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Maricia Aguiar Ciscato
A ética do dever em Kant
e a ética do desejo em Lacan
Aproximações e diferenças
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Filosofia do
Departamento de Filosofia do Centro de
Teologia e Ciências Humanas da PUC-
Rio como requisito parcial para obtenção
do grau de Mestre em Filosofia. Aprovada
pela Comissão Examinadora abaixo
assinada.
Profª. Vera Bueno
Orientadora
Departamento de Filosofia – PUC-Rio
Rio de Janeiro
Março de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0511061/CA
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Maricia Aguiar Ciscato
A ética do dever em Kant
e a ética do desejo em Lacan
Aproximações e diferenças
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Filosofia do
Departamento de Filosofia do Centro de
Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio
como requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre em Filosofia.
Profª. Vera Bueno
Orientadora
Departamento de Filosofia – PUC-Rio
Profº. Edgar Lyra
Departamento de Filosofia – PUC-Rio
Ana Lúcia Lutterbach-Holck
Doutora em Teoria Psicanalítica - UFRJ
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro
de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 22 de Março de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0511061/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a
reprodução total ou parcial do trabalho sem
autorização da universidade, da autora e do
orientador.
Maricia Aguiar Ciscato
Graduou-se em Psicologia na Universidade
Federal do Paraná em 2000. Especializou-se em
Psicologia Clínica pela PUC-Rio em 2002.
Ficha catalográfica
C
DD: 100
CDD: 100
CD:100
Ciscato, Maricia Aguiar
A ética do dever em Kant e a ética do desejo em
Lacan: aproximações e diferenças / Maricia Aguiar
Ciscato ; orientadora: Vera Bueno. – 2007.
110 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Filosofia)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2007.
Inclui bibliografia
1. Filosofia Teses. 2. Ética. 3. Kant. 4. Lacan. I.
Bueno, Vera. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.
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Aos meus pais, Luiz e Isoldi, com muito amor e admiração por carregarem tanta
humanidade e beleza em seus corações.
Ao Maurício e à Paula, que me apresentam à nova geração com a pequena e
linda Maria Luísa.
Ao Gustavo, que vive o incrível e o absurdo da vida ao meu lado.
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Agradecimentos
A PUC-Rio, por permitir esse percurso.
A CAPES, por investir em minha formação.
A Vera Bueno,
pela sabedoria que só os verdadeiros mestres possuem e por, tão atenciosamente, permitir
essa experiência. Agradeço pela oportunidade de aprender mais sobre aquilo que me toca.
A Ana Lucia Luterbach-Holck,
por transmitir sensibilidade e coragem diante dos tantos anseios que assustam
nesse longo percurso. Obrigada por falar do que há de bárbaro na vida.
A Pedro Rego,
pela generosidade e simplicidade com que lida com o conhecimento, que fazem com que
suas palavras tenham sido fundamentais nesta trajetória.
A Marcus André Vieira,
por, generosamente, convidar ao trabalho aqueles que foram tomados pela psicanálise.
Obrigada pelo convite primeiro e por dar tanta vida a esse delicado trabalho.
A Madalena Sapucaia,
porque sua presença possibilitou que tantas ausências fossem suportadas e transformadas
em um novo caminho.
Aos amigos, tão queridos,
novos e antigos, por me ensinarem tanto, tanto. E por fazerem da vida infinita.
a Amanda, Adriana, Franciele e Paola,
pela imensidão de sorrisos e lágrimas vividos;
a Beth, pelas palavras e cuidados;
a Soledad, pela simplicidade;
a Patrícia Teixeira, pela generosidade e carinho;
a Marcos, pela docilidade e leveza;
a Fernando e Gabriela, pelo amor transmitido;
a Maria Fernanda, Gisele e Ju Santos, pela infância tão bem cuidada;
a Nix e Cíntia, pela importante presença;
a Celina, Renata e Naiana,
por saberem cuidar das dores mais delicadas;
a Andréa, Mariana, Teresa, Rodrigo, Vânia, Isabel e Renata,
pela incrível parceria;
a Tatiane e Lourenço,
tão valiosos e fundamentais;
a Juliana Rocco, amiga inestimável.
A Raphael,
a quem respeito profundamente pela grandeza tão rara
e a quem tanto devo,
agradeço por tudo.
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Resumo
Ciscato, Maricia Aguiar; Bueno, Vera (Orientadora): A ética do dever em
Kant e a ética do desejo em Lacan: aproximações e diferenças. Rio de
Janeiro, 2007, 110 p. Dissertação de mestrado - Departamento de Filosofia,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Na Crítica da Razão Prática (1788), Kant debruça-se sobre o problema da
ética a fim de apresentar um enunciado capaz de fundamentar e orientar a ação
humana. O imperativo categórico vem encarnar aquilo que é o coração de uma
ética denominada por Kant de ética do dever, calcada na razão e em uma vontade
dita pura, desvinculada de todas as inclinações chamadas patológicas, nas quais o
sujeito encontraria prazer e felicidade. Cerca de um século depois, Freud, ao
afirmar que o eu não é senhor em sua própria morada, lança o sujeito racional a
um lugar desconcertante, com um controle ínfimo sobre suas ações e decisões.
Diferente de Kant, Freud não acredita que o sujeito está inclinado ao prazer e à
felicidade. Aquilo que está além do Princípio do Prazer é uma noção freudiana
fundamental, retomada por Lacan quando, em 1959, ele se propõe a abordar, em
seu seminário de número sete, uma ética da psicanálise. A vontade pura,
formulada por Kant para pensar a ética do dever, torna-se, então, referência maior
para que Lacan aborde o que denomina de desejo puro. Aproximando-se daquilo
que no sujeito aponta para além do princípio do prazer, Lacan, em um movimento
inesperado, remete a proposta ética kantiana à filosofia libertina de Sade, pois
acredita que Sade ajuda a explicitar a divisão do sujeito; divisão presente, mas
velada em Kant. Aquilo que no sujeito aponta para além do princípio do prazer é,
assim, fundamental para Lacan construir uma ética que coloca o desejo em
primeiro plano. É também o que traz à ética da psicanálise um sério problema,
uma vez que a remete a uma dimensão “trágica”. Antígona, de Sófocles, serve a
Lacan para demonstrar aonde se pode chegar com o desejo puro.
Palavras-chave
Ética, Kant, Lacan.
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Abstract
Ciscato, Maricia Aguiar; Bueno, Vera (Advisor): The ethics of duty in Kant
and the ethics of desire in Lacan: common issues and differences. Rio de
Janeiro, 2007, 110 p. Msc. Dissertation - Departamento de Filosofia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
In his Critique of Practical Reason (1788), Kant takes onto himself the task of
working on the problem of ethics in order to present a statement capable to base
and guide human action. The categorical imperative comes to incarnate that wich
is the heart of an ethics called by Kant the ethics of duty, based on reason and on
an allegedly pure will, disentailed of all the so called pathological inclinations, in
which the individual would find pleasure and happiness. About a century later,
Freud, stating that the Ego is not the master of its own house, throws the rational
subject in a baffling place, with very little control of its action and decisions.
Unlike Kant, Freud does not believe that the subject is inclined to pleasure and
happiness. That wich is beyond the Pleasure Principle is a basic freudian notion,
retaken by Lacan in 1959, the seventh year of his seminary, in order to deal with
The ethics of psychoanalysis. Pure will, formulated by Kant to think the ethics of
duty, becomes, hence, a major reference in what Lacan comes to call pure desire.
Coming close to that wich in the subject seems to point beyond the pleasure
principle, Lacan, in an unexpected movement, sends the kantian ethical
proposition to the libertine philosophy of Sade, believing that Sade may help in
his attempt of explicitating the subject's division, present yet veiled in Kant. That
wich points beyond the pleasure principle is, thus, fundamental for Lacan to build
an ethics that places desire in the foreground. It is also what brings a serious
problem to the ethics of psychoanalysis: its "tragic" dimension. Sophocles
Antigone helps Lacan to demonstrate what can one come to when pure desire is
taken to its extreme.
Key-words
Ethics, Kant, Lacan.
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Sumário
Apresentação..........................................................................................11
Introdução...............................................................................................12
1. A ética do dever..................................................................................16
1.1 A priori............................................................................................. 17
1.2 Uma lei moral a priori?.....................................................................22
1.3 A típica do juízo puro prático.......................................................... 24
1.4 Lei, Vontade e Liberdade................................................................28
1.5 Dor e Respeito............................................................................... 32
2. Kant e Freud: imperativo categórico e supereu ..............................35
2.1 O imperativo categórico e o agir por dever..................................... 35
2.2 Das Ding..........................................................................................38
2.3 Desejo transcendental?...................................................................40
2.4 Princípio de Prazer e Princípio de Realidade..................................42
2.5 Pulsões............................................................................................44
2.6 Além do Princípio do Prazer............................................................48
2.7 O supereu freudiano e as aproximações com o Imperativo
Categórico kantiano...............................................................................54
3. Da vontade e do desejo .....................................................................61
3.1 Kant e a vontade..............................................................................61
3.1.1 Inclinação e apetição....................................................................67
3.1.2 Autonomia....................................................................................65
3.1.3 Vontade pura................................................................................67
3.2 Lacan e o desejo.................................................................................68
3.2.1 "O eu não é senhor em sua própria morada"...............................68
3.2.2 O desejo e os imperativos hipotético e categórico.......................72
3.2.3 Desejo e das Ding........................................................................73
3.2.4 Desejo e gozo nas articulações com a Lei: a transgressão.........76
4. Ética do desejo?.................................................................................81
4.1 A liberdade republicana na leitura de Sade.....................................83
4.2 Sade, a apatia, o universal e a dor................................................. 84
4.3 O desejo puro de Antígona............................................................. 89
4.4 Kant com Sade................................................................................94
Considerações Finais ............................................................................98
Da pureza..............................................................................................98
Da dimensão trágica da experiência analítica.................................... 100
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Das responsabilidades........................................................................103
Do determinado e do incondicionado..................................................105
Referências Bibliográficas ..................................................................108
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Siglas
Livros de autoria de Kant serão usados a partir das seguintes siglas nesta
dissertação:
CRP – Crítica da razão pura
FMC - Fundamentação da metafísica dos costumes
CRPr - Crítica da razão prática
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Apresentação
O texto apresentado nas páginas que se seguem não esconde minhas raízes
cavadas nas terras da psicanálise. O leitor irá acompanhar o estranho trabalho que foi
desterrar-me, ao menos em parte, para realizar o esforço teórico de adentrar em um
novo campo de conhecimento. Os encantos que me proporcionaram essa viagem pela
filosofia foram muitos. Aventura por vezes temida, por vezes tediosa, por vezes
inebriante, o trajeto findou com a sensação de que foi um percurso necessário para que o
retorno à psicanálise pudesse ocorrer.
Lacan serviu-se de idéias e pensamentos de áreas diversas da psicanálise, como a
filosofia, a lingüística e a matemática, para poder avançar em seu trabalho e em suas
articulações teórico-clínicas. No uso que fazia dessas áreas, costumava subverter o
conhecimento a fim de utilizá-lo de acordo com seus objetivos. Alguns podem pensar
que, assim, ele não se comprometia com um rigor teórico, mas enganam-se. O rigor
teórico manteve-se certamente, porém sempre ao lado da psicanálise. Por isso, muitos
filósofos, lingüistas e matemáticos protestam quando se dispõem a ler Lacan. Por vezes,
uma certa indignação impede que se possa realizar o esforço de compreender os
objetivos a que Lacan se propunha ao fazer um uso plástico e criativo, porém rigoroso,
das teorias e pensamentos que lhe encantavam e que lhe serviam tanto.
Acompanharemos a leitura do trabalho realizado por Lacan no intuito de formular
para a psicanálise uma ética. Para isso, ele debruçou-se sobre a filosofia e fez da Crítica
da razão prática de Kant sua referência maior. A vontade pura formulada por Kant é a
base para que Lacan apresente o que ele considera a principal questão para a ética da
psicanálise: aquilo que ele denomina, em analogia à vontade pura, de desejo puro. A
filosofia prática de Kant atravessa, assim, todo o trabalho que se segue. O objetivo é
compreender o teor das formulações kantianas acerca da ética do dever e as razões que
levaram Lacan a recorrer a tais formulações para formular uma ética da psicanálise.
Um percurso árduo, certamente. Porém, instigante e desafiador. Espero que os
leitores possam dividir comigo os encantos, perigos e aventuras dessa viagem.
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Introdução
Copérnico retirou a Terra e o homem do centro do universo ao propor o
heliocentrismo. Kant produziu na filosofia revolução similar: descentrou o objeto do
centro do conhecimento e colocou a razão. Antes de Kant, o objeto a ser conhecido
era como se pensava que a Terra fosse antes de Copérnico, ou seja, fixo. E o sujeito que
o queria conhecer girava, como o sol, em torno dele buscando desvendar seus mistérios
e atingir sua verdade. Com a Crítica da razão pura, Kant propôs que a verdade sobre o
objeto dependia da referência a partir da qual os objetos poderiam ser conhecidos, ou
seja, o sujeito passou a ser como o ponto fixo no centro e os objetos a girar ao seu redor.
A razão passou a ser o centro do conhecimento.
Com essa mudança, Kant procurou definir as certezas possíveis no campo do
conhecimento filosófico, uma vez que não se pode construir conceitos filosóficos como
se constroem conceitos matemáticos ou físicos, pois são saberes de naturezas distintas.
A filosofia precisa encontrar sua própria estratégia, embora inspirada nas certezas
alcançadas pela razão em outros domínios.
Com Kant, o conhecimento humano está necessariamente atrelado ao modo como
a razão apreende e pensa o mundo. Ele propõe faculdades independentes de toda e
qualquer experiência. É a partir delas que toda experiência e todos os objetos dados são
vividos e percebidos pelo sujeito. É a partir delas que o sujeito pensa e conhece o
mundo. Por exemplo, a faculdade da sensibilidade é marcada por intuições a priori
puras que são o espaço e o tempo. Não como o sujeito extrair-se do espaço e do
tempo, de modo que sua experiência está fadada a ser sempre por eles enquadrada.
Na Crítica da razão pura (1781), Kant distingue aquilo que o sujeito pode
conhecer daquilo que pode pensar. Assim, remete o que se pode conhecer aos objetos
dados no mundo. Esses objetos fenomênicos são sempre vistos como causados -
sempre algo que os antecede e que os causa - e, por isso, são passíveis de serem
estudados e conhecidos pela razão humana. De outro lado, Kant especifica o campo do
pensamento. Os objetos do pensamento não podem ser vistos da mesma maneira e,
portanto, a alguns deles não se pode atribuir uma causa anterior e não estão a nada
condicionados. São eles os objetos sobre os quais a metafísica irá se debruçar. Kant
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denomina-os: Deus, a imortalidade da alma e a liberdade. Um filósofo o pode jamais
ter a pretensão de conhecer tais objetos como um físico pode pretender conhecer, por
exemplo, a célula ou o fenômeno do crescimento. Os objetos passíveis de serem apenas
pensados, esses não causados e que são, portanto, incondicionados, são chamados
noumênicos.
Dentre eles, como vimos, Kant localiza a liberdade. Ela é peça fundamental para o
estudo que desenvolveremos nas ginas que se seguem. A liberdade é necessária para
que a ética possa ser pensada. Sem ela, o sujeito é apenas um ser condicionado e
causado naturalmente, tal como uma nuvem. Como pensar a ética de uma nuvem? Ela é
livre para decidir se irá chover ou não? Impossível. A ética, vinculada às motivações
que levam o sujeito a agir, pode ser pensada, assim, a partir da liberdade, a partir
daquilo que no que no sujeito é incondicionado. Portanto, a distinção entre conhecer e
pensar realizada por Kant na Crítica da razão pura permite que uma parte da razão não
esteja submetida à causalidade dos objetos dados na medida em que pressupõe um outro
tipo de causalidade, fundada na idéia do incondicionado, e possibilita, assim, um
pensamento sobre a ética.
Na Crítica da razão prática (1788), referência maior para o presente estudo, Kant
debruça-se sobre o problema da ética. É nela que ele pretende alcançar uma certeza para
o campo da ética. Tem a intenção de descobrir um enunciado capaz de fundamentar e
orientar a ação humana em todos os casos. O imperativo categórico, criado por ele, vem
encarnar aquilo que é o coração de uma ética denominada por Kant de ética do dever,
calcada na razão e em uma vontade dita pura, desvinculada de todas as inclinações
chamadas causadas, condicionadas ou patológicas.
O dever desatrela-se de tudo aquilo que no sujeito Kant denomina patológico,
proveniente do pathos, dos afetos. Isso porque os afetos são sentimentos causados e não
podem determinar uma ação que se quer livre. Segundo Kant, a inclinação do sujeito é
agir guiado por seus afetos, onde pensa encontrar prazer e felicidade. A proposta
kantiana é que o sujeito possa agir livre das inclinações patológicas, guiado apenas pela
noção de dever. Estudaremos a proposta kantiana de uma ética do dever no primeiro
capítulo da presente dissertação e nele o leitor poderá acompanhar como Kant acredita
ser possível tal formulação.
Freud, por sua vez, um século após a revolução kantiana, afirma que a teoria
psicanalítica é a terceira grande ferida narcísica da humanidade. Lista-as: Copérnico,
com o heliocentrismo retira a Terra e com ela o homem do centro do universo; Darwin,
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com a teoria da evolução lança a suposta superioridade humana ao reino animal; e o
próprio Freud, com a teoria sobre o inconsciente, que retira da razão o centro do sujeito.
Ao afirmar que o eu não é senhor em sua própria morada, Freud descentra a razão como
o ponto fixo em torno do qual giraria o sujeito e lança o sujeito racional a um lugar
desconcertante, com um controle ínfimo sobre suas ações e decisões.
Freud faz referência ao imperativo categórico kantiano em sua obra ao remetê-lo a
um conceito cunhado por ele denominado supereu. Estudaremos, no segundo capítulo,
os percursos freudianos a respeito da lei moral e o que pode ter levado Freud a realizar
uma analogia entre imperativo categórico e supereu. A passagem por Freud é essencial
para o prosseguimento do estudo, pois é ele quem apresenta a idéia de que o sujeito não
está inclinado ao prazer e à felicidade, como pensava Kant. Para Freud, há no sujeito um
certo empuxo a um campo que está para além do prazer e da felicidade. Aquilo que está
Além do Princípio do Prazer é uma noção freudiana fundamental para compreendermos
o pensamento de Lacan, autor sobre o qual iremos nos debruçar nos capítulos três e
quatro dessa dissertação. Lacan, nos anos de 1959 e 1960, retoma Freud para pensar
uma ética da psicanálise.
A partir de Freud e de sua análise sobre o que aponta para além do Princípio do
Prazer, Lacan vai a Kant, a Sade e a Sófocles. Kant é para ele referência fundamental
para pensar a ética da psicanálise, pois não há, sem Kant, modo de pensar o
incondicionado, o puro. A partir da vontade pura formulada por Kant para pensar a
ética do dever, Lacan formula, analogicamente, um desejo puro para a ética da
psicanálise. Foi Kant quem formulou uma “inteligibilidade subjetiva de onde as
decisões não estão motivadas desde o ponto de vista das leis da natureza” (Miller,
2000a, p.16). Isso é um ponto de virada kantiano tão fundamental que, sem ele, a
psicanálise não teria sido possível. Não seria possível pensar o sujeito de que trata a
psicanálise sem a idéia de que nele algo que não está submetido às leis da natureza,
ao condicionado ou ao patológico. A vontade e o desejo serão os temas sobre os quais
trabalharemos no terceiro capítulo da presente dissertação.
No entanto, Lacan realiza uma leitura do pensamento ético kantiano bastante
perturbadora, a qual abordaremos no quarto e último capítulo. Aproximando-o de Sade,
ponto máximo de uma ética libertina, Lacan pretende mostrar que os dois autores, Sade
e Kant, lançam o sujeito de suas éticas ao que está além do Princípio do Prazer.
Segundo Lacan, “Sade é o passo inaugural de uma subversão da qual, por mais picante
que isso pareça, considerada a frieza desse homem, Kant é o ponto decisivo, e jamais
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identificado, ao que saibamos, como tal.(Lacan, 1998, p. 776). Kant, com todo seu
esforço racional, não consegue, segundo Lacan, escapar do que no sujeito o atravessa
para além da razão e o impulsiona ao campo do gozo. E é para lá também que o desejo
puro noção cunhada por Lacan em analogia à vontade pura kantiana direciona-se.
Antígona serve a Lacan para demonstrar a solução “trágica” a que se pode chegar
quando o desejo puro é levado ao seu extremo.
A ética da psicanálise tem, assim, em seu coração, o desejo. Embora Lacan não a
denomine explicitamente ética do desejo, ele aborda a questão de tal modo que nos abre
a possibilidade de assim a dizer e pensar. O Seminário da ética da psicanálise (1959-
60) é precedido por um outro seminário (1958-59) no qual o desejo e sua interpretação
eram os temas centrais. Nesse período em que abordava diretamente o desejo, Lacan
fazia referência à necessidade de se pensar uma ética que levasse em consideração o
desejo em toda sua força. Em um texto de 1958, afirma: “Cabe formular uma ética que
integre as conquistas freudianas sobre o desejo” (Id., [1958] 1998, p. 621). E, em outro
texto, esse de 1960, afirma: “Uma ética se anuncia, convertida ao silêncio, não pelo
caminho do pavor, mas do desejo” (Lacan, [1960] 1998, p. 691). É, assim, com base no
trabalho de Lacan sobre o lugar do desejo para a ética que nos sentimos autorizados a
fazer uso da expressão ética do desejo.
Nas considerações finais, o leitor irá encontrar não um resumo do que está
exposto nos quatro capítulos da presente dissertação, mas breves reflexões sobre alguns
pontos que nos pareceram mais interessantes e intrigantes a partir da discussão que
nessa dissertação empreendemos. Desejamos àquele que se decidir por percorrer
conosco as páginas que se seguem, uma boa leitura.
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16
1.
A ética do dever
A entrada na obra de Kant provoca um desconcerto imediato. Conceitos, noções e
imagens proliferam de tal forma na escrita kantiana que deixam o leitor iniciante
paralisado diante de tamanha abundância de idéias. Para abandonar a paralisia inicial e
prosseguir no caminho teórico que nos propõe Kant é preciso estar atento aos conceitos
e à forma como eles são articulados. Para tanto, compreender alguns pontos do
pensamento kantiano nos parece fundamental para o desenvolvimento do estudo.
Duas obras são referências fundamentais no estudo da ética kantiana, que é uma
ética baseada no dever. As primeiras formulações especialmente voltadas ao tema
1
foram apresentadas ao público em 1785 na Fundamentação da metafísica dos costumes
(FMC). Três anos depois, em 1788, Kant publica a Crítica da razão prática (CRPr),
trazendo uma análise mais detalhada da proposta de uma ética do dever e suas
implicações. As duas obras giram em torno de uma questão central: o que caracteriza
um ato como moral
2
? Kant responde a essa pergunta criando uma forma puramente
racional de denominar a escolha moral e estabelece que ético é qualquer ato livre cuja
máxima possa ser universalizada. Veremos, no decorrer do trabalho, como ele procura
sustentar essa idéia.
No próximo tópico desenvolveremos brevemente a noção kantiana de a priori,
pois é a partir dela que nos propomos a começar a compreender o que está na base da
ética do dever, a saber, a “lei moral a priori”. Como nosso primeiro intuito, para
podermos compreender a lei moral a priori, é entender a noção de a priori, é através da
1
Já em alguns trechos da Crítica da razão pura (CRP), de 1781, Kant trata de questões que abordam a
vontade e a liberdade. O tema da liberdade aparece como um problema daquilo que ele considera
necessariamente incondicionado. Assim, Kant, na CRP, como que prepara o terreno para alguns anos
mais tarde, na FMC e depois da CRPr, tratar da vontade, da liberdade e, consequentemente, da moral,
como veremos no decorrer do trabalho.
2
Desde deixamos claro ao leitor que o uso dos termos “ética” e “moral” se de forma bastante
indiscriminada pelos autores que aqui abordamos. Sabemos que autores que diferenciam bastante os
dois termos e teorizam sobre essa diferença. No entanto, esse não é o nosso caso. Ética e moral serão
utilizados durante todo o trabalho sem uma preocupação maior com a diferenciação dos termos, uma vez
que os autores trabalhados, em grande parte do tempo, passam de um termo a outro com bastante
naturalidade.
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17
CRP
3
que daremos nosso primeiro passo, pois é nela que Kant apresenta com detalhes a
importância que o a priori tem em sua teoria.
É na CRP que Kant realiza uma revolução no pensamento filosófico ao afirmar
que não é possível para o homem acessar e conhecer qualquer objeto sem uma certa
“moldura” própria da estrutura humana. Ou seja, o que Kant propõe é um conhecimento
a priori dos objetos, estabelecido antes mesmo deles serem dados. Segundo Kant,
Trata-se de uma semelhança com a primeira idéia de Copérnico; não podendo prosseguir
na explicação dos movimentos celestes enquanto admitia que toda a multidão de estrelas
se movia em torno do espectador, tentou se não daria melhor resultado fazer antes girar o
espectador e deixar os astros imóveis. (Kant, [1781] 2001, B XVII)
O objeto passa, assim, a girar em torno das faculdades humanas. A questão não é, então,
o objeto propriamente dito, mas o modo como o homem é capaz de apreendê-lo. Com
isso, Kant marca que o princípio do conhecimento está no sujeito e não fora dele e,
desse modo, o ser humano passa a ser ponto de partida para o conhecimento. É por isso
que o a priori, aquilo que está no sujeito independente de qualquer experiência, ocupa
na CRP um lugar fundamental.
1.1
A priori
Partimos, então, de uma das principais questões kantianas na CRP, a saber,
justificar como são possíveis os juízos sintéticos a priori. Para chegar aí, Kant precisa
realizar um trabalho no qual enfatiza a diferença que entre juízos analíticos e juízos
sintéticos. Os analíticos são explicativos, ou seja, se dão quando o conceito que ocupa o
lugar do predicado do juízo é uma análise do conceito que ocupa o lugar do sujeito.
os juízos sintéticos são extensivos, ou seja, o conceito do predicado não é uma análise
do conceito do sujeito. É acrescentada, assim, uma nota ao conceito do sujeito. Nas
palavras de Kant, são juízos analíticos aqueles “quando a ligação do sujeito com o
predicado é pensada por identidade”. aqueles em que “essa ligação é pensada sem
identidade, deverão chamar-se juízos sintéticos.” (Kant, [1781] 2001, A7).
Para Kant, as elaborações metafísicas
4
teriam recaído, até então, em um erro não
percebido: imputar ao conceito analisado elementos heterogêneos às suas notas, mas,
equivocadamente, considerados pertencentes a ele. Ou seja, o equívoco era o de realizar
3
Texto original de 1781, sendo publicada uma segunda edição em 1787.
4
Especialmente os racionalistas.
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no pensamento sobre determinado objeto uma síntese quando se acreditava estar
realizando uma análise. Esse equívoco comprometeria, segundo Kant, a consistência e
confiabilidade do pensamento voltado à metafísica.
O desafio maior de Kant na CRP é evidenciar a existência de juízos sintéticos a
priori para o trabalho da metafísica, a fim de saber se seria possível dar a ela a mesma
certeza de conhecimento que possuem a matemática e a física. Segundo Kant, tanto a
matemática quanto a física baseiam-se em juízos sintéticos a priori. a metafísica, por
sua vez, permaneceu envolta por uma confusão metodológica que lhe legou uma certa
inconsistência em seus argumentos, pois, segundo Kant, os filósofos muitas vezes
supunham empregar juízos analíticos, mas, na verdade, empregavam indistintamente
juízos analíticos e sintéticos, o que levava a conclusões materialmente pouco confiáveis.
A distinção entre juízos analítico e sintético e entre a priori e a posteriori permite
a Kant avançar na investigação sobre a metafísica, pois poder empregá-los com
segurança permite à metafísica sustentar seu saber com uma consistência análoga à
ciências como a matemática e a física, embora Kant deixe claro serem a metafísica e as
ciências exatas disciplinas absolutamente distintas.
Nos juízos sintéticos a priori estão contidos dois elementos: as intuições a priori
puras e os conceitos a priori puros. Assim, somente podem ser considerados juízos
sintéticos a priori aqueles em que se pode perceber esses dois elementos. Para isso,
Kant precisa primeiro demonstrar que existem tanto as intuições a priori puras quanto
os conceitos a priori puros (também chamados de categorias) e que uma síntese entre
esses dois elementos é possível (Caygill, 2000, p. 211).
As intuições a priori puras e os conceitos a priori puros referem-se, por sua vez, a
duas fontes de conhecimento, a saber, a sensibilidade e o entendimento. Veremos como
ambas desempenham seus papéis nos parágrafos a seguir. Apenas como indicação
introdutória, apontamos que a sensibilidade é a faculdade que possibilita a relação do
homem com as coisas por meio das intuições a priori puras: o espaço e o tempo. Por
sua vez, o entendimento marca a relação do homem com os objetos pensados,
constituídos por meio dos conceitos a priori puros.
Antes de Kant, a priori e a posteriori eram noções definidas apenas como aquilo
que é concluído antes e depois da experiência. Ou seja, o a posteriori era ao que se
chegava a partir do momento em que se encontrava um efeito para determinada causa e
a o a priori era o que se encontrava quando se chegava à causa antes de o efeito ser
empiricamente constatado. Mas Kant modificou esse quadro. Nas palavras de Caygill,
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O critério tradicional para distinguir entre duas formas de demonstração segundo se
desloquem de causa para efeito e vice-versa deixou claramente de ser válido para Kant.
Assim, ele desenvolve novos critérios para um conhecimento a priori: este é (a) puro e
(b) universal e necessário. (Ibid., p. 36)
Kant detalha e torna mais complexa essas noções. Sua preocupação está voltada
ao a priori, visto que o a posteriori não se coloca como problema para ele, pois, como
vimos, ele se propõe a justificar a possibilidade de um juízo sintético ser a priori para o
uso da metafísica. Para definir o a priori Kant impõe, assim, que alguns princípios
sejam seguidos. Para dar início à questão, ele suspende qualquer ligação do a priori
com o empírico. Em suas palavras:
[...] designaremos, doravante, por juízos a priori, não aqueles que não dependem dessa ou
daquela experiência, mas aqueles em que se verifica a absoluta independência de toda e
qualquer experiência. Dos conhecimentos a priori são puros aqueles em que nada de
empírico se mistura. (Kant, [1781] 2001, B4)
O a priori puro, que é o que verdadeiramente nos interessa
5
, está, assim, totalmente
independente de toda e qualquer experiência (justamente onde o a posteriori se firma).
Conceituando assim o a priori, Kant torna o conceito mais determinado e afirma
que, para ser definido como tal, este a priori puro precisa ser universal e necessário,
isto é, precisa conter em si uma validade sem restrições para todo sujeito racional e não
pode ser diferente do que ele é, precisa ser independente da experiência. Sobre a
universalidade e a necessidade do a priori, Kant afirma que “Necessidade e rigorosa
universalidade são pois os sinais seguros de um conhecimento a priori e são
inseparáveis uma da outra.” (Kant, [1781] 2001, B4).
Se as coisas se passam assim como Kant propõe, os dados recebidos pela
sensibilidade, as sensações, são moldados segundo uma espécie de fôrma a priori
(universal e necessária), marcada pelas formas puras da intuição: espaço e tempo. Desse
modo, espaço e tempo como que enquadram os dados sensíveis em uma moldura
permanente (pura, necessária e universal), inevitável e própria à percepção humana.
O entendimento, por sua vez, produz os conceitos que fornecem a rma para os
pensamentos. Esses conceitos são chamados por Kant também de categorias e são ditos
puros, que não possuem origem na experiência. Os conceitos puros ou categorias
oferecem uma “moldura” para o que lhes chega da sensibilidade, ou seja, fornecem a
5
Kant aponta que também um a priori que pode não ser puro. Dele, nos fornece o seguinte exemplo:
“Assim, por exemplo, a proposição, segundo a qual toda mudança tem uma causa, é uma proposição a
priori, mas não é pura, porque a mudança é um conceito que pode extrair-se da experiência” (CRP,
B3).
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priori as regras que regulam os dados sensíveis, possibilitando a constituição dos
objetos.
A possibilidade de ligação dos conceitos puros com as formas puras da intuição,
isto é, a possibilidade das formas do entendimento estarem ligadas às formas da
sensibilidade, constitui a lógica transcendental, ou seja, a disciplina que as regras
para que possamos ter ou falar de objetos da experiência. A gica transcendental
6
trata,
assim, da possibilidade e do modo do conhecimento humano. Aqui o peso não está tanto
no conhecimento propriamente dito dos objetos, mas principalmente no modo de
conhecimento dos objetos, “na medida em que esse modo de conhecimento é possível a
priori” (Ibid., A12).
Vimos até aqui, de modo breve, alguns pontos fundamentais da filosofia kantiana
com relação ao a priori. Compreendê-lo nos ajudará a entender como a ética kantiana
do dever pode ser regida por uma lei moral dita a priori. É no prefácio da segunda
edição da CRP, após explicar as pretensões teóricas dessa obra, que Kant nos apresenta
o que consideramos uma importante passagem para a filosofia prática – para onde
pretendemos ir. Kant realiza essa passagem da teoria à filosofia prática ao frisar o quão
importante é para a metafísica diferenciar os objetos que o ser humano pode conhecer
de objetos sobre ao quais pode apenas pensar. Isso porque é através dessa distinção que
Kant salvaguarda um importante nicho para a metafísica trabalhar de modo consistente
questões sobre um ponto que nos importa muito na filosofia prática, a saber, a liberdade.
A liberdade não possui para Kant o mesmo status dos objetos fenomênicos -
passíveis de serem conhecidos –, uma vez que nela não podemos imputar nenhuma
causalidade anterior que permita justificá-la. Ela é um objeto passível de ser pensado,
mas não passível de ser conhecido. Para a metafísica, nos diz Kant, a questão principal
não é distinguir os objetos que podem ser conhecidos, os objetos fenomênicos - aqueles
cujo conhecimento implica o estudo de suas causas e das “causas de suas causas”, ou
seja, de uma cadeia causal -, daqueles que não podem ser conhecidos. Para a metafísica
interessa principalmente o pensamento dos objetos não causados, chamados
incondicionados ou noumênicos, aqueles que não podem ser submetidos a uma
6
Segundo Caygill (2000), em toda a CRP, transcendental é colocado em oposição ao empírico e alinhado
ao que é a priori. Transcendental refere-se ao modo próprio do conhecimento humano, independente de
qualquer experiência, ao mesmo tempo em que possibilita a experiência, constituindo o modo humano de
apropriação do mundo.
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21
explicação baseada nas leis da natureza
7
. São aqui denominados também de coisas em
si. Deus, a imortalidade da alma e a liberdade são seus exemplos primordiais. Segundo
Kant, “Deverá ressalvar-se e ficar bem entendido que devemos, pelo menos, poder
pensar esses objectos como coisas em si embora os não possamos conhecer (Kant,
[1781] 2001, BXXVII). Poder pensá-los, sabendo-se que não se trata de dar a eles o
mesmo status dos objetos passíveis de serem conhecidos através de suas causas
naturais, é uma tarefa da metafísica.
Sem essa distinção entre os objetos da experiência, fenomênicos, e os objetos
noumênicos (que, como vimos, Kant denomina de coisas em si aqui), não haveria
espaço para um pensamento consistente dos objetos não causados e, logo, não haveria
espaço para pensarmos a liberdade, que é, para a filosofia kantiana, necessariamente
incondicionada e fundamental para podermos pensar a ética.
A citação a seguir trata da distinção entre aquilo que está submetido às leis da
natureza (causado ou condicionado) e aquilo que pode ser considerado livre de causas
naturais (não causado ou incondicionado). Interessante notar que Kant difere não apenas
um objeto fenomênico de um noumênico, mas chama atenção para o fato de que o
mesmo objeto pode encerrar aspectos condicionados e incondicionados.
Assim, de um mesmo ser, por exemplo, a alma humana, não se poderia afirmar que a sua
vontade era livre e ao mesmo tempo sujeita à necessidade natural, isto é, não livre, sem
incorrermos em manifesta contradição, visto que em ambas as proposições tomei a alma
no mesmo sentido, ou seja, como coisa em geral e nem de outro modo podia proceder
sem uma crítica prévia. Se, porém, a crítica não errou, ensinando a tomar o objecto em
dois sentidos diferentes, isto é, como fenômeno e como coisa em si; se estiver certa a
dedução dos seus conceitos do entendimento e se, por conseguinte, o princípio da
causalidade se referir tão somente às coisas tomadas no primeiro sentido, isto é, enquanto
objecto da experiência e se as mesmas coisas, tomadas no segundo sentido, lhe não
estiverem sujeitas, então essa mesma vontade pode, por um lado, na ordem dos
fenômenos (das acções visíveis), pensar-se necessariamente sujeita às leis da natureza, ou
seja, como não livre; por outro lado, enquanto pertencente a uma coisa em si, não sujeita
a essa lei e, portanto, livre, sem que desse modo haja contradição. (Kant, [1781] 2001,
BXXVIII)
Tendo feito essa importante divisão, Kant vincula, ainda no segundo prefácio da
CRP, a moral à liberdade. Isso porque, para ele, a moral
7
“Desta dedução da nossa capacidade de conhecimento a priori, na primeira parte da Metafísica, extrai-
se um resultado insólito e aparentemente muito desfavorável à sua finalidade, da qual trata a segunda
parte; ou seja, que deste modo não podemos nunca ultrapassar os limites da experiência possível, o que é
precisamente a questão mais essencial desta ciência. Porém, a verdade do resultado que obtemos nesta
primeira apreciação do nosso conhecimento racional a priori é-nos dada pela contra-prova da
experimentação, pelo facto desse conhecimento apenas se referir a fenômenos e não às coisa em si que,
embora em si mesmas reais, se mantêm para nós incognoscíveis.” (Kant, [1781] 2001, BXX)
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[...] põe a priori, como dados da razão, princípios práticos que têm sua origem nesta
mesma razão e que sem os pressupostos da liberdade seriam absolutamente impossíveis
[...] (Ibid., BXXIX)
Caso a proposta de uma “revolução” como a de Copérnico e a distinção entre o que se
pode conhecer e o que se pode pensar não tivessem sido realizadas por Kant, a liberdade
estaria fadada a pertencer ao campo dos objetos condicionados e estaria, assim, sempre
referida a uma causa que a precede, impossibilitando que um ato livre, não
condicionado, pudesse se dar e que pudéssemos falar de livre arbítrio. Se assim o fosse,
ainda nas palavras de Kant, “a liberdade e com ela a moralidade [...] teria de ceder o
lugar aos mecanismos da natureza.” (Loc. cit.).
Assim, notamos que os problemas que Kant nos apresenta na CRP estão também
ligados à questão da liberdade e, consequentemente, à ética. Ligados, portanto, à
filosofia prática. Com isso, podemos, enfim, passar à crítica que trata da ética e da lei
moral a priori. Vamos a ela.
1.2
Uma lei moral a priori?
Na FMC, Kant diz que a moral se afirma na idéia de que uma “razão que
determina a vontade por motivos a priori.” (Kant, [1785] 2005, p. 41). É o a priori da
lei moral, produzida pela razão, nosso ponto de partida.
Uma lei que é capaz de determinar a ação à revelia de qualquer experiência, sem
visar um bem subjetivo, pois está completamente desligada das motivações sensíveis, da
felicidade ou do prazer, e deve estar sempre referida, formal e objetivamente, à vontade.
Ou seja, seguindo a lei moral, o sujeito ao agir não leva em conta motivos subjetivos,
mas visa sempre a possibilidade de universalização de sua ação.
Se nos basearmos no que vimos no item anterior, uma lei moral determinada pela
razão de modo a priori significa que é uma lei a) pura e b) necessária e universal. O
caráter necessário e universal da lei moral talvez seja sua característica principal. Há,
em Kant, como vimos, uma articulação fundamental entre universal e necessário para se
pensar o a priori: “Necessidade e rigorosa universalidade são pois os sinais seguros de
um conhecimento a priori e são inseparáveis uma da outra”. (Id., [1781] 2001, B4). A
necessidade e universalidade da lei moral possibilitam que ela se difira de toda e
qualquer decisão subjetiva, pois ela se caracteriza pela forma (objetiva) e não pelo seu
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conteúdo (subjetivo), que o conteúdo refere-se apenas a singularidade de cada sujeito
e a forma faz referência a todo e qualquer indivíduo, a toda e qualquer razão.
Kant difere, assim, aquilo que é da ordem subjetiva, singular, do que pode ser
considerado objetivo e universal. Em suas palavras, certas proposições
[...] são subjetivas ou máximas, se a condição for considerada pelo sujeito como válida
somente para a vontade dele; mas elas são objetivas ou leis práticas, se a condição for
conhecida como objetiva, isto é, como válida para a vontade de todo ente racional. (Id.,
[1788] 2003, p. 65)
Kant nos apresenta, por um lado, máximas e, por outro, leis, as quais i denominar
imperativos. Propõe, através dessa distinção, que a vontade pode ser regida não apenas
por máximas (subjetivas), mas também por leis (objetivas) apresentadas a priori pela
razão.
O ser humano, para Kant, é simultaneamente racional quando age movido pela
razão e patológico quando age movido pela sensibilidade. A lei moral deve ser
sempre um produto da razão, e nunca regida patologicamente, regida por motivos
sensíveis. Kant nos diz que imperativo é tudo aquilo que se coloca como um dever-ser
apresentado pela razão. aqui uma pequena sutileza, pois Kant nos apresenta dois
tipos distintos de imperativo, a saber, o imperativo hipotético e o imperativo categórico.
O primeiro pretende alcançar determinado objetivo ou efeito apetecido, enquanto
o segundo, que é o único que podemos chamar moral, não possui nenhum objetivo
prévio determinado por seu conteúdo ou por qualquer objeto apetecido. Ele é
unicamente formal e completamente independente de qualquer determinante patológico.
É ele quem rege e impera sobre a vontade quando a ação realizada é considerada moral.
Portanto, o imperativo categórico é o determinante da lei moral e constitui-se numa
fórmula geral para todo ato humano. Ele é, assim, universal.
Kant, na FMC, nos apresenta o imperativo categórico da seguinte forma:
Uma vez que despojei a vontade de todos os estímulos que poderiam advir da obediência
a qualquer lei, nada mais resta do que a conformidade a uma lei universal das acções em
geral que possa servir de único princípio à vontade, isto é: devo proceder sempre de
maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal.
(Kant, [1785] 2005, p. 33)
Ou (ainda na FMC): “O imperativo categórico é portanto um único, que é este:
Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer que ela se torne lei universal.
(Ibid., p.59). E um pouco mais adiante: “[...] o imperativo universal do dever poderia
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também exprimir-se assim: Age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela
tua vontade, em lei universal da natureza.
8
(Ibid., p. 59)
Além de universal e necessária, a lei moral, por ser determinada a priori, é
também pura. Segundo Kant
[...] leis práticas referem-se unicamente à vontade, sem consideração do que é realizado
através da causalidade da mesma, e pode-se abstrair desta última (enquanto pertencente
ao mundo sensorial) para as ter como puras. (Id., [1788] 2003, p. 71)
Entramos, com isso, em um ponto que será fundamental para nosso tema de trabalho, a
saber, a vontade pura.
Segundo Caygill,
A razão prática pura descobre o seu princípio não nos fundamentos heterônomos da
realização de tais fins como a felicidade, mas na forma pura, gerada de maneira
autônoma, do imperativo categórico. (Caygill, 2000, p. 268)
Para Kant, a lei moral tem a capacidade de desvincular os atos humanos da vontade
patológica, do agir movido pela apetição. Desvincula um ato, portanto, da busca da
felicidade subjetiva e de qualquer motivação sensível.
A proposta da moralidade kantiana pressupõe, assim, que existe um agir
puramente por dever, regido pela vontade pura, liberto do agir determinado pela
vontade patológica, ou seja, pressupõe que uma vontade pura determine que exista o
agir por dever, que é o agir moral. Veremos, em breve, a implicação entre lei moral,
vontade e liberdade com mais detalhe logo adiante.
1.3
A típica do juízo puro prático
Antes de apresentarmos a discussão sobre as implicações entre lei moral, vontade
e liberdade, apresentamos uma outra discussão que consideramos relevante e
interessante. Como vimos rapidamente no item anterior e como veremos de modo mais
detalhado no próximo, a razão pura é capaz de determinar a vontade através da lei
moral. Essa vontade determinada pela lei moral, considerada, dessa forma, livre de
qualquer motivo patológico, promoverá uma ação no mundo empírico. A lei moral é a
priori e, portanto, completamente desvinculada do campo sensível. Ela é proveniente da
razão pura. A ação, por sua vez, resultante da vontade regida pela lei moral, se realiza
no mundo empírico.
8
Os grifos das ultimas três citações são todos do autor.
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Frente a isso, podemos considerar que essa questão que surge na CRPr é de certo
modo análoga a uma outra da CRP, onde Kant se questiona sobre o que é capaz de fazer
o elo entre o entendimento e a sensibilidade. Imaginação e esquematismo são as
respostas apresentadas para o problema da CRP. Segundo Crampe-Casnabet (1994), a
típica do juízo prático é a resposta dada na CRPr, análoga àquela dada na CRP, para o
problema de como razão e sensibilidade estariam relacionadas.
1.3.1
Imaginação e esquematismo na CRP
Uma das principais questões kantianas na gica transcendental da CRP é
relacionar as representações do entendimento aos dados da sensibilidade. Kant se
conta, como vimos, de que os limites do conhecimento humano não permitem um
acesso aos objetos (tanto da experiência quanto do entendimento) sem alguns
pressupostos. Assim, os dados da sensibilidade são recebidos pelo sujeito por meio da
moldura que lhe a sensibilidade - com as intuições puras do espaço e do tempo e
compreendidos pela moldura que lhe o entendimento através dos conceitos puros.
É por esse enquadre, naturalmente humano transcendentalque vemos, apreendemos
e compreendemos formalmente os objetos do mundo segundo Kant. Há uma marca dada
originalmente, um enquadramento delimitado pelas faculdades humanas
transcendentais, e é a partir dele que o sujeito conhece as coisas do mundo.
Em Kant, a faculdade do entendimento, apesar de ser a priori independente,
portanto, da experiência - necessita dos dados empíricos da sensibilidade. É a partir e
por meio deles que o entendimento pode vir a ser atualizado, ou seja, que sua função
pode ser exercida. Desse modo, compreendemos que a faculdade do entendimento
necessita relacionar-se com os dados (empíricos), recebidos pela sensibilidade.
Kant apresenta, então, o problema da ligação entre as duas faculdades, que em
última análise responde à questão sobre a possibilidade do juízo sintético a priori. A
questão pode ser formulada do seguinte modo: como é possível que as representações
do entendimento e as da sensibilidade possam ser sintetizadas se possuem origem em
faculdades diferentes, ou seja, se são provenientes de duas naturezas heterogêneas? Para
ligar as representações do entendimento e da sensibilidade, Kant introduz uma terceira
faculdade: a faculdade da imaginação. A imaginação realizaria a síntese entre
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sensibilidade e entendimento, realizaria a passagem entre os dados recebidos pela
sensibilidade e o objeto pensado por meio do conceito do entendimento.
A faculdade da imaginação é, ela mesma, anterior e independente da experiência.
Mas, ao mesmo tempo, ela desempenha um importante papel entre o que é a priori e o
que é sensível e mesmo empírico. Em Kant, a faculdade da imaginação possui uma
função ambivalente, pois ela lida com o que é empírico e com o que é puro. Há
momentos em que ela está referida ao entendimento e momentos em que está referida à
sensibilidade. “A imaginação é situada entre a sensibilidade e o entendimento, e para
além de ambos e de si mesma” (Caygill, 2000, p. 189). Segundo Kant, a imaginação
possui uma função cega e até mesmo misteriosa (Kant, [1781] 2001, A77).
Assim, temos a seguinte montagem:
1) A sensibilidade estabelece uma primeira organização, espacializada e
temporalizada, dos dados sensíveis.
2) A imaginação apreende e reproduz o material recebido pela sensibilidade e
realiza uma síntese. Nas palavras de Kant:
Há, pois, em nós uma faculdade ativa de síntese desse diverso, que chamamos
imaginação, e a sua ação, que se exerce imediatamente nas percepções, designo por
apreensão. (Ibid., A120)
3) O entendimento unifica o material espacializado, temporalizado e sintetizado a
uma categoria.
Isso é possível porque a imaginação é ambivalente: ao mesmo tempo em que é
sensível e reprodutora, operando por associações, é também produtora, cooperando com
o entendimento. Essa noção de imaginação produtora é uma inovação apresentada pela
teoria kantiana. A imaginação deixa de ser uma mera reprodutora e passa a organizar as
impressões recebidas por meio da sensibilidade segundo a regra dos conceitos. Segundo
Caygill,
Essa relação entre intuições, conceitos e a apresentação dos conceitos à intuição através
da imaginação é a resposta à questão de como são possíveis os juízos sintéticos a priori,
uma resposta que forma o núcleo da filosofia crítica [...]. (Caygill, op. cit., p. 211)
1.3.2
A típica do juízo na CRPr
Como vimos, a lei da razão prática é uma proposição a priori, pois a razão prática
apresenta à vontade uma lei universal, independente de qualquer experiência, capaz de
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determinar a ação. Resta compreender como é realizada a passagem que leva da
apresentação da lei moral à ação, uma vez que a lei moral pertence ao campo racional e
a ação ao campo empírico. A esse respeito, podemos nos referir à questão, presente
na FMC, que remete à possibilidade de reconhecer uma ação como sendo moral: como
posso ter certeza de que estou agindo unicamente por dever, ou seja, como posso ter
certeza de que meu agir é regido apenas pela lei moral, apenas pela razão?
Segundo Kant, na FMC,
[...] é absolutamente impossível encontrar na experiência com perfeita certeza um único
caso em que a máxima de uma acção, de resto conforme ao dever, se tenha baseado
puramente em motivos morais e na representação do dever. (Kant, [1785] 2005, p. 40)
Ele continua:
[...] mesmo pelo exame mais esforçado, nunca podemos penetrar completamente até os
móbiles secretos dos nossos actos, porque, quando se fala do valor moral, não é das ações
visíveis que se trata, mas dos seus princípios íntimos que não se vêem. (Loc. cit.)
Como garantir que a regra prática da lei moral comande de fato a ação e impeça
que quaisquer outros motivos de ordem subjetiva ou sensível sejam os reais motores da
ação? A resposta de Kant faz com que compreendamos que a ética do dever é um ponto
a ser alcançado por qualquer ser racional. É a partir da certeza de que lei prática é
absoluta e necessária por ser a priori, por ser resultado apenas da razão, sem qualquer
influência empírica, que podemos compreender que a sua aplicabilidade é um esforço
diário que deve se dar em todo ser racional. Nas palavras de Kant:
Pois a pura representação do dever e em geral da lei moral, que não anda misturada com
nenhum acrescento de estímulos empíricos, tem sobre o coração humano, por intermédio
exclusivo da razão (que então se conta de que por si mesma também pode ser
prática), uma influência muito mais poderosa do que todos os outros móbiles que se
possam ir buscar ao campo empírico, em tal grau que, na consciência da sua dignidade,
pode desprezar estes últimos e dominá-los pouco a pouco. (Kant, [1785] 2005, p.45)
O fato de a lei moral resultar da razão pura e ser uma lei a priori, faz com que a
possibilidade dela se apresentar esteja em todo e qualquer ente racional. Ela não está
enlaçada, assim, a nenhuma experiência subjetiva e por isso não precisa ser matizada de
acordo com a vivência de cada ser humano. Ela é única, formal e universal.
uma diferença radical entre as causas que levam à ação qualquer ente da
natureza e as que levam um ser racional a agir. O ser racional é o único na natureza
capaz de agir segundo representações de leis - enquanto toda a natureza apenas
responde às leis naturais. Representações de leis são princípios e estão ligados a algo
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também único ao ser racional, e segundo Kant esse algo é a vontade. “Como para
derivar as acções das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão
prática”. (Kant, [1785] 2005, p. 47). Isto é, “a vontade é a faculdade de escolher
aquilo que a razão independente da inclinação, reconhece como praticamente
necessário, quer dizer como bom.” (Loc. cit.). Ou seja, a vontade deve ser determinada
independente de toda e qualquer influência empírica para que seja boa.
O que Kant propõe, como resposta ao problema de síntese apresentado, faz
referência ao esquema criado na CRP. No entanto, o termo esquema lugar agora ao
termo Typus, ou “tipo”. Tipo de uma lei que pode ser apresentada de tal forma que
esclareça se um ato é moral ou não. Uma lei natural, mas apenas segundo sua forma, o
que quer dizer, universal.
A regra da faculdade de julgar sob leis da razão prática pura é esta: pergunta a ti mesmo
se poderias de bom grado considerar a ação, que te propões, como possível mediante a tua
vontade, se ela devesse ocorrer segundo uma lei da natureza da qual tu mesmo fosses uma
parte. (Id., [1788] 2003, p. 239).
Para Crampe-Casnabet:
No domínio ético, a via do esquematismo, que poderia unir princípio puro e uma intuição
aqui excluída, está fechada. Entretanto, Kant vai utilizar a palavra esquema para resolver
o problema da aplicação da lei à ação possível. Trata-se de encontrar o esquema da
própria lei moral, ficando bem entendido que o esquema aqui só pode ser entendido como
analógico. A aplicação da lei pode depender do entendimento puro que, na medida em
que ele constitui as leis da natureza, pode fornecer uma lei natural que sirva de esquema
analógico para a lei moral; o entendimento fornece a pura forma de uma lei da natureza,
que não é mais que a forma universal. Essa forma serve de tipo a partir do qual a lei
moral deverá se regular em sua aplicação. (Crampe-Casnabet, 1994, p. 75)
1.4
Lei, Vontade e Liberdade
Ao iniciarmos o estudo da ética do dever, uma série de questões nos é apresentada
a partir de um único princípio: é moral todo ato livre que possamos querer que seja
universalizado. Após analisarmos o a priori kantiano, partindo das sutilezas
apresentadas na CRP para chegarmos à proposta de uma lei moral a priori apresentada
na CRPr, nos deparamos com a dificuldade de compreender como uma lei moral a
priori pode chegar a determinar uma ação e voltamos ao problema sobre como podemos
saber se um ato é mesmo moral ou não, se está mesmo sendo regido pela razão e não
por motivações sensíveis. O caráter universal e puramente formal da lei entra, então, em
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cena e o imperativo categórico nos é apresentado. Através da análise de nosso ato pela
lei formal podemos nos aproximar da conclusão se ele é moral ou não. O tipo da lei, ou
a típica do juízo, nos fornece respaldo para prosseguir com a ética do dever.
Como Kant situa o homem em dois âmbitos, um racional e outro sensível (ou
patológico), ele acredita que no mundo prático, o mundo da liberdade, o homem
também pode agir por motivos racionais ou por motivos patológicos. A ética trata da
ação do homem e do que determina essa ação. Agir por amor? Agir em prol da própria
felicidade? Agir em busca de prazer? Agir para o bem do próximo? O que, afinal, deve
determinar o agir? E quais dessas ações podem ser consideradas éticas por Kant?
A ética kantiana permite localizar como realmente ética uma ação determinada
pelo dever. Nenhum desses outros motivos – amor, prazer ou felicidade – poderia
determinar um agir como sendo ético. No entanto, Kant acredita que no ser humano
uma verdadeira inclinação pelo agir patológico (agir por prazer, agir por motivos
pessoais, agir em busca de reconhecimento...). O agir por dever exige, desse modo, um
esforço individual de romper com a inclinação que se tem pelo agir patológico.
O que se apresenta aqui, portanto, é uma decisão possível. Para Kant, o ser
humano tem a liberdade de escolher entre agir patologicamente ou agir por dever. Se ele
se deixar levar pelo agir patológico, entretanto, não estará fazendo uso pleno de sua
liberdade. Já na CRP, Kant afirma que há a possibilidade do agir livre e do agir segundo
as leis da natureza. Em suas palavras: “Só é possível conceberem-se duas espécies de
causalidade em relação ao que acontece: a causalidade segundo a natureza ou a
causalidade pela liberdade” (Kant, [1781] 2001, B560). Ele continua o argumento do
seguinte modo:
Ora, como a causalidade dos fenômenos repousa em condições de tempo, e o estado
precedente, se sempre tivesse sido, não teria produzido um efeito que se mostra a
primeira vez no tempo, a causalidade da causa do que acontece ou começa, também
começou e, segundo, o princípio do entendimento, tem necessidade, por sua vez, de uma
causa. Em contrapartida, entendo por liberdade, em sentido cosmológico, a faculdade de
iniciar por si um estado, cuja causalidade não esteja, por sua vez, subordinada segundo a
lei natural, a outra causa que a determine quanto ao tempo. (Ibid., B533)
A liberdade, nesse sentido cosmológico que Kant a denomina, é justamente aquilo
que possibilita a existência de algo inédito, novo, e por isso mesmo deve estar
desvinculada do agir patológico, que, por sua vez, está “amarrado” a uma cadeia causal
e, portanto, condicionado. Ou seja, a liberdade, nesse sentido, aponta para a capacidade
que o sujeito possui de iniciar por si um novo estado. a liberdade em seu sentido
prático, trata dos motivos autônomos capazes de determinar a vontade, trata de uma
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vontade autônoma. Segundo Kant, “a liberdade no sentido prático é a independência do
arbítrio frente às coações dos impulsos da sensibilidade” (Ibid., B562).
Kant trata ainda do livre arbítrio (arbitrium liberum), característico dos seres
racionais, como radicalmente distinto do arbítrio animal (arbitrium brutum), esse
determinado apenas por impulsos sensíveis, ou seja, determinado apenas
patologicamente. O livre arbítrio, por sua vez, pode ser determinado por motivos
representados apenas pela razão (Ibid., B830).
As causas que regem a vontade no agir patológico que, portanto, não é livre,
mas condicionado não se encontram na razão. Na razão encontra-se a lei moral que,
aplicada à vontade, é capaz de determiná-la-la para que ocorra uma ação por dever e,
portanto, livre. A liberdade é, então, o que possibilita que haja uma escolha moral, e é
também o que se conquista através da escolha pelo agir por dever, ou seja, um agir não
submetido aos impulsos sensíveis, determinados apenas patologicamente, como fazem
os animais.
Há uma pequena nota de roda logo no início da CRPr que nos ajuda a
compreender a íntima relação entre liberdade e moral, uma vez que a liberdade é
condição para que a escolha moral possa vir a ser, e que lei moral é condição de
conhecimento da liberdade. Nas palavras de Kant:
Para que não se imagine encontrar aqui inconseqüências, quando agora denomino a
liberdade condição da lei moral e depois, no tratado, afirmo que a lei moral seja condição
sob a qual primeiramente podemos tornar-nos conscientes da liberdade, quero apenas
lembrar que a liberdade é sem dúvida a ratio essendi da lei moral, mas que a lei moral é a
ratio cognoscendi da liberdade. Pois, se a lei moral não fosse pensada antes claramente
em nossa razão, jamais nos consideraríamos autorizados a admitir algo como a liberdade.
Mas, se não existisse liberdade alguma, a lei moral não seria de modo algum encontrável
em nós. (Kant, [1788] 2003, nota de roda pé, p. 7).
Orbitamos, no momento, em torno de três conceitos principais: lei moral,
liberdade e vontade. Agir por dever é, assim, uma liberdade da vontade na opinião do
nosso autor. “A vontade é dita livre quando ela se determina não sob o impulso de
móveis sensíveis, mas segundo princípios raciocinais, sejam eles puramente formais ou
materiais.” (Crampe-Casnabet, 1994, p. 68)
A Crítica da razão prática vem, dessa forma, preencher um espaço do uso da
liberdade que poderia se perder, segundo Kant, se a filosofia permanecesse acreditando
que o homem não é capaz de determinar sua ação por dever.
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31
Uma crítica (CRPr) da razão prática é necessária na exata medida em que essa razão
tende ao abuso. Abusar significa aqui pretender que um uso prático puro é impossível,
isto é, muito simplesmente, que não há liberdade, que não há ato moral possível. (Ibid., p.
71)
Kant escreve a CRPr como uma crítica necessária para manter aberto o lugar que
considera ser o da verdadeira liberdade para qualquer ser racional.
Voltamos, então, ao esforço que cada um deve realizar para possibilitar que a ação
não seja determinada por causas patológicas, mas sim seja realizada moralmente, ou
seja, por dever, obedecendo ao imperativo categórico. A liberdade é condição do
esforço que podemos efetuar quando não nos deixamos determinar por puros móveis
sensíveis.
A submissão da vontade à lei moral é um ato de liberdade. Esse argumento de
Kant faz com que pensemos que, se a vontade obedece à lei universal que lhe a
razão, ela pode ser definida como uma vontade ética e autônoma. A vontade é autônoma
porque ela segue o que a razão pura determina e, nesse sentido, dá a si mesma uma lei, a
lei prática pura ou lei moral e, portanto, ela mesma pode ser dita razão prática pura. Nas
palavras de Kant, como dissemos: “Como para derivar as acções das leis é necessária
a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática”. (Kant, [1785] 2005, p. 47).
A autonomia da vontade é apresentada por Kant na FMC. ele chama a
atenção para a distinção entre uma vontade autônoma e uma vontade heterônoma,
fazendo do conceito de liberdade o termo chave para realizar tal distinção. Uma vontade
autônoma oferece a si mesma a lei representada pela forma de universalidade (o
imperativo categórico). em uma vontade heterônoma a lei é dada por algo exterior,
por um objetivo que se quer alcançar e, sendo assim, seus imperativos são hipotéticos.
O imperativo categórico representa, por sua vez, um princípio autônomo que se abstrai
de qualquer objeto ou objetivo sensível e está necessariamente representando lei
universal. Liberdade é o conceito chave aqui, pois, como vimos, possibilita a autonomia
da vontade, isto é, possibilita que a vontade queira seguir a razão pura e possa fazer dela
razão prática e uma lei para si mesma.
Como vimos, a vontade não é conforme a lei, ou seja, ela não concorda com a lei
de imediato, e por isso diz-se que a vontade é dissonante da lei. Somente a partir do
momento em que a vontade, dissonante da lei, aceita submeter-se à lei que oferece a si
mesma é que ela pode ser considerada moral. Por causa da dissonância que possui com
a vontade, a lei moral provoca em nós um sentimento definido por Kant como dor. “A
lei moral produz primeiramente em nós um efeito negativo: ela contraria as inclinações,
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os móveis sensíveis, o desejo natural; instaura em nós uma luta que provoca um
sentimento de dor.” (Crampe-Casnabet, 1994, p. 77). Veremos agora o lugar que possui
tanto o sentimento de dor quanto o sentimento de respeito na obra de Kant.
1.5
Dor e Respeito
A dissonância entre lei e vontade precisa estar, necessariamente, colocada para
que a ética do dever exista. Uma ação pode estar até de acordo com a lei moral, mas se a
vontade, que está sempre inclinada ao patológico, não tiver sido submetida, à revelia,
pela lei moral, podemos dizer que se trata de uma ão legal, mas não podemos dizer
que é moral. Isso porque, segundo Kant, o agir moral jamais está conforme à vontade,
pois essa está sempre inclinada ao patológico.
Agir moralmente não é agir por interesse ou por egoísmo, nem por amor próprio,
mas é agir por respeito à lei. Agir contra as inclinações primeiras da vontade é agir por
respeito à lei, ou seja, é agir por dever. Agir por dever se distingue, desse modo, do agir
conforme ao dever, pois nesse último caso não haveria disparidade entre as inclinações
patológicas e o mandamento moral. Com isso, Kant se propõe a analisar de que modo a
lei moral torna-se a real causa da ação e o que acontece à faculdade de apetição (que
rege as causas patológicas) quando afetada pela lei moral e impedida de colocar na ação
suas vontades. Ou seja, como a prática da lei moral afeta o ‘ânimo’ do ser humano? (Cf.
Kant, [1788] 2003, p. 251). Kant inicia a resposta:
[...] podemos ter a priori a perspiciência de que a lei moral enquanto fundamento
determinante da vontade, pelo fato de que ela causa dano a todas as nossas inclinações,
tem de provocar um sentimento que pode denominar-se dor, e aqui temos, pois, o
primeiro caso, talvez também o único, em que podíamos determinar a partir de conceitos
a priori a relação de um conhecimento (neste caso, de uma razão prática pura) com o
sentimento de prazer e desprazer. (Ibid., p. 253)
A razão prática pura limita os motivos patológicos, os quais podem ser agora
representados pelo amor próprio, que se for convertido em princípio prático
incondicionado pode ser denominado presunção. O amor de si posiciona-se sempre de
modo complacente com as escolhas pessoais e a lei moral causa, segundo Kant, um
dano a esse sentimento. Com relação à presunção, Kant afirma que a lei moral a abate
por completo.
Ora, a lei moral, a qual, unicamente, é verdadeiramente (a saber, sob todos os aspectos)
objetiva, exclui totalmente a influência do amor de si sobre o princípio prático supremo e
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33
rompe infinitamente com a presunção, que prescreve como lei as condições subjetivas do
amor de si. (Ibid., p. 255)
A lei ocupa, então, um lugar bastante intrigante, pois ao mesmo tempo em que
inibe as inclinações patológicas, afetando assim o amor próprio e a presunção, ela é
também objeto de respeito. Ela, ao mesmo tempo em que provoca dor e humilha o
homem por arrancar dele as possibilidades de realização das inclinações, provoca no ser
humano um sentimento de respeito. A humilhação advém porque, segundo Kant, aquilo
que rompe com nossa própria presunção é também aquilo que nos humilha. “Portanto, a
lei moral inevitavelmente humilha todo homem na medida em que ele compara com ela
a propensão sensível da sua natureza.” (Ibid., p. 259).
Com isso, notamos que, para Kant, a efetividade da lei moral provoca no campo
subjetivo dois tipos de reações relevantes. Por um lado, é responsável por um
sentimento negativo de humilhação e também de dor. Thouard a situação do seguinte
modo:
[...] sou contrariado em meu impulso por essa imposição que me parece como exterior e
coativa. O sentimento que experimento é o sentimento de desagrado. A lei moral é uma
violência para nós. Nossa espontaneidade, nosso amor próprio são rebaixados,
humilhados. (Thouard, 2004, p. 128)
A limitação da inclinação promove no sentimento não apenas o sentimento de dor ou de
humilhação, mas também algo que Kant denomina de desprazer. Um desprazer que, por
ser efeito de uma lei a priori, também pode ser conhecido a priori, através da simples
não realização da vontade patológica.
Por outro lado, a lei moral faz surgir no homem um sentimento positivo,
sentimento de respeito pela lei. Podemos dizer, dessa forma, que a lei moral provoca no
homem um sentimento que é favorável à lei sobre a vontade.
Ora, sobre isso cabe observar que, assim como o respeito é um efeito sobre o sentimento,
por conseguinte, sobre a sensibilidade de um ente racional, ele pressupõe essa
sensibilidade [...]. (Kant, [1788] 2003, p. 265)
Apenas aos seres racionais e não livres de toda a sensibilidade, portanto, é atribuída a
possibilidade de experienciar o sentimento de respeito pela lei.
É interessante notar que o respeito provocado pela lei moral não possui origem
empírica. Ele é oriundo da simples reflexão racional sobre a lei moral que é, ela mesma,
a priori. Assim, respeito é o único sentimento destacado por Kant como moral por ser o
único produzido exclusivamente pela razão. E é também o único motivo realmente
moral a determinar a escolha de uma ação.
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34
Por fim, ao tocarmos na questão do respeito podemos retomar a discussão sobre o
que faz a ligação entre a lei moral e a ação - abordada quando tratamos da “típica” –,
que, como vimos, a lei moral é razão pura e a ação encontra-se no mundo empírico.
Podemos considerar o respeito, efeito da vontade, como um terceiro termo. Nesse caso,
sua função seria a de fazer elo entre lei moral e vontade. Crampe-Casnabet explicita o
tema do seguinte modo: “Sentimento intelectual suscetível de afetar a sensibilidade, o
respeito tem esse status de terceiro termo, sinteticamente referido para unificar lei moral
e vontade” (Crampe-Casnabet, 1994, p. 78).
Assim, ao passarmos pela faculdade de imaginação proposta por Kant na CRP e
passarmos pela típica do juízo, pela liberdade e pela vontade da CRPr, notamos que o
problema de ligação entre entendimento e sensibilidade, entre razão e sensibilidade,
atravessa boa parte da obra kantiana. Um terceiro termo vem sempre na tentativa de dar
conta da dualidade que Kant considera própria do sujeito racional. Veremos como a
divisão do sujeito se apresenta para Freud no próximo capítulo e como o pai da
psicanálise conversa com a obra de Kant. Essa passagem por Freud é importante para
darmos prosseguimento ao estudo com os capítulos três e quatro, quando iremos nos
debruçar sobre o uso que Lacan fez da ética kantiana para pensar a ética da psicanálise.
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35
2
Kant e Freud: imperativo categórico e supereu
O presente capítulo pretende, além de continuar expondo o pensamento kantiano
com relação à ética do dever, realizar análises a respeito de pontos em que a teoria
freudiana pode dialogar com idéias apresentadas por Kant. Freud encontra suporte no
conceito de imperativo categórico kantiano para falar da noção, cunhada por ele, de
supereu. Veremos como Freud realizou tal articulação entre supereu e imperativo
categórico e como pensa poder sustentar o imperativo categórico em uma construção em
que o inconsciente é o verdadeiro senhor da ação. Freud e Kant serão, assim, nossos
guias nesse interessante diálogo sobre as motivações do sujeito, marca fundamental para
a ética.
2.1
O imperativo categórico e o agir por dever
Retomaremos, então, de modo sucinto o que vimos sobre a lei moral encarnada no
imperativo categórico. O imperativo categórico é a expressão da lei moral: Age de tal
modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como
princípio de uma legislação universal.(Kant, [1788] 2003, p. 103) As marcas maiores
do imperativo categórico são ser formal e universal. Segundo Kant, “se se separa de
uma lei toda a matéria, isto é, todo objeto da vontade, dela não resta senão a simples
forma de uma legislação universal” (Ibid., p. 93). Isso difere o imperativo categórico do
imperativo hipotético, pois esse tem em vista alguma finalidade, algum interesse, algum
objetivo específico. Nesse caso, o sujeito não pode abrir mão do conteúdo. Para alcançar
determinada finalidade, o sujeito pode fazer uso de alguns artifícios que irão possibilitar
o seu sucesso. Por mais socialmente louvável que seja o objetivo, ele não poderá ser
considerado moral, pois não se trata de um imperativo categórico, mas de um
imperativo hipotético.
O imperativo categórico não está interessado no conteúdo, mas apenas na forma
da lei e no princípio que a rege. Nesse caso, o conteúdo da ação não está em questão, ou
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seja, nenhum fim específico pode ser delimitado. O imperativo categórico faz referência
a tudo o que “deve ser” e não necessariamente àquilo que “é”. Ele se coloca como uma
lei, apresentada pelo próprio sujeito a si mesmo, a ser seguida. O pathos deve ser
submetido à vontade moral na tomada de uma decisão que se queira ética. A submissão
do patológico à moral implica em dor e humilhação, pois, segundo Kant, a exposição do
ser humano à situação de que suas vontades subjetivas não podem ser levadas a cabo
provocam tais sentimentos. A dor da inibição do patológico perante um motivo moral
possibilita, no entanto, também um sentimento positivo, a saber, o de respeito pela lei
moral.
Não há, segundo Kant, um regimento externo que determine a ação a ser tomada.
apenas o sujeito que apresenta a si mesmo o imperativo categórico e que sozinho
experimenta a dor de não realizar uma vontade patológica e o respeito pela lei moral
que o permite, num ato libertário, agir moralmente. Segundo Crampe-Casnabet: “O
respeito mostra a dupla significação da autonomia: sou legislador e submeto-me à lei
universal que eu estabeleço e dou a mim mesmo.” (Crampe-Casnabet, 1994, p. 78). A
moral formal sai vitoriosa e o patológico derrotado.
Assim, vemos que, em Kant, há, por um lado, um sujeito patológico com vontades
subjetivas que pedem para serem realizadas e que provocam prazer quando
conquistadas. Essas vontades podem ser ditas “conformes” ao sujeito, pois não soam
estranhas a ele e não provocam dor ou desprazer. Por outro lado, o sujeito é imbuído de
uma vontade boa capaz de se auto designar uma lei que inibe a possibilidade de
realização de vontades patológicas e que, ao inibir o patológico, provoca dor e respeito
para com a lei moral. Assim, agir unicamente por consideração ao dever é o único
critério para caracterizar uma ação moral. A razão pura, lar da lei moral, impera, então,
sobre o pathos. A apatia
1
, ausência de pathos na ação, é uma marca cara aqui e
voltaremos a ela nos próximos capítulos.
Essa divisão entre moral e patológico também pode ser expressa pela diferença
entre dois tipos de “bom” apresentados por Kant. Das Wohl e das Gute são os termos
em alemão que fazem referência, respectivamente, ao ‘bom’ representante do bem estar,
da sensibilidade e da experiência prazerosa, e ao bom’ moral, a priori, incondicional e
inegociável. Nas palavras de Kant:
1
Embora estejamos falando de dor e respeito, Kant considera que o agir por dever não está vinculado à
motivações patológicas e, portanto, não está vinculado a qualquer sentimento. Pode parecer paradoxal,
mas a dor, que é um sentimento, é também um índice de que se está abrindo mão de uma escolha
patológica. Enquanto o respeito pela lei moral é o único sentimento que Kant caracteriza como a priori.
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37
O Wohl ou Übel <bem-estar ou mal-estar> sempre significa somente uma referência ao
nosso estado de agrado ou desagrado, de prazer e dor, e se por isso apetecemos ou
detestamos um objeto, isto ocorre somente na medida em que ele é referido à nossa
sensibilidade e ao sentimento de prazer e desprazer que ele produz. Mas o Gute ou Böse
<bom ou mau> significa sempre uma referência à vontade, na medida em que esta é
determinada pela lei da razão a fazer de algo seu objeto [...]. (Kant, [1788] 2003, p. 205
grifos do autor)
Para agir de acordo com o Gute é preciso deixar que todo o pathos se cale. Para
Kant, uma tendência no ser humano de agir em busca de prazer e fugir de toda e
qualquer experiência que provoque dor. Ao realizar uma vontade moral, o ser humano
está, portanto, se libertando dessa tendência patológica. Ele pode agir, assim, de acordo
com uma inclinação ao bem-estar subjetivo e patológico, ou de acordo com uma
libertação que leva ao bom moral objetivo e apático. Mais uma vez nos utilizamos das
palavras de Kant para tornar mais claro o que queremos dizer. Ainda que um pouco
longa, a citação a seguir é esclarecedora.
Este ajuizamento do bom <Guten> e mau <Böse> em si, à diferença do que
relativamente a bem-estar <Wohl> ou mal-estar <Übel> para ser denominado bom,
depende dos seguintes pontos: ou um princípio da razão é já em si pensado como o
fundamento determinante da vontade, sem consideração de possíveis objetos da faculdade
de apetição (logo, meramente através da forma legal da máxima), e então aquele princípio
é uma lei prática a priori e a razão pura será admitida como sendo por si mesma prática; a
lei, então, determina imediatamente a vontade, a ação conforme a ela é em si mesma
boa e uma vontade, cuja máxima é sempre conforma a essa lei, é absolutamente e em
todos os sentidos boa e a condição suprema de todo o bem. Ou então um fundamento
determinante da faculdade de apetição precede a máxima da vontade, que pressupõe um
objeto de prazer e desprazer, por conseguinte algo que deleita ou provoca dor, e a
máxima da razão de promover aquele e evitar este determina as ações segundo o modo
como elas, relativamente a nossa inclinação, são boas, por conseguinte mediatamente
(com respeito a um outro fim, como meio para o mesmo), e estas máximas então jamais
podem chamar-se leis mas preceitos práticos racionais. O próprio fim, o deleite que
procuramos, não é, no último caso, algo bom <ein Gutes>, mas um bem-estar <Wohl>,
não um conceito da razão mas um conceito empírico de um objeto da sensação [...] (Ibid.,
p. 213 – grifos do autor)
Assim, é de acordo com a lei moral que podemos diferenciar uma ação de fato boa
de uma ação que visa o bem-estar. Uma ação boa simplesmente desconsidera a dor e o
deleite que pode vir a provocar ao se pautar apenas no princípio formal e universal da
lei moral. A ética imperativa kantiana está desligada da felicidade, pois está desligada
de todo fim sensível ou material. Prazer e desprazer, tidos como pontos-chave da
felicidade pessoal, deixam de ser considerados possíveis motivos motores de uma ação
que se quer moral, ou seja, de uma ação regida pela ética do dever. Veremos nos
próximos capítulos como uma ação regida pelo desejo, na leitura lacaniana, também não
está pautada na felicidade, ou seja, na lógica consciente pautada pelas sensações de
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prazer ou de desprazer. Por ora, analisaremos alguns conceitos - tais como as noções de
Desejo, Lei, Princípio do Prazer e Princípio da Realidade em Freud - para
prosseguirmos em nosso estudo.
2.2
Das Ding
Para compreendermos um pouco sobre a teoria freudiana do desejo, algo dela que
nos sirva à discussão com Kant e com Lacan, é necessário visitarmos o conceito de das
Ding, ou, “a Coisa”, apresentado por Freud e retomado e formulado por Lacan. Em
1895, antes mesmo de escrever A interpretação dos sonhos (1900), marco maior da
teoria psicanalítica, considerado por muitos o texto inaugural da psicanálise e da teoria
do inconsciente, Freud escreveu um trabalho intitulado Entwurf einer Psychologie,
traduzido literalmente como Esboço de uma psicologia, mas conhecido como Projeto
para uma psicologia científica ou simplesmente como “O projeto”. É um trabalho
renegado por Freud, publicado apenas depois de sua morte.
Marcado por uma série de referências neurológicas, o texto parece não apresentar,
à primeira vista, o que viria a se tornar a teoria do inconsciente. No entanto, um olhar
mais aguçado de Lacan revelou o grande teor deste trabalho e a semente de quase toda a
obra que Freud viria a desenvolver durante os mais de trinta anos que se seguiram.
Lacan recuperou o conteúdo do Projeto e demonstrou sua inegável importância. É no
Projeto que Freud apresenta das Ding.
Há uma parte do Projeto, denominada A experiência de satisfação, que nos
importa destacar, pois nela Freud fala da constituição do sujeito e da moral. Das Ding se
mostra aqui como o objeto de satisfação do bebê. Analisemos a seguinte citação que
aborda o desconforto sentido pelo recém nascido que se encontra em um estado de fome
e não pode resolver seu problema sozinho:
O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica [eliminar o
desconforto da fome]. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa
experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração
interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da
comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os
motivos morais. (FREUD, [1895] 1996, p. 370 – grifos do autor)
A experiência de satisfação freudiana é marcada pelo desamparo inicial e pela
chegada de uma ajuda alheia que possibilita que o desprazer da fome cesse. uma
ajuda alheia, um outro, representado comumente pela figura materna, que causa a
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primeira experiência de satisfação no bebê ao eliminar do organismo da criança a
sensação desagradável da fome. Esse é o exemplo utilizado por Freud para demonstrar:
1) o desamparo inicial comum a todo humano sem um outro que nos cuide,
morremos; 2) a existência de uma primeira experiência de satisfação representada pela
primeira mamada; 3) o seio materno como representante do objeto que proporciona essa
experiência, como primeiro representante de das Ding.
Das Ding passa a poder ser, então, compreendido como o primeiro objeto de
satisfação do bebê, o seio da primeira mamada. Para Freud, a experiência da primeira
mamada deixaria uma marca, um traço mnêmico, da primeira experiência de satisfação.
No entanto, a satisfação provocada pelo seio da primeira mamada nunca mais seria
vivenciada. A partir da primeira experiência de satisfação e das marcas que ela deixa
cravada no aparelho psíquico, o sujeito buscaria revivê-la, mas fracassaria sempre. O
prazer sentido nessa experiência estaria, assim, para sempre perdido. O seio da primeira
mamada nunca mais se apresentaria do mesmo modo. está das Ding, o “objeto para
sempre perdido”.
Enfatizamos, acompanhando o pensamento de Lacan, que o mais interessante
nessa criação freudiana não é pensar das Ding propriamente como o seio da primeira
mamada causador de uma experiência de satisfação absoluta jamais recuperada, embora
marcada na memória inconsciente, mas sim pensá-lo como uma primeira perda, ou seja,
como uma falta. A marca de uma perda originária remeteria o sujeito a um movimento
incessante de busca por reviver a satisfação oferecida por esse objeto para sempre
perdido.
Lacan retoma, no Seminário VII, a proposta de Freud com relação a das Ding e
recusa a idéia de que a perda da Coisa seja empírica, constituindo-a como mito
freudiano. O mito de uma primeira experiência de satisfação absoluta com um objeto
para sempre perdido. Lacan sustenta a idéia de das Ding enquanto perda originária e
promotora do desejo. Ou seja, o desejo movido por uma falta originária marcada por
das Ding. “Com das Ding, a única questão é esta: a perda é anterior ao que é perdido”
(Baas, 2001, p. 33)
Com isso, damos nosso primeiro passo na compreensão da teoria do desejo que
importa em nossa discussão. Há uma marca de uma perda originária em todo ser
humano que faz com que o homem deseje. Segundo Bernard Baas, filósofo belga
contemporâneo, estudioso da psicanálise, podemos arriscar a afirmação de que se trata
em Lacan de uma abordagem transcendental do desejo, em um sentido estritamente
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40
kantiano do termo (Ibid., p. 46). Pensemos brevemente a questão antes de darmos
prosseguimento ao nosso estudo.
2.3
Desejo transcendental?
Os conceitos puros do entendimento e as formas puras da intuição sensível
constituem as representações transcendentais, ou seja, representações universais e
necessárias para o nosso conhecimento dos objetos. Para compreender tal afirmação
precisamos partir do ponto em que Kant utiliza o termo transcendental para pensar a
possibilidade do conhecimento humano. Aqui o peso não está tanto no conhecimento
propriamente dito dos objetos, mas principalmente no modo de conhecimento dos
objetos, “na medida em que esse modo de conhecimento é possível a priori (Kant,
[1781] 2001, A12). Segundo Caygill, durante toda a CRP, transcendental é colocado
em oposição ao que é empírico e alinhado ao a priori. Importa-nos frisar que
transcendental refere-se a um algo próprio ao humano que é anterior a toda experiência,
e que é condição de possibilidade da experiência.
Se pensarmos o desejo também como algo próprio a todo e qualquer sujeito, como
instância estrutural ao ser humano, como Baas indica pensar Lacan, podemos recorrer,
segundo Baas, a uma explicação transcendental para o desejo. Uma explicação
transcendental do desejo implicaria o estabelecimento a priori do sujeito, como um ser
capaz de desejar. Trata-se, com efeito, de determinar o que neste ser torna possível o
desejo (Cf. Baas, 2001). Se conseguirmos relacionar o conceito de desejo como sendo
um conceito inerente ao sujeito, estaremos diretamente referidos a Kant.
Nas palavras de Baas: “Há aqui, nesta estruturação do desejo, uma lógica
propriamente transcendental, no sentido mais rigorosamente kantiano do termo” (Baas,
2001, p. 46). O que Baas propõe com essa questão é que a lógica do desejo baseada
numa falta primordial trabalha com a idéia não apenas de uma faculdade de desejar, mas
de uma faculdade de desejar a priori. Isso nos faria afirmar que, se o desejo é a priori,
ele é independente da experiência.
Assim, Baas propõe que a estrutura do desejo pensada aos moldes freud-
lacanianos está posta da seguinte forma: de um lado, uma faculdade naturalmente
humana, independente da experiência, faculdade de desejo a priori. Marca de uma falta
originária que promoveria o desejo no ser humano. De outro lado, os objetos empíricos
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desejados, mas nunca de fato capazes de suturar a falta originária. aqui um paralelo
entre Kant e Lacan: faculdade de conhecer (a priori) e faculdade de desejar (a priori),
ambas direcionadas ao mundo empírico, mas independentes e distintas dele.
Em Kant, a faculdade de entendimento necessita relacionar-se com os objetos
apreendidos pela faculdade de sensibilidade. Surge, então, como vimos no primeiro
capítulo, o problema da ligação entre as duas faculdades. A resposta oferecida na CRP é
a faculdade da imaginação. Com isso, afirmamos que a imaginação realiza a articulação
entre os dados empíricos e os conceitos puros e que possui uma função ambivalente
(articula-se tanto à faculdade do entendimento quanto à faculdade da sensibilidade). A
imaginação possui, como vimos, uma função cega e até mesmo misteriosa. (Kant,
[1788] 2003, A77)
Lacan, a partir de Freud, também realiza uma reflexão, pela vertente do desejo,
sobre o “pré-empírico”, sobre o que precede a experiência e a torna possível. A Coisa
freudiana, das Ding, designaria, assim, uma falta inicial, pré-empírica. Não iremos
desenvolver mais a questão, mas deixamos apontada uma discussão interessante e que,
no entanto, extrapola o objetivo do presente trabalho. O desenvolvimento da questão
nos remeteria aos primórdios da elaboração do conceito que Lacan considera sua única
verdadeira criação, o objeto a.
O objeto a não é nem a Coisa freudiana nem o objeto empírico desejado (uma vez
que o desejo sempre se apresenta através de um desejo por algum objeto empírico). O
objeto a, segundo Baas, articula ambos, articula das Ding, a falta a priori que sustenta o
desejo, ao objeto empírico desejado (Baas, 2001, p. 25). Ele, ao mesmo tempo em que
faz referência ao objeto do desejo (empírico), remete à falta originária promovedora do
desejo (transcendental).
Caso mantivéssemos o paralelo, poderíamos afirmar, seguindo o argumento de
Baas, que em Lacan o objeto a possui uma função similar à da imaginação kantiana,
pois realiza a articulação entre dois campos absolutamente heterogêneos, a saber,
transcendental e empírico. Ocupa, assim, o lugar de presença e de ausência
simultaneamente. Teria ele também uma função cega e misteriosa, tal como a
imaginação kantiana. No entanto, o desenvolvimento do conceito de objeto a levaria o
presente trabalho a um percurso por demais restrito à teoria psicanalítica e esse não é
nosso objetivo. Voltemos, portanto, às possíveis articulações e análises entre teoria
psicanalítica freud-lacaniana sobre a ética do desejo e a ética do dever kantiana.
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42
2.4
Princípio de Prazer e Princípio de Realidade
no Projeto para uma psicologia científica (1895) uma apresentação das
noções de Princípio do Prazer e de Princípio da Realidade que interessa em nossa
discussão. Nesse momento de sua obra, Freud acredita, assim como Kant, que uma
tendência em todo ser humano de buscar o prazer e de evitar o desprazer. E, para Freud,
o desprazer se expressa de um único modo: no excesso de quantidade de energia
psíquica no aparelho psíquico. Na teoria freudiana, essa noção de prazer e desprazer
possui uma função fundamental.
Antes de 1920, ano em que há uma grande inovação no pensamento de Freud e no
qual ele escreve o texto denominado Além do Princípio do Prazer que analisaremos
mais adiante –, Freud acreditava que prazer e desprazer eram determinados apenas
através de uma medida quantitativa. Ou seja, prazeroso é tudo aquilo que mantém uma
quantidade mínima de energia no aparelho psíquico e desprazeroso é qualquer excesso
de energia. Prazeroso é a constância, a calma, o silêncio. Quando houvesse excesso, o
prazer retomaria seu posto após o momento da descarga que provocaria um retorno
ao estado anterior.
No Projeto, Freud afirma que a capacidade de sentir prazer se estende até um
certo limite de quantidade energia. Ao transpor esse limite, a sensação passa a ser a de
desprazer. Como exemplo, podemos citar a fome. No exemplo da fome, o esquema
funcionaria do seguinte modo: o bebê está alimentado e sente prazer. Aos poucos, um
desconforto se apresenta em seu organismo e como resposta a esse desconforto que
aumenta com o passar do tempo, o bebê pode alucinar o seio materno e mamar em sua
imaginação. No entanto, seu comportamento solitário não tem a capacidade de eliminar
o desconforto da fome. O próximo “recurso” é descarregar a tensão interna através do
choro. Com isso, o que em geral acontece é que um “semelhante” adulto (como Freud
diz) realiza uma ação, que é dar alimento, que elimina o desprazer e traz novamente ao
bebê a sensação de prazer.
Assim, temos que em Freud prazer e desprazer são marcados pela quantidade de
energia no aparelho psíquico. O excesso de energia traz desprazer. Uma quantidade
mínima de energia traz, por outro lado, uma sensação prazerosa. Prazer e desprazer
regeriam, dessa forma, o agir humano, pois o homem tenderia sempre a agir para evitar
o desprazer.
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Isso faz com que retornemos à questão apresentada quando fizemos a primeira
referência à experiência de satisfação demonstrada por Freud no Projeto. Nela, lemos a
seguinte afirmação: “Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função
secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte
primordial de todos os motivos morais.” (Freud, [1895] 1996, Vol. I, p. 370). Freud
vincula à moral a situação originária de todo e qualquer ser humano, que é o desamparo
absoluto e a necessidade da intervenção de um semelhante para que se possa sobreviver.
Sem os cuidados desse semelhante, o bebê o é capaz de permanecer vivo. Esse
desamparo absoluto marca o primeiro laço social para todo sujeito. Nesse laço em que
os cuidados do semelhante são essenciais para a sobrevivência, a necessidade de sentir-
se protegido evidencia a posição de dependência do sujeito em relação ao semelhante.
Veremos mais adiante que a constituição do supereu, instância moral cunhada por
Freud, tem como marca inicial a importância do sujeito de ser amado por aqueles que
lhe protegem do desamparo absoluto.
O princípio de prazer passa, aos poucos, a partir da maturação do bebê e do
convívio com as normas sociais, a ser regulado pelo princípio da realidade. O controle
dos esfíncteres exemplifica bem a situação. A descarga da urina elimina o desconforto e
restabelece o estado anterior prazeroso, mas tal descarga deixa, com o crescimento do
bebê, de poder ser realizada a qualquer momento. Assim, o princípio de realidade vem
interromper a gica exclusivamente prazerosa e instaurar uma nova ordem. Faz com
que a retenção da urina seja postergada até o momento socialmente oportuno para ser
eliminada. O mesmo se com a sensação de fome, pois o bebê aprende a postergar o
momento da saciedade ao ser lentamente marcado pelas regras sociais. A busca direta
pelo prazer é interrompida, assim, pelo princípio da realidade.
No entanto, Freud se conta de que, na verdade, o Princípio de Realidade nada
mais é do que uma outra forma, uma forma socialmente aceita, para o Princípio do
Prazer. Não é que o Princípio de Realidade supere o Princípio do Prazer, o que acontece
é que o Princípio de Realidade trabalha a favor do Princípio do Prazer, no sentido de
buscar formas socialmente aceitas para permitir a descarga e o restabelecimento da
sensação prazerosa. Assim, Princípio de Realidade e Princípio do Prazer atuam com o
mesmo objetivo, atingir a sensação de prazer. O que diferencia um do outro é que o
Princípio de Realidade leva em consideração as exigências do meio social e regula o
Princípio do Prazer a fim de que ele atinja a satisfação sem se opor excessivamente às
normas sociais.
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44
Freud mantém em sua obra um constante dualismo, um dualismo que é sempre
representante de um eterno conflito psíquico. uma divisão subjetiva buscada por
Freud durante todo seu trabalho. A oposição entre Princípio do Prazer e Princípio da
Realidade é uma forma de expressar a questão. Em 1920, Freud propõe um novo
dualismo, de extrema importância em sua teoria, ao considerar uma dimensão humana
que está “para além do princípio do prazer”. Surge, então, a divisão entre Pulsão de
Vida e Pulsão de Morte. Como dissemos, analisaremos essa questão um pouco mais
adiante. Por ora, cabe levantar o início do problema e pensar sobre a divisão pulsional
freudiana.
2.5
Pulsões
uma trajetória da teoria da pulsão em Freud que podemos percorrer de várias
maneiras. Nossa opção para o presente trabalho é fazer o percurso mais simples, apenas
para que a discussão fique situada e colabore com o desenvolvimento do argumento.
Importa demonstrar que Freud não abre mão de uma concepção dualística do aparelho
psíquico em seu pensar
2
. Para ele, o ser humano é dividido. Duas forças, pelo menos,
sempre lutam por objetivos distintos e constituem um conflito subjetivo em grande parte
das vezes desconhecido da consciência.
Freud propõe que essa divisão seja representada por diferentes objetivos
pulsionais. Dois tipos de pulsões estariam presentes no ser humano. No início de seu
pensamento, essa diferença pulsional era expressa entre pulsões de autoconservação (ou
também chamadas pulsões do eu) e pulsões sexuais. As pulsões autoconservadoras,
como o próprio nome diz, não tinham em si nenhum outro objetivo que não fosse fazer
com que o organismo permanecesse vivo. Freud inclui nelas funções necessárias à
sobrevivência, tais como a satisfação da fome e da sede. As pulsões sexuais seriam
representantes de um outro tipo de busca de satisfação. Incluem não apenas o ato sexual,
mas também a libido (energia sexual desvirtuada do objetivo estritamente relacionado
ao ato sexual, na concepção freudiana) que está presente em todas as ações que
produzem laços sociais. Uma relação de amizade está carregada de libido, por exemplo,
e traz uma satisfação sexual deslocada do ato sexual, segundo Freud
3
.
2
Embora para Lacan toda pulsão seja, em última instância, pulsão de morte.
3
Com esse exemplo vemos que o sexual em Freud está muito além do ato sexual. O sexual é marcado
pela libido, energia sexual, que faz os mais diversos tipos de relações e vínculos entre as pessoas.
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Freud se deu conta, no entanto, de que as pulsões de autoconservação também
possuíam um caráter libidinal ao tomarem o próprio eu como objeto de investimento.
As relações do sujeito com o próprio eu, relações narcísicas, pareceram, para Freud,
muito mais abrangentes do que a simples função de autoconservação. Assim, a noção de
um objetivo pulsional puramente autoconservador deixa de fazer sentido a Freud e ele
passa a incluir as pulsões de autoconservação na gama de pulsões sexuais.
Desse modo, a divisão pulsional inicial é desfeita e Freud passa a propor uma
nova divisão. Dessa vez com relação ao objeto da pulsão. Por um lado, a pulsão se
direciona ao mundo externo e investe em objetos tais como trabalho, estudo, relações
amorosas, amizades, etc. Por outro lado, a pulsão se direciona ao mundo interno, e
investe no próprio eu.
O problema dessa divisão entre pulsões do eu e pulsões do objeto é que elas se
diferenciam apenas com relação ao objeto (interno ou externo), mas não se diferenciam
em sua qualidade, pois ambas são pulsões sexuais. Isso incomoda Freud, que, em 1920,
propõe uma última divisão pulsional. Ele inclui todos os tipos de pulsões sexuais de um
lado (não importando qual fosse o objeto dessa pulsão, interno ou externo) e coloca do
outro lado algo para além das pulsões sexuais. Freud apresenta, então, o conceito de
pulsão de morte. Eros e Tanatos, pulsão de vida e pulsão de morte, passam a reger a
última construção sobre o aparelho psíquico do ser humano no pensamento freudiano.
Selecionamos uma citação na qual Freud resume todo o percurso de construção de
seu pensamento com relação a essa questão:
Não é tão fácil, talvez, acompanhar as transformações pelas quais o conceito de ‘pulsões
do eu’ passou. Inicialmente, aplicamos esse nome a todas as tendências pulsionais (de que
não tínhamos conhecimento mais preciso) que podiam ser distinguidas das pulsões
sexuais dirigidas no sentido de um objeto, e opusemos as pulsões do eu às pulsões
sexuais, dos quais a libido é a manifestação. Subsequentemente, dedicamo-nos mais de
perto à análise do eu e reconhecemos que uma parte das pulsões do eu’ também é de
caráter libidinal e tomou o próprio do sujeito como seu objeto. Daí por diante, essas
pulsões narcisistas e autoconservadoras tiveram de ser incluídas entre as pulsões sexuais
libidinais. A oposição entre as pulsões do eu e as pulsões sexuais transformou-se numa
oposição entre as pulsões do eu e as pulsões de objeto, ambos de natureza libidinal. Em
seu lugar, porém, surgiu uma nova oposição entre as pulsões libidinais (do eu e de objeto)
e outras pulsões, quanto às quais que se supor que se achem presentes no eu e que
talvez possam ser realmente observados nas pulsões destrutivas. Nossas especulações
transformaram essa oposição numa oposição entre as pulsões de vida (Eros) e as pulsões
de morte. (Freud, [1920] 1996, Vol. XVII, p. 71)
Esse percurso na teoria freudiana nos importa para compreendermos o lugar que a
pulsão de morte possui no que Freud constrói sobre o que está “além do princípio do
prazer”, pois faremos uso desses conceitos nos próximos capítulos.
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46
Para as finalidades do presente capítulo, cabe ressaltar que Kant se preocupa em
esclarecer as verdadeiras causas de uma ação, uma vez que ele acredita que por trás de
motivos aparentes outros motivos, obscuros, possam estar comandando a ação. Kant
analisa com atenção a tendência egoísta do homem como um sério percalço na busca do
agir por dever. A moldura universal e formal do imperativo categórico visa justamente
evitar que qualquer objetivo pessoal supere o agir puramente por dever. Assim, Kant
considera que os motivos que nos levam a agir nem sempre estão esclarecidos em um
primeiro momento, pois pode haver intenções egoístas por trás das aparentes intenções
morais. Mas, no entanto, a verdadeira causa da ação pode ficar evidente caso seja
aplicada a regra do imperativo categórico.
Por exemplo: podemos dizer que agimos em prol da humanidade, mas estarmos,
ao contrário, agindo em prol de nós mesmos. O estritamente formal e universal da lei
moral visa justamente reduzir a dúvida sobre os motivos da ação e demonstrar que é
possível agir apenas por dever caso a lei seja deveras seguida. A regra prática determina
absolutamente a vontade (Kant, [1788] 2003, p. 105). Assim, para Kant:
Tão clara e nitidamente estão separados os limites da moralidade e do amor de si, que
mesmo o olho mais comum não pode deixar de distinguir se algo pertence a um ou a
outro. (Ibid., p. 121)
Tomemos como exemplo a autoconservação, por ser ela um exemplo mais difícil.
Pode ser considerada moral uma ão que busque a autoconservação? Nas palavras de
Kant: “[...] conservar cada qual a sua vida é um dever, e é além disso uma coisa para
que toda a gente tem inclinação imediata.” (Id., [1785] 2005, p. 27). Se aplicarmos o
imperativo categórico, percebemos que deixar de lutar pela autoconservação não pode
ser considerado moral, pois se elevarmos a máxima dessa ação ao campo do universal,
se todos os seres humanos deixassem de lutar pela autoconservação, a humanidade
deixaria de existir. No entanto, a questão se coloca um pouco mais complicada, pois
lutar pela autoconservação costuma ser uma tendência subjetiva. “Mas por isso mesmo
que o cuidado, por vezes ansioso, que a maioria dos homens lhe dedicam não tem
nenhum valor intrínseco e a máxima que o exprime nenhum valor moral. Os homens
conservam suas vidas conforme ao dever, sem dúvida, mas não por dever.(Loc. cit.
grifos do autor). Somente quando o homem desenganado, frustrado pela vida, sentindo
desalento, somente quando esse homem opta por não destruir a própria vida e continuar
vivendo, estará agindo verdadeiramente por dever e não simplesmente conforme ao
dever.
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Vemos que a inclinação à autoconservação é um argumento tanto freudiano
quanto kantiano. No entanto, para o primeiro a questão é tomada por um via que difere
do segundo. É moral em Freud porque remete à posição de desamparo original e é o que
faz com que o bebê emita o choro e possibilite que seja cuidado por outro ser humano
mais experiente. Desamparo e impulso à autoconservação marcam, assim, o primeiro
laço do bebê com outro ser humano e a necessidade que possuímos de sermos
protegidos.
Para Kant, a autoconservação não é em si moral. Ela é moral quando o ser
humano sente-se desamparado e mesmo assim mantém-se vivo. Quando está infeliz,
quando a vontade de deixar de estar vivo o impele a querer morrer, e mesmo assim ele
decide por manter-se vivo é que a escolha pela vida é moral. Isto é, é moral em Kant
“autoconserva-se” por dever, mas não por inclinação.
Visto isso, cabe esclarecermos outra questão. Freud trata, no início de sua obra, de
uma “pulsão de autoconservação” e Kant de uma “inclinação à autoconservação”.
Pulsão e inclinação poderiam ser utilizadas no mesmo sentido? Ou melhor, seria a
pulsão freudiana uma inclinação aos moldes kantianos?
O movimento pulsional em Freud possui uma tendência a se repetir, mas
atrelarmos a pulsão à inclinação seria um erro, pois, além de estarmos aproximando dois
conceitos fundamentais de teorias radicalmente distintas devido à forma como abordam
consciência e inconsciência, estaríamos deixando de lado todo o impacto inassimilável
que a pulsão possui para o sujeito na teoria freudiana. Nada se pode fazer para anulá-la,
pois sua presença é insistente e nunca cessa de não se inscrever no campo do sentido
existente na consciência. Frente às exigências de satisfação pulsional, o que pode o
sujeito é apenas articulá-la de diferentes formas e criar novos modos para encontrar tal
satisfação, mas jamais desfazer-se dela ou impedi-la de “pulsar”. É impossível, assim,
para o sujeito, na teoria freudiana, desvencilhar-se da pulsão.
Kant acredita que a ação realizada por dever é capaz de regular qualquer escolha e
de impedir que o sujeito aja movido por inclinações para agir moralmente. Assim, em
Kant, é possível para o sujeito controlar suas inclinações. Em suas palavras:
Um arbítrio afetado patologicamente comporta um desejo que emerge de causas
subjetivas e por isso também pode contrapor-se frequentemente ao fundamento
determinante objetivo puro; logo, precisa de uma resistência da razão prática, enquanto
necessitação moral, que pode ser denominada coerção interior, mas intelectual. (Kant,
[1788] 2003, p. 111)
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para Freud, e essa é uma frase representante do que foi a revolução freudiana, “o
homem não é senhor em sua própria morada”, pois não é capaz de coagir e controlar
totalmente suas ações. As causas inconscientes em Freud estão diretamente relacionadas
às inclinações pulsionais de cada sujeito.
De modo bastante diferente, Kant luta por demonstrar que a verdadeira liberdade
humana está em poder controlar as causas patológicas que provocam algumas de nossas
ações. Para ele, e acreditamos ser essa uma diferença radical e intransponível entre os
dois autores, o homem é capaz de ser senhor em sua própria morada caso submeta sua
vontade à razão através do imperativo categórico. A voz da razão é, para Kant, clara e
perceptível (KANT, [1788] 2003, p. 119) e deve ser considerada, mesmo “para o
entendimento mais comum, como fácil e totalmente livre de hesitação” (Ibid., p. 123).
Assim, para Kant, “satisfazer ao mandamento categórico da moralidade está todo o
tempo em poder de cada um” (Loc. cit.). Já para Freud, nada é capaz de subjugar as
forças inconscientes e pulsionais a um total controle racional.
2.6
Além do Princípio do Prazer
Façamos uma breve retomada da leitura freudiana que estamos aqui
desenvolvendo para prosseguir com o trabalho. Marcado o surgimento da pulsão, Freud
busca, durante toda sua obra, definir e compreender o que exatamente vem a ser a
pulsão. Um longo percurso é trilhado até 1920, em Além do Princípio do Prazer,
quando Freud define uma divisão na teoria das pulsões que irá persistir, como vimos
acima, até o fim de sua obra: pulsão de vida e pulsão de morte, Eros e Tanatos.
A partir de seus textos Além do Princípio do Prazer e O problema econômico do
masoquismo, Freud apresenta duas possibilidades teóricas para falar do que se encontra
em um campo distinto do que abarca o Princípio do Prazer. No primeiro trabalho, Além
do Princípio do Prazer (1920), ele chama a atenção para o fato de que o sujeito
apresenta elementos suficientes que revelam não ser a busca pela felicidade seu único
guia durante a vida. Se assim fosse, o ser humano não se sentiria tão constantemente
infeliz, angustiado, não tenderia a repetir experiências dolorosas e não apresentaria
resistências ao processo de cura durante o tratamento psicanalítico. No texto Análise
Terminável e Interminável, publicado nove anos depois, Freud sintetiza bem a idéia
exposta primeiramente em 1920:
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Impressão alguma mais forte surge das resistências durante o trabalho de análise do que a
de existir uma força que se está defendendo por todos os meios possíveis contra o
restabelecimento e que está absolutamente decidida a apegar-se à doença e ao sofrimento.
(Freud, [1939] 1996, Vol. XXIII, p. 259)
Em O problema econômico do masoquismo (1924), Freud demonstra que o ser
humano é capaz de extrair uma espécie de satisfação da dor. Uma satisfação que se
distingue do que era denominado por ele de prazer, pois é marcada também pelo
excesso de quantidade de energia no aparelho psíquico e não apenas por sua descarga.
São momentos em que a quantidade de energia está elevada no aparelho psíquico e que,
no entanto, promovem satisfação, como é o caso do masoquismo. A essa espécie de
satisfação, Lacan irá denominar gozo
4
.
O que nos é fundamental nessa discussão é a ruptura com a idéia de que o sujeito
tende a buscar prazer e felicidade, outra importante distinção entre os pensamentos de
Freud e Kant. O suposto objetivo que o ser humano teria de atingir a felicidade é
colocado em questão por Freud, que passa a discordar de afirmações tais como as que
Kant afirma que “todos os homens têm por si mesmos a mais forte e íntima
inclinação para a felicidade”. (Kant, [1785] 2005, p. 29), ou “ser feliz é necessariamente
a aspiração de todo ente racional, porém finito [...]” (Id., [1788] 2003, p. 85). Para Kant,
todas as inclinações patológicas são de uma única e mesma espécie: “incluem-se no
princípio geral do amor de si ou da felicidade própria” (Ibid., p. 75).
Tanto para Freud quanto para Kant, a felicidade é algo que pode ser
denominado no caso a caso. Segundo Kant, aquilo em que cada um costuma colocar
sua felicidade tem a ver com o seu sentimento particular de prazer e desprazer e, até
num e mesmo sujeito, com a carência diversa de mudança desse sentimento” (Ibid., p.
87). E segundo Freud, “A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como
possível, constitui um problema da economia da libido do sujeito. Não existe uma regra
de ouro que se aplique a todos: todo homem tem que descobrir por si mesmo de que
modo específico ele pode ser salvo.” (Freud, [1929] 1996, Vol. XXI, p. 91). O que
Freud tenta demonstrar após 1920 é que a busca singular de cada sujeito pela felicidade
costuma ser mal sucedida e isto não é sem uma lógica própria.
A singularidade da felicidade leva Kant a afastar dela qualquer vinculação com os
motivos morais, pois esses precisam ser universalizáveis. Segundo Kant, os preceitos
4
Gozo é um conceito utilizado por Lacan para se referir à satisfação que o sujeito busca além do prazer
encontrado no Princípio do Prazer. O gozo está para além do Princípio do Prazer. Faremos referência a
ele no decorrer deste capítulo e do próximo, pois é importante para compreendermos o pensamento de
Lacan com relação à ética.
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50
práticos fundados sobre o “princípio do amor de si” (motivações patológicas) não
podem nunca ser universais, pois fundam-se “sobre o sentimento de prazer e desprazer,
que jamais pode ser admitido como dirigido universalmente aos mesmos objetos”
(Kant, [1788] 2003, p. 89). Assim, a vontade moral em Kant está, como vimos no
primeiro capítulo, absolutamente desvinculada de motivos sensíveis, do prazer e da
felicidade. É a razão que apresenta a regra prática ao sujeito e possibilita que sua ação
não seja guiada por motivos sensíveis, mas apenas por dever. Em Kant, portanto, apesar
de o sujeito possuir uma forte inclinação patológica pelo prazer e pela felicidade, essa
busca deve ser barrada pelos motivos morais.
Esse argumento nos remete a dois pontos de reflexão: 1) a inclinação do homem à
felicidade pessoal e 2) o que vem barrar essa inclinação. O primeiro ponto de reflexão é
a continuação do que estamos demonstrando, ou seja, para Freud, diferente do que
acredita Kant, todos os homens não possuem “a mais forte e íntima inclinação para a
felicidade” (Id., p. 29). No pensamento freudiano, no humano algo que está para
além dessa inclinação à felicidade, algo que limita essa felicidade e até mesmo a
impede. Em suas palavras:
Se tomarmos em consideração o quadro total formado pelos fenômenos de masoquismo
imanentes em tantas pessoas, a reação terapêutica negativa e o sentimento de culpa
encontrados em tantos neuróticos, não mais poderemos aderir à crença de que os eventos
mentais são governados exclusivamente pelo desejo de prazer. Esses fenômenos
constituem indicações inequívocas da presença de um poder da vida mental que
chamamos pulsões de agressividades ou de destruição, segundo seus objetivos, e que
remontamos à pulsão de morte original da matéria viva. (Freud, [1937] 1996, Vol. XXIII,
p. 259)
Mas, no entanto, não podemos deixar de ressaltar que isso fica marcado na obra
de Freud apenas após 1920. Antes da construção teórica sobre a pulsão de morte, Freud
defendia que a regra maior do aparelho psíquico era o Princípio do Prazer, ou seja, que
o funcionamento do psiquismo se dava sempre regido pela busca de prazer (que, como
vimos, era marcado pela menor quantidade de energia possível). De certa forma, Freud
nunca abriu completamente mão dessa idéia. Em Mal estar na civilização, importante
texto de 1929, Freud afirma sobre os homens:
Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer. Essa empresa
apresenta dois aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa. Por um lado, visa a uma
ausência de sofrimento e de desprazer, por outro, à experiência de intensos sentimentos
de prazer. (Freud, [1929] 1996, Vol. XXI, p. 84)
Ou seja, não é que Freud acredite que o ser humano não busque por felicidade e
prazer, o que ele descobre é que mais matizes nessa construção do que pode parecer
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51
à primeira vista. É no texto Mal estar na civilização que Freud apresenta três fontes que
considera as principais no tocante ao sofrimento humano. São elas: “o poder superior da
natureza, a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que
procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e
na sociedade.” (Ibid., p. 93). Importa-nos nesse diálogo com Kant apenas a terceira
fonte de sofrimento, a que fala sobre a adequação do homem a uma coletividade. É nela
que poderemos calcar a discussão sobre nosso segundo ponto de reflexão nesse diálogo
de Kant com Freud: aquilo que faz barreira à busca individual e singular pela felicidade.
Partimos da seguinte diferença: em Kant essa barreira é dada através de um
esforço moral possibilitado pela liberdade de se fazer uma escolha moral e não
patológica. Seguir a lei formal do imperativo categórico que é justamente o que barra
as inclinações puramente patológicas de obtenção de prazer e de buscar a conquista da
própria felicidade é uma escolha moral. Analisamos esse movimento com atenção no
primeiro capítulo e estamos lembrados que a escolha moral não se sem dor por
termos de recusar aquilo para o que estamos patologicamente inclinados.
Em Freud, temos uma situação um pouco distinta. também uma escolha moral
que faz barreira à busca individual de obtenção de prazer, mas ela - e esse é um ponto
fundamental dessa discussão - não é um ato de liberdade. Não é um ato em que a
vontade, submetida apenas à razão, possibilita que o sujeito se liberte daquilo que é
patologicamente condicionado.
O texto Mal estar na civilização (1929) será nossa referência nos próximos
parágrafos por abordar com clareza o ponto do qual estamos tratando nesse momento.
Nele, sobre a fonte social do sofrimento humano, Freud afirma:
[...] quando consideramos o quanto fomos malsucedidos exatamente nesse campo de
prevenção do sofrimento, surge em nós a suspeita de que também aqui é possível jazer,
por trás desse fato, uma parcela de natureza inconquistável dessa vez, uma parcela de
nossa própria constituição psíquica.” (FREUD, [1929] 1996, Vol. XXI, p. 93)
A expressão “parcela de natureza inconquistável de nossa própria constituição psíquica”
nos indica que não estamos caminhando aqui em terrenos muito apropriados para se
pensar a liberdade aos moldes kantianos.
A base do pensamento freudiano nesse campo é que a civilização impõe restrições
à satisfação do sujeito. Para se viver em sociedade é preciso abrir mão de uma série de
satisfações pulsionais, egoístas e agressivas. Para Freud, o ser humano possui uma cota
pulsional agressiva que não se satisfaz sendo realizada na prática para que a vida
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coletiva seja possível, mas sua não realização não faz com que essa cota pulsional
agressiva deixe de existir.
Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias que
normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se manifesta
espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a consideração
para com sua própria espécie é algo estranho. (Freud, [1929] 1996, Vol. XXI, p. 116)
Segundo Freud, os homens têm uma poderosa cota de agressividade e isso tem
efeitos que não se pode desprezar. Em suas palavras:
Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um
objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade,
a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem seu
consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e
matá-lo. (Loc. cit.)
Por essa inclinação agressiva estar tão marcada no ser humano é que
necessidade de que uma barreira impeça que a satisfação seja completamente alcançada
na realização dessas pulsões agressivas. Mas voltemos a marcar a diferença entre o
pensamento de Freud e Kant. Para Freud, portanto, a barreira imposta a essa espécie de
satisfação de uma inclinação não é uma escolha marcada pela liberdade, tal como o é
em Kant. Nem a pulsão agressiva - a forte inclinação à agressividade –, nem a barreira
que impede que essa pulsão seja realizada e satisfeita chegam a ser uma verdadeira
opção consciente. Sigamos as palavras de Freud para avançarmos em nossa discussão:
A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para as
pulsões agressivas do homem e manter suas manifestações sob controle por formações
psíquicas reativas. (Ibid., p.117)
A não realização das pulsões agressivas tem um preço alto para cada sujeito na
construção do pensamento freudiano. Assim,
Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do homem, mas
também à sua agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz
nessa civilização. (FREUD, [1929] 1996, Vol. XXI, p. 119).
Assim, vemos que Freud relaciona o mal estar tão comum ao homem civilizado à
necessidade de que suas inclinações agressivas e egoístas não sejam deliberadamente
realizadas, mesmo que a realização de tais inclinações, a satisfação desse movimento
pulsional, trouxesse ao homem um intenso sentimento de prazer. Abre-se mão, segundo
Freud, desse intenso prazer em prol da vida coletiva em uma civilização.
Sigamos o argumento freudiano e apresentemos a seguinte valiosa questão:
“Quais os meios que a civilização utiliza para inibir a agressividade que se lhe opõe,
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torná-la inócua ou, talvez, livrar-se dela? [...] O que acontece neste [sujeito] para tornar
inofensivo seu desejo de agressão?” (Ibid., p. 127)
A resposta que Freud constrói para essa questão nos remete mais uma vez a um
campo distinto do campo kantiano. Para Kant, a lei moral é a resposta dada a essa
questão apresentada por Freud. O meio utilizado pela razão para inibir a agressividade é
a lei moral. E há, no pensamento kantiano, como conseqüência jamais como objetivo
da opção pelo agir por dever um sentimento de elevação. O homem que age
moralmente sente-se, segundo Kant, bem. Sente-se elevado e exprime com relação a si
mesmo um sentimento de auto-aprovação. Em suas palavras, o sentimento que emerge
da consciência a partir da coerção da lei moral
[...] não contém nenhum prazer, mas como tal contém, muito antes, um desprazer na ação.
Contrariamente, porém, visto que essa coerção é exercida simplesmente pela legislação
da razão de cada um, tal sentimento contém inclusive elevação, e o efeito subjetivo sobre
o sentimento, na medida em que a razão prática pura é sua única causa, pode, portanto,
chamar-se simplesmente auto-aprovação em relação à última, enquanto sem nenhum
interesse reconhecemo-nos como determinados unicamente pela lei. (Kant, [1788] 2003,
p. 283 – grifos do autor)
Podemos afirmar que em Freud, assim como em Kant, o que faz barreira à
agressividade também é a lei moral. Freud denomina de supereu a instância moral
presente em cada sujeito e afirma que é o supereu um representante do imperativo
categórico kantiano. Analisaremos o conceito e essa afirmação freudiana um pouco
mais adiante.
Por hora, é importante deixar claro que aqui uma diferença fundamental com
relação a essa instância moral no pensamento dos dois autores. O agir moral para Freud,
ou seja, agir a partir das leis morais que barram as pulsões agressivas a fim de tornar
possível a vida em sociedade, ao contrário de causar um sentimento de elevação e auto-
aprovação causa o que ele chama de mal estar na civilização, expressão que vem
inclusive nomear o texto em questão. Esse mal estar é a conseqüência da não realização
da pulsão agressiva. A citação a seguir demonstra em detalhes como Freud concebe o
surgimento desse mal estar.
Algo notável, que jamais teríamos adivinhado e que, não obstante, é bastante óbvio. Sua
agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade, enviada de volta para o
lugar de onde proveio, isto é, dirigida no sentido de seu próprio eu. Aí, é assumida por
uma parte do eu, que se coloca contra o resto do eu, como supereu, e que então, sob a
forma de ‘consciência’, está pronta para pôr em ação contra o eu a mesma agressividade
rude que o eu teria gostado de satisfazer sobre outros sujeitos, a ele estranhos. A tensão
entre o severo supereu e o eu, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento
de culpa; expressa-se como uma necessidade de punição. A civilização, portanto,
consegue dominar o perigoso desejo de agressão do sujeito, enfraquecendo-o,
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54
desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma
guarnição numa cidade conquistada. (Freud, [1929] 1996, Vol. XXI, p. 127)
Não iremos nos prender aos pormenores desse movimento psíquico que Freud
descreve sobre as conseqüências da não satisfação pulsional, pois acreditamos que a
análise minuciosa dessa citação acabaria por nos prender em demasia na teoria
psicanalítica e não é esse, como já dissemos, o objetivo do presente trabalho. No
entanto, elementos importantes que não poderemos desprezar para a continuidade do
estudo, tais como, supereu e sentimento de culpa.
Pelo que podemos depreender da citação, compreendemos que, através da
intervenção moral do supereu no eu, as ações agressivas que seriam realizadas no
mundo externo produzindo sensação prazerosa, são barradas e deixam de ser efetuadas.
O que acontece para tornar inofensiva a inclinação do sujeito à agressão, segundo
Freud, é que a agressão que seria remetida a um objeto externo ao eu, a partir da
intervenção do supereu, retorna ao próprio eu do sujeito e se produz nele, como
conseqüência da ação agressiva voltada ao próprio eu, um sentimento de culpa, um mal
estar. O resultado da não realização de um ato moralmente condenável não é, segundo
Freud, um sentimento de auto-aprovação ou de elevação, tal como é para Kant (Cf.
Kant, [1788] 2003, p. 281), mas um sentimento de culpa e uma necessidade de
autopunição. O que nos demonstra que agir de acordo com princípio moral não está
alinhado ao campo do prazer e da felicidade no texto freudiano.
2.7
O supereu freudiano e as aproximações com o Imperativo
Categórico kantiano
Encontramos na obra de Freud algumas citações que remetem o supereu ao
imperativo categórico. Selecionamos a seguinte:
O supereu a consciência em ação no eu pode então tornar-se dura, cruel e inexorável
contra o eu que está a seu cargo. O Imperativo Categórico de Kant é, assim, o herdeiro
direto do complexo de Édipo. (Freud, [1924] 1996, Vol. XIX, p. 185)
Nessa citação, Freud chega a afirmar que o imperativo categórico é o supereu,
pois o herdeiro direto do complexo de Édipo na obra freudiana é o supereu. Não
entraremos nas minúcias que exigiria a análise do complexo de Édipo. Basta dizer que o
que está em questão no Édipo é uma gama de identificações da criança com seus pais
em um momento em que os pais possuem um lugar muito específico: o de objeto de
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amor/ódio e o de ideal a ser seguido. Assim, o menino, por exemplo falando de um
modo extremamente esquemático e simplificado - toma sua e como seu objeto de
amor e seu pai como ideal a ser por ele reproduzido. Quer ter a mãe e, para isso, ser o
pai. O complexo de Édipo tem importância para o presente estudo, pois é a partir dele
que se constitui no sujeito, segundo Freud, a instância do ideal e da consciência moral,
como veremos logo adiante. Ideal e consciência moral representam juntos as funções do
supereu. “Tal como a criança esteve um dia sob a compulsão de obedecer aos pais,
assim o eu se submete ao imperativo categórico do seu supereu.” (Id., [1923] 1996, Vol.
XIX, p. 61)
Prosseguiremos com o texto freudiano que estávamos analisando no item anterior.
É nos capítulos seis e sete de Mal estar na civilização que Freud trabalha com atenção o
supereu e o sentimento de culpa. Lembremos que a culpa é, para Freud, o mal estar
resultado da existência de uma consciência moral em cada sujeito, pois, segundo Freud,
essa consciência moral tem um caráter duro, cruel e inexorável em relação ao próprio
sujeito. É essa consciência moral, o supereu, que Freud remete diretamente ao
imperativo categórico kantiano.
Há um importante passo dado por Freud em relação ao sentimento de culpa. Freud
demonstra como, a partir da constituição da instância moral, o sentimento de culpa
passa a existir sem que uma ação moralmente condenável tenha sido realizada. O
simples pensamento ou desejo, mesmo inconsciente, de realizar algo que fuja aos
mandamentos morais provoca culpa uma vez que o supereu é a internalização da lei e
dele nada escapa.
A lei, que em um primeiro momento era representada e imposta pelas figuras
parentais, passa, ao final do complexo de Édipo, a ser interna e a independer do olhar
paterno. O medo que a criança possui de perder o amor das figuras paternas caso seja
descoberta em um ato em que será repreendida pelos pais, passa a existir mesmo que
nenhum ato seja feito, mas apenas pensado. Isso porque, ao ser internalizada, a lei moral
passa a ser exercida pela própria criança e ela mesma irá efetuar o trabalho de condenar
o que antes era condenado pelos pais. Se era possível esconder das figuras parentais
uma vontade condenável, com o estabelecimento do supereu essa possibilidade deixa de
existir. O supereu “sabe” sobre todos os pensamentos, vontades e desejos existentes no
sujeito. Assim, mesmo que um desejo moralmente condenável não seja efetuado, a
existência dele não escapa à instância superegóica.
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Conhecemos, assim, duas origens do sentimento de culpa: uma que surge do medo de
uma autoridade, e outra, posterior, que surge do medo do superego. A primeira insiste
numa renúncia às satisfações pulsionais; a segunda, ao mesmo tempo em que faz isso
exige punição, de uma vez que a continuação dos desejos proibidos não pode ser
escondida do superego. (Freud, [1929] 1996, Vol. XXI, p. 130)
O que precisa ficar marcado aqui é que há uma importante passagem com a
internalização da lei e constituição da instância moral designada supereu: uma “má
intenção” passa a ser tratada pelo supereu como equivalente ao ato que a colocaria em
prática. Isso faz com que mesmo que o ato deixe de ser realizado por ser considerado
mau e ser barrado pelo supereu, o mal estar não deixará de existir. O supereu irá
condenar o desejo com uma ferocidade semelhante a que teria contra o eu caso o ato
fosse efetuado.
A essa altura do presente estudo, é preciso que esteja claro que o supereu é uma
parte destacada do aparelho psíquico que tem plena noção do que se passa no sujeito
com relação aos seus desejos, mesmo os desejos que Freud denomina de inconscientes,
ou seja, de que o próprio eu do sujeito não tem consciência desejar. O sujeito é para
Freud, portanto, dividido. O eu, que é a instância com a qual temos maior contato direto
e na qual os pensamentos conscientes se localizam, pouco sabe dos desejos
inconscientes e das repressões morais do supereu em relação a esses desejos. O eu sente
seus efeitos e se esforça por adequar-se à realidade. A luta maior, sobre a qual o eu
pouco sabe, se dá entre o supereu e os desejos inconscientes.
Cabe agora perguntar como se estabelece em Freud o que é moralmente
condenável. Em cima de quê, afinal, o supereu exerce suas intervenções? Como ele
estabelece o que é moralmente bom e o que é moralmente mau? Somente após
respondermos tal questão é que poderemos compreender se Freud tem mesmo razão de
remeter o supereu ao imperativo categórico kantiano. Reflitamos sobre a seguinte
citação:
Podemos rejeitar a existência de uma capacidade original, por assim dizer, natural de
distinguir o bom do mau. O que é mau, frequentemente, não é de modo algum o que é
prejudicial ou perigoso ao eu; pelo contrário, pode ser algo desejável pelo eu e prazeroso
para ele. Aqui, portanto, está em ação uma influência estranha, que decide o que deve ser
chamado de bom ou mau. De uma vez que os próprios sentimentos de uma pessoa não a
conduziriam ao longo desse caminho, ela deve ter um motivo para submeter-se a essa
influência estranha. Esse motivo é facilmente descoberto no desamparo e na dependência
dela em relação a outras pessoas, e pode ser mais bem designado como medo da perda de
amor. (Freud, [1929] 1996, Vol. XXI, p. 128)
Podemos reconhecer nessa citação algo que nos remete ao início do presente
capítulo, a saber, a relação entre desamparo e moral. Apenas para relembrar, no início
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57
do capítulo apresentamos uma citação do Projeto para uma psicologia cientifica (1895)
em que Freud afirma que “o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial
de todos os motivos morais” (Id., [1895] 1996, Vol. I, p. 370 – grifos do autor).
Poderemos agora compreender melhor o que faz Freud realizar tal articulação. Sigamos
com seu pensamento:
Se ela [criança] perde o amor de outra pessoa de quem é dependente, deixa também de ser
protegida de uma série de perigos. Acima de tudo, fica exposta ao perigo de que essa
pessoa mais forte mostre sua superioridade sob a forma de punição. De início, portanto,
mau é tudo aquilo que, com a perda do amor, nos faz sentir ameaçados. Por medo dessa
perda, deve-se evitá-lo. (Id., [1929] 1996, Vol. XXI, p. 128)
Assim, para Freud, a moral está calcada no desamparo inicial ao qual todo ser
humano está exposto. É preciso manter o amor de quem cuida para que se possa
sobreviver e para não perder esse amor uma submissão inicial às leis socialmente
estabelecidas e transmitidas pelas figuras parentais. O lugar das figuras parentais é
posteriormente substituído pela “comunidade humana mais ampla” (Loc. cit.). Enquanto
a lei não é internalizada e seu representante somente existe no mundo externo ao eu, as
pessoas se permitem realizar coisas que seriam moralmente condenáveis pelos
representantes da lei caso estejam seguras de que não serão descobertas. Uma mudança
realmente significativa se realiza quando a autoridade é de fato internalizada com o
estabelecimento do supereu. Assim, nada mais pode ser escondido do supereu.
Freud percebe que mesmos os homens considerados os mais morais, os mais
corretos, eram vítimas de intenso sentimento de culpa:
[...] quanto mais virtuoso um homem é, mais severo e desconfiado é seu comportamento,
de maneira que, em última análise, são precisamente as pessoas que levaram mais longe a
santidade as que se censuram da pior pecaminosidade. (Freud, [1929] 1996, Vol. XXI, p.
129)
Ou seja, para Freud, ao contrário do que Kant parece sugerir, quanto mais um homem se
submete aos mandamentos morais, menos elevado ele se sente. Isso porque, como
vimos, não como os desejos inconscientes escaparem ao supereu. E quanto menos
satisfeitas as pulsões agressivas no mundo externo, mais violentas elas retornam,
segundo a lógica freudiana, ao próprio eu.
Assim, a não realização das tendências agressivas em prol do recebimento do
amor não possui um efeito apaziguador. “Uma ameaça de infelicidade externa perda
de amor e castigo por parte da autoridade externa foi permutada por uma permanente
infelicidade interna, pela tensão do sentimento de culpa”. (Ibid., p. 131). A tese de
Freud é, portanto, a de que em prol da possibilidade de uma vida em sociedade certas
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regras precisam ser universalizadas e entre elas a que Freud mais destaca é a que
segundo a qual os impulsos agressivos, presentes em todo ser humano, não podem
encontrar satisfação freqüente na agressão ao próximo. Com isso, a agressão retorna ao
eu do sujeito e é representada por Freud através do sentimento de culpa. Sua intenção é
a de
[...] representar o sentimento de culpa como o mais importante problema no
desenvolvimento da civilização, e de demonstrar que o preço que pagamos por nosso
avanço em termos de civilização é uma perda da felicidade pela intensificação do
sentimento de culpa. (Ibid., p. 137)
Assim, Freud situa a moral primeiro como conseqüência do desamparo inicial a
que todo ser humano é exposto e do medo da perda do amor e da proteção, e depois
como uma exigência ideal inatingível que tortura o sujeito e o faz sentir-se culpado e,
desse modo, mais infeliz. A constituição da instância moral é, dessa forma, um modo de
sobrevivência que possui um alto preço. “Emite uma ordem e não pergunta se é possível
às pessoas obedecê-la. Pelo contrário, presume que o eu de um homem é
psicologicamente capaz de tudo o que lhe é exigido...” (Freud, [1929] 1996, Vol. XXI,
p. 145). Segundo Freud, o sentimento de culpa poucas vezes é percebido como tal,
sendo geralmente sentido apenas como um certo mal estar, uma insatisfação, para a qual
as pessoas costumam buscar outras justificações. (Ibid., p. 138).
Com isso voltamos à pergunta que nos orienta no presente momento: a articulação
que Freud faz do supereu com o imperativo categórico é pertinente em termos
kantianos? Retomemos a citação em questão:
O supereu a consciência em ação no eu pode então tornar-se dura, cruel e inexorável
contra o eu que está a seu cargo. O Imperativo Categórico de Kant é, assim, o herdeiro
direto do complexo de Édipo. (Id., [1924] 1996, Vol. XIX, p. 185)
Segundo o filósofo e psicanalista espanhol Jorge Alemán, Freud destrói o
imperativo categórico ao vinculá-lo ao complexo de édipo e torná-lo, assim,
condicionado.
Freud transforma o supereu em imperativo categórico, os fazem equivalentes. Não
menciona qual é seu procedimento de leitura, mas o resultado é gravíssimo: é um ponto
de catástrofe em toda ética construída por Kant. Com efeito, se o imperativo categórico
era precisamente autônomo, incondicional, absoluto e procedia apenas da boa vontade
que brilhava como uma jóia e, por isso, não devia nada a nenhuma instância empírica, a
nenhuma inclinação pessoal, colocá-lo em relação de dependência, colocá-lo como
herdeiro é introduzir uma heteronomia catastrófica
5
. (Alemán apud Miller, 2000, p. 20)
5
Tradução livre do texto original em espanhol.
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Podemos nos esforçar para compreender o que leva Freud a fazer a analogia entre
supereu e imperativo categórico. A partir do que vimos até aqui, percebemos que é o
supereu a instância criada por Freud para localizar os limites às inclinações individuais
e egoístas de busca do prazer, principalmente do prazer que se obteria com a satisfação
das pulsões agressivas. Um mecanismo psicológico sofisticadamente constituído a partir
da relação do sujeito com as figuras parentais, com as figuras que lhe representam a
obtenção de amor e segurança, com os representantes primeiros de uma lei que se
obedece por desamparo, o supereu é o lar da moral em Freud. Assim, uma vez
constituído, é ele o real legislador da lei e não mais as figuras parentais externas e é
ele, portanto, quem dita os deveres a que se deve submeter.
Logo, se alguma instância psíquica nos moldes freudianos em que se possa
situar o imperativo categórico kantiano, essa instância é o supereu. Mas, no entanto, isso
não significa que possamos de fato afirmar que o imperativo categórico kantiano é o
supereu freudiano. Isso porque há uma diferença crucial entre os dois conceitos. Embora
ambos sejam os legisladores morais e sejam eles os responsáveis pelos cuidados que se
tem com o dever e com as barreiras às inclinações patológicas, o supereu se faz ainda
mais rigoroso do que o imperativo categórico. Expliquemos nos seguintes termos: o
imperativo dita ao sujeito que ele deve agir de acordo com a possibilidade de
universalização de sua ação. Se ela for universalizável, seu ato será moral. Se não for,
seu ato não será moral.
Por sua vez, o supereu além de ditar o que é moral, e Freud não necessariamente
se refere a algo universalizável, exige um comportamento restrito dentro de seus
parâmetros que, caso não seja seguido, e nunca o é totalmente, o supereu castiga. Nunca
é totalmente seguido porque para o supereu, o pensamento, os desejos e as inclinações
deveriam obedecer aos restritos padrões morais por ele impostos. Se em Kant podemos
ver que o agir moral é sempre desligado do pathos, pois o pathos nunca é moral, em
Freud, o supereu não aceita que o pathos não seja moral. A imoralidade das inclinações
é castigada pelo supereu freudiano, mas não na moral kantiana.
Segundo Baas, a lei moral em Kant diz apenas Faça seu dever”. Ela não
promete, como em Freud, uma punição caso o dever não seja cumprido. Para Baas, não
se pode pensar o supereu como lei moral aos moldes kantianos justamente porque no
imperativo categórico não uma punição prometida caso o dever não seja cumprido.
Em suas palavras:
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60
Não pode tratar-se aqui da lei do supereu que rege o desejo pelo sentimento de
culpabilidade, em outras palavras, pela ameaça de uma punição. Porque a lei moral, em
Kant, diz: ‘faça o seu dever!’, é tudo; ela não diz ‘faça seu dever senão você será punido’.
(Baas, 2001, p. 41)
Afinal, a escolha realizada pela vontade pura é julgada em função de si mesma e não em
função de suas conseqüências, pois ela é incondicionada e, portanto, independente dos
resultados.
Terminemos esse item com uma citação de Kant que demonstra bem como seu
imperativo não carrega cobranças e castigos. Ela enfatiza a idéia de que a moral em
Kant é um ato de liberdade, uma escolha regida por uma vontade moralmente boa que
liberta o ser humano de suas inclinações patológicas e torna os homens mais dignos.
Muito diferente de como vimos ser em Freud, um modo de sobrevivência da vida
coletiva, uma coação no agir que acarreta um mal estar na civilização.
Oh dever! Sublime e grande nome, que não compreendes em ti nada de benquisto que
comporte adulação mas reivindicas submissão, contudo tampouco ameaças com algo que
para mover a vontade provocasse no ânimo aversão natural e o atemorizasse, porém
simplesmente propões uma lei que por si encontra acesso ao ânimo e que, todavia, mesmo
a contragosto granjeia para si a veneração (embora nem sempre observância), ante a qual
todas as inclinações emudecem, mesmo que secretamente se oponham a ela [...]. (Kant,
[1788] 2003, p. 303)
A partir do que foi apresentado no presente capítulo, poderemos abrir a discussão
que se apresenta a seguir. Neste diálogo entre psicanálise e filosofia, veremos no
próximo capítulo como Jacques Lacan busca apoio na vontade pura de Kant para pensar
o que ele denomina de desejo puro, norte fundamental para uma ética da psicanálise.
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61
3
Da vontade e do desejo
Antes de iniciarmos o diálogo com Lacan sobre a ética, retomaremos mais uma
vez alguns pontos da filosofia prática de Kant. Na primeira parte do presente capítulo
analisaremos termos utilizados por Kant tais como “inclinação”, “apetição” (ou
“desejo”, dependendo da tradução) e “vontade” a fim de que a diferença se evidencie
com relação ao conceito de “desejo” tal como utilizado por Lacan e também para que
não nos percamos nas bases conceituais de cada um de nossos autores. Faremos também
uma breve retomada, na qual acrescentaremos alguns argumentos, sobre a autonomia da
razão, noção importante para pensarmos a liberdade e a ética do dever. Isso nos ajudará
a compreender o diálogo com Lacan. Como na primeira parte deste capítulo dedicamo-
nos mais à obra kantiana, na segunda parte desenvolvemos uma análise mais voltada ao
trabalho de Lacan. No entanto, os dois autores estarão presentes nos dois momentos.
3.1
Kant e a vontade
3.1.1
Inclinação e apetição
Quando falamos da ética do dever kantiana, dois conceitos nos são especialmente
importantes: liberdade e vontade. Abordamo-los no primeiro capítulo e retornamos a
eles agora. A ética do dever se sustenta na escolha em que o sujeito abre mão das ações
calcadas nas inclinações patológicas e opta por agir segundo a regra formal da lei moral,
representada pelo imperativo categórico. Assim, a liberdade está colocada para o sujeito
racional, que ele é o único ser vivo capaz de realizar essa escolha e de legislar sobre
sua vontade.
A vontade está ligada à faculdade de apetição ou faculdade de desejar,
dependendo da tradução, e pode ser determinada, de acordo com Kant, de dois
diferentes modos: pelas inclinações, seguindo o que ele denomina faculdade de
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62
apetição inferior, ou pela razão pura, seguindo a que seria uma faculdade de apetição
superior. Como sabemos, Kant quer demonstrar que a razão pura pode ser prática, ou
seja, que uma razão livre de elementos empíricos que é capaz de determinar nossa
vontade. Em suas palavras,
Só então a razão, na medida em que determina por si mesma a vontade (não está a serviço
das inclinações), é uma verdadeira faculdade de apetição superior, à qual a faculdade de
apetição, determinada patologicamente, está subordinada, e é efetivamente, até
especificamente distinta desta, a ponto de a mínima mescla de impulsos da última
prejudicar-lhe a força e excelência, do mesmo modo como o mínimo de empírico, como
condição em uma demonstração matemática, reduz e aniquila sua dignidade e
importância. (Kant, [1788] 2003, p. 85 – grifos do autor)
A escolha livre de determinações empíricas é o ponto em que Kant quer chegar a
fim de salvaguardar o espaço da liberdade do sujeito. Como vimos, as inclinações
pertencem ao mundo fenomênico e, portanto, ao mundo condicionado, no qual a todo
ato se atribui uma causa anterior. Assim, para Kant, a liberdade precisa ser justificada
em seu âmbito noumênico, incondicionado, âmbito das causas não causadas, pois
somente o inédito pode ocorrer e uma escolha pode ser, assim, considerada livre e
não apenas um ato atrelado a causas que o antecedem e, dessa forma, o condicionam.
Quando voltada a objetos empíricos, a faculdade de apetição não está sendo
determinada pela razão pura. Quando voltada a esses objetos, está vinculada ao âmbito
patológico e às noções de prazer e desprazer, agradável e desagradável, deleite e dor.
Dessa forma, a felicidade, que segundo Kant é uma aspiração de todo ente racional e
que se baseia nos sentimentos de prazer e desprazer, é um fundamento determinante da
faculdade de apetição inferior (Ibid., p.83-85). Nas palavras de Kant, “aquilo em que
cada um costuma colocar sua felicidade tem a ver com seu sentimento particular de
prazer e desprazer [...]” (Ibid., p. 87).
Concerne, desse modo, à faculdade de apetição apontar caminhos referentes ao
sentimento de prazer e desprazer, pois é a partir deles que se determina o que se faz
necessário para um estado de contentamento, satisfação ou felicidade. Assim, o conceito
de felicidade mostra-se como o fundamento da relação prática dos objetos com a
faculdade de apetição (Loc. cit.).
Como vimos, inclinações subjetivas não podem ser elevados à categoria moral, à
categoria de leis práticas, “que possuem perfeitamente necessidade objetiva e não
meramente subjetiva, e que têm de ser conhecidas a priori pela razão e não pela
experiência” (Ibid., p. 89).
Assim, o ser racional indica que liberdade possível, pois
ele é capaz de escolher o ato moral guiado pela razão pura, ausente de pathos, e negar o
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63
ato patológico, condicionado, apesar da dor que isso pode lhe causar. Como vimos no
primeiro capítulo, é diante da recusa às inclinações patológicas, condicionadas, que o
ser racional afirma sua liberdade através da aceitação da lei moral. A razão pura
determina a vontade através da forma simples da lei moral, sem qualquer pressuposição
de agradável ou desagradável, tornando-a uma vontade pura.
Aqui entra o livre arbítrio em sua relação com a faculdade de apetição. O arbítrio
é capacidade que o sujeito tem de escolher entre agir por dever, independente da coação
dos impulsos sensíveis, ou agir patologicamente, coagido pelos impulsos sensíveis.
Segundo Kant, o arbítrio humano
É um arbítrio liberum porque a sensibilidade não torna necessária a sua acção e o homem
possui a capacidade de determinar-se por si, independentemente da coacção dos impulsos
sensíveis. (Kant, [1781] 2001, B562)
O sujeito é, assim, responsável pela escolha entre agir por inclinação e agir guiado pela
razão pura.
Na Crítica da razão prática, Kant nos oferece dois exemplos sobre as
possibilidades de escolha do sujeito. Segue o primeiro:
Supondo que alguém alegue que sua voluptuosa inclinação seja-lhe totalmente irresistível
no momento em que o objeto querido e a ocasião correspondente lhe ocorram, pergunta-
lhe se, no caso em que se erguesse perante a casa em que ele encontra essa ocasião uma
forca para suspendê-lo logo após a gozada volúpia, ele então não dominaria essa
inclinação. Não se precisa de muito para adivinhar o que ele responderia. (Id., [1788]
2003, p. 103)
A ética do dever e a liberdade se expressam diante da possibilidade, que Kant
acredita que o ser racional possui, de abrir mão de uma inclinação voluptuosa. Esse
exemplo nos serve para deixar clara a posição de Kant perante o argumento de que
algo com que se relaciona a faculdade de apetição que é da ordem do impossível de
resistir. O dever pode prevalecer, assim, perante tudo o que pode ser concebido como
“vitalmente desejável” (Lacan, 1997, p. 136). Além disso, o exemplo nos serve para
compreender que para Kant é completamente inconcebível que alguém desfrute do
prazer voluptuoso diante da forca eminente. Kant não concebe a possibilidade da
vivência da noite de amor se o sujeito está ciente que depois dela pode se deparar com a
morte.
Segundo Lacan, “Kant nem pisca ao afirmar que o cadafalso será uma inibição
suficiente – não há possibilidade de um cara ir trepar pensando que vai para um
cadafalso na saída.” (Lacan, 1997, p. 136). Lacan retomará esse argumento kantiano
para incluir a possibilidade de que o sujeito viva a noite de prazer mesmo sabendo que
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poderá deparar-se com a forca ao findar do encontro. Segundo o psicanalista Sérgio
Laia, “para Lacan não está excluído que, em certas condições, o sujeito [...] possa ter em
vista a possibilidade de se oferecer ao suplício. Basta que consideremos o que Freud
chamava de ‘supervalorização do objeto’: o sujeito ama a tal ponto a mulher em questão
que não hesita em morrer por ela [...]” (Laia, 1992, p. 292). Além disso, Lacan ainda
levanta a possibilidade de o sujeito se entregar à morte por um prazer que excede o da
volúpia amorosa, prazer de deixar uma marca na dama. Em suas palavras:
Não é impossível que um cavalheiro que durma com uma mulher estando seguríssimo de
ser, pelo cadafalso ou por outra coisa, estraçalhado na saída, não é impossível que esse
senhor considere friamente esse final na saída – pelo prazer de cortar a dama em pedaços,
por exemplo. (Lacan, op. cit., p. 137)
Kant prossegue com um segundo exemplo:
Perguntai-lhe, porém, se, no caso em que seu governante sob ameaça da mesma inadiada
pena de morte lhe exigisse prestar um falso testemunho contra um homem honrado, que
ele sob pretextos especiosos gostaria de arruinar, se ele então, por maior que seja seu
amor à vida, considera possível vencê-lo. Se ele o faria ou não, talvez ele não se atreva a
assegurá-lo, mas que isso lhe seja possível, tem que admiti-lo sem hesitação. Portanto, ele
julga que pode algo pelo fato de ter a consciência que o deve, e reconhece em si a
liberdade, que do contrário, sem a lei moral, ter-lhe-ia permanecido desconhecida. (Kant,
[1788] 2003, p. 103)
Para Kant, neste caso, o sujeito iria ao menos perguntar-se qual caminho seguir,
mesmo que optasse pelo “prazer”, enquanto que no primeiro exemplo tal
questionamento não é sequer cogitado por Kant. Esses exemplos são preciosos para
Lacan, principalmente o primeiro, pois apontam para o fato de que Kant procurava
ignorar a dimensão do sujeito que se encontra para além do princípio do prazer
1
, embora
estivesse em contato com ela em sua ética do dever, mesmo sem o saber, como veremos
no próximo capítulo.
Lacan aponta com isso para o fato de que transgressões que se revelam para
além dos limites marcados pelo prazer e indicam, assim, um certo funcionamento do
desejo que Kant não pôde abordar diretamente em sua teoria. Segundo Laia, a
transgressão que inclui a morte devido à supervalorização do objeto amado permite que
nos deparemos com algo que parece escapar a Kant, pois esse tipo de escolha é
“também resposta à lei e se inscreve num campo que, excluindo todo pathos, transborda
a regulação homeostática exigida pelo princípio do prazer” (Laia, 1992, p. 293). São,
1
Aquilo que no sujeito busca não por prazer ou por uma suposta felicidade, aquilo que busca oq eu está
além do prazer e que pode remeter o sujeito ao sofrimento, à culpa, à dor ou à morte. Cf. Capítulo 2 dessa
dissertação.
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assim, escolhas que não estão voltadas simplesmente ao prazer ou a felicidade pessoal,
mas também não se encaixam em um agir por dever.
Como vimos no segundo capítulo, o princípio do prazer tende a se manter com o
menor nível de energia possível, o que o leva também a descargas energéticas que
podem fazer transcender o campo do prazer e atingir um grau mínimo, o estado
inorgânico ou a morte. Tanto ao que se localiza como prazer através de um excesso
energético, quanto às descargas que tendem a um grau zero de energia, Freud denomina
de “além do princípio do prazer” e situa a pulsão de morte. Lacan destaca que o que
está para além do princípio do prazer pode tocar um outro tipo de abordagem moral,
uma abordagem que transborda os limites do princípio do prazer.
Segundo Laia, o que impressiona Lacan no primeiro exemplo oferecido por Kant
é
como Kant o articula em termos de uma oposição real: ao prazer que o homem pode
vivenciar durante a noite com a dama, se contrapõe a pena que incidirá sobre ele na
manhã seguinte. Mas se Lacan pode conceber que o homem escolha a noite de amor e,
consequentemente, o despertar mortífero é porque ele nos convida [...] a desviar essa
noite da rubrica do princípio do prazer que sustenta a preservação da vida, para a rubrica
do gozo, do mais além do princípio do prazer que nos dirige para a morte. (Ibid., p. 297)
O que está além do princípio do prazer será ponto de referência a partir de agora
para pensarmos a ética do dever e a ética da psicanálise.
Como vimos no capítulo 2, para Freud não maneira do sujeito se desvencilhar
das exigências pulsionais. E acrescentamos agora que ele também não é capaz de se
desvencilhar das marcas do desejo. Não opção possível diante do desejo a não ser
lidar com ele (seja recalcando algo dele, seja produzindo um sintoma que expresse
algum tipo de satisfação “disfarçada”, seja sublimando-o) ou pagar o preço com a culpa
que se instala quando nos esquivamos daquilo que é do campo do desejo.
3.1.2
Autonomia
A liberdade kantiana possibilita a autonomia da vontade frente às inclinações
patológicas. Nas palavras de Kant: “A liberdade no sentido prático é a independência do
arbítrio frente à coacção dos impulsos da sensibilidade” (Kant, [1781] 2001, B562). Ou
seja, não existe autonomia da vontade na teoria da ética kantiana sem a liberdade diante
dos motivos patológicos. Isso permite que Kant afirme que a razão pura pode ser uma
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razão prática por deixar a vontade, quando pura, habitar o campo moral e não apenas o
campo patológico/empírico.
Na FMC, a liberdade é definida como sendo autonomia, ou seja, é livre o sujeito
que age independente de causas exteriores (heterônomas)
2
. Sem a autonomia da vontade
não haveria a ética do dever, não haveria arbítrio livre e não haveria escolha possível a
partir da lei moral. A heteronomia, que seria a sujeição a uma lei exterior ou à vontade
de outro, ou seja, justamente a ausência de autonomia, não possibilita que a lógica
kantiana sobre a ação moral universal seja possível. Para Kant, a heteronomia é
representada pela sujeição da vontade humana às inclinações patológicas, inclinações
essas que não pertencem ao campo da legislação estabelecida pela consciência moral de
maneira livre e autônoma por serem condicionadas e fenomênicas.
A autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres
conformes a elas: contrariamente, toda heteronomia do arbítrio não não funda
obrigação alguma mas, antes, contraria o princípio da mesma e da moralidade da vontade.
Ou seja, o único princípio da moralidade consiste na independência de toda a matéria da
lei (a saber, de um objeto apetecido) e, pois, ao mesmo tempo na determinação do arbítrio
pela simples forma legislativa universal, da qual uma máxima tem que ser capaz. (Id.,
CRPr, [1788] 2003, p. 113)
Sendo a ética kantiana uma ética do dever, é necessário, para que ela se dê, que
dever e liberdade estejam em sintonia e separados dos interesses patológicos. Se algum
objeto apetecido entra como condição de possibilidade de uma ação, o que ele marca é a
heteronomia do arbítrio, ou seja, uma dependência da lei natural de seguir um impulso
ou uma inclinação qualquer (KANT, CRPr, [1788] 2003, p. 113). Trata-se da razão pura
poder ser considerada uma faculdade que determina imediatamente a vontade. (Ibid., p.
157)
Assim, seguir a lei moral não exige, na opinião de Kant, nenhuma dificuldade
intelectual. Facilmente todo e qualquer sujeito, mesmo o “entendimento mais comum e
menos exercitado, mesmo sem experiência do mundo” (Ibid., p. 123), é capaz de
compreender se sua ação obedece ou não à lógica formal e universal expressa pelo
imperativo categórico. A autonomia e a liberdade, dadas a todo ser racional, são as
2
As expressões “autonomia” e “heteronomia” só aparecem na obra kantiana quando o problema da
moralidade passa a ser abordado (enquanto Kant está fazendo referência apenas à questão da liberdade
esses termos não são utilizados). No início de seu raciocínio sobre a liberdade, Kant quer apenas saber se
é possível pensar um incondicionado não contraditório e é somente quando a moralidade entra em questão
que novas conseqüências são conjeturadas. Na FMC, Kant constrói seu raciocínio tentando demonstrar
que existe liberdade e, por conseqüência, existe também moralidade. Na CRPr o raciocínio é invertido:
Kant parte da demonstração de que existe moralidade e que, então, é necessário que exista liberdade. É
uma inversão na estratégia demonstrativa do princípio moral.
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bases que tornam possível a escolha moral. Todo ser racional é, assim, capaz de ser livre
e moral em suas ações se seguir a regra formal e universal do imperativo categórico. E
segui-la é, para Kant, portanto, sempre possível, ainda que para isso o sujeito precise
passar pela dor, pois ela, como vimos, é também um índice da moralidade.
3.1.3
Vontade pura
Como vimos, Kant realiza a distinção entre mundo fenomênico e mundo
noumênico, entre fenômeno e coisa em si, na tentativa de salvar a metafísica da
contradição, pois essa divisão permite que os objetos da metafísica não sejam
submetidos às mesmas leis que governam os objetos fenomênicos. Isso é importante,
pois os objetos fenomênicos oferecem uma causalidade infinitamente condicionada,
uma cadeia infinita de condicionamento em que um fenômeno sempre possui uma causa
anterior que o determina. Essa distinção entre domínio fenomênico (o das causas
causadas) e domínio noumênico é uma marca profunda da produção kantiana na história
da filosofia. Os objetos do domínio noumênico correspondem às idéias da razão que não
se oferecem a um condicionamento anterior. Como vimos, pode-se pensar, assim, o
objeto incondicionado, embora não se possa conhecê-lo como se pode fazer com os
objetos sensíveis, sem que ele seja considerado um objeto inferior para o pensamento.
Com essa proposta, Kant salvaguarda o campo do incondicionado e, com isso,
salvaguarda a possibilidade para uma teoria da moralidade, do dever e da ética, que a
liberdade vem se localizar no domínio do não causado. O raciocínio kantiano coloca a
liberdade na incondicionalidade, pois, para Kant, um arbítrio pode ser considerado
livre se não estiver previamente condicionado por nada. Determinado apenas pela
própria razão.
Assim, quando a vontade entra em questão, ela pode estar vinculada ao domínio
fenomênico ou ao domínio noumênico. Pode ser uma vontade sensível, vinculada à
faculdade de apetição inferior, ou então pode ser uma vontade denominada pura,
vinculada à faculdade de apetição superior. Pode seguir, assim, um imperativo
hipotético ou um imperativo categórico.
A lei moral, através do imperativo categórico, possui, como vimos no primeiro
capítulo, duas características básicas: ser universal e ser formal. Trata-se da simples
forma de uma legislação universal. O caráter formal da lei moral extrai dessa lei toda e
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qualquer inclinação patológica. O pathos não é nela possível por representar
sentimentos, inclinações, apetições e prazeres que não são passíveis de serem
universalizados e que pertencem ao domínio do condicionado, do sensível. Para Kant, a
lei moral pura é, necessariamente, universal. Uma lei que não possui validade universal
não poderia valer para a moralidade kantiana. Portanto, para que possa ser universal, a
lei moral precisa ser estritamente formal e deixar todo e qualquer conteúdo patológico
extraído de seu âmbito. Assim, a lei moral pode ser dita uma lei apática, ausente de
pathos, ou seja, ausente de paixão, de sentimentos, de sensações prazerosas ou
desprazerosas, de inclinações individuais. A vontade pura que nos apresenta Kant é,
nesse sentido, uma vontade apática. Guardemos isso para compreendermos as razões
que fazem com que Lacan a Kant para pensar uma ética para a psicanálise. Vamos,
então, finalmente, a Lacan
3.2
Lacan e o desejo
3.2.1
“O eu não é senhor em sua própria morada”
Como mencionamos na Introdução, Freud afirmou que a humanidade sofreu três
grandes feridas narcísicas. A primeira com Copérnico, diante da constatação de que a
Terra não é o centro do universo; com Darwin sofreu a segunda, diante da teoria de que
os homens são descendentes de animais e não filhos diletos de uma divindade. E a
terceira viria com o próprio Freud, quando ele afirma que a consciência é apenas uma
pequena parte da vida psíquica e que, portanto, o eu [consciência] não é senhor em sua
própria morada. Em suas palavras:
No transcorrer dos séculos, o ingênuo amor-próprio dos homens teve de submeter-se a
dois grandes golpes desferidos pela ciência. O primeiro foi quando souberam que a nossa
Terra não era o centro do universo, mas o diminuto fragmento de um sistema cósmico de
uma vastidão que mal se pode imaginar. Isto estabelece conexão, em nossas mentes, com
o nome de Copérnico, embora algo semelhante tivesse sido afirmado pela ciência de
Alexandria. O segundo golpe foi dado quando a investigação biológica destruiu o lugar
supostamente privilegiado do homem na criação, e provou sua descendência do reino
animal e sua inextirpável natureza animal. Esta nova avaliação foi realizada em nossos
dias, por Darwin, Wallace e seus predecessores, embora não sem a mais violenta
oposição contemporânea. Mas a megalomania humana terá sofrido seu terceiro golpe, o
mais violento, a partir da pesquisa psicológica da época atual, que procura provar o ego
que ele não é senhor nem mesmo em sua própria casa, devendo, porém, contentar-se com
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escassas informações acerca do que acontece inconscientemente em sua mente. (Freud,
[1916] 1996, Vol. XVI, p. 292)
O funcionamento do inconsciente freudiano desconcerta uma razão que se quer
capaz de legislar racionalmente sobre suas ações, pois pretende demonstrar que muitas
das ações do sujeito moderno estão pautadas em desejos e pensamentos inconscientes.
Estudamos um pouco sobre a relação entre civilização e estruturação do aparelho
psíquico freudiano no segundo capítulo do presente trabalho. Freud vem demonstrar,
através de seus estudos e casos clínicos, que por trás dos pensamentos conscientes,
que justificam nossas ações e escolhas cotidianas, motivações e marcas inconscientes.
Segundo ele:
Essas duas descobertas a de que a vida dos nossos instintos sexuais não pode ser
inteiramente domada, e a de que os processos mentais são, em si, inconscientes, e
atingem o ego e se submetem ao seu controle por meio de percepções incompletas e de
pouca confiança –, essas duas descobertas equivalem, contudo, à afirmação de que o ego
não é o senhor da sua própria casa. Juntas, representam o terceiro golpe no amor próprio
do homem, o que posso chamar de golpe psicológico. (Id., [1917] 1996, p. 152)
Ou seja, são motivações que conscientemente desconhecemos, mas que podem vir
à tona através da análise de produções inconscientes (tais como associação livre, sonhos,
chistes e atos falhos). É uma relação delicada e bastante sutil a que Freud constrói entre
as motivações inconscientes e as ações e sofrimentos do sujeito para que façamos dela
uma simples relação entre uma causa primeira e um efeito subseqüente. Freud teve a
sensatez de não restringir sua descoberta a uma mera explicação causal ao chamar a
atenção para uma multiplicidade de situações e experiências que provocam marcas em
nosso aparelho psíquico. Algumas delas podem ser lembradas através de um processo
analítico, outras, por sua vez, jamais poderão sê-lo. No máximo poderão ser
delicadamente construídas, como em um trabalho arqueológico de reconstrução de uma
cidade destruída.
Um dos principais legados freudianos é a limitação do que se pode saber. Ele
denominou “umbigo do sonho”
3
o ponto a que se chega em uma análise quando dela não
mais o que extrair, quando nela se chega a um resto que permanece inapreensível.
uma marca do impossível que não se pode transpor. Esse impossível de se apreender está
presente na psicanálise freudiana e também na lacaniana. Ao mesmo tempo, o
inapreensível, é o motor, o coração, do trabalho analítico. É em torno do que é
impossível de se dizer e de se saber que se constroem as falas de uma análise.
3
Expressão que se refere ao ponto em que se esgota a possibilidade de realizar a análise de um sonho.
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70
Podemos extrair algumas conseqüências da afirmação freudiana de que “o eu não é
senhor em sua própria morada”. Certamente não iremos nos debruçar sobre uma
tentativa, que consideramos equivocada, de dar carne ao suposto senhor da morada. Tirar
o eu desse lugar para substituí-lo por qualquer outro nome não nos ajudaria a
compreender essa ruptura freudiana. Consideramos apenas, por hora, que o essencial
dessa afirmação é o fato de que há forças não comandadas pela consciência. Mais
adiante, nas considerações finais do presente trabalho, iremos extrair uma conseqüência
ética desta idéia.
Poderíamos aqui, na discussão sobre a limitação do saber, nos lembrar de Kant e
tentar aproximar os dois autores (Freud e Kant). No entanto, isso seria um erro. Apesar
de Kant também se pautar por um campo impossível de conhecer e restringir-se ao que
acreditava possível ao ser racional conhecer ou pensar sobre os objetos e sobre suas
próprias ações e pensamentos, as lógicas da filosofia kantiana e a da psicanálise não
habitam o mesmo campo. Se Kant acredita e defende a idéia de uma autonomia da
vontade que pressupõe a liberdade do ser racional, Freud a descarta definitivamente. Para
Freud, não autonomia possível nestes termos kantianos, assim como a liberdade da
razão é algo de tal ordem que não se pode defender. Isso porque não como obter uma
alforria do campo do inconsciente.
A frase “o eu não é senhor em sua própria morada” questiona a autonomia da
vontade kantiana e, consequentemente, a liberdade. A experiência clínica freudiana é a
que trata de quantidades incontroláveis (Lacan, 1997, p. 41), da impossibilidade de um
domínio puramente racional sobre nossas opções, da incompreensão sobre o desgoverno
de nossos afetos. Diferentemente de Kant, para a psicanálise quantidades
incontroláveis que nem mesmo uma ameaça de morte seria capaz de conter. Lacan
procura esclarecer o sentido dessas “quantidades incontroláveis”, dessas “forças”, ao
dizer que são uma
Espécie de pressão da qual poder-se-ia dizer, se as coisas não fossem infinitamente mais
longe, que é o que Freud chama não de necessidades vitais, como se diz frequentemente
para ressaltar o papel secundário, mas, no texto alemão, de die Not des Lebens. Fórmula
infinitamente mais forte. Alguma coisa que quer. [...] A pressão, a urgência. O estado de
Not é o estado de urgência da vida. (Lacan, 1997, p. 61-62)
Lacan segue os passos de Freud. É a partir do campo do inapreensível, do campo
do impossível, e desse algo que quer, que pressiona e que urge, que Lacan desenvolve
seu seminário de número sete, intitulado A ética da psicanálise, obra que será nossa
referência central nas ginas que se seguem. Lacan, assim como Freud, acredita bem
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71
menos na liberdade e na autonomia da razão do que Kant. Há, para Lacan, algo que
conduz o homem para além de sua escolha racional e que ele denomina desejo.
Do campo do desejo, do desejo inconsciente, não há alforria possível para o
homem racional. Segundo Lacan, apenas duas escolhas possíveis: ceder de seu
desejo ou não ceder de seu desejo
4
. Sendo que a primeira opção carrega sempre
conseqüências desastrosas ao sujeito e a segunda, a possibilidade de uma saída ética. O
desejo, tal como a moral kantiana, e isso é interessante, abate o campo da presunção do
ser racional. Isso porque vem demonstrar justamente o que Freud destacou ao afirmar
que o “eu não é senhor em sua própria morada”. A terceira ferida narcísica imposta à
humanidade, marcada por Freud, quer demonstrar que no sujeito um Outro que rege
suas escolhas com uma força que não se cogitava antes afirmar. A expressão “ferida
narcísica” demonstra por si mesmo que estamos em um campo que não poderia ser o da
“presunção”, mas em seu exato oposto, ou seja, no que vem realizar um corte na
presunção.
Isso nos ajuda a compreender uma diferença essencial para o prosseguimento de
nosso estudo: quando nos referimos ao desejo, não estamos nos referindo a um simples
querer ou a uma vontade. Em geral, o que é do campo do desejo não é conforme ao eu,
provoca estranhamento e desconforto (e, por isso mesmo, costuma ser negado pela
consciência). Já aquilo que é da ordem de algo que se quer, de algo que se demanda, está
em sintonia com o eu (consciência) do sujeito.
Lacan aponta, no Seminário VII, que daquilo que é do campo do desejo, o sujeito,
em geral, nada quer saber. Encará-lo é, como afirmou Freud, um corte narcísico, pois, a
miude, o sujeito não quer aquilo que deseja. É um rompimento, assim, com a presunção
de que podemos ter um controle intelectual sobre nossas escolhas. Dessa forma, tal como
a vontade pura que, segundo Kant, recusa a influência do amor de si e a ilusão da
presunção (Kant, CRPr, [1788] 2003, p. 263), o desejo também tem esse efeito ao provar
que o eu não é senhor em sua própria morada. Desse modo, podemos afirmar que o
desejo atravessa a experiência humana e, tal como a vontade pura, arrebata a ilusão da
presunção, mas por uma via completamente diferente.
Se entendemos que a liberdade em Kant está localizada no domínio noumênico, ou
seja, no incondicionado, podemos nos questionar como a liberdade está presente em
Freud e em Lacan se, à primeira vista, ela estaria vinculada ao domínio fenomênico. Ou
4
“Proponho que a única coisa da qual se possa ser culpado, pelo menos na perspectiva analítica, é ter
cedido de seu desejo” (Lacan, 1997, p. 382)
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seja, se não há no sujeito autonomia do desejo inconsciente, como pensar uma liberdade
autônoma das inclinações? Como pensar a possibilidade do incondicionado, do novo, do
inédito em Freud e em Lacan? Esse é um ponto fundamental a ser esclarecido para que
possamos compreender que a ética da psicanálise, calcada no trabalho com o desejo, não
está submetida às inclinações patológicas. Vincular a ética ao desejo, tal como a
psicanálise o compreende, não é vincular a ética às inclinações patológicas. O desejo na
prática e na teoria psicanalítica é justamente aquilo que comporta a possibilidade do
novo, do inédito, da quebra da cadeia causal. É aquilo que escapa às explicações
racionais e rasgam a experiência subjetiva em pontos inesperados. É justamente para
poder formular o desejo como incondicionado, como puro, que Lacan vai a Kant, como
veremos mais especificamente no próximo capítulo.
3.2.2
O Desejo e os Imperativos Hipotético e Categórico
Diferenciar vontade de desejo é importante também para podermos nos localizar
no argumento kantiano com relação aos imperativos. Quando Kant diferencia
imperativo hipotético de imperativo categórico, está delimitando dois campos distintos:
o primeiro, do imperativo hipotético, está às voltas com finalidades a serem alcançadas
que possuem como um fim último atingir a felicidade pessoal. o segundo campo, o
do imperativo categórico, abstém-se completamente da busca pela felicidade pessoal e
se restringe a um mandamento universal, desinteressado, do dever moral.
Pois bem, não ceder de seu desejo, expressão importante para a ética da
psicanálise, não se inscreve nem como imperativo hipotético, nem como imperativo
categórico. Vale introduzir aqui que Lacan voltou-se ao estudo da obra kantiana porque
buscava apoio teórico para pensar o desejo não como inclinação patológica, mas para
pensar a pureza do desejo, para pensar um desejo puro. Kant rejeita todo elemento
patológico como possível motivo moral, faz da simples forma da lei o fundamento para
uma ética de dever e para a determinação de uma vontade pura e afasta a felicidade
pessoal como objetivo primeiro de uma ação ética. É baseado nesses elementos da
argumentação da filosofia prática kantiana que Lacan quer buscar auxílio para pensar
uma ética para a psicanálise.
A ética que está correndo entre o termo “não ceder de seu desejo” não é uma ética
que se propõe a aproximar o sujeito do campo da felicidade, pois não se oferece a fazer
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do sujeito um ser mais feliz e nem acredita que a aproximação do campo do desejo é
capaz de trazer tal felicidade. Não é uma ética que diz ao sujeito que ele deve fazer tudo
aquilo que tem vontade, ao mesmo tempo em que não substancializa para o sujeito
qualquer coisa que possa lhe servir de rumo para um agir ético para além do dito não
ceder de seu desejo. Por esse viés, podemos dizer que também ela é formal.
Lacan nos ensina que a aproximação do campo do desejo é desgastante:
Sabe-se o que custa avançar numa certa direção, e meu Deus, se não se vai, sabe-se por
quê. Pode-se até mesmo pressentir que se não se está totalmente esclarecido sobre suas
contas com o desejo, é porque o se pode fazer melhor, pois, não é uma via em que se
possa avançar sem nada pagar. O espectador é desenganado nesse ponto, que mesmo para
aquele que avança ao extremo de seu desejo, nem tudo são flores. Mas ele é igualmente
desenganado e é o essencial quanto ao valor da prudência que se opõe a isso, quanto
ao valor inteiramente relativo das razões benéficas, dos vínculos, dos interesses
patológicos, como diz o sr. Kant, que podem retê-lo nessa via arriscada. (Lacan, 1997, p.
387)
Quando nos referimos ao desejo inconsciente como um extremo particular
universal estamos remetendo o desejo a um campo subjetivo, comum a todo ser
marcado pela imersão na linguagem, mas isso não significa que estamos nos referindo
ao campo do bem estar (Kant, CRPr [1788] 2003, p. 95). Queremos deixar claro com
isso que desejo e felicidade não convergem necessariamente. Como dissemos, a ética da
psicanálise, assim como a ética do dever, não está pautada na felicidade. Tal como o
dever na teoria kantiana, o desejo destoa, estranha, desconcerta e incomoda.
A ética da psicanálise, assim como a ética do dever, se quer universal, mas, no
entanto, o que nesse universal é a defesa de que um extremo particular em todo
sujeito. Desse extremo particular pode-se aproximar de diversas formas dentro da teoria
psicanalítica. Para o presente capítulo escolhemos marcá-lo sob a égide do desejo
inconsciente
5
.
3.2.3
Desejo e das Ding
Vale situar o leitor no momento de ensino em que se encontrava Lacan quando da
época do Seminário VII, anos 1959 e 1960. Lacan estava realizando críticas profundas
ao que entendia ser uma política disciplinar proposta pelos pós-freudianos. A teorização
5
Sabemos que assim estamos nos delimitando em um momento específico de ensino lacaniano, momento
este marcado por uma dedicação especial ao estudo do campo da linguagem e do campo simbólico, que é
o momento em que se encontrava Lacan no Seminário VII. O desejo, para Lacan, pertence ao campo
simbólico, embora carregue em seu coração uma marca real, das Ding.
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sobre o campo inassimilável do desejo surge nesse contexto para romper com a
normatização e disciplinarização que Lacan acreditava estar ocorrendo nas análises
promovidas na época. Para Lacan, os pós-freudianos haviam substancializado em
demasia os propósitos de uma análise ao erigir ideais normatizantes que incluíam, por
exemplo, o ideal do amor genital e heterossexual.
Quando Lacan retoma o conceito de das Ding proposto por Freud (Cf. Capítulo
2), ele está pretendendo romper com essa gica idealista imposta à psicanálise. Isso
porque, como vimos, das Ding marca uma perda mítica inicial, ou melhor, marca uma
falta. O que Lacan promove com isso é uma des-substancialização do desejo. Não se
trata, por exemplo, de eleger amorosamente um objeto heterossexual para efetivar uma
suposta auto-realização, como Lacan acreditava que pretendiam alguns analistas pós-
freudianos. Trata-se, com o desejo baseado em das Ding, de Outra coisa, pois aqui “(...)
o desejo mantém uma relação absolutamente estrita com a falta” (Coutinho Jorge, 2000,
p. 139).
Essa falta inominável, representante de um campo que possui em seu entorno o
desejo inconsciente, pode situar uma orientação ética - para o sujeito. Nas palavras de
Lacan: “A questão da ética, uma vez que a posição de Freud nos faz progredir nesse
domínio, articula-se por meio de uma orientação do referenciamento do homem com
relação ao real.” (Lacan, 1997, p. 21). O real é um conceito utilizado por Lacan desde o
início de seu pensamento. Abordá-lo em todas as facetas dos diferentes momentos de seu
ensino seria um trabalho desnecessário para o que aqui pretendemos. Importa indicar que
o real no Seminário VII trata daquilo que não se reduz ao Princípio do Prazer e não se
submete por completo ao campo do sentido da linguagem, pois permanece sempre
impossível de ser completamente submetido à significação. Das Ding está, dessa forma,
vinculado ao real, ao que está além do campo do sentido e do princípio do prazer.
Através desse primeiro modo de abordagem de das Ding, podemos prosseguir e
buscar compreender como Lacan o articula a Kant e ao que está além do princípio do
prazer. Segundo Laia,
Kant transpõe o campo onde até então a reflexão ética se movia campo regido pelo
princípio do prazer e nos precipita no que Lacan, ao longo do seminário VII, designa
como sendo o campo de das Ding, o campo da Coisa, o campo do que em Freud se
intitula como mais além do princípio do prazer, campo da pulsão de morte. (Laia, 1992,
p. 264)
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É em Kant e na forma como o que Lacan encontra apoio, entre aproximações e
distanciamentos, para poder pensar uma ética para a psicanálise, como veremos mais
detalhadamente no próximo capítulo.
A partir do que vimos sobre das Ding, podemos compreender que ele
representa um ponto inassimilável e imprescindível para o sujeito. É em torno desse
ponto inassimilável que todo o sujeito irá se constituir e buscar preencher algo que, no
entanto, jamais será preenchido em vida. A união da criança com a mãe, a realização do
incesto como compreendido no senso comum, representa, assim, a tentativa do sujeito
de estabelecer contato com o objeto para sempre perdido que é das Ding. O incesto para
a psicanálise não é a relação de um filho com sua mãe, mas a tentativa do sujeito suprir
a ausência da Coisa.
Ao estabelecer a Coisa como objeto que em sua ausência permite que o desejo
exista, mas que, caso encontrado, faz com que o sujeito se depare com o fim do desejo
e, assim, com o fim da vida, Lacan a das Ding duas importantes facetas: vida e
morte. Se, enquanto ausência, das Ding permite que o sujeito movimente-se em vida,
enquanto presença, das Ding se faz devastador.
Importa-nos deixar indicado o que faz com que Lacan a Kant para abordar a
Coisa. Lacan entende que os argumentos desenvolvidos na Crítica da razão prática de
Kant permitem uma aproximação com a Coisa na medida em que purifica a vontade. A
vontade, ao se submeter à lei fundamental da ética do dever, passa a estar de acordo
com uma legislação universal, purificada de todo e qualquer objetivo particular.
Segundo Laia,
Esse modo de Kant preparar o que é da ordem da ética nos permite vislumbrar os termos
de das Ding como trama significante pura, como máxima universal, como a coisa mais
desprovida das relações com o indivíduo. (Laia, 1992, p. 266).
Essa construção “pura” dos interesses particulares é o que i despertar,
principalmente, a atenção de Lacan. Isso porque o desejo está, de algum modo,
articulado a objetos fenomênicos, mas não é essa faceta do desejo que interessa a Lacan
ao pensar uma ética da psicanálise. O desejo é sempre desejo de Outra coisa, ele nunca é
suprimido com os objetos fenomênicos. Isso faz com que não nos restrinjamos a
circunscrever o desejo ao seu caráter empírico e que sejamos levados a pensá-lo em seu
caráter originário e vinculado a das Ding, seu caráter a priori e independente de toda e
qualquer experiência (Ibid., p. 267).
Segundo Alain Grosrichard, psicanalista francês contemporâneo e estudioso do tema,
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Na Crítica da razão prática, Kant distingue uma faculdade de desejar superior de uma
faculdade de desejar inferior. A inferior é relativa ao desejo em termos de pulsão sensível,
dos apetites corporais, e a superior é a vontade. Desse ponto de vista, para Kant, a
vontade é o desejo puro. Por isso Lacan pode perfeitamente jogar com essa fórmula do
desejo como vontade, acrescentando ainda, o gozo. (Grosrichard, 1990)
6
Continuemos em nosso estudo para podermos compreender por que é possível afirmar
que a vontade pura é uma base para o desejo puro e como Lacan introduz a questão do
gozo.
3.2.4
Desejo e gozo nas articulações com a Lei: a transgressão
Para Lacan, a ética não se restringe à necessidade de haver obrigações, de haver
um laço que encadeie, ordene e constitua a lei da sociedade (Lacan, 1997, p. 96). Para
ele, “A ética começa, todavia, para além disso”, no ponto em que o sujeito é levado a
descobrir que “o que se apresenta para ele como lei está estritamente ligado a própria
estrutura do desejo.” (Ibid., p. 97). Tratamos, então, de uma ética que possui uma Lei
que não é a que nos apresenta a sociedade e que está intimamente vinculada ao desejo.
Em Totem e Tabu [1912-13], Freud constrói um mito sobre o nascimento de uma
Lei organizadora. Nesta construção freudiana, uma sociedade primitiva é submetida,
violentamente, às satisfações impostas pelo pai da horda. Este “pai” arroga-se de ser o
único a poder usufruir das mulheres, de todas as mulheres. Revoltados com as
imposições paternas que restringiam as mulheres apenas a suas próprias satisfações, os
filhos assassinam o pai. O assassinato violento do pai da horda, o único a poder usufruir
das mulheres até então, é a marca da criação freudiana sobre a inauguração de uma lei
simbólica.
Com a morte do pai, seu lugar fica vazio. O que surge, então, é a eminência de
que qualquer um podevir a ocupar o lugar da exceção e reinstalar aquilo que era até
então vigente. Ao mesmo tempo, ocupar o lugar paterno significa poder ser assassinado
por todos os outros. O lugar permanece, então, vazio. Nenhum dos homens poderá mais
usufruir de todas as mulheres. Aquele que em vida impunha um capricho seu, passa, em
sua ausência, a representar uma impossibilidade. O lugar vazio do pai da horda passa,
assim, a ser o representante de uma lei que restringe o gozo dos homens desta sociedade
6
Anotações de Ana Lucia Lutterbach Holck do curso inédito do Prof. Alain Grosrichard na Biblioteca
Freudiana de S. Paulo em fevereiro de 1990.
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primitiva e realiza a marca de um gozo impossível, um gozo interditado ao ser humano.
Eis o mito freudiano.
A necessidade da lei existe no que vem barrar um desejo que se apresenta. E
disso Lacan extrai seu reverso, ou seja, se não lei, não desejo. É a lei, ao mesmo
tempo, que cria o desejo. Segundo Grosrichard,
A lei é o inverso do desejo e o desejo é o inverso da lei. Desejo e lei são como duas faces
de uma mesma moeda [...]. Mostra que o desejo conduz à lei e que de certa forma, o
desejo pode se encontrar com a lei. uma reversão permanente de um a outro.
(Grosrichard, 1990)
7
Grosrichard faz uma interessante analogia entre lei e desejo com a idéia kantiana de que
a moral é a ratio cognossendi da liberdade e que a liberdade é a ratio essendi da moral.
Para Grosrichard, podemos dizer que em Lacan “a lei é a Ratio Cognoscendi do desejo e
o desejo é a Ratio Essendi da lei. O desejo que constitui a substância da existência e a
lei dá uma Ratio Cognoscendi ao desejo.”(Loc. cit.)
8
.
Se o desejo é resultado de uma falta primordial que pode ser representada tanto
por pelo “objeto para sempre perdido” quanto pelo lugar vazio deixado com o
assassinato do pai mítico - ele está intimamente articulado a uma lei que lhe diz de um
impossível. Trata-se de proibir o impossível. Não é possível em vida (re)encontrar o
objeto miticamente perdido ou gozar de todas as mulheres. Há um impossível que
Lacan compreende, neste momento de seu estudo, como sendo intransponível.
Essa falta, impossível de ser preenchida, encontra-se, desse modo, no centro das
conjecturas lacanianas no Seminário VII. É em torno dela que as representações e
construções significantes de cada sujeito irão orbitar. Há uma direção fundante do
sujeito em direção ao objeto perdido, objeto esse que, vale deixar claro mais uma vez,
“nunca foi perdido, apesar de tratar-se essencialmente de reencontrá-lo.” (Lacan, 1997,
p. 76). Essa direção fundante do sujeito em relação a essa falta primordial que lhe causa
como sujeito desejante, no entanto, possui também uma segunda marca. O sujeito dela
procura se aproximar, mas, ao mesmo tempo, dela não suporta se aproximar em
demasia.
Que lógica nisso? Como se pode caminhar em direção a algo, movido por um
desejo, mas não suportar aproximar-se demais desse algo? A resposta que Lacan nos dá
remete à construção freudiana sobre o Complexo de Édipo. Não nos interessa aqui
entrar nos meandros dessa construção, mas usá-la apenas na tentativa de esclarecer ao
7
Cf. nota de rodapé nº 17.
8
Cf. nota de rodapé nº 17.
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78
leitor a resposta da questão que se apresenta. No Seminário 7, o incesto perde o valor
mais imaginário, ou seja, de uma intersubjetividade entre mãe e filho, e passa a ter uma
vertente mais lógica. Tomemos o Édipo aqui, então, em seu tom mais banal, o desejo do
filho pela mãe. Lacan nos remete ao que vimos no tópico anterior sobre a realização do
incesto e a abolição da vida:
O que encontramos na lei do incesto situa-se como tal no nível da relação inconsciente
com das Ding, a Coisa. O desejo pela mãe não poderia ser satisfeito pois ele é o fim, o
término, a abolição do mundo inteiro da demanda [...]. (Lacan, 1997, p. 87)
Vemos, com isso, aonde Lacan chega quando diz do sujeito que se aproxima do
campo em que supostamente eliminaria o desejo: chega ao fim do sujeito, ou seja, à
morte. É neste fim que Lacan situa, no Seminário VII, o lugar do gozo do sujeito. Neste
momento de sua obra, o gozo é para Lacan da ordem do impossível, do inominável, e
está situado no mesmo lugar da morte e do que Lacan denomina de real. Real entendido
aqui como aquilo que não se reduz ao Princípio do Prazer, como algo que não se
submete ao sentido, mas que é uma marca fundamental no sujeito. Para além da
satisfação encontrada no principio do prazer, está o gozo, que é uma marca do real no
sujeito.
Para chegar ao campo denominado o do encontro com das Ding, com o real e com
o gozo impossível, o sujeito teria que realizar uma transgressão da lei, pois a lei é
justamente o que se coloca entre o sujeito e este campo. Proibido e impossível
caminham, portanto, juntos no Seminário VII. Nas palavras do psicanalista Jacques-
Alain Miller: “Nesse paradigma, onde o gozo é valorizado fora do sistema, não existe
acesso ao gozo senão por um forçamento, quer dizer que ele é estruturalmente
inacessível, a não ser por transgressão” (Miller, 2000b, p. 92). É, portanto, o proibido
que denomina o campo do impossível e cria uma barreira a ele, pois é a lei
9
o que faz
barreira entre o sujeito e o encontro com o gozo mortífero.
Por isso, no Seminário VII, Lacan separa o campo do desejo do campo do gozo.
Para ele, o desejo está situado nos limites do Princípio do Prazer, enquanto o gozo se
apresente no para além do Princípio do Prazer. Mais uma vez recorremos às palavras de
Miller:
Acrescento que a oposição entre prazer e gozo é essencial. O princípio do prazer aparece,
de algum modo, como uma barreira natural ao gozo e, portanto, a oposição se estabelece
entre a homeostase do prazer e os excessos constitutivos do gozo. Trata-se, ao mesmo
9
Além da Lei, Lacan também se refere ao Bem e ao Belo como barreiras na direção do gozo da
transgressão, mas não iremos nos ater a essas referências no presente estudo.
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tempo, da oposição entre o que é da ordem do bem do lado do prazer e aquilo que o
gozo sempre comporta do mal. (Loc. cit.)
Vemos, assim, que a diferença entre desejo e gozo se localiza, neste momento do
ensino de Lacan, na “distância” que o sujeito está do encontro com das Ding. Ao
transgredir a lei que barra o acesso ao gozo (um gozo, entenda-se bem, que em sua
satisfação total só é atingido na morte), o sujeito se esvai do campo do desejo e
aproxima-se do campo do gozo. Compreendemos, com isso, que o desejo está referido à
falta. O gozo, por sua vez, aproxima-se do que seria o preenchimento desta falta. O
encontro (impossível) com das Ding seria o exemplo maior e representa, para Lacan, o
que seria, na teoria edípica freudiana, o encontro incestuoso do filho com a mãe. Assim,
desejo inconsciente pela mãe diferencia-se completamente de gozar com a mãe. A
ausência materna permite que o campo do desejo permaneça vigente e sua presença,
representada pela presença de das Ding, remeteria à morte do sujeito.
Aproxima-nos agora da leitura que Lacan faz de Kant, pois, para ele, a lei moral
kantiana exige que o sujeito se desloque ao campo do gozo impossível. Isso remete
também à articulação que Lacan realiza entre Kant e Sade. “Em A Ética da Psicanálise,
temos o gozo conectado ao horror, e é preciso passar pelo sadismo para compreender
alguma coisa disso” (Miller, 2000b, p.93). Antes de analisarmos esse pensamento de
Lacan, porém, iremos voltar mais uma vez ao texto de Freud Mal estar na civilização a
fim de nos enriquecer de novos elementos para o prosseguimento da discussão.
Segundo Lacan,
Freud escreve o Mal-estar na civilização para dizer que tudo o que passa do gozo à
interdição vai no sentido de um esforço sempre crescente de interdição. Todo aquele que
se aplica em submeter-se à lei moral sempre reforçarem-se as exigências, sempre mais
minuciosas, mais cruéis do supereu”. (Lacan, 1997, p. 216).
Vimos como Freud engendra a relação entre supereu e culpa no capítulo dois. Nesta
argumentação lacaniana, se seguirmos Freud em Mal-estar na civilização, iremos
concluir que o gozo é um mal. Lacan prossegue:
Quanto a isso Freud nos guia pela mão – ele é um mal porque comporta o mal do próximo.
Isso pode chocar, perturbar os hábitos, causar estrondos nas sombras felizes. o se pode
fazer nada, é o que Freud diz. [...] Ele escreve o ‘Mal-estar’ para nos dizer isso. [...] Isso
tem um nome – é o que se chama para além do Princípio do Prazer. (Ibid., p. 225)
Lembremos a citação de Freud, que vimos no capítulo dois, e que serve de base
para que Lacan justifique sua posição:
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O homem, com efeito, é tentado a satisfazer no próximo sua agressividade, a explorar seu
trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem seu consentimento, apropriar-se
de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. (Lacan, 1997, p.
226)
Para Lacan, isso soa como Sade. E é a partir dque iremos avançar, a partir do que
Lacan denomina de o problema sadista da moral.
É em Mal-estar na civilização que Freud irá questionar, como vimos, o
mandamento cristão Amai ao próximo como a ti mesmo. Para Freud, este é um
mandamento da ordem do impossível. Tomemos as palavras de Lacan sobre o
estranhamento de Freud diante deste mandamento:
Podemo-nos fundamentar nisso, que cada vez que Freud se detém, como que horrorizado,
diante da conseqüência do mandamento do amor ao próximo, o que surge é a presença
dessa maldade profunda que habita no próximo. Mas, daí, ela habita também em mim. E
o que me é mais próximo do que esse âmago em mim mesmo que é o de meu gozo, do
que não me ouso aproximar? Pois assim que me aproximo – é esse o sentido do Mal estar
na civilização surge essa insondável agressividade diante da qual eu recuo, que retorna
contra mim, e que vem, no lugar mesmo da Lei esvanecida, dar seu peso ao que me
impede de transpor uma certa fronteira da Coisa. (Ibid., p. 227)
Assim, em Freud, o supereu carrega a agressividade do sujeito contra o próximo e
a retorna contra o próprio eu, provocando o sentimento de culpa como resposta à
contenção desta agressividade. Vimos que Freud afirma que quanto maior são os
cuidados do sujeito para com seu próximo, maior o grau de agressividade que retorna
contra o próprio eu. Sujeitos com comportamento irrepreensível socialmente poderiam,
assim, confessar sentirem-se sujos e malvados, embora para seu interlocutor essa auto-
acusação não pareça fazer o menor sentido.
Freud situa a satisfação desta agressividade contra o próximo em um campo
insuportável, campo este que Lacan denomina, como vimos na citação acima, de campo
do gozo. Há, então, uma Lei que impede que se goze, no limite, do corpo outro. Essa lei
é representada pelo supereu. O gozo migra, dessa forma, de uma satisfação insuportável
da agressividade contra o próximo para uma agressividade voltada contra o próprio eu.
Veremos no próximo capítulo como Lacan pensa o campo situado além do
Princípio do Prazer na articulação que faz entre Kant e Sade. Veremos também a leitura
que faz de Antígona de Sófocles e a noção que apresenta a partir daí como “desejo
puro”. Esses elementos nos ajudarão a pensar a ética do desejo na proposta de Lacan
para a psicanálise.
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4
Ética do desejo?
Como vimos, no seminário sobre a Ética da Psicanálise Lacan pretende retomar
aspectos da clínica freudiana que acredita terem sido perdidos pelos psicanalistas pós-
freudianos. Esses deram ao ideal um lugar fundamental para guiar a prática psicanalítica.
Para Lacan, o traço maior da criação freudiana com relação à orientação clínica incide
não sobre o ideal, mas sobre aquilo que ele denomina real.
O real, como dito anteriormente, é um conceito utilizado por Lacan desde o início
de seu pensamento. Importa-nos indicar aqui que o real no Seminário VII aponta para o
que não se reduz ao Princípio do Prazer e para aquilo que não se submete, pelo menos
não completamente, ao sentido da linguagem, permanecendo impossível de ser todo
significado.
Lacan retoma a obra freudiana revelando que Freud não se restringe a buscar
sentido para o inconsciente, esforçando-se principalmente para tratar daquilo que do
inconsciente não se submete ao sentido e permanece pulsando no sujeito. Lacan retoma o
aspecto do inconsciente impossível de ser significável e o remete ao que Freud
denominou além do Princípio do Prazer. O real aponta, assim, segundo a leitura que
dele faz Lacan no Seminário VII, para aquilo que é o ponto mais fundamental, cru e não
significável que habita cada sujeito e que de certa forma o impele em suas escolhas e
ações. Trata-se daquilo que de mais próprio e singular ao sujeito, embora impossível
de ser totalmente por ele assimilável.
Esse aspecto real da clínica freudiana havia sido negligenciado pelos pós-
freudianos, que trabalhavam a partir de determinados ideais a serem atingidos pelos
sujeitos analisados. Lacan, no Seminário da ética, realiza uma subversão com relação ao
trabalho dos pós-freudianos ao abordar novamente o real, tal como compreende que
Freud havia feito, e esvaziar a importância que o ideal tinha passado a ter na prática dos
pós-freudianos. Em suas palavras:
Pois bem, coisa curiosa para um pensamento sumário que pensaria que toda exploração
da ética deve incidir sobre o domínio do ideal, senão do irreal, iremos, pelo contrário, ao
inverso, no sentido de um aprofundamento da noção do real. A questão ética, uma vez
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que a posição de Freud nos faz progredir nesse domínio, articula-se por meio de uma
orientação do referenciamento do homem em relação ao real. (Lacan, 1997, p. 21)
Para abordar o real, Lacan volta-se ao desejo e a das Ding, pois o movimento do
desejo é causado por das Ding, que é um ponto de real. É exatamente nesse movimento
que Lacan se interessa pela filosofia prática kantiana. Segundo Laia, um dos motivos
pelo qual a filosofia de Kant interessa à ética da psicanálise é “apresentar toda uma
formulação sobre o impossível.” (Laia, 1992, p. 283). Para falar de uma ética que leva
em conta o desejo, Lacan recorre à teoria kantinana, pois de um modo similar com que
Kant aborda a vontade moral, ou seja, purificando-a de seu aspecto fenomênico, Lacan
pretende abordar o desejo. Partindo da vontade pura kantiana, Lacan procura designar
um desejo puro, desatrelado de qualquer referência a ideais.
Entretanto, ao estabelecer um desejo puro Lacan depara-se com problemas
delicados, que serão abordados no decorrer do capítulo. Estamos no final do Seminário
VII, A ética da psicanálise. Desse final, extraímos duas importantes referências: a obra A
filosofia na alcova de Sade e a peça Antígona de Sófocles. Assim, depois de ir a Kant,
Lacan vai a Sade e a Sófocles para melhor instrumentalizar seu pensamento acerca das
aproximações e das diferenças entre uma ética do dever e uma ética do desejo. Vai a
Sade para aproximá-lo de Kant, para ler Kant a partir de Sade, e vai a Sófocles para
abordar o desejo puro em Antígona. Segundo a psicanalista Ana Lucia Luterbach-Holck:
No seminário 7, Lacan nos traz a lei moral kantiana para, de um lado, colocá-la na boca
de Sade e mostrar a que tipo de paradoxo se chegaria se fosse colocada em prática e, por
outro lado, toma a vontade pura como paradigma para pensar o desejo como puro, isto é,
o desejo independente dos objetos da experiência, purificado de qualquer interesse
patológico. (Luterbach-Holck, 2000, p. 68)
Lacan desvincula do desejo qualquer querer ou qualquer inclinação e pretende,
com o desejo puro, apresentar um ponto de referência para a ética da psicanálise, uma
ética que ele pretende que esteja absolutamente desvinculada de ideais e inclinações.
Antígona é o exemplo que nos oferece sobre o desejo puro, uma vez que, na leitura
realizada por Lacan, o agir de Antígona não é regido por nenhum interesse patológico.
Entretanto, como dissemos acima, o desejo puro leva Lacan a um terreno arenoso com
uma saída bastante complicada para a ética da psicanálise: remetê-la ao desejo puro de
Antígona significa remetê-la a um desejo que arrebenta com todos os vínculos da vida e
termina com a morte de Antígona.
Lacan encontra em Kant e Sade pontos importantes para abordar aquilo que está
para além do Princípio do Prazer e, portanto, como vimos, está no campo do gozo.
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Antígona lhe serve de excelente exemplo para demonstrar que o desejo aponta para o que
está além do Princípio do Prazer e que é com isso que a ética precisa lidar. Iremos
acompanhar nosso autor nesse tortuoso percurso. Iniciemos o quarto capítulo, então,
prosseguindo com o estudo que aproxima Kant de Sade para passarmos, em seguida, ao
desejo puro de Antígona.
4.1
A liberdade republicana na leitura de Sade
Em 1781 Kant publica A Crítica da razão pura; em 1788, A Crítica da razão
prática. Sete anos mais tarde, em 1795, Sade publica A filosofia na alcova. É nesta obra
que Sade propõe o panfleto: Franceses, mais um esforço para serem republicanos, sobre
o qual Lacan i se referir. Nele, Sade propõe o advento do que denomina uma
verdadeira República como modelo universal para toda conduta. Ele está preocupado em
salvaguardar a liberdade do homem, do homem republicano, visto que, pare ele, o
princípio maior da República é que “todos os homens nascem livres, todos são iguais em
direito; e não devemos jamais perder de vista estes princípios” (Sade, 2000, p. 149).
Baseado em sua concepção de liberdade, Sade recusa que um ser humano possa se
arrogar como proprietário de outro. Um homem, por exemplo, jamais poderia afirmar
que uma mulher lhe pertence. Na política, todos os homens devem se arrogar dos
mesmos direitos. No entanto, como para Sade o homem deve usufruir de sua liberdade e
possui, ao mesmo tempo, um caráter naturalmente despótico, ele precisa realizar seu
despotismo de algum modo que não o faça exercê-lo na República. É pela via da
natureza despótica do homem que Sade afirma que não situação mais forte em que o
despotismo se apresenta do que nas paixões libertinas. Assim,
se nenhuma paixão tem mais necessidade da mais ampla liberdade que esta (a paixão
libertina), nenhuma também é tão despótica. É que o homem gosta de comandar, ser
obedecido, rodeado de escravos obrigados a satisfazê-lo. Ora, todas as vezes que não
derdes ao homem o meio secreto de exalar a dose de despotismo que a natureza pôs no
fundo de seu coração, ele correrá para exercê-la sobre os objetos que o cercam, ele
perturbará o governo. Permiti, se quiserdes evitar tal perigo, uma livre expansão a esses
desejos tirânicos que, contra sua vontade, o atormentam incessantemente. Contente em ter
podido exercer sua pequena soberania sobre o harém de icoglãs ou de sultanas que vossos
cuidados e seu dinheiro lhe proporcionam, ele sairá satisfeito e sem nenhum desejo de
perturbar um governo que lhe assegura com tanta complacência todos os meios de
concupiscência. (Sade, 2000, p. 147)
Partindo da liberdade e da igualdade propostas pela República, Sade desenvolve
uma série de decorrências lógicas que o levam a conclusões bastante radicais. Como por
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exemplo: “Se é incontestável que recebemos da natureza o direito de exprimir nossos
desejos indiferentemente a todas as mulheres, é evidente que podemos obrigá-las a se
submeterem aos nossos desejos [...].” E, em nota de roda pé, acrescenta:
Não me venham dizer que estou aqui me contradizendo; e que depois de ter estabelecido
anteriormente que não temos o direito de ligar uma mulher a nós, destruo esses princípios
dizendo que temos o direito de obrigá-la a isso; repito aqui tratar-se do gozo e não da
propriedade; não tenho nenhum direito de propriedade sobre uma certa fonte que
encontro em meu caminho, mas tenho todo o direito de usufruí-la, de desfrutar da água
límpida que oferece à minha sede; também não tenho direito de propriedade desta ou
daquela mulher, mas tenho incontestavelmente o de gozá-la; posso sim obrigá-la a me
satisfazer caso ela queira por qualquer motivo recusar-me. (Ibid., p. 149)
A conclusão é que todos os homens (e todas as mulheres) têm um direito de gozo
idêntico sobre todos aqueles de quem desejarem desfrutar e que julgarem dignos de
satisfazê-los.
Lacan, em seu texto Kant com Sade
1
, interpreta o pensamento de Sade e constrói
uma máxima correspondente a tal filosofia, parodiando Kant no imperativo categórico.
Ele a constrói de tal forma que ao mesmo tempo em que se mantém extremamente fiel
ao texto sadiano, ajuda-nos a compreender sua radicalidade. Diz a máxima:
Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei este
direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de
nele saciar. (Lacan, 1998, p. 781)
Essa frase irá nos acompanhar em nosso estudo.
4.2
Sade, a apatia, o universal e a dor
Tendo visto brevemente a que Sade conclamava seus leitores, questionamos,
imediatamente, como é possível Lacan ter articulado a filosofia prática de Kant ao texto
sadiano. Aproximar Kant de Sade parece algo, no mínimo, insensato. Nas palavras do
psicanalista Antonio Godino Cabas:
[...] dificilmente encontraremos dois autores cujo pensamento seja tão antinômico se
dermos crédito à tradição acadêmica. Kant descrito e com justa razão como
paradigma da moralidade parece o pólo mais distante que se possa imaginar da
1
Kant com Sade foi escrito três anos após o término do Seminário VII. Nele, Lacan desenvolve questões
que durante o Seminário VII não foram desenvolvidas. O conceito do objeto a como causa de desejo, por
exemplo, não está presente no seminário, apesar de podermos ver nele indicações, a partir de das Ding,
das bases conceituais que auxiliam Lacan a desenvolver o conceito posteriormente. Os desenvolvimentos
realizados por Lacan no texto Kant com Sade, onde o objeto a está presente, como o estudo criterioso
sobre a fantasia e a vontade de gozo, não serão objeto de nosso estudo. Ao final do capítulo, deixamos
algumas indicações sobre o estudo que poderia ser, futuramente, desenvolvido a partir de Kant com Sade.
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experiência e do escrito de Sade a quem também a tradição define como o paradigma do
libertino. Correlacioná-los tem, pois, ar de coisa absurda. (Cabas, 1986, p. 80)
Precisamos compreender a partir de que ponto de vista Lacan realiza essa
aproximação e em que ele se baseia para autorizá-la
2
. Ao invés da proibição da mentira,
por exemplo, como vemos em Kant, encontramos em Sade um elogio ao ato de mentir,
uma verdadeira incitação para que toda transgressão seja tomada quase como um dever.
O modo que Sade apresenta sua filosofia faz surgir um certo desconforto no leitor.
Segundo Lacan, no Seminário VII, “são exatamente os critérios kantianos os que
ele [Sade] destaca para justificar as posições do que se pode chamar de uma espécie de
antimoral” (Lacan, 1997, p. 100). Os critérios kantianos a que se refere Lacan nessa
passagem são: a ausência de pathos e a universalização da máxima. No que Sade
anula toda referência sentimental, todo referência ao Princípio do Prazer e ao campo
patológico, ele provoca em quem o uma sensação de horror. O único sentimento
admitido por Sade é o mesmo que Kant admite no campo moral: a dor. Segundo o
psicanalista Sérgio Laia,
Assim, esse mesmo sentimento que para Kant se produzia a partir do dano que a lei moral
enquanto princípio determinante da vontade causa às nossas inclinações sensíveis, Sade
nos coloca no horizonte para que possamos transpor tudo o que impede nosso acesso ao
desejo. (Laia, 1992, p. 289)
No entanto, para Lacan, Sade se mostra mais “honesto” (sic) do que Kant em sua
filosofia, pois mesmo utilizando dos mesmos preceitos filosóficos, Sade não escamoteia
a divisão subjetiva própria a todo sujeito. Veremos no item Kant com Sade, um pouco
mais adiante, o que significa essa divisão. Por ora, analisemos um pouco mais a apatia, a
universalização e a dor nesta proposta sadiana.
Segundo Laia,
Tal como um imperativo categórico, a lei moral sadiana
3
implica tanto a elevação ao
universal ‘[...] qualquer um pode me dizer [...]quanto a recusa ao patológico, pois
2
Para Lacan, Sade ajuda a compreender algo do pensamento de Kant no que diz respeito à filosofia
prática. É um argumento denso, desenvolvido mais profundamente no texto Kant com Sade, que exige uma
leitura delicada da teoria analítica no que diz respeito ao lugar que o objeto a - conceito que Lacan afirma
ter sido sua única criação na psicanálise - começa a ter na obra lacaniana. Não iremos nos ater aos
pormenores exigidos para compreender a articulação que Lacan realiza para fazer aparecer em Sade,
através do objeto a, o que em Kant está velado, pois isso nos levaria a um percurso por demais voltado à
teoria psicanalítica que não nos interessa para o presente estudo. Assim, iremos nos ater a alguns trechos
do argumento lacaniano, muito mais voltados ao Seminário VII do que ao texto Kant com Sade, trechos
esses que consideramos suficientes para compreendermos por onde Lacan realiza a aproximação entre
Sade e Kant.
3
“Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei este direito, sem que
nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me gosto de nele saciar.” (Lacan, 1998, p.
781).
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ela nos incita a tomar como freio unicamente nossos desejos e caprichos, a ir além das
convenções sócio-religiosas e das afetividades. (Laia, 1988, p. 79)
É interessante notar que, na leitura lacaniana, a lei moral sadiana não remete a uma ação
guiada pelo pathos, pela paixão ou por objetos patológicos, embora possa parecer, à
primeira vista, que Sade propõe que a ação seja guiada pelos próprios afetos.
Diferente disso, o sujeito que comete os crimes a que conclama Sade, serve às leis
de uma natureza que tem em seu âmago uma voracidade destruidora. Nas palavras de
Sade:
A existência de assassinos é tão necessária quanto esse flagelo [a guerra]; sem eles tudo
estaria perturbado no universo, pois é dessas partes destruídas que ela [natureza] se
recompõe. (Sade apud Lacan, 1997, p. 257-258)
Mais do que a recomposição, a natureza, segundo Sade, busca o aniquilamento total:
Seria preciso, para ainda melhor servi-la, poder opor-se à regeneração resultante do
cadáver que enterramos. O assassinato só tira a primeira vida ao indivíduo que abatemos;
seria preciso poder arrancar-lhe a segunda, para ser ainda mais útil à natureza; pois ela
quer o aniquilamento: está fora de nosso alcance dar a nossos assassinatos a extensão que
ela deseja. (Loc. cit.)
A lei que diz que “qualquer um pode me dizer” que possui o direito de usufruir do
meu corpo, sem que nenhum limite detenha o capricho das extorsões que se tenha gosto
de nesse corpo saciar”, não significa deixar agir livremente o que seria da ordem das
inclinações patológicas kantianas. É preciso ir além dos afetos e das convenções sociais,
como aponta Laia, para poder seguir essa lei e estar a serviço da “natureza”, tal como
Sade a compreende. Assim, para Lacan, a ética sadiana é uma ética que se destaca de
toda referência a um objeto da afeição, seja ele qual for, ou seja, que se destaca de toda
referência ao objeto patológico, objeto de uma paixão, qualquer que ele seja. Nas
palavras de Lacan, a ética de Sade é “uma ética que se destaca de toda afeição patológica
a um objeto” (Lacan, 1997, p. 98).
Por sua vez, Kant também pretende eliminar dos critérios da ação moral qualquer
elemento sentimental, qualquer bem subjetivo. Na compreensão de Lacan sobre o
pensamento de Kant: “Nenhum Wohl, que seja nosso ou de nosso próximo, deve entrar
como tal na finalidade da ação moral” (Loc. cit.). Assim, se realizamos, como nos
propõe Kant, a eliminação de todo elemento sentimental, de todo bem subjetivo, para
pensar a ética, podemos, pela gica, segundo Lacan, chegar à proposta de Sade. Nas
palavras de Lacan:
Se é eliminado da moral todo elemento de sentimento, se no-lo retiram, se se invalida
todo guia que exista em nosso sentimento, de modo extremo o mundo sadista é
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concebível – mesmo que ele seja seu avesso e sua caricatura – como uma das efetivações
possíveis do mundo governado por uma ética radical, pela ética kantiana tal como ela se
inscreve em 1788. (Ibid., p. 101)
Assim, se retomamos o que vimos sobre a concepção do Princípio do Prazer e do
que está para além do Princípio do Prazer, podemos compreender melhor porque para
Lacan a ética tanto de Kant quanto de Sade está localizada para além do Princípio do
Prazer, no campo, portanto, do gozo. Dessa forma, tanto em Kant como em Sade,
“encontramos o desejo sensível, que deve ser ultrapassado para chegar a das Ding.”
(Luterbach-Holck, 2000, p. 69).
É no campo do Princípio do Prazer que, em Freud e em Lacan, estão situados todos
os laços afetivos, todas as ligações subjetivas, todos os elos do sujeito com a vida e com
seus semelhantes. Para além desses laços, o sujeito atinge o campo da dor e se transpõe
para um campo de radicalidade em que se anula os laços afetivos, fazendo com que a
apatia se torne a marca maior. Nas palavras de Laia,
Agir moralmente, para Kant, é agir para além do princípio do prazer, agir sem visar
recompensas e contra o pathos. Agir moralmente é, neste sentido, agir apaticamente.
(LAIA, 1988, p. 75)
Sobre a elevação da máxima ao universal, Alain Grosrichard afirma que a lei moral
sadiana
4
é uma lei que se reduz a uma fórmula que é sua única substância. Podemos verificar
também, que essa máxima, não nenhum exemplo de gozo, é uma pura fórmula vazia
de conteúdo imaginário, de conteúdo empírico. (Grosrichard, 1990)
5
.
Dessa forma, vemos que agir segundo os preceitos propostos por Sade também
seria agir formal e apaticamente, pois não conteúdo e nem afeto em sua proposta.
Novamente segundo Alain Grosrichard:
temos nessa máxima sadiana, uma rejeição radical do patológico. Podemos verificar que
na formulação da máxima não lugar para considerações do tipo piedade, simpatia.
Tudo se formula em termos de eu tenho o direito e basta. (Loc. cit.)
Na terceira parte da CRPr, Kant admite um correlato sentimental da lei moral em
sua pureza. Esse correlato, vimos no primeiro capítulo, pode ser o respeito ou a dor.
Lacan pinça a relação que Kant prioriza da moral com a dor a fim de evidenciar a
aproximação com Sade. Em suas palavras:
4
Como vimos: “Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei este
direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me gosto de nele saciar.”
(LACAN, 1998, p.781).
5
Cf. nota de rodapé nº 17.
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88
Para atingir absolutamente das Ding, para abrir todas as comportas do desejo, o que Sade
nos mostra no horizonte? Essencialmente a dor. [...] O extremo do prazer, na medida em
que consiste em forçar o acesso à Coisa, nós não podemos suportá-lo. (Lacan, 1997, p.
102).
Há uma diferença entre a dor em Kant e a dor em Sade, uma vez que em Kant essa
dor remete o sujeito à uma elevação moral e em Sade isso não ocorre, pois a dor é ela
mesma o fim maior para o libertino, a própria elevação, o próprio ápice que temos de
apaticamente nos esforçar para atingir” (Laia, 1992, p. 290)
Vimos que Freud trata daquilo que está além do princípio do prazer, ou seja,
daquilo que está para além do campo da felicidade subjetiva, além do campo do prazer
subjetivo e para além do campo do sentido. Segundo Cabas, “Ao postular um mais além
no horizonte do prazer ele [Freud] rompe com a ilusão das posições éticas do idealismo
cuja empresa mór tem sido e segue sendo a de concertar o homem com seu bem”.
(Cabas, 1986, p. 80). O pensamento de que há algo no homem que o impulsiona em uma
direção que não diz exatamente de um bem pessoal, no sentido da felicidade subjetiva, e
nem do bem do próximo, é algo sobre o que a obra freudiana incide e que é precioso para
Lacan no estudo de uma ética que leva em consideração a idéia de que nem sempre o
sujeito busca pela felicidade e pelo prazer seu ou de seu próximo.
Kant refere-se ao próximo como aquele a que se deve tratar como um fim em si
mesmo. Uma das formas do imperativo categórico é:
Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa quanto na pessoa de
qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como um
meio. (Kant, [1785] 2005, p. 69)
Disso Sade traz o avesso: para ele o próximo trata-se daquele sobre o qual se deve
atingir com o que de mais abominável do ponto de vista dos laços afetivos, do ponto
de vista do pathos. Deve-se atingir o próximo, em Sade, para além dos limites
patológicos. Trata-se de uma relação “pura”, tanto em Sade quanto em Kant.
Para Lacan, essa visada de Sade com relação ao próximo aproxima-se mais do que
Freud procurou abordar sobre o que se encontra além do Princípio do Prazer, ao mesmo
tempo em que revela aquilo de que Kant não ousou” se aproximar. Nas palavras de
Laia:
Se em Kant o próximo era aquele que eu devo tratar como um fim em si mesmo e jamais
como um meio, era aquele no qual eu poderia supor uma intenção moral pura e, portanto,
era aquele para o qual eu deveria me abrir, Lacan encontra em Sade uma denúncia que
antecede aquela de Freud em O mal estar na civilização – sobre o que há de engodo nessa
suposição [...]. (Laia, 1992, p. 300)
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Os personagens sadianos revelariam, assim, através de uma agressão ausente de
pathos, aquilo que ao sujeito é mais íntimo, aquilo que a ele está mais próximo, a saber,
seu gozo. Vimos com Freud que quando desse gozo o sujeito se aproxima, retorna a ele a
agressividade em forma de culpa e o impede de transpor uma certa fronteira. Kant
provavelmente vislumbrou esse âmbito do sujeito, mas parece ter tentado contorná-lo,
propondo submetê-lo a racionalidade da lei moral.
Para Lacan, tanto Kant quanto Sade visam, cada um a seu modo, atingir o campo
que está além do Princípio do Prazer, encontrar das Ding e, assim, alcançar o real
situado para além das ligações afetivas e, para isso, ambos passam pela dor, embora cada
um a seu modo, Sade mais “escancarado” do que Kant.
A dor marca um limite entre o campo do prazer e o que está para além do prazer, a
saber, aquilo que é da ordem do gozo e para onde aponta, segundo Lacan, o desejo. É ao
que se refere Lacan quando fala, como vimos acima, em atingir absolutamente das Ding
ou em acessar a Coisa. Para Laia,
embora Kant considere a dor um sentimento que advém do peso da lei moral sobre nossas
inclinações sensíveis, é muito mais através do texto de Sade que Lacan nos demonstrará
como a dor enquanto um sentimento que pode nos precipitar além do princípio do
prazer marca nosso avanço em direção ao campo da Coisa e assinala o que se passa
quando soa a hora do nosso encontro com o desejo. (Laia, 1992, p. 290)
Voltaremos à relação entre Kant e Sade mais adiante, quando abordaremos
brevemente alguns trechos do texto de 1962, Kant com Sade. Antes, no entanto,
analisaremos o final do seminário sobre a ética da psicanálise, quando Lacan faz uma
referência à Antígona e à ética guiada pelo desejo puro. Realizarmos primeiro essa
passagem por Antígona para depois abordarmos o texto Kant com Sade tem uma
lógica. Lacan finaliza o Seminário VII, em 1959, com Antígona. Apenas três anos
depois, em 1962, escreve Kant com Sade. Como dissemos acima, Lacan aprofunda então
seu estudo sobre Kant e Sade, mas não iremos nos ater a ele devido a sua extrema
complexidade e ao desvio demasiado voltado apenas à teoria psicanalítica que nos
exigira seu estudo.
4.3
O desejo puro de Antígona
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90
Ao final do Seminário VII, Lacan dedica alguns encontros para comentar
Antígona de Sófocles, pois para ele Antígona é tema da ética e pode nos ensinar algo
sobre uma ética regida pelo desejo puro.
Quem não é capaz de evocar Antígona em todo conflito que nos dilacera em nossa
relação com uma lei que se apresenta em nome da comunidade como uma lei justa?
(Lacan, 1997, p. 296)
Antígona, no entanto, lança-se à morte e traz uma abordagem “trágica” para a ética.
Lacan abre, assim, uma difícil questão: a ética da psicanálise pode ser correlacionada a
uma ética “trágica”? (Ibid., 1997, p. 312).
O ponto central dessa obra de Sófocles é a que se lança Antígona a fim de cumprir
as honras funerárias do irmão que traiu a pátria. As honras funerárias são tomadas por
Antígona como uma Lei, uma Lei com “L maiúsculo, à qual está completamente
submetida e que, veremos, a rege para além do Princípio do Prazer. Trata-se aqui de
uma Lei que não é a lei da cidade ou a lei que rege os laços entre os homens. Uma Lei
que determina o desejo de Antígona.
Antígona se oferece à morte para não deixar o corpo de Polinices, seu irmão
proibido de ser enterrado por ter traído a pátria, exposto no mundo dos vivos. Paga seu
ato com a sentença decretada por Creonte, legislador maior das leis da cidade, sentença
esta que apregoava que aquele que enterrasse um inimigo da cidade de Tebas seria
duramente castigado. Antígona foi quem transgrediu a lei da cidade em nome de uma
outra Lei. O preço por sua transgressão é decretado pelo rei Creonte: ela seria encerrada
em uma tumba ainda viva.
Um corpo morto no mundo dos vivos – Polinices - e um corpo vivo no mundo dos
mortos – Antígona - é o cenário dessa tragédia de Sófocles. Nas palavras de Lacan:
O terço central da peça é constituído pela apofania detalhada que nos é dada do que
significa a posição, o destino de uma vida que vai confundir-se com a morte certa, morte
vivida de maneira antecipada, morte invadindo o domínio da vida, vida invadindo a
morte. (Lacan, 1997, p. 301)
Com isso conseguimos estabelecer que existem, nessa tragédia, duas dimensões
diferidas uma da outra de modo bastante nítido: a dimensão defendida por Creonte e a
dimensão marcada por Antígona. Por um lado a lei dos homens que visa o bem estar de
todos, por outro uma Lei para além do bem estar ou da lei da cidade (Ibid., p. 334).
Lacan realiza uma leitura detalhada dessa tragédia no Seminário VII. Vamos
destacar aqui um aspecto que nos é relevante em sua leitura: a transgressão realizada
por Antígona. Ao transgredir a lei da cidade em nome da outra Lei a que está submetida,
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Antígona faz a travessia de um limite que marca a diferença entre o mundo dos vivos e
o mundo dos mortos. Ela não quer a morte, mas sua submissão a esta Lei maior a levará
para a morte. Antígona não está submetida ao dever para com as leis da cidade e dos
homens. Por isso, lança-se a uma zona que não se transgride em vida, a não ser quando
se trava uma caminhada em direção ao encontro com a morte. “A zona assim definida
tem uma função singular no efeito da tragédia” (Ibid., p. 302), nos diz Lacan.
O intrigante nessa leitura lacaniana da tragédia protagonizada por Antígona é que
nela Lacan localiza e ressalta os efeitos do desejo. Para ele, “Antígona nos faz, com
efeito, ver o ponto de vista que define o desejo.” (Ibid., p. 300). Tentemos compreender
como Lacan articula Antígona ao desejo e os problemas que essa articulação traz.
Lacan passou por Freud, Kant e Sade para apontar que é em direção ao que está
para além do Princípio do Prazer que se move o sujeito desejante. A tarefa a que se
propõe Lacan ao abordar Antígona é justamente a de demonstrar a trajetória do desejo
que remete para além do Princípio do Prazer. É, portanto, sobre o desejo enquanto puro
de vínculos com a felicidade e com o prazer que Lacan quer tratar.
Antígona está submetida a uma Lei que não é a da cidade e é preciso que se
analise seu movimento único. Creonte, por sua vez, está submetido à lei da cidade e a
“querer fazer o bem de todos” (Lacan, 1997, p. 313). Através de Antígona, Lacan quer
demonstrar que o campo do desejo é absolutamente diferente do campo do bem de
todos, do campo do bem estar. Ao contrário de Creonte, Antígona desconsidera o “bem
de todos” e age submetida a uma outra Lei: oferecer ao irmão as honras funerárias.
Antígona transgride os limites da vida para atingir tal intento. Lacan destaca essa zona
atravessada por ela pinçando da tragédia uma pequena palavra grega: Até
6
. Segundo ele,
Essa palavra é insubstituível. Ela designa o limite que a vida humana não poderia transpor
por muito tempo. [...] Para além dessa Até, só se pode passar por um tempo muito curto, e
é lá que Antígona quer ir. (Ibid., p. 318)
A Até é um termo de difícil tradução, mas que, no entanto, é de extremo valor para
Lacan em sua argumentação. Segundo Sérgio Laia,
Para Lacan, o que está em jogo no que diz respeito a Antígona e ao que ela visa desde o
início do texto de Sófocles gira em torno de um único termo cuja expressiva repetição ao
longo desse texto não garante, entretanto, que tal termo seja lido. Trata-se de Até, uma
palavra insubstituível e, consequentemente, difícil de traduzir. (Laia, 1992, p. 333)
6
A Até é um termo importante para nosso estudo, mas ao mesmo tempo pouco explicado por Lacan.
Incluímos no texto as principais apreensões que dela pudemos fazer, mesmo correndo o risco de que algo
do conceito permaneça para nós inapreensível.
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Trata-se de um limite que quando transposto não se pode suportar vivo por muito
tempo. Trata-se também de algo que marca o sujeito através das gerações que o
antecederam e que, dessa forma, traçam um lugar para o sujeito no mundo. No caso de
Antígona, sua família ficou marcada pela desgraça. Ela é filha de Édipo e Jocasta.
Antígona atravessa a zona proibida, passa dos limites estabelecidos pela Até. “Que
Antígona saia desse modo dos limites humanos, o que isso quer dizer para nós? – senão
que seu desejo visa precisamente isso para além da Até”. (Lacan, 1997, p. 319). O
desejo de Antígona, que se desprende de todos os vínculos afetivos e se lança para além
da Até, é o desejo puro, incondicionado e apático.
As conseqüências da visada de Antígona são terríveis. Mais uma vez nas palavras
de Lacan:
[...] ela vai entrar viva na tumba, o que não é uma imaginação das mais regozijantes.
Asseguro-lhes que em Sade isso é colocado no sétimo ou oitavo grau das provas dos
heróis, é preciso com certeza essa referência para que vocês se dêem conta da importância
da coisa. (Lacan, 1997, p. 324)
Segundo Lacan, essa visada de Antígona para além do limite que lhe permite estar
ligada aos eventos de sua vida ocorre porque “alguma coisa do para-além dos limites da
Até tornou-se para Antígona seu próprio bem, um bem que não é o de todos” (Ibid., p.
328).
Antígona quer atingir radicalmente, portanto, algo que não é do bem comum.
Marca-se, com isso, uma diferença fundamental entre Creonte e Antígona: o primeiro
marcado por um “querer fazer o bem de todos” (LACAN, 1997, p.313), enquanto a
segunda busca “seu próprio bem, um bem que não é o de todos” (Loc. cit.), mas que
também não diz de uma busca pela felicidade subjetiva através de elementos
patológicos. Antígona é movida pela submissão a uma Lei. É aqui que Lacan introduz o
desejo puro reconhecido por ele nesse movimento mortífero a que se entrega Antígona,
ao se lançar para além dos limites da Até. É um desejo independente de qualquer objeto
da experiência, de qualquer laço afetivo, purificado de todo interesse patológico,
condicionado. Sobre o desejo puro de Antígona, Lacan afirma que ela “leva até o limite
a efetivação do que se pode chamar de desejo puro, o puro e simples desejo de morte
como tal. Esse desejo, ela o encarna.” (Lacan, 1997, p. 342).
Sófocles interroga, assim, o homem nas vias da solidão e situa o herói de sua
tragédia em uma zona em que a morte invade a vida, em que a vida ultrapassa seus
próprios limites e invade a morte. Antígona, a heroína, é aquela que escolheu sua visada
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em direção à morte. O desejo puro de Antígona é desejo que a leva à morte. Segundo
Grosrichard, “Antígona ilustra o sujeito que escolhe a Lei, e nada pode impedi-la, nem
todas as forcas de Creonte e do mundo.” (Grosrichard, 1990)
7
.
A partir dessa passagem pela leitura que Lacan realiza da tragédia de Sófocles,
podemos nos colocar a questão: como Lacan articula o desejo puro de Antígona à ética
da psicanálise? Essa articulação, que coloca em destaque uma espécie de heroísmo que
carrega no peito a bandeira do desejo, estabelecido por uma Lei que não é a lei da
cidade e do bem de todos, mas uma Lei que diz de algo muito singular, termina em
desgraça. Se Creonte e sua lei são responsáveis pelas diversas mortes presentes na
tragédia, não podemos deixar de perceber que Antígona, ao encampar essa Outra Lei,
lança-se à própria morte. A ética da psicanálise propõe que, em nome do desejo o
sujeito se lance à morte?
Se Antígona ultrapassa os limites da vida, podemos retomar os limites entre o
Princípio do Prazer e o que está para além dele e incluir os elementos destacados por
Lacan da proeza ética de Antígona. Nossa heroína lança-se da zona da vida à zona da
morte com seu desejo puro, depurado de todos os vínculos afetivos que possuía em
vida. Vimos que Lacan destaca alguns pontos em Kant para remetê-los a Sade, dentre
eles, a recusa ao patológico e a dor, ambos presentes em Antígona.
Como a vontade pura é o paradigma de Lacan para abordar um desejo puro, o
primeiro ponto de aproximação com Kant é a apatia. Submetida ao desejo puro,
incondicionado, Antígona transgride o campo do Princípio do Prazer, campo das
articulações e parcerias afetivas na vida, e se lança ao campo do além do Princípio do
Prazer, campo do encontro com o real, do encontro com a morte, no qual os laços
afetivos pathos deixam de ser referência. Antígona move-se apaticamente,
submetida a uma Lei que lhe é maior, frente a qual não pode sucumbir. Assim como em
Kant e Sade, Antígona tampouco está livre da dor decorrente de sua escolha ética.
Lacan afirma que os horrores pelos quais ela passa ao ser enterrada viva são de um alto
grau mesmo nos piores devaneios sadianos.
O desejo puro é estudado pelo filósofo belga Bernard Baas, autor abordado no
segundo capítulo do presente trabalho. Para Baas, Lacan cria com esse conceito uma
forma de indicar um campo do desejo que não pertence ao mundo fenomênico. O desejo
7
Cf. nota de rodapé nº 17.
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94
puro é uma forma de Lacan indicar que o desejo é, ele mesmo, incondicionado. Que o
desejo rasga o sujeito em um ponto inusitado.
Para Kant, na ação um aspecto, o moral, que não é determinado por uma
causalidade fenomênica. É justamente esse aspecto incondicionado que possibilita que
Kant possa falar de moral e de ética, pois não há ética sem liberdade e a liberdade se
expressa justamente por não ser possível no âmbito das inclinações patológicas. Kant
liga, assim, o incondicionado da liberdade à vontade pura.
Lacan, com o desejo puro, também procura manter a importância da relação
entre ética e o incondicionado. Ele livra o desejo do mundo fenomênico, indicando um
desejo que não está atrelado a nenhum objeto sensível, “um puro desejo de morte”. Mas,
no entanto, isso torna o conceito de difícil uso para os psicanalistas, uma vez que o
norte passa a ser o real, entendido neste momento como algo impossível, presente
apenas no domínio da morte. Nas palavras da psicanalista Ana Lucia Luterbach-Holck:
se o desejo puro satisfaz ao propósito de uma formulação do conceito de desejo para além
do querer ou do prazer, com o desejo puro, desinteressado, desvinculado de qualquer
objeto fenomênico, Lacan pôde chegar a uma clínica do trágico, da qual Antígona é o
paradigma. Pois o desejo puro teria como objeto [...] das Ding, fazendo coincidir o desejo
com uma pura vontade de gozo, caminhando para a morte. (Lutterbach-Holck, 2000, p.
68)
Desenvolveremos um pouco mais essa questão, a partir de certas colocações de
Lacan ainda no Seminário VII, nas considerações finais do presente trabalho. Antes
disso, um breve comentário sobre o texto Kant com Sade.
4.4
Kant com Sade
Três anos depois de ter terminado seu sétimo seminário, Lacan escreve o texto
Kant com Sade, publicado atualmente nos Escritos. Em 1962, portanto, Lacan retoma o
argumento desenvolvido em 1959, quando abordava a ética da psicanálise, e avança um
pouco mais. O texto é denso e de uma riqueza imensa, mas iremos nos restringir apenas
ao que dele nos interessa diretamente. Segundo a psicanalista Ana Lúcia Lutterbach-
Holck,
O seminário [sete] finaliza-se com o enigmático conceito de desejo puro, deixando-nos
um problema relativo à clínica, pois o puro, a princípio, nos indicaria um final de análise
trágico. (Lutterbach-Holck, 2000, p. 67)
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Assim, compreendemos que o texto Kant com Sade veio aprofundar o que Lacan
anunciava no Seminário VII. A lei que guiava Antígona, como vimos, não era a lei da
cidade ou do bem comum, mas a Lei do desejo. Inspirado em Kant, Lacan propõe que o
desejo ocupe, na teoria lacaniana, um lugar similar ao representado na ética kantiana
pela vontade pura, pois ele está desvinculado de toda articulação patológica.
Vimos que no Seminário VII Lacan realiza articulações entre a filosofia prática
kantiana e a proposta sadiana. Mas é no texto Kant com Sade que Lacan formula
explicitamente o que considera ser a máxima sadiana abordada anteriormente:
Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode me dizer qualquer um, e exercerei esse
direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de
nele saciar. (Lacan, 1998, p. 780)
Em analogia com imperativo categórico, a lei moral sadiana é construída por
Lacan para tratar da aproximação que ele realiza entre Kant e Sade. Nas palavras de
Luterbach-Holck,
Lacan constrói essa máxima para nos mostrar que Sade ao encarnar o imperativo
categórico em personagens de sua ficção, torna patente, o que em Kant é latente, isto é, o
que em Kant aparece como voz interior da consciência de um sujeito uno, em Sade
aparece como enunciação vinda do Outro, deixando aparecer a divisão do sujeito.
(Luterbach-Holck, 2000, p. 69)
Para Lacan, a ética sadiana revela uma verdade que fica escamoteada na ética kantiana.
E essa verdade é fundamentalmente a divisão subjetiva. Sade se mostra mais “honesto”
(sic) do que Kant ao não escamotear a divisão do sujeito, mesmo utilizando de alguns
dos mesmos preceitos filosóficos kantianos.
A divisão do sujeito é uma noção fundamental para a psicanálise. Quando
comentamos a famosa frase de Freud “O eu não é senhor em sua própria morada”,
referíamos-nos a seu mais contundente estudo: há no sujeito um eu, que possui uma parte
consciente, e motivações que se encontram fora dos parâmetros da consciência. Essas
outras motivações, que fogem ao campo da consciência, das inclinações, do querer e da
vontade, fazem referência ao que aqui estamos tratando como pertencentes ao campo do
desejo. Assim, no sujeito dividido um desejo, inconsciente, que difere de sua vontade
ou de seu querer. Um desejo que aponta para além do Princípio do Prazer e, portanto,
para além do campo da felicidade subjetiva e para além do sentido. O que também nos
permite afirmar que o humano nem sempre quer o que deseja, aliás, a prática analítica
demonstra que em geral ele não quer aquilo para o que aponta o seu desejo e, por isso,
resiste ao campo do desejo.
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Como a divisão subjetiva estaria, então, velada em Kant e desvelada em Sade? Em
primeiro lugar, vale lembrar que para Kant é possível que o sujeito controle, através do
uso da razão pura, suas ações e difira o que é moral daquilo que não o é. Além disso,
Kant acredita que o sujeito inclina-se ao prazer e à felicidade. Kant parece tentar resolver
questões sobre as quais Freud se debruça para falar de seu caráter irresolúvel, a saber,
que o homem não tem controle sobre suas ações, não consegue defini-las como morais
ou não e não se inclina simplesmente para o prazer ou para a felicidade. Neste sentido,
Sade é muito mais freudiano do que Kant. Mas é através das análises da forma como o
imperativo categórico é apresentado e da forma como Lacan constrói o imperativo
sadiano que percebemos com maior clareza a divisão subjetiva que estaria, segundo
Lacan, desvelada em Sade e velada em Kant. Vejamos:
Em Kant: “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa sempre valer ao
mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”. (Kant, CRPr, [1788] 2003,
p. 103). Já em Sade: Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode me dizer qualquer um,
e exercerei esse direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões
que me dê gosto de nele saciar” (Lacan, 1998, p. 780).
Em Kant, vemos que é o indivíduo, ele mesmo, que se aplica a lei moral. em
Sade, a máxima é pronunciada pela boca do Outro. Essa sutil diferença entre os
enunciados da ética dos dois autores permite que se afirme que o primeiro vela a divisão
subjetiva enquanto o segundo a explicita. Nas palavras de Lacan
a máxima sadiana é, por se pronunciar pela boca do Outro, mais honesta do que o recurso
à voz interior, que desmascara a fenda, comumente escamoteada, do sujeito. (Ibid., p.
782)
É imprescindível notarmos que na construção da lei sadiana o que importa não é o
dito que afirma que posso gozar o quanto quiser seja de quem for. Mas a pequena
sutileza que está incluída na frase, ou seja, o dito “pode me dizer qualquer um”. Há,
então, uma via dupla na frase. É a mesma pessoa que diz “eu tenho o direito” e que diz
“pode me dizer qualquer um”. Ao mesmo tempo em que formula um direito seu, afirma
que o outro tem o direito de fazer o que quiser com seu corpo. Assim nos diz
Grosrichard sobre a lei sadiana: “O dever é um dever de reconhecer o direito do outro de
gozar de meu corpo sem limite algum.” (Grosrichard, 1990)
8
.
O ponto principal aqui é a posição de submissão do sujeito frente à vontade de
gozo do Outro. A dificuldade que para o sujeito de dizer não ao direito do Outro de
8
Cf. nota de rodapé nº. 17.
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gozar, pois o que faz o sujeito é dizer sim a essa vontade do Outro. É fácil perceber isso
na clínica psicanalítica. Grosrichard nos chama atenção para a dificuldade que há não em
se ver na posição de gozado pelo Outro, mas de perceber que o sujeito coloca no Outro
uma vontade que é dele próprio. Em suas palavras: “O difícil, diz Lacan, é pronunciar
essa sentença no lugar do Outro, no lugar onde se reconhece finalmente que esse Outro
que coloco fora de mim como uma vontade transcendente, é minha vontade, é o meu
próprio desejo” (Loc. cit.). O sujeito dividido com o qual trabalha a psicanálise se mostra
aí pungentemente, ao mesmo tempo sujeitado e autor de sua própria sujeição.
Passemos agora ao que podemos enfim elaborar em termos de considerações finais
após o percurso até aqui traçado.
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Considerações Finais
Para realizar as considerações finais optamos por retomar alguns pontos que nos
pareceram especialmente instigantes na discussão que até aqui empreendemos. Uma
série de questões surge quando nos propomos a tentar compreender os pontos dos quais
Lacan se aproxima e dos quais se distancia de Kant ao se debruçar sobre a ética do
dever na tentativa de formular uma ética para a psicanálise, uma ética que leva em
consideração o desejo. As formulações que se seguem não pretendem, portanto,
responder às inúmeras inquietações que o tema desperta, mas apenas apontar e abordar
questões que nos pareceram especialmente interessantes e delicadas.
Da pureza
Pensar a ética é partir do que não está previamente determinado pelo mundo da
experiência, do que inaugura uma dimensão própria apenas àqueles seres capazes de
terem dúvida sobre como agir corretamente. Kant formula princípios dos quais um ser
racional pode lançar mão para articulação ética de sua ação. Ele pensa, assim, em uma
vontade pura, livre de tudo o que é condicionado, fonte da qual Lacan bebe para falar do
desejo puro. Abordar o “puro” e a ética, seja na vontade, seja no desejo, é tocar um
campo possível apenas para aqueles que se questionam se um princípio que guie o
que devemos fazer. Como guiar as escolhas? O que define a ética? Tanto Kant quanto
Lacan propõem que é pelo “puro” que devemos nos deixar guiar quando se trata de agir
eticamente.
Foi em Kant, portanto, que Lacan viu uma importante referência teórica para
abordar aquilo que do sujeito não pode ser descrito através de explicações causais. Ao
debruçar-se sobre a teoria kantiana, em especial sobre a Crítica da razão prática, Lacan
realiza um trabalho duplo: por um lado, procura extrair da vontade pura um ponto de
apoio para pensar uma ética para a psicanálise baseada no desejo; por outro, pretende
refletir sobre como o imperativo categórico da ética do dever poderia aproximar a teoria
kantiana de uma proposta sadiana.
Para Lacan, Sade e Kant formulam uma regra para ação baseada em uma
universalidade que pretende sobrepor-se a quaisquer limites subjetivos. A apatia e a
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formalidade do imperativo categórico têm a função de atravessar a humanidade em suas
diferenças temporais e culturais e reger a todos igualmente. Baseando-se no mesmo
preceito, Sade exige que o sujeito aja sem qualquer piedade do próximo e faça prosperar
a radicalidade de uma suposta natureza destruidora. Tanto em um quanto em outro, para
atingir tal apatia, tal formalismo e universalidade, é preciso que o sujeito sinta dor. A
dor é um critério para guiar a ação tanto em Kant quanto em Sade.
Assim, Lacan utiliza Sade para ler Kant. Aproxima ambos pela via da apatia, do
formal, do universal e da dor, mas não pára aí. Constrói a máxima sadiana e a utiliza para
demonstrar que Sade revela aquilo que estaria velado no imperativo categórico kantiano,
a saber, a divisão subjetiva. Nas palavras de Lacan,
a máxima sadiana é, por se pronunciar pela boca do Outro, mais honesta do que o recurso
à voz interior, que desmascara a fenda, comumente escamoteada, do sujeito. (Lacan,
[1962] 1998, p. 782).
Lacan remete o rigor do mandamento apático e estritamente formal, ao campo do
que em Freud é denominado “além do princípio do prazer”. A ferocidade desses
mandamentos morais foi compreendida por Freud em sua teoria sobre o supereu. A
culpa por nunca atingir o grau máximo da moralidade leva o sujeito a maltratar-se e o
impele ao “além do princípio do prazer”.
Ao buscar no “puro” de Kant um ponto de apoio para pensar uma ética para a
psicanálise, vimos que Lacan formula uma teoria em que o desejo, por ser puro,
desvincula-se de todo e qualquer motivo patológico. Assim, laços afetivos e o que é da
ordem de um “querer” (patológico) não são referência para o desejo em Lacan. Disso,
segue um problema, pois se tudo o que no princípio do prazer perde totalmente o
poder de ser utilizado como norte para guiar a ação ética, o desejo puro passa a estar
remetido ao além do princípio do prazer. Nessa dimensão, o sujeito está livre dos laços
afetivos que o sustenta em vida e entregue a um gozo radical que, por ser impossível,
se realiza de fato ao tocar a morte.
Assim, nos deparamos com a seguinte questão: se por um lado Lacan recorre a
Kant para poder pensar uma ética para a psicanálise - pois é em Kant que ele encontra
apoio para desvincular o sujeito de uma causalidade e pode falar, assim, de um desejo
não causado por motivações patológicas -, por outro lado, ao vincular o desejo ao puro,
Lacan lança o sujeito para além dos laços da vida, para além do princípio do prazer.
Antígona é o exemplo utilizado por Lacan para explicitar o desejo puro.
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Da dimensão trágica da experiência analítica
1
É sabido pelos psicanalistas que a demanda de felicidade que faz o sujeito que
procura uma análise não pode ser correspondida pelo analista que a escuta. Os analistas
não podem prometer a felicidade a seus pacientes, pois a psicanálise está longe de ser
uma disciplina da felicidade. Não há, na psicanálise, como havia para os gregos, por
exemplo, no entender de Lacan, um processo em que o evitamento de excessos permita
ao homem “escolher o que razoavelmente pode fazê-lo realizar-se em seu próprio bem”
(Lacan, 1997, p. 351).
Em História da Sexualidade – o uso dos prazeres, Foucault empreende um estudo
sobre o modo grego do sujeito lidar consigo mesmo e, como conseqüência, de lidar com
o outro, o que envolve as formas de lidar com os prazeres
2
. Segundo Foucault, a
temperança – sophrosune possui um lugar importante como ponto regulador do
comportamento, como referência para cada cidadão grego sobre como se posicionar
perante à polis e ao outro. Esta noção está estreitamente ligada a enkrateia, que pode ser
compreendida como domínio de si, no terreno dos prazeres, um domínio de si por si,
dado através de grande esforço. Tratava-se, nos diz Foucault, “da possibilidade de se
constituir como sujeito, mestre de sua própria conduta, isto é, de se tornar o hábil e
prudente guia de si mesmo, apto a conjecturar como convém sobre a medida e o
momento”. (Foucault, 1984, p. 125). Ser capaz de exercer temperança em suas decisões
e em seus atos era algo que se encontrava como ponto central para dar medida às
escolhas e ao agir grego.
O que Lacan nos diz é que, para a psicanálise, não nada que faça a função da
“temperança” grega. Diz ele: “Não nada parecido na análise, observem bem.
Pretendemos, por vias que para alguém saindo do colégio pareceriam surpreendentes,
permitir aos sujeitos situar-se numa posição tal que as coisas, misteriosa e quase
miraculosamente, aconteçam para ele de uma boa maneira, que ele as aborde pelo lado
certo” (Lacan, 1997, p. 351). “Abordar as coisas pelo lado certo” é uma referência
bastante abrangente que situa pouco o trabalho que se faz em uma análise. Mas, de
qualquer forma, não se trata de uma busca pela temperança ou pela felicidade e muito
menos por uma felicidade estigmatizada por padrões de conduta tidos socialmente como
1
A última parte do Seminário VII é denominada A dimensão trágica da experiência analítica. Nela,
Lacan retoma o percurso realizado durante todo o trabalho realizado entre 1959 e 1960.
2
Daí o termo ‘uso dos prazeres’, que em grego inclui duas palavras importantes na língua da época:
chresis (servir-se, fazer uso) e aphrodisia (os diversos prazeres). Donde temos chresis aphrodision’: o
uso dos prazeres.
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101
corretos
3
. Trata-se, assim, de uma ética que se opõe, pelo menos em parte, à ética que
deprecia o desejo e exalta a temperança e o bem universal.
A análise poderia parecer a busca de uma moral que procuraria “nos trazer para um
equilíbrio normativo com o mundo a que naturalmente a maturação dos instintos
conduziria.” (Ibid., p. 113). Mas não é disso que se trata. Lacan nos lembra da marca
freudiana:
Seguramente assim que percorremos com os olhos o que a meditação freudiana nos
fornece, vemos bem que desde o início algo resiste a ser assimilado a essa dimensão [a do
equilíbrio normativo], e é por isso que comecei a abordar, este ano, o problema da ética
da análise. (Loc. cit.)
A ética da psicanálise leva em conta aquilo que Freud revela de mais contundente, a
saber, que um para além do equilíbrio normativo, um algo que resiste à felicidade
subjetiva e que impele o homem em sua vida.
O supereu freudiano nos ajuda a compreender a distância entre os ideais do sujeito
e o ponto de real, pois por mais que o sujeito lute para ser e agir segundo seus ideais,
algo disso sempre lhe escapa e retorna como culpa. Uma das características que
ressaltamos é o lado cruel e paradoxal do supereu:
Qual é esse paradoxo? É aquilo em que a consciência moral, diz-nos Freud, se manifesta
de maneira tanto mais exigente quanto mais afinada tanto mais cruel quanto menos, de
fato, a ofendemos [...]. (Ibid., p. 114)
O pensamento freudiano demonstra que o supereu consegue barrar ações social e
moralmente condenadas, mas não impede o sujeito de desejar aquilo que “não poderia”
desejar e, por isso, retorna de modo cruel sobre o eu do sujeito. Tal retorno remete o
sujeito ao “para além do princípio do prazer”.
É assim que chegamos à articulação entre desejo, lei e transgressão. À principio, o
desejo para atingir a satisfação precisaria transgredir a lei que se coloca diante dele
através do supereu. Na teoria psicanalítica, costuma-se exemplificar essa lei: “não
dormirás com tua mãe”. Vimos que a proibição do incesto não se trata da prescrição de
que um filho não pode dormir com a mãe de modo literal. Essa é apenas uma forma de
demonstrar uma lei que aplica um limite à satisfação completa do desejo que, por ser
impossível, atinge sua plena realização diante da morte. Trata-se de proibir o
impossível encontro do objeto que não existe.
3
Como vimos, Lacan está criticando os analistas pós-freudianos que acreditavam que ao final da análise,
por exemplo, todo sujeito deveria atingir uma relação genital heterossexual satisfatória.
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102
Quando Lacan coloca o desejo como referência para uma ética e apresenta
Antígona como exemplo maior, como a heroína que paga com a própria morte a busca de
um bem que lhe é extremamente singular, ele o faz articulando a transgressão ao desejo
puro de Antígona. O puro do desejo de Antígona se deve ao fato de que seu desejo
apresenta-se desatrelado de todas as ligações com os laços afetivos que se articulam a ela
em vida. Antígona deixa seu noivo, seus familiares e seus sonhos para cumprir com
aquilo que estava além de qualquer apego patológico. A transgressão leva Antígona da
zona da vida à zona da morte, ao campo do encontro impossível com das Ding, onde o
desejo cessa. A satisfação do desejo está relacionada, assim, a uma transgressão que o
leva ao seu fim, ao seu cessamento. Trata-se de uma transgressão que leva ao campo do
gozo impossível e, assim, à morte.
No entanto, ao mesmo tempo em que Lacan indica Antígona como a heroína que
levou a busca da satisfação do desejo puro a seu derradeiro termo, ele nos faz uma outra
indicação preciosa. Diz-nos que levar uma análise a seu termo
nada mais é do que ter encontrado esse limite onde toda a problemática do desejo se
coloca. Que essa problemática seja central a todo acesso a uma realização qualquer de si
mesmo, é a novidade da análise. (Lacan, 1997, p. 359)
Assim, podemos pensar que encontrar o limite singular de cada sujeito, o limite marcado
pelo lugar que cada sujeito ocupa através das gerações que lhe antecederam, o limite
dado pela Até de cada sujeito, o limite que indica que para além dele o satisfação
possível a não ser o encontro com a morte é uma marca do trabalho analítico que leva em
consideração a relação do desejo com o que está além do Princípio do Prazer. Ao mesmo
tempo em que indica para onde o desejo aponta, delimita um termo que possibilite ao
sujeito não sucumbir à morte ainda em vida.
Segundo Lacan, o que o sujeito conquista na análise é sua própria lei. “Essa lei é,
primeiramente, sempre aceitação de algo que começou a se articular antes dele nas
gerações precedentes, e que é, propriamente falando, a Até.” (Lacan, 1997, p. 360).
Assim, a lei encontrada pelo sujeito na análise não é uma lei do bem de todos, e
tampouco uma lei moral. A lei encontrada na análise é aquela capaz de marcar o
movimento de desejo daquele sujeito e de abordar a diferença entre o que é, em sua
singularidade, a zona da vida e a zona da morte. O encontro com essa lei singular
permitirá ao sujeito relacionar-se com o desejo de um outro modo.
A pergunta central para a ética da psicanálise se escreve do seguinte modo: Agiste
conforme o desejo que te habita? Segundo Lacan,
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não é uma questão fácil de sustentar. Pretendo que ela jamais foi colocada de maneira
mais pura em outro lugar, e que não pode ser colocada senão no contexto analítico.
(Lacan, 1997, p. 377)
Para poder respondê-la, o sujeito precisa saber algo sobre o desejo que o habita, pois tal
desejo não se mostra simplesmente. É preciso aprender a ver as marcas do desejo para
que o sujeito possa se responsabilizar por ele.
Das responsabilidades
Articulamos a ética à responsabilidade que cada sujeito possui diante de suas
escolhas e atos. Liberdade e responsabilidade caminham juntas no pensamento kantiano.
O sujeito kantiano pode se responsabilizar por suas ações caso ele se pressuponha
livre. Do contrário, como responsabilizar alguém por algo sobre o que ele não poderia
impor o menor controle? Algo a que ele está irremediavelmente fadado? Por isso, em
Kant, não como existir responsabilidade se a vontade do sujeito não for considerada
livre. E livre, aqui, quer dizer ser livre das motivações patológicas. Nas palavras de
Kant:
Se nenhum outro fundamento determinante da vontade, a não ser meramente aquela
forma legislativa universal, pode servir a esta como lei, então uma tal vontade tem que ser
pensada como totalmente independente da lei natural dos fenômenos, a saber, da lei da
causalidade em suas relações sucessivas. Uma tal independência, porém, chama-se
liberdade no sentido mais estrito, isto é, transcendental. Logo, uma vontade, à qual
unicamente a simples forma legislativa da máxima pode servir à lei, é uma vontade livre.
(Kant, [1788] 2003, p. 99)
Assim, liberdade e lei prática, que é a lei que permite à vontade ser livre, referem-
se reciprocamente. A lei moral conduz ao conceito de liberdade. É, então, esse sujeito,
moral e livre, que pode ser, segundo Kant, imputável e responsabilizado por suas
escolhas e ações.
Em Freud e em Lacan, por outro lado, não podemos falar de um sujeito livre
nesses termos, pois, como vimos, na leitura psicanalítica, por mais que não se trate da
relação do sujeito com o patológico, ele não é alforriado de seu desejo e não possui
meios de controlar conscientemente suas motivações inconscientes. Esse controle está
para além de sua vontade. Em Freud, a aplicação do imperativo categórico e o
sentimento de dor não são capazes de livrar o sujeito do inconsciente. No entanto, não
se trata, com isso, de desresponsabilizar o sujeito por suas escolhas e ações. Pelo
contrário, o sujeito ético é aquele que se responsabiliza pelo seu desejo. É justamente
desse ponto que o sujeito não deve ceder.
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Lacan afirma que “fazer as coisas em nome do bem, e mais ainda em nome do
bem do outro, eis o que está bem longe de nos abrigar não apenas da culpa, mas de todo
tipo de catástrofes interiores.” (Lacan, 1997, p. 383). Ao abrir mão do desejo e agir de
acordo com o que se supõe ser o bem do outro, abre-se um caminho penoso e
desastroso. A partir daí, pode-se apenas tentar reparar os efeitos causados, mas jamais se
consegue desfazer a catástrofe interior que disso provém.
Há, em Freud, uma expressão que pode, à primeira vista, parecer um pouco
enigmática, mas ela nos ajuda a compreender o que se trata em psicanálise ter uma
posição ética. Freud afirma que, como efeito de um processo analítico, onde o Isso era o
Eu deve advir (Freud, [1933] 1996, p. 84). O desejo, tal como o abordamos na presente
dissertação, é parte insistente do “Isso” a que Freud se refere. Não seria inteiramente
correto igualar isso e inconsciente, mas para as pretensões que aqui possuímos,
podemos remeter um ao outro. onde pulsava um desejo inconsciente que permanecia
absolutamente desconhecido ao campo do eu, mas que mesmo assim insiste em buscar
satisfação, é que o sujeito deve buscar aquilo que de mais íntimo lhe diz respeito. É
no que poderá encontrar nesse ponto obscuro e insistente do campo do desejo que o
sujeito deverá calcar suas escolhas e decisões, promovidas pelo eu.
Trata-se justamente de não ceder de seu desejo, uma vez que o desejo nunca cede
no sujeito. Para além de qualquer vontade do sujeito, o desejo se apresenta com
insistência. O que fazer com isso, uma vez que Freud já nos demonstrou que não
formas de extirparmos o desejo inconsciente? As indicações respectivamente de Freud e
de Lacan, que estão atentos para a formulação onde o
Isso era o Eu deve advir e para o fato de que o sujeito não deve nunca ceder de seu
desejo, nos ajudam a compreender que agir a partir das marcas do desejo é uma saída
diferente da tentativa de subjugá-lo à consciência.
É agir de acordo com o desejo que nos habita o que compreendemos ser a
responsabilidade ética a que a psicanálise desafia. Ceder do campo do desejo não
poderia ser, assim, uma posição ética, uma vez que nela o sujeito se recusa a se
responsabilizar por aquilo que lhe é mais íntimo e que agirá nele, mesmo a sua revelia.
É nesse ponto que o corte narcísico freudiano parece ser mais incisivo, uma vez que ele
não permite ao sujeito a ilusão de que poderá ser ético sem se responsabilizar por aquilo
que nele insiste para além do controle e da consciência.
Ao se aproximar do desejo, o sujeito não apenas pode se responsabilizar pelo que
lhe é mais íntimo, que lhe foi legado pelas gerações que o antecederam e pelo que disso
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ele pôde fazer, mas também aprende como lidar com o que transgride o campo do
princípio do prazer. Aproximar-se do desejo permite ao sujeito saber fazer com o gozo,
o que é bastante diferente de lançar-se ao campo do gozo, ao campo do que está para
além dos limites e dos laços da vida.
Assim, vemos que, para a psicanálise, conta a responsabilização, por parte do
sujeito, daquilo que lhe é estranho, mas que habita o que nele de mais íntimo. De
uma forma completamente diferente, para a filosofia prática kantiana o que conta é que
o sujeito, ao poder determinar sua vontade pela lei moral, responsabilize-se por suas
escolhas, sejam elas morais ou patológicas. Para a primeira teoria, ao concluir que o
sujeito não é livre do desejo que o habita, o que resta ao sujeito é procurar saber sobre
esse desejo e responsabilizar-se por ele, aprender a fazer com ele. Nesse sentido, a
psicanálise não acredita na liberdade.
Responsabilizar-se pelo estranho desejo do qual não se pode libertar, tal como
postula a psicanálise, é diferente de acreditar ser possível uma liberdade que desatrele o
sujeito do campo desejo e do inconsciente e o permita agir puramente por dever, tal
como pretende a ética kantiana. Essa parece ser uma grande marca diferencial entre as
duas éticas.
Do determinado e do incondicionado
O incondicionado é um norte essencial para se pensar questões que envolvem a
ética, uma vez que, nela, trata-se de abordar tudo aquilo que não está previamente
condicionado. Se Kant torna pura a vontade, para poder apontar a liberdade, Freud faz
do desejo aquilo que rasga o campo racional e se apresenta como completamente
inusitado.
Salvar o inconsciente da causalidade empírica é, assim, essencial para a teoria
psicanalítica. Neste ponto, Kant é uma referência fundamental, uma vez que ele oferece
toda uma teoria que permite fazer frente ao domínio da causalidade empírica e permite
mostrar que o sujeito pode ser pensado em uma dimensão distinta dessa.
É preciso que tenhamos compreendido, portanto, que o desejo inconsciente não
pode ser incluído no campo das apetições sensíveis kantianas. Se, por um lado, o desejo,
tal como pensado por Freud e posteriormente por Lacan, rasga as pretensões idealizadas
e racionais, por outro ele não é conforme o querer condicionado. Por isso, Lacan refere-
se a um desejo puro, para evidenciar que estamos longe de poder atrelar ao desejo o
condicionado.
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Em Kant, o incondicionado da vontade pura pode surgir a partir do momento
em que se distingue com clareza o campo das ações determinadas pela razão pura das
ações regidas pelos afetos. Liberdade e pureza da vontade podem existir se estiverem
vinculadas. Somente assim o sujeito pode se desfazer de uma cadeia causal previamente
estabelecida e agir de forma a romper com o que poderia lhe determinar naturalmente.
Não se trata de uma discussão psicológica em Kant. Trata-se de uma discussão que diz
respeito a uma dimensão transcendental. É a própria metafísica que está em questão.
Podemos afirmar que a questão principal é o rompimento com o condicionado e a
possibilidade de aparecimento do novo, do inédito, do espontâneo. Isso diz do não
causado e, portanto, da liberdade em Kant. O ponto fundamental é que o inédito está
situado em Kant apática e moralmente. Assim, quebrar uma cadeia causada está no
âmbito da razão pura. O que Kant coloca na moral e na razão, aquilo que quebra com o
condicionado, Lacan coloca no desejo. Por isso, em Lacan, assim como em Kant,
tampouco se trata de uma discussão psicológica. É a psicanálise que está em questão.
Diferente do que pode parecer à primeira vista, portanto, o desejo não é aquilo que
torna o sujeito condicionado. Para a psicanálise, é justamente a partir do desejo que o
sujeito pode criar o novo, o inédito. Pode fazer algo que lhe é único e extremamente
singular. As duas éticas estão pautadas, portanto, no âmbito incondicionado. Mas, no
entanto, enquanto, para Kant, a vontade pura é incondicionada, universalizável e
determinada pela razão; para Lacan, o desejo puro é incondicionado, singular, único e
impossível de ser determinado pela razão.
Para finalizar, podemos deixar uma questão: o que poderia ocupar para o desejo
puro o lugar que a razão possui para a vontade pura? A incondicionalidade da vontade
pura não significa que ela não seja determinada. Como vimos, a vontade pura é
incondicionada, mas determinada pela razão pura. Da mesma forma, podemos pensar o
desejo puro. Sua incondicionalidade não significa que ele não seja, de alguma forma,
determinado.
Podemos pensar a Até, termo que nos pareceu tão fundamental apesar de
nebuloso, como o que determina o desejo, embora não o condicione. Isso porque a Até
localiza o sujeito naquilo que o circunscreve em sua linhagem, pois ela provém do
campo do Outro e começa a se articular nas gerações precedentes. Dessa forma,
Antígona é pela sua Até familiar determinada. Sobre sua determinação em enterrar o
corpo do irmão, apesar de todo sofrimento que precisa atravessar para atingir seu
intento, Antígona afirma “é assim porque é assim” (Lacan, 1997, p. 336), apontando-
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nos que algo a determina para além do campo do sentido e do condicionado. É o sem
sentido da Até, portanto, aquilo que podemos pensar como o que determina o desejo
puro. Terminemos com a seguinte citação de Lacan sobre o desejo puro de Antígona:
Mas Antígona leva até o limite a efetivação do que se pode chamar de desejo puro, o puro
e simples desejo de morte como tal. Esse desejo, ela o encarna. Reflitam bem nisso o
que é de seu desejo? [...] Nenhuma medição é aqui possível, a não ser esse desejo, seu
caráter radicalmente destruidor. A descendência da união incestuosa se desdobrou em
dois irmãos, um que representa o poderio, outro que representa o crime. Não ninguém
para assumir o crime e a validade do crime senão Antígona. Entre os dois, Antígona
escolhe ser pura e a simplesmente a guardiã do ser criminoso como tal. (...) Antígona
deve fazer o sacrifício de seu ser para a manutenção desse ser essencial que é a Até
familiar motivo, eixo verdadeiro, em torno do qual gira essa tragédia. Antígona
perpetua, eterniza, imortaliza essa Até. (Lacan, 1997, p. 342)
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