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Amir José de Melo
“PADRES SUBVERSIVOS”
As representações da “Igreja Progressista” do Vale do Aço na Mira do Aparelho Repressor (1968-
1972).
Vassouras, RJ
Universidade Severino Sombra – USS
2006
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Amir José de Melo
“PADRES SUBVERSIVOS”
As representações da “Igreja Progressista” do Vale do Aço na Mira do Aparelho Repressor (1968-
1972).
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação de História –
nível Mestrado – da Universidade Severino Sombra – USS, como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre.
Área de concentração: História Social
Orientadora: Profº Drº Eduardo Scheidt
Vassouras, RJ
Universidade Severino Sombra – USS
2006
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Programa de Pós-Graduação de História – nível Mestrado – da Universidade Severino Sombra
– USS
Dissertação defendida e aprovada,
em _______ de novembro de 2006, pela
Banca Examinadora constituída pelos
Professores e Doutores:
Presidente e Orientador .......................................................................................
Examinador .........................................................................................................
Examinador .........................................................................................................
Examinador .........................................................................................................
RESUMO
O objetivo principal dessa dissertação é a investigação do crescente processo
de
interiorização do Regime Militar na Região Metropolitana do Vale do Aço a partir de
1968, justamente no período em que se instaurou do Ato Institucional de nº 5.
Detectamos, empiricamente, numa região interiorana brasileira, dois cleros disputando
representações de mundo social com vistas a legitimá-las, justificá-las, difundi-las e
consolidá-las nos espaços de micro poderes, embora parecesse o clero conservador,
em grande medida, favorecido pela conjuntura política nacional do Regime. Podemos
por assim dizer que a ala mais progressista do clero local sofreu duras conseqüências
conforme apontadas nos testemunhos do Processo número 39.342, que tramitou
entre 1970 e 1972, na Auditoria da 4ª Circunscrão Judiciária Militar, sediada em Juiz
de Fora. Esse Processo judicial, em seis volumes, totalizando cerca de 3000 páginas,
foi movido contra oito padres e ex-padres da então Diocese de Itabira, hoje
Itabira/Coronel Fabriciano, Minas Gerais. A partir desse documento judicial, das
entrevistas orais e outras fontes documentais buscamos enfocar uma
análise de
discurso das representações tidas pelos atores envolvidos no processo: os réus, os
denunciadores, a promotoria, a defesa, as testemunhas. Também discorremos as
visões de mundo que embasavam a acusação, as provas, os argumentos e o
veredicto, incluindo os acontecimentos nos bastidores da justiça e os pormenores
negligenciados no transcorrer do processo judicial. Não se pretendeu aqui desvendar
um crime, conforme se pretendia a justiça militar, mas desvendar um cotidiano, uma
comunidade, as suas relações sociais. Não tivemos por fim o interesse de descobrir o
que realmente aconteceu e, sim tentar compreender como eram produzidas e
explicadas as versões diversas que os agentes sociais envolvidos apresentavam para
cada caso. Tratamos de analisar as
práticas sociais produzidas, reproduzidas e
compartilhadas pelos diferentes atores - líderes da igreja e setores sociais
correlacionados - que estavam em alguma medida alinhadas às visões de mundo da
matriz latino-americana da Igreja Católica. Enfim, buscamos apontar quais foram as
ações que os protagonistas do Processo se relacionavam com os seus discursos e de
que forma essas práticas foram interpretadas por outros sujeitos histórico-sociais.
ABSTRACT
The main purpose of this dissertation is the investigation of the crescent
process of
arrival of the Military Regime in the Metropolitan Area of Vale do Aço from
1968, exactly in the period in which the Institutional Act of no 5 was established. We
detected, empirically, in a Brazilian interior area, two clergies competing
representations of social world in order to legitimate them, justify them, diffuse them
and consolidate them in the area of minor powers, although the clergy seemed
conservative, in large scale, favored by the national political conjuncture of the regime.
We can say the most progressive line of the local clergy suffered hard consequences,
as pointed in the testimonies of the lawsuit no 39.342, which was processed between
1970 and 1972, in the Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar, headquarted in
Juiz de Fora. This lawsuit, in six volumes, totaling about 3000 pages, was against
eight priests and former priests of the Diocese of Itabira, today Itabira/Coronel
Fabriciano, Minas Gerais. Being with this judicial document, oral interviews, and other
sources, we focused our attention on the
speech analysis of the performances acted
by the actors involved in the lawsuit, such as the defendants, the Crown, the
prosecutor, the lawyer and the witnesses. We also discoursed the world points of view
based on accusations, proofs, arguments and the verdict, including the events behind
the scene of the justice and the neglectful details throughout the elapsing of the
lawsuit. It was not the intention here to unmask a crime, as the military justice
intended, but unmask a day-to-day, a community and its social relations. We were not
interested in finding out what it had really happened, but try to understand how the
several versions were produced and explained by the social agents involved in each
case. We analyzed the
social practices produced, reproduced and shared by the
distinct actors, leaders of the church and correlated social sections, which were in a
way aligned to the points of view on the world of the Latin-American mother church of
the Catholic Church. Finally, our purpose was to point up the actions the protagonists
of the lawsuit related to their speeches and how those practices were interpreted by
other historical-social individuals.
AGRADECIMENTOS
Não foram poucos os incentivos e apoio que recebi para desenvolver este
trabalho. Muito tenho a agradecer a todas as pessoas que me apoiaram nessa
trajetória, que agora se conclui.
A começar pela minha família, esposa e filho, a quem me desculpo pela
ausência, nos muitos momentos de aperto, onde a dedicação ao estudo foi
necessária para que eu alcançasse êxito no cumprimento das metas e prazos.
Aos meus parentes: irmãos, cunhados, sobrinhos e tios com os quais
também limitei os momentos de convivência, neste período de mestrado, em que
tive reduzido as atividades sociais.
Aos meus pais, que apesar de não se encontrarem mais no meu convívio
físico, deixaram-me um legado de educação que serve de referencia para a minha
vida, seja profissional, social, e familiar.
Aos meus colegas de trabalho e meus superiores, pessoas as quais aprendi
a gostar. Deles me lembrarei pelas inúmeras manifestações de apoio e
compreensão, especialmente nos momentos em que precisei me licenciar do
serviço, seja nas escolas nas quais trabalho ou na Secretaria Municipal de
Educação de Coronel Fabriciano e da Escola Pedro Calmon: Wanderlea Mendes
Guedes, Silvana Eliana, Maria da Glória Giudice, Rosa Maria Monteiro, Aganoel
Gomes Cavalcante, Rosângela Mendes Alves, Célio Peixoto, Judite de Castro
Morais e José Batista de Mendonça, este último recém falecido.
Não posso esquecer-me dos outros amigos de longas datas, pessoas que
sempre me demonstraram sinceridade e apreço: Maria da Conceição Monteiro,
Arit de Souza Pena, José Mauro Cardoso, Renato Santos Lacerda, Rogério
Pereira e Stela Morais.
Aos professores do mestrado, pela competência e seriedade com o
trabalho. Neste rol, esta de modo especial o Dr. Eduardo Scheidt, orientador desta
pesquisa, que pelo rigor das exigências, aliado à sua grande paciência, muito me
fez crescer no âmbito cognitivo. Aos atores sociais, que de alguma forma tiveram
alguma ligação com o processo histórico enfocado neste trabalho, e que
gentilmente receberam-me para longas entrevistas: padre José Abdala Jorge,
José Nazareno Ataíde, Dom Lelis Lara, José Índio do Brasil, Adolfo Martins da
Costa Quintão, Lenini Ribeiro de Matos, Emilio Edstone Duarte Gallo, José
Rodrigues do Amaral, Zélia Quintão Froes, Wilson Moreira, Ana Ângela Sabará e
José Batista de Mendonça.
Outros que forneceram informações diversas: padre Ivo Luciano Silveira,
com seus preciosos conhecimentos sobre Concílio Vaticano II e sobre a
Conferência de Medellín; Penha Cassemiro, com completos dados sobre os
trabalhos as Comunidades Eclesiais de Base na Diocese de Itabira; Irmã Teresa
Maria Squiavenato, com informações sobre catequese e Antônio Martins
Medeiros, oficial de justiça da Comarca de Coronel Fabriciano que testemunhou
os fatos.
Lembro-me ainda da cordial atenção dos funcionários da Auditoria da 4ª
Circunscrição Judiciária Militar, sediada em Juiz de Fora, onde estive para buscar
uma cópia do processo jurídico contra os religiosos, principal objeto da pesquisa.
A todos os meus mais sinceros agradecimentos. Sem o apoio de vocês eu
não teria chegado até aqui.
SUMÁRIO
Introdução..................................................................................................................................... 9
Capítulo I - A Igreja na Mira do Regime Militar ........................................................................ 19
A sociedade brasileira sob o Regime Militar ......................................................................... 19
A Interiorização da Repressão ............................................................................................... 23
O Acirramento do Regime no Vale do Aço............................................................................ 26
A Igreja divergente ................................................................................................................. 34
Capítulo II – As manifestações discursivas na esfera social e política local ..............................
48
A apuração dos fatos .............................................................................................................. 52
Visões polêmicas .................................................................................................................... 57
Um caso a parte ...................................................................................................................... 60
O processo jurídico ................................................................................................................ 62
“O Fato” e o Regime ............................................................................................................ 65
A construção da defesa .......................................................................................................... 70
Capítulo III - As manifestações práticas na esfera social e política local ..................................
81
O caso Monção ....................................................................................................................... 86
As práticas sociais .................................................................................................................. 88
As novas experiências no Vale do Aço................................................................................... 91
Além do altar .......................................................................................................................... 97
Considerações Finais .................................................................................................................. 104
Referências Bibliográficas ........................................................................................................... 107
Documentos ................................................................................................................................. 109
Depoimentos orais........................................................................................................................ 109
Depoimentos no IPM.................................................................................................................... 110
Bibliografia................................................................................................................................... 111
As representações do mundo social assim construídas,
embora aspirem a universalidade de diagnóstico
fundada na razão, são sempre determinadas pelos
interesses de grupos que as forjam. Daí, para cada
caso, o necessário relacionamento dos discursos
proferidos com a posição de quem os utiliza. As
percepções do social não são de forma alguma
discursos neutros: produzem estratégias e práticas
(sociais, escolares, políticas) que tendem impor uma
autoridade à custa de outros, por elas menosprezados,
a legitimar um projeto reformador e a justificar os
próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. [...]
As lutas de representações tem tanta importância como
as lutas econômicas para compreender os mecanismos
pelos quais um grupo impõe ou tenta impor, a sua
concepção de mundo social, os valores que não são os
seus, e o seu domínio.
(CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e
representações. Lisboa: DIFEL, 1990, p. 17).
10
INTRODUÇÃO
A tomada do poder pelas Forças Armadas, em 1964, foi anunciada como
passageira e defendida como necessária, num momento de desordem institucional
crescente, vivido pelo país, durante o período do governo de João Goulart. No
entanto, a partir de 1967, assume o poder a ala militar denominada linha dura,
quando o presidente Castelo Branco foi sucedido por Costa e Silva. Naquele
momento em que se esperava a volta da normalidade democrática, ao contrário,
ampliou-se a opressão. Gradativamente, o regime foi se tornando mais fechado e
novas ações repressoras foram sendo adotadas, culminando, em 13 de dezembro
de 1968, com a edição do Ato Institucional número 5, reconhecido como a maior
demonstração de forças dos militares com os opositores do regime
( )1
.
As medidas foram justificadas como forma de conter a grande onda de
protestos em que mergulhara o país naquele momento. Destaca-se o movimento
estudantil, com grandes manifestações de protestos contra a ditadura. Somava-se
a eles os intelectuais, artistas, líderes sindicais e outros grupos sociais, propondo
radicais transformações na estrutura política e econômica do país. Em meio a
essa situação, começou a despontar a ala progressista da Igreja Católica, que
influenciada pelas proposições do Concílio Vaticano II, entrara no debate em
busca de soluções para os muitos problemas vivenciados pela sociedade
brasileira.
Em meio a esses grupos, alguns defendiam a implantação do socialismo
como o sistema ideal para o Brasil. Os mais extremistas acreditavam que ele
deveria se implantado a todo custo, o que significava a sua imposição pelo poder
das armas, ocasionando o surgimento de inúmeros grupos guerrilheiros urbanos e
rurais.
1
Brasil Nunca Mais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986, p. 60 – 68; SKIDMORE, Thomas: Brasil: de Castelo a
Tancredo. 6 ed. São Paulo, SP: Paz e Terra, 1988, p. 45-100; FILHO, Daniel Aarão Reis e MORAES, Pedro
de:1968-A Paixão de uma Utopia. 2 ed. Rio de Janeiro RJ: Editora FGV: 1998, p 11-32; SILVA, Hélio. O
Poder Militar. 2 ed. Porto Alegre RS: L&PM :1984, p 411-440.
11
A Igreja, em muitos lugares no país, experimentou um trabalho pastoral
diferente do convencional, com a implantação de grupos de reflexão e CEB’s –
Comunidades Eclesiais de Base. Por isso, vimos muitos religiosos de várias
congregações, direcionados na luta por questões sociais, orientando os trabalhos
da Ação Católica, com seus muitos grupos específicos: JEC – Juventude
Estudantil Católica, JOC – Juventude Operária Católica e JUC - Juventude
Universitária Católica
( )2
.
Por esse engajamento político e social, aí incluindo as lutas contra os
desmandos do Regime, essa facção do clero, acabou sendo vista com reservas
pelos setores tradicionais da sociedade e dentro da própria Igreja, culminando
com a divisão em duas alas: conservadora e progressista.
Os conflitos foram se instalando, e como todos os setores engajados contra
a Ditadura, a ala progressista também sofreu perseguições por parte do regime.
Deparamos então com inúmeros relatos de ações da ditadura contra muitos
religiosos: prisões, processos jurídicos e muitas torturas. Destacam-se as
investidas contra membros da Ordem dos Dominicanos, que teve seu convento
em São Paulo, invadido pela polícia, quando foi preso o frei Tito de Alencar Lima.
Na prisão, esse religioso enfrentou os horrores da tortura física e psicológica,
culminando tempo depois com o seu suicídio em sete de agosto de 1974, quando
se encontrava exilado na França
( )3
. Alguns nomes da hierarquia católica,
especialmente pelas atuações na área dos Direitos Humanos, acabaram se
tornando verdadeiros símbolos da resistência à Ditadura, exemplificados nas
figuras de Dom Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, e Dom Paulo
Evaristo Arns, Cardeal-Arcebispo de São Paulo.
2
Com a instalação do regime de 1964, cresceram os conflitos entre Igreja e Estado. A partir de 1968, com o
Ato Institucional nº 5, diante da violenta repressão: prisões, torturas e assassinatos de opositores ao Regime,
inclusive religiosos. A Igreja assumiu uma forma de atuação junto aos setores populares da sociedade,
consolidando o trabalho que desde os anos cinqüenta já se delineava, com a criação dos grupos da ação
Católica, entre eles a JOC e JUC. Cf. BERNAL, Sergio: CNBB - Da Cristandade à Igreja dos Pobres. 1 ed
São Paulo SP: Loyola, 1989.
3
BETO, Frei: Batismo de Sangue. 13 ed. São Paulo SP: Casa Amarela, 2004, p 257-289.
12
No processo de expansão, o regime fechou o cerco sobre as mais
longínquas regiões do país, chegando também ao Vale do Aço
( )4
. Aí se
concentrou a ala do clero da Diocese de Itabira, que melhor absorveu as idéias do
Concílio. Pela atuação dentro do novo contexto, esse grupo foi visto também como
subversivo e seus componentes processados com base na Lei de Segurança
Nacional.
Foram réus oito membros e ex-membros do clero local: Wilson Moreira,
Geraldo Ferreira Monção, Petrus Martinus Johannes Van Rossum, José Nazareno
Ataíde, Joseph Cornelius Marie De Man, José Valentim Bertollo, Cícero de Castro.
Nesse trabalho, pretendemos realizar uma análise das questões político-
ideológico relacionadas ao processo e seus envolvidos, inseridos no contexto
nacional e local da luta por democracia e justiça e contra a repressão do Regime
Militar.
Embora haja fartas discussões acadêmicas acerca da Ditadura Militar, não
encontramos sequer investigação científica sobre a atuação do aparato repressivo
do Regime na região de abrangência da Diocese de Itabira. Nem mesmo a
imprensa escrita atual cita tal episódio. As pessoas que remontam a própria
sociedade da época, não foram esclarecidas sobre o que de fato teria acontecido
naquele momento. Somente alguns poucos cidadãos, justamente aqueles que de
alguma forma, tiveram uma ligação com o acontecido, seriam capazes de recordar
e falar sobre o assunto, tais como: os próprios réus, seus familiares e amigos,
antigos professores da extinta Universidade do Trabalho e algum aluno mais
atento. Certamente por motivos da repressão a que todos os setores da
sociedade estavam expostos, os envolvidos na questão, preferiram o silêncio.
Portanto, um trabalho de analise desses acontecimentos, servirá para
analisar o processo de interiorização do Regime Militar. Aproveita-se
especialmente o fato de a maioria dos personagens ainda estarem vivos e lúcidos,
com fácil acessibilidade aos seus depoimentos e aos documentos originais,
4
Região localizada no Centro Leste de Minas Geral, inicialmente formada pelos Municípios de Coronel
Fabriciano, Ipatinga e Timóteo. Os dois últimos são sedes de duas grandes empresas siderúrgicas,
respectivamente a USIMINAS e a ACESITA, o que justifica a denominação “Vale do Aço”. Desde 1998,
tornou-se Região Metropolitana, incluindo o Município de Santana do Paraíso.
13
relativos ao todo. Soma-se a tudo isso o fato de que, a sociedade da época, por
não ter uma visão clara e consciente do assunto, deixava-se influenciar pelas
propagandas favoráveis à Ditadura, vendo em grande parte, os acusados como
criminosos.
Como objetivo central, pretendemos analisar o confronto entre o discurso e
a prática da repressão e as idéias e práticas da Igreja da época, especialmente da
ala progressista, na qual estão inseridos os religiosos aqui enfocados.
Nos propusemos, analisar aspectos do referido processo jurídico ainda não
esclarecidos: acusação formal e delatores; defensores, argumentação e desfecho.
Entrever em plena época da vigência do AI-5, a relação entre o Estado, governado
pelos militares, cujo objetivo era de preservar as estruturas políticas, econômicas
e sociais conservadoras e a Igreja no Vale do Aço, cuja visão evangelizadora
inspirada na “Teologia da Libertação”, apregoava idéias divergentes. Pretendemos
ainda enfocar o referido processo como um episódio local que expressa uma luta
nacional mais ampla, pela democratização e pela participação política no Brasil da
época. Analisaremos a participação dos setores mais progressistas da Igreja nas
lutas democráticas do Vale do Aço.
Temos como hipótese, que a interiorização do Regime, na região do Vale
do Aço, ocorreu em 1964 e quatro anos depois houve o seu acirramento. Então
supomos que disputas de visão de mundo já estavam iminentemente polarizadas
nesses espaços de micropoderes, ou seja, um forte embate entre as
representações sociais de duas alas da Igreja Católica na jurisdição da Diocese de
Itabira. Assim a simples luta por justiça de uma forma geral, dentro da visão
progressista, era vista como ato de “transgressão” pelos setores conservadores da
sociedade e logicamente pelos militares. Supomos uma dissonância entre Igreja
tradicional e progressista.
Sobre a fundamentação teórica, esse projeto se enquadra na linha de
pesquisa de História Política. Busca desvendar na história local um fato que se
insere na História Nacional, constituindo-se como uma abordagem na forma de
14
Micro-História
( )5
. Concentramos a pesquisa em um recorte temático específico: a
atuação da Igreja Progressista no contexto do Regime de 1964. Neste sentido,
buscaremos enfocar, no contexto político e social brasileiro da época, as
explicações para o comportamento dos religiosos. Pretendemos discutir os
interesses de mundo de cada grupo social enfocado: religiosos progressistas
versos religiosos tradicionalistas e outros setores, defensores e opositores do
Regime. Tencionamos no âmbito contextualizado do período mais duro da
Ditadura, discutir as funções, o comportamento e o modo como operaram cada um
desses grupos.
Numa ampliação das possibilidades de enfoque, o trabalho buscará discutir
as relações de poder: Regime Militar versus Igreja Progressista. Buscaremos o
conceito de poder em Foucault, com seu livro Vigiar e Punir, o qual orientou o
Projeto Brasil Nunca Mais
( )6
, obra de inspiração para este trabalho.
“Vigiar e Punir” é uma síntese retrospectiva da história da transformação da
legislação penal, desde meados da Idade Moderna até os nossos dias. Em meio
aos estudos dos métodos e meios punitivos adotados pelo poder público para
coibir a criminalidade, o autor expõe uma variedade de exemplos de formas de
controle, destacando-se os institucionais: militares, prisionais, escolares,
religiosos, médicos e outros. Neles estão contidos os claros objetivos
disciplinadores do comportamento de indivíduos eleitos como padrões corretos.
São demonstrativos de modelos que visam impor verdades diversas: morais,
políticas, econômicas, etc. Entende-se assim que: “O poder é um conjunto de
formas e estratégias usadas para se atingir a submissão de pessoas por outras”.
Está este poder acima de tudo, nas ações e nas relações entre pessoas, grupos
ou instituições.
5
BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ: 2004, p.
152-179; REVEL, Revel (Org.). Jogos de escalas: a experiência da micro análise. Rio de Janeiro: FGV, 1998;
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição.
São Paulo: Companhia da Letras, 2001; LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (Org.). A
escrita da história. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 133-162.
6
Projeto de Pesquisa jornalística que reuniu cópias de quase que a totalidade dos processos que ao longo do
Regime de 1964, tramitaram pela Justiça Militar brasileira. Elaboraram um minucioso estudo, que culminou
na edição do livro: Brasil Nunca Mais, editado em 1985. Cf. Brasil Nunca Mais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986,
p. 21-27
15
[...] O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação
“ideológica” da sociedade; mas também uma realidade fabricada por essa
tecnologia específica que se chama disciplina. [...] Na verdade o poder
produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da
verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam
nessa produção
( )7
.
No caso específico, os militares, uma vez instalados no governo, criaram
todo um aparato de controle da sociedade: censura à imprensa, ao pensamento
político e à produção cultural, suspensão de direitos mais elementares dos
cidadãos, prisões, torturas e mortes. Instalou-se então um rigoroso sistema de
vigilância sobre todos os cidadãos, punindo com severidade aqueles que
ousassem transgredir os ideais do sistema.
Em interface com a História Cultural, buscamos em Roger Chartier,
especificamente em sua obra História Cultural: entre Práticas e Representações
( )8
, os pressupostos para construir este trabalho. Propomos, dentro do contexto da
época, entender as idéias reinantes na sociedade de então, o que o autor chama
de “visões de mundo”. Para tal, elegemos as fontes de pesquisa: o Processo
Jurídico, os jornais da época e os depoimentos orais. Dessas, extrairemos as
utensilhagens mentais e conceituais, que seriam o conjunto de instrumentos:
símbolos, conceitos, crenças e valores presentes nos extremos do documento,
que levaram a divergências entre uma ala da Igreja e Governo Militar. Completam
os estudos dos métodos e meios, os discursos e ideologias apresentadas nos
outros documentos produzidos na época tais como: homilias, aulas, artigos que os
implicados escreviam em jornais e outros documentos.
Estudaremos a representação, que seria a reconstrução do pensamento
vivido à época. Propomos decodificar os valores, intenções e objetivos presentes
nas atitudes e discursos de ambos os lados do objeto estudado: Igreja
Progressista versus Regime Militar.
Quais práticas do cotidiano dos acusados foram vistas como caráter dita
subversivo?
7
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 16 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004, p. 161.
8
CHARTIER, Roger: A História Cultural, Entre práticas e Representações. 1 ed. Rio de Janeiro,RJ: Bertrand
Brasil, 1990, p. 13-67
16
Com o trabalho pretendemos mostrar o choque de ideologias causado a
partir de uma igreja renovada pelos princípios do Concílio Vaticano II. Aqueles que
se engajaram numa visão evangelizadora moderna foram combatidos e
intimidados pelos que defendiam a Igreja tradicional. O próprio Regime Militar
tinha a intenção de evitar qualquer mudança nos padrões que entendia como
corretos.
Quanto às fontes, pesquisamos o Processo Jurídico, número 39.342,
instituído com base na Lei de Segurança Nacional, que tramitou entre 1970 e
1972, na Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar, com sede em Juiz de
Fora, MG, tendo como réus, oito padres da Diocese de Itabira, acusados de
subversão. Documentos diversos, deixados por Dom Marcos Noronha, cedidos a
este trabalho pela sua viúva, Dona Zélia Quintão Fróis: Textos e cartas expedidas
e recebidas.
Ampliando as possibilidades de informações, procuramos explorar ao
máximo os depoimentos orais diversos, colhidos em entrevistas gravadas com os
atores indiciados ainda vivos: Padre Abdala, Nazareno e Wilson Moreira.
Paralelamente, entrevistamos os atores sociais que acompanharam o desenrolar
dos fatos: Dom Lelis Lara, atual bispo Emérito da Diocese de Itabira, à época,
vigário da Paróquia São Sebastião, em Coronel Fabriciano; José Rodrigues do
Amaral (carioca), jornalista, proprietário do jornal O Flan; Dr. Emilio Edstone
Duarte Gallo, advogado de defesa dos padres; Ana Ângela Sabará, viúva do
jornalista Euclides Diogo Sabará, jornalista do Vale do Aço, preso à época inicial
do Regime Militar; Adolfo Martins da Costa Quintão, comerciante de Coronel
Fabriciano, também preso pelo Regime; Zélia Quintão Fróis, viúva de Dom Marcos
Noronha, primeiro bispo da Diocese de Itabira; Ademir Horta, professora
universitária que conviveu com os padres processados; José Índio do Brasil, ex-
padre diocesano à época e João Vicente Weitzel, ex-padre redentorista que
também conviveu com os processados, além de professores diversos, que
atuavam em escolas católicas.
Quanto às questões metodológicas, utilizamos orientações de literatura
especializada, especialmente, em Marieta de Morais Ferreira, em seu livro, Usos e
17
abusos da História Oral
( )9
. Nessa obra, buscamos, conforme expresso no
capítulo II, orientação para técnicas de pesquisa oral. A proposta é a construção
uma história oral como suporte complementar às fontes eleitas como principais: O
Processo, e as provas anexadas ao mesmo.
Buscamos extrair da memória dos acusados, agora passado longo período
do fim do processo, possíveis fatos ocultados e não expostos no mesmo, como os
interesses de grupos e pessoas isoladas na condenação dos acusados. Conforme
citado no capítulo III, (O handcape do a posteriori).
Seguimos um roteiro pré-estabelecido para as entrevistas, com base em
informações sobre a vida do depoente, sua atuação profissional e seu
envolvimento com o episódio em questão ou proximidade com o assunto.
Para o trabalho com a imprensa, buscamos orientações na obra de Maria
Helena Capelato, Imprensa e História do Brasil
( )10
. Nesta obra ela enfoca a
trajetória da imprensa brasileira desde a época do Império até a atualidade. Expõe
os vários tipos de imprensa, seus objetivos, interesses, a sua atuação dentro do
contexto de cada época, e a censura sofrida nos períodos de ditaduras.
No contexto do Regime Militar, assim como em outras épocas, é preciso
estar atento aos interesses que envolviam a imprensa de uma forma geral.
Principalmente os grandes jornais que sempre somaram força com o poder,
veiculando informações que interessavam as classes dominantes. Com isto muitas
vezes, nem havia necessidade de censura, apenas um acordo entre eles. Neste
aspecto, direcionaremos a pesquisa no sentido de buscar antes de tudo, as
informações sobre os jornais, seus proprietários e quem neles escreviam.
Com base especialmente na parte em que enfoca a censura no período do
Regime Militar, trabalhando com jornais Canaã, A Verdade Impressa e O FLAN
( )11
, disponíveis no arquivo digitalizado do Museu Padre De Man, instituição
mantida pelo UNILESTE. Nestes jornais, o padre Abdala, um dos réus do
processo judicial, que é tema central deste trabalho, escreveu inúmeros artigos.
9
FERREIRA, Marieta de Morais. Usos e Abusos da História Oral. 6 ed.Rio de Janeiro, RJ: Editora FGV,
2005.
10
CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e História do Brasil: 1ed. São Paulo, SP: Contexto, 1988.
11
Jornais que circularam na região do Vale do Aço em diferentes épocas: O Canaã, de 1959 a 1963; A
Verdade Impressa, em 1963 e 1964; O Flan, de 1964 a 1969.
18
Analisaremos o conteúdo político e social dos mesmos e que foram inclusive
usados como possível prova de atividade subversiva do religioso.
O jornal considerado como mais importante para a pesquisa é O Fato.
Semanário litúrgico, editado pela Diocese de Itabira, entre 1967 e 1974. Tinha
como objetivo facilitar o acompanhamento dos atos litúrgicos pelos fieis. Trazia na
primeira página um editorial, sempre explorando um tema social ou político, este
misturava liturgia das missas dominicais com discussões sobre um fato regional
ou nacional em voga na data de sua publicação e circulação. Demonstrativo de
forte preocupação da Igreja da região, com as questões políticas e sociais, numa
linha da chamada Igreja Moderna. Devido às dificuldades em obtê-los, uma vez
que, nem mesmo o arquivo da Cúria Diocesana de Itabira o possui, a pesquisa
com esse se limitará à aqueles anexados ao processo, Números: 54, ano 2, de 07
de Setembro de 1969; numero 94, ano 2, de 14 de junho de 1970 e numero 95,
ano 2, de 21 de junho de 1970.
Dividimos o trabalho em três capítulos: O primeiro, intitulado, A Igreja na
mira do Regime militar, onde abordamos o processo de
interiorização do Regime
Militar e sua chegada à região do Vale do Aço e, a partir de 1968, com a
instauração do AI 5, o acirramento das ações repressoras tendo como foco o clero
local. Uma ligeira retomada das orientações da Diocese de Itabira (criada em
1965), inspiradas no Concílio Vaticano II e na Conferência de Medellín, assistimos
visões de mundo divergentes no interior da Instituição, culminando em várias
denúncias com objetivos últimos de derrubar a ala progressista. Desse modo,
detectamos, empiricamente, numa região interiorana brasileira, dois cleros
disputando representações de mundo social com vistas a legitimá-las, justificá-las,
difundi-las e consolidá-las nos espaços de micro poderes, embora fosse o clero
conservador, em grande medida, favorecido pela conjuntura política nacional do
Regime.
No segundo, focamos uma análise de discurso das representações tidas
pelos atores envolvidos no processo: os réus, os denunciadores, a promotoria, a
defesa, as testemunhas. Também discorremos as visões de mundo que
embasavam: a acusação, as provas, os argumentos e o veredicto, incluindo os
19
acontecimentos nos bastidores da justiça e os pormenores negligenciados no
transcorrer do processo judicial. Não se pretende desvendar um crime, conforme
se pretendia a justiça militar, mas desvendar um cotidiano, uma comunidade, as
suas relações sociais. Não temos por fim descobrir o que realmente aconteceu e
sim tentar compreender como eram produzidos e explicados as diferentes versões
que os diversos agentes sociais envolvidos apresentavam para cada caso.
No terceiro, tratamos de analisar as
práticas sociais reproduzidas e
compartilhadas pelos diferentes atores - líderes da Igreja e setores sociais
correlacionados - que estavam em alguma medida alinhadas às visões de mundo
da matriz latino-americana da Igreja Católica. Visamos apontar quais ações que os
protagonistas do processo se relacionavam com os discursos e de que forma
essas práticas foram interpretadas.
Finalmente, esperamos através deste trabalho mostrar o choque de
ideologias causado a partir de uma Igreja renovada pelos princípios do Concílio
Vaticano II. Aqueles que se engajaram na visão evangelizadora moderna foram
combatidos e intimidados pelos que queriam a Igreja tradicional. O próprio Regime
Militar tinha a intenção de evitar qualquer mudança nos padrões que entendiam
como corretos.
20
A IGREJA NA MIRA DO REGIME MILITAR
A sociedade brasileira sob o Regime Militar
Na noite de 31 de março de 1964, finalmente os militares dominam poder,
consolidando o que há muito já postulavam através de inúmeros ensaios golpistas:
1954
( )12
, quando pretenderam a deposição de Getúlio Vargas; 1955
( ),13
quando
tentariam impedir a posse do Presidente Juscelino Kubitschek e em 1961
( )14
,
quando das articulações para impedir o poder de governo do presidente João
Goulart. Citam-se, ainda, os levantes de menor importância que aconteceram no
Governo Juscelino Kubitscheck: Jacareacanga
( ) 15
e Aragarças
( )16
.
O Golpe 1964 destituiu do comando da nação, o presidente João Belchior
Marques Goulart e instalou uma ditadura que perdurou até 1985. O movimento
fora iniciado pelo Comando da Quarta Região Militar, sediada em Juiz de Fora,
sob as ordens do General Olympio Mourão Filho. As tropas dessa guarnição
12
Em 1954, um movimento político-militar conservador, tendo a frente a UDN – União Democrática
Nacional, fora organizado para pressionar o presidente Getulio Vargas à renuncia. Entre outros motivos, eram
contrários à política nacionalista adotada por esse governo. O acontecimento culminou com o suicídio do
presidente.Cf. SKIDMORE, Thomas: Brasil: de Getulio a Castelo. 5 ed. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra,
1976, p.110 - 180
13
O mesmo grupo que em 1954, que atuou na tentativa de derrubada de Vargas da presidência da República,
articulava um golpe para impedir a posse do Presidente Juscelino Kubitschek.A manobra foi impedida pela
ação do marechal
Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, que em um golpe preventivo, executado a partir de
11 de novembro de 1955, garantiu o cumprimento da constituição e deu posse ao presidente eleito. Cf.
SKIDMORE, Thomas: Brasil: de Getulio a Castelo. 5 ed. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1976, p.181 – 202.
14
Novamente, setores políticos e militares conservadores articularam em 1961 no sentido de evitar o poder ao
presidente que consideravam como inimigo. Após um acordo político aceitou o estabelecimento do regime
parlamentarista no país e assumiu como Chefe de Estado, sem poder de governo. Em 1962, num plebiscito, o
povo escolheu a volta do presidencialismo. Cf. SKIDMORE, Thomas: Brasil:. De Getulio a Castelo. 5 ed.
Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1976, p.252-268.
15
Levante militar, precipitado em 11 de fevereiro de 1956, poucos dias depois da posse de Presidente
Juscelino Kubitschek. Os oficiais da Aeronáutica, o major Haroldo Veloso e o capitão José Chaves Lameirão,
tomaram posse de um avião da FAB - Força Aérea Brasileira e voaram para a base de Jacareacanga, no Pará
onde se juntaram a outros oficiais. O movimento
A rebelião se opunha ao governo de Juscelino Kubitschek.
Cf.
www.cpdoc.fgv.br/nav_jk/htm/O_Brasil_de JK/Revolta_de_jacareacanga.asp.> Acesso em 06 de
novembro de 2006.
16
Conspiração Militar de 2 de dezembro de 1959, liderada pelo tenente-coronel João Paulo Moreira Burnier.
O objetivo do movimento seria para afastar os corruptos e comunistas que controlavam o poder da nação.
Tomaram a base de Aragarças em Goiás, de onde pretendiam partir para dominar a Capital Federal. Cf.
www.cpdoc.fgv.br/nav_jk/htm/O_Brasil_de_JK/Revolta_de_aragarcas.asp. Acesso em 06 de novembro de
2006.
21
partiram para o Rio de Janeiro. Ao meio do caminho, encontraram com o efetivo
do Primeiro Exército, até então legalista. Este, ao em vez de combater o comando
de mineiro, aderiu ao golpe. Finalmente, com adesão de outras unidades,
incluindo São Paulo e Rio Grande do Sul, o grupo de Mourão ocupou o Rio de
Janeiro. Com apoio fragilizado e temendo uma possível guerra civil, João Goulart
refugia no Uruguai.
O presidente da Câmara dos Deputados,
Ranieri Mazilli, assumiu
interinamente o comando do país, até que em 11 de abril o Congresso Nacional
aceitou a indicação do Comando Militar Revolucionário
( )17
e elegeu como novo
presidente, o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco.
A principio, Castelo Branco teria a missão de completar o tempo de
mandato de Goulart, para, então, retornar a normalidade democrática. Porém,
diante das imposições da linha dura
( ) 18
e da UDN, muda-se o curso da história,
quando uma emenda constitucional prorrogou o mandato de Castelo até 1967.
Pode-se dizer que, a partir de então, estava instalada a Ditadura Militar que
duraria até 1985, um longo período em que a população foi cerceada dos seus
direitos mais elementares: liberdade de expressão, liberdade de reivindicações e,
especialmente a liberdade de escolher os governantes da nação. Os órgãos de
segurança passaram a vigiar os passos de todos os brasileiros, e sem respeitar os
limites de dignidade da pessoa humana, conseguiam impor os ideais do regime
sobre a nação
( )19
.
Entre os muitos motivos para a realização do golpe, os militares justificaram
a defesa da democracia, o controle da inflação e o combate à corrupção.
Especialmente se propunham a “salvar” o Brasil da “ameaça comunista”. As
circunstanciais à época, pareciam fazer crer aos militares que havia no país os
17
Junta Militar, criada à 1 de abril de 1964, composta por representantes das três armas,: general Artur da
Costa e Silva, do Exército, almirante Augusto Rademaker, da Marinha e o brigadeiro Francisco Correia de
Melo, da aeronáutica. Teve papel fundamental na implantação do regime, subordinando o poder de governo
do país.
18
Termo político, usado para designar uma corrente ou facção, dentro de um movimento, partido ou governo,
que adota posições mais radicais, menos moderadas e mais intolerantes, especialmente no contexto de
regimes ditatoriais.No caso do Regime Militar de 1964, distingue o grupo que assumiu o poder em 1967,
quando da saída do presidente Castelo Branco. Cf. Brasil Nunca Mais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986, p. 60-68.
19
Idem.
22
inimigos internos, grupos que lutavam para implantar o socialismo no Brasil, pela
via revolucionária. Esses estariam infiltrados nos muitos seguimentos sociais,
inclusive nas Forças Armadas, chamados subversivos
( )20
. Reforçava-se a
polarização ideológica estabelecida pela Doutrina de Segurança Nacional
( )21
, que
por sua vez, se constituiu no contexto da Guerra Fria
( )22
.
No entanto, a Ditadura não pode ser reconhecida como um ato exclusivo
dos militares. Ela fora fruto de muito bem arquitetado plano que envolveu todas as
classes sociais. O comício de 13 de abril de 1964, no qual o presidente Goulart
anunciou as reformas de base
( )23
, estimulou as reações de oposição ao seu
governo, acelerando o processo que culminou no golpe de 31 de março.
Somaram forças os setores sociais conservadores, os quais se sentiriam
prejudicados com a efetivação das propostas: a grande imprensa, os grande
empresários nacionais, as empresas multinacionais, os banqueiros, os oficiais
militares superiores, os latifundiários e os políticos da UDN. Mobilizaram a opinião
pública, semeando a idéia de que era preciso “salvar” o Brasil, que corria o risco
de ver destruído os seus valores mais importantes, entre eles a família e a religião
( )24
. Praticamente toda a classe média, além das classes trabalhadoras do campo
20
Eram considerados subversivos aqueles que lutavam contra o Regime Militar, usando como método a
subversão da ordem vigente, ou seja, qualquer tentava de ir contra os princípios apregoados pelos militares no
poder.
21
Concepção ideológica de Segurança Nacional, difundida pelas forças armadas brasileiras, embasada em
verdades do mundo pró Estado Unidos, do período da Guerra Fria. Foi elaborada, pelos militares que
tomaram o poder em 1964, destacando-se: o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco e o General
Golbery do Couto e Silva. Estes, assim como outros grandes nomes das altas patentes da época, já possuíam
um histórico de entrelaçamento com as Forças Armadas norte-americanas desde a Segunda Guerra Mundial,
ao lado de quem o Brasil lutou nesse conflito. Depois de 1945, o Brasil continuou a manter contatos com as
instituições militares norte-americanas, enviando regularmente, oficiais para treinamentos e cursos. De lá
voltaram com um modelo copiado de uma concepção de Defesa Nacional que culminou com a criação da
ESG em 1949 e a sedimentação da Lei de Segurança Nacional, que teve seu auge na consolidação da
Ditadura Militar, através do Decreto-lei 314 de 1968.Cf. artigo: A Doutrina de Segurança Nacional e o
Manto dos Atos Institucionais durante a Ditadura Militar Brasileira, publicado na Revista Espaço
Acadêmico, n.35 – abril de 2004.
www.espacoacademico.com.br/035/35priori.htm, acesso em 08 de maio
de 2006.
22
SILVA, Hélio. 1964 - Golpe ou Contragolpe? 1 ed. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1975, p. 33.
23
Entre as várias reformas propostas por João Goulart, consta a reforma agrária, que pretendia acabar com a
concentração fundiária através da redistribuição da terra. A reforma urbana previa a compra dos imóveis pelos
inquilinos, com a avaliação e acompanhamento do governo. Propunha ainda o controle sobre as remessas ao
exterior, dos lucros da empresas multinacionais.
24
Semeava-se a idéia de que os comunistas iriam dominar o país e que esses acabariam com a propriedade
privada, perseguiriam a religião e desmantelariam a família.Cf. SILVA, Hélio. 1964 - Golpe ou
Contragolpe?. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1975, p. 335 -340.
23
e da cidade, deixou-se seduzir pela propaganda anticomunista. Estavam
amparados pelos conhecidos grupos de ações direitistas: IBAD – Instituto
Brasileiro de Ação Democrática; IPES - Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
( )25
, UDN – União Democrática Nacional e o PSD - Partido Social Democrático,
além da Igreja Católica, e da grande imprensa. Uma grande demonstração de
força de oposição ao governo foi a realização da Marcha da Família com Deus
pela Liberdade
( )26
, realizado em São Paulo.
Para dar sustentabilidade legal, às suas ações, à frente do governo, os
militares reestruturam juridicamente o país, fortalecendo o Estado com a edição de
Atos Adicionais. O primeiro deles, o AI -1, foi editado a nove de abril de 1964,
antes mesmo de o Congresso Nacional referendar o nome de Castelo Branco para
a presidência. Esse determinava a eleição indireta do presidente da República; a
autorização para o presidente caçar mandatos, suspender direitos políticos por
dez anos e decretar estado de sítio. Assim, logo ao assumir a presidência em
quinze de abril, o general Castelo Branco fez uso das prerrogativas que lhes eram
atribuídas pelo AI -1: Caçou o mandato de dezenas de membros do Congresso
Nacional, deputados estaduais e vereadores. Demitiu outras centenas de
funcionários públicos, entre juizes, civis e militares. Foi instituído o bipartidarismo,
quando foram criados: a ARENA – Aliança Renovadora Nacional, como partido do
governo e o MDB - Movimento Democrático Brasileiro, como partido de oposição.
Entre 1964 e 1969, foram editados dezessete atos Institucionais e cento e
quatro Atos complementares. Entre os primeiros, Considera-se o AI -5, de treze de
dezembro de 1968 como o mais autoritário documento da História do Brasil. Ele
dava excessivos poderes ao presidente que poderia a qualquer momento, fechar o
25
Organizações anticomunistas, fundadas respectivamente em 1959 e 1962. Eram financiadas por
empresários brasileiros e estrangeiros e se propunham a influenciar nos com suas idéias no direcionamento
dos destinos políticos, sociais e econômicos do país. A primeira tinha entre outras ações, o financiamento de
campanhas de candidatos políticos concordantes com os ideais apregoados pela instituição. A segunda, se
propunha a controlar o pensamento político da população tendo por base a propaganda. Cf. PENNA, Lincoln
de Abreu. Republica Brasileira. 3 Ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1999, p. 241 -265.
26
Ato público realizado em São Paulo, a 19 de março de 1964, que funcionou como desagravo ao comício
presidencial, realizado no dia 13, o qual reuniu cento e cinqüenta mil pessoas. O movimento organizado
inicialmente por católicos teve a adesão de outras religiões, reunindo segundo estimativas, entre quinhentas e
oitocentas mil pessoas. Cf. SILVA, Hélio. 1964 - Golpe ou Contragolpe?. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ:
Civilização Brasileira, 1975, p.335 -340.
24
Congresso Nacional, as assembléias legislativas e as câmaras municipais;
decretar intervenções nos estados, territórios e municípios; caçar mandatos
eletivos, suspender direitos políticos e decretar confisco de bens. Consolida-se o
caráter ditatorial do governo através da edição em 1967, da nova Constituição
Federal
( )27
.
A soma dessas, respaldaram os governos dos generais ao longo de toda a
existência da ditadura, garantindo todos os desmandos, da política autoritária,
baseada na censura aos meios de comunicação, a violência das torturas e até as
mortes dos inimigos do regime. Completavam-se mazelas, com maciços
investimentos em propaganda, para parecer à população que tudo ia muito bem.
Concluí que esta foi a forma que encontraram para impor ao país, o modelo
econômico concentrador, expresso no arrocho salarial, na concentração fundiária,
facilitação aos investimentos estrangeiros e nas remessas de lucro das empresas
multinacionais
( )28
.
A Ditadura terminou em 1985, com eleição de Tancredo Neves para
presidente da República, deixando para traz um saldo econômico negativo,
demonstrado pela dívida externa, que em 1984 atingira a cifra de noventa e cinco
bilhões de dólares. A inflação na mesma época chegara ao patamar dos 240% ao
ano. Tudo isso, sem contar os traumas das famílias que tiveram seus entes
queridos assassinados nos porões das instituições militares, incluindo os muitos
desaparecidos.
A interiorização da Repressão
Logo à instalação do Regime de 1964, muitos dos setores da sociedade
brasileira, em todos os cantos do país passaram a ser rigorosamente vigiados. Os
27
PENNA, Lincoln de Abreu. Republica Brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1999, p. 241-
299.
28
Brasil Nunca Mais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986, p. 60 – 68.
25
militares no poder criaram um aparato que foi se consolidando no decorrer dos
anos, alojados em siglas conhecidas: DOPS – Delegacia de Ordem Política e
Social, DOE – Departamento de Operações Internas, CIE – Centro de
Informações do Exército e OBAN – Operação Bandeirantes. Destaca-se como
principal entre todas, o SNI – Serviço Nacional de Informações, criada pelo
General Golbery, logo nos primeiros dias após o golpe. Era um órgão diretamente
subordinado à Presidência da República e tinha a missão de vigiar os passos dos
cidadãos e detectar os “inimigos” do Regime. Estavam na mira da repressão: os
próprios militares das diversas patentes e instituições, sindicalistas, políticos,
jornalistas, estudantes, bem como religiosos de tendências progressistas
( )29
.
Em paralelo, surgiram grupos clandestinos radicais, de extrema direita que
ajudaram a sustentar o regime utilizando metodologias escusas para impor os
ideais reacionários, entre eles o CCC – Comando de Caça aos Comunistas, grupo
paramilitar com um vasto currículo de ações violentas: Invasão de teatros, de
shows e confrontos de ruas com estudantes.
Discute-se que o aparelho repressor se valeu de muitas instituições da
sociedade para realizar o controle social. Essas vigilâncias múltiplas encetadas
pelo “super-poder”, constituído de generais governantes, eram também
reproduzidas e compartilhadas em escalas menores, tais como escolas, igrejas,
hospitais, delegacias, fábricas, sindicatos, oficinas de imprensa e famílias
( )30
.
Essas atitudes de macro vigilância em escalas micro espaciais eram reproduzidas
por diversos atores sociais que se aliaram ao Regime. No caso da Igreja, diversos
clérigos foram vigiados pelos próprios fiéis. Em algumas situações, as
divergências de idéias (confronto entre progressistas e tradicionalistas) dentro da
própria instituição eram tantas que levaram muitos sacerdotes a serem
denunciados como subversivos.
A Ditadura, num processo de interiorização em todo o país, chegou ao Vale
do Aço, onde também se instalaram as diversas formas de controle social:
29
Brasil Nunca Mais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986, p. 117-154.
30
Sobre a questão do poder e controle social em pequenas escalas conferir FOUCALT, Michel. Microfísica
do poder. 13. ed. Rio de Janeiro, RJ: 1998. Também em Vigiar e punir: nascimento da prisão. 29. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
26
censura aos meios de comunicação, detenções e prisões diversas, com notícias
inclusive de torturas, como é o caso do jornalista Euclides Diogo Sabará.
Simplesmente Sabará, como era conhecido o proprietário do jornal A Verdade
Impressa
( )31
, no qual escrevia abertamente contra os militares no poder. Acusado
de incitar a conspiração contra o Regime foi preso numa operação que tinha à
frente o temido Tenente Xavier, então comandante do destacamento militar da
região, à época sob as ordens do 6º Batalhão da PMMG, sediado em Governador
Valadares. Sabará recebeu voz de prisão numa manhã, num momento em que
fazia compras num mercado em Timóteo.
Foi levado para a cadeia pública de Ipatinga, onde permaneceu alguns dias.
Desde o princípio fora posto incomunicável e, para desespero de seus familiares,
foi transferido para outra cidade sem que a família fosse sequer avisada.
Custaram obter informações de que ele estava no Presídio Estadual de Ribeirão
das Neves, município da grande Belo Horizonte. Consta, então, que nessa prisão
teria recebido os maus tratos, comuns aos presos políticos da época. Foi libertado
cerca de quarenta dias depois
( )32
.
Entre outros casos notórios, registra-se o da prisão de Adolfo Martins da
Costa Quintão, proprietário de bancas de Jornal, que fora preso sob acusação de
vender literatura subversiva, tal como o jornal Classe Operária
( )33
. Adolfo as
vendia, segundo ele próprio afirma, por não entendê-las como veículo de
propaganda contra o Regime, mesmo porque, viu tais literaturas em outras bancas
em muitos lugares por onde andou. A polícia chegou até ele ao prender em Belo
Horizonte o responsável pela distribuição clandestina dos periódicos. Junto a este,
encontrou um caderno de anotações onde o nome do jornaleiro e seu endereço
figurava na relação de clientes. A partir disso foi intimado a comparecer na
delegacia de polícia, a 27 de abril de 1964. Chegando lá, foi imediatamente preso
31
O jornal A Verdade Impressa circulou no Vale do Aço entre os anos 1963 e 1964. Em formato tablóide,
com variação de quatro a doze páginas e de circulação semanal, possuía seções de esportes, colunas sociais,
anúncios comerciais, matérias políticas e outros, os quais eram redigidos pelo próprio Sabará sob os
pseudônimos Fantenoso, Milquíades e Madame Abgaiu.
32
SABARÁ, Ana Ângela Godoy: depoimento [06 de maio de 2006], Timóteo.
33
O jornal Classe Operária era editado pelo Partido Comunista, desde 1925. Ao longo do
Regime de 1964, assim como em outras épocas, circulou na clandestinidade.
27
e levado para Belo Horizonte. Na capital, permaneceu uma noite inteira na sede
da Secretaria Estadual de Segurança Pública. No dia seguinte foi levado para
depor no DOPS e sendo transferido em seguida para o presídio de Ribeirão das
Neves, onde adoeceu. Com crise respiratória aguda, foi internado no Hospital
Militar no Bairro Santa Efigênia. Teve como colega de enfermaria, um assumido
comunista, médico com quem não pôde aprofundar conhecimentos, pois eram
vigiados, por uma guarda que revezava 24 horas à porta do quarto. Só sabia que
ele se chamava Geraldo e que fora preso porque fazia campanhas contra o
Regime. Ficou vinte dois dias sob detenção militar
( )34
.
Um dos fatos de repressão mais lembrados na região do Vale do Aço é o
que envolve Durval Ribeiro Matos, conhecido comerciante em Coronel Fabriciano,
preso numa manhã, em sua própria casa. A polícia fechou o quarteirão da rua
Coronel Silvino Pereira, onde Durval residia e mantinha um ativo comércio de bar.
Foi acusado de comunista porque dera o nome de “Lenini” a seu filho, que por
sinal, nessa época, já adulto, cursava a faculdade de Farmácia em Ouro Preto.
Entendia os militares que o nome do rapaz era uma homenagem a Lênim, o líder
da Revolução Russa
( )35
.
Levado para Belo Horizonte foi interrogado e mantido em cárcere privado,
sob a custodia da família do senhor Chiquito Quintão, antigo comerciante de
Coronel Fabriciano, na época residindo na capital. Por interferência do então
Deputado Estadual e advogado, Geraldo Quintão, foi liberado das acusações,
retornando a Coronel Fabriciano.
O Acirramento do Regime no Vale do Aço
A partir de 1968, o regime sofreu uma intensificação da política repressiva.
O Ato Institucional n° 5, promulgado em 13 de dezembro de 1968, como uma
verdadeira emenda constitucional, recrudesce a repressão. O Regime do qual se
esperava uma distensão se torna mais repressor e mais fechado. O acirramento
34
QUINTÃO, Adolfo Martins da Costa: depoimento [16 mar. 2006], Coronel Fabriciano.
35
MATOS, Lenini Ribeiro: depoimento [8 mar. 2006], Coronel Fabriciano.
28
do Regime vai resultar de uma mudança de conjuntura política desencadeada a
partir da enfermidade do Presidente da República, General Artur da Costa e Silva -
que impossibilitado de continuar à frente do governo, devido seu derrame cerebral
- foi substituído por uma Junta Militar que renegava a posse do Vice-presidente
civil, Pedro Aleixo. Esse fato acabou por precipitar uma “Revolução dentro da
Revolução”
( )36
. Justificavam-se com essa postura a necessidade de conter uma
onda de protestos que se avolumavam. Incluíam neste momento histórico o
movimento estudantil, os grupos clandestinos revolucionários, como o MR-8 -
Movimento Revolucionário 8 de Outubro e a ALN - Aliança Nacional Libertadora,
VPR – Vanguarda Popular Revolucionária e a chamada ala progressista da Igreja,
incluindo as atividades das CEB’s – Comunidades Eclesiais de Base, as quais
colocavam em risco os interesses dos grupos que desejavam manter o Regime
Militar.
Naquele momento, setores progressistas da Igreja, ao se manifestarem,
sobretudo, contra as injustiças sociais e contra a diminuição das liberdades
políticas, corriam o risco de serem vistos como subversivos bem como
conspiradores da queda do Regime. Entrementes, confundiam suas reivindicações
com as de quaisquer grupos políticos de oposição, fossem eles comunistas
revolucionários ou não. Ao que tudo indica, o Regime pós-68 polarizou as
ideologias. O slogan proposto pela Ditadura Militar “Brasil, Ame-o ou Deixe-o” é
uma imagem representativa das tensões entre o joio e trigo. Nele, os militares se
identificavam com a Nação e associavam aqueles que se opusessem ao Regime
como inimigos que deveriam ser extirpados do corpo nacional. Polarizaram a
discussão de tal modo que quem fizesse oposição era freqüentemente
perseguido, processado e até mesmo exilado; não raro taxado como subversivo
ou comunista.
36
O conceito Revolução, era de uso dos militares, numa alusão ao momento em que impunham sobre a
sociedade brasileira, o regime fechado. Queriam fazer a todos, acreditarem que o país não vivia uma ditadura
e que realizaram uma revolução contra o caos e a desordem social e política. Acima de tudo, alegavam que
estavam salvando o país do comunismo.
29
Nesse contexto, qualquer manifestação de descontentamento político-
social-econômico, ou tentativa de reivindicação de democracia, no limite de
ideologias de cunho progressista, passou a ser visto como ato subversivo.
As duras imposições do AI-5, também tiveram no Vale do Aço, um
acirramento ainda maior de ações de intolerância, tal como no restante do Brasil,
em que nem mesmo a Igreja Católica escapou.
A ala mais progressista do clero local sofreu as conseqüências conforme
aponta o testemunho do Processo número 39.342, que tramitou entre 1970 e
1972, na Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar, sediada em Juiz de Fora.
O documento judicial, contendo seis volumes e novecentas e trinta folhas, foi
movido contra alguns padres e ex-padres da então Diocese de Itabira, hoje
Itabira/Coronel Fabriciano, tendo sido iniciado no Quartel General da 4ª Divisão de
Infantaria, em Belo Horizonte. Figuraram como réus oito membros e ex-membros
do clero local: Wilson Moreira, então diretor da Escola Estadual Alberto Giovannini
em Coronel Fabriciano e padre Vigário da Paróquia Nossa Senhora da Esperança,
no Bairro Horto em Ipatinga; Geraldo Ferreira Monção, padre e professor, à época
da denúncia residente em Belo Horizonte; José Jorge Abdala, padre secular,
Vigário da Paróquia de São José em Timóteo; Petrus Martinus Johannes Van
Rossum, ex-irmão da Congregação dos Irmãos de Nossa Senhora Mãe da
Misericórdia, que residia em Ipatinga; José Nazareno Ataíde, recém saído da vida
sacerdotal, quando atuava como vigário da Paróquia de Santo Antônio do bairro
Melo Viana em Coronel Fabriciano; Joseph Cornelius Maria De Man, Padre de
origem holandesa, da Congregação dos Padres do Trabalho
( )37
que atuava como
diretor e fundador da Universidade do Trabalho
( )38
em Coronel Fabriciano; José
37
Congregação religiosa católica masculina, fundada pelo padre Théophile Reyn, em 1894, na Bélgica. Tem
como principal objetivo assistir as necessidades materiais e espirituais dos operários nas grandes cidades.
38
A Universidade do Trabalho é o atual Centro Universitário do Leste de Minas – UNILESTE, primeira
instituição de ensino superior da região do Vale do Aço, criada em 1969, pelos Padres do Trabalho, chefiados
pelo Padre Joseph Cornelius Marie De Man, um dos réus do processo jurídico, objeto de estudo desse
trabalho. Os religiosos buscaram apoio financeiro para a implementação do empreendimento, nas empresas
locais, especialmente USIMINAS, ACESITA, Belgo Mineira e CVRD, além de entidades européias católicas,
destacando a Miserior.
30
Valentim Bertollo, padre jesuíta, servia como vigário do Bairro Cariru em Ipatinga;
Cícero de Castro, padre secular, trabalhava na Paróquia Cristo Rei, em Ipatinga.
O Pivô da questão foi, sem dúvida, o militar do Exército, Capitão Reformado
Carlos Frederico de Castro e Silva Fassheber, que residia no bairro Horto em
Ipatinga, nas vizinhanças da Igreja de Nossa Senhora da Esperança, sede da
Paróquia do mesmo nome. Em muitas ocasiões, ele demonstrou incompatibilidade
com o Pároco, Padre Wilson Moreira, e as suas atividades pastorais. Foi então,
Fassheber quem encaminhou, juntamente com outros dois cidadãos, Marcelo
Lemos Monte Santo e o professor de Ciências do Ensino Básico, Ângelo Lemos
Duarte, a formalização das denúncias contra os religiosos, conforme depoimento
dado a 8 de setembro de 1969, ao Coronel Euclides de Oliveira Figueiredo,
encarregado de abrir e acompanhar o inquérito. O depoimento, no qual atuou
como escrivão, o Segundo Tenente, Humberto de Morais Rego, é considerado o
documento detonador do processo jurídico e foi colhido nas dependências do
Colégio Militar de Belo Horizonte. Os testemunhos estavam recheados de
acusações de todo tipo, onde não faltaram nem mesmo insinuações de corrupção
administrativa em relação a um dos acusados e sua atuação à frente da
Universidade do Trabalho.
Segundo consta, o Capitão mantinha contato com inúmeras pessoas nas
diversas comunidades paroquiais e nas escolas do Vale do Aço. Com elas
formava uma rede de articulações em busca de informações que acumulava no
sentido de incriminar os religiosos como um verdadeiro aparato de vigilância. De
fato, no depoimento ele demonstra estar muito bem informado de tudo que se
passava em todas as paróquias. Tanto é que Nazareno afirma que muitas vezes
foi aconselhado por fiéis mais próximos para conter os excessos nos discursos e
práticas cotidianas, pois pessoas lhes vigiavam. Fassheber declarou que no bairro
Melo Viana, em Coronel Fabriciano, a Paróquia de Santo Antônio, sob a direção
do padre Nazareno, mantinha um sítio onde aconteciam reuniões secretas, nas
quais só eram admitidas pessoas previamente convidadas. E que a paróquia
mantinha um clube recreativo, freqüentado por pessoas humildes, onde se
realizavam reuniões, nas quais, se discutia a necessidade de derrubar o governo.
31
Afirma ainda Fassheber que em todas as paróquias os padres se diziam membros
da Igreja Católica Apostólica Diocesana e não Igreja Católica Apostólica Romana,
numa manifestação contra o Papa e enaltecimento do bispo local
( )39
.
Fassheber relata ainda nesse depoimento, inúmeros acontecimentos
registrados dentro das escolas onde atuavam esses religiosos. Não só nas aulas
de Educação Moral e Cívica, mas também de outras matérias, sempre desviavam
para assuntos de política. Cita exemplos de fatos ocorridos no Colégio São
Francisco Xavier, localizado na cidade de Ipatinga, e por ele pessoalmente
verificados. Ele afirma que por ocasião da Semana da Pátria, em 1968, nas aulas
de religião dadas pelo Irmão Pedro
( )40
, em todas as turmas de quinta série, foi
feita aos alunos a seguinte pergunta: ”Por que comemorar a Independência, se o
país não o é?”
( )41
. Além disso, o mesmo religioso teria chegado a comentar nas
mesmas turmas que os militares deram um novo golpe, ao impedir a posse do
Vice-presidente, instalando uma Junta Militar no controle da nação a partir do
adoecimento do Presidente da República, General Costa e Silva.
Com relação às mesmas aulas, denuncia também:
[...] na segunda feira, 1º de setembro, tendo em vista o feriado
bancário, foi perguntado às crianças, de repente, porque os
bancos estavam fechados. É interessante lembrar aqui que esta
pergunta foi feita a inopinalmente (sic), numa classe de primeira
série ginasial. Como as crianças não puderam responder, foi lhes
então explicado que o governo temia uma corrida aos bancos
( )42
.
Até mesmo algum conteúdo das falas dos padres em reuniões foram
citados na denúncia:
[...] no dia 31 de agosto, numa reunião realizada pela liga de
esportes no recinto da Câmara Municipal. Estava sendo
organizado o programa das festividades da Semana da Pátria,
quando o padre Carvalho do Colégio São Francisco Xavier
perguntou que independência iriam comemorar, de vez que o país
39
FASSHEBER, Carlos Frederico de Castro e Silva. Denúncia [8 set. 1969] encontrada no Processo nº 2.931,
4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 jun. 1972, fl.. 24-25.
40
Pedro era o nome usado para se referir ao Irmão Petrus Martinus Johannes Van Rossum, de origem
holandesa e professor no Vale do Aço.
41
FASSHEBER, op. cit., p. 25.
42
Idem, p. 26.
32
não era independente e que as festividades eram uma palhaçada
( )43
.
Contou que por ocasião da Semana da Pátria de 1969, os padres se
recusaram a colaborar com as programações, inclusive negando a celebrar missa
alusiva à data. E ainda, que apesar de constar no programa do dia Sete de
Setembro, o repique de sinos nas igrejas, eles não só se negaram a fazê-lo, como
ainda retiraram as cordas que os acionavam
( )44
.
Citou os nomes dos padres que mais se destacavam com trabalhos de
subversão: Nazareno, Wilson Moreira, Guido, Resende, Carvalho, Francisco, José
Maria De Man, Abdala, Constantino, além do Irmão Pedro e o diácono Guido
Laroy. Denuncia também que muitas moças, a maioria ex-irmãs de caridade
( )45
e
professoras, também estariam tendo comportamento subversivo
( )46
.
O militar chamou a atenção para o que considerava muito grave: a grande
presença destes religiosos nas instituições de ensino na região. Destaca
principalmente o caso da Universidade do Trabalho, dirigida pelo Padre holandês,
José Maria De Man, que considerou um foco de agitação, especialmente após a
criação da Faculdade de Filosofia, onde as aulas de muitos professores eram por
muitos da época, consideradas como instrumento de doutrinação comunista.
Acrescentou ainda que a Universidade do Trabalho era mantida por capital
estrangeiro, citando inclusive, altos valores em dinheiro proveniente de entidades
européias, que apesar de tudo, a escola não possuía nenhum laboratório
( )47
.
Fassheber finalizou seu depoimento acusando o padre Nazareno de pertencer a
um suposto “Grupo dos Onze”
( )48
.
Há fortes sinais de ser o próprio Fassheber o agente vigilante da Paróquia
do Horto. É dito que o ato de vigiar sabia fazer muito bem, uma vez que era o
43
Idem.
44
Idem, p. 25.
45
Irmã de caridade é uma forma muito comum de se referir a freiras no Brasil.
46
FASSHEBER, op. cit., p. 26.
47
Idem, p. 26-27.
48
O “Grupo dos Onze”. Eram Grupos nacionalistas criados a partir de outubro de 1963, sob orientação de
Leonel Brizola. É muito discutida a atuação destes grupos, que de forma muito desorganizados tinham o
objetivo de tomar o poder de forma revolucionaria. Foram implantados por todo o país, mas foram sufocados
pelo golpe que colocou os militares no poder.
33
Chefe da Divisão de Segurança da Usina Intendente Câmara, o parque
siderúrgico da Usiminas
( )49
, sediado em Ipatinga. Conta-se que nesta empresa
ele atuava também como um agente a serviço do Regime. Lembremos que a
USIMINAS, naquela época era uma das maiores empresas estatais brasileiras,
assim como o Vale do Aço era considerado um centro estratégico para a
economia do país. E assim, até hoje remanescentes discutem o papel de
Fassheber naquele momento histórico da empresa e da região. Ao que tudo
indica, provavelmente a vinda dele para Ipatinga, em janeiro de 1964, com a
missão de organizar o serviço de segurança da USIMINAS, tinha por objetivo
maior lançar as bases locais que sustentassem o iminente Golpe Militar. Referem-
se a ele como os olhos e os ouvidos do governo, não só em Ipatinga, mas por
toda a redondeza. Seu nome seria então uma forma de intimidação do operariado
e conseqüentemente a imposição dos ideais de 64, na empresa e na sociedade.
Outros a ele se referem como um araponga
( )50
, atento a tudo o que se passava.
Comum eram alguns indivíduos verem-no entrar na igreja do Horto,
especificamente nos momentos de homilias, justamente no espaço da missa em
que o padre dirigia sua pregação e, logicamente expressava suas idéias como
sacerdote. Podemos deduzir com essa atitude, uma intenção para além do
compromisso devocional, isto é, queria mesmo era se inteirar do conteúdo da fala
do pregador com objetivos últimos de munir-se de informações que
fundamentassem suas denúncias. Seu rigoroso cumprimento do dever para com o
Regime na região lhe valeu a nomeação para Interventor no Município de Timóteo,
entre agosto de 1970 a janeiro de 1971, em substituição ao então prefeito Jaimar
de Castro Coura, afastado do poder em decorrência de acusação de corrupção
administrativa
( )51
.
Entre os muitos problemas de relacionamento com o Vigário da Paróquia
49
A USIMINAS é a companhia siderúrgica criada com financiamento japonês, à época do governo do
Presidente Juscelino Kubitschek e instalada no município de Ipatinga a partir de 1958. Consolidou-se como a
grande fornecedora de aço para a industria automobilística brasileira.
50
Provavelmente o vocábulo araponga figurava a imagem de uma pessoa que provoca grandes problemas a
partir de mínimas coisas. Segundo o dicionário Aurélio, trata-se de uma ave de canto estridente. Fig. Pessoa
que fala aos gritos.
51
ABDALA, José Jorge: depoimento [2 fev. 2006], Timóteo.
34
do Horto, Wilson Moreira, está o caso de uma reunião de pais de crianças
catequizandas, em meados de outubro de 1969. Nessa reunião preparatória para
a primeira comunhão das crianças, o diácono e o padre Wilson teriam se
desviados totalmente dos objetivos, pregando, entre outras, “abertamente a
subversão da ordem e a luta armada para derrubar o governo”
( )52
. O momento
teria culminado com exaltados protestos de Fassheber contra as palavras dos
religiosos, fato também relatado no depoimento.
Segundo outro documento integrante do processo jurídico, este é o
conteúdo da fala de Guido Laroy que teria motivado a discussão:
[...] estamos vivendo num país sem liberdade e que, agora mesmo,
venho de um bairro da cidade denominado Vila Celeste onde a
miséria existente é um contraste gritante com o fausto da riqueza
da USIMINAS; que a miséria existe em toda a periferia de uma
riqueza supérflua, representada pela USIMINAS; que para que tal
miséria deixe de existir, a Igreja admite quaisquer meios, até
mesmo processos violentos com a luta armada, desde que isso
fosse a solução de tais problemas.
( )53
No rebate às palavras de Guido, assim teria pronunciado Fassheber:
[...] que achava estranho o fato de ter o orador dito que não havia
liberdade no país, quando o próprio orador tinha inteira liberdade
de expor suas idéias, como o fez na conferência; que o declarante
ao rebater o que foi dito, pelo pregador, alertou a este que lançar
pobres contra ricos como havia sido por ele feito, não conduzia a
qualquer resultado prático, mas sim a discórdia entre irmãos. [...]
que se admira o fato de estar sendo exposto como pensamento da
Igreja, idéias de ódio e lutas de classe
( )54
.
Padre Wilson interveio favoravelmente ao diácono, endossando suas
palavras. Então foi rebatido por Fassheber que os advertiu “que tais declarações
constituíam delito contra a Segurança Nacional e que ele não admitiria que se
continuassem a fazer tais pregações”
( )55
.
52
FASSHEBER, op. cit., p. 24.
53
Idem, p. 29
54
Idem.
55
Idem, p. 30.
35
Seguindo-se o depoimento, entram as falas das outras testemunhas:
Marcelo Lemos Monte Santo e o professor Ângelo. O primeiro endossa as
palavras de Fassheber, afirmando que os fatos por ele citados são de total
conhecimento público. E o segundo perguntado se concordava com as palavras
das testemunhas anteriores afirmou que ambos são pessoas idôneas e gozam do
mais alto conceito do meio social da região além de serem profundos
conhecedores do que foi narrado. Ângelo relatou ainda que à época em que
Brizola lançou a idéia de criação do “Grupo dos Onze”, o padre Nazareno foi o
responsável pela organização deste no bairro Melo Viana, em Coronel Fabriciano.
O padre teria ainda pedido apoio financeiro aos comerciantes do mesmo bairro
para a criação de um “jornal mural” e, que em suas explicações, dizia que na
China o êxito da revolução, em grande parte, se devia a este método de
comunicação
( )56
.
Igreja divergente
No que tange à Igreja Católica, havia pelo menos duas alas do clero que
disputavam diferentes orientações: conservadora e progressista. A primeira dizia
que a Igreja não poderia e nem deveria tomar partido na política e nem ir além de
sua missão de buscar os valores celestiais. Pois essa era a representação ou
visão de mundo predominante na instituição até a época do Concílio Vaticano II.
Em alguma medida esta visão era absorvida pela sociedade
( )57
.
Uma situação conflituosa começou então a se instalar em meados dos anos
sessenta, quando desponta uma Nova Igreja que já se delineava desde o século
56
Idem.
57
SEDOC - Serviço de Documentação, Revista de publicação do Instituto Teológico Franciscano de
Petrópolis. Em seu numero 102, de 09 de julho de 1977, estão publicados documentos diversos que expõem
algumas divergências internas da Igreja no Brasil à época da Ditadura Militar. Trata-se das acusações de Dom
Sigaud, Arcebispo de Diamantina, contra Dom Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso
e Dom Tomás Balduino, bispo de Goiás Velho. Dom Sigaud era um grande expoente da ala tradicionalista do
clero brasileiro, ligado a TFP – Tradição Família e Propriedade. Entre outras, acusou seu colegas de defender
idéias marxistas.
36
XIX, quando da Edição da Rerum Novarum
( )58
. Depois veio a instituição da Ação
Católica
( )59
nos anos vinte pelo Papa Pio XI. É a chamada Igreja Progressista,
que não se contentava com essa visão religiosa “apolítica”. Pelo contrário,
desejavam e incentivam o engajamento dos cristãos na busca de soluções dos
problemas vivenciados pela sociedade.
Essas idéias de renovação chegaram à região de abrangência da Diocese
de Itabira, logo à sua à instalação, ocorrida à 29 de dezembro de 1965. Diga-se de
passagem, esta nova Diocese foi criada pelo Papa Paulo VI, através da Bula Audi
Inani (não foi em vão), em pleno andamento dos trabalhos do Concílio do Vaticano
II, tendo inclusive o seu primeiro bispo, Dom Marcos Noronha, sido nomeado à
mesma época. A nova Igreja Particular
( )60
, constituiu-se então de vinte e oito
municípios, dos quais, vinte e dois desmembrados da Arquidiocese de Mariana
( )61
e seis da Arquidiocese de Diamantina.
( )62
O novo bispado teria como sede a cidade de Itabira, a cem quilômetros de
Belo Horizonte, localizada na área do Quadrilátero Ferrífero
( )63
. Por sinal, a
cidade abriga até hoje, a Mina do Cauê
( )64
importante jazida de minério de ferro,
58
Encíclica escrita pelo Papa Leão XIII, em 1891, cujo teor é um debate sobre as condições em que se
encontravam as classes trabalhadoras. O documento apoiava aos trabalhadores em organizações sindicais,
mas rejeitava o socialismo, além de defender o direito à propriedade privada. Propõe o diálogo entre a Igreja,
governo, empresária e proletariado, na busca das soluções para os problemas da sociedade.
59
Movimento Católico criado nos anos Vinte pelo Papa Pio XI. Propunha a participação dos leigos no
apostolado hierárquico da Igreja, com objetivo de difusão e atuação dos princípios católicos na sociedade.
60
Referencia usada para designar as áreas administrativas da Igreja, entregues a um bispo ou arcebispo.,
respectivamente, as chamadas dioceses e arquidioceses.
61
O mais antigo bispado de Minas Gerais, criado em 1745 e elevado ao Arcebispado em 1906. De sua área de
jurisdição nasceram outros bispados, destacando-se: Diamantina, Belo Horizonte, Caratinga e Itabira.
62
A Diocese de Diamantina foi criada em 1854, desmembrada da então Diocese de Mariana elevada à
Arquidiocese em 1917
63
Área de aproximadamente 7000 Km
2
, situada na porção central do estado de Minas Gerais, considerado o
maior depósito mineral natural do Brasil. A uma região de grande exploração de minério de ferro, ouro e
outros minerais. Já nos tempos coloniais foi palco da exploração aurífera pelos portugueses, época em que
surgiram na área, as cidades hoje consideradas históricas: Ouro preto, Congonhas do Campo, Mariana e
outras.
64
Denominação dada à mina de extração de minério de ferro, na área onde existia o pico o mesmo nome, no
município de Itabira. O monte Cauê foi demolido em virtude dessa exploração mineral. A mina de
propriedade da Cia Vale do Rio Doce, considerada uma das maiores jazidas de minério de ferro do mundo,
iniciou-se a atividade extrativa em 1940, pela então Itabira Iron Ore Company, empresa à época, controlada
pelo empresário norte-americano Percival Farquhar.
37
explorada pela Cia Vale do Rio Doce
( )65
.
Dom Marcos retornou da Europa cheio de inspirações e aspirações para
assumir a nova trajetória missionária. Sonhou com as possibilidades de
construção de uma Igreja renovada pelas idéias com as quais havia tido contato
em Roma. Como ele próprio dissera um dia, uma Igreja realidade viva, aberta as
alegrias, sofrimentos, angústias e esperanças dos homens e mulheres, visando
uma vida melhor para todos. Desde o principio, adotou um discurso progressista,
incentivando esta visão na Diocese. Tornou-se comum em todas as suas
publicações, palestras e atos religiosos da instituição, chamadas à reflexão para
os problemas brasileiros, como a má distribuição de renda, a concentração de
terras, e outros males, vistos como responsáveis pela grande miséria material de
boa parte da população
( )66
.
Esta nova forma de evangelização teria que ser consolidada oficialmente no
“Plano Pastoral da Diocese de Itabira”, o qual para sua elaboração, foi preparada
toda uma discussão prévia. A primeira iniciativa foi organizar administrativamente
a Diocese, a formação da Cúria, do secretariado, divisão em zonas geográficas de
atuação, reuniões e apresentação de propostas. Seguiu-se uma fase de
preparação para a elaboração do plano, que culminou num documento base,
intitulado “Tempo de Reflexão”. Este, contendo quarenta e quatro páginas, estava
munido de subsídios essenciais, num entendimento que seria os anseios da Igreja
local. O Plano Pastoral deveria conter objetivos, princípios, opções e diretrizes
para orientar as ações desta Igreja particular, no quadriênio 1967/1970. Seguiria a
orientação da CNBB - Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil, para um Plano
65
A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) foi criada pelo Governo Federal em 1942, em plena
vigência do Estado Novo, com objetivo de explorar e comercializar entre outros, o minério de ferro.
Foi privatizada em 1997, quando o Consórcio Brasil, liderado pela Companhia Siderúrgica
Nacional (CSN), venceu o leilão realizado na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Atualmente a
empresa se consolidou como a maior mineradora do mundo, fornecendo para todo o planeta,
produtos minerais que são transformados na industria, em materiais de consumo de todo tipo, desde
simples aparelhos refrigeradores, passando pelos automóveis, aos grandes aviões e navios, além de
outros, utilizados nas áreas de construção civil, comunicação e informática.
66
ABDALA, José Jorge: depoimento [2 fev. 2006], Timóteo; ATAÍDE, [6 jun. 2006], Coronel Fabriciano;
MOREIRA, Wilson [3 jul. 2006], Juiz de Fora; apontam que realmente havia uma orientação de cunho
progressista, dada diretamente pelo Bispo Dom Marcos Noronha, nas reuniões do clero local. Cf. documento
intitulado Tempo de Reflexão anexado no Processo nº 2.931, 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora,
28 jun. 1972.
38
Pastoral Conjunto, que embasado nas aspirações do Concílio, conclamava cada
bispo do país a elaboração do seu plano de ação, buscado nas realidades e
peculiaridades culturais da sua região de atuação.
No âmbito geral, o Plano Pastoral da Diocese de Itabira deveria ter como
objetivo, a busca de uma Igreja diferenciada, participativa em todas as dimensões,
que incluía o despertar para militância dos leigos. Era forma de atuação dos
religiosos que Dom Marcos Noronha incentivava e queria implantar a qualquer
custo. Sua meta era a construção de uma religião democrática, menos
hierarquizada, centrada numa forma de atuação conjunta do clero, que por sua
vez, deveria ouvir a opinião geral dos leigos, estes organizados em “Grupos de
Reflexão” que um dos componentes das CEBs – Comunidades Eclesiais de Base.
Assim, todos os setores da sociedade deveriam ter vez e voz. Por isso tais
grupos foram organizados em todas as cidades da Diocese. Estes em detrimento
das agremiações tradicionais: Apostolado da Oração, Congregação Mariana e Pia
União das Filhas de Maria. Os grupos de reflexão deveriam discutir os problemas
sociais, econômicos e políticos, locais e nacionais sempre embasados em textos
bíblicos, onde tiravam exemplos de histórias de luta do povo. Neste contexto o
livro Êxodo é um dos fortes exemplos, ao demonstrar a luta do povo hebreu pela
libertação do cativeiro no Egito.
Com isto, solidificavam grupos politicamente engajados na luta por um
Brasil mais justo, tendo por base a própria comunidade de atuação dos mesmos.
Era muito comum dizer que o verdadeiro cristão deveria acima de tudo, lutar pela
“construção do Reino de Deus na Terra”.
O clero deveria ser o exemplo encorajador dos leigos. Logicamente que uns
atuavam mais firmemente dentro deste propósito, correndo os riscos impostos
pelo regime em vigor no país. A partir de então, a forte proposição destes era
suficiente para que fossem vistos com desconfiança. Os processados foram vistos
como subversivos, por setores da sociedade e da própria Igreja. O que indicava a
existência de uma forte dissonância entre Igreja tradicional e progressista. Os
denunciadores eram da facção tradicional, somados a setores sociais de direita.
As lutas dentro da própria Igreja estavam assim, polarizadas pelas lutas
39
ideológicas do período. Mas o que teria influenciado uma vontade de renovação
pastoral tão forte na Diocese de Itabira?
Dom Marcos Noronha participou da ultima sessão do Concílio Vaticano II e
voltou muito entusiasmado com as novas possibilidades das novas idéias. Assim,
o trabalho de uma Igreja renovada, teve inicialmente como pilar central de
inspiração o Concílio, posteriormente consolidado no encontro de Medellin.
Inspirada no exemplo dos primeiros Cristãos, a Igreja reconheceu a
necessidade de mudanças. O papa João XXIII ao assumir a direção do catolicismo
idealizou no final dos anos cinqüenta, uma Igreja totalmente renovada, aberta para
um mundo novo, que desde o fim da Primeira Guerra Mundial já prenunciava
grandes mudanças
( )67
. “[...] A Igreja deverá escancarar as portas e janela para o
mundo e colocar-se em dia com as mudanças
68
“.Por isto tomou a iniciativa de
convocar os Bispos de todo o mundo para o Concílio Ecumênico Vaticano II. Foi
neste encontro que a Igreja, mudou sua trajetória, para uma “Igreja-sociedade”,
“Igreja-comunidade (
69
)”. O documento intitulado Lúmen Gentium, número VIII do
Concílio diz: “Cristo estabeleceu sua Igreja como comunidade de fé, esperança e
caridade”. Nele estão expressos o papeis de todos os componentes hierárquicos
da igreja, coloca aos leigos a missão especial de construtores do Reino de Deus
pela vivencia e pelo testemunho.
Considera-se entre tantos documentos, o de número III o mais decisivo.
Trata-se da Constituição Pastoral, intitulada Gaudium et Spes (Alegria e
Esperança). Este documento analisa a situação geral do mundo contemporâneo,
cada vez mais agredido pelas distâncias econômicas, sociais, tecnológicas e
culturais, não só entre as classes sociais, mas também entre as nações. A
67
O Papa Pio XII percebeu as grandes mudanças mundiais ao longo de seu pontificado (1939-1958)
Concluiu, nos últimos anos de sua vida, a necessidade de convocar um concilio, visando inserir a Igreja no
contexto das grandes transformações políticas, econômicas e sociais que se projetavam. Falecera em 1958
sem poder realizá-lo. O concilio foi então convocado por João XXIII, em 25 de janeiro de 1959. Anotações de
Dom Lelis Lara, bispo Emérito da Diocese de Itabira-Coronel Fabriciano.
68
Frase extraída do pronunciamento de João XXIII, realizado no Vaticano, em 25 de janeiro de 1959, em
solenidade de convocação do Concílio Vaticano II.
69
SJ, Francisco Ivern. Doutrina Social da Igreja e Teologia da Libertação. In. Maria Clara L. Bingemer
(org.) 1 ed. São Paulo SP: Loyola, 1994, p. 275-294
40
concentração de riquezas e o poder de dominação dos países desenvolvidos
sobre os subdesenvolvidos são demonstrados como um dos mais gritantes
contrastes, vistos como um desafio para a Igreja na sua nova tarefa
evangelizadora
( )70
.
[...] É preciso que se tornem acessíveis todas aquelas coisas que
lhe são necessárias para levar uma vida verdadeiramente humana.
Tais são: alimentos, roupas, habitação direito de escolher
livremente o estado de via e de constituir família, direito à
educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente
informação, direito de agir segundo a norma reta, de sua
consciência, direito a proteção da vida particular e à justa
liberdade, também em matéria religiosa
( )71
.
O documento ressalta que, à luz das Escrituras, Deus não quer uma
humanidade tão dividida em privilegiados e espoliados dos bens e dos direitos
essenciais. Conclama, então, toda a Igreja para o engajamento na busca da
construção de um mundo novo, assentado, acima de tudo, na fraternidade entre
os homens, conforme teria difundido o próprio Jesus Cristo em sua passagem pela
vida terrena. Reclama o compromisso do cristão à verdadeira conversão que o
levaria ao desprendimento, à entrega ao serviço e uma atuação dentro do
contexto político e social do momento, comprometida com os reais valores do
Evangelho.
O livro Êxodo é considerado peça chave na consolidação de tais idéias,
pois preanuncia as posições de Jesus, desse espírito de solidariedade, que levaria
à libertação do “Povo de Deus”, escravizados no Egito.
A Conferencia de Medellín, que aconteceu em 1968
( )72
reuniu os bispos
para a Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino Americano. No encontro,
as lideranças religiosas discutiram os problemas gerais da América Latina à luz do
Concílio, o que culminou com a elaboração de um documento final, como um
verdadeiro guia para as ações pastorais da Igreja dessa parte do continente.
70
IVO, Luciano Silveira: depoimento [11 mai. 2006], Coronel Fabriciano.
71
A Igreja no mundo de hoje: Concílio vaticano II – constituição pastoral Gaudium et Spes [Documentos
Pontifícios]. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1970, p. 31.
72
26 de agosto a 6 de setembro de 1968.
41
Formaram-se dezesseis comissões, que por sua vez, trabalharam cada
uma centrada num eixo temático especifico. Os trabalhos culminaram com a
elaboração de um documento final que deveria, a partir de então, permear os
trabalhos de evangelização nesta parte do continente.
Observa-se de uma forma geral, nos textos conclusivos, uma forte
predominância das preocupações com as questões sociais. Especialmente o de
número I, que trata da Promoção Humana, onde se discute o subdesenvolvimento
da América Latina como conseqüência de um passado de exploração colonial
pelas metrópoles européias, mantidos nos tempos atuais pela exploração
capitalista moderna. A sociedade de uma forma geral sente se oprimida.
[...] os esforços feitos não têm sido capazes, em geral, de
assegurar que a justiça seja respeitada e realizada em todos os
setores das respectivas comunidades nacionais. Muitas vezes as
famílias não encontram possibilidades concretas de educação,
para seus filhos; a juventude reclama seu direito de ingressar na
universidade ou em centros superiores de aperfeiçoamento
intelectual ou técnico-profissional; a mulher reivindica sua
igualdade de direito e de fato, com o homem; os camponeses
pedem melhores condições de vida, ou, se são produtores,
melhores preços e segurança na comercialização; a crescente
classe média sente-se afetada por falta de expectativa. Iniciou-se
um êxodo de profissionais e técnicos para paises mais
desenvolvidos; os pequenos artesãos e industriais são
pressionados pelos interesses maiores e não poucos grandes
industriais da América Latina vão passando progressivamente a
depender de empresas mundiais. Não podemos ignorar o
fenômeno desta quase universal frustração de legítimas
aspirações que cria o clima de angustia coletivas que já estamos
vivendo
( )73
.
Para solucionar tais problemas, ou pelo menos amenizá-los, só uma igreja
politicamente engajada. A oportunidade é a consolidação das CEBs que foram
criadas na Diocese de Itabira, logo à sua instalação e cuja estrutura está
assentada quatro pilares:
73
A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do concílio: conclusões de Medellín, Conselho
Episcopal latino-americano. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1973, p. 47.
42
Primeiro a Bíblia, que deveria ser lida e refletida semanalmente em grupo,
considerada o sustentáculo do grupo; segundo é a realidade onde a comunidade,
devendo seus membros ficar atentos às necessidades de vida do bairro, da cidade
ou área rural onde está inserida; terceiro é a espiritualidade, sustentada na oração
e na celebração, com liturgias enriquecidas com os símbolos que lembram as
lutas, as vitórias e derrotas do povo. Por último, a organização. Nas CEBs todo o
trabalho deve ser planejado com base em discussões democráticas, e as tarefas
distribuídas de forma a envolver a todos do grupo e valorizar a participação de
cada um
( )74
.
Percebe-se, que a pastoral implantada na Igreja de Itabira, procurou
avançar em aspectos considerados ousados, mesmo para o hoje, apesar dos
quarenta anos passados. As idéias eram muito diferentes daquela que até então
predominavam na Igreja: O clero fechado no mundo interno da instituição,
tomando as decisões e as impondo sobre os fiéis e esses apenas obedientes.
Somava-se a estes, a resignação e a aceitação das condições de vida como
conseqüências dos desígnios de Deus. A luta para mudar as condições de
opressão ou marginalização estavam descartadas.
O Regime Militar de 1964, por sua vez, foi instituído justamente com base
numa visão conservadora da sociedade, tudo faziam seus defensores e
simpatizantes para preservar os valores tradicionais enraizados. Por isso,
somaram forças todas aquelas pessoas, citadas como denunciadoras dos
religiosos, de quem discordavam das novas práticas. O simples fato de alguém
encarar qualquer idéia de forma diferente deles era suficiente para que tentassem
reprimi-los. A “Igreja Nova” politicamente engajada e preocupada com as questões
sociais, muito os incomodava, afinal esta forma de atuação clerical praticamente
não fora vista antes
( )75
. A sociedade de uma forma geral estava muito
acostumada com uma igreja mais voltada pela “Construção do Reino de Deus só
no Céu”, reagiu dividida, contra ou a favor das novas orientações: “[...] Religião é
outra coisa; religião fora de tudo; política é uma coisa, religião é outra; fé é outra.
74
Documento de orientação aos participantes do Décimo Primeiro Intereclesial, (encontro nacional de
participantes das CEBs), realizado em Ipatinga, em julho de 2005.
75
ATAÍDE, José Nazareno: depoimento [3 jun. 2006], Coronel Fabriciano.
43
Outros, pelo contrário, afirmavam, a fé tem que se revelar pela política, pela ação
e pelo trabalho”
( )76
.
Os mais tradicionais concluíram que os padres não foram formados para
uma atuação revolucionária, visto ser incompatível com o sacerdócio. As técnicas
de evangelização desta “Nova Igreja” estavam espantando os fiéis mais
fervorosos. “A verdadeira Igreja, que se impôs através dos séculos, não admite
processos covardes para conseguir qualquer objetivo, pois eles nunca serão
atingidos se não estiverem apoiados em princípios sadios”
( )77
. O próprio modelo
de atuação das CEBs, era então, motivo de discussões polêmicas. Para alguns,
um perigoso meio que poderia levar a Igreja à secularização, a partir do momento
em que conjugava fé e política, corria o risco de prevalecer as idéias da segunda.
No delicado momento da época da Ditadura, alguns a viram até mesmo como um
protótipo dos Soviets e, conseqüentemente perigoso, ao prenunciar a implantação
do comunismo no Brasil e na América Latina.
O documento conclusivo do Inquérito Policial Militar expõe como perigoso
exemplo a secularização, além do discurso agressivo
( )78
, o comportamento dos
padres concentrados na Zona III. “[...] Os padres passaram a celebrar missa de
calça e blusão, sem ao menos trajarem os paramentos próprios”
( )79
.
O relatório os compara com membros dos chamados “Grupos Proféticos”,
comunistas infiltrados na Igreja, conforme denunciara um artigo publicado na
edição número 1243 da revista Eclésia, editada pela Ação Católica Espanhola, em
janeiro de 1969. Afirma a revista que tais grupos tinham a intenção de usar a
Igreja como meio de propagar a revolução comunista.
A grande divergência estava então nas diferentes visões de cada setor
social, inclusive como já visto, dentro da própria hierarquia da Igreja. Concorriam
76
ATAÍDE, José Nazareno: depoimento [6 jun. 2006], Coronel Fabriciano. O depoimento oral desse
entrevistado reportam a fala de fieis contrários à “Igreja Nova”. Diga-se de passagem, que o depoente fora
vigário da Paróquia Santo Antônio no bairro Melo Viana em Coronel Fabriciano, nos anos sessenta.
77
Declarações contidas no relatório final do Inquérito Policial Militar. Vol. 1, fl.. 129 do processo jurídico
contra os religiosos. In: In: Processo nº 2.931, 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 jun. 1972.
78
A expressão é de uso de pessoas em debates sobre atuação moderna da Igreja. Exemplifica-se os discursos
eclesiásticos que querem chamar a atenção para os fatos políticos ou sociais.
79
Inquérito Policial Militar. Vol. 1, fl.. 123. In: Processo nº 2.931, 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de
Fora, 28 jun. 1972.
44
então às diferentes culturas políticas: a autoritária do Regime, com sua visão
conservadora e a da “Igreja Nova”, de tendência mais progressista.
O maior demonstrativo das diferentes visões de mundo social no seio do
clero são explicitados na aceitação ou não das idéias discutidas para a elaboração
do Plano Pastoral. As divergências geraram tantas polêmicas que os trabalhos
foram sendo adiados e nunca concluídos. A Diocese ficou dividida, quando as
novas idéias foram fortemente abraçadas pelos padres da Zona III da Diocese,
que é a chamada região do Vale do Aço, onde se localizam as cidades de
Ipatinga, Coronel Fabriciano e Timóteo, para onde recorriam os padres de linha
mais avançada. Enquanto isso, encontrou grande resistência em outros locais,
especialmente na região da Zona II, onde se localizam as cidades de João
Monlevade, Nova Era, São Gonçalo do Rio Abaixo, etc. Até mesmo os jornais
litúrgicos de cada uma das regiões eram diferentes: o jornal O Fato
( )80
, era em
todas as paróquias da Zona III, o guia das missas e reuniões diversas. Enquanto
isto, a maioria dos padres da zona II, relutavam em adotá-lo, improvisando outros
meios.
No Zona II um trabalho de recusa das novas formas de atuação, foi liderado
pelo padre João Batista Neto, vigário da Paróquia do bairro Carneirinhos em João
Monlevade. Entre as muitas de suas ações, relata-se a campanha que fizera
contra a atuação do Padre Monção. As diferenças nas maneiras de encarar a
religião eram visíveis e o confronto impossível de conter. Padre João Batista não
se conformava com a atuação do padre Monção, que a frente da Paróquia de
Loanda, em João Monlevade, entre os anos 1967 e 1968, adotara à risca as
orientações da nova filosofia difundida. O padre Monção, fora então, acusado de
se aliar às irmãs da Congregação do Esrito Santo para fazer uma “revolução
pastoral”, junto à recém criada paróquia. Foi acusado de suspender sacramentos,
fazer pregações deturpadas do Evangelho, aconselhar casais ao concubinato e
até mesmo de se aliar aos protestantes, absorvendo e defendendo idéias deste
grupo. Atitudes que segundo afirmou o Padre João Batista, revoltou a população.
80
Semanário litúrgico, editado pela Diocese de Itabira, entre 1967 e 1974. Tinha como objetivo facilitar o
acompanhamento dos atos litúrgicos pelos fieis, especialmente as missas dos finais de semana. Trazia na
primeira página um editorial, sempre explorando um tema social ou político.
45
Por sua vez, o padre Monção desmentiu as acusações e as colocou como uma
campanha realizada pelo Padre João Batista em detrimento à atuação pastoral
renovada.
Por toda a Diocese surgiram confrontos entre seguimentos defensores e
contrários as novas orientações. Merece comentário, o fato de pessoas da
sociedade se colocarem como vigilantes das ações dos religiosos ao ponto de
denunciarem tantas coisas consideradas banais
( )81
. Cita-se como exemplo, o fato
denunciado pelo Major Manuel Gonçalves em seu depoimento, sobre um cartaz
afixado pelo padre Wilson Moreira na porta da igreja do Horto, onde o enfoque era
uma reflexão sobre as diferenças sociais gritantes existentes no Brasil
( )82
. Até
mesmo os escritos do Padre Abdala, tendo ou não o objetivo de difundir idéias
socialistas, nenhuma repressão caberia a ele por isto, numa sociedade
verdadeiramente democrática. Estava ele exercendo o seu livre direito de
manifestação, mesmo através da imprensa que ele utilizava como veículo difusor
de suas idéias.
Não estaria o discurso da acusação influenciado pelo momento político o
qual vivia o país e às vezes exagerando em algumas declarações ou em
insinuações muitas vezes ingênuas? Podemos examinar até que ponto o padre
tem que responder as expectativas de discursos e práticas esperadas pelos fiéis?
Da mesma forma, o professor não teria o direito de discordar do poder então
vigente no país e discutir este desacordo com seus alunos em sala? No caso de
ser um professor de religião, qual o limite de assuntos que poderiam ser por esse
abordado em sua aula? A esse deveria ser vedado assunto de política? E quanto
a um diretor de escola? Conseguiria ele trabalhar sem opiniões e conceitos
próprios de educação, sendo estes de tendência esquerda ou direita?
81
Os motivos de indiciamento dos padres foram considerados, ainda naquele período, de “banais”. Assim não
estamos emitindo juízo de valor ao expressarmos isso nos dias de hoje, já que, mesmo nos anos setenta,
muitos padres consideraram banais as razões de acusação dos processados.
82
Em data não registrada, Padre Wilson Moreira afixou na entrada da igreja do Horto, um cartaz contendo
duas imagens: de um lado, uma pessoa bem vestida com seu carro de luxo, do outro, um casebre com uma
família pobre. Abaixo das figuras, estava escrito: Enquanto a chuva lava o carro do rico, destrói o barraco do
pobre. Segundo padre Wilson, seu objetivo era provocar solidariedade. Cf. MOREIRA Wilson: depoimento
[6 de julho de 1970]. Inquérito Policial Militar. Vol. 1, fl 65-67. In: Processo nº 2.931, 4ª Circunscrição
Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 jun. 1972.
46
Até que ponto um simples jornal litúrgico tinha que passar pelo crivo da
censura antes de ser usado como guia nas missas? Um padre, assim como
qualquer outra pessoa não poderia escrever artigos num jornal, que expressassem
sua opinião sobre qualquer tema? Em que medida, os interesses e as ideologias
do Regime Militar, impostos ao Brasil naquela época, não poderiam ser
questionados e desobedecidos? Em que proporção, a Igreja do Brasil e
particularmente a Igreja da Diocese de Itabira teriam que abdicar da sua visão
teológica particular em detrimento da forma de pensar daqueles que controlavam
o poder político do país durante a Ditadura? Por que a Igreja teria que participar
das comemorações do Sete de Setembro, dentro de uma visão das autoridades
que governavam o país naquele momento, inclusive repicando os sinos dos
templos em acato à uma proposição oficial?
As respostas a estas indagações estão certamente nas relações de poder
entre os que queriam manter a estrutura vigente e as instituições tradicionais, e
aqueles que delas discordavam e defendiam uma outra forma de organização
política e social. Ganharam, no entanto, os setores ligados à primeira opção, que
impuseram ao país a Doutrina de Segurança Nacional
( )83
, a qual teve seu auge
na publicação do Decreto-lei 314/68
( )84
, uma bem montada estrutura de controle
social. Era o minimização das liberdades democráticas instituindo a repressão
como política de Estado. Assim, reforçou-se a possibilidade de existência de
inimigos internos da pátria, predispondo a inserção do aparato repressor nos
setores onde até então não se poderia legalmente considerar áreas de Segurança
Nacional. Nesse aspecto, a suspensão das garantias individuais é o mais explícito
dos exemplos de tamanhas mazelas da Ditadura.
83
A Doutrina de Segurança Nacional seguia orientações do mundo pró Estados Unidos, do período da Guerra
Fria. Da sua elaboração, fizeram parte os militares que tomaram o poder em 1964, destacando-se o Marechal
Humberto de Alencar Castelo Branco e o General Goubery do Couto e Silva. Esses, assim como outros
grandes nomes das altas patentes da época, já possuíam um histórico de entrelaçamento com as Forças
Armadas norte-americanas desde a Segunda Guerra Mundial, ao lado de quem o Brasil lutou nesse conflito.
Depois de 1945, o Brasil não só continuou a manter relação de maior proximidade com os Estados Unidos,
como também manteve o envio regular de oficiais àquele país para treinamentos e cursos militares. Voltavam
apropriados das concepções de Defesa Nacional que culminaram com a criação da Escola Superior de Guerra,
em 1949. Os militares desta grande instituição desenvolveram embasamentos para a sedimentação da
Doutrina de Segurança Nacional, que teve seu auge na consolidação da Ditadura Militar.
84
Embasada na Doutrina de Segurança Nacional, este decreto editou a Lei de Segurança Nacional que tinha
como objetivo consolidar as ações da Ditadura Militar e fazer valer os interesses dos grupos que a sustava.
47
A Igreja também era uma instituição poderosa, especialmente no que
concerne a sua capacidade de persuasão. O catolicismo estava em todo o Brasil,
com forte penetração em todas as camadas e setores da sociedade. Se as idéias
progressistas difundissem em todo o solo brasileiro elas levariam à derrubada do
governo. Os militares não subestimavam o poder da Igreja de encetar
transformações na ordem vigente. Era preciso, então, desarraigar as
potencialidades pela raiz. O Regime instalou uma verdadeira caça às bruxas, com
uma vigilância sobre os passos dos religiosos de uma forma geral.
Sendo assim, o regime de exceção, imposto pelas Foças Armadas, foi fruto
de um bem arquitetado plano que visava impedir mudanças estruturais na
economia, na política e na sociedade. Armaram-se os militares, articulados com os
setores tradicionais no sentido de evitar as mudanças consideradas indesejáveis.
Destas, a mais temível, era que o Brasil caísse nas “garras do comunismo” e se
tornasse uma nova e grande Cuba.
No caso da atuação do aparelho repressor no Vale do Aço, mesmo
sabendo que nenhum dos religiosos em questão sofrera violência física, como
apontam tantos relatos por este Brasil afora, não podemos deixar de entender os
acontecimentos locais como violentos, enfocado, como absurda transgressão aos
direitos pessoais dos acusados. Explicitamente sofreram outras formas de
violência: moral, psicológica, simbólica, humilhação, constrangimento,
cerceamento de liberdade e invasão de privacidade. Contrários aos princípios
mais elementares dos Direitos Humanos:
(...)Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão;
este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e
de procurar, receber e transmitir informações e idéias por
quaisquer meios, independentemente de fronteiras
( )85
.
Relata José Nazareno Ataíde que no dia do seu depoimento ao
Departamento de Ordem Política e Social – DOPs, em Belo Horizonte, depois de
detido durante todo o dia sem alimentação, ficou tão amedrontado e abalado
85
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Art. 19.
48
psicologicamente que esquecera onde estacionara seu carro (fusquinha), só vindo
a encontrá-lo no dia seguinte, com ajuda de um amigo
( )86
.
Informa-se que Petrus Martinius teve sua república invadida e vasculhada
pela polícia, sem nenhum mandato judicial, bem como arbitrariamente preso e só
liberado dias depois
( )87
.
José Nazareno e Wilson Moreira foram aprovados em concurso público, em
1971, para o cargo de direção das Escolas Estaduais Polivalentes e tiveram seus
nomes excluídos das publicações oficiais de resultados. Tiveram uma luta
desgastante para reaver seus direitos de assumir o cargo
( )88
.
Conforme pudemos ver nesse capítulo, houve, no final dos anos sessenta,
em todo território nacional, o acirramento do Regime Militar. Essa intensificação da
Repressão também se manifestou na interiorização “de caça às bruxas”.
Especificamente, no Vale do Aço, os ouvidos militares estiveram presentes,
principalmente na esfera eclesiástica. Visto surgir uma ala da Igreja que se
potencializava em termos de politização social e um grupo de padres se alinharem
a essa nova manifestação religiosa, detectamos, ao nosso ver, representações de
mundo social do Regime que não se coadunava com a nova visão de mundo
social da Igreja, o que acabou por levar a cabo um processo jurídico contra os
protagonistas do progressismo religioso no Vale do Aço.
No capítulo seguinte, trataremos de enfocar as manifestações discursivas
dos padres indiciados pelos agentes do Regime Militar e ao mesmo tempo tentar
compreender como eram produzidos e explicados as diferentes versões dos
diversos agentes sociais envolvidos.
86
ATAÍDE, [6 jun. 2006], Coronel Fabriciano.
87
MOREIRA, Wilson [3 jul. 2006], Juiz de Fora.
88
Idem.
49
AS MANIFESTAÇÕES DISCURSIVAS DA IGREJA PROGRESSISTA NA
ESFERA SOCIAL E POLÍTICA LOCAL
Analisando a conjuntura econômica do Brasil no período inicial da ditadura,
não há dúvida de que o país havia alcançado um crescimento econômico
considerável, graças à política de industrialização adotada a partir dos anos
quarenta e incrementada nos anos cinqüenta com a política do Nacional
Desenvolvimentismo do Governo do Presidente Juscelino Kubitscheck. Nesse
período, que compreendeu os anos de 1956 a 1960, a produção industrial do país
cresceu à cifra de 80,0%
( ). 89
No entanto, tal desenvolvimento econômico não teve
resposta proporcional ao desenvolvimento social. A maioria da população
continuou à mercê de direitos essenciais básicos, como alimentação
( )90
,
saúde
( )91
e educação
( )92
.
O ambiente estava propício para discussões e buscas de
explicações para as causas de tamanhos contrastes.
O diagnóstico feito no início da década de sessenta identificou um
significativo crescimento econômico pela via da industrialização e, inversamente
proporcional, uma elevada disparidade social. Diante dessa constatação, debates
foram travados em busca de alternativas. Dúvidas surgiram sobre o sistema
capitalista acerca de sua capacidade de promover equidade social e, pensou-se
na possível adoção do socialismo em território brasileiro como meio de solução
dos gritantes problemas sociais.
Fazendo um retrospecto da história do Brasil, imediatamente anterior a
1964, perceberemos como estavam avançando as muitas formas de
89
ROSSI, Waldemar; GERAB, Willian Jorge. Industria e Trabalho no Brasil. 1 Ed. São Paulo, SP: Atual,
1997, p. 48.
90
Segundo dados do IBGE, havia 27 milhões de brasileiros subnutridos entre 1961 e 1963, perfazendo 38%
do total da população do país à época. Cf. SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A modernização autoritária:
do golpe militar à redemocratização 1964/1984. In: LINHARES, Maria Yeda (Org.). História geral do Brasil.
6. ed. Rio de Janeiro, RJ: Campus, 1990, p. 330.
91
Em 1960, o índice de mortalidade infantil situava-se em 124 %o. Já a expectativa de vida da população,
segundo o Ministério da Saúde, estava em torno dos 58 anos. Dados fornecidos pelo escritório regional do
IBGE, no Vale do Aço. Rua Belo Horizonte. 103, sala 189, centro – Ipatinga, MG.
92
A taxa de analfabetismo no Brasil, em 1960, era de 39,35 % (para população acima de 15 anos). Cf.
ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil (1930-1973) 27. Ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2002, p. 75.
50
representação popular que questionavam os problemas brasileiros, desde a
concentração de terras
( )93
,
renda
( )94
e a dependência econômica externa do país
( )95
. Dentre estas, a CGT – Comando Geral dos Trabalhadores, UNE - União
Nacional dos Estudantes e Ligas Camponesas. Ao mesmo tempo essas
instituições propunham alternativas que pudessem favorecer a inclusão social.
Muitos desses grupos estavam dispostos à radicalização e tinham intenções
bastante revolucionárias.
Diretamente envolvidos nessas discussões estavam os mais diversos
setores da sociedade brasileira, que se faziam representar por esses grupos. Aí se
incluída a Igreja, notadamente os setores mais progressistas. Nesse contexto,
incrementaram pelo país afora as muitas organizações pastorais de tendência à
esquerda
( )96
, como é o caso da variedade de agremiações jovens, exemplificados
pela JAC – Juventude Agrária Católica, JEC – Juventude Estudantil Católica e
JOC - Juventude Operária Católica.
93
Desde o início da Colonização, o Brasil vivenciou um histórico de injustiças no que concerne à questão
agrária. Ainda em 1960, o país era apontado como um dos campeões em concentração de terras. Nessa época,
as 3 milhões e 350 mil propriedades agrícolas que ocupavam 31% de toda área do país, estavam assim
divididas: Pequenas propriedades, menos (cem hectares): aproximadamente setecentas mil propriedades eram
minifúndios; as granjas, de dez a cinqüenta hectares e os sítios, de cinqüenta a cem hectares, representavam
44,6% das propriedades, somando 44,7% da área cultivada. As médias propriedades (de cem a 1000 hectares):
representavam 9,5% das propriedades, somando 32,5% da área cadastrada. O latifúndio, (com mais de mil
hectares): representava 0,9% das propriedades, dominando 47,3% das terras, cultivadas somente 2.3%, dessa
área. Dados fornecidos pelo escritório regional Vale do Aço do IBGE no Vale do Aço. Rua Belo Horizonte.
103, sala 189, centro – Ipatinga, MG.
6
Em 1960, a parcela do 1% mais rico da população brasileira usufruía 11,9% da renda nacional; os 9%
considerados classe média alta, detinham 27,7% da renda; os 30% considerados classe média baixa, detinham
35,3% da renda; os 60% de menor renda no meio da população detinham 25,1% da renda nacional. Cf.
PORTELA, Fernando e VESENTINI, W. José. Êxodo Rural e Urbanização. São Paulo, SP: Ática, p.39-43
7
Entre os muitos fatores que indicam a dependência externa nos anos sessenta, consta o controle do capital
estrangeiro nas muitas atividades produtivas da economia brasileira, destacando-se os seguintes ramos:
tratores, 99,8%; automóveis, 98,2%; medicamentos, 88,0%; cigarros, 85,0%; energia elétrica, 82,0%;
produtos químicos, 76,0; máquinas, 70,0%. Cf. ROSSI, Waldemar; GERAB, William Jorge. Industria e
Trabalho no Brasil. São Paulo, SP: Atual, 1997, p. 49.
8
O termo esquerda é usado para indicar os rumos pastorais da ala progressista do clero, que contrapondo a
Igreja tradicional, se mostravam preocupados com a promoção social da população marginalizada. Entre
tantas idéias, defendem reforma agrária, melhor distribuição de renda e educação pública de qualidade. No
entanto, esta facção do clero não aceita que, o uso da expressão “esquerda”, presente na ideologia da Igreja
progressista, seja associado às idéias do socialismo ou comunismo, como quiseram fazer acreditar os militares
ligados ao Regime de 1964.
51
A efervescência dos debates, que conjugavam política com os problemas
brasileiros, penetrou na Igreja do Vale do Aço, onde a sociedade, desde muito, já
discutia as conseqüências do poder das siderúrgicas instaladas na região. Cita-se
o amargo episódio conhecido como “Massacre de Ipatinga”
( )97
.
Analisando todo o processo jurídico contra os religiosos, distinguem-se
como nos já discutidos documentos do Concílio Vaticano II e Medellín, a
preocupação dos réus com a justiça social, tanto diretamente na parte acusatória
como na defesa.
Lembra-se, no entanto que é impossível discutir as questões sociais sem
aprofundar em questões econômicas, que por sua vez, são conseqüências do
direcionamento político adotado no país. Concomitantemente devemos examinar o
discurso dos processados, levando-se em consideração o contexto social e
político da época já descrito. O conteúdo explícito na fala de todos eles, acima de
tudo, esta diretamente ligado à visão do mundo religioso do grupo aqui enfocado.
Então, é justamente aí que está o perigo do confronto, no momento de exceção,
com uma rigorosa censura imposta a todos os setores da sociedade. Tal como
Foucault, no seu livro a “Ordem do Discurso”, temas como sexo e política são
perigosos, difíceis de administrar: “[...] sabe-se bem que não se tem o direito de
dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer
um, enfim, não pode falar qualquer coisa”
( )98
.
Em seu objetivo catequético, esperava a Igreja de Itabira ser uma voz da
conscientização das massas, com um discurso revolucionário, totalmente
diferenciado em relação àquele que até então o povo estava acostumado. De um
extremo das missas, num ritual medievalesco, celebradas em latim, a uma religião
que rompe com toda uma visão de mundo tradicional, “apolítica” e fechada no seu
mundo institucional e passa repentinamente para uma igreja renovada em suas
posições de uma forma geral, alem de mais engajada e participante na vida da
comunidade. Chegaram os religiosos em questão a acreditavam na eficácia das
9
Episódio ocorrido em 7 de outubro de 1963, na cidade de Ipatinga. Um confronto entre operários da
USIMINAS e a policia que culminou com a morte de oito pessoas, sendo este o numero oficial. No entanto a
sociedade discute a possibilidade de um numero maior.
98
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 10 ed. São Paulo, SP: Loyola, 2004.
52
palavras de um discurso politizado. Confiavam que ele seria amplamente
correspondido pela sociedade, então predominantemente católica. Segundo o
IBGE, em 1970, somados as populações dos municípios de Coronel Fabriciano,
Ipatinga e Timóteo, havia um total de 121.913 habitantes. Em meio a esse
numero, havia 108.014 católicos e apenas 11.635 protestantes
( )99
.
Sendo assim, a Igreja ocupava inúmeros espaços para divulgar suas idéias,
além do altar, onde as missas e outros ritos eram acompanhados através do jornal
O Fato.
A Congregação Redentorista era proprietária, desde 1968, da única
emissora de transmissão radiofônica do Vale do Aço, a AM, Rádio Educadora de
Coronel Fabriciano, que transmitia programas diversos de conteúdo religioso
reflexivo, dentre os quais, Momentos de Reflexão, sempre às dezoito horas,
seguindo ao canto da Ave Maria. Nesse programa, vários padres se revezavam
na apresentação a cada dia. Exploravam conteúdos políticos, sociais e morais, em
lugar do espiritualismo e do marianismo tradicional
( )100
.
O clero ocupava também, espaços na Imprensa escrita. O padre Abdala,
por exemplo, sempre escrevera nos jornais da região, entre eles, o Canaã e o
Flan.
A influencia da Igreja queria se fazer desde a infância dos fiéis. A catequese
para crianças sempre fora uma das prioridades do trabalho de evangelização. Já
nos anos sessenta, apresentou um caráter renovado, objetivando, tal como era a
visão de mundo social da Diocese de Itabira, construir um cristianismo renovado.
Segundo Maria Teresa Squiavenato esse trabalho deveria buscar a vivência e a
aplicação prática dos mandamentos e sacramentos com base na realidade social
de cada lugar. Antes de tudo, objetivava-se a construção da consciência de
justiça, paz e solidariedade. Constantes encontros de formação eram realizados,
para a preparação das catequistas, no sentido de inseri-las no novo contexto.
Anteriormente, o trabalho catequético centrava-se apenas na memorização dos
mandamentos e sacramentos. Se a criança soubesse repetir as orações tidas
99
Dados fornecidos pelo escritório regional Vale do Aço do IBGE no Vale do Aço. Rua Belo Horizonte. 103,
sala 189, centro – Ipatinga, MG.
100
WEITZEL, João Vicente: [06 de julho de 2006], Coronel Fabriciano.
53
como essenciais, entre elas, o Ato de Contrição
( )101
, além de responder a
perguntas básicas, previamente preparadas, tais como: Quem é Deus? Onde está
Deus, quais são os mandamentos? Conluia-se que ela estava preparada para a
primeira comunhão ou a crisma
( )102
.
Até mesmo as principais escolas daquela época, localizadas no Vale do
Aço eram católicas. Em Coronel Fabriciano havia o Colégio Imaculada, mantida
pela Congregação Redentorista; o Colégio Angélica, mantido pelas Irmãs
Carmelitas da Divina Providência e a Universidade do Trabalho, mantida pelos
Congregação Padres do Trabalho. Em Timóteo, havia o Colégio Macedo Soares,
mantido pelos padres Salesianos e o Colégio Monsenhor Rafael, mantido pelas
Irmãs da Beneficência Popular. Em Ipatinga, o Colégio São Francisco Xavier, de
propriedade da Usiminas era orientado pelos padres Jesuítas.
Todos estes espaços eram visados e vigiados como locais potenciais de
difusão de idéias subversivas. Nas escolas, os alunos vigiavam os professores
( )103
e os professores vigiavam alunos
( )104
. Os alunos vigiavam os colegas e os
professores agiam da mesma forma entre seus pares
( )105
. A Rádio Educadora era
motivo de polêmicas entre os ouvintes que achavam estranhos os assuntos
abordados nos programas religiosos. Os setores sociais que se identificavam com
o Regime, colecionaram informações, como já visto, foram utilizadas pelo Capitão
Fassheber contra os religiosos.
A apuração dos fatos
A partir da denúncia formal, seguiu-se uma verdadeira maratona burocrática
no sentido de reunir as provas que pudessem incriminar os padres. O Coronel
Euclides Figueiredo encaminhou relatório e recomendação ao Senhor General
101
Oração de pedido de perdão pelos pecados, na qual o fiel assume o propósito de não mais incorrer neles.
102
SQUIAVENATO, Teresa Maria: depoimento [02 de setembro de 2006], Coronel Fabriciano. Freira da
Congregação, Filhas do Sagrado Coração de Jesus.
103
BROMONSHENKEL, Luiz Carlos. Depoimento [30 de abril de 1970] encontrado no Processo nº 2931,
Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de 1972, fl. 40-41.
104
Pessoas diversas citam sem provas, nomes de diversos professores tidos como delatores de alunos. Por
estarem em livre transito no meio da sociedade, preferimos não expor nomes.
105
Idem.
54
Comandante do I Exército, que por sua vez remeteu ordem à Auditoria da 4ª
Circunscrição Judiciária Militar de Juiz de Fora, para que fosse instaurado o
Inquérito Policial Militar
( )106
para a apuração dos fatos. Determinou-se então como
encarregado do IPM, o Major Antônio Gomes Ribeiro.
Começaram a ser, ouvidos um a um, os acusados, intercalados às
testemunhas contra eles, em datas esparsas ao longo do ano de 1970. O Major
encarregado, acompanhado do 2º Tenente Marcelo da Paixão Araújo, servindo
como escrivão, em muitas excursões ao Vale do Aço, tomaram os depoimentos
em sala reservada no Contingente da Polícia Militar, em Ipatinga. Dos delatores,
uns faziam acusações mais diretas, outros a meio termo. Afirmam os réus, ainda
vivos, que o esquema acusatório fora construído por Fassheber. Ele teria somado
forças com simpatizantes do Regime, residentes no Vale do Aço: Luiz Policarpo
Moreira, funcionário da USIMINAS, que atuava como voluntário na Paróquia do
Horto; Manuel Gonçalves Costa, major reformado, trabalhando no serviço de
segurança da mesma empresa, residente no bairro Horto; Luiz Carlos
Bromonschenkel, à época, aluno do Curso Técnico em Eletrônica do Colégio
Técnico de Coronel Fabriciano, vinculado a Universidade do Trabalho; Antonius
Cornelius Marie Beijers, integrante da Congregação dos Irmãos de Nossa Senhora
Mãe da Misericórdia, residente em Belo Horizonte; Onofre Silva, desenhista
projetista da ACESITA, residente em Timóteo e estudante da Universidade do
Trabalho em Coronel Fabriciano, somados ao padre João Batista Neto, Vigário da
Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, localizado no bairro Carneirinhos em
João Monlevade.
Cada um deles relatou o que sabia sobre os padres. Entre tantas
denuncias, expuseram até conteúdos de discursos que ouviram nas missas.
[...] padre Wilson Moreira impunha um discurso muito diferente do que
eu estava acostumado a ouvir na religião. Suas pregações eram sempre
direcionadas para as questões de justiça social; apresentava os patrões
como espoliadores dos operários; Fazia referência a deveres dos
patrões e nunca ao dos empregados
( )107
.
106
Utilizaremos a partir de agora a sigla IPM para designar Inquérito Policial Militar.
107
MOREIRA, Luiz Policarpo. Depoimento [29 de abril de 1970] encontrado no Processo nº 2931, Auditoria
da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de 1972, fl.. 33-34’
55
[...] padre Wilson sempre se referia às injustiças praticadas em nosso
país. Falava ainda da falta de liberdade e jogava pobres contra ricos e
empregados contra patrões
( )108
.
O Major Manuel Gonçalves denunciou atitudes dos religiosos as quais
foram consideradas por ele antipatrióticas. Citou como exemplo o boicote dos
colégios no cortejo que levou o Fogo Simbólico da Pátria quando de sua
passagem por Ipatinga em 1969. Conclui que o reduzido número de alunos na
condução do mesmo fora fruto de obra conjunta dos padres. Citou ainda a reunião
preparatória das festividades de comemoração do Dia da Pátria de 1969, quando
diante de diversas entidades que ali se faziam representar, um religioso teria
afirmado que tais comemorações eram pré-fabricadas uma vez que o país não é
livre.
Outros depoentes foram requisitados para ajudar a esclarecer os fatos, por
terem de alguma forma, ligação com os acusados, entre eles, José Francisco,
diretor do Instituto Inácio de Loyola, em Ipatinga, destinado a preparar alunos para
exames de madureza
( )109
e que tinha no seu quadro de professores o Irmão
Petrus, um dos acusados.
Analisando cada um dos depoimentos do Inquérito Policial Militar,
concluímos que justamente aos religiosos processados foram feitas perguntas
específicas sobre o artigo intitulado Independência ou Morte??? (com três
interrogações) publicado no semanário litúrgico (jornal O Fato), destacada nos
depoimentos por grifos: [...] Você participou da reunião de elaboração do artigo?
[...] Quais foram os outros participantes? [...] Quais os períodos especificamente
de sua autoria?
( )110
.
108
COSTA, Manuel Gonçalves. Depoimento [29 de abril de 1970] encontrado no Processo nº 2931, Auditoria
da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de 1972, fl. 35-36.
109
Nomenclatura que designava os cursos fundamental e médio aplicados em tempo reduzido, atualmente
conhecido como supletivo. Foi criado para dar oportunidade de complementação dos estudos, às pessoas que
em idade escolar apropriadas não puderam fazê-los.
110
BERTOLLO, José Valentim. Depoimento [05 de agosto de 1970] encontrado no Processo nº 2931,
Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de 1972, fl. 35-36.
56
Com isso, concluímos que, dos onze denunciados, escaparam das
acusações formais, o ex-padre Guido Gonçalves Vieira, o padre Severino Eloi de
Rezende e o diácono Guido Laroy. Foram levados a termo, apenas os religiosos
que assinaram como co-autores o artigo do jornal O Fato, intitulado
“Independência ou Morte???”, considerado a prova cabal de insubordinação dos
padres ao regime. Um exemplar do jornal com esse conteúdo fora então,
entregue ao Coronel Euclides por Fassheber, no ato da formalização da denúncia.
Os outros religiosos ouvidos eram suspeitos de algum envolvimento em ações
subversivas, também porque mantinham relações como os processados, mas que
não foram formalmente incluídos entre os processados por faltas de provas.
Analisando ainda cada um dos depoimentos das testemunhas arroladas
para o Inquérito Policial Militar, percebe-se que em todos eles, salvo as
declarações do Próprio Fassheber, irmão Antonius Cornelius Marie Beijers e o
Padre João Batista Neto, existe uma certa insegurança nas palavras dos
depoentes, com uso de expressões que denotam incertezas das acusações.
Inúmeras vezes se utilizam as frases: “por ouvir dizer”, “soube por intermédio de
fulano”, “que ouviu de cicrano”, “no meu parecer”.
[...]
ouviu dizer que a Universidade do Trabalho deve ao INPS
( )111
mais
de duzentos mil Cruzeiros Novos; que o padre
( )112
declarara “que não
paga mesmo” a referida quantia; que quanto ao recente decreto da
obrigatoriedade do ensino de “Educação Moral e Cívica”, o declarante,
por ouvir dizer afirma que o padre em questão dissera que não iria
oficializar a referida matéria na Universidade, pois achava que era
perder tempo
( )113
.
[...]
Por ouvir dizer, que o padre Nazareno de Tal, diretor do Ginásio
Estadual de Timóteo e o padre Wilson Moreira, diretor do Ginásio
Estadual de Coronel Fabriciano, faziam freqüentemente pregações em
111
INPS - Instituto Nacional de Previdência e Assistência Social, como era chamado o atual INSS - Instituto
Nacional de Seguridade Social. À aquela época o órgão cuidava da assistência médica dos segurados, além de
pagar aposentadorias e pensões. Atualmente a assistência médica é um serviço separado, responsabilidade do
SUS – Sistema único de Saúde.
112
Referencia ao padre José Maria De Man, então diretor da Universidade do Trabalho.
113
COSTA, Manuel Gonçalves. Depoimento [29 de abril de 1970] encontrado no Processo nº 2931, Auditoria
da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de 1972, fl. 35-36.
57
sala de aula, indispondo os seus jovens alunos contra as autoridades
( )114
.
Um dos depoimentos acusatórios de grande peso foi o do padre João
Batista Neto. Por se tratar de alguém do seio da própria Igreja de Itabira,
considerado o mais incriminador, até mesmo mais ameaçador que o depoimento
do Capitão Fassheber. Padre João Batista não poupou nem mesmo o Bispo
Diocesano, acusando-o indiretamente de liderar a igreja subversiva.
Contou que, desde que Dom Marcos Noronha assumiu a Diocese de
Itabira, começaram a chegar padres de muitos lugares, verdadeiros mercenários,
como a eles se referiam os padres veteranos locais. Afirmou que esses religiosos
trouxeram com eles, idéias perigosas e subversivas, através de folhetos,
pregações no púlpito e nos encontros dos grupos de reflexão. Afirmou que houve
resistência a estas idéias em João Monlevade e cidades próximas, que compõem
a Zona Pastoral II. Referindo-se a esses membros do clero como subversivos,
informando que este se concentrava na região de Ipatinga, Coronel Fabriciano e
Timóteo. Acusa diretamente o padre Geraldo Ferreira Monção, de atos de
subversão, dizendo que quando vigário de Loanda, um bairro de João Monlevade,
pregava claramente o comunismo. E que em um retiro de clérigos e leigos em
Belo Horizonte, Monção entrou em confronto com outros padres ao fazer
declarações favoráveis ao comunismo. “[...] O comunismo é que tem valor real,
porque tem dialética e realiza realmente”
( )115
.
Esse fato aumentou as angústias do clero local, o que motivou o depoente
procurar em janeiro de 1969, o Comandante da 4ª Região Militar, General Itiberê
Gouveia do Amaral para expor o perigo em que se encontrava a região do Rio
Doce
( ).116
Contou-lhe em detalhes, a sua versão de acontecimentos que
envolveram a criação da Paróquia de Loanda, desmembrada da Paróquia de
Carneirinhos:
114
BROMONSHENKEL, Luiz Carlos. Depoimento [30 de abril de 1970] encontrado no Processo nº 2931,
Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de 1972, p. 40-41.
115
NETO, João Batista. Depoimento [08 de agosto de 1970] encontrado no Processo nº 2931, Auditoria da
4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de 1972, fl.100 -1102. 40-41.
116
Zona fisiográfica de Minas Gerais que abrange a região banhada pelo Rio Doce.
58
Expôs que o primeiro vigário da nova entidade, padre Carlos Pimenta, não
atendeu aos pressupostos da filosofia do bispo e por isto foi transferido. Para o
seu lugar, fora nomeado o Padre Monção que aliado às Irmãs da Congregação do
Espírito Santo, implantaram uma pastoral revolucionária, suspendendo todas os
sacramentos, inclusive as missas, com deturpadas pregações do Evangelho, que
incluía doutrinas sociais avançadíssimas, de cunho subversivo. Somando-se ainda
o incentivo ao concubinato, desaconselhando os casamentos; Acusou-o de fazer
pregações de cunho protestante, se reunindo com seguidores deste ramo. Tais
atitudes, totalmente desaprovadas em reunião do clero da Zona II, por 14 votos,
contra dois. Completou dizendo que a população revoltada estava articulando para
expulsá-lo da paróquia.
Completa seu depoimento falando da insatisfação do povo com o trabalho
do padre Monção, e dos movimentos que partiram do próprio povo no sentido de
afastá-lo da paróquia de Loanda. Colocou-se como vítima de perseguição por
parte do bispo que o acusara de ser responsável pelas articulações do movimento
contra Monção. Padre João alega ainda que em reunião do presbitério do dia 16
de setembro de 1968, resistiu a pressão moral do bispo para forçá-lo a renúncia,
na qual não lhe foi dado oportunidade de se defender. Comparou essa reunião
com um tribunal chinês, onde inclusive foi proposto por Dom Marcos que se
pregasse contra o AI-5, o que foi ponderado como perigoso pelo Padre José Maria
de Man.
Visões polêmicas
Dentro do processo, merece ser estudado, com grande atenção, a atuação
do padre Abdala, discutido como o mais polêmico de todos os acusados,
especialmente por assumir com muita franqueza suas posições em relação a
qualquer assunto. Seu depoimento no IPM aconteceu em 5 de agosto de 1970 e
foi, o mais extenso entre os dos acusados. Ela afirmar hoje, que queria ter sido
condenado nesse processo, achando que o erro de uma condenação
simplesmente política, só engrandeceria a Igreja. Um erro desse levantaria o ódio
59
da sociedade consciente, um ódio benéfico, que animaria as pessoas a lutar
contra as injustiças, o que culminaria na união da sociedade para a derrubada da
Ditadura
( )117
.
[...] É o ódio é que liberta
( )118
.
Assim, lembramos os muitos artigos
que escrevera e publicara na “Coluna Folha”
( )119
do jornal FLAN, dos quais quatro
foram selecionados, como de cunho subversivos, juntamente com uma entrevista
dada ao jornalista Sabará, cujas cópias integraram o processo jurídico. Percebe-
se em todos estes escritos, a preocupação dele com a pobreza material da
sociedade, incluindo-o numa posição política, discutível como revolucionária de
tendência socialista.
Para exemplificar, citamos aqui o artigo intitulado Chê Guevara. Nesse, ele
lembra nas próprias palavras do guerrilheiro, seu desprendimento e idealismo,
enaltecendo sua entrega à causa da libertação dos povos latinos da América:
[...] Quando for necessário, estarei disposto a oferecer minha
vida.[...] nada pedirei, nada exigirei de ninguém. [...] Não deixo
nada material para meus filhos nem à mulher. Alegro-me que
assim seja. Não peço nada para eles, pois o Estado lhes dá o
suficiente para viver e educar-se
( )120
.
Neste mesmo artigo, Padre Abdala expõe o que pensa sobre o verdadeiro
papel do religioso, comparando que, tal como Chê, ele deve se entregar
totalmente ao serviço dos outros: “[...] Sem mística ou ideal não se explicam as
renúncias. Guerrilheiros comunistas, extremistas da violência, deixam tudo”
( )121
.
Num outro artigo, sem título, publicado na Coluna Folha do jornal FLAN
exposto no depoimento do IPM, ele lembra a Doutrina Social da Igreja, citando as
famosas encíclicas, desde a Rerum Novarum
( )122
. Em seguida, ele comenta os
males dos sistemas predominantes na época, incluindo ditaduras que se
117
ABDALA José Jorge [02 de fevereiro de 2006], Timóteo.
118
Idem.
119
Coluna do jornal Flan assinada pelo padre Abdala, onde ele costumava entrar direto no assunto do texto
sem um título. Nesta coluna escrevera inúmeros artigos sobre temas diversos, especialmente de cunho social.
120
Trecho do artigo, Che Guevara, publicado no jornal O Flan, em 21 de outubro de 1967. Relatório final do
IPM, encontrado no Processo nº 2931, Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de
jun. de 1972, f. 151-153.
121
Idem
122
Encíclica promulgada em 1891, pelo Papa Leão XIII, que trata das relações entre capital e trabalho.
Constitui como documento básico para Doutrina Social da Igreja até os dias de hoje.
60
alastravam nos quatro cantos do mundo. Percebe-se acima de tudo nas suas
palavras a preocupação com a valorização do homem para que ele não seja
instrumento dos interesses de outros:
[...] da ditadura de direita, do liberalismo ou capitalismo, que
escraviza o homem pelo dinheiro; e faz que o capital seja o dono
de tudo, dono do homem, de sua inteligência, de sua técnica, de
sua capacidade e seus músculos. [...] da ditadura radical
comunista que escraviza o homem pelo trabalho [...]
( )123
.
[...] Se somos vítimas da estrutura, cabe-nos atenuar as
conseqüências, cabe-nos denunciar, cabe-nos a todos nos dar os
passos da caminhada do desenvolvimento - que tem por único
objetivo valorizar o homem, tornando-o indispensável
( )124
.
Num outro artigo, “Férias, por que? Para quem?”, o padre Abdala comenta
da necessidade das férias como um momento de descanso físico e mental, para
restaurar as forças e continuar a vida. Mas a coloca como um privilégio de poucos
na sociedade. Comparando com o homem, ele expõe que até a máquina precisa
de férias: “[...] Param a máquina, desmontam, limpam, ajustam as engrenagens,
parafusam, trocam as peças gastas [...]”
( )125
.
No entanto, há muitas pessoas, que por motivos de aperto financeiro não
podem tirar férias, precisando vendê-las para pagar dívidas, sendo então comum
ouvir:
eu nunca tirei férias; tomara que o patrão deixe eu trabalhar nas
férias. Há até aqueles que estão de férias por força das
circunstâncias: [...] Há tempos que eu tenho férias obrigatórias,
pois não consigo emprego; [...] Esta é a nossa realidade. Uns
gastando dinheiro nas praias e outros gastando as férias para
conseguir dinheiro e pagar dívidas
( )126
.
Além do conteúdo social dos artigos aqui exemplificados, distinguimos uma
fala essencialmente religiosa nos mesmos textos. No artigo “Chê Guevara”, Por
123
Trecho de artigo sem título, publicado na Coluna Folha, do jornal O Flan, em 7 de novembro de 1969.
Relatório final do IPM, encontrado no Processo nº 2931, Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz
de Fora, 28 de jun. de 1972, f. 153-155.
124
Idem.
125
Trecho de artigo, Férias Para por que? , publicado no jornal O Flan, em 18 de janeiro de 1970. Relatório
final do IPM, encontrado no Processo nº 2931, Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora,
28 de jun. de 1972, f. 158-160.
126
idem
61
exemplo, ele fala da necessidade do compromisso do religioso na entrega a
serviço do Evangelho. Queria dizer que assim como Chê se entregou à causa
política, os religiosos deveriam se entregar totalmente à causa do cristianismo;
No analisado artigo sem título, ele compara o setor econômico com a
religião, cotejando a autoridade do patrão com a autoridade do padre: “[...] Os
leigos batizados ainda se sentem alheios, sem direito, sujeito às ordens dos
religiosos?”
( )127
. Conclui o mesmo artigo da necessidade da verdadeira
conversão, como forma de sair do medo de enfrentar a esquerda ou a direita
radical.
Ainda no artigo “Férias para que? Férias para quem?”, ele fala que somos
todos irmãos e que temos a mesma fé e esperança na mesma ressurreição.
Um caso a parte
O depoimento do padre Abdala no IPM, para a apuração dos fatos,
aconteceu num clima de tranqüilidade. Num determinado momento, o interrogador
mandou trazer um rapaz, já conhecido do religioso para acareação. Era Rodolfo
Troiane, estudante de Juiz de Fora, que viera a Timóteo, em 1969, a serviço do
PCdoB, então na clandestinidade.
O encontro entre os dois serviu para que o padre refletisse o quanto era
possível a manipulação das informações num depoimento policial. Na acareação,
o interrogador disse ao padre que o estudante (Rodolfo) afirmava ter procurado o
Abdala em nome do PCdoB. Mas o padre não o recebera em razão de supor que
poderia ser um agente disfarçado do DOPS. Nem tampouco o encaminharia para
trabalhar na companhia ACESITA, visto Abdala não ter boas relações com a
direção dessa empresa, ou melhor, sempre teve conflitos abertos com ela por
causa das injustiças diversas que vira praticar, especialmente contra empregados.
127
Trecho de artigo sem título, publicado na Coluna Folha, do jornal O Flan, em 7 de novembro de 1969.
Relatório final do IPM, encontrado no Processo nº 2931, Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz
de Fora, 28 de jun. de 1972, f. 153-155.
62
Mas o padre afirma que o recebera sim. Ele não se apresentou como
elemento do PCdoB, conforme exposto no depoimento, e sim como um elemento
idealista, que acima de tudo se mostrava preocupado com os rumos que o país
poderia tomar com uma ditadura militar de extrema direita. Em nenhum momento
o religioso desconfiou que o mesmo, nem de longe poderia ser, um agente do
DOPS.
Quando posto, frente a frente, Abdala e Troiane, aquele ficou visivelmente
emocionado, ao ver este. Cumprimentando-o, o religioso passou a ouvi-lo. Troiane
ao ler o depoimento, afirmou: ”[...] eu não disse que fui a Timóteo para fazer
trabalhos. Eu disse que fui trabalhar. Também não disse que fui a serviço do
PCdoB”
( )128
.
Troiane, em Timóteo, se hospedava na pensão da dona Garfe. A última vez
que ele procurou o padre contou-lhe que ficou conhecendo um tal Roberto
Corcino, com quem trocara muitas idéias. O padre Abdala lhe chamou duramente
a atenção: “[...] Você foi conversar justamente com este elemento. Ele é muito
perigoso. Temos provas quase certeiras que ele é um informante do DOPS”
( )129
.
Roberto Corcino morava na Vila dos Técnicos (Timóteo). Ele atuava nos
movimentos estudantis, nos grupos de Jovens da Igreja e na JOC - Juventude
Operária Católica. Concluíram os que com ele conviveram, que ele se infiltrara
nesses grupos como espião. Outros até achavam que ele era de fato católico
atuante, mas simpático aos militares. Tornou-se um dissidente da religião devido
as idéias contra o Regime, discutidas nos grupos
( )130
.
Para o padre, as peças então se ajuntam. Foi Corcino quem denunciara o
estudante. Não tenho menor duvida disso, afirma o padre. Preocupado com o
desaparecimento repentino do rapaz que nunca mais o procurou, o padre ao
encontrar-se com a dona Garfe, perguntou-lhe por ele. Ela respondeu: “ele sumiu,
não está lá mais não. Ninguém o viu sair. Foi um mistério”. Dois dias depois, Dona
Garfe procurou o padre após a missa das seis da manhã e lhe contou em
sussurro: “Sabe aquele rapaz? Ele é comunista! Ele está preso lá em Fabriciano”
128
ABDALA, José Jorge: depoimento [5 fev. 2006], Timóteo.
129
Idem.
130
Idem.
63
( )131
. Timóteo não tinha cadeia e Fabriciano era a sede da comarca. O religioso
afirma que ficou inferiorizado ao saber da notícia. Sentiu-se culpado, enfraquecido
diante dos fatos. Ao se lembrar do episódio, percebe-se a emoção do religioso.
Afirma que procurou notícias dele. Estava incomunicável por ordens superiores.
Ao vê-lo no momento da acareação, o religioso relata que suspirou aliviado
ao vê-lo vivo
( )132
, apesar de seu deplorável estado físico – provavelmente vítima
de tortura. Após o depoimento, despediram-se e nunca mais o viu. Esperava o
religioso, que no julgamento, em Juiz de Fora, o fato viria a tona. Nem sequer uma
mínima citação foi feita no tribunal a respeito de Troiane. Conversou o padre com
Emílio Gallo, para preveni-lo e sabre montar um estratégia. Mas o fato não
apareceu na denúncia. A princípio, o religioso chegou a pensar que o capitão
responsável por colher seu depoimento queria colaborar com ele. Mas depois de
algum tempo, concluiu que ele poderia ter sido assassinado pela polícia.
Provavelmente, excluíram o nome do estudante do processo, como forma de
silenciar o assunto. Conclui-se assim, o padre, que os militares poderiam
manipular os processo de acordo com seus interesses e maldades
( )133
. Até os
dias de hoje, o desfecho do caso é uma incógnita na cabeça de Abdala. Afirma
esse religioso ter tentado de tudo para descobrir seu paradeiro. Procurou-o até em
listas dos desaparecidos e nada encontrou. Conta ainda que certo dia veio a
Timóteo, um pastor protestante de Juiz de Fora fazer um casamento de um
membro de uma conhecida família da cidade. Falou com ele, pediu-lhe para
verificar quem era este Roberto Troiane. Pediu que tentasse contato com a família
dele. Esperou pela resposta que nunca veio
( )134
.
O processo jurídico
Terminado o Inquérito Policial Militar, os altos foram entregues para serem
apreciados e examinados pelo General Gentil Marcondes Filho, Comandante da
131
Idem.
132
Padre Abdala supunha que Rodolfo Troine tivesse sido assassinado pelos agentes a serviço do Regime.
133
Idem.
134
Idem
64
ID/4 – Infantaria Divisionária da 4ª Região Militar, em Belo Horizonte.
Constataram-se fortes indicações de crime contra a Segurança Nacional.
Encaminharam-se, então, os altos para a Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária
Militar, sediada em Juiz de Fora, onde o Ministério Público Militar, representado
por Joaquim Semião de Faria Filho que acatou denuncia contra os religiosos, em
12 de março de 1971, tendo sido o processo instaurado pelo Juiz Auditor, Mauro
Seixas Telles.
Na formalização do processo jurídico, somaram entre tantas as acusações,
de atividades subversivas que incluía: O doutrinamento sobre tudo e de forma
desvirtuada dos valores apregoados pela Santa e Madre Igreja Católica;
destruição das instituições civis; destruição do princípio de autoridade; destruição
do organismo familiar; acirramento do ódio entre as classes sociais e dessas
contra as autoridades constituídas; a animosidade entre as classes e as Forças
Armadas.
A principal acusação, no entanto, foi a de propaganda subversiva, tendo
como centro o artigo publicado no Jornal Litúrgico “O FATO”, numero 54, ano 02,
de 07 de setembro de 1969: “INDEPENDÊNCIA OU MORTE???”, que assim se
transcreve:
7 de setembro!
O desfile, as balizas, o palco, as bandeiras. E as palestras.
A juventude desfilando, o povo olhando.
Os soldados marchando em ritmo de um Brasil Grande, sob o sol
da liberdade, que brilha no céu, com raios fúlgidos, nesse instante.
É 7 de setembro. Festa da independência. Celebramos o grito do
Ipiranga, que trouxe a liberdade para o povo. Pois um país
independente é um país livre.
Num país livre, pode-se expressar pensamentos, pode-se falar e
não é preciso cochichar.
Num pais livre, não há censura nos jornais, não há medo, nem
desconfiança.
Num país livre, todos trabalham, tem saúde e todos pagam
impostos para receber de volta os benefícios do bem comum.
Num país livre, vive-se da riqueza do solo, não da riqueza do povo.
Num país livre, todos são iguais: padres e leigos, civis e militares.
Num país livre, os sentimentos patrióticos podem ser vida, e os outros não
encontram a morte.
65
Num país livre, o povo é adulto, não fica eternamente “deitado em
berço esplendido”
Festejemos esta liberdade. É 7 de setembro. O desfile, as balizas,
o palco, as bandeiras. E as palestras
( )135
.
Analisando cada um dos depoimentos do Inquérito Policial Militar,
concluímos que, a todos os religiosos processados, foram feitas perguntas
específicas sobre o artigo Independência ou Morte???, destacada nos
depoimentos por grifos. Dentre as principais inquirições acerca do mencionado
artigo, foi: você participou da reunião de elaboração do artigo? Quais foram os
outros participantes? Quais os períodos especificamente de sua autoria?
Ao que tudo indica, foi texto sob a rubrica Independência ou Morte??? a
prova fundamental da atividade subversiva dos religiosos, figurando o artigo como
o principal documento incriminador. Outros religiosos denunciados à época saíram
ilesos, sendo processados apenas aqueles que assinaram como co-autores a
página impressa
( )136
. Salvo o padre Geraldo Ferreira Monção, este não participou
da elaboração do famoso artigo, mas fora mantido entre os réus, por ter sido o
responsável como redator chefe do jornal, O Alfinete, edição número um, datado
de setembro de 1969. Nesse jornal, de responsabilidade do Diretório Acadêmico
da Universidade do Trabalho, dois textos foram considerados de cunho
subversivos: Independência e Escolaridade, uma reedição do texto
Independência ou Morte???”, com comentários do padre Abdala e “Um dia no
Mundo”. Tal a polêmica gerada em torno desses artigos, o jornal não passou da
sua primeira edição. Considerou-se, no entanto, o segundo uma novidade
provocadora ao Regime, uma vez que o primeiro já era conhecido do público. Este
foi entendido como um enaltecimento da figura de Ho Chi Minh (Aquele que
recebeu a luz) e ao comunismo. Na integra, este assim se transcreve:
135
Artigo publicada na primeira página do Jornal O Fato, número 54, ano 2, editado em 07 de setembro de
1969, anexado ao Processo nº 2.931, 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 jun. 1972, vol. De
anexos, fl.11.
136
Processo nº 2.931, 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora. 28 jun. 1972 - Relatório final do IPM,
fl. 126-128.
66
Ontem foi o golpe militar na Líbia, a rebeldia do General Antônio
Flores em Caracas, o sensacional rapto do Embaixador Americano
no Brasil, terra pacata e sem pretensões...
Mas ontem é hoje, quando se trata da morte de Ho Chi Minh,
Presidente do Vietnam do Norte.
Com efeito, a morte daquele ardoroso combatente, cujo nome
significa “o que recebeu a luz”, causou formidável impacto no
mundo, talvez porque ele tenha silenciado uma singular voz na luta
comum pela independência e liberdade. Pena que tenha
desaparecido sem ver a “Vitória” que tanto desejava! Bombas
lançadas contra Hanói e Haifong mexeram com seus brios pátrios
e o determinaram a “combater até a vitória”.
Infelizmente, a vitória não chegou. Ainda não. Pois Ho Chi Minh é
o Vietnam do Mundo
( )137
.
Padre Monção não negou que tinha a intenção de exaltar a figura de Ho Chi
Minh. Afirmou que tal exaltação estava diretamente ligada a causa por ele
defendida, que seria a justiça social. Negou ainda que tinha a intenção de incitar a
sociedade contra o Regime e difundir a ideologia comunista, uma vez que
acreditava, que o fim último, de paz e justiça social, só seria de fato alcançado
através da aplicação dos princípios do Evangelho.
Sobre o mesmo artigo, Padre De Man relatou em seu depoimento no IPM,
que o considerava sim uma provocação, típica da juventude estudantil
( )138
.
“O Fato” e o Regime
Conforme conclusão do IPM – Inquérito Policial Militar, trata-se de um
folheto subversivo, onde foi empregada uma técnica especial, que exigia a
reflexão e que enganava as pessoas mais simples, uma vez que a intenção estava
nas entrelinhas e na consciência de quem o lia. As conclusões das afirmativas
teriam que ser deduzidas, tornando-se negativa a proposição enunciada
( )139
.
137
Texto integral de autoria de Geraldo Ferreira Monção, publicado no jornal, O Alfinete, em setembro de
1969. Relatório final do IPM, encontrado no Processo nº 2931, Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária
Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de 1972, fl. 149-150.
138
MAN, José Maria De. [07 de agosto de 1970] encontrado no Processo nº 2931, Auditoria da 4ª
Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de 1972, fl. 98-99.
139
Idem.
67
Diziam que havia no artigo, ditos tendenciosos, fatos verdadeiros
deturpados ou truncados com a finalidade de indispor os fieis contra as
comemorações do Dia da Pátria
( )140
.
No título, “Independência ou Morte???”, as três interrogações foram
entendidas como uma referencia maliciosa aos três Ministros Militares que
compunha a Junta de Governo que substituía o Presidente Costa e Silva. Que o
teor geral não passava de uma paródia ofensiva ao Hino Nacional
( )141
.
O trecho que diz: “7 de Setembro! O desfile, as balizas, o palco, as
bandeiras. E as palestras [...]” foram interpretadas pelos militares de que os
autores assinantes da matéria estavam rebaixando as programações oficiais, ou
melhor, a população estava sendo induzida se inserir em eventos orientados e
cansativos. Os Militares do Inquérito entenderam, a partir do uso da exclamação,
vírgulas e ponto final seguido da palavra “palestras” contido na frase, que os
padres estavam vilipendiando as festas oficiais.
O período: “A juventude desfilando, o povo olhando”. Queriam dizer que o
povo assistia, mas não participava.
Conclui finalmente que o texto fora escrito por revoltados e acima de tudo
foi visto como desrespeito e pouco caso com as tradições do país.
Para os réus ainda vivos hoje: Nazareno, Wilson Moreira, e Abdala, não
havia nenhuma intenção de ofensa aos militares nem tampouco desrespeito ao
Hino Nacional. Sua elaboração foi fruto da consciência coletiva dos religiosos que
o assinaram. Apenas o padre De Man se opôs à manutenção de alguns trechos
por temer a existência de uma legislação que proibisse, mas ao final também
assinara por decisão da maioria.
As três interrogações não eram nada mais nada menos que uma forma de
chamar a atenção dos fieis e leitores para o conteúdo do texto, que propunha uma
reflexão sobre a situação política opressora da Ditadura ao lado da situação social
reinante: [...] Isto que o país estava vivendo é realmente independência? Ou isto
era a morte?
( )142
140
Idem.
141
Idem.
142
ATAÍDE,: depoimento [3 de jun. 2006]. Coronel Fabriciano.
68
Quanto às tradições, havia sim o objetivo de levantar uma discussão em
torno de todo aquele fausto das comemorações da Semana da Pátria e de todo o
conteúdo do discurso da época.
Por que gastar tanto dinheiro com ricos desfiles? Qual o valor de todas
aquela alegorias, balizas, o colorido, as bandeiras tremulantes, o rufar de
tambores e outros atrativos?
Conforme já discutido, a situação social do país era de gritantes contrastes:
pobreza e miséria de um lado e concentração de riquezas do outro, formando um
grupo de privilegiados, em detrimento de uma maioria de brasileiros despossuídos
dos bens necessários a uma digna sobrevivência.
Com isto, os desfiles mereciam no mínimo uma reflexão sobre seu valor
para aquele momento. Para muitos eram manifestações do irreal. Somente hoje,
olhando-se para aquela época que alguns se referem aos escolares como
alienados “[...] coitados eram envolvidos num clima de ufanismo inconsciente, até
então sem precedentes na história do país
( )143
. Mas os padres, em questão,
daquela época, já diziam que o Regime opressor os usava sem que se dessem
conta que, no enaltecimento à Pátria, estariam indiretamente trabalhando para
defender os interesses da Ditadura. Os desfiles tinham a intenção de impressionar
o povo e convencê-lo da grandiosidade do país governado pelos militares.
Os discursos proferidos nos momentos comemorativos também eram vistos
como falsos recheados de manifestações muitas vezes apenas românticas.
Geralmente preconizavam o Brasil como o melhor lugar do mundo para se viver,
um verdadeiro paraíso.
[...] Nosso povo é unido, alegre e trabalhador. Aqui tem fartura, sol
brilhante o ano inteiro, rios de águas límpidas, florestas que
ajudam o mundo respirar. Aqui vive em paz um povo ordeiro e de
garra, despido de todo e qualquer preconceito. Nos orgulhemos de
termos nas veias, o sangue de brancos, índios e negros
( )144
.
143
CASTRO, Maria da Conceição Monteiro, professora, sindicalista e vereadora em Coronel Fabriciano.:
depoimento não gravado – informal.
144
Professor Aurélio Simões, na Semana da Pátria de 1970, em comemoração interna do Colégio João
Calvino em Coronel Fabriciano, escola por ele então dirigida. As palavras não estão repetidas com total
fidelidade daquele do momento. Lembra-se que as mesmas foram buscadas da memória de pessoas que o
assistiu.O principal objetivo da exposição é exemplificar como eram os discursos à época. Não foi encontrado
referencia de discurso escrito deixado pelo mesmo, que já é falecido. Era muito comum o Sr. Aurélio,
69
Era também comum o uso de frases extraídas de conhecidas poesias: “[...]
A natureza aqui perpetuamente em festa, é o seio de mãe a transbordar carinhos”
( )145
.
Algumas frases, hoje discutidas como fruto da emoção ou da ingenuidade
de quem as criava: “[...] Nosso país é vigoroso, um galopante corcel rumo à glória
( )146
”. Somavam-se a estes, elogios as autoridades do governo e suas atuações
firmes na busca do desenvolvimento e da ordem.
Outras vezes, frases e expressões de grande uso na mídia daquela época,
sobretudo nas propagandas do governo: “Ninguém segura este país
( )147
; milagre
econômico; em ritmo de Brasil Grande.
Sessões solenes que glorificavam a pátria, suas datas e seus heróis: “[...] o
Vereador Cyro Cota Poggiali, em eloqüentes, palavras enalteceu a data magna da
Pátria”
( )148
.
[...] todas as comemorações, todos os festejos cívicos celebrados
durante o ano, tem fundamento no 7 de setembro. E aqui nós
estamos hoje a comemorar o de nº 147. Sem o nosso 7 de
setembro, qualquer outra comemoração seria destituída de
fundamento
( ).149
[...] Reverenciamos neste momento aqueles vultos históricos cuja
participação foi decisiva na declaração da independência, bem
como na sua consolidação, tais como José Bonifácio de Andrada e
Silva, Evaristo da Veiga, o padre Feijó, Bernardo Vasconcelos e D.
Pedro I
( )150
.
improvisar uma fala em meio às solenidades cívicas, inclusive por ocasiões do aniversário da instalação do
Regime Militar. Ele próprio era um ardoroso defensor dos ideais do sistema, ao qual atribuía o grande
desenvolvimento econômico e a ordem vigente no país naquele momento. Entre as pessoas ouvidas que
confirmam as informações aqui expostas, consta Neide Thomaz Teixeira, Professora que à época lecionava
geografia no Colégio João Calvino.
145
Trecho do poema A Pátria, de Olavo Bilac.
146
Frase de um discurso proferido por um aluno do ensino médio, por ocasião da Semana da Pátria, à época
do Regime Militar, numa comemoração interna do Colégio Imaculada de Coronel Fabriciano. Não há
referencia ao nome do aluno, nem ao ano. [memórias do autor desta Dissertação].
147
PONTES, Mariano Pires, prefeito de Coronel Fabriciano entre 1967 e 1971, em seus muitos discursos em
solenidades públicas.
148
Reunião especial solene, realizada em 06 de setembro de 1969, na Câmara Municipal de Timóteo.
149
SILVA, Antônio. Discurso proferido em reunião especial da Câmara Municipal de timóteo, em 06 de
setembro de 1969.
150
Idem.
70
Já as palestras, eram realizadas principalmente nas escolas durante as
horas cívicas internas, nos dias letivos da Semana da Pátria. Eram proferidas por
um convidado ou professor da escola, geralmente o professor de história. Mas as
vezes até mesmo por um aluno de destaque
( )151
. Os temas eram previamente
escolhidos e anunciados. Como exemplo, temos a programação unificada para as
escolas do Município de Timóteo, editado em 1970: Seis dias de palestras com
temas relacionados à Historia do Brasil, começando com o Descobrimento,
passando pela Inconfidência Mineira, culminando com o Grito do Ipiranga. Cada
tema era trabalhado com objetivo de construir uma consciência de forte
sentimento de amor à pátria, com base na valorização dos mitos que cada época
poderia transmitir. Destaque especial para o “Grande Herói Dom Pedro I”, “aquele
que libertou o Brasil da dominação portuguesa”.
Nas comemorações internas das escolas eram momentos de muita alegria:
Entoavam-se belos hinos de exaltação à pátria, preparados em seguidos dias de
exaustivos ensaios, onde os alunos aprendia entre outros, os hinos à Bandeira e à
Independência. Recitava-se emocionantes poesias alusivas a pátria, onde Olavo
Bilac era um dos prediletos.
As cidades contavam os dias dos anos se preparando para as
comemorações da Semana da Pátria. Já em principio do mês de agosto, diminuía-
se o numero de aulas, utilizando-as para ensaiar os alunos para o grande dia. A
partir daí, não se falava noutra coisa. Todos queriam discutir o que cada escola ia
apresentar na “parada do sete”. Os alunos empolgados, levavam as informações
para casa. Os pais por sua vez, se sacrificavam para comprar os uniformes e
outros apetrechos que os filhos orgulhosamente apresentariam. As balizas davam
um toque de elegância ao desfile, com coreografias encantadoras. Os pelotões em
engomados uniformes de gala demonstravam organização. Os carros alegóricos
completavam com ar de suntuosidade: muitas vezes exibiam figuras heróicas da
151
Muitos alunos considerados destaque naquela época, são hoje discutidos como inoportunos e vaidosos.
Eram apenas alunos brilhantes por que se adaptavam totalmente as idéias que o sistema impunha. Inclusive
entendia como bom, um padrão de juventude que concordava com os valores do Regime e, acima de tudo,
buscavam na vida escolar, apenas a oportunidade de sucesso profissional. CASTRO, Maria da Conceição
Monteiro, professora, sindicalista e vereadora em Coronel Fabriciano: depoimento não gravado – informal.
71
pátria: Tiradentes no cadafalso ou Dom Pedro I magnificamente montado sobre
um cavalo e empunhando uma espada
( )152
.
A construção da defesa:
Logo que ficaram sabendo que iam ser processados, reuniram-se os padres
para discutir a defesa. Escolheram como seus advogados: Emilio Edstone Duarte
Gallo e Dalton Villela Eiras. O primeiro, sediado em Coronel Fabriciano, era
considerado um grande criminalista, com um vasto currículo de difíceis e
polêmicas causas. Entre elas, defendera um operário da USIMINAS que havia
assassinado um engenheiro em recinto de trabalho. Emilio atribui a sua escolha
ao padre José Maria De Man, de quem era amigo pessoal e por que também era
advogado da Universidade do Trabalho. Foi prontamente aceito pelos demais. O
segundo, de Juiz de Fora, escolhido com estratégia, para manter na cidade sede
da justiça militar, um advogado que pudesse acompanhar de perto o processo e
especialmente oferecer informações importantes para a construção da defesa. Era
preciso saber em detalhes: Quem era o juiz e o promotor, a personalidade, a
visão e atuação deles à frente do trabalho naquela vara de justiça.
Ao instaurar o processo, a primeira providencia do juiz auditor, foi convocar
as testemunhas que poderiam confirmar ou desmentir os fatos, entre elas: o Padre
Ilídio Demétrio Quintão, e Cônego José Higino de Freitas, ambos veteranos do
sacerdócio na Diocese, atuando em João Monlevade; Silvio Cordeiro Filho,
operário da USIMINAS e Silas Augusto da Costa, industrial, ambos residentes em
Ipatinga. Somaram-se a estes os testemunhos previamente selecionados pela
defesa. Eram eles, respeitados nomes da sociedade local, dentre os quais:
Geraldo Perlingeiro Abreu, advogado e superintendente de Pessoal da companhia
ACESITA; Sydney Alfredo de Melo e Ademar de Carvalho Barbosa, componentes
da diretoria da USIMINAS. Até mesmo um pastor protestante constava entre os
defensores dos padres: Francisco Rosa Alves, especificamente em favor do padre
Monção.
152
MENDONÇA, José Batista de: depoimento [06 de jun. de 2005], Coronel Fabriciano.
72
Os depoimentos foram colhidos no Fórum de Coronel Fabriciano, para
onde, a pedido da defesa, transferiu-se, no mês de junho de 1971, o Conselho
Permanente de Justiça para o Exercito. Segundo Emilio, o objetivo estratégico da
transferência do Conselho para Coronel Fabriciano era colocar os seus membros
em contato com a realidade social, política e econômica do Vale do Aço.
Afirma Emilio Gallo, que seu pedido foi prontamente atendido, o que fez
perceber a seriedade da Justiça Militar. Encontrou nesta, mais facilidade de
trabalho que na justiça comum.
Os primeiros a depor foram os padres Ilídio e o Cônego José Higino, que
apesar de serem do seguimento tradicional, sempre foram respeitados como
elementos muito éticos no seio do clero
( )153
. Por forte convicção, não aceitavam
as reformas pastorais pretendidas na Diocese, conforme atestam em seus
depoimentos. Não acreditavam especialmente nas idéias apregoadas pelo
Concílio, mas em nenhum momento somaram forças contra seus colegas
( )154
.
Nos depoimentos, eles esclareceram o conteúdo e as divergências
ocorridas na reunião do clero da Zona II, acontecida em meados de 1968, a qual o
padre João Batista se referiu em seu depoimento. Confirmaram as diferenças de
idéias entre o padre Monção e a maioria dos padres, o que qualificaram apenas
como divergências de metodologias pastorais, a serem discutidas internamente na
igreja. Em nenhum momento as idéias do religioso poderiam ser interpretadas
como uma atuação política contra o Regime. Esclareceram ainda que o centro da
polêmica estava na proposta de Monção, de suspender a aplicação dos
sacramentos aos fieis. Justificava que as pessoas de uma forma geral
participavam dos atos religiosos sem entender devidamente o seu papel diante
dos mesmos. Defendia que o povo tinha que, antes de tudo, ser conscientizado do
seu verdadeiro compromisso para com Deus e a religião, conhecendo inclusive os
objetivos e valores dos sacramentos que lhes eram ministrados. O Cônego Higino
e o Padre Ilídio, em particular, achavam o método de risco extremo, o que
chamam alguns de revolução pastoral. Achavam que os fieis não estavam
153
BRASIL, José Índio do: depoimento [17 de out. de 2006], Coronel Fabriciano.
154
Idem.
73
preparados para mudanças tão bruscas e repentinas, pois estes entendiam a
religião como fruto das tradições e dos costumes.
Com relação a Silvio Cordeiro Filho, este fora convocado como dirigente da
Gráfica Santa Lúcia, responsável pela impressão do jornal O Fato. Informou o
número de jornais impressos e como era feita a sua distribuição nas várias
paróquias do Vale do Aço.
Confirmou que havia participado da reunião da Liga Desportiva de Ipatinga,
quando da discussão sobre a programação da Semana da Pátria de 1969 e que
de fato informara a Fassheber das conversa que lá ouvira, quando um
determinado religioso, ligado ao Colégio São Francisco, o qual não se lembrava
do nome, dizer: “[...] que independência iriam comemorar, uma vez que o país não
o era? [...] que as festividades eram uma palhaçada”
( )155
. Na mesma reunião
houve comentários de que não se permitiria repique de sinos para comemorar o
Sete de Setembro; que ele próprio ajudara a colocar a corda, a meia noite, quando
não só o repicaram, como também cantaram o Hino Nacional. Informou que não
teve nenhum encontro com o padre Wilson para discutir a questão e, que sabia da
negação por ouvir dizer. No momento da colocação da corda e repique do sino,
nenhuma objeção aconteceu por parte dos padres.
Quanto ao depoimento de Silas, entre os muitos fatos colocados, expôs que
também participou da inserção da corda e do repique de sinos na igreja do Horto.
Afirmou que nunca ouvira do Padre Wilson dizer diretamente que ele não aceitaria
o repique, mas sim por comentários em uma reunião do Lions Club, feito pelo
Major Gonçalves. Revelou que, sendo amigo pessoal do padre De Man, pediu a
sua intermediação junto ao pároco do Horto, informando-lhe que aquele repique
de sinos no Dia da Pátria era uma determinação da Presidência da Republica
( )156
.
Expôs também que contou a Fassheber o conteúdo de uma conversa entre
ambos. Nesta conversa o padre lhe dissera que era contrário aos militares no
poder. Mas a grande revelação deste depoimento foi a informação de que ele
155
FILHO, Silvio Cordeiro. [22 de junho de 1971] encontrado no Processo nº 2931, Auditoria da 4ª
Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de 1972, fl. 413-414.
156
COSTA, Silas Augusto da. [22 de junho de 1971] encontrado no Processo nº 2931, Auditoria da 4ª
Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de 1972 fl.415-418.
74
próprio, o depoente, havia tentado antes da instalação do IPM, um diálogo entre
os religiosos, Fassheber e o Major Ribeiro, responsável pela instalação do
inquérito. Para tal, teria inclusive o apoio do Bispo Dom Marcos, a quem Silas
havia procurado previamente. Mas os padres foram irredutíveis e não aceitaram a
proposta.
Somaram a estes, os testemunhos de Luiz Carlos Bromonchenkel, que
confirmou as informações dadas no depoimento do IPM. Mas as grandes
novidades estavam nos novos depoimentos de Marcelo Lemos Montesanto e
Ângelo Lemos Duarte, que retrocederam totalmente nas suas falas anteriores.
Não confirmaram as informações que prestaram em seus depoimentos no IPM.
Apesar dos processados serem acusados de socialistas ou comunistas
todos se defenderam, negando adesão a tais ideologias.
Segundo Nazareno, com confirmação de outros, nas reuniões do clero, o
marxismo era rejeitado por difundir o ateísmo, apesar de positivo, no que concerne
à difusão da idéia de distribuição dos bens, como fruto do trabalho coletivo.
Consideravam também que a idéia de religião como ópio do povo era uma
verdade que merecia ser discutida e, é justamente nesse ponto que acreditavam
nas possibilidades da “Nova Igreja, desalienada, com cristãos engajados e
conscientes dos seus deveres para com a construção de um mundo, acima de
tudo, mais solidário e fraterno”
( )157
.
Todavia, desde o princípio, a defesa acreditou totalmente nos padres. Até
por que, o Emílio Gallo sempre morou na região e sendo de formação católica e
praticante da religião, conhecia pessoalmente a maioria dos padres envolvidos na
questão e suas práticas de vida social e religiosa.
( )158
. Conhecia também a
história da Igreja e concomitantemente a sua Doutrina Social, além de
acompanhar a sua trajetória pós Concilio
( )159
. Ampliou as possibilidades
sustentação argumentativa com o assessoramento sobre Direito Canônico, liturgia
157
ATAÍDE, José Nazareno: depoimento [6 de jun. 2006]. Coronel Fabriciano.
158
GALLO, Emilio Edstone Duarte: depoimento [ 09 jul. 2006], Coronel Fabriciano.
159
LARA, Dom Lélis: depoimento [08 abr. 2006], Coronel Fabriciano.
75
e teologia, oferecido pelo padre Lélis Lara
( )160
. Assim, construiu a defesa impondo
a tese das “deturpações das idéias, dos discursos e das práticas dos religiosos”.
Orientou-se através de uma revisão da atuação política e social da Igreja desde os
primórdios, entendendo que visão de mundo social dos clérigos processados era
de fato de esquerda. Não a esquerda radical de inspiração marxista, soviética ou
chinesa, mas a esquerda que acreditava numa Igreja renovada pelas idéias de
fraternidade e justiça social, difundidas como valores verdadeiros do cristianismo.
Concluiu que cada um deles estava ao seu modo, tentando ser fiel a Doutrina
Social da Igreja, que por sinal não era novidade na instituição. O advogado Emilio
acreditou que temos hoje a mesma doutrina social de outras épocas. A Doutrina
Social que sempre existiu e se adaptou a cada tempo. “[...] Uma mesma doutrina
com outra roupagem. Ela vem do Próprio Jesus Cristo, sofrendo transformações
ao longo dos tempos, se adaptando às diversas épocas da história”
( )161
. Os
defensores dos padres concluíram em seus argumentos, que o mundo passou por
muitos estágios de desenvolvimento econômico e político. Com a Revolução
Industrial e a conseqüente expansão do capitalismo, e os problemas dele
decorrente, no século XIX, acirrou-se os conflitos de classe. Passaram a se
confrontar os patrões e empregados. A exploração capitalista era desumana
contribuindo para o surgimento de idéias que questionassem o sistema,
culminando na fundamentação do socialismo marxista. A Igreja que não o aceitou
por ser ateu, contra - atacou com a Doutrina Social referendado pelo Papa Leão
XIII, que editou a Rerum Novarum.
Concluiu ainda que ao longo de sua trajetória histórica, a igreja teve muitos
comprometimentos com o poder dominante: Aliada da nobreza feudal na Idade
Média; sustentáculo do poder real na Idade Moderna, com a Teoria do Direito
Divino. Pela sua aliança com o poder temporal, ela passou por muitas reações,
muitas divisões e subdivisões. E depois que ela se assentou mais próxima aos
tempos de hoje, tornou-se uma religião mais contemplativa, voltada para o
160
Padre da Congregação Redentorista, Doutor Em Direito Canônico. Foi vigário da Paróquia São Sebastião
de Coronel Fabriciano, a partir de janeiro de 1971. Em 1977 foi nomeado Bispo auxiliar da Diocese de Itabira
– Coronel Fabriciano e em 1998, bispo titular da mesma da mesma. Atualmente é Seu Bispo Emérito.
161
GALLO, Emilio Edstone Duarte: depoimento [09 jul. 2006], Coronel Fabriciano.
76
espiritual e priorizando a oração. Ao lado disso, vieram os movimentos de reação
da Igreja moderna, principalmente a partir do Concílio Vaticano II, cujos trabalhos
culminaram na promulgação da encíclica, Populorum Progressio, em 1967, pelo
papa Paulo VI. Esta, denuncia as estruturas econômicas injustas e afirma o direito
de todos os povos ao desenvolvimento social, econômico, cientifico e tecnológico
( )162
. Em conseqüência, surgiram nos muitos lugares do mundo, movimentos que
propuanham a sua aplicabilidade. Exemplifica-se a Teologia da Libertação
difundida em toda a América latina.
Esses movimentos reagiram contra a igreja predominantemente espiritual,
sentindo que ela estava faltando com seu papel social quando houve o inevitável
choque entre os padres conservadores e os progressistas.
Trazendo o debate para o hoje, discute-se
( ) 163
que esse choque aconteceu
em algumas regiões do Brasil de forma clara e evidente. Considerava-se o Vale do
Aço como uma região que não tinha uma interação social e, até hoje essa
interação parece deficitária, mesmo sob evolução econômica. Como em todo o
Brasil, a riqueza se manteve concentrada nas mãos de poucos. Para se chegar a
esta conclusão, naquela época, bastaria circular pelas três cidades do Vale do
Aço. Em Ipatinga, por exemplo, o bonito traçado dos bairros em volta da
USIMINAS, com lindas praças, ruas asfaltadas e casas às vezes até suntuosas,
destoava completamente da pobreza dos bairros da periferia. Naquela época, até
o centro da cidade visto como um bolsão de pobreza, com um amontoado de
casebres em todas as ruas, sujas e sem pavimentação. Percebemos que a
maioria da população não usufruía dos bens necessários a uma vida
materialmente digna.
Atualmente, estas diferenças continuam existindo e são mais visíveis na
comparação entre as cidades. Coronel Fabriciano, por exemplo, acumulou ao
longo dos seus mais de cinqüenta anos de existência como município, um
162
Populorum Progressio, “O Progresso dos Povos” - Sobre o Desenvolvimento dos Povos, Carta Encíclica
promulgada pelo Papa Paulo VI, em 1967, se insere na relação de encíclicas sociais. Cf. Carta Encíclica
Populorum Progressio, “O Progresso dos Povos” [Documentos Pontifícios]. 1 ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
1967
163
Autor deste trabalho em debate com o advogado Emilio Gallo, o bispo Lélis Lara e Padre Abdala, em datas
esparsas.
77
amontoado de favelas e muitos outros problemas, agravados pela falta dos
recursos financeiros para solucioná-los. Suas vizinhas, Ipatinga e Timóteo, sedes
de grandes siderúrgicas, são agraciadas como altas arrecadações de tributos.
Na região, observa-se que desde o início de suas atividades, as indústrias
siderúrgicas controlam vários segmentos sociais. A vida da população
praticamente depende da ACESITA e USIMINAS. No caso da segunda, esta
colocou o seu setor de segurança totalmente militar, constituindo seu corpo de
militares aposentados. Esses militares, por sua vez, no contexto da Ditadura
sentiam-se verdadeiros donos do país, arvorando-se como defensores dos ideais
de 1964 na região. Foram eles de certa forma, o poder reagente contra a Igreja
católica naquele período, cujo bispo também era comprometido com a Doutrina
Social. Defendia acima de tudo que a religião deveria diversificar suas ações,
saído de uma visão apenas embevecida e partisse para uma ajuda efetiva à
sociedade marginalizada, desassistida e todo aquele povo que padecia por falta
de total recurso e, que segundo ele, o catolicismo permanecia quase que
indiferente. Somaram-se ao trabalho dos padres o trabalho das congregações
religiosas femininas presentes na diocese, especialmente irmãs, da Beneficência
Popular cidade de Timóteo, as irmãs do Espírito Santo em João Monlevade, com
trabalho de catequese, com forte penetração social. Elas também eram acusadas
de comunistas, e pessoas nocivas. Eram acusadas pelas pessoas da classe
dominante, que não admitiam as novas idéias, por que questionavam suas
atitudes e levantavam suspeitas quanto à honestidade dos meios usados para
enriquecimento. A Igreja conhecia a realidade, apesar não saber precisar os
números dos empregados de empresas e famílias que não eram agraciados com
seus direitos trabalhistas. Contudo, os defensores dos padres entendiam que os
religiosos não vieram para contrariar os dominadores, mas assistir, de uma forma
ou de outra, a população mais carente, melhorando a situação deles, aí incluindo
ao trabalho de conscientização dos direitos. Porém, entre o propósito e a ação
havia alguns exageros e havia uma reação que dava uma dimensão muito maior
aos problemas, exatamente por que esse poder dominante estava sendo
contrariado por essa visão de mundo da Igreja local. Os ricos e a classe média
78
não queriam ir a missa e lá ouvir sermões que conclamavam a luta por justiça
social. Alguns se sentiam até ofendidos quando das denuncias de exploração dos
trabalhadores pelos patrões. [...] Servia a carapuça?
( )164
.
A atuação dos funcionários da USIMINAS na perseguição aos padres não
estava autorizada pela direção da empresa, o que também não tira sua
responsabilidade por omissão. O próprio contexto da época levou muita gente a
não gostar da nova atuação da Igreja, até por não entender seus objetivos e
logicamente também dentro desta empresa.
Uma das atitudes estratégicas de grande êxito da defesa foi a orientação
quanto aos novos rumos que deveria tomar o clero na suas atuações a partir do
início do processo. Um recuo nos ideais, não como questionamento se estavam
certos ou errados, mas por uma necessidade de construir um apoio da opinião
pública. Destaca-se a reorientação dos editoriais de O Fato que incluíram a
elaboração de dois textos especiais: o numero 94, editado em 14 de junho de
1970 e o numero 95, em 21 de junho do mesmo ano. Respectivamente intitulados:
O Que Queremos e O Que Sentimos. Mais uma vez, somaram idéias na
construção de editoriais, estes com objetivo de desabafo, ao mesmo tempo que
informar a opinião pública o que de fato estava acontecendo em relação à Igreja
da região naquele momento, quando a censura impedia que o assunto fosse
aprofundado na imprensa
( )165
. Quiseram os padres demonstrar exatamente o que
a defesa já havia percebido: a atuação deles tinha o propósito de buscar a tão já
discutida Igreja Progressista.
Em ambos os textos, demonstram como se insere um religioso dentro do
novo contexto, motivos de especulações, intrigas e angustias no seio da
sociedade. No primeiro expõem as pretensões da nova Igreja.
164
Referencia em debates, em grupos de reflexão, àqueles que não aceitavam um discurso religioso
direcionado para a justiça social. Discutiam que às vezes eram pessoas, que na assistência as missas se
sentiam como se o padre estivesse falando dele. Em alguns encontros, há caso de pessoas que chegaram a
citar exemplos de ricos que assim se portavam, se referindo a eles como usurários, Inclusive enumerando
casos de injustiças cometidas pelos mesmos contra seus empregados.
165
O jornalista, José Rodrigues do Amaral, conhecido como Carioca, afirma que recebeu, em sua residência,
visita de agentes da Polícia Federal. No encontro, foi advertido verbalmente que não veiculasse em seu jornal,
Diário da Manhã, nenhuma matéria questionadora, por mínima que fosse sobre o processo contra os padres.
Advertiu também que não emitisse opiniões em relação ao assunto e que não assumisse papel de defensor dos
religiosos. Cf. AMARAL, José Rodrigues do: depoimento [16 de abr. 2006], Coronel Fabriciano.
79
[...] Nós os padres queremos nos definir. Somos simples homens,
escolhidos no meio do povo, a serviço do povo. Não somos seres
excepcionais: temos nossos defeitos, nossas angustias, nossos
desejos. Queremos ser bem melhores do que somos na realidade
( )166
.
[...] Queremos libertar-nos da carga secular, para servir à mesma
verdade eterna, ao evangelho, mas nos moldes de hoje. Não
apenas missas, batismos, casamentos ou coroações, por mais
significativos e belos que às vezes pareçam ser
( )167
.
No segundo expõem, seus sentimentos, seus anseios e expectativas em
relação ao trabalho religioso e aos problemas gerados na Nova Igreja.
[...] sentimos que devemos ser iguais à maioria do povo, na
medida do possível: trabalhar como ele, sentir as necessidades
como ele, viver como ele
( )168
.
[...] Vários colegas deixaram o ministério direto, seja para rever a
situação de sua vida, seja para se casar. Aceitamos a idéia deles
incondicionalmente e continuamos com a mesma amizade. [...]
Eles continuam sendo padres e colegas. Quem sabe se eles não
estão preparando corajosamente um novo tipo de padre. [...] Os
tempos mudaram. Quase todos querem continuar no serviço do
povo e do ministério
( )169
.
[...] Sentimos também que o único compromisso que podemos
aceitar, nesta hora difícil e tão decisiva, é unirmos a àqueles para
os quais Deus nos chamou: o povo
( )170
.
A defesa dos padres foi reconhecida como verdadeiro sucesso, culminando
com a absolvição dos réus. Os advogados se valeram de grande habilidade,
inclusive a diplomacia. Emílio Gallo, por exemplo, era visto como um dos grandes
criminalista de Minas Gerais, com trânsito nas mais altas esferas da sociedade, da
justiça e da política. Os dois defensores disponibilizaram todos os recursos que
precisaram usar. No entanto, eles próprios consideram como muito favorável, os
166
Artigo publicada na primeira página do Jornal O Fato, número 94, ano 2, editado em 14 de junho de 1970,
anexado ao Processo nº 2.931, 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 jun. 1972, fl. 569.
167
Idem.
168
Artigo publicada na primeira página do Jornal O Fato, número 95, ano 2, editado em 21 de junho de 1970,
anexado ao Processo nº 2.931, 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 jun. 1972, fl. 570.
169
Idem.
170
Idem.
80
méritos pessoais dos religiosos, embora fossem questionados por uns e
reconhecidos por outros na sociedade. Destaca-se a atuação das testemunhas de
favoráveis aos réus, que assumiram com muito empenho os seus papeis perante
o júri. Expondo detalhadamente todas as informações que conferiam o bom
caráter dos religiosos. Cita-se o caso do Ademar de Carvalho Barbosa, então
Diretor de Relações Industriais da USIMINAS. Colocou-se como um dos
apoiadores da vinda dos Padres do Trabalho para o Vale do Aço, para fomentar a
criação da Universidade do Trabalho. Citou outras grandes empresas sediadas na
região (CVRD, ACESITA e Belgo Mineira), que participavam do apoio a essa obra,
que tinha a frente o Padre José Maria de Man. Informou que a conduta do
religioso fora recomendada pela alta direção da Companhia Siderúrgica Belgo
Mineira, sediada na Europa
( )171
.
Já o Alfredo de Melo, responsável pelo setor jurídico da USIMINAS,
compareceu como testemunha de defesa do padre Bertollo, a quem atestou total
dedicação ao trabalho da igreja, com uma atuação pastoral valorosa, sem
vestígios da propalada subversão. Informou que sua atuação se estendia ao
Colégio São Francisco, ao Hospital Marcio Cunha (cidade de Ipatinga) e outras
instituições mantidas pela USIMINAS, onde seu nome era muito respeitado
( )172
.
Um instrumento que não pode ser excluído e que serviu de base para a
absolvição foi um discurso que havia sido proferido pelo ex-irmão Petrus, numa
solenidade interna da Câmara Municipal de Ipatinga, realizada em seis de
setembro de 1969, em comemoração à Semana da Pátria. Irmão Petrus, falou na
qualidade de diretor da Escola Municipal de Ipatinga.
No transcurso das suas palavras, ele chamou a atenção para o que a pátria
tem de maior riqueza, que é a sua gente, com a sua cultura, seu modo de ser, e
costumes, sua arte, literatura e música. Questionou, porem a Independência em
relação a Portugal apenas política. Lembrou que os valores, já citados, peculiares
171
BARBOSA, Ademar de Carvalho. Depoimento [27 de out. de 1971] encontrado no Processo nº 2931,
Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de 1972 fl.555.
172
MELO, Sidney Alfredo de Melo. Depoimento [27 de out. de 1971] encontrado no Processo nº 2931,
Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de 1972 fl.552-554.
81
à cultura brasileira, é o que de fato promovem a independência da Pátria. Citou
grandes nomes que retratam nossos valores na história:
[...] Num dia de Pátria, num dia de Independência celebramos o
que? Celebramos o que nos somos, celebramos as riquezas todas
acumuladas com a história. [...] a musica, desde o samba até
Carlos Gomes, as obras de arte de Aleijadinho, a literatura de
Anchieta até Fernando Sabino, toda a história, as poesias, o
romantismo de José de Alencar e Gonçalves Dias. [...] festejar a
Independência é festejar o homem brasileiro
( )173
.
O próprio Juiz ao pronunciar a sentença - a absolvição - confessou ter
ficado emocionado com o conteúdo do discurso, o qual chamou de “Hino de
Brasilidade”. Chamou a atenção dos presentes pelo fato de um discurso tão belo
ter partido de um estrangeiro. [...] Deveríamos imitá-lo”
( )174
.
Nesse capítulo, assistimos, de um grupo de padres que se alinharam ao
movimento progressista da Igreja, um conjunto de manifestações discursivas em
conflito com os interesses políticos do Regime Repressivo e com as insuficiências
de distribuição de renda do Capitalismo. Em razão disso, os padres foram
acusados de apresentarem discursos que corroboravam com desordem social e
de circular no Vale do Aço idéias políticas e sociais contrárias às representações
de mundo social do Regime. Vimos também que foram indiciados por fazer
circular discursos subversivos nos principais canais institucionais do Vale do Aço:
a Igreja, imprensa, escolas e universidade.
No próximo capítulo, buscaremos em averiguar, as práticas exercidas pelos
principais atores do movimento progressista da Igreja na região. Essas práticas,
traduzidas em despimento de tudo àquilo que representasse distinção social entre
padres e leigos; em uma administração do clero mais democrático e autônomo;
modificações nos rituais de culto; formação de grupos de reflexão; estimulação da
sociedade civil em participação política. Entretanto, enfocaremos também, que o
progressismo, que os padres se faziam defensores, estavam amalgamadas por
um modernismo que anulava as tradições culturais e costumes locais.
173
Trecho do discurso preferido por Petrus Martinus, em sessão solene da Câmara Municipal de Ipatinga, em
comemoração a Semana da Pátria de 1969.
174
Manifestação de Mauro Seixas Teles, ao proferir a sentença de absolvição dos padres.
82
AS MANIFESTAÇÕES PRÁTICAS DA IGREJA PROGRESSISTA NA ESFERA
SOCIAL E POLÍTICA LOCAL
Desde a sua instalação, a Diocese de Itabira seguiu uma trajetória de
trabalho moderno. Particularmente, parece que Dom Marcos Noronha procurava
organizar a instituição sob o prisma da prática democrática. Uma de suas
primeiras providências foi reunir o clero para traçar os rumos dos trabalhos
diocesanos, quando elegeram o padre Otacílio como Coordenador Pastoral. Na
mesma ocasião discutiram as diretrizes orientadas pelo Concílio, quando se
definiu por dirigir convite ao povo para tomar um novo lugar na Igreja, envolvendo-
os corajosamente na base das idéias e na programação das ações religiosas e
evangelizadoras. Os grupos de reflexão, foram a partir de então, organizados por
toda Diocese. Eram esses os espaços de encontro dos fieis, princípio de busca
dos legítimos anseios da população, aliados ao trabalho de evangelização. O
espaço estava aberto a todos, incluído os oprimidos e marginalizados, a que no
conjunto foram chamados “Povo de Deus
” ( ).175
[...] Era preciso convidar o povo para participar de tudo. Participar
como sujeito responsável da ação da igreja, como agente e não
apenas paciente da história
( )176
.
Para solidificar esse propósito, Dom Marcos conclamou o clero a ser o
“guia e o espelho”, renunciando aquela Igreja meramente contemplativa,
abandonando o papel de religioso comandante, superior ao seu povo e dele
isolado na sua autoridade eminente. Solicitou também ao clero para que pautasse
175
Define-se Igreja Povo de Deus, todo o corpo que compõe a comunidade católica, desde os mais simples
fiéis batizados e engajados nos grupos de reflexões e nas Comunidades Eclesiais de Base, até o membros
hierarquia eclesiástica, que participam das decisões da Igreja. Cf. BOFFE, Leonardo. Igreja Carisma e Poder
ed 3. Petrópolis, RJ: Vozes, 1982 p. 184
176
NORONHA Marcos Antonio. Marcos Noronha e a Igreja. In: Enio P. Giachini (org.). 1 ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2001, p.39.
83
suas práticas no conteúdo do novo discurso, já tão debatido
( )177
. Resumindo,
pediu-lhes que de fato caminhassem na busca de um projeto de amor. ”[...] O
ministério exige doação total, renúncias, dedicação integral, fidelidade [...]”
( )178
.
Concluiu-se que, uma religião mais perto do povo, significava despojamento
dos excessos da pompa e até mesmo de alguns símbolos e indumentárias, que
muitas vezes impunham um respeito acima do normal e conseqüentemente
promovia um distanciamento da autoridade religiosa em relação aos fiéis
( )179
. Isso
se insere num contexto global da Igreja, com orientações do Concílio, sobretudo
na parte litúrgica
( )180
. As missas passaram a ser celebradas na língua pátria, em
detrimento do latim, com um ritual menos carregado e com uso de paramentos
mais simples. Até o altar foi reduzido a uma mesa, onde de frente um para o outro,
padre e povo começaram a se comunicar nas celebrações.
Em suma, a idéia central das ações propostas era colocar a Igreja a serviço
do que se chamou de verdadeira evangelização, cuja culminância seria a
construção de uma sociedade mais justa em todos os sentidos. No entanto, entre
o propósito e a ação, até hoje é motivo de discussões, algumas práticas são tidas
como exageradas. Alguns padres concluíram que não deveriam mais usar a
batina, nem mesmo no altar precisariam usar algum paramento para celebrar
missa ou outro oficio. Acabaram, em muitos lugares, com festas tradicionais – o
progressismo na igreja também parecia anular a democracia que eles mesmos
defendiam
( )181
.
[...] O padre abandonou quase todos os signos sagrados que
investia: batina, clausura para os padres e religiosos, simplificação
da liturgia, moradias abertas ao povo etc. Passada esta
experiência, hoje se questiona se o padre não foi longe demais.
177
ABDALA, José Jorge: depoimento [09 fev. 2006], Timóteo.
178
NORONHA Marcos Antonio. Marcos Noronha e a Igreja. In: Enio P. Giachini (org.). 1 ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2001, p.53.
179
Em muitos encontros de grupos de reflexão era comum o debate sobre o valor de certas vestes sacerdotais.
Concluem que o uso da batina muitas vezes impunha um respeito exagerado ao padre. Exemplificam-se casos
de padres que ao serem reconhecidos pela veste em órgãos públicos, bancos e muitos outros lugares, recebiam
tratamento privilegiado.
180
LARA, Lelis: depoimento [18 de abril de 2006], Coronel Fabriciano.
181
Há casos de padres locais que incorporavam um conceito de modernidade que supria a tradicionalidade
presente em certas manifestações culturais de muitas comunidades. Por vezes, ainda, até impunham esse
conceito modernidade.
84
[...] O povo se retraiu, mas não se entregou. Sentiu-se agredido
( )182
.
Somou-se a todas essas ações novas, a adoção do já discutido discurso
sócio-político, na visão de mundo da ala progressista do clero. Como qualquer
mudança, em qualquer situação, aconteceram as previsíveis conseqüências.
Segundo depoimentos diversos, que incluem padres e fiéis
contemporâneos a Dom Marcos, ele próprio era o testemunho da nova vivência.
Antes de mais nada, um homem de muita paciência, perseverança e fé
( )183
.
Acima de tudo, ele primava pelo respeito as diferentes opiniões do seu clero. Não
interferia nas decisões dos padres. Buscava com eles sempre o diálogo,
encorajando-os quando dos momentos difíceis. Afirmam ainda a sua firmeza de
caráter, demonstrada nos seus gestos e atitudes ao longo da sua trajetória como
bispo. Consta que logo que assumira a Diocese, recebera de presente da
prefeitura de Itabira, um automóvel Itamaraty
( ) 184
e da USIMINAS recebera um
Symca
( )185
. Vendeu o segundo e rifou o primeiro, comprando uma Rural
( ) 186
e um
fusca
( )187
. Carros mais simples, que considerava mais adequado para trabalhos.
“[...] foi uma violência para o burguês vaidoso, mas a consciência ficou em paz”
( )188
.
Dom Marcos procurou em todas as praticas ser fiel às orientações do
Concilio. Levou com muita responsabilidade a idéia de que a evangelização
182
BOFFE, Leonardo. Igreja Carisma e Poder ed 3. Petrópolis, RJ: Vozes, 1982 p. 206.
183
Idem
184
Automóvel de luxo, fabricado no Brasil, a partir de 1966, pela Willys Overland do Brasil. Era uma versão
melhorada de outro automóvel do mesmo fabricante, o Aero – Willis. O nome do automóvel foi inspirado no
Palácio do Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores em Brasília. Em 1968 houve a união da
Willys Overland do Brasil com a Ford Motors do Brasil e os modelos do primeiro foram aos poucos sendo
retirados do mercado. Cf. Willys Overland do Brasil. Disponível em <www. angelfire.com/wi/willysbr/willys.html>.
Acesso 25 out. 2006.
185
Automóvel de luxo, fabricado no Brasil, a partir de 1959, pela empresa francesa do mesmo nome.SYMCA
– Societé Industrielle de Mécanique et Carrosserie Automobile,
A marca desapareceu quando em 1967 foi
adquirida pela norte-americana Chrysler. Cf. História da Fábrica Simca. Disponível em <
http://packard37.sites.uol.com.br/simcahistoria.htm>. Acesso em 25 out. 2006.
186
Carro utilitário, fabricado no Brasil a partir de 1959, pela Willys Overland do Brasil.Cf.
Willys Overland do
Brasil. Disponível em <www. angelfire.com/wi/willysbr/willys.html>.
187
Pequeno sedan, produzido no Brasil a partir de 1959, pela Wolksvagem, fabricante alemão de automóveis.
Cf. site da Wolksvagem do Brasil, seção, história da Wolksvagem. Disponível em:
www.vw.com.br/default.asp. acesso em 20 de outubro de 2006.
188
Noronha Marcos Antonio. Marcos Noronha e a Igreja. In: Enio P. Giachini (org.). 1 ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2001, p.66.
85
deveria ser precedente à aplicação dos sacramentos. Isto quer dizer que a Igreja
deveria preparar as pessoas para receber os sacramentos de uma forma geral,
para que todos o fizessem consciente do seu real valor. Por isso a Diocese
adotou, em todas as paróquias, os cursos de preparação para o batismo e o
casamento. O primeiro visava orientar pais e padrinhos sobre o valor desse
sacramento, inserindo-os na responsabilidade social e moral do ato, evitando que
o fizessem mecanicamente, ou apenas por tradição, ou baseados em superstições
( )189
.
Com relação ao segundo, a Igreja criou os “Cursos de Noivos”, com palestras
médicas e muitas reflexões sobre o papel do marido e pai, da mulher e mãe, além
de conscientizar o casal, dos aspectos morais da Igreja em relação ao casamento
e a união final como um sacramento
( )190
.
Reformulou ainda a catequese para
crianças e adolescentes, no sentido de inseri-la no novo contexto.
As ações pastorais da Igreja de Itabira deveriam, então, ser planejadas
coletivamente pelos padres que por sua vez buscariam as bases nos consolidados
das reuniões dos grupos de reflexão. Os encontros do clero eram constantes, em
cada uma das zonas administrativas, onde se discutia de tudo, sempre com vistas
ao entendimento à coesão das idéias e dos rumos a serem tomados. Nesses
encontros eram debatidos, desde os problemas sociais da nação, com forte
argumentação em bases estatísticas, pobreza, miséria, desnutrição, mortalidade
infantil e outros, passando pelas análises das supostas causas destes. Apontavam
sempre para a injusta distribuição das riquezas vigente no país, das quais a
questão fundiária era reconhecidamente a mais debatida. Taxavam de absurda a
concentração de terras e seus efeitos, sentidos pelas classes desfavorecidas do
país.
Assim, o trabalho diocesano situava-se dentro do que preconizava a CNBB,
e sua orientação para o estabelecimento de um Plano Pastoral Conjunto. Nesse
propósito, Dom Marcos procurou fazer um intercambio com outras dioceses.
Encontrou respostas naquelas onde seus bispos também acabaram por enfrentar
189
Muitas pessoas batizavam seus filhos por temer azar para a criança, para não morre pagã ou para não ser
atingida por raio.
190
Para a Igreja, o casamento é um dos sete sacramentos: Batismo, eucaristia, crisma, penitência, ordem e
matrimônio e extrema unção, instituídos por Jesus Cristo.
86
quase que intransponíveis barreiras para ver algum fruto dos seus trabalhos. Dom
Waldir Calheiros, bispo de Volta Redonda; Dom Luiz Gonzaga Fernandes,
Arcebispo de Vitória, Dom Estevão Avelar, Bispo de Uberlândia, Dom Antônio
Fragoso, bispo de Crateús. Esses eram considerados entre os mais progressistas
dos bispos brasileiros, à época, em consonância com Dom Helder Câmara,
Arcebispo de Olinda e Recife, o expoente principal. Com ele comungavam um
trabalho religioso de aproximação da doutrina com a realidade popular. Criaram
todos eles muitos desafetos, opositores às idéias de uma igreja que não
acreditavam.
Gradativamente o conhecimento dos rumos pastorais adotados na Diocese
se estendeu por todo o Brasil, chegando ao exterior. As lideranças diocesanas
foram muito procuradas pela imprensa nacional e internacional. Os trabalhos de
Dom Marcos foram retratados até no Le Monde
( )191
. A esse jornal, Dom Marcos
dera entrevista, onde entre outros assuntos relatou sobre prisões e torturas
sofridas por padres durante o Regime Militar.
A fama das renovações pastorais implantadas na Diocese serviu também
para atrair cada vez mais, padres em crise com a vocação e com a Igreja. Estes,
a partir das idéias do Concilio, entraram em choque com a formação que
receberam no berço e nos estudos de seminário, ascendendo neles as dúvidas de
que se adeririam às novas orientações ou se manteriam nas antigas. Alguns
questionavam o celibato, a hierarquia. Não sabiam ao certo que rumo tomar: Ficar
na Igreja? Sair? se casar?. Alguns ficaram até mesmo abalados na fé.
A vinda para essa região foi para muitos a derradeira opção. Vinham na
esperança de se reconciliarem com Igreja, agora renovadas numa outra visão e
realidade, ou dela se despediriam definitivamente. A Diocese de Itabira foi então
ao mesmo tempo, um campo de provas e ao mesmo tempo o coração acolhedor
daqueles que a Igreja não poderia descartar de qualquer jeito. Traziam consigo
seus anseios e déias. Logo aceitos, assumiam com todo empenho.
A partir de então que aprofundam os conflitos. Duas diferentes visões de
mundo: a visão de uma Igreja tradicionalista e a visão da Igreja progressista,
191
Jornal francês fundado em 1944. Tem grande aceitação internacional
87
perpassando a população, ocasionando diferentes comportamentos e práticas
sociais que culminaram num inevitável confronto.
Os padres veteranos, enraizados na região não aceitaram a “Revolução
Pastoral
” ( )192
.
Somou o clero conservador com a ala da sociedade que igualmente
não aceitavam as reformas, evoluindo gradativamente para o conflito. Estes
perduraram enquanto permaneceu Dom Marcos à frente da Diocese. Intrigas de
todo tipo envolvendo os nomes de muitos religiosos que culminaram no já
estudado processo contra os oito membros da chamada ala progressista local. A
defesa no processo jurídico contra os padres se pautou na argumentação de que
deturparam completamente as atitudes e comportamento desses. Levantaram
mentiras diversas sobre a atuação dos mesmos.
O Caso Monção
Padre Geraldo Monção era um dos padres, que em situação de crise,
procurou abrigo na Diocese de Itabira, chegando em 1967, oriundo da
ultratradicional Arquidiocese de Diamantina. Trabalhou inicialmente em Ipatinga,
sendo transferido para a cidade de João Monlevade em 1968, para assumir como
vigário a Paróquia do bairro de Loanda, recém desmembrada da Paróquia de
Nossa Senhora da Conceição, sediada no bairro Carneirinhos. Logo que chegou,
o padre Monção resolveu colocar em prática um plano pastoral audacioso. Havia
aqueles, que no meio da sociedade, aceitavam suas idéias e, uma outra parcela
divergente. No entanto, o forte trabalho de oposição a ele foi liderado pelo Padre
João Batista Neto, vigário da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Este era
considerado como o mais conservador e reacionário de todos os padres da
Diocese daquela época.
Entre as diversas denúncias que pesaram sobre o padre Monção
encontramos as acusações de incentivar o concubinato, extinguir os sacramentos,
difundir concepções comunistas e semear idéias protestantes.
192
Foi chamada de revolução pastoral, as modificações litúrgicas e catequéticas introduzidas na Diocese de
Itabira, à época de Dom Marcos Noronha.
88
Em meio a tantas polêmicas em torno das intenções de Monção, a defesa
enuncia que foi um exagero por parte da acusação, quando não, deturpação na
interpretação daquele padre. Com relação ao incentivo do concubinato e
promiscuidade sexual, a justificativa da defesa é que Monção estava abrandando
o rigor da norma religiosa de seu antecessor, Padre João Batista – este não dava
nenhum atendimento às mulheres amasiadas e mães solteiras que o procuravam
além de condená-las. Padre Monção as acolhia e as confessava, apoiando-as
com base no ditado popular: “Quem ama com Fé, casado é”. Por isso, ele não só
foi acusado de incentivar as relações irregulares
( )193
de casais, mas até de
estimular a promiscuidade sexual:
[...] Quando passaram a dizer aos nubentes que não mais
oficiariam casamentos, aconselhando-os ao concubinato,
objetivando a grande quantidade de mães solteiras naquela região
( )194
.
Com relação à segunda acusação, ele não extinguiu os sacramentos,
retrucou a defesa. O que de fato aconteceu é que o padre, exagerando na
interpretação das orientações do Concilio resolveu suspender temporariamente a
administração de todos os sacramentos e adotando como único trabalho às
reuniões dos grupos de reflexão
( )195
. Nem mesmo a missa aceitava celebrar. Só
retornaria à rotinas dos ofícios religiosos e sacramentos quando toda a população
estivesse consciente do seu papel diante da Igreja e dos valores por ela
apregoados, além da completa consciência do que representava os sacramentos,
deles só participando quem realmente estivesse preparado. No entanto, as
acusações com relação a este tema, ultrapassaram as fronteiras da figura de
Monção, sendo no processo relatado como uma ação do conjunto
“[...] Quando os
denunciados extinguiram os Sacramentos da Santa Madre Igreja
( )196
.
Quanto à acusação de comunista, novamente houve um desvirtuamento
das suas idéias. Justamente por acreditar que seria possível a existência de uma
193
Os casais que viviam juntos, mesmo casados no civil eram vistos como amasiados, em situação moral
irregular perante a Igreja.
194
Autuação dos religiosos, dando inicio ao no Processo nº 2931, Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária
Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de 1972, fl. 2-9.
195
Lara, Lelis: depoimento [18 de abril de 2006], Coronel Fabriciano.
196
1dem 17.
89
Igreja composta de fiéis conscientes, comprometidos com as verdades do
evangelho, ele trabalhava com muito empenho nas discussões dos muitos
problemas da sociedade, dentro de um contexto da já discutida Doutrina Social
Católica. O marxismo não era descartado dos trabalhos nos grupos de reflexão. A
religião discutia alguns de seus valores, especialmente a proposição de uma
sociedade sem classes, comparando-os com os princípios básicos do cristianismo,
de solidariedade e fraternidade.
Por fim, dado ao bom relacionamento mantido com os seguimentos não
católicos, Monção foi acusado de destruir o catolicismo em detrimento dos valores
e idéias protestantes. Basearam-se no fato do diálogo que ele mantinha
especialmente com os batistas e presbiterianos e, que segundo testemunhos
diversos, estudavam a possibilidade de um trabalho conjunto.
Consta inclusive que Monção fora alvo de insultos e afrontas, quando em
ambiente público era chamado por crianças de pastor protestante
( )197
.
As Práticas Sociais
Logicamente que a construção da mentalidade progressista na Igreja não
chegara repentinamente e nem do imediatismo das idéias do Concílio Vaticano II e
da Conferência de Medellín. Como dissera Dom Marcos Noronha, o Concílio não
trouxe nada de novo. “[...] Ele respondeu aos anseios que já estavam no coração
das pessoas”
( )198
. A mentalidade renovadora na região da Diocese já assim
existia sedimentada sob a influencia dos problemas sociais que há muito eram
vivenciados pela população. Problemas esses, muitas vezes comuns às regiões
industriais. No caso aqui em questão, o Vale do Aço como a presença de grandes
empresas siderúrgicas e mineradoras, a atuação de algumas delas eram motivos
de questionamentos, denunciados pelos operários e sindicatos de classes. A
Igreja diante desses, concluiu que teria que se posicionar.
197
Monção, Geraldo Ferreira. Depoimento [19 de abril de 1971] encontrado no Processo nº 2931, Auditoria da
4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de 1972, fl. 231-234..
198
ABDALA, José Jorge: depoimento [09 de fevereiro de 2006], Timóteo.
90
Um expoente do clero, que talvez mais tenha respondido nas práticas a
esse novo chamado, foi o padre Abdala. Como vigário da Paróquia São José no
município de Timóteo, ele sempre teve uma atuação pastoral de proximidade com
os setores mais pobres. Sua casa é um misto de escritório paroquial, residência e
serviço social: num cômodo uma farmácia; noutro um deposito de alimentos e num
terceiro, roupas usadas, todos com o mesmo propósito, fruto de campanha entre
os fieis para amenizar a condição das famílias mais pobres. Mas sua atuação não
se reduz à filantropia, pelo contrário ele sempre disse que a caridade é muito
pouco diante do que a pessoa humana realmente precisa, que é a justiça social.
Por isso, ele sempre esteve em conflito com a ACESITA, empresa que era uma
das grandes estatais brasileiras, a única siderúrgica produtora de Aço Inox,
privatizada em 1992. Desde a sua instalação a partir de 1944, ela acumulou um
vasto currículo de desmandos contra famílias pobres da região, a quem explorou,
deixando um enorme rastro de problemas sociais graves. Cita-se o caso BENEPO
- Beneficência Popular, uma congregação religiosa criado por Monsenhor Rafael,
em 1946, na cidade de Alvinópolis. A entidade congregava jovens que viviam em
comunidades e faziam os votos religiosos de pobreza, castidade e obediência sem
a estrutura rígida das outras congregações. Alguns tinham a permissão de fazer
os votos e se manterem em suas casas com suas famílias. As irmãs dessa
congregação não usavam hábito, numa antecipação dos ideais do Concilio
Vaticano II. Não tinham capelão, estando sujeito à assistência do vigário do local
onde trabalhassem. Monsenhor, quando veio para Timóteo em 1950, trouxe as
irmãs e assumiu as obras assistenciais locais. A companhia aproveitou o máximo
dele e o enganou por muito tempo, pedindo que assinasse papeis diversos, sem
que se desse conta que a empresa estava contratando pessoas para trabalhar no
reflorestamento e fabricação de carvão, fichando tais trabalhadores na BENEPÓ.
Usava-se do seu status de congregação visando ficar isenta da contribuição
previdenciária. Assim, a Companhia lucrou muito com a exploração de centenas
de operários, pessoas simples e sofridas, usando como agente, o confiante e
ingênuo religioso. Os “empregados” trabalhavam sem horário, expostos á doenças
e sem equipamentos de segurança. Havia ainda outros agravantes, como o
91
endividamento dos operários nos armazéns de propriedade de empreiteiros de
carvão. O que ganhavam nunca pagava o que consumiam, somando sempre
contas sobre contas.
Padre Abdala, recém ordenado, chegara a Timóteo em 1953. Viera como
coadjutor de Monsenhor Rafael. Nessa época, ambos tinham muito bom
relacionamento com a Companhia. As relações começaram a gerar desconfiança
quando Abdala percebeu que Monsenhor estava sendo usado pela empresa.
Monsenhor Rafael mantinha estreitas relações com as autoridades,
acreditando que lhe poderiam ser úteis, ajudando na sustentação e facilitação dos
trabalhos sociais. Ele era muito simples e totalmente desprendido. Não exigia
nada para ele. Dormiu vários anos na sacristia da igreja até que a ACESITA
construiu a Casa Paroquial, por sinal muito rudimentar. Possuía apenas três
cômodos. Depois de pronto o novo hospital da empresa, no bairro Timirim, foi
cedido o hospital velho, localizado ao lado da igrejinha de São José, para
residência das irmãs.
Afirma padre Abdala, que as injustiças que vira a ACESITA praticar contra
seus empregados, não só o caso BENEPÓ, contribuiu para que ele construísse a
personalidade que mantém até hoje, que conjuga as idéias políticas com as idéias
da religião, fundamentado em muitas literaturas, dentre as quais uma revista
chamada Carta aos Padres. Arrisca em demarcar o ano de 1959 como o marca da
sua mudança de direção ideológica na religião. Anteriormente era muito
conservador. Chega a dizer que se continuasse na mesma linha de sua formação,
hoje faria parte da TFP
( )199
.
Em seu currículo de ações políticas, ajudou os operários sediados na Cava
Grande
( )200
a fundar o primeiro sindicato rural da região. Tinha como objetivo
ajudar os operários a se organizarem em busca de soluções para seu problemas
em relação à ACESITA. Participou diretamente das eleições para o sindicato dos
metalúrgicos, sempre orientando os trabalhadores metalúrgicos na formação de
199
TFP – Tradição Família e Propriedade: entidade Católica tradicionalista de extrema direita, fundada no
Brasil em 1960. Entre suas muitas ideologias, era totalmente contra as reformas introduzidas pelo concilio
Vaticano II.
200
Bairro da cidade de Timóteo, à época citada no texto era apenas uma pequena comunidade rural.
92
uma diretoria de oposição à empresa. Com isso acumulou uma coleção de
desafetos pela diretoria da empresa. Apesar disso, afirma não acreditar que a
ACESITA tenha articulado para que fosse perseguido pelo Regime de 1964.
Padre Abdala é o único entre os processados que assume que é socialista.
Defende que, salvo o caráter ateísta do marxismo, seu objetivo de igualar as
classes é totalmente compatível com o Cristianismo. Propõe-se a fazer a justiça,
redistribuindo os frutos do trabalho do homem de maneira igual, para que não haja
ricos e pobres, explorados e exploradores. Foi, então, uma utopia que passou a
perseguir. Tem em Stalin, um verdadeiro inimigo do socialismo, que desacreditou
o sistema pela forma violenta que usou para fazer valer suas idéias. Por muito
tempo acreditou em Kruchtchov, o líder socialista, desde o Congresso Comunista
de 1950, Kruchtchov defendia na vitória do socialismo sem o disparo de um tiro.
Foi ele quem derrubou as estatuas de Stálin na praça Vermelha. Demonstrou ser
de uma linha mais aberta. A grande decepção veio quando da invasão da
Tchecoslováquia em 1968 pelo Exercito Vermelho, sob suas ordens, no episódio
conhecido como Primavera de Praga.
Padre Abdala, conforme ele mesmo se define, sempre foi uma pessoa
polêmica. Emilio Gallo também afirma que ele foi o mais difícil entre os padres, tal
a sua franqueza em dizer tudo o que pensa, alem de desobedecer totalmente às
orientações da defesa. Os advogados tinham sempre que arranjar artifícios para
justificar sua ausência em audiências, o que ele fazia de propósito, pois como já
visto, ele gostaria de ter sido preso.
As novas experiências no Vale do Aço.
Com o advento da nova Diocese, concentrou-se na Zona III, o clero de
tendência mais progressista. O Vale do Aço acabou funcionando como um lugar
de experimentação de uma mentalidade religiosa bastante diferente da
convencional. As reformas pastorais empreendidas na Paróquia São Sebastião,
em Coronel Fabriciano, foram as mais visíveis. Esta é a mais antiga instituição
religiosa da região, fundada em 1948, e entregue à sua administração aos
93
Missionários Redentoristas
( )201
. A partir dela, foram criadas as outras paróquias:
São José, em Timóteo; Nossa Senhora da Esperança, no Bairro Horto em Ipatinga
e Santo Antônio, no bairro Melo Viana em Coronel Fabriciano. Ao longo de sua
história acumulou muitas tradições, que incluía um calendário anual de festas
religiosas, que atraia a população de toda a redondeza: a festa do padroeiro,
passando pelas atividades de Semana Santa, Mês de Maria, Sagrado Coração,
Festa do Rosário, Imaculada Conceição e Natal. As procissões aconteciam o ano
inteiro, eram ricas, abrilhantadas pela banda de música e acompanhadas pelas
muitas agremiações tradicionais, com seus componentes, usando as
indumentárias e insígnias próprias.
De forma brusca acabaram com tudo. O ano de 1969 é o marco. A partir de
então, a onda de “modernidade” varreu as tradições da paróquia. Já nesse ano, a
Semana Santa se limitou às atividades litúrgicas internas bastante simplificadas e
a única procissão foi a do enterro
( )202
.
A partir de 1970, nem mesmo essa
aconteceu. Também não aconteceram mais nenhuma das outras procissões, nem
mesmo a do padroeiro. A demolição das tradições chocou profundamente a
população que assistiu atônita e revoltada o que não aceitavam com nenhuma
justificativa. As mudanças já se processaram gradativamente nos anos anteriores,
com pequenas mudanças nas atividades, que iam desde a simplificação nos ritos
à eliminação de festas e costumes. Um dos atos que mais chocou o povo foi o fato
de ir para igreja nos domingos e deparar com o padre, que ao subir ao altar para
celebrar, trajava simplesmente terno e gravata. Foram essas abruptas mudanças
empreendidas especificamente por quatro padres, do rol daqueles, que em crise
no meio redentorista, se concentraram em Coronel Fabriciano: João Batista
Bastos, João Vicente Weitzel, Guido Gonçalves Vieira e Severino Eloi de
201
Congregação religiosa Católica, fundada por Santo Afonso Maria de Ligório, na Itália, em 1732. Tem
como principio de trabalho a pregação de missões populares. A Congregação mantém atualmente, trabalhos
em 77 paises, com 5.500 componentes. No Brasil eles estão presente desde 1893, quando instalaram a
primeira missão em Juiz de Fora, MG. Atualmente são responsáveis pela administração de diversos centros de
peregrinação em todo o Brasil, destacando-se o Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida.
202
Procissão de Sexta Feira Santa, em que os fieis acompanham a imagem do Senhor Morto.
94
Rezende. Como se não bastassem, as radicais mudanças nos ritos e eliminações
de tradições, casaram-se todos eles o que acirrou na cidade um verdadeiro
rebuliço.
Abriu-se uma crise na Igreja local a ponto da Congregação passar por
dificuldades em conseguir sacerdotes para servir a Paróquia. Nenhum padre
queria ir para Coronel Fabriciano. No entanto, o casamento de sacerdotes não foi
um fenômeno só da paróquia de São Sebastião, nem do Vale do Aço, quando
também se casaram o Nazareno, o Wilson Moreira, Petrus e muitos outros. Em
toda a Diocese somaram mais de trinta abandonos do sacerdócio para esse fim,
nesse período
( )203
. Talvez, isso não fosse apenas de natureza local, já que estava
ocorrendo no mundo inteiro. Apoiaram-se na abertura promovida pela Igreja,
durante o pontificado do Papa Paulo VI. O clero pode abrir processo de pedido de
dispensa, quando não demorava o retorno. Anteriormente a Igreja era muito
fechada e não permitia nem que se tocasse no assunto.
Um caso que merece destaque relaciona-se ao padre João Batista Bastos,
ou simplesmente, Padre Bastos. Afirmam alguns de seus colegas de
congregação, que ele se dirigiu para o Vale do Aço, acreditando na Nova Igreja
implantada nessa região. Depois de total dedicação ao trabalho de reflexão e
busca de uma consciência de uma religião renovada, teve a maior decepção de
sua vida, ao ver em 1970, o povo de sua paróquia, somados a outros de muitos
lugares, se dirigir em massa, em romaria à cidade de São José do Goiabal
( )204
.
Iam atraídos pelos supostos milagres que aconteciam no túmulo do padre
Ermelino: cegos enxergavam, paralíticos andavam, mudos falavam. Por mais que
os padres e o bispo tentassem conscientizar a população, da falta de provas
científicas dos milagres e das possibilidades dos perigos de fanatismo em torno da
questão, mais e mais pessoas se dirigiam a Goiabal
( )205
, em busca de curas e
outras necessidades.
203
BRASIL, José Índio do: depoimento [17 out. 2006], Coronel Fabriciano.
204
Pequena cidade, com 5.926 habitantes, integrantes da Diocese de Itabira - Coronel Fabriciano, localizada
na Zona II.
205
Assim, geralmente se refere a população das redondezas, em relação ao nome da cidade de São José do
Goiabal.
95
Também merece discussão a adoção de uma linguagem e uma
metodologia pastoral que parece priorizar a discussão política e social, uma
possível interpretação errada das idéias do Concilio. Por isso, Dom Marcos
orientava que cada grupo buscasse, antes de tudo, o discernimento do verdadeiro
papel cristão nos grupos de reflexão. Ele próprio, em nenhum momento desfez do
lado espiritual. Sempre se manteve firme nas orações, inclusive o terço e a leitura
diária do breviário
( )206
. Enquanto isso alguns grupos desviavam muito para o lado
das discussões e pouca atividade espiritual enquanto outros frutificaram num
trabalho real de evangelização. Num caso muito especial, o grupo de reflexão da
Igreja de Santa Rita, localizada no bairro Caladinho, em Coronel Fabriciano, num
momento de dúvida, como era comum, tentou buscar respostas aos
questionamentos. Inicialmente o fizeram entre os próprios integrante. Não obtendo
o êxito desejado tentaram busca no Padre Bastos, Vigário da paróquia São
Sebastião, da qual faziam parte. Com ele também não obtiveram respostas
satisfatórias. “[...] Talvez as respostas fossem duras demais e o padre preferiu não
dá-las
( )207
. Reclamavam que o padre fugia do assunto. Da decepção acabaram os
fieis em dezenas, se transferindo para outras denominações, especialmente
igrejas pentecostais.
A adoção do jornal O Fato completou o rol das modificações na liturgia. Os
fiéis passaram a se guiar por eles durante os ofícios religiosos, sempre
completados pela homilia que comentava o editorial do dia.
Consta inclusive, que na Semana da Pátria de 1969, celebradas na região
Zona III, na maioria das missas, nas quais fora usado O Fato que continha o texto
Independência ou Morte???, o tema central foi exatamente uma severa crítica à
falta de liberdade que vigorava no país.
Com base na proposição de trabalho coletivo, o semanário litúrgico era
206
Livro que reuni todos os elementos do Ofício Divino: salmos, antífonas e leituras, a que os padres estariam
obrigados a rezar diariamente.
207
As respostas talvez estivessem num contexto de uma visão de mundo particular do padre Bastos, que em
crise na igreja não acreditava em certos valores enraizados na religião e na sociedade de então. Assim
concluem algumas pessoas ao discutir o assunto. Assim avaliam pessoas do bairro Caladinho em Coronel
Fabriciano, e naquela época conviveram com o padre Bastos e, que não gostaria de ter seus nomes
identificados.
96
sempre redigido em rodízio pelos padres processados, que se reuniam todas as
quintas feiras, cada semana numa casa paroquial da região. Ali realizavam o que
chamavam de “tempestade cerebral”: Um tema de destaque na mídia local ou
nacional naqueles dias era escolhido por votação. Depois cada um citava frases
ou palavras soltas alusivas ao tema. Assim as idéias de todos eram anotadas por
aquele que seria o responsável pela compilação do texto final, num rodízio que
contemplava a todos eles, um por semana. No caso específico, este exemplar
ficou a cargo do Padre Nazareno, embora tenha sido referendado por todos.
As reformas empreendidas na Igreja do Vale do Aço foram muito além das
mudanças na liturgia. Foram, antes de tudo, fruto da consonância entre os
religiosos. Nas reuniões do clero, que eram organizadas por zonas geográficas,
debatiam-se os problemas e direcionavam em conjunto as medidas a serem
tomadas. Em todas as ações estavam seguindo as suas interpretações do
Concilio. E assim, os padres passaram a se recusar a atos simples, como a
solicitação de benzer objetos diversos, coisas que as pessoas estavam a vida
inteira já acostumados. Diziam alguns religiosos que era pura superstição. Quando
a eles recorriam, voltavam alguns cabisbaixos, outros assustados e outros
indignados. Há casos de recusa em abençoar inaugurações de lojas, residências,
agencias bancárias e obras públicas, motivo de sentimento de ofensa por parte de
pessoas ricas ou políticos. As justificativas para as recusas eram muitas. Há por
exemplo, padre que se recusava a Benzer uma agencia bancária por questionar o
os lucros, obtidos pelos juros altos, oriundos de empréstimos a pessoas em
dificuldades financeiras.
Na seqüência de modificações introduzidas na Igreja, acabaram com a
confissão individual e introduziram a confissão comunitária, onde o fieis faziam
coletivamente uma reflexão sobre suas atitudes de rotina.
As imagens foram todas retiradas dos templos, com exceção do padroeiro.
Alegavam os redentoristas que não existiam motivos para manter nos altares,
tantos santos, frutos de doações de pessoas, motivados pela sua devoção
particular. Cada um fazia a sua doação à igreja como pagamento de promessa.
Ficava assim o povo preso aos interesses da fé de outros, com os templos sem ter
97
onde mais colocar tantos santos. Mas todas as paróquias afirmaram que
guardaram as imagens em casas de famílias de paroquianos, sacristias ou casas
paroquiais. Quanto às imagens danificadas pela ação do tempo ou por quedas
acidentais, essas sim, eram quebradas e jogadas fora. Sobre esse assunto, cita-
se no processo um caso que envolve o Diácono Guy Laroy, em um templo da
Paróquia Santo Antônio, no bairro Melo Viana, em Coronel Fabriciano. “[...] Atirava
imagens do coro para a porta da Igreja, cumprindo assim outro princípio de
dessacralização [...]”
( )208
.
Segundo expusera certa vez, padre Élio de Ataíde, em
sala da aula no extinto
( )209
Colégio Imaculada de Coronel Fabriciano, Guy Laroy
estaria jogando fora estátuas de santos muito avariadas que ocupavam o recinto
da Igreja
( )210
. Ao retirarem as imagens, também subtraiam as cantoneiras,
suportes e pedestais, descaracterizando assim os templos. Antigos moradores da
cidade de Antônio Dias, hoje lembram, pesarosos, a reforma
( )211
realizada na
igreja matriz de Nossa Senhora de Nazaré, nos anos sessenta, pelo então vigário,
padre Wilson Moreira. Ele retirou os altares laterais do templo, excluindo os
objetos de devoção local já consolidados
( )212
.
No que concerne à parte administrativa, introduziram a cobrança do dízimo,
ficando os pagadores habituais dispensados das taxas e emolumentos quando da
solicitação dos serviços religiosos: batizados, crismas, casamentos e outros.
Sobre este tema, era muito discutido em Coronel Fabriciano, uma frase que se
fazia figurar bem visível ao publico no escritório da Paróquia: “[...] O padre desta
paróquia não faz milagres. Pague o dízimo”.
208
Relatório do IPM, Processo nº 2931, Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de
jun. de 1972, fl. 115-168.
209
Élio de Ataíde, padre da Congregação do Santíssimo Redentor. Nos anos setenta, servia na paróquia São
Sebastião em Coronel Fabriciano, quando lecionava Educação Moral e Cívica no Colégio Imaculada.
210
Memórias do autor, à época, aluno da citada escola.
211
Anterior à reforma realizada à época do padre Wilson, nos anos sessenta, a Igreja Nossa Senhora de
Nazaré já estava descaracterizada de seu estilo original.
212
MARTINS, Eduardo Gomes: depoimento [03 de fevereiro de 2006], Coronel Fabriciano.
98
Além do altar
Dos oito religiosos do Vale do Aço, apenas O padre Geraldo Ferreira
Monção e o padre Abdala não atuavam na área de educação. Os demais eram
professores ou diretores de escola. Ao clero secular
( )213
, sempre foi permitido que
exercessem uma profissão paralela, para sustento de suas necessidades
particulares, não estando sujeitos ao voto de pobreza. Estes tinham o direito de
exercer atividades fora do contexto religioso.
[...] A grande maioria dos padres da baixada profissionalizou-se,
quer dizer, procurou trabalhar em funções de interesse do povo,
para obter a sua sustentação. Estamos trabalhando, lecionando,
dirigindo escolas, agindo em diversos serviços públicos, tentando
ganhar o pão com o nosso próprio esforço. Os apóstolos também
trabalhavam e ganharam sua própria vida, apesar de terem o
direito de serem sustentados pela comunidade
( )214
.
O fato de ocuparem estes postos era justificado pela deficiência de número
de profissionais qualificados para o exercício do magistério. Naquela época, o
clero fazia parte do que se considerava uma elite intelectual, cuja aceitação e
respeito eram muito grande. A Igreja possuía enorme experiência nos diversos
níveis da educação. A própria USIMINAS ao criar o Colégio São Francisco Xavier,
para atender aos filhos dos seus funcionários, confiou sua organização e
administração aos jesuítas. A ACESITA apoiou a instalação do Colégio General
Macedo Soares, em Timóteo, nos anos sessenta, uma obra dos Salesianos.
O trabalho do clero na educação acabou então, sendo mais uma forma de
contato do clero com a sociedade, naturalmente sujeito a uma maior exposição
pública de sua própria imagem. Acabaram sendo alvo de vigilância das pessoas
às suas ações. Muitas das acusações que sofreram foi em decorrência da atuação
em sala de aula, fruto do julgamento da sociedade as suas atitudes e discursos.
Citam-se os exemplos: as aulas do irmão Petrus, denunciadas por Fassheber,
213
A Igreja se divide em clero secular e clero regular. O primeiro é constituído de padres autônomos, sujeito
diretamente à autoridade do bispo local. O clero regular, está subordinado a uma congregação, com todas as
regras específicas da mesma, sendo inclusive a obrigatoriedade do voto de pobreza.
214
O Fato, n 95, editado em 21 de junho de 1970, ano 02.
99
conforme relatado no primeiro capitulo deste trabalho. Na sua versão, o religioso
professor explicou que sua fala visava responder aos questionamentos dos alunos
da primeira série ginasial e, que o conteúdo fora deturpado por eles, naturalmente
pela imaturidade da idade, por volta dos doze anos
( )215
. Entre esses alunos,
estava a filha do capitão, que informava ao pai os acontecimentos em sala de aula
( )216
. Acusado de lançar um trabalho cujo título “Por que comemorar a
Independência se o país não o é?”, irmão Petrus teve que se juntar ao processo,
em sua defesa, uma declaração conjunta de suas alunas do curso normal, onde o
fato foi desmentido.
O Padre Wilson Moreira, fora acusado de incentivar o boicote às
comemorações do Dia da Pátria, de 1969, em Ipatinga. Desmentiu em seu
depoimento em juízo, informando que participou acompanhado dos alunos da
Escola Municipal, a qual ajudou a fundar. Juntou ao processo, a declaração da
diretora, Arlete Magalhães, comprovando sua presença nas festividades.
Um caso que sempre serviu até de piada entre réus é o fato de ter entre
eles, um religioso como o padre Bertollo. Ele era conhecido no meio do clero como
“sem linha”, por não ter ideologia política definida. Só entrou no processo por ter
assinado o artigo sobre a independência, sem muito opinar na sua elaboração.
Dom Marcos se referia a esse jesuíta com um elemento de grande bondade e
espiritualidade. Alguns de seus alunos daquela época afirmam hoje de que ele
jamais tocou sobre qualquer assunto ligado à política em sala de aula.
Padre Cícero de Castro lecionava a disciplina História na Escola Municipal
de Ipatinga. Todos na instituição, inclusive os alunos achavam estranhos seus
sumiços repentinos. Afastava-se para cumprir com as exigências do processo
contra ele, assunto que tinha dificuldade em comentar com os colegas e demais
seguimentos da comunidade escolar. Também seus ex-alunos, afirmam-no como
cauteloso, em matéria de assuntos políticos.
O nome mais marcante, não só entre os religiosos aqui em questão, mas
também reconhecido como o maior empreendedor de educação na região do Vale
215
ROSSUM, Petrus Martinus Von: depoimento [20 de abril de 1971] encontrado no Processo nº 2931,
Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de 1972, fls 240 -245.
216
Idem.
100
Aço, foi o padre De Mam. Considera-se a maior obra educacional da região, o
UNILESTE, que mantém atualmente vinte e seis cursos superiores espalhados em
três campi, com o número de alunos em torno de nove mil. Trata-se de uma
instituição oriunda da Universidade do Trabalho, fundada pelo padre De Man em
1969. Considerava-se um feito de vanguarda para a época, com laboratórios
equipados com o que havia de mais moderno nas áreas de elétrica, eletrônica e
mecânica. Tudo fruto de dinheiro trazido da Europa pelos Padres do Trabalho,
proveniente de entidades católicas de ação social, entre elas a Miserior,
entidade
alemã que, é a maior financiadora de projetos sociais em países em
desenvolvimento do mundo. Padre Joseph Cornelius Maria De Man, viera da
Europa com a missão da ajudar a educação no Brasil com a criação de uma obra
pioneira e, resolveu implantá-la em Coronel Fabriciano. Pesou muito na sua
defesa os testemunhos do seu desprendimento. Saiu da Europa, onde convivia
com uma sociedade rica e desenvolvida, aceitando a missão de iniciar na base,
um trabalho educacional numa região que ainda não tinha uma infra-estrutura
condizente.
Percebendo as carências do lugar, elaborou dois projetos residenciais: o
bairro Universitário com casas para a população de baixa renda, e o bairro dos
Professores. Esse último, inicialmente, visava dar condições de alojar os docentes
da própria universidade, os quais em sua maioria vinha de outros lugares. O
projeto acabou se estendendo ao professores de todos os seguimentos da
educação publica e particular, ampliando em muito o alcance social da obra.
Fundou na região o MOC – Movimento Operário Cristão que arregimentava
pessoas nas cidades vizinhas para a ação social e assistência às pessoas
necessitadas. Essas eram preparadas com cursos diversos, entre os quais o de
visitadoras sociais, em sua maioria mulheres, que ensinavam economia
doméstica, noções de higiene e cuidados da saúde nas comunidades locais.
Padre De Man se ocupava quase que integralmente da administração da
universidade, com poucas atividades de fato religiosas. Celebrava geralmente nos
finais de semana, nas igrejas de Ipatinga, ou algumas vezes por ano no campus
da Universidade.
101
Segundo muitas pessoas que relacionaram diretamente com ele, era uma
pessoa muito franca, sinônimo de honestidade. Valorizava as pessoas
trabalhadoras, dando a elas oportunidade de crescimento profissional na
universidade. Oferecia emprego e abrigo a padres que saíram da Igreja, nos
momentos de “crise” em que não tinham destino. Depois de anunciado a
absolvição dos padres, no dia “D”, em Juiz de Fora, todos foram cumprimentar os
absolvidos. Padre De Man se recusou a corresponder aos cumprimentos do
promotor. “[...] Não dou a mão àquele que pediu a minha condenação”
( )217
.
Diante das práticas dos padres em outros campos além do altar, seus
acusadores diretos os viram mais ainda como contrários à ordem então vigente.
No sentido de rebatê-los, a defesa acumulou uma série de informações que
pudessem desacreditá-los e as expôs através dos depoimentos dos réus, em
juízo. Estes foram carregados de contra-acusação.
Com relação a Fassheber, Padre Wilson a ele se referiu como uma pessoa
obcecada no que tange aos ideais da “Revolução”, o que teria favorecido a criação
de problemas pessoais com os padres. Afirmou também que o Capitão chegou
certo dia a interpelá-lo, na porta da casa paroquial, pedindo satisfação do
conteúdo de uma homilia.
Wilson Moreira, hoje residindo em Juiz de Fora, afirma que não tem dúvida
que este excesso de comprometimento de Fassheber com o Regime, o teria
levado, juntamente com outro militar de igual comprometimento, o Major Manuel
Gonçalves, a construir acusações que ele considera escabrosas. Cita como
exemplo o caso em que foi acusado de se recusar a repicar o sino da Matriz do
Horto, em comemoração ao Dia da Independência de 1969. Acusaram-no
inclusive de tirar a corda do mesmo para impedir que outros o fizessem. A defesa
informou ao júri que na verdade a corda já havia sido retirada há algum tempo,
motivada pelo fato de que as crianças, indo ou vindo das escolas, sempre
acionavam os sinos, incomodando a vizinhança. Aproveitavam-se os alunos dos
orifícios da estrutura das paredes da torre, quando introduziam objetos para
alcançar a corda e puxá-la para tocar o sino.
217
ATAÍDE, 3Ataíde: depoimento, [06 de junho de 2005], Coronel Fabriciano.
102
Quanto ao depoimento, realizado por Petrus, este foi mais veemente, ao
afirmar que Fassheber era um extremista. Incluem-se as criticas aos seus escritos
sobre educação moral e cívica, a qual afirma que ele demonstra nada entender da
matéria. Acusou ainda o Major Manuel Gonçalves de homem de pouca cultura,
neurótico e subalterno a Fassheber.
Emilio Gallo o coloca como um militar de viseira, que só enxergava numa
direção. Por causa disso, ele via o mal onde não existia. Incluiu no processo, uma
declaração da Universidade do Trabalho, onde informa que Fasscheber chegou a
se matricular, em 1969, no curso de Licenciatura e Ciências Exatas e, no mesmo
mês, desistiu de sua continuidade. Acredita-se que o fez apenas com intenção de
assistir algumas aulas, com objetivo final de espionagem, para acumular
informações incriminadoras contra o De Man.
Com relação ao irmão Cornélius, sobre ele foi relatado por Petrus e outros,
que ele sofria de epilepsia, o que inclusive seria a causa de acidente
automobilístico que sofrera, questionando com isso a credibilidade de suas idéias
em relação aos fatos.
Sobre o Padre João Batista, pesam até hoje, inúmeras acusações, inclusive
de faltar com a ética, ao denunciar colegas do clero às autoridades não religiosas.
Previa o Código de Direito Canônico, sanções contra este pelas suas atitudes.
Muitos fatores levam a crê que a saída do padre Monção, da paróquia de Loanda
tenha sido obra das articulações desse clérigo. Monção foi alvo de pressões
diversas e até insultos públicos. Afirmou no seu depoimento em juízo que não foi
expulso da paróquia como queria fazer crer João Batista. Mas concluem religiosos
contemporâneos seus que os fatos de Loanda influenciaram para que tomasse a
decisão de entregar a administração paroquial.
A sociedade discute que o padre João era o mais conservador de todos os
padres da Igreja local. Não admitia as mudanças litúrgicas preconizadas na
Diocese. Muito menos aceitava as mudanças na mentalidade religiosa,
principalmente as de cunho político e social progressista. Não se conformava com
a criação da Paróquia de Loanda, que desmembrada de Carneirinhos, diminuiu a
sua área de influencia. Autoritário, impunha valores, manipulador que envolvia as
103
pessoas nos seus interesses. Informam testemunhas, que quando de sua
exoneração da Diocese, ele articulou abaixo assinados junto ao povo como forma
de pressionar o bispo a mantê-lo
( )218
.
Concluem que ele foi o grande responsável pelos maiores problemas da
Diocese de então. Excluído, os já salientados problemas com relação ao padre
Monção, ventila-se a possibilidade dele ter articulado com o setor tradicionalista do
episcopado brasileiro uma seqüência de perseguições que culminou com a
renuncia de Dom Marcos da direção da Diocese de Itabira. Consta que ele
renunciou por pressões conservadoras, seja da hierarquia católica, seja dos
setores sociais a ela ligada. Envolveram-no até em acusações de cunho moral.
Estava Dom Marcos, certa vez na cidade de Três Corações, para uma
sagração episcopal, quando foi chamado para uma conversa reservada com o
núncio. Ele lhe informou sobre um processo contra ele no Vaticano. Ele fora
acusado de dormir com freiras e moças numa assembléia dos bispos. A partir
disso, as relações de Dom Marcos com a Igreja, ficaram muito enfraquecidas. “[...]
Em matéria do que me acusaram eu era então um ingênuo
( )219
. Considerou o tiro
de misericórdia na sua carreira religiosa”.Recebera a solidariedade daqueles
bispos com quem mantinha o trabalho conjunto, seus grandes amigos. Estes
tentaram inclusive convencê-lo a mover um processo jurídico canônico para
esclarecer os fatos. Mas Dom Marcos preferiu não o fazê-lo, renunciando ao
bispado de Itabira, em 1970
( )220
.
Mas a decisão da renuncia se deu a partir da sinalização do Núncio
Apostólico, Dom Humberto Mosconi, sobre a possibilidade dele assumir a Diocese
de Ribeirão Preto, em São Paulo. Dom Marcos chegou a receber em Itabira, a
visita de cinco padres daquela Diocese. Foram conhecer aquele que seria o novo
chefe da Igreja daquela localidade. Ao fim confiante, Dom Marcos renunciou e a
Nunciatura não confirmou o chamado para a Diocese paulistana. Afirmam os
padres e ex-padres da época, que por traz de tudo estaria Dom Agnelo Rosse,
218
BRASIL, José Índio do: depoimento [22 out. 2006], Coronel Fabriciano.
219
NORONHA Marcos Antonio. Marcos Noronha e a Igreja. In: Enio P. Giachini (org.). 1 ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2001, p. 111.
220
Anotações de Dom Marcos, em Poder de Zélia Quintão Froes, Belo Horizonte
104
então Cardeal Arcebispo de São Paulo. Chegou aos ouvidos do clero de Itabira,
que o Cardeal Rosse, quando queria chamar atenção de algum padre da sua
jurisdição, por atitudes mais progressistas, ele assim dizia: “[...] Se você quer
avacalhar, para a Diocese de Itabira (
221
) “.
Acabou rompendo também definitivamente com a Igreja, assinalado pelo
casamento com Zélia Quintão Fróis, uma velha amiga e confidente com quem
viveu até a sua morte em 1998.
Mesmo já estando fora da Igreja, Dom Marcos continuou acompanhando de
perto o processo contra os padres. Esteve nas audiências e no dia do julgamento.
Manteve-se firme até a sentença final, em 28 de junho de 1972, quando da
absolvição de todos eles. Estava o plenário da Auditoria Judiciária Militar, em Juiz
de Fora, repleto de religiosos e religiosas de muitas congregações e lugares, além
de leigos interessados na questão. O único padre que não compareceu foi o
Abdala, dado ao falecimento de sua mãe nesse dia, na cidade de São João Del
Rei.
O processo contra os religiosos, enfocado neste trabalho, apesar terminar
com a absolvição dos religiosos não os isentaram dos traumas diversos, conforme
relatam muitas das pessoas que com eles conviveram: Padre Cícero de Castro,
cuja saúde era muito fragilizada, acabou falecendo um ano depois. Também
morreu o Bertollo, que contraiu câncer. Nazareno e Wilson deixaram o ministério
religioso. Afirmam hoje os réus ainda vivos que não houve muito que comemorar
quando do resultado da absolvição. Tinham total consciência, que nos porões das
instituições militares, aconteciam as torturas as mortes de muitos inocentes, sem
contar os exilados e muitas outra formas de humilhação que a ditadura impôs a
toda a sociedade brasileira.
221
ABDALA, José Jorge: depoimento [09 de fevereiro de 2006], Timóteo.
105
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme vimos, o processo de interiorização do Regime Militar e sua
chegada à região do Vale do Aço, a partir de 1968, com a instauração do AI 5,
coincidiu com uma ligeira retomada das orientações da Diocese de Itabira (criada
em 1965) sob inspiração do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín na
América Latina. Visto a Diocese de Itabira alinhar-se às orientações progressistas
da Igreja, assistimos visões de mundo divergentes no interior da Instituição,
culminando em várias denúncias com objetivos últimos de derrubar a ala
progressista. Desse modo, detectamos, empiricamente, numa região interiorana
brasileira, dois cleros divergentes: os conservadores e os progressistas.
Disputavam representações do mundo social, ocasionado um confronto que
perpassou a sociedade e culminou no processo jurídico contra os religiosos
conforme expostos no trabalho.
Procuramos assim, estudar esse episódio que é de pouco conhecimento
pela sociedade local, não tendo sobre ele realizado sequer uma monografia, nem
publicação em livro, muito menos uma reportagem mais aprofundada em jornais
locais. Pretendeu-se realizar uma análise das questões político-ideológico
relacionadas ao processo e dos seus envolvidos, inseridos no contexto nacional e
local da luta por democracia e justiça e contra a repressão do regime militar.
Um conjunto de manifestações discursivas advindas dos padres indiciados
se colocou em conflito com os interesses políticos do Regime Repressivo e com
as insuficiências de distribuição de renda do Capitalismo. Em razão disso, os
padres foram acusados de apresentarem discursos que corroboravam com
desordem social e de circular no Vale do Aço idéias políticas e sociais contrárias
às representações de mundo social do Regime. Vimos também que foram
indiciados por fazer circular discursos subversivos nos principais canais
institucionais do Vale do Aço: a Igreja, imprensa, escolas e universidade.
106
As representações tidas pelos atores envolvidos no processo: os réus, os
denunciadores, a promotoria, a defesa e as testemunhas foram, nessa pesquisa,
relevados. Discorremos as visões de mundo que embasavam a acusação, as
provas, os argumentos e o veredicto, incluindo os acontecimentos nos bastidores
da justiça e os pormenores negligenciados no transcorrer do processo judicial.
Averiguamos que as práticas exercidas pelos principais atores do
movimento progressista da Igreja foram traduzidas em despimento de tudo àquilo
que representasse distinção social entre padres e leigos; em uma administração
do clero mais democrático e autônomo; modificações nos rituais de culto da Igreja;
formação de grupos de reflexão; estimulação da sociedade civil em participação
política. Entretanto, enfocamos também, que o progressismo, que os padres se
faziam defensores, estavam amalgamadas por uma prática modernista que
anulava as tradições culturais e costumes locais.
As práticas políticas e sociais reproduzidas e compartilhadas pelos
diferentes atores - líderes da igreja e setores sociais correlacionados - estavam
em alguma medida alinhadas às visões de mundo da matriz latino-americana da
Igreja Católica e destoante ao Movimento Militar.
Essa pesquisa merece mais estudos e investigações, na medida que
verificamos no transcorrer dessa pesquisa, um silencio dos envolvidos, familiares,
imprensa e até mesmo pela própria instituição – a Igreja Católica. Acreditamos
que um universo de rede social invisível que se encontra alojado no processo
instaurado contra os padres ditos subversivos poderá ser desvendado com mais
pesquisas acadêmicas.
107
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108
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SKIDMORE, Thomas: Brasil: de Getulio a Castelo. 5 ed. Rio de Janeiro, RJ: Paz e
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DOCUMENTOS
Ata da Câmara Municipal de Timóteo: Reunião Especial realizada em 6 de
setembro de 1969, em comemoração à Semana da Pátria.
Manuscritos de Dom Marcos, em poder de Zélia Quintão Froes, Belo Horizonte.
Jornal litúrgico O Fato, Coronel Fabriciano n. 54, 07 set. 1969.
__________________, n. 94, 14 jun. 1970.
__________________, n. 95, 21 jun. 1970.
Processo nº 2.931, 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 jun. 1972.
Texto de orientação aos participantes do Décimo Primeiro Intereclesial, (encontro
nacional de participantes das CEBs), realizado em Ipatinga, em julho de 2005.
DEPOIMENTOS ORAIS
ABDALA, José Jorge: depoimento [02 fev. 2006], Timóteo.
ABDALA, José Jorge: depoimento [05 fev. 2006], Timóteo.
ABDALA, José Jorge: depoimento [09 fev. 2006], Timóteo.
AMARAL, José Rodrigues do: depoimento [16 mar.. 2006], Coronel Fabriciano.
110
ATAÍDE, José Nazareno Ataíde: depoimento [6 jun. 2005], Coronel Fabriciano.
ATAÍDE, José Nazareno: depoimento [3 jun. 2006], Coronel Fabriciano.
ATAÍDE, José Nazareno: depoimento [6 de jun. 2006]. Coronel Fabriciano.
BRASIL, José Índio do: depoimento [17 out. 2006], Coronel Fabriciano.
BRASIL, José Índio do: depoimento [22 out. 2006], Coronel Fabriciano.
GALO, Emilio Edstone Duarte: depoimento [09 jul. 2006], Coronel Fabriciano.
IVO, Luciano Silveira: depoimento [11 mai. 2006], Coronel Fabriciano
LARA, Lélis: depoimento [08 abr. 2006], Coronel Fabriciano.
LARA, Lelis: depoimento [18 abr 2006], Coronel Fabriciano.
MARTINS, Eduardo Gomes: depoimento [03 fev. 2006], Antônio Dias.
MATOS, Lenini Ribeiro: depoimento [8 mar. 2006], Coronel Fabriciano.
MENDONÇA, José Batista de: depoimento [06 jun. de 2005], Coronel Fabriciano.
MOREIRA, Wilson [3 jul. 2006], Juiz de Fora.
QUINTÃO, Adolfo Martins da Costa: depoimento [16 mar. 2006], Coronel
Fabriciano.
SABARÁ, Ana Ângela Godoy: depoimento [06 de maio de 2006], Timóteo.
SQUIAVENATO, Teresa Maria: depoimento [02 de set. de 2006], Coronel
Fabriciano.
WEITZEL, João Vicente: [06 jul. de 2006], Coronel Fabriciano.
TEIXEIRA, Neide Thomaz [26 set. 2006], Coronel Fabriciano.
DEPOIMENTOS NO IPM – Inquérito Policial Militar
BERTOLLO, José Valentim. Depoimento [05 de agosto de 1970] encontrado no
Processo nº 2931, Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28
de jun. de 1972.
111
BROMONSHENKEL, Luiz Carlos. Depoimento [30 de abril de 1970] encontrado no
Processo nº 2931, Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28
de jun. de 1972, p. 40-41.
COSTA, Manuel Gonçalves. Depoimento [29 de abril de 1970] encontrado no
Processo nº 2931, Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28
de jun. de 1972, fl. 35-36.
COSTA, Silas Augusto da. [22 de junho de 1971] encontrado no Processo nº
2931, Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de
1972 fl.415-418.
FILHO, Silvio Cordeiro. [22 de junho de 1971] encontrado no Processo nº 2931,
Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de 1972, fl.
413-414.
MONÇÃO, Geraldo Ferreira. Depoimento [19 de abril de 1971] encontrado no
Processo nº 2931, Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28
de jun. de 1972, fl. 231-234.
MOREIRA, Luiz Policarpo. Depoimento [29 de abril de 1970] encontrado no
Processo nº 2931, Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28
de jun. de 1972.
NETO, João Batista. Depoimento [08 de agosto de 1970] encontrado no Processo
nº 2931, Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28 de jun. de
1972, fl.100 -1102. 40-41.
ROSSUM, Petrus Martinus Von: depoimento [20 de abril de 1971] encontrado no
Processo nº 2931, Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar: Juiz de Fora, 28
de jun. de 1972, fls 240 -245.
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