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se enredasse num jogo de espelhos em que aquele que contempla projeta a sua
própria imagem sobre o objeto contemplado, o que significa ao mesmo tempo: em
que aquele que produz a “obra”, a composição ou a cena, é sempre virtualmente o
mesmo que põe em obra o(s) motivo(s) que a anima(m). Não é de espantar que a era
moderna tenha levado o ponto de vista da
Bildung
, cuja polissemia, nesse caso, é
nada menos que reveladora, a exercer-se como palavra de ordem. É formando e se
formando, cultivando e se cultivando – pondo em obra, compondo, organizando,
educando –, que o homem moderno cumpre, como Rousseau foi um dos primeiros a
reconhecer, essa
poiesis
que lhe determina a própria natureza e que faz desta última,
na expressão de Philippe Lacoue-Labarthe, uma “
tékhne originária
”.
136
O olhar que funda a história na sua acepção moderna desloca, quase que de
saída, a história para o registro figural. Ela é “esboço”, “quadro dos progressos”,
“palco de disputas”, “teatro de intenções” veladas ou manifestas. É de fato
impressionante o número de metáforas teatrais e/ou picturais que pontuam – ou que
suportam? – o discurso moderno sobre a história
137
. Como se a idéia de uma “grande
cena do mundo” fosse realmente a mais propícia para registrar o aparecimento do
homem moderno na sua dupla condição de ator e de autor. Pois é no momento em que
ele se descobre
dentro
dessa cena, como agente ou ator, que ele passa a ter que tomar
distância dela, para poder retraçá-la em seus contornos específicos. O deslocamento
ocular é uma exigência da história pensada nesses termos: trata-se de investigar, em
meio à ordem confusa dos acontecimentos, os “sentidos” que escapam aos
personagens nela envolvidos. A composição desse quadro, que reconfigurou a
imagem do homem sobre si mesmo substituindo-a talvez pela de uma “humanidade”,
136
Cf. LABARTHE 2002, p. 46. Nós retornaremos ainda a esse ponto e à sua formulação por Lacoue-
Labarthe, pois ele toca, como se verá a seguir, o cerne da nossa questão.
137
Herder utiliza diversas metáforas desse tipo, tanto “teatrais” quanto “pictóricas”. Ele fala de “teatro
da divindade” (
Schauplatz der Gottheit
), mas também de “belo quadro” (
schönes Gemälde)
, das “obras
do espírito e do gênio” (
die Werke des Geistes und des Genies
). Cf. HERDER 1774, pp. 190-191, 224-
225 e 228-229. Ver também a esse respeito KANT 1784, pp. 33-34; CONDORCET 1793; FICHTE
1806, p. 22. HEGEL 1822/31, pp. 34, 35, e 38. Em Hegel pode-se encontrar todas essas metáforas
reunidas. Num mesmo parágrafo, ele se refere ao famoso “espetáculo das paixões humanas” (
dieses
Schauspiel der Leidenschaften
), ao “campo de batalha” (
Schlachtbank
), assim como aos termos quadro
(
Gemälde
) e imagem (
Bild
). Logo à frente, ele se serve da imagem da história como um “tear”:
“Assim, dois momentos intervêm no nosso objeto: um é a idéia, o outro as paixões humanas; um é o
fio (
der Zettel
), o outro a trama do grande tapete (
der Einschlag des großen Teppichs
) da história
universal estendida à nossa frente.” Ver ainda, a esse respeito, WHITE 1973:
Meta-história: a
imaginação histórica do século XIX
, São Paulo, Edusp, 1992.