda ação sempre há um sujeito implicado. Em toda ação está implicado um ente. A esta
relação bi-direcional ou bi-relacional chamamos simplesmente co-relação. Toda co-relação,
nesse sentido, constitui uma co-implicação. Isso é possível, porque a presença existe. A
existência, a rigor, é um a priori, razão pela qual Heidegger denomina-a de essência da presença.
A intencionalidade, tematizada inicialmente por F. Brentano, norteou as investigações
fenomenológicas de E. Husserl e Heidegger
305
. Heidegger, porém, embora fiel a esta tradição,
aprofunda a subjetividade do sujeito a partir da presença em sua facticidade, ou seja,
fundamenta a idéia da intencionalidade desde uma ontologia da presença
306
. No livro Os
problemas fundamentais da fenomenologia, escreve:
A intencionalidade não é uma relação simplesmente dada entre entes simplesmente dados,
entre sujeito e objeto, mas uma estrutura que constitui o caráter relacional
(Verhältnischarakter) da relação (Verhaltens) da presença como tal. [...] A estrutura
intencional da relação não é algo que o assim chamado sujeito imanente é e que necessita
em primeiro lugar de transcendência. A constituição intencional da relação da presença,
porém, é justamente a condição de possibilidade ontológica de cada transcendência.
Transcendência, o transcender, pertence à essência do ente que tendo a si mesmo como
fundamento existe como intencional, isto é, é o ente que existe no modo do ater-se
(Sichaufhalten) junto aos entes simplesmente dados. A intencionalidade é a ratio
cognoscendi da transcendência. Esta é a ratio essendi da intencionalidade em seu modo
distinto
307
.
Heidegger diz: a constituição intencional da relação da presença é justamente a condição
de possibilidade ontológica de cada transcendência. Transcendência, o transcender, pertence à
essência do ente que tendo a si mesmo como fundamento existe como intencional.
Encontramos aqui uma indicação segura para compreender a intencionalidade. A intenção
(intentio) é uma tendência, uma inclinação para isso ou para aquilo. Nela e por ela, sempre já se
estabelece relação. Este já-ser-jogado-por-antecipação é o que Heidegger chama de condição
de possibilidade ontológica de cada transcendência. É este o significado elementar do pre (Da)
305. Duas obras foram decisivas: Das múltiplas significões do ser em Aristóteles, F. Brentano e Investigações lógicas, de
E. Husserl. Sobre cura e intencionalidade, cf. Martin Heidegger, History of the concept of time (Prolegomena zur
Geschichte des Zeitbegriffs), Indiana University Press, Bloomington, 1985, § 31, p. 303-304.
306. Cf. Martin Heidegger, Ontologie (Hermeneutik der Faktizität), Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1995 e,
também, Emmanuel Carneiro Leão, Heidegger e a modernidade: a correlação de sujeito e objeto, in: Aprendendo a
pensar, Petrópolis, Vozes, 1992, p. 161-187.
307. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 9, p.
91.
125
da presença. O pre é abertura ou estruturação de sentido, de transcendência. A presença é o ente
que já sempre está inclinada para isto ou para aquilo e, nesse sentido, é essencialmente
transcendente. Ela sempre é e está fundamental e essencialmente carente de trans-passamento,
de ultra-passamento de si mesma. Ela nunca é em si e para si mesma, no sentido de ser algo
encapsulado, pronto, acabado. Por isso mesmo, a palavra existência evidencia e revela
exatamente o contrário, a saber: a presença carece de ser e estar se perfazendo e
reconquistando em contínuas e sempre novas passagens para o que ela ainda não é nem foi. Ora,
o que ela não é nem foi, é apenas possibilidade de poder-ser, do que está por vir, de futuro.
Por isso mesmo, na intencionalidade, como condição de possibilidade de transcendência,
evidencia-se o modo de ser de um ente, que existe: a presença. A intencionalidade, enquanto
transcendência, é constitutivo dela. A presença é, nesse sentido, o fundamento de si mesma
308
.
Heidegger continua nestes termos:
Todavia, o que é originariamente transcendente, isto é, transcende, não são as coisas que se
encontram diante da presença, mas o transcendente, em sentido estrito, é a presença mesma.
A transcendência é uma determinação fundamental da estrutura ontológica da presença.
Ela pertence à existencialidade da existência. Transcendência é um conceito existencial. [...]
A presença não é entre as coisas também simplesmente dada, possuindo unicamente a
diferença de apreendê-las, mas ela existe ao modo do ser-no-mundo cuja determinação
fundamental de sua existência é a pressuposição segundo a qual ela pode apreender
qualquer coisa que seja
309
.
Esta passagem é importante para compreender a relação intentio e intentum e o que ela
significa dentro do contexto da analítica existencial. falamos que a estrutura essencial de
transcendência da presença é ser-no-mundo. Por ser ser-no-mundo a constituição fundamental
do ente existente constitui-se no centro de toda a analítica existencial. Esta constituição não é,
portanto, uma categoria, mas revela a própria existencialidade. Ela evidencia a presença em seu
modo de ser mais fundamental. Nessa perspectiva, a presença pode apreender qualquer coisa
que seja, vale dizer, ela pode compreender qualquer ente e lhe dar ou atribuir sentido.
Nessa mesma obra, Heidegger descreve esta singularidade da presença comparando-a com
a idéia leibniziana de nada
310
. Fazendo um paralelo entre a constituição fundamental ser-no-
308. Na segunda parte de seu livro Os problemas fundamentais da fenomenonogia, Heidegger refere-se à relação originária
entre o fenômeno da intencionalidade e a temporalidade ekstático-horizontal. Por isso ele diz: A intencionalidade [...], que
é em geral designada na fenomenologia como sendo o último femeno originário, possui sua condição de possibilidade na
temporalidade e em seu caráter ekstático-horizontal. A presença é intencional somente porque é determinada em sua
essência pela temporalidade. Do mesmo modo, pertence ao caráter ekstático-horizontal a determinação essencial da
presença, a qual em si mesma transcende (cf. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am
Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19, p. 378-379).
309. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 15,
p. 230 e p. 234.
310. Uma idéia muito oportuna para se pensar devidamente o modo de acesso ao pensamento é expresso por Leibniz em
sua Monadologia ao definir o que ele entende por mônada. Mônada é, segundo ele, apenas uma substância simples que
entra nos compostos. Simples, quer dizer: sem partes (cf. § 1). Assim, por serem as mônadas os verdadeiros átomos da
natureza, os elementos das coisas (cf. § 2), elas devem ser vistas e compreendidas como tais. Mais adiante, diz também
Leibniz: As nadas o m janelas por onde qualquer coisa possa entrar ou sair (cf. § 7). Cf. Gottfried Wilhelm
Leibniz, Os princípios da filosofia ditos a monodologia, São Paulo, Abril Cultural, 1974, p. 63. A respeito da idéia da
126
mundo e a idéia leibniziana de mônada, diz: porque a mônada, ou melhor, a presença, a partir de
seu próprio ser (a partir da transcendência) sempre está fora, isto é, com outros entes, e isso
significa: sempre consigo mesma. A presença não é uma coisa qualquer encapsulada em si
311
.
Esta idéia é explicitada em Ser e tempo dessa forma:
A presea é um sendo, que em seu ser relaciona-se com esse ser numa compreensão. Com
isso, indica-se o conceito formal de existência. A presença existe. A presença é ademais um
sendo, que sempre eu mesmo sou. Ser sempre minha pertence à existência da presença como
condição de possibilidade de propriedade e impropriedade. A presença existe sempre num
desses modos, mesmo quando existe numa indiferença modal para com esses modos
312
.
Uma idéia central que permite ver e entender a tematização da intencionalidade relaciona-
se ao que Heidegger chama de estrutura-como. Ele mostra que o como não ocorre
primeiramente no enunciado, na proposição. Sua articulação já está sempre presente em toda e
qualquer aproximação interpretativa com os entes na forma algo como algo, a qual antecede
todo e qualquer enunciado temático. A presença, à medida que compreende e interpreta, não
cola, por assim dizer, um significado sobre o ente simplesmente dado. Pois, ao vir ao
encontro dentro do mundo como tal, na compreensão de mundo abriu uma conjuntura, que a
interpretação expõe. Está em jogo, aqui, uma visão (intentio) que já é um compreender e um
interpretar. Essa visão traz consigo as relações remissivas (ser-para, por exemplo) constitutivas
da totalidade conjuntural, a partir da qual é possível compreender o que vem ao encontro dentro
do mundo. O que vem à mão sempre já se compreende a partir da totalidade conjuntural. No
entanto, esta não precisa ser apreendida necessariamente numa interpretação temática. O fato de
uma totalidade conjuntural ser atemática, porém, não quer dizer que seja destituída de
circunvisão. Com efeito, é desse modo que a presença se compreende na interpretação
cotidiana
313
.
No segundo capítulo, intitulado O ser-no-mundo em geral como constituição fundamental
da presença, Heidegger dá uma indicação que nos permite compreender o modo fundamental de
relacionar-se e comportar-se da presença. Esta indicação encontra-se no § 12:
A expressão sou conecta-se a junto; eu sou diz, por sua vez, eu moro, me detenho
junto... (halte mich auf bei...) ao mundo, como alguma coisa que, deste ou daquele modo, me
é familiar. Como infinitivo de eu sou, isto é, como existencial, ser significa morar junto a,
ser familiar com. O ser-em é, pois, a expressão formal e existencial do ser da presença que
possui a constituição essencial de ser-no-mundo
314
.
mônada leibniziana, ver importantes considerações feitas por Martin Heidegger, Aus der letzten Marburger Vorlesung, in:
Wegmarken, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1967, p. 373-395. Cf. também Die Grundprobleme der
Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 20, p. 426-429, onde Heidegger relaciona a idéia da
mônada leibniziana com a estrutura transcendental da presença.
311. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 20,
p. 426-428, mas aqui principalmente p. 427.
312. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 12, p. 98.
313. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 32, p. 209s.
314. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 12, p. 100.
127
Vê-se aqui uma primeira delimitação do existencial ser-em. Segundo o autor, na usual
expressão eu sou está contida uma das idéias centrais perseguidas ao longo da analítica
existencial. No contexto onde esta passagem se encontra, o eu sou (ich bin)
315
diz: eu
moro, me detenho junto... ao mundo (ich wohne, halte mich auf bei... der Welt). Ao lado de
verbos como wohnen, por exemplo, Heidegger dá um privilégio todo especial a sich aufhalten.
Pois, além de expressar morar, habitar, esta palavra diz também, abertura de sentido
316
.
A compreensão, enquanto estrutura fundamental, revela um dos modos do próprio pre
enquanto abertura da presença. Ora, a expressão pre enquanto abertura da presença é uma
expressão acentuadamente pleonástica. Trata-se, no entanto, de determinar melhor este pre
enquanto abertura da presença. No § 31, de Ser e tempo, lê-se:
A presente investigação já se deparou com essa compreensão originária (ursprüngliche
Verstehen) sem, no entanto, permitir que ela aflorasse explicitamente como tema. Dizer que
a presença existindo é o seu pre significa, por um lado, que o mundo está presente, a sua
presença é o ser-em. Este é e está igualmente presente como aquilo em função de que
(worumwillen) a presença é. Nesse em função de, o ser-no-mundo existente se abre como
tal. Chamou-se essa abertura de compreensão
317
.
E, mais adiante, no § 32, também:
Enquanto abertura do pre, o compreender sempre diz respeito a todo o ser-no-mundo. Em
toda compreensão de mundo, a existência também está compreendida e vice-versa. Toda
interpretação, ademais, se move na estrutura-prévia (Vor-Struktur) já caracterizada
.
[...] O
decisivo não é sair do círculo mas entrar no círculo de modo adequado. Esse círculo da
compreensão não é um cerco em que se movimentasse qualquer tipo de conhecimento. Ele
exprime a estrutura-prévia existencial, própria da presença
318
.
O pre é a abertura primordial como condição de possibilidade do poder-ser da presença
como tal. A partir de abertura, a presença já sempre ganhou ou perdeu sentido, isto é, orientação,
perspectiva, direção. Mas, o que significa orientação, perspectiva, sentido? Heidegger ensina:
Sentido é aquilo em que se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa. Chamamos de
sentido aquilo que pode articular-se na abertura da compreensão. O conceito de sentido
abrange o aparelhamento formal daquilo que pertence necessariamente ao que é articulado
pela interpretação que compreende. Sentido é a perspectiva em função da qual se estrutura
o projeto pela posição prévia, visão prévia e concepção prévia. É a partir dela que algo se
torna compreensível como algo. [...] Somente a presença pode ser com sentido ou sem
sentido
319
.
315. Importante análise etimológica, a respeito desta expressão, encontra-se na conferência Bauen, Wohnen, Denken, in:
Martin Heidegger, Vorträge und Auftze, Pfullingen, Günther Neske, 1990, p. 141.
316. Na carta Sobre o humanismo ocorrem formas como, por exemplo: Hirt, Aufenthalt, sich aufhalten; na conferência
Bauen, Wohnen, Denken, de 1951, publicado em Ensaios e confencias: sich aufhalten, verhalten, Aufenthalt, Haus,
Hut.
317. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 31, p. 203.
318. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 32, p. 213-214.
319. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, § 32, p. 212-213. Além das
explicitações constantes neste parágrafo a respeito de posição prévia, visão prévia e concepção prévia, deve-se ler também
o parágrafo em que Heidegger o encaminhamento da anatica temporal, pois ali estas estrutuas são novamente retomadas
(cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 45, p. 303-308).
128
Sentido é aquilo em que se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa, diz
Heidegger. Contudo, por que dizemos que uma determinada situação ou palavra tem sentido?
Para palavras e situações terem ou não sentido, não é necessário saber ou não saber, estar
informado ou não estar informado a respeito disso ou daquilo. De fato, a falta de sentido é
ainda um possível sentido, mesmo que totalmente desprovida ou carente de sentido. Assim,
qualquer possibilidade de sentido, mesmo sendo negativa, não deixa de ter sentido. Vejamos dois
exemplos: a) quando uma palavra tem sentido é porque ela alcançou uma possibilidade de ser,
ganhou determinação, dizendo então o que pode dizer, o que é preciso. Desde um determinado
mundo de sentido, nela ressoa a significância; b) quando dizemos que uma pessoa encontrou o
sentido de sua vida, dizemos que está no caminho certo, que encontrou-se numa possibilidade de
ser e realizar-se. Nesse último caso, porém, uma tal pessoa apenas encontrou o rumo, sua vida,
porém, continua. Sua continuação consiste exatamente no fato de estar lançada entre o sim e o
não, entre o certo e o errado, entre o próprio e o impróprio. Pela mesma razão, o sentido não é
jamais algo pronto e definitivo. É tarefa a fazer e por fazer. Sentido é, então, tão-somente e
apenas, possibilidade de ser. De fato, se a vida de uma tal pessoa tem sentido, quer isso então
dizer: tem norte, tem direção, está encaminhada. Concomitantemente, porém, ela está
continuamente diante da possibilidade de ser com ou sem sentido. Deve, por isso, manter-se
desperta para o nascimento de seu sentido mais próprio. É-lhe exigida, então, sempre e cada vez
mais, atenção para manter-se no encaminhamento do sentido e, assim, realizar a possibilidade de
ser mais própria que se abriu para ela.
Daqui se vê que, enquanto existencial, sentido é constitutivo da própria abertura (pre = Da)
de ser (sença = sein). Sentido é a clareira em que se é e está num mundo de sentido. Poder-ser
sob uma possibilidade constitui-se num modo fundamental de forma que a presença não seja um
ente qualquer. Dessa maneira, sentido é apenas e tão-somente abertura de já ser e já estar sendo e
vivendo num modo essencial e fundamental. Viver, enquanto existir, é viver, por antecipação,
numa possibilidade de ser.
Por isso mesmo, uma das demonstrações fenomenológicas mais importantes de Heidegger
é que antes da relação sujeito x objeto dar-se, há mundo. É a mundanidade do mundo que
possibilita tanto o eu como as coisas. Assim, juntamente com o objeto sempre se co-descobriu
o mundo do objeto e vice-versa. Mundo é sempre já a realização desde um sentido determinado.
Mundo é, então, sempre já, o imediato, o súbito. Ser-no-mundo é, pois, o modo primordial no
qual a presença é, ou seja, existe. Nessa mesma perspectiva, Heidegger diz que o como
constitui a estrutura da explicação do compreender; ele constitui a interpretação
320
.
320. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 32, p. 210.
129
Compreensão e interpretação não são, portanto, algo detectável na presença a posteriori. Dão-
se sempre já, ou melhor, imediatamente, repentinamente, abruptamente em toda e qualquer
situação vivenciada pela presença, quer se dê isso de uma forma temática ou atemática.
Cabe descrever e determinar, então, como a presença se descobre já sempre lançada
compreensiva e interpretativamente. A partir disso, podemos perguntar: compreensão e
interpretação, enquanto existenciais da presença, como se constituem? Segundo Heidegger, a
compreensão constitui a própria abertura do poder-ser da presença: Na compreensão subsiste,
existencialmente, o modo de ser da presença enquanto poder-ser. A presença não é algo
simplesmente dado que ainda possui de quebra a possibilidade de poder alguma coisa.
Primariamente, ela é possibilidade de ser. [...] Porque, em si mesmo, compreender possui a
estrutura existencial que chamamos de projeto
321
.
Lançada num sentido, ou melhor, num mundo de sentido, a presença, em tudo que é e faz
ou, de maneira ainda mais radical, mesmo não sendo e não fazendo, necessariamente uma
interpretação a si mesma. O que é todo e qualquer modo de negação a não ser um modo possível
de ser? Toda e qualquer interpretação baseia-se, então, num modo fundamental que é
compreender. Heidegger insiste, por isso mesmo, que toda interpretação funda-se no
compreender, o contrário o se sustentando existencial e ontologicamente. Para ele, enquanto
abertura do pre, a compreensão sempre diz respeito a todo o ser-no-mundo. Em toda
compreensão de mundo, a existência também está compreendida e vice-versa. Toda interpretação
que se coloca no movimento de compreender já deve ter compreendido o que se quer
interpretar
322
. Depreende-se disso que a presença move-se sempre já num círculo virtuoso, não
num círculo vicioso
323
. Virtuoso, na medida em que esta palavra mesma expressa força
(virtus) de constituição ontológica.
Sendo a compreensão a própria abertura ao ser, toda e qualquer ação interpretativa não
pertence essencialmente ao modo de ser da presença, como, sobretudo, se realiza nela a todo e
qualquer momento. Por isso, o ato de interpretar implica, sempre e necessariamente, uma
articulação de totalidade compreensiva e unidade significativa. Isso quer dizer: um determinado
sentido de ser já está sempre prévia e antecipadamente a caminho no modo de ser-homem
324
.
Carneiro Leão escreveu certa vez:
321. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 31, p. 205.
322. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 32, p. 213.
323. Para uma compreensão adequada dessa circuladiade, Heidegger analisa os existencias compreensão e interpretação
como modos originários da presença, ao passo que a proposição é vista como modo derivado da interpretação (cf. Martin
Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, §§ 32 e 33, p. 209-223).
324. Cf. Marcia Sá Cavalcante Schuback, Da necessidade de ser o que se compreende, in: Veredas, Rio de Janeiro,
Centro Cultural Banco do Brasil, ano 3, n. 29, maio 1998, p. 28-29, onde a autora diz: O homem compreende porque
está sempre lançado numa situão histórica concreta que não escolheu, mas à qual precisa dar sentido; e, mais adiante:
Compreender é jogar o jogo de correspondência entre quem conhece e aquilo que se compreende.
130
O homem sempre interpreta. No sonho e na vigília nós sempre interpretamos. Mesmo
quando não falamos mas apenas ouvimos ou lemos, estamos interpretando. Até quando não
ouvimos nem lemos ou falamos mas somente agimos ou simplesmente repousamos, ainda
assim interpretamos. É que interpretar não é uma entre outras possibilidades humanas, como
se o homem pudesse ser primeiro homem e só depois, de propósito ou sem propósito,
interpretasse, falando, ouvindo, sonhando, agindo, repousando. Não! É interpretando que o
homem fala e ouve. É interpretando que o homem sonha, age e repousa. Interpretar é o modo
de ser do homem. Ser homem é interpretar
325
.
Compreensão é, pois, o modo de ser fundamental da presença. Compreender constitui-se,
assim, num conhecer originário (Erkennen). Segundo Heidegger, quando conhecimento,
este pertence unicamente ao ente que conhece. Entretanto, o conhecimento também não é
simplesmente dado nesse ente, a coisa homem (Menschending)
326
. Compreender significa re-
conhecer no sentido de re-conascer
327
. Pois, como o próprio Heidegger escreve, a presença
enquanto possibilidade de ser, nunca é menos, o que significa dizer que aquilo que, em seu
poder-ser, ela ainda não é, ela é existencialmente. Somente porque o ser do pre recebe sua
constituição do compreender e de seu caráter projetivo, somente porque ele é tanto o que será
quanto o que não será é que ela pode, ao se compreender, dizer: Sê o que tu és!
328
.
Havia uma epígrafe no Templo de Delfos que dizia: Gnw~qi seautovn, isto é, Nosce te
ipsum: Conhece-te a ti mesmo!
329
. A expressão empregada por Heidegger o que tu és!
nasce da experiência humana condensada nessa epígrafe grega. Sê o que tu és a partir do que e no
que tu já és! Viva tão-somente na e desde a possibilidade de ser quem tu és. Por isso,
verbalmente ou não, a presença necessita constantemente dizer para si mesma: Venha a ser o
que tu és!, isto é, conheça, conasça, concresça!
Interessa ver aqui, que esta sentença atribuída a Píndaro, na forma Venha a ser o que tu
és! revela o modo como a presença sempre se realiza compreensiva e interpretativamente.
Entretanto, é importante ter presente duas outras variantes desta mesma sentença. Uma, de
Nietszche, diz: Venha a ser quem tu és; a outra, de Hölderlin, diz: Venha a ser quem tu és, na
experiência!
330
. Ao que tudo indica, a versão de Hölderlin não é só mais completa, mas
325. Cf. Emmanuel Carneiro Leão, Hermenêutica, revelação, teologia, in: Aprendendo a pensar, Petrópolis, Vozes, 1991,
p. 212.
326. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 13, p. 106.
327. Para um dimensionamento tanto do sentido filosófico destes termos quanto a respeito de suas proveniências (isto é, do
verbo francês connaître), cf. Gilvan Fogel, Da solidão perfeita, Petrópolis, Vozes, 1999, principalmente às p. 37-38, 45, 49,
73 e 86; como também o artigo de Emmanuel Carneiro Leão, Heidegger e a modernidade: a correlação de sujeito e
objeto, in: Aprendendo a pensar, Petrópolis, Vozes, 1992, p. 173.
328. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 31, p. 206.
329. Trata-se de uma das máximas gregas mais conhecidas e propagadas. Era a sobrescrão (= epígrafe) colocada na
entrada do templo de Delfos. Não se trata de uma norma moral de comportamento mas, antes, de um venerável preceito
divino no sentido grego. É também conhecidíssima na literatura moderna em textos como é o caso dos textos de Rabelais,
Galileu, Voltaire, Goethe. Sobre a história e usos desta sentença, cf. Renzo Tosi, Dicionário de sentenças latinas e gregas,
São Paulo, Martins Fontes, 1996, n. 347, p. 162-163.
330. Cf. a reflexão desta sentença de Gilvan Fogel, numa conferência pronunciada no Sao Nobre do Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais, da UFRJ, em dezembro de 1993, intitulada Do fundamento. O texto desta conferência encontra-se agora
publicado no livro Da solidão perfeita, Petrópolis, Vozes, 1999, p. 171-188. Cf. também Marcia Cavalcante Schuback,
O como de deus, Petrópolis, Vozes, 1998, nota 6, p. 14. Neste livro a autora apresenta um importante estudo a respeito
131
explicita o modo como se este vir-a-ser da presença. Portanto, Venha a ser quem tu és, na
experiência! Mas, o que ainda nos pode dizer a expressão na experiência? o que tu és! é
a forma como Heidegger cita esta sentença no § 31, mas numa nota explicativa, referente a esta
sentença, ele explicita o significado do és. Ele diz: Mas quem tu és? Aquele como o qual tu
te projetas a ti mesmo aquele como tu te tornas
331
.
Essa explicação coloca-nos numa dimensão que nos permite ver e entender adequadamente o
sentido da sentença grega que, conforme a versão de lderlin, é um vir-a-ser quem tu és, na
experiência. Este na experncia o é um acscimo casual, mas um modo como a presença
sempre já, de algum modo, vem a ser quem ela é. Na ex-peri-ência diz, nesse caso: desde (peri)
onde tu te projetas a ti mesmo (ex)
332
. Mas quem é este tu, dito e manifesto na sentea grega
pergunta-se Heidegger. Resposta: de um modo ou de outro, eu mesmo, o ente que faz tal pergunta!
Com efeito, a sentença grega acena para o lugar que não é lugar, mas tão-somente força de sentido e
realização de sentido.
Nessa perspectiva, ao encerrar a análise da constituição fundamental ser-no-mundo,
Heidegger diz: Com esta análise, libertou-se a totalidade da constituição existencial da presença
em seus traços fundamentais, e se adquiriu a base fenomenal para uma interpretação de conjunto
do ser da presença como cura
333
. Porém, para assegurar um horizonte de compreensão do tema
central de nossa investigação, vejamos o que Heidegger diz no livro Os problemas fundamentais da
fenomenologia:
Conceber a compreensão do ser significa, porém, compreender primeiramente o ente ao qual
pertence a constituição ontológica da compreensão do ser: a presença. A exposição da
constituição fundamental da presença, isto é, sua constituição existencial é a tarefa da analítica
ontológica e preparatória da constituição existencial da presença. s a designamos de analítica
existencial da presença. Esta analítica visa trazer à luz em que medida as estruturas fundamentais
da presença se fundamentam em sua unidade e totalidade. [...] O que a analítica existencial em si
abrange, foi por mim apresentado nos resultados essenciais de meu tratado sobre Ser e tempo. O
resultado da analítica existencial, ou seja, a exposição da constituição ontológica da presença em
seu fundamento diz: A constituição ontológica da presença funda-se na temporalidade
334
.
desta sentença pindárica. Segundo ela, a passagem de Píndaro diz: gevnoi oi|o" ejssiV maqwvn: Num outro manuscrito,
preservado sob o código BMGFC, lê-se gevnoi oi|o" ejssiV maqwvn. Essa interpontuação separa maqwvn da sentença anterior.
Essa foi, provavelmente, a versão usada por Nietzsche para traduzir essa passagem por Werde, was du bist, versão esta
que exclui do lema de Píndaro o termo maqwvn enquanto ensinar-aprender. A tradução feita por Hölderlin inclui este termo
e exprime-se, em toda a sua radicalidade poética, no Werde welcher du bist erfahren, isto é, venha a ser, na própria
experiência, aquele que tu és. A mesma sentença pode ser entrelida no fragmento 101, de Heclito, onde diz: Eu me
busco a mim mesmo.
331. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 31, p. 206, mas
principalmente na nota explicativa do autor à p. 543 desta mesma edição,mero 206, letra a.
332. Cf. Hermógenes Harada, Da experiência, in: Experncia de Deus hoje, Petrópolis, Vozes, 1974, p. 59-73.
333. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 38, p. 245.
334. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19,
p. 322-223.
132
2.4
A
CURA COMO SER DA PRESENÇA
No âmbito da analítica existencial, é preciso não perder de vista a idéia condutora de
conquistar a totalidade da presença em sua constituição fundamental. A analítica existencial da
constituição fundamental ser-no-mundo objetiva isso. Foi enfatizada, por isso mesmo, a
necessidade de manter-se a unidade desse todo estrutural
335
. Embora Heidegger tematize
separadamente cada um de seus momentos constitutivos, fenomenalmente, porém, tem em vista a
totalidade ontológica dessa constituição. Desse modo, ao discutir, no § 12, a constituição do ser-
em, dá uma indicação muito precisa do modo como a presença se ocupa:
Pode-se exemplificar a multiplicidade desses modos de ser-em através da seguinte
enumeração: ter o que fazer com alguma coisa, produzir alguma coisa, tratar e cuidar de
alguma coisa, aplicar alguma coisa, empreender, impor, pesquisar, interrogar, considerar,
discutir, determinar... Estes modos de ser-em possuem o modo de ser da ocupação
(Besorgen), que ainda será caracterizada mais profundamente. [...] O termo ocupação tem,
de início, um significado pré-científico e pode designar realizar alguma coisa, cumprir,
levar a cabo. Mas a expressão ocupar-se de alguma coisa pode também significar arranjar
alguma coisa. Ademais, usamos ainda a mesma expressão numa rmula característica:
preocupar-se que uma empresa fracasse. Preocupar-se indica, nesse caso, uma espécie de
temer por. Em oposição a estes significados pré-científicos e ônticos, a presente investigação
usa a expressão ocupar-se para designar o ser de um possível ser-no-mundo. Essa escolha
não foi feita porque a presença é, em primeiro lugar e em larga escala, prática e
econômica, mas porque o ser da presença deve tornar visível em si mesmo como cura
(Sorge). Mais uma vez, deve-se tomar a expressão como um conceito ontológico de
estrutura
336
.
Já no § 12, o pensador vê a necessidade de caracterizar mais profundamente o modo de
ser da ocupação. No âmbito da analítica existencial, os termos ocupação (Besorgen),
preocupação (Fürsorge) e cura (Sorge) não devem ser vistos e entendidos num sentido
meramente ôntico, isto é, num sentido comum e usual. Por isso, ao final da citação, é dito ser
necessário tomar a expressão como um conceito ontológico de estrutura.
Contudo, o que quer dizer estrutura (Struktur)? Este conceito possui um sentido
eminentemente ontológico, sendo um termo recorrente na analítica heideggeriana. Expressões
como todo estrutural, momentos estruturais, unidade estrutural são apenas algumas das
muitas formas como estrutura é empregada. Estrutura provém do latim struere e significa,
existencialmente falando, o que propriamente integra, o que propriamente une. Nesse
sentido, cura é a estrutura ontológica fundamental da presença. A cura consitui o próprio ser da
presença e, a temporalidade veremos isso no capítulo seguinte estrutura-se como sentido
ontológico da cura.
335. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 12, p. 103. Para Paul Ricoer, a
cura é o existencial mais fundamental, suscevel de assegurar a unidade temática da obra, pelo menos até a entrada em
cena da temporalidade na segunda seção (cf. O si-mesmo como um outro, Papirus, Campinas, 1991, p. 362).
133
Percebe-se, assim, que Heidegger diferencia a tematização ontológica da cura de uma
possível abordagem meramente ôntica. Por isso, prefere o empregar termos, também usuais na
língua alemã, como Besorgnis e Sorglosigkeit, respectivamente cuidado e descuidado
337
. No §
39, que tem por objetivo determinar a totalidade originária do todo estrutural da presença,
Heidegger ressalta:
O ser da presença, que sustenta ontologicamente o todo estrutural, torna-se acessível num
olhar completo que perpassa esse todo no sentido de um fenômeno originariamente unitário,
que já se no todo, de modo a fundar ontologicamente cada momento estrutural em sua
possibilidade. A interpretação em conjunto não pode, portanto, ser uma coletânea que reúne
o que já foi conquistado até aqui. A questão do caráter existencial básico da presença difere
essencialmente da questão do ser de algo simplesmente dado
338
.
Nessa passagem está jogo a unidade estrutural do ser da presença, tematizada ao longo da
analítica através da constituição fundamental ser-no-mundo. É preciso, porém, que o modo de
apreender esta totalidade vá ao encontro do modo de ser do ente analisado em seu ser. Com
efeito, todos os conceitos tradicionais de totalidade, que têm por modelo o modo de ser de coisa
simplesmente dada (Vorhandenheit), não são suficientes para descrever o modo de ser da
presença. Os modelos de totalidade, em geral, baseiam-se em modelos ôntico-espaciais de
construção e reunião de partes. Isso permite compreender por que é que a interpretação que
pretende conceber o todo não pode contentar-se em ser uma simples recapitulação, diz-nos
Dastur. E continua: -se aqui claramente que Heidegger, ao utilizar o termo estrutura para
designar o que não pode ser compreendido como uma simples composição de elementos quer
enfatizar o caráter radicalmente relacional (e não substancial) e a interdependência recíproca dos
existenciais
339
.
Assim, uma vez que a analítica ontológico-existencial da presença tem em mira delimitar
fenomenalmente o todo deste ente a partir da cotidianidade, o que propriamente une este ente é
que ele sempre já se compreende existencialmente dessa ou daquela maneira. A questão, porém,
consiste em mostrar como isso se dá. Como fenômeno de unidade e totalidade, a constituição
ontológica ser-no-mundo deve ser elaborada em sua unidade e totalidade fenomenal enquanto cura.
A cura revela-se a partir de uma tríplice estruturação, a saber: existencialidade, facticidade e
decadência. Em tese, cura, enquanto ser da presença, é o resultado mais positivo da analítica
existencial de Ser e tempo. Procuremos ver e entender isso melhor. No § 43 podemos ler:
A questão sobre o sentido do ser é possível quando se dá uma compreensão do ser. A
compreensão de ser pertence ao modo de ser deste ente que denominamos presença. Quanto
336. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 12, p. 103.
337. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 41, p. 260). Na edição alemã:
Sein und Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1986, p. 192.
338. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 39, p. 247.
339. Cf. Françoise Dastur, Heidegger e a questão do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, p. 61-62.
134
mais originária e adequadamente se conseguir explicar esse ente, maior a segurança do
alcance na caminhada rumo à elaboração do problema ontológico fundamental
340
.
Já acenamos que, embora Heidegger também empregue formas variantes como ocupação e
preocupação para dimensionar o ser da presença, formalmente, porém, cura indica a
constituição ontológica fundamental, uma vez que ocupação e preocupação acentuam a
realização concreta da presença entretida numa determinada tarefa por realizar ou mesmo na
convivência com a co-presença dos outros. Contudo, trata-se de alcançar uma elaboração
ontológica fundamental, diz Heidegger. Por isso, no § 41, intitulado o ser da presença como
cura, a preocupação do pensador volta-se para a necessidade de compreender o ser da presença
numa forma originariamente unitária:
Os caracteres ontológicos fundamentais desse ente são existencialidade, facticidade e
decadência. Essas determinações existenciais, no entanto, não são partes integrantes de um
composto, em que se pudesse ou não prescindir de alguma. Ao contrário, nelas se tece um
nexo originário que constitui a totalidade procurada do todo estrutural. Na unidade dessas
determinações ontológicas da presença é que se podeapreender ontologicamente o seu ser
como tal. Como se deve caracterizar essa unidade em si mesma?
341
Vejamos com atenção esta passagem, no intuito de dimensionar a unidade da cura como ser
da presença. Heidegger procura compreender a cura a partir de uma tríplice caracterização, sendo
seu objetivo principal garantir e assegurar o fenômeno da cura como um fenômeno unitário. Na
tríplice caracterização da cura, portanto, faz-se necessário resguardar o caráter unitário
342
. A
partir da citação, os caracteres ontológicos dessa tríplice caracterização da cura são:
existencialidade, facticidade e decadência. Formalmente, cada uma dessas caracterizações
significa: anteceder-a-si-mesma... a existência (Sich-vorweg... die Existenz); já-ser-em... a
facticidade (Schon-sein-in... die Faktizität); ser-junto-a... a decadência (Sein bei... das Verfallen).
Vê-se, aqui, que os caracteres ontológicos fundamentais da cura são: anteceder-se-a-si-mesma
(existência), -ser-em (facticidade) e ser-junto-a (decadência)
343
. No âmbito da analítica
existencial, estas caracterizações não surgem do nada. Elas estão presentes, de algum modo,
nas análises da constituição fundamental ser-no-mundo. A partir da caraterização da cura, no
entanto, o que quer dizer ser-no-mundo? Fenomenalmente, um modo de dizer e descrever esta
constituição fundamental é o anteceder-a-si-mesmo da presea (Sich-vorweg-sein de
Daseins)
344
. Porém, trata-se de ver e entender isso melhor.
Celebrando os vinte anos da morte de Rilke, Heidegger pronunciou a conferência Por que
poetar?, publicada em Holzwege. Há, nessa conferência, duas passagens que podem ajudar-nos a
340. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 43, p. 268.
341. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 41, p. 258.
342. Cf. Françoise Dastur, Heidegger e a questão do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, p. 60s.
343. Esta tríplice caracterização ontológica da cura ficamais clara no tópico O poder-ser-todo e a decisão antecipadora,
a ser desenvolvido no terceiro capítulo desta investigação.
344. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 41, p. 259.
135
compreender o sentido ontológico-existencial da cura como ser da presença. Heidegger escreve:
Dessa maneira, o arriscado é despreocupado, sine cura, securum, isto é, seguro. Somente na
medida em que o arriscado é seguro na aventura, pode seguir a aventura, ou seja, o desamparo do
arriscado. O desamparo do arriscado não somente não exclui um estar seguro em seu
fundamento, mas o inclui necessariamente. O arriscado corre juntamente com a aventura. Mais
adiante continua: Seguro, sine cura, securus, significa: sem preocupações’”
345
.
Num primeiro momento, vemos aí um modo negativo ou privativo de dizer o modo de ser
mais próprio do ente chamado presença
346
. Porém, como ver e entender o caráter desse modo de ser
em sua fenomenalidade? Como uma vital e até necessária não segurança, in-segurança (sine cura).
Sendo toda tentativa de asseguramento e proteção cuidado, a presença é, constitutivamente, no mais
radical sentido que essa palavra expressa, vital in-segurança. Ou seja, sendo a presença
medularmente carência de ser, é dela exigido, de um modo ou de outro, assegurar e proteger sua
vida, ou melhor, deve dela cuidar. Assim, a presença é o único ente que, de fato, existe. É o único
ente não-seguro, não-pronto, não-acabado, mas essencialmente cura, ou seja, cuidado, contínua
busca de segurança. Isso evidencia-se no fato de esse ente ser o único ente sempre ocupado e
preocupado, sempre já entretido com alguma tarefa a cumprir ou mesmo quando apenas está
com e entre seus semelhantes. Nunca é, portanto, total apatia. É, antes, radical empatia. A condição
de finitude, isto é, de que ela é mortal, finita, revela e acusa isso. Pois, enquanto a morte não vem, a
presença continua sendo, ou melhor, ela continua existindo, sendo e estando na tarefa de ser sob um
modo possível de ser. A tríplice estruturação ontológica da cura evidencia modos pelos quais a
presença vive, se ocupa e se compreende.
Nesse contexto, Heidegger busca um testemunho existencial da presença como cura numa
interpretação pré-ontológica, encontrando-o numa antiga fábula de Higino
347
. O que o pensador
atesta nesse testemunho pré-ontológico é que a presença se compreende a si mesma como cura
antes de qualquer interpretação teórica. Na fábula de Higino a cura é considerada como o que
pertence ao ser humano em toda sua existência. Nela evidencia-se, também, sua composição
ontológica: matéria (terra) e espírito. Nesse testemunho, porém, mais uma vez, aparece a
definição tradicional do ser humano, uma vez que este ente é visto ali como composto pelo
sensível e pelo inteligível e não como uma totalidade. Ontologicamente, também fenômenos
345. Martin Heidegger, ¿Para qué ser poeta?, in: Sendas perdidas, Buenos Aires, Losada, 1979, p. 232 e 246. Cf. também
Gilvan Fogel, Do coração-máquina Ensaio de aproximação à questão da tecnologia, in: Da solidão perfeita, Petrópolis,
Vozes, 1999, tópico 18, p. 110; Luiz Bicca, Ipseidade, angústia e autenticidade, in: ntese Nova Fase, vol. 24, n. 76,
1997, Belo Horizonte, p. 11-36. Bicca, para descrever isso, usa as expressões insegurança ontológica e solidão radical.
346. Cf. aqui George Steiner, As idéias de Heidegger, Cultrix, São Paulo, 1982, principalmente p. 87, onde este autor diz
que ontologicamente, diz Heidegger, a in-satisfação e o desejo pressupõem a possibilidade de cuidado.
347. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 42, p. 264-268. A mesma
interpretação encontra-se no volume 20 das obras completas: Martin Heidegger, History of the concept of time
(Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs), Indiana University Press, Bloomington, 1985, § 31, p. 293-304. É notório
que este § 31 leve o mesmo tulo do capítulo sexto da primeira seção de Ser e tempo, isto é, A cura como ser da presença.
136
como querer, desejo, impulso e inclinação, reveladores de pulsões humanas e consideradas, em
geral, como pertencentes ao ser vivo dotado de razão (animal rationale), devem ser
compreendidos a partir da estruturação da cura. Assim, por exemplo, interpretações do ser
humano a partir de uma filosofia da vida ou como psicologismo ou biologismo são
insuficientes para tematizar o ser da presença. De fato, como acontece no biologismo, não se
trata de acrescentar a alma à realidade corporal do ser humano ou mesmo o espírito à alma ou,
ainda, o caráter existencial ao espírito. A questão que se coloca, a partir disso, é: em que
constitui-se a humanidade do ser humano? Responder a esta pergunta implica, necessariamente,
uma ontologia fundamental, ou seja, uma ontologia capaz de dar sustentação tanto à filosofia da
vida, ao psicologismo, as biologismo ou mesmo a outros modos possíveis de se apreender e
compreender a humanidade do ser humano.
Assim como na fábula de Higino, é possível encontrar em Blaise Pascal uma referência à
condição pré-ontológica do ser humano. O objetivo aqui é fazer com que nos ajude a
compreender a estrutura da cura do modo como é tematizada por Heidegger. Num de seus
Pensamentos, escreve:
A nossa natureza consiste no movimento; o repouso completo é a morte. Condição do
homem: inconstância, dio, inquietação. Tédio. Nada é tão insuportável ao homem como
estar num pleno repouso, sem paixões, sem trabalho, sem diversão, sem aplicação. É então
que sente o seu nada, o seu abandono, a sua insuficiência, a sua dependência, a sua
impotência, o seu vazio. Imediatamente sairá do fundo da alma o tédio, o negrume, a
tristeza, o desgosto, a irritação, o desespero
348
.
A descrição de Pascal, referida ao ser humano, pressupõe uma relação ou atamento
primordial. Deve-se entender este primordial como ontológico. De fato, pode-se entender
que homem só é homem sendo sob um possível modo de ser, ou seja, a partir de relação ou
atamento primordial. Porém, como visualizar e entender essa proto-relação sempre presente,
atuante e perfazedora da essência do ser humano? Orientando-nos em Pascal, apenas alguns
exemplos: movimentorepouso, vidamorte, potênciaimpotência, dependênciaindependência,
suficiênciainsuficiência, alegriatristeza, gostodesgosto, esperançadesespero, etc. Todas essas
relações apontam para aquilo que chamamos aqui de relação ou atamento primordial.
A dificuldade, no entanto, consiste justamente em trazer fenomenalmente à fala isso a que
chamamos de relação ou atamento primordial. Vida só onde ela é e se deixa de algum modo
atar numa realização, numa concreção. É nisso que o ser da presença como cura se mostra como
um necessário e vital des-atamento. O des aponta, pois, para um necessário e vital desatamento
em vista de e por definição, por limite, que se sempre de novo e a cada instante... enquanto a
348. Blaise Pascal, Pensamentos escolhidos, Lisboa, Verbo, 1972, n. 54, 55 e 56, p. 48.
137
morte não vem. A partir disso, frases como basta estar vivo para morrer
349
ganham uma
conotação existencial própria. Existindo, a presença descobre-se jogada na condição de ser
mortal. A morte revela sua finitude. De fato, desde que o homem é homem, isto é, existe, está
na iminência de sua própria morte.
Para Dastur, estudiosa de Heidegger, isso quer dizer: manter-se na iminência da morte, ou
melhor, conservar-lhe o caráter de pura possibilidade
350
. É nisso que consiste a estrutura
existencial da morte em sentido propriamente heideggeriano. Pois, em última instância, se a
presença pode experimentar a morte daquele que é semelhante a si mesmo, isso é possível,
fundamentalmente, porque cada presença está na iminência de experimentar sua própria morte.
Nesse sentido, da própria morte ninguém pode fugir. Certamente, ela sempre já caminha
conosco. Ela pertence ao modo de ser da presença como cura. Ela é estruturalmente constitutiva
da presença como cura. A partir disso, é possível compreender que morte não é só um último
expirar, mas ela faz-se presente desde que e enquanto o homem é homem, ou seja, desde o
nascimento até a morte. Por esta razão, diz-se comumente: Para morrer, basta estar vivo
351
,
quer dizer, desde que o ser humano nasce, já está velho suficiente para morrer, por estar já
sempre na iminência de sua própria morte
352
.
Heidegger emprega dois verbos a fim de diferenciar a morte da presença da morte dos
demais entes: finar (verenden), para designar o morrer do ente dotado do caráter de presença e
findar (enden), para os demais entes
353
. Numa importante passagem da conferência O conceito
de tempo, Heidegger fala do caráter existencial da morte:
Quanto menos pressa houver em passar desapercebidamente por esta aporia [de que a
morte é sempre minha e que eu em absoluto nunca posso ser o outro], quanto mais tempo
nos mantivermos nela, tão mais claro será: nisso que para a presença prepara esta
dificuldade ela se mostra na possibilidade mais extrema. O fim da presença, minha morte,
não é algo junto a que se completa um conjunto de transcursos, mas uma possibilidade, da
qual a presença sabe de uma ou de outra maneira: a possibilidade extrema de si mesma, que
ela pode apreender quando pode assimilá-la antecipadamente. A presença tem em si mesma
a possibilidade de se encontrar com sua morte enquanto a possibilidade extrema dela
mesma. Esta possibilidade extrema possui o caráter antecipatório na consciência, e esta
consciência é, por seu lado, caracterizada por meio de uma completa indeterminação. A
auto-explicação (Selbstauslegung) da presença, que em termos de consciência e
349. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 48, p. 320.
350. Cf. Françoise Dastur, Heidegger e a questão do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, p. 81.
351. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 48, p. 320. Veja também a
este propósito o comenrio de Steiner: Heidegger cita uma homilia medieval que nos ensina: Assim que o homem
ingressa na vida, é logo suficientemente velho para morrer (cf. George Steiner, As idéias de Heidegger, Cultrix, São
Paulo, 1982, p. 89). Também Jean-Yves Leloup diz: Desde que uma criança nasce, é suficientemente velha para morrer
(Jean-Yves Leloup, O evangelho de Tomé, Petrópolis, Vozes, 1998, p. 167).
352. A expressão ser ou estar na imincia da morte revela nada mais do que a situão em que todo e qualquer homem
já se descobre. Pois iminente quer dizer: o que es por acontecer, o pendente. Iminens, -entis, particípio presente de
imminere diz: estar situado ou suspenso sobre. Contudo, deve-se ressaltar, existencialmente falando, a palavra iminente
resgurada um sentido positivo que é o que es por fazer, o porvir, o futuro em sentido genuinamente originário como pura
possibilidade aberta para ser sob um modo possível de ser.
353. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 47, p. 314-315.
138
autenticidade ultrapassa todo e qualquer enunciado, é a explicação de sua morte, a
consciência indeterminada da possibilidade mais própria de estar-no-fim (Zu-Ende-
sein)
354
.
Compreender a cura como ser da presença, portanto, implica fundamentalmente ver e
entender como Heidegger interpreta ontologicamente o fenômeno da morte
355
. Procuremos ver e
entender isso melhor a partir de uma das frases da citação: A presença tem em si mesma a
possibilidade de se encontrar com sua morte enquanto a possibilidade extrema dela mesma. Esta
possibilidade extrema possui o caráter antecipatório na consciência, e esta consciência é, por seu
lado, caracterizada por meio de uma completa indeterminação. Evidenciam-se aqui dois pontos
fundamentais: a) a morte é uma possibilidade extrema, isto é, uma condição inalienável e
intransferível, na qual se é e está continuamente e diante da qual ninguém pode fugir. Ou seja,
enquanto perfaz tal condição, morte significa, em última instância, pura possibilidade de ser e,
enquanto tal: b) aponta para uma total e completa indeterminação. Neste caso, deveríamos
perguntar: indeterminação de que e para quê? Pura indeterminação de ser e poder-ser, pois,
enquanto entra para a vida e vige nela, a presença está na necessidade de dar uma determinação
a si mesma. Isso significa, existencialmente falando, realizar-se de algum modo, dar um sentido
ou uma orientação à sua vida. Ontologicamente, se, de um lado, a morte é a possibilidade mais
extrema da presença e a mais certa, por outro lado, enquanto ela não vem, a presença pode ser e,
certamente, já sempre é num modo possível de ser
356
.
Numa de suas obras, referindo-se a Heidegger, Ortega descreve como compreende a
estrutura ontológica do ser da presença. Ele mesmo relaciona a cura (Sorge) à idéia
heideggeriana por meio da qual o futuro possui, existencialmente falando veremos isso mais
detidamente num tópico do próximo capítulo , um primado sobre o passado e o presente. Ortega
escreve:
Viver é constantemente decidir o que seremos. [...] se nossa vida consiste em decidir o que
seremos, quer dizer-se que na própria raiz de nossa vida um atributo temporal: decidir o
que seremos portanto, o futuro. E, sem parar, recebemos agora uma após outra, toda uma
fértil colheita de verificações. Primeira: que nossa vida é antes de tudo encontrar-se com o
futuro. Eis aqui outro paradoxo. Não é o presente ou o passado o primeiro que vivemos, não;
a vida é uma atividade que se executa para a frente, e o presente ou o passado, se descobrem
depois, em relação com esse futuro. A vida é futurização, é o que ainda não é.
354. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 16; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 22/23 (o acréscimo entre colchetes é
nosso).
355. Embora Heidegger se ocupe com a interpretação existencial da morte só no primeiro capítulo da anatica temporal (A
possibilidade da presença ser-toda e o ser-para-a-morte), buscaremos dimensionar, até aonde aqui nos interessar é claro,
como o pensador compreende a morte num sentido existencial (cf. aqui Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista:
Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, §§ 46 a 53, p. 309-344).
356. Sobre o sentido existencial heideggeriano da morte, veja os seguintes estudos: Luiz Bicca, Ipseidade, anstia e
autenticidade, in: Síntese Nova Fase, vol. 24, n. 76, 1997, Belo Horizonte, p. 29-33 e George Steiner, As idéias de
Heidegger, Cultrix, São Paulo, 1982, principalmente p. 89-90.
139
Vimos que o viver consiste em estar decidindo o que seremos. Heidegger, com grande
finura, diz: então a vida é cuidado, cuidar Sorge o que os latinos chamam de cura,
donde vem procurar, curar, curiosidade, etc. Em antigo espanhol [mas também em
português] a palavra cuidar tinha exatamente o sentido que nos convém em expressar, tais
como cura de almas, curador, pro-curador. Mas prefiro exprimir uma idéia parecida, ainda
que não idêntica, com um vocábulo que me parece mais justo, e digo: vida é preocupação, e
o é o apenas nos momentos difíceis, porquanto o é sempre e, em essência, não é mais que
isso: preocupar-se. Em cada instante temos que decidir o que seremos no seguinte, o que
ocupará nossa vida. É, pois, ocupar-se por antecipação, é preocupar-se
357
.
Devemos prestar atenção aqui para a idéia seguinte: Viver é constantemente decidir o que
seremos. Segundo Ortega, pressuposto está que viver é essencialmente decidir o que seremos.
Mas o que significa, nesse caso, decidir? Ora, decidir é fundamentalmente cindir e, assim,
reincidir na decisão, vale dizer, separar entre o que já foi e o que ainda virá. Isso significa, em
síntese: viver é ser temporal. Viver é morar no entremeio do que foi e do que virá. Ortega diz,
também, que viver neste entremeio é, elementarmente, futuro, ou melhor, capacidade e
possibilidade de futurização, de ser ou vir a ser aquilo que ainda não se é. Desse modo,
enquanto a morte não vem, sempre ainda a possibilidade de ser sob um modo possível de ser.
Viver, ou seja, existir é radicalmente morar em situação, de vidamorte. Em termos
heideggerianos: desde que a presença nasce, está lançada nisso que é morte. Ela é capaz de
compreender verdadeiramente a si mesma à medida que é capaz de dar um sentido existencial à
relação vidamorte, isto é, implica fazer a experiência de mútua inclusão, não de exclusão.
Heidegger conclui a analítica existencial com três perguntas, as quais apontam para o
dimensionamento do terceiro capítulo de nossa investigação, onde, à luz da analítica temporal,
deve ser realizada uma retomada da analítica existencial. Heidegger se pergunta: Mas será que
com o fenômeno da cura é e está aberta a constituição ontológico-existencial mais originária da
presença? Será que a multiplicidade estrutural, que se encontra no fenômeno da cura, oferece a
totalidade mais originária do ser de fato da presença? Será que a investigação feita até aqui
permitiu ver o todo da presença?
358
Por um lado, estas perguntas confirmam a necessidade de conquistar a multiplicidade da
estrutura fundamental da presença como cura enquanto ser deste ente e, por outro, apresenta a
necessidade de uma apropriação deste ente em sua unidade e totalidade mais própria. Isso
poderá ser realizado dentro de uma nova perspectiva: a analítica temporal da presença. Por isso
mesmo, em Ser e tempo, Heidegger intitula esta analítica assim: presença e temporalidade.
357. José Ortega y Gasset, Que é filosofia?, Rio de Janeiro, Livro Ibero-Americano, 1961, p. 255-257 e p. 162. A propósito
da primazia do porvir (futuro) no modo de conceber a presença humana, veja a refleo de Luiz Felipe Alves Esteves,
Sumária introdução ao pensamento de Ortega y Gasset, in: Em torno a Galileu. Esquema das crises, Petrópolis, Vozes,
1989, p. 13, onde o autor diz: Cada homem, queira-o ou não, não pode deixar de ser um homem de seu mundo e de seu
tempo. Sem dúvida o passado es , incorporado ao presente, este o leva dentro em si; mas, sendo a-fazer, a vida é, por
isso mesmo, projeto, transcorre também em fuão do que ainda não é, quer dizer, do futuro; a vida é tamm
futurização’”.
140
Trata-se, segundo ele, de tematizar a estrutura da cura num sentido ainda mais originário e
próprio. Isso é possível a partir da análise do fenômeno do tempo enquanto temporalidade da
presença.
Assim, para compreender a dimensão em que se movimenta a analítica temporal de Ser e
tempo, é preciso levar em conta as descobertas e respectivas descrões fenomenológicas realizadas ao
longo da analítica existencial. Conclui-se, então, que, ao longo da analítica temporal, a analítica
existencial está sempre pressuposta e subentendida. Uma evidência disso o as freqüentes notas de
rodapé da analítica temporal remetendo para a analítica existencial. Portanto, a analítica temporal da
presença é uma radicalização e um aprofundamento fenomenológico da analítica existencial
preparatória dos fundamentos da presença. Podemos ver isso numa passagem do livro Kant e o
problema da metafísica:
Contudo, a elaboração da cura como constituição fundamental e transcendental da presença
é apenas a primeira etapa da ontologia fundamental. Para avançar até o fim, é necessário que
a pergunta que interroga pelo ser nos guie com uma determinação cada vez maior. [...] O
próximo e decisivo passo da analítica existencial consiste em aclarar concretamente a cura
como temporalidade. Pelo fato de a problemática da fundamentação da metafísica ter uma
relação interna com a finitude no homem, poderia parecer que a elaboração da
temporalidade estivesse a serviço de uma determinação concreta da finitude do homem
como ser temporal. Pois o temporal se considera comumente como o finito
359
.
Segundo Heidegger escreve no § 41, pela determinação da cura como anteceder-a-si-
mesma-no-já-ser-em... (Sich-vor-weg-sein), sendo ela já sempre junto ao manual intramundano
da ocupação, é possível que a presença possa ser-no-mundo (In-der-Welt-sein-können). De um
lado, evidencia-se que o fenômeno da cura é, em si mesmo, articulado estruturalmente e, por
outro, há também um indício fenomenal de que a questão ontológica deve ser aprofundada de
maneira a expor um fenômeno ainda mais originário, isto é, de modo a sustentar
ontologicamente a unidade e totalidade da multiplicidade estrutural da cura. Assim, na medida
em que se realizar esse aprofundamento, ficará claro que a cura consitui o próprio ser da presença
e a temporalidade revela-se como sentido ontológico da cura. Procurando dimensionar o
fenômeno do tempo como temporalidade da presença, nossa investigação aponta para os
desdobramentos temáticos a serem realizados no próximo capítulo, onde a temporalidade será
tematizada como sentido ontológico da cura.
358. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 44c, p. 302.
359. Martin Heidegger, Kant und das Problem der Metaphysik, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1973, final do §
43 e início do § 44, p. 231-232.
141
CAPÍTULO 3
A TEMPORALIDADE COMO SENTIDO ONTOLÓGICO DA CURA
Vimos, nos capítulos anteriores, que a ontologia fundamental é fundamentada desde um ente
privilegiado, que nós mesmos, sempre já e cada vez, somos: a presença. Uma das idéias
fundamentais que acompanha a analítica existencial é esta: a presença é enquanto existe. Por isso
mesmo, no capítulo anterior, foi necessário voltar nossa atenção para a analítica existencial,
buscando compreender nela o modo de ser da presença nas estruturas ontológicas que a constituem.
Vimos, também, que Heidegger tem sempre em vista garantir e assegurar a unidade e a totalidade
da presença em seus modos fundamentais de ser. A unidade e a totalidade da presença é
evidenciada como cura. De fato, a cura constitui o ser da presença.
Através de várias indicações dadas, pudemos ter já uma noção de como Heidegger pensa
o fenômeno do tempo. Nesse sentido, o terceiro capítulo objetiva realizar uma explicitação
mais completa possível do conceito heideggeriano de tempo. Por enquanto, porém, podemos
afirmar apenas que a analítica temporal é um aprofundamento, uma radicalização da analítica
existencial. Na medida em que a analítica temporal se propõe radicalizar a analítica existencial
da presença, ambas são pensadas inclusivamente, nunca exclusivamente. Com efeito, se,
através da analítica existencial, foi possível obter totalidade e unidade estrutural da presença
como cura, espera-se, através da anatica temporal, ser possível demonstrar a constituição da
temporalidade originária da presença e, sobretudo, como a compreensão vulgar de tempo
surge, emerge e brota da temporalidade imprópria da presença.
Para Heidegger, ser é sempre ser de um ente
360
. De fato, o ente primeiramente
questionado em seu ser, na analítica existencial, é a própria presença. Este ente deve ser liberado
naquilo que ele é e como ele é
361
. A tarefa da analítica da presença não é, assim, menos urgente
que a própria colocação da questão do ser. Da mesma forma, a tarefa de um encaminhamento
ontológico seguro da questão do ser não é menos urgente que a própria tematização do tempo, da
qual resulta a analítica temporal. Desse modo, a questão pelo sentido do ser ganha uma maior
clareza a partir dos dimensionamentos dados por Heidegger na analítica existencial e temporal.
Dentro da perspectiva heideggeriana, a analítica existencial é uma analítica preparatória.
Contudo, devemos perguntar: preparação de quê e para quê? Que relação há, então, entre a
analítica existencial preparatória diante da tarefa de compreender e, com isso, radicalizar a
analítica temporal da presença? Esta pergunta só pode ser respondida à medida que se tematizar a
temporalidade da presença de uma maneira mais elaborada, ou seja, trata-se de deixar e fazer
360. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 3, p. 44.
142
ver a constituição ou a caracterização fundamental da temporalidade originária como, também e
sobretudo, fenômenos que lhe pertencem conjuntamente, como é o caso, por exemplo, da
decisão antecipadora, da historicidade, do tempo ocupado, do tempo do mundo e da
intratemporalidade. A pertença conjunta deve-se ao fato de serem fenômenos co-originários da
temporalidade originária, quer dizer, co-nascem dela mesma.
Desse modo, ingressando diretamente na analítica temporal, devemos ter presente que o
início dela é, intencional e propositadamente, uma retomada da analítica existencial, mas,
sobretudo, uma apresentação do que será realmente tratado a seguir. O primeiro parágrafo da
analítica temporal tem, então, o caráter retrospectivo (de olhar para trás) e prospectivo (de olhar
para frente). Daí o título: O resultado da análise preparatória dos fundamentos da presença e a
tarefa de sua interpretação existencial e originária
362
.
Visto na perspectiva da necessidade de interpretar o fenômeno da temporalidade da
presença, o § 45 representa uma passagem decisiva para acompanhar o caminho percorrido por
Heidegger em Ser e tempo
363
. Por isso, antes de nos ocuparmos propriamente dos tópicos
reservados ao último capítulo, devemos voltar nossa atenção ao conteúdo desse parágrafo. Com
efeito, olhando para a mútua inclusão de analítica existencial e temporal, Heidegger escreve:
O que se conquistou e o que se busca na análise preparatória da presença? O que achamos
foi a constituição fundamental desse ente tematizado, isto é, o ser-no-mundo, cujas
estruturas essenciais estão centradas na abertura. A totalidade desse todo estrutural
desentranhou-se como cura. Nela encontra-se inserido o ser da presença. A análise desse ser
tomou como fio condutor a existência que, numa concepção prévia, se determinou como
essência da presença. Enunciado formalmente, isso significa: enquanto poder-ser que
compreende, a presença é o que, sendo, está em jogo como seu próprio ser. O ente, que
desse modo está sendo, é sempre eu mesmo. A elaboração do fenômeno da cura permitiu
visualizar a constituição concreta da existência, ou seja, em seu nexo igualmente originário
com a facticidade e a decadência da presença
364
.
E adiante, no mesmo § 45, continua:
Será que a analítica existencial da presença, anteriormente realizada, nasceu de uma tal
situação hermenêutica, capaz de garantir a originariedade, exigida pela ontologia fundamental?
Do resultado obtido o ser da presença é a cura pode-se passar para a questão da unidade
originária desse todo estrutural? [...] Tomando como ponto de partida a cotidianidade mediana,
a interpretação limitou-se à análise da existência indiferente e imprópria. Na verdade, por essa
via, foi possível e necessário alcançar uma determinação concreta da existencialidade da
existência. Entretanto, a caracterização ontológica da constituição existencial ainda guardou
uma falta essencial. Existência significa poder-ser mas também um poder-ser próprio.
361. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 2, p. 40.
362. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 45, p. 303s.
363. Além de Ser e tempo, para os temas desenvolvidos neste último capítulo,o obras relevantes: Martin Heidegger, Der
Begriff der Zeit, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 2004, especialmente os capítulos Presença e temporalidade e
Temporalidade e historicidade, respectivamente p. 44s e 85s; Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frakfurt am
Main, Vittorio Klostermann, 1975 e a conferência Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989.
364. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 45, p. 303.
143
Enquanto não se incorporar a estrutura existencial do poder-ser próprio à idéia de existência, a
visão prévia, orientadora de uma interpretação existencial, ressentir-se-á de originariedade
365
.
Se a interpretação do ser da presença, enquanto fundamento da elaboração da questão
ontológica fundamental, deve ser originária, ela deve trazer à luz, de modo preliminar e
existencial, o ser da presença em sua possível propriedade e totalidade
366
.
O conteúdo básico dessas citações apresenta a seguinte situação: além de ser necessário
fazer uma retrospectiva da analítica existencial, Heidegger reconhece a necessidade, orientando-
se pelo achado fenomenal da estrutura da cura, realizar uma análise ainda mais originária.
Mais originária quer dizer: sendo a presença o ente que é tanto sob o modo de ser impróprio e
decadente e, principalmente, sabendo-se que a analítica existencial continuamente se deparou
com os modos de ser mais cotidianos e impróprios, é fundamental demonstrar a presença em seu
modo de ser mais próprio e totalizante. De fato, como será demonstrado neste capítulo, a
temporalidade constitui o sentido ontológico da cura. A partir disso, ao final do § 45, Heidegger
apresenta um esboço dos objetivos principais da analítica temporal, como segue:
O fundamento ontológico originário da existencialidade da presença é a temporalidade. A
totalidade das estruturas do ser da presença articuladas na cura se torna
existencialmente compreensível a partir da temporalidade. A interpretação do sentido
ontológico da presença, contudo, não pode parar aí. A analítica existencial e temporal desse
ente necessita de confirmação concreta. As estruturas ontológicas da presença,
anteriormente conquistadas, devem ser, retroativamente, liberadas em seu sentido temporal.
A cotidianidade desvela-se como modo da temporalidade. E, mediante essa retomada da
análise preparatória dos fundamentos da presença, o próprio fenômeno da temporalidade
tornar-se-á mais transparente. Ela possibilitará compreender por que a presença, no fundo de
seu ser, é e pode ser histórica e, enquanto histórica, pode construir uma historiografia.
Se a temporalidade constitui o sentido ontológico originário da presença, onde está em jogo
o seu próprio ser, então a cura deve precisar de tempo e, assim, contar com o tempo. A
temporalidade da presença constrói a contagem do tempo. O tempo nela experimentado é
o aspecto fenomenal mais imediato da temporalidade. Dela brota a compreensão cotidiana e
vulgar do tempo. E essa se desdobra, formando o conceito tradicional de tempo.
O esclarecimento da origem do tempo, no qual entes intramundanos vêm ao encontro, do
tempo como intratemporalidade, revela uma possibilidade essencial de temporalização da
temporalidade. Com isso, prepara-se a compreensão de uma temporalização ainda mais
originária da temporalidade. Nela funda-se a compreensão de ser constitutiva do ser da
presença. O projeto de um sentido do ser em geral pode cumprir-se no horizonte do
tempo
367
.
Estas passagens antecipam, de maneira sucinta e objetiva, o encaminhamento que o
pensador dará à tematização da temporalidade através da analítica temporal da presença.
Portanto, seguindo o plano traçado no § 8 de Ser e tempo como já tivemos a oportunidade de
ver no primeiro capítulo objetiva-se, em primeiro lugar, ver e entender mais claramente como a
temporalidade é propriamente elaborada por Heidegger e, em segundo, conquistar uma clareza
365. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 45, p. 305.
366. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 45, p. 306.
367. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 45, p. 307-308.
144
ainda maior do que se alcançou e conquistou fenomenalmente ao longo da analítica existencial, a
saber, o ser da presença como cura. Está em jogo, pois, a necessidade de compreender e
descrever fenomenalmente a unidade e a totalidade da presença como temporalidade originária e
própria
368
. A temporalidade deve ser liberada a fim de que as estruturas essenciais da analítica
existencial possam ser vistas também como modos de temporalização da temporalidade. Para o
pensador, as linhas-mestras (Grundrichtungen) das análises assim exigidas são traçadas pela
própria temporalidade; fenomenalmente, a temporalidade é experimentada de modo originário
no ser-todo em sentido próprio da presença, no fenômeno da decisão antecipadora
369
.
Para cumprir os objetivos do terceiro capítulo desta investigação, serão desenvolvidos os
seguintes tópicos: 1. O poder-ser-todo e a decisão antecipadora; 2. A primazia do porvir e da
compreensão na constituição da temporalidade; 3. A temporalidade como sentido ontológico da
cura; 4. Temporalidade e historicidade; 5. Temporalidade e intratemporalidade como origem do
conceito vulgar de tempo: a) O tempo ocupado, b) O tempo do mundo e c) A intratemporalidade
como origem do conceito vulgar de tempo; 6. O testemunho da existência poética enquanto
temporalidade kairônica.
3.1
O
PODER
-
SER
-
TODO E A DECISÃO ANTECIPADORA
Vimos, no capítulo anteior, que a constituição ontológica fundamental da presença é ser-
no-mundo. A presença é o ente o ente que existe faticamente, isto é, está jogado no mundo. O
fato primordial da presença constitui-se propriamente em sua facticidade. Foi enfatizado, porém,
que a presença não deve ser vista e, conseqüentemente, interpretada a partir de uma idéia
solipsista, ou seja, a partir de uma possível doutrina do eu. Essa ressalva impõe-se porque, por
mais que a analítica da presença se preocupe em assegurar a fenomenalidade de sua contituição
ontológica, não é possível desfazer, de uma vez por todas e em definitivo, a tendência
(inclinação) para a impropriedade, sendo por isso mesmo um fenômeno totalmente positivo. Isso
quer dizer, por enquanto, que o caráter de impropriedade da presença remete, sempre de novo,
para a possibilidade de poder-ser mais própria. Nessa perspectiva, vimos, também, que a cura,
enquanto ser da presença, revela a possibilidade da presença poder-ser própria. Deve-se mostrar
agora como as estruturas da cura são tematizadas na perspectiva da temporalidade enquanto
368. Fernando Pessoa verbaliza exemplarmente a possibilidade totalidade originária da presença nestes versos: Para ser
grande, sê inteiro: nada / Teu exagera ou exclui. / Sê todo em cada coisa. Põe quanto és / No mínimo que fazes. / Assim em
cada lago a lua toda / Brilha, porque alta vive (Fernando Pessoa, Odes de Ricardo Reis, in: Poemas, Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1986, p. 94).
369. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 61, p. 387.
145
sentido ontológico da cura. A questão que se coloca, no entanto, é: como a tríplice estruturação
da cura está relacionada com a temporalidade da presença?
Dos dois capítulos que inauguram a analítica temporal, em Ser e tempo, apresentam-se
concretamente duas possibilidades para desenvolver preliminarmente a unidade e a totalidade do
ser da presença em vista da temporalidade propriamente dita. Uma possibilidade consiste em ver
e entender como Heidegger compreende o poder-ser-todo em sentido próprio (eigentliche
Ganzseinkönnen) e a decisão antecipadora (vorlaufende Entschlossenheit)
370
. Outra
possibilidade consiste em ver e entender como compreende os fenômenos ser-para-a-morte
(Sein-zum Tode) e querer-ter-consciência (Gewissen-haben-wollen)
371
. No âmbito da análitica
temporal, porém, são fenômenos igualmente originários e co-articulados, sendo todos
imprescindíveis na tematização da temporalidade. O fenômeno da morte revela, existencialmente
falando, ser ela intransferível, inalienável, incerta e, no entanto, a presença já está sempre na
iminência de sua própria morte. A morte é, pois, uma possibilidade privilegiada da presença
372
.
Aceitar este fato é, fundamentalmente, o fugir de si mesmo, podendo abrir-se, através dela, a
possibilidade para uma apropriação positiva da própria presença
373
. Vê-se, assim, que a morte é
constituída, enquanto existencial, como cada vez meu e ser sempre minha. De fato, manter-se na
imininência da morte é conservar-lhe o caráter de pura possibildiade de ser. Do mesmo modo, o
fenômeno da consciência (Gewissen ou Bewusstsein) pressupõe uma experiência originária de
saber (wissen) que abrange a convivência e co-presença em que os seres humanos realizam a sua
existência comum e individual e, assim, através do aprofundamento da consciência é possível
articular os existenciais da presença em seu caráter mais próprio. Trata-se, pois, de um fenômeno
igualmente originário da presença.
No entanto, conforme já anunciado no título deste tópico, limitamo-nos aqui a ver e
entender os fenômenos poder-ser-todo e decisão antecipadora. Cabe considerar,
inicialmente, que a decisão antecipadora constitui um modo privilegiado do si-mesmo da
370. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, §§ 54 a 60, p. 345s, mas
principalmente §§ 61e 62, p. 384s.
371. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, §§ 46 a 53 (para o fenômeno da
morte) e §§ 54-60 (para o fenômeno do querer-ter-consciência). Cf. tamm Luiz Bicca, Ipseidade, angústia e
autenticidade, in: Síntese Nova Fase, vol. 24, n. 76, 1997, Belo Horizonte, p. 11-33.
372. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 49, p. 323. Para compreender
o sentido existencial da morte, são orientadores os estudos de Luiz Bicca, Ipseidade, anstia e autenticidade, in: ntese
Nova Fase, vol. 24, n. 76, 1997, Belo Horizonte, p. 29-33 e George Steiner, As idéias de Heidegger, Cultrix, São Paulo,
1982, principalmente p. 89-90.
373. Entre as interpretações que buscam estabelecer uma relação do fenômeno da morte com o fenômeno do tempo es o
de Ricoeur (cf. Paul Ricoeur, Tempo e narrativa, tomo III, Papirus, Campinas, 1997, p. 140-156). Numa das notas de
rodapé do § 51, Heidegger reconhece que o conto A morte de Ivan Ilich, de Tolstoi, retrata exemplarmente o abalo e o
colapso da morte impessoal (Leão Tolstoi, A morte de Ivan Ilitch, Rio de Janeiro, Lacerda Editora, 1997). Além de Tolstoi,
é sugestiva a interpretação de R.M. Rilke, Os cadernos de Malte Laurids Bridgge, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979,
onde o poeta dá uma interpretação existencial peculiar da morte. Importante tese sobre este tema, defendida recentemente
por Écio Elvis Pisetta, intitulada Morte e totalidade: um estudo acerca da morte como possibilidade privilegiada do homem
e suas remissões para a compreeno da totalidade no pensamento de Martin Heidegger, Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS,
2005.
146
presença e o poder-ser-todo assegura a constituição ontológica originária dela. Nossa
preocupação consiste em assegurar a unidade e totalidade originárias da presença através da
interpretação desses dois fenômenos. Objetiva-se assegurar, assim, um encaminhamento seguro à
tematização da temporalidade da presença, a ser desenvolvida nos dois tópicos seguintes.
Ao descrever fenomenalmente a estruturação existencial da presença como poder-ser-todo
e de decisão antecipadora, porém, uma dificuldade sempre de novo se impõe: vemo-nos às voltas
com um suposto eu, isto é, como sujeito ou, então, como substância que, a rigor, não
pertence ao modo de ser de presença. Deve-se advertir, por isso, como Heidegger o faz repetidas
vezes, que a presença não é um fato bruto qualquer ao modo do que simplesmente ocorre e,
conseqüentemente, como algo pronto e acabado. O fato da presença existir revela-se, por isso
mesmo, em sua facticidade
374
. A facticidade diz respeito ao modo de ser já sempre jogado no
mundo. O ente sempre jogado no mundo realiza-se, de uma forma ou de outra, numa
ocupação. É por isso que Heidegger escreve no § 38 de Ser e tempo:
O estar-lançado não não é um feito pronto como também não é um fato acabado.
Pertence à facticidade da presença ter de permanecer em lance enquanto for o que é e, ao
mesmo tempo, de estar envolta no turbilhão da impropriedade do impessoal. Pertence à
presença que, sendo, está em jogo o seu próprio ser, o estar-lançado no qual a facticidade se
deixa e faz ver fenomenalmente. A presença existe faticamente
375
.
Com efeito, embora a presença mesma seja livre para as possibilidades fundamentais de ser
tanto própria quanto imprópria, deve ser possível descrever fenomenalmente o modo pelo qual
ela é, ou melhor, propriamente existe. Daí que, jogada, isto é, lançada e em sendo, está
sempre em jogo seu próprio ser. Nas palavras de Heidegger isso significa: A presença existe
faticamente (Dasein existiert faktisch). Num dos parágrafos iniciais da analítica existencial ele
enfatiza: na verdade, a fatualidade do fato da própria presença é, em seu ser,
fundamentalmente diferente da ocorrência fatual de uma espécie qualquer de pedras
376
. A
fatualidade do fato de a presença existir denomina-se, fenomenologicamente, facticidade.
Nessa perspectiva, cabe um explicitação da expressão sempre, tantas vezes repetida ao
longo da presente investigação. sempre (immer schon) é uma expressão muito recorrente na
analítica existencial e temporal heideggeriana. A recorrência evidencia o caráter de uma re-
petição necessária. O sempre manifesta-se necessariamente em sempre novas reverberações,
ou melhor, em sempre novas manifestações do próprio ser. Falando fenomenologicamente,
374. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 4, p. 47-51, onde Heidegger
delimita o sentido ôntico em que se desenvolve a anatica existencial da presença.
375. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 38, p. 244. Igualmente
importante aqui é o § 65, p. 412. Neste parágrafo tanto o (Schon) como o pre (Vor) são vistos como modos do-ser-
em (Schon-sein-in).
376. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 12, p. 102. Cf. também, por
exemplo, Martin Heidegger, Phänomenologische Interpretation von Kants Kritik der reinen Vernunft, Frankfurt am Main,
Vittorio Klostermann, 1977, § 2, p. 19.
147
sempre acena para uma condição primordial de ser sem a qual não se poderia dizer, a rigor, nem
que a presença é, nem que ela não é. sempre é, pois, uma caracterização da estrutura
ontológica da própria presença, acenando para o caráter de ser prévio ou de ser por
antecipação
377
. A expressão sempre é, então, expressão da temporalidade da presença. Por
enquanto, porém, é apenas uma primeira indicação, pois o que se requer é uma melhor
tematização da temporaldiade.
Sendo a expressão sempre uma determinação prévia do ente que existe, isto é, do ente
que é ao modo de ser (-siste) para além de si (ek-), expressa possibilidade enquanto possibilidade
do poder-ser da presença. No entanto, estranhamente, enquanto existente, a presença sempre
é e está, enquanto se ocupa com alguma coisa, distanciada de si mesma. Enquanto se ocupa com
alguma coisa, fez e instaurou uma determinada situação, um determinado lugar,
herdou uma determinada situação de sua realização.
A partir dessas considerações, deve-se perguntar: como ver e entender adequadamente o
poder-ser-todo e a decisão antecipadora? Para o que nos interessa aqui, acompanhemos o que
Heidegger diz no § 61 de Ser e tempo:
Depois de esclarecermos suficientemente o fenômeno da cura, questionamos o seu sentido
ontológico. A determinação desse sentido consiste na liberação da temporalidade. [...]
Fenomenalmente, a temporalidade é experimentada de modo originário no ser-todo em
sentido próprio da presença, no fenômeno da decisão antecipadora. Se a temporalidade aí
se diz originária, então, presumivelmente, a temporalidade da decisão antecipadora constitui
um modo privilegiado do si-mesmo. A temporalidade pode temporalizar-se em diferentes
possibilidades e em diversos modos. As possibilidades fundamentais da existência,
propriedade e impropriedade da presença, fundam-se, ontologicamente, em possíveis
temporalizações da temporalidade
378
.
Embora não explicitamente, essa passagem dá-nos uma indicação segura de como ver e
entender o sentido existencial tanto da possibilidade da presença poder-ser-toda quanto da
decisão antecipadora, mas principalmente desta última. Segundo Heidegger, sendo a
temporalidade o sentido ontológico da cura, ela é experimentada de modo originário no ser-todo
em sentido próprio no fenômeno da decisão antecipadora. Ainda assim, o que significa, nesse
caso, decisão antecipadora? Em que sentido é decisão e antecipadora?
Deve-se ressaltar, primeiramente e a partir do que dissemos até aqui, que antecipação não
tem o caráter de objetividade nem de subjetividade. Ela é situação arcaica e incontornável
enquanto ser-no-mundo. Desse modo, evidencia-se que a temporalidade, enquanto sentido
ontológico da cura, já sempre pressupõe e subentende a constituição ontológica ser-no-mundo.
377. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 4, p. 47-51, onde Heidegger
delimita o sentido ôntico em que se desenvolve a analítica da presença. Cf. importante artigo de Gilvan Fogel, Martin
Heidegger, et coetera e a questão da cnica moderna, in: Da solidão perfeita, Petrópolis, Vozes, 1999, p. 144-148. Cf.
também José Ortega y Gasset, História como sistema, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 42.
378. Matin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 61, p. 386.
148
Isso só se tornará mais claro, porém, na medida em que Heidegger elabora os modos pelos quais
a temporalidade mesma é geradora tanto do conceito do tempo da ocupação cotidiana quanto da
gênese do conceito vulgar de tempo. Esses dois modos de temporalização são possíveis, no
entanto, pelo fato de a presença sempre contar com o tempo. Esse tema, porém, não poderá
ser desenvolvido antes de abordar a estrutura da temporalidade propriamente dita, razão pela qual
o tempo do mundo e o tempo da ocupação, bem como a intratemporalidade como origem do
coneito vulgar de tempo serão abordados posteriormente.
Fenomenologicamente, é fundamental não perder de vista que, em sendo, a presença se
antecipou, já se projetou numa possibilidade. Sentido é orientação fundamental pela qual já se é
e está inserido num modo determinado de ser e, a partir disso, qualquer poder-ser é possível. É o
sentido que possibilita que a presença se realize dessa ou daquela maneira. De fato, em
absolutamente todos os afazeres cotidianos, a presença sempre se projetou. Na e pela ação, a
presença se faz e perfaz, realizando-se. Ao transformar as coisas, ela já não está junto às
coisas. Ela é si mesma. Ela já sempre se encontrou e, nessa medida, pode-se dizer que se
realiza dessa ou daquela maneira. Existencialmente, portanto, sempre é e está além de si
mesma. Nisso, enquanto é o ente que existe faticamente, ela sempre é e está além de sua pura
imanência. Este além não é coisal, mas possibilidade de sentido num modo possível de ser.
De fato, a presença sempre descobre-se jogada, lançada no fato da existência. Embora
radicalmente pleonástica, esta expressão evidencia a positividade fenomenal do poder-ser-todo e
da decisão antecipadora.
Os modos fundamentais da presença se comportar com seu próprio ser propriedade e
impropriedade são possibilidades da própria presença e fundam-se no poder-ser-todo mais
próprio e na decisão antecipadora
379
. Segundo Heidegger, o próprio da cotidianidade é o
impessoal
380
. Por isso, somente ao se reconduzir o ser-no-mundo para a unidade ekstática e
horizontal da temporalidade, pode-se compreender a possibilidade ontológico-existencial desta
constituição fundamental da presença
381
. Diante disso, faz-se necessário interpretar a
temporalidade como constituição ontológica da cura. Contudo, para melhor encaminhar esta
interpretação, analisaremos inicialmente a primazia do porvir e da compreensão na constituição
da temporalidade.
379. Cf. também Martin Heidegger, Sobre o humanismo, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967, p. 53-54.
380. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, § 51, p. 328 e tamm § 27, p.
183-188.
149
3.2
A
PRIMAZIA DO PORVIR E DA COMPREENSÃO NA CONSTITUIÇÃO DA TEMPORALIDADE
Pelo que foi visto até aqui, percebe-se que a tematização da temporalidade heideggeriana
tem, na sua base, alguns conceitos analíticos fundamentais, entre os quais: o porvir (Zukunft) e a
compreensão (Verstehen). Por essa razão, abordaremos especificamente a compreensão e o
porvir, tentando relacionar estes conceitos com a tematização da temporalidade. A rigor,
independentemente da ordem adotada em nossa abordagem, é importante ver e entender,
orientados pela descrição da temporalidade da presença, de que modo estes dois existenciais se
articulam conjugadamente, conjuntamente.
Nos dois primeiros capítulos falávamos que a presença é o único ente que existe. Porém,
não foi mostrado ainda que o conceito de existência tem relação com o modo de ser ekstático da
temporalidade, principalmente com a ekstase do por-vir (Zu-kunft)
382
. Tanto a palavra ek-
sistência como ek-stático, tanto a palavra por-vir como compreensão expressam, através dos
prefixos ek- e zu-, a idéia de abertura ao ser, de realização do ser. Nessa perspectiva, pode-se
compreender que ambas expressam tempo, constituindo-se em estruturas temporais. Ou seja,
tanto o por (zu-) como o para fora (ek-), enquanto constituidores da abertura do pre da
presença, indicam para uma vital carência de ser da presença. Assim, pelo fato da presença ser o
único ente que sempre carece e necessita realizar-se de algum modo, existe ao modo de ter de ser
e ser sempre minha.
A partir disso, deve-se perguntar: Como se fundamenta ontologicamente o primado da
temporalidade porvindoura e ekstática da presença? Em que sentido ela propriamente existe
ekstaticamente porvindoura? Em que sentido a presença, decidida, antecipa-se, sendo quem é e
pode ser?
Seguindo o fio condutor da analítica existencial e temporal heideggeriana, deve-se
assegurar a unidade e totalidade do fenômeno. As análises da constituição fundamental da
presença, enquanto ser-no-mundo, mostraram que isso é possível e, nesse sentido, a analítica
existencial conquistou a unidade no fenômeno da cura. Uma indicação disso é dada por
Heidegger em Os problemas fundamentais da fenomenologia. Ali Heidegger expõe brevemente a
importância da analítica existencial em relação à analítica das estruturas temporais a serem
desenvolvidas nesse mesmo livro. Ele retoma, então, uma frase muito citada em Ser e tempo: A
381. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 69, p. 456.
382. Sobre a relação etimológica entre existência e ekstase, cf. George Steiner, As idéias de Heidegger, Cultrix, São Paulo,
1982, p. 64. Heidegger chega a empregar uma forma adverbial composta por estas duas palavras, isto é, existenzial-
ekstatisch (= ekstático-existencialmente), para indicar que está em jogo aqui a descrão fenomenal de um e mesmo
fenômeno (cf. também Martin Heidegger, Sobre o humanismo, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967, p. 53-54).
150
compreensão ontológica da presença funda-se na temporalidade (Die Seinsverfassung des
Daseins gründet in der Zeitlichkeit)
383
.
A fim de ver e entender em que sentido o porvir e a compreensão possuem primazia na
constituição da temporalidade, acompanhemos o que ele escreve no § 65 de Ser e tempo:
O anteceder-a-si-mesma funda-se no porvir. O já-ser-em... anuncia em si o vigor de ter
sido. O ser-junto-a encontra sua possibilidade na atualização. O que foi ditoo permite, de
modo algum, apreender o ante de anteceder (Vor im Vorweg) e o já de já-ser-em a
partir da compreensão vulgar de tempo. O ante (Vor) não significa o antes no sentido de
agora-ainda-não, mas antes. Se estas expressões ante (Vor) e já possuíssem este
significado temporal, que aliás também podem possuir, então com temporalidade da cura
estar-se-ia dizendo que cura é alguma coisa que se antes e depois, ainda não e não
mais. Nesse caso, a cura seria concebida como um ente que ocorre e transcorre no tempo.
O ser de um ente com caráter de presença tornar-se-ia, portanto, algo simplesmente dado. Se
isso é impossível, então o significado temporal das expressões mencionadas deve ser outro.
Ante (Vor) e anteceder (vorweg) indicam o porvir que, como tal, os possibilita, de
maneira que possa dar-se um ente em que está em jogo seu poder-ser. O projetar-se em
virtude de si-mesmo, fundado no porvir, é um caráter essencial da existencialidade. O seu
sentido primário é o porvir
384
.
Segundo Heidegger, o fenômeno primário da temporalidade originária e própria é o porvir.
De fato, o sentido temporal primário da presença é porvir (Zukunft). Primário quer dizer aqui
primordial, por primeiro, antes de tudo, o que antecede, não possuindo, de forma
alguma, sentidos como: o primeiro de uma série ou o primeiro de ordem cronológica. Daí a
ressalva de Heidegger: não é possível apreender o da expressão -ser-em a partir da
compreensão vulgar de tempo em que cada agora vindouro é superado por um novo agora. Num
dos textos que compõem o livro A caminho da linguagem, lemos: Ora, pro-veniência é sempre
por-vir (Her-kunft aber bleibt stets Zu-kunft)
385
.
Mesmo assim, como compreender a primazia ou privilégio do porvir na constituição da
temporalidade originária? Em seu dicionário de raízes semíticas e indo-germânicas, Linus
Brunner mostra que o prefixo vor tem parentesco com vorne, no sentido do prefixo latino
ante. Vorne diz propriamente Zu-küngtiges, isto é, o por-vindouro
386
. Nesse sentido, o
prefixo vorne tem parentesco com tantas outras formas da língua alemã como da, in, an,
bei, auf, unter, mit, für, mas, sobretudo, ver, zu e her. A tradutora brasileira de
Ser e tempo, numa nota explicativa à tradução, realça que o espaço em que a presença se
383. Cf. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, §
19, p. 322-224.
384. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 412. Paul Ricoeur, na
interpretações que faz da estrutura da temporalidade heideggeriana, escreve em Tempo e narrativa: O prefixo vor tem a
mesma força expressiva que o zu de Zukunft. Encontramo-lo incluído na expreso Sich-vorweg, anteceder-a-si-memo, que
define a cura em toda sua amplidão, em equivalência com o vir-a-si (cf. Paul Ricoeur, Tempo e narrativa, tomo III,
Papirus, Campinas, 1997, p. 159).
385. Martin Heidegger, De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador, in: A caminho da
linguagem, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2003, p. 79.
386. Cf. Linus Brunner, Die gemeinsamen Wurzeln des semitischen und indogermanischen Wortschatzes, Berna/Munique,
A. Francke, 1969, n. 81, p. 27; n. 311, p. 62; n. 392, p. 73; n. 1007, p. 187.
151
encontra e movimenta difere substancialmente da compreensão cartesiana do espaço
normalmente predominante. O decisivo, para compreender este modo próprio de ser e de
movimentar-se da presença, portanto, consiste no modo como Heidegger compreende,
existencial e ontologicamente, as partículas gramaticais de direcionamento e movimentação
387
.
Todos os prefixos mencionados, portanto, remetem primordialmente para direcionamento
ontológico da presença. Com efeito, se, por um lado, origem quer dizer pro-veniência (Her-
kunft), por outro, porém, qualquer origem é possível a partir de uma experiência possível de
por-vir (Zu-kunft). Para Heidegger, para ser (zu sein), a presença necessita de algum modo
existir. E existir, enquanto modo primordial de homem ser homem, é ser para, ter de ser (Zu-
sein). Zu-kommen diz propriamente o que está por vir, o que ad-vém. Zu-sein e zu-kommen são,
pois, modos primários da presença, vale dizer, são primários, porque sem eles ela não poderia ser
(existir), não seria possível nenhuma realização. De fato, a presença já sempre, isto é, por
antecipação, encontra-se ou descobre-se numa perspectiva, num horizonte de sentido, ou seja:
desde... (von ou her) para... (zu).
Um exemplo desse modo primário de existir desde... para... encontramos no existencial
compreensão (Ver-stehen), analisado por Heidegger na analítica existencial e fundamental na
concepção da temporalidade da presença. Nesse sentido, pode-se compreender a palavra ver-
stehen como vor-stehen, ou seja, a compreensão revela e demonstra um modo primordial de ser,
pois só é possível compreender (ver-stehen) porque a presença sempre se descobre jogada no
ser, ou melhor, ela é primordialmente carente da necessidade de ser para poder ser (vor-stehen).
Disso depreende-se que os conceitos compreensão e porvir, como estruturas existenciais
primárias da temporalidade, possuem uma origem comum e, portanto, têm parentesco.
Compreender é, pois, existir num modo de ser, estar numa perspectiva porvindoura (zu-künftig),
é ser já em vista de algo que está por vir, mesmo que porvir signifique apenas algo por fazer, por
realizar. Fundamentalmente, a consciência temporal ou a noção temporal o é aqui o mais
importante. O importante é perceber a estrutura ontológica desde a qual qualquer consciência
temporal ou a noção temporal é possível, ou melhor, qualquer ação humana é possível.
Isso evidencia-se no fato de a presença sempre ser sendo. Ela sempre tem em vista
alguma coisa. O ter em vista, porém, pode estar relacionado tanto ao que está por vir como
também ao que é presente ou ao que passou. Certamente, nessa maneira de compreender o
porvir, não está em jogo um fato eventualmente ainda não acontecido. O essencial aqui é que o
ter em vista é expressão do que é possível ser, do que é possível realizar, do que é possível
empreender. E, nesse sentido, a presença existe em vista do que precisa ser feito e realizado de
387. Cf. Marcia Sá Cavalcante Schuback, Notas explicativas, in: Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis:
152
algum modo, isto é, em vista do que ainda não adveio e, então, do que está simplesmente em
advento. Daí ser fundamental compreender adequadamente o sentido ontológico-existencial do
ainda presente em expressões como do que ainda está por vir, uma vez que tem um sentido
diverso de já feito, pronto, indicando tão-somente possibilidade de ser. De fato, enquanto
pertence a um modo de ser possível, pode até mesmo não vir a ser, mas nem por isso deixa de ser
o que e como é, ou seja, pertence à estrutura prévia da compreensão enquanto existencial
fundamental da presença.
No § 32, de Ser e tempo, onde é analisada a estrutura da compreensão, Heidegger
emprega uma expressão que nos permite ver e entender melhor o que procuramos descrever aqui
em relação à primazia do porvir e da compreensão:
No projetar-se do compreender, o ente se abre em sua possibilidade. O caráter de
possibilidade sempre corresponde ao modo de ser de um ente compreendido. O ente
intramundano em geral é projetado para o mundo, ou seja, para um todo de significância em
cujas remissões referenciais a ocupação se consolida previamente como ser-no-mundo. Se
junto com o ser da presença o ente intramundano também se descobre, isto é, chega a uma
compreensão, dizemos que ele tem sentido. Rigorosamente, porém, o que é compreendido
não é o sentido, mas o ente e o ser. Sentido é aquilo em que se sustenta a compreensibilidade
de alguma coisa. Chamamos de sentido aquilo que pode articular-se na abertura
compreensiva. O conceito de sentido abrange o aparelhamento formal daquilo que pertence
necessariamente ao que é articulado pela interpretação que compreende. Sentido é a
perspectiva na qual se estrutura o projeto pela posição prévia, visão prévia e concepção
prévia. É a partir dela que algo se torna compreensível como algo
388
.
A expressão, empregada pelo pensador, está nesta frase: Se junto com o ser da presença
o ente intramundano também se descobre, isto é, chega a uma compreensão, dizemos que ele tem
sentido. Na formação do sentido (Sinn), o porvir e a compreensão agem conjuntamente.
Segundo a versão alemã, isso vem expresso assim nesta frase: Wenn... zu Verständnis
gekommen ist, sagen wir, es hat Sinn. O sentido está primordialmente relacionado com zu
Verständnis kommen, ou seja, implica necessariamente chegar a (zu-kommen) uma
compreensão (Ver-ständnis).
Está em jogo, pois, a estrutura prévia de sentido, quer dizer, o modo fundamental e
originário que norteia toda e qualquer ação possível, todo e qualquer acontecimento possível.
Por isso, ao analisar a estrutura e a constituição da temporalidade propriamente dita, Heidegger
atribui um privilégio particular à ekstase do porvir (Zukunft). A presença enquanto ente temporal
é, então, primordialmente, porvir. Enquanto existe, está aberta para o que ainda não adveio ou
foi realizado e, portanto, pode e até deve dar-se de algum modo.
Assim, toda compreensão implica participação antecipada desde abertura.
Concretamente, isso significa: desde tempo se fazendo e perfazendo tempo, isto é, desde onde
Vozes, 2006, p. 568-569.
153
toda e qualquer realização de sentido é possível. Por isso, também, todo e qualquer modo de
compreender acarreta, ao mesmo tempo, dimensionamento de tempo. Todo e qualquer
compreender implica experiência fundamental de co-apreensão da totalidade de sentido. Abertura
compreensiva desde dimensionamento de tempo significa então: gênese de distinção, gênese de
diferenciação, gênese de alteração, gênese de transmissão, gênese de vir a ser outro, gênese de
fazer e perfazer-se homem, em suma, gênese de presença temporalizar-se. Toda compreensão
implica, desde projeto ou horizonte de sentido, ter de ser e ser sempre minha, caracterizações
pelas quais Heidegger começa a descrição da analítica existencial da presença. Por isso mesmo e
não por acaso já o vimos no segundo capítulo, ao tematizar o ser-em , Heidegger encontra na
clássica sentença Sê o que tu és! um testemunho e uma confirmação dessa necessidade
primordial de ser da presença
389
.
Embora a temporalidade possa temporalizar-se de diversos modos, o porvir desempenha
uma função privilegiada na constituição da temporalidade originária e própria. Pois, na medida
em que ela, mesmo diante da possibilidade de realização em sua diversidade, tanto no modo de
propriedade como no de impropriedade, qualquer um dos modos de temporalização só é possível
desde abertura de compreensão de sentido radicada no porvir. Assim, a diversidade de modos
possíveis de temporalização das diferentes ekstases temporais deve ser possível primordialmente
a partir do porvir. A temporalidade originária e própria temporaliza-se a partir do porvir em
sentido próprio, de tal modo que, sendo porvindoura, tendo sido, a presença desperta para a
atualidade. O porvir é, então, o fenômeno primário da temporalidade originária e própria. De
acordo com a primazia do porvir, a temporalização modificada, isto é, imprópria, possibilita a
compreensão e o aparecimento do conceito de tempo em sentido derivado.
Em A caminho da linguagem, já mencionado, embora num outro texto, uma passagem
esclarecedora do que quisermos mostrar aqui quanto à primazia do porvir e da compreensão na
constituição da temporalidade. Heidegger escreve: Aber die wahre Zeit ist Ankunft des Gewesenen.
Dieses ist nicht das Vergangene, sondern die Versammlung des Wesenden, die aller Ankunft
voraufgeht, indem sie als solche Versammlung sich in ihr je Früheres zuckbirgt. Dem Ende und
seiner Vollendung entspricht dunkle Gedult, quer dizer: O tempo verdadeiro, no entanto, é a
chegada (ad-vir) do ser. Já ser o é o mesmo que passado, mas o recolhimento do vigor do que
antecede uma chegada (ad-vento). E isso à medida que o recolhimento como tal abriga cada vez o
mais cedo e primevo. A paciência obscura corresponde ao fim e à sua consumão
390
.
388. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 32, p. 211-213.
389. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 31, p. 206.
390. Martin Heidegger, A linguagem na poesia, in: A caminho da linguagem, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis:
Vozes, 2003, p. 47 (grifo nosso). Cf. edição alemã: Die Sprache im Gedicht: Eine Erörterung von Georg Trakls Gedicht,
in: Unterwegs zur Sprache, Stuttgart, Günther Neske, 1997, p. 57.
154
3.3
A
TEMPORALIDADE COMO SENTIDO ONTOLÓGICO DA CURA
Em Ser e tempo, é no § 65 que a temporalidade originária é propriamente tematizada em
sua estruturação própria. Naturalmente, a tematização ali realizada o deve ser vista como
estanque, uma vez que toda a analítica existencial é um encaminhamento para a elaboração da
temporalidade originária. No intuito de se interpretar este parágrafo decisivo de Ser e tempo e,
também, para nossa investigação, é importante ter presente quatro idéias relacionadas à
temporalidade originária e que Heidegger mesmo chama de teses: a) Originariamente, tempo é
temporalização da temporalidade que, como tal, possibilita a constituição da estrutura da cura;
b) A temporalidade é, essencialmente, ekstática; c) Temporalidade temporaliza-se,
originariamente, a partir do porvir; d) O tempo originário é finito
391
. Seguindo estas quatro
idéias, procuraremos mostrar o modo pelo qual a temporalidade originária se estrutura e
temporaliza. Para compreender adequadamente o modo como Heidegger tematiza a
temporalidade, é preciso levar sempre em conta as descrições fenomenológicas realizados por ele
em Ser e tempo e na segunda parte de Os problemas fundamentais da fenomenologia
392
.
Heidegger inicia dizendo que a caracterização do nexo entre cura e si-mesmo, além de
esclarecer o problema específico do eu, pretendia ser também um preparativo para a apreensão
fenomenal da totalidade estrutural da presença. De fato, como vimos nos dois tópicos
anteiores, trata-se de apreender a totalidade originária da presença e liberar o sentido ontológico
do ser da presença.
Para encaminhar a temática adequadamente, convém considerar previamente duas
objeções: a) se a temporalidade, como é caracterizada por Heidegger, não é objetiva nem
subjetiva, como podemos falar dela? Resposta: esta objeção tem sentido caso não estejamos
vendo e entendendo o tempo do modo como o pronunciamos no uso cotidiano, onde todo e
qualquer agora possui sua significância. Na verdade, esta objeção suscita um dos maiores
problemas quando se trata de falar temporalmente do fenômeno do tempo, pois visto sob a
perspectiva da compreensão vulgar, a temporalidade é e sempre permanecerá inacessível
393
; b) a
temporalidade como experiência originária do tempo também não é sempre tempo ocupado?
Na perspectiva da conceituação heideggeriana da ocupação do tempo, deveríamos também
perguntar: o que caracteriza a ocupação própria do tempo de uma ocupação imprópria? Para
391. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 415-416.
392. Os dois textos básicos, para se compreender toda a exposição da temporalidade heideggeriana,o: §§ 65 e 78 a 81 de
Ser e tempo e §§ 19 e 20 de Os problemas fundamentais da fenomenologia.
393. Essa parece ser também a conclusão a que chegam Santo Agostinho, Confissões, Bragança Paulista, Edusf, 2006, livro
XI, cap. 14 e L. Wittgenstein, Investigações filosóficas, Petrópolis, Vozes, 1996, n. 89, p. 64-65.
155
responder a estas objeções é fundamental acompanhar as análises realizadas por Heidegger,
seguindo as quatro idéias apresentadas anteriormente.
Em Kant e o problema da metafísica, Heidegger diz que o passo seguinte, mas decisivo, da
analítica existencial consiste em esclarecer concretamente a cura como temporalidade
394
.
Conforme o desenvolvimento dado ao problema, isso implica expor a cura como totalidade
originária e própria a partir do fenômeno da temporalidade. Relacionado a isso está, também, o
problema de fundamentar por que a finitude do homem se encontra vinculada ao tempo. Por isso,
deve-se mostrar em que sentido o homem é um ente finito, uma vez que, na compreensão do
homem como ente finito, subjaz a idéia de que ele é um ente temporal. O objetivo deste tópico
consiste em mostrar em que sentido a presença é um ente finito e, enquanto finito, temporal. Deve-
se mostrar, portanto, a estrutura da temporalidade ekstático-horizontal originária da presença.
A cura revelou-se como ser da presença. Conforme já foi visto, rigorosamente, só a
presença existe. Existência é presença (Dasein), isto é, abertura (Da) lançada no e para ser
(sein)
395
. Da-sein quer dizer: modo primordial e fundamental do ente que nós mesmos, em
sendo, a cada vez e já sempre somos. Nessa pespectiva, as estruturas existenciais visavam
preparar um solo seguro para que o sentido ontológico da cura pudesse ser exposto. A exposição
fenomenológica da temporalidade originária, porém, requer que o fenômeno do tempo seja visto
e compreendido como experiência originária, ou seja, enquanto finita e instantânea. Cabe
mostrar, então, por que a temporalidade, enquanto finita e instantânea, constitui-se como
experiência originária da presença, e, portanto, como é absolutamente diversa da compreensão
vulgar do tempo.
Experiência originária, enquanto finita e instantânea, não se fora e aquém da própria
presença. Por enquanto, porém, devemos manter uma certa reserva de princípio ao que Heidegger
chama de temporalidade originária, a fim de não perder de vista o modo pelo qual o fenômeno do
394. Cf. Martin Heidegger, Kant und das Problem der Metaphysik, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1973, § 44,
p. 231.
395. Adotamos, nessa investigação, a escolha feita pela tradutora brasileira de Ser e tempo, que traduziu Dasein por
presença. Isso se justifica na medida em que este termo, já empregado por Kant, também poderia ser traduzido por
exisncia (cf. notas notas explicativas de Ser e tempo, N1 e N62, respectivamente p. 561 e 562). No § 43, por exemplo,
Heidegger diz que: De início, deve-se observar explicitamente que Kant usou o termo presea (Dasein) para designar
o modo de ser que, na investigação precedente, s chamamos de ser simplesmente dado (Vorhandenheit) (cf. Martin
Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 43, p. 272). Uma vez que a presençao é o
ente que é ao modo do ente simplesmente dado, não é aconselvel empregar o termo Dasein utilizado pela tradição
metafísica. Também as opções de tradão como ser-aí ou estar-aí, parecem-nos inapropriadas para expressar o que Dasein
significa para Heidegger. Desse modo, para marcar esta diferença, convencionou-se a usar presea. Cabe salientar,
entretanto, que a língua alemã permitiu a Heidegger pudesse empregar esta mesma palavra em sua forma verbal. É o que se
pode ver, por exemplo, numa das passagens mais difíceis e decisivas de Ser e tempo, onde o autor conjuga o dasein em sua
forma verbal: Decidida, a presença se recupera justamente da decadêcia a fim de ser e estar tanto mais propriamente por
aí [da zu sein] no instante da situação, que se abriu (cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf;
Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 413; para a citação alemã, tomada por base aqui, cf. p. 328). Observação importante
encontramos em Emmanuel Carneiro Leão, O pensamento de Heidegger no silêncio de hoje, in: Cultura Vozes,
Homenagem a Heidegger, Petrópolis, ano 71, n. 4, maio 1977, p. 293-294, artigo em que o autor diz que nem toda
tradução fiel à letra é também fiel ao pensamento. Cf. também Marcia Cavalcante Schuback, A perplexidade da
presença, in: Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, p. 15-32.
156
tempo é ali descrito em sua estruturação originária. A reserva de princípio é necessária porque,
numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, isto é, cotidianamente, há uma tendência
de não vermos o fenômeno do tempo, uma vez que sempre de novo se impõe a tendência
habitual de vermos no tempo a passagem de agoras como uma seqüência homogênea e infinita.
Esta compreensão derivada do tempo se justifica à medida que se mostra
fenomenologicamente que o conceito vulgar de tempo brota e emerge da temporalidade
imprópria. Isso, porém, será apresentado num dos tópicos seguintes
396
.
Em Ser e tempo, Heidegger determina o conceito da temporalidade nestes termos:
O uso terminológico dessa expressão [temporalidade] deve, de início, manter distantes todos
os significados impostos pelo conceito vulgar de tempo como futuro, passado e presente.
O mesmo vale para os conceitos de um tempo subjetivo e objetivo, respectivamente,
imanente e transcendente. Na medida em que, numa primeira aproximação e na maior parte
das vezes, a compreensão da presença é imprópria, pode-se presumir que o tempo da
compreensão vulgar apresente um fenômeno, sem dúvida, autêntico, mas derivado. Ele surge
da temporalidade imprópria que, por sua vez, possui uma origem própria. Os conceitos de
futuro, passado e presente nascem, imediatamente, da compreensão imprópria do
tempo
397
.
O que diz fundamentalmente esta passagem? Que, inicialmente, devemos suspender toda e
qualquer concepção que tenhamos do tempo, pois é nisso justamente que reside a dificuldade
principal da compreensão da temporalidade originária. Com efeito, pelo conceito temporalidade,
Heidegger descreve algo totalmente diverso do que comumente se conhece e apreende do tempo.
Por isso mesmo, a distinção por ele incansavelmente buscada quanto ao uso dos termos adequados
para descrever o fenômeno do tempo e, conseqüentemente, da temporalidade mesma, não é
aleatória, mas necessária. A terminologia precisa ser apropriada ao fenômeno, ou melhor, precisa
condizer, precisa corresponder ao fenômeno que se busca compreender e descrever
398
. No primeiro
capítulo, tivemos a oportunidade de mostrar o empenho de Heidegger na concepção de um novo
modo de compreender o tempo, especialmente na aula de habilitação de Friburgo (1915) e na
conferência de Marburgo (1924). A partir desse empenho, Heidegger elabora um conceiturário
próprio e é através dele somente que é possível compreender a temporalidade da presença.
Nesse intuito, as expressões futuro, passado e presente correspondem ao modo
impróprio de compreender a temporalidade, ou seja, são expressões ônticas do tempo. Futuro,
passado e presente dizem respeito ao então, outrora e agora. Assim, se todo agora é
irrevogavelmente ponto de passagem, ou melhor, ponto de fuga, de um então para um
outrora; se o futuro é o que ainda não é agora; se o passado é o que não é mais
396. Cf. o tópico deste terceiro capítulo Temporalidade e intratemporalidade como origem do conceito vulgar de tempo.
397. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 411. De fato, é
importantíssimo compreender o modo como esta origem vem descrita ao longo dos §§ 78 a 81, do último capítulo de Ser e
tempo.
398. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 411.
157
agora, o que significa então cada vez agora pergunta-se Heidegger. Nessa constatação,
porém, é visto algo importante, a saber: percebe-se que o agora é um ponto de referência
importante para se pensar ou mesmo medir não só o tempo do agora, também dos
agoras que estão por vir como dos agoras que passaram. O agora é, então, ponto de
passagem, que resulta na compreensão do tempo como agora-não-mais, agora-ainda-não,
agora-agora. Neste modo de conceber o tempo, porém, não se consegue ver o elo de ligação
entre um agora passado ou um agora futuro com o agora presente, estejam eles ainda no
futuro ou no passado.
O que essa conceituação do tempo revela é o modo como s usualmente compreendemos
o tempo. Para caracterizá-lo, Heidegger emprega os termos futuro (Zukunft), passado
(Vergangenheit) e presente (Gegenwart) entre aspas. O emprego das aspas não é apenas
um artifício de ordem metodológica, uma vez que, através desse emprego, busca trazer à fala a
temporalidade mesma e que, em tese, não deriva da compreensão vulgar do tempo mas, ao
contrário, é a compreensão vulgar do tempo que emerge da temporalidade. A partir desta
diferenciação, Heidegger descreve a temporalidade nos seguintes termos:
A unidade originária caracterizada através do porvir, vigor de ter sido e atualidade é o
fenômeno do tempo originário, que nós chamamos de temporalidade. A temporalidade se
temporaliza na respectiva unidade (jeweiligen Einheit) de porvir, vigor de ter sido e atualidade.
O que denominamos assim deve ser diferenciado do então, outrora e agora. Estas
determinações de tempo somente podem ser o que são à medida que brotam da temporalidade
e são pronunciadas a partir dela. Com o agora, então e outrora se pronuncia o atender
como porvir, o reter como o vigor de ter sido, e o atualizar como atualidade. Ao pronunciar-se,
a temporalidade do tempo se temporaliza, e é este o único que a compreensão vulgar do tempo
conhece
399
.
Temporalidade refere-se à temporalização do tempo em sua estrutura plena de porvir
(Zukunft), vigor de ter sido (Gewesenheit) e atualidade (Gegenwart). Porvir diz, propriamente, o
que está em ad-vento, o que está por vir (zu-kommen); vigor de ter sido evoca e remete para o
verbo ser (ge-wesen), sendo um modo possível do ser presencializar-se; atualidade diz,
propriamente, aquilo que é ao modo de uma contra-espera (gegen-warten). Se, por um lado, a
escolha desses conceitos baseia-se na sua formação etimológica, por outro lado, intenciona
descrever fenomenalmente a temporalidade da própria presença. No entanto, como articulam-se,
entre si, estas caracterizações temporais? De fato, ao reconhecer que a experiência originária do
399. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19,
p. 376-377. Cf. também Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 413-
414.
158
tempo deve ser vista e entendida a partir da articulação dos conceitos porvir, vigor de ter sido e
atualidade
400
, está em jogo compreender como isso se dá fenomenalmente.
Pela citação acima, há basicamente dois modos fundamentais de temporalização, uma
própria e outra imprópria, ambas originando-se da temporalidade ekstática. Cada um desses
modos possibilitam modos próprios e impróprios de temporalização, dependendo
especificamente da abertura de cada ekstase. A partir disso, cada ekstase pode temporalizar-se de
modo próprio e impróprio. Assim, em cada uma das possibilidades, as três ekstases são co-
articuladas. Vejamos isso mais detalhadamente:
1. O porvir (Zukunft) se temporaliza de modo próprio através da antecipão (Vorlaufen),
sendo uma possibilidade primordial. Em seu modo impróprio, porém, a presença não se antecipa,
mas, envolvida com o que está à sua volta, aguarda (Gewärtigen). O aguardar caracteriza-se pela
ocupação no mundo, pelos afazeres e compromissos cotidianos e, assim, a presença tende a
envolver-se e perder-se impessoalmente com o que está à sua volta. Aguardando, a presença
tende a fugir de sua possibilidade mais própria, fugindo da morte.
2. O vigor de ter sido (Gewesenheit) se temporaliza de modo próprio pela retomada ou pela
retenção (Wiederholung ou Behalten), de modo que a presença descobre-se lançada ou projetada
no mundo e, assim, assume e transmite seu passado de modo próprio. A sua modulação temporal
imprópria caracteriza-se não pela retomada, mas pelo esquecimento (Vergessenheit). De fato, não
assumindo sua possibilidade mais própria, a presença não se compreende ao que está mais próximo
e, assim, não se apropria do passado, justamente por não ver nele uma relação com o presente. O
passado é o que passou e, portanto, não lhe pertence mais de modo originário. Contudo, pela
retomada, ela pode apropriar-se de seu passado a partir do presente em vista do porvir.
3. A atualidade (Gegenwart) se temporaliza de modo próprio à medida que a presença se
decide antecipadamente. Através da decisão, ela se antecipa e sai da impessoalidade, vindo a ser ela
mesma, o que é caracterizado, de maneira própria, como instante (Augenblick). Por sua vez, sua
modulação temporal imprópria correspondente, a presença ocupa-se dos entes à sua volta de forma
a se atualizar (Gegenwärtigen), mantendo-se perdida na impessoalidade e indecisa e,
conseqüentemente, fecha-se para ela a possibilidade de ser mais próprio. A rigor, porém, deve-se
considerar que tanto as modulações próprias como impróprias evidenciam fenomenalmente um
dado altamente positivo da temporalidade da presença. O importante a perceber aqui é que, mesmo
na modulação imprópria, a presença é presença, isto é, a rigor, ela nunca deixa de ser
400. Cf. aqui Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, § 65, principalmente p.
410-411. Cf. também duas notas explicativas importantes (N79, N80 e N81) a respeito do sentido ontológico destes
conceitos e uma justificação da tradução brasileira, p. 580-581.
159
completamente quem ela é. De fato, a de-cadência sempre ainda acusa a possibilidade de
cadência
401
.
A partir disso, perguntas fundamentais impõem-se: Como se articula a temporalidade
originária da presença? Como concebe Heidegger a unidade estrutural das três ekstases da
temporalidade como um todo articulado? Segundo o pensador, é a ekstase do porvir que
desempenha uma função privilegiada. Por isso, no § 65, ele mesmo se interroga:
O que possibilita que a presença seja toda em sentido próprio na unidade de toda a sua
estrutura de articulação? [...] Isso é possível caso a presença possa em geral vir-a-si em
sua possibilidade mais própria e, deixando-se vir-a-si, suporte a possibilidade enquanto
possibilidade, ou seja, exista. Este deixar-vir-a-si que, na possibilidade privilegiada a
sustém, é o fenômeno originário do porvir. [...] Porvir não significa aqui um agora que,
ainda-não tendo se tornado real, algum dia o se. Porvir significa o advento em que a
presença vem a si em seu poder-ser mais próprio. É a antecipação que torna a presença
propriamente porvindoura, de tal maneira que a própria antecipação só é possível na medida
em que a presença, enquanto ente, sempre já vem a si, ou seja, em seu ser, é e está por
vir
402
.
Primeiramente, devemos observar que o pensador não utiliza o termo futuro, mas porvir.
Embora na língua alemã também se utilizem as formas Futur ou Futurum, provenientes do latim,
o pensador prefere a forma germânica Zukunft, atribuindo a ela um sentido todo particular. Como
já foi dito no tópico anterior, Zukunft é a palavra alemã para dizer o que está por vir ou que está
em advento, sendo, nesse caso, o porvindouro (das Zukünftige)
403
.
Para compreender adequadamente a estrutura da temporalidade, tal como Heidegger a
concebe e descreve, é imprescindível ter presente a tríplice estruturação da cura. Vimos, no segundo
capítulo, que os caracteres ontológicos da curao existencialidade, facticidade e decadência.
Formalmente, sendo os caracteres da cura anteceder-se-a-si-mesma (existência), -ser-em
(facticidade) e ser-junto-a (decadência), cada uma dessas caracterizações significa: anteceder-a-si-
mesma... a existência (Sich-vorweg... die Existenz); já-ser-em... a facticidade (Schon-sein-in... die
Faktizität); ser-junto-a... a decadência (Sein bei... das Verfallen). Com efeito, sendo a cura o
anteceder-a-si-mesmo da presença (Sich-vorweg-sein de Daseins), então ela deve ter uma relação
com o sobrevir para si mesma, que é a caracterização elementar da temporalidade originária. Em
Os problemas fundamentais da fenomenologia, Heidegger descreve isso nestes termos:
401. Cf. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, §
19, p. 383s.
402. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 409-410. Segundo Santo
Agostinho: Com a diminuição do futuro, o passado cresce até o momento em que tudo seja pretérito, pela consumação do
futuro (cf. Santo Agostinho, Confises, Bragança Paulista, Edusf, 2006, livro XI, cap. 27).
403. Numa nota à tradução de um livro de Heidegger, Carneiro Leão explica a este respeito: Futuras = Zu-künfte:
correntemente a palavra Zukunft designa o futuro. Heidegger, porém, pensa em sua origem do verbo kommen (vir, chegar).
É esse o sentido, que se enquadra na concepção do futuro como uma fase da imbricação temporal da existência. Nesse
sentido, o futuro é o que há de vir, enviado pelo destino da exisncia, que é sempre instaurado historicamente. É o ad-vento,
o por-vir (cf. Martin Heidegger, Introdução à metafísica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, nota 30, p. 80). Cf.
também Paul Ricoeur, Tempo e narrativa, tomo III, Papirus, Campinas, 1997, p. 159.
160
A essência do porvir é o sobrevir para si mesma (Auf-sich-zukommen), a essência do
vigor de ter sido é o vir de volta para (Zurück-zu) e a essência da atualidade é o
permanecer junto a (Sichaufhalten bei), isto é, o ser junto a. Estes caracteres, para si
mesma, de volta para e junto a revelam a constituição fundamental da temporalidade.
Uma vez que a temporalidade se deixa determinar pelo para si mesma, de volta para e
junto a, ela é fora de si. O tempo está em si mesmo como porvir, vigor de ter sido e
atualidade, retraído. Ao se futurar, a presença tem sido seu poder-ser; em tendo sido, ela é o
seu vigor de ter sido; e atualizando-se, retraída a outros entes. A temporalidade como
unidade de porvir, vigor de ter sido e atualidade não retrai a presença às vezes e
ocasionalmente, mas ela mesma como temporalidade é originariamente o fora-de-si, o
e*kstatikovn
404
.
Esta passagem é decisiva na interpretação da temporalidade da maneira como Heidegger a
concebe. Por isso, sejamos cautelosos. Em primeiro lugar, evidencia-se aqui que as três
determinações para si mesma, de volta para e junto a têm íntima relação como a tríplice
estrutura da cura, a saber, anteceder-se-a-si-mesma (existência), -ser-em (facticidade) e
ser-junto-a (decadência). Está em jogo, pois, ver e entender que relação há entre cura e
temporalidade, tese tão repetida por Heidegger e, segundo a qual, a temporalidade constitui o
sentido ontológico da cura. Em segundo lugar, a tríplice estrutura da temporalidade é
compreendida como unidade, vale dizer, a temporalidade é a própria unidade de porvir, vigor de
ter sido e atualidade e, nesse sentido, é ela originariamente o fora-de-si, o e*kstatikovn.
Como deve-se compreender o e*kstatikovn (o fora-de-si)? Segundo Dastur, Heidegger
retira esta expressão da Física de Aristóteles
405
. De fato, em seu tratado sobre o tempo, sobretudo
na passagem em que descreve algumas determinações elementares do tempo, ela é mencionada.
Segundo Aristóteles, o instante (e*xaivfnh") designa uma modificação de um tempo insensível
ou imperceptível que vai para frente (e*kstavn) por sua pequenez. Porém, todo e qualquer
processo, deixa a sua essência ir-se embora (e*kstatikovn) nas coisas e realizações. No tempo
acontece todo e qualquer surgir e perecer
406
. Gadamer, ao falar da temporalidade da estética, a
qual tem uma orientação heideggeriana, diz do fora-de-si:
Na verdade, o estar-fora-de-si é a possibilidade positiva de se tomar parte inteiramente em
alguma coisa. Um tal tomar-parte tem o caráter de um auto-esquecimento. Perfaz a natureza
do espectador, o fato de estar entregue a uma visão, totalmente esquecido de si. O auto-
esquecimento é, aqui, tudo, menos um estado privativo, pois procede da dedicação à causa, o
que o espectador realiza como sendo seu desempenho positivo e próprio
407
.
Um dos conceitos básicos usados por Gadamer, no contexto de onde extraímos essa citação, é
404. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19,
p. 377.
405. Segundo Dastur, Heidegger retirou a expressão e*kstatikovn da Física (livro IV, 222b 15-16), de Aristóteles (cf.
Françoise Dastur, Heidegger e a questão do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997, p. 95). O termo horizonte é usado por
Heidegger para descrever fenomenologicamente a conhecida definição aristotélica do tempo: O tempo é isso, a saber, o
que é contado no movimento que se ao encontro no horizonte do anterior e do posterior (grifo nosso).
406. Cf. Aristóteles, Física, livro IV, 222b 15-16, como segue: ToV d je*xaivfnh" toV e*n a*naisqhvtw/ crovnw/ diaV
mikrovthta e*kstavn. MetabolhV deV pasa fuvsei e*kstatikovn. *En deV tw/ crovnw/ pavnta givnetai kaiV fqeivretai.
407. Hans-Georg Gadamer, Verdade e método, Petrópolis, Vozes, 1998, p. 208.
161
simultaneidade, isto é, o que é concomitante, o que se e acontece ao mesmo tempo.
Simultaneidade é, nesse caso, o modo próprio de tempo temporalizar-se. O modo de tempo
temporalizar-se é de tal modo originário a tomar parte inteiramente em alguma coisa. A melhor
forma de compreender este tomar parte inteiramente relaciona-se à experiência da visão. Por isso,
Gadamer utiliza-se de palavras como visão ou perspectiva, em que se encontra e da qual
participa o espectador. Na visão ou na perspectiva, o espectador é inteiramente tomado, ou
melhor, ele não participa, mas ele mesmo é ao modo de visão e, só por isso, pode ser
esquecido de si.
De fato, a partir desse modo de auto-esquecimento, ou melhor, de estar-fora-de-si, é
possível ver e entender a caracterização do instante (Augenblick) enquanto constituinte da
temporalidade originária. Augen-blick, assim o diz a língua materna de Heidegger, é apenas um
espocar de olhos! É nele que se realiza, radial e originariamente, a hora de vida, a hora em que
a presença se temporaliza. Temporalidade é existir no e a partir do projeto aberto-limitado,
perfazendo a experiência de totalidade na amplitude do limite (ekstático e horizontal). Existir é
viver radical e plenamente no instante da situação como piscar de olhos, como espocar de
olhos. Neste espocar de olhos é possível fazer a experiência originária de porvir que vai ao
passado vindo ao presente. Instaura-se, assim, movimento de vida, pois a presença decidida é
ciente de que vida não é em si coisa alguma, mas apelo para ser numa possibilidade de ser, isto é,
carência e necessidade vitais de futurização, de porvir. Nesse sentido, a presença não é nada
fechado, nada feito, nada pronto, nada acabado, mas essencialmente tarefa de ser e, enquanto
tarefa, realização da hora da vida.
Contudo, como poderíamos ver e entender isso na palavra portuguesa in-stante. In-
stante significa, primordialmente, ser-em, estar-dentro-de. Nossa palavra in-stante provém
do verbo in-star (derivado do latim in-stare), tendo o sentido do que é ou está iminente. O que
é ou está iminente acontece em sua i-mediatez, ou melhor, acontece sem-mediação. Seguindo
este sentido etimológico, podemos considerar que a palavra in-stante expressa a mesma idéia de
Augen-blick. A experiência originária e fundamental que ambas sugerem difere totalmente do
conceito derivado do tempo, em que o agora, ou até mesmo a eternidade, são
compreendidos. Já tivemos a oportunidade de ver que, mesmo Kierkegaard, ao tentar
compreender o fenômeno do instante, relacionou-o com a eternidade
408
.
O instante, enquanto determinação própria da temporalidade, constitui-se num modo
fundamentalmente diverso do agora pontual, seqüencial e linear, a partir do qual a tradição
procurou compreender o fenômeno do tempo. Por isso, a temporalidade originária da presença
162
tende a não-ser-vista e, permanecendo não-vista, tende a ficar encoberta e, a partir disso, tende a
ser nivelada por uma pura e simples seqüência de agoras pontuais, onde, a cada agora segue e
se soprepõe outro agora. Nessa perspectiva, cada novo agora abre um fosso entre o agora
que já passou e o agora que ainda de vir. Nesse caso, o agora-passado é irreversível,
irretornável, irretomável; o agora-presente é o que continuamente está passando e mudando, o
agora-futuro é o que ainda não adveio nem passou, estando apenas em advento, ou melhor, é o
que apenas há de vir e, na medida que vem e chega, passa. Heidegger demonstra, assim, que o
agora-presente, o agora-agora, o agora-em-si, é o que em absoluto não há, não é real.
Já dizíamos que a temporalidade, formalmente falando, evidencia o sentido ontológico da
cura. Porém, como será isso: a temporalidade como sentido ontológico da cura? Como se estrutura
da temporalidade ekstática e horizontal? Como se relacionam e interagem as três ekstases da
temporalidade originária? Para ver e entender como Heidegger elabora o conceito de temporalidade
originária, é preciso ter presente que a temporalidade se temporaliza (zeitigt sich), de algum modo,
desde horizonte de sentido. Torna-se necessário, portanto, esclarecer o que significa, nesse caso,
horizonte de sentido. No livro Os problemas fundamentais da fenomenologia podemos ler:
A temporalidade é como unidade originária de porvir, vigor de ter sido e atualidade em si
mesma ekstático-horizontal. Horizontal diz: caracterizado por um horizonte com a própria
ekstase. A temporalidade ekstático-horizontal não somente possibilita a constituição
ontológica da presença, como também possibilita a temporalização do tempo que a
compreensão vulgar do tempo unicamente conhece e que nós de modo geral designamos
como uma seqüência irreversível de agoras. [...] O horizonte é amplidão aberta em que a
retração como tal é fora de si. A retração abre e mantém este horizonte aberto. [...] O
horizonte é amplidão aberta
409
.
Segundo Heidegger, horizonte é amplidão aberta. Trata-se de uma expressão
carregadamente pleonástica para expressar o modo de a temporalidade originária temporalizar-se
como sentido ontológico da cura. Este modo próprio de tempo temporalizar-se, ekstático-
horizontalmente, é próprio da temporalidade originária, possibilitando, também, a partir de seu
modo impróprio, o surgimento da origem da compreensão vulgar de tempo, mas não ao
contrário. A compreensão segundo a qual o tempo pode também ser visto como uma pura
seqüência irreversível de agoras pontuais sem-começo e sem-fim só é possível porque ela emerge
e brota da temporalidade ekstático-horizontal.
Todavia, como se constitui a temporalidade ekstático-horizontal? É o modo de dizer como
a presença se ocupa originariamente consigo mesma, como a presença ocupa propriamente seu
tempo. Assim, se a ocupação do tempo é vista desde o modo de instante, a temporalidade é
408. Cf. segundo capítulo, tópico Ser-no-mundo como constituição fundamental da presença, subtópico Ser-com e ser-si
mesmo, e o impessoal, onde abordamos a interpretação heideggeriana de Kierkegaard.
409. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19,
p. 378.
163
radicalmente finita. Nesse sentido, a sentença latina hic et nunc não diz aqui e agora, mas aqui-
agora. Aqui-agora refere-se à instantaneidade do tempo, à finitude da presença. Aqui-agora
expressa, pois, o momento ou a hora própria do tempo temporalizar-se, o que também pode ser
expresso como temporalidade kairônica.
Desse modo, as palavras ekstático e horizontal evidenciam dois modos possíveis de dizer e
expressar a própria essencialização da presença. No pensamento de Heidegger, o ser humano é
um ente inapelavelmente sensível, cujo modo de ser é sempre temporalizado pelo tempo
próprio e originário, que é, por sua vez, uma iluminação histórica da verdade do ser. Pode-se ver,
então, que a temporalização de tempo implica necessariamente um modo essencial de homem ser
homem, isto é, da presença presentificar-se na unidade ekstática e horizontal originária de porvir,
vigor de ter sido e atualidade de si e em si mesma.
Em obras tardias, nas quais Heidegger aprofunda sua compreensão de temporalidade, a
complexa elaboração da estruturação da temporalidade mesma é apresentada enquanto horizonte
transcendental, utilizando para isso uma expressão kantiana. É o que podemos ler numa
passagem do livro Introdução à metafísica, onde Heidegger esclarece o que procura tematizar em
Ser e tempo:
[...] em Ser e tempo se fala de um horizonte transcendental. Todavia o transcendental, aí
entendido, não é o da consciência subjetiva, mas se determina pela temporalidade ekstático-
horizontal da presença. A transformação da questão sobre o ser como tal tende a identificar-
se com a questão sobre o ente, como tal, principalmente porque a pro-veniência essencial da
questão sobre o ente, como tal, e com ela a essencialização da metafísica continuam na
obscuridade
410
.
Heidegger dirá, repetidas vezes, tanto em Ser e tempo como em Os problemas fundamentais
da fenomenologia, que o fora-de-si ou o para-além-de-si é o transcendente. Mas o que seria, nesse
caso, o transcendente? Sendo uma forma de dizer o modo constitutivo da temporalidade mesma, o
transcendente não é nada fechado, feito, pronto, acabado, mas pura abertura e possibilidade
de realização de sentido em que a presença sempre já está lançada de algum modo. Ou seja, ela é o
que é e como é, por ser desde abertura e, sendo essencialmente transcendente, existe. Para entender
isso melhor, é decisiva a primazia do porvir, pois sendo essencialmente porvindoura, a presença
não é nem pode ser simplesmente dada ou ocorrente, mas tão-só e unicamente um modo originário
de ser para poder-ser sob todo e qualquer modo possível de ser.
A temporalidade ekstática e horizontal -se, pois, num lance, ao modo do que advém em
forma de projeto lançado. Assim, a presença, sendo finita, sabe-se finita, quer dizer, é plenamente
ciente de sua finitude, e, sabendo-se finita, não tem a desmesura de querer ir além, de querer mais do
que precisa querer para poder ser o que precisa ser. Jamais é ao modo daquilo que cai nas malhas da
410. Martin Heidegger, Introdução à metasica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 226-227.
164
pura e simples mensuração e cronometragem, mas vive desde e pondera conscientemente sua finitude.
Assim, vivendo sempre plenamente o seu fim, a presença vive a sua possibilidade mais própria, vive
de fato no e desde o fato de sempre ser sob um modo de ser! Suporta sua possibilidade como
possibilidade. Sendo no que é e pode ser, vive seu sentido. Vivendo seu sentido, se realiza.
Realizando-se, se temporaliza.
Para Heidegger, a temporalidade enquanto experiência originária dá-se ou realiza-se, como
já foi enfatizado, a partir de três aberturas co-originais ou co-nascivas e con-crescivas, onde o
porvir possui primazia. Primazia quer dizer propriamente prioridade, excelência. Todavia, é
preciso chamar atenção que, enquanto o formos capazes de apreender a primazia do porvir a
partir do caráter ekstático e horizontal da temporalidade, é possível que ainda não tenhamos
compreendido toda estruturação da temporalidade originária.
Ora, tempo fazendo-se tempo e tempo temporalizando-se diz respeito a uma experiência ao
modo da roda que gira por si e sobre si mesma. É por isso que Heidegger privilégio ao porvir
como sobrevir, isto é, o que vem gratuita e generosamente ao encontro daquilo que e como se
é. Nesta sobreveniência finita, o tempo é cada vez mais plenamente tempo. Esta nese, a partir e
na qual tempo faz-se tempo, que tempo se temporaliza, é a presença mesma na sua originalidade
mais própria. Existindo, vindo a ser o que e como ela é, necessita e carece ser desde quem ela já
sempre foi. Existindo, a presença temporaliza-se, ekstática e horizontalmente, sendo esta a
condição de possibilidade primária de sua constituição ontológica.
Nessa perspectiva, não se pode dizer que houve um tempo em que a presença não tivesse sido
temporal ou sujeita ao tempo, isto é, que, em algum momento, tivesse sido fora do tempo ou
destituída de tempo. Também não se pode dizer que ela em algum momento o foi histórica ou
não esteve sujeita à história. Ela só pode ter sido o que é e como é, desde o instante em que existe.
Ela sempre foi, ou seja, sempre já existiu e, assim, está lançada na e para a possibilidade de ser
sob um modo de ser, ou melhor, é primordialmente carente de ser, necessitando justo por isso
constituir-se em e de futuro (porvir), vale dizer, necessitando justo por isso perfazer seu próprio
destino de uma maneira toda própria e singular. No e pelo porvir, a temporalidade abre-se como a
primeira possibilidade de ser para qualquer modo possível de ser.
Todavia, sendo a temporalidade ekstática e horizontal uma só estrutura, como se articulam os
três momentos constitutivos porvir (Zukunft), vigor de ter sido (Gewesenheit) e atualidade
(Gegenwart)? A presença enquanto ente temporal é finita. Sob o ponto de vista de sua estruturação,
isso significa: enquanto tem sido, ela está situada, ou melhor, existe. Portanto, dizer que ela está
situada, que existe, significa: é e está sempre lançada no modo de ser do porvir que, indo ao
passado primordial, realiza-se concretamente num aqui-agora. Sendo a presença na sua situação
165
primordial, descobre sua condição ontológica mais própria. E assim, enquanto a presença é
essencialmente na e para a sua existência mais própria, temporaliza-se finitamente. A experiência
do instante, enquanto temporalidade originária e própria, diz, em última instância, sempiternidade,
finitude, isto é, ser desde a possibilidade da qual sempre já se é, foi e será.
No modo de temporalização própria, a presença aceita livremente sua finitude, sua morte, o
limite dos limites como inerente e constitutivo à sua esncia e fundamento. Viver a partir disso
implica constitutivamente tarefa de fazer e perfazer-se no próprio e, concomitantemente, necessidade
de largar e abandonar sempre de novo o já feito e perfeito como condão de possibilidade de todo e
qualquer fazimento e perfazimento e, assim, na perpetuação do novo, celebra a condição de
possibilidade de fazer-se e perfazer-se vida a todo novo momento de sua existência.
Numa das passagens mais difíceis, mas decisiva do § 65, Heidegger conjuga a forma verbal
dasein: Decidida, a presença se recupera justamente da decadência a fim de ser e estar tanto mais
propriamente por aí (da zu sein) no in-stante da situação, que se abriu
411
. Tentando parafrasear,
esta passagem pode ser lida da seguinte maneira: decidida, a presença se temporaliza no momento
(instante) mais próprio da possibilidade de ser que lhe adveio (zukommen) e, assim, já intensificada,
mas intensificando ainda mais este momento (instante), vem a ser ela mesma em seu poder-ser mais
próprio. Heidegger continua: O antecipar torna a presença propriamente porvindoura, de tal
maneira que o próprio antecipar é possível quando a presença, enquanto um sendo, sempre já
vem a si, ou seja, em seu ser, é e está por vir. [...] Assumir o estar-lançado significa, porém, ser, em
sentido próprio, a presença, no modo em que ela sempre já foi
412
.
De fato, ao falarmos fenomenologicamente de temporalidade, está em jogo aprender a
totalidade dessa multiplicidade estrutural. Isso é necessário assim o diz Heidegger repetidas
vezes uma vez que a unidade originária da estrutura da cura reside na temporalidade
413
. A este
propósito, no § 41, de Ser e tempo, Heidegger escreve: Do ponto de vista ontológico, porém, ser
para o poder-ser mais próprio significa: em seu ser, a presença já sempre antecedeu a si mesma.
A presença está sempre além de si mesma, o como atitude frente a outros entes que ela
mesma não é, mas como ser para o poder-ser que ela mesma é. Designamos a estrutura
ontológica essencial do estar em jogo (es geht um) como o anteceder-a-si-mesmo da presença
(Sich-vorweg-sein des Daseins)
414
. E, também, no § 68: a temporalidade se temporaliza
totalmente em cada ekstase, ou seja, a totalidade do todo estrutural de existência, facticidade e
411. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 413. Cf. edição alemã:
Sein und Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1986, p. 328.
412. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 410.
413. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 411.
414. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 41, p. 258.
166
decadência se funda na unidade ekstática de cada temporalização plena da temporalidade. Esta
é a unidade estrutural da cura
415
.
Cabe compreender, nessas passagens, como a presença, sendo própria, não se atém nem se
deixa perder na impropriedade decadente nem permanece continuamente nela. Embora a
temporalidade possa, também, temporalizar-se sob o modo de impropriedade e decadência, ela é
apenas um modo possível de temporalização, mas nem por isso a mais própria. Pois, sendo a
impropriedade um dos traços fundamentais da presença ser e relacionar-se consigo mesma, ela,
antecipadamente, isto é, decidida, pode recuperar-se justamente da decadência, a fim de ser
tanto mais propriamente presente no instante da situação, aberta aí para ser
416
, enfatiza
Heidegger. Ele mostra, assim, que a presença não pode temporalizar-se de modo impróprio,
uma vez que oscila constantemente entre a possibilidade de ser própria e imprópria, possuindo,
por isso mesmo, uma constituição ontológica toda particular. Por essa razão, deve-se determinar
melhor por que, segundo Heidegger, o conceito vulgar do tempo brota e emerge da
temporalidade imprópria da presença.
No último tópico deste capítulo ensaiamos uma interpretação do testemunho da existência
poética enquanto temporalidade kairônica. Não se trata de aplicar, nessa interpretação, a
conceituação da temporalidade heideggeriana. Mais fundamentalmente, está em questão,
orientados pela descrição da temporalidade originária e própria da presença, compreender como,
na experiência ou na existência poética, o porvir desempenha função preponderante e
fundamental. Nesse sentido, é possível dizer que toda ação criadora é poética. É poética por
nascer da necessidade, ou melhor, primordialmente não tem nenhum fim para fora dela mesma.
Fenomenalmente, portanto, deve ser possível descrever a temporalidade da presença como ação
necessária e vital nestes termos: é tão-só o que e como se abre no projeto e, como tal, nasce
(surge), vem a ser o que precisa ser (sendo), devendo necessariamente morrer (esquecer) para
poder vir a ser novamente (porvir). A partir disso, também, é possível ver e entender que toda e
qualquer compreensão é consumação ou realização de sentido. Compreensão é, então,
simultaneidade de vida, interesse vital, instante. Instante, quer dizer, vida primordialmente finita
e, portanto, incondicional e intransferivelmente sempre minha.
Revela-se, assim, que a experiência do instante não pode ser compreendida e descrita
fenomenalmente através do ajuntamento de partes ao modo do que se sucede um atrás do outro,
ou seja, como série de agoras, sem-começo e sem-fim. Pois, sendo a presença sempre no
imediato, súbito e abrupto de mundo, apreende-se e compreende-se sempre já dessa ou daquela
415. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 68, p. 421.
416. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 407-408. Cf. também Luiz
Bicca, Ipseidade, anstia e autenticidade, in: ntese Nova Fase, vol. 24, n. 76, 1997, Belo Horizonte, p. 11-36.
167
maneira. Assim, enquanto existe no instante, constitui-se em horizonte de sentido de ser. É a
hora de vida. Nessa hora primordial, porvir, vigor de ter sido, atualidade, co-incidem por se co-
pertencerem. Evidencia-se, assim, que a temporalidade originária da presença é a experiência
primária de tempo temporalizar-se.
Com efeito, é possível dizer também que temporalidade como o e*kstatikovn, isto é, o fora-
de-si, é abertura como e para possibilidade de ser, a abertura que é ao modo de ser de presença. O
fora-de-si é propriamente dinâmica de vida, ação vital. É propriamente vida para além de si, ou
seja, espaço aberto, amplitude aberta, âmbito indefinido por definir. Guimarães Rosa escreve que,
sabendo o jagunço que viver é sempre um risco no incerto da imensidão e do ilimitado, quer dizer,
que viver é muito perigoso, é possível, de repente, descobrir, que viver nem é muito perigoso. Ou
seja, vida é propriamente vontade de querer, mas nada desejar fora ou para além de si e isso
justamente por já ser sempre visceralmente nela e desde ela mesma, vale dizer, já ser sempre jogado
nela, sendo-no-mundo
417
. A temporalidade é originária e própria enquanto ser-fora-de-si ou estar-
fora-de-si. O tempo se temporaliza, constituindo-se isso mesmo como porvir, vigor de ter sido,
atualidade. Assim determinado, fica claro que a temporalidade originária e própria, como o fora-
de-si (Außer-sich = e*kstatikovn), não é algo, não é coisa, mas tão-só condição de possibilidade de
homem como homem, de presença como ser-no-mundo.
Nessa perspectiva, a ação criadora é uma maneira exemplar de compreender a
temporalidade originária, pois, na medida em que compreende-se a si mesma desde si mesma, é
finita
418
. A ação criadora é realizadora de instante, de ser sempre em, de abertura de
possibilidade para ser o que e como se é. Voltando-se para o futuro (Zukunft), vai ao encontro
do passado (Gewesenheit), vindo ao presente (Gegenwart). Essa estrutura plena e originária da
presença, em sentido próprio, revela a estrutura da temporalidade mesma. Sentido próprio quer
dizer: ser e estar sempre já, de algum modo, antecipada e decididamente numa ação
absolutamente necessária e vital. Existencialmente, isso significa: ser-em. Ser-em, enquanto
existencial, diz: determinação de sentido, sendo sempre jogado no mundo. Própria e
originariamente interessada, a presença porvém, indo ao encontro do passado, vindo ao
presente. Porvir, enquanto futurização, fala do advir como plena possibilidade de abertura de
sentido, possuindo um privilégio todo particular.
417. Guimarães Rosa emprega o termo jagunço com o sentido de jogado, o lançado na existência do mundo (= sertão). Cf.
João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1991 e J. Guimarães Rosa:
correspondência com seu tradutor italiano Eduardo Bizzarri, São Paulo, T.A. Quiroz/Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro,
1981.
418. Constituem-se estudos filosóficos relevantes sobre arte: Emmanuel Carneiro Leão, Os mecanismo da criação
original, in: Aprendendo a pensar, Petrópolis, Vozes, 1991, p. 189-190; Filosofia como escultura, pintura e sica;
Arte e filosofia; Arte e realidade, in: Aprendendo a pensar, Petrópolis, Vozes, 1992, respectivamente p. 40-43; 240-247
e 248-252. Também Gilvan Fogel, A respeito do fazer necessário e inútil ou do silêncio e Semirio sobre Heráclito.
Introdução, in: Da solidão perfeita: escritos de filosofia, Petrópolis, Vozes, 1999, respectivamente p. 207-221 e 65-90.
Ainda Arcângelo R. Buzzi, Introdução ao pensar, cap. 10: A arte, Petpolis, Vozes, 1997, p. 210-217.
168
Entretanto, sendo temporal, a presença guarda uma ambiidade estranha. A ambigüidade de,
numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, isto é, cotidianamente, não ser propriamente
(eigentlich) ela mesma, ou seja, é imprópria e decadente (uneigentlich). Vimos que, ao longo da
analítica existencial, Heidegger ocupa-se em mostrar os modos de ser impróprios da presea, a saber,
que a presença possui uma tenncia ou inclinação habitual para o encobrimento de si mesma,
compreendendo-se de maneira imprópria. Fica caracterizado, assim, que o modo de existência
imprópria (uneingentlich) difere essencialmente do modo de existência ppria (eigentlich). Enquanto
a imprópria, ou seja, a indecisa faz a experiência de que perde seu tempo ou que não dispõe mais dele,
a própria e decidida faz a experiência de que sempre ainda tem tempo para isso ou para aquilo.
Por isso, ao final do § 65, Heidegger indica que, embora já se tenha determinado a
temporalidade originária, a analítica temporal ainda não é completa. Isso é manifesto na seguinte
passagem:
A tentação de se passar por cima da finitude do porvir originário e próprio e, com isso, da
temporalidade, considerando-a a priori impossível, nasce da constante imposição da
compreensão vulgar de tempo. Se esta, com razão, conhece um tempo infinito, isto ainda
não prova que ela já compreenda este tempo e a sua infinitude. O que significa o tempo
prossegue e passa? O que significa no tempo em geral e, de maneira específica, no e
do futuro? Em que sentido o tempo é infinito? Estas perguntas devem ser esclarecidas
para que as objeções vulgares contra a finitude do tempo originário não permaneçam
infundadas. Este esclarecimento, porém, pode realizar-se caso se alcance um
questionamento adequado de finitude e in-finitude. Este, por sua vez, surge de uma visão
compreensiva do fenômeno originário do tempo. O problema não pode ser, portanto: como é
que o tempo infinito e derivado, no qual nasce e perece o ser simplesmente dado, torna-
se temporalidade finita e originária, mas sim como o tempo im-próprio provém da
temporalidade finita e própria, e como ela, sendo im-própria, temporaliza um tempo in-finito
a partir do tempo finito. Somente porque o tempo originário é finito é que o tempo
derivado pode temporalizar-se como in-finito. Na ordem da apreensão compreensiva, a
finitude do tempo só se torna plenamente visível quando se explicita o tempo sem fim para
contrapô-lo à finitude
419
.
Para Heidegger, não basta mostrar que a temporalidade originária e própria se constitui da
forma como procuramos descrever aqui. Assim, considerando-se que é impossível derivar a
temporalidade própria da temporalidade imprópria, deve-se mostrar como e em que sentido a
temporalidade imprópria nasce da temporalidade própria. Ou seja, a originalidade precisa ser
evidenciada fenomenalmente em sua derivação. Heidegger cumpre isso na medida em que, nos três
capítulos subseqüentes ao § 66, faz uma analítica temporal da cotidianidade, da historicidade e da
intratemporalidade. Nesse sentido, o § 66 representa uma passagem importantíssima em direção a
três modos fundamentais da temporalização do tempo. Com efeito, a tese constantemente repetida
por Heidegger, de que o tempo vulgar brota ou emerge da temporalidade imprópria, poderá ser
devidamente compreendida e fundamentada na medida em que se fizer uma analítica retrospectiva
169
da cotidianidade, da historicidade e da intratemporalidade à luz da temporalidade originária e
própria. Para cada um desses temas, Heidegger dedica um capítulo específico. Em linhas gerais,
então, constituem um desenvolvimento mais elaborado e concreto da temporalidade ekstática e
horizontal da presença. Nessa direção se encaminhará nossa investigação nos dois tópicos
seguintes.
3.4
T
EMPORALIDADE E HISTORICIDADE
Seguindo as considerações acima, no capítulo Temporalidade e cotidianidade (§§ 67 a
71) Heidegger faz uma retomada da analítica existencial, procurando desvelar o sentido temporal
dos existenciais da presença. Seu objetivo é desfazer a aparente evidência das análises
preparatórias, isto é, da analítica existencial. Nesse sentido, a temporalidade deve evidenciar-se
em todas as estruturas essenciais da constituição fundamental da presença. Segundo Heidegger,
no entanto, não se trata de fazer uma retomada esquemática e exterior das análises realizadas
anteriormente. Pela mesma razão, serão retomados também aqui, na medida do possível e até
onde possa interessar-nos, alguns pontos dos textos da aula de habilitação (de 1915) e da
conferência (de 1924), interpretados no primeiro capítulo.
A partir disso, é necessário justificar, mesmo que de passagem, por que não nos
preocuparemos, neste momento de nossa investigação, com o capítulo em que Heidegger analisa
as estruturas existencias, isto é, da cotidianidade, sob o prisma da temporalidade. Pelo
encaminhamento dado à nossa investigação, optamos por antecipar aspectos importantes dessas
análises no segundo capítulo, esperando, através delas, iluminar a compreensão da própria
temporalidade como Heidegger a elabora e tematiza. Por isso mesmo, em várias momentos,
concentramos nossa atenção no modo de ser temporal de existenciais como circunvisão,
decadência, disposição, angústia, morte e, sobretudo, compreensão
420
.
Diante disso, nossa atenção volta-se agora para o capítulo Temporalidade e historicidade
(§§ 72 a 77). Além de Ser e tempo, para as análises heideggerianas relacionadas a esta temática, são
relevantes três textos: A colocação da questão de Dilhey e a tendência fundamental de Yorck e
Temporalidade e historicidade, textos publicados no volume 64, juntamente com a conferência O
419. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 415.
420. Cf. capítulo segundo As estruturas fundamentais do modo de ser da presença e, sobretudo, o tópico A primazia do
porvir e da compreensão na constituão da temporalidade. Em Heidegger, por exemplo, ver a remissão do § 65 às análises
da analítica existencial, principalmente ao § 32, sobre sentido e compreensão, e, especialmente, o § 68, sobre A
temporalidade do compreender.
170
conceito de tempo (de 1924), e Prolegômenos para a história do conceito de tempo, que compõe o
volume 20 das obras completas
421
.
Diante do tema Temporalidade e historicidade, é necessário entender que significados
têm, para Heidegger, as palavras história e historicidade. Inicialmente, devemos considerar que
ele faz uma distinção rigorosa entre história (Geschichte) e historiografia (Historie). A primeira
provém do verbo geschehen, significando basicamente acontecer, dar-se, processar-se. Seu
sentido pleno, porém, reúne a idéia de conjunto dos acontecimentos humanos no decorrer ou
transcorrer do tempo. A segunda, de origem grega, chegou-nos através do latim como ciência da
história, daí, historiografia. Podemos traduzir, então, de um lado, Geschichte e seus derivados
geschichtlich e Geschichtlichkeit, respectivamente por história, histórico e historicidade e, de
outro, Historie e seus derivados historisch e Historizität, respectivamente por história fatual e
historiografia, por referir-se aos fatos históricos e à fatualidade historiográfica. Além disso,
quando Heidegger emprega Weltgeschichte, refere-se à história universal ou história mundial.
Mais fundametalmente, porém, pelo fato do problema da história e do tempo estar relacionado à
ontologia da presença, Weltgeschichte deve ser traduzido por história mundial, enfatizando-se a
estrutura mundo
422
.
Alguém menos avisado poderia objetar que estas distinções significativas não têm lá
grande importância. Contudo, está implícita nelas uma diferença fundamental e, por isso mesmo,
decisiva no pensamento de Heidegger. No § 3, de Ser e tempo, podemos ler: Assim, por
exemplo, o primário filosoficamente (philosophisch Primäre) não é uma teoria da conceituação
da história (Theorie der Begriffsbildung der Historie), nem a teoria do conhecimento histórico
(Theorie historischer Erkenntnis) e nem a epistemologia do acontecer histórico enquanto objeto
da ciência histórica (Geschichte als Objekt der Historie), mas sim a interpretação daquele ente
propriamente histórico em sua historicidade
423
. Também, por isso, no § 72:
Se a questão da historicidade remonta a essas origens, então, com ela, já se decidiu o lugar
do problema da história. Não é na historiografia enquanto ciência da história que se deve
buscar a história. [...] Se a própria historicidade deve esclarecer-se a partir da temporalidade e,
originariamente, a partir da temporalidade própria, então na essência desta tarefa es
poder ser desenvolvida através de uma construção fenomenológica. [...] A análise da
historicidade da presença busca mostrar que esse ente o é temporal porque se encontra
na história mas, ao contrário, que ele existe e só pode existir historicamente porque, no
fundo de seu ser, é temporal. [...] De início, isto se esclarecido, indicando-se que, como
421. Cf. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 2004, Der Begriff der Zeit,
Tübingen, Max Niemeyer, 1989 e History of the concept of time (Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs), Indiana
University Press, Bloomington, 1985.
422. Cf. explicações de Emmanuel Carneiro Leão e Marcia S.C. Schuback em Martin Heidegger, Introdução à metasica,
Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, nota 7, p. 77-78 e Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006,
notas 7 e 88, p. 563 e 582.
423. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 3, p. 46 (grifo nosso).
171
ciência da história da presença, a historiografia deve pressupor o ente originariamente
histórico como seu possível objeto’”
424
.
Apesar do conteúdo da última citação, porém, a do § 3, é mais importante para ver e
entender a dimensão na qual Heidegger concebe e pensa a historicidade da presea. Devemos
atentar para a oposição de idéias presente nessa citação. A oposão evidencia-se tendo as
expressões não é (ist nicht), nem (auch nicht), também o (aber auch nicht), de um
lado, e, mas sim (sondern), de outro. Importa ver aqui a idéia relacionada ao que segue ao
mas sim, a saber: a interpretação daquele ente propriamente histórico em sua
historicidade. De que ente fala Heidegger aqui? Da presença (Dasein). Três aspectos
improtantes devem ser vistos: a) a presença é o ente propriamente histórico, isto é, o caráter
histórico pertence-lhe essencialmente, lhe é constitutivo e, somente por isso, é historicamente
próprio; b) o hisrico em sua historicidade é o acontecer e o dar-se (geschehen) como
conjunto dos acontecimentos humanos no decorrer do tempo; c) a presença tanto tem a
capacidade de dar uma interpretação aos fatos históricos e a si mesma, à medida que se realiza
no tempo (Historie) como, sobretudo (= mas sim, quer dizer, sondern), existe
historicamente, sendo que, nesse sentido primordial, ela sempre já se experimenta em sua
historicidade (Geschichtlichkeit) em tudo que faz, realiza e empreende. Fundamentalmente,
portanto, a partir da expressão empregada por Heidegger, a saber, o primário filosoficamente
(philosophisch Primäre), está em jogo, na presença, a elaboração de sua historicidade, a qual
pode ou não ser tematizada científica ou fenomenologicament, mas, nem por isso, deixa de
pertencer ao ser humano. A partir desse sentido primordial, todo ser humano é histórico.
Chegamos, assim, ao tema central a que nos referíamos no primeiro capítulo, quando
interpretamos o texto da aula de habilitação O conceito de tempo na ciência histórica.
Mostramos que, já em 1915, Heidegger indica que no conceito de tempo da ciência histórica
reside um problema (es steckt ein Problem)
425
. Não se trata de um problema relacionado
exclusivamente à ciência histórica, mas à própria filosofia e, na medida em que é elaborado e
tematizado como fenômeno, relaciona-se fundamentalmente à fenomenologia enquanto
ontologia da presença. Nessa perspectiva, portanto, podemos ler esta passagem do § 8 de Ser e
tempo:
Em seu conteúdo, a fenomenologia é a ciência do ser dos entes é ontologia. Ao esclarecer
as tarefas de uma ontologia, surgiu a necessidade de uma ontologia fundamental, que possui
como tema a presença, isto é, o ente dotado de um privilégio ôntico-ontológico. Pois
424. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, §§ 72 e 76, respectivamente p.
467-468 e 485.
425. Cf. Martin Heidegger, Der Zeitbegriff in der Geschichtswissenschaft, in: Frühe Schriften, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1972, p. 367 (grifo nosso).
172
somente a ontologia fundamental pode colocar-se diante do problema cardeal, a saber, da
questão sobre o sentido de ser em geral
426
.
De fato, na única menção explícita de Ser e tempo ao texto da aula de habilitação,
Heidegger diz: As relações entre os números históricos, o tempo calculado astronomicamente e
a temporalidade e historicidade da presença necessitam de uma ampla investigação
427
. Tanto
Ser e tempo como várias outras obras, ao tematizar a temporalidade e historicidade da
presença, são a realização heideggeriana dessa ampla investigação. No § 6, que trata da tarefa
de uma destruição da história da ontologia, podemos ler esta instigante passagem:
O ser da presença tem o seu sentido na temporalidade. Esta, por sua vez, é também a condição
de possibilidade da historicidade enquanto um modo de ser temporal da própria presença,
mesmo abstraindo da questão do se e como a presença é um ente no tempo. A determinação
de historicidade se oferece antes daquilo a que se chama de história (acontecimento
pertencente à história universal). Historicidade indica a constituição de ser do acontecer,
próprio da presença como tal. É com base na historicidade que a história universal, e tudo
que pertence historicamente à história do mundo, torna-se possível. Em seu ser fático, a
presença é sempre como e o que ela já foi. Explicitamente ou não, a presença é sempre o seu
passado e não apenas no sentido do passado que sempre arrasta atrás de si e, desse modo,
possui, como propriedades simplesmente dadas, as experiências passadas que, às vezes, agem e
influem sobre a presença. Não. A presença é o seu passado no modo de seu ser, o que
significa, a grosso modo, que ela sempre acontece a partir de seu futuro. Em cada um de seus
modos de ser e, por conseguinte, também em sua compreensão de ser, a presença sempre
nasceu e cresceu dentro de uma interpretação de si mesma, herdada da tradição. De certo modo
e em certa medida, a presença se compreende a si mesma de imediato a partir da tradição. Essa
compreensão lhe abre e regula as possibilidades de seu ser. Seu próprio passado, e isso diz
sempre o passado de sua geração, não segue mas precede a presença, antecipando-lhe os
passos
428
.
Esta passagem é importante e esclarecedora, uma vez que não somente traz à tona
aspectos da temporalidade originária da presença, tematizada anteriormente, mas,
concomitantemente, aspectos de como deve-se conceber a historicidade originária da presença.
A historicidade, assim concebida, é uma outra forma de dizer como se dá e acontece, isto é,
como a presença experimenta concretamente a passagem do tempo em sua vida: A presença é
sempre como e o que ela já foi e, assim, de modo elaborado ou não, a presença é sempre o seu
passado. A partir disso, Heidegger estabelece um contraponto fundamental, válido para ver e
entender a estruturação da temporalidade como também da historicidade. O contraponto fica
evidente no emprego da palavra não. Por isso, diz na seqüência: A presença é o seu passado no
modo de seu ser, o que significa, a grosso modo, que ela sempre acontece a partir de seu futuro.
Mais uma vez, Heidegger dá ênfase ao porvir (Zukunft).
Contudo, o tra
ço elementar da historicidade está nesta frase: Em cada um de seus modos
426. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 8, p. 77 (grifo nosso).
427. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 80, nota 233, p. 514 (grifo
nosso).
428. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 6, p. 57-58.
173
de ser (in seiner jeweiligen Weise zu sein), a presença sempre nasceu e cresceu dentro de uma
interpretação de si mesma (eine überkommene Daseinsauslegung). Como poderíamos
caracterizar este traço elementar da historicidade? Chama atenção o fato de Heidegger empregar
nesta frase dois conceitos importantes já analisados por s, a saber: Jeweiligkeit (ser em cada
caso) e Zu-sein (ter de ser). O primeiro possui um sentido eminentemente temporal e o segundo,
existencial. Temporal e existencialmente, poderíamos definir o traço elementar da historicidade
assim: não há absolutamente experiência humana alguma destituída de historicidade (em cada um
de seus modos de ser), pois em tudo que faz, realiza e empreende, o ser humano estabelece um
sentido para si mesmo (a presença sempre nasceu e cresceu dentro de uma interpretação de si
mesma). No contexto do § 6, o pensador apresenta um questionamento fundametal a respeito do
que acabamos de dizer:
Essa historicidade elementar da presença pode permanecer escondida (verborgen) para ela
mesma, mas pode também ser descoberta e tornar-se objeto de um cultivo especial. A
presença pode descobrir a tradição, conservá-la e investigá-la explicitamente. [...] Se a
historicidade fica escondida para a presença e enquanto ela assim permanecer, também se
lhe nega a possibilidade de questionar e descobrir fatualmente a história. A falta de história
fatual (Historie) não é uma prova contra a historicidade da presença mas uma prova a seu
favor, enquanto modo deficiente dessa constituição de ser
429
.
Aqui se esclarece que toda e qualquer possibilidade historiográfica (Historie) sempre já
nasce e cresce (hinein- und aufwachsen), desde o modo de ser fundamental da própria
presença, a historicidade (Geschichtlichkeit). Assim, se é permitido formular um problema aqui,
deveríamos formulá-lo assim: como liberar a historicidade elementar da presença de maneira a
não permanecer escondida ou trancada para ela mesma? Permitimo-nos, por isso, voltar à
interpretação do texto da conferência, de 1924, em que Heidegger apresenta publicamente, pela
primeira vez, sua elaboraração conceptual da temporalidade originária. No final do texto da
conferência, o problema da história é apresentado nestes termos:
O passado permanecerá trancado (verschlossen) para um presente até o momento em que a
presença mesma for histórica. Mas a presença é em si mesma histórica na medida em que é a
sua possibilidade. No ser futuro, a presença é o seu passado; ela volta a este no como (Wie).
[...] A possibilidade de acesso à história funda-se na possibilidade de um presente poder
realmente compreender-se como sendo algo futuro. Este é o primeiro enunciado de toda
hermenêutica. Ele diz algo sobre o ser da presença, que é a historicidade mesma. A filosofia
nunca saberá o que é a historicidade enquanto continuar a classificá-la como um objeto de
observação. O segredo da história reside na questão de saber o que significa ser histórico
(was es heißt, geschichtlich zu sein)
430
.
Podemos realçar aqui três aspectos: a) uma mudança conceptual significativa no modo
de dizer que a historicidade ou o passado possam permanecer (bleiben) inacessíveis. Na
429. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 6, p. 58.
430. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 24-25; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 34/35-36/37.
174
conferência é empregada a expressão permanecer trancado (verschlossen), ao passo que, em
Ser e tempo, o pensador emprega a expressão permanecer escondido (verborgen). Sem fazer
maiores considerações, cabe destacar, de passagem, que Heidegger emprega Verborgenheit
(encobrimento) e Unverborgenheit (desencobrimento) para traduzir a veritas, ou melhor, a aj-
lhvqeia
431
; b) ao lado da mudança no modo de perguntar o quê (Was) para quem (Wer), já
abordado por nós, chama atenção aqui o como (Wie). Como diz modo de acesso. É
importante ver e entender aqui que o modo não é estranho à própria coisa investigada. Nesse
caso, o modo de acesso deve ter o jeito da própria coisa. Também aqui, sem maiores
considerações, devemos ressaltar que a palavra jeito (Geschick), na língua materna de
Heidegger, tem a mesma raiz que história (Geschichte) e destino (Schicksal). Ao lado desses
dois aspectos importantes, porém, há este fundamental: c) a possibilidade de desencobrir e
desvelar, ou melhor, de ter acesso à história funda-se na possibilidade de um presente poder
realmente compreender-se como sendo algo futuro, que Heidegger considera como enunciado
elementar para toda hermenêutica. Também aqui, sem maiores considerações, não devemos
restringir este toda (aller) apenas à possibilidade de acesso à historicidade ou ao passado,
mas a absolutamente toda e qualquer possibilidade compreensiva e interpretativa da presença.
A partir disso, evidencia-se que a possibilidade de acesso, isto é, de compreender e
interpretar a historicidade ou a história, relaciona-se a um modo específico de voltar atrás
(Zurückkommen). Importante perceber que Heidegger vê na possibilidade de voltar atrás um
modo próprio de vir de volta, sendo, por isso mesmo, um modo de vir a ser, de porvir. É que
vir de volta (zurück-kommen) guarda o mesmo sentido de porvir (zu-kommen). Assim, o
passado é tudo menos o passar ou o que passou (Vorbei), afirma Heidegger. O passado é algo
para o qual sempre posso retornar (Sie ist etwas, worauf ich immer wieder zurückkommen
kann). O propriamente histórico, ou seja, o passado (Vergangenheit) é a história em seu caráter
mais próprio (engentliche Geschichte).
No âmbito das investigações heideggerianas que se encontram sob o tulo temporalidade
e historicidade, devemos perguntar e aprofundar outros pontos. Nesse sentido, talvez
pudéssemos perguntar: de que fonte histórica bebe Heidegger para chegar a esta conceituação de
historicidade e história? São muitas. Na aula de habilitação de 1915 são citados: J. Bodinus, E.
Meyer, E. Bernheim, J.G. Droysen, E. Troeltsch, H. Rickert, L. Ranke, sendo que os dois
últimos, ao lado de Windelband, G. Simmel e G. Misch, são mencionados também no § 77 em
Ser e tempo. Além desses autores, também Jacob Burckhardt. No livro em que interpreta
431. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 44, p. 282s.
175
Parmênides, há uma passagem que comprova na primeira frase! praticamente o essencial que
dissemos até aqui a respeito da historicidade:
Tudo que é historiográfico (Historische) orienta-se a partir do histórico (Geschichtliche). A
história, ao contrário, não tem nenhuma necessidade da historiografia. O homem da
historiografia é, sempre, apenas um técnico, um jornalista. Um pensador da história é
totalmente distinto do historiógrafo. Jacob Burckhardt não é nenhum historiador, mas um
verdadeiro pensador da história
432
.
Todavia, no capítulo temporalidade e historicidade, dois outros autores são realmente fonte
de inspiração: Wilhelm Dilthey e Paul Yorck von Wartenburg, o Conde Yorck. Heidegger mesmo
atesta isso no início do § 77: A discussão empreendida acerca do problema da história nasceu da
assimilação do trabalho de Dilthey. Foi confirmada e consolidada pelas teses do Conde Yorck,
dispersas em sua correspondência com Dilthey
433
.
Heidegger teve acesso a esta correspondência, que durou de 1877 a 1897, publicada na
Alemanha em 1923
434
. Ele mostra, a partir das cartas, que havia um interesse comum, entre os
dois pensadores da história, de compreender a historicidade. De fato, o texto A colocação da
questão de Dilthey e a tendência fundamental de Yorck, do ano de 1924 e publicado no volume
64 das obras completas, corresponde, em forma e conteúdo, às idéias centrais desenvolvidas por
Heidegger no capítulo dedicado ao tema da historicidade em Ser e tempo
435
. Gadamer, por
exemplo, mostra exaustivamente como as idéias de Dilthey e York são fundamentais na
elaboração heideggeriana da fenomenologia hermenêutica, da estrutura prévia da compreensão e
da historicidade da compreensão como princípio hermenêutico
436
.
Dessas cartas, Heidegger transcreve várias passagens significativas como estas: Mas
conhecimento histórico é, em grande parte, conhecimento das fontes veladas (p. 109). Na
história, o principal não é o espetáculo e o que na vista. Os nervos são invisíveis tal como o
essencial. E da mesma forma que se diz: Guardando silêncio, sereis fortes, também é verdadeira a
variante: Guardando silêncio, havereis de perceber, isto é, de compreender (p. 26). E, então,
desfruto do diálogo do silêncio comigo mesmo e do trato com o espírito da história (p. 133)
437
.
Inspirado, pois, em Dilthey e York, Heidegger formula seu questionamento baseado no fato de
que a história consiste no acontecer específico da presença existente no tempo: Em que medida e
432. Martin Heidegger, Parmenides, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1992, p. 94-95.
433. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 77, p. 490-491.
434. Cf. Charles R. Bambach, Heidegger, Dilthey, and the crisis of historicism, Ithaca/Londres, Cornell University Press,
1995, Marion Heinz, Zeitlichkeit und Temporalität im Frühwerk Martin Heideggers, Würzburg/Amsterdam,nigshausen
& Neumann/Rodopi, 1982, p. 138-163 e Françoise Dastur, Heidegger e a queso do tempo, Lisboa, Instituto Piaget, 1997,
p. 108-116.
435. Cf. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 2004, p. 5-15.
436. Cf. Hans-Georg Gadamer, Verdade e todo, Petrópolis, Vozes, 1998, p. 335s. Cf. também Kurt Flasch, Was ist
Zeit?, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1993, p. 37-42 e Jaime Montero Anzola, Reflexiones en torno a Ser y
tiempo de Martin Heidegger, in: Franciscanum, Santafé de Bogotá, ano 37, n. 112, jan./abr. 1996, p. 36.
437. Cf. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 2004, p. 12 (grifo nosso). A
numeração de páginas entre parêntesis corresponde à edão alemã utilizada por Heidegger: Briefwechsel zwischen Wilhelm
Dilthey und dem Grafen Paul Yorck von Wartenburg (1877-1897), M. Niemeyer Halle (Saale), 1923.
176
em quais condões ontológicas, a historicidade, enquanto constituição essencial, pertence à
subjetividade do sujeito histórico?
438
. Para encaminhar qualquer resposta a esta questão, devemos
considerar o que Heidegger resumidamente antecipa, no § 66, a respeito da historicidade:
A estrutura ontológica desse ente, que eu mesmo sou, centra-se na autoconsistência da
existência. Porque o si-mesmo não pode ser concebido nem como substância e nem como
sujeito, estando fundado na existência, a análise do impropriamente-si-mesmo, isto é, do
impessoal, foi totalmente abandonada ao fluxo da interpretação preparatória da presença.
Tendo-se, agora, retomado expressamente o si-mesmo na estrutura da cura e, assim, da
temporalidade, a interpretação temporal da autoconsistência e da consistência do não si-
mesmo recebe uma gravidade própria. Ela necessita de um desenvolvimento temático
especial. Contudo, ela não apenas propicia uma segurança correta contra os paralogismos e
as questões ontologicamente inadequadas sobre o ser do eu, como também oferece, ao
mesmo tempo, e de acordo com sua função central, uma visão mais originária da estrutura
de temporalização da temporalidade. Esta se desvela como a historicidade da presença
439
.
Vê-se claramente aqui que a autoconsistência relaciona-se à propriedade e a consistência
do não si-mesmo à impropriedade da presença. A gravidade própria da questão consite em
mostrar, pois, como, através da tematização da historicidade, é possível a constituição ontológica
do ser do eu da presença. Apesar de ter analisado o fenômeno da morte, Heidegger a
necessidade de demonstrar fenomenologicamente como a presença se ex-tende (erstreckt) entre
seu nascimento e morte, isto é, está em jogo esclarecer o fato de ser no tempo, condição de
possibilidade de toda e qualquer compreensão histórica. Reconhece que, mesmo na análise do ser-
todo, se passou por cima do nexo da vida (Zusammenhang des Lebens), ou seja, do contexto no
qual a presença, já sempre e de algum modo, se mantém.
Nessa direção, Heidegger parte de uma pergunta bastante óbvia: o que de mais
simples (einfacher) do que caracterizar o nexo da vida entre nascimento e morte? Ninguém
duvidaria que o nexo ou contexto é preenchido por uma seqüência de vivências no tempo.
Contudo, se formos analisar esta caracterização com mais profundidade, principalmente em suas
bases ontológicas, o resultado é curioso e, então, não tão óbvio. Com efeito, na seqüência de
vivências, o que significa cada agora? O que significam as vivências passadas e futuras, se elas
já não são mais ou ainda não são? De fato, a presença, à medida que existe, percorre e
transcorre o espaço de tempo que lhe é concedido entre dois limites, isto é, entre nascimento e
morte, de modo que deve ser real cada agora. Trata-se apenas de uma seqüência de agoras?
A única constatação segura, por enquanto, é: a presença é um ente temporal.
Está em jogo, portanto, interpretar a historicidade existencialmente, submetendo o nexo ou
contexto (Zusammenhang) no qual a presença se ex-tende a uma análise fenomenológica, já que a
compreensão do propriamente histórico nasce dali. A intenção de Heidegger é mostrar que a
438. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 73, p. 471 e 474.
439. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 66, p. 417.
177
presença é histórica porque a historicidade se enraíza na temporalidade originária, de modo que, por
causa mesmo desse enraizamento, a historicidade da presença pode ser tanto própria como
imprópria. Evidencia-se, assim, que a própria historicidade é um modo possível de temporalização
da temporalidade.
Contudo, Heidegger se pergunta: O decisivo não será sempre apenas uma vivência
singular na seqüência de todo o contexto da vida? Será que o nexo do acontecer em sentido
próprio consiste de uma seqüência ininterrupta de decisões? Por que a questão sobre a
constituição do nexo da vida até hoje não encontrou uma resposta satisfatória? Será que, na
pressa de chegar a uma resposta, a investigação não deixou de examinar, preliminarmente, a
legitimidade da questão? ele reconhece, como já havia demonstrado ao longo da analítica
existencial, que há uma tendência de a ontologia da presença sempre de novo cair vítima das
seduções da compreensão vulgar de ser (vulgären Seinsverständnisses). Deve-se admitir, então,
que pertence à historicidade do ser da presença o existir impróprio, podendo também esse modo
ser histórico, embora de maneira imprópria. Nesse caso, pergunta-se, será que a historicidade
imprópria da presença pode determinar a direção do questionamento do nexo da vida e, com
isso, obstruir o acesso à historicidade própria e a seu nexo específico?
440
No § 77, Heidegger fala como os estudos de Yorck e Dilthey lhe foram inspirtadores:
Dessa forma se esclarece em que sentido a analítica existencial e temporal preparatória da
presença se decidiu por cultivar o espírito do Conde Yorck para servir à obra de Dilthey
441
. O
que é relevante, para Heidegger, é o método de apreender, através do pensamento, a realidade
exterior. Nesse sentido, no § 43, Heidegger cita de Dilthey: Pois se deve haver para o homem
uma verdade de validade universal, então, segundo o método dado primeiramente por Descartes,
o pensamento deve trilhar um caminho dos fatos da consciência em oposição à realidade
exterior
442
. De Heidegger sobre Dilthey, no § 10: As investigações de W. Dilthey são animadas
pela insistente questão da vida. Ele procura compreender as vivências dessa vida, em seus
nexos de estrutura e desenvolvimento, a partir da totalidade da própria vida. O que a sua
psicologia enquanto ciência do espírito possui de filosoficamente relevante não se explica por
se orientar pelos elementos e átomos psíquicos e de não mais pretender costurar os pedaços da
vida psíquica, mas sim por visar à totalidade da vida e a suas figuras de conjunto
443
.
Fizemos questão de mostrar estas passagens aqui, uma vez que elas revelam uma fonte
importante na qual Heidegger se inspira para pensar a hirtoricidade da presença. Assim, sendo a
440. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 74, p. 479.
441. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 77, p. 497 (grifo nosso).
442. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, § 43, nota 95, p. 274. A obra
referenciada por Heidegger e de onde tira estas palavras é: Beitge zur Lösung der Frage vom Ursprung unseres Glaubens
an die Realität der Aussenwelt und seinem Recht (de 1890).
178
meta de nossa investigação evidenciar de onde e como Heidegger elabora seu conceito de tempo,
devemos considerar que o pensamento de Yorck e Dilthey foi fundamental para Heidegger elaborar
o conceito de historicidade. Segundo o pensador, trata-se de cultivar o espírito de Yorck e que
serviu à obra de Dilthey. Porém, como ele mesmo reconhece, não somente para a tematização da
historicidade da presença, também para a analítica existencial e temporal da presença.
De fato, segundo o modo de pensar de Heidegger, há a pressuposição de que o fundamental e
o essencial, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, permanece sempre encoberto e
só com dificuldade ou raramente chega a ser conceptualizado. A tarefa que ele mesmo se impõe vai
nessa direção: pensar o que nunca havia sido pensado antes e, para poder dizer este o-pensado,
elaborar novos conceitos, se necessário. Nesse sentido, há uma frase, mencionada por nós, da
correspondência entre o Conde Yorck e Dilthey, que mostra em que direção pensa Heidegger ao
tematizar a historicidade: Os nervos são invisíveis tal como o essencial. Ele pensa sempre o
essencial, o fundamental. Por isso, se o essencial e o fundamental carecem de uma fundamentação
suficiente, trata-se então de elaborá-la. Dessa necessidade nasce a ontologia fundamental da
presença. De fato, o essencial é condição de possibilidade de qualquer objetividade. De fato, no e
pelo historiar-se da presença, o essencial ganha visibilidade e concretude. Ortega teria dito, certa
ocasião: No sabemos lo que nos pasa, y eso es lo que nos pasa
444
.
Ao interpretar a poesia de Hölderlin, Heidegger diz: Somente onde domina mundo,
acontece história. [...] Desde que o tempo surgiu e foi detido, desde então somos históricos. O
ser-que-fala e ser-histórico são ambos traços igualmente antigos, pertencem um ao outro e são o
mesmo
445
. Por isso, provocando-nos a pensar a problemática do tempo, escreveu em Que é
metafísica?:
Chamamos de pensamento fundamental (wesentliche Denken) aquele cujos pensamentos
não apenas calculam, mas são determinados pelo outro do ente. Em vez de calcular com o
ente sobre o ente, este pensamento se dissipa no ser pela verdade do ser. Este pensamento
responde ao apelo do ser enquanto o homem entrega sua essência historial à simplicidade da
única necessidade que não violenta enquanto submete, mas que cria o despojamento que se
plenifica na liberdade do sacrifício
446
.
443. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 10, p. 91.
444. Cf. Hugo Assmann, Reencantar a educão, Petrópolis, Vozes, 1998, p. 189.
445. Martin Heidegger, Erläuterungen zulderlins Dichtung, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1951, p. 35 e 37.
446. Martin Heidegger, Que é metafísica?, São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1969, p. 54-55 (cf. edição alemã: Nachwort
zu: Was ist Metaphysik? (de 1943), in: Wegmarken, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1967, p. 104-105). Em
O discurso dos 80 anos (de 1969), diz-nos também Heidegger: Talvez aconteça que algum dia o homem se enfastie dos
produtos de suas pretensas produções e de repente comece a questionar. Talvez também possa ocorrer que a desolação
atinja tal nível que as necessidades se nivelem a ponto de o homem nem sentir a decadência interior e o vazio de sua
existêcia. Talvez possa também acontecer outra coisa. Em qualquer caso, como quer que seja ou aconta: nós não nos
devemos queixar, temos é de nos questionar! (cf. revista Cultura Vozes, Homenagem a Heidegger, Petrópolis, ano 71, n.
4, 1977, p. 333). Cf. também Hugo Assmann, Reencantar a educação, Petrópolis, Vozes, 1998, p. 216, onde o autor,
fazendo referência a Heidegger, diz: o pensamento gico, formalizador e calculante (rechnendes Denken) e pensamento
ponderador, meditativo e inquiridor do sentido (besinnendes Denken).
179
No intuito de responder positivamente aos novos questionamentos para os quais Heidegger
como pensador desperta, propõe-se conduzir o fenômeno vida a uma compreensão filosófico-
fenomenológica e, assim, assegurar um fundamento hermenêutico seguro para a vida ela mesma.
Percebe que o Conde Yorck empreendeu esforços significativos no sentido de distinguir o histórico
em oposição ao ôntico, de modo a conduzir o fenômeno vida a um modo de compreensão
científica adequada.
Heidegger chega à evidência, então, que a constituição fundamental da historicidade é a
historicidade própria da presença (eigentliche Geschichtlichkeit des Daseins), a qual possui o
caráter do acontecer próprio da decisão antecipadora. Com efeito, pelos fenômenos transmissão
(Überlieferung) e retomada (Wiederholung), ambos enraizados no porvir (Zukunft), descobre-se o
acontecer da história em sentido próprio como vigor de ter sido (Gewesenheit). Nessa mesma
perspectiva, reconhece Heidegger, o ser-para-a-morte em sentido próprio, ou seja, a finitude da
temporalidade, é o fundamento velado da historicidade da presença
447
.
A relevância do problema do estudo da história e da historicidade, a partir de Wilhelm
Dilthey, pode ser vista num artigo de Carneiro Leão. Segundo ele, a temporalidade e historicidade
constituem a própria morada de toda a existência humana, são a estrutura do ser do homem e de
todo o mundo humano. De fato, em cada momento da vida está em jogo toda a vida humana:
Uma das originalidades de nossa época é haver descoberto na temporalidade e
historicidade a morada de toda a existência. Em conseqüência, o problema do tempo deixa
de ser considerado apenas como o de uma propriedade das coisas. [...] Temporalidade e
historicidade são a estrutura do ser do homem e de todo o mundo humano. Não apenas
enquanto ato e dinamismo mas também como conteúdo, a existência é o vigor de uma
configuração histórica. Em cada momento da vida está em jogo toda a vida no sentido de o
sujeito empenhar a vida inteira durante toda a sua vida. [...] em cada um de seus momentos
se com-plicam todos os demais; os momentos do futuro e passado se im-plicam no presente
e o curso histórico não é senão a ex-plicação objetiva desse movimento de com-plicação e
im-plicação
448
.
3.5
T
EMPORALIDADE E INTRATEMPORALIDADE COMO ORIGEM DO CONCEITO VULGAR DE
TEMPO
Seguindo o procedimento adotado em outros momentos de nossa investigação, indicamos,
a seguir, as principais obras nas quais Heidegger analisa a temporalidade da presença na
perspectiva do tempo ocupado, do tempo do mundo e da intratemporalidade. São elas: Ser e tempo
(§§ 78 a 81), Os problemas fundamentais da fenomenologia (§ 20), a terceira parte do volume 64,
intitulada Presença e temporalidade e, também, Seminários de Zollikon, que compõe o volume
447. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 74, p. 479.
180
89, publicado nas obras completas de Heidegger pela Vittorio Klostermann de Frankfurt. Este
último volume não contém somente os seminários (de 1959 e 1969), realizados na resincia de
Medard Boss, em Zollikon, próximo a Zurique, como também diálogos (de 1961 e 1972) e cartas
(de 1947 a 1971) entre o pensador e o psiquiatra suíço. Para cumprir nossa meta, são relevantes as
reflexões dos seminários diretamente relacionados à análise do fenômeno do tempo, seminários que
foram realizados entre 1964 e 1965
449
.
Embora estas referências sejam importantes, devemos considerar, no entanto, pelo caminho
percorrido até aqui, que pontos fundamentais vistos por nós e que devem ser considerados.
Segundo nosso modo de ver, sem considerá-los, é praticamente impossível ver e entender como
Heidegger tematiza a temporalidade e a intratemporalidade como origem do conceito vulgar de
tempo.
Nesse sentido, devemos considerar: a) a análise interpretativa que fizemos da aula de
habilitação de 1915 e da conferência de 1924, b) a análise da constituição fenomenal
mundanidade do mundo, c) a análise do ser da presença como cura, d) a tematização da
temporalidade originária e própria da presença, e) a tematização do historiar-se próprio da
presença. Com efeito, cada um desses pontos concentra uma idéia significativa e que deve ser
levada em conta na abordagem que agora se propõe. De fato, como foi anunciado por nós
repetidas vezes, o modo de tematizar a temporalidade a partir da intratemporalidade evidencia,
de forma clara e contundente, o modo peculiar de Heidegger conceber o conceito da
temporalidade originária da presença enquanto ekstática e horizontal. Por isso mesmo, como
vimos, traços fundamentais da temporalidade também foram trazidos à luz mediante a
tematização da historicidade.
Portanto, ainda não foi explicitado suficientemente, sob o ponto de vista fenomenal, como,
ao ocupar-se cotidianamente do tempo, a presença o compreende e interpreta. Devemos
considerar por isso que, na conferência de 1924, Heidegger fala da necessidade de uma ciência
prévia (Vorwissenschaft). De fato, somente a partir de uma ciência prévia é possível ver e
entender o que é prévio, ou melhor, o que ontologicamente se e acontece por antecipação.
Nesse sentido, esta ciência prévia deve ocupar-se e tematizar o modo de ser da presença em seu
modo de ser mais factual e cotidiano, quer dizer, antes de toda e qualquer elaboração temática,
sendo, em contrapartida, condição de toda possibilidade de tematização. Segundo Heidegger,
448. Emmanuel Carneiro Leão, O problema da história em W. Dilthey, in: Aprendendo a pensar, Petrópolis, Vozes,
1991, p. 30-40.
449. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, §§ 79 e 81, p. 500-525; Die
Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 20, p. 389-429; Der Begriff der
Zeit, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 2004, p. 45-83; Martin Heidegger e Medard Boss, Zollikoner Seminare:
Protololle, Zwiegespräche, Briefe, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1994; tradução brasileira: Semirios de
Zollikon, Petrópolis: Vozes; o Paulo: ABD/EDUC, 2001, p. 51-102.
181
porém, a possibilidade de uma tematização ontológica dos modos pré-ontológicos de ser da
presença deve admitir, de saída, poder ela realizar-se de maneira própria e imprópria. Essa
dualidade, no entanto, não tem nenhuma conotação moral valorativa, sendo apenas duas
caracterizações do modo de ser da própria presença, ambas igualmente originárias. Esperamos ter
sido possível mostrar isso suficientemente na tematização da temporalidade originária.
Vimos que o que fundamenta a temporalidade, enquanto sentido ontológico da cura, não
reside numa compreensão natural, vale dizer, no modo a partir do qual grande parte da tradição
metafísica compreendeu e interpretou o tempo. De fato, no intuito de apresentar os objetivos de
Heidegger em relação à tematização da temporalidade, citamos no início deste terceiro capítulo:
Se a temporalidade constitui o sentido ontológico originário da presença, onde está em jogo
o seu próprio ser, então a cura deve precisar de tempo e, assim, contar com o tempo. A
temporalidade da presença constrói a contagem do tempo. O tempo nela experimentado é
o aspecto fenomenal mais imediato da temporalidade. Dela brota a compreensão cotidiana e
vulgar do tempo. E essa se desdobra, formando o conceito tradicional de tempo.
O esclarecimento da origem do tempo, no qual entes intramundanos vêm ao encontro, do
tempo como intratemporalidade, revela uma possibilidade essencial de temporalização da
temporalidade. Com isso, prepara-se a compreensão de uma temporalização ainda mais
originária da temporalidade. Nela funda-se a compreensão de ser constitutiva do ser da
presença. O projeto de um sentido do ser em geral pode cumprir-se no horizonte do
tempo
450
.
Todas as palavras e expressões entre aspas evidenciam, assim pensa Heidegger, um modo de
compreensão natural do tempo. Na perspectiva analítica do pensador, o modo como o tempo vem ao
encontro na cotidianidade (Allglichkeit) não quer dizer, primeiramente, que o tempo naa como
tempo natural (Naturzeit), mas como tempo ocupado (besorgte Zeit) e como tempo do mundo
(Weltzeit). Daí que, se a compreensão natural do tempo tende a impor-se e a predominar, pergunta-se
ele, será o único modo de temporalizão do tempo? vimos, a partir da tematizão da
temporalidade, que não. Contudo, Heidegger insiste sempre de novo na necessidade de mantermos
um olhar retrospectivo em relação aos femenos, no caso, especificamente ao fenômeno do tempo,
ou melhor, ao modo como o tempo se temporaliza. Nesse sentido, para o que interessa ver e entender
aqui, devemos ter presente, em forma de síntese, três breves citações dos §§ 38, 39 e 45 da analítica
existencial ou, como o pensador também a chama preparatória:
Este termo [decadência] o exprime qualquer avaliação negativa. Pretende apenas indicar
que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença está junto e no
mundo das ocupações. Este empenhar-se e estar junto a... possui, freqüentemente, o caráter
de perder-se no caráter blico do impessoal. Por si mesma, em seu próprio poder-ser si
mesmo mais autêntico, a presença já sempre caiu de si mesma e decaiu no mundo. [...] Se,
no entanto, mantivermos o ser da presença na constituição de ser-no-mundo, revelar-se-á
que, enquanto modo de ser deste ser-em, a decadência apresenta a prova mais elementar a
favor da existencialidade da presença. Na decadência, trata-se apenas de poder-ser-no-
450. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 45, p. 307-308.
182
mundo, embora no modo da impropriedade. A presença pode decair porque nela está em
jogo o ser-no-mundo, no modo de compreender e dispor-se. Em contrapartida, a existência
própria não é nada que paire por sobre a decadência do cotidiano. Em sua estrutura
existencial, ela é apenas uma apreensão modificada da cotidianidade
451
.
A interpretação ontológica da presença como cura está muito distante daquilo que é
acessível para a compreensão pré-ontológica do ser ou mesmo para o conhecimento ôntico
dos entes, da mesma forma que toda análise ontológica se distancia daquilo que conquista.
Não é de admirar que o entendimento comum estranhe o que se conhece ontologicamente, já
que considera apenas o que conhece onticamente
452
.
O esclarecimento da origem do tempo, no qual entes intramundanos vêm ao encontro,
do tempo como intratemporalidade, revela uma possibilidade essencial de temporalização da
temporalidade. Com isso, prepara-se a compreensão de uma temporalização ainda mais
originária da temporalidade. Nela funda-se a compreensão de ser constitutiva do ser da
presença. O projeto de um sentido do ser em geral pode cumprir-se no horizonte do
tempo
453
.
Interessa aqui ter clareza e manter nossa atenção voltada para duas idéias: a) o ser da
presença se funda na cura (Sorge). Assim, de um lado, a cura é o achado fenomenal pelo qual
Heidegger concebe a unidade e a totalidade originária do ser da presença, a qual é co-tematizada
na analítica temporal e, de outro, toda a analítica existencial é uma preparação para a exposição
da temporalidade como sentido ontológico da cura; b) o conceito ontológico mundo (Welt) não
pode ser retirado da natureza como, por exemplo, no sentido moderno das ciências físicas. Ao
contrário, é necessário partir do ser-no-mundo cotidiano e da interpretação do ente que vem ao
encontro no mundo circundante (Umwelt), significando, nessa acepção, totalidade conjuntural. É
fundamental, por isso, perceber que mundo refere-se sempre já ao contexto em que a presença
fática vive (existe) e, conseqüentemente, nunca ao modo do ente que ela, em sua essência, não
é. De fato, pelo conceito ontológico mundo revelou-se a mundanidade do mundo da presença.
A partir disso, é fundamental perceber que: a) o tempo ocupado (besorgte Zeit) possui uma
relação não somente etimológica, mas de sentido com a cura (Sorge) e b) o tempo do mundo
(Weltzeit) relaciona-se, também, o somente sob o ponto de vista etimogico, mas, sobretudo,
ontológico com o mundo (Welt) como totalidade de sentido. Devemos recordar, por isso, que um dos
objetivos principais do segundo capítulo de nossa investigação reside nisso, a saber: que tanto ser-no-
munto como cura remetem para a totalidade e a unidade da presença.
Uma orientação ou sustentação metodológica do que será abordado, a seguir, encontra-se
no § 79 de Ser e tempo, onde Heidegger, ao fazer uma clara referência à abordagem da
temporalidade no § 65, diz:
Caracterizamos, anteriormente, o existir próprio e impróprio no tocante aos modos de
temporalização da temporalidade. Assim, a indecisão da existência imprópria se temporaliza
451. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 38, respectivamente p. 240 e
244-245.
452. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 39, p. 246.
453. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 45, p. 307-308.
183
numa atualização que não atende e que esquece. O indeciso se compreende a partir dos
dados e acasos mais próximos, que vêm ao encontro e variadamente se impõem nessa
atualização. Perdendo-se na ocupação de múltiplos afazeres, o indeciso perde seu tempo.
Por isso, o seu discurso característico é: eu não tenho tempo. Da mesma forma que aquele
que existe impropriamente sempre perde tempo e nunca tem tempo, também a
temporalidade da existência própria se distingue pelo fato de que, na decisão, ela nunca
perde tempo e sempre tem tempo. Pois, com referência à sua atualidade, a temporalidade
da decisão tem o caráter de instante
454
.
Se, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a cura ocupa-se guiada por uma
circunvisão. Por isso mesmo, se a presença deve poder desgastar-se, então, à medida que se
desgasta, ela gasta a si mesma, ou melhor, gasta seu tempo. Gastando tempo, ela conta com ele. A
ocupação que conta e atravessa a circunvisão dentro do mundo sempre descobre o tempo,
levando-o a uma compreensão na forma de uma contagem do tempo. Por essa razão, o contar com
o tempo é constitutivo do ser-no-mundo, Heidegger escreve a respeito da interpretação no § 66:
O ente intramundano é, então, acessível como o que está sendo no tempo. Chamamos de
intratemporalidade a determinação temporal dos entes intramundanos. O tempo que nela,
de início, se pode encontrar onticamente torna-se a base da formação do conceito vulgar e
tradicional de tempo. O tempo enquanto intratemporalidade surge, no entanto, de um modo
essencial de temporalização da temporalidade originária. Esta origem diz que o tempo no
qual nasce e perece um ente simplesmente dado é um fenômeno autêntico do tempo e não a
exteriorização para o espaço de um tempo qualitativo, como pretende fazer crer a
interpretação do tempo feita por Bergson, que, do ponto de vista ontológico, é inteiramente
insuficiente e indeterminada
455
.
Porém, na concepção heideggeriana, segundo a qual o conceito vulgar de tempo possui uma
origem na própria temporalidade imprópria, só pode ser confirmada mediante uma descrição
fenomenológica da estrutura do tempo ocupado e do tempo do mundo. Para cumprir essa meta,
Heidegger privilegia a definição aristotélica do tempo. Assim, feitas estas considerações
introdutórias, devemos voltar nossa atenção para os modos de temporalização da temporalidade
como tempo ocupado, tempo do mundo e intratemporalidade. Um dos objetivos principais de
Heidegger, portanto, consiste em mostrar como o conceito vulgar de tempo nasce da
temporalidade imprópria e, sobretudo, como veremos, a concepção aristotélica do tempo é
igualmente originária, embora parta de uma orientação ontológica diversa. A partir disso, serão
abordados os seguintes pontos: a) o tempo ocupado, b) o tempo do mundo e c) a intratemporalidade
como origem do conceito vulgar de tempo.
3.5.1 O tempo ocupado
O que se pretende, então, é ver e entender como o tempo é experimentado na ocupação
cotidiana. Um primeiro modo possível de compreender o tempo é o do uso do relógio. Para isso,
454. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 79, p. 500.
455. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 66, p. 418.
184
não partiremos de um exemplo qualquer, mas de um exemplo proveniente da interpretação
heideggeriana de Kant. Heidegger analisa:
Que o tempo tenha passado das 5:15 para às 6:00 horas, nada tem a ver com o giz. Na
verdade dizemos: com o tempo e no decurso do tempo as coisas alteram-se. A mal
afamada usura do tempo deve roer, de fato, as coisas. Que elas se modificam no decurso
do tempo, não se pode contestar. No entanto, alguém observou, alguma vez, o modo como
o tempo rói as coisas, quer dizer, de que modo, em geral, ele executa nelas o seu trabalho?
Mas talvez o tempo das coisas só se possa observar em coisas totalmente peculiares.
Conhecemos coisas dessas: os relógios. Eles indicam o tempo. Consideremos este relógio:
onde está o tempo? Vemos um mostrador e ponteiros em movimento, mas não vemos o
tempo. Podemos abrir o relógio e procurar. Onde está o tempo? Mas o relógio não indica
o tempo de modo imediato. Está regulado pela indicação do tempo do Observatório da
Marinha em Hamburgo. Se viajarmos até lá e perguntarmos às pessoas onde é que guardam
o tempo, ficaremos a saber tanto como antes da viagem
456
.
A partir dessa descrição, devemos reconhecer: o relógio mede o tempo, ele crono-metra o
tempo. Mas, a rigor, como mede o relógio o tempo? A partir disso, deve-se perguntar também: o
que mede o relógio, o que crono-metra ele, de fato? Dizemos: o tempo. Mas onde está, no
relógio, o tempo? Dizemos: o relógio, enquanto instrumento de med. mede o tempo. Sem este
medir, o que seria do instrumento relógio? Teria ele alguma razão de ser sem esta função de
medir o tempo? O que significa, então, medir... o tempo? Deve haver, portanto, alguma razão que
sustente o ser instrumento do manual relógio.
Assim, o que mede o relógio, o que ele crono-metra? Mede ele o tempo ou apenas o espaço
percorrido pelos ponteiros que andam? Não mede, pois, o relógio também o espaço percorrido
entre um ponto anterior e outro posterior? Não é isso e para isso que o ponteiro do relógio
continuamente aponta e indica, apesar de o tempo, mesmo assim e apesar disso, continuar
passando à medida que os ponteiros do relógio avançam? Nesse caso, para onde e para que
indicam os ponteiros? Será mesmo que eles indicam para o espaço percorrido em seu
percurso? De fato, o que há de mais comum senão contar com o tempo medido no e pelo uso do
relógio? E, todavia, onde, no relógio, encontramos nós o tempo? Paremos e perguntemos, pois,
mais uma vez: o que e como é isso, o tempo do agora medido no e pelo relógio?
Qualquer que seja o caso, o tempo medido ou cronometrado pelo relógio é o tempo que
está continuamente passando. A conclusão a que somos levados e arrastados é: cada agora é um
agora ao lado de outros agoras indiferentes, homogêneos, sem-começo e sem-fim, portanto,
sucessivos, sejam anteriores ou posteriores. A partir dessa constatação, todo e qualquer agora é
nivelado a uma pura seqüência de agoras, sem-começo e sem-fim. Nessa compreensão, todo e
qualquer agora mostra-se como sendo indiferente e homogêneo, isto é, são indistintos e iguais.
456. Martin Heidegger, Que é uma coisa?, Lisboa, Edições 70, 1992, p. 31. Cf. tamm Martin Heidegger, Zeit und Sein,
in: Zur Sache des Denkens, Tübingen, Max Niemeyer, 1969, p. 11; tradução brasileria: Tempo e ser, de 1962, in:
Conferências e escritos filoficos, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 461.
185
Indistintos e iguais tanto em relação ao agora já passado como em relação ao agora que ainda não
adveio. Nesse sentido, todo e qualquer agora é homogêneo e sucessivo em relação a outros
possíveis agoras, quer do passado, do presente ou do futuro. Cada agora é contado, ou melhor,
medido e cronometrado. Por fim, chega-se inevitavelmente à conclusão de que o tempo não se
deixa deter, isto é, que ele não pára nunca e que ele simplesmente passa.
Por outro lado e isso é deveras importante aqui! , o relógio, enquanto instrumento de
mensuração do tempo, está em função de, em cada agora que passa, medir o que passa. Porém,
será mesmo isso que nós vemos, isto é, que o tempo é o que não pára? De fato, este é apenas o
tempo do agora medido pelo relógio, do agora que constantemente passa, do agora que não se
deixa deter e, por não poder ser detido, continua avançando, passando...
No entanto, mantenhamo-nos cautelosos: o agora-agora (presente) é mesmo o que é
medido entre um agora-não-mais (passado) e um agora-ainda-não (futuro)?
457
Afinal, o que
mede o relógio, se os agoras irreversivelmente passam? O tempo que passou não é nunca o tempo
que ainda pode advir? De fato, o tempo que ainda não passou é aquele que ainda pode advir. O
tempo que ainda pode advir, o depois, não pode ser o anterior, como este não pode ser aquele.
A prova mais contundente contra esse modo exclusivo de compreender o tempo relaciona-
se ao fato seguinte: mesmo se todos os relógios parassem de funcionar repentinamente e ao
mesmo tempo, mesmo assim ele não continuaria passando? Da mesma forma, se o ser humano
jamais tivesse inventado um instrumento como o relógio para medir o tempo, sempre já não o
teria descoberto um modo de levá-lo em conta dessa ou daquela maneira?
458
Como, porém, e por quê? A presença humana, porque existe, é a medida de seu próprio
tempo. Ela existe à medida que o tempo nela se temporaliza. O tempo se temporaliza à medida
que ela o leva em conta de algum modo. Assim, não ação ou ocupação humana alguma sem
que o tempo seja ou esteja pré-visto e, conseqüentemente, compreendido de alguma forma. Ora,
o ente que é ao modo de ocupação é a própria presença. A presença, enquanto ente aberto, existe
temporalmente e, nesse sentido, se temporaliza, dessa ou daquela maneira.
Pelo que acabamos de dizer, dá para perceber que Heidegger não se opõe à compreensão
do tempo ao modo da mensuração e da cronometragem. Em que consiste, então, sua
preocupação? A partir da interpretação do texto da aula de habilitação, de 1915, vimos que a
preocupação dele é compreender o tempo em seu modo de ser próprio, o que nesse texto é
tematizado como conceito de tempo na ciência histórica. Igualmente, no texto de 1924,
também analisado no primeiro capítulo, a preocupação dele restringe-se apenas a isso:
457. Cf. Martin Heidegger e Medard Boss, Seminários de Zollikon, Petrópolis: Vozes; o Paulo: ABD/EDUC, 2001, p.
51-102.
458. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 80, p. 507.
186
compreender o tempo a partir do tempo. Caracterizamos esta preocupação investigativa de
Heidegger como questionamento ontológico, ou seja, trata-se de uma preocupação que se
questiona pela condição de possibilidade, melhor ainda, pela constituição ontológico-existencial
que possibilita compreender o tempo ao modo de levá-lo em conta. A contrapartida, então, fruto
dessa preocupação heideggeriana: a maneira de contar o tempo, enquanto contagem ou
cronometragem, não é a mais própria nem a mais originária, mas uma compreensão derivada.
Com efeito, onde quer que o tempo da contagem ou do cronômetro pudesse vir a vigorar
como o último e único modo de compreendê-lo, teríamos então a prova cabal de que não
compreendemos o tempo enquanto temporalidade da presença. Seria também a prova de que, ao
medi-lo, contá-lo e cronometrá-lo, ainda não visualizamos nem entendemos e, muito menos,
apreendemos e compreendemos toda a estruturação do tempo ocupado e, também, como
veremos, do tempo mundo. Na verdade, ambos são modos do tempo temporalizar-se na unidade
ekstática e horizontal da temporalidade da presença e, por isso mesmo, podem agir e dar-se
concomitantemente. Por isso, é necessário ver e entender se, a partir do tempo ocupado e do
tempo do mundo, é possível aceitar, exclusivamente, o que a compreensão vulgar do tempo
unicamente vê, conhece e reconhece
459
.
Há aqui duas condições básicas a partir das quais Heidegger tematiza os fenômenos do
tempo ocupado e o tempo do mundo como modos de temporalização da temporalidade da
presença. As duas condições são: de um lado, se é possível compreender o tempo através da
contagem e da medida; por outro, porém, isso só deve ser possível porque, numa primeira
aproximação e na maior parte das vezes, a presença sempre conta com ele. A partir disso
estabelece-se uma diferença importante. Está em jogo ver e entender a condição de possibilidade
de realizar uma elaboração conceitual ôntico-ontológica do tempo. Com efeito, só é possível a
presença contar o tempo porque, sempre e de algum modo, conta com ele. Portanto, a
partir da analítica do tempo do ocupado e do tempo do mundo é possível mostrar que o tempo do
relógio (tempo-agora = Jetzt-Zeit) só pode ser suscetível à medida ou contagem (Zeitrechnung)
porque, por antecipação, há um modo mais fundamental de contar, qual seja, contar com o tempo
(Rechnen mit der Zeit). A citação seguinte, de Ser e tempo, mostra isso: Porque a presença
existe essencialmente lançada na decadência, ela interpreta seu tempo como uma contagem do
tempo, característica das ocupações. [...] Do ponto de vista ontológico-existencial, portanto, o
decisivo na contagem do tempo não deve ser considerado na sua quantificação mas deve ser
concebido, ainda mais originariamente, a partir da temporalidade da presença que conta com o
459. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 78, p. 499.
187
tempo
460
. Vê-se, claramente, que reaparece aqui a mesma preocupação presente na aula de
habilitação de 1915, qual seja: deve-se diferenciar o tempo quantitativo-homogêneo do tempo
qualitativo-heterogêneo.
Daqui se depreende que, tanto na compreensão do tempo contado, calculado e
cronometrado como na compreensão do tempo das ocupações cotidianas, sempre contamos
com o tempo de algum modo. Esse fato revela, no mínimo, um achado fenomenal importante, ou
melhor, um fenômeno totalmente novo. A partir desse achado, é possível ver e mostrar que, sob o
ponto de vista ôntico-ontológico, acabamos compreendendo sempre mais do tempo do que
normalmente supomos.
Diante disso, embora de maneira preliminar, somos obrigados a perguntar: será que quanto
mais o tempo é exclusivamente mensurado e cronometrado menos experiência dele fazemos
como tempo junto à ocupação do mundo e, presumivelmente, como tempo da temporalidade da
presença? Concluir isso, diria Heidegger, ainda seria um equívoco. Radicalmente, porém,
também o modo de simplesmente mensurar e cronometrar o tempo é, por antecipação, ainda
um contar com o que sempre se conta. Em suma: todo e qualquer contar só é possível,
então, pelo fato de a possibilidade de contagem já ser sempre acessível à presença, ou melhor, de
ela já ser e estar nessa possibilidade até a medula de seu ser.
Diante disso, colocam-se também algumas outras perguntas: como ver e entender o modo
de ser pelo qual nós sempre contamos com o tempo e, assim, dele nos ocupamos de algum
modo? Quer este sempre dizer, então, inclusivamente, que somos temporais? Que nos
compreendamos sempre numa acolhida e envio de sentido de ser, constituindo o contar com
o tempo a base primordial da qual a presença sempre se compreende temporalmente, mesmo
que isso se dê apenas de modo atemático ou pré-científico? E, em contrapartida, será que
cotidianamente, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, fugimos de nós
mesmos, esquecendo e esquivando-nos de nós mesmos ao gastarmos nosso tempo? Será que
cotidianamente não somos nós mesmos? Será que este esquecer e esquivar-se de si mesmo
encobre o modo de ser próprio da presença? Não somos nós mesmos os primeiros entes
implicados no fenômeno do tempo?
Nesse sentido, teria um sentido temporal a clássica pergunta agostiniana: Então, que
de mais próximo de mim do que eu mesmo?
461
Com efeito, Heidegger faz deste grande
pensador da patrística um de seus principais interlocutores a favor da analítica ontológica da
presença. Heidegger mesmo atesta isso:
460. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 80, p. 507.
461. Santo Agostinho, Confissões, Bragança Paulista, Edusf, 2006, livro X, cap. 16, p. 233-234.
188
Quando Santo Agostinho pergunta: Quid autem propinquius meipso mihi? e precisa
responder: ego certe laboro hic et laboro in meipso: factus sum mihi terra dificultatis et
sudoris nimii, isto não vale apenas para a opacidade ôntica e pré-ontológica da presença.
Num grau ainda maior, vale para a tarefa ontológica de não perder o modo de ser mais
próximo deste ente e, assim, torná-lo acessível numa caracterização positiva
462
.
A partir do que foi dito, portanto, a contagem, metragem ou cronometragem não é, única e
exclusivamente, o modo de compreender o fenômeno do tempo. Estes modos são apenas um modo
de compreender o tempo e, diga-se, ontologicamente, não o mais próprio, embora possa ser o mais
próximo onticamente. De fato, admitindo que, antes de contar o tempo, sempre contamos com
ele, está em jogo uma diferença ôntico-ontológica de compreensão que precisa ser radicalizada, ou
melhor, precisa ser fundamentada ontológica e fenomenalmente. De fato, nos modos possíveis de
temporalização do tempo das ocupações cotidianas ilumina-se o que Heidegger diz
reincidentemente, ou seja, o que é onticamente mais próximo é, ontologicamente, mais
distante. Das Dasein ist zwar ontisch nicht nur nahe oder gar das chste wir sind es sogar je
selbst, quer dizer: Na verdade, a presença o somente está onticamente próxima ou é o mais
próximo. Nós mesmos a somos cada vez, escreve no § 5 de Ser e tempo
463
.
Partindo do fato de que nós já sempre contamos previamente com o tempo, evidencia-se
que o tempo do relógio, vale dizer, o tempo medido e cronometrado é apenas um modo de nos
ocuparmos apropriativamente do tempo, ou melhor, de levá-lo em conta. Assim, revela-se aqui
algo extremamente importante. O simples fato de sempre já contarmos com o tempo, inclusive
para contá-lo e cronometrá-lo, é uma possibilidade da presença ser ela mesma. No ato de
medir e cronometrar, ou seja, de contar, por exemplo, o tempo sempre é levado em conta e,
somente por isso, pode ser mensurado, cronometrado, contado, dividido, fracionado.
Nessa perspectiva, é possível perguntar: é possível ver e entender e, assim, descrever o
fenômeno do tempo do mundo desde a ocupação? Para isso, é fundamental perceber que, em
nossa fala cotidiana do tempo, sempre já se revela algo essencial: nós deixamos ou tomamos
tempo a partir da compreensão de ser ou não tempo de...
464
. Tempo de... fazer ou não fazer isto
ou aquilo, dessa ou daquela maneira. Diante disso, evidencia-se apenas que sempre
contamos previamente com o tempo, isto é, que apenas dispomos dele previamente, e, assim,
em absolutamente toda e qualquer ação, em absolutamente toda e qualquer ocupação ele é e está
pré-visto e pré-suposto? É possível compreender agora que os textos do Eclesiastes e de Camões,
interpretados no primeiro capítulo, embora falem do tempo, movem-se numa compreensão pré-
ontológica do tempo, isto é, desde o mundo da ocupação cotidiana. De fato, o mundo da ocupação
cotidiana é um mundo de significação e de sentido. Nessa perspectiva, a estrutura ontológico-
462. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 9, nota 32, p. 87.
463. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 5, p. 52.
464. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 80, p. 508.
189
existencial do tempo já é pré-vista e compreendida na pena de seus autores, podendo então ganhar a
forma de poema ou texto bíblico.
A expressão tão corriqueira de que tudo tem seu tempo, por exemplo, brota desta pré-
suposição, ou melhor, dessa pré-vidência. Ela evidencia que, na ação ou na ocupação cotidianas,
sempre já nos relacionamos com o tempo, mesmo não pensando nele ou o o tematizando.
Assim, quer queiramos quer não, nos apropriamos do tempo de algum modo sempre bem-
determinado. Ao contarmos com ele, não só nos ocupamos dele, porém, ele norteia, orienta
nossos afazeres cotidianos. Ou seja, antecipadamente, ele está à mão para isso ou para aquilo. E
isso em absolutamente tudo que fazemos: na ação ou ocupação de escrever, na ação ou ocupação
de ler, na ação ou ocupação de adormecer, na ação ou ocupação de acordar, na ação ou ocupação
de pensar, enfim, em toda e qualquer ação ou ocupação possível.
A partir disso, então, é perfeitamente possível compreender, de uma maneira clara, como,
na ocupação do tempo, tanto o instrumento relógio como o sol são levados em conta (im
Rechnung tragen). Embora não pudéssemos mostrar isso dessa maneira no capítulo dois,
devemos considerar agora, a partir das três citões que lá fizemos: a) o relógio é produzido e
destina-se à leitura do tempo, estando seu fundamento ocupacional e mundano principal no
fato de servir para (Wozu); b) quando olhamos o relógio, acabamos fazendo um uso implícito
da posão do sol, ajustado astronomicamente pela medição oficial do tempo.
Fundamentalmente, portanto, é no e pelo uso do instrumento relógio que, de maneira
silenciada, acabamos fazendo uma apropriação da natureza do mundo circundante e, por
isso mesmo, diretamente à o (zu Hand); c) a partir da serventia, o sol é usado
cotidianamente e, além disso, possui locais privilegiados e descobertos pela circunvisão,
dependendo do que ele propicia aos afazeres cotidianos. Seus locais privilegiados são:
nascente, meio-dia, poente, meia-noite
465
.
Numa interpretação da poesia de Georg Trakl, Heidegger resgata um sentido primordial da
palavra ano: A noite é ela mesma apenas o velamento que abriga o curso do sol. Percorrer,
andar, ijevnai, significa, no indo-germânico, ier-, o ano
466
. É curioso notar aqui que, por detrás de
uma experiência certamente antiqüíssima, acontece uma experiência humana de todos os dias, a
saber, que o sol tem e realiza seu curso (Sonnenganges) e, principalmente, que a ausência do sol
significa velamento que abriga (bergende Verhüllung). Da mesma forma, nos Seminários de
465. Cf., no segundo capítulo, pico Ser-no-mundo como constituição fundamental da presea, subtópico A
mundanidade do mundo (segundo Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, §§
15 e 22, p. 111-113 e 155).
466. Martin Heidegger, Die Sprache im Gedicht: Eine Erörterung von Georg Trakls Gedicht, in: Unterwegs zur Sprache,
Stuttgart, Günther Neske, 1997, p. 47; tradução brasileira: A linguagem na poesia, in: A caminho da linguagem, Bragança
Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2003, p. 37.
190
Zollikon, Heidegger resgata o sentido original da palavra hora: stunden significa conceder um
prazo para... A palavra latina para Stunde: hora (em grego w~ra), significa nos conventos a hora da
oração. Pensem no Livro das horas [Studenbuch], de Rilke e no volume de poesias de Ingeborg
Bachmann: O tempo prolongado [Die gestundete Zeit]
467
. Na língua portuguesa, a palavra hora
não significa apenas a vigésima quarta parte do dia natural ou do tempo que o planeta terra leva
para dar a volta sobre si mesmo. Hora quer dizer também: momento, ocasião, tempo ou momento
em que ordinariamente se realiza uma determinada coisa.
A partir dessa descrição do tempo ocupado, poderíamos concluir que também co-
pensamos o tempo em nossas ações, em nossas ocupações? Não, necessariamente. Em geral, no
simples fato de sempre se contar com o tempo ou de sempre tê-lo à mão, o próprio tempo
não é pensado, não é explicitado, muito menos tematizado. E, assim, o que é orientadoramente
prévio (vor), apesar de considerado e pressuposto, não é visto e, presumivelmente, também
não é compreendido, saltando-se continuamente por cima (überspringen) do tempo em sua
fenomenalidade própria e constitutiva.
Por isso, então, pensa Heidegger, deve ser possível perguntar também: não será esse modo
primário ou até primordial de ocupar-se do tempo que possibilita a criação de instrumentos para
se medir o tempo, isto é, não será esse modo a condição de possibilidade da criação de todo e
qualquer relógio? Não somente isso, mas, sobretudo, todas as possibilidades de uso de relógios?
Assim, se, em toda e qualquer ação ou ocupação, sempre já contamos com o fato primordial do
antes e do depois, os quais estão, por assim dizer, à base de todo cálculo ou cronometragem do
tempo, então, deve ser possível um modo de compreender o tempo ainda mais primordial, ou
seja, mais próprio e originário.
Realmente, ao tomarmos ou nos darmos tempo, para realizar isso ou aquilo, já contamos
com ele. Porém, são o tomar e o dar-se tempo fenômenos naturais? Como é possível sempre
ainda termos tempo de fazer isto ou aquilo ou, então, não mais termos tempo de fazer isto ou
aquilo? De fato, na ocupação, estamos sempre por demais entretidos com o tempo e, por isso
mesmo, totalmente nele absorvidos, de modo que nem sequer nele pensamos. Assim, o tempo
passa a ser simplesmente o que todo mundo, ou melhor, o que impessoalmente (Man) é usado em
nossas ocupações. Nesse modo, o tempo é igualmente acessível para todo mundo e passa a
vigorar sob o domínio da impessoalidade, quer dizer, é de todos e de ninguém ao mesmo tempo.
Diante disso, devemos perguntar sempre de novo: o que é então isto o tempo, o
temporal? Como se então ainda e sempre de novo o tempo, o temporal? Por enquanto,
devemos manter nossa atenção voltada para o fato de que na ocupação contamos com o tempo,
467. Martin Heidegger e Medard Boss, Seminários de Zollikon, Petrópolis: Vozes; São Paulo: ABD/EDUC, 2001, p. 76-77.
191
embora não não saibamos que e como e, assim, na medida em que mais dele nos ocupamos,
menos sabemos que dele nos ocupamos. Será então que, na ocupação, quanto mais entretidos
estamos, tanto maior a tendência de encobrir-se o que é próprio do tempo? Haveria nisso uma
tendência natural de -lo ao modo como vem e se doa a nós a todo instante? Nesse caso,
também, não deveríamos admitir que operamos continuamente ou que temos a tendência de não
vermos o modo como o tempo se temporaliza? Como, então, é possível ver e entender o
fenômeno do tempo de modo a perceber que ele se temporaliza?
Diante dessas perguntas, urge esclarecer a maneira pela qual o tempo fica naturalmente
encoberto. Nesse modo de compreender o tempo, portanto, quanto mais nos ocupamos do tempo,
contando já sempre com ele, tanto mais o pressupomos; mais fundamentalmente, porém, revela-
se que já se é e está no tempo. Nesse caso, ainda, haveria uma possibilidade múltipla de dizer e
experimentar o tempo em sua temporalização? Será que toda e qualquer compreensão possível da
presença não está apontando para um modo de ser fundamental? E, então, o que significaria
interpretar o tempo desde este modo fundamental? Será que se pode dizer que cada possibilidade
de compreensão perfaz, imediata e conjuntamente, seu próprio sentido? Em que medida é
possível dizer isso? Será que, na maioria das vezes, de modo atemático, a presença se um
determinado sentido sendo no tempo?
Por enquanto podemos dizer apenas o seguinte: a conceituação do tempo como
temporalidade, isto é, a partir de Heidegger, impõe a experiência de instante ocupado e
pronunciado desde uma ocupação bem-determinada, quer se dê isso, como vimos, a partir da
mera contagem ou mensuração do tempo do relógio, quer se dê isso a partir do tempo ocupado
que sempre já conta com o tempo, quer se dê isso, talvez, exemplarmente, como ação criadora ou
então em qualquer ação humana possível.
Com efeito, ao encaminhamento dado nesta investigação à problemática do tempo, a
estrutura da temporalidade ekstática e horizontal deve e precisa ser vista e entendida, deve ser
entre-vista. É fundamental que possa ser vista e entendida desde a experiência mais cotidiana do
tempo ocupado mundanamente. Segundo Heidegger, uma tal tarefa implica mostrar,
fenomenologicamente, que o tempo vulgar brota ou emerge da temporalidade
468
, tema com o
qual nos ocuparemos a seguir.
Contudo, o importante a ser visto e entendido a partir do tempo ocupado é que, como modo
de temporalização da própria temporalidade não significa jamais um agora ou mesmo uma
seqüência de agoras simplesmente dada sem-começo e sem-fim. Por isso mesmo, também no
modo do uso do relógio opera e está em jogo um determinado sentido de temporalização de
192
tempo
469
. Porém, como já falamos, para compreender adequadamente toda estruturação do tempo
do mundo, é preciso levar em conta que, para ver e entender o modo como Heidegger analisa o
fenômeno do tempo, devemos considerar toda a analítica da mundanidade do mundo circundante.
3.5.2 O tempo do mundo
Seguindo o fio condutor da analítica temporal realizada por Heidegger, é imprescindível ter
presente, sempre de novo, que a condição dos modos possíveis de sentido e temporalização do
agora em que, do outrora, não-mais e do então, quando está relacionada ao fato da
presença ser um ente privilegiadamente aberto ekstático e horizontalmente. De fato, ela existe. A
presença, enquanto ente, está sempre e continuamente aberta para possibilidades de ser.
Estruturalmente falando, desde a dimensão da temporalidade, as possibilidades de
temporalização são muitas, ou melhor, há a possibilidade em relação ao porvir, ao vigor de ter
sido e à atualidade e, em cada uma delas, tanto no modo de propriedade como de impropriedade.
As citações seguintes acenam para possibilidades fundamentais de temporalização do tempo:
Porque a presença existe essencialmente lançada na decadência, ela interpreta seu tempo
como uma contagem do tempo, característica das ocupações. [...] Do ponto de vista
ontológico-existencial, portanto, o decisivo na contagem do tempo não deve ser considerado
na sua quantificação mas deve ser concebido, ainda mais originariamente, a parte da
temporalidade da presença que conta com o tempo
470
.
Do mesmo modo imediato com que nós constantemente tomamos tempo, também o
perdemos. Nós nos deixamos tempo com algo, embora com isso o tempo não esteja aí.
Assim como perdemos tempo, nós o damos adiante. Mas o perder tempo é especificamente
um descuido de se deixar tempo, isto é, um modo como s num vegetar esquecido
possuímos e dispomos de tempo
471
.
Com efeito, na seqüência de vivências, o que significa cada agora? O que significam as
vivências passadas e futuras, se elas não são mais ou, então, ainda não são? De fato, a
presença, à medida que existe, percorre e transcorre o espaço de tempo que lhe é concedido
entre limites: entre o antes e o depois, entre o amanhecer e o anoitecer, entre o nascimento e a
morte. Porém, como é real cada agora? Em que consite sua realidade? A questão é: como
apreender cada agora? A única constatação segura, por enquanto é: a presença é um ente
temporal. Entretanto, se, como já foi falado, o instante é uma das características da
temporalidade originária, como ver e entender o instante na pespectiva do tempo do mundo? É
isso possível?
468. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 15-28; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 20/21-38/39.
469. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 18, p. 133-140.
470. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 80, p. 506.
471. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19,
p. 374.
193
Segundo Heidegger, foi Kierkegaard quem viu, com profundidade, o fenômeno
existenciário do instante, porém, não alacançou uma interpretação existencial correspondente.
Heidegger escreve numa das notas de rodapé do § 68 de Ser e tempo:
Quando Kierkegaard fala de temporalidade, ele quer referir-se ao ser e estar-no-tempo
do homem. O tempo como intratemporalidade conhece apenas o agora e nunca o instante
experimentado existenciariamente, o instante pressupõe uma temporalidade mais originária
(ursprünglichere Zeitlichkeit), embora existencialmente não explicitada (unausdrücklich)
com relação ao instante’”
472
.
Evidencia-se aqui que Heidegger volta sua atenção para compreender o fato de ser-no-
tempo do homem (Mensch). Segundo o pensador, Kierkegaard compreende o instante a partir
da intratemporalidade (Innerzeitigkeit). Da mesma forma, mesmo quando ele emprega a
palavra temporalidade, entende-a como ser e estar-no-tempo (In-der-Zeit-sein) do homem.
Acima de tudo, porém, a intratemporalidade conhece unicamente o agora e nunca (aber nie),
o instante experimentado existenciariamente (existenziell erfahren). Para Heidegger, o instante
pressupõe (vorausgesetzt) uma temporalidade mais originária (ursprünglichere Zeitlichkeit).
Nesse caso, como ver e entender existencialmente o instante? Melhor ainda: como explicitar
(unausdrücklich) existencialmente o instante?
Devemos considerar uma coisa importante aqui: em Ser e tempo, Heidegger não emprega a
expressão ser e estar-no-tempo referida à presença. Por isso mesmo, está escrita entre aspas:
In-der-Zeit-sein. Pela mesma razão, no § 73, onde Heidegger estabelece uma diferença
essencial entre a compreensão vulgar da história e o acontecer da presença, podemos ler:
A análise do caráter histórico de um instrumento simplesmente dado não apenas
reconduziu à presença, entendida como o que é primariamente histórico, mas também
levantou a questão se a caracterização temporal do que é histórico deve orientar-se,
primariamente, pelo ser-no-tempo de algo simplesmente dado. O ente não fica mais
histórico mediante uma recondução regressiva a um passado sempre mais distante, no
sentido de que o mais antigo seja o que é mais propriamente histórico. O intervalo
temporal entre o agora e o hoje o tem, por isso, nenhuma importância constitutiva e
primária para a historicidade deste ente propriamente histórico. Não porque não seja e esteja
no tempo ou seja sem tempo, mas porque existe de maneira tão originariamente temporal
porque, de acordo com sua essência ontológica, jamais pode ser algo simplesmente dado no
tempo que vem e passa
473
.
Há três aspectos fundamentais a serem considerados aqui: a) embora Heidegger não grafe a
expressão entre aspas, é nítido não referir-se aqui ao modo de ser da presença, porém, ao que é
simplesmente dado (Vorhanden); b) outro aspecto a ser observado relaciona-se ao fato de como
compreender o intervalo temporal’” (zeitliche Abstand) entre o agora e o hoje (der vom
Jetzt und Heute) vale a pena repetir: entre o agora e o hoje. Manifesta-se aqui, para
Heidegger, que, a rigor, na pespectiva da presença histórica, cada hoje já é constituído de agoras
472. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 68, nota 191, p. 424.
473. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 73, p. 473-474.
194
passados, os quais possuem sempre algum significado constitutivo (konstitutive Bedeutung),
portanto, cada agora, enquanto possui significado, é histórico. aqui um eco evidente da aula
de habilitação de 1915, que se concentrou na expressão significado do conteúdo histórico
(inhaltlich historisch Bedeutsame). Por isso, podemos ler na seqüência: sob o ponto de vista da
historicidade da presença, não importância alguma no fato de uma coisa ser mais ou menos
passado (hat wiederum nicht deshalb keine primär konstitutive Bedeutung für die
Geschichtlichkeit); contudo, o aspecto fundamental reside aqui: c) não que a presença não seja ou
esteja no tempo ou seja sem tempo (in der Zeit und zeitlos), porém, pelo fato de existir de
maneira tão primordial e originariamente temporal (ursprünglich zeitlich existiert), nunca é e está
no tempo que vem e passa (Vergehendes bzw. Ankommendes). Por quê? Porque, de acordo
como sua essência ontológica (seinem ontologischen Wesen), jamais pode ser algo simplesmente
dado (Vorhandenes). Na mesma perspectiva, podemos ler no § 65:
O característico do tempo acessível à compreensão vulgar consiste, entre outras coisas,
justamente em que, no tempo, o caráter ekstático da temporalidade originária é nivelado a
uma pura seqüência de agoras, sem-começo e sem-fim. De acordo com seu sentido
existencial, esse nivelamento funda-se, porém, numa determinada temporalização possível,
pela qual a temporalidade temporaliza impropriamente este tempo. Se, portanto, o tempo
acessível à compreensibilidade da presença se comprova como não originário e, além disso,
como oriundo da temporalidade própria, então justifica-se, segundo a sentença a potiori fit
denominatio, a designação da temporalidade agora liberada como tempo originário
474
.
Nessa passagem fica realmente evidenciado como e em que medida a temporalidade
originária da presença se diferencia essencialmente da compreensão vulgar, isto é, que é nivelada a
uma pura seqüência de agoras, sem-começo e sem-fim, compreensão que se contrapõe frontalmente
ao caráter ekstático da temporalidade originária. -se que o sentido ontológico do nivelamento
reside ou se funda numa determinada temporalização possível, mas que é, segundo a concepção de
Heidegger, proveniente da temporalidade imprópria, pois nasce da compreenssão do tempo
intramundano.
Como já vimos, o tempo compreendido na ocupação tende a esquecer-se da experiência da
temporalidade originária. Por isso, a experiência que a compreensão vulgar faz do tempo,
melhor, de si mesma esta expressão, em contrapartida, deve ser relacionada à pergunta Quem
é o tempo?, de 1924 , referindo-se ao fato de ser um esquecimento e nivelamento do tempo
originário, isto é, da temporalidade ekstática e horizontal da presença. Decadente, a presença
apropria-se inapropriadamente do modo de ser originário e próprio, tornando-se desse modo
medida (reor), sendo porém uma cadência decadente. Orientada, dessa forma, ela compreende
o tempo a partir da idéia de substancialidade, resultando ontologicamente em esquecimento,
474. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 413-414.
195
apatia, monotonia e indiferença, onde cada novo agora passa a ser visto e compreendido apenas
como um agora, homogêneo e indiferente, que vem e que passa. Cada novo agora, sob o ponto de
vista da homogeneidade e da indiferença, não inaugura absolutamente nada de criativamente
novo e instaurador. Ou seja, não aqui instante e, portanto, nunca houve e nem haverá novo
agora. Na pespectiva da compreensão vulgar do tempo, cada agora, que vem e que passa, a rigor,
não nasceu e nunca nascerá para o instante.
Diante disso, antes de dar outro passo na interpretação do tempo do mundo das ocupações,
devemos manter presentes estes dois aspectos conquistados anteriormente: 1) o fato da presença
contar o tempo (Zeitrechnung), onde o tempo pode ser medido, contado ou mesmo cronometrado,
pode resultar, por exemplo, no tempo do relógio enquanto tempo-agora (Jetzt-Zeit); 2) a partir
disso, evidencia-se que, desde a analítica do tempo ocupado (besorgte Zeit), o tempo do mundo
(Weltzeit) vem ao encontro da presença de um modo totalmente original e cada vez novo, o que
está, de algum modo, relacionado ao fato de a presença sempre já contar com o tempo. Portanto,
numa primeira aproximação, devemos reconhecer que, nas expressões contar o tempo
(Zeitrechnung) e contar com o tempo (Rechnen mit der Zeit), vistas anteriormente, reside uma
diferença de compreensão ontológica fundamental. Na conferência Tempo e ser, o pensador
escreve:
Temos o tempo calculado ao menos assim parece imediatamente à mão, diante de nós,
quando tomamos na mão o relógio, o medidor do tempo e, olhando para a posição dos
ponteiros, constatamos: Agora são 20 horas e 50 minutos. Dizemos agora e pensamos no
tempo. Mas em parte alguma do relógio que nos indica o tempo, encontramos o tempo, nem
no mostrador nem no mecanismo. Tampouco encontramos o tempo nos cronômetros da
técnica, isto é, quanto mais exatos no efeito de med. tanto menor a oportunidade de meditar
(nachzudenken) sobre o que é próprio do tempo
475
.
Fundamentalmente, o pensador pergunta-se: o que é e como é o agora com o qual sempre já
se conta? É o agora de todos e de ninguém ao mesmo tempo? Afinal, que experiência fazemos nós
cada vez que contamos com o agora? Como e com que se conta ao pressupor cada novo agora na
ocupação das lidas e afazeres cotidianos? Simples frases cotidianas como agora, em que escrevo,
agora, em que olho, agora, em que abraço algm, agora, em que abro a porta, por exemplo,
revelam muito mais do tempo que os dos ponteiros do relógio cada vez indicam?
De fato, ao contrário da homogeneidade e da indiferea de cada novo agora contado e
medido pelo relógio, cada novo agora da ocupação cotidiana é plenamente um novo agora. Um
agora com possibilidade de sentido e, por ser toda possibilidade de sentido, é, também e
sobretudo, possibilidade de tempo temporalizar-se. Com efeito, não somente a experiência da
475. Cf. Martin Heidegger, Tempo e ser, in: O fim da filosofia ou a questão do pensamento, São Paulo, Livraria Duas
Cidades, 1972, p. 51. Cf. o mesmo texto em Zeit und Sein, in: Zur Sache des Denkens, Tübingen, Max Niemeyer, 1969,
p. 11.
196
ocupação cotidiana do tempo como agora em que revela possibilidades de temporalização,
pois, pela mesma razão, tanto o outrora, não-mais como o então, quando revelam também
possibilidades de temporalização na perspectiva da intratemporalidade.
Diante disso, descrever fenomenalmente o modo do tempo ocupado cotidianamente no
mundo das ocupações passa a ser uma tarefa fundamental para Heidegger. São justamente as
análises do tempo ocupado e do tempo do mundo que permitem visualizar e compreender a
temporalidade em sua caracterização mais própria e originária enquanto ekstática e horizontal.
Não é por acaso que o § 78, que abre o capítulo sobre Temporalidade e intratemporalidade
como origem do conceito vulgar de tempo venha intitulado A incompletude da presente
analítica temporal da presença. Com efeito, a análise heideggeriana do tempo ocupado e do
tempo do mundo fazem parte do esforço de demonstrar fenomenologicamente os modos pelos
quais a presença se temporaliza, ora própria ora impropriamente, dessa ou daquela maneira.
Pelo que vimos até aqui, como se revela o tempo na ocupação cotidiana, também através do
uso do relógio? De fato, o uso do relógio indica uma determinada ocupação e, presumivelmente,
compreensão do tempo. No entanto, na contagem propriamente dita, onde os ponteiros do relógio
indicam sempre um novo agora, não se prova nem se explica o fenômeno mais imediato e direto da
experiência cotidiana de que sempre contamos com o tempo, ou seja, que de uma maneira mais
imediata e direta nós nos ocupamos do tempo. Heidegger chama atenção para o fato de, mesmo no
uso do relógio, levar-se sempre em conta (im Rechnung tragen) uma determinada constelação
cósmica, quer dizer, o uso do relógio pressupõe, quer o saibamos ou não, um uso implícito da
posição do sol. locais e indicações privilegiados neste uso implícito da posição do sol.
O nascente, o meio-dia, o poente, a meia-noite são os principais locais e indicações no uso implícito
do sol na mensuração do tempo levada a efeito através do instrumento relógio.
Convém ter presente, sempre de novo, a idéia condutora nas análises do fenômeno do tempo,
a saber: deve-se compreender o tempo a partir dele mesmo. Vimos que o tempo mesmo nem
é, ele se temporaliza. O fato de o tempo temporalizar-se pode ser facilmente visto e entendido se
levarmos em conta que ele não se deixa objetivar como coisa, vale dizer, não se deixa objetificar,
coisificar. E, no entanto, ele passa ou espresente em tudo quanto é objeto e coisa.
Dizemos, por exemplo, que o tempo corrói as coisas, ou seja, que ele deixa a marca de sua
passagem nos entes. Vimos já que, apesar de sempre de novo sermos levados a pensar no relógio
quando se trata de ver o fenômeno do tempo, a experiência mais elementar e fundamental que dele
fazemos cotidianamente está no fato já ser sempre tempo de... ou ainda não ser tempo de... No fato
197
de tomarmos tempo e darmos tempo, para isso ou para aquilo, antes de contar o tempo, antes de
cronometrá-lo ou medi-lo de algum modo, já contamos sempre com ele
476
.
Assim, por exemplo, quando dizemos: Agora são três horas da tarde, isso não significa
necessariamente que estejamos falando de um tempo mensurado ou cronometrado, embora também
possa sê-lo. Pode muito bem dar-se o caso de indicar simplesmente algo como: Agora é hora do
lanche da tarde. E isso também quer dizer que, de algum modo, e mesmo se nós não tivéssemos
como objetivar o que seja tempo, ele sempre já se daria ou sempre já teria se dado em e através
de nossos afazeres cotidianos. Assim, tudo indica que nós, de um modo ou de outro, sempre
compreendemos o que seja tempo pelo simples fato de já contarmos com ele em nossos afazeres
mais cotidianos. Isso quer dizer, também, que o tempo está de algum modo implícito, disponível e
acessível no que fazemos e como fazemos enquanto fazemos o que fazemos.
Portanto, no mais banal e corriqueiro de nosso dia-a-dia, o fato de sempre já ser tempo de
ou ainda não ser tempo de, revela que contamos com o tempo. É justamente nisso que o tempo já
se tornou acessível e disponível de algum modo, isto é, operamos sempre numa compreensão
do tempo. Dispomos sempre já do tempo e contamos com ele em absolutamente tudo que
fazemos. Exemplos desse pré-dispor de ou de contar com por antecipação... do tempo, revela-se
em expressões usuais como: disponho de ou conto com o tempo ao colher o trigo, enquanto
chove, enquanto neva, ao anoitecer, ao nascer... Do mesmo modo, disponho de ou conto
com o tempo ao escrever uma carta, ao plantar uma árvore, ao sair de casa para ir à cidade
ou ao trabalho, ao adormecer, ao acordar...
477
.
Não é difícil perceber nesses exemplos uma evidência de que sempre já dispomos ou
contamos com o tempo de algum modo. Por isso, como Heidegger mesmo diz, não se trata
meramente de fundamentar de que modo cada coisa tem seu tempo (jedes Ding hat seine Zeit),
mas, principalmente, como o tempo não se sem o homem (Zeit gibt es nicht ohne den
Menschen)
478
, sendo pois o homem o principal destinatário do tempo.
É importante ressaltar que Heidegger vê uma quádrupla caracterização fundamental no
tempo do mundo da ocupação
479
, que é descrita, também, nos Seminários de Zollikon
480
.
Todavia, para o presente trabalho, apresentamos trechos de Ser e tempo e Os problemas
476. Análises importantes encontram-se em Martin Heidegger e Medard Boss, Seminários de Zollikon, Petrópolis: Vozes;
São Paulo: ABD/EDUC, 2001, p. 56-69.
477. Cf. Martin Heidegger e Medard Boss, Seminários de Zollikon, Petrópolis: Vozes; o Paulo: ABD/EDUC, 2001, p.
56-93.
478.
Martin Heidegger, Zeit und Sein, in: Zur Sache des Denkens, Tübingen, Max Niemeyer, 1969, p. 3 e 17; tradução
brasileira: Tempo e ser, de 1962, in: Conferências e escritos filosóficos, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 456 e 464.
479. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, §§ 78 a 81, p. 498s; Die
Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19, p. 369s.
480. Martin Heidegger e Medard Boss, Zollikoner Seminare: Protololle, Zwiegespräche, Briefe, Frankfurt am Main,
Vittorio Klostermann, 1994, p. 30-96; tradução brasileira: Semirios de Zollikon, Petrópolis: Vozes; São Paulo:
ABD/EDUC, 2001, p. 51-102.
198
fundamentais da fenomenologia, onde Heidegger descreve cada uma das quatro
caracterizações, como segue:
1. Significância:
O tempo interpretado tem, desde sempre, o caráter de tempo de..., ou não é tempo de....
A atualização que aguarda e retém, inerente à ocupação, compreende o tempo, remetendo ao
para quê, o qual, por sua vez, encontra-se, em última instância, solidamente ligado ao em
virtude de que a presença pode ser. Junto com essa remissão do ser-para, o tempo público
revela a estrutura anteriormente conhecida como significância. Esta constitui a
mundanidade do mundo. Por isso, chamamos de tempo do mundo o tempo que se torna
público na temporalização da temporalidade.
Compreendido na ocupação, embora não apreendido como tal, o agora que se pode datar é
sempre apropriado ou inapropriado. A significância pertence à estrutura do agora. Por isso
chamamos o tempo ocupado de tempo do mundo. Na interpretação vulgar do tempo como
seqüência de agoras, falta tanto a possibilidade de datação como a significância
481
.
Nós designamos esta totalidade remissiva do ser-para, em função de, aqui-para e ali-para
como significância. O tempo como tempo apropriado ou inapropriado, tem o caráter de
significância; isto significa, o caráter pelo qual o mundo como mundo é em geral
caracterizado. É por isso que nós designamos o tempo com o qual contamos ou o tempo que
se deixa como tempo do mundo
482
.
2. possibilidade de datação:
Chamamos de possibilidade de datação essa estrutura remissiva do agora, do outrora e
do então, aparentemente evidente. Nela, deve-se desconsiderar inteiramente se a datação
de fato se realiza quanto a uma data do calendário. Mesmo sem tais datas, o agora, o
então e o outrora estão datados de modo mais ou menos determinado. Deixar de lado a
determinação das datas não significa que esteja faltando ou seja apenas acidental a estrutura
da possibilidade de datação
483
.
Um momento mais amplo ao lado da significância do tempo é sua possibilidade de datação.
[...] Nós designamos esta estrutura remissiva do agora como agora em que, do então como
então, quando e do outrora como outrora, o-mais como a possibilidade de datação.
Cada agora, em que isto ou aquilo se passa, acontece ou persiste’”
484
.
3. lapso de tempo
Essa duração é, por sua vez, o tempo revelado na interpretação que a temporalidade de
si. Esse tempo é, assim, compreendido, embora de maneira não temática, em cada ocupação,
como lapso de tempo. A atualização, que aguarda e retém, in-terpreta, portanto, um
durante, dentro de um lapso de tempo porque, com isso, ela se abriu, como a ex-tensão
ekstática da temporalidade histórica, mesmo não sendo reconhecida como tal
485
.
Quando digo outrora a partir de um agora, sempre já penso um determinado ínterim até
ali. Neste ínterim jaz aquilo que nós nomeamos de duração, durante, durar do tempo. [...] O
que é articulado nesta caracterização de ínterim, de durante e até-então, nós designamos
como sendo o lapso de tempo
486
.
481. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, §§ 80 e 81, respectivamente p.
509-510 e 518.
482. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19,
p. 370.
483. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 79, p. 501.
484. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19,
p. 370.
485. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 79, p. 504.
486. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19,
p. 372.
199
4. tempo público
Em razão de seu ser-no-mundo ekstático, o tempo interpretado e pronunciado de cada
presença como tal é sempre público. Como a ocupação cotidiana se compreende a partir
do mundo das ocupações, ela conhece o tempo que ela toma não como o seu. Nas
ocupações, ela aproveita o tempo que a si mesma e com o qual impessoalmente se
conta. O público do tempo é, porém, ainda mais profundo quanto mais a presença fática se
ocupa expressamente do tempo, conferindo-lhe uma contagem.
O tempo público comprova-se como o tempo no qual vêm ao encontro dentro do mundo
o que está à mão e o que é simplesmente dado. Isso exige que se denomine de intratemporal
o ente não dotado do caráter de presença. A interpretação da intratemporalidade tanto
proporciona uma visão mais originária da essência do tempo público como também
possibilita delimitar o seu ser’”
487
.
No entanto, significância, possibilidade de datação e lapso de tempo (ex-tensão) não
abarcam toda a estrutura do agora, então e outrora. Como última caracterização do tempo,
no sentido do tempo contado e pronunciado, nomeamos o tempo público. [...] O agora
pronunciado é, no estar junto com os outros, compreensível para cada um. Embora cada qual
diga seu agora, o agora é o mesmo para todos. A acessibilidade do agora para todos, sem
prejuízo da diversidade de datação, caracteriza o tempo como público. O agora é acessível a
todos, e com isso, a ninguém pertence. No fundo destas caracterizações do tempo se lhe
envia uma singular objetividade. O agora não pertence nem a mim, nem a nenhum outro, e,
no entanto, de um modo ou de outro, ele está aí. -se tempo, ele está à mão, sem que nós
possamos dizer exatamente como e onde ele está
488
.
Essas quatro caracterizações estruturais do tempo do mundo na ocupação cotidiana
parecem falar de evidências. Não, absolutamente. Por isso carecem de ser devidamente
explicitadas, buscando ver e entender nelas uma das concreções mais próximas da temporalidade
no mundo da ocupação cotidiana, ou seja, do modo como Heidegger a concebe. Na tarefa de
explicitar toda a estrutura do tempo do mundo, Heidegger evidencia que, em todo agora,
opera uma ou outra dessas estruturas e, segundo ele mesmo diz, têm sempre uma finalidade bem-
determinada: pela elucidação dos momentos estruturais da significância, possibilidade de
datação, lapso de tempo e tempo público distinguiremos, que e como a determinação
fundamental da compreensão vulgar do tempo emerge da unidade ekstático-horizontal do
atualizar, reter e atender
489
.
Explicitemos alguns aspectos fundamentais relacionados a esta quádrupla caracterização:
a) são pronunciados (aussprechen) e interpretados (auslegen) como tempo do mundo, o que
revela que são próprios do modo de ser da presença. Nesse caso, devemos ter presente que se
relacionam com os existenciais fala, linguagem, compreensão e interpretação; b) são momentos
contitutivos da própria mundanidade do mundo da presença, o que se evidencia no fato de serem
tempo do mundo (Weltzeit); c) são concreções da própria cura como ser da presença, o que se
487. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, §§ 79 e 80, respectivamente p. 506
e 507.
488. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19,
p. 373.
200
mostra no fato de serem modos do tempo ocupado (besorgte Zeit); d) são concreções da unidade
ekstático-horizontal do atualizar, reter e atender enquanto modos impróprios da temporalidade,
razão pela qual é possível ver, em última instância, que é dela que nasce ou brota a compreensão
vulgar do tempo. Pela mesma razão podem também manifestar-se como apropriados (eigentlich)
e inapropriados (uneigentlich). Por isso mesmo, apontando em que direção a analítica seguiria,
Heidegger escreveu no § 78:
Cabe mostrar de que maneira a presença, como temporalidade, temporaliza um
comportamento que se relaciona com o tempo, no modo de levá-lo em conta. A caracterização
feita até agora da temporalidade não é, pois, apenas incompleta porque nem todas as
dimensões do fenômeno foram observadas, mas é, em princípio, deficiente na medida em que
pertence à própria temporalidade uma espécie de tempo do mundo, no sentido rigoroso do
conceito existencial e temporal de mundo. Deve-se compreender como isso é possível e por
que é necessário. E com isso poder-se-á esclarecer tanto o tempo, vulgarmente conhecido,
no qual ocorrem entes, quanto a intratemporalidade desses entes
490
.
Deve-se ver e entender aqui o que o pensador compreende serem as análises das dimensões
do fenômeno do tempo ainda incompletas, ou seja, faz necessária uma análise do tempo do
mundo, mas, sobretudo, deve-se compreender como isso é possível e por que é necessário. De
fato, a presença sempre se abriu como ser-no-mundo, com isso ela descobre os entes
intramundanos. Por isso, o tempo interpretado sempre já possui uma datação a partir daquele
ente que vem ao encontro na abertura do pre: agora em que a porta bate; agora em que o livro me
está faltando, etc.
491
.
Implícita está, nesta passagem, a idéia de que a experiência do tempo é uma experiência
mundana. Isso porque a presença, desde que descobre os entes, co-descobre mundo. Este co-
descobrir de entes e mundo possibilita terem os entes necessariamente o caráter mundano.
Assim, todo e qualquer ente visto desde o horizonte da presença é um ente intra-mundano. Na
passagem mencionada, Heidegger diz que, à medida que a presença procura interpretar o ente
que lhe vem ao encontro na abertura do pre, isto é, desde o horizonte de compreensão em que
ela já se descobre lançada, também se interpreta a si mesma de algum modo. Isso evidencia
que toda e qualquer fala a respeito do tempo já é uma determinada interpretação temporal que
a presença faz de si para si mesma, mesmo que isso se dê de modo pré-científico ou atemático.
De fato, frases aparentemente simples como, por exemplo, agora, em que a porta bate ou
agora, em que o livro me está faltando são frases tão usuais e cotidianas quanto agora, em
que estou escrevendo esta tese sobre a temporalidade da presença, ou ainda, agora, em que eu
estou lendo esta mesma tese que um doutorando de filosofia escreveu. No modo usual, comum
489. Cf. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, §
19, p. 383 (grifo nosso).
490. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 78, p. 499.
491. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 79, p. 503.
201
e corriqueiro da vida, todas as nossas ocupações acontecem num agora, em que, mesmo que
ele se dê ao modo do agora-não-mais ou do agora-ainda-não intratemporais. Seja como for,
sempre um agora é interpretado e compreendido, pronunciado e datado. Heidegger procura
explicitar exaustivamente a estrutura constitutiva do tempo do mundo, vendo nele a primeira
evidência da estrutura da temporalidade ekstática e horizontal da presença.
Assim, ao perguntarmos o que a palavra tempo significa, então não se trata
simplesmente de dar ou encontrar esta ou aquela resposta para o que nela e através dela é
investigado. De fato, o vestígio do agora, em que está presente e atuante em todo e qualquer
instante de nossa vida. Desse modo, não se trata de dar ou encontrar possíveis respostas para a
questão do tempo. Trata-se de ver e entender, de suportar e radicalizar o que vem dito e
insinuado na expressão tempo enquanto instante, melhor ainda: agora, em que enquanto
me ocupo com isso ou aquilo. Trata-se de compreender, sempre de novo, o sentido de toda e
qualquer experiência humana como realizações possíveis, como concreções possíveis de... ser e
tempo e ser no tempo. Ou seja, toda vez quando pronunciamos, isto é, quando falamos e
verbalizamos a palavra ser e a palavra tempo e principalmente quando não as
pronunciamos e elas simplesmente ficam subentendidas , ainda assim, e principalmente então,
está em jogo a questão de ser e tempo. Ser e tempo colocam em jogo, na e pela presença
somente, um sentido de ser e tempo. Ser e tempo é, pois, a primeira de todas as relações, a
proto-relação em que nós sempre já nos descobrimos existindo enquanto presença.
Do ponto de vista da temporalidade da presença, Heidegger mostra que o tempo da
ocupação pode ser apropriado ou inapropriado. Embora haja uma tendência contínua e
persistente de compreendermos o tempo como uma pura seqüência de agoras simplesmente
dados, o fenômeno do tempo do mundo revela uma estrutura múltipla de ser e tempo.
Certamente aqui Heidegger desenvolve, fenomenologicamente falando, uma tarefa toda
particular e, por isso mesmo, importante para uma nova concepção de tempo.
Pela quádrupla estrutura analítica significância (Bedeutsamkeit), possibilidade de
datação (Datierbarkeit), lapso de tempo (Gespanntheit) e tempo público (Öffentlichkeit)
Heidegger estabelece, por assim dizer, de uma maneira inquestionável e definitiva, um vínculo
entre a analítica existencial e a analítica temporal e entre os modos próprio e impróprio da
temporalidade da presença. Através dela mostra como estão, essencial e constitutivamente,
relacionados os modos fundamentais de ser, de comportar-se e de compreender, com os quais a
presença, em sendo, está em jogo seu próprio ser.
Com efeito, se n
ão se reconhecer a temporalidade da presença, sempre se passará por cima
da temporalidade originária e, pela mesma razão, a quádrupla caracterização do tempo do mundo
202
ocupado não se mostrará. Pelo mesmo motivo, a compreensão vulgar do tempo não vendo no
tempo pronunciado e interpretado a quádrupla estrutura do tempo do mundo ocupado, os
agoras, que vêm e que passam, como uma seqüência sem-começo e sem-fim.
As estruturas do tempo pronunciado e interpretado desde a ocupação cotidiana pertencem à
própria mundanidade do mundo. Por isso, dimensionar a estrutura do tempo pronunciado e
interpretado implica ver e entender o modo pelo qual nasce o conceito da compreensão vulgar do
tempo. Tempo pronunciado e interpretado é, pois, o tempo ocupado mundanamente ao modo de vir a
tornar-se público. E, na medida em que torna-se público, também se propala, vulgariza, divulga, ou
seja, torna-se acesvel a todo mundo e, assim, é possível dispor do tempo para isso ou para aquilo.
Através da descrição da quádrupla estrutura do tempo do mundo da ocupação, Heidegger
demonstra como o conceito vulgar de tempo nasce e brota da temporalidade imprópria. Por isso,
ele diz que o tempo da compreensão vulgar apresenta um fenômeno, sem dúvida, autêntico,
mas derivado. Ele surge da temporalidade imprópria que, por sua vez, possui uma origem
própria
492
. Sua intenção fenomenológica fundamental, através da análise do tempo do mundo da
ocupação, portanto, é mostrar e esclarecer por que e como, na tradição metafísica ocidental, todas
as concepções do tempo necessariamente contaram com o fato de que os entes são ou estão no
tempo, atribuindo, inclusive, o modo de ser-no-tempo à própria presença, o que ela, de fato,
não é. Por esta razão, Heidegger escreve no § 81 de Ser e tempo:
A principal tese da interpretação vulgar do tempo (vulgären Zeitinterpretation) de que
ele é infinito revela, ainda mais profundamente, o nivelamento e o encobrimento do
tempo do mundo, inseridos nessa interpretação, e, com isso, da temporalidade em geral.
Numa primeira aproximação, o tempo se oferece como a seqüência ininterrupta de agoras.
Cada agora também já é um há pouco e um logo mais. Se a caracterização do tempo se atém,
primária e exclusivamente, a essa seqüência, então, nela, como tal, não se pode encontrar,
fundamentalmente, nem um começo e nem um fim. Enquanto agora, todo último agora já é
sempre um logo não mais. É, portanto, tempo no sentido de agora-não-mais, de passado;
todo primeiro agora é sempre um há pouco, ainda-não e, com isso, tempo no sentido de
agora-ainda-não, de futuro. Para ambos os lados, o tempo é o sem-fim. Essa tese temporal
apenas é possível, orientando-se por uma seqüência de agoras, simplesmente dada em si
mesma e solta no ar (an einem freischwebenden An-sich eines vorhandenen jetzt-Ablaufs),
na qual todo o fenômeno do agora se encobriu, no tocante à possibilidade de datação,
mundanidade, dimensão de lapso e teor blico, inerente à presença, desaparecendo numa
fragmentação irreconhecível. Numa visão do que é simplesmente dado e do que o é
simplesmente dado, pensando-se até o fim a seqüência dos agora nunca se chega a um fim.
Como esse pensar o tempo até o fim ainda deve sempre pensar o tempo, costuma-se concluir
que o tempo é infinito
493
.
Fica esclarecida, assim, a afirmação do § 71, cuja temática é sobre o sentido temporal da
cotidianidade da presença: Aquilo que, na interpretação da presença de fato, é onticamente tão
conhecido que nem sequer lhe damos atenção abriga, ontologicamente, muitos enigmas. É apenas
492. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 410.
203
aparentemente que o horizonte natural, tomado como primeiro ponto de partida da analítica
existencial da presença, é evidente
494
. E, também no § 80, podemos ler: E isso não porque ele [o
tempo] seja simplesmente dado como um ente intramundano, o que aliás ele nunca pode ser, mas
porque, em sentido ontológico-existencial, ele pertence ao mundo. Deve-se mostrar a seguir de que
maneira as remissões essenciais da estrutura de mundo, por exemplo, o ser-para, em razão da
constituição ekstática e horizontal da temporalidade, estão conectadas como o tempo público, por
exemplo, então, quando. Em todo caso, somente agora é que se pode caracterizar, de forma
plenamente estrutural, o mundo da ocupação: o mundo da ocupação é datável, se dá num lapso de
tempo, é público e, por ser assim estruturado, pertence ao próprio mundo
495
.
3.5.3 A intratemporalidade como origem do conceito vulgar de tempo
Sabemos que Heidegger confronta-se, sempre de novo, com o pensamento grego. Sabemos
também que, mesmo interpretando Bergson, Kierkegaard, Hegel, Kant, Descartes, Santo
Agostinho, é o grego que está em jogo. Por quê? Neles e em nós mesmos vigora o pensamento
grego. De fato, a questão pelo sentido do ser está presente e atravessa o pensamento desses
pensadores e cada um de nós, daí a genialidade de Ser e tempo e de toda obra heideggeriana.
Podemos ver isso num texto particularmente importante de Holzwege, de 1946, onde o
pensador interpreta a sentença de Anaximandro. A temporalidade grega é, enquanto ekstática já se
vê isso nos poetas gregos a expressão de uma presença absoluta. Também na entrevista concedida a
Richard Wisser, em 24 de setembro de 1969, e transmitida pelo canal 2 da televisão ale, diz:
Os gregos definiam o ser como vigência (Anwesenheit) do que está presente. A noção de
vigência lembra a de atualidade (Gegenwart), a atualidade é um momento do tempo, a
definição do ser como vigência refere-se, pois, ao tempo.
Se tento, agora, determinar a vig
ência a partir do tempo e se busco, na história do
pensamento, o que foi dito sobre o tempo, descubro que desde Aristóteles a essência do
tempo é determinada a partir de um ser determinado. Então: o conceito tradicional de
tempo é inutilizável. E é por esse motivo que tentei desenvolver, em Ser e tempo, um novo
conceito do tempo e da temporalidade no sentido da abertura ekstática (ekstatische
Offenheit)
496
.
É importante ter presente, portanto, que Heidegger que, a própria definição aristotélica
do tempo, nasce ou brota a compreensão de ser e tempo. De fato, da maneira como a presença,
493. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 81, p. 520-521.
494. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 71, p. 460.
495. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 80, p. 506 (grifo nosso).
496. Martin Heidegger, Entrevista concedida por Martin Heidegger ao Professor Richard Wisser, in: O que nos faz
pensar. Homenagem a Martin Heidegger por ocasião do vigésimo aniversário de sua morte, Cadernos do Departamento
de Filosofia da PUC-RIO, out. 1996, n. 10, vol. 1, p. 15-16). Cf. também Martin Heidegger, Platons: Sophistes, Frankfurt
am Main,Vittorio Klostermann, 1992, p. 394-398. Corrobora esta posição de Heidegger os dizeres de Jaa Torrano, num
abalizado estudo sobre Hesíodo: ... essa noção de tempo como pura extensão e quantificabilidade absolutas é uma
representação elaborada por nossa cultura moderna e exclusivamente nossa, não isso em Heodo nem em nenhuma parte
a não ser em nossas convicções culturais (cf. Jaa Torrano, O mundo como função de musas, in: Heodo, Teogonia, São
204
ao contar com o tempo, dele se ocupa, ela compreende co-originariamente o tempo ocupado e o
tempo do mundo de seu próprio mundo. Assim, na medida em que ela conta com o tempo, acaba
sempre se atualizando em vista do anteior e do posterior.
A rigor, portanto, isso demonstra que povos antigos não dispondo de relógios, ou então,
que algumas populações mais isoladas e remotas da atualidade também não dispondo ainda
desses intrumentos, não façam experiência alguma do tempo. Com efeito, sendo o relógio
mecânico uma invenção essencialmente moderna, isso não quer dizer que em toda a parte a
humanidade se oriente obrigatória e exclusivamente por esse ou aquele instrumento, seja ele um
artefato técnico ou ainda mais sofisticado como é o caso dos relógios atômicos
497
.
De fato, onde não há tais instrumentos, os seres humanos orientam-se pelo tempo de outras
maneiras. Por exemplo, pela sombra (que anda). Está pressuposto nesse fato, fundamentalmente,
a presença ou a ausência da luz do sol, ou melhor, a posição do sol, condição esta para haver
relógios naturais ou atômicos, não necessariamente mecânicos. Relógios de água ou de sol, por
exemplo. É o que podemos ler no trecho do § 81: Toda a discussão seguinte a respeito do tempo
atém-se fundamentalmente à definição aristotélica, ou seja, tematiza o tempo tal como ele se
mostra na ocupação, guiada por uma circunvisão. O tempo é o contado, isto é, o que se
pronuncia, embora implicitamente, na atualização do ponteiro (ou sombra) que anda
498
.
Vimos, no primeiro capítulo, vários aspectos importantes ressaltados por Heidegger em sua
interpretação da Física, livro em que o tempo é tematizado pelo Estagirita. Retomaremos aqui,
de passagem e brevemente, os três aspectos mais importantes: a) A definição aristotélica do
tempo é retirada do contexto de uma ontologia da natureza. Na interpretação aristotélica há algo
que todos nós experimentamos, a saber, o tempo e sua relação com a revolução do céu e o
tempo, por sua vez, como aquilo em que todo ente é. Aristóteles estabelece uma diferença entre
o tempo e o movimento, ou seja, enquanto o movimento está sempre apenas no móvel e somente
ali onde o móvel se encontra, o tempo está em todas as partes (pantacou~). Não está, pois, em
um determinado lugar e não está no móvel mesmo. Ele está, porém, junto a (parav) e, de algum
modo, ao lado de. Movimento e tempo distinguem-se na maneira de pertencerem ao móvel e o
que é no tempo é o que chamamos intratemporal. b) O decisivo, porém, na célebre definição do
tempo, está em seu resultado: o antes (Vor) e o depois (Nach) dizem respeito ao movimento
ou, dito mais sucintamente, é algo contado do movimento com o qual nos encontramos no
horizonte do anterior (Früher) e do posterior (Später). Aristóteles mostra de forma mais precisa
Paulo, Iluminuras, 1995, p. 11-102). Cf. também Junito de Souza Brandão, Teatro grego: tragédia e comédia, Petrópolis,
Vozes, 1999, p. 11 e Marcia Sá Cavalcante Schuback, O começo de deus, Petrópolis, Vozes, 1998, p. 250-253.
497. Desde 1958, o segundo foi definido como sendo o equivalente a 9.192.631.760 ciclos de radiação de um átomo de
césio (fonte: Ilha das flores, curta-metragem produzida por Jorge Furtado, em 1989).
205
o que está presente na experiência de um movimento e em que medida encontra-se nela, por sua
vez, o tempo. Esclarece de que modo e em que sentido o tempo é a*riqmov", quer dizer, número, e
como aparece o fenômeno fundamental do tempo, toV nu~n, ou seja, o agora. c) A partir disso, o
ponto culminante reside na pergunta pela unidade do tempo em relação à multiplicidade da
seqüência de agoras. Está em jogo aqui como o agora (toV nu~n) constitui a autêntica coesão
interna do tempo, a sunevceia, isto é, o manter unido, a continuidade, razão pela qual ele se
pergunta pela união do tempo na multiplicidade da seqüência de agoras
499
.
Segundo a concepção heideggeriana do tempo, enquanto tempo ocupado e tempo do
mundo, a temporalidade originária nunca é totalmente desarraigada e esquecida de sua origem. O
conceito vulgar de tempo, ao contrário, embora se origine da temporalidade imprópria, é
esquecido e não vê sua origem. A tese heideggeriana de que o conceito vulgar de tempo nasce da
temporalidade imprópria pode ser lida neste trecho do § 65:
Na medida em que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença
compreende impropriamente, pode-se presumir que o compreender vulgar de tempo
apresente um fenômeno, sem dúvida, autêntico, mas derivado. Ele surge da temporalidade
imprópria que, por sua vez, possui sua própria origem. Os conceitos de futuro, passado e
presente nascem, imediatamente, da compreensão imprópria de tempo. A delimitação
terminológica dos fenômenos originários e próprios correspondentes lutam com a mesma
dificuldade inerente a toda terminologia ontológica. Nesse campo de investigação, as
violências não são arbitrariedade mas uma necessidade fundada nas coisas de que trata
500
.
Assim, mesmo na compreensão vulgar do tempo, que é ao modo da temporalidade
imprópria, sempre ainda é possível temporalizar-se propriamente. Aqui está a razão fundamental
para não se desconsiderar e passar por cima da concepção vulgar de compreender o tempo. Pela
mesma razão, não se deve atribuir juízo de valor moral à compreensão vulgar do tempo. Na
verdade, todos nós, de algum modo, vigimos e operamos nela também. Por isso, Heidegger
mesmo diz que, na analítica existencial, deve-se afastar de seu uso toda e qualquer valoração
onticamente negativa. Fechamento e encobrimento pertencem à facticidade da presença
501
, ou
seja, pertencem ao próprio modo de ser de fato da presença, de maneira que está tanto na verdade
como na não-verdade. Cabe ver e entender, portanto, em que medida o conceito vulgar de tempo
tem sua razão de ser e em que sentido ele brota ou emerge da temporalidade imprópria da
presença.
498. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 81, p. 516. Cf. Martin
Heidegger, Que é uma coisa?, Lisboa, Edições 70, 1992, p. 54-55.
499. Cf. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, §
19, p. 330-361 (grifo nosso).
500. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 411. Cf. tamm §§ 78 e
81, respectivamente p. 498 e 516 e a longa e detida análise em Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am
Main, Vittorio Klostermann, 1975, §§ 19 a 20, p. 324-429.
501. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 44b, p. 290. Cf. também Luiz
Bicca, Ipseidade, anstia e autenticidade, in: ntese Nova Fase, vol. 24, n. 76, 1997, Belo Horizonte, p. 11-36, p. 17.
206
Diante disso, faz-se mister ter presente a ressalva feita por Heidegger na analítica
existencial, onde ele fundamenta a seguinte tese: a presença é e está na verdade’”
502
. Nesse
contexto o pensador mostra que tanto o desvelamento (aj-lhvqeia) como o velamento (lhvqh)
fazem parte de um só e mesmo movimento enquanto modos de dar-se da verdade
503
. Isso quer
dizer que, tanto verdade como não-verdade, assim como tempo próprio e tempo impróprio, são
ontológica e fenomenalmente constitutivos da própria presença.
Assim, segundo a abordagem da problemática propriamente heideggeriana do fenômeno do
tempo, especialmente quanto à estrutura fenomenal plena do agora, vista e descrita sob os
modos do tempo ocupado e do tempo do mundo, permaneceria incompleta se não fosse possível
realizar e confrontar essas descrições e, principalmente, a concepção vulgar de tempo, com a
concepção de tempo como temporalidade ekstática e horizontal da presença. Portanto, toda
investigação que se interesse em ver e entender o que está em jogo no conceito heideggeriano de
tempo não poderá omitir ou deixar de levar em conta as análises realizadas pelo pensador em Ser
e tempo e Os problemas fundamentais da fenomenologia
504
.
Na última obra, de uma maneira inversa do itinerário analítico percorrido em Ser e tempo,
o pensador dimensiona o problema do tempo caminhando do conceito vulgar de tempo para o
conceito da temporalidade propriamente dita, que é a temporalidade ekstático-horizontal da
presença. Essa obra heideggeriana é considerada, por muitos estudiosos, a elaboração do que
estava previsto e planejado para as outras quatro seções de Ser e tempo, e que Heidegger em boa
parte não desenvolveu nem publicou, do plano inicial traçado na década de 1920
505
. Ali
502. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 44b, p. 289.
503. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, §§ 8 e 44. Para se compreender
o sentido grego de verdade e não-verdade, isto é, de velamento (lhvqh) e des-velamento (aj-lhvqeia), é preciso considerar
que o verbo grego lanqavnw significa basicamente estar velado e, ao se acrescentar o alfa privativo (a) ao radical, chega-
se significado de estar des-velado. Para compreender fenomenologicamente o conceito de verdade e não-verdade,
recomenda-se o estudo de A sentença de Anaximandro, in: Sendas perdidas (Holzwege), Buenos Aires, Losada, 1979, p.
265-307 e Logos e Aletheia, in: Vorträge und Aufsätze, Pfullingen, Günther Neske, 1990, respectivamente p. 199-221 e
249-274 (cf. tradução brasileira de Ernildo Stein, Os pré-socráticos, São Paulo, Abril Cultural, 1973, respetivamente p. 25-
53 e 117-142) e, também, Martin Heidegger, Parmenides, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1992 e Platons:
Sophistes, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1992.
504. É importante notar que, entre os numerosos estudos realizados sobre a compreensão heideggeriana do conceito de
tempo, poucos têm se ocupado como o último catulo de Ser e tempo (§§ 78 a 83). Alguns poucos estudos escapam disso,
entre os quais: Paul Ricoeur, Temporalidade, historicidade, intratemporalidade Heidegger e o conceito vulgar de
tempo, in: Tempo e narrativa, tomo III, Papirus, Campinas, 1997, p. 105-169; Jaime Montero Anzola, Reflexiones en
torno a Ser y tiempo de Martin Heidegger, in: Franciscanum, Santafé de Bogotá, ano 37, n. 112, jan./abr. 1996, p. 19-45);
Emmanuel Martineau, Conception vulgaire et conception aristotélicienne du temps (Notes sur le § 19 de Die
Grundprobleme der Phänomenologie de Heidegger, éclairant la page 432 de Sein und Zeit), in: Archives de Philosophie,
vol. 43, fasc. 1, 1980, p. 99-120; Soche-Dagues D., Une exégèse heideggerienne: le temps chez Hegel dapprès le § 82 de
Sein und Zeit, in: Revue de Métaphysik et de Morale, jan./mar. 1979, p. 101-119). Entrementes, estudos mais específicos a
respeito da problemática do tempo em Heidegger, como os de Françoise Dastur, Heidegger e a questão do tempo, Lisboa,
Instituto Piaget, 1997 e de Marion Heinz, Zeitlichkeit und Temporalität im Frühwerk Martin Heideggers,
Würzburg/Amsterdam, nigshausen & Neumann/Rodopi, 1982, não se ocupam em acompanhar detidamente as análises
de Heidegger no que tange ao tempo ocupado, à estrutura plena do tempo do mundo e à nese do conceito vulgar de
tempo.
505. Cf. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, §§
19 e 20, p. 324-429. Segundo Stein, o volume 24 tem a seguinte relão com Ser e tempo: é uma escie de esboço de
todas as seções de Ser e tempo que não foram publicadas, portanto, da terceira seção da primeira parte e da primeira,
segunda, terceira seções da segunda parte. De maneira desdobrada e expcita aparece a terceira seção da primeira parte de
Ser e tempo: Tempo e ser (cf. Ernildo Stein, Seis estudos sobre Ser e tempo, Petrópolis, Vozes, 1990, p. 33). Tamm
207
Heidegger analisa a problemática do tempo partindo de uma interpretação genuína do tratado
aristotélico do tempo, cujo teor essencial esperamos ter sido apreendido e exposto ao longo de
nossa investigação. É o que podemos ver neste trecho:
Para isso escolhemos o caminho que chamamos de ponto de partida do conceito vulgar
de tempo e aprendemos a ver como que aquilo que comumente se conhece como tempo e
que até o presente na filosofia foi unicamente transformado em problema, pressupõe a
temporalidade mesma. Trata-se de ver que e como a compreensão vulgar do tempo
pertence à temporalidade e como dela surge. Através desta considerão abrimos caminho
em direção ao fenômeno da temporalidade mesma e de sua estrutura fundamental. O que
ganhamos com isso? Nada menos que a vio dentro da constituição ontológica
originária da presea. Mas deve-se, também, caso a compreeno do ser pertença à
existência da presença de outro modo, fundamentá-la dentro da temporalidade. A
condão ontogica de possibilidade de compreensão do ser é a temporalidade mesma. É
a partir dela que deve ser possível tirar aquilo de onde compreendemos o mesmo como
ser
506
.
O que de importante é evidenciado pelo pensador aqui? Ele diz: Trata-se de ver que e
como a compreensão vulgar do tempo pertence à temporalidade e como dela surge, isto é, está
em jogo ver e entender como a compreensão vulgar de tempo brota ou emerge da temporalidade
mesma. Por isso, no § 67 de Ser e tempo, Heidegger afirma também: a origem ontológica do ser
da presença não é inferior ao que dela surge
507
. Da mesma maneira, justifica-se, também, a
descrição do tempo ocupado e do tempo do mundo.
Heidegger descreve, de modo genuíno, a estruturação fenomenal dos modos pelos quais a
presença se temporaliza em sua cotidianidade. Nesse sentido, deve-se reconhecer que a
interpretação heideggeriana da tematização aristotélica do tempo é imprescindível para a sua
elaboração conceptual do mesmo fenômeno. Visto, porém, sob novos olhos: os olhos de Heidegger.
Na definição aristotélica do tempo estão presentes os elementos essenciais da própria
temporalidade do modo como é concebida por Heidegger e lapidarmente descrita no § 65 de Ser e
tempo. Sob o ponto de vista fenomenológico, portanto, o decisivo consiste em acompanhar um
pensamento que procura deixar e fazer ver, ou melhor, que procura demonstrar o que e
compreende, esperando fundamentar, assim, ontologicamente, como a compreensão vulgar do
tempo surge ou emerge da temporalidade imprópria da presença.
Ricoeur diz: Hoje, é preciso completar a leitura de Ser e tempo com a do curso ministrado na universidade de Marburgo
durante o semestre de verão de 1927 (logo, pouco depois da publicação de Ser e tempo) e publicado como tomo XXIV da
Gesamtausgabe, com o título Die Grundprobleme der Phänomenologie. [...] à diferença de Ser e tempo, o curso de 1927
retorna do tempo vulgar ao tempo originário, procedendo, assim, da má compreensão à compreeno autêntica (cf. Paul
Ricoeur, Tempo e narrativa, tomo III, Papirus, Campinas, 1997, p. 156). Nas notas marginais do exemplar do autor,
publicadas pela primeira vez em 1977, Heidegger escreve: cf. a preleção de Marburgo, veo de 1927 (Os problemas
fundamentais da fenomenologia) (cf. Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petpolis: Vozes, 2006, respectivamente p.
81 e 539; na edição ale: Sein und Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1986, respectivamente p. 41 e 440).
506. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19,
p. 323.
507. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 67, p. 419. Cf. também Luiz
Bicca, Ipseidade, anstia e autenticidade, in: ntese Nova Fase, vol. 24, n. 76, 1997, Belo Horizonte, p. 11-36.
208
Diante disso, poderíamos perguntar-nos: qual o problema fundamental na definição
aristotélica do tempo? O problema não parece ser o que e como Aristóteles viu ao conceber a
clássica definição de tempo. O problema relaciona-se ao fato como, sempre de novo, esta
definição passa a ser vista e compreendida, ou seja, a partir do agora enquanto pura seqüência
de agoras, sem-começo e sem-fim, que simplesmente vêm e passam. Pelo que vimos no primeiro
capítulo e acima rapidamente recapitulado, percebe-se claramente que Aristóteles viu e
preocupou-se em compreender e descrever o fenômeno do tempo em sua estrutura ou sistemática
interna. De fato, Heidegger reconhece: foi ele quem, pela primeira vez e por um longo período
afora, foi capaz de conceituar inequivocamente a compreensão vulgar do tempo, e de tal modo que
sua concepção do tempo corresponde ao conceito do tempo natural. Aristóteles foi o último dos
grandes filósofos que tiveram olhos para ver, e o que é ainda mais decisivo, a energia e a
persistência de orientar as investigações sempre de novo aos fenômenos e ao que havia sido
entrevisto
508
.
O que diz a clássica definição aristotélica do tempo? Ela reza: O tempo é isso, a saber, o
que é contado no movimento que se dá ao encontro no horizonte do anterior e do posterior
(tou~to gavr e*stin o& crovno", a*riqmoV" kinhvsew" kataV toV provteron kaiV u{steron)
509
. Para
Heidegger, há nesta formulação uma conceituação ontológica fundamental. Ele a interpreta,
parafraseando-a assim: O tempo é o que é contado na seqüência atualizante de contagem do
ponteiro no mostrador de suas variações. E isso de tal maneira que a atualização se temporaliza
na unidade ekstática de reter e aguardar, abertos horizontalmente segundo o anterior e o
posterior
510
. Podemos ver que, nessa descrição de Heidegger, há uma nítida ressonância com a
tematização da temporalidade originária ekstática e horizontal. Qual a diferença fundamental
então? Aristóteles retira sua concepção de uma ontologia da natureza, afirma Heidegger. De
fato, o que vem ao encontro, no horizonte do anterior e do posterior, não significa nem se
restringe, exclusivamente, a uma compreensão ao modo de um agora vazio e destituído de
sentido. Pelo contrário. Qual a origem do tempo, então? O que é contado diz respeito ao modo
como a presença, antecipadamente, sempre já conta com o tempo de algum modo, quer dizer,
ela mesma é a condição de possibilidade, vale dizer, horizonte de anterior e de posterior. O
sentido do sentido de ser nasce nela, está nela e a acompanha do nascimento até a morte.
Assim, se devidamente compreendidos, os modos pelos quais sempre já tomamos ou nos
damos tempo, por exemplo, enquanto agora em que, revela-se sempre já um determinado
508. Martin Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 19,
p. 329 (grifo nosso).
509. Cf. Aristóteles, Física D 11, 219 b 1s. Heidegger cita e comenta esta definição em Ser e tempo, Bragança Paulista:
Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 81, p. 516 e Die Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio
Klostermann, 1975, § 19, p. 324-388.
209
horizonte de sentido nos advém. Cada vez e sempre de novo, uma perspectiva de sentido se abre
enquanto um absolutamente novo modo possível de ser. Qual é o modo de ser fundamental
possibilitador? O modo de ser próprio da presença enquanto existe e se temporaliza
temporalmente. Por isso Heidegger escreve em Ser e tempo:
A caracterização vulgar do tempo como seqüência de agoras, sem-começo e sem-fim,
passageira e irreversível, surge da temporalidade da presença decadente. A representação
vulgar do tempo possui um direito natural. Pertence ao modo de ser cotidiano da presença e
à sua compreensão ontológica, inicialmente predominante. Por isso, numa primeira
aproximação e na maior parte das vezes, compreende-se publicamente a história como um
acontecer intratemporal. Essa interpretação do tempo perde o seu direito exclusivo e
privilegiado quando pretende mediar o conceito verdadeiro de tempo e ser capaz de
preestabelecer o único horizonte possível para a interpretação do tempo. Mas o que resultou
foi: somente a partir da temporalidade da presença e de sua temporalização é que se torna
compreensível por que e como o tempo do mundo lhe pertence. A interpretação da estrutura
plena do tempo do mundo, haurida da temporalidade, é que propicia os fios condutores para
se ver o encobrimento subsistente no conceito vulgar de tempo e avaliar o nivelamento da
constituição ekstática e horizontal da temporalidade. Orientando-se pela temporalidade da
presença é também possível demonstrar a proveniência e a necessidade de fato desse
encobrimento nivelador, bem como comprovar o fundamento da legitimidade das teses
vulgares sobre o tempo.
Em contrapartida, no horizonte da compreensão vulgar do tempo, a temporalidade
permanece inacessível. O tempo-agora, no entanto, não apenas deve orientar-se,
primordialmente, pela temporalidade, no que respeita à ordenação possível, mas ele mesmo
só se temporaliza na temporalidade imprópria da presença. É por isso que, com referência à
derivação do tempo-agora a partir da temporalidade, justifica-se referir-se a esse tempo
como tempo originário
511
.
Cabe ver e entender, portanto, desde a ocupação cotidiana do tempo no mundo, que a
presença, contando com o tempo, tende a esquecer-se com o que se ocupa. O que se passa com
este modo de esquecimento? Segundo a concepção vulgar, diz-se: o tempo passa. O tempo passa
e não se deixa deter. Como, porém, passa o tempo? De onde para onde? O tempo passa com o
mesmo direito do futuro para o passado ou pode também acontecer o contrário? Seja como for, a
compreensão vulgar jamais faria essa pergunta, pois ao fazê-la, forçosamente veria ou teria de
reconhecer outra coisa. Para a compreensão vulgar, o que vem e que passa é sem-começo e sem-
fim, portanto, in-finito. Por isso, quanto mais o tempo passa, tanto mais evidentemente se
mostra e revela para ela a fugacidade e infinitude do tempo.
Embora não analise ontologicamente o fenômeno do tempo na perspectiva da
temporalidade ekstática e horizontal, B. Pascal já reconhecera que, enquanto esperamos pela
nossa realização num momento futuro, acabamos esperando sempre por um novo instante,
mas que pode nunca chegar. Num de seus Pensamentos, Pascal escreve:
510. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 81, p. 517.
511. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 81, p. 523.
210
Nunca nos detemos no tempo presente. Antecipamos o futuro que nos tarda, como para lhe
apressar o curso; ou evocamos o passado que nos foge, como para o deter: tão imprudentes,
que andamos errando nos tempos que não são nossos, e não pensamos no único que nos
pertence; e tão vãos, que pensamos naqueles que não são nada, e deixamos escapar sem
reflexão o único que subsiste. É que o presente, em geral, fere-nos. Escondemo-lo à nossa vista
porque nos aflige; e se nos é agradável, lamentamos -lo fugir. Tentamos segurá-lo pelo
futuro, e pensamos em dispor as coisas que não estão na nossa mão, para um tempo a que o
temos garantia alguma de chegar. Examine cada um os seus pensamentos, e há de encontrá-los
todos ocupados no passado ou no futuro. Quase não pensamos no presente; e, se pensamos, é
apenas para à luz dele dispormos o futuro. Nunca o presente é o nosso fim: o passado e o
presente são meios, o fim é o futuro. Assim, nunca vivemos, mas esperamos viver; e,
preparando-nos sempre para ser felizes, é inevitável que nunca o sejamos
512
.
Por quê? De fato, nunca houve e nunca haverá instante enquanto o tempo for visto
apenas como o que vem e que passa. Qualquer instante, nessa perspectiva, nasce sempre
velho demais para a originariedade (= novidade) da temporalidade originária e finita, para a
temporalidade ekstática e horizontal. A chegada e a acolhida do novo, do totalmente novo,
segundo Heidegger, relaciona-se ao fato como nos apropriamos de cada novo instante enquanto
possibilidade. Na perspectiva da presença própria e porvindoura, cada novo instante é
possibilidade de ela ser coetânea de si mesma. Assim, à medida que a presença indecisa espera
pelo novo, não existe própria e originariamente no que faz e realiza e, por isso mesmo, nunca
dispõe de tempo para sua própria realização. Vivendo numa espera indecisa, vive sob o domínio
da impropriedade e na impessoalidade. Desse modo, a presença imprópria e indecisa, faz a
experiência de que continuamente perde seu tempo.
Em contrapartida, de modo totalmente diverso, porém, a presença própria e decidida faz a
experiência de sua finitude, sendo cada instante possibilidade de e para perfazer-se e realizar-se.
Neste modo de ser próprio, a presença existe livre para si mesma a ponto dizer: basta estar vivo
para morrer a qualquer instante, por isso, é necessário fazer o que me foi dado fazer. O que lhe
foi dado fazer? Habituar-se a fazer o que precisa ser feito. Quando? Sempre. Pois enquanto a
presença própria e decidida sabe que morre
513
, a imprópria e indecisa não quer jamais morrer.
Quer viver, mas não vive. nasceu morta! A que se deve isso, pergunta-se Heidegger? A
presença imprópria e indecisa não acolhe nem aceita sua condição primordial de ser. Qual é esta
condição? A condição primordial constitui-se de ser sempre minha e ser em cada caso, ou
melhor, ser sempre já e a cada vez de novo sob um modo possível de ser que gratuita e
generosamente lhe advém.
Na obra
Que é tempo?, Kurt Flasch, um dos filósofos recentes a estudar e aprofundar a
problemática do tempo, escreve a respeito da conceptualização heideggeriana do tempo:
512. Blaise Pascal, Pensamentos escolhidos, Lisboa, Verbo, 1972, n. 46, p. 45. Nesse caso, é sugestiva tamm a leitura de
Anselm Grün, O céu começa em você, Petrópolis, Vozes, 1998, p. 37-38.
513. Cf. Blaise Pascal, Pensamentos escolhidos, Lisboa, Verbo, 1972, n. 4, p. 60.
211
As análises do tempo de Heidegger pressupõem como em Bergson e Yorck que o
pensamento europeu deturpou e esvaziou a real experiência do tempo. Já nas preleções de
Marburgo estava em jogo descobrir a temporalidade originária da presença. Esta teria sido
tradicionalmente encoberta através da fixação da tradição filosófica da experiência vulgar
do tempo, a qual conhece apenas o tempo do mundo. Este transfere o tempo da presença
para uma fileira de agoras pontuais e desconhece a origem do tempo no presente ativo e
orientador que sempre é presente de algo, de tal modo que o agora esvaziado não pode vir ao
encontro do agora real e cuja interpretação tradicional do tempo lhe deu como resposta. A
apreensão usual do tempo guarda seu direito natural enquanto pertence ao modo de ser da
presença cotidiana. Todavia, para a análise filosófica, tudo isso depende se o conceito vulgar
do tempo é apreendido e criticado como um modo derivado. A análise normativa da teoria
do tempo deve mostrar até que ponto ela apenas articula e apreende conceptualmente a
compreensão vulgar do tempo ou até que ponto ela a problematiza e, com isso, acabar
contribuindo com que ela se tornasse a compreensão predominante
514
.
3.6
O
TESTEMUNHO DA EXISTÊNCIA POÉTICA ENQUANTO TEMPORALIDADE KAIRÔNICA
Seria possível compreender a tematização da temporalidade heideggeriana num exemplo
vivido, isto é, real, concreto? Como seria isso possível? Tentaremos mostrar que, a partir da
existência poética enquanto experiência kairônica, é possível compreender a temporalidade da
presença. Nesse intuito, analisaremos o testemunho da existência poética através do epistolário
de Rainer Maria Rilke.
Para cumprir esta tarefa a que nos propomos, poderíamos analisar também o epistolário de
Vincent Van Gogh. Van Gogh dá testemunho de sua ação criadora nas cartas que escreveu a seu
irmão Théo. O testemunho de Van Gogh deve ser compreendido a partir da frase: ferro frio não
caldeia. Numa de suas cartas diz: Não posso fazer nada além de bater no ferro enquanto ele
ainda está quente ou, ainda, um pintor deve, em regra geral, ser pintor e nada mais
515
.
Todavia, propomo-nos a interpretar o testemunho poético-existencial de Rilke
516
, uma vez que
ele, nas dez cartas que escreveu a um jovem poeta, embora fale do tempo da ação criadora,
atribui importância toda particular ao futuro (Zukunft). A idéia, então, é ver e entender, através
das cartas de Rilke, o modo como Heidegger tematiza a temporalidade da presença.
514. Kurt Flasch, Was ist Zeit?, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1993, p. 52-53.
515. Numa de suas obras Heidegger analisa o modo de ser da existência arstica a partir de um par de sapatos de uma
camponesa pintado por Van Gogh, ele diz: A camponesa no campo traz os sapatos. aqui eles o o que são. E tanto
mais autenticamente o são, quanto a camponesa durante a lida pensa neles, ou olha para eles ou até mesmo os sente. Ela
está de e anda com eles. Eis como os sapatos servem realmente. Neste processo de uso do apetrecho, o caráter
instrumental de apretrecho deve realmente vir ao nosso encontro (cf. Martin Heidegger, A origem da obra de arte, Lisboa,
Edições 70, 1990, p. 24-28, grifo nosso). O testemunho da ação poético-criadora de Vincent Van Gogh é importante, mas
não será analisado aqui. Por isso, transcrevemos, a seguir, algumas passagens das cartas que Van Gogh escreveu a seu irmão
e que revelam o modo de ser dessa existência e que pode ser motivo para uma análise semelhante (cf. Vincent Van Gogh,
Cartas a To, Porto Alegre, L&PM, 1986, respectivamente p. 32, 35, 42, 49, 50, 60-62, 76, 91, 93, 94, 123, 149).
516. Das interpretações heideggerianas da obra poética de Rilke, são relevantes: ¿Para qué ser poeta?, in: Sendas
perdidas, Buenos Aires, Losada, 1979 e Parmenides, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1992, p. 94-95. Cf.
também: Rainer Maria Rilke, Rodin, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1995 e Auguste Rodin, A arte: conversas com Paul
Gsell, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990. Importante estudo, procurando mostar possíveis relações entre Rilke e
Heidegger, é o de María Fernanda Benedito, Heidegger en su lenguaje, Madri, Tecnos, 1992, p. 147-188.
212
Rilke descreve sua experiência criadora na e desde poesia (existência poética). Nela é
possível encontrar, pois, uma maneira exemplar da presença humana temporalizar-se, de ser e
estar propriamente no tempo oportuno (temporalidade kairônica)
517
. Tempo oportuno é a
oportunidade de fazer-se e per-fazer-se obra enquanto existência poética. Vejamos o testemunho
de Rilke em cartas escritas a um jovem que pretendia tornar-se poeta.
Este jovem é Franz Xaver Kappus. Ele havia solicitado a opinião de Rilke sobre versos que
escrevera. A partir disso, inicia-se um período de correspondências que duraria de 1903 a 1908.
Na primeira carta ao jovem, de 17 fevereiro de 1903, Rilke escreve:
Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de ter perguntado a outras
pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas
tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem usando da licença que me deu de
aconselhá-lo peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o
que menos deveria fazer neste instante. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar ninguém. Não
há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo
518
.
O que significa aqui olhar para fora ou, ao contrário, olhar para dentro? Não expressam
necessariamente lugar enquanto espaço físico. Também não, lugar que possa ser atingido ou
preenchido por um sujeito que, num esforço qualquer, pudesse, por assim dizer, alcançar algum
outro lado. De forma alguma. Não há aqui o outro lado. Rilke diz apenas ao jovem: Não há
senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. -se aqui que o caminho consiste em entrar
em si mesmo. Mas, como será isso? Está em jogo um modo de ser, uma experiência enquanto
existência poética. O fundamental, portanto, é ver como se constitui, como se tece esse modo de
ser. O fundamental é ver o único caminho como o caminho, diga-se, caminho de
apropriação e realização criadora. O que é apenas a possibilidade de um modo de ser, e é para
ele que o jovem deve voltar-se, deve nele entrar, deve nele deter-se, deve nele morar.
O que Rilke quer dizer é que a poeticidade da poesia não provém da aprovação ou da
comprovação externas, por exemplo, da crítica de arte. A poeticidade da poesia deve, de algum
modo, já estar presente na obra como obra, sendo, por isso, tão-somente e apenas, obra. Assim,
na obra como obra, a poeticidade da poesia ganha propriedade, espessura, lucidez, transparência,
translucidez, transcendendo à própria atividade artística. A atividade é artística, é criadora na
medida em que, sempre de novo e a cada vez, se recria. Nela e por ela, a obra é o que é e precisa
ser. Nessa medida, ela ganha a medida de também perder o que ganha. Isso é possível desde a hora,
517. Para um melhor dimensionamento da temporalidade kairônica, são importantes os estudos de Emil Staiger,
especialmente: O tempo como imaginação da poética e Os conceitos fundamentais da poética. Ele refuta uma poética
apriorística e anti-histórica, acentuando, em contrapartida, uma poética apoiada na história, uma vez que a essência do ser
humano reside em sua temporalidade. A partir disso, Staiger caracteriza o lírico como recordação (passado), o épico como
observação (presente) e o dramático como expectativa (porvir). Essa caracterização pode ser relacionada com a
tridimensionalidade existencial heideggeriana do tempo. Cf. Emil Staiger, Grundbegriffe der Poetik, Munique, Deutscher
Taschenbuch, 1983 e Die Zeit als Einbildungskraft des Dichters: Unters. zu Gedichten von Brentano, Zurique, Atlantis,
1963. Também: Leda Miranda Hühne, Fernando Pessoa e Martin Heidegger: o poetar pensante, Uapê, Rio de Janeiro,
1994.
213
o instante, o tempo kairônico... de obra vir a ser obra. Nela mesma e por ela mesma, evidencia-se a
verdadeira medida de saber perder e ganhar. É este jogo que mantém e perpetua a existência
artístico-criadora, a existência poética. Modo de ser diz, então: disposição de liberdade, isto é, ser
para poder-ser, sempre de novo e a cada vez, a todo e a qualquer momento, a todo e a qualquer
instante. A medida desse modo de existir é saber esquecer (perder) e conquistar (ganhar). Nisso
consiste o elemento constitutivo enquanto possibilidade para poder-ser livre, vale dizer, liberto do
jugo, liberto do peso e, assim, também, da possível fama ou honra. Nietzsche ensina: E todo
aquele que deseja a fama deve, em boa hora, despedir-se das honras e exercer a difícil arte de, a
tempo ir-se embora
519
. As expressões boa hora e a tempo revelam, nas palavras de
Nietzsche, o modo de ser da temporalidade kairônica.
O fazer-se e per-fazer-se ação criadora enquanto atividade artística é exemplar na medida
em que evidencia a necessidade de nascer e morrer na hora própria, no tempo certo. Saber, ou
melhor, aceitar e acolher a hora de começo e término. Nessa experiência, a existência humana,
em tudo, absolutamente tudo, aceita e acolhe nascer e morrer. Está em jogo aceitar e acolher
nascer, mas, principalmente, saber morrer com propriedade, com singularidade. Morrer significa
aceitar e acolher a difícil tarefa de recomeçar continuamente, ou melhor, a cada vez e sempre de
novo. Ganhar-se nisso, a saber, na morte, na devida medida, de todo e qualquer novo fazer-se e
per-fazer-se ação criadora, constitui-se como existência poética vital e necessária. Existe no
tempo certo e, assim, apropria-se propriamente do tempo, existindo no tempo oportuno (kairós).
Existindo desse e nesse modo de ser, a existência poética pode e deve deixar vir (kommen
lassen) ao encontro a tarefa por realizar, sendo isso mesmo que a plenifica e lhe dá ainda mais
força. Força é justamente aquilo que colabora para que obra se perfaça enquanto obra, para que
obra se promova enquanto obra. Ação criadora, vital e necessária, decide-se desde movimento de
obra fazer-se e per-fazer-se (temporalizar-se), isto é, de obra ganhar a sua maturidade, sua
singularidade, sua propriedade!
520
Na medida em que vemos isso, podemos falar fenomenologicamente da existência poética
enquanto temporalidade kairônica e, então, as palavras de Rilke não nos soam mais estranhas,
sendo reveladoras e, por isso, portadoras da extraordinária experiência como ele faz o que faz:
poesia. O importante, portanto, não é o que ele faz, mas como faz o que faz. Nesse sentido, a
própria palavra poesia (poivhsi") nos dá uma indicação: fazer-se e per-fazer-se obra como obra.
É nisso que ele se realiza, se individualiza: é Rilke! Poderíamos então dizer que é nesse modo
que Rilke ganha e perde seu tempo? Esse, porém, é ainda um modo não muito apropriado de
518. Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta, São Paulo, Globo, 1995, p. 22.
519. Friedrich W. Nietzsche, Da morte voluntária, in: Assim falou Zaratustra, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p.
87.
214
falar como a existência poética se temporaliza. Nesse modo não nem ganho nem perda de
tempo. Toda e qualquer obra, que nasce e morre de ação necessária e vital, quer dizer, que se
temporaliza em sua medida própria, em sua medida apropriadora, é obra poética.
Diante disso, podemos perguntar-nos, então: de onde tira e escreve Rilke as palavras
dirigidas ao jovem poeta? Elas provêm e advêm (kommen) da própria necessidade de ação
criadora. Daí, qual a pergunta fundamental que Rilke faz a si mesmo? Ele propõe apenas o
seguinte ao jovem poeta: deixe de olhar para fora, deixe de preocupar-se com opiniões de
fora, ou seja, se seus poemas são bons ou ruins. Procure, acima de tudo, centrar-se em si
mesmo, procure prestar atenção ao modo como faz o que faz, mas não deixe de fazer o que deve
fazer! Nessa perspectiva, Rilke, fazendo uma análise de si mesmo, confessa ao jovem poeta:
Se lhe puder dizer alguma coisa mais, é isto: não pense que aquele que o procura consolar
leva uma vida descansada no meio das palavras simples e discretas que às vezes fazem bem
ao senhor. A vida dele comporta muito sacrifício e muita tristeza e fica-lhe muito atrás. Mas
se assim não fosse, ele nunca poderia ter encontrado aquelas palavras
521
.
No fundo, Rilke quer dizer que toda e qualquer palavra que provenha (kommt) do modo
de poesia fazer-se e per-fazer-se deve ser ressonância dessa experiência existencial, dessa
necessidade de ser. O fazer-se e per-fazer-se poesia são, pois, luta e empenho constantes em e
para Rilke.
Escolhemos, a seguir, dois outros trechos das cartas e por duas razões: em primeiro lugar,
para ver e entender como ele compreende arte enquanto obra de arte e, em segundo lugar, para
ver e entender como ele compreende o tempo enquanto temporalidade kairônica. Procuremos ver
e entender mais de perto cada um desses dois aspectos fundamentais a partir de palavras escritas
por Rilke ao jovem poeta. Na carta de 23 de abril de 1903 podemos ler:
As obras de arte são de uma infinita solidão; nada as pode alcançar tão pouco quanto a
crítica. Só o amor as pode compreender e manter e mostrar-se junto com elas. É sempre a si
mesmo e a seu sentimento que deve dar razão contra toda explanação, comentário ou
introdução dessa espécie. Mesmo que se engane, o desenvolvimento natural de sua vida
interior há de conduzi-lo devagar, e com o tempo, a outra compreensão. Deixe a seus
julgamentos sua própria e silenciosa evolução sem a perturbar; como qualquer progresso, ela
deve vir do âmago do seu ser e não pode ser reprimida ou acelerada por coisa alguma. Tudo
está em levar a termo e, depois, dar à luz. Deixe amadurecer interiormente, no âmago de si,
nas trevas do indizível e do inconsciente, do inacessível a seu próprio intelecto, cada
impressão e cada germe de sentimento e aguardar com profunda humildade, paciência e
sem intolerância a hora do parto de uma nova claridade: só isto é viver artisticamente na
compreensão e na criação
As palavra mais importantes, porém, são estas, primeiro em alemão:
Da gibt es kein Messen mit der Zeit, da gibt kein Jahr, und zehn Jahre sind nichts. Künstler
sein heiß: nicht rechnen und zählen; reifen wie der Baum, der seine Säfte nicht drängt und
520. Cf. Martin Heidegger, Das Wesen der Sprache, in: Unterwegs zur Sprache, Stuttgart, Günther Neske, 1997, p. 213.
521. Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta, São Paulo, Globo, 1995, p. 70.
215
getrost in der Stürmen des Frühlings steht ohne die Angst, daß dahinter kein Sommer
kommen könnte. Er kommt doch. Aber er kommt nur zu den Geduldigen, die da sind, als ob
die Ewigkeit vor ihnen läge, so sorglos still und weit. Ich lerne es täglich, lerne es unter
Schmerzen, denen ich dankbar bin: Geduld ist alles!, quer dizer: Aí o tempo não serve de
medida: um ano nada serve, dez anos não são nada. Ser artista não significa calcular e
contar, mas sim amadurecer como a árvore que não apressa a sua seiva e enfrenta tranqüila
as tempestades da primavera, sem medo de que depois dela não poderia vir nenhum verão.
O verão de vir. Mas virá só para os pacientes e sem intolerância, que aguardam num
grande silêncio intrépido, como se diante deles estivesse a eternidade. Aprendo-o
diariamente, no meio de dores a que sou agradecido: a paciência é tudo!
522
Podemos perguntar agora: é o fazer-se e per-fazer-se poesia assim descrita por Rilke,
enquanto existência poética, uma ocupação humana ao lado de outros afazeres? Absolutamente,
não! Está em jogo, essencial e fundamentalmente, o fazer-se e per-fazer-se poesia de Rilke como
e nele próprio. A poesia que nasce e morre dessa experiência originária é o próprio Rilke! Rilke é
poesia. Poesia é Rilke.
Por isso, como já enfatizávamos anteriormente, é fundamental prestar atenção ao modo, ao
jeito de fazer, mas, sobretudo, é necessário ver e entender como Rilke se movimenta, vive e se
temporaliza na e desde necessidade criadora. Assim, o modo peculiar e próprio de poesia vir a
ser arte consiste em compreender devidamente que e como a existência poética de Rilke se
realiza, se apropria e se constitui em sua radicalidade. Porém, não nos precipitemos em nossa
interpretação. Por enquanto, mantenhamos nossa atenção voltada para as palavras de Rilke.
Ele diz que o fundamental na experiência poética é ser paciente e sem intolerância. A
expressão sem intolerância, justamente por ser duplamente negativa atentemos para o sem e
o in! , é radicalmente positiva. Percebemos Rilke aconselhar o jovem nestes termos: se quiser
ser poeta, se quiser assumir isso como um modo de ser vital, é necessário tirar ou retirar tudo
aquilo que impede, tudo aquilo que pode ser um entrave para poesia vir a ser poesia. Ou seja,
para fazer-se e per-fazer-se poesia é necessário existir, fundamentalmente, no modo de ser livre.
Criar, poetar, assim, não é peso, é leveza. Poetar é, radicalmente, criar e, nesse sentido, apropriar-
se e alterar-se. Tudo o que vai ao encontro e realiza isso é poei~n. Portanto, tão-só fazer-se e per-
fazer-se poesia. Marcia Schuback, referindo-se a esta mesma passagem das cartas de Rilke,
escreve: Retirar a força e a resistência é, do ponto de vista de uma afirmação, um puro e simples
deixar-ser
523
.
O que nos evidenciam, fundamentalmente, as cartas? Rilke, vindo a ser poeta, e, na medida
em que o jovem seja capaz de ver como isso se , é-lhe possibilitado também ser poeta, isto é,
existir poeticamente. O imperativo é: deixe-se transformar! Nessa medida é possível ao jovem
descobrir um sereno e calmo caminho em que, aos poucos, mesmo que lentamente, poderá realizar
522. Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta, São Paulo, Globo, 1995, p. 32-33 (grifo nosso).
523. Cf. Marcia Sá Cavalcante Schuback, O como de deus, Petrópolis, Vozes, 1998, p. 246-247.
216
o que seja ser poeta. Rilke, porém, está dizendo algo ainda mais essencial e que transcende a ele
mesmo, ou melhor, que ultrapassa e transpassa a própria vontade de ser poeta. O deixar-ser ou
deixar-se-transformar é essencial para toda e qualquer ação interessada, verdadeira e vital. Enfim, a
própria ação criadora, por ser transformadora e inauguradora, é transcendental. Transcendental quer
dizer aqui: ser transpassado, ultrapassado por poesia, ou melhor, deixar-ser-no-mundo-de-poesia.
A presença humana poética, enquanto existe poeticamente, sempre já e a cada vez, ultrapassa
sua própria natureza
524
. Nesse sentido, no livro sobre Rodin, lemos de Rilke: O nio é sempre
assustador para seu tempo; mas na medida em que um deles nos ultrapassa não somente com seu
espírito, mas também nas realizações, ele tem o efeito terrível de um sinal no u
525
. A
positividade desse modo de deixar-ser ou deixar-se-transformar está nestas frases: O verão de
vir e aprendo-o diariamente, no meio de dores a que sou agradecido: a paciência é tudo! Estas
frases revelam uma liberdade criativa, própria do empenho, mas, sobretudo, da espera inter-essada
de criadores como Rilke e Rodin.
Em outra carta, de 12 de agosto de 1904, Rilke volta a falar ao jovem da solidão e como ele
a compreende: Falando novamente em solidão, torna-se cada vez mais evidente que ela não é,
na realidade, uma coisa que nos seja possível tomar ou deixar. Somos nós. Podemos enganar-nos
a este respeito e agir como se não fosse assim; nada mais. Mas quão melhor é admitir que se é só,
e mesmo partir daí
526
. Extraordinária revelação de Rilke aqui a respeito da solidão: não a
podemos tomar ou deixar, somos nós. Quão melhor é admitir que se é só, e mesmo partir
daí, quer dizer, desde o sentido de ser de existência poética. Mas sentido em que sentido?
Podemos ver isso numa interpretação de Heidegger da poesia de Georg Trakl, de 1953:
“‘Wahn [= alienação] pertence à forma do antigo-alto-alemão wana e significa: sem. O
alienado reflete; ele até mesmo reflete de uma maneira como ninguém mais. Porém, desse modo,
ele fica sem o sentido dos outros. Ele está num outro sentido. Sinnan significa originariamente:
viajar, aspirar por..., tomar e seguir uma direção; a raiz indo-germânica sent significa caminho. O
solitário é o alienado porque está a caminho de um outro lugar. A partir de sua alienação, ele
passa a ser mais sensível e isso porque reflete mais silenciosamente
527
.
Heidegger interpreta aqui a etimologia da palavra Wahn-sinn, palavra usada por Trakl num de
seus poemas. O poema fala do alienado enquanto aquele que reflete de uma maneira como
ninguém mais. Procuremos ver em que sentido esta passagem pode trazer-nos um melhor
524. No segundo capítulo, tópico Ser-no-mundo como constituição fundamental da presea, falamos de ser-no-mundo
como constituição ontológica fundamental da presença. Deve-se atribuir particularmente à presença humana o conceito
transcendente, uma vez que o ser simplesmente dado ocorre entre as coisas, ao que es no mundo, sendo
intramundano. Segundo a terminologia analítica heideggeriana, a presea nunca apenas ocorre, mesmo que ela assim se
compreenda. A compreensão decadente da presea não nega sua constituão ontológica, apenas a confirma.
525. Rainer Maria Rilke, Rodin, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1995, p. 147.
526. Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta, São Paulo, Globo, 1995, p. 65.
527. Martin Heidegger, Die Sprache im Gedicht: Eine Erörterung von Georg Trakls Gedicht, in: Unterwegs zur Sprache,
Stuttgart, Günther Neske, 1997, p. 53 (grifo nosso). Cf. também Linus Brunner, Die gemeinsamen Wurzeln des semitischen
und indogermanischen Wortschatzes, Berna/Munique, A. Francke, 1969, n. 604, p. 108-109, onde autor, apresentando
217
entendimento do que significa a estrutura existencial denominada por Heidegger sentido. Pelo
que vem dito na citação, o sem, de Wahn(-sinn), não quer dizer que o haja mais sentido
algum. Deve-se admitir que, mesmo no louco, no alienado, sempre ainda está em ação um
determinado sentido. Porque o louco, o alienado, está num outro sentido, acaba remetendo os que
estão à sua volta para um sentido mais próprio. Ele chama os outros à sua própria direção, ao seu
próprio sentido, ao seu próprio caminho, à sua própria realização. Isso vem dito na seqüência da
citação: Sinnan (sentido) significa originariamente: viajar, aspirar por..., tomar e seguir uma
direção; a raiz indo-germânica sent significa caminho. Ou seja: não vida humana sem sentido,
isto é, sem direção, sem orientação. Num sentido mais radical, portanto, toda e qualquer
experiência humana, enquanto presença existente, descobre-se na necessidade de ser aquele que ele
sempre já foi e é, mas, sobretudo, aquele que ele ainda não foi e, portanto, ainda não é e quer ser. O
solitário, diz Heidegger, é o alienado porque está a caminho de um outro lugar. A partir de sua
alienação, ele passa a ser mais sensível e isso porque reflete mais silenciosamente. O solitário é
aquele que, de um modo ou de outro, está a caminho de si mesmo (solus), sendo um outro (alter
ego), tendo então a tarefa de vir a ser constantemente um outro de si mesmo.
Numa outra carta, Rilke refere-se às muitas e grandes tristezas como elemento a partir do
qual é possível descobrir se estamos e somos no modo de ação criadora, a confirmar-se na
medida em que somos livres e libertos para ela:
Perigosas e más são apenas as tristezas que levamos por entre os homens para abafar a sua
voz. Como as doenças tratadas superficialmente e à toa, elas apenas se escondem e, depois
de leve pausa, irrompem muito mais terríveis. Juntam-se no fundo da alma e formam uma
vida não vivida, repudiada, perdida, de que se pode amorrer. Se nos fosse possível ver
além dos limites de nosso saber e um pouco além da obra de preparação de nossos
pressentimentos, talvez suportássemos nossas tristezas com maior confiança que nossas
alegrias. São, com efeito, esses os momentos em que algo de novo entra em nós, algo de
ignoto: nossos sentimentos emudecem com embaraçosa timidez, tudo em nós recua, levanta-
se um silêncio e a novidade, que ninguém conhece, se ergue aí, calada, no meio.
Parece-me que todas as nossas tristezas são momentos de tensão que consideramos
paralisias porque já não ouvimos viver nossos sentimentos que se nos tornaram estranhos;
porque estamos a sós com o estrangeiro que nos veio visitar; porque, num relance, todo o
sentimento familiar e habitual nos abandonou; porque nos encontramos no meio de uma
transição onde não podemos permanecer. Eis por que a tristeza também passa: a novidade
em nós, o acréscimo, entrou em nosso coração, penetrou no seu mais íntimo recanto. Nem
está mais já passou para o sangue. Não sabemos o que houve. Facilmente nos poderiam
fazer crer que nada aconteceu; no entanto, ficamos transformados, como se transforma uma
casa em que entra um hóspede. Não podemos dizer quem veio, talvez nunca o venhamos a
saber, mas muitos sinais fazem crer que é o futuro que entra em nós mesmos muito antes de
vir a acontecer. Por isso é o importante estar só e atento quando se está triste. O momento,
aparentemente anódino e imóvel, em que o nosso futuro entra em nós, está muito mais
também a forma sinnan, do antigo-alto-alemão, apresenta os seguintes significados: gehen, reisen, wandern,
kommen.
218
próximo da vida do que aquele outro, sonoro e acidental, em que ele nos sobrevém como se
chegasse de fora. Quanto mais estivermos silenciosos, pacientes e entregues à nossa mágoa,
tanto mais profunda e imperturbável entra a novidade em nós, tanto melhor a conquistamos,
tanto mais ela se tornará nosso destino e quando, num dia ulterior, vier a acontecer isto é,
quando sair de nós para se chegar a outros senti-la-emos familiar e próxima. Deve ser
assim. É preciso e a nossa evolução, aos poucos, há de processar-se nesse sentido que
nada de estranho nos possa advir, senão o que nos pertence de muito. se modificaram
muitas noções relativas ao movimento; de se reconhecer, aos poucos, que aquilo a que
chamamos destino sai de dentro dos homens em vez de entrar neles. Muitas pessoas não
percebem o que delas saiu, porque não absorveram o seu destino enquanto o viviam, nem o
transformaram em si mesmas. Afigurou-se-lhes tão estranho que, em seu confuso espanto,
julgavam-no saído delas antes de ter encontrado em si algo parecido. Como os homens
durante muito tempo se iludiram acerca do movimento do sol, assim se enganam ainda em
relação ao movimento do que es para vir (Kommenden). O futuro (Zukunft) está firme,
caro Sr. Kappus, nós é que nos movimentamos no espaço infinito
528
.
Como Heidegger em sua tematização da temporalidade, vemos que também Rilke atribui
um privilégio particular ao futuro, ou seja, ao futuro enquanto porvir (Zukunft)
529
. O futuro é
o que está por vir (Kommenden). Segundo Rilke: é o futuro (Zukunft) que entra em nós dessa
maneira para se transformar em nós mesmos muito antes de vir a acontecer, ou seja, é o próprio
futuro que gera e perpetua a vida em nós. Ao modo de compreender o tempo segundo Rilke nas
cartas ao jovem poeta, chamamos de temporalidade kairônica. Temporalidade kairônica, desde
existência poética, é existir propriamente no momento oportuno ou kairônico.
Na carta de Rilke ao jovem poeta, de 17 de fevereiro de 1903, dá-nos uma descrição
exemplar disso que, segundo nossa interpretação, constitui o momento oportuno ou kairônico:
Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos
mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?
Isso acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: Sou mesmo
forçado a escrever? Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder
contestar àquela pergunta severa por um forte e simples sou, então construa a sua vida de
acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá
tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois
procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde
530
.
Muito importante, no testemunho epistolar de Rilke, nas dez cartas que estão entre o
espaço de tempo que vai de 1903 a 1908, que ele escreva estas palavras ao jovem poeta não na
última carta, mas justamente na primeira. A ênfase da primeira carta recai justamente sobre a
palavra necessidade. A necessidade de escrever como se fosse forçado? Isso não é
528. Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta, São Paulo, Globo, 1995, p. 64-65 (grifo nosso).
529. Heidegger mostra que o sentido primordial de futuro enquanto modo primordial da existência nesta frase lapidar: Ora,
proveniência é sempre porvir, em alemão: Herkunft aber bleibt stets Zukunft (cf. Martin Heidegger, De uma conversa
sobre a linguagem entre um japonês e um pensador, in: A caminho da linguagem, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis:
Vozes, 2003, p. 79 (grifo nosso). Cf. edição alemã: Aus einem Gespräch von der Sprache zwischen einem Japaner und
einem Fragenden, in: Unterwegs zur Sprache, Stuttgart, Günther Neske, 1997, p. 96. Georges Braque, referindo-se à
estrutura da temporalidade, diz: O futuro é a projeção do passado condenada pelo presente (cf. Georges Braque, O dia e
a noite. Cadernos de Georges Braque (1917-1952), in: Arte e Palavra, título do volume: Espo poético, Rio de Janeiro,
Fórum de Ciência e Cultura URRJ, vol. 2, 1987, p. 61).
530. Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta, São Paulo, Globo, 1995, p. 22-23 (grifo nosso).
219
estranho? A palavra forçado guarda uma ambigüidade existencial positiva. Ser forçado não
tem nada a ver com peso ou obrigação externa. De fato, Rilke não está vendo aqui uma maneira
submissa e escrava no sentido de ser coagido a cumprir a tarefa por realizar a partir de fora
(por outra pessoa), mas é um modo livre, ou seja, por um forte e simples sou’”. Ser forçado
significa, então: viver na e desde força poética. Viver nessa intensidade e liberdade criadoras é
existir poeticamente. Por isso, na mesma carta, que é a primeira, podemos também ler:
Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará
em perguntar seja a quem for se são bons. Nem o pouco tentará interessar as revistas por
esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma
voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de
origem está o seu critério o único existente. Também, meu prezado senhor, não lhe posso
dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra a sua
vida; na fonte desta é que encontrará a resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal
como se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la. Talvez venha a
significar que o senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso, aceite o destino e carregue-o
com seu peso e sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de
fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e
nessa natureza a que se aliou
531
.
Para compreender o que vem dito tão enfaticamente nesta carta a respeito do caráter ou
critério da origem da obra de arte, é preciso ver como é possível o criador ser um mundo
para si mesmo. O que quer dizer aqui si mesmo? Si mesmo implica: voltar para dentro,
ensimesmar-se. Ensimesmar-se quer apenas dizer: deixar que o mesmo de si mesmo venha a
ser, sempre de novo e a cada vez, outro de si mesmo, isto é, sendo si mesmo, possibilite toda e
qualquer alteração. Na medida em que vem a ser, sempre de novo e a cada vez, outro de si
mesmo, torna-se simplesmente e tão-somente si mesmo. Por isso, diz Rilke (carta de 12 de
agosto de 1904), se modificaram muitas noções relativas ao movimento; aquilo a que
chamamos destino sai de dentro dos homens em vez de entrar neles. Muitas pessoas não
percebem o que delas saiu, porque não absorveram o seu destino enquanto o viviam, nem o
transformaram em si mesmas.
Ser si mesmo, enquanto existência poética, significa viver livre e aberto para a mudança,
para a passagem do tempo e, assim, livre para a condição finita de ser, viver como se fosse o
primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Outra evidência disso encontramos
novamente no livro de Rilke sobre Rodin, onde escreve: Pois se há algo que pode vir a ser uma
vida, isso não depende das grandes idéias, e sim da possibilidade de criar para si um ofício, algo
diário, algo que fosse sustentado por alguém até o fim. [...] Ele [Rodin] sabia disso, pois também
seu trabalho era assim; e ele trabalhava ininterruptamente. Sua vida corria como um único dia de
531. Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta, São Paulo, Globo, 1995, p. 24-25 (grifo nosso).
220
trabalho. [...] Mas a arte plástica nascera em um tempo que não tem coisas, nem casas, nem
exterior. Pois o interior constituído por este tempo é sem forma, inapreensível: ele flui
532
.
De uma maneira toda exemplar, portanto, é na e pela ação criadora que é possível
experimentar e, assim, visualizar que não nem pode haver nada fora dessa ação. Seu sentido
provém e porvém dela mesma. A originalidade da ação criadora reside no fato de se saber no
limite e, assim, a todo instante, estar no risco de não corresponder ao limite. Por isso mesmo, a
ação criadora deve ser necessária atenção e obediência. A existência poética experimenta o
perigo vital de ser, que é a possibilidade de não ser e, por isso, tendo de ser sob um modo
possível de ser, se ensimesma, se temporaliza. A ação criadora não só carece saber, mas é
fundamentalmente carente de um não-saber, a carência de saber essencialmente o que não deve-
ser para poder-ser o que precisa ser. Toda ação criadora principia dessa condição, isto é, da
decisão de ser e estar no jogo da própria ação e, assim, ao pôr-se a si mesmo, a cada vez e sempre
de novo, em jogo, é obra (poivhsi") em cada instante de fazer-se e per-fazer-se. Nesse sentido, a
medida e a hora certa, o momento oportuno (kairós) da ação criadora não existe
determinado como algo de fora, dado, pronto, acabado. É necessário empenho atento e trabalho
continuado e obediente. Isso é possível se, antecipadamente decidida, a presença vive livre para
si mesma, vindo a ser si mesma. Segundo Heidegger, o projetar-se em virtude de si-mesmo,
fundado no porvir, é um caráter essencial da existencialidade. O seu sentido primário é o
porvir
533
.
532. Rainer Maria Rilke, Rodin, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1995, respectivamente p. 116, 86 e 146 (grifo nosso).
533. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 412.
221
CONCLUSÃO
Através da analítica existencial e temporal da presença, Heidegger elabora uma nova
ontologia, a ontologia fundamental. Esta ontologia nasce do imperativo de fundamentar toda e
qualquer outra ontologia possível. Heidegger parte do pressuposto de que o ser humano,
enquanto presença, sempre existe sendo-no-mundo. Nesse sentido, o pensador vê a
necessidade de reinterpretar a essência do ser humano do modo que havia sido legado pela
tradição metafísica. Fruto dessa reinterpretação surge uma compreensão e tematização totalmente
novas como presença humana (menschliche Dasein). Está em jogo, pois, rever e superar o
modelo substancialista de compreender a essência do ser humano.
Qual é a intuição ou a evidência da qual parte Heidegger? Ela resume-se nesta frase
extremamente simples, porém lapidar: A presença existe ao modo de ser-no-mundo. Através da
analítica da facticidade, iniciada por Heidegger nos anos de 1918 e 1919, na Universidade de
Friburgo, percebe-se nitidamente um processo de definição conceptual. Isso é indiscutivelmente
visível nos textos, por exemplo, dos anos de 1923 em diante, quando Heidegger já se encontra na
Universidade de Marburgo. Porém, como tivemos a oportunidade de ver, Heidegger está
ocupado com a questão central de seu pensamento desde a aula de habilitação de 1915. Na
medida em que se questiona pelo propriamente qualitativo em termos históricos, revela-se-lhe
que o ser humano pode voltar ao passado, porque a vida se compacta, se cristaliza sob formas
significativas, de sentido, de valor e, com isso, acaba tendo diante dos olhos um problema
totalmente novo e peculiar. Da mesma maneira, na conferência de 1924, comprova-se melhor
ainda que, ao contrário da homogeneidade e da indiferença de todo agora contado e medido pelo
relógio, cada agora da ocupação cotidiana é sempre plenamente um novo agora. Um agora com
possibilidade de sentido e, por ser toda possibilidade de sentido, é, também e sobretudo,
possibilidade de tempo temporalizar-se.
Nesse sentido, devemos reconhecer que, se, de um lado, a consumação ou o
aperfeiçoamento conceitual em Ser e tempo é exemplar, de outro, os conceitos surgem ou são
forjados a partir de uma preocupação fundamental que guia o pensamento heideggeriano.
Portanto, mesmo Ser e tempo não deve ser visto e entendido em seu fim, mas em seu propósito, a
saber, de colocar novamente a questão pelo sentido do ser. Para quem? Para e a favor do próprio
pensamento. Somente de e para Heidegger? De certo modo, sim e, de certo modo, não. Pois,
também e sobretudo, para todo aquele que se inter-essa por filo-sofia, por fenomeno-logia.
Por isso, dentro do propósito de Heidegger, deve-se buscar ver e entender o processo de
formação de seu próprio pensamento e não apenas os conceitos que dela surgem. Enquanto a
222
palavra conceito sugere concepção, está, na sua conceptualização, ou melhor, na sua gestação,
um modo todo original de pensar. De fato, os conceitos por ele forjados são a cristalização de
idéias-motoras ou idéias condutoras de seu pensamento. Nessa direção, a tentativa aqui
empreendida, a saber, de ver e entender como Heidegger elabora seu próprio conceito de tempo,
é apenas um modo possível de aproximar-se do processo em que surge e nasce a obra de
Heidegger como pensamento essencial e fundamental.
Uma das maiores dificuldades de leitura e interpretação da obra de Heidegger reside no
fato de estarem sempre em jogo dois movimentos inseparáveis num mesmo caminho e que nem
sempre são de fácil percepção e distinção. E por que isso é assim? Por andarem ou acontecerem
juntos, por serem concomitantes. Enquanto numa direção do caminho Heidegger se movimenta
na elaboração de seu próprio pensamento, na direção oposta, porém dentro do mesmo caminho,
movimenta-se e caminha ao encontro do que a tradição lhe legou.
Assim, retomando pontos essenciais ditos ao longo do trabalho, tentaremos mostrar e
sintetizar, na medida do possível, algumas idéias centrais que guiaram nossa investigação a favor de
uma elaboração conceitual da temporalidade da presença. Se bem considerado, devemos admitir
que Heidegger se apropria de idéias essenciais presentes em outros pensadores e, nesse sentido, es
continuamente seguindo os vestígios fundamentais deixados por eles. Vejamos isso primeiro.
Para Heidegger, a história da filosofia pode ser vista e compreendida desde a história do
ser e o destino do ser está implicado em seu próprio movimento de historização. Assim, a
história da filosofia como história do ser realiza-se, em Platão, como ideva ou koinwniva
das
idéias, em Aristóteles, como enevrgeia, em Santo Tomás, como actualitas, em Leibniz, como
mônada, em Kant, como razão e posição, em Hegel, como espírito e conceito absoluto, em
Nietzsche, como vontade de poder
534
. Se, como o próprio pensador afirma, em Que é isto a
filosofia?, que o pensamento ocidental é a realização historial desse destino, não seria também a
própria obra de Heidegger a afirmação de uma nova possibilidade de realização historial do
mesmo destino? Seja como for, toda e qualquer idéia fundante é fundamental. É nessa mesma
direção que podemos ler da interpretação heideggeriana da sentença de Anaximandro:
É da época do ser que vem a essência epocal de seu destino, onde acontece a verdadeira
história universal. Cada vez que o ser se retém em seu destino acontece súbita e
imprevisivelmente mundo. Cada época da história do mundo é uma época de errância. A
534. Cf. Martin Heidegger, Que é isto a filosofia?, in: Confencias e escritos filoficos, São Paulo, Abril Cultural,
1973, p. 213, onde o autor escreve: Aquilo que o que significa se designa o quid est, tò quid: a quidditas, a qüididade.
Entretanto, a quidditas se determina diversamente nas diversas épocas da filosofia. Assim, por exemplo, a filosofia de Platão
é uma interpretação caractestica daquilo que quer dizer o tí. Ele significa precisamente a idéa. [...] Aristóteles dá uma outra
explicação do que Platão. Outra Kant e também Hegel explica o tí de modo diferente. Sempre se deve determinar
novamente aquilo que é questionado através do fio condutor que representa o , o quid, o que. Cf. Martin Heidgger, Zeit
und Sein, in: Zur Sache des Denkens, Tübingen, Max Niemeyer, 1969, p. 7 e 9; edições brasileiras: Tempo e ser, in:
Conferências e escritos filosóficos, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 459 e Tempo e ser, in: O fim da filosofia ou a
questão do pensamento, São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1972, p. 47 e 49.
223
essência epocal do ser faz parte do oculto caráter temporal do ser e caracteriza a essência do
tempo pensada no ser. Outras coisas representadas sob este nome são apenas o vazio da
aparência do tempo extraído do ente pensado objetivamente
535
.
Nossa investigação começa diante do modo de perguntar inusitado a respeito do tempo presente
na conferência de 1924. De fato, foi esse modo de perguntar que motivou e estimulou a presente
investigação. Por isso, é necessário repetir aqui a mesma pergunta feita por Heidegger naquele ano:
Quem é o tempo? (Wer ist die Zeit?). Embora possa parecer uma maneira extravagante e estranha
de perguntar, apresenta-se nela uma possibilidade de compreender e conduzir a uma nova
conceptualização, ou melhor, a uma tematização a pergunta fundamental com a qual se deparou e
debruçou toda a tradão metasica ocidental. Toda: tanto no sentido de atravessar radicalmente
toda a história da humanidade, mas, principalmente, por dizer respeito a cada ser humano em sua
própria exisncia, e é nisso exatamente que consiste sua radicalidade fundamental.
Com efeito, desde que homem é homem, a questão do sentido de si mesmo se reapresenta e se
recoloca, mesmo que não seja elaborada de maneira temática como o pretende e realiza Heidegger.
No historiar-se da história humana, portanto, cada vez e toda vez que nasce um novo ser humano,
há história, destino de ser, tarefa de ser. Não por acaso, foi Kant quem, na modernidade,
recolocou o questionamento fundamental pelo próprio homem e, também, pelo tempo
536
. Não por
acaso, Heidegger vê nele seu patrono nos anos de 1920. Heidegger isso! Contudo,
considerando que Kant assumiu a posição ontológica cartesiana, omite algo essencial: uma
ontologia da presença. Nesse contexto afirma: Em última instância, o justamente os fenômenos
da temporaneidade a serem explicitados na presente analítica, que constituem os juízos mais
secretos da razão universal, cuja analítica foi apresentada por Kant como o ofício dos filósofos.
Poderíamos dizer, então, que, seguindo à risca a expressão kantiana de colocar a descoberto diante
de nossos olhos a partir dos mecanismos verdadeiros do entendimento humano, Heidegger
viu e quer dizer algo não visto ou, na pior das hipóteses, algo difícil de ser visto?
537
É significativo que a mesma idéia reapareça em Dilhey e no Conde Yorck, nos quais
Heidegger também se inspira. Vemos isso na transcrição das cartas feita por ele: O homem
retraiu-se para tão longe de si mesmo que não é mais capaz de ser um vendo a si. O homem
moderno, ou seja, o homem desde a Renascença, está pronto para ser enterrado. A crítica,
fenomenologicamente positiva, que Heidegger assume, partindo do modo de pensar desses dois
pensadores da história, é chegar ao conhecimento das fontes veladas (verborgenen Quellen),
535. Cf. também Martin Heidegger, A sentença de Anaximandro, in: Os pré-socráticos, São Paulo, Abril Cultural, 1973,
p. 34; publicado também em Sendas perdidas (Holzwege), Buenos Aires, Losada, 1979, p. 278.
536. Cf. Martin Heidegger, Kant und das Problem der Metaphysik, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1973.
537. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 6, p. 62.
224
uma vez que o principal não é o espetáculo e o que na vista. O essencial, quase sempre, é
invisível
538
. Por isso mesmo, na interpretação da Crítica da razão pura, Heidegger reconhece:
A prova da presença das coisas fora de mim sustenta-se em que transformação e
permanência pertencem, de modo igualmente originário, à essência do tempo. O meu ser
simplesmente dado, ou seja, o ser simplesmente dado no sentido interno de uma
multiplicidade de representações é transformação simplesmente dada. Todavia, a
determinação temporal pressupõe alguma coisa permanente simplesmente dada. Essa,
porém, o pode estar (ser) em s porque minha presença [existentia] no tempo só pode
ser determinada mediante algo permanente. Com a transformação simplesmente dada de
maneira empírica em mim -se necessariamente também uma permanência simplesmente
dada fora de mim. Algo permanente é a condição de possibilidade do ser simplesmente
dado da transformação em mim. A experiência do ser-no-tempo das representações coloca,
de modo igualmente originário, algo que se transforma em mim e algo que permanece
fora de mim’”
539
.
É decisivo perceber como, em Kant, ainda domina a concepção antiga a respeito da
compreensão ontológica do tempo. Por outro lado, devemos reconhecer que há nele, de fato, algo
novo. Em que consiste este novo? Em termos kantianos, pela mesma razão que conhecemos as
coisas fora de nós, podemos conhecer as coisas dentro de nós, ou seja, é possível conhecer
de modo igualmente originário (gleichursprünglich) algo que se transforma em mim
(Wechselndes in mir) e algo que permanece fora de mim’” (Beharrliches außer mir).
Na mesma direção, Heidegger confronta-se com Santo Agostinho, mas principalmente com
Aristóteles. Para ele, crovno" precisa ser correspondentemente compreendido na Física de
Aristóteles D 10-14 como tovpo": o tempo no qual, no tempo em que, durante o tempo em
que, no tempo de um dia. Isto é: enquanto tempo datado inicialmente e o mais proximamente
enquanto tempo presente e percebido
540
. Há aqui uma compreensão ontológica fundamental a ser
vista e considerada: o tempo não é pensado, aristotelicamente falando, como o dimensional no
sentido de pura forma da ordem ou o vazio da sucessão como o é para o pensamento moderno,
ou melhor, no sentido de poder ser calculado e planificado, ou, melhor ainda, como parâmetro.
Diante da tematização aritotélica, onde a essência do tempo é pensada pela primeira vez
de uma maneira original, Heidegger se questiona fundamentalmente: é possível experimentar o
tempo de uma forma que não seja a da sucessão ou a do fluxo da seqüência de agoras? Nesse
sentido, segundo o pensador, mesmo as tematizações de Kierkegaard, Hegel e Bergson não se
libertam radicalmente da compreensão substancialista do tempo como uma pura seqüência de
agoras, sem-começo e sem-fim. Não se libertaram radicalmente por estarem enraizadas nessa
compreensão do tempo, a qual coincide com a compreensão vulgar de tempo.
538. Cf. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 2004, p. 12 (grifo nosso).
539. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 43, p. 272.
540. Martin Heidegger, Nietzsche: metasica e niilismo, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000, p. 135-136.
225
A partir disso, então, é possível ver a posição de Heidegger na tematização do tempo
enquanto temporalidade originária, ekstática e horizontal da presença:
Por toda parte permanece-se porém na determinação essencial do tempo que conta com este
último como algo simplesmente dado. Em parte alguma reconhece-se a essência ekstática e a
essencialização enquanto a temporalização.
A temporaliza
ção do tempo tem contudo o intervalo por essência: essencializar o espaço de
jogo do tempo, a abertura do ab-ismo da verdade do ser. Isto significa entretanto inicialmente e
depois encobrir este espaço durante o predomínio da essência calculável do tempo. Isto
converge com o velar-se do ser e com a entrega da entidade à primazia do ente
541
.
O fundamental a ser visto aqui, a partir do caminho percorrido em nossa investigação,
portanto, é re-ver o que Heidegger . Ele vê, e já o na aula de habilitação de 1915, quando, à
procura de determinar o conceito de tempo da física, evidencia que o tempo nela compreendido
caracteriza-se como tempo homogêneo (homogen) e quantitativo (quantitativ). Então: se é
possível que o tempo medido pela física seja homogêneo e quantitativo, é também possível
tematizar o tempo qualitativo (qualitativ). De olho no que e como seria o conceito de tempo da
ciência histórica, revela que a estrutura significativa do agora enquanto data histórica, ou seja,
que o conteúdo histórico possui significado (inhaltlich historisch Bedeutsame), que possui
sentido (Sinn), que possui valor (Wert). Nascem, a partir disso, perguntas fundamentais como: o
que seria, então, o tempo verdadeiro (eigentliche Zeit), o tempo em geral (Zeit überhaupt), a
dinâmica geral (allgemeinen Dynamik) e o tempo em si mesmo (um die Zeit an sich)?
Estes questionamentos são respondidos de forma inquestionável à medida que Heidegger
consegue relacionar o fenômeno do tempo com toda e qualquer experiência humana, fruto da
hermenêutica da facticidade da presença antes de 1920. Nessa direção, surge, cresce e ganha
evidência a singular tematização como temporalidade originária da presença. Esta recebe, de
forma definitiva, sua elaboração concreta através da cotidianidade, da historicidade, do tempo
ocupado e do tempo do mundo em Ser e tempo e Os problemas fundamentais da fenomenologia.
A partir dessa elaboração, o tempo é sempre tempo de experiência (= ser). De fato, como vimos
no último capítulo, o tempo ocupado (besorgte Zeit) e o tempo do mundo (Weltzeit) evidenciam
isso de uma maneira toda singular e inquestionável.
Em Ser e tempo, podemos ler: A temporalidade não é, de forma alguma, um ente. Ela
nem é. Ela se temporaliza
542
. A idéia de que o tempo se temporaliza é a expressão
fundamental para compreender como Heidegger pensa o fenômeno do tempo. A partir disso
nasce e é desenvolvida a temporalidade originária no § 65 de Ser e tempo, ou seja, a
temporalidade originária da presença funda-se em sua constituição ekstática e horizontal.
541. Martin Heidegger, Nietzsche: metasica e niilismo, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000, p. 135-136.
542. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 413.
226
Assim, o conceito de tempo elaborado por Heidegger passa a ter um papel expressamente
interpretativo, uma vez que, a partir dele, é posvel explicitar ontologicamente todo e qualquer
determinado fenômeno. Destacar a estrutura temporal de todo e qualquer femeno é explicitar o
horizonte no qual nasce e cresce também a compreensão e a interpretação que a presea a si
mesma a todo instante. Nesse sentido, a temporalidade apresenta-se como o sentido ontológico da
cura. Ou seja, o tempo não funciona como horizonte de sentido, mas sustenta ontologicamente a
presença humana em seu próprio ser, sendo todo e qualquer modo de ser, a partir dela, possível.
Na formulação o homem já é sempre no mundo, ou seja, numa circun-stância
definida
543
, o é a partícula do desconcerto, da perplexidade, e ela quer dizer: unidade-
totalidade de sentido como ser-no-mundo. Ser-no-mundo dá-se de modo tão cedo, que o ser
humano sempre já chega tarde demais em toda e qualquer tentativa de compreendê-lo em seu
fundamento. Assim, presença só é, só se , sendo-no-mundo. Essa expressão revela, pois, o
modo e o lugar de seu aparecer que sempre se deu e abriu. Ela já é sempre num sentido, ou
melhor, num mundo sempre pleno de sentido. Cada vez e sempre de novo, instaura-se e
inaugura-se como ser-no-mundo.
Sendo ser-no-mundo uma estrutura fundamentalmente de transcendência, a presença é
temporal por ser atravessada e perpassada pelo tempo. Tempo revela, então, o modo próprio da
transcendência da presença, ou melhor, na medida em que ela se temporaliza, transcende. Isso
fica ainda mais explícito, porém, se visto a partir da tematização da temporalidade originária em
seus modos de ser ekstático e horizontal. Tempo é, nesse caso, condição de possibilidade e fundo
de articulação de sentido como modo de poder-ser próprio e, por isso mesmo, originário. É nisso
que reside o modo de ser genuíno da presença humana: enquanto projeto, lançado e aberto,
possibilidade de ser, cada vez e sempre de novo, sob um modo possível de ser.
Como, porém, poderíamos falar apropriadamente do modo como Heidegger descreve e
caracteriza a temporalidade originária? A partir de sua própria constituição original: nela o tempo
se temporaliza, possibilita a constituição estrutural da cura; ela é, essencialmente, ekstática e
horizontal; ela se temporaliza, originariamente, a partir do porvir; o tempo originário é finito;
pertence-lhe, constitutivamente, o instante
544
.
Instante diz força de sempiternização do que é próprio, sendo modo de vir a ser si
mesmo, de ser ao modo de inter-esse. Inter-esse é situação vital enquanto autoconstitutiva.
Situação vital é, pois, o modo de ser e estar devidamente assentado e centrado no próprio como
possibilidade de repetição decidida no instante de vida ser vida e assim perpetuar-se,
543. Cf. José Ortega y Gasset, Que é filosofia?, Rio de Janeiro, Livro Ibero-Americano, 1961; Meditaciones del Quijote,
Madri, Revista de Occidente, 1956; El hombre y la gente, Madri, Revista de Occidente, 1964.
544. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 65, p. 415-416.
227
sempiternizar-se, temporalizar-se. Situação vital é, pois, o lugar próprio de existência. A vida do
instante é, portanto: ser e estar jogado num fazer por fazer, sendo capaz de perder o feito para
poder per-fazer-se novamente. Vida é isso: per-fazimento enquanto movimento de constituição,
sendo sempre já radical e essencialmente inserido numa ação e, na mesma medida, aceitando o
des-fazimento enquanto livre distanciamento do feito para poder fazer novamente.
Heidegger descreve isso no § 65 de Ser e tempo como unidade co-originária de porvir,
vigor de ter sido e atualidade. A experiência originária de porvir, que vai ao passado vindo ao
presente. Instaura-se, assim, movimento de vida, pois a presença decidida é ciente de que vida
não é em si coisa alguma, mas apelo para ser numa possibilidade de ser, isto é, carência e
necessidade vitais de futurização, de porvir. Nesse sentido, a presença o é nada fechado,
nada feito, nada pronto, nada acabado, mas essencialmente tarefa de ser e, enquanto tarefa,
realização da hora da vida.
Enquanto a presença imprópria e indecisa faz a experiência de que continuamente
perde seu tempo, a presença ppria e decidida faz a experiência de sua finitude, sendo cada
instante tempo de e para perfazer-se e realizar-se. Nesse modo de ser, a presença existe livre
para si a ponto de dizer para si mesma: basta estar vivo para morrer a qualquer instante, por
isso, é necessário fazer o que me foi dado fazer. O que lhe foi dado fazer? Habituar-se a
fazer o que precisa ser feito. Quando? Sempre. Pois, enquanto a presença própria e decidida
sabe que morre
545
, a imprópria e indecisa não quer jamais morrer. Quer viver, mas não vive.
Para viver, precisa nascer para a vida. A que se deve isso, pergunta-se Heidegger? A
presença imppria e indecisa não acolhe sua condição primordial de ser, sendo sempre
minha e sendo em cada caso ela ppria, ou melhor, sendo sempre e a cada vez de novo sob
um modo possível de ser que lhe advém.
Diante disso é possível colocar alguns questionamentos: Será que a presença se relaciona e
comporta tão originariamente com o tempo como com o mundo? Como será o tempo com
que a presença sempre conta e, assim, por contar com ele, como se ocupa dele? Em que
medida é possível dizer que o conceito do tempo vulgar emerge e brota da temporalidade
imprópria da presença? Estas perguntas são respondidas através da tematização dos fenômenos
da historicidade, do tempo ocupado, do tempo do mundo e da intratemporalidade como origem
do conceito vulgar do tempo.
Portanto, empreender uma tal tarefa exigiu que se tematizasse fenomenalmente os modos
pelos quais a presença existe. A presença é o ente ontologicamente mais distante de si mesmo.
De fato, sendo a análise heideggeriana do tempo uma tematização essencialmente ontológica,
545. Cf. Blaise Pascal, Pensamentos escolhidos, Lisboa, Verbo, 1972, n. 4, p. 60.
228
deve-se compreender, em última instância, os modos pelos quais a presença conta o tempo
onticamente (Zeitrechnung) e, assim, lhe é próximo, à mão. Em contrapartida, porém, justamente
por contar com ele antecipadamente (Rechnen mit der Zeit), lhe é distante, constituindo-se assim
como condição de possibilidade de toda e qualquer contagem ou cronometragem de tempo.
Fazer uma fenomenologia da ocupação cotidiana do tempo é, portanto, uma tarefa
fenomenalmente bastante positiva, mas nem por isso provocadora e desafiadora. Obter uma
tematização adequada da presença enquanto ente temporal significa que ela, enquanto temporal,
é também um ente essencialmente finito. Também por esta razão que, em Heidegger, a analítica
existencial não precede simplesmente a analítica temporal, como se aquela pudesse ficar para trás
em detrimento desta e, então, a analítica existencial nada mais tivesse a ver com a analítica
temporal. São, bem lembrado, constitutivamente uma só e mesma analítica.
Portanto, ao realizar a analítica temporal, Heidegger pressupõe as conquistas da analítica
existencial. Metodologicamente, portanto, não proceder dessa forma seria o mesmo que admitir
uma total impossibilidade de tematização ontológica e fenomenal da presença, cujo modo de ser
fundamental consiste em ser sempre temporal, da mesma maneira como sempre existe.
Não somente isso. Não se preocupar com essa mútua imbricação significaria o mesmo que não
admitir avançar positivamente rumo a uma interpretação fenomenal do ente privilegiado no
momento que a investigação deveria dar justamente o passo mais decisivo?
De fato, as análises de Heidegger partem sempre dos modos elementarmente mais
próximos, isto é, dos modos pelos quais a presença compreende-se cotidianamente de modo
próprio e impróprio. Impropriedade não quer dizer, porém, que a presença experimenta menos
ser pelo fato de ser e descobrir-se já sempre, também e possivelmente, no modo decadente. A
impropriedade não é só uma possibilidade extrema e a mais cotidiana, como é, por assim dizer, a
mais próxima onticamente. Diante disso, desde a possibilidade na qual a presença sempre já, de
algum modo, se encontra ocupada e entretida com as coisas e afazeres cotidianos, é que se revela
e dá sentido a si mesma. Por isso, a presença compreende-se e descobre-se, numa primeira
aproximação e na maior parte das vezes, sob o domínio da impropriedade, sem conhecer,
contudo, desde onde e como isso é possível. Porém, a que se deve a naturalidade e
habitualidade com que a presença, já sempre e ao mesmo tempo, na ocupação cotidiana,
descobre-se sob o modo de impropriedade? Segundo Heidegger, isso se deve à cura. O ser
decadente junto às ocupações imediatas do mundo guia a interpretação cotidiana da presença e
encobre, onticamente, o ser próprio da presença, recusando, assim, uma base adequada à
ontologia orientada para esse ente
546
.
546. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 63, p. 394.
229
Heidegger enfatiza aqui que a presença tende ou pende a uma compreensão natural e,
portanto, de modo impróprio e decadente. Cabe ver e entender, portanto, concretamente, o
existencial decadência diante do fenômeno da temporalidade da presença. De fato, quando
dizíamos que, ao ser sob o modo de impropriedade, a presença é o ente sempre mais próximo
de si mesmo, estava dito também, que a presença é decadente. Se prestarmos mais atenção à
formação da palavra decadência (Verfallen), percebe-se que ela diz algo como: modo
modificado de cadência, ou seja, trata-se de uma modificação ontológica da própria presença.
Como tal, não significa necessariamente que esta modificação resulte num modo de ser pior ou
inferior, não devendo, por isso mesmo, ser vista como um fenômeno negativo, mas altamente
positivo. Devemos ver que, sendo ou própria ou imprópria, sempre existe num modo, ou melhor,
os dois modos são modos de ser.
Embora a presença seja, sob o ponto de vista ontológico o ente mais distante de si mesmo,
onticamente porém ela é sempre a mais próxima. No poder-ser que compreende, a presença
sempre já antecedeu-a-si-mesma (Sich-vor-weg-sein), isto é, tem mundo e, ao mesmo tempo,
tem, toma, -se ou até mesmo diz não possuir tempo para isso ou para aquilo. Por isso, é
de suma importância que vejamos e entendamos o tempo da ocupação e do tempo do mundo da
presença cotidiana, uma vez que são modos pelos quais se evidencia como ela já sempre conta com
o tempo.
Uma outra conquista realizada na analítica existencial e temporal e que guia a própria
descrição heideggeriana é que no tempo da ocupação e no tempo do mundo cotidiano está em
vigor uma compreensão do tempo mais originária que a compreensão do tempo ao modo de
algo simplesmente dado, como mera substância e, então, como uma pura seqüência de agoras,
sem-começo e sem-fim. Isso se mostra, por exemplo, no fato de que, na experiência que
cotidianamente fazemos do tempo, é ele já sempre de algum modo disponível e, por isso,
também podemos contar com ele para isso ou para aquilo. Ou seja, numa primeira
aproximação e na maior parte das vezes, tempo não é algo. Pois, a rigor, nenhum agora se
dá meramente ao lado de outro agora ou de outros agoras. Enfim, o há, rigorosa e
existencialmente falando, nenhum agora solto no ar. Todo e qualquer agora sempre já é e está
relacionado ou atado medularmente à presença humana. Ontologicamente, ela sabe que é
assim, embora nem sempre veja que seja assim, ou melhor, que ser e não-ser lhe são
essencialmente constitutivos.
A partir disso Heidegger mostra, gradativamente, através da analítica do tempo ocupado e do
tempo do mundo, que a estrutura fenomenal plena do agora com a qual a presença sempre
conta não se mostra, ficando, porém, encoberta. Está em jogo, portanto, demonstrar também que a
230
estrutura plena do agora, normalmente compreendido entre um antes e um depois, fica
incompreendida. Assim, a compreensão do agora entre o antes e depois, isto é, homogêneo e
simplesmente dado, só pode ser derivado. Uma coisa muito importante mostrada por Heidegger é
que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, no fato de se contar com o tempo,
também já se descobre uma maneira de dar-lhe sentido e, então, não necessariamente um sentido ao
modo da objetivação, da mensuração ou da quantificação científicas, por exemplo.
A prova de que Heidegger precisava para mostrar que há na distância temporal (Zeitferne),
na separação temporal (zeitliche Kluft), no significado do conteúdo histórico (inhaltlich
historisch Bedeutsame) e que o tempo possui um significado totalmente original no âmbito da
história (Die Zeit hat in der Geschichte eine ganz originale Bedeutung) expressões da aula de
habilitação de 1915 ele a encontra e evidencia na descrição própria do tempo do mundo, através
de uma quádrupla caracterização, mas sempre conjuntamente articuladas, a saber: significância
(Bedeutsamkeit), possibilidade de datação (Datierbarkeit), lapso de tempo (Gespanntheit) e tempo
público (Öffentlichkeit). Na conferência Tempo e ser, de 1962, Heidegger escreve:
[...] antes de qualquer cálculo sobre o tempo e dele independente, é no iluminador alcançar-
se-recíproco (lichtenden Einander-sich-reichen) de porvir, vigor de ter sido e atualidade que
repousa o elemento próprio do espaço-de-tempo (Zeit-Raumes) do tempo originário. De
acordo com isso, é próprio do tempo originário, e só dele, aquilo que, com risco constante de
sermos mal compreendidos, denominamos dimensão (Dimension), diâmetro
(Durchmessung). Esta repousa no alcançar iluminador caracterizado como aquilo em que o
porvir traz o vigor de ter sido, o vigor de ter sido o porvir, e a relação mútua de ambos a
clareira do aberto
547
.
Uma das questões fundamentais, para Heidegger, consiste em devolver o tempo ao
próprio ser humano. Devolver, na verdade, não seria o termo mais apropriado, pois trata-se de
ver como (Wie) o tempo é originariamente próprio e pertence a cada presença em particular.
Nesse sentido, já Aristóteles e Santo Agostinho perceberam que é o ser humano o ente por
excelência a fazer a experiência do tempo, estando nele a origem e o destino do próprio tempo. A
preocupação de Heidegger, portanto, ao descrever o fenômeno do tempo, é compreender em que
sentido o tempo é tempo da presença ou, mais especificamente, em que sentido é ela mesma
quem se temporaliza, já sempre, desse ou daquele modo. Em contrapartida, quanto mais o tempo
é o tempo da quantidade e da mera mensurabilidade, menor a possibilidade de se fazer a
experiência do tempo enquanto temporalidade da presença.
Desse modo, é possível ver e entender por que é possível perguntar quem é o tempo? De
fato, este quem somos nós mesmos. Somos nós mesmos que, à medida que nos ocupamos com o
tempo ou de como contamos com ele, que fazemos a experiência do tempo. Nesse sentido, esta
547. Martin Heidegger, Zeit und Sein, in: Zur Sache des Denkens, Tübingen, Max Niemeyer, 1969, p. 15; tradução
brasileira: Tempo e ser, in: Conferências e escritos filosóficos, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 463.
231
pergunta é uma pergunta essencial acerca de nós mesmos e, sobretudo, do modo como o tempo
sempre já se temporaliza na presença. O nós mesmos, porém, não é o indefinido, o geral, mas
sempre si mesmo (Selbst). Trazer à fala a estrutura ou o modo de ser deste quem (Dasein) do
jeito como se temporaliza, foi o objetivo primeiro da presente investigação.
Por que, então, é Ser e tempo uma opus maius? Não, certamente, por ter sido a primeira
obra expressiva de Heidegger a ser publicada. Pelo que é e representa, ela é capital porque, tanto
seu pensamento anterior como seu pensamento posterior, são a cristalização dos fundamentos
nela lançados. Por isso mesmo, o próprio pensador constantemente volta a ela ou parte dela na
tarefa de pensar o a ser pensado e dito (Zu-denkendes und Zu-sagendes), reconhecendo
positivamente que o privilégio do pensamento não é de um único homem. É tarefa de cada
um. Mesmo em modos totalmente indiferentes, impróprios e decadentes vige em cada ser
humano a tarefa de ser e vir-a-ser.
Nesse sentido, podemos e devemos considerar, no caso de Heidegger, que toda obra
anterior e posterior a Ser e tempo é uma tentativa continuamente retomada e renovada de
aprofundar o que nela e através dela havia sido projetado e desenvolvido. Nela busca-se pensar a
co-implicação do modo de ser do homem e do modo de ser da própria filosofia enquanto
fenomenologia, evidenciando-se, assim, seção por seção, capítulo por capítulo, parágrafo por
parágrafo, página por página, que a presença humana deve ser vista e entendida a partir da
constituição fundamental ser-no-mundo.
Ser e tempo é, pois, o gigantesco esforço de descrever fenomenologicamente a constituição
essencial de abertura da presença como ser-no-mundo. Presença faz e perfaz hora ou instante
de existência e, enquanto existe, expõe-se, concretiza-se, realiza-se de algum modo. Carneiro Leão
expressa isso muito bem no posfácio da edição brasileira de Ser e tempo: O homem se realiza
na presença. Presença é uma abertura que se fecha e, ao se fechar, abre-se para a identidade e
diferença na medida e toda vez que o homem se conquista e assume o ofício de ser... Ser-no-mundo
é uma estrutura de realização
548
.
Segundo nosso modo de ver e entender, portanto, qualquer possibilidade de investigar o
pensamento de Heidegger não pode ignorar a analítica existencial e temporal da presença realizada
em Ser e tempo. Como tivemos a oportunidade de acenar várias vezes em nosso trabalho, ela es
presente em muitas outras obras contemporâneas aos anos de 1920 e, também, nas obras chamadas
tardias. Seja como for, só é possível compreender suficientemente o âmbito em que Heidegger pensa e
se movimenta fenomenologicamente à luz da analítica existencial e temporal. Seguindo essa
548. Emmanuel Carneiro Leão, Posfácio, in: Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, p. 557-558.
232
motivação fundamental, a presente investigação considerou e pôde realizar-se, do início ao fim, a
partir do horizonte investigativo aberto pela analítica existencial e temporal da presea.
Por isso mesmo, não é possível ver como Heidegger descreve o femeno do tempo sem
considerar o fato da existência, ou melhor, o fato de ser sempre já laado da existência sendo-no-
mundo. Pela mesma razão foi necessário enfatizar, ao longo do trabalho, por que, para Heidegger,
a filosofia é uma ontologia fenomenológica e universal que parte da hermenêutica da presença,
a qual, enquanto analítica da existência, amarra o fio de todo questionamento filosófico no lugar
de onde ele brota e para onde retorna
549
. É possível ver isso na interpretação do poema de
Parmênides, onde Heidegger verbaliza o modo que pensar o essencial. Esse modo de pensar não
é estranho à existência humana sendo-no-mundo. Por isso, escreve:
Cronologicamente, passaram-se 2500 anos desde o início do pensar ocidental. O passar dos
anos e séculos jamais tocou o que é pensado no pensar de ambos os pensadores. Esta
possibilidade, ainda não tocada pelo tempo, que tudo pode corroer, não é, no entanto, de
forma alguma, devida ao fato de que o pensamento, que estes pensadores tinham a pensar,
tivesse se preservado, desde então, em si, num lugar supra-temporal, por assim dizer,
eterno. Pelo contrário, o pensado neste pensar é o propriamente histórico, e isso precede e
antecipa toda a história sucessiva. Isto que precede e determina toda a história chamamos de
início (Anfang). Dado que isso não se acha atrás, no passado, mas é dado previamente ao
que há de vir, o início se faz sempre de novo e de modo novo e próprio como um presente
para uma época. O início é o que na história essencial vem por último. Naturalmente, para
um pensar que conhece somente a forma do cálculo (nur die Form des Rechnens kennt), a
frase o início é o último permanece um contra-senso
550
.
Como se dá ou começo? Em cada surgimento primordial! Em cada nascimento! Em cada
vir a si na forma de um si mesmo! Fernando Pessoa o diz num de seus poemas: Navegadores
antigos tinham uma frase gloriosa: Navegar é preciso; viver não é preciso. Quero para mim o
espírito [d]esta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário;
o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la
grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo
551
.
Estas palavras não devem ser vistas e entendidas sem maiores considerações. Na sentença
navegar é preciso, viver não é preciso, está em jogo, para Fernando Pessoa, o processo de
surgimento, de nascimento de sua própria pessoa na propriedade mais própria enquanto poeta.
Dentro dessa perspectiva, ele busca uma apropriação originária do sentido da sentença mencionada.
Apropriação para si mesmo, ou, nas palavras dele próprio: quero para mim... Ele quer isso que
a frase diz para si enquanto próprio, sendo que, o que e como faz, necessita ser ressonância de
experiência, a experiência originária de viver que é ser e ser que é viver. Assim, sendo, um e outro,
549. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 8, p. 78.
550. Martin Heidegger, Parmenides, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1992, p. 1-2.
551. Fernando Pessoa, Poemas inconjuntos (1913-1915), in: O eu profundo e os outros eus, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1986, p. 15. Sobre a origem desta sentença Navegar é preciso, viver o é preciso (Navigare necesse est,
vivere non est necesse) cf. Vida de Pompeu (50,2), de Plutarco (plei~`n a*navgkh, zh~`n ou*k a*navgkh), in: Renzo Tosi,
Dicionário de sentenças latinas e gregas, São Paulo, Martins Fontes, 1996, n. 1232, p. 558.
233
verbo do verbo, evidenciam possibilidade de gênese como ação criadora. Nasce daqui a
necessidade pela necessidade, ou seja, de só poder ser num modo real, concreto e encarnado. A
partir disso o imperativo: Não é necessário viver, é necessário que viver ganhe forma num modo
possível de ser, ou melhor, criar, poetar (poein)! Nessa necessidade de ser e perpetuar-se, Fernando
Pessoa se individualiza. Pessoa é pessoa. Ele vem a ser quem é em e a cada novo poema! Cada
novo poema é deixar-ser e corresponder à força da necessidade de ação criadora
552
.
Em A essência da linguagem, dos anos 50, há um texto que guarda uma nítida ressonância
das investigações realizadas em Ser e tempo e Os problemas fundamentais da fenomenologia:
O tempo temporaliza. Temporalizar significa: amadurecer (reifen), deixar desabrochar
(aufgehen lassen). O temporalizado (Zeitige) é o desabrochado-aberto (Aufgehend-
Aufgegangene). O que temporaliza o tempo? Resposta: o con-comitante ou simul-tâneo
(Gleich-Zeitige), isto é, o que desabrocha do mesmo e único modo em si mesmo. E o que é
isto? Nós o conhecemos muito tempo, mas não o pensamos a partir da temporalização. O
con-comitante ou simul-tâneo do tempo são: o vigor de ter sido, a presentificação e
atualidade, que significa para nós des-atualizar ou simplesmente porvir. [...] O tempo mesmo
na totalidade de sua essência não se move, permanece parado
553
.
Vemos aqui, que Heidegger associa à temporalização do tempo o amadurecer (reifen), o
deixar desabrochar (aufgehen lassen). Para ver e entender isso devidamente da maneira como foi
apresentada em nosso trabalho, precisamos visualizar uma idéia fundamental apresentada por
Heidegger na conferência de 1924: Em resumo, podemos dizer: tempo é presença (Zeit ist Dasein).
Presença é meu ser em cada caso (Dasein ist meine Jeweiligkeit), e ela pode, sendo meu em cada caso,
vir a si no porvir ao antecipar-se ao passar conscientemente, mas indeterminado. E, a seguir:
Assim, sendo o tempo compreendido enquanto presença, então se esclarece apenas o que
significa o tradicional enunciado sobre o tempo, quando se diz: o tempo é o adequado
principium individuationis. Compreende-se isso geralmente como uma sucessão irreversível
(umkehrbare Sukzession), como tempo do presente (Gegenwartzeit) e tempo natural
(Naturzeit). Mas em que medida o tempo, enquanto algo próprio, é o princípio de
individuação (Individuationsprinzip), isto é, a partir de onde a presença está no ser em cada
caso? Sendo porvir ao antecipar, a presença que está na medianidade é ela mesma; na
antecipação, a presença torna-se visível enquanto o único ser que é desta vez (Diesmaligkeit)
em seu único destino (Schicksal) na possibilidade de seu próprio passar
554
.
De uma maneira decisiva e contundente, temos sintetizada aqui a compreensão
heideggeriana da temporalidade da presença. O tempo diz respeito à individualidade de cada
presença e, além disso, não se compara com nada ao modo de sucessão irreversível ou ao
modo de tempo natural. Todavia, a presença existe enquanto sou meu próprio caso (Dasein ist
meine Jeweiligkeit), ou melhor, ela é sempre de novo e a cada vez de novo desta vez
552. Exemplos da necessidade imperativa de ser podem ser vistos em O velho e o mar, de Ernest Hemingway (o velho
pescador); Grande sero: veredas, de João Guimaes Rosa (Riobaldo); Dom Quixote de la Mancha de Miguel de
Cervantes (Dom Quixote). Cf. Gilvan Fogel, Martin Heidegger, et coetera e a questão dacnica moderna, in: Da solidão
perfeita, Petrópolis, Vozes, 1999, p. 131-169.
553. Martin Heidegger, Das Wesen der Sprache, in: Unterwegs zur Sprache, Stuttgart, Günther Neske, 1997, p. 213.
554. Martin Heidegger, Der Begriff der Zeit, Tübingen, Max Niemeyer, 1989, p. 24-27; tradução brasileira: O conceito de
tempo, in: Cadernos de Tradução, Departamento de Filosofia da USP, n. 2, 1997, p. 36/37.
234
(Diesmaligkeit) como possibilidade única de seu próprio destino (Schicksal), o qual já lhe
visitou e habita a existência. Portanto, a idéia de que o tempo é presença nasce da
inalienabilidade do próprio destino, o que se comprova de modo cabal no fato de que cada um
carrega consigo sua própria morte como possibilidade última e intransferível de sua existência.
Justifica-se aqui, fundamentalmente, o fato e a maneira como procuramos associar, em vários
momentos de nossa investigação, a temporalidade originária da presença com a experiência da
existência poética enquanto temporalidade kairônica.
Nesse sentido existencial, a experiência realizada na e pela existência poética o quer
dizer que a presença humana careça de realizar-se concretamente na arte ou na poesia, por
exemplo. Não é isso. Se fosse assim, estaríamos negando o fato aberto de ser que cada existência,
em sua origem, é total indeterminação, ou seja, é carente de determinação. Está em jogo
apresentar, de uma maneira exemplar, como, sendo existencial e temporalmente porvindoura, ao
vir ao encontro do vigor de ter sido, toda presença humana se encontra, já sempre, em sua
atualidade, ou melhor, em todo aqui-agora de sua vida. Nessa acepção, a existência poética pode
ser vista como uma espécie de espelho onde o princípio de individuação (Individuationsprinzip)
se realiza concretamente. Por isso mesmo, na medida em que Rilke se realiza poeticamente, se
individualiza: é Rilke! Na medida em que Fernando Pessoa se realiza poeticamente, se
individualiza: é Pessoa!
555
No fundo, eles co-nascem de uma pura neutralidade para serem si
mesmos. Assim, na interpretação que Heidegger faz de Heráclito, podemos ler: Fala-se em ti",
nomeia-se um alguém e não um ti, ou seja, uma coisa, mas aquilo que, a partir de um si
mesmo e de seu mesmo, dizemos através do pronome interrogativo quem. Esse neutro somos
nós mesmos: os seres humanos. No ti", algm, estão de algum modo implicados os seres
humanos
556
. Ontologicamente, em cada um encontra-se a totalidade.
Não por acaso, portanto, Heidegger escreveu no último parágrafo de Ser e tempo: A elaborão
da constituição ontológica da presea é, pom, apenas um caminho (Weg). [...] Trata-se de buscar e
de percorrer um caminho para o esclarecimento da questão da ontologia fundamental. [...]
Exclusivamente para isso é que a presente investigação está a caminho (unterwegs)
557
. Ao final da
Introdução à metafísica podemos ler também: Ser e tempo não significa um livro, mas uma tarefa e
um empenho imposto. O que, nessa tarefa e incumbência, propriamente se impõe é aquilo que nós não
sabemos. É aquilo que, na medida em que o sabemos autenticamente, a saber, enquanto tarefa e
555. Muito sugestivos, nesse sentido, são os Testamentos (= auto-testemunhos) de Rodin e Francisco de Assis. Cf.
Auguste Rodin, A arte: conversas com Paul Gsell, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990, p. 185-194 e Francisco de Assis,
Fontes franciscanas e clarianas, Petrópolis, Vozes, 2004, p. 188-191.
556. Martin Heidegger, Heclito. A origem do pensamento ocidental. gica. A doutrina heraclítica do gos, Relume-
Dumará, Rio de Janeiro, 1998, p. 62-63. Cf. aqui o fragmento 16 de Heráclito, que diz: Como algm poderia manter-se
encoberto face ao que nunca se deita? (toV mhV du~novn pote pw~" a!n ti" lavqoi;) (grifo nosso).
557. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 83, p. 534.
235
empenho imposto, sempre só o sabemos investigando
558
. E à sétima edição de Ser e tempo, de 1953:
Entretanto, o seu caminho permanece ainda hoje um caminho necessário sempre que a queso do ser
tiver que mobilizar a nossa presença
559
.
Essas palavras são uma auto-interpretação do pensador no caminho percorrido. Para ele,
pensar é encaminhar-se. Implica a realização de percurso, de fazer-se e perfazer-se a partir de uma
necessidade. A necessidade, porém, não é, certamente, da utilidade ou da aplicação. Nesse sentido,
não serve, não tem serventia. Por isso mesmo, o jeito consiste apenas no modo de assumir as
questões do pensamento, isto é, colocando-nos em jogo nelas. Decide-se, sobretudo, à medida que e
se somos capazes de suportar o jogo do pensamento em questão. Manter a tensão pelo que se
questiona é estar de tal forma aberto e livre para o que se mostra no fenômeno do tempo, que
possamos acolher o pensado, aturar e suportar o que se acolhe e, a partir disso, desenvolver o que se
atura e suporta desde o âmago de sua interioridade própria e constituidora.
De fato, o caminho percorrido por Heidegger continua a provocar-nos a investigar, isto é, a
pôr-nos a caminho daquilo que sempre de novo deve ser investigado: ser e tempo. Consoante a
isso podemos ler no posfácio à tradução brasileira de Ser e tempo: A caminhada empreendida
continua indispensável para qualquer revolução nos alicerces de sustentação e nas profundezas
dos pressupostos de todo o percurso da história do Ocidente
560
. Esta caminhada continua a
provocar todos aqueles interessados e dispostos a deixarem-se provocar pelo caminho percorrido
por Heidegger. Por isso mesmo, não é por acaso que também muitas obras de Heidegger levam
no título a palavra caminho
561
.
O que nos resta a fazer e por fazer, portanto, diante dos caminhos percorridos por
Heidegger? Estar na devida disposição para acompanhá-lo em seu caminhar, em seu modo de
pensar, pois só numa devida e positiva apropriação podemos atualizá-lo para nós mesmos e, a
partir disso, herdá-lo. Na entrevista a Richard Wisser, em 1969, Heidegger fala da distinção entre
filosofia e pensamento, referindo-se à conferência O fim da filosofia e a tarefa do pensamento,
de 1964:
O pensamento que, nessa conferência, eu distingo da filosofia [...] esse pensamento é,
fundamentalmente, em sua relação com a metafísica, muito mais simples do que a filosofia,
mas precisamente em razão de sua simplicidade, muito mais difícil de se realizar. E ele
exige um novo cuidado com a linguagem, e não a invenção de termos novos como eu
558. Martin Heidegger, Introdução à metasica, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969, p. 227.
559. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, p. 33 (grifo nosso).
560. Emmanuel Carneiro Leão, Posfácio, in: Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, p. 560
(grifo nosso).
561. Por exemplo: Unterwegs zur Sprache, Holzwege, Wegmarken, Der Feldweg, Mein Weg in die Pnomenologie.
236
pensava outrora; muito mais um retorno ao conteúdo originário da linguagem que nos é
própria e que é vítima de um contínuo perecer
562
.
Por fim, reconhecendo a positividade da incompletude e, sobretudo, da imperfeição a que
está sujeita uma investigação como a que aqui empreendemos, gostaríamos de indicar ao menos
quatro vias, ou seja, quatro possibilidades investigativas. Embora não tenham sido temas
diretamente relacionados com o propósito de nossa investigação, por isso mesmo não teria sido
possível ocupar-nos suficientemente com eles. Além disso, nos textos com os quais nos
ocupamos, especialmente em Ser e tempo, estes temas aparecem de modo muitas vezes implícito
e não especificamente elaborados. Estas possíveis vias investigativas e que poderiam merecer
uma investigação específica são:
1. O fenômeno do tédio: como a palavra alemesma diz, tédio (Lang-weile) significa
tempo longo. Seria oportuno analisar como o tédio surge e se constitui, seus diferentes modos de
manifestação e em que sentido a presença humana o experimenta, especialmente nos dias atuais;
2. O fenômeno da re-cordação e pre-sentificação (Er-innerung e Ver-gegenrtigung). Tanto
o tédio como a re-cordação e pre-sentificação são analisados exaustivamente por Heidegger em
duas obras, a saber: Os conceitos fundamentais da metafísica e Seminários de Zollikon
563
;
3. Uma distinção ontológica entre o modo de conceber o tempo e o espaço na antigüidade
(Aristóteles e Platão) e o modo de conceber o tempo e o espaço na modernidade (Galileu e
Newton), tendo por base a compreensão de natureza e movimento. Segundo Heidegger, em
relação à determinação essencial do espaço e do tempo, Platão e Aristóteles pré-indicaram o
caminho que ainda hoje percorremos. Além das referências presentes em Ser e tempo e Os
problemas fundamentais da fenomenologia, devem ser levadas em conta duas obras: Que é uma
coisa? e Seminários de Zollikon
564
;
4. A problemática da temporaneidade (Temporalität): está diretamente relacionada à
questão do sentido do ser, do modo como Heidegger havia planejado Ser e tempo e Os
problemas fundamentais da fenomenologia. Essas duas obras, cujo esboço não chegou a ser
totalmente desenvolvido pelo pensador
565
, são motivo para uma investigação específica e
apropriada. Em nossa investigação fazemos menção à temporaneidade, mas em nenhum
momento quisemos dar conta dessa temática instigante e provocadora. Salvo algumas referências
esparsas em Ser e tempo, a temporaneidade é tratada em Os problemas fundamentais da
562. Martin Heidegger, Entrevista concedida por Martin Heidegger ao Professor Richard Wisser, in: O que nos faz
pensar. Homenagem a Martin Heidegger por ocasião do vigésimo aniversário de sua morte, Cadernos do Departamento
de Filosofia da PUC-RIO, out. 1996, n. 10, vol. 1, p. 17.
563. Cf. Martin Heidegger, Os conceitos fundamentais da metasica, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003, p. 94s e
Seminários de Zollikon, Petrópolis: Vozes; São Paulo: ABD/EDUC, 2001, p. 94s.
564. Martin Heidegger, Que é uma coisa?, Lisboa, Edições 70, 1992, p. 54-55, mais especificamente, porém, §§ 5 e 18,
respectivamente p. 25s e 71s e Seminários de Zollikon, Petrópolis: Vozes; o Paulo: ABD/EDUC, 2001, p. 33s.
565. Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 8, p. 79-80 e Die
Grundprobleme der Phänomenologie, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1975, § 6, p. 32-33.
237
fenomenologia. De fato, nos §§ 20 e 21, deste livro é desenvolvido o tema da temporaneidade.
Segundo nosso modo de ver e entender, porém, a problemática da temporaneidade só pode ser
suficientemente compreendida se se considerar o pensamento de Heidegger após 1930. Dentro do
horizonte de uma possível leitura e interpretação heideggeriana da temporaneidade, portanto,
colocam-se textos como o da conferência Tempo e ser, de 1962, mencionada em nossa
investigação. Nessa direção, o próprio Heidegger sugere uma mudança ou virada (Kehre) em seu
próprio pensamento. Embora esta mudança ou virada já tenha sido motivo de muitos equívocos,
o fato é que o caminho trilhado por Heidegger após Ser e tempo é um caminho de radicalização
ou aprofundamento único, caminho que foi inaugurado pela fenomenologia enquanto
possibilidade de um novo modo de pensar.
Percorrer essas vias, a partir das clareiras abertas na e pela obra de Heidegger, são
caminhos possíveis apenas dentro de seu pensamento? Não seria e não será, se e enquanto não
houver interesse investigativo. Sugestões são apenas insinuações e elas nascem do lema que
Heidegger mesmo escolheu para suas obras completas: Caminhos não obras (Wege nicht
Werke). Esperamos que, em nossa investigação, possamos ter percorrido um possível caminho.
Quando não repetimos simples opiniões, mas queremos compreender o que nós próprios
dizemos e habitualmente pensamos, caímos imediatamente num redemoinho de questões. [...]
Mas, tal como acontece com o que já foi pensado antes e com o que já se encontra nos filósofos
antigos, todas essas coisas são vistas pela primeira vez quando, elas próprias, são pensadas de
novo
566
.
566. Martin Heidegger, Martin Heidegger, Que é uma coisa?, Lisboa, Edições 70, 1992, respectivamente p. 52 e 85.
238
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Dividimos as referências bibliográficas em primárias e secundárias. Trata-se de uma divisão com
objetivo tão-somente didático: 1) Refencias primárias (obras de Heidegger); 2) Referências
secundárias (obras de outros autores).
1. Referências primárias
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pensadores, vol. XLV.). Neste volume foram publicados os seguintes textos de Heidegger: Que é isto
a filosofia?; Que é metafísica; Sobre a essência do fundamento; Sobre a esncia da verdade;
Sobre o humanismo Carta a Jean Beaufret, Paris; Identidade e diferença; Hegel e os gregos;
A determinação do ser segundo Leibniz; A tese de Kant sobre o ser; Tempo e ser; Protocolo
do seminário sobre a conferência Tempo e ser; Meu caminho para a fenomenologia.
––. A morada do homem (contendo cronologicamente os seguintes textos: Por que ficamos na
província? (1934); O caminho do campo (1949); Do mistério da torre dos sinos (1956); Uma
palavra de agradecimento (1959); O discurso dos 80 anos (1969); A questão sobre a morada do
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