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ROSA AMALIA ESPEJO TRIGO
CEFURIA - MILITÂNCIA E
PAIXÃO:
Um estudo sobre a processualidade do sujeito
político em contexto de formação
Doutorado em Psicologia Social
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
SÃO PAULO - SP
2007
ROSA AMALIA ESPEJO TRIGO
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CEFURIA – MILITÂNCIA E
PAIXÃO:
Um estudo sobre a processualidade do sujeito
político em contexto de formação
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Doutora em Psicologia Social, sob a orientação da
Professora Dra. Bader Burihan Sawaia.
SÃO PAULO – SP
2007
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BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Profa. Dra. Bader Burihan Sawaia
Orientadora
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social PUC-SP
__________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Ozella
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social PUC-SP
___________________________________________
Profa. Dra. Maria Lúcia Carvalho da Silva
Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social PUC-SP
__________________________________________
Profa. Dra. Kátia Maheirie
Programa de Pós-Graduação em Psicologia UFSC-SC
_________________________________________
Profa. Dra. Margarida Barreto
Departamento de Medicina Social – Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de
São Paulo-SP
Machu Pichu, pusiste
Piedra en piedra, y en la base harapos?
Carbón sobre carbón, y en el fondo la lágrima
Fuego en el oro, y en él, temblando el rojo
Goterón de la sangre?
Devuélveme el esclavo que enterraste!
Sacude de las tierras el pan duro
Del miserable, muéstrame los vestidos
Del siervo y su ventana
Dime como durmió cuando vivía.
Dime si fue su sueño
Ronco, entreabierto, como un hoyo negro
Hecho por la fatiga sobre el muro.
El muro, el muro! Si sobre su sueño
Gravitó cada piso de piedra, y si cayo bajo ella
Como bajo una luna, con el sueño!
Antigua América, novia sumergida…
Fragmentos del poema de Pablo Neruda “Alturas de Machu Picchu”
“La visión de Karl Marx – ciertamente utópica – entraña la supresión de la enajenación, la
apropriación de la riqueza social – de la totalidad de la cultura – por parte de cada individuo
particular. En el espíritu de tal utopía el socialismo constituye una cualidad vital; su idea
conductora es el sentido de la vida de los individuos; y la transformación revolucionaria de la
estructura social es unicamente su instrumento” Heller, 1991, p. 6.
DEDICATÓRIA
Ao CEFURIA, pelas lutas e sonhos alcançados
“Hacer que deje de haber sufrimiento es la tarea fundamental para el
hombre contemporaneo. Y nunca ha sido tan dificil esa tarea. Porque nunca
ha sido tan grande el peligro” (Heller, 1985, p. 315)
A Ramón, pelo amor companheiro
A minha mãe amada,
Luzviana
A nossos filhos, presentes de toda vida,
Carlos Alberto e Ana Maria
A nossos dois novos amores,
Valentina e Ignacia
A Adriana, pelas jornadas vividas dia a dia
Aos movimentos sociais, por tudo que devemos a eles
A América Latina, terra querida
AGRADECIMENTOS
Agradeço, infinitamente, aos professores que me deram a oportunidade de estar hoje
escrevendo estes linhas.
Muito obrigada pela confiança, dedicação e valiosos ensinamentos, à professora Dra.
Bader Burihan Sawaia, minha orientadora e professora. Ao me acolher, mostrou-me
os caminhos de um desenvolvimento humano. Um obrigado especial.
Muitíssimo obrigada, quase sem palavras que possam expressar meu agradecimento,
à professora Dra. Kátia Maheirie que, com força, dedicação e exigência, levou-me de
volta aos trilhos da psicologia social como ciência do conhecimento do ser humano.
E, junto a isso, também me estendeu a mão amiga.
Meus agradecimentos à professora Dra. Andréa Zanella pela interlocução, seus
conselhos e ensinamentos e pelo grande apoio em momentos difíceis. Obrigada por
fazer que hoje esteja escrevendo todo este encadeamento.
Obrigada à professora Dra. Mary Jane Spink, Coordenadora do Programa de Pós-
graduados em Psicologia Social, pela oportunidade e abraço carinhoso.
Obrigada aos professores que participaram da qualificação Dra. Maria Lucia
Carvalho e Dr. Sergio Ozella pela leitura dedicada e as valiosas contribuições para a
elaboração deste trabalho de pesquisa.
Sou agradecida também a “minha turma”: Adélia, querida colega e amiga de grandes
encontros, Rosário, Dulce, Flavia, J’amis e Paulo Vinicius. Obrigada, queridos
amigos, pois com vocês encontrei a amizade, o respeito e a grandeza dos bons
relacionamentos.
Um agradecimento muito especial para meu amigo Marquinhos que “adotou” meu
doutorado como uma causa sua e esteve comigo ajudando-me, com sua interlocução,
a pensar, analisar e elaborar interpretação da realidade. Muito obrigada,
Marquinhos.
Agradeço a meu querido amigo Jardel, pela força, a amizade e as contribuições.
A Marlene querida, por sempre facilitar as formalidades necessárias com seu jeito
carinhoso. Agradeço sua forma de ser leve e acolhedora, obrigada.
A Andressa, amiga querida, pelo apoio e pelas transcrições das entrevistas e pelos
momentos de descontração.
Um agradecimento muito especial ao Cefuria e a sua gente carinhosa, que me
ensinaram a ter um olhar mais aberto da vida. Agradeço, em especial, às pessoas que
se dispuseram ao diálogo em minhas entrevistas. Mais uma vez: muito obrigada.
Queria agradecer à Adriana, minha querida, pela companhia e força contagiante e
pelo grande apoio no que “der e vier”.
A Elsa, minha querida colaboradora em casa, pelo apoio e amizade.
A Ramón, companheiro de tanta história, a Carlos Alberto e Ana Maria, nossos filhos
queridos, que nos ensinam, dia após dia, como é necessário persistir no destaque de
um sujeito da ética pelos valores do desenvolvimento humano.
Agradeço infinitamente ao Professor Décio que com máxima dedicação limpou este
trabalho do rebelde “portunhol”, espero não ter construído muitos novos rastos. É
difícil deixar de escrever, quando sentimos que esse é o caminho...
Ao CNPq, agradeço profundamente pela bolsa que possibilitou este querido
empreendimento de pesquisa.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo estudar a processualidade do sujeito político que
participa em espaços coletivos populares. A pesquisa foi realizada com militantes
que participam do Centro de Formação Urbano-Rural Irmã Araújo – Cefuria, com
sede em Curitiba – Paraná, que há mais de 25 anos dá subsídios a distintos grupos e
movimentos em sua formação e mobilização política. O referencial teórico-
metodológico adotado se fundamenta na concepção de um sujeito histórico-social, da
qual destacamos a obra de Vygotski que permite privilegiar os processos de
transformação do sujeito como singularidade que expressa ao mesmo tempo o efeito
do contexto sócio-político. Outros autores que sustentam a concepção de um sujeito
histórico social também contribuíram com nossa leitura teórica.
Foi utilizada a entrevista semi-estruturada como instrumento de pesquisa, sendo
entrevistados dezesseis sujeitos, dos quais oito foram escolhidos, neste estudo, para a
análise pela abrangência e representatividade de seus depoimentos. A análise dos
dados busca caracterizar a processualidade da participação política dos sujeitos
entrevistados, na apreensão dos sentidos dados à realidade na elaboração dos afetos,
pensamentos e vontade, enquanto categorias psicossociais constitutivas dos sujeitos.
Para tanto, buscam-se nos depoimentos unidades de sentido, que, na configuração de
um processo da realidade, nos possibilitem a compreensão e análise de momentos de
transformação e estagnação, constituídos e constituintes dos sujeitos entrevistados. A
partir da análise, é possível refletir sobre a base afetivo-volitiva que os mantém na
participação. Encontramos, nestas pessoas, uma força de vontade, uma paixão que as
leva a enfrentar os conflitos, as crises, as dificuldades, não como elementos que
possam abalar sua própria participação, mas, como fatores que as promovem a
procurar “brechas”, novas formas de ação política que ampliem o campo dessa ação.
Este trabalho de pesquisa demonstrou que as necessidades que motivam a estas
pessoas estão voltadas “aos outros”, na busca de espaços coletivos que, além de
políticos, sejam comunitários e solidários, ensejando espaços de vida para os mais
despossuídos da sociedade. Nesse sentido, encontramos nestes sujeitos, o “sujeito
ético” que se afeta com os outros e o sujeito que caminha para seu desenvolvimento e
para a liberdade.
ABSTRACT
This work has as aim to study the processuability of the political agent that
participates in collective popular rooms. The research was carried out with militants
that participate of the Formation Urban Rural Center Irmã Araújo – Cefúrio, with
seat in Curitiba – Paraná, that for more than 25 years gives subsidies to distinct
groups and movements in their formation and political mobilization. The theoretical-
methodologic reference adopted is based on the conception of a historic-social agent,
of which we detach the work of Vygotski that allows to privilege the processes of
transformation of the agent as singularity that express, at the same time, the effect of
the political-social context. Others authors that sustain the conception of a historial
social agent also contributed with our theoretical interpretation. It was used the semi-
structured interview as a research tool where sixteen agents were interviewed, eight
of which were selected, in this study, for the analysis for the abrangency and
representativity of their deposition.** The analysis of the data searchs for characterize
the processuality of the interviewed agents, in the apprehension of the senses given
to the reality of the elaboration of the affection, thoughts and wills, while
psychosocial categories constitutive of the agents. In this way, it was searched in the
depositions unities of sense that in the configuration of a reality process turned it
possible the comprehension and analysis of moments of transformation and
stagnation, constituted and constituent of the interviewed agents. Through this
analysis it is possible to reflect about the affective-volitional base that maintain them
participating. Having these people, their ideals directed to social transformation,
what motivate them extremely is to promote in the diverse social sectors the
participation. The political life of these people is a daily fight for participation and in
this sense, elaborate their plans of action, their strategies and their own projects of
life. We have found in these people a strong strength of will, a passion that make
them face the conflicts, the crisis, the difficulties, not as elements that could disturb
their own participation but as factors that promote them to find unknown
alternatives, new ways of political action that turn it possible to amplify their field of
action. This work of research demonstrated that the necessities that motivate these
people are come back “to the others”, in the search of collective spaces that beyond
politicians, are communitarian and solidary, trying the most dispossessed spaces of
life for of the society. In this direction, we find in these agents, the “thical agentes”
that if affect with the others and the agents thar walks for its develoment and the
freedom.
SIGLAS
ABONG – Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais
ALCA - Área de Livre Mercado das Américas
APP - Sindicato dos Trabalhadores da Educação do Paraná
ASC – Associação Social Continental
CEBs - Comunidades Eclesiais de Base
CEDOC – Centro de Documentação e Biblioteca Popular:
CEE Comunidade Econômica Européia
CEFURIA - Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo
CEPAT: Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores
CNBB Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil
CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CPJP – Comissão Pastoral de Justiça e Paz
CPO - Comissão Pastoral Operária
CPT - Comissão Pastoral da Terra
CUT - Central Única de Trabalhadores
EMATER – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural
FACINLUTA – Cooperativa de artefatos de cimento para construir as casas na
ocupação do XAPINHAL
FINEP - Financiadora de Estudos e Projetos
IDH: Índice de Desenvolvimento Humano
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
MAB Movimento de Associações de Bairros de Curitiba e Região Metropolitana
MCT - Ministério de Ciência e Tecnologia
MAIS - Movimento pelo Desenvolvimento, o Intercambio e a Solidariedade
MLCD Movimento de Luta contra Desemprego
MPMP - Movimento Popular de Mulheres do Paraná
MOPC – Movimento Pró-Participação Popular na Constituinte
MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
ONG – Organização Não Governamental
ONGs – Organizações Não Governamentais
PO - Pastoral Operária
PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PSTU - Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados
PT - Partido dos Trabalhadores
PUC – Pontifícia Universidade Católica
PUC/SP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura
UNAM - Universidad Nacional Autónoma de México
XAPINHAL - Organização das Associações de Moradores do Xaxim, Pinheirinho e
Boqueirão
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..............................................
14
CAPÍTULO 1
..................................................................... 24
1. REFERENCIAIS TEÓRICOS. 24
1.1 O sujeito constituindo e constituído pela sociedade................................. 24
1.2 A teoria de Vygotski como referência do sujeito....................................... 37
CAPÍTULO 2
............................................................................................. 52
2. CEFURIA.................................................................................................................. 52
2.1 Um pouco de história ...................................................................................... 52
2.2 O que é o CEFURIA ........................................................................................ 62
2.3 O CEFURIA, o Povo e os Movimentos Populares .................................... 68
CAPÍTULO 3
...............................................................
78
3 REFLEXÕES E APONTAMENTOS METODOLÓGICOS.................................. 78
3.1 Reflexões e apontamentos metodológicos, a partir de Vygotski ........... 78
3.2 A entrevista como técnica ............................................................................. 83
3.3 Análise dos dados .......................................................................................... 84
3.4 Os entrevistados ............................................................................................. 87
CAPÍTULO 4
...............................................................
92
4. ANÁLISE DA PROCESSUALIDADE DA PARTICIPAÇÃO POLÍTICA
DOS SUJEITOS ENTREVISTADOS
92
4.1 A raiz da participação ................................................................................... 94
4.2 A origem da entidade..................................................................................... 107
4.3 A Constituinte ................................................................................................ 112
4.4 Momentos difíceis........................................................................................... 117
4.5 A Consulta Popular........................................................................................ 132
4.6 A Campanha contra ALCA ......................................................................... 142
4.7 A relação entre o partido e os movimentos e sua culminação na crise
do Lula...........................................................................................................................
150
4.8 Entre o macro e o micro a escolha pela economia solidária ...................
160
4.9 CEFURIA, um lugar de encontros........................................................... 179
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 186
6. BIBLIOGRAFIA........................................................................................................ 197
7 ANEXOS.................................................................................................................... 206
Entrevista............................................................................................................. 207
Guias da entrevista............................................................................................. 228
14
INTRODUÇÃO
Compreender o ser humano em suas práticas de resistência às relações de
dominação e exploração é uma inquietação que me tem acompanhado desde longa
data. O interesse nesse âmbito foi sendo suscitado a partir da cultura política das
pessoas, ou seja, dos modos como, a partir de práticas de vida e concepções de
mundo, as pessoas significam relações de dominação e poder, imprimindo o político
no cultural e também, por sua vez, o cultural no político (Álvares; Dagnino e
Escobar, 2000).
Na busca da compreensão desses modos de significação, fui-me
surpreendendo pela tendência de uma grande maioria de pessoas assumirem formas
de pensar e atuar que perpetuam relações de dominação e submissão.
No início de meus estudos em psicologia, tinha menos elementos que hoje
para compreender essas formas de relacionamento. No entanto, elas foram se
transformando no eixo mais preponderante de minha aproximação ao conhecimento.
Tais inquietações têm-me acompanhado e motivado minhas reflexões, a partir da
psicologia social, como área do conhecimento que focaliza a relação dos indivíduos
entre si e com a sociedade.
No decorrer de meus estudos, foi se explicitando que vivemos nossas
realidades mediadas por elementos ideológicos, os quais, muitas vezes, justificam
relações de dominação que nos submetem, demarcando, disciplinando e buscando
direcionar nossas formas de atuar. Todavia, o meu interesse focalizou-se naqueles
grupos que questionavam essas condições, relacionando-as com a vida real: setores e
grupos que se organizavam em “focos de resistência”. Foi a partir disso que surgiu a
inquietação que motivou este trabalho de pesquisa, qual seja, indagar como as
pessoas significam sua participação em ações coletivas.
Como estudante de Psicologia participei, nos anos 90, do Programa de
Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), junto ao Laboratório de Estudos de Comportamento Político da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Nesse espaço, tive a oportunidade
15
de acompanhar várias pesquisas, coordenadas pelas professoras Dra. Louise Lhullier
e Dra. Kátia Maheirie, pesquisas que versavam sobre temáticas relacionadas com
conceitos de autoritarismo, desenvolvimento moral, pensamento cotidiano e
identidade. A partir do trabalho investigativo com esses conceitos, foi possível
ampliar minhas reflexões e relacioná-las com acontecimentos que se impõem como
desafios do mundo atual.
Tendo sempre como preocupação as relações de dominação e, especialmente,
as formas de resistência como prática social, e ainda cursando graduação em
psicologia, interessei-me por estudar, a partir dessa perspectiva, as formas de
relações estabelecidas no mundo do trabalho
1
. Aproximei-me da Escola Sul
2
da CUT
de Florianópolis-SC e acompanhei, na forma de observadora participante, uma série
de atividades de formação. Essa experiência levou-me a perceber o impacto
provocado, neste âmbito das relações humanas, pelas profundas mudanças do
mundo do trabalho, criadas no contexto da globalização e amparadas na ideologia
neoliberal (Espejo, 1996).
Os problemas que estavam sendo tratados apontavam para uma nova forma
de relações no mundo do trabalho. A busca de soluções e estratégias de ação era
múltipla e se refletia seriamente em outras dimensões das vidas humanas,
ultrapassando extensamente o mundo do trabalho.
Fiz o Mestrado focalizando a constituição do sujeito no impacto das
transformações do mundo do trabalho e, nesse intuito, pesquisei sujeitos que
vivenciavam o processo da privatização da empresa estatal na qual trabalhavam.
Tanto os empregados que estavam de acordo com a privatização, quanto os que a
rejeitavam coincidiam na preocupação despertada pela incerteza de que esse
acontecimento trazia para suas vidas: a concretude real da fragilização de seus postos
de trabalho. A pesquisa evidenciou as diversas estratégias que estes sujeitos
1
Mundo do trabalho é definido por Fleury & Vargas (1983) como o espaço social, político e
econômico no qual interagem o capital, o estado e os trabalhadores.
2
Escola sul da CUT é uma entidade ligada a CUT que da formação sindical voltada aos dirigentes,
lideranças, trabalhadores de base, formadores, assessores do movimento sindical na Região Sul.
16
desenvolveram para enfrentar esse momento, em um entremeado de práticas de
resistência e conformismo (Espejo, 1999).
Foi relevante concluir que as condições estabelecidas levaram a grande
maioria das pessoas a se voltar à filosofia de vida “salve-se quem puder” e à perda
de espaços de convivência social. A tendência das pessoas foi a de se fixarem no
individualismo, numa exacerbação das subjetividades mônadas. Toda essa
complexidade das relações humanas e de constituição de subjetividades se dava no
contexto de um mundo que vivenciava o fulgor das tecnologias em seus mais
sofisticados artifícios. Referimo-nos às condições propiciadas pela globalização, que,
como imperativo de nossas realidades, nos defrontavam com uma série de
amplitudes e de limitações que derivavam em oportunidades e em profundas
desigualdades.
Vastos setores são incluídos na globalização pelo endurecimento de suas
condições de vida, pelo acirramento da pobreza e pelo recrudescimento das
desigualdades. São também excluídos dos sistemas sociais, dos meios de informação
e comunicação, das regalias dos avanços tecnológicos, impulsionando, assim, um
distanciamento maior entre os diversos setores sociais (Stiglitz, 2002).
O que se consolida são formas instáveis e fragmentárias de modos de vida que
repercutem nos seres humanos de forma desigual, em razão de certas características
e condições pessoais, econômicas e sociais que, na atualidade, se realizam na lógica
da exclusão – inclusão.
A própria história vai evidenciando que a globalização não é um fenômeno
homogêneo e que, em sua realidade concreta, se realiza em um vasto campo de
conflitos entre grupos sociais, Estados e interesses encontrados (Sousa Santos, 2002),
não só como um fenômeno de expansão econômica, mas como um processo que
atinge a vida das pessoas, produzindo subjetividades ativas e determinadas no
contexto produzido. Nesse sentido, a globalização realiza-se não somente no
processo de expansão pelos globalismos, mas também como um auge dos
particularismos e localismos, que incendeia formas de identidades múltiplas, locais e
nacionais (Sousa Santos, 2002).
1
7
Movimentos antiglobalização apoderam-se do espetáculo do mundo global,
no início dos anos 2000, como expressões coletivas que conseguem colocar, na pauta
política mundial, elementos da vida concreta das pessoas. Emergem localismos, focos
de resistência que se recriam como uma forma de se sobrepor às condições impostas
pela globalização, denunciam condições de exploração e miséria e recriam antigas
práticas de sobrevivência e luta, própria das épocas comunais.
Nesse contexto de realidade, é que voltei meu interesse por pesquisar como
pessoas envolvidas historicamente em ações coletivas significam suas práticas a
partir das condições atuais. Essa inquietude levou-me a procurar espaços que
pudessem me ajudar a compreender esses fenômenos sociais.
Em Curitiba (Paraná), existe um espaço social, político e cultural que reúne
diversos grupos que se organizam para a ação política: movimentos sociais como o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Pastoral Operária (PO), a
Comissão Pastoral da Terra (CPT), os sindicatos, os clubes de trocas, as padarias
comunitárias. São grupos que transitam por este espaço com o objetivo comum da
reflexão e ação para a transformação da sociedade, em prol de condições dignas de
vida e em direção a novos modos de produção, em oposição ao capitalismo.
Trata-se do “Centro de Formação Urbano-Rural Irmã Araújo” – CEFURIA,
uma Associação Civil que prioriza a formação política, através de assessorias e cursos
de formação. O Centro de Formação colabora com diferentes setores populares na
sua organização e na mobilização popular, bem como contribui com setores
marginalizados da sociedade, para sua inclusão pelo trabalho e pela formação
política.
Apresentem-me a essa instituição manifestando meu interesse de estudar
sujeitos que participam em ações coletivas. Nesse intuito, fui convidada pelos
militantes que me receberam no CEFURIA, a pesquisar a mobilização contra a Área
de Livre Comércio das Américas (ALCA)
3
.
3
A ALCA é uma proposta de área de livre comércio, liderada pelos Estados Unidos, e que
englobaria todos os países das Américas menos Cuba. Esta iniciativa foi sendo abandonada devido
à oposição para sua implementação. Não obstante os esforços dos setores interessados em seu
andamento orientaram-se para tratados comerciais mais pontuais, diretamente entre os países.
18
Logo depois, assisti a uma palestra, no CEFURIA, ministrada pelo líder do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), João Pedro Stédile
4
, que
tratou sobre os impactos da ALCA na América Latina. E, em outro momento,
participei do Seminário Estadual de Formação e Mobilização, que aconteceu entre os
dias 6 e 7 de abril de 2002; todas as atividades organizadas pelo CEFURIA.
Este Seminário reuniu aproximadamente 800 pessoas e foi um impacto à
percepção que tinha dos espaços participativos para mobilização social. A idéia de
que a globalização tinha imposto uma direção, sem deixar espaços para outras
orientações, o que nas ciências sociais foi denominado de pensamento único
5
, diluía-
se diante da presença de pessoas que tinham a inquietude de fazer algo em
contraposição às condições estabelecidas hegemonicamente.
Representantes de pastorais, movimentos sociais, diversos sindicatos,
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e partidos políticos como o
Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados
(PSTU) se articulavam, liderados pelo CEFURIA, na campanha contra a ALCA.
Naquele momento, os rumos que foram assumidos e que se consolidaram me
impulsionaram a pesquisar sobre a participação em ações coletivas no contexto atual
da globalização junto à mobilização contra a ALCA em Curitiba – Paraná.
Entretanto, o objeto de pesquisa escolhido não conseguiu dar-me elementos
suficientes e necessários para atingir o que estava buscando: aspectos psicossociais
que mediatizam a participação destas pessoas em grupos de mobilização ou de
resistência. A rigor, poder-se-ia dizer que fui totalmente absorvida pelo próprio
movimento, perdendo o horizonte da pesquisa.
Contudo, enquanto me deparava com minhas dúvidas e incertezas, as pessoas
que compunham o Centro de Formação mudavam diametralmente o rumo de suas
lutas. Da participação na Campanha contra ALCA passaram a realizar práticas de
4
Líder dos Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. Membro de sua direção
nacional, é formado em Economia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul –
PUC/RS e com pós-graduação na Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM).
5
A idéia central do pensamento único, compartilhada tanto por adversários como por defensores, é
que a globalização da economia se impôs sobre os Estados nacionais e os Movimentos Sociais
tornando inviáveis as políticas sociais. (Touraine, 1999, p. 13).
19
mobilização política junto aos setores mais empobrecidos, nas bases, com pessoas
que se encontram em extrema fragilidade social. Sua participação agora se dava pelo
acompanhamento das condições e meios de vida dessas pessoas e pela criação de
espaços de formação e conscientização política, a partir do cotidiano delas.
Por que se mudou de rumo? Ou seria o mesmo? Qual é a trama que articula a
mobilização global às pequenas comunidades desfavorecidas? Por que estas pessoas
se orientaram a expandir sua potencialidade de luta junto ao segmento mais precário
da população? Como elas significam seu processo de participação?
A realidade que se apresentava me deparava com desafios que deveria
superar, munida de meus subsídios teóricos, referenciados na compreensão da
perspectiva sócio-histórica dos sujeitos, sendo o homem sujeito da história e
transformador de sua própria vida e da sua sociedade (Lane,1986).
Nesse intuito, foi-se revelando a necessidade de situar a noção de sujeito em
algumas de suas implicações, assim como também alguns dos relacionamentos
estabelecidos entre este e a sociedade que se definem, por um lado pelo sujeito
submisso a forças escravizadoras, por outro lado, pelo sujeito resistente num esforço
extremo para recusar o que quiseram fazer dele (Sawaia, 2000b).
Para apresentar essa concepção de sujeito que é a base da presente pesquisa
exponho no primeiro capítulo a síntese do levantamento da literatura realizada. O
que foi emergindo foi o sujeito da modernidade, na leitura de Renaut (1998), um
sujeito das decisões, orientado à instrumentalização do mundo e de si mesmo. Um
sujeito que se libera das amarras do mundo pré-moderno e que pode escolher seu
futuro, num mundo incerto. Segundo Figueiredo (1991, 1992), um sujeito que, ao
poder escolher seu destino, se insere num mundo inseguro, de erros e de dúvidas.
Um sujeito que, ao dominar a natureza, acabou submetendo-se a si mesmo,
passando a ser regido pelas leis da natureza, que ele mesmo descobriu (Touraine,
1995). Um sujeito que se transforma em objeto e é atravessado numa sucessão de
rupturas: alma/corpo; subjetividade/objetividade; razão/emoção que comandam a
leitura de si mesmo.
20
Um sujeito que na busca de sua liberdade, oprime os demais, estabelecendo a
propriedade privada e se rege pelo individualismo que passa a idéia de que tudo se
deve a si mesmo e nada se deve a ninguém (Renaut, 1998; Canevacci, 1981).
Em um mundo construído pelos sujeitos, globalizado e diversificado e
constantemente em transformação, Heller (1996), autora que se inicia em suas
reflexões a partir de Marx, caminha na postulação de um sujeito da ética. Os
caminhos teóricos, percorridos por esta autora, levam-na a definir que não há um
caminho histórico pré-determinado para a emancipação.
Essa filosofa situa a emancipação humana como um processo de
possibilidades na qual o sujeito é parte ativa. Declara a alienação do ser humano pela
cisão entre razão e sentimentos, estipula que a ética possibilita a reconciliação destes,
através do compromisso solidário destinado a aliviar o sofrimento da humanidade
(Rivero, 1996).
A partir destas reflexões defino a concepção de sujeito sócio-histórico ou seja,
que se configura nas suas relações sociais. Um sujeito social, constituído nas
relações sociais, na historicidade de sua processualidade, motivado pelas suas
necessidades. Um sujeito atuante e criativo que se realiza pela sua atividade, mas que
é coagido e cerceado pelos outros, fundamentados em ideologias que mascaram a
realidade. Marx (2004) e Marx e Engels (1996).
Nesse contexto, nossa visão psicossocial é subsidiada na obra de Vygotski
(1999b, 1999c), autor que se rege pelo materialismo-histórico e dialético na inspiração
de Marx, e nessa perspectiva, considera o sujeito, a partir de sua materialidade,
constituído pela sua atividade e relações sociais. Nesta leitura teórica do sujeito,
compreende-se que este se constitui na mediação dialética de suas conexões e
relações interpsicológica, possibilitando, a partir daí, a construção dos processos
intrapsicológicos, no qual as distintas categorias e funções se conectam, uma
constituindo a outra concomitantemente, mas diferenciando-se em sua
especificidade. Nessa perspectiva são superadas as cisões que dicotomizam
historicamente a psicologia e os sujeitos.
O recorte teórico que se foi construindo deve levar-nos pela historicidade e
mediação, na processualidade política dos sujeitos entrevistados, pela inexorável
21
relação com o processo da sociedade, na captação de afetos, desejos, motivos,
interesses que denotam as relações constitutivas homem/sociedade. Como diz
Marx, existe uma unidade indissolúvel de indivíduos e sociedade, de modo que seu
desenvolvimento é realizado por meio da evolução social, ainda que, nesse processo,
a sociedade lhe pareça estranha (Teixeira, 1999).
Seguindo os passos dos sujeitos deste estudo, nos defrontamos com seus
desejos, necessidades e projetos, motivados em suas ações coletivas pelo povo e
movimentos populares. Assim, o segundo capítulo versa sobre o CEFURIA, como a
entidade mediadora de seus sonhos e projetos, e sobre a noção de povo e de
movimentos populares, como o alvo que os motiva em suas ações e reflexões. A
história do CEFURIA vai-se misturando com as origens políticas destas pessoas, suas
lutas, relacionamentos que os constituem e que estão sempre vinculadas ao povo,
atravessado de sofrimento ético-político e reunidas, em algumas ocasiões,
politicamente nos movimentos populares.
O fio condutor que transforma a participação política em necessidade de
alguns é o sofrimento ético-político dos outros, que, segundo Sawaia (1999), retrata a
vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica,
especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior e
subalterno.
É Vygotski (1993, 1999c) principalmente, que oferece subsídios teóricos e
metodológicos para a análise e compreensão dos sujeitos da pesquisa, o que
desenvolvemos no terceiro capítulo. Este autor propõe a análise semântica pelo
significado da palavra, como sendo unidade da linguagem e do pensamento, mas
não sendo exatamente o mesmo que elas. Postula a vinculação extrínseca dos
processos afetivos e intelectuais enquanto toda idéia pousa num afeto permitindo
descobrir o movimento direcional que parte das necessidades ou impulsos do
individuo para uma determinada intenção de seu pensamento e, ao contrário,
permite desvelar a dinâmica do pensamento que se orienta à dinâmica do
comportamento e a atividade concreta.
Nesse percurso e a partir desses subsídios teórico-metodológicos foram
abordados os sujeitos, por meio de entrevistas semi-estruturadas (Triviños, 1987).
22
Procuramos, a partir das falas dos entrevistados, construir unidades de
sentido, como sendo configurações que expressam o sujeito como objeto de análise, a
partir de uma totalidade possível de ser compreendida, analisada e definida num
contexto histórico-social pela apreensão dos aspectos afetivo-volitivos e intelectuais
(Vygotski, 1993). No intuito de aceder à processualidade política destes sujeitos
construímos essas unidades de sentido, em torno de momentos relevantes
expressados, dessa forma, pelos sujeitos. Considerando esses delineamentos
metodológicos no capítulo quatro fizemos análise das entrevistas.
Pode-se dizer que fazer uma pesquisa sobre participação em ações coletivas é
a concretização de um desejo que reúne meus mais intensos afetos, na medida que
esse espaço social possibilita a compreensão de algumas práticas de resistência às
condições que se impõem no mundo atual. Por outro lado, trata-se de espaços de
relevância social e política que possibilitam, a partir das subjetividades interrogadas,
situarmo-nos nas realidades críticas de nossa sociedade regulamentada; aproximam-
nos da compreensão dos caminhos percorridos por estes grupos enquanto “...são
profetas do presente. Não têm a força dos aparatos, mas a força da palavra” (Melucci, 2001,
p. 21).
A relevância de assumir o estudo desses militantes, a partir da dimensão
psicossocial, fundamenta-se no fato de que, nas próprias práticas do dia-a-dia, na
interconexão de pensamentos, afetos e vontade, os sentidos dos sujeitos vão
adquirindo formas concretas que incidem em práticas sociais. Tais processos
mediatizam a participação na ação coletiva e dependem em cada situação das
circunstâncias históricas e das condições sociais, voltando-se em suas conseqüências
a se recriar no contexto, impondo novos rumos às nossas sociedades.
A expectativa, em relação a este trabalho, passa pela possibilidade de alcançar,
a partir da busca dos sentidos de algumas pessoas, vinculadas ao CEFURIA, um
conhecimento do processo político de um setor atual das ações coletivas, as quais se
constituem nos desafios de nossos tempos. Passa também pela possibilidade de
propiciar espaços de reflexão sobre a realidade e a inserção transformadora e/ou
reprodutora de alguns sujeitos nesse processo.
23
No âmbito da psicologia social na América Latina, os teóricos que têm
trabalhado em uma linha de estudos sobre dominação e resistência são Montero
(1987), Martín-Baró (1987), Salazar (1987). São autores que, com uma escrita crítica da
realidade, ajudam a refletir sobre relações de dominação, a partir de categorias como
conformismo, alienação e submissão, como elementos histórico-sociais que coagem a
liberdade e propiciam as desigualdades.
No espaço nacional, a vertente crítica, aberta pelo grupo da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), tem sido referência para trabalhos da
psicologia social, que consideram o fator subversivo como gerador de condições de
criação e emancipação humana. Nesse sentido, destaca-se o Núcleo de Estudos em
Exclusão/Inclusão Social, que, numa perspectiva comprometida com o social e o ser
humano, explora construtos analíticos, como o “ético–político”, abrindo caminhos
para a compreensão das desigualdades sociais e para a ação psicossocial
emancipadora.
24
CAPÍTULO 1
1. REFERENCIAIS TEÓRICOS
“... não há nada mais belo e sábio do que poder escolher, numa teoria, o que é
mais necessário” (Heller, 1982, p. 22).
1.1 O sujeito constituindo e constituído pela sociedade
Neste capítulo far-se-á uma breve apresentação da concepção de sujeito que
orienta a presente pesquisa. Sendo o sujeito histórico e social, é preciso destacar o
sujeito e sua relação com a sociedade na compreensão de Sawaia (2000b).
“... especialmente a ambigüidade que caracteriza a relação: de um lado a
submissão a forças escravizadoras, muitas vezes, prosaicas, levando o homem a
defender valores que perpetuam a violência e a heteronomia, de outro, a
resistência a poderes, alguns deles, poderosos, num esforço extremo para
recusar a ser o que quiseram fazer dele” (Sawaia, 2000b, p. 2).
A história do sujeito enquanto o próprio sujeito, constituinte e constituído
dessa história, tal como proposto por Vygotski (2000), está intrinsecamente
relacionado com a história da sociedade.
Nesse sentido, encontramo-nos no momento paradoxal da globalização, no
qual o sujeito se revela tanto pelas capacidades desenvolvidas quanto pelas restrições
sofridas, derivadas das determinações com as quais convive. Se, por um lado se
encontram os ganhos do desenvolvimento tecnológico de nossa época, como novas
formas de informação e comunicação, por outro, assistimos a um aumento
exacerbado das desigualdades entre países ricos e pobres e, no interior de cada país,
entre ricos e pobres. (Sousa Santos, 2002).
“A globalização tanto divide como une; divide enquanto une – e as
causas da divisão são idênticas às que promovem a uniformidade do globo.
Junto com as dimensões planetárias dos negócios, das finanças, do comércio
e do fluxo de informação, é colocado em movimento um processo ‘localizado’
de fixação no espaço. Conjuntamente, os dois processos intimamente
25
relacionados diferenciam nitidamente as condições existenciais de
populações inteiras e de vários segmentos de cada população. O que para
alguns é sinalização de liberdade, para muitos outros é um destino
indesejado e cruel. A mobilização galga ao mais alto nível dentre os valores
cobiçados – e a liberdade de movimentos, uma mercadoria sempre escassa e
distribuída de forma desigual; logo se torna o principal fator estratificador
de nossos tardios tempos modernos ou pós-modernos” (Bauman, 1999, p. 8)
.
Os sujeitos nessa trama do contexto social se realizam no transito do
global/local. Bauman (1999) chama a atenção, no que diz respeito ao global/local, à
configuração, a partir do global. A mobilidade adquirida pelo capital envolve uma
desconexão do poder econômico com os sujeitos mais fragilizados. Ser local num
mundo globalizado muitas vezes é sinal de privação e degradação social. O que
prevalece é a remoção de espaços públicos para além dos alcances da vida localizada.
Perde-se a capacidade de gerar e negociar sentidos proposicionais, devido a condição
restrita de suas possibilidades.
O impacto desse processo realizou-se pelo endurecimento das condições de
vida e pela escalada consumista que envolve a sociedade. Índices de
Desenvolvimento Humano
6
apontaram, nos inícios dos anos 2000 na América Latina
um crescimento da pobreza e a acentuação das desigualdades, aumento dos
excluídos do sistema (desempregados incluídos pelo desamparo) e distanciamento
entre os mais ricos e os mais pobres.
Na modernidade essa concepção recebe força a medida que, como afirma
Chauí (1995), fica estabelecido que, por natureza, todos os homens têm direito à vida
e, por natureza, todos são livres e iguais. Por intermédio do contrato social, os
homens concedem a um soberano o poder de criar e aplicar leis, com o intuito de
preservar os direitos de todos os indivíduos. Desse pacto nasce o Estado, entidade na
qual os indivíduos cedem seus poderes, mas não cedem suas individualidades. Uma
6
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma medida comparativa de riqueza,
alfabetização, educação, esperança de vida, natalidade e outros fatores para os diversos países do
mundo. É uma maneira padronizada de avaliação e medida do bem-estar de uma população,
especialmente o bem-estar infantil. O índice foi desenvolvido em 1990 pelo economista paquistanês
Mahbub ul Hag e vem sendo usado, desde 1993, pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento, em seu relatório anual. Dados sobre o Índice de Desenvolvimento Humano
podem ser encontrados no Site: www.pnud.org.br
26
vez declarados os homens autônomos, o poder do Estado só pode assentar-se no
consentimento deles, e a obediência que lhe é devida só pode resultar de uma
obrigação auto-assumida, isto é, do contrato social.
Porém, nessa organização social, a liberdade, vista como relação com o Estado,
restringe-se ao campo da privacidade e dos negócios particulares; para o lugar das
relações e atividades domésticas e familiares. No espaço público e das ações políticas,
o que impera é a ordem e a obediência ao soberano. Figueiredo (1992) destaca que o
que se consolida é uma contradição, pois sendo o mundo privado, o mundo das
liberdades, é constituído também como o mundo da privação, onde as relações
instauradas são despojadas de qualquer efeito político.
Marx e Engels (1996) declaram que, nessa contradição, entre o interesse
particular e o interesse coletivo, fundam-se as bases de um Estado autônomo,
separado dos reais interesses particulares. É justamente, desta contradição, entre o
interesse particular e o interesse coletivo, que o interesse coletivo toma, na qualidade
de Estado, uma forma autônoma, separada dos reais interesses particulares.
O Capitalismo Liberal deu lugar a um estágio avançado do processo de
acumulação que foi derivando, desde um ponto de vista econômico, a uma
concentração da riqueza. No âmbito político, o capitalismo se definiu por um Estado
de democracia formal que legitima a apropriação privada (Deluiz, 1995).
Estas formas de assumir o mundo e o homem estão intrinsecamente
relacionadas com uma perspectiva de sujeito que passa de ser passivo e
contemplativo da natureza para uma postura de senhor do direito da natureza, que
transforma o homem moderno num senhor de fato pelo domínio e manipulação do
mundo natural; domínio que, nas nuances do mundo moderno, se amplia para a
submissão de si mesmo.
O sujeito apresenta-se como indivíduo, o que é reforçado pelo significado
dominante de propriedade privada. De acordo com Chauí (1995), a definição da
propriedade privada como direito natural, fruto legítimo do trabalho, foi proposta
por Locke (1632-1704). Dessa forma, o que se estipula é que todos têm direito à
propriedade privada, mas só é concedida para quem trabalha. Os pobres, ou seja, os
2
7
que não conseguem tornar-se proprietários, são culpados por isso, por não pouparem
para adquirir propriedades, e/ou por não trabalharem suficiente para adquiri-las.
As repercussões destas configurações ideológicas manifestaram-se numa
perspectiva restrita do sujeito, influenciando o seu lugar no mundo e nas formas de
conhecê-lo.
Paradoxalmente é na modernidade que o sujeito é colocado em suspeita, no
momento em que considera a verdade como da ordem da objetividade. Dessa forma
a subjetividade perturba e distorce a leitura da natureza e de si mesmo. Na imolação
da subjetividade, tanto em suas expressões privadas – nos desejos, motivações e
afetividade – como em suas expressões coletivas – no reconhecimento da constituição
do sujeito pelo social; também ele é criticado pela sua incompetência em agir
socialmente. Dessa perspectiva emerge um sujeito auto-centrado, racional, mônada,
solitário cujo destino depende de sua racionalidade.
Em relação à subjetividade, consolida-se uma concepção idealista da
subjetividade, na qual, o que prima são características transcendentais do sujeito ou
prevalece uma concepção materialista, na qual o sujeito é determinado restritamente
pelas suas condições biológicas e/ou inatas.
Como destaca Touraine (1995), o que se privilegiou foi a dissociação completa
do sistema e dos atores, do mundo técnico ou econômico e do mundo da
subjetividade. Segundo este autor, o sujeito é reconhecido pela razão na
estandardização, na normalização, na regulamentação, compreendido na sujeição a
programas de aprendizagem racionais, capazes de resistir às pressões do hábito e do
desejo.
A afetividade como antagônica da razão é reconhecida pela sua dimensão
negativa, tomada como fenômeno que deve ser controlado e extirpado (Sawaia,
2000b).
E, como formula Figueiredo,
“... o sujeito é atravessado por uma sucessão de rupturas: num primeiro nível,
a sensibilidade, a afetividade, a intuição, a vivência pré-reflexiva, etc., num
segundo nível, é a própria razão que se desdobra em discursos de suspeita que
procurem identificar e extirpar dos discursos com pretensões racionais os
28
vestígios cada vez mais dissimulados da subjetividade” (Figueiredo, 1991, p.
19).
São essas algumas das contraposições em que os sujeitos são reconhecidos no
projeto sócio-cultural da modernidade, num processo cunhado entre os séculos XVI e
XVIII que, a partir desse período, coincide com o capitalismo como forma de
produção.
Nesse contexto, o que se constitui predominantemente enquanto sujeito é o
indivíduo que encontra sua maior expressividade no filósofo Leibnitz (1646 – 1716), o
qual, com seu conceito de mônada, define o indivíduo da era burguesa.
O indivíduo por excelência é o que possui propriedades. Canevacci (1981)
postula que, em razão disso, não foi possível identificar como indivíduos a crianças,
negros, pobres, escravos, mulheres, marginalizados ou trabalhadores assalariados,
todos eles privados de propriedade privada. E também dessa realidade nasce a
obrigação de criar ideologias que justifiquem as condições estabelecidas, os
excluídos, os sem-sujeito. Nesse contexto, definem-se os vícios privados como a
preguiça, a luxúria, a indiferença, a delinqüência, a anormalidade, a deformidade.
De acordo com Renaut (1998) foi possível resgatar uma leitura renovada de
Tocqueville (1805 – 1959)
7
, configurada na postulação de que o mundo moderno
possibilitou um processo de emancipação individual que derivou ao
“individualismo” e deu origem a novos despotismos.
Estas possibilidades se fundamentam em novas condições de vida que se
realizam distanciando os sujeitos em relação a assumir posições em questões
coletivas de interesse social, mas que dão elementos para implementar suas próprias
vidas, e, nesse sentido, assumir suas próprias decisões. Traspassa-se a idéia de que
tudo é conseguido por méritos próprios e nada se deve a ninguém, o que leva a diluir
os contatos e as referências coletivas e sociais.
7
Teórico que escreveu a obra “Da democracia na América” que inspira, em distintos autores,
trabalhos sobre política, liberdade, democracia e individualismo, entre outros.
29
De acordo a Renaut (1998),
“O conceito do individualismo (compreendido no sentido da
igualização democrática das condições) cede lugar a uma categoria crítica,
utilizável para estigmatizar certas tendências das sociedades modernas, em
primeiro lugar, o recolhimento do indivíduo à esfera privada, o culto à
felicidade e ao consumo – fenômenos esses que suscitam em Tocqueville uma
leitura paradoxalmente pouco distante daquilo que se lê em Marx, quando
este evoca o indivíduo egoísta, membro da sociedade civil burguesa. Em
ambos os casos, o individualismo moderno é incriminado por contribuir para
o surgimento de uma figura monadária do ser humano, para o qual a ação
recíproca com o próximo, que define o pertencer a uma comunidade, tende a
se tornar rigorosamente estranha a sua auto-afirmação” (Renaut, 1998, p.
35).
.
Renaut (1998) manifesta que as críticas das análises tocquevilleanas são ainda
vigentes para o mundo contemporâneo. Para este autor, a modernidade se
caracterizou em sua originalidade a partir da valorização de um indivíduo enquanto
princípio e valor para um individualismo.
Como ressalta Sawaia (1998), o que se revela como predominante é o sujeito
que é valorizado para instrumentalizá-lo e aprisioná-lo ao individualismo e
narcisismo consumista, base de sustentação do projeto neoliberal.
A partir de uma perspectiva diferente Marx (2004) elabora a crítica à sociedade
e reconhece o sujeito não como indivíduo, mas como ser social, ativo na construção
da sociedade e de si mesmo, constituído na processualidade das relações sociais,
fazendo-se a partir dos outros. São palavras de Marx:
“Mesmo nos momentos em que eu sozinho desenvolvo uma atividade
científica, uma atividade que raramente posso levar ao fim em direta
associação com outros, sou social, porque é como homem que realizo tal
atividade. Não é só o material da minha atividade – como também a própria
linguagem que o pensador emprega – que me foi dado como produto social.
A minha própria existência é atividade social. Por conseguinte, o que eu
próprio produzo é para a sociedade que o produzo e com a consciência de
agir como ser social” (Marx, 2004, p. 140).
Teixeira (1999) desvela na obra de Marx a compreensão de um sujeito
essencialmente ativo, em face do devir histórico social. Este autor ajuda a recuperar
30
um sujeito em Marx, que supera as leituras estruturalistas ou mecanicistas que
apagam o sujeito, perante as formas sociais.
Nesse sentido, encontramos nos Manuscritos Econômicos Filosóficos de Marx
(2004), escritos em 1844, um homem definido como um ser natural, corpóreo,
sensível, objetivo, um ser que sofre, condicionado e limitado. No entanto, acrescenta
este autor, o homem não é exclusivamente um ser natural, é um ser natural humano,
um ser genérico, que se distingue dos animais, principalmente, porque produz seus
meios de vida. E, ao produzir seus meios de vida, produz também a sua própria vida
material (Marx e Engels, 1996).
“A vida produtiva, entretanto, é a vida genérica. É a vida criando
vida. No tipo de atividade vital, está todo o caráter de uma espécie, o seu
caráter genérico; e a atividade livre, consciente, constitui o caráter genérico
do homem. A vida revela-se simplesmente como meio de vida” (Marx, 2004,
p. 116).
A vida produtiva, o trabalho, a atividade leva os homens ao encontro dos
homens entre si, em suas relações sociais, e também promove o encontro com o
desenvolvimento anterior, alcançado pelos homens, enquanto patrimônio da espécie
humana, ou seja, a apropriação do arcabouço cultural, cultivado pelas gerações
anteriores, revelando, dessa forma sua condição genérica. Ainda, o homem não se
conforma com tomar aquilo que foi alcançado.
A partir dessa apropriação, o homem cria, através de sua própria atividade,
outras possibilidades de vida material, produzindo novos instrumentos e processos
de trabalho, determinando, direta ou indiretamente, transformações efetivas da
objetividade social e também modificando suas subjetividades, que expressa novas
necessidades (Teixeira, 1999).
Assim, temos que os homens transformam a natureza inicialmente por uma
imposição de suas necessidades vitais, mas depois passam a ter relação com
objetividades recriadas por eles próprios, humanizadas e, nesse processo, novas
formas de sensibilidade são desenvolvidas.
31
Nesse sentido Marx postula:
“Só por meio da riqueza objetivamente desenvolvida do ser humano é
que, em parte, se cultiva e, em parte se cria a riqueza da sensibilidade
subjetiva humana (o ouvido musical, o olho para a beleza das formas, em
resumo, os sentidos capazes de satisfação humana e que se confirmam como
capacidades humanas). Certamente não são apenas os cinco sentidos, mas
também os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos, (vontade,
amor, etc.), ou melhor, a sensibilidade humana e o caráter humano dos
sentidos que vêm à existência, mediante a existência do seu objeto, por meio
da característica humanizada” (Marx, 2004. p. 143-144).
Nessa leitura de Marx (2004), o que promove, os sujeitos a se constituírem pelo
desenvolvimento humano são suas necessidades. A satisfação das necessidades
promove novas necessidades, as quais se revelam como forças efetivas que orientam
aos homens para a atividade. No cumprimento de suas necessidades, os homens
produzem sua vida material e se relacionam entre si, criando formas propriamente
humanas de atividade e de relações sociais. Dessa forma, a produção material, como
forma de existência social que a ela se vincula, promove um novo patamar de
desenvolvimento.
Teixeira (1999) destaca a partir da leitura de Marx, a perspectiva de um
homem historicamente constituído que em seu devir produz sua própria realização
como necessidade interna.
“Donde a individualidade propriamente humana, resultante do devir
autoproducente da humanidade, tem a própria realização humana como
necessidade, ou seja, tem a totalidade de manifestação humana de vida como
potência historicamente desenvolvida e, conscientemente, a toma como
objeto de seu carecimento” (Teixeira, 1999, p. 235).
Esse processo de desenvolvimento humano é cerceado pelas condições reais
existentes, nas quais os homens são explorados e submetidos, perdendo o sentido de
sua atividade. Na medida em que o homem é privado do sentido de sua atividade,
ou seja, seu produto lhe é estranho, o elemento da sua produção rouba-lhe sua vida
genérica e também se perde a atividade livre.
32
Foucault (2006) esclarece que, a partir dos séculos XVII e XVIII, foram
instauradas verdadeiras estruturas administrativas do poder: exército, polícia, uma
série de entidades que permitem que o poder circule, impregne as pessoas, as
delimite, controle em tempo contínuo.
Nesse contexto, as relações sociais constituem-se no entrelaçado complexo das
diversas práticas sociais, construindo nossas realidades, demarcadas por práticas de
dominação que se configuram definindo as formas de se comportar, de atuar, de
pensar e sentir, misturando-se de forma difusa, fluidamente, muitas vezes de forma
velada, sustentando-se em ideologias que ocultam as bases dessas prescrições.
Uma das formas de dominação ocorre pela institucionalização, na
formalização de regras, hábitos, costumes. Essas práticas sociais se realizam pela
consolidação dos interesses de um setor. Na medida que estas atividades se
incorporam às rotinas das pessoas, perde-se a referência de que elas (as regras) são
sociais em sua origem e tornam-se cristalizadas, sem serem questionadas,
transformando-se em imperativos não questionáveis que regulamentam a vida das
pessoas.
“Homens dominam outros homens e é assim que nasce a diferença
dos valores; classes dominam classes e é assim que nasce a idéia de liberdade;
homens se apoderam de coisas das quais eles têm necessidade para viver, eles
lhes impõem uma duração que elas não têm, ou eles as assimilam pela força
e é o nascimento da lógica. Nem a relação de dominação é mais uma
"relação", nem o lugar onde ela se exerce é um lugar. E é por isto
precisamente que em cada momento da história a dominação se fixa em um
ritual; ela impõe obrigações e direitos; ela constitui cuidadosos
procedimentos. Ela estabelece marcas, grava lembranças nas coisas e até nos
corpos; ela se torna responsável pelas dívidas. Universo de regras que não é
destinado a adoçar, mas ao contrário a satisfazer a violência”(Foucault,
2006, p.16-17).
Pode-se afirmar que, para Foucault (2006), o poder estendeu seus tentáculos
além da ciência política e do Estado, recaindo nos locais específicos, circunscritos a
pequenas áreas de ação. Foucault definiu que nem toda transformação ou mudança,
provocada pela imposição do poder está ligada ao Estado. Os poderes não estão
localizados em nenhum lugar específico da estrutura social. Funcionam como uma
33
rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa e que não tem
fronteiras. Por isso, pode-se dizer que o poder não é algo que se detém como uma
coisa, uma propriedade que se possui ou não.
O poder, nessa ampla extensão, assume as formas mais regionais e concretas,
investindo em instituições, tomando corpo em técnicas de dominação. Esse poder
penetra nos indivíduos, atingindo sua realidade concreta, mediando suas práticas de
vida.
O sujeito é “sujeitado”, mas também atuante em sua própria constituição. Essa
resistência vai-se criando nos sujeitos de maneira sutil, muitas vezes sem uma
organização predeterminada. Foucault nos fala da resistência emergente, diante das
práticas médicas para as populações pobres, resistência delatada pela peregrinação
ao Santuário de Lourdes, desde o final do século XIX. Essas práticas revelavam-se
como uma resistência difusa à medicamentação autoritária e controle médico
daquela época (que ainda persiste em muitos setores de nossa sociedade). A força
destas práticas não estaria apenas na expressão das crenças tradicionais, mas em
formas vigorosas de reagir contra a medicina, imposta aos pobres.
Nesse sentido, Foucault afirma...
“... a partir do momento em que há uma relação de poder, há uma
possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos
modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma
estratégia precisa” (Foucault, 2006, p. 136).
Certeau (2003) fala-nos das pequenas resistências, nem sempre perceptíveis,
mas que vão provocando mudanças, vão-se se fazendo um caminho contraposto.
Pode-se argumentar, como afirma Certeau (2003) que microrresistências geram
microliberdades, mobilizam recursos insuspeitos. O autor fala da inversão e
subversão dos mais fracos, diante das imposições dos dominantes, direcionando o
produto que é esperado das relações de dominação, para outro inusitado e criativo,
correspondente, não às expectativas da ordem dominante, mas conducentes para
interesses dos pretendidos acanhados. Trata-se do redirecionamento dos produtos,
obtidos na relação de dominação, para resultados mais amenos para o setor em
34
sublevação. A lógica do poder é infringida pelos registros de funcionamento de uma
lógica subversiva de oposição, de resistência que, por sua vez, está inscrita no
processo histórico da tradição dos sublevados.
Na adoção de um projeto socialista nos ideários de Marx, Heller (1991)
desenvolve uma antropologia social que recupera o sujeito na vida cotidiana.
Seguidora de Marx, esta autora critica as perspectivas estruturalistas realizadas a
partir deste autor, perdendo o individuo concreto em suas necessidades.
No prefácio de seu livro “Sociología de la Vida Cotidiana” Lukács (1991)
postula que para esta autora a vida cotidiana constitui a mediação objetivo-
ontológica entre a simples reprodução espontânea da existência física e as mais altas
formas de genericidade
8
.
Pelo estudo de esferas da vida pode-se alcançar uma compreensão da
dinâmica interna do desenvolvimento da genericidade pelos processos heterogêneos
da realidade social.
Nessa obra, Heller postula um sujeito que considera que...
“A esencia humana no es el punto de partida, ni el núcleo al que se
superponen las influencias sociales, sino que constituye un resultado; sobre
el supuesto de que el individuo se encuentra desde su nacimiento en una
relación activa con el mundo en el que nació y de que su personalidad se
forma a través de esta relación” (Heller, 1991, p. 7).
Os caminhos teóricos percorridos por Heller a levam a definir que não há um
caminho histórico pré-determinado para a emancipação humana e, portanto, o que
resta é dar sentido a nossas ações, orientado-as mediante valores, controlando suas
conseqüências. Daí a importância do cotidiano, das necessidades da participação
social dos sujeitos.
8
Heller (1991), tal como Marx (2004) introduz o conceito de genericidade, Aponta que todo ser
humano é intrinsecamente genérico porque é social - só pode fazer-se ser humano em sociedade.
No entanto, quando essa genericidade é assumida como uma relação consciente com o social é que
o ser humano consegue situar a condição humana como uma necessidade. Ter uma relação
consciente com a genericidade significa tê-la como fim, ou seja, transformá-la no fator motivacional
dos atos e isso, de acordo a esta autora, implica um processo de aprendizagem, de assimilação da
realidade, das oportunidades que o contexto proporciona, do sentido que se lhe é possível
construir, a partir das experiências vividas.
35
Todavia, na compreensão de Rivero (1996), Heller sustenta sua posição em
relação ao sujeito histórico e atuante, resgatando as categorias da vida cotidiana para
pensar formas de emancipação humana que considerem o respeito pelas
pluralidades de formas de vida. Assim, a autora situa a emancipação humana como
um processo de possibilidades da qual o sujeito é parte ativa. Nesse sentido a autora
recupera o sujeito pela ética, na configuração de seus valores.
Nesse contexto Heller (1996) resgata as necessidades como expressão da
insatisfação dos indivíduos e, portanto, como um elemento importante do debate
político, no sentido de que é necessário estipular, pela discussão política, quais as
necessidades a se satisfazerem num mundo em que não é possível o cumprimento de
todas elas.
Considera mais que as necessidades são apropriações de valores, que se
podem complexificar e diversificar em extremo, expressando-se em termos sociais,
políticos, espirituais, culturais, emocionais, psicológicos, etc.
Heller (1996) problematiza as necessidades na atribuição de verdadeiras ou
falsas aduzindo que definir as necessidades nesse âmbito demanda que alguém
possa ter essa atribuição. Por outro lado, também é problemático definir as
necessidades como reais ou imaginárias considerando que se manifestam
historicamente e que cada necessidade particular está determinada historicamente
em cada exemplo particular. Heller (1996) postula que quem defende o conceito de
necessidades verdadeiras e falsas, se orienta a acreditar que as necessidades irreais
não devem ser satisfeitas, o que é o cimento de toda ditadura, enquanto determina as
necessidades de um povo. Também como evitar a hierarquização das necessidades?
Para Heller (1996), todas as necessidades humanas devem ser reconhecidas
como reais e verdadeiras, à exceção daquelas cuja satisfação envolva o uso de outras
pessoas como meio. Necessidades, nos diz a autora, é uma categoria social. Os
sujeitos tem necessidades enquanto sujeito políticos, mas as necessidades são sempre
individuais. As necessidades podem situar-se entre os desejos e as carências
(necessidades sócio-políticas). Os desejos são mais ambíguos, muitas vezes, as
próprias pessoas não conseguem definir seus desejos, as carências são abstrações.
36
“El deseo manifiesta (directa o indirectamente) nuestra relación
psicológico-emocional y subjetiva con las necesidades, mientras que las
carências (necesidades sociopolíticas) describen um tipo o clase de necesidad
que la sociedad atribuye o asigna a sus miembros (o a alguno de sus
miembros) em general” (Heller,1996, p. 85).
Contudo, Heller (1996) considera que existem necessidades que são próprias
da condição humana, tais como a vida e a liberdade.
“En tanto valores meramente abstractos, la vida significa
supervivencia y la libertad significa ‘nacer libre’. La supervivencia no solo
significa estar vivo, sino también permanecer vivo en un sentido que
corresponde a la dignidad humana, sea cual sea el ‘nivel de vida’. La libertad
apunta a la abolición del entramado social pré-moderno. La libertad personal
es la medida mínima aqui. Estas necesidades son sociopolíticas – están
asignadas a la ‘humanidad’ esto es, a todas y cada una de las personas de la
especie humana, al margen de si estas necesidades pertenecen o no al juego
de necesidades idiosincrásicas de la persona” (Heller, 1996, p. 112).
Na modernidade, a humanidade se orientou a uma liberdade concebida em
termos de autonomia, na qual os homens asseguraram o desenvolvimento autônomo
de todas as suas faculdades para exercerem seu domínio sobre a Terra (Renaut,
1998).
A liberdade dos clássicos que consistia na condição de ter responsabilidades
foi se deslocando para a concepção do livre arbítrio, na qual a liberdade se reduz à
livre escolha.
Atualmente, segundo Carvalho (1999), estaríamos assistindo a um significado
da liberdade que poderíamos chamar de pós-moderna, mais negativa ainda do que a
liberdade dos modernos. Na concepção atual, o que importa para o cidadão é gozar
de toda a liberdade individual para fazer as escolhas mais variadas que o mercado
oferece.
Um sujeito essencialmente privado e despolitizado que cifra sua liberdade na
condição de, cada vez mais, poder decidir sobre assuntos privados cada vez menos
relevantes. Nesse processo o sujeito se dilui, se perde pelo domínio dos outros e de si
mesmo, e acaba sendo réu de si mesmo, sufocado pelas forças que o impelem ao
individualismo e a liberdade se define pelo livre arbítrio. (Sawaia, 2001a).
3
7
De acordo com Chauí (2000b) encontra-se em Espinoza a noção de liberdade
que se contrapõe à que se define pelo livre arbítrio. Para Espinoza o homem é livre,
na medida que tem o poder para existir e agir, segundo as leis da natureza, ou seja,
segundo necessidades. Portanto, aquele que age por uma necessidade de sua própria
natureza, age livremente.
Nessa concepção a liberdade não se confunde com um poder voluntário para
escolher entre alternativas, ou para fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Nessa
concepção não se pode considerar livre um homem, quando deixa de pensar ou
quando prefere um mal a um bem (Chauí, 2000a).
Necessidade é o termo empregado para referir-se ao todo da realidade
existente em si e por si, que age sem nós e nos insere em sua rede de causas e afeitos,
condições e conseqüências, é o necessário (Chauí, 1995).
Chauí (2000b) postula que a tradição teológico-metafísica separou liberdade
de necessidade argumentando que tudo que acontece na natureza sucede por
necessidade, e o que acontece por vontade sucede por liberdade. Ou seja, identifica-
se o natural ao necessário e o voluntário ao livre.
Segundo Chauí (1995), tanto Espinoza como Hegel e depois Marx
compreendem a liberdade regulada pelas necessidades. Esses autores consideram a
liberdade como autodeterminação e também assumem que é livre quem age sem ser
forçado nem constrangido, por conseguinte, é livre quem age pela sua vontade, de
acordo com suas necessidades, em concordância com uma totalidade na qual o
homem está inserido. O todo, essa totalidade, para Espinoza pode ser a natureza e
para Marx a dimensão histórico-social, é livre em si mesma porque nada a força ou
obriga desde o exterior. E é por sua liberdade que instaura leis e normas necessárias
para suas partes, os indivíduos.
1.2 A Teoria de Vygotski como referência do sujeito
Vygotski (1896-1934) será destacado porque ele levou todas as discussões
acima para o campo da psicologia. Por meio de suas reflexões pode-se apresentar a
38
concepção de sujeito dessa tese. Assumimos em nossa pesquisa com os participantes
do CEFURIA, que os sujeitos se constituem na mediação de suas reflexões e afetos,
motivado por suas necessidades e interesses, que procura seu desenvolvimento pela
resistência à dominação e pela sensibilidade para o sofrimento humano. Um sujeito
que caminha para a liberdade assumindo um projeto que o determina de acordo com
sua vontade que é histórica e social.
Este autor russo conviveu com a experiência da Revolução Russa de 1917.
Formou-se como advogado na Universidade de Moscou e recebeu formação em
filosofia, psicologia e literatura na Universidade Popular de Shanyavskii. Podemos
compreender um pouco da trajetória deste autor a partir do relato que fazem de
parte de sua história os autores Davydov e Zinchenko (1994).
“Sua visão de mundo desenvolveu-se nos anos da revolução e
refletiu as mais avançadas e fundamentais influências sócio-ideológicas,
relacionadas à compreensão das forças essenciais do homem e das leis de seu
desenvolvimento histórico e de sua formação plena, nas condições da nova
sociedade socialista. Esse pensamento manifestou-se plenamente na filosofia
materialista dialética que Vygotski conhecia a fundo e na qual baseou seu
próprio ponto de vista sobre a palavra” (Davydov e Zinchenko, 1994, p.
153).
Além de ter construído uma vasta obra de trabalhos críticos e científicos,
Vygotski guardava um compromisso com sua sociedade e com a transformação do
homem para a liberdade, o que se refletia na busca incessante, em suas pesquisas, de
ampliar os horizontes do sujeito nas formas do desenvolvimento humano.
Esta postura aparece claramente em sua obra “Psicologia Pedagógica”,
publicada pela primeira vez em 1926 (no Brasil em 2004), considerada por Van Der
Veer e Valsiner (2001) sua obra mais política; e no texto “A Transformação do
Homem Socialista”, publicado na Rússia, em 1930, e disponibilizado na Internet em
português, no ano de 2004.
Neste último texto, Vygotski (2004c) declara que o indivíduo só existe como
um ser social, como um membro de algum grupo social em cujo contexto ele segue a
estrada do desenvolvimento histórico. Preocupado com o desenvolvimento humano,
39
Vygotski declara que os caminhos assumidos pela produção material no capitalismo
distorcem o desenvolvimento humano.
“... o processo de desenvolvimento humano é influenciado pelo crescimento
acelerado da indústria. Todas estas influências adversas não são inerentes à
indústria de larga escala como tal, mas à sua organização capitalista que
está baseada na exploração de enormes massas de população e que resultou
em uma situação na qual, em vez de todo passo novo para a conquista da
natureza pelos seres humanos, todo novo patamar de desenvolvimento da
força produtiva da sociedade, não só não elevou a humanidade como um todo
e cada personalidade humana individual para um nível mais alto, mas
conduziu a uma degradação mais profunda da personalidade humana e de
seu potencial de crescimento” (Vygotski, 2004c, p. 5 - 6).
Nesse sentido, formula Vygotski (2004c) a contradição entre o poder crescente
do homem e sua degradação, se aprofunda entre seu crescente domínio sobre a
natureza e sua liberdade por um lado, e sua escravidão e dependência crescentes das
coisas, produzidas por ele mesmo no outro. No entanto, afirma o autor, a fonte da
degradação do sujeito, na forma capitalista de produção, contém em si mesma o
potencial para seu crescimento infinito.
Ao postular o homem histórico-social, Vygotski proclama a liberdade das
amarras do mundo natural, situando-o nas inúmeras possibilidades do mundo da
cultura como o mundo transformado pelo homem que cede o passo ao homem das
responsabilidades, o homem político, o homem social que se faz nas relações sociais
pelas interações com os outros.
Vygotski (2004c) postula que existem comprovações suficientes de que o tipo
biológico do ser humano não tem adquirido grandes mudanças, em relação a épocas
anteriores. Por outro lado, pesquisas recentes demonstraram que existem poucas
diferenças em termos de genoma
9
, em relação ao mundo animal. Isso não quer dizer
que a evolução biológica se tenha mantido estática, mas sim que o desenvolvimento
9
Um recente informe sobre o genoma humano mostra que a diferença do código genético do
homem para o de seu parente mais próximo, o chimpanzé, é de apenas 1,5%. O DNA de homens e
dos ratos de laboratório (camundongos), por exemplo, tem mais de 70% de similaridade. Os
homens têm somente 300 genes a mais que os camundongos. (...) Os seis bilhões de habitantes do
planeta dividem 99,9% de seu genoma. Apenas cerca de 0,1% varia de uma pessoa para outra em
função da combinação dos genomas dos pais. Informação disponível é acessada no dia 4 de abril
de 2007 no Site: http://afilosofia.no.sapo.pt/CGENOMA.htm
4
0
humano predominantemente é demarcado pelo desenvolvimento histórico social.
Por esse caminho, pode-se dizer que a repercussão do contexto social e cultural é um
fator preponderante na constituição dos sujeitos.
Dessa forma, o autor não somente situa o ser humano na história como
determinado pelas condições existentes, mas também como construtor dessas
determinações, na compreensão de um homem inacabado, em constante
transformação.
De acordo com Rivière (1987), Vygotski era um interessado nas artes, sua
precocidade e interesse na semiologia e literatura o levaram a escrever “A tragédia
de Hamlet”, quando ainda tinha 19 anos. Vygotski aproximou-se da psicologia,
procurando algumas respostas sobre a psicologia de Hamlet; buscava uma
explicação sobre a origem da criatividade cultural. Entretanto, as respostas geradas
pela teoria dos reflexos, predominante naquela época se mostravam afastadas de
poder dar uma explicação da atormentada consciência de Hamlet ou de qualquer
outro ser humano. Por outro lado, tampouco o satisfaziam as teorias elaboradas pela
psicologia introspectiva, derivadas de conceitos idealistas, descolados da realidade.
Vygotski (1999b) propõe uma psicologia que considera o sujeito a partir de sua
realidade, caminhando para a construção de uma psicologia concreta do homem
pleno, que deixa para trás elementos estáticos e transcendentais do ser humano.
Nesta proposta, Vygotski situa o sujeito a partir de sua gênese social no entrelaçado
de sua história, articulado dialeticamente em suas diversas dimensões psicossociais,
postulando a gênese material da consciência pela atividade e as relações sociais.
Nessa linha de pensamento, Vygotski (1999b) foi construindo as bases da
compreensão de um homem não dicotômico, problematizando as distintas
perspectivas do ser humano que o cindiam e fundamentavam e ainda fundamentam
a psicologia.
No texto “Teoria de las Emociones estudio historico-psicológico” Vygotski
(2004a) discorre pelas raízes históricas da compreensão das emoções e abre espaços
para uma nova leitura a partir das concepções filosóficas de Espinoza no intuito,
segundo Sawaia (2000a), de superar a epistemologia dualista da Psicologia, que
separa mente de corpo e intelecto de emoção.
4
1
Vygotski (1999c), não desatende em absoluto os elementos do pensamento,
mas desloca as emoções de sua conotação negativa para a posição privilegiada de
reguladora dos processos psicossociais. Reivindica estes elementos propiciadores de
capacidades e criatividades, mas também como fatores que podem dificultar os
processos de transformação. Dessa forma, o autor supera as dicotomias estabelecidas
predominantemente nas bifurcações alma/corpo, consciência/atividade,
espírito/mente, emoção/razão, singular/social e subjetividade/objetividade.
Assim, Vygotski (1993) transporta-nos, na compreensão do humano, como ser
integral que se constitui pela materialidade histórica de sua especificidade e pelo
simbólico, os significados e os sentidos onde fantasia e felicidade, medo e terror se
revelam como elementos reais da vida das pessoas.
Nesse intuito, Vygotski (1999c) considera a interconexão das diferentes
funções psicológicas, postula que a essência do desenvolvimento psicológico não se
baseia na alteração das funções psicológicas, mas na alteração de suas conexões e na
infinita diversidade das formas que esta se manifesta.
As formulações deste autor enriquecem todo e qualquer olhar e demarcam um
caminho novo, de muitas aberturas para o sujeito inserido em seu tempo, não
cristalizado nas estruturas de seus suportes psicossociais, mas que se refaz
levantando novos desafios em relação ao conhecer, ao sentir e ao viver. Sua teoria
profundamente histórica incorpora o social no individual, o biológico no cultural, o
emocional no racional. Explica o inato pelo histórico como inscrição filogenética que
se realiza na ontogênese pelo cultural.
Na teoria elaborada por Vygostky, são desenvolvidos vários conceitos
interdependentes entre si. Nessa complexa e rica configuração a historicidade se
revela como um eixo articulador.
Em a “Psicologia Concreta do Homem” (1929), Vygotski (2000) se refere à
história, aduzindo que para ele significa duas coisas: a primeira postula a abordagem
dialética das coisas e, nesse sentido, toda coisa tem sua história; e a outra, a segunda,
postula a história do homem, esta última, sendo o materialismo histórico.
4
2
Para Pino (2000), estudioso de Vygotski:
“História é entendida por Vygotski de duas maneiras: em termos
genéricos, significa ‘uma abordagem dialética geral das coisas’; em sentido
restrito, significa ‘a história humana’. Distinção que ele completa com uma
afirmação lapidar: ‘a primeira história é dialética; a segunda é materialismo
histórico’. Podemos afirmar, então, com bastante segurança, que a nota que
abre o ‘Manuscrito’ define o lugar de onde Vygotski fala e a matriz que lhe
serve de referência nas suas análises: o materialismo histórico e dialético.
Consideramos isto de suma importância, pois nos dá o perfil do autor como
pensador da natureza humana, constituindo o núcleo duro da sua obra”
(Pino, 2000, p. 48).
No mesmo texto – Psicologia concreta do homem – Vygotski refere-se
reiteradas vezes ao social como constitutivo do homem. Postula: tudo o que é interno
nas funções superiores tem sido externo, isto é tem sido para os outros aquilo que agora é para
si (Vygotski, 2000, p. 25). Ainda afirma que falar de externo é falar de social. O
desenvolvimento, diz-nos o autor, segue não para sua socialização, mas para a
individualização de funções sociais, a transformação das relações sociais em funções
psicológicas.
Shuare (1990) identifica em Vygotski três grandes eixos conceituais que
derivam do historicismo de sua obra. O primeiro estaria entre a história da vida
individual do sujeito e a história social. A história social se revela pela atividade
produtiva, ou seja, pelos processos de transformação, introduzidos pelos homens ao
longo da história. Nesse processo, os homens vão-se apropriando do mundo via
instrumentos e símbolos que vão se constituindo no mundo cultural. O homem, no
processo de sua própria história, recebe esse legado, apropriando-se dele e
incorporando-o à sua história particular.
O segundo eixo conceitual se dá na dimensão dos fenômenos psíquicos. A
psique humana é regida por um processo evolutivo que tem sua gênese no social.
Portanto, nossos processos psicológicos mais complexos não são dados de uma vez
para sempre. Existe um processo histórico de tais fenômenos. A história da psique
humana é a história social de sua constituição.
4
3
O outro eixo conceitual do historicismo sustenta-se na superação do imediato
na constituição da psique. Não temos acesso diretamente à nossa realidade, sendo
que ela nos chega mediada por significados e sentidos. Produto das relações entre os
sujeitos e destes com seu contexto social, são elaborados instrumentos e símbolos que
mediatizam o vínculo com a psique.
Rivière (1987) postula que o primeiro problema que Vygotski assumiu na
direção de estabelecer as bases de sua psicologia foi o problema da consciência. No
texto “A consciência como problema da psicologia do comportamento”, escrito em
1925, Vygotski afirma que ignorar o problema da consciência, implica em fechar o
caminho da pesquisa em psicologia. Nesse texto, Vygotski (1999a) esboçou o que
viria a ser sua teoria sócio-histórica dos processos psicológicos superiores, afirmando
a gênese e a natureza social da consciência.
Para Vygotski, é a experiência que determina a consciência; ainda postula o
autor que o mecanismo do conhecimento de si mesmo (autoconsciência) e o do outro
é o mesmo.
“Temos consciência de nós mesmos porque a temos dos demais e pelo
mesmo procedimento através do qual conhecemos os demais, porque nós
mesmos em relação a nós mesmos somos o mesmo que os demais em relação
a nós. Tenho consciência de mim mesmo somente na medida em que para
mim sou outro” (Vygotski, 1999a, p. 82).
O homem, diz Vygotski (1999a), repete duas vezes a experiência no trabalho
humano: primeiro na mente e depois na modificação do material. Essa experiência
duplicada permite ao ser humano ser ativo na adaptação ao seu contexto. É o que
Vygotski convencionou chamar de “comportamento de experiência duplicada”.
Assim, a consciência é instituída na experiência histórica pela experiência social e de
forma duplicada, porque a consciência é um contato social consigo mesmo.
No texto “O significado histórico da crise da psicologia: uma investigação
metodológica”, Vygotski (1999b) vai articular a consciência à atividade. A
consciência é a capacidade de refletir a própria atividade.
4
4
Em relação à consciência, num momento posterior, Vygotski (1999c) vai
estudar as funções psíquicas superiores
10
, definindo sua gênese cultural e a
interconexão entre elas. Essas funções caracterizam-se por serem mediadas e terem
sua origem nas relações sociais. Nessa configuração, não existe predomínio de uma
ou outra função, mas preponderâncias que são decorrentes das conexões existentes
entre as funções. Assim, o sentimento, o pensamento e a vontade estão relacionados
intrinsecamente, não existindo em forma pura ou separadamente, mas como
interconexões funcionais permanentes na consciência.
De acordo com Vygotski (1993), conseguimos apropriar-nos dos elementos de
nossa vida social pela significação que atribuímos às coisas, ou seja, por um processo
de mediação no qual elaboramos símbolos, a partir de nossas interações,
experiências, oportunidades, aprendizagens. É a partir desse processo
inter/intrasubjetivo que podemos definir-nos, selecionar, valorizar, transformar,
enfim, postular-nos como sujeitos ativos, passivos, criativos e reprodutivos.
Na relação do subjetivo/objetivo, a significação, enquanto elemento
intra/inter subjetivo, é o que define nossa visão de mundo, a partir de nossas
relações, nossos contatos e oportunidades com o contexto que nos circunda, é
também aquilo que nos promove e nos situa no mundo como seres históricos, sociais
e culturais.
Outra questão teórica que merece destaque pela importância nas reflexões da
presente tese é a concepção de significado e sentido, uma vez que é seu objeto de
estudo. Segundo Vygotski (2001), o significado da palavra
“...tem, na sua generalização, um ato do pensamento, na verdadeira acepção
do termo. Ao mesmo tempo, porém, o significado é parte inalienável da
palavra como tal, pertence ao reino da linguagem tanto quanto ao reino do
pensamento. Sem significado a palavra não é palavra mas som vazio.
Privada do significado, ela já não pertence ao reino da linguagem”(Vygotski,
2001, p. 10).
10
Funções psicológicas superiores são, segundo Vygotski (1995), a linguagem, memória lógica,
atenção voluntária, formação de conceitos e outras.
4
5
Nesse sentido, o significado pode ser assumido como um fenômeno da
linguagem e também como um fenômeno do pensamento. Pode-se dizer que a
significação é aquilo que pousa em algo da realidade pela sua definição na
linguagem, inscrevendo uma compreensão dos objetos e elaborações humanas que se
entendem como sociais e compartilhadas.
Por ser um código de compreensão de algo, os significados têm uma dimensão
estável que possibilita uma linguagem comum e a comunicação entre as pessoas. A
palavra significada pode ser compreendida como um conceito, uma generalização e,
nesse sentido, não deixa de ser algo relativamente estável, convencional. No entanto,
isso não quer dizer que os significados sejam estáticos e, nesse ponto, radica um dos
focos que Vygotski considera mais importante: a condição mutante dos significados
que lhes aporta sua qualidade de dinâmicos, decorrentes das condições da vida
social, das relações instauradas e, por isso, em constante transformação no processo
histórico da realidade social.
Sendo os significados a mediação necessária e fundamental para a
comunicação entre indivíduos, à apropriação e relação dos indivíduos com a
realidade e com os outros realiza-se pelos sentidos que são atribuídos aos distintos
elementos que se configuram nessas relações. Os sentidos seriam como a elaboração
dos significados a partir da singularidade dos sujeitos, e, portanto, carregariam, entre
outras coisas, todo o arcabouço histórico, social, cultural que lhes é constitutivo.
Vygotski assume de Paulhan (Vygotski, 1993), as relações que este autor
estabelece entre significado e sentido. O sentido da palavra seria a soma de todos os
processos psicológicos, evocados em nossa consciência pela palavra. O sentido da
palavra é dinâmico, variável e complexo com muitas formas de estabilidade
diferente. Os significados seriam umas dessas zonas de sentido, a mais estável, por
ser estabelecida e convencionada culturalmente. Os sentidos seriam, porém as
apropriações subjetivas das objetivações socialmente compartilhadas, se diluem nas
singularidades, a partir de contextos diferentes, na diversidade de vínculos possíveis
que situam os sentidos como uma configuração inesgotável.
Vygotski (1993) esclarece que é pela palavra que nós podemos aproximar do
pensamento dos indivíduos. Não podemos esquecer, porém que, nas relações que
4
6
estabelecemos com esse objetivo, o que encontramos como mediação dos
pensamentos, são os sentidos que os indivíduos outorgam, mediante a palavra, à
realidade significada e compartilhada.
Ainda nos diz Vygotski (1993), que a compreensão dos sujeitos não se pode
deter nas instâncias do pensamento; é necessário entrever na trama afetivo-volitiva
que a origina.
“El pensamiento no nace de sí mismo ni de otros pensamientos, sino
de la esfera motivacional de nuestra conciencia, que abarca nuestras
inclinaciones y nuestras necesidades, nuestros intereses e impulsos,
nuestros afectos y emociones. Detrás de cada pensamiento hay uma
tendencia afectivo-volitiva. Solo ella tiene la respuesta al último por que en
el análisis del proceso de pensar”( Vygotski, 1993, p. 342 ).
É necessário ficar atento ao subtexto que perpassa toda expressão de
pensamento, sendo que o caminho do pensamento à palavra é mediado pelo
significado. A compreensão real e completa do pensamento de outros só pode ser
possível se descobrirmos a trama afetivo-volitiva que está oculta. Por trás das
palavras, há um desejo orientado à satisfação de algumas determinadas tarefas
volitivas. Alcançar o motivo do pensamento é o caminho de qualquer análise
psicológica.
Sendo fiel à sua proposta de interconexões dos processos psíquicos superiores,
Vygotski (1999c) situa as emoções intrinsecamente articuladas ao intelecto, insistindo
na inscrição histórica e dialética dos processos psíquicos. Nesse sentido, podemos
dizer que as formas de compreender as coisas da vida estão encravadas nos
sentimentos enraizados historicamente nas pessoas.
No texto “Sobre os Sistemas Psicológicos”, Vygotski (1999c) esclarece a
relevância das emoções, no sentido de serem estas, como fatores motivacionais e
volitivos, as raízes de todo pensamento.
“Não sentimos simplesmente: o sentimento é percebido por nós sob a
forma de ciúme, cólera, ultraje, ofensa. Se dizemos que desprezamos alguém,
o fato de nomear os sentimentos faz que estes variem, já que mantêm uma
certa relação com nossos pensamentos”(Vygotski, 1999c, p. 126).
47
O próprio fato de tomar conhecimento de nossos afetos provoca uma
mudança neles, transforma-os de algo passivo em algo ativo, relacionando-os com
outros elementos da vida psíquica.
Vygotski (1993) recorre a Ribot para destacar a interconexão entre intelecto
(idéias) e emoção (afetos). Toda idéia predominante se submete a alguma
necessidade, aspiração ou desejo, ou seja, a algum elemento afetivo. Não existe
alguma idéia puramente intelectual. Todo sentimento predominante ou emoção deve
concentrar-se na idéia ou na imagem que lhe dá materialização. Assim, idéia e
emoção estão intrinsecamente articuladas, sendo que, algumas vezes, é mais
predominante um ou outro.
Vygotski (2003) postula que na interseção de intelecto e afetos – surge a
criatividade como fator que promove a transformação. Todo processo de criação
humana está amparado na interconexão do intelectual com o emocional. Não poderia
existir um ato de criação a partir da frialdade de um ato intelectual, ou seja, sem
emoção. Ao contrário, toda emoção precisa situar-se a partir de uma imagem que dá
materialização àquilo que se está configurando como elemento criativo.
Vygotski aproximou-se da psicologia, em busca da compreensão da
criatividade humana e da imaginação. Seu interesse levou-o a reconstruir o
arcabouço teórico da psicologia pelo frutífero e árduo labor de superar as cisões que
nela estavam encravadas na psicologia.
No texto “Imaginación y Creación en la Edad Infantil”, publicado em espanhol
no ano 2003, Vygotski destaca a importância da capacidade criativa como
fundamental para o processo constitutivo do ser humano. O autor entende essa
constituição tanto nas formas reprodutivas, constituídas na historicidade dos
processos humanos, tanto nos elementos criativos, gerados a partir da necessidade de
confrontar novos desafios.
“Si la vida que le rodea no plantea al hombre tareas, si las reacciones
acostumbradas y heredadas por él lo equilibran completamente con el mundo
circundante, no hay entonces ninguna base para que surja la creación, um
ser adaptado por completo al mundo circundante no podría crear nada. Por
eso la base de la creación siempre la forma la inadaptación de la cual surgen
las necesidades, las aspiraciones y los deseos” ( Vygotski, 2003, p. 40).
4
8
Vygotski assevera que os homens podem assumir atividades reprodutoras,
que não somente são prolongações daquilo que está posto, mas também podem
recriar suas atividades num ato criativo que pode realizar-se por uma nova forma de
organização do pensamento ou dos sentimentos, questão que vai incidir nas
possibilidades transformadoras do âmbito social e pessoal.
Diz Vygotski (2003) que a criação é indispensável para a existência humana.
Sem prejuízo de que elaborações criativas sejam obras de arte que provocam a
admiração da sociedade, a vida cotidiana está permeada de atos de criação, pelos
quais os homens vão constituindo suas vidas. O ato criativo é o eixo que situa o
homem como elemento ativo e não passivo, como construtor de sua sociedade e
influente em seu próprio destino, apesar das condições determinantes do contexto
social.
A criação pode existir em tudo aquilo que o homem, sujeito histórico e social,
produz. Pode-se falar de criações coletivas, sendo elementos criados anonimamente,
mas que, no todo, aparecem como projeções coletivas, com as quais, muitos
contribuíram, a partir de suas modestas criações.
Em todo processo criativo é fundamental a imaginação. Tradicionalmente,
compreende-se a imaginação como fantasia desligada da realidade. No entanto, a
imaginação, como elemento fundamental do processo de criação, está em toda
materialidade criativa, manifestando-se em todos os aspectos da vida cultural,
expressando-se na arte, na ciência, na tecnologia e, por que não dizer, na política.
Nesse sentido, deve-se considerar a imaginação não como algo sem transcendência
ou importância, mas como algo fundamental para a vida humana.
A imaginação é histórica, está sempre estruturada a partir dos elementos que
emergem da realidade. Imaginação é um processo, algo paulatino, que se vai
desenvolvendo a partir de elementos simples para mais complexos.
A imaginação abre os caminhos para o novo, na medida que possibilita a
combinação criativa dos elementos da realidade; pode entrelaçar-se com aspectos
imaginários, fantasiosos, mas sempre terá uma raiz na trama das experiências
históricas. Isto significa dizer que, para compor imagens, é necessário que o sujeito se
4
9
aproprie da realidade, por meio da percepção e do conhecimento, para que, em
seguida, consiga decompor e recombinar os elementos em imagens (Maheirie, 2003).
Dentro desse raciocínio, Vygotski postula que...
“...a atividade criadora da imaginação depende diretamente da riqueza e da
diversidade da experiência anterior do homem, já que é essa experiência que
dá o material com o qual se estrutura a fantasia. Quanto mais rica a
experiência do homem, maior será o material com que sua imaginação possa
contar”(Vygotski, 2003, p. 22).
O processo da criação cumpre etapas nas quais, depois de constituído o
substrato a partir de elementos da experiência histórica, o produto deve ser
confrontado com a realidade.
Explicitando esse processo, Vygotski coloca um exemplo e diz:
“Quando eu, na base do estudo e das narrações dos historiadores ou
viajantes, me imagino o quadro da revolução francesa ou dos desertos
africanos, em ambos os casos, o quadro é um resultado da atividade criadora
da imaginação que não reproduz o percebido por mim na experiência
anterior, mas o que se cria, a partir dessa experiência” (Vygotski, 2003, p,
23).
Ou seja, se ninguém tivesse visto ou descrito o deserto africano nem a
revolução francesa, seria impossível fazer-se uma idéia desses lugares ou fenômenos.
Então, pode-se afirmar que o processo da imaginação, além de ser histórico em seus
subsídios, depende da socialização das experiências.
Ainda nos diz Vygotski (2003): para que o processo criativo surja, é necessária
a emoção. É a emoção que possibilita a seleção de certas idéias ou imagens, é ela que
regula o que pode ser construído, enquanto elemento criativo. A emoção possibilita a
seleção das idéias, imagens e impressões, criando uma outra dimensão que se
manifesta na relação das idéias com os sentimentos gerados da vida social.
De forma geral, o que promove qualquer processo de criatividade é o processo
constitutivo do homem no contexto que o rodeia. Se o contexto não provoca desafios,
tampouco promove as pessoas a conseguir questões necessárias para sua vida,
dificultando-se as possibilidades de desenvolver-se criativamente. Ribob (apud
50
Vygotski, 2003) aponta que cada necessidade, aspiração ou desejo por si mesmo ou
junto a outros pode, por isso, servir de impulso à criação.
Estes elementos não são suficientes, tendo em vista que é necessária uma
capacidade combinatória, ou seja, a capacidade de criar novas conexões com aquilo
que acolhemos para nossa ação. São necessárias condições técnicas, compreendidas
como as possibilidades de concretizar o que está sendo construído e também é
indispensável que concorram os elementos da tradição, ou seja, aqueles que estão em
nossa história (Vygotski, 1999c).
Para que se efetive a criação, vale destacar, é necessária a objetivação de um
novo produto no contexto social, seja ele um objeto artístico, ou científico, ou
tecnológico, ou uma nova forma de lidar com o cotidiano, ou uma nova forma de
atuação e reflexão acerca da política. De qualquer maneira, ao falar em processo de
criação, estamos necessariamente referindo-nos à subjetivação da objetividade e da
objetivação da subjetividade (Maheirie, 2003).
A proposta de Vygotski considera um sujeito atuante; determinado e
determinante na construção de sua sociedade; um sujeito que se emociona e pensa,
que se apropria da realidade pelos significados que atribui a ela; um sujeito que nas
contradições do mundo que o rodeia, caminha para seu desenvolvimento.
No livro Psicologia Pedagógica de Vygotski (2004b), publicado originalmente
em 1926, o autor refere-se à vontade, tema que vai retomar em seu texto “Historia del
Desarrollo de las Funciones Psíquicas Superiores”, em 1931 (Van Der Veer e Valsiner,
2001). Sendo o pensamento, a emoção e a vontade constitutivos do ser humano,
Vygotski (2004b) define a vontade como um dos grandes diferenciadores entre os
homens e os outros animais enquanto possibilita, na relação com o pensamento
reflexivo e com o comprometimento emocional, o planejamento e a execução de suas
ações. O autor faz a comparação entre o trabalho humano e o trabalho animal,
postulando que o homem elabora seu trabalho duas vezes: primeiro em pensamento
e depois na prática, pela projeção e planificação efetuada anteriormente no
pensamento.
51
A vontade se revela como o substrato que nutre o processo humano, como
projeção de sua própria humanidade. Vygotski (2004b) postula que ela não aparece
do nada, sem ligação nenhuma com os diversos fatores da realidade.
O que temos em Vygotski é a postulação de que o processo não se esgota na
vontade, mas que existem elementos que lhe são anteriores e que a definem em sua
liberdade.
“...o ato volitivo pressupõe em nossa consciência a existência anterior de
certos desejos, vontades e aspirações relacionadas, em primeiro lugar, com a
concepção de objetivo final a que aspiramos e, em segundo , com a concepção
das atitudes e ações que são necessárias da nossa parte para a realização do
nosso objetivo” (Vygotski, 2004b, p. 227).
Segundo Vygotski (1995), o que mais caracteriza o domínio das reações
próprias é a eleição. Postula, no entanto o autor que a vontade não é livre, ela
depende de motivos externos. Nesse sentido, a liberdade do sujeito radica não em
estar livre dos motivos, mas em tomar consciência deles e em escolher.
A vontade não é apenas acionada por motivos, mas também pela reflexão e
pela emoção; é base do pensamento que se configura em reflexão. Esta configuração
constitui a base afetivo-volitiva que se expressa na palavra para o pensamento. E com
base nessas conexões que nos propomos a analisar as entrevistas levantadas.
52
CAPÍTULO 2
2. CEFURIA, O POVO E
OS MOVIMENTOS POPULARES
Nenhum processo de mobilização começa no vazio e, contrariamente ao que
se formula desde a teoria de massas, quem se mobiliza nunca são indivíduos isolados
e desarraigados. As redes de relações já presentes na fabrica social facilitam os
processos de implicação e reduzem os custos do investimento individual na ação
coletiva (Melucci, 1999, p. 62).
2.1 Um pouco de história
A origem do CEFURIA está ligada à história do país, à própria história da
sociedade brasileira e, de uma forma mais próxima à história dos movimentos
populares. O CEFURIA, no início, foi-se constituindo muito próximo do Movimento
de Associações de Bairro de Curitiba e, juntos, foram ampliando a mobilização a
outros espaços, como o Movimento contra o Desemprego, as Creches, o Movimento
de transporte, todos eles com assessoria e participação do CEFURIA.
Segundo Garcia
11
(2001), os precursores do Centro de Formação foram pessoas
que desempenhavam ações educativas nos bairros populares, denominados como
“grupão”. A atuação desse grupo foi importante para a emergência das primeiras
Comunidades Eclesiais de Base – CEBs – em Curitiba.
Participaram do processo de formação de várias associações de moradores,
assessoravam e ajudavam na organização de alguns sindicatos do campo e da cidade,
favorecendo o processo de mobilização, organização e articulação das classes
populares. Seguindo a tendência da época (inícios dos anos 1980), o “grupão” podia
ser definido como grupo de intelectuais orgânicos, e vários deles, buscando ser
conseqüentes com seus ideais, decidiram morar nos bairros onde atuavam.
11
Maysa Dias Garcia foi formadora do CEFURIA, no período inicial do Centro.
53
Estas pessoas todas tinham em comum o contato com monges beneditinos,
que moravam no Mosteiro da Anunciação em Curitiba. Notoriamente, esses
encontros influenciaram profundamente o “grupão”. Os monges possuíam um
pensamento “progressista” e, em seus espaços, aproveitavam para fazer reflexão
sobre as condições de vida das pessoas. Sua prática era demarcada por uma noção de
justiça e superação das desigualdades.
Tendo raízes profundamente cristãs, as pessoas que fundaram o CEFURIA
mantinham vínculos com a Arquidiocese de Curitiba, relações que, no transcurso do
tempo, foram se deteriorando nas divergências da forma de atuar. Essas pessoas
eram “progressistas”, e por isso incomodavam muito a Igreja mais “tradicional”,
representada na Arquidiocese. Ainda assim, as relações se conservavam, até porque,
como diz um dos pertencentes do grupão “... era uma igreja diferente, mas, pelo
menos, era igreja” (entrevistado por Garcia, 2001).
Para o cumprimento de suas atividades, o grupão fazia uso das
implementações da Arquidiocese. Considerou-se, no entanto, que se precisava de
novos espaços para atender as demandas do movimento popular, uma estrutura
mínima que desse suporte ao trabalho realizado em assessoria e formação junto às
comunidades.
Assim, no dia 28 junho de 1981, foi realizada a reunião para a pré-fundação do
Centro de Formação Urbano-Rural Irmã Araújo, na Capela da Comunidade que se
localiza na Rua Francisco Derosso, no Jardim Maringá, em Curitiba. E no dia 1º de
agosto, o Centro nasce oficialmente.
O mais importante já havia, isto é, o CEFURIA tinha-se constituído da vontade
de sujeitos que tinham em comum o interesse pelo coletivo. O espaço e alguns
recursos financeiros foram conseguidos, mas, segundo Padre Miguel, fundador do
CEFURIA e participante do grupão, o mais importante e o que não podia faltar eram
“os ideais”, tal como assinala em sua fala sobre o CEFURIA: “Pode faltar dinheiro, mais
não vai faltar o ideal. O primeiro recurso foi a grande convicção do ideal e muita colaboração,
muita gratuidade, muito voluntariado”.
A partir de sua fundação, o CEFURIA passa, junto com seus militantes, a
acompanhar os movimentos populares, contribuindo com suas atividades.
54
Implementaram cursos, promoveram encontros e seminários para a área sindical,
popular e outros espaços comunitários e políticos. Ainda, as pessoas do CEFURIA
faziam auto-formação que consistia em auto-avaliações, grupos de estudo, de
reflexão e leituras bíblicas. Ressalta-se que o CEFURIA fosse como uma escola do
povo, a partir da cultura popular, e que tivesse como objetivo superar os
preconceitos construídos em torno à noção de povo.
Em tríptico elaborado pelo CEFURIA são expostos os objetivos da entidade,
como sendo:
“... construir o protagonismo popular, contribuir na formação da cidadania
plena, ajudar o povo a ter vez e voz. Um povo consciente e organizado não se
deixa manipular, nem explorar. Não permite que seus sonhos sejam
reduzidos à busca desenfreada pelo consumo, que só faz aumentar a
distância entre pobres e ricos, além de destruir a natureza, inviabilizando a
vida das novas gerações”.
A necessidade de um Centro de Formação se dava no contexto de uma
sociedade pujante, que se organizava em Movimentos Populares Urbanos com
disposição de superar o processo ditatorial e de efetivar direitos nas condições de
vida. Por outro lado, a efervescência proveniente do meio urbano em Curitiba –
como em muitas cidades do Brasil – possuía uma de suas raízes no meio rural. O
impacto pelo tecnicismo e profissionalização das lavouras impulsionava as pessoas a
se deslocar às cidades, provocando uma migração extensiva dos espaços rurais para
os urbanos. Essa nova direção do âmbito agrícola foi instaurada com uma grande
tecnologização que dispensa o homem da terra, expulsando-o do campo e
provocando seu deslocamento para as grandes cidades.
Consolidado o centro da cidade e os lugares ao redor, as populações foram
sendo deslocadas para lugares mais periféricos que, em muitos casos, não
dispunham das condições básicas de infra-estrutura urbana. Aqueles que chegavam
do meio rural instalavam-se nos lugares mais acessíveis economicamente para eles,
faltando-lhes comumente condições básicas para a moradia. Assim, os bairros de
Boqueirão e Xaxim foram povoados intensamente, apesar das recomendações dos
especialistas em questões habitacionais e urbanas que alertavam sobre as condições
55
pouco aptas para vivenda nesses lugares, tendo em vista os constantes perigos de
inundação.
“Pode-se dizer que a região sudeste de Curitiba, especialmente os
bairros do Xaxim e Boqueirão, bem como os seus arredores reuniam, no final
dos anos 60 e inicio da década de 70, uma série de condições que favoreceram
o surgimento de movimentos populares. Esta era uma região marcada pelos
problemas decorrentes da ocupação desordenada do solo, através de
loteamentos clandestinos e de ocupação de terrenos habitacionais e núcleos
de desfavelamento” ( Garcia, 2001, p.7).
No início dos anos 80, as mobilizações coletivas em Curitiba, como no resto do
país, surgem em resposta à espoliação urbana e à exploração econômica. Essas
mobilizações rompem a pausa das ações coletivas, ocorrida após 1964 e, de forma
geral, representam o marco de separação entre os movimentos sociais tradicionais e o
surgimento dessas novas formas de organização ou de um novo caráter de algumas
das antigas organizações populares. São novas formas de fazer política que surgem, a
partir dos bairros, numa tendência a se afastar das práticas clientelistas,
assistencialistas e autoritárias, comuns nos períodos anteriores à década dos 60 da
história do Brasil, épocas do populismo (Neves, 2006).
Estes atores sociais surgem de práticas de luta que se desdobram em novos
espaços que caminham para o político, distantes daqueles considerados como
tradicionais. O CEFURIA emerge nesse contexto, junto ao despertar das ações
coletivas, silenciadas durante o grande período da ditadura, iniciada em 1964.
Poder-se-ia dizer que o CEFURIA surge da necessidade orgânica dos setores
populares, das demandas urbanas que tinham a ver com as condições fragilizadas
dessas populações.
Eu estive lá, vi acontecer e vi inclusive o CEFURIA lá. Eu já conhecia o
CEFURIA, porque, morando na Região Metropolitana, então em Pinhais,
na Vila Maria Antonieta, eu participava do Movimento de Bairro. Isso a
partir de 83/84 e; foi nessa época que eu conheci o CEFURIA, porque o
CEFURIA estava, na época, envolvido com o Movimento de Bairro. O
MAB tinha sua sede no CEFURIA, que era o Movimento de Associações de
Bairro de Curitiba e Região Metropolitana (Sílvia)
12
.
12
Participante do CEFURIA e entrevistada nesta pesquisa.
56
As pessoas despertam para a mobilização social e transitam pelos espaços
sociais, fazendo contatos, construindo o espaço das lutas populares em Curitiba.
Foram práticas construídas desde o mundo cotidiano, a moradia e seu mundo de
sociabilidades, com seus dramas do dia a dia. Eram as dificuldades das condições de
vida que se traduziam nas carências urbanas, comuns a todos no espaço habitacional.
A partir desse lugar e dessas condições, é que se constituíam os elementos que
davam sentido e revitalização à organização da mobilização coletiva (Telles, 1987).
De acordo com Telles (1987), evidenciava-se, como novidade, o deslocamento
das personagens, o reconhecimento de sujeitos sociais que não situavam sua
participação, como ação coletiva, na pertença à classe operária. Sujeitos que se situam
num espaço distinto da categoria do trabalho e que organizavam sua ação coletiva,
com seus modos de vida, constituindo-se, enquanto especificidade e reflexão
intelectual, como “Movimentos Populares Urbanos”. A denominação dada
possibilitava conferir estatuto teórico a movimentos que não encontravam lugar nos
referenciais tradicionais, voltados para a análise das classes operárias.
Nesse campo de relações, a Teologia da Libertação configura-se como uma
forma de pensamento que influi na participação das pessoas em ações coletivas
populares, definindo elementos valorativos de justiça e solidariedade, que
promovem a organização e mobilização na América Latina.
Na perspectiva da Teologia da Libertação, considera-se que o homem é sujeito
de sua história, o que promove que pessoas envolvidas em valores cristãos se insiram
em movimentos populares (Sherer-Warren, 1993). Poder-se-ia dizer que, a partir da
Teologia da Libertação e pela participação nas Comunidades Eclesiais de Base –
CEBs –, começa a se construir a história do CEFURIA. Uma história que se funda
compartilhando uma utopia, formas de compreender o mundo e a sociedade, a partir
de valores e crenças similares, configurando-se numa vertente ideológica deste
grupo. As pessoas recriam, baseadas na Teologia da Libertação, uma religião
politizada que, além de promover espaços de reflexão da vida real, das condições de
vida, as promove para a ação.
5
7
Scherer-Warren (1993) postula a vertente da Teologia da Libertação como uma
das utopias importantes na sociedade contemporânea da América Latina. De acordo
com esta autora:
“... valoriza-se o compromisso com a realidade histórica presente em que a
Igreja exerce sua missão. Todavia, este compromisso implica uma avaliação
das condições de existência da maioria populacional. Como na realidade
histórica latino-americana, a maioria do povo encontra-se submetido a
situações de opressão, miséria, a não cidadania, a meta fundamental desta
teologia vem a ser a busca de mecanismos que possibilitem a libertação
destas variadas formas de opressão” (Scherer-Warren, 1993, p. 33).
A consolidação de grupos com valores cristãos foi se estendendo além das
entidades eclesiais e foram se organizando como pastorais pelas pessoas
comprometidas com essa concepção de realidade e de sociedade; daí surgem as
Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs, as quais deram um grande suporte às
pessoas e grupos perseguidos pela ditadura militar e da qual também surge a idéia
do CEFURIA. A partir do final dos anos 70 e início dos anos 80, o CEFURIA começa a
ser pensado, num momento em que emergem vários movimentos populares e
também estão sendo construídas as bases para a recuperação da vida política
democrática do país.
No livro “CEFURIA 25 Anos Fazendo História Popular” (Souza, 2006a), a
autora, uma militante e formadora do Centro de Formação, define as bases
ideológicas das contradições nas quais a sociedade esta inserida, desigualdades que
promovem a ação e um protagonismo nas ações coletivas em Curitiba.
“E a nossa sociedade é uma sociedade dividida – entre classes sociais
– pobres e ricos, trabalhadores e patrões; entre os que sabem e os que não têm
acesso ao saber; entre os que vivem do seu trabalho e os que vivem da
exploração do trabalho alheio. Esta é a realidade de uma sociedade que se
organiza sob o modo de produção capitalista. E nada do que existe dentro
dela, pode escapar a esta lógica. A sociedade capitalista é uma sociedade
esquizofrênica, dilacerada” (Souza, 2006a, p. 11).
De acordo com essa autora e militante, o CEFURIA trabalha para a
emancipação popular, apostando na construção e consolidação dos instrumentos que
58
ajudem a superar as contradições capitalistas e avançar no socialismo. Luta-se por
um socialismo original, qualificado como “a nova sociedade” pelos militantes
cristãos.
Souza refere-se ao estatuto da Ata de Fundação do CEFURIA como
fundamental na orientação dos princípios da entidade. Como segue abaixo,
“Apoio e ajuda às iniciativas do povo, fundamentando-se nos
princípios evangélicos e caracterizando-se por uma prática de respeito
profundo aos valores culturais e religiosos do povo; atuando na perspectiva
de uma sociedade justa; e marcando sua autonomia em relação a qualquer
outra entidade” (Souza, 2006a).
São princípios que se traduzem nos “grandes significados” que as pessoas
compartilham, dando suporte a suas atividades e ação política. Significados que os
sujeitos participantes compartilham, mas que, em suas singularidades e na prática da
vida militante, vivenciam de uma forma particular, a partir de suas histórias, de suas
delimitações, fazendo as suas subjetividades.
Dentro dos marcos da institucionalização, o CEFURIA é um centro de
formação com sede em Curitiba – Paraná, que dá subsídios a diferentes grupos para
a reivindicação de interesses e necessidades de setores desfavorecidos da sociedade.
O CEFURIA está localizado, atualmente, em pleno centro da cidade de
Curitiba (PR), no segundo andar de um prédio antigo, em um conjunto comercial, no
Edifício Astor, na Galeria Andrade. Seu portal já nos avisa quais os elementos
ideológicos que perpassa sua prática. Há cartazes incitando por sonhos de um
mundo melhor, retratos que denunciam injustiças e desigualdades sociais, fotos que
expressam a pobreza e textos de artistas que noticiam a vida. No “hall” de entrada,
junto à secretaria da recepção, são oferecidos à venda e para empréstimos, livros e
vídeos que se referem a temáticas ligadas às suas lutas. Além disso, há uma
exposição de artesanato da Economia Solidária em que se dispõem seus produtos à
venda.
O CEFURIA já passou por várias hospedagens. Originalmente, estabeleceu-se
numa sala da Cúria Metropolitana, junto à Comissão Pastoral da Terra (CPT) e com a
Pastoral Operária (PO). Depois se mudou para um prédio comprado pela
59
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Sua próxima morada foi uma
sala alugada por seus membros num edifício da Rua Westphalen, deslocando-se, um
tempo depois, para um local na Rua Muricy, onde também estava abrigado o
Movimento de Associações de Bairro (MAB) e o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST).
Posteriormente, foi a seu próprio local, na Galeria Andrade, edifício Cláudia,
no centro da cidade. Não obstante, foi necessário que grande parte de sua equipe se
deslocasse para a Casa do Trabalhador, no intuito de administrar a casa e assumir a
Escola Mílton Santos, um projeto de formação de várias entidades, das quais o
CEFURIA faz parte. Os militantes decidem, porém, voltar ao centro da cidade, no
mesmo prédio, mas em outras dependências, onde se instalou até hoje.
Conheci o CEFURIA no período da Campanha contra a ALCA (2002), um
momento de muito fluxo de pessoas que se sentiam atraídas por essa temática. Tomei
conhecimento do lugar por um site na Internet ao qual cheguei através de algumas
palavras-chave. Estava interessada em espaços que me possibilitassem pesquisar
aspectos psicossociais de sujeitos que estivessem envolvidos em mobilizações
coletivas.
Naquele momento (inícios do ano 2002), o CEFURIA, tinha-se transformado
na entidade que assumia a liderança da Mobilização contra a ALCA no Paraná e,
portanto na Sede da Campanha. Para tanto, como lugar de encontros, era ocupado
por pessoas que se deslocavam de diferentes lugares do Estado e de distintos setores
da cidade. Representantes de sindicatos, escolas, comunidades de bairro, outras
entidades populares solicitavam informação e/ou material. Realizavam-se muitos
encontros, reuniões para deliberar, planejar, compartilhar e, muitas vezes, para
descontrair, como um lugar de amigos e companheiros.
No período do processo da campanha do Plebiscito contra a ALCA, a
quantidade de visitas e demandas em relação ao tema cresceu amplamente,
incrementando o movimento nos recintos do CEFURIA. As pessoas aproximavam-se
para conhecer mais sobre o tema, para contribuir com o andamento da campanha. A
maioria transitava em busca de informação e apoio para suas próprias atividades.
Outras, porém, permaneciam e assumiam tarefas, incluíam-se no cotidiano da
60
entidade e da campanha. Grande parte vinha em representação de outras entidades,
fazendo a conexão numa rede que integrava distintos espaços coletivos.
Houve, na época, vários encontros que reuniram lideranças dos distintos
setores e também se atenderam muitas solicitações de escolas, colégios e das
comunidades que requeriam do CEFURIA assessoria para se informar sobre as
conseqüências da assinatura do tratado da ALCA. Esse trabalho era realizado por
pessoas que trabalhavam no CEFURIA e por voluntários que vinham de outras
entidades ou de suas comunidades, disponibilizando-se, dessa forma, para contribuir
com a campanha. Aqueles que se inseriam na campanha participaram de seminários
de formação para, num momento posterior, transmitirem as informações e os
conhecimentos adquiridos a outros grupos. Era quase impossível atender todas as
demandas, mas as pessoas responsáveis tentavam atender ao máximo as solicitações
de assessoria, trabalhando por longos períodos de noite e nos fins de semana.
Muito do material da campanha contra a ALCA era enviado ao CEFURIA pela
coordenação nacional da campanha, para distribuição nos diversos setores das
localidades da região. De certa forma, o valor dos materiais deveria ser repassado
para a coordenação da Campanha Nacional contra a ALCA, mas a partilha era
realizada de acordo com as necessidades das localidades. Em outras palavras, o
material passava diretamente para as regiões mais desfavorecidas, as mais afastadas
e/ou as menos atendidas pela rede social, setores que não tinham condições de
assumir os custos do material.
As mobilizações efetuadas eram, em grande parte, organizadas e financiadas
ao mesmo tempo pelo CEFURIA que, nas pessoas de seus organizadores faziam
verdadeiras ginásticas em economia, para alcançar cobrir os gastos decorrentes da
campanha. O telefone e a persuasão eram fundamentais no processo de arrecadação
de fundos. Foram assinados cheques, feitas promessas de pagamento, assinatura de
papéis simples, enviados materiais para pagamento posterior. Isso tudo na dinâmica
de que todo dia é um dia e que no “decorrer do tempo, arruma-se a carga”.
A campanha se mostra como uma grande rede, mesmo porque as pessoas que
estavam disponíveis, em tempo completo, eram poucas. Dessa forma, os voluntários
eram fundamentais para o cumprimento das atividades propostas.
61
São freqüentes os momentos místicos, nos quais se manifestam diversos
aspectos que constituem o mundo representativo destas pessoas, tal como a história
de dominação, os desejos de uma sociedade diferente, a figura dos antagonistas, a
projeção de projetos de futuro. É também comum que esses momentos sejam
acompanhados de expressões artísticas, como canto, poesia e dramatizações,
buscando, em algumas ocasiões, enaltecer seus princípios e, em outras, desfrutar
delas como expressão artística e cultural.
Num momento em que me encontrava presente, numa jornada das muitas de
formação da Campanha contra a ALCA, solicitou-se às pessoas reunidas que
escrevessem em um cartão “uma palavra” que expressasse o porquê de estarem ali,
participando. Foi uma ocasião extremamente significativa para mim, pois poucas
pessoas coincidiram em sua “palavra”; ora, ali o desafio da psicologia na pluralidade
dos sentidos evidenciava-se nesse pequeno ato de compartilhamento. Algumas das
palavras expressadas por essas pessoas foram: “Água, América livre e soberana,
amor solidário, cidadania, ciência, compromisso, conhecimento, dignidade,
distribuição de renda, distribuição da riqueza produzida, educação, ética, família,
humanidade, humanismo, igualdade, justiça social, liberdade, luta, lutar,
organização, poder popular, socialismo, solidariedade, trabalho, transformação,
união, utopia, vida”. Por duas, vezes surgiram as palavras amor, justiça, revolução,
paz e, por três vezes, a palavra trabalho.
Buscando retratar, em parte, o que o CEFURIA significa para as pessoas que o
constituem, trazemos as palavras de uma militante:
“Há uma mística atravessando o CEFURIA desde a sua gestação,
que não lhe permite separar completamente o espírito da matéria, o
individuo do coletivo, a vida da luta, a racionalidade da emoção, a teoria da
prática. Nos momentos em que ele ia pendendo para um dos pólos da
contradição, aparecia alguém – da equipe interna, da direção, do conselho, do
quadro de associados, das organizações irmãs, do movimento popular ou
dentre as lideranças comunitárias e militantes de base – e elaborava a critica.
Que, por sua vez, desencadeava um novo processo de avaliação” (Souza,
2006a, p. 13).
62
Essas palavras já nos apontam que, embora o CEFURIA seja uma entidade
promovida por interesses e motivações comuns de quem participa, não está livre de
conflitos. Segundo os próprios militantes (Souza, 2006a), é a partir destes, porém, que
se impulsiona sua ação, renovando seus planejamentos e dando direção a seus
passos.
2.2 O que é o CEFURIA?
O CEFURIA é uma entidade não governamental? Poderia ser, mas não o é
precisamente, pois esse é um termo que não se apropria ao significado que as pessoas
que o constituem, imprimem em sua instituição. As ONGs, segundo explicava um
membro do grupo, surgiram nos anos 70 – 80, para assumir, de forma terceirizada, o
que o governo, como poder público, deixava de fazer. Isso, na ideologia neoliberal de
minimizar o Estado, diminuir os gastos sociais e otimizar seu funcionamento.
... não somos uma ONG, porque assim, o CEFURIA é anterior às ONGs; o
CEFURIA em 81 surgiu como Centro de Formação Política, o que é
diferente porque as ONGs elas têm ... enquanto esse conceito... Porque nós
temos que diferenciar isso (...) E porque nós não nos sentimos ONG, porque
na verdade as ONGs, nos anos 90, elas já vieram nesse bojo de
desresponsabilizar o Estado, da construção de um terceiro setor, enfim, e
que muitas delas se beneficiaram e muitas se organizaram. Também eu não
posso julgar, mas assim como uma forma de construir empregos para
algumas pessoas, e eu não vamos dizer que todas as ONGs são ruins, mas,
por exemplo, a gente se construiu como um centro, tanto é que a gente diz
que é uma associação da sociedade civil com fins não lucrativos, e que não
se diz como organização não governamental, em algum momento aparece
isso em alguns documentos (Sílvia).
É reconhecido que as ONGs, posteriormente, assumiram um caráter muito
mais ativo, esquivando-se da definição tradicional, porém, o CEFURIA prefere se
definir como uma associação civil de direito privado, com personalidade jurídica,
sem fins lucrativos e econômicos, com sede e foro na cidade de Curitiba, Estado do
Paraná.
Na atualidade, o CEFURIA constitui-se organicamente de um Conselho
Político constituído de 21 membros. Esse conselho determina entre seus membros
63
uma Coordenação Executiva, que tem como objetivo dar agilidade aos programas e
projetos encaminhados.
A coordenação executiva distribui-se em várias coordenações:
Coordenador de política geral,
Coordenador administrativo/financeiro,
Coordenador de sistematização e registro,
Coordenador de programas e projetos,
Coordenador de comunicação e divulgação.
Todos os cargos referidos anteriormente não recebem salário pelas suas
funções e seus membros, em sua grande maioria, têm história de militante e provêm
dos movimentos populares.
Também participa do Centro de Formação a Equipe Interna, composta por
pessoas contratadas pelo CEFURIA e que, em seus méritos, não diferem dos
anteriores em responsabilidade. A equipe interna tem a seu cargo as funções mais
técnicas e administrativas, sempre privilegiando as finalidades e os projetos políticos
que perpassam todas as atividades. Este grupo se compõe de vários formadores e das
pessoas do setor administrativo. Além disso, estão as pessoas que fazem estágio e as
voluntárias que aderem aos distintos projetos da entidade.
O CEFURIA financia-se principalmente com os aportes da MISEREOR
13
uma
ONG fundada em 1958, como uma organização contra a fome e a doença no mundo.
É uma entidade da Igreja Católica da Alemanha que procura contribuir contra as
injustiças, promover a solidariedade com os pobres e os perseguidos. Seus recursos
provêm de doações dos católicos alemães e também da Igreja que, por sua vez, é
apoiada por fundos públicos do Governo Alemão e da União Européia
(www.misereor.org.br).
Em 1993, outra possibilidade de financiamento se abriu pelos contatos
realizados por um dos padres, fundador do CEFURIA, com a Comunidade
13
MISEREOR - Cooperação da Igreja Católica alemã para o desenvolvimento é apoiada também com
fundos públicos do Governo alemão e da União Européia.
64
Econômica Européia (CEE), o que se concretizou num grande projeto “O programa
de Apoio às Organizações Populares de Base, Curitiba-Paraná-Brasil”. Nesse projeto
participaram a Comunidade Econômica Européia (CEE), a comunidade de Mambre
(região da Itália, onde o padre fez os contatos), e a ONG Movimento pelo
Desenvolvimento, Intercâmbio e Solidariedade (MAIS).
O projeto se constituiu de um grande Programa de Formação, envolvendo a
Comissão Pastoral Operária (CPO), a Comissão Pastoral de Terra (CPT), a
Organização das Associações de Moradores do Xaxim, Pinheirinho e Boqueirão
(XAPINHAL), o Movimento de Moradia, o Movimento Nacional de Meninos e
Meninas de Rua (MNMMR) e o Movimento Popular de Mulheres do Paraná
(MPMP). Também o projeto considerou a reestruturação da cooperativa de artefatos
de cimento, para construir casas na ocupação da Organização das Associações de
Moradores do Xaxim, Pinheirinho e Boqueirão (XAPINHAL), a construção do
barracão e compra de equipamentos para o Centro de Compras Comunitárias, hoje
Centro Comunitário de Proteção Alimentar Padre Miguel.
Outros recursos foram para financiar a gráfica Popular, a vídeo-produtora e
um jornal que se denominou Folha Popular. Também se implementou uma confecção
de artesanato e um aviário como possibilidades de geração de renda para meninos e
meninas de rua, na Chácara dos Meninos de Quatro Pinheiros.
Foi possível, com esse projeto, financiar a compra da sede do CEFURIA, que
assim, possibilitou a melhora considerável das implementações da entidade. Foi um
projeto que visava estruturas físicas e equipamentos, na distribuição de cinco anos
(Souza, 2006a). Algumas parcerias ou pequenos projetos são assinados para se
viabilizarem algumas linhas de trabalho.
O projeto Rede da Vida foi apresentado em 2002 ao Ministério da Saúde,
contemplando um trabalho com jovens o qual considerou espaços de comunicação
com educação sexual, teatro, rádio, jornal, pintura, poesia, fotografia, vídeo, fantoche,
dança, reciclagem, música, entre outros. Este projeto também recebeu apoio da
UNESCO.
Em 2003, apresentou-se um pequeno projeto à Comunidade de Mambre que
permitiu organizar a documentação e preservar a história do movimento popular,
65
hoje concretizado com o Centro de Documentação e Biblioteca Popular “Mara
Vallauri”, um espaço de pesquisa aberto para o público, que contribui especialmente
em documentação sobre movimentos sociais, educação popular, sócio-economia
popular e solidária. Também possui material sobre história, política, sociologia,
psicologia social, dívida externa, ALCA, Teologia da Libertação, Reforma Agrária,
entre outros.
Uma parceria com a Universidade Federal do Paraná permitiu a contratação
de dois estagiários que deram suporte às atividades do CEFURIA. Nessa parceria, foi
realizado um Seminário de Rádios Comunitárias, em 2003, e dois seminários de
comunicação.
Em 2004, gerou-se o projeto Talher que faz parte da estrutura de organização
do Programa Fome Zero, desenvolvido pelo Governo Federal. Este projeto possibilita
o acompanhamento e a formação cidadã de setores extremamente desfavorecidos.
Através dele tornou-se possível a contratação de alguns educadores, ampliando o
trabalho do CEFURIA.
Em 2005, aprovaram-se alguns projetos. Junto com o Ministério de Ciência e
Tecnologia com a Financiadora de Estudos e Projetos (MCT/ FINEP), que permitiu a
implementação das padarias comunitárias com uma cozinha na casa do trabalhador.
A educação como prática social transformadora da realidade, visando a uma
finalidade humanizadora, é a perspectiva proposta pelo CEFURIA, para subsidiar os
cursos de formação que oferece. Nesse intuito, a pedagogia de Paulo Freire é uma
importante contribuição.
Em documento do CEFURIA, à disposição no site da entidade, encontramos
um texto de Sousa (2006b), que se reporta aos mais importantes referenciais teórico–
metodológicos, adotados de Paulo Freire. Partindo da idéia de que a educação é um
ato político, o CEFURIA valoriza de Paulo Freire a proposta pedagógica que
promove uma alfabetização política, que envolve construir um conhecimento novo, a
partir da realidade concreta, um conhecimento que integra prática e teoria e se
constitui na relação do educando e o educador.
Também o CEFURIA considera deste autor a proposta da ação dialógica que
considera dois momentos fundamentais: o da desumanização e o da humanização. O
66
primeiro, sendo o momento da denúncia, e o segundo, o do anúncio, ambos
construídos na ação dialógica.
Destacam-se na obra deste autor, vários valores, referências para o trabalho
formativo do CEFURIA. Entre eles, importantes são a dialogicidade como matriz de
um projeto democrático e o “trabalho coletivo”. Este autor enriquece os subsídios do
Centro de Formação na valorização da ética, da tolerância, a política, a esperança, a
indignação e a autonomia.
Em termos de formação, o CEFURIA consolida sua primeira experiência de
formação continuada em 1988, com o Curso de nível II de “Capacitação de
Lideranças do Movimento Popular”, que cumpriu várias etapas e abrangeu até os
anos 1991 – 1992. Nos próximos anos, houve outras experiências continuadas, em
convênio com a Universidade Federal do Paraná (UFPR), realizaram-se cursos sobre
neoliberalismo, globalização, e suas conseqüências para os movimentos sociais. A
partir de 1999, os cursos se orientaram para “A história que não foi contada”, que
tinha como intuito desvelar as relações de dominação que persistem na história
oficial. Atualmente é realizada a “Escola de Formação Básica Multiplicadora da
Economia Popular Solidária: História Social do Trabalho”, que se iniciou em 2004 e
se mantém até hoje (Sousa, 2006a).
Em conjunto com essas iniciativas de formação, atuam duas instâncias que se
constituem em espaços de aprendizado coletivo, que são o Coletivo de Animadores
dos Clubes de Troca e o Conselho Gestor das Padarias Comunitárias.
Desde 1998, o CEFURIA – dentre outras ações – acompanha Grupo de
Economia Solidária, promovendo cursos, seminários e oficinas; também dá assessoria
a entidades, apóia feiras solidárias, ajuda a construir Clubes de Troca, Padarias
Comunitárias, etc.
São objetivos destas práticas: (a) ajudar na organização popular para conquista
de novos direitos e efetivação daqueles já garantidos legalmente; (b) elevar a auto-
estima e autonomia; (c) criar novas formas de sociabilidade, fundadas no afeto, na
democracia participativa, solidariedade, autogestão; (d) melhorar as condições
materiais de vida das pessoas envolvidas; (e) investir na formação, para melhor
compreender o funcionamento da sociedade e poder transformá-la.
6
7
As práticas de Economia Solidária, em especial os Clubes de Troca, têm
possibilitado que as pessoas se reúnam e dialoguem, partilhem bens materiais, além
dos sonhos, afetos, informações, saberes. Enfim: saiam do isolamento, dêem as mãos
e busquem saídas coletivas para os problemas comuns.
Os Clubes de Troca acontecem, geralmente, nas Paróquias, Centros
Comunitários, Associações. Quem impulsiona e acompanha estas experiências, são,
de modo geral, voluntários e assistentes sociais, pessoal que trabalha junto aos
pobres, beneficiários de alimentos doados.
O papel do CEFURIA, neste caso, é ajudar a implementar a experiência nos
locais onde são chamados. Fazem visitas, participam de alguns encontros, como
animadores, e depois, dão espaço para os grupos caminharem sozinhos, cada um
com sua especificidade.
A metodologia adotada pelos animadores reúne elementos da educação
popular, na perspectiva que o CEFURIA define esta prática – compreendida como
um instrumento de transformação social que possibilite enfrentar a opressão e
avançar para a emancipação dos sujeitos.
A Escola de Formação Básica, Multiplicadora da Economia Popular Solidária,
surgiu em 2004 e representa um passo a mais na organização da população e na
formação de lideranças.
A característica que marca esta Escola (carinhosamente chamada de
“Escolinha”) define-se por reunir grande diversidade de pessoas; desde as que não
tiveram acesso à educação formal até aquelas que têm nível superior; são pessoas que
se caracterizam pela multidiversidade de suas raízes, pessoas de distintas idades e de
diferentes etnias, religiões e culturas.
Conforme documento elaborado por Carneiro e Bez (2005), a Escola de
Formação Básica, Multiplicadora da Economia Popular Solidária – Escolinha, visa a
promover as bases para uma economia diferente, baseada na solidariedade e na
valorização do ser humano. Cada etapa resgata a história do trabalho, analisada sob
os referenciais aportados por Paulo Freire. Promovem-se espaços de diálogo, nos
quais se procura a análise crítica dos fatos históricos, procurando a desconstrução de
compreensões da realidade que legitimam relações de desigualdade. A Escolinha
68
procura promover valores de solidariedade, de auto-estima, de pertença a um grupo
de referência e também busca a valorização das pessoas pelo seu protagonismo,
como sujeitos da história.
2.3 O CEFURIA, o povo e os Movimentos Populares
Ao falar do CEFURIA, é necessário falar de movimentos populares como
ações coletivas que surgem no seio do povo e das necessidades que lhe são comuns,
em relação a suas condições de vida. Nesta parte do trabalho, privilegia-se a noção
de povo e de movimentos populares como os eixos que mobilizam e que dão sentido
à existência do CEFURIA.
Bierrenbach (1986) formula que a noção de povo se dá em vários contextos,
sendo-lhe atribuídos distintos significados. Nas ciências humanas, o povo é definido
pela Antropologia como etnia ou nação, ou seja, uma população definida por uma
origem cultural ou racial. A partir da corrente filosófica de Santo Agostinho,
considera-se “povo” uma multidão associada pelos interesses comuns e pelo
consenso do direito. Na Teoria Geral do Estado, “povo” é formalmente o conjunto de
cidadãos ou súditos de um mesmo Estado.
A definição e sua relação com o contexto social se estruturam de acordo com
alguns referenciais históricos. Na América Latina, essa inscrição se define entre a
Segunda Guerra Mundial e até o período das ditaduras pelo populismo em matrizes
ideológicas que percorrem desde o marxismo–leninismo até os nacionalismos
neofascistas. Nesse contexto, o Estado assume a tarefa de unir as classes sociais
progressistas, num projeto de desenvolvimento econômico que tem como meta a
industrialização. Este processo permitiria a incorporação de populações rurais que,
empobrecidas, se deslocam para as cidades, em busca de melhores condições de vida.
No período dos golpes ditatoriais, a noção de povo diluiu-se sendo a grande
população denominada preferencialmente de “nação” a qual se focalizava na busca
de uma doutrina do nacional, enquanto valor patriótico.
69
No enfraquecimento dos governos ditatoriais, surgem os movimentos
populares que se apropriam novamente do termo e centram suas reivindicações a
partir da noção de “povo”. Para os movimentos populares, esse termo vem revestido
de significações políticas e sócio-econômicas. Além das formulações interpretativas
teóricas ou filosóficas, são as próprias pessoas que formulam sua autodefinição,
sabendo quem é; quem são os seus adversários, elaborando novas formas de
organização, produzindo sua cultura, delineando seu projeto histórico de forma apta
a exprimir seus sofrimentos e suas lutas, mas também suas alegrias e esperanças.
Em relação ao “popular”, é importante destacar que, mesmo que existam
elementos históricos que nos permitem identificar o grupo em sua relação com a
sociedade a partir desse núcleo explicativo, as pessoas que configuram esse âmbito
social não se referem a si mesmas por essa denominação. A noção de popular é mais
utilizada a partir de outros setores, referindo-se ao vulgar, ao simples, àquilo que não
tem elaboração nem reflexão.
No entanto, em uma postura de contraposição, apropriam-se do termo “povo”
setores com consciência política assumindo o conceito para se autodefinir quando se
organizam e se declaram “movimentos populares”.
Wanderley (2005) postula a necessidade de esclarecer a ênfase no popular,
considerando as ambigüidades do conceito. O autor situa esse debate nas diversas
concepções que envolvem o termos “povo” e “popular”, aduzindo várias tendências.
Nesse contexto, o autor refere-se aos defensores do termo povo como mais
amplo e rico do que os de indivíduo e classe social, comuns nos discursos do
liberalismo e do marxismo. Também fala dos que situam o povo em contradição com
o poder e que defendem uma compreensão fundamentada em relações políticas e
ideológicas de dominação de uma formação social determinada e não de relações de
produção. Outros postulam os termos “povo e popular” próximos do enfoque do
populismo. Ainda outros setores situam esses conceitos nas especificidades que as
classes sociais assumem em formações sociais dependentes, como América Latina e
também estão os que integram “povo e classes” como realidades objetivas em suas
múltiplas determinações.
70
Podemos considerar as condições do povo como as dadas às classes populares.
Nas palavras de Wanderley (2005):
“Quando nos referirmos às classes populares ou classes
subordinadas, falamos daquelas que vivem uma condição de exploração e de
dominação dentro do capitalismo. (...) A dimensão de dominação diz respeito
à submissão no plano social e político, dada pela exploração econômica”
(Wanderley, 2005, p 26).
A noção de classes populares é definida por Wanderley (2005) como uma
ampla gama de setores caracterizados por serem pobres e oprimidos. Nessa âmbito
encontram-se o operariado, o campesinato, os marginais, o lumpemproletariado, os
funcionários, os profissionais e setores da pequena burguesia, os indígenas, os
desempregados e os subdesempregados.
O que prevalece e se reafirma em qualquer noção, atribuída ao que é “povo”, é
a condição social humilde, e que, quanto mais acirrada, mais autenticamente se pode
falar dele. A noção de povo não corresponde a uma população determinada, mas às
circunstâncias sócio-históricas, do contexto da época.
Chauí (1995) distingue, na definição do social, “o popular” como denominação
pela qual se reconhecem os setores mais desfavorecidos; uma designação que nasce
das outras classes sociais, para definir as manifestações culturais dos setores
subalternos.
É possível dizer que o termo popular articulado à cultura, comumente designa
significados e sentidos que derivam em diversas noções de imposição de poder.
Seguindo o rasto histórico do termo, Chauí nos fala de algumas dessas conotações,
que, em suas perspectivas, evidenciam as diferenças sociais e as desigualdades. O
popular se assenta no conceito de cultura sendo “cultura popular” aquelas
elaborações humanas que provêm de um setor desfavorecido da sociedade.
O popular se atrela aos setores sociais mais desfavorecidos e mais
desvalorizados. De uma forma excepcional, no pensamento da ilustração, denomina-
se “povo” aos burgueses, e o que hoje se compreende como povo era denominado
como “plebe”, os que eram definidos como ignorantes, supersticiosos, irracionais e,
sobretudo sediciosos (Chauí, 1986).
71
“Ao povo, portador da Razão, cabe a tarefa política fundadora.
Quanto ao povinho e suas necessidades básicas, cabe auxiliá-lo através da
filantropia e educação, através da disciplina do trabalho industrial, educação
essencial para conter suas paixões obscuras, supersticiosas, sua
irracionalidade e, sobretudo sua inveja, que se exprime no desejo sedicioso do
igualitarismo” (Chauí, 1986, p. 17).
Por outro lado, a tendência do pensamento dos Românticos (século XVIII),
numa crítica ao Iluminismo, desenvolveu o conceito de popular a partir de outra
perspectiva. Sendo eles confrontadores dos desígnios da modernidade, postulam o
popular, enquanto simplicidade e imaginação, a pureza e o rompimento com os
preceitos da racionalidade. O popular aqui está atrelado à vida camponesa e
pastoral, aos bons selvagens, como nos diz Chauí (1986).
“O povo romântico – sensível, simples, iletrado, comunitário,
instintivo, emotivo, irracional, puro, natural, enraizado na tradição – nasce
de motivos estéticos, intelectuais e políticos. Esteticamente, é a resposta do
Romantismo ao Classicismo, a revolta da natureza contra a ‘arte’.
Intelectualmente, é a resposta dos sentimentos contra o racionalismo
ilustrado, a revolta da tradição contra o progresso das Luzes, do
sobrenatural e do maravilhoso contra o desencantamento do mundo”
(Chauí, 1986, p. 19).
Em um sentido confrontacional com a ilustração, a cultura popular, para os
românticos, realiza-se pelo nacional, pelo nativismo. Aqui, o popular se entende pelo
primitivismo, denotando a preservação das tradições, e pelo comunitarismo,
demarcando a criação popular como coletiva e anônima, enquanto manifestações
espontâneas.
Uma outra noção do popular é introduzida pelo conceito gramsciano de
hegemonia. Numa perspectiva tradicional marxista, o popular é considerado como a
luta de classes, o povo é o povo explorado, dominado e excluído. É pela ideologia
que medeia as práticas sociais que as pessoas transitam entre a exploração econômica
e a dominação política.
Nesse conceito, a hegemonia contém tanto a cultura - como processo social
global que constitui a visão de mundo de uma sociedade e de uma época – e a
ideologia – como sistema de representações, normas e valores da classe dominante
72
que ocultam sua particularidade numa universalidade abstrata. A ideologia, neste
sentido, distingue-se como a cultura dos mais dominantes.
Chauí (1986) vai considerar a cultura popular como algo que se efetua por
dentro da mesma cultura dominante, ainda que para resistir a ela. A autora acredita
que a dualidade cultural surge, quando nos deparamos com as expressões acabadas,
com os produtos culturais, diferentes, mas tal impressão supera-se, quando se analisa
o processo em seu movimento constituinte.
Nesta concepção do popular, Chauí (1986) destaca a cultura popular como
cultura plebéia, no sentido que o direito romano dava ao conceito de plebe: aqueles
desprovidos de cidadania e que se fazem representar por meio de outros (cidadãos),
encarregados de apresentar e defender o direito na cena pública e de potencializar a
organização e a reivindicação de direitos.
Desse modo, a cultura popular será situada por Chauí (1986) como um
conjunto disperso de práticas, representações e formas de consciência que possuem
lógica própria - o jogo interno do conformismo, do inconformismo e da resistência -,
distinguindo-se da cultura dominante, exatamente por essa lógica de práticas,
representações e formas de consciência.
O povo aparece em suas lutas e reivindicações como movimentos populares
que podem ser reconhecidos historicamente nas lutas indígenas, quilombolas, do
banditismo. São manifestações sociais que se podem perfilhar em nosso contexto
histórico desde o período colonial e hoje se encontram nas organizações sociais da
periferia, dos favelados, dos migrantes, das pessoas que se organizam em
comunidades, dos catadores de lixo, dos desempregados.
Os movimentos populares no Brasil adquirem seu auge no período em que se
inicia o declive do processo ditatorial, nos anos 70 – 80. De acordo com Telles (1987),
estes movimentos surgem das periferias das cidades, centrando suas reivindicações,
em formas de organização articuladas, a partir de interesses imediatos, relacionados
com condições de vida.
“O que se pode dizer é que, nas condições opressivas daqueles anos
(década de 70), os movimentos populares, tão pontuais em suas
73
reivindicações, tinham um alcance simbólico que ultrapassava o sentido
imediato de conflitos locais, para mobilizar e articular como experiência
compartilhada as várias opressões, vividas em lugares diferenciadas. Davam
assim, projeção política e abriam novos horizontes à opressão e violência,
vindas do Estado. É possível ainda dizer que, fazendo aparecer o mundo
cotidiano da moradia, como lugar onde se realizava a organização e luta
contra as condições vigentes, esses movimentos ganhavam significados de
uma reabertura do social como alternativa política” (Telles, 1987, p.61).
As primeiras interpretações teóricas, relacionadas com ações coletivas,
surgiram junto às manifestações de protesto dos trabalhadores do mundo operário
da revolução industrial, nas primeiras etapas do capitalismo. Estes grupos foram
considerados como irracionais e anormais, aduzindo sua emergência a colapsos na
sociedade. Le Bon (s/d) escreveu, em 1895, sua obra “A Psicologia das Multidões”,
na qual definiu o indivíduo participante como bárbaro e postulou as manifestações
coletivas como um retrocesso do processo civilizatório. Este autor foi predominante
nessa perspectiva, centrava o foco explicativo em aspectos individuais ou
psicológicos, aduzindo aos sujeitos, alterações de comportamento, produto de
processos patológicos. As formas de participação eram compreendidas como
comportamentos primitivos, alheios à razão, produto do contágio, da histeria ou de
efeitos circulares.
As chamadas Teorias do Comportamento Coletivo, interpretações elaboradas
desde o interacionismo simbólico de Blumer (1962) e da leitura sistêmica de Smelser
(1963) se caracterizam por considerar as manifestações coletivas como um ponto
intermédio de desenvolvimento da sociedade. Para os sistêmicos, as ações coletivas
são expressão de um desequilíbrio da dinâmica da estabilidade da sociedade. Para os
interacionistas, os movimentos sociais são manifestações inseridas no processo da
criação das normas e regras. Entre estas teorias existem profundas diferenças. No
entanto, elas concordam ao considerar, como princípio geral, que, em algumas
circunstâncias, as normas sociais e os mecanismos de controle social são superados e
não conseguem impor a ordem, dando espaço a situações de descontrole e incertezas,
nas quais surgem movimentos massivos irracionais que derivam em ações coletivas.
Nesta perspectiva, a razão é situada contraria à subjetividade e a consciência atrelada
74
à razão, definindo sentimentos e emoções pela sua conotação negativa. A razão é
valorizada pela ordem e sujeição às regras e normas.
A partir de leituras marxistas das ações coletivas, resgata-se a razão como
fator preponderante para a participação em ações coletivas, mas de igual forma que
nas teorias anteriores, as emoções são desconsideradas, ou ainda definidas contra a
razão, irracionais, portanto, sem controle.
Dos anos 60 em diante, emerge nos Estados Unidos uma nova corrente
interpretativa dos movimentos sociais, a teoria chamada de Mobilização de Recursos.
Nesta perspectiva, orientam-se as explicações à participação para a questão dos
recursos; os movimentos surgem, quando os recursos se tornam viáveis.
Posteriormente, a teoria foi ampliada à questão das oportunidades políticas (Gohn,
1997).
Numa outra perspectiva, definem-se os Novos Movimentos Sociais, dando
ênfase a questões articuladas à cultura, à ideologia, às lutas sociais cotidianas, à
solidariedade entre as pessoas de um grupo ou movimento social que se configuram
em processo de identidade (Gohn, 1997). Consideram-se grupos de indivíduos que
se mobilizam por questões que têm a ver com suas vidas e que não são
necessariamente considerados nas estruturas do Estado tradicional. Assim, eles
escapam das dualidades esquerda/direita, classe operária/classe dominante,
rural/urbano. As lutas são ligadas à etnia, gênero, sexualidade, meio ambiente, paz,
questões que têm relação com toda a humanidade e que se configuram, além de uma
identidade, também pelo direito às diferenças. As questões que são privilegiadas
formam parte da cultura, das situações sociais e têm por atores construtores de
significados, que participam, com outros construtores de significados. São grupos
mais descentralizados, sem grandes hierarquias internas, abertos, espontâneos e
fluidos.
Nesse contexto, surgem ou tomam nova aparência o movimento estudantil, o
movimento feminista, os movimentos pacifistas, ecologistas, antinuclear, gays, etc.
Movimentos que obrigaram a um olhar diferente que escapa da focalização existente
até esse momento: as ações coletivas como processos revolucionários ligados à
sociedade industrial.
75
O que se evidencia é a politização de questões que estão além do institucional,
demarcado pelo Estado, temas articulados às necessidades da vida comum e que,
portanto, superam algumas dualidades que demarcaram tradicionalmente o político,
em relação ao público e privado; subjetividade e objetividade; individual e social.
Eurípides de Cunha Dias (2001) discute a necessidade de viabilizar a liberação
de significações que estão presas nas formas discursivas as quais se referem aos
movimentos sociais.
A referência a ofuscamentos de algumas práticas de mobilizações coletivas se
dá pela leitura delimitada nos marcos de interpretação consagrados. Em algumas
ocasiões, defrontamo-nos com extensos documentos relativos a teorias dos
movimentos sociais que não conseguem dar explicações à complexidade desafiante
das realidades concretas. Em vista disso, ajudam-nos as postulações de Cunha Dias,
quando afirma que os movimentos populares passaram por um obscurecimento que
não deixa liberar suas significações encobertas e reprimidas no campo discursivo dos
movimentos sociais.
Segundo este autor, os movimentos populares passaram por uma dupla
exclusão: primeiramente das análises marxistas e, posteriormente, da teoria dos
novos movimentos sociais.
Poder-se-ia dizer que, em se referindo à teoria marxista, a exclusão se daria
por uma dificuldade das pessoas de se reconhecerem nas categorias do proletariado,
por estarem excluídas do mundo do trabalho. A exclusão pela teoria marxista deu-se
por não apresentarem os identificadores de antagonismo de classe, centrados no
conflito entre capital e trabalho.
A teoria dos Novos Movimentos Sociais priorizou novas formas de fazer
política, a partir de novos sujeitos que surgem como atores políticos, ao longo das
mudanças que se dão na década de 60, nos Estados Unidos e Europa. São grupos que
se destacam por novas formas de compreender o político no alongamento de seus
sentidos para questões da vida social. Grupos que, predominantemente, se assentam,
procurando uma identidade e na busca de inserção de novos temas como o ecológico,
o étnico, as condições de gênero, entre outros. Seu interesse focaliza reivindicar
identidades e formas de fazer política, além do institucional.
76
No âmbito restrito dessas interpretações teóricas, encontram-se dificuldades
para relacionar a realidade dos movimentos populares, no contexto discursivo da
teoria marxista e dos Novos Movimentos Sociais.
Melucci (2001) manifesta-se, criticando a orientação a qual foi assumindo a
conceituação de “Novos Movimentos Sociais” sendo que ele mesmo estava querendo
definir algumas diferenças comparativas entre as formas históricas do conflito de
classe e as formas emergentes de ação coletiva. Este autor assevera que, nos
movimentos contemporâneos, como em todos os fenômenos coletivos, combinam-se
formas de ação que se referem a distintos momentos históricos.
O que define propriamente os novos movimentos sociais é a ênfase colocada
em questões mais articuladas à cultura, à ideologia, às lutas sociais cotidianas, à
solidariedade entre as pessoas de um grupo ou movimento social que se configuram
em processo de identidade (Gohn, 1997).
Kärner (1987), em seu texto “Movimentos Sociais: Revolução no Cotidiano”
aponta que é a partir de uma nova concepção política, não apenas voltada para a
conquista de um futuro melhor distante, mas que fundamentalmente considera uma
existência cotidiana digna de viver, conquistada no dia a dia, que emergem novas
expressões coletivas. Com relação a isso, desenvolvem-se movimentos sociais nos
quais habitantes de favelas e bairros populares começam a reivindicar melhores
condições de vida. Uma luta que não representa para o morador a conquista do
poder (estatal), nem a formação de um partido, a hierarquização dos processos de
decisão ou a guerrilha, mas, significa tratar de criar, de viver mais humanamente.
A superação das determinações de uma perspectiva marxista ortodoxa se dá
pela apropriação dialética de suas concepções na postulação de um sujeito histórico,
atuante e criativo que supera os determinismos sociais pela sua ação e criatividade;
um sujeito social que extrapola o determinado na concepção marxista, a partir do
proletariado como o sujeito histórico. Luta social, conflito, ideologia e alienação são
conceitos que se enriquecem com a perspectiva do sujeito histórico, social e cultural.
Nesse campo de novos horizontes, as demandas e necessidades históricas dos
seres humanos são recapituladas com práticas culturais, nas demandas do cotidiano,
7
7
alongando as reivindicações políticas para as formas de vida. Assim, confluem
movimentos populares com novos movimentos sociais.
Numa abertura, as possibilidades dadas na realidade das configurações
coletivas, Doimo (1995) chama a atenção para desvencilhar categorias prévias
impulsionando-nos a esforçar um olhar interpretativo que conjugue diferentes níveis
de abstração assumidos pela prática do grupo.
Dessa forma, nosso intuito é focalizar formas de resistência, apreendendo,
como enfatiza Sawaia (1997), lugares insuspeitos de defesa das necessidades
humanas, na era da globalização, que podem ser consideradas a partir do ético-
político que se relaciona com a emancipação humana.
Sawaia (1997) apresenta-nos a riqueza de estratégias de enfrentamento à
racionalidade tradicional de exclusão, possível de se encontrar nos movimentos
sociais locais, ou, de acordo com nosso olhar, nos movimentos populares. Trata-se de
práticas que não têm como intuito imediato a revolução, contudo, realizam-se
gerando contra poderes caminhando na contramão das propostas que, de forma
abalada, se efetivam pelas políticas atuais do neoliberalismo.
É nesse contexto que o CEFURIA soma-se às lutas populares dando subsídios
aos movimentos em formação e articulação.
78
CAPÍTULO 3
3. REFLEXÕES E APONTAMENTOS
METODOLÓGICOS
“A possibilidade da psicologia como ciência é, antes de mais nada, um problema
metodológico. Em nenhuma ciência, existem tantas dificuldades, controvérsias
insolúveis, uniões de questões diversas, como em psicologia. O objeto da psicologia é
o mais difícil que existe no mundo, o que menos se deixa estudar; sua maneira de
conhecer terá de estar cheia de subterfúgios e precauções especiais, para proporcionar
o que dela se espera” (Vygotski, 1999b, p. 390).
3.1 Reflexões e apontamentos metodológicos, a partir de Vygotski
A vasta obra de Vygotski, apesar de sua curta vida, é perpassada por
delineamentos metodológicos. Neste espaço, propomo-nos trazer alguns elementos
relevantes para esta pesquisa que apontam para a contribuição de uma leitura e
compreensão analítica.
Os delineamentos metodológicos deste autor encontram-se espalhados em
diferentes momentos de seu trabalho, dando suporte a diversas temáticas. Estas não
são as únicas; a obra de Vygotski possibilita focalizar distintos elementos
metodológicos.
Vygotski (1999b) postula a revisão dos preceitos psicológicos, focadas numa
perspectiva marxista, o que, nesta pesquisa, significa adotar uma perspectiva
histórico-social do ser humano, orientada metodologicamente pelo materialismo
histórico e dialético. Considerar o objeto psicológico com base no marxismo é
assumir o estudo do ser humano a partir da materialidade de suas relações sociais,
pelas suas contradições no decorrer de sua processualidade.
No texto “O Significado Histórico da Crise da Psicologia, uma investigação
metodológica”, escrito em 1927, Vygotski (1999b) se situa na crítica às leituras
79
fragmentadas do psicológico, que diluíam o objeto da psicologia em conceitos como:
alma/corpo; objetivo/subjetivo; biológico/social; razão/emoção.
Nesse sentido, Vygotski (1999b) percebe a necessidade de construir os
próprios princípios e conceitos desta área, tarefa que realiza a partir da crítica
histórica da psicologia, uma proposta fundamentada na crítica a uma psicologia
objetiva que restringia as funções psicológicas complexas a processos elementares e a
uma psicologia subjetivista que preservava a complexidade dos conteúdos da
consciência, mas incapaz de explicar sua gênese.
No texto “Historia del Desarrollo de las Funciones Psíquicas Superiores”
escrito em 1931, Vygotski (1995) se refere criticamente aos mesmos aspectos.
“Las formaciones y procesos complejos solían ser descompuestos en
sus elementos constituitivos y dejaban de existir como un todo, como
estrutuctura. Eran reducidos a procesos de un orden mas elemental, que
ocupan un lugar de supeditación y que cumplen una determinada función
en relación con el todo, de cuya composición forman parte” (Vygotski, 1995,
p. 15).
Dessa forma, o autor nos orienta metodologicamente a “não diluir” nosso
objeto, não perder o horizonte de que estes são sujeitos que pensam, atuam, sentem,
se manifestam; constituindo-se assim num todo integrado que, em seu recorrer
histórico e dialético, configura conexões de suas funções psicológicas que mudam,
transformando-se a si mesmos e orientando comportamentos.
Vygotski (1999b) vai mostrar-nos a importância de situar a psicologia como
uma ciência concreta. Para isso explorou as causas mais próximas da crise, ou seja, o
campo da psicologia aplicada. A partir desta área, Vygotski (1999b) situa a
necessidade de reformular a psicologia, pois é ali onde emergem as problemáticas
que exigem uma psicologia concreta para um homem pleno, embora esta psicologia
não seja um espaço de grande desenvolvimento, tal como formula Vygotski no
seguinte parágrafo.
“Por mais estranho e paradoxal que pareça à primeira vista, é
precisamente a prática, como princípio construtivo da ciência, que exige
uma filosofia, ou seja, uma metodologia da ciência. O que absolutamente não
está em contradição com a atitude irrefletida e ‘despreocupada’, segundo o
80
termo empregado por Münsterberg (outro autor), que tem a psicotécnica em
relação aos seus princípios: na verdade, tanto a prática quanto a metodologia
da psicotécnica são, com freqüência surpreendentemente impotentes, débeis,
superficiais, inclusive ridículas. Os diagnósticos da psicotécnica não dizem
nada e fazem lembrar as reflexões sobre a medicina dos charlatães de
Molière; sua metodologia é cada vez inventada ad hoc e carece de disposição
crítica; com freqüência foi denominada de psicologia de verão, ou seja, leve,
efêmera, pouco séria. Tudo isso é correto. Mas não modifica em absoluto o
fato essencial: é justamente essa psicologia que gera uma metodologia férrea”
(Vygotski, 1999b, p. 345).
Para o autor não cabe dúvida de que é pela prática dos homens que emerge a
reformulação de uma psicologia geral e é ali onde, quer queira, quer não, o homem
não pode ser fragmentado. Cabe dizer da psicologia aplicada: a pedra que os construtores
rejeitaram veio a ser a pedra angular (Vygotski, 1999b, p. 344).
A afirmação de Vygotski sustenta-se em três fatos. A prática expressada nas
psicologias aplicadas (a psicotecnia, a psiquiatria, a psicologia infantil, a psicologia
criminal) que situa a psicologia nas necessidades e desafios da vida. A prática como
princípio construtivo da ciência, exigindo uma metodologia da ciência que, nessa
área, se manifesta historicamente, ainda frágil e superficial, mas que fundamenta seu
enriquecimento no desenvolvimento de uma metodologia. E, como terceiro fato, a
própria psicologia real que ultrapassa necessariamente os limites da psicologia
idealista, porque, a partir de um olhar transcendental, não tem como dar conta dos
problemas concretos e reais do ser humano. A vida necessita da psicologia e de sua
prática e em conseqüência desse contato com a vida é que se deve esperar um auge na
psicologia (Vygotski, 1999b, p. 348).
No texto “A psique, a Consciência, o Inconsciente” escrito em 1930, Vygostki
(1999d) refere-se à psicologia dialética, definindo-a como a unidade dos processos
psíquicos e fisiológicos. O autor afirma que a originalidade da psicologia dialética
consiste em determinar, de um modo completamente novo, seu objeto de estudo, que
não é outro senão o processo integral do comportamento. A concepção dialética do
ser humano já era desenvolvida por Vygotski no texto “A Psicologia Pedagógica”
(2004b), no qual afirma:
81
“O homem se opõe à natureza como força da natureza, o organismo
se opõe ao mundo como grandeza ativa em luta. O organismo vai de
encontro às influências do meio, munido da experiência que herdou. O meio
como que achata como uma espécie de martelo e forja essa experiência,
deformando-a. O organismo luta pela auto-afirmação. O comportamento é
um processo dialético e complexo de luta entre o mundo e o homem, e tanto
no interior do homem quanto no desfecho dessa luta as forças do próprio
organismo e as condições de sua constituição herdada desempenham papel
não inferior ao da influência agressiva do meio” (Vygotski, 2004b, p. 71).
A psicologia dialética se revela na unidade de seus processos constitutivos. É a
relação do homem com o mundo que não pode ser apreendida se não com um olhar
dialético, no qual os distintos elementos que se opõem, ao mesmo tempo constituem-
se mutuamente.
A história do homem só pode ser apreendida como processo em constante
transformação. No texto “Métodos de Investigación”, item II da “História do
Desarrollo de las Funciones Psíquicas Superiores”, escrito em 1931, Vygotski (1995)
formula que a história geralmente se identifica com o passado. Estudar algo
historicamente seria traspassar o tempo e deter o estudo nessa dimensão. Para
Vygotski (1995), no entanto, estudar algo historicamente é estudá-lo em movimento,
em sua processualidade. Trata-se de abranger o desenvolvimento de algum
fenômeno em todas as suas fases e mudanças. Isto permite revelar a essência do que
se quer conhecer. Nesse sentido, diz Vygotski (1995), a história da conduta não é
complemento, mas um fator que o constitui. A conduta só pode ser compreendida
como história da conduta.
Vygotski (1999b) postula que o singular expressa o social, o singular como o
microcosmo que se constitui no social e, portanto o contém, configurando um
modelo global que retrata a sociedade.
“Investigar até o fundo, esgotar uma coisa qualquer, um objeto, um
fenômeno significa conhecer o mundo inteiro, em todas as suas conexões.
Nesse sentido, podemos dizer que cada pessoa é, em maior ou menor grau, o
modelo da sociedade, ou melhor, da classe a que pertence, já que nela se
reflete a totalidade das relações sociais. Podemos ver que, nessa colocação, o
conhecimento do singular é a chave de toda psicologia social; do modo que
devemos conquistar para a psicologia o direito de considerar o singular, ou
82
seja, o indivíduo, como um microcosmo, como um tipo, como um exemplo ou
modelo da sociedade” (Vygotski, 1999b, p. 368).
Extrair do singular aquilo que pode ser um princípio geral só pode ser
conseguido por intermédio da análise, base fundamental de qualquer princípio
explicativo que se pretenda alcançar.
No início de seu texto “El Problema y el Método de Investigación”, item I do
texto Pensamento e Linguagem, escrito em 1934, Vygotski (1993) critica as análises
que procedem a decompor os conjuntos psíquicos complexos em seus elementos e
propõe a análise semântica que considera a relação entre pensamento e linguagem.
Vygotski substitui a análise das partes por um outro que considere “unidades”,
entendendo como unidade aquele elemento que possui todas as propriedades
fundamentais características do conjunto, que constitui uma parte viva e indivisível
da totalidade.
Vygotski (1993) afirma que o elo que dá essa unidade é a palavra, como um
fenômeno da linguagem e do pensamento. A palavra não como um objeto isolado,
qualquer, mas como um grupo, toda uma classe de objetos que expressa significado.
A palavra é conhecida em seu aspecto externo, quando se dirige aos demais; o
interno, seu significado, permanece desconhecido; no entanto, é isso que se deve
alcançar porque, no significado da palavra, se encontra a relação entre pensamento e
linguagem. O método de pesquisa então, não é outro, que a análise semântica, a
análise do aspecto significativo da linguagem.
O método proposto por Vygotski (1993) postula como fundamental a conexão
entre intelecto e afeto, ou pensamento e emoção. A separação dessas funções
psicológicas leva-nos a perder o pensamento, em idéias que se produzem em si
mesmas. A análise revela a existência de um sistema semântico dinâmico
representado...
“...por la unidad de los processos afectivos e intelectuales. Muestra como
cualquier idea encierra, transformada, la actitud afectiva del individuo hacia
la realidad representada en esa idea. Permite también descubrir el
movimiento direccional que parte de las necesidades o impulsos del
individuo hacia una determinada intención de su pensamiento y el
83
movimiento inverso que parte de la dinámica del pensamiento hacia la
dinámica del comportamiento y a la actividad concreta de la personalidad”
(Vygotski, 1993, p. 25).
O método, afirma Vygotski (1993) permite não só descobrir a unidade interna
do pensamento e a linguagem, mas também analisar a posição do pensamento
lingüístico com respeito ao conjunto da atividade da consciência e a suas funções
mais importantes.
3.2. A entrevista como técnica
De acordo com Vygotski (1993), a forma de chegar ao pensamento das
pessoas é pela palavra. Considerando sua afirmação de que a significação da
singularidade é nível legítimo de produção de conhecimento. Nesse intuito,
consideramos como instrumento principal de pesquisa a entrevista. Conforme o
objetivo da pesquisa, foi elaborado um roteiro de perguntas que visava a alcançar
informações sobre o processo de participação dos sujeitos em práticas de ação
coletiva.
A entrevista semi-estruturada revelou-se como a mais indicada, pois, segundo
Triviños (1987), este modelo deixa ao pesquisador a possibilidade de orientar a
entrevista, dentro das demarcações que a este interessa, mas também abre as
perspectivas possíveis para que o entrevistador e o informante alcancem a liberdade
e a espontaneidade necessárias, para trazer elementos importantes, que podem não
ter sido considerados nos itens da entrevista. Procura-se, com esta dinâmica da
entrevista, enriquecer a investigação.
Ainda segundo Triviños (1987), pode-se entender por entrevista semi-
estruturada aquela que parte de alguns questionamentos básicos, apoiados em
teorias e hipóteses que interessam à pesquisa e que depois se vai ampliando, numa
série de interrogativas, que surgem à medida que a pesquisa transcorre e são
recebidas as respostas dos informantes. Dessa forma, os entrevistados seguem por
um fluxo particular, dentro do foco principal, dado pelo pesquisador.
84
As perguntas elaboradas foram construídas buscando principalmente
evidenciar elementos destacados do percurso processual da participação dos sujeitos.
Outras perguntas foram realizadas com o intuito de situar histórica e socialmente os
sujeitos. Desse modo, as entrevistas, como sugere González Rey (1997), foram sendo
assumidas como um processo de interação e de diálogo no qual a informação
requerida é produto dessa interação.
As entrevistas foram todas gravadas, transcritas, impressas e trabalhadas,
conforme as unidades de análise que adotamos no processo analítico.
3.3 Análise dos dados
Iniciamos nossa análise atenta à apreensão dos sentidos, em uma compreensão
dos sujeitos, que envolve uma bagagem histórico-cultural. Ciente de que não é
possível a aproximação aos sujeitos diretamente, focalizamos a mediação das
diversas conexões intrapsicológicas e interpsicológicas e a processualidade histórica
de suas realidades.
Assim, endossamos os postulados de Aguiar e Ozella (2006) sobre a apreensão
dos sentidos, segundo os quais estes devem ser focalizados, numa metodologia...
“... pautada numa visão que tem no empírico seu ponto de partida, mas a
clareza de que é necessário irmos além das aparências, não nos contentarmos
com a descrição dos fatos, mas buscarmos a explicação do processo de
constituição do objeto estudado, ou seja, estudá-lo no seu processo histórico”
(Aguiar e Ozella (2006, p. 224).
A processualidade histórica leva-nos a recorrer, nos depoimentos dos sujeitos,
as inscrições históricas que revelam a engrenagem que vincula o intrapsicológico e o
interpsicológico na complexidade de suas combinatórias revelando os sentidos que
os sujeitos atribuem à realidade, na mediação dos diferentes espaços que eles
transitam, entre os quais o CEFURIA.
85
A mediação permite superar as enraizadas dicotomias que cindem o sujeito
em emoção/razão; interno/externo, e compreender as distintas funções, conexões e
relações deste como sendo concomitantemente constitutivas, num complexo processo
que se entrelaça, evidenciando o sujeito singular como sendo expressão do social.
Neste caso, a variação e a heterogeneidade dos sentidos e significados
remitidos pelos entrevistados – mediados por desejos, necessidades, possíveis
tensões, estratégias de participação, percursos assumidos, entre outros - devem
dizer-nos algo sobre a processualidade da participação política dos sujeitos que
estarão sendo analisados.
No campo da pesquisa definido para nossos objetivos, esta pluralidade de
significados e sentidos está intimamente ligada às diferentes posições acerca da
realidade, da política, bem como, das estratégias de luta, utilizadas e defendidas
pelos diferentes militantes e grupos políticos.
Para esta análise consideramos trabalhar com “Unidades de Sentido”,
extraindo de Vygotski (1993) essa idéia como sendo configurações que expressam o
sujeito como objeto de análise, a partir de uma totalidade possível de ser
compreendida, analisada e definida num contexto histórico-social pela apreensão dos
aspectos afetivo-volitivos e intelectuais.
Para tanto, num primeiro momento, buscamos apropriar-nos dos discursos
dos entrevistados e, lemos, por diversas vezes, cada uma das entrevistas até
conseguirmos ter uma visão geral daquilo que foi expresso e que se foi configurando
como significativo para esses sujeitos.
Num segundo momento, foi feito em cada entrevista, um levantamento
temático dos conteúdos abordados, organizados de acordo com os momentos
relevantes que os sujeitos relatavam em seus depoimentos. Essas unidades históricas
foram conformadas no contexto de uma totalidade que possibilitasse o fluxo das
unidades de sentido e com o objetivo de, num momento posterior, concatenar a
processualidade da participação dos sujeitos.
Em decorrência do que fosse destacado pelos sujeitos, em seus depoimentos
confluíam, em uma ou outra unidade histórica e nem todos se envolveram na
86
totalidade do processo, assim como também alguns momentos só foram relevantes
para um deles.
Nessa configuração de totalidade, elaboramos as análises de sentido, tal como
orienta Aguiar (2006), pela sua complementariedade na similaridade ou
contraposição. Tendo esse objetivo analítico, voltamos às entrevistas tantas vezes
quantas fossem necessárias, considerando que se trata de um processo e, portanto,
elementos importantes só poderiam surgir no recorrer da própria análise.
Segundo González Rey (1997), nem todos os discursos são passíveis de análise;
isso acontece, pois nosso objeto é social e intencional. Seu estudo, pois, só é
viabilizado em situações de comprometimento afetivo, tal como fundamenta
teoricamente Vygostki (1993). A expressividade do sujeito é uma condição necessária
para alcançar a profundidade que permite transformar o discurso emitido numa
fonte de conhecimento psicológico (González Rey, 1997, p. 245).
No entanto, pequenas manifestações, expressões sutis, relatos históricos
podem ser de grande riqueza, se inseridos num contexto histórico-social.
Para tanto, alguns elementos metodológicos propostos por Aguiar (2006)
foram considerados: situar as unidades escolhidas, a partir de falas de sujeitos
inseridos num processo dialético, histórico e social; considerar os sujeitos
constituídos pelas suas atividades e na produção de suas formas de existência; não
perder de vista que nosso material de trabalho nas entrevistas terá como ponto de
partida os significados e sentidos como mediação dos sujeitos com a realidade e
como produtos históricos e sociais.
Considerando que esta pesquisa possui um antecedente no tema da
mobilização da ALCA, para o processo da análise foram consideradas as entrevistas
de três dos sujeitos daquela pesquisa, que foram posteriormente novamente
entrevistados. No total, foram entrevistadas dezesseis pessoas participantes. Neste
processo, percebemos que, das dezesseis entrevistas realizadas, oito continham todas
as demais, ou seja, contemplavam, de forma abrangente, todas as outras, no que
concerne aos principais temas selecionados. Assim, optamos por fazer uma análise
em profundidade destas mesmas entrevistas, destacando-se, neste sentido, as falas de
Otávio, Helena, Sílvia, Júlio, Pámela, Ângela, Gabriela e Lílian.
8
7
3.4 Os entrevistados
Expõe-se, continuando, um breve resumo do histórico de cada um dos
entrevistados que contribuíram com a análise:
Entrevistado 1: Júlio
Egresso de uma família conservadora e morava, quando criança, num bairro
típico de classe média. Desde muito moço, teve interesse pela inserção nos espaços
de participação popular. No início de sua inserção profissional, foi bancário,
comerciário e professor.
Iniciou-se na participação em ações coletivas pela formação religiosa e
universitária. Integrou-se nas pastorais sociais da igreja, chegando depois a participar
de Movimentos Sociais e de partidos políticos.
Sua participação no CEFURIA data dos anos 1980, primeiramente, como
participante colaborador. Em 1984, passou a formar parte da diretoria do CEFURIA,
e depois foi contratado para acompanhar o movimento contra o desemprego,
considerando que era uma das lideranças do Movimento de Associações de Bairro
(MAB) onde militava.
Em seu percurso militante, passou pela Pastoral Operária, aonde chegou a ser
liderança nacional e a participar da Secretaria Nacional. Também passou pela
militância política partidária, sendo militante ativo do PT. Na atualidade, participa
da Assembléia Popular, um projeto alternativo de sociedade que o CEFURIA acolhe
como próprio e que apóia, cedendo espaços para encontros e reuniões. Participa do
Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores (CEPAT), e faz doutorado em
Ciências Sociais com o tema “Trabalho e subjetividade”.
Entrevistado 2: Helena
Oriunda de uma família tradicional e de convicções conservadoras, participa
dos Movimentos Sociais desde muito cedo; com 14 anos já participava de um grupo
de jovens de sua comunidade. Participou da Pastoral Operária e assumiu a
88
coordenação de formação desta por sete anos. No CEFURIA, é considerada a grande
articuladora das mobilizações, marcando toda uma época de importantes
articulações. Esteve nessa entidade como coordenadora até o ano de 2002 com um
intervalo para cumprir tarefas, em âmbito nacional, da Pastoral Operária.
Inicia um processo de formação acadêmica, concluindo o curso de Filosofia no
ano de 2002, na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Depois prossegue sua
formação acadêmica e faz especialização em Ciências Sociais. Atualmente, trabalha
no CEPAT e faz mestrado em Sociologia na Universidade Federal do Paraná.
Encontra-se afastada das atividades de mobilização; mantém, no entanto, sua
presença ativa no Centro, participando de distintas atividades.
Entrevistado 3: Ângela
Pertencente a uma família conservadora e de pequenos comerciantes, Ângela
iniciou sua participação social na universidade, defendendo interesses comuns em
sua condição de estudante do curso de Fisioterapia da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná. Sua inserção nas questões sociais deu-se pela participação num
grupo ecumênico da Igreja Luterana, o qual refletia e efetivava sua ação em torno de
debates e reflexões pelos Direitos Humanos. Foi marcante para suas escolhas futuras
o comparecimento e a participação num Encontro de Meninos e Meninas de Rua da
América Latina, de acordo com a entrevistada, a experiência mais iluminada de sua
vida. Logo depois se inseriu na Comissão Pastoral da Terra e, posteriormente, no
Partido dos Trabalhadores.
Como participante do CEFURIA, acompanhou o processo da Constituinte e
participou em inúmeras atividades de formação e administração. Sendo militante do
PT, foi candidata a presidenta do partido. Teve uma participação importante na
Consulta Popular, uma proposta de sociedade alternativa que surge no ano de 1997.
No momento do início da pesquisa, liderava, junto ao CEFURIA, a Campanha contra
a ALCA. Foi presidenta do CEFURIA e participou do quadro de formadores da
Escola Mílton Santos, uma proposta assumida pelo CEFURIA em parceria com
outras entidades.
89
Acompanhou o Jornal Brasil de Fato e o Fórum de Luta por Trabalho, Terra e
Cidadania. Além disso, foi assessora parlamentar do vereador Adenival Gomes, do
PT. Teve a seu cargo a recompilação de todo o processo da Constituinte, que foi
lançado num livro (2006), parte de uma coletânea de resgate da memória do
CEFURIA. Na atualidade, tem a seu cargo a organização do Centro de
Documentação e Biblioteca do CEFURIA. Integra o Conselho Político para o período
2005 – 2007.
Entrevistado 4: Sílvia
Graduada em Ciências Sociais e Mestre em Educação, Sílvia tem formação
anterior em Farmácia - Tecnologia de Alimentos. Inicialmente, trabalhou com
ascensão rural, mas a consciência das diferenças, das desigualdades entre a vida no
campo e na cidade, os ricos e os pobres a motivaram a estudar Ciências Sociais.
Encontra-se no CEFURIA há seis anos com um intervalo de afastamento nos anos
2000 – 2002, período em que fez Mestrado. O tema desenvolvido em sua dissertação
foi: “Movimentos Sociais e Educação Popular”.
Suas primeiras incursões pelo mundo da mobilização social deram-se nos anos
80, quando participava nos Movimentos de Bairro. Sua aproximação ao CEFURIA
aconteceu através desse movimento. Naquele tempo, teve oportunidade de
participar no 1º Congresso do MST, promovido pelo CEFURIA, que cedeu a essa
entidade um espaço para sua organização.
Sendo funcionária da EMATER, integrou a primeira chapa da associação
sindical, fazendo, junto com a equipe, um trabalho interessante. Filiou-se ao PT e
participou ativamente no Movimento de Base, junto aos Movimentos de Bairro.
Realizou sua monografia de conclusão de curso em Ciências Sociais com o tema
Associações dos Movimentos de Bairro de Curitiba - Paraná.
Participou como assessora do PT na Assembléia Legislativa e depois na
Consulta Popular. No ano de 1996, assumiu como assessora na Associação de
Professores do Paraná (APP) e, no ano de 1998, passou a integrar a equipe de
formadores do CEFURIA. Sendo uma grande defensora do resgate das memórias das
lutas populares, teve a seu cargo elaborar as obras “Irmã Araújo, Vida e Obra” e
90
“CEFURIA, 25 anos fazendo história popular”. Considerada freireana convicta,
destaca-se pela sua disciplina e vontade no trabalho junto ao Centro.
Entrevistada 5: Gabriela
Oriunda de Rio de Janeiro, iniciou sua participação popular no período que
fazia faculdade, cursando Serviço Social. Sua aproximação ao Centro de Formação a
convenceu a direcionar sua prática social para os espaços do Movimento Popular.
Tendo concluído o curso de Serviço Social, trabalhou na prefeitura de Quatro Barras,
sempre trabalhando como voluntária junto ao CEFURIA. Logo foi convidada por esta
entidade a fazer parte de sua equipe, o que não titubeou nem um instante a assumir.
Como contratada, preocupa-se com a parte formativa, com a planificação e o
ministério de cursos. Na formação, trabalha com a teoria de Paulo Freire.
Além disso, estende sua prática junto aos Clubes de Troca e Economia
Solidária. Fez Mestrado no curso de Direito com o tema Cooperativas na Economia
Solidária. Participa do Conselho Político do CEFURIA pelo período 2005 – 2007 e
também é membro titular da entidade.
Entrevistada 6: Lílian
Inserida na vida religiosa, esteve, durante todo seu período escolar, vinculada
a entidades cristãs. Conheceu o CEFURIA pelo Padre Otávio, que a convidou a
participar das assembléias. Também, por sugestão dele, passou a fazer parte do
Conselho, dedicando-se cada vez mais às atividades da entidade. Participou de
várias campanhas, contribuindo em diversas funções de formação, de administração
ou de organização. Atualmente, coopera com o Projeto Talher e com as Padarias
Comunitárias. É membro titular do CEFURIA e do Conselho Político para o período
2005 – 2007.
Entrevistado 7: Otávio
Oriundo de Itália, chegou ao Brasil um mês antes do golpe militar em 1964.
Em Curitiba, assumiu em 1965, a Paróquia do Bairro Xaxim. Otávio é Filósofo e pós-
graduado em Teologia Pastoral. Foi um dos fundadores do CEFURIA, parte
91
integrante do “grupão”. Foi padre da Paróquia São Pedro Apóstolo e assessor das
Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Já participou de Movimentos Populares junto
às associações de bairro. Atualmente, é presidente da Escola Mílton Santos, entidade
ligada ao CEFURIA e forma parte do Conselho Político do CEFURIA, sendo
Conselheiro Honorário.
Entrevista 8: Pámela
Pámela nasceu em Curitiba, num dos bairros oriundos das lutas populares da
cidade. É casada, tem dois filhos com seu marido ainda moram nesse setor onde
participam ativamente da igreja e do CEFURIA.
Apresenta uma trajetória em Movimentos Populares, sempre vinculada à
igreja, pois começou a participar das CEBs, e depois, em outros espaços e
comunidades, como na Juventude Operária Católica. Militante do PT, na atualidade,
ela lidera o CEFURIA.
Dos entrevistados, o Padre Otávio é o único que participou da fundação do
CEFURIA; Ângela, Sílvia, César e Helena são militantes que transitam pelo
CEFURIA desde a década de 1980. Lílian, Pámela e Gabriela se vincularam ao
CEFURIA a partir dos anos 1990.
Cabe destacar que estas pessoas podem não ter um vínculo constante formal
e/ou estável com o CEFURIA. De acordo com a dinâmica da entidade, como a dos
próprios Movimentos Populares, os vínculos são dependentes de muitos fatores;
dentre eles, as possibilidades que o Centro de Formação possui de poder contratar
seus formadores ou militantes; as necessidades da própria mobilização; e a
disponibilidade dos próprios militantes.
No entanto, eles estão sempre engajados em algum projeto ou iniciativa que
signifique avançar na luta popular. Participam em movimentos ou organizações
próximas ao CEFURIA. Em algumas ocasiões se inserem como voluntários e outras
vezes, são contratados pela entidade a partir da qual podem desenvolver práticas
que sejam propícias para aquilo que almejam.
92
CAPÍTULO 4
4. ANÁLISE DA PROCESSUALIDADE DA
PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DOS SUJEITOS
ENTREVISTADOS
“Investigar até o fundo, esgotar uma coisa qualquer, um objeto, um fenômeno
significa conhecer o mundo inteiro em todas as suas conexões. Nesse sentido,
podemos dizer que cada pessoa é, em maior ou menor grau, o modelo da sociedade, ou
melhor, da classe a que pertence, já que nela se reflete a totalidade das relações
sociais. Podemos ver que nessa colocação o conhecimento do singular é a chave de
toda psicologia social; do modo que devemos conquistar para a psicologia o direito de
considerar o singular, ou seja, o indivíduo, como um microcosmo,como um tipo,
como um exemplo ou modelo da sociedade” (Vygotski, 1999b, p. 368).
Os sujeitos desta pesquisa compartilham um espaço social que
predominantemente, se dedica a dar subsídios à ação coletiva e a promover formação
política. Nesse intuito as pessoas se envolvem em atividades e se relacionam
construindo significados e sentidos acerca da realidade. Procura-se neste espaço,
analisar alguns sentidos preponderantes para os percursos que estes sujeitos
assumiram, em suas atividades relacionadas com ações coletivas.
Foram momentos compartilhados, constituídos a partir de apropriações da
realidade, que, na elaboração reflexiva e emocional dos sujeitos, promoveram
transformações e novos rumos, no contexto no qual participam e em si mesmos,
fazendo a história de seu processo coletivo e também a história do CEFURIA, como
espaço mediador dessas ações.
Os momentos aqui trazidos foram aqueles que os sujeitos entrevistados deram
relevância nas suas narrativas. Assim, estes momentos, destacados pelos seus
significados e sentidos, configuram-se importantes, na processualidade da ação
política, por serem momentos de avanços ou de estagnação ou também por
evidenciarem tensões e conflitos.
Foram momentos que revelaram como os sentidos dados pelos sujeitos a
aspectos de sua ação política orientavam suas práticas, na medida que
93
comprometiam suas afeições e se transformavam em momentos que potencializam a
ação e a reflexão, ou que a dificultavam, transformando-se em momentos difíceis ou
de tensão. A apropriação desses momentos permitiu tecer uma trama que revela o
processo histórico da entidade que os vincula e principalmente indagar os processos
psicossociais que mediatizam a processualidade de sua ação política.
Foi possível chegar a esta construção analítica na interlocução com os
entrevistados pela localização de seus afetos, que denotavam, entre outros fatores,
necessidades, preocupações, reflexões, desejos de mudança, elaboração de
estratégias. Em outras palavras, mostrava o sujeito ativo que orienta sua vontade
para e pelos seus desejos de participação, em projetos de transformação social.
Em seguida, apresenta-se um quadro ilustrativo dos momentos relevantes
captados em nossa análise, sistematizados na decorrência de seu encadeamento
histórico que nos remete à processualidade política dos sujeitos entrevistados.
Estas unidades de sentido, configuradas a partir de momentos relevantes da
ação política, foram construídas a partir de distintos momentos das entrevistas,
sempre considerando o contexto histórico – social, no qual estavam inseridas.
Os Anos 80 Os Anos 90 Os Anos 2000
Algumas tensões que atravessam o
processo de participação
4.1.- A raiz da
participação
4.2.- As origens da
entidade
4.3.- A constituinte
4.4.- Momentos
difíceis
4.5.- A Consulta
Popular
4.6.- A Campanha
contra a ALCA
4.7.- A relação entre o partido e
os movimentos e sua
culminação na crise do Lula
4.8.- O macro e o micro e a
escolha da Economia Solidária
4.9.- O CEFURIA, um lugar de encontros
94
4.1 A raiz da participação
“Todas las capacidades fundamentales, los afectos y los modos de comportamiento
fundamentales con los cuales trasciendo mi ambiente y que yo remito al mundo ‘entero’
alcanzable por mi ambiente y que yo objetivo en este mundo, en realidad yo me los he
apropriado en el curso de la vida cotidiana” (Heller, 1991, p. 25).
Esta primeira unidade de sentido foi organizada selecionando momentos
catalogados pelos pesquisados como cruciais para sua inserção na vida militante. No
decorrer do processo da vida destas pessoas, houve fatos, acontecimentos, relações
que, em sua significação, se orientaram, dando sentido a sua participação política.
Considera-se importante destacar esses momentos dos entrevistados na medida em
que aportam indícios da base afetivo-volitiva que sustenta sua inserção no processo
participativo na ação coletiva e, dessa forma, indicam também seus interesses, suas
motivações, suas escolhas e o sentido de suas vontades. Em alguns destes
depoimentos, captou-se a riqueza desse processo pela intensidade emocional
demonstrada. Outros não proporcionaram essa possibilidade, no entanto, de igual
forma, foram registrados, na medida que outorgam informações dos sujeitos, em
relação a suas inserções, permitindo uma contextualização histórica e social deles e
da organização, de uma forma geral. Neste espaço, estão os depoimentos de Ângela,
Sílvia, Helena, Júlio, Pámela, Lílian e Gabriela. O Padre Otávio não se referiu a essa
etapa de sua vida, por isso não incluímos nesta unidade que iniciamos com o
depoimento de Ângela.
Quando perguntamos a Ângela como foi se inserindo nos Movimentos Sociais
e como iniciou seu interesse nesse contexto, apresentou um episódio de sua vida.
Desde menina, eu já tinha assim uma diferença em relação, por exemplo,
com minha irmã; éramos duas em casa; meu pai é português daqueles
conservadores, reacionários, sabe? (...) e eu lembro assim que meu pai
tinha uma loja e tinha uma funcionária que fazia a limpeza, uma senhora
bem pobre, enfim, e ela vinha em casa toda a semana e final de semana e
ela vinha mesmo e a gente sabia que ela vinha para comer. Então, ela vinha
e trazia o filho, tanto é que ela tinha um carrinho, ai com a mão arrumava a
mesa, a minha irmã tinha raiva, ela tinha ódio daquilo, sabe? Ficava louca
da vida e eu tinha vergonha porque eu não achava justo ela não ter comida
95
e eu me escondia, mas eu não me escondia de braveza, era de vergonha
porque eu tinha vergonha de ter e como é que ela não tinha? Isso, eu
lembro, me angustiava muito a presença dela porque mostrava uma coisa
que eu não entendia (Ângela).
Nesse depoimento, Ângela nos transmite a emoção que sentiu, naquele
momento, diante de uma situação que não lhe era compreensível, um sentimento que
a afetou, chegando a provocar-lhe vergonha. A vergonha, diz Heller (1985), é o afeto
social por excelência, o que deriva das prescrições sociais. Neste caso, evidencia uma
relação na qual Ângela se sente, de alguma forma, responsável por uma situação de
seu contexto social. O que se pode comentar acerca do sentimento de Ângela é que,
sendo tão nova, sente o impacto dessa situação, sem compreender ainda suas causas.
Aberta à alteridade, Ângela se situa a partir de um determinado lugar no mundo e
de suas possibilidades de se fazer afetar pelos acontecimentos e situações que o
contexto lhe impõe.
Acredita-se que a entrevistada quis manifestar a importância que esse
acontecimento teve para sua trajetória de vida. A “Ângela-menina”, que vive essa
experiência em seu pequeno mundo de relações sociais, teve a oportunidade de
sentir a assimetria das desigualdades que imperam em nossas sociedades, afetando-
se profundamente, até o ponto de dar uma direção a sua vida, promovendo sua
vontade de lutar contra as injustiças (o que perdura na atualidade), enfrentando os
embates do dia a dia, mas sem abandonar seus princípios.
Seu pai é um homem conservador, e a irmã sente raiva da situação. Não se
pode afirmar que a reação de Ângela seja descolada de sua história ou que se tenha
iniciado subitamente. Ela vem de uma família de políticos, embora não tenha
contado de que tendência. Pressupõe-se que, com base nas suas possibilidades, ela
fez escolhas; o processo de sua própria história posterior mostra que foi isso que
aconteceu. Na medida que Ângela se aprimora em uma forma de olhar o mundo e os
seres humanos, vai atribuindo sentido à realidade, o que promove nela escolhas que
nutrem a base afetivo-volitiva que orienta sua inserção em espaços coletivos de ação
política. Podemos refletir sobre esse processo de Ângela a partir de Vygostki (2004b)
quando afirma que:
96
“Toda emoção é um chamamento à ação ou uma renúncia a ela.
Nenhum sentimento pode permanecer indiferente e infrutífero no
comportamento. As emoções são esse organizador interno das nossas
reações, que retesam, excitam, estimulam ou inibem essas ou aquelas
reações. Desse modo, a emoção mantém seu papel de organizador de nosso
comportamento” (Vygotski, 2004b, p. 139).
Para Ângela, esse momento foi crucial porque dele que foi construindo sua
consciência política, orientando sua vontade para atividades de ação coletiva. Desde
sua inserção na universidade, sempre procurou distintos espaços coletivos,
prevalecendo sempre seu interesse pela condição social dos sujeitos. Integrou-se a
um grupo religioso ecumênico que discutia direitos humanos, participou da Pastoral
da Terra, foi ativa militante do Partido dos Trabalhadores (PT) e, no decorrer de sua
história, por várias vezes assumiu responsabilidades no CEFURIA. Não faltaram
problemas nem conflitos, momentos de decepção e de esperança. Mas o que perdura
é sua prática, a sua inserção em espaços de ação coletiva e sua noção de justiça e
superação das desigualdades, questão esta última que a aproxima dos ideários que
persegue o CEFURIA, de dar apoio às iniciativas dos setores populares.
Como afirma Heller (1991), apropriar-se das habilidades do contexto dado,
madurar para o mundo dado, significa não somente interiorizar e desenvolver
capacidades humanas, mas também, ao mesmo tempo, ter em conta a sociedade em
seu conjunto, apropriar-se da alienação. Essa apropriação implica em analisar a
situação do outro, a luz de suas (im) possibilidades.
Na medida que as pessoas têm possibilidades de se apropriar do legado
cultural de seu mundo, de conhecer outros espaços, de se relacionar com outras
pessoas, elas vão-se constituindo, definindo seus interesses e motivações, suas
necessidades e sentimentos, ligados à vida. Ou seja, vão fazendo escolhas que
denotam em questões de valor e que, portanto, evidenciam um sujeito da ética.
“A ética se expressa como desejo, paixão, conhecimento, ao mesmo
tempo que é mediada por eles no movimento da subjetivação da objetividade
e de objetivação da subjetividade. Os homens não escolhem valores éticos,
eles não optam entre o bem e o mal, objetivamente; o que escolhem são idéias,
alternativas, necessidades, as quais são portadoras de conteúdos axiológicos
objetivos” (Sawaia, 1995, p.49).
9
7
Sílvia, outra entrevistada, também traz um momento de sua história para
expressar como se inseriu nos espaços de ação coletiva. Segundo conta, formou-se
como Farmacêutica Bioquímica em Tecnologia de Alimentos e iniciou seu trabalho
na Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER). Nesse lugar, ela teve
algumas experiências com pessoas do meio rural.
Não tinha nenhuma filiação política, nenhum partido, nenhum movimento;
eu tinha um incômodo (vamos dizer assim) de enxergar a sociedade, mas
eu não conseguia compreender as causas nem o funcionamento. Eu tinha
um incômodo nessas coisas de pobres e ricos; era uma coisa que me
incomodava muito, mas eu não conseguia ter clareza, enxergar. O trabalho
da EMATER me ensinou a enxergar essas diferenças. A diferença entre
campo e cidade, e eu me indignava muito, porque eu via a miséria com que
viviam os pequenos agricultores, achava que isso tinha a ver conosco
também que morávamos no meio urbano. Depois que eu comecei a
compreender que a questão não é entre o campo e a cidade, mas é entre os
ricos, os que têm os meios de produção e os que não têm nada, enfim...
Mas daí comecei a fazer contato com a comissão da Pastoral da Terra, daí
eu cheguei ao primeiro Congresso do MST (Sílvia).
A partir de uma inquietação com relação às desigualdades da sociedade, Sílvia
começa um processo analítico reflexivo da realidade que a orienta para a participação
política. Pode-se sentir, na fala de Sílvia, a força de suas convicções, a vontade que
dera suporte e ainda impulsionou a mudança radical em sua vida. Esse “incômodo”,
como chama a entrevistada a seu sentimento, levou-a a modificar diametralmente
seu projeto de vida. Abandonou sua profissão e começou a cursar Ciências Sociais.
Com o novo título, Sílvia inseriu-se no mundo profissional, trabalhando em projetos
de formação para a luta popular.
Acreditamos que, ao trazer à entrevista esse conteúdo argumentativo de suas
escolhas, Sílvia quer mostrar não só os motivos que a levaram a adotar os caminhos
que assumiu, no transcurso de sua vida, mas também denota com suas palavras, um
desejo de transmitir, de denunciar, de esclarecer as deturpações da ordem social.
Esse desejo mostra-se como uma expressão dessa base afetivo-volitiva que mediatiza
suas atividades na “formação” como a atividade que propicia a consecução de seus
projetos. Quando perguntada a respeito de suas escolhas, ela diz:
Não é bem assim uma escolha. É e não é. É aquilo que eu te falei: eu tinha
uma insatisfação (...) Comecei a trabalhar na EMATER, e aí eu fui fazer o
curso de Ciências Sociais, exatamente para entender essa coisa da
98
desigualdade; e aí, uma coisa foi puxando a outra, né? Rosa, não é bem
uma decisão, é uma decisão no sentido de que eu tive oportunidade de
estar dando aula na Universidade e aquilo me fazia muito mal. Não
conseguia ver luz na Universidade, no espaço da Universidade, uma
possibilidade de mudar alguma coisa e aquilo contribui para teu processo
de formação social; então, foi uma escolha nesse sentido, eu nunca me
importei com a minha carreira pessoal, quero trabalhar num lugar porque
eu preciso... eu preciso sobreviver, mas que eu não tenha que irritar meus
princípios; então, nesse sentido, é uma opção. Mas, então, uma coisa foi
puxando a outra da EMATER, eu fui me aproximando da CPP, do MST, me
inseri na própria organização sindical; e veja uma coisa vai puxando a
outra... depois no Partido dos Trabalhadores, depois no sindicato dos
professores. Então as coisas foram se colocando na minha vida como
possibilidades (Sílvia).
A postura que Sílvia mostra em seu discurso é determinante. Para ela, suas
escolhas, na inserção em distintos espaços de ação coletiva, foram sendo
possibilidades dentro das condições dadas pelas determinações sociais, ou seja,
decorrentes de sua processualidade histórico-social. Sua determinação em assumir
caminhos, metas e projetos, movida por suas convicções, determinadas pelos seus
valores e princípios, transforma seus desejos em necessidades e suas vontades em
projetos. E é nesse campo de determinações, considerando as opções possíveis “sem
irritar seus princípios”, que Sílvia faz suas escolhas, definindo suas ações em
determinadas delimitações, orientada por uma ética que reconhecemos nas reflexões
de Chauí (1998), quando define uma ação como ética...
“... se for consciente, livre e responsável e só será virtuosa, se for livre, e só
será livre, se for autônoma, isto é, se resultar de uma decisão interior ao
próprio agente e não vier da obediência a uma ordem, a um comando ou a
uma pressão externa” (Chauí, 1998, p.1).
Sílvia encontra caminhos na medida em que atua segundo seus princípios,
atribui sentido à realidade de seu contexto histórico-social, sopesando os motivos
que a levam a assumir alguns caminhos como necessidades pessoais. Essas escolhas,
muitas vezes, exigem decisões, assumir caminhos dificultosos, que não abalam sua
vontade, mas, ao contrário, a fortalecem pela intensidade das emoções depositadas
em seus propósitos e pelos desejos de alcançar projetos futuros que almeja para a
sociedade. “Vontade” não como “desejar e fazer” descolado do contexto, mas
99
vontade na relação com necessidades que se projetam em sua realização a partir de
uma totalidade sócio-histórica.
A direção da vida de Sílvia e a força de suas convicções foram postas em
deliberação, quando ela, concluindo o mestrado, decide não voltar ao CEFURIA para
ser professora de uma Faculdade, o que se manteve por um período de alguns meses.
O que acontece com Sílvia, assim como com Ângela, é a primazia de uma
experiência marcante que promove sentimentos e pensamentos sobre as condições da
realidade social, despertando nelas o desejo de um projeto de sociedade que se
constitui como um desejo pessoal, promovendo um processo afetivo-volitivo que
orienta suas escolhas, suas determinações, seus comportamentos. Foi a partir do
viver e de serem afetadas que elas buscam uma inteligibilidade para aquilo que
experienciaram e fazem escolhas mediadas pelos seus sentimentos: a de serem
militantes.
Esse processo é configurado como um projeto de vida, na medida que são
adquiridos os conhecimentos que explicam e sustentam sua compreensão da
realidade e na medida em que se acentua a sensibilidade para com o ser humano, e,
fortalecendo a base afetivo-volitiva que as envolve, impulsiona suas atividades e
relações sociais.
O relato de outro entrevistado também tem como ponto referencial a situação
de miséria como grande detonador emocional que vincula o sujeito com os outros. A
miséria como um fator que comove a vida e direciona caminhos.
A minha primeira de fato, (pausa) a minha primeira tomada, assim, de
percepção da miséria foi a partir da minha casa; morava num bairro em
Curitiba, Santa Quitéria, na frente, houve uma ocupação: favela, penúria
horrível, triste. (pausa) Chocava-me muito, garoto de dez anos de idade,
que morava no final da rua. (...) Essa foi a minha primeira percepção dessa
vivência, dessa violência (Júlio).
Júlio destaca, como preponderante para suas escolhas de vida, esse seu
primeiro encontro com a miséria. Ainda sendo um menino, sentiu essa experiência
dolorosamente: ter consciência das diferenças, da existência do outro como
alteridade que o levou primeiramente a procurar a igreja, buscando respostas às
condições de desigualdade que o tinham afetado. Depois, inseriu-se em diversos
100
Movimentos Sociais e atividades de mobilização popular. As misérias e as
desigualdades adquirem sentido para Júlio pela racionalização. Ele avoca-se a
reflexão, a crítica, à elaboração da análise da realidade.
... a minha primeira percepção mais clara de consciência do processo sócio-
econômico, da realidade, da percepção da desigualdade social, da miséria,
da injustiça social, foi através da formação principalmente da faculdade de
teologia, aqui na faculdade de Curitiba; era 1982, uma teologia bastante
esclarecida pelo princípio da Teologia da Libertação (Júlio).
Foi na Faculdade de Teologia que adquiriu as bases que lhe possibilitaram
compreender as injustiças, as desigualdades, a violência, tal como prossegue
afirmando, na seguinte fala.
... uma opção de vida, se deu fundamentalmente através da formação, me
inseri no movimento social, uma luta social de bastante confronto, foi
através da formação, da faculdade, da formação religiosa. Posteriormente,
nas pastorais sociais da igreja, eu fui cada vez mais me envolvendo,
participando no processo de tomada da consciência, através da formação
(Júlio).
A força de Júlio, sua vontade, o que o faz perdurar em seu projeto de vida na
luta popular, realiza-se na crítica social, pela formação, pela busca do conhecimento,
mas potencializada pelos seus afetos originados de sua experiência com a pobreza
dos outros. A sensibilização com a miséria, a experiência de ser afetado por ela na
medida em que se fazia aberto à alteridade, acabou marcando sua vida e
direcionando suas escolhas.
Um amplo setor dos militantes inicia sua participação social por meio da
Igreja. A religião, como toda produção humana, constitui-se como mediação social de
subjetividades, que se objetivam nas práticas promovidas por essa dimensão da vida
cultural. O espaço da religião para eles é o espaço da comunidade, da abertura ao
coletivo, onde as pessoas se encontram, compartilham e constroem vínculos de
solidariedade.
Outra entrevistada, Helena relata que iniciou sua participação política em
grupos de jovens cristãos. Assim, assumiu um lugar na participação em ações
coletivas como uma forma de vida, mediado pela reflexão iniciada no grupo de
amigos. Helena relata que seus pais tinham um pouco de medo de suas escolhas, das
drogas que envolviam a vida dos jovens e tudo que a pudesse atingir, por ser uma
101
adolescente iniciando-se na vida. Todavia, o grupo de amigos da igreja foi marcante
para ela e, desta forma, foi escolhendo o caminho das lutas populares. Foi-se
“apaixonando pelo ser humano” (palavras dela) e fez das lutas pela transformação
social sua vocação de vida.
Rindo, ela contou que é muito grata, porque conseguiu vincular o útil ao
agradável e, dessa forma, esteve ligada ao CEFURIA como a outras instituições,
sempre envolvida com lutas populares. Helena demonstra ser alegre e contagiante,
contando que os outros falam que ela é articuladora por “natureza” e que sua
presença em momentos de protesto é indispensável, porque imprime ao grupo a
coesão necessária nessas ocasiões.
Pode-se dizer que, para Helena, o processo de relacionamento com
determinados sujeitos, mais especificamente, com um determinado grupo, foi muito
importante, fazendo da mediação afetiva e dos “bons encontros” com o outro, um
ponto fundamental na construção de uma inteligibilidade política.
... comecei com um grupo de jovens e tive a sorte de ir para um grupo de
jovens que tinha já uma determinada consciência, muita crítica, que tinha
um pé na discussão política, na realidade e outro pé em ações práticas.
Sempre mantive o pé na comunidade, ao lado do grupo de jovens, eu fui
para a Pastoral Operária; na Pastoral Operária tinha, um grupinho lá que já
discutia o mundo do trabalhador, a realidade do trabalhador, a
problemática do desemprego, a problemática do trabalho, aquele trabalho
que explorava as pessoas, então tinha a realidade (pausa) nós tivemos na
Pastoral Operária, sempre foi uma pastoral que acompanhou o mundo da
política e daí foi um passo para o Partido dos Trabalhadores, o PT, que
estava, naquela época, sendo criado (Helena).
Para Helena foi predominante o grupo social de jovens da igreja do qual
participou quando era moça. Nas relações instauradas nesse grupo, aprendeu a
apreciar os outros, adquirindo valores sociais que se transformaram em referências
para sua vida.
Lílian, outra das entrevistadas foi-se aproximando de alguns setores
populares, e sensibilizada com as necessidades das pessoas desses lugares começo a
participar de atividades de solidariedade. Numa dessas atividades, conheceu o Padre
Otávio, uns dos fundadores do CEFURIA, que a convidou a participar do Centro.
... a gente foi-se aproximando, vendo que a gente poderia participar, e
depois teve a Assembléia do CEFURIA e o Padre Otávio nos apresentou
102
para fazer parte do Conselho. E aí nós entramos no Conselho. Ninguém nos
conhecia, a gente não participava de bases, assim, a gente ia nas favelas e
nós fazíamos trabalhos lá, mas ligados aos seminaristas do Cabral. E daí
que a gente conheceu todo o trabalho do CEFURIA. Nossa!!! Eu fiquei
assim (pausa) que trabalho grande, bonito, e aí eu vi que era por aqui
mesmo, pois fui sendo reeleita, reeleita no Conselho, participando e estou
até hoje (Lílian).
Lílian já havia trabalhado nas comunidades da periferia, tinha um caminho
percorrido. O encontro com o CEFURIA foi o encontro com aquilo que ela acreditava
como organização social, com o que se identificava. Ela nos conta que a pobreza a
sensibilizava demais e considerava que algo se poderia fazer, sempre, no sentido de
contribuir com a transformação social, atenuar o sofrimento dos outros, trabalhando
para mudar as condições vida.
Ela conta que vivenciou a pobreza na “própria pele”, tendo a oportunidade de
se educar e sair dessa condição, com ajuda de uma comunidade religiosa. Ela já havia
trabalhado durante um longo período de sua vida em cargos administrativos. Conta
que, cansada da “ideologia” que perpassa esses lugares, decidiu aposentar-se para
dedicar-se exclusivamente ao trabalho popular.
Em Lílian, como em todos os outros entrevistados, percebemos que suas
atividades em prol da ação coletiva são assumidas como necessidade do “eu”, como
algo que se produz e envolve os sujeitos em seus projetos de vida, fazendo-os viver
em torno de uma realidade, a ação coletiva, produzindo relações sociais,
conhecimento, vínculos com as pessoas, significados que vão transformando o
CEFURIA num espaço social que realiza seus desejos e sonhos.
Para Pámela, a inserção nas lutas populares foi uma experiência que
vivenciara, desde muito nova. Segundo ela nos conta, sua família tinha um grande
compromisso social, seu pai estava entre os assinantes da fundação do CEFURIA.
Pámela relata que seu pai alugava espaços de habitação, cobrando preços módicos
para as pessoas que chegavam do interior. Conta que seu pai falava para ela que sua
maior satisfação era ver essas famílias saírem para suas próprias casas, considerava
que o maior ganho dele era ajudar as pessoas. Influenciada pelo pai, Pámela foi-se
inserindo em diversos grupos, sempre junto a comunidades religiosas.
103
A minha inserção começou, posso chamar minha militância pela igreja, nas
Comunidades Eclesiais de Base nas CEBs, então desde muito novinha,
adolescente ainda, eu comecei a participar do grupo de jovens na
comunidade, e assim fui começando a participação na comunidade mais
ativamente, depois comecei a participar mais fora mesmo, através das CEBs
mesmo, comecei a conhecer outros lugares, outras comunidades, comecei a
fazer esse intercâmbio, essa troca de experiências, tanto com o grupo de
jovens, quanto depois também. Já em 89, 90, eu comecei a participar do
Partido dos Trabalhadores, PT; filiada ao PT, porém eu fui me filiar em 92,
eu não me lembro bem; em 89 foi meu primeiro voto, com 16 anos, onde
comecei a participar bem ativamente (Pámela).
A apropriação do mundo se dá em Pámela pelas relações que mediatizam seu
cotidiano, escolhendo como próprio o espaço no qual cresceu, assumindo valores e
princípios, transmitidos pela sua família e relações mais diretas. Ainda mora no
mesmo bairro onde nasceu, casou-se com um rapaz que compartilha com ela os
mesmos ideais, em relação à família, à comunidade e à sociedade. Os dois são
vinculados ao CEFURIA e desenvolvem grande parte de suas vidas nesse contexto.
Para Pámela, assim como para Lílian, a mediação dos outros foi a “mola
propulsora” do engajamento em ações coletivas, marcando escolhas e determinando
caminhos que por ela foram respaldados. As relações que os sujeitos estabelecem
com outros sujeitos são sempre mediadas pelo afeto e é sempre neste plano, pela
proximidade ou distância em relação ao outro, que o mundo ganha sentido
(Maheirie, 2003).
Para Gabriela, uma nova visão de mundo chegou, quando cursava faculdade.
Os contatos, a mediação de uma professora a levou a conhecer o CEFURIA e a
compreender outra dimensão da realidade. A partir daí, tudo mudou em sua vida,
passando a se dedicar completamente às lutas populares. Deixou para trás sua forma
de vida convencional. Ao ser indagada sobre aquilo a que se dedicava antes, ela
ruborizou-se para falar que tinha uma lojinha de enxoval para bebês.
... eu comecei a fazer faculdade e comecei a despertar para várias coisas e
aí, no penúltimo ano, eu conheci o CEFURIA, conheci o Movimento Sem
Terra, e foi, através da Faculdade mesmo, através de trabalhos que a gente
fazia, e o CEFURIA exatamente formou um curso da Consulta Popular que
foi em 98, no final de 98, que era um curso da história que não foi contada e
a professora minha da faculdade que me convidou para fazer com ela e ela
até não pode participar e eu fui sozinha, conheci o CEFURIA, e foi dali que
104
eu nunca mais deixei, aí eu comecei a trabalhar como voluntária,
participava dos eventos das mobilizações, me envolvi bastante (Gabriela).
As condições de vida dos outros passam a ter um espaço fundamental em suas
próprias necessidades, motivações, expectativas e valores. Com o interesse social,
surge o sentimento de comunidade, que se compreende como o sentimento de
unificação com outros. Constrói-se a participação nos objetivos, a partilha de noções
de igualdade e justiça.
O sentimento para com os outros constrói-se historicamente na medida que o
indivíduo sente sua existência na existência dos outros, constituindo-se,
mutuamente, enquanto sujeitos.
Heller (1985) e Vygotski (1999c) se encontram, quando argumentam sobre a
relevância das emoções, no comportamento das pessoas. Ao interpretar essa visão,
adotamos as considerações de Vygotski (1999c), na medida que toda emoção e razão
formam parte do imbricado processo psicológico do ser humano, como categorias
psicossociais que não podem desvincular-se umas das outras.
Vygotski (2003) postula que, por trás de todo argumento, há um sentimento;
detrás de toda razão, há uma emoção que, como aponta o autor, se apossa da
realidade, imprimindo sentido, orientando idéias e direcionando comportamento e
argumentos. Esta postura é também defendida por Sawaia (1987), amparada em sua
pesquisa de doutoramento, quando descobre que as emoções se constituem
mediadoras na participação de mulheres, em contextos e ações comunitárias.
Sílvia, nossa anterior entrevistada, depois de sentir-se afetada pela experiência
relatada, foi cursar Ciências Sociais, para poder compreender as estruturas
organizacionais do meio social. A necessidade de conhecer a partir do sentir, buscar
uma compreensão para aqueles fatos, apontava para caminhos que pudessem gerar
uma explicação. Júlio, que vivenciou um impacto com a miséria dos meninos da
ocupação, em um momento posterior, sente a importância do conhecimento e
encaminha-se para espaços acadêmicos e/ou religiosos.
Vygotski (1993) formula que não há como separar os aspectos intelectuais dos
afetos. A separação entre o aspecto intelectual de nossa consciência e seu aspecto
afetivo-volitivo constitui um erro que desloca o pensamento a um espaço autônomo,
105
de idéias que se pensam a si mesmas. Desta forma, para se aproximar do que as
pessoas pensam, é necessário ir aos afetos experienciados por elas, aos sentimentos,
tal como afirma Vygotski:
“El pensamiento no nace de si mismo ni de otros pensamientos, sino
de la esfera motivacional de nuestra conciencia, que abarca nuestras
inclinaciones y nuestras necesidades, nuestros intereses e impulsos,
nuestros afectos y emociones. Detrás de cada pensamiento hay una
tendencia afectivo-volitiva. Solo ella tiene la respuesta al último por que? En
el análisis del processo de pensar” (Vygotski, 1993, p. 342).
Sawaia (2000a) afirma que o estudo das emoções foi assumido pela sua
negatividade, ou seja, como algo que perturba o equilíbrio, a racionalidade e, por
isso, seriam contrárias ao bom senso. Nessa concepção, a subjetividade é da ordem
das paixões e deve ser anulada, para não perturbar a participação racional. Em uma
outra perspectiva de compreensão, a subjetividade deixa de ser força incontrolável e
passa a ser constitutiva da participação racional. Assim, adotam-se os postulados de
Sawaia (2000a), na perspectiva de resgatar as emoções em sua positividade
ontológica, ou seja, em sua condição de elemento constitutivo do pensamento e das
ações humanas.
Destacar a positividade da subjetividade, como aponta Sawaia (2001b), é
avançar na contramão do que foi posto ideologicamente na história da sociedade,
enquanto o bem-estar individual deve ser submetido, para garantir o bem-estar
coletivo. Destacar a subjetividade como categoria analítica possibilita destacar suas
necessidades como prioritárias nos objetivos da participação.
Para estas pessoas o fato determinante que as leva a assumir escolhas em suas
vidas, orientadas à ação política, é a afecção que lhes provoca o sofrimento humano,
base do entremeado afetivo-volitivo que perpassa suas atividades e projetos de vida.
O ser humano torna-se, para estas pessoas, um fator determinante nas decisões de
suas vidas, promovendo-as a participar em lutas populares, em projetos para a
superação das condições de sofrimento.
A participação política deve considerar, segundo Sawaia (2001b, p 120),
“concepções de sociedade, de cidadania, de ética e de justiça, bem como sobre educação popular
106
e Movimentos Sociais, desigualdade e exclusão social”. Sawaia (2000b) formula que o
subtexto da participação deve ser constituído do debate ético-político, que não pode
ser pensado em si mesmo, mas a partir de pressupostos sobre a natureza humana e a
subjetividade, tanto quanto sobre sociedade e verdade.
Pode-se dizer que estas pessoas têm valores em comum e compartilham uma
ideologia que as unifica e as assemelha e, ao mesmo tempo, as diferencia como seres
únicos e singulares que trazem uma história própria que lhes é anterior.
São pessoas que, com suas diferenças e os diferentes contextos sociais nos
quais foram se constituindo, optaram pela luta popular. A opção delas contradiz
propostas teóricas que assinalam que os seres humanos só se mobilizam na
promoção de seus interesses pessoais e procurando algum benefício particular;
afirmando que geralmente os sujeitos assumem projetos coletivos se os ganhos
pessoais são maiores que os investimentos, tal como argumenta Olson (1999).
Heller (1991) afirma que todos os sentimentos guardam alguma relação com o
ponto de vista particular como fator importante de motivação, no entanto, isso não
significa que todos os afetos se constituam a partir de si mesmos. E, citando
Rousseau, refere que paralelamente à autoconservação, e por motivos igualmente
fortes, nasce a compaixão e a comiseração, ou seja, o interesse solidário pelo outro.
“El grado en que el hombre referirá a su yo el mundo descubierto a
su alrededor, el grado en que la particularidad tendrá un lugar dominante
en el mundo afectivo del que el se ha apropiado depende de muchísimos
factores. Ante todo depende del mundo en el que nace; en segundo lugar de
sus circunstancias (y no de las motivaciones) particulares, de sus
características y de la medida en que estas son ‘cultivables’ en el seno de su
ambiente dado. Por eso debemos aclarar desde ahora que la exacerbación de
la particularidad es una reacción del mundo de los afectos en su conjunto
ante la realidad alienada; el hecho de que en la historia del género humano
haya bastado la particularidad a la media de las clases (estratos), a la media
de los hombres singulares para orientarse en la vida cotidiana, el hecho de
que haya sido considerado como excepcional el caso de que alguien se haya
elevado de un modo duradero por encima de la particularidad, indica que
estamos en presencia de la alienación” (Heller, 1991, p. 43).
Nem todas as pessoas reagem da mesma forma às diferentes experiências que
se lhes deparam na vida. Mas, nas pessoas entrevistadas, encontramos algo em
10
7
comum, o sentido que elas deram a suas experiências e a projeção que deram a suas
vidas; cada uma, a partir de sua singularidade, se realiza na participação e luta pelos
seus ideários junto aos setores populares. A busca da transformação social, a
constante busca de estratégias, para cativar e conscientizar as pessoas para a luta
popular, é a marca de suas atividades.
4.2 A origem da entidade
A segunda unidade de sentido refere-se às origens da entidade, nas palavras e
nos sentidos atribuídos pelo Padre Otávio, que ao ser requerido para falar sobre este
espaço coletivo remonta-se aos momentos em que foi fundada a entidade.
Cabe destacar que de nossos entrevistados ele é o único que foi fundador do
CEFURIA e, portanto, seu depoimento poderia trazer-nos elementos daquela época.
Quando lhe foi pedido que falasse sobre o CEFURIA, ele se remeteu ao tempo da
ditadura no Brasil, enfatizando o impacto que causou, nos setores populares, esse
acontecimento histórico e político.
Bom, eu vim da Itália, em 1964, um mês antes do golpe e, portanto, toda
minha presença aqui no Brasil foi de acompanhar o calvário do desmonte,
do desmanche de todas as organizações sociais, em que prendiam,
torturavam e davam sumiço a todos os dirigentes dos Movimentos Sociais,
seja dos trabalhadores, como dos estudantes, como dos movimentos
políticos, e aí o povo ficou meio assim, meio sem rumo, e a gente ficou
acompanhando este povo abandonado (Padre Otávio).
Foram perceptíveis as repercussões que a ditadura deixou no Padre Otávio.
Percebemos, pelo seu relato, que para ele foi uma experiência intensa que vivenciou
pelo sofrimento dos perseguidos pelo regime. O sentimento provocado por esse
episódio marcou seu processo de comprometimento com essas pessoas, sendo esse
fator preponderante para suas escolhas futuras, em relação a suas atividades como
padre.
No entanto, naquele momento, a relação desse acontecimento com o
surgimento do CEFURIA não se fazia clara. O que o Padre Otávio quer dizer, quando
traz o tema da ditadura para falar do CEFURIA? Em outras palavras, qual o
108
significado que ele dá a esse momento? Com a continuação de seu relato, pode-se
perceber para onde se orientava o sentido de suas palavras.
As origens do CEFURIA tinham sido.(pausa). Eu vim para Curitiba em 67,
antes mesmo da AI5
14
, quando começou mesmo a repressão.E daí pela
pressão do pessoal, dos trabalhadores que trabalhavam pela periferia, de
se organizar (pausa) uma única forma de organização era o projeto de base.
Coincidia com a orientação que a igreja dava para nós, que éramos
formados em projetos de base, com a necessidade de o povo se organizar
que era a única forma permitida, forma religiosa, e foi por aí que a gente
começou a se interessar pelo social, porque se unindo com o povo
trabalhador e estudante que era perseguido e que não permitia as
liberdades pessoais e sociais. Então, aí começou a se pressionar, a organizar
e participar das comunidades, num momento, no meu entender muito
bonito para mim, de muita presença do povo sofrido nos anos 70 até os
anos 80 (Padre Otávio).
O Padre Otávio nos relata que sua aproximação aos setores populares foi
originada pela preocupação que lhe provocara a situação de pessoas perseguidas
pela ditadura. O desejo de proteger e amparar essas pessoas promoveu nele um
comprometimento que o levou a participar em atividades de ação coletiva e trabalhar
em conjunto com elas.
O padre assume o papel de protetor e guia destas pessoas. O sentido que ele
dá a seu papel religioso orienta seu trabalho nos setores populares, aduz que foi a
igreja que lhe deu formação de base. O padre foi-se inserindo nessa trama social das
resistências dessa época (anos 1980), explicitando o vínculo entre o tempo da
ditadura e a fundação do CEFURIA. Refere-se aos fios históricos que se tecem entre
uns acontecimentos e outros. Para o Padre Otávio a emergência dos movimentos de
bairro em Curitiba não só eram decorrentes das necessidades dos setores populares
que chegavam a se instalar na cidade, mas também da necessidade de construir
espaços estratégicos que, além de possibilitar a organização dos setores comunitários,
servisse também para acobertar os líderes, perseguidos pela repressão do regime
militar. Proporcionar proteção às pessoas perseguidas passou a ser uma necessidade
que ele procurou satisfazer em espaços comunitários de base.
14
O Ato Institucional nº5 – AI5 - foi o instrumento utilizado pelos militares no período da ditadura militar para
aumentar seus poderes e permitir a repressão e a perseguição das oposições. Esse ato entrou em vigor em 13
de dezembro de 1968.
109
Dessa forma, revela-nos que a fundação do CEFURIA adquire, para ele, um
significado próprio que vai além do decorrente da emergência das mobilizações de
bairro.
Compreender que existiam vínculos históricos que mediavam a participação
foi um primeiro passo para compreender o interesse deste entrevistado. Pode-se
sentir um fio condutor, uma história na qual estão inscritos sujeitos que tinham um
passado de atuação coletiva. Uma história emocional que remonta às experiências de
sujeitos atingidos pelo regime militar e que precisavam se reconstruir num espaço de
expressão.
Assim, seu depoimento revela que, por trás de uma produção visível, se
configura uma outra que se dissemina pelos mesmos lugares, procurando outros
propósitos e que se revelam no compromisso afetivo-volitivo que promove sua ação
política. É possível destacar uma posição de Vygotski (1999c) acerca da construção
social das emoções, abrindo espaço para compreender a imbricada relação dos afetos
com a participação política. Diz ele:
“As emoções complexas aparecem somente historicamente e são a
combinação de relações que surgem em conseqüência da vida histórica,
combinação que se dá no transcurso do processo evolutivo das emoções”
(Vygotski, 1999c, p. 127).
Assim, a política é vivenciada dialeticamente pelo Padre Otávio e também por
outros sujeitos como espaços de confronto contra o poder estabelecido e também
como a busca de uma vida melhor, a vida na polis, isto é, na produção de
experiências de interações, de encontros, de organização das comunidades de bairro.
As reivindicações de bairro são o respaldo para a atuação política contra uma
outra opressão e violência: a falta de liberdade política. Dessa forma, a participação
nos movimentos de bairro se realiza tanto como uma estratégia de resistência às
condições estabelecidas pelo regime político do Estado, como um espaço para
reivindicações das condições de vida.
Na verdade, nos anos 78, 79, 80, quando começou aquela abertura, então
algumas pessoas mais encadeadas, já de classe média, e de estudo superior,
que perceberam que aqui em Curitiba o lugar onde havia o maior
110
crescimento populacional, era nesta região (refere-se ao bairro), então havia
também o maior número de organizações de base era nessa região, então se
movimentaram para cá e vieram morar por aqui mesmo, e começaram
também a organizar muito essa organização, foi ali que as comunidades
com essas pessoas já de estudo superior, que se começou a pensar numa
organização para a reestruturação da sociedade que tinha sido desmontada
pelo AI5. A reconstrução da sociedade, o seu tecido de base, então se
organizaram os trabalhadores dos sindicatos, as associações de bairro ou
partidos políticos (Padre Otávio).
O interesse do Padre Otávio pelas condições da época não era só motivo de
preocupação para ele, mas também mobilizava setores que sofriam as condições de
suas vidas o que se afetavam com a situação de sofrimento dos outros. Sofrimento
definido por Sawaia (1999b) como a dor mediada pelas injustiças sociais.
Esse sentimento que é vivido como necessidade do “eu”, mas compartilhado
intersubjetivamente, concretiza-se na construção de espaços de ação coletiva e
mobilização popular que marcou a época dos anos 1970-1980 no Brasil. Nesse
processo muitos intelectuais e pessoas da igreja se voltaram aos setores populares
assumindo uma perspectiva de ação política.
O que promove estas pessoas é uma atitude ética em relação aos outros que,
como aponta Heller (1982), é sempre concreta e individual. Para esta autora...
“Ética sempre significou, e continua a significar hoje, que o sujeito
desenvolve uma relação individual com o sistema de valores da sociedade à
qual ele se refere. A essência subjetiva de toda ética, porém, não significa, em
nenhum caso, que a ética seja subjetiva. Com efeito, as normas com as quais
o indivíduo se defronta são prescrições histórico-sociais válidas para o
conjunto da sociedade. O verdadeiro sujeito dessas normas é,
necessariamente, um sujeito social” (Heller, 1982 p. 150-151).
Concordamos com Sawaia (1998), quando postula que a ética está no homem
e na relação e, portanto, está no sentir, no pensar, no agir. A ética quando envolve o
afetar de si mesmo e dos outros, construída ao longo da história do indivíduo, dentro
de contextos sócio-históricos específicos.
A implicação do Padre Otávio com o sofrimento de pessoas potencializa nele a
criação e participação em novos espaços políticos. Nesse intuito assume como seu
projeto a necessidade coletiva da criação do Centro de Formação. O CEFURIA nasce,
111
então, para implementar a consolidação de uma expressão social que reunia diversos
setores populares, mas que, no pensamento e nos projetos do Padre Otávio já tinha
uma raiz, um percurso na história das mobilizações coletivas.
Assim, o CEFURIA foi criado, com a intenção de dar suporte e formação aos
grupos que estavam dispostos a organizar-se. A mobilização popular era necessária e
fundamental para pressionar o governo a dar atenção às suas demandas. Era nesse
espaço que funcionava o centro de formação, não só oferecendo cursos, mas também
participando ativamente nas lutas populares. Em pouco tempo, o CEFURIA se
engajava ao mundo das mobilizações coletivas.
Souza (2006a) profere sobre um documento do CEFURIA que se remete ao
período 1981 – 1984 e que expressa os espaços e atividades nos quais o CEFURIA foi
incursionando.
“...ja tinha PT, CUT, MAB, MST. Em suas mochilas carregavam as lutas
por melhores condições de trabalho e salário, por emprego; pela elaboração
de leis que garantissem os direitos dos trabalhadores; por melhores condições
de vida nos bairros; moradia, transporte, postos de saúde, escolas, creches,
por melhores condições de vida no campo: acesso à terra, aos insumos,
transporte e preço justo para os produtos agrícolas. Eram todos
instrumentos novos de luta, que o CEFURIA ajudara a criar, junto com a
CPJP, CPO, CPT (ou antes dela, a Pastoral Rural), as CEBs” (Souza,
2006a, p. 83-84).
Dessa forma, o CEFURIA constituía-se junto às mobilizações coletivas e, com a
sociedade, iniciando sua história e fazendo parte da história de nossos entrevistados
e parte fundamental na história dos Movimentos Populares na cidade de Curitiba.
No período dos anos 80, o pessoal do CEFURIA realizou uma extensa agenda
de atividades: apoio à formação e articulação; ações de apoio para a Campanha pelas
Diretas Já; os 100 dias de acampamento em frente ao Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA), em apoio aos ilhéus do rio Paraná,
desalojados pela Itaipu; novo acampamento dos Sem Terra em frente ao INCRA;
preparação do 1° Congresso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST), cuja secretaria compartia os espaços com o CEFURIA.
112
Um grande número de assessorias a sindicatos rurais e urbanos, ao trabalho
organizativo com as oposições sindicais, à participação nas comissões de transporte,
saúde, creches do Movimento de Associações de Bairros de Curitiba e Região
Metropolitana (MAB); participação nas atividades do Movimento de Luta contra o
Desemprego (MLCD); realização de cursos básicos nos sindicatos de trabalhadores
rurais em várias cidades do Paraná; curso de Transporte Coletivo, e apoio ao
Movimento Popular de Mulheres do Paraná (MPMP).
Naquela época, Júlio participava no Movimento de Associações de Bairros,
pelo Movimento de Luta contra o Desemprego, em 1984 participou da diretoria do
CEFURIA, passando logo depois à equipe interna da instituição, sempre com a
função de acompanhar o Movimento de Luta contra o Desemprego. Sílvia estava
inserida nos Movimentos de Bairro, em inícios de 1980 trabalhou como assessora
para o Partido dos Trabalhadores (PT) na Assembléia Legislativa e depois foi
trabalhar em formação, junto ao Sindicato dos Trabalhadores da Educação do Paraná
(APP). Helena adere aos Movimentos Populares, sendo membro de grupos de jovens
católicos e participando em diversas atividades de ação social e política. Como
militante da Pastoral Operária assume a função de Coordenadora da equipe interna
do CEFURIA, em 1993. Ângela participa da Pastoral da Terra, e de muitas das
atividades, organizadas pelo CEFURIA, em 1987, soma-se à equipe interna da
instituição para acompanhar a Constituinte.
4.3.A Constituinte
O momento da Constituinte é trazido pelos depoimentos de Ângela, como
uma experiência individual e coletiva, que acarreta sentidos da realidade vivida em
torno a esse processo, explicitando, de alguma forma os rumos assumidos pelo
CEFURIA e em geral pelos espaços populares de ação coletiva.
A Constituinte de 1988 despertou grande interesse por participação de
distintas entidades e Movimentos Sociais. A Constituinte é significada formalmente
como o instrumento potencializador da volta à democracia, segundo Dagnino (2004).
113
“... consagrou o princípio de participação da sociedade civil. As principais
forças envolvidas nesse processo compartilham um projeto democratizante e
participativo, construído desde os anos 80 ao redor da expansão da cidadania
e do aprofundamento da democracia” (Dagnino, 2004, p. 196).
Nos anos da década de 1980, os Movimentos Populares tinham acumulado
experiências, em diversos campos da ação política: infra-estrutura urbana, saúde,
creche, educação, transportes. A participação na Constituinte impulsionou os
movimentos urbanos populares a sistematizarem essas experiências, para sua
implementação na inserção institucional. Assim, os conhecimentos acumulados nos
diversos campos de luta, organizados e reunidos em emendas populares foram
apresentados como propostas do povo. O povo brasileiro organizado em sindicatos,
associações e outros Movimentos Populares, liderados pelo Movimento Pró-
Participação Popular na Constituinte (MPPC) apresentou 122 emendas, respaldadas
por mais de 12 milhões de assinaturas. Muitas dessas propostas foram aprovadas e
são hoje artigos da Constituição Federal.
Os anseios, os sonhos de uma sociedade mais justa poderiam ser alcançados
num projeto conjunto da sociedade. Os Movimentos Sociais superariam, assim, o
estágio puramente reivindicativo e defensivo que os caracterizava e teriam uma
participação ativa nas decisões políticas e sociais.
Nesse intuito, o CEFURIA, similarmente a outras entidades sociais e políticas,
participou ativamente da elaboração da Constituinte, encaminhando seus quadros
para a discussão e para o acompanhamento do processo, que toma conta da maioria
das agendas dos Movimentos Populares.
Engajada ao CEFURIA, Ângela participa do Movimento de Participação
Popular na Constituinte, mobilizando-se pelos bairros, fazendo trabalho de
formação. Ângela lembra...
...veio a questão da Constituinte, que eu também trabalhei com isso, era
aquela questão em que eu me envolvi, a gente ia aos bairros fazer
discussões sobre a Constituinte; o que é Constituinte? O que é lei? (Ângela).
Ângela nos fala da Constituinte como uns dos momentos-chave para o
percurso das mobilizações coletivas. Ela recupera a história da Constituinte,
114
publicando o livro de sua autoria intitulado “Movimento de Participação Popular na
Constituinte”, obra que integra a série Memórias das Lutas Populares no Paraná Pós-
Ditadura Militar, organizada pelo CEFURIA (Baggio, 2006).
No decorrer de sua fala Ângela afirma:
Eu quero continuar fazendo a pesquisa, porque eu acho que a gente na
Constituinte trabalhou muito pela participação popular, que eram os
conselhos de direitos, onde a população participa da administração pública
(Ângela).
Ângela quer nos dizer algo que ainda não consegue expressar. Lembramos as
palavras de Vygotski (1999e), quando postula que o pensamento é uma nuvem, da
qual a fala se desprende em gotas.
“ O pensamento é um processo interno mediado. É o caminho de um
desejo vago até a expressão mediada através do significado, ou melhor
dizendo, não até a expressão, mas até o aperfeiçoamento do pensamento na
palavra” (Vygotski, 1999e, p. 182).
O que Ângela transmite é a efetivação de um processo, de dedicação e esforços
que prometia reivindicações e direitos para o povo, que se inicia pela Constituinte e
que para ela vai adquirindo um outro sentido, distinto do que a Constituinte
significava para a sociedade, em relação a um avanço dos processos democráticos. A
direção que assume o processo se reflete nas seguintes palavras de Ângela.
Então em 88, se promulgou a Constituição e, em 89, fizemos a Constituição
Estadual; em 90, as leis orgânicas municipais em que o CEFURIA também
se envolveu. E nos anos 90, foi implementar esses mecanismos; então tudo
se voltou para isso: foram os conselhos de saúde, os conselhos de educação,
os conselhos da criança e do adolescente e os da segurança. O movimento
foi se institucionalizando (Ângela).
Para Ângela, a participação nos conselhos, criados a partir da Constituinte,
submeteu os Movimentos Populares às instâncias reguladoras do Estado. Para ela, os
espaços populares foram perdendo capacidade decisória, em relação a questões que
eram de seu interesse, conseguidas depois de muitas lutas e negociações. Nesse
processo de relação com o poder, foi-se perdendo autonomia pela institucionalização,
pela burocracia e pelas disposições regulamentarias.
115
A trama que envolveu os Movimentos Populares não é compreensível a partir
de um poder repressivo identificável, mas como postula Foucault:
“O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é
simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de
fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz
discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo
o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função
reprimir” (Foucault, 2006, p. 8).
A Constituinte significava um grande projeto, um mediador do que estava
sendo construído como estado democrático, era uma promessa de bem-estar e
desenvolvimento. As pessoas se engajavam nesse processo assumindo funções,
comprometendo seus projetos, suas expectativas, participando em algo que
acreditavam. Mas, para Ângela foi transformando-se num dos fatores que
favoreceram a fragilizacão dos Movimentos Populares, constituindo-se numa gama
sutil de poderes que passaram a coagir e fragilizar a ação coletiva pela ação
institucional dos sistemas regulamentadores governamentais.
Além disso e para contribuir com o processo de democratização que estava
sendo implementado, o CEFURIA decide apoiar a formação de quadros partidários e
líderes que atuavam junto ao PT, com o intuito de ganhar espaço nos âmbitos do
governo. Na decorrência do relato de Ângela, ela nos conta que...
... associado a isso vieram as primeiras prefeituras, então o PT começou a
ganhar as prefeituras, começou a ganhar deputados. Os quadros do
movimento popular começaram a se absorver pela institucionalização.
Então isso fragilizou o movimento. Essa é uma avaliação que eu faço
(Ângela).
Segunda Ângela, o que foi acontecendo com muitos dos militantes do Partido
dos Trabalhadores (PT) foi a transmutação de seus interesses, gradativamente
perdidos na luta pelo poder. Ângela reflete a complexidade do processo que estavam
experienciando. Por um lado, a sustentação no poder, que exigia uma forma de
relação, como parceria; por outro lado, a relação de cobrança que o movimento
mantém com a própria instância do poder institucionalizado.
116
E pior de tudo é que isso se comprova; hoje eu consigo comprovar um
pouco disso (...) Porque os relatórios são claros, os relatórios das atividades
de rua começam a se transferir para a área burocrática. São os relatórios, os
conselhos, a briga da prefeitura com o conselho. Só que sempre num
quadro de desigualdades muito grande, não se consegue as reivindicações,
ali você perde a base, eu acho que começa sim uma crise nos anos 90
(Ângela).
Ângela sentiu a transmutação dos sentidos desse processo na experiência
como um processo doloroso, porque sua análise, suas reflexões e posição crítica lhe
foram exigindo o distanciamento com o partido que ajudou a construir. A abertura
política trouxe essa contradição.
De acordo com Foucault (2006) o poder revela-se nas entidades
regulamentadoras, nos ministérios, juizados, e outras entidades. O poder na vida real
se dispersa estendendo-se, oprimindo, coagindo, impondo, delimitando, construindo
saberes, determinando regras, disciplinando, constituindo sujeitos. Pela
institucionalização é determinado muito do que as pessoas podem fazer e como fazê-
lo. O poder regulamentado é mediado pela norma, escondendo quem impõe o poder.
Assim, os significados e as apropriações de sentido que os indivíduos
outorgam a suas práticas sociais são mediatizadas por esses processos que, por sua
vez, permeiam tanto as condições históricas sociais quanto a própria história
particular de cada um. Nesse contexto, encobrem-se relações de dominação e poder
que permeiam nossas práticas.
Olha, eu sou crítica na questão da institucionalização, eu tenho dúvidas e
incertezas muito grandes com relação ao estado; eu tenho defendido até
porque, quando eu escrevi o livro (da Constituinte) foi se abrindo um
monte de angústias e coisas que eu estava sentindo, foi se clareando muito,
assim teoricamente, e eu acho que a gente tem que começar a construir algo
diferente do que está colocado; eu acho que o Brasil foi plantado, eu não
sei, mas acho que a gente tem que fazer coisas diferentes, eu acho que esse
Estado é um Estado falido, não tem, eu acho que o que é do Estado tem que
largar, eu acho que tem que construir outras formas de relação por fora,
inclusive política (Ângela).
O processo que Ângela experimenta leva-a a procurar novas conexões que
como diz Vygostki (1999c) ampliam seu conhecimento da realidade promovendo-a a
novas alternativas para as lutas sociais. Compreende-se que, nas reflexões de Ângela,
11
7
os acontecimentos se revelam pelos sentidos que confluem nas contradições da
realidade. E, nesse sentido, a Constituinte, embora tenha sido um passo importante
para a democratização do país, significou novos entraves para a ação popular.
O que prevalece em Ângela é sua proximidade a espaços de ação política que
defendam os interesses dos setores populares, o que se revela como a trama afetivo-
volitiva que sustenta seu engajamento nas atividades da mobilização popular.
4.4 Momentos difíceis
Esta unidade de sentido foi configurada a partir dos depoimentos de Ângela,
Sílvia, Helena e Júlio, militantes da década dos anos 80 que experienciaram esse
processo.
Os momentos difíceis no processo participativo se revelaram nos depoimentos
destas pessoas pelas dificuldades que elas sentiram em preservar os espaços
coletivos e políticos construídos nos anos 80. Uma época de consolidações e de
amplitudes do movimento popular que se desestruturava surpreendendo a estas
pessoas pelo esvaziamento dos espaços conquistados.
Assim, a década de 90 não foi fácil para os militantes vinculados ao CEFURIA.
Não só tiveram que enfrentar a perda de muito do que tinham ganhado em longas
jornadas de lutas e reivindicações, mas também experimentaram o desmoronamento
dos espaços políticos, que tinham ajudado a construir, e passaram a ser testemunhas
do detrimento dos setores populares. Desse desmantelamento nos fala Ângela...
... esfacelou-se o MAB, o movimento de saúde, o movimento de (pausa)
mesmo os meninos de rua, os Movimentos Sociais parece que eles perdem
muito e a dificuldade de você trabalhar com as pessoas da cidade é muito
grande, de ouvir as pessoas. As pessoas chegam cansadas, perderam seus
vínculos, suas raízes, hoje elas moram aqui, semana que vem elas não estão
mais aqui (Ângela).
Tal como manifesta Ângela, se desestruturaram os espaços de ação política e
modificaram-se os espaços urbanos e isso remete a uma perda dos lugares de
comunicação e organização social e política. É difícil compreender esse processo sem
se referir às mudanças culturais, sociais, políticas e econômicas, realizadas no
118
resguardo de um processo de globalização que se recria pela (in) flexibilidade dos
fluxos de capitais. Como postula Chauí (1998), do lado da economia, uma
acumulação do capital que não necessita incorporar mais pessoas ao mercado de
trabalho e de consumo, operando com o desemprego estrutural; do lado da política, a
privatização do público.
Em termos concretos, o impacto desse processo realizou-se por um
endurecimento das condições de vida de um setor amplo de pessoas, pelo
acirramento da pobreza, pelo recrudescimento das desigualdades, por um aumento
dos excluídos do sistema (desempregados), incluídos pela miséria. E também pela
perda de algumas garantias, que, de alguma forma, existiam em relação à moradia,
emprego, e saúde. As mudanças acontecidas repercutiram consideravelmente nas
expectativas das pessoas, em relação a condições de vida. Trata-se de novas formas
de poder sobres as existências e novas formas de dar sentido a elas.
Lembrando os anos de 1980, Ângela relata...
... aquelas pessoas que vieram (nos anos 80) para a cidade, vieram com
esperança de alguma coisa, elas vieram com esperança de empregos, de
construir uma casa, por mais paupérrimas que elas fossem, vieram de lá, já
sem condições de vida, mas elas vieram e se elas vieram foi com um
objetivo, bem ou mal elas vieram, aqui tinha alguma coisa. Essas daqui não
têm nada; hoje, no final da tarde, é conseguir comer alguma coisa, entende?
(Ângela).
Segundo Ângela, as pessoas se deslocavam de seus locais de origem e
procuravam melhorar suas condições de vida. Nesse processo, eram sujeitos ativos e
constituíam espaços coletivos, organizando-se para conseguir suas reivindicações;
criavam vínculos de amizade e solidariedade, e, dessa forma, iam criando espaços
coletivos que dariam vida aos Movimentos Sociais urbanos, como relata Ângela, em
seu depoimento:
...as pessoas, lá nos anos 80, as pessoas vinham buscar seu local de
moradia, seu local de trabalho e tal; então elas vêm para uma região,
principalmente a região sul, o Boqueirão, que é extremamente precário em
tudo; então elas se organizam, daí vem a luta pelo transporte coletivo, pela
saúde, pelas unidades de saúde, pela escola; as pessoas começam a se
reunir nas associações de moradores, começam a tentar viabilizar a infra-
estrutura pública, os equipamentos públicos (Ângela).
119
As condições dessas pessoas eram deficientes; elas eram compelidas a deixar
seus espaços de origem para procurarem novas possibilidades. No entanto Ângela
chama atenção à condição delas de “organização no coletivo”, no social; a
comunidade se revelava como um potencializador de seus desejos, de suas
necessidades materiais e afetivas.
Ângela conta que, embora não existissem condições para prover a todos do
necessário para a vida urbana, a organização coletiva em comunidades, estabelecida
na década de 1980, facilitou muito o processo de reivindicação da qualidade de vida
desses setores. Prosseguindo seu relato, Ângela nos diz que a comunhão que
irradiava nos espaços populares, nessa época, foi um fator importante da
organização social e política. Os relacionamentos estabelecidos tinham suas raízes
nas formas de convivência em seus lugares de origem, o interior, onde se procura
muito manter vínculos. As pessoas que chegavam rapidamente procuravam
estabelecer amizade e se organizavam, constituindo redes de solidariedade,
facilitando a construção da ação política, tal como expõe Ângela em seu relato:
... você lá no interior, você conhece as pessoas pelo sobrenome, você é de
família tal, de que família você é? a Fulaninho é enamorado da sicraninha.
Mas de que família ? Ah! Porque você conhece, você tem identidade com o
local, com as pessoas que vivem naquele local. E essas pessoas que vinham
do interior, elas, mesmo quando viessem sozinhas, elas precisavam criar
essa identidade. Então existia muito essa coisa de reproduzir os
relacionamentos que existiam no interior, o compadrio, as pessoas eram
comadres, um batizava o outro, as próprias comunidades de base se davam
em função disso, de se criar raízes, de se criar relações de amizade, de
fortalecer esse lado solidário com o outro (Ângela).
No entanto, o que transmite o relato de Ângela é que as transformações,
acontecidas na década de 90, provocaram a dissolução das formas organizativas,
culminando no desamparo de muitas pessoas e na perda de referências e de espaços
coletivos, produzindo-se a desestruturação dos espaços comunitários e políticos.
Gil Rodríguez (2004) afirma que essas condições provocam a construção de
subjetividades monádicas, condições que tornam possível que todo mal-estar se
transforme em algo individual e que se concretize numa perda do sentido comum.
120
“Pérdida de un sentido de lo común puede leerse incluso en los
espacios urbanos; éstos son diseñados desfavoreciendo una apropiación
colectiva de los mismos y pensando solo en su función de recorrido y no para
la ocupación” (Gil Rodríguez, 2004, p. 26).
Esta autora postula que esses processos organizativos são expressões de
poder, nas quais os sujeitos são imersos, dando lugar a subjetividades ultra-
individuais e simuladas.
Ângela se refere às repercussões dessas mudanças, a partir do relato de uma
conversação que manteve com um paciente (ela é fisioterapeuta); o paciente conta
para Ângela que, em vinte anos, mudou tudo. “Fulano morava lá, sicrano morava lá”.
Hoje o que está ali são grandes conjuntos residenciais.
Ângela prossegue seu relato, fazendo reflexões do que pode ter acontecido...
...então você tem unidade de saúde 24 horas, você tem rua da cidadania,
você tem terminal de ônibus, você tem as coisas; então, bem ou mal esses
equipamentos chegaram (...) eu acho que a política, o discurso ele se
aperfeiçoou muito, a própria mídia, eu acho que tem um papel importante
nisso (...) então, para as pessoas já está tudo feito, e o que não tem agora é
culpa delas, se não tem emprego agora, por que não estudou? Elas não
culpam a escola que é ruim ou o fato de ter que ir para a rua trabalhar e não
ter tempo de estudar, ou estar muito mal, cansadas e não ter condições de
competir com o outro, entende? Então acho que o discurso político ajudou
as pessoas a se aquietarem, acomodarem, acharem que é isso mesmo, e que
está tudo pronto, que não tem muita coisa. Hoje em dia, para você
reivindicar alguma coisa é complicado (...) você vai existem favelas,
problemas seriíssimos, mas até as pessoas que estão lá hoje, talvez até pelo
discurso, elas acham que elas são culpadas de estarem lá, que elas são
culpadas, por que tanta gente tem e elas não têm? Então elas são culpadas
(Ângela).
No processo da narrativa de Ângela é possível identificar sua crítica e sua dor,
pelo rumo que foram assumindo os setores populares: o esvaziamento dos coletivos.
Ela cobra a falta de crítica, a passividade. Sua análise não esta pautada somente em
um processo reflexivo-cognitivo, mas fundamentalmente em um processo que
envolve também o afetivo-volitivo, pois se revela afetada pelo contexto que o
engendra. É possível compreender esse fenômeno que tomou conta dos setores
urbanos, pela propagação de significados transmitidos nas relações sociais e nos
diferentes meios de comunicação, no enaltecimento do individualismo. Mas, ao
121
mesmo tempo, é fundamental compreender o modo como os sujeitos afetivo-
volitivamente são afetados. Ângela para além de uma “análise sociológica” acerca do
contexto político na contemporaneidade, nos alerta dando indícios do sofrimento
ético-político que sujeitos militantes experienciam diante de valores pautados em um
exacerbado individualismo.
“El individualismo es la forma hegemónica de subjetivación en el
occidente, la cual se ha constituído en relación directa con el capitalismo
industrial y postindustrial; todos los discursos sobre economía liberal, por
poner un ejemplo claro, han venido siempre parejos con discursos sobre la
naturaleza puramente individual de las personas. De igual forma, el
discurso neoliberal defiende a ultranza la libertad individual, a sabiendas de
que dicho discurso es el que mejor sirve a sus intereses, y de que lo malo (o lo
bueno) de los discursos es que estos tienen efectos; por ello, a la vez que se
anuncía la existencia del puro individuo, dicha existencia también se otorga
y esto nos atraviesa a todos” (Gil Rofríguez, 2004, p. 103).
Numa sociedade que transmite valores enaltecendo um sujeito competitivo,
inovador, polivalente, os sujeitos das camadas pobres não encontram cabimento em
suas necessidades e anseios. A constituição dos sentidos é perpassada pelos atributos
valorizados, e, nesse contexto, a passividade está relacionada ao que os sujeitos
acham que merecem; dessa forma, legitimam-se injustiças e desigualdades. Sob esta
ótica, os sujeitos militantes de organizações e movimentos de resistência sofrem o
impacto da apatia do outro em suas próprias existências. Os significados que se
cristalizam na população acabam sendo de inoperância individual, descontruindo o
discurso da resistência e da luta por uma vida mais digna.
A reprodução do individualismo e da instrumentalização tornam-se
estratégias eficientes de naturalização e legitimidade da exclusão. Por ser vivida
como sentimento de humilhação, vergonha e exclusão é facilmente transformada em
culpa individual, encobrindo a injustiça (Sawaia, 2000b).
Numa compreensão sócio-histórica do sujeito pode-se aduzir que todo
processo psicológico é inicialmente social e é convertido em psiquismo nas
intersubjetividades. Nesse sentido Marx e Engels (1996) postulam “...a essência
humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade, é o conjunto
das relações sociais (Marx e Engels 1996, p. 13); e Vygotski (2000) afirma
122
“necessariamente tudo o que é interno nas funções superiores ter sido externo: isto é, ter sido
para os outros, aquilo que agora é para si” (Vygotski, 2000, p. 25).
O social e o psicológico encontram-se nos significados. Estes se constituem
num processo de configurações permanente e relativamente estável. Os sujeitos
constituem seus sentidos no confronto entre as significações sociais e sua experiência
particular. A racionalidade que se instaura entre a população se constrói a partir de
significados cristalizados, apontando para uma sensação de incompetência diante da
vida.
Sawaia (2003) dá alguns exemplos da racionalidade individual que descola o
indivíduo das determinantes históricas: “você consegue, basta querer”, “Você é dono
de sua vontade”. A autora postula que a economia não é independente dos territórios
particulares e dos desejos dos homens. A subordinação política é realizada em
regimes de práticas diárias, flexíveis, mas que criam hierarquias brutais, culminando
na sensação de incompetência e apatia. Tal apatia coletiva afeta a singularidade de
Ângela, gerando inconformismo e crítica diante do sofrimento ético-político do
outro.
Tal como se expressa em seu relato, a economia brutal se realiza no
empobrecimento dos mais pobres.
... esse público de hoje, esse público são as pessoas que não têm mais
relação nenhuma com nada; elas vivem da cesta básica que a igreja dá, elas
não têm trabalho, elas não têm moradia, onde elas moram (...) elas não tem
vínculo com ninguém, são pessoas que se lhe matassem o filho, não têm pra
quem pedir socorro, entende? (Ângela).
É possível, diz Ângela, que, em algum momento, essas pessoas tenham sido as
mesmas que chegaram do interior, em busca de melhores condições de vida, mas não
as conseguiram. São pessoas que, segundo Ângela, foram jogadas para baixo pela
evolução da globalização; elas “caíram fora, não tem esperança”, e não procuram
participar, embora fossem as que mais precisassem de fazê-lo.
Nesse sentido, pode-se dizer que as relações que se instauraram em nível
macrossocial, como projetos político-econômicos, que prometiam o progresso, se
refletiram em nível microssocial nas carências e necessidades das pessoas das classes
populares que se obrigam a retirar das ações coletivas, o que repercutiu no âmbito do
123
CEFURIA e de seus militantes em uns de seus momentos mais difíceis, pelo
esvaziamento de seus espaços coletivos, mas principalmente porque o sofrimento
destas pessoas as afeta profundamente, a tal ponto que esse fator se transforma no
elo que as faz perdurar na luta popular.
Ângela reflete que as pessoas não só perderam o sentido do coletivo e do
político, como também a noção de si mesmos, enquanto sujeitos de direitos,
perdendo muitas vezes, o sentido de suas vidas.
Para Sílvia os anos 80 foram fundamentais para a consciência política e
concorda com Ângela quando afirma que o período mais difícil de sua militância
foram os anos 90 e comenta:
...enquanto a esquerda ficava meio tonta com os militantes tentando
entender o neoliberalismo e querendo saber o que estava acontecendo e
correndo atrás para não deixar perder, o trabalho de base foi esvaziado
(Sílvia).
A fala de Sílvia patenteia uma crítica às formas como na época, as pessoas
mais engajadas enfrentaram a situação. No entanto, não se pode desconhecer que a
trama ideológica que mediava a implementação do neoliberalismo se impregnava
nas pessoas, tanto pelo seu discurso como pelas suas conseqüências, enquanto se
transmitia que as medidas adotadas e o percurso que a sociedade estava assumindo
era o único válido e o único possível; o que se convencionou de chamar de
pensamento único (Touraine, 1999).
Neste contexto, de grande complexidade, com uma ideologia global, adotada
pelos sistemas políticos no poder e definida por alguns interesses corporativos e
instituições internacionais, o CEFURIA volta-se à formação, segundo Sílvia, quase se
transformando num centro de excelência, buscando dar subsídios aos movimentos e
também buscando adequar-se aos novos tempos.
Nesse intuito, o que aconteceu foi o afastamento cada vez maior das bases.
Esta situação gerou crise no ano de 1993, um momento difícil para o CEFURIA,
quando quase todo o pessoal da equipe interna (só ficou uma pessoa) do Centro de
Formação se demitiu de suas funções. Segundo documentos da entidade, o pessoal
da equipe interna tinha-se voltado para uma formação elitizada, falava-se de oferecer
124
serviços e de transformar-se em ONG. Essa orientação da formação foi sendo
assumida pela equipe interna da época, a partir das propostas que estavam sendo
dominantes, numa concepção que provocou conflitos sérios dentro do CEFURIA.
...em algum momento aparece isso em alguns documentos, principalmente
na época que o Euclides esteve aqui, inclusive foi um período de conflitos,
por, naquele momento, para nós imagine só, no início dos anos 90... A coisa
de falar de ONG e terceiro setor para nós era um horror, eu não estava
internamente, mas eu vi pelos documentos que diziam que o CEFURIA
talvez tivesse que fazer uma adaptação estatutária para se transformar
numa ONG, prestadora de serviços, inclusive para vender serviços de
assessoria. Não que ele não tivesse compromisso, mas acredito que ele
tinha uma outra visão, naquele momento, do papel da ONG, enfim, para
poder arrecadar recursos (Sílvia).
Pelo que Sílvia comenta, esse foi um momento difícil no CEFURIA, que
provocou severas mudanças e a imposição da retomada dos rumos na busca da
aproximação às bases. As pessoas que saíram podem ter-se esforçado, de superar os
entraves que estavam enfrentando, tentando acompanhar as transformações. No
entanto, eles próprios constituem-se no interior das contradições da sociedade, o que
as levou à crise, na definição concreta de que a entidade se afastara das bases.
O trabalho de base que caracterizou os tempos de início do CEFURIA foi-se
complicando, pelo distanciamento das pessoas da participação em Movimentos
Populares, pela própria dificuldade dos militantes de acompanharem o processo.
Contudo, para os militantes entrevistados, as dificuldades preocupavam e se
transformavam em desafios, orientando-os a retomar outros caminhos, procurando,
como sempre, motivar a participação. Helena relata como inverteram esse processo.
Aí fomos, para retomar, com a missão de botar o CEFURIA para fora, fazer
o CEFURIA crescer, aumentar a imagem porque ele estava às moscas. Ali
recomeçamos a resgatar então (pausa). Ah! Não tem trabalho popular, não
tem trabalho de base, vamos retomar o trabalho de base. Aí entramos nas
articulações das lutas nacionais também. Aí, bom, mas o CEFURIA não é
uma ilha, o que está colocado aqui está conectado com uma questão maior,
de linhas gerais; você não faz uma ilha, você tem que estar conectado às
coisas. Nos começamos a assumir; aí a luta contra a dívida externa, aí veio a
ALCA e enfim, veio várias atividades que nós puxamos em nível nacional
que o CEFURIA se colocou (Helena).
Helena lembra os tempos dos anos 90 e afirma que, diante dessa crise,
optaram por sair em busca de uma aproximação às bases. Em seu relato manifesta
125
sua grande vontade de obter esse retorno, vontade compartilhada com outras
pessoas, ligadas ao CEFURIA. Dessa forma, o trabalho de base é reencontrado na
aproximação que o CEFURIA faz, aderindo à Campanha de Betinho “Ação da
Cidadania contra a Fome e a Miséria”. Segundo Helena era importante fazer trabalho
de campo e mostrar para as pessoas as raízes da fome porque, segundo ela, “a fome
tem raiz”. Assim se conseguiu resgatar o vínculo com as pessoas: elas chegaram,
conheceram e foram participando, alguns se inserindo nos processos de formação.
Helena expressa a importância de se aproximar às pessoas pelas suas
necessidades, porque elas precisam de “coisas concretas”. E, por isso, alimentos e
roupas eram importantes. Helena afirma que sempre é possível ajudar, quando se
tem “vontade”; dessa forma, pessoas contribuem com a campanha, fazendo vínculos.
“Não adianta falar de socialismo, falar de uma sociedade desejável, se concretamente
as pessoas não vêem nada”. Conforme relata, formaram-se vários comitês nas Vilas
em que se distribuíam alimentos e, junto com isso, se fazia formação. Assim, comida
e reflexão caminhavam juntas.
... conversávamos com a liderança, sabíamos o que acontecia no bairro, qual
era o problema ali. O problema era que tinha um alto índice de violência, e
as pessoas falavam, comentavam. Então nós preparávamos uma palestra
sobre o assunto e levávamos um especialista da área, e daí a pessoa ia lá na
sede do CEFURIA e lá nós fazíamos a palestra e falávamos sobre o
CEFURIA, começávamos a vender nosso peixe. Olha, qualquer coisa o
CEFURIA ajuda assim. Daí a pessoa precisava fazer um panfletinho lá na
vila: olha, vamos fazer. E eu falava: nós vamos dar um curso para que a
pessoa possa fazer o seu próprio panfleto; aí nós fazíamos uma pesquisa no
que o CEFURIA poderia ajudar. Aí nesses comitês as pessoas falavam das
suas necessidades, que não sabiam fazer jornal. Em outra localidade
queriam aprender a falar em público. Então montamos os cursos a partir
dessa experiência, fizemos curso de fotografia, de preparar jornal, de teatro,
de filmagem, e aí tinha uma mulherada que começou a ser candidato e não
sabia falar em publico e aí fizemos um curso só para a mulherada. Então a
gente filmava a pessoa falando e auxiliava nas melhoras, foi uma coisa bem
bacana e assim as pessoas foram conhecendo o CEFURIA, e, ao mesmo
tempo como nós trabalhávamos com parceiros e os parceiros variados, a
coisa melhorou porque você conhecendo o CEFURIA e o CEFURIA
vendendo seu peixe, mostrando consistência no trabalho (Helena).
Os sujeitos militantes reagem diante do sofrimento ético-político vivido pelo
outro e experienciado por eles em sua conseqüência participativa. Eles encontram
uma alternativa diante do impasse que se colocava em relação as dificuldades
126
enfrentadas na militância. No entanto, isso não era suficiente, uma vez que as
pessoas precisam de condições de vida, de emprego, moradia, segurança, dignidade.
Os governos traspassam a responsabilidade de prover as condições de satisfação de
algumas dessas necessidades para o mercado, que só responde as demandas através
do sistema monetário. Num sistema neoliberal, estas condições se exacerbam,
legitimando ao extremo, o mercado como distribuidor de necessidades e da
satisfação delas.
E a crise que toma conta da sociedade vai-se aprofundando, complicando aos
militantes as possibilidades de estar junto aos espaços populares. Nesse contexto, o
que chega para esses espaços é o crime organizado.
E foi aí (nessa época) que o crime organizado fincou e centrou... Como
parte da própria lógica do capitalismo, dos tempos do vale tudo para ter
dinheiro, para se ter lucro a todo custo, é o crime, porque é um sistema
criminoso e a impunidade ia engrossando. Então, como resultado (eu digo)
da própria questão do desemprego, o crime organizado se colocou como
opção de emprego, e inclusive os criminosos fazendo aquela proteção que o
Estado não dá à camada mais pobre. Então, quer dizer os religiosos e os
militantes que antes faziam opções de vida de morar na favela, nas
ocupações irregulares, e que tinham muito apoio... Que também é um
reflexo dos anos 90, esse retrocesso da Igreja Católica, na inspiração da
criação da ideologia da libertação, que tinha sido uma grande força nos
anos 80. Então assim, esses espaços do povo foram ficando meio
abandonadão nesses anos 90. No momento de crise profunda de emprego e
de impunidade, com uma degradação da polícia; na verdade, acho até que
antes já era, mas talvez era menos. A questão do desemprego acelerou isso.
Então assim, ficou muito difícil; hoje é muito difícil você adentrar esses
espaços, porque os caras têm os donos, os lugares de pobreza hoje têm seus
donos. Então é muito, enfim, mas a gente tem que aproveitar as brechas.
Que brechas nós teríamos para voltar para esse trabalho de base? Essa que
era a idéia (Sílvia).
Sílvia expõe esta profunda transformação acontecida nos espaços populares,
como repercussão das políticas econômicas que desestrutura os relacionamentos
estabelecidos entre moradores, militantes e a igreja católica, abrindo espaço para
relacionamentos com o crime e a delinqüência e como tais condições se fazem
concretos empecilhos, de onde se precisa vislumbrar novos pontos de resistência.
Desse modo, novas formas de relacionamento se impõem aos setores
populares. Sílvia estabelece a relação entre a crise da sociedade e as mudanças nos
12
7
bairros, criando uma ética contraditória, na qual as pessoas precisam aprender a
conviver com a insegurança/segurança que impõem os donos do poder, nas
precariedades dos setores populares.
Chauí (1998) postula que, com o desenvolvimento da comunicação de massas,
são construídas formas simbólicas, promovendo a cultura do consumo, que desperta
desejos de ter objetos e incita a sua aquisição, mediante qualquer meio.
“...a sociedade da mídia e do consumo de bens efêmeros, perecíveis e
descartáveis, engendra uma subjetividade de tipo novo, o sujeito narcisista,
que cultua sua própria imagem como única realidade que lhe é acessível e
que, exatamente por ser narcísica, exige aquilo que a mídia e o consumo lhe
prometeu sem cessar, isto é, satisfação imediata dos desejos, a promessa
ilimitada de juventude, saúde, beleza, sucesso e felicidade que lhe virão por
meio dos fetichizados, promessas que, no entanto, não podem se cumprir e
geram frustração e niilismo (Chauí, 1998, p. 3).
Na opinião de Sílvia hoje existe mais informação, mas de forma fragmentada,
que confunde. Existe um apelo intenso ao consumo, do qual essas pessoas ficam
excluídas; e elas começam a achar formas alternativas de construir suas vidas,
inclusive, como Sílvia enfatiza anteriormente: através do crime, do tráfico de drogas,
do roubo, da comercialização de produtos ilegais. Essas práticas burlam as
legislações vigentes e possibilitam para alguns setores o acesso a bens que são
exibidos pela propaganda, que desperta o desejo de possuí-los. Dessa forma, o crime
vai tomando conta e, em termos de militância política, os espaços comunitários e
políticos se encolhem.
Como denuncia Sílvia, as práticas corriqueiras dos anos de 1980 foram banidas
dos bairros, houve mudanças profundas nas formas societárias das comunidades,
consolidando-se formas de individualismo que medeiam formas de significar a
realidade e os relacionamentos.
...a gente sempre falou muito do coletivo, do coletivo e as experiências
históricas não deram conta disso, porque sempre deixou as pessoas em
segundo plano, os indivíduos. E depois vem um sistema individualista, que
coloca como se a pessoa fosse o centro de tudo (Sílvia).
128
Nesse sentido, Sílvia se refere ao estruturalismo e o individualismo, deixando
entrever a ambigüidade que está posto nos relacionamentos sociais que polarizam o
individual e o coletivo, perdendo a dialética que perpassa essas noções, enquanto o
coletivo constitui o individual e o individual é constitutivo do coletivo. O coletivo
significado como sociedade que se impõe ao sujeito, ou o coletivo como massa
irracional. Nessas duas acepções, perde-se o sujeito. Mas também o sujeito se perde
no indivíduo indivisível, no mônada, criado pelo individualismo. Essas concepções
são valorizadas e se difundem nos cotidianos e na mídia de circulação global, em
diversificadas formas simbólicas, que se impregnam nas subjetividades, tal como
comenta Sílvia, quando fala da eleição de Lula:
Então quem votou no Lula em 2002, a característica do voto no Lula foi
diferente de quem votou no Lula em 89. Que a gente dizia o voto que tem
um saldo organizativo na sociedade, e, em 2002, teve mais a ver com essa
coisa da consciência individual. Não acho que seja só por conta da
propaganda, também isso acho que tem um peso importante, mas tem
muito a ver por que as pessoas têm acesso também à informação do ponto
de vista da consulta. à internet, que não querem militar hoje junto aquele
político, junto a uma associação profissional de moradores. Elas podem ter
acesso à informação alternativa de internet, mesmo as coisas que nós
divulgamos, que as organizações divulgam, podem conhecer toda a
história do MST, via internet. Via internet, elas não têm que estar
diretamente nos grupos; então, assim é uma coisa nova que a gente
precisava entender (Sílvia).
A consciência individual para Sílvia é construída na perda da relação com o
outro, da relação face-a-face. Como aponta Thompson (1995), a comunicação de
massa implica, geralmente, o fluxo em mão única de mensagens do produtor para o
receptor. Perde-se a condição dialógica. Nesse mesmo sentido, Melucci (1999) aponta
que os recursos que consistem em informação exigem a capacidade social da
individualização, de tal forma que os indivíduos possam ver-se como centros
independentes, capazes de conhecer, de tomar decisões, de aspirar ao poder, etc.
Mas, concomitantemente e pela mesma razão, os sistemas que dispõem esses
recursos de autonomia, estreitam o controle e orientam os sentidos e as identidades
individuais. Assim postula Melucci (1999):
129
“Los procesos de individualización aparecen como altamente
ambivalentes: por una parte, se manifiestan como procesos que defienden la
autonomia, la autodefinición, la posibilidad de meta-cognición y meta-
comunicación (...) pero, por outra parte, son procesos extremamente frágiles,
ya que están expuestos a la manipulación por via de códigos externos que se
les imponen, a menudo en forma invisible” (Melucci, 1999, s/p).
Essa ambigüidade é trazida por Sílvia, quando se refere ao episódio da eleição
de Lula trazendo novos elementos de problematização:
Eu acho que houve uma esperança muito grande no Lula. Mas não é uma
esperança fundada numa consciência política de esquerda socialista, como
a gente achava que seria o Lula, em 89. É uma outra coisa; também o Lula
está fazendo uma fala para o povo, do ponto de vista que ele é aquele guri
que veio e começou na miséria e veio para São Paulo como retirante, etc.
(Sílvia).
Por um lado, indivíduos elegem na solidão de suas interlocuções com a mídia,
com a conexão planetária de informações. Por outro lado transmite-se a imagem de
um “Lula individual”. Nesse entremeado histórico-social, os sujeitos se constituem
nas multiprocessualidades, como afirma Zanella “como um processo permanente e
inexoravelmente social de (re) invenção de si em que um ‘outro ’é fundamento e expressão do
próprio eu” (Zanella, 2006, p. 34).
Um processo marcado pelos múltiplos fatores que permeiam as relações entre
sujeitos e que revelam o sujeito dominante e o sujeito que encontra fugas e recria
resistências; e também aquele que se submete ou é submetido.
Os momentos difíceis se evidenciam no depoimento de Júlio pelas
transformações produzidas nas relações em torno do desemprego.
... aqui em Curitiba nós tínhamos um movimento que se chamava
Movimento de Luta contra o Desemprego, movimento com início nos anos
80 que foi puxado pela Pastoral Operária e, na oportunidade, uma das
conquistas desse movimento pela luta contra o desemprego foi o passe para
o desempregado. Conseguimos esse passe ao desempregado (...) quem
distribuía o passe aos desempregados era o próprio movimento, de tal
forma que as associações de moradores cadastravam os desempregados,
nos traziam esses cadastros e todas as semanas nas sextas-feiras à noite, nós
fazíamos uma assembléia e distribuíamos o passe para as associações que
no fim de semana entregavam para os desempregados (Júlio).
O sentido do desemprego era dado pelo social e mobilizava os diferentes
setores da sociedade. Nesta fala, Júlio ressalta o desemprego significado como
130
carência, como um direito no qual cabe responsabilidade ao Estado e à sociedade.
Nesse intuito, o que prevalecia era o sentimento de solidariedade e o compromisso
das pessoas com os desempregados.
Nessas circunstâncias, Júlio reconhece e afirma:
... a nossa leitura assim superficial aponta para o fato de que houve
mudanças substanciais na forma de você organizar a política, na forma de
você organizar a economia, que a gente assim de forma simplista denomina
de globalização, que tiveram impactos também no mundo da cultura muito
forte (Júlio).
Júlio refere-se, nesse momento, às instâncias políticas que afetaram os sujeitos
em suas relações com o trabalho e o desemprego, e refere-se a essa dimensão do
problema, nas palavras seguintes, frisando as mudanças.
Ocorre que houve uma modificação na conjuntura do país e também na
conjuntura internacional, que foi nos levando a dificuldades cada vez
maiores em trabalhar com o povo. Porque eu lembro o seguinte, que nos
anos 80, nós conseguíamos reunir muita gente, conseguíamos simbolizar,
fazer manifestações. Na questão do desempregado era uma coisa
impressionante: nós fazíamos passeata, porque o problema do desemprego
era um problema crônico, sério. Agora, hoje, também é, só que acontece
que, naquela época, nós conseguíamos criar esse movimento, não só aqui
em Curitiba; era um movimento de luta contra o desemprego, e
conseguíamos conquistas importantes. O que aconteceu foi que, naquela
época, nós conseguíamos criar e hoje o desemprego continua aí tão grave
ou mais grave e não conseguimos mais (Júlio).
É perceptível a mágoa que invade Júlio, no momento em que relata como esse
processo foi tomando conta da realidade social e individual das pessoas. O que ele
aponta é uma inércia, uma conformidade das pessoas, o que se transforma num
empecilho para os processos de organização e participação em movimentos que
pudessem enfrentar tais condições.
O desemprego passou a ser significado como um problema do indivíduo, tal
como expõe Júlio, com as seguintes palavras.
... na realidade do trabalho, o que é hegemônico hoje é aquela concepção de
que as pessoas não estão no mercado de trabalho por função de sua
incapacidade, enquanto pessoa que não se qualificou e não como um
problema social (Júlio).
131
De acordo com o que Júlio relata, pode-se entender que o que predomina é
considerar o desemprego como falha individual, descolada das condições sócio-
históricas que propiciaram suas condições. Sennett (2000) fala como o individualismo
foi corroendo os valores societários das pessoas no trabalho, empurrando-as a
centrar-se em si mesmas, numa forma de vida, ou melhor, de sobrevivência, regida
por uma ética acomodativa e instrumental. Nessa concepção, o sujeito é o indivíduo
particular, o sujeito que assimilou autonomia como autodeterminação, liberdade
como livre arbítrio e projeto da modernidade como um projeto instrumental. Nesse
contexto, há pouco espaço para o sujeito comunitário. Evidenciando essa condição,
Júlio lamenta:
... nos anos 80, os recursos eram bem menores, mas havia mais energia,
mais vibração, havia mais vontade, havia mais convicção que as coisas
(pausa). Tinha-se muita vontade política de fazer com que as coisas, de fato
acontecessem. Havia mais ação unitária, havia (pausa). A agenda de luta
era mais clara (Júlio).
Compreende-se o desânimo de Júlio, seu mal-estar pelo rumo que assumiram
os acontecimentos. Ele se manteve na luta, mas nem todos fizeram essa opção.
Pessoas se retiraram dos movimentos, sem dúvida muito pela condição de terem que
responder às condições que estavam vivendo: na exacerbação do desemprego o
sofrimento é constante e cristaliza. Sofrimento compreendido por Sawaia (1995)
como...
“... mal-estar psicossocial, como sendo a fixação do modo rígido do estado
físico e mental que diminui a potencia de agir em prol do bem comum,
mesmo que motivado por necessidades do eu, gerando, por efeito perverso,
ações contra as necessidades coletivas e, conseqüentemente, individuais”
(Sawaia, 1995, p. 50).
O sofrimento como algo que corrói o sistema de resistência social. Rompe o
nexo entre agir, pensar e sentir. Anula o sentimento por encontrá-lo suspeito e anula
também o pensar na atividade. Seu estado favorável é a miséria, a heteronomia e o
medo. E o que se cultiva a partir dele é a passividade, o alcoolismo, o fatalismo, a
vergonha, o medo (Sawaia, 1995).
132
De acordo com Chauí (1998), as conseqüências no contexto social se revelam
por um refluxo dos movimentos e um retrocesso de políticas de emancipação do
gênero humano. A fragmentação dos grupos sociais e a destruição de seus antigos
referenciais de identidade tornam difíceis as possibilidades de espaços de
desenvolvimento societários. Estas condições aparecem como valores positivos, na
medida em que o que se incentiva no mundo neoliberal é o individualismo
competitivo e o sucesso, a qualquer preço.
No entanto, militantes persistem e procuram novos caminhos para reiventar
sua caminhada e, nesse intuito, começam a pensar em espaços alternativos,
diferentes dos partidos políticos, que não tinham dado conta do fenômeno do
neoliberalismo. Nesses rumos, partem para a Consulta Popular.
Tendo como objeto de motivação lutar pela superação das condições que
estavam sendo postas e inserindo-se numa ética libertadora que os ajudasse a
procurar condições de justiça, os militantes de nosso estudo se voltam para
reinventar as lutas populares, sempre construindo significados compartilhados, mas
dando-lhes sentidos singulares que se constituem a partir de suas histórias.
4.5 A Consulta Popular
Esta unidade de sentidos foi construída a partir dos depoimentos de Ângela,
Sílvia e Júlio, ativos militantes desta experiência coletiva e política. Iniciamos com as
palavras de Ângela que faz um breve resgate histórico que nos ajuda a recapitular os
momentos mais relevantes.
Da mesma forma que a Constituinte foi para muita gente, da mesma forma
que o MAB foi, a Consulta Popular também era; participavam os
movimentos de organização, participavam da Consulta e estavam dentro
do CEFURIA (Ângela).
Na fala anterior, Ângela situa pinçando aqueles momentos que, para os
militantes, foram marcantes, ou seja, momentos que “ficaram”. Como bem ressalta
Ângela, primeiro foram as associações de bairro, de onde se origina o CEFURIA,
133
depois foi a Constituinte como um momento de revelação, e agora a Consulta
Popular, como momento de criação.
De acordo com o documento “Quem somos” (2005), emitido pelo Movimento
da Consulta Popular:
“A Consulta Popular é a expressão orgânica da idéia da necessidade
de se resgatar um Projeto Popular para o Brasil e uma proposição de que a
esquerda precisa ser refundada partindo da avaliação de que o ‘ciclo PT’
chegara ao fim, compreendendo que não se tratava de um evento, uma sigla
ou forma de luta, mas da construção de um processo necessário – a
refundação da esquerda brasileira”
15
Como se refazer? A difícil situação é definida por alguns dos entrevistados
como “carregar o piano”. Não obstante, como afirma Vygotski (2004b), é da
degradação do homem que emergem suas forças potencializadoras. É nesse mesmo
sentido que Sawaia (2000b), a partir da leitura de Espinoza, postula que sentimentos
tristes que imobilizam e escravizam como medo e insegurança podem ser impulsores
de sentimentos libertários, de esperança. Em outras palavras, os sentimentos de
tristeza podem ser impulsores de se potencializar, para pensar e atuar na
contraposição do que está afetando e provocando sentimentos tristes.
As políticas neoliberais atingiram não só os espaços do trabalho, onde tinham
sido construídas formas históricas de luta, mas também estas repercutiram nos
espaços da vida cotidiana como espaço de existência e convivência que estavam
despertando para espaços coletivos de ação política.
Nesse contexto, surge o movimento da Consulta Popular, um momento que se
revela na fala de nossos entrevistados como extremamente importante, dentro de
seus processos de ação política, e que, neste espaço de pesquisa, foi destacado por
três dos entrevistados: Júlio, Ângela e Sílvia.
Júlio nos relata que a Consulta Popular surge em dezembro de 1997, em uma
assembléia em Itaici, Indaituba – São Paulo. “Surge em uma Assembléia que eu
participei” (Júlio). Para Júlio, essa proposta foi uma experiência particular que
vivenciou com a maior expectativa e que assume ainda hoje, em seu percurso
15
Texto elaborado para o Seminário Partidos de Esquerda na América Latina, Fundação Rosa
Luxemburgo.
134
histórico. Na reunião fundadora do movimento da Consulta Popular estavam
presentes aproximadamente 400 militantes, provenientes de diversos lugares do País.
Quem liderava esta iniciativa era o MST, que, segundo Júlio, era o único movimento
que não entrara em crise, nos anos 90. Também foi o único movimento que manteve
a formação política, o que se traduzia para Júlio em uma maior clareza e uma crítica
mais fundamentada da sociedade.
A Consulta parte de uma crítica aos setores que tomam as decisões nas
diretrizes sócio-políticas e econômicas da sociedade. Ela nasce da inquietude de
intelectuais brasileiros que percebem que os rumos do PT já não condizem com as
necessidades do povo; e que existe uma crise que volta ao partido e seus dirigentes
para outros interesses.
De acordo com Gebrim (2005) a Consulta Popular se levanta, fazendo a
aclamação da volta ao povo, numa proposta que é abraçada pelos setores populares
que não aderiram ao pensamento hegemônico e que acharam que o caminho era uma
nova forma de fazer política popular, recompondo-se a partir da base.
Júlio, lembrando esses momentos, argumenta sobre as condições que
provocaram a criação da Consulta Popular.
O PT estava cada vez mais se institucionalizando, estava se afastando dos
Movimentos Sociais, estava cada vez mais entrando numa dinâmica da
mera luta pelo poder: então aquilo foi uma chamada de atenção, assim: será
que a gente não precisa retomar o trabalho de base e voltar apostar na
formação política e será que vale a pena gastarmos toda a energia na luta
política institucional? (Júlio).
Nessas palavras, Júlio revela a inquietude que o foi envolvendo em relação ao
distanciamento que o PT demonstra aos interesses que estavam na sua origem. O
processo histórico evidenciava a necessidade de adotar novos rumos e a Consulta
Popular se revela como uma proposta contundente, nesse sentido.
Contudo, qualquer iniciativa de transformação precisaria de muita decisão e
vontade de mudança dos envolvidos, pois os entraves acumulados no transcurso dos
anos 90, tinham afetado consideravelmente a participação em ações políticas. Ainda
assim, Júlio, Ângela e Sílvia apostam na Consulta Popular e voltam todas as suas
potencialidades a dar suporte a essa proposta. Eles eram militantes que aderiram à
135
militância nos anos 80, que sobreviveram como tais, durante o longo período de crise
dos ano 90 e que hoje se dispõem a reinventar a luta por aquilo em que acreditavam:
avançar nas lutas populares, visando a superação do sofrimento do povo.
No ano inteiro são chamadas as grandes assembléias nos estados, aqui no
Paraná (...) várias pessoas do movimento popular bem ou mal organizado,
vêm participar dessa assembléia aqui em Curitiba. Ali no antigo cassino do
Ahu, fazemos um baita de um encontro, fazemos discussão política,
projetos políticos e se encaminham pessoas para esse encontro nacional em
São Paulo (Ângela).
Ângela fala, com motivação, de um projeto que emerge deles, que se referia a
seus desejos, suas necessidades, um projeto criador, um projeto que considerava o
povo. Vygotski (2003) ensina que todo processo de transformação não se desenvolve,
se, por trás, não há um processo de criação, que, por sua vez, é indispensável para
projetar-se no tempo histórico. A criação é constitutiva do ser humano e se realiza na
prática do homem, onde ele imagina, combina, transforma e relaciona. Contudo, para
que exista uma proposta de transformação, devem existir as necessidades, as
aspirações, os desejos que vão impulsionar os projetos de mudança.
Sílvia, uma das entrevistadas, tinha sido contratada como formadora pelo
CEFURIA e assumir a Consulta Popular foi para ela um dos primeiros desafios
dentro da entidade. Segundo conta, ela estava tomada por uma grande motivação e
com muita vontade de dar impulso ao movimento.
Eu estava muito animada, na hora que eu vim para o CEFURIA. Eu estava
muito animada porque a idéia era que eu viesse, para a gente tocar a
Consulta Popular. Quando eu vim para cá, o CEFURIA passou a sediar a
Secretaria Operativa da Consulta Popular (Sílvia).
Para ela, a Consulta tinha sentido pela formação nas bases. A formação,
conforme ela conta, tinha ficado de lado, no decorrer da década de 90, uma vez que
as condições existentes dificultaram a aproximação com as bases. Então, para ela, a
Consulta deveria levar os movimentos de volta à formação das bases pela educação
popular, tal como propõe nas palavras seguintes:
... e que a gente fizesse oficinas práticas, para que a gente exercitasse o que
é o trabalho de educação Popular. Que se desafiassem a criar uma temática
para fazer discussão a nível de base, então nós fizemos isso, e foi muito
bom. O Miguel Arroyo foi assim, excelente, porque ele fez (...) de como é
136
que um militante do projeto Popular do Brasil tem que voltar para base,
fazendo a crítica com essa coisa do vanguardismo, que não pode ir lá levar
a verdade pronta, mas que tem que ouvir as pessoas. E a partir do que elas
dizem, tem que começar um projeto de educação Popular (Sílvia).
A partir do sentido que dá à Consulta Popular, Sílvia levanta sua proposta em
nível nacional. Suas convicções são postuladas com firmeza, demonstrando que, para
ela, militância é, antes de tudo, formação e base, mas também é vontade, projeto a
realizar, é trabalho e dedicação. Sílvia dá a máxima importância à educação popular,
e, nesse intuito, defendeu que isso é que adere à Consulta Popular.
...de cara, eu montei a proposta de um curso em várias etapas, que a gente
chamava de cursinho de Multiplicadores de Projeto Popular do Brasil que,
na verdade, resgatava a história do Brasil. Nós chamávamos de “A história
que não foi contada”: Curso de Formação de Multiplicadores do Projeto
Popular do Brasil, e tentei organizar uma equipe, porque a minha
concepção de formação parte do pressuposto que a gente tem que trabalhar
coletivamente (Sílvia).
Para Sílvia, está claro que as condições existentes têm sua raiz no processo
histórico e, junto com outras pessoas, coloca ênfase em trazer a história “que não foi
contada” para os cursos de formação, o que significa: trazer a discussão à questão
dos interesses dos distintos grupos, das relações de dominação que marcaram a
história da América Latina e do Brasil. Mas também ela acredita em que todo o
processo de formação só pode constituir-se coletivamente, e, nesse sentido, insiste
que é necessário trabalhar em grupo, embora, muitas vezes, isso não seja possível
pelas limitações que envolvem o trabalho de ação política.
Na concepção de Sílvia, é valorizado o sujeito histórico-social e, nesse sentido,
é que ela planeja seu trabalho junto à Consulta Popular, trabalho que faz através do
CEFURIA, compartindo com outras pessoas que alimentam os mesmos sonhos e
valores que ela.
Para Júlio, a Consulta Popular recupera o processo histórico das lutas que
estavam adormecidas. Converge com essa proposta na necessidade de recuperar
instrumentos de ação política. Júlio é, dos entrevistados, quem mais se compromete
com a Consulta Popular, assumindo, nesse momento, a liderança da Assembléia
Popular, uma expressão que nasce da Consulta Popular e que tem como intuito a
13
7
articulação das lutas e campanhas do povo. Para Júlio, a Consulta Popular assume
sentido, enquanto...
...discute a necessidade de criar um outro instrumento político, mas não
mais com o objetivo de disputar as eleições, o poder institucional, mas
construir uma nova dinâmica de poder que seja o poder de baixo para
cima, através de formação política, da elevação de formação política, da
elevação do nível de consciência das pessoas, de que as pessoas sejam os
autores e sujeitos das suas ações, que não têm como perspectiva necessária
ascender ao poder, mas fazer com que se organizem de tal ponto, de fazer
com que esse poder faça concessões. Na Consulta Popular, nós estamos
discutindo a construção de um instrumento político que seria um
instrumento para todos, para consciência política seria semelhante a um
partido, mas sem o objetivo de disputar as eleições (Júlio).
Nas palavras de Júlio, encontra-se a potência do desejo de uma transformação,
da necessidade de construir uma sociedade diferente, como ele diz, desde baixo, a
partir da base, do povo. Júlio de igual maneira que Sílvia, adere à Consulta como um
projeto no qual eles se encontram em seus anseios e necessidades. No entanto,
percebem-se diferenças decorrentes de suas singularidades. Para Sílvia, a Consulta
deve ser um potente mediador com as bases; para Júlio, é um órgão político que não
deseja o poder, mas que pretende confrontá-lo. Compreende-se a postura de Júlio
como uma alternativa de construir outra forma de poder, em contraposição com os
partidos políticos. E, nesse sentido, preserva-se a relação com o poder político,
embora Júlio postule que este não seja uma finalidade.
A velha tensão que atravessa todo o processo da participação em ações
coletivas emerge uma vez mais: Como se deve enfrentar o processo de mudança: pela
relação com o poder, ou seja, na articulação e na confrontação? Ou pela base, a partir
das necessidades das pessoas, acompanhando-lhes em seus processos?
Ângela também participou na Consulta e conta como foi esse processo.
... se concretizou o surgimento da Consulta Popular, e ela leva esse nome
porque, na realidade é Consulta Popular, um projeto popular para o Brasil,
porque se consultaria o povo sobre a necessidade desse projeto e como
seria esse projeto, em cima da discussão do Brasil que temos e o Brasil que
queremos. Então, seria a leitura da realidade, para se chegar a um projeto. E
desde o começo, se tinha claro que a gente não ia sair com um livro ou com
um programa de governo, que era um projeto em construção, a partir das
necessidades. Um projeto que se modificaria ao longo do tempo devido às
necessidades, das circunstâncias, das conjunturas, então ele seria um
projeto dinâmico construído no dia-a-dia com a população (Ângela).
138
Nas palavras de Ângela, estão cifradas grandes expectativas. O movimento da
Consulta é compreendido, ou seja, significado como um trabalho que se vai
desenvolver a partir do povo. No entanto, evidenciando uma contradição, ela
assevera que a iniciativa da Consulta Popular nasce de intelectuais e, nesse sentido,
constitui-se na contradição de sua origem. É o que revelam as seguintes palavras de
Ângela.
Na realidade vem de cima pra baixo, então, entre aspas, porque é muito
confuso. Porque são pessoas que têm uma excepcional militância rural, (...)
pessoas que são os intelectuais orgânicos, que têm uma excepcional luta
popular, que começam a fazer a leitura dessa crise e se preocupam com
essa institucionalização (Ângela).
Como conciliar as necessidades do povo com os anseios dos que querem
mudar o mundo? Essa é uma tensão que acompanha os espaços de ação coletiva e
que provoca desafios nos trajetos a percorrer.
Pensar as desigualdades não é suficiente, é necessária a organização ativa
daqueles que a “sentem”, os que são afetados em sua sobrevivência. E é esse
processo de mediação que é construído no trabalho de base, que, muitas vezes, é
truncado pelas próprias condições da existência e da sobrevivência. A Consulta
conseguiu, em seu momento, motivar e articular diferentes grupos e espaços. O
espaço social que se estava consolidando corresponde a formas de organização
plurais, que reúnem diversos movimentos, coletividades e até sujeitos que aderem,
mesmo não tendo uma referência grupal. Estas formas organizativas emergem
timidamente e consolidam-se nas diferentes instâncias sociais, demonstrando uma
otimização de suas lutas. Da Consulta Popular participam...
Os militantes dos Movimentos Sociais, normalmente, mas..., o movimento
era aberto, também tinha muitos professores da rede pública; sempre é
assim: têm militantes do MST, militantes de alguns movimentos, de
algumas comunidades, principalmente das comunidades. Com o pessoal
mais ligado às igrejas é preservado ainda algum trabalho, mais nas Vilas e
tal... Também os professores da rede pública, e aí tinha gente do
Movimento Negro que também participava. O público da Consulta Popular
era bem misto que também participava. O público da Consulta Popular era
bem misto (Sílvia).
139
A mobilização se articulou em torno de problemas comuns e práticas de
solidariedade. Melucci (2001) prefere falar de Redes de Movimentos ou de Áreas de
Movimentos, grupos que se reúnem para alcançar alguns objetivos. Esta definição
considera não só grupos formais, mas também redes de relações informais que
conectam indivíduos e grupos. Melucci postula que experiências plurais que
funcionam como “redes de movimentos”, surgem da necessidade de dar conta das
novas formas organizacionais, que diferem das tradicionais, caracterizadas
principalmente pela busca de autonomia e pelo seu distanciamento dos sistemas
políticos tradicionais.
Melucci (2001) explicita já não ser possível situar o Estado como agente único
de intervenção e de ação. As relações entre sujeitos e Estado são mediadas por um
sistema de relações complexas que extrapolam os sistemas nacionais e que se
impõem. Isso justifica a emergência de pluralidades autônomas que se situam na
cobrança de demandas coletivas, recuperando a motivação e o sentido da ação.
No entanto, houve entraves, e o movimento foi se esvaziando. Nas palavras de
Sílvia, encontra-se a explicação os rumos que foi assumindo a Consulta Popular.
...em 1999, 2000 e 2001, foi muito intenso, nós trabalhamos muito e éramos
um número muito pequeno (...) mas que também estavam envolvidos com
muitas outras coisas (...) Havia assim muitas decisões, em nível nacional; a
gente ia para atividade, em nível nacional; a gente fazia aquele calendário
de luta extenso, do ano inteiro, e muito baseado no pique e na luta que o
MST tinha. Isso se tornava inviável porque a gente não conseguia
compreender o processo do meio urbano de mobilização, e tinha que correr
atrás de construir as mobilizações, e nós não tínhamos os mesmos níveis de
organização que o MST tinha. Então isso se tornou meio que uma fábrica de
mobilizações, e nós não estávamos conseguindo enraizar, e se tornou
cansativo; a gente não tinha tempo para mais (Sílvia).
Não faltava a vontade de avançar nas lutas populares; no entanto, o processo
perde potencialidade e não por falta, mas por excesso de atividades. As pessoas não
conseguem acompanhá-lo a partir das condições de sua realidade cotidiana,
transformando-se em uma carga de deveres difíceis de alcançar. Dessa forma, a
Consulta Popular se enfraquece como projeto de transformação, construído
coletivamente. Sílvia também fundamenta essa fragilização nas relações instauradas.
... eu acho que ainda permanece na Consulta, que é um pouco da imagem
do MST, ainda uma tradição muito vanguardista, muito de quadros, muito
140
verticalizada. E eu penso que não responde mais a esse desafio do mundo
atual (Sílvia).
A posição de Sílvia demonstra o mal-estar que lhe produz que o processo de
participação aconteça num ritmo que desconhece as próprias pessoas envolvidas e
desconhece também o contexto histórico no qual estão inseridas. O enfraquecimento,
nesse sentido, se dá pela perda da participação dos setores envolvidos.
Também não se pode esquecer que a exigência das próprias condições de vida
acabam por se tornar empecilhos para a participação. A fragilização dos modos de
vida de amplos setores da população, que lutam pela sua sobrevivência, deixa pouco
espaço para o envolvimento em ações políticas. Passada a motivação inicial, as
pessoas têm dificuldade de prosseguir, pelas dificuldades que encontram nas
mesmas condições de sua existência.
Num contexto de grande cansaço, Sílvia renuncia a participar desse projeto
para buscar “outras alternativas”, sempre procurando a aproximação às bases.
Então, eu falei não dá, aí nós chamamos uma última reunião, em 2001; tem
até uma troca de um e-mail que a gente passou: participe do funeral da
Consulta Popular. E nem para essa reunião veio mais ninguém. Aí, eu
disse: a partir desse momento, eu estou fora da Consulta, eu acho que não é
desse jeito o que eu entendo por organização Popular, não é desse jeito que
se faz. Então, teríamos que retomar de outro jeito (Sílvia).
Embora muito do esperado não se tivesse conseguido concretizar, o momento
da Consulta Popular foi marcante para os militantes que, no processo das práticas
políticas, abriram espaços para novos caminhos, sempre distantes das instâncias
formais. As palavras que seguem ainda trazem uma reflexão em torno desse
momento, explicitando o decorrer dos acontecimentos:
...acho que o CEFURIA fez uma contribuição importante nesse período.
Porque, quando nós falamos vamos parar, porque nós não podemos
continuar sendo essa fábrica de mobilizações, nós temos que começar a
entender o quê e o porquê que a gente não consegue retomar o trabalho de
base... e tem, lógico, toda uma análise que a gente faz: hoje os espaços não
ficam vazios (Sílvia).
O que provoca inquietude e que se vai revelando como a trama afetivo-
volitiva que promove toda ação e reflexão é a aproximação às bases. Transpira em
141
Sílvia essa constante necessidade. Sílvia caminha na incessante procura de projetos
que restabeleçam os vínculos com as pessoas que promovem participação.
Contudo, a experiência foi enriquecedora e suas marcas ficaram. Na
atualidade, a Consulta Popular preserva-se como um movimento de grupos mais
reduzidos, mas como uma fonte de reflexão e encaminhamentos para a mobilização
social.
... uma coisa que ela constrói é a importância do resgate da formação, é
através da Consulta Popular que se vai retomar a importância da formação
política para a militância. Então, em vários lugares do Brasil se formam
escolas de formação política e nós aqui no Paraná, criamos uma que é o
“Centro de Formação Mílton Santos”. Esse é o quadro da reprodução da
Consulta Popular. A Consulta Popular vai criar um jornal que é o “Brasil de
Fato” que quer se identificar com os Movimentos Sociais; ela cria uma
editora que é a “Expressão Popular”. A Consulta Popular continua fazendo
as assembléias populares que são chamadas de assembléias de “lutadores
do povo”. Tudo isso é resultado um pouco desse processo da ação política
que se faz na Consulta Popular (Júlio).
Ao se referir ao processo que envolve a Consulta Popular, Júlio se remete a
atividades que ele ajudou a realizar e que tem como intuito a persistente busca da
reivindicação das lutas populares. Por meio da idéia da Consulta Popular foi possível
resgatar o processo de formação – que se perdera nos anos 90 -, a compreensão de
uma história do Brasil como base fundamental para o caminho de lutas, a partir dos
pensadores brasileiros. Acima de tudo, conseguiu-se irromper com a racionalidade
hegemônica do pensamento único que paralisou amplos setores, possibilitando o
avanço do pensamento neoliberal.
Todos esses aspectos valiosos enriqueceram o processo da ação política
daquelas pessoas que, insistentemente, procuram o retorno às bases, como sendo o
aspecto que movimenta a ação política.
Um dos últimos frutos da Consulta Popular é a idéia das assembléias
populares, que retoma essas perspectivas de ouvir de novo o povo, o que o
povo está pensando, o que o povo acha de seus problemas. Então é um
pouco dessa coisa de pedagogicamente voltar para as bases (Júlio).
As assembléias populares se revelam como um esforço para voltar às bases e
superar a cisão bases-articulação, como um espaço de encontros que coadune forças e
que construa a articulação, a partir das bases.
142
4.6 A Campanha contra a ALCA
A inserção em campanhas, em âmbito nacional ou internacional, se inicia no
CEFURIA, no transcurso dos anos 90, com a participação na Campanha de Betinho
“Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria”. Na decorrência, militantes do
CEFURIA participaram de outras campanhas de grande mobilização, como o
Plebiscito da Dívida Externa, a Semana Social Brasileira, as Assembléias Educadoras
do Povo e ultimamente a Campanha contra a Área de Livre Comércio das Américas
(ALCA).
Dessa forma, a Campanha contra a ALCA constituiu-se como parte do
processo da ação política das pessoas que constituem o CEFURIA. Destacaremos
neste espaço de análise, para a configuração desta unidade de sentidos os
depoimentos de três dos entrevistados que experienciaram tal momento e que, em
suas falas, possibilitaram uma compreensão analítica desse processo participativo.
Esses entrevistados são Júlio, Helena e Ângela.
O Tratado da Área de Livre Comércio das Américas foi uma proposta de
abertura de mercados que abrangia os diferentes países de América do Norte,
Centro, Sul e o Caribe (exceto Cuba). Decorrente das tendências atuais, de aberturas e
flexibilização econômica, na busca de novos mercados, por parte de alguns dos
países interessados, o tratado da ALCA foi proposto na Cúpula das Américas, no ano
de 1994 (Manual, 2002).
Sendo o Tratado, negociado confidencialmente em diferentes instâncias dos
países envolvidos, as negociações foram difundidas e postas à disposição do debate
público, em abril de 2001, por uma ONG norte-americana que disponibilizou na
Internet documentos correspondentes à negociação.
Distintas entidades dos países que participavam das negociações da ALCA se
preocuparam com os caminhos que esse tratado estava assumindo e, na medida que
foram conhecendo os conteúdos das negociações, se posicionaram em oposição à
143
ALCA, liderados pela Aliança Social Continental – ASC
16
. Dessa forma, a campanha
contra a ALCA emergia como expressão dos países da América Latina em sintonia
com novas formas de ação política global.
No Brasil a campanha foi assumida pelo Jubileu Sul,
17
e em Curitiba, Paraná
quem assumiu a liderança da campanha foi o CEFURIA.
Os acontecimentos do contexto mundial orientavam as expectativas da
Campanha contra a ALCA a relacionar esse processo aos movimentos
antiglobalização, emergentes em diferentes partes do mundo como novas formas de
ação política.
Nesse sentido, foi surpreendente escutar das palavras de Júlio que, por trás da
participação nas grandes campanhas, encontrava-se o fio condutor que dá força à
trama afetivo-volitiva que sustenta sua participação e a de outros militantes: o
sentimento enraizado com as classes populares que os faz procurar diversas
estratégias para sua aproximação às bases e a busca da inserção destas nos espaços
de ação coletiva, pela formação, o esclarecimento.
Nesse contexto, tornam-se compreensíveis as palavras de Júlio, quando se
refere à Campanha contra ALCA, nos seguintes termos:
O objetivo principal não era organizar o plebiscito, votar contra ou a favor
da luta contra a ALCA. Era para você ter uma forma de (pausa) você chegar
nas pessoas, na comunidade, nas escolas, nas universidades, na paróquia.
(...) Todas as perspectivas têm que estar relacionadas ao debate, à formação.
Nessa perspectiva, eu acho que a estratégia estava correta (Júlio).
Assim a inserção nas grandes campanhas, e entre elas a Campanha contra
ALCA, adquire para Júlio um sentido que potencializa a ação política pela formação,
16
A Associação Social Continental (ASC) é um fórum de organizações e Movimentos Sociais das
Américas, criado em 1999 com o intuito de compartilhar informações, definir estratégias e
promover ações conjuntas. A REBRIP (Rede Brasileira para a Integração dos Povos) é o órgão
brasileiro que participa da Aliança. Essa entidade mantém um site na internet que veicula
documentos, artigos e toda informação necessária para manter o processo de mobilização ativo.
17
Jubileu Sul é uma configuração que se define por abraçar lutas sociais. Constituído por organizações de um
amplo universo político, como entidades sindicais, eclesiais, camponesas e ONGs. Em 2000, a Campanha
Jubileu organizou o Plebiscito Nacional sobre a Dívida Externa, e em 2002, a Campanha Continental contra
a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).
144
na busca de espaços reflexivos acerca da sociedade que aproximem os espaços
populares à participação em ações coletivas.
A constante busca da participação, a renovação das estratégias para procurar a
inserção dos setores populares nos espaços de ação política remetem à “vontade” que
demarca a vida dessas pessoas em busca daquilo que elas acreditam e que as leva a
realizar diversos projetos, que Júlio assume como próprios, constituindo-se para ele,
como necessidades do “eu”.
De acordo com algumas narrativas escutadas, foi possível perceber que os
entrevistados não sabiam muito do tema da ALCA, tal como a maioria das pessoas
não engajadas politicamente.
O tema da ALCA entrou para nós no ano 2001 (...) não se tinha clareza do
significado de tudo isso. As informações eram muito vagas, mas, a partir de
2001, de fato começa a puxar mais (Júlio).
Ângela também se lembra do assunto e conta como ela se apropriou do tema:
Falar da ALCA para nós era um outro mundo, porque era um tema tão
complexo, tão grande, uma coisa que está tão fora do Brasil, um risco, uma
coisa... Não é uma coisa que já estava acontecendo, enfim, uma doença que
já estava comendo a pessoa. Não, mas é uma possibilidade, era que nem
você falasse “olha, vamos economizar água, porque a água pode vir
acabar”, está tão longe... Então, a gente achava que ia ser muito difícil
(Ângela).
Helena também fala de como foi adquirindo subsídios, em relação à ALCA:
Primeiro teve um momento que a gente teve muita formação no Brasil
todo, eu mesmo participei de vários, pelo menos para entender esse
negócio da ALCA, para poder compreender, discutir (Helena).
Dos depoimentos dos entrevistados desprende-se que o que promovia sua
inserção na campanha não era produto do “conhecimento” sobre o tema. Seu
processo de participação política leva a pensar que o que estava por trás era o
envolvimento com “causas” históricas, que são cultivadas e construídas nos
diferentes espaços de interação, configurados como redes de entidades e
Movimentos Sociais. Causas que são assumidas a partir dos interesses comuns e que
envolvem uma série de compromissos com uma forma de se situar no mundo e na
145
sociedade. Para Helena, o envolvimento e o compromisso a leva a assumir
responsabilidades.
... se você está em uma organização e você vai representar, quando você
tiver que fazer uma discussão sobre a questão, você percebe a gravidade
das coisas, da forma com que as coisas acontecem, tal que você se apaixona
pela sua causa. De fato, você veste a camisa, você percebe que você tem
que se contrapor. Então, achou que foi tudo isso, de você perceber a
seriedade do momento, a gente dá um click, e você canalizava sua energia
para isso. Então, é uma coisa que você tinha que responder, não dá para
você militar mais ou menos, numa hora dessas; você precisa organizar e
você tem que atuar com o que você tem e isso por conta da necessidade
(Helena).
Com suas palavras, Helena revela a magnitude de seu compromisso, no qual
se integram seus interesses pelas causas que assume e a paixão com que se envolve
nelas.
Com intuito similar, os militantes se avocam a conhecer o que é a ALCA
procurando subsídios que lhes permitam avançar no processo no qual se estavam
inserindo, para depois poderem repassar esses conteúdos para as populações. Na
medida que elas adquiriam conhecimento, se apropriavam dos temas da negociação,
tal como Ângela conta:
...a questão da diversidade, os patenteamentos de nossas reservas, o que
daí envolve Amazônia; a questão dos Tribunais que julgam, e isso já
acontece. (...) Então era uma coisa que mexia com a gente, continua
mexendo. A questão da Alcântara tem uma base militar, o controle
territorial, a questão da soberania. A questão de poder decidir as coisas
internamente, a soberania alimentar, decidir o que vai comer. A introdução
dos produtos transgênicos; a possibilidade de abrir as fronteiras, a
enxurrada de importados aqui, e a gente sem conseguir vender. As
resistências que nós temos hoje, com nossas pequenas empresas que
desaparecem em função dos capitais estrangeiros, enfim, achou que toda
temática da ALCA é preocupante, eu pelo menos entendia dessa forma
(Ângela).
Nesse processo, Ângela articula seus conhecimentos anteriores com os novos
conhecimentos.
... ela (a campanha contra a ALCA) me trouxe uma nova dimensão: até o
ano 98, eu tinha a dimensão do local , é a criança, aquela angústia de
resolver as injustiças locais. Sabia que o problema era o governo, mas não
conseguia dimensionar isso, não fazia essa relação, os horizontes eram
outros, era a dimensão do pequeno. A partir daí se dá a dimensão do
146
global, com a ALCA. Dentro da consulta, a gente já fala de imperialismo e
tudo. Só que a ALCA, ela passa a concretizar aquilo . A ALCA passa a
concretizar isso tudo. Então assim, a gente ia aos cursos da Consulta (...)
Então a gente discutia a questão da soberania, a gente discutia a
dependência externa brasileira, a herança colonial que a gente tem, as
relações sociais aqui dentro, a escravidão, a formação cultural, a formação
étnica do Brasil. Só que a gente estudava a História do Brasil e a gente sabia
que existia o imperialismo, ele estava presente, mas a concretude disso se
dá com a ALCA, porque você vê a coisa acontecendo, o processo
acontecendo de fato e você vê que ele pode ser maior do que ele é (Ângela).
Para Ângela, a ALCA evidenciava a junção da reflexão com a realidade.
Conceitos que tinham sido estudados por ela numa dimensão abstrata, como parte
de uma história, com a ALCA se transformavam em processos da vida real e
adquiriam concretude. Nesse contexto, conceitos como imperialismo e dominação
que tinham caído em desuso depois da abertura política para a democratização, hoje
voltavam a partir das políticas de flexibilização e aberturas de mercado.
O tema atraiu a preocupação de muitos, e houve um grande envolvimento das
pessoas. Ângela lembra esse momento, com as seguintes palavras:
... as pessoas procuravam a gente, pessoas que nunca... Nós não fizemos
discussão na Paróquia do Pilarzinho e o pessoal veio a buscar urna, as
pessoas ligavam à Secretaria da ALCA: “onde que tem uma urna, eu quero
ir votar, eu estou aqui em casa, escutei o rádio, quero saber onde tem uma
urna”. Na Dívida Externa não aconteceu isso. Então, as pessoas mesmo não
fazendo parte de nada mesmo, elas tinham interesse de votar. Elas estavam
sensibilizadas para isso. Eu acho que isso é uma coisa nova (Ângela).
Como poderia explicar-se a adesão de tantas pessoas que não tinham histórico
de participação política e provavelmente careciam dos subsídios ideológicos que
nutrem a participação dos militantes? Ângela tem uma explicação para esse
fenômeno.
Todos nós defendemos o que é nosso, nós somos muito privados, e as
pessoas defendem o Brasil, normalmente a gente demonstra isso na Copa,
quando tem jogo do Brasil, a gente demonstra que é patriota, veste a
camisa. Eu já vi incendiar a bandeira de raiva, quando o Brasil perdeu.
Então, mas assim a gente defende o Brasil no jogo, a gente não extravasa
isso de outra maneira; na política, a gente não conseguia fazer isso, quando
a gente levava a discussão da ALCA, o que a gente conseguia, não em
todos os lugares, claro, mas de despertar esse sentimento patriota, de
nação, nacionalidade, entende, de ser brasileiro, quando a gente falava da
questão da Amazônia, o pessoal ficava pe da cara, pois como que os
14
7
Estados Unidos estudam que a Amazônia não é nossa? Tiram o Amazônia
do mapa, por que eles querem controlar Amazônia? É o sentimento de
posse, entende? O Brasil é nosso, eles não podem vir a dominar o Brasil,
então as pessoas (pausa) Eu acho assim, a gente conseguia despertar um
pouco esse sentimento de ter que defender nosso Brasil (Ângela).
Ângela, com suas palavras, remete à predominância de processos de
identidade, enraizados em formas de nacionalismos. Para os militantes, a ALCA
significa um processo que, em suas raízes, tem uma longa história de dominação e
submissão. Para as pessoas, em geral, isso assume significado na racionalidade de
uma identidade nacionalista, num patriotismo.
Ainda esse fator é aproveitado como fator motivacional para atrair as pessoas
para a formação e promover a participação. Para nossos sujeitos o importante é que a
ALCA seja um mediador de processos de participação e formação. E é a partir desse
ponto de vista que para Júlio, Ângela e Helena, a campanha contra a ALCA cumpriu
seus objetivos, ao facilitar o debate público sobre aspectos de dominação, que estão
na realidade, ao conseguir espaços de reflexão. Mas, sobretudo, a campanha cumpre
seu objetivo, ao atrair pessoas para a militância.
O trabalho de politizar as pessoas e trazê-las para espaços reflexivos e de ação
é comentado por Ângela, nas seguintes palavras:
Aquela turminha lá que nunca se envolveu em nada, tem aquela turma,
tem o pessoal das comunidades, umas pessoas bem simples, que vão à
missa, participam do grupo de irmãos, mas não tem um envolvimento
político, heim? Então tem essas instâncias das pessoas que ouviram falar,
que ficaram sabendo que existe um projeto de dominação maior do que já
tem, que ouviram falar da palavra imperialismo e começaram a entender
um pouco mais dessa relação “imperial”, podem não ter compreendido na
sua oportunidade, podem não ter sido militantes. Alguns surgiram dali e se
engajaram mais; tem um outro nível que é um nível da militância, das
lideranças, que vestiram a camisa, que foram buscar urnas, que ajudaram a
mobilizar. Os estudantes, alguns estudantes que iam fazer o Plebiscito
dentro do colégio, o diretor não queria, foram lá na porta fizeram na rua,
esses ganharam um espírito de liderança. Se não vai, futuramente servir
para a ALCA, quem sabe cheguem a ser líderes importantes, ne? Então nós
descobrimos gente boa no meio do caminho e eu mando para eles direto
informação (Ângela).
148
Para Ângela a campanha passa a ser mediadora daquilo que ela busca,
politizar as pessoas, e, nesse sentido, foi uma experiência de muitas satisfações, como
se expressa:
Nós tivemos um processo intenso, nós vivemos aquele período, foi muito
intenso, era muito encontro, era gente. Nossa foi um troço fabuloso. Uma
dimensão muito grande, assumiu realmente uma dimensão muito grande
(Ângela).
Júlio argumenta, no mesmo sentido: a campanha da ALCA foi uma
possibilidade de chegar às pessoas, de fazê-las compreender as relações de
dominação que existem na sociedade, e, desde esse ponto de vista, considera que a
campanha foi um êxito, tal como afirma:
Olha; eu diria que os ganhos foram fantásticos, porque pela primeira vez, a
ALCA ela organizou, possibilitou um debate mais popular, com significado
de fato do neoliberalismo. Porque o neoliberalismo ele já vinha sendo
discutido, durante uma década, a partir de meados de oitenta, anos 90,
mas sempre foi uma discussão extremamente vinculada aos movimentos
mais orgânicos. A ALCA abriu uma porta para você fazer esse debate de
forma mais ampla (...) A formação se fazia mais com pessoas, com grupos
mais seletos; estavam mais organicamente vinculados. A ALCA não, ela
possibilitou uma discussão entre pessoas que nunca ouviram esses
conceitos, como neoliberalismo. Nunca ouviram esses conceitos o que é
globalização, então quando você vai a uma paróquia, se juntam lá cem
pessoas (pausa). Eu particularmente lembro que no ano 2001, fui a mais de
50 lugares para falar sobre a ALCA. Chegava a uma paróquia 50, 70, 80
pessoas, são pessoas que não participam efetivamente do movimento e
você tem a possibilidade de falar minimamente, abordar esses temas. A
partir das informações que elas têm, acho que o grande triunfo, a grande
conquista da ALCA foi o grande debate que nós fizemos no país inteiro, em
torno desses temas: globalização, neoliberalismo (Júlio).
Júlio demonstra a vontade de avançar em seus propósitos e de transmitir seu
discurso. O esforço de comunicar e ser escutado se traduz no incansável processo de
peregrinação por diferentes lugares, evidenciando a vontade que o envolve em seus
propósitos e interesses. Para ele a campanha foi um grande instrumento pedagógico
formativo de que dispôs para a população sobre temas políticos que não são de fácil
acesso, mas que repercutem na realidade das pessoas. Os ganhos da campanha são
vinculados por Júlio à receptividade da população, o que abre possibilidades de
conseguir novos adeptos para a militância popular.
149
Helena também se refere à experiência na participação da Campanha da
ALCA, compartindo com Júlio e Ângela a satisfação pelos ganhos conseguidos em
relação ao avanço nas lutas populares. E a esse processo se refere:
... o processo de discussão nos bairros, nas vilas foi muito legal, foi muito
bacana porque as pessoas estavam acompanhando a gente. Isso para mim
foi uma coisa assim, chegava numa vila e achava que as pessoas estavam
dominadas, não sabiam o que era a ALCA. Podiam não saber o que era a
ALCA, mas sabiam muito bem qual era a sua realidade e sabiam que tem
coisas que não os beneficiavam e que percebiam claramente quando a gente
comentava da ALCA, dos problemas. Que aqui não seria bom e foi assim.
A rapidez, a perspicácia popular foi uma coisa assim, impressionante. E, ao
mesmo tempo, às vezes, a gente saía das vilas, das comunidades, de
organizações e tal, enriquecidos pela contribuição das pessoas que estavam
lá, dos exemplos que as pessoas davam, né? Que era uma coisa bastante
rica (Helena).
O tema da ALCA possibilitou que Helena se aproximasse das bases,
conversasse com as pessoas e lhes apreciasse o conhecimento. Para ela foi uma
experiência de trocas que possibilitou que as pessoas relacionassem as temáticas
complexas da ALCA com a realidade delas.
Com a campanha contra a ALCA, os militantes conseguiram aproximar-se das
bases, falar-lhes da relação das temáticas da ALCA com aspectos de sua vida
cotidiana. Houve uma grande mobilização e o Plebiscito no Paraná, teve quase
700.000 votos.
Nesse intuito, nesta campanha, tiveram a oportunidade de relacionarem
elementos macro-econômicos com a realidade cotidiana das pessoas, vincularam
decisões políticas com acontecimentos do dia a dia. Entretanto, para os militantes
permanece o desafio de avançarem em suas metas, uma vez que, terminado o
plebiscito, os espaços coletivos se esvaziaram, deixando aos militantes a tarefa de
refletir, de rever suas práticas, em função do que os promove incansavelmente: a
busca da participação.
Falando desse contexto, Ângela se refere ao que permanece de todo esse árduo
trabalho.
... às vezes me angustia um pouco que você vê, parece que as pessoas
saíram sem nada, parece que elas saíram do tamanho que entraram, uma
coisa assim. Falta vida, falta aquela empolgação. Mas eu penso que vai ter
uma hora que ela vai lembrar, que ela vai precisar, sabe? Por mais que
150
aquele período tenha passado, mas as pessoas ouviram falar da ALCA,
quem pautou a palavra ALCA foi o movimento. Se nós não tivéssemos feito
o plebiscito, se nós não tivéssemos ido para as escolas, seguramente a
sociedade não teria nunca ouvido a palavra ALCA, ou haveria achado ela,
como se fosse ela qualquer coisa (...) mas eu acho assim, quando a coisa
pegar de novo, as pessoas já vão ter discutido, elas vão lembrar disso. No
pior das hipóteses, fica um signo de interrogação nas pessoas. Claro que eu
não acho, que não valeu para nada, valeu, sim! (Ângela).
Uma vez mais se revela a vontade de Ângela e de outros militantes de
promoverem a participação popular e a inserção nas lutas populares. Foi possível
perceber que a campanha para eles era predominantemente outro momento
estratégico de promoverem a formação e a participação.
4.7 A relação entre o partido e os movimentos e sua culminação na crise
do Lula
Uma das tensões que os militantes atravessam em todo o processo de
participação é a relação que mantêm com o Partido dos Trabalhadores (PT), e que
hoje se manifesta nos caminhos a seguir, a partir de Lula como presidente. Esta
unidade de sentidos considera essa problemática e será trabalhada analiticamente a
partir dos depoimentos de Júlio, de Ângela, de Helena e de Lílian.
O Partido dos Trabalhadores (PT) nasce em 1980 como um parceiro muito
importante nas lutas populares no Brasil. Define-se como um partido que enfatiza o
caráter classista de sua organização e sustenta, em seus princípios, a construção de
uma alternativa econômica e política que visse uma sociedade sem exploradores e
sem explorados
18
.
Essa entidade política foi um dos parceiros importantes para a criação do
CEFURIA, numa relação que consolidava projetos mútuos e que possibilitava o
trânsito dos militantes entre o partido político, os Movimentos Populares e o Centro
18
Carta de Princípios publicada no dia 1 de Maio de 1979, disponível na Internet no site oficial do
Partido dos Trabalhadores - Brasil.
151
de Formação como sendo um espaço compartilhado por pessoas que tinham ideários
comuns.
A relação entre os parceiros teve momentos de glória, especialmente em seus
inícios, nos anos 80, época em que os movimentos vivem seu apogeu e é reiniciado o
processo de democratização. No entanto, o decorrer desse processo não esteve isento
de momentos de conflitos, de situações difíceis que foram demarcando caminhos
diferentes e que se configuraram como importantes nos processos da ação política
das pessoas entrevistadas.
Júlio remete-se à história e conta que todos os projetos dos Movimentos
Sociais, as pastorais, as CEBs, os movimentos de luta específicos de moradia, de
transporte e todo movimento popular ou sindical tinham uma meta síntese que era a
organização no partido para ascender ao poder e, a partir daí, fazer as grandes
transformações almejadas. Acreditava-se que o partido, nascido de “baixo para
cima”, desde as organizações das lutas sociais, daria as possibilidades de chegar ao
poder e fazer mudanças substanciais, iniciando um processo de rupturas com a
ordem estabelecida, que significasse ganhos rápidos para as populações de baixa
renda. Júlio afirma que “naquela época” (década de 80) todo militante do movimento
social também era militante do PT.
Prosseguindo seu relato, Júlio comenta que, na década de 80, algo peculiar e
de que ninguém duvidava era que o “bom militante” era um dirigente de partido.
Existia uma espécie de escala de ascensão na qual se passava primeiramente de
militante na base, para depois, agente de pastoral, militante de algum sindicato, para
finalmente chegar a militante de partido, o grau mais alto do “ranking” de militância.
Para Júlio, o partido era o grande instrumento de transformação da sociedade.
E é assim que o partido é lembrado por Júlio, num momento em que estava
articulado com os Movimentos Populares, assumindo espaços, junto aos poderes de
Estado.
... nós estávamos avançando nas lutas sociais, nós estávamos conquistando
as prefeituras, nós estávamos elegendo vereador, nós conquistamos
espaços junto ao poder público, junto ao conselho municipal de saúde, ao
conselho da criança e adolescente. O que nós precisamos é qualificar as
nossas lideranças, as pessoas, para que tenham um desempenho junto ao
poder público, para, de fato, poderem contribuir. Então eu diria assim,
152
usando uma expressão simplista: olha, a gente até agora, o CEFURIA,
vinha fazendo um trabalho de chegar até a porta do poder público, de
exigir reivindicar; agora não basta. Mas isso, nós temos o poder, nós temos
que botar os pés lá dentro, já estamos ali nos espaços de interação (...) nós
temos que qualificar para fazer valer aquilo que a gente sempre defendeu
(Júlio).
O crescimento do partido era considerado por Júlio como progresso da luta
popular. E a inserção nas instâncias institucionalizadas era assumida como passo a
seguir pelos Movimentos Populares. Naquele momento Júlio acreditava no partido
como um aliado fundamental para as lutas populares, era um momento que lhe
significava satisfatoriamente para os projetos traçados à consecução do necessário
para uma transformação social. Seus próprios projetos, os que ele perseguia, a partir
de seu processo como militante, estavam se realizando na integração com o partido
na tomada do poder. Para o CEFURIA e seus militantes, esse momento adquire
sentido pela formação. Por isso era necessário ainda participar mais, fazer mais
investimentos e, nesse sentido, os militantes vinculados ao CEFURIA se dispõem a
dar formação, em especial aos que vão representar o povo nas entidades partidárias.
As palavras de Júlio “nós temos que nos qualificar para fazer valer aquilo que a gente
sempre defendeu” expressam sua motivação para a consecução dos fins desejados.
No entanto, no transcorrer do tempo, o processo vai assumindo outros rumos,
como Ângela relata:
... pessoas que são os intelectuais orgânicos, que têm uma excepcional luta
popular, começam a fazer a leitura dessa crise e se preocupam com essa
institucionalização, começam a notar que o PT está começando a perder
aquela discussão de base, e o PT começa a ser um partido de disputa
eleitoral, quando você começa a fazer deputado, senador governadores,
prefeitos, etc...Você começa a investir na disputa e só disputa (Ângela).
Ângela elabora sua narrativa, procurando transmitir a história do processo
junto ao partido, mas também fazendo uma crítica ao rumo que assumiram os
acontecimentos. Ela remete aos tempos de 1980, quando o partido respondia às bases
e ainda se podia falar de projeto em conjunto.
... nós temos, por exemplo, um material histórico, quando o colégio eleitoral
pra eleger Tancredo Neves, os núcleos do PT nos estados, nos municípios,
devemos ou não devemos participar do colégio eleitoral em 1984; então os
núcleos discutiam e mandavam seus relatórios; dizendo se o PT deveria ou
153
não participar do colégio eleitoral. Todas as decisões do partido, inclusive
na Câmara Federal, eram os núcleos que decidiam. Era feito um coletivo. E
começou a se notar isso, que não se discutia mais com a base, as decisões
eram em nível de elite, mas de direção nacional, e esse pessoal que tem essa
interação de base nos movimentos, mas, que são intelectuais. Que já
pensam mais longe, resolvem chamar de novo a discussão para o Brasil,
porque eles acreditam que o PT já não faz mais essa discussão de base
(Ângela).
Ângela volta ao fio condutor que motiva sua mobilização e também a de
outros militantes: a aproximação ou distanciamento das bases. De acordo com um
setor, no qual se inclui Ângela, o PT se afastou das bases, e isso é decisivo para a
posição dela, em relação ao partido. Para Ângela, a possibilidade de um trabalho
conjunto foi ficando cada vez mais distante, uma vez que o que se apresentava era a
evidência concreta de que as relações não confluíam para o mesmo processo. Essa
condição deixou os entrevistados diante de um grave conflito, que eles ainda não
confrontaram diretamente, pois existem vínculos profundos que perpassam suas
histórias e suas afetividades.
À medida que os acontecimentos foram se desenvolvendo, estes entrevistados
foram adquirindo consciência crítica da situação, e foram se encaminhando para
outros rumos. Nesse sentido Júlio assume a Consulta Popular, como uma forma de
preencher o vazio político, provocado pelas instâncias partidárias do país, que não
davam respostas às carências de vastos setores da população.
Bom, se o PT já não preenche mais, não consegue mais desenvolver essa
tarefa, não é mais esse instrumento, que outro tipo de instrumento seria
esse? Então, nós estamos em um grande debate; nós temos, aqui no Brasil,
que é o movimento da Consulta Popular (Júlio).
Suas palavras não só evidenciam um projeto político para o povo, um projeto
no qual se encontram e confrontam o poder, como poder de Estado, e o poder do
povo, como micropoderes que se irradiam, configurando sua força, desde baixo. Mas,
também, ao se posicionar nesse sentido, Júlio assume uma decisão pessoal de
renúncia a um projeto que ajudou a construir, em que tomou parte e, portanto é
constitutivo de sua história. A decisão de assumir para si a Consulta Popular e trilhar
outros caminhos, iniciando outra fase de sua própria história, é também um processo
de transformação singular, no qual emerge a necessidade de construir novos
154
instrumentos, na busca de perspectivas para a ação coletiva. No entanto, os processos
históricos, os vínculos afetivos construídos são mais fortes e Júlio, junto com outros
militantes, assume a campanha para a eleição do Lula, a partir do ano 2000.
... a perspectiva concreta do Lula ganhar as eleições, a partir do ano 2000
meio que paralisa todo mundo. É muito forte essa coisa de um operário,
que se sobrepõe à reflexão mais racional e todos nós entramos de cabeça
para acompanhar o Lula. Achando que nós, de fato, vamos conseguir coisas
significativas, mas não é isso que acontece. O Lula se elege (...) e realmente
a nossa intuição estava correta, a gente precisa repensar a nossa
organização popular. Acho que a instituição, a gente está vendo: o PT, o
Lula no poder não conseguiu avançar o que a gente esperava (Júlio).
Lula ganha as eleições em 2002 e assume a presidência, apoiado pelos
Movimentos Sociais. Com a vitória, os militantes acharam que aumentariam as
expectativas dos Movimentos Populares. Ângela refere-se à repercussão desse
processo e nos diz que “a gente tinha um sentimento assim, elegemos nosso super-
homem, então não precisamos fazer mais nada”. Ela prossegue em seu depoimento
relacionando esse processo com a Campanha contra a ALCA.
... elegemos Lula presidente, agora Lula não vai fazer a ALCA. Esse foi o
sentimento que tomou conta. (...) Mas as pessoas não estão se mobilizando
muito porque agora é o Lula, o Lula não vai fazer isso, as pessoas ainda
acreditam que ele não vai, não sei quê. Mas a questão não é se ele vai ou
não vai, a questão é que se estivessem na retaguarda pessoas dizendo não,
fortaleceria a posição dele. A gente tinha um sentimento assim, elegemos
nosso super-homem, então não precisamos fazer mais nada. No Brasil foi
um pouco isso (Ângela).
Júlio também se refere a esse fenômeno e nos diz que houve um rompimento
enorme da campanha, em relação ao que foi, e para ele “o grande fato é o efeito Lula,
que de fato criou uma expectativa enorme” (Júlio).
Também, segundo Ângela, muita gente que participou da campanha da
ALCA foi para o governo, assumindo cargos, na expectativa de ajudar ao governo, e
nessa posição, não cabia mais a participação deles. Ainda a eleição do Lula a
presidente trouxe algumas outras expectativas.
Na percepção de Helena,
... o Lula não é aquela Brastemp, não é aquela coisa, mas em contrapartida é
um governo que tem as suas vantagens, por exemplo, ainda que
pressionado pelo movimento social, porque ele exatamente sai do
155
movimento social, ele é capaz de responder afirmativamente a essas
necessidades do movimento social. (...) eu posso estar enganada, mas o
governo por mais que erre em alguns aspectos, não seria capaz de entregar
o país da forma como talvez o FHC fizesse, né? (...) então, eu tenho uma
impressão, sei lá, mas eu me sinto assim, como militante que (pausa). Nós
sempre vamos ter que nos mobilizar diante de qualquer governo. (...) Acho
que o governo brasileiro, é vacilante em vários aspectos. Eu acho que ele
não seria capaz de uma decisão, por exemplo, da ALCA, como o FHC faria,
por exemplo, então isso é que dá uma certa segurança, depois a coisa está
meio devagar, está caminhando, mas está devagar; ele pode mudar a
estratégia, a gente tem sempre uma preocupação com o capital (Helena).
Para Helena, a eleição de Lula trouxe certa tranqüilidade, mas também certa
reticência; em outras palavras, é possível perceber que o novo governo não lhe
inspira confiança. Mas também a urgência dos Movimentos Populares se perfila para
questões que esperam, há muito tempo, que sejam realizadas, e, segundo Helena, é
necessário cobrar do governo.
... hoje, o que está é uma preocupação com o modelo econômico; isso está
pegando Há um desejo dos Movimentos Sociais de alterar o modelo
econômico que o Lula adotou e está botando fé. E isso está porque esse
modelo econômico está prejudicando e agravando profundamente as
desigualdades sociais. Por exemplo, a questão do desemprego, e isso é uma
prioridade por quê? Porque a questão da mudança de governo era uma
prioridade social. O povo queria (pausa), mas o que o Lula faz é dar
continuidade, acho que isso está presente hoje, se não se discute hoje a
ALCA, que era uma questão de soberania importantíssima,e porque nós
voltamos pela alteração do modelo econômico, hoje o que está em pauta é
isso; nós não queremos e ali está a preocupação do movimento social
(Helena).
Esta reflexão é compartilhada por Júlio que assim se manifesta.
... há outra urgência colocada hoje na conjuntura nacional, nós voltamos
um pouco eu diria, uma pauta mais nacional, na expectativa do governo
Lula avançar, nas chamadas grandes lutas: moradia, reforma agrária, a
questão da educação, saúde. Nós estamos vendo que está muito lento.
(Júlio).
No sentir de Júlio, evidencia-se uma grande frustração, que se delata nas
palavras seguintes:
Havia expectativa de que o governo Lula avançasse na histórica dos
Movimentos Sociais: a reforma agrária, uma estrutura mais ousada em
relação à ALCA (...) e se percebeu uma frustração. Então percebemos a
importância de rearticular o movimento social. Olha! O movimento social
156
precisa se rearticular urgentemente, para fazer pressão para que o governo
mude sua rota, mude seu rumo (Júlio).
Júlio reconhece o enfraquecimento dos Movimentos Sociais, mas isso não
anula sua persistência de lutar pelos seus ideais, ao contrário, procura novos
caminhos, e faz o chamado para a organização pelos Movimentos Sociais.
Foi um processo preenchido de conflitos e de perdas, no qual os militantes
tentam estar presentes no processo da tomada de poder, mas o Partido dos
Trabalhadores avança em outra direção.
Os militantes são obrigados a reconhecer que o PT abandonou o caminho dos
ideais do povo, mas os petistas ficaram. Ângela explica: O PT se retirou mas ...“os
petistas ficaram, os militantes continuaram, porque os militantes não tinham necessidade de
obedecer a ordem, eles são movidos por um sentimento”. As palavras de Ângela refletem o
conflito entre o PT e os petistas obrigados a rever suas opções em relação ao partido
e ao movimento, movidos por uma base afetivo-volitva que havia norteado seu
processo de luta na construção de um devir. E é essa mesma base que explica porque
continuam a participar, a despeito da consciência.
Ainda Júlio não abre mão daquilo que ele considera, terem ganhado em longas
jornadas de luta. Para Júlio, Lula é produto da mobilização coletiva. Mas, na
realidade, o que aconteceu contraditoriamente é que, com as eleições, o povo ganhou
“formalmente” uma eleição que já tinha assumido outro rumo, segundo eles mesmos
confirmam, e na realidade, de fato, o que aconteceu foi que o Lula se distanciou dos
Movimentos Sociais, mesmo que Júlio afirmasse que Lula é um lucro destes.
... o grande lucro do movimento social brasileiro foi eleger o Lula; nós
paramos, em 2003, nós ficamos esperando o governo, o governo novo.
Precisa dar tempo, é um governo comprometido com os grupos sociais,
com as bandeiras históricas. Aí bom! Se percebe, no segundo semestre de
2003, que o governo está tendo dificuldades, é um governo de contradições,
é um governo que, em meio de contradições, (...) não mudou a orientação
da política econômica. Olha, nós ficamos sem articular no segundo
semestre de 2003 (Júlio).
Embora Júlio se refira a um lucro, seu tom de voz é de pesar, de cobrança de
que aquilo se fosse concretizando. E como Júlio formula em sua fala, é todo um
trabalho, uma trajetória que se está perdendo.
15
7
A grande bandeira hoje, da formação dos Movimentos Sociais, é a mudança
do modelo econômico do governo Lula, porque há uma percepção clara
nossa de que é uma oportunidade histórica que criamos. A sociedade
brasileira... não podemos simplesmente nos dar o luxo de abdicar, não o
governo Lula, qual que é o modelo econômico? Então, a nossa preocupação
de hoje, nós estamos olhando mais para dentro de nós mesmos. Porque
mudança no governo significa também uma mudança de posição em
relação à ALCA, em relação ao MST, em relação aos nossos parceiros
(Júlio).
Tanto para Júlio como para Ângela desmorona-se um sonho, a possibilidade
de conseguirem a transformação social que tanto almejavam, pelas vias do partido
político com Lula na presidência. A culminação de um processo doloroso: ter de
admitir que o partido não poderia ser mais uma via de transformação e que teriam
que se afastar definitivamente do partido, deixando para trás toda uma história,
projetos, sonhos em conjunto.
No entanto, num momento, Ângela afirma que ainda tem esperança, como
manifesta, na declaração.
De uma forma geral, tudo, eu estou meio pessimista, medrosa. (...) A gente
é boba, acaba procurando esperança em tudo. Eu fiquei um pouquinho
mais esperançosa, sabe? Então, acho assim, (...) ainda podemos influenciar
o governo Lula. Se a gente deslanchar, enquanto Coordenação dos
Movimentos Sociais, conseguir fazer mobilizações legais, conseguir pautar.
Nem a direita não está contente, nem a esquerda está contente. (...) Quer
dizer, está complicado o negócio, vai chegar um momento que vai ter que
rever as coisas. Ele não vai poder agüentar muito mais essa situação. Então
existe ainda a possibilidade da gente ainda interferir na situação e eu acho
que só vai acontecer isso através desse Colegiado que é a Coordenação dos
Movimentos Sociais. Ali dentro não é só os movimentos na sua fragilidade
que estão, mas está a gente que pensa o Brasil, gente que propõe, existe
muita coisa legal ali. Então, ao mesmo tempo que me angustia, que fico
triste, que me dá um ... ao mesmo tempo, a gente imagina que pode (pausa)
algo diferente (Ângela).
Quando Ângela fala, suas palavras transmitem a ambigüidade do que está
querendo dizer. Parece que precisa buscar para si mesma um sentido desse processo
e, nesse intuito, aponta à possibilidade de expectativas. No entanto, ela não consegue
assegurar sua insegurança e incerteza. Sua decepção e tristeza estão marcadas em seu
rosto, em sua forma de se expressar. É a dor daquilo que para ela esta sendo perdido.
Estas condições foram repercutindo no processo da participação de Ângela,
tornando mais difíceis as condições nas quais se mobiliza e dificultando muito sua
158
capacidade de construir seu espaço de participação política. Ainda ela permanece
junto com os que têm a luta popular como projeto de vida. Nesse intuito, sobrepõe-se
às dificuldades e aos conflitos e tensões, do jeito que dá, segundo suas próprias
palavras.
... eu reduzi significativamente a minha participação, é uma coisa pessoal
eu defini para mim até por uma questão de sobrevivência porque eu entrei
numa neurose que eu deixei as coisas passarem despercebidas eu não
conseguia mais. Um pouquinho mais eu entrava naquela história do
pânico, da síndrome do pânico. Eu não conseguia mais olhar para as
pessoas, eu não conseguia mais olhar para ninguém. Tudo para mim
começou a ficar muito pesado, então, eu ia para as reuniões e chorava,
chorava. Então, eu comecei a ter dificuldades muito grandes, pessoais
(Ângela).
Em um outro momento, ela nos relatou que sua depressão e condição
fragilizada se vinculavam ao processo histórico que estava experimentando na época.
O contexto político no qual está inserida e, conhecendo um pouco da trama afetiva
volitiva que potencializa sua ação e sua vida, não é difícil considerar que as
circunstâncias sócio-políticas sejam alguns dos fatores que incidem em seu estado
emocional. Hoje Ângela esta a cargo do Centro de Documentação e Biblioteca do
CEFURIA.
Visivelmente marcada subjetivamente por processos de ordem política,
Ângela destotaliza um momento de sua história, perdendo o eixo do devir, o que
implica em afetos paralizadores do EU. A depressão é a perda da perspectiva que
antes norteava sua vida, a qual se fazia a base ampliadora de sua potencia de ação,
culminando em apatia e decepção. No que acreditar agora? O momento que deveria
ter culminado com uma série de logros e expectativas cumpridas pela eleição do Lula
se transformou em decepção. Sob que circunstancias agora, é possível uma luta que
antes afirmava para si e para os outros como uma alternativa concreta aos processos
de exclusão social? Sob tais condições, o efetivo se vê aprisionado na perda do devir
e se revela como recusa da continuação de práticas participativas junto à população.
Mas, para Júlio, a vontade de ação política persiste e se reflete na análise crítica
que elabora deste momento:
Hoje uma discussão de importância é voltar a dar mais ênfase na formação
do movimento social. Eu hoje particularmente, eu dedico as minhas
159
energias aos Movimentos Sociais. Eu já dediquei minha energia, muitos
anos, à militância partidária. E hoje eu estou fazendo uma avaliação mais
critica, acho que deveria ter me importado mais com os Movimentos
Sociais. Porque faz parte de um processo histórico. Agora, assim como eu,
muitos acham que o importante é voltar ao movimento social (Júlio).
O processo da participação política, para alguns dos entrevistados, caminha
para novos desafios. Os movimentos, segundo Helena, ficaram na resistência, pois se
esperava muito mais do governo Lula. Segundo Helena, existe um desencantamento
generalizado e a vontade de construir novos caminhos, na certeza de que a questão
eleitoral não muda a realidade das pessoas mais necessitadas, e é necessário
organizar o povo.
Numa perspectiva diferente, Lílian, que esta no CEFURIA, inserida nas
atividades da Economia Solidária postula, sua posição a respeito.
...a gente está conseguindo fazer, tudo graças ao governo Lula, porque está
vindo recursos para a organização de projetos de Economia Solidária. Por
exemplo, os recursos que vieram para comprar os equipamentos e
multiplicar as padarias comunitárias, (...) é tudo de lá do governo, do Fome
Zero que veio; e também o próprio programa do Talher, a gente está
conseguindo fazer toda essa formação de base por causa do dinheiro que
vem do recurso público. e depois o convênio com o FINEP (...) a gente esta
conseguindo fazer formação com as padarias comunitárias e tudo mais, e aí
a gente consegue recursos até para o transporte para as pessoas virem,
porque se elas não tem dinheiro para vir elas não vem (Lílian).
Para Lílian, o mais importante é levar a cabo o projeto da Economia Solidária,
que é “seu projeto”, e, nesse sentido ela sente que o governo esta respondendo,
manifestando-se satisfeita. No entanto, num âmbito mais amplo, faz algumas críticas,
embora restritas.
a gente sabe, que ele (Lula) deixou de fazer uma porção de coisas,
principalmente nas questões macro, a divida externa, a questão da ALCA.
As ligações que ele fez com as tramas políticas, que trouxe uma série de
problemas, inclusive a própria corrupção dentro do governo Lula, que a
gente não sabe quanto tudo isso é verdadeiro ou não, ou é intriga da
oposição, (...) então é uma série de questionamentos. Mas, nós que estamos
com a Economia Solidária, a gente que fez todos esses projetos que nós
conseguimos fazer, captar recursos para a Economia Solidária (...) é porque
nós estamos conseguindo fazer nosso trabalho, por isso que nós achamos
que o Lula deve continuar ainda. (Lílian).
160
No transcurso da entrevista podemos perceber a afecção de Lílian diante o
sofrimento humano e isso se torna predominante. Seus afetos pelo que a sensibiliza
se entrelaça com a percepção que tem do governo Lula e elabora combinações a
partir de sua singularidade, voltando-se para projetos de Economia Solidária. Seu
processo de subjetivação das condições sócio-políticas produziu sentidos diferentes
em relação aos construídos por Ângela, cuja base afetiva se voltou à derrota de
projetos e sonhos antes almejados. Lílian destotaliza aquele momento, retotalizando
por dentro o mesmo da lógica solidária, reinventando estratégias de participação e
(re) construção de novos trajetos. Por meio de uma nova saída ético-política, ela
consegue escapar da apatia e decepção, reinventado a si mesma em um movimento
que não rompe com os laços já pré-estabelecidos, os quais acreditava com todo seu
ser.
4.8 Entre o macro e o micro, a escolha pela Economia Solidária
Neste espaço somam-se os depoimentos de Patrícia, Lílian e Pámela. Elas não
estavam nas lutas dos anos 80, já que se integraram no período dos anos 90 e
construíram sua presença no CEFURIA, a partir desse momento até hoje, junto com
Sílvia, participando da equipe que compõe o CEFURIA.
Nos 25 anos de existência do CEFURIA, ao longo desta trajetória foi-se
revelando, que as pessoas, próximas a ele, têm em comum a preocupação com o ser
humano, o que as motiva na ação para superarem condições que promovem e
perpetuam o sofrimento ético-político. A partir desse interesse, os esforços dessa
entidade se orientam, entre outros, em promover a formação e a ação política dos
setores populares, a criação de vínculos e redes, o acompanhamento em processos de
recuperação da humanidade.
Nesse intuito, a entidade e os sujeitos que a ela se vinculam são perpassados
pela tensão de orientar o trabalho para a base ou para a articulação. Trabalhar com a
base é focalizar aspectos microestruturais - ou seja, trabalhar junto com as pessoas
dos setores populares, acompanhando seu processo, considerando suas necessidades.
161
Privilegiar dimensões macroestruturais é trabalhar em nível de mobilizações, com as
entidades, as representações, assumindo lutas políticas na relação com o poder e na
reivindicação de direitos.
Helena assim entende o que é trabalho de base ou articulação:
O trabalho de base que a gente considera é aquele que você faz diretamente
falando com trabalhador, que você está lá na vila, que você está falando
com a dona de casa, que você está falando com a liderança que está na Vila.
O trabalho de mobilização (articulação), você trabalha com entidades, você
faz o trabalho mais de fora de mobilização, você não tem tempo para estar
conversando ali, então você fala com as entidades e faz um trabalho. Por
exemplo, você fala com a CUT e a CUT fala com seus sindicatos, você não
vai lá, e o sindicato vai falar com trabalhador. O trabalho de base é você
estar lá, se é no sindicato e no meio dos trabalhadores, daquela categoria, se
é na associação de moradores é lá no bairro, se é no movimento de
mulheres é lá onde a mulherada está. Fazer um trabalho de mobilização,
você trabalha mais com entidades organizadas, que já têm seus coletivos
próprios, você vai falar com a CUT, com partidos, com os movimentos, com
as pastorais, você vai falar com entidade, a entidade que fala, é mais com
estruturas (Helena).
Trabalhar com o micro é, pois considerar o sujeito em suas necessidades
concretas, é procurar o contato com os sujeitos afetados e afetar-se com eles e com o
que lhes repercute. É estabelecer a relação na dimensão das vidas cotidianas, onde os
seres humanos cumprem suas necessidades elementares, mas onde também se
satisfazem outros tipos de necessidades, de igual forma fundamentais para o
desenvolvimento humano e que se geram nas relações com os outros como:
solidariedade, amizade, afetividade e o reconhecimento como pessoa.
Trabalhar em nível macro é voltar os esforços para a transformação pela
relação com o poder e a institucionalização. É voltar os esforços para a
implementação de políticas e leis que derivem em direitos. É organizar-se para
conseguir mudanças, é mobilizar-se na denúncia das injustiças, desigualdades e
abusos de poder. Essa forma de relação exige formas de representatividade que
facilitem o trabalho de mobilização o que comumente se reflete numa perda dos
referenciais relacionados com as pessoas em suas necessidades, passando a
predominar a luta pelo poder.
Essas dimensões da ação social e política se efetivam no processo de
participação dos militantes e configuram-se na processualidade política das pessoas
162
na qual interconexões micro e macro se entrelaçam, constituindo uma dimensão da
história da ação coletiva destes militantes, e, definindo também, o processo histórico
do CEFURIA junto aos setores populares.
A história do CEFURIA se inicia a partir das bases. Seus fundadores e
militantes deram vida à entidade, procurando suprir necessidades que estavam nas
pessoas. É das bases, das condições de vida dos seres humanos dos setores populares
que os militantes nutrem suas vontades de aderir à luta popular. E, é também a partir
das necessidades das bases que o CEFURIA se vincula aos Movimentos Populares e
promove a articulação na ação política. E nesse sentido o CEFURIA tem construído
uma história junto às lutas populares em Curitiba.
Nesse primeiro período, foi isso, foi a luta do transporte coletivo, foi a luta
do movimento contra desemprego, que a pastoral operária fica muito à
frente disso tá? Depois o CEFURIA voltou-se mais para a formação, porque
se conquistou sindicatos, tinha uma Central, você tinha que politizar mais
(Helena).
Helena relata que o CEFURIA, em seus inícios, se origina das bases, mas de
suas palavras se infere que, naquela época, base e articulação confluíam juntas para
os mesmos propósitos. Documento (1990) da entidade mostram que existia uma
extensa participação das pessoas das Vilas e que estas participavam das
determinações que orientavam o trabalho de mobilização. No entanto, no processo,
houve dificuldades e essas dimensões da luta popular foram se distanciando.
... e aí cometeu-se... eu acho, não é que tinha se cometido um erro, mas
tivemos uma outra prioridade: trabalhar formação. Trabalhar formação, daí
tinha cursos nível I, nível II, nível III, aquela coisa, vários níveis. O
problema, nesse período, é que foi uma formação desvinculada no trabalho
de base, que não foi um erro só do CEFURIA. Depois a gente constatou no
PT, na CUT, todo mundo deixou o trabalho de base, fomos fazer formação
com quem já tinha. O trabalho de formação o CEFURIA intensificou nesse
período e daí que foi complicando, porque não tinha lideranças e o trabalho
foi degringolando, degringolando. Quando nós voltamos para o CEFURIA,
quando nós entramos no CEFURIA, ele estava acabado, de portas fechadas,
era uma coisa meio fantasmagórica (Helena).
O processo histórico revela existir uma série de condições que provocaram
dificuldades de ação, em especial, as condições de vida que foram se tornando mais
problemáticas para as pessoas, dificultando seu processo de participação.
163
Para Helena é preponderante “o afastamento das bases”. A crise do
esvaziamento dos espaços coletivos assume sentido pelo afastamento das bases. As
bases se revelam como motivo de toda potencialização para as lutas populares. As
condições de vida das pessoas que constituem “as bases” é o que mobiliza, que
promove a busca de outros empreendimentos, da elaboração de novos projetos.
Fazendo uma retrospectiva do que já se tratou em unidades de sentido,
anteriores, Ângela se referia ao processo da Constituinte, em suas nuances pela
institucionalização e a autonomia dos movimentos. Ela postulava: ali você perde a base,
atribuindo sentidos ao processo histórico de ação política no qual estavam inseridos,
sentenciando que o mais grave desse momento de perdas foi a fragilização dos
Movimentos Populares por se distanciarem das bases.
Nos inícios dos anos 90, a opção do CEFURIA de fazer formação para
subsidiar as lideranças e os setores que se relacionavam com as instâncias políticas
partidárias também desaguou numa crise, tendo como resultado o afastamento das
bases, procurando, então, novos caminhos para reaproximá-las.
A inserção nas grandes campanhas se deu depois da crise produzida pela
formação orientada para lideranças. Nesse contexto, os militantes saem do recinto do
CEFURIA e procuram as bases, inserindo-se na Campanha contra a Fome e a Miséria
liderada pelo Betinho, e iniciam um trabalho junto às bases, o qual acaba se diluindo
em trabalho de articulação e mobilização.
O distanciamento do Partido dos Trabalhadores é também perpassado por
essa tensão. A ruptura foi-se construindo porque não se discutia mais com as bases,
as decisões eram limitadas à elite, à direção nacional. Isso provocou a procura de
outras instâncias de onde nasce a Consulta Popular.
Sílvia, em sua experiência na Consulta Popular, afirma...
...a gente não conseguiu na Consulta Popular, enraizar a nível de base,
fazer o que era o sonho e permanece ainda até hoje, de ter os núcleos de
base nas Vilas, que se reúnem e discutem seus problemas, e tentar
encaminhar a solução para eles (Sílvia).
Os entrevistados que participaram da Consulta Popular situam esse momento
com grande preponderância, pelas contribuições que ficaram; a maioria dos
164
participantes voltaram a procurar outros espaços de ação política, na busca da
aproximação às bases. Seguindo o fio histórico desse percurso, o CEFURIA assume a
liderança da campanha contra a ALCA, procurando aproximar-se às bases. No
entanto o processo se transforma num acontecimento de articulação de massas, que
revela novamente a necessidade de fazer trabalho de base.
No processo participativo, alguns sujeitos se inclinam para acompanhar
iniciativas próximas às bases; outros defendem uma presença mais ativa no embate
político pelas articulações para a mobilização.
Nesse contexto, os entrevistados se diferenciam em seus caminhos e em suas
opções. Para Lílian, o mais importante é o trabalho com as bases, como manifesta em
seu depoimento. É isto que ela defende.
O CEFURIA se afastou das bases, onde ele nasceu. E nas Assembléias
sempre se pedia: o CEFURIA precisa voltar às bases, o CEFURIA precisa
voltar às bases. Mas a formação que o CEFURIA fazia era assim: para
sindicalistas, para lideranças de Movimentos Sociais, das Pastorais Sociais
(...) ah! Então vamos fazer o Grito dos Excluídos
19
, se botava 200, 250
pessoas e aquilo lá. O primeiro de maio, uma ou outra manifestação,
Manifestação dos Professores, mas era assim, era muito classista (Lílian).
Lílian soma-se aos que preferem trabalhar diretamente com as bases e faz a
crítica à opção das mobilizações. Sua argumentação de que as origens do CEFURIA
está nas bases e de que, portanto, é ali onde ela deve atuar, complementa à fortaleza
que ela coloca na opção de que é necessário estar com os que sofrem. Lílian defende
que o trabalho popular deve ser realizado diretamente com as pessoas, vítimas do
sofrimento das extremas carências causadas pelo sistema. Ao referir-se ao Grito dos
Excluídos e falar de 200, 250 pessoas, está fazendo uma crítica às formas de ação
política de articulação onde fazer número é importante. Nesse intuito, se refere à sua
opção pelo trabalho junto aquela população concreta.
19
O Grito dos Excluídos é uma expressão popular que acontece em todo o território nacional, uma
iniciativa levada adiante por várias forças da sociedade civil organizada, um espaço de
participação livre, que nasce em 1995 junto à Campanha da Fraternidade, realizada pelo Setor
Pastoral Social da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e dando continuidade aos
debates da 2° Semana Social Brasileira, realizada nos anos de 1993 e 1994. Realiza-se no dia 7 de
setembro, dia da pátria, tentando chamar a atenção da Sociedade às condições de crescente
exclusão social na sociedade brasileira. As atividades são variadas: atos públicos, romarias,
celebrações especiais, seminários e cursos de reflexão, blocos de rua, caminhadas, teatro, música e
dança (Documento Grito dos Excluídos. Gráfica Popular, 2004).
165
... é botar os pés na lama. (...) a gente começou a ir à periferia, na pobreza
mesmo, eu chorava: “Nós temos que botar os pés na lama”, os conselheiros
do CEFURIA têm que ir lá a botar os pés na lama, onde está a pobreza, têm
que ir onde está aquela gente sofrida. É ai, eu disse assim: olha, gente! É lá
que o povo está precisando da atuação do CEFURIA. A formação tem que
ser feita lá. Então eu dizia assim: não adianta o CEFURIA continuar
fazendo e tal. E tinha assim, até 2003, uma certa resistência ao nosso
trabalho (Lílian).
Os sentimentos que desperta em Lílian a realidade atual, a leva a sentir, como
uma necessidade, a mudança nos rumos do CEFURIA. Para ela, o trabalho com as
bases é o trabalho com o outro, construído na relação com a alteridade e aberto a ela,
no fazer, no pensar e no sentir. Seu sentido se entrelaça o tom colorido ao significado
compartilhado coletivamente acerca “das bases”: seu desejo de estar junto a elas está
amparado no afetivo-volitivo que a orienta.
Como afirma Helena, “o CEFURIA está ligado nas coisas, não é uma ilha”, e as
pessoas que a secundam sentem que houve mudanças nas condições sociais das
pessoas que apontaram ao recrudescimento das condições sociais e isso provoca
discussões em relação aos caminhos a assumir. O que é evidente são as mudanças
provocadas pela nova ordem mundial e, nesse contexto, Gabriela fala de como foram
mudando os significados da pobreza.
... eu acho que a disposição à pobreza antes era diferente da que existe hoje,
antes era uma pobreza mais incluída não tinha tanto desemprego assim as
lutas eram dos operários, do trabalhador da fábrica (...), hoje em dia não,
hoje em dia o que marca é a pobreza, é a insegurança, não saber o que vem
amanhã, é você não ter previsão nenhuma do que vem amanhã; hoje tem
um bico amanhã pode não ter, hoje; a igreja está dando cesta básica aman
ela pode não estar dando mais, entendeu? Então essa é que a questão da
população (Gabriela).
Para Gabriela a pobreza é significada a partir das formas em que agora se
realiza, numa extensão das carências e das necessidades, pela insegurança que
produz escassas possibilidades do presente e imprevisão do futuro. As condições
impostas à sociedade, com um estado minimalista e as flexibilizações das relações de
trabalho, refletem nas próprias vidas, e isso se torna muito forte para as pessoas. É a
166
dor do outro que se eleva na consciência delas e as leva a fazer opções. Nas palavras
de Pámela.
...porque essas pessoas estão descartadas de tudo, da empresa
multinacional muito mais, porque eles exigem um padrão; então, você tem
que ter certo grau de instrução, e as pessoas acabam não tendo isso, acabam
trabalhando quando conseguem; hoje em dia tem muito isso na questão do
lixo reciclável, material reciclável, na questão dos catadores de papel.
Grande parte são catadores de papel e empregadas domesticas, quando
conseguem, porque as pessoas discriminam muito. Quando a pessoa está,
inclusive fisicamente, muito mal tratada: dentes, cabelo, tudo largado;
então, chega na porta de alguém e a pessoa não aceita. Primeiro é fazer esse
resgate de auto-estima, de melhorar o visual da pessoa, para ela se cuidar,
que isso é importante para a saúde não só fisicamente por ser bonita, não é
só questão de boniteza, é questão de saúde (Pámela).
A preocupação com a aproximação às bases é constante, o que nutre a vontade
destas pessoas permanece e se torna, inclusive, mais evidente. No entanto, o que
parece que se dilui na urgência das necessidades é o político. O que aparece não é um
subjetivismo em si, descolado da realidade, como critica Sawaia (2001b), das
tendências atuais; mas o que está presente é o subjetivo, encarnado nas condições
cruentas do social e que se revela em toda sua emergência na absoluta carência de
toda necessidade e possibilidade. Contudo, e nesse aspecto concordamos com Sawaia
(2001b), a condição de voltar-se ao subjetivo pode acarrear a perda do político. Nesse
sentido, diz a autora, é necessário não se deixar enredar pela instrumentalização que
envolve a categoria da subjetividade, negando outras dimensões da participação,
justificando o desinteresse pela política, reduzindo a participação a um foro íntimo,
contrapondo-a ao coletivo.
Na disjuntiva das opções, Sílvia delibera.
Eu penso que ainda o grande desafio nosso é a gente articular os grupos
locais com as lutas mais gerais. Eu penso que isso não está de todo
resolvido, porque assim eu não sei te dizer ainda, eu tenho uma angústia
ainda, a mesma angústia que eu tinha, quando estava do outro lado. Antes
a gente ficava só no macro e não conseguia dar conta do micro; eu, às
vezes, ... tenho hoje e em muitos momentos... Eu tenho chamado atenção
para isso internamente, ás vezes, não sou bem compreendida (Sílvia).
A angústia de Sílvia é provocada pela preocupação de descuidar uma
dimensão da ação política. A vontade de avançar nas lutas sociais é importante, mas
16
7
ela está convencida de que não adianta querer avançar, sem construir a mobilização
social junto com as bases. Compreendemos que considerar as bases, para Sílvia é
construir reconhecendo as pessoas, em suas singularidades e no coletivo pelas suas
necessidades, a partir de seus próprios processos. É também trabalhar para ampliar e
fortalecer as lutas populares, o que só é possível para ela mediante a participação
construída coletivamente pela reflexão e motivação.
Sílvia problematiza as formas tradicionais de participação e reflete sobre
dimensões que são importantes para ela.
...a gente começou fazendo a crítica com uma militância mais histórica,
porque estudando Paulo Freire, é impossível não enxergar. As formas
autoritárias, às vezes, não é por maldade (...) E, às vezes, eu digo: gente, a
gente tem que construir um protagonismo, porque nós somos muito
poucos, tem que ter mais gente de base, entendendo e se preparando,
inclusive teoricamente. Não adianta que meia dúzia de nós avancemos do
ponto de vista teórico e nos distanciemos tanto, porque a gente tem essa
idéia. Isso é um conflito! Se tu queres estudar, você não tem tempo de estar
no dia-a-dia das coisas práticas, então cria um conflito que é terrível,
porque esse é o conflito de quem quer mudar o mundo. Que nem acha que
é só na base, que nem acha que é só na universidade, ou só na academia, ou
só estudando (...) Meu Deus, não adianta! O buraco é mais em baixo
(Sílvia).
Sílvia chama a atenção às formas de relação, instauradas no processo da
formação, considerar o outro em suas necessidades é também não impor
autoritariamente. De igual forma, para Sílvia, não só é necessário estar com as bases e
estar no confronto, mas também é necessária a formação, há necessidade do
conhecimento e da reflexão.
Conhecimento é importante e deve emergir das condições concretas das
pessoas, das condições que provocam sofrimento. Ainda, conhecimento por si só não
resolve a dor das pessoas nem seus problemas, é necessária a ação, mas seu impulso
se dá pela esfera do afetivo e, nesse sentido, se abre a disjuntiva da necessidade da
articulação.
O processo de Sílvia nas lutas populares está determinado pelas escolhas que
ela precisa fazer. Sílvia depara-se com as limitações que determinam os avanços da
luta popular, as escassas condições humanas e materiais dificultam um trabalho
extensivo. Nesse contexto, é obrigada a escolher, tentando tomar as melhores
168
decisões, buscando contribuir, buscando saídas, entre o macro e o micro, “brechas”
como ela chama, as oportunidades da inserção nos espaços populares, para formação
e ação coletiva.
A disjuntiva que está em Sílvia, é trazida para o depoimento de Helena, que
manifesta a importância de considerar os distintos aspectos da ação coletiva, na
superação das cisões que se arrastam historicamente, fragmentando a realidade
social e dissociando os indivíduos de suas próprias realidades.
Faz a coisas concomitantemente, porque se você faz um trabalho de base,
você também mobiliza, se você precisar. Você faz assim, você vai
conhecendo lideranças, você vai despertando lideranças, preparando, se
você precisar, por exemplo, botar um povo na rua hem? Ao frente de uma
prefeitura, você vai para uma rua, ou você vai à romaria da Terra, o você
vai fazer alguma coisa, você sabe onde tem gente. Você sabe onde estão as
lideranças porque você tem um trabalho de base. Se você não tem um
trabalho de base, você fala sozinha, porque você não tem a base (Helena).
A dissociação é produto da predominância de uma visão fragmentada da
realidade. É necessária a participação dos sujeitos, a partir do seu envolvimento nos
processos de mobilização, decorrentes de seus interesses e motivações. Mas também
é necessário que, líderes e dirigentes compartilhem espaços de reflexão que
possibilitem significações compartilhadas da realidade, de maneira que tenham
condições de expressar as reais necessidades das pessoas para reivindicá-las
politicamente.
Ainda, percebe-se que a tendência de Helena é a articulação, ela dá sentido ao
trabalho de base como uma preparação, uma motivação para o trabalho de
mobilização. Acreditamos que, em sua perspectiva não desconsidera o trabalho de
base pelo trabalho do sofrimento ético-político, mas lhe dá um sentido diferente, na
construção de alternativas para mudanças. Helena é uma militante articuladora, sua
participação é fundamental para a mobilização nas campanhas; no entanto, retirou-se
e foi estudar. Ela marcou uma época no CEFURIA e fez história na entidade. Suas
palavras podem dizer algo sobre seu afastamento.
Tem várias razões pessoais, primeiro pela minha trajetória de vida, que eu
não fico muito tempo num lugar só, porque liderança que fica muito tempo
num lugar só cristaliza, domina, controla, manipula, e há também o
preconceito que os mais jovens falam dos mais velhos, só que os mais
novos ficam mais velhos também e eles vão ver como que se dá esse
169
processo lá na frente. Mas primeiro porque é problemático sim, ficar muito
tempo em uma entidade; de certa forma, você domina, você se desestimula,
você já conhece toda a máquina, você conhece as lideranças, você fica um
pouco arrogante também eu acho; e ao mesmo tempo, você quer ter o
controle de tudo nas mãos, ainda mais se você tem um cargo de direção (...)
tenho essa questão pessoal de vida; mesmo que eu não goste de ficar muito
tempo num mesmo lugar, eu gosto de mudar, e ao mesmo tempo minha
vida inteira eu assumi trabalho de mobilização, da pessoa que fala. E
chegou um momento da minha vida que faltava aprofundar algumas coisas
mesmo; claro que nós trabalhamos muito a formação, mas não uma
formação acadêmica que você pega uma coisa e vai estudar, a gente faz
conforme a necessidade, e teve um momento que eu precisava aprofundar
umas coisas (Helena).
Helena retirou-se, dando espaço para uma nova perspectiva, a do trabalho nas
bases pela Economia Solidária. Como ela argumenta, as mudanças são boas; no
entanto, às vezes dolorosas. Helena fez uma história de amor com a entidade e as
pessoas, assumiu para si os desafios da luta popular no embate, no confronto, na
denúncia. Foi assim que a conhecemos. Sente-se sua mágoa quando ressalta o
preconceito dos mais novos em relação aos velhos. Compreende-se que não é uma
questão de idade, acreditamos que Helena se refere ao tempo histórico, as vivências
que marcaram e que está nos militantes que acompanham e permanecem nas lutas
desde os anos 80. Helena foi estudar, pode ser que seja para compreender esses
novos processos que invadiram a realidade e que se tornam complexos em suas
abrangências e em suas repercussões no ser humano, que é o que lhe interessa. Nesse
sentido também defende a importância da formação:
... eles não podem ser massas de manobra heim? (...) Não, a idéia é que as
pessoas tenham uma consciência crítica conclusiva (...) que elas tenham
conhecimento, que elas julguem, saber julgar para não formar um pré-
conceito, né? Que as pessoas, aquelas lá que não têm condições? Como que
não têm! Como é que elas não podem avaliar? Elas vivem em uma situação
que elas conhecem. É uma situação (pausa) por isso que a formação é muito
importante, de uma forma libertadora, porque ela pode ser deformadora
também (Helena).
Ao valorizar os sujeitos em suas capacidades de conhecer a realidade que os
constitui, Helena reconhece os sujeitos da base como sujeitos que se apropriam da
realidade em uma construção significada, decorrente do processo histórico-social no
qual vivem. Nesse processo são as pessoas que sentem, que vivenciam suas
170
condições de vida; que são afetadas pelas circunstâncias do contexto que vivenciam,
que devem recuperar sua condição de humanidade, para poderem sentir a
necessidade de mudanças e refletir quais são seus interesses. Para ela, é só assim,
pelos conhecimento e sentimento que é possível que as pessoas se envolvam e
orientem suas vontades para processos de transformação.
Gabriela expõe as condições que levaram o CEFURIA a, uma vez mais, a
trilhar outros rumos, mas não perdendo, porém, os horizontes que lhe dão suporte, a
busca de aproximação às bases, que se revela no percorrer de todo o processo como o
eixo que mobiliza a trama afetivo-volitiva que o promove e a motiva a recriar a ação
política, junto às classes populares.
... quando eu cheguei no CEFURIA, como voluntária, quando eu conheci
em 98, o CEFURIA era muito presente nas mobilizações populares. O
CEFURIA não estava fora de nenhuma mobilização popular, ele
participava de todos os grandes eventos, das grandes manifestações. Estava
sempre presente; só que o trabalho de base ficava um pouco descoberto, o
trabalho ali com o povo de formação. Então se priorizava, no meu tempo,
quando eu entrei, o trabalho maior, as articulações maiores, as grandes
mobilizações, então parece que, de 2002 ou 2003 para cá, se mudou a
estratégia do CEFURIA: ele se voltou mais para a base, com o trabalho com
a população nas vilas, nas comunidades, trabalhando formação. O objetivo
não mudou. Acredito que mudou a estratégia; as últimas mobilizações elas
estavam meio esvaziadas e a gente percebeu que a gente estava muito no
alto e que o povo não estava conseguindo acompanhar, porque, numa
mobilização, se a população não tiver um mínimo de informação para que
ela compreenda, para que serve aquilo? Não participam. Porque, a gente
percebeu que o CEFURIA estava muito em volta dos próprios militantes,
não abria; os militantes com eles mesmos, e sempre os mesmos militantes, a
gente não estava conseguindo alargar não estava conseguindo envolver
mais a população; então parecia que a gente estava num patamar que não
conseguia ir lá olhar pro povo que precisava do bê a bá, da formação
mesmo (Gabriela).
Com a participação ativa de Gabriela, Lílian e Pámela o CEFURIA inclina-se
na década dos anos 2000, para o trabalho de base. A entrada nesse percurso se dá
num contexto no qual o CEFURIA vive, com seus militantes, novos desafios: a
desmotivação em torno da Consulta Popular. Apesar de suas contribuições, a tensão
provocada pelo exaustivo trabalho e responsabilidade assumidos com a Campanha
contra ALCA e o esvaziamento posterior dos espaços de mobilização, as opiniões
contraditórias em relação ao Governo Lula, sintetizadas em ilusão/desilusão, o
171
impacto que provoca o “efeito Lula”, nos militantes antigos e também novos vínculos
e relações, constituídos com este governo. O acirrado empobrecimento de vastos
setores, como repercussão das medidas neoliberais que se mostram em sua crueza
para estas pessoas, transforma-se também num fator preponderante para a escolha
dos rumos a seguir.
Nesse contexto, emerge uma nova fase que estava em processo e que não está
livre de conflitos e deliberações, tal como é relatado por Pámela.
... eu participei foram uns quatro, três anos atrás, dessa retomada do
trabalho de base. Isso teve um conflito muito grande, porque tinha pessoas
que não achavam que nós tínhamos que retomar diretamente esse trabalho,
que isso tinha que deixar para outras entidades, para a igreja e tal, e nós
trabalharmos com articulação como nós sempre vínhamos fazendo. Outras
pessoas não: nós temos que pisar lá no chão, no barro; se não nós vamos
estar falando e fazendo coisas para quem já está aqui, então você já
participa da articulação, do grito dos excluídos, da romaria do trabalhador.
Mas o trabalhador lascado ali, que está todos os dias pegando ônibus às
cinco horas da manhã, ele não vem; ou aquele que nós chamamos hoje ao
grito dos excluídos. Os excluídos não participam e nem se acham excluídos,
inclusive, tem isso. Porque as pessoas que nós consideramos que são
excluídos da sociedade, do mercado, de tudo, essas pessoas não se sentem
excluídos. Por isso elas não vêm ao grito dos excluídos, entende? Então era
necessário fazer toda essa retomada do trabalho de base (Pámela).
O passo para o trabalho de base não foi tranqüilo, houve dificuldades, e
alguns, como Pámela, foram convincentes em suas argumentações. Aquele que mais
precisa, não participa, sentencia Pámela, ele não se sente excluído. Em Pámela
também vinga como em Lílian e em Gabriela, essa vontade tenaz de acompanhar os
mais despossuídos, a qual nasce do compromisso de superar o sofrimento humano,
como algo persistente que se encontra em toda a processualidade destas pessoas.
Estas escolhas não estão alheias às condições de maior exacerbação da pobreza e de
uma visão de realidade: a de sujeitos que não podem esperar que a realidade mude
através das instâncias políticas.
O grupo que acredita nessa trajetória vai-se consolidando; é um setor do
CEFURIA que tem a convicção de que o caminho a trilhar deveria postar-se nesses
rumos.
É, portanto, pela Economia Solidária que se abrem novos caminhos que
começaram a ser trabalhados no CEFURIA. Nessa linha de trabalho, houve
o acompanhamento aos clubes de trocas, às padarias comunitárias. Além
172
de serem espaços de renda, ao mesmo tempo, são de formação e
convivência. A coordenação é feita pelas próprias mulheres envolvidas e
que se reúnem no CEFURIA configurando o Conselho Gestor “Fermento na
Massa” cujo objetivo é debater os problemas e avanços relacionados com
sua experiência (Pámela).
O trabalho de base foi retomado, orientado para a perspectiva da Economia
Solidária. Uma prática que já estava no CEFURIA, desde os anos 90 e que hoje se
situa em primeiro plano. A idéia surgiu do Movimento Popular das Mulheres do
Paraná (MPMP). São experiências comunitárias de geração de renda que buscam se
contrapor, à ideologia excludente das economias liberais e também gerar formas de
renda familiar imediata.
Nesse sentido, os espaços criados pela Economia Solidária são enriquecedores,
como relata Pámela, em seu depoimento:
... a gente percebe a olhos vistos o crescimento das pessoas, principalmente
da base, pessoas que num primeiro momento, abaixam cabeça, que já
perderam quase tudo na vida, e que aos poucos, começam a te olhar nos
olhos, a falar o nome, porque para muitas pessoas até dizer o nome é difícil,
porque foram sempre jogadas para fora, então você percebe essas pessoas,
de repente, indo num órgão da prefeitura junto com os outros, indo a lutar
por alguma coisa que precisam, acho que isso é o centro de tudo, fazer as
pessoas perceberem-se sujeitos da história, não como meros (pausa). Acho
que o de perceber nas pessoas, que percebemos que estão lá excluídas, que
não têm nada mais, que parece que não têm mais nada a perder na vida. A
gente vê essas pessoas sendo resgatadas, criando sua autoconfiança, a sua
auto-estima, buscando, indo atrás dos seus direitos, assim é muito bom, é
assim um “tcham” (Pámela).
Para Pámela, a experiência de ver crescerem as pessoas, de sentir seu
desenvolvimento não só provoca satisfação, mas a enche de felicidade. Para ela, o
crescimento dos seres humanos, em sua humanidade, é manifestação da realização
de seu projeto de vida, ela sente essa transformação como construção de seus
esforços, e nesse sentido se fortalecem suas escolhas pela Economia Solidária como
espaços sociais de interação e solidariedade.
Aqueles que acreditam que o CEFURIA deveria estar mais na linha de frente,
no embate político, discordam dos que preferem a atuação predominantemente nas
bases, junto com os que têm maior urgência, os excluídos. Para eles, difícil era sair da
linha de frente e situar-se na última linha, com aqueles que não têm visualidade.
173
Mas, se compreendemos essa ação de alguns militantes pela raiz que está na
mobilização destas pessoas: o comprometimento com a dor, com o sofrimento
humano, a constante busca da aproximação às bases provém da sensibilização com
as condições de vida desses setores. A trama afetivo-volitiva que os incentiva a
procurar transformar a sociedade provém do sentimento humano genérico que os
compromete com o coletivo e os faz assumir a luta como projeto de vida, nem que
seja, na atualidade, ajudando a superar o sofrimento de alguns poucos, como é a
opção de Lílian.
... a gente começou com as padarias, os clubes de troca, a gente começou a
ir à periferia, a pobreza mesmo e as reuniões da direção do CEFURIA, do
Conselho (Lílian).
A participação para Lílian, Pámela e Gabriela adquire sentido pelo trabalho de
base; é isso que as motiva e as promove no trabalho coletivo. Nos significados dados
ao trabalho de base prevalece o sofrimento ético-político como realidade concreta e
sentida por algumas pessoas. São pessoas que convivem com o sofrimento de sentir-
se nada e, muitas vezes, com a sensação de não terem ninguém. Sawaia (2003) nos
diz que falar em sofrimento ético-político é referir-se a dor físico-emocional vivida
por alguns sujeitos, e provocada por determinadas ordens sociais que se orientam a
injustiças, preconceitos e falta de dignidade.
A autora postula que o sofrimento ético-político...
“Empobrece e afunila o campo de experiências e de percepções
bloqueando a imaginação e a reflexão; torna as pessoas impotentes para a
liberdade e a felicidade, quer na forma de submissão, quer na de ódio e
fanatismo. Seu exemplo mais emblemático é o sofrimento da indignação
moral, que pode manifestar-se seja como desamparo, violência contra
familiares e alcoolismo, na intimidade, seja como passividade ou rebelião e
criminalidade, na vida pública” (Sawaia, 2003, p. 46).
Os militantes que optaram por atender populações duramente empobrecidas,
orientadas pelo sofrimento ético-político de alguns setores, significam suas práticas
por uma reinvenção do político, pela transformação do cotidiano, na atenção focada
na afetividade e na recuperação das pessoas pelos movimentos de subjetivação e
objetivação.
174
Júlio percebe esses projetos não como uma solução para as urgências
econômicas, mas sim como a recuperação do indivíduo pela sua dignidade.
Eu acho que a racionalidade que existe por detrás hoje, digamos assim que
a gente possa usar um conceito, uma palavra seria a dignidade. Eu
interpreto muito a Economia Solidária, essas iniciativas das padarias
comunitárias, dos clubes de troca e de algumas iniciativas de cooperativas,
como iniciativas que tentam recuperar a dignidade de pessoas que já não
têm mais perspectivas de se incluírem no mercado de trabalho, que se
sentem angustiadas em função de sua situação, que têm uma baixa auto-
estima e que encontram nesses espaços, que são espaços solidários de
relações pessoais de fazer algo. Eu diria que é muito nessa linha de
recuperar a dignidade dessas pessoas (Júlio).
A Economia Solidária é significada por Júlio como mediadora no suprimento
de necessidades afetivas, tão valiosas como as necessidades básicas de comida e
abrigo. A recuperação de bens nem tão materiais, mas fundamentais para a
dignidade humana é possibilitada nos relacionamentos sociais, são supridas
necessidades de afeto pela solidariedade, amizade, comunicação e partilha.
Os sentidos dados à Economia Solidária por Júlio e por outros militantes
revelam que as necessidades não se reduzem à comida e abrigo. Como diz Sawaia
(2001b), a realidade rompe, uma e outra vez, o mito de que o pobre não tem sutilezas
psicológicas e age como um rebanho tangido por determinações sociais e pela fome,
como se os segredos da subjetividade fossem próprios das pessoas mais abastadas e
intelectualizadas (Sawaia, 2001b, p. 125).
No documento de 2004 “Rompendo o Silêncio e Escrevendo a Nossa História”,
emitido pelo CEFURIA encontram-se depoimentos de pessoas que têm participado
da escola da Economia Solidária. Na pergunta: o que é Economia Solidária para nós?
As respostas de algumas das pessoas foram: trabalho em conjunto, conhecimento,
afeto, compreensão, respeito, direito de expressão, igualdade, valorização, partilha,
humildade. Nas respostas não havia vínculos com o econômico como ganho
significativo.
Para Gabriela, a Economia Solidária só é uma solução das necessidades
econômicas das pessoas, se fosse reformulada a estrutura da sociedade.
A Economia Solidária? Ajuda, resolver só quando mudar o sistema. Isso é
uma grande ilusão que as pessoas têm: enquanto não mudar o sistema não
175
tem a sociedade não tem, o mercado não tem lugar para todos, não tem.
Qualquer vaga que abre no mercado de trabalho é uma fila; então, quem
consegue são aqueles que têm uma aparência melhor, que têm estudo,
idade, que são jovens; as pessoas que estão ali excluídas, elas não têm
chance nenhuma de competir, não têm chance de competir (Gabriela).
Gabriela é ativa organizadora da Economia Solidária. Sua afirmação não
diminui o valor que ela dá a esse projeto, mas, tal como acontece com Júlio, os
ganhos que ela vê, não estão na economia, mas no trabalho coletivo com as pessoas, o
que possibilita a recuperação delas em seus aspectos afetivos. Suas palavras
confirmam que o sentido que para ela tem a Economia Solidária é o resgate da
humanidade para poder pensar em desejos, para estabelecer outras formas de
relação.
Sílvia tinha saído da entidade para fazer uma pós-graduação, no ano 2001,
quando volta, em 2003, se encontra com a novidade de que o CEFURIA está
enveredando vigorosamente para a Economia Solidária. Conta que não tinha muita
clareza de como essa atividade poderia transformar-se numa força política ou em
uma nova cultura de modo de produção. Mas, aos poucos, refletindo acerca de
pequenas pesquisas, começa a ver concretamente possibilidades da economia
solidária como uma alternativa concreta de organização através do trabalho. Passa a
pensar a economia como forma de trabalho para romper com o assistencialismo,
como uma maneira de construir protagonismo com as populações que dependem
das cestas básicas, que vivem nas favelas e estão excluídos das relações de produção
formal, e incluídos pela miséria.
Então comecei meio que a refletir um pouco, estudar um pouco (...) dessa
proposta de Economia Solidária numa perspectiva de uma economia mais
transformadora. Assim, de como as pessoas se transformam, a partir do
próprio processo de trabalho, e que transformem a sociedade a partir do
próprio processo de trabalho, porque da construção material da vida não
tem como fugir (Sílvia).
O sentido que Sílvia dá à Economia Solidária elabora-se a partir da proposta
do trabalho como mediador de subjetividades. A perspectiva postulada por Sílvia
corresponde a uma visão sócio-histórica na qual a relação pelo trabalho não só
modifica o mundo material, mas através da qual o homem se modifica a si mesmo,
176
na relação que estabelece com os outros. Nesse intuito, adquire conhecimentos,
constrói vínculos afetivos, apropria-se da cultura, constrói sua humanidade,
elaborando não só artefatos materiais, mas também criando sentidos e significados,
(re) criando o mundo social, criando um espaço próprio no contexto social. Desta
forma, o que se percebe é que Sílvia aposta no crescimento humano.
E acho que a Economia Solidária permite isso, permite fazer essa ligação
da educação e do trabalho, que era o grande sonho, acho, dos pensadores
socialistas na área da pedagogia, e que, na verdade, acho que mesmo por
conta muito dessa visão de Estado e de partido, de sindicato. A gente
nunca foi no miudinho de tentar entender isso (Sílvia).
Para Sílvia a Economia Solidária é um caminho de desenvolvimento humano
e, nesse sentido, é significada por ela como uma forma de transformação que, ao
produzir o crescimento das pessoas, pode abrir espaços para uma forma política de
enfrentar a vida.
Júlio, a partir de outra perspectiva, faz comparações entre os anos 80 e a
atualidade e argumenta:
A diferenciação que eu faço dos anos 80 é que nós, dos Movimentos Sociais,
para nós era lutar, lutar também pela dignidade e pela inclusão social, mas
eram lutas que tinham como objetivo alterar o próprio capitalismo. Acho
que hoje nós estamos submetidos a essa lógica e a gente só navega aqui, é
claro que no bojo, a Economia Solidária traz a proposta de uma outra
economia, mas nós perdemos força de conteúdo político (Júlio).
A crítica de Júlio volta-se ao desejo de avançar, de poder fazer mudanças, na
qual as pessoas possam assumi-las politicamente. Mas, como postula Sílvia: “isso não
é possível, transformando-se numa “fábrica de mobilizações”. É necessário o trabalho de
base, como afirmam Gabriela e Lílian, mas concomitantemente com a articulação,
como é a proposta de Helena.
Júlio, participante dos anos 80 do CEFURIA e que hoje está em outros espaços
do movimento popular, assume sua inserção nas lutas populares a partir da
participação pela mobilização e, desde esse ponto de vista, critica os caminhos que
atualmente adota o CEFURIA.
Eu acho que o CEFURIA hoje está muito se voltando para aquela coisa
muito só de igreja, está muito na Economia Solidária, acho que ele está
abdicando de participar desses outros espaços, que são espaços mais
17
7
difíceis, de construção mais coletiva. Eu tenho sentido isso, que o CEFURIA
está muito no seu foco, que é a Economia Solidária, que é a formação de
grupos, mas não é que ele esteja ausente, mas ele está menos presente do
que esteve antes; então, ele ganhou, por um lado, por essa organicidade,
porém ele perdeu em articulação com as outras forças sociais (...) O
CEFURIA está se orientando por uma coisa bem basista, assim eu acho, as
vezes um pouco assim até despolitizada, não vou dizer assim o CEFURIA
mas, algumas pessoas do CEFURIA eles têm aquela coisa “da base, da
base, da base”. Então, qualquer coisa que você tente, uma reação que
avance, isso já seria dirigismo (...) a gente acha que está bom, mas a gente
tem que ver também o que pode se avançar (Júlio).
Para Júlio, o sentido das lutas populares não pode desvincular-se dos embates
políticos e do trabalho de articulação. Acreditamos que a história de Júlio é
preponderante em suas escolhas. Sua inscrição histórica está preenchida de
experiências de confronto e articulação; ele teve uma inserção ativa no processo de
manter viva a presença dos Movimentos Populares em Curitiba. Ele é militante
desde os anos 80, num período de apogeu dos Movimentos Populares em que a
participação se valorizava coletivamente. Nessa perspectiva, o importante é fazer
pressão e reivindicar direitos e benefícios.
Ainda Júlio argumenta que a origem da entidade esteve junto às articulações.
... a luta contra a ALCA, a luta pela reforma agrária, mesmo esse
movimento que o CEFURIA participou intensamente, a luta contra a fome e
a miséria do nosso Betinho. Tinha algumas lutas sociais que a gente tinha
do calendário unificado das lutas nacionais. O CEFURIA, nesse período dos
anos 90, final dos anos 90, estava muito presente nessas articulações
nacionais, nessas frentes de lutas. Ele vai desempenhar um papel
importante, exatamente porque ele tem uma rede de capilaridade. Então,
vamos organizar a campanha contra a ALCA, vamos organizar o plebiscito,
mas quem é que vai assumir a coordenação disso, para fazer fluir os
materiais, para servir como referência de contatos, articular as atividades
de formação, de preparar o material e os subsídios? O CEFURIA. Porque o
CEFURIA carrega na sua memória genética a origem sua que é de
articulação (Júlio).
Compreende-se bem que, para Júlio, é importante destacar essa vinculação
com a articulação. Trata-se de uma participação histórica, fundamental para as lutas
populares, e o CEFURIA proporcionou valiosas contribuições nesse sentido.
Seus militantes têm como objetivo a superação de formas de inclusão perversa;
sua prática se orienta para esse fim, o sentido que dão à mesma é diferente, o que
178
está por trás é uma compreensão do político e uma forma diferente de fazer política.
Se, por um lado, se pensa que é necessário ter uma presença mais abrangente, que
potencialize denúncias e pressione as mudanças, por outro lado, também é
necessário construir a mobilização, a partir das bases. Estas significações e sentidos
da ação política remetem também a formas diferentes de fazer política. Política como
relações de poder e política como a construção de espaços comunitários, para viver
em sociedade.
O dilema da escolha entre base e articulação está inserido num contexto
histórico-social para o qual confluem inúmeros fatores. Entre eles, as próprias
condições da sociedade contemporânea e as condições sócio-historicas dos militantes
envolvidos. Nesse sentido lembra-se que Gabriela, Pámela e Lílian não viveram a
experiência dos anos 80, que não só marcou uma época da plenitude da articulação
dos Movimentos Populares, mas também envolveu as pessoas num processo de
fortalecimento e construção, duramente alcançado pelos militantes dessa época.
Pámela e Lílian provêm de espaços religiosos, num relacionamento com as
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a partir do qual são construídas formas de
ação social que perseveram em seus militantes e que também marcaram uma época,
destacando-se pela ação social que privilegia a comiseração com o sofrimento
humano.
Júlio, Sílvia, Helena e Ângela são militantes que estão nas lutas populares, a
partir dos anos 80. Júlio claramente se define pela articulação, Sílvia vê na Economia
Solidária uma possibilidade política de atuação, Helena se retira para estudar e
Ângela se encontra a cargo do centro de documentação e não se referiu ao tema da
economia popular. Eles são os militantes históricos, os que vivenciaram a fase ativa
dos Movimentos Sociais urbanos, e, como destaca, Maheirie (1997) todo sujeito vive e
faz sua história de forma dialética, superando velhas formas de pensar e agir, mas
também conservando-as, e é assim que eles conformam sua processualidade política,
nos nexos entre afeto e razão, vida cotidiana e história.
179
4.9 CEFURIA, um lugar de encontros
O trajeto da processualidade política dos sujeitos desta pesquisa permite
conhecer algo destas pessoas; seus depoimentos revelam seus sonhos, seus desejos e
necessidades, relacionados ao contexto mais amplo do qual fazem parte. Neste
processo se entrelaçam suas histórias com a história da instituição que, por sua vez,
se insere no contexto mais amplo da sociedade. Estas histórias todas confluem entre
si, promovendo nos militantes significações e sentidos da realidade.
Nesta unidade trazemos os depoimentos que correspondem aos significados e
sentidos que os entrevistados atribuem ao CEFURIA como mediador de suas
próprias vidas.
Lílian assim se manifesta:
O CEFURIA para mim é essa entidade que eu consigo colocar ao serviço do
povo, aquilo por que eu quero lutar, em que eu quero acreditar, que é a
organização e a construção de uma nova sociedade. E a Economia Solidária
é o caminho; então, o CEFURIA para mim é isso, tanto que eu trabalhei
sempre como voluntária. Dentro de minha aposentadoria, às vezes eu vivia
bem apertadinha, mas nem vale transporte, nada, nada, nunca cobrei,
nunca recebi nada, porque foi uma opção que eu fiz, hem? Vivo assim na
minha simplicidade (...). Mas, estar no meio do povo é todo que eu quero,
para ajudar o povo a se libertar da opressão, e ser gente (Lílian).
Na fala de Lílian reflete-se um projeto de vida que se realiza pelo CEFURIA
como a entidade que lhe permite veicular seus interesses. Lílian entrelaça sua vida
com o CEFURIA, confunde-se com a entidade por aquilo que a apaixona: o serviço ao
povo. Realiza-se nesse espaço como sujeito afetivo-refletivo e busca caminhos para a
consecução de suas finalidades. Buscando validar sua identificação com a entidade,
Lílian traz sua história, conta as opções que já fez na vida e que revelam que, detrás
de seus interesses, está a consecução de um projeto, uma trajetória de lutas sociais.
Nos conflitos que houve, Lílian foi uma grande defensora da volta às bases pela
Economia Solidária. Ao se posicionar em relação ao CEFURIA, Lílian também reforça
o sentido que para ela tem a entidade: o lugar que viabiliza seus sonhos, o espaço
social e político, a partir do qual se pode aspirar a superar desigualdades pela
Economia Solidária. Sua vida de compromisso com o sofrimento humano, sua opção
180
de vida fundamentada em valores que compartilha com os outros adeptos do
CEFURIA, tudo isso promove seu apreço por esse espaço e seu reconhecimento pela
entidade, assumindo-a como algo seu.
Dos relacionamentos estabelecidos nesse espaço, ela nos fala...
a gente vive em total amizade, família, só amigos. E a gente percebe a
diferença assim, de fora no mercado capitalista, a equipe de trabalho tudo...
principalmente (...) Onde trabalhei, era assim, teu colega estava sempre te
puxando tapete. E isso me estressava muito porque não era de minha
índole, nunca foi competir. Aqui, não. No CEFURIA, a gente não vê isso
(Lílian).
Além de propiciar expectativas em relação a projetos e desejos extensivos para
o social, o CEFURIA é para Lílian um lugar de bons encontros e de relacionamentos
de amizade, solidariedade e respeito, que foge dos valores voltados ao
individualismo, pautados nas sociedades capitalistas. Neste lugar, ela luta pelo que
acredita e também encontra felicidade nos relacionamentos. E, nesse sentido, ela
coincide com Sílvia, para quem o CEFURIA destaca-se pelas relações que ela
aprecia.
O CEFURIA tem assim uma coisa importante na minha vida, porque o
CEFURIA tem uma característica que é diferente, por exemplo, do
sindicato, do partido ou de todos os lugares onde eu trabalhei. Eles também
que eram trabalhos ligados a questões sociais no CEFURIA o nível de
disputa é diferente, não vou dizer que não tenha problemas porque isso
seria dizer que aqui é um grupo de anjos e não é, mas assim não tem essas
disputas acirradas de grupos, como tem no sindicato e no partido. Você
consegue construir mais unidade na diversidade, eu acho que tem uma
característica mais de serviço; então, isso para mim é o que precisa ser o
Movimento Social. Então, nesse quesito, eu tenho aprendido muito também
nessa convivência interna, o trabalho que a gente faz no CEFURIA é um
trabalho coletivo, embora a gente tenha tarefas específicas, mas é sempre
um trabalho coletivo que se complementa. A gente não tem essa coisa
negativa, é um ambiente de trabalho muito bom, que tem coisas em que até
a gente consegue até fazer uma crítica mais fraterna, coisa que eu não achei
em outros espaços. Então, nesse sentido, eu acho, que eu tenho como ser
humano, aprendido muito, tenho maior oportunidade de crescimento;
nesse sentido, esse é o impacto que pode trazer (Sílvia)
.
A valorização dada ao espaço social, compartilhado por estas pessoas, é
perpassada por uma valorização de si, uma vez que, nele as pessoas se reconhecem,
mesmo diferenciando-se uns dos outros. Os relacionamentos estabelecidos se
181
fundamentam numa forma de convivência de comunidade, que se define por valores
compartilhados. Um tipo de comunidade que, segundo Heller...
“Surgen de las necesidades de la actividad política y/o del desarrollo
de la individualidad, de la intención consciente y de la voluntad que el
particular, a través de la integración dada, tenga de una relación consciente
con la genericidad” (Heller, 1991, p. 77).
Segundo esta autora não se trata de organizações formais, mas, a diferença da
organização em grupo – na qual o que interessa são os aspectos ligados aos objetivos
e aos interesses do grupo –. Trata-se de uma configuração social na qual os valores
reconhecidos coletivamente extravasam o espaço social compartilhado e se realiza
também em todos os aspectos da vida das pessoas. Nesse sentido, constitui-se numa
ética, uma forma de se situar no mundo e que se revela em todos os relacionamentos
estabelecidos. Estas coletividades também se definem por serem produto de livre
eleição de participação, constituídas por pessoas que se reúnem fundamentalmente
por terem em comum certos valores.
Gabriela encontra-se nesses valores e encontra-se no CEFURIA, como nos
relata nas seguintes palavras.
Bom, eu tenho uma paixão pelo CEFURIA, desde o momento que eu o
conheci; eu gosto muito, tanto que quando me chamaram para trabalhar
aqui, para mim foi um ..., pra mim foi muito importante. Uma organização
que eu respeito muito, admiro, tenho orgulho de fazer parte da equipe, eu
acho que são poucas as organizações que atuam como o CEFURIA atua,
nossa!..., eu tenho toda a inspiração da forma como os trabalhos são
conduzidos, da forma democrática como tudo é encaminhado e as decisões
são tomadas, o trabalho que é feito, um trabalho assim que visa à
transformação mesmo, mudança social (Gabriela)
.
Tal como em Lílian, nas expressões de Gabriela o que se revela é uma
identificação com a entidade, um reconhecimento daquilo que ela valoriza e que a
promove a vínculos afetivos. Gabriela conheceu o CEFURIA, quando cursava a
Faculdade de Serviço Social. Em sua narrativa, conta que o curso lhe possibilitou o
desenvolvimento de um pensamento crítico, mudando-lhe completamente a vida. O
encontro com o CEFURIA promoveu a consolidação desse mundo novo que lhe
estava surgindo e que se tornava para ela muito importante, porque lhe mostrava
182
uma outra forma de vida, fundamentada no amor pelo outro, em valores sociais e
comunitários.
Sente uma grande emoção, quando fala da entidade, que a marcou em sua
vida. Conta que, cada vez mais, foi-se comprometendo com as lutas populares até
chegar a ser totalmente absorvida pelo seu trabalho. Mediada pelos “outros” que lhe
possibilitaram o contato com um contexto de luta contra a exclusão, Gabriela
consegue perceber o mundo de outra forma e transcender a visão que antes tinha
dele.
Quando Ângela se refere à entidade, remete-se à sua história e traz a
instituição em seus aspectos constitutivos pelas atividades realizadas nesse contexto
social.
O CEFURIA esteve em todos os momentos de minha vida, desde que eu
comecei a participar dos cursos de formação. Eu aprendi a fazer
diagramação dentro do CEFURIA, aprendi a fazer boletins, aprendi a fazer
educação popular e trabalho de base, aprendi a fazer enfim, tudo que eu sei
hoje, dentro de tudo politicamente, eu fiz dentro do CEFURIA ... tudo que
eu fiz, tudo, foi a partir do CEFURIA (Ângela).
Para Ângela, o CEFURIA adquire sentido pelo movimento da objetivação –
subjetivação, gerado no âmbito das atividades necessárias para a consecução dos
objetivos da ação política. Ao mesmo tempo em que ela se reconhece na objetivação
do trabalho realizado, ela revela a dimensão subjetiva desse processo, quando se
reconhece nele. Assim, ela introduz, numa dimensão da ação política que
comumente permanece em segundo plano, as atividades como constitutivas do
sujeito: elaborar folders, desenhar, fazer diagramas, preparar o material, fazer
planejamento são produtos sociais que, no contexto de um projeto, se direciona para
certos fins. Um processo mediado por relações entre as pessoas que, nesse contato,
consolidam vínculos e fortalece seus projetos. E é dessa dimensão que Ângela fala,
neste outro momento.
O CEFURIA teve um papel fundamental em minha formação política (...)
foi um espaço importantíssimo de construção de projeto de sociedade (...)
Os princípios e idéias que sempre nortearam as pessoas que fazem e que
fizeram parte desse espaço, permitem que haja um crescimento efetivo
daqueles que abraçam a luta por uma sociedade mais humana, como foi
meu caso (Ângela).
183
Ângela reconhece no CEFURIA um espaço fundamental para seu
desenvolvimento, expressando nesse processo o singular a partir o contexto social.
Fala de princípios e idéias compartilhadas, ou seja, remete-se ao sujeito da ética, um
sujeito que se afeta pelos outros e que assume a transformação da sociedade como
uma necessidade pessoal.
Sawaia (1998), a partir dos postulados de Espinoza, aponta que a ética...
“... está nas afecções do sujeito das idéias que as acompanham, adequadas ou
não. Ela está no homem e na relação, no poder de afetar outros e de ser
afetado, no esforço de se conservar, que é o único fundamento da virtude”
(Sawaia, 1998, p.129).
.
Pámela refere-se ao CEFURIA, nos seguintes termos.
Olha, o CEFURIA é como um (pausa), como eu poderia explicar (pausa),
ele é assim, fundamental nas lutas sociais para Curitiba e região. É uma
referência, nos seus 20 e tantos anos nunca fugiu ao seu objetivo, que é a
formação, a articulação, o acompanhamento dos grupos, do trabalho de
base, embora, por um tempo, tenha se dedicado muito mais à formação do
que hoje, mas nunca fugiu ao seu objetivo central, é uma referência, e é um
lugar, um espaço de crescimento (Pámela).
Ao afirmar que o CEFURIA é um referente, Pámela situa o CEFURIA no que
significa no contexto social e histórico da sociedade na qual está inserido, o CEFURIA
como expressão histórica das lutas sociais em Curitiba. Mas também se refere às
repercussões que a entidade teve nela.
Na minha formação tem contribuído muito, inclusive por me provocar,
fazer buscar sempre o meu conhecimento, e também perceber as pessoas.
Embora eu nunca tenha me afastado disso, porque meu trabalho sempre foi
esse, sempre estive em meu bairro, minha vila, principalmente ligada à
Igreja, e também tem contribuído também no sentido de perceber e de
ajudar as pessoas a se perceberem na história (Pámela).
Pámela remete-se às contribuições do CEFURIA para seu crescimento pessoal,
reconhece o crescimento e o incentivo para a opção por caminhos. Neste
reconhecimento, ela o aponta como um lugar que promove os afetos em relação ao
outro, na ampliação dos sentidos pelo encontro, pela ação, pela reflexão e pela
184
alteridade. No entanto, ela se situa num contexto mais amplo e comenta que, em seu
processo pessoal, ela já tinha outros interlocutores, inseridos no contexto da
comunidade e da Igreja. E é nessa trama de relações que Pámela se constitui como ser
humano, fazendo a opção pela luta popular.
Helena, ao refletir sobre o CEFURIA, situa-se no contexto do movimento
social e fala de si mesma.
...se você for pensar que tipo de pessoa eu seria, se não fosse uma militante
do movimento social... A gente pode até imaginar algumas coisas, talvez
tivesse uma vida mais tranqüila, talvez tivesse conhecido, sei lá, outras
pessoas, outras necessidades, com outros interesses... não sei como seria!
Agora eu sei, do ponto de vista da participação de uma militante, eu acho
que eu melhorei muito, enquanto pessoa humana. O movimento lhe dá isso
de refletir, discutir a questão da solidariedade, discutir o socialismo, né?
Você tem, na prática, você tem que mudar, você não busca as coisas mais
no individual, você tem que atuar no coletivo. E atuar no coletivo exige,
porque é andar na contramão do sistema. (...) Para você chegar até aqui,
você teve toda uma caminhada, para você ir daqui para frente, tem outra
caminhada e, às vezes, a gente não tem essa compreensão, como um
cidadão comum que é. (...) Então, acho que o movimento social fez que eu
percebesse essas coisas; também dá uma alegria muito grande! (Helena).
Helena reconhece a experiência e as relações sociais, estabelecidas nesse
contexto, como fundamentais para sua constituição como sujeito e, nesse sentido,
valoriza suas relações pelas possibilidades de desenvolvimento que lhe propiciam.
Os afetos são fundamentais. Eles sustentam ideais e ações na vida concreta,
construindo vínculos, formas de viver talvez mais difíceis, mas com espaços de
gratificações, lugares de bons encontros e felicidade. Para ela, sua participação como
militante a tornou uma pessoa melhor, possibilitando caminhos e encontros que se
fizeram trampolins para um tipo de existência dignamente mais humana, amparada
em relações de reciprocidade e solidariedade.
Estas pessoas fizeram a opção por uma vida sensata, que segundo Heller
(1991), é o “para nós” da vida cotidiana, em um mundo aberto, caracterizado por um
desenvolvimento infinito no qual não faltam os conflitos, mas que podem ser
superados porque os limites dessas vidas só é dado pela morte.
Como postula Heller, com relação ao indivíduo da vida sensata (1991):
185
“Este individuo no encierra su personalidad en límites de ningún
tipo, se mide a sí mismo con el metro del universo, en el interior de los
límites determinados elige por sí mismo sus valores, su mundo, el universo
que asume como metro (Heller, 1991, p. 416).
Nessa opção de vida, o indivíduo está constantemente confrontando o novo,
voltando a plasmar sua vida e sua identidade, conservando, ao mesmo tempo, a
hierarquia que elegeu para sua vida. Nesta postura, ele reconquista continuamente o
“para nós” de sua vida cotidiana, tornando-a plena, porém não isenta de
contradições, sem deixar de perseguir um rumo cada vez mais voltado para uma
perspectiva humano-genérica (Heller, 1991).
186
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Toda persona que haya alcanzado el nivel necesario para extraer sus decisiones
directamente de la genericidad, es decir, que esté en condiciones de tomar decisiones políticas
y que tenga una influencia tal que le permita llevar a la práctica una determinada decisión,
desarrolla una actividad política dirigente, aunque en el movimiento sea un simple militante
(Heller, 1991, p. 175).
Chega ao final este trabalho, percorridos distintos momentos da vida das
pessoas entrevistadas para este estudo, escolhidas porque compartilhavam um
espaço social e político, o CEFURIA; sujeitos constituídos a partir das condições
sociais e políticas em que estão imersos e que não poderiam existir “como eles são”,
descolados desse contexto. Trata-se de sujeitos que escolheram estar ali, que
confluíram em esse espaço, a partir de distintos lugares e de distintas realidades.
Estes sujeitos foram se reunindo, construindo um espaço, baseados em interesses
compartilhados, motivados para superar o sofrimento e as carências do ser humano.
Assim sendo, o ponto de partida que os reúne é sempre um ponto de intermédio das
relações que os configuram na mediação de suas atividades políticas.
Na indagação da vida dos entrevistados, encontram-se processos históricos,
experiências, relacionamentos que se mostravam densamente concatenados, tecendo
uma complexa rede de conexões simbólicas e materiais em que eles atuam e
elaboram seus pensamentos e seus afetos, construindo suas singularidades. Assim,
Ângela e Júlio se vinculam a um compromisso social, ainda quando meninos; Helena
e Pámela, em sua mocidade; Sílvia quando inicia sua vida adulta; Gabriela, em sua
vida madura, e Lílian, depois de aposentada.
Não é o tempo cronológico que significa as relações, caminhos e projetos, mas o
tempo histórico constituído pelas experiências vividas. As experiências promovem
conexões e, como diz Vygotski (1999c), produzem alterações nas conexões e na
infinita diversidade, de modo que promovem novas sínteses, novas funções cruciais.
Paulatinamente foi se descobrindo, neste estudo um fio condutor que crescia e
se complexificava. A sensibilização com o ser humano se expressa nos sujeitos
18
7
entrevistados a partir das múltiplas relações que foram se revelando em duas
vertentes. Uma que promove expectativas e desperta desejos, mas também diminui,
cristaliza e provoca rompimentos, construindo-se na relação difícil com o partido, a
institucionalização e o Estado. Outra que potencializa e promove transformações,
provoca contraposições e elaboração de estratégias; que avança pelos caminhos por
eles escolhidos, mesmo que por diferentes trilhas, decorrente das
multiprocessualidades que aparecem na necessidade da aproximação às bases;
questão que eles realizam na tensão do micro e do macro, do singular e do coletivo;
do trabalho de base ou de articulação.
Duas tensões que atravessam o processo da vida destas pessoas e que se
ampliam em suas incidências e suas repercussões. A relação com o partido é a
relação com o estabelecido, com o que já foi convencionado na política formal e que
se revela pela tensão do poder político. A relação com as bases é o futuro, o que deve
ser construído, e que se revela possível na política da comunidade, na construção de
coletivos e espaços sociais. Formas de se relacionar na política que constituem
sujeitos: a política do poder institucionalizado e a política da comunidade.
A organização em comunidade como promotora de espaços coletivos e
políticos é claramente definida nas reflexões de Ângela, quando relata as
transformações acontecidas nos bairros e que repercutiram na participação política.
A mesma temática volta a aparecer, quando os entrevistados manifestam sua
gratificação por participar do CEFURIA, como espaço de comunidade, grato de viver
e conviver, porque construído baseado em valores compartilhados que se expandem
a todos os espaços da vida (Heller, 1991).
As pessoas escolheram caminhos difíceis, nos quais a vida deve ser encarada
como luta na contraposição do que se impõe como tendência política econômica e
social, no entanto, elas vivem a gratificação de um espaço compartilhado e
comunitário, o CEFURIA, que reconhecem como lugar de encontros e alegrias.
Nesse espaço de compartilhamento, configuram-se os sujeitos que, em suas
singularidades, se reúnem e se distanciam, sempre em constante movimento, onde o
sólido é o simbólico, construído dialeticamente na história singular e coletiva e no
188
espaço comunitário, gerando novas conexões, ampliando e enriquecendo suas
experiências.
Nesse sentido, encontram-se confluências que se geram na distinção dos
tempos vividos. Os sujeitos que vivenciaram as lutas populares dos anos 80 e delas
participaram diferenciam-se dos que ingressaram na vida de militância nos anos 90.
Os primeiros, representados por Júlio, Ângela, Sílvia e Helena, apreciam com maior
veemência a “articulação”, e sua relação com o partido é mais complicada; os
segundos, nas pessoas de Lílian, Gabriela e Pámela, não desconhecem a importância
da articulação, mas não se envolvem diretamente, privilegiando o “trabalho de
base”; para estes, a relação com o partido, atualmente governo federal, é mais
tranqüila.
Nas tendências existentes, os velhos no tempo histórico se postulam mais
analíticos, elaboram suas argumentações, fazendo relações mais amplas e complexas,
revelando historicamente a riqueza de suas experiências, estabelecendo projetos
políticos, não necessariamente partidários. Os novos no tempo histórico são mais
impulsionados pelo afetivo, nas afecções que lhes provocam as condições do
sofrimento humano; procuram resolver os problemas do presente, acompanhando e
construindo uma recuperação da humanidade nas pessoas maltratadas pelo
sofrimento ético-político.
Nessa trama de tendências, as relações se tornam complexas e se misturam os
projetos, resultantes da riqueza e pluralidade de formas de intervir e pensar a práxis
política da volta às bases. É o caso da proposta de Sílvia, que postula a Economia
Solidária como uma nova ordem econômica-política; de Júlio que trabalha na
construção das Assembléias Populares, como um espaço para as bases se articularem;
ou ainda de Lílian, que vê, em vínculos com o governo, espaços de construção
popular.
O que é claramente definido e em que no não há dúvida nenhuma é a vontade
destas pessoas de lutarem contra condições humanas de sofrimento, fator
preponderante na trama afetivo-volitiva que perpassa toda a processualidade política
destes sujeitos. Esta vontade se revela em projeto de vida, que perdura, apesar dos
momentos difíceis e das tensões que atravessam suas práticas. Assim, a
189
processualidade destas pessoas é intensamente demarcada pela afeição às bases e é
nesse elo que fixam suas batalhas, se submergem nas crises e saem delas.
No entremeado da aproximação e afastamento das bases, o CEFURIA renasce
das bases e daí se organiza, promovendo a articulação; foi assim, quando da crise no
período da Constituinte (1988), quando, num momento de grande efervescência
política, paradoxalmente, se produz uma forte institucionalização dos movimentos e
estes, no entanto, perdem autonomia; foi assim quando, pelo afastamento das bases,
no período de 1993, a equipe interna se demite; sai da crise quando seus militantes
voltam para as bases, inserindo-se na Campanha contra a Fome e a Miséria,
coordenado pelo sociólogo Betinho; a crise volta pelas condições político-econômicas
que provocam o distanciamento das bases e se dilui pela Consulta Popular, em 1997,
como uma proposta do povo, que recupera sua história; o CEFURIA submerge-se de
novo na crise, ao perder o vínculo das bases pelo ativismo e pelo intelectualismo, e
renasce na Campanha contra a ALCA (2001), numa aproximação às bases que se
perde, logo depois do plebiscito contra a ALCA pela “crise do Lula”; volta-se às
bases pela Economia Solidária (2003) e constroem-se espaços de articulação pelas
Assembléias Populares.
Nessa caminhada, os militantes são ativos participantes, que se inserem nas
atividades, pelos seus motivos e interesses, comprometendo-se afetiva e
intelectualmente, constituindo-se no singular de suas multiprocessualidades: o Padre
Otávio recupera as origens da entidade, revelando os fios históricos de seu
comprometimento emocional, que não era só dele, mas que retrata uma realidade
coletiva que estava emergindo, naquela época. Ângela traz para seu relato os
sentidos que atribui à Constituinte como momento de revelação, nos caminhos sub-
reptícios que assumem os movimentos. Os momentos difíceis adquiriram sentido
como momentos de estagnação, pelas falas de Ângela, Sílvia, e Júlio, que, a partir de
seus processos singulares, focalizam diferentes aspectos. Ângela destaca a perda dos
espaços comunitários, Sílvia se insurge contra o crime organizado nos espaços
populares e Júlio fala das repercussões das transformações nos significados do
desemprego. Seus posicionamentos, apontados em distintos sentidos, confluem para
190
um mesmo fenômeno: o esvaziamento dos espaços populares de ação política que se
revela, para estas pessoas, como “momentos difíceis”.
Foram Júlio, Sílvia e Ângela que, engajados e motivados, aderiram ao projeto
da Consulta Popular, como um momento de criação que busca voltar às bases,
reativar a ação política e a formação. Contudo, a apropriação é singular, e, desta
forma, a Consulta adquire para Júlio sentido na confrontação com o poder
estabelecido; para Sílvia a Consulta realiza-se pela formação nas bases. Essas
apropriações não deixam de estar vinculadas com os processos que predominam na
história destas pessoas, em Júlio, fortemente a partir da articulação e em Sílvia, nas
atividades de formação.
No decurso do processo, o que emerge é a campanha contra a ALCA,
momento que revela, em sua dinâmica, o fio condutor que incentiva a trama afetivo-
volitiva destas pessoas: a aproximação às bases, a incansável promoção da
participação. Júlio afirma que o objetivo em si não era o plebiscito, mas chegar às
pessoas, à comunidade, à escola. Assim, a campanha contra a ALCA, que emerge no
realce dos movimentos antiglobalização, é apropriada por estas pessoas como uma
aproximação às bases, revelando-se como um movimento local, articulando-se aos
modos de vida.
Júlio ainda revela que, a campanha contra a ALCA foi uma aula da realidade;
as pessoas conseguiram fazer os vínculos, estabelecer conexões entre as decisões em
nível global e suas repercussões na vida cotidiana. No mesmo sentido, para Ângela,
esta foi a junção da teoria com a realidade, uma oportunidade para compreender
conceitos abstratos que se revelavam na realidade, como a própria noção de
imperialismo. Ângela e Helena sentem intensamente a empolgação do momento, no
entanto, é Ângela que faz a crítica, aduzindo que a mobilização do povo não é
promovida por uma consciência política, mas por um sentimento de nacionalismo,
fundada num individualismo, naquilo que é “meu”.
A eleição de Lula repercute nestas pessoas através da crise com relação ao
partido. Os caminhos que o governo assume é de contradições e levanta
questionamentos. Júlio faz uma revisão de suas opções e sentencia que deveria ter
cuidado mais de sua relação com o movimento; Ângela é envolvida por uma tristeza
191
que compromete outras dimensões de sua vida; Helena se retira para estudar, quer
ter uma compreensão mais ampla dos acontecimentos que estava vivendo.
Pámela, Gabriela e Lílian, as militantes que se inseriram no CEFURIA nos anos
90, são as que se orientam por suas práticas para a Economia Solidária, elevando-se a
tensão do micro e do macro; entre as bases e a articulação. O que prevalece é a
aproximação às pessoas intensamente fragilizadas, assumindo como fator
preponderante o sofrimento ético-político.
A análise desta realidade relatada nos remete à emoção como positividade
política, como afirma Sawaia (2000b), a partir de Espinoza, deslocando a política para
o campo da ética, transferindo as emoções do campo dos instintos para o do
conhecimento, sem negar-lhe o caráter de afecção corporal.
Vygotski (1999c) recorre a Espinoza quando postula que a alma pode
conseguir que todas as manifestações, todos os estados, se voltem para um mesmo
fim. Ressoam as palavras de Vygotski que diz:.
“Quando nos achamos em presença de individualidades humanas que
revelam o grau máximo de perfeição ética e a mais maravilhosa vida espiritual,
encontramo-nos diante de um sistema no qual o todo mantém relação com a
unidade” (Vygotski, 1999c, p.134).
O que em nossa interpretação se traduz num sujeito em sintonia com sua
genericidade, como sendo esse o caminho de seu desenvolvimento como humano.
Nesse mesmo sentido, Heller (1991) aponta que a relação consciente com os
valores genéricos constitui-se no sujeito pela mediação com uma concepção de
mundo na qual os valores genéricos se transformam no motor de suas ações.
“De este modo – mirando a la totalidad de la vida y no a cada
momento suyo particular separadamente – es reconstruida la unidad de la
motivación y del objeto de la acción. Sabemos que en el hombre la acción (en
las objetivaciones en-si) surge precisamente porque el objeto y la motivación
de la acción se separan el uno de la otra. Ahora están reunidos de nuevo,
pero ya no espontaneamente, sino mas bien a través de la consciencia, no
para poder satisfacer las necesidades fundamentales de la vida, sino como
satisfacción de la necesidade de una vida humana” (Heller, 1991, p. 410-
411).
192
Podemos dizer que, em contraposição à tendência do mundo atual, pela
perda de valores comunitários, pautados pelo individualismo, existem setores da
sociedade que recriam seus sentidos de vida, mediados pelas relações com os outros,
a partir de uma perspectiva que considera valores éticos do ser humano. Nessa
relação, são fundamentais os valores que, enquanto necessidades, ativam a vontade
vivida por cada um de se voltar para a ação política.
Nesta caminhada, foi possível perceber que o CEFURIA não se restringe
somente às pessoas que pertencem à entidade. O raio de sua amplitude é dado, além
das entidades com as quais se articula, pela interação com a sociedade como um
todo, pelas pessoas que fluem pelos seus recintos, tanto adquirindo informação,
como construindo a mobilização popular. O que se sentia nas observações que pude
experienciar era que aqueles que circulavam, embora não fossem do quadro estável
de trabalho, também o integravam e contavam com a entidade para o cumprimento
de propósitos afins.
Igualmente, foi possível definir que o CEFURIA não é só uma entidade que se
limita a dar formação aos movimentos populares; é um articulador dos movimentos
de ação coletiva e, nesse sentido, tem sido um espaço inovador que está sempre à
procura de novos caminhos, recriando-se na reflexão e na ação, configurando-se em
Curitiba como o elo dos movimentos sociais, realizando-se na participação em rede.
Ali se encontram pessoas que provêm das CEBs, pastorais, de distintos sindicatos,
das comunidades, de diversos movimentos sociais, populares, partidos políticos,
setores estudantis e setores rurais.
Em certos períodos, o CEFURIA mostrou-se mais articulador de mobilizações,
em outros, liderou grandes campanhas. Em alguns momentos, foi mais explosivo e
fulgurante e, em outros, mais repousado e reflexivo. Seus quadros reconhecem a
necessidade de uma formação mais acadêmica, porém, há uma necessidade de
aproximação com relação às suas bases; alguns setores cobram uma posição mais de
vanguarda, outros uma prática mais mesurada. No entanto, acima das formas de
ação, dos procedimentos, das técnicas, das estratégias e dos recursos, o CEFURIA são
sujeitos em movimento, que se definem pela vontade da participação.
193
O CEFURIA enquanto entidade física e simbólica se revela como mediador do
processo constitutivo dos sujeitos entrevistados, atravessando a singularidade de
cada um deles, inscrevendo-se em seus processos de subjetivação. Subjetivar e
objetivar se revelam como duas dimensões dos sujeitos, sendo objetividade enquanto
realidade física e ação e subjetividade enquanto possibilidade de transcender o já
objetivado (Maheirie, 2003).
Os interesses e motivações do Padre Otávio se projetam na construção desse
espaço social e político, que se realiza na fundação do CEFURIA, como a objetivação
de sua subjetividade enquanto a concretização material de seus desejos, como um
espaço que acolhe aos sujeitos dos setores populares.
Ângela afirma que, politicamente tudo que sabe e tudo que fez passou ou
passa pelo CEFURIA. O movimento da objetivação de sua subjetividade se realiza
pela suas atividades, pelas suas ações, e também pelos seus processos reflexivos que
se transformam em alguma forma de linguagem. Ela se apropriou de uma visão de
mundo e uma forma de se relacionar , que se inscreve no encadeamento do que é o
CEFURIA e dos caminhos que este adota. No entremeado de suas atividades e ações
Ângela elaborou folders, fez desenhos e diagramação; além disso formou parte do
Movimento da Constituinte, participou da Consulta Popular, liderou a Campanha
contra a ALCA e hoje organiza o Centro de Documentação e Biblioteca da entidade.
Para Júlio o processo foi diferente, nem por isso, menos relevante. O mesmo
participou do CEFURIA na representação dos Movimentos de Bairro e liderando o
Movimento contra o Desemprego nos anos 80. Sua participação contribuiu com a
existência do CEFURIA, encaminhando a entidade para a articulação e formação de
quadros políticos.
Sílvia conhece o CEFURIA nos anos 80, sua trajetória política foi se inclinando
para a formação, uma relação objetivada nos cursos que são ofertados pela
instituição, construindo o elo entre ela e a entidade nessa configuração. Os sonhos, os
projetos, os desejos de mudança que compartilha com os outros do CEFURIA, são
objetivados nas atividades planejadas e efetuadas, dando um rumo à entidade.
Lílian realiza-se como sujeito no CEFURIA, pela participação na Economia
Solidária. O CEFURIA foi a concretização de seus desejos, em relação ao espaço no
194
qual ela queria atuar. Sua inserção, como sujeito ativo e participante, busca
encaminhar o CEFURIA para experiências de geração de renda, formação e
compartilhamento.
Pámela reconhece no CEFURIA um lugar de referência e crescimento pessoal,
assume a liderança do CEFURIA e sua coordenação, objetivando-se e subjetivando-se
nesse processo constitutivo.
Helena fez uma intensa caminhada pelo CEFURIA, confluindo pela
articulação. Sendo ela uma articuladora histórica, recria esse espaço na construção de
significados que fortalecem caminhos de ação coletiva, marcando uma época na
história dessa entidade. Helena foi coordenadora de formação, retirou-se para outros
espaços e foi estudar, a projeção dela permanece no CEFURIA, como parte de sua
constituição e de sua história. Gabriela fez a opção pelo CEFURIA como lugar de
trabalho e realizações; entrelaçando seus projetos pessoais e sua profissão da área
social com a própria entidade, que tem como grande inspiração a superação das
desigualdades.
A caminhada destas pessoas, mediada pelo CEFURIA, é trilhada pela ação
coletiva e política, onde a objetivação seria um desabrochamento, algo que lhes
permite contemplar-se num contexto específico, no qual eles se constituem como
co-criadores.
A elaboração desta Tese nos levou à apropriação de uma dimensão da
realidade, revelada, fundamentalmente, pelos sentidos dos entrevistados. Tais
sentidos são mediados pelas significações que impregnam os sujeitos e seu contexto e
que nos impregna a nós mesmos na compreensão dos outros, como sendo um
momento de nossa própria práxis (Sartre, 1984).
Iniciamos esta Tese com o interesse e a motivação de alcançar
compreensibilidade de aspectos psicossociais que mediatizam a participação em
ações coletivas. O processo da pesquisa nos levou a escolher um espaço social e
político que, nesse momento, pelos seus militantes, estava inserido no Movimento
contra a ALCA. Nossas expectativas estavam cifradas em encontrar elementos
psicossociais desses participantes, articulados à complexidade do mundo
contemporâneo, pelos avanços da informática e as comunicações.
195
No entanto, os militantes que constituíam esta pesquisa foram nos
surpreendendo, ao se deslocar, da participação no Movimento contra a ALCA, para
práticas de trabalhos de formação e acompanhamento de experiências de Economia
Solidária em setores populares, extremamente fragilizados e afetados por intenso
sofrimento ético-político.
Nesse contexto, a perspectiva teórica sustentada numa concepção histórico-
social do sujeito, aportava subsídios para estudar a processualidade política dos
sujeitos engajados em ações coletivas, a partir dos sentidos que estes atribuem a suas
práticas.
Assim, estes sujeitos da pesquisa nos levaram a espaços locais, dimensões da
vida cotidiana, subjetividades constituídas nas afeiçoes ao ser humano que sofre.
Encontramos sujeitos que, nas condições do mundo contemporâneo - em suas
amplitudes e restrições - significam o mundo e as relações sociais nele instauradas,
pelas repercussões de desigualdades e injustiças constituídas historicamente,
revelando “o invisível”: sujeitos imersos no mundo globalizado pela luta política de
condições básicas de vida dos setores populares. Sujeitos engajados com o ser
humano num processo de desenvolvimento humano-genérico que os leva a voltar
suas potencialidades e possibilidades para uma finalidade: a superação de condições
de sofrimento.
Garimpar os sentidos que as pessoas dão a suas práticas de ação coletiva, nos
levou à compreensibilidade de sujeitos apontados por Melucci (1994, p. 160), como
cheios de paixão, que não podem explicar-se reduzidos a um racionalismo
instrumental. Afinal, aduz o autor, se não houvesse paixão, por que alguém se
importaria em transformar?
Assim, os caminhos percorridos por esta pesquisa, afirmam os horizontes
perseguidos pela teoria sócio-histórica, enquanto abre possibilidades de
compreensão da realidade de sujeitos engajados em espaços de ação coletiva.
Sujeitos inseridos em espaços que vão para frente, como postula Melucci,
espaços que ...
“...indicam uma transformação profunda na lógica e nos processos que
guiam as sociedades complexas. Como os profetas falam à frente, anunciam
196
aquilo que está se formando sem que ainda disso esteja clara a direção e
lúcida a consciência” (Melucci, 2001, p.21).
Nesse sentido esta pesquisa aponta à necessidade de estudos de ações coletivas, na
dimensão sócio-histórica de sujeitos concretos, na direção de capturar processos de
subjetivação que apontem novos caminhos, outras direções, tal como postula Melucci
(2001), anunciando as mudanças possíveis, não para um futuro distante, mas para o
presente de nossas vidas. Obrigando o poder a tornar-se visível, dando-lhe forma e
rosto, nossos sujeitos falam uma língua que parece unicamente deles, mas que dizem
alguma coisa que os transcende e, desse modo, falam para todos e por todos nós.
19
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autor deve ser procurado em suas obras também pelas acepções Vygotsky, Vigotsky, Vigotski.
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206
ANEXOS
20
7
Entrevistada Sílvia
Vou pedir que, primeiramente, você me fale sobre sua vida.
Eu sou casada, tenho dois filhos, um adolescente de 15 anos e um jovem de 19
anos. Trabalho e tenho vínculo empregatício mesmo aqui, no CEFURIA. Sou
assalariada pelo CEFURIA e isso já faz 6 anos. Tive uma interrupção para fazer o
mestrado e, enfim, a nível de graduação, eu fiz Ciências Sociais. Depois fiz uma
especialização na área de Organização do Trabalho Pedagógico, na Federal, e fiz
mestrado em Educação do Trabalho.
Onde você trabalhou anteriormente?
Olha, eu comecei o meu trabalho depois que eu terminei a primeira faculdade,
em Florianópolis. O curso que eu fiz foi Tecnologia de Alimentos, foi Farmácia na
Tecnologia da Produção de Alimentos e o meu trabalho primeiro foi na indústria
Todeschini. Aqui em Curitiba, eu vim fazer estágio, mas fiquei trabalhando lá, porém
não me identifiquei com o curso e nem com o trabalho em si. Eu queria fazer algo
diferente, daí eu pedi demissão. Depois apareceu um Concurso Público para
trabalhar na EMATER com ascensão Rural, com os camponeses, pequenos
agricultores. Eu trabalhei quatro anos e meio em dois Municípios, aqui da Região
Metropolitana, e, a partir daí, eu decidi fazer Ciências Sociais.
Naquela época, você tinha alguma filiação política?
Não tinha nenhuma filiação política, nenhum partido, nenhum movimento; eu
tinha um incômodo. Vamos dizer assim, de enxergar a sociedade, mas eu não
conseguia compreender as causas nem o funcionamento. Eu tinha um incômodo
nessas coisas de pobres e ricos; era uma coisa que me incomodava muito, mas eu não
conseguia ter clareza, enxergar. O trabalho da EMATER me ensinou a enxergar essas
diferenças. A diferença entre campo e cidade, e eu me indignava muito, porque eu
via a miséria com que viviam os pequenos agricultores, achava que isso tinha a ver
conosco também que morávamos no meio urbano. Depois que eu comecei a
compreender que a questão não é entre o campo e a cidade, mas é entre os ricos, os
que têm os meios de produção e os que não têm nada, enfim... Mas daí comecei a
fazer contato com a comissão da Pastoral da Terra, daí eu cheguei ao primeiro
Congresso do MST. Eu estive lá, vi acontecer e vi inclusive o CEFURIA lá. Eu já
conhecia o CEFURIA, porque, morando na Região Metropolitana, então em Pinhais,
na Vila Maria Antonieta, eu participava do Movimento de Bairro. Isso a partir de
83/84; foi nessa época que eu conheci o CEFURIA, porque o CEFURIA estava, na
época, envolvido com o Movimento de Bairro. O MAB tinha sua sede no CEFURIA,
que era o Movimento de Associações de Bairro de Curitiba e Região Metropolitana;
então, assim, as coisas foram se encontrando. A partir das questões discutidas ali no
MST, eu via o meu local de moradia. Cheguei ao Movimento de Bairro, ao CEFURIA
e ao local de trabalho também, e já de cara eu comecei a perceber essas questões das
208
diferenças. Diferenças salariais das mulheres e dos homens, com o mesmo nível de
escolaridade; que o trabalho social era menos considerado do ponto de vista do que
trabalho técnico da produção que os agrônomos e veterinários faziam. Comecei,
dentro da EMATER, a puxar uma reflexão com as Ciências Sociais. No final de 82,
com a eleição aqui do PMDB que era oposição, eu comecei a cobrar um pouco dentro
da empresa, tentava fazer com que aquilo que estava escrito no papel, de fato fosse
colocado em prática, que era o compromisso com os pequenos, com os Sem Terra.
Discutia que o texto era muito teórico; então comecei a puxar um pouco essa
discussão internamente, fizemos só alguns encontros entre os Movimentos Sociais e,
por conta disso, eu fui convidada para integrar a chapa da primeira Associação
Sindical. Na época, por conta da ditadura, a gente não podia ter Sindicato dos
Servidores Públicos; então chamávamos de Associação dos Funcionários da Casa. Eu
compus uma chapa que era formada pelo pessoal que participava dos escritórios
locais e que a gente chamava de “pessoal de campo”, que concorreu com a chapa que
era formada pelo pessoal que trabalhava no escritório central, aqui de Curitiba. Nós
ganhamos e, por conta disso, nós fizemos um trabalho bem interessante. Assim, eu
rodei o Estado para conhecer os locais de trabalho, fizemos muitas Assembléias. As
coisas vieram meio juntas na verdade, foi uma descoberta de meios de passos, mas os
anos 80 para mim foram fundamentais, assim, no meu ponto de vista de consciência
política. Eu ainda vejo que, em 82, eu ainda votei no PMDB e já tinha PT, naquela
época, e eu ainda não tinha muita clareza. Então, tive um voto meio útil contra o
partido do governo, que era o partido da ditadura. Eu só fui me filiar ao Partido dos
Trabalhadores mesmo, em 85, quando fui morar na Maria Antonieta. Quando me
juntei com os grupos, o grupo de lá com o Jair que era meu marido, na época ele já
era militante do Partido dos Trabalhadores, na época e a gente começou a organizar
os núcleos de base e eu me filiei, porque para mim, me filiar a um partido político é
uma coisa muito séria. Então, até que eu tive certeza mesmo, já era 85. Acho que um
pouco é isso, o primeiro momento histórico da minha vida.
No início, como foi a sua relação com o CEFURIA? Quem conhecia? Quem
trabalhava?
Primeiro eu conheci o CEFURIA em 84/85, por conta do Movimento de Base,
quando eu fui morar no Bairro Maria Antonieta, no final de 84, assim que eu me
casei. Inclusive, no curso de Ciências Sociais, a monografia de trabalho de conclusão
de curso, eu fiz sobre o MAB. Eu e o Jair escrevemos juntos, sobre o MAB, que era o
Movimento das Associações de Bairro de Curitiba e da Região Metropolitana, que
era onde a gente participava. Eu conheci o CEFURIA nesse período: então, pessoas
que trabalharam aqui, por exemplo, o Clemente que era uma pessoa muito
interessante e muito séria. Eu o conheci lá no Maria Antonieta, isso em 83, antes de
eu me casar. Então, assim, o primeiro contato no CEFURIA foi com Clemente, mas já
também por conta do Movimento de Bairro fui tendo contato com outras pessoas,
como a Regina. A Irmã Araújo eu não conheci ela morreu antes da fundação do
CEFURIA, naquele ano da fundação do CEFURIA. Conheci o Sílvio Miranda que
também é um dos fundadores, que estavam dentro do primeiro período do
CEFURIA. Essas foram as primeiras pessoas que eu conheci: Clemente, Gil, Regina,
209
Everlindo e Sílvio Miranda. Eu ainda participei um pouco do Movimento de Bairro,
até o final dos anos 80, não tanto mais na linha de frente, mas a gente participava da
Associação de Moradores, mas aí eu já estava trabalhando. A partir de 87, eu fui
convidada para trabalhar no Partido dos Trabalhadores, na Assembléia Legislativa,
na equipe de assessoria do primeiro deputado. Então, eu já viajava muito, eu já não
estava mais muito presente no Movimento de Bairro aqui. Assim, eu não tinha uma
relação muito próxima com o CEFURIA, a não ser pelo movimento e pelo próprio
partido, porque as pessoas do partido estavam muito envolvidas também. Eu voltei a
fazer contato com o CEFURIA quase dez anos depois, mais próximo quando
começamos a discutir a questão da Consulta Popular, aí eu já não estava mais no
Partido dos Trabalhadores. Em 96, fui trabalhar no sindicato dos professores, como
assessora sindical, e aí tive contato com as primeiras reuniões da Consulta Popular e
aí inclusive fui fazer um curso nacional, no instituto Cajamar, em São Paulo. Lá
encontrei a Helena, e a Dori, depois aqui, a Fernanda e começamos a militar juntas na
Consulta Popular. A Helena me pediu, em 98, dizendo que aqui eles estavam numa
discussão interna no CEFURIA, com mudanças de equipe, querendo dar uma outra
dinâmica na área de formação. A Helena me pediu para ajudar a fazer uma reflexão;
eu estava na APP e no Sindicato dos Professores em 98. Ela chamou também mais
duas pessoas do PT de São Paulo e eu e o ________________ com a equipe do
CEFURIA. Fizemos juntos uma reflexão que eu já tinha ajudado a preparar e
também um outro Seminário, onde o CEFURIA chamou várias organizações para
cada uma apresentar o seu programa de formação para, assim, estabelecer algumas
comparações e fazer algumas reflexões sobre o próprio trabalho que o CEFURIA
desenvolvia na época. Enfim, eles estavam procurando, e chegaram à conclusão de
que eles estavam precisando de um formador em tempo integral, e a pessoa que
estava nessa época aqui era o Rodolfo. Acho que ele já estava dando aula na Uni
Brasil, não sei, mas ele estava um período bem pequeno no CEFURIA, não tinha
disponibilidade e tinha outras prioridades na vida e tal. Eles estavam procurando e
eu, na APP, estava meio descontente, já no final de 98, por conta das brigas internas,
dos grupos nas disputas eleitorais e do sindicato. Aí coloquei meu nome à disposição
do CEFURIA, e a Helena disse: “ não vamos procurar mais ninguém”, porque eu
era a pessoa certa, naquele momento. Em 99, então, eu vim para cá; em janeiro de 99,
eu vim para o CEFURIA, onde eu fiquei, então em 99, 2000 e 2001 e saí em 2002.
Fiquei afastada até meados de 2003, por conta do mestrado. Eu voltei em junho de
2003; então, se somar tudo, deve dar uns seis anos, agora em setembro.
O que você fazia na APP?
Na APP, eu coordenava, assessorava, na verdade, a área de formação sindical.
A Maria Helena era a diretora dessa parte de formação sindical, e eu trabalhava junto
com ela. Eu ajudava na coordenação dos cursos da Produção de Materiais
Pedagógicos, para área de formação dos professores que eram sindicalizados. Nós
tínhamos, montamos um curso de formação de formadores, em várias etapas, assim
eram muito interessantes lá. E eu fiquei lá, então, em 96, 97 e 98, três anos, e, nesse
período, fizemos a primeira turma completa e, na segunda turma, não chegou a se
210
completar as cinco etapas do curso, exatamente por causa das brigas internas; daí
então, eu resolvi sair e achei que não valia a pena, enfim.
Como ficou o seu contrato em 99, quem a contratou no CEFURIA e como foi essa
experiência para você?
Eu estava muito animada, na hora que eu vim para o CEFURIA. Eu estava
muito animada porque a idéia era que eu viesse, para a gente tocar a Consulta
Popular. Quando eu vim para cá, o CEFURIA passou a sediar a Secretaria Operativa
da Consulta Popular. Então já de cara, eu montei a proposta de um curso em várias
etapas, que a gente chamava de cursinho de Multiplicadores de Projeto Popular do
Brasil que, na verdade, resgatava a história do Brasil. Nós chamávamos de “A
história que não foi contada”: Curso de Formação de Multiplicadores do Projeto
Popular do Brasil, e tentei organizar uma equipe, porque a minha concepção de
formação parte do pressuposto que a gente tem que trabalhar coletivamente, e, num
primeiro momento, eu tive um choque. Porque eu fui conversar com a Dori e com a
Helena, principalmente com a Helena, porque eram as pessoas mais próximas. Eu
queria que a gente pudesse discutir coletivamente a para oposta que tinha feito, e a
Helena disse! “a gente não tem tempo, você foi contratada para isso, você toca”.
Aquilo me assustou um pouco, assim; e aí comecei a pensar num primeiro momento:
Que puxa! isso não vai de encontro com as coisas que eu acredito e que eu falo.
Comecei a ir atrás de pessoas que tivessem um pouco mais de disponibilidade e
tempo, que faziam parte do Conselho do CEFURIA e que eram voluntárias, vamos
dizer assim, internamente. Foi quando a Fernanda, a Marina e a Cristina começaram
a participar das atividades; depois outras pessoas foram sendo chamadas para
assessorar cada uma das etapas do curso e foram se integrando num coletivo.
Antes, o que elas faziam? Participavam do conselho, como voluntárias?
É; participavam sim. Mas assim, porque na verdade havia um pouco para se
fazer, mas eu queria um grupo que ajudasse a pensar e discutisse sistematicamente,
não só para ir lá e organizar o espaço ou preparar as dinâmicas, mas que a gente
pudesse ter um grupo que estudasse o processo de formação e pudesse teorizar um
pouco a prática que já era conhecida . Essa sempre foi uma característica conflitante
dentro do CEFURIA; você que já começou a ler o livro ou depois que você terminar,
você vai perceber isso. Que essa questão da teoria com a prática sempre foi muito
conflitante, e eu acho que isso que dá um nó. Eu não vejo isso como uma coisa
negativa, eu vejo isso como uma coisa positiva, porque não deixa o CEFURIA
descambar nem para um lado nem para o outro. Também tem muito a ver com a
característica das pessoas que trabalham aqui: em alguns momentos, as pessoas são
muito ativistas, o CEFURIA é muito ativista. As pessoas gostam mais de teorizar; por
exemplo, o momento que eu vi um lance que teve aqui e que inclusive criou um
conflito muito grande, por conta disso. Eu, nesse período, queria fazer uma mediação
disso, porque eu já tinha sentido a necessidade que a gente precisava estudar. Eu
penso que o Movimento Social, como um todo, nos anos 90, começou a compreender
isso, porque, nos anos 80, a gente só queria ação, a gente tinha preconceito mesmo ao
211
estudo. E depois as pessoas começaram a estudar, os próprios militantes começaram
a estudar e isso a gente mesmo vê. A própria Helena que é, por excelência, uma
pessoa muito ativista, uma pessoa completamente dedicada, que dedicou a vida a
isso, teve um momento que foi estudar. Então, acho que isso é uma coisa boa, mas
depois é assim, é um momento que você está chegando, e é assim o CEFURIA, em
mudança. Naquele período, ele, (CEFURIA) tinha vindo aqui para a Galeria
Andrade, na outra sede, que hoje está alugada para o Centro. Mas, assim, o material
estava todo encaixotado. Os relatórios, as coisas estavam todas lá na Gráfica Popular,
então assim todo era absolutamente precário, e eu ficava desesperada, porque eu
achava que aquilo era a história Popular que estava se perdendo, e que a gente tinha
que mexer naquilo, enfim. As atividades da Consulta Popular, nesses primeiros anos
de CEFURIA me absorveram tanto que a gente não conseguiu fazer tudo o que a
gente queria fazer com os arquivos e todo material. Então comecei a ver a história
mais recente que tinha, que estava na sede do CEFURIA, para compreender a
dinâmica do CEFURIA, para que eu pudesse me inserir com mais segurança e tal, e
fui perguntando para as pessoas.
E naquele momento havia mais pessoas contratadas pelo CEFURIA?
Não, na verdade aquele momento no CEFURIA (era um momento que eles
estavam com poucas pessoas) porque tinha o processo do projeto e estavam
encerrando os recursos, estavam em período de fechamento em 1999/2000, que foi
um recurso maior, que permitiu contratar algumas pessoas. Então, estava a Helena, o
Denílson e o Adenival naquele período, e eu entrei para coordenar essa parte de
formação; daí, lógico que tinha a Carolina na recepção que ajudava o Denílson um
pouco na administração, mas o resto era trabalho voluntário. Não tinham, naquele
período, ainda tanto essas ações de acompanhamento de grupo de base, porque, na
verdade, foi um período, esse período dos anos 90, foi um período de afastamento,
por conta do momento histórico mesmo, da conjuntura do trabalho mais concreto na
base. Então assim, os 80 foram de muito enraizamento, de muita organização de
base, e os anos 90 não foram. O CEFURIA também era fruto disso, não tinha muita
ação concreta em nível de base, e, na verdade, quem fazia um pouco essa articulação
com os grupos mais organizados também era a Central dos Movimentos Populares,
que também tinha sua sede dentro do CEFURIA. Mas, a central, ocorre que ela se
funda em 1993, em um momento de crise dos movimentos de base; então a Central
nunca chegou a ter uma força política consistente que pudesse..., e na verdade havia
um pouco de conflito, até porque os documentos mostram um pouco disso. A
característica um pouco da Helena, do Manuel Proença que trabalhou até o período
que eu e o Adenival entramos, era muito de articulação e a Central achava que eles
tinham esse papel de articulação, mas eles também não conseguiam fazer. Então,
havia, assim, um pouco de conflito, nesse período, entre o próprio CEFURIA, o papel
do CEFURIA e o papel da Central.
E esse papel da Consulta Popular quem construiu a reflexão?
212
Em 99, fui para a Consulta Popular, na verdade, assim era a retomada da
discussão de um projeto Popular no Brasil, que era uma coisa de que já não se falava
mais.
E como vocês colocaram isso em pauta? Faziam reuniões?
Sim, nós tínhamos esse fluxo que começamos a organizar mais concretamente,
esse grupo de que eu te falei, que era um grupo pequeno. Em alguns momentos de
estudo, era um grupo maior, porque daí vinha o assessor também, e aí começamos a
estudar os casos do enfrentamento brasileiro, para tentar entender o Brasil: o
Florestan Fernandes, o Caio Prado Júnior, o Darci Ribeiro. A Pedagogia de Paulo
Freire, para tentar entender a história, e um pouco assim, a possibilidade da
revolução brasileira. O que é a revolução brasileira? O professor Fernandes fala
muito disso e o Caio Prado Júnior principalmente e o próprio Celso Furtado, e a
gente já estudou vários textos. Então nós tínhamos os grupos de estudos, e nós
tínhamos esse curso de multiplicadores por onde a gente estudava a história do
Brasil, numa perspectiva dos trabalhadores.
Quais participavam dessas atividades?
Os militantes dos Movimentos Sociais, normalmente, mas..., o movimento era
aberto, também tinha muitos professores da rede pública; sempre é assim: têm
militantes do MST, militantes de alguns movimentos, de algumas comunidades,
principalmente das comunidades. Com o pessoal mais ligado às igrejas é preservado
ainda algum trabalho, mais nas Vilas e tal... Também os professores da rede pública,
e aí tinha gente do Movimento Negro que também participava. O público da
Consulta Popular era bem misto, mas assim... Enfim, naqueles anos, conseguimos
organizar grandes mobilizações como a da dívida externa, das Assembléias que nós
chamamos de Assembléias Educadoras do Povo. Sempre assim, eram muitos
eventos, a gente não conseguiu na Consulta Popular, enraizar a nível de base, fazer o
que era o sonho e permanece ainda até hoje, de ter os núcleos de base nas Vilas, que
se reúnem e discutem seus problemas, e tentar encaminhar a solução para eles.
Esse projeto da Consulta Popular ainda perdura?
Ainda perdura. Aqui no Paraná ainda tem um grupo, o Júlio, o Edson do MST,
mas ela (a Consulta Popular) ficou mais fraca. Porque, assim, em 1999, 2000 e 2001,
foi muito intenso, nós trabalhamos muito e éramos um número muito pequeno.
Então, às vezes, eu até brinco: na prática, eu a Fernanda, a Cristina e a Marilde
carregávamos o piano, ajudavam-nos a Helena e a Dori, mas que também estavam
envolvidos com muitas outras coisas, e um pouquinho o Júlio e algumas outras
pessoas, mas nós éramos um grupo muito pequeno. Havia assim muitas decisões, em
nível nacional; a gente ia para atividade, em nível nacional; a gente fazia aquele
calendário de luta extenso, do ano inteiro, e muito baseado no pique e na luta que o
MST tinha. Isso se tornava inviável porque a gente não conseguia compreender o
processo do meio urbano de mobilização, e tinha que correr atrás de construir as
213
mobilizações, e nós não tínhamos os mesmos níveis de organização que o MST tinha.
Então isso se tornou meio que uma fábrica de mobilizações, e nós não estávamos
conseguindo enraizar, e se tornou cansativo; a gente não tinha tempo para mais
nada. Então, eu falei não dá, aí nós chamamos uma última reunião, em 2001; tem até
uma troca de um e-mail que a gente passou: participe do funeral da Consulta
Popular. E nem para essa reunião veio mais ninguém. Aí, eu disse: a partir desse
momento, eu estou fora da Consulta, eu acho que não é desse jeito o que eu entendo
por organização Popular, não é desse jeito que se faz. Então, teríamos que retomar de
outro jeito porque na verdade eu me animei muito com a Consulta, inclusive fizemos
encontros pedagógicos, desde 2000. Fizemos um encontro em Minas Gerais, a nível
nacional, que foi muito interessante, inclusive ajudei a preparar em São Paulo esse
encontro. Quando eu fui para esse encontro, as pessoas estavam com a seguinte
pauta: chamar as pessoas para ir lá falar sobre a realidade brasileira. Então eu falei se
esse é curso de formação de formadores, que é para preparar pedagogicamente as
pessoas, nós temos que trazer gente da área pedagógica, da área da educação, para
ajudar a construir. Na Consulta Popular, a gente tinha que estudar do ponto de vista
político e pedagógico, e eles achavam que eu tinha razão, que deveríamos mesmo
chamar uma pessoa que era o Miguel Arroyo, lá de Minas Gerais mesmo, o curso era
lá em Minas Gerais em Bieté. Que nós chamássemos o Miguel Arroyo, que na época
era... eu nem sabia que ele estudava Paulo Freire... e que a gente fizesse oficinas
práticas, para que a gente exercitasse o que é o trabalho de educação Popular. Que se
desafiassem a criar uma temática para fazer discussão a nível de base, então nós
fizemos isso, e foi muito bom. O Miguel Arroyo foi assim, excelente, porque ele fez....
inclusive a fala dele eu transcrevi depois, porque eu que estava na coordenação da
mesa e eu transcrevi depois. Ele fez a discussão de como é que um militante do
projeto Popular do Brasil tem que voltar para base, fazendo a crítica com essa coisa
do vanguardismo, que não pode ir lá levar a verdade pronta, mas que tem que ouvir
as pessoas. E a partir do que elas dizem, tem que começar um projeto de educação
Popular. Então, isso foi muito interessante! Tanto as oficinas práticas que a gente fez,
o grupo todo achou que realmente a gente tinha razão, e que era aquilo mesmo. Esse
texto eu transcrevi e foi publicado depois no caderno do MST e também naquele
livro que o grupo que eu fazia parte, aqui na Federal, produziu de Paulo Freire: Vida
e Obra. O mesmo texto está publicado lá também, que, na verdade a gente mandou
para o Miguel Arroyo, caso ele achasse necessário fazer alguma mudança, mas foi
mínima a alteração que ele fez da transcrição que eu havia feito da fala dele. Então, a
Consulta Popular...
Mas que continuou sendo, que admitia nos próximos testes de avaliação, que a
gente tinha as pernas quebradas, ainda era a questão da organização Popular de
base. A organização é permanente, porque tinha muita produção de cartilhas,
inclusive porque havia vários intelectuais orgânicos que eram descontentes com o
Partido dos Trabalhadores que acabaram canalizando sua militância para a Consulta
Popular, como o Júlio Benjamin, o César Sampaio, (os dois o pai e o filho), várias
pessoas a nível nacional. Então, tinha muita produção, muito texto, muito material
circulando, a interpretação do Brasil estava feita. E acho que assim se criou uma
dinâmica nova, porque se dizia, assim, que o projeto Popular tinha que ser
construído, de baixo para cima, na luta, e não como um projeto de meia dúzia de
214
intelectuais. Não era um plano de governo, e isso é uma coisa muito bonita! e é na
Consulta Popular. Mas eu acho que ainda permanece na Consulta, que é um pouco
da imagem do MST, ainda uma tradição muito vanguardista, muito de quadros,
muito verticalizada. E eu penso que não responde mais a esse desafio do mundo
atual, e, nesse sentido, acho que o CEFURIA fez uma contribuição importante nesse
período. Porque, quando nós falamos vamos parar, porque nós não podemos
continuar sendo essa fábrica de mobilizações, nós temos que começar a entender o
quê e o porquê que a gente não consegue retomar o trabalho de base... e tem, lógico,
toda uma análise que a gente faz: hoje os espaços não ficam vazios. Os anos 90,
enquanto a esquerda ficava meio tonta com os militantes tentando entender o
neoliberalismo e querendo saber o que estava acontecendo e correndo atrás para não
deixar perder, o trabalho de base foi esvaziado. E foi aí (nessa época) que o crime
organizado fincou e centrou..... Como parte da própria lógica do capitalismo, dos
tempos do vale tudo para ter dinheiro para se ter lucro a todo custo, é o crime,
porque é um sistema criminoso e a impunidade ia engrossando. Então, como
resultado (eu digo) da própria questão do desemprego, o crime organizado se
colocou como opção de emprego, e inclusive os criminosos fazendo aquela proteção
que o Estado não dá à camada mais pobre. Então, quer dizer os religiosos e os
militantes que antes faziam opções de vida de morar na favela, nas ocupações
irregulares, e que tinham muito apoio... Que também é um reflexo dos anos 90, esse
retrocesso da Igreja Católica, na inspiração da criação da ideologia da libertação, que
tinha sido uma grande força nos anos 80. Então assim, esses espaços do povo foram
ficando meio abandonadão nesses anos 90. No momento de crise profunda de
emprego e de impunidade, com uma degradação da polícia; na verdade, acho até que
antes já era, mas talvez era menos. A questão do desemprego acelerou isso. Então
assim, ficou muito difícil; hoje é muito difícil você adentrar esses espaços, porque os
caras têm os donos, os lugares de pobreza hoje têm seus donos. Então é muito, enfim,
mas a gente tem que aproveitar as brechas. Que brechas nós teríamos para voltar
para esse trabalho de base? Essa que era a idéia, é aí que a gente começa a olhar para
essas experiências que no CEFURIA já estavam tendo algum acompanhamento pela
Lílian, pela Brauli, pela irmã..., que eram do conselho do CEFURIA e que
acompanhavam esses grupos de padarias comunitárias, oficinas de costura, trabalho
artesanal com mulheres, que sempre foi periférico. A gente sempre olhou muito
desconfiado para isso, porque a gente achou que era um trabalho que não
transformava a sociedade politicamente, que acabava mantendo a pobreza no meio
da pobreza. Mas a gente começou a ver nesses grupos uma possibilidade de voltar a
ter uma inserção, a nível de base, e também abrir alguma perspectiva, não de
resolver o problema do desemprego, porque isso não se resolve, mas alguma
alternativa de renda para algumas pessoas que estavam num estado de miséria
muito grande. Então começa-se a olhar mais para isso. Para mim, eu não tinha muita
clareza sobre essa coisa da Economia Solidária, ainda no final dos anos 90 início de
2000. Para mim não ficava muito claro como é que isso poderia se transformar em
uma força política de transformação ou em uma nova cultura de começar a ajeitar um
novo modo de produção. Eu não tinha isso como possibilidade; então, depois em
2000, 2001, a Consulta começou a fraquejar aqui no Paraná, e eu ainda fiquei até o
final do ano, de 2001, por conta de uma outra coisa, eu até rescindi o meu contrato
215
com o CEFURIA em julho, mas permaneci até o final do ano porque eu coordenei
uma pesquisa da Misereor, desculpe, da Misereor não, da UNESCO. Nós já tínhamos
trabalhado em 2000, em uma pesquisa que era iniciativa de trabalho com jovens, em
uma perspectiva de prevenção ao uso de drogas, violência urbana, que a UNESCO
estava fazendo. E nós fazíamos aqui em Curitiba, e o CEFURIA coordenou a
pesquisa de campo, aqui no Estado do Paraná. Então nós viajamos para Campo
Mourão, para conhecer experiências lá, viajamos para a Lapa, e a maioria das
experiências se concentraram aqui em Curitiba. E, na verdade, em 2000, quando o
Adenival se elegeu vereador, a pessoa que vem trabalhar no lugar do Adenival é a
Gabriela. Como é que a Gabriela chegou no CEFURIA? Ela chegou via cursos da
Consulta Popular e começou a se inserir na Consulta Popular, e quando o Adenival
saiu, eu sugeri que o CEFURIA contratasse a Gabriela, que ela estava dando mostras
de ser uma pessoa, que tinha formação de Serviço Social e que também é uma
formação é importante para esse trabalho comunitário. E a Gabriela já se inseriu,
acompanhando essa pesquisa da UNESCO. Essa primeira pesquisa, depois eu já
engatei em uma segunda pesquisa, em 2001, que foi com as escolas sobre a visão que
os alunos e professores têm da escola. Então também foi uma pesquisa muito grande,
que nós fizemos, pesquisa em mais de 60 escolas, só em Curitiba, escolas públicas e
particulares. As particulares, acho que nós entrevistamos todas, escolas que eu nem
imaginava que existiam. A gente só não foi pesquisar aquelas grandes, porque
algumas não permitiram, tipo Dom Bosco. Mas pesquisamos Santa Maria,
Medianeira, o Bom Jesus também não permitiu, mas Positivo, enfim, essas que são de
freiras Coração de Jesus, enfim, o Adventista, um monte. E isso foi muito
interessante. Assim, as duas pesquisas para nós trouxeram um grupo da juventude,
que é um grupo com que a gente também não consegue ter uma aproximação mais
concreta. É o grupo que está mais vulnerável a essa questão da violência, do
desemprego, da falta de perspectiva. E é um desafio para a gente continuar sendo,
mas essas pesquisas ajudaram ... enfim, eu saio para fazer o mestrado, e, no
mestrado, eu retomo essa coisa da educação no trabalho. Eu começo a ver
concretamente as possibilidades da Economia Solidária, do ponto de vista não
apenas como uma tática de voltar para as comunidades ou chegar aos pobres, mas
como possibilidade concreta de nova organização do trabalho, de começar a ajeitar
um novo modo de produção, dentro desse que está aí, que começa com iniciativas
com pesquisas muito pequenas, mas que é um aprendizado para que depois se
chegue às fábricas. Enfim, na produção de todas as coisas que a gente precisa para
viver. Então, quando eu volto para o CEFURIA, em 2003, eu volto com um
referencial teórico que me permitiu ver as experiências que o Antônio e a Lílian
estavam desenvolvendo e a Gabriela, porque quando eu saí, quem veio para o meu
lugar em meio período só, foi o Antônio. E o trabalho dele foi mais voltado para as
comunidades, porque a formação do Antônio era uma formação mais de base e ele já
estava inserido na questão da Economia Solidária e a Lílian, como militante
voluntária. A Lílian não era contratada; então eu volto e o Antônio começa a me falar
dessa experiência do clube de troca, que era uma coisa nova que eu não conhecia. Daí
fui com ele aos clubes de troca que estavam funcionando no Perpétuo Socorro, em
Bom Jesus. Alguns que nem estão operando mais (espaços da Economia Solidária),
para entender o que ele estava me falando, participei de um seminário lá na PUC,
216
que foi chamado pela área de ação social da Cúria Metropolitana, que chamou o
CEFURIA e o CEPAT a pensar um pouco que tipo de trabalho fazer com essas
pessoas que recebiam a cesta básica. Como romper com o assistencialismo, como
começar um trabalho, de um pouco de construção de protagonismo com essas
populações que dependiam das cestas básicas, que viviam nas ruas, nas favelas.
Enfim, que eram excluídos de tudo. Então comecei meio que a refletir um pouco,
estudar um pouco. Acho que as reflexões me ajudaram muito, apesar do pessoal
aqui do CEFURIA não usar muito.... O Marcos Arruda, um dos que refletem um
pouco essa área no Brasil, mas eu acho que na origem da pedagogia socialista está a
origem dessa proposta de Economia Solidária numa perspectiva de uma economia
mais transformadora. Assim, de como as pessoas se transformam, a partir do próprio
processo de trabalho, e que transformem a sociedade a partir do próprio processo de
trabalho, porque da construção material da vida não tem como fugir, e a gente, em
quanto formação política, a gente sempre separou o político da economia, a
economia não enquanto produção material da vida, mas economia enquanto política
econômica do Estado Brasileiro. Economia como produção material da vida mesmo,
como é que as pessoas, como modo de vida.. E acho que a Economia Solidária
permite isso, permite fazer essa ligação da educação e do trabalho, que era o grande
sonho, acho, dos pensadores socialistas na área da pedagogia, e que, na verdade,
acho que mesmo por conta muito dessa visão de Estado e de partido, de sindicato. A
gente nunca foi no miudinho de tentar entender isso, entender as experiências que o
próprio Makarenko fez, lá na Rússia, com os meninos de rua, as experiências que ele
desenvolveu. E eu comecei a fazer essas relações, e ele (Antônio) me disse: olha nós
temos muitos grupos despontando, porque agora as pessoas querem fazer essa
renovação de acabar com as filas da cesta básica e tentar fazer um trabalho, mas, num
primeiro momento, de resgate da auto estima. Só que está faltando conteúdo político
para isso. Então, foi quando eu propus para ele: eu acho que a gente tinha que pensar
um curso de formação mais permanente, de longo prazo, mais sistemático, no
sentido de não ser só pontuais assim, e que incorporem um pouco as experiências
das pessoas, mas que tragam conteúdo político também. Lembrei um pouco dos
cursos em que a gente estudava, de como funcionava a sociedade nos anos 80, o que
nos ajudou muito do ponto de vista da consciência política. Só que, já quando eu fiz a
proposta, já também assim, só que ao invés de nós fazermos com os ... .nós vamos
pegar o eixo do trabalho e esse é o nosso objeto principal. Montei primeiramente uma
proposta e chamei a Gabriela, que na época também estava afastada por conta do
mestrado e também foi interessante, porque ela também estava tendo acesso a uma
literatura que procurava compreender esses processos novos no Brasil e na América
Latina. Não só no Brasil; e aí discutimos um pouco a proposta inicial que eu fiz,
amadurecemos um pouco, e virou o que é hoje, o curso de Multiplicadores da
Economia Solidária, chamada Escolinha, que faz o resgate da história social do
trabalho, e que deu certo. Têm muitas turmas que estão agora entrando, acho que é a
nona ou a décima turma, agora no segundo semestre, sempre com quarenta,
cinqüenta pessoas, esse foi um momento importante. Outra coisa também que, assim,
eu senti necessidade, nesse processo de retomar o trabalho de base, que é voltar a um
estudo mais sério de Paulo Freire, porque Paulo Freire sempre foi para mim uma
referência importante, desde a época em que eu estava na EMATER.
21
7
O que é a EMATER?
A EMATER, é assim, uma empresa de extensão rural, na verdade, ligada, em
nível nacional, ao grupo EMBRATER; só que assim, eles tinham uma empresa de
economia mista nos Estados, que era a Associação de Crédito... depois eu posso lhe
passar direitinho o que significa a sigla em si, mas era a CARPA/EMATER Paraná,
que era ligada ao grupo EMATER, de extensão rural, assistência técnica e extensão
rural. A gente trabalhava com as famílias dos agricultores. Enfim, então, voltando, a
Economia Solidária, essas experiências de grupo, foi ao mesmo tempo uma brecha e
uma possibilidade de discutir um projeto político novo, que tentasse juntar um
pouco a economia e o político, não permanecesse sempre separada. Essa coisa da
formação política e grupo de Economia Solidária com acompanhamento de base, que
a gente não via muito aonde iria dar, e eu acho que isso foi um salto importante. E aí
voltamos ao estudo do Paulo Freire; então, fizemos um grupo de estudo de
metodologia que, num primeiro momento, não entrou direto em Paulo Freire; nós
fizemos junto com o André do CEPAT que participava também, nós começamos
estudando o império do Negri, que a idéia era entender um pouco essas coisas das
multidões. O que era essa nova literatura, estão falando que não é mais do jeito que a
gente pensava, sindicato e tal que são as multidões que vão fazer mudanças, como é
que é isso? Tentar entender isso porque o que a gente viu um pouco foi isso, assim
essa coisa da consciência mais individual. Rosa, eu acho que isso, não sei se, do ponto
de vista psicossocial, tem alguma resposta, mas assim a gente sempre falou muito do
coletivo, do coletivo e as experiências históricas não deram conta disso, porque
sempre deixou as pessoas em segundo plano, os indivíduos. E depois vem um
sistema individualista, que coloca como se a pessoa fosse o centro de tudo, mas, por
outro lado, essas tecnologias que, por um lado, individualizam as pessoas, abrem
uma brecha para essa coisa da consciência mais individual. Então quem votou no
Lula em 2002, a característica do voto no Lula foi diferente de quem votou no Lula
em 89. Que a gente dizia o voto que tem um saldo organizativo na sociedade, e, em
2002, teve mais a ver com essa coisa da consciência individual. Não acho que seja só
por conta da propaganda, também isso acho que tem um peso importante, mas tem
muito a ver por que as pessoas têm acesso também à informação do ponto de vista
da consulta. à internet, que não querem militar hoje junto aquele político, junto a
uma associação profissional de moradores. Elas podem ter acesso à informação
alternativa de internet, mesmo as coisas que nós divulgamos, que as organizações
divulgam, podem conhecer toda a história do MST, via internet. Via internet, elas
não têm que estar diretamente nos grupos; então, assim é uma coisa nova que a gente
precisava entender, então era uma coisa nova que esse grupo começou, estudando
um pouco o império do Negri, também que ele fala da biopolítica; o que é essa
biopolítica? A economia da bioeconomia das pessoas produzindo valores, que não
são considerados, quando cuidam dos idosos, das crianças, então, todos esses
migrantes do mundo inteiro, produzindo valores que não são considerados do ponto
de vista da macroeconomia. Fazendo todos os trabalhos que os ricos já não querem
fazer, trabalho de produção da vida, então, isso nos ajudou a compreender essas
coisas, da coisa do afeto, como é que isso mobiliza e gera valores, não
necessariamente valores, que você pode dizer quanto custam, mas que te permitem
218
uma vida mais decente, enfim. Depois entramos no estudo do Paulo Freire e isso foi
muito importante, porque a gente, daí já tinha uma porção de experiências novas que
nos permitiam ler Paulo Freire, e olhar para essas práticas, e dizer: Puxa! Isso é
autoritário, nós estamos reproduzindo coisas autoritárias! Então, isso acho que foi
muito importante nesses últimos anos, nessa minha segunda vinda, que foi de 2003
para cá, que desencadeou muito rapidamente. E outra coisa também, que para mim
foi uma questão de honra: que a gente tinha que buscar possibilidades, e abrimos
possibilidades com o recurso que nós trouxemos da Itália, para organizar a
documentação; porque para mim a memória histórica, se você perde a memória
histórica, você perde a possibilidade de construir o futuro. Então organizar essa
documentação toda era uma questão urgente; e não é uma coisa assim. Várias
pessoas no CEFURIA, se a gente pega lá nos documentos da Maysa, do Clemente, do
Jaime, sempre eles tinham arquivos bem organizados, só que é aquilo que eu te falei,
se entra pessoas com uma dinâmica mais ativista não dá muito importância para
essas coisas, e também o problema das mudanças, porque as pessoas como sempre
têm muitas coisas para fazer, essas coisas a que não se dá muito importância vão
sendo deixadas de lado. E isso permitiu que a gente recuperasse o material,
contratasse os estagiários e nos permitiu publicar, aproveitar os recursos que a gente
tinha para publicar essa memória histórica. Uma coisa é tu ter o material organizado
no centro de documentação, que daí se pressupõem que, um dia, alguém resolva
fazer uma pesquisa e pesquisar. Se você já tem livro circulando, as pessoas podem
dizer não, isso é insuficiente. Eu quero aprofundar mais isso! Então, elas pegam
aquilo que o livro já tem e vêm atrás da documentação. Então, eu acho que isso foi
um dos avanços para 2004. Para mim 2004, foi um ano muito importante, porque a
gente fez a primeira publicação, voltamos para o Centro, porque estávamos na Casa
do Trabalhador. Isso permitiu que as pessoas voltassem a freqüentar o CEFURIA
mais; quem estava aqui não estava abandonado. Então, nós demos uma nova
dinâmica para a Videoteca Popular e a própria Quem TV, com produções de coisas
novas. Penso que, assim, o ano de 2004 foi um ano muito importante para uma
virada: as publicações têm rolado o Brasil inteiro, e o que é importante nessas
atividades, muita gente que não era militante começou a participar. Então, assim,
assistentes sociais, essas pessoas que têm uma generosidade muito grande, ligadas a
igrejas, mas que dedicam seu tempo, sua vida, mas que estavam fazendo de forma
assistencialista. Então, a gente começou a fazer essas pessoas refletirem, num eixo foi
um avanço muito importante, de 2004 para cá. De 2003 a 2004 para cá,
principalmente com a Escolinha da Economia Solidária.
Como você, vê a relação com o que se está fazendo agora, que é o trabalho de
base, que está ligando a economia e a política? como você vê isso, em relação a
como funcionava antes?
Eu penso que ainda o grande desafio nosso é a gente articular os grupos locais
com as lutas mais gerais. Eu penso que isso não está de todo resolvido, porque assim
eu não sei te dizer ainda, eu tenho uma angústia ainda, a mesma angústia que eu
tinha, quando estava do outro lado. Antes a gente ficava só no macro e não conseguia
dar conta do micro; eu, às vezes, ... tenho hoje e em muitos momentos... Eu tenho
219
chamado atenção para isso internamente, ás vezes, não sou bem compreendida,
porque eu acho que eu também tenho de estudar mais um pouco, acompanhar mais
os grupos, porque eu não tenho conseguido fazer em 2005, como eu me envolvi
muito, principalmente em 2006. Porque essas coisas das publicações absorvem muito,
mesmo quando não sou eu a pessoa responsável pela organização. Eu encaminho
para a gráfica a diagramação, e isso eu comecei, eu acompanhava mais o grupo de
educadores, as reuniões que eles faziam de avaliação e que é uma obrigação minha,
como coordenação pedagógica. Desde esse ano, eu deixei a desejar, uma avaliação
que eu já fiz comigo mesma e em alguns momentos, eu fico até constrangida de
apontar algumas coisas que eu estou vendo como falhas, que podem não ser a gente;
teria que discutir isso coletivamente, porque eu teria que ter um pouco mais... teria
que estar contribuindo um pouco mais, porque eles estão fazendo. Então assim, eu
acho que a gente tem um pouco de dificuldades ainda, e isso também, um estudo de
gestão nos apontou isso, uma dificuldade de amarrar mais concretamente todas as
áreas do CEFURIA. Então eu acho que também não está bem compreendida a
importância do CEDOC e das publicações. Teoricamente está compreendido, mas eu
acho que, na prática do dia a dia isso não está incorporado. Porque o próprio desafio
da Assembléia Popular... como é que a Assembléia Popular se articula com os
grupos de base? Então essas coisas ainda aparecem como algo a mais que demanda
uma mobilização. Em alguns momentos, a gente não conseguiu como um grupo,
como um todo, incorporar isso, como parte de um projeto político, que articula o
micro e o macro, que ajuda a qualificar e a superar essa coisa da fragmentação do
micro. Porque é assim, nós temos “status” de importância, de exercício, inclusive da
democracia e da autogestão que são esses espaços do conselho gestor das padarias
comunitárias... o encontro dos animadores dos clubes de troca, que são espaços onde
se escutam os problemas em comum dos grupos, que tentam.: Mas eu sinto que
ainda tem uma coisa faltando, só que a gente tinha que estar mais junto com o grupo,
para ir refletindo junto com eles, e inclusive ir, de vez em quando, junto com eles, os
grupos. Este ano, eu não fui nem uma vez aos grupos, eu tenho contato com as
pessoas dos grupos por conta da Escolinha, porque em nossa história, na primeira
etapa. Eu faço assessoria da Escolinha, e assim na primeira turma da Escolinha, eu
acompanhei todas as etapas. E isso foi muito importante. Eu lembro que, no final do
ano, teve, assim... teve uma outra qualidade, tanto é que nós discutimos; não porque
eu acho que assim... eu tenho minhas deficiências e é o Antônio, a Gabriela quem
fazem o trabalho de base, e eles talvez tenham deficiências que eu não tenha. Então,
se nós trabalhamos juntos. Eu acho que, em 2004, nós fizemos isso muito bem. Eu
acho que foi um ano importante, assim 2004, 2005. Este ano, porque se acumulou
tudo, o que nós já fazíamos aos vinte cinco anos do CEFURIA, que nós montamos
uma atividade paralela ainda mais intensa, e isso foi muito doido, está sendo muito
doido este ano. Para o ano que vem, eu já estou falando para eles, que no ano que
vem, nós vamos sentar; eu vou, eu quero, pelo menos uma vez, acompanhar com
vocês e com eles, acompanhar os grupos, porque aí a gente pode fazer a troca.
Porque eu ouço os relatos e tudo, mas até para aprontar, ajudar concretamente, dar
um apoio mesmo concreto, com auxílio pedagógico. Então eu acho que, mesmo
assim, nós fizemos muitas coisas legais e é porque as publicações começam também a
sair dos nossos espaços. Os nossos espaços que a gente não consegue alcançar de
220
corpo presente, o site e as publicações chegam; então, a gente não tem idéia de como
é que a gente dimensiona o nosso trabalho de base, porque o trabalho de base não é
só aquele em que você está indo lá; pelo menos, eu entendo assim. O trabalho que
nós fazemos internamente, nas nossas relações internas, também tem um saldo de
qualidade muito importante, porque hoje, no CEFURIA, nós somos um grupo muito
grande: se você for pegar a gráfica, a Quem TV, os educadores do TALHER e nós
aqui, internamente na sede, já somos quase setenta pessoas. Então, assim, o trabalho
de formação política nunca tinha sido feito com a gráfica antes. A relação do
CEFURIA com a gráfica foi do final dos anos 90 até 2003, concretamente. Antes a
relação muito profissional e muito tensa, porque o CEFURIA é o dono da gráfica,
mas, na verdade, a gráfica é uma empresinha, que tem algumas pessoas, que tem o
nome. Mas que a gente conseguiu superar colocar, os funcionários da gráfica como
parte de uma..., como nós chamamos, de família CEFURIA,. A gráfica não é uma
gráfica capitalista, mas que tem uma especificidade e eles começaram a compreender
isso; então, e uma pessoa que tem um papel muito importante nisso, foi o João
também. Quando o João veio em 2003, o João tem esse jeito místico, ele valoriza
muito essa questão da relação entre as pessoas, ele imprimiu uma identidade.
Essa prática de agora, de acompanhar com micro-mobilização, como ela se
articula sobre o fenômeno da “globalização”? São produtos disso, são
conseqüências?
Penso que tem a ver como é que isso se articula com a globalização. Na
verdade, são assim todos que estão nessa experiência de “micro”, são pessoas que
não têm acesso aos frutos da globalização. Assim têm acesso só aos frutos negativos,
elas não têm acesso aos frutos positivos da globalização. De certa forma, o processo
da fusão, da concentração é cada vez mais de riqueza. Excluiu tanta gente, que as
pessoas, têm que buscar alternativas, se o Estado não aponta mais alternativas para
elas. E esse aprendizado é de que: somos nós, conosco mesmo! É um pouco essa
idéia. Então tem uma decepção também com a política. Eu acho que houve uma
esperança muito grande no Lula. Mas não é uma esperança fundada numa
consciência política de esquerda socialista, como a gente achava que seria o Lula, em
89. É uma outra coisa; também o Lula está fazendo uma fala para o povo, do ponto
de vista que ele é aquele guri que veio e começou na miséria e veio para São Paulo
como retirante, etc. E a globalização, ela serve só para alguns, como sempre. É um
outro jeito de organizar o capitalismo como foi desde o “mercantilismo”, que é só
para alguns. Só que, como hoje tem muito mais gente no mundo, tem muito mais
gente expulsa dos benefícios do que o capitalismo, da técnica, que é a ciência a
serviço do capitalismo. Podem trazer para as pessoas... Então as pessoas percebem
isso: o que adianta uma medicina avançadíssima (no meu ponto de vista), se tem
pessoas por aí sem ter acesso e se a maioria das pessoas está é mesmo morrendo de
diarréia!
221
E o fato do conhecimento, da falta de conhecimento como você me disse,
como se articula com o desenvolvimento tecnológico?
Pois é, essa é uma questão, essa coisa de ver e ter acesso. Eu acho assim: o que
a televisão mostra é que exatamente, confunde num certo sentido, porque ela mostra
de forma fragmentada. A televisão não mostra de forma de que as pessoas permitam
organizar o pensamento pelo contrário. Hoje os meios de comunicação mostram tudo
para esconder as causas de tudo. Então, eu acho que confunde um pouco, por um
lado, e, por outro, cria uma outra consciência de ir buscar. Mas não é uma
consciência de buscar como direito, é uma consciência de buscar, não sei como te
dizer, não sei se seria injusto, mas com uma forma criminosa, inclusive. E buscar no
primeiro que está na frente, não é no rico aqui. Não; nós temos que buscar aquilo que
é de direito de todo mundo, porque é o fruto do conhecimento humano, de maneira
que sozinha não posso ir. Então temos que nos organizar de forma para ir buscar
aquilo que é a idéia, de moradia, de base, de meios. E também não é desorganizado,
porque as pessoas estão organizadas, mas de forma criminosa. Então, isso que eu
acho, por um lado assustador, porque, para mim, é algo novo, porque sempre teve
máfia. Há quanto tempo tem essa máfia italiana, japonesa, agora e depois você lê
algumas coisas. Eu li num livro sobre a questão do Narcotráfico. Ele falava dessas
coisas com relação à Casa Branca, e com o grupo comunista na União Soviética.
Então sempre teve, eu acho também que a globalização escancarou mais um monte
de coisas, que sempre aconteceu, mas a que a gente não tinha acesso. Então tudo isso
de dizer que o Bush é um terrorista de Estado, de repente hoje, até está meio
Popularizado. Mas para as pessoas antes não, porque tudo era feito pela Guerra
Santa. Hoje eu penso que hoje as pessoas têm mais informação, mas de uma forma
fragmentada e também confunde. Então tem um apelo ao consumo que essas
pessoas, que estão excluídas, não podem, não podem ter, e alguns começam a achar
formas alternativas de construir a vida com outras coisas, e outros querem ter acesso
através do crime. Ou do crime mesmo do tráfico, do roubo, de todas essas ou de
coisas do tipo CD pirata, crimes mais legais, do ponto de vista de burlar a legislação
para poder ter acesso. Agora eu penso, é por isso que eu te digo que não tem nenhum
movimento histórico que só tem um lado, né. Eu penso que a globalização também
tem dois lados: então por um lado, é toda essa desgraceira e, por outro, abre
possibilidades. Acho que daí a gente estudou também um pouquinho do Mílton
Santos, porque ele ajuda a gente a compreender um pouco isso. Ele fala dessa
história, porque a gente está começando uma fase popular da história, porque as
pessoas do circuito interior da economia estão percebendo, por que a vida continua
para essas pessoas. As pessoas estão sobrevivendo e vivendo nesse circuito interior
da economia, não são só as grandes empresas . E eu acho que é esse nosso público, aí
que eu acho que é a grande tacada que se redescobriria com mais clareza,
internamente, do ponto de vista do CEFURIA conseguir cada vez mais. Porque eu
acho que a gente conseguiu construir uma equipe com muita afinidade, múltipla,
porque nós temos muitas diferenças, como eu e o Antônio, a Gabriela, o João. Essa
equipe de formadores básica do CEFÙRIA, que hoje são poucos, porque o João está
222
fora e as outras meninas entraram. Mas eu considero que esse é um pequeno núcleo,
que conseguimos construir, com todas as nossas diferenças, uma certa unidade, e foi
isso que fez o CEFÙRIA. E eu penso assim, dar um salto na qualidade de 2004 para
cá, se a gente conseguir avançar do ponto de vista da reflexão teórica, a partir das
experiências concretas, respeitando os limites e as possibilidades que cada um de nós
tem e as nossas histórias. Inclusive eu penso que, no ano que vem, a gente pode
avançar um pouco mais, nesta relação dos grupos de base com as lutas gerais. Porque
é assim, a gente começou fazendo a crítica com uma militância mais histórica, porque
estudando Paulo Freire, é impossível não enxergar. As formas autoritárias, às vezes,
não é por maldade, não é porque eu não posso dizer que o Júlio, por exemplo, é um
cara autoritário. Mas ele, às vezes, tem um jeito de fazer as coisas que não constrói...
E, às vezes, eu digo: gente, a gente tem que construir um protagonismo, porque nós
somos muito poucos, tem que ter mais gente de base, entendendo e se preparando,
inclusive teoricamente. Não adianta que meia dúzia de nós avancemos do ponto de
vista teórico e nos distanciemos tanto, porque a gente tem essa idéia. Isso é um
conflito! Se tu queres estudar, você não tem tempo de estar no dia-a-dia das coisas
práticas, então cria um conflito que é terrível, porque esse é o conflito de quem quer
mudar o mundo. Que nem acha que é só na base, que nem acha que é só na
universidade, ou só na academia, ou só estudando, então não é uma coisa para se
fazer, então acho que a gente começou a fazer muito atrito e o CEFURIA deixou de
participar. Por exemplo, das coordenações dos Movimentos Sociais, porque a gente
tinha que dizer agora é a sua vez de acompanhar, depois passava para o outro e
...ninguém pensasse em ficar naquelas reuniões, porque a gente... Meu Deus, não
adianta! O buraco é mais em baixo. Tu percebes que o buraco é mais embaixo, então
nós vimos na Consulta da Assembléia Popular uma possibilidade e levamos uma
proposta de que se a gente fizesse uma metodologia ... uma discussão não de ir lá,
levar o conflito. Não convidar as pessoas irem, num domingo, na Assembléia
Popular, mas conseguir fazer a reunião lá nos grupos de base, fazer reflexão com o
povo e, a partir disso, vir para a Assembléia Popular e depois voltar. Então nós
fizemos um pouco isso, e algumas pessoas foram, o que foi bom, foi que muitas
dessas pessoas estão fazendo a oficina de Pedagogia Freiriana que está sendo muito
importante, que é o encontro que eu te falei. Mas que também para nós o
fundamental é que são quatro dias, que tu ficas repetindo o que Paulo Freire quer
falar dessa economia geradora e tal.... Porque a gente usa muito o objeto no concreto,
a gente vai ouvir as pessoas nos lugares mais, com isso já fomos. Porque também é
uma forma de conhecer lugares a que a gente não ia e muitas daquelas pessoas. Os
moradores e militantes sociais mesmo não tinham medo de se declarar com uma
violência que achávamos que só tinha no Rio de Janeiro e em São Paulo, um nível de
miséria tão grande e de controle, porque as pessoas que estão lá vêem, em plena luz
do dia, o controle do traficante. Vêem os meninos envolvidos, vêem passagem de
drogas. Então isso tudo está acontecendo. São coisas que a gente não tem condições
de registrar em estúdio, mas que se complementam no trabalho, e nos preparam
também. Isso está sendo muito importante, essas oficinas de metodologia, para
a gente rever as práticas. Na Assembléia Popular é uma coisa que nós do
CEFURIA... e nesse sentido eu já falei para o grupo de educadores a
Assembléia esta aí, e nós temos que construir a Assembléia, nós tivemos até uns
223
atritos internos, porque, paralelamente, a outra Assembléia estava sendo construída
com experiências de Economia Solidária. A referência da Economia Solidária é um
mal governamental, não é necessidade nossa do Movimento Social. Então nós
entramos num atrito porque... com ela inclusive. Ela se chateou, porque ela fez a
crítica como é que nós estamos mobilizando para a véspera as pessoas, para a
conferência, quando o nosso objetivo era mobilizar para Assembléia Popular. Então,
nós não podemos usar dessa forma, e isso não é Freireano por que isso é uma
iniciativa nossa. Isto aqui é uma iniciativa do Movimento Popular, porque a gente
está ajudando a construir, por mais que a gente possa ter críticas a alguns dos
companheiros que estão na linha de frente. É obrigação nossa ajudar a construir de
forma diferente. A Assembléia Popular para nós, eu acho que hoje pode ser o novo,
que articulará os grupos de base com as questões mais gerais, mas porque é uma
coisa nova que nós não temos muita clareza. Porque a gente teria que estudar um
pouco o papel do Estado, enquanto quem está puxando, animando a Assembléia
Popular, e como é que a gente pode organizar novas instituições, sem negar essas
que estão aí. Porque, infelizmente, eu não consigo imaginar uma sociedade
complexa, sem instituições que organizem. Então, quer dizer, negar essas que estão aí
completamente, dizer: não, nós não queremos mais nada com elas, é fazer uma
sociedade paralela. Então nós não temos tanta política para fazer isso. Eu penso que
esse é o desafio, e, para o ano que vem, nós temos que nos aprofundar essa relação
dos grupos de base com a Assembléia Popular. Concretamente num planejamento
que não separe o que é Economia Solidária, o que é o TALHER, da Assembléia
Popular. Nós temos que fazer um único planejamento, que o trabalho de base
construa a Assembléia Popular e vice-versa, e a Assembléia Popular ajude a reforçar
o trabalho de base e que encaminhe as lutas concretas.
Por que você escolheu esse caminho para a sua vida?
Não é bem assim uma escolha. É e não é. É aquilo que eu lhe falei: eu tinha
uma insatisfação; eu acho que o trabalho na EMATER Paraná com os agricultores no
campo começou a me ajudar a enxergar o funcionamento da sociedade. Eu não
conseguia, eu via, constatava as desigualdades, mas eu não conseguia compreender
as causas. Na EMATER e no curso de Ciências Sociais, eu comecei a fazer. Comecei a
trabalhar na EMATER, e aí eu fui fazer o curso de Ciências Sociais, exatamente para
entender essa coisa da desigualdade; e aí, uma coisa foi puxando a outra, né? Rosa,
não é bem uma decisão, é uma decisão no sentido de que eu tive oportunidade de
estar dando aula na Universidade e aquilo me fazia muito mal. Não conseguia ver
luz na Universidade, no espaço da Universidade, uma possibilidade de mudar
alguma coisa e aquilo contribui para teu processo de formação social; então, foi uma
escolha nesse sentido,. eu nunca me importei com a minha carreira pessoal, nem
quero trabalhar num lugar porque eu preciso... eu preciso sobreviver, mas que eu
não tenha que irritar meus princípios; então, nesse sentido, é uma opção. Mas, então,
uma coisa foi puxando a outra da EMATER, eu fui me aproximando da CPP, do
MST, me inseri na própria organização sindical; e vejo uma coisa vai puxando a
224
outra... depois no Partido dos Trabalhadores, depois no sindicato dos professores.
Então as coisas foram se colocando na minha vida como possibilidades.
Como você acha que o CEFURIA impactou na sua vida?
O CEFURIA tem assim uma coisa importante na minha vida, porque o
CEFURIA tem uma característica que é diferente, por exemplo, do sindicato, do
partido ou de todos os lugares onde eu trabalhei. Eles também que eram trabalhos
ligados a questões sociais no CEFURIA o nível de disputa é diferente, não vou dizer
que não tenha problemas porque isso seria dizer que aqui é um grupo de anjos e não
é, mas assim não tem essas disputas acirradas de grupos, como tem no sindicato e no
partido. Você consegue construir mais unidade na diversidade, eu acho que tem
uma característica mais de serviço; então, isso para mim é o que precisa ser o
Movimento Social. Então, nesse quesito, eu tenho aprendido muito também nessa
convivência interna, o trabalho que a gente faz no CEFURIA é um trabalho coletivo,
embora a gente tenha tarefas específicas, mas é sempre um trabalho coletivo que se
complementa. A gente não tem essa coisa negativa, é um ambiente de trabalho muito
bom, que tem coisas em que até a gente consegue até fazer uma crítica mais fraterna,
coisa que eu não achei em outros espaços. Então, nesse sentido, eu acho, que eu
tenho como ser humano, aprendido muito, tenho maior oportunidade de
crescimento; nesse sentido, esse é o impacto que pode trazer.
Como você vê essa relação do CEFURIA com o governo?
O CEFURIA, na verdade, sempre foi uma coisa complicada, por exemplo,
assim quando havia possibilidade de pegar recursos do FAT, na época do governo
do Fernando Henrique. Meu Deus, nós não queríamos nem saber! Nunca pegamos
recursos do FAT, na época do Fernando Henrique, sempre foi visto como uma coisa
negativa. Mas acho que agora tem uma coisa diferente, porque o governo Lula não é
a oposição pela oposição, não é mudar o Fernando Henrique pelo Serra, tem uma
característica diferente, nós ajudamos a construir o Lula.
Como que vocês lidam com essa contradição?
É uma contradição, mas, ao mesmo tempo, é assim, porque a gente nunca foi
contra o governo, porque o recurso público deve ser colocado a serviço do povo. A
intermediação que nós fazemos hoje, enquanto CEFURIA, é uma parcela muito
pequenininha desse recurso público que é colocado a serviço do público. Não é um
recurso que fica na estrutura; ele ajuda, óbvio, ele ajuda a manter porque a gente não
tem de onde tirar isso, demanda gastar telefone, pagar aluguel, enfim pessoas para
trabalhar, e, nós temos completa autonomia, e veja, os recursos do TALHER que são
intermediados pelo Instituto Paulo Freire...É para fazer trabalho de Educação
Popular. Mas nós temos completa autonomia, nós não temos nenhum compromisso,
tanto é que quando vieram, alguém falou que estão fazendo propaganda dos que
estão com dificuldade, estão filmando, para colocarem nos programas eleitorais.
Uma coisa são os grupos, nós não somos donos dos grupos, nós ajudamos a
225
assessorar; agora, se quiserem ir até os grupos e conversar com as pessoas e se elas
quiserem deixar gravarem é outra história; agora nós, enquanto CEFURIA, irmos até
lá falar, seria deseducativo do ponto de vista... Então, assim, nós não temos nenhum
compromisso, tanto é que nós fazemos a crítica. Se você ler os textos que nós
escrevemos, todos eles têm a crítica, nós não conseguimos racionar nenhum tipo de
recurso. Fizemos um projeto que é para trabalhar com a juventude em comunicação
popular, na área de teatro, tv de rua, rádio comunitária; mandamos a para Petrobrás,
não aprovamos, e não conseguimos nenhum acesso direto. Então, nós não temos
nenhum compromisso; assim, usamos um recurso que é para fazer Educação
Popular, que é para fazer protagonismo para se organizar, inclusive para lutar contra
o governo Lula, se for o caso. Outro recurso que a gente intermedia, que não é nem
recurso em espécie, mas a relação que tem com a Secretaria do Trabalho, aqui do
Estado do Paraná, que é o repasse dos equipamentos para as Padarias Comunitárias,
visto que os grupos de base não têm existência legal para poder conseguir os
recursos, os aparelhos. Na verdade, precisavam de uma base legal, nós
intermediamos, e com isso, aproveitamos para fazer trabalho de Educação Popular e
educação política com esse grupo. Então, assim, é contraditório e não é, ao mesmo
tempo. A gente lida, porque a gente não se submete; nunca ninguém nos viu dizer
que nós tínhamos que defender o Lula nas atividades, nós mostramos a sociedade tal
como ela é, e falamos isso ainda piorou, no princípio do Governo Lula, não talvez
por culpa dele, mas é um processo histórico. Assim tínhamos uma expectativa
maior, não tínhamos expectativa de rompimento então a gente não deixou de fazer a
crítica, por ter acolhido o TALHER. Porque, você veja, Rosa, o TALHER é um
apêndice no governo; eles repassam o recurso para o Instituto Paulo Freire que
gerencia isso a nível estadual. Então, nós prestamos contas para o Instituto Paulo
Freire, nós não prestamos contas para o governo. Quem presta contas para o governo
é o Instituto Paulo Freire. Então, por outro lado, é isso: eu nunca fiz oposição por
oposição, a gente faz uma oposição de classe estratégica que quer transformar a
sociedade de quem não quer. Então é assim, primeira vez na história do Brasil, e nós
temos que reconhecer isso, é o primeiro governo que você tem um operário como
presidente da República e que vem de uma luta sindical, que, por mais que se tenha
feito parecer que ele também está governando para os ricos, eu não posso ignorar
que isso tem uma mudança.
Ana, conceitualmente se diferencia ONG de Movimento Social. Como você
se sente como ONG?
É, na verdade, nós não nos sentimos ONG, e isso é um outro conflito, nós não
somos um Movimento Social e isso eu tenho claro, mas nós também... não somos
uma ONG, porque assim, o CEFURIA é anterior às ONGs; o CEFURIA em 81 surgiu
como Centro de Formação Política, o que é diferente porque as ONGs elas têm ...
enquanto esse conceito... Porque nós temos que diferenciar isso. Porque para nós é
um conflito, por exemplo, a gente não tem uma participação ativa na ABONG,
associação das ONGS do Paraná no Brasil. Exatamente por conta desse conflito, ano
passado a Moema me convidou para uma atividade, lá em Florianópolis, da
ABONG. E porque nós não nos sentimos ONG, porque na verdade as ONGs, nos
226
anos 90, elas já vieram nesse bojo de desresponsabilizar o Estado, da construção de
um terceiro setor, enfim, e que muitas delas se beneficiaram e muitas se organizaram.
Também eu não posso julgar, mas assim como uma forma de construir empregos
para algumas pessoas, e eu não vamos dizer que todas as ONGs são ruins, mas, por
exemplo, a gente se construiu como um centro, tanto é que a gente diz que é uma
associação da sociedade civil com fins não lucrativos, e que não se diz como
organização não governamental, em algum momento aparece isso em alguns
documentos, principalmente na época que o Euclides esteve aqui, inclusive foi um
período de conflitos, por, naquele momento, para nós imagine só, no início dos anos
90... A coisa de falar de ONG e terceiro setor para nós era um horror, eu não estava
internamente, mas eu vi pelos documentos que diziam que o CEFURIA talvez tivesse
que fazer uma adaptação estatutária para se transformar numa ONG, prestadora de
serviços, inclusive para vender serviços de assessoria. Não que ele não tivesse
compromisso, mas acredito que ele tinha uma outra visão, naquele momento, do
papel da ONG, enfim, para poder arrecadar recursos. Agora eu começo a
compreender que depende do conteúdo também. Assim, por exemplo, o CEPAT ele
se organiza, nos anos 90. Eu não posso me igualar ao CEPAT com um monte de
ideologias, que estão aí a serviço do neoliberalismo, só para fazer assistência. Então,
na prática, se formos pensar em organização governamental, nós não somos, porque
nós não somos governamentais. Nossas empresas também são organizações não
governamentais; então, o que nos impede nós somos organizações não
governamentais, que não buscam lucro diferente das empresas, mas isso tem um
monte. Então a gente sempre diz isso: Olha, a gente não se considera ONG desta
leva, nós somos anteriores a isso.
A organização legitima é como ONG?
Não. Não está dito nos estatutos; diz que nós somos uma associação da
sociedade civil.
Você quer ver exatamente a definição do CEFURIA, eu tenho um estatuto
aqui, você também tem um desses?
Não parece que não.
Vou te dar então definição, natureza e sede, enfim: O Centro de Formação
Rural Irmã Araújo é uma associação civil de direito privado com personalidade
jurídica, sem fins lucrativos e econômicos, com sede e fórum na cidade de
Curitiba,...Então, não está dito então, em algum documentos quando começou a
também aparecer, até porque assim principalmente nos anos 90, se teve um projeto
com a ONG que é uma instituição não governamental que capta recurso da União
Européia e outros recursos, inclusive de outras pessoas de alta taxação, então nessa
relação se você pegar os documentos dos anos 90 é possível até que eu vim para cá o
CEFURIA como instituição não governamental, mas assim ela não é.
Não está escrito assim.
22
7
Do ponto de vista estatutário. E até nós fazemos questão de, em determinados
Fóruns, a gente dizer isso, entendeu? Mas assim, por isso que eu te digo que a Terra
de direitos é uma ONG e eles também botam nos estatutos, porque tem uma coisa
assim, até nós estávamos discutindo, nós somos uma instituição da sociedade civil,
nós somos coisa positiva, nós não somos uma... não governo, nós somos uma
instituição da sociedade civil, é diferente, porque veja só o próprio .... não governo, já
sugere que tu vai fazer aquilo que deveria ter feito pelo governo, mas que é feito por
um não governo. Então nós, o CEPAT, a Terra de direitos, a gente tem essa idéia; já
nós somos uma coisa afirmativa, nós não somos algo negativo para fazer isso no
governo.
228
GUIA DA ENTREVISTA N 1
21
Tema da Campanha contra ALCA
Como foi sua inserção no CEFURIA?
Que grupos foram importantes para sua inserção?
Como ficou sabendo do movimento contra ALCA?
Como surgiu o movimento contra ALCA?
Que se pretende defender com o movimento contra ALCA?
Quem participa?
Quais as dificuldades do movimento?
Que trouxe o movimento para vocês?
Qual o futuro do movimento?
Como funciona o movimento?
Que atividades se fazem?
Como esta o movimento na atualidade?
Qual a relação com o governo?
Como se articula o movimento a nível continental?
Como o movimento se articula aos movimentos antiglobalizacão?
21
Esta entrevista foi aplicada, em um momento anterior, a três dos entrevistados, e seu conteúdo foi
utilizado para o enriquecimento da análise desta pesquisa.
229
GUIA DA ENTREVISTA 2
Tema: CEFURIA
Quem é você?.
Quantos anos você tem?
Formada, em que trabalha, a quanto tempo participa no CEFURIA – Com
quem mora – o que você faz
Como você foi se inserindo em grupos de mobilização?
O que você gosto desses espaços? Que predominava nesse grupo?
Como você chegou ao CEFURIA? Quem falou do CEFURIA? como ficou
sabendo dessa entidade. Que estava acontecendo nessa época?
Que foi que falaram a você do CEFURIA?
Lembra o primeiro momento?
E daí como foi sendo a rotina?
Com quem se junto aqui adentro? A quem conheceu?
Que é o que se discutia? Qual era o espírito do CEFURIA?
Quem estava ali?
Naquele momento qual era sua impressão dessa entidade
Qual a sido seu percurso no CEFURIA
Sua impressão mudou ou se manteve?
Que estava fazendo quando entrou no CEFURIA, quem levou a você a se
integrar – que estava acontecendo no meio político social. – como era sua
percepção da realidade antes de entrar no CEFURIA.
Que mudo depois de participar no CEFURIA
Quais suas atividades ligadas ao CEFURIA - Em que campanhas você tem
participado –
230
E as diferentes campanhas que você participou, quais eram os propósitos, eles
foram conseguidos. Que se pretendia nesse momento – que ficou para o
momento posterior –
Como tem sido o processo do CEFURIA
231
GUIA DA ENTREVISTA 3
Tema: CEFURIA
Falei um poquinho de você: onde você nasceu, sua família,
Quantos anos você tem
Grau de instrução Escolaridade
Vinculo empregatício
Núcleo Familiar
Quando começo sua participação em participações coletivas? Em que grupos e
atividades já participou?
Pode me contar um pouquinho o que é o CEFURIA?
Qual é sua ligação com o CEFURIA
O que significa o CEFURIA para você?
Além de participar no CEFURIA, participa de outras atividades? De outros
grupos é afiliado a algum partido?
Como você tomou contato com CEFURIA? (Se fosse o caso) como foi que a
contrataram?
O que a motiva a estar aqui?
O que você faz dentro do CEFURIA a satisfaz?
Como são as pessoas que participam do CEFURIA, segundo você que tem em
comum essas pessoas, que as une?
O que procura o CEFURIA, qual é seu norte?
Qual têm sido os momentos mais críticos do CEFURIA, qual foi sua atuação
nesses momentos?
E os mais enriquecedores? Qual foi sua atuação nesse momentos?
Quais as tendências mais predominantes que o CEFURIA a assumido e por
que (Prioridades)
232
Em que participa o CEFURIA e porque?
Como o CEFURIA tem impactado em sua vida, que mudo depois/
E as diferentes campanhas que você participou, quais eram os propósitos, eles
foram conseguidos. Que se pretendia nesse momento – que ficou para o
momento posterior –
Como você vê a relação com o governo?
Que aspira você como pessoa? O que tem valor para você? Como você vê o
mundo da política?