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LAÍS GUARALDO
A Construção da Linguagem Gráfica
na Criação de Ilustrações Jornalísticas
2007
SÃO PAULO
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO
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LAÍS GUARALDO
A Construção da Linguagem Gráfica
na Criação de Ilustrações Jornalísticas
Tese apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de Doutor em Comunicação e
Semiótica, sob orientação da Prof
a
Doutora
Cecília Almeida Salles.
2007
SÃO PAULO
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO
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BANCA EXAMINADORA
Ao Beto Melo, tão querido
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Cecília Salles, pelos caminhos que vai conduzindo, com alegria;
Aos queridos professores do programa de Comunicação e Semiótica, Christine Greiner e
Arlindo Machado;
Ao Beto Melo, por tantas serras conversadas;
Aos colegas da PUC, pelo prazer do diálogo: Douglas Canjani, Rosângella Leote, Marcus
Bastos, Sylvia Fernandes, Franscisco Camêlo, Cassiano Quilici, Hamilton Octavio de
Souza, José Arbex Jr., Silvio Mieli;
Aos meus pais, Nelson Guaraldo e Aparecida da Graça Guaraldo. Minhas irmãs, Lívia,
Leila, Lúcia, Michele, sobrinha Estela e enteados Gustavo e Júlia;
À Alessandra, Flora, Bruno, Sandra, Elvira, Nadai, Pouso Alto e Miguelita;
À Comissão de Ensino e Pesquisa da PUCSP, pela bolsa concedida para a redação final.
E agradeço sobretudo à imensa generosidade dos ilustradores estudados: Carlos Matuck,
Orlando e Samuel Casal.
A Construção da Linguagem Gráfica na
Criação de Ilustrações Jornalísticas
Laís Guaraldo
Resumo
O processo de criação de ilustrações de jornais e revistas é o tema desse trabalho, que
procura analisar os fatores que singularizam o processo de criação desse tipo de produção
visual e sua contextualização no universo editorial. Defende-se aqui que a criação de ilus-
trações jornalísticas é uma ação inteligente, que mobiliza diferentes instâncias cognitivas,
envolve posicionamento crítico e estético, e mobiliza recursos expressivos, em condições de
trabalho marcadas por imperativos e constrangimentos industriais.
Foram analisados nessa pesquisa os processos de criação dos trabalhos de três ilus-
tradores brasileiros: Carlos Matuck, Orlando Pedroso e Samuel Casal. A escolha desses três
nomes teve como critério suas diferentes formas de lidar (ou não) com as ferramentas digi-
tais, com produções que ocorreram entre os anos de 1989 e 2007.
A análise dos processos criativos foi feita com a metodologia da crítica genética com
abordagem semiótica, nos moldes desenvolvidos pelo centro de estudos de crítica genética
da PUCSP (CECG), coordenado por Cecília Salles. O trabalho criativo é compreendido aqui
num contexto de mobilidade e rede relacional, ocorrendo em lugares múltiplos, onde forças
interagem e reconguram o próprio meio. O objetivo central dessa pesquisa é a identicação
da especicidade dessa rede, que constrói e é construída pela ação criativa.
Trata-se de uma ação criativa inserida numa trama composta de circunstâncias in-
dustriais de produção, escassez de tempo, estratégias de construção de relações com o texto,
escolhas técnicas, procedimentos compositivos grácos e negociações entre a invenção e o
clichê.
Pretende-se com esse trabalho contribuir para o ensino da visualidade na área da
comunicação, defendendo e investigando a ação inteligente envolvida na produção visual e
a legitimidade desse tipo de expressão.
Palavras-Chave: Ilustração, Crítica Genética, Comunicação Visual, Visualidade,
Processos de Criação, Linguagem Gráca, Jornalismo.
The Construction of Graphic Language in the Creation
of Journalistic Illustrations
Laís Guaraldo
Abstract
This research is concerned about the process of creating illustrations in newspapers
and magazines, and aims at analysing the factors that makes the process of creating this kind
of illustration something unique in the editorial context. Here, our claim is the creation of
journalistic illustrations is an intelligent act, which demands the use of different cognitive
levels as well as political and aesthetic positioning. Besides it also demands the use of a
number of expressive resources, which are somewhat, constrained by the demands of the
industry.
In this research, we analysed the creative process of three Brazilian artists: Carlos
Matuck, Orlando Pedroso and Samuel Casal. These three artists were chosen due to their
unique way of sealing (or not) with the digital support in pieces of art produced between
1989 and 2007.
The analysis of the creative process followed the methods established by the genetic
criticism at Semiotic approach, both developed by the Centre of Studies of Genetic Criticism
of PUCSP (CECG), coordinated by Cecília Salles. The creative work is understood here in
a context of both mobility and relational network. As such, it takes place in multiple spaces,
in which a number of forces interact and recreate the environment. The aim of this research
is the identication of the specicity of the network that builds and is built by the creative
act.
Journalistic illustration is a creative act inserted in a network made by industrial
constrains, lack of time, relationship with text, technical choices, graphic procedures and a
negotiation of what is innovation and what is cliché.
So, this research is intended to contribute to the teaching of visual arts in the eld
of Communication Studies, studying and advocating in favour of the intelligent act on the
visual production as well as the legitimacy of this means of expression.
Keywords: Illustration, Genetic Criticism, Visual Communication, Creative Process,
Graphical Language, Journalism.
Sumário
Considerações preliminares 1
Apresentação 4
Metodologia - O processo sob a ótica da rede 8
Os Ilustradores 11
Carlos Matuck 11
Orlando Pedroso 13
Samuel Casal 15
Depoimentos 17
Estrutura do trabalho 18
Capítulo 1 – A constituição da expressão gráfica 20
1.1 Terminologias da linguagem gráfica 21
Ilustração 22
Charge 23
Cartum 23
Caricatura 24
Infografias 25
Storyboards 25
Vinhetas 26
1.2 As tramas da rede gráfica: contextos sociais, técnicas e linguagens 26
Capítulo 2 – Contexto da Produção 36
2.1 Projeto Editorial e Projeto Gráfico 37
2.2 Política empresarial, mudanças de hábitos e projeto editorial 40
2.3 Recursos, espaços e prazos 44
Dimensão dos originais 44
Espaço de trabalho e prazo 45
2.4 Computadores e Internet 47
“O computador igualou os desenhos” 47
Capítulo 3 – Processos Construtivos 53
Função Comunicativa 54
Critérios para a apresentação do material 56
3.1 – Procedimentos encontrados no material analisado 58
Armazenar 58
Traçar 60
Texturizar 60
Esboçar, rafear 62
Desenhar, escanear 64
Sintetizar, analisar 65
Vetorizar 66
Modelar com vetores 67
Deformar 69
Fundir 72
Apropriar 72
Deslocar 77
Recortar e Colar 78
Testar a organização espacial com recursos digitais 81
Configurar 85
3.2 – Construção da relação com o texto 87
Aspectos distintos do mesmo campo referencial 91
O reforço ao texto – contrastes gráficos e contrastes de valores 93
Organização espacial e hierarquia das informações 97
Ponto de vista 98
Decupagens da ação, seqüenciação 99
3.3 – Campo Expressivo 101
Metáfora e Clichê 101
Ironia 104
Hipérbole 106
Tipificação e emblema 107
A representação da figura humana e a geometria dos sentimentos 109
Grotesco 114
A ilustração sob o ponto de vista do ilustrado 116
Considerações finais 119
Ilustração e ferramentas digitais 121
Redundância e informação 122
Bibliografia 126
1
Considerações preliminares
Desde os 22 anos dou aula de visualidade em ateliês de escolas e faculdades, para
alunos com faixas etárias dos 8 aos 25 anos. Durante esses 20 anos, sempre tive entusiasmo
pelo meu trabalho, pela oportunidade cotidiana de compartilhar com meus alunos as emo-
ções, angústias e riscos implicados na elaboração das mais variadas imagens visuais, reali-
zadas com recursos simples e poucas mediações tecnológicas.
Nunca aceitei uma cena recorrente, nos dias de reuniões pedagógicas das escolas
em que trabalhei: os pais dos alunos faziam las para falar com os professores de Português
e Matemática e passavam rapidamente pela sala de Artes para conferir se o lho tinha ou
não o “dom” para desenhar. Cientistas cognitivos vêm mapeando a existência de diferentes
estruturas inatas relacionadas à linguagem
1
, o que poderia ser equivalente à pesquisa sobre a
existência ou não do “dom” (entendido como dádiva dos deuses ou da Natureza). O fato de
haver estruturas inatas relacionadas às linguagens não desobriga a humanidade de transmitir
conhecimento a respeito da maneira como se articulam. Se essa transmissão é aplicada à
linguagem verbal, por que não o seria à linguagem visual?
Desde a Antigüidade, as ocinas e os ateliês são reconhecidos como um lugar de
transmissão de conhecimento e o saber fazer não foi transmitido desconectado de suas im-
plicações sociais, culturais e losócas. Sabemos que Leonardo da Vinci produzia conhe-
cimento em seu ateliê. Mas o senso comum decretou que Leonardo era um gênio, tinha
o “dom”, daí conclui-se que não o que ser transmitido culturalmente entre as gerações a
respeito dos conhecimentos procedimentais em torno da visualidade.
É curioso que ninguém se questiona se nasceu com dom de escritor como condição
para se alfabetizar. E que a imensa maioria dos livros que tratam do tema da linguagem se
refere à expressão verbal como sinônimo de linguagem em geral.
Pode parecer óbvio que a construção de mensagens visuais implica uma ação inte-
ligente, transmitida e situada culturalmente. O problema é que, no cotidiano da maioria das
escolas e universidades, os produtos visuais são valorizados apenas no âmbito da contextua-
lização histórica, apreciação crítica e estética, em detrimento dos conhecimentos envolvidos
na sua produção
2
. Esse quadro pode estar se agravando nos últimos anos, com a proliferação
de programas grácos e a falsa impressão de que o computador realiza sozinho a produção
visual.
1 O livro do lingüista cognitivo Steven Pinker (2004), Tábula Rasa, divulga boa parte dessas pesquisas.
2 Deve-se levar em conta a ação contundente e legítima dos arte-educadores da década de 1980, que se opuseram à livre
expressão em voga na década de 1970, e defenderam a metodologia triangular, baseada no tripé contextualizar/apreciar/
fazer. No entanto, os anos de vivência em escolas e congressos de arte-educação me fazem avaliar que grande parte das
escolas valorizou apenas a contextualização e a apreciação crítica, reduzindo o fazer a cópias constrangedoras de obras de
Van Gogh e Miró.
2
Envolvida nesse âmbito de preocupações, iniciei meu mestrado no programa de se-
miótica e, para grande surpresa, no primeiro dia de aula conheci Cecília Salles, que apre-
sentava o histórico da Crítica Genética, na França e depois no Brasil, expondo o interesse
profundo dessa linha de pesquisa pelo procedimento e pela ação construtiva.
No mestrado, desenvolvi uma dissertação sobre os cadernos de viagem de Delacroix
no Marrocos e Gauguin no Taiti e pude examinar os mecanismos de seleção perceptiva e o
aproveitamento posterior dos registros dos pintores em suas obras. Nesta tese de doutorado,
desejei investigar a ação construtiva da imagem visual, buscando a singularidade de um tipo
especíco de produção gráca, as ilustrações jornalísticas.
3
Apresentação
4
Apresentação
Este trabalho pretende examinar o processo de criação de ilustrações de jornais e
revistas com o objetivo de identicar os mecanismos de articulação de linguagem que são
próprios desse campo da expressão gráca. Está inserido no campo de pesquisa do Centro de
Estudos de Crítica Genética da PUCSP, que tem como foco de trabalho a elaboração de uma
teoria da criação e interpreta a análise de processos criativos sob a ótica de uma “rede de co-
nexões, cuja densidade está estreitamente ligada à multiplicidade das relações que mantém”
(SALLES: 2006, p.17). A criatividade não é tratada como se fosse proveniente de um local
determinado e singular, mas da relação entre vários locais (COLAPIETRO, 2003). Partindo
dessas premissas, busca-se compreender como se constitui a rede de relações em torno do
processo criativo de ilustrações jornalísticas e qual é a singularidade desse tipo de produção.
Serão examinados os processos de criação de três ilustradores brasileiros: Carlos
Matuck, Orlando Pedroso e Samuel Casal. A escolha desses três nomes teve como critério o
fato de suas produções terem ocorrido entre a década de 80 e os dias atuais, período em que
os computadores e programas grácos entraram nas empresas jornalísticas e também passa-
ram a ser adotados em larga escala. A análise das estratégias criativas envolvidas na elabora-
ção das ilustrações leva em consideração, portanto, as circunstâncias culturais, tecnológicas
e industriais em torno da sua produção.
O trabalho analisado de Carlos Matuck ocorreu no nal da década de 80, destinado
ao caderno de Letras do jornal Folha de São Paulo. Como recursos, Matuck utilizou dese-
nhos, carimbos, colagens e xérox. Orlando publicou pela primeira vez em 1978 e segue até
hoje. A trajetória de seu trabalho acompanha a introdução do computador nas redações. Os
recursos que utilizava eram exclusivamente analógicos até a década de 1990. Atualmente
(nos trabalhos para o jornal Folha de São Paulo aqui analisados) o seu procedimento é hí-
brido: desenha na prancheta e cria atmosfera, textura e cor no computador. Samuel Casal,
mais jovem, começou a publicar em 1990 e declara que aprendeu efetivamente a desenhar
diretamente no computador.
Hoje, com a popularização de softwares grácos e a decorrente substituição de pro-
cedimentos analógicos por procedimentos digitais, a produção de ilustrações ampliou consi-
deravelmente os seus recursos e conseqüentemente vem transformando a sua linguagem. Ao
mesmo tempo, ilustradores prossionais rapidamente perceberam que a produção impressa
cou toda muito parecida. Embora seja verdade que os recursos digitais propuseram recur-
sos facilitadores, do ponto de vista expressivo notou-se certa pasteurização.
A jornalista Marília Scalzo, que dirigiu revistas e coordenou por mais de 15 anos o
Curso Abril, acompanhou a mudança das máquinas de escrever por computadores nas re-
dações da editora e avaliou numa mesa de debates que “as ferramentas passam, o que ca
5
é o pensamento, a formação cultural
1
. O pensamento ca. Mas não se transforma? Novas
competências não estão sendo mobilizadas?
A análise da criação de ilustrações teve como foco a elaboração de linguagem gráca
e nos remete à denição de Iuri Lotman (1973, p.35) para linguagem: “todo o sistema de
comunicação que utiliza signos ordenados de modo particular”. Lotman considera que as
diferentes formas de organização da linguagem implicam regras de combinação de signos,
organização de sua estrutura e hierarquia.
Quando tratamos da transformação de uma linguagem em decorrência da emergência
de novas mídias, costuma-se propagar o fato de que novas ferramentas modicam a estrutura
das combinações sígnicas e proporcionam novas formas de expressão. Seriam as ferramen-
tas responsáveis pela transformação dos arranjos sígnicos?
A esse respeito, os autores Merrith Roe e Leo Marx (1994), que organizaram um
livro com ensaios intitulado Does Technology Drive History?, apontam a existência de inú-
meras fábulas da vida cotidiana que defendem, através de esquemas interpretativos simples
baseados em “antes e depois”, a armação na ecácia da tecnologia como força motriz da
história. A bíblia impressa por Gutenberg teria criado condições para a Reforma, a pílula
anticoncepcional teria desencadeado a revolução sexual e assim por diante.
“É digno de nota que essas míni-fábulas dirijam a atenção mais para as conseqüências do
que para a gênese dessas invenções. Quer os novos dispositivos pareçam sair do nada, como
algum deus ex-machina, quer pareçam sair do cérebro de um gênio como Gutenberg ou
Whitney, a ênfase usual é no artefato material e nas mudanças que ele presumivelmente
efetivará” (1994, p. x).
A tecnologia vem sendo sistematicamente concebida como uma identidade inde-
pendente das forças socioeconômicas, políticas, culturais e ideológicas e tomada como um
agente de mudança virtualmente autônomo. Eventos complexos são tratados como resultado
inescapável de uma inovação tecnológica. “Uma invenção, uma vez introduzida na socieda-
de, é descrita como uma vida em si” (ROE, Merrit et MARX, Leo: 1994, p. xi) O poder de
uma nova tecnologia efetuar mudanças pode ser derivado de certas situações socioeconômi-
cas e culturais especícas, defendem os autores.
Observando a dinâmica das manifestações expressivas envolvidas na comunicação
de massa, caberia questionar se não seria próprio das ações em torno da elaboração de men-
sagens a necessidade de se reciclar, para manter seu poder comunicativo, e se dessa necessi-
dade emergeria a transformação das ferramentas.
Nesse trabalho, vamos examinar como ocorre essa inter-relação entre ferramenta e
linguagem na ação construtiva de criação de mensagens grácas.
O lingüista e cientista cognitivo Steven Pinker (2002, p.5) dene a linguagem como
“a habilidade de moldar eventos do cérebro uns dos outros com primorosa precisão”. São
1 Depoimento: Semana de Multimeios. 18/10/2005. PUC-SP.
6
esquemas de representações mentais que codicam a informação na mente e também forma-
tam e manifestam essas informações. A essência da linguagem é que ela transmite informa-
ção. Deve ser pensada, portanto, na sua amplitude sígnica, e não apenas verbal. A linguagem
é a articulação do código e também a articulação entre códigos, com relativo desempenho
na transmissão de informações, e lida com o processamento das informações híbridas dos
aparatos sensórios.
No que diz respeito à linguagem gráca, esse trabalho objetiva analisar, nos casos
estudados, as maneiras como são ordenados os signos grácos na ilustração jornalística, as
circunstâncias em torno da sua produção e os procedimentos envolvidos.
Ilustrações jornalísticas são produções visuais de recepção efêmera, assimiladas e
descartadas junto com as notícias do dia, e requerem agilidade também na sua produção.
São desencadeadas a partir de uma necessidade comunicativa em torno de uma pauta, que
articula dois sistemas de linguagem, em diálogo: o texto e a imagem. É função da ilustração
atrair e conduzir o leitor ao texto.
A observação desse vínculo com o texto é um aspecto fundamental na análise do pro-
cesso criativo de ilustrações. Interessa-nos examinar as estratégias envolvidas na elaboração
dessa proximidade e diálogo entre códigos, verbal e visual, e a construção desse território
híbrido, nascedouro da linguagem gráca.
São escassas as informações sobre os procedimentos realizados pelos ilustradores
em seu trabalho. A reprodutibilidade das imagens distancia o seu público do “original” a tal
ponto que muitas vezes não é possível reconhecer nem ao menos um vestígio daquilo que
seria o seu “modo de fazer” e as competências envolvidas na sua elaboração. As ferramentas
digitais, embora tenham contribuído para ampliar as possibilidades de experimentação de
linguagem, distanciam ainda mais o público das evidências materiais do seu processo de
trabalho.
A grande maioria dos livros publicados e teses defendidas tratam do tema da caricatu-
ra, enfatizando a tradição satírica na imprensa e a crítica social na produção visual gráca ou
tratam de ilustrações de livros infantis. São abordagens que analisam a produção já impressa
e não têm como perspectiva o processo criativo, embora forneçam informações históricas
muito relevantes. Sobre esse tema, vale destacar o precioso livro de Ronald Searle
2
, Claude
Roy e Bernd Bornemann – La Caricature – Art et Manifeste – Du XVI siécle à nos jour.
No Brasil, um trabalho minucioso foi realizado por Joaquim Fonseca, Caricatura, a
Imagem Gráca do Humor, relacionando a produção internacional com a produção nacional.
Também vale apontar duas teses de doutorado recentemente defendidas, norteadas por preo-
cupações que esse trabalho compartilha e pretende dialogar, embora com objetivos distintos.
Luiz Geraldo Ferrari Martins, um dos maiores desenhistas brasileiros, conhecido como Luiz
Gê, defendeu em 2004, na ECA USP uma tese intitulada Escrita Plástica: desenho, pensa-
2 Ronald Searle é um famoso cartunista inglês que foi prisioneiro de guerra dos japoneses, em 1943 e realizou uma série
de desenhos de observação dos trabalhos forçados e condições de vida na prisão.
7
mento, conhecimento e interdisciplinaridade, sobre a importância do desenho como forma
de aquisição e sistematização de conhecimento. E Gilmar Adolfo Hermes, em 2005, defen-
deu na UNISINOS a tese As Ilustrações de Jornais Diários Impressos: explorando frontei-
ras entre jornalismo, produção e arte. O trabalho de Gilmar enfoca (como o título indica)
aspectos de natureza estética na produção jornalística e realiza um cuidadoso levantamento
da rotina produtiva dos jornais Zero Hora (3 a 6 de fevereiro de 2003), Jornal da Tarde e
Estado de São Paulo (17, 18 e 21 de junho de 2003) com depoimentos de ilustradores, que
será oportunamente comentado.
Uma abordagem que se aproxima do tipo de produção analisada nesse trabalho é
a de Paul Hogarth, na obra The artist as reporter. Nesse livro, o autor trata da relação dos
ilustradores com o jornalismo da época e a maneira como escolheram documentar os fatos
do dia, o que inclui a sátira e não exclui abordagens poéticas ou diagramáticas e informati-
vas. A caricatura é parte integrante da produção jornalística, mas não é o único gênero dessa
produção
3
. Embora Hogarth aborde as ilustrações jornalísticas com caráter documental, seu
enfoque analisa o trabalho impresso e não o processo de criação, e indica freqüentemente
dados sobre as circunstâncias em torno da produção que são de grande relevância para a
análise de processo.
3 Em torno da ilustração jornalística e da caricatura há um campo semântico difuso, que pretendemos esclarecer no capí-
tulo 1.
8
Metodologia - O processo sob a ótica da rede
A metodologia da crítica de processo, tal como trabalhamos no Centro de Estudos de
Crítica Genética, com orientação de Cecília Salles, investiga o trabalho criativo compreen-
dendo-o num contexto de mobilidade e rede relacional. O processo criativo é interpretado
como parte de um organismo em atividade, desestabilizador de paradigmas pré-existentes.
Ao se separar elementos para análise, procura-se não perder o contexto do processo no qual
o elemento está inserido.
Salles observa que o conceito de rede, que no momento presente desperta a atenção
de campos de conhecimento muito diversos, parece também indispensável para abranger
características do processo de criação, tais como a simultaneidade de ações, ausência de
hierarquia, não-linearidade e estabelecimento de nexos.
“Um desenho, se visto de modo isolado, perde seu valor heurístico, deixa de apontar para
descobertas sobre o ato criador. Todo documento, de modo geral, está inevitavelmente rela-
cionado a outro e tem signicado somente quando nexos são estabelecidos. Cada desenho é
revitalizado quando reconhecido e interpretado como parte de um organismo em atividade.”
(SALLES, 1996, p.117)
A concepção da ação criativa como parte de uma rede de relações rejeita a persistente
tradição romântica e aristocrática, que insiste em considerar o trabalho criador como produto
de insight, dom, talento ou genialidade, focando a análise do processo criador no ego (privi-
legiado) do artista e não na qualidade da sua relação com o mundo e com a matéria.
Evitando-se imagens binárias, opta-se aqui pelo modelo rizomático, com múltiplas
entradas. Mapa aberto, “é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível,
susceptível de receber modicações constantemente” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.
22). Da mesma forma como o conceito de hipertexto é tratado por Deleuze e Guatarri, a
análise de processo segue o princípio da metamorfose, heterogeneidade, multiplicidade, to-
pologia e mobilidade dos centros.
Seguindo essa mesma concepção, o lósofo e semioticista Vincent Colapietro (2003)
defende que não faz sentido localizar a fonte da criatividade no sujeito. A partir da crítica
contemporânea da subjetividade humana, onde o sujeito pós-moderno é cindido e colocado
numa rede de práticas entrelaçadas, não faz sentido falar de um local, no singular, onde su-
postamente ocorreria a criatividade. Torna-se imperativo falar do plural, dos locais (loci) da
criatividade, onde as práticas se interpenetram. Passa a ser insustentável qualquer presunção
do ser soberano de suas próprias criações. O locus da criatividade é tanto pluralizado quanto
historicizado.
O descentramento do sujeito signica, entre outras coisas, conceber a criatividade
como algo que não é uma obra do self. O sujeito é um ser constituído e situado. Não
apenas dividido em consciente e inconsciente, mas culturalmente inserido. Por conseqüên-
9
cia, qualquer que seja a engenhosidade do artista, ela é parte integrante de uma realidade
histórica e cultural (o que não signica determinismo).
Um corpo afeta e é afetado por suas ações, além do que deseja conscientemente. E
“mesmo a mais inocente troca é carregada de pulsão erótica e política” (Colapietro, 2003).
Desloca-se a atenção da subjetividade para a materialidade, pluralidade, historicidade e,
portanto, mutabilidade da ação criadora.
A ação criativa, compreendida como aquela que desestabiliza paradigmas existentes
e engendra novas alternativas para aquilo que está estabelecido, é concebida nesse trabalho
como lugares múltiplos, onde forças interagem, recongurando o próprio meio. A mente é
tratada como uma instância da semiose. O semioticista Vincent Colapietro enfatiza a im-
portância da atividade somática, engajada em complexas trocas, além da subjetividade. A
materialidade se manifesta através dos lugares onde diferentes forças se cruzam (terceiri-
dade), mas também através da atualidade bruta (segundidade) e da imediaticidade sensória
(primeiridade).
O raciocínio é tratado, nesse trabalho, como a capacidade de deduzir novos conheci-
mentos a partir da mobilização de conhecimentos antigos, de diferentes naturezas, em novas
congurações.
“A criação como processo relacional mostra que os elementos aparentemente dispersos estão
interligados; já a ação transformadora envolve o modo como um elemento inferido é atado a
outro. Os elementos selecionados já existiam, a inovação está no modo como são colocados
juntos, ou seja, na maneira como são transformados” (SALLES, 1996, p.35).
Dialogando diretamente com esses parâmetros, no âmbito educacional, é bastante
conhecida a denição de Philippe Perrenoud (1999) para competência: “capacidade de agir
ecazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem li-
mitar-se a eles”.
A competência coloca em ação e em sinergia vários recursos cognitivos complemen-
tares. Manifesta-se em ações como “a construção e a vericação de uma hipótese”. Não é,
em si, conhecimento, mas a utilização, relação, integração e mobilização de conhecimentos.
Perrenoud avalia que a apropriação de numerosos conhecimentos não garante a sua mobili-
zação em situações de ação. É a síntese qualitativa que lhe confere a propriedade criativa, no
sentido de introdução de novos paradigmas. É no modo como são arranjados os elementos
que pode haver inovação e singularidade.
Ao realizar seu trabalho, ilustradores desenham no papel ou diretamente no compu-
tador, realizam colagens, apropriam-se de imagens retiradas de livros ou banco de imagens
digitais, ampliam e deformam. O trabalho deixa rastros materiais e essa documentação em
torno da ação criativa é objeto de análise da crítica genética.
Cecília Salles (1998, p.17) nomeou como documento de processo esses registros
materiais da ação criadora. Salles ressalta o fato de que não acesso direto ao fenômeno
10
mental que os registros materializam, no entanto os documentos de processo “podem ser
considerados a forma física através da qual esse fenômeno se manifesta”.
Esses documentos são fragmentos indiciais de uma ação (material e também mental)
que a crítica genética propõe colocar em relação. Ao estabelecer nexos entre os diferentes
aspectos do trabalho criativo, busca-se tornar legível o movimento criador. As fronteiras
materiais desses registros não impedem o estabelecimento de inferências sobre o que não foi
documentado.
Não apenas esboços e projetos são levados em conta, também as circunstâncias so-
ciais em torno dessa produção. No caso das ilustrações jornalísticas, os desenhos preparató-
rios remetem a um tipo de escolha de ferramenta, que remete a uma circunstância cultural,
uma tradição gráca, um contexto industrial de produção e reprodução de mensagens, uma
resposta à diretriz lançada pelo texto, uma nalidade muito objetiva para onde se destina a
mensagem em criação. Essa é uma das possíveis redes que pode ser criada em torno desse
tipo de produção.
O historiador de arte Michael Baxandall (2006) propõe também uma crítica infe-
rencial, fundada na possibilidade de descrever o objeto a partir de quaisquer dos ângulos,
à medida que se criam relações entre eles. A descrição e a interpretação se interpenetram
constantemente. Trata-se de uma proposta de abordagem que encontra muitos diálogos com
a crítica de processo. Michael Baxandall (2006, p. 66) se refere às diretrizes em torno da
produção criadora como condições locais relacionadas com um caso especíco, circunstân-
cias objetivas, de existência real que participam efetivamente dos mecanismos de decisão
envolvidos no trabalho.
A ação criativa é concebida como rede de conexões, cuja densidade está estreita-
mente ligada à multiplicidade das relações que mantém (SALLES) e ganha complexidade à
medida que novas relações vão sendo estabelecidas.
O objetivo central desse trabalho, portanto, consiste na identicação dos elementos
que constituem a rede em torno da criação de ilustrações jornalísticas, transitando entre as
relações do ilustrador com a tradição gráca e o ambiente editorial e também com as sin-
gularidades dos procedimentos criativos, na tentativa de estabelecer vínculos com o texto e
construir um campo expressivo.
11
Os Ilustradores
Carlos Matuck
Nasceu em São Paulo, em 1958. Desenhou
desde muito cedo, em convívio com seus dois irmãos
artistas, Rubens e Artur. Seus primeiros trabalhos fo-
ram em técnicas tradicionais: grate, carvão, lápis de
cor, nanquim, pastel, guache e aquarela.
No nal dos anos 70, fez dois anos de gravu-
ra em metal com Sérgio Fingermann e iniciou suas
pesquisas com colagens e carimbos. Em 1978, conhe-
ceu Alex Vallauri (1949-87), pioneiro do grate em
São Paulo, com quem desenvolveu alguns projetos.
Entrou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo em 1979 e não concluiu,
envolvido com a efervescência cultural da década de
80 e seu trabalho de intervenção urbana através do
grate, que marcava a cidade com misteriosos signos
grácos previamente recortados (stencil art).
Na década de 1980, Carlos publicou ilustra-
ções em jornais e revistas (Playboy, Veja), pintou,
desenhou e roteirizou histórias em quadrinhos, proje-
tou capas de livros para editoras como a Brasiliense,
Companhia das Letras, Globo, Círculo do Livro.
De 1/4/1989 a 6/1/1990, Carlos realizou uma
série de ilustrações para a Folha de S.Paulo, na seção
Primeira Leitura, do caderno Letras. O trabalho par-
tiu de um convite do editor, Marco Chiaretti. Publi-
cado periodicamente aos sábados, Letras substituiu
o Folhetim, em 1/4/1989. Foi substituído pelo Mais!
em 16/2/1992.
Grande parte dos estudos preparatórios rea-
lizados para esses trabalhos foram organizados pelo
próprio Carlos em dois portifólios encadernados (de
0.67 x 0.47cm), o que proporcionou o exame de vários
aspectos de seu processo. As páginas desses portifó-
lios dialogam diretamente com a sua biblioteca, que
foi generosamente disponibilizada para a pesquisa.
12
Carlos tem se dedicado à pintura, ilustrações e recortes de grate. Sua atividade
prioritária, no entanto, são os murais que realiza com técnicas mistas de grate e pintura.
Produziu murais para o Sesc Pinheiros, Sesc Santana e para a sessão de música da Livraria
Cultura do Conjunto Nacional (2007), todos eles na cidade de São Paulo.
Na produção de ilustrações de Carlos Matuck há um constante jogo de apropriação,
re-utilização e ressignicação dos motivos. É intenso o interesse desse ilustrador por refe-
rências grácas antigas, como gravuras do século XIX, carimbos e clichês, que utiliza em
seu trabalho de história em quadrinhos, em seus grates, murais, capas de livros e quadros.
Imagens oriundas dos mais distintos processos de produção estabelecem diálogos instigan-
tes. Vamos ver que, nas ilustrações realizadas para o jornal Folha de S.Paulo, a apropriação e
manipulação das dimensões dessas imagens e o arranjo compositivo foi utilizado e adequado
às especicidades desse tipo de produção.
Os carimbos utilizados são provenientes de uma coleção que começou a partir de um
encantamento por uma caixa de carimbos para crianças, cuja capa era típica dos anos 1960.
O hábito de colecioná-los foi incentivado pela amizade com Vallauri. Quando se conhece-
ram, descobriram que tinham em comum o gosto por carimbos e grate.
Foi Vallauri que apresentou a Carlos os carimbos do Dulcemira, que impressionam
pela diversidade de temas (em desenhos da década de 50 e 60) e dimensão. Não eram exa-
tamente carimbos, mas clichês feitos em linóleo, para impressão em anilina de papéis de
embrulhos com a marca de lojas. Por conta dessa nalidade, tinham grandes dimensões e
diversidade de assuntos. Eram vendidos numa pequena loja, no Centro de São Paulo.
Nas ilustrações, Carlos utiliza os carimbos e clichês com uma ampla gama de nali-
dade: como elemento gráco ou como textura. Em alguns casos, faz máscaras para carimbar,
aproximando o carimbo e o grate. A referência à linguagem dos quadrinhos é constante.
Os desenhos da década de 50 e 60, dos carimbos/clichês de Dulcemira que povoa-
vam as ruas da cidade de São Paulo como grates marginais reapareceram em Histórias em
quadrinhos, como Shirley na TV (Revista Circo, 1987) ou O Homem nos Tempos que correm
(Atlas Almanak, 1988).
As mesmas imagens provenientes de carimbos ou de um catálogo de artigos do sé-
culo XIX podem aparecer numa HQ, numa ilustração, num grate de um muro da cidade ou
num mural do Sesc ou de uma livraria, nas mais distintas congurações.
13
Orlando Pedroso
Nasceu em São Paulo, em 1959. Quando criança, disputava com os irmãos o papel de
pão, para desenhar. Estudou na Escola Técnica de artes grácas do Senai
4
, na década de 70.
Publicou pela primeira vez em 1978, aos 19 anos, no jornal Em Tempo. Iniciou e não con-
cluiu o curso de artes plásticas da FAAP, decepcionado com a falta de “fervor” do lugar.
Desde 1985, trabalha sistematicamente como ilustrador para publicações como o
jornal Folha de São Paulo, revistas Playboy, Capricho, Carícia, Istoé, Exame, Claudia, Ma-
rie Claire, Elle, Quatro Rodas, Atrevida, Veja, Você s/a, além de capas para editoras como
Moderna, Ática, Senac, Scippione, Nova Cultural, Ediouro e Salamandra.
Em 1997 expôs nos espaços Unibanco de Cinema de São Paulo e Rio os desenhos de
Como o Diabo Gosta e em 2001, no espaço Ophicina, em São Paulo, Olha o Passarinho!.
Ainda em 2001 ganhou o Prêmio HQMix de melhor ilustrador do ano. Em 2002, organizou
o livro Dez na área, um na banheira e ninguém no gol, lançado pela Via Lettera. Desenvolve
projetos grácos para a sua empresa, a CO2 Grácos. É responsável pela criação de peças
de comunicação dos Doutores da Alegria.
Percebe-se na atuação prossional de Orlando um profundo envolvimento na valo-
rização da ilustração e das condições de trabalho dos ilustradores, tentando criar espaços de
discussão e edição de trabalhos, independentes dos espaços cada vez mais reduzidos da gran-
de imprensa. Atualmente organiza a Sociedade dos ilustradores do Brasil e o evento anual
4 Criado em 1942, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial foi uma das instituições pioneiras na área de design no
Brasil. Na década de 1970 era o maior parque gráco da América Latina.
14
Ilustra Brasil - que reúne ilustradores de todo o país para debater questões relacionadas à
prática prossional. Nesse evento, são convidados para as mesas prossionais estratégicos
relacionados à contratação de ilustradores, como diretores de arte e publicitários. No auditó-
rio, ilustradores fazem perguntas a esses prossionais.
Com o objetivo de valorizar a ilustração como produção expressiva de qualidade,
Orlando desenvolve uma atividade editorial independente. Edita, divulga, distribuiu e co-
mercializa livros com séries de desenhos, como o intitulado Moças Finas (2006).
Um trabalho de muita visibilidade que Orlando desenvolve são as ilustrações da ter-
ceira página da Folha de S.Paulo, na sessão Tendências e Debates. Trata-se de uma página
de artigos de opinião de convidados, o que possibilita intenso diálogo entre a ilustração e a
opinião do articulista. Alguns exemplos desse diálogo serão analisados nesse trabalho.
15
Samuel Casal
Nasceu em Caxias do Sul, no inte-
rior do Rio Grande do Sul, em 1974, e co-
meçou a trabalhar junto à redação do jornal
Folha de Hoje, em 1990, com dezesseis
anos. Nessa ocasião, não tinha nenhuma
experiência além dos desenhos que fazia
em seus cadernos. Era ainda muito jovem e
não se sentia seguro em relação à habilida-
de de desenhar. Foi no ambiente de trabalho
de redação de jornal que aconteceu quase
toda a sua aprendizagem.
Era o início dos anos 1990, época
em que os programas grácos começaram
a ser adotados pelas empresas jornalísticas.
Como conseqüência, Samuel desenvolveu
o seu traço todo no ambiente digital, o que
resulta em soluções plásticas muito distin-
tas daquelas que conhecemos nos desenhos
feitos com lápis, caneta e tinta. Foi com o
computador que ele considera que apren-
deu a desenhar.
“Eu sempre escondi o meu desenho.
Procurava soluções onde eu precisasse
desenhar o mínimo possível, por conta
de achar que não sabia desenhar. (...)
Nem sequer sabia que tinha que passar tinta no desenho para sair no jornal. Fiz um teste e de-
senhei a lápis. O cartunista que coordenava a arte do jornal, Carlos Henrique Iotti comentou
‘Seus desenhos são muito ruins. Mas as idéias são muito boas’. Daí eu comecei a desenhar,
me deram material, pena, nanquim, e eu comecei a fazer hachuras. Eu ia na linha do que eu
via no desenho dele”. (Samuel Casal, depoimento)
Foi quando o jornal contratou um ilustrador que trabalhava com pena, desenhos sur-
reais, chamado Odir Bernardo, que Samuel descobriu que nem tudo era piada e cartum, que
havia também uma parte plástica e poética nos desenhos para jornal.
Trabalhou também no jornal Pioneiro, entre 1993 e 1994, época de proliferação da
infograa, quando apareceu no ambiente de trabalho o primeiro MacIntosh. Samuel fazia
de tudo: mapas, tabelas, e um pouco de desenho à mão. Usava a versão 1.0 do FreeHand,
que ainda se era da Aldus (criadora do programa). Na época, a demanda por infográcos era
16
maior do que ilustrações. Foi nesse momento que começou a descobrir e se adaptar à ferra-
menta digital. Foi quando teve a oportunidade de desenvolver a habilidade com o programa
FreeHand e principalmente formar a sua linguagem, com forte consciência da hierarquia e
organização diagramática das informações.
Em 1998, na época de explosão da internet, Samuel foi para o Diário Catarinense,
onde trabalhava na ocasião de seu depoimento.
Samuel produziu duas famílias de fontes dingbats, um livro independente com suas
gravuras em linóleo. Desenhou para o lme de animação Tyger, dirigido por Guilherme
Marcontes, premiado no Brasil e internacionalmente. Atualmente, trabalha free-lancer para
jornais, revistas e livros e tatua seus desenhos em seus amigos.
O trabalho de Samuel é contundente e hiperbólico, repleto de texturas e ênfases ex-
pressionistas que contradizem a expectativa fria que pode ser criada a respeito de imagens
produzidas com programas grácos vetoriais.
17
Depoimentos
Os três ilustradores deram um depoimento sobre seus métodos de trabalho, suas re-
ferências culturais e reexões sobre a linguagem da ilustração e condições de trabalho. Or-
lando e Samuel receberam uma pauta e realizaram uma ilustração no decorrer da entrevista.
Optou-se pela entrevista semi-aberta, aonde o encaminhamento da resposta conduz a próxi-
ma pergunta.
“Cada questão é aprofundada a partir da resposta do entrevistado, como um funil, no qual
perguntas gerais vão dando origem a especícas. O roteiro exige poucas questões, mas su-
cientemente amplas para serem discutidas em profundidade sem que haja interferência entre
elas ou redundância” (BARROS & DUARTE, 2005, p. 66).
No livro Métodos e Técnicas de Pesquisa em Comunicação, Jorge Duarte (in BAR-
ROS & DUARTE: 2005, p.62) explica que a entrevista, quando tratada de forma qualitativa,
tem como característica a exibilidade. Esse tipo de entrevista procura intensidade nas res-
postas, não-quanticação ou representação estatística. O critério de seleção do entrevistado
é em grande medida responsável pela validade da pesquisa.
Ainda o mesmo autor sugere que a análise dos dados ocorra através de categori-
zações, a partir da organização de grupos em temas comuns, criando assim unidades de
análise. Também a análise genética segue princípios de estudos de caso, “segundo o qual os
princípios e generalizações emergem a partir da análise dos dados particulares. Em muitas
ocasiões, mais que vericar hipóteses formuladas, o estudo de caso pretende descobrir novas
relações entre elementos” (BARROS & DUARTE, 2005, p. 217). É importante observar
que no estudo de caso o que interessa não é apenas o caso em si, mas a contribuição que ele
pode dar a respeito do todo. Daí a necessidade de extrair do conjunto de dados categorias
que possam lançar luzes a respeito do processo criativo. Procura-se generalizar teorias e não
enumerar ocorrências.
Data e local dos depoimentos:
Carlos Matuck: 15/09/2003, São Paulo, SP.
Orlando Pedroso: 10/05/2005, São Paulo, SP.
Samuel Casal: 27/11/2005, Florianópolis, SC.
18
Estrutura do trabalho
O Capítulo 1 A Constituição da Expressão Gráca procura esclarecer as ter-
minologias utilizadas nesse trabalho para a referência às diferentes expressões grácas uti-
lizadas na imprensa, resgatando alguns paradigmas históricos, propondo uma reorganização
da estrutura conceitual que costuma ser utilizada no Brasil, que geralmente se organiza em
torno da caricatura.
Ainda nesse capítulo, serão examinadas algumas relações entre as técnicas, as re-
lações sociais e a linguagem da ilustração ao longo da história, no sentido de compreender
ao longo do tempo transformações de ordem expressiva que ocorreram na linguagem da
ilustração, suas relações com as tecnologias disponíveis na época e a maneira como as cir-
cunstâncias culturais, sociais e industriais agem sobre os processos criativos das ilustrações
jornalísticas.
O Capítulo 2 Contexto da Produção – aborda o contexto editorial onde ocorre a
demanda pelas ilustrações e os imperativos em torno de sua produção: o projeto editorial, o
preço do papel interferindo no projeto gráco, a introdução dos computadores nas editoras e
a mudança do ilustrador para o seu próprio estúdio. São restrições e também tendências que
participam da estrutura dos processos criativos do sujeito que executa o trabalho. O exame
das circunstâncias envolvidas na ação criadora já faz parte da análise genética.
O Capítulo 3 Processos Construtivosapresenta um mapeamento das estratégias
criativas encontradas nos processos de trabalho dos três ilustradores estudados, organizan-
do-os em três categorias que operam em conexão: procedimentos construtivos, relações da
ilustração com o texto e campo expressivo.
Embora os três casos apresentem grande riqueza de recursos criativos e operacionais,
as estratégias identicadas estão longe de esgotar as possibilidades desse campo de expres-
são. A intenção desse trabalho é abrir o caminho para outras contribuições que venham so-
mar o entendimento das estratégias criativas em torno da linguagem gráca.
A partir desse mapeamento, pretende-se reetir em que medida a introdução das
ferramentas digitais, no contexto editorial brasileiro das últimas décadas, transformou a ma-
neira de trabalhar criativamente na elaboração de mensagens visuais grácas.
19
A Constituição da Expressão Gráfica
Capítulo 1
20
Capítulo 1 – A constituição da expressão gráfica
Em nossa sociedade, grande parte das informações são elaboradas e transmitidas de
forma gráca. Ao examinar os processos criativos de ilustradores, este trabalho compreende
que a ilustração é um tipo de expressão gráca que ocupa um lugar especial na história das
formas de expressão humana, pois faz parte da sua natureza a promoção do diálogo entre
dois sistemas de linguagem, o verbal e o visual. Nesse sentido, a análise do processo de ela-
boração da linguagem gráca pretende contribuir para um melhor entendimento a respeito
das interfaces entre essas duas matrizes de linguagem.
O que dene a expressão gráca? Qual é a diferença entre ilustração, charge cari-
catura, cartum? Nesse primeiro capítulo serão comentados alguns parâmetros em relação à
terminologia da área da expressão gráca, que muitas vezes são motivo de confusão.
uma certa tradição teórica que coloca a expressão “caricatura” no lugar que deve-
ria ser destinado ao conceito “expressão gráca”. Um exemplo disso é o livro organizado por
José Marques de Melo com textos de seus alunos, onde Rafael Souza (apud MELO, 1987,
p.51), analisa a caricatura como gênero jornalístico e utiliza a denição de Carlos Alberto
Barbosa e Silva Gustavo Barbosa (dicionário de comunicação). Esses autores conceituam a
caricatura como sendo de dois tipos:
1) A representação da sionomia humana com características grotescas, cômicas ou
humorísticas.
2) Forma de expressão artística através do desenho que tem por m o humor.
A partir dessa denição e mantendo a caricatura como guarda-chuva conceitual, é
proposta uma sub-classicação das expressões grácas presentes na imprensa: caricatura
(propriamente dita) (sic), charge, cartoon e comic. O termo “ilustração” não é mencionado.
Como a própria duplicação do termo “caricatura” indica, algo de errado nessa
estrutura classicatória, pois coloca o humor e o grotesco como propriedade comum a toda
expressão gráca jornalística, o que deixa de fora expressões de âmbito poético, didático
ou irônico-sutil. A expressão de humor, nesse tipo de produção, é apenas uma parte e não a
chave para as demais produções.
No caso das ilustrações analisadas nesse trabalho, é a natureza das relações que es-
tabelecem com o texto que determina em grande medida as suas especicidades. Faz-se
necessária, portanto, a exposição de algumas considerações teóricas a esse respeito e o es-
clarecimento em relação à maneira como abordamos essa relação na análise do material
examinado.
21
1.1 Terminologias da linguagem gráfica
Embora a expressão gráca tenha acompanhado o homem desde seus primeiros pas-
sos, o termo “gráco” é recente na língua portuguesa. É proveniente do grego grápho: es-
crever, inscrever. José Pedro Machado explica que ao radical grafo foi acrescentado o suxo
ico, também grego (Ikós), “relacionado com”. O termo “gráco” signica então “desenhado
por mão de mestre, perfeito, completo”. Sugere ações como grafar, desenhar. Com o termo
grápho, foram criadas as expressões fotograa (graa da luz) e cinematograa (graa do
movimento), entre outras.
Ao se referir à ação de grafar, o termo “gráco” encontra-se no limiar entre a imagem
e o texto. Dá conta de denominar os estágios iniciais da história da escrita e também da ima-
gem, como quando o primata que se ergueu sobre suas patas traseiras liberou suas mãos para
grafar. Na mão que traça está a origem comum da escrita e do desenho. A mão encontrou o
estilete para cunhar inscrições cuneiformes no barro, e produziu pincéis com pêlos de animal
e bambu, para grafar com mais sutileza.
Posteriormente, o termo “gráco” passou a ser mais associado com o fato de se tratar
de um tipo de produção que passa por processos de impressão. Não pode deixar de ser no-
tado que a presença de ilustrações na imprensa se deve sobretudo às condições técnicas dos
processos de reprodução gráca, o que deu condições para a sua signicativa contribuição
para a popularização da imprensa como veículo de comunicação de massa.
A expressão gráca, atualmente, carrega consigo a propriedade de ser reproduzi-
da em larga escala, com os recursos da reprodutibilidade técnica, e não o fato de ter sido
“grafada”, o que poderia lhe conferir um campo semântico mais diretamente relacionado à
interface entre a imagem e o texto.
Nesse trabalho, o foco será a produção de ilustrações para a imprensa. Vamos ver,
no entanto, que, mesmo nesse campo mais restrito, a diversidade expressiva é ampla. Nas
páginas impressas dos jornais diários e revistas, encontramos um vasto manancial de men-
sagens visuais grácas, tais como charges, caricaturas, infograas, story-boards, ilustrações,
vinhetas, cartograas, cartuns. São diferentes manifestações grácas, comprometidas com
a história da mídia impressa, mas não se limitam a ela. Atualmente, com a proliferação dos
recursos digitais, a linguagem gráca participa também ativamente da produção audiovisual
e hipermidiática, contaminando e sendo contaminada pelas mais distintas estruturas de lin-
guagem.
As variadas produções visuais grácas presentes nos jornais podem às vezes apre-
sentar ausências de contornos claros, o que nos remete à intenção de lançarmos aqui algumas
considerações sobre as suas singularidades, sem, no entanto deixar de apontar a existência
de áreas indenidas em relação à classicação de certas produções. Alguns termos como a
charge, o cartum e a caricatura compartilham de campo semântico e operacional próximos
da ilustração. No entanto, é possível delinearmos algumas diferenças.
22
Ilustração
No caso especíco da ilustração, a origem etimológica do termo vem do latim, ilustro,
que signica lançar luz, tornar claro, dar brilho, enfeitar, ver. Daí as imagens que acompa-
nhavam os primeiros livros, antes mesmo de serem impressos, chamarem iluminuras. Eram
expressões grácas que compartilhavam do mesmo campo referencial dos textos bíblicos.
Ilustrações são produções visuais feitas para iluminar ou focar um tema.
O dicionário Caldas Aulete de 1881 (apud Camargo, 1995, p. 29) se refere à deni-
ção de ilustração como “desenho gravado e intercalado no texto de um livro. Obra literária
cujo texto é ornado de gravuras ou desenhos”. Essa abordagem, que entende a ilustração
como ornamento do texto ainda é bastante arraigada em nossa sociedade e subentende uma
hierarquia de valores. A informação relevante estaria situada no texto e a ilustração cumpre
ao seu lado o papel de adorno. Não é por acaso que é freqüente a expressão “é apenas uma
mera ilustração...”, conferindo tom pejorativo ao termo. “Mera ilustração” costuma denotar
esse aspecto subordinado a um conteúdo mais importante, que a produção de ilustrações
ocupa no imaginário social. É como se no texto houvesse a exposição da informação primor-
dial da mensagem e à “mera ilustração” apenas caberia o papel da redundância.
Já no dicionário Houaiss (2001) a ilustração é denida como desenho, gravura, ima-
gem que acompanha texto. A expressão “acompanhar” um texto é oportuna, pois indica au-
sência de hierarquia. A imagem não foi considerada ornamento do texto, como quase sempre
ocorre, mas companheira. O reconhecimento da existência de dois discursos, verbal e visual,
andando lado a lado, estabelecendo entre eles relações de diferentes naturezas, é uma marca
importante nesse tipo de produção e será retomado mais adiante.
A Encyclopédie Dictionnaire Rai-
soné dês Sciences, des Arts, et dês Métier, do
século XVIII, editada por Denis Diderot, é
considerada um marco na utilização da ilus-
tração como forma de inteligibilidade da in-
formação através da mensagem visual clara e
informativa. No entanto, foram produções de
cunho mais expressionista, como a de Willian
Hogarth (1697-1764) que deram à expressão
visual gráca uma dimensão mais profunda
de crítica a grupos sociais, retratando situa-
ções trágico-cômicas (gura 1.1). W. Hogar-
th avaliava que os escritores e pintores de sua
época negligenciavam o território que separa
o sublime e o grotesco e se propunha a pro-
duzir imagens visuais semelhantes a cenas
teatrais: “minha tela é minha cena. Homens
Figura 1.1 – William Hogart,
As Quatro Etapas da Crueldade (1750-51)
23
e mulheres são meus atores encenando, com seus gestos e atitudes, uma peça sem palavras”
(apud SEARLE et alii: 1974, p. 45).
O diretor de arte norte americano Jan White (2005, p. 143), em sua celebrada obra
Editing by Design, localiza três tipos de ilustrações: as emocionais, que causam impacto, in-
trigam e seduzem, e funcionam como chamariz; as informativas, que lidam com informações
factuais e realistas, e devem ser tratadas de forma simples e direta; e as circunstanciais, ava-
liadas por White como medíocres. Cada uma tem a sua legitimidade, no entanto é necessário
que o diretor de arte as reconheça pelo que são, para tratá-las adequadamente, recomenda o
autor. É curioso que esse experiente editor não tenha incluído em sua classicação as ilustra-
ções de caráter crítico, presentes em toda a história da imprensa.
Charge
É um tipo de expressão gráca que
comenta um assunto que é tema importante
no noticiário do dia. O termo charge é fran-
cês, indicando carga, ataque. Vem de char-
ger: carregar (uma arma), exagerar. A charge
prescinde de um texto para acompanhar, pois
seu campo referencial é a própria conjuntura
nacional e internacional (gura 1.2). Não é
por acaso que quase sempre ela se encontra
na página do editorial. Mas não se reduz a
isso. A charge aponta e destaca como assunto
relevante temas de qualquer editoria, de inte-
resse coletivo. Elege um tema do dia e lhe
destaque, com acentuado conteúdo crítico.
Cartum
Termo proveniente do italiano, cartone (pedaço grande de papel). Nas obras de arte
de grande formato do período clássico, eram utilizados cartões perfurados, cortados ou mar-
cados em escala, com os desenhos a serem transpostos, em murais e tapeçarias. No processo
de criação de afrescos como a Capela Sistina, carvão em pó era esfregado no cartão perfura-
do, com a nalidade de transferir o desenho do cartão para outra superfície.
Fonseca (1999, p. 26) explica que a expressão, com o sentido que tem hoje,
“nasceu em 1841, nas páginas da revista inglesa Punch (gura 1.3), a mais antiga revista de
humor do mundo ainda em circulação. O príncipe Albert encomendara a seus artistas uma sé-
rie de cartuns para os novos murais do Palácio de Westminster; os projetos dos artistas reais,
expostos, foram alvo da crítica e da mordacidade do povo inglês, e a revista Punch resolveu
publicar os seus próprios cartuns, parodiando a iniciativa da corte”.
Figura 1.2 – Angeli, Folha de S.Paulo, 21/03/2003,
sobre a guerra no Iraque
24
O termo cartoon é utilizado em todo
o mundo e muito amplamente nos EUA, ser-
vindo inclusive para designar desenho ani-
mado. No Brasil o neologismo cartum foi
criado por Ziraldo, na revista Pererê (edição
de 1964). É muito utilizada a expressão car-
tunista porque não é costume no país o termo
quadrinista.
Numa entrevista ao jornal Folha de
São Paulo (13/03/2007), o cartunista Jaguar
explica a diferença entre charge e cartum:
“Charge é uma piada que daqui a cinco
anos ninguém vai entender, porque é em
cima de uma circunstância. Cartum é um
troço que você faz sobre um assunto que
daqui a 20 anos qualquer um entenderá.
Um exemplo clássico, uma piada sobre
o ‘Ricardão dentro do armário’. Todo
mundo sabe do que eu estou falando. Piadas sobre vida conjugal, sexual, todo mundo en-
tende. Em qualquer época. piadas em cima de fatos políticos momentâneos vão cando
incompreensíveis”.
Caricatura
Pode ser considerada como uma espécie de expressão gráca que representa tipos
através de exageros e abordagem exagerada, cômica ou grotesca. A caricatura se propõe
como expressão da sombra social.
“A palavra deriva do verbo italiano caricare (carregar, sobrecarregar, com exagero), e apa-
rece usada pela primeira vez por A. Mosini quando este se referiu a Diverse Figure, uma
coleção lançada em 1646 como uma série de gravuras chamadas de ritratini carichi (retratos
carregados), realizadas a partir de desenhos originais dos irmãos Agostino e Aniballe Carrac-
ci (gura 1.4), satirizando tipos humanos das ruas de Bolonha.” (FONSECA, 1999, pg 17)
Figura 1.4 – Annibale Carracci (1560-1609)
Figura 1.3 – capa da revista Punch, 1849
25
Carracci expressa com clareza a consciência das estratégias constituintes de seu mé-
todo de trabalho, num texto reproduzido em 1646, por A. Mosini (in, FONSECA, 1999, p.
51). O célebre caricaturista defendia que o artista que trabalha com retratos carregados
“está trabalhando como Rafael e outros artistas de renome, que não estavam satisfeitos com
a beleza que podia ser encontrada na natureza, mas a selecionaram de vários objetos e das
melhores estátuas, de maneira a criar um trabalho da mais alta perfeição. E também para
desenhar uma caricatura é necessário conhecer as intenções da natureza em produzir defor-
midades e resolver continuar estas tentativas começadas pela natureza, até que elas alcancem
perfetto deformittá (deformidade perfeita)”.
Infografias
Elencam diagramaticamente as informações, geralmente de serviços. São represen-
tações esquemáticas criadas “a partir da necessidade de exemplicar ou mostrar sistemas,
desenvolvimentos ou processos que por suas características dicilmente podem ser ‘vistos’”
(FUENTES: 2006, p. 80). Trata-se de uma linguagem apropriada para o pensamento abstrato
e esquemático.
Storyboards
Narrativas visuais que reconstituem o desenrolar de uma ação. Geralmente são utili-
zados nos jornais para se referirem a acidentes, cenas de crimes, de guerras ou julgamentos.
Exige cuidadosa apuração das informações.
Talvez uma das primeiras utilizações desse recurso no Brasil tenha sido o desenho de
Ângelo Agostini, de 17/09/1864, relatando o descarrilamento de um trem, no jornal domini-
cal O Diabo Coxo (gura 1.5).
Figura 1.5 – Ângelo Agostini, para o jornal O Diabo Coxo, 1864.
26
Vinhetas
Embora discretas, desempenham papel nuclear no projeto gráco e editorial, como
auxiliares da condução visual e hierarquização de informações entre as diferentes editorias.
O termo é proveniente do francês, vignette, pequena vinha. Cachos e folhas da videira eram
símbolos da abundância e suas representações feitas com buril ou em água-forte ornavam a
abertura dos livros. Esse recurso gráco já era utilizado por miniaturistas medievais.
1.2 As tramas da rede gráfica: contextos sociais, técnicas e
linguagens
O trabalho do ilustrador passa por processos de decisões que envolvem opções esté-
ticas e éticas feitas individualmente, mas inseridas em contextos industriais de produção de
mensagens e no trânsito de idéias veiculadas por meios de comunicação de massa. Pressu-
põem a adoção de linguagens e técnicas socialmente partilhadas, passíveis de serem assimi-
ladas por um público abrangente.
A proposta de examinar processos criativos sob a ótica de uma rede de conexões exi-
ge uma postura metodológica que não elege a priori nenhum dos fatores como determinante
dos demais. A análise em rede não determina direções, o que implica reconhecer certas po-
laridades e examinar a dinâmica do jogo de forças que tece a rede. No início dessa pesquisa,
vieram a tona questões em torno da tradição gráca e a emergência de novos paradigmas, as
relações entre a técnica e a linguagem, entre a imagem e o texto.
Os movimentos e conexões entre esses termos será tema desse capítulo, observando
mais as relações entre os fatores do que a determinação de um sobre o outro. Pretende-se
evitar cair num esquema interpretativo ingênuo, que confere aos avanços tecnológicos um
papel propulsor de novas congurações expressivas. O poder transformador do computador
é inequívoco. No entanto, as possibilidades expressivas que seus programas grácos pro-
põem não são produto de geração espontânea. Como muito bem coloca o livro de ensaios
organizado por Merrit Roe Smith e Leo Marx - Does Technology Drive History? - não
uma relação causal entre as inovações técnicas e as mudanças sociais. A tecnologia não é um
agente autônomo de mudanças.
“As técnicas viriam de outro planeta, do mundo das máquinas, frio, sem emoção, estranho a
toda signicação e qualquer valor humano, como uma certa tradição de pensamento tende a
sugerir? Parece-me, pelo contrário que não somente as técnicas são imaginadas, fabricadas
e reinterpretadas durante seu uso pelos homens, como também é o próprio uso intensivo de
ferrramentas que constitui a humanidade enquanto tal (junto com a linguagem e as institui-
ções sociais complexas). É o mesmo homem que fala, enterra seus mortos e talha o sílex”.
(LEVY, 1999, p. 21)
Levy (1999) dene as técnicas como “artefatos ecazes”, e observa que “carregam
27
consigo projetos, esquemas imaginários, implicações sociais e culturais bastante variados.
Sua presença e uso em lugar e época determinados cristalizam relações de força sempre dife-
rentes entre seres humanos. O autor argumenta que a sociedade é condicionada e não deter-
minada pelas técnicas. O que signica dizer que a técnica abre algumas possibilidades, que
algumas opções culturais ou sociais não poderiam ser pensadas a sério sem a sua presença.
Muitas possibilidades são abertas e nem todas são aproveitadas. As técnicas podem integrar-
se em conjuntos culturais diversos. Fornecem uma parte indispensável do ambiente cultural
de onde as formas culturais surgem. Os processos de apropriação da técnica são, na verdade,
produto da qualidade das relações humanas, o que em geral “é mais importante do que as
particularidades sistêmicas das ferramentas, supondo que os dois aspectos são separáveis”.
A técnica é parte de um contexto social amplo e lida com equipamentos coletivos da
percepção. Levy avalia que a emergência de novas mídias propicia transformações profun-
das nas estruturas das linguagens e permite que novos modelos cognitivos se instaurem. A
análise das implicações culturais das ferramentas é proposta pelo autor como uma aborda-
gem ecológica da cognição.
Embora Pierre Levy adote um discurso que muitas vezes resvala o entusiasmo deter-
minista (admitindo aqui todo o seu esforço de ponderar o contrário), a abordagem ecológica
da cognição é uma proposta que sinaliza um entendimento sistêmico entre os diferentes
fatores envolvidos. Nesse aspecto, dialoga com a proposta de “rede de práticas entrelaça-
das” em torno da ação criativa proposta por Salles e descentramento do self, proposta por
Colapietro.
Não seria razoável concluir apenas que a técnica modica a linguagem, sem levar
em conta os demais aspectos sociais que a tornam necessária e “apropriável”. Não se trata
de entendermos as transformações tecnológicas como agentes de mudanças sociais, mas
como catalisadores, “mais ajudando as mudanças sociais do que as originando”. (BRIGGS
e BURKE, 2004, p. 32).
Ilustrações jornalísticas são resultado do diálogo de criadores visuais com os acon-
tecimentos de seu tempo. São herdeiras “da necessidade pré-fotográca de mostrar aconte-
cimentos, lugares, personagens e cenas com imagens” (FUENTES, 2006), mas também se
apropriam dos recursos de produção e reprodução de imagens e ampliam suas possibilidades
expressivas.
Apresentaremos aqui alguns dados tecnológicos e sociais, envolvendo a produção
de ilustrações jornalísticas ao longo da história, buscando elementos para a reexão sobre
o movimento das transformações técnicas e da forma de conhecer e apresentar o mundo,
dispondo esses fatores em rede e não em estruturas de causa e efeito.
A intenção é identicar a dinâmica entre os fatores envolvidos nos processos de cria-
ção da ilustração e algumas mudanças de paradigma signicativas ocorridas na história.
Pierre Levy (1993, p.97) observa que os antigos manuscritos medievais imitavam
a comunicação oral. Somente a partir do século XVI que se generalizaram na Europa as
28
apresentações sistemáticas de uma “matéria”
espacializada, dividida de acordo com um
plano coerente. Estas apresentações apóiam-
se sobre interfaces especícas da impressão:
paginação regular, sumário, cabeçalhos apa-
rentes, índices, uso freqüente das tabelas, es-
quemas e diagramas.
Até metade do século XIX a xilogra-
vura era a principal técnica de reprodução de
imagens, o que criava uma condição de par-
ceria do desenhista com o gravador.
Nos primórdios da imprensa, o traba-
lho do ilustrador estava associado à função
de reportagem, ou seja, os desenhos eram
realizados para reportar fatos. Esse tipo de
produção teve o seu apogeu por ocasião das
grandes guerras.
No século XVIII, atendendo à deman-
da de um público ávido por notícias visuais, a
respeito das guerras e revoluções, eram enviados aos locais de batalha esses “repórteres do
lápis”, capazes de registrar cenas com rapidez (gura 1.6). “Tinham de ter uma intuição de
jornalista para saber o que desenhar, no mesmo instante em que o evento acontecia. E dese-
nhar, seja lá qual for a circunstância” (HOGARTH, 1967, p.23). Hogarth explica que esses
“artistas especiais” não tiveram a concorrência da fotograa por mais de 50 anos, pois as -
meras não eram nem portáteis nem ecientes para esse tipo de evento, devido ao seu tempo
de exposição, muito lento. A mão do desenhista deveria ser mais ágil, para dar conta da di-
nâmica dos acontecimentos.
Eram enviados ao front “com
um caderno de anotações,
uma caneta e um bom cava-
lo” (gura 1.7).
O desenhista Luiz Gê,
(Luiz Geraldo F. Martins),
em sua tese de doutorado A
Escrita Plástica: desenho,
pensamento, conhecimento e
interdisciplinaridade, conta
Figura 1.6– Monsieur Durand-Brager, artista-
correspondente de L’Illustration, trabalhando nas
trincheiras na Guerra da Criméia, em 1856
Figura 1.7: Alfred Waud, 1866
29
sobre o trabalho desses desenhistas pioneiros
da imprensa:
“Como eram criadas as imagens dos jor-
nais antes do uso da fotograa e dos pro-
cessos fotomecânicos? Da mesma ma-
neira, através de um repórter... gráco.
O desenho reproduzido rapidamente, em
geral, a lápis, descrevia uma situação que
poderia estar acontecendo em lugares às
vezes tão remotos como o oeste america-
no ou a África. Era enviado, então, num
envelope especial, em geral vermelho,
pelos meios de transporte disponíveis,
até um posto de correio onde, uma vez
identicado, recebia total prioridade. Uma vez atingida a redação o desenho era literalmente
dividido em partes para que os gravadores, especialmente treinados, pudessem confeccionar
matrizes em blocos de madeira que eram em seguida reunidos e voltavam a formar uma
imagem. Uma vez iniciado o processo de impressão, o original era exposto na vitrina do
jornal atraindo curiosos.” (Martins, 2004)
Dada a urgência da execução e a utilização de xilogravura para a reprodução, o tra-
balho era feito coletivamente e o desenhista muitas vezes mandava indicações para a sua
nalização, descrevendo os equipamentos e as roupas para que uma equipe nalizasse e se
concentrando na atmosfera dramática da cena. Esse processo muitas vezes esmorecia as sin-
gularidades do traço do desenhista, resultando em grupos de ilustrações muito semelhantes,
nos jornais ingleses da época vitoriana, e dicultando a identicação de estilos mais indivi-
duais.
Em 1798, a litogravura trouxe a possibilidade de desenhar diretamente nas matrizes
de pedra, com um lápis gorduroso, propiciando aos desenhistas maior amplitude gestual,
além de maior autonomia do traço do desenhista em relação ao gravurista, uma vez que ele
próprio é que traçava sobre a matriz. Um dos maiores virtuoses da expressão gestual do traço
revelando aspectos profundos da natureza humana foi Honoré Daumier (gura 1.8).
Antonio Luiz Cagnin (apud Gama, Luís, 2005, p.13), no prefácio que fez à edição
fac-símile do Diabo Coxo, conta:
“A litograa representou para a São Paulo de então, como aliás para o mundo todo, mais um
passo importante em direção à modernidade e ao aperfeiçoamento da comunicação visual.
Inventada por Alöis Senefelder no nal do século XVIII, difundiu-se imediatamente pela
Europa por volta de 1800. Em 1818 estava no Brasil, antes mesmo de chegar a alguns
países europeus.
(...) Pouco dispêndio, fácil execução e multiplicação rápida permitiam passar desenhos e
ilustrações para os jornais e publicá-los até diariamente. Isso nunca fora alcançado antes.
Todos os outros processos de gravar na madeira ou no metal, morosos e difíceis, foram supe-
rados pelas vantagens da reprodução litográca. E surgiu uma nova categoria de desenhista:
Figura 1.8 – Daumier, Tipos Parisienses, litografia, 1841.
30
a do “repórter do lápis”, trazendo para o leitor fatos, pessoas ecoisas distantes no tempo e no
espaço. Um verdadeiro milagre!”
A litogravura proporcionou condições técnicas para a imagem tornar-se popular e
a revolução industrial inglesa criou condições favoráveis para o surgimento de periódicos
ilustrados. Além de haver mais condições de nanciamento, também havia mais leitores,
“formados por comerciantes, escreventes e industriais, obcecados com a idéia de progresso
e aperfeiçoamento” (HOGARTH, 1967, p.15), contando também com as facilidades de dis-
tribuição propiciada pela rede ferroviária.
No nal de 1842, a circulação do Illustrated Newspaper alcançou 60.000 cópias,
A fórmula de sucesso foi imitada. Em 1843, L´Illustration aparece em Paris e Illustrierte
Zeitung, em Leipzig. Em 1849 surge La Ilustracion em Madrid. Em 1855, Illustrated news-
paper em Nova York.
Nem tudo era discurso ocial, em meados do século XIX. Em Londres, a desigualda-
de social saltava aos olhos e fornecia rico material para publicações contestatórias e trabalhos
críticos de ilustradores, que reportavam as condições de vida ordinárias da população. Os
desenhos de caricatura, com nalidade cômico-crítica, que eram muito praticados muito
antes da difusão da imprensa, tiveram nas páginas dos jornais do século XIX lugar especial.
Destaca-se o semanário londrino Graphic (fundado em 1869), que conquistou popularidade
internacional e inuenciou jovens artistas. Prolifera na Europa todo tipo de publicação con-
testatória, recheadas de caricaturas, como a revista Punch, fundada em 1841 (gura 1.9).
No Brasil, a história da imprensa é muito recente, e conseqüentemente em grande
parte também das artes grácas. Isso se deve à vergonhosa proibição que vigorava no perío-
do colonial de qualquer tipo de imprensa. Joaquim da Fonseca (1999, p.207) explica:
“Foi somente no nal do século XVIII que começaram a aparecer no Brasil bibliotecas par-
ticulares, todas elas clandestinas. As publicações entravam no país por contrabando, trazidas
Figura 1.9 – Diversos jornais ilustradas proliferaram na Europa no século XIX.
31
por marinheiros e comerciantes, estabelecendo-se um verdadeiro mercado negro de obras
impressas.
Com a vinda para o Brasil da família real portuguesa e a abertura dos portos, em 1808, é que
se estabeleceram aqui as primeiras ocinas grácas. Começou a partir daí, o desenvolvimen-
to da impressão de livros e periódicos. Os jornais, no entanto, eram apenas tolerados, e quem
se manifestava contra o governo sofria as sanções da censura e da perseguição.”
Foi após a proclamação da independência que livreiros, tipógrafos e litógrafos (ge-
ralmente franceses) se instalaram no país. A maior proliferação de pasquins ocorreu em
torno de 1831, no período da regência. Destacam-se nesse período as publicações A Semana
Illustrada (1860), A Revista Illustrada (1867), O Mosquito (1869), O Malho (1902), Fon
Fon! (1907) e Careta (1908) (gura 1.10).
Ilustrador de especial destaque na história da imprensa brasileira foi o italiano Ânge-
lo Agostini, um verdadeiro militante gráco contra a escravidão e a favor da república. Criou
em São Paulo o jornal O Diabo Coxo
1
(1864-65), com posições libertárias e anti-clericais
e O Cabrião (1866-67). Lançou e foi colaborador de muitas das publicações de sua época,
com destaque para A Revista Illustrada (1876), considerada por Joaquim Nabuco como a
bíblia da abolição para aqueles que não sabiam ler, com cenas de sofrimento dos escravos
mais contundentes do que o discurso dos abolicionistas.
Em 1889, foi lançada no mercado a câmera Kodak, com o slogan: “Você pressiona
o botão, nós fazemos o resto”. No início do século XX muitos jornais haviam adotado o
processo fotográco. A era dos desenhistas-repórteres começava a se abalar.
Com a popularização da fotograa, o desenho que acompanha as notícias foi liberado
da função de testemunho e pôde ocupar em mais larga escala a função de co-narrador ou
1 O nome da publicação, O Diabo Coxo, faz referência à história criada pelo espanhol Luís Velez de Guevara, publicada
pela primeira vez em 1641, sobre um diabo que vivia preso numa garrafa e que, ao ser libertado por um estudante, deu-lhe
o poder de ver o que se passava dentro das casas das pessoas.
Figura 1.10– Publicações
ilustradas brasileiras do final do
século XIX e início do XX.
32
comentador crítico do texto. Com a eclosão
da primeira grande guerra era esperado que
as câmeras fotográcas compactas dessem
conta da demanda pelas cenas dos campos
de batalha. No entanto, líderes militares sen-
tiram falta da idealização promovida pelas
ilustrações e não se sentiam heroicamente
representados pelas fotograas de tropas ca-
valgando por paisagens em preto e branco.
“Editores de todos os lados (britânicos em
particular) voltaram a usar a ilustração” (Ho-
garth, 1967, p.56) como recurso para expor
a imagem “ocial” da guerra, em linguagem
acadêmica.
A guerra moderna foi também regis-
trada por artistas que tinham uma linguagem
visual emocional suciente para medir a sua natureza apocalíptica. Essa linguagem foi ex-
perimentada na França e na Alemanha, pelos expressionistas, em periódicos de vanguarda,
como o Neue Jugend ou o Simplicissimus (gura 1.11). Destacaram-se nesse trabalho artistas
como Otto Dix, Max Beckmann, George Grosz. Na França, Luc Albert Moureau, Dunoyer
de Segonzac.
A década de 20 trouxe a tona imagens da dor e também dos aspectos da vida rela-
cionados a prazeres, como moda e esportes. Data do período entre guerras o trabalho do
editor Lucien Vogel, pioneiro em engajar desenhistas em revistas de moda, o modelo edi-
Figura 1.11 - capa e ilustração interna do
jornal alemão Simplicissimus
Figura 1.12 - capa de Covarrubias para a revista Vogue,
premiada como a melhor capa de 1923
33
torial utilizado posteriormente pelas revistas Vogue (gura 1.12) e Vanity Fair. Anuncia-se
nas publicações um movimento de segmentação, um tanto explorado pelo modelo de mídia
americano.
Steve Taylor (2006, p. 205) observa que durante a década de 1930 a Vogue gradual-
mente abandonou as capas ilustradas as quais eram concebidas como uma peça total de arte
que incorporava o logo da revista. Em 1932 foi produzida a primeira capa fotográca. No
nal dos anos 1940, as capas desenhadas eram uma raridade.
Com o desenvolvimento de processos de reprodução fotomecânicas (autotipias), foi
possível decompor o desenho original focalizado em pontos que variam de intensidade, ta-
manho e formato, resultando na possibilidade de impressões de imagens grácas com uma
maior gama de tonalidades de sombra e luz.
No cenário americano, revistas de Henry Luce, como a Fortune, a Life e a Esquire
utilizavam ilustrações tanto quanto fotograas e enviavam seus ilustradores como repórteres
de guerra.
Os anos pós-guerra foram duros para os ilustradores. As coberturas de guerra tiveram
um m abrupto e nada tomou o seu lugar. O papel encareceu, poucas páginas eram destina-
das às ilustrações, instaurou-se o domínio da fotograa. O desenho foi reduzido a um míni-
mo absoluto. Muitos ilustradores passaram a ser designers grácos ou fotógrafos.
Nos anos sessenta, a televisão se estabeleceu como principal meio de comunicação
visual e acabou auxiliando na criação de leitores visuais. Na cena POP, novas audiências
foram criadas para publicações impressas com ênfase na visualidade, como histórias em
quadrinhos. (HQs, livros de arte, etc).
Na década de 1980, os desenhos que acompanhavam os textos no jornal eram cria-
dos a partir de lápis, ecoline, aquarela, nanquim e colagens. Hoje em dia esses materiais não
deixaram de freqüentar os estúdios dos ilustradores. No entanto, os programas grácos que
simulam procedimentos de transparência da aquarela, opacidade do guache, o recorte da
tesoura, e a cola são uma realidade na produção atual. Embora os ltros desses programas
tentem imitar a transparência da aquarela ou a pincelada de Van Gogh, soam sempre como
um simulacro, algo que tem o vestígio do outro e não a própria identidade.
Na década de 1990, a equipe da Macintosh desenvolveu uma série de interfaces que
simulavam o ambiente de escritório e também de um estúdio gráco. Comandos, ferramen-
tas e ltros, como recortar e colar, pincel, lápis, bico de pena, borracha, aquarela e aerógrafo
foram criados tendo como referência direta as práticas dos artistas plásticos e grácos.
Também novos recursos são introduzidos, como os programas vetoriais, manipulá-
veis a partir de nós. As testagens de cor e composição passam a ser muito facilitadas, e a
armazenagem das etapas do processo também (para eventual retorno a um ponto deixado
para trás). Grande parte do banco de dados iconográcos dos ilustradores passou a ser ar-
mazenado nos arquivos do computador de trabalho, o que tornou mais rápido o acesso e a
execussão da composição (e vem de encontro à urgência cada vez maior da produção indus-
34
trial de mensagens jornalísticas, na sociedade neoliberal). Também as ferramentas de busca
de imagens na internet agilizam o acesso a uma amplitude inequívoca de referências. Não é
mais necessário uma boa biblioteca para o acesso imediato à referência fotográca do rosto
de um escritor, para a elaboração de uma ilustração.
Levy (1993, p. 54) avalia que a maior parte dos programas atuais reorganiza a visão
de mundo de seus usuários e modica seus reexos mentais. Em que medida esse fenômeno
acontece? Com as ferramentas grácas digitais, quais seriam as transformações signicativa
que estariam ocorrendo? As análises dos processos criativos dos ilustradores buscarão exa-
minar essa questão.
Mas antes de nos debruçarmos nos aspectos de natureza mais operativa e cognitiva
da produção de mensagens, vamos abordar, no próximo capítulo, o contexto editorial envol-
vido na produção de ilustrações, que implica em carregadas contingências envolvidas nesse
tipo de experiência criativa.
35
Contexto da Produção
Capítulo 2
36
Capítulo 2 – Contexto da Produção
As circunstâncias em torno dos processos criativos examinados nesse trabalho abran-
gem o período da década de 1980 até os dias atuais (2007). O que torna esse período par-
ticularmente interessante para a análise é o advento da introdução dos programas grácos
digitais na rotina dos ilustradores e a decorrente transformação dos hábitos e métodos de
trabalho.
O trabalho criativo envolvido na produção de mensagens visuais destinadas à im-
prensa é submetido a contextos muito especícos em relação a prazos diminutos, destinados
à edição diária e a um público abrangente. É parte integrante de um projeto gráco, que por
sua vez é a tradução visual do projeto editorial e da política editorial da empresa, que prevê a
denição da missão da publicação e o seu público-alvo. Também fazem parte dessa equação
as condições históricas industriais de reprodutibilidade da imagem e suas conseqüências nas
escolhas de ferramentas técnicas, além da transmissão cultural da tradição visual gráca.
Nessas rígidas condições, o processo do ilustrador é produto de muita agilidade e exige am-
plo repertório cultural.
Esse capítulo trata dos imperativos implicados nessa produção e suas conseqüên-
cias nos processos criativos. Não são aspectos externos à ação criativa. Pelo contrário, são
elementos ativos no processo, que singularizam esse tipo de produção de linguagem e que
também desenham um perl prossional diferenciado do ilustrador de livros, do publicitário
ou do artista plástico.
37
2.1 Projeto Editorial e Projeto Gráfico
O projeto gráco de um periódico é o conjunto de normas que regulam a linguagem
visual da publicação, para que esta possa cumprir sua missão. Deve ser criado e administra-
do em absoluta consonância com o projeto editorial, ou seja, com as denições ideológicas
ou losócas, quando se aplicam, e denições de público-alvo, assuntos tratados, linguagem
e personalidade da publicação. “Funciona como se fosse uma ‘constituição visual’, que deve
‘legislar sobre todos os aspectos visuais, orientando o design ou diagramação da publica-
ção”
1
. Envolve decisões em torno de um conjunto de elementos formais que traduzem gra-
camente a identidade do veículo. Os principais são:
Formato e tipo de papel
Tipograa (fontes e estilos usados nos textos, títulos, destaques, legendas, capi-
tulares)
Paleta de cores
Logotipo
Vinhetas de seções
Capa
Uso de imagens (fotos, ilustrações, grácos, infográcos)
Ocupação do espaço (proporção entre texto, imagens e brancos)
Colunagem e grade
Margens
Boxes
Fios
Sombras
Todos os demais elementos grácos (número de páginas, setas de continuação,
sinalização de editorias etc.)
Em cada um desses elementos, o projeto gráco deve denir o que é obrigatório (e
que portanto vai se repetir) e o que é livre (ou seja, que vai variar). A dinâmica entre a repeti-
ção e a variação (ou redundância e informação) garante que a publicação tenha impacto visu-
al e ao mesmo tempo tenha sua identidade reconhecida em cada página ou em cada edição.
O projeto gráco também dene características mais sutis da publicação, como ritmo
(a sucessão de impactos ao longo das páginas), a massa de texto e a linguagem das imagens
grácas – fotos, ilustrações e infográcos.
As denições quanto à linguagem das imagens tendem a ser mais diversicadas em
publicações de grande abrangência temática, como os jornais diários, com seus múltiplos
1 Roberto Melo, em documento interno de treinamento da Editora Símbolo, autorizado pelo autor.
38
assuntos e suplementos, cada um com um público relativamente especíco. O design de
um jornal (sua personalidade visual) deve dar conta de ser reconhecido tanto na editoria
de política quanto no suplemento infantil ou no suplemento literário, mas a linguagem das
imagens será, evidentemente, muito diferente em cada um desses espaços. em revistas
segmentadas, é possível manter maior unidade, uma vez que o espectro de assuntos e de
público é mais estreito.
Ao diretor ou editor de arte de um jornal responsável pela execução cotidiana do
projeto gráco cabe decidir qual linguagem visual é mais adequada a cada seção do jornal.
É nesse momento que se escolhem, por exemplo, ilustradores para seções de artigos ou crô-
nicas, algumas vezes associando o colunista com o ilustrador.
Criar um projeto gráco é tarefa do designer gráco e essa criação nasce imersa
em imperativos, entre eles os constrangimentos impostos pela função comunicativa da pu-
blicação (expressa em seu projeto editorial), e leva muito em conta o preço do papel e dos
processos de impressão, além da expectativa de rentabilidade da empresa, entre outros itens
que pouco têm a ver com opções propriamente estéticas. Esses imperativos são levados em
conta em todo o projeto gráco, inclusive no espaço dedicado a ilustrações.
A nalidade máxima do projeto editorial está associada à clareza em relação à de-
nição do público-alvo e da missão da publicação. o projeto gráco traduz a missão da
publicação através de recursos grácos, lançando indicações a serem identicadas pelo -
blico-alvo.
O perl do leitor da publicação não é engessado; ao contrário, tende a mudar, acar-
retando em necessidades de mudança nos projetos gráco e editorial. Esse perl é relativa-
mente identicável pelas pesquisas dos institutos como o Ipsos Marplan
2
e acompanhado de
perto pelos executivos das editoras e pelos anunciantes.
Um exemplo claro de atualização de público-alvo é relatado por Marília Scalzo, no
livro Jornalismo de Revista (2004), a respeito do reposicionamento no mercado feito pela re-
vista Capricho, entre 1990 e 1992. Marília observa que revistas para adolescentes lidam com
uma faixa etária que tem padrões de comportamento muito volúveis, o que deve ser levado
em consideração no padrão visual e no texto da revista. Na década de 50, a revista Capricho
se considerava a revista da moça moderna. Na década de 80, era uma revista para donas de
casa jovens, românticas, leitoras de fotonovelas. Na década de 90, optou pela formulação a
revista da gatinha (e depois esse slogan também foi abolido, por ter sido considerado data-
do). O conteúdo editorial, o vocabulário e o visual das revistas sinalizam o perl do público
alvo. A agenda da menina, carregada de elementos sobrepostos, era a referência visual do
projeto gráco da nova revista.
Vale também destacar aqui a importância das pautas, na rotina jornalística. O con-
2 O Instituto Ipsos Marplan é uma empresa de pesquisa do país especializada em estudos de hábitos de mídia e consumo,
utilizada pelo mercado publicitário como referência para o planejamento estratégico de mídia.
39
junto de pautas abordado por uma publicação e as respectivas abordagens desenham o perl
da sua missão.
A ilustração ocupa um lugar numa página impressa e a sua localização e dimensão
fazem toda a diferença na sua signicação. Um princípio conhecido da teoria da Gestalt é
que não vemos partes isoladas, mas relações. Não temos sensações parciais, mas percep-
ções globais de uma forma ou estrutura. A imagem e o texto são apreendidos num primeiro
momento a partir de suas relações espaciais. O diretor de arte norte americano Jan White
(2006), defende que o diretor de arte deve pensar como um editor de texto e o editor de texto
deve pensar como um diretor de arte. O conteúdo a ser abordado pela pauta deve ser editado
com os recursos do texto e das imagens e é nesse momento que se insere a opção por ilustrar,
fotografar, desenvolver uma reexão crítica ou um texto descritivo, para uma determinada
matéria.
40
2.2 Política empresarial, mudanças de hábitos e projeto editorial
Em 1988, o preço do papel importado atingiu um pico que representava um valor
121,4% maior em relação ao preço praticado em 1974
3
. Em média, esse pico nunca mais
abaixou. As conseqüências editoriais desse aumento foram sentidas mais amplamente nos
anos 1990. As medidas emergenciais de corte de custos que foram adotadas naquela década
incluíam a redução do número de cadernos, que passaram a comportar diferentes assuntos.
Ao mesmo tempo em que esse contexto econômico impôs aos projetos editoriais
uma demanda de enxugamento, a televisão e a internet vêm provocando uma conhecida
mudança de hábitos na recepção da informação. Os jovens estão expostos a uma variedade
de mídias que disputam com o tempo que seria dedicado para o jornalismo impresso. Essa
mudança de hábito foi bastante oportuna para os interesses de redução de custos das empre-
sas editoriais.
Junto com a internet, um outro marco na história recente da imprensa sentido por
Orlando também é do nal dos anos 1980. Trata-se da proposta editorial do jornal USA To-
day, lançado em 1982 nos Estados Unidos, cuja losoa “don’t tell me, show me” foi
adotada como modelo por grande parte das publicações brasileiras. O jornal deixou de ser ter
como missão principal o papel de ser um agente da notícia para ser um prestador de serviços.
“Quando se descobriu que as pessoas não tinham tempo de ler jornal, tinham apenas meia
horinha para ler, aquelas notícias enormes passaram a ser resumidas em pequenos grácos.
Esse foi o grande marco na mudança da imprensa”, avalia Orlando.
Em maio de 1984 a Folha de S.Paulo deu início à reformulação de seu projeto grá-
co e editorial
4
, tendo como modelo a valorização do tratamento visual da informação pro-
posta pelo USA Today.
José Arbex Jr (2001, p.141-142), que na época era jornalista da Folha de S.Paulo,
arma em seu livro Showrnalismo A Notícia como Espetáculo que o objetivo da empre-
sa, ao passar pelo vigoroso processo de cadernização, reforma gráca e colorização, era
transformar o jornal em uma “televisão impressa”, cuja implantação introduziu no Brasil
uma lógica empresarial que a moderna imprensa capitalista já havia construído nos Estados
Unidos e na Europa.
“O Projeto Folha, sinteticamente, signicou a adoção do discurso-para-o-mercado como es-
tratégia empresarial e editorial. Não se deveu a uma mera coincidência o fato de sua implan-
tação ter acontecido ao longo dos anos 80, embora ele já estivesse em gestação desde os anos
70. Foi a década de expansão do neoliberalismo no cenário internacional, e de profundas
transformações políticas no Brasil (1984 foi o ano das Diretas Já, momento em que a demo-
cratização do país exigia uma redenição dos rumos que a imprensa nacional teria de adotar
3 Dados obtidos no site do Ipea - Instituto de pesquisa econômica aplicada – órgão do governo vinculado ao ministério do
planejamento: http://www.ipeadata.gov.br/ipeaweb.dll/ipeadata?163695765 pesquisa realizada no dia 03/10/2006.
4 É desse ano a implantação do Manual de Redação da Folha de S.Paulo.
41
após duas décadas de ditadura). (...)
Desde o início, o Projeto Folha caracterizava a notícia como mercadoria, destinada a gerar
lucros. Essa perspectiva exigia, obviamente, o m da ‘politização’ da redação, uma das ca-
racterísticas mais fortes do jornalismo até então praticado no Brasil.”
As linhas básicas denidas pelo Projeto Folha eram “jornalismo crítico, apartidário,
moderno e pluralista”. Carlos Eduardo Lins da Silva (1988, p.92), na época secretário de
redação do jornal, escreveu sobre a experiência de reformulação do jornal
5
, explicando que
foi na versão de 1985/86 do Projeto Editorial da Folha que dois novos pilares foram acres-
centados: serviço e didatismo. O trecho do projeto que se refere ao aspecto do didatismo é
citado pelo autor:
“...é fundamental que os textos partam sempre do pressuposto de que o leitor não está fami-
liarizado com o assunto e pode nunca ter lido sobre ele antes. Tudo deve ser explicado, es-
crito e detalhado – de forma concisa e exata, numa linguagem tanto coloquial e direta quanto
possível (...) O didatismo deve estender-se também à disposição visual do que é editado.
Precisamos consolidar e homogeneizar os recursos grácos (...) A apreensão pelo leitor deve
ser fácil, clara e rápida (...) A rigor, tudo o que puder ser dito sob a forma de quadro, mapa,
gráco ou tabela não deve ser dito sob a forma de texto”.
Vale notar que o texto se refere a quadros, mapas, grácos e tabelas... e não às ilustra-
ções com abordagens críticas. A ênfase ao tratamento visual do jornalismo foi documentada,
nesse projeto de 1985/86, com nalidades didáticas e explicativas e não críticas.
Na versão do Novo Manual da Redação da Folha de 1992
6
, esse trecho nal aparece
no início do verbete “Arte”, seguido do seguinte comentário:
“A tendência do jornalismo é a utilização cada vez maior de artes, principalmente coloridas,
que atraem mais o leitor do que o texto. É fundamental que as artes sejam cuidadosamente
produzidas e revisadas. Uma arte nunca deve ser um texto disfarçado de arte. Arte é lingua-
gem visual, informação visual. Seus textos são apenas complementos dessa informação, por
isso devem ser antes de mais nada concisos. (1992, p.122)
A opção política da empresa, a crise econômica, o aumento do preço do papel e a
mudança de costumes trazida pela internet teve como conseqüências os cadernos reduzidos,
textos curtos, maior quantidade de pautas destinadas a serviços, muitas fotograas e redução
drástica de reportagens investigativas. Orlando Pedroso
7
observa que as pautas com grande
número de páginas, de teor analítico, comuns na década de 1980, geravam maior necessida-
de de serem suavizadas com ilustrações. Além de ser um recurso expressivo que se prestava
mais a acompanhar conteúdos reexivos e críticos do que testemunhar fatos.
5 Baseado nessa experiência, Silva publicou Mil Dias. Os bastidores da revolução em um grande jornal.
6 A versão de 1992 é bastante representativa do período posterior aos trabalhos de Carlos e já em plema adoção do modelo
americano de edição visual.
7 Essas informações foram obtidas no depoimento do ilustrador para essa pesquisa. 10/05/2005
42
É signicativo, nesse contexto de esvaziamento de abordagens analíticas em detri-
mento da prestação de serviços, a crescente utilização de infográcos nos jornais e maior
necessidade de soluções diagramáticas para a informação e menos críticas. Os espaços dedi-
cados à crítica, literatura e losoa, generosamente ilustrados, foram reduzidos, pois reduzi-
ram também a quantidade de cadernos.
Uma vez estabelecido o novo padrão, passou a ser cada vez mais difícil a reversão
desse movimento. A opulência de espaços que a Folha destinava à ilustração em meados de
1990 não é a realidade dos dias de hoje. As ilustrações de Carlos Matuck chegavam a ocupar
cerca de 40% da página, o que proporcionava rica expressão de texturas e sosticação da
diagramação, ressaltando a mancha cinza do texto como parte da imagem. O ilustrador podia
interferir na diagramação da página e exercitar um raciocínio gráco.
O novo projeto editorial e gráco da Folha de 2007 reduziu ainda mais o exíguo
espaço para análises conjunturais e eliminou boa parte das ilustrações críticas e todas as
vinhetas do projeto anteriormente em vigor. Muitas das ilustrações que permaneceram são
limitadas a espaços modulares e apenas eventualmente experimentação na diagramação,
em cadernos como Folhateen, Turismo e Folhinha. Segundo Orlando, hoje a Folha é um jor-
nal excessivamente modulado, com espaços pré-determinados para o texto e para a ilustra-
ção. Essa tendência, na opinião do ilustrador, tem razões mais profundas, envolve a própria
natureza do jornalismo e não se limita aos jornais:
“As revistas não são mais feitas para o leitor, são feitas para o anunciante e para o consumi-
dor. O que os veículos fazem é essa ponte entre quem precisa vender e quem precisa com-
prar. Isso é uma deformação monstruosa do jornalismo. Se os ilustradores têm alguma coisa
a ver com isso é exatamente estar no meio desse fogo cruzado e pouco poder para determinar
mudanças que poderiam vir a acontecer” (Orlando, depoimento).
Orlando avalia que uma grande lacuna entre a informação, a análise da informa-
ção e a imagem da informação. Observa que até os anos 1990 os ilustradores eram chamados
à redação para resolverem uma página. Era comum o ilustrador sentar com o diagramador,
riscar a página, sugerir a forma como o título deveria entrar ou a forma de recortar o texto.
Depois disso, passaram a ser relegados a um tapa-buraco, conta Orlando.
“Esta semana mesmo eu z uma capa para a Vejinha porque as fotos que chegaram eram
horríveis. O cara não planeja a ilustração, ele vê que as fotos estão ruins e daí encomenda a
ilustração. Isso é ruim para o jornalismo, para a cultura visual das pessoas e evidentemente é
péssimo para o mercado de ilustração”.
O trabalho do ilustrador deve envolver também a solução em relação à pauta, mas,
segundo Orlando, esse tipo de trabalho está cando cada vez mais raro. Com freqüência,
editores de texto pautam os ilustradores, sem a formação adequada para a elaboração de
soluções plásticas.
43
“Normalmente são idéias muito primárias, muito literais. Eu procuro abstrair e normalmente
entrego uma outra coisa que acho que deveria ser. Correndo, às vezes, o risco do cara falar
que tinha pedido outra coisa. Isso é que eu acho muito ruim para a formação dos jovens
artistas. O ilustrador deveria ser pago para ter uma idéia, fornecer uma solução para aquela
página. A partir do momento em que ele é brifado, passa a ser apenas o executor daquela
idéia. Isso não tem sentido. O cara passa a ser um artenalista e não um ilustrador no sentido
primeiro da palavra”.
Na mídia impressa atual, a decisão em relação à diagramação da página cabe ao
editor do caderno, ao diretor de arte ou ao diagramador e, em última instância, também ao
projeto editorial, ideológico e gráco da publicação. Com exceção de cadernos de cultura
e literatura, onde mais chances de encontrarmos mais versatilidade no projeto gráco,
geralmente o ilustrador recebe a informação da dimensão e localização de sua ilustração
(quase sempre pré-determinada pelo projeto gráco) e pouco tem a fazer com relação a esses
imperativos.
44
2.3 Recursos, espaços e prazos
Dimensão dos originais
A introdução do computador nas editorias de arte dos jornais e revistas aconteceu nos
meados da década de 1990. Orlando, que tinha seu trabalho consolidado, relata que uma
conseqüência desse fato foi a redução da dimensão dos originais.
Os desenhos que fazia para a Folha de S.Paulo antes da década de 1980 eram de di-
ferentes tamanhos e materiais. Eram fotografados no estúdio do jornal, sem impedimento de
dimensão. A introdução dos computadores acarretou na diculdade de realizar originais em
grandes formatos, pois seria necessário que o próprio ilustrador providenciasse a fotograa
de seu trabalho. As redações ou os estúdios dos ilustradores dispõem de escâneres tamanho
A4, o que constitui uma limitação evidente em termos de gestualidade e textura e conseqüen-
te busca por novos recursos expressivos ajustáveis a essa dimensão.
Para recuperar essa gestualidade, Orlando exercita a pintura em proporções maiores,
com tinta acrílica ou técnicas mistas, no seu atelier de nal de semana e busca aproveitar as
descobertas proporcionadas pelas pesquisas plásticas menos comprometidas com o trabalho
editorial.
Papel A4
21 X 29,7 cm
Papel kraft
60 X 90 cm
Figura 2.1 – Diferença de escala entre
o papel A4, utilizado por Orlando nas
ilustrações de jornal, e o papel kraft
usado nas pinturas mostradas na
exposição Uns Desenhos, de 2007.
45
Dessa experiência, resultou a seguinte avaliação a respeito do condicionamento que
uma mídia pode provocar num sujeito: “No papel, a incorporação do acidente é mais co-
mum. No computador, tudo dá para arrumar. A pós-produção é maior do que a concepção”.
O padrão A-4 não é adequado para gestos grandes e pinceladas, o que limita muito a expres-
são. São necessárias soluções mais contidas, avalia. “Quando eu volto a desenhar grande eu
recupero essas coisas” (Orlando, depoimento).
Como parte dessas experimentações em formatos maiores e diversidade de recur-
sos, Orlando realizou no ano de 1997 uma exposição intitulada Como o Diabo Gosta, com
trabalhos nas dimensões 0,70m x 1,0m e 0,70m x 0,50m. Também produziu recentemente
uma série de pinturas de grandes dimensões (0,60m x 0,90m) feitas com tinta acrílica sobre
papel kraft, expostas na galeria Caligraphia em março de 2007 com o título Uns Desenhos
(gura 2.1). Essa abrangência de soluções plásticas experimentada em seu ateliê, nos nais
de semana, alimenta o trabalho sintético do estúdio do “dia útil”.
Se por um lado a restrição de dimensões acarretou na contenção nos recursos de
textura e gestualidade, essa mesma restrição contribuiu para o aprimoramento do traço sin-
tético de Orlando, característico do seu estilo e reconhecido por seus colegas e seu público.
O desenho feito a caneta, escaneado e colorido com o auxílio do Photoshop, tem a agilidade
de uma notícia fresca.
Espaço de trabalho e prazo
Muito provavelmente pelo fato de o trabalho de Carlos Matuck para a Folha ter sido
destinado ao caderno de Letras, que era semanal e portanto tinha um fechamento com prazo
mais estendido em relação ao caderno de política, as ilustrações foram realizadas em sua
própria casa, mesmo antes da internet se estabelecer nas redações, o que facilitava para ele a
pesquisa em sua biblioteca, rica de referências iconográcas.
O caderno saía aos sábados. O texto era entregue na sua casa no início da noite de
terça-feira e o prazo para entregar a ilustração era na quinta-feira de manhã. A disponibili-
dade de toda a quarta feira para elaborar a ilustração possibilitava um ritmo de trabalho que
permitia o exercício de muitas testagens e manipulações de imagens.
Nenhum editor de arte, em momento algum, entrou em contato com ele durante esse
período para qualquer tipo de interferência ou mesmo avaliação de seu trabalho. Carlos ob-
serva que essa interlocução seria bem vinda, mas não aconteceu:
“Eu gostaria que tivesse acontecido, mas era impossível, pois era um descabelamento e era
justamente nesse ritmo que eu não queria estar, pois eu preferia me descabelar sozinho. Hoje
eu penso: puxa, será que o editor gostava e dava mais espaço para isso? Até hoje eu não sei
quem é que diagramava. Depois de um certo tempo passaram para a última página... devem
46
ter gostado.” (Carlos Matuck, depoimento
8
)
Nessa mesma época, Orlando, que era ilustrador xo da casa, tinha o compromisso
de passar no jornal no horário do fechamento para fazer um ou dois desenhos. Conta que na
década de 1980 não havia horário certo de fechamento.
“A coisa mais legal de um jornal é a urgência. Diferente de uma revista, de um livro, que
as vezes te dá dois meses de prazo. O que eu mais gosto é da adrenalina de ter que resolver
rápido. As vezes o texto chega as quatro e meia, cinco da tarde, e tem que estar lá as 20hs.”
Não havia internet e o envio de matérias e fotos eram sujeitos a atrasos freqüentes.
Foi nesse ambiente, jornalístico por excelência, que Orlando foi formado.
“Acontecia de ter de resolver em cima da hora, num buraco, no próprio past-up, com a cane-
tinha. Essa é a característica de um tipo de desenhista. Tem caras que adoram pegar livro que
tenha 4 meses para fazer. Eu sou incapaz. Gosto da urgência.”
O ilustrador Carval comenta sobre a relação que o ilustrador estabelece entre o tempo
e a expressão num depoimento para a tese de Gilmar Adolfo Hermes (2005, p. 242).
.
“A matéria chega por volta das 18:30min... a conguração da página, se é cor, e o tamanho,
vai ser determinado perto de 19:20min, e eu preciso estar com tudo pronto até às 20h. Eu não
posso cometer o erro de atrasar o fechamento, porque vai atrasar a impressão, distribuição,
quer dizer, industrialmente é muito complicado. Então, a gente trabalha no o da navalha,
tanto em termos de linguagem, como em termos de tempo”.
O velho ditado das redações – “matéria boa é matéria no tamanho e no prazo” – vale
também para as ilustrações. A qualidade da produção está diretamente relacionada com a
emergência do prazo e requer agilidade do ilustrador. A escassez de tempo é um fator sempre
presente no processo criativo de ilustrações destinadas à imprensa. Esse contundente impe-
rativo remete à observação de que toda criação se através de um processo tensivo, mesmo
as mais radicais experiências artísticas.
“O tecido do percurso criador é feito de relações de tensão, como se fosse sua musculatura.
Pólos opostos de naturezas diversas agem dialeticamente um sobre o outro, mantendo o pro-
cesso em ação” (SALLES, 1998, p.62).
No caso especíco das ilustrações jornalísticas, vimos as imposições do projeto polí-
tico, editorial e gráco da empresa, mas a urgência talvez seja um fator restritivo ainda mais
contundente, agindo no processo criativo. No processo industrial de produção de informa-
ção, a pressa não é inimiga, mas sim uma exigência da produção.
8 Depoimento do ilustrador para essa pesquisa. 15/09/2003
47
2.4 Computadores e Internet
Em meados da década de 1990, a internet passou a ser utilizada em larga escala. A
possibilidade de transferência de dados digitais proporcionou a mudança do parque gráco
da empresa Folha da Manhã S/A para Tamboré e o rígido controle dos horários de fecha-
mento.
Em 1995, Orlando passou a trabalhar em estúdio próprio e mandar seu trabalho pela
web. Em seu espaço o ilustrador desfruta de privacidade e acesso a seu banco de pesquisa.
Avalia que a situação é mais confortável, pois não precisa interromper o trabalho para ir até
o prédio da Folha, além de ter condições de trabalhar assistindo simultaneamente noticiários
da TV. Por outro lado, lamenta o fato de ser cada vez mais raro o ambiente de redação onde
as pessoas estão discutindo os fatos.
A convivência diária do ilustrador com a redação conferia a ele um papel muito mais
ativo na edição de arte do jornal. Muitas vezes a página era pensada junto com o diretor de
arte, numa concepção global. O afastamento físico do ilustrador da redação do jornal vem
produzindo uma nova geração de ilustradores que nunca tiveram contato direto com os jor-
nalistas. Orlando teme que isso possa acarretar um distanciamento e desconhecimento da
cultura do jornalismo por parte dos novos ilustradores, pois a riqueza de experiência propor-
cionada pela convivência vem sendo perdida.
“O computador igualou os desenhos”
A rotina de trabalho gera um método, depura o estilo e também lança a sombra da
repetição. Ferramentas digitais são facilitadoras e ampliam os recursos expressivos, mas
também podem domesticar os procedimentos.
Orlando avalia que quando o computador surgiu, nos meados dos anos 90, todo mun-
do usava as mesmas ferramentas e os mesmos recursos, como degradées, por exemplo, re-
sultando em trabalhos muito parecidos. Depois da exploração inicial, alguns ilustradores
conseguiram se diferenciar e chegaram a resultados com maior identidade. O computador
possibilita uma praticidade inquestionável, avalia Orlando. Mas aos poucos, a falta do de-
senho foi sentida, o que o levou a procura manter sempre presente e vivo em seu trabalho.
“Não sei mexer em mais do que seis comandos no Photoshop.” Procuro achar um diferencial
para o meu trabalho, dentro da mesmice.”
A impressão de que, com o advento do computador, as ilustrações para a imprensa
caram todas muito parecidas, remete-nos às ponderações de Vilém Flusser, ao se referir às
limitações da mediação tecnológica, que fazem do usuário um funcionário da máquina, um
operador de aparelhos que lida com as funções programadas sem se dar conta delas. A capa-
cidade de invenção estaria restrita a um conjunto de possibilidades restritas, dadas a priori
48
(no caso estudado por Flusser, o aparelho fotográco, nos casos estudados nesse trabalho,
dadas pelos softwares grácos).
Segundo Flusser, as potencialidades contidas no programa dos aparelhos devem
exceder à capacidade do funcionário para esgotá-las. Aparelhos imprimem na superfície
simbólica modelos previamente inscritos. As produções simbólicas mediadas por aparelhos
seriam então apenas atualizações de suas potencialidades. As escolhas do funcionário são
limitadas pelo número de categorias programadas na construção do aparelho.
Arlindo Machado (2007, p.49) comenta a esse respeito:
“A repetição indiscriminada das mesmas possibilidades conduz inevitavelmente à estereoti-
pia, ou seja, à homogeneidade e previsibilidade dos resultados. A multiplicação à nossa volta
de modelos pré-fabricados, generalizados pelo software comercial, conduz a uma impres-
sionante padronização das soluções, a uma uniformidade generalizada, quando não a uma
absoluta impessoalidade, conforme se pode constatar em muitos encontros internacionais de
artes eletrônicas, onde se tem a impressão de que tudo o que se exibe foi feito pelo mesmo
designer ou pela mesma empresa de comunicação. Se é natural e até mesmo desejável que
uma máquina de lavar roupa repita sempre e invariavelmente a mesma operação técnica que
é a de lavar roupas, não é todavia a mesma coisa que se espera de aparelhos destinados a
intervir no imaginário, ou de máquinas semióticas cuja função básica é produzir bens sim-
bólicos destinados à inteligência e à sensibilidade do homem. A estereotipia das máquinas e
processos técnicos é, aliás, o principal desao a ser vencido, na área da informática, talvez
até mesmo o seu dramático limite, que se busca superar de todas as formas”.
A losoa de Flusser propõe uma legítima reexão a respeito das possibilidades de
criação e liberdade, numa sociedade programada pela tecnologia. No entanto, em sua
posição uma ênfase na quase vitória do aparelho sobre o homem, embora ele admita a exis-
tência de brechas:
“Até que ponto conseguiu o fotógrafo apropriar-se da intenção do aparelho e submetê-la à
sua própria? Que métodos utilizou? Astúcia, violência, truques? Até que ponto conseguiu o
aparelho apropriar-se da intenção do fotógrafo e desviá-la para os propósitos nele progra-
mados? Responder a tais perguntas é ter os critérios para julgá-la. As fotograas ‘melhores’
seriam aquelas que evidenciam a vitória da intenção do fotógrafo sobre o aparelho: a vitória
do homem sobre o aparelho. Forçoso é constatar que, embora existam tais fotograas, o
universo fotográco demonstra até que ponto o aparelho consegue desviar os propósitos
programados para os ns programados.” (FLUSSER, 2002, p. 42, 43)
Machado (2001) observa um ponto de vista diferente em relação a essa questão nas
colocações de Couchot, ao analisar casos em que artistas trabalham com programas comer-
ciais e colocam o computador sob seu domínio, utilizando procedimentos híbridos ou traba-
lhando no sentido de desprogramação da máquina.
A referência a procedimentos híbridos é fundamental, pois leva em consideração um
aspecto que não foi levantado por Flusser: o processo criativo é um sistema aberto que não é
circunscrito à máquina. Embora as máquinas induzam fortemente os usuários às facilidades
de suas rotinas, nenhuma delas é um sistema fechado e auto-suciente (nem mesmo a -
49
quina fotográca, objeto de análise de Flusser). Experiências híbridas resultam em sistemas
abertos e mobilizam os desejos de expressão humana que desaam os engenheiros a criarem
e transformarem as máquinas. As “categorias programadas na construção do aparelho” não
são uma prisão de onde o usuário não tem condições de sair.
O desejo de criar e dar expressão à sensibilidade de seu próprio tempo é o motor que
transforma os aparelhos. Considerar que a tecnologia restringe a criação pode congurar
uma posição similar (embora com o sinal oposto) àquela rejeitada por Smith and Marx em
Does Technology Drive History?. Anal, se é discutível que a pílula tenha produzido a revo-
lução sexual, seria igualmente discutível armar que o computador destruiu a criatividade.
Orlando Pedroso diagnosticou a homogeneidade das produções e buscou reforçar a
presença de seu desenho, como estratégia para se diferenciar. Ao optar pelo desenho a caneta
que posteriormente é escaneado, colorizado e texturizado no computador, o ilustrador esco-
lheu deixar uma etapa de seu processo com as marcas gestuais de seu traço. Ao escanear um
desenho, digitaliza-se também os índices deixados pelas intenções do corpo. Onde traçamos,
nesse caso, o limite entre a produção mediada por aparelhos ou pelo corpo, mediada pela
caneta?
Algumas providências tomadas pelos ilustradores para oxigenar seus respectivos
trabalhos curiosamente se afastam dos recursos digitais e buscam no ambiente analógico a
oportunidade de reciclagem. É o caso de Samuel Casal.
Em meados de 2004, Samuel
9
se sentia tão seguro em relação ao seu traço e à forma
de desenhar com vetores que sentiu necessidade de experimentar a “falta de controle” sobre
o resultado e a experiência de encontrar novamente os acidentes. A partir da insistência dos
amigos desenhistas, que avaliavam que os seus desenhos pareciam xilogravuras, inscreveu-
se em um curso. Em pouco tempo participava de uma exposição em Porto Alegre, com
suas gravuras em linóleo. Também com essa produção, editou um livro independente, que
faz referência à linguagem do cordel, num estilo expressionista.
Examinemos as representações de dois porcos, feitas por Samuel em linóleo e em
programa vetorial (gura 2.2), e seu comentário sobre os dois trabalhos.
“O porco de linóleo é mais autêntico, pois é mais acidental. Eu tenho menos controle sobre
ele. Tu olha e diz que eles são muito parecidos e eu acho que eles são muito diferentes. Eu
não conseguiria jamais chegar no mesmo lugar. Na gravura, não é possível alternar camadas
de branco com preto. Minhas gravuras são a desconstrução do meu desenho em vetor”. (Sa-
muel, depoimento).
Assim como Orlando encontra na pintura em formatos maiores novos paradigmas
para seu trabalho, Samuel buscou na gravura em linóleo uma maneira de desconstruir as
camadas de formas vetoriais. Como ele explica, essas camadas podem se sobrepor, claras e
9 Depoimento do ilustrador para a pesquisa. 27/11/2005.
50
escuras, o que é impossível na gravura em linóleo (que ao retirar matéria, cria o branco). O
impedimento real colocado pelo novo suporte lhe serve como porta expressiva, pois o obriga
a encontrar outras soluções, não trilhadas, que alimentam o seu trabalho.
Essa experiência signicativa, relatada de forma tão clara por Samuel, remete-nos ao
comentário de Peter Burke e Asa Briggs (2004, p.17):
“Ao se introduzirem novas mídias, as mais antigas não são abandonadas, mas ambas coexis-
tem e interagem. Com o surgimento das publicações, os manuscritos continuaram sendo im-
portantes assim como os livros e o rádio na idade da televisão. A mídia deve ser vista como
um sistema, um sistema em contínua mudança, no qual elementos diversos desempenham
papéis de maior ou menor destaque.”
Uma antiga mídia, a gravura em linóleo, é experimentada por um jovem que apren-
deu a desenhar diretamente com o mouse e essa experiência lhe serviu para reencontrar o
desao, na sua relação com o gesto das mãos, na força e movimento envolvidos na manipu-
lação de cada ferramenta – mouse e goivas –, nas diferentes ordens de sobreposição entre o
claro e o escuro e nas descobertas expressivas decorrentes da falta de controle sobre o novo
suporte. Para Samuel, uma mídia não exclui as demais. O livre acesso a antigos recursos lhe
proporcionou esse diálogo profícuo, e renovou o entendimento das possibilidades do vetor
como elemento expressivo.
Figura 2.2 – Figura de porco, feita por Samuel Casal em linóleo
(acima) e programa vetorial (à direita, no alto). No linóleo, a luz
é construída pelos sulcos. No computador, ao contrário, Samuel
optou por estruturar o desenho com linhas vetoriais feitas à mão
livre (ao lado) para depois adicionar a sombra.
51
Chico Homem de Melo (2003, p.38), no artigo Impressões Digitais, que escreveu
para o seu livro Os desaos do Design e outros textos sobre o design gráco, comenta sobre
o grande perigo do absolutismo da linguagem digital, defendendo que a prática permanente
do maior leque possível de outras linguagens é o grande antídoto.
“O efeito deletério do computador é resultante de sua tendência quase incontrolável a se
estabelecer como único e exclusivo sistema gerador de linguagem gráca. Lembrando no-
vamente que qualquer linguagem permite que se fale algumas coisas e impede que se fale
outras, é preciso ter claro que o computador também impõe uma maneira de pensar, que pode
acabar eliminando outras formas de expressão.
Contra esse perigo, uma saída: todas! Isso mesmo, contra a vocação para o absolutismo
próprio da linguagem digital, o grande antídoto é a prática constante da mais ampla gama de
linguagens possível. Essa receita vale especialmente para o período de formação do futuro
designer, no qual a prática do computador deve caminhar paralela à prática do desenho com
grate, da aquarela, da xilogravura, da colagem ou da pintura a dedo. Mas vale também para
o cotidiano prossional. Sim, nenhum designer está imune aos perigos da hegemonia de um
sistema único de pensamento. Cultivar outras atividades de produção visual, distintas do
computador, é uma boa estratégia para oxigenar sua prática prossional”.
Compartilhamos da opinião de Chico Homem de Melo na sua proposta de que o
incentivo às práticas híbridas, onde se inclui o resgate de velhas mídias, é uma resposta
aos temores levantados por Flusser. A linguagem não pode ser engessada pelos atrativos de
quaisquer ferramentas, sejam elas digitais ou analógicas. Toda ferramenta proporciona no-
vos recursos expressivos e cognitivos e deixa de proporcionar outros. Assim como a mente
funciona através de estruturas híbridas, a produção de linguagem também se constitui em um
sistema aberto e híbrido, que cria necessidades de novas ferramentas.
52
Processos Construtivos
Capítulo 3
53
Capítulo 3 – Processos Construtivos
“Ilustrar é emprestar-se. Como o médium, que empresta sua pessoa
para pessoas que deixam de ser pessoas, o desenhista também empresta
a sua, para que o texto – um fantasma, um rastro de uma pessoa – se
materialize, assombrando e iluminando – mais e mais pessoas”. Spacca
Vimos que as circunstâncias industriais em torno da produção das ilustrações, em
grande medida, agem sobre o espaço de representação como diretrizes com as quais o ilus-
trador lida. São imposições tão pungentes que marcaram essa pesquisa em torno do conito
entre o exercício de liberdade e experimentação e os imperativos envolvidos na produção.
Processos criativos de ilustradores se dirigem a um público amplo, o que pressupõe
um diálogo com a tradição gráca e um posicionamento em relação à experimentação e ao
clichê. O exame do trabalho em construção coloca-nos diante dos vínculos entre essas es-
colhas e os vestígios da ação do ilustrador na intenção de selecionar e combinar os recursos
do código.
Os aspectos técnicos, cognitivos e comunicativos da produção de mensagens visuais
grácas foram temas do livro de Manfredo Massironi (1982, p.89). Nessa obra, o autor ob-
serva que o trabalho do desenhador envolve a escolha entre a ênfase e a exclusão das infor-
mações visuais, tendo sempre como referência a nalidade da guração.
Massironi propõe uma imagem que consideramos nuclear para essa pesquisa: um
desenhador se movendo numa corda suspensa, entre a ênfase e a exclusão, equilibrado por
dois contrapesos: a vastidão perceptiva, de um lado, e a nalidade da guração, do outro.
As escolhas do desenhador são determinadas pelo tipo de informação que se quer dar, e pela
comunicação que se deseja estabelecer. O m comunicativo-informativo que preside as
intenções do emissor de uma mensagem gráca contribui para determinar as escolhas es-
truturais dos meios de desenho. A construção de mensagens visuais envolve decisões sobre
omissão de detalhes desnecessários e escolhas de características reveladoras, de modo a não
haver ambigüidade em relação à sua nalidade comunicativa
1
.
“Neste jogo de perdas ca qualquer coisa de irredutível que é o nó da comunicação (...). Mas
como o emissor carrega a forma apresentada de signicado e intenções comunicativas e que
mantêm constante o nível de conteúdo do objeto mensagem, o receptor, por sua vez, preen-
che com conteúdos os vazios que o processo de leitura lhe fez necessariamente descurar”
(MASSIRONI, 1982, p.88)
1 É claro que a ambigüidade pode ser ela própria uma nalidade comunicativa.
54
Função Comunicativa
A principal função comunicativa das ilustrações é chamar a atenção do leitor e re-
metê-lo para a leitura do texto verbal, através da apresentação visual do tema abordado.
Ao sgar aquele que folheia a publicação a se deter por um instante, a ilustração antecipa
o tema tratado pelo texto, dialoga com o título, convida para a leitura. Daí a necessidade de
essa mensagem não sucumbir às pressões industriais e se esvaziar em clichês: ela precisa
surpreender.
Na ilustração concorrem três funções de linguagem: a poética, a referencial e a co-
nativa. Ao se estruturar nesse território limítrofe, a ilustração jornalística pertence também à
região de contorno impreciso entre a comunicação e a arte.
A função referencial lida com a transmissão legível da informação, o que resulta na
intenção de estruturá-la de maneira denida, clara, transparente, sem ambigüidade. Mas a
ilustração na imprensa diferencia-se da ilustração dos compêndios didáticos, uma vez que
não tem a abordagem descritiva como função principal. A função referencial é presente na
sua estrutura à medida que cabe a ela apontar para um referente que lhe é externo, o tema da
pauta.
A função conativa também participa dessa estrutura, por conta do aspecto persuasivo
e argumentativo desse tipo de mensagem. Vimos como esse aspecto é presente em diferentes
produções ao longo da história da imprensa. Há, nessas mensagens, um apelo para a leitura
e para o posicionamento diante do tema.
A ilustração, portanto, não é auto-referente, mas freqüentemente aponta para o re-
ferente de maneira poética. Na função poética, a mensagem se volta para si própria e colo-
ca em evidência as características inerentes da própria mensagem. Como dene Jakobson
(2003), a função poética é a “projeção do eixo paradigmático no eixo sintagmático”, o que
acarreta uma ação de ruptura em relação ao automatismo perceptivo.
Se não for interessante e relevante, a mensagem perde a sua função comunicativa,
não passa de um clichê. O que marca o clichê é a escassez de signicado, o simulacro, as
formas xas de comunicação que transportam pensamentos fraturados e dessimbolizados
(TOGNOLLI, 2001).
“Pelo clichê, o indivíduo se afasta da interação social desejável graças ao emprego de pala-
vras-chave, que ele usa sem pensar no que signicam, e que ele recebe e repassa como uma
moeda de mercado. A escassez de pensamento caracteriza o clichê.” (LORENZER apud
TOGNOLLI, 2001, p.29)
São numerosos os jornais e informativos de empresas repletos de signos grácos pré-
fabricados. Diferente da mensagem “carregada de signicado”, que caracteriza a linguagem
poética, o clichê reduz a mensagem à função fática, com alto grau de redundância, cujo obje-
tivo é apenas de contato: “testar o canal, prolongar, interromper ou rearmar a comunicação,
55
não no sentido de, efetivamente, informar signicados” (CHALHUB, 2004, 28).
Quando lidamos com processos criativos, estamos nos referindo a ações inteligentes,
que atuam em torno da elaboração e transformação da linguagem e ecácia comunicativa e
buscam evitar, portanto, o esvaziamento do código – o que é sempre uma resposta possível
diante das pressões industriais. A invenção e o clichê, no contexto da comunicação de massa,
são partes de um mesmo processo e não aparecem puros, mas num jogo de forças.
A proposta de lidar com processos criativos (mesmo numa produção que não se pauta
prioritariamente pela função estética) pressupõe que a ação transformadora realizada atuou
no sentido de condensamento de signicados e venceu o clichê, mesmo levando-se em conta
que toda comunicação exige um certo grau de redundância (inerente ao compartilhamento
do código) e a depuração de um estilo também.
Mas o que acontece entre os innitos estímulos da percepção e as soluções encon-
tradas e destinadas à nalidade da guração as ilustrações impressas? nesse meio de
campo um sujeito o ilustrador, que realiza escolhas. É com seu repertório sensível que é
determinado o enfoque a partir das escolhas dos elementos estruturais que constituem a men-
sagem, conduzidos pela nalidade comunicativa-informativa.
A análise de diferentes processos de trabalho, aquilo que é escolhido ou rejeitado
por esse sujeito, as ênfases e exclusões, trazem à tona certas tendências recorrentes, tanto no
campo estético como também no campo ético.
“Em toda a prática criadora os condutores relacionados à produção de uma obra espe-
cíca que, por sua vez, atam a obra daquele criador, como um todo. São princípios envoltos
pela aura da singularidade do artista; estamos, portanto, no campo da unicidade de cada
indivíduo. São gostos e crenças que regem o seu modo de ação: um projeto pessoal, singular
e único.” (SALLES, 1998, p.37)
Não queremos dizer, com essa armação, que o sujeito que cria tem uma compreen-
são infalível de seus propósitos. É no exercício criativo que emergem os princípios direcio-
nadores de um trabalho, o seu projeto poético.
“As tendências poéticas vão se denindo ao longo de percurso: são leis em estado de cons-
trução e transformação. Trata-se de um conjunto de princípios que colocam uma obra em
criação especíca e a obra de um artista como um todo em constante avaliação e julgamen-
to”. (SALLES, 1998, p. 40)
O ambiente que envolve a produção de ilustrações é processado por esse sujeito cria-
dor, que, como vimos, realiza suas ações inserido num conjunto de relações sociais. Salles
(2006, p.150) cita Canclini a respeito de sujeitos interculturais não somente da cultura
nativa, mas da variedade de repertórios simbólicos e modelos de comportamento que podem
ser cruzados e combinados.
“Essa possibilidade de ser sujeito não aparece só como a capacidade criativa e de reação dos
56
indivíduos, mas depende também de direitos coletivos e controles sociais sobre a produção
e circulação de informações e entretenimentos.”.
A multiplicidade de interações não envolve absoluto apagamento do sujeito, mas o
seu descentramento. O próprio sujeito é múltiplo e a ação criativa não diz respeito a uma es-
fera privada, mas comunicativa. A criatividade ocorre ao longo do processo, no lugar onde as
práticas interagem nos engajamentos, diculdades e conitos do sujeito, situadas no tempo
e no espaço. (COLAPIETRO, 2003).
Critérios para a apresentação do material
O percurso criador é dinâmico e incerto. Suas idas e vindas não são garantias de
acerto em relação àquilo que está sendo construído. Esboços, desenhos intermediários, re-
talhos de imagens que potencialmente poderiam ser usadas em alguma colagem, gaveta de
carimbos ou arquivo de ilustrações utilizadas são fragmentos de processo que, ao serem
colocados em relação, indicam ações cognitivas de onde foram participantes nas idas e vin-
das em busca de uma conguração gráca expressiva.
“Atos de rejeitar, adequar ou reaproveitar são permeados por critérios, que nos interessa
conhecer, e reetem modos de desenvolvimento de pensamento, que nos instigam a com-
preender, descrever, nomear. Diante dessas ações múltiplas e diversas, ca bastante claro
que lidamos com um tempo da criação artística em uma perspectiva não-linear.” (SALLES,
2006, p.23)
A elaboração de ilustrações envolve ações como organização de banco de dados, a
elaboração de esboços, a escolha de ferramentas analógicas ou digitais, experimentações,
formatações, deformações, fusões, deslocamentos, apropriações, colagens, a utilização das
mais variadas texturas e arranjos cromáticos, a mobilização de diferentes referências cul-
turais, congurações espaciais. Essas variadas ações serão apresentadas na primeira parte
desse capítulo, intitulada Procedimentos Criativos.
“A originalidade da construção encontra-se na unicidade da transformação: as combinações
são singulares. Os elementos selecionados existiam, a inovação está no modo como são
colocados juntos.” (Salles, 1998, p.88).
O que move essa ordem seletiva é a nalidade comunicativa da mensagem em ques-
tão. Nos casos analisados, as encomendas de trabalho ocorreram a partir do envio dos textos
pelas editorias. Os textos são, portanto, documentos de processo das ilustrações. A análise
das estratégias desempenhadas pelos ilustradores para criar vínculos com o texto e as distin-
tas naturezas desses vínculos foi um aspecto do processo considerado muito relevante nesse
trabalho.
57
O texto (ou a pauta) tem papel preponderante na condução das escolhas do ilustrador,
pois a nalidade desse tipo de mensagem visual gráca em processo de elaboração está dire-
tamente relacionada com a forma como se estabelece a triangulação entre a imagem gráca,
o texto e o campo referencial comum a ambos os sistemas. Dada essa nalidade em jogo,
coloca-se a necessidade de examinarmos os procedimentos criativos mobilizados em relação
à criação dos vínculos com o texto e com o campo referencial comum, determinado pela
pauta. Essa é a abordagem da segunda parte do capítulo, intitulado Construção da Relação
com o Texto.
Os diferentes procedimentos envolvidos na construção dos vínculos com o texto e
com o tema jornalístico tratado podem resultar em formas expressivas como metáforas, hi-
pérboles, metonímias, sinédoques, ironias, emblemas que estão longe de ser guras ape-
nas da linguagem verbal. Escolhas expressivas são resultado do posicionamento do ilustra-
dor diante do texto e também diante do próprio terreno da linguagem visual, no sentido de
quebrar com as expectativas e provocar estranhamento poético ou garantir o entendimento
através de clichês. Essa é a abordagem da terceira parte do capítulo, intitulada Campo Ex-
pressivo.
Como foi exposto, as três partes desse capítulo envolvem um grau crescente de com-
plexidade das relações implicadas no processo, pressupondo que os diferentes fatores ex-
postos também participam das outras instâncias. Não temos a intenção de esgotar todos os
recursos possíveis para a criação de ilustrações, apenas apontar aqueles que surgiram com
maior evidência nos três casos analisados.
58
3.1 – Procedimentos encontrados no material analisado
Nessa primeira parte da apresentação do material, buscamos colocar em evidência as
ações identicadas nos processos criativos dos ilustradores pesquisados. Trata-se de proce-
dimentos de manipulação da matéria gráca, que também podem ser considerados operações
cognitivas.
Procedimentos construtivos são ações inteligentes, indicadores de ações mentais.
São ações falíveis, com tendências incertas e indeterminadas, envolvendo complexas tro-
cas. Seqüências de gestos geram transformações e buscam a formatação da matéria gráca.
“Gestos construtores que, para sua ecácia, são, paradoxalmente, aliados a gestos destruido-
res: constrói-se à custa de destruições” (SALLES, 1998, p.27).
Essas operações, constituintes do movimento criador, serão apresentadas nesta pri-
meira parte do capítulo de forma isolada, de maneira que permita a comparação entre as
diferentes estratégias dos ilustradores em relação a elas.
Na segunda e terceira parte deste capítulo, essas ações serão relacionadas à nalidade
das ilustrações, que no nosso entender está fortemente associada à necessidade de criação de
vínculos com o texto.
Armazenar
No trabalho do ilustrador, a escassez de tempo e urgência do fechamento da publi-
cação faz com que o repertório cultural, a organização do banco de dados e a agilidade na
mobilização das informações necessárias ao projeto sejam essenciais ao trabalho. A maneira
como cada ilustrador lida com esses fatores aponta para singularidades diretamente relacio-
nadas com suas respectivas propostas estéticas.
Armazenar informações é um procedimento que ocorre em todo tipo de trabalho.
Trata-se da necessidade de reunir provisões em estado bruto, que serão oportunamente acio-
nadas e articuladas.
“O ato de armazenar, em geral, está sempre presente nos documentos de processo. No en-
tanto, aquilo que é guardado e como é registrado varia de um processo para outro, até de um
mesmo artista”. (SALLES, 1998, p. 18).
Orlando avalia que a formação familiar, as pessoas e situações que formaram o nú-
cleo cultural e afetivo, tudo vai para alguma gaveta e a habilidade do ilustrador de imprensa
consiste em abrir com rapidez as gavetas certas.
“O Glauco, por exemplo, é um cara que é capaz de perguntar “quem é esse Zé Dirceu”? Mas
ele tem uma antena fenomenal; não é um cara que tem formação acadêmica, que estude, não
é um cara que ca lendo. Ele pega uma coisa no ar, ele abre o jornal e sabe o que é o assun-
59
to, qual é a notícia, o que é importante.
(...) O Spacca é o rei da cultura inútil.
Ele uma Superinteressante e guarda
todos aqueles dados como é feito o
carbono, a temperatura, as marés, tudo
ele lembra. São coisas que ele vai pin-
çando depois, na hora de fazer o tra-
balho.”
A natureza do material armazenado
revela em grande medida o projeto estético
do ilustrador. Orlando tem no seu estúdio
uma biblioteca com boas referências sobre artes grácas e história da arte, desenha com a
televisão ligada e se considera “viciado em notícias”. Carlos Matuck trabalhou intensamente
com o seu arquivo iconográco, formado pelos livros de gravuras antigas e catálogos an-
tigos, livros de fotograas de celebridades ou de presos condenados, à beira da execução,
e, sobretudo, seus carimbos (gura 3.1). Samuel Casal, que na ocasião do depoimento tra-
balhava no prédio do jornal e dispunha apenas de um computador para trabalhar, declarou
que costuma eventualmente consultar o Google Imagens: “dou uma olhada e desenho de
memória”. Tem nos arquivos de seu computador o seu próprio trabalho organizado e utiliza
esporadicamente uma forma já construída num outro contexto.
O armazenamento de trabalhos em arquivos de computador e reutilização posterior
é uma prática comum. Gilmar A. Hermes (2005, p. 331) conta que o ilustrador da Folha de
São Paulo, Adolar, organizou um arquivo com cerca de 300 representações de políticos, para
oportuna utilização na seção Painel, da editoria Brasil. Esse material é utilizado em situações
em que o ilustrador dispõe de meia hora para criar uma ilustração com a representação de
vários políticos juntos. O que é feito nesse tempo é uma montagem com os desenhos ante-
riores.
Emílio Damiani também deu um depoimento semelhante a Hermes (2005, p. 329),
explicando que seus desenhos, que exigem muita precisão no acabamento, são armazenados
(e com seus 25 anos de experiência o seu acervo conta com um repertório considerável).
“Como não tenho tempo hábil para resolvê-las, uma a uma, e esse tempo foi retirado pela
questão industrial, eu reutilizo as ilustrações. Já fazia isso muito antes do negócio do compu-
tador ser implantado na linha industrial. (...) Xerocava, recortava e colava.”
Orlando relata que mantém um arquivo digital com ilustrações “frias”, que por al-
gum motivo não foram impressas e que eventualmente podem servir. Mas na prática esse é
um arquivo pouco utilizado.
Figura 3.1 – Gaveta de carimbos de Carlos Matuck.
60
Traçar
Talvez a esfera mais sutil da interpretação gráca de um determinado conteúdo seja
a anatomia do traço em si. Considerado por Massironi (1982, p.17) como técnica essencial e
primária, recurso simples, mas intrinsecamente elástico, se adapta às mais variadas exigên-
cias e processos mentais.
“Qualquer objeto que trace um sinal em qualquer superfície; o homem pré-histórico que com
uma pedra dura grava a rocha; o rapaz que com giz traça sinais no asfalto; o encarcerado que
reconstrói um mundo de sinais na parede-diafragma que o separa do mundo exterior; (...) as
centenas de desenhadores que percorreram as ocinas da França para traçarem as ilustrações
da Enciclopédia; os pesquisadores de quase todas as disciplinas que, chegados a determina-
dos limites nos próprios conhecimentos expressos pela palavra, encontram com um sinal não
verbal a possibilidade de irem mais além...”
A diversidade funcional do desenho possibilita recursos que atendem às mais amplas
necessidades de expressão e comunicação. Atributos como forte ou leve, seco, geométrico,
orgânico, sintético, analítico, conferem à imagem visual gráca qualidades adverbiais, pré-
simbólicas, que não podem ser ignoradas.
O estado corporal sensório-motor que gerou o traço o carrega de signicados. Nessa
esfera, a mediação se dá entre o corpo e o lápis. O traço é rastro de gesto corporal e o mouse
registra o movimento, mas não registra a tensão, não sulca o papel. As possibilidades de va-
riação de espessura de um pincel, propostas pelos programas grácos, podem ser controladas
racionalmente, mas se afastam do gesto. É claro que a indústria já se deu conta disso e pro-
jetou mesas digitalizadoras com a intenção de se aproximar um pouco mais da gestualidade.
Numa propaganda desse tipo de produto, na internet, consta a seguinte promessa: A caneta
sem o da Graphire4 possui 512 níveis de sensibilidade à pressão, botões nas duas laterais e
uma borracha embutida
1
”. Ilustradores como Rogério Soud, Galvão, Cecília Esteves e Chi-
cão Monteiro não utilizam papel e desenham diretamente em mesas digitalizadoras.
Nenhum dos ilustradores aqui estudados usa mesas digitalizadoras. Orlando prefere
desenhar e escanear. Samuel descobriu que buscar recursos próprios das ferramentas digi-
tais, sem tentar simular o analógico, é um caminho mais profícuo experiência que vamos
acompanhar mais adiante.
Texturizar
O termo “textura” (1982, p.26) é proveniente de “tecitura”. Congura a ação de tecer
informações grácas. Massironi explica que a textura se “quando o traço sobre o plano
1 http://www.cadritech.com.br/produtos/Wacom/Tablets_Wacom/tablets_wacom.html – pesquisa: 20/06/2007.
61
Figura 3.3 – Nesses detalhes de
ilustrações de Orlando, o exemplo
à esquerda é anterior à utilização
de recursos digitais e o da direita
é posterior. Nota-se a presença de
pinceladas, grafismos e diversidade
de texturas no primeiro caso e
áreas mais homogêneas de cor, no
segundo caso, marcando superfícies
e planos.
(sinal) se repete sempre igual a si mesmo, ou mudando em
progressão sistemática, com intervalos regulares, ou ainda
irregulares, mas sempre muito pequenos”. Como recurso
comunicativo, esses sinais grácos repetidos informam a
respeito daquilo que se intenciona representar: a matéria, a
luz, a localização espacial, a profundidade de campo.
Texturas remetem a sensações táteis, de natureza si-
nestésica. São microtopograas constituídas por repetição
rítmica de elementos (FRANCIS, 1992). Pela sua natureza
de trama, a textura pode ser um conjunto de linhas e tam-
bém superfícies.
Cada criador gráco constrói com a prática a sua
paleta de texturas. Um recurso recorrente no trabalho de
Samuel Casal, de grande expressividade gráca, é a utili-
zação de formas geométricas simples, como quadrados, círculos, repetidos e em diferentes
tamanhos, preenchendo o campo visual. Na ilustração feita para um artigo sobre as escolhas
de lmes candidatos ao Oscar, que analisaremos mais adiante, a adição de cifrões e estrelas
na garrafa e fora dela informam sobre textura e luz, além do evidente conteúdo simbólico de
dinheiro e fama (Figura 3.2).
Vimos no capítulo anterior o comentário de Orlando a respeito da utilização de es-
caner tamanho A-4 reduzindo os recursos de pinceladas. No caso de Orlando, o computador
acarretou também outros tipos de textura (gura 3.3).
Outro aspecto da linha de produção que aparece visivelmente na imagem impressa é
a restrição de tamanho, imposta por projetos grácos, que acarreta também em soluções mais
sintéticas e menos texturizadas. As ilustrações realizadas por Carlos Matuck para a Folha de
S.Paulo, na década de 1980, ocupavam quase metade da página impressa, e possibilitavam
intenso aproveitamento expressivo das texturas. Essa riqueza de informações grácas corre
o risco de ser perdida, na medida em que os atuais projetos grácos dos jornais destinam às
ilustrações diminutos espaços modulares.
Figura 3.2 – Detalhes de texturas dos
trabalhos de Casal utilizando formas
gráficas simples.
62
Esboçar, rafear
Entre os ilustradores, é grande a variação de método em relação ao hábito de esboçar
e lidar com o aspecto projetivo do trabalho. Para alguns, como Carlos Matuck, esse pro-
cedimento é indispensável para a testagem de hipóteses plásticas e exercício de raciocínio
espacial.
A pauta Entrevistas comprimem as últimas idéias de Paris, ilustrada por Carlos Ma-
tuck, envolveu uma série de rafes (gura 3.4). Trata de entrevistas realizadas pelo jornal Le
Monde a intelectuais europeus, editadas numa coleção de livros. A resenha de Marcelo Co-
elho avalia a falta de talento de alguns deles, apontando que “rotundas trivialidades” foram
proferidas, reetindo um ambiente intelectual em crise.
Uma profusão de estudos preparatórios foi realizada para tipicar os intelectuais
e arranjar a disponibilidade geral dos elementos (guras, balões, sombra e luz) no espaço
representacional.
Diferentes representações dos intelectuais foram exploradas e depois reduzidas a
três, na versão publicada. Com essa redução, criou-se foco e ritmo na gura de cada escritor
e seus respectivos discursos. Em paralelo à testagem da organização espacial dos elementos,
a pesquisa da tipicação se valeu de uma fotograa e estudo detalhado do rosto e dos gestos
das mãos, com o cigarro como elemento recorrente.
Na versão impressa, as texturas e sombreado foram feitas com retícula Letraset, re-
curso gráco típico dos anos 1980.
Nota-se aqui um movimento expansivo de investigação plástica, profusão, depura-
ção e detalhamento, seguido de um movimento seletivo de escolha e organização espacial.
Desde o primeiro esboço, a fala dos intelectuais é representado por balões de História
em Quadrinhos (HQ), e no lugar de textos, há imagens. No início do processo, os discursos
eram representados por sinais de pontuação, com diversidade gráca: estrelas, prédios, labi-
rintos. Posteriormente, para compor os discursos dos intelectuais, foram utilizados os carim-
bo de um homem e de duas vacas. A organização espacial vertical, intercalando a gura do
intelectual e o balão propõe uma ordem de leitura que ressalta a disparidade do terceiro dis-
curso. O aspecto expressivo dessas escolhas será retomado na terceira parte deste capítulo.
63
Figura 3.4 – Carlos Matuck, Folha
de S.Paulo, 1/4/1989. Esboços, foto
e carimbos utilizados na criação da
ilustração para o artigo Entrevistas
comprimem as idéias de Paris. Uma
versão horizontal (no alto) foi testada
e depois descartada. Na seqüência
à esquerda, os sinais de pontuação
foram substituídos por figuras dentro
dos balões de história em quadrinhos.
64
Desenhar, escanear
Diferente de Carlos, Orlando arma que detesta rafear. “Antes de passar a tinta eu
faço só uma marcação. Eu não tenho muito rascunho”. O repertório internalizado dá respos-
tas imediatas ao desao em questão. Quase não testagens em torno da estrutura geral da
guração, em seus esboços feitos no papel. As testagens ocorrem mais em relação à organi-
zação espacial dos elementos, com os desenhos já escaneados.
No trabalho diário para o jornal, num ritmo contínuo, intenso e com prazo apertado,
os recursos materiais que utiliza não sofrem muita alteração.
O desenho no sulte, depois de escaneado, vai para uma pilha em seu estúdio. É
como se cada desenho fosse o capítulo anterior do próximo. Essa pilha de desenhos é um
diário visual que dialoga diretamente com a natureza dos jornais, cujo assunto é a atmosfera
contemporânea do país ou eventualmente do mundo. O traço sintético de Orlando é uma ex-
pressão da resposta imediata à notícia do dia. Esses desenhos ágeis, sem textura nem cor, são
como uma marcação da estrutura da composição – esqueletos feitos para serem encarnados
no computador.
Utilizando poucas ferramentas de Photoshop, Orlando acrescenta cor e textura. Ge-
ralmente a construção da cena e sua atmosfera são feitas com essas manchas de cor (gura
3.5).
“De vez em quando me na louca e eu uso crayon, caneta e escaneio, mas isso é raro, é
quando tem um tempinho. E normalmente é quando eu sei que isso vai dar para fazer por
uns quinze dias seguidos, não é um só. Mas normalmente eu uso computador. E dá para dar
algumas falseadas, tem algumas coisas que eu faço, usando transparências, que as pessoas
acham que é aquarela. Também é legal só usar o baldinho, dar um chapadão” (Orlando, de-
poimento).
Figura 3.5 – Orlando, revista Meu Nenê, maio de 2005. Nesse trabalho, o desenho a caneta foi escaneado e a cor foi
adicionada no computador, com o programa Photoshop. As cores são aplicadas em áreas uniformes.
65
Desenhos de observação de modelos vivos realizados na juventude foram signica-
tivos para internalizar a estrutura do corpo humano, avalia Orlando. Certas soluções plásti-
cas que são típicas do seu traço (como o nariz de bolinha e os olhos feitos com dois traços)
apareceram num contexto de muita prática diária, num processo de seleção que reconhecia
e adotava certas soluções “que funcionavam”, descartando outras. As testagens e escolhas
aparecem ao longo do tempo e o trabalho diário é processo para os próximos desenhos.
A análise da seqüência de desenhos no sulte adicionados diariamente à pilha evi-
denciou recursos expressivos recorrentes, com variações de atmosferas e recongurações de
idéias visuais em outros contextos. O que chama a atenção é a recorrência de representações
de guras humanas com gestos resignados, tema que será abordado na terceira parte desse
capítulo. Embora Orlando declare que não gosta de rafear, podemos considerar que cada
desenho dessa pilha é esboço para o próximo, o que evidencia a natureza inferencial do
processo criador.
“Se a questão da continuidade em rede for levada às últimas conseqüências, pode-se ver cada
obra como um rascunho ou concretização parcial desse grande projeto” (SALLES, 2006,
p.127).
Sintetizar, analisar
Num conjunto de dados perceptivos trabalhados, criadores elegem níveis de detalha-
mento ou síntese. Escolhas que privilegiam a ênfase resultam em mensagens visuais mais
analíticas. Escolhas que privilegiam a exclusão resultam em mensagens visuais mais sin-
téticas. Ao eleger diferentes níveis de detalhamento ou síntese, o ilustrador lida com dois
procedimentos cognitivos diametralmente opostos, o que resulta em diferentes conteúdos
expressivos.
“O Glauco tem um traço absolutamente simples, esquemático... o Henl, por exemplo é
um caso extremado, o cara tinha um rabisco que basicamente funcionava como veículo das
idéias dele, a metralhadora que ele era. Ele tinha de ter um traço muito rápido, porque a idéia
dele tinha urgência”. (Orlando, depoimento)
Ao agregar e compactar informações, a síntese evita redundâncias. O traço brejeiro
de Orlando é oportuno para o conteúdo dos temas do dia, comentados na seção Tendências e
Debates. O seu estilo sintético e prosaico está em sintonia com a proposta editorial da tercei-
ra página do jornal, que lida diariamente com conteúdos críticos e analíticos a respeito dos
mais diferentes temas e pontos de vista em torno do Brasil contemporâneo e as implicações
cotidianas que o debate da vida política se coloca sobre o cidadão.
Por outro lado, o detalhamento de texturas e contrastes de suportes das ilustrações de
Carlos Matuck se ajustam à polissemia de signicados dos textos literários e losócos.
66
Vetorizar
Samuel traça seu desenho diretamente no computador, utilizando o programa veto-
rial FreeHand. “Não tenho caderninho. Eu vou aos encontros de desenhistas, vejo todo mun-
do com seus cadernos e penso: tenho que comprar um laptop”. A experimentação e escolha
equivalente aos rafes do caderno de esboços acontece toda no ambiente digital.
“Tem gente que vê o meu portifólio e vem me pedir para fazer uma aquarela. Eu co meio
chocado. Não entendem que o meu desenho é digital, que eu não faço nem rascunho. Me
pedem um rafe para aprovar. Não existe. Hoje eu brinco com os caras: se eu mandar um
rafe você não vai querer. Às vezes eu monto o desenho a partir de um esquema. As pessoas
acham que antes de eu desenhar eu faço várias tentativas. A maioria é na primeira, mesmo.”
(Samuel Casal, depoimento)
A maneira como o desenho foi assimilado pelo ilustrador através dos programas
grácos vetoriais
2
merece atenção mais detida. Samuel trabalha com o programa gráco
FreeHand desde a sua primeira versão, de meados de 1993. Considera que foi com esse
recurso que aprendeu a desenhar, no início, pressionado pelo prazo, e aos poucos, sentindo
melhor domínio da ferramenta e capacidade de produzir linguagem, com diferencial. “Não
dava tempo de desenhar na mão, eu desenhava direto no computador. Mas a produção era
esse tipo de clichê de vetor. Dava para ver que era feito no computador.”
As primeiras tentativas foram desenhar no computador, com o mouse, da mesma
maneira como desenhava no papel, tentando movimentar o pulso como no desenho livre.
Mas não conseguiu. Passou então a experimentar formas geométricas simples, quadrados e
círculos, na formatação da composição. Evitava utilizar a ferramenta mão livre que esse pro-
grama oferece, que na verdade desenha com o mouse. Preferiu ir de ponto em ponto e fazer
a curva a partir dos nós. Mas esse método endurecia o desenho.
Começou então a jogar com as irregularidades a seu favor e tirar proveito dos aciden-
tes, dos ruídos, das curvas não perfeitas (mais orgânicas, portanto), que a maioria das pesso-
as acham que não existem no computador. Percebeu que os novos recursos digitais exigem
outros procedimentos, e proporcionam outras soluções para a linguagem gráca. No
desenho de vetor a mudança de uma curva muda toda a expressão.
“As pessoas até hoje não entendem que eu desenho com o mouse. Sugerem que eu compre
um tablet. Eu até já tenho... mas não uso. O que eu faço é outra coisa. O cara que é mais ges-
tual na hora de desenhar, precisa abrir o braço, entortar o papel. Tentar fazer a mesma coisa
não dá”. (Samuel, depoimento).
Ao deixar de tentar reproduzir os movimentos do desenhar com lápis no computador,
2 Uma imagem vetorial é feita por linhas dispostas num sistema de coordenadas cartesianas. As linhas vetoriais são passí-
veis de manipulação a partir de seus “nós”.
67
Samuel passou a interpretar a ferramenta de outra maneira. Faz uma mancha e sobrepõe
formas fechadas vetoriais, como se fosse uma colagem.
“Eu comecei a compor os desenhos não do branco para o preto, mas do preto para o branco.
Como a maneira negra, na gravura. Eu iniciava com manchas pretas e ia abrindo o branco.
Porque o grande problema, usando o free-hand, era o traço das coisas, que não me obede-
ciam. Então eu comecei a criar manchas e anando cada vez mais.”
Modelar com vetores
No trabalho de Samuel, as formas vetoriais são sobrepostas como camadas de pin-
celadas, modelam volumes e informam luz, cor e textura. O desenho não é feito a partir de
linhas de contorno, mas por planos, manipulados a partir dos nós dos vetores, facilmente
deformáveis. O processo de adição, exclusão, sobreposição e escolha acontece todo no am-
biente digital.
“O processo imediato de um desenhista é ir fazendo as partes. Eu comecei a não fazer isso.
Fui modelando, com a sobreposição. Dependendo do que eu for fazer eu não me preocupo
com o acidente. É como se fosse o borrão na hora de pintar. Fica parecendo mais acidentado
do que programado.” (Samuel, depoimento)
Nessas alturas, a ferramenta mão livre passou a ser mais utilizada. E confundiu mais
as pessoas, sobre se o trabalho era feito no computador ou não. Embora Samuel expresse sua
convicção na ausência de rafes, podemos considerar que eles estão presentes nas inúmeras
camadas de formas vetoriais descritas por ele.
Samuel constrói formas complexas a partir de estruturas geométricas simples e na
seqüência deforma e “amolece” essas guras, conferindo-lhes aspecto mais orgânico. Esse
procedimento nos remete aos antigos manuais de desenho e propostas de esquemas geomé-
tricos que estruturam posteriores camadas de desenho de formas orgânicas. A diferença é
que, com os recursos digitais, a própria forma inicial é transformada.
Nos programas vetoriais, as estruturas são facilmente manipuláveis a partir dos seus
“nós”, o que incentiva o recurso expressivo da deformação.
A pauta O que ver: o primeiro guia de lmes que todo mundo vai comentar (gura
3.6) trata dos ingredientes necessários para que uma produção cinematográca tenha chan-
ces de ganhar o Oscar. Nesse caso, a repetição de uma mesma forma (um desenho de um l-
me cinematográco no lugar do cabelo) ganha diversidade e congura uma grande cabeleira
a partir da manipulação e diferenciação de cada um dos desenhos de celulóide/cabelo.
68
O enquadramento final acentuou o
efeito de expansão do cabelo e de
localização do fogo. A experimentação
cromática e a deformação são
procedimentos que foram facilitados
pelas ferramentas digitais.
Para compor o cabelo da figura, Samuel partiu de um desenho de celulóide de cinema, repetido como um carimbo.
As formas do cabelo/celulóide foram coloridas, sombreadas, deformadas, até comporem um emaranhado volumoso.
O corpo foi modelado a partir da adição do branco e subtração do preto. Elementos gráficos com conteúdos simbólicos
foram adicionados (figuras humanas, estrelas, cifrões), indicando os ingredientes da receita para ganhar o Oscar.
Figura 3.6 – Ilustração de Samuel para o artigo O que ver: o primeiro guia de filmes que todo mundo vai comentar.
69
Figura 3.7 – Carlos Matuck, Folha
de S.Paulo, 25/11/1989. Esboços
para ilustração para artigo de
Didier Eribon sobre Foucault.
Deformar
Vamos ver, no próximo exemplo, o recurso expressivo da deformação realizado com
xérox, grades e anamorfoses, por Carlos Matuck.
Algumas ilustrações de Carlos Matuck para artigos e resenhas sobre escritores e
lósofos, para o caderno de literatura da Folha de S.Paulo, são focadas na representação de
seus rostos, metamorfoseados, desmanchados numa atmosfera, como se o reconhecimento
do personagem (geralmente facilitado pela menção ao seu nome no título) encaminhasse
o nosso olhar para o reconhecimento de sua obra. A deformação das guras dos escritores e
lósofos aproxima e funde com a sua obra.
70
É o caso da ilustração para o artigo de Didier Eribon, Jornalista Escreve sobre a Vida
de Foucault, escrito por para a Folha de S.Paulo (gura 3.7). O autor do artigo sustenta que
a obra do lósofo como um todo procura desvendar formas sutis de controle nas sociedades
modernas e comenta sobre as circunstâncias em torno da publicação da conhecida obra de
Foucault, As Palavras e as Coisas. Explica que nesse livro procura-se vericar “em que
momento apareceu, na cultura ocidental, a interrogação sobre o homem como objeto de
saber”.
Para esse trabalho, foi utilizada como referência visual uma fotograa de Foucault,
para um estudo de sua tipologia. Num primeiro desenho, o perl do escritor e suas caracte-
rísticas físicas (careca, óculos) foram evidenciados, sem exagero, embora a posição de perl
e a careca acentuem a impressão de cabeça grande, forma associada a inteligência.
Na seqüência, uma grade foi utilizada para deformar o retrato de Foucault, aumen-
tando a impressão de cabeça grande e conferindo ao retrato do escritor uma expressividade
mais atormentada. A utilização do recurso da grade para deformar é freqüente no trabalho de
Carlos, inclusive nos seus murais.
Nesse caso, a grade e a anamorfose
3
propõem um jogo entre a estrutura ortogonal e
os seus limites até o limiar da subversão. A decupagem em três colunas acentuou a deforma-
ção, conferiu movimento e jogo visual de simultaneidade de pontos de vista, com planos de
enquadramento fechados e ao mesmo tempo o plano aberto dos três retângulos somados.
Depois da deformação, foi criada uma nova versão com linha de contorno, decom-
posta em três colunas e alinhadas com as seis colunas do texto. Na seqüência, foi adicionada
sombra com a textura de carimbos de letras. Unidades discretas de construção de sintagmas
verbais, as letras são o conteúdo e ao mesmo tempo a textura e as sombras dessa “grande
cabeça”. O elemento facilmente reconhecível, a letra carimbada, ganha dimensão simbólica.
A estratégia de deslocamento do signo (letra) do seu lugar habitual, assim como as deforma-
ções, provocam estranhamento e desencadeiam movimentos associativos.
Devemos convir que seja um tanto pertinente para um desenho de um rosto de Fou-
cault a inserção de um jogo visual envolvendo estrutura, limite, subversão e diversidade de
ângulos. A grade estabelece um controle sobre a deformação da representação do homem,
feito de letras (que fazem palavras e aqui fazem rostos). O pensamento de Foucault é conhe-
cido pelas suas análises de “dispositivos de poder”, que são analisados como um conjunto
multilinear, um novelo ou meada de diferentes naturezas que nos atravessa e envolve. Na
obra de Foucault As Palavras e as Coisas, o autor “vê na monstruosidade uma espécie de
ruído de fundo, o murmúrio incessante da natureza” (SODRÉ e PAIVA, p. 55).
A representação do rosto do lósofo deformado possibilita seu reconhecimento e
também o estranhamento. O repertório cultural de Carlos é o seu diferencial. No lugar de um
3 O recurso da grade e sua deformação é também um indicador da passagem do ilustrador pela FAU USP, curso
que, mesmo não tendo terminado, deixou sua marca através das anamorfoses tantas vezes proposta pelo trabalho de Regina
Silveira, professora da faculdade.
71
retrato do escritor, apresenta uma leitura visual da atmosfera de sua obra.
Carlos lamenta não ter enviado para publicação a versão apenas com carimbos, sem
as linhas. Considera mais ousada. A versão sem linhas ressaltaria as sombras e luzes pro-
porcionada pelo carimbo e resultaria numa representação do escritor mais desintegrada. Na
ocasião, a escolha pela versão com linha de contorno foi uma decisão que implicava mais
fácil reconhecimento da gura de Foucault (maior redundância), portanto menor esforço de
assimilação do leitor.
Não foi o caso da ilustração “Chacais e árabes, um enigma de Kafka, sobre um
trecho da obra de Kafka (gura 3.8).
Com recursos de xérox, Carlos deformou a fotograa do escritor várias vezes, até
car no limite do reconhecível. Utilizou então esse xérox deformado como referência, e
desenhou o rosto de Kafka com um aspecto que parece metamorfoseado em nuvens. Na
composição do desenho, lidou com três grupos de guras citados no título: chacais e árabes,
num ambiente carregado pelo olhar penetrante e desmanchado do rosto de Kafka, metamor-
foseado em céu carregado.
As deformações dos rostos dos escritores e lósofos apresentadas por Carlos, no
lugar de apresentarem aspectos ridículos ou grotescos, procedimentos típicos da caricatu-
ra, apresentam cenas representando as guras dissolvidas na atmosfera de suas respectivas
obras.
Figura 3.8 – Carlos Matuck, Folha de S.Paulo,
9/12/1989. Estudos para ilustração de texto de
Franz Kafka.
72
Figura 3.9 – A fusão da silhueta da
árvore com o rosto do demônio
confere à figura uma aparência
orgânica e cria uma relação de
semelhança entre a silhueta da árvore
e veias.
Fundir
no trabalho de Samuel Casal uma clara preocupação em criar imagens visuais
com programa vetorial sem se limitar a formas rígidas e frias, marcadas por geometrismos
excessivos.
Uma das estratégias desenvolvidas para “aquecer” esses desenhos é a fusão e a defor-
mação de formas geométricas e formas orgânicas. A gura de um demônio para a ilustração
de O Poço e o Pêndulo, de Edgar Allan Poe, que estudaremos mais adiante, foi realizada
com a fusão de duas guras da árvore e do demônio num exemplo de sobreposição de
camadas digitais com transparência. Os galhos se integraram de tal maneira ao rosto do de-
mônio que se amalgamaram numa forma só (gura 3.9).
Apropriar
Na ilustração de Carlos para o artigo Sennet faz de NY a capital do século (Folha de
S.Paulo, 26 de agosto de 1989), a elaborada composição foi realizada a partir da utilização
de cinco carimbos e nenhum desenho (gura 3.10). Alguns deles foram comprados prontos,
outros mandados fazer a partir de desenhos retirados de catálogos antigos.
A utilização da imagem carimbada uma apropriação de antigos clichês e ressigni-
cação num outro contexto expressivo – é um procedimento muito presente no trabalho de
Carlos Matuck. A reutilização de signos grácos em diferentes ordenações é também parte
importante da poética de seu trabalho.
As imagens carimbadas dos prédios foram ampliadas e reduzidas inúmeras vezes
(com xérox) e organizadas de uma maneira que dão impressão de grande metrópole. A ima-
gem carimbada de dois homens foi duplicada e disposta no primeiro plano, lado a lado,
compondo um grupo horizontal, contracenando com a massa vertical dos prédios.
73
Figura 3.10 – Carlos Matuck, Folha
de S.Paulo, 26/8/1989. Carimbos
utilizados na ilustração para o artigo
Sennet faz de NY a capital do século.
Essa ilustração também serve como exemplo de articulação do espaço. O livro trata
da cidade de Nova York como paradigma da sociedade contemporânea, considerando que
a questão central da cidade moderna é a “neutralização das diferenças” no espaço público e
analisa as relações entre o poder e o espaço urbano.
74
“A rede (grid) do século 19 era horizontal; a rede do século 20 é vertical; é o arranha-céu e
seus poderes de neutralidade se estendendo para além da paisagem americana. (...) À rede
vertical faltam denições e de localização e encerramento signicativos.” (...) Na construção
das cidades em rede, os americanos agiram como em seus conitos com os índios, pela “eli-
minação da presença do outro estranho, no lugar da colonização. Ao invés de estabelecer o
signicado do lugar, o controle operava através da percepção do lugar como neutro.”
A opção pela verticalidade que ocupa a página inteira e contraste entre a amplidão
vertical dos prédios e pequenez dos seres humanos reforça a abordagem do autor, que trata
da verticalidade da metrópole novaiorquina como forma de não-contato. A sobreposição das
guras dos prédios em tamanhos menores na medida em que ocupam o espaço superior e a
combinação entre as diferentes dimensões e formatos proporciona um jogo visual onde às
vezes se apresentam diminutas profundidades de campo, e é permitido adentrar pelo espaço
representacional tridimensional, ou nos jogam de volta para a planura quadriculada das gra-
des formadas pelas grandes superfícies dos prédios.
Esses carimbos de edifícios, utilizados em 1989, nos remetem aos trabalhos de recor-
te de grate que Carlos comercializa atualmente, com a marca Damar, em sociedade com
o colega grateiro Júlio Barreto. Muitos dos estêncils utilizam as imagens dos carimbos.
Outros são meticulosos recortes de desenhos de prédios históricos da cidade de São Paulo,
como o teatro municipal (gura 3.11).
Figura 3.11 – Teatro Municipal, recorte com grafite de Carlos Matuck e Júlio Barreto
Figura 3.12 – Joaquim, Mário e Afonso, mural para a 18
a
Bienal de São Paulo, 1985, por Carlos Matuck
75
No texto de apresentação para uma exposição de grate na Casa das Rosas, Carlos
conta que a partir do encontro com Alex Vallauri, os carimbos e guras de HQ que usavam
em seus trabalhos passaram a ser ampliadas e aplicadas através de máscaras nas paredes
das ruas. Inicialmente, os espaços da cidade eram marcados com imagens de leitura rápida,
jogando com sua variação (espacial, cromática, textural); depois, as imagens passaram a se
combinar em personagens e cenas; por m, cenas inteiras eram antes concebidas, criando-se
as máscaras necessárias para a sua realização. Nas últimas pichações, o processo de criação
tornava-se cada vez mais similar ao de um mural. Esse movimento resultou no trabalho Jo-
aquim, Mário e Afonso (gura 3.12), apresentado na 18ª. Bienal de São Paulo, em 1985, ao
lado do trabalho de Vallauri, A Rainha do Frango Assado.
“A repetição de motivos repropõe as interações de meus trabalhos com carimbos; o sinte-
tismo dos traços retoma, em suas áreas chapadas e contornos nítidos, o despojamento das
histórias em quadrinhos; o corte dos estênceis repensa os recortes de minhas colagens; as
texturas produzidas a mão livre com jatos de spray ressituam as de minha pesquisa com
papéis marmorizados. Também na iconograa, os grates de ambas as cenas recolocam ima-
gens anteriores, como retratos, personagens de histórias em quadrinhos, guras de carimbos
e vinhetas, etc.” (Catálogo Geral da 18ª. Bienal de São Paulo, 1985, p.218)
O uso continuado das máscaras promoveu a experimentação dos recortes em outros
materiais, além da utilização deles próprios, colados nos trabalhos, integrados à pintura da
qual eram antes só o instrumento, inaugurando uma ampla série de combinações. Num muro
da cidade, numa página de jornal ou num mural de galeria, signos grácos sofrem desloca-
mentos e passam a pertencer a outro sistema de signicação.
É o que podemos acompanhar nas inúmeras referências em torno do mural para o
Sesc de Santos, realizado em 1986 (gura 3.13). Imagens grácas de temas náuticos pesqui-
sadas em HQs, carimbos e catálogos antigos foram apropriadas, utilizadas como referências
para máscaras de grate, e dispostas numa composição que tematiza a atmosfera portuária
da cidade.
Os mesmos procedimentos de apropriação, deformação e deslocamento de signica-
do utilizados na construção do mural para o Sesc reaparecem na elaboração de ilustrações.
Um universo referencial de signos é transformado em favor de um novo sistema de signi-
cação (MARINHO, 1997, p. 35).
Marinho propõe que para se congurar o procedimento da apropriação é preciso que
o universo abordado congure-se como um sistema autônomo, que é transformado em ele-
mento constituidor de um outro sistema.
Esse é o jogo criativo que permeia os signos em rotação do trabalho de Carlos. Os
signos preservam traços de seu discurso original e ao mesmo tempo são contaminados pelas
novas circunstâncias onde são inseridos. Um discurso fresco é organizado a partir da combi-
nação de fragmentos de um mundo industrializado e obsoleto.
76
Figura 3.13 – Carlos Matuck, mural
feito para o Sesc de Santos, 1986. A
obra foi criada a partir da apropriação
de imagens de catálogos antigos e
histórias em quadrinhos.
77
Deslocar
O gesto criativo, nas artes plásticas, é traduzido
“na forma como a tinta se encontra espalhada sobre o tecido ou papel, nos contornos que
assume a pedra após sofrer investidas do cizel, na chapa que é riscada com a ponta seca ou
buril. Mas ele se atualiza também no deslocamento de um objeto, ou na intervenção no espa-
ço, delimitado por paredes ou não”. (MARINHO: 1997, p.36).
Na ilustração de Samuel sobre os ingredientes para o Oscar, uma fotograa da es-
tatueta, emblema inequívoco da cerimônia, foi apropriada, reduzida e posicionada num
primeiro momento como se estivesse sendo despejada do balão e depois deslocada (num
tamanho diminuto) para o interior dos olhos do feiticeiro.
Nota-se aqui que o deslocamento do signo – estatueta do Oscar – da boca da garrafa
para o olho do mágico mudou radicalmente a construção de sentido da guração. Disposta
junto ao desenho do líquido, indicava que era ingrediente da poção. Transportada para o in-
terior dos olhos, passou a indicar a ambição do personagem, ou seja, o objetivo da poção e
não o seu ingrediente (gura 3.14).
Fica evidente nesse exemplo que a organização espacial dos elementos é também
uma organização de ordem semântica. A ação que desloca os elementos grácos no plano de
representação é uma ação que transforma a estrutura semântica da mensagem, em busca de
uma melhor ecácia comunicativa.
Figura 3.14 – Detalhe do processo de criação da ilustração para o artigo O que ver: o primeiro
guia de filmes que todo mundo vai comentar.
78
Recortar e Colar
Não é a cola que faz a colagem.
Max Ernst
Na década de 1980, anterior à disseminação do computador, o recurso da colagem foi
muito utilizado entre ilustradores, junto com a manipulação de imagem realizada com xérox,
e o trabalho de Carlos é um exemplo disso. Na ilustração para o artigo de Gianni Celati na
Folha de S.Paulo (gura 3.15), o ilustrador se apropriou da gura feminina de uma pintura
japonesa e, através da substituição e adição de elementos grácos, compôs a nova gura. A
mão da mulher passou a segurar um telefone, que lança um discurso sobre a cidade, e a pa-
dronagem de seu quimono foi trocada por outra estampa, formada por carimbos da vasta co-
leção mantida por Carlos, remetendo a aspectos do conto reproduzido na página do jornal.
Atualmente, com a proliferação da utilização de programas grácos como o Pho-
toshop, o FreeHand ou o Illustrator, as camadas de imagem (que até a década de 1990 costu-
mavam ser realizadas com a operação manual da colagem) passaram a ser realizadas com o
auxílio do computador. Aqueles que desenvolveram esses programas grácos não ignoraram
Figura 3.15– Carlos
Matuck, Folha de S.Paulo,
2/9/1989. Reprodução
de pintura e carimbos
utilizados na ilustração
para artigo de Gianni
Celati.
79
a força expressiva da colagem e criaram ferramentas facilitadoras para a organização espa-
cial estruturada em camadas.
O princípio da colagem é a utilização e descontextualização de materiais extrapictó-
ricos ou extra-artísticos e a re-signicação a partir da sua inserção em outro contexto, pro-
movendo ruptura com a sintaxe tradicional.
Do ponto de vista expressivo, a colagem subverte a estrutura subordinada e propõe
uma organização coordenada de elementos, num discurso paratático
4
, que lida com simul-
taneidades. Décio Pignatari (1977) considera a estrutura da parataxe como “galáxia que se
organiza ao longo do eixo paradigmático, ou seja, estrutura das justaposições igualitárias”.
Diferencia da hipotaxe, que se estrutura ao longo do eixo sintagmático, como “o mundo das
hierarquias presidido pela lógica”. E propõe o termo “paramorsmo”
5
, mais abrangente,
para caracterizar a gura de retórica estruturada no eixo da similaridade.
A colagem proporciona o encontro de realidades distintas, pois contém, simultanea-
mente, diferentes camadas de imagem e gera um conteúdo diferente da soma de seus com-
ponentes. A ruptura de natureza sintática é também uma ruptura de ordem semântica. Ele-
mentos de natureza distinta se encontram e podem construir um signicado de comunhão ou
conito (como propunha Eiseinstein).
Alberto Tassinari (2001, p. 43), analisa o papel da colagem como “um espaço dispo-
nível para a exposição de determinadas operações, que o espectador pode perceber ao olhar
a obra”. O autor avalia que a colagem exige uma superfície pictórica receptível à operação,
um espaço manuseável, condição que teve na arte moderna sua oportunidade, proporciona-
da pelo projeto antiperspectivo. Tassinari arma que “um espaço receptível ao colar é um
espaço receptível ao manusear, (...) apto a acolher operações as mais variadas”. O espaço
manuseável ou “em obra” é considerado por Tassinari a compreensão essencial do espaço
moderno. “O espaço moderno surge, desse modo, como um território do fazer, onde o feito
pode mostrar-se ainda como que se fazendo.”
A produção modernista explicitava o território do fazer através do recurso da cola-
gem, a produção contemporânea resgata e intensica a articulações de planos de sentido de
discursos paratáticos nas várias camadas dos programas grácos. A colagem pode ser consi-
derada a porta para as técnicas mistas e o multimeios, colocando mais uma vez em estado de
fragilidade a pretensão por uma unidade clássica do mundo (ANA BARROS, 2001).
Em relação ao aspecto manuseável da colagem, as ferramentas digitais esvaziaram
um recurso altamente expressivo, que é o contraste tátil. Kurt Schwitters, ao comentar so-
bre o seu trabalho Merzbau (instalação construída em sua casa na década de 1920), deu a
seguinte explicação:
4 Parataxe: seqüência de frases justapostas sem conjunção coordenativa.
5 Para Pignatari, paramorsmo é a gura de linguagem que explora a expressividade de palavras que possuem semelhança
fônica e diferença semântica. Considera que o termo “paramorsmo” dá conta de equivalências ocorridas em outras lingua-
gens, diferentemente de paranomásia, baseada no nome.
80
“O material é pouco importante. Essencial é o ato de dar forma. Por ser tão pouco importan-
te, utilizo qualquer material e conciliando diferenças levo vantagem sobre a pintura feita ex-
clusivamente com tinta a óleo, pois posso opor não apenas cor contra cor, linha contra linha,
forma contra forma, mas também material contra material, por exemplo, madeira e estopa. A
essa visão de mundo chamo Merz.”
Embora Schwitters reforce o aspecto da pouca importância do material, na mesma
argumentação ele admite que houve um ganho expressivo ao opor estopa contra madeira,
ampliando as possibilidades da pintura, que opõe linhas e cores. As expressões “conciliar”
e “opor” diferenças são signicativas para avaliarmos os diferentes graus de rupturas que o
encontro de elementos distintos pode gerar, limitando-nos às artes grácas.
Lev Manovich se refere às mídias digitais como gerenciadoras de mídias. É interes-
sante observarmos que a sobreposição de camadas dos programas grácos vem incentivan-
do a utilização desses encontros entre diferentes mídias fotograas, desenhos, gravuras,
carimbos, dingbats – em composições híbridas. No entanto, ao serem digitalizadas as infor-
mações visuais, perdem-se os contrastes táteis, igualando o produto nal a uma superfície
em tela ou impressa. A produção gráca digital, tal como é realizada no momento presente,
exacerba o hibridismo entre as imagens visuais, sonoras e textuais em detrimento das infor-
mações táteis, gustativas e olfativas.
Na ilustração de Orlando para o texto de Calligaris, Vidas em Quadrinhos, o desenho
de um super-herói descansando numa cadeira foi sobreposto à fotograa de uma rua movi-
mentada (gura 3.16).
O artigo fala de uma cena presenciada em Manhattan, de uma banca que vende qua-
drinhos da Marvel e aluga um tabuleiro de xadrez para qualquer transeunte que deseje jogar,
“à sombra das HQs”. A cena é comentada como “uma espécie de metáfora da tendência do-
minante da narrativa popular contemporânea”, onde o sucesso das narrativas de HQs fazem
parte da estrutura nuclear de grande parte da narrativa cinematográca.
“O fenômeno é uma fraqueza subjetiva moderna. A questão de quem somos e a que viemos
está sempre em suspenso: depende do olhar dos outros, que nada garante. Nessa incerteza
Figura 3.16 – Orlando, Folha de
S.Paulo, 17/7/2003. Ilustração para
artigo de Contardo Calligaris
81
permanente, por que encarar abismos enigmáticos do drama humano? Melhor sonhar com
heróis que voltam sempre iguais a si mesmos. Anal, tudo seria mais fácil se, em nossas
vidas, tivéssemos a extraordinária e repetida consistência das personagens dos quadrinhos”
(Calligaris, Folha de S.Paulo, 17/07/2003)
O super-herói, desenho de gura imaginária, contrasta com a fotograa da rua nova-
iorquina (passível de ser identicada através dos signos: táxi amarelo, prédio avermelhado e
árvores ordenadas), que representa “a vida real”.
A ilustração mostra um enorme Capitão América aguardando um oponente para o
jogo, inclinando a mesa com sua força. E brinca com a ambigüidade que o título, Vidas em
Quadrinhos, e o artigo sugerem: não se sabe onde termina a vida e onde inicia a represen-
tação.
Operacionalmente, uma fotograa de Nova Iorque foi apropriada, uma gura do ca-
pitão América foi desenhada e, com a utilização de Photoshop, o desenho foi sobreposto à
fotograa e colorizado.
A sobreposição de realidades distintas – a fotograa de Nova Iorque e o desenho do
super-herói – dizem respeito ao contraste da natureza das imagens que a ilustração represen-
ta, internas e externas à mente. Trata-se de uma representação da falta de contornos entre a
imaginação e o mundo visível perceptivo, tema do artigo.
Testar a organização espacial com recursos digitais
Na ilustração de Orlando para a Veja São Paulo (gura 3.17), podemos acompanhar
um processo de trabalho compositivo para uma pauta que foi encomendada às pressas pelo
fato de as fotograas não terem sido boas o sucientes para a capa.
Cenas com muitos elementos não são a predileção desse ilustrador e o tema da pauta
– parques da cidade certamente exigia um plano mais geral do que fechado e com muitos
elementos. Um desenho com uma cena panorâmica, feito numa folhas de sulte A4, estru-
tura as linhas gerais da composição. Em outra folha foram desenhadas diferentes guras ,
representando tipos isolados ou agrupados, distribuídos ao longo de páginas. Ao serem esca-
neadas, algumas guras foram descartadas e outras incluídas e ajustadas na composição.
Percebe-se claramente que o critério para a localização da adição das novas guras
está diretamente relacionado à intenção de organização dos espaços vazios e cheios da com-
posição, para a inclusão das informações textuais. O desenho de um balão foi disposto numa
dimensão e localização adequado para conter a chamada da matéria e reforçar o ponto de
vista aéreo da cena. O espaço segregado do balão cria um foco para a chamada da capa e con-
tracena com as três guras que observam o balão perdido. O espaço homogêneo do gramado,
sem guras, facilita a legibilidade do texto e contrasta com o restante da composição, com
vários elementos, indicando a diversidade de público e divertimentos dos parques. Não se
82
trata, portanto, de uma ilustração “aproveitada” numa capa, mas de um desenho concebido
e estruturado organicamente para conviver com os elementos necessários de uma capa de
revista: logotipo da publicação e as chamadas.
Nesse exemplo, as testagens e escolhas das dimensões dos elementos, suas disposi-
ções e os arranjos cromáticos, assim como a inserção do texto no balão foram agilizados pe-
los recursos digitais e resultaram numa composição que propõe grande mobilidade ao olhar,
coerente com o conteúdo dinâmico das atividades do parque.
Um outro caso de testagem de organização espacial é a ilustração de Samuel Casal
para o conto de Edgard Allan Poe, O Poço e o Pêndulo (gura 3.18). Um homem narra a sua
exploração por um calabouço onde inquisidores o atiraram. Imerso na escuridão e com um ar
muito pesado, o narrador vai aos poucos tomando consciência do espaço onde está. Desco-
bre numerosos ângulos na parede, a beirada de um poço, um pêndulo que desce aos poucos,
ameaçador, ratos famintos, um chão de pedras, paredes de ferro em forma de losangos, com
guras de demônios. Depois de eliminado o perigo do pêndulo, o calor invade as paredes, e
começam a fechar em torno do narrador, empurrando-o para o poço. Essa é a cena sobre a
Figura 3.17 – Orlando, esboços para
capa de Veja São Paulo, 11/5/2005,
ano 38, n
o
19. Na disposição final, os
elementos foram agrupados e
posicionados para conviver com o
logotipo e os textos da capa.
83
Figura 3.18 – Samuel Casal. Seqüência de operações
realizadas para a ilustração de O Poço e o Pêndulo, de
Edgard Allan Poe.
84
qual a ilustração foca
6
.
“Irreal! Bastava-me respirar para que me chegasse às narinas o vapor de ferros em brasa!
Um cheiro sufocante invadia a prisão! Um brilho cada vez mais profundo se xava nos
olhos cravados em minha agonia! Um vermelho mais vivo estendia-se sobre aquelas pin-
turas horrorosas e sangrentas. Eu arquejava. Respirava com diculdade. Não poderia haver
dúvida quanto à intenção de meus verdugos, os mais implacáveis, os mais demoníacos de
todos os homens! Afastei-me do metal incandescente colocando-me ao centro da cela. Ante
a perspectiva da morte pelo fogo, que me aguardava, a idéia da frescura do poço chegou à
minha alma como um bálsamo. (...) A cela, antes, era quadrada. Notava-se agora que dois de
seus ângulos de ferro eram agudos, sendo os dois outros, por conseguinte, obtusos. (...) Num
instante, a cela adquirira a forma de um losango. Como não pude compreender que era para
o poço que o ferro em brasa me conduzia? (...) E cada vez o losango se aproximava mais,
com uma rapidez que não me deixava tempo para pensar.”
A seqüência de etapas salvas por Samuel ao utilizar o programa vetorial FreeHand
nos fornece oportunidade de acompanharmos os procedimentos de organização espacial,
representação do espaço, da gura humana, adição de luz e texturas.
Podemos observar, nesse caso, a seguinte seqüência de operações:
Disposição de elementos: silhueta de árvore, forma circular semelhante a um
piso, fusão desses elementos, deslocamento de uma das silhuetas de árvore.
Adição de uma forma semelhante a um pente, mas pontuda.
Expansão da área que representa o piso.
Reorganização espacial.
Ajustes de luz: Recorte das sombras – jogo entre cinza e preto.
Adição de texturas com aparência metálica. Acabamentos pontudos e fogo,
acentuando o efeito de connamento opressivo, pequenos círculos gurando pa-
rafusos, indicando que a caverna é de ferro.
Localização da forma circular (representação da boca do poço) no centro e das
paredes de ferro através de duas diagonais em torno, possibilitando associações
com altares ou palcos. Ali foi disposta a gura do homem - primeiro apenas uma
forma comprida e retangular, depois uma gura com gestos desesperados.
Adição de guras de demônios e muitos elementos pontudos e em forma de
arabescos, acentuando a atmosfera de connamento e opressão.
Adição e subtração do branco (no olho dos demônios): ausência de luz.
Transformação da composição geral com tonalidades frias, adicionando cores
quentes.
Adição de cor: a composição foi realizada na ordem: preto – cinza escuro – cin-
6 Embora esse exemplo tenha sido produzido para um livro de contos e não para jornais e revistas (objeto deste trabalho),
sua análise foi incluída pois as etapas salvas são signicativas para compreendermos os seus procedimentos criativos rea-
lizados pelo ilustrador e a maneira como utiliza as ferramentas digitais, que também ocorrem nas ilustrações de jornais.
85
za claro branco retirada do branco adição de cores quentes. Samuel explica
que a mancha cinza permite enxergar o tracejado do FreeHand, durante a execu-
ção do desenho. Por esse motivo toda a composição é feita a partir dos cinzas.
Só no nal é adicionada a cor.
A estratégia que vai do escuro para o claro é semelhante às operações das gravuras
feitas na técnica de maneira negra, que iniciam com um aspecto geral muito escuro e vão
“abrindo” a luz (segundo expressão de Samuel).
Configurar
Congurações do material visual não se separam daquilo que signicam, arma Ar-
nheim. A forma visual é um entrelaçado de elementos simples em padrões complexos.
“A forma sempre ultrapassa a função prática das coisas encontrando em sua conguração
as qualidades visuais como rotundidade ou agudeza, força ou fragilidade, harmonia ou dis-
cordância. Portanto são lidas simbolicamente como imagens da condição humana. (...) Toda
conguração é semântica.” (ARNHEIM, 1998, p.90).
O conteúdo expressivo de uma imagem visual é fruto da organização espacial de
seus elementos. As operações de deslocamento são de natureza semântica, implicam antes
de tudo no domínio daquilo que se intenciona estruturar expressivamente.
Ao explicar a diferença entre forma e conteúdo temático para a iconologia, Pano-
fsky (1982, p. 19 e 20) expõe os seguintes parâmetros: um homem que tira o chapéu pode
ser identicado como uma conguração de cor, linhas e volumes (signicado formal). Esse
conjunto de dados pode ser reconhecido como um homem que tira o seu chapéu (signicado
factual). Os matizes psicológicos desse gesto e a empatia de natureza sensível o revesti-
rão de signicado expressivo natural ou primário. O fato de esse gesto estar relacionado a
uma tradição medieval ocidental (guerreiros tiravam seus elmos, sinalizando paz) possibilita
uma interpretação dessa cena um signicado secundário ou convencional “porque é inteli-
gível em vez de sensível e porque foi conscientemente implicado na ação através da qual é
transmitido.” Os pressupostos que revelam uma época, uma classe, uma crença religiosa ou
losóca, (mesmo se escolhidos inconscientemente) são considerados signicado intrínse-
co ou conteúdo e requer do pesquisador mais do que o conhecimento de temas, mas uma
interpretação sintética, inferencial, a partir do cruzamento de informações provenientes de
diferentes fontes.
Do ponto de vista processual, todos esses aspectos são mobilizados simultaneamente,
a apropriação de uma reprodução da estatueta do Oscar e disposição no olho da gura e não
no espaço destinado aos ingredientes da poção é uma ação de natureza cultural (o signicado
86
simbólico da estatueta), e também espacial (a sua dimensão e localização). O deslocamento
da gura no espaço é também um deslocamento de ordem semântica. O gesto construtivo
lida simultaneamente com todos esses aspectos.
No último caso apresentado, a ilustração de Samuel para O Poço e o Pêndulo, dia-
gonais formam uma abertura triangular e são revestidas com pequenos triângulos pontudos.
Há uma intenção expressiva, norteada pelo conteúdo do texto – de violenta opressão física e
emocional – e a proposta de tradução plástica desse conteúdo – construção de uma caverna
pontuda, com paredes de ferro.
. . .
Os procedimentos relacionados à guração, composição e deslocamento dos elemen-
tos grácos que tivemos a oportunidade de observar são conduzidos por um propósito a
construção da ilustração. Voltando a um ponto de vista mais amplo, lembramos que essas
ilustrações estão inseridas num projeto gráco e editorial de um determinado veículo, e têm
como nalidade primordial chamar a atenção do leitor para a página e para a leitura do texto
que acompanha. Faz parte da função comunicativa da ilustração seduzir o leitor para a leitura
do texto, portanto ela não é um discurso independente ou auto-referente. O texto é uma dire-
triz importante e as estratégias para a construção de vínculos com ele são essenciais à singu-
laridade desse tipo de expressão visual. É o que veremos na próxima parte deste capítulo.
87
3.2 – Construção da relação com o texto
A ilustração não é subordinada ao texto, mas o tem como diretriz quase sempre é
através dele que o editor encomenda a ilustração. Ao pegar no pincel ou no mouse, o ilustra-
dor opta entre reforçar, comentar, ignorar ou mesmo contrariar essa leitura. Como toda me-
diação, esse processo não acontece de forma neutra. Além de desencadear o trabalho, o texto
é também para onde a ilustração conduz o leitor mesmo que discorde das suas posições. Ao
ilustrador cabe o desao de estruturar, com a mensagem gráca que constrói, essa triangula-
ção – sua mensagem tem valor próprio mas também remete ao texto e ao seu tema.
Como sistema de representação que goza de certa autonomia (pois se pressupõe que
estão andando mais ou menos juntos), a ilustração cria sempre, inevitavelmente, um terceiro
conteúdo, pois impregna no texto o seu tom. Para que o vínculo se estabeleça, algum elo é
criado. Algum aspecto do texto é apontado pela imagem, digerido, comentado, com os re-
cursos da linguagem gráca.
Autores como Kibédi-Varga, Kalverkamper, Rokem e Eberleh
1
sugeriram propostas
de tipologias das relações entre palavra e imagem. Kibédi Varga (apud HEUSSER, 1999,
p. 79) aponta a necessidade de observar aquilo que aproxima e que distingue as duas lin-
guagens. Defende o termo da complementaridade de informações. São dois elementos que
mantêm entre si relações de dependência e não se deixam separar. E distingue ao menos três
tipos de coincidências: parcial, inteira e oculta.
Na coincidência parcial, uma parte do texto é destacada, provocando um reforço
retórico (um pleonasmo ou acróstico). Na coincidência inteira, o texto é iconizado, como na
caligraa islâmica, nos abecedários ilustrados das cartilhas e poemas visuais. Na coincidên-
cia oculta, a relação se estabelece num terceiro lugar, na imaginação do leitor (a esse res-
peito, Varga observa que todos os textos suscitam imagens mentais, mas nem toda imagem
suscita um texto). Os demais teóricos, Kalverkämper, Rokem e Eberleh, também levam em
conta critérios de redundância, ênfase retórica e informatividade.
Além da complementaridade apontada por Varga, os autores apontam também:
coexistência
interferência
co-referência
redundância
dominância
discrepância
contradição
ironia
1 No livro A Imagem, Santaella e Nöth elaboraram uma breve síntese sobre as considerações desses autores a respeito das
relações entre imagem e texto. Na coletânea organizada por Heusser, Text and Visuality, Word and Image, diversos autores,
incluindo Kibédi Varga, tratam do assunto.
88
Ainda podemos adicionar a essa lista a relação mnemônica que a representação vi-
sual pode estabelecer com um texto ausente, como as iluminuras que fazem referência a
passagens bíblicas.
Embora esses operadores propostos por diferentes autores sejam válidos para o exame
das possibilidades de encontros ou desencontros da imagem com o texto, vale aqui ponderar
que essa tipologia proposta corre o risco de ser compreendida como uma relação binária,
uma via de mão única ou mesmo de mão dupla. Qualquer tipologia da relação entre imagem
e texto deveria levar em consideração que não se trata de referências ponto a ponto, mas
de dois sistemas que têm um objeto em comum que lhes é externo. A interpretação de um
sistema de signo em outro tem em mira aquilo que é o campo referencial comum de ambos
os sistemas de representação (em termos semióticos, o objeto dinâmico).
Para a teoria semiótica de C. S. Peirce, o objeto dinâmico é aquilo que provoca o
signo, cujo acesso é possível através da sugestão dos mecanismos de mediação. Pelo
fato de o objeto dinâmico poder também ser de natureza ctícia, Peirce evitou nomeá-lo de
“objeto real”. No caso da produção jornalística, o objeto dinâmico é aquilo a que a pauta se
refere: o fato a ser noticiado ou o tema sobre o qual opina o articulista.
Aquilo que se apresenta à mente já é uma mediação, e é nomeado por Peirce de obje-
to imediato, ou seja, o objeto tal como o signo permite que o conheçamos, ou a forma como
o signo representa o objeto dinâmico. O objeto imediato liga o signo ao objeto dinâmico tal
como o signo o faz aparecer, tal como o signo está a ele conectado e tal como o signo o torna
conhecível
2
.
O signo carrega dentro de si informações sobre o objeto dinâmico, e temos acesso a
essas informações através do objeto imediato, ou seja, o objeto tal como o signo o faz apare-
cer. Solange Silva (2000), que defendeu em seu doutorado uma tese a respeito da informação
como parte integrante do signo, explica:
“O signo não carrega, em seu objeto imediato, toda informação possível sobre o objeto di-
nâmico. Se assim fosse, não haveria distinção entre objeto dinâmico e objeto imediato. Por
outras palavras, se o signo contivesse toda a informação possível sobre o objeto ele não seria
signo, seria o próprio objeto” (SILVA, 2000, p. 203).
Levando em consideração que diferentes sistemas sígnicos (verbais e visuais) podem
transportar diferentes informações a respeito de um mesmo objeto dinâmico, concluímos
que um equívoco freqüente na análise de ilustrações é a interpretação de que a imagem
tem como referente o texto e não um referente comum ao texto, ou seja, o tema propos-
to pela pauta. Não se trata, portanto, de complementaridade de informações, mas de dois
sistemas sígnicos (visual e textual) transportando diferentes informações sobre o mesmo
campo referencial.
2 Para uma compreensão mais aprofundada do conceito, recomendamos a leitura do livro de Lúcia Santaella, A História
Geral dos Signos: Semiose e Autogeração.
89
A redundância, discrepância, contradição etc., apontados nas relações entre imagem
e texto são parâmetros utilizáveis, desde que colocados numa estrutura lógica triangulada,
compreendendo-se a imagem e o texto lançando diferentes luzes sobre um campo referen-
cial comum. Essas luzes podem convergir ou divergir, mas iluminam um terceiro elemento.
Observemos o caso das pinturas que remetem a passagens bíblicas. De fato, elas es-
tabelecem uma relação mnemônica com um conteúdo socialmente partilhado. Mas será esse
conteúdo o texto bíblico? Não seria o ideário cristão o seu objeto dinâmico, mediado tanto
pelos textos bíblicos como pelas pinturas ou sermões?
Nas ilustrações de jornais, possibilidades de se estabelecer muitas nuances nessa
triangulação, pois a mediação do ilustrador elegerá alguns aspectos desse campo referencial
que não necessariamente são os mesmos escolhidos pelo texto do articulista. No âmbito
da recepção, o leitor terá informações de naturezas distintas através da matriz visual ou da
matriz textual, como na alegoria dos homens vendados que apalpam partes de um elefante,
tentando descrever o animal. Sua leitura será produto desse conjunto de informações.
Na grande maioria dos casos, o tema da pauta jornalística é um aspecto da conjun-
tura política e cultural, da qual o texto escrito conta de apenas alguns aspectos. É nesse
contexto que se insere a opção do ilustrador entre apontar, ressaltar, completar, comentar,
discordar ou prescindir dos aspectos levantados pelo texto, levando também em conta a sua
interpretação e posicionamento ético em relação a ele.
O que é exatamente uma pauta?
Segundo material formulado formulado pela jornalista Cláudia Giudice para o curso
de Jornalismo em Revistas da Editora Abril
3
, pauta é um roteiro:
para apuração de uma notícia (informação inédita e de interesse para o leitor);
para a edição iconográca de uma matéria jornalística (foto, ilustração, infogra-
a, charge);
de uma ou muitas questões a serem respondidas na apuração;
de uma hipótese a ser conrmada ou refutada na apuração.
Ainda nesse mesmo material de treinamento prossional, sugere-se que uma boa
pauta deve se ater ao histórico dos acontecimentos ou do tema, à pesquisa de dados básicos,
ao roteiro de perguntas que o texto deve responder, aos pontos mais relevantes. Também a
“boa pauta” deve indicar a “cara da matéria” (layout, se terá box, retrancas com dicas, qua-
dros, infograa, fotos), evitar a dispersão e o exagero, buscar originalidade e adequação ao
veículo e ajudar a reforçar a identidade da publicação.
Nota-se aqui que as denições ou expectativas referentes às pautas de qualidade
dizem respeito sempre a uma natureza indicial. A pauta é uma diretriz que traça um roteiro
para se abordar algo, através do tratamento verbal e visual.
3 Material autorizado pela autora.
90
No Manual da Redação do jornal Folha de São Paulo (1992, p.39), a pauta é denida
como roteiro para a produção de textos e também de imagens grácas.
“Pauta é o primeiro roteiro para a produção de textos jornalísticos e material iconográco.
Deve conter sempre uma hipótese a ser conrmada ou refutada, uma questão principal a ser
respondida. Já a partir da pauta é possível prever títulos prováveis. A pauta não deve ser
uma agenda. Precisa se preocupar em levantar enfoques diferenciados sobre os temas, buscar
ângulos novos de abordagens, mostrar agilidade na identicação de novas tendências.”
Se a pauta é um roteiro para abordagem de um assunto, ou seja, uma diretriz comum
ao texto e ao material iconográco, cabe à ilustração jornalística contribuir para levantar
os desejados “enfoques diferenciados sobre o tema”, tarefa que está longe de exercer papel
redundante.
Embora a denição de pauta seja esclarecedora em relação à diretriz comum lan-
çada para a abordagem do texto e da imagem visual, essa clareza não é uma realidade no
mundo editorial. No livro de Jan White (2005), uma divertida ilustração desenhada por
ele, veiculada na newsletter interna da Time Inc muitos anos (gura 3.19), ironizando a
distância entre os prossionais da imagem e do texto, que segundo o autor permanece atual
nas editorias.
À ilustração, segue-se uma recomendação do autor um tanto pertinente, a respeito da
necessidade de construção de pontes de entendimento entre editores e o designers:
“Cresça. Pare de ser o guardião de seu pequeno império pessoal da “Palavra” ou da “Ima-
gem”. Pare de defendê-los contra intrusos imaginários. Compreenda como são interdepen-
dentes e como é impossível um existir sem o outro.” Jan White (2005, p.1)
Figura 3.19 – Ilustração de Jan White para newsletter da Time Inc.
91
Aspectos distintos do mesmo campo referencial
A pauta sobre a saúde no estado de São Paulo (gura 3.20) é oportuna para analisar-
mos os mecanismos das triangulações que podem ser criadas entre as diferentes luzes lança-
das pelo texto e pela ilustração a um campo referencial que compartilham.
O artigo trata de uma réplica do secretário da Saúde às acusações feitas pelo sindica-
to dos médicos, que criticara a atuação da sua secretaria.
O secretário argumenta que a saúde em São Paulo anda muito bem. A ilustração de
Orlando mostra o contrário. A saúde anda tão mal que o paciente da maca carrega a si pró-
prio, como se essa gura representasse toda a saúde indo para um hospital. O enfermeiro e o
paciente são utilizados como signos da saúde pública, e a maca como signo de precariedade.
O desenho reforça a tese do sindicato, e não do articulista.
Há uma contradição clara entre o texto e a imagem. Houve aqui um deslocamento:
no lugar de se referir à opinião do secretário da saúde, o ilustrador optou por abordar a sua
própria opinião sobre o real estado da saúde do Estado de São Paulo. O referente da ilustra-
ção deixou de ser a opinião do secretário da Saúde e passou a ser o objeto sobre o qual ele
expressa a sua opinião – a saúde do Estado de São Paulo. A ilustração, nesse caso, interferiu
radicalmente no signicado do título.
Como conseqüência desse deslocamento criou-se uma ironia, pois o leitor que fo-
lheia rapidamente o jornal apreenderá primeiramente o título e a interpretação crítica do
ilustrador, que dá ao título uma interpretação diferente do artigo escrito. Assimilará em pri-
meiro lugar, portanto, uma mensagem contrária à opinião do secretário da Saúde. Somente
Figura 3.20 – Orlando, Folha de S.Paulo, 24/5/2005. Esboço
e ilustração para artigo de Luiz Roberto Barradas Barata,
secretário da Saúde do Estado de São Paulo.
92
os leitores que se ocuparem em ler o texto é
que vão perceber que se trata de um artigo
que defende a maneira como é conduzida a
saúde pública no Estado de São Paulo.
Questionado sobre a intencionalidade
dessa manifestação contrária ao articulista,
no caso da pauta do secretário da Saúde, Or-
lando alegou que sempre os artigos, nun-
ca teria feito “por distração”. Defendeu que
a terceira página é antes de tudo um espaço
onde deve ser mantida a independência da
posição do ilustrador em relação à opinião do
articulista.
Ficam claras, neste exemplo, as dife-
rentes informações oferecidas pela ilustração
e pelo texto, a respeito de um campo refe-
rencial comum, indicado pela pauta. No caso
apresentado, o ponto de vista proveniente da
ilustração é contraditório com o ponto de
vista proveniente do texto verbal.
Sobre a discordância em relação ao texto, Orlando comentou um exemplo curioso,
de esvaziamento consciente. Chamado para ilustrar um artigo de Niemeyer sobre Cuba,
elogiando Fidel Castro, Orlando fez uma ilustração que, segundo ele, “não quer dizer rigo-
rosamente nada” (gura 3.21).
Na ilustração sobre a saúde de São Paulo, o traço é mole e brejeiro, a saúde é mos-
trada como uma piada. Na ilustração sobre Fidel, a linha endurece, a gura é imponente e
altiva, o sombreado é marcado secamente com o contraste entre o par complementar azul e
laranja, sugerindo um mundo binário, sem meios tons.
O homem jovem sugere o estilo realista socialista, valorizado pelo stalinismo. No
lugar de optar pela idealização de Fidel, Orlando propôs uma referência ao universo cultural
comum a Fidel e Niemeyer. A opção pelo estilo realista-socialista provoca múltiplas leituras:
para um stalinista, a ilustração pode ser interpretada como laudatória. O título Pensando em
Cuba sugere pensamentos altivos e futuristas. Mas para qualquer um que tenha acompanha-
do o debate em torno do modernismo, a ilustração revela seu aspecto passadista.
Ao optar pela gura altiva do trabalhador, o ilustrador excluiu a opção de representar
o governante. A postura da cabeça, olhando para cima e reforçada pela diagonal da forma
laranja do fundo, remete aos exemplos de Lakoff e Jonhson (2003, p.14) sobre metáforas de
orientação espacial, baseadas em experiências físicas e culturais. Os autores analisam a pola-
ridade up – down, observando as bases físicas passíveis de conferir conteúdos de felicidade,
Figura 3.21 – Orlando, Folha de S.Paulo, 14/08/2006.
Ilustração para artigo de Oscar Niemeyer
93
consciência, saúde, controle, adição (up), ou tristeza, inconsciência, doença, descontrole,
subtração (down). As bases físicas apontadas pelos autores são a postura corporal desani-
mada, relacionada à doença e depressão, e a postura ereta, relacionada a estados emocionais
positivos. A postura humana ao levantar-se é ereta ao dormir ou deitada, ao morrer. Através
desse tipo de exemplo, baseado numa relação de similaridade, os autores apontam algumas
possibilidades de bases físicas e sociais envolvidas na construção de metáforas. A direção
ascendente do olhar do rapaz é uma inequívoca indicação de otimismo. Vamos ver em futu-
ros exemplos que o domínio da representação da postura corporal indicando estados internos
é um atributo recorrente no trabalho de Orlando.
A discrepância, ironia e esvaziamento observados nesses exemplos evidenciam o
campo referencial que está além do texto. O ilustrador defendeu a liberdade de expor a sua
abordagem sobre a saúde do Estado de São Paulo e sobre Fidel Castro. Cumpriu sua função
de atrair para a leitura do texto referindo-se à pauta sem, no entanto, se submeter ao enfoque
dado pelos autores. Nesses exemplos, o papel das ilustrações está muito distante da denição
de Caldas Aulete, de ornamento do texto. Além de sinalizar para o assunto tratado na página
impressa, a ilustração agrega informações a respeito da pauta proposta.
As estratégias criativas encontradas nesses trabalhos mostram diferentes abordagens
apontadas pelas matrizes verbal e visual, o que implica numa interpretação do referente
jornalístico que é resultado da síntese entre essas duas abordagens. Houve aqui uma postura
rme do ilustrador na defesa da independência do seu ponto de vista.
Além de sinalizar para o assunto tratado na página impressa, o ilustrador agrega in-
formação a respeito da pauta proposta.
O fato de se tratar de dois sistemas que lançam luzes distintas sobre um tema co-
mum não signica que não possam lançar luzes de reforço a um mesmo ponto de vista. No
próximo exemplo, a ilustração de Carlos Matuck propõe com uma organização gráca que
fortalece o conteúdo de ambigüidade do texto.
O reforço ao texto – contrastes gráficos e contrastes de valores
A pauta a seguir Um Homem sem Qualidades Vive sua Vida, trecho de livro de
Robert Musil, publicado na Folha de S.Paulo e ilustrado por Carlos Matuck (gura 3.22)
mostra as digressões de um homem que acaba de se despedir de uma mulher. Ela está pres-
tes a se divorciar e o homem, que tem a imagem de si um exemplo de retidão moral, se perde
em pensamentos moralistas, prevendo futuros conselhos que daria a ela. Esquematicamente,
podemos resumir a situação da seguinte forma:
Imagem que o homem tem de si: um exemplo de retidão moral. “As pessoas vi-
vas e fortes, com seu instinto de energia e saúde têm o dever de exigir disciplina
94
Figura 3.22 – Carlos Matuck, Folha de
S.Paulo, 30/9/1989. Referências, esboços
e ilustração para o artigo Um Homem
sem Qualidades Vive sua Vida, trecho de
livro de Robert Musil.
95
e limites: devem apoiar os fracos, sacudir nos inconscientes e deter os desenfre-
ados! Tinha a impressão de ter agido assim.”
Imagem que o homem tem da mulher: “...de delicadeza celestial, que ele en-
contrara debulhada em lágrimas”.
Imagem que o homem tem do ser humano: um saco repleto de demônios, que
precisa ser bem amarrado com a corda de “princípios inabaláveis”
O texto revela com ironia sutil que essa preocupação moral está carregada de desejos
reprimidos e inconscientes. O homem se orgulha de que
“pouquíssimos homens (...) suspeitam quão profunda é a necessidade que representantes
nobres do sexo feminino sentem de um gentil homem que se relacione com o ser humano na
mulher, sem deixar-se logo ‘perturbar pela afetação sexual!’.”
Tais pensamentos “devem ter lhe emprestado asas”, pois sem perceber que está ob-
cecado por ela, vai parar no ponto nal do bonde. Limpando seus óculos, “embaçados que
estavam pelo calor daqueles acontecimentos em seu íntimo”, conclui: “Nada mais saudável
para um homem do que esquecer de si mesmo”.
A ilustração de Carlos Matuck reforça a ambigüidade do texto, que não explicita os
contornos entre preocupação moral e desejo. Estruturou-se a composição entre o desenho de
uma mulher e sua sombra em primeiro plano, tendo como fundo a imagem ampliada de uma
gravura antiga de um bonde, onde encontramos a gura de um homem que a observa.
outro passageiro, de costas, alheio a essa relação. A frente do bonde e o motorista, presentes
na gravura original são ocultados pela gura da mulher. O recurso da colagem foi auxiliar a
essa estrutura, toda marcada por contrastes de ordem sintática e semântica.
Carlos escolheu como referência para o desenho da mulher o retrato fotográco de
uma atriz, Lílian Gish, de um livro de sua biblioteca, Celebrity Portaits of the Twenties and
Thirties.
Uma série de esboços mostra o amadurecimento da representação dessa mulher atra-
vés da exploração visual. Desde os primeiros esboços, já havia a apropriação de algumas
informações da fotograa: a posição do rosto, de perl, o dedo indicador levado à boca,
a cabeleira cheia e curta. Uma tentativa foi feita no sentido de indicar uma contraluz, uma
manga bufante, e foi descartada. No entanto, a sombra projetada que aparece no terceiro es-
boço foi mantida, enquanto que o desenho nal se preocupa mais com a textura dos cabelos,
da roupa e do sombreado da pele.
A disposição nal dos elementos escolhida pelo ilustrador enfatiza a dimensão da
mulher no imaginário do homem, a distância entre eles, o ritmo proporcionado pela relação
entre as caixas de imagem e as caixas de texto, as diferentes possibilidades de ponto de vista.
A localização da gravura do homem em relação ao desenho da mulher reforça o movimento
visual entre o olhar do homem e a mulher. Ela, por sua vez, de olhos fechados, está imersa
96
em seus problemas. Se olharmos primeiro para a mulher, a força da diagonal que estrutura a
profundidade de campo conduz o nosso olhar para os olhos do homem, que a vê. A disposi-
ção dos elementos reforça o conteúdo platônico de distância e aproximação.
A antiga gravura de bonde e o desenho da mulher são representações visuais de na-
turezas distintas (gravura e desenho). Ao se encontrarem, reforçam a expressão da distância
e diferença de temperamentos entre eles.
aqui uma ambigüidade em torno do lugar onde esta mulher se encontra. Ela pode
estar do lado de fora do bonde, na plataforma, no momento da despedida, ou também pode
estar acompanhando o homem na sua viagem de bonde, nos seus pensamentos. Entre ele e
ela, o que se dispõe é o espaço de penumbra da sua sombra. Ambigüidade também pode ser
a palavra adequada para expressar o sentimento que o homem manifesta sobre ela.
A textura retilínea e regular da gravura do bonde com o homem, bastante ampliada,
também contrasta com a delicadeza e diversidade de direções dos traços do desenho da
mulher. O homem normativo e ajustado à sociedade, que não tem dúvidas sobre a condução
de sua vida, é representado com textura retilínea, vertical, assim como o ambiente em torno
dele, do bonde. A cabeleira da mulher, cheia de curvas e vales, é formada por traços deli-
cados em diferentes direções. Seu rosto e ombros são de texturas cruzadas. A ilustração foi
impressa num tamanho generoso, o que conferiu às texturas um conteúdo expressivo signi-
cativo que teria sido perdido se fosse menor.
A mão da gura da mulher levada à boca e a sombra reforçam a expressão de dúvida
da mulher e as certezas do homem, manifestadas no texto.
A organização espacial da ilustração proporciona diferentes movimentos visuais e
conseqüentemente diferentes interpretações. As colunas acompanham a divisão do desenho,
fazendo referências simultâneas à linguagem da H.Q., da diagramação dos jornais e da divi-
são dos vagões de um bonde. Podemos ler essa imagem quadro a quadro, de forma seqüen-
cial, do homem em direção à mulher e também no seu conjunto, seguindo um movimento
visual em direção à profundidade de campo, da mulher ao homem. A segmentação da cena
em cinco fragmentos reforçou a distância entre eles. E a escala ascendente da ilustração e
descendente do texto reforçou a diagonal que propõe o movimento visual da mulher em
direção ao homem.
O ilustrador pesquisou e escolheu uma referência fotográca, desenhou várias ver-
sões para a sua personagem, pesquisou em seu banco de dados também uma gravura de bon-
de e contrapôs o desenho com a gravura reforçando no enquadramento uma relação entre a
mulher desenhada e o homem gravado. O contraste entre os elementos resultou num reforço
à atmosfera sugerida pelo texto literário. No lugar de mostrar outra posição, diferente do
texto, a imagem gráca traz à tona a sua dimensão sutil.
Na produção de mensagens visuais, o controle em relação à semelhança e ao con-
traste é uma forma de organizar uma possibilidade de condução do olhar pelo campo vi-
sual. Segundo os princípios da Gestalt, a semelhança promove unidade e integração entre
97
os elementos e o contraste promove segregação. Em conseqüência, num sistema visual, os
elementos semelhantes promoverão o deslizamento do olhar, o movimento ou a unidade. Em
contrapartida, os contrastes promoverão o foco e a pausa.
Neste caso, o contraste entre as texturas, a dimensão das guras e a natureza das
representações visuais envolvidas (gravura e desenho) reforçam o conteúdo de contraste de
temperamentos entre esse homem normativo e essa mulher atormentada e triste. São a tradu-
ção plástica da na sutileza do texto, que mostra diferentes posturas em relação à condução
da própria vida: as ambigüidades presentes entre as certezas e as dúvidas.
Organização espacial e hierarquia das informações
Sugerir ou explicitar o conteúdo do texto é uma decisão recorrente no trabalho do
ilustrador. Samuel comenta sobre os cuidados que precisam ser tomados para não explicitar
o desfecho de um conto de mistério e fantasia, nem tratar de cenas especícas. Procura en-
contrar um elemento ou cena que é parte integrante de um conjunto maior e que tem força
expressiva de evocar um campo semântico abrangente.
“Eu tento ter opinião sobre o texto, e também acrescentar alguma coisa. Se o texto trata de
uma casinha amarela eu não quero desenhar a casinha amarela. Eu acho que isso é quebrar
um pouco do encanto. Num livro, quando o autor descreve uma pessoa, tu condena o leitor a
ver o personagem como tu imagina. Então eu tento sempre deixar a coisa meio solta. Tento
sugerir ou as vezes buscar uma coisinha que as vezes está no texto, mas não está escanca-
rado. Tento jogar com a expressão. As vezes uma sobrancelha pode mudar tudo. Eu tento
sintetizar várias coisas numa imagem só”. (Samuel, depoimento)
Aqui, o autor se refere a várias estratégias e manifesta preocupação em:
Buscar um elemento que está no texto, mas não está escancarado, e jogar com a
expressão;
Deixar algum aspecto “meio solto”, ou seja, vago, apenas sugerido;
Encontrar uma imagem síntese;
Agregar informação ao texto;
Levando em conta todos esses aspectos, evitar a redundância.
Quando uma pauta se refere a uma situação coletiva, Samuel prefere encontrar um
elemento ou cena que é parte integrante de um conjunto maior e que tem força expressiva de
evocar um campo semântico abrangente.
“Eu gosto de ter aquele elemento que fala. A ilustração é esse cara, que está inserido naquele
universo – que pode ser todo o resto do texto. Mas eu gosto de ter um foco. (...) Se o diagra-
mador colocar a foto, o gráco e a ilustração, tudo do mesmo tamanho, vai haver uma luta
98
ali. É a mesma coisa para mim. Na mi-
nha ilustração eu levo em conta a leitura
dela. O que é que o cara primeiro: a
ordem da leitura, a leitura em camadas.”
(Samuel, depoimento).
Com a exclusão e com a ênfase, Sa-
muel organiza a hierarquia da informação. É
o caso da ilustração para o caderno feminino
do Diário Catarinense, numa matéria que tra-
ta da da proximidade do verão e do medo que
as mulheres têm do biquíni (gura 3.23). O
jornalista que solicitou a ilustração imaginou
uma mulher branca e fora de forma, olhan-
do um biquíni. Samuel interpretou a pauta de
uma forma diferente. Avalia que ela pode não
estar fora de forma, que é na cabeça dela que
está o problema. “Eu não posso mostrar o
corpo dela. Eu tenho que mostrar só o medo.
Então eu vou ter que esconder essa pessoa.
Como? No armário. É só ela, o que ela pensa,
e o biquíni, que é P”.
Ponto de vista
A organização da hierarquia espacial da informação visual é a expressão desse des-
locamento de ponto de vista. No lugar de mostrar o corpo da mulher, o primeiro plano é
composto por um enorme biquíni tamanho P., reinando sozinho no cabide do armário. Atrás
dele, uma mulher amedrontada espia atrás da porta. Posicionando o ponto de vista dentro do
armário, Samuel desloca o foco do corpo para o medo. A relação qualitativa de continente
pelo conteúdo, característica da metonímia, foi utilizada como estratégia para ressaltar um
elemento do texto, o biquíni, com força expressiva suciente para sintetizar o tema da pauta:
a proximidade do verão e o temor de não estar em forma.
No título, A Prova do Biquíni, uma evidente ambigüidade entre passar na prova
ou o biquíni servir ao ser provado. O biquíni como desencadeador do medo está no lugar do
corpo da mulher, verdadeiro objeto do temor. Sua dimensão enorme e seu tamanho P jogam
com a ambigüidade da percepção da mulher em relação ao tamanho das coisas.
Ocorre aqui uma organização dos planos da imagem, com o planejamento da hierar-
quia de informações e da condução do olhar. Essa hierarquia é formulada não só por meio da
Figura 3.23 – Samuel Casal, Diário Catarinense,
27/11/2005. Capa para o caderno Donna,
ilustrando reportagem de Tatiana Beltrão
99
dimensão, mas também através da localização das informações nos diferentes planos.
Samuel comentou, em seu depoimento, que a sua experiência como infograsta lhe
deu uma formação que ele muito valoriza, pois esse tipo de expressão gráca exige um tra-
balho minucioso de síntese, hierarquia e espacialidade diagramática das informações.
“Tu vai construir uma infograa, tu tem que ter uma leitura daquilo que aconteceu. Um aci-
dente de carro tem que ser programado para que seja lido no sentido horário. Muito da minha
formação visual veio da infograa. A direção espacial e a hierarquia dos elementos. Fazer
infográco é respeitar 100% a hierarquia”.
Decupagens da ação, seqüenciação
Nas imagens de dentro do caderno do jornal, o ilustrador criou uma brincadeira com
o espelho: “É o espelho que está puxando o pneuzinho dela. O espelho é que está deformado.
Eu gosto muito disso, sabe. É sutil, a imagem parece um grande clichezão... mas tem aquela
coisinha que tu pode interpretar de várias maneiras”, comenta Samuel.
Acompanhando o texto de três páginas com as dicas para emagrecer, segue uma se-
qüência de ilustrações (gura 3.24).
O suporte impresso proposto nesse recorte jornais e revistas pressupõe movi-
mento e temporalidade, como conseqüência do ato de folhear. Jornais, assim como revis-
Figura 3.24 – Samuel Casal, Diário Catarinense, 27/11/2005. Detalhes das ilustrações para a pauta: A Prova do Biquíni.
100
tas, precisam ser pensados tridimensionalmente (Jan White, 2006, p. 37). O folhear confere
movimento a esse tipo de mídia, só aparentemente estático e bidimensional. A seqüência de
imagens nas diferentes páginas tira proveito do movimento e da temporalidade que lhe é
inerente.
A disposição da ilustração no design da página e a sua dimensão também são fatores
que estruturam visualmente a hierarquia das informações. Para conduzir o olhar pelo campo
visual, o ilustrador lida com recursos como o controle de semelhanças e contrastes e a orga-
nização da hierarquia e ritmo das informações visuais.
Nota-se no trabalho de Samuel estratégias espaciais de narrativa visual, como o cui-
dadoso enquadramento de planos, a ordenação seqüencial das imagens editadas em páginas
também seqüenciadas, aproveitando a ação de folhear para conferir ritmo à ação. O olhar do
leitor tem mobilidade: inicia dentro do armário, passa para a frente da moça e o espelho e
termina diante do espelho.
As cores reforçam essa espacialidade: azul dentro do armário, o ambiente da moça
e o biquíni são cor de rosa e o reexo do espelho é verde. Nesse movimento visual, o leitor
termina diante do espelho. Os recursos de ação narrativa são executados de tal modo que
sugerem transformação e convidam à leitura do artigo, reforçando a ecácia das dicas que o
texto oferece para car em forma no verão.
No nal da matéria cumpre-se a expectativa da leitora. A imagem reetida no espe-
lho faz sinal positivo; a moça foi aprovada na prova do biquíni.
. . .
Vimos nos casos examinados nessa parte do capítulo, o texto cumprindo um papel
processual na criação das ilustrações, e por outro lado, ilustrações que não compartilham do
mesmo enfoque do texto, e que desempenham uma função comunicativa que vai muito além
do ornamento.
O campo referencial jornalístico é tratado com diferentes abordagens, pelas imagens
e pelos textos, e esses enfoques são sempre complementares, sejam eles contraditórios ou de
reforço. O que ocorre é que a imagem visual gráca reorganiza a hierarquia das informações
e propõe sempre um outro enfoque ao tema.
Algumas estratégias expressivas relacionadas à maneira como o ilustrador escolhe
colocar em destaque um ou outro aspecto do campo referencial serão abordadas na terceira
parte deste capítulo.
101
3.3 – Campo Expressivo
Uma coleção de carimbos não faz uma ilustração. Um computador sozinho também
não. Ilustradores se posicionam em relação ao texto, parte integrante de seus processos cria-
tivos, e elegem aquilo que desejam enfatizar, contradizer ou ignorar.
Apropriações, deslocamentos, repertórios imagéticos, ênfases e exclusões são ações
construtivas que organizam o ponto de vista e hierarquizam as informações, propõem uma
abordagem do tema. Mesmo quando o ilustrador reforça o posicionamento do texto, ele o faz
com recursos grácos, o que é sempre uma outra leitura.
Os elementos selecionados pelos ilustradores para participar das composições são
parte de um repertório imagético recorrente em seus respectivos trabalhos. São mobilizados
no sentido de construir um discurso em diálogo com os mais distintos temas. A despeito da
diversidade de temas que acompanham, as autorias das ilustrações são facilmente reconhe-
cidas pelo estilo de seus criadores. O estilo envolve escolhas de ferramentas, características
do traço, campo imagético recorrente e também estratégias expressivas.
A articulação de elementos organiza os signicados a serem compartilhados. O des-
locamento de planos de sentido não é promovido apenas pela colagem. O lme de celulóide
foi disposto no cabelo do feiticeiro e a estatueta nos seus olhos. Esses deslocamentos se-
mânticos desorganizam a previsibilidade e a inércia da recepção e carregam a imagem de
signicado, colocam num outro plano qualitativo a articulação de sentidos.
Na terceira parte deste capítulo, vamos acompanhar alguns recursos expressivos ela-
borados pelos ilustradores no sentido de potencializar o valor comunicativo de suas mensa-
gens.
Metáfora e Clichê
Orlando escolheu o tema Como o Diabo Gosta (gura 3.25) para a sua exposição de
pinturas, um símbolo facilmente reconhecível e profundamente arraigado no imaginário po-
pular. Fez disso uma oportunidade para instaurar sua proposta lúdica, que metaforiza o diabo
em diferentes situações: eróticas, políticas, cotidianas. Ressalta em cada situação o compo-
nente da malícia, em contraste com a ingenuidade. Os encontros entre conhecidos extremos
do diapasão da alma humana são traduzidos gracamente. Conhecido pelas suas ilustrações
de temas políticos diários, o ilustrador apresenta cenas pintadas daquilo que em seu trabalho
sempre é tema: as malícias e safadezas humanas.
É freqüente, na produção de ilustrações, o recurso de símbolos compartilhados em
grande escala e utilizados de forma metafórica. Na obra Os usos da imagem, lançada pouco
antes da morte do autor, E. H. Gombrich (2003) apresenta um artigo sobre a magia, o mito
102
e a metáfora no contexto da sátira pictórica. Observa que a gura do diabo é provavelmente
o motivo mais freqüente na sátira política. O diabo faz parte de um mito (sistema de crenças
compartilhadas que mantêm uma sociedade unida). Gombrich analisa uma série de ilustra-
ções que apresentam esse tema, do século XVI ao XVIII, e observa que gradativamente o
mito se transformou em metáfora.
Gravuras antigas representavam reis ou papas sendo conduzido ao inferno. Nesses
casos, a gura do diabo era tomada pelo seu sentido literal, como parte de uma cena onde as
forças opostas do bem e do mal intervinham no assunto dos homens. No século XVII, gravu-
ras mostravam regularmente como demônios conduziam os jesuítas em suas maquinações,
ou conduziam-nos ao inferno. Na época da revolução francesa, são inúmeros os exemplos
mostrando diabos envolvidos com os fatos políticos da época. Gombrich avalia que neste
período a crença no diabo não era tão forte assim. No entanto, espíritos livres da época se-
guiam “usando a gura como código prático, como um pictograma que signicava o mal”
(2003, p.188). O momento de transição, onde o mito se transforma em metáfora, escapa aos
estudiosos da sátira pictórica, avalia o autor.
Mesmo entre aqueles que não acreditam no diabo, em algum lugar essa gura de lin-
guagem conserva seu poder sobre nossa mente semiconsciente. Crenças irracionais podem
converter-se paulatinamente em simples metáforas e guras míticas, como o diabo, conser-
vam sua posição em todas as transformações sociais. Gombrich questiona se não acontece o
mesmo com a nossa linguagem. “Quanto mais dominados pelas emoções, mais facilmente
Figura 3.25 – Orlando, pintura para a exposição Como o Diabo Gosta.
103
sentimos a tentação de voltarmos aos vestígios da crença irracional que forma parte de nossa
herança cultural” (idem, p. 190).
Uma das funções do mito é explicar os fenômenos da natureza. Uma metáfora habil-
mente construída trará uma explicação imaginária sobre os fatos do mundo. Daí que nada
seja mais característico da sátira pictórica que o conservadorismo, a tendência de recorrer
ao mesmo velho fundo de motivos e esteriótipos, pondera o autor.
Indo mais adiante na exploração desse tema, cientistas cognitivos como George
Lakoff e Mark Johnson (1979) interpretam os mecanismos metafóricos criados na elabora-
ção de linguagem como mecanismos da própria ação mental. Em outros termos, a mente
não constrói apenas as metáforas, mas opera através de mecanismos de similaridade. A
forma de compartilhar informações implica em diferentes possibilidades de cadeias de signi-
cados. Os autores argumentam que a essência da metáfora é experimentar um tipo de coisa
nos termos de outra, e esse mecanismo é inerente à vida cotidiana, não apenas na linguagem,
mas também no pensamento e na ação.
Othon M. Garcia (1997, p.85) explica a metáfora como uma gura de signicação,
ou tropo,
“que consiste em dizer que uma coisa (A) é outra (B), em virtude de qualquer semelhança
percebida pelo espírito entre um traço característico de A e o atributo predominante, atributo
por excelência, de B, feita a exclusão de outros, secundários por não convenientes à carac-
terização do termo próprio A.”
Quanto mais distantes semanticamente os termos colocados em relação, mais ines-
perada é a equivalência, mais poderosa é a metáfora. Mas também maior é o risco de não ser
compreendida. Temos aqui decisões fundamentais do jogo criativo.
A elaboração de estruturas metafóricas, que são da natureza da vida mental,
são sem dúvida a essência do trabalho do ilustrador. A escolha do termo apropriado para
a comparação metafórica tem a ver com o atributo que se quer ressaltar, escolhendo para
isso um representante por excelência, tendo esse termo um traço distintivo que se impõe aos
sentidos, tornando familiar aquilo que poderia ser distante e abstrato.
Embora Lakoff e Jonhson tenham exposto a estrutura metafórica da ação mental
de forma muito clara e repleta de exemplos contundentes, oriundos da linguagem verbal
cotidiana, essa posição deveria ser tomada de forma mais ampla, abrangendo o conjunto de
tropos
1
onde a metáfora se inclui. Entende-se que a mente opera através de mecanismos de
similaridade (metáfora) e também de correspondência (metonímia), conexão (sinédoque), e
contrariedade (ironia).
Entre os estudiosos de retórica, muitas são as divergências em relação à classicação
dos tropos. Particularmente a distinção ou não da metonímia e da sinédoque e a inclusão da
1 Tropos: emprego gurado.
104
ironia entre os tropos rendem extensos debates
2
. Não é objetivo desse trabalho posicionar-
se em relação a essa discussão. Apenas gostaríamos de observar, na análise dos processos
criativos, a ocorrência das operações mentais, apontadas por Lakoff e Jonhson como meta-
fóricas, tendo a similaridade como mecanismo propulsor e também mecanismos de corres-
pondência, conexão e contrariedade fazendo parte da estrutura mental e operativa envolvida
na criação de imagens grácas. Na criação de ilustrações, todos esses recursos expressivos
são recorrentes. São recursos de retórica (e também mentais) que participam da estrutura da
linguagem gráca.
O paciente carrega a própria maca ou o enfermeiro é o paciente? São duas leituras
possíveis de uma cena que revela que a saúde pública está doente. O “paciente que carrega a
própria maca” é um exemplo de gura de linguagem que apresenta o indivíduo pela classe,
numa relação quantitativa, conhecida como sinédoque.
Dada a natureza da produção, destinada à indústria cultural popular, o encontro de
“códigos práticos” são apropriados para estabelecer a agilidade da comunicação. Mas a pra-
ticidade tem um preço. Como alertou E. H. Gombrich, os mecanismos metafóricos correm
sempre o risco de se transformarem em clichês, denidos por Garcia (1997, p. 92) como
fenômeno que ocorre quando a metáfora “se estereotipa, se vulgariza ou envelhece, acaba
como que embotada, perde a sua vivacidade expressiva tal como perde o gume uma faca
muito usada”. Nesse permanente movimento de deslocamento sígnico que é a elaboração de
linguagem, o trabalho do ilustrador implica em constante negociação e escolha entre o clichê
(socialmente compartilhado) e o novo (que desperta a atenção).
É interessante notarmos que o termo clichê se vale tanto para a mensagem que teve
seu sentido desbotado, amortecido, e arrefeceu seu valor comunicativo, como também é
utilizado para nomear “placa metálica ou película que permite obter provas tipográcas ou
fotográcas” (dicionário Michaelis). O clichê propaga a mensagem e também a desgasta.
Nos exemplos que seguem, serão apontados alguns recursos encontrados no material
analisado, que envolvem construção de sentido. A intenção é indicar a presença desse aspec-
to como elemento catalisador da rede. Uma análise mais detalhada dos processos semânticos
na imagem aponta aqui como proposta para um próximo trabalho.
Ironia
O projeto poético do trabalho de Carlos Matuck revitaliza e ressignica clichês, ao
arranjá-los em contextos complexos. É o caso da ilustração para o artigo de Juergen Ha-
bermas, cujo texto explica as diferentes teorias neoconservadoras e anarquistas – sobre o
conceito de pós-modernidade, avaliando que ambas se distanciaram do conceito de moderni-
2 O artigo de Gerard Genette, A Retórica Restrita, na obra Pesquisas de Retórica (apud Cohen, Jean, et all) expõe com
clareza o debate em torno desse tema e posiciona-se de forma contundente contra a redução das diferentes sutilezas dos
tropos à ampla denição da metáfora.
105
Figura 3.26 – Carlos Matuck, Folha de S.Paulo, 16/9/1989. Ilustração para artigo de
Juergen Habermas.
zação de Max Weber, construído em torno de um horizonte de categorias racionais, e suspei-
tando que, embora o pensamento pós-moderno se limite a atribuir a si mesmo uma posição
transcendente, continuam presas a tradições teóricas de negação do Iluminismo. Trata-se
de um assunto bastante abstrato, pois avalia teorias que negam outras teorias, dicultando
qualquer associação com imagens.
Carlos utilizou o mesmo carimbo de uma calça comprida com sapato e cinto – e re-
petiu-o nove vezes, alinhados, como num desle militar (gura 3.26). Desenhados por cima
dessas várias calças, foram dispostos homens de diferentes estaturas. Mesmo tendo cabeças
diferentes, estão vindo do mesmo lugar e estão indo para a mesma direção, alinhados, e no
mesmo andamento. Carlos comenta:
“Às vezes eu achava o texto muito cheio de história e tal... teve um que eu z de propósito,
assim, um bando de retardados, todo mundo com a calça igual...É porque eu achei aquela
106
matéria, aquilo, verborragia européia. Eu exercia uma total liberdade.”
A repetição da mesma calça para diferentes cabeças conferiu uma dimensão metafó-
rica à cena: “mesmas calças” = “mesmos discursos”. A igualdade das calças está no lugar da
igualdade de pensamento. O sema comum entre a calça e o pensamento está na padronização
e pasteurização. O recurso da colagem reforçou a diversidade dos homens e a identidade de
“suas raízes”. Carlos, amante da cultura chinesa, não resistiu à tentação de interpretar com
leve ironia todo o resumo da tradição teórica européia, proferido por Habermas, como uma
calça-camisa de força. A divergência da imagem em relação ao texto confere maior comple-
xidade à leitura, sutileza e ironia.
Hipérbole
A reportagem Mouse no Trombone, do caderno de Informática da Folha de S.Paulo
(gura 3.27), trata de sites que abrem espaço para reclamação sobre produtos de quali-
dade e reete sobre as vantagens e desvantagens da tecnologia, que possibilita o comparti-
lhamento de informações sobre insatisfações de consumidores e também o pesadelo que é o
atendimento ao cliente feito através de ligações gravadas.
A ilustração mostra um cliente notoriamente insatisfeito, ostentando uma careca re-
luzente ao lado de um frasco de xampu com um cabeludo no rótulo, reforçado pela tela de
computador. Duas mídias são representadas: o telefone sendo esganado pelo consumidor e
Figura 3.27 – Samuel Casal, Folha de S.Paulo, 20/9/2006. Ilustração para reportagem de Juliano Barreto.
107
o computador como recurso para a sua fúria. Nota-se aqui a evidente opção pelo exagero
dos traços do cidadão, como recurso expressivo para construção do conteúdo de insatisfa-
ção. Foram utilizados diversos recursos hiperbólicos. As formas dos dedos, pêlos, olheiras,
rugas, franja da toalha, ponta do nariz, terminam em ângulos pontudos, reforçados pelas
estrelas da careca, que indicam simultaneamente reluzência e raiva. Bolinhas indicam baba,
borbulhas do xampu e textura da toalha e da pele. As sombras em torno do olho grande e
branco – acentuam o semblante furioso, reforçado pelas olheiras pontudas. O o do mouse,
enrolado em torno do braço, cria mais um elemento de incômodo. Os olhos grandes e bran-
cos no meio do escuro são como os dentes, que por sua vez conduzem o olhar para o teclado,
que se assemelha a dentes.
O título propõe a utilização do mouse como arma para a reclamação e acentua a pala-
vra trombone. O formato do teclado, seguido pela boca e acompanhado pela forma do corpo,
sugere também intensidade crescente.
O exagero grotesco proposto pelo ilustrador se adequa à necessidade comunicativa
da pauta, que trata de um recurso disponível ao cidadão para manifestar sua insatisfação. Re-
conhecemos que baba, arestas pontudas, olhos sombrios, dentes crescentes, braço enrolado
e estrelas na cabeça não são indicadores de paz de espírito e satisfação do cliente. Mais do
que adequação, o exagero grotesco chama a atenção de forma inequívoca para o conteúdo de
“espaço para crítica e reclamação”.
Tipificação e emblema
Na resenha Entrevistas comprimem as idéias de Paris (Folha de S.Paulo, 1/4/1989),
mencionada, sobre uma série de entrevistas com intelectuais europeus realizadas pelo
jornal Le Monde e editadas numa coleção de
livros, Marcelo Coelho comenta a falta de
talento de certos intelectuais para conceder
entrevistas e avalia que muitas dessas per-
sonalidades decepcionaram e não disseram
“praticamente nada”.
Os balões e seus respectivos discur-
sos também se restringem à temática do ho-
mem e se relacionam entre si. O homem é
representado por um carimbo recurso que
lhe confere um caráter emblemático (gura
3.28). Dentro do balão de fala de intelectuais,
a gura deixa de representar a singularidade
de um homem e passa a representá-lo como
Figura 3.28 – Carlos Matuck, Folha de S.Paulo, 1/4/1989.
Ilustração para artigo de Marcelo Coelho
108
tema geral, tratado com diferentes pontos de vista: o homem em si, o homem na multidão,
o homem obscuro.
Vale apontar o procedimento utilizado no segundo balão: para destacar o homem da
multidão, foi feita uma máscara com o desenho do carimbo e carimbado ao redor a mesma
imagem, provocando um efeito de destaque através da luz e ao mesmo tempo de semelhança
com a multidão.
A utilização de guras que poderíamos chamar de emblemáticas é recorrente nas
ilustrações jornalísticas, envolvendo a exploração da carga simbólica das imagens, se valen-
do de seu grau de generalização.
O emblemático é compreendido como uma tentativa de gurar uma generalização de
sua categoria, uma idealização. Massironi (1982, p. 62), ao se referir ao conteúdo emblemá-
tico das imagens taxonômicas, explica que são construídas propositadamente para expor os
atributos visivos sobre os quais se poderá basear um discurso de ordenamento e sistematiza-
ção morfológica. Nesse tipo de representação, são excluídos os traços de desvio da norma.
Cada indivíduo está para a espécie inteira, pois são excluídos seus traços singulares.
Embora a ilustração de artigos de jornal tenha uma função totalmente diferente da
ilustração taxonômica, é freqüente, nesse tipo de produção, a exploração da carga simbólica
das imagens, se valendo de seu grau de generalização. Envolve o encontro de um elemento
que está sugerido no texto ou no brieng, mas não está escancarado (como vimos no exem-
plo da pauta “A Prova do Biquíni”).
O elemento escolhido exerce função metonímica, como parte integrante de um con-
junto maior e força expressiva de evocar um campo semântico abrangente.
Uma atenção especial foi dedicada aos desenhos das mãos, indicando gesticulações
típicas de quem reete (com o cigarro entre os dedos), expõe idéias ou mantém uma postura
cética. Nota-se que nos esboços apenas a mão com o cigarro aparece junto a um rosto. As
mãos da gura que gesticula foram estudadas separadamente.
Eisner (2001, p. 111) se refere ao “efeito adverbial da postura da cabeça sobre o mo-
vimento dos traços da superfície do rosto”. A profusão de estudos de rostos de intelectuais
e também a pesquisa das mãos, são indicadores dessa procura por esse “efeito adverbial”.
Procura-se aqui soluções plásticas para tipicar um intelectual francês.
Na disposição nal das guras dos intelectuais, nenhum deles presta atenção no ou-
tro, sugerindo o vazio de todos os discursos: do homem no centro, do não-homem e seu
contexto e também das vacas.
A versão nal da ilustração impressa aproveita quase todos os apontamentos da pe-
núltima versão. A concepção geral dos três personagens foi mantida, embora ainda tenha
exigido um estudo particularizado para o terceiro, cujo balão foi mudado radicalmente. No
esboço nal, havia sido disposto no terceiro discurso um terceiro homem, com um fundo
hachurado. Ao modicar essa intenção para carimbos de vacas, foi reforçado o “disparate” e
as “rotundas trivialidades” apontadas pelo articulista. Com essa alteração, foi conferido um
109
tom irônico à ilustração. Carlos comenta esse trabalho:
“A idéia desse desenho é a seguinte: São três pessoas falando, porque a matéria é sobre
entrevista. Então são quase como três pessoas respondendo. Depois tem o reforço disso, da
intenção delas darem uma entrevista, de mau humor ou de bom humor, através do gesto da
mão. Este está fumando, este está gesticulando e este está emburrado. O que está emburra-
do está pensando numas vacas, uma coisa meio assim. Este está meio em movimento. Na
verdade ele está falando a mesma coisa que aquele, mas de um outro jeito. Este está falando
sobre o homem, este está falando sobre o homem em negativo, e este aqui, mau humorado,
só fala sobre vacas.”
A representação da figura humana e a geometria dos sentimentos
A representação da gura humana é recorrente em ilustrações jornalísticas, uma vez
que grande parte das pautas lida com assuntos relacionados a problemáticas da esfera huma-
na. São temas presentes na grande maioria das ilustrações dos jornais: o ser humano lidando
com problemas cotidianos, políticos, econômicos, educacionais, culturais, comportamentais,
ou sendo vitimizado por eles.
Orlando criou tipos facilmente reconhecíveis como de sua autoria, de olhos de risqui-
nhos e nariz de bolinha, que acompanhamos diariamente nas páginas da Folha de São Paulo.
As notícias mudam, mas permanecem nos desenhos impressos a perplexidade de seus tipos,
diante das innitas mazelas do dia a dia, a atitude passiva e vitimizada, que personica muito
do nosso estado de espírito diante do nonsense da realidade. Seja quem for o convidado
da Folha, os personagens de Orlando vão observar o tema abordado com gestos perplexos,
às vezes até passivos. E provavelmente será com eles que nós, leitores, vamos nos identicar
(gura 3.29).
A intenção manifestada por Orlando em “dar o recado sem esculhambar” é resolvida
muitas vezes com a sutileza dos gestos desses personagens da vida cotidiana. O ponto de
vista do ilustrador aparece nas entrelinhas das representações de posturas corporais resig-
nadas e dos olhos perplexos. São contrapontos colocados em voz baixa, elaboradas por um
prossional que não abre mão de seu espaço de manifestação de opinião independente.
A forma dos olhos dois riscos remetem a um estado de espírito neutro, passível
de ser completado por nós, leitores, com o nosso próprio estado de espírito. Orlando comenta
sobre essa solução formal:
“Uma das características do meu trabalho é essa coisa do olho, que normalmente é um
tracinho. Não sei dizer quando exatamente isso começou. Esse tipo de coisa demonstra um
certo poder de síntese. Você vai fazendo um olho, outro olho, até um dia que você faz um
tracinho e diz, pô, funcionou. A cara do seu trabalho é uma coisa que você vai compondo ao
longo do tempo. O traço vai cando mais renado, mais solto ou mais bagaceiro conforme
você vai se dedicando a ele.”
110
Figura 3.29 – Uma galeria de figuras
neutras e passivas, quase resignadas,
recorrentes no trabalho de Orlando.
111
A aprendizagem do desenho do corpo humano foi treinada na juventude, com o há-
bito de desenhar modelos vivos na Pinacoteca do Estado, ou pagando modelos, junto com
amigos, na época da faculdade. O desenho era tradicional, com proporção. Orlando avalia
que para desconstruir é sempre bom ter pelo menos noções básicas.
“Fazer uma pessoa em pé, relaxada, desanimada... toda essa geometria do corpo humano e
suas expressões passam por você ir rabiscando e achando expressões e ações. Não é neces-
sário saber desenhar muito bem para três risquinhos virarem expressões, uma geometria de
sentimentos. Como você faz isso virar um bonequinho, é outra história. Cada um vai achan-
do o seu. Precisa fazer muito, muito, muito. A maior parte da garotada não tem paciência de
trabalhar o desenho, quer o desenho pronto. Eu falo que precisa ter caderninho de esboço...
Às vezes você vai rabiscando e dali sai alguma coisa”.
Diferentes tribos e idades podem ser resentados através de cuidadosos encontros de
atitudes ou pequenos gestos, sintéticos e signicativos. O grande desenhista das emoções
humanas Will Eisner (2001, p.100), apresentou em seu livro Quadrinhos e Arte Seqüencial
um quadro sintético de seus estudos sobre a anatomia expressiva através do desenho da ex-
pressão corporal (gura 3.30).
“O corpo humano, a estilização da sua forma, a codicação dos seus gestos de origem emo-
cional e das suas posturas expressivas são acumulados e armazenados na memória, for-
mando um vocabulário não-verbal de gestos. (...) Não se sabe muito sobre o local ou o
modo de armazenamento no cérebro dos incontáveis fragmentos de lembrança que se tornam
compreensíveis quando dispostos em certa combinação. Mas é óbvio que, quando uma ima-
gem é habilidosamente retratada, ao ser
apresentada ela consegue deagrar uma
lembrança que evoca o reconhecimento
e os efeitos colaterais sobre a emoção.
Trata-se aqui, obviamente, da memória,
comum da experiência”.
Eisner se refere à memória interna-
lizada e compartilhada dos gestos humanos,
e ao reconhecimento das emoções expressas
pela representação desses gestos. Como me-
todologia, propõe ao desenhista um traba-
lho de percepção, memória e elaboração de
seu próprio “dicionário” de gestos humanos,
com “indicadores externos de sensações in-
ternas”.
Essa pesquisa de gestos humanos apa-
rece em alguns hábitos em torno do trabalho
de Orlando. Além do citado caderno de esbo-
ço, o ilustrador costuma levar uma pequena
Figura 3.30 – Will Eisner, estudos sobre a
expressão corporal de sentimentos
112
câmera fotográca digital por toda parte aonde vai. Certa vez, ao pegar sua lha numa festa,
no meio da madrugada, cou animado com uma foto que tirou, de um casal se beijando.
Esses agrantes não posados, capturados em momentos da vida cotidiana, são material de
pesquisa tão relevante quanto o caderno de esboço. Fazem parte de um conjunto de pesqui-
sas perceptivas dos códigos de comportamento fundamentais, para o exercício prossional
desse tipo de ilustrador.
A expressão gráca de diferentes tipos e tribos, tão atraente no trabalho de Orlando,
também pode ser notada no trabalho de Angeli, que comentou a esse respeito numa entrevis-
ta à revista Caros Amigos (no. 50, maio de 2001, pág. 32).
“Acho que consigo ser eclético, entrar em mundos diferentes, ir fundo no mundo punk,
consigo pegar os velhos hippies, os yuppies, jornalistas... acho fácil desvendar os códigos de
cada um. Tenho grande vontade de observar as coisas, o movimento das pessoas, e para cons-
truir personagens, é o principal. Sempre mais contemplei do que participei das coisas. Ou
sempre participei para poder contemplar. Então, quando vou criar um jornalista, sei os tiques
dele, como se porta, as roupas que usa, como e porquê ele trepa, dentro e fora da redação,
o que ele acha que é, o cara sai agora da faculdade e já acha que é um Paulo Francis (...) O
personagem ca forte quando descubro que tenho coisas dele. Então começo a colocar coisas
minhas nele e o personagem começa a andar. Porque até então ele estava na primeira,
coloco na segunda e ele anda”.
O depoimento de Angeli põe em evidência o trabalho de percepção e seleção na
construção de tipos, e a necessidade de observação diária do comportamento humano em
diferentes tribos, para eventual tradução. Também a escolha de adereços faz parte dessa
construção dos tipos.
Em relação a esse aspecto, Orlando admira a capacidade de Glauco em compor um
desenho a partir de “objetos de cena” signicativos, se valendo de poucos, mas precisos
recursos, que tornam a cena mais verdadeira: “O Glauco desenha um casal brigando com
mala em cima do guarda-roupa, uma coisa típica do interior. É um diferencial” (Orlando,
depoimento)
Na década de 90, Glauco desenhou para a Folha de São Paulo uma série de histórias
de um casal “moderno” (Os Neuras) que tentava viver uma “relação aberta”. Glauco tipicou
o rapaz com uma pochetezinha na cintura, gurino típico de jovens paulistas do circuito Vila
Madalena daquela época. O singelo adereço identicava o universo cultural do personagem,
dava a ele maior veracidade e identicação com o leitor potencial da Folha de São Paulo.
Eisner (2001, p.103) comenta sobre o desao de selecionar num desenho de uma
única postura um conjunto de gestos.
“No veículo impresso, ao contrário do que ocorre no cinema ou no teatro, o prossional tem
de destilar numa única postura uma centena de movimentos intermediários de que se com-
põe o gesto. Essa postura selecionada deve expressar nuances, servir de suporte ao diálogo,
impulsionar a história e comunicar a mensagem”.
113
Desde a pintura rupestre, muito antes do advento dos veículos impressos, o desao
da representação das intenções humanas já era experimentado.
Aby Warburg
3
formulou, no início do século XX, a expressão Pathosformeln, que
denominou de “vida mimicamente intensicada” ou seja, “fórmulas genuinamente antigas
de expressão física ou psíquica, que se esforçam em representar a vida em movimento”.
Fazem referência ao “pathos
4
heróico e teatral”, compreendendo a representação dos mitos
como testemunhos de estados de espírito transformados em imagem. A Pathosformeln é a
representação da gestualidade expressiva do corpo, com origem nas paixões e nas afecções
sofridas pela humanidade. (GUERREIRO, 2006)
Cada contexto cultural retoma, renega, recicla, elabora e cultiva determinadas Pa-
thosformeln, à medida das suas necessidades expressivas ou nalidades comunicativas. Na
antiguidade clássica, a representação dos gestos, expressões faciais e as ações visíveis do
corpo sinalizavam os sentimentos e paixões invisíveis da alma e deram origem a um voca-
bulário estabelecido dos movimentos e gestos corporais familiares ao artista e ao observador,
muito valorizado pelos pintores renascentistas italianos. As pinturas clássicas propõem que
imaginemos as paixões humanas que ela sugere, representando o mundo como um palco
onde as guras humanas praticavam ações signicativas, baseadas nos textos prévios e con-
sagrados. (ALPERS, 1997, p.381)
Nas ilustrações de Orlando é recorrente a diversidade de tipos e gestos em situações
prosaicas e geralmente perplexas, apresentando o ser humano imerso e vitimizado pelo seu
contexto, em atitudes raramente heróicas, personagens de um diário da vida cotidiana do
brasileiro do século XXI, tentando viver com alguma dignidade. Tipicações de diferentes
tribos e idades transitam da editoria de política para o caderno Teen ou infantil. Diversicam-
se entre os diferentes segmentos de leitores as suas respectivas mazelas cotidianas.
Vale notar que quando se trata de postura corporal e representação das paixões hu-
manas não nos referimos apenas à postura extrovertida. Em março de 2007, Orlando expôs
na galeria Calligraphia uma série de pinturas em acrílica sobre papel Kraft, intituladas Uns
Desenhos. Nesses trabalhos, as guras humanas são apresentadas em gestos contidos, como
se estivessem posando para um retrato fotográco (gura 3.31). Mesmo contidos, alguma
coisa de natureza emocional emerge através desses tipos.
Orlando comenta que nunca esqueceu uma cena que viu uma vez numa viagem ao
nordeste, de um casal dançando forró em passos miúdos e em completa sinergia. Enquanto
os outros casais se esmeravam em coreograas complexas, chamou a sua atenção a cumpli-
cidade daqueles movimentos. Essa cena cou gravada em sua memória como um paradigma
da expressividade da sutileza dos gestos.
3 O conceito de Pathosformeln foi formulada por Aby Warburg no seu ensaio sobre “Dürer e a antiguidade italiana”, de
1905.
4 Pathos é denido por Aristóteles, na poética, como “estado afetivo”.
114
A representação da vida em movi-
mento, mimicamente intensicada, a expres-
são física ou psíquica das paixões e afecções
sofridas pela humanidade encontrou nos tra-
balhos examinados diferentes enfoques.
Grotesco
Na infograa de Samuel Casal O Dia
Seguinte (gura 3.32), o bêbado no seu dia
seguinte foi formulado numa expressão hu-
morada e levemente grotesca até suas entra-
nhas, com vísceras de fora, deformações da
aparência e exagero hiperbólico.
Conhecido pelo seu trabalho com -
guras monstruosas, Samuel foi chamado para
fazer a capa do DVD do do Caixão. Re-
centemente fez um livro infantil, pois como
explica o ilustrador, “o pessoal queria um
clima de terrorzinho”, queriam o Samuel dos monstros. Mas não quer ser identicado ape-
nas por esse tipo de produção, e avalia que esses recursos mais expressionistas não são
adequados para qualquer tipo de pauta. “Nunca vou zoar com uma matéria sobre AIDS, por
exemplo. Presto atenção nisso, para não car de mau gosto” (Samuel, depoimento). A cons-
ciência do papel da ilustração em relação à nalidade da comunicação impede o ilustrador
de impor um estilo que eventualmente foi feliz num determinado caso para qualquer caso,
indiscriminadamente.
A palavra grotesco vem de gruta, porão, grotta em italiano. A expressão apareceu no
século XV, na ocasião das escavações do palácio de Nero, em Roma. Ornamentos estranhos
de plantas e animais chamaram a atenção de artistas da época.
Muniz Sodré e Raquel Paiva (2004) avaliam o grotesco como uma categoria estética
geralmente associada ao desvio de uma norma expressiva dominante, relacionada ao disfor-
me, à desproporção, à metamorfose
5
. Trata-se de uma experiência criativa que estabelece
uma ponte direta entre a expressão criadora e a existência cotidiana e ameaça qualquer ex-
cesso de idealização pelo seu avesso, através do ridículo e da estranheza.
A reexão acontece no desvelamento das estruturas por um olhar plástico que penetra até
as dimensões escondidas, secretas, das coisas, inquietando e fazendo pensar. Lúcida, cruel
5 Os autores citam uma denição do dicionário de Richelet, do século XVII, que dene o grotesco como “aquilo que tem
algo de agradávelmente ridículo” (in, SODRÉ e PAIVA: 2004, p. 30)
Figura 3.31 – Orlando, pintura para exposição
Uns Desenhos, em março de 2007
115
e risível aqui estão os elementos da chave para o entendimento da crítica exercida pelo
grotesco” (idem, p. 72).
Os autores notam que o grotesco assume modalidades expressivas diversas (idem,
p. 68):
Escatológico: que fazem referência a dejetos humanos.
Teratológico: referências risíveis a montruosidades, deformações, bestialismos.
Chocante: Voltado para a provocação supercial de um choque perceptivo.
Crítico: aquele que proporciona discernimento formativo do objeto visado. Vai
além da privada percepção sensorial do fenômeno, lida com o desvelamento
público e reeducativo do que nele se tenta ocultar. É um recurso estético que
desmascara convenções e ideais, rebaixando identidades poderosas ou expondo
de modo risível.
O grotesco abre espaço para que um novo tipo de pensamento possa incluir pluralisti-
camente outras vozes, culturas, cosmovisões, que contenham uma interpretação congruente
do mundo, avaliam Sodré e Paiva.
Figura 3.32 – Infográfico de Samuel
Casal para o Diário Catarinense.
116
Na história da imprensa, a estética do grotesco sempre teve um lugar especial, exer-
cendo um papel de crítica social, de desvelamento dos aspectos sombrios que se ocultam nas
aparências sociais. É um recurso geralmente utilizado nas caricaturas.
A ilustração sob o ponto de vista do ilustrado
O psicólogo Contardo Calligaris deu um depoimento no “Ilustra Brasil”
6
de 2005, so-
bre a sua experiência de articulista da Folha de São Paulo ilustrado pela Mariza Dias Costa
(que foi ilustradora de Paulo Francis por muitos anos, na mesma Folha). Contou que sempre
se espanta com a interpretação visual que Mariza realiza de seus artigos, pois esperava que
ela fosse se apoiar em eventuais imagens concretas presentes em seu texto e acaba sempre
sendo surpreendido por abordagens inesperadas.
“Freud pensava que os sonhos são inicialmente pensamentos e não imagens. É preciso que
esses pensamentos encontrem condições de sua gurabilidade, para se transformarem em
imagens”. A psicanálise desenvolveu teorias para entender como se dariam essas condições.
Na minha opinião, Mariza encontra as condições de gurabilidade. E chega como um certo
tipo de interpretação especial o imaginário de outra pessoa me diz algo sobre o que eu
escrevi – mas que vai além.” (depoimento, 16/06/2005)
Calligaris relatou um artigo sobre o casamento de Marta Suplicy e Favre, sem re-
criminações. Ficou preocupado com o estilo expressionista de Mariza, e mandou uma reco-
mendação “para ela não exagerar”. No entanto, Calligaris avalia que sua recomendação “não
foi muito ecaz”.
O psicólogo quis ressaltar que aqueles que ridicularizam a possibilidade de uma mu-
lher, governante, com mais de 50 anos ser afetivamente feliz é uma posição preconceituosa.
Mariza ilustrou o outro lado: o que é que passava pelas bocas das pessoas a respeito desse
assunto.
“A divergência de abordagem revela algum aspecto que o texto tem em potencial”,
avalia Calligaris.
Mariza apresentou uma gura feminina feliz, majestosa e em movimento, com asas
semelhantes à Vitória de Samotrácia, carregando um vistoso chapéu e caminhando com vi-
gor em direção ao canto esquerdo do espaço compositivo, deixando atrás de si um rastro de
bocas com dentes e balões de fala vazios (gura 3.33).
Os matizes presentes na gura feminina, amarelo, azul e magenta, rebaixadas, reapa-
recem nas bocas, numa intensidade mais forte e misturadas – vermelho, roxo e laranja.
Os balões (signos compartilhados socialmente, indicadores de linguagem oral) sina-
lizam discursos interseccionados, como se concordassem entre si. As bocas são ferinas e os
6 Encontro anual de discussão de ilustradores, organizado pela Sociedade dos Ilustradores do Brasil (SIB).
117
discursos são vazios.
Mariza encontra no texto “condições
de gurabilidade”. O termo se refere à ação
mental envolvida na criação de imagens, que
forma a algo que “está além”. O casamento
de Marta Suplicy e Favre está no imaginário
do articulista, da ilustradora, e também inte-
gra o discurso social, que perpassa os dois.
É o objeto dinâmico dessa relação triádica,
gerador dos signos verbais e visuais.
Nesse caso, a potencialidade explorada por Mariza estava no imaginário popular, que
rejeitava o casamento da prefeita, a despeito da posição do autor, que defendia o seu direito
de ser feliz. Mariza colocou a gura feminina feliz. Ela segue só, alheia ao comentário e li-
vre, reforçando, inclusive, o título do artigo, Por que tanta zombaria?. Mas o lado burlesco
do fato, que Calligaris temia que Mariza colocasse à luz, teimou em aparecer.
O articulista chamou a atenção para o comportamento preconceituoso da opinião pú-
blica a respeito da vida sentimental da prefeita de São Paulo e a ilustradora mostrou na ilus-
tração uma imagem visual supostamente representativa do imaginário da opinião pública.
Não fez uma interpretação visual do artigo, mas do seu tema. Realizou, portanto, um artigo
visual acompanhado pelo texto.
Calligaris aponta o fato de que a ilustração de Mariza “vai além” do texto que ele
escreveu e interpreta o mesmo fato mostrando outro ponto de vista, diferente do seu, e que
lhe acrescenta. aqui a consciência de um compartilhamento social sobre algo que está
além da mensagem escrita ou ilustrada. O casamento de uma prefeita, assim como a saúde do
Estado de São Paulo, são temas cuja abrangência de pontos de vista vão muito além do ponto
de vista do articulista. O que Calligaris não concluiu é que o ilustrador não está a serviço
do articulista, está a serviço da notícia.
Figura 3.33 – Mariza, Folha de S.Paulo – 24/09/2003.
Ilustração para artigo de Contardo Calligaris.
118
Considerações Finais
119
Considerações finais
“Embora deva admitir que mão, coração e olhos são muito mais
complexos que qualquer computador poderá ser”. David Hockney
No início deste trabalho, relatei minha experiência como professora de visualidade
em ateliês de escolas e faculdades e o desconforto que sempre me causou a cena de pais per-
guntando se seu lho tinha ou não o “dom” de desenhar. Esse pensamento tem parentesco
com a noção de imagem gráca como adereço totalmente obsoleta mas profundamente
enraizada no senso comum; e mais do que se imagina, pois contamina não apenas pais e
professores de colégio, mas também editores de jornais.Esta pesquisa foi motivada pela
intenção de colaborar para combater essas duas distorções de valores: a aprendizagem da
linguagem visual subordinada ao dom e a imagem como ornamento.
A análise do processo de criação de ilustrações jornalísticas mostrou um universo
complexo e identicou uma trama de relações mobilizando rizomaticamente termos como:
A relação com a tradição visual gráca.
Circunstâncias industriais e editoriais em torno da produção.
Construção de vínculos com o texto, a pauta, o projeto gráco e editorial.
Escolha de ferramentas e suportes.
Procedimentos de articulação de signos grácos.
Ênfases e exclusões
Relação com a cultura e o repertório cultural do ilustrador.
O posicionamento ético do ilustrador.
Escolhas de natureza estética.
Experimentação e clichê.
Os termos colocados em ação, ou os nós e conexões dessa rede, desempenham di-
ferentes valores e podem alterar sua dimensão a partir dos posicionamentos lógicos estru-
turados pela análise. Buscamos compreender as tensões, diálogos e coexistências entre os
termos, sem determinar a priori nenhuma dominância de um fator em relação a outro. Ao
tentarmos compreender a singularidade dessa rede, buscamos ampliar o entendimento da
singularidade dessa linguagem.
No ritmo industrial do jornalismo, embora o ilustrador receba o texto do artigo pron-
to e acabado (não cabendo a ele sugerir mudanças de forma ou conteúdo no texto, até porque
não tempo para isso), é a imagem quem dará a “palavra” nal, pois, ironicamente, o autor
também não terá tempo para ver a ilustração antes de impressa (o que deve ter sido o caso do
120
secretário da saúde de São Paulo).
Na gestalt da página impressa, a diagramação, o título e a ilustração conduzem o
olhar do leitor para o texto e participam de sua decisão pela leitura. O texto ilustrado, seja
por foto ou desenho, provavelmente tem mais chances de ser lido do que o texto “seco”, uma
vez que não há simultaneidade perceptiva. Na superfície do papel, é a imagem que primeiro
captura a atenção do leitor, embora a decisão nal de investir tempo na leitura caiba ao título,
ao “olho” e ao primeiro parágrafo.
As nalidades comunicativa, informativa e crítica preside o trabalho do ilustrador,
que recebe a demanda através da pauta e muitas vezes também pela interpretação do texto
verbal. No entanto, como vimos, ele não está subordinado a essa interpretação. Cabe a ele
se posicionar em relação ao tema indicado pela pauta, garantindo a sua liberdade de expor a
sua opinião.
São de responsabilidade do ilustrador o enfoque em relação ao tema em pauta, a
partir de escolhas de ênfase e exclusão. Ao exercer sua “co-autoria”, e não a simples redun-
dância, o ilustrador enriquece a leitura, montando um jogo de espelhos para a reexão do
leitor. O ilustrador não está a serviço do articulista, está a serviço da pauta e é sempre um
outro olhar sobre o tema.
No processo de criação, o ilustrador elabora mentalmente e constrói linguagem, num
movimento retroalimentador. A ação criativa pressupõe o movimento entre a representação
e a ação mental, o trânsito de informações externas e internas à mente. A elaboração de lin-
guagem visual gráca mobiliza diferentes domínios cognitivos além da esfera especíca da
visualidade. A ação criativa opera mentalmente de forma hipermidiática.
Uma das primeiras decisões do ilustrador diz respeito aos aspectos do campo referen-
cial que ele escolherá sugerir ou explicitar, enfatizar, excluir ou contradizer. Essas escolhas,
até pela natureza distinta das linguagens, são diferentes das escolhas apontadas no texto. O
entendimento dessa triangulação é fundamental para qualquer análise que envolva a relação
entre imagem e texto.
Carlos Matuck apontou e reforçou a distância platônica entre o narrador de Musil e a
mulher, ampliando um aspecto sutil do texto. Ridicularizou “o discurso losóco da moder-
nidade”, mas em voz baixa, igualando as calças. Orlando escolheu mostrar posição oposta
ao secretário da saúde, numa imagem simples e direta, de rápido entendimento e de fácil
identicação para qualquer um que já precisou utilizar os serviços da saúde pública. Samuel
se debruça na complexidade das escolhas entre revelar, ocultar, enquadrar e focar.
Nos rastros dos movimentos de formatação e transformação da matéria gráca, expe-
rimentações, incertezas e escolhas, observamos as operações de armazenar, traçar, texturizar,
esboçar, rafear, deslocar, deformar, fundir, apropriar, ampliar, reduzir, recortar e colar, testar,
escolher, congurar. A escassez de tempo para o trabalho do ilustrador implica em agilidade
na organização do banco de dados, mobilização de informações e sobretudo repertório cul-
tural variado, adequado à temática trabalhada.
121
As congurações do material visual não se separam daquilo que signicam. O movi-
mento dos elementos grácos corresponde a deslizamentos de sentido e modicam a estru-
tura semântica da mensagem. Toda conguração é semântica.
Diferenciando-se daquilo que é característica básica do gênero jornalístico, a ilustra-
ção mostra freqüentemente cenas ctícias o que lhe possibilita a oportunidade de revelar
aspectos verdadeiros que são ocultados sob as aparências. Muitas vezes operando na mesma
faixa de freqüência do grotesco, no avesso da idealização, a ilustração jornalística também
penetra nas dimensões escondidas das coisas, fazendo pensar. Sua função comunicativa prin-
cipal talvez seja o desvelamento. Mais do que “lançar luz”, a boa ilustração revela aspectos
ocultos do objeto.
A ação de ver e criar mensagens visuais mobiliza operações mentais que vão muito
além da organização gestaltica. Envolvem também memória e inserção cultural. Também as
circunstâncias sociais são elementos ativos na criação. É nesse processo de acesso a reper-
tório cultural e escolha que se estabelece o jogo entre a redundância ou não da informação,
a utilização de clichês, de fácil assimilação e pouca profundidade, ou a construção de con-
gurações expressivas que exigem níveis mais sutis de assimilação.
Ilustração e ferramentas digitais
As operações de adição, deslocamento, exclusão, deformação, sobreposição, fusão
de elementos grácos e experimentação cromática sempre zeram parte do movimento arti-
culador da linguagem gráca e foram apenas agilizadas pelos recursos digitais. No entanto,
essas ferramentas trouxeram a necessidade de serem interpretadas de outra maneira, diferen-
te da relação corporal estabelecida com o lápis.
Vimos no trabalho de Samuel, procedimentos de apropriação de guras (simbólicas
ou não), fusão, testagem de cores e dimensões, deformação, texturização e repetição de ele-
mentos. Vimos também que não são novos esses procedimentos. A testagem de dimensões e
deformações, no trabalho de Carlos Matuck dos anos 1980, eram realizadas com o recurso
do xérox e das grades de anamorfose. Nova é a agilidade conquistada para a testagem desses
recursos, organização de banco de dados e acesso a referências visuais. Particularmente a
fusão de elementos e o hibridismo entre imagens provenientes de diferentes mídias são re-
cursos potencializados pelo computador. São recursos que do ponto de vista expressivo têm
na colagem um antepassado de respeito.
Com os recursos digitais, arranjos cromáticos, dimensões, apropriações, deforma-
ções e localizações espaciais são feitas em poucos “cliques”, cabendo ao criador visual a
responsabilidade e competência da confecção, testagem, seleção, escolha e arranjo. Muitas
dessas competências ganharam nova dimensão. Dado o contexto contemporâneo, povoado
de mensagens visuais e profusão de recursos (nunca é demais lembrar, nas mãos de poucos),
122
aumentaram a demanda de competência para critérios de escolha e edição do material visual.
Foram aprofundadas as possibilidades de hibridização de linguagem, possibilitando diálogos
efetivos entre as matrizes, verbal, visual e sonora. No entanto, na área da comunicação visual
gráca, a prática das mais variadas formas de produção visual analógica dá oportunidade de
potencializar os recursos digitais.
A pesquisa plástica envolvendo o gesto largo, os arranjos cromáticos e a pincelada
em grandes dimensões das pinturas de Orlando, organizadas em exposições como Uns de-
senhos (2007) e Como o Diabo Gosta (1997) alimentam seu trabalho desenvolvido nas ilus-
trações. A experiência de Samuel com a gravura em linóleo proporcionou melhor controle
da luminosidade e tornou mais complexo e instigante o seu trabalho com formas vetoriais.
Inversamente, a sua experiência com ferramentas digitais e a prática de sobreposições de
formas vetoriais formou o seu olhar para a gravura. As ilustrações de Carlos Matuck são
também produto de sua experiência de grateiro e muralista. O encontro de antigas gravuras
e carimbos com o desenho, em rigorosas seleções e enquadramentos, são resignicados a
cada novo muro, impresso, tela ou painel.
A experiência em diferentes suportes e ferramentas propicia novos paradigmas à
elaboração da linguagem gráca, que passa a ter consistência por conta da maturidade da ar-
ticulação dos signos grácos, independente de ser destinada ao suporte impresso ou digital.
A apropriação e convivência com antigos recursos proporcionam vitalidade à produ-
ção digital. Como apontam Briggs e Burke (2004, p. 33), “diferentes sistemas de comuni-
cação podem competir entre si ou imitar um ao outro, bem como se complementar”. Enten-
dendo a mídia como um sistema aberto e em contínua mudança, o encontro de práticas de
naturezas muito distintas pode resultar em novos campos expressivos para a comunicação.
“...a ordem numérica torna possível uma hibridação quase orgânica das linguagens, dos sa-
beres, instrumentais, dos modos de pensamento e de percepção. Esse possível não é forçosa-
mente provável: tudo depende da maneira pela qual especialmente os artistas farão com que
as tais tecnologias se curvem a seus sonhos”. (COUCHOT, 1993, p.47)
O domínio da ferramenta não é suciente para garantir um diferencial ao ilustrador,
mas sim a maneira como ele amadurece, com seu repertório cultural, o seu projeto estético,
que lhe garante um olhar diferenciado sobre o tema.
Redundância e informação
Abraham Moles (1987, p. 74) refere-se à ecácia máxima da ação comunicativa in-
ter-humana como a ação de ser compreendida pelo receptor e observa que a palavra vem do
latim – comprehendere – prender em conjunto.
123
“Redundância e informação por signo variam, pois, em sentido inverso. Uma mensagem
redundante em 100% é perfeitamente inteligível, infelizmente não traz nenhuma informação
a mais, não transporta nada de novo, é banal.”
Segundo Moles (1987, p.76), estabelece-se, dessa maneira, uma dialética do “banal”,
inteligível, e do “original”, informativo e novo, através de estruturas que lidam com uma
previsibilidade residual.
“Em suma, uma mensagem apreensível para o receptor representará um compromisso feliz
entre novidade e inteligibilidade, sendo o compromisso determinado pelas freqüências rela-
tivas mais ou menos grandes de signos no repertório do receptor, isto é, na aprendizagem que
ele teve desses signos, em outros termos, na sua cultura pessoal.”
A ecácia da comunicação social exige constante experimentação, para que a mensa-
gem não se esvazie no clichê, mas também há a necessidade de compartilhamento de signos.
A imprevisibilidade ou a total previsibilidade dos sinais são dois casos extremos de não
comunicação (Pignatari, 1977). O equilíbrio entre a redundância e a imprevisibilidade gera
movimento. A comunicação pressupõe a existência de um repertório e de um código comuns
ao transmissor e receptor. Todo signo novo, externo ao código, é ininteligível. A introdução
de novas relações estruturais de signos propicia o alargamento do repertório e a redução da
taxa de redundância do sistema.
O excesso de redundância amortece a recepção. Um dos desaos do ilustrador, ao
criar mensagens visuais para veículos de grande circulação, é a escolha entre o clichê, ele-
mento garantido de compartilhamento social de sentido, ou a escolha de oxigenar a lingua-
gem simbólica, operando com estranhamentos. Um criador de linguagem gráca aciona as
mais variadas instâncias de seu repertório cultural e se apropria de todo tipo de material
armazenado em suas gavetas, sejam elas mentais ou não. São os casos em que os discursos
verbal e visual se interpenetram e a ilustração deixa de ser decoração do texto, mas um mo-
mento necessário do mecanismo comunicativo (Massirone).
Se observarmos a comunicação sob aspecto de uma relação dinâmica estabelecida
entre a informação e a redundância, cabe à função estética reorganizar os elementos das
combinatórias de linguagens já assimiladas socialmente e proporcionar a criação de mensa-
gens signicativas e renovadas, a partir de um substrato socialmente compartilhado.
Muniz Sodré e Raquel Paiva (2002, p. 38) avaliam que a função estética não é ex-
clusiva da arte e qualquer produto da atividade humana pode tornar-se signo estético. O
elemento estético funciona como signo de comunicação, “abrindo-se para uma semântica
do imaginário coletivo e fazendo-se presente na ordem das aparências fortes ou das formas
sensíveis que investem as relações intersubjetivas no espaço social”. A função estética é
inerente à comunicação e não pode ser negligenciada por aqueles que trabalham com a edu-
cação na área da comunicação social.
124
O ilustrador de jornal não é nem um artista, nem um repórter. Ele desempenha uma
função que agrega esses aspectos: a revitalização da linguagem, que é própria da função
estética e a exposição de informações, que é própria da reportagem, com o enfoque crítico
do articulista.
A realização de uma boa ilustração, portanto, exige repertório e posicionamento crí-
tico. Ilustração de qualidade não é ornamento, pois agrega informação e ponto de vista ao
tema. Quando um editor de jornal encomenda a ilustração para um artigo a um bom
ilustrador na verdade ele está contratando dois articulistas: o articulista verbal e o vi-
sual. Cabe aos editores proporcionarem mais possibilidades de riqueza nesse diálogo. E aos
leitores, o usufruto desse encontro.
125
Bibliografia
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