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SHIRLEY ACIOLY MONTEIRO DE LIMA
Intersexo e Identidade:
História de um corpo reconstruído
MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2007
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SHIRLEY ACIOLY MONTEIRO DE LIMA
Intersexo e Identidade:
História de um corpo reconstruído
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para a
obtenção do título de Mestre em
Psicologia Social, sob orientação do
Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2007
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BANCA EXAMINADORA
Agradecimentos
A elaboração de uma dissertação é uma entrega, uma doação pessoal que conta com
compreensão e colaboração das pessoas mais próximas. Com certeza, fui acompanhada nos
últimos anos por inúmeras pessoas que contribuíram na caminhada que me conduziu ao
mestrado. Muitas das pessoas a quem atribuo grande incentivo não estão presentes hoje para
celebrar esta conquista, mas me acompanharão para sempre na lembrança, vivas em palavras
e exemplos que fizeram de mim a pessoa que hoje sou. Parentes, amigos, mestres, colegas
foram importantes ouvintes, incentivadores e críticos. Difícil missão a de nomear a todos
nesse breve espaço mas destino a vocês minha enorme gratidão.
Meu orientador, professor doutor Antonio da Costa Ciampa, merece especial
agradecimento. Amigo que me estendeu a mão e confiou em minha proposta de estudo, no
novo caminho que desenhava para minha vida e me aceitou como aluna no mestrado. Foi em
seus olhos que vi refletir o entusiasmo por um novo começo, dando-me o fôlego e o incentivo
para traçar um novo caminho.
Às professoras doutoras Vera Silvia Facciola Paiva e Maria Cristina Vincentin, meus
agradecimentos pela disposição em analisar e discutir o meu texto de qualificação, bem como
por suas críticas sugestivas, que muito me ajudaram na elaboração desta dissertação. Tive o
prazer de ser aluna da doutora Vera Paiva e agradeço sobremaneira por tudo que aprendi com
ela. Aos professores doutores Gil Guerra Júnior e Roberto Benedito de Paiva e Silva que
gentilmente abriram espaço para discutir meu estudo no GIEDDS e contribuíram com
valiosas sugestões. A querida Vera Ferrari Rego Barros, Diretora do Serviço de Psiquiatria e
Psicologia do Instituto da Criança – HCFMUSP, e ao Bahia a quem tive o prazer e honra de
apresentar meu trabalho e receber apoio incondicional para a realização da pesquisa e
conseqüente construção desta dissertação.
Aos professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, obrigado por nos oferecerem, a mim e aos
meus colegas, um ambiente riquíssimo de troca de conhecimentos e produção científica.
Aos amigos e colegas do Núcleo de Pesquisa em Identidade, da PUC-SP, pelas
discussões que enriquecem nosso conhecimento e pelo apoio oferecido ao longo da jornada.
Faz quase doze anos que Vítor, meu marido, me acompanha e incentiva a desafiar o
óbvio e lutar por meus ideais. Seu amor e confiança foram fundamentais para que eu
persistisse em meus estudos. Meu filho Juliano, paciente e entusiasta, que acompanhou-me
em cada momento da construção deste trabalho, permitindo-me mergulhar nos estudos,
ajudando-me a olhar o mundo de uma maneira mais simples e questionadora, alimentou
minhas reflexões sobre a Psicologia Social e sobre a identidade, com suas indagações
desconcertantes. A minha mãe, Penha, que ao ver-me novamente assumindo a personagem da
estudante, cobrou-me dedicação e disposição, e me ajudou a conciliar as tarefas de mãe e
estudante. Todos foram tolerantes com minha dedicação à academia, viagens a congressos e
livros que inundavam nossa casa. A meu pai, Juarez, que partiu antes de participar de algumas
importantes conquistas mas que imprimiu uma considerável dose de coragem e ousadia nesta
que se apresenta, Shirley.
Ao CNPq pela bolsa de estudo que me permitiu cursar o mestrado.
“Não deixe seu fogo sair, faísca por insubstituível faísca, nos pântanos impossíveis do
quase, do não completamente, do não ainda, do de modo algum. Não deixe o herói em sua
alma perecer, na frustração solitária pela vida que você mereceu, mas nunca pôde
alcançar. Verifique sua estrada e a natureza de sua batalha. O mundo que você desejou
pode ser conquistado. Ele existe, ele é real, ele é possível, ele é seu.”
Ayn Rand
Resumo
ACIOLY, S. (2007). Intersexo e identidade: história de um corpo reconstruído,
Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Palavras-chave: intersexo, ambigüidade genital, identidade, corpo, história de vida.
Intersexo e identidade: história de um corpo reconstruído é um estudo de Psicologia Social
sobre a questão da identidade do intersexo e enfoca o processo de reconstrução do eu de um
indivíduo que se confrontou com situações que implicaram na revisão de sua individualidade,
identidade social e consciência de si mesmo. Sua hipótese é a de que a luta das pessoas
intersexo representa a tentativa de ultrapassar o estigma de uma carga biológica interpretada
como problemática e estabelecer uma relação com o meio social que lhes seja mais favorável.
Esses indivíduos buscam definir um novo espaço social e conquistar autonomia sobre suas
vidas; querem sair do confinamento imposto pela vergonha e isolamento ao qual são
submetidas e poder decidir quem são.
Para responder à questão da pesquisa - e considerando a lacuna em estudos nacionais
referentes à subjetividade no estudo da intersexualidade - utilizei como metodologia o estudo
de narrativa de história de vida de sujeito diagnosticado com ambigüidade genital para
permitir a compreensão do processo de reconstrução social de seu corpo, pois mudar um
corpo, dizer sim ou não às demandas sociais deveria estar em consonância com as intenções,
iniciativas e pretensões da pessoa que se reconhece (ou não) em seu corpo vivo, posto que
este corpo é o substrato orgânico no qual a existência pessoal se encarna.
Abstract
______________________________________________________
ACIOLY, S. (2007). Intersex and identity : history of a reconstructed body,
Masters Dissertation. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Key-words: intersex, genital ambiguity, identity, body, life history.
Intersex and identity: history of a reconstructed body is a Social Psychology study on the
issue of the intersex identity and focuses on the process of reconstruction of self of a
individual that had collated with situations that implied in the revision of its individuality,
social identity and conscience of itself . Its hypothesis is of that the fight of the intersex
people represents the attempt to exceed the stigma of a biological load interpreted as
problematic and to establish a more favorable relation with the social environment. These
individuals search to define a new social space and to conquer autonomy on its lives; they
want to leave the confinement imposed for the shame and isolation which they are submitted
and to be able to decide who they are.
To answer to the research question - and considering the gap in national studies referring to
the study of subjectivity in the intersexuality - I used as methodology of study the narrative
of life history of a person diagnosed with genital ambiguity to allow the understanding of the
process of social reconstruction of its body since, to change a body, to agree or not with the
social demands should be in accord with the intentions, initiatives and pretensions of the
person that recognizes her/himself (or not) in its alive body, once this body is “organic
substratum” in which the personal existence incarnates.
Sumário
Introdução 03
Capítulo 1
Identidade: a concepção teórica de Antonio da Costa Ciampa 06
Simultaneidade da socialização e da individuação na formação da identidade,
em G.H. Mead 12
A apropriação dos Conceitos de Mead por Habermas 16
Capítulo 2
Intersexo e identidade 24
o Diferenças anatômicas dos sexos - resgate histórico 24
o Intersexo: definição 30
o O afã da normatização 40
Capítulo 3
Identidade e autonomia 44
Capítulo 4
Metodologia 48
Capítulo 5
O processo da entrevista 53
Capítulo 6
Análise da entrevista 58
Capítulo 7
Considerações finais 97
Referências Bibliográficas 99
3
Introdução
A questão dos distúrbios do desenvolvimento do sexo, ambigüidades genitais ou intersexo,
como é também conhecida, vem sendo amplamente explorada em estudos que buscam
entender mecanismos fisiológicos que possam explicar o desvio ao binarismo feminino-
masculino. Por representar um grande desconforto social, um “não lugar”, um “não ser”
feminino ou masculino, a condição de ambigüidade genital, determina uma busca por uma
solução corretiva, representada em alguns casos pela correção cirúrgica que, via de regra, é
realizada por um terceiro. Estigmatizadas, as pessoas com ambigüidade genital sofrem o peso
da pressão social pela normatização, perdem o poder de decisão sobre seu corpo, a
possibilidade de se reconhecer pelo que são e de decidir sobre quem querem ser. Ao contrário
do que se pretende com a redesignação sexual, a correção cirúrgica não é a solução para a
questão da construção da identidade destas pessoas pois, por si só, não responde às perguntas
sobre qual papel ocupam e querem ocupar na sociedade, quem são e quem querem ser. Esta
medida diz apenas sobre a subordinação do fato de “ser um corpo vivo ao de ter um corpo” e
da submissão do corpo vivo às técnicas de aperfeiçoamento da vida
1
e contraria a idéia de que
a escolha da pessoa deveria se sobrepor às vontades médica e familiar e se manifestar na
autoria de sua conduta de vida, orientando-se segundo exigências próprias. Mudar um corpo,
dizer sim ou não às demandas sociais deveria estar em consonância com as intenções,
iniciativas e pretensões da pessoa que se reconhece ou não em seu corpo vivo, posto que este
corpo é o substrato orgânico pelo qual a existência pessoal se encarna.
Até o presente momento, o estudo de casos de intersexo no Brasil está marcado por uma
predominância de pesquisas voltadas para a explicação da variação sexual e os processos
1
HABERMAS, J. O futuro da natureza humana, 2004
4
biológicos envolvidos
2
e procedimentos cirúrgicos e terapias hormonais
3
. Entretanto,
começam a ser apresentados trabalhos que discutem os aspectos éticos e psicológicos na
abordagem do intersexo
4
, dilemas médicos e familiares na redesignação sexual
5
, percepção e
mecanismos de enfrentamento utilizados pelos pais
6
e a compreensão da evolução da
identidade de gênero de jovens intersexo e suas mães
7
.
Abre-se, assim, uma nova frente no campo de discussão da intersexualidade e, neste contexto,
situo a importância da pesquisa de identidade, a partir do estudo da narrativa da história de
vida de uma pessoa intersexo que permitirá a compreensão do processo de reconstrução do eu
de indivíduos que se confrontaram com situações que implicam na revisão de sua
individualidade, identidade social e consciência de si mesmo. Tal estudo propõe-se, assim, a
dar um passo, na Psicologia Social, ao encontro do sujeito intersexo e a compreensão do
processo de construção de sua identidade.
A dissertação divide-se em 7 capítulos. Na introdução procura-se destacar as preocupações
que norteiam a realização do trabalho bem como os elementos teóricos que servem de
embasamento para as reflexões a serem desenvolvidas. O capítulo I apresesenta a noção de
identidade baseando-se na concepção desenvolvida por Antonio da Costa Ciampa sobre o
tema. O capítulo II introduz a noção de intersexo que torna-se-á importante para o estudo da
2
DAMIANI et al., Sexo Cerebral – um caminho que começa a ser percorrido, Arq Bras Endocrinol Metab,
2005; GUERRA, G., MACIEL-GUERRA A . T., Menino ou Menina? Os distúrbios da diferenciação do sexo,
2002
3
Ibid., Menino ou Menina? Os distúrbios da diferenciação do sexo, 2002
4
SPINOLA-CASTRO, A M., A importância dos aspectos éticos e psicológicos na abordagem do intersexo, Arq
Bras Endocrinol Metab, 2005
5
MACHADO, P.S. “Quimeras” da ciência: estudo antropológico sobre as representações de profissionais de
saúde acionadas em casos de genitália ambígua, no prelo, 2003 e O sexo dos anjos: um olhar sobre a anatomia e
a produção do sexo (como se fosse natural), Cadernos PAGU, 2005
6
SILVA et al, Ambigüidade Genital: a percepção de doença e o anseio dos pais, Rev. Bras Saúde Matern. Infant,
2006
7
SANTOS, M.M.R., Desenvolvimento da identidade de gênero em casos de intersexualidade: contribuições da
psicologia, Tese de Doutorado. Universidade de Brasília, Brasília, 2006
5
construção da identidade de uma pessoa intersexo. No capítulo III desenvolvemos uma
reflexão sobre a identidade e autonomia nos processos de emancipação de indivíduos e
grupos. No capítulo IV apresentamos a metodologia implementada e sua adequação à
proposta de estudo. Nos capítulos V e VI apresentamos o processo da entrevista e sua análise.
No capítulo VII, concluímos o estudo e tecemos nossas considerações finais.
6
Capítulo 1
Identidade: a concepção teórica de Antonio da Costa Ciampa
Vamos apresentar, no capítulo inicial desta dissertação, a concepção teórica de Identidade de
Antonio da Costa Ciampa, desenvolvida em sua tese de Doutorado A estória do Severino e a
história de Severina – um ensaio de psicologia social, defendida em 1987, assim como em
aulas, conferências e artigos produzidos ao longo de sua atuação docente e condução do
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Identidade-Metamorfose do Programa de Estudos Pós-
Graduados em Psicologia Social da PUC-SP.
A teoria de Ciampa, apresentada sob o sintagma identidade-metamorfose de forma preliminar
em sua tese de Doutorado, foi ampliada para identidade-metamorfose-emancipação, em 1999,
no Encontro Nacional da ABRAPSO.
Segundo Ciampa
8
, perguntas do tipo “quem sou eu?”, ou “quem é você?” são fundamentais
para a pesquisa da identidade, pois dizem sobre como nos apresentamos ao mundo e a nós
mesmos. As respostas obtidas a partir destas indagações retratam as predicações, habilidades,
papel social, linhagem familiar, origem e características pessoais. De forma geral, as respostas
individualizam o respondente mostrando como se diferencia ou se assemelha a outras pessoas,
o papel que desempenha nos distintos grupos sociais dos quais participa, como é percebido e
se percebe no tocante a suas características intelectuais, físicas e morais pois, como diz
Ciampa, “interiorizamos aquilo que os outros nos atribuem de tal forma que se torna algo
nosso”.
9
8
CIAMPA, A.C., Identidade, Psicologia Social : o homem em movimento, 1997, p.58
9
CIAMPA, A.C, A estória de Severino e a história de Severina, p. 131
7
Ao nos apresentarmos ao mundo, estamos ativamente nos relacionando com o meio social
através da apresentação de quem somos e da interiorização de quem o mundo percebe que
somos. Esse contínuo dar e receber informação a nosso respeito permite que nos
representemos diante de alguém, assumindo a posição de representantes de nós mesmos a
partir dos papéis sociais que desempenhamos
10
. Desta forma, a identidade se estabelece em
um jogo extremamente complexo e contínuo de aparências, representações e
reconhecimentos. Podemos também dizer que a identidade é algo que se constitui através de
práticas, conhecimentos, envolvimentos pessoais, numa contínua articulação significativa das
experiências vivenciadas pelos indivíduos em suas relações com os outros e consigo mesmos
dentro de um determinado contexto social. Ou seja, a identidade é uma conseqüência das
relações vivenciadas pelo indivíduo com os outros, com seu contexto social e consigo mesmo.
Autores como Berger e Luckmann
11
, por exemplo, vão dizer que:
Desde o início, a criança está colocada numa relação social: com seus pais e com
outras pessoas de importância relacional. Estas relações se desenvolvem em ações
regulares, diretas e recíprocas. A criança pequena ainda não é capaz de agir no pleno
sentido da palavra. Mas como um organismo individualizado tem as capacidades
corporais e conscientes inerentes à espécie humana, que ela emprega em seu
comportamento em relação aos outros. Por sua vez, o agir dos outros em relação à
criança é determinado em grande parte por esquemas de experiência e ação que
provêm do reservatório do sentido de sua sociedade. A criança aprende
progressivamente a entender o agir do respectivo contraparceiro e a compreender o
seu sentido. Começa, ao mesmo tempo, a entender a reação do outro como espelho de
seu próprio comportamento. Pode compreender seus modos de proceder como ações
típicas à luz dos padrões historicamente dados de experiência e ação. A própria
criança se posiciona em relação às reservas sociais de sentido. Nesses processos
desenvolve progressivamente sua identidade pessoal. Assim que entende o sentido de
seu agir, também entende que lhe cabe responsabilidade sobre ele. E é isto que
constitui a essência da identidade pessoal: controle subjetivo sobre uma ação pela qual
se é responsável objetivamente.
10
CIAMPA, A.C., A estória do Severino e a história da Severina, p.177
11
BERGER, L.P., LUCKMANN, T., Modernidade, Pluralismo e crise de sentido : a orientação do homem
moderno, p. 26
8
Do exposto, pode-se deduzir que a identidade está em constante formação e transformação de
acordo com as mudanças dos espaços de sociabilidade pessoal, as experiências, as situações,
as relações com pessoas e grupos, sendo estas experiências e relações condição de formação
da identidade. “No seu conjunto, as identidades constituem a sociedade, ao mesmo tempo em
que são constituídas, cada uma por ela”
12
.
Tomar a identidade como categoria central de análise significa, conforme conceituado por
Ciampa, tomá-la como pressuposta pois “podemos até desconhecê-la; mas pressupomos sua
existência”.
13
É o que acontece no caso do nascituro que já carrega consigo um papel definido
na teia familiar e no momento em que, pelo nascimento, marca sua chegada, inicia uma
relação social onde a representação inicial – pressuposta - é incorporada “de tal forma que seu
processo interno de representação é incorporado na sua objetividade social, como filho
daquela família”.
14
Percebemos então que o aparentemente simples ato de perguntar “quem é você?” pressupõe,
de forma equivocada, a existência de respostas que identifiquem uma pessoa a partir de
“dados válidos e fidedignos; ou seja, quanto mais dados, quanto melhores fossem os dados,
teríamos mais e melhor conhecida a identidade”.
15
Entretanto, há de se esclarecer que a
validade e fidedignidade dos dados, no estudo da identidade, não supõe permanência e
estabilidade, pois identidade é relacional e histórica, apesar de ser considerada, formalmente,
como atemporal. No estudo da identidade temos que compreender o dar-se, o processo de
interação humana.
12
CIAMPA, A.C, A estória do Severino e a história da Severina, p. 127
13
Ibid., p. 153
14
Ibid., p. 161
15
Ibid., p. 153
9
A identidade é um contínuo processo de transformação apesar de parecer ser a mesma em
todos os momentos. É justamente a constante reposição da identidade que cria a impressão de
não transformação, não metamorfose. Com o objetivo de melhor explicar o processo, Ciampa
distingue dois movimentos na identidade: mesmice e mesmidade. A mesmice decorreria
da re-posição da identidade que pode se dar como consciente busca de estabilidade ou
inconsciente compulsão à repetição; a identidade é pressuposta como dada permanentemente
e não como reposição de uma identidade que um dia foi posta
16
. Ou seja, é impossível
manter a identidade inalterada, mas pode-se, às custas de muito esforço, manter alguma
aparência de inalterabilidade, manter a mesmice. Por outro lado, uma forma de escapar à
mesmice seria subverter radicalmente sua vida, chocar-se com interesses estabelecidos e
situações convenientes quebrando o ciclo de reposição da identidade.
A mesmidade seria expressão da alterização, pela superação da personagem encarnada pelo
indivíduo; “essa expressão do outro outro que também sou eu consiste na metamorfose da
minha identidade, na superação de minha identidade pressuposta”
17
. A mesmidade permite ao
indivíduo se representar sempre como diferente de si mesmo e desenvolver uma identidade
posta como metamorfose constante.
A importância do conceito de identidade, sob o ponto de vista da psicologia social, conforme
teorizado por Ciampa, está na valorização do contexto social em sua formação posto que “é
necessário vermos o indivíduo não mais isolado, como coisa imediata, mas sim como
relação”.
18
Como ele se apresenta ao mundo, como se percebe e é percebido, uma vez que
16
LIMA, A.F., A dependência de drogas como um problema de Identidade : Possibilidades de apresentação do
‘Eu’ por meio da Oficina Terapêutica de Teatro, Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 2005, p.110
17
CIAMPA, A.C, A estória do Severino e a história da Severina, p. 180
18
Ibid., p. 133
10
“cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma identidade pessoal. Uma
história de vida. Um projeto de vida”.
19
Para Ciampa, a identidade se manifesta através de personagens que se articulam e a
compõem. Identidade é história, história humana e, como não há história humana sem
personagens nem personagens sem história, as personagens seriam momentos da identidade
na história de vida do indivíduo. Como diz Ciampa, “o ator é o eterno dar-se: é o fazer e o
dizer”
20
e, “para entendermos a identidade, precisamos entender o próprio processo de
produção da identidade”
21
, sua formação material, sua atividade e consciência como uma
unidade, ou seja, a materialidade da identidade.
A concepção de identidade é resultado da humanização do indivíduo que inicialmente é
apenas um organismo biológico. “A identidade é o movimento de concretização de si,
concretização de um indivíduo que é ser temporal, é ser no mundo, é formação material”.
22
Então, superar o “apenas” animal, humanizar-se “acontece num determinado tempo e lugar,
inserido numa determinada cultura que constitui cada um dos seres humanos. As sociedades,
culturas e instituições legitimam-se construindo ou aderindo a determinadas teorias sobre o
mundo, o indivíduo e o corpo que lhes dão uma coerência de discurso, que dão sentido”.
23
A
constituição de sentido se dá na consciência do indivíduo que se individualizou num corpo e
se tornou pessoa através de processos sociais. E quando pensamos no processo de
humanização temos que também pensar no processo de normatização do corpo.
19
CIAMPA, A.C, A estória do Severino e a história da Severina, p. 127
20
Ibid, p. 155
21
Ibid., p. 159
22
Ibid., p. 199
23
KOLYNIAK, H., Identidade e corporeidade : prolegômenos para uma abordagem psicossocial. Tese de
doutorado em Psicologia Social, PUC-SP, 2002, p.91
11
Através da educação e do convívio social busca-se que o indivíduo internalize regras e
atitudes correspondentes às normas da sociedade. Logo, devemos pensar a formação da
identidade não apenas como uma questão científica ou acadêmica, mas, principalmente, como
uma questão social e política. Como bem teorizou Ciampa, “uma identidade concretiza uma
política, dá corpo a uma ideologia”.
24
A concepção de identidade-metamorfose-emancipação de Ciampa teve, em sua origem, a
influência dos trabalhos de Jürgen Habermas com os quais o autor travou contato durante seu
doutoramento e também do pensamento de George Herbert Mead. As influências de
Habermas e Mead apresentam-se na teoria de Ciampa na medida em que Habermas faz a
releitura do Materialismo Histórico e da teoria de G. H. Mead. Amplia-se, assim, a
possibilidade de estudo de identidade desenvolvida por Ciampa no que se refere à teoria de
sociedade, a importância da simultaneidade da socialização e da individualização e da
diferenciação entre interiorização e internalização.
Entendendo a importância do pensamento de Mead, a releitura de seu trabalho por Habermas
e a influência de ambos os autores na concepção identidade-metamorfose-emancipação
desenvolvida por Ciampa, faremos uma breve apresentação das idéias principais.
24
CIAMPA, A.C., A estória do Severino e a história da Severina, p.127
12
Simultaneidade da socialização e da individuação na formação da identidade, em G.H.
Mead
No livro Mind, Self and Society: from the standpoint of a social behaviorist estão contidas as
bases conceituais da Psicologia Social propostas por George Herbert Mead, articuladas
através dos conceitos: mente, self e sociedade. Ao enfatizar a importância do conceito da
mente em Psicologia Social, Mead busca abranger duas dimensões, uma de natureza pública e
outra, de natureza privada, que é possível ser acessada apenas pelo indivíduo. Para Mead a
consciência é natural e, portanto, possível de ser estudada.
Ao pensar no público/privado ou na noção interno/externo, Mead propõe duas formas
possíveis para se compreender a experiência individual: o ato social e os gestos. O ato social é
pensado como uma experiência interna que se constitui no social e que exige o auxílio dos
indivíduos. No que se refere aos gestos, Mead descreve a sua função como adaptativa, ou
melhor, é a possibilidade de adaptação dos indivíduos na interação social
25
.
Na medida em que o indivíduo se relaciona com o mundo interno/externo constitui-se na
interação social. Ou seja, o self emerge da interação social em função de assumirmos o papel
do outro e de nos apropriarmos dele como parte constitutiva de nós mesmos. Mead propõe
que a relação indivíduo sociedade seja estabelecida de forma dialética, na qual indivíduo e
sociedade constituem-se mutuamente. Nesta relação, a linguagem torna-se fundamental, pois
possibilita a expressão dos pensamentos e sentimentos ao exterior e também a interação com
13
outros indivíduos. Neste sentido, “linguagem, aqui, é uma forma de diálogo e é, portanto,
intrínseca e irredutivelmente social”
26
.
A formação do self
Para Mead a formação do self passa por duas etapas do amadurecimento da criança que
podem ser definidas como brincadeira (play) e jogo (game).
Na brincadeira (play) a criança cria e encena seus personagens imaginários, apropriando-se do
outro através de suas próprias atitudes. Neste momento em que fala consigo mesma, imita
pessoas próximas ou cria personagens, a criança se constitui a partir da relação com seu outro
(dublê) e utiliza suas próprias respostas aos estímulos na construção de seu self.
O jogo pressupõe regras e a criança deve estar preparada para assumir a atitude de todos os
participantes cujos papéis prevêem uma relação definida entre si. Através do jogo, a criança
exercita a representação de papéis e a internalização de regras e de atitudes dos outros, pois “a
atitude dos outros jogadores que o participante assume organizam-se em uma unidade, e é
esta organização que controla a resposta do indivíduo”.
27
Assim, a passagem da brincadeira
para o jogo representa, na vida da criança, a passagem de assumir o papel dos outros para
“auto-consciência no sentido completo do termo”.
28
A situação de jogo ilustra o processo de
emergência de uma personalidade organizada, pois ao assumir a atitude do outro e permitir-se
25
BAZILLI et al, Interacionismo Simbólico e teoria dos papéis : uma aproximação para a psicologia social,
1998
26
FARR, R., As raízes da Psicologia Social Moderna (1872-1954), p. 99
27
MEAD, G. H., Mind, Self and Society, p. 154
28
Ibid., p. 152
14
determinar por ela, o indivíduo se transforma em um “membro orgânico da sociedade”.
29
Ele
assume a moral desta sociedade e se transforma em um membro essencial dela.
Mead chama de “outro generalizado” a comunidade organizada ou grupo social que dá ao
indivíduo sua unidade do self
30
e afirma que “é na forma do outro generalizado que o processo
influencia o comportamento dos indivíduos envolvidos e a comunidade exerce controle sobre
a conduta de seus membros individuais”.
31
A atitude do outro generalizado é a atitude de toda
a comunidade.
O “eu” e o “mim”
O indivíduo socializado, conforme discutido anteriormente, possui um self que lhe assegura a
incorporação das atitudes e valores sociais e a constituição da sociedade. Mead define dois
componentes distintos e indissociáveis na constituição do self, o “eu” e o “mim”.
O “eu” é a resposta do organismo às atitudes dos outros. O “eu” suscita a sensação de
liberdade, de iniciativa, transgressão e originalidade; é a reação espontânea frente a novas
situações. A situação está dada, estamos cientes de nós mesmos, e do que a situação significa,
mas, como reagiremos exatamente nunca pode ser afirmado até que a ação seja tomada. “É,
portanto graças ao ‘eu’ que dizemos nunca ter consciência plena do que somos, que nos
surpreendemos com a própria ação”.
32
29
Ibid., p. 159
30
MEAD, G. H., Mind, Self and Society, p. 154
31
Ibid, p. 155
32
Ibid., p. 174 trad de Lima, Aluisio
15
O “mim” representa a convenção, o conjunto organizado das atitudes que o indivíduo deve
apresentar para fazer parte da comunidade. “As atitudes dos outros constituem o ‘mim’
organizado e então o indivíduo reage a elas como um ‘eu’”.
33
O “eu” e o “mim” são separados no processo, mas constituem partes de um todo. O “eu” tanto
chama o “mim” quanto responde a ele.
34
Tomados conjuntamente, o “eu” e o “mim”
constituem o self na medida em que aparecem na experiência social.
A materialidade em Mead: o corpo
De acordo com Mead, a constituição do self e a formação da identidade social têm origem no
agir material, mediado pela linguagem, que fornece ao corpo humano e ao self seus contornos
físicos.
O corpo é “parte do ambiente; e é possível ao indivíduo vivenciar e ser consciente de seu
corpo, das sensações corporais, sem estar consciente ou ciente de si mesmo – sem, em outras
palavras, tomar a atitude do outro para si”.
35
É através da emergência da auto-consciência no
processo da experiência social que o indivíduo passa a vivenciar seu corpo – seus sentimentos
e sensações – como seu, tornando-se parte do conjunto de estímulos ambientais aos quais se
responde ou reage.
Ou seja, é na esfera social que começamos a captar e apreender o corpo no contato com outras
superfícies que o pressionam e limitam. A partir da interação com o outro se define a forma
33
Ibid., p. 175 trad de Lima, Aluisio
34
MEAD, G. H., Mind, Self and Society., p. 178
16
como nos relacionamos com nosso corpo, o significado a ele atribuído obedece aos valores
sociais aprendidos e internalizados.
A apropriação dos Conceitos de Mead por Habermas
Habermas desenvolve uma teoria da individuação através da socialização sobre a teoria de
subjetividade de Mead por entender que a “única tentativa promissora de apreender
conceitualmente o conteúdo pleno do significado da individuação social
36
“ encontra-se neste
autor.
Para Mead, a individuação se dá a partir da internalização das instâncias controladoras do
comportamento. Ou seja, a individuação é resultado de um processo da socialização no qual
forma-se a identidade dos indivíduos, simultaneamente, no meio do entendimento lingüístico
com outros e consigo mesmo. Nas palavras de Habermas, “a individualidade forma-se em
condições de reconhecimento intersubjetivo e de auto-entendimento mediado
intersubjetivamente”.
37
Assim, na medida em que o sujeito “cresce através do processo de
socialização e incorpora inicialmente aquilo que as pessoas de referência esperam dele,
passando em seguida a integrar e a generalizar, através da abstração, as expectativas
múltiplas, inclusive contraditórias, surge um centro interior de auto-comando do
comportamento, imputável individualmente”
38
que constitui os indivíduos como capazes de
35
Ibid., p. 171 ‘our bodies are parts of our environment; and it is possible for the individual to experience and be
conscious of his body, and of bodily sensations, without being conscious or aware of himself – without, in other
words, taking the attitude of the other toward himself’
36
HABERMAS, J. Pensamento pós metafísico, p. 185
37
Ibid., p. 187
38
Ibid., p. 185-186
17
agir de maneira responsável e desenvolver por conta própria as expectativas tidas como
legítimas ou de ir contra elas.
O mundo da vida
A socialização se dá no mundo da vida como resultado de uma “prática comunicativa
cotidiana”. O mundo da vida, apresentado originalmente por Edmund Husserl e
posteriormente desenvolvido por Habermas, é composto por três elementos originariamente
entrecruzados: a cultura, a sociedade e as estruturas de personalidade.
A cultura está encarnada em formas simbólicas (objetos de uso e tecnologias, palavras e
teorias, livros e documentos) bem como em ações. A sociedade encarna-se nas ordens
institucionais ou nos entrelaçamentos de práticas e costumes regulados normativamente. As
estruturas de personalidade – motivos e habilidades – estão encarnadas na essência dos
organismos humanos.
Para Habermas, “os organismos só podem ser descritos como pessoas quando e na medida em
que foram socializados, isto é, penetrados por conjuntos de sentido culturais e sociais e
estruturados através deles”.
39
Segundo o autor, pessoas são estruturas simbólicas e seus
corpos, substratos naturais simbolicamente estruturados, são, enquanto natureza, exteriores
aos indivíduos, assim como a base material da natureza é exterior ao mundo da vida. Dessa
forma, o autor chama a atenção para os limites externos estabelecidos pela natureza interior e
exterior para os indivíduos socializados e para o seu mundo da vida, erguendo barreiras contra
39
HABERMAS, J. Pensamento pós metafísico, p. 100
18
um ambiente; ao passo que as pessoas com sua cultura e sua sociedade permanecem
internamente entrelaçadas através de relações lingüísticas.
Para Habermas as ações de fala, sob os aspectos do entendimento, servem à tradição e à
continuidade do saber cultural, sob o aspecto da socialização, servem à formação e à
conservação de identidades pessoais. Através da comunicação os sujeitos colocam-se, pela
estrutura de sua personalidade, em condições de falar e agir, assim como de garantir sua
identidade própria. Habermas imagina os componentes do mundo da vida “como se fossem
condensações e sedimentações dos processos de entendimento, da coordenação da ação e da
socialização
40
, resultantes da continuidade do saber válido, da estabilização de
solidariedades grupais, da formação de atores responsáveis, mantendo-se através deles. É
através da prática comunicativa que surge e se consolida um saber que assume formas de
modelos de interpretação que são “transmitidos na rede de interações de grupos sociais e se
cristaliza na forma de valores e normas”
41
.
O agir comunicativo
Na concepção de Habermas, “a identidade própria, ou seja, a auto-compreensão como um ser
individuado que age autonomamente, só pode estabilizar-se se houver o reconhecimento
como pessoa e como esta pessoa”.
42
Este reconhecimento se dá apenas através da ação
comunicativa. Pelo agir comunicativo, os participantes de uma comunidade, que julgam e
agem moralmente, e os que se realizam numa história de vida assumida responsavelmente
devem poder esperar a concordância e o reconhecimento de uma comunidade de comunicação
ilimitada.
40
HABERMAS, J. Pensamento pós metafísico, p. 96
41
Ibid., p. 96
42
Ibid., p. 226
19
Ao agir comunicativo se aplica o princípio segundo o qual “as limitações estruturais de uma
linguagem compartilhada intersubjetivamente levam os atores a se submeter a critérios
públicos de racionalidade do entendimento”.
43
A concepção de identidade em Habermas
Em seu estudo sobre a teoria crítica da sociedade, Habermas conceituou a identidade do Eu
como uma organização simbólica do Eu, que não tem sentido apenas descritivo, que reclama
para si exemplaridade universal e que “não se instaura absolutamente de modo regular, quase
como um resultado de processos naturais de amadurecimento, mas termina por ser, na maioria
dos casos, um objetivo não alcançado”.
44
Para dar sustentação a seu estudo, Habermas realiza a leitura de três diferentes tradições
teóricas que discutem os problemas de desenvolvimento da identidade do Eu - a psicologia
analítica do Eu (H.S.Sullivan, Erikson); a psicologia cognoscitiva do desenvolvimento
(Piaget, Kohlberg); e a teoria da ação definida pelo interacionismo simbólico (Mead, Blumer,
Goffman, etc) - e constata que apesar das convergências nas concepções de base, nenhuma
das teorias permitiu definir uma noção exata e empiricamente rica da identidade do Eu.
Habermas também se baseia nos níveis de desenvolvimento moral desenvolvidos por
Kohlberg cujas noções, a seu ver, “satisfazem as condições formais de uma lógica de
desenvolvimento”
45
. Para Kohlberg o desenvolvimento moral ocorreria em três níveis: a)
nível pré-convencional: deve-se ser capaz de responder a regras culturais e à autoridade,
interpretando tais noções nos termos das conseqüências físicas ou de prazer da ação (punição,
43
HABERMAS, J., Pensamento pós metafísico, p.82
44
HABERMAS, J., Para a Reconstrução do materialismo histórico, p.50
20
recompensa, troca de favores); b) nível convencional: deve-se conformar à ordem social,
mantê-la ativamente, apoiar e justificar essa ordem e identificar-se com as pessoas ou o grupo
nela envolvidos; c) nível pós-convencional: há um claro esforço no sentido de definir os
valores e os princípios morais que têm validade e aplicação independentemente da autoridade
dos grupos ou das pessoas que os sustentam e do fato de que o próprio indivíduo se
identifique ou não com tais grupos.
Habermas também apresenta o desenvolvimento da identidade do Eu; que passaria por três
etapas: identidade natural, identidade de papel e identidade do Eu.
A identidade natural seria referente ao primeiro estágio do desenvolvimento; “a partir do
momento em que a simbiose com a mãe é rompida é que a criança entra num mundo de
pessoas, que vão ao seu encontro, que lhe dirigem a palavra e podem conversar com ela. (...)
Apenas na esfera pública de uma comunidade lingüística é que o ser natural se transforma ao
mesmo tempo em indivíduo e em pessoa dotada de razão.”
46
Neste estágio a criança, ao
abandonar a fase simbiótica e tornar-se sensível a pontos de vista morais, aprende a distinguir
entre si mesmo e seu corpo e o ambiente.
Habermas diz que na medida que a criança é socializada e incorpora o universo simbólico
intersubjetivo de papéis fundamentais de seu ambiente natural (membro de uma família), e
mais tarde grupos mais amplos (membro da comunidade, ex. vizinho, amigo, aluno),
superpõe-se a sua identidade natural à identidade de papel.
Quando a criança incorpora as universalidades simbólicas dos papéis menos
fundamentais de seu ambiente familiar e, mais tarde, as normas de ação de grupos
45
Ibid, p.55
46
HABERMAS, J., O futuro da natureza humana, p. 49
21
mais amplos, a identidade natural acoplada a seu organismo é substituída por uma
identidade constituída por papéis e mediatizada simbolicamente. A continuidade
devida à identidade baseada em papéis apóia-se, então, na estabilidade das
expectativas comportamentais que, através do ideal do Eu, terminam por se fixar na
própria pessoa.
47
Embora esse nível já aponte uma diferenciação frente aos outros indivíduos, os atores ainda
revelam-se como pessoas de referência dependentes de papéis. Ao buscar a independência da
identidade de papel, o sujeito desenvolve a identidade do eu que se expressa de forma
paradoxal na medida que “o Eu, como pessoa em geral, é igual a todas as pessoas, ao passo
que – enquanto indivíduo – é diverso de todos os demais indivíduos”
48
.
Habermas entende que somente neste terceiro nível “os portadores de papéis se transformam
em pessoas que podem afirmar a própria identidade independente dos papéis concretos e de
sistemas particulares de normas”,
49
transformando-se verdadeiramente em autores de sua
história de vida, “podendo dizer ‘eu’ de si mesmas”
50
porque, na medida em que produzem e
conservam a própria identidade, elas têm uma identidade do Eu que não lhes é meramente
atribuída.
O conceito de identidade do Eu foi desenvolvido por Habermas dentro de uma perspectiva a
partir da qual podemos observar como o Eu infantil gradualmente adentra nas estruturas
gerais do agir comunicativo e, através destas estruturas, adquire sua competência interativa, a
consistência e a autonomia do agir. Por isso, afirma Habermas, a identidade do Eu pode se
confirmar na “capacidade que tem o adulto de construir, em situações conflitivas, novas
identidades, harmonizando-as com as identidades anteriores agora superadas, com a
47
HABERMAS, J., Para a Reconstrução do materialismo histórico, p.79
48
Ibid., p.69
49
Ibid., p.64
50
Ibid., p.150
22
finalidade de organizar – numa biografia peculiar – a si mesmo e às próprias interações, sob a
direção de princípios e modos de procedimentos universais”.
51
O Eu, portanto, tem de estabilizar sua identidade na capacidade abstrata de representar a si
mesmo, em qualquer situação,
[...] como alguém que é capaz de satisfazer as exigências de consistência, inclusive
diante de expectativas de papel incompatíveis e atravessando a série biográfica de
sistemas de papel contraditórios. No adulto, a identidade do Eu se confirma na
capacidade de construir novas identidades, integrando nelas as identidades superadas e
organizando a si mesmo e às próprias interações numa biografia inconfundível. Essa
identidade do Eu torna possível a autonomização e a individualização que, em sua
estrutura, já são colocadas ao nível da identidade de papel.
52
Na identidade do Eu, expressa-se uma relação paradoxal de igualdade e diferença, ou seja, a
singularidade, que nos diferencia enquanto sujeitos, nos iguala nas expectativas em relação à
sociedade; e a individualidade, sendo a negação de todas as prescrições, nos dá acesso à
subjetividade e possibilita uma reconstrução do Eu, a partir das diferenças.
Habermas entende que “a regulamentação normativa das relações interpessoais pode ser
compreendida como um poroso invólucro de proteção contra certas contingências, às quais o
corpo vulnerável e a pessoa nele representada são expostos. Ordens morais são construções
frágeis que, de uma só vez, protegem o corpo de lesões corporais e a pessoa de lesões internas
ou simbólicas. Com efeito, a subjetividade, que é o que faz do corpo humano um recipiente
animado da alma, se constitui a partir das relações intersubjetivas para com os outros. O si
mesmo individual surge apenas com o auxílio social da exteriorização e também só pode se
estabilizar na rede de relações intactas de reconhecimento”.
53
51
HABERMAS, J., Para a Reconstrução do materialismo histórico, p.70
52
Ibid., p.80
53
HABERMAS, J., O futuro da natureza humana, p. 47
23
Habermas se diz convencido de que uma moral universalista, “que considere como racionais
as normas universais (e os interesses capazes de generalização), pode ser defendida com bons
motivos; e de que somente o conceito de uma identidade do Eu, que assegure ao mesmo
tempo liberdade e individualização da pessoa singular no interior de complexos sistemas de
papéis, pode fornecer hoje, aos processos educativos, uma orientação capaz de obter
consenso.”
54
Por isso “a progressiva concretização de uma identidade humana será sempre,
antes de mais nada, uma questão política”
55
.
54
HABERMAS, J., Para a Reconstrução do materialismo histórico, p.81
55
CIAMPA, A.C, A estória do Severino e a história da Severina, p. 216
24
Capítulo 2
Intersexo e identidade
Neste segundo capítulo vamos apresentar o conceito de intersexo e discutir os usos
decorrentes da definição e seu impacto na vida de pessoas que recebem este diagnóstico.
Diferenças anatômicas dos sexos - Resgate histórico
No campo de debate construcionista, autores têm desenvolvido estudos que retomam a
discussão sobre a construção de corpos masculinos e femininos
56
e os sentidos dados aos
corpos e às práticas sexuais
57
ao longo do tempo. Tais autores entendem a sexualidade como
“atividade social que se pode explicar do ponto de vista das humanidades” (infomação
verbal).
58
As relações sociais são fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos
59
mas, no caso
do intersexo, esta fundamentação deve ser repensada. Devemos resgatar a discussão sobre os
significados atribuídos ao sexo posto que está calcada em “uma realidade material – i.e, o
sexo – que precisa ser levada em conta quando se discute os significados que as culturas dão
56
WEEKS, 1999; COSTA, 1995; BENTO, 2006; LAQUEUR, 2001, FOUCAULT, 1980
57
MOORE, H. Compreendendo Sexo e Gênero, Tradução de Júlio Assis Simões para uso didático
58
Anotações de aula dia 14/03/2006 da disciplina Gêneros e Sexualidades em contextos psicossociais diversos,
ministrada pela Profa Vera Paiva. (PST 5802) no Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da
Universidade de São Paulo.
59
SCOTT, J., Gênero: uma categoria útil para análise histórica, Educação e Realidade, p.14
25
aos corpos e às práticas corporificadas – i.e, o gênero”
60
. A noção de “arbitrariedade cultural”
é fundamental para nosso estudo pois “aponta para o fato da vida social, e os vetores que a
organizam – como, por exemplo, tempo, espaço ou diferença entre os sexos – são produzidos
e sancionados socialmente através de um sistema de representações”
61
. Representações que
foram marcadas pela revolução epistemológica e sociopolítica ocorrida no século XVIII e
que, ao estabelecer o sistema de dois sexos, teve forte impacto no discurso biomédico da
cultura ocidental
62
.
Thomas Laqueur (2001) realiza uma revisão histórica sobre as concepções das diferenças
anatômicas dos sexos, iniciando pelo modelo galênico. No século II d.C, Galeno desenvolveu
um modelo da identidade estrutural dos órgãos reprodutivos do homem e da mulher segundo
o qual as mulheres eram essencialmente homens cuja falta de calor vital, ou perfeição,
resultou na retenção interna de estruturas que no homem eram externas. Durante dois milênios
a anatomia feminina foi retratada em comparação com a anatomia masculina. Para referir-se
aos ovários usava-se o termo orcheis, o mesmo usado para os testículos masculinos, e
deixavam que o contexto no qual o termo aparecia esclarecesse o sexo. Assim, a diferença
sexual estava na linguagem.
No final do século XVIII, o modelo único, o isomorfismo dos órgãos femininos e masculinos,
deu lugar a um novo modelo onde prevalecia o dimorfismo radical, a divergência biológica.
Por volta de 1800, as diferenças fundamentais entre o homem e a mulher começaram a ser
baseadas em distinções biológicas constatáveis, “com uma insistência quase que perversa da
compreensão das diferenças sexuais como uma questão de grau, gradações de um tipo básico
60
ERRINGTON, 1990: 27-8 apud MOORE, H., Compreendendo Sexo e Gênero, p. 6
61
HEILBORN, M.L. De que gênero estamos falando? , Sexualidade, gênero e sociedade, p.1
62
LAQUEUR, T.W., Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud, 2001
26
masculino, houve um clamor para articular distinções corporais exatas”
63
. A concepção
binária dos gêneros reproduzia o pensamento moderno atribuindo aos sujeitos determinadas
características universais que, supunham, ser compartilhadas por todos.
Em 1850, com os avanços na anatomia do desenvolvimento, o isomorfismo galênico foi
rearticulado no plano embriológico, pois os cientistas descobriram as origens comuns de
ambos os sexos em um embrião morfologicamente andrógino. Assim o pênis e o clitóris, os
lábios e o escroto e os ovários e os testículos eram homólogos e tinham origens comuns na
vida fetal. Segundo Laqueur, entretanto, “só houve interesse em buscar evidência de dois
sexos distintos, diferenças anatômicas e fisiológicas concretas entre o homem e a mulher,
quando essas diferenças se tornaram politicamente importantes”
64
. As novas formas de
interpretar o corpo foram conseqüência de dois desenvolvimentos analíticos distintos, um
epistemológico e outro político. O autor atribui a mudança na reinterpretação dos corpos
como intrínseca aos movimentos de “ascensão da religião evangélica, a teoria política do
Iluminismo, o desenvolvimento de novos tipos de espaços públicos no século XVIII, as idéias
de Locke de casamento como um contrato, as possibilidades cataclísmicas de mudança social
elaboradas pela Revolução Francesa, o conservadorismo pós-revolucionário, o feminismo
pós-revolucionário, o sistema de fábricas com sua reestruturação da divisão sexual de
trabalho, o surgimento de uma organização livre de mercado de serviços ou produtos, o
nascimento de classes” pois, para Laqueur, “o sexo, tanto no mundo do sexo único como no
de dois sexos, é situacional; é explicável apenas dentro do contexto da luta sobre gênero e
poder”
65
.
63
LAQUEUR, T.W., Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud, p.17
64
Ibid., p.21
65
Ibid., p.23
27
Hermafroditismo e a estrutura de dois sexos
No final do século XIX, vigorava na Europa uma definição de hermafroditismo muito
parecida com a definição mitológica que pregava a coexistência, em um mesmo indivíduo, de
traços corporais do sexo masculino e feminino. Entretanto, nesta mesma época, esta
classificação foi substituída pelo critério taxonômico que sustenta a vigência da família
conceitual dos hermafroditismos – verdadeiro e pseudo-hermafroditismos masculino e
feminino.
66
Em 1876, o investigador biomédico T.A .E. Klebs propôs um novo sistema de
classificação baseado na “constelação endrócrina” na qual seriam considerados hermafroditas
apenas os indivíduos que apresentassem tecido ovariano e testicular ao mesmo tempo, sem
importar a configuração externa de seu corpo sexuado. A classificação proposta por Klebs
“situava o sexo verdadeiro de cada indivíduo no interior invisível de seu corpo, onde a
presença de ovários e testículos estabelecia, mais além de qualquer variação morfológica dos
genitais, sua identidade sexual verdadeira. A constatação do hermafroditismo verdadeiro,
dadas as factibilidades biotecnológicas disponíveis, podia somente ser estabelecida post-
mortem, quando o corpo podia ser aberto e examinado.”
67
Entretanto, com o avanço das
técnicas biotecnológicas (anestesia, por exemplo) e a possibilidade de realizar biópsias em
pacientes vivos, a medicina permitiu a identificação de indivíduos com corporalidades
ambíguas. Segundo Cabral (2005), nesta “emergência higiênica teve lugar um giro decisivo
no modo como a biomedicina e o direito lidavam com a ‘ambigüidade’ corporal de certos
indivíduos”. Em 1915, William Blair Bell propõe centrar a atenção no modo em que os
indivíduos com corpos ‘ambíguos’ se identificavam e eram identificados por outros e outras,
ou seja, aos aspectos psicossociais do sexo, hoje chamado de gênero. A partir de 1930, os
avanços no campo da medicina reconstrutiva permitiram a realização das primeiras cirurgias
66
CABRAL, M., BENZUR, G., Cuando digo intersex : un diálogo introductorio a la intersexualidade, Cadernos
PAGU, 2005
28
de mudança de sexo, “com a qual a capacidade de intervir sobre o corpo para modelar uma
aparência concordante entre identidade psicossocial e anatomia em casos de ‘ambigüidade’
passou a constituir uma ferramenta sociomédica de primeira ordem”.
68
Entre as décadas de 1950 e 1960, estudiosos americanos sob a égide de uma teoria
“aparentemente construtivista e corporalmente emancipada”
69
, preconizavam a cirurgia de
assignação sexual e a socialização como fatores necessários e suficientes para a definição de
uma identidade sexual. Para estes estudiosos ainda residia uma forte dependência do corpo
sexuado e sua morfologia pois a socialização precisava de um corpo, uma base material para
assentar-se. “O corpo regressava, portanto – não sob a forma de uma determinação a priori,
biológica – senão como a sustentação material, imprescindível, da assignação de gênero e de
êxito dessa assignação ao longo da vida. Este regresso do corpo sexuado como determinante –
desta vez não da identidade sexual ‘verdadeira’, mas sim da possibilidade de uma identidade
sexual – precisava não somente assegurar a aparência exterior dos genitais mas também certas
funções estimadas fundamentais”
70
, tais como o desempenho de funções sexuais (para o
homem, capacidade de penetração e para a mulher, de ser penetrada).
Como exemplo desta teoria temos o caso dos gêmeos Joan e John, descrito pelo sexologista
John Money, em 1972. Durante uma circuncisão o pênis de um dos gêmeos foi decepado. Os
médicos, acreditando que o menino não poderia desenvolver uma identidade masculina sem o
pênis, realizaram nova cirurgia e o reassignaram para o sexo feminino. Segundo Kessler “este
experimento natural foi usado para testar a hipótese de socialização do sexo. Iriam gêmeos
67
Ibid., p. 286
68
CABRAL, 2005 citando Hausman, Bernice. Changing Sex. Durham University Press, 1998 ; Meyerowitz,
Joanne. How Sex Changed. Cambrigde, Harvard University Press, 2002.
69
CABRAL, M., BENZUR, G., Cuando digo intersex : un diálogo introductorio a la intersexualidade, Cadernos
PAGU, p.288
70
Ibid., p.289
29
idênticos, um criado como homem e o outro como mulher, desenvolver diferentes identidades
e papéis sexuais? Iria a biologia (especificamente hormônios pré-natais) ser anulada pela
socialização?”
71
A crítica de Kessler, sobre o caso ilustrado, reside na ênfase dada aos genitais
como evidência de sexo.
O relatório inicial de Money tentava derrubar o determinismo biológico e provar a força da
socialização ao descrever a criança como uma típica menina. Segundo a teoria de Money,
“sexo não era apenas uma construção social na teoria, ele podia ser literalmente construído
através da intervenção humana. Os cirurgiões fariam sua parte ao criar os genitais necessários,
e os pais fariam sua parte ao criar o ambiente social apropriado, no qual a criança fosse
chamada pelo pronome relevante. Identidade e papel sexual iriam então assumir seus
lugares.”
72
Anos após o relato do caso feito por Money, Milton Diamond
73
localizou essa ‘menina’ e
trouxe a público uma nova versão deste “experimento natural”. Diamond reportou que a
criança nunca aceitou o sexo atribuído, nunca agiu como uma menina ‘normal’ e que aos 14
anos solicitou hormônios e intervenção cirúrgica para ser reassignada ao sexo masculino.
Milton Diamond (apud Santos 2002: 27), ao referir-se ao manejo clínico proposto por Money,
“considera que os procedimentos defendidos por este último negam ao indivíduo a opção de
escolha da própria identidade e papel de gênero, visando, apenas, o alívio da ansiedade dos
71
KESSLER, S.J. Lessons from the intersexed, p.6
72
Ibid.,p.6 “Gender was not only a social construction in theory, it could literally be constructed through human
intervention. The surgeons would do their part in creating the necessary genitals, and the parents would do their
part in creating the appropriate social environment, one in which the child was referred to with the relevant
pronoun. Gender identity and gender role would then fall into place”.
73
Milton Diamond é Professor de Anatomia no John A. Burns School of Medicine, University of Hawaii.
30
pais de que seu filho pareça tão normal quanto possível”, mesmo que não venham a se
realizar no corpo reconstruído.
Intersexo: definição
A intersexualidade é um fenômeno que abrange fatores que vão desde o nível genético até o
sócio-cultural na formação do corpo humano.
No processo de desenvolvimento embrionário, até sete semanas após a fertilização, o embrião
humano é um organismo bissexual com primórdios gonadais e genitais idênticos nos dois
sexos. Ou seja, o sexo genético (XX ou XY) está dado, mas até este momento não é possível
distinguir macro ou microscopicamente a diferença entre embriões com predestinação
masculina ou feminina. Ao longo do processo de diferenciação sexual, ou seja, do surgimento
dos ductos genitais e da genitália externa subseqüente à formação das gônadas (testículos e
ovários), irão se configurar as diferenças das estruturas masculina e feminina.
74
Entretanto, no processo de desenvolvimento embrionário podem ocorrer variações que
resultem na formação de um corpo que não siga o estágio de desenvolvimento completo, não
podendo ser prontamente classificado como feminino ou masculino. A esse processo de
diferenciação incompleto chama-se intersexo ou distúrbio de desenvolvimento do sexo
(DDS).
74
GUERRA G., MACIEL-GUERRA, A. T., Menino ou menina? Os distúrbios da diferenciação do sexo, 2002
31
Em estudo recente, Santos
75
faz uma breve apresentação da origem do uso do termo intersexo.
Segundo Santos, o termo foi proposto por Goldschmidt em 1923 e tem o mérito de descrever
vários tipos de ambigüidade genital física sem, no entanto, conter a carga mítica do termo
hermafroditismo
76
, utilizado anteriormente, que fazia alusão a um corpo com dois sexos.
Assim, “o termo intersexualidade é considerado o mais adequado para representar a condição
médica que caracteriza a anomalia congênita dos sistemas sexual e reprodutivo”
77
. Pela
definição médica, uma pessoa nascida sob a condição da intersexualidade não apresenta sexo
cromossômico, genitália externa ou sistema reprodutivo interno dentro de padrão considerado
normal para o sexo masculino e feminino. A partir da constatação de tal condição, surgiram
diferentes propostas de manejo da intersexualidade que vão desde a defesa da cirurgia genital,
reparadora para “normalização”, até a crença da não necessidade cirúrgica, visto que a
definição da normalidade é variável.
Acerca da normalidade, Cabral
78
(2005) define variação como conceito chave para a
compreensão da intersexualidade, pois acredita que
quando dizemos intersexualidade nos referimos a todas aquelas situações nas quais o
corpo sexuado de um indivíduo varia sobre o standard de corporalidade feminina ou
masculina culturalmente vigente. De que variações falamos? Sem ânimo de
exaustividade, daquelas que envolvem mosaicos cromossômicos (XXY, XX0),
configurações e localizações particulares das gônadas – (a coexistência de tecido
testicular e ovariano, testículos que não desceram) como dos genitais (por exemplo,
quando o tamanho do pênis é ‘demasiado’ pequeno e quando o clitóris é ‘demasiado’
grande de acordo com esse mesmo standard que antes falava, quando o final da uretra
está deslocado da ponta do pênis em um de seus lados ou na base do mesmo, ou
75
SANTOS, M.M.R., Desenvolvimento da identidade de gênero em casos de intersexualidade : contribuições da
psicologia, 2006
76
A origem da palavra hermafrodita encontra-se na mitologia grega. Hermafroditus era um jovem de rara
beleza, filho de Hermes e Afrodite, por quem Salmacis, uma linda ninfa, se apaixonou. Ao ser rejeitada por
Hermafroditus, Salmacis pediu aos deuses para que nunca se separasse de Hermafroditus. Hermafroditus, por sua
vez, preferia morrer a submeter-se ao amor de Salmacis. Os deuses atenderam a ambos os pedidos e assim,
Salmacis e Hermafroditus foram unidos em um único ser com dois sexos.
77
ZUCKER, 1999 apud SANTOS 2006
78
Mauro Cabral, da Faculdade de Filosofia e Humanidades da Universidade Nacional de Córdoba, Cordoba,
Argentina, é membro do International Board de CLAGS (Center for Lesbian and Gay Studies, CUNY) e
coordenador da Área Trans e Intersex do Programa para América Latina e Caribe do IGLHRC (the
International Gay and Lesbian Human Rights Commission).
32
quando a vagina está ausente...). Portanto, quando falamos de intersexualidade não
nos referimos a um corpo em particular, senão a um conjunto muito amplo de
corporalidades possíveis, cuja variação sobre a masculinidade e a feminilidade
corporalmente ‘típicas’ vem dada por um modo cultural, biomedicamente específico,
de olhar e medir os corpos humanos.
79
A definição apresentada por Cabral contém a síntese do esforço deste trabalho em discutir a
intersexualidade como uma corporalidade possível. E, a partir desta possibilidade, de permitir
à pessoa intersexo se relacionar com seu corpo, decidir se deseja ou não se submeter à
intervenção cirúrgica para adequar-se ao standard vigente.
Intersexualidade no Brasil
De acordo com a resolução n
o
1.664, de 12 de maio de 2003 (Diário Oficial da União Nº 90,
13/5/2003, SEÇÃO 1, P. 101/102)
80
, que dispõe sobre as normas técnicas necessárias para o
tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual, pacientes com
anomalia de diferenciação sexual devem ter assegurada uma conduta de investigação precoce
com vistas a uma definição adequada do gênero e tratamento em tempo hábil. (Art 2
o
)
O mesmo documento, em seu anexo – Exposição de motivos – afirma que “há quem advogue
a causa da não intervenção até que a pessoa possa autodefinir-se sexualmente. Entretanto, não
existem a longo prazo estudos sobre as repercurssões individuais, sociais, legais, afetivas e até
79
CABRAL, 2005, p.283-284 in Cadernos PAGU (24). “cuando decimos intersexualidad nos referimos a todas
aquellas situaciones en las que el cuerpo sexuado de un individuo varía respecto al standard de corporalidad
femenina o masculina culturalmente vigente. De que tipo de variaciones hablamos ? Sin ánimo de exhaustividad,
a aquellas que involucran mosaicos cromosómicos (XXY, XX0), configuraciones y localizaciones particulares
de las gónadas – (la coexistencia de tejido testicular y ovárico, testículos no descendidos) como de los genitales
(por ejemplo, cuando el clítoris es ‘demasiado’ grande de acuerdo a ese mismo standard del que antes hablaba,
cuando el final de la uretra está desplazado de la punta del pene a uno de sus costados o a la base del mismo, o
cuando la vagina está ausente...). Por lo tanto, cuando hablamos de intersexualidade no nos referimos a un
cuerpo en particular, sino a un conjunto muy amplio de corporalidades posibles, cuya variación respecto de la
masculinidad y la femineidad corporalmente ‘típicas’ viene dada por un modo cultural, biomédicamente
específico, de mirar y medir los cuerpos humanos”.
80
Resolução também disponível no site da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior.
http://www.abmes.org.br/_Download/Associados/Legislacao/2003/resolucao/Res_CFM_1664_120503.doc
33
mesmo sexuais de uma pessoa que enquanto não se definiu sexualmente viveu anos sem um
sexo estabelecido”. Afirma também que, apesar dos dois extremos (cirurgia emergencial e
cirurgia tardia, em crianças mais velhas ou adolescentes), deve-se realizar uma investigação
criteriosa, por uma equipe multidisciplinar, para minimizar insatisfações e que o objetivo da
intervenção é “obter uma definição racional sobre o sexo de criação mais recomendável”.
(p.2)
O acompanhamento de alguns casos
81
de crianças (não neonatos) e adolescentes intersexo
realizado pelo Instituto da Criança HCFMUSP
82
e GIEDDS
83
, ilustram a dificuldade
envolvida no processo de tomada de decisão sobre o sexo e o papel social (gênero) a ser
ocupado. Amparados por equipes multidisciplinares (que envolvem médicos, geneticistas,
psicólogos e assistentes sociais) as pessoas intersexo e suas famílias vivenciam momentos de
sofrimento relacionados à opção sexual
84
. Apesar de obedecer a roteiros de diagnóstico e
definição do sexo de criação
85
, o acompanhamento médico e psicológico de uma pessoa
intersexo pode ajudar a encontrar respostas mais adequadas a cada caso individual, podendo a
equipe médica, em alguns casos de diagnóstico ou tratamento tardio, considerar o sexo de
criação para a correção cirúrgica, mesmo que “isso não constitua a melhor opção do ponto de
vista técnico”
86
ou simplesmente fornecer laudo profissional nos casos em que a pessoa opta
por mudança de nome e registro civil apesar da impossibilidade de construção de genitália
compatível com o sexo escolhido.
87
81
Reuniões no Institudo da Criança – HCFMUSP, realizadas em 20 de Junho e 5 de Julho de 2006 e
participação em reunião do GIEDDS, em 9 de Agosto 2006, para apresentação de meu projeto e discussão de
casos. Leitura dos casos relatados no trabalho Do sexo da ciência ao sexo do sujeito: uma questão preliminar ao
tratamento de crianças com anomalias de diferenciação sexual, de Vera Ferrari Rego Barros apresentado ao
Curso de Psicanálise e Saúde Mental, Novembro 2004.
82
Representado pela Diretoria do Serviço de Psiquiatria e Psicologia do Instituto da Criança
83
Grupo interdisciplinar de estudos da determinação e diferenciação do sexo do HC-Unicamp
84
GUERRA, 2002 p.188-190
85
Ibid., p.203-205
86
Ibid., p.223
87
Ibid., p.199
34
Para levarmos adiante uma discussão sobre intersexo e identidade, devemos considerar que
“para poder ser si mesma, também é necessário que a pessoa se sinta em casa no próprio
corpo vivo”
88
e, por isso, a experiência de seu corpo (cirurgicamente redesignado ou não) será
ponto crucial na definição de uma história que será escrita ao longo de uma vida.
Acerca da instrumentalização e da questão corporal, Habermas
89
argumenta que
Mesmo nos casos de conflito, os participantes devem prosseguir na atitude da ação
comunicativa. Devem adotar a perspectiva do participante em primeira pessoa e
considerar o outro como segunda pessoa, com o objetivo de entender-se com ele em vez
de tratá-lo como objeto a partir da perspectiva de observação de uma terceira pessoa e
instrumentalizá-lo para seus próprios objetivos”. [...] “O “si mesmo” do objetivo em si,
que devemos considerar na outra pessoa, manifesta-se especialmente na autoria de uma
conduta de vida, que se orienta segundo exigências próprias” pois “cada um interpreta o
mundo a partir de sua própria perspectiva, age conforme seus próprios motivos, esboça os
próprios projetos, persegue os próprios interesses e intenções e é a fonte de pretensões
autênticas.
88
HABERMAS, J. O futuro da natureza humana, p.80
35
Classificação e incidência
A definição de uma classificação única para os casos de intersexualidade ainda não é possível
visto que existem várias classificações na literatura que consideram diferentes critérios para
agrupamento dos casos. De acordo com Maciel-Guerra & Guerra Jr (2002), “como
conseqüência da enorme complexidade do assunto, todas elas [classificações] podem ser
questionadas em algum de seus aspectos” e por isso, propõem uma classificação didática para
os distúrbios da diferenciação do sexo:
I. Distúrbios da diferenciação gonadal
II. Pseudo-hermafroditismo feminino
III. Pseudo-hermafroditismo masculino
IV. Outros (anomalias dos genitais internos ou externos que não são decorrentes de
aberrações cromossômicas, anomalias gonadais, nem distúrbios hormonais).
Para orientar o leitor, apresentam também os conceitos básicos que sustentam a classificação
proposta.
a) Hermafroditismo
90
(verdadeiro): coexistência de tecido ovariano (com
folículos) e testicular (com túbulos seminíferos, com ou sem espermatozóides)
no mesmo indivíduo, em geral associada à ambigüidade genital interna e
externa em graus variáveis.
89
Ibid., p.77
36
b) Gônada disgenética: constituída somente de tecido fibroso, sem função
hormonal nem capacidade de produção de gametas e sem estruturas que
permitam caracterizá-la como ovário ou como testículo.
c) Testículo disgenético: caracterizado clinicamente por estar associado a
anomalias na diferenciação dos ductos de Wolff, na virilização dos genitais
externos e na regressão dos ductos de Müller, denotando função deficiente das
células de Leydig e de Sertoli durante o período embrionário. Essa deficiência
funcional manifesta-se no período pós-natal e caracteriza-se por baixa
produção de andrógenos, sem acúmulo de precursores, e baixa produção de
hormônio anti-mulleriano. Histologicamente, observam-se anomalias tubulares
e intersticiais em graus variáveis, associadas à fibrose e hialinização.
d) Pseudo-hermafroditismo: ambigüidade genital observada em indivíduos com
um único tipo de tecido gonadal (ovariano ou testicular).
e) Pseudo-hermafroditismo feminino: virilização dos genitais externos de
indivíduos geneticamente do sexo feminino (46, XX), cujas gônadas são
ovários.
f) Pseudo-hermafroditismo masculino: virilização ausente ou deficiente dos
genitais externos - e, eventualmente, também internos - de indivíduos
geneticamente do sexo masculino (46, XY), cujas gônadas são testículos.
Assim como encontramos variação nas classificações de casos de intersexualidade, também
encontramos diferenças nas estatísticas que apresentam a incidência de casos. Para ilustrar
90
Quanto à classificação apresentada, vale ressaltar que, apesar de iniciarmos o capítulo discutindo a
substituição do termo hermafroditismo pelo termo intersexo, ainda o encontramos nos sistemas de nomenclatura
vigentes.
37
esta divergência, Santos
91
desenvolveu uma tabela que propõe uma estatística aproximada
dos casos de intersexualidade, segundo diferentes autores.
Tabela 1 - Estimativas dos casos de intersexualidade
Nome Estatística Fonte
1:13000 Blackless e cols (2000)
1:14 000 Hurtig (1992)
Hiperplasia Adrenal Congênita
92
Clássica
1:5000 Hines e Kaufman (1994)
Síndrome da Insensibilidade Androgênica 1:13000 Blackless e cols (2000)
Parcial 1:130000 Blackless e cols (2000)
Completa 1:13158 Minto e cols (2003)
Pseudo Hermafroditismo Masculino 1:20000 Loureiro (1997)
Disgenesia Gonadal 1:15000 Ahmed, Morrison e Hughes (2004)
Completa 1:150000 Blackless e cols (2000)
Hipospadia
93
1:300 Ahmed, Morrison e Hugues (2004)
Anomalia Genital 1:1500 Dreger (1998)
1:4500 Ahmed, Morrison e Hugues (2004)
1:6900 Kuhnle e Krahl (2002
Agenesia vaginal 1:6000 Blackless e cols (2000)
Agenesia peniana 1:10 a
1:30 milhões
Dittmann (1998)
91
SANTOS, M.M.R., 2006
92
Adrenal é uma glândula que produz cortisol, andrógenos e outras substâncias. A hiperplasia adrenal congênita
é caracterizada pela deficiência de uma enzima necessária para a produção de cortisol. Para compensar essa
deficiência, toda a adrenal é estimulada e acaba por produzir andrógenos em demasia. Em crianças XX , o
excesso de andrógenos resulta, entre outras conseqüências, em uma virilização da genitália externa.
93
Em crianças XY, a hipospádia se caracteriza pela formação atípica do genital externo masculino, no qual o
orifício do canal uretral se localiza na parte ventral ou na base do escroto, ao invés de se localizar na ponta do
pênis.
38
1 ou 2:1000 Blackless e cols (2000)
Fausto-Sterling (2000)
Pessoas que sofrem cirurgia para “normalizar” a
aparência genital
1:2000 Hester (2004)
Nota: os valores representam uma estatística aproximada por número de nascimento
Com relação à população brasileira, Santos (2006) ressalta que não há estatísticas sobre a
incidência desses casos por nascimento. Entretanto, formulou uma tabela de ocorrências de
casos de intersexualidade no contexto nacional entre os anos de 2000 e 2004 tomando por
base o banco de dados DATASUS, do Ministério da Saúde, que associa o CID-10 aos estados
brasileiros, a partir de informações obtidas nos registros da guia de Autorização de Internação
Hospitalar, encaminhada pelos hospitais para o banco de dados. (Tabela 2)
Tabela 2 - Ocorrências dos casos de intersexualidade no Brasil
Diagnósticos Ocorrências
2000 2001 2002 2003 2004
Pseudo-hermafroditismo não especificado
2 4 46 20 14
Pseudo-hermafroditismo feminino 7 7 16 9 15
PHF c/ transtorno adrenocortical 53 126 65 67 78
Pseudo-hermafroditismo masculino 13 16 5 - -
Pseudo-hermafroditismo masculino – síndrome de
resistência a andrógenos
7714699 93
Hermafroditismo verdadeiro 9 17 17 11 10
Sexo indeterminado e pseudo-hermafroditismo 58 88 181 118 89
Sexo indeterminado não especificado 30 48 97 78 51
Hipospádia
9258 10110 13593 12708 11933
Malformação congênita dos órgãos genitais
femininos
683 752 8455 6958 6388
Agenesia vaginal 27 33 244 178 189
Malformação congênita dos órgãos genitais 879 930 2656 2730 2688
39
masculinos
Pessoas que sofrem cirurgia para “normalizar” a
aparência genital
8736 9806 11046 10404 13538
Ao analisar a tabela, Santos (2006) ressalta que não há uniformidade nos critérios utilizados
pelos estados na classificação atribuída aos casos atendidos na rede pública (não consistência
na especificação do quadro, uso de termos não evidenciados em outras especificações) e na
estimativa dos casos e relação com o tratamento cirúrgico realizado. Tal inconsistência na
alimentação do banco de dados impossibilita traçar um panorama dos quadros de
intersexualidade e geração de informação fidedigna para os estudos sobre o tema no país.
Quanto à incidência de casos, conclui Santos, “igualmente aos dados apresentados na
literatura internacional, os casos de intersexualidade no Brasil são escassos, com
predominância dos casos de Hiperplasia Adrenal Congênita (PHF) e Síndrome de Resistência
a Andrógenos (PHM)”. (idem, 12)
Apesar da conclusão a que chegou Santos (2006), ainda assim é válida e pertinente a
discussão proposta na presente dissertação devido ao impacto social e o peso ético e político
do tratamento dado no sistema de saúde aos casos de ambigüidade genital.
Para atender aos objetivos desta dissertação, me permitirei basear a discussão nos conceitos
apresentados, sem maior aprofundamento técnico. Por tratar-se de uma dissertação em
Psicologia Social, o foco do estudo está voltado para o paciente intersexo e a forma como se
relaciona com seu corpo. Informações mais detalhadas sobre os distúrbios do
desenvolvimento do sexo podem ser encontradas em Maciel-Guerra & Guerra, Jr (2002).
40
Intersexo e o afã da normatização
“A simples mudança de aparências não significa à
rigor transformação”.
CIAMPA
O corpo e o sexo têm em nossa sociedade uma importante função de marcar indivíduos e
demarcar espaços sociais. O corpo traz em si inscrições que, ao serem interpretadas, ajudam a
escrever uma história pessoal. Homens e mulheres têm papéis delimitados em nossa
sociedade, portanto, dentro dos espaços destinados, há uma expectativa sobre o desempenho e
reprodução destes papéis. A ocorrência de variação sexual física é um fato; entretanto, a
forma como respondemos a essa variação é socialmente construída. O que produz as idéias
sobre o gênero são construções sociais que não podem ser entendidas como conseqüência do
sexo biológico. Porém, não podemos negar a forte ligação que estabelecemos entre esta
ordem social e o corpo humano. Neste contexto social, levantar qualquer questionamento
sobre “o sexo ao qual se pertence, ou semear tal dúvida no seio da sociedade, é um dos
conflitos mais radicais a que se pode expor uma pessoa”
94
, pois conduz a discussões sobre
sexo e gênero cujas teorias não aplacarão o sofrimento de uma família ao tentar responder
94
GÓMEZ, Z.P., Corpo, pessoa e ordem social, Corpo & Cultura, p.88
41
qual é o espaço social de uma pessoa com ambigüidade genital. Diferentemente das demais
formas físicas ou padrões corporais, a ambigüidade genital é entendida como uma deficiência
física que estigmatiza as pessoas que nascem sob essa condição ao abrir uma ferida na
sexualidade de toda uma sociedade, trazendo à tona uma longa discussão sobre sexo, gênero e
papel sexual, historicamente reapresentada na figura da pessoa intersexo.
No prefácio do livro Herculine Barbin
95
, Foucault menciona a insistência de sociedades
ocidentais em afirmar que precisamos de um sexo verdadeiro. O afã de normatização abriu
espaço para outras questões sobre a identidade da pessoa com diagnóstico de intersexo: pode-
se permitir a existência de indivíduos que não cabem na definição de feminino ou masculino?
Se a identidade natural
96
é dada pela determinação biológica, o ser não claramente definido
como homem ou mulher, e sim uma pessoa com diagnóstico de ambigüidade genital, gera o
primeiro sofrimento social com relação à identidade. Conforme discutido anteriormente,
existe uma expectativa de papéis sociais a serem cumpridos e a dificuldade em se classificar
uma pessoa dentro dos papéis masculino ou feminino gera uma grande angústia e rejeição por
parte da sociedade. Essa situação rompe com um dos modelos sociais mais arraigados em
nossa cultura: a regra dos dois sexos. Como deverá se apresentar socialmente uma pessoa com
diagnóstico de intersexo? Com que nome registrar a criança? Que lugar deverá ser ocupado na
família: o de filho ou filha? Estas perguntas desafiam as famílias que devem socializar uma
pessoa cuja existência pede a criação de um novo espaço social, mesmo que transitoriamente,
entre o feminino e o masculino. O termo transitoriamente é utilizado pois a ocorrência de
casos de intersexo provocou na sociedade e no meio médico a necessidade de se buscar
95
FOUCAULT, M.,1980
96
HABERMAS, J. Para a reconstrução do materialismo histórico
42
medidas corretivas para um corpo visto como deformado. Entende-se que o corpo deve ser
corrigido para que a pessoa ocupe claramente um lugar, seja ele feminino ou masculino.
Normatização do corpo e socialização
A discussão sobre intervenção médica em que há risco de vida não é tema de nossa discussão.
A questão central reside na discussão acerca da necessidade de intervenção cirúrgica precoce
para normalizar os genitais quando não há risco de vida. Existe um consenso em que apenas
em casos de pseudo-hermafroditismo feminino causado por “hiperplasia adrenal congênita a
melhor intervenção é a precoce, pois estudos confirmam tratar-se de uma pessoa do sexo
feminino. Para os demais casos diagnósticos deve-se calcar a decisão na base da cidadania e
sociedade” (informação verbal).
97
Parens
98
discute a tensão entre deixar as crianças em seus corpos como são e moldá-las
através de cirurgias concluindo que, “baseado no respeito pelas pessoas, indivíduos (se
somente crianças, somente pais, ou crianças e pais juntos) devem ser ajudados a tomar
decisões verdadeira e completamente informados. (...) O ideal de uma tomada de decisão
verdadeiramente informada é tão fácil de invocar como é difícil de atingir” e se preocupa com
97
Anotações de mesa redonda realizada dia 08/09/2006 no II Congresso Brasileiro Psicologia: Ciência e
Profissão, São Paulo proferida por Gil Guerra Jr, Livre Docente do Departamento de Pediatria e
Endocrinologia Pediátrica, UNICAMP.
98
PARENS, E., Surgically shaping children : technology, ethics, and the pursuit of normality, p. xv
43
a forma como a tecnologia está sendo utilizada para transformar identidades com o objetivo
de normalizar uma aparência física para garantir uma melhor adaptação psicossocial.
Diferente da visão de Money acerca da força da socialização sobre a biologia, a busca de
medidas corretivas poderia ser encarada como uma confirmação da primazia da biologia nos
casos de ambigüidade genital. Seria a confirmação da crença em um destino sexual pré
definido, da identidade como destino
99
, no qual a verdadeira morfologia estaria encoberta pela
deformidade do corpo. Entretanto, o que se vê na prática social é que, diferentemente do que
acreditariam os partidários da noção de biologia como destino, a solução cirúrgica, adotada
em muitos casos de intersexo, não resolve ou aplaca o sofrimento da pessoa com diagnóstico
de ambigüidade genital posto que “a construção da identidade sexual ocorre no campo das
relações sociais e no tempo”
100
. A cirurgia de redesignação sexual pode ser o início de um
processo, na medida em que atribui um sexo claramente definido, mas “não há nenhuma
forma de garantir a priori que uma decisão tomada com relação à definição do sexo da criança
será a mais adequada, sem incluir variáveis que, só ao longo do tempo, confirmarão a posição
sexual da criança, permitindo que ela se viabilize satisfatoriamente”
101
. Independentemente da
decisão tomada pelos pais e médicos sobre uma intervenção cirúrgica, a pessoa intersexo, em
algum momento de sua vida, irá se posicionar sobre sua sexualidade e identidade e, nem
sempre, a opção pessoal é consonante com a designação já realizada ou a ser realizada
cirúrgicamente.
102
99
WEEKS, J. O corpo e a sexualidade, 1990
100
FERRARI, V.P.M., Anomalias de Diferenciação Sexual – aspectos psicológicos, Endocrinologia pediátrica:
aspectos físicos e metabólicos do recém-nascido ao adolescente, 2002, p.469.
101
Ibid., p.470
102
GUERRA, G, MACIEL-GUERRA, A . T., Menino ou Menina? Os distúrbios da diferenciação do sexo,
p.198:199
44
Capítulo 3
Identidade e autonomia
No contexto de práticas sociais, a pessoa intersexo é tida como um desviante às normas da
sexualidade, do “deve ser” definido pelo discurso biomédico e, por isso, vulnerável à
estigmatização pois foge à definição de normalidade, ou seja, “de uma plena correspondência
entre o corpo e a identidade de gênero socialmente aceitável”.
103
Entretanto, se nos apoiarmos
nas teorias construcionistas, podemos lançar sobre essas pessoas um novo olhar: o olhar do
“pode ser” que, no campo dos Direitos Humanos, negociaria a idéia de cidadania em uma
democracia secular compartilhada por pessoas de orientações diferentes; em outras palavras, o
olhar que garantiria às pessoas intersexo o direito de “tomar suas próprias decisões em
assuntos que afetam seus corpos e sua saúde”,
104
decidir se desejam realizar alguma
intervenção cirúrgica e pensar criticamente sobre o espaço social que desejam ocupar. No
campo do “pode ser”, seria aberta a negociação para projetos de vida que vão além da
normatividade vigente. A pessoa assumiria o papel de porta-voz de sua história, exerceria
autonomia sobre seu próprio corpo e o significado deste em sua história.
103
WEEKS, J., O corpo e a sexualidade, 1990
104
PETCHESKY, R., Direitos Sexuais : um novo conceito na prática internacional, Sexualidades pelo avesso –
direitos, identidades e poder, p. 29
45
Ciampa propõe que uma forma de escapar à mesmice seria “subverter radicalmente sua vida”,
“chocar-se com interesses estabelecidos, com situações convenientes”
105
que impedem as
pessoas de se transformar. Dentro da discussão do intersexo, subverter a ordem seria não
ajustar o corpo para manter a ordem ou fazê-lo de acordo com interesses pessoais que
considerariam como e quando a cirurgia seria conduzida.
Definição de uma identidade pós-convencional
Nem todas as intervenções em pacientes intersexo acontecem conforme os exemplos citados
nos estudos do Instituto da Criança e do GIEDDS. Há muitos relatos de intervenção cirúrgica
precoce em pacientes recém-nascidos. Relatos apresentados em Preves (2003), Parens (2006)
e Kessler (2002) chamam a atenção para uma frustração pela decisão heterônoma, na qual
pesaram os supostos interesses da sociedade sobre a morfologia do corpo e a expectativa de
uma prática social.
No caso de pessoas intersexo, mais especificamente crianças, fica evidente a dependência e
vulnerabilidade
106
do indivíduo em relação aos outros, sejam eles pais ou médicos. A grande
guinada para garantir a integridade física e emocional da pessoa intersexo deve ser dada então
na rede de relações sociais, pois, “apenas nessa rede de relações de reconhecimento
legitimamente reguladas é que as pessoas podem desenvolver e manter uma identidade
pessoal, juntamente com sua integridade física”.
107
105
CIAMPA, A.C., A estória do Severino e a história da Severina, p.166
106
O conceito de vulnerabilidade pode ser resumido como o “movimento de considerar a chance de exposição de
pessoas ao adoecimento como a resultante de um conjunto de aspectos não apenas individuais, mas também
coletivos, contextuais”
107
HABERMAS, J., O futuro da natureza humana, p.48
46
À pessoa intersexo deveria caber a possibilidade de uma escolha autônoma. Entretanto, o
significado de autonomia é algo complexo para o movimento intersexo, uma vez que escolher
seu próprio corpo significa transitar entre normas que foram definidas antes de suas escolhas
pessoais ou são articuladas por outros grupos minoritários. Na perspectiva de Butler, a
“agência individual é dependente da crítica social e da transformação social. (...) A pessoa é
dependente deste ‘exterior’ para reivindicar o que é seu. O self deve, desta forma, ser
despossuído na sociabilidade para tomar posse de si”.
108
Como expemplo de mobilização em busca de manifestar oposição à prática da designação
sexual não consentida, pessoas intersexo organizaram-se, nos Estados Unidos, sob uma
entidade conhecida como Intersex of North America (ISNA). Segundo Butler (2004), “o
interesse de movimentos intersex e transgêneros é assegurar o direito a tecnologias que
facilitem a redesignação sexual”
109
, salientando que “se tecnologia é um recurso ao qual as
pessoas querem acesso, é também uma imposição da qual outros buscam libertar-se.”
No exemplo de mobilização do ISNA há uma clara intenção em lutar por direitos políticos e
sociais das pessoas intersexo e as pessoas que, futuramente, poderão nascer sob esta condição.
Podemos discutir a identidade pós convencional,
110
e a teoria de construção de identidades
coletivas,
111
posto que o ISNA atua como “trincheiras de resistência e sobrevivência”,
112
gerada “por atores sociais que estão em posições desvalorizadas ou discriminadas” e dispostos
a “redefinir sua posição na sociedade”.
113
Ao se organizar, pessoas com diagnóstico de
intersexo buscam ultrapassar o estigma de uma carga biológica interpretada como
108
BUTLER, J., Undoing Gender, p.7 “ One is dependent on this ‘outside’ to lay claim to what is one’s own. The
self must, in this way, be dispossessed in sociality in order to take possession of itself”.
109
Ibid., p.11
110
Pós-convencional no sentido de definir os valores e os princípios morais que têm validade e aplicação
independentemente da autoridade dos grupos ou das pessoas que os sustentam e do fato de que o indivíduo se
identifique ou não com tais grupos. HABERMAS, J., Para a reconstrução do materialismo histórico
111
CASTELLS, M. Coleção : A era da informação, vol.2, O poder da identidade
112
Ibid., p.24
113
Ibid., p.II
47
problemática e estabelecer uma relação com o meio social que lhes seja mais favorável.
Buscam definir um novo espaço social e conquistar autonomia sobre suas vidas. Querem sair
do confinamento imposto pela vergonha e isolamento ao qual são submetidas e poder decidir
quem são. Questionam a regulação social que apóia uma intervenção cirúrgica precoce em
casos em que a saúde não está em risco. E, citando Kessler,
114
perguntam “por que a solução
para os genitais variantes reside em facas e não em palavras?”
Nas palavras de Ciampa
115
,
só a ampla discussão e reflexão sobre o que merece ser vivido nos levará a formular
projetos de identidade, cujos conteúdos não estejam prévia e autoritariamente
definidos. Identidades que se definam pela aprendizagem de novos valores, novas
normas, produzidas no próprio processo em que a identidade está sendo produzida,
como mesmidade de aprender (pensar) e ser (agir). Identidades que tenham o suporte
de comunidades em que todos tenham as mesmas oportunidades de – cada indivíduo –
afirmar seu interesse para uma interpretação universalista, com comunicações
fluidificadas, que outra coisa não são senão a velha democracia (que pensamos
conhecer, embora de fato quase sempre só conheçamos contrafações dela).
O conteúdo que surgirá dessa transformação deverá estar subordinado ao interesse da razão e
baseada em direitos que, no etos da democracia, é fundamental ao ser humano: a autonomia
da escolha.
114
KESSLER, S.J., Lessons from the intersexed, p.105
48
Capítulo 4
Metodologia
“As pessoas comuns universalizam, através de suas
vidas e de suas ações, a época histórica em que
vivem. Elas são exemplos singulares da
‘universalidade da história humana’”.
SARTRE
A pergunta central deste estudo é como, no decorrer de sua vida, uma pessoa com
ambigüidade genital que mudou o sentido de sua designação sexual – tendo sido
submetida ou não à cirurgia de redesignação sexual - construiu sua identidade?
A opção por estudar pessoas com ambigüidade sexual deveu-se ao fato de termos nessa
casuística a relação entre um corpo visto como defeituoso e a ordem social regulando o
processo de normatização do corpo.
115
CIAMPA, A.C. , A estória do Severino e a história da Severina, p.241
49
Para responder à questão da pesquisa - e considerando a lacuna em estudos nacionais
referentes à subjetividade no estudo da intersexualidade - utilizarei como metodologia o
estudo de narrativa de história de vida de sujeito diagnosticado com ambigüidade genital.
O estudo de história de vida de uma pessoa com ambigüidade genital permitirá a compreensão
do processo de (re)construção do eu de indivíduos que se confrontaram com situações que
podem levar à revisão de sua individualidade, identidade social e consciência de si mesmo.
Neste contexto, situo a importância da pesquisa qualitativa utilizando-se o método da história
de vida tendo como alvo a “significação que tal fenômeno (em nosso estudo, a ambigüidade
genital) ganha para os (sujeitos) que o vivenciam”.
116
A escolha de histórias de vida como instrumento principal, ocorreu devido ao interesse em:
compreender o sentido que o sujeito atribui à ambigüidade genital e à relação
estabelecida com seu corpo;
descrever as mudanças mais significativas ocorridas ao longo de sua história de vida
tendo como marco principal a mudança de sentido de sua designação sexual;
compreender o significado da cirurgia de redesignação sexual sob a ótica da pessoa a
ela (cirurgia) submetida.
A decisão pela utilização da narrativa de história de vida como material de pesquisa toma
como base o método utilizado por Ciampa
117
na pesquisa de identidade, o qual assume que o
116
TURATO, E. R., Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos
de pesquisa. Rev Saúde Pública 2005; 39(3):507-14
117
CIAMPA. A .C., A estória de Severino e a história de Severina
50
“singular materializa o universal na unidade do particular”
118
e toma como ponto de partida as
perguntas ‘quem sou eu?’ e ‘quem quero ser?’.
Conforme definido por Paulilo, a história de vida pode ser considerada instrumento
privilegiado para análise e interpretação pois incorpora experiências subjetivas mescladas a
contextos sociais, fornecendo “base consistente para o entendimento do componente histórico
dos fenômenos individuais, assim como para a compreensão do componente individual dos
fenômenos históricos”.
119
Para atender ao requisito das “particularidades que singularizam o indivíduo” no caminho de
formação de sua identidade através do “emaranhado das relações variadas tecidas pela sua
coletividade”,
120
foi convidada para a pesquisa uma pessoa diagnosticada com ambigüidade
genital, dentro dos padrões que lhe permitiriam passar pela cirurgia de correção
(redesignação) sexual, acompanhada pelo Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de
São Paulo – um dos centros de referência no diagnóstico, acompanhamento e tratamento de
casos de ambigüidade genital.
Para responder a nosso problema de pesquisa, escolhemos Bahia, uma pessoa de 18 anos
diagnosticada como pseudo hermafrodita masculino devido a deficiência da enzima 5 α
redutase.
121
Ou seja, uma pessoa com sexo genético masculino que apresentou ambigüidade
118
Ibid. , p.213
119
PAULILO, M. A. S., “A pesquisa qualitativa e a história de vida”. Serviço Social em Revista, v. 2, n. 1
Jul/Dez 1999
120
QUEIROZ, M.I. (1988) Relatos orais: do “indizível” ao “dizível”. In: VON SIMSON (org.) Experimentos
com Histórias de Vida: Itália-Brasil. São Paulo: Vértice.
121
A enzima 5 α redutase é responsável, no processo de diferenciação sexual masculina, pela conversão da
testosterona em diidrotestosterona responsável por virilizar os rudimentos genitais externos entre a 9
a
e a 12
a
semana de gestação.
51
da genitália externa ao nascimento, foi socializada como menina e virilizou na puberdade,
sem, no entanto, ter realizado correção cirúrgica até o momento.
A escolha do participante da pesquisa deu-se após reuniões no Instituto da Criança
HCFMUSP sobre a ambigüidade genital e o significado assumido na vida dos pacientes
acompanhados pela instituição. Bahia pareceu-nos o participante ideal pois chegou ao ICr há
6 anos em busca de cirurgia corretiva para “corrigir o genital”. Entretanto, a ineficácia do
tratamento hormonal em bloquear as mudanças corporais (masculinização) mostrou-se, para a
equipe médica, um empecilho à cirurgia pois Bahiana (como era chamada até então)
continuaria “desprovida dos outros atributos femininos”. Durante este processo, Bahia inicia
um questionamento sobre “quais seriam os resultados de uma cirurgia para o lado masculino e
para o feminino”.
122
Bahia então resolve não realizar a cirurgia e, paulatinamente, assume-se
como homem. Muda o sentido de sua sexualidade.
Devido às características brevemente apresentadas, o escolhemos para realizar um relato
autobiográfico. A narrativa autobiográfica da participante da pesquisa será analisada à luz do
referencial teórico apresentado ao longo desta dissertação. Dessa maneira, a narrativa de
história de vida será analisada na tentativa de apreender se o sentido que atribuiu à sua
redesignação sexual, possibilitou/possibilita uma metamorfose com sentido emancipatório,
123
e ainda, se essa pessoa pode expressar uma identidade pós-convencional.
122
Leitura dos casos relatados no trabalho Do sexo da ciência ao sexo do sujeito: uma questão preliminar ao
tratamento de crianças com anomalias de diferenciação sexuaI, de Vera Ferrari Rego Barros, apresentado ao
Curso de Psicanálise e Saúde Mental, Novembro 2004.
123
A pessoa segue a possibilidade de progressiva humanização, apesar de todas as possíveis forças contrárias,
construindo-se através das relações sociais. CIAMPA. A.C., A estória do Severino e a história da Severina
52
A entrevista foi gravada e transcrita com o consentimento do entrevistado, tendo sido
posteriormente analisada de acordo com os eixos temáticos da investigação: a socialização e a
individuação, a relação com seu corpo, o significado da redesignação sexual e a Identidade.
Os aspectos éticos de sigilo e privacidade, de acordo com a Resolução 196/96 cujo conteúdo
essencialmente de natureza Bioética está centrado na proteção do sujeito de pesquisa, serão
enfatizados na relação com o entrevistado e garantidos na transcrição e análise da entrevista,
evitando a possibilidade de perda do anonimato do participante e pessoas citadas por ele
durante a entrevista.
Os benefícios esperados pela realização da presente pesquisa centram-se na organização e
sistematização de informações disponíveis até o momento em prol das pessoas diagnosticadas
com ambiguidade genital. Nosso intuito ao dar voz a uma pessoa com ambigüidade genital é o
de que, a partir de seu relato, os profissionais envolvidos no processo de diagnóstico e
tratamento considerem não apenas as regras sociais vigentes mas, principalmente, a vontade
daquele que se encontra em um corpo diagnosticado como ambíguo.
53
Capítulo 5
O processo de entrevista
Bahia
124
um rapaz de 18 anos, estava em tratamento no Instituto da Criança do Hospital das
Clínicas da FMUSP desde seus 12 anos. Entretanto, no momento em que discutia a troca de
nome, mudança de registro de nascimento e realização da cirurgia corretiva, Bahia
interrompeu seu vínculo com o Instituto da Criança e não retornou mais à instituição para
iniciar os processos formais necessários para a mudança de registro. Tentamos, por mais de
um mês, contactá-lo através de recados telefônicos e telegrama marcando consulta com a
Diretora do Serviço de Psicologia e Psiquiatria do ICr, mas Bahia não compareceu nem
entrou em contato. Cinco meses após afastamento da instituição, já no final do mês de julho
124
Bahia é um pseudônimo escolhido pelo participante para atender ao compromisso ético de anonimato. Apesar
de apresentar-se como homem, Bahia, foi uma pessoa diagnosticada como pseudo hermafrodita masculino
devido a deficiência da enzima 5 α redutase. Ou seja, uma pessoa com sexo genético masculino que apresentou
ambigüidade da genitália externa ao nascimento, foi registrada e socializada como menina e virilizou na
puberdade, sem, no entanto, ter realizado correção cirúrgica até o momento.
54
de 2007, Bahia retorna a ligação da Psicologia, reagenda consulta e aceita conversar comigo
para melhor entender a pesquisa para a qual desejo convidá-lo a participar.
O primeiro encontro
Ainda lembro da primeira vez que o vi. Era dia 5 de Julho de 2006, eu estava em reunião no
Serviço de Psicologia e Psiquiatria quando Bahia, que estava no hospital, entrou na sala para
marcar uma consulta. Alto, forte, alegre e comunicativo, assim era o rapaz sobre quem
conversávamos e que agora se apresentava diante de mim.
O segundo encontro
Nosso segundo contato aconteceu no dia 26 de Julho de 2007. Um ano depois de tê-lo visto
troquei minhas primeiras palavras com Bahia. Neste dia, ele compareceu ao hospital em
resposta ao chamado do Serviço de Psicologia e Psiquiatria. Enquanto outro paciente era
atendido, pediram-me para aguardá-lo na frente da sala até sua chegada. Assim que Bahia
chegou, reconheci-o, apresentei-me e pedi que aguardássemos o final da consulta para que,
juntos, entrássemos no consultório. Diante de mim estava um rapaz alto e comunicativo, mas
já não tão forte e alegre como lembrava. Espontânea e seguramente, Bahia começou a falar-
me sobre seu atraso para a consulta, seu afastamento da instituição, da desilusão amorosa que
agora enfrentava e sobre o trabalho de pedreiro que realizava. Contou-me também sobre a
dificuldade em conseguir uma boa colocação profissional devido a seu “problema” (sic) e sua
resolução de realizar a cirurgia reparadora, mudar seu registro de nascimento para começar
uma nova fase em sua vida.
Durante este encontro, que não teve caráter de entrevista, Bahia demonstrou grande confiança
e dividiu comigo detalhes do término de seu namoro, da traição da ex-namorada e sua
55
suspeita de gravidez e, principalmente, sobre o apoio que lhe ofereceu para assumir a criança
caso ela realmente estivesse grávida. Bahia disse-me saber que o filho não seria dele, mas que
por amor e respeito à namorada seria capaz de assumir a criança, chamando a atenção,
entretanto, para “sua condição” pois tinha clareza que não poderia assumir um filho
oficialmente até que sua cirurgia fosse realizada e sua documentação alterada.
É nesse momento de crise que Bahia decide que deve concluir seu tratamento. Lamenta não
ter a companhia da namorada (que agora é ex), mas mostra-se seguro de que este é o melhor
momento para “definir sua situação”.
Assim que terminou a consulta, entramos na sala e iniciamos formalmente nossa relação de
pesquisadora e participante de pesquisa. Expliquei meu estudo, o contato mantido com o
Serviço de Psicologia e Psiquiatria e o apoio oferecido pelo ICr para a realização da pesquisa.
Bahia mostrou-se entusiasmado em poder contribuir com minha pesquisa pois frisei muito a
importância da história de vida e o quanto podemos agregar valor ao estudo do Distúrbio de
Diferenciação Sexual na medida em que adicionamos o discurso do próprio paciente dando-
lhe status tão importante quanto DNA, gônadas, etc.
Bahia aproveitou o contato para atualizar brevemente a Diretora do Serviço de Psicologia e
Psiquiatria sobre suas atividades, o afastamento do time de futebol, seu desagrado com o
trabalho de pedreiro (que tem exigido muito fisicamente, o que acarretou em seu
emagrecimento) e seu desejo de conseguir uma colocação profissional melhor.
Devido ao fato de estar trabalhando, Bahia explicitou certa restrição de horários tendo
disponibilidade de apenas 1 dia na semana. Agendamos então a primeira entrevista para 2 de
56
agosto, no próprio Instituto da Criança, para conciliar os interesses da pesquisadora, do
participante e de seu acompanhamento terapêutico na instituição.
O terceiro encontro
Estava marcado para o dia 2 de agosto, mas Bahia não compareceu. Entrei em contato, através
do telefone de recado que ele deixou, e agendei novo encontro para o dia 9 de agosto.
No dia 9, Bahia compareceu a nosso encontro. Chegou atrasado, mas com disposição para
conversarmos. Entretanto, devido ao atraso e sua necessidade em conversar com os médicos
após a entrevista, tivemos pouco mais de 1 hora para a primeira entrevista. Neste dia
discutimos o pseudônimo a ser utilizado.
125
Agendamos a entrevista seguinte para o dia 16 de
agosto e, a seu pedido, mantivemos o horário das 9 horas, pois ele queria chegar cedo para
poder falar com o médico endocrinologista.
O quarto encontro
Aguardava Bahia desde as 9 horas do dia 16 de agosto, mas ele não compareceu. Às 10:30
horas saí do Icr, após contactar uma parente de Bahia e deixar recado agendando novo
encontro para a semana seguinte. Em um segundo momento, liguei para confirmar se Bahia
havia recebido meu recado e a pessoa que me atendeu disse que Bahia confirmou a presença.
Compareci ao ICr no dia 23 de agosto, no horário marcado, mas Bahia não foi. Deixei recado
na casa de outro parente, na esperança de receber retorno e remarcar a entrevista. No mesmo
dia, Bahia me ligou desculpando-se pelas ausências devidas a seu trabalho. Ele disse que
estava “muito enrolado” e “preocupado” por não comparecer a nossos encontros, pois 5a feira
não tem sido um bom dia”. Expliquei que o agendamento de 5a feira era para atender a todos
os interesses dele na instituição e minha pesquisa, mas que eu tinha disponibilidade para outro
57
dia da semana/horário. Pediu-me para remarcar a entrevista para o dia 28 de agosto, uma terça
feira. Entretanto, ele também não compareceu ao novo encontro. Falamos por telefone e
Bahia disse que estava precisando de dinheiro e que aceitando todos os chamados para
trabalhar. Assim, quando o chamam para trabalhar no dia seguinte, ele se apresenta e fica
impedido de comparecer aos encontros agendados. Perguntei à responsável pelo comitê de
Ética do ICr se poderia ir ao encontro dele. Ante à afirmativa, propus ao Bahia ir a seu
encontro e ele me forneceu seu endereço. Combinamos que eu entraria novamente em contato
para confirmar o agendamento assim que ele tivesse uma folga, mesmo que parcial, para que
eu pudesse realizar a entrevista, comprometendo o mínimo possível de sua agenda.
No dia 31 de agosto, fui à residência de Bahia. Quando cheguei ele não estava, pois havia
acompanhado um primo ao centro da cidade. Fiquei então na companhia de seus irmãos já
que ele não estava e sua mãe estava trabalhando. A espera durou cerca de uma hora e meia e
foi preenchida por conversa com as crianças e uma descontraída apresentação de fotos de
eventos familiares festivos.
Quando Bahia chegou, eu estava assistindo DVD com as crianças. Ele pediu que elas se
retirassem da sala para que iniciássemos a entrevista. Apesar de cansado, percebi um Bahia
mais à vontade para contar sua história. Neste encontro ele forneceu mais elementos sobre sua
vida em família, apesar de, por vezes, perder a espontaneidade quando as crianças apareciam
na sala. Ao perceber sua mudança de comportamento, comentei com Bahia sua evidente
retração e pedi que seus irmãos evitassem circular pela casa. Bahia concordou com minha
observação e pediu que as crianças brincassem em outro lugar.
125
Ele me apresentou duas opções e, para garantir o anonimato, optei por utilizar o nome Bahia pois o primeiro
nome sugerido era o de seu pai e a utilização do nome do pai poderia descaracterizar o compromisso ético da
preservação da identidade do participante da pesquisa.
58
Já terminávamos a entrevista quando sua mãe chegou. Novamente, Bahia mudou seu
comportamento demonstrando certo constrangimento. Como ele tinha outro compromisso na
parte da tarde, despedi-me de sua família e fui embora em sua compania. No trajeto até o
ponto de ônibus ele me apresentou um pouco de seu bairro e falou da família que mora
próximo.
Capítulo 6
Análise da Entrevista
Bahia conta sua história de auto-descoberta e luta contra o preconceito em meio aos conflitos
e dificuldades familiares que vivenciou durante sua infância. Primeiro de seis filhos, Bahia
nasceu em uma família nordestina, migrante e pobre. Conta que, assim como ele, 3 de seus
irmãos tiveram problemas físicos (polidactilia, hérnia escrotal e ausência de um rim) mas
nenhum que deixasse marcas tão profundas como sua ambigüidade genital.
Criado como menina, Bahia lembra que sua mãe sempre examinou e estranhou seu corpo mas
ele mesmo só percebeu seu corpo como sendo diferente dos outros aos 7 anos.
“Quando minha mãe colocou eu e minha irmã de lado ela notou certa
diferença. (...) Quando menor ela já tinha me colocado (ao lado de minha
59
irmã) mas eu só comecei a perceber que tinha alguma coisa de diferente aos
7 anos.”
Bahia lembra de uma circunstância em que sua irmã percebeu a diferença entre seus corpos.
“Uma vez tomamos banho nós três juntos, eu, Janine e Érica. Eu tinha uns 7
e a Janine uns 6. Aí a gente começou a brincar no chuveiro e ela começou a
zoar já no chuveiro. Ela falou ‘não tem, não é igual a minha não, né mãe?’
Aí minha mãe falou ‘sai do banheiro, Bahiana’. Aí eu peguei e saí do
banheiro. E quando ela saiu, eu bati nela. Aí, meu pai bateu nos dois e
minha mãe nunca mais deixou eu tomar banho com elas. Desde os 7 anos
que eu não tomo banho com ninguém. E meus pais só disseram para as
minhas irmãs que ‘a Bahiana é diferente.’”
E era uma diferença, uma marca que, segundo Bahia, provocava escárnio e exigia atenção.
Ele não era a menina que seus pais queriam que fosse. Sua genitália era a marca da diferença.
Ele experimentou, desde pequeno, a comparação de corpos infantis femininos e percebeu que
o seu corpo não se encaixava no modelo de corpo feminino que todos esperavam. Começou a
sentir raiva do olhar do outro que o excluía, ele não era igual as outras meninas, e se
ressentia de ser isolado para ser preservado. Era mais fácil separá-lo para que a diferença de
seu corpo não ficasse visível.
“Ela (a mãe) viu que tinha alguma coisa de diferente e ela tentou correr atrás
quando criança, mas ela pensou que era só uma, algum desvio, alguma coisa
assim...”
Primeiro veio o olhar do outro, depois Bahia começou a olhar para o outro e compará-lo com
seu próprio corpo e a perceber a diferença entre seu corpo e o da irmã. A partir da interação
com o outro se definiu a forma como se relacionava com seu corpo, o significado a ele
atribuído. Entretanto, não tinha nenhuma resposta concreta sobre essa diferença e o que
60
acontecia consigo. A expectativa da família era que a má formação genital fosse apenas
superficial e que pudesse ser facilmente corrigida, consertando o corpo daquela menina.
Bahia estava aprendendo que seu corpo estava errado e que por isso precisava ser consertado.
“Todo mundo mesmo da minha família fala ‘tem que levar logo cedo no
médico. Tem que levar logo cedo no médico porque, se deixar para quando
ele crescer, vai ficar difícil.’”
Foram momentos difíceis que viveu desde o início de sua infância e que motivaram a vinda
da família para São Paulo
“Especificamente, eu vim para São Paulo para resolver esse meu problema.
Até que meu pai veio primeiro, aí na Vila Mariana ele já tinha conseguido
uma vaga no hospital para mim, no CEPAG.”
Com a mudança e a nova vida, veio a rotina de médicos. Mas essa rotina foi logo
interrompida, involuntariamente, por seu pai. E a mãe, que desconhecia os trâmites do
hospital, não deu continuidade ao tratamento.
“Porque aí eu já comecei a vir aqui no hospital da Vila Mariana, que já era
para fazer a cirurgia, só que meu pai não apareceu no dia. (...) Como meu
pai deu entrada, ele me levou a primeira vez ; aí minha mãe falou assim: ‘a
gente vai esperar você lá’, só que meu pai não apareceu.”
Sem resposta para seu problema e com a interrupção do tratamento médico, Bahia, com 7
anos, ingressa na alfabetização e a “diferença” fica mais evidente
“Eu me sentia mal porque com 7 anos já estava estudando, ia para o pré,
todo mundo via a diferença assim, da minha pessoa para as outras crianças.
Era tudo diferente porque ficava ao lado das meninas brincando daquele
jeito e eu não gostava de brincar do jeito que as meninas brincavam, fazer
bonequinha.”
61
Bahia fala de uma diferença que não é apenas genital. Uma diferença que reside no fato de
não se sentir igual às outras meninas e que provocava uma dificuldade em sair de casa e
enfrentar os colegas. Bahia precisava de alguém que lhe estendesse a mão e oferecesse apoio
e proteção. Neste momento, contou com ajuda de uma pessoa importante em sua vida, a
professora, um outro significativo que lhe deu o apoio necessário para enfrentar o grupo.
“Teve uma vez que ela (professora) ligou em casa e disse que ia vir me
buscar se eu não fosse para a escola. Eu tinha medo de ser rejeitado pela
outras crianças. O tamanho, o jeito, né? Nossa! Parecia um menininho,
cabelo curto... e a gente conversando, ela falou ‘eu quero a Bahiana amanhã
aqui na escola. É pra trazer’. Foi aí que o pessoal começou a me aceitar. A
professora conversou com todo mundo que tem que aceitar os coleguinhas
do jeito que são. Aí eu comecei a pegar umas amizades, comecei a brincar.
E isso foi na 1a série.”
Nesse momento, Bahia viveu o drama de ser uma menina que se parece com um menino. Era
uma menina desengonçada, que não gostava dos brinquedos e brincadeiras que atraíam as
outras meninas. Mas uma menina que aprendeu que deveria ser respeitada do jeito que era.
Bahia não fala apenas de seu corpo, fala também do jeito que era diferente mas ele não sabia
explicar porquê. Até essa idade, seus pais ainda não haviam falado claramente com ele sobre
“seu problema”. A saída do convívio exclusivamente familiar e a ampliação de seu círculo
social trouxeram desafios e aumentaram, gradativamente, seu questionamento sobre seu
corpo ; questionamento que, talvez, fosse o mesmo dos pais, com a diferença de que,
enquanto Bahia tentava torná-lo explícito, os pais o mantinham velado.
“Demorou um pouco, eu acho, até que pra mim ficar sabendo realmente o
que acontecia. Porque, assim, minha mãe e meu pai, também acho que eles
demoraram um pouco pra falar pra mim.”
62
A diferença no corpo de Bahia era um assunto que não se discutia em casa. Bahia contou,
então, com o olhar do outro para descobrir quem era. Através do questionamento dos amigos,
a comparação de seu corpo e a ‘vistoria médica’ começa a entender o que lhe acontecia.
“Acho que, assim, numa certa idade, eu tava ficando meio que agoniado
porque tava acontecendo isso, porque não tava acontecendo comigo. Aí,
quando eu ia para a escola e via todo mundo crescendo, se desenvolvendo e
eu sempre daquele mesmo jeito, até que colocaram o apelido de Bahianinha,
pelo tamanho, pelo tamanho. E assim, eu ficava meio que desnorteado
porque tantas coisas que não estavam acontecendo comigo, então eu ficava
meio chateadinho. (...) E eu falava, tem alguma coisa errada. Se o meu nome
é esse, tem alguma coisa errada comigo! Porque com 11, 12, 11 anos, minha
irmã, já tava nascendo o seio dela, já tava tendo uma pequena mudança já.
Eu tava prestando atenção. Aí ela, minha irmã começou a crescer e eu ficava
sempre do mesmo tamanho. Impressionante! Eu era muito pequeno, gente!”
O nome feminino era a referência de quem ele era, mas o corpo parecia estar em desacordo. A
irmã, com idade próxima, passou a ser referência direta do que ‘deveria’ acontecer com seu
corpo. Bahia era, nessa fase, uma menina angustiada. E, para aumentar sua angústia, aos 12
anos, seu pai adoece gravemente. Bahia se vê às voltas com cuidados para o pai, que havia
contraído o vírus HIV, e estava sendo tratatado no Hospital das Clínicas. Neste momento de
descoberta da doença do pai, veio à tona o motivo da ausência do pai no dia da consulta e que,
por isso, interrompeu o processo de investigação e ‘conserto’ do corpo de Bahia: o pai
mantinha um relacionamento extra conjugal.
“Ele veio na frente (para São Paulo) só que ele teve uma relação com uma
mulher aí, com a minha mãe lá, e a gente veio depois. (...) Eu acho que foi
um caso com a ex-mulher dele aí (que o impediu de comparecer ao
hospital). Ele se enrolou e não apareceu no dia. (...) Ele fazia as besteiras
63
dele por fora, não falo nada. Assim, casado com minha mãe, ele arrumou
outra mulher.”
Bahia, apesar de seu desgosto e desilusão com o pai, relata gostar muito dele e valorizar
algumas de suas atitudes. Bahia tinha uma forte identificação com o pai.
Eu gostaria de me espelhar nele, pelas coisas boas que ele fez. Não pelas
coisas ruins. Foi bom ele ter trazido nossa família pra cá. No começo, ele
mostrava ser um pai dedicado, nunca deixou faltar nada, sempre teve
responsabilidade de pai. Só que depois de 4 anos aqui em São Paulo
descambou tudo, né? Ele ficou um tempo sozinho e depois mandou a gente.
Com a minha mãe aqui, ele fez um monte de burrada. Não tenho nada contra
ele. Tenho um desgosto mas eu me espelho muito nele pelas coisas boas
que ele fez. As ruins não. Nem comento.”
E foi desse homem que ora valorizava, ora desgostava que Bahia esteve ao lado durante a fase
terminal de sua vida, pois sua mãe trabalhava para manter a família e seus irmãos eram
pequenos.
“Ele não levantava da cama para ir ao banheiro, quem pegava era eu, de
madrugada, eu tava dormindo e ele só me chamava, meio que, assim, eu
comecei, foi na época que eu comecei a dar mais valor pro meu pai. Valor
assim, porque eu gostava, só que ele fazia coisa errada que não era do meu
agrado.”
Nesse momento de descoberta da doença do pai, toda a família foi examinada e, com os
exames, identificaram o problema de Bahia.
“Quando souberam que ele estava doente, todo mundo teve que fazer os
testes. Só minha mãe pegou (o vírus do HIV). (...) No dia que eu fui fazer o
exame, minha mãe falou com uma médica do posto que era amiga dela e que
64
disse que ia me encaminhar para a especialista lá no HC. (...) Naquele dia
começou tudo.”
Aos 12 anos, Bahia reiniciou o processo de investigação médica, agora no Hospital das
Clínicas. Apesar de, durante a doença do pai assumir um papel que, convencionalmente,
poderia se dizer feminino, pois cumpria as funções de cuidador do pai e da casa, Bahia
enxergava nos olhos de seu pai uma confiança e responsabilidade que só poderia ser atribuída
a um filho.
“Se as meninas estivessem comigo, tava tudo tranqüilo e, ele falava que eu
era a pessoa de confiança dele. (...) E para qualquer coisa de peso, ele
mandava eu carregar, qualquer coisa. Eu comecei a pegar, porque ele
começou a ficar fraco, desnutrido, aí ele mandava eu pegar. Como? Se ele
falasse que eu era Bahiana acho que ele não ia ter a atitude de falar: “vai lá e
pega isso”. Porque ele sabia que tinha força.”
E, nessa fase de adoecimento e morte do pai, Bahia admite que
“Tinha que tomar a decisão, eu tinha que reagir na hora como homem para
estar ao lado dele.”
Mas o que ou quem dizia para Bahia que ele tinha quer ser homem ? De um lado estava seu
estranhamento consigo mesmo, os médicos que escrutinavam seu corpo e de outro a mãe e
irmãos que o chamavam de Bahiana. Entretanto, para respaldar sua decisão, contava com o
apoio da madrinha e da avó materna que o viam como menino e avisavam à mãe de Bahia:
“Mundinha, coloca na sua cabeça que não tem condições de você chamar ela
de Bahiana. Acostuma a chamar de Bahia. Não adianta, não adianta. Olha o
jeito que ele admira mulher, olha o jeito que ele fala.”
A avó e a madrinha foram figuras importantes na história de Bahia. Assim como a professora
primária, elas deram respaldo à Bahia e respeitaram-no do jeito que ele era. Avó e madrinha
65
permitiam-se perceber que havia algo no comportamento de Bahia que lhes dizia tratar-se de
um homem. Entretanto, sua mãe o via como menina. Para ela, Bahia era Bahiana e deveria
comporta-se, vestir-se como menina e ter seu corpo ajustado para tal. Era mais fácil acatar
ao que já havia sido decidido, o registro de nascimento, a socialização como menina, do que
admitir que sua menina fosse um menino.
“Eu fui crescendo e minha mãe colocava laço em mim, brinco. (...) Ela que
colocou na minha cabeça que ia demorar a mudar os documentos, era
melhor em certa parte eu ficar como Bahiana mesmo.”
E, para agradar à mãe, Bahia apresentou-se aos médicos do Instituto da Criança pedindo uma
cirurgia para construir a genitália feminina. Bahia ainda tem a lembrança de como foi
exaustiva a rotina médica que enfrentou no início da adolescência.
“Eu já tava ficando meio sem noção porque eu passava aqui e passava lá. Tinha
que conversar aqui e conversar lá. Era totalmente umas coisas diferentes e eu
começava a ficar meio sem noção das coisas, entendeu? (...) no começo, eu
assim fiquei.... é que todo médico me tocava. E eu fiquei, eu pensava assim
‘será que eu sou uma cobaia?’ Eu me sentia super mal. Nossa ! Eu ficava muito
chateado, meu. (...) Aí, na sala de aula, eu já não tava tendo bom rendimento. Aí
comecei a cair. Aí perguntaram o que tava acontecendo, aí eu falei que da
minha parte era muito desgaste. Também me sentia muito cansado. (...) Aí
depois eu comecei a entender que era pro meu bem.”
Bahia conta do processo que viveu no hospital, a fase inicial de seu acompanhamento e do
trabalho com a primeira psicóloga.
“Ela pensava que eu ia ser mulher. Ela fala que ‘queria ver essa mulherona
que você vai se tornar.’ Aí eu falei assim pra ela ‘não sei!’ e ela ‘eu sei que é
isso’. Aí eu falei, ‘não sei não, acho que não’. (...)
Acho que ela pensava que eu ia ser Bahiana também pelas coisas que eu
falava, que eu gostava de fazer. Ela perguntava se eu tinha namorado. Eu
66
sempre falei ‘eu não penso em namorar cedo’ e realmente foi o que
aconteceu. Só que ela fazia umas perguntas que, naquela época de criança,
claro, como o nome tava escrito Bahiana, é claro que eu queria ter tudo
o que menina tinha, né? Também acho que é por isso que ela achava
que eu tinha vontade. Até mesmo quando eu comecei a tomar os
hormônios ela falou ‘agora é que vai dar tudo certo, você só precisa ter
calma’. (...) Naquela época eu não me achava normal pelo nome estar
Bahiana e não ter nada. Então, era isso que eu tentava falar pra ela,
entendeu? Meu nome era Bahiana, com 12 anos não tinha seio, não tinha
nada, não tinha nenhuma transformação. Como cabeça assim, eu falava ‘eu
quero ter, se eu sou isso, eu quero ter isso. Eu quero me ajustar.”
Mesmo dizendo que tinha que “reagir como homem” para estar ao lado do pai, Bahia ainda
pedia para ajustar seu corpo ao modelo feminino. Os exames diziam aos médicos que se
tratava de um rapaz (XY) e que o ajuste para um corpo feminino exigiria também tratamento
com hormônios femininos. Ainda assim, Bahia e a mãe decidiram por este caminho. Até que
o tratamento hormonal não surtiu o efeito esperado e Bahia começou a se questionar
“Será que tá acontecendo que o organismo é muito forte, o remédio é, assim,
fraco?”
Há uma batalha não só no corpo, mas na vontade de Bahia. E, ao ser perguntado pelo
médico se queria continuar tomando a medicação, responde :
“Não quero mais nada!”
E admite que “já tava meio que tomando uma decisão pra mim mesmo.”
Bahia começa a expressar para os médicos uma decisão que vinha amadurecendo sozinho e
relata que seu processo de decisão concluiu-se alguns anos depois da morte do pai.
67
“Parece que tive um certo, uma certa recaída, acho que comecei a pensar
melhor, refletir numas coisas, aí, é, eu comecei a me sentir mal, porque eu vi
que, num, como assim, meus amigos não tinham essa, que vim ao médico,
que era aquilo, que era isso.”
Bahia avalia o quanto era desgastante o processo de ajuste de seu corpo, a rotina médica e a
dificuldade de seguir uma decisão que não era a sua. E mais, admite para si mesmo que sua
preocupação era a de não ser um peso para a família. Entretanto, acompanhar o adoecimento e
morte de seu pai deflagrou um processo muito importante na vida de Bahia.
“Quando meu pai faleceu, eu comecei a pensar em mim. Foi o tempo
certinho de quando meu pai faleceu e eu comecei a pensar em mim. Porque
antes eu pensava na minha família e no meu pai e esquecia de mim. Eu
queria ajudar.”
E de que ajuda fala Bahia ? Ele fala de ajudar ao não ser um peso, uma preocupação para a
família. Em conformar seu corpo, corrigir a “genitália feminina que estava malformada”,
portar-se como uma menina.
“Desde criança que eu não gosto que, se eu tenho um problema meu, não
quero que aquela pessoa se preocupe comigo sabendo que ela tem um
problema também. E eu sabia que era isso que estava acontecendo
realmente. Só que eu queria resolver muito rápido.”
E chamar o mínimo de atenção possível para si.
“Meu pai, quando morreu, morreu por causa do vírus da AIDS. E ele tinha
um problema muito sério. Claro que era sério. E ele começou a ter as
recaídas dele e tudo mais. Aí eu vou e tenho um problema tão diferente do
dele. Claro que pode mudar a minha vida mas eu pensei assim ‘tem que
resolver rápido porque eu vou crescer, vou crescer e, entendeu?’ ”
68
Bahia queria ajustar-se rápido para deixar de ser o diferente. E, devido a sua ansiedade
expressa em querer consertar seu corpo, pela primeira vez teve uma conversa com sua mãe
sobre sua condição.
“Minha mãe falou assim ‘Bê, deixa pra resolver quando você crescer,
quando você tiver seus 16, 18 anos porque aí você já sabe muito bem o que
você quer’. Foi a única vez que minha mãe sentou comigo e falou ‘deixa pra
quando você tiver 16, 18 anos que você decide o que você quer’. Meu pai já
tinha morrido quando a minha mãe conversou comigo porque ela viu que eu
já queria tomar uma decisão importante. Até que ela falou ‘se você tomar
uma decisão precipitada, vai se arrepender depois’. Foi aí que ela começou
a correr atrás dos médicos pra mim porque, meu tamanho... meu Deus!”
Como o tratamento hormonal não deu o resultado esperado, o processo de “ajuste do corpo”
ficou em suspenso, mas a decisão por assumir-se como Bahia foi tomando forma ao longo dos
anos. Bahia relembra os eventos mais marcantes de sua história e que o ajudaram a pensar-se
como Bahia.
“E eu vou falar uma coisa pra você. Desde que eu comecei a estudar na
escola eu nunca usei o banheiro da escola. (...) Até os professores
perguntavam pra minha mãe: ‘o que que a sua filha tem que não vai ao
banheiro da escola?’ E minha mãe não sabia o que responder, ela ficava sem
jeito. Aí eu nunca usei.”
A falta da resposta da mãe foi, nesse momento, um importante elemento para o isolamento de
Bahia. Ele não sabia como lidar com a diferença de seu corpo e, na falta de orientação de
como agir, optou por evitar usar o banheiro público. Mas essa decisão não o salvou da
humilhação e vexame diante dos colegas.
“Teve uma vez que eu estava na escola e eu nunca fui de usar o banheiro da
escola. Aí os meninos puxaram meu braço para eu usar o banheiro das
meninas. Aí eu falei assim ‘eu não vou entrar, não vou entrar porque você
não me vê entrando no banheiro de ninguém. Por que é que você quer me
69
forçar?’ Ele falou assim ‘você vai entrar sim’. Aí ele me puxou pelo braço e
todo mundo falava ‘pra que isso? Solta!’ Porque meu apelido na época era
Bahianinha ‘solta a Bahianinha’. Aí eu falei assim ‘você não vai me soltar?’
Naquela época eu era uma criança ainda e aquilo, assim, foi um momento
que me marcou, porque eu não tava com vontade de, não tinha vontade e a
pessoa me forçando na frente de todo mundo. Eu fiquei muito constrangido,
meu Deus. E recuperar aquilo ali demorou. Porque toda vez que olhavam
pra mim, aí começaram a me zoar na escola.”
O olhar de estranhamento do outro fez com que Bahia restringisse seu convívio com o grupo
expondo-se o mínimo possível.
“Da 4
a
série em diante foram acontecendo muitas coisas, muitas diferenças.
Sentia assim, eu sempre fui, eu não sei porque, eu não gostava muito de
conversar porque os assuntos que tinham eram sobre você, como você se
sente, o que você gosta, o que você gosta de fazer, você gosta de ficar, com
quem você ficou. Eu mesmo ficava sem jeito de responder porque eu não
fazia nada. Então assim, o que acontecia, final de semana ficava em casa.
Nossa ! Eu ficava muito dentro de casa, meu Deus! Eu quase não saía. Tinha
consulta aqui no médico, ia para casa, ia para a escola, sempre a mesma
rotina. Aí que fui me afastando um pouco do grupo. Aí eu comecei a colocar
minha cabeça só nos estudos. Aí eu comecei a tirar nota boa, boa, boa aí
todo mundo começou a vir para meu lado de novo só que eu falei ‘eu não
quero que perguntem nada da minha vida.’”
Apesar de tentar se esconder, Bahia voltou a se destacar, mas agora pelo bom desempenho
acadêmico. Colocou então regras para sua convivência com o grupo: não queria falar de si.
“Eu falava ; ‘não pergunte nada, não pergunte de namoro, porque eu não
namoro com ninguém vocês sabem. Eu só penso nos estudos até agora.’ Aí
eles me respeitaram. Foi a partir desse dia que todo mundo me respeitou.”
Mas sua posição firme com os outros não o privava de suas próprias dúvidas. Seu nome, seu
corpo e o olhar do outro, tudo o desconcertava.
70
“Eu era um menino só que eu mais me expressava como menina pelo nome,
pelo que já tinha acontecido do que por homem exatamente, como menino.
Entendeu? Eu ficava meio confuso. Até hoje assim eu sou meio confuso.
Todo mundo me chama de Bahia, mas se tem alguma pessoa que me
conheceu de criança fala: ‘Nossa, Bahiana, como você cresceu!’”
Aos quatorze anos, devido à sua organização e cuidados com bens pessoais, Bahia, que já
tentava se apresentar como menino, foi chamado de “bicha” por uma amiga.
“Minhas coisas são todas organizadas e eu tenho uma amiga que uma vez
me chamou de bicha, sabia ? (...) Ô, Bahia, cê é um bicha!’ Eu falei : ‘não
sou ; só porque eu gosto das coisas organizadas? Eu gosto de tudo limpo,
gosto de um local calmo, bem organizado, sem bagunça. (...)’ Foi daí que
surgiu meu preconceito comigo mesmo.”
Esse Bahia que foi criado como menina, aprendeu afazeres domésticos e aprendeu a ser
organizado, ao começar a se apresentar como homem, passou a ter vergonha das
responsabilidades ditas femininas. Bahia até argumentou com sua amiga, alegando não
concordar com sua opinião, mas admite que a partir daí surgiu um preconceito em relação a
si mesmo. Quando a amiga apontou para ele uma certa discrepância entre os papéis
femininos e masculinos, Bahia começou a se questionar e a reproduzir o mesmo preconceito
que os colegas tinham contra ele. E, para eliminar o preconceito, ele não poderia deixar
dúvidas sobre quem é. Sua organização chamou a atenção da amiga, mas provocou uma
dúvida maior ainda em Bahia.
“Eu tenho vergonha de mim mesmo, porque eu faço uma coisa aqui, só que
não me convence. Eu sei que vão falar : ‘o Bahia que fez a comida. (...)’ Eu
sei fazer tudo dentro de casa.”
71
Masculino e feminino conviviam dentro de si na tentativa de afirmar-se como homem, na
criação que o instrumentou com hábitos e habilidades femininas. E, além disso, havia também
os documentos que o lembravam o tempo todo que, para a sociedade, ele era uma mulher.
“ (...) Ela (a amiga) me tratava como homem. Só que eu tinha medo de falar
para ela que meus documentos estavam daquele jeito (nome feminino) e eu
fazia aquilo (deixar as coisas arrumadas) porque eu gostava de ajudar,
entendeu? Só que eu fiquei assim (...) Se eu contar, ela vai querer se afastar
de mim, ela vai pensar isso, isso (que era lésbica) e eu não sou.”
Era como se quisesse apagar de sua história o rastro de uma identidade feminina,
afastar qualquer tipo de dúvida e questionamento sobre sua opção sexual. Bahia, que
até aquele momento não havia se relacionado afetivamente com ninguém, temia ser
visto como uma menina lésbica. Entretanto, via-se cercado por memórias que
remetiam à lembrança de Bahiana
“Uma vez, assim, eu passei uma vergonha danada. Foi na quadra da escola.
Tava dançando festa junina, foi assim o mico do ano todinho e ninguém
nunca esqueceu até hoje. Eu dancei, fui na festa e dancei como menina. Até
hoje as garotas falam.”
Mas, na época a qual se refere Bahia, posicionava-se como menina. A matrícula na
escola, o nome na chamada, a família, tudo dizia tratar-se de Bahiana. A vergonha
pelo evento veio a posteriori. E, apesar de tentar fugir do rastro de Bahiana, Bahia
orgulha-se das qualidades femininas que o diferenciam dos outros rapazes.
“Eu sei que eu sou diferente dos outros rapazes. Eu sou sincero. (...) E
assim, eu gosto de falar muitas coisas bonitas, eu gosto de olhar, quando eu
sei que a pessoa fez uma mudança falo : ‘nossa como você está bonita, vê
cortou o cabelo’. Eu percebo. Qualquer problema, assim, se a mulher estiver
72
com TPM, assim, eu entendo. Eu tenho uma amiga que a gente conversa
muito e assim, eu entendo muito as mulheres.”
Esse foi o conflito identitário ao qual Bahia esteve exposto em vários momentos de sua vida.
Se inicialmente era visto como uma menina, na adolescência seu corpo e sua atitude
começaram a gerar dúvidas. O próprio Bahia apresentava-se como Bahiana, mas já começava
a sentir interesse por mulheres. Sentia que era homem, mas por ser visto como mulher,
escondia seu interesse.
“Com uns 14, 15 anos, quando eu via, eu dizia ‘nossa que menina bonita’.
Mas eu não podia falar na frente das outras porque iam olhar sempre pra
mim, me estranhar. Eu tenho isso até hoje. Eu tenho um problema, eu guardo
só pra mim e isso é ruim. Porque naquela época eu não tinha em quem
confiar. Tinha medo de contar para alguém e depois todo mundo ficar
sabendo o que estava acontecendo, entendeu? Que eu era isso, que eu era
aquilo. E eu ficava guardando aquilo só pra mim.”
E encontrou na segunda psicóloga, do Instituto da Criança, um ponto de apoio. Bahia tinha
agora alguém para compartilhar seus sentimentos.
“Aí eu vinha aqui e contava para a Dra ‘nossa tinha uma menina super
bonita, eu acho que estou gostando dela’. Eu não tinha, eu não ficava
constrangido de falar com a Dra, mas se eu fosse falar com outra pessoa, eu
ficava.”
A possibilidade de poder compartilhar seus sentimentos com uma pessoa que não o julgava
deu a Bahia um espaço para se expressar sem receios. A partir desse momento, Bahia, que
estava inserido no grupo de meninas, resolveu entrar no time de futebol feminino do centro
Olímpico do bairro. Entretanto, esse ingresso aumentou seus questionamentos a respeito de
seu corpo, pois Bahia pôde observar mais detidamente os corpos das amigas.
73
“Eu via a diferença e eu comecei a me sentir muito mal. Muito mal mesmo.
Porque as meninas, toda, mó forte, definida, com os hormônios tudo em
cima, né?”
Volta a preocupação em esconder seu corpo e criar estratégias para minimizar sua exposição e
não levantar suspeitas sobre sua condição dentro do time.
“Nunca entrei no vestiário. (...) Todo mundo dizia ‘Bahia, vamos lá no
vestiário tomar uma água, vamos lá. Vamos lá comer alguma coisa lá dentro’.
Eu dizia : ‘não, obrigada.’ Aí me perguntavam ‘porque você nunca entra aí
dentro?’ Eu respondia ‘eu já vim’, porque eu já ia com a calça, com o
agasalho, eu só tirava e tava de bermuda. Aí elas diziam ‘cê é prática!’ E eu
falei, ‘sou mesmo’. Aí eu quase não entrava, pegava o lanche e ia embora.
Sempre, sempre. Toda vez era isso. E o pessoal acostumou, né, que eu quase
não entrava no vestiário.”
Ao longo do ano, Bahiana, aquela menina desengonçada e sem atributos físicos femininos foi
surpreendida. O que ela tanto desejou começou a se materializar. Seu corpo foi se definindo,
mas a definição foi a de um corpo masculino. Um homem começava a tomar forma. Após 16
anos, seu corpo começou a se transformar. Como parte do processo da deficiência da 5 α
redutase
126
, na puberdade o processo de virilização foi deflagrado com alterações
importantes : a voz engrossou, os músculos se desenvolveram, o falus cresceu e os
movimentos se tornaram masculinizados. E as alterações tiveram importante influência em
sua atuação dentro do time de futebol.
“Aí eu comecei a notar que minha velocidade, não que minha velocidade, meu
corpo foi evoluindo, eu comecei a crescer demais. Eu cresci, nossa, meu Deus!
Eu fiquei surpreso demais. Aí, eu vi que comecei a pegar muito, peguei muito
corpo. Qualquer coisinha que eu fazia assim, chutava forte demais e machucava.
126
Vide nota de rodapé número 121
74
Uma vez quase mato uma menina. Dei uma bolada na cara, puxa, violenta! Aí eu
pensei, tem alguma coisa errada aqui.”
Errada porque, até aquele momento, a expectativa era a de desenvolvimento de um
corpo feminino. Mesmo sentindo-se Bahia, nada tinha sido feito para conformar seu
corpo ao de um homem. Bahia era, naquele momento, um homem registrado como
mulher, conhecido como mulher mas que começava a se parecer com um homem. E,
que, por isso, em uma ocasião, chegou a ser levado à coordenação. Seu professor, que
desconhecia sua história, achou que ele estivesse de gozação ao responder à chamada
como Bahiana.
“Um professor pensou que eu estava querendo zoar com a cara dele e me levou
na diretoria. Nossa ! Minha voz naquele dia tava super (grossa), e eu falei
‘presente’ e ele pegou e falou ‘quem que falou aí, quem é o engraçadinho?’ Eu
falei : ‘sou eu, eu não estou brincando’. Perguntei pra todo mundo ‘meu nome
não é Bahiana, gente?’ E ele pensou que todo mundo tava zoando, que eu era
gay fora da sala. Aí ele me levou na diretoria e levou alguns minutinhos pra
explicar. Foi a coordenadora quem explicou. Primeiro que ela falou tanta coisa:
que eu tinha problema de crescimento, ‘tem um errinho no nome aí, que a gente
vê que não tem condições (de ser menina) e... se precisar de alguma coisa a
gente chama a mãe dela.’ Aí o professor : ‘ai, desculpe, desculpe’. Depois ela
comentou com a minha mãe e a minha mãe me falou. Nossa, que dia! Ele
pensou que eu estava brincando. Depois o professor passou a me chamar de
‘Bê’. Engraçado que quando acontecia isso ninguém gostava de me chamar de
Bahiana, era Bê ou Bahianinha.”
Devido às mudanças em seu corpo, à reação que começava a causar, Bahia viveu novos
conflitos. Ele se sentia um intruso no time feminino e temia causar algum dano a si ou aos
outros.
75
“E o pior de tudo é que eu comecei a jogar um campeonato super importante,
que é da Federação Paulista. E, meu! Era impressionante que eu não queria,
entendeu, jogar mas quando eu via aquela, vamos ganhar, vamos ganhar, vamos
ganhar, não tinha jeito. Eu jogava assim, eu jogava, tinha jogo que eu não jogava
direito porque eu ficava pensando demais. Falei ‘vai que eu corro e me
machuco’. Aí eu comecei a, eu parei de pensar aí eu comecei a jogar, jogar,
jogar e foi um ano jogando. Aí ano passado continuei jogando e aí viajei pra
Lorena, deu pra jogar, também joguei. Só que no jogo de corpo, as meninas não
ganhavam de mim nunca, sempre caiam no chão. Uma vez eu machuquei e tive
que ir no hospital pedir desculpa, a menina tinha fraturado o braço. Aí eu parei.”
A lesão causada na colega de time reavivou sua preocupação de fingir ser quem não é
“Não adianta eu querer ou fazer uma coisa que não é o certo. Não é isso que eu
quero. Porque assim, se eu fosse uma pessoa que não tivesse caráter. Porque eu
já sabia muito bem. Nessa época já estava bem na minha cabeça o que eu queria
realmente. O que eu era realmente, também.”
E não era apenas do homem com vantagens físicas sobre o time feminino que Bahia falava.
Era também do homem que desejava as mulheres à sua volta e começava a freqüentar o
vestiário.
“Eu entrava no vestiário. Vou ser sincero, eu entrava só para ver as meninas
tomando banho. E não era isso que eu queria.”
Ele queria ver as mulheres, mas não como a Bê, a Bahiana que olha as colegas. Mas como o
Bahia. Entretanto, o Bahia não teria acesso permitido ao time, muito menos ao vestiário. E foi
nesse momento que Bahia discutiu com o endocrinologista e a psicóloga sobre a cirurgia para
construir a genitália masculina. Seu corpo foi re-significado para atender seus desejos e
interesses e a cirurgia veio neste momento para dar forma a um corpo, como etapa final de um
76
processo identitário. A partir deste momento, Bahia se abriu para o mundo e se permitiu falar
de sua vida.
“Esse dia eu entrei na roda. Todo mundo tava na roda conversando, fazendo
pergunta e a pergunta chegou em mim. Só que quando chega em mim, não é só
um que quer fazer uma pergunta, são vários. Porque ninguém nunca viu eu ficar
com ninguém. (...) Aí os meninos começaram a perguntar ‘Bahia, você nunca
namorou, nunca teve nada com ninguém?’ E eu falei : ‘não.’ ‘E se acaso, um
dia, você for ter, vai ser com homem ou com mulher?’ Aí eu falei assim ‘já que
vocês tocaram no assunto, vamos ser sinceros um com o outro’. Aí assim, um
fazia a pergunta e eu respondia. ‘Eu não gosto de homem, é, eu só contei um
coisa pra eles, que, assim, é verdade e eles acreditaram, que eu tive um
problema quando criança e fui registrado errado’. (...) E a gente foi
conversando, e eu comecei a pegar amizade, comecei a me enturmar também,
perdi a timidez. Me sentia bem com todo mundo.”
Apesar de se abrir com o grupo, Bahia ainda se sente escondendo a verdade
“Eu não gosto de mentira, mas eu falei. Eles entenderam e disseram ‘ai, meu
Deus, então você vai ter que mudar tudo (documentos)? Você sabe que até para
arrumar emprego é difícil?’”
Ao posicionar-se como homem, Bahia isenta-se de falar de seu corpo e explica que o
problema está no registro. Ele queria ser honesto com o grupo, mas também se preservar.
Preocupava-se com situações de confronto com colegas que duvidavam de sua honestidade.
“Teve muita pessoa que tinha muito preconceito com meu jeito. Uma vez, eu
briguei muito sério com uma menina, eu briguei muito sério. Assim, a gente não
saiu na mão, foi verbalmente, mas foi muito feio. Porque, assim, eu sempre
ajudava todo mundo. Lição, fazer trabalho, essas coisas. E ela acha que eu tava
me fazendo. Que eu tinha aquele nome porque eu queria. Que eu não mudava
porque eu não queria, entendeu? ”
77
E talvez por isso, se preocupou em explicar sua condição pois
“Se eu não tentar explicar, acho que eles vão me crucificando, porque
mesmo sem me conhecer, tem gente que me julga por não me conhecer
direito. Não me conhece mas fala, ‘tem alguma coisa errada ali’. Se é um
homem que tem nome de mulher ou faz isso ou aquilo, tem alguma coisa
errada. (...)”
Mas quando achou que estava preparado e seguro de si, Bahia mudou. Não o registro, pois
esse ainda está condicionado à realização da cirurgia, mas mudou a forma de se relacionar
com seu corpo e com as pessoas que o cercam.
“Uma vez eu estava numa festa. Aí um cara lá, eu nem conhecia, ele veio
mexer comigo. Mexer assim, ‘ó Maria Hômi na festa’. Eu olhei para ele e
falei ‘posso me divertir ? Cê tá fazendo o quê ?’ Aí o pessoal falou que eu tirei
ele na palavra. Eu falei, não, não tirei na palavra, simplesmente ele veio, falou
uma coisa que eu não gostei e eu fui tentar me defender. Ele veio pra cima de
mim, aí o segurança veio e tirou a gente da festa e a gente foi lá pra fora. Aí
eu falei pra ele ‘agora termina o que você queria. Só queria zoar só na frente
de seus amigos? Só pra se sentir bem?’ Uma vez, numa palestra na sala
mesmo, eu tava com uma vergonha mas eu tive que levantar. Porque eu falei
assim: ‘pra você ter amigos, não precisa você magoar ninguém. Não precisa.
Você só precisa demonstrar seu jeito e, se todo mundo gostar da sua pessoa,
todo mundo vai querer ser seu amigo. Não precisa você machucar ninguém
pra você se sentir bem com essa, seu palhação’.Aí todo mundo bateu palma.
Até hoje é assim, até hoje tem muitas pessoas que gostam de mim, tem umas
que não gostam.”
Dentro dos que não gostam, já houve quem o ameaçasse de morte. Sem se intimidar, Bahia
foi à delegacia registrar a ocorrência.
78
“Nossa, foi o maior rolo que deu aquele dia. O policial deu boa noite e eu
disse que queria registrar uma ocorrência porque o rapaz me jurou de morte e
está armado. Aí ele perguntou assim ‘qual é o seu nome?’ Eu respondi:
‘Bahiana’. E ele ‘qual é o seu nome?’ Aí ele pegou meu documento e falou
‘ele jurou uma mulher de morte!’ Aí eu fiquei, assim, com medo. Vai que ele
não acredita e acha que eu estou falsificando documento! Aí ele fez a
ocorrência e não falou nada não. Disse que ia verificar. Aí também, depois
daquele dia, eu não o vi mais. Foi muito engraçado! Depois eu comecei a dar
risada. Foi engraçado. Aí eu pensei, agora sou privilegiado.”
Bahia começou a perceber a diferença entre os mundos masculino e feminino e sentiu-se
privilegiado ao notar que, sendo uma mulher, não seria passível de um juramento de morte. E
já nesse processo de se posicionar, de demonstrar o que pensava e sentia, transitando nos
limites do masculino e do feminino, Bahia conversou abertamente com uma professora que
questionou seu visível interesse por uma menina.
“Até hoje, a única pessoa que entrou em conflito comigo querendo debater
comigo, do meu corpo, quem era eu, foi a professora de Biologia. Ela falou
que eu era menina, só que tinha o perfil de homem. Ela falou assim: ‘Bê,
vem aqui. Você é mulher com perfil de homem, não é?’ Aí eu falei: ‘não
professora, vamos conversar’. E eu falei: ‘professora, posso ser sincero?
Não é nada disso que você me falou. Eu nasci com problema genital é, e eu
sou homem.’ E ela falou assim: ‘você não é hermafrodita? Se eu for levar
pela história, sim. Mas eu falei: ‘professora, eu sou homem.’”
Para a professora, Bahia era lésbica e sua atitude deveria ser contida. Depois, ao saber um
pouco mais sobre sua condição, não voltou mais ao assunto e deixou que o rapaz
demonstrasse seu interesse pela menina. Após este evento Bahia sentiu-se confiante o
bastante para aproximar-se de uma amiga da irmã, que freqüentava sua casa, e ter seu
primeiro relacionamento amoroso rápido, mas intenso.
79
“Desde o começo eu fui sincero. Eu fui muito sincero com ela. Eu falei antes da
gente começar a relação ‘melhor você saber o que está acontecendo comigo, o
que vai acontecer e você não pode esperar uma coisa de mim que eu não possa
te dar agora.’”
Bahia divide com a namorada informações sobre sua história, seu corpo e o processo de
ajuste cirúrgico pelo qual deverá passar. E a sinceridade de Bahia estende-se também a
contar para a mãe da namorada sobre sua condição. A conversa foi boa, mas despertou
dúvidas.
“Ela falou assim: ‘mas isso é muito grave? Você pode morrer?’ E eu falei: ‘não.
Não claro que não! Só preciso fazer uma correção, só isso.’ (...) Aí ela ficou me
olhando e a gente começou a conversar e eu falei: ‘não é pra ficar com vergonha
de mim.’ Aí ela falou: ‘tudo bem, não vou ficar não.’”
Bahia conquistou a simpatia da família da namorada e todos exaltaram suas qualidades de
bom moço”, pessoa especial”, pedindo que a namorada tomasse cuidado com ele pois
“O Bahia é especial demais, cuidado para não machucar ele.”
Mas os avisos não impediram a namorada de fazê-lo sofrer. O que Bahia não imaginava era
ter que ser confrontar tão rapidamente como temas como traição, gravidez, antes mesmo de
iniciar seu namoro.
“Antes de eu conhecer ela, ela tinha um ex-namorado. Só que a gente se
conheceu no dia 24 de março. E dia 1
o
de abril, ela teve uma recaída com o ex-
namorado dela. Aí ela pensava que estava grávida. E eu falei pra ela: ‘Eu gosto
de você e não vou te abandonar. Se você estiver grávida, eu sei que ele não vai
ter condições. Casa, eu não tenho, mas trabalho, eu tenho, eu posso muito bem
fazer isso, eu posso colocar você lá (em casa)’. Porque eu não pensava em sair
de casa não. Ela falou: ‘você não vem comigo?’ E eu falei: ‘não, vou ficar
dentro de casa. Se você precisar de meu apoio’. Aí tudo bem. Acho que ela
80
começou a ver que eu era uma pessoa diferente que ela sempre falava e foi indo.
Aí, a gente passou esse tempo, ela foi no hospital, a gente foi no posto e ela não
estava grávida. Foi só, tudo bem. Aí chegou dia 8 de... a Páscoa foi em abril,
né? Dia 8 de abril a gente ficou a primeira vez. A gente ficou.”
Bahia estava sendo extremamente compreensivo e companheiro de alguém que conhecia há
pouco, mas já queria cuidar e proteger. Ele foi sincero ao discutir as limitações que seu corpo
colocava a um relacionamento mais íntimo. Entretanto, deparou-se com a infidelidade e a
impaciência da namorada.
“No começo ela falou pra mim ‘Bê, o problema que você tem, não vai
atrapalhar em nada de eu namorar com você?’ Depois ela veio e falou que meu
problema empatava tudo com ela. Eu fui muito sincero porque eu falei que
relação (sexual) não poderíamos ter nenhuma. ‘Você pode esquecer que, por
enquanto, não.’ Eu fui sincero com ela e ela falou : ‘Tudo bem Bê, eu espero’.
Só que ela não esperou. Ela ficou impaciente. Porque ela falou que queria tocar
em mim, queria não sei o quê e eu não deixava. Ela me abraçava, me beijava, só
que eu só ficava nisso. Eu também respeitava ela e pronto. Só que ela queria
algo mais, sendo que eu falei pra ela que não ia dar. Agora não. Eu disse que ela
esperasse, que tivesse paciência, se gostasse de mim que esperasse. E eu vi que
ela não gostava de mim realmente.”
Essa situação fez com que ele voltasse a se olhar como uma pessoa diferente e com
limitações para um relacionamento mais íntimo.
“Se você é um rapaz normal você tá namorando, você tem sua livre e
espontânea vontade pra você fazer o que você quiser com sua namorada. O que
acontece comigo ? Eu sou um rapaz. Se a menina quiser assim, você sabe que a
menina está à vontade, ela quer uma coisa a mais. Eu sempre falo: ‘não dá, não
dá.’”
Voltou, então, a se preocupar, a se explicar, pois temia o preconceito.
81
‘Então, não dá’. ‘Por que não dá, o que tá acontecendo?’ Eu tenho que me
explicar, entendeu. Porque se não me explicar vão falar ‘ele é viado’,
entendeu?”
Bahia teme novamente ter sua opção sexual questionada. Se antes temia ser visto como uma
menina lésbica, agora não quer ser visto como o rapaz viado. Ao perceber que sua limitação
física interferiu no relacionamento e o namoro chegou ao fim, Bahia sofreu.
“Porque como ela foi minha primeira namorada séria e, né, acabou, acabou
machucando mesmo. Falou que terminou comigo porque não queria me fazer
sofrer, que tinha ficado com o ex-dela. Depois chegou em mim e falou, ‘não, eu
menti só pra você se afastar de mim’. Aí eu falei: ‘então você não precisava ter
feito tudo isso. Uma palavra só bastava.’”
Coincidentemente, é após o rompimento do relacionamento que ele retorna ao Instituto da
Criança. Quando foi contactado pela instituição e marcou o retorno, ainda estava com a
namorada e esperava contar com seu apoio. Entretanto, com o término, comparece sozinho à
instituição.
Voltar ao hospital após 5 meses de afastamento, aguardando o agendamento da cirurgia e
tendo vivido a primeira experiência amorosa, fez com que Bahia refletisse sobre os 6 anos
de acompanhamento no Hospital das Clínicas e o seu processo de decisão.
“Acho que aconteceu tudo no seu tempo porque se é uma coisa que você
apressa, depois você vai se arrepender. Eu sempre ouvi isso na minha vida.
Nunca apresse nada. Até o Dr. (endocrinologista) falou assim: ‘o tempo que
você precisar, o tempo que durar, a gente vai estar aqui. Quando você resolver,
a gente faz. Porque se você tomar uma decisão errada, sem chances. Não tem
volta’. Hoje eu penso: ‘Meu Deus, se o remédio tivesse dado certo, hoje eu
82
poderia estar com aquela mente, que não era o que eu queria’. Acho que se eu
tivesse feito a cirurgia com 7 ou 12 anos, minha vida seria totalmente diferente
do que é agora. Não pelas amizades mas ... comigo mesmo porque acho que
não ia ser o que eu queria ser. Desde os 9, desde a puberdade, que eu falo, as
meninas começaram a desenvolver e eu já começava a ter aquela ‘Nossa, como
ela é bonita !’ Só que eu não podia falar pra ninguém. E mesmo assim, o que
mais eu penso hoje, e é verdade, é a família. ‘Vou fazer isso por causa da
família’, eu não pensava em mim. Agora eu penso em mim e é por isso que eu
estou tomando essa decisão.”
Consciente do que aconteceu com seu corpo e decidido sobre o que deseja para si, Bahia se
libertou de seus medos e optou pela a realização da cirurgia que agendou para o dia 23 de
novembro de 2007. Esse processo de tomada de decisão fortaleceu-o para encarar o mundo e
Bahia decidiu procurar emprego após o término do colegial.
“Assim eu me esforçava de tudo porque, assim, ela (a mãe) sabia, ela também
pensava que eu não podia arrumar emprego por causa do meu nome e ela
falava: ‘Você só fica dentro de casa, não procura, não corre atrás’. E quando
surgia qualquer coisa pra mim eu ia fazer.”
Em menos de um mês, entre nossa primeira e a segunda entrevista, Bahia saiu do emprego
de ajudante de pedreiro, venceu o medo de apresentar seu documento e foi admitido em fase
de experiência como ajudante de cozinha em um hospital. A vontade de conseguir um
emprego melhor, com carteira assinada o mobilizou a enfrentar o receio de mostrar seu R.G.
“Tava de pedreiro, tava lá sossegado só que começou a pesar demais e eu não
tava agüentando. E agora eu estou de ajudante de cozinha. Até eu falei: ‘onde
eu estava não era fichado, agora é fichado, vão assinar minha carteira e eu não
vou pensar duas vezes. Não tem condições.’”
83
Essa transição do emprego informal para o formal teve também suas particularidades. O
primeiro desafio foi se apresentar na agência de emprego, entregar os documentos e explicar
sua situação para o entrevistador, já que os documentos de Bahia ainda apresentam o nome
de Bahiana e indicam o sexo feminino. Entretanto, uma coisa era o entrevistador conversar e
entender a situação do registro errado, outra coisa era estar desavisado e se deparar com um
rapaz ao chamar uma moça. E assim, como já havia acontecido com o professor, aconteceu
agora na agência de emprego.
“Aí, no dia da agência, preenchi tudinho certo aí na hora que ele (o
entrevistador) veio me chamar, só tinha eu, só tinha eu lá e eu só estava
esperando. Ninguém levantou. Aí ele olhou e falou: ‘foi embora’. A menina
falou assim: ‘foi embora’. Aí eu falei: ‘não, tá aqui, sou eu!’ Aí ela pegou: ‘é
você?’ Eu falei: ‘sou eu mesmo!’ (...) Aí a pessoa da agência falou que não
precisava eu me preocupar. Empata, assim, o nome, com certeza. Ele até ficou
meio constrangido e ele falou assim: ‘você não ficou constrangido, não,
Bahia?’ Porque ele me chamou de Bahia. Ele falou: ‘não vou te chamar de
Bahiana porque não têm condições’. Eu até falei assim: ‘eu não fico
constrangido, não. Tinha um tempo que eu fiquei, agora não’. Aí ele falou:
‘você me desculpa por tudo’. Eu falei: ‘não, não esquenta não.’
Após ser pré-aprovado na agência, Bahia seguiu para apresentar-se no hospital e, novamente,
teve que se explicar.
“Aí, quando eu me apresentei no trabalho, eu até falei assim: ‘Helena, antes eu
tenho uma coisa pra falar pra você. Assim, eu tenho um problema no
documento. Olha só, você está vendo minha estatura, meu semblante. Não tem
nada a ver com o que está no meu documento.’ ”
Bahia, seguro de quem é, atribui o erro ao documento e não mais a seu corpo. Ainda assim,
ele é questionado.
84
“Ela pegou e falou assim: ‘o que está acontecendo?’ ‘É que eu fui registrado
errado’. Ela falou assim: ‘posso ver seus documentos?’ Eu falei: ‘pode’. Ela
falou assim: ‘Ó, Bahia, eu acho que para emprego nenhum isso aqui
atrapalha’. Aí eu falei assim: ‘mas como não atrapalha, Helena? É um trabalho
pra homem, você está vendo minha estatura e meu semblante só que no papel
tá como mulher? Como é que vai ficar as papeladas depois?’
O próprio Bahia demonstrava preocupação em definir claramente os espaços do masculino e
do feminino para garantir que havia conquistado seu lugar como homem. E confirma que é
importante mostrar para o mundo o seu processo de adequação.
“Ela até falou assim: ‘você tem alguma coisa do Hospital da Clínicas, que
você passa lá?’ Eu falei: ‘tenho sim.’ Até peguei o papel do laudo que é
importante, eu peguei quando passei lá. Isso é meio que uma autorização. Aí
eu peguei e mostrei e ela falou: ‘isso é super importante para você pra mostrar
que você está dando entrada na papelada. Então faz o seguinte: leva esse papel
pra agência e lá você assina o contrato.’”
Contrato assinado, trabalho garantido, Bahia tinha agora que se relacionar com o grupo de
trabalho e logo percebeu que sua história gera interesse.
“Sabe, as pessoas têm muita curiosidade sobre mim. Eu falei do documento e
me perguntaram assim: ‘mas não tem nada errado com você, você é
totalmente certinho, né?’ E eu respondi que sou totalmente certinho. Parece
que eles desconfiam de alguma coisa, sabe?”
Mas, ante a insistência de sua chefe no hospital em entender seu caso, Bahia cedeu e deu
mais detalhes.
“Teve um caso que me perguntaram: ‘por que que você não mudou o
documento antes e esperou todo esse tempo?’ Aí eu tive que entrar no assunto.
85
‘Não, é que eu nasci com um problema, esse problema foi inesperado e está
desse jeito agora e eu preciso consertar’. Aí ela: ‘ah, sim. Mas é grave mesmo,
gravíssimo?’ ‘Não, não tem problema não’. Aí ela: ‘ah, tudo bem.’”
A vida de Bahia parece estar se encaminhando da forma como ele gostaria com a chegada da
maioridade, sua decisão pela cirurgia e a mudança de seus documentos, o aumento de suas
responsabilidades. Seu “problema inesperado” pode ser corrigido e Bahia pode se afirmar
como homem completo e, como tal, depara-se com a necessidade de cumprir obrigações
masculinas e se alistar ao exército.
“Se trocar o nome tem que fazer reservista, né. É uma coisa que eu não esperava
e tem que fazer. É que nem eu falo. Você perde em algumas coisas e ganha em
outras. Se eu for pensar pelo lado da mulher, acho que eu não perdi quase nada.
Acho que eu fiquei mais apurado porque do tempo que eu tinha amigas que me
tratavam como menina eu, por isso que eu acho que tenho uma coisa diferente
dos outros homens. Não dos maduros. Mas desses jovens assim. Compreender,
saber entender e sempre estar ao lado daquela pessoa que necessita, né. (...)E eu
acho que meu jeito não se encaixaria no exército. Por isso que eu tenho meio
que um medo. (...) O problema é que se for chamado eu tenho que comparecer.
Uma que eu vou perder contato com a minha família, que eu nunca fiquei longe.
Eu trabalho, tudo bem, mas ficar longe da minha família não dá certo, não. Eu
quero me alistar, mas não quero ser chamado, não.”
O mundo de Bahia se ampliou com o trabalho e com as novas amizades, mas ele não quer
abrir mão do convívio com a família, pois é o mais velho e preocupa-se com a saúde de sua
mãe e a assistência aos irmãos menores. Aos olhos de todos, ele é o Bahia pois, como ele
mesmo disse, com exceção da irmã que é 1 ano mais nova, os outros irmãos não sabem de
sua condição. E, mesmo que tivessem sabido, Bahia é hoje o Bahia. Saiu de seu casulo e foi
para o mundo. Ele é o homem da casa que trabalha para manter a família, está ao lado da mãe
no cuidado e atenção às crianças e se prepara para cuidar da família na ausência da mãe.
86
“Antes eu não pensava em trabalhar, eu pensava só em ficar dentro de casa. Eu
não pensava em ir para o mundo porque eu tinha medo que as pessoas tivessem
medo de mim, entendeu? E agora não. Agora eu encaro porque eu sei que eu
sou isso, que eu quero isso. Eu quero que as pessoas me respeitem do jeito que
eu sou e eu estou lutando para isso. Tô confiante que vai dar tudo certo.”
E quanto ao nome que gera tanta expectativa, Bahia conta que encontrou uma alternativa
para contemplar seu interesse e o da avó materna.
“Ela falou assim que é para deixar meu sobrenome. O Maria. É pra deixar. Ela
falou assim que é para deixar. E eu falei que tudo bem. Meu nome vai ficar
Bahia Maria da Silva. E todo mundo já está se acostumando. Meu crachá do
serviço tem Bahia Maria da Silva. Eu até gostei do sobrenome porque o pessoal
fala: “nossa, que sobrenome diferente, né?”. Mas é que nem eu já disse: ‘eu sou
um pouco diferente de vocês. Eu sou um pouco diferente de vocês então, né?’ ”
Tendo sido visto como diferente por muitos anos, Bahia tem no trabalho a oportunidade de
conviver com pessoas que, assim como ele, enfrentam o preconceito, a intolerância e aprende
uma importante lição.
“Até mesmo no serviço que eu estou tem muitos, né, gays. Então eu acho que eu
me sinto à vontade lá com eles. (...) Parece que quando eu converso com eles,
eles me entendem. Quando eu converso com eles, eles passaram por isso. E é
verdade, eles passaram por um pouco de preconceito pra se assumir, né? E eles
falam que ninguém é diferente. E ao mesmo tempo tem que colocar na cabeça
de cada um que ninguém é igual. Cada um tem um jeitinho de se relacionar com
as pessoas, entendeu? Por isso que eu me sinto à vontade com eles. E eles são
muito, assim, verdadeiros. ”
87
E o rapaz que outrora se sentiu ofendido por ser chamado de bicha e temia ser
rotulado por evitar contato mais íntimo com as meninas constata que sua diferença se
dilui dentro do novo grupo de trabalho.
“Eu acho que está sendo muito importante eu trabalhar com eles. Eu já sabia
disso, mas gostar das pessoas do jeito que elas são é super importante. Você
aceitar aquela pessoa, você conviver e saber que pode confiar. Eu me sinto bem,
me sinto à vontade com eles. Faço o meu trabalho feliz, sossegado. Se preciso
de alguma coisa eles me ajudam. Se você está do lado de pessoas com quem
você se dá bem, você se sente à vontade. Mesmo que você tenha um problema.
Eu me sinto assim, parece que eu sou normal. Eu sou normal. Eu me sinto super
bem. Qualquer pessoa que tem algum tipo de problema, quando está junto com
pessoas que o mundo tem preconceito, você se sente super à vontade. Você vê
que não vale à pena o ser humano matar uma pessoa só por uma diferença.”
Nome decidido, cirurgia já marcada, Bahia agora aguarda o momento de ajustar seu corpo
sem a ansiedade que viveu em outro momento. Refletindo sobre sua história, Bahia afirma
que tudo o que viveu foi importante para chegar à decisão que tomou.
“Meu problema, no começo foi assim ‘o que você escolher pra você está bom’.
Ela (mãe) falou assim: ‘Bê, é isso mesmo que você quer?’ Ela me apóia só que
eu não sei se é isso que ela quer, mas ela falou que o que ela quer não importa, o
que importa é o que eu quero. Até hoje eu não sei o que ela realmente quer. (...)
você precisa do apoio de muitas pessoas para saber se elas vão estar com você.
Porque não adianta você querer fazer uma coisa sendo que, né? Só que é você
que tem que decidir, mas tem que ter uma pessoa do teu lado. É assim, a pessoa,
quem precisa estar do seu lado é a família. Se a família está do seu lado, você
quer enfrentar tudo e todos. Foi isso que aconteceu comigo. E hoje eu tô aí,
meio sem tempo, né, mas estou resolvendo as coisas.”
Garantido o apoio da família, Bahia se prepara para a cirurgia.
88
“O que foi passado pra mim: eu ia só, assim, não é uma cirurgia de risco de
vida. Ela é por fora, só precisava trocar o lugar. Foi exatamente o que foi
passado mim, tá no lugar errado, precisa passar para o lugar certo. É porque
assim, eu tenho um, praticamente os dois ovos são em cima e tem que colocar
pra baixo pra ter evolução completa, entendeu? E eu falei: ‘tudo bem. A única
coisa que eu quero é fazer, já que eu tomei a decisão’. (...) A cirurgia vai ser dia
23 de novembro. Eu até tava preocupado porque pensei que tava perdendo uns
quilos, porque eu tava me achando muito magro. Mas da última vez eu fui
medido, pesado e tava tudo normal.”
Ao refletir sobre a relação com os familiares e amigos e sobre a emergência do Bahia,
ele lembra que até pouco tempo era chamado de Bahiana e essa situação só se
modificou com o começo de seu namoro.
“Ela (a irmã) só começou a me chamar de Bahia quando a Mônica (a ex-
namorada), nesse tempo que... foi nesse ano que tudo aconteceu. Porque eu
comecei a namorar com a amiga dela e ficou Bahia, Bahia, Bahia. E todo
mundo me chama de Bahia. Aí eu penso, se não fosse a amiga dela ainda iam
me chamar de Bahiana? Né, imaginou? Eu acho que sim. Pelo convívio. Nossa,
de criança Bahiana, Bahiana, Bahiana e chega dos 17 anos pra cima Bahia,
Bahia. O que é isso? Que transformação é essa? Que mudança?”
Uma mudança que parece repentina aos olhos dos outros mas que foi pensada ao longo de
muitos anos. Com a alternância de posições, ora queria ser Bahiana, mas se achava
incompleto, ora queria ser Bahia mas achava que não convencia, Bahia lembra do sofrimento
que um dia o motivou a pensar em transformar seu corpo em um corpo feminino.
“Na escola me chamavam de Maria Homem, Maria não sei o quê, isso. E isso
machucava porque naquela época machucava, nossa! Eu não tinha vontade de ir
para a escola, não. Eu até já pensei que seria mais fácil se tivesse feito a cirurgia
89
antes, só que naquela época eu ia fazer cirurgia pra menina. Imagina se, não era
isso, eu acho que não era isso. Por isso que eu falo que na vida não acontece
nada por acaso. Naquele dia meu pai não foi e não era para ele ir”.
Bahia conclui que, apesar do apoio recebido da avó, da madrinha e até da mãe, foi o pai que
desempenhou papel mais decisivo, mesmo em sua ausência.
“E tudo, é engraçado que tudo só aconteceu por envolvimento do meu pai. Você
percebeu? Fazer a cirurgia no Cepac, meu pai não compareceu e eu não podia
fazer. Só entrei no HC por causa do meu pai e ele faleceu, né? E joguei bola
também por participação dele também. Joguei bola aqui, porque ele tinha
amigos, ele também jogava um pouco e sempre por participação dele. As coisas
mais importantes que aconteceram na minha vida aconteceram por participação
dele.”
A participação direta ou indireta do pai foi importante até em sua decisão. O pai não está
mais presente e, apesar da decisão agora estar clara para Bahia, ainda gera dificuldades para a
família.
“A minha mãe, quando atende o telefone e é minha vó fala: ‘a Bahiana, a Bê
está bem’. Minha vó fala assim: ‘Mundinha, não é Bahiana, é Bahia. É Bahia,
chama de Bê que a gente conversa, né?’”
Pois se ele se diz seguro de quem é, as pessoas que o cercam ainda não podem dizer o
mesmo.
“Ainda tem gente que confunde Bahia, Bahiana mas, quando me vê, me chama
de Bahia. É que eu sempre joguei bola, no time de meninas da escola e é difícil
para eles perderem o costume.”
90
Mais que uma simples questão de costume, é uma complexa e complicada questão de
identidade. Todos aprenderam a se relacionar com Bahiana e, ao voltar a encontrá-la,
deparam-se com uma outra pessoa.
“Alguns que nunca mais me viram me chamam de Bahianinha. Perguntam pra
Janine (a irmã): ‘cadê a Bahianinha, como é que está?’ e ela fala : ‘o Bê, tá
namorando’. E aí nem perguntam, mas quando me encontram, falam: ‘Bê, você
tá namorando?’ Eu falo que estou e pergunto: ‘sabe qual é meu novo nome
agora? É Bahia!’. ‘É verdade que você mudou?’ Aí perguntam: ‘o que que você
mudou, mudou alguma coisa?’ E eu respondo que só o nome eu mudei.”
Apresentar o nome é reapresentar-se. Agora o nome é consonante com seu corpo, sua
escolha. A genitália ainda está incompleta, mas não o impede de ser homem. Limita apenas
uma esfera de sua vida, a sexual, mas não o impede de viver como Bahia, de fazer planos
para sua vida após a cirurgia.
“É, vou me sentir bem comigo mesmo. Não que eu não esteja, mas vai tudo
estar do jeito que eu sempre quis. (...) Acho que mudar ia mudar só isso, que eu
ia me sentir bem com minha pessoa. Eu ia me olhar no espelho e ia falar :
sempre quis isso’. E o resto a gente ia levando. (...) Então assim, só ia mudar
eu comigo mesmo e os documentos. A revolução no meu corpo seria completa,
né, que eu falo. Pra mim seria importante. Eu ia sentir bem namorando, claro,
ter uma pessoa ao meu lado. Mas antes eu sentia que estava em falta com ela.
Na hora que ela vem querer alguma coisa comigo, porque eu sou assim, eu já
sou sincero ‘não, não, não. Depois. Espera. Calma’. Eu sempre fui assim e eu ia
me sentir bem. Sempre respeitei, só que agora eu vou me sentir completo do
lado daquela pessoa. Por isso que eu digo que vou me sentir bem comigo
mesmo. É o que pesa, né. E eu confio que tudo dê certo.”
91
Confia na cirurgia e confia mais ainda em si mesmo, na vontade de ser Bahia. Bahia é um
indivíduo que se reconhece como uma pessoa igual às outras, no direito de se sentir bem com
seu corpo.
“Se eu não demonstro realmente o que eu queria, todo mundo ia me chamar de
Bahiana. Tem que demonstrar realmente. Eu demonstrei realmente o que eu
queria, porque se eu fosse ficar só pra mim, guardando, todo mundo ia me
chamar de Bahiana. ”
Hoje Bahia tem consciência da importância da espera e do apoio da família, pois ele
viveu seu corpo e a decisão veio em seu tempo.
“Eu ia me sentir mal para o resto da vida por ser uma coisa que eu não queria
ser. Por isso que minha mãe não tomou essa decisão nunca. Ela sempre esperou,
mesmo sendo o que ela não queria. Por isso que eu falo que a pessoa precisa de
um apoio do lado. Se você se sente sozinho, não dá. Quando você sente aquela
timidez, você tem medo de se relacionar com as pessoas, tem medo de tudo. Pra
tudo você tem medo.”
Ao olhar para sua história, o que passou, e olhar para frente, para o futuro de uma outra
criança na mesma condição, Bahia nos mostra o quanto é difícil pensar na intervenção
cirúrgica quando se trata de uma outra pessoa, um outro corpo.
“Se acontecesse com um filho meu, eu esperaria. Mas a questão do nome seria
complicada. Agora, eu não sei se eu faria no começo (a cirurgia) ou esperaria
ele decidir. Mas eu tenho medo de fazer no começo e ele não querer ser o que
eu decidir. Eu prefiro que ele passe, mude nome, mude tudo, mas sabendo o que
ele queria. Eu queria que ele se sentisse bem do jeito que ele é, do jeito que ele
quer ser. Esse negócio de nome, o nome é difícil, mas a gente conserta. Mas se
faz a cirurgia para uma coisa que você não gosta, não tem como consertar. Tá
92
vendo, a gente aprende com tudo. Tudo na vida é uma experiência, né, pra não
deixar acontecer tudo de novo.”
Quando resgatamos a história de Bahia para introduzir nossas considerações finais
Bahia, ao nascer, carregava consigo a expectativa de um papel definido em sua teia familiar: o
papel de filha. Entretanto, ao longo de sua infância e adolescência foi percebendo a
transformação de seu corpo e a transformação na forma como se relacionava com os outros
(familiares, amigos, professores) e consigo mesmo. A identidade da menina desengonçada,
com jeito de menino, foi reposta até o início da adolescência. Quando Bahia percebeu que seu
corpo não era igual ao das irmãs e das demais meninas de seu grupo, quando o desejo afetivo
e sexual por mulheres começou a aparecer, Bahia passou a questionar seu papel de menina.
As peças de seu quebra-cabeça pessoal não se encaixavam mais. Ao entender o que se
passava com seu corpo, a não ação dos hormônios em provocar o surgimento de
características femininas, Bahia depara-se com um espaço para sua decisão. Se ele não era a
menina que aprendeu que era, se não era forte e corpulento como os meninos que conhecia,
quem era Bahia?
Bahia era alguém que tinha dificuldade em responder às expectativas do outro quando se
referia à sua atuação no papel feminino, pois a menina desengonçada, que parecia um menino,
era geneticamente um menino. Um menino que ao nascer foi registrado como menina, pois
sua genitália era ambígua e mais se parecia com uma vagina do que um pênis.
A menina, Bahianinha, pequena e desengonçada teve vários outros significativos
representados em sua história pela professora, a avó e a madrinha, que lhe deram o apoio
93
necessário para aprender a conviver com sua diferença e buscar respostas para as perguntas
Quem sou? Quem quero ser?
Bahia é a expressão da mesmidade, a expressão da alterização, a superação da personagem
“menina desengonçada”. Ele é a expressão do outro outro que também era ele, o “filho do
pai”, que supera a identidade pressuposta de menina e se apresenta como diferente de si
mesmo.
Não há dúvidas que Bahia afetou sua família, sua comunidade. Ele viveu percebendo que sua
condição provocava dúvidas e conflitos nos grupos dos quais fazia parte. Quem é, na verdade,
Bahia: menino ou menina? Hoje ele sabe que é um menino e que foi registrado como menina.
Sabe que seu corpo masculino ainda está incompleto, mas sente-se melhor neste corpo do que
sentia-se no mesmo corpo (físico) quando era feminino (significado). Sua genitália era, de
fato, ambígua e esta ambigüidade, por algum tempo, estendeu-se para seu corpo e sua
identidade.
Para tentar completar o que faltava em seu corpo, Bahia alternou entre a identidade feminina e
a masculina em seu processo de socialização. O “mim” feminino tentava enquadrar-se no
papel de filha. O “eu” feminino reagiu às atitudes da comunidade, mas recebia como resposta
o estranhamento do grupo. Quem sou eu? Quem quero ser? Bahia não tinha clareza. Sentia
que era uma menina não convencional. Era pouco ou nada feminina, corpo reto, gostos
masculinos e briguenta. Bahia encontrou no tempo, no desenvolvimento de seu corpo a
resposta de que não era menina e sim menino. Foi a partir da interação com o outro que se
definiu a forma como ele se relacionou com seu corpo, o significado a ele atribuído foi
revisado na medida em que percebeu que o que aprendeu e internalizou sobre corpos
94
femininos não se aplicava a seu corpo feminino. Bahia volta a olhar para seu corpo e percebe
que “é muito forte”, mais forte que os remédios. Os médicos lhe explicaram o que acontecia
como ele: ele era biologicamente um menino.
Tivesse ele sido submetido à cirurgia logo na infância, não teria vivenciado o processo tardio
de virilização. Teria se tornado uma mulher (fenotípica), com caracteres femininos produzidos
pelo uso de hormônios; não fértil; submetida a uma série de cirurgias para produzir uma
neovagina e talvez continuasse se sentindo estranho em seu corpo.
A cirurgia de reconstrução genital foi um recurso pelo qual Bahia optou no momento em que
entendeu estar seguro e preparado para tomar a decisão. A informação lhe foi fornecida pelos
médicos, os recursos foram disponibilizados e a decisão final foi dele. Bahia optou por buscar
uma vida que merecia ser vivida, a sua vida. Nas palavras de Butler, “se sou alguém que não
pode ser sem fazer, então as condições de meu fazer são, em parte, as condições de minha existência.
Se meu fazer é dependente do que é feito comigo ou, antes, das formas nas quais eu sou feito pelas
normas, então a possibilidade de minha existência como um EU depende de minha habilidade de fazer
algo com o que é feito comigo”.
127
O que Bahia fez foi crescer e, através do processo de socialização, incorporar o que
inicialmente esperavam dele (ou dela) e integrar e generalizar as diferentes expectativas dos
pais, da avó, madrinha, irmãs, professores e amigos. A partir desse confronto de expectativas
múltiplas e contraditórias, surgiu o centro de auto-comando do comportamento de Bahia.
Bahia desenvolveu suas próprias expectativas e aprendeu a lidar com a expectativa dos outros.
A criança subordinada à vontade da mãe em manter-se menina porque “ia demorar a mudar os
documentos, era melhor em certa parte ficar como Bahiana mesmo”, ao demonstrar sua
95
ansiedade em resolver sua situação, ouve da mãe uma nova resposta “deixa pra resolver
quando você crescer (...) porque aí você já sabe muito bem o que você quer”. Bahia conquista
espaço para exercer sua autonomia e tomar uma decisão condizente com seus desejos. A
responsabilidade por seu corpo, sua história e sua vida foi colocada em suas mãos.
Bahia havia conquistado o reconhecimento como pessoa e assumiu a responsabilidade por sua
história de vida. No momento em que assume o comando de seu corpo, sua vida, comunica a
seu grupo de amigos a sua condição: Bahia se abre para o mundo. Apesar de não dar detalhes
sobre seu corpo, Bahia conta sobre o erro em seu registro de nascimento e este evento o
fortalece para se relacionar socialmente. Bahia não precisava mais se esconder atrás dos
livros, dentro de casa.
A criança que, tomando banho com as irmãs, percebeu a diferença em seu corpo; que
aprendeu a distinguir entre si mesmo, seu corpo e o ambiente; que foi socializada como
menina e enfrentou dificuldades em desempenhar o papel feminino, pois não tinha os
atributos femininos que esperava, já superava a identidade natural e a de papel. Bahia, ao
assumir-se como rapaz, ingressava no terceiro nível do desenvolvimento da identidade do Eu,
conforme teorizado por Habermas. Ele transformava-se em uma pessoa que podia afirmar a
própria identidade independente do papel feminino e do sistema de normas ao qual estava
submetido até então. Bahia transformava-se verdadeiramente em autor de sua história de vida
na medida em que produzia e conservava sua própria identidade. Os conflitos aos quais foi
submetido o ajudaram a organizar a si mesmo. Bahia evoluiu da tentativa de representar um
papel para o desenvolvimento de sua própria personagem.
127
BUTLER, J., Undoing Gender, 2004, p.3
96
E Bahiana, ao tornar-se Bahia, nos mostra, nos termos butlerianos, que “a crítica às normas de
gênero deve ser situada dentro do contexto de vidas enquanto são vividas e deve ser guiada
pela questão sobre o que maximiza as possibilidades de uma vida vivível, o que minimiza a
possibilidade de uma vida insuportável ou, de fato, morte social ou literal”.
128
A história de Bahia nos ensina que “nenhuma interpretação, nenhuma perspectiva podem ser
assumidas como únicas em validade ou serem consideradas inquestionavelmente corretas”
129
e que é pelo interesse humano e através do diálogo que devemos lutar, pois “no processo de
conversação o indivíduo não tem apenas o direito mas a obrigação de falar para a comunidade
a qual pertence, e produzir mudanças que ocorram através da interação dos indivíduos.”
130
No melhor dos termos meadianos, Bahia provoca um diálogo entre sua família, médicos,
amigos, escola e trabalho para criar seu espaço e nos lembra que não podemos esquecer da
capacidade de responder à comunidade e insistir no gesto da mudança da comunidade uma
vez que “nós podemos reformar a ordem das coisas; nós podemos insistir em fazer dos padrões da
comunidade, padrões melhores. Nós não somos simplesmente unidos pela comunidade. Nós somos
engajados em uma conversação na qual o que nós dizemos é ouvido pela comunidade e sua resposta é
afetada pelo que temos a dizer.”
131
E foi exatamente esse o processo pelo qual Bahia passou. Sem intervenção cirúrgica, ele teve
a oportunidade de viver seu corpo, viver as dores e as dificuldades da diferença para descobrir
quem é e quem quer ser e, então, resolver ter seu corpo autonomamente reconstruído.
128
BUTLER, J., Undoing Gender, 2004, p. 8 “The critique of gender norms must be situated within the context
of lives as they are lived and must be guided by the question of what maximizes the possibilities for a livable
live, what minimizes the possibility of unbearable live or, indeed, social or literal death”.
129
BERGER, L.P., LUCKMANN, T., Modernidade, pluralismo e crise de sentido : a orientação do homem
moderno, Vozes, 2004, p.54
130
MEAD, G. H., Mind, Self and Society, p. 168
131
MEAD, G. H., Mind, Self and Society, p. 168
97
Capítulo 7
Considerações finais
“Alguns preferem continuar vivos na sua mesmice,
para servir de pasto à rapina. Outros encontraram
seus esconderijos onde as águias não os alcançam.
Mas há aqueles que acham que uma vida que merece
ser vivida não é nem a da carniça, nem a da caça que
se esconde. Querem deixar de estar acorrentados,
libertar-se dos grilhões, da opressão; querem matar
a águia no seu desespero, acabar com a rapinagem.
Talvez nem mesmo matá-la precisariam; bastaria
98
inverter a prisão, acorrentar a ave e colocá-la a
serviço do homem”.
CIAMPA
O que podemos observar na história de Bahia é a possibilidade de viver uma vida que merece
ser vivida a partir do momento em que o indivíduo pode afirmar “Eu” de si mesmo e pode ser
reconhecido como um outro que não se reduz a qualquer personagem, mas sim, que é a
expressão de uma pluralidade.
Assim como acontece em Papua Nova Guiné e na República Dominicana
132
, por exemplo,
onde crianças com genitália ambígua devido a deficiência na 5 α redutase não são submetidas
a nenhuma intervenção, pois é sabido pelo grupo que na puberdade essas crianças sofrem
uma mudança de sexo natural, se virilizam e se tornam, visivelmente, homens, Bahia virilizou
sem a intervenção tecnológica de hormônios ou próteses cirúrgicas.
A partir deste exemplo de solução encontrada por uma comunidade que permite esta variação
de feminino a masculino (as crianças com 5 α redutase são chamadas de “kwolu-aatmwol” ou
“transformando-se em homem”) e da vivência pessoal de Bahia, podemos pensar em
caminhos para a socialização e desenvolvimento de pessoas com a deficiência da enzima 5 α
redutase que estejam mais calcados no diálogo do que na intervenção cirúrgica precoce.
Bahia representa a expressão de uma identidade pós-convencional na medida em que passou a
atribuir às suas vivências um sentido de auto-determinação, tornando-se a ser reconhecido
pela comunidade (médicos, família e amigos) como portador de direitos. Bahia se emancipou
132
Herdt (1994)
99
e, ao contar sua história, demonstra uma ruptura na continuidade do existir humano
decorrente de uma mera imposição social. Sua identidade foi confrontada com exigências que
estavam em contradição com as expectativas sociais e Bahia conquistou o poder de decisão
sobre seu corpo, a possibilidade de se reconhecer pelo que é e pelo que quer ser. A correção
cirúrgica em sua história vem como conseqüência de uma decisão pessoal, é ponto de chegada
e não de partida na definição de sua identidade. A mudança do corpo de Bahia veio ao
encontro de suas intenções, iniciativas e pretensões, pois ele se reconhece em seu corpo vivo e
tem consciência que é através deste corpo que sua existência se encarna.
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