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Estetização da existência,
agonística e política em Nietzsche
Por
Joana Tolentino
2007
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II
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS – IFCS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA — PPGF
Estetização da existência,
agonística e política em Nietzsche
Por
Joana Tolentino
Orientador: Prof. Dr. André Martins
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Filosofia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (PPGF-UFRJ) como requisito
parcial para obtenção de grau mestre em
Filosofia, sob a orientação do prof. Dr. André
Martins.
Rio de Janeiro
2007
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III
Estetização da existência,
agonística e política em Nietzsche
Por
Joana Tolentino
Folha de Aprovação
Banca Examinadora:
________________________________________
Prof. Dr. André Martins Vilar de Carvalho – orientador (UFRJ)
________________________________________
Profa. Dra. Rosa Dias (UERJ)
________________________________________
Prof. Dr. Guilherme Castelo Branco (UFRJ)
IV
Agradecimentos
Aos meus avós inesquecíveis, por serem meus modelos ontem e sempre;
ao meu pai Joab pela inspiração intelectual e profissional;
Aos meus pais Cristina e Eduardo, e aos meus tios Marcão e Gláucia, pelo afeto;
às minhas queridas amigas Gio, Carminha, Fê
com as quais eu aprendo a me respeitar e admirar.
E principalmente à minha verdadeira obra de arte: a família que formei na vida — aos
meus filhos Morgana e Teo e ao meu marido Diogo pela paciência e abnegação nesses
últimos anos difíceis, pela compreensão e força, por estarem sempre ao meu lado.
Primeiramente gostaria de agradecer aos membros da banca, os professores Guilherme
Castelo Branco e Rosa Maria Dias pela disponibilidade para discutir e avaliar o
trabalho, em especial à professora Rosa por mostrar que a Academia também é capaz de
ser acolhedora e afetiva;
ao meu orientador, André Martins, por aceitar o empreendimento da orientação;
aos meus musos inspiradores na filosofia: Roberto Machado e Gerd Borhein,
pensadores e professores que tive o prazer de compartilhar tempos e saberes
inesquecíveis;
V
Aos amigos de IFCS e de tantas discussões úmidas e prazerosas sobre vida e filosofia:
Bernardo, Geórgia, Leo, Gabriel, Jorge, Sávio;
aos professores que me instigaram nesta trajetória ifcsiana: Hilton Japiassú, Gilvan
Fogel, Fernando Santoro, Franklin Trein;
às queridas professoras Íris e Zulena pelos saberes práticos que conquistamos juntas;
aos meus alunos por partilharem comigo sempre renovadas discussões férteis;
aos meus companheiros de trabalho Ingrid e Marcelo por propiciarem o exercício da
agonística, especialmente no que tange a filosofia e a educação.
VI
Resumo
TOLENTINO, Joana. Estetização da existência, agonística e política em Nietzsche. Rio
de Janeiro, 2007. Dissertação (Mestrado em Filosofia) — Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
A presente dissertação versa sobre a experiência política, inerente à vida de
todos os homens, propondo-se a ressignificar esta esfera que se encontra desvalorizada
desde a falência dos valores modernos. O trabalho baseia-se na compilação e posterior
crítica e interpretação dos escritos políticos de Nietzsche, observando a crítica que o
filósofo opera ao modelo moral moderno, extrapolado para as esferas da ética e da
política, partindo da crítica específica que faz aos Estados nacionais e seus interesses
monetários. Para Nietzsche a experiência política ativa e potencializadora da força
humana está entrelaçada com a experiência artística, pois somente através da arte pode
o ser humano aprender a perceber a sua vida pessoal como parte de um todo, de um
tecido social. Em nossa análise Nietzsche traça assim o esboço de uma estetização da
existência, uma vez que valoriza a criatividade, a singularidade, a imanência, a
agonística, a vida baseada em valores artísticos de construção e desconstrução — tratar
a vida como obra de arte — o que pressupõe a valorização da diferença, da
multiplicidade. Nessa aproximação que fazemos entre arte e estetização, existência e
política, observamos que a proposta política de estetização da existência, que Nietzsche
lança, se aproxima do que hoje se denomina por micropolítica: a participação ativa de
cada membro atento e questionador na coletividade.
VII
Abstract
TOLENTINO, Joana. Aesthetization of existence: agonistic and politics in
Nietzsche. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Mestrado em Filosofia) — Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2007.
The present paper deals with political experience inherent to the all men's life. It
intends re-meaning this sphere that is depreciated since bankruptcy of the modern
values. The base of his work is the compilation and subsequent critic and interpretation
of Nietzsche's political writings, observing the critic which he bestows to the modern
moral model, surpassed to ethical and political sphere, from his specific critic against
national States and their monetary interests. For Nietzsche the active and rich political
experience of the human force is interlaced with the artistic experience, because only
through art human being is able to learn how to perceive his/her personal life as part of
a whole, of a social fabric. In our analysis Nietzsche draws in this way the sketch of an
aesthetization of the existence, once he values the creativity, the singularity, the
immanence, the agonistic, the life based on artistic values of construction and un-
construction - to treat the life as work of art - what presupposes the valorization of
difference and multiplicity. In that approach that we make among art and aesthetization,
existence and politics, we observed that the political proposal of aesthetization of
existence, that Nietzsche inaugurates, is near to so called today micro-politics: the
active participation of each attentive member in collectivity.
VIII
Abreviações das obras de Nietzsche
A — Aurora. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
ABM – Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
CE — Considerações extemporâneas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo:
Abril Cultural (Col. Os Pensadores), 1978.
CI – Crepúsculo de los ídolos. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2000.
CW – O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner. Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.
EH – Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
GC — A Gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
GM – Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
IX
GP — “A Grande política”, Fragmentos. Trad. Oswaldo Giacóia Jr. In: Clássicos da
Filosofia: Cadernos de tradução n.3. Campinas: IFCH/Unicamp, setembro de 2002.
HDH – Humano, demasiado humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
NT — O Nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. Jonh Guinsburg.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Z – Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Mario da Silva.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
X
SUMÁRIO
Introdução....................................................................................................................p.1
Capítulo I Por uma estetização da existência em Nietzsche......................................p.15
I.1 A estetização da política na obra de Nietzsche......................................p.25
I.2 A valorização do jogo, do conflito, do agon: arte e política..................p.40
I.3 A experiência artística e cultural em Nietzsche e sua relação com a
política...............................................................................................................p.49
Capítulo II A política na primeira fase do pensamento de Nietzsche.......................p.66
II.1 Críticas e proposições sobre educação e política educacional............p.69
II.2 Reflexões político-sociais sobre o Estado grego e a cultura grega
trágica..........................................................................................................p.77
XI
II.3 Proposta de política cultural em O Nascimento da tragédia..............p.84
II.4 A política intrínseca a O Nascimento da tragédia..............................p.89
II.4.1 Crítica aos paradigmas moral e científico da modernidade e
valorização da arte e da cultura trágicas............................................p.90
II.4.2 Valorização da diferença: novo modelo de relação não
excludente..........................................................................................p.96
Capítulo III A política na segunda e terceira fases do pensamento de Nietzsche...p.106
III.1 A crítica nietzscheana à modernidade política.................................p.114
III.2 Espíritos livres, filósofos do futuro, legisladores de si: modelos
imanentes de atuação micropolítica..........................................................p.125
III.3 Uma interpretação micropolítica da política em Nietzsche.............p.139
XII
Considerações finais
............................................................................p.148
Bibliografia............................................................................................p.157
1
Introdução
No momento em que vivemos somos eventualmente levados a uma tentativa de
refletir e ressignificar o sentido do político, da política, do homem como animal político,
clássica máxima de Aristóteles que parece ter se perdido ao longo do tempo, pelo menos
em sua universalidade semântica. Propomo-nos, então, a refazer este percurso e, sem
fundamento estável possível, após a morte de Deus e todas as suas garantias de certeza, ao
escolher Nietzsche como parceiro, não será mais possível furtar-se da nobre e árdua tarefa
genealógica, proposta que acompanhou toda a sua obra. Isso nos convida a uma busca
pelos escritos políticos de Nietzsche onde interessa-nos as aproximações e convergências
do que pode haver nele de observação acerca do ser humano, seu engendramento na
coletividade, o olhar que ele lançou sobre os grupamentos humanos, sobre as sociedades de
sua época — críticas e propostas.
Perguntamo-nos: quanto os conceitos nietzscheanos e seus escritos sobre o ser
humano, a arte, a sociedade, a educação têm de políticos? Não de teoria política, mas de
uma política que é praticamente condição de possibilidade do homem e não pode ser
confundida com partidos políticos ou sistemas de governo. O interesse que nos norteia
neste estudo não visa um mapeamento (vivisecção estéril), tampouco pretende salvar ou
execrar Nietzsche no diálogo com a tradição da filosofia política. O que norteia nosso
2
objetivo é dar ênfase e lançar luz em um sentido da política mais primordial, que
exercemos em nosso dia-a-dia, trazendo-o à reflexão. Desta forma pretendemos abrir o
conceito da política para possibilidade múltiplas, para outras direções diferentes daquelas
inicialmente associadas ao termo, principalmente em épocas de enorme descrédito nas
instituições políticas, no esfacelamento dos Estados nacionais, na descredibilização dos
atores políticos tradicionais.
Uma vez que “toda leitura de Nietzsche é tanto uma demolição quanto uma
reconstrução, condicionadas pelo tempo, história e lugar
1
, interessa-nos perguntar: qual é
o valor do político para nós? Nós, homens da contemporaneidade, que ainda tentamos em
vão classificar-nos, a nós mesmos, como pós-modernos (seria adequado?). Ou modernos?
Afinal, vemo-nos ainda hoje profundamente imbricados pelos valores da modernidade,
introjetada a religião cristã, a ciência, o modo de produção capitalista, o liberalismo em
nossos corpos, gostos, hábitos.
É por isso que Nietzsche torna-se um companheiro propício e atual: extemporâneo
que foi, enxergou não só críticas à sua época – a modernidade — e ao seu lugar — a
Europa (e mais especificamente a Alemanha), mas talvez, justamente por ter tentado atuar
de forma localizada e pontual, foi profundamente global e atemporal, tendo seus escritos
ultrapassado séculos e sendo eles, principalmente hoje, bastante instigantes e pertinentes.
Nietzsche pareceu antever práticas políticas, culturais, educacionais que apenas
despontavam e atingiriam seu apogeu apenas posteriormente: a degenerescência dos
Estados nacionais, a massificação das sociedades industriais e a inevitável conseqüência de
1
ANSELL-PEARSON, 1997, p. 19.
3
degradação da cultura, a evidência dos engodos demagógicos da democracia e do
socialismo, a importância da atuação micropolítica.
Estas críticas ainda pareciam descabidas diante dos antolhos do século XIX, porém,
mais adiante, fizeram parte de uma profunda transformação no modus operandi do
pensamento a partir do século XX
2
, quando “a interpretação se converteu, finalmente,
numa tarefa infinita”
3
. Alterando radicalmente o modo e o estilo da produção de
conhecimento e sua expressão, fragmentária, ora ambígua e paradoxal
4
, Nietzsche,
questionador que é, segundo as palavras de Foucault, parece pensar que:
“se o intérprete deve ir pessoalmente até a fundo como um
escavador, o movimento de interpretação é, pelo contrário,
duma avalanche, duma avalanche cada vez maior, que permita
que por cima de si se vá despregando a profundidade de forma
cada vez mais visível; e a profundidade torna-se então um
segredo absolutamente superficial, de tal forma, que o vôo da
águia, a ascensão da montanha, toda esta verticalidade tão
importante em Zaratustra, não é em sentido restrito, senão o
revés da profundidade, a descoberta de que a profundidade não
é senão um jogo e uma ruga da superfície.”
5
Esta proposta de transformação das possibilidades interpretativas dos signos, para além da
modernidade — onde estes já estavam anteriormente dados e eram estáveis, sistemáticos e
absolutos, reflexos metafísicos, em última instância — faz com que Nietzsche os aproxime
da imanência, das vicissitudes da existência finita, da impermanência, do perpspectivismo,
do conflito, onde o profundo e o superficial se confundem, onde o fim está próximo do
próprio começo, com o pensamento abissal e radical da circularidade. Para Michel
Foucault:
2
A este respeito ler FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx. São Paulo: Princípio, 1997, Trad. Jorge
Lima Barreto.
3
FOUCAULT, s/d, p.13.
4
ANSELL-PEARSON, 1997, p. 17.
5
FOUCAULT, s/d, p.12.
4
“em oposição ao tempo dos símbolos que é um tempo com
vencimentos e por oposição ao tempo da dialética, que é apesar
de tudo linear, chega-se a um tempo de interpretações que é
circular”
6
Transformar a ampliar a própria possibilidade de interpretação é tarefa que se insere, para
Nietzsche, no interior de uma proposta mais audaciosa que é a transvaloração de todos os
valores — proposta esta que atinge até mesmo um estatuto ontológico, posto que tranforma
a relação do homem com a existência mesma, onde “o ‘todo’ só é dado ainda como ‘caos’,
o ente enquanto tal não é mais ‘fixável’.”
7
No que tange à peculiaridade de sua ontologia, podemos observar que ela se
manifesta de forma transversal em seus escritos dispersos, principalmente estéticos e
políticos, sobre temas recorrentes como cultura, educação, arte, moral, religião,
modernidade, instituições liberais, democracia, socialismo. Assim, ao enfocarmos a
pesquisa sobre “um aspecto-chave na filosofia de Nietzsche: seu pensamento político
8
nos
deparamos com tal dispersão e inter-relacionamento com outros aspectos acima citados,
principalmente a relação do homem com a sua própria existência. Falaremos de política em
Nietzsche através de política cultural e educacional, através de reflexões sobre o estatuto
ontológico da arte e sua importância na sociedade, através da proposição de novas formas
de vida.
Isto porque observamos que os escritos políticos de Nietzsche só podem ser
encontrados de forma dispersa e fragmentária, em seções de livros como Humano,
demasiado humano, Para além do Bem e do Mal, Crepúsculo dos ídolos, em inúmeros
aforismos de Aurora, no fio condutor de Assim falou Zaratustra, no olhar aos gregos do
6
FOUCAULT, s/d, p.21.
7
MÜLLER-LAUTER, 1997, p.72 (nota 34).
8
ANSELL-PEARSON, 1997, p. 18.
5
início de sua filosofia, na crítica à educação
9
, à arte
10
, à religião
11
, à cultura
12
, ao
cientificismo e ao
racionalismo
13
, à moral
14
e até em sua autobiografia, Ecce Homo. Estes
escritos políticos muitas das vezes aparecem em sua obra travestidos de todos os jogos,
abismos e nuances da linguagem, dos quais o filósofo alemão abusa ao longo de sua
produção intelectual, como afirma Ansell-Pearson: “em parte alguma de seus escritos
Nietzsche oferece uma explicação sistemática de seu pensamento político
15
. Esta
observação adequa-se especialmente para o que se convencionou classificar, pelos
estudiosos de Nietzsche, como segunda e terceira fases de seu pensamento, fases onde ele
desenvolve especificamente seu aguçado criticismo. No estilo Nietzsche era, sem dúvida,
um assistemático, uma vez que “seus mais profundos instintos intelectuais eram ‘anti-
sistema’
16
, e nunca furtou-se de expressar que: “Desconfio de todos os sistemáticos e me
afasto de seus caminhos. A vontade de sistema é uma falta de retidão.”
17
Compilar estes fragmentos na tentativa de elaboração de um trabalho acadêmico,
onde se prima pela profundidade e ordenação rigorosas do especialista, não foi tarefa
simples, e, na prática, somente possível em uma dissertação de mestrado porque se
respeitou algumas opções teóricas que se tornaram condição de possibilidade para a
própria realização do trabalho. A primeira opção foi não privilegiar os fragmentos
9
principalmente nas CE (2, 3, 4), ABM (§ 61, § 264).
10
principalmente NT (Prefácio 6, 15; ta 2, 5; e nas seções 2,3,4,5), HDH (seção 4), ABM (aforismos: 11, 30,
33, 59, 188, 198, 223, 224, 240, 246, 255, 256, 260, 287, 291), CI (prólogo, 4, § 33, § 36), mas também ao
longo de toda a sua obra.
11
principalmente AC, mas também HDH (seção 3), ABM (seção 3, §198, § 202, § 205-206, § 222, § 256),
EH (P 4, II 1, IV 1).
12
CE (1,3,4), NT(seções 8, 18, 20, 21, 22, ABM (§ 61, § 257, § 262).
13
principalmente GC (§ 99), mas também NT (ta 1, 2, 4 e as seções 14 a 18), ABM (Pr, § 6, § 21, § 127,
§ 191, § 198, § 201, § 204-205, § 232, § 237, § 293), CI (§ 26), EH (E 1, GC, Z 2, BM 2, W 1,2).
14
principalmente GM (III dissertação), HDH (§ 25, § 283 e a seção 2), GC (§ 352) ABM (aforismos: 4-6, 9,
19, 23, 25, 26, 32, 34, 39, 46-47, 55-56, 186-203, 257, 291), EH (P3, I 6, II 9, NT 2, H 6, etc).
15
ANSELL-PEARSON, 1997, p. 19.
16
Idem.
17
NIETZSCHE, CI, 2000, § 26.
6
póstumos, mas a obra publicada, com exceção daqueles fragmentos compilados pelo
próprio Nietzsche, antes do colapso mental, sob o título de A grande política, uma futura
pretensa publicação após Ecce Homo, com a qual se ocupa uma parte do último capítulo
deste trabalho. É claro que isto não significa que, eventualmente, quando corroborem para
a mesma interpretação já presente na obra publicada, os fragmentos póstumos não possam
ser também utilizados.
A segunda opção teórica adotada em nossa metodologia foi organizar os
fragmentos políticos a partir do viés de relações que cada um propunha, isto é, estar
associado a: (a) à crítica às instituições políticas e aos valores da modernidade; (b) à crítica
à cultura e à educação; (c) à imbricação com a arte, através da valorização da ação e
estetização desta; (d) à valorização de uma micropolítica, a partir do cultivo de uma
espécie nobre de homens e da desvalorização daquilo que a ciência política moderna
denomina por macropolítica (que Nietzsche chamaria de pequena política, a política
representativa, da politicagem nos estados nacionais). Esta espécie de homens que precisa
ser cultivada através de uma cultura e educação saudáveis, em nada se assemelha com a
nobreza decadente da época de Nietzsche, tampouco com alguma raça superior, mas são,
ao contrário, denominados por ele como os espíritos livres, os filósofos do futuro, os
legisladores de si, transbordantes em força e antagonismos, o übermensch de Zaratustra.
A opção interpretativa que se faz aqui, a partir das palavras de Ansell-Pearson, é
a de afirmar Nietzsche como:
“um pensador preocupado com o destino da política no mundo
moderno, basta passar os olhos em suas abrangentes
preocupações – desde as primeiras reflexões sobre o agon
grego, até a tentativa de escrever uma genealogia da moral e o
diagnóstico do niilismo para caracterizar o mal-estar e a
doença morais dos seres-humanos modernos — para se
7
compreender que Nietzsche é primeira e primordialmente um
pensador ‘político’.”
18
Afirmar Nietzsche como um pensador político se faz ainda mais relevante quando é
premente a necessidade de se optar na atualidade por modelos de desenvolvimento
alternativos aos vigentes, onde a máxima da acumulação monetarista, sob a qual vivemos,
se vê estrangulada pelo desemprego, pela degradação ambiental, pela desvalorização da
educação e da cultura.
Podemos observar que a lógica de mercado e os objetivos financeiros se tornam
predominantes na definição de agendas, extrapolando o âmbito da produção industrial. Isto
transcorre na atualidade, mas como um movimento que já vem ganhando vulto nos últimos
séculos de produção capitalista, que teve sua intensificação com o advento que
denominamos por globalização
19
. Os termos indústria cultural, largamente explorado pelos
autores da Escola de Frankfurt
20
, ou modernização ecológica, mais recentemente utilizado
pela sociologia de Ülrich Beck e Anthony Giddens, referindo-se aos descaminhos da
indústria em seus irreversíveis impactos culturais e ambientais, evidenciam que a lógica
mercantil-industrial tem sido freqüentemente apropriada para outras esferas da vida —
como a cultura, os recursos naturais, a educação, as relações inter-pessoais, citando apenas
alguns outros aspectos da vida humana que também encontram-se submetidos à lógica
capitalista. Nessa expansão irrefreada e uniformizante, o fazer autêntico e criativo perde seu
valor e lugar nas sociedades complexas contemporâneas.
18
ANSELL-PEARSON, 1997, p. 18.
19
A este respeito ver BAUMAN, Zygmunt. Globalização, as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1999.
20
A este respeito ver ADORNO, T. Indústria Cultural e sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, ou
ADORNO e HORKHEIMER,.M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
8
Às escusas de qualquer romantismo que pudesse fazer o homem retornar ao elo
perdido com a natureza — da qual, por outro lado, é impossível subtrairmo-nos, posto que
somos membros dela, integrantes e dependentes —, o que essa exacerbação da lógica da
produção capitalista evidencia (leia-se: consumo, acumulação, ritmo frenético) é a
tentativa, mesmo que com outra roupagem dos idos tempos, de se padronizar formas de
vida, de vontade, de atuação. Em nome do mapeamento da diversidade de modos de
existência pelos saberes institucionalizados, a própria existência findou por reduzir-se a
fórmulas que possam ser largamente reproduzidas. Enquadrou-se a multiplicidade de seres,
de culturas (de sonhos, de anseios, de valores) em algumas poucas variações, que possam
ser facilmente forjadas em bens de consumo para este ou aquele determinado subgrupo –
divisões ficcionais de um rebanho de proporções incomensuráveis.
É importante ressaltar que estes ‘bens de consumo’, para os quais são guiados, pelos
meios de comunicação em massa, cada um dos indivíduos isolados das culturas capitalistas
contemporâneas, não se restringem aos bens materiais. É também isso o que a exacerbação
da lógica monetarista vem mostrar: as relações interpessoais, o conhecimento, o cuidado-
de-si, isto é, também os bens imateriais estão sob o jugo e o crivo dessa lógica. Lógica que
não prioriza a vida e a potência, como tanto valorizou Nietzsche, mas a banaliza colocando
a manutenção das forças vitais, o corpo, a saúde fisiológica — condições de possibilidade
de toda existência — fora das principais prioridades.
A aceitação passiva desse estranho modelo de associação social e econômica, o
capitalismo, modo de produção cuja prioridade não é a sobrevivência em fartura e
abundância para aqueles que fazem parte de sua estrutura, deveu-se em muito à
legitimação transcendente que a Reforma Protestante realizou das transformações
9
capitalistas que outrora se delinearam na História, não tão distantes no tempo e no espaço.
Esta legitimação valorizou o ascetismo, a abnegação de si e o trabalho como os pilares da
vida virtuosa, impetrando-se assim no homem o fado do sacrifício e da mortificação do
corpo e da mente, na mais-valia aniquiladora da potência de agir, sob a máscara da
dignificação do homem no jugo do trabalho, tal como aparece na crítica de Nietzsche:
a asfixiante pressa com que trabalham — o vício peculiar do
Novo Mundo — já contamina a velha Europa, tornando-a
selvagem e sobre ela espalhando uma singular ausência de
espírito. As pessoas já se envergonham do descanso; a reflexão
demorada quase produz remorso. Pensam com o relógio na
mão, enquanto almoçam, tendo os olhos voltados para os
boletins da bolsa — vivem como alguém que a todo instante
poderia ‘perder algo’.”
21
Dentro desse hobbesianismo social de todos contra todos em que nos colocou,
acirradamente, o específico modo de produção capitalista e seus princípios de trabalho,
usura e pilhagem, interessa-nos especificamente assinalar a perda do sentido do político. O
político aqui entendido como o modo peculiar de ser do homem. Frágil em sua primeva
existência, necessitando da cultura como instância propriamente humanizadora, que o
complemente, disseminando valores e aprendendo por imitação até mesmo a forma como
lidar com suas funções vitais (aonde e como dormir, andar, defecar, se alimentar), a espécie
humana realmente não está propensa a uma vida fora da comunidade
22
.
Se a estrutura capitalista, com os estados nacionais, poderia ter ampliado esse
sentido da inter-relação e interdependência humana, à natureza e aos de sua espécie, isto
não foi o que historicamente ocorreu. Afinal, se necessitamos do outro por vivermos sob o
jugo do divórcio entre o trabalho intelectual e o braçal
23
(aquele que não sabe construir sua
21
NIETZSCHE, GC, 2001, § 329.
22
A este respeito ver BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992,
ou GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Zahar, 1976.
23
A este respeito ver MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
10
própria casa, depende de alguém que o faça, assim como alguém que cultive a comida da
qual se serve diariamente), ao contrário, a hierarquização dos saberes (oral x escrito, teórico
x empírico
24
) e a desigualdade social, referendada no processo de acumulação, atomizam o
homem em partículas isoladas, criando o individualismo como a lógica predominante.
Profundamente crítico, Nietzsche se pergunta em Crepúsculo dos ídolos:
“(...) e nós, nós modernos, com nossos cuidados amedrontados
em torno de nós mesmos e com nosso amor ao próximo, com
nossas virtudes do trabalho, da ausência de requisições, da
probidade, da cientificidade — compiladores, econômicos,
maquinais — enquanto uma época fraca... Nossas virtudes são
condicionadas, são requeridas por nossas fraquezas... A
‘igualdade’, uma certa assemelhação factual que só ganha
expressão no interior da teoria dos ‘direitos iguais’, pertence
essencialmente à decadência”
25
Faceta complementar desta suposta igualdade social (se somos todos iguais, ninguém tem em si
efetivo valor), o desdobramento deste individualismo sectário, no âmbito do político, pode ser observado
claramente em efeitos como a xenofobia, o isolamento social, a baixíssima participação dos indivíduos nas
escolhas da democracia representativa, encobertas pelos valores iluministas de liberdade, igualdade,
fraternidade. Aliás, deve-se assinalar a redução do sentido do político a essa pseudo-democracia
representativa, fria e distante, aonde poucos interessados delegam a um número bastante reduzido o poder de
decisão que vai, desde a ingerência de questões internas aos países, até aquelas externas (guerras entre povos
em territórios distantes, intervenções em outros Estados nacionais, fracos e esfacelados, acordos
internacionais unilaterais que são passiva e obscuramente assinados, etc).
Com o devido agravante, é
necessário lembrar: sempre sob a
manipulação e dependência das grandes corporações financeiras que, em última instância, ao patrocinarem
campanhas eleitorais midiáticas de cifras bilionárias, escolhem os representantes legislativos e executivos do
povo.
24
A este respeito ver BENJAMIM, Walter. “O narrador”, In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1986, ou BARBERO, Jesus Martín. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.
25
NIETZSCHE, CI, 2000, p.93.
11
E a grande maioria se abstém. Se abstém porque está anestesiada pela padronização
dos sonhos, das formas de vida e de trabalho – ditadas pelos veículos de comunicação em
massa, pelas doutrinas religiosas massificadas, pelas bolsas de valores, pelos centros norte-
ocidentais de concentração de poderes bélicos e macropolíticos. Muitos se abstém por total
descrédito em um conjunto de instituições representadas pelo Estado em seus três poderes:
Nossas instituições não prestam mais para nada: quanto a isto
se é unânime. Isto não reside, contudo, nelas mesmas, mas em
nós. Depois de todos os instintos, a partir dos quais as
instituições crescem, desaparecem de nosso horizonte as
instituições em geral, porque não valemos mais nada para
elas.”
26
Não se acredita mais nem no poder repressor dessas instituições, nem em sua capacidade
de garantir paz e estabilidade àqueles que sob elas vivem. Porém, os indivíduos que
compõe esse jogo, ainda que seja perdendo por omissão, sequer se percebem como
membros importantes deste cenário, posto que, em sua relação paradoxal, o Estado só
existe porque nele há algo mais do que hóspedes, apesar de assim funcionarem os Estados
Nacionais, principalmente nos países periféricos, como hotéis, que tratam o próprio grupo
cultural que os legitima, o povo, como meros hóspedes
27
.
Nesse contexto acima descrito podemos entender o hóspede como o antípoda do
cidadão — tal como a Grécia antiga forjou este conceito, tão caro à esfera da política. O
conceito de cidadão, tal como cunhado pela praxis política grega cotidiana, no embate, no
agon entre diferentes visões de mundo, que se dava na ágora da pólis — vê-se distante no
tempo. Na atualidade o que mais comumente vemos é a luta individual apenas pela
subsistência, onde a relação com o tecido político-social se dá no distanciamento, como
hóspedes em seus hotéis. Enxergamos em Nietzsche, porém, justamente o oposto a esse
26
NIETZSCHE, CI, 2000, p. 96.
27
A este respeito ver CANCLINI, N. Culturas híbridas. São Paulo: EDUSP, 1997.
12
movimento teleológico que parece seguir a História: a valorização da ação singular, do
indivíduo criativo no interior do grupo cultural — daquele que é transvalorador dos valores
anímicos da modernidade, que busca a aproximação dos valores esquecidos da arte, do
jogo, do agon, não se escusando de sua inserção ativa no tecido sócio-cultural.
Em síntese, a presente dissertação explorará a crítica de Nietzsche ao modelo moral
que foi, ao longo da tradição filosófica, apropriado e ampliado para as esferas da ética e da
política, bem como sua crítica específica aos Estados nacionais e à relação que se instaura,
nesse campo convergente, entre o Estado e a cultura – em especial a preponderância desta
última, enquanto legítima representante dos grupos humanos, em detrimento dos estados
nacionais e seus interesses financeiros. Pesquisaremos também a aproximação, na obra do
filósofo em questão, das esferas da ação (ética) e da política aos valores artísticos e
imanentes – o que nos indica uma ênfase na arte como expressão do próprio modo de ser
do homem em sua existência. A partir deste viés, esmiuçaremos a valorização, na obra de
Nietzsche, dos paradigmas imanentes de jogo, embate, disputa, agon, conflito (entendidos
aqui como semelhantes), que pressupõe a valorização da diferença, da multiplicidade.
Em nossa análise Nietzsche traça o esboço de uma estetização da existência,
conceito que será melhor desenvolvido posteriormente por Foucault, enquanto assumido
leitor de Nietzsche, e que será abordado na primeira parte deste trabalho. Esta estetização
da existência passa pelo percurso da valorização que o filósofo faz, como dito acima, da
criatividade, da singularidade, da vida baseada em valores artísticos de construção e
desconstrução. Nessa aproximação que fazemos entre arte e estetização, existência e
política, observamos que a proposta política que Nietzsche lança em seus escritos se
aproxima do que denominamos hoje por micropolítica. Esta entendida como a participação
política ativa de cada membro da coletividade que não se abstém dos seus direitos políticos
13
práticos, em nome de um mero voto legitimando a delegação destes direitos a outrem, de
anos em anos. Esta atuação micropolítica, que se dá na efetividade da ação individual,
porém ocorrendo somente ao se enxergar a existência para além deste horizonte meramente
pessoal, não se insere nos meandros da politicagem moderna, dos estados nacionais, das
disputas por favorecimentos, geralmente ilícitos, da política representativa partidária, que
sempre legará a outrem a atividade inerente à potência de agir de cada um.
Ao contrário, a capacidade para a realização desta ação micropolítica só pode ser
adquirida, aprendida ou transmitida através dos valores e mecanismos que permeiam o
universo artístico, posto que, segundo Ansell-Pearson, Nietzsche valorizou a arte como:
“O meio mais importante para o descobrimento da ‘verdade’
do ser humano, segundo Nietzsche, não a política, mas a arte.
Acreditava que é através da apreciação da arte trágica que o
indivíduo pode atingir um ponto de vista além de sua estrita
existência pessoal.”
28
Para Nietzsche, então, a própria experiência política, inerente à vida de todos os homens,
estaria imbricada na arte, pois somente através da arte pode o ser humano aprender a
perceber a sua experiência pessoal como parte de um todo, de um tecido social, para além
do individualismo da contemporaneidade, o que está bastante distante de significar uma
massificação do homem em animal de rebanho.
Ao valorizar que se vivencie e se estruture a ação política a partir dos valores e do
modus operandi da arte, da atuação artística e performática, que, embora coletiva, em
última instância, nasce sempre da congregação de ações individuais, o que Nietzsche
realizou foi a valorização do aspecto micropolítico da política. E isto o filósofo realizou
enaltecendo a ação singular, original, criativa como a única capaz de romper com os
projetos normatizantes que imperaram ao longo da história da cultura ocidental, que
28
ANSELL-PEARSON, 1997, p.20.
14
favoreceram apenas o surgimento e fortalecimento do animal de rebanho, i. é., o
assujeitamento e a apatia política.
Nos três capítulos que abrangem o todo deste trabalho dissertativo,
seguiremos a seguinte trajetória: (1) No primeiro capítulo abordaremos a temática da
estetização da existência em Nietzsche, ou seja, como Nietzsche foi precursor deste encarar
a vida como obra de arte, através da valorização da arte e do paradigma do artista, da
verificação da estetização da política, e da imbricação entre estas duas esferas de atuação
do homem através da ênfase na agonística. (2) No capítulo segundo falaremos da política
na primeira fase do pensamento de Nietzsche onde o filósofo aborda política educacional,
critica o conceito de Estado, ainda que de forma rudimentar, e sua origem na Grécia antiga,
e, ao final, analisaremos aspectos políticos do seu primeiro livro publicado: O nascimento
da tragédia; (3) No terceiro e último capítulo investigaremos o aspecto político na segunda
e terceira fases da produção intelectual de Nietzsche, enfatizando os seus livros menos
sistemáticos, compilando fragmentos dispersos em diferentes aforismos de distintas obras.
Nesta parte final abordaremos a crítica à modernidade política, bem como construiremos
uma interpretação micropolítica que culmina nesta fase de seu pensamento e é elaborada a
partir dos modelos que o filósofo lançou de atuação singular, de modos de vida capazes de
romper com as massificações, como o conceito de espíritos livres, usado por ele desde
Humano, demasiado humano.
15
Capítulo I
Por uma estetização da existência em Nietzsche
“Coloque-se agora ao lado desse homem abstrato, guiado sem mitos,
a educação abstrata, os costumes abstratos, o direito abstrato,
o Estado abstrato; represente-se o vaguear desregrado,
não refreado por nenhum mito nativo, da fantasia artística;
imagine-se uma cultura que não possua nenhuma sede originária,
fixa e sagrada, senão que esteja condenada
a esgotar todas as possibilidades
e a nutrir-se pobremente de todas as culturas”
29
Nietzsche, através de sua obra, fez um convite a cada homem, de modo singular,
para significar sua existência a partir do tornar-se o que se é, enquanto produto de forças
externas e internas que agem conflitantemente, tal como vontades de potência em plena
expansão de seu quantum de força, posto que, segundo as palavras de Müller-Lauter, toda
29
NIETZSCHE, NT, 1992, p. 135.
16
unidade é sempre apenas organização, sob a ascendência, a curto prazo, de vontades de
poder dominantes
30
. Logo, Nietzsche não estava assim abnegando uma preocupação
com a existência da comunidade, do grupo cultural, mas, ao contrário, para ele também a
unidade sócio-cultural, também um povo é uma unidade ficcional, forjada como uma rede
de múltiplas partes singulares que são seus membros, afinal, “toda unidade só é unidade
como organização e concerto, não diferente de como uma comunidade humana é
unidade.”
31
O que Nietzsche pretendia com esta valorização da singularidade, em oposição aos
animais de rebanho, tão criticados por ele, era algo que se aproximava do paradigma do
artista, dos valores artísticos fundados na imanência, valores estéticos, que partem do
corpo e da saúde fisiológica, valores que contribuem para o fortalecimento da vida, da
existência, posto que “a existência do mundo só se justifica como fenômeno estético”
32
.
Nietzsche desde O nascimento da tragédia já pressupunha sempre a arte e a cultura,
profundamente imbricadas para ele (vide a relação íntima que ressaltava entre as tragédias
gregas e o trágico inerente ao pathos do povo grego antigo), como as esferas próprias para
o fomento e cultivo da nova espécie homem, supranacional e nômade
33
. E justamente por
isso, segundo Ansell-Pearson:
Nietzsche nos conclama a lutar pelo renascimento de uma
cultura trágica, a única apta à criação de um espaço (uma
polis) para o descobrimento de um ser humano em toda a sua
diversificada natureza”
34
30
MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 75.
31
NIETZSCHE. Fragmento póstumo de VP, p. 561; KGW VIII, 1, 102, Apud: MÜLLER-LAUTER, 1997, p.
75.
32
NIETZSCHE, NT, 1992, p.18.
33
NIETZSCHE, GP, 2002.
34
ANSELL-PEARSON, 1997, p.20.
17
O que Nietzsche definitivamente não pretendia com isto era uma sublimação do
sujeito enquanto eu autônomo, dotado da superestimada faculdade da vontade — enquanto
algo consciente e racional, calculado. Ao contrário, havia a percepção de que, o indivíduo é
sempre parte do todo e, se por um lado está submetido ao princípio de individuação — que
deve ser fortalecido em sua autenticidade — não pode jamais perder a integração no teatro
da totalidade. Adotava-se assim uma perspectiva extremamente ética: incluindo a si e ao
outro, seguindo não normas a priori, mas caminhando de forma imanente para a economia
da totalidade, tal qual as palavras de Nietzsche:
Qual pode ser nossa única doutrina? – Que ninguém dá ao
homem suas propriedades; nem Deus, nem a sociedade, nem
seus pais e ancestrais, nem ele mesmo (....). Ninguém é
responsável em geral por ele existir, por ele ser constituído de
tal ou tal modo, por ele se encontrar sob estas circunstâncias,
nesta ambiência. A fatalidade de sua existência não pode ser
separada da fatalidade de tudo o que foi e de tudo o que será.
O homem não é a conseqüência de uma intenção própria, de
uma vontade, de uma finalidade. Com ele não é feita a tentativa
de alcançar um ‘ideal de felicidade’ ou um ‘ideal de
moralidade’. – É absurdo querer fazer rolar sua existência em
direção a uma finalidade qualquer. Nós inventamos o conceito
de ‘finalidade’: na realidade falta a finalidade... É-se
necessariamente: se é um pedaço de fatalidade, se pertence ao
todo, se es no topo. Não há nada que pudesse julgar, medir,
comparar, condenar o todo... Mas não há nada fora do todo!
35
Faz-se necessário separar cuidadosamente a concepção que Nietzsche tem do grupo
social, daquela onde este é entendido como massa, ou como preferia Nietzsche, rebanho.
As massas, ou os animais de rebanho, para Nietzsche, têm suas singularidades anuladas,
deixando apenas que suas vidas sigam o curso da maioria, sem refletir acerca disso, nem
sequer perceber a sua ocorrência, na imensa maioria das vezes. Esta atitude de passividade
35
NIETZSCHE, CI, 2000, p.49-50.
18
era a mais condenada por Nietzsche, quando afirma, por exemplo, que À glória da
passividade contraponho agora a glória da atividade
(...)”
36
. Ainda que não haja na
efetividade da imanência uma finalidade ou teleologia possível que garanta o podium e
guie o rebanho, tal qual os pastores fizeram outrora, isso não pode servir como justificativa
para a apatia ou a lassidão:
“A mais elevada norma: é preciso que não se ‘deixe as coisas
rolarem’ mesmo em relação a si mesmo. — as boas coisas são
dispendiosas para além das medidas: e sempre vale a lei de que
quem a possui é diverso de quem a conquista.”
37
Se nenhuma vida foi traçada previamente e está pronta, justamente o principal é não deixar
de vivê-la a cada instante, em um sempre renovado processo de conquista e reconquista, de
construção e desconstrução, de incessantes reconfigurações, sempre instáveis, mas nem por
isso menos belas ou afirmadoras.
Esta proposta que surge com o nome de metafísica de artista (mas que poderia
designar-se, mais rigorosamente, por uma ontologia artística ou estetização da existência)
Nietzsche a expôs desde O Nascimento da tragédia, ao inserir todas as esferas do homem
na perspectiva da arte e na estetização de sua atuação. E possui como substrato o caráter da
pluralidade e do conflito, que parece mostrar-se efetivamente insuperável para ele — uma
vez que é constitutivo da existência mesma, do mundo, de sua própria ontologia: “O outro
movimento: meu movimento é, ao contrário, o aguçamento de todos os antagonismos e
abismos, eliminação de igualdade (...)”
38
.
36
NIETZSCHE, NT, 1992, p.65.
37
NIETZSCHE, CI, 2000, p.105.
38
NIETZSCHE, GP, 2002, p.26.
19
O conceito de metafísica de artista Nietzsche elabora em seu primeiro livro quando
parece propor pela primeira vez que o homem encare e trate a vida como uma obra de arte,
ou seja, agindo nos moldes inspiradores do artista. O filósofo cria este conceito sobre
alguns pilares: a valorização do aspecto estético da existência — dos sentidos, dos
impulsos, da beleza; e pelo fato de reconhecer que a arte traz consigo a sabedoria trágica
da existência: sua injustiça primordial, seu movimento circular, não-teleológico, que
deságuam na necessidade de fomentar o amor fati — funcionando como a arte que
constrói, destrói e reconstrói e por isso ama o acaso, o ensaio, o tropeço:
“esse homem [que] entende da improvisação da vida e
assombra até o mais fino observador: pois ele parece não
cometer nenhum deslize, ainda que jogue sempre da maneira
mais arriscada. Lembra-nos esses mestres improvisadores da
música, aos quais o ouvinte atribui também uma divina
infalibilidade das mãos, apesar de eles errarem aqui ou ali,
como todo mortal. Mas são treinados e criativos, e a todo
instante prontos para imediatamente encaixar na ordem
temática aquele som casual a que foram impelidos pelo
caprichosos lance de um dedo, insuflando no acaso um belo
sentido e uma alma. — Eis um homem completamente diverso:
no fundo, tudo o que ele pretende e planeja dá errado. (....)
Pensam vocês que ele é infeliz por isso? Há muito ele resolveu
não levar os próprios desejos e planos muito a sério. ‘Se eu não
for muito bem-sucedido nisto’, diz ele consigo, ‘talvez seja
naquilo; e, tudo somado, não sei se devo mais gratidão a meus
fracassos ou a meus sucessos”
39
Este homem paradigmático nos parece ser o artista, e agir como artista é entender
esse modus operandi da vida, da existência, pois somente através da arte, com os seus
óculos de beleza e aparência, é possível enxergar este doloroso saber trágico, justamente
porque é através do simulacro que se filtram os horrores metafísicos, mostrando apenas a
porção que o ser humano é capaz de suportar. Posteriormente Nietzsche rompe com as
preocupações metafísicas, encaminhando-se para tornar-se o filósofo de valorização da
39
NIETZSCHE, GC, 2001, § 303.
20
imanência, arauto da morte de Deus, ratificando o afastamento entre a esfera dos deuses e a
dos homens, que encontram-se apartados. Mas Nietzsche, ao longo de sua obra, não
abandona a temática descrita acima, ou seja, o objetivo de tratar a vida como obra de arte e
este continua a ser, para a sua filosofia, um pensamento que ele aprofundará ao longo de
sua produção intelectual. Um exemplo disso é o tema arte e dos artistas estar sempre
presentes em seus livros de todas as fases de seu pensamento, tais como O Nascimento da
tragédia, Humano, demasiado humano, Aurora, A gaia ciência, Assim falou Zaratustra,
Além do bem e do mal, Crepúsculo dos ídolos, dedicando aforismos e muitas vezes seções
inteiras a evidenciar o aprendizado originário e importante que os artistas podem nos
fornecer.
Nietzsche abandona o termo metafísica, e posteriormente irá criticá-lo de forma
feroz, pois o uso dessa palavra, para ele, sugere uma crença em além-mundos, em um
princípio essencial primevo, um fundamentos últimos exteriores ao homem, expondo assim
o absurdo de toda metafísica como derivação do condicionado a partir do
incondicionado
40
. Desse modo Nietzsche parece propor algo mais próximo a uma
ontologia artística — ou apropriando-nos da terminologia de Foucault, uma estetização da
existência. Esse termo propõe que o homem enxergue a sua vida enquanto obra de arte, e
cuide de si com toda acuidade: valorizando o que lhe é próprio — a si mesmo, a vida, os
limites da finitude, o outro e também esse mundo da imanência. Sendo assim “o homem
não é mais artista, tornou-se obra de arte.”
41
40
NIETZSCHE, Fragmento póstumo de VP, p. 574; KGW VII, 1, 352, In: MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 71
(nota 34).
41
NIETZSCHE, NT, 1992, p.31.
21
Nietzsche ao enfatizar a arte e realizar essas reflexões que aproximam o artístico,
do estético, do político e do ético pode parecer estar operacionalizando uma fusão amorfa
de esferas díspares. Porém, torna-se mais evidente nos dias de hoje a necessidade de uma
visão mais geral e menos fragmentária, entremeando esferas, disciplinas, termos,
conceitos, i. e., pólos antagônicos que outrora pareciam impossíveis de coexistir devido à
sua contraposição: razão e sensibilidade, aparência e essência, apolíneo e dionisíaco, algo
que Nietzsche fez com maestria desde os seus primeiros escritos, valorizando justamente a
manutenção das diferenças inerentes ao conflito, que é constituinte da própria vida.
De fato: onde a planta homem mostra-se forte, encontramos
os instintos que impel
em vigorosamente um contra o outro,
porém contidos (p. ex. Shakespeare).”
42
É justamente esse embate de forças, esse agon, esse conflito, que não podem ser
negligenciados como inerentes à esfera política e social, esfera esta própria da finitude.
Tampouco o caráter guerreiro do homem imanente por excelência, que afirma a vida para
além da moralidade maniqueísta, para além dos conjuntos de regras supressores de toda a
diversidade, que pretendem normatizar, classificar e controlar o homem. Faz-se necessário,
assim, a esse homem, tornar-se ator, singularidade atuante, na medida em que a vida
éefetivamente atuação e embate. Esse homem ético proposto por Nietzsche, o homem para
além de bem e mal, surge como importante alternativa ao império poderoso dos valores
individualistas da atualidade, bem como das grandes soluções coletivas que sempre foram
aglutinadas e digeridas, tais como as doutrinas da democracia, do liberalismo, da igualdade
de direitos:
42
NIETZSCHE, GP, 2002, p.26.
22
Agora ele [o homem] tem que se entreter dia após dia com
tais mentiras transparentes, que todo bom observador
reconhece na pretensa ‘igualdade para todos’ e nos chamados
‘direitos do homem’, do homem como tal, ou na dignidade do
trabalho
.”
43
O homem que conseguiu subtrair-se da esfera velada do assujeitamento, limitador
da existência em sua força e potência, é aquele que busca uma atitude ética antes de tudo
para consigo mesmo, sem idealizar a vida na tentativa de suprimir o conflito e a diferença.
E essa atitude ética para consigo gera, na espontaneidade inerente à ação, a atitude ética
também para com o outro e com o todo, corroborando para a economia do todo, criando
um campo de eticidade, propiciado pela experiência artística e estética:
Neste estado, tudo se enriquece a partir de sua própria
plenitude: o que se vê, o que se quer, se vê dilatado, cerrado,
forte, sobrecarregado com a força. O homem que se encontra
nesse estado transforma as coisas até elas refletirem sua
potência: até elas serem o reflexo de sua perfeição. Este
precisar-transformar em algo perfeito é – arte. Tudo mesmo o
que ele não é, vem-a-ser apesar disto para ele - prazer em si;
na arte, o homem goza de si mesmo enquanto perfeição.”
44
Ao contrário, “uma sociedade estabelecida sobre os valores morais absolutos do bem e do
mal é incapaz de compreender a ‘economia geral do todo’.
45
, logo, faz-se indispensável a
disseminação dos valores artísticos para que o princípio de união entre os homens não seja
a supressão das diferenças em nome de uma massa uniforme e apática. Mas sim a ação
conjunta a partir de jogos de força que buscam incessantemente a expansão de suas
vontades de poder, posto que o próprio “mundo de que fala Nietzsche revela-se como jogo
contra-jogo de forças ou de vontades de poder”
46
. E sempre partindo do pressuposto de
43
NIETZSCHE, F. “O estado grego”. In: Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Rio de Janeiro:
Sette Letras, 1996, p.45.
44
NIETZSCHE, CI, 2000, p.71.
45
ANSELL-PEARSON, 1997, p. 20.
46
MÜLLER-LAUTER, 1997, p.75.
23
que esse jogo se estabelece sobre a tragicidade inevitável da existência humana, baseada na
injustiça primordial, de regras ilógicas e caóticas, que sempre se reconfiguram.
Este novo paradigma imanente (posto que é só no instante que se delineia de modo
estratégico e ficcional, nunca na permanência e fixidez, para logo depois se reorganizar)
que transforma a relação do homem consigo mesmo e para com o diferente, o outro, faz
com que o homem não se constitua mais como rebanho massificado de unidades em
profundo assujeitamento. Adquire, isso sim, uma forma parecida com uma união conjugal
de singularidades díspares, em contínuo e recíproco joga de forças, congeminando para o
fim comum de potencialização da vida — em última instância a economia do todo, que é o
que vai identificá-los e uni-los. Não os mesmo valores ou desejos, mas uma forma de
construir suas vidas apropriando-se de todas as experiências, abdicando dos modelos
prontos a ser copiados, privilegiando os valores estéticos de construção e desconstrução,
como vigorosa opção aos valores teleológicos.
O que justifica o homem é a sua realidade: ela o justificará
eternamente. O quão mais valoroso é o homem real,
comparado com qualquer homem meramente desejado,
sonhado, inventado de modo mendaz? Com qualquer homem
ideal?...”
47
De acordo com os objetivos acima descritos a alcançar, pretendemos nesta primeira
parte do trabalho evidenciar, em primeiro lugar, que Nietzsche realiza essa aproximação
entre a arte e a política desde o início da sua filosofia, já em o NT e em seus escritos sobre
os gregos antigos, até os estertores de seu pensamento, nos últimos fragmentos póstumos de
final de 1888. Em segundo lugar mostrar que esta aproximação das esferas da arte e da
política ocorre através da valorização do jogo, do agon, do embate, do conflito —
47
NIETZSCHE, CI, 2000, p. 86.
24
características inerentes às artes de performance, como a dança, o teatro e a música, tão
valorizadas por Nietzsche. E, por fim, queremos demonstrar como, desta forma, seguindo
esse caminho da aproximação entre arte e política, Nietzsche alcança aquilo que
denominamos por uma estetização da política, através da estetização da própria existência
singular que, em última instância, é aquela que contracena e atua na esfera pública da
cultura e da sociedade.
25
I.1 A estetização da política na obra de Nietzsche
O objetivo deste capítulo que se inicia é delinear a aproximação entre as esferas da
arte e da política no pensamento de Nietzsche. Em seu primeiro livro, NT, Nietzsche já
enfatiza o alto valor que atribui à arte, considerando-a a atividade mais nobre que o ser
humano pode exercer, posto que é constitutiva da existência, da própria da vida, em última
instância, de uma ontologia:
A esses homens sérios sirva-lhes de lição o fato de eu
estar convencido de que a arte é a tarefa suprema e a
atividade propriamente metafísica desta vida (...)
48
.
No livro em questão o objetivo explícito do autor era propor uma política cultural
que revigorasse a cultura alemã, tendo como companheiro de empreitada Wagner e sua
arte. De acordo com as críticas que faziam, a cultura alemã padecia por excesso de
objetividade, por valorizar demasiado o aspecto racional, teórico e científico, em
detrimento dos instintos, das pulsões, do corpo, dos sentidos; por desvalorizar os
simulacros em nome da busca pela verdade. Nietzsche adotou como modelo a cultura
grega antiga, pré-socrática, trágica e propôs aos alemães de sua época aprender com ela
como harmonizar diferentes aspectos da vida, aos moldes do que ocorria nas tragédias
gregas, onde as expressões artísticas complementares representadas por Apolo e Dioniso,
aprendiam a coexistir. Ao contrário, os gregos antigos, trágicos por natureza, haviam
criado a cultura helênica, de base apolínea, justamente porque era aquilo que lhes faltava,
era o que necessitavam — quando abundavam em força dionisíaca e já haviam introjetado
48
NIETZSCHE, NT, 1992, p.26.
26
a necessidade de conviver com esta tragicidade constitutiva da própria existência. Para
estes antigos a embriaguez era o seu próprio, era o pathos do grego trágico e embebidos
nele se relacionavam com a própria existência — por isso eram tão intensos, guerreiros e
corajosos.
Este afeto da embriaguez era, segundo Nietzsche, inerente aos princípios “apolíneo
e dionisíaco, ambos concebidos enquanto modos da embriaguez — A embriaguez apolínea
mantém antes de tudo o olhar excitado, de forma que ele recebe a força da visão”
49
. Este
tipo de estado de embriaguez, ou uma parcela deste estado, seria próprio à individuação,
i.e., próprio ao princípio apolíneo, sem o qual não há como existir o herói, o indivíduo
guerreiro que constrói, em um diálogo com a imanência, a sua própria existência (tais quais
os heróis trágicos representados pelas tragédias), e que por isso eram tão valorizados por
Nietzsche, de acordo com suas palavras:
A embriaguez que nasce como conseqüência de todo grande
empenho do desejo, de toda e qualquer afecção forte; a
embriaguez da festa, do combate, dos atos de bravura, da
vitória, de todo e qualquer movimento extremo; a embriaguez
da crueldade; a embriaguez na destruição, a embriaguez sob
certas circunstâncias meteorológicas, por exemplo a
embriaguez primaveril; ou sob a influência dos narcóticos; por
fim a embriaguez da vontade, a embriaguez de uma vontade
acumulada e dilatada. – O essencial na embriaguez é o
sentimento de elevação da força e de plenitude. A partir deste
sentimento nos entregamos às coisas, as obrigamos a nos
tomar, as violentamos.”
50
Fica claro, então, a partir desta passagem, o quanto Nietzsche valoriza a embriaguez,
enaltece esse princípio, e a força dele advinda para o homem, para o guerreiro, para aquele
que efetivamente é ator da sua existência. Este princípio de embriaguez, que em um
49
NIETZSCHE, CI, 2000, p. 71.
50
Idem.
27
primeiro momento parece associar-se apenas ao princípio dionisíaco do esquecimento, de
crueldade e da força visceral, bruta e aniquiladora
51
, vemos em uma observação mais
minuciosa, tal como a citação anterior (nota 48), que o próprio princípio apolíneo da
individuação e da medida, também comporta em si muito da embriaguez, posto que a
embriaguez é algo indispensável para a conquista do guerreiro, assim literalmente nas
palavras de Nietzsche.
Justamente esse princípio da embriaguez, que é condição de possibilidade da
própria existência guerreira, Nietzsche associa à arte (no mesmo livro que contém as
citações anteriores, Crepúsculo dos ídolos):
“Para que haja a arte, para que haja uma ação e uma
visualização estéticas é incontornável uma precondição
fisiológica: a embriaguez. A embriaguez precisa ter elevado
primeiramente a excitabilidade de toda a máquina: se não, não
se chega à arte. Todos os modos mais diversamente
condicionados de embriaguez ainda possuem a força para isso:
antes de tudo a embriaguez da excitação sexual, a mais antiga
e originária forma de embriaguez”.
52
Nietzsche associou assim a embriaguez à própria existência quando vivida de forma
potente, transbordante em força, de forma artística — que para ser exercida depende tanto
do princípio dionisíaco quanto do apolíneo: o primeiro para transbordar em criatividade, e
o segundo para transformar o jorro transbordante em obra de arte, ou em vida que é vivida
como obra de arte, ao se operar uma estetização da existência.
Diametralmente opostos aos gregos antigos estavam os europeus modernos,
principalmente os alemães, que, segundo Nietzsche, necessitavam de deleite e embriaguez
artística, de injeções de sabedoria dionisíaca, pois o que lhes era próprio era o princípio
51
Tal como pode ser observada na peça de Eurípides, intitulada As Bacantes, quando as mulheres perdem os
limites da individuação, portando-se como animais selvagens nos cortejos báquicos em homenagem ao deus
Dioniso.
52
NIETZSCHE, CI, 2000, p.71.
28
apolíneo, tinham exacerbado a sua individuação e necessitavam embriagar-se com a
experiência da totalidade, do uno-originário.
Para Nietzsche esta importante experiência artística pode ser analisada, em última
instância, como ontológica, posto que trata do ser em sua existência mundana, política, em
suas expressões artísticas externas (culturais) ou mesmo internas (comportamentais),
evidenciando suas contradições. Devido aos antagonismos inerentes à vida, a tragédia grega
antiga falava da convivência entre princípios opostos, aprendizado que este gênero teatral
cumpria magistralmente através da identificação e da imitação. É por isso que, para
Nietzsche, deveria haver o renascimento da tragédia naquele momento. E este renascimento
da tragédia se refletiria no revigoramento do povo e da cultura a ele vinculada. Este
renascimento, segundo Nietzsche, ocorreria a partir do espírito da música, arte responsável
por atingir o que há de mais profundo na sabedoria trágico-ontológica da existência,
podendo identificar neste viés a herança e a influência schopenhauerianas em seu
pensamento.
É possível até que se buscasse novos formatos estéticos para este renascimento da
arte trágica — Nietzsche não nega isso, por exemplo, ao associar este renascimento, em um
determinado momento, ao teatro operístico de Wagner. Porém nesse movimento de
revigoração da cultura e, conseqüentemente, do povo alemão, de sua política e de sua
sociedade, estava sempre presente a necessidade de se adotar paradigmas artísticos para a
vida, tratando a si mesmo como obra de arte, criando valores, construindo e desconstruindo,
sabendo que não há progresso, teleologia, permanência, tal como nos afirmam as palavras
de Ansell-Pearson:
29
A resposta de Nietzsche é que não podemos permitir-nos o
conforto de uma visão teleológica da história humana ou do
universo, que lhes desse um propósito e um objetivo finais.
Sofrimento, dor e ‘pecado’ (sacrilégio) são aspectos inextirpáveis
da existência humana”
53
E somente a arte, e mais especificamente a arte trágica que une poesia, música, drama,
poderia ensinar a nós, seres humanos, a conviver com o trágico inerente à própria
existência, com a tragicidade da injustiça primordial.
O projeto nietzscheano de valorização dos paradigmas artísticos é necessário para
que o homem dê conta do engendramento ontológico da própria existência, aprenda a
conviver com ele. Conforme vimos, denominamos este projeto estetização da existência e
agora nos preocuparemos principalmente por evidenciar a estetização da esfera da política,
através da valorização que Nietzsche faz das artes de performance. Este projeto parece se
basear na busca por uma convivência ética que possa erigir-se na imanência, tal como a
arte; pois opera em constante construção e desconstrução, assim como o fazer artístico,
tendo como paradigma o jogo da cena, do contracenar. Partindo da compreensão de que a
arte se relaciona com e está presente, de algum modo, em todas as esferas da vida.
Nietzsche entende assim a manifestação artística como o que é próprio ao homem, mas não
só a ele, como também à própria natureza e sua força vital:
(...) toda a comédia da arte não é absolutamente representada
por nossa causa, para a nossa melhoria e educação, tampouco
que somos os efetivos criadores desse mundo da arte: mas
devemos sim, por nós mesmos, aceitar que nós já somos, para o
verdadeiro criador desse mundo, imagens e projeções
artísticas, e que a nossa suprema dignidade temo-la no nosso
significado de obras de arte — pois só como fenômeno estético
podem a existência e o mundo justificar-se eternamente.”
54
Nietzsche enxerga o mundo e a existência como fenômenos estéticos, assim como o próprio ser humano, ou seja, cada indivíduo,
como obra de arte — e indo além: Nietzsche
53
ANSELL-PEARSON, 1997, p. 20.
54
NIETZSCHE, NT, 1992, p.47.
30
vê a arte como o único modo de atribuir algum significado, alguma justificação à vida.
Claro que esta justificação e significado não poderiam ser únicos ou estáticos, posto que
isso faz parte dos valores degradados da modernidade, que Nietzsche pretende superar,
adotando o modelo do artista, especialmente das artes de performance, sobre as quais
Nietzsche preferencialmente se baseia em suas reflexões, como o teatro, a dança, a música.
Um exemplo é quando o filósofo afirma, em Crepúsculo dos ídolos, que: “sem música a
vida seria um erro.”
55
Interpretamos como política a proposta que Nietzsche deixa esboçada ao longo de
sua obra ao propor uma mudança nos paradigmas de valoração da ação: não mais valores
absolutos, mas a alternativa de construção de uma ética que corrobore para a inevitável
inserção política do ser humano (algo que lhe é constitutivo) a partir de valores imanentes,
artísticos, estéticos. Nietzsche propõe uma atitude ativa de ser-no-mundo, valorizando a
esfera da finitude (própria do homem) e a transvaloração de paradigmas moralizantes, que
recrudescem as forças da existência, em paradigmas artísticos – que favorecem a
potencialização da vida. No seu entender, o caráter caótico, aberto, inacabado, múltiplo e
imprevisível, inerente à própria existência, só pode ser digerido através da experiência
estética, esfera própria do embate, do conflito, do agon, do jogo. ver a ciência com a
óptica do artista, mas a arte, com a da vida.”
56
O projeto de estetização da existência se torna efetivamente político a partir da
segunda fase da produção intelectual de Nietzsche, mais especificamente com seu livro
Humano, demasiado humano, posto que a partir deste momento ele passa a enfocar mais
55
NIETZSCHE, CI, 2000, § 33.
56
NIETZSCHE, NT, 1992, p. 15.
31
explicitamente a ação e a relação do indivíduo com o mundo de forma imanente, algo que o
filósofo já apontara em O Nascimento da tragédia:
“Aqui se faz agora necessário, com uma audaz arremetida,
saltar para dentro de uma metafísica da arte, retomando a
minha proposição anterior, de que a existência e o mundo
aparecem justificados somente como fenômeno estético: nesse
sentido precisamente o mito trágico nos deve convencer de que
mesmo o feio e o desarmônico são um jogo artístico que a
vontade, na perene plenitude de seu prazer, joga consigo
própria.”
57
É no interior deste projeto mais abrangente, que é a estetização da existência, que está
contido o projeto de estetização da política, como parte importante, concorrendo para uma
compreensão do mesmo enquanto projeto efetivamente político, de transvaloração de todos
os valores decadentes da modernidade e de superação do niilismo. Isto porque aquele:
“(...) que mirou com olhar cortante bem no meio da terrível
ação destrutiva da assim chamada história universal, assim
como da crueldade da natureza, e que corre perigo por ansiar
por uma negação budista do querer. Ele é salvo pela arte, e
através da arte salva-se nele — a vida
58
Através de sua crítica aos valores do paradigma moderno, a seu ver responsáveis
pelo niilismo estagnante, a alternativa proposta por Nietzsche de superação desses valores
fazem o homem valorar a vida não mais sob critérios científicos de verdade e erro, mas a
partir do que fortalece a própria vida. Afinal, é a arte, e não a ciência, a única capaz de
habilitar o ser humano para a tarefa suprema da existência: a criação de valores — e não a
sanha do conhecer, do dissecar, do investigar constitutivos do paradigma do homem
científico.
57
NIETZSCHE, NT, 1992, p.141.
58
Ibid, p.55.
32
Superstição sobre o filósofo, confusão com o homem
científico. Como se os valores se encontrassem nas coisas e
apenas tivéssemos que fiá-los. Em que medida eles investigam
sob valores dados (seu ódio pela aparência, pelo corpo, etc).
(....) Por fim, a confusão chega até a considerar o darwinismo
como filosofia: e agora o domínio se encontra com o homem
científico.”
59
Um dos pontos mais importantes em toda essa especulação é que, para Nietzsche, a
ampliação que estava sendo operada na modernidade (e que continua sendo até os dias de
hoje) dos valores da ciência para todas as esferas da atividade humana, não favoreceram a
potencialização da vida, mas, ao contrário, a nadificaram em um pessimismo tão radical,
ante a impossibilidade efetiva de cópia fiel do modelo perfeito, que o homem parecia ter se
tornado estéril. Como devolver ao homem, primeiramente, a sua intuição para poder
perceber com mais acuidade e enxergar-se nessa situação? Depois, a sua força para poder
resistir e combater? A sua capacidade transfiguradora para poder “transformar aqueles
pensamentos enojados sobre o horror e o absurdo da existência em representações com as
quais é possível viver.”
60
? E, por fim, a sua capacidade criadora: para nunca se cansar de
construir e reconstruir? Na visão de Nietzsche somente com uma ampliação dos valores
artísticos e de valorização da própria arte, esse objetivo seria atingido:
“Os artistas talvez tenham um faro mais sutil nesse ponto: eles
que sabem muito bem que justamente quando nada mais
realizaram de ‘arbitrário’, e sim tudo necessário, atinge o
apogeu sua sensação de liberdade, sutileza e pleno poder, de
colocar, dispor e modelar criativamente — em suma, que só
então necessidade e ‘livre-arbítrio’ se tornam unidos neles.”
61
Desaguava assim, o pensamento nietzscheano, em uma atitude profundamente
ética, que finda por criar o modus operandi necessário para o estabelecimento de uma
59
NIETZSCHE, GP, 2002, p.29.
60
NIETZSCHE, NT, 1992, p.56.
61
NIETZSCHE, ABM, 1992, p.120-121.
33
eticidade bastante possível, diametralmente oposta ao individualismo que vive-se hoje,.
Uma ética que não tenta suprimir ou disfarçar as diferenças, nem o trágico da existência,
baseando-se, ao contrário, sobre múltiplas perspectivas e artifícios: “(...) toda a vida
repousa sobre a aparência, a arte, a ilusão, a óptica, a necessidade do perspectivístico e
do erro.”
62
Pesquisando mais a construção desta proposta de estetização da existência em
Nietzsche, que visa a transmutação dos valores absolutos — que exaurem a força de ação
— em valores estéticos; percebe-se uma configuração que indica a potencialização também
da esfera política. Esfera esta própria da ão de cada homem singular no espaço público
(que propicia, portanto, o encontro com o outro), baseando-se em uma estetização da ação,
o que levaria a múltiplas ações singulares não-prescritas, superando assim a:
“ingenuidade patética [que]é em geral dizer que o ‘homem
devia ser de tal ou de tal modo!’ A efetividade nos mostra uma
riqueza encantadora de tipos, a exuberância de um jogo e de
uma mudança de formas profusos. E um reles serviçal de
moralista diz: ‘não! O homem devia ser diferente?’...”
63
Em combate à uma ética prescritiva baseada em valores ascéticos, tal como na
modernidade, originada por processos de causalidade que fingem excluir todas as
contradições na busca frenética pelas certezas, pelo progresso teleológico, pela fixidez da
essência cognoscível de todas as coisas, revelando:
“(...) uma ambição metafísica de manter um posto perdido, que
afinal preferirá sempre um punhado de ‘certeza’ a toda uma
carroça de belas possibilidades.”
64
62
NIETZSCHE, NT, 1992, p.19.
63
NIETZSCHE, CI, 2000, p.38.
64
NIETZSCHE, ABM, § 10.
34
Nietzsche tem uma proposta clara: ele propõe a aprovação incondicional (que vai muito
além da aceitação e sequer se aproxima de uma resignação) dos valores em constante devir,
tal como é o inegável movimento da vida, propondo que se trabalhe sobre o conflito, no
campo aberto da multiplicidade, na máxima pluralidade possível de organismos mutáveis,
de espécies diferentes”
65
.
O modelo do artista, a ser apropriado pelo homem em todos os campos de sua atividade, é
aqui privilegiado tanto em termos éticos, por levar sempre em conta a existência efetiva e
importante do outro, quanto devido aos paradigmas internos de funcionamento do seu
ofício, que abarcam a construção, a desconstrução e a reconstrução – ou seja, a não-
permanência.
Explicitando melhor, há no próprio interior do mecanismo de funcionamento do
trabalho do artista a necessidade de valorizar tanto a si quanto ao outro. Porém, essa
relação com o outro, para os grandes e verdadeiros artistas, “para artistas dotados também
de capacidades analíticas e retrospectivas (quer dizer, um tipo excepcional de artistas, que
é preciso buscar e que às vezes nem sequer se gostaria de procurar...)
66
é bastante
diferente de um agrado direto, para que haja uma posterior glorificação de si mesmo,
enquanto sujeito da arte — com retornos monetários ou publicitários, em termos
simplistas. Este homem, para Nietzsche, não poderia sequer se considerado um artista, pois
o que a subjetividade produz somente em si e para si, não pode ser considerado arte, para a
qual já se reivindica certo grau de objetividade. Nesse campo de atividade, como o espaço
65
NIETZSCHE, Fragmentos póstumos, KGW, V 2, 425. In: MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 97.
66
NIETZSCHE, NT, 1992, p. 15.
35
da arte, onde a objetividade é condição de possibilidade da própria atividade subjetiva, já
não faz mais sentido a dicotomia sujeito-objeto:
“Nós, de outra parte, afirmamos que toda essa contraposição
do subjetivo e do objetivo, segundo a qual, como se fora uma
medida de valor, mesmo Schopenhauer ainda divide as artes, é
em geral inadequado em estética, uma vez que o sujeito, o
indivíduo que quer e que promove os seus escopos egoísticos,
só pode ser pensado como adversário e não como a origem da
arte.”
67
O individualismo, doença social contemporânea, estaria assim impossibilitado de
existir para a perspectiva do verdadeiro artista que se torna, então, uma singularidade ética
por excelência. Isto porque, como trabalha em seu ofício para a apresentação, e esta é uma
atividade onde é imprescindível a presença do outro, pois somente nessa relação com o
outro (quer seja direta ou indiretamente), é que é possível ao artista apresentar a sua obra, o
artista sabe que nunca está efetivamente só, mesmo estando sozinho, posto que estamos
todos sempre na rede da sociedade e da cultura.
O artista, por outro lado, como é aquele que trabalha com a aparência, com a
totalidade do corpo, é aquele que está para além (ou seria mais apropriado aquém, posto
que ainda não foi cingido pelo pensamento metafísico das dicotomias excludentes), que
sabe ser “(...) preciso que se convença antes de mais nada o corpo”.
68
, que interpreta como
indissociáveis razão e sensibilidade, técnica e improviso, antigo e original, apropriação e
criação.
Diametralmente oposta parece estar alojada a metodologia científica de hipótese —
tentativa/erro/acerto — prova — refutação: até que uma nova hipótese seja provada e a
67
Ibid, p.47.
68
NIETZSCHE, CI, 2000, p.105.
36
antiga teoria vá ruindo como um edifício velho e podre, que não serve mais como
explicação para o mundo. Na arte a concomitância entre passado-presente-futuro, entre o
que já foi feito, o que está sendo produzido, ou o que ainda será criado (que está, neste
momento, em última instância, sendo fomentado), origina uma perenidade temporal, no
interior da própria perecibilidade inevitável à finitude, que rompe com esse paradigma,
inexeqüível ao homem, de pular para fora de si mesmo e da sua condição perecível, na
busca por ideais ascéticos ou paraísos além-mundo, metafísicos. Permitindo assim que o
homem perceba a si mesmo, a sua própria individuação, como parte de uma totalidade,
para além de todo o perecimento inevitável.
“(...) o efeito mais imediato da tragédia dionisíaca é que o
estado e a sociedade, sobretudo o abismo entre um homem e
outro, dão lugar a um superpotente sentimento de unidade que
reconduz ao coração da natureza. O consolo metafísico — com
que, como já indiquei aqui, toda a verdadeira tragédia nos
deixa — de que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a
mudança das aparências fenomenais, é indestrutivelmente
poderosa e cheia de alegria (...)”
69
Vê-se assim que a matéria-prima do artista — o mundo, a existência, a imanência
— não se apresenta de forma estática, mas está sendo a todo o tempo alterada,
transformada, transfigurada, destruída e reconstruída, mantendo-se aberta ao acaso,
opondo-se à visão científica que precisa definir para poder conhecer:
“(...) - aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio
condutor da causalidade, atinge até os abismos mais
profundos do ser e que o pensar está em condições, não
só de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo. Essa
sublime ilusão metafísica é aditada como instinto à
ciência, e a conduz sempre de novo a seus limites, onde
ela tem de transmutar-se em arte, que é o objetivo
propriamente visado por esse mecanismo.”
70
69
NIETZSCHE, NT, p.55.
70
Ibid, p.93.
37
Somente caminhando para uma ontologia artística ou uma estetização da existência
— no sentido de ater-se ao que é próprio à finitude, à imanência — é que se pode perceber
e efetivamente compreender a verdade ontológica mais originária, a injustiça primordial,
conseguindo assim conviver com o eterno movimento de vir-a-ser do mundo,
desconstruindo a idéia Iluminista de progresso. Movimento de vir-a-ser este que não
podemos ‘corrigir’— e, portanto, nem nos cabe tentar, em vão, executá-lo — posto que
não busca a ordem, mas a economia do todo.
Afirma-se, assim, tragicamente, a vida estetizando-a, para que a vida possa ser
percebida em toda a sua radicalidade, através do espelho transfigurador apolíneo, que nos
protege do aniquilamento da vontade de vida trazendo-nos afetos ativos, como a alegria.
Alegria — ainda que na dor — de existir, indo, desse modo, além dos valores da
mesmidade, buscando o que há de sublime na vida e na existência, em suas contradições e
conflitos indissolúveis, como nas palavras de Clément Rosset:
“(...) o benefício de uma causa suplementar a favor da alegria,
que convida a conhecer esta como experiência a um só tempo
inconcebível e não ilusória. A alternativa é simples e decisiva –
e acrescentarei que ela constitui, a meu ver, até maiores
informações, a questão mais séria que a filosofia teve de
conhecer. Ou a alegria consiste em uma ilusão efêmera de ter
acabado com o trágico da existência: neste caso a alegria não
é paradoxal mas é ilusória. Ou consiste em uma aprovação da
existência tida por irremediavelmente trágica: neste caso a
alegria é paradoxal, mas não é ilusória.”
71
Ainda nesta seção, faz-se importante ressaltar o valor que Nietzsche atribui ao ato
de cultivar-se a si mesmo, que em muito corrobora para a interpretação de sua obra como
estetização da existência, tal qual aqui se apresenta. A idéia do cultivo de si já está presente
em sua obra prematura, ainda que indiretamente, na contundente crítica que faz à educação
de sua época nas Considerações extemporâneas, bem como nas conferências que compõem
71
ROSSET, 2000, p. 24.
38
o escrito inacabado Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, proferidas entre
janeiro e março de 1872:“(....) nas quais Nietzsche busca articular sua perspectiva estética
do conhecimento com sua inextinguível vocação pedagógica.”
72
Porém aparece com mais
constância em seus últimos escritos, principalmente nos aforismos póstumos compilados
sob o título de A grande política, onde valoriza a idéia de cultura, em detrimento da
artificialidade dos estados nacionais ou do conceito de civilização:
“Os ápices da cultura e da civilização estão separados entre si:
não devemos nos deixar extraviar sobre o abissal antagonismo
entre cultura e civilização. Moralmente falando, os grandes
momentos da cultura sempre foram tempos de corrupção; e,
novamente, as épocas da voluntária e coerciva domação animal
(‘civilização’) do homem foram tempos de intolerância para as
naturezas mais espirituais e ousadas. A civilização quer outra
coisa que a cultura quer: talvez algo inverso...”
73
Cultura, como o seu radical morfológico pressupõe, é o espaço onde deve ser cultivada a
elevação do tipo homem, e não sua mediocrização em animal de rebanho, como vinha se
operacionalizando na Europa contemporânea a Nietzsche.
Somente esse indivíduo que encara a sua própria existência como obra de arte, que
cria valores, sendo capaz de funcionar sobre paradigmas artísticos de movimento e
transformação, vê a necessidade de cultivar-se a si mesmo, não em termos de busca
frenética e insaciável por conhecimento, erudição estéril, porém tal qual as espécies raras
em um jardim, que precisam de condições propícias para a potencialização de suas forças.
Esse novo tipo de homem que Nietzsche pretende fomentar com o incentivo que faz a um
cultivo de si mesmo, não massificado, mas autoral, só pode ser auto-criador, tomando para
72
MELO SOBRINHO, N.C. “Apresentação” In: NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro:
PUC-Rio, São Paulo: Loyola; 2003, p.9.
73
NIETZSCHE, GP, 2002, p.51.
39
si a tarefa de legislar, de instituir valores, tal como os filósofos do futuro, os espíritos livres.
O filósofo alemão objetivava assim:
criar um partido da vida, forte o suficiente para a grande
política: a grande política torna a fisiologia senhora sobre
todas as outras perguntas, — ela quer cultivar (züchten) a
humanidade como todo, ela mede o nível das raças, dos povos,
dos singulares segundo o se futuro [—], segundo a sua garantia
para a vida que trazem em si, — ela dá impiedosamente um fim
a tudo o que é degenerado e parasitário.”
74
Estes conceitos apenas citados acima serão melhor abordados no terceiro capítulo deste
escrito dissertativo, trecho pertencente à segunda parte do mesmo.
74
NIETZSCHE, GP, 2002, p.53.
40
I.2 A valorização do jogo, do conflito, do agon: arte e política
“Não são indivíduos que
lutam uns com os outros,
mas idéias.”
75
A aproximação das esferas da arte e da política será investigada neste sub-capítulo
através da metáfora do agon, o jogo, oriundo “(...) do mais nobre pensamento formador
helênico: a disputa
76
, princípios que propiciam a formação e o cultivo dos novos homens:
o além-do-homem (ou übermensch)
77
. O princípio do agon possibilitou entre os gregos
antigos o estabelecimento do espaço público e do embate de opiniões, de modos de vida —
espaço que se torna assim propício para o convívio da diferença. É possível observar, tal
qual diz Filipe:
“(....) como o conceito de agon se diversifica e aprofunda nos
grandes textos da maturidade de Nietzsche, a ponto de assumir
uma importância fulcral na epistemologia e no perspectivismo
nietzscheanos.”
78
Através do conceito de perspectivismo e do chamamento para a ação e a criação, que o
conceito de agon evoca, consideramos a importância deste no pensamento político
75
NIETZSCHE, F. [KSA 7, 396] In: A competição em Nietzsche (seleção de textos de Nietzsche sobre o
agôn). Lisboa: Vega, 1993, Introdução de Rafael Gomes Filipe.
76
NIETZSCHE, F. “A disputa de Homero”. In: Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Rio de
Janeiro: Sette Letras, 1996, p.86.
77
ou superhomens, como são mais comumente traduzidos para o nosso idioma. Porém entendemos que esta
palavra, na atualidade, não consegue despojar-se da força simbólica do personagem dos quadrinhos, o
superman americano, símbolo da abnegação de si, do absenteísmo e do desinteresse pessoal em prol do outro,
em nome da salvação humanidade que difere completamente do arquétipo proposto por Nietzsche como a
superação do último homem presente em Z. Entendemos assim ser danosa esta carga simbólica para a
interpretação e compreensão adequadas deste importante conceito nietzscheano, optando consequentemente
pela tradução utilizada por Oswaldo Giacóia Jr: além-do-homem.
78
FILIPE, R. G. Introdução. In: NIETZSCHE, F. A competição em Nietzsche (seleção de textos de Nietzsche
sobre o agon). Lisboa: Vega, 1993, p.7.
41
nietzscheano. Afinal, o perspectivismo nietzscheano pode fazer com que a vida se abra para
múltiplos — e ainda sequer criados — modos de ser: fomentando uma pluralidade, uma
diversidade de indivíduos que não foge à tarefa da criação de suas formas de vida
singulares, diferentemente do homem moderno, tal como Nietzsche o caracteriza em NT:
“Todo nosso mundo moderno está preso na rede da
cultura alexandrina e reconhece como ideal o homem
teórico, equipado com as mais altas forças cognitivas,
que trabalha a serviço da ciência, cujo protótipo e
tronco ancestral é Sócrates. Todos os nossos meios
educativos têm originalmente esse ideal em vista:
qualquer outra existência precisa lutar penosamente
para pôr-se a sua altura, como existência permitida e
não como existência proposta.”
79
Aqui enfocamos não só o embate agonístico entre os gregos antigos — enaltecido
pelo filósofo alemão desde os textos da primeira fase de sua produção, como A disputa de
Homero mas também o agon entendido através da metáfora do jogo artístico.
Especialmente no que se refere às artes de perfomance, como a dança, o teatro e a música,
onde ocorre o jogo do contracenar. Nestas formas artísticas há limites, regras e
objetividade, enquanto obras de arte que são, porém tais linguagens estão sempre abertas à
novas possibilidades, ao imprevisível, lançadas ao abismo, à incerteza, à errância: “E onde
estará o homem livre dos abismos? O próprio ver... Não será ver abismos?”
80
.
A valorização que Nietzsche opera da ação e especialmente a criação artística, a
produção de valores e formas de vida, aproxima a filosofia do fazer artístico, fazendo com
que ele se detivesse e enaltecesse conseqüentemente o jogo de forças que é inerente às
esferas de atuação. E é neste caminho que se constrói o traçado ético-político que vai
79
NIETZSCHE, NT, 1992, p.108-109.
80
NIETZSCHE, Z, 2006, p.119.
42
acompanhar toda a obra de Nietzsche, que pode ser compreendida através da ode ao
jogo, ao contracenar da vida, à brincadeira, ao viver para o ensaio. Ao contrário de uma
cultura baseada na ciência, naquela busca irrefreada de conhecimento a todo custo —
que Nietzsche vai denominar em O Nascimento da tragédia como socratismo — uma
cultura baseada na arte pode expressar uma sabedoria trágica, enunciada por ele, o
primeiro filósofo que ousou ser trágico:
“Agora porém a ciência, esporeada por sua vigorosa
ilusão, corre, indetenível, até os seus limites, nos quais
naufraga seu otimismo oculto na essência da lógica. Pois
a periferia do círculo da ciência possui infinitos pontos
e, enquanto não for possível prever de maneira nenhuma
como se poderá alguma vez medir completamente o
círculo, o homem nobre e dotado, ainda antes de chegar
ao meio de sua existência, tropeça, de modo inevitável,
em tais pontos fronteiriços da periferia, onde fixa o olhar
no inesclarecível. Quando divisa aí, para seu susto, como
nesses limites a lógica passa a girar em torno de si
mesma e acaba por morder a própria cauda – então
irrompe a nova forma de conhecimento trágico, que,
mesmo para ser apenas suportado, precisa da arte como
meio de proteção e remédio.
81
Com a adoção dos paradigmas do jogo artístico, torna-se possível estabelecer uma rede
de eticidade que não tenta suprimir ou disfarçar as diferenças. Isto porque esses jogos
devem ser vivenciados e interpretados não por valores morais, mas éticos-estéticos — o
elemento próprio do jogo, que só se dá no instante da ação, tanto singular, quanto entre
rivais, entre guerreiros, no tempo e no modo do agon. É este espírito livre e
transvalorador, que adota o paradigma do artista e do jogo do contracenar que supera o
niilismo moderno sem negar ou escamotear a tragicidade da existência, mas, ao
contrário, aprovando a vida incondicionalmente:
81
NIETZSCHE, NT, 1992, p.95.
43
(...) o ideal do homem mais exuberante, mais vivo e mais
afirmador do mundo, que não só aprendeu a se resignar e
suportar tudo o que existiu e é, mas deseja tê-lo novamente, tal
como existiu e é, por toda a eternidade, gritando
incessantemente ‘da capo’ [do início], não apenas para si
mesmo, mas para a peça e o espetáculo inteiro, e não apenas
para um espetáculo, mas no fundo para aquele que necessita
justamente deste espetáculo – e o faz necessário: porque
sempre necessita outra vez de si mesmo – e se faz
necessário.”
82
O jogo da arte, a disputa, o agon vistos aqui como novas possibilidades de
paradigmas a serem adotados na construção de éticas da imanência, não-prescritivas, em
constante movimento, que privilegiam os afetos e os jogos de força do instante, se
contrapondo aos tradicionais projetos normatizantes. Com a potencialização da esfera da
ação (arte e política, principalmente), do encontro com o outro, quando baseada em uma
estetização desta ação, em vivências comunitárias cotidianas — tal como a ação exemplar
do mythos das tragédias gregas — levaria a uma ação ética não-prescritiva. O próprio
mythos, a própria narrativa das origens, em seu ensinamento ontológico, permite a
percepção de uma integração com a totalidade. Ao mesmo tempo, por romper com as
prescrições, com as padronizações, permite ao indivíduo sua autenticidade, posto que não
depende disso a sua inserção no grupo cultural, pois a experiência do embate com o outro é
inevitável nas culturas saudáveis:
“Não basta utilizar as mesmas palavras para compreendermos
uns aos outros; é preciso utilizar as mesmas palavras para a
mesma espécie de vivências interiores, é preciso, enfim, ter a
experiência em comum com o outro.(...)
83
82
NIETZSCHE, ABM, 1992, § 56.
83
Ibid, § 268.
44
Esta alternativa se erige em combate às éticas normativas, tal como as éticas
fundadas em religiões, baseada em valores ascéticos, originadas por processos de
causalidade, fingindo excluir as contradições na busca pelos alicerces estáveis, pelo
progresso teleológico, pela recompensa em além-mundos, éticas da resignação, da
abnegação de si, gerando:
um pessimismo prático que poderia até engendrar uma
horrenda ética do genocídio, por compaixão — o qual,
aliás, está e esteve presente em todo lugar do mundo
onde não surgiu a arte em uma forma qualquer,
especialmente como religião e ciência, para servir de
remédio e defesa contra esse bafo de pestilência.”
84
A arte é assim enxergada por Nietzsche como fonte de um conhecimento
mais profundo, da injustiça primordial constituinte da existência mesma, de outra
forma inacessível. Único conhecimento capaz de circunscrever o racionalismo, e o
nexo causal que lhe é próprio, em seus limites, posto que evidencia haver algo
mais primordial, que escapa aos princípios de toda a ‘razão suficiente’.
Nietzsche valorizou, assim, a dimensão nuclear da política, entendida como sendo a
ação ética singular, realizada pelos diferentes e múltiplos atores sociais, de maneira
análoga à performance do ator no teatro, do músico concertista, ou do dançarino, cujo
valor não pode ser atribuído anteriormente ao ato, pela especulação ou intenção, mas
apenas na efetividade da ação, enfocando-se a atuação e suas conseqüências. Ao passo que
o paradigma ético que domina na atualidade, advindo desde a modernidade, tão
acuradamente percebido por Nietzsche, enfatiza:
84
NIETZSCHE, NT, 1992, p.94.
45
“Em vez de conseqüências, a origem: que inversão da
perspectiva! E sem dúvida uma inversão alcançada após longos
combates e hesitações! É verdade que com isso uma nova e
fatal superstição, uma singular estreiteza da interpretação
tornou-se dominante: a origem de uma ação foi interpretada,
no sentido mais determinado, como origem a partir de uma
intenção; concordou-se em acreditar que o valor de uma ação
reside no valor de sua intenção. A intenção como origem e pré-
história de uma ação: sob a ótica desse preconceito é que,
quase até os dias de hoje, sempre se louvou, condenou, julgou e
também se filosofou moralmente.
85
Para este novo paradigma extático proposto por Nietzsche, cujo modelo é a
agonística do grego antigo, as normas são estabelecidas, construídas e reconstruídas no
jogo do instante, onde são erigidas sempre regras provisórias. Regras que estão sujeitas a
ser reformuladas e possuem um limite claro: nunca se sobrepor ao mais importante, que é o
próprio jogo e a possibilidade de jogar.
E a ação ética por excelência é a que realiza o além-do-homem, por ter uma
percepção de si tão indissociada da totalidade, que valorizar a presença e o embate com o
outro torna-se, não só aceito, como até mesmo necessário. É este homem singular que
supera o niilismo moderno sem negar ou escamotear a tragicidade da existência, mas, ao
contrário, aprovando a vida incondicionalmente, a quem recorrentes vezes Nietzsche
atribuiu o nome de espírito livre:
“(...) Aquela madura liberdade do espírito que é também
autodomínio e disciplina do coração e permite o caminho para
muitos e opostos modos de pensar (...) aquele excedente que dá
ao espírito livre a perigosa prerrogativa de viver para o ensaio
e poder oferecer-se à aventura: a prerrogativa de maestria do
espírito livre!”
86
85
NIETZSCHE, ABM, 1992, § 32.
86
NIETZSCHE, HDH, 2000, prefácio § 4. [grifo nosso]
46
Observamos haver em Nietzsche o efetivo privilégio da lógica não excludente de
uma visão de mundo estética – posto que, na arte, não há lugar para a certeza que suprime o
erro, nem para a verdade que anula a mentira, mas para a experimentação, a vivência, o
jogo sobre o conflito. Assim como a obra de arte que não é só jorro e êxtase, mas também
limite e representação — e o que se obtém não é material estático que se definiu para toda a
eternidade. Ao contrário, a obra de arte está em constante movimento de vir-a-ser, a cada
vez que são vivenciadas novas interações com seres sempre singulares, em diferentes
momentos históricos, trazendo em si um sentido vivo, aberto a múltiplas leituras e
interpretações. Esse caráter aberto, inacabado, múltiplo e imprevisível, inerente à própria
existência, só pode ser devidamente apreendido através da experiência estética, esfera
própria do jogo e do conflito, no estabelecimento do agon, do campo de batalha para os
filósofos legisladores, onde não cabem mais as absolutizações prescritivas e excludentes,
mas ao contrário, fala-se aqui do estabelecimento de uma arena que consiste na integração
em proveito da manutenção da tensão do conflito.
Essa arena para a atuação política singular, para o embate, o agon, que Nietzsche se
propõe a resgatar, cujo estatuto é de ser o espaço da eticidade por excelência, é um lugar
onde é possível haver o jogo político performático da ação. Para os gregos antigos, este
espaço podia ser tanto a praça pública, a agora, quanto o teatro. A afirmação ativa deste
locus trágico da arena, propiciando o embate, o conflito entre multiplicidades rivais que se
incitam mutuamente, é entendida não em termos da busca pelo consenso, mas como um
espaço social dinâmico no qual o respeito agonístico está revestido pelas ambigüidades,
conflitos e interdependências que constituem as relações sociais. Este espaço perdido
necessita ser resgatado, segundo Nietzsche, pois tornou-se indispensável no processo
47
singular do homem que não se assujeita passivamente às forças externas, mas toma para si a
tarefa de construir, no jogo do instante, a sua existência.
No mundo em que vivemos, da finitude, da imanência, que, segundo Nietzsche, não
é nada além de vontade de poder,“(...) nesta atmosfera aterradora, a luta é cura, salvação;
a crueldade do vencedor é o maior júbilo da vida.”
87
Porém o júbilo do vencedor só pode
se dar restrito ao instante, posto que o embate de diferentes singularidades, em última
instância de múltiplas vontades de poder ficcionalmente e temporariamente organizadas
sob uma suposta unidade do ‘eu’, insiste em ocorrer sempre novamente, posto que:
“o múltiplo dos quanta de poder não há, pois, que ser entendido
como pluralidade de dados-últimos quantitativamente
irredutíveis, não como pluralidade de ‘mônadas’ indivisíveis.
Deslocamentos de poder no interior de organizações instáveis
permitem que, de um quantum de poder advenham dois, ou que
dois se tornem um.”
88
Há então que se preservar na vida esse espaço da luta, do embate, da oposição, do
conflito, do agon, da disputa — de todas essas palavras cujos significados assemelham-se,
interligam-se e confundem-se ambiguamente nas palavras de Nietzsche, posto que ele sabe
que esse ato de nomear não é meramente fazer referência a um significado que esta posto,
mas sempre trazer para si o domínio daquilo que se nomeia. A existência humana necessita
do guerreiro, daquele que luta para conquistar e construir sua vida e seu modo singular de
vivenciá-la. Neste jogo de forças a disputa se faz sempre presente, bem como a necessidade
de possuir antagonistas à altura: “Nosso impulso de autoconservação quer que nossos
adversários permaneçam em suas forças — quer apenas se tornar senhor sobre eles
.”
89
Isso
87
NIETZSCHE, F. A disputa de Homero. In: Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Rio de Janeiro:
Sette Letras, 1996, p.73.
88
MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 77.
89
NIETZSCHE, GP, 2002, p.46.
48
porque faz-se indispensável a presença de adversários, de rivais que, em última instância,
são responsáveis pelo estímulo a uma constante incitação e superação.
Vale ressaltar que, para a cultura exemplar do povo da Grécia antiga, trágica, o
conflito não poderia jamais ser suprimido, entendendo que o mais importante é o embate
permanente, como estimulante mesmo para a vida. E esta boa Éris é interpretada e ensinada
pelo poeta trágico, por via do mito trágico, através uma educação saudável, que educa para
os valores estéticos e imanentes da existência:
“O poeta supera a luta pela existência, ao idealizá-la como
uma livre competição. Ei-la, a existência pela qual ainda se
luta, a existência objeto de elogio, de glória póstuma. O poeta
educa: sabe traduzir em boa Éris os tigrinos instintos
dilaceradores dos gregos”
90
Instintos dilaceradores estes que, ao final, entendemos não pertencer apenas aos gregos antigos, mas como
algo inerente ao próprio ser humano em sua ontologia, em sua relação com o que há de mais radical no mundo
e na existência. Aquele que não desenvolve e cultiva seus instintos para a luta, não consegue ter uma postura
ativa e afirmativa diante da própria existência, resignando-se com promessas que transcendem a esfera de
atuação humana, própria à finitude e ao perecimento. E esse ensinamento potencializador das forças e dos
instintos mais originários, como o da sobrevivência, é característico da arte e dessa ode que ela faz à disputa,
ao jogo, ao embate, ao agon, à contra-cena-ação.
90
NIETZSCHE, F. [KSA, 7, 397, 398] In: NIETZSCHE, F. A competição em Nietzsche. Lisboa: Vega, 1993,
tradução e seleção R.G.Filipe.
49
I.3 A experiência artística e cultural em Nietzsche e sua relação com a política
As especulações políticas acerca do pensamento de Nietzsche, na maioria das vezes,
findaram por distorcer seu pensamento em interpretações que chegaram a transformá-lo em
ideólogo de sistemas totalitários. Entendemos aqui que estas foram desvirtuações
tendenciosas e igualmente desastrosas que, ao longo da história, nublaram o pensamento
político nietzscheano associando-o, por exemplo, a passagens inaceitáveis da história alemã
que muitos ocidentais gostariam de esquecer.
Ao contrário destas errôneas apropriações, Nietzsche foi crítico radical da política e
seus alicerces na modernidade, das sociedades de massa (massa esta que o filósofo
denominava por rebanho), bem como dos sistemas absolutos que, muitas das vezes, se
ocultam atrás de conceitos que fundam o liberalismo, tais como justiça, igualdade e
democracia:
“As instituições liberais deixam imediatamente de ser liberais,
no momento em que são alcançadas: não há depois nenhum
corruptor mais incisivo e fundamental da liberdade do que
instituições liberais. Sabe-se, em verdade, que caminhos elas
abrem: elas minam a vontade de potência, elas são o
nivelamento da montanha e do vale elevado à condição de
moral, elas apequenam, acovardam e acostumam ao deleite:
com elas sempre triunfa o animal de rebanho. Liberalismo: em
alemão, animalização gregária...”
91
Porém esta crítica política não foi, na interpretação que aqui delineamos, aquela
com a qual Nietzsche mais se ocupou ao longo de sua obra. Mesmo em seus primeiros
91
NIETZSCHE, CI, 2000, p. 94.
50
escritos, ainda bastante influenciado pela filologia e a cultura grega, quando produz O
Nascimento da tragédia e textos curtos sobre a política e a vida comunitária do grego
trágico
92
, o que parece encantar o filósofo no interior desse modo exemplar de vida na
polis, o político representado pelos gregos pré-helênicos, foi a exaltação da ação singular
como responsável pelo direcionamento desta vida coletiva. Isto é, o coletivo percebido
como uma rede de singularidades às quais a imanência do tempo e da localidade espacial
tornam alicerce para a relação que há entre os indivíduos, como um somatório
potencializador do quantum de força que forma a comunidade, o mundo, através da
experiência comum, do cotidiano, tal como as palavras de Nietzsche:
O todo do mundo orgânico é a rede de seres com pequenos
mundos fictícios em torno de si: ao transporem para fora de si,
em experiência, sua força, seus desejos, seus costumes, como
seu mundo exterior.”
93
O que este fragmento póstumo deixa transparecer é que os escritos nietzscheanos mais
propriamente políticos — ou pelo menos assim denominados — surgem a partir do
segundo período de seu pensamento e intensificam-se na terceira fase de sua produção
intelectual, estando bastante presentes nos fragmentos póstumos como aqueles compilados
sob o título de A grande política, concomitante aos escritos sobre a vontade de poder que
pressupõe o jogo, o conflito, o embate — aspectos e entrelaçamentos que serão abordados
mais detalhadamente em etapas posteriores do presente trabalho dissertativo.
Procuraremos defender ao longo deste escrito que a maior preocupação de
Nietzsche a respeito da política era com aquela esfera que se realiza por cada indivíduo,
cada singularidade dentro do grupo cultural. Isto porque é através do somatório de ações
92
A esse respeito ler: NIETZSCHE. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Rio de Janeiro: Sette
Letras, 1996.
93
NIETZSCHE, F. [KGW VII 3, p.223, abril-junho de 1885] In: MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 99.
51
éticas singulares que, no seu ver, constrói-se a grande política, suporte de toda a vida na
Terra, levando em consideração não só os outros homens, mas a própria economia do todo,
afinal: “(...) os próprios homens devem estabelecer para si objetivos ecumênicos que
abranjam a Terra inteira”.
94
Neste caminho, o pensamento de Nietzsche visa uma desconstrução dos valores
modernos, do modo de ser e de se relacionar com a vida e a existência do homem
moderno, a fim de privilegiar, nesse processo de transvaloração de todos os valores, uma
atitude explicitamente ativa da existência do homem no mundo. Existência esta em
constante movimento de devir, em sua relação direta com a imanência, possibilitando
assim a própria atuação micropolítica, para a qual é indispensável o surgimento de um
novo homem , bem constituído, cuja existência seja saudável fisiologicamente, tal como o:
Primeiro exemplo de minha ‘transvaloração de todos os
valores’: um homem bem constituído, um homem ‘feliz’, precisa
empreender certas ações e fugir instintivamente de outras. Ele
insere em suas relações com os homens e as coisas a ordem que
apresenta fisiologicamente. Para exprimir através de uma
fórmula: sua virtude é a conseqüência de sua felicidade... Uma
vida longa, uma rica prole não são a paga pela virtude.”
95
É sobretudo a partir da preponderância que Nietzsche atribui à ação e ao jogo de forças dos
instintos que tem início o traçado desse viés micropolítico que vai acompanhar toda a sua
obra. Ao enfatizar o indivíduo, a singularidade, em detrimento do discurso da
universalidade, Nietzsche objetivava destruir a visão uniformizada do grupo social, que ele
caracterizou como própria do animal de rebanho. Para ele a comunidade, vista como um
somatório potencializador de forças singulares diferentes, e divergentes até, só pode ser um
núcleo de identificação de seres humanos díspares, formando um grupo cultural, naquilo
94
NIETZSCHE, HDH, 2000, § 33.
95
NIETZSCHE,CI, 2000, p.42.
52
que nela há de mais valioso: a experiência cultural efetiva. Estamos aqui falando da ordem
das experiências que vivenciamos através do corpo, dos gestos, da educação, da arte, dos
hábitos fisiológicos – a alimentação, a excreção, o sexo (afinal, “o desprezo pela vida
sexual é o crime contra a vida
96
) — posto que é através da imanência que traçamos a
cultura (kultur), responsável, em última instância, por dar o acabamento necessário ao
indivíduo, delineando a relação ontológica deste com o mundo e a sua própria existência:
É decisivo quanto ao destino do povo e da humanidade, que se
comece a cultura a partir do lugar correto — não a partir da
‘alma’ (como era a superstição fatídica dos sacerdotes e semi-
sacerdotes): o lugar correto é o corpo, os gestos, a dieta, a
fisiologia, o resto segue daí... Os gregos permanecem por isto o
primeiro acontecimento cultural da história — eles sabiam, eles
faziam o que era necessário; o cristianismo, que desprezava o
corpo, foi até aqui a maior desgraça da humanidade.
97
Privilegiando a unidade cultural em detrimento do Estados nacional (o monstro
frio
98
) Nietzsche pretendia denunciar a profunda confusão entre esses dois conceitos pela
prática política da modernidade e pela reflexão teórica que ela engendrou:
Com muita freqüência desde que há mundo, foram fundados
Estados; isso é uma velha peça. Como poderia uma inovação
política bastar para fazer dos homens de uma vez por todas
habitantes satisfeitos da Terra?
99
Nietzsche valorizava a cultura por ser fruto do embate no espaço onde a vivência é
essencial, onde só com o somatório de diferentes experiências caminha-se para a economia
da totalidade, para além de toda a regra prescrita. Suas reflexões entre cultura e política são
constantes, tal como afirma Ansell-Pearson:
96
NIETZSCHE, Z, 2006, I, 7.
97
NIETZSCHE, CI, 2000, p.106.
98
A este respeito ver ANSELL-PEARSON, K. Nietzsche como pensador político. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1997.
99
NIETZSCHE, F. “Schopenhauer como educador”, § 4. In: CE, 1978, p.74.
53
“Do começo ao fim Nietzsche preocupa-se com o que vê como
um conflito permanente entre cultura e política: quais são os
objetivos da arte e da cultura? A organização social deve servir
aos objetivos da política (justiça) ou aos da cultura? Que tipo
de política é mais apta para estimular a ‘cultura’ (isto é o
cultivo da grandeza e de verdadeiros seres humanos)?
100
Na experiência cultural efetiva, para a qual o modelo privilegiado por Nietzsche foi
a Grécia antiga — com o evento das tragédias — valorizava-se o mito, em detrimento da
abstração, e a experiência em lugar dos idealismos e das noções a priori (de todo o
racionalismo excludente, que se quer absoluto). Esses eram os principais males dos quais
padecia o homem moderno — o homem de sua época — segundo o olhar de Nietzsche:
A luz diurna mais cintilante, a racionalidade a qualquer
preço, a vida luminosa, fria, precavida, consciente, sem
instinto, em contraposição aos instintos, não se mostrou
efetivamente se não como uma doença, uma outra doença. –
Ela não concretizou de forma nenhuma um retorno à ‘virtude’,
à ‘saúde’, à felicidade...”
101
Este excesso de valor atribuído à razão, em detrimento dos instintos, do corpóreo,
gerava o que Nietzsche denominou por niilismo — termo adequado para diagnosticar a
relação que o homem moderno cunhou para a sua própria vida, relação esta nadificadora e
doente. Diante desse diagnóstico niilista cabia então ao homem moderno optar por dois
diferentes caminhos, tal como em A gaia ciência (§ 341, intitulado O maior dos pesos)
102
quando o homem está defronte uma encruzilhada e necessariamente tem que escolher qual
caminho seguir? Ou continuar a carregar o espírito niilista do anão de peso em suas costas,
fingindo assim conseguir caminhar ou lançá-lo longe, praguejando-o, negando-o. Ou,
enfim, inventar, criar outras possibilidades, entendendo a necessidade da existência
100
ANSELL-PEARSON, 1997, p.19.
101
NIETZSCHE, CI, 2000, p.23.
102
NIETZSCHE, GC, 2001, §341.
54
daquele peso e do que ele significa, posto que ele não é nada além daquela parte de cada
um de nós própria da modernidade, racionalista, moralista e niilista, que nos puxa para o
fundo, que nos faz desistir e estagnar em meio à inação. Porém é este mesmo niilismo que,
por outro lado, faz parte da experiência radical de tornar-se o que se é, atingindo o cerne
da questão que é o que fazer com esse diagnóstico niilista, como nas palavras de
Ansell-Pearson:
“Para Nietzsche, a ocorrência do niilismo possibilita-nos a
oportunidade de repensar as metas e objetivos da existência
social (da política): por que a sociedade existe? A que
propósitos deve servir? Como deve ser organizada e para que
fins? Atualmente, permanece tão necessário como sempre
reconsiderar o problema do niilismo e cumprir a solicitação de
Nietzsche por uma reavaliação de todos os nossos valores”
103
.
Nietzsche pensava, assim, contra a apropriação passiva desta experiência radical
proporcionada pelo niilismo, contra o ascetismo e a passividade que ele gerava, colocando
em seu foco, questionando e problematizando, a vida de sua época — a exemplo do que
fizeram os gregos. Que atitude poderia ser mais política do que enfocar, em sua filosofia,
os valores de sua época?
Quando Nietzsche dá ênfase ao aspecto cultura é necessário frisar que este conceito
para ele se funda principalmente no cultivo de si, especialmente quando o filósofo se refere
às culturas sadias que são aquelas capazes justamente de gerar e fomentar os grandes
homens, as singularidades ímpares, os espíritos livres — como ele vai denominar a partir
de Humano, demasiado humano, quando dedica uma seção inteira ao tema. A política,
especificamente a política cultural e educativa, com a qual Nietzsche se ocupa em especial,
é importante não porque seja “um meio de encaminhar ou resolver o problema da
103
ANSELL-PEARSON, 1997, p.23.
55
existência humana
104
, mas justamente porque ao valorizar primeiramente o indivíduo, a
existência humana singular, ativa e original a esfera da política estaria por reverberação e
prolongamento inevitáveis, sendo fortalecida, afinal: “o que a humanidade precisa não é
de uma revolução política violenta, mas de mudanças na educação e em seu modo de
pensar
105
.
Estas mudanças no modo de pensar de uma cultura, muito estimuladas pelas
mudanças na educação, que geram este novo homem, necessitam de uma superação do
modo de existência do homem moderno, transvalorando os seus valores fundamentados
nas “malvadas [todas essas] doutrinas do um
106
, segundo Zaratustra. Este novo solo
propicia o acontecimento da ação política exemplar, que é efetuado por cada
individualidade forte, de modo imanente, sem prescrições possíveis, indo além da
extrapolação do modelo científico para as outras esferas da vida, característico dos valores
modernos. Nietzsche aproxima assim a ação humana de um outro paradigma, que é o da
arte, sempre original e criativo, através do exemplo que ele valoriza dos artistas:
“Um psicólogo pergunta em contra-partida: o que faz toda
arte? Ela não louva? Ela não glorifica? Ela não seleciona?
Não realça? Com tudo isto, ela fortalece e enfraquece certas
estimativas de valor... Isto é apenas um acessório? Um acaso?
Algo de que o interesse do artista não tomaria parte
absolutamente? Ou então: não é o pressuposto para tanto que o
artista esteja em condições de empreender tudo isto...? Seu
instinto mais profundo tende para a arte, ou, ao invés disso,
muito mais para o sentido da arte, para a vida? Para algo
desejável da vida? — A arte é o maior estimulante para a vida:
como se poderia entendê-la como sem finalidade, como sem
meta, como l’art pour l’art
?
107
104
NIETZSCHE, F. “Schopenhauer como educador”, § 4, In: CE, 1978.
105
ANSELL-PEARSON, 1997, p.21.
106
NIETZSCHE, Z, 2006, II, “Nas ilhas bem-aventuradas”.
107
NIETZSCHE, CI, 2000, p.81-82.
56
A arte como o tônico indispensável para a vida, para a existência humana saudável com a
própria tragicidade inerente ao mundo, sua injustiça primordial, como ele afirma em O
nascimento da tragédia, a arte trágica que fez dos gregos pré-helênicos o grupo cultural
mais saudável e forte, segundo a visão de Nietzsche, justamente porque valorizavam a
individuação, mas não de forma atomizada, porém no interior mesmo de um fortalecimento
do todo, que é o tecido social, tal como as palavras de Müller-Lauter:
Um homem, por exemplo, forma um quantum de poder que
organiza em si inúmeros quanta de poder. Em oposição e
associação com outros homens, ele próprio pertence a
‘organismos’ mais abrangentes. Coloca-se a questão: de que
espécie é a extrema organização, a mais extensa vontade de
poder? Como últimos organismos cuja configuração vemos,
Nietzsche nomeia povos, estados, sociedades”.
108
Ao contrário deste fortalecimento do tecido social a partir do fortalecimento de
cada parte, tal como na Grécia antiga, na modernidade, ao restringir-se o jogo político aos
estados nacionais, houve, em decorrência, o distanciamento do homem da sua atuação
efetiva na pólis (tal como o último homem, de Assim falava Zaratustra). Ocorreu assim, em
nome de um individualismo excessivo, reflexo de uma atomização social, em nome de uma
apatia política, de um “cultivo tanto da experiência como do gosto particular à custa da
ação pública
109
, o massacre da singularidade que se torna animal de rebanho. Esta
singularidade difere do excesso de individualismo, como diagnosticado na modernidade e
acentuado nos dias de hoje, posto que, enquanto unidade, a singularidade realiza-se apenas
no embate com a diferença, operacionalizando assim seu processo de individuação
justamente em relação à totalidade social, na qual as diferentes singularidades travam seu
108
MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 96-97.
109
ANSELL-PEARSON, 1997, p.21.
57
embate. Esta degeneração de singularidades em nome da animalização gregária (do
animal de rebanho) é tributária em muito do processo de generalização daquilo que se
denominou por democracia representativa:
com a ajuda de uma religião que satisfez e adulou os mais
sublimes desejos do animal de rebanho, chegou-se ao ponto de
encontrarmos até mesmo nas instituições políticas e sociais
uma expressão cada vez mais visível dessa moral: o movimento
democrático é herança do movimento cristão.
110
Suprimiu-se assim a pluralidade anulando a disputa, o embate, o agon, o conflito
entre diferentes percepções, que era o estimulante da sociedade grega antiga, que compõem
a vivacidade das culturas em estado de saúde. E o homem moderno padece por perder o
seu contato com as questões mundanas da existência, assujeitando-se à pasteurização
moralizante dos modos de vida, ao ascetismo religioso.
Porém é somente no grupo de convivência cultural, onde o homem age e se depara
com a questão da eticidade, que a individualidade pode escapar da apatia niilista, na
construção de novos valores, para além de certo e errado, de bem e mal — afinal o ser
humano está fadado a esta esfera da finitude. O grupo cultural, a cultura, surge, para
Nietzsche, como o elo associativo dos povos, em sua face positiva, adquirindo assim a
cultura o estatuto de ser fundamental para a grandeza da humanidade — em contraposição
à artificialidade dos estados, como aqueles que ele via forjarem-se na Europa e suas áreas
de domínio, no período compreendido pela modernidade:
Que os grandes momentos formem uma corrente, que
conectem a humanidade através de milênios, como cimos, que a
grandeza de um tempo passado seja grande também para mim,
e que a crença, cheia de intuições realize a glória ambicionada,
é este o pensamento fundamental da cultura.”
111
110
NIETZSCHE, ABM, 1992, § 202.
111
NIETZSCHE, F. “Sobre o pathos da verdade”. In: Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Rio de
Janeiro: Sette Letras, 1996, p.26.
58
Foram seus estudos das tragédias gregas, em O nascimento da tragédia, que
levaram Nietzsche propriamente à ontologia, indo muito além de uma análise estética das
tragédias, adentrando propriamente na esfera do trágico como a sabedoria ontológica
expressa pelas tragédias antigas. Nietzsche fez, assim, da cultura grega um veículo de
percepção e compreensão da própria situação do homem no mundo, inserido na totalidade,
uma vez que enxergava as tragédias como verdadeiros documentos filosóficos, de cunho
ontológico
112
. Porém, dentre o que Nietzsche mais aprovava na sua volta aos gregos
como um modelo a ser absorvido e transformado, na construção singular da multiplicidade
cultural — era a capacidade da Grécia antiga de conjugar o fenômeno político-social ao
fenômeno estético-cultural. Isso ocorria através do veículo das tragédias gregas e do artista
trágico, sempre visando a afirmação da vida, do mundo, da existência, em toda a sua
imanência, contraditoriedade, injustiça — ou seja, em toda a sua tragicidade:
O que é que o artista trágico comunica de si? Não é
exatamente um estado sem temor frente ao temível e
problemático, que ele indica? — Esse estado mesmo é algo
desejável; quem o conhece o louva com os louvores mais
elevados. Ele o comunica, ele precisa comunicá-lo, pressuposto
que é um artista, um gênio da comunicação. A valentia e a
liberdade do sentimento frente a um inimigo poderoso, frente a
uma sublime adversidade, frente a um problema que desperta
horror — este estado triunfal é aquele que o artista seleciona,
que ele glorifica. Diante da tragédia, o que há de belicoso em
nossa alma festeja as Saturnais; quem procura por sofrimento,
o homem heróico, exalta com a tragédia a sua existência.”
113
O artista grego trágico como o exemplo mesmo do herói, no sentido de ser responsável por
comunicar a ação heróica exemplar, através da qual o homem grego aprendeu a se
relacionar com a própria existência trágica da vida, com os princípios da dor, da guerra e
112
A esse respeito ver MACHADO, Roberto. O Nascimento do trágico na modernidade. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006.
113
NIETZSCHE, CI, 2000, p.81-82.
59
da injustiça, inerentes à toda existência. Foi a partir dessa educação via mito trágico que o
grego pré-platônico fundou sua ontologia travando assim uma relação saudável com as
vicissitudes da finitude, do perecimento.
Sob esse viés, o que havia de mais propriamente político para Nietzsche era a
efetiva relação ética de estar e agir no mundo, em um círculo de outros homens, e também
de outros seres, a esfera da vida prática, o que se evidencia em seu livro Assim falava
Zaratustra. Neste livro bastante poético o personagem-título, conforme fica explícito já em
seu preâmbulo, após anos investidos em uma busca solitária por conhecimento, em
profundo isolamento nas montanhas, retorna à convivência com os homens, para interagir
com eles, por amá-los, por perceber a necessidade da vida em comunidade. Zaratustra diz:
Pois bem? Já estou tão enfastiado da minha sabedoria, como
a abelha que acumulasse demasiado mel. Necessito mãos que
se estendam para mim.
Quisera dar e repartir até que os sábios tornassem a gozar da
sua loucura e os pobres da sua riqueza. (....)
Abençoa a taça que quer transbordar, para que dela emanem
as douradas águas, levando a todos os lábios o reflexo da tua
alegria! Olha! Esta taça quer de novo esvaziar-se, e Zaratustra
quer tornar a ser homem. (....)
Zaratustra mudou, Zaratustra tornou-se menino, Zaratustra
está acordado. Que vais fazer entre os que dormem?(....)
Zaratustra respondeu: ‘Amo os homens.’”
114
É claro, porém, que esta vida política comunitária, como tudo o mais na existência,
possui um lado negativo, perigoso, seus riscos constitutivos: como os de esterilizar,
neutralizar, massificar os indivíduos, transformando-os em animais de rebanho. Isto
dependerá sempre de uma política cultural, educacional, ou seja, dos interesses políticos
que subjazem às escolhas. Que tipo de caráter, qual é o ser humano que uma determinada
cultura pretende formar? E este paradigma simbólico será disseminado em todos os
114
NIETZSCHE, Z, 2006, prólogo.
60
aspectos da vida prática, principalmente através da educação e da convivência sócio-
cultural, potencializando ou embotando as capacidades criativas e a autonomia dos
membros daquela cultura:
“(....) por meio do aperfeiçoamento de todas as virtudes graças
às quais um rebanho prospera, e por meio da inibição de todas
as outras, a elas opostas, que dão origem a uma nova espécie,
superior, mais forte e senhorial, desenvolvem justamente
apenas o animal de rebanho no homem, e talvez, com isso,
fixem o animal ‘homem’— pois, até agora, o homem foi o
‘animal não fixado’;”
115
Em última análise a política é construída através da reverberação feita pela doação
de sentido ativa que cada indivíduo atribui à sua própria existência, e através dessas várias
existências éticas, ao corpo do todo, o grupo sócio-cultural, que, assim como os indivíduos
que o constituem, está em permanente devir, compondo assim uma macro-pólis de
singularidades, que se afetam reciprocamente:
“Para que está aí o ‘mundo’, para que está aí a ‘humanidade’
— isso por enquanto não deve nos afligir, a não ser que
queiramos fazer uma piada: pois o atrevimento do pequeno
verme humano é o que há demais jocoso e de mais hilariante
sobre o palco terrestre; mas para que tu, indivíduo, estás aí? —
isso te pergunto e se ninguém te pode dizê-lo, tenta apenas uma
vez legitimar o sentido da tua existência como que a posteriori,
propondo tu a ti mesmo um fim, um alvo, um ‘para quê’, um
alto e nobre ‘para quê’.”
116
Pode-se perceber então o quão cônscio era Nietzsche da enorme pluralidade destes
indivíduos, destas existências singulares, que não poderiam jamais ser negligenciados em
sua autenticidade, mas que, ao contrário, deveriam ser estimuladas a agir de forma
115
NIETZSCHE, GP, 2002, p.32.
116
NIETZSCHE, F. “Da utilidade e desvantagem da história para a vida”, § 9, In: CE, 1978, p.70.
61
afirmativa e ética, tal qual o guerreiro-herói das tragédias gregas, sendo cada um respeitado
no espaço do cultivo da diferença:
“A diversidade dos homens se mostra não apenas na
diversidade de suas tábuas de bens, isto é, no fato de que
tomem bens diversos como desejáveis e que estejam em
desacordo quanto ao valor maior ou menor, quanto à
hierarquia dos bens reconhecidos por todos — ela se mostra
mais ainda no que consideram que é ter e possuir
verdadeiramente um bem”
117
No caminho da busca pela significação da existência a partir da valorização do
indivíduo enquanto singularidade-membro do tecido sócio-cultural, é que é tecida aquilo
que Nietzsche nomeia como a grande política, através de suas ações, realizadas
micropoliticamente, com a conjugação imanente do racional e do sensível, no conjunto de
singularidades caótico e imprevisível. Grande é um adjetivo que é aqui usado por
Nietzsche no sentido de grandioso e verdadeiramente importante, tal como a grande razão,
ao contrário do racionalismo que se insere no apequenamento do homem. A pequena
política, que para o filósofo é a politicagem dos Estados nacionais, a machtpolitik, que
nega a existência singular e degenera a vida, é o oposto da grande política, que só ocorre
na imanência e adotando a fisiologia como critério de valoração, segundo as palavras do
próprio Nietzsche:
Primeira proposição: a grande política quer tornar a
fisiologia senhora sobre todas as outras perguntas; ela quer
criar um poder suficientemente forte para cultivar (züchten) a
humanidade como um todo e como algo superior, com
impiedosa dureza contra a degenerescência e o parasitário na
vida, — contra aquilo que corrompe, envenena, calunia, faz
perecer... e vê na destruição da vida o desenho de uma espécie
superior de almas
118
.
117
NIETZSCHE, ABM, 1992, § 194.
118
NIETZSCHE, GP, 2002, p. 53.
62
Dessa forma cria-se a condição de possibilidade para que seja tecida uma ética que
não se baseie no trinômio tradicional do contratualismo — regra/vigilância/punição — mas
que seja fundada no próprio embate entre as diferentes singularidades, na agonística, que é
a relação dialógica mais próxima do jogo da arte. Este jogo inclui, em sua própria
concepção, a pluralidade, posto que comporta em si mesmo todas as contradições, sem
intentar suprimi-las: é sério e alegre, essencial e superficial, racional e pulsional, baseia-se
tanto na causalidade quanto no acaso. Como o jogo da criança, que não precisa ocultar o
conflito (princípio primevo da existência) e, por isso, constrói e destrói, teme e se arrisca:
Maturidade do homem: significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao
brincar.”
119
Nietzsche adota os gregos como modelo desse processo descrito de vitalização da
singularidade e da cultura, tal como eles haviam feito, à sua maneira, em seu período de
antigüidade trágica. O filósofo alemão visa, com isso, propor a adoção de novos
paradigmas para a formação do caráter do novo homem, não mais alicerçado em valores
absolutos, transcendentes ou transcendentais — mas estéticos. Isto porque, no interior dos
próprios pilares de sustentação do modo de funcionamento da arte, está a necessidade do
conflito, do embate entre diferentes, a transformação constante, o processo de construção,
desconstrução e reconstrução, o jogo como disputa. Tudo isso, porém, não ocorre sob
objetivos aniquiladores, mas, ao contrário, potencializadores de toda multiplicidade e,
simultaneamente, de toda singularidade:
119
NIETZSCHE, ABM, 1992, § 94.
63
‘Um movimento é incondicional: a nivelação da humanidade,
grandes formigueiros, etc (...) O outro movimento: meu
movimento: é, ao contrário, o aguçamento de todos os
antagonismos e abismos, a eliminação da igualdade, a criação
de Ultra-poderosos. Aquele gera o último homem. Meu
movimento, o além-do-homem.”
120
Ressalta-se, assim, na proposta filosófica de Nietzsche o privilégio do agon,
inerente ao pathos do homem grego, onde a pólis era o lugar por excelência de ser do
homem. Era na pólis que ele realizava a sua performance e, atuando, construía a si mesmo
e, em conjunto, a comunidade — em um processo de ressonância cultural, que objetivava
potencializar suas forças, caminhando, geralmente, em prol da economia do todo. Para
estes gregos trágicos, os valores inerentes ao embate, ao conflito, à disputa eram
imprescindíveis ao âmbito da ação prática, em sociedade, entre pares, posto que eram
constitutivos de sua ontologia, daquilo que é próprio do movimento intermitente e caótico
da existência finita:
E não só Aristóteles, mas a antigüidade grega em geral pensa
de modo diferente do nosso sobre rancor e inveja, julgando
como Hesíodo, que aponta uma Eris como má, a saber, aquela
que conduz os homens à luta aniquiladora e hostil entre si, e
depois enaltece uma outra como boa, aquela que, como ciúme,
rancor, inveja, estimula os homens para a ação da disputa. O
grego é invejoso e percebe esta qualidade, não como uma
falha, mas como a atuação de uma divindade benéfica: - que
abismo existe entre este julgamento ético e o nosso!”
121
Estes valores como o ciúme, a inveja, o rancor, serão profundamente negados pelo
moralismo cristão, gerando, na modernidade, por um lado a abnegação de si, o ascetismo
das regras prescritas na relação com o outro a fim de evitar todo possível combate; ou, por
120
NIETZSCHE, GP, 2002, p.26.
121
NIETZSCHE, F. “A disputa de Homero”. In: Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Rio de
Janeiro: Sette Letras, 1996, p.73.
64
outro lado, o isolamento do indivíduo, o seu movimento apenas em-si-mesmo, buscando a
segurança da estabilidade, do conforto financeiro e da felicidade burguesas, tal como
descreve Ansell-Pearson, alertando para seus perigos:
O perigo dessa degeneração da política, em que a mesma é
dominada pelos interesses de classe da moderna economia
monetária e pela racionalidade instrumental da tecnologia
moderna, é que ela pode levar as pessoas a perderem o
controle político de seus próprios destinos e tornarem-se
politicamente apáticas.”
122
Os valores inerentes ao conflito, ao agon que tanto fomentou a experiência política
enriquecedora dos gregos antigos foram, então, transformados apenas em valores
monetaristas, em uma mera competição financeira e consumista.
A Terra é vista como a macro-pólis: o espaço por excelência do agon do homem,
onde o guerreiro — ou seja, cada singularidade que não se absteve de sua existência
política ativa e questionadora — joga o jogo plural do encontro com o outro. Para tal
Nietzsche parece adotar o modelo do artista:
De súbito desdobra-se a faculdade dominante: o artista
encerrado no político, se retira de seu casulo; ele cria no ideal
e no impossível. Reconhecemo-lo novamente como aquilo que
ele é: o irmão póstumo de Dante e Michel Angelo: em verdade,
em relação aos firmes contornos de sua visão, à intensidade,
coerência e lógica interna de seu sonho, à profundidade de sua
meditação, à força sobre humana de sua concepção, ele é
equivalente a eles e leur égal: son génie a la même taille et la
même structure;”
123
Este espaço de convivência modelar, cujo exemplo é a polis grega, é onde se estabelece o
conflito, o embate, a disputa; adquirindo a sabedoria trágica de que esse caráter antagônico
122
ANSELL-PEARSON, 1997, p.21.
123
NIETZSCHE, GP, 2002, p.36.
65
e conflituoso da vida não pode ser suprimido. A filosofia prática de Nietzsche se apresenta
assim como alternativa ao já saturado caminho de supressão das diferenças e busca por
uma universalidade, utopicamente perseguida por inúmeras ideologias e confirmando as
afirmações, as palavras de Nietzsche:
“Afinal de contas, todos eles querem que se dê razão à moralidade
inglesa, na medida em que justamente com ela é servida melhor a
humanidade, ou o ‘benefício geral’, ‘a felicidade da maioria’,
não! A felicidade da Inglaterra; eles querem provar a si mesmos,
com todas as forças, que aspirar à felicidade inglesa, quer dizer a
confort [conforto] e fashion [estilo] (e, objetivo supremo, um lugar
no parlamento), é também o caminho reto para a virtude, mais
ainda, que toda virtude até hoje havida no mundo consistiu
precisamente em tal aspiração. Nenhum desses graves animais de
rebanho, de consciência agitada (que propõe defender a causa do
egoísmo como causa do bem estar geral), quer saber e sentir que o
‘bem estar geral’ não é um ideal, uma meta, uma noção talvez
apreensível, mas apenas um vomitório — que o que é justo para
um não pode absolutamente ser justo para outro, em que a
exigência de uma moral para todos é nociva.”
124
124
NIETZSCHE, ABM, 1992, § 228.
66
Capítulo II
A política na primeira fase do pensamento de Nietzsche
Pretendemos neste segundo capítulo continuar nos concentrando na valorização do
aspecto político no pensamento de Nietzsche, enquanto parte não só constitutiva, mas
também constituinte e estrutural de sua filosofia. Concordamos neste sentido com Oswaldo
Giacóia Jr., quando este afirma que:
A política não pode ser tomada como um problema marginal,
excrescência de pouca relevância, quando não como uma
aberrante vexata quaestio no interior do programa crítico
nietzscheano. Antes, pelo contrário, interpretamo-la como uma
espécie de precioso fio de Ariadne que, mesmo por atalhos e
veredas labirínticas, pode nos guiar em direção aos problemas
fulcrais da filosofia desse pensador, sobretudo em direção à
tarefa que era considerada por ele como sua mais própria
vocação e destino: a transvaloração de todos os valores.”
125
Neste sentido, esta tarefa de transvaloração de todos os valores-alicerces da cultura
ocidental, que nos constitui a todos, possui um cunho político pelo fato destes
125
GIACÓIA, Osvaldo Jr. Introdução. In: GP, 2002, p.8.
67
alicerces servirem de fundamento para toda ação e interação no espaço público. A
moral está contida em um substrato conceitual e pré-conceitual, instintivo, inerente
a cada cultura, que fornece as categorias sob as quais o indivíduo percebe e
representa aquilo que vivência. Nietzsche foi, então, mais audaz em seus escritos
críticos da moral, arremetendo-se a desmascarar as próprias origens e o peculiar
engendramento da:
Fórmula mais universal, que se encontra na base de
toda e qualquer religião, assim como de toda e qualquer
moral, é: ‘Faze isso e isso, deixa isso e isso! Assim tu te
tornarás feliz!’ No outro caso... ‘Toda moral bem como
toda religião resume-se a esse imperativo, eu o denomino
o pecado hereditário da razão, a razão imortal. Em
minha boca, esta fórmula metamorfoseia-se em seu
inverso.”
126
A política sendo a todo o tempo neste trabalho entendida como tudo o que diz respeito à
vida na polis, à convivência humana, e ao modo de proceder do homem inserido na
imanência, abrangendo, sobretudo, a mais essencial de todas as tarefas: a criação de
valores.
Neste segundo capítulo enfocaremos aquela que é considerada pelos estudiosos
como sendo a primeira fase da produção intelectual de Nietzsche, na época de sua transição
da filologia para a filosofia. Nesta fase proferiu algumas conferências que, posteriormente
publicadas, tornaram-se suas Considerações extemporâneas nas quais debate temas
importantes para a política sob o viés da crítica à educação, à cultura e aos paradigmas
modernos. Data desta época alguns artigos que versam sobre a cultura grega, sobre sua arte
e trajetória, evidenciando suas raízes na filologia, na história, na arte, que são importantes
sob o viés de uma análise política, no sentido de observar como interessavam ao filósofo
126
NIETZSCHE, CI, 2000, p.42.
68
alemão as questões culturais, sociais e mesmo institucionais, destacando textos como O
estado grego e A disputa de Homero. Porém estes textos tornam-se de suma relevância para
a hipótese interpretativa que aqui se delineia sob um outro aspecto: a aproximação que
fazem da esfera da arte a fim de que o homem moderno se espelhe nos gregos trágicos e
adote valores e paradigmas artísticos, aprendendo a existir na imanência, no jogo, no agon,
no conflito, na contracenação.
Também data deste período o primeiro livro de Nietzsche, O Nascimento da
tragédia, no qual não deve ser negligenciada a valorização que o recém-filósofo faz da
experiência coletiva radical, a arte, e especificamente a arte trágica, no livro representada
pela tragédia grega em seu áureo período. O filósofo evidencia a ode que faz da arte e dos
valores artísticos de construção e desconstrução, de não-permanência, de embate de forças,
que serão mais detalhadamente trabalhados ao longo deste capítulo. Nietzsche também
ressalta o valor que a manifestação artística e cultural da tragédia possui enquanto
experiência política, posto que nada mais próprio da polis do que a convivência estreita que
era proporcionada pelos concursos de tragédias e dramas satíricos, tradicional ritual grego
que, como tudo naquela cultura, mesclava religião, arte e política, ressaltando a inevitável
imbricação entre educação, cultura, política e arte:
“grito-lhe que devemos nos ater firmemente aos nossos luminosos
guias, os gregos. (....) Era forçoso que o ocaso desta [tradia
grega] nos parecesse originado por uma dissociação notável dos
dois impulsos artísticos primordiais: ocorrência com a qual estava
em consonância uma degeneração e uma transformação do
caráter do povo grego, e que nos convida a uma séria reflexão
sobre quão necessária e estreitamente entrelaçados estão, em
seus fundamentos, a arte e o povo, o mito e o costume, a tragédia
e o Estado.”
127
127
NIETZSCHE, NT, 1992, p.136-137. [grifos nossos]
69
II.1 Críticas e proposições sobre educação e política educacional:
Desde o início de sua produção intelectual Nietzsche já demonstrava uma
preocupação política, expressa objetivamente em suas reflexões acerca da educação e de
uma política cultural, esta última culminando com as reflexões expressas em O Nascimento
da tragédia. Nesta época o filósofo alemão profere também uma série de conferências
sobre os estabelecimentos de ensino, além de suas Considerações extemporâneas que
inclui, entre outros, um escrito sobre a potência educadora de Schoppenhauer, apresentado
como seu mestre. Por outro lado, em suas pesquisas sobre os gregos pode-se observar seu
interesse sobre a vida prática, sobre a visão de mundo, a produção artística e intelectual do
homem grego, em seu texto O estado grego ou quando reflete acerca da filosofia pré-
platônica. Por fim, a própria preocupação, que já se delineia, de criticar as bases da cultura
européia (judaico-cristã norte-ocidental), refletindo acerca da moral, do monetarismo, do
cientificismo, pode ser interpretada como um dos aspectos importantes do projeto político
nietzscheano: a ruptura com os valores niilistas da modernidade, tais como aqueles que,
fundados na religião, permanecem regendo a existência:
“(...) o terror sagrado com que o leigo não-científico trata a
casta científica, é um terror sagrado herdado do clero. Aquilo
que se dava outrora à igreja dá-se agora, embora com mais
parcimônia, à ciência.”
128
Nietzsche foi um dos filósofos mais críticos dos valores da modernidade e um
dos primeiros a diagnosticar a degeneração desse paradigma, principalmente no que
tange à educação, tanto a questão conceitual, bem como o âmbito da política cultural e
de ensino. Estas eram preocupações constantes em Nietzsche, sempre complementadas
128
NIETZSCHE, “Da utilidade e desvantagem da h istória para a vida”, § 8, In: CE, 1978, p.67.
70
pela sua própria atuação como mestre, estimulando a construção de novos paradigmas
éticos, estéticos, políticos — em contraposição aos valores modernos, em franca
decadência.
Sobre a Educação em Nietzsche, baseamo-nos na compilação de fragmentos
acerca do tema, realizada pela filósofa brasileira contemporânea Rosa Maria Dias, em
seu livro Nietzsche educador. Como um dos maiores entusiastas da arte em seus
primeiros escritos, Nietzsche chegou a visar em NT uma superação dos paradigmas
modernos, operando uma transvaloração destes em valores artísticos, baseados na
criação-desconstrução-reconstrução, propondo a ampliação deste modo de ser artístico
para outras esferas da vida humana. Ao contrário do excesso de cientificidade que
esterilizaria a vida, à arte caberia guardar e transfigurar os segredos da existência finita,
própria do mundo da imanência, do qual o ser humano faz parte, tornando a vida mais
bela e prazerosa – significando e justificando-a. afirmando esta interpretação citamos
Machado:
Pois enquanto a metafísica do artista trágico, em que a
experiência da verdade dionisíaca se faz indissoluvelmente
ligada à bela aparência apolínea, é capaz, com sua música e
seu mito, de justificar a existência do ‘pior dos mundos’,
tranfigurando-a, a metafísica racional socrática, criadora do
espírito científico, é incapaz de expressar o mundo em sua
tragicidade, pela prevalência que dá à verdade em detrimento
da ilusão e pela crença de que é capaz de curar a ferida da
existência.”
129
Entendendo todo esse processo de estar no mundo como algo singular, realizado por
individualidades únicas, Nietzsche, a partir de sua própria experiência como mestre,
entende que a educação não pode limitar-se à informação de uma massa disforme
129
MACHADO, 2005, p. 10-11 (Introdução).
71
de pessoas, como vinha ocorrendo na Alemanha de sua época. O professor não pode,
nesse
sentido, privar-se de tratar seus alunos com respeito às suas diferenças e peculiaridades,
estimulando o desenvolvimento do espírito crítico em cada um, instigando-os a pensar
livremente e a expressar-se de forma autônoma e criativa. Afirma Dias:
Poucos professores foram tão estimados pelos alunos quanto
Nietzsche. Seu temperamento, suas maneiras, o charme de sua
personalidade afável, fascinava-os. Tinha o poder de
entusiasmar os jovens para a disciplina que ensinava.
Excelente professor, não visava ao simples acúmulo de
conhecimento – pelo contrário, insistia no desenvolvimento do
senso crítico e da atividade criadora de cada um. Incitava os
alunos a exprimirem livremente suas opiniões, incentivava-os a
fazerem suas leituras pessoais e as controlava
freqüentemente.
130
O diagnóstico mordaz elaborado pelo filósofo do triste padecimento do sistema
educacional de sua época, muito se assemelha aos dias de hoje, o que reforça a idéia de que
Nietzsche foi realmente um pensador de vanguarda, extemporâneo, pensando sempre à
frente de sua época, um prenunciador. Ainda nas palavras de Dias, Nietzsche:
“observou estar diante de um sistema educacional que
abandonara uma formação humanista em proveito de uma
formação cientificista: a conseqüente vulgarização do ensino
tinha por objetivo formar homens tanto quanto possível úteis e
rentáveis, e não personalidades harmoniosamente
amadurecidas e desenvolvidas.”
131
Nietzsche critica a formação que pasteuriza os jovens — não respeitando suas
diferenças e os interesses próprios — a educação constituída pelo que ele vai denominar
por animal de rebanho. Denuncia também a confusão entre instrumentalização e
130
DIAS, 1993, p.51.
131
Ibid, p.16.
72
capacitação para o mundo do trabalho, e uma efetiva educação, formadora de indivíduos.
Cada tipo de ensino teria o seu lugar na sociedade e, neste ponto, Nietzsche via com
bons olhos a instalação e ampliação das escolas técnicas, mas nunca em detrimento da
formação para a vida, que não pode pretender restringir-se ao mundo do trabalho. Fica
aborrecido também com a pressa em matéria de educação, que mais parece obedecer à
lógica do lucro e da mercadoria.
Já no século XIX, Nietzsche delineava a crise do excesso de conteúdo, distante da
prática de aplicação e significação na vida, que vinha tornando o ensino enfadonho e
puro adestramento. Apontava também a hiperespecialização dos saberes, promovida
pelo ensino, como um dos problemas a ser enfrentado no processo de reformulação dos
paradigmas e, consequentemente, das práticas de ensino-aprendizagem. Talvez o lado
mais cruel dessa ausência de abordagem ampla dos saberes, desse excesso de
especialização, diagnosticado por Nietzsche, se dê na área da educação. O indivíduo já
seria ‘treinado’, em longos anos de vida educacional escolar, para só pensar de forma
compartimentalizada, sem estabelecer um diálogo entre o local e o global. Esse objetivo
limitador é plenamente alcançado com o excesso de fragmentação das disciplinas – para
cada uma um professor diferente, um currículo fechado em si mesmo, uma metodologia
própria. Onde fica a interação entre os saberes? Qual importância é dada à conexão entre
eles e à sua efetividade? Pois é para o mundo e a atuação nele que nos educamos, afinal.
Não há trabalho educativo sem um projeto que o fundamente: um projeto de sociedade e
de cultura, que norteie ações e sirva de paradigma para transformações. Ainda que esse
projeto não seja estático e esteja sempre em construção - ele constituirá, ainda assim, um
paradigma. Mesmo que seja um paradigma cuja configuração vá diferir imensamente
73
das ilhas de certezas sobre as quais nos acostumamos a nos escorar. Sobre isto, afirma
Nietzsche:
Também me esforcei em aprender como se deve ser um
mestre, e não estudar apenas o que se estuda na universidade.
Meu objetivo é tornar-me um mestre verdadeiramente prático e,
antes de tudo, despertar no jovem a reflexão e a capacidade
crítica pessoal indispensável para que eles não percam de vista
o porquê, o quê e o como de uma ciência
”.
132
No interior de uma compreensão filosófica, para que seja possível tentar
transformar esse panorama de superespecialização na educação, é preciso transformar
globalmente a visão de mundo que se tem, assim como do indivíduo, da pessoa, do
sujeito, do cidadão que se quer formar. Nietzsche já detectava, em sua época, problemas
que se perpetuam até os dias de hoje:
“Em que medida, também entre nós, capacitar-se em ganhar
dinheiro não se converteu em sinônimo de adquirir cultura? Em
que medida o ensino profissionalizante e a especialização dos
cursos superiores não se fazem em detrimento da formação
humanística? Em que medida a massificação e o utilitarismo
não se impõem à custa do aprimoramento individual? A estas
questões nenhum educador pode furtar-se.”
133
Em sua obra O nascimento da tragédia Nietzsche propõe a substituição dos
valores modernos, baseados no império da racionalidade cientificista, que recrudescem a
existência, pois desvalorizam o seu lado trágico, negando a ilusão, a mentira, o feio, o
dissonante. Esta legitimação da arte e a crítica aos valores modernos transvalorados por
Nietszsche em valores artísticos, de fortalecimento da vida, podem ser confirmadas em
seu livro Crepúsculo dos ídolos, obra da maturidade, onde adota o modelo do artista e
questiona:
132
NIETZSCHE, 1993, p.26.
133
Ibid, 1993, prefácio.
74
“a arte faz com que se manifeste também algo feio, duro,
discutível da vida — ela não parece com isto dirimir a paixão
pela vida? — E de fato houve filósofos que lhe emprestaram este
sentido: ‘apartar-se da vontade’, ensinava Schopenhauer
enquanto intuito total da arte, ‘estar afinado com a resignação’,
honrava ele enquanto a grande utilidade da tragédia. — Mas
isto – já dei a entender – é uma ótica de pessimista e um ‘mau-
olhado’: precisa-se apelar para os próprios artistas. O que é
que o artista trágico comunica de si? Não é exatamente um
estado sem temor frente ao temível e problemático, que ele
indica? — Esse estado mesmo é algo desejável; quem o conhece
o louva com os louvores mais elevados. Ele o comunica, ele
precisa comunicá-lo, pressuposto que é um artista, um gênio da
comunicação. A valentia e a liberdade do sentimento frente a
um inimigo poderoso, frente a uma sublime adversidade, frente
a um problema que desperta horror — este estado triunfal é
aquele que o artista seleciona, que ele glorifica”.
134
O modelo do artista inspirou Nietzsche também a elaborar um conceito crucial para
a sua visão da educação e sua proposta de transformação da mesma – projeto sobre o
qual se dedica na fase de suas Considerações extemporâneas, na série de conferências
sobre o destino dos estabelecimentos de ensino. Trata-se do conceito de imitação
criadora, sobre o qual deve basear-se tanto a prática docente, como a discente. Não se
trata mais do objetivo de acumular conteúdos inexpressivos e sem vida, apenas repetindo
o que outros pensaram ou realizaram em outras épocas. A imitação criadora pressupõe a
efetiva apropriação do que foi aprendido, não como erudição estéril, mas apreendendo o
fragmento singular que engendra e torna possível cada pensamento:
“Nietzsche propõe uma imitação criadora. Não se trata de
repetir passivamente o modelo, mas de encontrar o que tornou
possível a sua criação – imitar não o pensamento contido no
sistema, mas a atividade criadora que produziu o
pensamento
”.
135
134
NIETZSCHE, CI, 2000, p.81-82.
135
DIAS, 1993, p.76.
75
Somente através dos paradigmas da arte, do jogo artístico, que já pressupõe a
interação e a não-permanência, a dinâmica e a desconstrução, é que será possível ao ser
humano inserir-se no interior desse movimento inevitável da finitude, que é aquilo que
nos é próprio: a transformação, a temporalidade. O artista, como a criança, tem
seriedade ao jogar, ao estabelecer e introjetar regras sempre atuais e artificialmente
construídas. Porém, diverte-se, aprende e se transforma com ele, pois o jogo nunca é
estático e sempre possui um aspecto de incógnita, que pressupõe a aceitação do novo.
No entanto, assim como a obra de arte não é só jorro, êxtase e transbordamento, mas do
mesmo modo limite e medida; também o jogo possui um limite: nunca poder ultrapassar
o mais importante, que é a própria possibilidade de jogar. E só há jogo, se
contracenação, diálogo, embate, conflito, agon. Nas palavras de Dias:
“Por meio dessa educação para a arte, o jovem universitário
seria capaz de, primeiro, contestar a pretensão científica de
tudo conhecer; segundo, conduzir o conhecimento de modo a
fazê-lo servir a uma melhor forma de vida; terceiro, devolver à
vida as ilusões que lhe foram confiscadas; quarto, restituir à
arte o direito de continuar a cobrir a vida com os véus que a
embelezam.”
136
Faz-se necessário ressaltar que os valores do jogo que estão sendo enaltecidos nesta
interpretação que aqui se estrutura, dizem respeito às regras imanentes, em constante
devir, inerentes ao jogo artístico, diferenciando-o de outras modalidades de jogo. Isto
porque estamos operando uma aproximação do conceito de agon, proveniente da
antigüidade grega, e largamente usado por Nietzsche, com o conceito de jogo da arte,
principalmente das artes de performance, especialmente o teatro pelo uso da linguagem
verbal e não-verbal. Isto se justifica porque, primeiramente, o agon diz respeito a um
136
DIAS, 1993, p.102.
76
embate discursivo, baseado na oralidade, a partir da palavra que pode até ser constituída,
fundamentada e estruturada anteriormente, como um discurso previamente elaborado,
mas que, na medida em que está aberta ao debate, sempre irá exceder o esperado,
abrindo-se ao acaso de argumentações periféricas, desmembramentos, perigando
confundir-se em emaranhados conceituais e argumentativo-performáticos, lançada no
abismo, no desconhecido que é o embate com o outro, com a diferença.
Mas apesar desse espírito competitivo, no agon dos gregos não havia a pressuposição de
regras prescritas, mas apenas aquelas imanentes, acordadas e re-alocadas no instante,
que se referem ao estabelecimento da própria possibilidade do embate. Tampouco havia
a pretensão de uma conclusão ou acabamento da discussão, ficando esta sempre aberta a
novos questionamentos e disputas; não havia a dicotomização entre vencedores e
perdedores, mas apenas constantes e renovados rivais, adversários, inimigos. Nas
palavras de Nietzsche:
“consiste em compreender profundamente o valor que possui o
ter inimigos (....). A igreja quis sempre a aniquilação de seus
inimigos: nós, nós os imoralistas e anticristãos, vemos nossa
vantagem em que a Igreja subsista... Também no âmbito político
a inimizade se tornou agora mais espiritual, – muito mais
inteligente, muito mais reflexiva, muito mais indulgente. Quase
todos os partidos se dão conta de que para sua autoconservação
interessa que o partido oposto não perca forças; o mesmo cabe
dizer da grande política. (....) Somente se é fecundo ao preço de
ser rico em antíteses
.”
137
Nietzsche nos propõe este modelo, acima descrito, de valorização do jogo e da
arte, para transformar a educação, fazendo com que nos apropriemos dos paradigmas
dinâmicos em nossas práticas políticas cotidianas e educativas (no âmbito tanto da
137
NIETZSCHE, CI, 2000, “Moral como contra-natureza”, § 3.
77
educação familiar, quanto social, quanto institucional), abrindo mão das ilhas de certeza
que a modernidade e a tradição nos legou, tal como descreve Dias:
“tomar Nietzsche como exemplo significa educar-se
incansavelmente; adquirir uma capacidade crítica pessoal e uma
capacidade de pensar por si;(....) só aprender aquilo que puder
viver e abominar tudo aquilo que instrui sem aumentar ou
estimular a atividade; manter uma postura artística diante da
existência, trabalhando como artista a obra cotidiana;”
138
138
DIAS, 1993, p.115.
78
II.2 Reflexões político-sociais sobre o Estado grego e a cultura grega trágica
Quando Nietzsche escreve O Estado grego sua intenção era esboçar neste escrito a
estrutura de um livro que desenvolveria posteriormente. Não foi o primeiro nem o último
prefácio de Nietzsche para livros nunca escritos. Neste texto curto o filósofo e, à época,
filólogo, esboça a espinha dorsal de uma crítica do Estado visto enquanto instituição
política e cultural. Analisa seus fundamentos e efeitos e, como de costume, adota os gregos
antigos como modelo de vida na polis. Se uma das características que define o que é
próprio do homem é ser político, os gregos trágicos são, na visão de Nietzsche, um povo
pertencente à uma cultura política por excelência:
“No que concerne à altura solar de sua arte, temos que definir
os gregos a priori como os ‘homens políticos em si’; e realmente
a história não conhece nenhum outro exemplo de um
encadeamento tão medonho do impulso político, de um
sacrifício tão incondicional de todos os outros interesses a
serviço deste instinto de estado.”
139
Isto não impediu Nietzsche de tecer ácidas críticas ao que ele denominou como um excesso
de instinto de estado, de coletividade, em detrimento, muitas vezes, da possibilidade de
diferentes modos de vida, originais e não-padronizados, no interior de uma sociedade cuja
esfera pública não fosse tão exacerbada.
Nietzsche começa, então, a refletir acerca dos pilares conceituais sobre os quais se
erige o estado e muitos de seus piores efeitos, que podem ser mais claramente identificados
139
NIETZSCHE. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996, p.53.
79
na modernidade. Dentre estes, interessa-nos ressaltar alguns conceitos a começar pelo de
trabalho, cujo valor simbólico para o estado acentuou-se imensamente após a Reforma
Protestante, que teve a Alemanha de Nietzsche como principal palco de atuação e
disseminação de suas doutrinas e idéias. O trabalho, no contexto dos estados políticos,
torna-se talvez o mais bizarro modo de garantir a sobrevivência da espécie e o ser humano
se sente obrigado a perpetrar esse ato, uma aniquilação da capacidade imaginativa,
construtiva, criativa do ser humano, da sua arte:
“(...) com freqüência, nesse mesmo homem mostram-se ao
mesmo tempo a ambição da luta pela existência e a da
necessidade de arte: de tal fusão anti-natural resultou o esforço
inevitável de desculpar e consagrar aquela primeira ambição
antes da necessidade de arte. Por isso acredita-se na
‘dignidade do homem’ e na ‘dignidade do trabalho’.”
140
O Estado, sob a ótica da primeira fase do pensamento de Nietzsche, está em
oposição ao desenvolvimento das potencialidades artísticas, pois enfoca uma ordem única,
um enaltecimento do bem comum, em detrimento da originalidade, do princípio de
individuação. Ele é visto como a própria atrofia do paradigma do artista, posto que
impossibilita o indivíduo de cunhar sua vida como uma obra de arte — dentro da lógica da
arte, não pode haver uma teleologia pré-determinada que será linearmente perseguida, mas
há que se estar sempre aberto ao acaso, onde não se almeja controle, segurança,
permanência, mas transformação, ruptura, movimento:
“(...) o trabalho é um ultraje – no sentimento da
impossibilidade de que, lutando pela mera sobrevivência, o
homem possa ser um artista.”
141
140
NIETZSCHE. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996, p.44.
141
Ibid, p.45.
80
Um segundo conceito citado por Nietzsche como fundador do estado, tanto
moderno, quanto antigo, que nos é caro enfatizar, é a idéia de igualdade de direitos e
deveres, que é uma das características constitutivas, principalmente daqueles estados
forjados sobre os alicerces iluministas e idealistas da Revolução Francesa:
“Agora ele [o homem] tem que se entreter dia após dia com
tais mentiras transparentes, que todo bom observador
reconhece na pretensa ‘igualdade para todos’ e nos chamados
‘direitos do homem’, do homem como tal, ou na dignidade do
trabalho.”
142
O objetivo principal de Nietzsche é o de denunciar a artificialidade desta falácia, pois para
ele
o impulso para a sociabilidade ainda pode ser muito forte nos homens isolados, mas a
mola de ferro do estado oprime tanto as massas mais numerosas que
143
cria um ambiente
propício a padronizações, à animalização gregária, favorecendo, por exemplo, interesses
de outras ordens, como os interesses consumistas e monetaristas. Falácia esta cuja
efetivação prática se vê estrangulada dada a imensa multiplicidade de seres humanos e suas
diferenças e impermanências.
Na esteira desse esboço de investigação genealógica, Nietzsche acentua os drásticos
efeitos, sobre os seres humanos e seus modos de vida, desse inevitável processo de
mediocrização impetrado pelo modelo de convivência social baseado no estado, tais como,
por exemplo, a perda da marca distintiva de cada individualidade,
Nietzsche “considera
ardentemente o estado como meta e cume de sacrifícios e deveres do homem singular
144
, o
nivelamento de seus gostos, hábitos, desejos. E sempre impondo-se a través da violência,
142
NIETZSCHE. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996, p.45.
143
Ibid, p.51-52.
144
Idem.
81
algo que será tematizado na filosofia pós e entre guerras do século XX, mas que já havia
sido tocada por Nietzsche:
De onde surge, porém, esse poder súbito do estado, cuja meta
está além do exame e além do egoísmo do homem singular?
Como se gerou o escravo, a toupeira cega da cultura? (...) É a
violência que dá o primeiro direito, e não há nenhum direito
que não seja em seu fundamento arrogância, usurpação, ato de
violência.
145
O Estado se torna uma instituição realmente indispensável para aqueles que já não
conseguem criar para si seus próprios sonhos e limites, traçar suas próprias regras e
diretrizes. Em última análise, o Estado torna-se responsável por produzir, difundir e
fomentar esta atitude de aceitação e atrofia do senso crítico, tornando seus cidadãos, por
fim, animais de rebanho, veículos de ódio e destruição à diferença.
“(....) E onde não se podem ver os monumentos de seu
surgimento, terras devastadas, cidades destruídas, homens que
voltaram a ser selvagens, ódio ardente entre povos? O estado,
de nascimento infame, é uma fonte contínua e fluida de fadiga
para a maioria dos homens, em períodos que retornam
constantemente, o archote devorador da espécie humana – e no
entanto um som nos faz esquecer de nós mesmos, um grito de
guerra que entusiasmou incontáveis feitos heróicos
verdadeiros, talvez o objeto mais elevado e digno para a massa
cega e egoísta, que só nos momentos mais monstruosos da vida
do estado tem a estranha expressão da grandeza em sua
face!”
146
Por outro lado, pode-se ressaltar, que já estava contida no prefácio intitulado O
estado grego a mesma interpretação trágica dos gregos antigos, tal como Nietzsche fez,
mais minuciosamente, em O nascimento da tragédia. Esta interpretação trágica passa pela
valorização da cultura trágica, de bases imanentes, por ser uma cultura que integra
145
NIETZSCHE. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996, p.51-52.
146
Idem.
82
diferentes aspectos da vida, os belos e os sublimes, os fáceis e difíceis, os alegres e também
os dolorosos, abarcando a geração, a transformação e o perecimento:
Cada instante
devora o precedente, cada nascimento é a morte de incontáveis seres, gerar, viver e morrer
são uma unidade.”
147
E via essas diferenças não como pólos opostos e excludentes, mas
como partes integradas de uma só totalidade indissociável. Esta cultura trágica, valorizada
por Nietzsche, podemos interpretar, encontra-se
em posição diametralmente oposta aquela
pertencente à cultura alemã, contemporânea a Nietzsche, cujos pilares iluministas
despotencializaram a vida tentando o inexeqüível: acobertar sua tragicidade constitutiva.
Afinal, após a desestruturação completa dos valores-alicerces da instituição do
estado moderno, entendendo “por estado, como já foi dito, a mola de ferro que obriga o
processo social
148
, sobre a árida paisagem política que se nos apresenta após esta
investigação, resta a dúvida: após o crescimento populacional e urbano das concentrações
humanas na modernidade, qual alternativa poderia ser, então, visualizada para substituir a
derrocada desta instituição central no projeto moderno de progresso? Com um estatuto
paradoxal, o Estado nas sociedades desde o período moderno está para além do bem e do
mal, responsável pelas maiores idiossincrasias, mas difícil de nos desatrelarmos dele. Então
percebemos, na prática, a dificuldade de se romper com estes paradigmas, principalmente
aqueles mais enraizados, como os que dizem respeito ao estabelecimento dos estados no
interior do processo social e da tradição cultural ocidental, da qual somos tributários, como
discorre Nietzsche:
“Sem estado, no natural bellum omni contra omnes (guerra de
todos contra todos), a sociedade não pode de modo algum
lançar raízes em uma escala maior e além do âmbito familiar.
Agora, após a formação do estado por toda parte, o impulso do
bellum omni contra omnes, de tempos em tempos, concentra-se
147
NIETZSCHE. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996, p.49.
148
Ibid, p. 54.
83
em terríveis nuvens de guerra dos povos, descarregando-se
como que em trovões e relâmpagos mais raros, mas também
muito mais fortes.”
149
149
NIETZSCHE, F. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996, p. 54.
84
II. 3 Proposta de política cultural em O Nascimento da tragédia
“— Sim, meus amigos, crede comigo na vida
dionisíaca e no renascimento da tragédia.
O tempo do homem socrático passou (...)
Agora ousais ser homens trágicos:
pois sereis redimidos.
150
O livro O Nascimento da Tragédia foi fruto de uma ambição social e cultural maior
de Nietzsche, na época de sua aproximação com Wagner: a disposição em lançar as bases
de uma política cultural para o povo alemão. Nas esteiras do que havia sido iniciado anos
antes por Winckelmann, Lessing, Schiller, Goethe, o objetivo de Nietzsche naquela época
era refletir sobre a força dos gregos para lançar, imbuído desta inspiração, as bases de uma
reconfiguração e fortalecimento da cultura alemã. A partir dos constantes encontros na casa
de Richard Wagner, Nietzsche via-se influenciado por este espírito de volta aos gregos, mas
principalmente nos moldes das orientações deixadas por Winckelmann: imitar os gregos
para nos tornarmos inimitáveis. E é isto o que ele denuncia em seu livro: o apogeu, a
decadência e o ostracismo da cultura grega antiga, trágica, representada pelo símbolo da
tragédia ática, e a possibilidade de renascimento dessa sabedoria, através do espírito da
música, transformando a cultura alemã de sua época, que era estéril no diagnóstico de
Nietzsche:
“Não há nenhum outro período artístico em que a assim
chamada cultura e a genuína arte tenham sido tão
alheadas e tão distanciadas, uma em relação à outra,
como o que vemos com os nossos próprios olhos no
presente.”
151
150
NIETZSCHE, NT, 1992, p.123.
151
Ibid, 1992, p.121.
85
Essa sabedoria trágica era a força identificada por ele na cultura grega, que se
expressava através do advento das tragédias, que eram entendidas por Nietzsche
como representatividade cultural máxima do povo grego antigo. Nietzsche cria que
ele teria sido um dos poucos que estudou a cultura grega antiga com um
distanciamento indispensável para não entender o retorno aos gregos como a mera
cópia de um modelo, mas como algo a ser percebido com acuidade e transfigurado,
na busca pelo pátrio próprio a cada povo, posto que
somente dos gregos é possível
aprender o que semelhante despertar miraculoso e inopinado da tragédia deve significar
para o fundo vital mais íntimo de um povo
.”
152
Nietzsche afirmou que toda a cultura
trágica que ele defendia em seus escritos já teria sido realidade um dia, referindo-
se à época áurea dos gregos antigos, seus precursores.
Pensava o filósofo extemporâneo que os modelos são indispensáveis, mas
não para serem simplesmente copiados, porém apropriados e adaptados às
necessidades de cada época e perspectiva, cujas diretrizes seriam fornecidas apenas
na imanência de cada momento atual. Por isso Nietzsche propunha que fossem
efetuadas profundas adaptações na forma de realizar esse retorno aos gregos,
afinal, entendia o modo de ser dos gregos antigos e o dos modernos como distintos.
Como vimos, para Nietzsche toda imitação válida teria que ser sempre uma
imitação criadora, senão se transformaria, automaticamente, apenas em cópia estéril,
efetuada por animais de rebanho. Essa nova forma de apropriação da sabedoria trágica
grega, expressa nas tragédias, tal como Nietzsche propôs, segue o conceito de imitação
152
NIETZSCHE, NT, 1992, p.123.
86
criadora (detalhado anteriormente), como um modo singular de apropriação, deixando-se
influenciar pelos mestres sem que isso se dê em detrimento de sua própria atividade autoral.
O renascimento da tragédia através do espírito da música significava, para Nietzsche,
uma forma de se apropriar dos gregos, criativa e transformadora, que se daria, de modo original,
através da música, como chave para fazer renascer esse saber trágico, que um dia havia sido
possível, trazendo-o para o seio da cultura alemã, que tentava se descobrir e se configurar,
criticando figuras importantes no cenário nacional alemão pela equivocada forma de voltar aos
clássicos gregos antigos. Nietzsche diz:
“se heróis como Schiller e Goethe não conseguiram arrombar
aquela porta encantada que conduz à montanha mágica
helênica, se, com todo o empenho decidido, não chegaram
mais longe do que aquela mirada nostálgica (...) que
esperança restaria aos epígonos de semelhantes heróis, se a
porta, de repente, não se lhes abrisse por si mesma, em um
lado de todo diferente, não tocado até agora por todos os
esforços da cultura – sob os sonidos místicos da ressuscitada
música trágica?”
153
Saber trágico esse que propunha, já de início, a contenção do espírito científico
desmedido, e mostrava-se para Nietzsche como a única possibilidade de uma existência saudável,
pela afirmação incondicional da vida que propunha, afirmação esta que se faz possível apenas na
manutenção das contradições, das diferenças, inerentes ao reconhecimento da tragicidade
constitutiva da existência. Esta atitude, este caráter mesmo do povo grego deveria ser, de algum
modo, redimensionado e apropriado pelos alemães do século de Nietzsche a fim de trazer novos
alicerces, novo fôlego e novos caminhos para um povo que tateava na tentativa de construir sua
identidade cultural, cometendo equívocos cruciais, apontados por Nietzsche de modo incansável:
“Com esse conhecimento se introduz uma cultura que me
atrevo a denominar trágica: cuja característica mais
importante é que, para o lugar da ciência como alvo
supremo, se empurra a sabedoria, a qual, não iludida
pelos sedutores desvios das ciências, volta-se com olhar
fixo para a imagem conjunta do mundo e com um
153
NIETZSCHE, NT, 1992, p.122.
87
sentimento simpático de amor procura apreender nela o
eterno sofrimento como sofrimento próprio.”
154
As tragédias antigas foram interpretadas por Nietzsche como fontes
originárias de um saber trágico, que ele pretendia revigorar com seus escritos: “o
que esperamos do futuro já foi uma vez realidade – em um passado que tem mais
de dois mil anos”.
155
Nietzsche diagnosticou, assim, como um dos principais males
das sociedades modernas, em comparação com a força e o vigor da cultura grega
pré-socrática, a desvalorização da arte, da experiência cultural tradicional,
popular, enraizada, que exibe as características mais genuínas da identidade
cultural de um povo. Esta desvalorização vem, em geral, acompanhada de um
excesso de abstração que, pela fragilidade da arte do mito, de um ritual social e
cultural coletivo, finda por mecanicizar as relações entre as pessoas, pasteurizando
seus comportamentos, desestabilizando fontes vitais de vigor e força dos homens.
Pois para Nietzsche era justamente essa capacidade arrebatadora do mito que era o
mais vigoroso de toda cultura, sua capacidade de representação, de criação de
códigos comuns e de educação. Essa força mítica era, no caso da cultura grega
antiga, expressa através das tragédias gregas:
“Sem o mito toda cultura perde sua força natural sadia e
criadora: só um horizonte cercado de mitos encerra em unidade
todo um movimento cultural. Todas as forças da fantasia e do
sonho apolíneo são salvas de seu vaguear ao léu apenas pelo
mito. As imagens do mito têm que ser os onipresentes e
desapercebidos guardiões demoníacos, sob cuja custódia cresce a
alma jovem e com cujos signos o homem dá a si mesmo uma
interpretação de sua vida e de suas lutas: e nem sequer o Estado
conhece uma lei não escrita mais poderosa do que o fundamento
154
NIETZSCHE, NT, 1992, p.111. [grifo nosso]
155
NIETZSCHE, F. “O Drama musical grego”, apud: ROBERTO, Machado. Zaratustra, Tragédia
Nietzschiana. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
88
mítico, que lhe garante a conexão com a religião, o seu crescer a
partir de representações míticas.”
156
Nietzsche reflete ainda sobre a mediocrização da cultura européia, e especialmente
a alemã de sua época, o nivelamento por baixo da espécie homem, com o animal de
rebanho e, por outro, tendo o homem do cientificismo, o sujeito moderno do conhecimento,
como modelos de atuação social. Nietzsche relaciona essa patologia social com o excesso
de abstração racional e o pouco de experiência cultural, artística, mítica, trágica:
“Coloque-se agora ao lado desse homem abstrato, guiado sem
mitos, a educação abstrata, os costumes abstratos, o direito
abstrato, o Estado abstrato; represente-se o vaguear desregrado,
não refreado por nenhum mito nativo, da fantasia artística;
imagine-se uma cultura que não possua nenhuma sede originária,
fixa e sagrada, senão que esteja condenada a esgotar todas as
possibilidades e a nutrir-se pobremente de todas as culturas”
157
156
NIETZSCHE, NT, 1992, p. 135.
157
Idem.
89
II.4. A política intrínseca a O Nascimento da tragédia
Em O nascimento da tragédia observamos dois eixos centrais que entendemos ser
de grande relevância política: a crítica aos paradigmas da modernidade, atitude que
Nietzsche realiza já neste livro com ímpeto e acidez, que vem acompanhado de uma
valorização de outros aspectos da vida, como a arte (este ponto será melhor desenvolvido
no próximo capítulo). O outro eixo é o novo modelo, proposto pelo filósofo, de inter-
relação entre os seres, de co-existência na diferença, na pluralidade de valores e modos de
ser, que se dá através da co-presença entre os princípios apolíneo e dionisíaco, princípios
sobre os quais erige-se sua interpretação ontológica das tragédias antigas. Esta valorização
da diferença possibilitou que Nietzsche fizesse uma ode aos espíritos livres — os
transvaloradores de todos os valore por excelência — como uma ode às novas formas de
vida que estão sempre reinventando-se, criando a si mesmas — abrindo assim infinitas
possibilidades e modos de ser, em contraposição ao homem moderno, animal de rebanho, e
sua moral universal. O conceito de animal de rebanho entendido aqui, no contexto
nietzscheano, como o próprio homem tributário da moral cristã e\ou do cientificismo, o
homem moderno por excelência, marcado por uma padronização de conduta, que segue
valores exteriores a si, calando seus desejos e sufocando seus instintos. Este homem é
guiado, na maioria das vezes, por interesses díspares dos seus, mas que ele segue a fim de
garantir aceitação e inserção na coletividade — que, em última instância, também adota
este critério para adesão: a semelhança, a incorporação da prescrição, o “bem-estar geral”.
90
II. 4. 1 Crítica aos paradigmas moral e científico da modernidade e valorização da arte e da
cultura trágicas
Nietzsche era um jovem filólogo de carreira brilhante que ocupava o cargo de
professor de filologia clássica na Universidade da Basiléia, lecionando sobre os gregos
antigos. O filósofo surpreendeu profundamente seus companheiros de profissão com seu
primeiro livro, em que fazia uma audaz crítica à ciência e uma radical ode à arte e à uma
filosofia trágica, bem como se apropriava do modelo grego para pensar a política cultural
alemã de sua época.
Rohde, filólogo e amigo pessoal de Nietzsche, elaborara uma resenha que fora
publicada em um jornal da época, onde evoca o surgimento de um caminho, através de O
Nascimento da tragédia, para uma nova prática filológica, mais ousada que a
tradicionalmente aceita na Academia. Falava de uma maior liberdade do fazer científico,
filológico, que, infelizmente, parecia ter se esterilizado, distanciando-se da arte, sua
verdadeira inspiração. Avisava que o livro mesclava arte e filosofia com filologia. Esse
novo modo de fazer filologia, valorizado por Rohde e Nietzsche, aproxima esse campo do
saber à estética, privilegiando a abordagem da cultura grega antiga através das suas
produções artísticas e filosóficas, deixando clara a valorização do híbrido, trabalhando em
comunhão com a arte e em diálogo com a filosofia da arte, rompendo assim com o excesso
de fragmentação das metodologias científicas e superando a tentativa de pureza e
91
isolamento da prática filológica. “Nesse livro o leitor encontra associados o estudo da
antigüidade helênica e a consideração filosófica da arte.”
158
O que há sob a superfície do livro O Nascimento da tragédia são diferentes
perspectivas acerca do que é conhecimento, a valorização do híbrido como metodologia
mais apropriada para a busca de um conhecimento que seja vivo e significativo e possa ser
efetivamente apropriado por aquele que o constrói, e não mera repetição de algo exterior —
enfim, uma possibilidade de abertura para a interdisciplinaridade do saber. Neste livro se
começa a perceber que não é só flerte a relação de Nietzsche com a filosofia — e a arte
como sua musa inspiradora — evidenciando os alicerces de sua crítica ao racionalismo e ao
cientificismo; entendendo sempre essa crítica nietzscheana não como uma crítica ingênua à
razão, mas ao racionalismo que finda por desvalorizar todos os outros aspectos da
existência, também inerentes à vida, que escapam à razão — assim como o cientificismo,
enquanto atitude extremada de colocar a ciência como o discurso próprio da verdade, como
dogma:
“(...) em todo o caso um novo problema: hoje eu diria que foi o
problema da ciência mesma — a ciência entendida pela
primeira vez como problemática, como questionável. (...)
Edificado a partir de puras vivências próprias prematuras e
demasiado verdes, que afloravam todas à soleira do
comunicável, colocado sobre o terreno da arte — pois o
problema da ciência não pode ser reconhecido no terreno da
ciência.”
159
Neste trecho destacado do livro em questão pode-se observar como o pensamento
nietzscheano se insere neste hibridismo, propondo a análise do problema da ciência, por
exemplo, fora da sua esfera própria, costumeira – assim como Nietzsche propõe, em
parte subseqüente à anterior, também em O nascimento da tragédia: “ver a ciência com
158
ROHDE, E. In: MACHADO, Roberto (org.). Nietzsche e a polêmica sobre O Nascimento da tragédia. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2005, p.44.
159
NIETZSCHE, NT, 1992, p.15.
92
a óptica do artista, mas a arte, com a da vida...
160
. Este hibridismo valorizado por
Nietzsche, próprio da vida e da natureza em seu movimento caótico e não-sequenciado,
se coloca como contraponto ao excesso de especialização, tão denunciado pelo filósofo,
que pode ser considerado como mais uma conseqüência da fragmentação proposta pelo
pensamento cartesiano, que foi generalizado no período positivista às diversas áreas da
atuação humana. De maneira geral, o indivíduo moderno pensa, tanto em si, quanto no
mundo, de forma compartimentada, o que transforma a solução dos problemas em meros
‘curativos’ pontuais, setorizados. Isso pode ser observado como fenômeno típico de
áreas sociais cruciais, como a saúde, a economia e a educação, mas também na própria
relação do indivíduo consigo mesmo.
A idéia de fragmentar para melhor conhecer e apreender, que embasou o método
científico responsável pela fundamentação da ciência, tal como a concebemos até hoje,
por um lado facilitou, e até mesmo possibilitou, um maior conhecimento e
sistematização da natureza, do homem e da sociedade. Porém, por outro lado, acarretou
uma radical setorização dos saberes. Há, possivelmente, um objetivo político que fica
evidente neste excesso de fragmentação: as supostas soluções para os problemas sociais,
econômicos e culturais são procuradas no interior dos estados nacionais, pontualmente,
quando há uma efetiva globalização das relações comerciais e econômicas, de um modo
geral. O próprio indivíduo passou a funcionar apenas dessa maneira desarticulada,
culminando na dificuldade de integrar, conectar, comunicar, entrelaçar, permear as
diferentes áreas do saber e da ação, onde teoria e prática vêem-se dicotomizadas. Dessa
forma, o que parece prevalecer, segundo os escritos nietzscheanos, é um excesso
de logicização que tenta sobrepujar outras possíveis formas de conhecer, acarretando
160
NIETZSCHE, NT, 1992, p.15.
93
um utilitarismo e um individualismo na relação do homem para com a vida, com o
mundo, com o outro e consigo mesmo. Ao contrário do pessimismo saudável dos gregos
antigos, do conhecimento trágico que eles possuíam, anterior ao racionalismo socrático,
marca dos tempos do ocaso da cultura grega, segundo as palavras do próprio filósofo
alemão:
E se, por outro lado e ao contrário, os gregos, precisamente
nos tempos de sua dissolução e fraqueza, tivessem se tornado
cada vez mais otimistas, mais superficiais, mais teatrais, bem
como mais ansiosos por lógica e logicização, isto é, ao mesmo
tempo ‘mais serenojovais’ e ‘mais científicos’? Como? Poderia
porventura, a despeito de todas as ‘idéias modernas’ e
preconceitos do gosto democrático, a vitória do otimismo, a
racionalidade predominante desde então, o utilitarismo prático
e teórico, tal como a própria democracia, de que são
contemporâneos — ser um sintoma da força declinante, da
velhice abeirada, da fadiga fisiológica? E precisamente não
o pessimismo
?”
161
Nietzsche critica assim os valores modernos que soam consensuais, tais como a
democracia, o otimismo, a lógica como regra, a predominância do racionalismo, o
utilitarismo — classificando-os como sintomáticos da decadência da força e da
vitalidade do ser humano e, por conseqüência, da cultura. Aproximamos aqui este
hibridismo ao conhecimento trágico do homem, sua capacidade de conjugar o apolíneo e
o dionisíaco, transbordamento e medida, arte e ciência, aspectos belos, sublimes e
grotescos da vida, a diversidade, a pluralidade, sem tentar escamotear o feio, a dor, o
sofrimento, vivendo sobre a imanência e o devir. Segundo Nietzsche:
“Com esse conhecimento [trágico] se introduz uma cultura que
me atrevo a denominar trágica: cuja característica mais
importante é que, para o lugar da ciência como alvo supremo,
se empurra a sabedoria, a qual, não iludida pelos sedutores
desvios das ciências, volta-se com olhar fixo para a imagem
conjunta do mundo e com um sentimento simpático de amor
161
NIETZSCHE, NT, 1992, p.18.
94
procura apreender nela o eterno sofrimento como sofrimento
próprio.”
162
No livro O Nascimento da Tragédia o que Nietzsche propõe é um conhecimento
híbrido, que não abandone o conhecimento histórico e o rigor científico, mas que se
deixe permear pela arte e pela filosofia, permitindo ao ser humano ousar mais, ser mais
criativo — e não apenas repetidor de teses de outrem, já amplamente aceitas e
divulgadas. Justamente por ser extemporâneo, ou seja, por enxergar à frente de seu
tempo, por conseguir analisar não só as circunstâncias, mas os jogos de interesses que as
determinam, Nietzsche pode visualizar a incipiente decadência do modelo lógico-
cientificista da modernidade, baseado na atomização dos seres e dos saberes, propondo,
então, retomar a visão do todo, da totalidade que só existe porque se baseia em partes
suplementares que se encontram profundamente imbricadas, algo que se vem perdendo
mais e mais pelo excesso de fragmentação da metodologia científica. Nietzsche visava,
assim, colocar a ciência em seus devidos limites, circunscrevendo-a as esferas às quais é
pertinente e importante a sua atuação, tal como as:
(...) grandes naturezas, com disposições
universais,[que] souberam utilizar com incrível sensatez
o instrumento da própria ciência, a fim de expor os
limites e condicionamentos do conhecer em geral, e com
isso, negar definitivamente a pretensão da ciência à
validade universal e a metas universais
163
Toda a crítica radical que Nietzsche fará posteriormente, na Genealogia da
moral, à dogmática religiosa, à moral do ressentimento e da ascese, pés de sustentação
do processo de derrocada do arcabouço conceitual moral da modernidade — crítica que
162
NIETZSCHE, NT, 1992, p.111.
163
Ibid, p.110.
95
é parte do projeto nietzscheano de transvaloração de todos os valores — já pode
claramente ser antevista em O Nascimento da tragédia: “Aqui nada há que lembre
ascese, espiritualidade e dever, aqui só nos fala uma opulenta e triunfante
existência
164
. Nietzsche deixa transparecer essa crítica à cultura ocidental científica-
cristã, que tenta reprimir o trágico inerente à própria existência, também através da ode
que faz ao modo de ser dos gregos e sua tragicidade constitutiva, que os possibilitava
viver de forma afirmativa a vida. Diagnóstico inverso Nietzsche fazia para o mundo
cristão ocidental, cujos valores ascéticos e a “vontade de sistema, [que, para ele,] é uma
falta de retidão”
165
, distanciavam o homem do mundo, da vida, da existência material,
donde ele afirmou posteriormente, em Crepúsculo dos ídolos: “Desconfio de todos os
sistemáticos e me afasto de seus caminhos.”
166
, preferindo o conhecimento e a forma de
se relacionar com a vida mais imanentes e plurais, cujo funcionamento se insere na
própria transformação, no devir, e, portanto, menos sistemáticas e especializadas.
164
NIETZSCHE, NT, 1992, p.36.
165
NIETZSCHE, CI, § 26, p.13.
166
Idem.
96
II.4.2 Valorização da diferença: novo modelo de relação não excludente
A originalidade de Nietzsche no seu movimento de volta aos gregos não era nem o
elevado valor atribuído à tragédia, nem sua interpretação através de uma duplicidade de
forças antagônicas, de um dualismo
167
. A Grécia antiga já havia sido traduzida, antes de
Nietzsche, pela serenidade e beleza apolíneas, mas este filósofo inova ao valorizar também
um outro lado, sombrio e mais primordial, representado pelo princípio dionísiaco. Para
Nietzsche e os alemães de sua época a tragédia era uma arte superior que exprimia uma
sabedoria trágica ontológica e ele representou os princípios antagônicos, sobre os quais
erigia-se essa arte, como os princípios apolíneo e dionísiaco — a oposição que se
estabelece aqui é entre, por um lado, a beleza e a medida apolíneas, e por outro, a
desmesura da embriaguez dionisíaca. Estes dois conceitos são, no entender do filósofo
intempestivo, pulsões artísticas inerentes ao que há de mais propriamente ontológico na
constituição da vida e do mundo — são expressões estéticas que brotam da própria
natureza:
“Até agora examinamos o apolíneo e o seu oposto, o
dionisíaco, como poderes artísticos que, sem a mediação
do artista humano, irrompem da própria natureza, e nos
quais os impulsos artísticos desta se satisfazem
imediatamente e por via direta”
168
.
Porém o verdadeiro salto que Nietzsche deu, para além das outras interpretações
filosóficas das tragédias gregas, foi de conteúdo, pois diz respeito à peculiaridade de sua
167
Acerca deste assunto ver Peter Szondi em seu livro Ensaios sobre o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.
168
NIETZSCHE, NT, 1992, p.32.
97
ontologia, ontologia esta que abarca as diferenças, que é dinâmica e por isso se constrói e
reconstrói no tempo, em uma agonística com a imanência Para Nietzsche não só as
tragédias gregas representavam uma sabedoria ontológica, seguindo a linha
do movimento do idealismo alemão que o antecedeu, mas essa sabedoria só poderia ser
expressa por essa arte porque era uma sabedoria trágica e não dialética, como assegurariam
Schelling e Hegel. Afinal, ao longo de todo O Nascimento da tragédia, Nietzsche deixa
clara a relação que propõe entre os princípios apolíneo e dionisíaco, que traduzem a
dualidade da existência mesma, em sua mistura entre beleza e terror, medida e desmesura:
é uma relação de co-presença, e não de fusão ou síntese — como o encaminhamento
previsível de todo modelo de relação dialética. Para Nietzsche, entre esta dualidade de
pulsões estéticas da natureza a luta, o jogo, o conflito não finda, não se harmoniza em uma
nova unidade, existindo apenas reconciliações temporárias.
“Teremos ganho muito a favor da ciência estética se
chegarmos não apenas à intelecção lógica mas à certeza
imediata da introvisão de que o contínuo desenvolvimento da
arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco da
mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos
sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas
reconciliações.”
169
A eterna tentativa de conciliação, inconstante e sempre conflituosa, das divindades
Apolo e Dioniso, que faz surgir a arte trágica, onde Dionísio fala a linguagem de Apolo,
mas Apolo, ao fim, fala a linguagem de Dionísio
170
, é a própria expressão da
contradição primordial da existência, que determina a sua tragicidade. Contradição que se
estabelece entre a individuação (representada pelo princípio apolíneo) e o uno-originário
169
Ibid, p.27. [grifo nosso]
170
NIETZSCHE, NT, 1992, p. 130.
98
(representado pelo dionisíaco) — onde há a dissolução do principium individuationis na
unidade informe.
“Com efeito, quanto mais percebo na natureza aqueles
onipotentes impulsos artísticos e neles um poderoso anelo pela
aparência, pela redenção através da aparência, tanto mais me
sinto impelido à suposição metafísica de que o verdadeiramente
existente e Uno-primordial, enquanto o eterno padecente e
pleno de contradição necessita, para a sua constante redenção,
também da visão extasiante, da aparência prazerosa”
171
Essa preocupação estrutural nietzscheana em não propor uma relação dialética entre
os pilares sobre os quais repousa sua ontologia trágica, pode parecer em um primeiro
momento pouco relevante, mas traz em si o embrião de uma valorização da diferença, da
pluralidade de modos de vida. Este que pode parecer um pequeno detalhe de uma
interpretação ontológica, alicerçará, após amadurecimentos e transformações em sua
filosofia, os escritos tardios onde Nietzsche critica radicalmente a padronização dos seres
humanos como animais de rebanho, fazendo uma ode àqueles legisladores de si, capazes
de criar critérios e paradigmas que não sejam universais, mas originais, e de justificá-los
com a sua própria existência — os espíritos livres.
Em nossa interpretação Nietzsche esgarçou a possibilidade de uma lógica
dialética, uma vez que, na tentativa vã de realizar uma síntese dos pólos
contraditórios (apolíneo-dionisíaco) em um terceiro termo aos moldes do
movimento descrito por Hegel como aufhebung
172
, Nietzsche teria sido incapaz de
171
Ibid, p.39.
172
Em seu livro Fenomenologia do espírito, Hegel narra esse processo dialético, traduzido para o português
como superação, que ele denomina como aufhebung, cujo significado é uma transformação que se opera no
interior da dicotomia entre os dois pólos, anteriormente delineados, através dos quais estes se fundem em um
terceiro termo – a síntese, composta principalmente pela absorção daquilo considerado positivo e da
dissolução do que for negativo, na busca pela identidade, tal como as palavras de Hegel: Aqui a aparência se
torna igual à essência.” (p.73), ou da apresentação de Henrique Cláudio de Lima Vaz (2
a
edição): “A
necessidade imposta ao discurso de mostrar na seqüência das experiências o desdobramento de uma lógica
que deve conduzir ao momento fundador”, p. 10. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1992.
99
de realizar a operação simplista de reduzir a diversidade do real à identidade.
Incapaz porque percebeu que o movimento dialético, em última instância, suprime
as diferenças na busca por novas (ou velhas?) unidades, embora, em um primeiro
momento, pareça ser um movimento revolucionário — ele apenas reforma, mas não
altera muito a lógica binária que tradicionalmente coordena o saber humano. Na
perspectiva de Nietzsche os pólos opostos da contradição se mantêm em sua força
e a busca é então pelo convívio, pela coexistência das múltiplas características
opostas e até mesmo contraditórias. E ainda que esta coexistência de forças
distintas entre o mesmo e o diferente, seja difícil e sempre instável, ele é alcançado
no intervalo do instante, no interior mesmo de uma eterna luta, de um eterno agon
como o embate vigoroso entre duas potências em um conflito sem possibilidade
de resolução.
Esse caminho construído por Nietzsche é aqui entendido como a busca de
uma relação entre esses princípios fundamentais que não os subjugue, nem suprima
a pluralidade, mantendo a importância de cada um para a totalidade. Deixa-nos,
assim, a evidência, já em seu primeiro livro, de que a dialética, com a sua
tendência de supressão do que há de ‘negativo’, com a culminância em um
processo de síntese que, em última instância, não mantém a singularidade dos
diferentes — não se configura como uma saída efetivamente possível para a
harmonização entre os pólos, sem a redução de ambos a uma identidade.
Nietzsche caminhou para a percepção de que a relação entre esses princípios
em oposição é necessária, e a manutenção dessa relação é indispensável à própria
vida e existência, apresentando-se sob a forma de uma coexistência de ambos, algo
100
que ele nomeou, metaforicamente, como união conjugal. União essa que não
significa uma fusão entre os termos opostos, mas sua suplementaridade, permitindo
um movimento paradoxal, livre, vigoroso e intermitente entre os pólos das
oposições, que traduzem o próprio movimento da vida:
“Aproximamo-nos agora da verdadeira meta de nossa
investigação, que visa ao conhecimento do gênio apolíneo-
dionisíaco e de suas obras de arte ou, pelo menos, à
compreensão intuitiva do mistério dessa união.”
173
Nietzsche delinea, então, a relação que há entre essas duas pulsões artísticas
que lutam em constante embate, e do movimento que daí se origina, ininterrupto e
conflitante, entre os pólos em oposição, responsável pela produção de toda a
multiplicidade do real. Para Nietzsche esses princípios são ontológicos e
percebidos como duas pulsões estéticas da natureza, que são complementarmente
opostas e dão origem, em última instância, não só à arte, mas à própria vida.
Ao mostrar-se em sua forma bruta, dissociado do apolíneo, o dionisíaco é
bárbaro e pode aniquilar o indivíduo pela visão do lado horrível e obscuro inerente
a cada fragmento de individuação, constituintes, em última instância, da própria
totalidade, quando gerada no tempo da finitude. O apolíneo e o dionisíaco se
mostram assim como inerentes à própria natureza e, consequentemente, ao próprio
ser humano, coexistindo, com prevalência ora de um, ora de outro, de acordo com
a peculiaridade de cada instante:
“No entanto, daquele fundamento de toda a existência, do
substrato dionisíaco do mundo, só é dado penetrar na
consciência do indivíduo humano exatamente aquele tanto que
pode ser de novo subjugado pela força transfiguradora apolínea,
de tal modo que esses dois impulsos artísticos são obrigados a
173
NIETZSCHE, NT, 1992, p.34. [grifo nosso]
101
desdobrar suas forças em rigorosa proporção recíproca,
segundo a lei da eterna justiça.”
174
O resultado dessa co-existência entre diferentes, cuja harmonia se dá apenas
no instante, seria o próprio trágico, no interior do qual não pode haver a supressão
deste nítido espaço da diferença.
Isto se torna evidente, afinal, Nietzsche não consegue efetuar essa fusão
dos termos em que a diferença é negada, e finda por manter a oposição, propondo
uma coexistência entre os princípios, que seja capaz de preservar as
características e o espaço próprio de cada impulso artístico da natureza. Por
concebê-los como indispensáveis para o próprio ‘engendramento’ da vida, eles
não podem ser fundidos dando origem a um terceiro termo, que, evidentemente,
não é nunca capaz de dar conta da diversidade antagônica do real, posto que é
sempre reduzido a uma nova identidade. Mantêm-se assim a difícil relação entre
os princípios apolíneo e dionisíaco, relação essa que Nietzsche vai batizar com
muitos nomes diferentes: “misteriosa união conjugal”
175
, “recíproca necessidade”
176
,
“luta incessante”
177
, “periódicas reconciliações”
178
, “aliança fraterna”
179
,eterno
contraditório
180
,conflito insolúvel”
181
, “imensa oposição abismal”
182
. Onde se
preconiza a coexistência de ambos os princípios: um existindo somente porque
aprende a viver ao lado do outro, com o diferente, no espaço do próprio conflito.
174
NIETZSCHE, NT, 1992, p.143-144. [grifo nosso]
175
Ibid, p.42.
176
Ibid, p.40.
177
NIETZSCHE, NT, 1992, p.27.
178
Idem.
179
NIETZSCHE, NT, 1992, p.129-130.
180
Ibid, p.40.
181
Ibid, p.72.
182
Ibid, p.97.
102
Toda essa operação de supressão das diferenças torna-se de difícil
operacionalização no interior da obra nietzscheana, mesmo em seu primeiro livro,
aqui privilegiado. De início, recorremos ao fato de que a oposição fundamental
apolíneo-dionisíaco, não pode ser devidamente traduzida pelos termos formais de
tese e antítese. Nenhum dos dois princípios artístico-ontológicos pode ser
entendido como negativo, posto que, no interior do pensamento trágico de
Nietzsche, ambos os princípios afirmam a vida, ainda que cada qual à sua maneira.
Efetuando uma análise cuidadosa de O Nascimento da tragédia pode-se
perceber, enfim, que a tentativa de reconciliação, sobre a qual Nietzsche se
debruça, chegando a citá-la textualmente, não segue os moldes da dialética
idealista, mas uma coexistência entre diferentes, posto que mantém a peculiaridade
e a importância de cada princípio. Nietzsche, ao efetuar uma nova forma de co-
existência, de inter-relação no interior do próprio conflito — posto que necessita
da manutenção do espaço deste — valoriza o embate, o agon, a disputa, o próprio
conflito. Este é o modo de não negar as diferenças, mas sim, de propor a recíproca
necessidade ente os diferentes, que são no livro representadas pelos dois termos da
oposição (Apolíneo—Dionisíaco), o que finda por estrangular a lógica dialética,
evidenciando sua tendência para a ‘mesmidade’. A ‘reconciliação’ nietzscheana
não suprime a oposição, mas percebe que, para a plena existência abundante de
cada princípio, o seu oposto, o seu adversário, o seu rival tem que estar ao lado,
em uma relação de concomitância, na busca infinita pela harmonização, nunca
plenamente atingida, posto que é a própria medida desmesurada, posto que sempre
desigual e fugaz, entre ambos:
103
Essa reconciliação é o momento mais importante na
história do culto grego: para onde quer que se olhe,
são visíveis as revoluções causadas por este
acontecimento. Era a reconciliação de dois
adversários, com a rigorosa determinação de respeitar
doravante as respectivas linhas fronteiriças e com o
periódico envio mútuo de presentes honoríficos: no
fundo, o abismo não fora transposto por ponte
nenhuma”
183
A reconciliação a qual Nietzsche se refere era o momento da trégua entre os
princípios opostos, representados pelos aspectos apolíneo e dionisíaco nas
tragédias antigas que expressavam a sabedoria trágica. Após o embate que é
apresentado na representação trágica entre o princípio de individuação (Apolo) e o
uno-originário (Dionisio), embate este que de fato não finda, o que ocorre é um
momento de co-existência entre ambas as forças, de abertura e reciprocidade entre
os diferentes. Este movimento aqui denominado por reconciliação é algo que só
pode ocorrer no instante, uma vez que não há fusão, síntese entre ambos os
princípios — Apolo e Dionísio não se transformam em um terceiro termo,
perdendo suas singularidades — o que há é uma rápida reconciliação momentânea,
onde a diferença se mantém, e por isso esta não pode se dar no tempo da
conservação, no modo da permanência. Essa manutenção da diferença é
exemplificada no trecho acima pela ordem de se respeitar as respectivas linhas
fronteiriças, i. é., o espaço da singularidade de cada um.
O que pode ser melhor observado nessa relação de emparelhamento entre
os dois princípios da oposição é justamente o respeito pelas suas singularidades. A
forma que melhor exprime esse emparelhamento é a de uma união conjugal,
proposta de interpretação lançada pelo próprio Nietzsche, com uma visão do
183
NIETZSCHE, NT, 1992, p.34. [grifos nossos]
104
casamento enquanto espaço de disputa e conflito entre os eternos contrários,
expresso na dualidade dos sexos (para a qual não há possibilidade de síntese).
Uma inter-relação, uma coexistência entre os diferentes princípios, mantendo
sempre a luta, o embate, o agon próprio ao pathos do grego antigo — tão
valorizado no retorno à Grécia que o filósofo efetuou, como sendo o sentimento
mais nobre da ética do homem grego.
Essa relação entre os princípios apolíneo e dionisíaco não transpõe, em
última instância, o abismo entre os pólos da oposição, mas, ao contrário, o
mantém. A própria tragédia antiga seria o exemplo disso: não a fusão entre Apolo
e Dionísio, mas sua alternância, metaforicamente traduzida na alternância entre a
palavra e a música, herói e coro trágicos, na representação das tragédias:
“(...) ambos os impulsos, tão diversos, caminham na maioria
das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a
produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela
contraposição sobre a qual a palavra comum ‘arte’ lançava
apenas aparentemente a ponte; até que, por fim, através de um
miraculoso ato metafísico da ‘vontade’ helênica, apareceram
emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento tanto
a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a
tragédia ática.”
184
A arte, afinal, não é possível sem o princípio apolíneo, sem a forma. O
dionisíaco bruto, que nega os valores apolíneos, é inestético em sua solidão, pela
indeterminação constitutiva. Na obra de arte por excelência, como Nietzsche
considera a tragédia grega antiga, Apolo e Dionísio se mostram explicitamente
nessa difícil relação, onde um fala a linguagem do outro, onde há a troca
periódica de presentes honoríficos, porém com a manutenção da eterna luta entre
184
NIETZSCHE, NT, 1992, p.27.
105
os contrários, sem a transposição do abismo que separa a oposição. É o espetáculo
político, em que ambos os pólos se apresentam para o embate, para a disputa, na
incessante busca por uma reconciliação, que nunca é definitivamente alcançada:
Assim, a difícil relação entre o apolíneo e o dionisíaco na
tragédia poderia realmente ser simbolizada através de uma
aliança fraterna entre as duas divindades: Dionísio fala a
linguagem de Apolo, mas Apolo, ao fim, fala a linguagem de
Dionísio: com o que fica alcançada a meta suprema da
tragédia e da arte em geral.”
185
Entendemos aqui ser de grande importância para o contexto da política essa
valorização da diferença operada por Nietzsche em O nascimento da tragédia, afinal, ao
propor um novo modelo de inter-relação, através de Apolo-Dionisio, Nietzsche abre para
infinitas possibilidades o próprio fazer político. Isto porque pensamos a política como
sendo o espaço por excelência de interação entre diferentes, através da vida na polis, no
interior do grupo cultural, o lugar para a convivência da diferença, enfim, onde se constitui
um povo que se identifica e reúne forças conjuntas a partir de suas lutas cotidianas, através
de uma convivência no espaço público, na relação com outros homens e mesmo com a
natureza, tal como Nietzsche irá elaborar, posteriormente, em Além do bem e do mal:
“É preciso utilizar as mesmas palavras para a mesma espécie
de vivências interiores, é preciso, enfim, ter a experiência em
comum com o outro (...) quando as pessoas viveram juntas por
muito tempo, em condições semelhantes (clima, solo, perigos,
necessidade, trabalho), nasce algo que ‘se entende’, um
povo.”
186
185
NIETZSCHE, NT, 1992, p.129-130. [grifos nossos].
186
NIETZSCHE, ABM, 1992, § 268.
106
Capítulo III
A política na segunda e terceira fases do pensamento de Nietzsche
A maior parte dos escritos de Nietzsche sobre política concentra-se naquela que
convencionou-se denominar por última fase de sua produção intelectual, que, faz-se
necessário ressaltar, foi a mais produtiva, legando-nos obras ímpares como Assim falou
Zaratustra (bastante poética), Além do Bem e do Mal, Genealogia da moral (um dos seus
livros mais sistemáticos, se não o mais), Crepúsculo dos ídolos, Ecce homo (livros não-
sistemáticos) — isso para mencionarmos apenas a obra publicada em vida. Nesta época,
compreendida entre 1882 e os estertores de 1888, o filósofo alemão tem uma produção
praticamente transbordante de suas reflexões, incluindo a maior parte de suas reflexões
políticas. Crepúsculo dos ídolos, A grande política (póstumo) e Além do bem e do mal
podem ser destacados nesse período por concentrar a maior parte dos registros de reflexões
que versam sobre a ação humana em sociedade e a adoção de paradigmas morais que, em
última instância, ainda que inconscientemente, norteiam as escolhas e práticas (políticas)
107
cotidianas. Quanto a isto, para Nietzsche, o homem moderno, que ele denomina em Assim
falou Zaratustra como sendo o último homem, estava habituado a:
“Escolher instintivamente o nocivo para si, ser atiçado por
motivos ‘desinteressados’ nos fornece quase uma fórmula para
a décadence. ‘Não buscar o eu é útil para si’ — este é apenas o
artifício moral covarde para uma fatualidade fisiológica
totalmente diversa: ‘eu não sei mais encontrar o que é útil para
mim’...”
187
Porém esta sua verve potencialmente política já pode ser claramente identificada na
segunda fase de sua produção filosófica, principalmente em Humano, demasiado humano.
Isto porque a maioria dos escritos de Nietzsche que podem ser compilados sob o título de
‘políticos’ estão alocados principalmente nas obras menos sistemáticas do filósofo, onde
prevalece um estilo fragmentário de escrita, evidenciando o nomadismo de seu pensamento
e o caráter aforismático ao apresentar muitas de suas reflexões mais vigorosas.
Pretendemos neste capítulo final analisar em conjunto alguns escritos políticos
selecionados entre a segunda e a terceira fases do pensamento de Nietzsche, pois
percebemos ser possível aproximá-los a partir do recorte metodológico temático que
realizamos na pesquisa. Por um lado aproximam-se devido ao espaço nada secundário
dedicado à crítica política, no interior de seu programa de diagnóstico e crítica dos valores
do mundo ocidental cristão — críticas diretas às práticas políticas exercidas principalmente
na modernidade e seu slogan de liberdade, igualdade e fraternidade, afinal, “os homens
foram pensados como ‘livres’, para que pudessem ser julgados e punidos – para que
pudessem ser culpados”
188
. Por outro lado os escritos de cunho político da segunda e
terceira fases da filosofia de Nietzsche se aproximam no que tange a valorização do
supranacional, do nômade, do cidadão do mundo, ou seja, da política que é exercida por
187
NIETZSCHE, CI, 2000, p.89.
188
Ibid, p.49.
108
cada singularidade, em sua localidade — de forma fragmentária, descontínua e instável,
micropoliticamente, tal como uma estetização da existência que pretende, através da arte,
através do tratamento do homem e de sua vida como obra de arte, transformar a inserção do
homem no mundo. Uma perspectiva para além dos estados nacionais que consiste em um
alargamento de sentido e horizonte para questões de natureza política”
189
, para a qual
Nietzsche cunhou a expressão grande política
190
.
E para realizar esta tarefa de transmutar a inserção e atuação do homem no mundo
tornam-se indispensáveis os espíritos livres, os legisladores de si, os filósofos do futuro,
aqueles que são o próprio além-do-homem, únicos capazes de compreender a dimensão de
ruptura e transvaloração do conceito de micropolítica e tentar esboçá-lo na prática. Para tal,
segundo Nietzsche, somente “um tipo de homem essencialmente supranacional e nômade,
que fisiologicamente possui, como marca distintiva, o máximo em força e arte de
adaptação.”
191
É notório que desde Humano, demasiado humano Nietzsche já tecia filosofia de
cunho objetivamente político, ainda que, em sua maioria, no contexto de uma crítica
histórica da moral. Giacóia, mais uma vez, chama a atenção para este aspecto:
“(....) Humano, demasiado humano já elabora uma reflexão
sobre política, no sentido da tarefa cultural que consiste em
instituir referências valorativas de longo alcance e tolerância,
tendo em vista as necessidades globais e os macro-problemas
da humanidade, uma vez que nenhuma divina providência
transcendente, nenhuma lei moral inscrita universalmente em
nossos corações preside mais a ordenação ética do universo,
ou provê um sentido para a existência humana
.”
192
189
GIACÓIA, Osvaldo Jr. Introdução. In: GP, 2002, p.8.
190
O conceito de Grande Política foi registrado por Nietzsche pela primeira vez em Aurora (§189). A
expressão ainda aparece em ABM, § 208, § 241e § 254. Em CI “Moral como contra-natureza”, § 3; e EH “Por
que sou um destino”, § 1. (As obras de Nietzsche estão abreviadas segundo a terminologia registrada na seção
“Abreviaturas das obras de Nietzsche”).
191
NIETZSCHE, ABM, 1992, p.150, § 242.
192
GIACÓIA, Osvaldo Jr, Introdução, In: GP, 2002, p.8.
109
Neste livro de sua segunda fase Nietzsche começa também a traçar a tarefa daqueles
grandes espíritos, os espíritos livres, que possuem a missão de operacionalizar a
transvaloração de todos os valores — aquela que seria a tarefa política por excelência.
Algo que jamais poderia ser feito pelos homens modernos, típicos animais de rebanho,
esses animais gregários que perpetuam a crença na “doutrina da igualdade!... Mas não há
nenhum veneno mais venenoso: pois ele parece estar sendo pregado pela própria justiça,
enquanto é o fim da justiça”
193
, significam a mediocrização e o rebaixamento do tipo
homem. Para esses homens modernos, que crêem no poder ilimitado da razão, da técnica,
da ciência, que supõem-se capazes, através da padronização, assepsia e nivelamento, de
‘dissecar’, ‘limpar’, ‘controlar’ todos os problemas e mistérios do ser humano, Nietzsche
diz que:
É preciso invocar prodigiosas forças contrárias, para
fazer frente a esse natural, muitíssimo natural progressus
in simile [progresso no semelhante], à evolução do homem
rumo ao semelhante, costumeiro, mediano, gregário —
rumo ao vulgar!”
194
.
Para o filósofo extemporâneo o gregarismo é o que tende naturalmente a se reproduzir, de
modo que é contra essa naturalidade do mesmo que o mais singular e diferente tem que se
impor:
“Os homens mais semelhantes, mais costumeiros, estiveram e
sempre estarão em vantagem; os mais seletos, os mais sutis,
mais raros, mais difíceis de compreender, esses ficam
facilmente sós, em seu isolamento sucumbem aos reveses, e
dificilmente se propagam.
195
Justamente os valores-alicerces da modernidade nihilista e decadente, segundo a
ácida análise nietzscheana, não poderiam ser transvalorados por este animal de rebanho,
193
NIETZSCHE, CI, 2000, p. 107.
194
NIETZSCHE, ABM, 1992, § 268, p.182.
195
Idem.
110
exemplar da modernidade. Seria necessário fomentar um tipo grandioso, corajoso e livre
para operacionalizar esta audaciosa tarefa de transvaloração moral, tal como indica em seu
livro Humano, demasiado humano:
Moral privada e moral mundial. — Após o fim da crença que
um deus dirige os destinos do mundo e, não obstante as
aparentes sinuosidades no caminho da humanidade, a conduz
magnificamente à sua meta, os próprios homens devem
estabelecer para si objetivos ecumênicos que abranjam a Terra
inteira. A antiga moral, notadamente a de Kant, exige do
indivíduo ações que se deseja serem de todos os homens: o que
é algo belo e ingênuo, como se cada qual soubesse, sem
dificuldades, que procedimento beneficiaria toda a
humanidade, e portanto que ações seriam desejáveis; é uma
teoria como a do livre-comércio, pressupondo que a harmonia
universal tem que produzir-se por si mesma, conforme leis
inatas de aperfeiçoamento. Talvez uma futura visão geral das
necessidades da humanidade mostre que não é absolutamente
desejável que todos os homens ajam do mesmo modo, mas sim
que, no interesse de objetivos ecumênicos, deveriam ser
propostas para segmentos inteiros da humanidade, tarefas
especiais e talvez más, ocasionalmente. — Em todo caso, para
que a humanidade não se destrua com um tal governo global
consciente, deve-se antes obter, como critério científico para
objetivos ecumênicos, um conhecimento das condições da
cultura que até agora não foi atingido. Esta é a imensa tarefa
dos grandes espíritos do próximo século.”
196
Nos primeiros dias de 1889, antes de entrar em colapso mental, Nietzsche escreveu,
selecionou, organizou e nomeou uma seqüência de aforismos, sob o título de A Grande
política. Esta compilação, embora tenha sido publicada apenas postumamente, deve ser
valorizada, pois foi organizada pelo próprio Nietzsche, seguindo seus rígidos critérios de
seleção, se entendemos que o próprio Nietzsche adotava para si, certamente, a mesma
rigorosa seletividade que observava ser própria dos artistas:
(....) “Na verdade, a fantasia do bom artista ou pensador
produz continuamente, sejam coisas boas, medíocres ou ruins,
mas o seu julgamento, altamente aguçado e exercitado, rejeita,
seleciona, combina: como vemos hoje nas anotações de
Beethoven, que aos poucos juntou as mais esplêndidas melodias
196
NIETZSCHE, HDH, 2000, § 25, p.33-34.
111
e, de certo modo, as retirou de múltiplos esboços. Quem separa
menos rigorosamente e confia de bom grado na memória
imitativa pode se tornar, em certas condições, um grande
improvisador, mas a improvisação artística se encontra muito
abaixo do pensamento artístico selecionado com seriedade e
empenho. Todos os grandes foram grandes trabalhadores,
incansáveis não apenas no inventar, mas também no rejeitar,
eleger, remodelar, ordenar.
197
O título deste livro póstumo de fragmentos selecionados A grande política (Die
Grösse Politik), pode suscitar interpretações equivocadas que acabem tendendo para uma
supervalorização dos aspectos macropolíticos da vida em sociedade, denominando por
macropolítica o âmbito das instituições que permeiam os Estados nacionais modernos, suas
formas de governo, a democracia, o liberalismo, a política partidária representativa. Porém,
ao contrário, a grande política à qual Nietzsche se refere na última fase de seu pensamento
diz respeito àquela política que só pode ser enxergada com óculos cujas molduras não
estejam delimitadas pelos valores da moral moderna. Assim afirma Nietzsche:
“(....) creio que tudo o que hoje na Europa estamos habituados
a venerar como ‘humanidade’, ‘moralidade’, ‘humanitarismo’,
‘compaixão’, justiça, com efeito pode ter um valor de fachada,
como enfraquecimento e mitigação de certos impulsos
fundamentais poderosos e perigosos, porém, a despeito disso, a
longo prazo, não é nada além do que o apequenamento do
inteiro tipo ‘homem’, sua definitiva mediocrização, se me
quiserem excusar uma palavra desesperada num assunto
desesperado.”
198
A expressão Grösse Politik consiste em uma tentativa de refletir e agir a partir de outro
arcabouço conceitual, diferente do que foi estabelecido pela tradição ocidental cristã,
tentando transvalorar as conceituações, as categorias políticas, assim como os paradigmas
de ação. Esta não-preponderância da macropolítica no pensamento político de Nietzsche, e
mesmo sua discriminação, culmina em uma interpretação que valoriza aspectos
197
NIETZSCHE, HDH, 2000, p.119-120.
198
NIETZSCHE, GP, 2002, p.12 [fragmento póstumo do outono de 1887; In: KSA, vol. 12, p. 71s].
112
micropolíticos, algo que prevalece em sua obra tardia, especialmente no que diz respeito à
valorização de um novo paradigma de praxis humana, alicerce de toda micropolítica — tal
como aparece na idéia do ubermensch, do além-do-homem, de Assim falou Zaratustra, que
anunciava:
“Não apenas uma raça de senhores, cuja tarefa se esgotaria em
governar; porém uma raça com esfera vital própria, com um
excedente de força para a beleza, coragem, cultura, maneiras,
até no que há de mais espiritual; uma raça afirmadora, a quem
é lícito se permitir aquele grande luxo..., suficientemente forte
para não ter necessidade da tirania do imperativo da virtude,
suficientemente rica para não ter necessidade de parcimônia e
pedantismo, além de bem e mal; uma estufa para plantas
especiais e seletas.”
199
A interpretação privilegiada neste estudo entende o projeto de transvaloração de
todos os valores, proposto por Nietzsche, como substancialmente político, uma vez que
visa a reflexão e a transformação da relação – logo, da inserção – do homem no mundo.
Nietzsche evidenciou as frágeis bases dos valores absolutistas de sua época, que atribuíam
para si uma condição falsa de ‘verdade’, ocultando o jogo de interesses que os constitui –
corroborando, assim, para o fim nefasto de afastamento do homem da Terra. A proposta de
Nietzsche parece clara ao visar o abandono de uma busca metafísica por paradigmas
transcendentes. Para o filósofo esses paradigmas desviam o foco do homem da vida — para
um além da morte, sempre incógnito — ou, em última instância, se perseguidos com
radicalidade, podem significar uma visão terrível, paralizante e insuportável para o
indivíduo, capaz de aniquilá-lo. Isto porque tal conhecimento resultaria em um
enfraquecimento das forças que nos permitem viver, despotencializando o homem, nas
palavras do próprio Nietzsche:
199
Ibid, p.18 (introdução). [fragmento póstumo do outono de 1887, n.9 (154); In: KSA, vol. 12, p.426s].
113
A moral, à medida que não condena a partir de pontos de
vista, de considerações e intenções vitais, mas em si, é um erro
específico pelo qual não se deve sentir nenhuma compaixão; a
moral é uma idiossincrasia de degenerados que provocou
muitos e indizíveis danos!...”
200
Dessa maneira, lançava o filósofo uma proposta de redirecionamento dos valores
que permeiam o homem, da transcendência — super-valorizada pela tradição do
pensamento ocidental — para o mundo da imanência, propondo uma atitude ativa de ser-
no-mundo:
À glória da passividade contraponho agora a glória da atividade (...)”
201
.
Valorizou-se, assim, a esfera da finitude (própria do homem) e a transvaloração de
paradigmas moralizantes, que recrudescem as forças da existência, em paradigmas
artísticos, que favorecem a potencialização da vida.
Por que não modificar o foco de interesse de um mundo supra-sensível, metafísico,
que não pode ser conhecido, apreendido, para as questões prementes da vida na Terra e dos
jogos de força que a compõe? Por que valorizar apenas o conceitual, o teórico, o racional
— em detrimento da intuição, da percepção sensível, do corpóreo, do artístico? Por que não
conjugar, de forma ecumênica, diferentes perspectivas, ao invés de segregar, repelir, negar,
subjugar?
Ou não é abnegação quando o homem histórico se deixa
reduzir a um espelho objetivo? (...) Tomar tudo objetivamente,
não se zangar com nada, não amar nada, compreender tudo,
como isso torna brando e maleável;”
202
200
NIETZSCHE, CI, 2000, p.38.
201
NIETZSCHE, NT, 1992, p.65.
202
NIETZSCHE. “Da utilidade e desvantagem da H istória a para a vida”, § 8, In: CE, 1978, p.68.
114
III.1 A crítica nietzscheana à modernidade política
Nesta parte do capítulo nos concentraremos nas críticas que Nietzsche não se
absteve em fazer aos valores dominantes no ideário moderno, principalmente ao sistema
político da modernidade por basear-se em uma ética prescritiva, em uma moral universal
padronizante. Na área da filosofia política a maioria dos comentadores privilegia, na
interpretação que fazem da obra de Nietzsche, a crítica ao contrato social e ao direito
natural, como no exemplo de Ansell-Pearson:
Nietzsche, ao contrário, rejeita a teoria do contrato social
como não mais do que o reflexo de uma moralidade de escravo,
que pretende seduzir os fortes a convertê-los à moral dos
fracos”
203
.
Seguindo um viés alternativo, entendemos essa crítica como sendo apenas uma
parte — e não a mais importante — do projeto político nietzscheano, que rejeita os
modelso políticos modernos baseados no contrato social (tal como Hobbes, Locke e
Rousseau), propondo a superação desse modelo liberal e partidário e a construção de um
outro cujo alicerce estaria no fortalecimento, potencialização e cultivo do homem superior.
É neste sentido que vão ocupá-lo primordialmente questões referentes à “grande política”,
ou seja, ao cultivo da espécie homem supra-nacional, superando a noção de Estado-nação,
valorizando o andarilho, o nômade, pois “para ele, uma concepção adequada de política é
203
ANSELL-PEARSON, 1997, p.54.
115
aquela que a vê como um meio para um fim: a produção de cultura e de grandeza
humana”.
204
Nietzsche critica o liberalismo por restringir-se a uma preocupação com a liberdade
apenas individual, particular, individualista, negligenciando que a política seja
primordialmente aquela que se realiza no embate em praça pública. O filósofo alemão, nas
palavras de Ansell-Pearson, entendia “o moderno estado liberal baseado em uma
desvalorização da atividade política concebida como arena pública”
205
. O sonho da
liberdade burguesa, parte central da doutrina liberal, restringe-se a um conceito de
felicidade em muito vinculado aos objetos de consumo pessoais, atomizando os seres-
humanos e causando o esfacelamento do sentido da política como coletividade, como vida
em sociedade. Segundo a leitura do mesmo comentador:
A sociedade torna-se composta por um rebanho de
‘últimos homens e mulheres’ preocupados apenas com a
‘felicidade’ (compreendida no sentido da satisfação dos
desejos materiais) e que não podem conceber nada mais
nobre além de si próprios. Essas pessoas já não desejam
desenvolver-se, correr riscos e empenhar-se em
experiências, mas procuram apenas uma obtusa e segura
existência ‘burguesa
206
.
O que impõe um abismo entre Nietzsche e o pensamento político moderno é essa
apequenamento do tipo homem, sua mediocrização, sua redução ao consumo e às
estatísticas, como típicos animais de rebanho. Em oposição está a proposta nietzscheana de
cultivo dos tipos nobre e fortes, os espíritos livres, que serão abordados mais
detalhadamente na seção seguinte, demonstrando que, para o filósofo alemão, liberdade
204
ANSELL-PEARSON, 1997, p.22.
205
Ibid, p.55.
206
Ibid, p.22.
116
não pode ser confundida com individualismo, ao contrário, tal como afirma Ansell-
Pearson: “a verdadeira liberdade é aquela que se dá no contexto heróico da arena
pública”
207
e Nietzsche vê o agon grego como o modelo de tal arena.
Nietzsche faz a interpretação da modernidade como algo decadente, criticando de
forma precursora a idéia de progresso e negando o ideal de igualdade já amplamente
anunciado pela revolução francesa e suas bases liberais. Em CI o filósofo alemão denuncia
a máscara liberal:
“As instituições liberais deixam imediatamente de ser liberais,
no momento em que são alcançadas: não há depois nenhum
corruptor mais incisivo e fundamental da liberdade do que
instituições liberais. Sabe-se em verdade, que caminhos elas
abrem: elas minam a vontade de potência, elas são o
nivelamento da montanha e do vale elevado à condição de
moral, elas apequenam, acovardam e acostumam ao deleite:
com elas sempre triunfa o animal de rebanho. Liberalismo: em
alemão, animalização gregária...”
208
O liberalismo que, em nome de belas formulações teóricas em torno da liberdade, opõe esta
à necessidade, escamoteando condições materiais e espirituais de vida que, na prática,
definem a possibilidade de acesso à liberdade, posto que não se vive no isolamento, mas na
inter-relação, na contra-cena-ação, no contínuo contracenar.
As instituições liberais abrem assim espaço para um verdadeiro laissez-faire, que
finda por impossibilitar o embate e o agon justo, entre pares, como no modelo grego antigo,
partindo para uma competição desleal, que já é definida antes do jogo, devido à
desigualdade gritante entre os recursos disponíveis aos jogadores. Vale ressaltar que os
pares dos embates gregos não são aqueles idênticos (os iguais), mas aqueles que possuem
eqüidade para o combate, que se eqüivalem em suas características objetivas, como acesso
207
ANSELL-PEARSON, 1997, p.55
208
NIETZSCHE, CI, 2000, p.94-95.
117
à alimentação, à moradia, à saúde, à educação e cultura de seu grupo, ao respeito à sua
singularidade.
Explicitando mais, ao tentar escamotear as diferenças presentes no jogo social,
nivelando a todos com uma suposta igualdade, algo que na prática não pode ser executado –
e nem mesmo é desejável e saudável para potencializar a vida, pelo contrário — a
sociedade acaba causando uma sensação de efetividade dessa igualdade nos seus membros,
que julgam ser ela realmente existente somente porque existe no interior de uma teoria dos
direitos iguais. Poderíamos nos questionar, então, qual o valor, qual a importância dessa
máscara, dessa mentira, desse simulacro de igualdade? Segundo Nietzsche, em um sentido
semântico que não é o monetário, “o valor de uma coisa reside por vezes não no que se
alcança com ela, mas no que se paga por ela – o que ela nos custa”
209
.
Usando a vida, sua potencialização e o cultivo do tipo homem como critérios
valorativos, nas palavras de Nietzsche:
“quando falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a
ótica da vida: a vida mesma nos obriga a instaurar valores, a
vida mesma valora através de nós quando instauramos
valores”
210
.
A mentira da igualdade parece não corroborar para a expansão destes valores. Quanto nos
custa, quanto se paga por esta máscara de que todos somos iguais? O custo parece ser alto,
pois ela dificulta a relação entre os diferentes uma vez que impede a percepção dos
inúmeros tipos de desigualdades que existem — aquelas que fomentam a multiplicidade e a
abundância de força, como as diferenças culturais, intelectuais, pessoais, interpretativas,
209
NIETZSCHE, CI, 2000, p. 94.
210
Ibid, p.37.
118
bem como os profícuos conflitos derivados de sua coexistência sempre tensa e
maravilhosa
211
, e aquelas que dificultam o próprio jogo político na arena pública, posto que
retiram do embate, da discussão, do agon grande parcela de pessoas pela ausência de
possibilidade da sobrevivência mesma, da manutenção da vida e da força, apequenando o
mundo e a existência ao restringi-lo à luta pela subsistência.
O liberalismo e a doutrina da igualdade de direitos (como seria possível se a
própria igualdade não é exeqüível?), para Nietzsche, possuem um claro objetivo:
padronizar os modos de vida, corromper as diferenças transformado-as em similitude que
possa ser mapeada e abrangida pelo mercado, aonde se ofertam desejos, modos de
subjetivação, produtos, cultura:
“A ‘igualdade’, uma certa assemelhação factual que só ganha
expressão no interior da teoria dos ‘direitos iguais’, pertence
essencialmente à decadência: o fosso entre homem e homem,
estado e estado, a multiplicidade de tipos, a vontade de ser si
próprio, de destacar-se, isto que denomino como o pathos da
distância: tudo isto é próprio a todo tempo forte. A
elasticidade, a envergadura entre os extremos vem se tornando
hoje cada vez menor — os extremos mesmo desaparecem por
fim em meio à similitude...”
212
E esta similitude se dá hoje transformando cidadãos em consumidores: os animais de
rebanho da contemporaneidade. Vegetando em torno das instituições financeiras, migrando
em busca de ofertas de emprego, comprando o que não necessitam possuir e se travestindo
em um dos modelos de persona que são ofertados pela mídia: o terrorista, o intelectual, o
cowboy, o transgressor, o businessman, o latino, o estranho, o louco — havendo categorias
até mesmo para aqueles que se esforçam por escapar às categorizações.
211
Exemplificando de forma bem pontual: ao padronizar-se o sistema de ensino para todo um território amplo
e heterogêneo, como o brasileiro, muitas vezes se está cometendo o equívoco de dificultar a expressão das
diferenças culturais regionais, locais. Dificultando que uma escola de uma região pesqueira, ou rural, possa
incluir aulas neste sentido, ou que uma escola indígena lecione em outra metodologia que não a disciplinar,
em um dialeto próprio e não em português, idioma oficial.
212
NIETZSCHE, CI, 2000, p.93.
119
Nietzsche intentava, no interior da crítica que empreendeu às sociedades modernas,
denunciar os alicerces econômicos e monetaristas que cada vez mais definem os arranjos
sociais e seu jogo político, principalmente a partir da modernidade, uma vez que “o
moderno pensamento político subordina-o ao econômico
213
. Torna-se indispensável,
então, para ele, alterar a configuração deste jogo político, posto que este é o jogo de forças
próprio à finitude do homem, enquanto ser político que é, no interior da própria estrutura
mundana:
“As águas da religião refluem e deixam para trás pântanos ou
poças; as nações se separam outra vez com a maior das
hostilidades e querem esquartejar-se. As ciências, praticadas
sem nenhuma medida e no mais cego laissez faire, estilhaçam-
se e dissolvem toda crença firme; as classes cultas e os estados
civilizados são varridos por uma economia monetária
grandiosamente desdenhosa. Nunca o mundo foi mais
mundo(...)”
214
O filósofo foi também, de certa maneira, arauto dos processos de globalização que
podem ser observados na contemporaneidade. Na obra nietzscheana este conceito de
globalização não aparece de forma literal, mas pode ser depreendido pelas passagens onde
o filósofo evoca a integração entre as culturas, superando as agruras do comércio exterior,
do direito e das relações internacionais, dos sistemas financeiros que colocam em oposição
os povos, tal como podemos observar na prática política global da atualidade. Nietzsche
acena no sentido de uma investidura global de cultivo e vitalização da espécie homem,
uma globalização de educação e cultura, de individuação e cultivo dos seres humanos,
ainda que cada qual à sua maneira:
213
ANSELL-PEARSON, 1997, p.56.
214
NIETZSCHE, “Schopenhauer como educador”, § 4, In: CE, 1978, p.74.
120
“Ensinar ao homem o futuro do homem como sua vontade,
dependente de uma vontade humana, e preparar grandes
empresas e tentativas globais de disciplinação e cultivo”
215
.
Porém a globalização que presenciamos hoje não foi aquela preconizada por
Nietzsche, realizada pelo homem nômade que transita transcendendo fronteiras na busca
por cultivar-se a si mesmo, por experienciar novos limites, por experimentar novas
culturas. O que vemos na atualidade é a extrapolação das divisas dos Estados políticos aos
capitais financeiros, às indústrias multinacionais, o que assistimos na contemporaneidade é
o exemplo da subserviência ao que ele denominou por monetarismo, diagnosticado por ele
como decorrência do rompimento dos valores culturais. As palavras de Nietzsche no
prefácio intitulado O estado grego, referem-se ao movimento nacionalista (poderíamos ler,
na atualidade, um movimento de xenofobia) como algo que tenta conter, em vão, este
processo de globalização:
“No movimento nacionalista dominante hoje em dia e na
expansão do direito de voto universal, não posso deixar de ver
antes de tudo os efeitos do medo da guerra, sim, e enxergo no
fundo deste movimento que quem propriamente tem medo são
aqueles eremitas monetários, internacionalistas, despatriados,
que, por sua falta natural do instinto estatal, aprenderam a
utilizar abusivamente a política e o estado e a sociedade como
aparatos de seu próprio enriquecimento, por meio da bolsa.”
216
O trecho acima expressa o diagnóstico que o filósofo realiza dos instintos originários de
associação entre os homens, que os faz organizarem-se em grupos culturais e sociais, mas
que vêem-se pulverizados por uma supremacia do monetarismo, acirrada desde a
modernidade.
215
NIETZSCHE, ABM, 1992, § 203.
216
NIETZSCHE, F. “O estado grego”. In: Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Rio de Janeiro:
Sette Letras, 1996, p.56.
121
O outro lado das conseqüências humanas desse movimento de globalização, em
contra-partida às investiduras dos Estados nacionais na tentativa de se manterem vivos, foi
a exacerbação e o rebaixamento da condição de apátrida dos enormes fluxos de emigrantes
que se deslocam na busca pela mera sobrevivência ao refugiar-se do caos que são os
Estados nacionais, ou da exclusão contra todo o tipo de diferença (biológicas, culturais,
morais, religiosas). Se a figura do imigrante é antiga e remete aos mitos mais enraizados na
cultura ocidental, como o da própria família terrena de Jesus Cristo e seu nascimento, em
meio à fuga para o Egito, a hospitalidade, prática tão cara aos povos antigos, como os
gregos enaltecidos por Nietzsche, que muito cultivavam a postura do bom anfitrião,
principalmente aos viajantes distantes e desconhecidos, está cada vez mais rara em meio a
tanto medo de tudo o que é diferente. A esquizofrenia política da realidade global força as
práticas migratórias humanas em busca de empregos, condições de vida, trabalho e
sobrevivência, mas não é capaz de acolher este diferente em toda a riqueza que possa
agregar. Uma tentativa de sair deste padrão seria, a princípio, não escamotear as
divergências, mas, ao contrário, preparar-se para maneiras diferentes de convivência, no
interior da própria agonística de díspares perspectivas, interpretação e modos de vida.
É inegável, por outro lado, o próprio esfacelamento dos Estados nacionais, tal
como previu Nietzsche em seu escritos, extemporaneamente:
Com muita freqüência desde que há mundo, foram fundados
Estados; isso é uma velha peça. Como poderia uma inovação
política bastar para fazer dos homens de uma vez por todas
habitantes satisfeitos da Terra?
217
217
NIETZSCHE, F. “Schopenhauer como educador”, § 4, In: CE, p.74.
122
Fato que se torna acentuado no século XX, principalmente com a intervenção direta dos
conglomerados financeiros nas ingerências internas dos países. Este mecanismo reforça o
favorecimento, sempre unilateral, dos blocos de países já tradicionalmente beneficiados,
também na era global e desterritorializada do capital na qual vivemos, criando impérios
legalmente camuflados, de sutil tirania.
Para o filósofo alemão, qualquer projeto baseado na uniformização da vida e na
pasteurização do homem em animal de rebanho, estaria fadado ao insucesso. E era assim
que ele via a artificialidade com a qual se erigem, até hoje, os Estados Nacionais, forjando
uma coesão e uma coerência culturais, em seus territórios milimetricamente mapeados e
belicamente defendidos, que inexistem na efetividade. O que assistimos é a intolerância à
diversidade cultural, à diferença que os mapas não são capazes de superar. As palavras de
Nietzsche evideciam o abismo entre a cultura e o Estado:
A cultura e o Estado – que não nos enganemos quanto a isso –
são antagonistas: o ‘Estado cultural’ é apenas uma idéia
moderna. Cada um deles vive do outro, cada um prospera à
custa do outro. Todos os grandes tempos da cultura são tempos
de decadência política: o que é grande no sentido da cultura
sempre foi apolítico, meio antipolítico.
218
Leia-se esse termo antipolítico, em Nietzsche, como uma crítica a essa macropolítica
realizada pelos Estados Nacionais, erigidos principalmente sobre os monopólios
capitalistas. Ela se faz sobre a “décadence nos instintos valorativos de nossos políticos, de
nossos partidos políticos: eles privilegiam instintivamente o que dissipa, o que acelera o
acontecimento do fim”
219
218
NIETZSCHE, CI, p.60.
219
Ibid, p.97.
123
E tudo isso sempre com a máscara da abnegação de si, do amor ao próximo que, na
prática, só se observa nos enfraquecidos que esquecem de si mesmos e de suas
problemáticas, acomodando-se, ainda hoje, em ofertas supra-sensíveis, oferecendo-se, de
bom grado, ao rebanho humano. Na atualidade “se vive em função do hoje, se vive muito
rapidamente — se vive de maneira muito irresponsável”
220
, e tudo isso torna as pessoas
dóceis e maleáveis, despotencializando sua potência de agir, que é a própria razão de ser do
homem para Nietzsche.
Por fim, vale ressaltar que no próprio interior da doutrina liberal e como um dos
pilares da modernidade política há uma grande parcela do ideal democrático, e este também
se constitui como um dos focos do projeto de crítica política realizada por Nietzsche, como
evidenciam suas palavras:
Nós, que somos de outra fé — nós, que consideramos o
movimento democrático não apenas uma forma de decadência
das organizações políticas, mas uma forma de decadência ou
diminuição do homem, sua mediocrização e rebaixamento de
valor: para onde apontaremos nós as nossas esperanças?
221
Seu texto mostra como uma mentira, tal qual a democracia como o poder do povo,
bem como seus pilares liberais inexeqüíveis, apoiados na igualdade de direitos e deveres,
parecem uma farsa de pouco valor para o homem. A etimologia da palavra democracia fala
de um governo, de um poder que seria exercido pelo povo. Porém na efetividade prática
isto se constitui como mentira, posto que, quando a ingerência e a responsabilidade por algo
pertence a todos, efetivamente não pertence a ninguém: estes opostos se equivalem. Afinal,
a quem recorrer quando há problemas? Quem responde pela empreitada, quem é
responsável por ela? Com as metrópoles e megalópoles da contemporaneidade, como
220
NIETZSCHE, CI, 2000, p.97.
221
NIETZSCHE, ABM, 1992, § 203.
124
operacionalizar na prática este governo e este poder que emanam do povo? É aí que entra a
farsa da política representativa, dos políticos profissionais que, na prática, dificultam o
acesso, excluem, e até mesmo impedem a ação dialógica, o embate na ágora, na arena
pública, raison d’être da política. Nietzsche, como vimos anteriormente e como ressalta
Anserll-Pearson, em seu “programa político de uma nova legislação aristocrática renuncia
a qualquer preocupação em se legitimar, exceto em função da problemática estética da
auto-superação do homem
222
. Isto faria com que Nietzsche, ao longo de sua vida
intelectual, rejeitasse sempre as preocupações quanto à legitimidade das teorias políticas,
legitimidade que costuma ser idealista e teórica, tornando-as impossíveis, em sua maioria,
de serem colocadas em prática.
222
ANSELL-PEARSON, 1997, p.54.
125
III.2 Espíritos livres, filósofos do futuro, legisladores de si: modelos imanentes de
atuação micropolítica
“Os grandes homens são necessários, o tempo em que aparecem são casuais; o
fato de eles quase sempre se transformarem em senhores sobre o seu tempo não
se sustém senão através do fato de eles serem mais fortes, mais antigos, de as
forças terem se agrupado por mais tempo em direção a eles. Entre um gênio e
seu tempo subsiste uma relação tal como a relação entre o antigo e o novo: o
tempo é relativamente sempre muito mais jovem, muito mais franzino, muito
mais inseguro, muito mais infantil.”
223
Esta seção discorre sobre alguns conceitos-propostas lançados por Nietzsche que
corroboram para a valorização, na obra do filósofo, da política em sua esfera micropolítica.
Dentre os conceitos citados acima, aquele que consideramos o mais importante deles,
devido à forte recorrência, é o conceito de espíritos livres, que nasce na segunda fase de seu
pensamento — mereceu uma seção inteira em Humano, demasiado humano, sendo depois
textualmente abordado em cinco aforismos de Aurora
224
— e continua presente na terceira
e última fase de sua produção intelectual, tendo importante presença em Além do bem e do
mal. Este conceito de espíritos livres fulgura em sua última fase ao lado de conceitos
cunhados principalmente nos fragmentos póstumos, como os legisladores de si, ou em
algumas passagens legisladores do futuro, e os filósofos do futuro, que são aqui
interpretados como parte fundamental da perspectiva micropolítica valorizada pelo filósofo
alemão, ao refletir e escrever sobre o aspecto político da existência humana.
O conceito de espíritos livres aparece de forma direta e objetiva em alguns textos,
como em passagens do seu livro Humano, demasiado humano:
223
NIETZSCHE, CI, 2000, p.101.
224
NIETZSCHE, A, 2004, § 56, § 146, § 201, § 209.
126
“(...) Aquela madura liberdade do espírito que é também
autodomínio e disciplina do coração e permite o caminho para
muitos e opostos modos de pensar (...) aquele excedente que dá
ao espírito livre a perigosa prerrogativa de viver para o ensaio
e poder oferecer-se à aventura: a prerrogativa de maestria do
espírito livre!”
225
Mas tal conceito aparece também de forma enviesada, através da crítica de Nietzsche aos
Estados Nacionais, ao socialismo, à democracia e pela valorização da singularidade, da
ação audaz daquele que consegue romper com a padronização do animal de rebanho.
Na interpretação aqui privilegiada, tal conceito é utilizado no horizonte de uma
ruptura com a política representativa, responsável por excluir a participação política efetiva
dos seres humanos, legando a eles a apatia, a inação, o amolecimento, a flacidez
226
. Para o
filósofo alemão, esse era o tônus político (ou a ausência de tônus) do homem das
sociedades modernas e, posteriormente, de massa, que poderia ser melhor identificado
como animal de rebanho ou, em alguns casos excepcionais, em que espíritos outrora livres
acabavam por renunciar à sua liberdade em nome de um gregarismo: os apóstatas do
espírito livre
227
.
Com o estreitamento das trocas econômicas e culturais, a partir de um movimento
mundial massivo de globalização, que segue prioritariamente uma lógica do capital,
negligenciando as individualidades humanas e os grupamentos locais, a padronização dos
modos de vida tornou-se algo recorrente, em uma constante tentativa de aniquilamento da
singularidade em prol de uma maioria, de um Estado, de um rebanho, como nos alerta
Nietzsche em Aurora:
225
NIETZSCHE, HDH, 2000, Prefácio § 4, p. 88.
226
NIETZSCHE, A, 2004, § 56.
227
Ibid.
127
“Agora parece que faz bem a todos ouvir dizer que a sociedade
está em vias de adequar o indivíduo às necessidades gerais e
que a felicidade e ao mesmo tempo o sacrifício do indivíduo
está em sentir-se um membro útil e um instrumento do todo:
mas ocorre que no presente hesita-se muito em relação a onde
buscar esse todo, se num Estado existente ou a ser fundado, na
nação, numa fraternidade de povos ou em novas e pequenas
comunidades econômicas. Acerca disso há agora muitas
reflexões, dúvidas, lutas, muita paixão e agitação;
surpreendente e bem soante, porém, é a concordância em exigir
que o ego negue a si mesmo, até adquirir novamente, na forma
da adequação ao todo, seu sólido círculo de direitos e deveres
— até haver se tornado algo inteiramente novo e diverso.
Pretende-se nada menos — seja ou não admitido — que uma
radical transformação, uma debilitação e anulação do
indivíduo”
228
.
A análise dos fenômenos políticos tende a valorizar apenas os processos coletivos,
seguindo a metodologia da ciência histórica e tendo o Estado como modelo (para
Nietzsche, modelo de animalização gregária), findando por negligenciar as atuações
singulares, debilitando a capacidade individual de criar, de agir, de inventar a si próprio.
Este é um dos principais eixos da crítica, operada por Nietzsche, da História e da Política: a
desvalorização da ação individual e a tentativa de unificação, pasteurização das diferenças,
formação de rebanhos. E Nietzsche propõe, então, que:
“(...) quanto mais o tipo ‘animal de rebanho’ é agora
desenvolvido na Europa, não seria tempo de fazer uma
principal tentativa, artificial, consciente, de criação (züchtung)
do tipo oposto e de suas virtudes?”
229
É claro que Nietzsche não nega a possibilidade de associação entre os homens,
através de alianças, de relações estratégicas e táticas entre aliados, desde que esses grupos
não impossibilitem o cultivo da singularidade. Ou seja, Nietzsche desvaloriza uma política
do individualismo, i.e., do indivíduo cerrado em si mesmo, ensimesmado, indiferente ao
tecido social, mas também não apóia as associações estéreis que, em nome de valores de
228
NIETZSCHE, A, 2004, § 132.
229
NIETZSCHE, 2 [13], KSA, vol.12, p.71s, in: GP, 2002, p.33.
128
fachada como humanitarismo, justiça, compaixão, finda por destruir toda a força vital,
guerreira e combativa, inerente ao homem, bem como a todo animal que não se deixa
apequenar:
“Creio que tudo o que hoje na Europa estamos habituados a
venerar como ‘humanidade’, ‘moralidade’, ‘humanitarismo’,
‘compaixão’, ‘justiça’, com efeito pode ter um valor de
fachada, como enfraquecimento e mitigação de certos impulsos
fundamentais poderosos e perigosos, porém, a despeito disso, a
longo prazo, não é nada além do apequenamento do inteiro tipo
‘homem’, sua definitiva mediocrização, se me quiserem escusar
uma palavra desesperada em um assunto desesperado;
230
Faz-se necessário lembrar, ainda, que o indivíduo é valorizado em Nietzsche não
porque representa uma definitiva configuração estável e perene, tal como um ego
constituído, delimitado e fundador da personalidade, tampouco como um resultado de um
acúmulo progressivo de conhecimento, segundo uma equação programável e calculável, de
resultado preciso, seguro e imutável. Ao contrário, o indivíduo é aqui interpretado, a partir
das palavras de Nietzsche dos fragmentos de A grande política, como:
“uma pletora de pulsões e impulsos antagônicos, por força
dessa síntese ele é o senhor da Terra. — Morais são a
expressão de hierarquias localmente limitadas nesse mundo
plural das pulsões: de tal maneira que o homem não sucumba
em suas contradições. (...) O homem mais elevado teria a maior
multiplicidade das pulsões e também no vigor relativamente
maior que ainda se pode suportar. De fato: onde a planta
homem mostra-se forte, encontramos os instintos que impelem
vigorosamente um contra o outro, porém contidos (p. ex.
Shakespeare).”
231
Essa figura da pletora de pulsões que expressa o indivíduo em Nietzsche adquire novas
representações à luz do importante comentador de Nietzsche, Wolfgang Müller-Lauter, que
pensa o indivíduo a partir do conceito de vontade de potência, que ele esclarece ser também
230
NIETZSCHE, 2 [13], KSA, vol.12, p.71s, in: GP, 2002, p.32.
231
NIETZSCHE, 27 [59], KSA, vol.11, p.289, in: GP, 2002, p.26.
129
dinâmico, assim como o ser humano singular. Para o comentador, segundo Nietzsche, o
indivíduo seria como uma temporal congregação dinâmica de múltiplas e diferentes forças
em alguma forma passageira, propiciando apenas um simulacro de unidade e deve ser visto
como obra aberta — aberta tanto às interações com o passado, quanto ao jogo de forças do
presente e ainda ao porvir.
Nós somos uma multiplicidade que se imaginou unidade, anota
Nietzsche. A consciência, o intelecto, serve como meio com o
qual ‘eu’ ‘me’ engano a mim mesmo. Eu e mim são sempre
duas pessoas diferentes. Também meu ‘mim’ é ‘fingido e
inventado’.”
232
E é este indivíduo mesmo que, ao longo da existência, vai constituindo-se e reconstituindo-
se, a partir de diferentes vontades de potências, que convergem e divergem gerando
múltiplas e sempre provisórias linhas de força. Este conceito nietzscheano de vontade de
potência é o que melhor sintetiza a importância que o filósofo atribui à multiplicidade e à
dinâmica incessante de configurações e reconfigurações, que caracterizam a vida, a
imanência, o ser humano. O espírito livre é este que não teme viver para o ensaio, na
multiplicidade de instintos e pulsões, e por isso que consegue abordar a vida de forma
dispare e não convencional, buscando modos indefiníveis e abertos para isso. Em outras
palavras, é aquele que percebe a fragmentação e a transformação de si e do mundo,
constantemente, através da ação do tempo, que percebe o seu próprio eu como algo forjado
provisoriamente por uma congregação dinâmica de forças.
A partir de uma perspectiva micropolítica a ação individual, ainda que pulverizada,
exercida por este eu (unidade aparente e provisória) é importante primeiramente porque
estimula a criação pessoal (tornar-se aquilo que se é) e, posteriormente, porque revolve a
232
MÜLLER-LAUTER, 1997, p.79.
130
apatia social e política, tornando os homens senhores de suas escolhas, decisões, mudanças.
A ação individual pode assim funcionar até mesmo como teia, em uma macro-observação,
criando associações efetivas e potencializadoras a partir desta ação singular de cada
membro. Teia não no sentido comum na atualidade de rede, tão em voga no mundo virtual
(manifestos em rede, redes de denúncia, etc.), porque estas redes ainda pressupõem
diretórios, coordenações e centralizações. Diferente disto, falamos de múltiplas teias
desconexas e caóticas, de ações díspares e não-coordenadas, aleatórias e espontâneas, mas
que interagem, inevitavelmente, no espaço social-coletivo inerente ao ser humano, podendo
convergir ou conflitar, gerando novas configurações sociais, que serão tão mais verdadeiras
quanto forem fruto de interações e embates reais entre os homens, na busca por seus
autênticos modos de vida — autênticos modos de subjetivação.
No sentido oposto desta valorização nietzscheana da multiplicidade está o
movimento do Estado, enquanto instituição política, que, desde a sua fundação, e mais
profundamente na modernidade, tem como uma das funções principais a supressão das
diferenças culturais e individuais em nome de uma sociedade unificada, semelhante —
moralista, para o filósofo alemão. Nestas sociedades, em escala macro, todos os membros
devem ter os mesmos objetos de desejo e uma comum previsibilidade de ação, tal qual nas
palavras de Nietzsche em Humano, demasiado humano:
O grande homem da massa. — É fácil dar a receita para o que a
massa denomina grande homem. Em qualquer circunstância
arranjem-lhe algo que lhe seja agradável, ou lhe ponham na cabeça
que isto ou aquilo seria muito agradável e lhe dêem tal coisa. Mas de
modo algum imediatamente: deve-se lutar com isso com grande
esforço, ou parecer lutar. A massa deve ter a impressão de que há
uma força de vontade poderosa e até mesmo invencível; ao menos ela
deve parecer que está presente.”
233
233
NIETZSCHE, HDH, 2000, § 460, p.249.
131
Nessa tentativa político-ideológica de se padronizar hábitos e sonhos, vontade e
escolha, na fuga cotidiana da tragicidade originária, inerente à própria existência, do
afundamento que é a existência humana, ao tentar negar ou escamotear o que é doloroso,
difícil, árduo, o homem moderno (e, tal qual este, o homem contemporâneo) se
amesquinha, se enfraquece, posto que não é capaz de preparar-se para uma existência
guerreira. Porém este modo guerreiro é o modo de ser que a vida nos solicita, nos requer,
nos impõe: é necessário ser árido, espinhoso, tortuoso, tal como o próprio caminho, pois
“os espíritos crescem e a virtude floresce à medida que é ferida.”
234
. Os espíritos livres são
aqueles que tomaram para si a difícil tarefa de tornar-se o que se é, de auto-construção e
reconstrução, de auto-poiesis, de tratar a si mesmo e a sua vida como obra de arte e isso
com toda a dureza e a delícia deste empreendimento, sempre audacioso e antagonístico, que
é a vida e a existência:
Os homens mais espirituosos, pressupondo-se que eles são
também os mais corajosos, são aqueles que melhor e mais
amplamente vivenciam as tragédias mais dolorosas: mesmo por
isso, contudo, eles honram a vida; porque ela lhes contrapõe o
seu maior antagonismo.”
235
A possibilidade de construção da vida dentro da perspectiva nietzscheana dos
espíritos livres se torna, assim, uma alternativa prática e efetiva ao assujeitamento no qual
vive o homem contemporâneo, massificado, e Nietzsche deixa isso evidente em suas
palavras em Crepúsculo dos ídolos:
“O homem que se tornou livre, e muito mais ainda o espírito
que se tornou livre pisa sobre o modo de ser desprezível do
bem-estar, com o qual sonham o comerciante, o cristão, a vaca,
a mulher, o inglês e outros democratas. O homem livre é
guerreiro. — A partir de que critério se mensura a liberdade
234
NIETZSCHE, CI, 2000, p.7.
235
NIETZSCHE, CI, 2000, p.76.
132
dos indivíduos, assim como a dos povos? A partir da resistência
que precisa ser superada”
236
O conceito de espíritos livres propõe, dessa forma, uma busca cotidiana e árdua
pela escuta do corpo, dos sonhos, dos desejos, da necessidade da convivência com as
asperezas, as transformações, as restrições e mesmo impossibilidades que brotam na
imanência de toda existência, e com as dores que estas constantes mudanças, superações e
frustrações provocam. Tudo isso é algo que só pode ser realizado por cada pessoa,
circunscrita em sua realidade local e cultural, culminando em um modo de vida original e
criativo, bastante diferente do modo de proceder das sociedades de massa, dos animais de
rebanho, dos espíritos que negaram a si mesmos e à sua liberdade de pensamento e escolha,
tal como pode ser compreendido a partir do obscuro aforismo 56, de Aurora:
“Tudo o que move e determina o espírito livre: como está longe
de achar a mudança de suas opiniões desprezível em si mesma!
Como, pelo contrário, venera a capacidade de mudar suas
opiniões como uma rara e elevada distinção, sobretudo quando
ela se estende até a velhice!”
237
Pode-se depreender deste aforismo acima, parcialmente citado, que o espírito livre seria
alguém que preza a liberdade de escolha e valoração individuais, e, acima de tudo, preza a
sua liberdade espiritual. Isso demonstra a necessidade que Nietzsche via de uma libertação
dos grilhões da religião, principal responsável pela despotencialização do tipo homem. Os
ditames ascéticos e ditatoriais das religiões podem facilmente fazer um homem abandonar a
sua própria liberdade, que poderia ter prezado muito outrora, tornando-se assim um
apóstata do espírito livre, um apóstata da liberdade espiritual
238
, cuja visão pode ser
236
Ibid, p.95.
237
NIETZSCHE, A, 2004, § 56.
238
Idem.
133
comparada à de um enfermo repulsivo: “flácido, amolecido, excrescente, purulento”
239
,
capaz de causar aos de espírito livre “repugnância sem causa diante daquele que tinha
liberdade de espírito e afinal tornou-se ‘crente’”
240
.
Na última fase de sua produção intelectual, principalmente nos fragmentos
póstumos de A grande política, Nietzsche elaborou alguns conceitos equivalentes, possíveis
sinônimos, para o conceito de espíritos livres, através dos quais o filósofo pretendeu
aproximar múltiplas possibilidades de se operar rupturas com a padronização, com a
animalização gregária, inventando diferentes modos de se relacionar com a existência que
aqui denominamos, à luz de Foucault, como diferentes modos de subjetivação. Seriam eles:
os filósofos do futuro e os legisladores de si, ou legisladores do futuro. Estes exemplares
imanentes de ação pessoal e social constituem-se como abertura para a criação de infinitas
possibilidades de ruptura aos condicionamentos massivos que visam embotar o impulso
criador, guerreiro e conquistador inerente ao ser humano, que é considerado por Nietzsche
como o material explosivo que lhe é próprio, como no trecho que segue, extraído de
Crepúsculo dos ídolos:
“Vi seu instinto maximamente intenso, a vontade de potência,
os vi tremer frente à violência indômita deste impulso — vi
todas as instituições crescerem a partir de regras e medidas de
segurança, para se assegurarem uns em relação aos outros
contra seu material explosivo intrínseco.”
241
Propomos que este conceito de espíritos livres, recorrente nos escritos
nietzscheanos a partir de Humano, demasiado humano, bem como seus sinônimos, sejam
entendidos como alternativas de vida ética não-prescritiva, posto que estão sempre em
239
NIETZSCHE, A, 2004, § 56.
240
Idem.
241
NIETZSCHE, CI, 2000, p.95.
134
construção, desconstrução e reconstrução, porque não fornecem padrões, nem mesmo
formais, para a universalização da ação, uma vez que não buscam isso, mas, ao contrário,
sua singularização. Uma perspectiva que permite a si mesma rir e ludibriar da normatização
ocidental cristã, e a valorização equivocada que opera do “‘homem bom’, ao mesmo tempo,
o inofensivo e o útil: uma espécie de meio, a expressão, na consciência comum, de alguém
a quem não há o que se temer.”
242
, criticando o império das idéias do bem, da compaixão,
da solidariedade, nas palavras de Nietzsche:
“Também por sobre o próximo. — Como? A natureza do que é
verdadeiramente moral estaria em divisar as conseqüências
próximas e imediatas de nossas ações para o outro, e nos
decidirmos em conformidade com elas? Esta é uma moral
estreita e pequeno-burguesa, ainda que seja uma moral: um
pensamento mais elevado e livre parece-me olhar também por
sobre essas conseqüências imediatas para o outro e, em
determinadas circunstâncias, promover fins mais distantes
também com o sofrimento do outro (....) Não nos é permitido
tratar o próximo como a nós mesmos, pelo menos?”
243
Esta perspectiva de valorização singular reverbera em uma potencialização da esfera
da micropolítica, que se contrapõe diretamente à macro-política, esta última regida, em
última instância, por interesses monetários. Esta alternativa micropolítica baseia-se em um
projeto cultural, de aprimoramento do homem, de potencialização de suas forças, partindo
da possibilidade não massificada de tornar-se um espírito livre, um filósofo do futuro, no
sentido de ser crítico e criador de valores, um legislador de si: “O filósofo como legislador,
como experimentador de novas possibilidades, seus meios. (....) Seu antípoda: a moral dos
animais de rebanho
244
.
242
NIETZSCHE, 16 [7], KSA, vol.13, p.485, in: GP, 2002, p.51.
243
NIETZSCHE, A, 2004, § 146 [Grifo nosso].
244
NIETZSCHE, 35 [45], KSA, vol.11, p.531s, in: GP, 2002, p.30.
135
Estes diferentes modos de subjetivação propostos por Nietzsche, (espíritos livres, os
filósofos do futuro, os legisladores de si) funcionam, assim, como modelos de atuação
micropolítica, a quem é delegado, mas que simultaneamente — pode parecer até
contraditório! — também escolhem para si mesmos tarefas árduas, colocando-se metas e
disciplinando-se. Tudo isso como uma preparação para a mais suprema de todas as tarefas:
a transvaloração dos valores, com a criação de valores que tomem como ponto de partida a
vida, sua saúde e potencialização:
“Pensamento fundamental: os novos valores têm primeiro que
ser criados — isso permanece reservado para nós! O filósofo
tem que ser um legislador. Novas espécies. (Como foram
cultivadas até agora as espécies mais elevadas [por exemplo,
gregos]: querer conscientemente essa espécie de ‘acaso’)”
245
E não há nada mais condizente com uma perspectiva que aborda a política, sob a
valorização do seu aspecto micropolítico, do que os passos aqui traçados por Nietzsche
desde a radical crítica ao homem que perde a si mesmo, abdicando de sua liberdade, em
meio à padronização dos desejos, da vontade, dos anseios, dos sonhos; que trilha a sua
vida economizando tudo: saúde, força, ações. Este homem que, impotente para uma
auto-determinação, é determinado por um jogo de forças exterior ao qual está alheio, tal
como o pessimista passivo que desvaloriza a vida na Terra em nome de uma suposta
felicidade em além-mundos. Esta moral cristã já teve sua importância, porém em
momentos mais propícios, como os atuais, segundo Nietzsche, após a morte de Deus e o
desmascaramento niilista dos fundamentos da moral cristã, surge um solo fértil para o
niilismo ativo, valorizado pelo filósofo alemão:
245
NIETZSCHE, 35 [47], KSA, vol.11, p.533s, in: GP, 2002, p. 30-31.
136
“‘Deus, moral, resignação’ eram meios de cura em graus
terríveis e profundos da miséria: o niilismo ativo surge em
circunstâncias configuradas de modo relativamente mais
favorável. Que a moral seja sentida como superada
pressupõe um grau considerável de cultura espiritual;.
246
Esta proposta de valorização micropolítica, através da ação individual, singular,
aprofundada por Nietzsche em A grande política, só pode ser realizada por um viés que
privilegia a cultura e o encontro do homem com ele mesmo, tornando-se o que se é.
Nietzsche, nesse sentido, enaltece o valor de uma cultura sadia, que não se deixa apreender
em um movimento massificador de animal de rebanho, contrapondo-a a idéia de
civilização:
Os ápices da cultura e da civilização estão separados entre si:
não devemos nos deixar extraviar sobre o abissal antagonismo
entre cultura e civilização. Moralmente falando os grandes
momentos da cultura sempre foram tempos de corrupção; e,
novamente, a épocas da voluntária e coerciva domação animal
(‘civilização’) do homem foram tempos de intolerância para as
naturezas mais espirituais e ousadas. A civilização quer outra
coisa que a cultura quer, talvez algo inverso.”
247
Para tal faz-se inevitável uma busca pelo auto-conhecimento, sem recair em uma reificação
de si, mas, ao contrário, em uma auto-legislação. Esse legislador de si ou legislador do
futuro, porém, está muito distante do ideal moderno de sucesso, do burguês. Se o homem
para Nietzsche é o animal cuja peculiaridade é, entre outras, necessitar de um solo duro,
árido, difícil, para poder se desenvolver, o homem que legisla para si e para um porvir é um
homem que, antes de tudo, se conhece, sabe quais as máscaras que usa, como e porque
utilizá-las. E este homem que auto-legisla para si de acordo com a necessidade, mesmo que
esta se encaminhe por trilhas áridas, é como um andarilho que caminha explorando diversas
possibilidades, é como o próprio conceito de além-do-homem em Nietzsche:
246
NIETZSCHE, 5 [71], KSA, vol.12, p.211, in: GP, 2002, p.61.
247
NIETZSCHE, 16 [10], KSA, vol.13, p.485s, in: GP, 2002, p.51.
137
“Demonstrar a necessidade de que a um emprego sempre mais
econômico de homem e humanidade, a uma sempre mais
firmemente intrincada ‘maquinaria’ de interesses e
rendimentos pertence um contra-movimento. Eu o designo
como extração excedente de luxo da humanidade. Nele deve vir
a luz uma espécie mais forte, um tipo mais elevado, que tem
outras condições de surgimento e de conservação que o homem
mediano. Meu conceito, minha alegoria para esse tipo é, como
se sabe, a palavra ‘Além-do-homem’
248
.
O legislador de si, o legislador do futuro seria assim o além-do-homem, o
Übermensch de Assim falou Zaratustra, que é capaz de auto-determinar-se, incluindo entre
as suas variáveis o acaso, o outro, a contingência. É também o filósofo na medida em que é
aquele ao qual faz-se imperativo criar valores, após o radical niilismo vivido desde a crise
da modernidade, tão abordada por Nietzsche. Aliás, niilismo este que, para Nietzsche, é
indispensável ser vivenciado no âmbito do animal de rebanho para que o além-do-homem,
o homem micropolítico nietzscheano, possa existir.
O eu primeiramente no rebanho. Inverso
disso: o além-do-homem”
249
que auto-constitui-se por oposição ao último homem: o europeu
cristão moderno.
Nietzsche nos mostra que este homem niilista do a-fundamento ainda é capaz de ser
filósofo, na medida em que se torna imperativo criar valores, ao contrário do modelo de
subjetivação disseminado pela modernidade que, para o filósofo alemão, era o do homem
teórico-científico, do filósofo idealista, do cristão-ascético-cientista. Para este homem
decadente os valores estavam nas coisas e bastava descobri-los: descobrir a verdade do que a
coisa era – seu ser, sua substância - e cristalizá-la. Ao contrário, a ação principal do novo
homem é perceber que a tarefa humana suprema é a criação — de valores e modos de vida.
Cito Nietzsche em Além do bem e do mal:
248
NIETZSCHE, 10 [17], KSA, vol.12, p.462s, in: GP, 2002, p.42-43.
249
NIETZSCHE, 11 [176], KSA, vol.9, p.508, in: GP, 2002, p. 25.
138
Talvez ele próprio [o filósofo] tenha que ter sido crítico,
cético, dogmático e historiador, e além disso poeta,
colecionador, viajante, decifrador de enigma, moralista,
vidente, ‘livre-pensador’ e praticamente tudo, para cruzar todo
o âmbito dos valores e sentimentos de valor humanos e poder
observá-los com muitos olhos e consciências, desde a altura até
a distância, da profundeza à altura, de um canto qualquer à
amplidão. Mas tudo isso são apenas pré-condição de sua
tarefa: ela mesma quer algo mais – ela exige que ele crie
valores.
250
Entendemos aqui que a tarefa desse novo homem pós-metafísico distancia-se do homem
teórico-científico e se aproxima mais do artista como paradigma, afinal, esse a quem
Nietzsche nomeia como legislador de si, espírito livre, filósofo do futuro é aquele ao qual
cabe a árdua e original tarefa de transvaloração de todos os valores, de aceitar-se como o
animal não-fixado, de colocar-se a si mesmo em cena, de criar, segundo Giacóia:
“as condições necessárias para o surgimento dessa nova
aristocracia do espírito, dessa excelência na virtude, que é forte
o suficiente para transformar força em beleza, rigor moral em
consciência do dever e honestidade intelectual, severidade em
doçura, e de dar à própria vida a bela forma da obra de
arte.”
251
Afinal, segundo as palavras de Nietzsche em A gaia ciência, seria justamente por esse
ensinamento de vida, político-social de estetização da existência, de vivermos a vida como
obras de arte, é que deveríamos ser gratos aos artistas e ao modelo que são para nós, pelo
que representam enquanto são veículos da arte e de sua sabedoria originária:
“Apenas os artistas, especialmente os de teatro, dotaram os
homens de olhos e ouvidos para ver e ouvir, com algum prazer,
o que cada um é, o que cada um experimenta e o que quer;
apenas eles nos ensinaram a estimar o herói escondido em
todos os seres cotidianos, e também a arte de olhar a si mesmo
como herói, à distância, e como que simplificado e
transfigurado — a arte de se’ pôr em cena’ para si mesmo
252
250
NIETZSCHE, ABM, 1992, § 211.
251
GIACÓIA, Introdução, In: GP, 2002, p.21.
252
NIETZSCHE, GC, 2001, § 78.
139
III. 3 Uma interpretação micropolítica da política em Nietzsche a partir de
A Grande Política
Negamos metas terminais:
se a existência tivesse alguma,
ela teria que ter sido alcançada.”
253
Este trecho final da presente dissertação pretende valorizar e justificar uma
interpretação micropolítica dos fragmentos deixados por Nietzsche sob o título de A
Grande Política, trabalho no qual o filósofo se debruçou na última etapa de sua vida.
O projeto que o filósofo alemão deixou esboçado sob o título de A Grande Política
é parte integrante do projeto político nietzscheano que, por um lado, realizou uma crítica
radical à política da modernidade, tal como foi desenvolvido na primeira seção deste
terceiro capítulo, porém, por outro lado, evidenciou a necessidade de se efetuar uma
transvaloração de todos os valores. A exigência social e política de superação do último
homem, que, para Nietzsche, era o homem moderno, o animal de rebanho, abre espaço
para o estabelecimento do übermensh, o além-do-homem, de um tipo exacerbado em força
e potência de ação. Nietzsche o descreve em seus fragmentos póstumos:
“Quais se demonstrarão aí como os mais fortes? Os mais
comedidos, aqueles que não têm necessidade de extremos
artigos de fé, aqueles que não apenas admitem, como amam,
uma boa parte de acaso, absurdo, aqueles que podem pensar a
respeito do homem com uma significativa redução do seu valor,
sem com isso se tornar pequeno e fraco: os mais ricos em
saúde, aqueles que estão à altura da maioria dos malheurs e
por isso não temem tanto esses malheurs — homens que estão
253
NIETZSCHE, 5 [71], KSA, vol.12, p.211, in: GP, 2002, p.58.
140
seguros de seu poder e, com orgulho consciente, representam a
alcançada força do homem.
254
É neste sentido que pode-se interpretar estes fragmentos nietzscheanos, que ele mesmo
compilou, livremente, intitulando-os como A Grande Política, como micropolíticos.
Pode parecer antagônica uma interpretação micropolítica de algo que se denomina
como Grande política, entretanto, algo que se pode depreender a partir da leitura destes
fragmentos é que Nietzsche não está propondo uma macropolítica, tal como entendemos
este conceito desde a modernidade. Na contemporaneidade a macropolítica seria a
ingerência política, social, econômica que os Estados nacionais operam no interior de seus
organismos de governo, resultando em uma ingerência meramente macro-econômica, tão
criticada por Nietzsche:
Vê-se: o que eu combato é o otimismo econômico, como se
com o crescente prejuízo de todos, também o proveito de todos
necessariamente tivesse que crescer. O contrário me parece o
caso: o prejuízo de todos se soma numa perda global: o homem
se torna menor. De modo que não se sabe mais para que serviu,
em geral, esse formidável processo.”
255
O filósofo anunciou o processo de transformação do valor do político, assistido após
sua total descredibilização diante das sociedades, movimento que foi muito impulsionado
por ele:
[o] conceito política agora ingressou inteiramente em uma
guerra espiritual, todas as formações de poder explodiram no
ar, — haverá guerras como ainda não houve nenhuma na
Terra.—”
256
A macropolítica acima referida é aquela vivenciada no interior dos Estados
nacionais — aqueles mesmos que, na atualidade, se encontram no interior de blocos de
254
NIETZSCHE, 5 [71], KSA, vol.12, p.211, parte 15, in: GP, 2002, p.62.
255
NIETZSCHE, 10 [17], KSA, vol.12, p.462s, in: GP, 2002, p.43.
256
NIETZSCHE, 25 [6], KSA, vol.13, p.639s, parte 1;in: GP, 2002, p.54.
141
poder, enquanto impérios de organizações transnacionais que tentam ordenar um caótico
mercado comum exterior, formando assim macro-blocos de poder e barganha que
poderiam, equivocadamente, confundir-se com o conceito nietzscheano de grande política.
Primeiramente esse movimento descrito acima é bastante posterior à Nietzsche e, ainda que
ele tenha sido arauto de muitas destas ocorrências, a nomenclatura conceitual utilizada não
deve ser confundida. A confusão se daria ao entender o conceito de grande política como
uma política contemporânea de globalização que, para além desta fachada, é apenas uma
política imperialista, baseada na soberania de alguns poucos Estados nacionais, que sofrem
transformações, adquirem, aqui e acolá, estatuto de blocos de poder, mas que continua por
evidenciar o egoísmo e a xenofobia entre povos, etnias, contra o que é culturalmente
diferente. Para o filósofo alemão é justamente o contrário o uso que ele atribui à expressão
grande política, chegando mesmo a criticar o uso desta expressão para falar sobre a
mundialização imperialista, tal como nos mostram suas palavras nos fragmentos póstumos:
Nada conheço que se contrapusesse mais ao sentido supremo
de minha tarefa do que incitamento, digno de maldição, ao
egoísmo de povos e raças que agora tem pretensão ao nome de
‘grande política’ (....) Possam eles construir seus castelos de
cartas! Para mim, ‘impérios’ e ‘tríplices alianças’ são castelos
de cartas...Isso repousa sobre pressupostos que eu tenho na
mão...Há mais dinamite entre o céu e a Terra do eu se
permitem sonhar esses purpúreos idiotas...”
257
Em sentido oposto, com o conceito de grande política Nietzsche critica justamente
esses impérios e a mundialização de uma economia financeira que parece reger todas as
demais relações entre os homens, contrapondo-os a um projeto cultural, valorizado e
descrito por Nietzsche, que poderia erigir um novo homem, nômade, andarilho,
257
NIETZSCHE, 25 [6], KSA, vol.13, p.639s, parte 1;in: GP, 2002, p.54.
142
supranacional — remetendo à imagem e à trajetória de Zaratustra, bem como ao conceito
de espíritos livres, reincidente na obra de Nietzsche e pesquisado na seção anterior.
A grande política se contrapõe, assim, à pequena política, que se refere exatamente
a esta política que é realizada pelos Estados nacionais, que erigem morais universais
repressoras, findando por apequenar o homem, reduzindo-o ao uso mínimo de suas forças.
Nas palavras de Giacóia:
Se a meta da pequena política consiste em submeter o
particular ao universal, o indivíduo à comunidade, tomando o
primeiro como um instrumento do bem comum, o propósito da
Grande Política se delineia em sentido inverso. Ele se articula
como um programa filosófico que visa defender a exceção
contra a regra, criar, deliberada e experimentalmente, as
condições propícias para o surgimento de uma nova
aristocracia do espírito, que tomará corpo na figura dos novos
filósofos, os espíritos livres, muito livres. Eles, justamente,
seriam também os ‘fortes do futuro’.”
258
Ao contrário, a macropolítica moderna e contemporânea é responsável por jogar
povos contra povos, em um contínuo desperdício de quantum de força, a fim de que possam
mais facilmente ser domados e encaminhados como animais de rebanho. Nietzsche
anunciou uma guerra contra essa mediocrização do homem, contra a política de interesses
que rege a macropolítica na atualidade:
Eu trago a guerra. Não entre povo e povo; não tenho palavras
para exprimir meu desprezo pela política de interesses, digna
de maldição, das dinastias européias, que, da incitação ao
egoísmo (Selbstsucht), a auto-presunção dos povos uns contra
os outros, faz um princípio e quase um dever. Não entre
estamentos sociais. Pois não temos estamentos superiores,
consequentemente também não inferiores: aquilo que hoje
prevalece na sociedade é fisiologicamente condenado e,
ademais — o que é a prova disso — tão empobrecido sem seus
instintos, tornado tão inseguro, que confessa sem escrúpulos o
258
GIACÓIA, Introdução, In: GP, 2002, p.17[grifo nosso].
143
contra-princípio de uma espécie superior de homens. Eu trago a
guerra entre todos os absurdos acasos de povo, estamento,
raça, profissão, educação, formação: uma guerra como entre
ascensão e ocaso, entre vontade de vida e ânsia de vingança
contra a vida, entre honestidade e pérfida mendacidade...”
259
A visão que Nietzsche tinha de força, potência, poder, era mais próxima a de algo que deve
ser colocado em cheque, em embate, em conflito com outros quanta de poder, a fim de
reconfigurar-se sempre, fundando e refundando direitos que são vistos, pelo filósofo
alemão, sempre como conquistas:
“Mais natural é nossa posição in politicis: vemos problemas de
poder, do quantum de poder contra um outro quantum. Não
cremos em um direito que não repouse sobre o poder de se
impor: sentimos todos os direitos como conquistas.”
260
Nas obras mais sistemáticas de Nietzsche, tais como Genealogia da moral, Assim
falou Zaratustra e O Nascimento da tragédia, é possível apenas retirar alguns esparsos
elementos que corroboram para esta interpretação micropolítica do pensamento
nietzscheano que aqui se fundamenta. No primeiro livro supra-citado, através da genealogia
que faz da moral no mundo cristão ocidental, Nietzsche valorizou a moral do senhor, ativa,
criativa, ao contrário da moral do escravo, que age de forma reativa a partir dos modelos
que lhe são impostos. Essa moral nobre não deve ser equivocadamente confundida com a
moral do monarca decadente, nem com a do burguês, estreitamente vinculada ao
monetarismo, tão denunciado pelo filósofo alemão — que mais se parece com a moral do
último homem de Zaratustra.
No belo livro de cunho bastante artístico Assim falou Zaratustra pode-se entender
como o caminho representativo de todo aquele que é um espírito livre o caminho que é
percorrido pelo sábio-andarilho, personagem-título, arquetípico, descrito por Nietzsche em
259
NIETZSCHE, 25 [1], KSA, vol.13, p.637s, in: GP, 2002, p.52.
260
NIETZSCHE, 10 [53], KSA, vol.12, p.482s, in: GP, 2002, p. 44.
144
suas andanças. Porém desde O Nascimento da tragédia, tornava-se patente a valorização
que Nietzsche faz da arte e do modelo de atuação política paradigmático do grego antigo,
micropolítico, que fundia a esfera da política com a estética, a arte, a educação – e não
subordinava a política aos especialistas, aos técnicos, à economia, à ciência, gerando, na
prática, uma estetização da existência. Nas palavras de Michel Foucault:
“Esquematicamente, pode-se dizer que a reflexão moral da
Antigüidade a propósito dos prazeres não se orienta para uma
codificação dos atos, nem para uma hermenêutica do sujeito,
mas para um estilização da atitude e uma estética da
existência.”
261
Faz-se importante ressaltar que a micropolítica está sendo entendida neste estudo
como atuação alternativa exercida por aqueles que se envolvem em questões sociais que
efetivamente os afetam (mesmo que à distância), indo desde os movimentos sociais locais
pelo direito à moradia, ao emprego, à liberdade de expressão, até os movimentos
internacionais contra a globalização ou as invasões imperialistas. Classificamos como
alternativa uma participação política que foge, de forma criativa, aos modelos
institucionalizados de participação, que ocorrem através de entidades sindicais ou
partidárias, via voto. Evidenciamos, ao contrário, nos movimentos micropolíticos de
ruptura com a ordem dominante vigente, que se quer absoluta, uma reinvenção da prática
político-social, com intervenções artísticas, educativas, com manifestações públicas de
adesão ou repúdio, de segmentos sociais que se esforçam por construir espaços de
visibilidade, posto que estão historicamente à margem dos tradicionais veículos de
comunicação, que trazem publicidade às pautas para a composição de agendas públicas.
Ao valorizar a atuação singular, não atrelada aos rebanhos sócio-humanos,
Nietzsche incentivou justamente a participação micropolítica, denunciando, ao mesmo
261
FOUCAULT, 1980, vol.2, p.85.
145
tempo, as adesões em massa. Ele criticava porque, na prática, a maioria destas adesões é
irresponsável, e é possível nelas observar a perda do sentido das ações de cada pessoa, que
adere por massificação, sem autonomia e criticismo sobre suas escolhas. Foucault,
assumido leitor de Nietzsche, escreverá posteriormente sobre essa temática, nos idos do
século XX, evidenciando como todo esse movimento liberal e democrático moderno se
propõe a lidar com um povo ainda tutelado, não mais através da Religião, da Igreja
medieval, mas através de outras estratégias, como o Estado e a mídia. A este movimento de
tutela Foucault deu o nome de assujeitamento, posto que é um movimento de retirar o que
há de autônomo no homem, deixando-o sem subjetividade, apenas limitado a responder aos
estímulos pré-determinados de modo não crítico, fazendo com que o homem se abstenha
de decidir sobre a sua própria existência. Contra esse movimento Foucault enaltece um
direito peculiar, que parece ser estranho à esfera jurídica: o direito de tornar-se o que se é,
nas palavras de Nietzsche, ou o direito de encontrar o que se é e tudo o que se pode ser, nas
palavras de Foucault:
“O ‘direito’ à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades, o
‘direito’ acima de todas as opressões e ‘alienações’, de encontrar o que se é e tudo o
que se pode ser, esse ‘direito’ tão incompreensível para o sistema jurídico clássico, foi
a réplica política a todos esses novos procedimentos de poder que, por sua vez, também
não fazem parte do direito tradicional da soberania”
262
Para romper com os assujeitamentos que são impostos cotidianamente, as saídas em
massificadas têm se mostrado as menos eficazes, posto que são mais facilmente absorvidas
pelas estratégias do poder. Nessa perspectiva, as saídas pessoais e inter-pessoais,
circunscritas e circunstanciais, construídas de modo criativo na imanência de cada instante,
parecem mais adequadas para retirar os diferentes seres humanos desse
assujeitamento.Nietzsche afirma que, através da arte, é possível transformar estes outrora
262
FOUCAULT, 1980, vol.1, p.136.
146
animais de rebanho em singularidades, em espíritos livres, atingindo sua máxima
plenitude:
Neste estado, tudo se enriquece a partir de sua própria
plenitude: o que se vê, o que se quer, se vê dilatado, cerrado,
forte, sobrecarregado com a força. O homem que se encontra
nesse estado transforma as coisas até elas refletirem sua
potência: até elas serem o reflexo de sua perfeição. Este
precisar-transformar em algo perfeito é – arte. Tudo mesmo o
que ele não é, vem-a-ser para ele, apesar disto, prazer em si;
na arte, o homem goza de si mesmo enquanto perfeição.”
263
Explorando a hipótese de que a valorização da política em Nietzsche passa por uma
micropolítica, nos atemos ao próprio conceito de grande política que, para o filósofo,
segundo Giacóia, é “entendido como alargamento de sentido e horizonte para questões de
natureza política
264
. Nesta perspectiva, é atribuída menos importância aos problemas de
estado, de economia, de governo - para estes Nietzsche deixa, como vimos, suas duras
críticas ao monetarismo, ao imperialismo, ao socialismo, à democracia, segundo palavras
do mesmo comentador: “perigos ocultos nas novas realidades políticas reveladas pelo
mundo industrial e a democracia moderna e uma economia monetária”
265
. A preocupação
maior de Nietzsche era principalmente com a Kultur, com a moral nobre, com a ação, com
a agonística característica do espaço público - entendendo o espaço público como o espaço
por excelência para o agir, para a intervenção criativa e transvaloradora dos espíritos livres,
para a construção coletiva da cultura. A valorização do cultivo e aprimoramento de si
visando a ação, em contraposição ao domínio da fé e do conhecimento teórico, exercitar-se
para os grandes feitos e obras a partir do exercício do agir, nas palavras de Nietzsche:
“O mais confiante saber ou fé não pode proporcionar a energia
para o ato nem a destreza para o ato, não pode substituir a
263
NIETZSCHE, CI, 2000, p.71.
264
GIACÓIA, Introdução, In: GP, 2002, p.8.
265
Ibid, p. 21-22.
147
exercitação do mecanismo sutil e múltiplo, que deve ocorrer
para que algo possa converter-se de idéia em ação. Sobretudo e
primeiramente as obras! Ou seja, exercício, exercício,
exercício! A ‘fé’ correspondente logo aparecerá — estejam
certos disso!”
266
266
NIETZSCHE, A, 2004, § 22.
148
Considerações finais
O que se pode perceber ao longo desta dissertação é primeiramente a importância dos
escritos políticos nietzscheanos que, embora dispersos e desorganizados, após a
compilação aqui realizada podem ser vistos em conjunto, como um fio condutor de
temas tão caros ao filósofo, que margeiam e estruturam uma perspectiva política peculiar
em Nietzsche: a crítica ao macro, ao massificado e a busca pela valorização de cada
célula, e não apenas do todo. Ao longo deste estudo analisamos os três principais eixos
sobre os quais construímos a interpretação dos textos políticos de Nietzsche: a
valorização do estético (estetização da existência), da agonística e da ação singular,
micropolítica e as teias associativas que dela derivam. Uma vez que a política é o modo
de ser social do homem, que é um animal político por natureza — isso nos mostrou
Zaratustra no seu retorno aos homens, após anos de importante aprendizado no
isolamento — a política é atividade para ser feita por todos, e isso significa por cada um
singularmente, sem prescrições ou normatizações.
Na busca por orientações daquilo que seja mais primordial na vida humana,
principalmente no aspecto político, Nietzsche nos mostrou a importância do embate,
conflito, da agonística entre diferentes percepções, a valorização da arte e da experiência
de criação que ela nos fornece, atingindo uma verdadeira estetização da existência, i. e.,
149
uma abordagem da própria vida enquanto processo artístico-criativo e, por fim, a
incitação à ação, pessoal e circunscrita, princípio de toda micropolítica. Quanto à
necessidade do embate, do agon este aparece como um aspecto central da vida saudável
em comunidade, tal como o modelo dos gregos, que não deve ser negligenciado ou
escamoteado. Isto porque, somente através desta vivência conflitual é possível
compreender a riqueza frutífera do choque entre diferentes perspectivas e da necessidade
da coexistência destes diferentes. As palavras de Nietzsche: “somente se é fecundo ao
preço de ser rico em antíteses”,
267
evidenciam o alto valor que o filósofo alemão atribuía
à contradição, aos antagonismos, a uma verdadeira guerra declarada, a partir da ênfase
na ação, contra tudo o que despotencializa e apequena o ser humano. No campo da
política, não pode haver prática mais danosa do que a tentativa de supressão das vozes e
anseios dissonantes, na busca por uma unificação, recorrente na modernidade, forjando
uma falsa igualdade democrática que, de fato, maqueia e dificulta o jogo na arena
pública.
Vimos que, além de profundamente crítico, Nietzsche é também criador de conceitos
que vislumbram novos horizontes, não otimistas de maneira ingênua, mas promissores
para o tipo homem, em franca decadência desde a modernidade. Isto nos é mostrado
através de conceitos como além-do-homem, espíritos livres, filósofos do futuro,
legisladores de si, conceitos que foram aqui abordados e investigados na perspectiva
micropolítica, enfatizando a ação criativa, a criatividade daquele que encara a sua vida
como obra de arte. Isto apesar de recorrentes interpretações, lugar comum, que
enxergam Nietzsche apenas como um niilista radical, indispensável para colocar o dedo
267
NIETZSCHE, CI, 2000, “Moral como contra-natureza”, 3.
150
na ferida da existência humana finita e sem fundamento, quase que um profeta do
apocalipse, ao criticar todas as nossas instituições sem deixar escapar nenhum aspecto.
Faz-se necessário enfatizar, na ode que Nietzsche faz à arte (a atividade par excellence
do homem), na preocupação com a cultura enquanto cultivo de si: “Uma cultura da
exceção, da tentativa, do perigo, da Nuance — uma cultura de estufa para plantas não
habituais
268
, no seu olhar perscrutador sobre a educação, a política cultural, o sistema
de ensino, a formação que é dada ao indivíduo na sociedade — o quanto o filósofo foi, à
sua maneira, transvalorando o próprio valor e o significado da política, um pensador
político. Para reverter o quadro desolador diagnosticado por Nietzsche na modernidade,
no que tange à eliminação de toda autonomia e originalidade inerente à pessoa humana,
Nietzsche propõe o cultivo de um novo tipo homem: uma pessoa que habita a terra
inteira, ainda que esteja enraizado em sua localidade, posto que não foi anteriormente
dividido pelas dicotomias filosóficas e sociais, que abrem fendas, separando tudo em
certo e errado, bem e mal, verdade e mentira – desenvolvidos e subdesenvolvidos,
civilizados e bárbaros, dominantes e dominados, e assim ad infinitum. Esse homem
supranacional e nômade, assim o é porque se identifica com a sua cultura e fala a sua
língua, na busca por seus interesses e pelo que potencializa a sua comunidade, sendo
assim capaz de compreender e respeitar o outro, em sua diversidade, ainda que o
diferente esteja alocado em outro extremo do mundo, vivendo de modo tão distinto e
peculiar.
Esse modelo não prescrito de subjetivação proposto por Nietzsche vem a ser, nesta
interpretação que aqui se realiza, o conceito de espíritos livres, quando o filósofo propõe a
268
NIETZSCHE, 16 [6], KSA, vol.13, p.484s, in: GP, 2002, p.50.
151
existência ativa que aponta para uma superação do homem, constituindo o tipo
supranacional, nômade, a partir do estranho, do raro, do diferente:
“Hoje, inversamente, quando na Europa somente o animal de
rebanho recebe e dispensa honras, quando a ‘igualdade de
direitos’ pode facilmente se transformar em igualdade na
injustiça: quero dizer, em uma guerra comum a tudo que é
raro, estranho (...)”
269
Representação da raridade e da estranheza que ele aproxima à imagem do forte, da exceção,
do privilegiado, do além-do-homem (o Übermensch, de Assim falou Zaratustra) — das
naturezas artísticas.
O artista como sendo aquele que vive de modo tão singular que escapa aos modelos
prescritos de atuação, baseando sua lógica intrínseca de estruturação não no modelo
dicotômico e excludente da modernidade, mas nos valores artísticos. A natureza artística
como sendo própria do espírito livre, que trabalha com a criação, sobre uma lógica do
paradoxo que não negligencia as diferenças, mas que constrói e desconstrói, sobre a
multiplicidade, na imanência, no instante, tal como nas palavras de Nietzsche:
“Os artistas talvez tenham um faro mais sutil nesse ponto: eles
que sabem muito bem que justamente quando nada mais
realizaram de ‘arbitrário’, e sim tudo necessário, atinge o
apogeu sua sensação de liberdade, sutileza e pleno poder, de
colocar, dispor e modelar criativamente – em suma, que só
então necessidade e ‘livre-arbítrio’ se tornam unidos neles.”
270
269
NIETZSCHE, ABM, 1992, § 212, p.119-120.
270
Ibid, § 213, p.120-121.
152
Não o artista como profissional, que muitas vezes está mais inserido do que nunca na lógica
de mercado, mas viver a vida artisticamente, sem pensar em progresso, pecado ou culpa,
mas no acaso e nos vetores de força que configuram e reconfiguram a realidade, que é
erigida cotidianamente, no jogo que é jogado entre diferentes perspectivas e visões de
mundo.
Esta proposta de atuação singular lançada por Nietzsche, como foi visto ao longo
deste trabalho, não pretende ser como mais um paradigma a priori de atuação pública e
privada, mas sim estar aberta à possibilidades infinitas de criação e recriação, de diversas
configurações, sempre em movimento, da construção de um modus operandi diverso, que
fuja das especializações excessivas e da padronização dos modos de vida ao qual
assistimos, com mais vigor ainda, nas últimas décadas, exemplificando com Nietzsche em
Além do bem e do mal:
“Face a um mundo de ‘idéias modernas’, que gostaria de
confinar cada um num canto e numa ‘especialidade’, um
filósofo, se hoje pudesse haver filósofos, seria obrigado a situar
a grandeza do homem, a noção de ‘grandeza’, precisamente em
sua vastidão e multiformidade, em sua inteireza na diversidade
(...)”
271
Esta nova proposta de vida, de modo de subjetivação, baseada na construção, desconstrução
e reconstrução de si, transcorre sem normas prescritas, sem teleologia possível, ou seja, sem
uma finalidade determinada a priori, estando aberta ao acaso e à imanência das relações
interpessoais, que só se dão no devir do instante, sabendo que as condições internas e
271
NIETZSCHE, ABM, 1992, § 212, p.119.
153
externas são sempre peculiares e, na maioria das vezes, não podem ser disseminadas.
Valoriza-se assim a multiplicidade de modelagens e texturas, como metáforas plásticas da
beleza proveniente da diversidade de modos de ser pessoais e inter-relacionados de formas
ímpares e dinâmicas.
Nesse percurso grande ênfase deve ser dada ao como, ao modo peculiar de se fazer,
se constituir, ao processo — enxergando a vida como obra de arte. E não a uma suposta
chegada, a um lugar ideal e ascendente, na escala de um progresso linear e vertical. Mas a
valorização de ambos os eixos das dicotomias, dos pólos que foram tradicionalmente
valorizados, mas também daqueles que foram negligenciados: a imagem, o real, a matéria,
a representação, o corpo, o feio, o ridículo, o grotesco, a comédia, a arte, o instintivo, o
natural, e (por que não?) todos os outros eixos múltiplos que já existem e os que ainda serão
inventados.
“Assim como no reino das estrelas são às vezes dois sóis que
determinam a órbita de um planeta, e em alguns casos há sóis
de cor diversa que iluminam um só planeta, ora com luz
vermelha, ora com luz verde, logo irradiando simultaneamente
e inundando-o de luz multicor: assim também nós, homens
modernos, graças à complicada mecânica de nosso
‘firmamento’ somos determinados por morais diversas; nossas
ações brilham alternadamente em cores distintas, raras vezes
são inequívocas – e com freqüência realizamos ações furta-
cor.”
272
Em última análise,como foi visto anteriormente, os espíritos livres são como
aqueles de natureza nobre, que tem consciência de que a vida é um jogo de vontades de
poder e cujos gestos “são expressões do fato de que em seus membros a consciência do
poder joga continuamente o seu jogo encantador”
273
. Estas naturezas cultivadas, essa
272
NIETZSCHE, ABM, 1992, § 215, p. 124.
273
NIETZSCHE, A, 2004, § 201.
154
indiscutível felicidade da cultura nobre, baseada no sentimento da superioridade”
274
é em
Nietzsche comparado ao espírito livre, que atua micropoliticamente, e é aquele que:
“como sabe manter o aspecto de uma força física sempre
elevada e constante, deseja, por meio de permanente
serenidade e solicitude, mesmo em situações penosas,
conservar a impressão de que sua alma e seu espírito se acham
à altura dos perigos e das surpresas”
275
Estes são os espíritos livres, livres pensadores que buscam uma sabedoria trágica, os
homens que estão por vir, os filósofos do futuro, legisladores de si que, como nenhum
outro ao longo da História, saberão transvalorar os valores insalubres da modernidade
política, retomando até mesmo o sentido do político, tão desgastado, como afirma
Nietzsche em Aurora:
“aquele ideal de sabedoria vitoriosa que nenhuma época pode
estabelecer com tão boa consciência como a época que está
para vir. E, por fim: com o que deve ocupar-se doravante a
nobreza, se cada dia mais parece indecente envolver-se com a
política?
276
Naquilo que convencionou-se chamar de última fase do pensamento nietzscheano,
como vimos, pode-se notar um crescente interesse em abordar aspectos políticos,
entendendo aqui o político como o próprio do homem em sua interação social e
comunitária. Nietzsche percorre sua trajetória política, que vai desde as ácidas críticas aos
alicerces da política liberal moderna (característica peculiar de sua filosofia) àquilo que ele
denominou por pequena política – a macropolítica da modernidade – e paralelamente
realiza uma ode aos espíritos livres, aos novos legisladores de si, responsáveis pela tarefa
da transvaloração dos valores, da desconstrução moral, da educação, do cultivo de si.
Todos esses movimento faz-nos entender aqui, citando Giacóia, que:
274
Idem.
275
Idem.
276
NIETZSCHE, A, 2004, § 201.
155
a política não pode ser tomada como um problema marginal,
excrescência de pouca relevância no interior do programa
crítico nietzscheano. Antes pelo contrário, interpretamo-la
como uma espécie de precioso fio de Ariadne
277
.
Com o radical niilismo arrolado a partir da crise da modernidade, habilmente
dissecada por Nietzsche em seu projeto crítico, o que foi observado aqui, é que, segundo o
filósofo alemão, há uma inevitabilidade do homem moderno em vivenciar a experiência
decisiva de ver ruir o antigo edifício conceitual metafísico, absoluto e prescritivo, que já
não é mais suficiente para fundamentar a sua relação com a vida e a interação com o outro.
Este homem descrito acima é o pessimista passivo e a alternativa a essa massificação, é
realizada por um viés que privilegia a cultura, enquanto possibilidade de cultivo de si e,
neste sentido, enaltece o valor de uma cultura sadia, cujo projeto cultural é capaz de erigir
um novo homem: nômade, andarilho, supranacional – remetendo ao tipo e à trajetória de
Zaratustra:
Tomamos nossas posições ocasionais (como Goethe,
Stendhal) nossas vivências, como cabanas de pouso, como as
utiliza e leva consigo um andarilho — nós nos precavemos de
nos tornar domiciliados. Excedemos nossos contemporâneos
em uma disciplina voluntatis. Toda força empregada no
desenvolvimento da força de vontade, uma arte que nos permite
usar máscaras, [uma arte] do compreender para além dos afetos
(também, por vezes, pensar de maneira supra-européia).
Preparação para nos tornarmos senhores da Terra: o
legislador do futuro”
278
Surge então como paradigma político não mais fórmulas universais imutáveis e
eternas, mas, ao contrário, o modelo do agon, do embate, do jogo, da disputa, da imitação
criadora que Nietzsche opera tendo como modelo os gregos antigos, na ágora da polis.
277
GIACÓIA, Introdução; in: GP, 2002, p.08.
278
NIETZSCHE, 35 [9], KSA, vol.11, p.511s, in: GP, 2002, p.28.
156
Porque era ali, na ágora, no espaço público dialógico, que se estabeleciam as performances
individuais e, como uma teia, por reverberações, as ações coletivas. O espaço por
excelência para a atuação política, onde é indispensável a presença material e imaterial, o
jogo de forças, onde é indispensável a valorização do adversário, não como alguém que
deva ser expurgado, execrado, mas como um rival que estimula e incita.
Para que esse jogo político não se banalize em competições exacerbadas, faz-se
necessário pensar nele sob os signos da arte, o modelo do artista, aonde vale construir e
desconstruir, mas nunca transpor o importante limite que é manter aberta a possibilidade de
jogar. Busca-se, então, a partir de Nietzsche educar as pessoas para não negligenciar as
dinâmicas conflituais, que por tanto tempo tentaram ser camufladas. E educa-se adotando o
paradigma do artista, afinal, para Nietzsche “o poeta educa: sabe traduzir em boa Éris os
tigrinos instintos dilaceradores”
279
.
Sintetizando, para Nietzsche a grande política seria, então, aquela que se faz a partir
do micro, do pontual, do local, sem buscar representantes que, em última instância,
transformam aqueles a quem supostamente representa, em apáticos políticos, à margem do
jogo de forças e das esferas decisórias. É a política que se faz para além dos Estados
nacionais, mas na Terra, como uma macro-polís, porém a partir do ponto mesmo em que
cada um está, tecendo uma teia de ações locais, aonde um galo sozinho não tece a manhã.
Desenvolve-se assim o espaço por excelência da micropolítica, das associações locais e as
associações estratégicas baseadas na semelhança de interesses – interesse aqui entendido no
sentido de compartilhar, de estar-dentro de algum objetivo comum – para a potencialização
das forças, visando a economia do todo, sem pretensões idealistas de superação do
conflito, mas agindo e jogando dentro do próprio espaço conflitual.
279
NIETZSCHE, KSA, 7, 397, in: FILIPE, 1993, p.42.
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