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ROBERTO FREITAS
PALAVRA, MÁQUINA, CORTINA
FLORIANÓPOLIS – SC
2007
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA UDESC
CENTRO DE ARTES CEART
DEPARTAMENTO DE ARTES PLÁSTICAS
ROBERTO FREITAS
PALAVRA, MÁQUINA, CORTINA
DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO PROGRAMA
DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS DO
CENTRO DE ARTES DA UNIVERSIDADE
ESTADUAL DE SANTA CATARINA COMO
REQUISITO PARA OBTENÇÃO DE TÍTULO DE
MESTRE EM ARTES VISUAIS.
ORIENTADORA: Prof.
a
Dr.
a
ROSÂNGELA CHEREM
FLORIANÓPOLIS – SC
2007
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ROBERTO FREITAS
PALAVRA, MÁQUINA, CORTINA
DISSERTAÇÃO APROVADA COMO REQUISITO PARCIAL PARA OBTENÇÃO
DE TÍTULO DE MESTRE, NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
ARTES VISUAIS DO CENTRO DE ARTES DA UNIVERSIDADE ESTADUAL
DE SANTA CATARINA.
Banca examinadora:
O r i e n t a d o r :
__________________________________________________
P r o f .
a
D r .
a
R O S Â N G E L A C H E R E M
UDESC
M e m b r o :
__________________________________________________
Prof. Dr. RAÚL ANTELO
UFSC
M e m b r o :
__________________________________________________
P r o f .
a
D r .
a
Y A R A G U A S Q U E
UDESC
AGRADECIMENTOS
Para Monica, Iara, Heitor Bráulio,
Rosângela, Lindote, Denise, Marta,
Rafael e todos que transformaram
meus olhos.
“There is no solution because there is
no problem.”
Marcel Duchamp
“Numa charada cujo tema é o
xadrez, qual a única palavra
proibida?”
JORGE LUIS BORGES
RESUMO
A partir da instalação denominada máquina (2006) este trabalho apresenta um
cruzamento do pensamento plástico com o pensamento teórico. As questões
artísticas são alocadas pelos procedimentos de uma historia da arte que
reconhece o anacronismo desdobrado em 3 aspectos.
No primeiro, considera-se o problema da palavra como o inapreensível da
linguagem. Ao relacionar as palavras e as coisas repete-se o gesto da
sobrevivência das formas como algo que mantém vínculos com o extra
sensível, permite correspondência, mas jamais equivalência.
Na segunda parte o conceito de máquina é enfrentado como sendo de uma
unidade que produz fluxo, gerando imagens em movimento e permitindo
estabelecer uma relação entre pintura de máquinas, máquinas de pinturas e
pinturas como máquinas.
Na terceira parte a cortina disposta como uma noção operatória que considera
a metarepresentação do trompe l’oeil. O ato de ver um objeto de arte como o
gesto de depositar o olhar e encontrar um correlato na retribuição do olhar, a
superfície plástica como um véu.
PALAVRAS-CHAVE: palavra, véu, máquina, anacronismo, arte.
ABSTRACT
Using the installation called máquina (2006) as a starting point, this work
presents an intersection between plastic and theoretical thinking. The artistic
questions are situated in the proceedings of an art history that acknowledges
anachronism in three aspects.
In the first, the problematic of the word is considered like the inapprehensible of
language. By connecting words and things, the gesture of survival of forms as
something that related with the extra sensible is repeated, it permits
correspondences but never equivalence.
In the second part the concept of machine is studied like as a unity that
generates flows, creating moving pictures and establishing relations between
machine’s painting, painting’s machines and painting as machines.
In the third part the curtain is disposed in an operational notion that considers
the metarepresentation of the trompe l’oeil. The act of seeing an object of art as
a gesture of placing the view and finding correlation in the retribution of this
view. The plastic surfacing as a veil.
KEYWORDS: Word, veil, machine, anachronism, art.
Para Valeska, em memória.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................11
INTERLÚDIO .....................................................................................................19
1 O VÉU DAS PALAVRAS
.1 PEQUENO SUSSURRO DAS PALAVRAS ..................................................31
.2 O DESENHO COMO CONCEITO ................................................................40
.3 PALAVRA E TAUTOLOGIA ...........................................................................46
.4 IMAGEM RECALQUE ...................................................................................53
2 O VÉU DAS MÁQUINAS, DAS LUZES E DAS SOMBRAS
2.1 MÁQUINA .....................................................................................................56
2.2 PINTURA DE MÁQUINA ...............................................................................59
2.3 EU VEJO, UMA JANELA ...............................................................................74
3 UMA CORTINA QUE NÃO SE ABRE, O VÉU DO OLHAR
3.1 MÁQUINA VÉU .............................................................................................90
3.2 AFÂNISE SENSORIAL .................................................................................94
3.3 VER, PRESSUPÕE VELAMENTO ...............................................................98
3.4 VÍDEO AUSENTE .......................................................................................106
3.5 EPIFANIA ....................................................................................................112
REFERÊNCIAS ................................................................................................115
APÊNDICE .......................................................................................................117
INTRODUÇÃO
A obra de arte, a obra literária – não é acabada nem inacabada: ela é.
O que nos diz é exclusivamente isso: que é e nada mais. Fora
disso, não é nada. Quem quer fazê-la exprimir algo mais, nada
encontra, descobre que nela nada exprime. Aquele que vive na
dependência da obra, seja para escrevê-la, seja para lê-la, pertence à
solidão do que a palavra ser exprime: palavra que a linguagem
abriga dissimulando-a ou faz aparecer quando se oculta no vazio
silencioso da obra.
1
Será possível que haja um pensamento não-plástico sobre o plástico? Se a
historia da arte é o lugar em que proposições originais são pautadas, não seria toda
construção plástica atual uma reaparição de problemas que constam nela em
algum lugar?
Estruturar um pensar sobre o pensamento em artes plásticas pressupõe um
risco. Isto porque a natureza das linguagens verbal e visual são dessemelhantes. Ao
refletir sobre processos de pensamento provenientes das artes plásticas, este texto
adentra um território tenso, na medida em que o pensamento plástico é elaborado
de modo diferente do utilizado pelo raciocínio da escritura; se o processo de pensar
o plástico difere do processo da escritura, não simplificação cabível, se um
grande problema de episteme na tradução entre línguas, não o que se escrever
sobre uma obra que não seja outra coisa, perante ela é possível encontrar
silêncio.
Com o esquerdo, de saída, essa escritura arrisca fazer algo infeliz,
discorrer sobre um trabalho em artes plásticas que foi desenvolvido no ano de 2006.
De antemão, se adianta que não almeja explicar, traduzir ou descrever o trabalho
em que se calca, este texto é um aglomerado, composto de camadas, véus que
encobrem e recobrem problemas de um pensamento plástico. Não o pensamento
original do trabalho, mas um pensamento original no trabalho, tentando sempre, ao
máximo, respeitar o silêncio da obra.
Para Walter Benjamim, a origem não estava calcada em um passado
longínquo ou inacessível, a origem benjaminiana pode ser interpretada como um
11
1
BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. RJ: Rocco, 1987 (p 12).
devir do presente que relampeja toda a vez que é memorada, perpassando-o
impassível no exato momento em que é reconhecido
2
.
No ano de 2006, a instalação, que é o problema inicial deste texto, foi
construída metodicamente. Ela não possui título e será aqui chamada de máquina
(sempre em itálico). A máquina é, em certo sentido, uma “colagem”, composta por
três pequenos televisores preto e branco de cinco polegadas, sem a carcaça, que
foram dispostos em três salas do Museu de Arte de Santa Catarina durante o
Salão Nacional Victor Meirelles. Em uma sala, estavam apenas os tubos de imagem
contra a parede, presos de forma que o local por onde são vistas as imagens de
cada monitor, ficavam inacessíveis ao olhar. A estrutura distanciava-se 2,70 metros
do chão impossibilitando o alcance das mãos. As partes das placas de circuito, com
todos os seus subordinados eletrônicos, estão em uma outra sala, parafusadas
contra a parede a uma altura de 1 metro. Os tubos estão ligados aos circuitos por
quatro mil metros de fiação elétrica, que constróem um desenho no espaço. O
desenho vai andando e juntando as duas salas, passando por uma terceira, assim
como é possível ver nas imagens abaixo. O que é importante dizer, e que não
aparece nas imagens anexadas, diz respeito aos canais sintonizados: três canais
diferentes de TV aberta, onde o volume do áudio é cuidadosamente ajustado para
que, na sala que precede e na que estão os circuitos, possa ser ouvida uma
intersecção de falas. O ajuste do volume realça as intersecções de sons, de forma a
confundirem-se entre si, incompreensíveis. Quanto às imagens, que poderiam ser
vistas na outra extremidade, são destruídas pela interferência causada por campos
eletromagnéticos produzidos nos desenhos de fiação elétrica no chão. O pouco que
resta da nitidez das imagens no tubo e é bem pouco, porque a maior parte torna-
se ruído no trajeto – está disposta para a parede e é vetada aos olhos.
O trabalho foi pensado, realizado, montado e exibido; depois se tornou o
estopim de uma série que se desdobrou em paralelo com essa pesquisa.
Concomitante a este texto, desdobramentos da máquina foram construídos, mas o
que justifica a realização dessa escritura nesse momento? A construção sobre um
trabalho finalizado reproblematiza, de alguma forma, questões levantadas na
construção, tanto do trabalho sobre o qual se calca, como pensamentos que
12
2
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo, ed
Brasiliense, 1993 (p 224).
continuam presentes na construção do plástico dos desdobramentos da série. Mas
também, o contrário: este texto, na medida em que é pensado, acaba por
resignificar aquele trabalho e, por conseqüência, mudar a origem de trabalhos
desenvolvidos posteriormente. Lembrando as lições benjaminianas de “ler no
passado o presente que lê”, este texto é composto de camadas que emergem
daquele passado, espessando o presente que pensa questões recalcadas. As
camadas veladas que se sobrepõem ao referido trabalho, ao mesmo tempo em que
se tornam mais opacas, menos visíveis, reconstróem questões que eram alicerces
do pensamento constituinte do trabalho. É uma questão de veladura, que cobre,
recobre, mas torna visível, fazendo aparecer, as mais diferentes estruturas que
estavam lá, no entremeio de um pensamento e outro, que não foram premeditadas,
mas que, agora, são as questões constituintes fundamentais no pensamento da
máquina.
“El passado no cesa nunca de reconfigurarse” afirma Georges Didi-
Huberman, em seu livro “Ante el tiempo”
3
. Este texto é construído como um espaço
do intempestivo, do impensado, que pode ser percebido depois de um tempo.
Neste caso, um curto espaço de tempo, mas, mesmo assim, num espaço/tempo
outro, que não o da construção da obra. Este texto deseja operar na constituição de
um espaço, que é atravessado por pensamentos pendentes, recalcados e que
possibilitam a aparição do fantasmático.
O tempo, pensado como um turbilhão, como uma saturação de “agoras”,
infindável sucessão de momentos presentes que se saturam, soma forças neste
instante para configurar-se enquanto força no passado. O passado é possível, com
toda a sua importância, porque está compacto no presente. Ler o passado é
significá-lo com suas implicações no presente, um paradoxo. Ler algo que passou
significa reatribuir significados ao passado, significa ser anacrônico, colocar em
choque duas temporalidades. Um historiador que sonha estar munido de uma boa
distância histórica para poder analisar um trabalho em arte, com uma certa
idoneidade, possui uma visão positivista da disciplina da história. Pensar que o
decurso do tempo trabalha a favor do pensamento sobre o pensamento plástico,
fazendo com que o lapso seja força constituinte do pensamento, tanto sobre o
13
3
DIDI HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora, 2006 (p 12).
intempestivo quanto sobre o inverificável é uma forma de realicerçar a própria força
constituinte da máquina.
Para criar uma escritura um pensamento sobre o pensamento plástico, que
se considerar que todo pensamento é desvio; que o pensamento, que é a força
constituinte da máquina, é formado por problemas que não constarão explicitamente
neste texto nesta escritura que se segue. Corre o risco de ser infeliz e, para isso,
corre um caminho que não pôde ser feito no momento da fatura, que não cabia
enquanto reflexão de uma obra plástica, pelo menos no momento do pensamento
plástico; este texto quer ser um desvio na rota do pensamento, um retorno
anacrônico que deseja cortar o viço da máquina. Como lembra Didi-Huberman
citando Michael Foucault:
Saber, incluso em orden histórico, no significa recobrar, ne mucho
menos recobrarnos. La história será efectiva en la medida en que
introduzca lo discontinuo en nuestro proprio ser(...). el saber no está
hecho para compreender, sino cortar
4
Todo pensamento, ao ser investigado, apresenta-se em camadas. No caso do
pensamento que constitui uma instalação, camadas de experimentação, outras
de anotações e notas, ainda as camadas de montagens, decomposições e
recomposições. Entre essas camadas, algumas estão em intersecção com questões
da historiografia da arte, porém, são pensadas de uma maneira que parece caótica
quando analisadas de fora de um pensamento plástico e visual. É através de
imagens, que serviram como estrutura do pensamento, que é possível compreender
o pensamento plástico e toda a sua construção das sensações.
Guilles Deleuze e Felix Gattari propõem três grandes formas de pensar o
mundo como o querem enfrentar e, assim, esboçam um plano sobre o caos
perceptivo do mundo: o pensamento filosófico, o científico e o artístico:
[...] a filosofia quer salvar o infinito, dando-lhe consistência: ela traça
um plano de imanência, que leva até o infinito acontecimentos ou
conceitos consistentes, sob a ação de personagens conceituais. A
ciência, ao contrário, renuncia ao infinito para ganhar a referência: ela
traça um plano de coordenadas somente indefinidas, que define
sempre estados de coisas, funções ou proposições referenciais, sob a
ação de observadores parciais. A arte quer criar finito que restitua o
infinito: traça um plano de composição que carrega por sua vez
14
4
DIDI HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo, Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora, 2006 (p 27).
monumentos ou sensações compostas, sob a ação de figuras
estéticas.
5
Um trabalho em arte não deseja ser um olhar de crítico, teórico ou historiador
da arte, apesar de fazer caminhar pela crítica, teoria e história. Essa fala é a busca
por entender processos relativos ao pensamento artístico, ao pensamento em arte
dentro de um método que é particular à maneira de um artista organizar o seu caos
perceptivo do mundo. Cada artista possui a sua maneira de organizar esse caos, de
construir seus perceptos. Se “a arte quer criar um finito que restitua o infinito” e, se
faz isso construindo um bloco de sensações, que são por sua vez constituídos de
um composto de perceptos e afectos que independem de quem a construiu e, se a
arte deve ficar em sem o artista e, ainda, se ela deve se manter em pé sendo um
puro Ser de sensações, deve fazer isso de uma maneira única e singular, como é de
se esperar que cada artista construa o seu trabalho.
Como este texto é algo que se está fazendo depois, ele é um conglomerado
de véus sobre o pensamento plástico constituinte do trabalho. Alguns véus vêm da
história da arte, outros, da teoria e alguns, da filosofia. Estes véus cobrem três
partes da instalação em questão, e estão organizados em três capítulos no decorrer
do texto. Todos os capítulos se iniciarão com problemas conectados diretamente
com a máquina – a instalação que é a força matriz destes pensamentos.
O primeiro capítulo trará à cena do texto uma série de teóricos e artistas:
Marcel Duchamp, Didi-Huberman, Georges Bataille, Vilém Flusser, Joseph Kosuth,
Frederico Zuccaro, Walter Benjamin, Rosalind Krauss e Michel Foucault. Eles
servirão de alicerce para algumas questões trabalhadas no decorrer do texto.
Existe uma armação, uma constelação, que gravita ao redor de problemas
relativos à palavra e à Babel, com todas as falas que não podem ser compreendidas.
Um problema matriz de qualquer iniciativa que se proponha a discorrer sobre
imagens. Se a imagem é uma borboleta, como coloca Didi-Huberman, uma fala
sobre o seu vôo pode vir a voar com ela, em aleteios, mas nunca poderá tocá-la por
mais de um instante. Uma fala sobe um vôo encobre sua fugacidade e, para isso,
ficciona, assim, pode tocar o intangível. Pronunciar ou escrever palavras é um ato de
romper com imagens.
15
5
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Ed 34, 1992 (p 253).
Esta escritura articula a idéia de que uma fala plástica não opera construindo
comunicação ou expressão. Mesmo no ambiente de uma Babel, onde todos falam e
não se entendem, onde não pode haver comunicação, mesmo lá, ainda existe algo
que se possa compreender, mas não é nem com palavras, nem com imagens, que a
descontinuidade dos seres é preenchida.
As incomunicabilidades gravitam aleatoriamente em um universo de
semelhanças, ler pode ser um ato de encontrar, o que Walter Benjamin vai chamar
de semelhanças extra sensíveis
6
. É neste ato de ler semelhanças que a
inteligibilidade das coisas se articula. Deste modo, o texto indagar-se-á sobre a
razão e a visualidade: poderia a razão dar conta do que vemos? Não seria o próprio
significado das coisas que cria véus sobre a compreensão das mesmas?
Por fim, o primeiro capítulo adentra num paradoxo: a construção
excessivamente racional da obra de arte, que leva a um ideal de pureza, não seria o
caminho para uma desmaterialização enquanto objeto? Não seria a pureza um
espaço de morte da imagem?
O segundo capítulo vai trazer para o palco do texto reflexões sobre máquinas:
pinturas de máquinas, máquinas de pintura e pinturas como máquinas. Para essas
questões estarão presentes, como protagonistas, os seguintes teóricos e artistas:
Francis Picabia, Marcel Duchamp, Michael Braxandall, Raymond Russel, Alfred
Jarry, Gilles Deleuze, Abraham Palatnik, Octavio Paz, Raúl Antelo, Walter Benjamin,
Bill Viola, Philippe Dubois e Paul Virilio.
Todo trabalho de arte visual carrega questões tautológicas, as quais reforçam
o vôo das imagens ou, por uma questão de enfoque, podem empalhar a imagem,
transformá-la numa tábula rasa.
Duchamp nomeou seu Grande Vidro de máquina celibatária, uma máquina-
imagem que transforma o amor erótico em pulsão de morte, uma espécie de mito
alegórico do mundo moderno e, ao mesmo tempo, da modernidade. Muitos foram os
artistas e teóricos que trabalharam com a lógica do dispêndio, tentando
compreender um pouco melhor o que significam e, quais as implicações destas
máquinas na esfera do objeto artístico.
16
6
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: ed
Brasiliense, 1993 (p 108).
Como não poderia deixar de ser, posto que a instalação que é a força motriz
deste trabalho e, em certa medida, uma vídeo instalação, este capítulo tentará deter-
se um pouco sobre questões relativas a máquinas geradoras de imagens em
movimento: o cinema e principalmente a tv uma máquina que gera grande
dispêndio, relacionando-se sempre com a vontade do ser humano de ver sem a
necessidade de estar. Este capítulo reune um arquivo de máquinas de visão, de tele-
visão para fazer-se a questão: poderia o aparelho videográfico ser pensado como
uma maquina celibatária? Uma máquina que corre, o mais rápido que uma máquina
jamais pôde correr, para atualizar imagens que, na grande maioria das vezes, não
são vistas por ninguém.
No terceiro capítulo: Jacques Lacan, Gilles Deleuze, Bill Viola, Jean Genet,
Didi-Huberman, Rosalind Krauss, Marcel Duchamp, Maurice Blanchot, Wolf Vostell e
Nam June Paik, entre outros, estarão no texto para suscitar questões relacionadas
com os véus do olhar.
Ver um trabalho em arte é sempre um ato de depositar o olhar, ao mesmo
tempo, todo objeto de arte retribui o olhar, porém nunca da mesma maneira com que
se olha. É o paradoxo do campo escópico.
Na contra mão da tabuleta de Brunelleschi, artistas trabalharam na
desconstrução do tão estimado território da representação profunda na pintura,
enxergar os véus, as cortinas que recobrem todo o ato de olhar. A própria superfície
pictórica pode ser pensada como cortina, quando Zêuxis e Parrásio, final do século
V ac, disputam um prêmio em Atenas para verificar quem pintava com mais
ilusionismo, Zêuxis pinta uvas tão perfeitas que um pássaro tenta bicá-las, por sua
vez, Parrásio pinta uma tela com uma cortina na frente; Zêuxis pede para que
afastem a cortina para que ele possa ver a pintura e é traído pela visão. A cortina é o
universo da meta-representação, do trompe l’oeil, a imagem como borrão.
O véu é a superfície capaz de velar, é o que encobre, o que disfarça, o que
torna sombrio ou menos claro, é também o que ofusca e o que tapa, o que esconde
e, por conseqüência, é o que mostra, mas não de forma escancarada: desvelar é um
ato que contém uma ponta de voyeurismo. O retard sobre vidro, chamado Glissière
Contenant um Moulin à Eau en Métaux Voisins, dentro de uma estratégia da
colagem, pensa o vidro como estratégia de aleteio da imagem. O bater de asas do
17
Glissière que levanta vôo pelas frestas da grade do espaço da representação
profunda.
Por fim, vídeo como estratégia de rasgar a cortina do espaço pictórico,
tentando ver do outro lado da representação e encontrando o borrão. O trompe
l’oeil, o ponto onde a imagem se mistura com o mundo, ilumina o olhar com um
brilho relampejado capaz de arrebatar violentamente.
Algo antigo, quando objeto do olhar, automaticamente deixa de lado a sua
antiguidade, “el passado no cesa nunca de reconfigurarse” nos colocou Didi-
Huberman, a imagem frente aos olhos não tem passado, ela tem futuro, “ante ella (a
imagem) somos el elemento frágil, el elemento de paso, y que ante nosotros ella es
el elemento del futuro, el elemento de la duración”
7
. A imagem dura e se atualiza nas
novas imagens, ela fica esperando certo tipo de olhar cair sobre ela, espera ser
significada novamente, com a colagem da memória de quem olha. Antes de entrar
pelos véus dos capítulos haverá um interlúdio, onde imagens da máquina serão
apresentadas.
18
7
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el Tiempo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora, 2006 (p 12).
INTERLÚDIO
19
20
Roberto Freitas s / título (série máquina) dimensões variáveis 9
o
Salão Victor Meirelles, 2006.
21
22
23
24
Roberto Freitas esboços para a construção da máquina caderno de esboços, impresso em vegetal, tal qual no original.
25
26
27
28
29
30
1 O VÉU DAS PALAVRAS
.1 Pequeno sussurro das palavras
[...] sobre las palabras ha recaído la tarea y el poder de "representar
el pensamiento". Pero representar no quiere decir aquí traducir,
proporcionar una versión visible, fabricar un doble material que sea
capaz de reproducir, sobre la vertiente externa del cuerpo el
pensamiento en toda su exactitud. Representar es oír en el sentido
estricto: el lenguaje representa el pensamiento, como éste se
representa a sí mismo.
8
Havia dois homens que trabalhavam como copistas de escritório em Paris,
tornaram-se muito amigos; sentiam-se cúmplices porque ambos eram tomados por
um sentimento de aviltamento de uma vida verdadeira, sentiam-se como vítimas de
uma vida mesquinha, fruto do ofício. Ambos viviam incontáveis horas frente a uma
escrivaninha a copiar, a repetir palavras, até que o acaso (sorte) bateu a porta na
forma de uma herança. Bouvard, o herdeiro, convidou Pécuchet, o amigo, a largar o
oficio no escritório e tentar a vida como fazendeiro na Normandia.
O novo ofício exigia que ambos dedicassem-se à leitura de tudo que havia
sido escrito em manuais e livros sobre o assunto de cultivo de plantas, assim o
fizeram, mas, malgrado o esforço, fracassaram, não logrando o cultivo. Tentaram
outros ofícios, para evitar voltar ao antigo: arboricultura, arquitetura de jardins,
anatomia, química, geologia, etc. tentaram de tudo, lendo toda sorte de material que
encontravam pela frente sobre os respectivos assuntos, porém, fracassavam
sempre. Quanto mais consultavam livros mais percebiam que estavam longe de
compreender a natureza do ofício que escolheram. Decidiram, finalmente, voltar a
copiar, ao antigo ofício.
Em frente! Chega de especular! Continuemos a copiar! A página
tem que ser preenchida. O bem e o mal, tudo é igual. O farsesco e o
sublime – o belo e o feio –, o insignificante e o emblemático, tudo vira
uma glorificação da estatística. Não nada além dos fatos e dos
fenômenos.
9
31
8
FOUCAULT, Michel. Las Palavras e las cosas, una arqueología de las ciencias humanas.
Madrid: Siglo XXI Editores, SA, 1968 (p 83)
9
FLAUBERT, Gustave. Bouvard e Pécuchet. Paris, Bookking intenational, 1994.
O trágico final destes dois hilários personagens de Flaubert, o destino
inevitável de copiar frente a uma escrivaninha e a perda completa da crença nas
palavras, nos textos, coloca-me frente a uma importante indagação: até que ponto
as palavras dão conta do mundo sensível?
Um pensamento sobre o pensamento de imagens, é a que se propõe esta
escritura. Mas como falar de imagens? Sempre que se deposita um olhar sobre um
trabalho de artes plásticas, perguntas se materializam, talvez seja o trabalho que
elabora as perguntas. O fato é que sempre que um olhar é depositado ele recorre a
uma mediação de palavras para ensaiar uma aproximação de seu sentido. Mesmo
que se tenha compreendido algo com os olhos, num relâmpago, as palavras são
evocadas para dar conta da imaginação. Algo impossível porque se sabe do poder
das palavras de diluir as imagens.
A máquina, como muitos dos trabalhos em artes visuais, carrega em sua base
de construção o problema das palavras, a máquina fala; palavras aleatórias brotam
de três alto-falantes conectados aos circuitos presos na parede. Como foi dito
antes, cada um está encarregado de proferir um discurso próprio, cada um repete o
que uma emissora de tv está transmitindo em rede aberta no agora, no momento da
exposição. São três vozes díspares que aparecem antes que se possa ver qualquer
32
Roberto Freitas s / título (série máquina) 9
o
Salão Victor Meirelles, 2006
coisa. É da natureza do som ser invasivo: não se pode escolher o que se quer ouvir,
diferente dos olhos que sempre podem ser desviados ou, simplesmente, cerrados,
os ouvidos sempre escutam, mesmo o que não querem. Na entrada da galeria se
pode escutar os sons dos alto-falantes, não é possível entender o que dizem, soam
como murmúrios, fruto da interferência sonora: quando dois ou mais sons entram em
colisão, ocorre um enfraquecimento ou um reforço de suas ondulatórias, assim,
freqüências do som tornam-se inaudíveis e outras, mesmo que audíveis, tornam-se
incompreensíveis, uma babel.
Se a impressão de que as palavras vêm antes é verdadeira, sua base está na
premissa de que todo o tempo escuta-se palavras, lê-se palavras, pensa-se por
palavras. É justo dizer que as palavras estão diretamente ligadas com a maneira
com a qual se compreende o mundo e, ao ver uma imagem com força, a primeira
reação é a de se proteger por detrás de palavras. Conceber a experiência de
imagem mediada por palavras é uma garantia de suportá-la, como se, ao conceituar
uma imagem com palavras, estivéssemos diluindo sua força.
Entrar em um espaço constituído como espaço do ver e deparar-se apenas
com o sussurro que vem de encontro aos ouvidos, com um espaço sem imagens, é
como limpar os olhos. Porém o som tem a mania de encher a cabeça de
imaginação, no sentido de compor imagens. Se a imaginação não pára, se o sentido
de compor imagem é a força do pensamento, é possível que se veja melhor com os
olhos fechados. Se, ao pensar com palavras, se pode explanar o que se está
pensando com palavras, pensar com imagens opera o risco eminente da perda no
universo do indizível, porque, mesmo que cada palavra possua um correspondente
imagem, um referente imagem, mesmo que pouco provável, infinitas imagens não
encontrarão seu referente palavra. Para dizer o que se pensa de se recorrer às
palavras, porém, para isso, de se recorrer às imagens. Pronunciar ou escrever
palavras é um gesto de romper com as imagens.
33
Vilém Flusser criou uma ficção para a invenção do texto em seu Filosofia da
Caixa Preta:
O homem se esquece o motivo pelo qual as imagens são produzidas:
servem de instrumento para orientá-lo no mundo. Imaginação torna-
se alucinação e o homem passa a ser incapaz de decifrar imagens,
de reconstituir as dimensões abstraídas. No segundo milênio antes
de cristo, tal alucinação para o mundo concreto escondido pelas
imagens. O método de rasgamento consistia em desfiar as
superfícies das imagens em linhas e alinhar os elementos
imagísticos. Eis como foi inventada a escrita linear.
10
Flusser defende que a criação do texto foi obra dos iconoclastas, aqueles
que, num período de crença cega nas imagens, mantiveram a tradição de leitura das
mesmas. As imagens, para Flusser, servem para mediar a relação do homem com o
mundo, seriam um espaço de pensamento exterior sobre o mundo exterior.
Imagens são mediações entre o homem e o mundo. O homem
“existe”, isto é, o mundo não lhe está acessível imediatamente.
Imagens tem o propósito de representar o mundo. Mas, ao fazê-lo,
entrepõem-se entre o mundo e o homem, passam a ser biombos. O
homem ao invés de se servir das imagens em função do mundo,
passa a viver em função das imagens. Não mais decifra as cenas da
imagem como significados do mundo, mas o próprio mundo vai
sendo vivenciado como conjunto de cenas. Tal inversão da função
das imagens é a idolatria.
11
34
10
FLUSSER,Vilém. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985 (p 08 ).
11
Idem (p 07).
Roberto Freitas s / título (série máquina) 9
o
Salão Victor Meirelles, 2006
Para Flusser, os iconoclastas começaram a pensar que os idólatras viam as
imagens como uma espécie de biombo para o mundo; os iconoclastas, na visão do
autor, aqueles que guardavam um saber sobre a leitura das imagens, tentaram
construir um código para mediar as imagens e os homens, este código é paradoxal,
no sentido em que tenta ser uma mediação para uma mediação do mundo. Isso é o
que o autor vai chamar de contradição interna dos textos.
São eles mediações tanto quanto são as imagens. Seu propósito é
de mediar entre homens e imagens. Ocorre, porém, que textos
podem tapar as imagens que pretendem representar algo para o
homem. Ele passa a ser incapaz de decifrar textos, não conseguindo
reconstruir as imagens abstraídas. Passa a viver não mais se
servindo dos textos, mais em função destes.
Surge a textolatria, tão alucinatória quanto a idolatria.
12
A incapacidade crônica de ler textos, de compreender as imagens que
habitam os textos evidencia a natureza cíclica do tempo. O que o autor vai chamar
de tempo circular, um tempo de magia, onde os fatos estão amarrados uns aos
outros, compartilhando sentidos, uma espécie de entrelaçamento entre diferentes
coisas. O tempo circular seria o oposto ao que o autor vai chamar de tempo linear.
Se no último “o nascer do sol é a causa do canto do galo”
13
,
no primeiro, “o canto do
galo significado ao nascer do sol, e este significado ao cantar do galo”
14
.
Assim, seguindo a natureza cíclica dos fatos, na expectativa de se livrar na inevitável
textolatria, os homens têm a idéia de criar ilustrações ao texto, na esperança de criar
uma mediação entre os homens e os textos. Assim, a natureza confusamente cíclica
se evidencia, a relação do texto, das palavras e das imagens que vai se sobrepondo
em camadas, transformando a natureza tanto das imagens quanto a dos textos,
ficando difícil de imaginar qual a relação delas com o mundo. Essas relações se dão
por semelhanças extra sensíveis.
Walter Benjamin escreve em seu ensaio A Doutrina das Semelhanças, que o
homem tem a capacidade suprema de produzir semelhanças, essa capacidade foi
usada para as mais variadas atividades. Entre elas, destaca-se a capacidade de
35
12
Ibidem. (p 08 - 09).
13
Ibidem (p 07).
14
Ibidem.
leitura, tanto a leitura das semelhanças, como a das semelhanças extra sensíveis.
Ler o futuro, ao ler estrelas é, para Benjamim, uma dupla leitura, diferente de uma
criança que o alfabeto, ao ler as estrelas lê-se algo que ultrapassa o que nelas,
ao lê-las é possível ler também o futuro que perpassa como um relâmpago o
momento do nascimento de uma criança. Desta maneira, o astrólogo pode ler
semelhanças extra sensíveis entre dois movimentos temporais únicos: o nascimento
e a posição dos astros. A dimensão extra sensível das palavras é a mais alta
capacidade humana de criar semelhanças, Benjamim lembra que ao ordenar várias
palavras de diferentes línguas, que possuam a mesma significação, por mais
distintas que elas possam se apresentar graficamente ou soar, todas elas terão
semelhança imagética. “A semelhança extra sensível que estabelece a ligação não
somente entre o falado e o intencionado, mas também entre o escrito e o
intencionado, e entre o falado e o escrito. E o faz de modo sempre novo, originário,
irredutível”
15
.
A razão que permitiu que Pécuchet e Bouvard pudessem voltar a copiar
palavras, pode estar relacionada com toda uma infinita rede de conceitos de
semelhanças extra-sensíveis. Mesmo na Babel algo que merece ser
compreendido.
Voltamos ao problema das três vozes, cada uma falando algo diferente ao
mesmo tempo, sempre uma intersecção de falas que se atropelam. Mas,
possivelmente, antes de compreender o que cada um delas está falando, se pode
deduzir algumas coisas a respeito daquela fala. algo no timbre do som de um
aparelho eletrônico que é muito familiar, quando se ouve um som eletrônico à
distância, possivelmente é possível perceber do que se trata. Não o conteúdo
preciso, não o que aquelas vozes estão dizendo de fato, mas é possível descrever o
tipo de discurso, um discurso de televisão.
Lo que distingue la lenguaje de todos los demás signos y le permite
desempeñar un papel decisivo en la representación no es tanto que
sea individual o colectivo, natural o arbitrario, sino que analice la
representación según un orden necesariamente sucesivo: los
sonidos, en efecto, sólo pueden ser articulados uno a uno; un
lenguaje no puede representar al pensamiento, de golpe, en su
36
15
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: ed
Brasiliense, 1993 (p 111).
totalidad; es necesario que lo disponga parte a parte según un orden
lineal.
16
Paredes vazias de coisas para ver, luz tênue, típica dos espaços de
exposição. Um imbricamento de falas despojam seu caráter de construção linear de
um pensamento. O ruído que propõem, a confusão incompreensível de vozes que
falam sobre a sua natureza de ruído, sua natureza de não comunicabilidade, de uma
fala estéril que não vale escutar. Trata-se da irracionalidade da língua, por mais que
palavras sejam ditas não garantia de que haja alguém que as escute. Georges
Bataille nos lembra que a nossa existência está intimamente ligada com a
linguagem.
Cada pessoa imagina, e assim conhece, a sua existência com ajuda
das palavras. As palavras lhe vem a cabeça, carregadas da multidão
de existências humanas ou não humanas –, em relação às quais
existe a sua existência privada. O ser é em si mediado pelas
palavras, que só podem se dar arbitrariamente como ser autônomo e
profundamente como ser em relação. Basta seguir, por pouco tempo,
o rastro dos percurso repetidos das palavras para perceber, em que
espécie de visão, a construção labiríntica do ser.
17
Bataille argumenta que, se por um lado a linguagem ajuda na construção do
ser, por outro ela é ineficaz para produzir comunicação. Para Bataille, a experiência
humana é aterrada numa angústia primordial, uma angústia de não ser acessível a
união com outros seres. Humanos são seres descontínuos e essa condição pode
mudar em ocasiões muito específicas, como a do riso coletivo, a religião e o
erotismo. De qualquer forma, toda a continuidade entre os seres só é possível
através do artifício.
Do começo ao fim dessa vida humana, que é nosso lote, a
consciência do pouco de estabilidade, até a profunda falta de
qualquer estabilidade verdadeira, libera os encantamentos do riso.
Como se, bruscamente, esta vida passasse de uma solidez vazia e
triste ao feliz contágio do calor e da luz [...] Se um conjunto de
pessoas ri de uma frase, revelando um absurdo, ou de um gesto
distraído, elas são percorridas por uma corrente intensa de
comunicação. Cada existência isolada sai de si mesmo, devido a
imagem, traindo o erro do isolamento imobilizado. Ela sai de si
mesma numa espécie de explosão fácil, ao mesmo tempo abre-se ao
contágio de uma onda que repercute, pois os que riem tornam-se,
juntos, como vagas do mar, não mais separação enquanto dura o
37
16
FOUCAULT, Michel. Las Palavras e las cosas, una arqueología de las ciencias humanas.
Madrid, Siglo XXI Editores, SA, 1968 (p 322). (P 87).
17
BATAILLE, Georges. Experiência Interior. SP: Ática , 1992 (p 90).
riso, eles não estão mais separados do que duas ondas, mas a sua
unidade é indefinida, tão precária quanto a agitação das águas.
[...] o riso comum supõe a ausência de uma verdadeira angústia, e,
no entanto, a sua fonte é também a angústia.
18
No ano de 1965, o artista norte americano Joseph Kosuth, aos 20 anos,
apresenta uma instalação chamada One and Three Chairs. Trata-se de uma cadeira
de madeira encostada a uma parede, no seu lado esquerdo está uma foto em preto
e branco, onde a mesma cadeira aparece em uma escala de quase um para um. No
lado direito, o artista apresenta uma impressão fotostática do verbete chair ampliado
de um dicionário. Assim, o artista coloca, lado a lado, uma representação fotográfica
de uma cadeira o referente da fotografia a própria cadeira e, a representação
textual da palavra cadeira.
Ao ler, ao pronunciar uma palavra como chair, é possível deduzir que cada
pessoa vai imaginar sua própria cadeira. Assim como, ao ver uma foto de uma
38
18
idem (p 102).
Joseph Kosuth one and three chairs 1969
cadeira uma pessoa vai tentar imaginar o referente. O problema que se materializa
neste instante é que cada pessoa vai imaginar uma cadeira diferente, uma cadeira
ideal dentro de seu imaginário. Porém, o que Joseph Kosuth está propondo não é
um devaneio sobre a palavra chair (que possivelmente não significa exatamente
cadeira, afinal de certa maneira a palavra chair e cadeira passaram pelas mãos de
diferentes escritores e contextos e, isso cria relações imagísticas diferentes para
cada uma delas), Kosuth coloca a palavra chair lado a lado com uma cadeira de
verdade e com a imagem fotográfica da cadeira, somando-se ainda o dado de que a
fotografia é de uma cadeira que pertence ao próprio local da exposição, no exato
local em que ela está sendo montada para ser exposta. Se o trabalho de Kosuth não
se trata de uma foto, nem de um objeto, nem de um desdobramento do texto, nem
está falando da galeria em que está sendo exposto (que aparece enquanto galeria e
na foto da cadeira); mas, se, ao mesmo tempo, é com esse formato que o trabalho
se apresenta, como uma espécie de assemblage destas quatro coisas, o que torna o
trabalho de Joseph Kosuth possível? Provavelmente o que faz este trabalho possível
é, justamente, o que não do material ali. Talvez se possa dizer que a articulação
entre objeto, imagem, (texto) conceito e espaço expositivo torne o trabalho possível
em toda uma rede de semelhanças extra sensíveis.
Aparentemente, o trabalho do artista estadunidense apresenta três versões
da mesma coisa numa galeria, mas podemos imaginar que se abre ali uma báscula
para três problemas recorrentes na História da Arte, no campo da arte: o que é a
coisa? O que é a imagem da coisa? O que é o (texto) conceito da coisa? Três
problemas que se materializam em questões de representação.
39
1.2 O desenho como conceito
Quando no ano de 1607 Frederico
Zuccaro (1543-1609) escreveu o seu
emblemático livro Idéia dos pintores,
escultores e arquitetos, estava justamente
se perguntando que relações existem
entre as coisas, a representação das
coisas e o pensamento sobre as coisas.
Zuccaro entrou para História da Arte como
um teórico exigente, que conhece bem os
problemas apresentados pela poética de
Aristóteles, ao mesmo tempo em que se
dedica à pintura, desenvolve um programa
teórico para exaltar as qualidades
intelectuais do desenho e da pintura.
O livro, Idéia dos pintores,
escultores e arquitetos, trabalha com a idéia de dois tipos de desenho, um interno e
outro externo. Para ele, o desenho interno “é uma idéia e uma forma de
entendimento que representa distinta e expressamente a coisa que ela compreende,
sendo também termo e objeto do entendimento”
19
. Para Zuccaro, quando se está
pensando em algo, uma cadeira por exemplo, está se fazendo um desenho interno
desta cadeira; o conceito da cadeira é, para o autor, um desenho informe, no sentido
de que, quando se pensa em uma cadeira, por mais que se lembre de uma cadeira
afetiva, o homem se torna capaz de reconhecer qualquer outra cadeira que se
apresente à sua frente. Ela não é mais uma cadeira enquanto simples forma, mas é
conceito de forma. Zuccaro chama isso de “ídolo presente em meu espírito que o
meu intelecto pode ver e claramente conhecer”
20
.
40
19
ZUCCARO, Frederico in: LICHTENSTEIN, Jaqueline (org). A pintura vol.3: A idéia e as partes
da pintura. São Paulo, Ed. 34, 2004 (pg 42).
20
Idem. Pg 43.
Frederico Zuccaro retrato 1593
O desenho externo, para Zuccaro, é o “desenho delimitado em sua própria
forma, desprovido de substância corporal: simples traço, delimitação, medida, figura
de qualquer coisa imaginada ou real.
21
Ou seja, o desenho, na visão do artista
renascentista, é qualquer coisa formadora e apreensível pelo ato visual. Para o
autor, o desenho externo possui um corpo, esse corpo seria a própria linha do
desenho, não uma linha pensada como imagem matemática, passível de ser
reduzida a um ponto, essa linha que se pode reduzir a um ponto estaria morta e,
seria apenas uma operação, não sendo nem ciência do desenho, nem da pintura. A
linha, para Zuccaro, deve estar viva, para isso, deve ser provida de alma e espírito.
A alma do desenho seria de uma natureza imortal e divina, o espírito e o corpo do
desenho são de natureza mortal e transitória, ou seja: a alma do desenho é uma
virtude interna, seria o conceito e a idéia do próprio desenho. O espírito formador do
desenho seria o julgamento que forma, que compreende e conhece. O corpo seria
propriamente a parte física do desenho, “operação artificial aparente, que é pelos
sentidos compreendida e pelo intelecto realizada”
22
.
Zuccaro afirma que o desenho externo é subdividido em três tipos: um natural
e dois artificiais.“O primeiro tipo, (...) é o desenho externo natural exemplar, aquele
que todas as coisas externas, sejam elas quais forem, ou ainda, aquele de toda
forma externa das coisas sensíveis deste imenso mundo”
23
, ou seja, nesta categoria
estão incluídas todas as coisas existentes, como um rio, uma estrela, uma duna, um
ser humano ou uma cadeira. Ainda haveria os desenhos artificiais que seriam
responsáveis pela formação de diferentes invenções, conceitos e pela invenção das
fantasias e caprichos humanos.
Com a idéia de desenho interior de Frederico Zuccaro, de forma fácil se pode
pensar que as duas outras variações, tanto a cadeira de verdade como a imagem
fotográfica da cadeira, são variações do que o artista renascentista entende como
desenho exterior. Ambos são representações de uma lógica proveniente de
conceitos preexistentes do mundo do intelecto e, assim, o fenomênico estaria
subjugado a uma lógica interior, proveniente de um desenho interno. Porém, isso
não basta, fazer o esforço de ler o trabalho do artista americano com preceitos da
41
21
Ibidem. Pg 47-48.
22
Ibidem. Pg 49.
23
Ibidem. Pg 51.
arte renascentista pode parecer forçado, mas as subdivisões que Zuccaro apresenta
juntam-se a uma constelação de anacronismos, que servem para pensar a idéia de
coisa e representação da coisa, tanto no nível de conceito como no nível de
imagem. É sintomático que seja uma preocupação da arte, no século XVII, o
desenho como conceito da arte. Usar o trabalho de Kosuth para fazer essa
comparação ajuda a entender que a arte passa por um problema relativo a
profundidade e superfície. A poeira que Zuccaro levanta, com seus
questionamentos, traz à tona uma lógica de imbricação entre objeto, imagem e
conceito da imagem. Para o teórico da segunda metade do cinquecento e primeira
década do seicento italiano, há uma metafísica ontológica que une conceito, imagem
e objeto.
One and three chairs, de Kosuth, torna-se possível porque não é nem a foto
da cadeira, nem a própria cadeira, menos ainda o verbete ampliado ou a galeria. O
trabalho é possível quando compreendido como um espaço “entre”: entre o objeto, a
representação fotográfica, a textual e o espaço da galeria. O trabalho ousa
amalgamar de sentido o abismo que aparentemente reside no “entre”, é uma
aparição. Não é arriscado pensar que esse abismo que reside no “entre” não estava
resolvido para Zuccaro e não está resolvido hoje depois da arte conceitual. Joseph
Kosuth trabalhou em uma lógica de desenho e de superfície, para isso se colocou
historicamente dentro de uma linha de artistas preocupados com o apolíneo da arte,
com a lógica do desenho, da razão ordenadora.
42
No mesmo ano em que Kosuth mostrou seu one and three chairs, mostrou o
também o trabalho Relógio (um e cinco) Versão Inglês Latim. Este trabalho
consiste de uma imagem fotográfica preto e branco de um relógio de ponteiros,
pregada à parede com quatro alfinetes, a representação do relógio aponta oito
horas, cinqüenta e um minutos e vinte quatro segundos essa foto está em escala
de um para um com o relógio em funcionamento ao seu lado direito ainda consta,
logo à direita do relógio, três verbetes de dicionário inglês-latim, lado a lado, da
direita para a esquerda, com as palavras: time, machination e object. Os dois
trabalhos são muito parecidos, mas a mudança de um verbete, que representa o
objeto propriamente dito, por três conceitos que estão associados ao objeto, isso
muda um pouco a leitura que é possível fazer do trabalho. O conceito de tempo,
maquinação e objeto não é o mesmo que o da palavra “relógio”. Se a palavra
“relógio” mantém uma relação natural e constante com o objeto relógio, a palavra
tempo não, a palavra tempo pode significar outras coisas, como duração, passado,
período etc. Quando se imagina a imagem que está associada à palavra tempo ela é
muito pouco precisa, assim como a palavra maquinação pode significar tanto uma
trama engendrada em segredo, para realizar um mau desígnio, como uma
conspiração, ou ainda, pode ser entendido como simplesmente planejar algo ou
ainda, pode significar, segundo o próprio dicionário inglês-latim que Kosuth usou,
algo relativo à máquina. o termo objeto designa qualquer coisa material que pode
43
Joseph Kosuth one and three chairs 1969
ser sentida pelos sentidos ou, ainda entre outras, segundo o dicionário da língua
portuguesa Houaiss: “qualquer realidade investigada em um ato cognitivo,
apreendida pela percepção e/ou pelo pensamento, que está situada em uma
dimensão exterior à subjetividade cognoscente”
24
.
As palavras escolhidas pelo artista possuem uma ligação com a foto e com o
objeto, mas essa ligação se por uma relação não natural. Trata-se de uma
relação por rebatimento, em que a imagem por detrás da palavra complementa a
imagem tanto do objeto quanto da fotografia. Porém, ao imaginar a palavra relógio
fica óbvio o objeto referente. Assim como no caso da cadeira, com certeza existe um
relógio interior para cada uma das pessoas, mas as palavras tempo, maquinação e
objeto possuem uma imagem associada desfocada, difícil de relacionar. São
conceitos abrangentes e complexos, muito mais abstratos que as palavras cadeira
ou relógio. Ao fato de as palavras envolvidas possuírem sentido que não está
naturalmente imbricado com o objeto, soma-se ainda o problema da fotografia do
objeto: o referente relógio denuncia a exata hora em que a foto foi produzida,
denuncia a própria condição da fotografia, esse congelamento do tempo.
44
24
HOUAISS, Antônio. Dicionário HOUAISS da língua portuguesa dicionário eletrônico, 2001
Joseph Kosuth Relógio (um e cinco) Versão Inglês – Latim 1969
O fato de o artista ter escolhido um relógio como objeto para seguir a mesma
lógica do que ele havia feito com a cadeira, demonstra que o artista passa a pensar
de uma maneira mais tautológica sobre a fotografia. O artista coloca o espectador
frente a um trabalho que pensa a fotografia como idéia, como um embate entre o
objeto material e sua representação, dessa forma, acaba fazendo uma articulação
em que o texto, como representação de um conceito, equivale à fotografia, como
representação de um objeto. Porém, o uso da palavra tempo, maquinação e objeto,
associadas à imagem de um relógio e com a fotografia deste relógio, denuncia um
abandono hierárquico. O centro de importância é dissolvido e resta o desconcertar
de uma presença ausente, de uma distância que é, ao mesmo tempo, muito
próxima, de um jogo de sobreposição de sentidos entre imagem, coisa e linguagem.
Neste caso, pode-se capturar o sentido somente em um instante muito curto de
tempo, entre os véus impostos ao vôo do olhar.
45
1.3 Palavra e tautologia
Joseph Kosuth parte de sua interpretação das teses do Tractatus Lógico-
Philosophicus, de Wittgenstein, para pensar sobre a impossibilidade de considerar
os objetos como entidades físicas. Os objetos, na visão do artista, seriam apenas
elementos lógicos e, assim, o mundo passaria a ser visto como uma espécie de
subconjunto da realidade. Desse ponto de vista, o pensamento seria capaz de
esgotar a realidade e as coisas, que não podem ser expressas mediante a
linguagem, simplesmente não existiriam. Kosuth, em suas leituras de Wittgenstein,
passa a acreditar que a natureza da linguagem somente permite falar sobre o que é
uma coisa, mas nunca o que é a coisa sobre a qual se fala. O nome do objeto sobre
o qual se fala seria o próprio objeto, mas o objeto seria o seu significado, ou seja, o
nome passaria a ser o signo objeto. Partindo deste princípio, os trabalhos de Kosuth
até agora examinados passam a ser diminuídos pelo próprio artista. Estaria o artista
ilustrando esse pensamento do Tractatus?
O artista parece obcecado por uma abordagem puramente tautológica da
arte, onde o que vemos é o que podemos dizer que vemos. Para que isso passe a
fazer sentido, é necessário desligar-se de qualquer abordagem não tautológica e
partir para uma abordagem de arte como conceito, radicalizando-o até chegar à
conclusão de que:
Ser um artista agora significa questionar a natureza da arte. Se
alguém esta questionando a natureza da pintura (ou da escultura),
ele está aceitando a tradição que a acompanha. Isso porque a
palavra arte é em geral a palavra pintura é específica. A pintura é um
tipo de arte. se você faz pintura, está aceitando (sem questionar) a
natureza da arte. Nesse caso se aceita a natureza da arte como
sendo a tradição européia de uma dicotomia pintura-escultura.
25
O que definiria então a arte, para Kosuth, seria uma condição de proposição
artística pura, em que é arte o que vai a fundo na única pergunta que Kosuth
acredita ser relevante para um artista: O que é natureza da arte? Para Joseph
Kosuth arte passa a ser o que questiona puramente a natureza da arte,
exclusivamente dentro do contexto da arte, principalmente depois de Marcel
46
25
“Arte depois da filosofia” in: FERREIRA, Glória; COLTRIM, Cecília (org). Escritos de artistas:
anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006 (p 217).
Duchamp que, segundo Kosuth, teria proposto uma mudança da arte da aparência
para a concepção. Assim, depois de Duchamp, mais precisamente depois do ready-
made, o problema artístico teria migrado das questões morfológicas para as
questões funcionais. Esse dado seria o momento inaugural da arte moderna e da
arte conceitual, pois a arte, segundo o artista, “só existe conceitualmente”
26
.
Da maneira como o artista entende a “realidade da natureza da arte”, o que
um artista como Seurat teve de importância foi o que ele agregou com seu trabalho à
natureza da arte, e não a sua pintura
propriamente dita. A sua pintura não
passava da linguagem pela qual ele
questionou a natureza da arte. Assim,
admirar ou apreciar a sua pintura como
objeto artístico seria tão absurdo como
admirar e apreciar um manuscrito de um
escritor. Segundo esse postulado, uma
pintura não passaria de documento
histórico, peça de fetiche de colecionador.
Ou seja: “no que diz respeito à arte as
pinturas de Van Gogh não valem mais que
sua palheta”
27
. Ao comprar uma obra de
um artista contemporâneo não se estaria
comprando um punhado de materiais, isso,
segundo Kosuth, não teria importância
nenhuma; o comprador de um trabalho
estaria subsidiando uma pesquisa em arte
e isso é o que a torna relevante no mercado de arte.
Kosuth defende que todo o objeto de arte é uma tautologia, no sentido em
que não representa nada, ou seja:
As proposições da arte não são factuais, mas lingüísticas, em seu
caráter isto é, elas não descrevem o comportamento dos objetos
47
26
Idem (p 217).
27
Ibidem (p 219).
Marcel Duchamp roue de bicyclette 1913 -1964
físicos ou mentais; elas expressam definições de arte, ou então as
conseqüências formais das definições de arte
28
.
O artista conclui, num projeto utópico, que a arte em si não está relacionada à
experiência do tipo visual, ele pressupõe que a arte pode ocupar um espaço deixado
vazio pelo fim da religião e da filosofia (baseado novamente em Wittgenstein) assim
preenchendo o que “em outra época se chamou de necessidades espirituais do
homem”
29
. Partindo deste pressuposto, pode-se entender porque o artista defende a
existência de uma adversidade entre arte e estética. Para o artista “a estética lida
com opiniões sobre a percepção do mundo em geral”
30
e, para ele, a arte não pode
estar associada ao gosto ou à beleza sem deixar de ser “pura”.
Mas da onde vem a noção de pureza que o artista está utilizando? No texto
escrito no exemplar 18 da revista october, chamado La originalidad de la vanguardia:
uma repetición posmodena, aonde Rosalind Krauss se debruça sobre uma
exposição de retrospectiva de August Rodin na National Gallery de Washington,
encontram-se algumas pistas sobre esse assunto. Nesta exposição algumas das
obras em bronze, de Rodin, haviam sido fundidas postumamente e causaram um
certo ruído na comunidade que, em parte, acusava estas esculturas de cópias, de
não serem originais. A autora lembra que Walter Benjamim havia se questionado
da importância do conceito de original, quando pensava as questões relacionadas à
fotografia e sua reprodutibilidade. Que importância pode haver o original de uma foto
se, a partir do negativo, pode-se obter umas quantas fotografias idênticas? Para
Rodin el concepto de vaciado auténtico parece haber sido tan insignificante como el
de copia autentica para muchos fotógrafos
31
.
Rosalind compreende, neste texto, o conceito de originalidade como uma
profunda negação do passado proveniente da História da Arte. Há, para a autora, no
pensamento da originalidade das vanguardas, um desejo de não se contaminar pela
arte morta, assim, a negação da História da Arte passa a ser uma estratégia para
que as suas proposições sejam vinculadas com a idéia do nascimento, do novo e,
portanto, do ainda não contaminado pelo pútrido, que viria dos museus.
48
28
Ibidem (p 221).
29
Ibidem (p 225).
30
Ibidem (p 214).
31
KRAUSS, Rosalind in: WALLIS, Brian. Arte después de la modernidad. Madrid: Akal, 2001 (p 14).
Marcel Duchamp roue de bicyclette 1913- 1964
La originalidad se convierte en una metáfora organicista que remite
no tanto a uma invención formal como a las fuentes de la vida. El yo
(self) como origen está salvo de las contaminaciones de la tradición
porque posee uma especie de ingenuidad originária.
32
De certo modo, podemos entender, seguindo as premissas da autora, o
próprio termo vanguarda vinculado com o conceito de originalidad, mas para
compreender a noção de pureza na vanguarda, temos que seguir os passos da
autora, entrar no seu conceito de cuadricula, que está intimamente ligado com a
idéia de vanguarda.
No obstante, si bien la propia noción de vanguardia puede
entenderse como una función del discurso de la originalidad, la
práctica efectiva del arte de vanguardia tiene a revelar que
originalidad es una hipótisis de trabajo que surge de un fondo de
repetición y recurrencia. Una figura característica de la práctica
vanguardista en las artes plásticas proporciona un ejemplo. Esta
figura es la cuadrícula
33
.
A cuadrícula, traduzida neste texto como retícula, possui várias características
vinculadas à idéia de vanguarda. Primeiramente, Krauss lembra da sua
característica de pouca permeabilidade, ou seja, de que a retícula está intimamente
49
32
Idem (p 18).
33
Ibidem (p 18).
Yves Klein 1957
ligada a idéia de repetição e que é muito difícil que haja originalidade dentro de uma
lógica onde impera a idéia de gradeamento ou de pureza originária.
A retícula está na matriz lógica do pensamento do desenho, que se tornou
uma posição doutrinária da arte contra a lógica do colorido, pelo menos desde
meados da Renascença italiana, quando Veneza e Florença disputavam. A
concorrência entre desenho e cor, ou entre o “racional” e o “sensível”, acirra-se na
escola francesa do séc XVII ao XIX. O pensamento, do qual Zuccaro é um dos
expoentes, o do desenho, é manifesto no pensamento do ideal clássico, onde
somente o desenho é capaz de atingir a pureza e a beleza da arte.
Charles Le Brun (1619- 1690) defende que o desenho está ligado à lógica de
uma gramática, possui suas regras e, portanto, é a verdadeira arte que “propaga-se
a todas as produções do espírito”
34
. O artista lembra que a grande característica que
faz do desenho superior está no fato de que ele é “produto intelectual e,
conseqüentemente, depende da imaginação e da mão; e também ele pode ser
expresso em palavras”
35
. O mesmo tipo de argumentação pode ser lida nos textos
de Jean Auguste Dominique Ingres (1780-1867) que costumava afirmar, em suas
aulas, que “quanto mais simples as linhas e as formas, maior a força e a beleza.
Sempre que dividirem as formas, vocês as enfraquecerão”
36
.
Rosalind Krauss afirma que a retícula está vinculada com um “emblema
totalmente desinteresado de la obra de arte, de sua absoluta carencia de objetivos,
de la deriva de su promessa de autonomía”. Nesse sentido, nada novo pode surgir
quando a premissa de construção é a retícula, ela é uma estrutura que não se presta
à invenção, é uma estrutura que esta completamente vinculada com a idéia de
permanência de um padrão. Não é à toa que a base do off-set é a retícula. A autora
lembra que a carreira de muitos artistas parou de se desenvolver quando eles se
comprometem com a idéia da retícula. Artistas como Mondrian, Albers, Reinhart e,
50
34
LE BRUN, Charles in: LICHTENSTEIN, Jaqueline (org). A pintura – vol.9: O desenho e a cor. São
Paulo, Ed. 34, 2004 (p 41).
35
Idem.
36
INGRES, Jean Auguste Dominique in: LICHTENSTEIN, Jaqueline (org). A pintura – vol.9: O
desenho e a cor. São Paulo, Ed. 34, 2004 (p 85).
possivelmente, Kosuth são “intermediarios de un tiempo que lo domina casi hasta el
infinito, que el hombre reanima sin saberlo
37
.
Joseph Kosuth, desde os primeiros anos de sua produção, estava
comprometido com a idéia da retícula, da arte pela arte. O artista, esperançoso de
encontrar uma saída “original” para seu trabalho acaba em um impasse da não
utilização de objetos artísticos. Sem objetos não haveria nada que estivesse sujeito
à crítica de gosto e, portanto, a uma abordagem formalista. Porém essa saída de
uma arte sem objetos, na prática, é pouco viável e, mesmo nos casos radicais onde
isso aconteceu de fato, fotografias, descrições textuais e outros registros se
tornaram objetos e jazem em museus pelo mundo. A idéia de que depois do ready
51
37
FOUCAULT, Michel. Las Palavras e las cosas, una arqueología de las ciencias humanas.
Madrid, Siglo XXI Editores, SA, 1968 (p 322).
Piet Mondrian Composição em vermelho, amarelo e azul 1921
made o objeto não tem mais função é uma ficção, não como a arte ser apenas
uma idéia de “arte conceitual pura”, nas palavras do próprio artista.
52
1.4 Imagem recalque
Num ensaio publicado em 1998, intitulado Kant depois de Duchamp, Thierry
De Duve, questionando o que fez o ready-made possível, chega à conclusão de que
o ready-made possuía todas as bases circunstanciais para acontecer. Essas
bases foram dadas quando, no salão dos independentes de Paris, os quadros
rejeitados no salão oficial da academia ganharam uma exposição paralela, por
decreto do imperador Napoleão III. Nesse salão, quem concluía o que era arte não
era mais um grupo seleto de especialistas, mas o próprio público. Na atitude de
colocar um urinol dentro do espaço expositivo, Duchamp estava denunciando que o
que é arte não passa de uma convenção e que, mais precisamente, não consegue
deixar de ser uma convenção estética, por mais que Duchamp negasse que seus
ready-made fossem escolhidos por critérios estéticos (isso é impraticável) ele
admitia que ao colocar um ready-made no espaço da arte estava tirando o objeto do
mundo e o colocando no espaço da estética.
O artista escolhe um objeto e o chama de arte ou, o que se equivale,
coloca num contexto em que determina o fato de o objeto ser
considerado arte (o que de fato significa que, mesmo de forma
privada e solipsista, o artista o denominou arte). O espectador
apenas repete o julgamento do artista. Qualquer um pode fazer isso;
a capacidade de conhecimentos requeridos são nulos: acessíveis a
um leigo
38
.
É claro que não se pode acreditar na idéia fácil de que isso realmente possa
acontecer, pois, por mais que um leigo decida fazer um deslocamento do tipo ready-
made, ele necessitará do respaldo de uma instituição que aceite esse objeto, que o
legitime como arte e as instituições sempre têm interesses e representam uma certa
estrutura de poder, ou seja, não é tão simples como parece. Mas, o fato de que uma
instituição que participa do circuito é capaz de delegar estatuto de obra de arte para
qualquer coisa que esteja dentro de suas dependências, é um fato, depois do urinol
de Duchamp, inegável. Essa constatação da força do circuito de artes passou a ser
uma espécie de problema da arte: se, por um lado, a arte existe dentro de um
circuito específico, por outro, os problemas dela transbordam todo o tempo às
53
38
De Duve, Thierry. Kant depois de Duchamp in: Revista do mestrado em história da arte EBA.
UFRJ segundo semestre de 1998.
margens deste circuito, ou seja, a arte não está contida no circuito da arte, ela está
em intersecção com o que chamamos de circuito de arte.
Se o que o artista chama de “natureza da arte” tem que ser questionada para
que aconteça algo relevante nas artes, esse questionamento vai atingir a
“natureza da arte” se for uma proposta de imagem dialética capaz de respeitar o
espaço cindido da imagem. Contrariando a idéia de Kosuth de que arte não está
relacionada com algo que se vê, afirmo que sempre que estamos em uma galeria de
arte, estamos para ver. E ver é pensar, porque o olhar atravessa o que vê. É a
natureza dialética da obra de arte que, ao ser vista, é, ao mesmo tempo imagem
crítica e imagem em crise, ou seja: “uma imagem que critica nossa maneira de vê-la,
na medida em que, ao nos olhar, ela nos obriga a olhá-la verdadeiramente. E nos
obriga a escrever esse olhar, não para transcrevê-lo, mas para constituí-lo”
39
.
Dois anos depois de ter trabalhado em sua famosa cadeira, Joseph kosuth,
construiu um trabalho em que as dúvidas suscitadas acima são reorganizadas pelo
próprio artista, trata-se de um texto onde se a palavra nothing. Neste trabalho, a
imagem da coisa, a coisa e o conceito (texto) estão unificados em um único
problema, como em uma síntese, o artista amarra o problema da representação do
referente e do conceito num mesmo objeto visual, prescindindo de uma foto do
objeto, do próprio objeto e do conceito do objeto: um local de congruência entre o
visível e o dizível; um ser-luz, que é um ser-linguagem que nega o seu próprio
estatuto enquanto coisa, negando não apenas o que se pode ver mas, também,
contrariando que se pode ler, sintoma da palavra nothing.
Lembrando a famosa exposição do artista Yves Klein na galeria Iris Clert,
Paris, no ano de 1957, proposta em que o artista pressupunha “atestar a presença
da sensibilidade pictórica em estado de matéria-prima”
40
, quando a galeria foi
esvaziada e pintada por dentro de branco cuidadosamente e aberta à visitação entre
uma série de outros eventos promovidos pelo artista. A exposição, que se chamou O
Vazio, contou com um público estimado de três mil pessoas no dia da abertura.
Se, por um lado, a galeria é capaz de delegar o estatuto de obra de arte a um objeto
qualquer que esteja inserido dentro de seu contexto, Klein desdobra isso, e se não
54
39
DIDI HUBERMAN, Georges. O que vemos , o que nos olha. São Paulo, Ed 34, 1998 (p 172).
40
O DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco - ideologia do espaço da arte. SP: Martins
Fontes 2002 (P 103).
nada dentro da galeria a não ser o público, pode-se imaginar que a galeria acaba
delegando o estatuto de obra de arte para ele, o próprio público. O evento de Klein
transformou a abertura da exposição em um grande happening onde a utopia da
junção da arte e da vida sonha em se efetuar. As pessoas que vão ver a obra
acabam virando a obra a ser vista. Ver e fazer confundem-se em um projeto utópico,
mas, mesmo neste projeto em que não objetos artísticos, a estética some. O que
Klein acaba fazendo é tirar o público do mundo e arremessá-lo na estética,
parafraseando Duchamp.
Tanto no evento de Klein como na instalação nothing de Kosuth, o que faz a
obra de arte está relacionada com o contexto, sendo que o trabalho de Kosuth é
mais formal que o de Klein, que não existe enquanto objeto. Em ambos os casos
temos em comum a idéia de que é uma imaterialidade que faz a arte, em ambos os
casos, a crença na existência da arte enquanto entidade provida de uma capacidade
de sobreviver enquanto aleteio, mesmo no meio de todo o tipo de estrutura reticular
de duplicação racional de imagem.
55
Joseph Kosuth nothing 1971
2 O VÉU DAS MÁQUINAS, DAS LUZES E DAS SOMBRAS
“La sua solitudine è la meccanica erotica; la sua
stanchezza, la dinâmica amorosa.”
Rimbaud
2.1 Máquina
A máquina pode ser pensada como o conjunto de 3 aparelhos televisores
pequenos, levemente modificados apenas alterada a extensão dos fios que unem
o tubo de raios ao circuito. Em certo sentido, trata-se de uma vídeo-instalação
(apesar de não ter sido o ponto de partida para a sua construção). Em artes
plásticas não se pode ignorar a escolha material, ela é sempre importante: existem
as tautologias que não devem ser negadas, do contrário, estão para redimensionar
determinados aspectos do trabalho que se está construindo. De qualquer maneira,
ao trabalhar com aparelhos televisores faz-se necessário abrir uma báscula para
estudos, no intuito de entender o que significa esta escolha e quais as acepções
artísticas que elas trazem para a esfera do trabalho. Caso contrário, soa
contraditório defender que a máquina é uma vídeo-instalação.
É de valia afirmar que ela o é, em certa medida desimportante enquanto tal,
por seus aspectos evasivos, contraditórios e escorregadios: a opção é
desfuncionalizar o aparelho, em diversas frentes: o áudio não se coloca e se
entende como desvio, uma intrincada relação de sons que conversam mas não
se ouvem e as imagens dos monitores estão fora do alcance da visão; mesmo com
muito esforço não é possível vê-las; são imagens que se reduzem a uma luz azulada
que vibra. Poderia-se até dizer que se trata de uma instalação áudio-visual
insuficiente, que pensa o áudio e vídeo negativamente, uma espécie de figuração
menor de objetos quaisquer onde a operabilidade está condicionada à inoperância.
56
Quando a tecnologia do vídeo foi alardeada, no pós guerra, disseminado-se
por praticamente todas as casas comuns e, principalmente na década de 60, quando
ela ganhou o palco dos museus e galerias de arte, ocorreram tentativas de colocar
essa nova tecnologia como a promessa de trazer novos ares para o cansado mundo
das artes plásticas. Nesse sentido, alguns artistas defenderam que seria a
tecnologia que acabaria definitivamente com a pintura. Mas o alarde havia sido
anunciado noutros tempos, a fotografia já havia “matado” a pintura nos anos de 1830
e o cinematografo havia sido a tecnologia redentora das artes nos finais do séc
XIX, sempre com maravilhosas promessas da mais fantástica novidade que iria
reescrever as sensibilidades. Felizmente, o famoso discurso de 1839 de François
Arago na Câmara dos Deputados da França, defendendo ideologicamente a
inovação do daguerreótipo, não foi a bancarrota das artes tradicionais, continuou-se
desenhando e pintando à mão e, a pintura do séc XIX não perdeu em nada com a
invenção da fotografia, quem sabe seja correto afirmar tenha ganhado muito.
57
Roberto Freitas s / título (série máquina) dimensões variáveis 9
o
Salão Victor Meirelles, 2006
Em artes, não cabe a defesa da última novidade tecnológica, que possui
valor como ferramenta artística, defender a novidade como parte de um discurso
poético normalmente encobre uma tábula rasa presa ideologicamente a uma idéia
de avant-garde, vinculada com uma negação da importância da história da arte
como força constituinte de um trabalho artístico, ou seja, o discurso da defesa da
novidade encobre a idéia de que nas artes um progresso de uma forma mais
simples para uma mais complexa, uma idéia de evolução. É nesse espaço que a
máquina (dês)opera pensando ciclicamente, é uma espécie de máquina que
transforma a esfera que a constitui em pulsão de morte.
58
2.2 Pintura de máquina
Numa pequena pintura em tela, a
representação de uma máquina de
função misteriosa. Uma espécie de
pistão duplo à esquerda, que
movimentaria hipoteticamente uma
alavanca provida de dois
contrapesos, que serviriam para que
qualquer movimentação seja mais
fluida, lubrificada. Por sua vez, a
alavanca tem três articulações que,
como máquina simples, parece
concentrar a força, diminuindo o
esforço que teria de fazer para
mover um pistão maior, que está à
direita. O pistão maior, mais robusto,
está ligado em duas rodas, uma na
base maior, e outra no topo. A roda
do topo está dentro de uma caixa ligada de maneira estranha em outra alavanca
que, aparentemente, não poderia se mover por falta de espaço. Sobre a caixa,
uma espécie de funil vermelho, que parece não ter função alguma. Talvez o funil seja
uma chaminé, o que não lhe daria uma função mais clara, posto que não fumaça
nem sinal de fogo. A roda grande também parece não ter qualquer tipo de
movimentação possível, parece parada, inerte e desconectada do pistão. É uma
pintura em que a figura, máquina, se difere do fundo. Como que na contramão das
vanguardas, que estavam destruindo esse tipo de relação figura-fundo, pensando
pintura como superfície, o fundo é pintado manchado, meio marmorizado. Quatro
linhas diagonais que saem em pares das extremidades superior e inferior, dão uma
noção de profundidade, de perspectiva. Essas linhas convergem para um retângulo
que parece uma parede de fundo, portanto uma espécie de espaço arquitetônico,
59
Francis Picabia parade amoureuse 1917
virtualmente em três dimensões, onde toda a máquina paira no ar, como que
flutuando. Na parte inferior o título: Parade Amoureuse que nos fala da função desta
máquina, uma espécie de alegoria do amor erótico, o que não tira o mistério de seu
funcionamento.
Num contexto de rápida mudança e de tragédia eminente do pré-guerra, tão
rápido quanto uma locomotiva poderia ser, as idéias futuristas correram o mundo e
conquistaram muitos artistas que, prontamente, começaram a pintar esse novo
panorama. Olhando essa pintura quase não seria necessário dizer que ela pertence
ao início do século XX, mais precisamente 1917, também fica, de certa forma,
evidente uma influência do futurismo italiano, com suas vontades de ruptura com a
tradição e o desejo de vislumbrar um novo mundo frente aos olhos e, uma vontade
de se desvencilhar de certos velhos paradigmas da pintura. Mas afinal, o futurismo
rompe com a tradição? O século das rupturas rompe com o que das tradições? Qual
a diferença entre Parade Amoureus e uma pintura do século XIX ou mesmo de
séculos anteriores?
Apesar de Picabia fazer essa pintura de máquina de uma maneira em que a
autoria está evidentemente escondida por uma perfeição técnica, quase como um
desenho industrial, um olhar mais atento mostra os traços de trabalho manual
contido em cada detalhe da tela. Picabia pode ser considerado um excelente pintor.
Pesa em sua pintura a técnica de uma tradição, de uma maneira de pintar
escolástica. Talvez o que difira Picabia da tradição e o coloque de maneira aceitável
no contexto de ruptura, em que ele pressupunha estar inserido, seja o tema
escolhido para a tela. Se, por um lado, o tema era novo para uma pintura, por outro
temos nitidamente um paradoxo: Qual a diferença entre as pinturas de máquinas de
Picabia e uma pintura de Monet ou de Ingres? As semelhanças são mais óbvias que
as diferenças: pintura sobre superfície. Isso pode parecer muito pouco, mas estamos
operando dentro de uma tradição que tem imprecisos milhares de anos e, quando
pensamos em Picabia ou em Parmigianino estamos, em ambos os casos, lidando na
clave de contemplação, ou seja, ainda se trata de uma pintura que exige um tempo
para ser admirada, ainda usamos para a contemplação paradigmas em comum.
Tratamos de boa e velha pintura de apreciação, do saber fazer e do regozijo técnico.
O futurismo, que amou a máquina, a velocidade, o futuro, o progresso, que
pregou o fim dos museus e bibliotecas, o mesmo futurismo que queria desmantelar a
60
sociedade como conhecia e construir outra pela força higiênica da guerra, disposto,
aparentemente, a pagar qualquer preço para romper com a tradição que simbolizava
a antítese de tudo o que admirava, esse futurismo está enraizado de tal maneira
dentro da tradição, que um olhar mais atento – com o distanciamento necessário o
coloca não como um movimento de ruptura, mas num movimento de contigüidade.
Colocar um foco luminoso sobre o assunto revela que o amor pela máquina não é
uma invenção modernista, os homens amam a máquina há muito, prova disto que as
construíram: máquinas para controlar a passagem do tempo, máquinas para
transformar o mundo, produzir trabalho, máquinas para calcular, máquinas e mais
máquinas. Mas eram outros tempos, as máquinas do início do século eram
fabulosas como nunca haviam sido e, na Europa, o futuro era próspero como nunca.
A velocidade em que a cidade crescia era tão vertiginosa quanto a dos trens e dos
carros, os centros urbanos cresciam assustadoramente pelos poderes magnético e
gravitacional das fábricas que, agindo sobre as pessoas, as faziam migrar para as
cidades. Parecia não haver espaço para um passado, era hora de se desprender, o
novo já era em demasia, o velho abarrotava os museus, as bibliotecas e as cabeças.
Novo século, novo mundo, sem espaço para o passado, de preferência o passado
nem na memória.
Mas o que é pintura? Como esta é uma pergunta sem resposta fácil, torna-se
necessário fazer uma experiência muito simples, algo como criar uma convenção.
Obtendo a cumplicidade do leitor, pode-se pensar a pintura como filtro de luz sobre
superfície; a pintura tradicional está baseada numa premissa básica: tinta sobre
superfície. Se até o acordo se mantém, pode-se avançar e pensar na cor da tinta
e, assim, concluir que pintura é, sob determinado ponto de vista, cor sobre
superfície. Esta experiência se torna mais verossímil ao ser exemplificada em um
quadro monocromático azul de Klein, no qual a cor azul é refletida enquanto todas
as outras faixas do espectro são absorvidas pela superfície coberta de tinta. Esse
fenômeno de absorção e reflexão é conhecido pelo menos alguns séculos.
Assim, conclui-se que, no exemplo do monocromo de Klein, um filtro de cor azul
e, por fim, toda a pintura é um jogo de absorção e reflexão de cores: filtros de luz.
Esta relação faz da pintura algo profundamente dependente do espectro luminoso,
basicamente a pintura se transforma num espaço de jogos e testes deste espectro.
61
De certo modo, a pintura sempre esteve relacionada com a luz. Na famosa
caverna de Lascaux é possível encontrar pinturas datadas de milhares de anos, que
se tornaram possíveis através do controle da iluminação. Tais pinturas estão em
regiões abissais das cavernas onde não iluminação natural, foram produzidas
com ajuda de iluminação artificial, com o controle humano sobre a luz. Controlar as
luzes é, ao mesmo tempo, controlar as sombras, sempre onde luz, sombra, as
sombras inclusive são mais fortes que as luzes, onde não luz alguma, reinam as
sombras e, sempre que há luz, algum lugar se torna cheio de sombras.
Em uma das conhecidas imagens matrizes do que poderíamos chamar de
gênese da pintura, uma referência à importância do controle das sombras. Alguns
homens, milhares de anos, construíram uma imagem que parece agregar
questões sobre o estatuto da própria imagem enquanto sombra. As mãos
estampadas na caverna de Lascaux, possivelmente, foram produzidas por uma
espécie de projeção. Uma mão era colocada sobre a superfície de pedra e, então,
um pigmento era soprado com ajuda de um canudo, uma espécie de gravura. Esse
método criou negativos das mãos que estão até hoje estampados sobre a pedra.
Como uma sombra, o negativo da mão é a marca de uma ausência, um gesto que
pode ser pensado como uma presença que marca uma ausência, como que, ao
deixar sua marca, o homem que o fez estivesse consciente de sua perenidade
perante a imagem, de que ele passará e a imagem permanecerá; que, diante da
imagem, o homem é o elemento frágil.
Mas, de certa maneira, toda a imagem pode ser pensada enquanto sombra.
As imagens são seres abissais, no sentido de não estarem acessíveis num mergulho
do olhar. É da natureza da imagem estar inacessível enquanto saber absoluto ou
conclusivo.
Plínio, o velho, escreve uma lenda do nascimento da pintura no seu Historia
naturalis, relacionando novamente a pintura com a lógica da perda e da separação.
A pintura estaria relacionada com uma presença que se torna ausência e, que por
sua vez, torna-se presença. Um rapaz estava para fazer uma longa viagem e iria
passar um longo período distante de sua amada, estavam em um quarto, iluminados
à luz de um fogo e a sombra deles hesitava sobre uma parede. A moça pegou um
carvão e traçou a sombra de seu amado, contornando-a em todos os detalhes, na
esperança de manter presente aquele corpo que se ausentava. Este seria o gesto
62
inicial do começo da pintura, um gesto que mantêm o ausente presente e, ao mesmo
tempo, demarca sua ausência.
Em ambos os casos, o nascimento da arte está relacionado com um embate
direto com o corpo humano. Não se trata de representação, ou seja, uma
ligação direta entre referente e imagem. O mínimo de interferência possível para que
se perpetue a marca da presença do que não está mais lá, a representação de
sombras.
[...] a luz é o fluxo de unidade de
massa-energia emitidas por uma
fonte de radiação, pelo sol ou uma
vela. As unidades massa-energia,
ou fótons, são excedentes de
energia, o produto excedente de
partículas menores que se
combinam para converter-se em
partículas maiores
41
Sendo que as sombras são
deficiências locais na
recepção das unidades
massa-energia, ou seja:
buracos na luz.
A estrutura do globo ocular é muito semelhante com a de uma câmera
obscura, isso gera graves implicações na maneira com a qual se o mundo. No
interior do globo ocular toda luz incide sobre a retina em padrões bidimensionais,
isso faz com que a visão seja formada por descontinuidades de luminância, ou seja,
as imagens são formadas na retina por um quociente entre a intensidade do fluxo
luminoso refletido, refratado ou emitido por uma superfície em uma dada direção, a
do olho. O ser-luz que alcança o olho e traz a vidência faz visível mesmo que
oculte outras visibilidades (todas irredutíveis enquanto singularidades, todas
indizíveis, mas capazes de abrir enunciados) e permite concluir que toda relação
óptica, tudo que da esfera do ver pode se resumir à luz e sombra e, portanto, a filtros
de cores sobre superfície; tanto uma pintura como um objeto produz coeficientes luz-
sombra da mesma maneira dentro dos olhos, sendo, para o olho, impossível de
distinguir um(a) do(a) outro(a).
63
41
BRAXANDALL, Michael. Sombras e Luzes. SP: EDUSP, 1997 (p 17).
Situados numa tradição de construção de máquinas inúteis, reflexo e
desdobramentos de investigações do barroco, como o autômato desenvolvido no
séc XVIII por Jacquet-Droz, alguns artistas investiram em projetos onde a pintura
estaria associada à idéia de uma construção maquínica. O autômato de Jacquet-
Droz desenhava letras em uma folha de papel capaz de repetir o gesto infinitas
vezes. Era capaz de impressionar por sua semelhança com um ser humano
verdadeiro, assim como Olímpia, o autômato que leva Natanael à loucura e à morte
no livro O Homem de Areia que E. T. A. Holffmann escrevera nos primeiros anos do
séc XIX.
Se as pinturas de máquinas preencheram o imaginário do começo do séc XX,
as máquinas que pintavam também estavam lá, povoando o imaginário de artistas,
principalmente de escritores. Não é fácil esquecer da maravilhosa máquina de
pintura que Raymond Roussel descreveu em seu livro Impressões da África de
1910. Provida de um braço mecânico, uma paleta de cores, uma roleta de pincéis e
uma tela, a máquina era capaz de, automaticamente, reproduzir, de maneira perfeita,
qualquer coisa a sua frente. Para isso, dispunha de um dispositivo de câmera escura
com uma placa de metal, que recebia as informações da paisagem a frente, as
convertia em pulsos elétricos e, por sua vez, o braço mecânico configurava em
pintura à óleo com uma técnica realista
42
. A máquina de Roussel é um dispositivo de
fazer ver, de construir uma visibilidade que, de certo modo, é inseparável do
dispositivo.
A visibilidade não se refere à luz em geral que iluminara objetos pré-
existentes; é formada de linhas de luz que formam figuras variáveis e
inseparáveis deste ou daquele dispositivo. Cada dispositivo tem seu
regime de luz, a maneira em que esta cai, se esvai, se difunde ao
distribuir o visível e o invisível, ao fazer nascer ou desaparecer o
objeto que não existe sem ela.
43
A máquina de Roussel, em certos aspectos, suscita questões da fotografia.
Na época em que Daguerre apresentou seu invento, o daguerreótipo chegou a ser
chamado de lápis da natureza e de desenhos de sol, ou seja, como máquina de
desenhar. Muito diferente da máquina imaginária de Roussel ou da real de Daguerre
64
42
ROUSSEL, Raymond. Impressiones de África. Siruela, 2000.
43
DELEUZE, Gilles. ¿Que és un dispositivo? In: Michel Foucault. Filósofo, Barcelona: Gedisa, 1990
(p 155).
é a máquina de pintar de Alfred Jarry, a Climanen, importante lembrar. Uma
verdadeira máquina celibatária: numa terra arrasada onde não mais ninguém
vivo, ela está lá, viva, dentro do sistema de moinho sem massa, no salão de ferro do
Palácio das Máquinas de Paris, última construção de pé. Girando como um pião, ela
vai batendo contra os pilares, gotejando, por orifícios, gotas do espectro luminoso e
cuspindo tinta contra um muro, por puro prazer. Uma máquina que supõe o fim do
mundo e que gira monótonamente, mudando o movimento apenas para se desviar
de colunas, vai pintando-ejaculando; para ela, as duas operações são a mesma
coisa, posto que, Jarry concebeu que ela sente prazer ao pintar. É uma besta, sua
animalidade é imprevisível e não segue nenhum padrão, completamente solitária e
autônoma
44
.
65
44
JARRY, Alfred. Exploits and Opinions of Dr Faustroll. U.S.: Exact Change, 1997.
Máquina de pintura ilustrações do livro Impressões da África de Raymond Russel
Em meados do ano de 1949, Palatnik abandona sua, pouco conhecida,
pintura abstrata para se dedicar à arte cinética, buscava criar um dispositivo capaz
de pintar. Com apoio de Mário Pedrosa, começou a pesquisar aparelhos que
projetavam seqüências luminosas em uma tela branca. Essas seqüências, à
princípio, eram muito limitadas. Consistiam em um cilindro com formas vazadas que
girava lentamente, acionado pelo calor da própria lâmpada. Formas elementares
eram projetadas e iam se movendo, gerando uma composição abstrata simples, de
luz e sombra, como que num teatro mecânico de sombras. Logo depois, ele
transforma essa experiência em algo mais complexo: adiciona uma série de
lâmpadas coloridas, engrenagens, lentes, motores e correias de transmissão, em
busca de maior controle das passagens cromáticas e das formas que surgiam em
suas composições. Surgem as máquinas de pintura que o artista nomearia de
Cinecromáticos.
Entre o abstracionismo informal e geométrico, as máquinas de pintura de
Palatnik não são nada fáceis de situar, não se prestam facilmente a taxionomias de
catalogação. Se a pintura tradicional é, como havíamos especulado acima, filtros de
cor sobre superfície, nessas máquinas, o que temos são luzes coloridas projetadas
66
Abraham Palatnik cinecromático (aberto) déc 60
sobre superfície. uma mudança substancial na lógica conceitual, no que diz
respeito ao que se entende por pintura. Se, formalmente, elas estão muito próximas
dos campos de cor de um Barnett Newman, elas estão muito distantes no que diz
respeito ao conteúdo conceitual. São racionais considerando o controle direto do
autor sobre as manchas pictóricas que, lidam com um desejo ordenador que controla
com pulsos de ferro o aleatório e o expressionista. É um paradoxo pensar que as
formas sensuais e aleatórias de Palatnik têm muito pouco de aleatórias, nelas, não
lugar para nenhuma espécie de automatismo psíquico ou expressionista. O
próprio Palatnik defende: “o artista serve para disciplinar o caos perceptivo”
45
, ou
seja, Palatnik pensa ser encarregado de exercer, como artista, uma função social,
que, para ele, está muito clara: o artista deve criar convenções para o ver. Segundo
o próprio: “desativamos o mecanismo que possuímos para perceber por conta
própria, submetendo-nos à percepção por meio de códigos”. Para resolver essa
deficiência perceptiva, conclui com uma solução: “estimulando e desenvolvendo os
mecanismos de que dispomos para perceber tudo o que nos cerca e fazendo sentir
nossa presença. Pela arte? Sim, mas também pela ciência e pela tecnologia”
46
.
Partindo destas declarações, somos convencidos a pensar seus cinecromáticos
dentro de um programa, que o próprio artista denomina de pós-futurista, que acredita
na reeducação do olhar através de estímulos artísticos, científicos e tecnológicos.
Walter Zanini escreveu certa vez, empolgado com os cinecromáticos de
Palatnik as palavras seguintes: “A tinta não é o único meio técnico de realizar
concretamente uma pintura (...) Sua tese é a mesma dos revolucionários da música,
que substituem o violino, o celo, o fagote, o contrabaixo, etc pelos sons
eletrônicos”
47
. Concordando que a tese de Palatnik seja pensar meios técnicos de
realizar pintura, ele está muito mais próximo dos fabricantes artesanais de caixinhas
de música, do que dos revolucionários músicos eletrônicos da década de cinqüenta.
Palatnik trabalha dentro da tradição do elétrico-mecânico e do artesanal, ele
produziu os aparatos eletro-mecânicos e projetou as variações de cada imagem,
cada movimentação de luz. Uma vez tudo concluído, o processo se resume a ligar e
67
45
OSÓRIO, Luis Camilo. Palatnik. São Paulo: Cosac & Naif, 2004 ( p 95).
46
Idem (p 22).
47
Ibidem (p 145).
contemplar, algo como uma artesanal caixinha de música: dá-se corda e, assim,
ouve-se, dependendo da maestria do artesão, as mais belas composições.
na década de cinqüenta, Palatnik, adepto da moda antiga, trabalhava com
baixa tecnologia, não usou a eletrônica, conhecimento em plena expansão. Para um
artista da mecânica, do controle óptico sobre as coisas é crucial lembrar a diferença
entre mecânica e eletrônica: na mecânica, podemos acompanhar com os olhos o
funcionamento das coisas, na eletrônica, nós sabemos como cada componente
reage e se comporta, mas não é da nossa alçada, não é da escala humana, é um
conhecimento que se perde na miniatura.
Os cinecromáticos de Palatnik partem de um pensamento sobre pintura, mas
estão dentro da tradição da imagem que se move. Um complexo conjunto de luzes,
motores e aparatos ópticos estão por detrás de uma lona sintética branca. Uma vez
ligado, é lançado um jogo de luzes e sombras coloridas, que vão lentamente se
68
Abraham Palatnik cinecromático déc 60
metamorfoseando em outra combinação, depois outra e outra e etc. A mudança é
relativamente sutil e é difícil saber quando a imagem começa a se repetir, suas
máquinas de pintura são caixinhas cinematográficas de combinação de cores, luzes
e sombras coloridas, abstratas e informais. As “telas eletromecânicas” de Palatnik
nos conduzem lentamente para dentro. Em alguns minutos de contemplação, e elas
exigem esse tempo, conduzem-nos para um outro espaço, elas transcendem.
Michel Carrouges começa seu texto Istruzioni per l’uso perguntando-se: o
que é uma máquina celibatária? Responde: Una macchina celibe è um’immagine
fantástica che transforma l’amore in meccanica di morte
48
69
48
CARROUGES, Michel in: SZEEMANN, Harald. Le Macchine celibi. Milano: elemond editori
associati, 1989 (p 16).
Abraham Palatnik cinecromático (aberto) déc 90
Nesse sentido, é longa a lista de máquinas celibatárias possíveis. Como a
fantástica máquina erótica de música de Duran Duran no filme de Roger Vadim,
Barbarella, onde Barbarella (Jane Fonda) é submetida a torturante máquina musical
- uma espécie de órgão ligado a tentáculos, cabos e fusíveis que, ao ser tocada,
estimula sexualmente a atriz, presa no interior da máquina, até matá-la de prazer
(coisa que não se consuma porque Barbarella é uma super fêmea), uma máquina
que transforma o prazer de ouvir musica em morte.
Outra máquina emblemática é a de Emídio Greco, do livro Invenção de Morel
de Adolfo Bioy Casares. Capaz de filmar nos menores detalhes, em três dimensões
ou quem sabe quatro (o tempo), com uma materialidade misteriosa para os cinco
sentidos, transforma desaparição em aparição, uma espécie de retardo com o ônus
de uma destruição terrível para o filmado, que é submetido a uma morte longa e
dolorosa, desaparecendo, enquanto sujeito, para se transformar em uma imagem.
O termo máquina celibatária foi cunhado por Marcel Duchamp para o seu
Grande vidro, talvez uma das mais enigmáticas máquinas, cujo nome adianta
sobre a sua natureza: “La Mariée mise à nu par sés célibataires, même”. Recheado
de humor negro, a legenda se refere a um insano mecanismo, onde os solteiros,
representados por moldes masculinos confinados ao onanismo, observam a
assunção da noiva (na visão de Octavio Paz).
Pintado sobre uma superfície de vidro
transparente, através da qual pode ser vista,
o grande vidro, a máquina agrícola (como o
próprio Duchamp o chamou) é a parte que se
apresenta de sua caixa verde, um conjunto
de notas e croquis, cuja leitura é capaz de
colocar em movimento o desenho do vidro, a
aparição de uma aparência. Na parte superior
está a noiva, uma forma bidimensional que
mais lembra uma máquina, um inseto ou
outra coisa qualquer, talvez seja a sombra
bidimensional de uma coisa tridimensional
que, por sua vez, é a sombra de um objeto
em quatro dimensões que ninguém pode
70
Still do filme Barbarella de Roger Vadim, 1968
saber o que é. A única referência de que é uma noiva é o título atribuído à pintura.
Na parte de baixo estão os solteiros, oito moldes vermelhos que representam
vestimentas de profissões tipicamente masculinas. Estes tentam colocar em
movimento a intrincada e sinistra máquina a que estão anexados, com o impossível
objetivo de desnudar as noiva, coisa que jamais ocorrerá. Adverte-nos Octavio Paz:
71
Marcel Duchamp le grand verre 1915 - 1923
A pesar de su doble carácter público descripción gráfica Del
funcionamiento de una máquina y representación de un ritual erótico
el grande vidrio es una obra secreta. La composición es la
proyección de un objeto que no podemos ver con los sentidos; lo que
vemos esquemas, mecanismos, diagramas es sólo una de sus
manifestaciones en el modo mecánico-irónico. El cuadro es un
enigma y, como todos los enigmas, no es algo que se contempla sino
que se descifra. El aspecto visual sólo es un punto de partida.
49
Raúl Antelo, em seu livro Maria con Marcel, Duchamp en los trópicos, associa
o conceito de máquina celibatária ao de imagem ausente ou, com o retard
duchampiano (“emplear retraso en lugar de cuadro o pintura; cuadro sobre vidrio se
convierte en retraso en vidrio pero retraso en vidrio no quiere decir cuadro sobre
vidrio”
50
), configurando uma impossibilidade que se torna possível através da
incongruência, o sentido que se faz parte do nonsense. Antelo associa a máquina à
diferencia aditiva externa, a la prótesis”
51
. Sendo então, ao mesmo tempo, plena de
sentidos visíveis, essa visibilidade se como um exterior, sendo formada de
engrenagens labirinticamente inacessíveis enquanto função. Enquanto imagem
ambivalente, a máquina celibatária seria “una máquina proyetiva de uso doble,
concentracionaria, de masa, para quien la habita y, en cambio, analítica, singular
para quien la piensa”
52
. De natureza perversa, obras que operam por mecanismos
célibes são capazes de romper com o pacto entre a cultura natural y la cultura
artística, prefiriendo, en cambio, concebir la obra, a partir de una soberana
metaironía, como una ausencia, como una (imposible) posibilidad de acabamiento
53
.
Apesar de ser inventada enquanto conceito no século XX, as máquinas
celibatárias acompanham os homens muito tempo, são uma espécie de mito
alegórico do moderno. Assim pensando, poderíamos supor que a própria idéia de
progresso está montada numa mecânica solteira, a própria imagem benjaminiana do
Angelus Novus:
72
49
PAZ, Octavio. Aparência desnuda, La obra de Marcel Duchamp. Madrid: Alianza, 1989 (p 108).
50
DUCHAMP, Marcel. Duchamp du signe. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1978. (p37)
51
ANTELO, Raúl. Maria com Marcel: Duchamp en los trópicos. Buenos Aires: siglo XXI Editores
Argentina, 2006 (p 284).
52
Idem
53
Idem (p 283)
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um
anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente.
Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas
abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto esta
dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de
acontecimentos, ele uma catástrofe única, que acumula
incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele
gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos.
Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas assas
com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o
impele irresistivelmente para o futuro, ao qual vira as costas,
enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade
é o que chamamos progresso.
54
Não é por acaso que a Climanen, de Jarry, anda pelas ruínas naturalmente,
ejaculando pelas últimas paredes de pé.
73
54
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: ed
Brasiliense, 1993 (p 226).
2.3 Eu vejo, uma janela
Dentre as máquinas de gerar imagens, o cinema e a tv são grandes vedetes
do séc XX. Tudo indica que continuarão ocupando o centro do palco por algum
tempo. São máquinas que possuem grandes diferenças, assim como semelhanças.
É possível pensar que ambas possuem como fundamentos básicos o requisito de
imagens em movimento. Outro princípio fundamental, que une as duas mídias, é
relativa ao modo de captura, ambas se utilizam da câmara obscura, a mesma
utilizada pela fotografia e por Vermeer no séc XVII. Ainda consta que as duas
operam pelo procedimento de projeção mas, então, o processo é quase oposto. No
cinema, a grande imagem projetada na sala escura, no vídeo, a pequena projeção
eletrônica dentro de CRT.
Na teoria, o cinema possui como base de sua construção do movimento, a
persistência da imagem da fotografia na retina e, a isso, agrega-se todo o discurso
que é próprio da fotografia: a idéia do parado, do corte no tempo, ou seja, o cinema
opera numa lógica de sucessão de parados. Trata-se de frames instantâneos
fotográficos que, quando exibidos em seqüência na velocidade certa 24 quadros
por segundo surge a ilusão de movimento. a tv opera em outra ordem, é
concebida em uma lógica de escaneamento linear. A imagem é capturada em linhas,
ponto por ponto, em seqüências que vão da direita para a esquerda, de cima para
baixo, primeiro as linhas ímpares, depois, as pares, um entrelaçado da imagem.
O resultado deste processo é a não existência de um instantâneo, pois sempre
uma imagem que se desloca no tempo. Se no cinema há um escuro entre as
imagens, no vídeo, o aparelho que exibe a imagem o tubo de raios catódicos
trabalha mudando ponto por ponto, nunca existindo um escuro, a imagem não passa
de um ponto em movimento. A operação videográfica assemelha-se como escrever
uma palavra, de se escrever letra por letra, o sentido se no tempo-espaço,
porém, ao terminar de escrever uma página, no vídeo, as antigas palavras vão
sendo obliteradas por novas palavras. Nesse sentido, o palimpsesto é uma boa
metáfora para pensar o funcionamento da tv.
Para uma TV funcionar, a imagem deve ser capturada da mesma maneira
com que o tubo de raios catódicos atualiza as imagens, a mesma e hipotética tecla
74
insert deve estar pressionada. Há uma operação de sincronia extremamente precisa:
o aparelho que captura e o aparelho que mostra vão exibindo, ponto por ponto, linha
atrás de linha, primeiro as ímpares, depois, as pares, numa freqüência de
aproximadamente 30 ou 25 páginas por segundo, dependendo da freqüência da
rede elétrica. Como são necessárias 2 varreduras para gerar uma imagem, em redes
de 60 hertz se formam 30 imagens por segundo e em redes de 50 hz são formadas
25 imagens no mesmo segundo.
Bill Viola vai mais longe, defende que as imagens videográficas operam
baseadas na teoria da acústica, seriam imagens sonoras, responsabilidade do
“caráter acústico vibratório do vídeo, enquanto imagem virtual. Do ponto de vista
tecnológico, o vídeo desenvolveu-se a partir do som”
55
. Trata-se da imaterialidade
das ondas eletromagnéticas, os mesmos princípios que viabilizam um microfone e
levam uma câmera de vídeo a funcionar. Não uma relação genealógica com o
cinema, que está ligado às teorias da mecânica e da química. O vídeo é “um campo
energético vivo e dinâmico, uma vibração, que adquire uma aparência sólida
somente porque ultrapassa nossa capacidade de discernir intervalos de tempo tão
finos”
56
.
A diferença entre o cinema e a tv se faz mais presente, quando observamos o
resultado conceitual desta diferença de fenômeno. O cinema é baseado no registro
de imagens, assim como a fotografia, o cinema é composto de imagens feitas para
durar, imagens que, por serem instantâneos fotográficos, rompem com a idéia de
tempo correndo. É a própria imagem-paradoxo que, ao mesmo tempo em que é viva,
animada, evidencia a morte do retratado. Em oposição a esta idéia, o vídeo é uma
dromosfera, segundo Paul Virilio, da palavra grega dromo, que significa corrida. O
vídeo corre, de uma máquina de escaneamento a uma de atualização, não
tempo, é instantâneo e corre, corre sem freio através de ondas eletromagnéticas. A
imagem que mais se aproxima do que significa a videografia, talvez seja a de um rio
correndo, descendo uma encosta íngreme, veloz.
A imagem-tela ao vivo da televisão, não tem mais nada de souvenir
(pois não tem passado), agora viaja, circula, se propaga, sempre no
presente, onde quer que esteja. Ela transita, passa por diversas
75
55
VIOLA, Bill. In: LANCETTI, Antônio (org).Cadernos de subjetividades, O Reencantamento do
Concreto. SP: editora Hucitec/Educ, 2003 (p 60)
56
Idem.
transformações, flui como um rio sem fim, e é recebida com a maior
indiferença. Imagem amnésica cujo fantasma é um ao vivo planetário
perpétuo, ela abre porta à ilusão.
57
Arlindo Machado fala de um vídeo que é, em natureza, o “espaço da
velocidade, espaço sideral sem outra referência que o elétron, partícula
elementar”
58
. Resumido a partículas, o vídeo não possui nenhuma matéria, é pura
ausência, enquanto o cinema é uma permanência.
O cinema é, assim como a fotografia, um espaço da perspectiva analítica. A
câmera cinematográfica opera no esquema da própria tabuleta de Brunelleschi,
onde um ponto de fuga único, monocular, espaço euclidiano tridimensional é
construído. No vídeo, a perspectiva é a da geometria quadridimensional, mesmo
quando a imagem parece parada, ela se desloca no tempo, nunca um parado.
Porém, um paradoxo neste deslocamento, porque a perspectiva deste
deslocamento não é em direção a um ponto de fuga, não é em direção ao furo de
ervilha da tabuleta renascentista e sim uma perspectiva do pixel, do ponto mínimo.
Para pensar isto Paul Virilio, em seu livro O Espaço Crítico, evoca a imagem de um
pára-quedista que se joga em queda livre. Passar de avião a uma determinada
altura, 600 metros, por exemplo, uma perspectiva bem euclidiana do mundo, mas
pular de pára-quedas de uma altura de 2000 metros é bem diferente. Quando se
está em mergulho, da altura inicial não é possível reparar no deslocamento, mas
quando se está aos mesmos 600 metros que se estava do avião, não mais uma
perspectiva com ponto de fuga, cada ponto se abre fractalmente, a terra se aproxima
muito rápido, trata-se de uma perspectiva precipitada.
A perspectiva precipitada não é mais o espaço real, vertical do
horizontal, dos geômetras italianos, ela é antes de tudo a perspectiva
do tempo real da queda dos corpos(...) A perspectiva não é mais
tanto aquela do espaço, mas antes a do tempo restante
59
.
O cinema, o espaço próprio do prédio, pleno de pessoas que vão assistir à
espetacular imagem de tela grande, capazes de imergir, contém os observadores
que vão a um local específico para assistir a grande imagem, que se concentram no
76
57
DUBOIS, Philippe. Cinema, video, Godard. SP: Cosac & Naify, 2004 (p 46).
58
MACHADO, Arlindo. Máquina e Imaginário: desafios das poéticas tecnológicas. SP: Edusp,
2001 (p 48).
59
VIRILIO, Paul. O Espaço Crítico. SP: Editora 34, 1994 (p 112).
anonimato de uma poltrona, numa sala escura e observam a imagem
cuidadosamente. A tv é uma outra imagem, alheia à ritualização, não passa de uma
imagem pequena, não pelo tamanho da tela do televisor, mas pela resolução
enquanto uma imagem de cinema possui, em média, 10 milhões de pontos, podendo
chegar a 25 milhões de pontos em caso de um filme menos sensível, o vídeo tem
aproximadamente 300 mil pontos, o que faz este veículo possuir um tamanho ínfimo.
Se olhamos uma imagem de cinema que projeta várias pessoas somos capazes de
reconhecer cada uma delas, uma quantidade incrível de detalhes será visível,
porém, se a mesma imagem é vista em vídeo, as pessoas serão reduzidas a
manchas em um mosaico de peças coloridas, uma imagem pequena e dispersa, que
passa nas casas e que, na maioria das vezes, é vista de relance, no meio de outras
pessoas que falam, discutem, não se concentram, é uma imagem anestesiada, uma
imagem em mutação.
Como tratado acima, a imagem videográfica é constituída ponto depois de
ponto, linha depois de linha e, cada ponto, cada linha, é constituído de um tempo
distinto, um tempo que corre na tela, tempo que não pode ser pensado como um
espaço. A imagem videográfica é apenas um ponto luminoso deslocando-se no
espaço, um pixel. O ponto elementar mínimo transforma-se em imagem por dois
fenômenos: pelo fenômeno de persistência da imagem nos olhos e pela capacidade
do fósforo luminescente de manter, por alguns milésimos de segundo, seu brilho. A
imagem videográfica, lembra Virilio, é uma imagem formada de “camadas geológicas
de um terreno: cada linha, e cada camada exprimem um tempo distinto (...) ou seja,
uma inscrição do tempo no espaço”
60
.
Porém, ao procurar em um dicionário o significado da palavra vídeo :
video: substantivo masculino 1 Rubrica: informática, televisão.
técnica de reprodução eletrônica de imagens em movimento;
conjunto de dispositivos que reproduzem a imagem transmitida 2
tela de televisão 3 receptor de TV 4 parte visual de uma transmissão
televisiva ou de um filme 5 filme gravado por processo televisual 6
conjunto de técnicas que concernem à formação, gravação,
tratamento, transmissão e recepção de imagens por meio de sinais
de televisão ou de outros recursos de multimídia 7 Rubrica: vídeo.
m.q. videoteipe 8 m.q. videoclipe 9 m.q. videocassete 10
Rubrica: informática. tela de monitor 11 Rubrica: informática. conjunto
dos elementos visuais de um programa ou interface que podem ser
77
60
Idem (p 52).
exibidos na tela de um monitor
61
.
A partir de uma resposta tão aberta, quase se pode concluir que não é uma
palavra que, deslocada de um contexto específico, é passível de fácil definição. Ela
trás, de maneira intrínseca, uma ambigüidade fundamental:
Mais que um nome próprio ou comum, que designaria uma entidade
intrínseca, um objeto dotado de consistência própria ou identidade
firme, a palavra vídeo nos parece simplesmente como uma simples
modalidade, um termo que podemos qualificar de anexo, algo que
intervêm na linguagem estética ou tecnológica como simples fórmula
de complemento, trazendo apenas uma precisão (um qualificativo), a
algo outro já dado, dotado de existência prévia e identidade estável.
62
A palavra vídeo está fora de questão quando se deseja ser específico, ora é
algo vago, ora funciona como uma espécie de prefixo de outras palavras. De todo
modo, simplesmente não se pode afirmar o que vídeo significa, mas sempre a
certeza de que está relacionado com o gesto de ver. Quando se busca a sua origem,
a relação com o gesto de ver se faz mais clara: etimologicamente a palavra vídeo
vem do verbo videre (ver) no latim, conjugado na primeira pessoa do presente do
indicativo, ou seja, video significa eu vejo. Para Philippe Dubois, o vídeo é o próprio
ato de olhar, "seja qual for seu suporte e seu modo de constituição, todas elas (as
artes) estão fundadas no princípio estrutural de ‘eu vejo’”.
63
Mas esse eu vejo, para ser vídeo, na acepção original da palavra, deve ser
um vejo, esse algo sem vestígio de passado ou futuro, o ver do vídeo pode ser
pensado como uma impalpável camada de tempo sem duração, um tempo absoluto,
presente na velocidade da luz do tubo de raios catódicos e seu mosaico de claros e
escuros.
no vídeo, de certo modo, uma sobrevivência arquetípica do desejo da
visão remota, de uma tele-visão, ou seja: ver à distância, sem ter que se deslocar, a
própria idéia da clarividência ou a onipresença, que são atributos divinos ou
paranormais. O vídeo, enquanto televisão, foi construído numa busca de ver à
distância, de conseguir aproximar dos olhos o que está distante fisicamente. O deus
egípcio Hórus, que significa “o elevado” ou o “distante”, graficamente foi
78
61
HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. ed: objetiva, 2001.
62
DUBOIS, Philippe. Cinema, video, Godard. SP: Cosac & Naify, 2004 (p 71).
63
Idem (p 72).
representado por um olho. Era o que possuía clarividência, o terceiro olho, o que
pode ver sem ter que estar. Marco Pólo, viajante veneziano do séc XIII, foi, de certo
modo, os olhos remotos do conquistador mongol Kublai Khan. Fez o mongol
imaginar todas as cidades para as quais jamais iria, fora dos limites do império de
sua recém fundada dinastia Yuan. o artista francês Jean Batiste Debret foi um dos
muitos olhos que os europeus enviaram aos confins do novo mundo no séc XIX,
assim obtiveram gravuras, desenhos e pinturas como tele-visões, distorcidas pela
subjetividade humana, pela cegueira da técnica e pelo lapso de tempo.
Com a invenção da fotografia, o paradigma de tele-visão mudou muito, havia
uma crença que aquilo que a fotografia mostrava era a mais profunda realidade das
coisas. Foi a fotografia que permitiu que Aby Warburg realizasse a sua emblemática
conferência sobre o ritual da serpente, as imagens fotográficas conseguiram fazer
com que ele visse o ritual dos índios Pueblos como que por seus próprios olhos.
Porém, apesar da precisão técnica da imagem fotográfica se comparada ao relato
oral, ao desenho, a pintura e etc, uma foto sempre trabalha com um lapso de tempo,
sempre uma imagem revelada lida com uma imagem que não existe mais, com
um passado inexistente. Uma foto sempre põe em evidência algo que está
morto.
O sonho de ver através do espaço sem delay, sem lapso de tempo vai se
tornar possível com um outro tipo de equipamento. Fruto do desejo do videre, no
presente do indicativo na primeira pessoa do singular, video (eu vejo) é entendido
aqui como um pular do trajeto. Estar em frente aos fatos, vendo no agora, lembrando
que enquanto eu vejo a implicação de uma ausência de possibilidade de qualquer
narrativa.
Quando o inventor Abbe Giovanna Casali desenvolveu o seu aparelho
conhecido como pantelegraph, o sonho do eu vejo se materializou, de certo modo.
Baseado no pantógrafo, o aparelho de Casali era capaz de transmitir um desenho
em tempo real a qualquer distância para outro aparelho semelhante, desde que
conectados por um fio elétrico. Trata-se de uma espécie de fax, uma complexa e
engenhosa máquina capaz de transformar imagens em pulsos elétricos e, depois,
decodificar em movimento mecânico de um aparelho, que redesenhava a imagem
original, do outro lado da linha. Era um aparelho muito limitado quanto à
complexidade dos desenhos que era capaz de transmitir e dependia de um operador
79
engenhoso. Mas o fato foi que este aparelho se tornou uma ferramenta pioneira, de
uma idéia que atravessaria o século e que, ainda é usada nos dias de hoje, com
certas alterações. O aparelho de Casali pode não se capaz de transmitir uma
imagem como uma foto, mas ele é extremamente criativo porque transmite o gesto
do desenhista do outro lado da linha; transforma o desenho em uma espécie de
aparição, trata-se do eu vejo o que você está desenhando agora a milhares de
quilômetros de distância.
Porém, o eu vejo vai tornou-se realidade com o advento do aparelho televisor
em meados da primeira década do século XX. Consistia em um aparato muito
parecido com os atuais aparelhos de transmissão de imagens, um que escaneava
imagens em movimento e outro que mostrava estas imagens.
O aparelho televisor é muito recente, comparado com outras ferramentas
utilizadas por artistas. Composto por três partes fundamentais: uma de recepção de
ondas eletromagnéticas, uma de conversão dessas ondas em energia elétrica e
outra encarregada da conversão da energia elétrica em imagens, tem sido utilizado
por artistas principalmente como suporte de imagens e, algumas vezes, como objeto
apropriado, deslocado e
resignificado.
A rádio freqüência,
comunicação através de
ondas eletromagnéticas,
muito semelhantes a ondas
acústicas ou às que se
formam na água, capazes de
transmitir energia sem a
n e c e s s i d a d e d e f i o s
condutores, teve a existência
comprovada pelo físico
James Clerck Maxwell, no
ano de 1863, enquanto
trabalhava na cadeira de
Física Experimental da
Universidade de Cambridge.
80
Acima: esquema de Casali para montagem de um pantelegraph.
Próxima página: esquema de Hertz sobre ondas eletromagnéticas.
Seguindo os passos de Maxwell o professor alemão Henrich Rudolph Hertz,
desenvolveu a sua teoria em que são explicados os princípios de difusão das ondas
eletro magnéticas provando, na prática, no ano de 1887, a possibilidade de mandar
energia pelo ar.
Então, no ano de 1896, foi instalada a primeira rede de telégrafos sem fio,
possibilitando que as imagens, do pantelegraph, pudessem atravessar grandes
distâncias sem necessidade de cabos. Surge a era da transmissão de imagens por
ondas eletro-magnéticas, abrindo caminho para o surgimento do rádio. No ano de
1904, o padre brasileiro Landell de Moura consegue o registro de patente, no
escritório de patentes de Washington, para o transmissor de ondas sonoras e, no
ano de 1916, a primeira rádio difusora começa a operar em Nova York, abrindo
frente para a era do rádio.
Tudo indica que o sonho de transmitir imagens em movimento vai crescendo
sempre em paralelo com os avanços e desenvolvimentos das imagens em
movimento. Porém, foi somente onze anos depois das primeiras experiências bem
sucedidas com o cinema, em 1906, que a transmissão de imagem em movimento
começou a ser praticável, impulsionada pela descoberta das propriedades físicas do
selênio – elemento capaz de transformar energia luminosa em energia elétrica,
viabilizando que imagens fossem escaneadas por processos automáticos. A
descoberta das propriedades do selênio representa, para a transmissão de imagens,
algo como o fixador, para a fotografia.
A última peça que faltava era
o CRT (cathode ray tube), que foi
desenvolvida muito antes e estava
de molho esperando uma utilidade
desde meados do séc XIX. O CRT é
um acelerador de partícula (que foi
inventada simultaneamente por
Arbwehnelt e Boris Rosing) capaz
de enviar de forma precisa disparos
de feixes de cátions por um bulbo de
gases rarefeitos. O raio catódico
transmite uma grande quantidade de
81
energia em seus disparos de partículas, essas partículas são capazes de fazer com
que uma superfície com fósforo pulverizado brilhe, por alguns centésimos de
segundo, assim que estimulado eletricamente. O CRT é um ambiente controlado,
feito para fazer com que os raios se desloquem de uma maneira muito precisa, no
que diz respeito à intensidade e à direção.
As primeiras tv foram vendidas por correspondência de um modo semelhante
a como eram vendidos os aparelhos de rádio amador. Em kits do tipo: “faça você
mesmo!”. O televisor desenvolvido nas duas primeiras décadas do século XX usava
um mecanismo mecânico de escanear imagens que ficou conhecido como tv
mecânica. Utilizando um aparato de alta rotação, conhecido como disco de Nipkow,
o Televisor Baird, em homenagem ao seu inventor John Logie Baird, começou a
receber imagens da BBC de Londres, em caráter experimental, ainda na primeira
metade da década de 20. Nessa época, ninguém parecia apostar muito em um
82
Esquema de funcionamento e de transmissão sem fio de uma tv mecânica sem fio, desenho da dec 20
possível sucesso comercial deste tipo de aparelho, somente na segunda metade da
década de 20 foi que a TV começou a ser pensada como um possível produto
comercial. Desenvolvido pela empresa de rádio RCA (Radio Corporation of América),
o televisor conhecido como octagon começou a ser vendido em série. Tratava-se de
um bizarro e grande aparelho, com uma minúscula tela circular de baixíssima
resolução na parte superior de uma estrutura octagonal (o nome é uma mistura da
palavra octagonal com orthicon como era chamada a tecnologia do tubo de raios).
No fundo, tratava-se de um aparelho de rádio multiuso, capaz de receber imagens
pouco prováveis fora de Nova York e Kansas City as únicas cidades dos EUA que
mantinha transmissões experimentais com certa freqüência.
A grande mudança do octagon, em relação ao seu antecessor, era a de que
sua captura era feita por um método de escaneamento eletrônico e, não, mecânico,
como a TV de Baird. Esta mudança foi o que diminuiu muito o valor dos aparelhos e
estabeleceu o padrão que é usado até hoje (antes da entrada da tv digital, já real em
alguns países). As primeiras transmissões abertas, tentando atingir um grande
público, que possuía suas tvs amadoras, aconteceram em 1931, quando a RCA
transmitiu o gato Félix girando sobre um prato de toca discos, ao mesmo tempo em
que as música eram transmitidas.
no ano de 1935, a França e a Alemanha lançam suas primeiras redes de
transmissão de imagens. Um ano depois, a tv é lançada na Inglaterra e, por motivo
da coroação de Jorge VI do Reino Unido, a transmissão obteve o índice de
83
audiência de quinhentas mil pessoas, assim, estava consolidado o sistema
broadcasting. No ano de 1939, foi lançada a primeira rede de tv dos Estados Unidos.
Nesta época, a cidade de Nova York possuía cerca de 400 televisores. Ainda em
1939, um protótipo de origem alemã foi testado no Brasil, na Feira Internacional de
Amostras, na cidade do Rio de Janeiro. Depois da segunda guerra praticamente
todos os países do mundo foram instalando suas próprias emissoras. O Brasil abriu
a sua tv aberta no ano de 1950, a TV Tupi, canal 5.
Nos anos 60, todo o mundo estava interligado por redes de imagens e um
evento que acontecesse na lua poderia ser visto, em tempo real, por todo o mundo.
Nesta época, 90% de todas as casas estadunidenses possuíam aparelhos de
televisão.
64
O que de completamente interessante no processo de surgimento das
tecnologias de radio difusão, tanto de imagem, quanto de som, (afinal ambas
surgiram praticamente juntas, sendo que a de som virou viável comercialmente
muito mais cedo), é que não foi em nenhum momento planejado o que seria
difundido por esses novos meios que estavam surgindo, foi pensado somente o lado
tecnológico do meio.
Deriva daí um certo caráter parasitário da tv dos primeiros tempos,
voltada a simples difusão de acontecimentos exteriores a ela:
transmissão de eventos públicos ou esportivos, pronunciamento de
autoridades, teatros filmados, registro de espetáculos musicais e
concertos. Muitos autores, inclusive, consideram inadequado atribuir
a televisão o estatuto de sistema expressivo pleno e auto-suficiente,
preferindo considerá-la mais propriamente um serviço de difusão.
65
Se a tv é sempre lembrada como um aparelho que conseguia transmitir
imagens pelo ar e, se, quase sempre, se esquece de falar sobre o conteúdo dessas
imagens, é porque, de certa maneira, as primeiras décadas da invenção foram
marcadas pela inutilidade quase completa dos conteúdos transmitidos: um gato
girando em círculos, acompanhando o som do rádio. Talvez seja a imagem que
melhor explicita um outro conteúdo desta invenção, o ato de ela ser quase um vazio
de conteúdos, algo inútil, que pode ser pensado como um sintoma das imagens em
tempo real em toda a via do descartável. Curiosamente, o cinema, que é um irmão
84
64
RUSH, Michael. Novas Midias na Arte Contemporanea. SP: Martins Fontes, 2006 (p 76).
65
MACHADO, Arlindo. A arte do Vídeo. SP: Brasiliense, 1988 (p 08).
levemente mais velho que o televisor, rapidamente, tornou-se uma “arte maior”, no
mesmo tempo em que a RCA transmitia a pobre imagem do Gato Félix em
broadcasting.
85
Acima: câmera de vídeo da dec de 1910.
Abaixo: jornal de 1925.
Próxima pág.: Jornal de 1931
86
Se o cinema foi o suporte de trabalho para artistas como Charlie Chaplin,
Buster Keaton, Harold Lloyd, Sergei Eisentein, Man Ray, Luis Buñuel etc, tornando-o
algo que, aparentemente, nasceu como pesquisa de linguagem, explorando ao
máximo as possibilidades das imagens em movimento e construindo um imaginário
experimental que continua sendo importante como referência aos artistas e
87
cineastas de nossos dias, a tv é marcada por trazer o contrário: o movimento vazio e
dispendioso de construir imagens quando não se tinha nenhuma confiança em suas
utilidades, ou melhor, desconfiava-se muito que fossem vingar enquanto imagens
úteis. A tv teve que ter muita paciência, esperar até a década de 60 para despertar o
interesse de artistas ou, quem sabe, foi a tv que teve que se abrir como meio,
amadurecer enquanto suporte, livrando-se dos investidores que a viam
simplesmente como um meio de difusão. Provavelmente os artistas tiveram que
esperar o momento, que surgiu através do inevitável barateamento da tecnologia,
proveniente de seu sucateamento (de high-tech para low-tech). Quem sabe, a
pequena imagem da telinha tivesse que ser barata, ordinária, para despertar o
interesse dos artistas que conseguiam ver, fascinados, as maravilhas da telona
cinematográfica.
O cinema (...) estende sobre nós uma ‘noite experimental’ ou um
espaço em branco, opera com ‘grãos dançantes’ e ‘poeira luminosa’,
afeta o visível com uma perturbação fundamental, e o mundo com
um suspense, que contradizem toda a percepção natural. Produz
assim a gênese de um ‘corpo desconhecido’ que temos atrás da
cabeça, como o impensado, nascimento do visível que ainda se furta
a vista.
66
O vídeo opera por Broadcasting, termo que vem de um jargão militar da
marinha estadunidense, referente à disseminação das ordens de uma autoridade.
Quem sabe, mora neste ponto o que espantou o interesse de artistas. Se, por um
lado, a tv informa, aproxima, dissemina a informação, por outro lado, esta é a própria
perversidade da tv, ela informa, aproxima e dissemina as mesmas coisas para todo o
mundo. Não duas opiniões, sempre é transmitida uma mesma versão dos fatos,
na base, a tv foi pensada como uma estrutura de poder, de controle. Não é permitido
esquecer que “a maioria absoluta dos governos nacionais, sejam eles baseados em
democracias formais, autocracias militares ou oligarquias burocráticas, instituiu de
imediato sistemas de controles de emissões.”
67
É importante lembrar, por exemplo,
que a primeira transmissão da tv Britânica foi o coroamento do próprio rei.
É possível que uma estrutura de broadcasting, onde uma antena transmite um
sinal para milhões de aparelhos receptores, sempre ligados, dentro de uma boa
88
66
DELEUZE, Gilles. A imagem tempo. SP: Brasiliense, 2005 (p 241).
67
MACHADO, Arlindo. A arte do Vídeo. SP: Brasiliense, 1988 (p 17).
parcela das casas e, prontos para receber as mais novas informações, não estivesse
aberta para qualquer um. E os artistas do período, dadaístas, surrealistas ou de
outras vanguardas de experimentação e investigação visual não tinham a simpatia
dos governos, dificilmente um sistema detentor do monopólio do broadcasting,
principalmente naqueles períodos do entre-guerras ou, no meio da própria guerra,
estivesse disposto a correr o risco de se abrir para artistas. Assim como hoje, onde
se pode notar um afrouxamento do controle governamental do sistema de
radiodifusão, a tv continua completamente hermética a propostas artísticas, com
raras exceções, não espaço para a experimentação de arte videográfica em
broadcasting. Nos dias de hoje ela continua sendo, em certa medida, uma máquina
estéril, incapaz de gerar filhos.
89
3 UMA CORTINA QUE NÃO SE ABRE, O VÉU DO OLHAR
3.1 máquina véu
No ano de 2003, a exposição “Movimentos Improváveis: o efeito cinema na
arte contemporânea” abriu no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro.
Com curadoria de Philippe Dubois, a exposição propunha pensar até que ponto a
produção de arte atual estaria contaminada por problemas visuais do cinema. De
certo modo, o cinema reinventou algumas maneiras de como as pessoas se
relacionam com o mundo sensível; assim como, é inegável que a imagem em
movimento, da telona na sala escura, possui uma potência arrebatadora para tocar
os sentidos. Em tempos de brutalidade, de pouco entendimento e de sensibilidades
embotadas, o cinema, com sua capacidade sinestésica intrínseca, é uma das
maiores forças enquanto imagem e parece natural que as outras artes reinventem-
90
Emmanuel Carlier croqui para ...graph I 2003
se, a partir dessa maneira de ver o mundo. A força do cinema é capaz de
transformar os olhos do espectador em uma membrana opaca, fosca, como os olhos
de um homem morto, membrana que separa e une: o dentro e o fora, o interior e o
exterior.
O dentro é a psicologia, o passado, a involução, toda uma psicologia
das profundezas que mina o cérebro. O fora é a cosmologia das
galáxias, o futuro, a evolução, todo o sobrenatural que faz o mundo
explodir. As duas forças são forças de morte que se entrelaçam, se
tocam, e em última análise se tornam indiscerníveis.
68
Na exposição de Dubois estavam alguns renomados artistas da atualidade.
Alguns trabalharam com cinema e vídeo, propriamente dito, e, outros tantos, com o
que se pode chamar, expandindo o termo de Rosalind Krauss, de cinema no campo
expandido.
A criação visual assim como as maneiras de expô-las se
expressa cada vez mais em e por conjuntos complexos e mestiços,
difíceis de se categorizar, nos quais as identidades e as
especificidades, que acreditávamos bem estabelecidas (por exemplo,
as oposições entre pintura, fotografia, cinema, vídeo ou informática),
não constituem mais marcas estáveis para a percepção e
compreensão daquilo que se vê. Não são mais as oposições que
estruturam nossa relação com as imagens nas exposições, mas, ao
contrario, os pontos de convergência, as interferências, as
superposições, as transversalidades.
69
Um dos trabalhos, uma instalação do artista francês Emmanuel Carlier,
chamado ...graph, operava trazendo à tona uma série de questões sobre a natureza
opaca da visão, a visão velada. A instalação consistia em uma máquina capaz de
trazer uma ausência, fazer presente algo do outro lado da imagem, como que uma
máquina de romper com a cortina do olhar. A máquina de Carlier consistia em um
travelling colocado sobre um chão repleto de cascalho. Sobre o travelling, uma tv de
plasma de 50” que ia e voltava, em um movimento constante. A imagem de um
homem nu ia aparecendo como que escaneado, num movimento que lembra um
escaner de um aparelho de ressonância magnética, um movimento cirúrgico. À
princípio, o homem está tranqüilo, com o passar do tempo, ele vai ficando nervoso,
91
68
DELEUZE, Gilles. A imagem tempo. SP: Brasiliense, 2005.
69
DUBOIS, Philippe. Movimentos improváveis: Efeito Cinema na Arte Contemporânea. Rio de
Janeiro: CCBB, 2003 (p 5).
em convulsão. No espaço entre a tv e o chão, com o cascalho de pedrinhas
circulares, cabia justamente o corpo daquele homem. um movimento muito
preciso no ir e vir da imagem que vai se deslocando exatamente dentro do espaço
previsto. É uma maquínica complexa, barulhenta e agressiva que rompe com o
espaço do improvável. Se não nenhum corpo real presente na sala, é certo que
um virtual, trazido da morte, por essa estranha máquina de ver o invisível, uma
máquina que, através de um artifício, faz, da ausência, uma presença.
Situa-se numa via tangencial a experiência de Emmanuel Carlier em que
a máquina constrói uma estrutura que, ao invés de materializar uma imagem, de
fazer aparecer o fantasma da imagem ausente, desconstroói a presença, transforma
em imagem ausente uma estrutura de imagem que se faz insistentemente presente.
Na construção da máquina, três conjuntos de véus principais: um primeiro
conjunto aplica camadas opacas aos sons, transforma cruelmente o som em ruído e
babel; o segundo é composto por véus de máquinas que velam a condição
maquínica e de morte de toda imagem que desfuncionalizam o aparato televisivo de
imagens luminosas, cobrindo as utilidades e descobrindo as inutilidadessão véus
que, como os da noiva duchampiana, jamais poderão ser completamente
desvelados; o terceiro, o véu da imagem ou a própria instalação enquanto imagem é
o véu que desce, tal qual o véu de uma noiva, descendo dos tubos e se
prolongando, vagarosamente, em seus milhares de metros de desenho, até os
circuitos eletrônicos. O véu dos fios se desdobra, também vela as imagens dos tubos
de raios: o emaranhado de fios gera um segundo desenho, invisível, de linhas e
campos eletromagnéticos. Este desenho intangível desfigura as imagens que
deveriam sair nos tubos, elas se transformam, em sua maior parte, em puro ruído de
imagem. Um desenho que tem literalmente a forma de um véu, que desce da
cabeceira de tubos de imagem. No contra fluxo da energia, espalha-se pelo chão,
desenha preguiçosamente, separa o espaço, redimensiona a galeria do museu e,
destrói a imagem que se esperaria ver na cabeceira.
92
93
Roberto Freitas s / título (série máquina) dimensões variáveis 9
o
Salão Victor Meirelles, 2006.
3.2 Afânise sensorial
A luz se propaga sem dúvidas em linha reta, mas ela refrata, se
difunde, inunda, preenche não esqueçamos a taça que é nosso
olho ela também transborda, ela necessita, em torno da taça
ocular, toda uma série de órgãos, de aparelhos de defesa.
70
Ver um trabalho de arte é sempre um ato de deposição de olhar, algo com
depor as armas, como coloca Lacan, é um lugar para colocar o olhar com certo
abandono, deixar que os olhos fiquem como que para “pastar”. Mas, também nos
adverte, que jamais seremos olhados da maneira com que olhamos, trata-se da
dialética do olho e do olhar, o campo escópico.
O olho é um órgão que necessita de uma série de aparatos exteriores de
proteção, é uma câmara escura côncava que recebe passivamente luzes, que
refratam, transbordam, refletem. No olho, uma imagem, real ou virtual, projeta-se da
mesma maneira. É no olhar aquele do lado de fora, aquele que, por estar do lado
de fora, transforma-nos no quadro que nosso olho – que se determina o visível, o
olhar está sujeito a toda uma lógica de desejo.
Uma certa tradição da pintura, desde a renascença, até o fim do séc XIX,
trabalhou com o conceito de mimese da realidade tentando, de alguma maneira,
construir um espaço tridimensional no bidimensional à procura de uma imagem
com a força de nos olhar, assim, como o mundo fora nos olha. Mas é no desvio
que essa lógica se materializa, que a pintura consegue confundir-se com a realidade
do mundo, porque o que faz de uma pintura algo relevante é exterior ao mundo das
palavras, mas não é factível de se escrever. Uma imagem potente possui um poder
que não pode ser contado, algo que escapa à razão lhe esse poder. Se “o
cérebro não é um sistema razoável, tampouco o mundo é um sistema racional”
71
,
assim, que se aceitar, sem problemas, que se trata de uma força do
impronunciável.
Artistas da renascença envolveram-se com tecnologias, criaram espaços
tridimensionais espantosos, mas os avanços tecnológicos da perspectiva e da
câmara escura não garantiram essa força que algumas imagens são capazes de ter.
94
70
LACAN, Jacques. Seminário 11. RJ: Jorge Zahar editor, 1985 (p 93).
71
DELEUZE, Gilles, A Imagem Tempo. SP: Brasiliense, 2005 (p 246).
A força das imagens apresenta algo que é de natureza inefável, a epíphasis, a
aparição que faz com que alguém que se sente olhado levante os olhos.
O poder impronunciável de ser olhado e, através deste olhar, ser indagado,
conduzido, levado até um outro espaço. Se um trabalho de arte é capaz de construir
perguntas, de fazer pensar, o faz por vias de um poder, algo como a lenda aborígine
coletada por Ronald M. Berndt em Lower Murray River, Austrália:
Quando um homem está na planície e eu na colina, eu o vejo falando
comigo, tranqüilamente. Ele me e se vira para mim. Eu digo: estas
me ouvindo? Eu balanço a cabeça, olhando com severidade. Depois,
fixo meus olhos nele e digo: vem depressa! Enquanto olho para ele
fixamente, vejo que ele se volta, porque sentiu meu olhar. Ele ainda
vira para o outro lado e olha ao redor, enquanto eu continuo a mirá-
lo. Eu lhe digo, então: vem aqui, agora, aqui onde estou sentado. Ele
vem até mim até onde eu estou, sentado atrás de uma moita. Eu o
atraio com meu poder (miwi). Nenhum gesto, nenhum grito. No final,
ele sobe a colina e vem até mim. Ele me diz: falaste comigo e eu
ouvi. Como podes falar assim? Explico e ele diz: eu senti suas
palavras enquanto falavas, e, depois, senti que estavas ai. Respondi:
é verdade, foi assim que te falei e tu sentiste as palavras e também
este poder.
72
Neste sentido, não existem imagens inovadoras, ou elas são capazes,
poderosas, ou são imagens ‘cegas’, que não são capazes de evocar esse poder.
Para evocar o silêncio, a imagem deve encarnar algo maior do que sua própria
dimensão de matéria.
Não compreendo bem o que em arte se chama inovador. Uma obra
deveria ser compreendida pelas gerações futuras? Mas por que? E o
que isso significaria? Que elas poderiam utilizá-las? Para quê? Não
entendo. Mas entendo bem melhor ainda que obscuramente que
toda obra de arte que queira alcançar as mais grandiosas proporções
deve, com uma paciência e uma aplicação infinitas desde o momento
de sua elaboração, descer aos milênios, juntar-se, se possível, à
noite imemorial povoada de mortos que irão se reconhecer nessa
obra.
Não, não, a obra de arte não se destina as novas gerações. Ela é
ofertada ao inumerável povo dos mortos. Que a aceitam. Ou a
recusam. Mas esses mortos de que falo nunca foram vivos. Ou então
os esqueci. Foram vivos o bastante para que os esqueçamos, que
sua vida tinha por função fazê-los transpor essa tranqüila margem de
onde aguardam um sinal – vindo daqui – e o reconhecem.
73
95
72
Apud: VIOLA, Bill. In: LANCETTI, Antônio (org).Cadernos de subjetividades, O Reencantamento
do Concreto. SP: editora Hucitec/Educ, 2003 (p 65).
73
GENET, Jean. O ateliê de Giacometti. SP: Cosac & Naify, 2000 (p 14- 15)
Nos múltiplos sentidos da palavra “véu”, que se considerar a força do
sentido que se aplica quando a palavra é usada para designar cuidar, passar a noite
junto a um doente ou a um morto. Velar uma obra de arte é cuidar para que ela, em
seu pathos, seja lançada em novos vôos; é também ver, no túmulo, a vida que se
lança a olhar quem olha, lampejando e, assim, fazendo com que se encontre naquilo
que olha.
No olhar sempre mais uma cortina, sempre que se tira a que parece a
última, outra aparece, e mais outra e mais outra. A experiência de ser olhado por
uma imagem que é cortina, como um véu que separa o dentro e o fora, que interdita
o olhar, mas que sempre pode ser aberta para que novas cortinas sejam visíveis é
tal como as páginas do Livro de Areia de Borges, em que jamais se poderá ver duas
vezes a mesma cortina que encobre uma imagem.
Alexander Ponomarev, artista Ucraniano que vive em Moscou, montou, para a
mais recente bienal de Veneza (2007), um trabalho que se chama Windshield
Wipers. Uma instalação onde quatro imagens embaçadas, veladas por um borrão,
um desfocado que é constantemente desvelado por limpadores de pára-brisa. A
cada passada do limpador a imagem ganha um pouco mais de nitidez, mas ela
nunca fica completamente nítida. Alguns instantes depois da a última passada, a
imagem volta a ficar completamente velada.
96
A paisagem, em cada monitor da instalação, lembra a do lado de fora, como
que janelas para dentro do campo pictórico que levam para a paisagem por detrás
das paredes, mas nunca se pode ver com clareza o que se olha. Para olhar, é
importante aceitar o fato de que não como ver tudo. Mesmo com todos os
artifícios e próteses que existam, olhar é sempre um gesto parcial.
97
Alexander Ponomarev Windshield Wipers Bienal de Veneza 2007
Alexander Ponomarev esquema da instalação Windshield Wipers 2007
3.3 Ver pressupõe velamento
Si realmente quieres verle las alas de una mariposa primero tenes
que matarla y luego ponerla en um vitrina. Una vez muerta, y solo
entonces, puedes contemplarla tranquilamente. Pero si quieres
conservar la vida, que al fin y al cabo es lo más interesante, solo
veras las alas fugazmente, muy poco tiempo, um abrir y cerrar de
ojos. Eso es la imagem. La imagen es una mariposa. Una imagen es
algo que vive y que solo nos muestra su capacidad de verdad en un
destello.
74
uma tradição que, pensando o espaço pictórico profundo, acaba o
estruturando imagens como janelas para um mundo, como se as pinturas que
operam nessa tradição construíssem um buraco virtual na parede. Este programa,
possivelmente, como nos conta a maioria dos historiadores da arte, começou com
Giotto di Bondone (1266? 1337) que rompeu com uma série de formalidades
narrativas da pintura tradicional, em busca de uma pintura de cenografia, de uma
98
74
DIDI-HUBERMAN, Georges. In: www.circulobellasarte.com/ag_ediciones -minerva-Leer
MinervaCompleto.php?&pag=5#leer acesso en 14 de julho de 07, 15:16h.
Giotto di Bondone Afresco em Assis séc XIV
pintura que colocasse o observador na situação de reviver cenas religiosas como se
estivesse de corpo presente. Essa idéia de buraco na parede, ilusão de
profundidade, ganhou considerável potência depois da invenção do arquiteto Filippo
Brunelleschi (1377-1446) da perspectiva geométrica. A perspectiva possibilitou que
regras matemáticas pudessem ser usadas para calcular os efeitos de distorção da
distância no olho, assim, o pintor pôde basear-se em regras matemáticas para
pintar a ilusão de profundidade. Não há problemas em afirmar que a grande maioria
da arte ocidental, produzida após a popularização da tabuleta de Brunelleschi e de
sua perspectiva, tenta construir uma idéia de mimese da realidade. Passa a ser
normal, para artistas, utilizarem-se deste espaço de profundidade artificial para
construir seus problemas pictóricos, mesmo nos casos em que essa busca pelo
espaço pictórico profundo não esteve relacionada com regras da perspectiva, mas
da ótica, como nos afirma David Hockney em seu Conhecimento Secreto
75
. Pode-se
afirmar, partindo da simples visita a qualquer museu de belas artes, que o espaço
tridimensional e a busca da mimésis abrangeu praticamente a totalidade da pintura
produzida entre os séculos XV ao XIX. Esse espaço, que é capaz de ser profundo,
capaz de ser réplica, é colocado em cheque com ênfase especial, pelas vanguardas
modernistas, que passaram a fazer um esforço para que a construção pictórica fosse
revista, pensada como um espaço de pura superfície.
O mecanismo mais utilizado pelas vanguardas, na busca de uma dissolução
da profundidade do espaço pictórico, foi o do fim da hierarquia entre figura e fundo.
De fato, se a arte abandona a preocupação com a mimese de uma forma explícita,
isso ocorre principalmente na obra de artistas do final do século XIX. Os
protagonistas profundidade e mimese saem do centro da cena, deixando lugar para
que a superfície vá ganhando o centro das atenções. Dentro desta lógica, por
exemplo, Georges Seurat, dedicou-se à teoria da cor e transformou a sua pintura em
um exercício de pesquisa plástico-visual, onde o que interessava era refletir sobre
modos com os quais a percepção compreende as cores. No programa do artista,
pode-se perceber que a pesquisa mais importante gravita à órbita de conteúdos de
natureza perceptiva, não da representação temática de paisagens e banhistas,
esses temas soam como subterfúgio para a pesquisa. O problema de suas pinturas
era, segundo Giulio C. Argan (1909 1992) em seu livro Arte Moderna, um problema
99
75
HOCKNEY, David. Conhecimento Secreto. SP: Cosac & Naify, 2001.
da visão em suas relações com a percepção e com a sensação, onde o que era
“espaço empírico dos Impressionistas (...) é transformado em espaço teórico”.
76
na pintura de Seurat, um definitivo abandono da hierarquia figura fundo,
todo o espaço pictórico vibra, sob o mesmo tratamento reticular das pinceladas em
pontos, onde as cores primárias, separadas, juntam-se em cores secundárias e
terciárias na retina, no olhar que vê. Nota-se um desinteresse absoluto pela
perspectiva nas suas pinturas, a tela se torna uma superfície velada e opaca. Um
pensamento pictórico baseado na opacidade estaria argumentado nas pinturas de
anamorfose e trompe-l’oeil, que se tornaram comuns no século XVII. A
anamorfose é a plena consciência do pintor, no que diz respeito à natureza da
pintura, de sua condição de ilusão dos olhos. Mas, quando eram realizadas, faziam
parte de uma investigação barroca marginal como uma espécie de sátira do
pensamento profundo da perspectiva representacional renascentista. Muito diferente
da pintura de Seurat, tanto a anamorfose, como o trompe-l’oeil, lidam com a
100
76
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. SP: Companhia das Letras, 1988 (p 118).
Georges Seurat Les Poseuses 1888
metaironia e operam com uma espécie de descontinuidade do espaço, com uma
desfuncionalização do próprio espaço pictórico.
No início do século XX, problemas relativos às mudanças dos espaços
pictóricos tradicionais saem das surdinas, migram para o palco com protagonistas.
No cubismo, a imagem é analiticamente desconstruída, no futurismo, o tempo entra
como fator essencial da pintura, no fauvismo, a pintura vira plano de cor etc, mas,
principalmente, nas assemblages e colagens, que explicitamente questionam a
natureza do espaço da representação pictórica na pintura, fazendo uma dobra,
assimilando o espaço exterior.
Aqui, papéis colados são literalmente colocados defronte ou um por
cima de outro sobre uma superfície opaca, desafiando assim o
princípio básico da pintura ocidental desde o começo da renascença
ao final do séc XIX de que o quadro é uma janela sobre a realidade,
uma transparência imaginária sobre a qual se discerne uma ilusão.
77
As vanguardas do séc XX problematizam o olhar e a superfície da pintura de
uma maneira distinta, onde a superfície da pintura torna-se um espaço de lutas
teóricas e conceituais, por excelência. A pintura que protagoniza a cena se torna
absolutamente opaca, em oposição ao que era uma pintura profunda, que abria um
espaço na superfície da tela, tal qual no palco italiano, com a quarta parede da
encenação pictórica. A primeira metade do século vinte foi o tempo/espaço onde os
conflitos entre concepções de campo pictórico entraram em convulsão e a colagem
tem um papel fundamental nestas disputas, porque ela:
(...) subverte todas as relações tradicionais de figura e fundo; mais
exatamente, a colagem justapõem itens “verdadeiros” páginas de
jornais, ilustrações coloridas de maçãs e pêras tiradas de um livro, as
letras URNAL (de Jornal ) com a metade do U cortado, detalhes de
granulados de madeira ou papel pintados a fim de criar uma
superfície pictorial curiosamente enigmática. Pois cada elemento na
colagem tem a função dual: uma realidade externa, ainda que o seu
impulso composicional seja o de socavar a própria referencialidade
que parece afirmar.
78
Neste espaço de discussão sobre a superfície, a pintura Marcel Duchamp
começa a trabalhar em um espaço pictórico outro; abandonando a superfície opaca
101
77
PERLOFF, Marjorie. O Momento Futurista, Avant-garde, Avant-guerre, e a linguagem de
ruptura. SP: EDUSP, 1986 (p 103).
78
Idem (p 103 - 104).
da tela, opta pela superfície transparente do vidro, como em sua famosa pintura de
1913 chamada glissière contenant un moulin à eau em que destrói de maneira cruel,
irônica e arrebatadora o problema de figura fundo da pintura. Simplesmente, o fundo
é substituído por vidro, por transparência, por um espaço que, se por um lado nos
deixa ver através, por outro, coloca a figuração da pintura suspensa em pleno
espaço real, como que flutuando. Rosalind Krauss em seu livro Caminhos da
Escultura Moderna faz uma leitura rápida da importância deste trabalho na
desconstrução da profundidade pictórica.
O deslisador e o moinho de água do título são apresentados em uma
esmerada perspectiva aplicada em um painel de vidro. Este é
montado sobre outro painel colocado sobre a imagem, em uma
estrutura metálica semicircular presa a parede por meio de
dobradiças. O trabalho gira então perpendicularmente a esse plano
de parede. Assim, a imagem do moinho d’água parece um objeto
solto no espaço, preso entre duas peças de vidro como uma
102
Marcel Duchamp glissière contenant un moulin à eau 1913
borboleta ou outro espécime biológico, apresentado como um
pedaço de vida que foi capturado, congelado e suspenso para exame
cuidadoso do observador
79
.
Marcel Duchamp nos coloca em uma situação em que o olhar se obrigado
a aceitar a natureza da pintura como um mise en abyme: a transparência do vidro
transforma-se em uma mesa cirúrgica, em que a perspectiva é colocada para ser
dissecada pelo observador que, friamente, pode desconstruir séculos de construção
de uma profundidade em pintura. Como se uma peça de teatro, construída para a
quarta parede do palco italiano, fosse apresentada em um teatro de arena.
Este retardo em vidro duchampiano nos coloca frente a problemas da
aparição da imagem, da imagem que pode ser vista, mas que não está ali. É o
dentro e o fora que se confundem na superfície do vidro. Assim como a técnica de
reprodução de imagem de Leonardo Da Vinci, em que através do vidro se pode ver o
que está, mas não está, uma espécie de máquina celibe, que não possui nenhuma
verdade que transcenda. Um aparato que mostra imagens que não existem fora do
ponto de vista de quem olha, mostra imagens ausentes.
Una lastra di vetro transparente può essere utilizzata come um
specchio. Visto l’oggetto attraverso la lastra, e rilevatolo sulla
superficie, il calco viene riportato su um suporto opaco, sul quale è
finalmente disegnata l’immagine dell’oggetto. Se il pittore applica sul
suppporto la faccia della lastra Che era rivolata verso il modello, si
cioè opera un transferimento su un piano, il modello e il suo calco
saranno congruenti, perché questo secondo è constituito per
sovrapposizione;
80
Quando David Hockney tentava aprender a usar a câmara lúcida, por motivo
de sua pesquisa sobre óptica, percebeu as dificuldades: “quando se move a cabeça,
tudo se move com ela”
81
. Mas não é com o uso de aparatos ópticos que essa
situação acontece, todo ponto de vista está num espaço entre o passivo e o ativo, o
presente e o futuro, aparência e aparição. O olhar, ao se defrontar com uma tela,
atravessa a superfície, não como se fosse uma janela, no sentido da criação de um
espaço tridimensional, o olhar atravessa ao contrário, da pintura para o corpo (olho).
103
79
KRAUSS, Rosalind E. Caminhos da Escultura moderna. SP: Martins Fontes 1998 (p 101-102).
80
DAVINCI, Leonardo apud: LYOTARD, Jean-François. In: Le Machine Celidi. Milano: elemond
Editore Associati, 1989. (p 105)
81
HOCKNEY, David. Conhecimento Secreto. SP: Cosac & Naify, 2002 (p 12).
Ao mesmo tempo em que é o olhar que vai e atravessa a superfície pictórica, é ele
que é atravessado pelo o que olha. Olhar a pintura é atravessar a superfície da tela.
Olhar o que não está na superfície tautológica é atravessar a superfície com a adaga
do intelecto sensível e esse ato é um tiro pela culatra. Sempre que o olhar fura a
barreira da superfície pictórica, é atravessado como se por detrás da tela estivesse o
próprio olho que olha. Não se trata de uma experiência fenomenológica, mas da
experiência de um contato à distância, em que a imagem ausente corta essa
possibilidade, transforma a pintura em um jogo cruel onde toda a ilusão é
descartada, é um exercício de desmascaramento do ver, que acaba por possibilitar
um reencontro.
Ver supõem a distância, a decisão separadora, o poder de não estar
em contato e de evitar no contato a confusão. Ver significa que essa
separação tornou-se, porém, reencontro. Mas o que acontece
quando o que se vê, ainda que à distância, parece tocar-nos
mediante um contato empolgante, quando a maneira de ver é uma
espécie de toque, quando ver é um contato a distância? Quando o
que é visto impõe-se ao olhar, como se este fosse capturado, tocado,
posto em contato com a aparência? Não um contato ativo, no qual
existe ainda iniciativa e ação num verdadeiro exercício de sentido
tátil, mas em que o olhar é atraído, arrastado e absorvido para um
movimento imóvel e para o fundo e sem profundidade. O que nos é
dado por um contato à distância é a imagem, e o fascínio é a paixão
da imagem.
82
Se o olhar apalpa a superfície, se é capaz de aproximar, de atravessar, em
direção de um profundo sem profundidade, se o olho é ao mesmo tempo o que
captura a imagem do espaço pictórico, ao mesmo em que é capturado por ele, resta
pensar que o poder da imagem está no olho que olha, sujeito do fascínio: paixão da
imagem.
O fascínio é o olhar da solidão, o olhar do incessante e do
interminável, em que a cegueira ainda é visão, visão que não é
possibilidade de ver, mas impossibilidade de não ver, a
impossibilidade que se faz ver, que persevera sempre e sempre
numa visão que não finda: olhar morto, olhar convertido no fantasma
de uma visão eterna.
83
Olhar que, quando olha, é refém do que olha, atravessado e ferido pelo que
olha, sempre que olha, mas que não consegue parar de olhar: pálpebras de peixe:
104
82
BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987 (p 22-23).
83
Idem (p 23).
adnata. Cerrar os olhos para não ver é fechar os olhos para ver, porque os olhos
abertos apalpam, os olhos fechados enxergam. Com os olhos cerrados, o olhar
enxerga com o que viu por toda a vida: olhar é um ato de pensar com imagens.
Olhar o vidro (tanto o de Leonardo como o de Duchamp) é olhar por através da
própria adnata (do olho de peixe morto). Olhar através da transparência é ver o
mundo pictórico como uma impossibilia, como uma película que separa o que é
interior e o que é exterior do universo pictórico. O mundo fora da superfície pictórica
e a superfície pictórica são colocados sob a mesma ótica e isso desmascara
cruelmente toda a ilusão euclidiana na arte, cai a cortina que vela, e, para ver, é
preciso velamento, ver pressupõe velamento.
Não é por acaso que o vidro de Duchamp se movimenta como o bater de
asas de uma borboleta, ao mesmo tempo em que mata o espaço euclidiano, renasce
em aleteio. É a morte e a vida ao mesmo tempo. Para que seja possível ver é
preciso ser atingido pelo brilho vivo da imagem que está lá, de forma ausente.
105
3.4 Vídeo ausente
Quando, em 1962, o artista coreano Nan June Paik estava andando por ruas
de Manhatan e viu para vender a recém lançada câmera de vídeo Sony Portapak,
não exitou em gastar aproximadamente 1100 dólares para comprar a sua. Era a
primeira câmera portátil viável, alimentada a baterias, que consistia em dois
módulos: um de captura das imagem e o outro de armazenamento num rolo de fita
magnética de 0,5". Pesava vários quilos, o que lhe transformava em um aparelho de
pouca portabilidade, quando comparado aos equipamentos portáteis de hoje, que
pesam poucas gramas. Porém era repleto de atributos que lhe conferiam dinamismo
e versatilidade, quando comparada com outros aparatos de gravar imagem em
movimento. Foi com uma destas câmeras que o artista saiu às ruas e gravou a
passagem do Papa, que estava na cidade na ocasião e, na mesma noite, conta a
História, num encontro do grupo Fluxos no café GoGo. O artista mostrou seu vídeo
como um trabalho de arte, assim foi iniciada, miticamente, o que se chama vídeo-
arte.
Sabe-se que o artista fazia experiências com imagens em movimento com
película de 16 e 8mm, mas, certamente, a possibilidade de gravar e ver,
instantaneamente, as imagens garantia uma dinâmica de produção, algo pouco
provável no formato cinematográfico. Nam June Paik era um artista que estava
envolvido com o grupo de artistas que gravitavam em torno de John Cage, o que
realça a necessidade que o artista sentia para um experimentalismo direto, com o
mínimo de interferências entre etapas entre a proposição e o produto artístico. Ainda
não se pode olvidar o fato marcante que, na órbita de Cage, uma gama de artistas
estavam estudando música eletroacústica, o que fazia da câmera de vídeo um
aparelho muito mais em sincronia com o pensamento do grupo, quando comparada
com a cinematográfica. Não é por acaso que o artista se vale de todas as
possibilidades de ruído eletrônico, aproveitando justamente das características
acústicas da imagem videográfica.
Quando a televisão entrou no museu, não o fez como um objeto do tipo
ready-made, mas como suporte, assim como uma tela é o suporte tradicional da
pintura e quando a se depara frente a frente com ela não se pergunta muito o
106
porque, sendo absolutamente normal que se aceite como o suporte óbvio para a
pintura. O televisor entrou no espaço museológico como o suporte óbvio da vídeo-
arte, onde o que importa não são as características físicas do aparelho enquanto
objeto, mas seu tubo de imagem como espaço-superfície de aparecimento de
imagem luminosa, a telinha de mosaicos luminosos que vão mudando de
intensidade, formando imagens. Foi neste contexto que o artista deu sua famosa
declaração: “assim como a técnica de colagem substitui a tinta óleo, também o tubo
de raios catódicos substituirá a tela”
84
. O artista estava comparando o tubo como o
espaço natural dos problemas da visualidade pictórica, assim como a tela de pintura
o é. Se Picasso levou à pintura objetos do mundo, quebrando assim a imaculada
superfície da tela, contaminando-a com o cotidiano, o artista coreano sonhou ver na
superfície do tubo pleno dos problemas da visualidade atual. A declaração do artista
é quase uma ingenuidade, pois almeja que aconteça uma mescla de arte com o
mundo de uma maneira utópica, porque, na visão de Paik, os problemas da arte
iriam invadir os tubos de imagem não apenas dentro do museu. Foi nessa lógica que
o artista idealizou vídeos como o Global
Groove (1969), pensados para tv aberta e
trazendo os problemas mais sofisticados da
arte da década de 60 (incluindo entrevistas
com John Cage, imagens de suas
performances com a artista Charlotte
Moorman, o espetáculo Paradise Now do
Living Theatre entre outros), esperando abrir
no sistema Broadcasting um campo para
investigação artística.
Depois das primeiras experiências
Paik, sob forte influência de John Cage,
começa a pesquisar propriedades típicas da
música em imagens televisivas. Muito longe
das pretensões wagnerianas de uma obra de arte total, Paik investiga como alguns
fenômenos sonoros intervêm na imagem videográfica. Um exemplo disto é uma
série de intervenções no campo magnético do tubo de raios catódicos que o artista
107
84
RUSH, Michael. Novas Midias na Arte Contemporanea. SP: Martins Fontes, 2006 (p 76).
Nam June Paik Magnetic tv 1965
vai chamar de magnetics tv, partindo do princípio acústico da interferência, em que
as imagens são transformadas em linhas que se movem de acordo com uma
imbricada lógica matemática de funções que nem o artista dava conta. Valia-se do
acaso, obtendo tvs que produziam imagens abstratas. Essas pesquisas levam ao
famoso vídeo Eletronic Moom, de 1969, uma investigação sobre a natureza de ruído
de toda a imagem de tubo de imagem. Na tv analógica a maioria da imagem é ruído,
perde-se no caminho da transmissão, na transcodificação ou no próprio tubo, a
imagem é suja e, na interferência direta com imãs sobre o tubo, formam-se
desenhos extremamente límpidos, linhas gráficas de funções aritméticas bizarras e
irreprodutíveis.
Alguns anos antes, em 1958, antecipando a controversa declaração sobre o
futuro da imagem de Paik, o artista Wolf Vostell desenvolve um trabalho chamado
TV Dé-coll/age n
o
1, em que seis monitores de tv são colocados por detrás de uma
tela de pintura em branco, sem nada de tinta. O artista alemão interfere na superfície
de tecido com pequenos cortes, fazendo com que a luz do tubo de imagem, sem
imagens aparentes, venham à tona. De certo modo o artista dialoga com Lucio
Fontana, que havia feito a famosa série de perfuração de suporte que vai de 1951 à
57. De um lado, Fontana, que rompe a pele da tela, rompe a superfície e
desmascara, com esse gesto, toda a especulação sobre a carne da pintura. Ao
romper a pele da pintura, o artista encontra superfície, nada de profundo, a não
ser o escuro misterioso do avesso da representação. Se algo que transcenda a
superfície pictórica da pintura, este algo não se encontra no que está representado,
é algo inacessível. Do outro lado do trabalho de Vostell, uma luz depois da tela, o
tubo de raios, uma luz que traz todas as implicações que está nos problemas
tautológicos do tubo de imagem e sua relação de desdobramento fractal: a imagem
do pára-quedista que se jogou de quilômetros de altura e que se encontra a
seiscentos metros, a superfície abrindo-se vertiginosamente. É inegável que há uma
semelhança no gesto dos dois artistas, porém, uma diferença na proposição. O
gesto de Vostell está relacionado, em certa medida, com as colagens de jornal que
Picasso fez em suas telas. Picasso rompia com a superfície pictórica, trazia
elementos da vida cotidiana para o universo da pintura, Vostell anexa em suas
pinturas imagens televisivas, anexa o tempo e a luz do monitor, um híbrido de
imagem televisiva e imagem pintada. algo de futurista nessa atitude, novamente
108
diferenciando-se de Fontana, pois o artista faz uma vídeo-pintura que anexa às
questões da velocidade, da tecnologia, que agrega problemas da arte cinética, como
se os jornais de Picasso sempre se atualizassem vertiginosamente, de modo que
sempre que se olhasse à tela, fosse vista outra tela, e outra e mais uma.
Desde o começo do século XX, os ready-mades problematizaram o estatuto
109
Lucio Fontana conceito espacial 1962
Wolf Vostell TV Dé-coll/age n
o
1 1958
da obra de arte, teoricamente qualquer objeto ordinário poderia ser considerado arte,
desde que bem contextualizado para isso. Não haveria nenhum problema em se
apropriar de um aparelho de tv para fazer uma instalação, na verdade, era de se
esperar que fosse assim e, assim, sucedeu. No mesmo ano em que Paik estava
gravando suas primeiras imagens e fazendo seus primeiros vídeo-arte, em outra
frente de trabalho o artista, simplesmente, deslocou vários aparelhos de tv para uma
galeria, colocando-os em posições não naturais, virados, de lado, etc. O
deslocamento, não só da tv para o museu, mas da posição da tv no museu, de Paik,
acaba lembrando o procedimento de Duchamp, que havia invertido o seu urinol em
1917. Paik não apresenta nenhuma imagem especial nesses televisores, o trabalho
é o simples deslocamento destes aparelhos para o espaço da galeria Parnass, em
Wuppertal, Alemanha. Porém, completamente no avesso do ready-made de
Duchamp, que coloca no centro das atenções um objeto, que normalmente está
escondido nos banheiros masculinos, Paik coloca no centro um objeto que é o ícone
de uma mudança de comportamento que esta acontecendo de forma maciça. Nesta
época não 90% dos lares estadunidenses possuíam um aparelho de tv, como o
povo dedicava em média incríveis 6 horas diárias em frente a este aparelho. Paik
transforma em ícone visual escultórico um aparelho que está dentro de todas as
casas, um verdadeiro ícone da cultura de massa.
É completam ente aceito para o circuito de arte que Paik é o pioneiro da
vídeo-arte, mas poderiam ser vários outros, o fato é que muitos artistas foram fazer
pesquisa com esses aparelhos novos que estavam se disponibilizando. Não seria
correto falar de nova tecnologia, porque os artistas deste período estavam
trabalhando com aparelhos que eram vendidos em qualquer comércio especializado,
isso não configura uma nova tecnologia, seria mais correto dizer, que eram artistas
que trabalharam com tecnologia de informação disponível. Michael Rush, diretor do
The Rose Art Museum, pensa o trabalho de artistas que utilizam meios de
comunicação de massa, para ele, as diferenças técnicas entre as mídias, muitas
vezes, são menos relevantes do que se poderia supor em uma analise rápida. Os
problemas poéticos das obras dos artistas são passiveis de serem produzidos nas
mais diferentes mídias e a opção por usar essa ou aquela tecnologia é mais um
dos muitos fatores importantes no discurso da obra. Claro que não se deve negar o
fato de que a mídia incrusta nos trabalhos problemas de matrizes tautológicas,
110
porém, todo trabalho em arte opera no desvio e, assim, novos problemas acabam
presentes nas próprias mídias, funcionando como uma rua de mão dupla. A
diferença entre artistas que se utilizam do cinema, do vídeo ou do computador,
estaria mais vinculada a questões poéticas que materiais. Rush ressalta que a
maioria dos artistas, que se tornaram relevantes como vídeo artistas, dentro do
circuito, estavam anteriormente pesquisando seus trabalhos com técnicas artísticas
mais tradicionais e estabelecidas, como a pintura e a escultura. Migraram, para
novas mídias, não por uma vontade de inovação vinculada à tecnologia, mas devido
a um cansaço pelas questões ligadas ao circuito e ao mercado de arte.
Sob uma ótica, que beira a total descrença nos valores do expressionismo
abstrato e tudo que ele passou a significar, as gerações que começaram a surgir
queriam negar os antigos valores. É certo que artistas, como os do grupo Fluxus,
negavam o que significava o expressionismo abstrato, tanto comercialmente, como
em relação a uma abordagem artística excessivamente subjetiva e psicologisada.
Paik propôs uma abordagem extremamente experimental, que repudiava as
questões mercadológicas. Suas tvs deslocadas para o museu, sem imagem, sem
proposições maiores que o deslocamento de um ícone de consumo para dentro o
universo da arte, criaram uma situação em que o espectador não sabe bem o porque
aquela tv está assim, daquela maneira, desfuncionalizada e inoperante. Este
trabalho causa um estranhamento, como se ela estivesse e, alguém tivesse
esquecido de apertar play no vt; ou quem sabe, ela esteja simplesmente estragada,
ninguém do museu percebeu o defeito para agilizar sua substituição. Nesta situação
a tv funciona como um borrão, um trompe l’oeil.
111
3.5 Epifania
Plínio, o velho, dedica os volumes 34, 35 e 36 do historias natural a contar os
grandes feitos da pintura, escultura e arquitetura. É no livro 35 que ele conta os
feitos do famoso pintor do século V a.C., Zêuxis da Heracléia, pintor que conquistou
a glória na nonagésima quinta olimpíada. Seus grandes adversários (nessa época
pintura era uma categoria olímpica) contemporâneos, conta-nos o autor, foram
Timantes, Androcides, Eupompo e Parrásio.
O último, segundo se conta, travou uma disputa com Zêuxis. Tendo
este pintando uvas com tal perfeição que aves voaram até a cena, na
sua direção, Parrásio pintou uma cortina com um realismo tão grande
que Zêuxis, todo orgulhoso com o veredito dos pássaros, reclamou
que abrisse, finalmente, a cortina para exibir a pintura. Percebendo
seu erro, concedeu a palma ao outro com franca modéstia, uma vez
que “ele enganara as aves, mas Parrásio a ele próprio, um artista”.
85
Zêuxis foi traído pela função da imagem (Lacan), a constatação que a
imagem, virtual ou real, apresenta-se sempre em uma relação ponto por ponto com
o olho. A parte de trás do olho é uma superfície sensível, qualquer jogo de luzes e
sombras alteram a retina da mesma maneira. O discernimento daquilo que vemos
vem com um retardo, algo que está antes da imagem
em si. “Algo anterior ao seu olho”, coloca-nos Lacan,
“que trata de discernir, pelas vias do caminho que ele
nos indica, é a preexistência de um olhar eu vejo de
um ponto, mas em minha existência sou olhado de
toda a parte”
86
. A traição do olho: a luz chega ao copo
ocular sempre da mesma maneira, assim, o famoso
crânio de Holbein é possível porque ele olha,
encara, e quem se sente observado, levanta os olhos.
112
85
PLÍNIO, O Velho. Historio natural. In: LICHTENSTEIN, Jaqueline (org). A pintura – vol.1: O mito
da pintura. São Paulo: Ed. 34, 2004 (p 75).
86
LACAN, Jacques. Seminário 11. RJ: Jorge Zahar editor, 1985 (p 73).
Nam June Paik Zen for tv 1965
A visão se ordena de um modo que podemos chamar, em geral, a
função das imagens. Esta função se define por uma correspondência
ponto a ponto de duas unidades de espaço, quaisquer que sejam os
intermediários óticos para estabelecer essa relação, quer uma
imagem seja virtual, quer seja real, a correspondência ponto a ponto
é essencial.
87
A anamorfose, o que Lacan chama de mancha, a experiência de
estranhamento, relação do olho com o olhar, onde todo ponto luminoso me olha,
sem metáforas. O ponto a ponto da ótica, do olhar, não se esgota na relação,
sempre algo que fica interdito, “sem dúvida, no fundo do meu olho, o quadro se
pinta. O quadro, certamente, está no meu olho. Mas eu, estou no quadro”
88
. A
imagem, enquanto o que me olha, está aquém, o borboletear da imagem, que está
no suprimido naquilo que pode ser visto na anamorfose, mas que está na própria
relação com a pintura é o que cria a diferance (com o “a” de Derrida), aquilo que
não é da linguagem e nem sequer pode ser dito. O barroco é cheio dessas
113
87
Idem (p 85).
88
Ibidem (p 94)
Esquerda: Hans Holbein Die Gesandten 1533
Direita: detalhe distorcido anamorficamente.
manchas, como o quadro de Cornelis Norbertus Gijsbrechts chamado Rückseite
eines Gemäldes de 1670, que é um sussurro contra a brutalidade de imagens
surdas. Uma imagem que possui uma admirável opacidade, a pintura de um quadro
ao contrário, seus mínimos detalhes até que o olho encontre a imagem, mas sem o
anteparo (que a anamorfose ainda mantém) é uma metaironia. “Nunca é no excesso
de realidade que pode haver o milagre, mas exatamente no contrário, no
desfalecimento súbito da realidade e na vertigem de nela perder-se”
89
.
A construção de uma imagem é um ato de arremessar signos no mundo e
colocá-los em contato com o mundo do corpo, assim, a imagem pode voar e o olho,
ao vê-la, pode, sem querer apreendê-la, subitamente ser iluminado por ela. Um
brilho que atravessa o olho e o olhar.
114
89
BAUDRILLARD, Jean. A Arte da Desaparição. RJ: UFRJ, 1997 (p17).
Cornelis Norbertus Gijsbrechts Rückseite eines Gemäldes 1670
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VIRILIO, Paul. O Espaço Crítico. SP: Editora 34, 1994.
WALLIS, Brian. Arte después de la modernidad. Madrid: Akal, 2001.
116
117
APÊNDICE:
Nestes anexos constam alguns desdobramentos da máquina, desenvolvidos
em paralelo a pesquisa acima apresentada. Podem ter efeito esclarecedor em
alguns momentos e, em outros, o oposto.
s / título (série máquina)
instalação
20 m
2
aparelho televisor sintonizado em tv aberta aleatória , 40 kg de vaselina sólida,
400 metros de fiação elétrica.
Montagem na exposição Pretexto, Fpolis, 2006.
118
119
s / título (série máquina)
instalação
3 m
2
aparelho televisor sintonizado em tv aberta aleatória , 3 kg de vaselina sólida hospitalar, 17
metros de fiação elétrica.
inédito, Fpolis, 2006.
120
s / título 1(série cinecromáticos)
s / título 2
pintura
30 x 30 cm (aprox)
equipamento eletrônico e elétrico dentro de sacolas plásticas.
Inédito , 2006/2007.
121
s / título (série aparição)
instalação
5 m de parede (3 m de parede,
canto e 2m)
LED de 20 candelas, ventilador,
velas (substituídas a cada 30 m)
suporte de cobre.
Montagem na exposição
Réquiem, Fpolis, 2006.
122
Hobby 2
instalação
dimensões variáveis,
montagem com 10m
2
aprox.
transformador 12v com 10 A,
500 metros de fiação elétrica e
31 ventiladores com 2m
3
de
fluxo de ar por minuto cada.
Montagem na exposição
Desvio p/ o vento. Fundação
Hassis, Fpolis.
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