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Marieta Dantas
Heisenberg e a filosofia Grega
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Filosofia do Departamento de Filosofia da PUC-Rio
como parte dos requisitos parciais para a obtenção do
título de Mestre em Filosofia.
Orientador: Carlos Alberto Gomes dos Santos
Co-orientador: Antonio Augusto Passos Videira
Rio de Janeiro
Setembro de 2005
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0311027/CA
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2
Marieta Tunes Dantas
Heisenberg e a filosofia grega
Dissertação apresentada como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa
de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento
de Filosofia do Centro de Teologia e Ciência
Humanas da PUC – Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Prof. Carlos Alberto Gomes dos Santos
Orientador
Departamento de Filosofia da PUC – Rio
Prof. Antonio Augusto Passos Videira
Co-orientador
Departamento de Filosofia da UERJ
Profa. Maura Iglésias
Departamento de Filosofia da PUC - Rio
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia e
Ciência Humanas – PUC - Rio
Rio de Janeiro, 12 de Setembro de 2005
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0311027/CA
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3
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora
e do orientador.
Marieta Tunes Dantas
Graduou-se em filosofia na PUC - Rio em 2002. Desenvolveu
pesquisas no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica (PIBIC) na área de Filosofia Antiga sob a orientação
da professora Maura Iglésias
Ficha catalográfica
CDD: 700
Dantas, Marieta
Heisenberg e a filosofia grega / Marieta Dantas ;
orientadores: Carlos Alberto Gomes dos Santos, Antonio
Augusto Passos Videira. Rio de Janeiro : PUC-
Rio,
Departamento de Filosofia.
105 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado)
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia.
Inclui bibliografia
1. Filosofia
Teses. 2. Mecânica quântica. 3.
Filosofia grega. 4. Realidade. I. Santos, Carlos Al
berto
Gomes dos. II. Videira, Antonio Augusto Passos. III.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Filosofia. III. Título.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0311027/CA
4
Agradecimentos
Ao Carlos Alberto por ter aceitado me orientar nesta dissertação e pela paciência e
cuidado que teve comigo.
Ao Antonio Augusto que esteve presente todo o tempo e cuja co-orientação rica e
cuidadosa foi decisiva para a elaboração desta dissertação. Sem ele esta pesquisa não
poderia acontecer.
À Maura Iglesias por ter despertado há muito meu interesse pelos gregos e pela
generosidade com que compartilha o pensamento.
À CAPES pela bolsa concedida.
Ao Departamento de Filosofia da PUC-RJ pela confiança que creio ter sido
depositada em mim.
Ao Tunga, dono do primeiro livro do Heisenberg que tive em mãos. Com ele
compartilhei, todo o tempo, as questões discutidas nesta dissertação.
Ao Christiano Marques que fez muito mais do que uma revisão do texto e esteve
comigo em momentos cruciais.
Ao Daniel Bueno pelas discussões que enriqueceram não só a dissertação como o que
eu penso dela.
À Luiza Leite pelo carinho e pela força que deu a mim e ao texto.
Às amigas Dani Saad, Julia Eizirik e Karen Akerman, minhas irmãs, pelo amor.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0311027/CA
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Resumo
Dantas, Marieta Tunes; dos Santos, Carlos Alberto Gomes; Videira, Antonio
Augusto Passos. Heisenberg e a filosofia grega. Rio de Janeiro, 2005. 106 p.
Dissertação de Mestrado Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
A dissertação tem por objetivo mostrar a importância e a significação da
referência à filosofia grega no pensamento de Werner Heisenberg, um dos principais
fundadores da mecânica quântica. A referência aos gregos, constante em seus
escritos, deve ser primeiramente situada no contexto da crítica à modernidade, uma
das diretrizes herdadas de Niels Bohr e uma das características mais fundamentais da
filosofia de Heisenberg. Isto é, o pensamento grego é, para Heisenberg, um
contraponto aos fundamentos da filosofia moderna, cujos limites são intransponíveis
no que diz respeito à compreensão dos problemas apresentados pela física moderna.
Acreditamos, no entanto, ser possível afirmar que as constantes referências, sobretudo
a Platão e Aristóteles, têm também um papel fundamental no que diz respeito à
caracterização do “nível de realidade” próprio à mecânica quântica.
Palavras-chave
mecânica quântica; filosofia grega; realidade.
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Abstract
Dantas, Marieta
Tunes;
dos
Santos, Carlos
Alberto Gome
s; Videira,
Antonio Augusto Passos
. Heisenberg and the greek philosophy.
Rio de Janeiro, 2005. 106 p. MSc. Dissertation Departamento de Filosofia,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
This dissertation has for objective to show the importance and signification of
the reference to the greek philosophy in the thought of Werner Heisenberg, one of the
main founders of quantum mechanics. The reference to the greek philosophy,
constant in his writings, must first be situated in the context of the critics to
modernity, one of the inherited lines of direction of Niels Bohr and one of the most
basic characteristics of Heisenberg’s philosophy. That is, the greek thought is, for
Heisenberg, a counterpoint to the beddings of the modern philosophy, whose limits
are insurmountable with respect to the understanding of the problems presented for
the modern physics. We believe, however, that is possible to affirm that the constant
references, especially to Plato and Aristotle, have also a fundamental role with
respect to the characterization of the "level of reality" proper to the quantum
mechanics.
Keywords
quantum mechanics; greek philosophy; reality.
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7
Sumário
1. Introdução 09
2. Desenvolvimento histórico-conceitual da mecânica quântica 20
3. A crítica à modernidade 47
4. Heisenberg e os gregos 72
5. Conclusão 95
6. Referências bibliográficas 99
7. Glossário 103
8. Apêndices 107
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8
Lista de figuras
Figura 1: Radiação dos corpos negros 108
Figura 2: Modelo atômico de Thomson (pudim de passas) 110
Figura 3: Modelo atômico de Bohr 113
Figura 4: Experimento das duas fendas 114
Figura 5: Padrão de interferência 116
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1
Introdução
A presente dissertação tem por objetivo analisar o pensamento de Werner
Karl Heisenberg (1901-1976), um dos grandes físicos do culo XX e um dos
responsáveis pela criação e posterior desenvolvimento da mecânica quântica, a
moderna teoria do átomo. As contribuições ao desenvolvimento da mecânica
quântica não são apenas físicas ou matemáticas como se poderia supor e grande
parte do esforço empregado por Heisenberg era destinado à clarificação dos
fundamentos e conseqüências filosóficas desta teoria. Mais que isso, a ciência, para
Heisenberg, desde a sua origem grega, é intrinsecamente ligada à filosofia, o que
explica o fato de que para ele havia a necessidade não apenas de uma filosofia
natural, neste caso, de uma filosofia da física, como também de uma reflexão
rigorosamente filosófica
1
, como atesta a seguinte passagem:
De fato eu acredito que certos desenvolvimentos errôneos na teoria das partículas
e temo que estes desenvolvimentos ainda existam sejam causados pela má
compreensão por parte de alguns físicos de que seja possível evitar completamente
os debates filosóficos
2
.
Devemos fazer, no entanto, algumas observações. Quando se tem por objeto
de estudo a obra filosófica de um físico, em outras palavras, de alguém que nunca
reivindicou para si o posto acadêmico de filósofo, uma das primeiras questões
levantadas é aquela que diz respeito à relação que este físico, no caso Heisenberg,
tem com a filosofia. Ou seja, temos efetivamente o direito de atribuir a Heisenberg
uma reflexão filosófica original? No caso em questão a pergunta merece ainda
mais atenção pois a filosofia de Heisenberg é, de um modo geral, mal
compreendida e cercada de grande confusão. É o que aponta Catherine Chevalley
3
1
Ver Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans La
Physique Contemporaine, p. 46.
2
Heisenberg, Werner, “The Nature of Elementary Particles(1975), In: Physics Today, March
1976, p. 32.
3
Notar-se-á, ao longo desta dissertação, que são muitas as referências feitas a Catherine
Chevalley. Isto se deve ao fato de que muito poucos comentadores do trabalho de Heisenberg,
mas não isso. Ocorre, de fato, que o trabalho de Chevalley é o mais rico e mais completo no
assunto; ela é, de uma maneira geral, a melhor comentadora e, muitas vezes, a única a abordar
determinadas temáticas do pensamento de Heisenberg, bem como de outros autores da física
quântica.
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10
na sua introdução à tradução francesa de Das Naturbild der Heutigen Physik
4
, onde
ela critica a opinião, bastante comum nos dias de hoje, segundo a qual Heisenberg
(assim como os outros autores da chamada “Interpretação de Copenhague
5
”) não
teria feito mais do que tratar de questões que os cientistas chamam de questões
gerais”, e interpretar, fazer ecoar, ou vulgarizar, idéias formuladas ou
desenvolvidas por outros, e isso quando muito em seus escritos não técnicos
6
. Há,
segundo Chevalley, uma tendência geral a, diante de qualquer dificuldade de
interpretar o recurso que Heisenberg faz à filosofia, atribuir a ele a influência de
alguma “corrente de pensamento”, isto é, uma tendência a considerá-lo “alguém
levado por um fluxo
7
”.
Por exemplo, durante muito tempo julgou-se que Heisenberg era levado pelo
fluxo e pela influência de algo que se designava pelo termo “positivismo”. Mais
recentemente, afirmou-se ser o irracionalismo “a tendência intelectual dominante
na república de Weimar
8
” – o fluxo que o teria influenciado. Assim, de acordo com
Chevalley, o debate acerca do pensamento filosófico de Heisenberg permaneceu
“restrito a uma dicotomia enganosa entre ‘positivismo’ e ‘irracionalismo’, sem que
as premissas da formulação destes julgamentos fossem colocadas em questão
9
”.
Ainda de acordo com Chevalley, é também comum creditar aos escritos de
Heisenberg um tipo de filosofia destinada a embelezar um produto “novo e
desconcertante”, a fim de tornar este produto vendável algo que foi chamado de
4
Heisenberg, Werner, Das Naturbild der Heutigen Physic, Hambourg, Rowohlt, 1955. O título
da edição francesa com a introdução de C. Chevalley é La Nature Dans La Physique
Contemporaine, Paris, Éditions Gallimard, 2000. A tradução portuguesa tem o título: A Imagem
da Natureza na Física Moderna, Lisboa, Editora Livros do Brasil.
5
Ver Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans La
Physique Contemporaine, nota 1, p.19. “A situação de Heisenberg no que diz respeito a este
ponto é a mesma N. Bohr e W. Pauli: a da formação, nos anos de 1950 de um mito epistemológico,
a ficção da ‘Interpretação de Copenhague’, que teve por efeito transformar completamente o
discurso filosófico dos fundadores da mecânica quântica e de o substituir por um conjunto de
‘teses’ em grande parte controversas. Para uma análise geral desta substituição, ver Howard, Don,
Who Invented the Copenhagen Interpretation? A Study in Mythology”.
6
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans La Physique
Contemporaine, p.18.
7
Ibidem, p.19.
8
Forman, Paul, A Cultura de Weimar e a Teoria Quântica, 1918-1927: A Adaptação de Físicos a
um ambiente Culturalmente Hostil”. Paul Forman é, atualmente, curador da área de física moderna
no Smithsonian’s Museum of American History.
9
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans La Physique
Contemporaine, p. 20.
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11
“uma concepção ornamental da filosofia” e encobrir uma ambição de poder
10
.
Segundo Chevalley
11
:
Heisenberg cai sob suspeita mais do que os outros autores da física quântica, uma
vez que Bohr
12
é considerado, afetuosa ou ironicamente de acordo como o caso,
irremediavelmente prisioneiro das brumas conceituais nórdicas; Pauli
13
é ignorado,
malgrado a importância essencial de suas idéias epistemológicas, o que também
ocorre com Born
14
; Dirac
15
se absteve de filosofar, e Schrödinger
16
, Einstein
17
e de
Broglie
18
são liberados de qualquer suspeita mercantil pela simples circunstância de
que suas idéias não se impuseram
19
.
Ora, Heisenberg foi não o principal propagador do “espírito de
Copenhague” como um dos físicos mais influentes após o fim da Segunda Guerra
Mundial, em função da sua excepcional longevidade como cientista e da sua
atividade política na organização internacional da pesquisa
20
. A despeito da imensa
difusão que estas sugestões de interpretação tenham alcançado até os dias de hoje,
é preciso, no entanto, que elas sejam explicitamente recusadas
21
. São opiniões que,
como veremos, levaram em consideração muito pouco ou mesmo nada do
conteúdo dos textos de Heisenberg
22
.
Como afirma Weizsäcker, muitas pessoas, “incluindo Einstein e filósofos
realistas da atualidade
23
”, afirmaram ser a filosofia de Copenhague positivista. O
filósofo Karl Popper
24
foi um dos mais importantes críticos a manifestar sua
reprovação a Heisenberg e aos outros fundadores da “interpretação de
Copenhague” da mecânica quântica
25
. Como ele escreve em 1982,
10
Ibidem, p. 34.
11
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans La Physique
Contemporaine, p. 34.
12
Niels Henrik David Bohr (1885-1962).
13
Wolfgang Ernst Friedrich Pauli (1900-1958).
14
Max Born (1882-1970).
15
Paul Adrien Maurice Dirac (1902-1984).
16
Erwin Rudolf Josef Alexander Schrödinger (1887-1961).
17
Albert Einstein (1879-1955).
18
Louis Victor Pierre Raymond duc de Broglie (1892 - 1987).
19
Esta, como as demais traduções encontradas na presente dissertação, foi por mim elaboradas.
20
Ibidem, p. 34.
21
Ibidem, p. 21.
22
Ibidem, p. 25.
23
Weizsäcker, Carl von, “Heisenberg Conception of Physics“, In: Quantum Theory and the
Structures of Time and Space volume 2, p. 14-15.
24
Sir Karl Raimund Popper (1902-1994).
25
Ibidem, p. 19, nota 2: “Ver Karl Popper, Quantum Theory and the Schism in Physics, W. W.
Bartley ed., Londres, Hutchinson, 1982, Prefácio. O volume reúne três textos diferentes: um
manuscrito de 1957; a reedição modificada e comentada de um artigo de 1966, “Quantum
mechanics without the “observer””, e um prefácio de 1982. Popper não foi o único a se utilizar de
sua autoridade em uma “interpretação histórica” deste gênero; encontraremos as mesmas sugestões
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12
A física está em uma crise. (...) E parte da crise presente uma revolução quase
permanente das suas teorias fundamentais é, na minha opinião, um estado normal
de qualquer ciência madura. Mas também um outro aspecto da crise presente: é
também uma crise de compreensão. Esta crise de compreensão é aproximadamente
tão antiga quanto a interpretação de Copenhague da mecânica quântica
26
.
Para Popper, estes autores teriam se valido de uma mistura diabólica
composta de “muitos grandes erros
27
”, a saber, o “positivismo ou idealismo de
Mach (...) e a interpretação subjetivista dos cálculos de probabilidade
28
”. O
argumento utilizado nesta acusação faz recurso, habitualmente, às afirmações de
que a filosofia de Ernst Mach
29
era a filosofia oficial dos círculos de pensamento
dos anos 1920; de que os fundadores da mecânica quântica teriam abertamente se
declarado positivistas lógicos; e de que o positivismo seria manifesto no “princípio
da redução aos observáveis” dos trabalhos de 1925 a 1927 de Heisenberg sobre a
mecânica matricial e as relações de indeterminação. No entanto, ainda segundo
Chevalley, é possível mostrar o contrário. Primeiramente, que as teses de Mach
não estavam em voga no fim dos anos de 1920, como testemunham os próprios
membros do Círculo de Viena
30
. Em segundo lugar, que Bohr, Heisenberg e Pauli
claramente se declararam destacados da corrente do empirismo lógico, como na
seguinte passagem de Heisenberg:
Os positivistas têm uma solução simples: o mundo deve estar dividido entre aquilo
que podemos ver com clareza e o resto, sobre o qual é melhor silenciar. Nesses
casos, dever-se-ia permanecer calado. Não existe filosofia mais despropositada que
esta, considerando-se que não existe nada que possa ser dito claramente. Se
omitíssemos tudo o que não é claro, provavelmente nos restariam tautologias
desinteressantes e banais
31
.
Ou neste trecho, em que Heisenberg cita Bohr:
Tudo o que os positivistas estão tentando fazer – concluiu Niels - é dar aos métodos
da ciência moderna uma base filosófica, ou, se vocês preferirem, uma justificação.
Eles assinalam que falta às antigas filosofias a exatidão própria dos conceitos
por exemplo em M. Bunge, Philosophy of Physics, Dordrecht, Reidel, 1973 (...). De fato, a tese
do positivismo de Bohr e Heisenberg foi tacitamente aceita desde dos anos 1950.”
26
Popper, Karl, Quantum Theory and the Schism in Physics, p. 1.
27
Ibidem, p. 2.
28
Ibidem, p. 2.
29
Ernst Mach (1838-1916).
30
Ver Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans La
Physique Contemporaine,p. 21, nota 2.
31
Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo (1969). Capítulo 17: p. 248.
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13
científicos e acham que muitas das questões levantadas e debatidas pelos filósofos
convencionais não m sentido: são pseudo-problemas e, como tais, mais vale
ignorá-los. Endosso a insistência positivista na clareza conceitual, mas sua proibição
de qualquer debate sobre as questões mais amplas, apenas por nos faltarem
conceitos suficientemente bem definidos nessas áreas, não me parece útil; essa
mesma proibição impediria que compreendêssemos a teoria quântica
32
”.
E, finalmente, estas passagens, dentre outras
33
, nos permitem perceber que a
atribuição de um caráter positivista ao “princípio de redução aos observáveis” não
era de modo algum justa. Este princípio que era antes de tudo einsteiniano, de
acordo com Heisenberg
34
surgiu de uma necessidade própria da construção da
teoria quântica, a saber a de por em caução os conceitos cinemáticos clássicos tais
como os de trajetória, órbita ou posição de um elétron, a fim de se liberar das
“imagens intuitivas”
Quanto à atribuição de irracionalismo, o argumento principal é o de que a
corrente dominante na Alemanha nos anos que se seguiram à Primeira Guerra
Mundial, momento da criação da mecânica quântica, era não a do positivismo, mas
a de uma filosofia oposta ao racionalismo mecanicista das ciências da natureza.
Paul Forman, num artigo de 1971
35
que ele julga ser uma “análise causal
36
de
como fatores sociais determinam o conhecimento científico, alega que a atmosfera
intelectual da Alemanha do pós-guerra (a assim chamada república de Weimar)
influenciou a interpretação não determinista da mecânica quântica elaborada pela
chamada Escola de Copenhague. O lugar e o período eram, de acordo com
Forman, “de profunda hostilidade à física e à matemática
37
”. Consoante Forman:
32
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 72-73.
33
Por exemplo, Heisenberg, Werner, Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 43. Ver
também Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans La
Physique Contemporaine, p. 22, nota 1.
34
Ver a este respeito Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo (1969), capítulo 5 (p. 73-85). De
acordo com Heisenberg, Einstein se utilizou do princípio da redução a grandezas observáveis em
sua teoria da relatividade ao enfatizar “que não se pode falar em tempo absoluto, simplesmente
porque o tempo absoluto não é observável; que as leituras dos relógios, seja no sistema de
referência do movimento, seja no sistema em repouso, são importantes para a determinação do
tempo.”
35
Forman, Paul, “A Cultura de Weimar e a Teoria Quântica, 1918-1927: A Adaptação de Físicos a
um ambiente Culturalmente Hostil”, In: Cadernos de História e Filosofia da Ciência,
suplemento 2. Centro de gica, Epistemologia e História da Ciência (CLE), Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), 1983. Este artigo é que é a origem da tese da influência de
Weimar. F. Selleri segue a tese de Forman em F. Selleri, Le grand débat de la théorie
quantique, Paris, Flammarion, 1986, p. 49 : “Os físicos teriam, assim, se alinhado à “tendência
intelectual dominante na República de Weimar”, i.e. aquela “de uma filosofia da vida
existencialista que se opunha fortemente ao racionalismo” e que correspondia a uma tendência
geral da cultura alemã, oposta a qualquer Weltenschauung (visão de mundo) racional
36
Forman, Paul, “A Cultura de Weimar e a Teoria Quântica”, p. 6.
37
Ibidem, p. 7.
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14
A tendência intelectual dominante no mundo acadêmico de Weimar era uma
“filosofia da vida” existencialista e neo-romântica, que se alimentava de crises e se
caracterizava pelo antagonismo em relação à racionalidade analítica em geral e às
ciências exatas e suas aplicações técnicas em particular”, e o cientista era “implícita
ou explicitamente o bode expiatório de incessantes exortações em favor de uma
renovação espiritual, enquanto o conceito – ou meramente a palavra – “causalidade”
simbolizava tudo aquilo que era odioso na atividade científica
38
.
Para Forman, quando os cientistas e a atividade por eles exercida gozam de
alto prestígio no ambiente social imediato têm também a liberdade para ignorar as
doutrinas, simpatias e antipatias específicas do meio cultural correspondente.
Quando ao contrário os cientistas e seu trabalho experimentam uma perda de
prestígio, vêem-se impelidos a tomar medidas para compensar este declínio
39
:
“Caso o físico desejasse melhorar sua imagem pública, devia, antes de tudo,
dispensar a causalidade, o determinismo rigoroso, este aspecto universalmente
detestado da descrição física do mundo
40
”. Os físicos alemães teriam, assim, por
causa da pressão que sofriam, se disposto a abandonar a causalidade, então
identificada com a racionalidade, para se aproximar de uma moda ideológica que
lhes empurrava para o que Forman chamou de uma “sede por crises
41
”. Forman
sugere ainda que esta pressão teria mesmo os levado a procurar por um formalismo
matemático que pudesse ser interpretado como não causal, isto é, esta conversão
ideológica teria começado antes que se tivesse evidência da não causalidade da
teoria quântica. Em outros termos, a interpretação não causal e o aparato
matemático a ela associados teriam sido adotados por parecerem ser uma boa
estratégia publicitária.
O artigo de Forman é, de acordo com J. Hendry,
amplamente reconhecido como sendo de máxima importância: como a primeira
tentativa de analisar as dramáticas mudanças ideológicas que acompanharam o
desenvolvimento da mecânica quântica e também como o principal marco miliário
na historiografia da ciência
42
.
Contudo, prossegue Hendry, embora dificilmente se possa duvidar da
caracterização do meio intelectual de Weimar identificada por Forman, uma
38
Ibidem, p. 7.
39
Ibidem, p. 8.
40
Ibidem, p. 9.
41
Ibidem, p. 51.
42
Hendry, John, “Weimar Culture and Quantum Causality”, p. 155.
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15
conexão causal entre esta caracterização e a tese central do artigo não pode ser
sustentada. Cito Hendry:
Devemos nos lembrar que a história das idéias raramente é tão direta, e que mesmo
no que diz respeito a uma atitude geral no ambiente da matemática, física e
causalidade, dever-se-ia distinguir uma sutileza que Forman não distinguiu. Pois
embora muitos ataques a matemáticos e físicos partindo de ambientes exteriores ao
destas disciplinas de fato fossem feitos, estes ataques eram, em todos os casos,
ataques ao seu valor, e não ao seu conteúdo. (...) Não havia qualquer concepção de
física e matemática que pudesse se adaptar aos novos ideais. (...) sica e
causalidade estavam equacionadas e, enquanto a física sobrevivesse na presente
civilização, ela continuaria a ser caracterizada pelo seu tema peculiar nesta
civilização, isto é, pela causalidade
43
.
A renúncia à causalidade não significava, assim, a transformação da física,
mas sim o seu fim. A existência da equação física = causalidade, e da distinção
entre o valor e o conteúdo das ciências exatas, não afeta o fato de que ambas, a
física e a causalidade, estivessem sob forte ataque e de que os cientistas em alguma
medida reagissem a isto adaptando o seu conteúdo. No entanto, a distinção entre
valor e conteúdo é útil para que se perceba, ao olhar as atitudes dos físicos, que
estes eram antes excluídos do meio intelectual do que por ele atacados.
Se, afirma Hendry
44
, os físicos e matemáticos usavam naturalmente em seus
discursos a linguagem do meio intelectual em questão, e justificavam os objetivos
das suas atividades em termos que poderiam ser compreendidos e apreciados por
aqueles que estavam questionando seu valor cultural, isto indica, por certo, que
havia da parte deles uma consciência das críticas que vinham deste meio, e até
mesmo uma certa acomodação de valores, mas não implica, de modo algum, que
houvesse qualquer tipo de adaptação no que diz respeito ao conteúdo das ciências.
Além disso, ainda seguindo Hendry, embora Forman tenha sido bem sucedido na
tentativa de mostrar que os físicos e matemáticos estavam conscientes dos valores
do meio, e de que este meio era realmente hostil ao princípio de causalidade, ele
não foi capaz de justificar as afirmações de que havia na física uma ampla difusão
da rejeição à causalidade e de que não havia razões internas para esta rejeição.
Pois existiam fortes razões internas para a rejeição da causalidade, e quando estas
razões são levadas em consideração, e a suposta “conversão à não causalidade” de
Forman é reexaminada criticamente, percebe-se que a reação dos sicos ao desafio
43
Ibidem, p. 157-158.
44
Ibidem, p. 159-160.
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16
da causalidade estava longe de ser uma acomodação e que podia mesmo ser uma
tendência ao isolamento
45
.
Outra questão ressaltada por Hendry é a de que mesmo que considerássemos
todos os casos de conversão à não causalidade como produto direto da ação do
meio social, estes casos representariam apenas uma minúscula proporção da
totalidade dos físicos alemães. E, ainda que não seja claro se a reação da vasta
maioria foi a de isolamento ou da neutralidade, certamente nenhuma destas opções
é próxima a um desejo ardente ou a uma procura ativa por uma mecânica quântica
não causal
46
. Como afirma Chevalley, a tese de Forman se choca com afirmações
explicitamente contrárias a ela dadas por Bohr e Heisenberg, cujo holismo nunca
está associado a um irracionalismo ou à reivindicação de uma não causalidade de
princípio
47
. Cabe indicar também que a tese de Forman ignora o fato de que a
aparição do modo de pensar estatístico em física é muito anterior à moda
irracionalista e à crise engendrada pela derrota alemã na primeira grande guerra.
Nas palavras de Chevalley,
a defesa desta tese também se utiliza consideravelmente da ambigüidade do próprio
termo “causalidade”, de que é preciso distinguir ao menos três significados
diversos: aquele do determinismo matemático da física clássica que é de fato por
eles abandonado (ou ao menos limitado), aquele de um conceito geral da teoria do
conhecimento ligado a uma noção de inferência válida em uma argumentação, de
que Bohr afirma a manutenção como uma evidência em um texto de 1931 no qual
ele se espanta com a confusão ocorrida nos debates; e aquele do conceito físico de
conservação da energia e da impulsão, igualmente mantidos em 1927. Sem tais
distinções, a atribuição de um acausalismo irracionalista aos fundadores da
mecânica quântica se sustenta apenas num argumento de autoridade
48
.
No que diz respeito à causalidade propriamente dita, questão em que o artigo
de Forman se baseia fundamentalmente, é ainda mais importante, para Hendry,
ressaltar o fato de que
o critério da causalidade era apenas um aspecto da ideologia científica dominante
(...). Para a maioria daqueles que estavam ocupados com os problemas das teorias
quântica e da relatividade, ele era claramente uma questão secundária em relação
àquela do critério de uma descrição consistente dos fenômenos no espaço e tempo
45
Ibidem, p. 160.
46
Ibidem, p. 168.
47
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans la physique
Contemporaine, p. 23.
48
Ibidem, p. 23-25. Ver Chevalley, Catherine, “Glossaire”, in Niels Bohr, Physique Atomique et
Connaissance Humaine, p. 385-396.
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17
ordinários e àquela de uma teoria objetiva (isto é, independente do observador); e
isto era particularmente verdadeiro no que diz respeito aos físicos mais intimamente
envolvidos com o desenvolvimento de uma nova mecânica quântica, isto é, no que
concerne a Pauli, Heisenberg e Bohr. (...) Sutilezas como estas concernentes ao
conceito de causalidade fazem zombaria da tentativa de Forman de uma análise
“causal” dos fenômenos com os quais ele está preocupado. Mas mesmo sem estas
sutilezas, a tentativa teria soçobrado pela sua completa falta de informação
49
.
É preciso, portanto, como sugere Chevalley, que se abandone não só a
solução de atribuir ao conteúdo dos escritos de Bohr e Heisenberg a influência de
correntes de idéias, mas também que se pratique
uma certa suspensão de opinião no que diz respeito aos julgamentos “psicológicos”
usualmente conectados a Heisenberg: diletante, oportunista, determinado a utilizar
seus conhecimentos filosóficos como estratégias para obter poder, que só teria
filosofado superficialmente e com objetivos precisos e extrínsecos à filosofia
mesma. (...) Ainda aqui tudo se passa como se o público de hoje em dia
generalizando a todo o século XX a separação drástica das culturas filosófica e
científica instaurada depois de 1945 - não esperasse de um intelectual, em matéria
de filosofia, mais que visões livres, julgamentos sem rodeios ou retóricas enganosas.
Ora, apesar de ser possivelmente fácil encontrar exemplos atuais de tal situação, o
hábito de se projetar seus efeitos sobre o início do século XX constitui um
anacronismo. Um tal hábito reflete, possivelmente, também a dificuldade que existe
hoje em dia de pensar o conhecimento científico em termos filosóficos
50
.
Como foi dito, apenas a desinformação justifica a difusão dos contra-sensos
mais comuns no que diz respeito às posições de Heisenberg. Afirma-se que ele
teria negado a realidade física afirmando que “somente o que é passível de
medição é real”; que ele teria privilegiado constante e exclusivamente as
matemáticas abstratas
51
; que ele teria afirmado autoritariamente que a mecânica
quântica era o “fim do caminho
52
”; que ele teria pregado a incompreensibilidade de
uma teoria como uma verdade, etc., embora os textos de Heisenberg contenham,
sobre cada um destes pontos, repetidas indicações contrárias.
Faz-se necessário, pois, adotar uma outra perspectiva que leve em
consideração o corpo real dos textos. A partir de uma tal perspectiva é possível
49
Hendry, John, “Weimar Culture and Quantum Causality”, p. 169.
50
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans la Physique
Contemporaine, p. 25.
51
Ver por exemplo, Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo, capítulo 3, “O conceito de
“compreensão” na física moderna”: “O aparato da teoria da relatividade não me causava nenhuma
dificuldade, mas isso não significava, necessariamente, que eu houvesse “compreendidopor que
um observador em movimento, ao usar a palavra “tempo”, referia-se a algo diferente de um
observador em repouso. Aquilo me intrigava e me parecia incompreensível. (...) Sinto-me meio
ludibriado pela lógica implícita nesse arcabouço matemático. Talvez você possa a dizer que
apreendi a teoria com o cérebro, mas não ainda com o coração.”
52
Popper, Karl, Quantum Theory and the Schism in Physics, p. 6.
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18
apresentar uma interpretação da relação que tem Heisenberg com a filosofia,
eliminando, com isso, a tese da influência ideológica e a reprimenda ao
diletantismo
53
. Prosseguiremos, deste modo, com a consideração deste corpo real
dos textos nos capítulos que se seguem.
Apesar de privilegiarmos a obra filosófica de Heisenberg, para compreendê-
la nos seus pontos principais devemos antes nos voltar, em nosso primeiro
capítulo, para uma breve descrição histórico-conceitual da teoria quântica, pois é
da especificidade desta teoria que se origina o pensamento filosófico de
Heisenberg. Esta especificidade é caracterizada por uma modificação fundamental
na definição de observação. A mecânica quântica inaugurava uma nova forma de
objetividade assinalada pela renúncia à unidade clássica de uma descrição
simultaneamente espaço-temporal e causal dos fenômenos e pela característica
estatística que dela era conseqüência. Esta renúncia tem por resultado a
justaposição de duas linguagens, a linguagem dos conceitos clássicos e a do
formalismo matemático da mecânica quântica.
Devemos apontar, ainda nesta introdução, que a aparição da mecânica
quântica levou seus inventores a um reexame crítico dos conceitos fundamentais da
tradição filosófica moderna, concomitante a um reexame dos conceitos
fundamentais da física clássica, a herdeira destes conceitos. Este reexame resultou,
como veremos, na conclusão de que a divisão do universo entre processos
objetivos no espaço e no tempo de um lado e a alma que reflete estes processos, de
outro, não podiam aplicar-se à física moderna.
A ciência já não é um espectador colocado em frente da natureza, mas reconhece-se
a si mesma como parte da interação entre homem e natureza. O método científico,
consistindo em abstrair, explicar e ordenar os fenômenos, adquiriu consciência das
limitações que lhe impõe o fato de a sua intervenção modificar e transformar o seu
objetivo a tal ponto que o método não pode separar-se do objetivo.
Estas questões serão examinadas em nosso segundo capítulo, e, no entanto,
este não é o objetivo central do presente trabalho. A hipótese em que aqui nos
baseamos é aquela de que é possível compreender melhor a interpretação da
mecânica quântica e a filosofia de Heisenberg caso se examine o papel que o
recurso ao pensamento grego desempenha em sua obra, o que será efetuado apenas
no terceiro capítulo desta dissertação. A hipótese de que partimos parece ser, antes
53
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans la Physique
Contemporaine, p. 27.
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19
de tudo, uma hipótese do próprio Heisenberg, que chega a fazer da filosofia grega
uma condição para a compreensão da física atômica como se pode perceber na
passagem que se segue: “De qualquer modo, convenci-me [ainda em 1919] de que
dificilmente podemos ocupar-nos de física atômica sem conhecermos a filosofia
grega da natureza
54
”.
54
Heisenberg, Werner, “Relações entre Cultura Humanística, Ciência e Ocidente” (1949), A
Imagem da Natureza na Física Moderna, p.60.
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2
Desenvolvimento histórico-conceitual da mecânica
quântica
Parece necessário para a compreensão do pensamento de Heisenberg que
façamos, primeiramente, uma descrição do desenvolvimento histórico-conceitual
da mecânica quântica. Seguimos aqui o próprio Heisenberg, na afirmação de que
“a melhor maneira de se entrar nos problemas científicos e filosóficos da física
moderna pode ser através de uma descrição histórica do desenvolvimento da teoria
quântica
1
”. Este desenvolvimento histórico-conceitual é marcado, no que nos
concerne aqui, sobretudo pelo pensamento do físico dinamarquês Niels Bohr, uma
vez que Bohr foi de fundamental importância para a reflexão posterior de
Heisenberg como ele próprio afirmou muitas vezes. Cabe ressaltar, como o fez
Chevalley, que “a obra de Bohr, como freqüentemente se observou, é ao mesmo
tempo a de um físico e a de um filósofo. Entre este dois aspectos, o há, no
entanto, uma justaposição, mas uma imbricação e uma referência permanente de
uma à outra
2
”. Os elementos característicos do método de Bohr são formados,
ainda de acordo com Chevalley
3
, ao curso do período mais complicado da história
da mecânica quântica, quando a ruptura com a física clássica ainda não havia sido
operada e era preciso proceder em se tateando no escuro. Como veremos, Bohr se
esforçou por definir um modo de constituição da objetividade que diferirá em
pontos essenciais daquele que a física adotou durante três séculos. Seu
pensamento, que não se apresenta sob uma forma sistemática, deve antes ser
considerado como construído em torno de uma questão, questão esta que se
desenvolve lentamente à medida que surgem os problemas durante a elaboração da
teoria quântica. Para compreender esta evolução é preciso, então, compreender
como se a passagem dos paradoxos da antiga teoria quântica na direção de uma
clarificação da questão geral, a saber a das condições de coerência ao mesmo
tempo formal e filosófica de uma física dos fenômenos atômicos. Devemos,
portanto, retomar o percurso da teoria quântica desde seu início.
1
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy, p.16.
2
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Physique Atomique et Connaissance Humaine, p. 19.
3
Ibidem, p. 34-35.
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21
Em 1900 Max Planck
4
formulou, inicialmente de modo apenas empírico,
uma lei para o fenômeno da radiação
5
, resultado do seu estudo sobre radiação
térmica
6
de corpos negros
7
. O fenômeno em questão é bem conhecido e não
pertencia, até então, às partes centrais da física atômica
8
. Um corpo negro perfeito
é “um corpo que absorve toda a radiação que nele incide e, conseqüentemente, (...)
é também o mais poderoso emissor de radiação
9
”. Ele pode ser descrito como
qualquer pedaço de matéria de superfície negra, por exemplo uma bola, que seja
ôca e que tenha um pequeno furo. Devemos lembrar que aquecer um corpo
significa, basicamente, aumentar a agitação dos átomos que o constituem (quanto
maior a temperatura, maior a agitação dos átomos). A partir de uma determinada
temperatura, qualquer pedaço de matéria emite radiação visível, cuja natureza
muda de acordo com a temperatura: ele se torna incandescente, depois vermelho, e
quando a altas temperaturas, branco, o que independe da cor ou superfície do
material, e a radiação emitida é estudada para diferentes temperaturas do sistema
10
. Até então pensava-se que a energia emitida por um corpo aquecido se
comportava como onda eletromagnética
11
, sendo emitida e absorvida de modo
contínuo pelas menores partículas radiantes, os átomos
12
e o fenômeno deveria
poder ser explicado de acordo com as leis da radiação e do calor conhecidas.
Porém, a tentativa de se obter esta explicação, no fim do século XIX por Lord
Rayleigh
13
e James Jeans
14
, não havia sido bem sucedida
15
. Planck iniciou suas
4
Max Karl Ernst Ludwig Planck (1858 - 1947).
5
Ver no Glossário a entrada “Radiação”.
6
Ver no Glossário a entrada “Radiação térmica”.
7
Planck, Max, “On the Law of Distribution of Energy in the Normal Spectrum” ("Para a teoria da
lei de distribuição de energia no espectro normal"), Annalen der Physik vol. 4, p. 553 ff (1901).
Disponível para consulta online na página “Classic Papers from the History of Chemistry”:
http://dbhs.wvusd.k12.ca.us/webdocs/Chem-History/Classic-Papers-Menu.html, mais
precisamente no endereço http://dbhs.wvusd.k12.ca.us/webdocs/Chem-History/Planck-
1901/Planck-1901.html.
8
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 18.
9
Heisenberg, Werner, Nuclear Physics (1948), p. 31.
10
Uma explicação um pouco mais detalhada se encontra no apêndice 1.
11
se havia observado na luz fenômenos tais como interferência, difração e dispersão (ver as
respectivas entradas no glossário), isto é, fenômenos que apenas uma onda poderia apresentar, e
em suporte à interpretação ondulatória estava a bem sucedida teoria do eletromagnetismo de
Maxwell. Ver a entrada “Eletromagnetismo” no Glossário.
12
No interior de um átomo não luz: os átomos emitem luz após serem excitados, ou seja,
para que um átomo comece a irradiar luz é necessário que lhe seja transmitida uma determinada
quantidade de energia. Ao irradiar, o átomo perde a energia que adquiriu.
13
Lord John William Strutt Rayleigh (1842-1919).
14
Sir James Hopwood Jeans (1877-1946).
15
A “Lei Rayleigh-Jeans da radiação” se aplicava aos dados experimentais nas regiões de
freqüência extremamente baixa mas não se aplicava às altas freqüências. Jammer, Max, The
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22
pesquisas com uma hipótese que se utilizava de medidas muito precisas do
espectro da radiação térmica, feitas por Ferdinand Kurlbaum
16
e Heinrick
Rubens
17
. Ela era matematicamente simples e se mostrou em total concordância
com os dados experimentais.
A nova fórmula não tinha, no entanto, ainda, uma interpretação física, o que
iniciou um período de intenso trabalho teórico para Planck. É provável que não
tenha demorado até que ele percebesse que sua fórmula, se traduzida em termos do
átomo radiante (o assim chamado oscilador
18
), revelava que a única conjetura
possível era a de que o oscilador poderia emitir quanta com energias discretas.
Nas palavras de Heisenberg,
ele percebeu que sua lei só poderia se estabelecer nas bases da notável hipótese de
que as menores partículas radiantes, os átomos, não poderiam assumir os valores de
uma seqüência contínua de todos os valores possíveis de energia das suas vibrações
(como seria de se esperar de acordo com o nosso conhecimento prévio) mas apenas
uma série de certos valores específicos, definidos, de energia. Parecia mesmo e a
pesquisa subseqüente o provou que a radiação emitida manifestava esta qualidade
de descontinuidade, e que a luz, vista então como um processo ondulatório, deveria
também consistir de quantas discretos de energia
19
.
Os átomos poderiam, assim, emitir e absorver radiação em quantidades
definidas, como se fossem “pacotes” de energia. De acordo com a lei de Planck, a
luz não tinha mais as características das ondas que se propagam no espaço em
todas as direções, mas era uma grande quantidade de partículas atravessando o
espaço em linhas retas. Embora Planck tivesse achado necessário quantizar a
emissão e recepção de energia, este resultado era tão diferente de tudo que se
conhecia na física clássica que ele hesitou em estender o conceito de quantização
de energia à radiação eletromagnética, afinal, a eletrodinâmica de James
Maxwell
20
, que havia sido extremamente bem sucedida, se baseava na idéia de que
campos eletromagnéticos transportavam qualquer quantidade de energia de forma
contínua. Mas Planck, depois de um período de árduo trabalho, finalmente
convenceu-se de que não havia como escapar de sua conclusão. Cito Heisenberg:
Conceptual Development of Quantum Mechanics, op. cit. p. 17. Para um maior esclarecimento a
respeito do experimento de Rayleigh e Jeans, e da descoberta de Planck, ver o apêndice 2.
16
Ferdinand Kurlbaum. (1857-1927).
17
Heinrick Leopold Rubens (1865-1922).
18
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p.19.
19
Heisenberg, Werner, Nuclear Physics (1948), p. 31.
20
James Clerk Maxwell (1831-1879).
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23
Conta o filho de Planck que seu pai falou com ele a respeito de suas novas idéias,
durante uma longa caminhada pelo Grunewald, um bosque nos subúrbios de Berlim.
Nesta caminhada ele explicou que sentia ter talvez feito uma descoberta de primeira
grandeza, comparável somente às de Isaac Newton. Assim, Planck deve ter, nesse
tempo, compreendido que sua fórmula vinha abalar os fundamentos de nossa
descrição da natureza, e de que estes fundamentos um dia iriam começar a se mover
da sua locação tradicional presente na direção de uma nova e ainda não conhecida
posição de estabilidade. Planck, que era um conservador na sua maneira de ver as
coisas, não gostou nada dessas conseqüências, mas mesmo assim, publicou sua
hipótese quântica em dezembro de 1900
21
.
Em 1905 Einstein operou um importante desenvolvimento conceitual que
levou a uma generalização da concepção de quanta, ao estender a hipótese da
presença do quanta de ação a outros fenômenos que não estavam imediatamente
ligados à radiação térmica
22
. Einstein reviveu a hipótese de Planck para explicar o
efeito fotoelétrico
23
(a emissão de elétrons a partir de metais sob a influência da
luz)
24
. O experimento mostrava que a energia dos elétrons emitidos não dependia
da intensidade da luz, mas apenas da sua cor, em outras palavras, da sua
freqüência
25
. Einstein sugeriu que a radiação se comportava como se fosse
composta de um número finito de quantas hv de energia, ou “fótons”, como eles
vieram a ser chamados posteriormente
26
. A idéia da distribuição descontínua da
energia radiante no espaço, de uma estrutura granular da radiação, era bastante
diferente da teoria eletromagnética da luz e de seus bem estabelecidos e
indiscutíveis resultados experimentais
27
. A luz poderia, então, ser interpretada
como constituída de ondas eletromagnéticas, como na teoria de Maxwell, ou como
sendo constituída de quanta de luz, isto é, pacotes de energia se propagando pelo
espaço a uma velocidade muito elevada. Não se sabia, assim, de que natureza era a
luz.
Nos anos que se seguiram, a pesquisa continuou e a procura por um modelo
mecânico, que explicasse o funcionamento dos quanta de luz, era um assunto
bastante discutido. Esperava-se que a construção de um modelo fosse
particularmente útil para a clarificação do real sentido da constante h de Planck
28
.
A questão que se colocava era a de se determinar que tipo de estrutura atômica
21
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p.19.
22
Ibidem, p. 20.
23
Mais detalhes no apêndice 3.
24
Jammer, Max, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 20.
25
Ver a entrada “Freqüência” no glossário.
26
Isto é, E = hv, onde h é a, então nova, constante de Planck e v é a freqüência da luz
27
Jammer, Max, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 30.
28
Ibidem, p. 39.
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24
poderia dar conta dos dados experimentais conhecidos, especialmente o da
estabilidade apresentada pelos átomos do ponto de vista de suas propriedades
químicas e físicas. O átomo tinha se tornado, desde o aparecimento do elétron
29
,
um composto de partículas e, a partir daí, toda representação da estrutura do átomo
deveria ser capaz de explicar as propriedades conhecidas tendo como base uma
teoria dos movimentos dos elétrons no interior dos átomos. De acordo com
Chevalley, “é isto que abre o problema da constituição elétrica da matéria. A
aparição deste problema “dessubstanciou” a química e a fez depender do
comportamento de um número, e não mais da disposição de constituintes
individuais
30
.”
Dentre os modelos microscópicos baseados no conhecimento disponível
acerca da estrutura do átomo, o modelo, então amplamente discutido, era o de J.J.
Thomson, chamado de pudim de passas (“plum cake”)
31
. Neste modelo, proposto
em 1904, o átomo era descrito como uma esfera positivamente carregada, de
densidade uniforme, dentro da qual estava um grande número de elétrons. Em
1911, Ernst Rutherford
32
criou um modelo atômico a partir de experimentos
baseados na mecânica clássica, a saber, o bombardeamento de raios α em uma fina
folha de ouro
33
. Este modelo era semelhante a um sistema planetário. Nele, o
átomo consistia de um núcleo positivamente carregado e de elétrons que, atraídos
pela carga positiva do núcleo, circulavam em torno dele como planetas ao redor do
Sol. A ligação química entre átomos de diferentes elementos era explicada como
sendo uma interação entre os elétrons mais externos de átomos vizinhos e não tinha
relação direta com o núcleo. O núcleo determinava o comportamento químico do
átomo através da sua carga que, por sua vez, determinava o número de elétrons em
um átomo neutro, isto é, de um átomo não carregado positiva ou negativamente. O
modelo de Rutherford apresentava, contudo, alguns problemas. De acordo com as
leis da mecânica de Newton, nenhum sistema planetário retornaria à sua condição
inicial após a colisão com um outro sistema planetário como acontece com os
29
O elétron foi descoberto por Sir Joseph John Thomson (1856-1940) em 1897, no laboratório
Cavendish, na Universidade de Cambridge.
30
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Physique Atomique et Connaissance Humaine, p.
42.
31
Jammer, Max, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 39. uma imagem
do modelo de Thomson no apêndice 4.
32
Lord Ernest Rutherford of Nelson (1871 - 1937).
33
Ver apêndice 5.
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25
átomos quando interagem com outros
34
. Além disso, esperar-se-ia que os elétrons
emitissem radiação em todos os comprimentos de onda, mas era sabido, através
dos estudos dos espectros de emissão, que quando os átomos emitem radiação, eles
o fazem somente em certos comprimentos de onda, específicos de cada elemento, e
não em todos os comprimentos de onda
35
. E por fim, o modelo de Rutherford não
explicava a característica mais fundamental do átomo, a saber, sua estabilidade: de
acordo com a lei de Maxwell, qualquer partícula acelerada emite radiação,
perdendo energia. Ao perder energia, o elétron cairia no centro do átomo, o que
provocaria o seu colapso
36
. “Ora, - afirma Chevalley - os átomos longe de
desaparecerem voluntariamente, apresentam, ao contrário, uma notável
estabilidade de seu comportamento físico e químico
37
”. A física clássica não dava
conta, deste modo, da existência dos átomos e da estabilidade da matéria
38
.
Em 1913, Bohr, percebendo que a estabilidade do átomo não poderia ser
reconciliada com os princípios da mecânica newtoniana e da eletrodinâmica de
Maxwell, criou um modelo atômico
39
que abriu o espaço no qual se formaria a
mecânica quântica. Diante da evidência experimental do desvio dos raios α, Bohr
tomou a decisão de conservar o modelo planetário de Rutherford
40
: o átomo
deveria ter um núcleo e os elétrons descreveriam seus movimentos sobre as órbitas.
Estas órbitas, no entanto, eram diversas das de Rutherford: elas eram órbitas
“estacionárias”. Bohr pensou que o fato, descoberto por Planck, de o átomo
poder trocar sua energia em quantas discretos deveria significar que ele poderia
existir em estados estacionários discretos, sendo o de energia mais baixa o estado
em que ele geralmente é encontrado
41
. O átomo foi representado, então,
34
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p.21.
35
Ver apêndice 6.
36
Ver apêndice 7.
37
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Physique Atomique et Connaissance Humaine, p.
42.
38
Ver Cushing, James T., Philosophical Concepts in Physics, p. 276 e Jammer, Max, The
Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 75.
39
Ver apêndice 8.
40
De acordo com Jammer, Max, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 69,
“O trabalho de Bohr era intimamente ligado ao problema de encontrar um modelo consistente do
átomo. Mesmo as circunstâncias externas da sua vida estavam conectadas a isto. Quando Bohr
deixou o laboratório de J. J. Thomson em Cambridge e foi se juntar à equipe de Rutherford em
Manchester, em março de 1912, foi por causa do desacordo com Thomson no que dizia respeito ao
seu modelo atômico do “pudim de passas”.”
41
Heisenberg, Werner, Nuclear Physics (1948), p.22.
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26
como um minúsculo sistema planetário, cuja massa estava quase toda concentrada
em um núcleo central, consideravelmente menor do que o próprio átomo. Em torno
desse núcleo giravam elétrons muito leves, equiparados aos planetas. Entretanto,
enquanto as órbitas dos planetas eram determinadas por forças conhecidas e pela
história passada do sistema e estavam sujeitas a perturbações -, dizia-se que as
órbitas dos elétrons requeriam postulados adicionais de um tipo especial, que não
tinha nada a ver com a mecânica e a astronomia clássicas. Tais postulados ajudavam
a explicar a singular estabilidade da matéria quando exposta a influências externas.
Desde que Planck publicara seu famoso trabalho em 1900, esses postulados
adicionais eram conhecidos como condições quânticas. (...) Certas grandezas
calculáveis a partir de uma órbita, segundo se dizia, eram múltiplos inteiros de uma
unidade fundamental, a saber, o quantum de ação de Planck
42
.
Os elétrons neste modelo atômico, ao receber ou ao emitir energia sob a
forma de um “pacote” de luz ou um quantum de radiação, isto é, em múltiplos da
constante de Planck (hv), saltavam de uma órbita à outra. Este salto era,
evidentemente, descontínuo. Sua teoria era uma combinação de mecânica clássica
para o movimento dos elétrons e condições quânticas. Arnold Sommerfeld
43
foi o
responsável por dar uma formulação matemática consistente para estas
condições
44
. Este modelo explicava, além da estabilidade do átomo, a linha
espectral emitida pelos átomos após serem excitados através de descarga elétrica
ou calor. No caso de um único átomo de apenas um elétron como o de hidrogênio,
era possível calcular, em perfeito acordo com os experimentos, as freqüências da
luz emitidas pelo átomo, mas, para átomos diferentes deste, o modelo não
funcionava.
A idéia das órbitas “estacionárias” resolvia a questão da estabilidade
mecânica: se os elétrons “saltavam” de uma órbita à outra eles eram indiferentes a
colisões. Para respeitar a condição da estabilidade radioativa, Bohr fez a hipótese
suplementar de que os elétrons em movimento sobre as órbitas não emitiam
radiação, o que estava em franca contradição com os princípios da termodinâmica
clássica. A hipótese de uma descontinuidade nos fenômenos atômicos deveria ser
aplicada ao modelo de Rutherford, não para que a significação física do modelo
fosse elucidada, mas para que a estabilidade do átomo pudesse ser explicada
45
. O
42
Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo (1969), p. 47.
43
Arnold Johannes Wilhelm Sommerfeld (1868-1951).
44
Apud Jammer: Sommerfeld, A. J. W., “Zur Theorie der Balmesrchen Serie,” Münchener
Berichte 1915, pp.459-500; “Zur Quantemtheorie der Spektrallinien,” Annalen der Physik 51, 1-
94, 125-167 (1916).
45
Jammer, Max, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 75 e Heisenberg,
Werner, Nuclear Physics (1948), p.32.
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27
modelo de Bohr consistia, assim, de um núcleo positivo circundado por diversas
órbitas eletrônicas
46
.
A representação da estrutura atômica que Bohr em 1913 não é, deste modo,
nenhuma teoria nova, nem uma representação figurativa. É um agregado híbrido que
liga os conceitos classicamente definidos por uma equação incompatível com as leis
da física clássica
47
. O átomo, por exemplo, parece assemelhar-se a um sistema
planetário, mas é, no entanto, impossível crer que as leis unificadas anteriormente
para o céu e a terra não foram aqui extrapoladas
48
.
Bohr estava ciente das profundas brechas do esquema conceitual da sua
teoria, mas estava convencido de que nenhum progresso na teoria quântica seria
obtido a menos que se insistisse na questão de saber que relação a teoria quântica
mantinha com a física clássica. Seu objetivo não era dar uma resposta satisfatória
para uma questão definida, mas procurar pela formulação correta da questão
49
. De
fato, falar de “teoria” quântica naquele momento seria antecipar uma coerência
ainda por vir, uma vez que o “quantum de ação” de Planck, os “quanta de luz” de
Einstein e o modelo atômico de Bohr ainda não formavam um sistema conceitual
ordenado e bem definido.
Contudo, - ressalta Chevalley -, uma dificuldade maior aparecia claramente. Se a
teoria quântica não era nem totalmente uma expressão, nem totalmente um repúdio
ao eletromagnetismo e à mecânica [clássica], era preciso encontrar um meio de
descrever esta relação estranha que definiria uma situação “sem precedentes” na
história da física
50
.
De acordo com Heisenberg,
o conceito de estado estacionário discreto (...) era o conceito central na sua teoria do
átomo, e o objetivo dele foi deste modo descrito por Bohr: “Deve ficar claro que
esta teoria não tem por objetivo explicar os fenômenos no sentido em que a palavra
‘explicar’ foi usada na física clássica. Ela tem por objetivo combinar os vários
fenômenos que parecem não estar conectados e mostrar que eles estão
conectados”
51
.
46
Jammer, Max, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 77.
47
A saber, E’ E” = h v . Ver Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Physique Atomique et
Connaissance Humaine, p. 43.
48
Ibidem, p. 44.
49
Jammer, Max, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 87.
50
Ver Chevalley, Catherine, Introduction”, In: Physique Atomique et Connaissance Humaine,
p. 20.
51
Heisenberg, Werner, Encounters With Einstein and Other Essays on People, Places,
Particles, p.20.
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28
Bohr afirmava que apenas após esta conexão ser estabelecida poder-se-ia dar
uma explicação no sentido em que as explicações eram usadas na física clássica. A
relação da mecânica quântica com a física clássica veio a se evidenciar como uma
relação de ruptura, como veremos a seguir e foi definida no período subseqüente
pelo termo “correspondência”.
Para elucidar a repercussão das investigações de Bohr, cabe-nos,
primeiramente, situá-lo no cenário da física naquele momento. Cito Heisenberg:
A teoria quântica de Planck era, naqueles dias, não uma teoria, mas um estorvo. Ela
trouxe idéias que levaram, em muitos pontos, dificuldades e contradições ao bem
fundado edifício da física clássica, e, conseqüentemente, não havia muitas
universidades onde houvesse algum desejo de lidar com esses problemas
seriamente. Além de Copenhague, a teoria de Bohr foi primeiramente ensinada e
desenvolvida em Munique por Sommerfeld, e foi apenas em 1920, com a escolha de
Franck
52
e Born, que a faculdade de Göttingen decidiu se juntar a este movimento
científico. Se observarmos estes três centros onde se deu primeiramente o
desenvolvimento subseqüente da teoria, Copenhague, Munique e Göttingen,
podemos relacioná-los a três linhas de pesquisa
53
.
A escola de Munique tinha uma “linha fenomenológica e tentava unir as
descobertas em uma forma inteligível e apresentar a sua conexão por meio de
fórmulas matemáticas que pareciam em certa medida plausíveis do ponto de vista
da física em vigor”, a escola matemática de Göttingen “se esforçava por
representar os processos naturais por meio de um formalismo matemático
cuidadosamente trabalhado”, e o grupo de Copenhague, tinha, sob a direção de
Bohr, um tendência predominantemente filosófica que tentava, “acima de tudo,
clarificar os conceitos com os quais os eventos na natureza seriam em última
instância descritos”. As transições entre estas três escolas eram, contudo,
naturalmente fluidas.
De acordo com Chevalley,
pode-se distinguir dois períodos na evolução da ruptura com a física clássica. A
dificuldade está primeiramente em se encontrar o momento desta ruptura. Quando
teriam os conceitos destas teorias se tornado inaplicáveis e contraditórios com os
52
James Franck (1882-1964).
53
Heisenberg, Werner, “The Begginings of Quantum Mechanics in Göttingen” (1975), Encounters
With Einstein and Other Essays on People, Places, Particles, p. 38. É preciso ressaltar que
seguimos neste capítulo de muito perto a descrição histórica apresentada por Heisenberg, isto é, sua
versão dos fatos. Não podemos pretender estar fazendo uma descrição “objetiva” da história, posto
que isto não seria coerente com o pensamento do próprio Heisenberg.
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dados experimentais? De 1913 a 1924 é, antes de tudo, um problema de cartografia
o que preocupa Bohr e este período é dominado pela clarificação daquilo que será
chamado, a partir de 1920, “princípio de correspondência”. Em seguida, uma vez
obtidos todos os resultados que se sucedem entre 1925 e 1927, a dificuldade se torna
aquela de compreender como se articula a ligação entre as teorias clássicas e a nova
mecânica quântica
54
.
No período que se segue à teoria de 1913, a idéia de correspondência tem por
função traduzir, de maneira cada vez mais precisa, a necessidade de esclarecer as
dificuldades da teoria quântica ao se determinar o que realmente a ela diz respeito,
de modo que “até 1925, a maior parte, senão a totalidade das publicações saídas do
Instituto de Copenhague é chamada de ‘considerações de correspondência’
55
”. O
“princípio de correspondência”, é, segundo Chevalley,
ao mesmo tempo um princípio de orientação, uma ‘política conceitual’, um
instrumento de cálculo e uma maneira de regular, a cada momento, a evolução das
relações de uma teoria quântica ainda incerta de seus fundamentos com as teorias
clássicas da mecânica e da eletrodinâmica. O manuseio da ‘correspondência’ é, na
prática, reservado a Bohr: somente Hendrik Kramers
56
e Heisenberg se arriscaram [a
utilizá-lo] com sucesso. L. de Broglie, que lhe deu uma das melhores descrições
contemporâneas, falou dele como um ‘princípio muito curioso’, que ‘desempenhou
um papel considerável e muito benéfico na evolução da teoria quântica
57
’. Esta
fecundidade se deve em grande parte à flexibilidade da idéia de ‘correspondência’ e
às ‘analogias formais’ que ela permite desenvolver graças à determinação de
constrangimentos mínimos
58
.
A noção de correspondência parece vaga e não é por acaso: a física quântica
se encontrava em uma situação paradoxal com a física clássica, a de uma ruptura
com a mecânica e a eletrodinâmica que não era uma refutação. Era difícil, naquele
tempo, pensar na sua autonomia pois, se por um lado a teoria quântica apresentava
um rompimento claro com as idéias da eletrodinâmica clássica com a introdução
de descontinuidades nas leis da natureza, por outro, a descrição dos processos
naturais deveria ser fundada sobre as idéias introduzidas e definidas pela teoria
clássica. A função do princípio de correspondência era, deste modo,
primeiramente, encontrar, de uma maneira ou de outra, uma relação com os
resultados das teorias clássicas. Em segundo lugar, tentar determinar se seria
possível representar os princípios da teoria quântica de modo que a sua aplicação
54
Ver Chevalley, Catherine, Introduction”, In: Physique Atomique et Connaissance Humaine,
p. 37.
55
Ibidem, p. 39.
56
Hendrik Anthony Kramers (1894-1952).
57
De Broglie, Louis, La Physique Nouvelle et les Quanta, Paris, Flammarion, 1937, p. 127.
58
Chevalley, Catherine, “Glossaire”, In: Physique Atomique et Connaissance Humaine, p. 414.
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30
fosse livre de contradições. Esperava-se, assim, encontrar, a longo prazo, uma
“generalização racional” da situação. Como nenhuma explicação parecia ao
alcance, era preciso organizar o maior número possível de hipóteses disponíveis
sem se fixar precipitadamente na manutenção ou rejeição dos conceitos clássicos, e
a correspondência permitia isso a Bohr. É por isso que
cada etapa da história da antiga teoria quântica terá, (...) do ponto de vista de Bohr,
uma nova formulação da questão da sua relação com as teorias clássicas. Isto
explica o trabalho obstinado de análise e de multiplicação dos conceitos que Bohr
fornece durante os dez anos posteriores
59
.
O princípio de correspondência era, assim, uma
maneira flexível e sem ilusões de dizer que qualquer coisa das relações
fundamentais da física clássica parece transferível aos fenômenos quânticos, mas
que a unidade sintética que existia na origem entre a definição dos conceitos e o
aparelho formal utilizado foi deslocada, distanciada, transformada: a harmonia,
perdida
60
.
No início da década de 1920, a teoria quântica foi sendo elaborada e
clarificada, mas seus paradoxos não desapareceram:
As dificuldades e as contradições internas que barravam o acesso a uma
compreensão dos átomos e de sua estabilidade não foram eliminados e nem sequer
reduzidas, ao contrário, tornaram-se ainda mais agudas. Todas as tentativas de
superá-las usando os instrumentos conceituais da física antiga pareciam de antemão
condenadas ao fracasso
61
.
De qualquer modo, a teoria de Bohr permitiu que dados experimentais da
espectroscopia coletados por décadas e muitos experimentos da química pudessem
ser utilizados no estudo do estranho movimento dos elétrons nos átomos. Foi,
segundo Heisenberg, realmente a partir daí que os físicos aprenderam a colocar as
questões corretas
62
, quase todas concernentes aos resultados contraditórios dos
experimentos:
Mas quais eram essas questões? Praticamente todas tinham a ver com as estranhas
contradições que pareciam persistir entre resultados de diferentes experiências.
59
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Physique Atomique et Connaissance Humaine, p.
45.
60
Ibidem, p. 47.
61
Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo (1969), p.73.
62
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 23.
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31
Afinal, como pode ser que a mesma radiação que produz figuras de interferência e
que, portanto, deve consistir de ondas também produza o efeito fotoelétrico e deva,
conseqüentemente, consistir de partículas em movimento? (...) A tentativa de
descrever os fenômenos atômicos dentro dos conceitos da física tradicional,
conduzia a contradições
63
.
Cito Jammer:
Uma decisão entre as duas teorias sobre a natureza da radiação competidoras não
poderia ser forçada. Para a interpretação dos processos ópticos que envolviam a
interação entre luz e matéria, a visão quântica corpuscular parecia indispensável, ao
passo que fenômenos como a interferência e a difração pareciam requerer o aparato
conceitual da teoria ondulatória da luz. Este estado de coisas foi bem caracterizado
por Sir William Bragg quando ele disse estarem os físicos usando, Segundas,
Quartas e Sextas, a teoria clássica, e Terças, Quintas e Sextas, a teoria quântica da
radiação
64
.
Em 1924, foi elaborada a teoria que, para Heisenberg, “contribuiu mais do
que qualquer outro trabalho naquele tempo para a clarificação da situação na teoria
quântica
65
”, a teoria “BKS
66
”, descrita por ele como
a primeira tentativa séria de resolver os paradoxos da radiação em uma física
racional. (...) Eles, [Bohr, Kramers e Slater], afirmaram, - continua Heisenberg - ,
primeiramente, que a propagação ondulatória da luz de um lado, e sua absorção e
emissão em quanta de outro, são fatos experimentais que deveriam ser a base de
qualquer tentativa de clarificação. (...) Eles então introduziram a hipótese de que as
ondas tinham a natureza de ondas de probabilidade: de que elas representam não a
realidade no sentido clássico, mas antes a “possibilidade” de uma tal realidade. A
hipótese era de que as ondas definiam a probabilidade de que, em cada ponto, um
átomo que estivesse presente emitisse ou absorvesse um quanta (hv) de luz. Esta
idéia levou à conclusão de que as leis da conservação da energia
67
e momento
68
não
deveriam ser verdadeiras para um evento singular, mas apenas para uma média
estatística. Ainda que esta conclusão estivesse incorreta (as conexões entre os
aspectos ondulatório e corpuscular da radiação eram ainda mais complicadas), a
tentativa de interpretação feita por Bohr, Kramers e Slater
69
continha características
63
Ibidem, p.54.
64
Jammer, Max, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 165.
65
Werner Heisenberg, “Die Entwicklung der Quantentheorie 1918-1928” (1929), Gesammelte
Werrke/Collected Works, multiple vols., ed. W. Blum et al., Berlin, Springer-Verlag, and
Munich, Piper-Verlag, 1985, volume B, 109-115, Apud Cassidy, David C., Uncertainty: The Life
and Work of Werner Heisenberg, p. 174.
66
O programa da teoria BKS foi publicado por Bohr, Kramers e Slater, em um artigo entitulado
“The Quantum Theory of Radiation”, Philosophical Magazine, 47 (January 1924), 785-802,
“Uber die Quantentheorie der Strahlung, Zeitzchrift für Physik 24, 69-87 (1924). (Niels Bohr,
Collected Works, vols 5., 101-118, ed. Léon Rosenfeld et al; English version in B. L. van der
Waerden, ed. e trad., Sources of Quantum Mechanics, pp.159, New York, Dover, 1967;
Kramers, Nature, 133 (25 March 1924), 673-676.
67
Ver a entrada “Lei da conservação de energia” no glossário.
68
Ver a entrada “Momento” no glossário.
69
John Clarke Slater (1908-1976).
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importantes da interpretação posterior correta. A mais importante delas foi a
introdução da probabilidade como um novo tipo de realidade física “objetiva”
70
.
Embora em 1924 a dualidade da radiação fosse, como dissemos, uma
contradição, a pretensão de Bohr com a teoria “BKS” não era resolver esta
dualidade em proveito exclusivo de uma imagem contínua. A procura era antes por
uma analogia formal que permitisse compreender, ao mesmo tempo, o aspecto
descontínuo das transições e o aspecto contínuo da eletrodinâmica clássica. De
acordo com Chevalley
71
, a teoria “BKS” respeitava as orientações do princípio de
correspondência, a saber: a colocação à prova dos conceitos ordinários para
determinar o alcance e o domínio de validade de cada um dos princípios
fundamentais da física clássica, a técnica de evidenciação das contradições
destinada a isolar o que deve concernir propriamente à teoria quântica e a
multiplicação de conceitos e de perspectivas: “O campo virtual e a idéia de uma
conservação apenas estatística são empregados em 1924 como os instrumentos de
medida do território da física quântica
72
”. No entanto, por causa deste aspecto
tático que caracteriza o princípio de correspondência desde seu início, as ondas
virtuais foram, naquele tempo (como vimos acima), a causa do abandono da
causalidade estrita, isto é, do princípio de conservação estrita da energia e da
impulsão nas trocas individuais. Cito Chevalley:
Por meio dos conceitos que servem em física clássica para determinar uma
“realidade” física, podemos citar, em uma enumeração não ordenada, a localização
espaço-temporal do objeto, a conservação de sua energia, a continuidade de sua
evolução e a independência de seu comportamento no que diz respeito à observação.
A mecânica quântica não deixará intacto nada além do princípio de conservação.
Mas, em 1924, Bohr vai considerar a localização e conciliar continuidade e
descontinuidade. A conservação da energia é menos fundamental a seus olhos do
que a continuidade da radiação. (...) O malogro da teoria “BKS”, em convergência
com outras dificuldades conduziu, em seguida, não ao abandono da noção de
correspondência, mas ao deslocamento da questão da relação com os conceitos
clássicos em uma direção próxima daquela na qual Pauli e Born estavam
engajados em 1923. Se não é a conservação de energia que está em questão, são as
“imagens intuitivas espaço-temporais”
73
.
70
Heisenberg, Werner, “The development of the interpretation of the Quantum Theory” (1955), in
Niels Bohr and the Development of Physics, p. 12-13.
71
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Physique Atomique et Connaissance Humaine, p.
56.
72
Ibidem, p. 54-55.
73
Ibidem p. 55.
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Ainda em 1924 um outro importante passo foi dado por Louis de Broglie,
que introduziu a hipótese de que a matéria (por exemplo um elétron) poderia ser
descrita em termos de partícula e de onda, isto é, estendeu à matéria o dualismo
onda-partícula que parecia impedir uma explicação racional para o fenômeno da
luz
74
, afirmando que partículas, quando sob determinadas condições, se comportam
como ondas de matéria. Nas palavras de Heisenberg:
Ele mostrou que uma certa onda de matéria poderia “corresponder” a um elétron em
movimento, assim como uma onda de luz corresponde a um quanta de luz em
movimento. Não era claro, naquele tempo, o que a palavra “corresponder”
significava nesta conexão. Mas de Broglie sugeriu que a condição quântica na teoria
de Bohr deveria ser interpretada como uma colocação sobre as ondas de matéria.
Uma onda que circula ao redor de um núcleo pode apenas ser, por razões
geométricas, uma onda estacionária; e o perímetro da órbita deve ser um múltiplo
inteiro do comprimento de onda. Desta forma, a idéia de de Broglie conectou a
condição quântica, que sempre havia sido um elemento estranho na mecânica dos
elétrons, ao dualismo entre ondas e partículas
75
.
Observa-se, ao fim de 1924, a aproximação de uma virada decisiva do ponto
de vista de Bohr. no início de 1925, Bohr estava convencido de um “malogro
essencial das imagens espaço-temporais”, em outros termos, do fato de que não se
pode representar os processos atômicos nos termos da geometria ordinária. Parecia
evidente que o que estava em questão era, realmente, a relação entre as
representações dos objetos e, conseqüentemente, o problema da univocidade do
discurso da física. Bohr sugere, em 1925, que é preciso “se preparar para a idéia
(...) de uma revolução radical nos conceitos”, revolução esta que se pelo
confrontamento e “não por uma modificação das teorias eletrodinâmicas e
mecânicas descritíveis nos termos dos conceitos das físicas ordinárias, ou seja, por
uma insuficiência essencial das representações espaço-temporais
76
”. Segundo
Chevalley:
No início de 1925, Bohr renuncia a todas as imagens utilizadas na antiga teoria
quântica: órbitas eletrônicas dos estados estacionários, quanta de luz corpuscular e
campo virtual, trajetórias dos elétrons. Levando em conta a prudência extrema de
que é testemunha a manutenção do princípio de correspondência deste período, é
preciso ressaltar a que ponto o abandono das teorias clássicas foi progressivo. A
74
Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo (1969), p. 88.
75
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 25. Ver também Heisenberg, Werner,
Nuclear Physics, p. 32.
76
Bohr, Niels, Addendum, In Bohr Collected Works 5, ed. L. Rosenfeld, J. Rud Nielsen, seguido
de E. Rüdinger, seguido de F. Aaserud, Amsterdan, North-Holland Publishing Company e New
York, American Elsevier Publishing Company, 1972-...
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ruptura é considerada por Bohr como inevitável desde 1913, mas não é senão a
partir de 1918 que ele abandona gradualmente a mecânica na explicação das
interações entre elétrons. Ele resiste em 1923 à crítica radical das imagens
mecânicas colocada a ele por Pauli. E somente a convergência entre o malogro da
teoria dos osciladores virtuais e dos impasses que se multiplicam na questão dos
átomos lhe convencem da impossibilidade das representações espaço-temporais
ordinárias
77
.
A renúncia a um modo de explicação causal e espaço temporal foi, assim,
uma decisão teórica necessária, e foi levada a cabo no início de 1925. No entanto, a
contradição entre os conceitos clássicos e os postulados quânticos não desapareceu,
tornando-se mesmo insuportável
78
.
Não é um exagero descrever este período como o de um tempo de suspense no que
diz respeito à constituição do objeto físico. O solo falta e mesmo a direção onde
olhar. “Nós estamos completamente desorientados”, “nós estivemos por vezes
próximos do desespero”, escreve Bohr
79
.
O momento é assim relatado por Heisenberg:
Quando rememoro o estado da teoria atômica naqueles meses, sempre me lembro de
uma caminhada da montanha com alguns amigos (...). No vale, o tempo estava ruim
e as montanhas, envoltas em nuvens. Durante a subida, a neblina começara a se
adensar em torno de nós e, passado algum tempo, vimo-nos numa confusa mistura
de pedras e vegetação rasteira, sem nenhum sinal da trilha. Decidimos continuar
subindo, embora nos sentíssemos bastante inquietos quanto à decida, se alguma
coisa desse errado. De repente, a cerração tornou-se tão densa que nos perdemos de
vista; conseguíamos manter contato uns com os outros aos gritos. Ao mesmo
tempo, a parte mais alta foi ficando mais límpida, e subitamente a luz mudou de cor.
Era óbvio que estávamos envoltos em uma nuvem de neblina em movimento.
Depois, num relance, pudemos ver a borda da face de um penhasco, bem à nossa
frente, banhada pela brilhante luz do Sol. A névoa tornou a se adensar no momento
seguinte, mas tínhamos visto o suficiente para reconhecer nossa localização pelo
mapa. Após mais uns dez minutos de árdua subida, estávamos de sob o Sol,
centímetros acima do mar e da neblina. Ao sul, podíamos ver os picos da cordilheira
de Sonnwend e, mais além, os topos cobertos de neve dos Alpes Centrais. Não
tivemos nenhuma dúvida no restante da nossa subida. Também na física atômica, o
inverno de 1924-25 nos levara a um terreno em que a neblina era densa. Mas um
77
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Physique Atomique et Connaissance Humaine, p.
62.
78
Ibidem, p. 61.
79
Carta de Bohr a C. W. Ossen em 29 de janeiro de 1926 (In Bohr Collected Works 5, 405/238,
ed. L. Rosenfeld, J. Rud Nielsen, seguido de E. Rüdinger, seguido de F. Aaserud, Amsterdan,
North-Holland Publishing Company e New York, American Elsevier Publishing Company, 1972-
...) e Carta de Bohr a Rosseland em 6 de janeiro de 1926 (In Bohr Collected Works 5, 485/484,
ed. L. Rosenfeld, J. Rud Nielsen, seguido de E. Rüdinger, seguido de F. Aaserud, Amsterdan,
North-Holland Publishing Company e New York, American Elsevier Publishing Company, 1972-
...)
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pouco de luz começara a se infiltrar, trazendo a promessa de paisagens novas e
excitantes
80
.
Para Heisenberg, a formulação matematicamente precisa
81
da mecânica
quântica foi o resultado de dois diferentes desenvolvimentos: o primeiro deles
derivado do princípio de correspondência de Bohr (1923), em 1925, e o segundo da
idéia de de Broglie das ondas materiais (1924), em 1926
82
. Heisenberg foi o
responsável pelo primeiro desenvolvimento: ele propôs em julho de 1925 uma
“reinterpretação” das relações da cinemática e da dinâmica, se baseando apenas no
que chamou de grandezas observáveis
83
”. Se Heisenberg, como também o fez
Bohr, qualifica sua teoria como derivada do princípio de correspondência é porque
nela ele “faz, com efeito, a síntese de tendências que estavam em concorrência
desde 1923-24, de um lado aquela de perseguir as analogias com as teorias
clássicas, de outro lado aquela da redefinição dos conceitos fundamentais
84
”. De
fato, eles viam, na mecânica matricial, uma possibilidade de superação das
contradições existentes entre os postulados quânticos e os princípios da física
clássica, e a restrição às “grandezas observáveis” que Heisenberg põe em obra para
chegar a um esquema matemático novo e que significava uma restrição crucial na
teoria
85
é o meio de tal superação. Em alguns meses, a idéia de Heisenberg foi
elaborada por Max Born, Pascual Jordan
86
e pelo próprio Heisenberg, dando
origem ao que veio a ser conhecido como a mecânica matricial
87
. A teoria era, em
resumo,
Um cálculo matemático, envolvendo quantidades o comutativas e regras
computacionais raramente antes encontradas, que resistia a qualquer interpretação
pictorial; era uma proposta algébrica que, a partir do caráter discreto observado de
linhas espectrais, enfatizava o elemento da descontinuidade (foi chamada de uma
“verdadeira teoria do descontínuo” por Born e Jordan
88
); apesar da sua renúncia a
80
Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo (1969), p. 74.
81
Devemos ressaltar que o que nos interessa aqui não é exatamente o desenvolvimento matemático
da mecânica quântica. Concentramo-nos, neste primeiro capítulo, na descrição físico-conceitual da
mecânica, isto é, a preocupação é tentar analisar de que modo os conceitos da física moderna que
diferem dos da física clássica implicam em transformações filosóficas.
82
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 26-27.
83
Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo (1969), op. cit. p. 75.
84
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Physique Atomique et Connaissance Humaine, p.
61-62.
85
Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo (1969), p.76.
86
Ernst Pascual Jordan (1902-1980).
87
Jammer, Max, The Philosophy of Quantum Mechanics, p. 21.
88
M. Born e P. Jordan, “Zur Quantenmechanik,” Zeitschrift für Physik 34, 879.
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uma descrição clássica no espaço e no tempo, ela era, em última instância, uma
teoria cuja concepção básica era a de corpúsculo
89
.
No entanto, a mecânica matricial de Heisenberg, não era senão uma solução
incompleta das dificuldades e não podia pretender, ao fim de 1925, substituir
inteiramente a física clássica no domínio atômico
90
. Durante os seis primeiros
meses de 1926, Schrödinger, a partir da idéia fundamental de de Broglie, fez um
progresso imenso ao inventar a chamada mecânica ondulatória, que conduziu à
formulação da “equação de Schrödinger”. Sua orientação era, contudo,
completamente diferente daquela adotada por Heisenberg, Born e Jordan:
“Schrödinger, que não pertence à tradição dos espectroscopistas, parte, com efeito,
da analogia entre óptica e mecânica perseguida por Einstein e de Broglie
91
”. Cito
Heisenberg:
Schrödinger levou essa idéia [de de Broglie] mais longe e, com uma nova equação
de ondas formulou a lei que rege a propagação das ondas materiais sob a influência
de um campo eletromagnético. Segundo esse modelo, os estados estacionários de
uma camada atômica são comparados com as oscilações estacionárias de um
sistema por exemplo, de uma corda vibrante - , exceto pelo fato de que todas as
grandezas normalmente consideradas como energias dos estados estacionários são
tratadas como freqüências das oscilações estacionárias
92
.
A teoria de Schrödinger fornecia um método matematicamente consistente e
conveniente para a solução de uma grande variedade de problemas e não poderia
haver dúvidas de que ela representava um enorme avanço em relação à teoria
anterior (com a exceção de poucos casos, ela era uma teoria mais fácil de ser
empregada que a mecânica matricial, uma vez que os físicos estavam bastante
habituados ao tipo de matemática nela contido)
93
. Schrödinger acreditava que,
“associando partículas e ondas materiais, havia descoberto um meio de eliminar os
obstáculos que por tanto tempo vinham dificultando a compreensão da física
quântica
94
”. Sua intenção era obter uma representação contínua e “intuitiva” dos
fenômenos atômicos e, sobretudo, desembaraçar a física dos conceitos
descontínuos, isto é, estados estacionários e saltos quânticos.
89
Jammer, Max, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 271.
90
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Physique Atomique et Connaissance Humaine, p.
62.
91
Ibidem, p. 62-63.
92
Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo (1969), p.88.
93
Jammer, Max, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 281.
94
Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo (1969), p.88.
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37
Descobriu-se, logo em seguida, que, apesar das disparidades de suas
assunções básicas, aparato matemático e teor geral
95
, o cálculo matricial de
Heisenberg e a função de onda de Schrödinger eram matematicamente
equivalentes.
Em 1926, o formalismo matemático da mecânica quântica atingiu sua
compleição
96
. No entanto, não estava claro em que sentido o novo formalismo
matemático descrevia a estrutura atômica.
97
O que havia no meio do ano de 1926
eram duas teorias quânticas que, embora diferentes em tudo (ponto de partida,
concepção, método, matemática), levavam aos mesmos resultados. Ainda que
ambas se afastassem da mecânica clássica, elas caminhavam em direções opostas,
a do contínuo e a do descontínuo. Isto era, tanto para Schrödinger, como para
Heisenberg, o que mais as diferenciava
98
.
Schrödinger foi o primeiro, como se disse, a atribuir uma interpretação à
mecânica quântica a partir do seu próprio formalismo, isto é, da sua função de
onda. Sua interpretação era bastante intuitiva: era causal, contínua e visualizável.
Ele pensava a teoria quântica como uma teoria clássica de ondas simples,
considerava sua função de onda análoga a uma onda clássica. De fato, Schrödinger
acreditava ser a realidade física constituída de ondas e somente de ondas. Ele
negava categoricamente a existência de níveis discretos de energia e de saltos
quânticos (claramente demonstrados, por exemplo, na resolução de Planck para a
experiência do corpo negro e na de Einstein para o efeito fotoelétrico)
99
.
“Permanecer na descontinuidade conduziria, claramente, para Schrödinger, a um
desmoronamento cognitivo
100
”. Cito Heisenberg:
A interpretação física do esquema matemático trouxe-nos graves problemas.
Schrödinger acreditava que, associando partículas e onda materiais, havia
descoberto um meio de eliminar os obstáculos que por tanto tempo vinham
dificultando a compreensão da teoria quântica. Segundo ele, as ondas materiais
95
Ibidem, p. 271: “É difícil encontrar, na história da física, duas teorias feitas para cobrir a mesma
área de experiência que sejam diferentes entre si de modo mais radical que essas duas.”
96
Jammer, Max, The Philosophy of Quantum Mechanics, p. 22.
97
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 28; Jammer, Max, The Philosophy of
Quantum Mechanics, p. 24.
98
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Physique Atomique et Connaissance Humaine, p.
64.
99
Jammer, Max, The Philosophy of Quantum Mechanics, p. 27 e 29; Heisenberg, Werner, A
Parte e o Todo (1969), p. 88-89. Para Schrödinger, o conceito de energia era derivado da
experiência macroscópica e deveria, na física quântica, ser substituído pelo de freqüência.
100
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Physique Atomique et Connaissance Humaine, p.
62.
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38
eram plenamente comparáveis a processos que se desenvolviam no espaço e no
tempo, como as ondas eletromagnéticas ou as ondas sonoras. Idéias obscuras, como
saltos quânticos e coisas parecidas, desapareceriam por completo. Eu não tinha
confiança numa teoria que contrariava inteiramente nossa concepção de
Copenhague, e fiquei perturbado ao ver que inúmeros físicos saudavam
precisamente essa parte da doutrina de Schrödinger, com um sentimento de
libertação. Ao longo dos anos, as conversas que eu tivera com Niels Bohr,
Wolfgang Pauli e outros tinham-me convencido de que era impossível construir um
modelo descritivo espaço-temporal dos processos atômicos o elemento
descontínuo que (...) [era] um traço característico dos fenômenos atômicos não
permitia que se fizesse isso. Tratava-se, é claro, de uma característica negativa.
Ainda estávamos longe de uma completa interpretação física da mecânica quântica,
mas tínhamos certeza de que era preciso nos afastar da representação objetiva de
processos no tempo e no espaço
101
.
Embora seu tratamento às questões quânticas fosse, de acordo com
Jammer
102
, mais elegante e superior ao da mecânica matricial, a explicação física
de seu formalismo e, em particular, sua interpretação da função de onda não foram
tão bem sucedidos. A insuficiência de sua interpretação se explicitou quando, em
sua ida a Copenhague
103
, em setembro de 1926, Schrödinger teve que enfrentar
uma série de problemas
104
, dentre eles um concernente à dimensionalidade do
espaço de configuração de Ψ: não se tratava de processos ocorridos no espaço
tridimensional ordinário, mas de um espaço de configuração abstrato
105
. A
101
Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo (1969), p.88-89.
102
Jammer, Max, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 281.
103
Schrödinger havia sido convidado por Sommerfeld para falar sobre sua mecânica ondulatória
em um seminário em Munique, no qual também estava presente Heisenberg. Sua interpretação
para o formalismo da mecânica ondulatória estava sendo favoravelmente aceita pela maior parte
dos participantes do seminário e as objeções feitas por Heisenberg foram vistas como pedantes.
Heisenberg escreveu, então, uma carta a Bohr, que decidiu convidar Schrödinger para os visitar em
Copenhague por uma ou duas semanas para discutir o assunto. (Jammer, Max, The Philosophy of
Quantum Mechanics, p. 56.) Cito Heisenberg, “Schrödinger pôde, nas longas discussões acerca
dos fundamentos da teoria quântica que duravam vários dias, apresentar uma convincente imagem
das novas e simples idéias de mecânica ondulatória, enquanto Bohr explicava a ele que nem
mesmo a lei de Planck poderia ser compreendida sem os saltos quânticos. “Se vamos ficar presos a
estes malditos saltos quânticos eu me arrependo de tudo que eu fiz que tenha a ver com a teoria
quântica,” Schrödinger finalmente exclamou em desespero, a que Bohr respondeu: “Mas o resto
de nós está muito agradecido por você ter feito isso porque você contribuiu em muito para a
clarificação da teoria quântica.” Heisenberg, Werner, “The Development of the Interpretation of
the Quantum Theory”, in Niels Bohr and the Development of Physics, p. 14.
104
Ver Jammer, Max, The Philosophy of Quantum Mechanics, p. 31-33, também Jammer, Max,
The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 283.
105
Heisenberg, Werner, “The Development of the Interpretation of the Quantum Theory”, in Niels
Bohr and the Development of Physics, p. 13; Schrödinger estava ciente desta característica, ver
Jammer, Max, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 267: “Foi
repetidamente ressaltado o fato de que a função ψ por si mesma não pode e não deve ser
interpretada, de uma maneira geral, diretamente em termos de um espaço tridimensional – embora
o problema com apenas um elétron pareça sugerir tal interpretação porque ela é, em geral uma
função num espaço de configuração e não em um espaço real.” (Schrödinger, Erwin,
“Quantisierung als Eigenwertproblem,” Annalen der Physik 79, 361-376 (4
th
communication;
1926), p. 135; Collected Papers on Wave Mechanics, Traduzido da Segunda edição alemã de
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39
interpretação de Schrödinger não convenceu Bohr e Heisenberg, mas a sua ida a
Copenhague evidenciou a necessidade de uma clarificação da relação entre sua
concepção da mecânica quântica e os dados experimentais de que se dispunha
106
.
Ainda em 1926, Max Born teve a intuição de que a função de onda deveria
ser interpretada em termos de probabilidades. Para Einstein, a noção de
probabilidade era, mesmo quando utilizada por ele próprio, concebida
tradicionalmente de acordo com os parâmetros da física clássica, isto é, como
sendo uma objetivação da deficiência humana com relação a um conhecimento
completo ou exato, mas que era, em última instância, uma criação da mente
humana
107
. Contudo, para Born, a probabilidade, pelo menos quando ligada à
função ψ, não era meramente uma ficção matemática, mas algo dotado de uma
realidade física, uma vez que ela evoluía no tempo e se propagava no espaço de
acordo com a equação de Schrödinger. Para Heisenberg, esta realidade física não
era, no entanto, a mesma encontrada na mecânica clássica, mas um mesmo “tipo
intermediário de realidade” de que ele falara a propósito da teoria de Bohr,
Kramers e Slater
108
. As leis na natureza, daqui em diante, não eram mais
determinadas pela ocorrência de um evento, mas pela probabilidade da ocorrência.
A interpretação probabilística de Born da função ψ afirma, em resumo, que ela
mede a densidade de probabilidade de se encontrar uma partícula dentro de certos
limites, sendo a partícula concebida no sentido clássico, isto é, como um ponto de
massa que possui, a cada instante, posição e momento definidos
109
. A idéia é que
Abhandlungen por J.F. Shearer e W.M. Deans (Blackie & Son, London, Glasgow, 1928). In
Jammer, Max, The Conceptual development of Quantum Mechanics, p. 267.
106
Heisenberg, Werner, Physics and Philosohpy (1955), p. 30.
107
A probabilidade passou a ter um papel muito importante na interpretação de Copenhague, o que
significava conceder ao acaso um papel fundamental nas leis da natureza, para o descontentamento
de Schrödinger e Einstein. Jammer, Max, The Conceptual Development of Quantum
Mechanics, p. 286: “Para Einstein, a noção de probabilidade, mesmo quando a ele utilizou na
conciliação da sua hipótese do quanta de luz com a teoria das ondas eletromagnéticas de Maxwell,
era a concepção tradicional da física clássica, uma objetivação da deficiência humana de um
conhecimento completo ou exato, mas que era, em última instância, uma criação da mente
humana.”
108
Ibidem, p. 286. “Para Born, a probabilidade, quando relacionada à função de onda, não era
meramente uma ficção matemática, mas algo dotado de uma realidade física, uma vez que evoluía
no tempo e se propagava no espaço de acordo com a equação de Schrödinger. Ela diferia, no
entanto, dos agentes físicos tradicionais em um aspecto fundamental: ela não transmitia energia ou
momento. Uma vez que na física clássica, seja ela a mecânica de Newton ou a eletrodinâmica de
Maxwell, apenas o que transmite energia ou momento (ou ambos) pode ser considerado como algo
fisicamente “real”, o estatuto ontológico de ψ tinha que ser considerado como algo intermediário.
Ela tinha (...) precisamente o mesmo “tipo intermediário de realidade” que, como enfatizou
Heisenberg, se mostrava no trabalho de Bohr, Kramers e Slater em 1924.”
109
Ibidem, p. 42-43.
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40
quando em um experimento é medida, por exemplo, a posição de um elétron, a
probabilidade de encontrá-lo em uma região determinada depende da magnitude da
função de onda nessa região. A interpretação de Born se mostrou, todavia,
insuficiente para explicar os fenômenos de difração, tais como a difração de
elétrons que aparece, por exemplo, no famoso experimento das duas fendas
110
,
experimento que, segundo Richard Feynman
111
, está no “coração da mecânica
quântica
112
”.
Nos meses que se seguiram à visita de Schrödinger a Copenhague, se
iniciou um estudo intensivo de todas as questões sobre a interpretação da teoria
quântica que haviam sido discutidas
113
, estudo que, para Heisenberg, levou
a uma clarificação completa e, como muitos físicos acreditam, satisfatória da
situação. Mas, não era uma solução que se pudesse aceitar facilmente. Eu me
lembro de discussões com Bohr que duravam muitas horas, até tarde da noite, e que
terminavam quase em desespero; e quando, ao fim de uma discussão saí sozinho
para uma caminhada pelo parque vizinho, fiquei repetindo a mim mesmo a mesma
pergunta: pode a Natureza ser tão absurda como tem nos parecido nesses
experimentos atômicos
114
?
Ainda de acordo com Heisenberg
115
,
a solução final foi abordada de duas maneiras. Uma foi uma reviravolta da questão.
Ao invés de perguntar: como se pode, no esquema matemático conhecido,
demonstrar uma dada situação experimental?, uma outra pergunta seria feita: é
verdade que talvez ocorram na Natureza apenas as situações experimentais que
podem ser demonstradas pelo formalismo matemático? A hipótese de que isto fosse
realmente verdade levou a limitações no uso daqueles conceitos que tinham sido a
base da física clássica desde Newton
116
.
Reconhecendo tal impasse e reconhecendo também que seria impossível
construir um aparato conceitual independente que proporcionasse uma descrição
intuitiva dos fenômenos quânticos, Heisenberg, durante a ausência de Bohr, que
partira para uma viagem
117
, se concentrou em tentar compreender a observação da
trajetória de um elétron numa câmara de nuvem, o fenômeno aparentemente mais
110
Ibidem, p. 43.
111
Feynman, Richard, The Feynman Lectures on Physics, vol. III., p. 1-1 a 1-3.
112
Ver apêndice 9.
113
Heisenberg, Werner, Physics and Philosohpy (1955), p. 30.
114
Ibidem, p. 30.
115
Ibidem, p. 30.
116
Ver também Jammer, Max, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 325.
117
Mais precisamente em fevereiro de 1927. Ver Jammer, Max, The Philosophy of Quantum
Mechanics, p. 57.
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41
simples de que se poderia partir. Na mecânica matricial, o conceito de órbita
(trajetória) de um elétron não é imediatamente definido, enquanto que na mecânica
ondulatória qualquer pacote de onda se dispersaria rapidamente em seu movimento
por uma extensão incompatível com as dimensões laterais de uma trajetória
possível
118
. Nas palavras de Heisenberg,
conceitos como trajetórias ou órbitas não existiam na mecânica quântica, e a
mecânica ondulatória poderia harmonizar-se com a existência de um feixe de
matéria densamente compacto se o feixe se propagasse por áreas muito maiores que
o diâmetro de um elétron. Ora, a situação experimental apresentava-se de outra
maneira
119
.
Em outras palavras, embora o conceito de trajetória não existisse na
mecânica quântica, parecia ser possível observar a trajetória de um elétron na
câmara de Wilson. Qual seria a ligação entre o esquema matemático, por demais
bem sucedido para ser abandonado, e os dados que não se adequavam? Ponderando
acerca desta dificuldade e se valendo do pressuposto de que é a teoria que decide o
que devemos observar, Heisenberg concluiu que o que se via na câmara de nuvem
não era realmente uma trajetória, mas muito menos que isso: “uma série de pontos
distintos e mal definidos, pelos quais o elétron havia passado. Na verdade, tudo
que víamos na câmara de nuvem eram gotículas de água isoladas, elas mesmas
muito maiores que um elétron”. Daí ele inferiu que as perguntas corretas a serem
feitas não seriam a respeito de qual seria a órbita ou trajetória do elétron, mas sim a
respeito da possibilidade de a mecânica quântica poder representar o fato de que
um elétron se encontra aproximadamente (ou seja, com uma certa imprecisão) num
determinado lugar e se move rapidamente (de novo, com uma certa imprecisão)
com determinada velocidade
120
”. O conceito de órbita eletrônica deveria ser
eliminado. É baseado nisto que ele desenvolve suas relação de incerteza
121
.
Heisenberg não viu outra saída que não a de conservar as noções intuitivas da
mecânica clássica através de uma limitação da sua aplicabilidade. Cito novamente
Heisenberg:
Podia-se falar de posição e de velocidade de um elétron da mesma maneira que na
mecânica newtoniana e podia-se observar e medir estas grandezas. Não era possível,
118
Ibidem, p. 56.
119
Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo (1969), p. 95-96 .
120
Ibidem, p. 95 e 96
121
Ver a entrada “Princípio de incerteza” no glossário e também o apêndice 10.
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42
no entanto, fixar ambas as grandezas simultaneamente com um alto grau de precisão
arbitrariamente. De fato, o produto destas duas imprecisões mostrou não ser menor
que a constante de Planck dividida pela massa da partícula. Relações similares
puderam ser formuladas para outras situações experimentais. Elas são usualmente
chamadas relações de incerteza ou princípio de indeterminação. Aprendeu-se,
assim, que os velhos conceitos se adequam à natureza apenas de modo inexato
122
.
Ainda segundo Heisenberg,
todos os conceitos que são usados na teoria clássica para a descrição de um sistema
mecânico também podem ser definidos com exatidão para os processos atômicos.
No entanto, os experimentos que levam a tais definições carregam consigo uma
incerteza se eles envolvem a determinação simultânea de duas quantidades
canonicamente conjugadas
123
.
As relações de incerteza podem ser compreendidas, de acordo com Cushing,
como uma formulação quantitativa do problema de que, na mecânica quântica,
existe um limite inerente à precisão do poder de observação
124
. Elas são, por assim
dizer, o reconhecimento da interação inevitável entre o objeto e o aparato
medidor
125
.
A outra maneira de abordar o problema foi, segundo Heisenberg, o princípio
de complementaridade de Bohr
126
:
Era central em seu pensamento o conceito de complementaridade, que ele acabara
de introduzir para descrever uma situação em que é possível apreender um mesmo
acontecimento por dois modos de interpretação distintos. Esses dois modos são
mutuamente excludentes, mas também complementam um ao outro, e é somente
através da sua justaposição que o conteúdo perceptivo de um fenômeno revela-se
em sua plenitude
127
.
Schrödinger havia descrito o átomo não como um sistema composto de um núcleo e
elétrons, mas sim de um núcleo e ondas de matéria. Esta descrição das ondas de
matéria continha, certamente, um elemento de verdade. Bohr, por sua vez,
considerou as duas descrições a de partícula e a de onda - como duas descrições
complementares da mesma realidade. Qualquer uma destas descrições pode ser
122
Heisenberg, Werner, Physics and Philosohpy (1955), p. 30.
123
Heisenberg, Werner, Archive for the History of Quantum Physics, interview on Feb. 11,
1963, p. 179. In Jammer, Max, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 329.
124
Cushing, James T., Philosophical Concepts in Physics, p. 298; Ver também Jammer, Max,
The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 329.
125
Jammer, Max, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 330. Voltaremos a
esta questão no capítulo 2.
126
Cabe notar, como faz Chevalley, que, ao contrário do que freqüentemente foi dito, as
relações de incerteza de Heisenberg não constituem a base do raciocínio de Bohr no que diz
respeito à complementaridade. Ainda que elas tenham um papel importante na versão final
do artigo sobre a complementaridade, fornecendo um critério rigoroso para a necessidade
da renúncia à causalidade no domínio onde não se pode negligenciar a intervenção da
constante de Planck, a base do pensamento acerca da complementaridade começa a se
formar na ocasião da conversa com Schrödinger.
127
Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo (1969), p. 97.
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43
apenas parcialmente verdadeira, deve haver limitações para o uso do conceito de
partícula como para o de onda, pois, de outro modo, não seria possível evitar as
contradições. Se levarmos em conta essas limitações que podem ser expressas pelo
princípio de incerteza, as contradições desaparecerão
128
.
É preciso dizer que Bohr afirma, em 1926, a existência de uma relação
explícita entre o pressuposto da “univocidade” do discurso que é característico da
física clássica, e a origem das contradições que eram então observadas. A
univocidade do discurso repousa, para Bohr, sobre a não-ambigüidade da definição
das palavras, não-ambigüidade esta que se baseia, por sua vez, sobre a
continuidade das representações espaço-temporais dos fenômenos (como dissemos
Bohr estava, desde o início de 1925, convencido de um “malogro essencial das
imagens espaço-temporais”) e sobre a fixidez da separação entre o que é fenômeno
e aquele que observa o fenômeno. O objeto da sica clássica estava, deste modo,
construído sobre a conjunção de todas estas condições.
Os processos atômicos escapavam. Os conceitos clássicos se tornavam então
ambíguos e era preciso redefinir o próprio termo do fenômeno. Ao fim deste
caminho, Bohr encontra a questão sob a sua forma epistemológica: como falar de
objeto em física quântica se não temos senão uma totalidade de manifestações
fenomenais únicas – irreversíveis em que todas as descrições por meio dos
conceitos clássicos – os únicos disponíveis – levam a contradições
129
?
Assim, se podemos utilizar tanto o conceito de onda, como o conceito de
corpúsculo, se uma “ambigüidade”, é por causa da natureza do domínio de
objetos aos quais eles se referem.
Nos processos atômicos, não se pode mais pressupor a continuidade dos fenômenos.
Ora, todo emprego unívoco (não ambíguo) de um conceito exige a continuidade das
representações espaço-temporais. Conseqüentemente, o emprego dos conceitos
ondulatórios e corpusculares é um emprego equívoco e não ambíguo; logo as teorias
de Heisenberg e Schrödinger são teorias de correspondência
130
.
Em 1927-28, Bohr chega à conclusão de que para evitar esta contradição é
necessário então renunciar à univocidade e admitir uma “ambigüidade” essencial
dos conceitos clássicos no domínio quântico.
128
Heisenberg, Werner, Physics and Philosohpy (1955), p. 31.
129
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Niels Bohr, Physique Atomique et Connaissance
Humaine, p.37.
130
Ibidem, p.68.
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44
A objetividade o pode mais receber a mesma definição que na física clássica e a
noção de complementaridade tem a tarefa de exprimir esta situação dizendo como
continua a ser possível se utilizar dos conceitos clássicos sem equívoco nem
contradição na descrição dos fenômenos atômicos
131
.
Assim, é entre 1927 e 1929 que Bohr propõe as principais orientações
filosóficas que serviram de referência constante à reflexão ulterior de Heisenberg.
Podemos distinguir, ainda de acordo com Chevalley
132
, três grupos de enunciados
nestas orientações
que, apesar de aparentemente simples, são o resultado dos 15
anos de dificuldades anteriores que descrevemos neste capítulo.
O primeiro grupo concerne à descrição da situação que se apresenta na
mecânica quântica, a de que “todos os processos atômicos possuem um caráter de
descontinuidade, ou antes, de individualidade, completamente estranho às teorias
clássicas e caracterizado pelo quantum de ação de Planck
133
”. Este postulado
implica em uma modificação fundamental na definição de observação, na medida
em que o ato de observar é, na mecânica quântica, acompanhado de uma interação
finita e incontrolável do sistema observado com o instrumento de observação. É a
natureza distinta do ato de observação que funda, para Bohr, a especificidade da
teoria quântica, e também a idéia de que existem escalas de fenômenos e regiões de
experiência que se diferenciam segundo o tipo de percepção que temos
134
.
O segundo grupo de enunciados consiste em derivar desta situação três
problemas da teoria do conhecimento. O primeiro é que mecânica quântica obriga
a renunciar à idéia de uma descrição dos fenômenos “simultaneamente espaço-
temporal e causal”, o que tem por conseqüência a transformação da definição de
objetivação. O segundo é que o domínio de aplicabilidade dos conceitos clássicos
deve ser limitado, ao mesmo tempo que continua a ser utilizado na leitura dos
resultados das experiências. A física quântica questiona, como dissemos, o
problema da “univocidade dos conceitos” e conseqüentemente da univocidade da
linguagem ordinária à qual a linguagem das teorias clássicas está estreitamente
131
Ibidem, p.21.
132
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans La Physique
Contemporaine, p.40-45.
133
Bohr, Niels, “The Quantum Postulate and The Recent Development os Atomic Theory”, In:
Atti del Congresso Internazionali de Fisici, Como, 1927, Bologne, N. Zanichelli, 1928. In
Chevalley, Catherine, “Introduction” , In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans La Physique
Contemporaine, p.40: “Trata-se do artigo fundador da posição comum a Bohr, Heisenberg, Pauli,
Born, Jordan e Dirac no momento do V Congresso Solvay”.
134
Chevalley, Catherine, Introduction” , In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans La Physique
Contemporaine, p.41.
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45
ligada. E em terceiro lugar, a física quântica requer que se introduza,
necessariamente, na própria definição de um fenômeno, a especificação das
condições de observação. Cai por terra “a pressuposição tácita segundo a qual o
conhecimento depende, bem no fundo, de uma divisão fixa entre sujeito e objeto.
Em outras palavras, a física quântica requer, ou supõe, uma nova concepção de
linguagem e uma nova caracterização do sujeito
135
”.
O terceiro grupo de enunciados diz respeito às conseqüências destas
transformações, isto é, à situação geral do conhecimento
136
. Cito Chevalley:
Em 1929, (...) Bohr fala de um abalo “dos fundamentos do edifício conceitual que
forma a armadura da representação clássica da física, e mesmo de todo o nosso
modo habitual de pensar”. (...) Do ponto de vista da física o que aparece é “um
aspecto novo do problema da objetividade dos fenômenos”: determinação espaço-
temporal e princípio de causalidade (...) não podem mais ser reunidos em uma
mesma descrição homogênea, a descrição adquire um caráter estritamente estatístico
(que não é apenas uma causalidade enfraquecida pelas circunstâncias, moléculas
demais a contar, etc.) e existe uma “lei quântica geral” que é usada como o marco
de referência para a passagem do clássico ao quântico (as relações de
indeterminação de Heisenberg)
137
.
Assim, os fenômenos não correspondem mais a uma essência do objeto de
modo não especificado: eles representam um “todo de regularidades
estatísticas
138
”, que nos aparece dependendo do procedimento de observação
utilizado e que caracteriza nossa interação com a natureza. Esta característica leva
à impossibilidade de se estabelecer uma “separação definitiva entre sujeito e
objeto
139
”, o que tem por conseqüência que “todos os conceitos , ou ainda mais,
todas as palavras, não têm mais do que um sentido relativo, dependente da escolha
arbitrária do nosso ponto de vista
140
”, que não é universal. Bohr refere-se ao modo
de descrição característico das ciências exatas que elimina tudo o que concerne às
condições de observação do resultado obtido. Em outras palavras, o mito galileano
da física como sendo a “leitura do livro da natureza” parece não mais se sustentar a
partir do momento em que a física torna necessária a introdução do observador
como parte do fenômeno descrito, o que se com a relatividade e, como vimos,
135
Ibidem, p.42.
136
Ibidem, p.42.
137
Ibidem, p.42-43.
138
Bohr, Niels, “Wirkungsquantum und Naturbeschreibung”, Die Naturwissenschaften 17
(1929), p. 483-486., Apud Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La
Nature Dans La Physique Contemporaine, p.43.
139
Ibidem.
140
Ibidem.
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de maneira ainda mais radical, com a física quântica. Não é possível, deste modo,
creditar à ciência da natureza o monopólio da descrição do real
141
.
141
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans La Physique
Contemporaine, p.45.
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3
A crítica à modernidade
No primeiro capítulo, voltamos nossa atenção para uma breve descrição dos
problemas da história da mecânica quântica que julgamos mais relevantes, bem
como para a posição filosófica tomada por Bohr diante destes problemas. A tarefa
que nos é colocada, agora, é a de mostrar como estas questões tomam forma na
obra filosófica de Heisenberg.
A preocupação em fazer, juntamente à descrição histórica da teoria quântica,
um breve quadro da filosofia de Bohr se deve ao fato de que esta foi, como
dissemos, de fundamental importância para a carreira e o pensamento de
Heisenberg como ele próprio pontuou em diversas passagens de seus escritos. A
profunda inadequação da teoria quântica à resolução de problemas experimentais
se patenteava quando Heisenberg entrou na Faculdade de Física Teórica da
Universidade de Munique
1
, em 1920. foi muito bem recebido pelo seu “diretor
e um dos mais brilhantes professores”, Arnold Sommerfeld, como relata
Heisenberg:
Após ter estudado alguns livros populares eu comecei a me interessar pelo ramo da
ciência que tratava dos átomos e queria formar uma opinião acerca das colocações
peculiares que estavam sendo feitas a respeito de espaço e tempo na teoria da
relatividade. Desta forma eu vim a assistir as aulas daquele que veio a ser meu
professor, Sommerfeld, que demonstrava bastante seu interesse e de quem eu
aprendi (...) como uma nova e profunda compreensão dos átomos havia se
desenvolvido como resultado das pesquisas de Röntgen, Planck, Rutherford, e Bohr.
Eu vim a saber que o dinamarquês, Niels Bohr, e o inglês Lord Rutherford,
imaginaram ser o átomo um sistema planetário em miniatura e parecia que todas as
propriedades químicas dos elementos iriam, no futuro, ser preditas com a ajuda da
teoria de Bohr, pelo uso das órbitas planetárias dos elétrons. Naquele tempo, no
entanto, isto ainda não havia sido alcançado. Este último ponto me interessava mais
e cada novo trabalho de Bohr era discutido no seminário de Munique com vigor e
paixão
2
.
O primeiro encontro entre Heisenberg e Bohr se deu em 1922, quando
Heisenberg foi, a convite de Sommerfeld, assistir a uma série de palestras feitas
1
. Heisenberg conheceu, ainda, o então estudante Wolfgang Pauli que “pelo resto da vida,
enquanto viveu, foi um bom amigo, embora muitas vezes um crítico severo” e com ele
estabeleceu um diálogo que era, de acordo com seu relato, a parte mais importante dos seus
estudos nos seminários de Sommerfeld.
2
Heisenberg, Werner, “Science as a Means of International Understanding” (1946), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 110.
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48
por Bohr em Göttingen. As primeiras impressões sobre o físico dinamarquês foram
por Heisenberg assim descritas:
Bohr falava com suavidade, com um leve sotaque dinamarquês. Ao explicar cada
um dos pressupostos de sua teoria, escolhia as palavras com muito cuidado, muito
mais do que Sommerfeld costumava fazer. E cada uma de suas frases,
cuidadosamente formuladas, revelava uma longa cadeia de pensamentos subjacentes
e reflexões filosóficas insinuadas, mas nunca expressas em sua totalidade. Achei
essa abordagem muito instigante; o que ele dizia parecia-me, ao mesmo tempo,
novo e não muito novo. Todos havíamos aprendido com Sommerfeld a teoria de
Bohr e sabíamos a que ela se referia. Mas tudo soou muito diferente, vindo da boca
do próprio Bohr. Pudemos sentir claramente que ele havia chegado a seus
resultados, não tanto mediante cálculos e demonstrações, mas por intuição e
inspiração, e que achava extremamente difícil justificar suas descobertas pela
famosa escola de matemáticos de Göttingen
3
.
Como observa Chevalley, “Heisenberg será profundamente impressionado,
em 1922, por este modo de proceder, não habitual a alguém que vinha da escola
fenomenológica e matemática de Sommerfeld
4
”. Às palestras de Bohr se seguiam
longos debates; e, ao fim da terceira, o próprio Heisenberg fez uma observação
crítica. Bohr, percebendo o interesse de Heisenberg pela teoria quântica, convidou-
o para uma caminhada naquela mesma tarde. “Essa caminhada teve repercussões
profundas em meu desenvolvimento científico posterior. Talvez seja mais correto
dizer que minha carreira científica começou naquela tarde
5
”, rememora
Heisenberg. Ainda nas suas palavras:
Eu compreendi que (...) a sua percepção a respeito da estrutura da teoria não era
resultado de uma análise matemática das pressuposições básicas, mas antes uma
intensa ocupação com os fenômenos atuais, uma vez que era possível para ele
perceber a relação intuitivamente mais do que derivá-la formalmente. Assim, eu
compreendi: o conhecimento da natureza era primeiramente obtido desta forma, e
apenas no próximo passo podia-se fixar o conhecimento em uma forma matemática
e sujeitá-lo a uma análise racional completa. Bohr era, antes de tudo, um filósofo,
não um físico, mas ele entendia que a filosofia natural em nosso tempo tinha peso
apenas se pudesse ser sujeita, em todos os seus detalhes, ao inexorável teste
experimental
6
.
Para Chevalley, Heisenberg aprendeu, junto a Bohr, a “filosofar” em dois
sentidos distintos:
3
Ibidem, p. 51.
4
Chevalley, Catherine, Introdução a Bohr Niels, Physique Atomique et Connaissance Humaine,
p. 35.
5
Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo, p. 51.
6
Heisenberg, Werner, “Quantum Theory and It’s Interpretation”, In: Niels Bohr: his Life and
Work as Seen by His Friends and Colleagues, p. 95.
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49
Ele aprendeu (...) em primeiro lugar, uma certa maneira de fazer a física, pela
oscilação entre a experiência e a reflexão sobre os limites da validade dos conceitos
fundamentais. Como ele dirá a T.S. Kuhn em 1962, “(...) É bastante fácil falar das
experiências; aqui você tem um raio espectral, você tem tal intensidade; o problema
é encontrar as conexões, como a relação da dispersão está ligada à posição do raio
etc. Eu percebi realmente pela primeira vez esta nova forma da física teórica quando
da minha primeira conversa com Bohr”
7
.
Em segundo lugar, ainda de acordo com Chevalley, esta exigência de ter
sempre juntos o empírico e o conceitual é perseguida por Heisenberg a partir de
1925, com a tomada da convicção da
... necessidade de uma reflexão rigorosamente filosófica e não apenas de uma
filosofia natural (...). Esta necessidade de uma reflexão filosófica é (...) realizada
pelo desejo de compreender e de fazer compreender a física quântica, pelo desejo de
perseguir a física tanto quanto a própria filosofia. Nem Bohr, nem Heisenberg, nem
Pauli jamais reivindicaram uma posição profissional de filósofos, mas permanece
[entre eles] a convicção de que é necessário fazer "a verdadeira filosofia" enraizada
na idéia de que é preciso criar uma nova linguagem, o que os conduz a definir um
projeto que não é o decalque de nenhuma tradição anterior e que, no entanto, está
situado em uma relação clara a esta tradição
8
.
Cabe-nos, portanto, tentar tornar mais explícita esta relação com a tradição a
que Chevalley se refere. Nos escritos de Heisenberg são duas as referências
filosóficas maiores. A primeira delas é a referência ao desenvolvimento da
filosofia moderna (“ou mais precisamente, da reflexão filosófica que se inicia, para
Heisenberg, com os ‘Tempos Modernos’
9
”). A outra é a referência à filosofia
grega, que está presente desde bem cedo e toma progressivamente uma amplitude
cada vez maior nos escritos ditos “gerais” de Heisenberg. A referência à filosofia
grega, que é a questão central deste estudo, será examinada no terceiro capítulo. É
metodologicamente mais interessante para este trabalho nos concentrarmos, por
enquanto, na referência à modernidade.
Como se então, nos textos de Heisenberg, a referência à filosofia
moderna? Quais são seus pontos principais? Como dissemos, a referência à
modernidade – uma das questões centrais do pensamento de Heisenberg – tem suas
raízes no projeto filosófico de Bohr, cuja diretriz central é “compreender e
clarificar o acabamento da filosofia moderna de que o nascimento da mecânica
7
Chevalley, Catherine, Introdução a Heisenberg, Werner, La Nature Dans la physique
Contemporaine, p. 45.
8
Ibidem, p. 46.
9
Ibidem, p. 29 : “sendo os tempos modernos inaugurados por três eventos invisivelmente
associados que são a descoberta de Colombo, o debate de Lutero e Zwingli e a formulação da
doutrina de Copérnico.”
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50
quântica, dentre outros desenvolvimentos do pensar, é testemunha
10
”. As diretrizes
deste projeto foram, afirma Chevalley
11
, fixadas no citado artigo de 1929, cujas
características essenciais nos cabe retomar. A primeira delas é que a mecânica
quântica inaugurava uma nova forma de objetividade, caracterizada pela “renúncia
à unidade ‘clássica’ de uma descrição simultaneamente espaço-temporal e causal
dos fenômenos, e pela característica estatística que dela era conseqüência
12
”. Esta
renúncia tem por conseqüência um segundo ponto a que voltaremos mais tarde,
aquele de
uma justaposição de duas linguagens, a linguagem dos conceitos ditos ordinários ou
clássicos e a linguagem do formalismo matemático da teoria quântica, justaposição
que remetia à diferença entre “regiões da experiência”. E enfim, o problema
filosófico mais geral que se coloca é aquele de compreender o que se tornou a idéia
filosófica tradicional de uma “divisão fixa e definitiva entre sujeito e objeto”
13
.
O que se apresenta é, doravante,
uma ruptura, não com as teorias físicas clássicas mantidas nos seus respectivos
domínios da experiência -, mas com as hipóteses filosóficas que haviam sido
formuladas no momento do nascimento da física matemática no século XVII, e,
conseqüentemente, com a filosofia moderna
14
.
Tentaremos expor adiante, de modo mais detalhado que no capítulo anterior,
em que consiste esta especificidade da teoria quântica que leva Bohr e Heisenberg
à conclusão da necessidade da crítica à Modernidade.
Como dissemos anteriormente, a mecânica quântica parte de uma
modificação fundamental na definição de observação. É esta natureza distinta do
ato de observação que funda, para Bohr, a especificidade da teoria quântica
15
.
Qualquer medição em física envolve a interferência do aparelho de medição
no objeto a ser medido. Se, por exemplo, um raio de luz for lançado sobre o objeto,
uma parte da luz refletida pelo objeto pode ser absorvida pelo aparelho de
medição. Qualquer troca de energia desse tipo altera o estado do objeto: este, após
ter sido medido, encontrar-se-á em uma condição diferente da anterior. Nesses
termos, a medida proporciona o conhecimento acerca de um estado que acabou de
10
Ibidem, p. 52.
11
Ibidem, p. 50.
12
Ibidem, p. 50.
13
Ibidem, p. 51.
14
Ibidem, p. 51.
15
Ibidem, p.41.
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51
ser destruído pelo processo de medição. A interferência do processo de medição no
objeto medido pode ser ignorada quando se trata de objetos macroscópicos, o que
não é possível no caso de objetos atômicos, pois estes são fortemente
influenciados, seguindo o exemplo, pela irradiação luminosa. Se quiséssemos
prosseguir com a experiência de observar um elétron em um átomo, precisaríamos
emitir ao menos um quantum de luz, o que faria com que ele saísse da posição em
que supostamente estava. Se usássemos a terminologia ondulatória, não veríamos
um pacote de ondas se movendo em torno do núcleo, mas sim ondas se afastando
dele, uma vez que o primeiro quantum seria suficiente para afastar o elétron do
átomo. A questão é resumida de modo claro por Dirac:
Os objetos pertencentes ao domínio atômico, os objetos ditos 'pequenos', são (...)
definidos como aqueles cuja observação provoca uma interferência que não pode ser
negligenciada, enquanto os objetos pertencentes ao domínio clássico, os objetos
ditos 'grandes', se definem como aqueles cuja observação provoca uma interferência
que pode ser desprezada
16
.
Assim, na mecânica quântica, os efeitos dos meios de observação no corpo
observado não podem ser negligenciados. O ato de observar é em mecânica
quântica acompanhado de uma interação finita e incontrolável do sistema
observado com o instrumento de observação. Esta impossibilidade de conhecermos
a natureza objetiva do fenômeno observado não se deve, no entanto, à
incapacidade humana de construir um equipamento experimental adequado como,
por exemplo, “um microscópio do futuro, idealmente perfeito, que pudesse
efetivamente nos mostrar a imagem de uma molécula real
17
”. Ainda que seja
fundamentalmente impossível observar, digamos, a órbita de um elétron em um
átomo, “esta impossibilidade não se deve a nenhuma falha (ainda remediável)
daquele postulado microscópio ideal, pretensamente tão perfeito como as leis
naturais o permitissem ser, mas [é] antes uma conseqüência destas mesmas leis
18
”.
É muito difícil obter um conceito visual de um átomo e “nós, neste ponto,
evidentemente atingimos o limite das possibilidades de visualização
19
”. Conforme
atesta Heisenberg, “estas limitações impostas à representação visual podem ser
16
Dirac, P.A.M. (1958) The Principles of Quantum Mechanics, 4th edition, Oxford University
Press, Oxford, apud Cushing, James T., Philosophical Concepts in Physics, p. 297-298.
17
Heisenberg, Werner, Nuclear Physics (1948), p. 18
18
Ibidem, p. 29.
19
Ibidem, p. 35.
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52
formuladas com uma maior acuidade com a ajuda de uma relação chamada
princípio de incerteza
20
”.
Na física clássica, afirma Heisenberg,
a medição servia como o meio de se estabelecer estados objetivos dos
acontecimentos que eram independentes da medição. Estes estados objetivos dos
acontecimentos podiam ser matematicamente descritos e ter, por meio disso, sua
conexão causal rigorosamente afirmada. Na teoria quântica a medição é, como na
física anterior, em si mesma um estado objetivo dos acontecimentos; mas a
interferência da medição no curso objetivo da ocorrência atômica a ser medida se
torna problemática, uma vez que a medição interfere na ocorrência e o pode ser
completamente separada da própria ocorrência
21
.
Vemos, deste modo, que na mecânica quântica o ideal de que o objeto
experienciado não seja alterado pela observação é impraticável por definição
porque a distinção entre o estado de um sistema e o instrumento de medida não
pode ser feita. Em outras palavras, é impossível separar o aparelho de medição do
objeto a ser medido, o que implica, como veremos mais à frente, em mudanças no
que diz respeito à imagem que se tem da natureza. Prossigo com Bohr, citado por
Heisenberg:
A natureza nos ensina que a palavra "fenômeno” não pode ser aplicada aos
processos atômicos, a menos que também especifiquemos o arranjo experimental e
os instrumentos de observação que estão envolvidos. Quando se define um
determinado arranjo experimental e dele decorre uma observação particular, é lícito
falarmos de fenômeno, mas não de sua perturbação pela observação. E, embora os
resultados das diferentes observações não possam ser tão diretamente
correlacionados entre si, quanto eram possíveis de o ser pela física clássica, isso,
ainda assim, não significa que os fenômenos tenham sido perturbados pela
observação: significa, simplesmente, que não podemos objetivar os resultados
observacionais à maneira da física clássica ou da experiência cotidiana
22
.
Em qualquer experimento em física atômica, as questões são colocadas à
natureza com a ajuda de aparatos experimentais mais ou menos complicados. Estas
questões são necessariamente formuladas com o recurso aos conceitos comuns da
física clássica, e, mais especificamente, com a utilização dos conceitos de espaço e
de tempo, “pois nós certamente possuímos apenas uma forma de falar [que é]
20
Ibidem, p. 35.
21
Heisenberg, Werner, “Planck’s Discovery and the Philosophical Problems of Atomic Theory”
(1958), Across the Frontiers, p. 16.
22
Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo (1969), p. 125.
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adaptada aos objetos do nosso meio ambiente diário e capaz de descrever a
estrutura dos aparatos de medição
23
”.
A interpretação de Copenhague da teoria quântica parte de um paradoxo. Qualquer
experimento em física, refira-se ele a fenômenos da vida cotidiana ou a eventos
atômicos, deve ser descrito nos termos da física clássica. Os conceitos da física
clássica formam a linguagem através da qual descrevemos o aparato de nossos
experimentos e enunciamos os resultados. Não podemos, e nem devemos substituir
estes conceitos por quaisquer outros. Ainda assim, a aplicação destes conceitos é
limitada pelas relações de incerteza. Devemos ter em mente este alcance limitado da
aplicabilidade dos conceitos clássicos enquanto os usamos, mas não podemos e não
devemos tentar melhorá-los
24
.
Embora a linguagem clássica tenha sido construída para o estabelecimento de
processos objetivos no espaço e tempo
25
, em mecânica quântica “as expressões
matemáticas adequadas à representação da realidade experimental são funções de
onda em espaços de configurações multidimensionais que não permitem nenhuma
compreensão fácil e intuitiva
26
. De acordo com Heisenberg, se levanta, a partir de
então, a necessidade da colocação de uma linha divisória. De um lado, o aparato
que é usado como uma forma de apresentar a questão e que deve,
conseqüentemente, ser tratado como “uma parte de nós mesmos
27
”, do outro, os
sistemas físicos que se deseja investigar.
Um sistema atômico individual pode ser representado por uma função de
onda, como dissemos, ou, de acordo com a situação, por uma mistura estatística de
tais funções, isto é, por um conjunto
28
. Quando este sistema interage com o mundo
externo, a única representação possível é a mistura estatística das funções, uma vez
que nós não conhecemos em detalhes o sistema “mundo externo”.
Se o sistema é fechado podemos em algumas circunstâncias ter, pelo menos
aproximadamente, um “caso puro”, e o sistema é então representado por um vetor
no espaço de Hilbert. A representação é, neste caso particular, completamente
“objetiva”, i.e. não contém características conectadas com o conhecimento do
observador; mas ela é também completamente abstrata e incompreensível, uma vez
que as várias expressões matemáticas ψ(q), ψ(p), etc., não se referem ao espaço real
23
Heisenberg, Werner, “Recent Changes on the Foundations of Exact Science” (1934), In:
Philosophic Problems of nuclear Science, p. 15.
24
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 32.
25
Heisenberg, Werner, “Questions of Principle in Modern Physics” (1935), In: Philosophic
Problems of Nuclear Science, p. 49.
26
Ibidem.
27
Ibidem.
28
Ibidem.
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ou a uma propriedade real; ela, conseqüentemente, não contém, por assim dizer,
nada de física. A representação se torna uma parte da descrição da Natureza apenas
quando ligada à questão de como experimentos reais ou possíveis podem ter
resultado
29
.
Dito de outra forma, em mecânica quântica não é possível chegar a um
resultado definido se o aparato de medição e o sistema atômico, tratados como um
todo, são isolados do resto do mundo. Consoante Heisenberg, “é o caráter factual
de um evento descritível em termos dos conceitos da vida diária, que não está
automaticamente contido no formalismo da teoria quântica, que aparece na
interpretação de Copenhague pela introdução do observador
30
”. Esta introdução do
observador não deve, todavia, ser compreendida como implicando em algum tipo
de característica subjetiva que venha a ser trazida para a descrição da natureza.
O observador tem apenas a função de registrar decisões, i.e., processos no espaço e
tempo, e não importa se o observador é um aparato ou um ser humano; mas o
registro, i.e. a transição do possível para o atual, é absolutamente necessária aqui, e
não pode ser omitida da interpretação da teoria quântica
31
.
A partir deste ponto a interação do sistema com o aparato de medição deve
ser, sobremaneira, levada em consideração. Uma mistura estatística é neste
momento utilizada para representar um sistema maior – composto do sistema
atômico e do aparato de medição. Embora possa parecer que isto poderia ser
evitado, em princípio, caso houvesse a possibilidade de separar completamente o
sistema e o aparato de medição (considerados como um único sistema composto)
do mundo externo, a conexão com o mundo externo é, como dissemos, uma das
condições necessárias para o aparato de medição exercer a sua função. O
comportamento do aparato deve poder ser registrado como algo atual, logo deve
ser descrito em termos de conceitos simples:
O sistema composto do sistema [atômico] e do aparato de medição é então descrito
matematicamente por uma mistura, e a descrição contém, por conseguinte, além das
características objetivas, também colocações (...) a respeito do conhecimento do
observador. Se o observador registra depois um certo comportamento do aparato de
medição como atual, ele conseqüentemente altera a representação matemática de
modo descontínuo, porque apenas uma dentre as várias possibilidades prova ser a
real. A “redução dos pacotes de onda” descontínua, que não pode ser derivada a
29
Heisenberg, Werner, “The Development of the Interpretation of the Quantum Theory” (1955),
In: Niels Bohr and the Development of Physics, p. 26.
30
Ibidem, p. 22.
31
Ibidem, p. 22.
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equação de Schrödinger, é assim, (...) uma passagem do possível ao atual. É claro
que é inteiramente justificado imaginar esta transição, do possível ao atual, movida
para um ponto anterior no tempo, uma vez que o observador não produz a transição;
mas ela não pode ser movida para um momento anterior quando o sistema composto
estava ainda separado do mundo externo, porque uma tal hipótese não seria
compatível com a validade da mecânica quântica para o sistema fechado
32
.
Para melhor compreender a citação acima é mister retomar alguns de seus
pontos. A função de onda de Schrödinger é, como dissemos, uma expressão
matemática em configurações de espaços multidimensionais: “Esta função, de
acordo com a teoria, consiste em uma equação diferencial que determina qualquer
estado futuro do presente estado da função
33
”. Ela não representa um curso de
eventos no correr do tempo, mas um conjunto de eventos possíveis
34
, uma
tendência para a ocorrência de eventos. Enquanto um experimento o é feito,
como por exemplo a observação de um elétron, a função de onda deste elétron
evolui segundo a equação de Schrödinger, uma evolução contínua e uniforme, na
qual as funções podem descrever combinações de diferentes estados. Em outras
palavras, a função de onda descreve o conjunto de probabilidades de valores
(características) que o elétron possa vir a ter, ou seja, seus possíveis modos de ser,
o que corresponde a uma superposição de estados, algo inobservável no mundo de
que temos experiência direta
35
. Sigamos a descrição de Heelan da teoria quântica de
medição como explicada por Heisenberg:
Antes da interação de instrumento e objeto, (...) o objeto isolado é chamado de um
caso puro, e o estado é representado no espaço abstrato de Hilbert por uma raio que
é comumente tomado como uma função de onda Ψ(x). A função de onda é
essencialmente relacionada a um conjunto de processos de medição possíveis ou,
como Heisenberg o expressa, ele representa a potencialidade a ser atualizada pelo
processo de medição. Ele é um caso puro, e como tal denota algo individual com
propriedades, algumas das quais são precisas e tem valores numéricos definidos,
como massa em repouso, carga elétrica, etc., e outras são imprecisas, mas
potencialmente precisas, uma vez que o valor preciso depende da escolha da
subseqüente execução de algum processo de medição. Estas propriedades potenciais
ocorrem em pares conjugados. Elas são potenciais visto que valores exatos não
32
Heisenberg, Werner, “The Development of the Interpretation of the Quantum Theory” (1955),
In: Niels Bohr and the Development of Physics, p. 27.
33
Heisenberg, Werner, “Questions of Principle in Modern Physics” (1935), In: Philosophic
Problems of Nuclear Science, p. 49.
34
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 42.
35
Para Schrödinger, isto era muito problemático, pois ele pensava que se objetos atômicos podiam
ficar em estranhas superposições, os objetos macroscópicos também deveriam ficar nestas
estranhas configurações, uma vez que são feitos de átomos. Em função disso ele descreveu o
famoso experimento mental no qual um dispositivo mata um gato caso um átomo radiativo se
desintegre. Ao entrar em uma superposição dos estados "não desintegrado" e "desintegrado", o
átomo radiativo produziria um gato que estaria ao mesmo tempo vivo e morto.
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podem ser simultaneamente atribuídos a ambos os membros de um par de variáveis
conjugadas e, no caso geral, nenhum valor preciso deve ser atribuído a nenhum dos
membros do par. Eles são também potenciais no que diz respeito ao formalismo
matemático, dado que o valor é obtido apenas pela transformação matemática do
caso puro original no qual vários valores são potenciais em um novo caso puro
que é auto-estado de um valor preciso. (...) As únicas predições feitas pela teoria são
estatísticas, e conseqüentemente, o caso puro é, de uma certa forma, incompleto e
impreciso. O caso puro também descreve um conjunto estatístico de casos
concretos, cada um caracterizado pela mesma função de onda
36
.
Desta maneira, a função de onda não nos permite predizer, entre os
resultados possíveis, qual será observado ou produzido no experimento. O ato da
observação desencadeia uma mudança na função de onda chamada de colapso e o
observador passa a ver o elétron em um estado clássico. O elétron tem, a partir de
então, uma característica definida, logo, a parte da função de onda que corresponde
ao que está sendo observado permanece
37
. “Uma vez que, através da observação,
nosso conhecimento do sistema mudou descontinuamente, sua representação
matemática também sofre uma mudança descontínua, e fala-se, então, de um ‘salto
quântico’
38
”. A mudança do nosso conhecimento no instante do registro tem, por
assim dizer, a sua imagem na mudança descontínua da função de probabilidade
39
.
Isto não significa, contudo, que tenhamos, ao fazer a medição, mudado o objeto
observado como se ele estivesse lá, porque, de acordo com Heisenberg, não
podemos dizer que ele realmente estivesse em algum lugar antes da medição. É
como se, com as probabilidades determinadas pela função de onda, a natureza
escolhesse um estado ao acaso. E ela o faz apenas diante da presença do
observador, responsável pela atualização da potência.
Ainda segundo Heisenberg, “o conceito de função de probabilidade não
permite uma descrição do que acontece entre duas observações
40
”.
É, certamente, tentador dizer que o elétron deve ter estado em algum lugar, no
intervalo de tempo entre essas duas observações, e que, portanto, o elétron deveria
36
Heelan, Patrick A., Quantum Mechanics and Objectivity, A Study of the Physical
Philosophy of Werner Heisenberg, p. 71-73.
37
O problema da indeterminação do colapso é o maior problema de uma interpretação como a de
Schrödinger. Esta indeterminação não pode ser descrita pela equação de Schrödinger e tampouco
por qualquer outra equação determinista. Este é o aspecto descontínuo da teoria quântica. Não é
possível prever qual das possibilidades realmente vai se atualizar a cada vez e é necessário que um
experimento seja efetuado um grande número de vezes para que haja uma previsão, por sua vez,
também em termos de probabilidade.
38
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 42.
39
Ibidem, p. 43.
40
Ibidem, p. 40.
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ter descrito algum tipo de trajetória ou órbita, mesmo que seja impossível saber-lhe
qual. Esse seria um argumento razoável em sica clássica. Em teoria quântica,
porém, teria sido um abuso de linguagem que (...) não poderia ser justificado.
Como podemos perceber, um sistema separado do mundo exterior é
potencial, mas não atual, que ele não pode ser descrito em termos dos conceitos
clássicos. “Podemos dizer que o estado do sistema fechado representado pelo vetor
de Hilbert é, certamente, objetivo, mas não real, e que a idéia clássica de coisas
objetivamente reais deve aqui, nesta medida, ser abandonada
41
”. Esta
caracterização de um sistema pelo seu vetor de Hilbert é, conforme afirma
Heisenberg, “complementar à sua descrição nos termos dos conceitos clássicos
42
”,
isto é, as duas descrições são mutuamente excludentes, mas ambas igualmente
necessárias para a compreensão da totalidade do experimento. De fato Bohr
advoga, de acordo com Heisenberg, o conceito de “complementaridade” em muitas
partes da interpretação da teoria quântica:
O conhecimento que obtemos a respeito da posição de uma partícula é
complementar ao conhecimento da sua velocidade ou momento. Se soubermos um
deles com grande exatidão não podemos saber o outro com grande exatidão; ainda
assim, precisamos saber ambos para determinar o comportamento do sistema. A
descrição espaço-temporal dos eventos atômicos é complementar à sua descrição
determinista. A função de probabilidade obedece a uma equação de movimento da
mesma forma que as coordenadas faziam na mecânica newtoniana; sua mudança ao
longo do tempo é completamente determinada pela equação da mecânica quântica,
mas ela não permite uma descrição no espaço e tempo. A observação, por outro
lado, obriga a uma descrição no espaço e tempo, mas rompe com a continuidade
determinada da função de probabilidade ao mudar nosso conhecimento do sistema
43
.
O conhecimento do ‘atual’ é, deste modo, do ponto de vista da mecânica quântica,
sempre um conhecimento incompleto pela sua própria natureza. Pela mesma razão,
o caráter estatístico das leis da física microscópica não pode ser evitado
44
”.
As conexões físicas podem, como afirma Heisenberg, ser formuladas de
modo não ambíguo em ambos os lados da linha divisora: é somente na linha
divisora que as leis da mecânica quântica assumem seu caráter estatístico. Esta
possibilidade de interconexões estatísticas é criada apenas no que concerne ao
efeito do aparato medidor no sistema a ser medido, como uma perturbação
41
Heisenberg, Werner, “The Development of the Interpretation of the Quantum Theory” (1955),
In: Niels Bohr and the Development of Physics, p. 22.
42
Ibidem, p. 22.
43
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 37.
44
Heisenberg, Werner, “The Development of the Interpretation of the Quantum Theory” (1955),
In: Niels Bohr and the Development of Physics, p. 27-28.
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incontrolável em princípio. “Conseqüentemente, o único lugar para um suplemento
determinista à mecânica quântica seria esta linha divisora
45
”.
Como pudemos notar, esta perturbação incontrolável em princípio é
importante de várias maneiras. Na medida em que é impossível conhecer o objeto
em sua totalidade, esta perturbação é, primeiramente, a razão da existência das leis
estatísticas na mecânica quântica. Em segundo lugar, ela impõe um limite na
aplicação de conceitos clássicos necessários para uma descrição inteligível da
natureza, visto que estes conceitos têm sua exatidão limitada, de saída, pelas
chamadas relações de incerteza ou indeterminação de Heisenberg. Em outras
palavras, as relações de incerteza são uma “lei quântica geral” que é usada como
referência para a passagem do clássico ao quântico
46
”. Ela permite que se
coloquem juntos, nesta linha divisória, os domínios das leis clássicas e da teoria
quântica. Como dissemos anteriormente, ainda que os conceitos clássicos
continuem a ser utilizados na leitura dos resultados das experiências, a
determinação espaço-temporal e o princípio de causalidade não podem mais ser
reunidos em uma mesma descrição homogênea. Rigorosamente falando, não
mais um objeto, mas um conjunto de regularidades estatísticas que nos aparece de
acordo com o meio de observação utilizado, meio este que caracteriza nossa
interação com a natureza. É esta a impossibilidade de se estabelecer a separação
definitiva entre sujeito e objeto a que nos referimos anteriormente. A mecânica
quântica inaugura uma nova forma de objetividade; e a justaposição da linguagem
dos conceitos clássicos à linguagem do formalismo da teoria quântica remete à
noção de regiões ou níveis de realidade
47
.
Mas por que estas especificidades da teoria quântica têm por implicação um
rompimento com a filosofia moderna? Primeiramente,:
O fato de considerar a divisão sujeito-objeto como uma hipótese essencialmente
problemática equivale a romper com o que estava identificado correntemente como
45
Heisenberg, Werner, “Questions of Principle in Modern Physics” (1935), In: Philosophic
Problems of Nuclear Science, p. 49.
46
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans La Physique
Contemporaine, p.42.
47
Muito embora se trate de uma das questões mais ricas e instigantes do pensamento filosófico de
Heisenberg, entregar-se a esse assunto, nesta dissertação, é tarefa que muito nos afastaria de
nossos objetivos atuais e ulteriores.
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a posição característica da metafísica moderna desde Descartes, do cogito ao sujeito
transcendental e para além
48
.
Em realidade, consoante Heisenberg:
O grande desenvolvimento da ciência natural a partir dos séculos XVI e XVII foi
precedido e acompanhado por um desenvolvimento de idéias filosóficas que
estavam conectadas de um modo muito próximo aos conceitos fundamentais da
ciência. (...) O primeiro grande filósofo deste novo período da ciência foi René
Descartes
49
.
Mas o que define, para Heisenberg, os tempos modernos? É interessante
apontar aqui que nos escritos não técnicos de Heisenberg encontramos, além da
física, a presença de outros três grandes domínios: o da história das religiões, da
literatura alemã e o da música. Cito Chevalley:
Formado no protestantismo, Heisenberg não é cristão e avalia ser o cristianismo,
hoje em dia, sem sentido, com a exceção de algumas de suas prescrições éticas
50
;
mas ele avalia, igualmente, que a nossa cultura é ininteligível sem o conhecimento
da história das religiões. A referência à literatura alemã – Goethe e Hölderlin, Stefan
George e Gottfried Keller - e à experiência da música Heisenberg é um pianista
notável e pensa a música também matematicamente – formaram, além disso, a
moldura de pensamento na qual Heisenberg refletiu. Ciência, história das religiões
(e de uma maneira mais geral, das civilizações), literatura alemã, música: pode-se
notar que esta mistura é perfeitamente tradicional para um sábio alemão do início do
século XX e que resume a formação humanista (humanistische Bildung) dada no
ginásio. Heisenberg é um produto típico desta formação
51
.
No que nos concerne aqui, a seguinte passagem do próprio Heisenberg é de
especial interesse:
Embora eu agora esteja convencido de que a verdade científica seja incontestável no
seu próprio domínio, eu nunca achei possível pôr de lado o conteúdo do pensamento
religioso simplesmente como uma parte de uma fase fora de moda da consciência
humana, uma parte da qual nós devemos desistir daqui em diante. Deste modo me
vi, ao longo da minha vida, repetidamente compelido a ponderar acerca da relação
entre estas duas regiões do pensamento, posto que nunca fui capaz de duvidar da
realidade daquilo para que elas apontam
52
.
48
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans La Physique
Contemporaine, p.42.
49
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 65.
50
Ver, por exemplo, a este respeito, Heisenberg, Werner, “Scientific and Religious Truth” (1973),
In: Across the Frontiers, p.219.
51
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans la physique
Contemporaine, p. 27.
52
Heisenberg, Werner, “Scientific and Religious Truth” (1973), In: Across the Frontiers, p.213.
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60
A citação acima nos permite perceber que o papel exercido pela região do
saber que corresponde ao campo religioso é de fundamental importância para
Heisenberg em sua tentativa de compreensão histórica do desenvolvimento do
pensamento humano. Sua caracterização da ciência moderna é fiel a esta linha de
raciocínio, como testemunham as passagens que se seguem:
1. Quando no século XVII esta ciência foi fundada (...), na sua base
encontrava-se ainda a imagem medieval da natureza, que via nesta, acima
de tudo, a criação de Deus. A natureza era imaginada como obra de Deus e
às pessoas daquele tempo teria parecido absurdo pôr o problema do mundo
material independentemente de Deus
53
.
2. Não pode haver dúvidas de que nesta fase inicial da ciência moderna, a
recém descoberta conformidade [dos fenômenos] com a lei matemática
tornou-se a verdadeira base do seu poder persuasivo. Estas leis
matemáticas, como as lemos em Kepler, são a expressão visível da vontade
divina, e Kepler demonstra seu entusiasmo com o fato de ter sido o primeiro
a reconhecer a beleza dos trabalhos de Deus. Deste modo esta nova maneira
de pensar não era, certamente, nada próxima a um afastamento da religião.
Se as novas descobertas de fato contradiziam os ensinamentos da Igreja em
alguns pontos, isto era pouco significativo, visto que era possível perceber
de modo muito imediato os trabalhos de Deus na natureza
54
.
Entretanto, ao longo de algumas décadas, a atitude do homem em relação à
natureza mudou radicalmente
55
. Percebeu-se, “como Galileu tinha começado a
fazer
56
”, que, à medida que o investigador adentrava nos detalhes dos processos
individuais podia descrevê-los matematicamente e, assim, “explicá-los” sem que
fosse necessário fazer nenhuma referência explícita a Deus em sua explicação.
“Neste período havia, em alguns casos, um acordo explícito entre os pioneiros da
ciência empírica, de que o nome de Deus ou de uma causa fundamental não
deveria ser mencionado em suas discussões
57
”. Galileu compreendeu, como
confirma Heisenberg, que se afastando da experiência imediata, era possível
descobrir estruturas matemáticas nos fenômenos. “Este novo método não almejava
uma descrição do que é visível, mas antes a invenção de experimentos e a
53
Heisenberg, Werner, “A Imagem da Natureza na sica Moderna” (1953), In: A Imagem da
Natureza na Física Moderna, p. 7.
54
Heisenberg, Werner, “Scientific and Religious Truth” (1973), In: Across the Frontiers, p.215.
55
Heisenberg, Werner, “A Imagem da Natureza na sica Moderna” (1953), In: A Imagem da
Natureza na Física Moderna, p. 8.
56
Heisenberg, Werner, “A Imagem da Natureza na sica Moderna” (1953), In: A Imagem da
Natureza na Física Moderna, p. 8.
57
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 67-68.
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61
produção de fenômenos que não podem ser vistos normalmente [, bem como] o seu
cálculo nas bases de uma teoria matemática
58
”.
Pode-se dizer que a ciência da natureza iniciou neste período um intenso
processo de abstração e que, a partir do Philosophiae Naturalis Principia
Mathematica, a opus magna de Newton, “se desenvolveu de uma maneira
perfeitamente linear e consecutiva
59
”. Newton “simplesmente queria explicar os
processos da mecânica
60
e, embora reconhecesse estar esta tarefa bastante além
das possibilidades de conclusão daquele tempo, imaginou que, por meio dos
conceitos e leis básicas por ele estabelecidos, uma “explicação deste tipo poderia
ser possível, pelo menos no futuro
61
”. Ele uniu estes conceitos em um grupo de
axiomas que podia ser traduzido na linguagem matemática, o que abria “pela
primeira vez, a possibilidade de se reunir uma infinita gama de fenômenos em um
formalismo matemático
62
”. Por meio do cálculo, cada processo individual pôde ser
compreendido como uma conseqüência das leis básicas por ele postuladas e, deste
modo, “explicado”. Ainda que os processos não pudessem em si mesmos ser bem
observados, seus resultados poderiam ser preditos a partir das condições iniciais e
dos pressupostos da física. O sucesso na explicação do esquema matemático e as
aplicações práticas da mecânica pareciam justificar convenientemente esta nova
forma de ciência.
Entretanto, Heisenberg considerava que a aproximação da realidade por meio
dos conceitos newtonianos era uma restrição, ou, se se preferir, uma estilização da
imagem da realidade
63
. Tratava-se de peneirar, da desconcertante complexidade
das aparências, os processos simples da natureza:
Mas o que é simples? Desde Galileu e Newton a resposta tem sido: Um processo é
simples quando sua ocorrência regular pode ser representada quantitativamente, em
todos os seus detalhes, de uma maneira matematicamente consistente. O processo
simples não é, conseqüentemente, aquele que a natureza nos apresenta
imediatamente; pelo contrário, o físico deve primeiramente, muitas vezes pelo uso
de aparatos extremamente complexos, dividir a rica mistura de fenômenos,
58
Heisenberg, Werner, “Tradition in Science” (1973), In: Encounters with Einstein and Other
Essays, on People, Places and Particles, p. 8.
59
Heisenberg, Werner, “Goethe’s View of Nature and the World of Science and Technology”
(1967), In: Across the Frontiers, p. 125.
60
Heisenberg, Werner, “The Notion of a “Closed Theory” in Modern Science” (1948), In: Across
the Frontiers, p. 40.
61
Ibidem, p. 40.
62
Ibidem, p. 40.
63
Heisenberg, Werner, “The End of Physics?” (1970), In: Across the Frontiers, p. 185-186.
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62
libertando o que é importante do indesejado tumulto, até que um “simples” processo
emerja claramente por si mesmo, precisamente na medida em que ele possa
prescindir de - isto é, abstrair a partir de - todos os fenômenos acessórios
64
.
E assim, o mundo consistia em coisas no espaço e tempo, as coisas
consistiam em matéria, e a matéria, por sua vez, podia produzir e sofrer a ação de
forças. Os eventos se seguem da interação entre matéria e forças e cada evento é o
resultado e a causa de outros eventos
65
. A ciência natural tinha, por assim dizer,
uma imagem clara e ampla do mundo material e, contudo, “as primeiras grandes
formulações compreensivas das leis naturais, tais como foram possíveis em
Newton, tratavam de idealizações da realidade, e não da realidade em si mesma
66
”.
Nas palavras de Heisenberg:
A física clássica, que chegou à sua conclusão há uns trinta anos atrás, foi construída
sobre algumas suposições fundamentais que pareciam pontos de partida óbvios de
toda a ciência exata e pareciam não requerer prova ou discussão: a física lidava com
o comportamento da matéria no espaço e com a sua mudança no tempo. Ainda que
isto caracterizasse originalmente apenas as experiências que formavam a base da
física, algumas propriedades da matéria foram inferidas destas experiências e
pareciam ser [por elas] determinadas ao mesmo tempo. Era-se levado à tácita
assunção de que existia um curso objetivo dos eventos no espaço e no tempo,
independente da observação; além disto, aquele espaço e tempo eram categorias de
classificação de todos os eventos, completamente independentes um do outro, e
representavam desta maneira uma realidade objetiva, que era a mesma para todos os
homens
67
.
Para Heisenberg, é possível afirmar que a mecânica atingiu a sua compleição
na teoria newtoniana e que ela é, e será (“pelo menos por uns bons milhões de anos
a partir de agora
68
”) vigente no que concerne à região da realidade de que ela trata.
“Dentro de sua própria estrutura, a mecânica newtoniana não pode ser melhorada.
Mas nós não podemos, de forma alguma, afirmar que todos os fenômenos possam
ser descritos em termos destes conceitos
69
”.
64
Heisenberg, Werner, “The Notion of a “Closed Theory” in Modern Science” (1948), In: Across
the Frontiers, p. 42.
65
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 184.
66
Heisenberg, Werner, “The End of Physics?” (1970), In: Across the Frontiers, p. 185-186.
67
Heisenberg, Werner, “Recent Changes in the Foundations of Exact Science” (1934), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 11.
68
Heisenberg, Werner, “Recent Changes in the Foundations of Exact Science” (1934), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 11.
69
Heisenberg, Werner, “The End of Physics?” (1970), In: Across the Frontiers, p. 185-186.
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63
A aparição de uma ciência matemática marca uma mudança de posição no
que diz respeito à atitude do homem diante da natureza
70
. Esta mudança da posição
do investigador pode, segundo Heisenberg, ser compreendida caso se considere
que o pensamento cristão daquela época havia se desenvolvido de modo que “Deus
parecia tão distante da terra, no alto do céu, que fazia sentido considerar a terra
independentemente d’Ele
71
”:
Pode se dizer que certas tendências na filosofia cristã levaram a um conceito muito
abstrato de Deus, que elas colocaram Deus tão acima do mundo que se passou a
considerar o mundo sem ao mesmo tempo ver Deus nele. A divisão cartesiana pode
ser considerada um passo final neste desenvolvimento. (...) Ao longo deste período,
apareceu uma nova autoridade que era completamente independente da religião ou
filosofia cristã ou da Igreja, a autoridade da experiência, do fato empírico
72
.
A filosofia de Descartes é, para Heisenberg, assim como todos os grandes
sistemas filosóficos do século XVII, o resultado da transformação introduzida com
a nova ciência da natureza, aquela de Kepler e de Galileu, cuja característica
central é a de que seu ponto de partida essencial não é mais uma substância ou
princípio, mas um conhecimento fundamental a ser encontrado no entendimento
73
.
Trata-se, no caso do cartesianismo, da tentativa de estabelecer fundamentos sólidos
e duradouros sobre os quais se possa construir o “edifício” da ciência
74
, o que seria
feito a partir da dúvida e do raciocínio lógico, como vemos na seguinte passagem:
muito tempo eu notara que, quanto aos costumes, por vezes é necessário seguir,
como se fossem indubitáveis, opiniões que sabemos serem muito incertas (...); mas
como então desejava ocupar-me somente da busca da verdade, pensei que precisava
fazer exatamente o contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo em que
pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se depois disso não restaria em
minha crença alguma coisa que fosse inteiramente indubitável. Assim, porque
nossos sentidos às vezes nos enganam, quis supor que não havia coisa alguma que
fosse tal como eles nos levam a imaginar. E porque homens que se enganam ao
raciocinar (...), julgando que eu era tão sujeito ao erro quanto qualquer outro, rejeitei
como falsas todas as razões que antes tomara como demonstrações. E, finalmente,
considerando que todos os pensamentos que temos quando acordados também nos
podem ocorrer quando dormimos, sem que nenhum seja tão verdadeiro, resolvi
fingir que todas as coisas que haviam entrado em meu espírito não eram mais
verdadeiras que as ilusões dos meus sonhos. Mas logo depois atentei que, enquanto
70
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans la physique
Contemporaine, p. 71
71
Heisenberg, Werner, “A Imagem da Natureza na sica Moderna” (1953), In: A Imagem da
Natureza na Física Moderna, p. 8.
72
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 183.
73
Ibidem, p. 66.
74
Por exemplo, Descartes, René, O Discurso do Método, p.12, 15, ou Meditações, p. 250.
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64
queria pensar assim que tudo era falso, era necessariamente preciso que eu, que o
pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade – penso, logo existo era
tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos cépticos não
eram capazes de a abalar, julguei que podia admiti-la sem escrúpulo como o
primeiro princípio da filosofia que buscava
75
.
A passagem precedente merece ser citada não apenas para que vejamos
claramente o método a que nos referimos, mas porque chegamos, junto com
Descartes, à sua primeira (e célebre) certeza: “penso, logo existo” (“cogito ergo
sum”).
Devemos ter em vista que, segundo Heisenberg, “Descartes percebe que o
que sabemos sobre a nossa mente é mais certo do que o que sabemos sobre o
mundo externo
76
”. Após o estabelecimento da evidência do cogito, Descartes
avança mais um pouco afirmando que é possível ter certeza da existência de uma
coisa que pensa, em latim, res cogitans: “Mas o que sou eu então? Uma coisa que
pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que
afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente
77
”.
Ainda assim, este fato não é suficiente para garantir, nos afirma Descartes, a
existência de nada além do que a própria substância pensante. Ocorre que
Descartes está interessado, como dissemos, em dar fundamentos sólidos para o
conhecimento científico, isto é, garantir a possibilidade de que os objetos “reais”,
em outros termos, os objetos do mundo (res extensa), sejam conhecidos. Isto é
garantido pela prova da existência de Deus
78
que é feita por Descartes
“essencialmente na linha da filosofia escolástica
79
”. Não nos cabe retomar os
meandros desta prova, mas apenas uma passagem que parece resumir seus
objetivos:
É preciso concluir obrigatoriamente que pelo simples fato de que eu existo e de que
a idéia de um ser perfeito, ou seja, Deus, é em mim, a existência de Deus está muito
claramente provada. (...) E toda a força do argumento de que aqui me servi para
demonstrar a existência de Deus consiste em que reconheço que seria impossível
que minha natureza fosse tal como é, isto é, que eu tivesse em mim a idéia de um
Deus, se Deus não existisse de fato; esse mesmo Deus do qual existe uma idéia em
mim, ou seja, que possui todas essas altas perfeições de que nosso espírito pode
75
Descartes, René, O Discurso do Método, p. 37-38.
76
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 66.
77
Descartes, René, Meditações, p. 262.
78
Descartes, René, Meditações, p. 288.
79
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 66.
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65
imaginar, sem, contudo compreendê-las a todas, que não é sujeito a necessidade
alguma e que nada possui de todas as coisas que indicam alguma perfeição
80
.
Ora, se sou munido de sentidos que me fazem crer na existência de um
mundo exterior a mim
81
, e se Deus é, por definição, perfeito:
... é impossível que ele me engane, visto que em todo embuste alguma
imperfeição. E embora pareça que poder enganar seja um sinal de esperteza ou de
poder, querer enganar testemunha, sem dúvida alguma, fraqueza ou malícia. E, logo,
isso não pode existir em Deus
82
.
Para Heisenberg, a caracterização do novo método em filosofia inaugurado
por Descartes é importante, na medida em que é possível ver nele a formulação de
uma tendência do pensamento humano também observada ao longo da Renascença
na Itália e na Reforma:
O crescente interesse na matemática favorecia um sistema filosófico que começava
com um raciocínio lógico e que tentava por este método chegar a uma verdade que
era certamente uma conclusão matemática. A insistência na religião pessoal separou
o Eu e sua relação com Deus do resto do mundo. O interesse na combinação do
conhecimento empírico com a matemática como vista no trabalho de Galileu era
talvez em parte devida à possibilidade de se chegar, desta forma, a algum
conhecimento que pudesse ser completamente afastado das disputas teológicas
levantadas pela Reforma. Este conhecimento empírico pôde ser formulado sem que
se falasse de Deus ou de nós mesmos e favorecia a separação Deus-Mundo-Eu ou a
separação entre “res cogitans” e “res extensa”.
83
Heisenberg tornou, em muitos textos, a “divisão” entre res cogitans e res
extensa, encontrada na filosofia de Descartes, o alvo principal de sua crítica. De
fato, para ele, “a bifurcação do mundo expressa neste par de conceitos teve a mais
poderosa influência no pensamento dos séculos seguintes
84
”. Esta “divisão”
fundamental postulada por Descartes é a origem, para Heisenberg, do conceito
moderno de objetividade
85
, cuja particularidade é a desconsideração, na
constituição do fenômeno observado, das condições de observação. O
cartesianismo expõe, pela primeira vez, um realismo metafísico” que confere à
80
Descartes, René, Meditações, p. 288-289.
81
Por exemplo Descartes, René, Meditações, p. 266-267.
82
Descartes, René, Meditações, p. 292.
83
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 67.
84
Heisenberg, Werner, “Planck’s Discovery and the Philosophical Problems of Atomic Theory”
(1958), In: Across the Frontiers, p. 16.
85
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans la physique
Contemporaine, p. 30.
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66
res extensa o estatuto de o “real” por excelência
86
e que é, conforme Heisenberg, o
responsável pelo enrijecimento da imagem da ciência ao longo dos séculos XVIII e
XIX
87
.
Deste modo, o êxito representado pela mecânica newtoniana e pelas outras
partes da física clássica construídas a partir deste modelo vem acompanhado “da
crença ou dever-se-ia dizer, ilusão?
88
de que era possível descrever o mundo
ou, pelo menos, partes dele, sem a menor referência a “Deus ou a nós mesmos.
Esta possibilidade logo pareceu ser uma condição quase necessária para a ciência
natural em geral
89
”. Assim, afirma Heisenberg, se é o caso de que estes conceitos
cartesianos sejam utilizados, é essencial, em qualquer circunstância, “que Deus
esteja no mundo e no Eu e é também essencial que o Eu não possa estar realmente
separado do mundo”. Embora Descartes soubesse da completa necessidade de uma
conexão entre “Deus-Mundo-Eu”, a ciência natural se desenvolveu, desde então,
nas bases da polaridade entre res cogitans e res extensa, tendo suas atenções
voltadas unicamente para a segunda
90
.
As dificuldades do “realismo metafísico” foram, de acordo com Heisenberg,
rapidamente sentidas, após Descartes, pela filosofia empirista de Locke, Berkeley e
Hume, mas é em Kant que a crítica de Heisenberg à modernidade encontra o seu
segundo momento essencial. A filosofia de Kant, o fundador do idealismo
alemão
91
, representa “a combinação entre essas duas linhas de pensamento que
começaram com Descartes, por um lado, e Locke e Berkeley, por outro
92
”. Uma
vez que encontramos, em Physics and Philosophy, “uma análise precisa dos
diferentes elementos da teoria kantiana do conhecimento
93
tal como estão
expostos na Crítica da Razão Pura, julgamos necessário apontar algumas de suas
características para que se examine com mais clareza as críticas que Heisenberg
faz a algumas de suas partes.
86
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 69-71.
87
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans la physique
Contemporaine, p. 30.
88
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 43.
89
Ibidem, p. 69.
90
Ibidem, p. 67.
91
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p.71.
92
Ibidem, p.71- 74.
93
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans la physique
Contemporaine, p. 31. Esta análise precisa dos elementos da teoria do conhecimento kantiana
está em Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 74-77.
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67
A filosofia de Kant tem, como ponto de partida, a faculdade de julgar, sendo
os juízos compreendidos como funções da unidade das nossas representações. De
acordo com Kant, podemos “reduzir todos os atos do entendimento a juízos
94
”, os
quais podem ser analíticos ou sintéticos:
Em todos os juízos em que for pensada a relação de um sujeito com o predicado
(...), essa relação é possível de dois modos. Ou o predicado B pertence ao sujeito A
como algo contido (ocultamente) nesse conceito A, ou B jaz completamente fora do
conceito A, embora esteja em conexão com o mesmo. No primeiro caso denomino
juízo analítico, no outro sintético. Juízos analíticos (...) são, portanto, aqueles em
que a conexão do predicado com o sujeito for pensada por identidade; aqueles,
porém, em que essa conexão for pensada sem identidade, devem denominar-se
juízos sintéticos. . (...) Com efeito, [os primeiros] por meio do predicado nada
acrescentam ao conceito do sujeito, mas somente o dividem por desmembramento
em seus conceitos parciais que já eram (embora confusamente) pensados nele,
enquanto os últimos, ao contrário, acrescentam ao conceito do sujeito um predicado
que de modo algum era pensado nele nem poderia ter sido extraído dele por
desmembramento algum
95
.
Os juízos analíticos são, assim, aqueles em que os predicados estão contidos
no conceito do sujeito, podendo ser dele extraídos por análise (“juízos de
elucidação
96
”) e cuja negação não pode ser pensada sem contradição
97
. Os juízos
sintéticos são, por sua vez, aqueles que ampliam o conteúdo do conhecimento
(“juízos de ampliação
98
”), são juízos de experiência
99
, e podem ser a priori ou a
posteriori. É sobre a possibilidade da existência de juízos sintéticos a priori que se
concentra Kant na Crítica da Razão Pura, pois ele julga serem os juízos sintéticos
a priori “as condições de possibilidade da experiência em geral [e] (...) ao mesmo
tempo [as] condições de possibilidade dos objetos da experiência
100
”. Em outras
palavras, os juízos sintéticos a priori são juízos que podem existir em relação
aos objetos de que se pode ter experiência, mas são também os princípios de
possibilidade dessa própria experiência
101
.
Nos juízos sintéticos a priori estão contidos os conceitos a priori puros e as
intuições a priori puras. É necessário ressaltar que Kant denomina puras (em
94
Kant, Immanuel, Crítica da Razão Pura, segunda edição (1787), Apud, Caygill, Howard,
Dicionário Kant, p. 205.
95
Kant, Immanuel, Crítica da Razão Pura, segunda edição (1787), p. 58.
96
Idem, p. 58.
97
Um bom exemplo de juízo analítico é “Todo homem solteiro é não casado”.
98
Kant, Immanuel, Crítica da Razão Pura, segunda edição (1787), p. 58.
99
Kant, Immanuel, Crítica da Razão Pura, segunda edição (1787), p. 58: “Juízos de experiência
como tais são todos sintéticos”.
100
Kant, Immanuel, Crítica da Razão Pura, segunda edição (1787), p. 154.
101
Ver Caygill, Howard, Dicionário Kant, p. 211.
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68
sentido transcendental) a todas as representações nas quais não podemos encontrar
nada que pertença à sensação
102
”. “A forma pura de intuições sensíveis em geral,
na qual todo múltiplo dos fenômenos é intuído em certas relações, será encontrada
a priori na mente
103
”. Ela não pode, portanto, ser abstraída da experiência.
As formas a priori puras da intuição são espaço e tempo; formas que, como
dissemos, antecedem todo e qualquer ato de pensamento. “Espaço e tempo são
intuições puras que contêm a priori a condição da possibilidade dos objetos como
fenômenos, e a sua síntese nos mesmos possui validade objetiva
104
”. Sua função é
“coordenar os objetos da sensibilidade antes da sua unificação num juízo pelos
conceitos do entendimento. Para fazê-lo, eles devem ser distintos dos conceitos
espontaneamente produzidos do entendimento, embora organizem, ao mesmo
tempo, a matéria da sensibilidade de um modo que se harmoniza com eles
105
”.
Espaço e tempo são, doravante, “aspectos da receptividade ou passividade da
mente, em contraste com o trabalho ativo e espontâneo do entendimento que, não
obstante, organizam a matéria da sensação
106
:
Ora, espaço e tempo contêm um múltiplo da intuição pura a priori e, não obstante,
fazem parte das condições da receptividade da nossa mente, unicamente sob as
quais esta pode acolher representações de objetos que, portanto, têm sempre que
afetar o conceito de tais objetos. Todavia, a espontaneidade do nosso pensamento
exige que tal múltiplo seja primeiro e de certo modo perpassado, acolhido e ligado
para que se faça disso um conhecimento. Denomino esta ação síntese
107
.
Esta síntese é feita por meio de um determinado número de conceitos a priori
puros espontaneamente produzidos no entendimento e estes conceitos são
denominados categorias. Elas são as formas de acordo com as quais os objetos da
experiência são estruturados e ordenados. As categorias são, deste modo,
... o elenco de todos os conceitos puros originários de síntese que o entendimento
contém em si a priori e somente devido aos quais ele é, além disso, um
entendimento puro na medida em que unicamente por tais conceitos pode
compreender algo do múltiplo da intuição, isto é, pensar um objeto dela
108
.
As categorias são separadas em quatro grupos.
102
Kant, Immanuel, Crítica da Razão Pura, segunda edição (1787), p. 72.
103
Ibidem, p. 72.
104
Ibidem, p. 116.
105
Caygill, Howard, Dicionário Kant, p. 123.
106
Ibidem, p. 123.
107
Kant, Immanuel, Crítica da Razão Pura, segunda edição (1787), p. 107.
108
Ibidem, p. 109.
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69
Da quantidade: unidade, pluralidade, totalidade.
Da qualidade: realidade, negação, limitação.
Da relação: inerência, subsistência (substantia et accidens), causalidade e
dependência (causa e efeito), comunidade (ação recíproca entre agente e paciente).
Da modalidade: possibilidade / impossibilidade, existência / não-ser, necessidade /
contingência
109
.
Após terem sido feitas estas considerações acerca de algumas características
da teoria de Kant, é hora de voltamos nossas atenções para a comparação desta
teoria com a física moderna, tal como formulada por Heisenberg. De acordo com
Heisenberg, pode-se dizer logo de início que o conceito central de “julgamentos
sintéticos a priori” da teoria kantiana é aniquilado pelas descobertas do nosso
século:
A teoria da relatividade e a teoria quântica revelaram certas estruturas básicas da
natureza que eram desconhecidas até então. Na teoria da relatividade trata-se da
estrutura do espaço e tempo; na teoria quântica com as conseqüências do fato de que
toda medição no campo atômico requer um ato de intervenção
110
.
Einstein foi, como afirma Heisenberg, o primeiro a atacar a suposição
fundamental da física clássica de que existe um mundo objetivo que segue seu
rumo no tempo e no espaço absolutos, isto é, em um tempo e espaço que são os
mesmos para tudo que existe no universo, independentemente da posição e do
movimento do observador
111
. Os conceitos fundamentais de tempo e espaço da
teoria relativística e a relação destes com a matéria trazem uma profunda mudança
em relação à mecânica newtoniana, de tal modo que a idéia de objetos
completamente independentes do modo como os observamos parece não mais
corresponder à realidade. Einstein verifica que “dois eventos que parecem
simultâneos a um observador em repouso não são necessariamente simultâneos
para um observador em movimento” de maneira que, ao penetrarmos em domínios
que envolvem velocidades enormes, “verificamos, por exemplo, que o relógio de
um observador em movimento parece andar mais devagar que o de um observador
109
Ibidem, p. 109.
110
Heisenberg, Werner, “Planck’s Discovery and the Philosophical Problems of Atomic Theory”
(1958), In: Across the Frontiers, p. 19.
111
Heisenberg, Werner, Recent Changes on the Foundations of Exact Science” (1934), In:
Philosophic Problems of nuclear Science, p. 12.
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70
em repouso
112
”. Em outras palavras, diferentes observadores vão medir, para um
mesmo evento, intervalos de tempo diferentes
113
. “A teoria da relatividade revelou,
assim, características inteiramente novas do espaço e tempo, que não podem ser
vistas nas formas a priori da intuição de Kant
114
”.
Ainda no que concerne à teoria da relatividade e à critica por ela feita ao
pensamento kantiano, Heisenberg comenta:
Não dúvidas de que a teoria da relatividade mudou profundamente nossa visão a
respeito da estrutura de espaço e tempo. O mais excitante destas mudanças é, talvez,
não sua natureza especial, mas o fato de que elas foram possíveis. A estrutura de
espaço e tempo que foi definida por Newton como a base da sua descrição
matemática da natureza era simples e consistente e correspondia de modo muito
próximo aos conceitos espaço e tempo na vida diária. Esta correspondência era de
fato tão próxima que as definições de Newton poderiam ser consideradas
formulações matemáticas precisas destes conceitos. Antes da teoria da relatividade,
parecia completamente óbvio que eventos poderiam ser ordenados no tempo
independentemente da sua localização no espaço. Nós sabemos agora que esta
impressão é criada na vida diária pelo fato de que a velocidade da luz é muito mais
alta do que qualquer outra velocidade que ocorra na nossa experiência prática; mas
esta restrição, é claro, não era percebida naquele tempo. E mesmo se nós
conhecemos a restrição agora nós não conseguimos imaginar muito bem que a
ordem temporal dos eventos deva depender da sua localização
115
.
Embora a filosofia de Kant tenha apontado para o fato de que os conceitos de
espaço e tempo pertencem à nossa relação com a natureza, e não à natureza em si,
de que nós não podemos descrever a natureza sem usar estes conceitos, acreditava-
se, na medida em que eles eram a condição da experiência, que eles não poderiam
ser afetados por novas experiências. Quanto a isso, Heisenberg reitera:
As teorias físicas podem ter uma estrutura diferente da física clássica apenas quando
seus objetivos já não são aqueles das percepções sensoriais imediatas, isto é, apenas
quando eles deixam o campo da experiência comum dominada pela física clássica.
É desta forma que a física moderna tem definidos de modo mais acurado os limites
da idéia dos a priori nas ciências exatas do que era possível no tempo de Kant
116
.
112
Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo, p. 117.
113
Cabe ressaltar que embora a teoria da relatividade especial introduza um elemento de
subjetividade, ela não abole a separação radical entre objeto e sujeito, uma vez que as
relativizações do tempo-espaço são englobadas por um critério de objetividade: embora as
medidas de tempo e espaço dependam do observador, diferentes observadores podem calcular as
medidas uns dos outros se dispuserem dos dados necessários. De fato, Einstein acreditava que toda
teoria fundamental deveria permitir a descrição dos objetos e processos individuais
independentemente dos atos e condições de observação.
114
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 76.
115
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 114-115.
116
Heisenberg, Werner, “Recent Changes in the Foundations of Exact Science” (1934), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 22-23.
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A necessidade de uma mudança nos conceitos de espaço e tempo foi, por
isso, uma grande surpresa, e os cientistas aprenderam pela primeira vez, de acordo
com Heisenberg, o quão cautelosos deveriam ser ao aplicar conceitos da vida diária
a experiências refinadas como as da ciência moderna experimental:
“Mesmo formulações consistentes e precisas destes conceitos [espaço e tempo] na
linguagem matemática na mecânica de Newton ou a sua análise cuidadosa na
filosofia de Kant não ofereceram proteção contra a análise crítica possibilitada pelas
medições extremamente acuradas [da física moderna]
117
”.
Prometemos, ao princípio deste capítulo, mostrar como a obra de
Heisenberg, intrinsecamente ligada à história da física quântica, dialogou com a
tradição filosófica e científica. Nesse diálogo tivemos de perscrutar a relação de
seu pensamento com “Os tempos modernos” aquilo a que nos referimos como
“crítica à modernidade”. Nos guiamos, isto é certo, por aqueles problemas que nos
pareceram mais relevantes ao entendimento sobre a reflexão filosófica de
Heisenberg. Sabemos, entretanto, que o diálogo que manteve com a tradição se
estende a outro período da história do pensamento. No próximo capítulo,
tentaremos expor como alguns problemas da física quântica dialogam com a
tradição filosófica grega no pensamento científico-filosófico de Heisenberg.
117
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 115.
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4
Heisenberg e os Gregos
Viemos trabalhando nesta dissertação no sentido de empreender uma leitura
do diálogo que Heisenberg estabeleceu com a tradição filosófica e científica. Se,
no capitulo anterior, detivemo-nos naquilo que recebeu, de seu próprio punho, o
nome de “Tempos Modernos”, no presente momento nos impomos a tarefa de
percorrer de modo ora geral , ora específico, o diálogo que Heisenberg estabeleceu
com a tradição filosófica grega. Essa necessidade que nos impomos parece
bastante acertada caso se considere que o entrecruzamento entre o pensamento de
Heisenberg e a tradição filosófica grega é uma constante em suas obras. Não
somos os primeiros, nem seremos os últimos, a insistir nisto. Entre os fundadores
da mecânica quântica, comenta Chevalley, Heisenberg figura como aquele que
estabeleceu as mais profícuas relações com o pensamento grego.
Tais relações, quase não carece que iteremos, são bastante complexas. Elas
se explicam, até certo ponto, pelo grande apreço que Heisenberg manteve pelos
gregos, desde muito jovem. É curioso notar que seu pai, August Heisenberg, fora
um especialista em filologia grega medieval e moderna
1
, e seu avô materno, o Dr.
Nikolaus Wecklein, uma grande autoridade em tragédia grega
2
. Talvez isto
esclareça, em alguma medida, por que, desde seus anos de estudante, Heisenberg
lia (no original) Platão, Aristóteles e os pré-socráticos, uma leitura que continua
durante toda sua carreira científica
3
. Por si só, esses fatos não são suficientes para
dar conta do que, mais tarde, Heisenberg viria a fazer em sua obra. Ainda que não
possamos afirmar, tomando por base a sua biografia, que Heisenberg desde
muito estivesse preocupado em estabelecer uma relação tão forte entre o
pensamento grego e seu trabalho científico, parece-nos relevante o suficiente
mencionar esses fatos.
1
Cassidy, David C., Uncertainty, The Life and science of Werner Heisenberg, p. 3: “Após uma
década do nascimento de Heisenberg, ele [August Heisenberg] chegaria ao topo da hierarquia
acadêmica da Alemanha como o único professor completo em grego medieval e moderno”.
2
Ibidem, p. 8: “Ele [Nikolaus Wecklein] escreveu uma dissertação sobre os sofistas gregos,
qualificado como um university lecturer com um trabalho em gramática grega, e se tornou uma
autoridade líder em tragédia grega”.
3
Chevalley, Catherine, “La Physique Quantique et les Grecs”, In : Nos Grecs et Leurs Modernes
/ textes réunis par Barbara Cassin,p. 169.
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Muito interessante nos parece, também, o que nos informa Heisenberg a
esse respeito em seus primeiros encontros com os átomos”. Diz ele que esses
encontros foram, quase que simultaneamente, encontros com a filosofia grega.
Deste mesmo período merecem destaque como atestam suas memórias de
1969 e outros escritos alguns encontros com a teoria atômica em meados de
1919-1920, período em que Heisenberg ainda estava na escola. O primeiro deles
envolvia uma ilustração encontrada em seu manual de física, um livro
“francamente bom para o resto, mas no qual, por razões evidentes, a física mais
moderna era tratada como enteada indesejável
4
”. O desenho pretendia representar
uma molécula de gás e sua função era mostrar o princípio básico da combinação de
duas substâncias uniformes em uma outra substância uniforme, isto é, em um
composto químico. “A melhor explicação para este processo, segundo o livro,
partia do pressuposto de que as partículas mais ínfimas de cada elemento, ou
átomos, combinavam-se em pequenos grupos chamados moléculas
5
”. Na
ilustração, os átomos eram unidos por ganchos e colchetes através dos quais eles
podiam prender-se uns aos outros. Heisenberg se viu bastante incomodado com a
maneira utilitária e superficial através da qual os átomos foram retratados:
Eu considerava esta abordagem totalmente sem sentido. Para mim, ganchos e
colchetes eram estruturas arbitrárias, cujas formas podiam ser alteradas ao bel-
prazer de cada um, de modo a adaptá-los a diferentes utilidades. No entanto, os
átomos e sua combinação em moléculas deveriam ser regidos por rigorosas leis
naturais. Isso para mim não deixava margem alguma para intervenções humanas,
como ganchos e colchetes
6
.
Concomitantemente a esta situação, deparamo-nos com a primeira leitura que
Heisenberg fez do Timeu de Platão. Àquela altura, entre maio e junho de 1919,
Heisenberg estava liberado dos afazeres escolares por conta do serviço militar:
Para me pôr em dia com os trabalhos escolares, eu me recolhia ao telhado do
Seminário, munido de uma edição escolar dos Diálogos de Platão em grego. (...)
Numa dessas manhãs (...) cheguei ao Timeu, ou melhor, aos trechos em que Platão
discute as partículas mais diminutas da matéria. (...) Percorri laboriosamente o texto
embora ele me parecesse absurdo. Dizia-se que as partículas mais diminutas da
matéria eram triângulos retângulos, que, depois de se combinarem aos pares,
formando triângulos isósceles ou quadrados, juntavam-se nos corpos regulares da
geometria dos sólidos: cubos, tetraedros, octaedros e icosaedros. Dizia-se que esses
4
Heisenberg, Werner, A Imagem da Natureza na Física Moderna, p.58.
5
Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo (1969), p. 10.
6
Ibidem, p. 10.
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quatro corpos eram a base dos quatro elementos terra, fogo, ar e água. Eu não
conseguia entender se esses símbolos regulares associavam-se aos elementos
meramente como símbolos por exemplo o cubo com o elemento terra, de modo a
representar a solidez e o equilíbrio deste elemento - , ou se realmente se supunha
que as menores partículas da terra tinham o formato de cubos. Como quer que fosse,
todas essas idéias me pareceram uma especulação desvairada, talvez perdoável por
faltar aos gregos o necessário conhecimento empírico. Não obstante, entristeceu-me
ver um filósofo da agudeza crítica de Platão sucumbir a tais fantasias. Busquei um
princípio que pudesse ajudar-me a encontrar alguma justificativa para a especulação
platônica, mas, por mais que tentasse, não consegui descobrir nenhum. Mesmo
assim, fiquei extasiado com a idéia de que as partículas mais diminutas da matéria
deveriam reduzir-se a uma forma matemática. Afinal, qualquer tentativa de
desenredar a densa trama dos fenômenos naturais dependia da descoberta de formas
matemáticas; contudo, continuou a ser incompreensível para mim por que Platão
escolhera os corpos regulares da geometria dos sólidos. Eles não pareciam ter
nenhum valor explicativo
7
.
O diálogo de Platão parecia não ter, inicialmente, relevância alguma para a
ciência moderna. A compreensão das questões que Heisenberg se colocara, quando
destes primeiros encontros com a teoria atômica, teve início a partir de uma
conversa entre ele e dois amigos, Kurt Pflügel e Robert Honsell. Acompanhando
de perto suas memórias, confirma-se o amigo Robert como aquele que o ajudara a
compreender o problema da representação dos átomos. É nesta mesma conversa
que Heisenberg começa a vislumbrar um argumento que tornava plausíveis os
sólidos platônicos: “os átomos provavelmente não são coisas. Era isso, certamente,
que Platão tentara dizer no Timeu e, vistas sob esse prisma, suas especulações
sobre os corpos regulares começavam a fazer sentido para mim
8
”. Como podemos
perceber, Heisenberg no Timeu de Platão, bem cedo, um argumento para
desqualificar os ganchos e cravos utilizados numa representação dos átomos
encontrada em seu manual de física.
As conexões entre Heisenberg e os gregos, como não é difícil suspeitar, não
se esgotam no que acabamos de descrever. Afastando-nos um pouco de suas
memórias, as quais nos interessam sobremaneira, podemos abordar essas conexões
de modo mais geral.
Devemos começar afirmando que, para Heisenberg, é nos gregos que estão
as raízes da ciência atômica. Em suas palavras:
Muitas disciplinas científicas se encontram estreitamente ligadas, nos seus
fundamentos, à física atômica e conduzem, por isso, a questões teóricas análogas às
7
Ibidem, p. 16-17.
8
Ibidem, p. 20.
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da física do átomo. Todo o edifício da Química se levanta sobre os alicerces da
Física atômica; a Astronomia moderna está estritamente ligada com ela e, sem
Física atômica, não pode progredir; até da Biologia se vão lançando pontes para a
física atômica. Nos últimos decênios, o parentesco entre as diferentes ciências tem-
se tornado muito mais perceptível do que a princípio. Em muitos pontos se
reconhecem os sinais da origem comum e esta origem comum é, em última análise,
o pensamento antigo
9
.
Mais do que isso, o pensamento grego não tem unicamente a função de
representar o início de um processo histórico ao qual Heisenberg se refere
repetidas vezes em seus textos. Referir-se à filosofia grega é especialmente
importante na medida em que ele reconhece nela uma certa concepção de
inteligibilidade à qual é preciso retornar:
uma inteligibilidade não tecnológica, mas especulativa, a busca de uma
compreensão (...) de princípios e, mais especificamente, a busca de uma
compreensão da variedade qualitativa do mundo aquela mesma que a física
quântica deixa clara de um modo completamente novo
10
.
Se, de acordo com Heisenberg, a aparição da física quântica tornou
obrigatória a recolocação do significado da palavra “compreender”
11
, fazia-se
necessário reencontrar a inspiração dos grandes filósofos da natureza. A filosofia
cartesiana havia buscado encontrar um conhecimento fundamental a partir de uma
divisão essencial entre sujeito e objeto
12
, cujo resultado é o discurso atual sobre a
ciência que é, por sua vez, um discurso sobre a tecnologia. Na ciência de Newton,
Os processos simples da natureza eram elucidados por meio de experimentos
convenientes e as leis assim descobertas eram colocadas em uma linguagem
matemática. Este método podia ser aplicado a problemas individuais e por
esta razão não havia mais a questão de compreender um todo singular
interconectado, mas a de uma análise detalhada de várias pequenas conexões
específicas
13
.
A ciência, tal como vemos nos gregos, por outro lado, é uma ciência de
princípios ou da substância, que havia essencialmente “tentado encontrar ordem na
9
Heisenberg, Werner, “A Imagem da Natureza na Física Moderna” (1953), In: A Imagem da
Natureza na Física Moderna, p. 57.
10
Chevalley, Catherine, “La Physique Quantique et les Grecs”, In : Nos Grecs et Leurs
Modernes / textes réunis par Barbara Cassin,p. 152.
11
Ver: Heisenberg, Werner, “On the History of the Physical Interpretation of Nature” (1932), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 31.
12
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy, p. 66.
13
Heisenberg, Werner, “On the unity of the Scientific Outlook on Nature” (1941), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 79.
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variedade infinita das coisas e eventos pela procura de um princípio unificador
fundamental
14
”.
O primeiro fenômeno físico que atraiu a atenção do pensamento grego sistemático
foi aquele da ‘substância’, do ‘último’ elemento nas mutações de todos os
fenômenos. Na tese de Tales
15
, aquela de que o mundo consiste de uma substância
fundamental que é a água, podemos ver o conceito de matéria’. Bem no início da
pesquisa, nenhuma das palavras da oração antecedente podia, naturalmente, ter um
sentido preciso. Nenhuma das palavras ‘substância fundamental’, ‘água’ ou
‘consistir’ tinha um campo de aplicação definido ou um sentido não ambíguo, e foi
justamente este fato que deu completa liberdade à pesquisa futura. Nenhum
sacrifício havia sido feito que pudesse limitar uma compreensão unificada
16
.
Ora, para Heisenberg,
Uma das mais importantes características do desenvolvimento e da análise da física
moderna é a experiência de que os conceitos da linguagem natural, vagamente
definidos como são, parecem ser mais estáveis na expansão do conhecimento do que
os termos precisos da linguagem científica, derivados como uma idealização a partir
de grupos limitados de fenômenos. Isto de fato não é surpreendente uma vez que os
conceitos da linguagem natural são formados pela conexão imediata com a
realidade; eles representam a realidade. É verdade que eles não são muito bem
definidos e podem, conseqüentemente, também sofrer mudanças no curso dos
séculos, assim como o fez a própria realidade, mas eles nunca perdem a conexão
imediata com a realidade
17
.
A ciência, se não quiser se afastar da sua vocação inicial, deve procurar por
“uma compreensão unificada do mundo
18
tarefa de que se ocupava a filosofia
antiga. Esta era, para Heisenberg, a intenção da física atômica e da filosofia
atômica desde o seu princípio: encontrar leis fundamentais a partir das quais a
natureza pudesse ser compreendida
19
. Torna-se claro, assim, um dos motivos pelos
quais Heisenberg acha interessante seguir uma a uma as idéias que levaram a
14
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy, p. 66.
15
Heisenberg se refere a Tales de Mileto, tradicionalmente considerado como o mais antigo
filósofo grego ou investigador da natureza das coisas como um todo. Ver Kirk, Raven &
Schofield, Os Filósofos Pré-socráticos, História Crítica com Seleção de Textos, p. 73.
16
Heisenberg, Werner, “On the History of the Physical Interpretation of Nature” (1932), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 28. Note-se que substância, usada aqui por
Heisenberg, corresponde aparentemente à palavra ousia, que provavelmente jamais foi usada pelos
pré-socráticos. Mas Heisenberg segue a interpretação de Aristóteles, que, na ausência dos textos
desses primeiros filósofos, vigora na tradição da história da filosofia: a de considerar o princípio
ou origem última de todas as coisas, buscada pelos primeiros filósofos, como algo que responde à
noção aristotélica de substância (ousia): um substrato que permanece essencialmente o mesmo,
apesar da variedade de suas afecções ou acidentes. (Cf. Metafísica A, 983b6 ss.)
17
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy, p. 188.
18
Heisenberg, Werner, “Fundamental Problems of Present-day Atomic Physics” (1948), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 95.
19
Heisenberg, Werner, “The Role of Elementary Particle Physics in the Present Development of
Science” (1974), Across the Frontiers, p. 93.
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ciência natural dos gregos à teoria atômica e, com isso, “tentar encontrar uma
conexão com estas idéias fundamentais mesmo nos avanços da mais moderna
física atômica
20
”.
Devemos, contudo, concordar com Chevalley quando ela afirma que à
medida que “avançamos na leitura dos escritos de Heisenberg, esta presença
reincidente dos gregos se torna muito mais difícil de se compreender. Que tipo de
inteligibilidade é preciso fazer renascer
21
”? Parece necessário afirmar, antes de
tudo, que a forma de investigação da natureza que se inicia com os gregos sofre, ao
longo dos tempos, o que Heisenberg chama de um processo de “autolimitação
22
”.
Este processo tem por conseqüência a substituição da compreensão “imediata e
direta”, vista nos pensadores da Grécia Antiga, por uma compreensão “analítica”
das qualidades, que se inicia na Modernidade e se estende aos dias atuais.
Heisenberg expôs esse processo deste modo:
No início da filosofia natural da Jônia vemos a famosa colocação de Tales de Mileto
segundo a qual a água é a origem de todas as coisas. Esta colocação, que nos parece
estranha hoje em dia, contém (...) três idéias fundamentais da filosofia. Primeiro, a
idéia de que uma origem para todas as coisas, depois, que esta questão tem que
ser respondida racionalmente, e em terceiro, que deve (...) ser possível
‘compreender’ o mundo através deste princípio unificado. Estas três observações
tornam-se mais dignas de nota na medida em que naquele tempo não era um passo
óbvio procurar pela origem das coisas num processo material mais do que na vida
em si mesma
23
.
O que se passa em seguida? De acordo com Heisenberg, o sentido do termo
‘substância’
24
, inicialmente bastante vago, foi definido de um modo mais conciso
na pesquisa subseqüente. Ele adquiriu, entrementes, as características de unidade e
indestrutibilidade. Esta modificação do conceito de substância tornou mais
complexa a investigação da natureza. Para tornar inteligíveis os fenômenos
mutáveis do mundo, fazia-se necessário, a partir de então, admitir: ou que havia
várias substâncias fundamentais cuja mistura ou separação eram responsáveis pelas
20
Heisenberg, Werner, “Fundamental Problems of Present-day Atomic Physics” (1948), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 96.
21
Chevalley, Catherine, “La Physique Quantique et les Grecs”, In : Nos Grecs et Leurs
Modernes / textes réunis par Barbara Cassin,p. 171.
22
Heisenberg, Werner, “On the History of the Physical Interpretation of Nature” (1932), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 28.
23
Heisenberg, Werner, “Fundamental Problems of Present-day Atomic Physics” (1948), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 96.
24
V. nota 16.
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inumeráveis manifestações na nossa experiência, ou que o conceito de
‘permanência’ estava separado da experiência comum
25
. Em outros termos:
O resultado desta busca foi que, ao fim desse período do pensamento humano,
existiam dois conceitos opostos que exerceram a mais poderosa influência no
pensamento ulterior da filosofia. Tais conceitos foram rotulados “materialismo” e
“idealismo”
26
.
É importante fazermos um breve exame do materialismo na medida em que,
para Heisenberg, é dele que as modernas ciências exatas da natureza a física e a
química herdam sua concepção de átomo: uma concepção que deve, aos seus
olhos, ser reavaliada. O materialismo a que Heisenberg se refere tem seu mais alto
desenvolvimento na teoria de Leucipo e Demócrito. As passagens a seguir parecem
ressaltar os pontos mais relevantes desta teoria para a nossa pesquisa. Encontramos
primeiramente em Aristóteles (citado por Simplício) que:
Demócrito ... designa o espaço pelos seguintes nomes: “o vazio”, “o nada” e o
“infinito”, ao passo que a cada substância individual ele chama “coisa” [i.e.
“nenhuma coisa” sem o adjetivo “nenhuma”
27
], “compacto” e “ser”. Pensa ele que
as substâncias são tão pequenas, que escapam aos nossos sentidos, se bem que
possuam toda a espécie de formas, de feitios e diferenças de tamanho. Deste modo,
consegue ele, a partir delas, como a partir dos elementos, criar, por agregação,
massas perceptíveis à vista e aos demais sentidos
28
.
E, de acordo com Simplício:
Diziam eles Leucipo, Demócrito, Epicuro –, que os primeiros princípios eram
infinitos em número e pensavam que tais princípios eram átomos indivisíveis e
impassíveis devido à sua natureza compacta e sem qualquer vazio no seu interior; é
que a divisibilidade, segundo eles, surge em virtude do vazio existente nos corpos
compostos
29
...
Nas palavras de Heisenberg, a teoria de Leucipo e Demócrito:
Considerava as menores partículas da matéria como ‘aquilo que existe’ no sentido
mais estrito. Tais partículas foram consideradas indivisíveis e imutáveis. Eram
25
Heisenberg, Werner, “On the History of the Physical Interpretation of Nature” (1932), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 28.
26
Werner Heisenberg, “A Descoberta de Planck e os Problemas Filosóficos da Física Atômica”
(1958), In: Problemas da Física Moderna, p. 11.
27
Nota da tradução portuguesa: Procuramos, deste modo, traduzir o inglês ... he calls ‘thing’ [i.e.
‘nothing’ without no’]” c.f., no texto grego, oudéni ‘não coisa; nenhuma coisa. Nadacom déni
‘coisa’.
28
Aristóteles Sobre Demócrito ap. Simplicium de caelo 295, 1, Apud Kirk, Raven & Schofield, Os
Filósofos Pré-socráticos, História Crítica com Seleção de Textos, p. 438.
29
Simplício de caelo 242, 18, Apud Kirk, Raven & Schofield, Os Filósofos Pré-socráticos,
História Crítica com Seleção de Textos, p. 438.
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eternas e unidades últimas; por isso eram chamadas de átomos e não necessitavam
nem tinham qualquer explicação ulterior. Não possuíam outras propriedades que
não as geométricas. Segundo os filósofos, os átomos não eram dotados de uma
forma definitiva. Estavam separados entre si pelo espaço vazio e, graças às
diferentes posições e movimentos diversos dos átomos. (...) Esses átomos
constituíam, portanto, o verdadeiro núcleo objetivamente real da matéria e assim de
todos os fenômenos
30
.
Assim, a partir do século XVIII, percebeu-se que as experiências químicas
podiam ser organizadas e interpretadas satisfatoriamente por meio da hipótese
atômica herdada da Antiguidade:
Daqui resultou a imagem simplista que o materialismo do século XIX tinha do
mundo: os átomos, última realidade imutável, movem-se no espaço e no tempo e,
graças à sua disposição e movimentos recíprocos, produzem os mais variados
fenômenos do nosso mundo sensível
31
.
Temos, portanto, que, no século XIX, os átomos da química e seus
constituintes, as partículas elementares, eram considerados os últimos blocos
indivisíveis da matéria, seu substrato real
32
. Mas, pergunta-se Heisenberg: A teoria
atômica de Demócrito levava a uma compreensão das qualidades da matéria? “Em
que sentido a teoria ‘explicava’ o comportamento geométrico dos corpos
33
”?
A este respeito, Heisenberg julga ser necessário fazer recurso à distinção
entre dois tipos de conhecimento, dianoia e episteme, feita por Platão no Livro VI
da República (511e)
34
. Examinaremos, pois, esta referência, à luz da qual
30
Heisenberg, Werner, “A Descoberta de Planck e os Problemas Filosóficos da sica Atômica”
(1958), In: Problemas da Física Moderna, p. 11.
31
Heisenberg, Werner, “A Imagem da Natureza na sica Moderna” (1953), In: A Imagem da
Natureza na Física Moderna, p.57.
32
Heisenberg, Werner, “A Descoberta de Planck e os Problemas Filosóficos da sica Atômica”
(1958), In: Problemas da Física Moderna, p. 13.
33
Werner Heisenberg, “On the History of the Physical Interpretation of Nature” (1932), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 31.
34
Chevalley aponta uma passagem diferente desta, a saber a 508e ao fim do livro VI. Ver a este
respeito a consideração feita na nota 62 em Chevalley, Catherine, “La Physique Quantique et les
Grecs”, In : Nos Grecs et Leurs Modernes / textes réunis par Barbara Cassin, p. 172 : “Na
República, VI, 511 d-e, Platão distingue não exatamente a episteme, mas a noesis da dianoia, da
pistis e da eikasia. Para compreender a interpretação de Heisenberg, podemos nos reportar à
passagem 508e, onde Platão associa episteme à verdade, em oposição à opinião”. Pensamos que,
mais exatamente, Heisenberg, referindo-se de memória ao final do livro VI da República, funde
essa passagem com a 534a do livro VII, onde o termo episteme é reservado por Platão ao estado de
alma que no final do livro VI é chamado de noesis (alcançada através da dialética), que ele
distingue da dianoia (correspondente à apreensão intelectual própria da geometria e disciplinas
afins). O termo noesis, por sua vez, é, em 534 a, o nome comum que abarca os dois estados de
alma correspondentes à apreensão dos inteligíveis (noesis e dianoia de 511e, episteme e dianoia de
534a). Essa falta de rigor no emprego de termos é constante em Platão, que, em várias ocasiões, ao
longo dos diálogos, critica a preocupação excessiva dos sofistas com o uso rigoroso das palavras; o
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Heisenberg faz um reexame da ciência e da filosofia modernas. O contexto é a
passagem da linha dividida. Uma linha é dividida em duas partes, cuja
desigualdade simboliza que o mundo visível tem um grau de realidade mais baixo
de realidade e verdade que o inteligível. Cada parte é então subdividida na mesma
proporção em que foi dividida a linha como um todo. As quatro seções
correspondem quatro estados da mente, cada um mais claro e certo que o
anterior
35
. Cito, então, a passagem da República a que Heisenberg parece se referir:
E agora você pode tomar, como correspondente a estas quatro seções, estes quatro
estados da mente: a inteligência (noesis) no mais alto, o pensamento (dianoia) no
segundo, a (pistis) no terceiro, e no último a suposição (eikasia). A estes você
pode arranjar como a termos em uma proporção, atribuindo a cada um m grau de
clareza e certeza correspondente à medida na qual seus respectivos objetos possuem
verdade e realidade
36
.
Sigamos, enfim, com a descrição da passagem por Heisenberg
37
.
Ele [Platão] distingue quatro estágios da percepção: o estado mais alto é chamado
episteme e corresponde ao saber das coisas reais, à percepção e ao reconhecimento
da sua natureza, como descrito na analogia. O segundo estágio é chamado
pensamento discursivo, dianoia e pode ser alcançado por meio do estudo das
ciências
38
. Os dois últimos estágios se relacionam com os dois primeiros como a
crença o faz com a compreensão. Elas são chamadas fé e crença (pistis) e suposição
(eikasia)
39
.
Heisenberg está, como dissemos, especialmente interessado na distinção
platônica entre os dois primeiros estágios da percepção, episteme e dianoia. Ele os
define desta forma:
importante é saber, no contexto, a que elas se referem. (Cf., por exemplo, Mênon 75 e, Timeu 28
b3-4, e sobretudo Teeteto 184 c-d).
35
Plato, The Republic, Translated with introduction and notes by Francis Mcdonald Cornford, p.
221.
36
Plato, The Republic, Translated with introduction and notes by Francis Mcdonald Cornford, VI
(511e), p. 226.
37
V. nota 33.
38
Os leitores de Platão podem estranhar que Heisenberg se refira à dianoia como um estado que
pode ser alcançado "por meio do estudo das ciências", uma vez que o texto de República VI refere-
se explicitamente apenas à geometria e ciências afins (aritmética, astronomia, harmonia), isto é, às
disciplinas que mais tarde serão chamadas matemáticas. Cabe-nos dizer, no entanto, que o uso da
palavra ciência parece justificado pela interpretação de Heisenberg, que as ciências atuais como
sendo fundamentalmente matemáticas e, sobretudo, como utilizando o método próprio das
matemáticas, tal como descrito por Platão.
39
Werner Heisenberg, “On the History of the Physical Interpretation of Nature” (1932), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 32.
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Episteme é precisamente aquele estado da consciência no qual se pode parar e para
além do qual não é preciso mais investigar. Dianoia é a habilidade de analisar em
detalhes o resultado da dedução lógica. É também aparente em Platão que apenas a
episteme, o primeiro tipo de conhecimento, fornece uma conexão com o verdadeiro,
o mundo essencial, ao passo que embora a dianoia renda de fato conhecimento, este
é um conhecimento desprovido de valores
40
.
De acordo com Heisenberg, Platão explica, detalhadamente, a natureza da
dianoia, este nível de percepção e compreensão mais baixo que a episteme. Ele
descreve também como podemos chegar a este estado de percepção por meio de
um estudo da natureza: “É importante e característico que Platão ressalte apenas
este aspecto da ciência [dianoia], aquele que nós podemos chamar ocasionalmente
agora de o seu aspecto ‘formal’
41
”. As leis matemáticas subjacentes aos fenômenos
naturais parecem ser, para Platão, de primeira importância se comparadas com as
variadas mudanças pelas quais passam estes fenômenos. Os fenômenos são, na
pesquisa, adjuntos sem relevância. E a ciência não deve ter outra tarefa senão a
procura das leis eternas dos fenômenos em constante mutação. É por esta razão
que, aos olhos de Heisenberg, Aristóteles tinha uma melhor teoria da ciência que
Platão
42
.
Mas em que esta distinção (dianoia e episteme) é útil para a questão a que se
coloca Heisenberg: a da possibilidade de uma ‘explicação’ física da natureza? Ora,
para ele, é precisamente deste modelo de ciência que parte a física abstrata de
Galileu. Cito Heisenberg:
No lugar de uma preocupação com os processos da natureza como ela nos rodeia,
ele [Galileu] está ocupado com a formulação matemática de um limite a que se pode
chegar apenas sob condições extremas. A possibilidade de formular leis a partir dos
processos naturais de uma maneira simples e precisa é alcançada em se sacrificando
a aplicação destas leis de modo imediato e direto aos eventos naturais (...) Esta parte
do desenvolvimento é finalmente e consistentemente concluída pelo gênio de
Newton
43
.
Devemos retomar, neste ponto, a questão acerca da mudança na noção de
‘compreensão’ da natureza que se produz no período inaugurado pela ciência de
40
Heisenberg, Werner, “Goethe’s View of Nature and the World of Science and Technology”
(1967), In: Across the Frontiers, p. 137.
41
Heisenberg, Werner, “On the History of the Physical Interpretation of Nature” (1932), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 33.
42
Chevalley, Catherine, “La Physique Quantique et les Grecs”, In : Nos Grecs et Leurs
Modernes / textes réunis par Barbara Cassin, p. 171.
43
Heisenberg, Werner, “On the History of the Physical Interpretation of Nature” (1932), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 34-35.
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Galileu e Newton, a que fizemos referência no capítulo passado: uma modificação
descontínua do conceito de natureza, ou, em outras palavras, uma transformação da
posição do olhar do homem sobre a natureza.
Após o estabelecimento da mecânica newtoniana, inaugura-se um período
histórico no qual os métodos desta mecânica foram sendo aplicados com sucesso a
campos cada vez mais vastos da natureza. De acordo com Heisenberg,
Tentou-se, por meio de experiências, isolar determinadas partes do processo natural,
observá-las objetivamente e compreender sua regularidade. Procurou-se, em
seguida, formular matematicamente as relações descobertas e chegar a “leis” de
validade incondicionada em todo o universo; assim se conseguiu, finalmente,
mediante a técnica, o poder de aplicar aos nossos fins as forças da natureza. (...) À
medida que aquele tipo de ciência progredia com êxito no seu caminho, ultrapassava
progressivamente as fronteiras do domínio da experiência quotidiana e penetrava
em campos remotos da natureza, só exploráveis mediante a técnica, que se ia
desenvolvendo em ligação com a ciência
44
.
O conceito de natureza, que antes se referia aos objetos sobre os quais temos
conhecimento por meio da experiência ordinária, passou a abranger todos os
campos da experiência aos quais o homem tinha acesso por meio da técnica
45
. E o
que era antes uma “representação destinada a transmitir uma imagem da natureza
tanto quanto possível viva e sensível
46
” adquiriu o sentido de uma descrição
matemática. A atitude humana em relação à natureza mudou de uma atitude
contemplativa para uma pragmática
47
. Quanto a isso Heisenberg reitera:
Esta tendência geral da nova ciência também prenuncia um traço característico (...),
aquele da ênfase no quantitativo. A demanda por condições experimentais precisas,
medições acuradas, em terminologia exata e sem ambigüidades e uma apresentação
matemática dos fenômenos idealizados determinou o aspecto desta ciência da
natureza, e trouxe-lhe o nome de “ciência exata”
48
.
Este é o processo de “autolimitação” a que nos referimos anteriormente que
determina o caminho histórico da física, segundo uma primazia crescente da
dianoia e, simultaneamente, um distanciamento progressivo da episteme. A
44
Heisenberg, Werner, “A Imagem da Natureza na sica Moderna” (1953), In: A Imagem da
Natureza na Física Moderna, p. 9.
45
A questão da técnica, a que não poderemos nos ater no presente trabalho, é cuidadosamente
examinada por Heisenberg nos textos que compõem a coletânea editada sob o nome de A
Imagem da Natureza na Física Moderna.
46
Heisenberg, Werner, “A Imagem da Natureza na sica Moderna” (1953), In: A Imagem da
Natureza na Física Moderna, p. 10.
47
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 184-185.
48
Heisenberg, Werner, “Scientific and Religious Truth” (1973), In: Across the Frontiers, p. 216-
217.
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história da física moderna é, para Heisenberg, sob a luz da distinção platônica entre
os dois primeiros tipos de conhecimento, o pôr-se em evidência de uma relação de
“exclusão mútua
49
” cada vez mais nítida entre estas duas formas de compreensão:
Embora elas sejam, em um certo sentido, interdependentes uma da outra, elas estão,
no entanto, uma em relação à outra, em uma relação de exclusão mútua. À medida
que novos campos da física se abrem, à química e à astronomia, nós substituímos
mais e mais facilmente o termo “interpretação da natureza” [Naturerklärung] por
aquele, mais modesto, de “descrição da natureza” [Naturbeschreibung]. Torna-se
cada vez mais claro que, ao curso desta evolução, nós temos nos ocupado não de um
conhecimento imediato e direto, mas de uma compreensão analítica
50
.
Ora, as leis de Newton representavam, como dissemos, uma idealização à
qual se havia chegado por meio da limitação do mundo dos fenômenos às partes
que podiam ser organizadas por meio dos conceitos de espaço, tempo, etc. A física
clássica havia operado uma transformação na noção de compreensão, que se tornou
uma compreensão analítica dos fenômenos ao invés de uma busca por princípios, e
representava, ao mesmo tempo, “a mais clara expressão do conceito de matéria
(Dingbegriff
51
)
52
”.
O desenvolvimento bem sucedido da mecânica por Newton e da ótica e da
eletricidade por Maxwell, bem como os grandes desenvolvimentos da química
voltaram as atenções dos físicos novamente para o problema dos átomos do modo
como os Gregos haviam-no colocado. Assim como na filosofia de Demócrito, as
qualidades da matéria foram consideradas simples aparência: o aroma e a cor, a
temperatura e a tenacidade não eram verdadeiras propriedades da matéria, mas
resultados das ações recíprocas entre estas e os nossos sentidos. Com as novas
ferramentas da ciência moderna os diferentes estados da matéria foram
‘explicados’ pela suposição de que
Os átomos estão numa ordem estrita no sólido, de que eles movem fortuitamente
embora estejam firmemente compactados nos líquidos e de que eles se movem
rapidamente como um enxame de abelhas com consideráveis distâncias
49
Heisenberg, Werner, “On the History of the Physical Interpretation of Nature” (1932), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 34.
50
Heisenberg, Werner, “On the History of the Physical Interpretation of Nature” (1932), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 34.
51
A melhor tradução para Dingbegriff é, de acordo com Chevalley, o termo “coisa”. Ver
Chevalley, Catherine, “Physical Reality and Closed Theories in Werner Heisenberg’s Early
Papers” In : Theory and Experiment : Recent Insights and New Perspectives on Their
Relation / edited by D. Batens and J. P. Bendegen, p.165.
52
Heisenberg, Werner, “Questions of Principle in Modern Physics” (1935), In: Philosophic
Problems of Nuclear Science, p. 44.
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interatômicas no estado gasoso. Conseqüentemente as qualidades de densidade,
forma e mobilidade dos átomos foram reduzidas às configurações geométricas dos
átomos. A estas qualidades foi adicionada, no último século, aquela da temperatura.
(...) As mudanças qualitativas das substâncias ao longo dos processos químicos
podem ser retraçadas a mudanças nas configurações geométricas dos átomos. Os
processos de eletrólise mostraram, ainda, que átomos de eletricidade, prótons e
elétrons, e o estudo da radioatividade mostra que estes átomos de eletricidade
devem ser vistos como as partículas fundamentais de que todos os outros átomos se
constituem.(...) O programa de Demócrito foi assim amplamente realizado, as
qualidades visíveis da matéria poderiam ser retraçadas às propriedades de
configurações dos átomos
53
.
Esta concepção materialista sofreu, no entanto, um forte abalo com o advento
da física atômica moderna: “Constatou-se, de fato, que aquela esperada realidade
objetiva das partículas elementares constitui uma simplificação muito grosseira do
estado real das coisas e que deveria ceder o lugar para concepções muito mais
abstratas
54
”. A novidade fundamental introduzida por Planck reavivou, por assim
dizer, o problema a respeito do qual Platão e Demócrito se opuseram há uns vinte e
cinco séculos atrás
55
. Ainda consoante Heisenberg, “parece que, a despeito do
tremendo sucesso que o conceito de átomo alcançou na ciência moderna, Platão
estava muito mais próximo da verdade acerca da estrutura da matéria do que
estavam Leucipo e Demócrito
56
”.
Mas por que Heisenberg afirma ser a derrota da concepção de átomo da
ciência moderna simultaneamente uma vitória de Platão?
Devemos iniciar dizendo que, de acordo com Heisenberg, a idéia de que a
matéria pudesse ser dividida até que se chegasse às suas menores partes
indivisíveis, os átomos –e seus componentes, os prótons, nêutrons e elétrons- foi
derrotada quando Paul Dirac descobriu o pósitron, em 1928. “Até então, pensava-
se que havia dois tipos de partículas fundamentais, elétrons e prótons, que,
diferentemente da maior parte das outras partículas, eram imutáveis
57
”. O ponto
decisivo não foi, entretanto, a existência de uma nova partícula, pois muitas outras
53
Heisenberg, Werner, “On the History of the Physical Interpretation of Nature” (1932), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 37.
54
Heisenberg, Werner, “A Descoberta de Planck e os Problemas da sica Atômica” (1958), In: A
Problemas da Física Moderna, p. 13.
55
Heisenberg, Werner, “Planck’s Discovery and Atomic Theory” (1958), In: Across the
Frontiers, p. 9-10.
56
Heisenberg, Werner, “Natural Law and the Structure of Matter (1970), In: Across the
Frontiers, p. 105.
57
Heisenberg, Werner, “The Nature of Elementary Particles(1975), In: Physics Today, March
1976, p. 32.
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partículas vieram a ser descobertas sem que os fundamentos da física fossem
abalados, mas sim a descoberta de uma nova simetria
58
. Continuo com Heisenberg:
Ao chamá-las de ‘partículas elementares’ nós estamos querendo dizer que elas não
são compostas de partículas ainda menores, em contraste com os átomos químicos
que podem, obviamente, ser separados em outras partes componentes. Mas isto não
indica de modo algum que estas partículas elementares não possam ser
transformadas. Pelo contrário, o transformar-se é uma característica das partículas
elementares. Um fóton pode transformar-se em um elétron mais um pósitron, e,
reciprocamente, um fóton pode ser originado de um elétron e um pósitron. Mas seria
errado, ou pelo menos, não apropriado, dizer que o fóton é uma combinação de um
elétron com um pósitron. Pois, do mesmo modo, um fóton pode ser produto de um
elétron quando, por exemplo, este elétron salta de um estado a outro. Outrossim, um
próton pode transformar- se em um nêutron e um pósitron, ou um nêutron em um
próton e um elétron. Mas dificilmente pode-se dizer que um próton é feito de um
nêutron e um pósitron. Todas elas são verdadeiras partículas elementares, das quais
a conversibilidade é uma das propriedades características
59
.
Como vimos, as pesquisas físicas haviam indicado que as partículas
elementares podem transformar-se umas nas outras praticamente sem nenhuma
restrição (levando-se em consideração que esta transformação deve respeitar as leis
da conservação da massa, energia, etc.
60
). Conseqüentemente, o conceito de
‘partículas elementares’ sofreu, na física moderna, uma mudança; pode-se dizer
que elas constituem os ‘últimos e indivisíveis blocos de matéria’ apenas em um
sentido muito limitado.
A existência dos átomos, por conseguinte, não constituía, talvez, um fato último,
incapaz de explicação ulterior. Essa existência poderia ser atribuída, como em
Platão, à ão de leis da natureza matematicamente formuláveis, isto é, ao efeito de
simetrias matemáticas
61
.
A característica revelada pelo quantum de ação de Planck levou à idéia de
que a descontinuidade, do mesmo modo que a existência dos átomos, poderia ser
“manifestações conjuntas de uma lei da natureza, de uma estrutura matemática da
natureza, e que a sua formulação poderia conduzir a uma compreensão unificada
da estrutura da matéria, que os filósofos gregos haviam procurado
62
”.
58
Heisenberg, Werner, “Cosmic Radiation and Fundamental Problems in Physics” (1975), In:
Across the Frontiers, p. 57-58.
59
Heisenberg, Werner, Nuclear Physics (1948), p. 57.
60
Ibidem, p. 49.
61
Ibidem, p. 57.
62
Heisenberg, Werner, “A Imagem da Natureza na sica Moderna” (1953), In: A Imagem da
Natureza na Física Moderna, p. 13.
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Cabe-nos, portanto, citar ao menos uma passagem relevante do Timeu de
Platão:
Vamos então distribuir as figuras, cuja formação nós descrevemos anteriormente,
entre fogo, terra, água e ar.
À terra vamos atribuir a figura cúbica, pois dos quatro tipos a terra é o mais imóvel
e o mais plástico dos corpos. A figura cujas bases são as mais estáveis devem
responder melhor àquela descrição; e como base, se tomarmos os triângulos que
admitimos início, a face do triângulo com os lados iguais é, por natureza, mais
estável que aquela do triângulo cujos lados são desiguais; e além disso, das duas
superfícies eqüiláteras respectivamente compostas dos dois triângulos, o quadrado é
necessariamente uma base mais estável do que a do triângulo, tanto em suas partes
quanto como um todo. (...) E dos que sobraram, o menos móvel [devemos designar]
à água, o mais móvel ao fogo, e a figura intermediária ao ar. (...) Então, tomando
todas estas figuras, aquela com a menor quantidade de faces (pirâmide) deve ser a
mais móvel (...); a segunda (octaedro) deve ficar em segundo lugar (...) e a terceira
(icosaedro), em terceiro
63
.
Nas palavras do próprio Heisenberg,
Para Platão, (...) as menores partículas de matéria são, por assim dizer, apenas
formas geométricas. [Ele] considera as menores partes dos elementos idênticas aos
corpos regulares da geometria. Como Empédocles, admite que os quatro elementos
são terra, água, ar e fogo. Concebe as menores partículas do elemento terra como
cubos, as menores partículas do elemento água como icosaedros; identicamente,
imagina como tetraedros as partículas elementares do fogo e, como octaedros as do
ar. A forma é característica para as propriedades do elemento. Em contraste com
Demócrito, em Platão as partículas menores não são inalteráveis ou indestrutíveis;
ao contrário, podem ser resolvidas em triângulos ou ser reconstruídas a partir de
triângulos. Nessa teoria, portanto, elas não são denominadas átomos. Os próprios
triângulos deixam de ser matéria, pois não possuem dimensões espaciais. Assim, em
Platão, no limite mais baixo das séries das estruturas materiais, não mais existe
efetivamente algo material, mas uma estrutura matemática, se preferirdes, uma
construção intelectual. A raiz última a partir da qual o mundo pode ser
uniformemente inteligível é, segundo Platão, a simetria matemática, a imagem, a
idéia
64
.
Embora na filosofia de Demócrito os átomos não possuíssem qualidades
como cor, sabor, etc, eles continuavam a ocupar lugar no espaço, além de serem
admissíveis asserções geométricas a seu respeito (asserções estas que não
requeriam uma análise ulterior). Ora, se a física quântica está muito mais próxima
à filosofia de Platão que à de Demócrito, isto se deve ao fato de que na física
moderna os átomos perdem inclusive esta última característica: eles sequer
possuem qualidades geométricas. Em outras palavras, a idéia de um átomo munido
63
Plato, Timaeus, 55d – 56b, p. 222, Tradução Francis Mcdonald Cornford.
64
Heisenberg, Werner, Nuclear Physics (1948), p. 57.
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de propriedades representáveis e constituído pelas últimas partículas indivisíveis da
matéria é substituída por um átomo absolutamente destituído de qualidades e que
não permite de si qualquer representação visualizável
65
:
O átomo na física moderna pode apenas ser simbolizado por uma equação parcial
diferencial em um espaço multidimensional abstrato. Apenas um experimento força
o átomo a indicar uma posição, uma cor e uma quantidade de calor. Todas as
qualidades do átomo na física moderna são derivadas, ele não tem nenhuma
propriedade física imediata e direta, i.e. qualquer tipo de concepção visual que nós
possamos querer designar é (...) enganosa
66
.
A relação entre as duas primeiras formas de aproximação de Heisenberg com
a filosofia de Platão – a separação entre episteme e dianoia de um lado e a
utilização das simetrias matemáticas encontradas no Timeu de outro - é tomada
como uma nova dificuldade por Chevalley: “Se o sentido desta história filosófica é
aquele de uma preeminência crescente do conhecimento discursivo, como explicar
que o retorno aos gregos se apresente também, em Heisenberg, como um retorno a
uma ontologia das simetrias
67
”? Devemos observar, no entanto, que esta
dificuldade é aparente e que, diferentemente do que pensa Chevalley, pode ser
eliminada caso se examine de modo mais atento à filosofia do próprio Platão. Não
há, aos nossos olhos, a necessidade de recorrer a um elemento exterior a estas duas
referências como o faz Chevalley, para quem Heisenberg supera a dificuldade
através da referência a Aristóteles (aquilo de que aqui cuidaremos em seguida). É
fato que a matemática é o ponto principal nas duas passagens dos textos de Platão a
que se refere Heisenberg. No entanto, o tratamento e conseqüentemente a questão
colocada é diferente em cada uma. Na República, trata-se das diferentes formas da
utilização da matemática como o método de aproximação à natureza a ser utilizado
pelas ciências. No Timeu, a matemática é aquilo de que deve se ocupar a ontologia.
Estamos certos de que Heisenberg estava perfeitamente ciente da diferença entre as
duas abordagens.
Voltemo-nos, pois ao terceiro e último exemplo da referência aos gregos
feita por Heisenberg. Trata da interpretação da noção quântica de probabilidade
por meio do conceito de potentia de Aristóteles. A referência a Aristóteles, uma
65
Chevalley, Catherine, “La Physique Quantique et les Grecs”, In: Nos Grecs et Leurs Modernes
/ textes réunis par Barbara Cassin, p. 174.
66
Heisenberg, Werner, “On the History of the Physical Interpretation of Nature” (1932), In:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 38.
67
Chevalley, Catherine, “La Physique Quantique et les Grecs”, In: Nos Grecs et Leurs Modernes
/ textes réunis par Barbara Cassin, p. 173.
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das mais insistentes e importantes na obra de Heisenberg, é a terceira e última à
qual nos ateremos nesta pesquisa. Sigamos, então, com algumas considerações a
este respeito.
É interessante que nos voltemos para a Metafísica de Aristóteles, a obra em
que ele estuda a ciência que é superior a todas, aquela que tem por objeto as causas
e princípios do ser enquanto ser
68
. Para Aristóteles, o ser tem vários significados
mas todos eles implicam, de várias maneiras, uma referência unitária ao primeiro e
fundamental significado: a substância
69
. Esta substância é entendida em pelo
menos quatro significados principais, dos quais o primeiro a ser examinado é o de
substrato. O substrato é, em primeiro lugar a matéria, em segundo a forma, e em
terceiro o conjunto matéria e forma:
Considera-se que substância de alguma coisa seja essência, o universal, o gênero e,
em quarto lugar, o substrato. O substrato é aquilo de que são predicadas todas as
outras coisas, enquanto ele não é predicado de nenhuma outra. Por isso devemos
tratar dele em primeiro lugar, pois o substrato primeiro parece ser substância. E
chama-se substrato primeiro, em certo sentido, a matéria, noutro sentido a forma e
num terceiro sentido o que resulta do conjunto de matéria e forma
70
.
Esta relação entre matéria e forma é, seguindo a análise de Ross, tratada no
livro Z da Metafísica de Aristóteles, em sua maior parte, “como uma distinção
existente dentro de uma coisa individual, num dado momento da sua história, como
a distinção entre a essência de uma coisa tal como é formulada na definição, e o
substrato incognoscível, sem o qual e essência não pode existir
71
”.
À medida que a discussão é levada adiante, no entanto, Aristóteles passa a
prestar mais atenção à “passagem das coisas de um estado relativamente informe a
um estado relativamente formado, e as expressões ‘potência’ e ‘ato’ passam a ser
empregues
72
”.
Novamente, em Aristóteles,
68
Aristóteles, Metafísica, Livro Γ, 1003a 20 – 1003a31, p. 131.
69
Aristóteles, Metafísica, Livro Γ, 1003b31 - 1003b11, p. 131-133. Ainda em Metafísica, Livro
Ζ, 1028a9 1028a15: “O ser tem muitos significados, como estabelecemos anteriormente (...). De
fato, o ser significa, de um lado, a essência e algo determinado, de outro, qualidade ou quantidade
e cada uma das outras categorias. Mesmo sendo dito em tantos significados, é evidente que o
primeiro dos significados do ser é a essência, que indica substância”.
70
Aristóteles, Metafísica, Livro Ζ, 1028b 33 – 1029a 3, p. 293.
71
Ross, Sir David, Aristóteles, p. 182.
72
Ross, Sir David, Aristóteles, p. 182.
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89
O ato é o existir de algo, não porém no sentido em que dizemos ser em potência: e
dizemos em potência, por exemplo, um Hermes na madeira, a semi-reta na reta,
porque eles poderiam ser extraídos, e dizemos pensador também aquele que não está
especulando, se tem a capacidade de especular; mas dizemos em ato o outro modo
de ser da coisa. O que queremos dizer fica claro por indução a partir dos casos
particulares, pois não é necessário buscar definição de tudo, mas é preciso
contentar-se em compreender intuitivamente certas coisas mediante a analogia. E o
ato está para a potência como, por exemplo, quem constrói está para quem pode
construir, quem está desperto para quem está dormindo, quem para quem está de
olhos fechados mas tem a visão, e o que é extraído da matéria para a matéria e o que
é elaborado para o que não é elaborado. Ao primeiro membro dessas diferentes
relações atribui-se a qualificação de ato e ao segundo a de potência
73
.
E, enfim, nas palavras de Heisenberg a matéria em Aristóteles é:
Em si mesma, não uma realidade, mas apenas uma possibilidade, a potentia
74
; ela
existe apenas por meio da forma. No processo natural, a “essência,” como
Aristóteles a denomina, passa da mera possibilidade à atualidade por meio da forma.
A matéria de Aristóteles certamente não é uma matéria específica como água ou ar,
tampouco ela é simplesmente espaço vazio; ela é um tipo de substrato corpóreo
indefinido que tem em si a possibilidade de tornar-se atual por meio da forma. Os
exemplos típicos desta relação entre matéria e forma na filosofia de Aristóteles são
os processos biológicos no qual a matéria toma forma de modo a se tornar o
organismo vivo, e a atividade criadora e formadora do homem. A estátua está
potencialmente no mármore antes de ser esculpida pelo escultor
75
.
A noção de potencialidade é a saída encontrada por Aristóteles para o antigo
problema do não-ser. Parmênides foi o primeiro filósofo a levantar a questão do
não-ser. Em seu poema
76
, ele afirma haver apenas duas vias de investigação, duas
possibilidades de investigação logicamente coerentes, que se excluem mutuamente:
a via que afirma “é” e a que afirma “não é”. Mas a via do “não é” é rejeitada por
Parmênides como ininteligível: é impossível conhecer o que não é, uma vez que “o
que não é”, não é. Como pode algo que não é vir a ser conhecido? O pensamento
deve se afastar dessa via. Para Aristóteles, no entanto a passagem do não-ser ao ser
pode ser explicada através da noção de potencialidade: uma coisa não se torna
atualmente algo a partir do não-ser absoluto, mas a partir de algo que ela era
potencialmente. Nas palavras de Ross,
73
Aristóteles, Metafísica, Livro Θ, 1048a 32 – 1048b 5, p. 409-410.
74
Ver Aristóteles, Metafísica, Livro Η, 1042a 25 - 28, p. 371: “Todas as substâncias sensíveis têm
matéria. E substância é o substrato, o qual, em certo sentido significa matéria (chamo matéria o
que não é algo determinado em ato, mas algo determinado em potência), num segundo sentido
significa a essência e a forma (a qual, sendo algo determinado, pode ser separada pelo
pensamento) (...).
75
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p. 135-136.
76
Kirk, Raven & Schofield, Os Filósofos Pré-socráticos, História Crítica com Seleção de
Textos, p. 252-273.
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90
Aristóteles coloca em evidência um ponto real, a saber que a mudança não é
catastrófica. Não devemos acreditar que A, sendo absolutamente o-B, se torna
subitamente B. Considerai A mais atentamente e descobrireis presentes
algumas das condições do estado B; se assim não fosse, A jamais se tornaria B
77
.
Contudo, embora a mudança não possa ser explicada sem que se recorra ao
conceito de potencialidade, ela não pode ser explicada exclusivamente por este
conceito.
Nada passa da potencialidade sem a ação de algo atual. A não é potencialmente B a
menos que possa tornar-se atualmente B, e uma vez que isto pode apenas se passar a
partir da ação de algo atual, a sua própria potencialidade ser B pressupõe uma
atualidade. Com efeito, a potencialidade pressupõe sempre, e em todos os casos, a
atualidade possuindo nesta as suas raízes
78
.
Vejamos a que contexto Heisenberg aplica a potentia aristotélica. Cito mais
uma vez Chevalley: “Para Heisenberg, o problema crucial colocado em primeiro
plano pela física quântica é certamente aquele da compreensão da transição do
possível ao real
79
”. Devemos retomar apenas alguns pontos da questão da redução
descontínua do pacote de ondas operada pelo ato da observação em mecânica
quântica que foi tratada de modo mais detalhado no capítulo anterior.
Trata-se de um dos traços mais estranhos da física quântica, que é, segundo
Chevalley, que
a equação de Schrödinger, ela mesmo determinista, não pode receber nenhuma
interpretação física direta, mas somente uma representação estatística. Ora, este
caráter estatístico não intervém como uma medida do grau de imperfeição do nosso
conhecimento do estado real do sistema considerado, mas como um aspecto
intrínseco dos processos quânticos. (...) O processo individual, em mecânica
quântica é, com efeito, pensado por meio do conceito de “amplitude de
probabilidade”; o objeto, no sentido estrito da física clássica, desaparece; ele não é
mais alguma coisa localizada no espaço e no tempo, de que se poderia seguir a
evolução a trajetória e predizer, graças a uma lei formalizada desta evolução, o
componente futuro. O conceito fundamental que permite descrever um sistema é o
de vetor de estado, que não é suscetível de nenhuma interpretação intuitiva; as leis
tornam-se intrinsecamente estatísticas e a possibilidade de “pôr a mão” sobre um
objeto individual no sentido tradicional se evanesce
80
.
77
Ross, Sir David, Aristóteles, p. 182.
78
Ross, Sir David, Aristóteles, p. 183.
79
Chevalley, Catherine, “La Physique Quantique et les Grecs”, In: Nos Grecs et Leurs Modernes
/ textes réunis par Barbara Cassin, p. 176.
80
Chevalley, Catherine, “La Physique Quantique et les Grecs”, In: Nos Grecs et Leurs Modernes
/ textes réunis par Barbara Cassin, p. 176.
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91
Como dissemos anteriormente, consoante Heisenberg “o conceito de função
de probabilidade não permite uma descrição do que acontece entre duas
observações
81
”.
É, certamente, tentador dizer que o elétron deve ter estado em algum lugar, no
intervalo de tempo entre essas duas observações, e que, portanto, o elétron deveria
ter descrito algum tipo de trajetória ou órbita, mesmo que seja impossível saber-lhe
qual. Esse seria um argumento razoável em sica clássica. Em teoria quântica,
porém, teria sido um abuso de linguagem que (...) não poderia ser justificado.
Devemos nos lembrar que antes da interação entre instrumento e objeto a
função de onda é um caso puro representado no espaço abstrato de Hilbert. Ela está
essencialmente relacionada a um conjunto de processos de medição possível. Ora,
Heisenberg afirma que este conjunto de processos representa uma potencialidade a
ser atualizada pelo processo de medição. Nas suas próprias palavras: “A ‘redução
dos pacotes de onda’ descontínua, que não pode ser derivada da equação de
Schrödinger, é (...) uma passagem do possível ao atual
82
”. Esta passagem é, como
dissemos, operada pelo observador que altera a representação matemática de modo
descontínuo ao registrar o comportamento do aparato de medição como atual. O
observador tem, assim, a função de registrar decisões, ou seja, processos no espaço
e tempo. Este registro, a transição do possível para o atual, é absolutamente
necessária não podendo ser omitida da interpretação da teoria quântica
83
. De
acordo com Heisenberg:
Na teoria quântica a medição é em si mesma um estado objetivo dos
acontecimentos, como na física anterior; mas a interferência da medição no curso
objetivo da ocorrência atômica a ser medida torna-se problemática, uma vez que a
medição interfere na ocorrência e não pode mais ser completamente separada da
ocorrência em si mesma. Uma descrição intuitiva dos processos atômicos, tal como
teria sido possível cinqüenta anos atrás, torna-se conseqüentemente impossível.
Não podemos mais apreender os processos naturais no campo atômico como os
processos em uma escala maior. (...) Para o curso subseqüente do processo atômico
nós podemos usualmente prever apenas probabilidades. Não são mais os eventos
objetivos, mas antes as probabilidades para a ocorrência de certos eventos que
podem ser postulados na fórmula matemática. Não é mais o acontecimento atual em
si mesmo, mas antes a possibilidade deste acontecimento – a potentia, para aplicar o
conceito da filosofia de Aristóteles – que está sujeito a leis naturais estritas
84
.
81
Ibidem, p. 40.
82
Heisenberg, Werner, “The Development of the Interpretation of the Quantum Theory” (1955),
In: Niels Bohr and the Development of Physics, p. 27.
83
Ibidem, p. 22.
84
Heisenberg, Werner, “Planck’s Discovery and the Philosophical Problems of Atomic Theory”,
Across the Frontiers, p. 16.
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92
É também digno de nota o que Heisenberg afirma a propósito da teoria BKS
(Bohr, Kramers e Slater), que mencionamos no primeiro capítulo, e cujo conceito
decisivo era o de que as leis da natureza determinam não a ocorrência de um
evento, mas a probabilidade de um evento verificar-se. Para ele, as ondas
probabilísticas de Bohr, Kramers e Slater podiam ser
Interpretadas como uma formulação quantitativa do conceito de dynamis,
possibilidade, ou na versão latina posterior, potentia, na filosofia de Aristóteles. A
concepção de que os eventos não estão determinados de modo peremptório, mas que
a possibilidade ou a “tendência” para que um evento ocorra apresenta uma espécie
de realidade uma certa camada intermediária de realidade, meio caminho entre a
realidade maciça da matéria e a realidade intelectual da idéia ou da imagem este
conceito desempenha um papel decisivo na filosofia aristotélica. Na teoria quântica
moderna, tal conceito assume uma nova forma; é formulado quantitativamente
como probabilidade e sujeito a leis da natureza que são expressas matematicamente.
As leis da natureza formuladas em termos matemáticos não mais determinam os
próprios fenômenos, mas a possibilidade de ocorrência, a probabilidade de que algo
ocorrerá
85
.
Não se trata mais de eventos objetivos, mas apenas das probabilidades de
ocorrência de tais eventos. O que se apresenta às leis naturais estritas, portanto, não
é mais o que antes ocupava o lugar da realidade atual (ou efetiva), mas sim o
conceito de potentia da filosofia de Aristóteles. O conceito de potentia introduziu,
para Heisenberg, “algo que se situa a uma igual distância entre a idéia de um
evento e o evento atual, um estranho tipo de realidade entre a possibilidade e a
realidade
86
”. Em outros termos, Heisenberg busca em Aristóteles um meio de se
pensar no que lhe parece uma revolução na significação do conceito de realidade
87
,
um modo de se pensar a relação do possível ao real efetivo como uma relação entre
dois tipos de realidade
88
. Trata-se, de uma diferença entre a totalidade da
determinação possível de uma res e o modo de existência ou de realidade atual (ou
efetiva) do fenômeno, em outras palavras, daquilo a que nós podemos ter acesso
85
Heisenberg, Werner, “A Descoberta de Planck e os Problemas Filosóficos da sica Atômica”
(1958), In: Problemas da Física Moderna, p. 16. Ver também, Heisenberg, Werner, “The
Development of the Interpretation of the Quantum Theory” (1955), In: Niels Bohr and the
Development of Physics, p. 12.
86
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy (1955), p.28-29.
87
Chevalley, Catherine, “La Physique Quantique et les Grecs”, In: Nos Grecs et Leurs Modernes
/ textes réunis par Barbara Cassin, p. 178.
88
Ibidem, p. 181.
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93
por meio das nossas percepções
89
. Como dissemos, as teorias físicas sempre
lidaram e sempre lidarão com “realidade atual”, que é aquela de que podemos ter
percepção e que é descritível por meio dos conceitos clássicos; o que é válido
também na mecânica quântica. “O ‘atual’ tem, em mecânica quântica, o mesmo
papel decisivo que tem na física clássica
90
”. De acordo com a interpretação de
Copenhague, é absolutamente necessário que falemos dos resultados dos
experimentos por meio dos conceitos clássicos que compõem a nossa “realidade
objetiva”. Isto é, não se trata de abandonar a descrição dos processos que podem
ser simplesmente descritos por conceitos clássicos e que compõem nossa
“realidade” no seu sentido próprio
91
, mas apenas de não extrapolar esta realidade
aos objetos quânticos. Nas palavras de Heisenberg,
Se quisermos penetrar por detrás desta realidade, nos detalhes dos eventos atômicos,
os contornos deste mundo “objetivamente real” se dissolvem não na bruma de
uma nova idéia de realidade ainda não suficientemente clara, mas na transparente
clareza de uma matemática cujas leis governam o possível, e não o atual
92
.
Desta definição não se poderia concluir que a mecânica quântica nega toda
realidade aos fenômenos físicos. De acordo com Chevalley,
Se, para Heisenberg, “a idéia de coisas objetivamente reais deve ser (...) de uma
certa maneira abandonada
93
”, (...) e se é impossível falar da existência dos
fenômenos atômicos “entre duas observações sucessivas”, a razão é simplesmente
que estas últimas não se apresentam jamais como as “coisas”, ao oposto dos objetos
da física clássica.
Percebemos então que se para Heisenberg a história filosófica da física se
enraíza na Antigüidade grega é porque é possível a partir dela apontar para um
problema novo, aquele de uma fragmentação das “ordens de realidade”,
Que fez com que o conhecimento não pudesse mais ser concebido nem como uma
participação nas Idéias nem como a decodificação de um livro imutável escrito em
caracteres matemáticos, nem como restrição ao puro jogo das representações. Pode-
se possivelmente dizer que, para Heisenberg, a ontologia é parcialmente
89
Chevalley, Catherine, “Physical Reality and Closed Theories in Werner Heisenberg’s Early
Papers” In : Theory and Experiment : Recent Insights and New Perspectives on Their
Relation / edited by D. Batens and J. P. Bendegen, p.
90
Werner Heisenberg, "The Development of the Interpretation of Quantum Theory" (1955), In:
Niels Bohr and the Development of Physics, p.28.
91
Ibidem, p.28.
92
Ibidem, p.28.
93
Ibidem, p.27.
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94
cognoscível pela via da abstração matemática -, enquanto a redução à dianoia
exprime por seu lado a impossibilidade qualquer ontologia naturalista, imposta pelo
papel que desempenha doravante a probabilidade na própria determinação do objeto
da física e pelo desaparecimento correlativo de qualquer critério clássico de
individuação
94
.
A colocação destas questões tem por resultado o soçobramento da crença de
que a física é ou pode ser um conhecimento completo ou a verdadeira tradução do
que acontece na natureza. Torna-se sem sentido derivar qualquer visão geral de
mundo unicamente a partir da física. A física clássica tinha, de acordo com
Heisenberg, “a crença irracional de era possível obter uma compreensão da
totalidade do mundo a partir de uma pequena parte dele
95
”.
O arcabouço geral do pensamento humano do século XIX foi também uma crença
na confiança no método científico e em termos racionais precisos, e levou a um
ceticismo geral no que diz respeito aos conceitos da linguagem natural que não se
encaixavam no arcabouço do pensamento científico – por exemplo, aqueles da
religião. A física moderna aumentou este ceticismo de muitas maneiras; mas ela
também o voltou contra a supervalorização de conceitos científicos precisos, contra
uma visão muito otimista a respeito do progresso de uma maneira geral, e,
finalmente, contra o próprio ceticismo.O ceticismo contra conceitos científicos
precisos não significa que deva haver uma limitação definida para a aplicação do
pensamento racional. Ao contrário, pode-se dizer que esta habilidade humana de
compreender pode ser, em um certo sentido, ilimitada. Mas os conceitos científicos
existentes cobrem apenas uma parte muito limitada da realidade, e a outra parte que
ainda não foi compreendida é infinita
96
.
94
Chevalley, Catherine, “La Physique Quantique et les Grecs”, In: Nos Grecs et Leurs Modernes
/ textes réunis par Barbara Cassin, p. 181.
95
Heisenberg, Werner, “Recent Changes in the Foundations of Exact Science” (1934), in:
Philosophic Problems of Nuclear Science, p. 23.
96
Heisenberg, Werner, Physics and Philosophy, p. 189.
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5
Conclusão
Nosso trabalho principal foi o de observar as relações que Heisenberg
estabelece entre sua interpretação da mecânica quântica e a filosofia grega.
Suas referências aos gregos não se restringem, como dissemos, aos três casos
para os quais voltamos nossas atenções. De fato, são vários os textos em que
Heisenberg se esforça por expor os fundamentos da filosofia grega que são
relevantes para o desenvolvimento da ciência de seu tempo e, para tanto, ele se
refere, por exemplo, a Parmênides, Anaximandro, Anaxágoras, Empédocles,
Pitágoras e Heráclito. No entanto, acreditamos serem as referências sobre as quais
nos concentramos aquelas que lhe parecem solucionar ou pelo menos indicar
caminhos para os impasses filosóficos resultantes do desenvolvimento da ciência,
um processo histórico em escala mundial
1
, cujo caráter problemático tornou-se
evidente a partir do acontecimento da física moderna. Cabe-nos, portanto, retomar,
ainda que muito sucintamente, os casos a que nos ativemos no terceiro capítulo
deste trabalho.
É preciso dizer, primeiramente, que, para Heisenberg, o pensamento grego
representa a base do pensamento ocidental: “toda a nossa vida cultural, toda a
nossa maneira de agir, de pensar e de sentir tem suas raízes na substância espiritual
do Ocidente, quer dizer, numa entidade espiritual que apareceu na Antiguidade
com a arte, a poesia e a filosofia dos Gregos
2
”. Mas, mais importante para nós é o
fato de que pensamento antigo representa a origem comum das diferentes ciências,
isto é, o pensamento científico como um todo tem suas raízes no pensamento
grego. Mais precisamente na capacidade dos gregos de formular questões acerca de
princípios que pudessem sistematizar a vasta gama dos fenômenos da natureza,
tornando-os acessíveis ao pensamento humano. “Quem estudou a filosofia grega
esbarra a cada passo com esta capacidade de formulação teórica e pode exercitar-
1
Heisenberg, Werner, A Parte e o Todo (1969), p.228.
2
Heisenberg, Werner, “Relações entre Cultura Humanística, Ciência e Ocidente” (1949), In: A
Imagem da Natureza na Física Moderna, p. 52.
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se, lendo os gregos, no uso da mais poderosa ferramenta espiritual que o
pensamento ocidental conseguiu criar
3
”.
O que se observa, contudo, nos escritos de Heisenberg é que a necessidade
de retomar os gregos se não somente pelo fato de eles serem a origem do
pensamento tal como ele se apresenta atualmente, mas também porque se
encontrava uma noção de inteligibilidade, uma noção de “compreensão” da
natureza que deve ser reencontrada. A ciência dos princípios ou da substância cujo
objetivo principal era a compreensão qualitativa do mundo vai sendo substituída ao
longo do tempo por uma ciência que busca uma compreensão analítica das
qualidades. É a transformação de uma ciência capaz de gerar uma imagem viva e
sensível do mundo em direção a uma que se preocupa em dar uma descrição
matemática da natureza. Este processo de autolimitação pelo qual a ciência passa é
descrito por Heisenberg em termos platônicos: trata-se da passagem da episteme
para a dianoia, o afastamento da ciência da experiência imediata como
encontramos em Aristóteles, na direção de um modelo de ciência matematizada de
inspiração platônica.
Um segundo aspecto da referência aos gregos em Heisenberg é a retomada
da oposição entre Platão e Demócrito no que concerne à constituição da matéria.
Enquanto a tradição científica materialista julga serem os átomos os últimos blocos
indivisíveis da matéria, Heisenberg opta pelos sólidos platônicos. Até a descoberta
do pósitron por Dirac, pensava-se que havia dois tipos de partículas fundamentais
imutáveis, os prótons e os elétrons. Esta descoberta, bem como outros
desenvolvimentos subseqüentes da física
4
mostraram, no entanto, que as partículas
da física moderna são representações de grupos de simetrias e, afirma Heisenberg,
nesta medida elas se parecem com os corpos simétricos da filosofia de Platão. “Em
Platão, no limite mais baixo das séries das estruturas materiais, não existe mais
efetivamente algo material, mas uma forma matemática, se preferirdes, uma
construção intelectual
5
”.
3
Heisenberg, Werner, “Relações entre Cultura Humanística, Ciência e Ocidente” (1949), In: A
Imagem da Natureza na Física Moderna, p. 53.
4
A descoberta da radioatividade artificial por Frédéric Joliot e Irene Curie, a observação de
partículas altamente energéticas nos anos 30, a descoberta dos pions por Cecil Powell em 1940,
etc. Ver Heisenberg, Werner, “The Nature of Elementary Particles” (1975), In: Physics Today,
March 1976, p. 32-33.
5
Heisenberg, Werner, “A Descoberta de Planck e os Problemas Filosóficos da Física Atômica
(1958), In: Problemas da Física Moderna, p. 12.
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O terceiro caso por nós examinado é o da utilização da noção de dynamis
aristotélica para a compreensão da redução descontínua do pacote de ondas
efetuada pelo ato de observação na mecânica quântica. Esta noção permite pensar a
realidade não mais por meio da dicotomia entre sujeito e objeto instaurada com a
física clássica e a filosofia moderna, mas por meio da idéia de uma realidade atual
e uma realidade potencial. Trata-se, como afirma Chevalley, da recusa à redução
da noção de individuação que aparece no período moderno
6
: “Podemos dizer que o
estado do sistema fechado representado por um vetor de Hilbert é, certamente,
objetivo, mas não real, e que a idéia clássica de ‘coisas objetivamente reais’ deve
ser, nesta medida, abandonada
7
”.
Concordamos com Chevalley quando ela afirma que a referência aos gregos
permite exprimir uma insatisfação no que diz respeito à ininteligibilidade da
ciência técnica bem como deixar explícita a recusa, por parte da física quântica,
dos princípios da interpretação da natureza que havia sido proposta pela filosofia
moderna
8
.
Devemos discordar, no entanto, de que a presença dos gregos seja apenas
“uma presença negativa, uma pura função interpretativa
9
e de que tudo se passe
como se “as filosofias platônica e aristotélica devessem seu papel, em Heisenberg,
ao fato de que elas são exteriores à filosofia moderna
10
”. Não podemos negar que
este seja, de fato, um dos aspectos desta referência. Ele não é, no entanto, o único a
que devamos dar atenção. Se o exame da filosofia grega elaborado por Heisenberg
não consiste propriamente em uma retomada fiel às temáticas elaboradas pelos
antigos (a questão de saber se isto é possível mesmo entre os comentadores destes
filósofos é, desde sempre, uma questão em aberto), isto não significa que a função
deste exame seja apenas uma função negativa.
Julgamos ser necessário ressaltar, porém, que não se trata de uma
discordância completa, mas de uma diferença na ênfase que se dá a determinados
aspectos do problema, como por exemplo a possibilidade de pensar, a partir da
dynamis aristotélica, nos níveis (ou ordens) de realidade que sabemos ser o foco
6
Chevalley, Catherine, “La Physique Quantique et les Grecs”, In : Nos Grecs et Leurs Modernes
/ textes réunis par Barbara Cassin,p. 153.
7
Heisenberg, Werner, “The Development of the Interpretation of the Quantum Theory” (1955), In:
Niels Bohr and the Development of Physics, p. 37.
8
Ibidem,p. 152.
9
Ibidem,p. 152.
10
Chevalley, Catherine, “Introduction”, In: Heisenberg, Werner, La Nature Dans La Physique
Contemporaine, p. 33
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central do Manuscrito de 1942, obra que, pela sua complexidade, não pudemos
examinar no presente trabalho.
Esta diferença de ênfase explica o porquê de haver também uma diferença
metodológica entre o trabalho aqui efetuado e aquele de Chevalley. Se Chevalley
julga ser arriscada a comparação com os textos originais a que Heisenberg se
refere
11
, acreditamos que esta busca rendeu, nesta dissertação, resultados bastante
frutíferos. Ainda assim, pensamos, junto com Chevalley que, se “certas perguntas
encontraram-se, assim, reabertas, (...) pode-se considerar que sua simples
formulação é um trabalho filosófico ainda em curso
12
”.
11
Chevalley, Catherine, “La Physique Quantique et les Grecs”, In : Nos Grecs et Leurs
Modernes / textes réunis par Barbara Cassin,p. 178, nota 84.
12
Ibidem,p. 187.
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103
7
Glossário
Câmara de Wilson (Câmara de nuvem) - é uma câmara que contém vapor de
água super saturado. Se uma partícula carregada é atirada nele, a água se condensa
em forma de minúsculas gotículas ao redor da partícula, e pode-se observar o
caminho percorrido pela partícula na câmara. (Há uma explicação bastante clara do
que seja uma câmara nuvem, ou câmara de Wilson em Heisenberg, Werner,
Nuclear Physics, p. 25.)
Comprimento de onda (λ)
λ)λ)
λ)
“É a distância entre dois pontos consecutivos do
meio que vibram em fase; e.g. o comprimento de onda de ondas de água poderia
ser medido como a distância de crista a crista. O comprimento de onda é igual à
velocidade do movimento da onda dividida pela sua freqüência. Para a radiação
eletromagnética λ = c/v, onde c é a velocidade da luz e v é a freqüência
1
”.
Difração - Se uma onda que se propaga, por exemplo, na superfície da água e
encontra um obstáculo dotado de pequena abertura, a parte da onda que não foi
bloqueada pelo obstáculo não se mantém em linha reta: ao passar pela abertura a
onda se espalha em todas as direções. A isto se chama difração da onda. A difração
ocorre com qualquer tipo de onda. “Quando um feixe de luz passa através de uma
abertura ou pela borda de um obstáculo opaco e lhe é possível cair em cima de uma
tela, padrões de faixas claras e escuras (com luz monocromática) ou de faixas
coloridas (com luz branca) são observados perto das bordas do feixe, e se estendem
pela sombra geométrica. Este fenômeno é um exemplo particular da
interferência
2
”.
Dispersão - A dispersão da luz é o processo de separação dos comprimentos de
onda que compõem a luz branca (luz do sol) quando esta passa, através de um
prisma óptico, por exemplo
3
.
Eletromagnetismo É o estudo dos campos magnéticos e suas interações com as
correntes elétricas. Foi o inglês James Maxwell o responsável pela construção da
teoria clássica do eletromagnetismo. Ele criou uma estrutura teórica e matemática
que explicava os fenômenos elétricos e magnéticos como sendo manifestações de
1
Isaacs, Alan e Uvarov, E. B., The Penguin Dictionary of Science, p. 161.
2
Ibidem, p. 109.
3
Ibidem, p. 114.
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uma mesma entidade, o chamado campo eletromagnético. Até então, a eletricidade
e o magnetismo eram considerados áreas separadas na física. Maxwell expôs
matematicamente as conclusões a que chegou acerca dos conhecimentos de
eletricidade e magnetismo da época em seu tratado sobre a eletricidade e o
magnetismo, publicado em 1873. A relação entre o campo elétrico e o campo
magnético foi expressa por ele em 4 equações matemáticas, as chamadas equações
de Maxwell. A partir da publicação do tratado a luz passa a ser entendida como
onda eletromagnética, consistindo da variação de campos elétricos e magnéticos
perpendiculares à direção de sua propagação.
Freqüência (f) “É o número de ciclos, oscilações, ou vibrações do movimento
ou oscilação da onda por unidade a tempo (geralmente um segundo). No
movimento da onda a freqüência é igual à velocidade da propagação dividida pelo
comprimento de onda
4
”.
Interferência do movimento de ondas “A adição ou combinação das ondas; se
a crista de uma se encontrar com o vale de uma outra de igual amplitude, a onda
será destruída neste ponto; inversamente, a superposição de uma crista em cima de
outra leva a um aumento do efeito.(...) A interferência fornece a evidência para a
teoria da onda da luz
5
”.
Lei da conservação de energia - “Há um fato, ou se você desejar, uma lei, que
governa todos os fenômenos naturais que conhecemos atualmente. Não exceção
para esta lei: ela é tão exata quanto sabemos. A lei é chamada conservação de
energia. Ela postula que há uma certa quantidade, a que chamamos de energia, que
não muda ao longo das diversas mudanças pelas quais a natureza passa. Esta é uma
idéia abstrata, porque ela é, na verdade um princípio matemático que ele diz que há
uma quantidade numérica que não muda quando algo acontece. Não é uma
descrição de um mecanismo, ou algo concreto mas apenas o estranho fato de que
podemos calcular algum número e então quando terminamos de observar a
natureza em suas artimanhas, este número é o mesmo
6
”.
Momento “É o produto da massa apela velocidade. A velocidades próximas à
velocidade da luz, a variação da massa cuja velocidade deve ser levada em
4
Ibidem, p. 440.
5
Ibidem, p. 205.
6
Feynman, Richard, The Feynman Lectures on Physics, vol. 1, p. 4-1.
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105
consideração, e o valor de m apropriado ao da velocidade do corpo deve ser usado
na expressão do momento
7
”.
Onda – “É um distúrbio periódico em um meio ou no espaço, que pode envolver o
deslocamento elástico de partículas materiais ou uma mudança periódica em
alguma quantidade física tal como temperatura, pressão, potencial elétrico, etc
8
”.
Onda Estacionária - Uma onda estacionária é uma onda composta de duas ou
mais ondas que se propagam em direções opostas, de tal modo que a onda
resultante parece não se mover.
Princípio de incerteza (Princípio de indeterminação) “É impossível
determinar com precisão ambos, a posição e o momento de uma partícula (e.g. um
elétron) simultaneamente. Quão mais acurado for o nosso conhecimento da posição
(x) tão menos acuradamente o momento (p) poderá ser determinado. Se a
indeterminação no componente-x do momento é p
x,
então p
x
x h/4π, aonde h
é a constante de Planck
9
”.
Radiação - Denomina-se radiação qualquer processo físico de emissão e
propagação de energia, seja ele por meio de fenômenos ondulatórios, seja através
de partículas. É um fenômeno natural que pode ocorrer de muitas formas. São
emissores de radiação, por exemplo, o ar, o solo, rochas, alimentos, aparelhos de
TV, fornos de microondas, estrelas distantes, máquinas de raios-x dentários,
combustível usado em usinas nucleares, dentre outros. Estamos diariamente
expostos a vários tipos de radiação, como o calor, a luz visível, as ondas de rádio, o
radar, etc.
Radiação térmica A radiação térmica ou transmissão de calor por radiação é a
taxa de emissão de energia de um dado material, dada sua temperatura. Ela está
relacionada à energia liberada de oscilações ou transições dos elétrons, átomos,
íons, ou moléculas mantidos pela energia interna do material. Qualquer forma de
matéria com temperatura acima do zero absoluto emite energia térmica. Em gases
ou outros materiais transparentes (materiais com absorção interna desprezível), a
energia térmica se irradia através de seu volume. Para materiais com alta absorção
interna, como os metais, apenas algumas centenas de camadas atômicas mais
7
Isaacs, Alan e Uvarov, E. B., The Penguin Dictionary of Science, p. 260.
8
Ibidem, p. 439.
9
Ibidem, p. 424.
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externas realmente contribuem para a emissão de energia térmica. Para esses
materiais, a emissão de energia térmica é um fenômeno superficial.
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107
8
Apêndices
Apêndice 1
Sabemos que qualquer pedaço de matéria quando aquecido, ou seja, qualquer
pedaço de matéria a uma temperatura maior que zero, emite energia na forma de
radiação eletromagnética. A energia emitida inicialmente não é visível, mas à
medida que sua temperatura se eleva a radiação passa a ser visível: o pedaço de
matéria fica incandescente, e tem inicialmente um tom avermelhado (que é quando
a maior parte da energia emitida está concentrada nas ondas de maior
comprimento) que se torna esbranquiçado tendendo para o azulado (ondas de
menor comprimento). A coloração não depende muito da superfície do objeto e, no
caso de um corpo negro (qualquer pedaço de matéria de superfície negra, por
exemplo uma bola, que seja ôca e que tenha um pequeno furo), depende apenas da
temperatura em que ele se encontra. O corpo negro é definido como uma superfície
que absorve toda a radiação eletromagnética que chega nele, e é justamente por
não refletir nenhuma parte do espectro luminoso que ele parece negro, pelo menos
às temperaturas do nosso meio ambiente. Isso faz dele o mais eficiente absorvedor
e emissor de energia que podemos encontrar. Assim, a radiação emitida por um
corpo negro a uma temperatura constante é de grande interesse porque sob estas
circunstâncias (em que a temperatura não aumenta e nem diminui), a radiação é
emitida na mesma quantidade que é absorvida.
Apêndice 2
O experimento da radiação do corpo negro
10
, realizado por Rayleigh e Jeans
no fim do século XIX, é de simples realização: é possível gerar radiação no corpo
negro esquentando um objeto côncavo ou, melhor, uma bola oca cuja superfície
seja negra a uma temperatura constante T, o que possibilita que o equilíbrio
térmico seja estabelecido. Uma vez em equilíbrio, podemos, então, através de
aparelhos, observar a radiação eletromagnética que escapa por um pequeno furo na
10
Retirado de Cushing, James T., Philosophical Concepts in Physics, p. 277.
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parede do objeto. Com os dados do experimento é então construído um gráfico
(uma espécie de ‘foto’ da radiação emitida por este corpo negro a uma temperatura
T fixada), no qual a densidade da energia é analisada em função dos vários
comprimentos de onda que compõem o sistema. A idéia é que a energia total deste
sistema fechado se distribui pelos diferentes comprimentos de onda que constituem
o espectro, comprimentos estes que seremos capazes de medir por aparelhos.
Podemos dizer que a energia total do sistema é a soma dos comprimentos de todas
as ondas que encontrarmos. Sabemos que quanto maior o comprimento de uma
onda, menor a quantidade de energia que ela carrega (menor a sua freqüência).
Sabemos também que a emissão de radiação a cada diferente freqüência
corresponde uma cor do espectro luminoso.
Figura 1: Radiação dos corpos negros
Observando o gráfico acima, vemos a curva apontada pela fórmula de
Rayleigh e Jeans que era compreensível dentro das leis da física clássica, que
tinham como pressuposto a idéia de que a energia disponível em um sistema em
equilíbrio térmico era compartilhada igualmente, isto é, de modo contínuo, por
todas as partes do sistema. No entanto, as tentativas de Rayleigh e Jeans
malograram e o resultado foi a curva experimental apresentada no gráfico como a
curva de Planck. A física clássica não era capaz de explicar a forma das curvas
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109
desta figura.
11
Planck traduziu teoricamente por fórmulas as medidas muito
precisas do espectro da radiação térmica feitas, também em 1900, por Kurlbaum e
Rubens. Estas fórmulas, uma tentativa de obter uma expressão para a distribuição
de energia térmica em equilíbrio, pareciam plausíveis sob o ponto de vista de sua
pesquisa sobre calor e radiação. Ele tentou, então, encontrar uma fórmula
matemática que se adaptasse à curva encontrada na experiência do corpo negro.
Para isto Planck se utilizou de uma hipótese termodinâmica ad hoc que modificava
as relações clássicas que envolviam a entropia da radiação para explicar o
comportamento das ondas de comprimento longo e uma lei ad hoc conjeturada em
1896 por Wilhelm Wein que se ajustava às ondas de comprimento curto. Foi deste
modo que ele propôs uma nova fórmula que se ajustou a todos os comprimentos de
onda e que constituiu o que se chamou Lei de Planck da radiação térmica. Planck
chegou à conclusão de que a quantidade de energia emitida ou absorvida deveria
ser igual a um múltiplo inteiro de uma quantidade mínima a que denominou
quantum elementar de ação h vezes a freqüência f com que cada molécula vibra.
Apêndice 3
Como foi dito, o experimento do efeito fotoelétrico mostrava que a energia
dos elétrons emitidos não dependia da intensidade da luz, mas apenas da sua cor,
em outras palavras, da sua freqüência. Isto havia sido demonstrado por
experiências anteriores, especialmente as de Lenard. No caso da experiência do
efeito fotoelétrico, percebeu-se que a luz ultravioleta facilitava a ejeção dos
elétrons enquanto caso se colocasse uma lente vermelha e se jogasse esta luz sobre
a placa metálica nada acontecia aos elétrons, o que possibilitou uma descrição da
luz bastante diferente da propiciada pelo modelo ondulatório tradicional.
11
Para simplificar a discussão, consideremos que o corpo negro produz radiação de dimensão l. Ondas
estáveis são possíveis apenas a determinados comprimentos de onda dados pela equação λn = 2l/n (n =
1,2,3,...) Cada um destes é um grau que deveria dividir igualmente a energia disponível e, como há infinitas
ondas de comprimento cada vez menor e menor, toda a luz deveria ser de curto comprimento de onda no
fim de seu espectro. O conceito clássico rigoroso produz a fórmula de Rayleigh-Jeans: p(λ,T) = (8 πk T) /
(λ)
4
, onde k é a constante de Boltzmann. Esta fórmula concorda com o gráfico apenas para grandes
comprimentos de onda. A pequenos comprimentos de onda (λ0) ela se torna infinita (catástrofe
ultravioleta), como indicado no gráfico. A figura claramente discorda destes dados. Suas raízes remetem a
um artigo datado de 1900 de Lord Rayleigh, mas o resultado da equação acima foi derivado por ele e Sir
James Jeans em 1905. A falência desta lei era um problema sério, uma vez que ela havia sido deduzida de
uma das leis firmemente estabelecidas da mecânica estatística clássica, a da equipartição da energia.
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110
Apêndice 4
Modelo atômico de Thomson
Figura 2: Modelo atômico de Thomson (pudim de passas).
Apêndice 5
A idéia básica é que o padrão de espalhamento das partículas deveria refletir
a estrutura das forças atuantes no interior do átomo. Geiger e Marsden usaram uma
folha de ouro (75Au
157
) de aproximadamente 400 átomos de espessura com
partículas α (He++) como projéteis bombardeadores. A maior parte das partículas
α passou através da folha de ouro sem se desviar. Uma vez que as partículas α são
muito compactas que os elétrons (aproximadamente 7.5000 vezes mais
compactas), elas não são essencialmente desviadas por eles. O núcleo do ouro é,
por sua vez, no total, 50 vezes mais compacto do que uma partícula α. No modelo
de Thomson, a massa e a carga positiva eram pensadas como estando
uniformemente espalhadas no volume da amostra e não deveria haver, deste modo,
choques com objetos maciços isolados mas apenas com pedaços rarefeitos dos
átomos do ouro. No entanto, observou-se que, vez por outra, algumas partículas
αdesviavam-se a ângulos maiores que 90 graus. Este comportamento era
totalmente incompatível com o modelo de Thomson, o que fez Rutherford pensar
que a grande carga do átomo de ouro, justamente a sua carga positiva, estaria
concentrada essencialmente em uma minúscula região central . Ele pediu então ao
jovem teórico Charles Darwin que fizesse um estudo exato do espalhamento
produzido por um átomo distinto. Os resultados obtidos confirmaram suas
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expectativas e os físicos se viram, então, diante de um modelo atômico nuclear
similar a um sistema planetário. A ligação química estabelecida entre os átomos
seria explicada, a partir de então, como resultado da interação entre os elétrons
mais externos de átomos próximos, não tendo relação direta com o núcleo. O
núcleo seria, devido à grandeza e presença de sua carga, responsável pelo
comportamento químico do átomo. A carga do núcleo seria responsável também
por fixar o número de elétrons girando à sua volta.
12
Apêndice 6
Um outro tipo de fenômeno que foi bastante relevante para a teoria quântica
foi o padrão de linhas espectrais emitido por um elemento (espectro de emissão de
um elemento), descoberto por Kirchhoff e Bunsen
13
. Quando um arco elétrico
passa através de uma amostra de gás ou vapor como o hidrogênio, o gás brilha com
uma cor característica. Por exemplo, o hidrogênio é laranja e o sódio é amarelo.
Em um exame mais cuidadoso, é possível perceber que apenas algumas
freqüências da luz estão presentes. Fotografias das linhas espectrais mostram que
uma vez decompostas ou separadas por um retículo difrator (ou dispersas por um
prisma) revelam um conjunto de linhas brilhantes, cujo comprimento de onda é
apenas um no elemento da substância que emite o espectro. Tais espectros
discretos são característicos de todos os elementos e podem ser usados como uma
espécie de “digital” que possibilita sua identificação. Este espectro discreto era
surpreendente uma vez que, de acordo com um das leis da teoria clássica, cargas
aceleradas emitem radiação eletromagnética. Se as cargas que ficam dentro da
matéria se movem ao acaso, seria de se esperar que radiações eletromagnéticas de
todas as freqüências fossem emitidas, o que produziria um espectro contínuo. As
freqüências discretas de emissão espectral dos elementos foram associadas a certas
órbitas estáveis ou vibrações características destas cargas.
Apêndice 7
“De acordo com o nosso conhecimento prévio, um elétron que gira em torno
de um núcleo não poderia permanecer em uma órbita elíptica ou circular por uma
12
Retirado de Cushing, James T., Philosophical Concepts in Physics, p. 276.
13
Annalen der Physik und der Chemie (Poggendorff), Vol. 110 (1860), pp. 161-189 (dated
Heidelberg, 1860).
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grande quantidade de tempo. Em primeiro lugar, o elétron carrega uma carga
elétrica, e em segundo lugar, ele vibra em sua órbita em torno do núcleo
14
”. Em
qualquer órbita descrita em torno do núcleo, um elétron está sempre se movendo
com aceleração diferente de zero e, de acordo com a lei clássica de Maxwell,
qualquer carga acelerada emite radiação, criando um campo eletromagnético e
perdendo energia, em outras palavras, um elétron centripetamente acelerado em
torno do núcleo deveria, emitir uma onda de radiação (que neste caso
observaríamos como luz ultravioleta). Ao perder energia, o elétron seria atraído
pelo núcleo para o qual ele se dirigiria num movimento espiralado e no qual cairia,
o que provocaria o colapso do átomo como um todo.
Apêndice 8
Para construir seu modelo atômico, Bohr admitiu, um átomo nuclear como o
de Rutherford. De acordo com a mecânica clássica, o problema de um elétron
orbitando em torno de um próton em um átomo (no caso do hidrogênio), sujeito
apenas à força coulombiana, é inteiramente igual ao problema de Kepler de dois
corpos na gravitação. Órbitas circulares ou elípticas são admitidas pela mecânica
clássica e Bohr optou, por uma questão de simplicidade, por uma órbita circular. O
elétron se move em uma órbita em torno do núcleo que exerce uma atração
eletrostática sobre ele. Ele então postulou que ao invés das infinitas órbitas aceitas
pela mecânica clássica, haveria apenas um certo número de órbitas estáveis (ou
seja, certos valores de r), que ele chamou de estados estacionários.
Conseqüentemente, os átomos poderiam existir em certos níveis de energia
permitidos, com energias Ea, Eb, Ec,... De acordo com a clássica, um elétron em
movimento deveria irradiar energia. Ele poderia irradiar, no entanto, todas as
freqüências produzindo um espectro contínuo, o que contrariava a experiência.
Contrariando esta lei, Bohr postulou também que um elétron seria dinamicamente
estável e, estando em uma destas órbitas reconhecidas, não emitiria energia. Não
havia nenhuma explicação clássica para isto e ele não ofereceu nenhuma. Ele
assumiu que a emissão ou absorção de energia por um elétron se dava apenas
quando este elétron fazia uma transição descontínua de um destes níveis permitidos
de energia (órbitas estacionárias) permitidas a outro, como na figura abaixo.
14
Heisenberg, Werner, Nuclear Physics, p.30
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113
Figura 3: Modelo atômico de Bohr.
Para obter a freqüência da radiação ele usou a idéia de que a energia
eletromagnética da radiação é quantizada e pode ser carregada por fótons, estando
cada fóton associado a uma freqüência v e carregando energia igual a hv (a
quantização de Planck). Bohr considerou inicialmente um elétron com nível zero
de energia total, ou seja, infinitamente longe do núcleo e em repouso, caindo em
uma das órbitas e quantizou a energia hv do fóton em termos da energia do elétron
em sua órbita final. Assim, em resumo, o átomo de Bohr consiste num núcleo
positivo com elétrons girando, em estados estacionários (um conjunto discreto de
camadas de energia). O estado estacionário de energia mais baixa, chamado de
estado fundamental, é realmente estável, ou seja, nele o átomo poderia permanecer
indefinidamente. Estes estados correspondem a órbitas eletrônicas em torno do
núcleo que Bohr calculou usando as leis da mecânica newtoniana e considerando
somente órbita coulombianas circulares. Apesar de se utilizar destes modelos
clássicos, Bohr violou a teoria eletromagnética vigente, ao postular que um elétron
em movimento na órbita não emitiria radiação. A fórmula de Bohr funciona
quantitativamente somente para os átomos de apenas um elétron (temos como
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114
exemplos: hidrogênio neutro, hélio singularmente ionizado (He+), lítio duplamente
ionizado (Li++), etc)
15
.
Apêndice 9
É pertinente aqui abrir um parêntese para descrever, mesmo que de modo
sucinto, o experimento das duas fendas
16
, que consiste de:
- Um dispositivo que emite elétrons (no caso, um fio de tungstênio, aquecido
por uma corrente elétrica, dentro de uma caixa de metal com um buraco (se o fio
está a uma voltagem negativa em relação à caixa, os elétrons por ele emitidos são
acelerados na direção das paredes da caixa e alguns são atirados para fora dela
através do buraco));
- Uma parede com duas fendas, colocada na frente do dispositivo; e
- Uma outra parede, colocada mais à frente da primeira parede, onde se situa
um detector de elétrons.
Figura 4: Experimento das duas fendas.
15
Ver também Jammer, Max, The Conceptual Development of Quantum Mechanics, p. 82.
16
Retirado, resumidamente, de Feynman, Richard, The Feynman Lectures on Physics, vol. III.,
op.cit. p. 1-1 a 1-11.
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115
Uma parte dos elétrons atirados vai parar na primeira parede, mas outra parte
vai passar através das duas fendas que nela se encontram chegar à outra parede. O
detector pode ser um alto falante conectado a um multiplicador de elétrons:
sabemos que um elétron chegou à parede ao ouvirmos um agudo ‘click’. Assim
podemos saber quantos elétrons chegaram à parede em um determinado período de
tempo.
Ao fazermos o experimento notamos, primeiramente, que por mais que
diminuamos a temperatura disponível no dispositivo de elétrons a única coisa que
muda é o intervalo de tempo entre a chegada de um elétron e outro, mas nunca o
tamanho do elétron. Os ‘clicks’ que indicam a chegada de cada elétron à parede
são sempre os mesmos, nunca ouvimos um ‘meio-click’. Também percebemos que
os elétrons chegam um de cada vez, e nunca dois (ou mais) ao mesmo tempo.
Podemos inferir, daí, que eles chegam em pacotes, como se fossem corpúsculos.
Isto parece indicar que os elétrons, ao passarem pela parede com as duas fendas
abertas, devam passar por uma ou por outra fenda. De fato, se bloquearmos uma
das fendas, digamos, a fenda 2 e calcularmos quantos elétrons chegaram ao outro
lado em um determinado período de tempo, veremos que o resultado é similar ao
de um experimento análogo feito, por exemplo, com balas de revólver. O mesmo
ocorre ao bloquearmos a fenda 1. Podemos calcular também a distribuição de
probabilidades de que um elétron chegue numa determinada parte da segunda
parede e, ao fazermos isto, vemos que enquanto trabalhamos com apenas uma
fenda aberta de cada vez, os elétrons se distribuem como se fossem corpúsculos.
Tal situação está representada, na figura acima, pelas curvas em azul e em
vermelho.
Isto deveria significar que, ao abrirmos as duas fendas, a probabilidade de
chegada dos elétrons em uma determinada região x fosse equivalente à soma das
probabilidades de chegada obtidas quando o experimento era feito com uma fenda
aberta de cada vez, como em um experimento com balas. Isto seria expresso por
uma curva que representa a soma destas duas curvas de probabilidades. No
entanto, quando fazemos o experimento com ambas as fendas abertas, o que
encontramos não o resultado esperado, mas a existência de um padrão
característico dos fenômenos ondulatórios. Os elétrons se comportam como se
fossem emitidos por um gerador de ondas, e não de corpúsculos: uma onda
emitida por tal aparelho ao passar pelas fendas se divide em duas. Estas duas se
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encontram do outro lado formando um padrão de interferência. Podemos ver este
fenômeno representado na figura abaixo (ou na alínea “c” da fig. 4).
Figura 5: Padrão de interferência.
Sabemos, deste modo, que o gráfico obtido com as duas fendas abertas é tal
que os elétrons parecem se comportar como se fossem ondas, i.e., eles apresentam
um padrão de interferência. No entanto, sabemos também que, quando fazemos o
mesmo experimento deixando apenas uma das fendas aberta, os elétrons se
comportam como se fossem corpúsculos. Isso significaria que os elétrons se
dividem em duas partes quando temos as duas fendas abertas? Não, uma vez que
também sabemos que eles sempre chegam em pacotes.
A interpretação de Born não dava conta deste experimento, porque de acordo
com esta interpretação o gráfico encontrado ao se abrir os dois buracos deveria ser
a superposição dos gráficos das fendas fechadas separadamente. No entanto, como
vimos, a função obtida quando ambas as fendas estão abertas apresenta um padrão
de interferência, o que significa que a função de onda não é apenas uma
representação do nosso conhecimento, mas algo fisicamente real.
O experimento das duas fendas, como outros experimentos em mecânica
quântica, levanta ainda uma outra questão, intimamente ligada à anterior e bastante
central em mecânica quântica, e de que Heisenberg tratará em suas relações de
incerteza (ou indeterminação). Em uma teoria física, um experimento é tipicamente
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117
descrito em termos do estado do sistema observado. Na física clássica, as
quantidades físicas (variáveis) independentes especificam completamente o estado
total do sistema em qualquer instante de tempo.
17
Uma vez especificadas as
variáveis relevantes são utilizadas leis dinâmicas para calcular a evolução desse
sistema no tempo. A equação temporal relaciona os valores numéricos dessas
variáveis independentes extraídos da experiência, em um instante inicial t1
qualquer, aos valores numéricos das mesmas variáveis independentes, em um
instante ulterior t2 qualquer, e isso de tal modo que é possível, a partir da simples
colocação, na equação temporal, dos valores empiricamente determinados em t1,
deduzir os valores de um instante futuro t2. A equação temporal faz, portanto, a
passagem de um diferente estado a outro, estabelecendo entre eles uma relação de
causa e efeito necessária. A característica fundamental das mecânicas einsteiniana
e newtoniana é que nestas mecânicas podemos, em princípio, do instante inicial de
um sistema, deduzir seu estado futuro. Isto é, os valores no instante futuro t2
podem ser obtidos a partir da mera resolução da equação temporal.
18
Apêndice 10
O princípio de incerteza foi primeiramente colocado por Heisenberg da seguinte forma: no ato de
medição de qualquer objeto, não se pode determinar o seu momento com uma incerteza p e
determinar, simultaneamente, a sua posição x mais acuradamente que x = h/p (h é a constante
de Planck). Assim, quanto mais se sabe sobre o valor de uma destas variáveis, menos se sabe sobre
a outra
19
.
17
Cushing, James T., Philosophical Concepts in Physics, p. 290.
18
Por exemplo, o estado de um sistema na mecânica de partículas clássica é especificado pelas
posições e velocidades de todas a s partículas no sistema. A segunda lei de Newton, F = ma, é
então utilizada para determinar a evolução das variáveis ou do estado do sistema. No caso da
eletrodinâmica, as variáveis são os campos elétricos e magnéticos e as equações de Maxwell
governam sua evolução temporal.
19
Feynman, Richard, The Feynman Lectures on Physics, vol. III, p. 1-11.
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