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Fábio Coelho Malaguti
A Subjetividade e suas relações com o Absoluto
no contexto da Fenomenologia do Espírito de Hegel
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da PUC-Rio como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Paulo César Duque-Estrada
Rio de Janeiro
Agosto de 2005
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0311011/CA
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Fábio Coelho Malaguti
A Subjetividade e suas relações com
o Absoluto no contexto da
Fenomenologia do Espírito de Hegel
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre pelo
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
PUC-Rio. Aprovada pela comissão
examinadora abaixo assinada.
Prof. Paulo César Duque-Estrada
Orientador
Departamento de Filosofia – PUC-Rio
Prof. Sérgio L. de C. Fernandes
Departamento de Filosofia – PUC-Rio
Prof. Vera C. de A. Bueno
Departamento de Filosofia – PUC-Rio
Prof. Paulo Fernando C.de Andrade
Coordenador Setorial de pós-graduação e
pesquisa do Centro de Teologia e
Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 10 de agosto de 2005
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0311011/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e
do orientador.
Fábio Coelho Malaguti
Graduou-se em Filosofia na Uerj (Universidade do Estado do
Rio de Janeiro) em 2002, tendo desenvolvido pesquisas sobre o
pensamento de Hegel, Heidegger e no campo de Filosofia da
Mente. Suas áreas de atuação são: História da Filosofia
(destacadamente o Idealismo Alemão), Metafísica e Ontologia.
Atualmente, seus principais projetos são: o estudo o problema
da subjetividade na Ciência da Lógica de Hegel e a questão acerca
do conceito ontológico de identidade.
Ficha Catalográfica
CDD: 100
Malaguti, Fábio Coelho
A subjetividade e suas relações com o saber absoluto
no contexto da fenomenologia do espírito de Hegel / Fábio
Coelho Malaguti ; orientador: Paulo César Duque Estrada.
– Rio de Janeiro : PUC-Rio, Departamento de Filosofia,
2005.
117 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado) Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia
Inclui bibliografia
1. Filosofia – Teses. 2. Consciência. 3. Consciência de
si. 4. Razão. 5. Espírito. 6. Absoluto. I. Duque Estrada,
Paulo César. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.
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Agradecimentos
Ao meu orientador, o Professor Paulo César Duque-Estrada, por sua solicitude.
Ao CNPq e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não
poderia ter sido realizado.
Ao Professor Luiz Bicca, que me apresentou ao pensamento de Hegel e à seriedade
do trabalho intelectual.
Ao Professor e amigo Sérgio L. de C. Fernandes, que desde minha primeira infância
filosófica testemunha que a “filo-sofia” deve dar lugar à sabedoria.
À professora Vera Bueno, pelos diálogos e ajuda.
À Professora Márcia Gonçalves, por sua atenção e sinceridade.
Ao Professor Willem DeVries pelo envio de material.
Aos colegas e amigos da PUC-Rio e da Sociedade Hegel do Brasil.
Aos meus pais e à Aline.
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Resumo
Malaguti, Fábio Coelho; Duque-Estrada, Paulo César. A subjetividade e
suas relações com o Absoluto no contexto da
Fenomenologia do
espírito
de Hegel. Rio de Janeiro, 2005. 117 p. Dissertação de Mestrado –
Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
A dissertação acompanha a argumentação de Hegel na Fenomenologia do
Espírito no que concerne ao conceito da subjetividade. Este aparece na obra em
questão como "Eu", "consciência", "consciência de si", "razão" e "espírito".
Apresenta-se, então, a especificidade de cada um destes momentos e suas
deficiências.
Palavras-chave
Eu; consciência; consciência de si; razão; espírito; dialética.
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Abstract
Malaguti, Fábio Coelho; Duque-Estrada, Paulo,sar (Advisor). The
subjectivity and their relations with the Absolute in the context of
Hegel's
Phenomenology of Spirit
. 117 p. MSc. Dissertation –
Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
The dissertation analyzes Hegel's Phenomenology of Spirit argumentation about
the concept of subjectivity. This notion appears here as the "I", "consciousness", "
self-consciousness", "reason" and "spirit". This work analyzes each one of them in
their specificity and deficiencies.
Keywords
I; consciousness; selfconsciousness; reason; spirit; dialetics
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Sumário
1. Introdução 8
2. Considerações gerais 11
3. Análise do conceito de consciência 28
3.1. O conceito de consciência no Idealismo Alemão 28
3.2. O eu 35
3.2.1. O eu na figura da “Certeza Sensível” como singular 39
3.3. O eu da consciência percebente como o momento da
particularidade 46
3.3.1. Descrição do movimento da percepção a partir do eu 52
3.4. Entendimento como o momento da universalidade 56
4. A consciência de si 72
4.1. Conceito de vida 74
4.1.1. A infinitude da vida 76
4.2. Conceito do desejo 80
4.3. O Conceito de Reconhecimento 84
4.4. A Dialética do Senhor e do Escravo 89
5. Da consciência de si ao saber
absoluto 100
6. Conclusão 111
7. Referências bibliográficas 114
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1
Introdução
A pergunta que este trabalho pretenderá responder é: “De que maneira a
noção de subjetividade humana é pensada na Fenomenologia do Espírito?”. O que anima
esta pesquisa é a tentativa de compreender a crítica que Hegel faz à tradição
filosófica, especialmente à filosofia kantiana, no que se refere à subjetividade
humana, na medida que ela é o que caracteriza a singularidade de cada ser humano.
Buscarei expor a novidade que Hegel traz ao pensamento filosófico no
tocante a este tema, acompanhando sua argumentação, concentrando-me em expor
conceitos-chave de seu sistema, tais como surgem no contexto da Fenomenologia do
Espírito, a saber: os conceitos de Espírito e Absoluto.
Esta investigação torna-se relevante na medida em que a questão filosófica
acerca do sujeito e da subjetividade permanece presente nas discussões
contemporâneas, tendo Hegel contribuído para tal debate, devido especialmente a
seu diálogo com a filosofia kantiana.
Considerando-se que dois dos importantes movimentos que ocorreram na
história da filosofia moderna, a saber, o cartesiano – filosofia que marca o período
que se convencionou denominar “modernidade” – e o idealismo transcendental
kantiano, tinham como ponto central de sua argumentação a questão do sujeito, e
que tais aproximações ao sujeito humano mostraram-se insuficientes ao pensamento
hegeliano, pode-se ver a inserção da filosofia hegeliana na discussão moderna em
torno da subjetividade.
O Idealismo Alemão, compreendido entre o final do século XVIII e meados
do século XIX, foi um movimento intelectual cuja principal inspiração foi a filosofia
kantiana e suas questões (a natureza do “eu penso”, a divisão entre o Eu teórico e o
Eu prático, a centralidade do juízo estético para a reconciliação das dicotomias,
dentre outras controvérsias), e aí a polêmica em torno da subjetividade desenvolve-se
sobremaneira, sendo Hegel um dos maiores representantes deste período, junto com
Schelling. Assim, a filosofia hegeliana tornou-se um importante ponto de referência
para pensar este e outros problemas filosóficos, tendo, desde a morte de Hegel em
1831, sido criticada, investigada por diversos ângulos e recebido novos teores
interpretativos de acordo com as várias aproximações proporcionadas pelo
pensamento através dos séculos XIX e XX. Notadamente, desde a década de 70 os
estudos hegelianos têm florescido tanto na tradição continental, o que de certa
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maneira sempre aconteceu, quanto na tradição analítica e pós-analítica. Inseridas
nestas tradições, podemos citar algumas correntes que dialogaram e têm dialogado
com o pensamento hegeliano, descobrindo aí material para se pensar a problemática
da subjetividade humana: o existencialismo e as filosofias da existência, a
hermenêutica, a fenomenologia, a psicanálise, o pragmatismo, as filosofias pós-
modernas. Nestas diversas vertentes do pensar, um princípio que ocupa um lugar
destacado é o da consciência de si, fundamental na filosofia moderna. Entretanto, a
idéia do sujeito autoconsciente que legitima o próprio conhecimento não é acolhido
sem reservas.
O pensamento de Hegel tem-se mostrado uma fonte inesgotável para a
reflexão a respeito dessa questão, principalmente o que ele oferece ao demonstrar a
abstração do Ego cartesiano. Particularmente a questão do reconhecimento, exposta
por Hegel no quarto capítulo de sua Fenomenologia do Espírito e levada a cabo na
dialética entre o senhor e o escravo, se revela essencial para a discussão acerca da
relação com o outro e de que maneira o Eu é moldado por esse Outro.
1
É verdade que há movimentos na reflexão hegeliana que são deveras
problemáticos, como a sua afirmação de um todo que se move por si mesmo, que é
substância (passividade), mas também sujeito (atividade). Conceitos fundamentais
para a sua teoria têm sido constantemente questionados, como Espírito (Geist) e
Absoluto (das Absolute). Mas é isso mesmo que justifica a atualidade e relevância que
ainda em nossos dias a filosofia hegeliana possui.
Além dos movimentos filosóficos já tratados, esta questão, discutida no
âmbito do pensamento de Hegel, pode trazer contribuições a disciplinas filosóficas
que também investigam o sujeito. Para mencionar alguns exemplos: na filosofia da
linguagem, a questão dos “indexicais” pode ser comparada com a dialética hegeliana
da singularidade e universalidade de termos como “eu”, “isto”, “este”, desenvolvida
especialmente no capítulo sobre a certeza sensível na Fenomenologia. O presente
problema também poderia auxiliar na discussão da filosofia ecológica (ecological
philosophy), na qual questões éticas e epistemológicas encontram-se presentes e a
compreensão da relação entre universalidade, objetividade e subjetividade é
indispensável. Do mesmo modo, para o feminismo, para o debate a respeito das
ciências humanas, a filosofia da ciência, notadamente a querela do realismo e anti-
realismo, a sociologia da ciência (o papel do cientista em uma descoberta – ou
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invenção), somente para mencionar algumas outras esferas da pesquisa humana, uma
maior compreensão do que é a subjetividade torna-se fundamental.
O objetivo da dissertação é compreender e expor o que Hegel entende por
subjetividade humana no contexto da Fenomenologia do Espírito, isto é, qual é a resposta
que ele daria à pergunta “O que é o ser humano?”. Para tal, realizarei um estudo
analítico da obra acompanhando as experiências que a consciência experimenta até
tornar-se, em si e para si, espírito (Geist).
No “Prefácio”, Hegel questiona a maneira de se iniciar uma investigação
filosófica, que se caracteriza pelo esclarecimento de todo e qualquer pressuposto. Ele
se pergunta como é possível não fazer afirmações dogmáticas, ou seja, sem a
fundamentação racional que determina a Filosofia como tal. Hegel pensa que cada
ser humano encontra-se abarcado em um conjunto mais amplo, um universal, que é a
humanidade. Entretanto, ele não se satisfaz com o “eu penso” kantiano, pois pensa
que ele é um Eu duplicado em teórico e prático, negando a unidade que define o Eu,
além de sua incognoscibilidade. Hegel, como, de certa maneira, todos os seus
contemporâneos, busca reconciliar as dicotomias kantianas e superar a limitação
imposta por Kant.
Para trabalhar o conceito de subjetividade no espaço limitado de uma
dissertação, optamos por dar uma atenção especial a algumas partes da obra. O
primeiro capítulo da dissertação traça observações gerais sobre a Fenomenologia do
Espírito e a filosofia de Hegel em geral. Os capítulos II e III são um estudo analítico
da seção sobre a “consciência” e sobre a “consciência de si”, respectivamente. O
capítulo IV é somente um esboço do movimento geral da seção sobre o “Saber
Absoluto”. Isso porque aí Hegel resume todo o movimento da obra, indicando que o
saber absoluto (saber filosófico) é a tomada de consciência dos nexos entre todos os
momentos da obra. Assim, a análise que realizamos esboçou a conclusão que ele faz
da própria Fenomenologia.
1
Essa é uma questão muito discutida ultimamente por autores como Habermas, Althusser, Honneth,
Fukuyama, Strawson, dentre outros.
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Considerações Gerais
Hegel pensa que tudo (o todo) está pleno de pensamento. Enquanto a
filosofia kantiana é um idealismo transcendental, o sistema hegeliano é um idealismo
absoluto. Dentre outras coisas, isso significa dizer que diante do “eu penso”
transcendental, condição de possibilidade para a consciência da experiência (que para
Kant é o processamento das intuições sensíveis pelas categorias que são inerentes ao
ser humano), é posto o absoluto, conceito que deverá ser esclarecido ao longo desta
investigação. Mas desde já se deve dizer que, para Hegel, o conceito do absoluto visa
a reconciliação de qualquer duplicação, como acontece no sistema kantiano, sem ser,
entretanto, uma igualdade indiferenciada, como no idealismo schellingiano. Acerca
deste conceito, Hegel manterá um diálogo estreito com Schelling. E sua grande
crítica a ele é a questão em torno da mediação de seu conhecimento. A idéia de
intuição intelectual, conhecimento imediato do absoluto, é crucial para a compreensão do
pensamento de Schelling e merecerá nossa atenção adiante. Entretanto, esta
imediação muito incomodará a Hegel, levando-lhe a combater tal doutrina. São várias
as razões que animaram Hegel a escrever a obra analisada nesta dissertação, a
Fenomenologia do Espírito, as quais mencionaremos em breve, mas o fato de ser
concebida como uma introdução ao seu sistema filosófico e como um caminho a ser
realizado pelo próprio leitor, indicam a importância que Hegel dá à noção da
mediação.
A Fenomenologia do Espírito é idealizada como um caminho da experiência da
consciência; uma tentativa de não permitir que nenhum pressuposto permaneça
intocado. É essencial observar que, nas introduções de seus escritos, Hegel sempre
retoma a questão de como iniciar uma obra filosófica, já que esta se caracteriza como
o próprio fazer filosófico. E pode-se dizer que o resultado alcançado naquelas
introduções é somente advertir que todo a exposição ali realizada deverá ser
“provada” pela experiência, a ser feita, do objeto de estudo.
Na introdução da Fenomenologia, Hegel apostará na experiência da consciência
e na dialética, entendida, neste momento, como o diálogo da consciência consigo
mesma e com a totalidade na busca do conhecimento da verdade, seja acerca de si
mesma, seja acerca da totalidade, como o meio seguro da consciência natural tornar-
se consciência filosófica. Este é um caminho espiritual e pedagógico.
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O caminho da consciência, que se descobrirá verdadeira somente como
espírito, surge como uma necessidade ao pensamento de seu tempo. Hegel concorda
com Schelling quando este afirma que a identidade absoluta do objetivo e subjetivo é
o ponto a partir do qual parte a Filosofia.
1
Entretanto, criticando a Schelling, Hegel
não pensa que este ponto possa ser alcançado imediatamente, isto é, que a
consciência natural possa aceitar sem mais o conhecimento do absoluto, conforme
aludimos há pouco. Se filosofar é o agir no qual o ser humano é mais livre e
autônomo, não pode partir de uma afirmação mal-compreendida ou dogmática. Por
isso, Hegel discorda da posição schellinguiana apreciada, sobretudo, em Bruno, por
faltar-lhe a mediação. O fato de Hegel não pensar a Ciência da Lógica como a
introdução ao seu sistema é precisamente devido à sua confiança na necessidade de
uma preparação da consciência natural, quer dizer, para Hegel as asseverações
filosóficas necessitam ser experimentadas como verdadeiras por qualquer um que tem
acesso a uma obra filosófica.
Principalmente a partir das reflexões kantianas e fichteanas, Hegel não
pressuporá o conhecimento do absoluto, porém a partir das investigações da
dicotomia entre sujeito e objeto presente na consciência e avaliação de seus
resultados e contradições pensará alcançá-lo. Assim, a concepção schellinguiana do
absoluto será transformada por Hegel, tentará unificar o absoluto-substância (sendo
Spinoza o grande influenciador de Schelling) com o absoluto-subjetividade de Kant e
Fichte. Para Hegel, o absoluto é igualmente substância e sujeito. A substância
indiferenciada será embebida da reflexão do eu e realizar-se-á em e a partir dela.
Toda a discussão hegeliana em torno do que é o absoluto insere-se em
interesses intelectuais mais amplos, cuja concentração pode-se contemplar na última
década do século XVIII. Vejamos singelamente como esta questão do absoluto surge
no contexto histórico e quais os motivos principais que animaram a Fenomenologia.
Como um terremoto, a Revolução Francesa influenciou a história a
humanidade, e, em especial, a européia. A intelligentsia alemã acompanhou muito
atentamente todos os fatos ocorridos da Revolução Francesa com um misto de
entusiasmo e horror. Esta intelligentsia vivia em uma Alemanha ainda dividida e com
diversos problemas internos. As idéias de “liberté, igualité, fraternité”, de construção
de uma república, na qual todos fossem cidadãos livres e que expressasse a vontade e
os interesses coletivos atraía-a profundamente. Entretanto, os fatos que decorreram
1
Sobre a posição e a doutrina de Schelling nesta época, ver, por exemplo, seu Sistema do Idealismo
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da tomada do poder pelo burguesia, o que ficou conhecido como o Terror, deixou
estes intelectuais perplexos. Pessoas sumariamente eram levadas ao patíbulo,
inclusive os próprios filhos da Revolução. O objetivo deste trabalho não é examinar
uma questão tão rica e profunda. Desejamos somente indicar os nexos existentes
entre fatos tão importantes e esboçar o “espírito do tempo” de Hegel.
O Iluminismo desenvolvido principalmente nos séculos XVII e XVIII na
França e na Inglaterra foi o motor que animou o ideário revolucionário. O mote
“liberté, igualité, fraternité” indica a assunção da subjetividade em sua dignidade e o
relacionamento entre diversos sujeitos. Como apontado, surge nesta época a
afirmação da subjetividade como instância privilegiada do conhecimento e da
existência. Irmã gêmea do Iluminismo é a Revolução Epistemológica ocorrida através
de pensadores tais como Bacon, Hobbes, Descartes e Locke, que terá conseqüências
no que se convencionou denominar outra revolução, a Revolução Científica, através
de pensadores como Galileu e Newton. Dessa maneira, o século XVIII inicia-se com
o suporte teórico iluminista à nova maneira de observação da natureza, a ciência de
Galileu e Newton, surgindo não somente uma nova teoria do conhecimento, mas
uma nova compreensão do ser humano e da sociedade. E isso será posto em prática,
será concretizado, mas não unicamente, no episódio histórico da Revolução
Francesa. E, na crueza dos fatos, as esperanças e frescor desta nova cosmovisão são
colocadas em xeque.
Assim a intelligentsia alemã acolheu a Revolução Francesa, que lhe serviu de
base para a apropriação do que era refletido pelos iluministas. No fundamento dessa
apropriação está a crítica ao mecanicismo na compreensão da natureza e do ser
humano, fruto das teorias que impulsionaram as revoluções epistemológico-
iluminista e científica. Os principais representantes dessa disposição intelectual de
resistência são: o movimento da década de 70, conhecido com Sturm und Drang, tendo
Herder como seu maior expoente; a geração romântica; grandes pensadores como
Goethe e Schiller que não se enquadravam inteiramente em nenhum movimento,
mas, devido a sua estatura, possuíam seu próprio brilho; e os sistemas de Schelling e
Hegel.
A revolução científica ocorrida no século XVII marca uma mudança
profunda na história da humanidade. Caracteriza-se pela substituição da ciência
Transcendental e Bruno.
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aristotélica, que explica o mundo a partir de causas finais, por uma ciência cuja
verdade equivalerá àquela observada, empírica.
Final causes and the related vision of the universe as a meaningful order of
qualitatively levels give way first to a Platonic-Pythagorean vision of mathematical order (as
in Bruno, Kepler, and partly too, in Galileo), and then finally to the ‘modern’ view of a world
of ultimately contingent correlations, to be patiently mapped by empirical observation”
2
.
O mundo é desencantado. Nas ações do ser humano nenhuma ordem
cósmica terá lugar. O verdadeiro é aquilo que posso observar e experimentar. Esta
revolução não é somente uma mudança do paradigma do conhecimento e
manipulação das coisas, mas também uma alteração da concepção que o próprio ser
humano tem de si. Como ele também poderá ser objeto de observação e, pelo menos
em princípio, ser objeto de experiências, uma antropologia surgirá. Nela, porém, o
ser humano, de maneira até então nunca vista e vivida, encontra-se à parte de uma
ordem cósmica que, como já está indicado, determina de antemão seu lugar no
cosmos. Surge uma nova ordem, na qual o ser humano desempenhará um papel a ser
ensaiado. Em suas Meditações, Descartes duvidará de tudo, de Deus inclusive, mas não
de si, não do eu. Entretanto, esta verdade do sujeito caracterizará e será característico
da época moderna. Nunca na história do pensamento o eu assumiu um lugar tão em
evidência. É verdadeiro que entre os antigos o epicurismo e o ceticismo já tinham, de
certa maneira, elevado o sujeito a um estatuto especial. Mas nenhuma das duas
escolas sequer se aproximou da virada realizada no pensamento moderno. Na
modernidade, o sujeito não se caracteriza somente como um pôr-se contra o mundo,
mas como controle intelectual e tecnológico do mundo. Outra característica essencial a
este sujeito é ser autodefinido, isto é, é autônomo, não ser posto por nenhuma
ordem cósmica, por nenhum deus, mas pôr-se a si mesmo, bastar-se a si mesmo. Em
relação ao controle que o sujeito exercerá sobre o mundo, ele tem suas raízes no
paradigma do conhecimento que valorizará quase que exclusivamente as causas
eficientes. Dessa maneira, entrarão em cena o mecanicismo no conhecimento e o
utilitarismo ético.
Correspondente à modificação no objetivo estado de coisas, encontra-se uma
nova subjetividade. O sujeito moderno eleva-se ao estatuto da substância por
excelência, do indubitável, da única coisa na qual podemos confiar.
2
Taylor, Hegel, p. 4.
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The old-model now looks like a dream of self-dispersal; self-presence is now to be
aware of what we are and what we are doing in abstraction from the world we observe and
judge. The self-defining subject of modern epistemology is thus naturally the atomic
subjectivity of the psychology and politics which grow out of the same movement. The very
notion of the subject takes on a new meaning in the modern context…
3
O sujeito, que se coloca a si mesmo, senhor de si, de sua própria razão, que
ousa saber, ousa conhecer por sua própria razão, é o sujeito moderno. Ele, portanto,
é livre, não está sob o domínio de nenhuma força alheia a si. Juntamente a esse novo
senso de objetividade, está um renovado sentido de subjetividade, no qual a liberdade
opera uma função importantíssima. O ser humano é livre para manipular o mundo.
Mas, como já dissemos, o ser humano também será objeto de conhecimento.
Man is also an object in nature, as well as the subject of knowledge. Hence the new
science breeds a type of understanding of man, mechanistic, atomistic, homogenizing and
based on contingency.
4
Como um objeto natural, dentre outros, de conhecimento, o ser humano é
um objeto da natureza cujas leis são contingentes. O estudo deste ser não estará
isento do aspecto mecanicista e atomista característico da ciência moderna. Teóricos
como Holbach, Bentham e Hélvetius tentarão erigir uma antropologia que dê conta
deste aspecto e do fato de o sujeito ser autônomo, que se autodefine e põe.
Entretanto, harmonizar estas duas tendências, isto é, o sujeito como autodefinido,
autoposto, e ser um objeto da natureza, esbarra em várias dificuldades, o
determinismo, por exemplo. Kant também enfrentará essa dicotomia em sua ética
quando se depara com as inclinações sensíveis e a pureza do dever moral (Sollen).
O movimento de resistência a tudo isso, às dicotomias instauradas na
compreensão do ser humano, o atomismo etc., desenvolver-se-á na Alemanha a
partir de 1770 com o Sturm und Drang, desdobrando-se em outras alternativas já
citadas: o Romantismo, o pensamento como o de Goethe e Schiller e os sistemas de
Schelling e Hegel.
Vê-se, assim, que o pensamento de Hegel se insere em uma corrente mais
ampla que resiste a várias implicações do pensamento iluminista e científico. Hegel
encontra-se em um diálogo estreito com esta corrente, que procura manter a noção
de individualidade e liberdade, sem perder, contudo, uma visão integral do ser
humano, que valoriza tanto sua razão quanto seu sentimento e que não o considere
3
Taylor, Hegel, p. 7.
4
Taylor, Hegel, p. 10.
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inteiramente apartado da natureza, dentre muitas outras reivindicações do
pensamento.
A Fenomenologia do Espírito é uma obra que almeja delinear estes movimentos
de forma a construir uma história da humanidade em seu desenvolvimento
intelectual. Entretanto, esta idéia de fazer uma história do espírito humano que anima
a Fenomenologia já se encontra presente tanto na Wissenschaftslehre de Fichte, na qual, na
dedução da representação, propõe fazer uma história pragmática do espírito humano,
quanto no pensamento de Schelling. Contudo, Hegel ainda considera tais histórias
artificiais, pois, como já foi dito, pressupõem o que necessita ser demonstrado, a
consciência filosófica. Logo, sua proposta é fazer com que o filósofo desapareça
diante da experiência que lhe aparece, isto é, que a reflexão filosófica não seja
imposta por uma força estranha e externa à consciência, mas demonstrar que esta
reflexão surge de sua própria experiência, como sua história, devendo ser
interiorizada (Erinnerung). Com isso, aquela questão kantiana (“como a experiência é
possível?”) é ampliada de uma forma nunca vista na Filosofia. Mas o que é consciência?
Por “consciência”, Hegel compreende uma relação já travada entre um sujeito
e um objeto, ou seja, um e outro são dois pólos do mesmo. Na consciência, só existe
um sujeito na presença de um objeto e um objeto na presença de um sujeito. A
estratégia de Hegel na Fenomenologia do Espírito é demonstrar a insuficiência de se
pensar um pólo sem o outro. E a maneira pela qual se afirma esta deficiência é a
experiência. A consciência é tanto seu sujeito quanto seu objeto. Contudo, isso não é
asseverar que Hegel defende uma posição, como expõe Solomon em seu In Spirit of
Hegel, egocêntrica, sob a crítica francesa, ou solipsista, sob a crítica anglo-saxã. A
igualdade que foi dito existir entre sujeito e objeto é não formal e diferenciada. A
tradição filosófica moderna, na qual Hegel está inserido, afirma, de uma forma ou de
outra, desde Descartes, Locke e os empiristas, Hume e os céticos, chegando a Kant, a
diferença profunda entre sujeito e objeto. Hegel, entretanto, é considerado por
muitos comentadores, por exemplo, Solomon e Hyppolite, como o pensador que
alcançou o máximo do pensamento metafísico e o melhor representante da filosofia
moderna. No entanto, ficam em dúvida ao terem que classificá-lo como pertencendo
à tradição que critica ou já inaugurando uma nova era. Para a discussão aqui em
questão, interessa considerar o absoluto hegeliano como aquilo que possibilita pensar o
enigma da consciência, dificuldade eminentemente moderna, e como tal conceito traz
inovações àquele de consciência. O ponto importante dessa discussão é que Hegel
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coloca em xeque a concepção de consciência em primeira pessoa da modernidade,
questionando a epistemologia e a idéia de um eu já dado. Ou seja, Hegel põe em
dúvida o que Descartes não pôs e, assim, questiona o pensamento moderno como
um todo, destacadamente alguns pontos tratados acima, a saber, a revolução
epistemológica e a revolução científica que erigiram uma nova visão do ser humano,
isto é, uma nova antropologia. Contudo, ele não nega simplesmente o ponto de vista
de primeira pessoa da consciência enquanto sujeito, mas suprassume-o. Vemos isso
ao longo da Fenomenologia do Espírito, na qual a consciência compreende-se como eu e
consciência de si, posteriormente como espírito.
Com o surgimento moderno desta nova realidade do sujeito, tomando para si
o estatuto mais importante na totalidade, desponta a pergunta pela relação do Eu
com seu outro, que é o mundo. E assim, o conhecimento passa a ocupar o lugar de
destaque nas reflexões filosóficas. Qual é sua natureza, como ele se desenvolve,
como as relações entre o sujeito conhecedor e o objeto conhecido se estabelecem e,
especialmente, qual é o critério para asseverar que o conhecimento é verdadeiro, ou
seja, qual é o método que o filósofo deve empregar para alcançar a verdade, são
perguntas que caracterizam este período. Concretamente, essas indagações se
delineiam nas obras de Descartes, destacadamente em suas Regulae ad Directionem
Ingenii (Regras para a direção do espírito), o Discours de la Méthode (Discurso do Método) e nas
Meditationes de Prima Philosophia (Meditações sobre a Filosofia primeira). Através dessas
obras, observa-se sua imensa inquietação em relação ao método e a necessidade de
assegurar a verdade de suas reflexões. Nessa mesma época, Locke se debruçará sobre
problemas semelhantes em An Essay concerning Human Understanding (Ensaio sobre o
entendimento humano). Entretanto, neste último, a dicotomia radical entre Eu e mundo
desembocará no ceticismo, já presente nas teorias cartesianas e empiristas, sendo,
todavia, o pensamento de Hume a maior representação desse momento do pensar.
Suas obras que mais expressam isso são: A Treatise of Human Nature (Tratado sobre a
natureza humana) e Enquiry concerning Human Understanding (Investigação sobre o entendimento
humano).
Será o sistema kantiano que marcará uma importante virada na maneira de
tratar as questões das quais vimos ocupando-nos. De acordo com ele mesmo, será
Hume quem o acordará do sono dogmático. Dessa forma Kant procurará uma resposta
eficaz ao ceticismo, dentre outras coisas, tentando sanar as dificuldades inauguradas
por Descartes, que de tudo duvida. Contudo, segundo alguns de seus coetâneos,
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ainda que tenha resolvido alguns enigmas, não consegue dar cabo do ceticismo,
simplesmente deslocando-o. E é esta dubiedade que animará os esforços de todo o
Idealismo Alemão, no sentido de reconciliar o conhecimento.
O “penso, logo existo” cartesiano converter-se-á no “Eu penso” kantiano,
não mais a considerar o Eu como uma alma-objeto, mas como sujeito transcendental. A
crítica de Kant ao ponto de vista cartesiano é feita nos “paralogismos” na Crítica da
Razão Pura. No entanto, o sujeito transcendental não é singular e, vale notar, nem
necessariamente coletivo. Dele pode-se dizer unicamente que é, não sendo objeto do
entendimento
5
e, por isso, não é passível de ser julgado quantitativamente, já que a
quantidade é uma categoria do entendimento.
No entanto, sendo isso completamente contra-intuitivo (não compreender
intuição no sentido kantiano), será sustentada a diferenciação do eu transcendental e o eu,
ou ego, empírico. Pois, o eu transcendental não é este eu que deseja, que tem um corpo
etc., mas a estrutura que permite a todo eu empírico conhecer e agir, impondo regras à
experiência (agora sim no sentido kantiano).
Em intenso colóquio com Kant, Fichte, incomodado com as conseqüências
do saber kantiano, elaborará uma doutrina visando resolver alguns problemas. O que
nos diz respeito aqui é o problema da subjetividade, a cisão já mencionada entre eu
transcendental e empírico, e outra ainda não expressa, a saber, a dualidade das esferas da
razão – por um lado, razão teórica e conseqüente eu teórico, por outro, razão prática e
eu prático, muito investigada nesta conjuntura. Assim, ele asseverará o princípio do
“Eu=Eu”. Segundo sua teoria, o conhecimento é fundamentalmente prático,
evidenciando-se como atividade e como movimento do Eu a se chocar com o que ele
não é, o não Eu – este conceito de “choque” (Anstoss) é central. Essa idéia
inspirará sobremodo Schelling e Hegel em suas formulações, levando-lhes a asseverar
a não-diferenciação entre o âmbito teórico e prático. Por isso, Hegel expõe
inseparavelmente em sua Fenomenologia os desenvolvimentos da consciência nestes
dois “setores” e isso estará presente em todo seu sistema: a consciência não é
meramente um objeto teórico, mas está inserida em um mundo, em diálogo com a
5
Uma rápida observação a respeito da filosofia de Kant: ele se utiliza uma divisão para expor as
faculdades do ser humano, a saber: a faculdade da sensibilidade, a faculdade do entendimento, a
faculdade da imaginação e a faculdade da razão. A primeira é o receptáculo das impressões sensíveis,
que são ordenadas na forma do espaço e do tempo: são as intuições. A segunda é formada por
categorias, que são o que dá ordenamento às intuições. A imaginação, de certa maneira, vincula estas
duas faculdades.
A experiência, no sentido kantiano, é conjunção da atividade categórica do entendimento,
cuja matéria-prima são os dados oferecidos, através dos conceitos de espaço e tempo, pela faculdade
sensível, as intuições. A atividade do pensamento alheia a qualquer experiência é atividade da razão.
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natureza e com outras consciências, ainda que ele, na primeira seção da Fenomenologia,
exponha a consciência como não sendo para si, ou seja, sem questionar-se, sem
questionar-se, sem ser consciência de ser consciência, consciência de si.
Além deste fio condutor argumentativo do pensar moderno que aponta à
reflexão hegeliana, há que citar um outro ponto importante, que é o fato de a
tradição na qual Hegel está inserido trazer em si uma concepção particular de
subjetividade, a saber: do sujeito voltado para si, ensimesmado, capaz de “alcançar” o
mundo, sem, no entanto, nunca sair completamente de si. Isso se manifesta desde
Meister Eckhart, chegando à Monadologia de Leibniz; nos romances de formação
(Bildungsromane), como, por exemplo, o Wilhem Meister de Goethe e Heinrich von
Ofterdingen de Novalis, no qual o herói precisa passar por vários contratempos e
experiências que lhe proporcionem a distância de si e só então está hábil a se assumir
plenamente como tal, formando-se desde a natureza à liberdade; e no sistema
fichteano, em seu conceito de choque (Anstoss).
Outra noção a ser destacada é a de sistema, importantíssima para o
pensamento kantiano e os idealistas alemães. o pensamento de Wolff dizia-se um
sistema. Entretanto, Kant aponta aí a falta de um princípio ordenador, e empenha-se
em construí-lo. Ao fazê-lo, nele incorpora a idéia de crescimento orgânico.
Entretanto, o sistema kantiano será intensamente criticado por seus sucessores.
Solomon diz que o próprio Idealismo Alemão começou quando Reinhold e
Fichte declararam que o sistema kantiano carecia de um princípio e, portanto, não
estava à altura do que se propunha. O diálogo entre eles foi muito frutífero, tendo
primeiramente Reinhold grande influência sobre Fichte para mais tarde isso se
inverter.
During his period at the University of Jena (1787-94), Reinhold proclaimed the need
for a more “scientific” and systematic presentation of the Critical philosophy, one based
upon a single, self-evident first principle.
6
Será a busca por este princípio, que nas pesquisas mais antigas de Reinhold
será o princípio da consciência para tardiamente dar lugar a outros, já que o pensamento
reinholdiano passou por várias viradas teóricas (por exemplo: a dominada pelo já
mencionado princípio da consciência, outra na qual estará muito próximo das primeiras
versões da Wissenschaftslehre fichteana; outra que terá na linguagem e no pesquisar suas
6
BREAZEALE, Dan. “Karl Leonhard Reinhold” in Stanford Encyclopedia of Philosophy
(http://plato.stanford.edu/entries/karl-reinhold/
). Acesso em: 12 Fev. 05.
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relações com o pensamento, antecipando em muito a linguistic turn no século XX, a
procura por essa origem do sistema). Hegel, desde a sua juventude em Jena, defende
a sistematicidade do saber filosófico, porém combate o Formalismus de Kant.
Inserido nesta tradição na qual o sujeito é um tema-chave a ser discutido.
Hegel concede-lhe lugar central em seu pensamento. Entretanto, compreendê-lo não
é tarefa fácil.
It is relatively obvious only that Hegel attributes the characteristic of subjectivity not
just to his Concept, but also to entities such as ‘I’, ‘self-consciousness’ and ‘spirit’. We are
therefore on safe ground if we assume that the subjectivity which is to be attributed to the
Concept is precisely that which is also attributed to the I, self-consciousness or spirit and
which distinguishes them from other types of organism. The ground becomes more
dangerous when it is a matter of stating what subjectivity actually means. This is not merely
because Hegel distinguishes between different types of subjectivity, but also because the
subjectivity which is constitutive of the Concept is tied to conditions which are difficult to
state with any precision. In general it seems to be correct to say that subjectivity occurs when
something recognizes itself as being identical with something else. If we follow the Science
of Logic, then this relationship of identity known as ‘subjectivity’ can only be established
between entities which themselves can be thought of as being particular complexes of
relations of similar elements or moments.
7
Nesta passagem, Horstmann refere-se especialmente ao problema do sujeito
na Ciência da Lógica. No entanto, tal afirmação também é válida para outras obras de
Hegel. Todas estas instâncias de subjetividade já se encontram na Fenomenologia do
Espírito: eu, consciência de si e espírito.
A exposição feita na Fenomenologia possui um teor diferente daquele da Lógica,
já que a proposta da Fenomenologia é a de ser uma introdução ao seu sistema.
Introdução essa que, entretanto, não quer dogmática e meramente expositiva, mas
pretende ser o caminho mesmo para o que ele chama de saber absoluto, consciência
filosófica, como já expomos. Como apresentação que uma obra filosófico-literária
invariavelmente é, Hegel tenciona que a Fenomenologia seja a experiência do ser
humano ordinário, cujo conhecimento encontra-se no nível mais imediato – o que
será descrito como o momento da certeza sensível –, até o saber filosófico, consciente
de si. Na Fenomenologia, Hegel vê um encadeamento na própria história do
pensamento (mas não a obedecer necessariamente à ordem cronológica dos fatos
históricos, já que, para Hegel, a história é circular, ou melhor, é uma espiral
ascendente, ou seja, ainda que seu desenvolvimento não seja linear, existem
progressos na cultura humana. Mas o tema da história para Hegel é vastíssimo, com
7
Horstmann, Routledge Encyclopedia of Philosophy.
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inúmera bibliografia, fugindo da proposta desta investigação). Ele compreende que
os sistemas de pensamento, não só filosóficos, mas religiosos, políticos e artísticos,
estão todos em um mesmo feixe de desenvolvimento do pensar que almeja ser
plenamente consciente de si e, assim, livre.
Nosso objeto de investigação é a consciência, ou seja, o ser humano em sua
totalidade, não possuindo o sentido que hodiernamente tem na Filosofia, em especial
na Filosofia da Mente. A consciência é o próprio sujeito em sua inteireza. Entretanto,
Hegel pensa que esta consciência deve se desenvolver em si mesma, isto é, a partir de
sua própria experiência, do experimentar-se e experimentar a alteridade. Dessa
forma, ele constatará que no se desenvolver da consciência, ela se desdobra em
figuras. Uma figura (Gestalt) da consciência é uma consciência particular que se
encontra ao longo da exposição da Fenomenologia e se caracteriza por uma estrutura
própria. Estrutura essa que, pela natureza da consciência, não é somente do sujeito,
mas estrutura do todo, isto é, também daquilo que o sujeito toma por objeto, além de
todos os elementos que permeiam-nos e rodeiam-nos. Por isso, uma forma da
consciência expressa a totalidade de um espaço e tempo determinados, o que
significa dizer, a experiência completa da consciência particular.
A “história” da qual falamos é um ensaio permanente da consciência na busca
de estado de coerência em relação à sua própria medida. É um processo no qual a
negatividade, quer dizer, as frustrações que experimenta nos variados âmbitos, exerce
um papel decisivo. O negativo para Hegel é o que movimenta a consciência, pois
somente fracassando ela continua a buscar, construir e descobrir-se a si mesma. É na
ação que a consciência descobre o que é, transferindo o que era absolutamente outro, ou
seja, em si, ao âmbito do para si; o que era em si o era somente para ela. Mas um novo
objeto aparecerá para ela, pois à mudança do sujeito equivale uma mudança do
objeto, isto é, descobrindo-se como diversa do que era, a consciência terá novos os
objetos apresentando-se a si. Existirá, por isso, um novo saber diante dela. Dessa
maneira, seu insucesso só é negativo para a própria consciência, pois em uma
perspectiva objetiva isso é o que a faz crescer. Para o leitor da Fenomenologia, a quem
Hegel se refere quando emprega o para nós, a negatividade é, por um lado, motor de
crescimento, e, por outro, o que vincula as diversas figuras singulares. Como diz
Hyppolite, “A negatividade é a única a permitir ao conteúdo desenvolver-se em
afirmações sucessivas, em posições particulares, ligadas umas às outras pelo
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movimento da negação”.
8
Como, porém, pode, a negatividade, engendrar diversas
figuras da consciência? Ela é inerente ao conteúdo da coisa negada. O que
fundamenta isso é a afirmação hegeliana de que o todo é imanente a este
desenvolvimento da consciência, mas investigaremos isso mais adiante. Entretanto,
seria mais correto dizer que o objeto da Fenomenologia do Espírito é propriamente o
espírito. Para nós, a consciência já é espírito, mas para ela haverá um longo caminho até a
compreensão de sê-lo. A proposta da obra é ser a ciência (“logia”) do aparecimento
(fenômeno) do espírito.
É curioso, porém não acidental, o fato de Hegel, em um primeiro momento,
ter intitulado essa obra como “Ciência da Experiência da Consciência”, para
posteriormente denominá-la com o título que permaneceu. Primeiramente, a obra
seria somente a primeira seção (“consciência”) do que hoje é a Fenomenologia. No
entanto, a obra se desenvolveu de tal forma que surgiram outras seções, a saber:
consciência de si, razão, espírito. E o que antes era tomado como figuras da consciência
agora se torna momentos do espírito. Dessa mudança de visada, sutil, mas importante,
vem à tona as várias vozes presentes na obra: o em si, o para si, o em si e para si e o para
nós. A razão disso é precisamente a Fenomenologia ser não uma mera exposição, como
expresso, mas um caminho de elevação ao saber filosófico, que é próprio ao saber
mesmo, isto é, não lhe é extrínseco, não lhe é imposto. A partir destes quatro
elementos, surgem dois grupos: aquele que constitui a própria experiência do espírito e
é seu próprio aparecer a se desdobrar, e o que ordena a experiência, pois já percorreu
todos os caminhos. O primeiro envolve os três elementos iniciais e o segundo, o para
nós.
O em si (Ansich) é a forma do pensamento no qual o que está em xeque é o
que o objeto do pensar é, sua essência. Hegel parece pensar no conceito aristotélico
de potência. O que para Aristóteles necessita ser atualizado, para Hegel precisa se
tornar para si (Fürsich). O Fürsich é o tomar consciência do que é Ansich, é tomar para
si o que até então era somente em si. Em contextos nos quais a discussão hegeliana
põe maior acento sobre o prático, o Fürsich, além do sentido de “para”, ganha o
significado de “por” si, ou seja, de autonomia.
No momento do Ansich, a atenção encontra-se sobre o objeto em detrimento
do sujeito para o qual o objeto é; no do Fürsich, o contrário acontece. O pensamento
terá necessidade de reconciliar estes dois momentos antagônicos em um diverso, que
8
Hyppolite, Gênese e estrutura da “Fenomenologia do espírito” de Hegel, p. 31.
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Hegel chamará de em si e para si. Neste momento, se está considerando tanto o sujeito
quanto o objeto, e aqui a liberdade e a consciência são mais plenas. Este é o
momento do saber absoluto, filosófico. E equivale a uma outra “voz” presente na
Fenomenologia, aquela do para nós. Ela é a orientação de Hegel através da exposição e
experiência do caminho da consciência. É muito discutido se esta intervenção de
Hegel não trairia a proposta mesma da obra. Pode iluminar nossa compreensão uma
passagem da “Introdução” à Filosofia da História, na qual Hegel exprime que ao
comentar certos momentos do caminho filosófico não está pressupondo os
resultados a serem alcançados, nem suas causas, mas simplesmente aproximando-se a
eles como alguém que já conhece o caminho, tendo-o antecipadamente percorrido.
Porém, tudo o que este para nós indica deverá ser demonstrado e, no caso particular
da exposição fenomenológica, deverá ser experimentado pela própria consciência. Por
essa razão, seu caminho será de desespero existencial (Verzweilflung), pois
continuamente toda as suas certezas e verdades cairão por terra. Somente à medida
que a consciência se tornar em si e para si, não irá se cindir existencialmente, mas
compreender-se-á como espírito consciente de si, não mais excluindo a negação, quer
dizer, suas frustrações e esvaziamento do que pensava ser, mas suprassumindo-a, ou
seja, incorporando-a e compreendendo-a como instância para seu crescimento e
liberdade. Estes três instantes da totalidade, que é o absoluto, se concretizam na
consciência, consciência de si e razão.
O movimento que permeia a totalidade investigada é a dialética, que aqui
Hegel entende como o diálogo da consciência entre sua certeza e sua verdade, isto é,
entre a compreensão que tem de si subjetivamente e aquela alcançada a partir da
objetividade, do embate com a alteridade. O movimento, assim, é permanente, ainda
que almeje pela ocasião da reconciliação de certeza e verdade, o saber absoluto.
Todavia, quando o saber da consciência é absoluto, continua a ser dialético, pois a
consciência sempre é na relação com um outro e diante deste é sempre outra
também. A diferença é que nos saberes não filosóficos a consciência, como espírito, já
que a partir de um instante isso será sua certeza e verdade, não possuirá uma
compreensão cabal de si. No entanto, o movimento não pára ao se tornar saber
absoluto, mas ganha aí a consciência de ser tal movimento, isto é, torna-se saber
filosófico.
A experiência é o experimentar do em si, do para si e do em si e para si, quer
dizer, o conceito hegeliano de experiência expande em muito o kantiano e fichteano.
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Para Kant, experiência é o que apreendemos sensivelmente através da aplicação
correta de nossas categorias. Para Hegel, a experiência, de antemão, está “cheia” de
dialética, pois esta última é o próprio movimento dialogal que a consciência faz sobre
seu saber e seu objeto. A experiência é o aparecimento de novos saberes e objetos à
consciência. Só é possível o aparecer, por causa do movimento dialético. O que
aparece é conseqüência desse movimento intrínseco à consciência mesma.
Reflitamos agora sobre o que é o conceito de absoluto para Hegel. No
entanto, como essa será estritamente nossa preocupação no último capítulo, voltar-
nos-emos agora a uma mera introdução a este conceito, concentrando-nos em como
ele aparece na “Introdução” da Fenomenologia.
O uso adjetival de “absoluto” sempre foi mais ou menos corrente na História
da Filosofia. O mesmo não se pode dizer de seu uso substantival (o absoluto). O
primeiro registro deste uso substantival encontra-se em De Docta Ignorantia de Nicolau
de Cusa, em 1440. Em seguida, este substantivo foi importante para o pensamento
de Spinoza. Em ambos os casos, refere-se a Deus. Este conceito foi formulado
definitivamente por Kant por volta de 1800, definido como o incondicionado,
ilimitado, infinito, não afetado por nada fora de si. Contudo, para ele, o absoluto não
poderia ser objeto do conhecimento.
O Idealismo Alemão terá em alta conta o absoluto: primeiramente Fichte,
depois Schelling. Este último, que em princípio assumia o idealismo fichteano como
verdadeiro, acabará por criar uma teoria da identidade neutra, que afirma que o
absoluto é uma identidade subjacente tanto ao sujeito quanto ao objeto. A partir do
absoluto schellinguiano Hegel desenvolverá sua teoria.
Hegel afirma que a tradição filosófica tem compreendido o absoluto apartado
do conhecimento. Ele é o que está do “outro lado” da atividade do conhecer, nossa,
subjetiva. O absoluto equivale à coisa em si kantiana, que não podemos conhecer.
(Ainda que Kant se abstenha de usar esta noção como substantivo, não o aplicando
sequer à coisa em si, seus sucessores o farão.) Sua discussão estará ao redor da
possibilidade, negada por Kant, de conhecer o absoluto. Sobre isso, Hegel
argumentará que é nosso próprio ato de conhecimento que levantará nossa suspeita
em relação à validade de nossa ação, pois pensamos que o conhecimento é um
instrumento do qual nos servimos para nos relacionarmos com o absoluto, e ao
empregá-lo não deixamos aquele absoluto intacto e, assim, não é a ele que
conhecemos, mas nossa relação com ele. Aqui, Hegel está dialogando com a escola
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empirista. Mas ele também critica a escola racionalista que tomará o conhecimento
como um meio passivo pelo qual o absoluto estabelece contato conosco. Não
contrariamente ao que foi exposto em relação à escola empirista, aqui também o
absoluto só é para nós a partir do conhecimento que, mesmo sendo passivo, é um
meio. Também nos é permitido ler esta crítica sendo dirigida especialmente a Kant: a
imagem do conhecimento como meio equivaleria à faculdade da sensibilidade e
aquela do conhecimento como instrumento, à faculdade do entendimento. Hegel
indica que tanto uma posição diante do absoluto quanto outra não é viável, pois erige
uma coisa entre nós e o absoluto, coisa que é o conhecimento, e impõe uma verdade
para nós diversa da verdade em si. O que está em jogo é uma crítica à, então
avançando a passos largos, epistemologia tradicional, de Descartes a Kant. Hegel
considera essa preocupação excessiva, afirmando que o “medo de errar pode
constituir o próprio erro”, isto é, que avançamos no conhecimento do absoluto sem
necessitar nos fecharmos no discutir o que é esse conhecer mesmo. Sua visão é a de
que a Filosofia deixara de conhecer o absoluto, a asseverar que o conhecimento do
que é, da coisa mesma, da coisa em si, não é possível – como atesta a filosofia crítica.
No terceiro capítulo da Fenomenologia, Hegel levará o argumento kantiano da
coisa em si a suas últimas conseqüências, criando a imagem do “mundo invertido”. Ele
pensa que somente através desta divisão entre nós e o absoluto, a “mente” e o
sujeito, surgem como uma questão a ser discutida. Indo, então, de encontro ao
pensamento moderno, assevera que a “mente” é uma invenção, não uma descoberta.
No entanto, vê nisso um movimento necessário do espírito que não devemos
simplesmente negar, mas compreender e suprassumir. A epistemologia, tal como foi
construída, crê que o conhecimento ou é instrumento ativo ou meio passivo; é algo
entre o que somos e o que queremos conhecer; e mais, pressupõe uma diferença
entre o que nós e o conhecido. Assim, o conhecimento passa a ter um estatuto
diverso de nós mesmos.
A partir dessa concepção, surge uma teoria da verdade: da verdade como
correspondência entre nossa experiência e a coisa em si, ou seu mero aparecimento
ou fenômeno. Descartes, por exemplo, afirmará que nosso conhecimento é
verdadeiro, pois Deus, em sua sabedoria e bondade, não permitiria que fôssemos
enganados. No caso de Leibniz e de Berkeley, a hipótese da coisa em si nem surge,
porque nossas experiências são causadas pelo próprio Deus. Kant irá transformar
decididamente esta visão das coisas. Ele confirma a crença empirista de que somente
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conhecemos porque as coisas afetam nossa sensibilidade, adicionando, todavia, que,
através de nossa faculdade do entendimento, constituímos a realidade. O nosso aparato
cognitivo é de tal ordem, que parece que os objetos estão fora de nós, mas,
verdadeiramente, eles estão em nós. Sequer temos condições de afirmar que há
objetos em si mesmos fora de nós. Apenas Deus pode saber isso, pois conhece por
meio da intuição intelectual. O conhecimento como obstáculo é o que Hegel
pretende suprassumir, dando continuidade da tarefa de extrair a coisa em si da filosofia
kantiana empreendida por Fichte e Schelling, pois o absoluto é a totalidade do real e
nada pode existir aparte dele. Afinal, o que seria o conhecimento fora do absoluto?
A verdade é o todo, quer dizer, a verdade é o absoluto. Ela não existe onde
há parcialidade, relatividade. A unidade de medida para a consciência determinar o
que é verdadeiro é sua própria experiência, mas aqui “experiência” expande-se para
além da esfera cognitiva, epistemológica. Como Hegel não crê na divisão ontológica
entre teoria e prática, conhecimento e ação, tudo é experiência, o que significa
afirmar: experiência é o movimento mesmo que a consciência é e faz. Na tentativa de
dizer a verdade e agir conforme ela, a consciência expressa uma concepção de
verdade que é posta à prova. E o caminho trilhado pela consciência na Fenomenologia
do Espírito mostrará que a consciência estará sempre a se frustrar, perdendo sua
verdade. Sendo assim, como sustentar que ela possui verdade? Como, se ela se
perderá? Isso seria o mesmo que relativizar a verdade; cada forma da consciência tem
sua verdade... Como a unidade de medida é sempre a consciência, o que lhe
importará será a compreensão de sua verdade, quer dizer, a coerência. Tal como
acontece no conceito de experiência, “coerência” não se limita somente ao
epistemológico, mas à auto-satisfação em todos os âmbitos da consciência, à sua
integridade. Outra observação merecedora de nossa atenção é que o modelo que a
própria consciência se dá (e que lhe permite ser coerente) não é único. Na experiência
que faz e cuja descrição é a própria Fenomenologia do Espírito, a consciência vai
mudando os seus próprios modelos e paradigmas de verdade. Por isso que se
afirmará que o absoluto não é uma única visada da totalidade, mas a totalidade
mesma, quer dizer, ele é o caminho formado por todas as dúvidas desesperadas da
consciência em relação a si, ao mundo e a Deus, em busca de auto-satisfação e
integridade. O saber fenomenal, exposto ao longo da Fenomenologia do Espírito,
diferencia-se do saber filosófico, amadurecido, na medida em que se apresenta em
várias figuras. Estas são instantes em que os critérios que a consciência se dá acabarão
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por se mostrarem insuficientes, fazendo-lhe ser experiência de desespero,
necessitando cambiar seus paradigmas. A mudança profunda pela qual a consciência
passa não lhe é imposta por nenhuma força exterior a ela. Isso é o que Hegel chama
de contradição.
Também esse conceito ultrapassa a compreensão que possui no contexto da
lógica formal. A consciência vive a contradição; não a tem somente. E é ela que move
a consciência em direção ao verdadeiro. Para a consciência natural, o verdadeiro
estará sempre desvanecendo diante de seus olhos, tal como um oásis no deserto que
desaparece como miragem. Contudo, ela está sempre em busca dele; não há outra
maneira! Para a consciência filosófica, entretanto, que se encontra na terra da
verdade, esta é a compreensão de todo o processo.
Mas a ocorrência dessas diversas figuras aponta para uma meta que a
consciência constantemente persegue, a saber: a coincidência de seu conceito com o
seu objeto. Este coincidir é precisamente o saber absoluto. E ao alcançarmos este nível
de compreensão, encontramo-nos precisamente no âmbito da Filosofia propriamente
dita, pois aqui o saber não precisa ir além de si mesmo, mas está confortavelmente
no lugar que é o seu. O caminho que a consciência percorreu lhe levou à sua
verdadeira existência e essência, já não distinguindo nada de si, não estando presa a
nada alheio; e isso coincide com a natureza mesma do saber absoluto.
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3
Análise do conceito de consciência
Após termos, no primeiro capítulo, feito algumas observações gerais sobre o
pensamento hegeliano e seu entorno, concentrar-nos-emos agora no que Hegel
expressa através do conceito de consciência (Bewusstsein). Conforme citamos
anteriormente, a noção de subjetividade, na mesma medida em que é central no
sistema de Hegel, é extremamente difícil. Recordando, uma das razões para tal
dificuldade é o fato daquela noção possuir vários matizes: eu (Ich), consciência de si
(Selbstbewusstsein) e espírito (Geist). De igual maneira também já foi dito que o objetivo
desta dissertação é analisar de que forma estes conceitos, nos quais a subjetividade
está presente, se desenvolvem na Fenomenologia do Espírito.
Contudo, para compreendermos, seja a noção de eu, seja a noção de consciência
de si, necessitamos nos voltar para o conceito de consciência (Bewusstsein) desenvolvido
na primeira seção da Fenomenologia, que abarca seus três capítulos iniciais, já que o eu é
uma dimensão da consciência, conforme veremos, e a consciência de si um movimento
reflexivo da consciência. Isso será estudado a seguir. Notemos, porém, que nosso
intuito não é fazer uma análise desta seção da Fenomenologia, mas unicamente
lançarmos luzes sobre o conceito de Bewusstsein.
3.1.
O Conceito de Consciência no Idealismo Alemão
A Fenomenologia do Espírito inicia-se com o Prefácio que, como costume no
início do século XIX, foi escrito após o término da obra, seguido pela Introdução,
lugar no qual Hegel expõe os objetivos da obra e seu sítio entre outras obras afins e
pensadores, por exemplo, Schelling, Fichte, os românticos, Schleiermacher, Jacobi e
o classicismo alemão.
O conceito de consciência ocupa um lugar central na Fenomenologia – prezemos o
fato já referido de que o nome da investigação seria “Ciência da Experiência da
Consciência”. Contudo, o termo “consciência” não mereceu nenhuma definição
extensa. Contemplamos dois motivos para semelhante postura.
Primeiramente, o próprio pensamento hegeliano é desfavorável a definições,
axiomas e qualquer postura filosófica que deseje reproduzir – tal como expresso pelo
pensamento spinozista – o método matemático. De acordo com o que mencionamos
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no capítulo 1, Hegel criticará profundamente a idéia de método filosófico, tão cara à
modernidade, precisamente na “Introdução” da Fenomenologia do Espírito. Segundo ele,
a Filosofia deve assumir os próprios movimentos de seu objeto de estudo, sua
totalidade, e a própria experiência surgida de seu contato com este objeto, ou seja, a
maneira como esta totalidade opera no sujeito da experiência (pois experiência
presume um experienciador e algo experienciado). Em outras palavras, o objeto da
Filosofia é tanto a substância, o que é experenciado, quanto o sujeito, o
experenciador. A totalidade só existe para alguém que a conceitua como tal. E ela
envolve este sujeito que a conceitua. Este é o objeto da Filosofia. Por isso, e esta
idéia concretiza-se na Fenomenologia do Espírito, o método filosófico é a própria
Filosofia em seu agir.
O segundo motivo para Hegel não definir extensivamente “consciência”, já se
encontra no primeiro, como veremos. Se Hegel não se satisfaz em definir conceitos,
também a noção de consciência não o será, sendo exposta em seu desenvolvimento,
concretamente nos três capítulos iniciais da Fenomenologia sobre a certeza sensível, a
percepção e o entendimento.
Tanto Kant quanto os idealistas alemães, ao empregarem o termo
“consciência”, visavam denotar o ser humano em sua inteireza; não somente suas
características mentais ou existenciais, nos sentidos que “consciência” tomou na
filosofia do século XX por meio de movimentos filosóficos como a fenomenologia, a
filosofia da mente etc. No sentido kantiano-idealista, “consciência” envolve
necessariamente um objeto diverso dela mesma. Não sendo assim, ela não é, pois
precisa da resistência de um objeto para formar-se como tal. Há, assim, uma
correlação intrínseca entre consciência e objeto.
Hegel distinguirá singularmente consciência de consciência de si, afirmando
que a igualdade entre as duas, tal como pensada por Kant e Fichte, permitirá o
pensamento de uma consciência de si soberana e que, no caso fichteano, tratará tudo
como coisas. Isso é problemático, pois, como Hegel mostrará no capítulo 4 da
Fenomenologia, ao discutir os conceitos de vida, desejo e reconhecimento, cada ser humano é
uma consciência de si e, ainda que haja uma resistência a reconhecer o outro (ser
humano) como tal, isso se fará necessário. Quando duas consciências de si se
encontram e não se reconhecem, dá-se um embate entre elas, instaurando-se uma
luta de vida ou morte, dando lugar à dialética do senhor e do escravo. Neste
encontro, no qual cada consciência de si deseja se assegurar como única consciência
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de si (e ser consciência de si implica a anuência de um outro, mesmo que forçada), ou
uma morrerá, ou será escravizada, quer dizer, preferirá a manutenção de sua vida
biológica à sua liberdade. Veremos isso no momento oportuno.
De uma maneira genérica, os idealistas alemães, ao usarem Bewusstsein
(consciência), aludiam ao conhecer humano tanto de objetos externos, quanto de
objetos internos (isto é, de mudanças e estados do eu). No Idealismo Alemão, o
vocábulo “consciência” desdobra-se em três sentidos: psicológico (a consciência é
apercepção, ou seja, percepção do eu por si mesmo), epistemológico (“consciência”
reporta-se ao sujeito do conhecimento, quer dizer, falar da relação “consciência-
objeto” equivale à relação “sujeito conhecedor – objeto conhecido”) e metafísico
(“consciência” corresponde ao eu, não como individual, mas como condição prévia
seja do eu psicológico, seja do eu epistemológico, que conhece)
1
, mantendo,
entretanto, um acento no sentido metafísico. A razão mais importante deste acento é
o descarte da coisa em si kantiana. Kant, que estabeleceu uma diferença entre a
consciência empírica e a consciência transcendental
2
, afiançando que só a primeira
pertence ao mundo fenomênico e constitui-se de categorias e intuições sensíveis
(ambos conceitos kantianos desenvolvidos na primeira crítica). A consciência empírica
é una graças à consciência transcendental, que não é objeto da experiência empírica,
mas somente condição formal do conhecimento; ou seja, a consciência
transcendental não pode ser conhecida. Porém, os idealistas alemães combatem a
coisa em si kantiana, pois afirmam que à razão humana tudo é dado a conhecer, não
existindo limites para o conhecimento e que as “ilusões da metafísica” são geradas
por uma má compreensão da razão e de seu funcionamento. Eles são impulsionados
por sua crença na expressão integral de qualquer conteúdo, seja pela linguagem, seja
pela arte (impulso que é fruto dos vários movimentos intelectuais que antecederam
essa geração de pensadores: o Stürm und Drang, o pensamento de Goethe e Schiller, o
Romantismo Alemão, a Aufklärung, sendo seu maior expoente o pensamento
kantiano). Assim, a consciência transcendental, cujo aspecto formal Kant sempre
resguardou (especialmente diante de um de seus melhores alunos, Johann Gottlieb
Fichte), tornou-se para os denominados idealistas alemães princípio da realidade.
Fichte converterá a consciência transcendental kantiana, que, segundo a
divisão realizada acima, mantém o aspecto epistemológico, em um eu que é princípio
de toda a realidade e se põe a si mesmo, pois considera a afirmação kantiana de que a
1
Distinção realizada de acordo com Ferrater Mora em seu Dicionário, verbete “consciência”, pp. 550ss.
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consciência é o que permite a unificação do conhecimento da realidade como
indicação de que esta consciência é o princípio absoluto.
Como dissemos no capítulo anterior, Hegel é fiel ao espírito de seu tempo,
que impulsionava tanto Fichte quanto Schelling a construir uma história do
desenvolvimento da consciência, afrontando o formalismo de Kant. Hegel, contudo,
não se satisfará com as iniciativas de seus colegas, considerando-as ainda muito
formais, pois mais partiam da consciência filosófica, ou seja, do ponto que deveriam
demonstrar, caindo sob uma petitio principii.
É na Fenomenologia do Espírito que Hegel empreende sua versão do
desenvolvimento da consciência, de acordo com o que já expusemos
precedentemente. Ele enfatizará a diferença existente entre consciência e consciência
de si e muito da novidade hegeliana advém da preservação desta diferença, porque
graças a ela a formalidade da entrada em cena da consciência de si é superada – pelo
menos assim pensa Hegel.
A consciência é sujeito e objeto em todo o processo. Como representante do
Idealismo Alemão, não se distancia de Fichte no que diz respeito à instituição da
consciência transcendental kantiana como eu que fundamenta toda a realidade e se
põe a si mesmo – isso é expresso na fórmula “Eu = Eu”. Todavia, Hegel, sendo
coerente com sua crítica aos sistemas de Fichte e Schelling
3
, acusará esta identidade
de formal, procurando, em particular na Fenomenologia, transformar aquela identidade
meramente formal em identidade efetiva (wirklich).
O conceito de efetividade (Wirklichkeit) é muito caro a Hegel e receberá a
atenção merecida na Ciência da Lógica (Teoria da Essência, seção III), que não está no
escopo desta investigação, além da Filosofia do Direito, em especial no Prefácio. Não
obstante, a idéia de efetividade (Wirklichkeit) está presente ao longo de toda a
Fenomenologia do Espírito. Este conceito está muito próximo do conceito de realidade
(Realität). Existe, porém, entre ambos uma diferença tão sutil quanto importante, a
saber: a Wirklichkeit é a apropriação da Realität. Esta só é verdadeiramente espiritual,
isto é, só alcança o que o humano tem de mais sublime (no linguajar hegeliano:
adentra na esfera do espírito absoluto), na medida em que, enquanto em si, torna-se para
si e em si e para si. Considerando que a sabedoria é a compreensão da totalidade, do
absoluto, e que nada escapa dele, não há fora dele (por isso Heidegger falará que o
2
Crítica da Razão Pura, daqui por diante “KrV”, B 131ss.
3
Ver, por exemplo, a obra de Hegel de 1801, Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der
Philosophie (Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling).
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absoluto hegeliano é absolutizante), o pensar hegeliano age em variados níveis,
nuances. A Wirklichkeit é a Realität transformada na entrada do nível do em si e para si,
âmbito do próprio espírito absoluto. [Hegel, nas Enzyklopädie der philosophischen
Wissenschaften im Grundrisse (Enciclopédias das Ciências Filosóficas), três volumes escritos
em 1817 e reescritos em 1827 e 1830, fala de três esferas do espírito (Geist): espírito
subjetivo, espírito objetivo e espírito absoluto.] Hegel procurará a efetivação daquela identidade
fichteana, isto é, a consciência filosófica deverá ser efetivada. E a consciência efetiva é
a própria consciência filosófica, compreensiva do absoluto. A preposição “de” que
acompanha “o absoluto” traz em si pelo menos dois sentidos para nós importantes
neste momento: (1) ela possui uma função adjetiva, ou seja, a consciência filosófica
compreende o absoluto; (2) “de” também traz uma idéia de origem e proveniência.
Concretamente: é o absoluto que permite a compreensão por parte da consciência
filosófica. “A consciência filosófica é compreensão do absoluto”. Isto significa: (1) a
consciência filosófica compreende o absoluto, e (2) quem compreende é o absoluto.
Assim, o absoluto, que compreende, equivale à consciência filosófica. Veremos este
movimento da consciência no âmbito do absoluto, isto é, a consciência do absoluto
como a própria tomada de consciência, ou seja, a consciência de si do absoluto, em
nosso último capítulo.
Esta é a tarefa da Fenomenologia do Espírito: descrever o caminho de efetivação da
consciência filosófica, isto é, concretizá-la por meio do próprio caminho que esta
consciência trilha para se tornar filosófica, ou seja, inteiramente consciente de si, do
caminho percorrido até este momento e de suas relações com a realidade que lhe
formam (bilden) como consciência filosófica. Todo este processo será a “definição”
mesma de consciência. Somente ao compartilharmos do saber absoluto, o para nós,
possuiremos uma definição filosófica de consciência. Enfatizamos “filosófica”, porque
sempre teremos definições e compreensões da consciência (o papel da preposição
“de” se repete aqui, tal como no caso acima, quer dizer, “consciência” é tanto sujeito
quanto objeto do movimento realizado), e é por isso que a primeira afirmação que
Hegel fará sobre a consciência é que (i) ela é seu próprio conceito. Isto significa: a
consciência não é definida por uma força estranha, externa, nem mesmo a do
filósofo que acompanha o desenvolvimento da obra, mas é-lhe inerente sempre ter
uma compreensão do objeto que é para ela. Mas isso de tal forma, que já está sempre
enredada em um mundo, em uma linguagem e até, mesmo que isso não esteja claro
desde o início, com outros entes que têm enorme familiaridade com ela. Mas
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asseverar que a consciência é seu próprio conceito não nos permite pensá-la como
alheia a todo e qualquer conteúdo. Hegel concorda com a afirmação kantiana de que
a consciência necessita da alteridade para ser. Se compreendemo-la como apartada de
qualquer conteúdo, como uma substância completa e primariamente diversa de um
mundo ou realidade, o que estamos a fazer é apenas enfatizando o ser para si da
consciência, quer dizer, o âmbito no qual a consciência, secundariamente, é
4
.
Podemos sustentar uma segunda afirmação de Hegel sobre a consciência: (ii)
ela possui um âmbito isolado, um ser para si, que, entretanto, não define por completo
sua natureza. Este ser para si é somente um momento da consciência em si mesma (an
sich selbst). Este ser para si pode ser considerado a subjetividade da consciência, o que
chamamos “eu”. Contudo, a subjetividade da consciência não é sua totalidade, que,
com já indicamos, só se constitui em relação, a saber: do ser humano com o ser em
geral. A totalidade, o absoluto, é esta relação em todas as suas ligações e tensões. Isso
nos remete novamente àquela afirmação de Hegel feita no Prefácio: “o absoluto é
tanto sujeito quanto substância”. O absoluto é atividade na qual é, ele mesmo, o
material passivo; e ele é aquele que domina e maneja este material. Sujeito ativo e
substância passiva. Esta afirmação do absoluto como tal também se refere a outras
tentativas de compreender o absoluto, tais como a de Spinoza, que o afirmara como
substância, e a de Kant e Fichte que o entenderam como sujeito, segundo a
compreensão hegeliana do projeto desses pensadores.. A atitude hegeliana, mais uma
vez, confirma sua consonância com seu Zeitgeist que persevera na síntese romântica lato
senso com os avanços no pensamento proporcionados pelo Iluminismo, a Aufklärung,
como o chamam os alemães, a partir do qual a liberdade e a autonomia tornaram-se
valores centrais, dentre outros elementos, expandindo o conceito de racionalidade
iluminista, valorizando toda forma de expressão humana, como as artes, as
manifestações culturais populares, a religião, a religiosidade.
A valorização da religião na Alemanha deveu-se muito a um movimento
denominado Pietismo, o qual buscava combater o formalismo, a frieza e a
impessoalidade nos ritos e práticas religiosas. Diferindo-se da relação travada pela
intelectualidade em outras partes da Europa, notadamente na França, nas quais o
pensamento moderno esteve presente, onde a religião era sinônimo de
obscurantismo, heteronomia e ignorância, na Alemanha tentou-se conjugar as
relações entre fé e razão, vendo-as ambas, juntamente com a arte (mas estas
4
HEGEL, Fenomenologia do Espírito (daqui por diante, PhG), § 80.
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conjugações aconteceram aos poucos e, talvez, só em Hegel, em sua descrição do
espírito absoluto, assumiu a tomada completa de consciência por parte do pensamento),
como expressão do ser humano e, por isso, merecedoras do cuidado do exame
intelectual, pois unicamente esta atividade permitiria a compreensão do ser do
humano, tornando-se consciente de si. Exemplos da preocupação do pensamento
alemão com a questão religiosa podem ser vistos em obras como: A Religião dentro dos
Limites da Simples Razão (1793), de Kant; o ensaio de Fichte de 1798 intitulado Sobre o
Fundamento da nossa Fé no Governo divino do Mundo e um escrito de 1806 que se chama
A Introdução à Vida feliz ou a Doutrina da Religião; dentre os textos de Schelling,
destacam-se Filosofia e Religião (1804) e Filosofia da Mitologia e Filosofia da Revelação, que
representam a última fase de seu pensamento e somente foram publicados por seu
filho, após sua morte; os escritos hegelianos que demonstram explícita preocupação
com a questão religiosa são os de sua juventude,entre 1793 e 1800, Religião do Povo e
Cristianismo, Vida de Jesus, A Possibilidade da Religião cristã, O Espírito do Cristianismo e o
seu Destino; parte do capítulo VII da Fenomenologia do Espírito, uma parte da seção sobre
o “Espírito Absoluto” do terceiro volume da Enciclopédia e A Filosofia da Religião,
curso dado em Berlin e organizado em forma de livro por seus alunos. Vários outros
autores (Jacobi, Schleiermacher etc.) tiveram a religião e sua relação com a
racionalidade em alta conta. Esta pequena digressão demonstra a preocupação
religiosa destes pensadores e confirma nossa afirmação de que na Alemanha a
religião e a religiosidade assumiram um papel muito mais positivo do que em outros
lugares. E assim, para o pensamento alemão, nenhuma forma de expressão deverá ser
de antemão negada, mas em qualquer uma deverá ser encontrada a verdadeira
racionalidade que somente a Filosofia oferece.
Dizíamos que a subjetividade, vista no pensamento hegeliano como o
desenvolvimento e tomada de consciência de todo o pensamento que o precede,
possui um âmbito no qual é só para si e isso equivale ao “eu”, ao sujeito sobre o qual
parecemos ter um controle absoluto. Mas o que equivaleria ao em si da subjetividade?
Conforme já indicamos anteriormente, “subjetividade” é uma noção que assumirá ao
longo do pensar hegeliano vários nuances, e que, particularmente na Fenomenologia do
Espírito, será eu, consciência de si e espírito, momentos que são transformações,
suprassunções (Aufhebungen), da consciência. Dessa maneira, compreendamos
subjetividade como sinônimo de consciência em geral, o que significa, a relação, que ora
tem o foco sobre a análise, ora o tem sobre a síntese, entre um sujeito e um objeto ou
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substância. No lugar no qual ora nos situamos, importa distinguir “consciência” de
“eu”. Vejamos outras asseverações feitas por Hegel a respeito disso.
3.2.
O Eu
Hegel afirma que a consciência constitui o limite do singular e seu além, ou
seja: “...a consciência é para si mesma seu conceito; por isso é ir-além do limitado, e – já
que este limite lhe pertence – é o ir além de si mesma. Junto com o singular, o além é
posto para ela...”.
5
Conceituando-se, a consciência, diálogo do eu e daquilo que toma por objeto,
será determinada por sua própria medida. Ela se põe um limite e tratará de o
alcançar. Fazendo-o, entretanto, não se satisfará e surgirá para ela um novo limite,
um novo modelo a ser alcançado e realizado. É da natureza da consciência possuir
este movimento de auto-regulação e autodefinição. Como dissemos no capítulo
introdutório, a realização da consciência é a conjunção de sua certeza com sua
verdade, ou seja, da efetivação de seu mundo subjetivo (seus desejos, vontades,
necessidades: em suma, sua própria medida), isto é, do torná-lo concreto, objetivo,
verdadeiro – e esse movimento da consciência em diversas figuras será um caminho
da consciência a buscar uma satisfação plena, o próprio caminho formador exposto ao
longo da Fenomenologia do Espírito. Por esta razão, na citação acima, Hegel afirma que a
consciência é ir além do limitado, limite que é posto para ela mesma e lhe pertence, é
ir além de si mesma. Porém, em um primeiro momento, a consciência não terá
ciência deste movimento, tomando-o como causado por outrem, não tendo nenhum
controle sobre isso – o que lhe causa sofrimento. Enquanto a consciência se colocar
como sofrendo a ação e sendo somente o eu que a sofre, permanecerá aí, incapaz de
suprassumir tal estado.
A consciência distingue, assim, algo de si e se relaciona com ele
6
. É de sua
natureza tomar as coisas por objeto e uma maneira diversa de falarmos sobre a
finalidade que a Fenomenologia possui é que aqui se almeja a reconciliação, também
quista seja pelos empiristas, seja por Kant, entre o conceito que o eu, o sujeito do
conhecimento, tem da coisa, e a coisa mesma. Pode-se expressar isso da seguinte
maneira: a reconciliação a ser alcançada é entre o que o objeto é em si mesmo, isto é,
5
PhG, § 80 b.
6
PhG, § 82.
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36
entre o conceito do objeto, e este mesmo conceito como é para um outro. Esta é
uma aproximação racionalista ao problema, que é o mesmo dos empiristas e de Kant.
O que está em jogo aqui é a busca dessa síntese entre os dois momentos, como diz
Hegel: “O essencial, no entanto, é manter firmemente durante o curso todo da
investigação que os dois momentos, conceito e objeto, ser-para-um-Outro e ser-em-si-mesmo,
incidem no interior do saber que investigamos”.
7
A procura desta síntese, desta reconciliação, é própria ao saber, que é
autônomo, quer dizer, é inerente a si mesmo, não necessita de nenhum argumento de
autoridade, nem de nenhum pressuposto que não venha a ser explicitado. Tudo a
que, por ora, somente apontamos, deverá ser justificado pela experiência (Erfahrung)
mesma, experiência que somos. Como consciência que nos desenvolvemos com nossa
própria medida, estando constantemente a cambiar nosso paradigma de realização,
constituímo-nos, então, como essa experiência da busca de nos satisfazermos
plenamente como seres humanos. Como já assinalamos, o conceito de Erfahrung é
muito ampliado por Hegel, que o desvincula de uma questão propriamente
epistemológica. Esta ampliação deve bastante a Herder que, em Entendimento e
Experiência: Metacrítica à Crítica da Razão Pura (Verstand und Erfahrung, eine Metakritik zur
Kritik der reinen Vernunft), de 1799, já censurava a Kant por limitar aquele conceito.
Entretanto, a primeira maneira pela qual Hegel dialogará com este conceito,
procurando tirá-lo da inércia da abstração epistemológica, é pela via da própria teoria
do conhecimento. (Por sinal, a maneira pela qual Hegel entende a ação de refutar é a
partir dos próprios argumentos a serem contestados. Caso não se aja assim a crítica é
artificial e, como diz o próprio Hegel, meramente formal.) Retornamos, assim, à
discussão sobre até que ponto Hegel é um pensador moderno que mais uma vez
sustenta a verdade filosófica sobre a base epistemológica. Este é um debate que
somente citamos, pois foge do intuito desta dissertação. Contudo, prescrevemos a
atenção sobre a preocupação hegeliana com o saber da consciência que traçará seu
próprio caminho, a desembocar no saber absoluto. Voltemos à análise da consciência.
A consciência é o “conhecimento de um objeto visto como ser-outro que não
eu mesmo”
8
, quer dizer, ela se caracteriza por dois elementos que se relacionam entre
si: o eu e o objeto. A razão disso já foi enunciada acima e encontra na filosofia
kantiana um lugar onde isso é demonstrado de especial maneira.
7
PhG, § 84.
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Hegel took over the notion from Kant and Fichte that consciousness is necessarily
bi-polar, i. e., that it requires the distinction of subject and object. This plays an
important role in Kant’s transcendental deduction, which in one form turn on the
requirement of objectivity, that is, that there be a distinction between phenomena which
are bound together merely in my experience and those which are bound together
universally and necessarily. The extraordinary achievement of Kant’s first Critique is to
rehabilitate this distinction between subjective and objective within experience considered
as distinct from things in themselves. This necessity of an objective pole to experience
also underlies Kant’s refutation of idealism.
9
A consciência, tal como tratada na primeira seção da Fenomenologia
(consciência como “certeza sensível”, “percepção” e “entendimento”), na qual ainda
não se adentrou na esfera do espírito, o que só se dará a partir da tomada de si por
parte da consciência com o conceito de vida (Leben) no capítulo 4 da Fenomenologia
que examinaremos em breve, é consciência natural, ou seja, permanece no âmbito do
senso comum, não filosófico, e não é objeto de seu próprio saber. A consciência natural
sabe-se como um ser, sabe que é, mas não é ela mesma objeto de seu saber, não se
toma como objeto, não sai de si (ob-) para ser a própria coisa posta a investigar (-
jeto). A subjetividade da consciência natural é o eu, aquilo que essa consciência
considera um âmbito à parte do que toma por objeto, como o que está fora dela, ob-
jetado.
Falamos que o eu é subjetividade, porque mesmo sem realizar
manifestamente o movimento de reflexão (idéia que deve ser entendida oticamente), o
eu é uma instância marcadamente reflexiva. Vê-se isso no fato de o eu do qual se fala
ser sempre o eu que se é. Notaremos, entretanto, que este conceito será
problematizado por Hegel. Porém, sendo assim, a consciência (Bewusstsein) já contém
em si indícios da consciência de si (Selbstbewusstsein). Pois a consciência é eu e objeto e
o eu é o momento da subjetividade. A consciência na verdade é uma ao longo de
toda a Fenomenologia. Mas, como já sinalamos, o que temos aqui é uma identidade
diferenciada. A consciência se desdobrará em várias figuras, como caminho que busca
a própria realização, até se tornar consciência filosófica amadurecida, quer dizer,
espírito em si e para si (Geist).
A Fenomenologia vai do abstrato ao concreto, eleva-se a desenvolvimentos cada vez
mais ricos, mas que sempre reproduzem em si mesmos os desenvolvimentos anteriores,
conferindo-lhes uma nova significação. Cada um dos conceitos utilizados por Hegel é
retomado, refundido e, por assim dizer, repensado num estágio superior do
desenvolvimento. Tal retomada de todos os momentos abstratos que se enriquecem
8
Inwood, Dicionário Hegel, pp. 79s.
9
Taylor, Hegel, p. 89.
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38
progressivamente é característica da própria maneira de pensar de nosso filósofo, a tal ponto
que ele próprio experimenta a necessidade de voltar atrás incessantemente e resumir as
etapas já franqueadas para mostrar que já voltamos a encontra-las com um novo sentido.
10
Vemos, dessa maneira, que o pensamento hegeliano se desenvolve desta
forma e continuará sempre assim. Mas qual o modo que isso se dá na relação entre
Bewusstsein e Selbstbewusstsein? No dizer de Hyppolite,
Sem dúvida a consciência é também consciência de si; ao mesmo tempo que acredita
saber seu objeto como sua verdade sabe seu próprio saber, mas disso ainda não toma
consciência como tal; embora seja consciência de si apenas para nós, ainda não o é para si
mesma; com efeito, visa somente ao objeto, quer chegar à certeza do saber do objeto e não à
certeza de seu próprio saber. Tal orientação sobre o objeto é o que caracteriza o objeto como
tal e é o ponto de partida da consciência fenomenológica.
11
A consciência de si subjaz à consciência somente para nós, ou seja, para a
consciência filosófica, àquele que já percorreu o caminho da Fenomenologia do Espírito.
Ao para nós equivale o ponto de vista hegeliano, que se encontra no saber filosófico,
saber absoluto. No entanto, aqui na primeira seção da Fenomenologia, onde o
sentido de “consciência” é restrito e indica a primazia do objeto sobre o saber, isto é,
o saber não se leva em consideração, não procura saber de si, mas todo objeto cai
fora de si, é-lhe externo. O saber é passivo e somente recebe o objeto. A distinção já
feita entre certeza e verdade também aqui está presente – como estará em toda
Fenomenologia. Na consciência, então, a certeza é imediatamente verdade. Será a
experiência de não encontrar uma verdade que satisfaça o saber da consciência, que lhe
levará à figura da consciência de si. Como diz, mais uma vez, Hyppolite:
Quando se desenvolvem todos os momentos da consciência, seguindo o itinerário
fenomenológico, chega-se ao ponto de vista do idealismo transcendental, aquele que parte
Fichte em sua Doutrina da ciência. Acreditamos conhecer um objeto fora de nós (certeza), mas
só conhecemos a nós mesmos (verdade dessa certeza). O realismo da consciência ingênua
conduz ao idealismo transcendental.
12
E o princípio da filosofia fichteana é o “Eu=Eu”, o que nos mostra que neste
estágio diverso do itinerário fenomenológico, o eu ainda estará presente, mas, sob a
nomenclatura hegeliana, terá se transformado em consciência de si. Isso nos remete mais
uma vez a Aufhebung, movimento dialético do pensamento, que nega sem aniquilar o
objeto, conservando-o na elevação a uma nova compreensão dele mesmo. Assim, o
10
Hyppolite, Gênese e estrutura da “Fenomenologia do Espírito”, p. 80.
11
Hyppolite, Gênese e Estrutura da “Fenomenologia do Espírito” de Hegel, p. 82.
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eu que aqui examinamos estará e não estará presente ao longo de todas as figuras da
Fenomenologia do Espírito. Estará presente como eu da consciência, da consciência de si, da
razão, do espírito e do absoluto, espírito em si e para si. Em todos estes casos, ele será
“eu”, mas sempre diferenciando-se do “eu” de outra figura. É o mesmo que acontece
com a noção de “consciência”, da qual falamos ao marcar uma diferenciação entre
um sentido estrito e amplo de seu conceito.
A consciência ainda não é consciência de si, porque o eu da consciência ainda é
inteiramente dependente do objeto. Este eu não sabe que o objeto que lhe aparece é
ele próprio, conclusão à qual chegará no final da dialética da consciência,
precisamente como resultado da dialética do entendimento.
Analisemos como o Eu se desenvolve ao longo dos três momentos da
Consciência: a Certeza Sensível como o momento da singularidade, a Percepção
como o momento da particularidade e o do Entendimento como o momento da
universalidade.
3.2.1.
O Eu na Figura da “Certeza Sensível” como Singular
O eu não pode ser tomado isoladamente, porque ele é somente uma face da
consciência. Na primeira forma da consciência analisada por Hegel, a certeza
sensível, a consciência equivale à posição ingênua de apontar os objetos, acreditando
que os apontando, tem-se o conhecimento mais rico que se pode ter. Os dados são
imediatos e nossa posição é somente a de recebê-los, sem interferimos nessa
recepção. Hegel tem em mente diversas posturas filosóficas que de certa maneira
professam a imediação do conhecimento, a saber: a filosofia grega, especialmente o
ser de Parmênides, Zenão e Platão e os empiristas. Também devemos incluir a
discussão sobre a linguagem existente desde a Antigüidade e calorosamente debatida
na Idade Média.
O conhecimento da certeza sensível é um conhecimento ingênuo, equivalente
a um realismo ingênuo. Toda filosofia do álogon (irracional, inconsciente,
sentimento), da intuição e do imediato será combatida por Hegel, pois para ele a
verdade é dialética e conceitual, ou seja, é mediata, surge da contradição e tanto pode
quanto deve ser expressa pela linguagem de maneira clara e distinta. A figura da
certeza sensível, ao ser suprassumida, expressa a refutação desses modos de pensar.
12
Hyppolite, Gênese e Estrutura da “Fenomenologia do Espírito” de Hegel, p. 83.
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A certeza sensível possui três momentos, através dos quais abandonará sua
certeza e descobrirá sua verdade como percepção, consciência percebente. Esse
primeiro momento equivale ao pôr o objeto como essencial. Nesta figura da
consciência que inaugura a Fenomenologia do Espírito, que toma o objeto como um
“puro isto”, ou seja, como algo livremente dado, há o sujeito deste conhecer, eu.
Porém, e nos lembramos mais uma vez a conjunção intrínseca da consciência entre o
sujeito e o objeto, a esse “puro isso”, ao qual apontamos, corresponde um “puro
Eu”, que não é cultivado, quer dizer, mediatizado por um outro, já que o conceito de
mediação supõe que de alguma maneira haja um relacionamento com “outro de si”.
“Eu” existe aqui como mero apontar.
...Eu só estou ali como puro este, e o objeto, igualmente apenas como puro isto. Eu,
este, estou certo desta Coisa; não porque Eu, enquanto consciência, me tenha desenvolvido, e
movimentado de muitas maneiras o pensamento. Nem tampouco porque a Coisa de que
estou certo, conforme uma multidão de características diversas, seja um rico relacionamento
em si mesma, ou uma multiforme relação para com outros.
13
Para a certeza sensível, sua verdade é que a coisa é. Este ser é necessariamente
imediato e essa relação demonstra-se como uma relação de singulares. O é singulariza
a coisa, da mesma maneira que singulariza o Eu que sabe – pois é um este que sabe a
coisa que é. Seu saber o é de um singular. Logo, esta ação de saber é uma ação
singular. Mas o que leva Hegel a afirmar que o Eu é necessariamente um singular?
“Eu sei porque sei” – eis a afirmação da certeza sensível nessa primeira
dialética. Ainda não é problematizado o sujeito desse saber. O que lhe importa é seu
saber imediato e, conseqüentemente, o sujeito se torna imediato, compreendido
como algo também dado, cuja função é ser o receptáculo, tal como enunciou Locke,
do objeto que é. Aqui, também podemos pensar na faculdade da sensibilidade de
Kant, exposta na Crítica da Razão Pura. Mas observemos que Hegel, tanto aqui no
momento da certeza sensível, quanto em todo o resto da Fenomenologia do Espírito, não
está preocupado no puro acompanhamento da história da Filosofia. Isso ele fará
propriamente em sua Introdução à História da Filosofia (Vorlesungen über die Geschichte der
Philosophie). Aqui na Fenomenologia, Hegel interessa-se por contar, como já dissemos, a
epopéia da consciência em seu caminho desde a natureza até o espírito, desde a
consciência natural (o senso comum) ao saber filosófico. O ponto de vista da
consciência natural é o mais pobre e ingênuo. Partindo de diversas visadas filosóficas,
13
Hegel, PhG, § 91.
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coloca sob uma mesma saraivada crítica pensamentos que gozam de muitas
diferenças entre si. Dessa forma, vê-se que Hegel, na Fenomenologia, refere-se a
diversos pensamentos e escolas filosóficas não linearmente com o intuito de narrar a
história da consciência na conquista de si mesma em sua inteireza. Por isso que Hegel
nega o pensamento de algum filósofo em uma certa ocasião, mas, em outra, pode
elogiá-lo. Isso é mais freqüente acontecer com seus coetâneos, como Kant, Fichte e
Schelling, mas não é exclusivo a eles.
Entretanto, na certeza sensível, a diferença já mencionada entre “eu” e
“objeto”, que aí pulula, será um fator para diluir a certeza que ora se tem. Porque
surgirá uma necessidade de reunir a verdade da coisa com a verdade da coisa no
sujeito, isto é, a verdade da coisa apreendida por um sujeito. De início, a certeza
sensível considera como essência o objeto que é, o ser puro. Já nela encontra-se essa
distinção entre o saber e o objeto. No entanto, o saber só é porque o objeto é. Como
diz Hegel, o objeto pode ser sem o saber dele, mas o contrário não é possível, o
saber só é a partir do objeto.
Como a consciência é sua própria medida, ela, como consciência sensível,
examinar-se-á, questionando seu objeto, o isto. Ao fazê-lo, considerará que “isto”
possui um aqui e um agora. E diante desses fatores que o formam, a certeza do “isto”,
tão grande e sua verdade tão rica cairão por terra, já que parece não haver só um aqui
e só um agora, dados imediatamente, e uma proposição do tipo “agora são vinte
horas e dez minutos” não será verdadeira em todos os agoras, tal como outra
proposição, como “aqui é o meu quarto”, não é válida para todos os aquis; ou seja, a
mediação será introduzida no objeto através da particularidade específica.
O aqui e o agora mostrar-se-ão como mediatos, ou seja, são por meio da
negação de algo que não é: “agora é noite”, porque não é dia; “aqui é árvore”, porque
não é casa. Mas ainda que mediatos, permanecerão sendo simplesmente o que são:
“aqui” e “agora”. Por isso, Hegel assegurará que “aqui” e “agora” são simples, o que
significa dizer que são por eles mesmos. E como, além de simples (indiferentes a
serem isto ou aquilo, dia ou noite), são por meio da negação, isto é, são ao negarem o
que não são, não são nem isto nem aquilo, um não isto, Hegel denomina-os de
universais. Se o que há são coisas, e toda e qualquer coisa é, e se o que é o é aqui e agora,
e se, o aqui e o agora são universais, quer dizer, simples, indiferentes ao seu entorno,
e por meio da negação, um não isto, então ao enunciarmos que uma coisa é, estamos
a exprimir a coisa universalmente. Isso leva-nos a refletir sobre a enunciação, a
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linguagem. Ela, então, se manifesta como lugar no qual só universal é e, dessa forma,
o “é” da coisa é não o singular dela, mas o ser em geral, pois na enunciação, por meio
do aqui e agora, encontramo-nos no plano do universal. Neste ponto, apareceu-nos
algo muito importante para o pensamento hegeliano, a linguagem como unicamente
capaz de expressar o universal, estando impossibilitada de falar o singular. Este
somente é apontado, nunca enunciado.
O ser puro continua sendo a essência da certeza sensível. O que aconteceu
foi que deixamos de simplesmente visar as coisas, apontando-as, mas passamos a
enunciá-las pela linguagem e, assim, descobrimo-nos somente capazes de enunciar o
universal. Universal, que tal como “aqui” e “agora”, é o simples e o negativo do qual
falamos necessariamente ao dizer que uma coisa é. Ainda que seja meia-noite ou
meio-dia é agora; onde quer que eu esteja, estou aqui. Tanto aqui quanto o agora têm
sua negatividade em ser um não isto – “agora” é tudo o que não é agora. Dessa
maneira, aquela imediatez do visar esvai-se, já que através da simplicidade e da
negatividade faz-se presente a mediação. Não é possível enunciar uma coisa singular,
tal como a certeza sensível apontava uma coisa, pois ela sempre desvanece (o agora já
não é mais). Há que contextualizar para fazer sentido; o sentido da linguagem
encontra-se em seu contexto, em sua totalidade. Como contexto deve ser entendida a
universalidade da linguagem asseverada por Hegel. Assim, falar que algo é implica
afirmar o ser puro, que é simplesmente. A verdade da certeza sensível se manifestará
como o universal. Mas isso será esquecido pela consciência mesma que somente
experimentará o universal de uma maneira mais satisfatória como “entendimento”.
Comparando a relação, em que o saber e o objeto surgiram primeiro, com a relação
que estabelecem, uma vez chegados a esse resultado, [vemos que] a relação se inverteu. O
objeto, que deveria ser o essencial, agora é o inessencial da certeza sensível; isso porque o
universal, no qual o objeto se tornou, não é mais aquele que deveria ser essencialmente para
a certeza sensível; pois ela agora se encontra no oposto, isto é, no saber que antes era o
inessencial. Sua verdade está no objeto como meu objeto, ou seja, no “visar
[meinem/Meinen]; o objeto é porque Eu sei dele. Assim, a certeza sensível foi desalojada do
objeto, sem dúvida, mas nem por isso foi ainda suprassumida, se não apenas recambiada ao
Eu.
14
Alcançamos, então, o segundo momento da certeza sensível! Momento no
qual o sujeito da relação, Eu, desempenha uma função de maior destaque. Como
disse Hegel, a relação entre Eu e objeto se inverteu. Se antes, sendo as coisas um
mero “isto”, a consciência pesava sobre o objeto, quer dizer, somente o objeto era e
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o Eu existia unicamente como dependente desse, agora, no momento no qual enuncia-
se o que antes era só apontado, visa-se à coisa, elevamo-nos à universalidade,
destacando-se na consciência o Eu – “o objeto é porque Eu sei dele”. A ação de
enunciar depende do Eu. E, diversamente da fase anterior da certeza sensível, onde
existia um objeto independente de um sujeito qualquer, aqui, não podem existir
enunciações aquém do sujeito. Tal posição filosófica nos reporta aos sofistas gregos.
Como escreve Hyppolite, passamos do “dogmatismo do ser ao fenomenomismo
subjetivo”. E Protágoras, o grande sofista, com o lema de que “o Homem é a medida
de todas as coisas”, merece ser lembrado. De certa maneira, o idealismo subjetivo
também é tocado nesta figura da consciência, ao tomar cruamente e sem maiores
justificativas como ponto de partido de seu pensamento o Eu (o “Eu penso”kantiano
e o “Eu=Eu” fichteano), chamado por Hegel de “árido”, por não ser apresentado e
simplesmente lançado na Filosofia. Diz Hegel: “Agora, pois, a força de sua verdade
está no Eu, na imediatez do meu ver, ouvir etc. O desvanecer do agora e do aqui
singulares, que visamos, é evitado porque Eu os mantenho. O agora é dia porque Eu o
vejo; o aqui é uma árvore pelo mesmo motivo”.
15
A certeza sensível permanece, no
entanto, com as mesmas dificuldades que naquele primeiro momento. Porque, como
o Eu que eu sou mantém (retém, festhalte) o aqui e o agora, o Eu que você é poderá
manter outro aqui e outro agora. A verdade da certeza sensível ainda permanece
relativa. O que se mantém nessa dialética, o que há de permanente nela, é a
universalidade do Eu, como diz Hegel:
O que nessa experiência não desvanece é o Eu como universal: seu ver, nem é um ver
da árvore, nem o dessa casa; mas é um ver simples que embora mediatizado pela negação
dessa casa etc., se mantém simples e indiferente diante do que está em jogo: a casa, a árvore.
O Eu é só universal, como agora, aqui, ou isto, em geral. “Viso”, de certo, um Eu singular, mas
como não posso dizer o que “viso” no agora, no aqui, também não o posso no Eu. Quando
digo: este aqui, este agora, ou um singular, estou dizendo todo este, todo aqui, todo agora, todo singular.
Igualmente quando digo: Eu, este Eu singular, digo todo Eu em geral; cada um é o que digo: Eu,
este Eu singular.
Como indicamos há pouco, a afirmação hegeliana de que só podemos
enunciar o universal, ou seja, que a linguagem não é capaz de dar conta do singular,
de uma coisa em particular, do Eu singular é central para todo o seu pensamento.
Segundo Hegel, o pensamento não é capaz de deduzir, nem de chegar a priori no
singular. O pensamento que se propõe a isso não é capaz de fazê-lo. A certeza
14
Hegel, PhG, § 100.
15
Hegel, PhG,§ 101.
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sensível, ao se tornar consciente de que aquele momento, no qual ora se apoiava,
também desvanece (verschwindet), isto é, que o Eu também é um mediato, um
universal, e não meramente um singular, já que Eu não sou eu somente, mas todo
aquele que diz “eu” também é Eu. Assim, a essência da certeza sensível desvela-se
como duplamente inessencial: nem o objeto visado é essência, nem o Eu que visa. O
raciocínio que leva a certeza sensível a concluir a universalidade do Eu esbarrará na
própria experiência, que sabe a existência de vários eus, eus particulares. Falta-lhe
positividade na singularidade, pois agora sempre que essa é afirmada, está-se no nível
da universalidade.
A certeza sensível irá, então, tomar como essencial todo o movimento que
vem sendo analisado. Só tomando-se totalmente como essencial é que a certeza
sensível poderá sustentar-se. Não pode existir mediatez nem no objeto nem no Eu:
ela toda é imediata, imediatez pura. Sendo assim, nela não tem nenhuma diferença
entre Eu e objeto, entre essencialidade e inessencialidade. Nela reina a relação de
igualdade consigo mesma, onde a diferença não encontra nenhum lugar. Lembramos
a igualdade do sujeito no pensamento de Kant e Fichte. A certeza sensível atém-se,
então, a uma relação imediata, excluindo toda e qualquer coisa que a afaste dessa
imediatez; é puro intuir, mas já não como o intuir de seu primeiro momento, onde o
objeto desempenhava o papel principal, e o Eu era receptáculo daquelas impressões.
No momento no qual nos encontramos, como dissemos, não pode haver distinção
entre Eu e objeto, pois isso seria trair a certeza desta figura da consciência, certeza que
é a do conhecimento e a verdade serem imediatas. Neste terceiro momento da certeza
sensível, ela simplesmente diz que a coisa é. Se ela afirma que é “agora é dia”, não aceitará
um agora que seja noite. O agora e a ação de indicar que algo é têm movimentos
diversos. Indicarmos este agora, o verdadeiro agora. Mas esse agora já foi. Ele é
suprassumido; na verdade, é outro agora. A verdade do agora que já foi é
precisamente que ele foi, que ele está suprassumido,ou seja, que ele foi negado, isto é,
o agora não é. Mas não somete negado, pois reconheceu-se que o agora foi, logo,
estamos ainda a falar do mesmo agora, o agora que foi. No entanto, o agora não é o
que foi, mas o que é! Voltamos, assim, à afirmação de que o agora é. Entretanto, e
Hegel sublinha isso, o primeiro agora não é o mesmo que o terceiro, embora ambos
sejam. Este último é mediado pelo agora que foi e que, portanto, não é. O agora ao qual
chegamos por meio da negação, é o agora de vários agoras, de vários instantes. Eis o
vedadeiro agora. Pelo ato de indicar revela-se a verdade do agora como conjunto de
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diversos agoras e experimenta-se o agora como um universal. A mesma dialética se
repete com o “aqui” e com o Eu. A verdade da certeza sensível demonstra-se como
o dizer as coisas, enunciá-las para além de simplesmente visá-las, e, assim, vem à tona
a natureza e a a importância da linguagem, à qual mostra-se impossível tratar do
imediatamente singular. Mas Hegel não está afirmando que nós, em geral, não
podemos falar de algo singular. O que ele diz é que não o podemos fazer
simplesmente pela linguagem, mas precisamos indicá-lo. E fazendo-o, somos levados a
uma outra figura da consciência, a figura da pecepção, da consciência percebente.
Muito de nossa discussão no âmbito da certeza sensível relaciona-se tanto
com a filosofia grega, como já mencionado, especialmente com o pensamento de
Parmênides, Zenão e Platão e o debate em torno da intuição e do irracional, quanto
com o pensamento escolástico-medieval (destacamos a filosofia tomista). Neste
capítulo da Fenomenologia, o debate acerca da linguagem também está muito presente e
permite-nos conectar com esse assunto já tão amplamente tratado.
O resultado da dialética da certeza sensível no que importa a essa dissertação
é o seguinte: O Eu experimenta três movimentos dialéticos enquanto permanece sob
a sombra da consciência certa de sua sensibilidade. No primeiro, o Eu é mero
recipiente dos objetos sensíveis – objetos que são singulares e imediatos. Assim,
obedecendo ao princípio da consciência de harmonia entre Eu e objeto, o Eu
também é imediato e singular. A cada instante no qual o objeto é, o Eu se faz
presente como o sujeito referente ao objeto. No segundo momento, no qual o centro do
saber sensível aqui investigado desloca-se para o Eu, o que era simplesmente tomado como
“isto” passa a ser indicado, e o Eu é um ponto de sustentação para a evanescência
experimentada no primeiro momento. As aparições daquele Eu-receptáculo
transformam-se em um contínuo quando a certeza sensível pende para o lado do
sujeito. Assim, o Eu acabará por saber-se como universal, tal como o isto, aqui e o
agora, e, dessa forma, adentramos no terceiro moto da certeza sensível, que também é a
passagem para outra figura da consciência, a saber, a “percepção”. Mas a
universalidade do Eu se transformará, seguindo o télos de preencher as demandas de
auto-medida e coerência da consciência. O Eu-continuum ao qual chegamos, é o Eu
que sempre está presente. Estes dois momentos conjugam-se e seu resultado é o Eu
singular que, enunciado, volatiliza-se em Eu universal, mas que se choca com a
experiência, reveladora dos aspectos irredutíveis do Eu que se distingue em vários.
Este limbo entre a singularidade e a universalidade será denominado
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“particularidade”. E a particularidade do Eu deverá ser discutida e isso será feito na
figura da percepção, onde a dialética do uno e do múltiplo, por exemplo, será posta
em xeque – dialética que perpassa toda a Ontologia ocidental.
3.3.
O Eu da Consciência Percebente como o Momento da
Particularidade
A percepção (die Wahrnehmung) parte de onde a certeza sensível parou, isto é,
do momento da universalidade. Notemos, entretanto, que quem faz este nexo é o
filósofo Hegel, que se encontra no âmbito do saber absoluto, filosófico. É o nível
dialético do para nós. Nós, os leitores da obra também encontramo-nos aí, na medida
em que somos conduzidos pelo filósofo. A consciência que trilha esse caminho não
está consciente do mesmo que nós, mas faz a experiência da frustração, da dúvida e
do desespero. Isso não significa dizer que a exposição da Fenomenologia do Espírito seja
artificial – isso é precisamente o que Hegel não deseja. O momento ao qual agora
chegamos é, como resultado da “certeza sensível”:
A certeza sensível não se apossa do verdadeiro, já que a verdade dela é o universal,
mas certeza sensível quer captar o isto. A percepção, ao contrário, toma como princípio o que
para ela é o essente. Como a universalidade é seu princípio em geral, assim também são
universais seus momentos, que nela se distinguem imediatamente: o Eu é um universal, e o
objeto é um universal.
16
Como vimos, a certeza sensível resulta na universalidade do Eu, que quando
dito pelo singular resvala para o universal – “o Eu que digo é o Eu que todos são”.
Mas somos nós, que juntos com Hegel percorremos o caminho da Fenomenologia do
Espírito, os feitores do nexo entre as duas figuras da consciência. Pois a percepção
surge como uma teoria do conhecimento, uma ontologia, que tem seus próprios
princípios, pressupostos e interesses. A própria figura da percepção parte do
absolutamente universal – tanto o Eu quanto o objeto. Aqui, o Eu é o percebente e o
objeto, o percebido. A percepção caracteriza-se como a relação entre estes dois
pólos. E nela, eles se correspondem, ou seja, ambos são universais e essências. Este e
o ponto de partida. Hegel pensa que a universalidade está intrinsecamente conectada
à essencialidade. Isso não será explicitamente tratado aqui na forma de argumentos
propriamente metafísicos – especulativos, como diz Hegel –, mas somente na
16
Hegel, PhG, § 111.
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“Doutrina da Essência”, em sua Ciência da Lógica. O tratamento dado a esse problema
aqui no escopo da Fenomenologia do Espírito é pela experiência que a consciência faz de
seu objeto – o que posteriormente será compreendido como sendo a experiência de
si mesma. Contudo, a percepção é uma relação, e Hegel aponta para o fato de ela ser
diferenciada em seus dois termos, não sendo ambos essenciais, mas um, inessencial.
Esse contraste é necessário ao movimento sujeito-objeto compreendido pelo senso
comum também aqui na percepção.
Inicialmente, o Eu equivale ao perceber (o movimento que age, que percebe),
ao que pode ser ou não ser, ao inessencial; e o objeto, ao percebido, ao simples, isto
é, um determinado, indiferente a ser ou não ser percebido. Aqui, como anteriormente
na certeza sensível, veremos reprisarem-se aquele seu segundo momento, no qual a
essencialidade estava do lado do sujeito, e o terceiro, onde se buscava a síntese
dialética dos dois momentos anteriores – busca não do filósofo que impõe sobre o
objeto sua subjetividade, mas do próprio pensamento que necessita sanar suas
contradições. O objeto, um universal, é, por isso, um mediatizado, pois, como vimos
anteriormente, o universal é através de sua simplicidade e negatividade, ou seja, a
determinidade de ser algo específico e puro em si mesmo (sem mistura) e negativo (a
idéia de simplicidade é usada por muitos ontologistas, tal como Platão,
neoplatônicos, Santo Tomás e vários escolásticos e Leibniz), quer dizer, é por meio
da negação [“A não é nada diverso de A; A é um não-B”. Vale observar que a
negação para Hegel pode ser determinada e indeterminada. A que acabamos de
enunciar é do tipo determinado. Mas há que se marcar uma outra diferenciação do
pensamento hegeliano. Quando Hegel fala que “A é um não B”, essa proposição não
é sequer negativa. Sua idéia, porém, é uma idéia de negação. Mas “não A” não
equivale necessariamente a B – pode equivaler a C, a B e C etc. O que temos que
compreender, para que o sistema hegeliano não se torne completamente um sofisma
– como julgaram muitos pensadores, principalmente das “escolas” analíticas –, é que
seu pensamento se dá em termos de identidade e alteridade – em seu linguajar, ser
para si e ser para Outro. Assim, “A é um não B” indica que “A” é para si,
independente de qualquer coisa, e, por isso, é dito que o objeto da percepção é um
negativo, porque é algo independente do Eu percebente, é autônomo]. Esse objeto
universal, como um aqui de muitos aquis, um agora de muitos agoras, tem em si o
que na história do pensamento denominar-se-á propriedades.
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O objeto é “uma coisa de muitas propriedades”, isto é, ele não é, como na
certeza sensível, um mero isto, mas um conservar de várias e diversas visadas sobre
isto. A percepção conserva a riqueza do saber sensível que traz em si uma variedade
de estímulos (multiplicidade que é quintuplicada por cada um dos sentidos), com a
diferença que ela conserva o objeto transformado-o em coisa, ou seja, suprassume
aquele mero isto. Assim, o objeto torna-se um “não-isto”, um nada determinado.
“Nada” porque o que “não é isto” é “nada”. Mas ele não contém em si a negação
absoluta, pois é coisa, é determinado: é um “nada disto” como diz Hegel, chamando
nossa atenção sobre o fato da coisa não ser nenhuma de suas propriedades, embora
se forme por elas. Ao falar da coisa como um “nada determinado”, Hegel faz
referência a Locke, que negava a possibilidade do conhecimento da substância como
tal e assim denominava-a dessa forma, como um “nada determinado”.
O que nomeamos “propriedade” é a forma que os dados sensíveis tomaram a
partir da dialética da certeza sensível e da qual partimos na percepção, isto é, a forma
da universalidade. O que para a certeza sensível é “branco”, “cúbico” e “sápido”, na
percepção é “um grão de sal”, um objeto que abarca todos estes “isto”. O sensível
aqui ganha o status de universal, pois “branco”, “cúbico” e “sápido” são
propriedades do sal.
Não são meras indicações do que é o sal, pois branco e cúbico também é o
açúcar. O ser que possui muitas propriedades, o “nada disto”, é um objeto sensível,
e, conseqüentemente, imediato. Mas essa imediatez do “nada disto”, do objeto com
muitas propriedades e que é dado ao Eu como imediato, tornou-se universal, pois é a
formação de distintas propriedades que estão no objeto sem se tocarem, mantendo
sua particularidade, convivendo na universalidade simples que é o objeto, isto é, algo
que é idêntico a si mesmo (simples), mediatizado por essas propriedades e negativo.
Hegel chama essa coisa das propriedades de “um indiferente também”, porque ela é
o meio onde as propriedades se recolhem. Entretanto, além dessa postura diante do
problema das propriedades, enfatizando, como diz Hegel, o caráter da universalidade
positiva, do objeto que mantém sua essencialidade frente às propriedades, ele se
debruçará sobre outra posição diante do mesmo problema, que sublinhará seu
aspecto negativo. Na postura inicial, a consciência percebente compreende as
propriedades como indiferentes umas às outras, quer dizer, a brancura do sal não
penetra em sua “cubiformidade”, que não influencia em seu ser picante e assim por
diante; são propriedades determinadas. Mas a percepção, ao fazer a experiência do
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objeto, concluirá que (1) se as propriedades forem completamente indiferentes entre
si, então não serão verdadeiramente determinadas, pois o conceito de determinação
supõe relacionamento com um Outro e a negação dele em vista da afirmação de si;
(2) sendo as propriedades opostas e indiferentes entre si, não podem “estar juntas”
no objeto – objeto que, como notamos, é o meio simples das propriedades. Desse
modo, a percepção chegará à diferenciação da unidade existente entre o objeto e as
propriedades, à separação delas em relação ao objeto, que antes era seu meio simples.
O objeto se cunha como unidade que exclui e nega toda e qualquer propriedade (que
agora se lhe apresenta como um Outro), como “Uno”. Dessa maneira, o objeto se
transforma em uma “coisa propriamente dita”. A negação, na coisa, torna-se
universal, excluindo de si qualquer propriedade e se tornando em si e para si, ou seja,
o Uno.
Passamos, então, por dois momentos nesta figura da percepção, que
desembocarão em um terceiro, caso a consciência avance na experiência de si mesma,
não sucumbindo ante o ceticismo ou a indiferença pelo problema filosófico que
experimenta – esta observação faz-se sempre necessária, pois o movimento dialético,
que é o próprio mover-se do pensamento puro, avança diante das contradições,
buscando saná-las, e não se cansa diante do negativo, mas trabalha-o: é o que Hegel
denomina “o esforço do conceito”. Um exemplo tão rico quanto ilustrativo é o das
antinomias kantianas. Diante delas, não basta ao pensar uma resposta absolutamente
negativa, mas ele demanda o apaziguamento das contradições, a reconciliação do que
está roto. Qualquer atitude que fuja disso, ou compartilha da pobreza e covardia do
ceticismo, ou encontra-se aquém do saber filosófico. Regressemos, entretanto, ao
exame daqueles momentos experimentados pela figura da percepção, revisando-os,
até alcançarmos o terceiro momento.
O primeiro momento é aquele no qual a coisidade (Dingheit) está em
relacionamento com as propriedades como um “também”; ela é uma universalidade
indiferente que está em uma relação constante com estas propriedades, não se
diferenciando delas, mas mantendo-se um universal. Hegel emprega aqui, como
sinonímia de propriedades, “matérias”, termo que nos remete à discussão presente
no pensamento desde a Antigüidade e a época medieval, adentrando-se na Idade
Moderna, onde é tratada como objeto da ciência empírica moderna. As “matérias
são agrupamentos de propriedades qualitativamente aproximadas: matéria calorífica,
matéria elétrica, matéria química etc. A dialética que acompanha este momento é que
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o objeto se apresenta ao Eu como puramente uno e sua propriedade, universal. Mas
uma incoerência surge para o Eu: se a propriedade é universal, ela ultrapassa a
singularidade que o objeto requer para si. Logo, o Eu concluirá que o percebido não
é o verdadeiro. O verdadeiro é o que está no lado do objeto (posição do tipo realista-
ingênuo que Hegel identifica como sempre antecedendo qualquer outra posição no
plano da razão; isso já pode ser sorvido na figura da certeza sensível e estará presente
ao longo de toda essa história da consciência que é a Fenomenologia do Espírito), a
inverdade somente pode recair sobre o sujeito do perceber, o Eu. O movimento que
o Eu então faz para ser coerente com seus princípios é tomar a coisa como uma
“comunidade em geral”, isto é, considerá-la em seu também. O segundo momento é
aquele onde se manifesta a coisa propriamente dita. Aqui, a coisa é compreendida
como o Uno negativo e excludente de suas propriedades, que, por sua vez,
igualmente são universais negativos e excludentes, isto é, propriedades vêm a ser
opostas entre si. Elas são determinadas pela consciência ao serem compreendidas
como uma “comunidade em geral”. E sendo assim determinadas, opõem-se e
excluem tanto o objeto quanto a elas mesmas (uma propriedade x oposta a uma
propriedade y). Novamente, o Eu vê frustrado sua apreensão do objeto como uma
“comunidade em geral”. Mas, contrariamente do que experimentado no primeiro
momento, a propriedade revela-se como determinada. Assim, o Eu separará a
“continuidade” das propriedades entre si e com o objeto e porá “a essência objetiva
como o Uno excludente”, para manter sua determinidade. Entretanto, neste Uno,
ainda há muitas propriedades. A alusão histórica é agora o pensamento de Locke que,
refutando a idéia de substância, a compreende como negação das propriedades
sensíveis. Diante desses dois momentos, a percepção chega a um impasse, no qual
não é possível aceitar uma ou outra postura, nem tampouco ficar apática. Assim, ela
as relaciona.
A coisa será, então, o relacionamento de seu “também”, quer dizer, da
unidade indiferente de si com as propriedades, que conseqüentemente são nela de
forma unitária, e de seu Uno, isto é, desta unidade negativa que exclui de si as
propriedades, que estão na coisa como propriedades opostas. Aquele relacionamento
indiferente da “coisa-também” será mantido; mas agora se sustentando a
negatividade da coisa, ou seja, a diferença entre a coisa e suas propriedades alcançada
naquele segundo momento, tal como no pensamento de Locke, será enfraquecida,
ainda que permaneça. A coisa, então, conterá em si dois instantes: o da “coisa-
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também” e o da “coisa-negação”. No instante da coisa como um também, momento
da indiferença, há uma expansão em diferenças, já que a “coisa-negação” exclui de si o
que o também conservava como unidade indiferente. Essas diferenças são as
propriedades da coisa. Até serem excluídas do Uno, o lugar das propriedades é o
meio indiferente do também; e assim, são universais, quer dizer, só consigo se
relacionam e não se afetam mutuamente. Mas sendo excluídas do Uno, elas
igualmente se tornarão excludentes. A consonância ocorrida entre o relacionamento
da coisa com suas propriedades e as propriedades com elas mesmas acontece porque
o que move o pensamento a afirmações referentes a esse relacionamento entre a
substância e suas propriedades, ou ao um e ao múltiplo, levar-lhe-á a fazê-las em
diversos níveis, ou seja, essas asseverações equivalentemente serão válidas para a
relação das propriedades entre si. E no tocante às propriedades, neste terceiro
momento elas serão diferenças excluídas em relação à coisa e uma em relação à outra.
O Eu, que anteriormente percebia o objeto como algo que excluía as propriedades,
perceberá a existência ainda presente de muitas propriedades indiferentes umas às
outras, porém não poderá continuar afirmando que o objeto é um meio indiferente,
mas a “propriedade singular para si”. Mas ser uma propriedade singular para si
contradiz o conceito mesmo de propriedade, pois esse conceito pressupõe relação, e
aí não há nenhuma. Essa terceira atitude equivale ao pensamento aristotélico que
afirma que a substância individual anima os vários atributos da coisa, à reflexão
leibniziana que na Monadologia afirma que uma mônada é o sustentáculo de várias
propriedades e que as próprias mônadas constituem uma pluralidade de substâncias,
e à consideração de Berkeley de que não há uma coisa por detrás das propriedades,
mas o conjunto dessas, que denominamos “coisa”. A visão que aqui possuímos da coisa
é como constituída de unidades diferenciadas de “coisa como também”, “coisa como
negação” e “propriedades”.
Diante de nós, surge a coisa como objeto da percepção e a consciência
percebente, que é o Eu que percebe. E alcançar a verdade é a apreensão por parte do
Eu do objeto que lhe é manifesto. Este Eu deve se ausentar de influenciar seu objeto
com suas achegas, mas somente apreendê-lo. Por isso, surge para esse Eu o perigo
iminente da ilusão. Pois qualquer descuido de sua parte será a traição à verdade. Mas o
resultado de todas as dialéticas que acompanhamos foi o Eu como um “visar”, para o
qual existe um “ser sensível”, mas para quem o objeto não é percebido em sua
verdade. Assim, todo esse caminho que a percepção percorreu, e que alcança a aporia
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– na contradição da própria definição de propriedade, será refeito a partir de um
outro acento intelectual, a saber, sobre o sujeito da relação, o Eu, pois com a ênfase
sobre o objeto, não se alcançou uma solução suficiente ao problema existente.
3.3.1.
Descrição do Movimento da Percepção a partir do Eu
A coisa permanece como o Uno e o Eu entende como seu dever a
manutenção dessa verdade da coisa. Por isso, tudo o que leva o Eu a concluir algo
diferente disso é culpa dele mesmo e o Eu, consciente disso, esforçar-se-á por
corrigir caso ocorra qualquer desvio da qualidade de ser Uno da coisa. Muito desse
esforço consiste em saber lidar com o fato do Eu perceber diversas propriedades da
coisa, que parecem ser somente dela. Mas como, se a coisa é o Uno? A conclusão à
qual chega o Eu é que a pluralidade de propriedades é fruto de si mesmo. As diversas
propriedades que advêm da coisa, concluirá o Eu, estão, na verdade, nele. O Eu é
como um meio universal para as propriedades, que as separa e lhes permite serem
para si. É a divisão entre qualidades primárias e qualidades secundárias de Locke.
Mas estas propriedades são aspectos determinados, ou seja, precisam estar em relação
com a alteridade, não podendo ser completamente para si, da mesma forma que a
coisa só é o Uno se oposta a outras. A exclusão que decorre desse Uno é
conseqüência de sua determinidade, isto é, somente sendo algo pode dizer o que não
é, ou seja, o seu negativo. As coisas, assim, são em si por serem determinadas, e isso
se desenrola em ter sua essência em si mesma, ou seja, ser o que é autonomamente e
não por causa de outro qualquer, e para si, devido à sua negatividade. Por isso, as
propriedades de uma coisa são determinadas e, como as coisas de que são
propriedades, igualmente em si e para si, quer dizer, indiferentes umas às outras. Na
verdade, a própria coisa é suas propriedades: é branca, sápida, cúbica etc. A coisa é
esse meio indiferenciado, no qual as propriedades são sem se tocarem. Eis a coisa
percebida.
Mas isso só pode ser afirmado a partir da reflexão sobre si por parte do
percebente, o Eu, quer dizer, é o Eu quem percebe esta variedade que tem a coisa.
Sendo assim, o Eu se torna cônscio desse movimento que realiza. E o “também” que
pertencia às propriedades da coisa como coisa transforma-se no “enquanto” da coisa
como percebida pelo Eu: “o sal enquanto branco; enquanto cúbico etc.”. E se o Eu
reflete sobre si e, assim, passa a considerar essa categoria do “enquanto”, a coisa
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como tal é a unidade consigo mesma. Mas ela porta agora o “enquanto” e o
“também”, isto é, as propriedades pertencem à coisa, mas são propriedades opostas
entre si e à coisa mesma, pois tal como o Uno, no qual estão, as propriedades são
excludentes e negativas. Caindo fora da coisa, a propriedade torna-se “matéria livre”,
quer dizer, é agenciada pela ciência da natureza (da época de Hegel) como a brancura,
a sapidez etc. A coisa, então é uma coleção de matérias, deixando ser o Uno, para ser
uma “simples superfície envolvente”.
Dessa forma, o Eu faz, ora de si, ora da coisa, tanto o Uno quanto o
múltiplo, e o Eu acha que é a própria coisa que se constitui assim duplamente. A
coisa é tal como se apresenta sensivelmente, ao mesmo tempo em que sua verdade
encontra-se fora do modo como a coisa se apresenta. Essa postura declarante de que
a unidade deve ser encontrada no Eu e não na coisa equivale ao pensamento
kantiano.
A contradição da coisa se concretiza em diversas propriedades, pois nela há
uma disputa entre a unidade e a pluralidade – unidade que a coisa mesma é, e
pluralidade por ter diversos atributos. Recordemos a coisa “o grão de sal”: ela é Una.
Porém, também é “branca”, “cúbica” etc. Só que, por outro lado, o “branco”
também é, tal como o “cúbico” é e todos seus outros atributos. Por isso, a percepção
denominá-los-á de “coisas diversas” – e coisas que são postas para si, ou seja, o
branco tem uma independência frente ao cúbico e assim respectivamente. Então,
nestas “coisas diversas” encontra-se o incomodar da unidade que a coisa requer – já
que percebemos um objeto; a diversidade que introduz diferença na unidade está aí.
Mas a diferença não está na “coisa diversa”, já que esta não a tem em si mesma,
porém é uma “determinidade simples”, quer dizer, é em relação com outro (o branco
só é branco porque não é preto) e relaciona-se consigo mesma, constituindo-se uma
unidade, distinta de outra “coisa diversa”. As várias “coisas diversas” formam a
diversidade em geral que a coisa experimenta, que é efetiva e de “constituição
multiforme” (são muitas as “coisas diversas”). Mas a diversidade em geral é o
inessencial, pois é o que divide. E a coisa tem, na unidade que é, um “duplo
enquanto”, ou seja, é enquanto unidade na multiplicidade e enquanto multiplicidade na
unidade. Contudo, as duas relações são desiguais, pendendo para o lado da unidade, e
a diversidade transforma-se em oposição, isto é, “a coisa diversa” devém “ser
oposto”; a coisa torna-se uma diferença absoluta, uma unidade inteiramente apartada
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de suas propriedades, opondo-se a elas e lhe sendo exteriores. Mas a múltipla variedade
está necessariamente na coisa, ainda que aí permaneça como o inessencial.
A determinidade, essência da coisa, leva-lhe a se opor às outras coisas,
tomando o devido cuidado para resguardar seu ser para si, isto é, a esfera na qual
mantém sua autonomia e independência. O perigo aqui é não sustentar como sua
principal característica o ser para si, isto é, manter-se como o Uno excludente das
outras coisas. Pois se a coisa se comporta como mais uma dentre outras, isto é, se ela
não se diferencia de suas propriedades, convertendo-se em um similar do que antes
eram suas propriedades, a coisa, como tal, sucumbe, deixando de ser um
independente. O objeto torna-se infindas propriedades, as quais uma é propriedade
essencial ou primária, e outras, propriedades secundárias. Pensemos na Monadologia de
Leibniz e na divisão lockiana das propriedades.
Lembremos o que Hegel caracterizou como o “também” e o “enquanto”. O
“também” é o convívio na coisa das várias propriedades: “o grão de sal” é branco e
também cúbico e também picante. O “enquanto” é apreciado quando a percepção já
avançou em seu movimento e caracteriza-se como várias tomadas de uma coisa,
sendo que cada uma delas sublinha um aspecto seu: “o grão de sal é enquanto
branco”; “o grão de sal é enquanto cúbico” etc. No “enquanto”, as propriedades
assumiram independência entre si e são mantidas na coisa como um unidade de
diversos momentos diferentes. Esse é o primeiro “enquanto”. Vimos há pouco surgir
um segundo “enquanto”, que na relação da percepção já mais desenvolvida, chega à
necessidade de articulação da coisa como propriedade primária ou essencial desligada
de suas propriedades secundárias.Mas este segundo “enquanto” é descartado pela
percepção. Sem esse “enquanto”, a contradição do objeto que é para si e
concomitantemente é para outro vem à tona, e o objeto vem a ser o oposto de si: ele
é “para si, enquanto é para Outro; e para Outro, enquanto é para si”
17
, isto é, ele é
Uno na medida em que exclui de si as propriedades, e tem propriedades na medida
em que é Uno. Mas tanto ser Uno quanto ser um conjunto de determinidades
diferenciadas, quer dizer, de propriedades, de atributos da coisa, se mostrará
incoerente, trazendo problemas à concepção mesma de percepção e permitindo que
possamos ver surgir uma nova figura da consciência: o entendimento.
O objeto da percepção é suprassumido em todos seus momentos anteriores,
tornando-se um algo próximo a um universal, mas escapando a essa definição pelo
17
Hegel, PhG, § 128.
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fato de não ser inteiramente para si, autônomo e independente. Isso porque ainda
está condicionado pela sensibilidade, pelo ser sensível, o que lhe veda a verdadeira
igualdade consigo, já que o sensível é mutável e impermanente, e, dessa forma, esta
universalidade se separa em dois extremos: a singularidade e a universalidade, isso
significa, o Uno das propriedades e o “também” das “matérias livres”. Este
“universal” atingido pela percepção equivale à passagem ao entendimento, no qual
nosso objeto não é puramente o ser sensível dado. A nova unidade à qual a
percepção atingiu é a “unidade absoluta incondicionada” ou o entendimento – embora a
percepção, a consciência que vive a experiência dialética, não saiba disso. Entra em
cena o pensamento kantiano, em especial o “problema da síntese” de sua “Analítica
Transcendental” da Crítica da Razão Pura, na qual Kant investiga como o múltiplo da
sensibilidade é unificado e sintetizado por nós, agentes do conhecimento. Com uma
teoria do entendimento a suprassumir as diversas teorias da percepção (heraclítea e
de outros pré-socráticos, platônica, aristotélica, medievais, lockiana, leibziana, de
Berkeley), saímos do campo da sensibilidade, no qual estávamos totalmente tanto na
certeza sensível quanto na percepção. A certeza sensível, de onde partiu a consciência
em sua busca por plenitude, visava a singularidade sensível, mas fazendo a
experiência de si mesma, deixará de ser singularidade para se transformar em
“universalidade”, ou melhor, universalidade sensível, pois ainda não é verdadeira
universalidade por ser dependente da sensibilidade, na figura da percepção. O visado
imediatamente que, como vimos, evanesceu na certeza sensível, foi suprassumido na
percepção na forma do universal em geral. Por sua vez, a percepção será suprassumida
na figura do entendimento, quando busca conciliar os resultados contraditórios e
aporéticos aos quais chegou, isto é, o impasse do uno e do múltiplo, da coisa e suas
propriedades, dos universais e particulares, das substancias e seus acidentes.
Na figura da certeza sensível, o Eu é o imediatamente singular, tal como o
“objeto”, um isto. Mas isso desvanecerá no momento dialético em que a linguagem
desempenha um papel-chave na experiência realizada em e pela certeza sensível,
onde esta consciência imediatamente certa do que sente enuncia que é Eu, e, ao fazê-lo,
experimenta que Eu é o que todos são: Eu é um universal.
Na figura da consciência na percepção, o Eu, como o objeto, é desde o início
um universal, resultado ao qual chegou a certeza sensível e do qual surge a percepção.
No entanto, como examinamos na exposição hegeliana, aqui temos somente uma
universalidade sensível, ainda não é a verdadeira universalidade. Isso designa a
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natureza dupla do Eu: por um lado, é universalidade (o Eu em geral), por outro, o Eu
cuja singularidade é palpável. De certa maneira, suprassumi o mero enunciar e tornei-
me cônscio de que eu enuncio. Aquele Eu, cuja singularidade foi negada e em seu
lugar afirmada a universalidade, alcançou um meio-termo, um espaço onde ele é tão
singular quanto universal, quer dizer, é particularizado. Sobre o Eu ainda impera a
singularidade sensível que condiciona sua verdadeira universalidade e ele muitas
vezes se perde em suas faculdades. Podemos pensar, por exemplo, na res cogitans de
Descartes, na teoria do mental-ideal de Locke, na teoria sobre o Eu de Hume, e,
principalmente, na Monadologia de Leibniz, teorias que de jeitos diversos colocam o
principal caráter do Eu em sua particularidade, no sentido aqui empregado de estar
entre a universalidade e a singularidade, mais precisamente, de ser universalidade
sensível. Aqui, os argumentos teóricos oscilam desde o feixe mental humiano, que
resguarda o Eu como um surgir constante, no entanto, que sempre desvanece, até a
mônada de Leibniz que não se relaciona com absolutamente nada, somente
refletindo toda a realidade. A aporia do Eu na percepção é não conseguir conciliar a
universalidade (da qual parte) com a sensibilidade, que é singular, quer dizer: Eu é
universal, o Eu que sou é o Eu que todos são, mas não vejo este Eu universal,
porém, constantemente, eus singulares com suas características únicas, irredutíveis.
3.4.
Entendimento como o Momento da Universalidade
Na ordem das figuras da consciência da Fenomenologia do Espírito, o momento
que procede à percepção é o entendimento. Ao investigarmos o terceiro capítulo da
Fenomenologia do Espírito, procuramos alcançar a passagem da consciência à
consciência de si, onde a consciência de outro se torna uma consciência de si mesmo
na alteridade. O que aqui nos interessa é a dialética da infinidade e a vivificação da
relação do si com o outro. Dessa maneira, penetramos na vida universal do absoluto,
que no outro permanece em si mesmo.
O resultado da dialética da figura da certeza sensível é a dissipação da
sensibilidade enquanto “isto” imediato. A transição dela para a percepção denota o
alcançar por parte do Eu do universal – universal que, ao olhar do filósofo, deverá
ainda se desenvolver, não permanecendo no nível que agora foi alcançado. Mas para
a figura da consciência do entendimento, este universal é o verdadeiro. No surgir da
percepção, o universal é “incondicionado”, inteiramente independente do Eu e não
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posto por ele. Sendo-o, ele é o essencial, enquanto o Eu mesmo toma-se como o
inessencial. Mas esta relação será invertida quando o Eu experimentar a ilusão – a qual
assombrou a percepção em toda a sua dialética – como fruto necessário do esquema
no qual se insere – onde é o inessencial – e que o momento do essencial é o avesso
do que pensava – e assim, tudo até então era inessencialidade. O incondicionado
surge como algo que a si retornou – a universalidade em geral que é tanto Eu quanto
objeto – a partir de um tal ser para si condicionado – a coisa que é condicionada por
todos os lados: enquanto propriedade primária, propriedades secundárias e o Uno
que lhe constitui.
Para a consciência, o universal incondicionado é seu objeto e retorna a si mesmo a
partir da relação com um outro, a partir de quaisquer características da coisa –
propriedade primária, propriedades secundárias e o Uno – que sempre se revela
como universalidade. Hegel fala que o universal incondicionado, ao realizar essa
reflexão sobre si, é conceito em si. Sendo conceito somente em si, o entendimento não
compreende o universal como o sendo também, ou seja, não se torna conceito para
si. Nesta figura da consciência, o entendimento, o Eu ocupa uma primazia muito
maior sobre o objeto que nas figuras anteriores. Por isso, não utilizaremos o termo
“Eu”, mas “entendimento” diretamente. No pensamento de Kant, onde o “eu
penso” é o entendimento, isso é explícito – a principal teoria em questão nesta figura
da consciência é a kantiana, principalmente de sua primeira crítica. Quando Hegel
fala que o entendimento é ainda um objeto para a consciência, quer indicar sua
discordância com o pensamento kantiano que tomará o entendimento como o lugar
das categorias, que são um dado sob a ótica de Hegel, já que são artificialmente
colocadas em uma tábua de juízos. Hegel pensa que as categorias não são um dado e
não são algo à parte da totalidade da consciência.
Após a afirmação da singularidade dos dados sensíveis presente na figura da
certeza sensível que para nós resultará na figura da percepção, na qual o universal
incondicionado é o limite do conhecimento da realidade, desponta o momento do
entendimento, que tem como o verdadeiro aquele universal incondicionado, que Hegel
chamará de conceito em si. A dialética da consciência, na figura da percepção, chega ao
seguinte resultado: o percebido é um universal incondicionado, ou seja, é algo que
possui em si as características de ser para si e ser para outro. Nele estão unidos estes
momentos antagônicos e, por isso, Hegel o chama de a “oposição absoluta”. A
universalidade incondicionada não é só uma questão da forma dos dois momentos,
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mas também é de conteúdo, isto é, a dialética da sensibilidade leva a consciência a
apreender o absoluto como tal. O conteúdo dessa unidade entre o ser para si e o ser
para outro, isto é, ambos os momentos compreendidos em sua singularidade, tido
por verdadeiro na percepção, pertence somente à forma dessa mesma unidade, quer
dizer, somente segundo a forma há tal conteúdo. E na unidade, o conteúdo se
dissolverá, ou seja, inexistirão dois momentos em prol de um único, o universal. Ou
seja, o movimento no qual a percepção estava jogada, sendo ora o Uno ora o
múltiplo é compreendido pelo entendimento. O raciocínio de Hegel aponta para a
suprassunção da distinção absoluta de forma e conteúdo – como de qualquer
diferença e contradição; a verdade é que um supõe o outro. A discussão aqui, que se
relaciona com o pensamento kantiano, diz respeito às possibilidades do
conhecimento. A distinção que Hegel evoca entre forma e conteúdo remete àquela
cara a Kant entre conceitos do entendimento, em particular os puros, isto é, às doze
categorias presentes na tabela dos juízos, que corresponde à forma, e os dados
sensíveis, correspondentes ao conteúdo. E segundo esse esquema kantiano, o
entendimento dá leis, prescreve-as, à natureza.
Mas a diferença emerge neste universal incondicionado, por ser ele objeto
para a consciência. Como acabamos de ver, ele tem a figura do conteúdo e a figura da
forma. Na primeira – como conteúdo –, esse universal é dois momentos, a saber, o
ser para si e o ser para outro, enquanto que na segunda, é uma unidade. E é pela
figura da forma que a percepção afirma sua verdade, sendo o conteúdo dissolvido
por ela, quer dizer, a percepção será suprassumida na figura do entendimento. Mas a
unidade é desfeita quando a consciência toma algo por objeto. Mas a unidade
permanece, não sucumbido como anteriormente aconteceu na percepção. Esta
unidade torna-se diferenciada de modo que os momentos (1) da consciência e (2) do
objeto – da consciência – passam a ser compreendidos como “lados” que se
suprassumem repetidamente nesta relação.
O que nos propomos neste nosso estudo é, no momento, esboçar o
movimento dialético do entendimento, preocupando-nos menos do que nas figuras
anteriores da certeza sensível e da percepção com a análise pontual do texto
hegeliano, porém mais com a indicação dos conceitos principais e modos de
desenvolvimento, devido à complexidade do capítulo sobre a “Força e o
Entendimento” e o espaço limitado no qual esta dissertação se encontra. Contentar-
nos-emos em acompanhar o desenrolar da presente dialética, focando na passagem
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da consciência à consciência de si, o que equivale dizer, à dialética da identidade do
entendimento.
Hegel encontrará na controvérsia a respeito dos conceitos de força e lei a
expressão da potência que a consciência passa a desempenhar, mas que ainda é
somente em si, em sua figura do entendimento. O motivo destacado para isso é a
revolução intelectual experimentada pelo pensamento nos séculos XVII e XVIII, e
que ainda se desdobra no início do século XIX. O pensamento revolve-se em uma
nova maneira de abordar a natureza, trazendo-lhe implicações profundas e indeléveis.
A análise de tais transformações é algo fascinante, mas este não é lugar para isso.
Neste capítulo, Hegel debaterá o conceito de força e suas implicações, ou seja, sua
unidade e pluralidade, o “jogo de forças” (Spiel der Kräfte), a lei em sua natureza,
singularidade, pluralidade e universalidade, o mundo “supra-sensível” inferido da lei
– o mundo calmo das leis – e, finalmente, o experimento mental que é o “mundo
invertido”. Precisamos ter claro que todos estes conceitos e idéias acham-se na
universalidade incondicionada, no conceito em si que é o entendimento. Veremos que o
entendimento se manterá aquém da verdade, isto é, o verdadeiro estará no além,
porque só conhece os fenômenos e não a coisa em si.
A passagem que ocorria na percepção e foi compreendida pelo entendimento,
a qual mencionamos um pouco acima, toma uma forma objetiva no conceito de
força, “unidade de si mesma e de sua exteriorização”. A partir da história da
Filosofia, Hegel pensa “Kraft” como inerente a um substrato que ele não constitui. O
conceito de força é pensado como o conteúdo de um fenômeno, quer dizer, de algo
percebido. Pensá-la como dependente do substrato, demonstra que, além de não
surgir espontaneamente, seu surgimento está subordinado a outra força, ou seja, é a
relação entre força solicitada e solicitante. Ele concluirá que este processo de
solicitação das forças é de uma regressão infinita. Identifica tipos de forças –
gravidade, magnetismo, eletricidade etc. –, mas reage contra a tentativa de encontrar
uma força fundamental: isso é “mera abstração”. No que toca ao aspecto “teológico”
da força, na Ciência da Lógica Hegel clama que ela não pode explicar o funcionamento
ordenado do mundo, já que seu funcionamento é “cego” e classifica-a como uma
“categoria finita”, cujo conteúdo e pressuposto são restritos e a depender de outra
força, sendo, assim, impróprio considerar Deus uma força, tal como o mundo em
sua totalidade. “Falta à força a requerida infinidade ou auto-explicabilidade”.
18
Por
18
Inwood, Dicionário Hegel, p. 150.
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essa falta, é errado considerar a mente uma reunião de forças, de Vermögen
(habilidades) ou mesmo de atividades, além do fato de as faculdades mentais serem
nitidamente distintas umas das outras, tal como uma força é de outra – mas estes
aspectos da força em conexão com o problema teológico, cosmológico e mental
serão propriamente trabalhados na gica, destacadamente na seção sobre o ser para si.
Hegel também rejeita a idéia de que só podemos conhecer a expressão
(Äusseruung) da força, porque, a força não é nada além do que sabemos dela, não
possuindo nem exterioridade nem interioridade ou, se é preferido, nela coincidem
exterior e interior. A dialética que ocorre no conceito de força é semelhante às
ocorridas nas outras figuras da consciência: parte-se do particular para chegar-se ao
universal. No caso da “força”, o entendimento parte de uma força, que se duplicará e
depois se multiplicará em várias forças. Mas o movimento inerente da consciência
encaminhar-se-á para uma força, cuja unidade diverge daquela da qual partimos
porque esta nova unidade é diferenciada, ou seja, contém em si a diferença. O
mesmo se dará com a lei. Isso revela que o princípio do entendimento é a unidade.
Outro fato que ao longo do movimento dialético também se mostrará
insuficiente no conceito de força é que como ela sempre põe em relevo algumas
características do fenômeno, experimentar-se-á deficiente, já que o fenômeno é uma
totalidade de características.
A lei surge como a necessidade de fundamentar as explicações. Ela é geral e
pretende dar conta de variadas forçam que “caem” sob o seu conceito. As forças
sofriam da incapacidade de explicar os fenômenos e assim não eram fiéis ao seu
porquê que era compreender a realidade, conhecê-la. As forças são particulares que
pretendem explicar um grupo de fenômenos. Mas, na verdade, as forças são explicam
nada, mas somente descrevem os fenômenos aos quais se referem. Por exemplo,
diante da força da gravidade, Hegel pergunta o que é explicado aí? Não será o feito aí
só a descrição dos fenômenos? Pois a resposta a essa pergunta, “Por que um corpo
cai?”, a resposta é, “Por causa da força da gravidade”. Ao contrário das forças, as leis
são subsunções dos fenômenos. Como acabamos de dizer, as forças são particulares,
enquanto as leis são universais. Mas mesmo assim, a tentativa de explicar a realidade
continua frustrada. O que elas fazem é estabilizar o mundo caótico dos fenômenos.
As diversas leis tentarão ser unificadas em uma lei geral e única. Isso foi
tentado paradigmaticamente por Newton e Boscovich, mas nenhum dos dois
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conseguiu encontrá-la. Newton morreu procurando, por exemplo, uma lei comum
entre as leis do movimento e a lei da gravidade.
Toda lei que surge como tentativa de unificar outras leis, como esta buscada
por Newton, perde de seu conteúdo a especificidade dos fenômenos em prol de
abarcar um maior número de forças e a lei deixa de possuir o seu porquê, isto é,
perde sua essência, que é explicar o real. Isso aponta a impossibilidade de uma lei das
leis, o princípio unificador da ciência empírica. Surge então um dilema: ou as leis
tornam-se específicas e não explicativas, ou se tornam tão gerais e superficiais que
também não explicam nada. Este problema que na ciência empírica pode ser visto,
também é o problema de Kant que tenta, no “esquematismo”, aplicar uma lei geral a
um particular. O esquematismo é considerado por Hegel como absurdo, por impor à
realidade o que ela não é. No entanto, isso é o testemunho de que a absolutização do
entendimento só pode gerar absurdos. Parece que ao entendimento somente restam
duas opções: ou a geração de absurdos, ou a mera descrição dos fenômenos. O
modo que o entendimento encontra de se sustentar como o verdadeiro é criando um
mundo supra-sensível, um outro mundo do qual este é somente cópia. Os entes deste
mundo são todos aqueles que foram empregados para viabilizar as leis. A pergunta de
Hegel é: como foram descobertos tais entes? Kant – como em certa medida já
Leibniz o fizera – afirmou que estes entes estão na verdade estão em nosso
entendimento. É ele que, por meio de regras e princípios, forma o real. Mas ele não
pode afirmar que conhecemos o mundo tal como ele é si mesmo, no entanto,
somente que temos a experiência fenomênica do mundo. Por quê? Pois ainda que
recebamos os dados sensíveis em si mesmos, para os compreendermos necessitamos
dos conceitos do entendimento e de todo aparato cognitivo que é o entendimento
mesmo, exposto na Crítica da Razão Pura. Conhecemos a coisa como aparece para nós.
Ela mesma não é objeto de nosso conhecimento, pois desde sempre a imbuímos de
nossa natureza do entendimento. Em Kant, Hegel falará que o mundo supra-sensível
é o mundo da coisa em si, aquele que nos escapa.
O entendimento identifica que a explicação da mudança é a relação entre as
coisas. Este problema da relação já fora posta por Hume como a questão da
“conexão necessária” e por Kant. O entendimento será aquele que unifica a
diversidade sensível. Mas no pensamento kantiano, a diversidade das determinações
que o entendimento tem diante de si está separada da necessidade, ou seja, da
infinidade da relação. Para Kant, o entendimento permanece uma faculdade, separada
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de outra, a faculdade da sensibilidade. Seus termos permanecem um exterior ao
outro. E como relação, ela permanece fora do que é relacionado, quer dizer, o
entendimento, relação em um certo nível, conserva-se fora do todo da relação, que é
a síntese das faculdades, o que gera a experiência no sentido kantiano. Faltou a Kant,
diz Hegel, a captação da relação como infinita, ou seja, diversa em si mesma. Faltou-
lhe compreender que a lei não exprime todo o fenômeno, do qual é subsunção, e que
este preserva sua instabilidade; que a lei exprime o fenômeno sob uma forma estável
e sem necessidade. A lei, que surge como aquilo que tenta fazer o que a força não
conseguiu, isto é, ser explicação (Erklären) do real, redunda na igualdade formal do
“A=A”, ou seja, em um mero formalismo, que nega o aspecto qualitativo do diverso.
E Hegel não quer negar este aspecto, mas suprassumi-lo pelo processo dialético.
Nessa suprassunção, Hegel desenha um experimento do pensamento de acordo com
as pretensões do entendimento a qual chamará “mundo invertido”. Pela lei, no
mundo supra-sensível que surgiu para nós na dialética da força é introduzido o
movimento. Este mundo se reúne completamente ao fenômeno e o fenômeno se
mediatiza a si mesmo em si mesmo e se torna manifestação da essência.
A lei era em geral o-que-permance-igual consigo, assim como suas diferenças. Agora,
o que é posto, é que a lei e a diferença são, ambas, o contrário delas mesmas: o igual a si,
antes se repele a si; e o desigual a si, antes se põe como igual a si. De fato, só com essa
determinação a diferença é interior, ou diferença em-si-mesma, enquanto o igual é desigual a
si, e o desigual é igual a si.
Esse segundo mundo, supra-sensível é dessa maneira um mundo invertido; e na
verdade, enquanto um lado já estava presente no primeiro mundo supra-sensível, é o inverso
desse primeiro.
19
O “mundo invertido” (die verkehrte Welt) é uma expressão que já fôra usada por
Hegel em 1801 para satirizar filósofos, Kant destacadamente, que acreditavam em
um mundo supra-sensível. O mundo invertido é aquele que adquire a mudança e a
alteração que faltavam ao primeiro mundo supra-sensível, pois o mudar e o alterar-se
se encontravam no mundo da percepção. Mas como? O primeiro mundo supra-
sensível surgiu como o lugar equivalente ao “tranqüilo e calmo reino das leis” do
entendimento; alude ao mundo da coisa em si – Hegel chamá-lo-á simplesmente de
“Em-si” – kantiana, ou seja, o âmbito do que é verdadeiramente, já que a experiência
para Kant é sempre experiência de fenômenos. E qualquer tentativa de ultrapassar os
limites da experiência, pautados pelas regras do entendimento analisado na Crítica da
19
Hegel, PhG, § 157.
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Razão Pura, equivale a um conhecimento incerto e duvidoso, desmerecedor do nome
de ciência e a permanecer na ambiência da metafísica tradicional, a que Kant
tencionava dar estatuto de conhecimento legítimo. Mas Hegel não se conformará em
aceitar os dois mundos distintos um do outro que se desvela no entendimento –
entendimento que coloca a faculdade da razão em xeque, mesmo que lhe atribuindo
um papel importante na cognição, que é o de fornecer princípios ao entendimento.
Os herdeiros do pensamento crítico, inicial e destacadamente Jacobi e Fichte, e
depois Schelling, Hegel, dentre outros, incomodam-se e discordam da realidade que
se lhe apresenta desde este horizonte e compreenderão a razão como o princípio
supremo – o que muita estranheza causou em Kant quando essa tendência intelectual
começou na filosofia alemã–, mas não só isso: a razão é a própria efetividade.
Enquanto o entendimento lida com o condicionado, a razão lida com o
incondicionado – não é à toa que Hegel nomeia o objeto do entendimento como
“universal incondicionado”, porque a conseqüência da dialética do entendimento será
a suprassunção do próprio entendimento. A consciência passará a lidar com o infinito.
Este é um termo empregado por Schelling e Jacobi para se referir ao “mundo em si”
de Kant. Mas todos eles concordarão com a visão de que este não é o verdadeiro
infinito, pois não se autodetermina em sua autocontenção, mas é determinado e
posto por um outro, a saber, pelo entendimento. A noção de mundo invertido
buscará, então, suprassumir o próprio conceito de supra-sensível.
De acordo com aquilo descrito por Kant nas antinomias, desrespeitar a
fronteira do entendimento resulta em questões aporéticas diante das quais podemos
ter mais de uma resposta, denotando ao entendimento ausência de objetividade e
exatidão que exigem a ciência. Hegel, particularmente, pensa que o impasse que
experimenta o entendimento é fruto de sua incapacidade e impropriedade para tratar
de certos problemas. Isso indigita que seu campo de ação é realmente definido e
adstrito, sendo deveras competente em certos níveis intelectuais, não, contudo, em
todos. A frustração intelectiva, conseqüência de irresoluções de problemas postos ao
conhecimento, não se deve verdadeiramente à ultrapassagem de quaisquer divisas,
porém da entronização do entendimento como atividade mental absoluta. Como diz
Hegel na Fenomenologia, isso é somente para nós, e não para a consciência que é neste
momento entendimento. O caminho pelo qual a figura da consciência considerada se
questiona é através da seguinte colocação: a restrição de nosso conhecimento a
fenômenos, excluindo-nos da relação com o verdadeiro em si, e surgimento, então, de
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um mundo supra-sensível, será a única maneira de pensar? Aparece ao entendimento uma
hipótese: um outro mundo é pensado, pois caso não o seja, instaurar-se-á a
contradição, que é pontualmente o que se evita; ou seja, o mundo pode ser
contraditório, as antinomias podem não ser ilusórias, a dialética pode não ser um
encantamento do pensamento. O que mantém o verdadeiro como a primeira opção é
mero dogmatismo, a asseveração “seca” de que o entendimento é o determinante na
efetividade do pensamento. Ao ganharem maior espaço, a razão e a dialética,
elementos muito bem agenciados pela estrutura do entendimento, invertem
literalmente o pensamento.
A argumentação hegeliana contra a doutrina kantiana da coisa em si e do
entendimento, que enfocamos, não é apreciada como inteiramente justa. Muitas
vezes ela é perversa, mas não nos deteremos nesta querela. Indicamos somente que a
leitura que Hegel faz do outro lado dos fenômenos como “coisas em si” não faz jus à
observação cuidadosa de Kant de que sobre a coisa em si – e já comentamos isso –
só se pode falar que é. Recordando, como está fora do que aparece, ela não cai sob
nenhuma das categorias, ou seja, não cai sob o conceito puro de quantidade, e assim
unicamente podemos dizer que a coisa em si é. Todavia, o singular aqui empregado já
designa o cair sob o quantitativo – por que o singular é “menos” quantitativo que o
plural? Na Ciência da Lógica, interpretada por uma corrente como a discussão
detalhada das categorias kantianas e sua suprassunção, Hegel voltar-se-á para o tema
da qualidade, possibilitando-lhe discutir mais a coisa em si kantiana.
O mundo invertido será a concretização do que acima chamamos de hipótese
alternativa à partição em dois mundos, rememorando doutrinas recorrentes na
história da Filosofia como a de Parmênides e Platão, as quais não reconheciam o
verdadeiro em nosso mundo sensível mutável e animado por alterações constantes,
pois o que o é verdadeiramente não muda nem se altera. O próprio mundo invertido
reporta-nos à discussão de Aristóteles com Platão e as teorias sustentadoras de tal
divisão. Pormenorizadamente no debate com a doutrina das formas ideais platônicas,
Aristóteles invocará o argumento do “terceiro homem” exposta por Platão mesmo,
para questionar a duplicidade de mundos. Hegel se alia a Aristóteles contra
Parmênides e Platão e a Fichte contra Kant.
Mas a alternatividade que Hegel expõe nesta dialética do entendimento move-
se no próprio domínio desta figura da consciência; isto é, o mundo invertido é o Em-
si do Em-si. Isso significa: ao Em-si habitante do primeiro mundo supra-sensível que
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corresponde a um fenômeno, que, por sua vez, é no mundo sensível como coisa
percebida, equivale um outro Em-si, que povoa o mundo invertido, segundo mundo
supra-sensível, pois, o que nos garante que no mundo supra-sensível finalmente
encontra-se o verdadeiro (mundo do qual nada podemos dizer; diante dele, devemos
nos calar)? E se nada podemos falar, pensando em termos de quantificadores lógicos,
tudo podemos falar. Hegel afirma que o branco em um mundo será negro no outro, o
que é salgado, amargo, e assim sucessivamente, quer dizer, o segundo mundo supra-
sensível é o oposto do primeiro mundo supra-sensível. Podemos pensar que ao
desenhar o mundo invertido como um mundo de opostos, Hegel estivesse pensando
na contenda kantiana dos dois tipos de opostos desenvolvida em uma obra do
período pré-crítico, o Ensaio para introduzir na Filosofia o Conceito de Grandeza Negativa,
de 1763, e relacionada com outra obra ainda mais antiga, a Nova Teoria do Movimento e
do Repouso, de 1758, na qual Kant discutia precisamente forças físicas,
determinadamente o movimento e o repouso. A relação explícita entre estes dois
escritos pré-críticos é que a ilustração da explicação dos dois opostos é feita por essas
forças. Os dois tipos de oposição são: a oposição lógica, que consiste em negar e
afirmar simultaneamente algo sobre a mesma coisa, e a oposição real, na qual dois
predicados opõem-se mas não pela lei da contradição, umas das leis do pensamento
(Denkgesetzte), pensadas na época de Kant como princípios. Eram os princípios de
identidade, não-contradição, do terceiro excluído e, por vezes, o princípio da razão
suficiente. As leis do movimento e do repouso são um exemplo de oposição real.
A multiplicação dos mundos pode ser infinita, e ao permanecer nesta
atividade incessante, a consciência mantém-se uma “má infinidade”, isto é, à M
1
equivale M
2
, que equivale a M
3
ad infinitum. Segundo o pensar do entendimento, esta
multiplicação deve-se à aplicação de conceitos do entendimento na ausência de dados
sensíveis. O modo de escapar a esta má infinidade é assumindo a unidade deste
mundo, o mundo sensível, e ao fazer isso, está-se acolhendo a contradição
(Widerspruch) como elemento necessário do pensamento, o que horroriza o
entendimento. A chave do diálogo entre Kant e Hegel deve-se aqui à fixidez das
categorias, além de um jogo com o pensamento kantiano acerca da oposição lógica e
real – o que de início é somente uma oposição real enquanto aceita-se a dicotomia da
realidade, devém oposição lógica, mas nem por isso deverá o pensamento desviar-se
do princípio de identidade e unidade que lhe orienta. Sobre as categorias, Hegel diz
elas em número de doze e tais como estão dispostas na tábua dos juízos não podem
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dar conta da totalidade da Experiência
20
, e precisam receber maleabilidade e
expandirem-se junto com o conteúdo do qual são formas do saber. No nível do para
nós, a figura do entendimento está a se suprassumir. Não há lugar mais para nenhum
supra-sensível, pois se aceitando a contradição, desfaz-se a necessidade de postular
qualquer além.
O “mundo invertido” é um momento da Fenomenologia do Espírito muito
discutido entre seus comentadores e possui algumas interpretações. Mencionamos
agora somente algumas a modo ilustrativo, sem nenhuma ambição de esgotar o
assunto. Uma sugestão que muito iluminou a compreensão foi a de Gadamer. Ele
sugere que o movimento aqui se dá contra Platão, a favor de Aristóteles. Em poucas
palavras, diz que “este mundo sensível é o real e o real muda”. Hegel estaria lutando
contra a tendência de Parmênides, Platão e da filosofia grega como um todo em taxar
a mudança como irreal. Segundo Gadamer, Hegel está afirmando que o mundo real é
na verdade o mundo invertido. E aqui, dois grupos de comentadores surgem
procurando esclarecer o significado dessa realidade do mundo invertido: (1) por um
lado, há aqueles que sustentam que o mundo invertido é um contra-exemplo da coisa
em si kantiana – Flay, Findlay; por outro, (2) que o mundo invertido é realmente
contraditório – Ogilvy, Sensat e o próprio Gadamer. Citamos ainda outra
interpretação, a de Solomon, que incorpora as duas anteriores. O argumento do
“mundo invertido” seria um argumento de reductio ad absurdum. Seguindo Aristóteles,
se o mundo das formas é igual a este, não precisamos dele; no caso de Platão, a
reductio ad absurdum é o próprio “argumento do terceiro homem”, de que se o mundo
das formas é diferente do mundo sensível, não faz sentido falar dele. O mundo
invertido é o que completa aquele primeiro mundo sensível, pois traz em si de
maneira unificada a mudança, mas de forma que contém em si a diferença. Ele é a
dualidade do Em-si.
Nunca é demais sublinhar a ação que move tanto esta quanto todas as
dialéticas “hegelianas”: aufheben, suprassumir. Esta advertência é importante, porque
suprassumir não é a pura negação – a pura negação é o estanque da potência do
pensamento e o empobrecimento da Filosofia; o exemplo paradigmático disso é o
ceticismo –, mas o ultrapassar a manter o ultrapassado, elevar, compreendendo, o
ponto em que estávamos. O processo dialético é o ato de compreender x, alcançando
x
1,
compreender x
2
, alcançando x
3
, compreender x
3
, alcançando x
4
, e assim
20
Utilizamos “entendimento” para o conceito kantiano e “Entendimento” para o conceito hegeliano.
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sucessivamente, até a compreensão da totalidade, o saber absoluto que, por sua vez é
um ponto de chegada e um ponto de partida – mas cada instância deste x permanece
no suprassumido. Hegel, em mais de uma oportunidade, falará do movimento do
saber absoluto como circular – sobre este ponto: Hegel insistia em seu contrapor-se a
Schelling, pois este teoriza o Absoluto como estático e isso é completamente o que
ele não é; o Absoluto é inquietude, é dinâmico. Aqui na dialética do entendimento
como um todo isso interessa, porque não está em jogo uma mera negação do
entendimento, em sua partição e análise parcial do real. Hegel reconhece-o como
potência, e confirma-se essa afirmação ao se contemplar seu acompanhamento mui
ardentemente das ciências empíricas e das matemáticas, constando, inclusive, em suas
obras de juventude estudos de Geometria e cálculo, além de ter ministrado cursos
sobre o tema, e de sua filosofia da natureza exposta no segundo volume das
Enciclopédias ser considerada um valioso registro da ciência empírica dos fins do
século XVIII e primeiras décadas do XIX.
O entendimento revela-se como o sujeito das ciências. Elas postulam leis
imutáveis e universais que explicam as mudanças nos eventos particulares, e estas leis
compõem um mundo de entidades científicas – contemporâneas a Hegel são aquelas
do eletromagnetismo, da gravidade –, entidades não percebidas, mas que são
imprescindíveis para a explicação dos fenômenos. No século XX, Popper, dentre
outros, também falarão deste mundo de entes teóricos. Mas Hegel apontará para o
fato de que este reino tranqüilo das leis empíricas também é ilusório, porque elas
mudam com os fenômenos, e a tentativa de leis mais gerais, que seria uma solução a
esta mudança que surge no reino das leis, revela-se como mal-sucedida, pois à
generalidade da lei equivale sua inaplicabilidade, devido à ampliação dos fenômenos
abarcados pela lei. Entretanto, a busca por uma lei geral que primeiro surgiu em cada
ciência particular (Física, Biologia, Química etc.) e depois se estendeu para uma
tentativa de unificação destas ciências particulares, permanece no meio científico,
pois é próprio do entendimento este movimento de unificação indiferenciada, ou
seja, unidade na qual as diferenças são anuladas. Isso, particularmente, será
interrogado na presente dialética. Coerentemente com a crítica feita ao entendimento,
Hegel se posicionará contra a pretensão de por meio do pensamento empírico dar
conta da totalidade.
O mundo invertido é o mundo percebido em algum sentido, porque ele é o
retorno do primeiro mundo supra-sensível sobre o mundo sensível. Assim, teríamos
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em um mundo unitário o fenômeno e o Em-si do Em-si, que é o oposto do Em-si,
quer dizer, acompanhando o fenômeno encontra-se seu correspondente Em-si do
segundo mundo supra-sensível que é o mundo invertido. Só que este Em-si contém
em si o oposto, e é o oposto em si; é a “diferença absoluta”, e o oposto do Em-si é o
fenômeno, já que do Em-si nada podemos falar. Esta dialética do entendimento, que
é um movimento pautado pela identidade, o aparecimento do conceito da diferença
absoluta é de desmedido valor. Aqui, a diferença ocorre no interior do próprio
mundo invertido e denota a igualdade da desigualdade enquanto desigualdade. E
assim, torna-se pensável para a consciência a “mudança pura”, oposição em si
mesma, a contradição.
Assim, a dualidade do mundo perde seu sentido de ser, mas não retornamos à
certeza sensível ou à percepção. Surge uma nova figura da consciência, que é a
consciência de si (Selbstbewusstsein). Ela se caracteriza como o saber do saber, isto é,
do ver e compreender a si quando está em relação com o objeto, primeiro como
certeza, depois como verdade. O entendimento concluirá que sua verdade encontra-
se em si mesmo, que a força, o jogo de forças e as leis dependem profundamente
dela, de si, não sendo algo alheio e distante do entendimento. Porém, isso já se
alcançara e mesmo se disse que o entendimento é o conceito abstrato, o que nos levou
acima a fazer uma breve contextualização do conceito na história da Filosofia. Qual
é, então, a novidade que alcançamos e que nos fez passar de uma figura à outra? Isso
se deve ao fato de que o entendimento efetivou-se, isto é, realizou o que ele mesmo é
até a suprassunção. O mundo invertido mostra-se absurdo a ele por aceitar a
contradição, já que o Em-si contém a si e ao seu oposto, ou seja, o próprio
fenômeno. Dessa maneira, só há este mundo com todas as suas contradições e
inadequações à formalidade do entendimento. Não mais há necessidade de cogitar um
fora, um além. A consciência já não distingue no nível ontológico a distinção entre a
sensibilidade e o entendimento, ou seja, entre a substância e o sujeito, mas como o
percebido é o que apreendemos em sua totalidade, sem um Em-si fora de nosso
alcance e capacidade, a coisa percebida, o mundo sensível, é a lei e aquilo que
proporciona o pensamento de lei, isto é, o nós mesmos, ou como diz Hegel, o Si.
The truth of consciousness is not to be found in the facts of the world, in sweet and
sour, black and white, north and south, etc.; it is to be found rather in the nature of
consciousness itself, its self.
21
21
Solomon, In the Spirit of Hegel, p. 385.
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Assim, a pergunta que anteriormente estava focada sobre o objeto da consciência,
recai sobre o sujeito da consciência, explicitamente sobre o Eu; do objeto conhecido,
ao sujeito conhecedor; do quê ao quem; de Bewusstsein a Selbstbewusstsein. Como nas três
figuras que examinamos, a certeza sensível, a percepção e o entendimento, o Eu
estava presente e, à medida em que a dialética da consciência evoluía este Eu se
complexificava, mas não era sobre isso que estava a atenção da consciência, do Eu,
assim também na figura da consciência que surge, a consciência de si, que é o Eu que
reflete sobre si mesmo, não deixa de estar presente o objeto – pois como vimos o
conceito geral de consciência é a relação entre o sujeito e o objeto. Principalmente na
figura do entendimento, onde o Eu se complexifica em várias estruturas, pode ser
difícil compreender esta passagem dialética da consciência à consciência de si, isto é,
da reflexão do objeto à reflexão de si.
Constantemente em nossa análise da figura do entendimento, quisemos
deixar claro que Hegel se referia ao sistema filosófico de Kant, especialmente o que
foi investigado na primeira Crítica. E na elaborada e intrincada teoria do
entendimento, sua natureza constitui-se de inúmeras funções, papéis e elementos.
Entretanto, no Eu puro, o Ego transcendental, sintetiza-se o princípio unificador do
entendimento. E o que acontece com o Eu puro no decorrer da dialética do
entendimento? O Eu puro é destituído de sua pureza, “aridez” e abstração
conjuntamente com todo o Em-si do mundo supra-sensível. A “pureza”, o
“transcendental”, é concreto; a filosofia transcendental devém especulação, quer dizer,
o pensamento já não se move sob o paradigma da dicotomia do conteúdo e saber do
conteúdo, mas suprassume esta diferença. O Eu kantiano transparece como um Eu
“en-carnado”, ou seja, ser vivo, biós. E como ser vivo, o Eu experimenta-se de uma
maneira muito particular.
Eu me distingo de mim mesmo, e nisso é imediatamente para mim que este
diferente não é diferente. Eu, o homônimo, me expulso de mim mesmo; mas este diferente,
este posto-como-desigual, é imediatamente, enquanto diferente, nenhuma diferença para
mim.
22
Igualmente toda a concepção da realidade, do mundo, será cambiada. A visão
mecanicista, legalista e formal de natureza que foi propalada por Newton e a ciência
empírica, tendo no pensamento filosófico de Kant sua grande teorização basicamente
na Crítica da Razão Pura, dará lugar ao um pensamento da natureza que, tal como o
22
Hegel, PhG, § 164.
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pensar acerca do Eu, compreendê-la-á como um organismo, como um ser vivo. Esta
passagem deve-se em grande medida também à Kant, quem, em sua Crítica do Juízo,
compreende a natureza de forma muito mais plástica e viva. Prova disso é a enorme
importância que essa obra recebeu em toda intellitgesia alemã: Romantismo,
Classicismo e os pensadores idealistas propriamente dito. Este animismo sempre foi
uma característica de distinção no pensamento alemão, estando presente desde os
místicos góticos como Böhme e Eckhart, passando por Leibniz, até Kant
(parcialmente), Fichte, Schelling e Hölderlin.
Ao ser consciência de si, a consciência (no sentido geral) também
compreenderá a ciência empírica de um outro jeito. Se antes, na dialética do
entendimento, o conhecimento empírico era considerado puro, ou seja, habitando um
reino estritamente teórico, aqui este conhecimento será compreendido como também
tendo influências, ou melhor, sendo ele mesmo formado por fatores práticos.
A infinitude que se alcança, no entanto, é ainda somente uma infinitude simples,
que é a “essência simples da vida”.
Esta infinitude simples – ou o conceito absoluto – deve-se chamar a essência simples
da vida, a alma do mundo, o sangue universal, que onipresente não é perturbado nem
interrompido por nenhuma diferença, mas que antes é todas as diferenças como também seu
Ser-suprassumido; assim, pulsa em si sem mover-se, treme em si sem inquietar-se. É igual-a-
si-mesmo, pois as diferenças são tautológicas; são diferenças que não são diferenças
nenhumas. Portanto, essa essência igual-a-si-mesma só a si mesma se refere. A si mesma; eis
aí o Outro ao qual a relação se dirige, e o relacionar-se consigo mesma é, antes, o fracionar-
se, ou, justamente, aquela igualdade-consigo-mesma é a diferença interior.
23
Aqui nos encontramos na pureza dos opostos, ou seja, não há oposição com um
outro, mas consigo. A unidade será somente uma fração, já que o que aqui é posto é
a simplicidade, o não conter em si composições. Tanto o ser uno quanto a diferença
a qualquer coisa já são frações da simplicidade. Mas falar de diferença implica em
conceber o fracionamento de uma igualdade, uma unidade, mas esse fracionar-se é
ele mesmo o ato de se suprassumir o que é, ou seja, ser fração.
O entendimento se torna consciência de si quando a infinitude se torna
objeto, pois percebe em si o que antes buscava no exterior.
Levanta-se, pois, essa cortina sobre o interior e dá-se o olhar interior para dentro do
interior: o olhar do homônimo não-diferente que a si mesmo se repele e se põe como
interior diferente; mas para o qual também se dá, imediatamente, a não-diferenciação dos
dois – a consciência-de-si. Fica patente que por trás da assim chamada cortina, que deve
23
Hegel, PhG, § 162.
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71
cobrir o interior, nada há para ver; a não ser que nós entremos lá dentro – tanto para ver
como para que haja algo ali atrás que possa ser visto.
24
24
Idem, § 165.
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4
A Consciência de si
Nesta parte da dissertação, analisaremos o quarto capítulo da Fenomenologia do
Espírito de Hegel intitulado “A Verdade da Certeza de Si mesmo”, que corresponde à
seção sobre a “consciência-de-si” (Selbstbewusstsein). Nossa preocupação será a de
compreender quais são os desenvolvimentos do Eu na consciência de si. Teremos
em foco três conceitos: vida (Leben), desejo (Begierde) e reconhecimento (Anerkennung),
já que eles são centrais para a formação da consciência de si. Este capítulo da
Fenomenologia do Espírito é dividido em duas partes, a saber: (A) “Independência e
Dependência da Consciência de Si: Dominação e Escravidão” e (B) “Liberdade da
Consciência-de-Si: Estoicismo – Ceticismo – Consciência Infeliz”. Dedicar-nos-emos
principalmente ao ponto A e à parte introdutória que lhe antecede.
Nas figuras da consciência – certeza sensível, percepção e entendimento –, o
verdadeiro era sempre outro: o essente sensível, a coisa e a força. E assim, existia
uma diferença entre o ser do objeto e nossa apreensão dele, ou seja, entre o objeto
enquanto em si e enquanto para outro. A experiência do objeto feita pela consciência
é o que lhe faz passar de uma figura a outra, isto é, de uma compreensão da natureza
do objeto a outra. O “interior” que o entendimento buscava revelou-se o interior da
própria consciência e por isso, essa se transforma em consciência de si.
The truth does not, as the understanding presumed, lie “beyond” in the
supersensible, in the “inner”, rather consciousness itself is this “inner”, which is to say it is
self-consciousness.
1
O resultado da dialética do entendimento levará a consciência a constatar algo
novo: agora a consciência se move no nível da identidade entre o em si e o para
outro, pois o que o objeto é (seu em si), é sempre para ela (ser para outro do objeto).
No objeto, o Eu encontra a si mesmo. Mas a distinção entre sujeito e objeto não será
abandonada, pois isso equivaleria a estancar o processo de conhecimento e relação
que constitui a verdade da totalidade. Por isso, Hegel afirma que a consciência
mantém a diferenciação na unidade que agora surgiu para ela, isto é, o Eu é tanto o
conteúdo da relação da consciência quanto a relação mesma.
A figura da consciência de si é o saber de si mesmo e diferencia-se da
consciência na medida em que na certeza sensível, na percepção e no entendimento o
1
Gadamer, Hegel’s Dialectic, p. 58.
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73
conhecimento era de outra coisa, era saber de outro. No entanto, a afirmação da
consciência de si como um saber de si mesma não implica em dar as costas aos
momentos da consciência, quer dizer, ao conhecimento do mundo sensível e da
percepção. Estes momentos são suprassumidos e não meramente negados na
consciência de si, já não sendo para o Eu de modo independente e simples, mas
refletidos por ele a partir do sensível e do percebido. Esta crítica de Hegel se refere
ao cogito cartesiano e ao pensamento de que o Eu é simplesmente dado. O lugar da
reflexão é o Eu, que tal como um espelho, é base para o essente sensível e a coisa
percebida; é o retorno a partir desse outro. Isso nos remete ao fato de o Eu ter se
tornado tanto o conteúdo da relação com o objeto quanto a relação mesma, pois a
reflexão é este movimento de volta do objeto ao sujeito do movimento, reflexão que
se dá em si mesma, já que o objeto do entendimento resultará em um objeto da
própria consciência. Mas para ela ainda conserva-se o objeto, mesmo na asseveração
de que ela só se relaciona consigo. Conclui-se, então, que este objeto é uma diferença
da própria consciência de si, é o outro, fruto do desdobramento do Eu, que, além
disso, se confronta com ele. Porém, esta diferença não é verdadeiramente; e
enquanto o conceito de diferença permanecer assim, a consciência de si não surgirá
em sua verdade, mas somente como certeza. Podemos comparar este momento da
figura da consciência de si com o primeiro momento da consciência, a certeza
sensível, e dizer que inicialmente a consciência de si é certeza de si (Selbstgewuβheit).
Diz Hegel: “A diferença não é; e a consciência-de-si é apenas a tautologia sem
movimento do ‘Eu sou Eu’. Enquanto para ela a diferença não tem também a figura
do ser, não é consciência-de-si”.
2
O outro é um ser com o qual o Eu mantém-se uno e assim, essa é uma
relação da consciência e não ainda da consciência de si em sua verdade, sendo
conservada toda a extensão do mundo sensível. Mas essa unidade mantida pelo Eu é
um momento diverso e, nele, a consciência de si está em unidade consigo e aquele
mundo sensível é um fenômeno, continuando o conceito da diferença sem nenhum
ser. O Eu toma-se como o verdadeiro, enquanto o mundo é aparente, isto é, a
essência desta oposição é a unidade da consciência de si consigo mesma. A
essencialidade da unidade para a consciência de si demonstra que ela é desejo em geral.
Sua unidade direciona-se tanto para o objeto imediato da certeza sensível e da
2
Hegel, PhG, § 167.
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74
percepção quanto para si mesma, quer dizer, para o Eu que de início só estava
presente na oposição ao objeto.
A passagem da consciência à consciência de si corresponde à interpretação
que alguns pensadores alemães pós-kantianos, particularmente Fichte, fizeram do
pensamento de Kant, o qual sustentou na Crítica da Razão Pura que não é o Eu
transcendental que cria a fenomenalidade da natureza conhecida, mas o Eu não
transcendental – que é receptividade, ou seja, o sujeito finito. Mas este sujeito finito
procura constantemente ultrapassar os limites do próprio entendimento. Esta
ultrapassagem é ensaiada na esfera prática, analisada por Kant na Crítica da Razão
Prática, na qual o sujeito é a consciência de si autônoma e para o qual a coisa em si
não é um obstáculo. É neste nível de discussão que se encontra a dialética da
consciência de si. Aqui, o pensamento fichteano também é importantíssimo.
Do mesmo modo que, na crítica da razão prática, a consciência de si, a autonomia, é
concebida como a negação da natureza; do mesmo modo que, na doutrina da ciência, o Eu
prático é concebido como esforço infinito para alcançar a identidade primeira, o Eu=Eu, o
princípio tético de toda a Wissenchaftslehre; assim também, na Fenomenologia, a consciência de si
aparecerá, em oposição à consciência, como consciência ativa.
3
4.1.
Conceito de Vida
O objeto da consciência de si é um ser refletido sobre si mesmo; um ser vivo.
O conceito de vida, central nesta parte da Fenomenologia do Espírito, na introdução da
seção sobre a Selbstbewusstsein, relaciona-se com a discussão kantiana presente na
Crítica da Razão Prática, onde “vida” equivale ao conceito de liberdade, e na Crítica do
Juízo, em que Kant se posiciona contra a concepção cartesiana e iluminista de vida,
entendendo-a em termos teleológicos. A partir daí, Hegel colocará a reflexão sobre a
vida como a instância que pode dar conta do que o entendimento não foi capaz, a
saber, do fato de o mundo não ser artificial e mecânico em si, mas somente para o
entendimento.
Descartes foi o grande representante do mecanicismo, ao fazer a distinção
entre pensamento e extensão, e afirmar que as únicas propriedades dos seres vivos
são propriedades mecânicas. O mecanicismo vem, desde então, exercendo sua
influência no pensamento de uma maneira geral – estando em conexão intrínseca
3
Hyppolite, Gênese e Estrutura da Fenomenologia do Espírito, p. 160.
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com científico
4
. Mas haverá pensadores que lutarão contra esta tendência e que
construirão sistemas não inteiramente subordinados ao mecanicismo, tal como os
platônicos de Cambridge e Leibniz. Também os teóricos de uma filosofia da
natureza, como Schelling
5
, Oken, Steffens e Baader, procurarão delinear um outro
modelo da natureza e da vida frente ao mecanicismo. No pensamento deles
encontram-se traços que podemos denominar organicistas, pois afirmam que a
natureza é um organismo vivo. Schelling, dentre estes pensadores, foi o mais
influente e, inclusive, animou intensamente as reflexões destes outros, partindo da
Crítica do Juízo de Kant a fim de conceber a natureza em sua totalidade como um
vivente.
Segundo Hegel, a verdade do entendimento, que alcançou seu completo
desenvolvimento no sistema kantiano, era que, em sua relação com o interior das
coisas, unificava o diverso. Mas, nessa unidade, repelia de si mesmo um Eu puro. E
para este Eu puro, enquanto entendimento, apresentava-se a síntese de si mesmo
com os dados sensíveis exteriores. A passagem da consciência à consciência de si é
marcada pelo surgimento da vida. Se antes o entendimento, como “Eu penso”,
sujeito transcendental, tinha por objeto o interior da coisa que, no entanto, era mero
fenômeno, mera aparência, a vida é a figura que lhe segue; a unidade do
entendimento agora se fraciona em consciência de si e vida. A vida é a unidade
infinita das diferenças, não sendo para si mesma, enquanto que a consciência de si,
em um primeiro momento, é pura e simplesmente para si, marcando seu objeto, a
vida em geral, com o sinal de negativo, quer dizer, é desejo. Tal concepção de vida
como devendo estar unida à especulação era comum entre os românticos alemães.
Il faut que les deux termes s’identifient, que la vie soit pensée comme vie, et la
pensée fasse éclater ses cadres habituels pour saisir et exprimer la vie elle-même. Cette idée
de la vie est d’ailleurs commune à tout le romantisme allemand.
6
A visão da natureza que pensadores tais como Herder, Goethe e Schelling cultivaram
teve, por sua vez, em Spinoza uma enorme fonte de orientação e inspiração. Eles se
pautaram pela divisão spinozista entre natura naturans e natura naturata. A primeira é a
natureza como produtividade infinita; a segunda, a natureza como produto
condicionado e limitado. Além destas considerações sobre o desenvolver-se do
4
Como Hegel usa o termo Ciência (Wissenschaft) para indicar o saber filosófico e não os saberes
empíricos, observamos que ao nos referimos ao uso hegeliano, empregaremos o termo em maiúscula.
5
Cf. Da alma universal, 1798 e Primeiro esboço de um sistema de Filosofia da Natureza, 1799.
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conceito de vida, cabe notar que o próprio caminho intelectual de Hegel também está
marcado pela tentativa de compreender a vida. Inicialmente, na época dos cursos de
Iena, Hegel baseou-se na Filosofia da Natureza de Schelling. Entretanto, desde aí a
diferença de seu pensamento com o schellinguiano fez-se notável, pois Hegel
preocupava-se muito mais pela vida em um sentido existencial e com a consciência e
desejo humanos do que em seu sentido biológico, como Schelling.
La philosophie de la nature de Schelling est seulement absorbée par l’hégélianisme,
en tant qu’elle permet de mieux comprendre l’esprit qui est «vérité de la nature » et qui
suppose donc la nature. Hegel, dès les premiers textes de la Métaphysique d’Iéna, fait de la
nature un moment inferieur de l’idée et non une présentation complète de l’absolu : « l’esprit
de la nature est um esprit caché. Il ne se produit pas sous la forme même de l’esprit ; il est
seulement esprit por l’esprit qui le connaît, il est esprit en lui même, mais non pour soi-
même » (Jenenser Logik, éd. Lasson, p. 113).
7
4.1.1.
A infinitude da vida
A essência da vida é a infinitude. Se na dialética do entendimento a infinitude
surgiu para o entendimento como o equivalente à coisa em si kantiana, aqui, na
dialética da vida, Hegel compreendê-la-á também como suprassunção (no que diz
respeito ao entendimento, a infinitude era a suprassunção das diversas forças e leis
que eram objeto para ela), mas como suprassunção das diferenças existentes na vida.
A vida é um meio simples e universal, quer dizer, abarca todas as instâncias
particulares, todas aquelas determinidades. Mas como o movimento que aí ocorre é o
de suprassumir, as diferenças permanecem como diferenças e a vida determina-se
como “universal fluidez”, isto é, substância de todas as diferenças, que são
determinidade do puro movimento mesmo.
Para Kant, a infinitude também é compreendida como o substrato da
natureza, mas é supra-sensível e, portanto, objeto impossível de nosso conhecimento.
É o que nessa época se chamava éter, uma noção já presente no pensamento pré-
socrático e definida por Aristóteles. Este conceito foi empregado ao longo da
Antigüidade até a Modernidade, quando recebeu uma definição “científica”, dada
pelo físico Huygens em 1678, ao formular a teoria ondulatória da luz. A partir de
então, éter passou a ser considerado um meio “elástico” por meio do qual as ondas
de luz se propagam sem perder sua energia inicial. Também Newton, em sua Ótica de
6
Hyppolite, “Vie et prise de conscience de la vie dans la philosophie hégélienne d’Iéna”, p. 12.
7
Hyppolite, “Vie et prise de la conscience de la vie dans la philosophie hégélienne d’Iéna”, p. 13.
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1704, e Goethe aceitaram a idéia de éter como princípio do pensamento empírico.
Mas além deste uso “científico”, a noção de éter continuava a ser utilizada por
filósofos na tentativa de explicar a unidade de todas as coisas. Sua concepção na
filosofia romântica traduziu-se no conceito de uma alma do mundo (Weltseele) – por
exemplo, no pensamento de Schelling, a alma do mundo era a primeira forma da
identidade.
O conceito de infinitude supõe a articulação entre o todo e suas partes,
devendo-se assinalar que ele comporta a diferença na identidade. As determinidades
presentes na vida são membros independentes; seu ser para si é a reflexão na unidade
da vida, que é o fracionamento nestas figuras. O motivo para a fragmentação da vida
em figuras é que a vida é uma unidade absolutamente negativa, ou seja, para ser uma
consigo necessita estar em contraste com algo. Assim, temos frações que são
independentes, e estas somente o podem ser em relação a um outro.
Conseqüentemente, também o suprassumir da fração dar-se-á por meio de outro. No
entanto, sendo a fluidez a substância das figuras, o suprassumir encontra-se na fração
mesma, ou seja, a fração é o fracionamento na própria fluidez, o que significa dizer
que a fração é o suprassumir de seu próprio ser para si, em direção àquela
universalidade simples.
Na totalidade do conceito de vida, contemplamos dois momentos: (1) o
subsistir das figuras independentes, no qual a figura subsistente é substância infinita
em sua determinidade, em contraste com a figura universal, e negando a continuidade
com a fluidez (ela não se dissolve no universal), se conserva por sua separação da
natureza orgânica e consumo desta; e (2) a subjugação do subsistir à infinitude das
diferenças, isto é, o meio fluido universal. De maneira imediata, esse primeiro
momento remete-nos ao pensamento fichteano, no qual há uma contraposição
irredutível entre o Eu e o não-Eu; o segundo, à teoria de Schelling, que Hegel
acusava de sustentar diferenças somente exteriores – não levando a sério a diferença
em si mesma, porém, subsumindo-a na identidade. De qualquer forma, esse ser
separado que afirma sua separação do todo se correlaciona com a noção de modo de
Spinoza, expressa na definição V da Ética I: “Por modo entendo as afecções da
substância, isto é, o que existe noutra coisa pela qual também é concebido”.
8
O modo
só é in alio, ou seja, por outra coisa. Nisso consiste sua negatividade. Contudo, o
modo que é a “fração da vida” corresponde mais à potência (puissance) negativa que é
8
Espinosa, Ética, p. 76.
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78
a mônada leibniziana, já que este “fragmento” é ativo em sua negatividade.
Entretanto, o lugar que o pensamento alcança com Leibniz ainda não satisfaz Hegel,
pois falta aí a imanência da relação própria da vida.
L’influence de Leibniz a été très forte sur le Hegel d’Iéna, mais la monade de Leibniz
est fermée sur l’extérieur. Le système monadologique est transcendant par rapport à l’activité
d’une monade. C’est là la critique que Hegel fait à la monadologie.
9
Esta divisão da totalidade e suas partes corresponde àquela entre a vida e os
seres vivos. O ser vivo é uma individualidade que suprassume sua oposição com o
outro, ou seja, torna-se vida ao consumi-la, quer dizer, a individualidade se mantém
às custas do universal e só em contraposição a ele possui o sentimento de unidade
consigo mesma, ou seja, é para si. A individualidade está sempre fracionando a
universalidade, pois a põe dentro de si. Os dois lados do movimento acabaram por
coincidir: (1) a figuração é tanto o suprassumir da fluidez universal quanto a articulação
dos membros entre si, e (2) o processo da vida, o qual é abstração da essência e só
efetivo na figura. E a vida revela-se como todo este circuito, como o todo que se
desenvolve e dissolve seu desenvolvimento, conservando-se simples nesse
movimento.
O resultado desta dialética até aqui é o surgimento de uma figura imediata da
qual partimos e acabamos por retornar, através dos momentos da figuração e do
processo da vida, à unidade de ambos os momentos, ou seja, à substância simples.
Entretanto, esta é uma segunda unidade, diversa da primeira. Ela é o gênero, para a
qual a vida se remete através da consciência que compreende a vida como esta
unidade.
En consommant l’universel, l’individu consomme son essence dont il tient la vie ; il
ne se conserve plus comme individu mais comme différence de l’universel, du « genre ».
Dans le processus de l’individualité, l’individu se dépasse en tant que tel.
10
Gênero é um termo lógico de classificação. Ele envolve classes que, por sua
vez, envolvem espécies; é associado à idéia por Platão e definido por Aristóteles
como um atributo essencial de coisas que diferem especificamente entre si
11
. Pode-se
dizer que este conceito está presente no pensamento filosófico desde as suas origens.
9
Hyppolite, « Vie et prise de conscience de la vie dans la philosophie hégélienne d’Iéna », p. 19.
10
Marcuse, p. 243.
11
Cf. Tópicos, I 5.
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79
Porfírio, em Isagoge, afirmará que o gênero é um dos predicáveis (praedicabilia) que
Aristóteles elenca também nos Tópicos, isto é, um dos diversos modos de relação
entre o sujeito e o predicado. Isso influenciará muitos autores medievais e
escolásticos que compreenderão o gênero em dois sentidos: genus naturale, que possui
o sentido ontológico, e o genus logicum, sentido lógico. Os pensadores modernos,
entretanto, não farão uso desta distinção. O surgimento, então, deste conceito indica
que a figura da consciência de si é viva, um ser natural, ao mesmo tempo em que
ultrapassa a ambiência do meramente natural. No Sistema de Iena, Hegel
compreenderá o gênero como uma “totalidade superior” postulada pela
universalidade da “Vida como Espírito”.
12
O gênero natural revela-se como um
modo particular e inapropriado do Gênero enquanto tal, que é definido como aquilo
que se instaura e se conserva em seu advir.
Avec ce nouveau concept de genre, Hegel revient à la signification originelle du
Genos intimement liée à celle de la Genesis comme mode de la mobilité. Il faut relever ici que
Hegel parle seulement du genre ou du genre simple (au singulier). La vie n’est pas um genre
parmi d’autres, ou supérieur aux autres, elle est simplement le genre comme tel, et ceci,
considérant que le genre est le seul advenir où se réalise « de façon vivante » l’universalité
vraie, où l’unité unifiante se particularise en différentes figures réeles, sans être pour autant
morcelée. Hegel définit l’essence du genre comme étant éminemment cette mobilité. Dans sa
figure propre, le genre est le « mouvement qui parcourt des parties également simples et en
elles-mêmes immédiatement universelles », ces parties en tant que telles sont « réeles »
(244).
13
A vida compreende-se como gênero e tem por objeto a si mesma como puro
Eu; é um objeto abstrato e imediato em sua identidade. Mas este objeto enriquecer-
se-á e adquirirá o desdobramento que vimos anteriormente na vida.
La vie de l’individu est action et non « chose » : dans l’action, l’individu nie ce qui est
stable en lui (sa nature inorganique interne), il se trascende lui-même. Cette contradiction
intérieure inhérente à la vie s’extériorise dans le processus du genre, dans la division des
sexes. L’individu voit son autre hors de lui, identique à lui-même.
14
O momento a partir do qual a consciência de si nomeia-se como “Eu” marca
a oposição desenvolvida de vida a si mesma. Mas esta tomada de consciência desenha
a verdadeira natureza da consciência de si: deve-se reconhecer em um outro.
Observando essa verdade, à consciência de si se apresentará um mundo de riquezas
infinitas.
12
Cf. Marcuse, L’ontologie de Hegel et la théorie de l’historicité. p. 245.
13
Marcuse, p. 245.
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80
4.2.
Conceito do Desejo
Como espécie, a vida, que como gênero era “puro Eu”, vem a ser “Eu simples” e
só é afirmada através do suprassumir do outro, que se lhe apresenta
independentemente. O Eu, que se diferencia como uma unidade da totalidade da
vida, se relaciona com os entes da vida em geral como algo para si. O Eu é desejo, tal
como a própria vida, pois sua unidade caracteriza-se por uma igualdade diferenciada,
e o que mantém essa unidade é o desejo. Podemos e devemos pensar no conceito
fichetano de Trieb (impulso), que se encontra no fundamento da relação do “Eu”
com seu “não-Eu”, como sendo algo em que Hegel esteja pensando ao desenhar a
dialética do desejo: ao Eu vivente apresenta-se toda a constelação do mundo da vida,
não-Eu, que é para o Eu. Fora do Eu, tudo está marcado com o sinal do negativo,
não-Eu; na nulidade de seu objeto independente está sua verdade. Como diz
Hyppolite: “O desejo é esse movimento da consciência que não respeita o ser, mas o
nega, isto é, dele se apropria concretamente e o faz seu. Tal desejo supõe o caráter
fenomênico do mundo, que só é um meio para o Si”.
15
Mas a independência deste Eu
que tudo consome e aniquila revela-se como dependente precisamente disso que é
desejado, pois se sua verdade é desejar, e esta ação supõe um objeto a ser desejado,
então aquela suposta autonomia repousa em um outro. Contudo, essa conclusão
escapa ao Eu, pois seu objeto desaparece diante de sua fúria em consumi-lo, em
transformá-lo em seu. O pensamento fichteano, expresso nas versões a que Hegel
teve acesso até a época da escrita da Fenomenologia (1805-1806) da Wissenschaftlehre
(Doutrina da Ciência), em Grundlage des Naturrechts (Fundamentos do Direito Natural, 1796)
e em Die Bestimmung des Menschen (A Vocação do Homem, 1800), parte dos postulados da
razão prática de Kant – e é isso que tanto Schelling quanto Hegel reprovarão nele,
afirmando que desconsiderou, ou no mínimo deu pouca importância, ao não-prático.
No que se refere à dialética do desejo narrada por Hegel neste momento da
Fenomenologia, o pensamento de Fichte faz-se presente pela necessidade afirmada de o
Eu precisar da oposição do não-Eu para se pôr; o Eu precisa provar-se e, por isso, es
em constante luta com o não-Eu. Esta luta, entretanto, não remete àquela pelo
reconhecimento que, segundo Hegel, será o resultado da dialética do desejo, mas ao
próprio desejo, já que no saber fichteano o outro não possui nenhuma estatura. A
14
Hyppolite, “Vie et prise de conscience...”, p. 21.
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81
luta fichteana do Eu com o não-Eu produz o sentimento do “desejo” e por esta
razão Hegel afirma que a consciência de si desejosa só é a partir da coisa desejada.
Todavia, este desejar acabará por se deparar com um objeto que lhe oferecerá
resistência e esta é a gênese do reconhecimento. Diante do objeto que resiste à sua
tensão aniquiladora, o Eu faz, então, aquela experiência que frente a objetos diversos
era incapaz de levar a cabo: há algo que não pode ser negado pelo Eu (outra maneira
de expressar isso é dizer que nem tudo é “não-Eu”, e mais, que de acordo com esta
lógica bipolar de ser e não-ser, a negação do não-Eu é Eu. Mas este “Eu” é diverso;
encontra-se como algo que resiste ao Eu que sou; aquele “Eu só pode ser um outro).
A dialética do desejo (Begierde) que Hegel nos apresenta nesta etapa da
Fenomenologia do Espírito somente reconhece neste objeto “resistente” ao desejar do
Eu algo a ser submetido, dominado, enfim, aniquilado e consumido tal como tudo o
que ao Eu é não-Eu. Contrariando a interpretação que se tornou clássica na França,
especialmente por meio de comentadores como Kojève e Hyppolite, que concebiam
o movimento da transição da consciência de si do Begierde à consciência de si
reconhecida devendo-se ao fato de o “verdadeiro” desejo ser o desejo do desejo de
outro (« désir du désir d’un autre »), recordando-lhes a noção hegeliana de amor
desenvolvida antes da Fenomenologia, observamos o que diz Gadamer em um artigo
traduzido para a língua inglesa como “Hegel’s Dialectic of Self-Consciousness”: isso
soa inadequado aos ouvidos germânicos, poisLiebesbegierde”, desejo de ser amado (o
desejo do desejo do outro), não tem o sentido de Begierde, pois expressa algo além do
sentido de Begierde. O “desejo do desejo” não é objeto da investigação no momento,
mas só o será em um estágio adiantado do caminho da Fenomenologia, a saber, no
“mundo do espírito alienado de si”, no capítulo VI sobre o Espírito (Geist). Mas
tanto lá como aqui, Hegel evoca o desejo como relação decorrente da dialética do
gênero. O exame aqui feito a respeito do desejo observa as indicações de Gadamer.
Na análise hegeliana feita nos primeiros parágrafos do capítulo IV, a
consciência de si revela-se dependente do objeto desejado para se afirmar. Esse
objeto é algo independente dela, pois para existir suprassunção é necessário que o
objeto seja. Assim, a essência do desejo é um outro que a consciência de si, e ela sabe
disso, já que fez a experiência da independência do objeto, quer dizer, a consciência
de si (absolutamente para si) só é através do suprassumir do objeto.
15
Hyppolite, Gênese e estrutura..., p. 173.
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82
Vemos, assim, que a nova figura que é a consciência de si passa por três
momentos de formação: (1) seu primeiro objeto é o Eu imediato, quer dizer, o
entendimento encontrará o Eu que unifica todos os seus movimentos e toma-lhe
como certeza indubitável; (2) o momento da mediação, no qual “a satisfação do
desejo é a reflexão da consciência-de-si sobre si mesma”
16
– isso significa que a
consciência de si desejante é somente ao suprassumir o objeto independente, o não-
Eu e assim, a consciência de si retorna a si e nesta reflexão, ela, que era certeza,
devém verdade de si; e (3) em última instância, a reflexão da consciência de si sobre si
é um redobramento e, assim, ela é um outro para si. Sendo o outro de si mesma, o
que a consciência de si faz é aniquilar a diferença; daí sua independência, na ausência
da diferença, ou melhor, na indiferença.
Em termos da esfera da vida na qual o desejo se movimenta, a figura viva,
que é esta consciência, ser vivo, suprassume sua independência no próprio processo
da vida, deixando de ser o que é, quer dizer, mero vivente. No entanto, no curso da
vida surge um objeto da consciência de si que possui, tal como ela, a negatividade em
si mesmo. Qual a consciência de si, seu objeto é para si gênero, “universal fluidez na
peculiaridade de sua distinção”, e se apresenta igualmente como consciência de si
viva: o desejo é desejo de vida. Assim, Hegel diz que uma consciência de si somente é
de fato ao ser para outra consciência de si, “pois só assim vem a ser para ela a
unidade de si mesma em seu ser-outro”
17
. Ao trilhar o processo do reconhecimento,
isto é, experimentar a duplicidade da negatividade (a negação que ela coloca no outro
também é colocada sobre ela), estará presente em si o conceito do espírito, um conceito
que indica o ser tanto objeto quanto sujeito, estando nos dois termos da oposição.
Ultrapassando a teoria de Fichte da Wissenschaftlehre, onde o outro não é,
no processo do reconhecimento, um Outro surgirá fazendo frente a um Eu,
elevando-se à mesma altura e competindo pelos benefícios de se afirmar através
da negação do oposto. As teses fichteanas do “Eu=Eu” e do “choque entre o Eu e
o não-Eu” serão suprassumidas pelas teses do “Eu=Outro” e da “luta de vida e
morte entre duas consciências de si”; e daí surgirá para si mesmo o espírito (Geist)
– pois ele está presente em si desde o conceito mesmo de consciência – que é
tanto as várias consciências de si em sua singularidade quanto a universalidade
delas, conforme escreve Hegel: “...substância absoluta que na perfeita liberdade e
16
Hegel, PhG, § 176.
17
Idem, § 177.
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independência de sua oposição – a saber, das diversas consciências-de-si para si
essentes – é a unidade das mesmas: Eu, que é Nós, Nós que é Eu.”
18
O movimento que se inicia com o aparecimento da consciência de si é o
primeiro passo à plenitude da realidade espiritual. Inicialmente, a consciência de si é
um indivíduo que se encontra relacionado com um outro, quer dizer, é uma figura
exterior a outra como um extremo. Isso será desenvolvido ao longo da seção sobre a
consciência de si nas figuras de senhor e escravo e, posteriormente a consciência
escrava se desdobra nas figuras do estóico, o cético e a consciência infeliz, que é a
consciência religiosa que vive uma contradição fundamental de ser duas essências: a
divina, colocada fora de si, e a pecadora. Esta figura da consciência infeliz é muito
importante, pois se diferencia da figuras anteriores por possuir o extremo nela
mesma, e não mais em algo exterior a si. Mas voltemos ao início de todo esse
processo.
Com o surgimento de um objeto para si que diz ser uma outra consciência de
si, para a qual surge este novo objeto, desvela-se um horizonte completamente novo,
que é o solo mesmo da consciência de si, solo de luta por sua independência, sua
liberdade. A consciência de si terá que lutar por sua identidade livre e independente e
assim é efetivamente o que afirmava ser.
A consciência tem primeiro na consciência-de-si, como no conceito de espírito, seu
ponto-de-inflexão, a partir do qual se afasta da aparência colorida do aquém sensível, e da
noite vazia do além supra-sensível, para entrar no dia espiritual da presença.
19
Necessitamos compreender como este Eu da consciência de si que se depara
com um objeto que se desvela na igualdade consigo manejará o problema surgido
pela não execução de sua dinâmica do aniquilamento do objeto imposta por sua
natureza desejante. E só então, no reconhecimento de uma consciência de si por
outra de que sua oposta é-lhe igual, poderemos falar de espírito, de um Nós, pois
unicamente no existente, do ser-aí, que se apresentou diante do Eu desejante e foi
reconhecido – precisando que haja simetria nesta função, porque enquanto isso não
ocorrer permanecerá a dicotomia entre senhor e escravo, dominador e dominado,
que é um desequilíbrio no reconhecimento –, a presença comunitária do vário far-se-
á notar.
18
Ibidem, § 177.
19
Hegel, Fenomenologia do Espírito, § 177.
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84
4.3.
O Conceito de Reconhecimento
O Eu se deparou com um objeto que escapa à potência do Eu de ser para si.
Mas este Eu, que pinta a totalidade com o negro da negatividade porque só assim
possui sua própria ipseidade, vê-se ferido em sua autonomia e incomodado em sua
possessão de si diante deste estranho objeto do desejo que não se dobra nem se
rende. A experiência que o Eu faz deste objeto revela-lhe que este é um mesmo que
ele; Eu (ipsem) é um Outro (alter), isto é, Eu vai para fora de si. Hegel indica dois
resultados para este movimento de alienação: por um lado, o Eu perde-se de si em
Outro; diversamente, o Outro é igual a Eu, pois Eu é a essência daquele movimento.
Como Eu é Outro, além de estar impulsionado a aniquilar este Outro que lhe aparece
externamente, dirige a potência do negativo em direção a Si mesmo, pois toda
alteridade deve ser aniquilada e todo Outro é Eu. O Eu deseja este Outro e, como o
Outro vem apresentando todos os traços de ser um objeto similar ao Eu, Eu deseja
Eu, e esta ação denota o querer que este Eu seja incorporado àquele primeiro.
Forma-se uma igualdade que se constitui na alteridade. A suprassunção (Aufhebung)
que aqui surge, esta tendência a suprimir o Eu-objeto, se difere do mero desejar a
coisidade, pois o Eu-objeto não é meramente consumido e aniquilado, mas, ao ser
negado, permanece – exceto quando esse Eu-objeto morre. Mas a dinâmica do Eu é
provar a sua independência na suprassunção do objeto e, ao efetuá-la, o retorno a si
embebe-se de uma maior certeza de si. Entretanto o Outro ainda permanece um Eu,
e, para ele, aquele Eu-sujeito também será um Objeto.
A relação entre estas consciências de si determina-se como um agir de uma
sobre outra. Antes de ser reconhecido, o Outro é considerado um Algo que se
diferencia profundamente da objetividade em geral – e isso porque este Algo parece
possuir, tal como o Eu, subjetividade. O agir do qual falamos é tanto o agir do Eu
quanto o agir do Objeto. Ele é, portanto, duplo, e os elementos nele presentes são
como espelhos postos diante um do outro. Isso indica a natureza reflexiva da
consciência de si – reflexo, entretanto, que necessita do exterior, de algo diverso de
si.
A primeira consciência-de-si não tem diante de si o objeto, como inicialmente é só
para o desejo; o que tem é um objeto independente, para si essente, sobre o qual portanto
nada pode fazer para si, se o objeto não fizer em si o mesmo o que ela nele faz. O
movimento é assim, pura e simplesmente, o duplo movimento das duas consciências-de-si.
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Cada uma vê a outra fazer o que ela faz; cada uma faz o que da outra exige – portanto faz
somente enquanto a outra faz o mesmo. O agir unilateral seria inútil; pois, o que deve
acontecer, só pode efetuar-se através de ambas as consciências.
20
O Objeto do Eu, que suporta a força negativa do desejo, comporta-se de
maneira tão independente quanto o Eu, de maneira que se torna impossível contestar
que o Objeto é uma essência autônoma, “para si”. O sujeito que implementa a
relação com o Outro é, na verdade, um sujeito duplicado: tanto o Eu é sujeito,
quanto o Outro, ou seja, o Eu é sujeito para si e objeto para o Outro da mesma
forma que o Outro é sujeito para si – é um Eu –, quanto é um objeto para o Eu. Daí,
podemos deduzir que o Eu é um objeto para o Eu. Tal como o agir, o Eu não pode
ser compreendido unilateralmente. Mas o agir é tanto o agir neste aspecto duplicado
quanto o agir determinado de cada Eu em relação com o seu Outro, pois, a repetir a
dinâmica de dialéticas anteriores, a infinidade de relações complexas, tal como essa
do agir, depende da simplicidade e finitude de situações determinadas – como o agir
determinado do Eu simples. No agir composto pela relação entre Eu e Outro – que
se desvela como um Eu e não mais como um não-Eu –, seus elementos se mantêm
independentes, isto é, por mais que, nesta relação, o isolamento do Eu revele-se
impróprio e ilusório, o Eu como o extremo do Outro não se desmantela e esvanece,
pois somente graças ao Eu tal relação é possível – na ausência desses extremos, a
relação não se sustenta. Mas Eu é Outro e Outro é Eu; na relação, a ipseidade vem a
ser alteridade, “cada extremo vem para fora de si; todavia ao mesmo tempo, em seu
ser-para-fora-de-si, é retido em si; é para-si; e seu ser-fora-de-si é para ele [para o
extremo da relação, F. C. M.]”.
21
Assim, o Outro, que os dois extremos na relação são enquanto opostos,
necessita suprassumir aquele sujeito que lhe toma como objeto e tornar-se para si o
Eu que é em si. Isso é a necessidade de ser reconhecido, quer dizer, o Eu precisa ser
para o Outro o que é para Si – como dissemos, movimento característico da
consciência de si. O “si” é o Outro; a reflexão do Eu se dá a partir do Outro, na relação
com a alteridade que lhe é familiar. Tornar-se o que se é, cumprir este imperativo de
Píndaro, demanda uma relação com o Outro de maneira não unicamente negativa,
mas afirmativa; depende de sua anuência.
20
Hegel, PhG, § 182.
21
Hegel, PhG, § 184.
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Cada extremo é para o Outro o meio termo, mediante o qual é consigo mesmo
mediatizado e concluído; cada um é para si e para o Outro, essência imediata para si essente;
que ao mesmo tempo só é para si através dessa mediação. Eles se reconhecem como
reconhecendo-se reciprocamente.
22
Aqui, Hegel pensa a relação entre consciências de si como um silogismo
lógico. Os extremos relacionais, que são o Eu e o Outro, caracterizam-se inicialmente
como extremos mútuos uns para os outros. No entanto, como cada elemento exerce
o mesmo movimento de aniquilação sobre o outro, além de notarem que seu oposto
age como ele, transparece-lhes uma dependência múltipla: para o Eu afirmar-se como
Eu depende do Outro. O caminho do alcance do Eu pelo Eu passa pelo Outro e,
por isso, Hegel denomina-o um “meio termo”; o Eu é mediatizado pelo que não é, e
só assim “conclui-se”, quer dizer, satisfaz-se no ser o que é. Essa experiência de
mediação do Eu encaminha-lhe a uma diversa concepção do que é em si mesmo. E
como o Outro é também um Eu, a relação é necessariamente recíproca. Se não o é,
ela não se realiza e a hipótese de qualquer um de seus lados cumprir seu conceito,
que é o de ser verdadeiramente Eu, frustra-se.
A duplicação da consciência de si que ela experimenta em sua unidade, do Eu
em Outro, é o que Hegel chama de reconhecimento, mas isso é somente o seu
conceito em estado puro. Como aparece para a consciência de si, o processo
apresenta a desigualdade entre seu Si e seu Objeto e sua oposição absoluta. O Eu
quer ser reconhecido pelo Outro, mas não o reconhece como Eu. Inicialmente, a
consciência de si é puro ser para si, é um Eu singular, pois ela se opõe a tudo que se
lhe aparece e nesta oposição surge como única certeza; só neste Eu – maneira pela
qual se experimenta – a consciência de si é autonomia. É o cogito cartesiano que dá ao
sujeito a certeza da existência e realidade. A consciência de si é um indivíduo, tal como
o Outro do qual viemos falando, objeto que o Eu desejante não consegue consumir.
Como surgem imediatamente, os indivíduos são um para o outro, tal como os
objetos imersos no ser da vida – lembremos que a consciência de si é uma
consciência de viva, um vivente. Os indivíduos enquanto tais são imediações e
excluem-se uns aos outros – em uma relação dual, há dois “um” e dois “outro”.
São consciências que ainda não levaram a cabo, uma para a outra, o movimento da
abstração absoluta, que consiste em extirpar todo ser imediato, para ser apenas o puro ser
negativo da consciência igual-a-si-mesma. Quer dizer: essas consciências ainda não se
apresentaram, uma para a outra, como puro ser-para-si, ou seja, como consciências-de-si.
23
22
Hegel, Fenomenologia do Espírito, § 184.
23
Hegel, Fenomenologia do Espírito, § 186.
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87
Os indivíduos imersos na vida e simplesmente compreendidos como
viventes, são imediatos, postos no mundo à maneira de objetos e não travando
nenhuma relação necessária com o que quer que seja; são indivíduos que consomem
o ser natural. Enquanto o indivíduo não sofrer a mediação do Outro e, através dele,
como meio termo, alcançar-se de forma suprassumida, ele não é verdadeiramente a
unidade negativa que define a consciência de si; e este processo de suprassunção
cobra que a individualidade do Si seja confirmada na contraposição com outra
individualidade, que também se impõe sobre a outra com o mesmo intuito de se
provar por meio dela. Para a consciência ser verdadeiramente para si, tem de ser
reconhecida pela outra. Antes de tomar o Outro como meio termo, o Eu só tem
certeza de si, não do Outro. Esta maneira de ser desta consciência de si imediata
consiste em abstrair de qualquer existência (Dasein) e da vida em geral, e,
conseqüentemente, assim ela se apresentará ao Outro. A efetivação desta certeza de
si leva a consciência de si a desejar a negação do Outro, e tal negação é absoluta na morte
– uma consciência de si quer matar a outra, pois somente assim pensa afirmar sua
individualidade. Mas como a mesma disposição encontra-se no Outro, que é Eu,
lançar-se à ação de implementar a morte do Outro implica em arriscar a própria vida.
Devemos considerar que essa discussão tem por finalidade a indicação da
verdade da consciência de si, que se revela como algo a se formar e não algo
simplesmente dado. O Eu, como um vivente, poder ser tomado por um objeto
dentre outros na natureza, mas não se reduz a isso. Como vimos nas dialéticas da
vida e do desejo, o Eu não é esgotado como um mero ser natural. E tanto Fichte e Schelling
quanto Hegel compartilharão desta riqueza que o Eu apresenta. Entretanto, na
presente dialética do reconhecimento, Hegel avança na compreensão da liberdade do
Eu, pensando que esta liberdade não é meramente dada como o é natureza, a vida,
mas algo pelo qual o Eu, em seu desenvolvimento, luta. Assim ele se opõe a teorias
que defendem a plena liberdade no “estado de natureza”, no qual o Eu surge
espontaneamente livre, independente, sendo “corrompido” pela sociedade.
Exemplos desta maneira de pensar são a teoria do “bom selvagem” de Rousseau e as
filosofias de Hobbes e Fichte. A luta que existe nesses modos de pensar é uma luta
por reconquistar uma liberdade perdida na sociedade. Hegel dirá que antes de
perdida, ela precisa ser conquistada; e o impulso para isso é algo motriz da
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consciência de si. Somente neste sentido a liberdade é algo intrínseco como
pensaram, cada um a sua maneira, Hobbes, Rousseau, Kant e Fichte.
A verdade de o Eu não ser mero ser natural é experimentada por ele mesmo
quando se põe acima de qualquer existência e da vida em geral na luta de vida e
morte travada com outra consciência de si. Para ela, o mais valioso não é sua vida e
existir natural, mas sua liberdade, seu ser Eu. Entretanto, na luta entre duas
consciências de si que se crêem independentes e que compreendem uma outra
consciência de si como uma ameaça, só uma poderá permanecer. Somente a
aniquilação da outra é uma solução para a manutenção de permanecer a ser o que se
é. Mas no curso da luta, uma das consciências, diante da chance de morrer, rende-se à
outra, negando sua liberdade e submetendo-se à outra.
A luta do reconhecimento, assim, vai [dar] em vida e morte: cada uma das duas
consciências-de-si põe em perigo a vida da outra, e se expõe a si mesma a ele; mas somente
como em perigo, pois cada uma está igualmente dirigida à conservação de sua vida, enquanto
[ela é] o ser-aí de sua liberdade.
24
Uma das consciências de si prefere a vida à possibilidade da morte, o ser
natural ao ser livre. Sua compreensão da realidade é que fora da vida não é nada, pois
a perda da vida é a aniquilação de si mesma. A relação entre as consciências de si
determina-se, então, por uma luta, um combate fundamental no qual o que está em
jogo é vida e morte. Será a postura diante do senhor supremo que é a morte que
determinará as figuras do senhor e do escravo que aparecerão.
Devem travar essa luta, porque precisam elevar à verdade, no Outro e nelas mesmas,
sua certeza de ser-para-si. Só mediante pôr a vida em risco, a liberdade [se conquista]; e se
prova que a essência da consciência de si não é o ser, nem o modo imediato como ela surge,
nem o seu submergir-se na expansão da vida; mas que nada há na consciência-de-si que não
seja para ela momento evanescente; que ela é somente puro ser-para-si.
25
A liberdade, como dissemos no início do capítulo, é o tema-chave da
discussão nesta seção da Fenomenologia sobre a consciência de si; liberdade que deve
ser entendida como a busca da verdade do Eu em si mesmo. Neste momento, ser
livre significa afirmar-se como o único Eu diante de um Objeto que reivindica ser o
mesmo que ele. Este impulso por tomar as coisas para si já está presente na dialética
do desejo. E ainda agora ele se conserva, pois sua raison d’être é a mesma, a saber: a
24
Hegel, Enciclopédia III, § 432.
25
Hegel, Fenomenologia do Espírito, § 187.
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necessidade de ser – o que só se alcança através da contraposição com outro. E esta
necessidade expõe o nervo do idealismo hegeliano, no qual ser e Si (das Selbst) são
uma unidade diferenciada, substância que é sujeito. Diante do Outro, objeto par
excellence, parece só restar a morte para o Eu ser o que é, e matar traz a tona o perigo
de ser morto. Põe-se a vida em risco. O fato de a consciência de si optar por colocar
sua vida em risco para a realização do imperativo que é ser Eu, mesmo com o risco
de ser aniquilada nesta empreitada, aponta para a compreensão que tem de sua
essência, que é ser para si, ou seja, ser livre. Ao se jogar na luta de morte, o Eu
defende sua certeza de ser Eu – verdade que está, então, fora de si. O verdadeiro é a
alteridade, mas isso é a verdade do Eu, e, em princípio, ser Eu não é estar fora de Si.
Por esta razão, a consciência de si deve suprassumir este ser fora de Si.
4.4.
A Dialética do Senhor e do Escravo
A verdade da morte do Outro do Eu é a negação do que a própria morte
queria provar, a saber, que só o Eu é. A morte é a negação natural da consciência, tal
como a vida é sua afirmação. O Eu, sem a presença do Outro, fica privado do
reconhecimento que buscava; sem o Outro, falta ao Eu o meio termo para voltar a si
mesmo. Negar o Outro pela morte é uma negação abstrata, pois a relação
estabelecida na morte é também uma relação morta, sem dinamismo, uma relação de
coisas. A negação da consciência é, na verdade, uma suprassunção (Aufhebung), um
negar que, entretanto, mantém vivo o objeto negado: a outra consciência de si. A
experiência que a consciência de si faz, então, é a de não mais colocar esse para si
como o mais importante e o constitutivo de sua essência, mas compreender a vida
tão essencialmente quanto o para si, quer dizer, o Eu simples – a consciência de si
imediata e singular, o indivíduo – é essencialmente um indivíduo vivo. Contudo, esta
imediatez e singularidade – a individualidade – só são através de outra individualidade
e, por isso, Hegel diz que o Eu simples pensado como “objeto absoluto” é, na
verdade, “mediação absoluta”.
A luta de morte cessa quando uma das consciências de si se rende por
valorizar mais a vida do que o impulso de se afirmar, o desejo de suprassumir a outra
consciência de si. Por isso, a relação que agora se impõe é uma relação desigual, na
qual uma é a consciência essente e outra a consciência na figura da coisidade, ou seja,
uma consciência-sujeito e uma consciência-objeto.
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São essenciais ambos os momentos; porém como, de início, são desiguais e opostos,
e ainda não resultou sua reflexão na unidade, assim os dois momentos são como duas figuras
opostas da consciência; uma, a consciência independente para a qual o ser-para-si é a
essência; outra, a consciência dependente para a qual a essência é a vida, ou o ser para um
Outro. Uma é o senhor, outra é o escravo.
26
A luta é interrompida porque uma das individualidades ali envolvida desiste, e
sobrevive, não sendo morta pelo outro indivíduo, pois sabe que a forma de efetivar o
seu Eu sobre a outra é mantendo-a viva, mas sob o seu domínio. Por isso, Hegel
nomeará a consciência-sujeito, dominadora, de “senhor” e a outra, consciência-
objeto e dominada, “escravo”.
O senhor é a consciência de si que ao lutar pelo reconhecimento alcança o
almejado: é reconhecido pela outra consciência. Ele mantém até o fim o propósito de
se provar no mundo e naquela outra consciência que digladiava com ele. Mesmo com
o perigo de perder a própria vida, o senhor persevera na afirmação de Si e negação
do Outro, tendo sua essência na sua singularidade, sob a qual tudo está submetido,
inclusive a própria vida; a figura do senhor não é somente a abstração do que seja a
consciência para si essente, mas a realização disso. O senhor é reconhecido, isto é,
mediatizado, e seu meio termo é o que Hegel chamou de escravo, a consciência que
na luta preferiu a vida à provação de seu ser para si, ou seja, o Eu do senhor só é
através de seu reconhecimento pelo escravo. E o preço disto é a conversão da
consciência de si dominada em um objeto similar a qualquer um daqueles
consumidos pelo Eu desejante, uma coisa da qual se usufrui – com a diferença que o
senhor não aniquilará o escravo, pois isso seria o fim de seu reconhecimento. Para o
senhor, as implicações de ser o que é são os relacionamentos mediados tanto consigo
quanto com a coisidade em geral. Por seu lado, o escravo optou pela manutenção da
vida: em vez de colocá-la em risco na luta de morte, decidiu ser tratado como coisa
pelo senhor, perdendo sua independência. Diversamente do senhor, o escravo não
pôde abdicar do seu apego à vida, e isso indica como ele compreendia sua própria
essência; ela é a vida e não o para si, a liberdade.
No relacionamento com as coisas, ambas as figuras da consciência de si se
assemelham, já que suas relações com elas se caracterizam com a marcação por parte
da consciência de si do negativo sobre elas. No entanto, o relacionar-se do senhor é
mediatizado pelo escravo, ou seja, ele não lida diretamente com as coisas, somente
26
Hegel, PhG, § 189.
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ordenando que o façam; o escravo trabalha a coisa. O trabalho está para o escravo
como está o gozo para o senhor, que é a “pura negação da coisa”, isto é, a coisa já
vem pronta para o usufruto do senhor.
Pelo gozar, consegue a consciência de si (a figura do senhor) aquietar-se,
diferentemente do que acontecia no desejo, onde a eterna busca de saciedade
prorrogava a fruição gozosa.
O desejo não o conseguiu por causa da independência da coisa; mas o senhor
introduziu o escravo entre ele e a coisa, e assim se concluiu somente com a dependência da
coisa, e puramente a goza; enquanto o lado da independência deixa-o ao escravo, que a
trabalha.
27
A consciência escrava põe-se como inessencial também no relacionamento com a
coisa, além do que faz – e tudo isso é para o senhor. Por isso, é uma consciência
dependente de um Outro e da coisidade, e reconhece o senhor com sua essência e a
serviço da coisidade. O conceito de reconhecimento define-se como o movimento
duplicado na outra consciência de si de afirmá-la como o mesmo que si; é um
instante de convergência da compreensão que o Eu tem de si com a compreensão
que o Outro tem do Eu. Porém, ainda que o reconhecimento já não esteja presente em
sua “pureza”, é até esse momento reconhecimento parcial, pois o senhor não reconhece o
escravo. Se a verdade do Eu é ser para si, e o Objeto é também um Eu, o Objeto
deve ser para Si e não meramente para Outro. Mas o senhor não reconhece isso. Ele
apenas tem o escravo como um para si. “Portanto, o que se efetuou foi um
reconhecimento unilateral e desigual”.
28
A verdade da consciência do senhor é que sua realização plena não é
sinônimo da autonomia que ela está certa de ter, mas que só é reconhecida – tem seu
Eu tomado como único, dominante – e goza da coisidade porque há uma outra
consciência de si que a reconhece e trabalha para ela. “Assim, o senhor não está certo
do ser-para-si como verdade; mas sua verdade é de fato a consciência inessencial e o
agir inessencial dessa consciência”.
29
A verdade do senhor é o escravo. Mas a
observar a distinção que o pensamento hegeliano faz entre “certeza” e “verdade”,
sendo a última a primeira suprassumida, afirmar que o escravo é a verdade do senhor
é algo que só faz sentido para o filósofo, “para nós”, e não para o próprio senhor.
27
Hegel, PhG, § 190.
28
Idem, § 191.
29
Ibidem, § 192.
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92
Até agora demos mais atenção à análise do ser do senhor. Voltemo-nos ao
que é o escravo em si e para si.
Primeiro, para a consciência escrava, o senhor é a essência; portanto, a consciência
independente para si essente é para ela a verdade; contudo para ela [a verdade] ainda não está
nela, muito embora tenha de fato nela mesma essa verdade da pura negatividade e do ser-
para-si; pois experimentou nela essa essência. Essa consciência sentiu a angústia, não por isto
ou aquilo, não por este ou aquele instante, mas sim através de sua essência toda, pois sentiu o
medo da morte, do senhor absoluto. Aí se dissolveu interiormente; em si mesma tremeu em
sua totalidade; e tudo que havia de fixo, nela vacilou.
30
A consciência escrava coloca sua verdade em outra consciência de si, no
senhor, pois ele suprassume o mundo da vida, incluindo ele mesmo, e tem o domínio
sobre as coisas em geral, tal como sobre a outra consciência de si que ela é. No
escravo, o impulso para afirmar o seu Eu também é corrente, pois é uma consciência
de si tal como o senhor. Só que o escravo é um indivíduo que preferiu não arriscar
sua vida, encerrando a luta de morte com outra consciência, pois ao estender esta
batalha perigava morrer; sentiu medo diante do absoluto da morte, do extermínio
total, do “senhor absoluto”. Por isso, se rendeu à outra consciência de si,
reconheceu-a como um Eu cujos desejos passou a cumprir, entregando-lhe seu si,
que foi transformado pela outra consciência de si, tornada o senhor, em coisidade, tal
como inicialmente se apresentava na dialética do desejo quando surgiu ao Eu como o
Objeto par excellence. A maneira pela qual o escravo conserva aquele desejo de afirmar
seu Eu e, diante de outra consciência de si dominá-la, é alienando-se (posto em outro,
externalizado, extrusado), quer dizer, trabalhando a coisa sem gozar de seu trabalho e
sustentando para si a extremidade inessencial da relação com o senhor.
Mediatamente o escravo goza com o gozo do senhor. Aqui, alienação é colocar no
senhor sua verdade, mesmo que seja em si, um Eu – “negatividade pura”. O Eu do
escravo é submetido ao desejo do senhor para não se arriscar; diante da possibilidade
da morte, o Outro do senhor se angustia em sua totalidade e se deixa escravizar.
O que a consciência escrava não sabe é que a figura da consciência de si em
geral particulariza-se pelo mesmo fluidificar-se, a mesma perda da fixidez do si, que
ela experimenta na angústia da proximidade da morte, já que a consciência de si é
este encontro do Si em um Outro e retorno suprassumido a si a partir deste Outro –
isto é, para se tornar o que é, o Eu necessita expulsar a si mesmo de sua igualdade, do
“Eu=Eu”, alienando-se em Outro e, finalmente, refletindo no Outro a si. A
30
Hegel, PhG, § 194.
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conclusão é que “Eu=Outro” e esta asseveração, na qual o primeiro termo da
igualdade difere do segundo, desenha a perda do Eu no Outro e, mesmo assim, está
fixa a manutenção da unidade do sujeito.
A consciência escrava reconhece a consciência senhoril – ela sabe que o
Outro é uma consciência de si como ela. E mesmo que seu ser para si, seu Eu, esteja
dominado pelo senhor, ela, como aquele Objeto que lutou com a consciência de si
que venceu e se converteu em senhor, tem necessariamente esse âmbito de ser para
si. No servir ao senhor está colocado seu ser para si. “Servindo, suprassume em
todos os momentos sua aderência ao ser-aí natural; e, trabalhando-o, o elimina”.
31
A
ação do serviço escravo é o ser constantemente para o senhor, colocar todo seu Si à
disposição de sua essência, o senhor. Ou seja, sua vida e seu desejo, seu pensamento
e ação, pertencem ao senhor. O escravo, assim, suprassume seu existir (Dasein, ser-aí)
natural, isto é, faz o que antes, na luta de morte, não pôde fazer, que foi o se colocar
sobre a vida. E, como a coisidade lhe é independente, trabalhá-la significa estar à
mercê do que pensa ser a coisidade. Aqui, repete-se o acontecido na dialética do
entendimento, quando este ignorava que o animador do mundo supra-sensível, o que
estava por detrás das “cortinas”, era ele mesmo: na coisa trabalhada pelo escravo
encontra-se seu Si. Este processo de serviço e trabalho remete alguns sistemas de
pensamento: a ética protestante, Fichte e Schelling.
Part of the thesis is pure Schelling, that art (creativity) is “the synthesis of the
subjective and the objective”, the imposition of one’s desires and conscious intentions onto
material nature, thus re-forming it as our own, and no longer as mere “nature”. The
impositions of ourselves on nature – or “the clash between freedom and nature” – plays a
major role in Fichte’s Wissenschaftlehre and even more so in Schelling’s System of Transcendental
Idealism. But the work ethic is by no means original with them, and one has to trace it (at
least) through the already established secular ethics of Luther and Calvin.
32
Além dessas referências, também é importante mencionar a influência sobre Hegel
da teoria do trabalho de Adam Smith.
De acordo com o exposto por Hegel sobre o processo do escravo reconhecer
o senhor, o Eu da consciência, para ser consciência de si, necessita do Outro.
Reconhecer é saber que seu “ser para si”, sua subjetividade, depende tanto da
objetividade da coisa desejada, quanto de outra consciência de si, isto é, de um ser
que possui subjetividade, que tem um Eu que é como o seu. É para Outro que o Eu
é; somente para Outro o Eu é visto. Como poderia ser diferente? Como vimos na
31
Hegel, PhG, 194.
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dialética do desejo, o consumo da coisidade em geral não satisfaz, não permite que o
Eu se apazigúe consigo, já que está em tensão permanente com as coisas, que
esvanecem continuamente diante do Si. Só a infinitude de um Outro de Si possibilita
uma verdadeira experiência de Si e a compreensão mesma dessa experiência, quer
dizer, colocar-se por sobre a “experiência de Si”, sendo o “Si da experiência”, ou seja,
a experiência mesma em suas diversas diferenciações, sendo a diferença absoluta o
Outro Eu.
Mas na Fenomenologia do Espírito, estes movimentos são multifocais e
mediados. O Eu está sempre a se encontrar e a se desencontrar de Si no Outro, no
entanto o que na dialética do reconhecimento que ora investigamos o que é
alcançado é o saber de que Eu é Outro, e no caso da consciência escrava, a ipseidade
não retorna a Si desde a alteridade, mas lá permanece. Contudo, graças a isso,
poderemos compreender mais características da formação da consciência de si.
Vejamos o trabalho. Ele é importante na formação da consciência de si, pois,
para o escravo, o medo da morte e o serviço são a dissolução somente em si. O
senhor se distingue do escravo, porque é reconhecido sem reconhecê-lo, o que
ocasiona o não ser consciência de si em sua verdade, pois deveria repetir o
movimento feito pelo escravo de compreender sua verdade a estar fora de si, fora, no
escravo. Mas ele não o reconhece e mantém-no na escravidão, tal como uma coisa
desprovida de para si; é um Eu que existe para servi-lo e realizar seus desejos.
No momento que corresponde ao desejo na consciência do senhor, parecia caber à
consciência escrava o lado da relação inessencial para com a coisa, porquanto ali a coisa
mantém sua independência. O desejo se reservou o puro negar do objeto e por isso o
sentimento-de-si-mesmo, sem mescla. Mas essa satisfação é pelo mesmo motivo, apenas um
evanescente, já que lhe falta o lado objetivo ou o subsistir.
33
Estamos o tempo todo inseridos na dialética do desejo – da mesma forma
que desde a dialética do entendimento estamos inseridos no mundo da vida – , com a
diferença que na dialética do reconhecimento aqui investigada, o desejado é um
indivíduo vivo. Na relação surgida entre as figuras do senhor e do escravo, o senhor
equivale ao essencial e para sê-lo, todo o resto corresponde ao inessencial. Assim, o
escravo era o inessencial por excelência juntamente com as coisas em geral, e mesmo
que seja o escravo quem trabalhe a coisidade, neste agir ela não é consumida e
aniquilada, mas somente preparada para sê-lo pelo senhor. O senhor entende que a
32
Solomon, In Spirit of Hegel, pp. 452s.
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satisfação serve somente para o prazer do sentimento de si mesmo, para a
confirmação do âmbito puro do para si, da subjetividade. Mas esta fruição
permanente de si mesmo, possível pela inessencialidade de outra consciência de si
que lhe ofereça resistência – esta já está domesticada –, acaba por deixar de lado todo
o mundo que indubitavelmente é e esta consciência de si percebe que sua satisfação é
simples, fechada na contemplação solipsista do Si – a objetividade escapa-lhe, pois é
totalmente trabalhada pelo escravo para ser-lhe servida. O que antes era
independência acabará por tornar-se escravidão.
O trabalho, ao contrário, é desejo refreado, um desvanecer contido, ou seja, o
trabalho forma. A relação negativa para com o objeto torna-se a forma do mesmo e algo
permanente, porque justamente o objeto tem independência para o trabalhador. Esse meio-
termo negativo ou agir formativo é, ao mesmo tempo, a singularidade, ou o puro ser-para-si
da consciência, que agora no trabalho se transfere para fora de si no elemento do
permanecer; a consciência trabalhadora, portanto, chega assim à intuição do ser
independente, como intuição de si mesma.
34
No trabalho, a consciência de si na figura da escravidão tem de “refrear” seu
desejo – que permanece nela, já que como vivente ela é desejante –, pois é dominada
por um Outro que agencia seu desejo de forma que este seja forçosamente
encaminhado a seu serviço, ou seja, o escravo vive para o senhor e seu fazer é fazer
para ele. E como vimos, o desejar pelo desejar, isto é, sua pura satisfação com a
ausência do trabalho da coisa e o serviço que advém do reconhecimento acabará por
mostrar sua heteronomia, contrário do que almejava a consciência de si, destituindo-a
da objetividade subsistente – por isso Hegel afirma que o desejo é evanescente. No
caso da figura do escravo, esse desvanecer é limitado, pois o escravo reconhece,
trabalha e serve, estando em contato com a objetividade e assim, não é o mero fruir
do gozo. “O trabalho forma” porque permite que o Si permaneça junto ao ser e, ao
formá-lo, forma a si mesmo. O contentamento do desejo certamente leva ao
sentimento de si, mas é um ato de fechamento em si a se constituir unicamente como
o gozar. Em um desvanecer contido, o escravo alcança o sentimento de si na medida
em que trabalha o ser, passando a existir uma equivalência entre a interioridade do Si
e a exterioridade do ser, entre a subjetividade e a objetividade; a formação (Bildung)
que o trabalhar proporciona permeia estes dois níveis de realidade.
33
Hegel, PhG, § 195.
34
Hegel, PhG, § 195.
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The fleeting enjoyments of the master do not last, but the servant, because he
does not and cannot completely negate the objects he works on, creates something
enduring (ein Bleibendes).
35
A ação do trabalho revela-se como a tomada do objeto como a negatividade e
a dedicação devotada a ele é, na verdade, a imposição do Si sobre a coisa,
configurando-lhe de acordo com o que se é. E como o trabalhado é um ser que
independe do Si do escravo, ele permanece na objetividade. O objeto trabalhado é
um meio termo entre o escravo em sua singularidade e seu ser para si que pertence
ao senhor e, por isso, ser-lhe-á entregue na concretude permanente da coisa. Assim, a
consciência de si escrava consegue reconhecer-se no objeto trabalhado, começa a
intuir que é capaz de dominar o ser e, ao fazê-lo, começa a se diferenciar dele. Mas
este formar (bilden) do trabalho que vimos atuar positivamente na figura do escravo
tem também um significado negativo. Ela só age por causa do medo. Lembremos
que é o medo que leva a consciência de si a abdicar de sua liberdade e,
posteriormente, o que lhe torna trabalhadora, já que ela trabalha porque a coisa é
independente e precisa ser moldada de acordo com a essência da consciência de si,
que no caso do escravo é o Eu do senhor. Pelo formar, o escravo intui o seu ser para
si, sua negatividade, e se o faz, é porque suprassume o ser para si de seu oposto, quer
dizer, a verdade que o escravo colocava no senhor vai aos poucos se transferindo
para o Si; o ser para si da coisa, sua liberdade, é “um negativo objetivo”. Mas foi
diante de um tal “negativo objetivo” que a consciência de si, que posteriormente se
configurou em escrava, amedrontou-se e se rendeu na luta de morte, isto é, o
“negativo objetivo” era o senhor. Diz Hegel: “Agora, porém, o escravo destrói esse
negativo alheio, e se põe, como tal negativo, no elemento do permanecer: e assim se
torna, para si mesmo, um para-si-essente.”
36
O trabalho do escravo parecia tanto ao senhor quanto ao próprio escravo um
fazer inessencial, só cobrava sentido no consumir e aniquilar do objeto por parte do
senhor. Tinha, portanto, um “sentido alheio” ao escravo. Mas, através do processo
de formação, o trabalhar do escravo permite que ele retome seu ser para si, sua
subjetividade independente.
Enquanto o escravo trabalha para o senhor, por conseguinte não no interesse
exclusivo de sua própria singularidade, seu desejo recebe a amplidão de não ser somente o
desejo de um este, mas ao mesmo tempo conter em si o desejo de um outro. Por isso o
35
Soll, An Introduction to Hegel’s Metaphysics, p. 22.
36
Hegel, PhG, § 196.
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97
escravo se eleva acima da singularidade egoísta [selbstische] de sua vontade natural, e se situa
nessa medida, segundo o seu valor, mais alto do que o senhor, preso no seu egoísmo,
intuindo no escravo somente sua vontade imediata, reconhecido de maneira formal por uma
consciência que não é livre.
37
Os elementos ligados à tomada do Si por parte da consciência de si escrava
são o medo, o serviço em geral e o formar. Somente com a presença real deles, a
consciência escrava pode realmente tomar-se como tal. O medo é o que possibilita a
contraposição necessária à objetividade, mas deve estar aliado a algo que permita não
só contrapor-se a ela, mas compreender o pólo oposto, a subjetividade. É o formar o
que possibilita disso, pois nele o objeto é manejado, e ao mesmo tempo em que
mantém sua negatividade – e por isso mesmo –, aí imprime seu Si. Mas um terceiro
elemento é necessário, o serviço, já que somente através da obediência e da disciplina
que o servir ao senhor exigem o medo e o formar efetivam-se. O escravo substitui
aquele “sentido alheio” do trabalho por um “sentido próprio”, “uma liberdade que
ainda permanece no interior da escravidão”.
38
Esta liberdade ainda é somente
interior, porque a figura do escravo permanece um formar, e não uma essência. A
consciência escrava acaba por tornar-se objeto de si mesma na forma do objeto
trabalhado, mas seu ser para si permanece no senhor – isso que por definição lhe faz
escrava –, e o trabalho do escravo é somente uma habilidade (Geschicklichkeit). Só
deixará de ser escravo quando conjugar este ser em si do formar ao ser para si – e
assim seu trabalho não será mera habilidade. Ao fazê-lo, será uma consciência de si
livre.
Para nós, ou em-si, são a mesma coisa, a forma e o ser-para-si; e no conceito da
consciência independente o ser-em-si é a consciência; por isso, o lado do ser-em-si ou da
coisidade, que recebia a forma no trabalho, não é outra substância que a consciência. Surgiu,
assim, para nós, uma nova figura da consciência-de-si: uma consciência que é para si mesma
a essência como infinitude ou puro movimento da consciência: uma consciência que pensa,
ou uma consciência-de-si livre.
Pois é isto que pensar significa: não ser objeto para si como Eu abstrato, mas como
Eu que tem ao mesmo tempo o sentido ser-em-si; ou seja: relacionar-se com essência
objetiva de modo que ela tenha a significação do ser-para-si da consciência.
39
Essa nova figura, que surgirá quando a dicotomia entre ser em si e ser para si
for sanada, será o Espírito. A partir do momento até o qual chegamos, a Fenomenologia
do Espírito continuará analisando três momentos da consciência escrava, a saber, o
37
Hegel, Enciclopédia III, § 435.
38
Hegel, PhG, § 196.
39
Hegel, Fenomenologia do Espírito, § 197.
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estoicismo, o ceticismo e a consciência infeliz. As dialéticas de cada uma dessas
figuras serão tentativas de reconciliar o ser em si e o ser para si, tais como vividos na
dialética que acabamos de analisar.
Vale perguntarmos sobre o destino da figura do senhor. Ele não avançará,
permanecendo um puro para si, na satisfão vazia do sentimento de si. Enquanto
houver o escravo para o servir e por ele trabalhar, o senhor permanecerá uma
consciência de si abstrata, pois só por meio do serviço, trabalho e formar, a
consciência de si torna-se livre. Diz Hegel: “O senhor que se contrapunha ao escravo
não era ainda verdadeiramente livre, pois ainda não intuía no outro a si mesmo,
completamente. Só por meio do libertar-se do escravo, também o senhor, por
conseqüência, se torna completamente livre.
40
O senhor libertará seu escravo quando se reconhecer nele, e, então, poderá se
lançar no mundo através do trabalho, juntamente com o escravo. Ambos efetivam
(wirken) seu próprio Si através do reconhecimento e da unidade com a realidade com a
qual lidam. A consciência de si ganhará através da experiência de abstração e
formalidade vazia do estoicismo e da má infinidade do ceticismo esta efetividade
(Wirklichkeit). Pois o reino estóico de uma liberdade abstrata – busca da liberdade que
é, na verdade, a afirmação do Eu em ser independentemente de qualquer potência
alheia, e um certo retorno a um estado de certeza de si – e a negação do cético que
nega “como um rapaz teimoso que diante da asseveração de outro só o que faz é
dizer não” quaisquer situações nas quais algo multifacetado surge, sendo incapaz de
articular dois momentos de uma mesma coisa como duas instâncias de “A” em uma
igualdade. A consciência cética somente usufrui o poder negativo do pensamento, de
sua “má infinitude”. A consciência de si fará a experiência da necessidade de igualar
ser e Si e de que a única via de fazer isso é pelo “trabalho do negativo”, pelo trilhar o
caminho integral do pensamento, que é dialético, quer dizer, nele a negação não é algo
dado uma vez por todas e diante da qual nada se pode fazer; pelo contrário! A própria
experiência revela que o pensamento não permite o “nada fazer”, que a verdade desta
apatia é a ausência do que Hegel diz como “paciência do conceito”, ou seja, a
compreensão da negação e do próprio pensamento em suprassunções, em níveis
cada vez mais amplos de compreensão, dominando pelo pensamento o que
anteriormente eram para ele pontos cegos.
40
Hegel, Enciclopédia III, § 436.
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99
As dialéticas do estoicismo e do ceticismo são movimentos do pensar nos
quais há a presença de dois elementos, dois pólos. Seguindo-lhes, Hegel apresenta a
figura da consciência infeliz, na qual este movimento duplicado encontra-se no
interior dela mesma. O que nos interessa agora é compreender que o apelo
experimentado pela própria consciência de si é o de unidade com a infinitude a partir
de sua própria finitude, assumida ao longo de toda a formação da consciência de si.
O que na figura da consciência infeliz era o “Além”, cuja infinidade era
experimentada como a própria essência da consciência, será a universalidade da
consciência de si, quer dizer, a apreensão de que Eu é o Eu em seu desdobramento,
seu se tornar Outro (alien-ação), que sua finitude é a infinitude da totalidade na qual
está, que também é essencial para a infinitude. No próximo capítulo, analisaremos
esta realidade que se abre para a consciência de si; é o que Hegel chama de Razão
(Verstand) e Espírito (Geist).
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5
Da consciência de si ao saber absoluto
Neste capítulo, nossa preocupação é compreender o “saber absoluto”, ou
seja, o próprio idealismo absoluto de Hegel exposto no último capítulo da
Fenomenologia do Espírito, intitulado precisamente de “O Saber Absoluto”. Fiéis aos
propósitos dessa dissertação, investigaremos o lugar do Eu neste saber. Entretanto,
precisaremos nos deter em conceitos-chave que se encontram no caminho ao Saber
Absoluto: a Razão e o Espírito.
“Razão” é o tema do capítulo V da Fenomenologia do Espírito: “Certeza e
Verdade da Razão”. Ele é composto de uma breve introdução e três seções,
formadas de várias subseções. O capítulo que antecede este em questão é nomeado
“A verdade e a certeza de si mesmo” e tem como figura o que Hegel chama consciência
de si. Sua última parte investiga a figura da “consciência infeliz”. Através do
movimento dialético que forma o caminho da experiência da consciência na
Fenomenologia do Espírito, a “consciência infeliz” encarna a cisão profunda, a
contradição. Escreve Hegel no último parágrafo desta seção:
Mas, para ela mesma, o agir, e seu agir efetivo, continua sendo um agir miserável; seu
gozo, dor; e o ser suprassumido dessa dor, no sentido positivo, um além. Contudo, nesse
objeto – em que seu agir e seu ser, enquanto desta consciência singular, são para ela ser e agir
em si –, a representação da razão veio-a-ser para ela: a certeza de ser a consciência em sua
singularidade, absolutamente em si; ou de ser toda a realidade.
1
A consciência sabe-se como singularidade, após ter experimentado-se como
ser vivente e desejante e ter passado pelo cadinho da luta de vida e morte do
reconhecimento. O movimento da consciência infeliz implementou nela isso: a
singularidade em seu completo desenvolvimento, ou a singularidade que é a
consciência efetiva. Entretanto, encontramo-nos em um momento no qual este saber
é somente para a consciência: é uma certeza, não uma verdade. Nesta certeza, a
consciência singular é a essência absoluta.
Nesse [processo] veio-a-ser também para a consciência sua unidade com esse
universal. Unidade que para nós não incide fora dela – já que o singular suprassumido é o
universal. E como a consciência se conserva a si mesma em sua negatividade, essa [unidade]
constitui na consciência como tal a sua essência.
2
1
Hegel, PhG, § 230.
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101
A alteridade, na figura da consciência infeliz, era o além, algo que estava
completamente fora de si e de alcance. Agora, aquele universal tornou-se um com a
consciência. Ela está unida ao universal. Entretanto, para ela, esta é uma unidade externa.
Mais tarde, isto se revelará apenas uma certeza, sendo a unidade interna o verdadeiro.
Até agora, só se preocupava com sua independência e liberdade, a fim de salvar-se e
conservar-se para si mesma, às custas do mundo ou de sua própria efetividade, [já] que
ambos lhe pareciam o negativo de sua essência. Mas como razão, segura de si mesma, a
consciência-de-si encontrou a paz em relação a ambos; e pode suportá-los, pois está certa de
si mesma como [sendo] a realidade, ou seja, está certa de que toda a efetividade não é outra
coisa que ela. Seu pensar é imediatamente, ele mesmo, a efetividade; assim, comporta-se em
relação a ela como idealismo.
3
A consciência de si, ao assumir-se como realidade e como instância de
realização, contrariamente do que acontecia nas figuras investigadas anteriormente,
como o estoicismo, o ceticismo e a consciência infeliz, descobre-se razão. Mas a maneira que
este movimento de particularização acontece ainda não está suficientemente claro. O
lugar para esclarecer isto é na figura anterior, a consciência infeliz. Através do desejo
e trabalho, esta figura da consciência se opõe a um mundo – um é completamente
diverso do outro. Em um momento anterior, a consciência infeliz considerava o além
como alteridade diante da qual se contrapunha. O além se revelava como o imutável.
Entretanto, um tal além não cobrará mais sentido, porque ele, ainda que tenha se
tornado uma singularidade, é uma singularidade evanescente, ou seja, nunca
alcançável. Encarna-se, torna-se ser, dotando o mundo de valor. E a consciência de si
tratará de transformar, consumir e gozar o ser do mundo. A partir de então, lança-se
a consumir e gozar as coisas que se lhe apresentam como independentes; o imutável,
que naquele primeiro momento era o além, torna-se singular, coisa independente a
ser consumida. A passagem acontece, porque o sentimento da consciência torna-se
efetivamente sentimento de si. E este sentimento desenvolver-se-á até alcançar a
verdade de si que é a razão. A consciência chega a esta verdade na experiência da
evanescência do além e no trabalho do ser. Ainda que em um momento dado a
consciência infeliz encontre em um mediador o instrumento para negar o seu
trabalho, desejo e agir, este acabará por servir para o alcance de sua verdade, ao
lançá-la na dialética de si como tensão para a infinitude, que se tornou ser, se
encarnou. Como diz Labarrière, “o indivíduo singular iguala-se à realidade universal,
graças à sua assunção mediata no Imutável absoluto”. Desta dialética pode-se
concluir que a consciência de si infeliz suprassumiu-se, tornando-se racional.
2
Ibid, § 231.
3
Hegel, PhG, § 232.
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102
Antes de a consciência de si se apreender como tal, ela não compreendia o
mundo: só o desejava e o trabalhava. “Retirava-se dele [recolhendo-se] a si mesma, e
o abolia para si, e a si mesma [abolia] como consciência: como consciência desse
mundo enquanto essência e também como consciência de sua nulidade”.
4
Agora, a
consciência de si “perdeu o sepulcro de sua verdade e aboliu a abolição de sua
efetividade” e a singularidade da consciência é em si a essência absoluta. Só assim, ela
pode descobrir o mundo como o seu novo mundo efetivo. Diz Hegel: “Agora tem
interesse no permanecer desse mundo, como antes tinha somente no seu desvanecer;
pois seu subsistir se lhe torna sua própria verdade e presença. A consciência tem a
certeza que só a si experimenta no mundo.”
5
A consciência de si se torna a própria realidade, ou antes, demonstra-se como
tal. Assim, o outro, como um “em si”, desvanece para ela. Entretanto, a razão
assevera somente que é toda a realidade, não conceituando sua asserção.
A razão apela para a consciência-de-si de cada consciência: Eu sou Eu; o Eu é meu
objeto e minha essência e nenhuma [asserção de outras certezas, F.C.M.] lhe negará essa
verdade.
6
A passagem da certeza da razão para a sua verdade depende da reflexão por
parte da consciência de si, a partir da tomada de posição da certeza do outro, ou seja,
a razão, neste momento inicial, ao fundar sua verdade sobre o apelo do Eu=Eu, isto
é, de que o Eu é meu objeto e minha essência, sanciona a verdade da outra certeza, a
saber: “há para mim [um] Outro; [um] Outro que Eu é para mim objeto e essência;
quando Eu sou para mim objeto e essência, sou isso apenas enquanto Eu me retiro
do Outro, em geral, e tomo lugar ao lado dele como uma efetividade”.
7
Nesta etapa da Fenomenologia do Espírito, a consciência é novamente abstrata,
porque ignora o movimento espiritual já realizado. Ela “esquece o caminho de seu
próprio devir”
8
. Como já foi dito, é somente certeza de ser toda a realidade. Porém,
pela primeira vez na experiência da consciência universal, surge um momento
positivo, ou seja, momento no qual a consciência de si é inteiramente para si, não
marcando nada com o sinal do negativo. No entanto, isto se revelará uma posição
ingênua, pois ela terá que lidar com o outro que também é um Eu e que, como ela,
4
Hegel, PhG,§ 232.
5
Idem,§ 232.
6
Ibidem, § 234.
7
Ibidem, § 234.
8
Labarrière, p. 97.
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103
está certo de ser toda a realidade, e com o não-Eu. A noção fichteana de “choque
estranho” não mais será suficiente para dar conta da alteridade, pois este conceito
ainda manteria o mundo alijado de si. Esta afirmação é, segundo Hegel, vazia e
gratuita, porque desconhece todo o caminho já percorrido pela consciência universal,
ou seja, ainda não é para si. O ser humano racional, neste estágio inicial desta
dialética, é aquele que, diversamente do homem religioso infeliz, equivalente histórico
à figura da consciência infeliz, afirma o mundo, contudo somente o suporta e usufrui.
Em um certo sentido, a consciência racional realizará um movimento similar à
consciência infeliz, porque só alcançará sua maturidade, além de desejar o mundo,
trabalhá-lo e agir nele, ou seja, transformá-lo.
A descrição deste processo de formação da consciência é feita com uma
preocupação histórica, enquanto, ao tratar deste tema em outras obras, a saber, a
Propedêutica e a Enciclopédia, este enfoque não é tão forte. Assim, a consciência, que é
objeto de estudo aqui, é o homem burguês do Iluminismo. No entanto, esta
consciência, que adere a um idealismo ingênuo, “encontra-se numa contradição
imediata, ao afirmar como essência algo que é duplo, e pura e simplesmente oposto: a
unidade da apercepção, e, igualmente, a coisa
9
, quer dizer, a afirmação de que
“Eu=Eu”, segundo Hegel, lança a consciência na contradição, da qual ela lutará por
escapar, pois, assemelhando-se à dialética anterior do senhor e do escravo, o Eu que
está certo de si mesmo torna-se objeto de um outro Eu que experimenta a mesma
situação. Estaríamos, então, encaminhando-nos à aporia? A resposta hegeliana é: não,
já que este é um conceito abstrato de razão. A efetividade da razão consiste em ser
tanto a unidade da apercepção, quanto o que estaria fora da razão abstrata, isto é,
toda a realidade. E esta será alcançada porque a natureza desta consciência é ser
plenamente segura de si mesma e, em nome desta segurança, “procura sua própria
infinitude” na realidade objetiva e através do impulso devido ao sentimento e certeza
da consciência como esta totalidade. Ela “...é impelida a elevar sua certeza à verdade,
e a preencher o Meu vazio”.
10
O movimento para a efetivação da razão ocupa um espaço razoável da
Fenomenologia do Espírito. Forma-se por três seções, a saber: “Razão Observadora”, “A
Efetivação da Consciência-de-Si racional através de si mesma [Razão Ativa]”, e “A
Individualidade que é para si real em si e para si mesma”. Cada uma dessas seções
9
Hegel, PhG, § 238.
10
Hegel, PhG, § 239.
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104
compõe-se por três subseções, indicando a lógica dialética que é todo este processo.
Vejamos brevemente como avança a consciência nestas suas figuras.
O campo que se abre diante da razão observadora é imenso e de uma riqueza
infinita. Seu objeto de estudo é tanto a natureza exterior (subseção a: “Observação da
natureza”), quanto a sua própria (subseção b: “A observação da consciência-de-si em
sua pureza e em referência à efetividade exterior: leis lógicas e leis psicológicas”). Ao
observar a natureza, a razão sabe que ela mesma é esta alteridade, ou seja, suas
observações equivalem à sua experiência. Todo o descoberto encontra-se sob o signo
de seu poder. Não obstante, ela pressente ser uma essência mais profunda, pois o
puro Eu é e exige que a diferença, este ser multiforme, venha a ser como isto que ela
sabe ser. Como diz Labarrière,O Eu não terá mais necessidade de afirmar
continuamente sua autoridade sobre o mundo quando provar que este mundo não é
outra coisa senão ele mesmo”.
11
O ser para si da consciência deverá se transformar em uma coisa. O que antes
era categoria simples, tornar-se-á categoria viva, isto é, a unidade intrínseca da razão
revelar-se-á a partir dela mesma, segundo os aspectos pelos quais ela é razão.
Contudo, ela somente observa, quer dizer, não intervém na realidade. Pode-se dizer,
inclusive, que através de todo este momento da consciência como razão, contempla-
se a luta pela posse efetiva de si mesmo, na tensão da individualidade que surge e sua
conseqüente negatividade, o que significa dizer, insuficiência diante de seu próprio
padrão de medida. Mas retornemos à breve análise que realizávamos.
Na segunda subseção (“A Efetivação da consciência-de-si racional através de
si mesma [a razão ativa]), pela primeira vez, à asserção de queEu=Eu é dado um
conteúdo para além da mera certeza. E isto implica em dizer que surge uma
universalidade efetiva. Como Eu sou sujeito e objeto, acabarei reconhecendo Outro
como Eu. Na relação com Outros, o Eu colocar-se-á à prova. Na figura que Hegel
denomina “Prazer e Necessidade”, o prazer efetivo só pode realizar-se em uma
consciência que se manifesta como independente. No âmbito da razão, a consciência
surge como indivíduo e é uma individualidade não satisfeita inteiramente. Ela
percebe em si um sentimento de não permanecer onde se encontra, ao mesmo
tempo em que quer gozar o que o mundo lhe oferece, sem, entretanto, trabalhá-lo e
agir nele. E ainda no esforço de não se entregar ao trabalho do negativo, quer dizer,
de não assumir o que ela mesma experimenta como necessário, erige sua ação, que,
11
Labarrière, p. 99.
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105
na verdade, é uma pseudo-ação, no nível do subjetivismo e do privado. A razão o é
de indivíduos singulares.
A razão observadora era uma consciência universal somente contemplativa –
que se buscava instintivamente na realidade; sua verdade, porém, consiste em que a realidade
só tem sentido para o homem que é para si. a partir de então, o sentido é separado daquilo de
que é o sentido, e a individualidade humana é posta como razão ativa: projeta seu sentido
como meta para fora da realidade que ela nega; a consciência individual é singular e se opõe
ao universal, mas nessa oposição, por seu turno, é insustentável. Assim, a individualidade
humana não está cortada da realidade: Ela mesma é a realidade que se faz, a síntese que se
implementa na ação.
12
Na terceira subseção (“A Individualidade que é para si real em si e para si
mesma”), podemos visualizar, de maneira mais clara, que a unidade entre o ser e o
pensamento deixa de ser simples afirmação formal e o Eu passa a ser um Nós,
expressão do idealismo hegeliano. Mas é um Nós não desenvolvido, ou seja, restrito
a círculos específicos e não plenamente realizado no mundo. Aqui ocorre a fusão
entre a razão observadora e a razão ativa, isto é, entre o ser e o Si.
A conclusão a ser alcançada ao final deste capítulo sobre a razão é que a
consciência surge como o singular autêntico, “o indivíduo que é um mundo”, e
cunha-se pela ação. Ele não somente é o agente, mas tem sua natureza formada a
partir dos seus próprios atos. E através de tais ações, assumindo-se como
indivíduo que não está separado do todo que o envolve, adentra no Nós espiritual,
conceito-chave para a compreensão da Fenomenologia do Espírito e tema do
capítulo subseqüente sobre o Espírito. Como diz Hegel, “A razão é espírito quando
a certeza de ser toda a realidade se eleva à verdade, e [quando] é consciente de si
mesma como de seu mundo e do mundo como de si mesma.”
13
O conceito de Espírito (Geist) surge como a “verdade” do conceito de razão,
quer dizer, o que aí era somente certeza subjetiva vem a ser efetivo no Espírito. No
entanto, o Espírito surge como verdade da razão, mas terá igualmente de alcançar a
própria verdade, ou seja, seu surgimento é somente como uma certeza de si que
deverá amadurecer até se tornar verdadeira consciência de si, e isso é o saber absoluto.
O Espírito é a essência da razão e essa é a comunidade dos vários eus, o que
Hegel denominará “substância ética”. O Espírito, porém, é sabedor do movimento
que se realizou na figura da razão, e por isso deixa de ser mera “substância” para se
tornar consciência efetiva daquela comunidade ética, ou como diz o próprio Hegel:
12
Hyppolite, Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel, p. 312.
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O espírito é o Si da consciência efetiva, à qual o espírito se contrapõe, - ou melhor,
que se contrapõe a si mesma, - como mundo efetivo objetivo. Mas esse mundo perdeu
também para o Si toda significação de algo estranho, assim como o Si perdeu toda a
significação de um ser-para-si separado do mundo, - fosse dependente ou independente dele.
O espírito é a substância e a essência universal, igual a si mesma e permanente: o inabalável e
irredutível fundamento e ponto de partida do agir de todos, seu fim e sua meta, como [também] o
Em-si pensado de toda a consciência-de-si.
14
Entretanto, além de ser a substância ética, o Nós, o Espírito também é o Si
(Selbst) do cada eu, isto é, o Espírito não é simplesmente o conceito que abarca a
universalidade do Eu, o Eu que todos são, mas vai além disso, sendo também cada
Eu que forma o Nós. O Espírito é a totalidade, então, do ser e do Si. Mas ele não é
algo posto e imóvel. Ao contrário, é o próprio movimento que anima a história da
humanidade, ou melhor, é a própria humanidade na totalidade de seu ser e existir.
Por isso, o aparecimento do Espírito não é algo que se dê uma vez por todas. Todos
os movimentos que vimos e analisamos desde o início da Fenomenologia do Espírito são
todos movimentos do Espírito, mas esse ainda não entrara em cena e a consciência
de que tudo era um acontecer espiritual não era para a consciência que o
experimentava. Assim, adentramos em uma nova esfera na qual o verdadeiro sujeito
do processo que somos e no qual estamos inseridos se revela como tal.
O Espírito é uma realidade concreta, é efetividade (Wirklichkeit), e não mera
abstração. Sua concretude está em ser “o agir de todos e de cada um”
15
. E sua
importância é imensa devido à concepção hegeliana de sujeito que é dependente de
um outro para ser o que é e cuja necessidade é a alienação: só se é o que se é em um
outro, pois só no outro se pode conceber o Si. Contudo, o Espírito na sua
maturidade, quer dizer, tendo surgido como tal ao abandonar a inconsciência de seus
momentos anteriores (certeza sensível, percepção, entendimento, consciência de si e
razão), permanece em movimento, pois esta é sua natureza, e não pode manter-se
mera consciência, mas há de se tornar consciência de si. E esta consciência de si do
Espírito é o que Hegel denomina “Religião” e é analisado no capítulo VII da
Fenomenologia. No entanto, a consciência religiosa ainda não será o verdadeiro espírito
em si e para si, porque sua consciência de si ainda permanecerá “representação”, pois
o próprio Espírito tomado por objeto, para a consciência religiosa é um outro, o que
Hegel chama de “essência absoluta” – deus.
13
Hegel, PhG, § 438.
14
Hegel, PhG, § 439.
15
Idem, § 439.
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107
O saber absoluto”, ou seja, a filosofia especulativa, entra em cena quando a
consciência religiosa é suprassumida, isto é, quando a consciência sabe a “essência
absoluta”, não mais existindo entre ambas um abismo. A superação do objeto do Eu
é a extrusão do sujeito de si mesmo, não tendo somente uma esfera negativa de
significação que é a alienação, mas a positiva que é o saber a nulidade do objeto e o
que isso lhe permite, que é a recuperação, por parte do Eu, do que antes era a
extrusão mesma e a objetividade, e “assim está junto de si no seu ser-outro como
tal”
16
. Este é o movimento da consciência e aí ela é a totalidade de seus momentos,
quer dizer, enquanto a consciência toma-se a si em seus vários momentos, ela se
torna seu próprio mover-se, ou seja, este processo de extrusão de si, saber da
extrusão e recuperação em si da extrusão.
A totalidade é ser como existente (Dasein, ser-aí) imediato, o “isto” (o objeto
da certeza sensível, singular, determinado), coisa percebida (objeto particular, pois
nele já há mediação), essência ou universal (objeto do entendimento). A totalidade do
objeto envolve tanto uma visada a partir da universalidade quanto da singularidade,
como vimos nas dialéticas da certeza sensível, da percepção e do entendimento, cujo
resultado foi a emergência da consciência de si, pois o entendimento descobriu a si
mesmo ao buscar leis para os fenômenos e princípios explicativos em geral
17
. A
descoberta da verdade da consciência como o interior será o ponto de partida da
dialética da consciência de si. Assim, se antes o objeto era o ser sensível, percebido
ou essencial, na dialética da consciência de si ele será o Si, ou seja, seu próprio Eu –
Eu, entretanto, que é diferenciado em si mesmo, Eu que é Outro. Dessa maneira, os
movimentos da consciência de si também passarão pelos momentos de singularidade,
particularidade e universalidade, quer dizer, o Eu será ora singular, ora particular e
ora universal. A singularidade do Eu é o movimento que faz de si o único, para o
qual a totalidade é marcada com o sinal da negatividade, é não-Eu. Porém isso se
modifica quando um Outro surge e, pelo reconhecimento, o Eu se particulariza. A
universalidade é alcançada quando a consciência de si, nas figuras do senhor e do
escravo, é formada pela experiência que faz de si, tornando-se razão (Verstand). Em
sua plenitude, a consciência deve, então, conjugar estas três determinações; deve saber
do objeto e de Si mesma. Entretanto, este saber não é “mero conceituar puro do
16
Hegel, PhG, § 788.
17
A dialética da “razão observadora”, não analisada nesta dissertação, repete em um outro nível os
movimento da dialética do entendimento. Por isso, diz Hegel: “Assim, do ponto de vista do objeto
[que] enquanto imediato, é um ser indiferente, vimos a razão observadora buscar e encontrar a si mesma
nessa coisa indiferente” – PhG, § 790.
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objeto”, mas a apreensão no próprio devir do objeto, isto é, em seu desdobramento.
Caso contrário, não faz jus à totalidade que é. Assim, não é simples ato epistêmico,
conforme a entrada em cena da consciência de si demonstrou, mas, abarcando-o,
envolve também as variadas esferas do humano: é sabedoria, e o que é tomado por
objeto ganha um estatuto espiritual.
A consciência deve igualmente relacionar-se com o objeto segundo a totalidade de
suas determinações, e deve tê-lo apreendido conforme cada uma delas. Essa totalidade de
suas determinações faz do objeto em si a essência espiritual; e isso ele se torna para a
consciência, mediante o apreender de cada determinação sua singular como o Si, ou pelo
relacionamento espiritual para com elas...
18
Por mais que nas figuras da consciência o Eu esteja presente e seja possível
esboçar uma compreensão dele, elas são conhecimento do ob-jeto, do que é exterior
ao Eu (“isto”, “coisa percebida” e “essência” ou “interior” das coisas). Somente a
partir dos momentos da consciência de si o Eu se torna claramente objeto de si mesmo
– e por isso ela surge como certeza de si. Como já notamos, o Eu é um objeto
singular para si mesmo na figura da consciência desejante até o surgimento para ele
de uma outra consciência de si. Ao reconhecê-la como tal, Eu é um particular, porque
nele existe mediação; Eu é a partir de Outro. Mas o Eu somente é universal quando a
consciência de si se torna razão. Entretanto, inicialmente é só é razão abstrata,
mesmo movendo-se na universalidade. Para se tornar efetiva, ela novamente
percorrerá os momentos da singularidade e da particularidade a fim de alcançar-se em
sua verdade, que é ser universal. E como consciência universal, como razão, deverá
trilhar vários caminhos.
O momento da singularidade equivale tanto à figura da “razão observadora”,
em que o Eu será rebaixado à condição de “alma”, um objeto dentre outros, quanto à
figura da “consciência esclarecida”, na qual o Eu é algo útil. O momento da
particularidade equivale à figura da razão da “consciência de si cultivada”, na qual o
Eu não é mais coisa, mas, pelo contrário, a determina, para ele as coisas são. No
entanto, a ele ainda falta a efetividade. O momento universal da razão é o que equivale à
“consciência moral”, à “boa consciência” que sabe que por sua operação ela se
encontra no elemento objetivo. Por sua ação, a consciência moral ultrapassa a mera
imposição do Eu à coisa (singularidade, imediação) e a vaidade e vazio do “cultivo
do Eu (particularidade, mediação), e impõe sobre o mundo a pureza de seu saber de
18
Hegel, PhG, § 788.
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Si. No entanto, este Si ainda não reconhece na coisa em que ele se impõe a si mesmo,
isto é, ele ainda não é para si; em si, ele é certo de si mesmo em seu existir (Dasein); é
a consciência guiada pelo Sollen kantiano: “Declarar que aquilo que faz, faz segundo a
convicção do dever, essa sua linguagem é o legitimar de seu agir”
19
. Ela está
inteiramente dentro de si mesma, mas ao estar aí, se extrusa e se move para frente.
Assim, ela alcança “o saber do saber puro, não como essência abstrata, que é o dever,
- mas do saber puro como essência que é este saber, esta consciência-de-si pura, que
assim ao mesmo tempo é o verdadeiro objeto, pois é o Si para-si-essente”
20
.
O saber absoluto é a última figura do espírito, na qual ele dá ao seu conteúdo
(conteúdo que na religião se diferenciava da forma) a forma do Si. “O saber absoluto
é o espírito que se sabe em figura-de-espírito, ou seja: é o saber conceituante”.
21
O saber é Eu, que é este e nenhum outro Eu, e que é igualmente o Eu universal,
imediatamente mediatizado ou suprassumido. Tem um conteúdo que distingue de si, pois é a
negatividade pura ou o cindir-se: O Eu é consciência. Esse conteúdo é, em sua diferença
mesma, o Eu, por ser o movimento do suprassumir-a-si-mesmo; ou essa mesma negatividade
pura que é Eu. O Eu está no conteúdo como diferenciado, refletido sobre si: o conteúdo é
conceituado somente porque em seu ser outro está junto de si mesmo.
22
O ser outro do conteúdo é a forma, o Eu conceituante. Na forma, o
conteúdo está junto de si mesmo; isto é, através do Eu, a realidade está “junto a si”,
constitui-se como tal. O conteúdo é o movimento mesmo do Eu com o não-Eu e
todos os desenvolvimentos que daí advêm. O conteúdo do movimento é o próprio
espírito que, entretanto, é sujeito. Mas se assim é, seu conteúdo é desdobramento de
sua própria forma, é o tomar-se como ob-jeto e aí não se reconhecer, o que ocasiona
a odisséia da busca por si mesmo. O saber absoluto em si mesmo é a orquestração do
ser para si e do ser em si do espírito, ou seja, de seu ser sujeito e substância.
O espírito é em si o movimento que é o conhecer, - a transformação desse Em-si no
Para-si; da substância no sujeito; do objeto da consciência em objeto da consciência-de-si; isto é, em
objeto igualmente suprassumido, ou seja, em conceito.
23
O Espírito, ao se reconhecer como conceito, é ciência, é saber filosófico.
Na “fenomenologia do Espírito” cada momento da do movimento espiritual
aparece como uma figura determinada da consciência. No saber filosófico, ao
19
Hegel, PhG, § 793.
20
Hegel, PhG, § 795.
21
Hegel, PhG, § 798.
22
Hegel, PhG, § 799.
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contrário, estes momentos têm a forma do conceito, que abarca tanto a forma
objetiva da verdade quanto a forma do Si. Os momentos surgem em sua figura
pura, não mais para a consciência, mas na forma de conceito puro, e o próprio
sujeito humano vem a ser conceito, pensamento especulativo, em unidade com o
objeto concebido.
23
Hegel, PhG, § 802.
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6
Conclusão
Acompanhamos o desenvolvimento da Fenomenologia do Espírito desde seu
início até seu final, o “Saber Absoluto”. Tentamos manter a atenção sobre a
constituição da subjetividade, mas isso se mostrou extremamente difícil, já que o
sujeito só é na relação com o objeto, não sendo algo apartado das relações que daí
advêm. Por esta razão, tivemos que analisar longamente os argumentos de Hegel
expostos nas seções sobre a “consciência” e a “consciência de si” e indicando sempre
que possível as relações com outros autores com os quais Hegel estava dialogando.
Conforme indicamos no capítulo II do presente trabalho, a noção de
“consciência” se distingue da noção de “Eu”, por já ser a relação entre o sujeito e o
objeto. E na análise das figuras da “consciência” (a “certeza sensível”, a “percepção”
e o “entendimento”), o sujeito das relações não se manteve o mesmo, mas mudou de
acordo com seu objeto. E isso é o que define o próprio conceito de consciência para
Hegel e os idealistas alemães em geral, a relação necessária entre o sujeito (o Eu) e o
objeto, indo contra o pensamento cartesiano de um “Eu” cuja verdade é indubitável
e cujo acesso a si é imediato. Contra este imediatismo, Hegel se colocará ao longo de
todo o seu itinerário intelectual.
Também na seção sobre a “consciência de si” Hegel demonstra que o sujeito
não é dado imediatamente, mas que depende de um Outro para se reconhecer como tal,
que o acesso a si é sempre mediado pelo Outro. Aqui talvez ressoe o versos
rimbaudianos “Je est un autre”, pois o Eu somente se torna o que é alien-ando-se.
Entretanto, esta saída de si não implica uma perda de si em prol do que quer que
seja, mas um encontrar-se no outro, um estar em casa onde for: a noção de
subjetividade enquanto aquilo que está além ou aquém esvai-se, dando lugar à
“ipseidade” (Selbstheit), que é a qualidade do si, do mesmo, que não é o “igual”, já que
este mesmo é o desdobrar-se para fora de si, para o outro.
O pensamento hegeliano, entretanto, na luta de vida e morte pelo
reconhecimento e a dialética do senhor e do escravo, aponta para a socialização do
sujeito, de modo que é em uma sociedade que ele tem o espaço de se desenvolver e
amadurecer – sociedade que não é estática e nem algo já dado, mas uma comunidade
de indivíduos em infinitas relações e conexões. Na Fenomenologia do Espírito, Hegel
ainda considera o pensamento religioso e artístico como esferas nas quais a totalidade
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é tomada em graus de consciência diversos, mas que estão em contato com este todo.
É bem verdade que todos estes temas serão trabalhados e aprofundado em materiais
posteriores como a Filosofia do Direito, a Estética, a Filosofia da Religião. Mas já aqui na
Fenomenologia podemos observar como a pedra fundamental do pensamento
hegeliano já está colocada: a Religião e a Arte são esferas do Saber Absoluto, ou seja,
são consciência de si da totalidade do espírito humano, mas ainda lhes falta o
trabalho e a paciência do conceito que somente a Filosofia alcança – isso não
significa dizer que exista uma hierarquia nestas esferas do Saber Absoluto, mas que
na sua diferença somente o pensamento especulativo-filosófico alcança o conceito
em sua inteireza (ver a Ciência da Lógica, obra na qual o conceito se desenvolve em sua
pureza).
Na sucessão das figuras da consciência analisadas ao longo da Fenomenologia,
pudemos experimentar que a infinitude se encontra na própria finitude, ou seja, não é
necessário à argumentação hegeliana o apelo ao plano do além, mas tampouco do
aquém. Conforme vimos, por exemplo, na passagem do entendimento à figura da
consciência de si, o que existe por todo e qualquer véu de mistério é a própria
humanidade. Porém afirmar que o pensamento hegeliano seja materialista e negador
de tudo que não seja imediato aos sentidos e ao “agir” vigente, acaba por esbarrar
nos próprios frutos de seu pensamento, a saber, a verdade da mediação de que tudo
está em relação e nada é em si mesmo simplesmente dado, as incontáveis conexões
existentes e sempre a se travarem, a serem criadas, em uma palavra, que o lugar da
Filosofia é no Absoluto, na totalidade sempre a se fazer.
O sujeito, assim, é uma possibilidade sempre a se inventar no embate com o
que inicialmente é o que ele não é. E ele já está sempre em um mundo, “en-carnado”.
A certeza de ser algo por natureza independente do todo acaba sempre por se
desfazer na verdade de que se está desde sempre em algum lugar, em algum tempo. A
independência, no entanto, não é uma ilusão, mas uma outra instância da ipseidade,
que se tomada como sua totalidade acaba por se mostrar insuficiente.
A pergunta por qual é o momento no qual o sujeito consegue finalmente
cumprir com o imperativo de se tornar o que se é, aqui no escopo da Fenomenologia, é
respondida de maneira sempre postergada, no sentido em que a solução alcançada
acaba por se mostrar inadequada e, portanto, insatisfatória. Seria, então, no saber
especulativo-filosófico que o sujeito encontraria sua realização? Tendemos a
responder negativamente, pois, pelo menos aqui na Fenomenologia, o momento do
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saber absoluto é aquele em que podemos compreender a totalidade dos diversos
momentos que pareciam desconexos e estanques. A sabedoria filosófica não
impossibilita o avanço da história nem do que quer que seja, mas eleva-o à compreensão
e interiorização das diferentes partes do todo. O sujeito, assim, continua a percorrer a
trilha de seu mundo e o se tornar o que ele é delineia-se como o agir sempre
presente, a partir do qual o conhecimento de si é conhecimento de outro, a
introspecção, alienação e a alienação, possibilidade de encontro.
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