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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Bonecas Karajá:
modelando inovações, transmitindo tradições.
Sandra Maria Christiani de la Torre Lacerda Campos
- 2007 -
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de doutora em Ci-
ências Sociais Antropologia -, sob a orientação da
Profa. Dra. Dorothea Voegeli Passetti.
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BANCA EXAMINADORA
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Profa. Dra. Dorothea Voegeli Passetti
Orientadora
Regina P. Müller
Márcia Angelina Alves
Carmen Junqueira
Rinaldo Arruda
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Dedico este trabalho aos meus pais, com
profunda, gratidão pelo apoio e respeito
às minhas opções.
Agradecimentos
Muitas pessoas e instituições foram indispensáveis para a realização deste
trabalho, e certamente, algumas não receberão o reconhecimento devido,
apesar de meu empenho e esforço de memória.
À Carmen Junqueira e Dorothea Passetti, que me ensinaram com sabedoria
a seguir minhas escolhas, devo as orientações fundamentais.
Aos colegas do MAE, que torceram pela conclusão deste trabalho. Em es-
pecial à profa. Márcia Angelina Alves, pelo estímulo e conança depositado
neste trabalho.
Aos colegas da Universidade Anhembi Morumbi, que direta ou indireta-
mente, colaboraram para a conclusão de um desao.
Á Kátia Huertas, que em uma brincadeira matinal, criou esta preciosa capa.
A Thiago Rodrigues, pela paciência e esmero, na formatação do trabalho.
Ao amigo Ijesseberi, em memória, e a Hatawaki, pela revisão dos termos
na língua Karajá.
Ao João e aos meus lhos, Thiago e Gabriel, que sofreram comigo as angús-
tias e alegrias deste processo de aprendizado.
À CAPES, pelo auxílio nanceiro.
Às ceramistas Karajá, sem dúvida, co-autoras deste trabalho.
A Iwraru e esposa, que me escolheram
para fazer parte de sua família.
Korixa Herenaki Kaherero
Komantira Mahuederu
6
RESUMO
Este trabalho analisa as conexões entre arte e sociedade a partir de coleções de
bonecas cerâmicas armazenadas em museu. A sistemática de classicação e orga-
nização de coleções em museus etnográcos vem reduzindo essa categoria da arte
gurativa a brinquedo de menina, ao passo que para a antropologia, o objeto assu-
me o papel de testemunho de práticas sociais vinculadas a cultura de origem.
O exame das coleções de bonecas Karajá do Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universidade de São Paulo, o diálogo com a sociedade produtora em que o objeto
circula entre várias esferas da vida cultural, e a incorporação de bases conceituais
da antropologia, tem como foco as referências simbólicas das divisões sociais e a
transmissão de saberes e fazeres acerca da relação entre arte e vida social. Ana-
liso a pintura corporal e os padrões ornamentais das guras Karajá, na condição de
manifestações estéticas que se caracterizam como insígnias de identicação tribal
e uma forma peculiar dessa sociedade explicitar seu universo cosmológico. A circu-
lação interna das bonecas, diferente do que ocorre nas coleções de museus, se dá
em forma de conjuntos que são presenteados às meninas. Cada conjunto chamado
de família representa as fases de idade, identicadas pelos atributos ornamen-
tais e pelas características físicas expressas no corpo correspondentes a cada uma
delas. Essa forma de circulação submetida a uma série de regras tradicionais inter-
nas vem corroborando a hipótese de que os objetos superam a categoria brinquedo,
levando à compreensão da estrutura familiar Karajá e da dinâmica de mudanças ou
permanências de várias esferas da vida social.
Palavras chave: bonecas cerâmicas; antropologia; cultura de origem; refe-
ncias simbólicas; arte e vida social.
7
ABSTRACT
From the collections of stored ceramic dolls in museum, in this work are
analysed the connections between art and society. The systematics of
classication and organization of collections in ethnographic museums is
reducing that category of gurative art to a “toy of girl”, while for the
Anthropology, the object assumes the role of a proof of social practices
as a product of its origin culture.
The examination of Karajá dolls collections at the Museum of Archaeology
and Ethnology of São Paulo University, the dialogue with the producing
society where the object circulates among several spheres of the cultural
life, and the incorporation of conceptual bases of an anthropology of ob-
jects, has as focus the symbolic references of the social divisions and the
knowledges and making transmissions about the relation between art and
social life. There is an analysis on the corporeal painting and the ornamen-
tal standards of the gures, believing that the aesthetic manifestations
are characterized as insignia of tribal identication and a peculiar way of
that society to make explicit its cosmological universe. The internal circu-
lation of the dolls, differently of what occurs in the museums collections,
happens in a manner of sets which are offered to the girls. Each set named
of “family” represents the age phases, identied by ornamental attributes
corresponding to each one of them. That way of circulation, subordinated
to a series of internal traditional rules comes corroborating the hypoth-
esis of that the objects surpass the toy category, leading to the under-
standing of Karajá familiar structure and of the dynamics of changes or
permanencies of several spheres of the social life.
Keywords: Ceramic dolls; Anthropology; Origin culture; Symbolic references;
Art and social life.
8
SUMÁRIO
Agradecimentos 4
Resumo 6
Abstract 7
Introdução 10
Capítulo 1 - Situação atual e organização social Kara 1 6
1.1 História, território, demograa. 17
1.2 Hawaló: Os Kara da Ilha do Bananal 28
1.3 JK e Wataú: Dois Políticos, duas Aldeias. 35
Capítulo 2 Ritxokó do barro fez-se o homem 41
2.1 As mãos que tecem o barro: As Oleiras 42
2.2 Hўkўnaritxo e Ritxo - as “bonecasantigas e as modernas 46
2.3 De Dentro e de Fora: Contexto espacial e circulão dos Objetos 49
2.4 Para Além do Brinquedo:
Bonecas como referências simbólicas das divies de idade 56
2.5 Categorias de idade 63
2.6 Jyré e Ijadokoma os segredos da inicião 79
2.7 A Família 84
Capítulo 3 – Tecnologia Cerâmica Karajá 86
3.1 Processos de produção da cerâmica gurativa 87
3.2 Etapas de confecção da boneca 89
3.2.1 Coleta da argila 91
9
3.2.2 Preparo da massa para modelar 93
3.2.3 Modelagem 96
3.2.4 Secagem 98
3.2.5 Alisamento 100
3.2.6 Queima 100
3.2.7 Pintura 105
3.3 Estilo 109
3.4 Padrões temáticos 115
3.4.1 Hўnkўnaritxoko 115
3.4.2 Ritxokó 117
3.4.3 Irodusõmo 119
3.4.4 Aõni – seres sobrenaturais 120
Capítulo 4 – O museu e o campo 125
4.1 Mosaicos indígenas: acervos etnológicos dos museus 126
4.2 Os museus etnográcos brasileiros 128
4.3 Composições: a formação das coleções Karaja 135
4.4 A descoberta da família 139
Referências Bibliográcas 145
10
INTRODUÇÃO
O propósito deste trabalho é o de examinar uma categoria
artefatual, a cerâmica, inserida no contexto de uma cultura
ameríndia, a Karajá. Este estudo constitui uma análise sobre
a função classicatória, segundo abordagens de Durkheim e
Mauss (1903), Boas (1996) e Lévi-Strauss (2005) acerca da
maneira como os Karajá apreendem seu mundo em gêneros e
em espécies, a partir de mecanismos complexos de construção, projeção
exterior, localização espacial de representação do mundo sensível. Busca
também destacar a atualidade da forma como Boas e Lévi-Strauss articu-
lam Antropologia e Arte, centrando a análise nos objetos.
A escolha desta temática surgiu com o desao etnológico de
se trabalhar com acervos de museus, e para isto, desenvolver metodolo-
gias que permitam explorar o potencial de pesquisa dos objetos extraindo
o conteúdo intangível desse universo material. Esta abordagem está ligada
à formação prossional desta pesquisadora, cujo contato cotidiano com
a produção material de diversos povos indígenas despertou a percepção
de uma multidimensionalidade de fenômenos artísticos, motivando o de-
senvolvimento da pesquisa com objetivos de análise que envolve diversos
aspectos relacionados aos processos de difusão, inovação e permanência
de técnicas de confecção e de traços estilísticos, observados nas coleções
de museus.
A pesquisa tem como base bibliográca diferentes autores
que procuram discutir as possibilidades de investigação de sistemas de
classicação de sociedades indígenas, a partir do conceito de estilo, ou dos
11
“elementos formais, de caráter geral” (Boas, 1996:137), e sua aplicação
ao estudo da produção de registros materiais colecionados em museus em
diferentes épocas, como Mauss, Boas, Lévi-Strauss, entre outros.
Para justicar a escolha da produção cerâmica das populações
Karajá a pesquisa direciona-se para os trabalhos de Vilma Chiara (1970)
e Heloísa Fénelon Costa (1984), que apresentam uma dimensão histórica
sobre a confecção das Ritxokó, ou “bonecas”, como são mais conhecidas.
Os resultados destas abordagens apontam para o fato de o estilo assumir
funções variadas nos diferentes contextos socioculturais, em que as auto-
ras destacam o sentimento de identicação e diversidade de organização
social das sociedades ameríndias.
A cerâmica é uma das modalidades da produção material dos
Karajá, ao lado de uma série de categorias como cestaria, plumária, ador-
nos e armaria, entre outras que abrangem o campo das atividades culturais.
Vale ressaltar que o estudo centrado nas bonecas nos permite estender a
análise a outras categorias, por se encontrarem associadas às guras cerâ-
micas, como a pintura corporal, os adornos e a representação de cenas da
vida cotidiana reproduzidas na cerâmica, que sintetizam e documentam, ao
seu modo, elementos singulares da cultura Karajá.
O conceito de cultura indígena é um desao para a Antropo-
logia, levando-se em conta a grande diversidade existente, tanto de de-
nições quanto de populações indígenas. A cultura pode ser entendida como
um conjunto de sistemas simbólicos segundo Lévi-Strauss, pelo estabele-
cimento de relações necessárias do homem com a natureza. Na introdução
à obra de Marcel Mauss, (1974:9) o autor dene que,
12
Pode-se então esperar que para os Karajá, transformar o bar-
ro em guras antropomorfas, zoomórfas e sobrenaturais signica, para
esses povos, ir além de uma expressão relacional com a natureza e a sobre-
natureza. Na reprodução do nexo social nas guras, os signicados podem
ser inscritos e lidos no simbolismo impresso na cerâmica, estabelecendo
relações simultâneas com os vários tipos de seres. No entender de Lévi-
Strauss (2005a:33), “Assim como a imagem, o signo é um ser concreto,
mas assemelha-se ao conceito por seu poder referencial: um e outro não se
referem a si mesmos, além de si próprios, podem substituir outra coisa”.
Nesse sentido, a pintura corporal, os adornos, o corte de
cabelo, entre outros elementos utilizados na vida cotidiana da aldeia e
acrescentados nas guras cerâmicas, desempenham o papel de signos ho-
mólogos aos referenciais simlicos da organização cultural Karajá, pro-
jetados nos indivíduos.
A pesquisa com os objetos de museus é um dos caminhos e
possibilidades investigativas que a antropologia percorre, tendo sua impor-
tância ressaltada por Lévi-Strauss na década de 70, que teceu conside-
rações sobre o valor dos museus de antropologia como “um prolongamento
Toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas sim-
licos em cuja linha de frente colocam-se a linguagem, as regras ma-
trimoniais, as relações econômicas, a arte, a ciência, a religião. Todos
esses sistemas visam a exprimir certos aspectos da realidadesica e
da realidade social e, ainda mais, as relações que estes dois tipos de re-
alidade mantêm entre si e que os pprios sistemas simlicos mantêm
uns com os outros.
13
da pesquisa de campo”, onde o contato sistemático com os objetos acaba
estabelecendo um sistema de comunicação com o meio indígena e o respeito
pela diversidade das manifestações culturais (Lévi-Strauss, 1975:419).
Esse fato motivou a análise de autores como Boas, Lévi-
Strauss, Mauss, Berta Ribeiro, Fénelon Costa, Chiara, Vidal, Velthem, en-
tre outros, que desenvolveram essa abordagem e que buscaram demonstrar
que os artefatos não se restringem à sua materialidade, sendo possível
articular os objetos às várias esferas da cultura, uma vez que manifestam
múltiplas informações e atuam como veículos de idéias que revelam a lógica
das relações sociais (Boas, 1996).
Com a análise das coleções Karajá do MAE, organizadas entre
1904 e 1966, aliada aos dados de referência que foram buscados nas três
expedições em campo com os Karajá, nos anos de 2005 e 2006 da ilha do
Bananal/TO, foi possível analisar os processos de incorporação, inovação e
permanência de estilos na produção cerâmica da aldeia de Santa Isabel. A
escolha do local deveu-se ao fato de grande parte das coleções estudadas
ser de procedência dessa aldeia, levando à busca de referências no con-
texto de produção em que os artefatos foram coletados.
Essas referências permitiram compreender categorias que
suplantaram a estilística, tais como a dos referenciais simbólicos da orga-
nização da família Karajá representados nas fases de idade e nos papéis
sociais, distinguidos pela pintura corporal, pelos adornos e outros ícones
associados que estão reproduzidos de maneira homóloga nas bonecas, se-
guindo os padrões culturais praticados na vivência cotidiana.
Frente à diculdade de recompor um elenco de família nas
coleções do MAE, a opção foi utilizar, em maioria, as imagens das peças
14
recentemente coletadas, associadas às do acervo.
O trabalho com coleções etnográcas de museus desemboca
freqüentemente nos limites da discussão entre tradição e inovação, arte
primitiva e dinâmicas sociais, universo material e imaterial (simbólico), es-
tética e técnica, no âmbito de vários binômios conceituais recriados ao
longo da história, para julgamento do homem ocidental.
Todos esses apelos são muito justos e eloqüentes quando con-
siderados os rumos traçados pela história da Antropologia, em relação às
sociedades classicadas como “primitivas” e especialmente para compreen-
der como estas foram tratadas nos museus, tendo em vista que as teorias
antropológicas tiveram, em um determinado período, laços muito estreitos
com essas instituições, como preconizam Boas, Mauss e Lévi-Strauss.
Na atualidade, é constante a preocupação com os acervos
preservados em museus. Dentro dessa preocupação pode-se destacar a
relacionada ao patrimônio etnológico indígena, entendido como a repre-
sentação da memória histórica e cultural dessas sociedades que habita-
vam o território nacional antes da conquista européia, e de muitas que o
habitam até hoje.
Nossa análise sobre as coleções cerâmicas Karajá do Museu
de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, com enfoque na
arte gurativa resulta dessa perspectiva. Essas coleções são as mais anti-
gas e uma das mais signicativas expressões materiais de grupos indígenas
do Norte do Brasil.
O trabalho procura ser analítico e compreensivo dos proces-
sos de mudanças e das dinâmicas de reordenação social, em que o objeto
artístico se situa como o foco central de interesse desta tese.
15
O estudo compreende quatro capítulos.
O primeiro trata dos aspectos históricos de maneira a siste-
matizar as formas de contatos, bem como do reconhecimento da ocupação
da região por esses povos antes da chegada dos colonizadores, segundo
comprovações arqueológicas. Além disso, procura fornecer elementos de
contexto das relações com as populações não indígenas desde os primeiros
momentos de colonização, e compreender de que maneira tais relações in-
terferem na ordenação política e sociocultural dos Karajá.
Dada a importância fundamental da boneca cerâmica como
elemento socializador da criança, o segundo capítulo aborda as formas de
circulação e dos detalhes simbolizantes da divisão das classes de idade,
muitas, representadas nessa arte gurativa.
Delineado o cenário da representação, o terceiro capítulo re-
fere-se aos processos de confecção dos artefatos, da cadeia de produção
e das construções estilísticas, bem como das relações envolvidas no tra-
balho das ceramistas, responsáveis exclusivas pela confecção, circulação e
comercialização do objeto.
O quarto capítulo aborda a formação dos acervos etnológicos
no contexto da criação dos museus nacionais, ressaltando a importância do
tratamento museológico das coleções para torná-las acessíveis à pesquisa,
à educação, à exposição e à difusão de conhecimentos, deixando claro o po-
tencial de pesquisa que envolve os objetos, na exploração de informações
que ultrapassam o seu caráter material.
Capítulo 1
Situação Atual e Organização
Social Karajá
17
1.1 História, Território, Demograa.
Os Karajá ocupam regiões que margeiam o rio Araguaia, em
uma área de abrangência entre os Estados de Goiás, Mato Grosso, Pará e
Tocantins, gurando como ocupantes da Região Centro-Oeste do Brasil
, pressupostamente antes da chegada dos colonizadores, como apontam
Ehrenreich (1948), Krause (1940-1943), nelon Costa (1978), Taveira
(1982), Toral (1994) e Lima Filho (2001), com grande concentrão na
ilha do Bananal.
Mapa da Região Norte
Fonte: Marques, J.F. 1989.
1
Com a Constituição brasileira de 1988 hove alteração geopolítica na região em que o Estado do Tocantins passou
a ser localizado na Região Norte.
18
As primeiras notícias de que se tem registro sobre os Kara-
datam do século XVI, com a organização do movimento bandeirista de
1590, que pretendia ampliar a exploração das minas de ouro, saindo de
Minas Gerais em busca de novas jazidas nos sertões dos Goiazes. Os pri-
meiros exploradores percorriam os limites das terras goianas, que apre-
sentavam uma conguração geográca muito diferente da que se conhece
hoje, estendendo suas fronteiras até os Estados do Pará e Maranhão, fa-
zendo fronteira ainda com os Estados de Minas Gerais, Bahia, Piauí e Mato
Grosso. A expansão da exploração de territórios que iam além dos limites
litorâneos, levou desbravadores missionários e bandeirantes para Goiás,
considerado o coração geográco do Brasil, que ocupava grande parte do
território nacional. O primeiro desmembramento goiano se deu no século
XIX, quando se cogitava a mudança da capital da província para o norte,
sendo parte de seu território incorporado às províncias de Maranhão e
Minas Gerais.
Tal arranjo geográco tornou as regiões próximas aos rios
Tocantins e Araguaia povoadas por criadores de gado, o que tornava mais
ativa a navegação pelo Araguaia, intensicando as rotas de comércio uvial.
Por sua vez, o Estado de Tocantins foi criado pela Constituição Federal de
1988, desmembrando mais uma parcela das terras goianas.
A corrida pelo ouro se estendeu até 1618 e cou conhecida
como “ciclo Paraupava”, (Neiva, 1986:50), nome atribuído pelos paulistas
ao rio Araguaia na época. De acordo com o descrito por Neiva (1986:145),
o movimento era composto por sete Bandeiras que foram descendo o rio
Araguaia e Tocantins, escravizando índios para a exploração das minas au-
ríferas. Nessa época registraram-se contatos com os Carajaúna, também
19
citados por Ehrenreich e por Krause no século XX, como sendo os Karajá
que habitam historicamente grandes extensões de terras nas margens do
Araguaia, os mesmo ainda encontrados na região.
A riqueza mineral da região e a privilegiada situação geográ-
ca do rio Araguaia, com mais de três mil quilômetros de curso navegável,
atraiu conquistadores que tomando terras indígenas formavam pequenos
povoados ribeirinhos. Esse foi um cenário propício para a instalação da
missão religiosa vinda da Amazônia, cheada por frei Cristóvão de Lisboa
em 1625, que ao catequizar os índios favorecia a arregimentação de mã-
de-obra para a exploração das minas, visto que eram bons remadores e
grandes conhecedores da região.
Além desses, outros personagens que guraram como os pri-
meiros desbravadores da região do Araguaia até o século XVIII foram
frei Custódio (1625), padre Antonio Vieira e o capitão mor Ignácio Rego
Barreto (1635), os sertanistas Manoel Brandão e Gonçalo Paes (1669), ca-
pitão Diogo Pinto Garcia (1720), capitão Paulo Fernandes e Manoel Joaquim
de Mattos (1782) e capitão-general João Manoel de Menezes (1799). Dos
poucos registros que deixaram, mencionaram apenas a audácia que era ne-
cessária para investir contra a ”barbaria selvagem” (Silva, 1936:52). O
movimento mais intenso de colonização da região se deu a partir de 1863
com o governador de Goiás, Couto de Magalhães, também diretor do servi-
ço de catequese que pretendia desenvolver a navegação a vapor nos cursos
do Araguaia e Tocantins. No ideal de integrar os índios à sociedade bra-
sileira e treiná-los para o trabalho nas frentes de colonização, fundou em
1871 o Colégio de Santa Isabel para educar os meninos Karajá, Tapirapé e
Kayapó. Sem conquistar os objetivos idealizados, o colégio foi fechado em
20
1890 (Krause, 1940-43:184). O culo XIX cou marcado por uma série
de conitos e movimentos de resistência e reconquista dos territórios
Karajá. Em 1813 foi destruído o presídio colonizador de Santa Isabel
(Mattos, 1874:362), e os Kara que habitavam a região passaram a
proibir a navegão.
A primeira monografia sobre os Karajá foi publicada em 1908, resulta-
do das investigações de Fritz Krause, antropólogo alemão interessado
nas populações indígenas das proximidades do rio Araguaia. Este tra-
balho somado aos estudos de classificação dos povos indígenas de Paul
Ehrenreich, publicado em 1888, são estudos básicos para a etnografia
do grupo, inclusive por chamarem a atenção para as bonecas cerâmicas
Karajá, foco deste estudo.
Segundo Krause, o grupo se dividia em três subgrupos com-
postos da seguinte forma:
a )
b )
c )
Os Karajá - da horda setentrional com 14 aldeias, ocupan-
tes da extremidade norte da ilha do Bananal até o rio das
Mortes, e
- a meridional, com 8 aldeias formadas em decorrência de
movimentos migratórios da parte setentrional, em virtu-
de da instalação dos núcleos neobrasileiros de Carretão e
Salinas, próximos aos rios Crixá e Vermelho, pressuposta-
mente nos cem anos anteriores à visita do autor.
Os Xambioá que se instalavam próximos ao trecho enca-
choeirado do Araguaia no sul da ilha do Bananal, e
Os Javaé, em seu interior. (Krause, 1940-43, 233:242).
21
Trinta anos após a visita de Krause, a distribuição registrada
por Lipkind em 1939 apontava a ocupação de 20 aldeias Karajá, entre a
região de Leopoldina até o norte da ilha do Bananal, a quase extinção dos
Xambioá que resistiam em duas aldeias próximas a Conceição do Araguaia,
e 8 aldeias Javaé no interior da ilha (Lipkind, 1948:179).
Carajaúna ou Karajá é uma atribuição Tupi herdada, possivel-
mente, do período anterior a 1500 em que eles habitaram regiões próximas
a grupos que formavam a “província” Tupi Guarani do Pará, citada por Vivei-
ros de Castro (1986:137).
Por possuírem traços sionômicos que os distinguiam dos gru-
pos Tupi, estes lhes atribuíram de forma depreciativa o nome Karajá. Em
contraste com os Tupi, geralmente de pequena estatura, os Karajá são
altos, fortes e de pele escura decorrente de longos períodos de exposição
ao sol, por serem pescadores por excelência. Por esse motivo foram asso-
ciados ao macaco guariba que teria características físicas semelhantes aos
Karajá, que em uma tradução livre signica “macaco preto”, de acordo com
informação dos Guarani atuais. No entanto, os Karajá se autodenominam
como Inў ou Inў mahadu (nosso povo) e são apontados pelo lingüista Aryon
dall’ Igna Rodrigues, como pertencentes ao tronco lingüístico Macro-Jê,
com formas diferenciadas de falar, de acordo com o sexo do falante.
A auto-designação Inў, é uma categoria que vincula os Karajá
a um passado mítico. Traduzido como “nós mesmos” ou “gente”, a categoria
pode ser denida, segundo o contexto, em oposição a ixãju, que designa
a alteridade, a exterioridade, como se fossem os “estrangeiros”, sendo
aplicado tanto para outros povos indígenas, como para os “Tori”, como são
chamados os não indígenas (Toral, 1992).
2
Foi presenciada a conversa de uma liderança Karajá com os Guarani, no Encontro Nacional dos Índios que acon-
tece anualmente em Bertioga, litoral sul de São Paulo, onde o assunto estava sendo debatido.
3
Pronuncia-se Inã.
22
Lutas seculares garantiram a permanência dos Karajá em seu
território, disputado com os grupos indígenas Kayapó, Tapirapé, Xavante,
Avá Canoeiro e com os exploradores não indígenas. Do contato pacíco com
os Kaypó Xicrim e com os Tapirapé houve trocas culturais decorrentes de
alguns casamentos intertribais, que podem ser observadas principalmen-
te na produção material. Os Xavante, entretanto, sempre foram temidos
pelos Karajá e os relacionamentos entre os dois povos foram de antago-
nismos por disputas de território. Depois de muitas lutas históricas, hoje
os Xavante ocupam a margem esquerda do rio Araguaia no Estado de Mato
Grosso, em terras que já foram de domínio Karajá, que hoje estão concen-
tradas na margem direita do rio, em Tocantins.
Mesmo com a ocupação de grande parte da região dos Karajá,
sobretudo com a formação dos núcleos pioneiros que se instalaram ao lon-
go do Araguaia, eles nunca se afastaram de seu território tradicional. O
mais importante aldeamento foi se formando na ilha do Bananal, próximo
à corredeira de Santa Isabel, que o nome à aldeia principal, conhecida
como Santa Isabel do Morro, local onde se instalou em 1928 o Posto Indí-
gena Redenção do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), cheado por Manuel
Sylvino Bandeira de Mello.
O SPI foi criado pelo governo federal sob o comando do gene-
ral Cândido Rondon em 1910 que no dizer de Bandeira de Mello, instalou o
Posto na ilha do Bananal para pacicação leiga dos Karajá. Segundo Darcy
Bandeira de Mello (1982), lho de Manuel Sylvino Bandeira de Mello, a
decadência do SPI motivou que o posto sob o comando de Bandeira de
Mello fosse desativado em 1930, ocasionando o afastamento do Servo
de Proteção ao Índio.
23
A população Karajá passou por momentos difíceis com a falta
de assistência a que estava acostumada. Muitos caram doentes, com -
rios casos de óbitos, ocorrendo também grande incidência de alcoolismo.
As condições precárias ocasionadas pela saída do SPI de Santa Isabel fa-
voreceram a intensicação do movimento de catequese indígena adventis-
ta, que também não alcançou totalmente os objetivos esperados.
Comandado pelo pastor Allen, vindo dos Estados Unidos para
instalar em 1928 o núcleo Adventista do Sétimo Dia, a Missão Araguaia ti-
nha objetivos evangelizadores, com a edicação de igrejas, escolas e hospi-
tais nas proximidades das aldeias de Santa Isabel e Fontoura, por estarem
ali concentradas as maiores populações indígenas Karajá. O movimento não
teve sucesso, enfrentando a resistência e indisposição de Manuel Sylvino
Bandeira de Mello que cheava o posto do SPI até 1930, estabelecido na
região cobiçada pelos adventistas, bem como dos Karajá que preferiam
viver em liberdade seguindo seu estilo tradicional de vida. Sem desistir da
idéia, na década de 1930, instalaram um posto da missão em Fontoura, mas
não conseguiram converter os indígenas pelo batismo, sendo os missioná-
rios expulsos da aldeia poucos anos depois (Prestes, 2007).
Com pequenas interruões, a missão se mantém até hoje
em contatos amistosos com os Kara na ilha do Bananal, no entanto,
poucos vão aos cultos celebrados aos sábados em igreja construída pela
missão nacada de 1990 com auxílio nanceiro internacional, na aldeia
de Santa Isabel, o maior e principal aldeamento Kara da ilha. Mesmo
com a ocorrência de alguns batismos, da formão de um pastor adven-
tista Kara e da tradução da blia em sua língua, o adventismo pare-
ce não ter alcançado um signicado relevante, pois a manutenção das
24
práticas tradicionais Karajá e de seus rituais manifesta a resistência à
adesão aos valores da miso.
Apesar de terem sido alvos fáceis de inúmeras frentes de
colonização, de catequeses e da aproximação com a sociedade local, os Ka-
rajá demonstram grande força de resistência ao preservar suas principais
categorias sociais, mantendo viva sua identidade Karajá através de perma-
nências das principais tradições de sua organização social.
Contudo, a ampliação dos povoamentos sertanistas no início do
século XX acarretou algumas alterações no modo de vida da população Ka-
rajá local. O nomadismo sazonal deixou de ser freqüente, ocasionando a or-
ganização e crescimento das aldeias Karajá na margem direita do Araguaia.
Houve época em que não possuíam aldeias permanentes e a localização dos
grupos variava segundo a condição do nível de água do rio. Nos períodos
de cheias, entre os meses de outubro e junho, construíam suas casas nos
barrancos das margens, acima do nível das enchentes. Nos períodos de es-
tiagem, entre os meses de julho e setembro, montavam acampamentos nas
inúmeras praias que se formam ao longo do rio.
As casas tradicionais eram reconstruídas conforme as exi-
gências do período. Sá (1983:120) esclarece:
Na estação das chuvas, a casa tradicional Karajá possuía uma estru-
tura sólida, formada por três arcos, com vigas de amarração junto
ao piso, e tetos e paredes em palha, que possibilitavam seu completo
fechamento, para proteção das chuvas e dos ventos. Na estação de
seca, a casa erguida nas praias do rio Araguaia era como que uma
simplicação da utilizada nas estações de chuvas, um simples para-
vento de palha e madeira.
25
Casa da estação seca.
Fonte: Sá, 1983.
Com a xação dos aldeamentos, as casas passaram a ter uma
estrutura mais sólida e resistente, pois mesmo que ainda haja a prática dos
acampamentos nas praias, no retorno para o local de moradia não é mais
necessária a construção de uma nova casa.
Padrão de construção que se tornou tradicional a partir a partir da xação local, com
inuência neo-braileira. Aldeia Wataú.
Foto: Sandra L. Campos/2005.
26
O movimento de sedentarismo teve início com a instalação do
Posto Indígena do SPI em 1928 dentro da aldeia, quando grandes núcleos
habitacionais foram formados. O padrão arquitetônico passou a se espe-
lhar no das casas não-indígenas, construindo-se as moradias com quatro
paredes e divisões internas. No entanto, continuam seguindo os padrões de
distribuição espacial tradicional de acordo com a maneira como percebem
o espaço por eles habitado, mantendo o alinhamento paralelo das casas
voltadas para o rio ao longo de sua margem, podendo ocorrer mais de um
arruamento formado pelo enleiramento das construções.
Tradicionalmente os Karajá buscam momentos de isolamento
do grupo maior, em especial no mês de julho no período de estiagem do rio
Araguaia, quando as famílias montam pequenos acampamentos nas praias
que se formam com a baixa do nível das águas. Curiosamente, não são mais
construídas as cabanas temporárias de verão. O que se vê é a substituição
por barracas de camping, compradas na cidade. As temporadas de per-
manência também não são tão longas como antes, e dicilmente ocupam a
estação completa do verão. Isto se por motivo das várias atividades cul-
turais a que são convidados a participar em diferentes Estados brasileiros
como, por exemplo, os jogos indígenas organizados nos períodos de férias
escolares, acontecendo a cada ano em um Estado nacional. Outro fator é
a escola indígena, freqüentada por adultos e crianças, que segue o mesmo
calendário ocial das escolas estaduais, em que o período de férias ocorre
no mês de julho, obrigando a redução de tempo dos acampamentos.
Entretanto, essa prática de distanciamento tornou-se mais
constante a partir de 1980, em decorrência dos conitos internos provoca-
dos pelos efeitos do alcoolismo e do crescente uso de drogas que atingem a
27
população da aldeia de Santa Isabel. Em conseqüência desses fatos, várias
famílias começaram a migrar para áreas distantes, ocasionando a expansão
do território da “aldeia grande”. Algumas iniciaram a construção de dois
novos aldeamentos JK e Wataú, distantes mais de três quilômetros de
Santa Isabel, seguindo o padrão tradicional de ocupação dos territórios e
construção das casas, em linha paralela ao rio Araguaia. Além do isolamen-
to e fuga de problemas resultantes do aumento populacional, essa é uma
forma de garantir a ampliação e ocupação das terras indígenas. Trata-se
de uma prática de caráter cultural não se congurando como estratégia
política, visto que os Karajá possuem o reconhecimento de uso das Terras
Indígenas Araguaia.
A distribuição espacial não deixa de ser, também, uma forma
de manutenção da estrutura social e familiar dos Karajá.
28
1.2 Hawaló: Os Karajá da Ilha do Bananal
Os Karajá, como foi dito, são ocupantes históricos da Re-
gião Centro-Oeste do Brasil, hoje localizados na Região Norte, segundo
a divisão geopolítica delimitada na Constituição de 1988. Sempre estive-
ram próximos do território considerado tradicional, sendo Santa Isabel do
Morro seu principal aldeamento formado por grupos que se estabeleceram
na ilha do Bananal muito antes de 1500 (Toral, 1992:5). Pressupõe-se que o
nome Santa Isabel seja herança do período da catequese católica, quando
era comum atribuir nomes de santos católicos a determinadas regiões ou
acidentes geográcos, a exemplo da corredeira, com o mesmo nome, nas
proximidades da aldeia.
Diante da referida corredeira, local preferido para a pescaria,
foi erguida uma grande gruta de pedras para abrigar uma imagem de Santa
Isabel com mais de um metro e meio de altura, e que pode ser avistada de
longe, servindo como ponto de referência de localização. Os Karajá não sa-
bem explicar ao certo a data e o responsável pela sua instalação na região
e, tampouco, ela signica algo de grandioso, apenas respeitam a iniciativa,
mas não manifestam nenhum esforço para sua conservação e nem para seu
necessário restauro, visto que se encontra quebrada há muitos anos.
No entanto, para os índios o local onde a imagem foi co-
locada é um marco importante de referência por ser a área do cemi-
tério indígena onde residem seus ancestrais. Ainda ativo, é possível
encontrar nele evidências de vestígios arqueológicos das antigas urnas
funerárias que afloram na superfície, testemunhando a permanência
secular desses grupos na região.
29
O restante da população se encontra distribuído em mais de
vinte comunidades margeando o rio Araguaia, nos Estados de Goiás, To-
cantins, Mato Grosso e Pará, somando uma população próxima de três mil
habitantes, segundo dados demográcos da FUNASA/2005 .
Atualmente o grupo permanece na mesma região, com uma
produção material semelhante à encontrada por Krause e Ehrenreich, não
se reduzindo apenas à confecção das bonecas, mas à confecção de uma
variada arte plumária, cestaria, madeira, contas e sementes além de uten-
sílios em cerâmica. Santa Isabel do Morro, ou Hawaló como é chamada pelo
grupo indígena, é a maior e mais antiga das aldeias, com uma população esti-
São Felix do
Araguaia
TO
MT
PALMAS
GO
DF
Localização das Aldeias Karajá: (MT, TO, GO)
01 – Lago Grande - MT
02 – Macaúba –Ilha do Bananal - TO
03 – Maitiry’ Tawa – Sta. Terezinha - MT
04 – Itxalá – Sta. Terezinha - MT
05 – São Domingos – Luciara - MT
06 – Fontoura - Ilha do Bananal - TO
07 – Santa Isabel - Ilha do Bananal - TO
08 – JK - Ilha do Bananal - TO
09 – Wataú - Ilha do Bananal - TO
10 – Nova Tytemã – Formoso do Araguaia - TO
11 – Mirindiba – S. Miguel do Araguaia - GO
12 – Aruanã – GO
Croquis Adaptado
Fonte: Associação Inў Mahadu
(de assistência a saúde indígena Karajá)
30
mada em 612 habitantes distribuídos em 96 casas, segundo dados relativos
a 2005, fornecidos pelo pólo da FUNASA de São Félix do Araguaia/TO.
Pelas características de localização, supõe-se que seja uma das aldeias
citadas por Krause em 1908 (Krause, 1911a), por Machado (1947), Lipkind
(1948), e em estudo arqueológico de Wüst (1981). Esta última autora men-
ciona referências populacionais, contando em 1940 com 52 adultos. Fénelon
Costa (1978:23) se estende nas referências demográcas estabelecendo
um quadro comparativo entre a década de 1957, com índice populacional
estimado em 208, e a de 1959/60 com uma população de 194 pessoas. A
“aldeia grande”, como é apontada, com seu crescimento populacional expan-
diu-se nos últimos anos, subdividindo-se em novos aldeamentos.
A construção das aldeias JK e Wataú segue o padrão tradi-
cional de distribuição espacial, onde as casas se alinham na margem do rio
Araguaia, por ser este o principal ponto de referência cultural e cosmo-
gônica do povo Inў. Apesar da distância, Santa Isabel ainda é o ponto de
referência das duas aldeias, pois é que se encontra a casa-dos-homens,
ou das máscaras de Aruanã, em que são realizadas as principais cerimônias.
Fica localizada a uma certa distância atrás das leiras de casas, em oposi-
ção ao rio Araguaia.
A comunidade Karajá de Santa Isabel, em relação a outras
aldeias, é o povoado que mantém seus costumes mais próximos dos tra-
dicionais, dando maior importância à permanência dos rituais de iniciação
masculina, das festas de Aruanã, do uso da indumentária, da pintura cor-
poral e da manutenção do corte de cabelo das meninas solteiras, entre ou-
tras características. Costumam realizar os grandes festejos do Hetohoky,
cerimônia que culmina com o ritual de transição de idade do menino para a
31
vida adulta. Recebem, na ocasião, inúmeros visitantes das aldeias vizinhas,
com destaque para as de Fontoura e Macaúba, que trazem mais de 50
participantes para compartilhar a luta intertribal, que em clima festivo e
competitivo reproduz as antigas disputas com inimigos vizinhos.
A viagem de Macaúba até a primeira parada em Fontoura, por
deslocamento uvial, leva mais de quatro horas, seguindo-se viagem por
mais de uma hora até a chegada na aldeia Santa Isabel.
O barco da comunidade, que leva o nome de “Tebukua”, em
homenagem a um dos grandes lideres políticos Karajá falecido, sai de
Santa Isabel no dia anterior à festa para buscar os convidados das duas
aldeias vizinhas. Estes são recebidos pelo der político, por amigos e
parentes, cando hospedados na aldeia até o nal da festa, quando o
levados de volta.
Foto: Sandra L. Campos, 2006.
Barco da comunidade Karajá com convidados para a festa.
32
O canto ritmado acompanhado pela batida dos pés anuncia a
chegada dos lutadores, antes do barco ser avistado, dando início às festi-
vidades de recepção na margem do rio.
Tebukua – barco da comunidade de Santa Isabel, com os convidados da festa.
Foto:Sandra L. Campos/ 2005.
Esse é o mesmo barco que faz viagens diárias transportando
os moradores de Fontoura e Santa Isabel para a cidade de São Félix do
Araguaia. Leva grande maioria dos homens das aldeias, para cumprimento
de suas jornadas de trabalho nos órgãos públicos (FUNAI e FUNASA), e
outros para vender peixes para os moradores da região. As mulheres se
dirigem à cidade para a venda do artesanato, frutas nativas, compra de
alimentos e roupas ou para tratamento de saúde, delas e de seus lhos.
A sociedade Karajá mantém restrições ao trabalho feminino
fora da aldeia. As poucas que trabalham, exercem funções de auxiliar de
enfermagem no posto de saúde mantido pela FUNASA em Santa Isabel
33
ou são professoras contratadas para a escola estadual indígena da aldeia.
Estas fazem parte de uma geração que vem rompendo com a resistência à
saída das mulheres para fora, e eso saindo para obter estudar em o
Félix do Araguaia, Goiânia Brasília ou São Paulo, dependendo da área de
atuão. Recentemente duas jovens saíram para estudar em São Paulo na
universidade adventista, UNISA. Uma já concluiu sua formação em Peda-
gogia e retornou para assumir a diretoria da escola da aldeia; a outra está
cursando o segundo ano de enfermagem superior e as sua formatura
voltapara trabalhar no posto de saúde de Santa Isabel. A formação
das irmãs tem sido possível com o fornecimento de bolsa de estudos da
universidade e com apoio nanceiro da FUNAI, que auxilia nas despesas
de moradia, transporte e alimentão. Iniciativas que alteram o compor-
tamento comunitário.
A saída do ambiente doméstico, a proximidade com a cidade
e a facilidade de contato, que de Santa Isabel não leva mais do que meia
hora de travessia, vem criando novos hábitos alimentares, muito distin-
tos dos tradicionais. Aliado ao acesso ao dinheiro, passou a ser comum o
consumo de víveres usuais do cardápio não indígena, como sal, café, ma-
caro, óleo, açúcar, biscoitos e refrigerantes, revelando-se verdadeiros
vilões da saúde indígena. Em conseqüência do alto consumo de sacaríde-
os, verica-se um aumento signicativo de casos de cegueira provocados
pelo diabetes, bem como de outras doenças decorrentes da mudaa nos
pades alimentares.
Os Karajá já foram grandes plantadores de roças de ar-
roz, feijão, milho, mandioca e batata doce, que juntamente com o pei-
xe em abundância, compunham sua alimentação de forma muito mais
34
saudável do que a adotada atualmente. Até o cardápio tradicional das
festas está sendo substituído por bolos, biscoitos, pães, e se renden-
do ao fascínio pelos refrigerantes.
Várias festas importantes acontecem durante o ano, como a
dança de máscaras, ou a festa de Aruanã, com as características máscaras
que personicam animais relacionados ao mundo natural e ao sobrenatural,
dos três níveis do cosmos: terra, água e céu. Segundo Toral (1992a), os
Karajá acreditam que as cerimônias agradam aos seres representados, que
satisfeitos, protegem a aldeia de possíveis desgraças.
A continuidade das festas tradicionais é preservada pelos ho-
mens mais velhos da aldeia, que procuram estimular o cumprimento do ciclo
dos festejos como forma de revitalização da cultura, uma vez que os mais
jovens manifestam certa descrença e desinteresse por esses rituais. Como
aponta Fénelon Costa, (1978:36),
(...) esses ciclos relembram repetidas vezes as experiências de or-
dem religiosa por que têm passado os Karajá séculos, e ainda, a
própria experiência individual de todo Karajá.
Acredita-se que a persistência dos mais velhos em dar con-
tinuidade a tais práticas seja responsável pela permanência dos principais
traços da cultura tradicional e de sua resistência diante de tantos apelos
religiosos externos, como os do catolicismo e do adventismo.
Santa Isabel se destaca das outras aldeias Karajá pela per-
manência de práticas tradicionais, a exemplo das expressões artísticas,
como cerâmica, plumária, cestaria, entre outras que se mantêm, e ainda são
35
de domínio dos membros dessa aldeia, fato que traz indivíduos de outras
aldeias Karajá das proximidades para reaprenderem certas técnicas que se
perderam, revitalizando, assim, alguns elementos da cultura Karajá.
Uma característica contemporânea é a fundação de asso-
ciações indígenas para o desenvolvimento de projetos coordenados por
membros da comunidade. São organizações com reconhecimento público e
registro em órgãos federais, que conquistam auxílio de entidades nancia-
doras para desenvolvimento de projetos culturais. Como exemplo, em 2006
os Karajá, por meio da Associação Cultural Inў Bededyynana, obtiveram
a aprovação do projeto de “revitalização da arte de confecção de canoa,
cestaria, cerâmica e indumentária”, enviado à Petrobrás. O projeto tem
por nalidade estimular os mais velhos que ainda dominam técnicas pouco
praticadas pelos mais jovens, a transmitirem seu conhecimento. O espaço
da escola da aldeia está sendo utilizado para as ocinas pedagógicas que
são documentadas e lmadas pelos Karajá, para serem transmitidas para
os alunos na escola de Santa Isabel, nos anos seguintes.
1.3 JK e Wataú: Dois políticos, duas aldeias.
Durante os períodos de estadia em 2005 e 2006 entre os
Karajá, a aldeia JK estava ocupada com 57 habitantes migrados de Santa
Isabel, distribuídos em 9 casas, segundo relatórios da FUNASA. Distante
cerca de 3 km da aldeia grande, JK está sendo formada na região onde o
presidente Juscelino Kubitschek havia construído o Hotel Turismo JK na
década de 1960. A construção do hotel fazia parte de um projeto ambicio-
so dos últimos 8 meses de mandato do presidente, que visava o desenvol-
36
vimento do vale do Araguaia. Para realizar o seu sonho desenvolvimentista,
Lima Filho (2001:101) lembra que Juscelino,
Convocou Oscar Niemayer, que projetou o Hotel Turismo, o hospi-
tal indígena e um prédio administrativo que se chamou Alvoradinha.
Ainda foram construídas uma escola, uma pista asfaltada e uma base
militar da FAB.
Hotel inacabado, registrado por viajante.
Foto: Ruy Reis Costa/1961.
As questões políticas do período impediram a conclusão do
luxuoso hotel de turismo, que foi inaugurado em 1961 sem a conclusão das
obras, funcionando inacabado em condições precárias. Juscelino freqüen-
tou várias vezes o hotel e o prédio administrativo Alvoradinha, recebendo
vários membros do cenário político da época.
Após a saída de Juscelino da presidência, o hotel foi geren-
ciado em um breve período por uma agencia de turismo de Goiás, que não
obteve lucros e abandonou o negócio. Antes de ser desativado, em 1964,
foi utilizado temporariamente como posto da Fundação Nacional do Índio
37
(FUNAI), que se mudou no ano seguinte para São Félix do Araguaia, em
Mato Grosso. Foi saqueado na época de abandono, mas pode-se encontrar
no Museu da cidade mantido pela Prefeitura, alguns exemplares dos cris-
tais e pratarias gravados com as insígnias de JK.
Até ns da década de 1970 o gerenciamento do hotel passou
por várias administrações até ser totalmente destruído por um incêndio.
Os sonhos de JK de promover um desenvolvimento acelerado do Centro
Oeste podem ser traduzidos como pesadelo, pois o que resta hoje da “ope-
ração Bananal” são ruínas de um ufanismo desenvolvimentista. As poucas
construções do complexo que ainda estão erguidas em Santa Isabel foram
ocupadas como moradia por algumas famílias indígenas. O hospital, em ruí-
nas e tomado pela vegetação, está irrecuperável. Sobrevive apenas a pista
de pouso, utilizada pelos meninos da aldeia como pista de bicicletas desde
que foi desativada no governo Collor de Mello na década de 1990, ocasio-
nando a retirada da base da FAB ali instalada durante o governo militar
para facilitar o combate à guerrilha do Araguaia. Na aldeia JK, onde havia
sido construído o hotel, nada restou além da memória do presidente que
tanto havia prometido aos Karajá.
Das lembranças da época e da marca emblemática desejada
por JK, restou apenas o nome da aldeia, que se instalou desde a década de
1980 em uma área privilegiada na margem direita do rio Araguaia, em linha
contígua à aldeia de origem. Pode-se armar que essa tem sido uma situa-
ção de fuga de Santa Isabel, local que está se tornando cada dia mais popu-
loso e com problemas sérios de alcoolismo e drogas, trazidos da população
local não indígena para o ambiente da aldeia, provocando brigas e cisões en-
tre famílias. Com a ampliação de JK, a aldeia busca sua autonomia política
38
desvinculando-se da liderança de Santa Isabel, contando hoje com um líder
político, Paulo Krumare, seu fundador. Reconhecido pela comunidade como
importante liderança política, assume a posição de cacique
4
de JK.
Situação distinta é a da aldeia vizinha, Wataú, que ainda não
tem uma lideraa política desvinculada de Santa Isabel. Fundada em nais
da década de 1990, por Iwraru e seu iro Marvel Tui, foi construída pró-
xima de JK, correspondendo a uma disncia que não ultrapassa 300 metros,
oriunda de uma nova onda de migrão de Hawa. Os fundadores são netos
do “capitão” Wataú que, em homenagem ao avô deram seu nome para a aldeia.
Até o ano de 2006 Iwraru ocupava a posição de cacique de Santa Isabel,
abrangendo Wataú, onde mora com sua falia. Foi substituído por Idiahina
seu antecessor no cacicado, eleito pela comunidade como liderança potica,
em agosto de 2006. Nesse aldeamento habitam cerca de 50 pessoas distri-
buídas em 10 casas, mais uma que está sendo construída por parentes da
esposa de Iwraru e em 2007 foi constrda outra casa, habitada pelo lho
de Iwraru e a esposa. É um dos raros caso de alteração da regra social, em
que olho mora ao lado do pai e o do sogro, como é o costume.
4
Cacique é uma atribuição genérica que se aplica à todas as lideranças políticas indígenas.
Foto: Sandra L. Campos
Aldeia Wataú, com 9 casas em 2005
39
O título de “capitão” foi atribuído a Wataú pelo Presidente
Getúlio Vargas em uma de suas visitas à Aldeia de Santa Isabel e que, de
maneira geral e amistosa, era favorável ao cumprimento de muitas das rei-
vindicações de Wataú. As visitas dos vários presidentes incluindo a mais
recente, de Luiz Inácio Lula da Silva, reetem o grande interesse político
pela região. O rio Araguaia é cobiçado por vários governos para a constru-
ção de uma hidrovia, que beneciaria o transporte comercial. Existe um
forte movimento de resistência no sentido de impedir a construção, pois
sem dúvida, os menos favorecidos seriam os indígenas que habitam suas
margens, por gerar um grande impacto ambiental e, conseqüentemente,
cultural às populações ribeirinhas.
Aldeia Santa Isabel do Morro em: 1977, 1981 e 2006.
Fonte: Sá, 1983.
1977
40
Fonte: Fénelon Costa, 1988.
1981
Croquis: Sandra L.Campos/2006
Arte nal: Denise Dalpino/MAE
2006
Capítulo 2
Ritxokó – do barro fez-se o homem
42
2.1 As mãos que Tecem o Barro: As Oleiras.
Habilidosas oleiras, as artes Kara praticam tradicional-
mente a arte da modelagem de objetos em cerâmica, pressupostamente
antes dos primeiros contatos com os colonizadores. Segundo Schmitz
(1976/77) e Wüst (1975, 1981), as prospecções arqueogicas na rego
evidenciaram vestígios cerâmicos de antigas populações, que recuam a
produção ao início do século XII, com características semelhantes ao que
ainda é produzido.
Segundo os autores, originalmente as ceramistas modelavam
vários objetos utilitários e cerimoniais que acompanhavam os ciclos de vida
e de morte dos Karajá, podendo ser distinguidos morfologicamente em cin-
co tipos de recipientes. De acordo com a forma e a variedade de tamanho,
tinham funções distintas, a saber:
“Besé”
grande, com base plana e borda baixa era utilizado para
assar o beiju e servir alimento para grandes grupos nas festividades. Os de
dimensões menores podiam ser utilizados como pratos individuais ou como
tampa do
“Boti”
, recipiente fabricado até hoje para armazenar água. O
“besé”
também era utilizado para tampar a
“watxiwi”
, panela utilizada para
cozinhar o calogí, alimento típico dos Karajá a base de milho ou mandioca
adoçado com mel, consumido hoje, com a substituição do mel por açúcar.
Em épocas remotas, quando praticavam o sepultamento secun-
dário de seus mortos, o
“watxiwi”
, ou
watxiwihikytidena
(
watxiwi
panela,
hiky
grande,
ti
osso,
dena
colocar), era ritualisticamente confecciona-
do pela avó materna ou mãe do falecido para enterrar os ossos exumados,
43
e o
“besé”
, nessa ocasião, era colocado com alimento nas sepulturas.
Esse ritual de exumação dos ossos não é mais praticado, mas a
forma e a função do objeto reside na memória dos mais velhos e na curio-
sidade dos mais jovens, quando observam no cemitério o aoramento dos
vestígios cerâmicos de antigos sepultamentos. Na maioria dos casos de
falecimento, os corpos dos Karajá são enterrados no cemitério da aldeia,
local onde foi colocada a imagem de Santa Isabel.
Atualmente as sepulturas seguem a característica tradicional
Karajá, de enterramento em valas rasas. O fundo da sepultura é forrado
longitudinalmente com uma série de pequenos troncos, alguns centímetros
acima do chão para que o corpo não que em contato direto com a terra,
operação que se repete na parte superior a uma determinada distância do
sepultado. Os mais velhos contam que os espaços deixados abaixo e acima
são necessários para que o espírito possa se movimentar ao olhar por seus
parentes e sair para se alimentar. Com a ação de religiosos cristãos e a
assistência da FUNASA, as esteiras em que os mortos eram enrolados e
suspensos por duas hastes nas sepulturas, estão sendo substituídas por
caixões funerários cedidos pelo órgão de saúde.
No constante confronto entre tradição e inovação, algu-
mas permanências podem ser observadas com pequenas adaptações,
a exemplo do alimento que continua sendo depositado na sepultura,
porém, em recipientes plásticos ou de metal substituindo o
watxiwi
.
O luto e o choro ritual do funeral também são mantidos, sendo respei-
tados pela comunidade os cinco dias após a morte, causando a suspen-
são de toda e qualquer atividade festiva na aldeia, seja ela uma das
grandes festas do ciclo ritualístico ou uma simples partida de futebol.
44
O alimento é reposto nesse período, para que o espírito se alimente em
sua jornada para o mundo dos mortos.
A cena do sepultamento e do choro ritual é registrada em
bonecas cerâmicas que são comercializadas.
No uso cotidiano, o
watxiwi
era utilizado como panela
para cocção de alimentos, e estas apresentando uma variedade de di-
mensões de acordo com o tamanho da família. Com a gradativa substi-
tuição por panelas industrializadas, sua produção foi abandonada, fi-
cando registrada apenas em acervos dos museus, assim como os
walú
,
recipientes menores utilizados para beber água e armazenar o mel.
Essa riqueza material existe hoje em pequena escala, pois
a maioria dos objetos foi substituída pelos industrializados, sendo o
botí
o único sobrevivente aos apelos de consumo, cuja cnica de
manufatura ainda é dominada por algumas ceramistas de Santa Isabel
que o fornecem, sob encomenda, para várias famílias da aldeia.
Quase todas as casas m um ou dois desses potes, com
capacidade de armazenar cerca de 10 litros de água cada um, mas tam-
bém não é incomum encontrar ao lado deles um filtro comprado direta-
mente na cidade ou por meio de catálogos, com entrega dos produtos
escolhidos, pelo posto de correio de São Félix do Araguaia, na margem
oposta do rio.
45
Essa modalidade de consumo através de catálogos tem se tor-
nado uma prática comum. Isto se deve ao fato de muitos Karajá serem
funcionários assalariados dos órgãos públicos, como FUNAI e FUNASA,
em São Félix do Araguaia. Houve a oportunidade de presenciar a chegada
de um desses catálogos causando certa euforia nas mulheres da aldeia que
escolheram seus produtos, aguardaram ansiosas a chegada das encomen-
das e receberam os bens industrializados em um clima muito festivo. Uma
grande variedade é oferecida por esse sistema, como utensílios domés-
ticos, brinquedos, roupas, entre outros. O pagamento é feito geralmente
pelo marido com seu salário, ou pelas mulheres com o dinheiro ganho com a
venda de seu artesanato.
Muitos dos produtos industrializados acabam substituindo
determinados itens, mas não impede que alguns de confecção artesanal
ainda sejam produzidos e usados, tanto pelos homens como pelas mulheres,
a exemplo das cuias utilizadas em lugar de copos, tigelas ou pratos.
Botí.
Com água retirada de poço artesiano, próximo à casa.
Foto Sandra L. Campos/2005.
46
2.2. Hўkўnaritxoko e Ritxokó: bonecas antigas e
modernas
O fato de os Karajá terem hoje certo domínio da escrita e
da língua portuguesa, torna possível sanar alguns equívocos de pronuncia
e graa de termos de sua língua, reproduzidos por autores que estiveram
em contato, a exemplo de Baldus (1936) e Fénelon Costa (1978), quando se
referem às bonecas através de termos como Licocós ou litjokô, e outros
modos semelhantes. Hoje podemos armar que a forma correta, discursiva
e grafada é Ritxokó, na fala feminina ou Ritxoó, na masculina, sendo que o
R tem o som como se estivesse entre duas vogais. Esse dado foi conrmado
pelas ceramistas de Santa Isabel, com Ijesseberi
5
, lingüista Karajá que
auxiliou na pesquisa com a graa das palavras de seu idioma, e com Hata-
waki Karajá que se dispôs a revisar os termos reproduzidos neste estudo.
Hўkўnaritxoko é outro termo usado pelas ceramistas, para designar as
bonecas antigas, diferentes em alguns aspectos da moderna.
As coleções de bonecas Karajá do MAE apresentam uma va-
riação temporal de coleta entre 1904 a 2006 e pode-se armar a partir
delas, que as bonecas antigas não estão superadas e não foram substituí-
das pelas novas, pois até hoje elas fazem parte das preferências e esco-
lhas temáticas das ceramistas de Santa Isabel. Verica-se a ocorrência
de mudanças de ordem tecnológica, à medida que as mais recentes não são
cruas como as antigas.
As evincias empíricas conrmam a convivência dos dois pa-
drões, pelo fato das meninas pequenas ganharem conjuntos de bonecas
de padrão antigo, porém processados da mesma forma que as de padrão
5
Ijesseberi Karajá auxiliava o lingüista David Fortune na elaboração do vocabulário Karajá e na tradução do Bíblia
para a língua Inỹ. Faleceu em maio de 2006.
47
moderno. As meninas recebem uma família” de bonecas, composta de
peças que representam os pais, os irmãos os avós. Em outras palavras,
as avós que presenteiam, espelham nas naritxoko sua ancestralida-
de, seguindo padrões tradicionais da constituição familiar. As bonecas,
além de simularem as diversas fases do crescimento biológico e de suas
respectivas categorias sociais, bem como a forma antiga da estrutura
familiar Karajá, reproduzem o ato tradicional das avós presentearem as
netas, que é mantido e rearmado nas relões sociais, submetido a re-
gras para esse acontecimento.
As ceramistas têm preservado expreses tradicionais na ce-
râmica gurativa, mantendo nas duas congurações as características for-
mais e de contdo que podem ser identicadas na pintura corporal, no corte
de cabelo e nos aderos, como resultantes de sua cultura secular.
A família de bonecas, sempre produzida pela avó (ou tia) para
a neta no padrão antigo, é um presente que todas as meninas recebem,
quando completam cinco ou seis anos de idade. A avó materna se dedica a
confeccionar o presente e caso não tenha habilidade para a confecção, a
tarefa é transmitida para uma das tias. No entanto, é possível que ambas
ofereçam o presente.
As peças de argila são frágeis e requerem certos cuidados de
manuseio. É este o motivo que determina a idade a partir dos cinco anos
para as meninas receberem as bonecas, em que desenvolveram a noção
dos cuidados de manipulação para não quebrar o brinquedo. O conjunto de
peças tem duração prevista até o nal da infância, aproximadamente até os
doze anos de idade, quando a menina vai receber outros atributos e outros
objetos referentes ao estágio seguinte. Não costumam guardar as poucas
48
bonecas que resistem à quebra, cando preservadas apenas nas lembran-
ças referentes à infância.
Elas brincam com as bonecas na companhia de outras meninas
e às vezes também com a participação dos meninos, fato que acaba acar-
retando a quebra dessas pequenas bonecas de cerâmica, que variam entre
seis e doze centímetros de altura. Quando as meninas completam onze a
doze anos de idade, restam poucos exemplares do conjunto que pode ser
composto por mais de dez guras. Talvez seja este um dos motivos que jus-
tique o fato dos museus não registrarem essas famílias em seus acervos,
e os autores que antes estudaram os Karajá não se referirem a elas. Por
outro lado, em virtude da circulação das bonecas pertencer ao universo fe-
minino, parece não ter despertado a atenção dos coletores (homens), acer-
ca da produção das ceramistas e da utilização das bonecas pelas meninas
Karajá. Essa questão começa a ser destacada com a participação feminina
nas pesquisas de campo, nos estudos de Wilma Chiara, Maria Heloisa Féne-
lon Costa e neste estudo que dá enfoque à família de bonecas.
Em relação à fase moderna, iniciada no nal da década de
1940, prevalece a representação de variadas cenas da vida cotidiana da
sociedade Karajá. Essas peças cênicas são mais destinadas ao comércio,
não fazendo parte do conjunto de peças presenteadas às crianças. Esses
fatores não impedem que as bonecas de estilo antigo também sejam co-
mercializadas, fato comprovado pelos museus, que abrigam centenas de
peças avulsas. Porém, são vendidas isoladas de seu conjunto, não formando
as famílias como as meninas pequenas ganham de presente, caracterizando
assim, a distinção do contexto de circulação dos objetos.
49
2.3 De Dentro e de Fora: Contexto Espacial e
Circulação dos Objetos.
Tradicionalmente existe entre as ceramistas Karajá uma
grande produção de guras cerâmicas, cumprindo funções plurais de cir-
culação. Nesse sentido, o repertório gurativo está sujeito a uma série
Foto: João Derado/2006.
Korixa vendendo bonecas de estilo mo-
derno, em Bertioga/SP – 2006
Bonecas de estilo moderno para comércio na aldeia JK,
Foto: Sandra L. Campos/2006.
50
de fatores condicionados à sua distribuição. O repertório, assim como os
motivos ornamentais, representa padrões aprendidos na infância e mais
tarde aplicados nas guras, na pintura corporal e em várias categorias de
objetos que produzem.
Em estudos etnográcos sobre os Karajá, Krause (1911b),
apresenta um repertório de motivos que se repetem na aplicação dos tran-
çados, na cerâmica e em vários tipos de objetos. Os mesmos motivos são
apresentados por Taveira (1982) em estudo voltado para a cestaria Karajá,
por Toral (1992 b) na pintura corporal, e por mim em artigo recente (Cam-
pos, 2002), na cerâmica gurativa. Taveira (1982:235) elucida que,
Os desenhos representam elementos da fauna terrestre e aquática,
como o quati, a formiga, a cobra, o urubu, o morcego, o peixe-faca,
etc., numa exposição de partes de seus corpos, nunca o animal todo.
Representações de objetos e ações do cotidiano também se cons-
tituem em motivos ornamentais, sendo exemplos os que signicam
“tembetá”, “gancho”, ou “dar uma volta”.
Entre os Karajá, a produção da cerâmica está restrita à área
doméstica. As oleiras modelam seus objetos em espaços no fundo do quintal
e próximos à cozinha ou em pequenos espaços construídos para esse m,
próximos da casa. O maior uxo de produção está voltado para a venda, por
causa do aumento do grau de dependência econômica gerada em conseqü-
ência do estreitamento das relações estabelecidas com a sociedade nacio-
nal e com a economia local, que intensica as necessidades de consumo de
bens industrializados. Outro fator é a facilidade de contato com a cidade
mais próxima, distante cerca de 2 km entre a margem onde se encontra a
51
aldeia na ilha do Bananal/TO e o porto de São Félix do Araguaia/MT.
A ilha do Bananal, pertencente ao Estado de Tocantins, tem o
rio Araguaia como fronteira com Mato Grosso, sendo São Félix do Araguaia
a cidade mais próxima da aldeia de Santa Isabel. Com a instalação do posto
da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e da Fundação Nacional de Saúde
(FUNASA), órgãos governamentais que incorporam um número repre-
sentativo de indígenas como funcionários, intensicou-se o contato diário
com a localidade. O meio de transporte comum é o barco da comunidade,
comprado e mantido pelos Karajá com recursos de arrendamento de pastos
para não indígenas no interior da ilha, que em acordo com os Karajá, criam
gado em território indígena.
O fato de a embarcação comportar mais de cem pessoas, fa-
zendo um trajeto que não dura mais de vinte e cinco minutos, facilita o
acesso à cidade e, conseqüentemente, o escoamento dos objetos produzi-
dos para a venda.
Esse fator vem dando ênfase à produção destinada para o co-
mércio que, paradoxalmente, estimula as ceramistas a preservar aspectos
identicadores da cultura Karajá. Por um lado, existe um público consu-
midor cada vez mais exigente na aquisição de uma cerâmica “autêntica” e,
por outro, a intenção das ceramistas de manter as práticas e saberes
tradicionais, como forma de valorização de seus objetos. Com isso, a venda
da cerâmica e de outras categorias de objetos, como cestaria, colares,
etc., vem sendo uma das maneiras de garantir tanto a sobrevivência física
quanto a sobrevivência cultural dessa população, sendo esta uma forma de
desenvolver mecanismos de ajustes nas práticas culturais como garantia
de comercialização do objeto.
52
Pode-se associar esse fenômeno à natureza da participação
da mulher na vida social da comunidade, sendo ela a principal responsável
em manter a estrutura tradicional dos padrões e costumes da sociedade
em que vive. Como produtora, aplica a força expressiva da representação
simbólica no objeto para o comércio.
As mulheres ocupam lugar de prestigio no meio Karajá. Sua
ascendência sobre os homens é decorrente de um casamento matrilocal,
que garante a propriedade da casa e o conseqüente domínio do espaço onde
vivem. Além disso, é ela quem educa os lho, transmitindo e garantindo o
cumprimento das normas sociais. Dominam, também, o repertório do gra-
smo simbólico sendo elas que aplicam a pintura corporal nos homens e nos
demais membros da comunidade.
Embora a responsabilidade política seja de domínio masculino, os homens
não desfrutam da mesma segurança que as mulheres, pois segundo as re-
gras Karajá, os homens devem se adaptar ao meio, já que quando se casam
vão morar junto à família da noiva, mesmo que isso represente mudar-se
de aldeia. Este é um dos fatores que reforçam a autoridade das mulheres
nessa sociedade. No entanto, isso não signica eliminar a ocorrência da
grande discriminação ostensiva entre homens e mulheres. Certos rituais,
como a iniciação masculina, rearmam o poder e a superioridade do homem,
que restringindo a participação e o acesso da mulher a certos espaços
(casa de Aruanã), a coloca em um papel secundário, marcando a oposição
entre os sexos.
Ainda que sejam consideradas dependentes, as mulheres de-
sempenham um papel importante na economia doméstica, em função da
comercialização das peças artesanais que produzem, sendo que o maior
53
uxo de objetos de cerâmica se dá para a circulão fora dos limites da
comunidade, inserida no circuito comercial. A despeito da venda ser uma
das práticas mais freqüentes e para onde se concentra a prodão das
peças, os objetos também são utilizados como moeda de troca, não sendo
incomum o escambo por pequenos bens utilitários ou por alimentos, num
sistema comumente aceito por alguns comerciantes locais, ou ainda como
troca de presentes.
Seguindo uma prática tradicional, o ato de presentear conti-
nua freqüente entre os Karajá, tendo caráter de reciprocidade, reconhe-
cimento ou agradecimento por algum benefício auferido para o grupo. A
reciprocidade ou a dádiva, segundo as analises de Mauss, é um fundamento
da sociabilidade e da comunicação humana em que a vida social é marcada
por uma constância entre dar e receber. A retribuição de tributos pode
estabelecer uma aliança política onde “os contratos fazem-se sob a forma
de presentes” (Mauss, 1974b - 41).
Os Karajá sempre foram destacados na bibliograa como as-
tutos políticos, dotados de uma diplomacia ímpar, acostumados a estabele-
cer alianças e conquistar interesses com representantes governamentais.
Em alguns casos, as trocas foram prerrogativas de cheas que, ao pre-
sentear, representavam os interesses de sua sociedade. O prestígio do
líder Karajá Wataú cou marcado por episódios com dois presidentes da
República brasileira, que tinham interesses no desenvolvimento da região
Centro-Oeste. O primeiro foi com o Presidente Getúlio Vargas na década
de 40, que recebeu a atribuição de “capitão” Wataú, quando este visitou a
aldeia de Santa Isabel na ilha do Bananal, sendo reconhecido até hoje pelos
Karajá, muito tempo após sua morte.
54
O segundo, foi com o presidente Juscelino Kubitschek, como
já mencionado. Essa característica dos Karajá mereceu destaque na mídia,
sendo muito divulgada por ocasião da inauguração de Brasília na década
de 1960. Na época, Juscelino Kubitschek, que tinha interesses declarados
no desenvolvimento do centro-oeste brasileiro, convidou um grupo indíge-
na para a missa inaugural de Brasília. Como agradecimento e retribuição,
Juscelino recebeu do “capitão” Wataú, liderança política que representava
sua sociedade nesse período, e do grupo que o acompanhou, uma série de
presentes gurando entre eles um conjunto de bonecas.
Este procedimento é uma herança histórica desde os tempos
da colonização, quando acordos estabelecidos com os portugueses para a
navegação do rio Araguaia garantiram a permanência de ocupação da Ilha
do Bananal por parte dos Karajá.
Wataú e sua esposa (com bonecas nas mãos), JK e Dna. Sarah Kubitschek, na primeira
missa em Brasília.
Foto: autor desconhecido
Fonte: arquivo pessoal de Iwraru
55
Essa foi uma das formas de selar uma aliança com o presi-
dente, através da qual ele poderia dar continuidade aos seus projetos de
desenvolvimento da região, desde que não trouxesse prejuízos às terras
indígenas e aos Karajá das diversas aldeias locais.
Com a facilidade de transito dos Karajá, o principal foco das
relações externas ocorre com a venda dos objetos, sendo esta uma das
maneiras de garantir parte da estabilidade econômica das famílias para
aquisição de bens de primeira necessidade que não produzem. Aproveitam
os nais de semana, quando aumenta o número de turistas na região, prin-
cipalmente nas “temporadas de praia”, ocasião em que aoram uma série
de bancos de areia formando as praias de rio. Este fenômeno atrai muitos
turistas que se interessam pelos objetos regionais associados à identica-
ção dos indígenas intensicando, assim, o comércio dos objetos Karajá.
No caso da circulação interna da cerâmica as bonecas ganham
destaque. É comum, como mencionado, que sejam confeccionadas para
presentear as meninas pequenas, tratando-se de uma prática simbólica tra-
dicional em que a avó materna ou uma das tias tenha habilidade e empenho
em manufaturar um elenco de guras que projetam por recursos simbólicos
uma pequena “família”. Dessa forma, as bonecas assumem um caráter peda-
gógico: as meninas enquanto brincam, reproduzem o cotidiano familiar dos
Karajá, organizado segundo normas e valores.
As bonecas e outros objetos cumprem tipos distintos de uso:
- para socialização dos Karajá
- para troca e presente (dentro e fora das aldeias)
- para comércio
56
2.4 Para Além do Brinquedo: Bonecas como
Refencias Simlicas das Divisões de Idade.
No ambiente cultural da aldeia, o primeiro contato com as bo-
necas se na infância, na fase pré-pubertária, em que a educação integra
brincadeira e reconhecimento dos graus de idade, determinantes das di-
visões sociais. Fritz Krause (1911a-332) foi o pioneiro a indicar os graus
de idade formais dos Karajá, tendo como seguidores Lipkind (1948-187) e
Dietschy (1978-69). Com os dados coletados nos três meses de permanên-
cia em campo em 2005 e 2006, e com a colaboração de algumas famílias
Karajá de Santa Isabel, procuro ampliar as informações desses autores,
buscando associar as divisões de idade com as bonecas que as meninas ga-
nham como brinquedo.
As crianças brincam com esses pequenos objetos com cerca
de seis a quinze centímetros, simulando com eles situações que envolvem a
vida cotidiana. Embora seja uma brincadeira de menina, o menino também
pode participar na dramatização representando papeis sociais que não es-
tejam contemplados nas guras, por exemplo, o pai ou o lho mais velho,
que pode ser incorporado na brincadeira como o responsável por trazer
alimento para a família, simulando uma pescaria.
Brincar é conhecer e “conhecer é objetivar; é poder distinguir
no objeto o que lhe é intrínseco do que pertence ao sujeito cognoscente, e
que, como tal, foi indevida e/ou inevitavelmente projetado no objeto” (Vi-
veiros de Castro, 2002-358). Na brincadeira, as crianças se reconhecem
nas guras cerâmicas; seu papel é explicitado no objeto e na cadeia de re-
lações que estabelecem com o conjunto de guras da “família” que assume
57
expressões das formas sociais.
Nesse teatro onde os personagens se opõem, se complemen-
tam e se integram no funcionamento da organização social em níveis cres-
centes de abstração, as crianças aprendem a incorporar atitudes e valores
próprios de sua sociedade, permitindo através de seu caráter simbólico,
outras formas de conhecimento do mundo e de seus semelhantes.
A cerâmica gurativa Karajá pode ser retratada como forma
simbólica da produção da vida social. O objeto não é uma representação
realista, mas concentra contornos acentuados de valores que se articulam
com os papéis sociais dos Karajá. Pode-se encontrar nas bonecas traços
que enfatizam os referenciais simbólicos da cultura Karajá, por intermédio
da articulação do objeto com as demais esferas da sociedade.
Nesse sentido, a pintura corporal, os adornos, o corte de ca-
belo, entre outros elementos utilizados na vida cotidiana da aldeia e acres-
centados nas guras, caracterizam-se como códigos culturais, que cum-
prem a função distintiva e identicadora entre os indivíduos.
A linguagem modelada no barro e pintada sobre as guras re-
trata esses traços diferenciais, destacando as semelhanças da organiza-
ção familiar Karajá. Dessa maneira, quando a menina ganha a sua “família”
de bonecas, ela reforça seu processo de reconhecimento da organização
social de seu povo, o aprendizado do ambiente se processa antes mesmo do
domínio completo da linguagem.
As crianças costumam acompanhar seus pais até São Félix do
Araguaia, o que faz com que entrem em contato com um ambiente dife-
rente do tradicional. Novos códigos de comunicação, outras linguagens são
58
apreendidas e alguns modelos são inseridos em suas brincadeiras na aldeia,
não sendo incomum a presença de bonecas Tori, ou seja, não indígenas,
incorporando à brincadeira a relação com o mundo da cidade que vem se
tornando cada vez mais intenso, inserindo assim, novos elementos que se
mesclam aos padrões de comportamento da vida na aldeia.
Como exemplo, a boneca de plástico reproduzida acima, que
embora seja de outra sociedade está recebendo os atributos Karajá, como
ocorre com a boneca cerâmica. A irmã mais velha da menina que ganhou
esta boneca estava confeccionando os adereços tradicionais para serem
colocados, como o colar de miçangas
marani
, já colocado no pescoço da bo-
neca, enquanto os outros adereços estavam sendo preparados. Os Karajá
usam o
marani
desde pequenos. Com poucos meses de vida, independente-
mente do seu sexo, meninos e meninas ganham o colar que será trocado por
outros de dimensões maiores, acompanhando as suas fases de crescimento.
Ele será utilizado junto com outros adereços referentes às fases de idade,
Boneca industrializada com colar
Karajá.
Foto: Sandra L. Campos/2006.
59
nas cerimônias festivas e nas apresentações em eventos fora de seu espa-
ço de convivência.
Os Karajá estão em contato constante com a sociedade envol-
vente, tanto na região próxima de suas aldeias, quanto com outros Estados
brasileiros. Todos os anos participam de uma série de eventos voltados
para as culturas indígenas, como os jogos interétnicos, a cada ano sediados
em um Estado brasileiro, a festa Nacional do Índio, no mês de abril em
Bertioga – litoral de São Paulo, entre outras, que favorecem a assimilação
de hábitos distintos de sua cultura adquiridos pelos contatos com outras
sociedades. Porém, não ruptura ou cisão de seus costumes, pois os Kara-
conservam as relações domésticas denidas pelo sistema de organização
tradicional. A boneca de plástico, mesmo incorporando um elemento novo,
ao substituir a boneca de cerâmica, mantém o código de comunicação, in-
corporando novos materiais.
Kussina, (10 anos) e Nawaritxo (9). Brincam com bonecas cerâmicas e de plástico na aldeia JK.
Foto: Sandra L. Campos/2006.
60
As crianças brincam com as bonecas tradicionais juntamente
com as industrializadas, simulando a convivência dos Karajá com os não
indígenas, conforme ocorre nas relações cotidianas. Mas a boneca de plás-
tico, quando usa o colar e outros adereços, é uma Karajá, não uma
tori.
As mulheres são mais preservadas do contato com estranhos,
tanto que são poucas as que dominam outro idioma, sendo este um dos fato-
res que as tornam resistentes às mudanças. Com isto, sua atuação é deter-
minante na manutenção de sua cultura, legitimada na educação dos lhos,
fato este que reforça a posição das ceramistas que utilizam a linguagem
modelada para representar nas bonecas os principais padrões tradicionais
do ciclo de vida Karajá.
Assim, ao completarem cinco ou seis anos de idade, as meninas
recebem de presente sua “família” de bonecas. Dependendo da ceramista,
pode representar o modelo da família nuclear, com cinco a seis peças, ou
ser mais completa, com um elenco maior de onze ou mais guras, repre-
sentando a tipologia da família extensa, composta pelos avós maternos,
pais, irmãos jovens e crianças. Durante a infância, as meninas podem ser
presenteadas por mais de uma vez com a família, não sendo incomum, após
os estreitamentos das relações de contato, que a recebam de presente de
Natal ou aniversário.
61
Em um exercício de classicação, solicitou-se a uma jovem
Karajá que alinhasse as guras de acordo como brincava em sua infância.
Apesar da idade de 27 anos, agrupou as guras seguindo a maneira como as
crianças brincam, não sendo diferente de sua época de infância.
Foto: Sandra L. Campos. JK/2005.
Menina com sua família de bonecas em cesta própria para guardá-las
62
Nesta seqüência organizada por Hatawaki, lha de uma pres-
tigiada ceramista e sobrinha de Iwraru, dentre as várias possibilidades
combinatórias, transparece a conguração hierarquizada das categorias
sociais, reetindo o respeito pelos mais velhos, principalmente pela avó
materna que ca responsável pelos netos. O respeito pelos idosos, deten-
tores dos saberes e fazeres, e transmissores dos conhecimentos de sua
cultura, é comum nas sociedades indígenas. Esse reconhecimento é poten-
cializado na sociedade Karajá, que atribui aos avós maternos a responsa-
bilidade da educação de seus netos. Não é incomum, por exemplo, uma avó
que tenha lho em fase de lactação amamentar seus netos, como forma de
fortalecimento dos vínculos familiares e dos ciclos sociais.
O reconhecimento dos graus de idade e dos ciclos sociais pe-
los Karajá ocorre pelo emprego de uma multiplicidade de códigos estéticos,
com elementos visuais e componentes materiais, como visto: a pintura
corporal, os adereços, o corte de cabelo, entre outros, num profuso uni-
Avó materna, recém nascido, menina pequena, avô, mãe, pai, lho, lha em iniciação pubertária, jiré (iniciado),
lho e lha solteiros.
Foto: Wagner Souza e Silva/2007.
63
verso de formas e cores simbolizantes de cada etapa, que expandidas no
corpo identicam, distinguem e comunicam. Esses elementos são espelha-
dos na maneira como as ceramistas documentam as fases de transição das
categorias sociais.
2.5 Categorias de Idade
Os graus de idade são unidades de classicação Karajá co-
muns a homens e mulheres até o sexto ano de vida. Outra divisão marcante
ocorre quando estão próximos ao período das fases de transição, ou seja,
os meninos entre onze e treze anos de idade e as meninas na menarca. São
momentos determinados pelas transformações biológicas denidoras da
divisão sexual dos papéis, pela capacidade de procriação e organização fa-
miliar. Essa bifurcação de compromissos é marcada por atividades cerimo-
niais que determinam sexualmente a atuação e o comprometimento de cada
um com a vida social, política, econômica e religiosa da comunidade.
A partir da iniciação, as categorias denidoras das divisões
etárias passam por sistemas classicatórios distintos para homens e mu-
lheres, existindo um sistema de correspondência de algumas fases nas -
guras cerâmicas, que exemplicam uma série de valores a serem rmados
na infância e realizados na vida adulta.
Para ns de classicação, estabeleceu-se expressar a nomen-
clatura dos graus de idade, iniciada pelo nascimento.
Quando nasce um Karajá, em seu primeiro dia de existência
ele tem seu corpo pintado de vermelho marcando sua entrada no mundo
Inў. Geralmente o ritual de passagem é de responsabilidade da avó ou da
64
tia materna, que tinge o recém nascido com urucum, marcando, de forma
ritual, o seu primeiro dia de vida no Inỹ Mahadu. Esta é a fase inicial que
encabeça a seqüência da infância, e que se estende até o nal do primeiro
mês. Atribui-se a ela o nome de Tohokua xoxo. Outra nalidade do tingi-
mento com urucum, considerado como perfume, é a de tirar o aroma carac-
terístico do parto.
Ao completarem um mês, superando a fase crítica de latência
onde qualquer descuido pode ser fatal, passam para outra fase Kytydu
ritxoré. Nesta fase os bebês começam a car mais rmes e resistentes,
contando ainda com a atenção constante da mãe e da avó materna. Este
período é superado aos três meses, pelo Iwebo webo, onde permanecem
até carem rmes, aproximadamente até os cinco ou seis meses. Para cada
fase uma correspondência de classicação, acompanhando as caracte-
rísticas de desenvolvimento físico e biológico da criança. Até aqui são con-
siderados “bebês”, alimentadas apenas pelo aleitamento materno e os ris-
cos de vida ainda são presentes, requerendo atenção constante. Superada
esta etapa, entram na fase inicial da infância, por volta dos cinco meses,
quando são perdidas as características de bebê, passando a ser designada
como criança - Kuladu. A alimentação começa a ser alternada gradativa-
mente com mingaus, suco de frutas e uma pasta de peixe cozido.
Na interpretação de Toral (1992a:104),
65
A sucessão das categorias de idade é igual para homens e
mulheres até a idade que equivale à adolescência. Após esta fase, que
pode ser relacionada à maturidade biológica associada à social, ocorre
uma bifurcão de papéis masculinos e femininos, determinando o com-
portamento e as obrigações de cada um na participação da vida social,
política, econômica e religiosa. Parte signicativa deste ciclo está con-
templada nas guras cerâmicas:
(...) a vida de um Karajá consiste na existência de seu tyytyby, seu
princípio vital que eles traduzem como ”alma” ou “espírito”, sob di-
versas formas. As pessoas vivem como “estados”, que se sucedem
como num ciclo. Depois de desenvolverem e morrerem na superfície
da terra, o tyytyby continua a existir em diferentes comunidades de
mortos. Depois, podem ou não voltar na superfície da terra, iniciando
uma nova existência. Portanto a descrição do desenrolar de seu ciclo
vital deve abranger desde as etapas de socialização da criança, sua
participação nas instituições sociais, segundo um sistema que agrupa
as categorias de idades (...)
66
Categorias de Infância
6
6
Na língua Karajá existe distinção entre a fala dos homens e das mulheres. Optou-se adotar a graa feminina.
7
As fotos destes quadros são de Wagner Souza e Silva.
67
68
Depois que a começam explorar outros lugares que ultrapas-
sam o espaço doméstico, a divisão sexual das faixas de idade associa-
da a atribuição de papéis sociais. As meninas são solicitadas a cuidar dos
irmãos mais novos. Os meninos têm menos obrigações e ainda gostam de
participar das brincadeiras com as meninas, preferencialmente com as bo-
necas cerâmicas.
Idade Homem Mulher
Seis aos oito anos Wekyry Hirari
Nove aos onze anos Weryryhyky Hirarihiky
A partir da idade de onze anos ocorre a divisão das fases
pela determinação sexual. Os seios das meninas começam a se desen-
volver, anunciando a proximidade da menarca, quando será marcada a
fase de iniciação.
Entre seis e doze anos de idade, ela passa do status de Hirari,
equivalente a menina pequena, para Hirarihiky, ou pré-adolescente e ainda,
para Hirariky pré-menarca, de acordo com a idade e com o ritmo de seu
desenvolvimento físico. Com a primeira menstruação, passa a ser reconhe-
cida como Ijadokoma, a menina moça.
Essa divisão das fases de idade é uma característica norma-
tiva estabelecida historicamente na sociedade Karajá, o que a diferencia
de outras culturas indígenas. As fases estão contempladas no conjunto de
peças com as quais a menina brinca quando pequena, com o brinquedo. Mui-
tas vezes o brinquedo ca guardado apenas na memória, pois não existe a
69
prática de sua preservação. As bonecas que identicam as fases das meni-
nas após os seis anos de idade são as seguintes:
Hirari
Após seis anos de idade ela deixa de
ser criança e passa a ser reconhe-
cida como menina pequena. Usa pin-
tura corporal adequada a sua idade
e pode cortar um pequeno topete
acima da cabeça. Existem vários
padrões de pintura para esta fase.
Hirarihiky
Fase inicial do crescimento dos
seios, que se por volta dos onze
ou doze anos, equivalendo à nos-
sa fase de pré-adolescência. Usam
pintura corporal e corte de cabelo
semelhante ao da fase anterior.
70
Hirariky
Nesta fase os seios estão mais pro-
nunciados anunciando a proximida-
de da menarca e a menina passa a
ser mais vigiada. O corte do topete
também ca mais acentuado e a pin-
tura corporal segue as característi-
cas anteriores.
Ijadokoma
A mudança é marcada pela primeira
menstruação, passando a ser consi-
derada como menina moça. A vigi-
lância se intensica até que esta se
case.
Observa-se que os períodos de idade são aproximados, poden-
do haver variações de acordo com o desenvolvimento biológico individual.
O processo de divisão das classes de idade masculina acompa-
71
nha de forma semelhante ao feminino, ocorrendo por determinantes bioló-
gicas e sociais. As fases masculinas também são representadas de maneira
homóloga nas bonecas.
Wekyry
Entre seis e oito anos passa a ser
reconhecido como menino pequeno e
recebe de suas parentes os adornos
característicos da idade e a pintura
corporal respectiva.
Acervo MAE
Foto: Wagner Souza e Silva.
Weryryhyky
Entre nove e onze anos de idade
o menino começa a ser preparado
para a vida dos homens. A primeira
cerimônia de iniciação se com a
perfuração do bio inferior, onde
deverá ser colocado um tembetá
ou labrete
8
.
8
Adorno labial masculino. Os primeiros são pequenos, aumentando de tamanho de acordo com o crescimento do
menino. Os da fase adulta chegam a medir cerca de 15 cm.
72
É uma fase intermediária de iniciação, antecedendo a cerimô-
nia do Hetohokў, ou festa da casa grande, sendo esta a principal manifes-
tação ritual Karajá na qual os jovens são iniciados.
A fase principal de transição de idade dos meninos é a que
representa a entrada no mundo masculino. O menino passa a ser caracteri-
zado como Jyré, associado à ariranha
9
, uma espécie de lontra preta comum
no rio Araguaia. É a fase introdutória ao mundo dos homens, que deverá
durar cerca de um ano. O corpo do menino é todo pintado de preto com
jenipapo e seu cabelo cortado bem curto. Durante o ano, essa pintura vai
diminuindo gradativamente, com padrões de pintura corporal determina-
dos, até marcar o nal do processo.
Coleção Sandra Lacerda
Foto: Wagner Souza e Silva/2007.
Jyré
A fase entre doze e treze anos,
é marcada pelo padrão de pintura
preta homóloga a ariranha.
9
Pteronura brasilienses, é um parente próximo da lontra, porém de maior tamanho, chegando a atingir mais de
dois metros de comprimento. Mamífero carnívoro que vive em grupos familiares ao longo de rios e lagoas, são
barulhentos e brincalhões.
73
Coleção Sandra Lacerda
Foto: Wagner Souza e Silva/2007.
Bodu
Até dezessete anos, a fase repre-
senta o gavião. Pode cortar o topete
acima da cabeça e apresenta pintu-
ra corporal própria da idade. Esta
fase também é representada como
solteiro.
Coleção Sandra Lacerda
Foto: Wagner Souza e Silva/2007.
Wekyrybó – Solteiro
A caracterização desta fase não é
etária, representa a situação civil
que pode ocorrer com os jovens, in-
cluindo o Bodu, e com os mais velhos,
se aplicando também aos homens
separados. É distinguido pelo corte
de cabelo e pela pintura corporal. A
pintura negra na altura do peito, é
exclusividade masculina.
Desde o nascimento até o casamento, meninos e meninas uti-
lizam uma série de enfeites, pintam o corpo com padrões exclusivos de
acordo com o sexo e a idade, cortando o cabelo de maneira a identicar seu
74
estado civil. Quando se casam não portam mais o topete acima da cabeça.
As mulheres retiram o bracelete de algodão dexi - que as acompanhou
desde o nascimento, adorno que poderá permanecer em seus braços no má-
ximo até o nascimento de seu primeiro lho. A retirada do bracelete pode
ser atribuída a dois fatores: um, enquanto identicação de estado civil e
outro, como detalhe prático, pois a manutenção do adereço tornaria difícil
e desconfortável a amamentação dos lhos.
O penteado peculiar, em que cortam um chuma-
ço de cabelo rente ao couro cabeludo formando um topete,
já foi utilizado pelos homens.
Atualmente, essa regularidade continua sendo
partilhada apenas entre as mulheres, pois com a saída cons-
tante dos homens para a cidade, tal prática vem se perden-
do, mas continha o mesmo signicado de identicar o estado
civil. No entanto, essa característica se mantém nas guras
cerâmicas, tanto nas de estilo antigo como nas modernas.
Com o passar da idade, outras classicações vão sendo agre-
gadas às fases de idade, havendo a atribuição de novos papéis sociais em
combinação com as categorias de idade.
Wekyrybó
Solteiro muito tempo. Independe
da idade e pode caracterizar tam-
bém os homens separados.
Ijadokoma Komararuna
Solteira há muito tempo. A
mesma regra masculina se apli-
ca às mulheres.
75
Quando se casam, os homens continuam a se adornar e a man-
ter a pintura corporal de modelos exclusivos, como padrão peitoral exem-
plicado na boneca. As mulheres casadas não usam mais o topete e simpli-
cam o uso dos adornos, utilizando-os com maior freqüência nas festas,
sendo difícil observar o uso da pintura corporal no dia a dia. O que mais se
nota, principalmente nas mulheres mais velhas, são as komaruras tatuadas
na face. Os dois círculos mantêm os contornos tingidos de jenipapo, pois a
tintura adicionada no momento da escaricação da pele, faz com que esta,
ao cicatrizar absorva a cor escura, tornando-a permanente. Este é o moti-
vo principal que tem levado à recusa das mulheres mais novas de tatuar o
rosto, sobretudo por parte das que tem um contato mais freqüente com o
exterior da aldeia. Outro motivo é a dor intensa, pois não se utiliza nenhum
componente com efeito anestésico para o corte, executado com cacos de
vidro ou com o dente aado do peixe “cachorra”.
Habubiraludu
Casada
Coleção Sandra Lacerda
Foto: Wagner Souza e Sil-
va/2007
Tymyra
Recém casado
Coleção Sandra Lacerda
Foto: Wagner Souza e Sil-
va/2007
76
Diferentes das bonecas que comem a família, os jovens sol-
teiros são comumente retratados no pado moderno de modelagem, em di-
menes maiores (cerca de vinte e cinco centímetros), com membros de-
nidos e na posição sentada. Embora sejam guras destinadas ao comércio,
não simplicam os detalhes de pintura e aderos respectivos à posão de
cada um, porém a tintura vermelha de urucum tem sido substituída pela tin-
ta industrializada, pois mantém a cor por mais tempo ao passo que a natural
esmaece cando com tons amarelados. Em certos casos, quando dicul-
dade para adquirir a matéria prima, aplica-se a tinta preta industrializada
(guache). Alguns elementos são de uso comum, como a faixa de algodão nos
tornozelos, os braceletes, o corte de cabelo e as komaruras círculos pretos
abaixo dos olhos (os olhos eso destacados com a tintura vermelha).
Jovens solteiros, boneca feminina (esquera) e masculina.
Foto Sandra L. Campos/ JK / 2005.
77
Os detalhes que se distinguem são:
- A pintura corporal
A gura feminina (à esquerda) tem traços mais delicados que
a masculina.
A gura masculina (a direita), apresenta a pintura de uso ex
clusivo dos homens (após a iniciação), denominada ixalubú, ou
busto preto, que se estende do peito até o ante-braço.
- Os brincos
O feminino tem no centro um dente de capivara e é elaborado
com penas de arara vermelha.
O masculino tem no centro um disco de madrepérola, com a
sobreposição de um desenho em forma de cruz aplicado com
cera de abelha, circundado com penas de arara vermelha.
- E, a tanga usada somente pelas mulheres (ainda não coloca
da, na boneca da foto).
O nascimento do primeiro lho é um marco decisivo na consoli-
dação da família Karajá. Por sua vez, seguindo os critérios de nominação, os
pais passam a ser distinguidos por tecnônimos, ou seja, reconhecidos pelos
membros da comunidade, como pai de nome da criança - sendo a mesma
regra aplicada aos avós maternos e paternos. Como exemplo, se a primeira
lha se chama Hatawaki, sua mãe passará a ser designada por Hatawaki sé,
ou mãe de Hatawaki; seu pai Hatawaki tyby. O aumento do número de lhos
não altera o tecnônimo atribuído com o nascimento do primogênito, que
continuará sendo mantido. Cabe observar que de acordo com as regras da
78
língua Karajá, a pronúncia dos nomes também se altera, ou seja, Hatawaki
se torna Hatawai na fala dos homens.
Um dos momentos signicativos da cultura Inỹ é o nascimento
do primogênito, que independente do sexo, contará com os cuidados da avó
materna, que passa a ser responvel pelos cuidados e por sua educação.
Outras categorias se sobrepõem às de idade, que acompanham
o crescimento da família:
Homem Mulher
Itxoytyhy
casado com lho
Kuladusé
com um lho
Raruna
com mais lhos
Kuladusé Raruna
com mais lhos
Regra semelhante é adotada para os avós paternos e maternos,
que passam a agregar os pais de avós de algm – Hatawaki labié e Hata-
waki lahi, além da designão por idade, de velhos senadu e matukari.
Labié
Avô
Lahi
Avó
Matukari
Velho
Senadu
Velha
79
Os marcos do ciclo da vida são determinados por regras de
parentesco, relacionados à estrutura social.
2.6 Jyré e Idjadokoma – Segredos da Iniciação
Jyré é o estado liminar pelo qual passam todos os meninos
Karajá em fase de transão para o mundo dos homens. O rito de inicia-
ção masculino, marcado pela festa do Hetohokў (casa grande), a principal
cerimônia Karajá, é o momento em que os meninos aprendem o universo
dos segredos” masculinos, que não podem ser revelados para as mulhe-
res. Tais segredos não m nada de incomum, pom a proibição de sua
revelação é o que importa, sendo a maneira de diferenciar o universo
masculino do feminino e de marcar o poder dos homens sobre seu univer-
so particular. Esses segredos estão relacionados a práticas exclusivas de
danças e cantos, do conhecimento das máscaras e dos deveres de domínio
exclusivo dos homens.
É uma festa masculina em que as mulheres participam a dis-
tância. Porém, é fato marcante ter um Jyré na família, e por ele ter sido
gerado por uma mulher, existe uma forma peculiar de identicação das
mulheres do grupo de parentesco, tanto materno quanto paterno do ini-
ciado. As avós, cortam seus cabelos curtos e as tias pintam com jenipapo
a parte superior da o, colando penugem branca do ssaro jaburu
10
,
tamm conhecido como tuiuiú, formando linhas estreitas, representan-
do cada sobrinho nessa fase. É uma maneira de dar visibilidade ao paren-
tesco com o Jyré.
O Jyré é um marcador enunciativo, em que o menino na idade
10
Jabiru mycteria, uma das maiores aves da América do Sul, chegando a medir até um metro e vinte de altura.
De plumagem branca, a característica que chama a atenção é a plumagem preta e vermelha do pescoço, além do
grande bico preto.
80
de transição de idade e status social, é associado ao mamífero aquático
ariranha, por ter, com este, uma homologia de comportamento. O momen-
to não se reduz à fase de desenvolvimento biogico, mas anuncia a entra-
da no mundo dos homens, tanto no plano humano como no sobre-humano.
Trata-se de uma forma de realização simbólica da ruptura com a fase in-
fantil que enfatiza a continuidade de outra etapa de vida nos dois planos,
indicando a nova posição a ser assumida de acordo com as habilidades de
cada indivíduo.
O Jyré caracteriza um dos aõni habitantes da água, presente
na mitocosmologia Karajá, que é organizada por uma vasta categoria de
seres – aõni
11
, dos três níveis cosmológicos, a saber: do céu, da terra e da
água, como aponta Toral (1992a: 170) que, “Mais do que denotar um elenco
de seres, a palavra aõni remete a uma forma de existência, um estado ao
exercício de habilidades e poderes que são característicos”. Na classica-
ção Karajá, segundo Iwraru
12
, são considerados como seres sobrenaturais,
existindo os bons e os maus aõni.
O Hetohokў início ao processo iniciativo em que o menino
cará durante um ano na condição Jyré, que segundo elaboração da cosmo-
logia Inў, é a fase de transição que marca a entrada no mundo dos homens.
Simbolicamente é como vestir um novo “couro”
13
a ser descartado após o
processo de “metamorfose”. Embora esses povos do Araguaia não tenham
em sua galeria de mitos de criação, o da “cobra grande”
14
, associam o pro-
cesso de troca de pele das cobras à fase de transição dos meninos. Este
período de passagem, que dura um ano, é dividido em etapas que são enun-
ciadas no corte curto do cabelo e na pintura corporal que vai diminuindo
gradativamente, seguindo os padrões de grasmo determinados para tal
11
Em uma tradução livre de Toral, “os que parecem ser (diversas coisas)”
12
Iwraru Karajá, cacique da Aldeia de Santa Isabel e um dos informantes que muito auxiliaram na pesquisa de
campo nos anos de 2005 e 2006.
13
Segundo informações dos Karajá, obtidas em campo.
14
Mito que faz parte de cosmologia de vários povos do Xingu.
81
fase, até marcar o nal do processo. Simbolicamente o menino despe-se
do corpo de criança assumindo a “ariranha”, e no nal da fase de transição
volta a ser integrado à sociedade com o novo status, de homem.
Quando trazidos para a aldeia, na festa do Hetohoky dra-
matização de valores que marca a iniciação -, imitam o grunhido, a gestu-
alidade e o comportamento do mamífero que é tido como animal violento,
bom pescador, valente na água e na terra, comportamentos esperados dos
futuros membros da sociedade (Toral 1992a: 175).
Embora não se tenha conhecido nenhum mito sobre a ariranha
entre os Karajá, este animal apresenta particularidades no mitocosmo que,
segundo eles, transita nos mundos natural e sobrenatural. Dependendo do
comportamento do animal, são capazes de prever certos acontecimentos,
como a fartura de peixes, quando a ariranha aparece em seu estado normal,
ou antever a morte de alguém, caso ela apareça morta na margem do rio.
De forma distinta, o ritual de iniciação feminina, assinalada
pela menarca, não é tão exuberante como a masculina. A primeira mens-
truação é marcada pela Harubedé, cerimônia em que a menina ca reclusa
durante uma semana tendo contato apenas com a mãe, com a irmã mais ve-
lha e com as tias. Fica fechada no quarto, usando uma tanga confeccionada
especialmente para a ocasião e sua alimentação deve é à base de frutas,
não podendo ingerir nenhum tipo de carne. Por marcar sua entrada no mun-
do adulto, deve despir-se de todas as práticas e recordações da infância,
esquecer os brinquedos e brincadeiras para dar início às responsabilidades
da nova fase. Para isso, na semana em reclusão é incumbida de confeccionar
algum artefato, seja uma esteira, um colar ou qualquer objeto caracterís-
tico da vida adulta que desvie seu pensamento da infância.
82
Durante a semana de reclusão sua mãe deve preparar todos os
enfeites que serão utilizados na sua saída.
No primeiro dia faz o decobuté, uma cinta tecida de os de
algodão, para ser colocada na perna. Nos dias seguintes faz o Kué, brinco
de penas de arara, o marani, colar de missangas, a tanga Tuu , entre outros,
e prepara muita tinta de jenipapo para pintar a família no dia da festa.
Brinco feminino – Kué
Foto:Wagner Souza e Silva/2007
Decobuté
Foto: Sandra L. Campos/2005.
Tecendo o marani, com miçangas.
Foto: Sandra L. Campos/2006.
Amaciando a entrecasca da árvore, para a tanga.
Foto: Sandra L. Campos/2006.
83
Enquanto isso, o pai se incumbe de acumular o alimento ne-
cessário para o grande banquete comemorativo que será servido para a
família, em uma esteira também confeccionada para o evento. Ao término
da menstruação, ocasião que determina o dia da festa, a menina submetida
a certos tabus alimentares estará liberada para voltar a comer peixe.
Foto: Sandra L. Campos, 2006.
Meninas saídas da reclusão dançam vestidas de acordo com a cerimônia de iniciação.
Ao contrário dos meninos, o espaço de circulação das meninas
após a primeira menstruação ca restrito ao ambiente doméstico, em cons-
tante vigilância por parte de seus parentes até que ela se case. Quando
saem para outros locais, sempre estarão acompanhadas pelo seu grupo de
parentesco, frequentemente com a mãe e os irmãos mais velhos.
84
2.7 A Família
A base fundante da família é o casamento que segue a carac-
terística matrilocal, ou seja, o homem quando se casa deve morar na casa
dos sogros até que construa a sua, ao lado ou próxima a eles. Embora não
haja uma cerimônia especíca para o acontecimento, a união do casal é su-
jeita a uma das três modalidades, retratadas por Lipkind (1948), Krause
(1940), Fénelon Costa (1978). A primeira modalidade é o habiré, quando o
casamento é arranjado pelas famílias dos noivos em que os pais da noiva é
que tomam a iniciativa, podendo ser prometidos ainda na infância. É a única
forma de casamento em que a exigência de que os noivos não tenham
passado por nenhuma experiência matrimonial. Esta é a regra mais tradi-
cional e já foi considerada a mais honrosa, porém hoje quase em desuso. A
segunda forma é aquela em que os jovens preferem escolher seus parcei-
ros adotando o ixidiroté. Mesmo não sendo determinada pelas famílias, a
união deve contar com a aceitação de ambas e o homem deve pedir consen-
timento aos pais da noiva. Em terceiro lugar, caso não haja concordância
das famílias para a união, o casal simula um namoro escondido, onde não há
relação sexual, e quando descobertos são submetidos à regra do kotá ou
birená. Se a união não for consumada, a mulher ca mal vista e mal falada
na comunidade, podendo ser comparada às udená, ou prostitutas.
As mulheres Karajá são extremamente ciumentas e os casa-
mentos, em regra geral, são monogâmicos. Tem-se conhecimento de um
caso em Santa Isabel de união com duas mulheres. Maluaré, um dos mais
velhos e prestigiados hari (pagé), é o líder espiritual que determina o início
da cerimônia do Hetohoky. É casado a muito tempo (não sabe determinar
85
quantos anos) com duas mulheres da etnia Kamaiurá: Mavirá e Kaimoti, por
sua vez, mãe e lha. Neste caso, a esposa mais nova assume um duplo papel
o de esposa e enteada.
Mas observa-se ainda outras possibilidades de união. Por exem-
plo, um homem ao car viúvo pode casar-se com a irmã de sua esposa, sua
cunhada. Este laço torna os lhos dessa união ao mesmo tempo sobrinhos do
pai e primos dos irmãos do primeiro casamento. Ainda, se o homem ao car
viúvo ou se separar, e contrair casamento com a lha de sua mulher (de ou-
tro relacionamento), seus lhos serão também netos, mesmo que indiretos.
Os Karajá comentam um caso de relação incestuosa, em que
o pai se casou com a lha, após a morte da esposa. Não sabem determinar
quando o fato aconteceu, mas teve grande repercussão e causou severa
contrariedade por parte da comunidade. Contam ainda que a união não ge-
rou lhos pois a mulher logo adoeceu e morreu. Justicam sua morte como
sendo decorrente de feitiço de um hari indignado com a quebra da regra
social que proíbe as relações incestuosas. Neste caso, as suspeitas de fei-
tiçaria não trazem prejuízos ao sujeito apontado, acusado do feitiço, em
função de combater algo condenável e que pode prejudicar a todos.
A projeção histórica destas modalidades de casamentos com
parentes próximos, contribuem para a compreensão do porque os Karajá,
em grande maioria, são parentes entre si.
Esses fatos nos levam a concordar com Dietschy, que dedicou
cerca de dez anos de estudos aos Karajá, deslindando os marcos do ciclo
de vida e os graus de idade, ao armar que “não obstante, é relativamente
fácil descreve-los, ao contrário do que se com a estrutura familial e
tribal, que nos coloca diante de enigmas”. (Dietschy, 1978:69-70).
Capítulo 3
Tecnologia Cerâmica Karajá
87
3.1 Processos de Prodão da Cerâmica Figurativa
A confecção de objetos implica necessariamente na adoção de
sistemas tecnológicos desenvolvidos através da inter-relação entre os sa-
beres culturais e os elementos circundantes do universo de quem os produz
como a matéria prima, a precisão do gesto, a energia aplicada, a escolha
de instrumentos e os conhecimentos adquiridos para o domínio técnico.
Esta inter-relação pode ser melhor compreendida através da análise das
cadeias operatórias.
Marcel Mauss no Manual de Etnograa dene as técnicas
como, “atos tradicionais, agrupados em função de um efeito mecânico, fí-
sico e químico, enquanto que são conhecidos como tais” (1972:43). Aponta
ainda, que “o conjunto das técnicas forma as indústrias e os ofícios” (ibi-
den), e que o estudo do objeto, de sua técnica de confecção e da habilidade
do produtor, permitirá uma “descrição viva da sociedade”.
A concepção de Mauss e a de Boas (1996:57), que destaca
os elementos formais como domínio de uma arte representativa em que
forma e conteúdo se conjugam na representação de valores emocionais,
através de uma comunicação gráca de uma idéia nos objetos, inspirou
Lévi-Strauss a considera as técnicas como ”expressões condensadas de
relações necessárias” (2005:52) nas quais os objetos espelham e reetem
os signos de uma lógica social. E Leroi-Gourhan (1984) desenvolve o con-
ceito de cadeia operatória, em que a tecnologia é analisada enquanto cons-
trução social, operando como ferramenta mediadora da relação do homem
com seu meio ambiente. Estes autores são considerados fundadores do
que se pode denominar de “Antropologia dos sistemas tecnológicos”, campo
88
em que as tecnologias são estudadas explorando-se as suas relações com
as representações sociais que assumem uma dimensão simbólica, podendo
estar vinculadas às várias esferas cosmológicas, mitológicas e religiosas.
Dentro desse contexto, os processos de produção dos objetos
passam a fazer parte do conjunto de fenômenos como fonte de informação
a respeito do comportamento cultural de sociedades indígenas.
Com fundamento nessas abordagens que oferecem possibili-
dades interpretativas para os registros materiais, foi possível estabele-
cer um diálogo constante com a pesquisa empírica nas aldeias Karajá e no
laboratório do MAE, que indicaram um ponto importante a ser ressaltado
referente à confecção dos objetos, possível de ser pensada a partir da
compreensão da cadeia operatória. Segundo Leroi-Gourhan “a cadeia ope-
ratória envolve desde a coleta da matéria-prima, a energia gestual des-
pendida em sua preparação o domínio de ferramentas e a transferência de
conhecimentos no momento de criação do objeto” (1984:52). Essa seqüên-
cia de operações extraídas da tradição coletiva é desencadeada através
de saberes e fazeres humanos, que resultam na transformação da matéria
amorfa em objeto simbólico.
A cerâmica é uma das mais antigas atividades criadas pelo
homem. Não se sabe ao certo sua origem, mas desde o domínio do fogo as
civilizações deixam fragmentos de objetos cerâmicos e de processos que
se tornaram quase inalterados até hoje. O emprego do fogo foi um grande
aliado da cerâmica, concedendo resistência e durabilidade aos artefatos,
cujos vestígios atravessam os séculos registrando a elaboração de moda-
lidades, técnicas, tipos e usos, a partir de processos que se materializam
com os quatro elementos da natureza: terra, água, ar e fogo.
89
A cerâmica Karajá constitui uma atividade exclusivamente fe-
minina, desenvolvida em um universo de correlação entre terra - suu , argila
- suu kurá e a mulher hawyky, detentora do conhecimento técnico e dos
modos de fazer os objetos, que transmite seu saber tradicional por meio
de uma prática secular em que a tecnologia e os valores sociais são pas-
sados de geração a geração. Feito de matéria natural, as ceramistas dão
existência material a imagens de seu ambiente, criando objetos em forma
de animais, de pessoas, de seres sobrenaturais, revestidos de valores so-
ciais e julgamentos estéticos, destinados ao uso culturalmente estabele-
cido. Assim, as mãos das ceramistas que coletam e preparam a argila com
manejo singular, habilidade e criatividade, dão feitio à matéria disforme
retirada das margens do rio Araguaia, cujo resultado nal pode represen-
tar uma resposta à relação entre natureza e cultura.
Após processo da modelagem, as peças utilitárias e as gura-
tivas cam algum tempo em repouso. Dois a três dias são sucientes para
que estejam secas e preparadas para a etapa seguinte de queima, quando
se transformam em cerâmica. A ceramista acompanha atenta às sucessi-
vas etapas, pois o resultado nal depende da boa realização de cada uma
delas.
3.2. Etapas de Confecção da Boneca.
A origem das bonecas Karajá remonta a um passado tão dis-
tante, que hoje se conhece sua genealogia através do mito transmitido
pelas várias gerações, relatado por Simões (1992:5).
90
A técnica de confecção das ceramistas Karajá de Santa Isa-
bel é determinada pelas etapas de escolha e coleta da argila, preparo da
massa de modelagem, modelagem, secagem, alisamento, queima, coleta e
preparo dos corantes e pintura dos objetos. Seguindo a tradição, as cin-
zas da madeira cega-machado continuam sendo utilizadas como ingrediente
para dar plasticidade ao barro, dar maior durabilidade e resistência às
guras cerâmicas que passaram a ser queimadas por volta da década de
1940, à maneira dos objetos utilitários.
Todas as etapas da cadeia operatória são de domínio e contro-
le das mulheres, com a participação eventual do homem na coleta e trans-
porte da matéria prima.
Antigamente, Karajá era muito pobre, pobre mesmo. Não tinha brin-
quedo para meninas, não tinha nada.
Uma mulher chamada Wexiru, casada com Ixati, era muito sábia: não
tinha brinquedo para menina, então mulher fez boneca para menina,
de cera de abelha. Boneca não servia, era muito mole. Então, mulher
fez de barro. Não serviu também, quebrava à-toa. Mulher pensou,
pensou muito, para ver se cava bom. Tirava madeira para tirar cin-
za: não servia. Depois, tirou outra madeira chamada cega-machado.
Aí cou bom, e durava mais, cava bom mesmo!
Narração de Arutana, chefe ritual dos Karajá.
91
3.2.1 Coleta da argila
A primeira etapa consiste na escolha do barro, momento em
que as mulheres acompanhadas pelos maridos ou lhos selecionam, em luga-
res próximos dos barrancos do rio, o barro que julgam ser mais adequado.
Preferencialmente recolhem o barro no período de baixa da água, pois é
possível alcançar as regiões mais próximas do fundo do rio, em locais onde
o barro contém menos impurezas (pedras, areia e folhas). As ceramistas
solteiras geralmente se incumbem dessa etapa sem auxílio do homem.
São três os tipos de argila mais utilizados: a branca, a de
tom acinzentado e a vermelha, sendo que a escolha é feita previamente
pela ceramista, que com seu conhecimento se conduz ao local da matéria
prima selecionada.
A argila branca, também conhecida em outras regiões como
tabatinga, é utilizada preferencialmente, como corante para a pintura de
certos detalhes dos objetos, como por exemplo, o contorno do casco do
tracajá ou o corpo do jaburu, aplicados após a queima.
1 Acervo MAE
Fotos: Sandra L. Campos/2002.
2 Acervo MAE
15
15
1 e 2 - Animais da fauna local, modelados nas guras cerâmicas. O tracajá é uma pequena tartaruga de rio e
o jaburu, um pássaro também conhecido como tuiuiú.
92
A de tom acinzentado é preferida para a modelagem das gu-
ras para comércio, por destacar melhor o contraste da pintura preta com a
vermelha. A vermelha é utilizada com maior constância para a manufatura
dos potes e das bonecas presenteadas para as meninas, peças que geral-
mente recebem apenas detalhes de pintura preta, sendo a vermelha utili-
zada com maior freqüência nas peças para venda, não havendo, no entanto,
impedimentos de confecção da boneca das crianças com a argila cinza e
detalhes em vermelho. Os três tipos de argila são facilmente encontrados
no rio Araguaia em regiões próximas às casas das ceramistas.
1,2,3 – Santa Isabel/2006.
2 – Ceramista Kuriwiru Karajá de Santa Isabel.
Fotos: Sandra L. Campos.
1
2
3
93
O tipo de argila empregado não interfere na plasticidade ou
resistência do objeto. Porém, as ceramistas experientes conhecem previa-
mente o resultado nal, e o barro com o qual trabalharão será escolhido
segundo sua preferência em obter um objeto branco ou avermelhado após a
queima, momento em que a cor se evidencia, visto que no momento de coleta
as argilas têm aparências semelhantes.
A quantidade coletada varia de acordo com a capacidade de
peso que a artesã e seu companheiro são capazes de carregar barranco
acima, até a sua casa, onde o material será processado e abrigado. É comum
encontrar na casa das ceramistas uma reserva de matéria prima armazena-
da umedecida em sacos plásticos, podendo ser guardada por longo período,
por ser facilmente hidratada em utilização futura.
3.2.2 Preparo da massa para modelar
O preparo da argila demanda certo tempo e conhecimento,
pois implica saber mensurar a quantidade necessária de cinza da madeira
cega machado previamente processada, a ser adicionada para dar plasti-
cidade à massa, evitando a quebra ou trincamento do objeto na queima. A
manipulação é um processo demorado, podendo envolver horas de manuseio
para retirar substâncias impróprias, como pequenas pedras ou folhas que
estão misturadas à argila e adicionar a quantidade adequada de cinza para
que não comprometa o resultado nal do trabalho. As ceramistas reconhe-
cem o ponto certo da massa pela textura e sabem que se restar alguma
impureza, com certeza irá trincar no momento de queima.
Segundo o conhecimento de seus antepassados, o tipo de cin-
94
za mais apropriado é o da madeira conhecida como “cega machado”, deno-
minada hadena pelos Karajá. Outras madeiras foram experimentadas, e
seu uso descartado, pois alteram a resistência do objeto e em alguns casos
transformam a coloração das peças após a queima, tanto das gurinhas
como dos potes, fugindo ao padrão estético das ceramistas.
A etapa do processo de manipulação é executada em ambiente
externo, em que a ceramista ca sentada em local fora de casa para penei-
rar a cinza, retirando assim os resíduos que possam interferir no preparo
da massa, que deve ser homogênea com textura na e maleável.
É um processo cuidadoso em que as ceramistas mantêm certa
distância da peneira, hoje industrializada, para impedir o contato da cinza
com partes do corpo, pois pode provocar dermatites. O obtido com a
peneiragem é chamado pelas ceramistas de
mawyside
e quando se dedicam
a esta etapa do processo, impedem que as crianças quem por perto, com
receio de que possam ser contaminadas, provocando algum mal à saúde.
Enquanto amassam a argila, vão adicionando aos poucos a cin-
za até que a massa adquirira a textura adequada. Atingido o ponto para
modelagem, formam pequenas bolas denominadas
rexihura
, que variam de
tamanho entre 10 a 20 centímetros de diâmetro, de acordo com a pro-
porção do objeto.
Parte da rexihura
Foto: Sandra L. Campos/ 2006.
95
O volume de argila a ser
utilizado é determinado pelo tamanho e
quantidade de peças a serem produzidas,
e então as ceramistas formam a rexihura,
dando início ao trabalho. É possível tam-
bém obter a massa a partir de peças que
se quebraram durante a secagem, antes
da queima. Neste caso, trituram os fragmentos que com a adição de água
se transformam em massa argilosa novamente. Após atingir a consistência
adequada, as ceramistas iniciam a modelagem.
De posse da argila, a ceramista separa uma parte para a con-
fecção dos objetos que pretende fazer em uma jornada, e reserva a que
não será utilizada. Sua experiência permite que ela calcule a quantidade
necessária para o número de itens previstos para serem modelados. O cál-
culo de tempo, que não é medido pelo relógio, geralmente é dado pela previ-
são de permanência da claridade, pois ao escurecer as mulheres devem dar
conta de outras atividades domésticas, bem como pela rotina de trabalho
determinada pelo tamanho de sua família. Não iluminação elétrica na
ilha do Bananal, apenas um gerador movido a óleo diesel que fornece luz por
cerca de duas horas diárias, entre vinte e vinte e duas horas. Quando não
há combustível para o gerador é comum o uso de velas ou lanternas a pilha,
compradas na cidade.
Foto: Sandra L. Campos/2006.
96
3.2.3 Modelagem
O ato de modelar das ceramistas Kara envolve uma seqüên-
cia de gestos e técnicas corporais, tendo o corpo como único instrumento
para a confecção de seus objetos. Seguindo Mauss, de onde parte a pri-
meira genealogia das técnicas corporais ao observar “as maneiras como
os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem ser-
vir-se de seus corpos” (Mauss, 1974:211), deve-se aceitar a técnica como
obra da razão prática coletiva e individual fundamentada pelas técnicas
corporais, em que o corpo não deva ser visto apenas como determinação
biogica, mas condicionado aos aprendizados culturais. É o que se obser-
va em relação a essas artistas.
Geralmente no período da tarde, quando
terminaram seus afazeres domésti-
cos, levam as bolas de argila para dentro
de suas casas. Sentam-se na esteira de
buriti, seguindo uma disciplina corporal
com uma postura quase totalmente ere-
ta, dando início à modelagem. Manm ao
seu alcance as bolas de argila e um re-
cipiente com água, outrora de cerâmica
e hoje industrializado, para umedecer os
dedos e dar forma à boneca.
Foto: Sandra L. Campos/2006.
97
Antes de ser iniciado o
trabalho, ele é mental-
mente esboçado e o resul-
tado alcançado ca muito
próximo do previsto. Esse
é o resultado do conhe-
cimento adquirido com a
experiência e desenvol-
vimento das habilidades técnicas, que podem prever com segurança que
uma bola seja suciente para a modelagem de até duas guras pequenas,
mensuradas entre 10 e 15 cm de altura, que vão tomam forma na habilidade
e beleza gestual de suas mãos.
As bonecas que reproduzem cenas da vida cotidiana e desti-
nadas para a venda, são modeladas em etapas. Primeiramente se forma
ao corpo, posteriormente são adicionados os braços e os utensílios ou ani-
mais previamente modelados que vão compor a gura. As cenas espelham
atividades do ciclo de vida Karajá, como a ação de pilar, ralar mandioca,
transportar vasilhas, acariciar animais domésticos, amamentar os lhos,
entre várias outras.
Todas as bonecas carregam a marca emblemática na face, que
serve para distinguir não apenas o indivíduo dentro de seu grupo local,
como o próprio grupo diante dos demais – indígenas ou não indígenas - sen-
do os Karajá os únicos a portar tal tatuagem. Em muitas das guras antigas
as komaruras eram incisas, obtidas a partir da pressão de algum objeto
redondo ou pontiagudo, como uma cápsula vazia de 22 ou a ponta de um al-
nete, conforme observou Simões na década de 1950. Hoje são adicionadas
Foto: Sandra L. Campos/2006.
Herenaki e Kussina, aprendendo a modelar.
98
na fase de pintura. Este detalhe de aplicação reete a prática atual de uso
da tatuagem, tradição que vem sendo abandonada entre os jovens Karajá
substituída pela pintura utilizada apenas em dias festivos ou de acordo com
a vontade do usuário.
A ceramista passa horas se dedicando a essa atividade que
parece ser prazerosa, podendo ser acompanhada pelas lhas que domi-
nam a técnica ou por meninas pequenas que estão aprendendo a fazer a bo-
neca. Não existe uma idade determinada para o aprendizado. Muitas vezes
a criança pequena acompanha a mãe, brincando com pequenas porções de
argila sem conseguir completar alguma peça, mas com isto ela vai apreen-
dendo a sensação tátil da textura e plasticidade da massa. Com a paciência
característica das mães Karajá, elas não se importam se eventualmente a
criança destruir algum objeto nalizado, pois julgam ser esta, uma parte
importante de seu aprendizado.
3.2.4 Secagem
Assim que cam prontos, os objetos são postos para secar.
Geralmente no primeiro dia cam dentro da casa, até que adquiram uma
consistência mais rme e rígida, seguindo-se dois possíveis processos de
secagem: ao sol, em lugar externo protegido do alcance das crianças e
principalmente dos animais que podem pisotear e destruir os artefatos,
como também em ambientes fechados ou semi-fechados desde que tenham
ventilação suciente.
99
O fato da temperatura na ilha do Bananal ser sempre elevada,
mesmo na estação de inverno, quando atinge cerca de 23 a 27 graus cen-
tígrados, o tempo para completar a secagem das peças é o mesmo para as
que cam em ambiente fechado e as que cam ao sol, pois o calor contribui
para a evaporação total da água, sem comprometer o resultado esperado.
Tais procedimentos cam a critério de escolha da ceramista ou da disponi-
bilidade de espaço exclusivo para esse m. Algumas artesãs mais antigas
e mais atuantes reservam um pequeno espaço fora de suas casas como ate-
lier para a produção de suas peças ao passo que outras preferem o espaço
doméstico para tal atividade.
1 – Secando dentro da casa
2 – Em galpão externo coberto e semi-fechado
Fotos: Sandra L. Campos/2006.
100
3.2.5 Alisamento
Esta etapa de renamento técnico é decisiva para a boa qua-
lidade e aparência das peças. Depois de totalmente secas, as ceramistas
procedem ao retoque nal, esfregando um pedaço de tecido úmido para
retirar as saliências deixadas na argila, para que as peças adquiram tex-
tura homogênea e lisa. Antigamente, utilizavam nesse processo as folhas
ásperas de uma espécie de árvore local (lixeira) que exercem a função de
lixa, ainda usadas para lixar as echas. Finda esta etapa, os objetos estão
prontos para a queima.
Embora seja uma etapa essencial para a nalização do pro-
cesso prévio à queima, as ceramistas não a mencionam quando descrevem
a cadeia operatória, talvez por ser muito óbvia e corriqueira a elas. Não
encontramos menções a essa fase nos trabalhos de Fénelon Costa (1978)
e de Simões (1992) que se dedicaram a descrição de tais técnicas, sendo
possível neste momento, a partir dos resultados da observação empírica,
decorrente da convivência com as ceramistas e participação em todas as
etapas subjacentes aos processos de produção do artefato.
3.2.6 Queima
A queima é possível quando os objetos estão completamen-
te secos e alisados, caso contrário podem trincar ou ter sua nalização
comprometida. Este processo ocorre em duas etapas: na primeira, as peças
são colocadas sobre uma chapa de metal calçada com suportes para que
que a certa altura do chão, com espaço suciente para colocar as toras
101
de madeira sob os objetos. Antigamente as peças eram colocadas sobre
pratos de cerâmica confeccionados pelas próprias artistas, mas hoje elas
aproveitam as chapas de metal que restaram do hotel JK, após o incêndio.
Esse procedimento é utilizado apenas com as bonecas, sendo que outros
objetos, como os potes, são colocados diretamente no fogo sobre a madei-
ra a ser incinerada.
Em certas circunstâncias, quando a temperatura no dia da
queima não está muito quente, algumas artíces preferem fazer um p-
aquecimento do suporte, outras optam por esperar o dia com temperatura
adequada e colocar as peças diretamente, dependendo de como foi o seu
aprendizado. Esta etapa com duração de 5 a 6 horas é a mais importante,
e por isso sujeita à supervio constante da ceramista, para que os obje-
tos não estourem e atinjam o ponto certo para a segunda etapa de queima.
Ela tem que controlar a intensidade do fogo para evitar que as chamas
atinjam as peças e, ao mesmo tempo, manter a temperatura necessária
para o primeiro cozimento.
Sem o uso de nenhum instrumento, apenas com as mãos, as
artesãs alteram constantemente a posição e o lado das peças para manter
a uniformidade do calor. Nesta primeira etapa pode ser utilizado qualquer
tipo de madeira, previamente coletada, cortada e reservada pelas próprias
oleiras antes do início da tarefa.
O reconhecimento do ponto para se proceder a etapa se-
guinte se dá pela identicação da cor do objeto, bem como pela sensação
tátil. Curiosamente a mulher Karajá cospe nos dedos polegar e indicador,
que irão tocar as peças e de acordo com o ruído da saliva em contato com
o calor do objeto, identicam quando estão prontos. É difícil obter mais
102
informações sobre esse procedimento, mas acredita-se que esta técnica
seja resultante de um longo aprendizado que vem sendo transmitido por
várias gerações, bem como da experiência prática da oleira, levando-se
em conta que todacnica aprendida tem sua forma decorrente debi-
tos culturais próprios, ao que Mauss atribui à “natureza social do hábito
(Mauss, 1974:213).
Satisfeitos os critérios determinados, as peças são cobertas
totalmente com um tipo de madeira especíco para essa etapa. Geral-
mente é escolhida uma, entre três espécies de madeira, Helekó, Hatyjekó
e Hadorokó, que variam de acordo com a disponibilidade. Por serem mais
duras fornecem calor uniforme, de modo a manter a queima lentamente até
atingir o ponto nal, visto que nesta etapa não a alimentação de madeira.
A fogueira deixa as peças incandescentes e estas apenas serão retiradas
das cinzas após o resfriamento total. Esta queima tem duração menor que a
anterior, atingindo cerca de uma a duas horas, de acordo com a quantidade
de objetos e, proporcionalmente, de toras necessárias. Vale ressaltar que
as ceramistas devem car atentas às previsões de chuvas, pois caso ocor-
ram em qualquer fase da queima, todo trabalho estará perdido.
Dependendo do horário de início do processo, a segunda
queima pode alcançar a noite, o que torna a atividade um belo espe-
culo assistido por vários espectadores. Em muitas ocasiões essa etapa é
acompanhada por familiares e principalmente por jovens que pretendem
aprimorar essa prática. Porém, as crianças são as mais atraídas pela con-
templação do fogo.
O conhecimento acerca da modelagem é transmitido entre as
mulheres desde a infância, o que faz com que todas saibam modelar. No
103
entanto, apenas são reconhecidas como ceramistas aquelas que conhecem
e dominam todos os processos, principalmente os de queima. Muitas mu-
lheres, mesmo tendo o domínio técnico da confecção, desistem desta ati-
vidade em função da última etapa, pois além de requerer um alto domínio
técnico, muito trabalho e disponibilidade de tempo, emite muito calor, que
nem sempre é suportado por algumas mulheres.
Coleta da madeira para as queimas Ceramista Herenaki, aldeia JK.
Primeira etapa da queima.
Fotos: Sandra L. Campos/2006.
1 2
3 4
104
Os objetos mudam de cor gradativamente, cando mais escuros.
Fotos: Sandra L. Campos/2006.
Final da primeira etapa de queima. A cor escura das peças é o principal indício para a etapa seguinte
Etapa nal de queima. Não depende da intervenção constante da ceramista, que pode abandonar o local.
5 6
7 8
9 10
105
Fotos: Sandra L. Campos/2006.
Final de uma queima noturna – Ceramista Korixa, aldeia JK.
11 12
Após o resfriamento, as peças são retiradas das cinzas e pre-
paradas para a etapa seguinte, da pintura.
3.2.7 Pintura
A pintura pode ser iniciada após o esfriamento total das
peças. Nesta etapa são utilizadas duas cores: preta e vermelha.
Peças prontas para receberem a decoração.
Fotos: Sandra L. Campos/2005.
106
A primeira etapa da
pintura se com a aplicação da
tinta preta, previamente prepara-
da com pigmento vegetal extraí-
do da casca da árvore denominada
ixarurina. A casca é macerada com
água adicionada ao de carvão
para acentuar a cor preta.
Com um talo da pal-
meira buriti, a ceramista impro-
visa um pincel dando início aos
desenhos que, em muitas guras,
reproduzem os grasmos da pin-
tura corporal usada pelos Karajá.
Em outras,o aplicados dese-
Peças de Herenaki, aldeia JK.
Fotos: Sandra L. Campos/2005.
Fotos: Sandra L. Campos/2006.
107
nhos livres de acordo com
a criatividade da artista.
Alguns associam o emprego
da pintura preta das bo-
necas ao suco do fruto do
jenipapo usado no corpo, o
que é um engano, pois o je-
nipapo escurece quando
entra em reação com o suor humano, não agindo em matéria como a cerâ-
mica. Ao mesmo tempo, a tinta utilizada para a pintura das bonecas é im-
própria para o corpo, por ser altamente tóxica podendo provocar alergias
e a morte de quem a utiliza.
O trabalho da ceramista é organizado de maneira a pintar
primeiramente os detalhes em preto de todas as guras produzidas, para
depois acrescentar os traços em vermelho.
Enquanto as
peças secam para a etapa
seguinte, são armazenadas
na cesta
weriri
- que acom-
panha as bonecas quando
são presenteadas às meni-
nas, onde serão guardadas
ao nal da brincadeira.
Fotos: Sandra L. Campos/2006.
108
Depois de a tinta preta secar, as artesãs iniciam a etapa de-
corativa com a tinta vermelha, obtida das sementes do urucum. A tintura
vermelha, ao contrário da preta, pode sofrer variações no preparo. O mais
comum é a trituração das sementes adicionadas ao óleo do coco da pal-
meira de babaçu, sendo que as sementes tanto podem ser fervidas como
não. Atualmente, com o acesso fácil à cidade de São Félix do Araguaia e o
conhecimento de tintas industrializadas, as artistas adicionam à mistura
de urucum um corante vermelho de bisnagas para colorir a tinta tornando o
tom mais acentuado e mais duradouro, pois a tinta natural esmaece depois
de certo tempo, adquirindo uma tonalidade amarelada, obrigando o reto-
que constante das peças. Essa tintura, mesmo com a adição do pigmento
industrializado, pode ser usada na pintura corporal sem causar problemas
à saúde, pois sai facilmente no primeiro banho, ao contrário da tintura de
jenipapo que é absorvida pela pele por um período mais longo de tempo,
cerca de 20 dias.
Existem ainda, regras para o emprego dos contornos verme-
lhos: estes devem ser aplicados sempre na face externa dos traços pretos.
Porém, seu uso não é obrigatório, podendo ser suprimido como observado
em muitas guras com aplicação apenas de detalhes em preto.
Ao término da pintura as peças são selecionadas de acordo
com a nalidade pré-estabelecida de uso. Algumas serão vendidas ou tro-
cadas e outras serão destinadas para as crianças.
À maneira de Mauss, pode-se dizer que o nal do processo
sintetiza a relação entre razão prática e simbólica, por materializar nos
objetos hábitos e valores apreendidos e difundidos socialmente. Ou ainda
considerar a tecnologia como fato social, conjugando aspectos materiais,
109
sociais e ideológicos, onde as funções práticas e simbólicas são indissociá-
veis. Passetti (1999:3) explicita que,
Os objetos relatam mais do que a materialidade passada ou presente
das culturas; são mais propriamente formas de pensar o mundo que,
embelezando ou dissimulando, incorporam em sua concretude a so-
ciedade, a natureza, o sobrenatural.
Nesse sentido, a forma plástica e a escolha tetica trans-
cendem o cater material dos objetos, quando lhes o atribuídos os
referenciais simbólicos que dialogam com os valores organizados no am-
biente social. Mauss relaciona a produção dos artefatos ao universo das
relões com o mundo material, imaterial e cerimonial dizendo que “o ob-
jeto é, em muitos casos, a prova maior de um fato social; e um catálogo de
instrumental gico é um dos melhores meios para uma boa classicão
dos ritos” (Mauss, 1974-15).
3.3. Estilo.
Como fato antropológico, a arte Karajá deve ser situada em
seu contexto cultural e temporal, em que a produção artística, bem como
os padrões estilísticos, se articulam às condições históricas e sociais, con-
dições estas que podem inibir ou estimular o seu desenvolvimento.
Em referência à arte gurativa, a inuência do mercado
voltado para o consumo não ingena enriqueceu a ampliação temática e
cnica dos objetos, estimulando a criação de novos padrões estéticos,
110
“em alguns casos, à custa da queda do vel de elaboração do objeto
(Ribeiro, 1982:18).
Historicamente, pode-se situar a ação do Serviço de Prote-
ção aos Índios, como uma das principais responsáveis da mudança, quando
seguindo recomendações de Baldus, beneciou a “industrialização” das bo-
necas, como forma de amenizar a situação de grande miséria em que encon-
travam os índios Karajá em 1948 (Baldus, 1948:137-168). O SPI, órgão do
governo federal responsável pela tutela indígena, estimulou e intermediou
o comércio de artesanato, até sua extinção em 1967.
Com uma produção elevada e um mercado consumidor exigen-
te, as ceramistas, na década de 1940 passaram a adotar o procedimento de
queima das guras para garantir a qualidade e maior resistência das peças,
o que possibilitou as inovações temáticas. Além disso, garantiu também
o transporte para longas distâncias, contribuindo para torná-las mundial-
mente conhecidas por essa arte tão peculiar.
A atribuição da comercialização foi transferida para a FU-
NAI, quando esta foi criada em 1967 para substituir o SPI. Com incentivo
da FUNAI, por intermédio da rede de lojas ARTINDIA criada em 1974 e
seguindo as antigas recomendações de Baldus, a distribuição comercial das
bonecas foi intensicada. As lojas registraram nos dois primeiros meses, a
venda de mais de mil bonecas, (Ribeiro, 1982:17).
Assim, as populações indígenas do Araguaia, principalmente
da ilha do Bananal passaram a produzir as guras em larga escala mais de
quinhentas por mês -, procurando seguir as características formais identi-
cadoras de sua cultura.
111
A mudança da forma estilística foi tratada por Castro Faria
(1959), onde o autor denomina e enfatiza as diferenças entre a fase antiga
e a moderna, chamadas por Fénelon Costa (1959), de estilo simbólico e es-
tilo realista, seguindo a conceituação de Frans Boas (1947), que distingue
a arte gurativa nas duas tendências.
Usando como base o acervo do Museu Nacional do Rio de Ja-
neiro, Castro Faria (1959) classicou as coleções em duas fases, antiga e
moderna, sendo a década de 1940 o limite temporal entre as duas.
Na antiga, as peças não passavam pelo processo de queima o
que restringia a sua morfologia a guras humanas sem muitos detalhes,
como a falta dos braços e “os membros inferiores reduzidos a simples
massas arredondadas” (Castro Faria, 1959:6). Outra característica pecu-
liar desta fase é a adição da cabeleira com emprego da cera de abelha. É
curioso notar que a falta de braços não impediu a representação do brace-
lete característico dos jovens solteiros. Simulando seu uso ele foi colocado
sobre a cabeleira. Na moderna, a adoção da técnica do cozimento dos obje-
tos possibilitou o desenvolvimento de diversas modalidades e a introdução
de novos padrões estéticos para satisfazer o gosto do público consumidor,
como a confecção de cenas da vida cotidiana Karajá.
O aprimoramento técnico permitiu novas experimentações fa-
vorecendo a ampliação do repertório gurativo e a criação de cenas realis-
tas como, ralar mandioca, o cuidado com os lhos, pesca com canoa, entre
outras, que se somam ao tipo de peças simbólicas antigas, sugerindo o que
Boas (1996:3) arma sobre o processo de produção de objetos, que:
112
O processo artístico e criativo das oleiras Karajá consiste em
um jogo lúdico de variação e elaboração de formas, determinado por uma
série de fatores que se relacionam desde a habilidade técnica, função do
objeto, vontade ou preferências das ceramistas, até as exigências do mer-
cado consumidor, que pode ser interno ou externo à aldeia. Podemos citar
como exemplo as bonecas com mais de uma cabeça e as com vários seios,
que povoam acervos de museus, despertando a capacidade imaginativa do
público que as observa. Ouvem-se comentários dos mais diversos, tais como:
trata-se de um amuleto de fertilidade? Seria uma boneca sagrada utilizada
em algum ritual? E por diante. Por um lado, constata-se que o museu é
um espaço de resignicação do objeto, sujeito ao imaginário do público. Por
outro, registra a capacidade criativa das ceramistas para elaborar guras
contidas apenas em sua imaginação, exemplicada nas bonecas coletadas
por Harald Schultz na década de 1950.
Em conversa com as ceramistas mais velhas que ainda guardam
na memória tais bonecas, descobrimos que tudo não passou de um exercício
criativo e de uma brincadeira que rendeu muito dinheiro para sua autora
com o sucesso atingido por essas bonecas tão diferentes, enigmáticas e
portadoras de beleza.
Os artefatos do homem, provam em todo o mundo que as formas
ideais se baseiam essencialmente em modelos desenvolvidos por téc-
nicos experientes; e podem também ser desenvolvimentos imaginati-
vos de formas padronizadas mais antigas” (Boas, 1996:3).
113
Essas guras foram produzidas em um momento histórico
determinante que marcava a transição para o processo de queima das bo-
necas, o que não ocorria antes da década de 1940. Esse fator favoreceu
os ensaios estilísticos e a criação de novas expressões psticas, algu-
mas ousadas, como as mencionadas. Outras artistas deram prefencia
à manutenção dos tros tradicionais e apenas acrescentar detalhes que
julgavam mais realistas, como pequenos utenlios, animais...
Pode-se observar aqui que permanências e inovações fazem
parte de escolhas das ceramistas, que mesmo pautadas pelos valores cul-
turais essas escolhas se tornam práticas que autorizam a recriação de
objetos de estilos tradicionais.
Uma tradição deve ser entendida de forma dimica e com
possibilidades de exibilização. A criação de um estilo novo não signica
o abandono de práticas seculares, principalmente por envolver a mesma
tecnologia de produção. Deve ser entendida como continuidades que in-
corporam mudaas e por sua vez criam novas tradões.
Acervo MAE
Fotos: Sandra L. Campos/2002.
114
Nota-se ainda que, em todos os objetos, o ideal de beleza
estará presente nas formas, nos sentidos, nas cores, nas cenas, no acaba-
mento, pois segundo a ceramista de Santa Isabel, não basta fazer, “tem
que fazer bonito”
16
. Nesse aspecto, Darcy Ribeiro rearma a posição
de Boas, segundo o qual, “sem uma base formal, a vontade de criar algo
que se dirija ao sentido da beleza, dicilmente pode existir” (Boas,
1996:3). Seguindo esta forma de entender a arte indígena, Darcy Ribeiro
(1967:160) arma que:
A verdadeira função que os índios esperam de tudo o que fazem é a
beleza. Incidentalmente, suas belas echas, sua preciosa cerâmica
têm um valor de utilidade. Mas sua função real, vale dizer, sua forma
de contribuir para a harmonia da vida coletiva e expressão de sua
cultura, é criar beleza.
Em meio às ceramistas Karajá, a relação entre forma e con-
teúdo é inerente à preocupação com as manifestações de beleza como ga-
rantia da qualidade de seu trabalho. São processos que não se dissociam,
sendo este um dos fatores de atribuição de prestígio a elas, cujo trabalho
além de dar continuidade aos costumes de seu povo xando os valores por
meio de símbolos materializados nas bonecas, representa uma contribuição
econômica importante para a família.
Na eventualidade de produção de objetos mal acabados, e por
isto julgados “feios”, as mulheres não são consideradas boas ceramistas
pela comunidade e a comercialização de suas peças não é tolerada. O fato
de não haver registro de autoria dos objetos, justica a preocupação dos
Karajá em relação à venda de um artefato mal feito, pois pode compro-
16
Depoimento de Mahuederu e outras ceramistas da aldeia de Santa Isabel, Ilha do Bananal/TO em 2006.
115
meter, de maneira generalizada, a imagem de todas as artistas da região.
Por esse motivo, são estabelecidos critérios para a distribuição de todo e
qualquer tipo de item Karajá. A descaracterização e a queda do padrão de
qualidade são fatores inibidores para o comércio.
3.4 Padrões Temáticos
Com a divulgação das bonecas para fora do ambiente cultural
Karajá, em que os “princípios de seleção simbólica ajudam a individualizar
a arte representativa(Boas, 1996:139), a cemica gurativa passa a
circular também em ambiente externo, que determina os processos de
manufatura, distribuição e circulação diferentes, marcado por quatro ti-
pologias temáticas:
a) Hўkўnaritxoko
17,
identicada pelas ceramistas como boneca antiga;
b) Ritxoko ou bonecas modernas;
c) Iródusõmo
18
ou bichinhos;
d)ni – identicadas pelos Karajá como guras sobrenaturais.
3.4.1 Hўkўnaritxoko
As bonecas de padrão antigo são geralmente confeccionadas
para a circulação interna, presenteadas em conjuntos (famílias) às meninas
pequenas. Não impedimento de sua comercialização, mas elas são colo-
cadas à venda de forma individualizada, priorizando as guras dos jovens
solteiros. Tem-se notícia que recentemente a ARTINDIA, conhecendo o
propósito deste estudo, fez uma encomenda de famílias de bonecas, para
17
Hўkўna – (o “H”, tem som de “R”, rãcãna) na língua Inў signica antigo e ritxoko (a pronúncia do “R” no início
da palavra tem o som como se estivesse no meio dela, como arara), signica boneca.
18
Iródu – animal, sõmo – pequeno.
116
comercialização na loja de São Paulo.
1, 2 - Acervo MAE
Fotos: Wagner Souza e Silva/2005.
1 2
Nos exemplares do MAE, a predominância é a de persona-
gens individualizados com destaque aos jovens, como exemplicado. A -
gura feminina sustenta a tanga de líber, utilizada com exclusividade pelas
mulheres, além do corte de cabelo que identica os solteiros, os colares,
a pintura corporal e facial, e o bracelete (detalhe em vermelho no cabelo
da gura 1). A masculina (gura 2) representa um jovem solteiro identi-
cado pelo topete na cabeleira de cera, além dos colares, pintura corporal
e facial, porta o tembetá, adorno labial de uso exclusivo dos homens. Nas
palavras de Castro Faria (1959:8),
A representação da face é extremamente esquemática, embora a
sua altura seja sempre indicada com nitidez. Os únicos elementos
reproduzidos de maneira constante são as duas tatuagens tribais de
forma circular, nas maçãs do rosto.
117
A partir de 1940, a intensicação dos contatos com não indí-
genas, a exemplo do SPI, conforme citado, e consequentemente a facili-
dade de comércio, as guras passaram a ser queimadas da mesma forma
que os utensílios domésticos. A adoção desse processo atribuiu uma maior
resistência às bonecas favorecendo a ampliação do repertório estilístico e
a adição de detalhes mais realistas, como os braços suprimidos nas guras
cruas. Por outro lado, a cabeleira de cera por não resistir ao calor no mo-
mento da queima, foi substituída pela argila,
3.4.2 Ritxokó
A fase moderna deniu o repertório de circulação das gu-
ras. Para o público externo, as ceramistas passaram a modelar bonecas
que representam cenas da vida cotidiana, como o cuidado com os lhos,
atividades domésticas, cenas de parto e de funeral, além dos pequenos
animais que representam a fauna local. As composições de cenas são feitas
exclusivamente para comércio, sendo vendidas de forma individualizada de
maneira a representar e divulgar certos hábitos da cultura Karajá. Alguns
exemplares do estilo antigo também são comercializados, porém não atra-
em tanto a atenção do público consumidor.
Fotos: Sandra L. Campos/2007.
Bonecas expostas para venda/2007
118
Os exemplares da boneca antiga (detalhe na parte superior
direita da gura 1), não despertam a mesma atração do público como as
guras modernas (2). Por serem modeladas sem suporte de sustentação
elas carem apenas na posição deitada, o que diculta sua exposição como
enfeite sobre móveis ou prateleiras dos consumidores.
Bonecas modernas ritxokó expostas
para venda juntamente com uma varieda-
de de objetos produzidos pelos Karajá,
em evento no Parque Anhembi/SP.
Fotos: Sandra L. Campos/2007.
De maneira homóloga
o cenário do cotidiano social mas-
culino também é retratado na arte
gurativa, em cenas de pesca do
tracajá e do pirarucu, bases da ali-
mentação Karajá.
Acervo MAE
Fotos: Sandra L. Campos/ 2002.
119
3.4.3 Iródusõmo - animal pequeno
As miniaturas de animais circulam nos dois ambientes: externo
e interno. No externo, ilustra a fauna local como: as arraias de rio, o boto,
o tracajá, o jaburu, o jacaré, entre outros exemplares em miniaturas re-
presentativas desses animais facilmente vistos na região. No interno, são
utilizados geralmente pelos pais para contar histórias para seus lhos, pois
muitos dos animais também estão presentes na mitologia representando as
três esferas do mundo Karajá: terra, água e ar, seres que se manifestam
na cerimônia do Hetohoky. Infelizmente essa tradição vem se perdendo
com o acesso à televisão que vem tomando e substituindo o espaço das
histórias. Mesmo perdendo uma de suas nalidades primordiais, os bichi-
nhos continuam a ser modelados por ceramistas que se especializam nessa
arte. Talvez por habilidade ou escolha tecnológica, algumas mulheres dão
preferência apenas para a modelagem dos animais. No entanto, há casos de
ceramistas que modelam todos os temas.
Acervo MAE – Coleção Schultz
Fotos: Sandra L. Campos/2005.
120
3.4.4 Aõni - seres sobrenaturais
Apesar de manter contato com a sociedade nacional há várias
décadas, os Karajá mantêm vivo seu patrimônio mítico, como um dos princi-
pais ordenadores do tempo social e das relações familiares (Toral, 1992).
A principal referência se encontra representada na gura do Kaboi, ser
que remonta às origens do povo Iny. É descrito como uma gura de barriga
muito grande e por isso não passa pelo buraco de onde saem os homens.
O mito de origem relata que no início, os Karajá eram seres
que habitavam um mundo subterrâneo nas profundezas do rio Araguaia,
na Ilha do Bananal. Um mundo paradisíaco, denominado berahatxi, onde
os seres eram imortais, imunes a doenças, ao frio, à fome. Movidos pela
transgressão, saíram por um buraco para a superfície da terra, iniciando
uma vida onde há morte, enfermidades, fome, antes desconhecida.
Na versão de Ijesseberi Karajá, os mais velhos contam que:
(...) muito antigamente um povo habitava o fundo do rio Araguaia, o
berohoky. Era um lugar que não tinha miséria, não tinha morte nem
doença e todos viviam muito bem. Até o dia que encontraram um
buraco no rio e viram um mundo desconhecido. Resolveram sair pra
conhecer e Kaboi não saiu porque não passava pelo buraco. Aqui
fora acharam árvore morta, tiveram que pescar e caçar pra matar a
fome, tudo muito diferente do que no mundo subterrâneo. Tentaram
voltar para contar para os outros mas não encontraram o buraco e
começaram a formar a nação Karajá. Por muito tempo, o Kaboi ajudou
outros a passarem pelo buraco, mas ele e sua família continuaram lá
embaixo. (relatado durante a pesquisa, em 2005).
121
Uma outra versão relatada em 1927 por Terra-Luna, registra-
da por Bandeira de Mello (1980:163), completa que:
Quanto ao povo do qual provinham, inesperadamente, por capricho
da “divindade-criadora”, foi todo transformado em “peixes-boto” e
expulsos daquele paraíso submerso. Eis a razão pela qual a partir
de tempo remoto, esses botos” dos quais descendemos, sempre
que nos vêem deslizando no rio em nossas “ubás”, emerge e, acom-
panhando-nos começam a brincar, parecendo rirem-se das nossas
infelicidades nesta terra...
Acervo MAE
Fotos: 1 e 3 - Sandra L. Campos/2002.
Foto: 2 – Wagner Souza e Silva/2007.
1
2
3
A gura central, nas três versões do personagem, pode ser
associada ao lho com um dia de vida, de acordo com a pintura vermelha
de seu corpo. Segundo as histórias, os personagens sobrenaturais tam-
m m família e o caracterizados segundo as regras de classica-
ção do ciclo de vida.
122
A mitologia Karajá apresenta outra série de personagens
importantes, que mereceriam um trabalho mais minucioso de investiga-
ção dos mitos.
uma innidade e riqueza de guras sobrenaturais, sendo
algumas apresentadas aqui para exemplicar a capacidade de crião
temática da artista Kara em produzir a gura de seres que o exis-
tem materialmente.
1 - Wadjurumani
Figura masculina, com a demarcação do tembetá, além
da exposição do órgão sexual. No rosto as komaruras,
marca emblemática dos Karajá.
2 – Benõra
Figuras antropozoomórfas
que representam o tucuna-
ré, como ser cosmológico.
Casal com gura masculina
identicada com a pintura
preta no peito e a femini-
na, pelos seios.
Acervo MAE
Foto: Sandra L. Campos/2002.
Coleção Sandra L. Campos/2006.
Fotos: Wagner Souza e Silva/2007.
123
3 – Krera
Casal antropozoomórfo que re-
presenta o martim pescador,
como ser cosmológico. A -
gura masculina é identicada
com a pintura preta no peito e
a feminina, pela demarcação da
região pélvica, reservada para
colocar a tanga.
Certos conjuntos de seres manifestam, nos mitos, atitudes am-
bíguas em relão aos homens. Alguns são malignos, representando perigos às
mulheres, às criaas e aos iniciados, que são protegidos destes seres nas ce-
rimônias de Aruanã. Outros conjuntos são benignos, trazidos pelos hari, como
forma de protão.
Embora essas guras não sejam mais utilizadas para contar his-
tórias, continuam fazendo parte do reperrio simbólico da mitologia Kara.
Os contatos constantes com culturas alheias aos costumes Kara interferem
nessa prática psicopedagógica, sobretudo os mantidos com as entidades religio-
sas que pregam a adão de outras crenças, reduzindo os mitos a simples lendas
desprovidas de sentido. Os mais velhos ainda os rem na meria, mantendo
timidamente a sua crea. Os mais novos, preferem julgá-las como histórias dos
antigos”. As ceramistas modelam a literatura oral de seu povo, conservada ape-
nas em seu sentido recreativo. Os museus etnogcos preservam sem se dar
conta da riqueza simbólica e dos motivos mitogicos que os objetos carregam.
No sentido de favorecer a organizão sica e documental de ob-
Coleção Sandra L. Campos/2006.
Fotos: Wagner Souza e Silva/2007.
124
jetos etnogcos em museus, Berta Ribeiro (1988:23), em sua grande obra de
referência, Dicionário do Artesanato ingena, estabeleceu uma tipologia para a
classicação da “cerâmica estatria temática gurativa”, dividindo a categoria
dosobjetos de barro modeladosem:
a) cenas do cotidiano, principalmente a rotina diária:
- processamento da mandioca - atividade feminina
- ca e pesca - atividade masculina
b) locomoção
- por terra - com cesto cargueiro
- por água - com canoas
c) gura humana cultural
- jovem, adulto, homem, mulher
d) gura humana fanstica
- seres bicéfalos, multicéfalos, xipagos, e sobrenaturais
e) cenas da vida familiar
- casal, mulher gvida, parto
f) cenas da vida ritual
- máscaras de aruanã, aplicão da marca tribal, pintura cor
poral, funeral, etc.
g) elementos da fauna
- anfíbios, peixes, répteis, aves, maferos
São de uso lúdico e para comércio.
É um amplo reperrio classicador, utilizado por prossionais de
museus na organizão dos acervos etnogicos, para facilitar o acesso à pesqui-
sa, à docência e à divulgão desse inestimável patrinio da cultura indígena.
Capitulo 4
O Museu e o Campo
126
4.1 – Mosaicos ingenas: acervos etnológicos
dos museus.
Classicar, tombar, guardar, gerenciar... Esta é a rotina co-
tidiana de trabalho com coleções de museus. Esse universo de objetos, em
conuência com manifestações materiais de vários povos indígenas, conduz
às ressonâncias das expressões culturais traçadas nos artefatos. Forma,
função, representação, passam a ser investigadas como elementos de con-
strução de identicadores sociais.
O processo de organização, salvaguarda e conservão de
acervos etnológicos, decorreo apenas de uma especialização da etno-
logia, mas também da importância que o contexto museológico adquire na
realização do ciclo de atividades que envolvem a curadoria de coleções.
Os critérios de gerenciamento são adotados de maneira a preservar
expressões mais autenticas da heraa ingena, ainda em vigor (Ri-
beiro, B. 1986:34).
Essa atitude preconizada por Berta Ribeiro torna-se pos-
sível na medida em que o sistema de objetos passa a estabelecer um novo
tipo de diálogo entre os produtores e os acervos etnológicos, com base
no intercâmbio de informações a respeito dos grupos culturais represen-
tados nas colões.
Sob inuência das idéias pioneiras de Boas, difundidas na
primeira metade do século XX, contrapondo a visão evolucionista de que o
homem é fruto de uma adaptação biológica sujeita aos processos de seleção
natural, passando do estado de barbárie à civilização, a antropologia incor-
pora o fato de que cada cultura é uma unidade integrada e que sua dinâmica
127
de transformação é decorrente da relação entre o indivíduo, a sociedade e
as diversas culturas em contato. Sendo esta uma das idéias fundadoras da
antropologia cultural, este campo das ciências humanas passa a ter como
ponto de abordagem a interpretação das culturas enquanto fenômenos es-
pecícos e originais.
A prática de buscar dados para reexão teórica junto à coleta
em campo, instaura um novo olhar sobre os objetos, permitindo pensá-los
em contextos mais amplos e voltados para aspectos da organização social
como forma de representação etnográca em espaços sócio-culturais sin-
gulares. O contato direto com os ambientes de pesquisa, levou os antrop-
ólogos a perceber o conjunto coerente das práticas sociais, que, por sua
vez, também passam a gurar nos acervos dos museus.
O colecionismo passa a ser percebido e praticado não mais
por cronistas, viajantes, comerciantes, militares, missionários ou simples-
mente conquistadores, mas por antropólogos interessados em conhecer o
contexto de produção das coleções, como fez Franz Boas com os povos da
costa noroeste do Pacíco ocidental, Lévi-Strauss, com povos indígenas do
Brasil e Marcel Mauss, que mesmo sem ter ido à campo, estabeleceu um
conjunto de diretrizes para desenvolver sua contínua produção de estudos
de etnologia, nos primeiros anos do século XX. Mauss, em seu estudo sobre
a economia de troca entre os polinésios, nas Dádivas trocadas e a obriga-
ção de retribuí-las, considera que os objetos não contêm apenas valor físi-
co, “mas também dignidades, cargos, privilégios, cujo papel sociológico é o
mesmo que dos bens materiais”, como aponta Lévi-Strauss, na introdução à
obra de Marcel Mauss, (1974:25).
Os antropólogos, cada vez mais organizaram e estudaram
128
coleções de maneira a registrar as funções e signicados dos objetos
mantendo, dessa maneira, contatos estreitos com museus, associando a
história da antropologia à história da formação das coleções. Os museus
etnográcos constituem-se em locais de identicação de etnias, conser-
vando em seus acervos heranças patrimoniais inestimáveis, preservando
várias gerações de objetos culturais.
4.2. Os museus etnográcos brasileiros.
Os primeiros museus brasileiros foram fundados na segun-
da metade do século XIX, seguindo as tendências dos museus europeus.
De caráter enciclopédico e naturalista, eram colecionadores de acervos
“exóticos” e demarcadores da superioridade etnocêntrica colonizadora.
A maneira de colecionar peças dos índios do Brasil, atribuía uma forte
tendência de aquisição de troféus das sociedades indígenas destinadas a
desaparecerem, por serem consideradas um perigo para o desenvolvim-
ento da colonização. Sob essa visão nasceram o Museu Nacional, do Rio de
Janeiro, em 1818; o Museu Paraense Emílio Goeldi, do Pará, em 1866 e o
Museu Paulista, de São Paulo, em 1894.
O Museu Paulista, também conhecido como do Ipiranga, surgiu
como museu de História Natural articulando a história da sociedade pau-
lista, a zoologia que incluía a fauna, ora e os animais existentes no “novo
mundo”, a arqueologia, investigando vestígios de sociedades humanas pré
existentes à colonização portuguesa, e etnograa, colecionando e expondo
objetos de sociedades indígenas do Brasil.
O Museu passou por vários momentos de mudanças de acordo
129
com a gestão de cada diretor. O primeiro a ocupar o cargo foi o zoólogo
alemão, Hermann von Ihiering que permaneceu mais de vinte anos na di-
reção, preocupando-se com “a edicação de coleções zoológicas para ns
cientícos” (Abreu, 2000:72). Sua atuação esteve cercada por inúmeras
críticas. Segundo Passetti (1987:62), “responsável por um elenco de pro-
postas genocidas, Ihering acabou engendrando um amplo debate público
acerca do futuro das populações indígenas, que culminou na criação do SPI,
em 1910”. O tenso debate criado sobre o extermínio dos índios fez com
Ihering abandonasse o Museu e retornasse para a Alemanha em 1915.
Em 1916 o historiador Affonso d’Escragnolle Taunay assumiu
a direção do Museu Paulista, criando as seções de história nacional e de
etnograa, o que gerou a ampliação das coleções. (Schwarcz, 1993). Nesse
período o Museu foi um importante centro de pesquisa e divulgação da
Antropologia no Brasil, por conduzir expedições etnográcas, montar ex-
posições sobre a cultura indígena e recuperar o acervo etnográco que
estava em completo abandono.
De acordo com as condicionantes históricas do período, in-
serido em um momento sócio-político determinante para o debate acerca
das questões indígenas, e dos diretores que sucederam von Ihiering, o Mu-
seu Paulista imprimiu um papel de destaque no campo das Ciências Sociais
em São Paulo, entre outros, servindo de referência para várias gerações
de pesquisadores. Até a década de 1930 desempenhava o papel de difusão
do conhecimento antropológico, patrocinando expedições a campo, organi-
zando coleções e debates com antropólogos e pesquisadores estrangeiros,
visto que em São Paulo ainda não havia a formação de cientistas sociais,
possível apenas a partir de 1935 com a fundação da Escola de Sociologia e
130
Política e em 1936, da Universidade de São Paulo.
O primeiro etnólogo de formação a assumir as funções di-
retivas no Museu Paulista foi Herbert Baldus, dedicando-se “ao ensino, à
pesquisa, à divulgação cientíca e à tentativa de instituir uma política indi-
genista comprometida com a preservação das etnias indígenas” (Sampaio-
Silva, 2000:1), responsável também pela criação do setor de Etnologia em
1946, da organização de coleções de povos indígenas brasileiros e da ed-
ição da nova série da Revista do Museu Paulista. Formado em etnologia pela
Universidade de Berlim xou-se em São Paulo em 1933 tornando-se um dos
principais “articuladores das relações entre a antropologia brasileira e os
demais centros produtores na Europa e Américas” (Passador, 2002:99).
Os caminhos se desdobraram e a partir da década de 1940
a universidade passou a produzir o conhecimento cientíco, enquanto ca-
bia aos museus a tarefa de patrocinar expedições e organizar coleções
etnográcas. “A prática de colecionamento reetia também uma visão
humanista, no sentido de preservar a cultura de povos indígenas que se
acreditava que fatalmente se extinguiria”. (Abreu, 2005:107). Durante sua
gestão, nas décadas de 1940 e 1950, Herbert Baldus imprimiu um novo
feitio institucional elevando as coleções etnográcas para cerca de quinze
mil itens, constituídas de acordo com as concepções cientícas da época.
Baldus, diretor do setor de Etnologia e grande interessado
nos objetos indígenas, contratou Harald Schultz em 1947 como assistente
de etnologia, com o objetivo ampliar o acervo material e documental do
museu. Conhecido como grande fotógrafo interessado pela preservação
das culturas indígenas, por ter acompanhado as expedições do Marechal
Rondon e organizar o Departamento de Documentação Fotográca do SPI,
131
foi incumbido de formar coleções sistemáticas e temáticas paro o mu-
seu. Esta experiência junto ao SPI e a convite deste órgão governamental,
resultou na viagem de exploração etnográca que Schultz e Baldus zeram
em 1947, entre os índios Karajá, quando formaram a primeira coleção para
o Museu. Implantava-se uma nova mentalidade nos métodos de coleta, de
certa maneira mantida até hoje, em que o objeto apenas revela sentido
quando registrado em seu contexto cultural.
A experiência fotográca e lmográca de Harald Schultz
deu amplitude aos registros das coleções, da mesma maneira como havia
feito Lévi-Strauss em 1936, com as coleções do Museu do Homem de Paris
(Passetti, 1999) . Muitas peças coletadas para o museu foram lmadas em
seu processo de manufatura, dando visibilidade a diversidade indígena e
principalmente as técnicas de confecção de vários artefatos, que hoje se
encontram no acervo material do MAE. Ele faleceu em 1966 deixando um
rico acervo com mais de cinco mil peças, sessenta lmes etnográcos e
mais de duas mil fotograas que retratam o cotidiano de vários grupos ét-
nicos, enfocando a singularidade de cada sociedade nos vários níveis de or-
ganização social. A parceria de Baldus com Schultz inaugurou a prática de
critérios cientícos e metodológicos para a formação das novas coleções
no Museu Paulista, visando denir os traços de identidade étnica através
da produção material e simbólica de cada grupo (Campos, 1996).
Na década de 1960 o Museu Paulista, entre outros museus de
São Paulo, como os Museu de Zoologia, Museu de Arte Contemporânea e o
antigo Museu de Arqueologia e Etnologia, passaram a fazer parte da Uni-
versidade de São Paulo, obedecendo a uma nova diretriz para os museus
universitários, renovando o diálogo entre as universidades brasileiras e os
132
museus, e denindo o perl de cada instituição.
A partir de 1960, a adoção de métodos de investigação e co-
leta de artefatos, passou a ser norteada pela noção de que estes trans-
mitem informações necessárias para a construção de referenciais que se-
jam capazes de reconhecer a diversidade de manifestações culturais em
seu contexto geográco, histórico e sócial.
O acervo do Museu Paulista passou por duas fases de desmem-
bramento, a primeiro em 1939 com a transferência das coleções zoológicas
para sede própria ao lado do Museu Paulista e, a segunda, em 1989, quando
a Universidade de São Paulo unicou seus acervos de arqueologia e etno-
logia. Nesse contexto, em 1989 foi criado o atual Museu de Arqueologia
e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo, originário da fusão dos
acervos arqueológicos e etnológicos do Museu Paulista, do antigo Museu
de Arqueologia e Etnologia, do instituto de Pré-História e do Acervo Plínio
Ayrosa (do departamento de Ciências Sociais), passando a acolher um dos
maiores e mais representativos acervos de etnologia brasileira, com sede
na Cidade Universitária.
Sob a ótica de seu acervo, podemos considerar que o MAE é
detentor de uma das maiores, mais signicativas e mais bem preservadas
coleções do patrimônio etnológico indígena brasileiro, em que, coletar, es-
tudar, documentar, organizar, guardar, conservar, expor e educar tem sido
um de seus grandes desaos.
Os estudos com objetos museológicos são um meio de buscar
evidências das dinâmicas sociais de povos indígenas, reetindo na produção
material as formas peculiares de representação de seu meio ambiente, a
imagem que possuem de sua sociedade e a visão de seu mundo.
133
A antropologia de Lévi-Strauss nos ensina a pensar o objeto, a mer-
gulhar em seu interior, como faz o artista com seu modelo (empírico
e lembrado), e a explodir o pensamento para todos os lados, buscando
articulações teóricas e empíricas, históricas e mitológicas, plásticas
e semânticas, naturais e culturais. Pensar o objeto implica nos apro-
ximarmos dele como um resultado de um processo de criação, e do
próprio artista. Como materialização de estruturas de pensamento, o
objeto nos incita a invadir o vasto campo intelectual que comporta as
formas possíveis de pensamento organizado, da estética aos mitos.
Em trabalho recente a respeito dos objetos na estética Lévi-
Straussiana, Passetti (2004 a:126) enfatiza, que
Nesse sentido, os museus etnológicos buscam desenvolver
metodologias que permitam explorar o potencial de pesquisa das coleções
e extrair de conteúdos formais signicados em conexão ao seu universo de
produção, sendo este um dos grandes desaos para os etnólogos que trab-
alham com artefatos preservados em museus.
Nas últimas décadas, pesquisas etnológicas como as de Costa
(1978), Ribeiro (1978, 1986, 1988), Taveira (1982), Velthem (1998), Dorta
(1992), Vidal (2000), Abreu (1996), Campos (1996, 2002), entre outros
pesquisadores ligados a museus, têm demonstrado a importância do estudo
da arte e do artefato de sociedades indígenas, como elementos enuncia-
dores de signicados culturais para o grupo produtor, em que a produção
material passa a ser estudada como um dos componentes dos processos so-
ciais, epistemológicos e políticos, criando a interface com a maneira como
as coleções são investigados hoje no MAE.
134
A antropologia nos ensina a olhar o objeto como materializa-
ção de pensamento e signicados culturais. Nesse sentido, compartilho da
idéia de que os objetos, enquanto sistemas de representação visual cum-
prem a função semântica de ordenação e comunicação dos referenciais
simbólicos. Personicam papéis da ordem interna de uma sociedade, como
encarnações materiais.
Nossa maneira de conhecer acervos de museus é apenas uma
das formas possíveis, não a única, restando saber como pensam os indíge-
nas. Nesse sentido, buscamos junto aos produtores culturais, as referên-
cias necessárias para a compreensão de seu mundo material e o modo par-
ticular de organização da sociedade Karajá, bem como a visão que eles têm
sobre a guarda de coleções nos museus. Trata-se de um trabalho de mão
dupla onde os Karajá, como outros grupos indígenas, atribuem importância
aos museus por preservarem a memória histórica de seus antepassados.
Esse fato ca ilustrado com a experiência de levar as foto-
graas das bonecas do acervo do MAE para a aldeia Karajá em 2005. Esta
foi uma maneira de levar parte do acervo até eles e mostrar a importância
de preservar e divulgar os objetos de sua cultura no museu. Esse foi um
dos fatos que os estimularam a apoiar e colaborar para o desenvolvimento
desta pesquisa e indicar a forma de organização das famílias de bonecas,
até então desconhecida.
Por outro lado, em decorrência da implantação de uma políti-
ca de revitalização das culturas tradicionais indígenas, atualmente é uma
prática constante receber grupos indígenas para consulta das coleções.
Alguns grupos indígenas formados por membros mais velhos da sociedade
e acompanhados pelos jovens, buscam os objetos de sua cultura que não
135
são mais produzidos, na tentativa de ensinar a confecção para as no-
vas gerações. Em suas visitas, geralmente levam objetos recentes para
o museu, a exemplo dos Waurá, quando estiveram no MAE, possibilitando
a ampliação das coleções com objetos contemporâneos, como também
ocorre em outros museus.
4.3. Composições: a formação das colões Karajá
Os artefatos das populações indígenas do Brasil foram co-
letados desde os primeiros momentos de contato com os colonizadores
e vêm ilustrando as vitrines de museus estrangeiros como objetos de
povos “exóticos” desde o século XVI. O mais renomado destes objetos é
o manto Tupinambá, sem exemplares no Brasil, bem guardados em alguns
museus europeus. Pressupõe-se que as coleções brasileiras mais antigas
sejam do culo XIX, organizadas segundo paradigma pautado pelo col-
ecionismo, uma prática de colecionar bens de sociedades diversicadas.
Estima-se, no entanto, que objetos incorporados aos museus, por meio de
colões particulares que careciam de registros precisos, sejam de datas
anteriores ao século XIX.
Visão que se transmuta na virada para o século XX, cedendo
lugar às investigações cientícas, preocupadas em conhecer o contexto
da produção material. Preocupação, esta, transferida para a forma de
composição das coleções do Museu Paulista, que incorpora as novas met-
odologias e sistemáticas de coleta. Esses processos estão registrados na
Revista do Museu Paulista, publicação que mostra como se ao longo do
tempo, a especialização dos procedimentos de formação das coleções. Uma
136
das principais referências sobre a composição e história do acervo é o
trabalho de Tekla Hartman e Sérgio Damy (1986), que relata a origem das
primeiras coleções oriundas do Museu do Estado, oriundas de acervo for-
mado em 1877 pela incorporação da coleção particular do Major Joaquim
Sertório e do Museu da Sociedade Auxiliadora. Com a transferência para
o edifício construído em comemoração à Independência, no Ipiranga, o Mu-
seu do Estado passou a se chamar Museu Paulista, apelidado como Museu
do Ipiranga.
O inventário desse acervo revela a falta de sistemática de
registro das peças, sendo classicadas como “índios do Brasil” sem a refer-
ência étnica precisa, e não apresentando as datas e origem da coleta que,
com certeza, muitas vezes são anteriores a 1877. A forma de documenta-
ção adotada neste período inicial restringe o potencial de pesquisa acerca
das coleções, mas não o impede, pela existência de objetos similares em
coleções documentadas com maior acuidade.
A coleção Karajá é uma das mais antigas e mais numerosas,
comparando-se às coleções de outros povos indígenas. Ela é composta de
cerca de quatro mil itens, dos quais mais de setecentos são bonecas.
Embora os documentos registrem a coleção de 1904 como a
mais antiga, é possível reconhecer artefatos em coleções do nal do século
XIX como anteriores ao período da criação dos museus nacionais, lembran-
do que por não haver a normatização nominal das etnias indígenas o núcleo
inicial foi formado por coleção particular classicada e designada como
“índios do Brasil”. A classicação por grupos lingüísticos se concretizou na
década de 1950 com proposta encaminhada à primeira Reunião da Associa-
ção Brasileira de Antropologia. A partir dessa data, passou-se a reconhec-
137
er a identicar diversidade cultural e lingüística dos índios brasileiros.
A criação dos museus nacionais no século XIX justica o fato
de que as coleções mais antigas, formadas antes desse período, tenham
saído do país para compor os cenários das culturas exóticas nos museus es-
trangeiros. Visto que os Karajá eram reconhecidos nos documentos históri-
cos desde os primeiros tempos do contato com os colonizadores muitos
de seus objetos foram levados para museus estrangeiros, como o Museo
Prehistorico ed Etnográco “Luigi Pigorini” de Roma na Itália, com entrada
de duas coleções, uma em 1856, composta por 66 peças (incluindo bonecas),
coletada pela Missão Dominicana, e outra em 1899, composta por 87 peças
que compõem a coleção Luigi Buscalioni (Dorta, 1992:501-527).
Conforme mostram Damy e Hartman (1986) e Dorta (1992), a
análise das coleções por ordem cronológica possibilita, pelo método com-
parativo, evidenciar as variantes de mudanças e permanências na elabora-
ção dos objetos, “relevantes para o entendimento de dimensões contex-
tuais e da própria dinâmica das sociedades envolvidas” (Dorta, 1992: 501).
Por outro lado, segundo Berta Ribeiro (1986:33),
(...) o importante a considerar é que o colecionador, a época e a
forma do colecionamento m importância crucial para a avaliação
de uma coleção e suas possibilidades de estudo. (...) Ao estudioso
da coleção cabe discernir as motivações que, em cada caso, ocasio-
naram a coleta.
138
Nesse sentido, apresentamos a seguir, as coleções investiga-
das no MAE, uma das bases de nossa análise.
Coleção Hofbauer,
apresenta o registro mais antigo, coletada
por C.H. Hofbauer, que organizou uma coleção de 140 artefatos coligidos
em 1904, no rio Araguaia. (armas, plumária e outros adornos, cachimbos,
brinquedos e bonecas). Não há dados precisos sobre o coletor.
Coleção Franz Adam,
coletada em 1908 e doada ao Museu em
1909, totalizando 118 peças. (Armas, plumária e outros adornos, cerâmica,
bonecas, itens da indumentária, trançados, brinquedos, amostras de ma-
téria prima, pentes e utensílios diversos). Natural da Silésia, estava a dez
anos no Brasil quando foi convidado por Fritz Krause para acompanhá-lo
ao Araguaia em 1908. Dono de um pequeno comércio próximo a Itanhaém
– litoral sul de São Paulo – colecionava animais e plantas.
Coleção Bandeira Anhanguera,
deu entrada no Museu em
1937, resultante da expedição de mesmo nome, à bacia do Araguaia. Che-
ada por Hermano Ribeiro da Silva, buscava a penetração do vale do rio das
Mortes e da serra do Roncador. Darcy Bandeira de Melo, encarregado da
coleta de material etnográco organizou uma coleção com 54 peças (armas,
adornos, amostras de matéria prima, cerâmica).
Coleção Tiede, W.
Professor secundário de colégio alemão
em São Paulo, formou a coleção em viagem para o Araguaia em 1938 e 39.
Inicialmente a coleção foi comprada pelo Museu Dom José de Cuiabá/MT.
Em 1945, com a morte de seu fundador e colecionador, o material etnográ-
co foi transferido para o Museu Paulista, do qual faz parte a coleção
Karajá com 29 peças que hoje se encontra no MAE, (Adornos, carimbos,
139
armas, amostras de matéria prima, cerâmica, bonecas).
Coleção Schultz, H.
Coletou entre 1946 a 1960, cerca de
2126 artefatos dos Karajá, formando algumas coleções temáticas, dentre
elas a cerâmica com especial destaque às bonecas. Conguram-se como as
primeiras coleções sistemáticas, em que o coletor e etnógrafo do Museu
Paulista adotou critérios de coleta seguindo os métodos de investigação de-
senvolvidos pela Antropologia. Discípulo informal de Rondon e Nimuendajú
começou sua carreira como fotógrafo etnográco do SPI. Em 1946 estu-
dou etnologia na Escola de Sociologia e Política de São Paulo com Herbert
Baldus, com quem começou a trabalhar no Museu Paulista no ano seguinte,
coletando e documentando mais de seis mil artefatos, cerca de um terço
do acervo atual.
4.4 A Descoberta da Família
Após dois anos de estudo com as coleções Karajá do MAE e
da bibliograa de apoio, tive a iniciativa de buscar referências sobre as
coleções na aldeia de Santa Isabel, dando sentido ao que nos ensinou a
antropologia de Mauss, Boas e Lévi-Strauss, ao atribuir aos museus o papel
de prolongador da pesquisa de campo. O fato de trabalhar com coleções
já formadas, obrigou a inversão de procedimentos implicando em viagens à
campo, no local de origem das coleções para “prolongar” e ampliar o enten-
dimento sobre as bonecas.
A pesquisa teria signicado com a análise dos elementos
que não acompanhavam os conceitos classicatórios dos objetos do museu,
bem como dos fatores internos que condicionavam a produção das bonecas
140
em tão larga escala. As informações sobre as bonecas das coleções do MAE
se restringem aos detalhes técnicos como número de registro, descrições
morfológicas, matéria prima, técnica empregada, dimensões, local de guar-
da, coletor, data e origem. São dados de gerenciamento de acervo que não
respondem o porquê e para que as ceramistas Karajá vêm produzindo as
bonecas séculos em tão larga escala, tendo em vista que vários museus
com acervos etnográcos no Brasil e no exterior possuem muitos exem-
plares da cerâmica gurativa. Estas e outras questões poderiam ser
respondidas pelas ceramistas que dão continuidade a essa prática secular.
O primeiro encontro com os Karajá aconteceu em abril de
2005 na Festa Nacional do Índio em Bertioga, quando expressei o inter-
esse em visitá-los para conhecer as ceramistas e como eram feitas as bon-
ecas guardadas no Museu. Em janeiro de 2006, estava em São Félix do
Araguaia, na margem oposta do rio Araguaia que faz divisa com a aldeia, na
qual cheguei na mesma tarde com autorização do Cacique Iwraru. Ele me
acolheu em sua casa, junto a sua família, na aldeia Wataú. “Quer conhecer
Karajá, então vai dormir como Karajá, comer como Karajá e viver como
Karajá” (Iwraru, 2005). Dez minutos depois, estávamos desembarcando na
ilha do Bananal.
Chegando na aldeia Santa Isabel, fui apresentada à comuni-
dade, por Iwraru, como “a professora de São Paulo interessada em estu-
dar as bonecas”, o que favoreceu de imediato o convívio com as mulheres
e principalmente com as ceramistas das três aldeias, Santa Isabel, JK e
Wataú.
A série de mais de duzentas fotos de bonecas do acervo do
MAE, levada para mostrar a eles os inúmeros exemplares preservados no
141
Museu, intermediou o diálogo com as mulheres Karaque durante um mês
apresentaram todos os processos de confeão das bonecas, bem como
a identicação de cada representação de acordo com o sexo, as fases de
idade e a condição matrimonial. Começava a conhecer o que se passava na
imaginação das artistas, e, com isso os objetos ganhavam mais sentido,
pois podia-se perceber neles a ação e a sensibilidade das ceramistas. O
contrário ocorre no contato drio com as peças do Museu, que se de
formacnica, onde objetos emeros de registro se conjugam para ga-
rantir a guarda e preservão. Esta o é a única função do museu, mas
é a base técnica para garantir a pesquisa, a difusão e a educação em um
museu universitário.
Na véspera do retorno para São Paulo, recebi de Korixa, entre
os vários presentes, uma família de bonecas. Ela é uma das ceramistas mais
antigas, que me mostrou os processos de modelagem e de queima dos obje-
tos cerâmicos, quando confeccionava algumas bonecas para presentear sua
neta que havia completado cinco anos de idade. Minutos antes de partir,
quando eu estava terminando de embalar as bonecas para a viagem, uma
das mulheres perguntou quem havia dado aquela família.
Eu não a tinha procurado, pois essa forma de organização das
bonecas em conjuntos que representam a família Karajá era inexistente
nos museus, em registros visuais e na literatura etnográca, até aquele
momento. Eu estava ganhando de presente um dos propósitos básicos deste
estudo: a comprovação, no ambiente Karajá, da hipótese de que as bonecas
representam algo além do brinquedo.
Decorridos seis (longos) meses, deu-se em julho de 2006 o
retorno às aldeias de Santa Isabel, JK e Wataú. A experiência anterior
142
em campo, o amadurecimento teórico adquirido nesse intervalo e uma série
de questões levantadas, favoreceu o emprego de técnicas para obtenção
de dados empíricos, para a organização das coleções temáticas e princi-
palmente para investigar a “família” de bonecas. A minha chegada era
esperada pelos Karajá e pelas ceramistas que haviam confeccionado, em
minha ausência, alguns conjuntos de famílias. Estes conjuntos deram iní-
cio à minha coleção particular de estudo, que representa hoje a primeira
coleção temática com a organização de famílias, sendo uma delas doada
para o MAE, outra para o Museu da Cultura da Basiléia na Suíça e mais uma
para o Museu da Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
caracterizando as primeiras coleções desse gênero.
Composta por seis conjuntos com cerca de 60 bonecas produ-
zidas por cinco ceramistas, 20 bonecas modernas e de 15 animais, coletados
nos anos de 2005 e 2006, esta coleção possibilitou comparar as coleções do
MAE e acompanhar o movimento dinâmico de mudanças e permanências na
arte de confecção da cerâmica gurativa Karajá, bem como compreender a
forma de organização das famílias de bonecas, desconhecidas até então.
As novas referências adquiridas com a pesquisa de campo am-
pliaram o espectro de informações sobre a confecção das bonecas e sua
forma de circulação dentro e fora do ambiente cultural. O exame de sua
vinculação à vida social demonstrou que as bonecas não têm um sentido
apenas recreativo, conforme suposto, mas são conjuntos de objetos de
transmissão cultural, e por sua vez, podem ser utilizadas como fonte para
a compreensão mais ampla da sociedade Karajá.
A comparação de exemplares das coleções do MAE com ex-
emplares atuais produzidos pelas várias ceramistas Karajá, evidenciou que
143
grande parte dos padrões tradicionais continua sendo difundida, combi-
nada aos novos modelos morfológicos, temáticos e grácos, nas versões re-
centes. A variedade de versões registradas sobre o mesmo tema, tanto na
boneca antiga como na moderna, demonstrou que o repertório é composto
de elementos adotados de acordo com as preferências das ceramistas.
Algumas preferem seguir os padrões conhecidos, outras experimentam e
criam novos motivos grácos e formas para o mesmo tema. Assim, uma
boneca que representa a jovem solteira pode tanto apresentar uma pintura
corporal tradicional e característica para a faixa de idade, quanto um de-
senho criado segundo a imaginação da autora, sem transformar a identi-
cação da gura, desde que a ceramista mantenha os traços identicadores
daquela fase, como o corte de cabelo e os adereços especícos de sua
identidade sócio-cultural.
Este confronto com as bonecas coletadas em diferentes épo-
cas e o exame da estrutura sócio cultural, evidenciou também, que as mu-
danças ocorridas na sociedade e na cultura Karajá sugeriram redenições
na confecção das bonecas, ao que Castro Faria (1954) classicou como a
fase antiga e a moderna. Este processo de alteração temática surge como
forma de ajustes à nova situação de contato com a sociedade envolvente,
consumidora desses objetos.
Observamos aqui a criação de um processo de seleção que
passou a denir o que é produzido para o comércio, que recebem
grande estímulo por parte de turistas e órgãos de protão indígena.
Além disso, a venda de sua produção artística é também uma maneira de
garantir a sobrevivência de muitas famílias. Neste contexto, as bonecas
que reproduzem cenas representativas da vida cotidiana Karapassaram
144
a ser produzidas de maneira a cumprir as exigências dessa nova forma de
distribuão dos objetos, bem como forma de adaptação às condições de
vida que lhes foram impostas.
Contudo o contato com a sociedade não indígena, resulta tam-
bém em estímulo para o desenvolvimento da arte tradicional, como forma
de armação de sua identidade cultural. Neste contexto, arma Darcy
Ribeiro (1985:18),
(...) percebe-se claramente que a obra de arte faz parte das ex-
periências atuais de uma sociedade: sua especialidade, sua autono-
mia, seu valor estético não se separam absolutamente das outras
manifestações, materiais e intelectuais, da vida humana.
Hoje ocorre um novo processo de selão do repertório para
comércio, despertado pela valorização das famílias de bonecas deste es-
tudo. As ceramistas começaram a produzir conjuntos de famílias para
venda, cujos exemplares podem atualmente ser encontrados hoje, na Art-
india de São Paulo, no Museu Antropológico de Goiânia, no MAE e Museu
da Cultura da Basiléia/Suíça, este último o primeiro a expor, em 2007, a
família de bonecas Kara.
Finalmente, neste processo que poderíamos chamar de tra-
jetórias indígenas contemporâneas, está explícito que mesmo com a ocor-
rência de mudanças, as ceramistas continuam modelando inovações e
transmitindo tradições.
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