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Bernardo Carvalho Oliveira
A Guerra Desesperada
Nietzsche e a “Grande Política”
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia
da PUC-Rio.
Orientadora: Profª. Kátia Rodrigues Muricy
Rio de Janeiro
Abril de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0511048/CA
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Bernardo Carvalho Oliveira
A Guerra Desesperada
Nietzsche e a “Grande Política”
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia
da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora
abaixo assinada.
Profª. Kátia Rodrigues Muricy
Orientadora
Departamento de Filosofia PUC-Rio
Prof. Eduardo Jardim de Moraes
Departamento de Filosofia PUC-Rio
Prof. André Martins Vilar de Carvalho
Departamento de Filosofia da UFRJ/IFCS
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro
de Teologia e Ciências Humanas PUC-Rio
Rio de Janeiro, 13 de abril de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0511048/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do
autor e do orientador.
Bernardo Carvalho Oliveira
Graduou-se em Filosofia pelo IFCS/UFRJ em 2004.
Ficha Catalográfica
Oliveira, Bernardo Carvalho
A guerra desesperada: Nietzsche
e a “Grande
política” / Bernardo Carvalho Oliveira ;
orientadora: Kátia Rodrigues Muricy. 2007.
151 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Filosofia)
Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
Inclui bibliografia
1. Filosofia
Teses. 2. Crítica. 3. Grande
política. 4. Poder. 5. Cultura. 6. Ontologia. I.
Muricy, Kátia Rodrigues. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Filosofia. III. Título.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0511048/CA
Para Mariana...
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0511048/CA
Agradecimentos
A Kátia Muricy, Eduardo Jardim, Edna e Diná, professores do
Departamento de Filosofia da PUC, especialmente a Sérgio Fernandes e
Déborah Danowski.
Ao CNPQ e FAPERJ.
Aos amigos Gustavo Camargo, Leonardo Martinelli, Leandro Chevitarese,
Leandro Salgueirinho, Ivan Capeller, Gabriel Mograbi, Renato Jr., Juliana
Fausto, Tiago Campante, Rafael Viegas, Marlos Salustiano, Adriany de
Mendonça e Alexandre de Mendonça.
Aos amigos do SpiN/IFCS, especialmente a Renato Nunes, Joana Tolentino
e Jorge Moraes.
Ao Prof. André Martins pela sugestão.
Ao Prof. Clauze Abreu (in memorian).
Ao Maurício Rocha pela cumplicidade no pensamento e suporte
inestimável.
E aos meus familiares, especialmente…
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RESUMO
Oliveira, Bernardo Carvalho; Muricy, Kátia Rodrigues. A guerra
desesperada: Nietzsche e a “grande política”. Rio de Janeiro,
2007. 151p. Dissertação de Mestrado Departamento de Filosofia,
Pontifícia Universidade Católica.
Utilizada por Nietzsche em momentos diversos de sua obra, a
expressão “grande política” revela uma perspectiva diferenciada sobre os
problemas de natureza política, radicalmente divergente do aporte crítico da
modernidade política. O objetivo desta dissertação é analisar a “grande
política”, a partir de quatro hipóteses complementares. Em primeiro lugar,
supomos que a “grande política” deva ser analisada estritamente no campo
de problemas do pensamento nietzscheano, e não à contra-luz do aporte da
modernidade política e filosófica. Em segundo lugar, sendo a “grande
política” um produto da crítica dos valores morais, sua análise exige,
preliminarmente, uma discussão acerca dos temas e peculiaridades
concernentes a esta crítica. Em terceiro lugar, definida como “um
conhecimento das condições e circunstâncias nas quais [os valores]
nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram”, a crítica dos
valores morais, entretanto, está fincada sobre uma concepção muito
específica do ser e da existência, a ontologia de Nietzsche. A análise desta
ontologia é, portanto, indispensável para acessar a crítica e,
consequentemente, a “grande política.” Em quarto e último lugar, a “grande
política” representa o corolário das pesquisas que Nietzsche desenvolve a
partir de Verdade e mentira no sentido extra-moral (1873), acerca da gênese
e desenvolvimento dos valores morais, figurando portanto como expressão
fundamental de seu pensamento.
PALAVRAS-CHAVE
Crítica - “Grande política” Poder – Cultura - Ontologia
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ABSTRACT
Oliveira, Bernardo Carvalho; Muricy, Kátia Rodrigues. A
guerra desesperada: Nietzsche e a “grande política”. Rio
de Janeiro, 2007. 151p. Dissertação de Mestrado
Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica.
Used by Nietzsche in many moments of his work, the
expression “great politics” reveals a perspective on problems of
political nature radically different from the modernity theorical
political critique. The aim of this work is to justify an analysis of the
“great politics”, from four complementary hypotheses. First of all,
we assume that the “great politics” must strictly be analyzed inside
nietzschean’s thought, and not from any values related to
philosophical modernity and politics. Secondly, the expression is a
product of the critique of moral values (kritik der moralischen
werte), and its analysis demands, preliminarily, a discussion
concerning those themes related to this critique. In third place,
defined as “the knowledge of the conditions and circumstances in
which they [the values] grew, under which they evolved and
changed”, the critique of moral values, however, is sticked on a very
specific conception of the being and the existence. Therefore, it’s
our hypotheses that the analysis of Nietzsche’s onthology is
indispensable to access the critique and, consequently, the “great
politics.” At last, the “great politics” represents a corollary of
Nietzsche’s researchs developed from Truth and lie in the direction
extra-moral (1873) that concerns the genesis and development of
moral values and, therefore, figures as a fundamental expression of
his thought.
Keywords
Critics “Great Politics” Power - Culture - Onthology
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SUMÁRIO
1. Introdução 12
2. Crítica dos valores, sensibilidade moral e décadence 17
2.1. Nietzsche, filósofo da política? 17
2.1.1. Crítica da modernidade política e crítica da moral 18
2.1.2. A Atualidade de Nietzsche 21
2.2. Crítica da moral e décadence 24
2.2.1. O díptico moral/valores 24
2.2.2. O díptico niilismo/décadence 28
2.3. Uma outra “sensibilidade moral” 41
2.3.1. Afeto e experimentação 41
2.3.2. Contra Kant 46
2.4. A política como moral, a moral como política 52
3. A relação entre ontologia e crítica em Nietzsche 58
3.1. Ontologia e política 58
3.1.1. A superação da religião e do humanismo metafísico 59
3.1.2. O díptico essência/existência 68
3.1.3. Os limites da interpretação de Heidegger 75
3.1.4. O eterno retorno: entre o pensamento
e a experiência 91
3.2. Elementos da crítica: Prospecção e Retrospecção
em Nietzsche 98
3.2.1. Estatuto do conhecimento 99
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3.2.2. Nota sobre a interpretação 101
3.2.3. Nota sobre o aforismo 102
3.2.4. Diagnóstico e criação 104
3.2.5. A resposta genealógica 106
4. Diagnóstico e profecia: a “grande política” 111
4.1. A “grande política”: apresentação 111
4.1.1. A “grande política” como análise 113
4.1.2. A “grande política” e a vontade de poder 116
4.1.3. Diagnóstico e profecia 124
4.1.4. A “liga anti-germânica”: fisiologia e cultura 127
4.1.5. A “grande política” como política da Interpretação 135
5. Conclusão 141
6. Referências bibliográficas 145
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Lista de abreviaturas
KSA Kritische Studienausgabe. Org. Giorgio Colli e Mazzino
Montinari. Berlin/New York. Walter de Gruyter. 1980.
HDH Humano, demasiado humano. Trad. Paulo César de Souza.
São Paulo. Companhia das Letras. 2000.
A Aurora. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
Z Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.
Trad. Mario da Silva. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil. 1998.
ABM Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo. Companhia das Letras. 1998.
GM Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo.
Companhia das Letras. 1998.
CW O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner. Trad. Paulo
César de Souza. São Paulo. Companhia das Letras. 1999.
CI Crepúsculo dos ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006
EH Ecce Homo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001
AC O Anti-cristo. Trad. Carlos José de Menezes. Lisboa:
Guimarães & Cia Editores, 1978.
O.P.C. (XIII) Œuvres Philosophiques Complètes XIV - Fragments
Posthumes (automne 1887 mars 1889). Ed. crítica org. por Colli e
Montinari. Trad. Pierre Klossowski e Henri-Alexis Baatsch. Paris:
Gallimard, 1976.
O.P.C. (XIV) Œuvres Philosophiques Complètes XIV - Fragments
Posthumes (début 1888 début janvier 1889). Ed. crítica org. por
Colli e Montinari. Trad. Jean-Claude Hémery. Paris: Gallimard, 1977.
Obras incompletas. In: Coleção Os Pensadores. Trad. Rubens
Rodrigues Torres Filho. São Paulo. Nova Cultural. 1999.
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Toutes les lois ne sont pas bonnes à dire.
Lautréamont, Poèsies II
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1
Introdução
Durante mais de sessenta anos, unir as palavras Nietzsche e Política
na mesma sentença significava arriscar-se num emaranhado de contradições
e desacordos, sob pena até de perder o rumo. E, de fato, à primeira vista,
não existe a menor razão para considerar a filosofia de Nietzsche de um
ponto de vista político, em virtude sobretudo de seus elogios à escravidão
1
e
a um individualismo estético que despreza o caráter mediador e humanitário
da política moderna. Sob esta perspectiva, a apropriação nazista de
Bäumler
2
seria a mera instrumentalização de um conteúdo marcado por
referências explícitas à guerra, à escravidão e à violência. Interpretando a
política em Nietzsche à contra-luz da filosofia política moderna e dos
valores do iluminismo, se chega à mesma conclusão: “conservadorismo
neoaristocrático”
3
, “voluntarista e idealista”
4
e “neo-conservador”
5
foram
rótulos utilizados por alguns de seus comentadores ao tratarem do tema. O
pensamento de Nietzsche, sob esses dois pontos de vista, é,
irremediavelmente, anti-político.
Atualmente, um modesto, mas crescente interesse nos aspectos
políticos da filosofia de Nietzsche, especialmente no que diz respeito à
“grande política”, ganha espaço no mundo acadêmico. O fim das utopias, as
guerras, a crise da representação, a mercantilização do valor da vida, entre
outros elementos, encaminham a política mundial para um impasse
aparentemente insolúvel. É natural, portanto, que em momentos de
turbulência aumente o interesse por pensadores que seguiram na contramão
do processo. A maior contribuição para a renovação deste interesse foi
certamente a edição crítica de Giorgio Colli e Mazzino Montinari, cujo
inestimável trabalho histórico-filológico promoveu, entre outros, o tema da
“grande política”. Através do trabalho de Colli e Montinari, pudemos ter
1
ABM, 242.
2
Montinari. “Nietzsche between Alfred Bäumler e Georg Lukács. In.: Reading Nietzsche,
p. 141-169.
3
Warren, Mark, Nietzsche and the political thought, p. 211.
4
Ansell-Pearson, Keith. Nietzsche como pensador político: uma introdução, p. 174.
5
Ferry, Luc. “La critique nietzschéenne de la democratie”, In.: Histoire de la Philosophie
Politique (vol. 4), Les Critiques de la Modernité Politique, p. 373-74.
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13
acesso a um determinado grupo de fragmentos póstumos e inéditos, escritos
entre o final de 1888 e o início de 1889
6
, nos quais a “grande política”
desempenha um papel central. Esses fragmentos constituiriam um panfleto
jamais publicado por Nietzsche, Kriegserklärung (“Declaração de guerra”)
7
,
em que o filósofo anuncia que deseja “criar um partido da vida, forte o
suficiente para a ‘grande política’” no sentido de “elevar a humanidade
como um todo.”
8
Como resposta ao contexto político europeu,
especialmente o alemão, tomado pelo nacionalismo e pelo ódio racial,
Nietzsche desenvolve a “grande política” rigorosamente como contra-
discurso. Não é à toa que ele declara “guerra de morte”
9
ao príncipe
Bismarck (“o estúpido par excellence entre todos os homens de estado”
10
), à
casa dos Hohenzollern e a Frederico III, nomes centrais na política alemã da
década de oitenta.
Entretanto, dada a urgência de sua tarefa, os textos concernentes à
Kriegserklärung por vezes adquirem contornos bélicos, violentos e,
sobretudo, anti-humanitários por exemplo, quando sugere a castidade
entre os casos de doenças crônicas e neurastenia, como forma de controle da
debilidade, “para dar um fim a tudo o que é degenerado e parasitário.”
11
Entretanto, devemos observar que esta acepção da “grande política”
compreende a aplicação da expressão nos póstumos inéditos a que nos
referimos acima. A expressão não surge com a edição de Colli e Montinari.
Já em Humano, demasiado humano (1878) e Aurora (1881) aparece como
“necessidade do desenvolvimento do poder”
12
; em 1886 e 1887, reaparece
respectivamente em Além do Bem e do Mal e Genealogia da moral, em
oposição à chamada “pequena política” (kleine Politik).
13
A expressão traça
um percurso próprio na obra de Nietzsche, seguindo de perto as mudanças e
6
Colli, Giorgio, KSA 13, p. 668: “Contudo, o que admira realmente é que há apenas um
diminuto número de textos realmente patológicos. Trata-se apenas de uns poucos registros
da ‘grande política’, nos quais é declarada uma radical ‘guerra de morte’. Em outras
palavras, quase ao mesmo tempo em que Nietzsche mergulha no delírio [Verstand verliert],
ele interrompe também sua produção literária.” Trad. Jorge Viesenteiner.
7
O.P.C. (XIV), p. 377-385; KSA 13, 25[1], 25[6], 25[11], 25[13], 25[14], 25 [15], 25 [16],
25 [18] e 25 [19].
8
O.P.C. (XIV), p. 378; KSA 13 25 [1].
9
Idem.
10
O.P.C. (XIV), p. 382; KSA 13 25 [13].
11
O.P.C. (XIV), p. 378; KSA 13 25 [1].
12
A, 189.
13
ABM, 208, 241, 254; GM, 8.
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14
correções de rumo que marcam o projeto crítico. Através da reconstituição
de sua trajetória, percebemos o quanto a “grande política” deve ao projeto
crítico, tal como Nietzsche o concebeu. Quero dizer: o processo de
constituição da “grande política”, longe de se configurar como mera
referência lateral, acompanha o desenvolvimento da crítica dos valores
morais, problema central na obra de Nietzsche.
Para tanto, oferecemos uma hipótese geral: uma análise conseqüente
da “grande política” deve partir da crítica dos valores morais e de seus
componentes, e não dos valores característicos da experiência e do aporte
crítico da modernidade política. Acreditamos que boa parte dos mal-
entendidos em relação à política em Nietzsche, decorrem de um tipo de
interpretação que persiste em avaliar seu pensamento a partir de valores que
ele mesmo se propôs explicitamente a pôr em xeque. Assim, no primeiro
capítulo buscamos realizar uma análise da crítica dos valores morais em
relação à perspectiva política de Nietzsche. Não para cotejar seu
pensamento com o pensamento político da época, mas para indicar os
pressupostos que, mais tarde, fornecerão as bases da “grande política.” A
análise da “grande política” é, portanto, inseparável de uma análise da
crítica, tal como Nietzsche a compreendia. Assim, temas como os dípticos
moral/valores e niilismo/décadence, bem como a distinção entre o conceito
de crítica em Nietzsche e Kant, serão analisados de forma a situar a
peculiaridade da crítica dos valores morais, seus princípios e conseqüências.
Esta crítica, no entanto, não se resume a uma iconoclastia cega, a
partir da qual o filósofo passa a desarticular sem cessar os valores sobre os
quais se apóiam os homens; ao contrário, “ela mesma requer algo mais
ela exige que ele crie valores.”
14
De forma que, mesmo esparsos em seus
escritos, mesmo que de forma assistemática e arbitrária, a crítica dos valores
traz, não somente um diagnóstico sobre a situação moral e cultural do
ocidente, como também uma concepção do ser e da existência bastante
divergente das concepções predominantes, características da modernidade
política. Compreendendo que a filosofia política moderna, seguindo o
legado de Hobbes e Rousseau, se orientava sobre bases metafísicas, a
14
ABM, 211.
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15
"grande política”, por sua vez, deveria necessariamente deflagrar-se no
questionamento das estruturas conceituais erigidas pelo humanismo
metafísico. É, portanto, como contra-discurso, absolutamente despojado de
princípios metafísicos, que se apresentará tanto a crítica dos valores, como
seu produto, a “grande política.” Naturalmente, deve-se perguntar sobre a
validade desta afirmação, visto a notória guerra de Nietzsche contra
metafísica. Portanto, nossa hipótese no capítulo dois é a de que não só há
uma ontologia em Nietzsche, como também ela é fundamental na
compreensão da crítica dos valores morais. Se é verdade, como afirma
Pierre Boudot, que Nietzsche “confiou uma nova linguagem à ontologia”
15
,
supomos que a análise desta linguagem viabiliza um acesso diferenciado à
crítica dos valores e à urgência aparentemente despropositada da “grande
política”. Indispensáveis, também, uma discussão com Heidegger acerca de
sua concepção metafísica do pensamento de Nietzsche, e uma análise do
eterno retorno do mesmo e da vontade de poder sob um ponto de vista das
pesquisas histórico-filológicas, trazidas por comentadores como Paolo
D’Iorio, Henning Ottmann, entre outros.
Considerando as duas primeiras hipóteses, a “grande política”
representa uma declaração de guerra (Kriegserklärung) contra a “pequena
política”, em favor da cultura e da desestabilização do “rebanho autônomo”.
No capítulo três, analisaremos a “grande política” sob três aspectos. A
“grande política” oriunda do período de 1878 até 1881, que conserva como
característica principal a oscilação de sentido, ora representando um
diagnóstico acerca da situação européia, ora vinculando a prática política à
produção dos valores morais. Depois, o período que vai de 1886 a 1888, em
que as oscilações da “grande política” ocorrem em relação a um conceito
fundamental na obra de Nietzsche: a vontade de poder. E, por último, uma
análise da relação entre crítica, fisiologia e cultura na última forma da
“grande política”, presente nos fragmentos póstumos Kriegserklärung
(“Declaração de guerra”).
Na medida em que nos servimos de uma série de textos
problemáticos quanto à questão editorial, mas retirados indiretamente do
15
Boudot, Pierre. L’Ontologie de Nietzsche. Paris: P.U.F., 1971, p. 7.
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16
francês, algumas advertências se fazem necessárias. Em relação aos
fragmentos póstumos, busquei sempre indicar a referência na Kritische
Studienausgabe, organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. As
traduções dos trechos em alemão de Nietzsche foram realizadas por Jorge
Viesenteiner, a quem desde já agradeço. Todas as demais traduções,
inclusive as de Heidegger em alemão, foram realizadas por mim, vale dizer,
com o auxílio do original, de edições digitais pouco confiáveis em inglês,
francês e espanhol, além de um bom dicionário. Quanto à validade da
utilização desses aforismos, a grande maioria deles foram retirados do
caderno III M 1, redigido no verão de 1881, referente ao eterno retorno do
mesmo, que, na opinião de Paolo D’Iorio, representa um dos raros exemplos
onde se percebe que Nietzsche manteve os argumentos nos textos
subseqüentes. Quanto aos aforismos que, cotejados com outros, porventura
revelem uma “contradição”, preferimos utilizá-los mesmo assim. É
justamente o acesso a esses movimentos imprevisíveis do pensamento
nietzscheano que atestam a importância fundamental da pesquisa de Colli e
Montinari. Ela revela que Nietzsche não só exercitava o pensamento de
forma a incorporar o caráter perspectivista da realidade, como também
demonstra que muito aspectos considerados como desatinos de sua filosofia,
no fundo se configuravam como tomada de posição em relação a algum
debate ou discussão de sua época. Como afirma Mazzino Montinari: “A
solidão de Nietzsche era algo bem diferente de um bloqueio contra
contemporâneos e livros de contemporâneos. Recuperar este meio-ambiente
vivo e histórico é um pressuposto necessário para lê-lo corretamente.”
16
16
Montinari, Mazzino. Ler Nietzsche: O crepúsculo dos ídolos, p. 86.
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17
2
Crítica dos valores, sensibilidade moral e décadence
em Nietzsche
The imperfect is our paradise.
Note that, in this bitterness, delight,
Since the imperfect is so hot in us
Lies in flawed words and stubborn sounds.
Wallace Stevens
2.1
Nietzsche, filósofo da política?
A análise da “grande política”, bem como dos temas relativos à
política abordados por Nietzsche como por exemplo, a questão da
democracia e do estado de direito requer uma atenção especial à crítica
dos valores morais
1
, tal como ele a concebeu. Entretanto, antes de
passarmos à análise da crítica, é necessário elencar alguns pontos relativos
às dificuldades que o pensamento e o estilo de Nietzsche criam para o leitor.
Equívoco, impreciso, excessivamente poético para o espírito científico,
demasiado sutil para o gosto filosófico, o estilo nietzscheano reporta a
elementos e objetos nem sempre observados, como por exemplo a questão
da “grande política”, de que se ocupa essa dissertação. Entendemos que boa
parte desses entraves foram criados propositadamente pelo próprio
Nietzsche, com o claro intuito de provocar e estimular seus leitores. Dado o
conteúdo problemático desta afirmação, julgamos necessário situar a crítica,
discriminando alguns de seus métodos e problemas característicos, como
por exemplo o problema do niilismo europeu e da décadence, o dípticos
moral/valores e a distinção entre a crítica em Nietzsche e Kant.
1
Cf.: GM, Prólogo, 6.
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18
2.1.1
Crítica da modernidade política e crítica da moral.
O problema mais geral da filosofia de Nietzsche, a crítica dos valores
morais, remete imediatamente ao problema do valor da vida
2
em relação às
possibilidades de cultivo e aperfeiçoamento do tipo homem. Nietzsche nos
pergunta se ainda podemos situar esta problemática, mesmo inseridos em
uma cultura que há dois mil anos domestica, nivela e estimula à irreflexão.
Sua obra se caracteriza por uma crítica aguda dos valores constitutivos da
cultura ocidental moderna da qual somos herdeiros. O cristianismo, a
política, o valor de verdade, a lógica, a ciência, a metafísica e todas as idéias
e práticas que, segundo ele, “acusam a vida” ao invés de promovê-la
3
,
revelam, em sua perspectiva, os sintomas da décadence nas “idéias
modernas.” Entretanto, esta pluralidade de temas e enfoques, tão
fundamentais em seu pensamento, muitas vezes estimulam contrasensos
acerca de suas idéias políticas. O caráter múltiplo da crítica, aliado aos
elogios intempestivos, aspectos contraditórios e “estilo multifário”
4
, entre
outros complicadores, conduzem seus leitores por um emaranhado de
questões. O fato é que, quando se trata de política em Nietzsche, a grande
maioria dos comentadores adotam uma perspectiva cautelosa, sempre
parcial, sempre esquiva entre ressalvas e cuidados quanto a conceitos,
método, biografia etc. Outros preferem, ainda hoje, reiterar o que certos
autores ao longo do século XX propagaram acerca do “caso Nietzsche”, ou
seja: seu individualismo estético eliminaria qualquer hipótese de reflexão
política. Em ambos os pontos de vista, trata-se de compreender a filosofia
de Nietzsche e, sobretudo, o caráter político dessa filosofia, segundo um
isolamento teórico orgulhoso em que o filósofo, ciente do pathos de
distância que o separa do leitor, exercita sua “superioridade” através de um
tom particulamente exaltado e provocador. Durante o século XX esta
perspectiva atravessou diferentes interpretações da obra de Nietzsche, e
prossegue sobremaneira nos trabalhos que ainda hoje insistem em pensá-lo a
2
CI, V, 5.
3
ABM, 3.
4
Cf.: Nehamas. Nietzsche, life as literature, p. 13.
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19
partir dos valores que ele propõe explicitamente que sejam superados,
como, por exemplo, o próprio individualismo estéril e egoísta de que lhe
acusam.
Por outro viés interpretativo, Oswaldo Giacóia afirma que o principal
mal-entendido acerca do caráter político da filosofia de Nietzsche “consiste
justamente nesse erro de interpretação, que identifica o essencial da [sua]
filosofia (…) com sua crítica da modernidade política.” Vale a pena
acompanhá-lo adiante, quando Giacóia afirma que
é certo que essa crítica existe, (...) mas não é menos certo que ela é apenas
uma faceta ou conseqüência da crítica da moral e da crítica da cultura
empreendidas por Nietzsche, uma espécie de sub-produto de sua tentativa de
‘refutação genealógica’ do Cristianismo e de transvaloração de todos os
valores superiores da cultura ocidental.
5
Como procuraremos mostrar ao longo do trabalho, alguns
comentadores da relação entre Nietzsche e a política projetam suas
perspectivas sobre o autor e acabam por produzir uma imagem
absolutamente divergente de suas reais intenções. Vejamos, por exemplo,
Luc Ferry, que alinha Nietzsche como um “neo-conservador.”
6
Para Mark
Warren, basta “uma olhada prima facie e se pode caracterizar a filosofia
política de Nietzsche como conservadorismo neoaristocrático.”
7
Keith
Ansell-Pearson, outro caro comentador deste intrincado Nietzsche filósofo
da política, afirma com certeza que, em assuntos políticos, a perspectiva de
Nietzsche “permanece profundamente metafísica (voluntarista e idealista).”
8
O mal-entendido ocorre quando se busca compreender a crítica da
modernidade política em Nietzsche a partir da filosofia política de matriz
contratualista, ou mesmo segundo os valores superiores do iluminismo,
cujos princípios e objetivos divergem do pensamento nietzscheano já em
seus pressupostos. No contexto da cultura ocidental, a política sobretudo
a modernidade política, republicana e jurídico-institucional é considerada
por Nietzsche como mais um dos sintomas da décadence, como “sintoma da
5
Giacóia. “Crítica da moral como política em Nietzsche”, p. 147.
6
Ferry, op. cit., p. 373-74.
7
Warren, op. cit., p. 211.
8
Ansell-Pearson, op. cit., p. 174.
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20
vida que declina.”
9
O sentido político em Nietzsche emerge conforme
tomamos seu pensamento como uma crítica da cultura, no seu sentido mais
amplo, quer dizer, como “soma dos conhecimentos”
10
, e não como uma
crítica no âmbito da filosofia política.
A crítica dos valores morais em Nietzsche visa a superação da
composição moral sob a qual o mundo viveu nos últimos dois mil e
quinhentos anos, incluindo-se aí o raio de valores dos quais somos
contemporâneos. Para ele, esta superação depende de dois fatores. Por um
lado, de uma transvaloração de todos os valores, ou seja, das possibilidades
de se reverter o aspecto décadent da cultura ocidental; e por outro, pelas
possibilidades de constituição de novas formas de vida, independentes do
sentido eminentemente domesticador
11
da cultura ocidental. É sob este
horizonte existencial que devemos situar o caráter político do pensamento
de Nietzsche. Como afirma Pierre Klossowski, Nietzsche empreende um
verdadeiro “combate contra a cultura”, que se exprime no seguintes termos:
O balanço que ele faz da cultura ocidental leva sempre à seguinte questão: o
que pode ainda ser feito, a partir dos nossos conhecimentos, nossas regras,
nossos costumes, nossos hábitos? Em que medida sou beneficiário, ou
vítima, ou joguete desses hábitos? A resposta à essas perguntas foi o seu
modo de viver e escrever, logo de pensar, sem contudo deixar de considerar
seus contemporâneos.
12
O pensamento de Nietzsche se torna fonte de reflexão sobre a política
não somente porque oferece um contra-discurso contra os preceitos e
práticas da modernidade política, mas sobretudo porque o “pano de fundo”
que o emoldura, delineia uma crítica de conjunto da produção humana, uma
crítica da cultura e dos valores morais do cristianismo e do humanismo
metafísico. O que está em jogo não é a possibilidade platônica de estruturar
um Estado tirânico, que tenha a hierarquia e o cultivo como projeto, tal
como se pode, equivocadamente, depreender da “grande política” e suas
alusões à guerra e à escravidão. Ao contrário, trata-se, não da obtenção de
preceitos morais a partir dos quais o estado de direito funcionaria mais
9
CI, III, 6.
10
Klossowski. Nietzsche e o círculo vicioso, p. 20.
11
GM, I, 11.
12
Klossowski, op. cit., p. 27.
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21
adequadamente, mas uma crítica aos pressupostos mesmos do estado a partir
de seu desempenho histórico. E é neste sentido essencialmente provocador
que devemos tomar o caráter político que há no pensamento de Nietzsche.
Ele, de fato, não traz em suas idéias uma boa palavra sobre a cultura, mas
uma “contra-cultura.”
13
Sua intenção é, em primeiro lugar, redefinir o papel
do homem no horizonte da cultura ocidental, incitando-o a se tornar
beneficiário, e não vítima de seus próprios valores, como ocorre nas
sociedades capitalistas, socialistas e religiosas.
Se quisermos encarar adequadamente o pensamento político de
Nietzsche, teremos que lidar com imagens e idéias absolutamente
reprováveis de um ponto de vista “humanitário”, entendendo-as como
componentes necessários na articulação de um contra-discurso face à
modernidade política, para a qual Nietzsche reserva os piores juízos. Mas,
antes de condená-las, antes de, mais uma vez, reservar a Nietzsche a
clausura do exotismo intelectual, negligenciando o poder provocador de seu
pensamento, é importante atentar para os problemas que ele deseja expor
através deste contra-discurso.
2.1.2
A atualidade de Nietzsche
Outra questão problemática, ainda no âmbito de uma preparação para
compreensão desse viés político da obra de Nietzsche. Simultaneamente à
preocupação de reinterpretar a história sob o viés do problema moral,
Nietzsche reserva boa parte da crítica ao desempenho político de seus
compatriotas o “homem de hoje”, de quem ele se diz “fatalmente
contemporâneo”.
14
Todavia, muitas das condições que vigoravam em sua
época e que, segundo ele, propiciavam a manutenção do tipo homem
rebaixado e mercantilizado, são amplamente encontradas em nossa
atualidade. A transvaloração de todos os valores da cultura ocidental passa
necessariamente pela superação da sociedade de consumo e conforto, do
trabalho aviltante, das formas de vida comprometidas com crenças
13
Deleuze. “Pensamento nômade.” In.: Nietzsche hoje, p. 57.
14
AC, 38.
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22
religiosas, ascéticas, estéticas. De modo que, a despeito dos seus mais de
cem anos, a crítica que Nietzsche realiza ainda nos diz respeito, pois
perduram as condições para rebaixamento e mediocrização do tipo homem.
Assim, que não se estranhe se neste trabalho saltarmos de uma época à
outra, ao sabor dos textos nietzscheanos. Nos utilizamos da mesma
liberdade interpretativa com que Nietzsche transpôs os problemas de seu
tempo para o amplo campo da cultura, da história e da moral.
Entretanto, cabe dizer que se as condições culturais condenadas por
Nietzsche estão todavia presentes nos dias de hoje, o mesmo não ocorre com
sua crítica. Se há mais de um século seu pensamento já não encontrava lugar
nem à esquerda nem à direita dos movimentos sociais e partidários, hoje,
com a derrocada e falência dos valores liberais e socialistas, podemos ver
com mais clareza que não tendo nada a compactuar com esses movimentos,
a obra de Nietzsche permanece como fonte quase inexplorada de reflexão
política. Embora em nada semelhante aos cânones prescritivos da filosofia
política de inspiração rousseauniana e hobbesiana, boa parte dos problemas
levantados por Nietzsche encerram, em última instância, um sentido político
profundo. Diante do ridículo espetáculo político-teológico que assistimos
via satélite, diante da falência da representação política alguém mais
duvida de sua ineficácia? diante das guerras e do “racismo
institucional”
15
que protege os países desenvolvidos, percebe-se que a
filosofia de Nietzsche, embora em um sentido muito particular, sempre fora
política, pois sempre buscou desarticular o discurso do poder, sempre contra
a mediocrização das formas de vida, sempre contra os valores de regulação
e contenção tão caros à sociedade contemporânea. Se há uma política em
Nietzsche, ela deve ser entendida não a partir das matrizes modernas da
filosofia política, ou seja, não a partir da necessidade de conter e domesticar
o homem através da imposição de regras de convívio, ao contrário: se o
homem é inescapavelmente um animal político pois troca, aprende e
exercita seu poder em relação com outros indivíduos o “político” na
filosofia de Nietzsche não deve ser entendido como a “pequena política”
15
Marable. L’amerique noire. In: Open Magazine, Westfield, New Jersey, 1992.
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23
republicana que vimos até então, mas como uma política para fins de cultivo
do tipo homem e da humanidade, uma “grande política.”
A filosofia de Nietzsche, nesta perspectiva, passa por um processo de
“esclarecimento”, após anos seguidos de equívoco e má utilização.
16
Temas
como a “grande politica” e a política alemã emergiram de seus textos graças
a uma perspectiva diferenciada nascida dos esforços de Georges Bataille e
Pierre Klossowski, que se prolonga no resgate histórico-filológico e
interpretativo de Giorgio Colli e Mazzino Montinari e desemboca, nos dias
de hoje, em que boa parte da filosofia política contemporânea se utiliza de
seu aporte crítico como ponto de partida.
17
Pois, ao articular uma crítica dos
pressupostos que fundamentam a cultura de nosso tempo lançando,
inclusive, um olhar sobre a standardização das estruturas econômicas,
políticas e sociais , a crítica em Nietzsche nos dispõe ferramentas de
compreensão tão problemáticas quanto indispensáveis. De acordo com a
noção de que a crítica dos valores morais se caracteriza, sobretudo, por uma
crítica da cultura e quaisquer assuntos que abordemos em Nietzsche, a
política inclusive, deve levá-la em conta, podemos afirmar que sua obra
adquire nos dias de hoje uma força de sugestão ainda maior, justamente por
perdurarem as condições de rebaixamento cultural do homem, acentuadas
pela projeção de um sentido eminentemente mercantil e econômico sobre os
valores que norteiam a vida na Terra.
16
Cf. p. ex., Pfaff. “Lombre portée de Leo Strauss.” In.: The International Herald Tribune.
Trad. do inglês por Marcel Charbonnier. Paris, 15 de maio, 2003. Neste artigo, narra-se a
relação entre Leo Strauss e o conservadorismo americano, citando Nietzsche como uma das
suas maiores influências. É desnecessário demonstrar que, se a “grande política” se orienta
para fins de cultivo do tipo homem e da humanidade, certamente não se pode pensar na
sociedade e no estado americano como exemplos.
17
Como exemplo, Robert Kurz com sua “crítica radical do valor” e Antonio Negri com a
“crise da representação”, que realizam uma crítica cultural e moral do ocidente, apontando,
por trás da fachada econômica progressista e do discurso caridoso, a cínica manutenção da
forma-estado, do aparelho jurídico e do valor-mercadoria. Kurz, Robert. Os últimos
combates. 4
a
. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1997 e Negri, Antonio. O Poder Constituinte
ensaio sobre as alternativas da modernidade, Rio de Janeiro, DP&A, 2002.
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24
2.2
Crítica da moral e décadence
2.2.1
O díptico moral/valores
Diante dos descaminhos da civilização ocidental, tão terríveis quanto
estimulantes, Nietzsche nos leva a considerar a seguinte questão: com o
desenvolvimento da sociedade industrial e ampliação da condições de
comunicação, cada vez mais, o mundo nos revela uma complexa teia de
significados e de intérpretes para estes significados. Muitos se arrogam o
direito à verdade, mas na história do pensamento poucos se preocuparam em
avaliar o valor do valor de verdade, isto é, se este valor propiciava uma
perspectiva produtiva e afirmadora da vida, ou se, ao contrário, promovia
um estado generalizado de crença, dependência e passividade; tampouco se
empenharam em identificar as motivações por trás da necessidade de se
afirmar o valor de verdade como valor nobre, bom e útil. Ora, não devemos
nos perguntar quem afirma e com que intenção afirma tais valores, inclusive
pesquisando em nós mesmos até que ponto participamos, com idéias e
atitudes, de valorações que não nos dizem respeito? Nós que vivemos num
país cujo rumo permanece vinculado à história do colonialismo, nós do
“terceiro mundo”, não deveríamos considerar a discrepância solidária entre
a tradição racional que se desenvolve a partir do século XVI e,
simultaneamente, o colonialismo impulsionado pelo avanço dos valores
mercantilistas sobre o mundo, às custas de expropriação e violência?
18
Mais
precisamente, não devemos pesquisar a fundo, buscando inclusive nas
formas de vida, isto é, procurando exteriormente aos desenvolvimentos
exclusivamente teóricos, os efeitos de um sistema de valores sobre a
conduta e os hábitos? Da mesma forma, se quisermos nos situar sob uma
perspectiva realmente crítica, não devemos também nos perguntar pelas
modulações que esses valores produzem sobre a vida, e que podem ser
18
Cf.: GC, 147: “O que os povos selvagens tomam primeiramente dos europeus?
Aguardente e cristianismo, os narcóticos europeus. E o que os leva mais rapidamente à
ruína? Os narcóticos europeus.”
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25
observadas na instituição da lei e do estado, mas também nas expressões
microscópicas de um corpo social?
Assim, problematizar o conteúdo político do pensamento nietzscheano
requer que se faça um questionamento radical dos pressupostos dos valores
morais que norteiam as práticas e idéias da vida contemporânea. Mas o
elemento catalisador que permite este salto, aparentemente arbitrário, da
época de Nietzsche para a nossa, é a perspectiva crítica. A análise do
conteúdo político em Nietzsche é inseparável de um exame da crítica, tal
como ele a concebeu. Deleuze afirma que “Nietzsche nunca escondeu que a
filosofia do sentido e dos valores deveria ser uma crítica.
19
E, de fato, é o
que podemos ler em Genealogia da Moral, quando Nietzsche afirma sua
nova exigência:
Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores
morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão
para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas
quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram.
20
Embora formulada em sentidos diversos, a crítica, como crítica dos
valores morais, sempre esteve presente na filosofia nietzscheana. Em Ecce
Homo, Nietzsche identifica o início de sua crítica à moral em Aurora
(1881). Entretanto, já no panfleto intitulado Sobre a verdade e a mentira no
sentido extra-moral (1873), percebemos a inquietação do autor acerca do
problema da insipidez do valor de verdade sobretudo a verdade de cunho
socrático-positivista e de seu relativo sucesso no horizonte da cultura
moderna. Adiante, em Humano, Demasiado Humano (1878), também
encontramos elementos de uma crítica à moral em diversos níveis: crítica da
religião, da filosofia, do comportamento, dos modos de vida, da política etc.
Ao mesmo tempo, antes mesmo de utilizar a palavra “genealogia”,
Nietzsche já se refere a uma espécie de “preparação” que permite ao
filósofo “o acesso a modos de pensar numerosos e contrários”, dando “ao
19
Deleuze, op. cit., p. 1.
20
GM, Prólogo, 6.
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26
espírito livre o perigoso privilégio de poder viver por experiência e oferecer-
se à aventura.”
21
Em outro momento, refere-se a
uma química das representações e sentimentos morais, religiosos e estéticos,
assim como de todas as emoções que experimentamos nas grandes e
pequenas relações da cultura e da sociedade.
22
Ainda em Humano, Demasiado Humano, Nietzsche alude a uma
“história da evolução dos organismos e dos conceitos”
23
, bem como a uma
“arte da dissecação e composição psicológica na vida social de todas as
classes”
24
. Não nos enganemos quanto ao caráter impreciso das definições
que sugerimos aqui sob a denominação crítica, quando Nietzsche ora chama
de ciência, ora de arte, este imenso trabalho de pesquisa e pesagem dos
valores morais in loco. A estrutura da crítica dos valores morais é
propositalmente inversa às estruturas da metafísica alemã; conserva uma
pluralidade de enfoques, desestabiliza o próprio solo argumentativo;
desequilibra as mediações possíveis, apela para as emoções. Nesta
perspectiva, Nietzsche participa do mesmo movimento materialista de
desarticulação da ideologia alemã, que Heinrich Heine e Karl Marx
empreenderam a partir de meados do século XIX, cujo legado aponta, entre
outras “verdades desagradáveis”, o profundo atraso alemão em relação aos
outros países da Europa como um reflexo, por um lado, de sua galopante
militarização
25
, e por outro, da insipidez delirante de sua metafísica.
Neste ponto, gostaríamos de contextualizar o modo como Nietzsche
trata da moral, bem como a relação ambígua que ela mantém com a palavra
“valores” em seu pensamento. No registro dos fenômenos, os valores são
crenças relativamente inabaláveis, constituídas e reificadas por obra de
motivações e condições esparsas e diversas, ficando sua análise à mercê ou
da simpatia dos grupos que compartilham esses mesmos valores, ou da
antipatia daqueles que não os compreendem. Os valores são elementos
multifacetados, intercorrelacionais e abrangentes, cujo produto total a
21
HDH, prólogo, 4.
22
Idem, 1.
23
Idem, ibidem, 10.
24
Idem, ibidem, 35.
25
Cf.: Elias, Os alemães A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e
XX, p. 123-24.
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27
“cultura” reflete uma série de padrões, que Nietzsche chama “moral”.
Por isso, pensar os “valores” é, automaticamente, pensar os “modos de
vida” que lhe são correlatos, pois o valor não é um artefato ideal, mas
expressão dos modos de vida. O valor não é um “plano mental”, nem um
conceito a partir do qual se deflagra a ação, mas um complexo expressivo
formado por atividades diversas, práticas e mentais: “ao falar de valores,
falamos sob a ótica da vida: a vida mesma nos força a estabelecer valores,
ela mesma valora através de nós, ao estabelecermos valores.”
26
Na medida em que a crítica tem por objeto comum a moral e,
portanto, tem por horizonte a capacidade intrínseca ao homem de produzir
modos de vida e valores correlatos que inclusive se refletem na
organização política e social , podemos dizer que o sentido
primordialmente político em Nietzsche se efetua na preocupação em pensar
as formas de vida e sua expressão positiva e verificável, mas também, e
sobretudo, as possibilidades de seu cultivo. Desse modo, a crítica da moral
que Nietzsche empreende não é exatamente uma crítica à moral em si
27
, mas
à sua perigosa aclimatação, especialmente em ambientes religiosos ou
democráticos, nos quais o sentimento de segurança, as conveniências e
facilidades impróprias para o cultivo do Übermensch são largamente
difundidos. A crítica dos valores morais se refere, em parte, à moral “no
sentido pejorativo”
28
moral de rebanho , mas também às possibilidades
de cultivo de outros hábitos e valores. Não se trata portanto da “destruição
da moral”, pois não está em poder do homem prescindir dela. A moral,
como corpo de valorações intrínseco às formas de vida dos grupamentos
humanos, é elemento constituinte e fundamental de suas relações. Trata-se
portanto da possibilidade de se cultivar outra moral, e portanto, outras
formas de vida, em direção a “uma elevação do homem.”
29
26
CI, V, 5.
27
Cf.: p. ex., HDH, 1 e GC, 114.
28
Leiter. Routledge Philosophy Guidebook to Nietzsche on Morality. London: Routledge,
2002, p. 74. “Nietzsche takes to be characteristic generally of "morality" in his pejorative
sense (...) that is, morality as the object of his critique.”
29
ABM, 257.
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28
2.2.2
O díptico niilismo/décadence
Nietzsche realiza a crítica dos valores morais analisando a “química
das representações e sentimentos morais, religiosos e estéticos” que
constituem as formas de vida e o contexto social que o rodeia. Qual o
diagnóstico gerado por esta crítica? Assim como o autor avista a vitória das
forças reativas no desenvolvimento histórico do pensamento, do
cristianismo e da cultura, também a política moderna é considerada como
mais uma instituição que rebaixa e domestica o tipo homem. Mas qual seria
então a forma, quer dizer, os elementos constitutivos desse processo de
rebaixamento? A forma do niilismo em Nietzsche niilismo entendido
como generalização cultural dos valores décadents se desenvolve a partir
da análise profunda da constituição da cultura judaico-cristã, bem como de
suas ramificações e transfigurações, como por exemplo as que ocorreram no
chamado “novo mundo” sob a forma de novas crenças e hábitos. Entretanto,
vejamos quando Nietzsche se refere à “rebelião escrava na moral”:
A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna
criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a
verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária
obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si
mesma, já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um
“não-eu” e este Não é seu ato criador. (…) sua ação é no fundo reação.
30
Percebe-se que a questão do niilismo implica numa análise do
problema do ressentimento. Porém, antes de prosseguirmos, chamamos
atenção para a forma com que Nietzsche expõe o problema, fonte e estímulo
de mal-entendidos e equívocos por parte de diversos intérpretes.
31
O
ressentimento é analisado por Nietzsche de forma ambivalente, ora como
algo relativo à esfera afetiva do ser humano, ora em relação aos valores da
modernidade política, concretamente materializados nas formas jurídicas e
30
GM, I, 10.
31
Ansell-Pearson, op. cit., p. 55: “O diagnóstico feito por Nietzsche do niilismo é
importante porque nos revela o contexto (uma crise de valores morais) em que hoje temos
de pensar sobre política e problemas dessa ordem.” O niilismo não pode ser considerado
somente como uma “crise”, isto é, um evento historicamente delimitado e passageiro, como
tentaremos mostrar adiante.
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29
no Estado. Podemos dizer que, para ele, o ressentimento faz parte do regime
afetivo do ser humano, de modo que, desde que habita o planeta, o homem
teria convivido com um impulso reativo que, diante da impotência para agir
contra o desprazer e os inimigos, fantasia uma reação imaginária. Na visão
de Nietzsche, os elementos políticos e culturais da vida moderna e
contemporânea, insistimos se revestem desse processo essencialmente
reativo, que, ao inserirem os indivíduos numa série de práticas e condições
irrefletidas, os tornam vítimas de seus próprios valores. Neste sentido, a
crítica adquire um duplo aspecto composto por uma perspectiva constitutiva
e ontológica, e outra, histórica e cultural, que às vezes dialogam, às vezes
entram em conflito como é o caso da citação acima, onde elementos
constitutivos e historicamente delimitados se misturam na análise. Se
quisermos acessar o rol de questões que envolve o problema do
ressentimento, bem como de sua repercussão sobre a questão do niilismo,
devemos atentar para esta ambivalência como mais um procedimento
utilizado por Nietzsche na construção de seu contra-discurso.
Levando em conta esta ambivalência, enumeremos três elementos
centrais que, entrelaçados, compõem a problemática do niilismo e da
décadence em Nietzsche, a saber: a diferenciação entre moral nobre e moral
escrava; a questão do ato criador e de seu agente, o tipo superior; e a
questão do ressentimento como gerador de valores.
Primeiramente, para Nietzsche, dois tipos de moral são possíveis: a
moral nobre e a moral escrava. Ele afirma que
Numa perambulação pelas muitas morais, as mais finas e as mais grosseiras,
que até agora dominaram e continuam dominando a terra, encontrei certos
traços que regularmente retornam juntos e ligados entre si: até que
finalmente se revelaram dois tipos básicos. E uma diferença fundamental
sobressaiu. Há uma moral dos senhores e uma moral de escravos; acrescento
de imediato que em todas as culturas superiores e mais misturadas aparecem
também tentativas de mediação entre as duas morais, e, com ainda maior
freqüência, confusão das mesmas e incompreensão mútua, por vezes
inclusive dura coexistência até mesmo num homem, no interior de uma só
alma.
32
32
ABM, 260
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30
A moral nobre para Nietzsche se define pela ação e criação, enquanto
a moral escrava é caracterizada pela inércia e pela conservação. Entretanto,
qualquer possibilidade de se pensar a questão moral em Nietzsche como um
jogo maniqueísta entre opostos bem delimitados, quer dizer, entre senhores
e escravos, entre ativo e reativo, se dissolve diante desta afirmação. A moral
nobre exprime aquilo que Deleuze chama de força ativa, enquanto a moral
escrava denota uma força reativa; mas não se trata de uma oposição, muito
menos de uma identificação da moral de senhores com o tipo superior,
como crê Ansell-Pearson.
33
Pois o que Nietzsche tem como escopo quando
se refere à moral não é a capacidade de escolha performativa entre uma
moral nobre e outra escrava como se se tratasse de apartar “classes
sociais” , mas à capacidade individual ou mesmo comunitária de mediar
as inflexões escravas e nobres que habitam tanto as almas quanto os
grupamentos humanos. A este respeito é importante lembrar que Nietzsche
não identifica o tipo nobre com a casta dominante a não ser quando
realiza suas análises pré-históricas, onde a proeminência política é
determinada pela proeminência espiritual.
34
Em Além do Bem e do Mal,
Nietzsche nos lembra que
é possível que hoje em dia se encontre no povo, no povo baixo,
especialmente camponeses, mais nobreza relativa de gosto e tato na
reverência do que nesse semimundo do espírito que lê jornais, os homens
cultos,
35
o que nos leva a crer que o diferencial não reside nos elementos
herdados ou reificados por um sistema de valores determinados, mas
justamente às margens desses mesmos valores, em contínua ligação com os
espaços onde a cultura ainda não foi cristalizada sob a forma do hábito e da
crença. Portanto, Nietzsche não propõe que se substitua uma humanidade
escrava por uma outra, nobre e bem lograda, mas que se possa estabelecer
formas de vida adequadas à realização dessa mediação, de modo a favorecer
a criação de uma cultura auto-suficiente. Neste ponto, retomemos a questão
do “combate contra a cultura”: o que Nietzsche pretende que se combata
33
Cf.: Ansell-Pearson, op. cit., p. 126.
34
GM, I, 6.
35
ABM, 263
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31
senão a impotência do indivíduo diante de valores com os quais ele pouco
tem em comum, a partir dos quais se torna apenas um joguete de seus
hábitos? O que diferencia, neste primeiro momento, a moral nobre da moral
escrava é o fato de que a moral nobre cria valores enquanto a moral escrava
“é essencialmente uma moral da utilidade”
36
que se nutre de valores
constituídos e compartilhados por todos. Assim, de um lado residem os
elementos que desestabilizam a comunidade, renovam os hábitos, trazem
novas formas de pensar e de conceber a vida e o mundo, sem que,
entretanto, seu agente esteja livre de determinadas inflexões da moral
escrava; de outro lado, o cultivo do hábito estável e cristalizado, das crenças
e da verdade estática, da convicção, entretanto sem que seu agente esteja
privado de inflexões nobres. Essa outra tensão, característica da crítica,
define em parte a perspectiva que Nietzsche adota acerca do problema
moral, pois para ele, idealizar um tipo absoluto imerso em valores nobres ou
escravos é algo tão inconcebível quanto abstrato.
Se o que distingue a moral nobre da moral escrava é a possibilidade de
ação e criação, então, no mesmo passo em que analisamos o problema
moral, devemos igualmente delimitar a questão do ato criador, que por sua
vez implica na existência do indivíduo apto a criar valores. O niilismo, neste
primeiro momento, nos coloca a seguinte questão: o que a comunidade
pretende afastar de seu convívio à medida em que se identifica com os
elementos e valores que conferem estabilidade e previsibilidade ao
cotidiano?
A origem de toda moral deve ser buscada nas pequenas conclusões
execráveis: “O que me prejudica é algo ruim (prejudicial em si); o que me
ajuda é algo bom (benéfico e vantajoso em si); o que me prejudica uma vez
ou algumas vezes é o elemento inimigo em si e por si; o que me ajuda uma
vez ou algumas vezes é o elemento amigo em si e por si.”
37
Mais adiante:
Na base de toda crença está a sensação do agradável ou do doloroso em
referência ao sujeito que sente. (…) A nós, seres orgânicos, nada interessa
36
ABM, 260.
37
A, II, 102.
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32
originalmente numa coisa, exceto sua relação conosco no tocante ao prazer e
à dor.
38
E ainda:
Seja hedonismo, seja pessimismo, utilitarismo ou eudemonismo: todos esses
modos de pensar que medem o valor das coisas conforme o prazer e a dor,
isto é, conforme estados concomitantes e dados secundários, são
ingenuidades e filosofias de fachada, que todo aquele que for cônscio de suas
energias criadoras e de uma consciência de artista não deixará de olhar com
derrisão, e também compaixão. Compaixão por vocês! (…) Vocês querem,
se possível e não há mais louco “possível” abolir o sofrimento; e
quanto a nós? parece mesmo que não nós o queremos ainda mais, maior e
pior do que jamais foi! Bem-estar, tal como vocês o entendem isso não é
um objetivo, isso nos parece um fim! Um estado que em breve torna o
homem ridículo e desprezível que faz desejar seu ocaso! A disciplina do
sofrer, do grande sofrer não sabem vocês que até agora foi essa disciplina
que criou toda excelência humana?
39
Toda moral escrava, inclusive as inflexões “escravas” dentro de um
grupamento humano ou de um indivíduo, se ressentem do desprazer e da dor
que a imprevisibilidade e a insegurança eventualmente podem trazer. Para
Nietzsche, “ouvir algo novo é difícil e penoso para o ouvido, [pois] ouvimos
mal a música estranha.”
40
Se a comunidade prima pela constituição
valorativa comum, a partir da qual se reduzem ao máximo os atos e gestos
que geram imprevisibilidade de comportamentos e idéias, excluindo
peremptoriamente o desprazer e a dor, os valores comuns emergem como
signo ilusório, cristalizado e estático da cultura. Como forma de afastar os
perigos, os indivíduos ratificam o estado, as leis, e todo o aparato de
contenção e regulação da comunidade como dispositivos úteis na garantia
de uma distância segura das sensações desagradáveis, embora, em
contrapartida, esta garantia torne comuns os desejos e projetos pessoais e,
portanto, nivele a cultura. O temor, como “pai da moral”
41
, instaura uma
espécie de recusa a todo elemento desestabilizador.
O “combate contra a cultura”, portanto, não deve figurar como um
argumento contra a cultura em si, mas pela mudança de sentido da cultura,
38
HDH, 18.
39
ABM, 225.
40
Idem, 192.
41
Idem, 201.
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33
tal como ela se desenvolveu até então. A cultura do ponto de vista socrático
e judaico-cristão que, segundo a complexa hipótese de Nietzsche,
transmutou-se no que conhecemos como modernidade política
42
, opera
como “instrumento de domesticação”, cuja função é “amestrar o animal de
rapina ‘homem’, reduzi-lo a um animal manso e civilizado, doméstico
43
,
para fins de coexistência. Trata-se portanto de reverter esse processo em
direção a uma cultura da auto-suficiência e da força ativa, que considera a
dor e o desprazer e também o “desconhecido”, o “estrangeiro” como
elementos fundamentais de crescimento e auto-conhecimento. O contra-
discurso de Nietzsche traz o combate contra a supressão do tipo singular,
cujos atos e idéias não se guiam pelos hábitos da maioria, às vezes ao preço
de sua própria vida. A rebelião escrava na moral é uma “revolução” contra
as exceções, uma forma de expurgar todos os procedimentos e idéias que
injetam estranheza e desconfiança no corpo social. Baseado nestas idéias,
Nietzsche afirma que a moral do homem moderno é uma “moral de
rebanho”, pois inscrito nela, o homem busca, tal como no cristianismo,
instituir uma igualdade de condições baseada em imperativos abstratos, que,
entretanto, rebaixam e nivelam a atividade dos indivíduos. Basta atentarmos
para a generalização dos valores mercantilistas, que operam sobre todas as
camadas da vida contemporânea incluindo aí as obrigações do trabalho,
do capital e dos direitos e deveres para medirmos o alcance da crítica
nietzscheana: ela diz respeito à sua época, mas também à nossa.
Não se quer dizer com isso, no entanto, que a comunidade se defina
somente pelo partilhamento de valores comuns. Isto porque em algum ponto
determinado do tempo de vida de uma comunidade, os valores oficiais
também foram considerados estranhos. No momento seguinte foram
adequados a finalidades diversas, e ao fim de um processo indeterminado,
vieram à tona e se cristalizaram em convicções. A convicção é o elemento
que petrifica os valores, tornando-os absolutamente aceitáveis ou
recusáveis: “É das paixões que brotam as opiniões; a inércia do espírito as
faz enrijecerem na forma de convicções.”
44
A crítica da moral em Nietzsche,
42
Idem, 202.
43
GM, I, 11.
44
HDH, 637.
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34
como escrevemos anteriormente, não é exatamente uma crítica à moral em
si, mas à moral de rebanho que se afirma sob a forma de convicção, sob a
forma de uma inércia do espírito. Entretanto, esta inércia também possui
limitações, pois a própria comunidade, ainda que inconscientemente, trata
de modificar seus próprios valores, ora sob a forma de uma corroboração
conjunta, ora sob a forma do ato criador, inoculado pelo “tipo superior”.
Neste sentido, em Nietzsche, a criação de valores não possui somente o
caráter de uma ação futura. E mesmo o tipo superior não se refere somente
ao Übermensch. Ao contrário, para Nietzsche, em toda comunidade, desde
sempre, os indivíduos e suas práticas gregárias conviveram com o “tipo
superior”, o “caso erétil”
45
, o indivíduo que espalha na comunidade o germe
da desestabilização. Como ele afirma,
existe um êxito contínuo de casos isolados em pontos distintos da terra, e no
meio das mais diversas civilizações, com os quais se representa efetivamente
um tipo superior, alguma coisa que, em relação à humanidade inteira,
constitui uma espécie de super-homem. Tais casos de grande êxito foram
sempre possíveis, e sê-lo-ão talvez em todos os tempos. E até raças inteiras,
tribos e povos podem, em circunstâncias particulares, representar semelhante
homem de sorte.
46
Entretanto, Nietzsche observa, nem sempre o tipo superior edifica
uma moral independente, uma moral de cultivo da plenitude fisiológica e
intelectual. Os indivíduos que encarnaram o tipo superior no cristianismo e
na modernidade tinham por objetivo abolir o sofrimento, atenuando todos os
elementos que poderiam estimular outros tipos de moral. Sade e Espinosa,
mas também Sócrates e Cristo:
Este tipo de mais elevado valor existiu já com bastante freqüência; mas
como um acaso, como uma exceção, nunca como querido. Pelo contrário, foi
precisamente o mais temido; até agora tem sido quase o espantoso e, por
este meio, o tipo contrário resultou querido, educado, conseguido: a besta
doméstica, a besta do rebento, a enferma besta humana o cristão…
47
Precisamente nesse ponto reside a questão do ressentimento. Sendo a
criação de valores algo incontingente, a que toda comunidade está exposta, e
45
Klossowski. op. cit., p. 27.
46
AC, 4.
47
Idem, 3.
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35
o tipo superior, verificável em qualquer grupamento humano, como
localizar a problemática do niilismo se Nietzsche ambiguamente ora critica,
ora promove a criação de valores? Para Nietzsche, a desgraça da civilização
ocidental ocorre quando o teólogo representa o tipo superior eleito pela
comunidade. O teólogo, o sacerdote e também todas as suas transmutações
caracteristicamente modernas, incluindo aí o filósofo:
É necessário dizer a quem consideramos como nosso contraste: aos
teólogos e a todo aquele que tem sangue de teólogo nas veias a toda a
nossa filosofia… (…) Enquanto o sacerdote passar por uma classe
superior, o sacerdote, esse caluniador, esse envenenador da vida por ofício,
não há resposta à pergunta: o que é a verdade? A verdade voltou-se de
pernas para o ar, se o consagrado advogado do nada e da negação passa por
ser o representante da verdade...
48
Para Nietzsche, os tipos superiores que vingaram no horizonte
constitutivo da civilização ocidental, os teólogos e sacerdotes, não souberam
dar um sentido positivo à vida, ao contrário: se há uma forma de se conceber
a influência cristã no mundo, esta se dá a partir da negação da existência,
quer dizer, da idéia de uma existência outra, compensatória. Nestas
condições, “a moral não é já a expressão das condições de vida e
desenvolvimento de um povo, não é já seu mais singelo instinto vital, senão
que se tornou abstrata, contrária à vida.”
49
A religião cristã, seus artífices e
seguidores, se caracterizam pelo “instinto teológico” que substitui a
experimentação por uma cultura da regulação e contenção. Nietzsche alerta
para o perigo do ensinamento teológico para a vida, na medida em que
resulta numa submissão a preceitos abstratos, que inibem o
desenvolvimento de formas de vida inexploradas e arruinam o corpo e a
capacidade de atividade e agenciamento. Desta forma, duas “realidades
fisiológicas” podem ser observadas na constituição da moral sacerdotal.
Primeiro, um “ódio instintivo contra a realidade”; depois, uma “exclusão
instintiva de toda repugnância, de toda a inimizade de todas as fronteiras e
de todas as distâncias no sentimento.”
50
Ódio à realidade tal como ela se
apresenta, e conseguinte fabulação acerca de outra realidade; exclusão de
48
Idem, 8.
49
Idem, 25.
50
Idem, 30.
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36
tudo aquilo que é fonte de dor, temor, e sentimentos desprazerosos; por fim,
voz ativa para sentimentos persecutórios, delirantes e para a rigorosa
economia da culpa.
Ora, transpondo essa questão para os últimos cento e cinqüenta anos,
tomemos os valores da modernidade política, que, para Nietzsche,
reproduzem um mundo fantasmagórico: a “delirante estupidez e ruidosa
garrulice da burguesia democrática”
51
, mas também o positivismo
52
, o
“espírito objetivo”
53
, o nivelamento do homem moderno
54
, o “sentido
histórico”
55
, o “esquartejamento” da Europa em estados nacionais
56
, o papel
regulador da ciência
57
são elementos que revelam o sentido niilista que toma
a Europa. Mas o que Nietzsche tem em mente quando nos diz que os valores
do homem europeu “acusam a vida”? E o que levaria o homem a uma tal
concepção de si e da vida?
Não há sentido em fabular acerca de um “outro mundo”, a menos que um
instinto de calúnia, apequenamento e suspeição da vida seja poderoso em
nós: nesse caso, vingamo-nos da vida com a fantasmagoria de uma vida
“outra”, “melhor.” (…) Dividir o mundo em um “verdadeiro” e um
“aparente”, seja à maneira do cristianismo, seja à maneira de um Kant (um
cristão insidioso, afinal de contas), é apenas uma sugestão da décadence
um sintoma da vida que declina.
58
Do ponto de vista do problema do valor da vida, a décadence se
configura no plano dos valores compartilhados e da conduta individual
como um sentimento generalizado de recusa à totalidade da existência o
que, como analisaremos no capítulo dois, constitui uma recusa à existência
mesma. Mas, para Nietzsche, a “grande libertação” do jugo sacerdotal em
todas as suas manifestações, é a compreensão ontológica de que “não existe
nada fora do todo”.
59
Esta cisão imaginária, que resulta em má compreensão
da realidade, une religião e política, sobretudo porque as bases filosóficas e
práticas que regem o estado de direito em favor de maior grau de
51
ABM, 254.
52
Idem, cf., p. ex., 10 e 204.
53
Idem, 208.
54
Idem, 259.
55
Idem, 224.
56
Idem, 208.
57
Idem, 24.
58
CI, III, 6.
59
Idem, VI, 8.
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37
sociabilidade progresso, representação, cidadania, soberania, igualdade,
direitos e deveres se equiparam ao cristianismo com suas mistificações e
promessas de um “outro mundo”, falseando as reais condições sob as quais
se desenvolve a vida. Neste contexto
as propriedades que servem para aliviar a existência dos que sofrem são
postas em relevo e inundadas de luz: a compaixão, a mão solícita e afável, o
coração cálido, a paciência, a diligência, a humildade, a amabilidade recebe
todas as honras pois são as propriedades mais úteis no caso, e
praticamente os únicos meios de suportar a pressão da existência. A moral
dos escravos é essencialmente uma moral de utilidade.
60
Para Nietzsche, a décadence é “sintoma de vida que declina”
justamente por conta dessa má compreensão do corpo e da realidade. No
plano da conduta individual, a décadence se exprime quando se pode
observar uma “perda dos instintos”, quando o homem passa a “preferir
aquilo que lhe é prejudicial”
61
, quando não exercita seu “instinto de
crescimento”; ou seja, quando, por uma má compreensão do corpo em seus
aspectos fisiológicos e afetivos, o indivíduo passa a interpretar moralmente
os sinais de sofrimento e desgosto, introduzindo elementos compensatórios
em sua visão de mundo, como no caso das religiões, por exemplo. Já no
plano gregário, a décadence se exprime no “egoísmo dos povos”
62
, na
domesticação interna em favor de maior sociabilidade, e, portanto, em favor
de um nivelamento a fortiori, que, segundo Nietzsche, se configura como
estímulo à mediocrização geral. Em ambas as esferas, a má influência dos
sacerdotes atravessou de um lado a outro as formas de vida que constituem
nossa época.
Assim, não se pode dizer que a eliminação e superação da décadence
seja o principal objetivo da crítica que Nietzsche realiza. A décadence se
configura no seu pensamento como uma inflexão inevitável, inerente a todo
e qualquer desenvolvimento humano, para o qual o tipo homem deveria se
preparar, com o qual poderia aprender afinal, experiência quer dizer “má
experiência.”
63
Ela não se configura somente como movimento
60
ABM, 260.
61
AC, I, 6.
62
Idem, Introdução.
63
ABM, 204.
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38
historicamente delimitado, embora muitos aspectos do pensamento
nietzscheano remetam no mais das vezes à situação européia; ao contrário, a
décadence pode ser verificada nos mais diversos momentos da história. Ela
não é um sintoma do niilismo europeu sem que seja concebida também
como retomada de um movimento próprio a qualquer época, a qualquer
local onde se tenham os grupamentos humanos como exemplo.
64
Ou seja, a
décadence, como antipatia em relação à existência, é também uma
expressão do niilismo e da “doença da vontade”, e sua história perpassa
todas os momentos protagonizados pelos homens. A expressão da
décadence na constituição moral contemporânea a religião, a
modernidade política, a ciência como fim em si mesma e seus tipos o
sacerdote, o filósofo
65
, são apenas indícios do problema contra os quais
Nietzsche dirigirá sua crítica. Mas o problema maior, repito, não se encontra
formulado na “superação” da décadence. Vejamos porque.
Justificando sua “neutralidade (…) e ausência de partidarismo em
relação ao problema global da vida”
66
, Nietzsche afirmava ser um
“experimentado em questões de décadence”
67
, que “para os sinais de
ascensão e declínio (…) tem um sentido mais fino”, pois “conhece ambos, é
ambos.”
68
Não cabe ao “filósofo do futuro” refutar as condições para uma
situação décadent, mas preparar o espírito para a perspectiva trágica, dispor
o estômago para os inconvenientes da vida, sem necessariamente adotar
uma moral atenuante, religiosa, militar ou institucional. No horizonte do
problema da existência, a décadence não deve ser simplesmente superada,
porque as condições para sua propagação multiforme, ou seja, das práticas
que rebaixam, mecanizam e mercantilizam o tipo homem, são as mesmas
com as quais contará o “filósofo do futuro” em seu projeto de
transvaloração de todos os valores.
As mesmas novas condições em que se produzirá, em termos gerais, um
nivelamento e mediocrização do homem um homem animal de rebanho,
útil, laborioso, variamente versátil e apto , são sumamente adequadas a
64
Cf.: CI, L II, 11 e III, 6.
65
O.P.C. (XIV), p. 185; KSA 15 [20].
66
EH, II, 1.
67
Idem.
68
Idem.
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39
originar homens de exceção, da mais perigosa e atraente qualidade. (…)
enquanto a democratização da Europa resulta, portanto, na criação de um
tipo preparado para a escravidão no sentido mais sutil: o homem forte, caso
singular e de exceção, terá de ser mais forte e mais rico do que
possivelmente jamais foi
69
Nesse sentido, a crítica visa a um destinatário, aquele tipo “mais forte
e mais rico” a que nos referimos acima, e que não constitui exatamente um
arquétipo, mas um indivíduo intrínseco a todo e qualquer desenvolvimento
humano. Este homem existe, já existiu, e sempre existirá, embora para
Nietzsche seja extremamente difícil encontrá-lo nos dias de hoje.
70
Neste último aforismo, Nietzsche não nos fala “do ponto de vista da
eternidade”, mas a partir da apreciação longa e dolorosa do processo de
formação dos Estados Nacionais, da mercantilização gradual da vida e da
promiscuidade das relações entre política e religião. Como se comportará
este “tipo mais forte” diante da situação histórica dos últimos cem anos, em
que se observa o entrelace das diversas culturas e morais? Num certo
sentido, a característica fundamental deste “tipo mais forte” é a capacidade
de digerir os sentimentos de crescimento e declínio com naturalidade,
reverter a “tábua de valores” vigentes, realizar algum movimento superior
através de atitudes cotidianas, sem lamentar as condições ontológicas e
políticas dadas. Neste caso, a situação individual, subjetiva-afetiva, que, no
entanto, se relaciona com as formas de vida conjuntas, é fundamental e
determinante na constituição de uma comunidade qualquer, sobretudo nos
aspectos que concernem à organização política. O desenvolvimento de um
pathos de distância e cultivo de uma afetividade individual diferenciada não
são vistos por Nietzsche como um perigo à estabilidade da comunidade. Ao
contrário, é somente a partir do cultivo dos “rebentos mais nobres, delicados
e espirituais”
71
que se pode inocular um processo de alteração e
decomposição das formas de vida derivadas do sistema de valores cristãos e
mercantilistas, em direção a uma vida mais potente e autônoma. Mas não se
trata de uma apologia do individualismo. Nietzsche denuncia o caráter
religioso e abstrato da representação política, que suprime e interdita o
69
ABM, 242.
70
Idem, 260.
71
HDH, 481.
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40
cultivo individual; mas, obviamente, este cultivo não pode remeter-se
simplesmente a uma adequação à segurança da vida burguesa, através do
emprego, da família e da administração dos bens. A dureza indeterminada
desta tarefa se afigura como uma das dificuldades intransponíveis do
pensamento nietzscheano, inconciliável com as precauções estimuladas pela
experiência do estado moderno. Na medida em que o tipo superior não
deveria nem ater-se a uma valoração simplesmente subjetiva, nem a uma
valoração comunitária, cabe perguntar em que sentido deve dirigir-se sua
ação. Esta imprevisibilidade da ação, esta indeterminação, marca o sentido
contra-cultural do “tipo superior” nietzscheano. Em nome desta
complexidade, desta abertura que é inerente ao caráter prospectivo da
filosofia de Nietzsche, procuramos manter o sentido da ação do tipo
superior em aberto, não como uma quimera, mas como algo que, de fato,
reside no campo da mesma imprevisibilidade que Nietzsche indica como o
temor primário das sociedades democráticas. Nietzsche aceita a
imprevisibilidade deste “tipo superior” pois reconhece que não está em seu
poder determinar ou prescrever sua ação: afinal, ela é essencialmente
criadora…
A análise do niilismo, tal como Nietzsche o percebe, revela a “doença
da vontade”
72
incrustada nos hábitos e valores europeus. Para ele, essa
doença foi disseminada pelo socratismo e pelo cristianismo, mas atravessou
todos os setores da vida. A moral escrava ganha espaço através do trabalho
aviltante, das limitações econômicas e do desespero midiático e religioso,
que permanecem como estímulo à conformação e à regulação do corpo
social. Se o niilismo cristão se caracterizava por um ódio à realidade e à
vida, este niilismo contemporâneo denunciado por Nietzsche se reveste de
aparente assepsia moral, submissão ao valor-mercadoria e à forma-estado,
informação espetacular e cultivo da indiferença. Somente um processo de
reativação e desbloqueio de potências recalcadas pela virulência dos valores
mercantilistas poderá iniciar um processo de reversão deste niilismo
contemporâneo. Superá-lo depende, pois, de uma atividade que não é
72
ABM, 208.
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41
exclusivamente política ou econômica, nem somente relativa a um cultivo
individual, mas estritamente vinculada à ação em todos esses âmbitos.
2.3
Uma outra “sensibilidade moral”
2.3.1
Afeto e experimentação
O excesso de cautela acerca dos sentidos políticos da obra de
Nietzsche ocorre porque ela recusa frontalmente os valores compartilhados
de alto a baixo na escala da política institucional e dos valores iluministas.
Mas esta recusa agride não somente os pressupostos teóricos dessas forças
políticas: Nietzsche não se dirige a uma “crença”, mas a cada leitor. O que
ele deseja é chamar atenção para o elemento latente na “sensibilidade
moral”
73
de cada leitor, fustigando, mais especificamente, nosso gosto
moderno, pois
a mudança do gosto geral é mais importante que a das opiniões. Estas, com
as provas, refutações e toda a mascarada intelectual, são apenas sintomas do
gosto que mudou, e certamente não aquilo pelo qual freqüentemente são
tomadas, as causas dessa mudança. Como se transforma o gosto geral?
Quando indivíduos, poderosos e influentes, exprimem o seu hoc est
ridiculum [isto é ridículo, isto é absurdo], ou seja, o juízo do seu gosto e
desgosto, e o fazem valer tiranicamente: com isso impõem a muitos uma
obrigação, que gradualmente se torna o hábito de outros mais, e, por fim,
uma necessidade de todos.
74
A valorização da commune, da res publica, da “opinião pública”, quer
dizer, da submissão à perspectiva gregária, atestam a uniformização do
gosto moderno. Se aceitamos passivamente a imposição de certas formas de
vida, isto ocorre porque nossos afetos, que determinam nossos modos de
vida, coadunam-se com esta imposição. Nossos valores dependem em boa
parte do nosso gosto, embora se prefira comumente pensar somente acerca
das “condições de possibilidade” epistemológicas, metafísicas, sociais e
73
ABM, 186.
74
GC, I, 39.
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42
econômicas. Mas, como frisamos acima, os valores denotam formas de vida,
pois não são elementos isolados da esfera existencial. Por isso, Nietzsche
afirma que
não se pode extinguir da alma de um homem o que seus ancestrais fizeram
com o maior prazer e a maior constância (…) Não é possível que um homem
não tenha no corpo as características e predileções de seus pais e ancestrais:
mesmo que as evidências afirmem o contrário.
75
Entretanto, Nietzsche afirma simultaneamente que “não temos o
direito de atuar isoladamente em nada: não podemos errar isolados, nem
isolados encontrar a verdade.”
76
Não podemos dizer, portanto, que seu
pensamento traduza tão somente um individualismo, pois o cultivo
individual, no mais das vezes, estimula na comunidade tanto a rejeição
quanto a propensão às alterações no código vigente, e esta disposição parte
das alterações na sua própria constituição afetiva. Por um lado, a
possibilidade de cultivo individual, desprendendo-se dos valores
introjetados durante a formação pessoal, em direção a uma independência
relativa; por outro lado, a possibilidade deste comportamento se espalhar, se
expandir, ainda que de forma truncada e nem sempre positiva.
Na perspectiva de Nietzsche, o que constitui a moralidade niilista e
décadent, ou seja, a moralidade que se abstém de cultivar outras formas de
vida em favor da obediência é, não a razão moral, técnica ou institucional,
mas o “sentimento forte.” Diz Nietzsche:
(…) os filósofos transportam o conceito de “interior e exterior” para a
essência e aparência do mundo; acham que com sentimentos profundos
chegamos ao profundo interior, aproximamo-nos do coração da natureza.
Mas esses sentimentos são profundos apenas na medida em que com eles, de
modo quase imperceptível, se excitam regularmente determinados grupos
complexos de pensamentos, que chamamos de profundos; um sentimento é
profundo porque consideramos profundo o pensamento que o acompanha.
Mas o pensamento profundo pode estar muito longe da verdade, como,
por exemplo, todo pensamento metafísico; se retiramos do sentimento
profundo os elementos intelectuais a ele misturados, resta o sentimento forte,
e este não é capaz de garantir, para o conhecimento, nada além de si
mesmo
77
75
ABM, 264.
76
GM, Prólogo, 2.
77
HDH, 15. Os grifos são meus (N. do A.).
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43
À medida que ignoramos nossa constituição afetiva, desprendemos
nossas ações e valores do sentimento que nos impulsiona a agir de
determinada maneira. Geralmente, creditamos nossas ações ao poder de
decisão do livre-arbítrio, louvando sua graça quando agimos
adequadamente, lamentando sua falta quando nos arrependemos. Entretanto,
o horizonte existencial visado por Nietzsche tem na compreensão e controle
dos afetos seu elemento primordial: as dificuldades morais se dão na medida
em que compreendemos mal o corpo e interpretamos seus sinais de prazer e
desprazer de forma inadequada. Superar o ”sentimento forte”, adestrá-lo,
saber interpretá-lo num processo constante de mediação, são elementos de
uma cultura superior. Neste sentido, são muitas as dificuldades que nossa
“sensibilidade moral” enfrenta quando nos deparamos com o sentido
político da filosofia de Nietzsche, e isto afirmamos com base não somente
nas discussões teóricas acerca de sua filosofia, mas sobretudo a partir dos
seus pressupostos existenciais. Em primeiro lugar, uma política em
Nietzsche não prevê a segurança, mas elogia o perigo e a má experiência
como fonte de sabedoria. Se o caráter prescritivo da filosofia política de
inspiração rousseauniana e hobbesiana trata de circunscrever o
comportamento, de modo a delinear uma conduta mínima, é porque há a
necessidade objetiva dos governantes de promoverem uma política de
“estabilidade”, contra a qual Nietzsche se voltará, por ver nela um mal para
a educação dos espíritos fortes e afirmativos. Em segundo lugar, a política
em Nietzsche não demoniza o desconhecido e o estrangeiro, ao contrário: se
há a possibilidade de isolarmos aspectos políticos do pensamento
nietzscheano, este pensamento é fundamentalmente supra-nacional
78
,
cosmopolita, “europeu”, pois, como ele escreve “eu trago a guerra, mas não
entre povos.”
79
Em terceiro lugar, uma política em Nietzsche não se pautaria
em nenhuma espécie de “contrato”
80
, nenhuma sorte de ilusão que converta
as múltiplas condições da cultura a uma obrigação moral unívoca, para fins
de controle e supressão da violência. Na medida em que, na crítica
nietzscheana, somente através do cultivo individual se pode chegar a outras
78
GC, 377.
79
O.P.C. (XIV), p. 377; KSA, 25 [1].
80
GM, II, 17.
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44
formas de vida o que constitui uma objeção à representação política
então esta formulação depende sumamente de uma grande capacidade
individual de experimentação. Mas a capacidade de experimentação de um
indivíduo passa entretanto por sua afetividade, não por seu intelecto ou sua
“razão.” Nietzsche afirma:
o homem não é igualmente moral em todas as horas, isso é sabido: julgando
sua moralidade segundo a capacidade de grandes decisões de sacrifício e
abnegação, então é no afeto que ele é mais moral (…)
81
Mais adiante, ele diz: “o afeto é o inimigo mais difícil de vencer.”
Entretanto, na medida em que a felicidade, para ele, depende do sentimento
com que se vence uma resistência
82
, podemos dizer que as condições de
superação do desprazer, da dor, do contra-gosto que nos toma diante de toda
oposição, toda forma de vida estrangeira e desconhecida, são as mesmas
condições de possibilidade do tipo “mais forte.” Por este motivo, o aspecto
político que se encontra no cerne do pensamento nietzscheano só pode ser
situado na medida em que nós, leitores, produzimos em nós mesmos, uma
“outra sensibilidade”, divergente da sensibilidade moral republicana. Por
este motivo ele é tão categórico, quando, na introdução de O Anticristo
afirma:
as condições sob as quais alguém me compreende, fazem com que esse
alguém me compreenda necessariamente. Cumpre ser íntegro até à dureza
nas coisas de espírito para poder suportar a minha seriedade e a minha
paixão; cumpre estar habituado a viver nas montanhas, a ver abaixo de si o
mesquinho charltanismo atual da política e do egoísmo dos povos.
83
O texto nietzscheano, impreciso, difícil, considerado por alguns
intérpretes “mais literário que filosófico”
84
, na verdade opera sobre a nossos
afetos, nossa sensibilidade moral e não tão somente sobre o nosso discurso,
nossa “razão”. A crítica está endereçada não à nossa consciência, não à
nossa razão, mas à nossa sensibilidade, isto é, ao raio de ação de nossas
vidas, de acordo com os valores e objetos que amamos ou odiamos, com os
81
HDH, 138.
82
AC, I, 2.
83
Idem, Intodução.
84
Vattimo. Introduction à Nietzsche. Paris: Éditions Universitaries, 1988, p. 13.
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quais afirmamos aquilo que somos.
85
As possíveis contradições de seu estilo
e seu pensamento, ressaltadas por muitos de seus comentadores
86
, não são
construídas como um discurso racional e sistemático acerca da vida, mas
nos estimulam, através de provocações, a pesquisar essa sensibilidade
diferenciada. A crítica nietzscheana não tem por objetivo “ensinar a pensar”,
não prescreve nenhuma fórmula, pelo contrário: nesta crítica “não se trata
de justificar, mas sim de sentir de outro modo: uma outra sensibilidade.”
87
O que Nietzsche pretende estimular em nossa compreensão das coisas,
não é a confirmação do desejo impessoal por paz e segurança; não é a
simples aceitação da impotência do sistema representativo; não é a vida
como hedonismo digital, busca por celebridade, segurança financeira, ou o
simples desafogo na religião e para-religiões: ao contrário, a crítica é uma
exortação ao cultivo de outras formas de vida, que possam superar as
dificuldades e perigos que a formação e o peso normativo da cultura opõe ao
indivíduo. Para isso, Nietzsche torna “insustentável a situação de seus
contemporâneos.”
88
Na medida em que a crítica está endereçada aos modos
de vida e aos valores constitutivos dos diversos grupamentos humanos, se
direciona, portanto, não somente a grupos específicos, nem exclusivamente
a intelectuais, mas sobretudo ao leitor anônimo, que tenha ouvidos para o
caráter plural da crítica. Esta intenção se confirma na pluralidade de
enfoques e no interesse generalizado que sua filosofia suscita ainda nos dias
de hoje.
Pensar a política em Nietzsche em toda sua dimensão sugestiva
requer, portanto, que o próprio leitor opere o deslocamento de sua percepção
“moral”, vinculada aos valores do pensamento político moderno, e se
projete a uma dimensão verdadeiramente crítica desses mesmos valores.
Instaurar uma “outra sensibilidade” significa inclinar-se ao movimento
preliminar de desprendimento dos valores que marcam nossa formação, e,
por outro lado, buscar um crescimento na ordem mesma dos valores.
Realizar uma crítica da moral, significa, portanto, questionar todos os
valores que embotam a independência e a capacidade de criação e mando:
85
Cf.: HDH, 58 e 138.
86
Vattimo, op. cit, p. 12.
87
Deleuze, op. cit., p. 77.
88
Camus, Albert. O Homem revoltado, p. 93.
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“Não se prender a uma pessoa, (…) a uma pátria (…), a uma compaixão,
(…) a uma ciência”, nem mesmo ao nosso “desprendimento” e às nossas
virtudes.
89
Não se prender a um valor específico significa manter distância e
visão panorâmica dos valores cristalizados, das bem acabadas oposições de
valores, dos valores “superiores à vida.” Os conceitos de “verdade” e “livre-
arbítrio” são insuficientes e prejudiciais não somente por conta dos
exemplos cotidianos que os desmentem, mas, sobretudo, porque seus
significados amenizam o impacto e a expressão da ação individual. Para
Nietzsche, o princípio de realidade e identidade, as estruturas
representativas, o direito penal, as religiões e superstições de toda sorte
geram formas de vida dependentes. “Não se prender” significa mediar as
relações entre o espírito e os fardos, e salvaguardar a experiência dos modos
de vida que tais valores geram. Salvaguardar o “espírito” entenda-se:
espírito como capacidade de dissimulação e criação
90
corresponde a
mantê-lo numa perspectiva sempre propensa a compreender o mundo a
partir das nuances constitutivas dos elementos mentais e materiais que o
compõem, mas também a partir de uma ação, contrária em relação à moral
vigente.
2.3.2
Contra Kant
Desta forma, não podemos dizer que Nietzsche realizou uma crítica,
como que para inseri-lo em uma tradição com a qual ele rompeu
definitivamente. Neste ponto, se faz necessária uma diferenciação entre a
crítica em Kant e em Nietzsche. Por que não inseri-lo na tradição crítica
inaugurada por Kant? Por que afirmamos que Nietzsche realiza uma outra
crítica? Contudo não se trata de avaliar cada uma das críticas em seus
detalhes, mas buscar uma diferenciação ao nível dos seus pressupostos.
Vejamos o que nos diz Kant, na Fundamentação da Metafísica dos
Costumes, quando nos fala de uma “obrigação”:
89
ABM, 41.
90
Idem, 44.
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47
Cada coisa da natureza opera segundo leis. Só um ente racional tem a
faculdade de agir segundo a representação de leis, isto é, segundo
princípios, ou uma vontade. Visto que para a dedução de ações de leis
requer-se razão, a vontade não é senão uma razão prática. Se a razão
determina inevitavelmente a vontade, então as ações de um tal ente,
conhecidas como objetivamente necessárias, isto é, a vontade é uma
faculdade de escolher somente aquilo que a razão, independentemente das
inclinações, conhece como praticamente necessário, isto é, como bom.
91
Este trecho ainda possui um desdobramento inevitável:
A representação de um princípio objetivo, na medida em que é obrigatória
para uma vontade, chama-se mandamento [da razão], e a fórmula do
mandamento chama-se imperativo. (…) O imperativo categórico seria aquele
que representa uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem
relação com um outro fim.
92
A diferença básica entre as críticas de Kant e Nietzsche reside na
incompatibilidade entre os propósitos de cada autor. A atitude fundamental
de Kant é um reconhecimento inquestionado da veracidade de seu problema,
de modo que razão e verdade não são situadas enquanto valor, isto é,
enquanto produto das formas de vida. Sua “falta de curiosidade”, como
alude Nietzsche, resulta na profusão de definições e preceitos morais,
considerados de antemão verazes e desejáveis: a razão, a conduta “moral”, a
liberdade como responsabilidade etc. A Kant interessa também as “leis” do
nosso pensamento, através das quais a pluralidade do devir pode ser
suprimida e regularizada. Nietzsche, ao contrário, pergunta: quem quer a
verdade, tal como ela é descrita por tantos filósofos? E a razão? Em que
recôndito local da esfera terrestre habitam esses grupamentos humanos que
desejam a verdade kantiana?
Não se tem achado perigoso para a vida o imperativo categórico de Kant!...
Só espírito teológico o tomou debaixo da sua proteção! Uma ação a que
obriga o instinto da vida prova ser uma ação conveniente pelo prazer que a
acompanha; e aquele niilista de entranhas cristiano-dogmáticas considerava
a alegria como uma objeção... O que destrói mais rapidamente do que
trabalhar, pensar, sentir, sem necessidade interior, sem uma profunda eleição
pessoal, sem prazer como autômato do “dever”?
93
91
Kant. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. In Os Pensadores Kant, p. 217.
92
Idem, p. 218.
93
AC, XI.
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48
Para Nietzsche, Kant e sua tábua de valores representam o
refinamento das estratégias teológicas de dominação e produção de valores.
E, de fato, se analisarmos a filosofia de Kant, perceberemos presentes
alguns dos elementos listados por Nietzsche na constituição do tipo
sacerdotal: a impessoalidade do pensamento gregário, que se deseja “para
todos”; a cisão entre mundo verdadeiro e mundo aparente; a equivalência
das ações; a razão como elemento abstrato, externo e regulador; a
desvalorização dos sentidos, do corpo e da alegria. Mas, aos olhos de
Nietzsche, o que parece limitar a crítica kantiana é a busca incondicional
pela justificativa e edificação da razão como princípio puro. Justamente
porque a convicção o manteve inevitavelmente preso ao “sono dogmático”,
Kant não percebeu a razão como um valor que, com objetivos diversos,
passou por uma série de apropriações e deformações. No prefácio à segunda
edição da primeira crítica, Kant denuncia o “dogmatismo da Metafísica”,
mas, em contra-partida, não realiza a crítica em termos de valores, quer
dizer, não situa a razão no rol das produções humanas. Ao contrário, como
diz Deleuze, Kant “reconhece os direitos do criticado” e mantém a razão
numa posição indelével. Nietzsche, ao contrário, busca desmascarar, sempre
parcialmente, quem se apropria de tais valores e para que. Podemos
observar que razão, lei, princípios e, por fim, vontade, são categorias
progressivamente dogmatizadas no pensamento kantiano, na medida em que
Kant não põe em questão o valor desses valores. Nietzsche, ao contrário,
pergunta: quem deseja a razão, e por que é desejável reconhecê-la como um
a priori? É no questionamento deste a priori que Nietzsche concentra seus
ataques à Kant. “Deus está morto”, mas, subordinando-o à razão, Kant o
substituiu por uma “responsabilidade”, cujo critério de valoração permanece
abstrato e impessoal. Se a crítica kantiana se caracteriza pela necessidade de
estabelecer as condições para a razão e, simultaneamente, esta crítica deve
ser total, não deveríamos nos perguntar por seus pressupostos? Não deveria
ela, por sua pretensão à totalidade, suspeitar de seu próprio método, da
própria veracidade de seu objeto, a razão?
A crítica não se opõe ao procedimento dogmático da razão no seu
conhecimento puro como ciência (pois esta deve ser sempre dogmática, isto
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49
é, deve poder ser provada rigorosamente a partir de princípios seguros a
priori), mas sim ao dogmatismo, isto é, à pretensão de progredir apenas com
um conhecimento puro baseado em conceitos (o filosófico), segundo
princípios há tempos usados pela razão, sem se indagar contudo de que
modo e com que direito ela chegou a eles.
94
Segundo as reflexões realizadas por Kant na sua Crítica da Razão
Pura, a intuição é a representação imediata do objeto ao nosso intelecto por
meio de sensações. O conhecimento é uma função passiva, pois nós
recebemos nossas experiências a partir da relação com as coisas. Kant se
pergunta se os juízos sintéticos a priori, independentes da experiência, são
possíveis. Nosso aparelho cognitivo é, segundo ele, dotado de dispositivos a
priori que condicionam todo conhecimento, a saber, tempo e espaço. Tempo
e espaço são intuições puras porque dão forma ao conhecimento; não
possuem qualquer conteúdo e não carecem da experiência, pois são
dispositivos formais constitutivos de nossa disposição cognitiva. Mas por
que criar uma faculdade, quer dizer, um preposto para o pensamento e,
portanto, para ação, legitimado no fato de ser “para todos”? O que deseja
Kant com uma tal popularização de seu princípio? Nietzsche interpreta esse
fenômeno como a “concepção geral do dever”:
A “virtude”, o “dever”, o “bem em si”, o bem com o caráter da
impessoalidade e da validez geral; quimeras em que se expressa a
degeneração, o último debilitamento da vida, a sutileza de Köenigsberg. As
leis mais profundas da conservação e do crescimento exigem o contrário:
que cada qual invente a sua virtude, o seu imperativo categórico. Um povo
perece quando confunde seu dever com a concepção geral do Dever.
95
Da mesma forma como os cristãos instauram e crêem num “outro
mundo” para fins compensatórios, Kant suprime a complexidade e a
pluralidade do real em favor de uma suposta unidade (tempo/espaço,
razão/desrazão). Fundada num sistema que busca, de um lado, separar a
razão do regime afetivo, e, por outro, conferir à razão o papel de
organizador e regulador da ordem, a crítica kantiana diverge radicalmente
da crítica nietzscheana. Ao contrapor Goethe a Kant, Nietzsche observa que
o primeiro teria combatido “a separação de razão, sensualidade, sentimento,
94
Kant. Crítica da razão pura, p. 19.
95
AC, 11.
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50
vontade...”
96
, enquanto o segundo teria buscado separá-los meticulosamente.
Ora, com que propósito se estabelece uma instância superior do intelecto,
supostamente independente dos afetos, senão para justificar uma lei? Para
Nietzsche não existem “fatos morais”
97
, tal como se pode compreender da
crítica kantiana. Todo fato, ao contrário, é um fenômeno aberto sobre o qual
o filósofo deve se voltar, encarando as dificuldades acarretadas pela
exigência de colocar-se “além do bem e do mal.”
Hoje podemos perceber mais profundamente o sentido da frase “só um
ente racional tem a faculdade de agir segundo a representação de leis, isto
é, segundo princípios, ou uma vontade.” Ela é quase uma premonição
daquilo que, séculos mais tarde, o escritor George Orwell caracterizaria em
1984, isto é, uma sociedade de indivíduos controlados, agindo
exclusivamente de acordo com princípios inquestionados, cuja vontade,
enfraquecida ao extremo, já não cria valores, senão que os adota
indiscriminadamente, apoiados pelos triunfos da razão e da tecnologia. Ora,
não seria exagero afirmar que, com a simples substituição da palavra razão
pela palavra controle, caracterizaríamos o estado descrito por Orwell, e
confirmaríamos a influência que Kant manteve sobre o processo de
constituição dos estados de direito, a reboque da longa e duradoura ascensão
burguesa sobre o mundo. Assim, a filosofia crítica de Kant incorpora um
platonismo moderno, prefigurando um mundo coordenado por sábios e
burocratas (ou philocratas...), aptos a, respectivamente, decodificar e
cumprir a lei. Ora, um mundo de controle e burocracia, sem malícia,
desproporção, indeterminação, injustiça, desordem é justamente, na
perspectiva de Nietzsche, um caminho para a décadence, quer dizer, para a
impossibilidade de criação. Se quiséssemos nos aprofundar ainda mais no
pensamento kantiano, certamente teríamos muito a realizar. Mas se
adotássemos sua filosofia como uma explicação da totalidade do real, ou até
mesmo como um parâmetro para a ação, teríamos que admitir apenas uma
conduta: obedecer, ser responsável, agir conforme a lei. Para Nietzsche, esta
não é a situação mais favorável para o tipo superior, singular, para a criação
de novos valores e para a afirmação da vida.
96
Idem, IX, 49.
97
Idem, VII, 1.
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51
Nietzsche desvela a necessidade de controle, de regulação, de
sentimentos reativos que se afirmam no pensamento kantiano. Foi ele o
primeiro filósofo a realizar a seguinte manobra intelectual: "toda grande
filosofia foi até o momento a confissão pessoal de seu autor, uma espécie de
memórias involuntárias e inadvertidas."
98
As “memórias involuntárias” a
partir das quais Nietzsche elabora sua filosofia foram problematizadas ao
extremo, ao que parece, em busca de seu próprio imperativo categórico
vide as reflexões do convalescente em A Gaia Ciência, a autobiografia
delirante em Ecce Homo, entre outros exemplos. Ele procurou nas
determinações culturais mais profundas os sintomas de uma vontade,
chamando seus leitores para considerações do tipo “o alemão é incapaz do
presto em sua língua: portanto (…) é também incapaz de muitas nuances
mais temerárias e deliciosas do pensamento livre.”
99
Buscou descobrir, por
trás das obras e da reputação dos grandes filósofos, a forma de vida que
motivaram Descartes a declarar seu amor à verdade, Kant a seu imperativo
categórico, Rousseau a seu contrato, Hegel a seu absoluto etc. Tudo no
sentido de mostrar quão frágil o pensamento se tornava à medida em que se
fechava gradativamente sobre si mesmo, escondendo o modo de vida que o
engendrou, o tipo de vontade que, de fato, é sua “condição de
possibilidade.”
A crítica em Kant elabora todos os passos a partir de critérios totais e
gerais, culminando numa lei indiscutível a ser seguida. Em Nietzsche,
porque busca compreender as motivações e nuances que direcionam a
constituição social, a crítica acaba por indicar a necessidade de outras
formas de vida e de pensamento. Por isso Nietzsche é, por vezes,
“equívoco” e incoveniente na definição de sua tarefa, porque ela não se
reveste somente dos trajes da razão filosófica, científica ou econômica,
senão que extrapola esse campo de ação teórica e busca na vida mesma,
com seus terríveis e estimulantes exemplos diários, as bases para novas
formas de vida. Ora, se a crítica tem por objeto a moral, como expressão das
formas de vida, isto se dá sobretudo em favor de um desenvolvimento
efetivo das potencialidades inexploradas pelo intelecto humano em
98
ABM, 6.
99
Idem, 28.
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52
direção àquilo que Antônio Cândido definiu como “estados mais completos
de humanização.”
100
A filosofia de Kant, portanto, não pode, nem de longe,
ser comparada à de Nietzsche, sem que se perca de vista a disjunção basilar
de seus pressupostos.
2.4
A política como moral, a moral como política
São comuns os decretos segundo os quais “a filosofia de Nietzsche se
distingue sobretudo por sua crítica da religião, genealogia da moral e
desconstrução da metafísica, […de modo que ele] não seria em absoluto um
pensador político.”
101
A desconfiança acerca desta restrição nos levou a
pesquisar a questão, e encontramos a primeira pista em Além do bem e do
mal:
Os trabalhadores filosóficos formados segundo o nobre modelo de Kant e
Hegel têm de estabelecer e colocar em fórmulas, seja no reino do lógico, do
político (moral) ou do artístico, algum vasto corpo de valorações isto é,
anteriores determinações, criações de valores, que se tornaram dominantes e
por um tempo foram denominadas verdades.”
102
Nietzsche sugere o reino do político como o reino da moral, isto é,
tudo o que até então se pensou a respeito da política esteve exclusivamente
identificado à moral. Ou, de modo mais abrangente, toda ação política,
inclusive a ação do pensamento político, é reflexo de uma moral e exprime
um corpo de valorações, isto é, um conjunto de valores que são afirmados
por determinado corpo social. Entretanto, esses valores não são eternos e,
mais cedo ou mais tarde, “um mais forte dominará o forte.”
103
Deduz-se daí
que o campo do político é também o campo da moral, e qualquer avaliação
da atividade política, bem como dos seus efeitos, deve ter a moralidade
como fonte de investigação. Se os valores são resultantes de “anteriores
determinações”, a moral e a política também o são. Logo, nenhum valor,
100
Cândido. “O portador.” In Os pensadores Nietzsche. São Paulo. Editora Abril. 1983.
101
Como afirma Giacóia. Cf.: Friedrich Nietzsche: A "Grande Política": Fragmentos, p. 7.
102
ABM, 211.
103
Idem, 241.
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53
nem moral nem político, pode ser considerado um valor absoluto, uma regra
a ser seguida por si só.
Assim sendo, podemos pressupor o seguinte: a moral, tal como
Nietzsche a compreende, isto é, como corpo de valorações que se tornam
gradativamente verdades absolutas, é exatamente fruto de uma
inobservância, qual seja, a de que a realidade é o acontecimento que não
pode nem deve submeter-se às regras da identidade. Os indivíduos não
percebem, portanto, que cada acontecimento, cada ocorrência, é uma
singularidade que dispensa necessariamente uma identidade. Atribuindo
uma identidade às ocorrências do cotidiano, identificamos as causas e as
conseqüências segundo critérios demasiado sensíveis e parciais, sempre em
busca de maior adequação aos valores estabelecidos por um consentimento
silencioso. O temor de que males ocorram e de que bens futuros não se
concretizem imprimem nos grupamentos humanos um caráter
irremediavelmente reativo, onde se valorizam as práticas e hábitos
“confiáveis”, já excessivamente codificados. Percebemos que se forja, às
custas de muito sangue e devoção, uma continuidade ontológica para o
presente, pois no próprio gesto em que identifica a realidade, o teólogo já o
reduz a seus preconceitos morais. As guerras religiosas e as batalhas
políticas inerentes ao momento contemporâneo, têm como característica o
fato de se configurarem como tentativas ou de reencontrar algo que se
perdeu num passado longínquo, muitas vezes fantasioso, ou de garantir a
situação econômica e social que se conquistou contra a intervenção
estrangeira. Hoje, os políticos buscam o poder como forma de perpetuar e
atualizar uma determinada perspectiva, geralmente uma lembrança muito
particular que, vinculada aos interesses econômicos, se articulam para gerar
um contexto de guerra e falsos vereditos. A relação entre o moralista e o
acontecimento é sempre uma relação de reconhecimento. Não se pode
maquinar positivamente o presente, fazê-lo emergir enquanto transvaloração
de todos os valores, se a lente dos valores vigentes executam uma leitura
carregada de preconceitos morais. É esse o desafio que Nietzsche nos faz:
como maquinar positivamente o presente, se nascemos e somos criados
inseridos num sistema de formação absolutamente tomado pelo respeito aos
“valores superiores”?
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54
O contra-discurso que Nietzsche elabora contra a cultura moderna
ocidental reflete suas preocupações quanto ao futuro do tipo homem. Como
ele poderá livrar-se do processo de domesticação característico dessa
cultura? Como se livrará do caráter tutelar do estado, das aspirações
niveladas, do consumo absoluto? Como escrevemos no início do capítulo, a
questão para Nietzsche reside no âmbito da existência, mais precisamente
acerca das possibilidades de cultivo prolongado e contínuo de outras formas
de vida, mais expressivas que as experimentadas em contexto sociais
religiosos e mercantilistas. Seria razoável, portanto, que ele revelasse, por
meio de seus textos, os meios e processos para a execução de um tal projeto,
mas isso não ocorre claramente. Entretanto, alguns cuidados podem auxliar
a elucidar o que Nietzsche indica como saídas práticas possíveis. Como
afirmamos acima, não se trata de uma crítica per se ao Estado de direito e à
religião, assim como não se trata de uma crítica a toda e qualquer moral. A
questão é que, do ponto de vista da existência humana e de seu cultivo, a
democracia republicana se mantém em alguns lugares como “princípio
estéril”, isto é, como algo que ao invés de aproximar os indivíduos de suas
respectivas forças criativas, os afasta através da burocracia, da polícia, da
religião, do preconceito, da necessidade de soluções mágicas para
problemas superficiais, soluções estas sempre advindas de uma instância
superior que a representação política trata de tornar inatingível. Por outro
lado, na medida em que não há no pensamento de Nietzsche, sequer
resquício de transcendentalismo normativo e oposições ideais, mesmo
quando ele insiste negativamente sobre um tema, como por exemplo,
política e religião, não se quer dizer que ele necessariamente não tenha nada
a dizer sobre esses assuntos. Aqui, a política e a religião nunca são
observadas de um ponto de vista estritamente conceitual, de modo que a
crítica nietzscheana sempre se realiza a partir da observação e interpretação
da expressão das formas de vida efetivamente constatadas, isto é, através da
análise da história e da moral in loco.
104
104
Cf.: ABM, 26, quando Nietzsche se refere, entre as intempéries de suas pesquisas, o
“estudo do homem médio, estudo sério, prolongado, que exige muita dissimulação, auto-
superação, familiaridade, má companhia (...) isso é parte do currículo de todo filósofo (...).”
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55
A esse repeito, vejamos, por exemplo, o que diz Tocqueville quando
ao preconizar a “igualdade de condições”, que constitui uma das bases
teóricas da representação política tal como vivenciamos atualmente, se
refere a uma “igualdade” no registro das condições para a ação política. No
clássico De la démocratie en Amérique, Tocqueville reconhece que “o
princípio da soberania nacional” na América “não estava oculto nem estéril
como em certas nações”, pois sempre foi “reconhecido pelos costumes,
proclamado pelas leis.”
105
Para ele, se a igualdade de condições intelectuais
jamais poderá ser alcançada por todos pois uma tal disposição não se dá
em “todos” a lei então deve garantir uma igualdade mínima no âmbito
específico da produção e da ação, tornando os cidadãos aptos a convergirem
seus esforços em prol da comunidade. Entretanto, o mesmo Tocqueville
admite que a prática da cidadania opera mais adequadamente no campo
social onde as leis se relacionam organicamente com os hábitos e as formas
de vida dos indivíduos:
O habitante dos Estados Unidos aprende desde seu nascimento que é preciso
se apoiar em si mesmo para lutar contra os males e embaraços da vida; ele
não lança sobre a autoridade social senão um olhar desconfiado e inquieto, e
recorre ao seu poder quando não pode prescindir dele. Isto começa a ser
percebido a partir da escola, onde as crianças se submetem, até mesmo em
suas brincadeiras, às regras que estabeleceram e punem entre si os delitos
que elas mesmas definem. O mesmo espírito se encontra em todos os atos da
vida social.
106
O exemplo americano deve ser compreendido em toda sua
singularidade, pois o que ocorre nos dias de hoje é o inverso: a cidadania, a
“vontade popular” e a liberdade permanecem como valores inquestionáveis,
mesmo em contextos sociais bem diferentes. O movimento de
universalização do capital instaurou regras gerais sobre as relações sociais,
nem sempre adequadas aos hábitos e costumes do local. Há uma distância
entre a constituição social e a forma-estado que repercute de forma radical
sobre a organização política, à medida em que o Estado é, simultaneamente,
“monstro frio”
107
e “bom pai”, a quem se deve temer e obedecer. A
105
Tocqueville. De la démocratie en Amérique, p. 339.
106
Idem.
107
Z, “Do novo ídolo.”
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56
superação desse estranhamento, que força os indivíduos a dependerem do
estado, na mesma medida em que cultivam sua dependência o que não
ocorre nos EUA, pelo menos em parte passa necessariamente pela
mudança individual, pelo fortalecimento de valores que independam da
forma-estado. No entanto, esta superação não se dá sob a forma
“revolucionária”, pois não basta substituir um “estado de coisas” por outro,
muitas vezes pior. Ao contrário, é o afeto constitutivo de um grupamento
humano qualquer, expresso em suas formas de vida e hábitos, que vai
determinar outros agenciamentos, de modo a dar vazão ao “instinto de
crescimento” característico de toda vida. Sem que se altere a dependência
no próprio corpo de valores e práticas, perdurará a má consciência em
relação ao Estado.
A transvaloração de todos os valores implica em uma transformação
efetiva do valor da vida e da cultura, sob seus aspectos ideativos projeto
de vida, concepção de educação, trabalho etc , e práticos produção de
formas de vida. Mas lembremos o que nos diz Pierre Klossowski acerca da
cultura em Nietzsche, quando ele afirma que a culpa no ocidente perdurará
enquanto permitimos que
a moral cristã e pós-cristã alimentassem (...) a ilusão, a hipocrisia de uma
cultura que não teria desiguladades sociais, quando, na verdade, é essa
desigualdade que a torna possível: desigualdade e luta entre diferentes
grupos de afetos.
108
Além de expor essa desigualdade sob a forma de uma condição, e não
como uma imperfeição a ser sanada pela mão do Estado, como trata a
grande maioria dos políticos contemporâneos, Nietzsche reverte o quadro:
crítico dos cânones da política moderna, ele projeta o desejo de realizar a
“igualdade” de condições no âmbito efetivo, uma igualdade de tipos
superiores que, por sua vez, ampliam as condições para o exercício das
atividades humanas superiores: agir e criar. A política moderna traz em seu
cerne a necessidade de domesticar o indivíduo, mas, também, a promessa de
uma igualdade que nunca se realiza. Nietzsche busca desarticular essa
condição, mas, em contrapartida, elabora todo um plano de reversão dos
108
Klossowski, op. cit., p. 30-31.
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57
valores ocidentais no sentido de estimular formas de vida culturalmente
abundantes e “nobres.”
A crítica da moral, na medida em que se constitui como exortação à
mudança e à produção de outras formas de vida, nos traz hoje, sem dúvida,
um certo tipo de questionamento que não compactua nem à esquerda, nem à
direita da política contemporânea. Após o processo de unificação do
capitalismo universal, o homem foi reduzido definitivamente a uma
máquina de trabalho e o Estado a uma mera “representação”, tal como
Nietzsche preconizou. Enquanto perdurarem as condições de rebaixamento
do tipo homem, processo dependente de toda moral reguladora, perdurará a
pergunta nietzscheana acerca da existência. Se é verdade, como afirma
Mark Warren, que Nietzsche possui “um papel central na transição do
aporte moderno ao pós-moderno para questões filosóficas, e (...) para o
pensamento político”
109
, isto ocorre e esta é a hipótese do nosso segundo
capítulo devido a uma outra dimensão da crítica, concernente à sua
perspectiva propriamente ontológica. A partir dela, acessa-se mais
claramente não somente os componentes da crítica dos valores morais a
genealogia, o aforismo, a criação como também a crítica que Nietzsche
faz à metafísica e ao humanismo. Essa “política” em Nietzsche, nem de
esquerda, nem de direita, é de fato uma política sem precedentes, apoiada
numa concepção do homem e do mundo bastante diferenciada em relação às
concepções vigentes, por sua vez, orientadas a partir de critérios
metafísicos. Tal como os elementos complicadores da crítica dos valores
morais, este aspecto fundamental da filosofia de Nietzsche permaneceu
obscurecido por uma série de problemas que vão desde equívocos de
interpretação decorrentes de irresponsabilidade editorial até mesmo má fé.
Nosso objetivo é indicar apontamentos não somente acerca da ontologia de
Nietzsche, mas sobretudo em que sentido ela se articula à sua reflexão
original sobre a política.
109
Warren, op. cit., prefácio.
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58
3
A relação entre ontologia e crítica em nietzsche
Toda teleologia se baseia no fato de se tratar o homem dos últimos quatro
milênios como um ser eterno, para o qual se dirigem naturalmente todas
as coisas do mundo, desde o seu início. Mas tudo veio a ser; não existem
fatos eternos: assim como não existem verdades absolutas. Portanto, o
filosofar histórico é doravante necessário, e com ele a virtude da
modéstia.
1
3.1
Ontologia e política
Enfocar o problema da existência, sem entretanto considerá-lo sob
uma perspectiva meramente intelectual e filosófica; pesquisar o subsolo
psicológico do homem moderno para situar a procedência e a emergência
2
dos valores que se entrelaçam na sua constituição atual; destituir a figura do
niilismo de seu papel precípuo na constituição da cultura moderna; atacar as
convicções e edificar “novos valores”: a crítica dos valores morais,
entretanto, está fincada sobre uma concepção ontológica muito específica,
cuja análise permite compreender o por quê de seus princípios e objetivos.
Afirmar que existe em Nietzsche uma concepção cosmológica e ontológica
pode parecer despropositado, sobretudo em relação a um filósofo que
notoriamente procurou desarticular os sistemas de pensamento metafísicos,
e no mesmo sentido, a avaliação religiosa da existência. Entretanto, no
mesmo passo em que promove a desarticulação dos valores metafísicos,
Nietzsche produz, como contra-discurso, outras concepções acerca da
relação entre o ser, a natureza e o homem. Tomando parte nos debates
cosmológicos e ontológicos de sua época, Nietzsche, nos parece, admite a
questão do ser, embora sua abordagem do problema não se identifique com
a concepção metafísica. Cabe, portanto, a pergunta: estamos autorizados a
atribuir uma ontologia a Nietzsche, na medida em que este termo não é nem
ao menos utilizado por ele? Haveria no pensamento de Nietzsche uma
1
HDH, 2.
2
Cf.: Foucault, "Nietzsche, a genealogia, a história.” In: Microfísica do Poder, p. 16-17.
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59
reflexão sobre a questão do ser em conformidade com a tradição do
pensamento metafísico, tal como afirma Heidegger? Ou, ao contrário, a
reflexão de Nietzsche se constitui na contra-mão do pensamento metafísico,
fato que justificaria a utilização do rótulo “ontologia”? Quais os elementos
centrais desta ontologia e em que sentido ela impõe conseqüências diretas
para uma avaliação tanto da crítica dos valores, quanto dos aspectos
políticos do pensamento de Nietzsche, particularmente no que diz respeito à
questão da “grande política”? Por outro lado, seriam as bases ontológicas
desse pensamento a fonte dos problemas que a crítica dos valores pretende
levantar? Ou, ao contrário, é a partir da observação contumaz da atividade
humana que se depreende esta ontologia? Analisemos algumas questões
preliminares acerca deste problema.
3.1.1
A superação da religião e do humanismo metafísico
No início do primeiro capítulo, chamamos atenção para o fato de que
o problema político em Nietzsche se torna mais inteligível conforme
consideramos sua crítica da modernidade política como um movimento
secundário em relação à crítica dos valores morais. A ausência desta
distinção estimula muitos comentadores a caírem na tentação de avaliar o
teor político do pensamento nietzscheano sem levar em conta os diversos
elementos da crítica que, ora trazem uma pluralidade de contextos, campos
temáticos e enfoques; ora demonstram um “ódio à argumentação
3
, que
3
A questão da “forma de expressão” em Nietzsche será trabalhada adiante, ainda no
capítulo II. Mas em relação à questão do “ódio à argumentação”, sugerido por Luc Ferry
em ensaio, tentaremos colocar brevemente alguns pontos.
O tipo de argumentação em Nietzsche, muito por conta de seu estilo aforismático,
não é analítico, mas sintético. A análise, introduzida por Descartes no sentido de reordenar
o conhecimento e aprimorar a faculdade de conhecer, supõe uma passagem segura,
contínua e linear de algo já conhecido para algo que não se conhece ainda. Para Descartes,
conhecer é chegar às causas a partir dos seus efeitos e só então, sintetizar o que foi
determinado pela analítica. Neste sentido, a síntese para Descartes não é criadora, pois
simplesmente catalisa os elementos descobertos pela persuasão analítica. Por um lado, a
analítica cartesiana, por assim dizer, “secciona” o real para explicá-lo; e de outro, ao
conferir a analítica o papel de medium da verdade, supõe que a forma argumentativa está
dissociada daquilo que ela busca, quer dizer: a “verdade” se coloca, a priori, como algo
externo ao método.
Em Nietzsche ocorre precisamente o contrário. Em primeiro lugar, a forma de
expressão é indiscernível do conteúdo. O “tipo de argumentação”, portanto, não pode
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60
suscita as mais diversas apropriações e interpretações de seu pensamento;
ora refletem um contra-discurso bastante agressivo em relação aos valores
caros à convivência democrática. Entretanto, como afirmamos
anteriormente, o pensamento de Nietzsche não se esgota na função
filosófica, eminentemente moderna, de fixar e comprovar analiticamente
certas idéias e sentidos em detrimento de outros. Ao contrário, é justamente
no embaralhamento
4
de signos vigentes e passados, em descodificações e
deslocamentos históricos, semânticos e epistemológicos que se exprime o
conteúdo filosófico do seu pensamento. Se a crítica dos valores morais
pretende estimular a reversão do processo décadent da cultura ocidental,
abalando as crenças dos leitores através de um tipo de linguagem e estrutura
de pensamento diferenciados, haveria então, nesta crítica, um conteúdo
principalmente histórico. A crítica se dirige àqueles que, vivenciando o raio
de valores constitutivos do presente, representariam o testemunho vivo de
um manancial de idéias e acontecimentos ocorridos em pouco mais de dois
mil e quinhentos anos. A análise obstinada e erudita da química das
representações e sentimentos morais, religiosos e estéticos”
5
, a que nos
referimos no primeiro capítulo, forneceria o arcabouço experimental
necessário para uma tal tarefa, que conferiria à crítica um sentido político
radical, vinculado sobremaneira à idéia de “revolução”, tão em voga na
Europa de seu tempo, pelo menos desde a efetivação da Revolução
Francesa. E neste caso, nossa dissertação tomaria um outro rumo:
trataríamos, a partir de agora, de sintonizar Nietzsche com toda uma
tradição, não só do pensamento político moderno como da própria filosofia
alemã, avaliando suas idéias sempre na perspectiva dos principais
problemas levantados por essa tradição.
coincidir com o aporte crítico moderno, pois não se trata de comprovar uma verdade
estática que a progressão argumentativa permite acessar, mas situar o leitor no movimento
de gênese das coisas (procedência e emergência, não origem, lembra Foucault). Para tanto,
Nietzsche lança mão de recursos tipológicos e dramáticos, que nem sempre apresentam
uma argumentação no sentido cartesiano do termo.
Portanto, não há propriamente um “ódio à argumentação”, mas objetivos
diferentes, formas de expressão e argumentação diferentes. Luc Ferry se engana ao avaliar
o pensamento de Nietzsche a partir das idéias que o próprio Nietzsche cuidou de
problematizar ao longo de sua obra. FERRY, Luc. “La critique nietzschéenne de la
democratie”, in Histoire de la Philosophie Politique (vol. 4), Les Critiques de la Modernité
Politique, Paris, Calmann-Lévy, 1999
4
Deleuze, “Pensamento nômade”, p. 59.
5
HDH, 1. Os grifos são nossos.
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61
Mas este não nos parece o caminho adequado. Primeiro, porque o
jargão da filosofia política é manipulado por Nietzsche sobre um plano
móvel, no qual a paródia e a análise operam movimentos imprevisíveis.
6
Segundo, porque Nietzsche considera que a idéia de revolução conserva,
tanto em sua elaboração filosófica, quanto em sua situação prática, os
mesmo cânones valorativos sobre os quais se fundamentam as idéias e
práticas dos “derrotados”, isto é, da monarquia e da Igreja. Para ele a
Revolução Francesa “pôs o cetro, de maneira total e solene, nas mãos do
‘homem bom’”, obviamente considerando o homem bom como “ovelhas,
asnos e gansos rasos, ruidosos e maduros”
7
, configurando mais um capítulo
da derrota do “tipo superior.” Mais do que a análise dos valores, a filosofia
de Nietzsche deseja mostrar que, no horizonte da cultura moderna, o
cristianismo e o estado de direito, a despeito de suas divergências históricas,
conservaram, entretanto, um campo comum de problemas, marcado por dois
fatores centrais que, para Nietzsche, resultam extremamente
comprometedores do ponto de vista do problema da existência. Em primeiro
lugar, a submissão gregária aos valores superiores, expressa historicamente
no exercício violento do poder, operado tanto pelo clero quanto pelo estado
de direito, em vistas de maior sociabilidade e domínio. Em segundo lugar, a
própria idéia de “valor superior”, que Nietzsche distingue na apreciação dos
traços de continuidade das culturas. Em ambos os casos, o valor superior
age como princípio ativo dos valores, estabilizando os padrões de conduta e
conservando a coesão social interessante ao poder. O “valor superior”
oferece um parâmetro para a vida, conservando as ações aceitáveis em
detrimento das ações que desestabilizam a comunidade justamente a ação
do “tipo superior”, analisada no primeiro capítulo. A ação do tipo superior
a inoculação de idéias e práticas desconhecidas ou condenadas pela
comunidade é, por sua vez, inibida pela necessidade, por parte do poder,
em manter a coesão social.
Mas o que vem a ser um “valor superior”, tal como Nietzsche o
compreende? Ele afirma que o “valor superior” se deseja “superior à vida”,
6
O exemplo mais contundente da utilização de recursos paródicos por Nietzsche se
encontra em GM, na análise do estado e do direito constitucional. Cf.: GM II 10 e 11.
7
GC, 350.
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62
superior à realidade efetiva. Significa dizer que, do ponto de vista do
indivíduo, a assunção do valor superior ocorre de forma irreflexiva, ainda
que os desmentidos da experiência insistam em afirmar seu oposto. Mais
uma vez, é à questão do ressentimento que devemos recorrer, pois o “valor
superior” é justamente o princípio ativo que determina uma compensação
imaginária em relação aos acontecimentos que não aceitamos e do qual não
podemos fugir. Vejamos a constituição do valor superior no cristianismo
No cristianismo, nem a moral nem a religião se acham em contato com um
ponto sequer da realidade. Só causas imaginárias (‘Deus’, ‘alma’, ‘eu’,
‘espírito’, ‘livre arbítrio’ ou também o ‘não livre’); só efeitos imaginários
(‘pecado’, ‘salvação’, ‘graça’, ‘castigo’, ‘perdão dos pecados’). Uma relação
entre seres imaginários (‘Deus’, ‘espíritos’, ‘almas’); uma ciência natural
imaginária (antropocêntrica, uma falta absoluta do conceito das causas
naturais); uma psicologia imaginária (só erros próprios, interpretações de
sentimentos gerais agradáveis) (…); uma teologia imaginária (‘o reino de
deus’; ‘o juízo final’, ‘a vida eterna’). Este mundo das ficções puras
distingue-se, com muita desvantagem para ele, do mundo dos sonhos, em
que este reflete a realidade, ao passo que o outro não faz mais do que falseá-
la, desprezá-la, negá-la. (…) Quem é o único que tem razões para sair da
realidade por uma mentira?
8
No cristianismo, o indivíduo que se orienta pelo valor superior “crê
em realidades que não são realidades”
9
, pois acredita em “fatos morais”,
previamente determinados. Para Nietzsche, no entanto, “não existem
absolutamente fatos morais”
10
, mas somente interpretações. Neste caso, a
crítica dos valores morais é uma crítica dos valores superiores, não somente
porque estes interditam a ação renovadora, mas sobretudo porque nascem de
uma concepção teleológica do real. No que toca à questão da interdição da
ação renovadora, o “valor superior” age ora como bálsamo contra o
sofrimento, ora como catalisador social. Neste sentido, por exemplo, a idéia
que Nietzsche nos traz do ideal ascético como antinatureza
11
, exprime uma
forma de regozijo às avessas, cuja espontaneidade se perde no exercício da
educação: o valor superior é, sobretudo, ensinado. Ensina-se aquilo que é
útil a uma certa ordem de coisas e, a partir daí, desenvolvem-se maneiras de
recompensar esse aprendizado.
8
AC, XV
9
CI, VII, 1
10
Idem.
11
Cf.: GM, III, 3 e CI V.
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63
Por outro lado, observemos o trecho em que Nietzsche se refere a uma
“ciência natural imaginária”, caracterizando-a por um antropocentrismo e
por “uma falta absoluta do conceito das causas naturais.” Notemos que a
ciência natural a que Nietzsche alude é posta em jogo por conta do termo
“imaginário”, e não a partir do termo “ciência natural.” Em primeiro lugar, a
primeira ilusão desta “ciência natural” concebida pela religião e pela
metafísica é a ilusão do antropocentrismo. Já em 1873 Nietzsche escreve:
Assim poderia alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado
suficientemente quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão sem
finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza. Houve
eternidades em que ele não estava; quando de novo ele tiver passado nada
terá acontecido. Pois não há para aquele intelecto humano nenhuma missão
mais vasta, que conduzisse além da vida humana. Ao contrário, ele é
humano, e somente seu possuidor e genitor o toma tão pateticamente, como
se os gonzos do mundo girassem nele.
12
Uma primeira característica do caráter teleológico da realidade que
habita a religião e a metafísica é a perspectiva antropocêntrica. Crendo que
seu intelecto, sua vida, desempenha um papel central na ordem da natureza,
o ser humano se toma como “ser eterno, para o qual se dirigem naturalmente
todas as coisas do mundo, desde o seu início.”
13
Não se trata entretanto de
diminuir o homem perante a natureza, mas enfocá-lo de uma forma
adequada dentro de seus próprios limites. Deus, tomado como dimensão
divina e imortal do intelecto humano um intelecto superior
conservaria em suas ações e seu pensamento as mesmas relações de tempo,
espaço, cultura etc, cuja invenção, nós humanos, atribuímos a ele. Nós
mesmos criamos a regra para, depois, atribuir sua criação a um ser superior.
Assim, o intelecto humano figuraria como parte fundamental desta ordem,
pois atestaria, em última instância, um certo privilégio natural do homem
em relação à natureza. O ser humano, privilegiado na ordem da natureza,
traria consigo um traço do divino, uma espécie de contigüidade espiritual
entre ele próprio e Deus. Para Nietzsche, entretanto, de um ponto de vista
ontológico, este mesmo intelecto não extrapola a vida humana, situando-se
de forma bem modesta na ordem do real. Neste sentido, o aporte crítico da
12
Obras incompletas, p. 45.
13
HDH, 2.
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64
modernidade traria elementos religiosos recalcados pelo deslocamento de
foco: se antes Deus era o fiel da balança, garantindo a tradição e a lei, a
partir de Descartes a razão e a responsabilidade do sujeito passam a
desempenhar esse papel.
Assim, se a “essência do humanismo metafísico característico da
modernidade se resume à construção de uma teoria irresoluta entre o
humano e o divino”
14
, qualquer contra-projeto que preconize sua superação
implica em um retorno a Nietzsche. Ao afirmar que “o movimento
democrático constitui a herança do movimento cristão”
15
, Nietzsche
denunciou categoricamente os pressupostos religiosos implícitos nos valores
modernos e a falsa ruptura entre o mundo religioso e o mundo moderno. Em
sua interpretação da cultura ocidental, o campo epistemológico sobre o qual
se concebeu a questão “homem” na modernidade constituiu-se no mais das
vezes como espaço de manifestação divina, seja sob o aspecto de “verdade”,
como em Descartes, seja sob o aspecto moral, como em Kant, ou mesmo
nas filosofias consideradas imanentistas, as “religiões do homem”, como
Hegel e o positivismo. Os valores superiores, característicos do cristianismo
teriam, segundo Nietzsche, transubstanciado-se nos valores “de fachada” da
mais moderna filosofia e da mais avançada ciência, reproduzindo a mesma
relação de reversibilidade entre a divinização do homem e a humanização
do divino. Isto se pode verificar nos enunciados e preceitos da modernidade
política e científica, sobretudo quando indicam a aquisição de verdades
dogmaticamente incontestáveis: o Estado de direito, a soberania, a
igualdade, mas também, trazendo a questão para nossos dias, a “liberdade
de expressão”, a separação radical entre economia e política, a crença na
igualdade dos sexos, na tecnologia, na comunicação etc.
Aprofundando sua denúncia, Nietzsche percebe uma segunda
reviravolta. Quase que simultaneamente a esta divinização de fachada,
sucede exatamente o oposto: apartado de seu poder de transformação pela
força bruta, mas também por seus hábitos e crenças morais, religiosas e
políticas, o homem moderno exprimiria a desastrosa contrapartida do
humanismo metafísico, isto é, a figura do niilismo, a doença da vontade
14
Badiou, Le siècle, p. 237.
15
ABM, 202.
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65
disseminada na Europa, tanto pelo cristianismo quanto por seu suposto
antípoda, o Estado democrático. O cristianismo e a modernidade política
constituiriam, para Nietzsche, um só movimento em direção à formação,
regulação e perpetuação de um rebanho autônomo, “a animalização do
homem em bicho-anão de direitos e exigências iguais.”
16
A sensação de
completude que a metafísica imprime na dinâmica do niilismo ou seja, a
glorificação de valores tão bem acabados quanto abstratos se choca com
a miséria de meios para favorecer “estados mais completos de
humanização”. Este humanismo metafísico, que por suas características
domesticadoras pode ser avaliado como “humanismo animal”, deve ser
superado sobretudo porque emite e salvaguarda hábitos e práticas que
arruinam o homem ao invés de promovê-lo. E neste ponto residiria o
paradoxo constitutivo da modernidade: de um lado, a divinização do homem
contida nas idéias modernas; de outro, o cultivo de sua impotência diante
dos mecanismos de manutenção do poder. Nietzsche denuncia a
ambigüidade performativa do humanismo metafísico, para situar a questão
da seguinte forma: a “morte de deus” implica na superação do homem tal
como a modernidade política e a metafísica o conceberam até então: “Eu
vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado.”
17
Superar o homem metafísico implica, portanto, em superar o
antropocentrismo.
Com base no problema do valor geral da vida, Nietzsche nos remete à
mais uma apreciação da moral escrava, a moral utilitária a que nos referimos
no primeiro capítulo. Se deflagra, então, o círculo vicioso característico da
moral escrava: a crença no valor superior, cuja manutenção é realizada por
um antropocentrismo ingênuo, que por sua vez produz a degeneração
fisiológica, e consequentemente, o sofrimento, de modo a retornar
novamente para o poder balsâmico do valor superior. Assim, Nietzsche
confere um outro sentido à dialética hegeliana. Toda cultura, arte, religião,
sociedade etc, será avaliada a partir do modo de vida que determina. O
escravo, isto é, a “consciência trabalhadora
18
, como afirma Hegel, não é
16
ABM, 203.
17
Z, Prólogo, 3.
18
Cf.: Hegel, Fenomenologia do espírito, p. 132
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66
mais concebido a partir de um sistema de valores inquestionado por
exemplo, o sistema que legitima o “trabalho abstrato” e a “propriedade
privada” como a prioris, cuja crítica nem o próprio Marx deu cabo.
19
Ao
contrário, as características próprias a essa escravidão são cuidadosamente
depreendidas dos enunciados e modos de vida que produz. Na perspectiva
crítica dos valores morais, a metafísica e as idéias modernas resultam de
erros lógicos quanto ao estatuto da vida humana perante a realidade, mas
que, por outro lado, produzem modos de vida conservadores. As idéias
modernas e a metafísica são, para Nietzsche, meros jogos contextuais,
meros produtos de determinados mecanismos de sociabilização e
domesticação, a partir dos quais distinguem-se certas práticas, certos modos
de vida, e, portanto, certas concepções acerca do valor da vida. Desse modo,
superar a avaliação metafísica da existência requer a abolição do
antropocentrismo, mas também a atenção especial ao campo da atividade
humana.
Entretanto, ao invés de simplesmente situar a crítica em um
determinado contexto histórico, deve-se considerar que, por mais que
Nietzsche concentre sua artilharia sobre os artefatos morais que constituem
tanto o mundo mítico, quanto o mundo “político”, pode se observar na
crítica dos valores morais certos aspectos que delineiam a “posição” do
homem em relação à sua existência. A palavra “posição” não deve
incomodar o leitor, pois, como sugerimos anteriormente, não se trata de
conferir atributos estáticos ao homem, mas considerá-lo segundo as
limitações próprias às condições ontológicas dadas. Os problemas
levantados pela crítica dos valores morais, pouco a pouco, nos revelam que
Nietzsche, crítico de toda a tradição metafísica, estabelecia, a seu modo,
uma concepção do ser, da natureza, do homem e do mundo. Em oposição à
concepção teleológica característica da religião e da filosofia metafísica,
Nietzsche criou sua própria ontologia, sua própria definição do ser, do
tempo, e a situação do homem perante esses conceitos.
Para Nietzsche, embora a visão teleológica alimente tanto a metafísica
quanto a religião, os meios pelos quais sacerdotes e filósofos imprimem esta
19
Kurz, Os últimos combates. 4
a
. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1997, p. 33.
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67
perspectiva são os mais diversos. E a crítica dos valores morais procura se
encarregar de sua pluralidade, traçando a relação de continuidade entre o
legado religioso e o legado moderno, mas também apontando sinais
característicos de degeneração fisiológica, que denunciam as formas de vida
comprometidas com os valores superiores. O elemento comum a todos esses
modos de vida, isto é, o ponto de contato entre a religião e a política reside,
portanto, no problema do ressentimento que, segundo Nietzsche, produz
modos de vida decadentes.
Assim, de forma geral, a crítica atua segundo dois movimentos
complementares: ora referindo-se à esfera cultural, isto é, às possibilidades
de intervenção efetiva sobre o mundo; ora em relação à investigação acerca
da efetiva posição do homem diante da realidade, questão eminentemente
ontológica. E como podemos, preliminarmente, definir esta concepção? Se
não há, nem na ordem da natureza, nem na humanidade como um todo,
nenhum resquício de finalidade, então a abertura de sentido do real predica à
própria atividade humana a produção e manutenção de seus valores e modos
de vida. Quais então os limites de nossa atividade? A divisão entre aspectos
orgânicos e culturais e aspectos ontológicos facilita nossa exposição, mas
não permite afirmar se há algum primado da ontologia sobre a crítica ou
vice-versa. Através de sua crítica, Nietzsche também especula acerca da
essência do ser, sem entretanto considerá-lo como primo ens, como ser
originário do qual derivam todos os outros. Muito menos como princípio
externo. Ao contrário, o ser para Nietzsche, assim como para Espinosa, se
afigura como imanência, isto é, como acontecimento indiscernível da ordem
natural.
Por ora gostaríamos de fixar a seguinte idéia: a crítica dos valores é
composta por uma dimensão orgânica e cultural, e por uma dimensão
ontológica que se entrelaçam na obra de Nietzsche sem dúvida com
menos intensidade nos textos da primeira fase, como em O nascimento da
tragédia, e maior destaque na fase final e nos fragmentos póstumos de
1887-9. Sem a pretensão de esgotar o assunto, resta definir, ainda que
provisoriamente, o que entendemos como ontologia em Nietzsche e quais os
elementos que a compõe.
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68
3.1.2
O díptico essência/existência
20
Nas palavras de Kant, os pensadores fizeram da discussão acerca dos
termos metafísica e ontologia um verdadeiro “campo de batalha.
21
Tentaremos abordar aqui alguns pontos dessa longa história, traçando
vínculos com o que chamamos ontologia de Nietzsche.
Aristóteles considerava a metafísica sob dois aspectos, concernentes à
filosofia primeira: como metafísica geral, “estudo do ser enquanto ser”, ou
“do ser enquanto ente”, isto é, um estudo do ser “comuníssimo”, não
importa sob qual aspecto; como metafísica especial, estuda-se “o ser” ou “o
ente”, um ser originário do qual dependem outros entes. No século XVI e
XVII, o termo ontologia adquiriu autonomia em relação ao termo metafísica
através de Rudolf Goclenius (1613), e sua “filosofia dos entes.” Para
Abraham Calovius (1636), por sua vez, a metafísica diria respeito a rerum
ordine, isto é, a “ordem das coisas”, enquanto a ontologia se referiria ao
objeto mesmo, ab objecto proprio. A dicotomia entre universal (metafísica
geral) e particular (metafísica especial) desempenhará um papel
fundamental não somente na história da disjução dos termos em questão,
como também no horizonte constitutivo da modernidade. Esta dicotomia
pode ser concebida também segundo uma relação entre essência (universal)
e existência (particular), pois desde Platão estabeleceu-se uma clara
distinção entre a vida condicionada, imperfeita, múltipla , e o
pensamento incondicionado, divino, modelar. Nietzsche interpreta a
força desta distinção da seguinte forma: devido às dificuldades e
sofrimentos, a vida inspiraria nos filósofos, tal como nos sacerdotes, a
necessidade de produzir um outro registro da realidade, livre dos percalços
da existência singular. Amparada na discursividade comunicativa, que
estabelece formas de transmissão da idéia de “perfeição” ou pelo menos
da sensação de perfeição a reflexão acerca da questão do ser adquiriu, já
20
Em boa parte deste sub-capítulo nos baseamos no dicionário de filosofia de Ferrater
Mora. Cf.: Mora, Diccionario de filosofia. Barcelona: Alianza editorial, p. 2423.
21
Kant, Crítica da razão pura, p. 19.
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69
em seu nascimento, esta ambigüidade que marcará inclusive a dicotomia
entre os termos ontologia e metafísica.
Influenciado por Johannes Clauberg e Leibiniz, Christian Wolff teria
popularizado o termo ontologia em sua Philosophia prima sive ontologia
methodo scientifica pertracta, qua omnes cognitionis humanae principia
continentur (1730), definindo-a como scientia entis in genere, quatenus ens
est “ciência do ser em geral ou enquanto ser.” Para Wolff, a ontologia
emprega “um método demonstrativo e se propõe a investigar os predicados
mais gerais do ente enquanto tal.” Baumgartem também segue Wolff em sua
Metaphysica (1740), afirmando a ontologia como “a ciência dos predicados
mais abstratos e gerais de qualquer coisa”, e, acrescenta Ferrater Mora,
“enquanto pertencem aos princípios cognoscentes primeiros do espírito
humano.”
22
Cabe lembrar que esta problemática se encontra no cerne do
debate entre o pensamento de Wolff e Baumgartem e o de Kant. Os ataques
deste último se dirigiam “menos à ontologia propriamente, mas sobretudo à
pretensão de erigir uma scientia prima sem uma prévia crítica da razão.”
23
No entanto, a crítica da razão, na perspectiva de Wolff, surge como produto
do pensamento sobre si próprio, isto é, como força ideativa que conserva,
apesar disso, um caráter imanente. Para ele, é a ciência do conceito se
apropriando dos objetos da realidade que definirá os caminhos para uma
compreensão adequada do ser. Para Kant, ao contrário, a definição desta
faculdade extrapola a dimensão experiencial, e revela uma estrutura a priori
que, segundo ele, é preciso investigar e conhecer. Kant critica Wolff por seu
dogmatismo, isto é, sua “pretensão de progredir apenas com um
conhecimento puro baseado em conceitos (o filosófico), segundo princípios
há tempo usados pela razão, sem se indagar contudo de que modo e com que
direito ela chegou a eles.”
24
Para ambos, no entanto, o sentido da realidade
se estabelece por uma faculdade cognoscente, com a diferença de que, para
Wolff, ela é experiencial e mediada por conceitos, mas para Kant, ao
contrário, esta faculdade é transcendental.
22
Mora, op. cit 2422-2425.
23
Idem.
24
Kant, op. cit., prefácio, p. 30-31.
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70
Tanto Wolff quanto Kant concebem a realidade como cognoscente,
mas Kant atentou para a necessidade de desenvolver o sentido estrutural e
transcedental da razão, sentido este que, segundo ele, possibilitaria a própria
realidade. A “razão pura”, elemento formal e a priori do pensamento, é
responsável por sintetizar nossas experiências, mas, no mesmo passo, ela
revela um conteúdo próprio. A diferença efetiva entre essas duas
perspectivas, portanto, pode ser avaliada a partir do plano da crítica
kantiana:
Na execução do plano traçado pela crítica, isto é, no futuro sistema da
metafísica, devemos pois seguir um dia o método estrito do famoso Wolff, o
maior de todos os filósofos dogmáticos. Este deu pela primeira vez o
exemplo (e criou por seu meio o espírito de profundidade que ainda não se
extingüiu na Alemanha) de como se deve, pelo estabelecimento regular de
princípios, pela clara deterrminação dos conceitos, pelo procurado rigor nas
demonstrações, pela prevenção de saltos temerários nas conclusões, tomar o
caminho seguro de uma ciência. Justamente por isso estava ele apto a
colocar a metafísica nesse caminho, bastando para isso que lhe tivesse
ocorrido preparar antes o campo por meio de uma crítica do órgão, ou seja,
da própria razão pura.
25
A pretensão à generalidade da “metafísica geral” divergiria de
qualquer estudo “especial”, isto é, qualquer estudo sobre entes específicos
dado seu caráter estrutural, por assim dizer. O caráter geral da ontologia
(que diz respeito “aos gêneros supremos das coisas”, mas também admite
que o intelecto humano possa apreendê-los) não possui a aura supraterrena
dos temas da metafísica especial. Por outro lado, se perdura uma
identificação entre os termos metafísica e ontologia, isto ocorre porque
consideramos a ontologia não como metafísica geral, mas, ainda que com
reservas, como “metafísica especial.” Como afirma Ferrater Mora:
A superposição da ontologia com a metafísica geral representaria já,
portanto, um primeiro passo em direção ao já mencionado processo de
divergência de significação entre os vocábulos metafísica e ontologia. Com
efeito, tudo o que se refere ao além
26
do ser visível e diretamente
experimentável, se torna objeto da “metafísica especial” que seria
efetivamente uma trans-physica. [Desta forma] A “metafísica geral “ (ou
Ontologia) se ocuparia somente de formalidades, mas de um formalismo
25
Idem.
26
No original: “mas allá.”
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71
distinto do formalismo exclusivamente lógico.
27
Tal acepção é patente sobre
todas as direções da neoescolástica do século XIX que de alguma forma
tiveram contato ao menos terminologicamente com o wolffismo. Em
todo caso, a expressão citada [ontologia] adquiriu o papel de “natureza”
dentro da neoescolástica.
O “transcendental” em Kant não corresponde à avaliação da natureza,
tal como define a tradição neoescolástica, “mas aos conceitos a priori que
residem no entendimento e têm seu uso na experiência.” Considerando que
a metafísica geral trata da natureza como objeto de investigação, Kant teria
se apropriado desta acepção, mas para fixar-lhe um sentido a priori. Deste
modo, à época de Kant, vigoram duas possibilidades de se compreender a
ontologia. A primeira, recorrente, como teoria do primo ens do qual
dependem todos os seres, ao qual todos os seres são irredutíveis apesar da
pluralidade de formas. Para Ferrater Mora, neste sentido a ontologia é
propriamente metafísica, como ciência da realidade ou da existência ou
como determinação da constituição dos entes e do ser em si, isto é, “uma
ciência das essências e não das existências.”
28
Percebe-se que, após Kant, o
termo ontologia, desfalcado de seu caráter físico e natural que lhe conferia a
metafísica geral, refugia-se de vez no campo da lógica e da transcendência.
Nesta concepção, a ontologia se confunde com a “metafísica geral” e
absorve tanto seu primado cognoscente, como também sua pretensão à
validade universal a priori.
Agora, chamamos atenção para a segunda forma de se considerar a
questão do ser à época de Kant. E atentamos para o fato de que, durante o
desenrolar dessas polêmicas, situadas basicamente no âmbito acadêmico,
outras formas de se compreender a questão são por assim dizer soterradas
pelas interpretações oficiais, como a de Kant. É o caso, por exemplo, da
ontologia de Espinosa. Segundo Joaquim de Carvalho, para o filósofo
holandês a “essência não tem o sentido universal nem o de identidade ideal;
é o ser próprio, tanto na ordem das idéias, quanto na ordem das coisas.”
Como afirma Espinosa, na Definição I da parte 1 da Ética: “Por causa de si
entendo aquilo cuja essência envolve a existência; ou por outras palavras,
aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente.” Ou na
27
O grifo é meu.
28
Mora, op. cit., p. 2424.
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72
proposição XX: “A existência de Deus e a sua essência são uma e a mesma
coisa.” Ou mais precisamente, na segunda parte da Ética, definição 2:
Digo que pertence à essência de uma coisa aquilo que, sendo dado, faz
necessariamente com que essa coisa exista e que, sendo suprimido, faz
necessariamente com que a coisa não exista; por outras palavras, aquilo sem
o qual a coisa não pode nem existir nem ser concebida e, reciprocamente,
aquilo que, sem a coisa, não pode nem existir nem ser concebido.
Se, nesta discussão, o caráter conceitual da ontologia de Wolff remetia
inicialmente aos objetos próprios da experiência humana, conferindo-lhe
uma proximidade com o que chamamos “ontologia de Nietzsche”, a partir
deste ponto a comparação se torna inviável. Quando se afirma que a
ontologia é a “determinação da constituição dos entes e do ser em si”, isto é,
“uma ciência das essências e não das existências”
29
, não se leva em
consideração a possibilidade de uma ontologia como a de Espinosa, que
investiga a constituição complexa da essência (geral) enquanto coisa
existente (particular), ou sob a forma de extensão, ou sob a forma de
pensamento. Nietzsche não busca, como Wolff, uma apropriação conceitual
da realidade; nem como Kant, uma “teoria do primo ens, do qual dependem
todos os seres, ao qual todos os seres são irredutíveis.” Ao contrário, sua
ontologia se efetiva como uma ciência das essências enquanto existentes.
Deste modo, na ontologia de Nietzsche, os aspectos gerais da vida não se
situam em relação a seu aspecto geral, mas, de outra forma, a generalidade
do ser corresponde a uma longa e acurada pesquisa pela totalidade das
singularidades existentes. O pensamento de Kant, inspirado pela
“fantasmagoria conceitual exangue e sem sol”
30
, a que ele chama
“profundidade”, estaria mais próximo de uma deontologia, isto é, de um
estudo prescritivo do ser; enquanto uma ontologia em Espinosa e em
Nietzsche remeteria ao ser como é dado em sua singularidade, desprovido
da clássica divisão entre ser e existir. Ser é existir, existir é ser. Note-se aqui
o interesse de Nietzsche acerca da fisiologia, entre outros campos do saber
não-filosófico: ele vem em favor de uma pesquisa profunda do ser, enquanto
efetividade.
29
Mora, op. cit, p. 2423.
30
ABM, 254.
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73
Consideremos, provisoriamente, a ontologia em Nietzsche como uma
ciência das essências enquanto existentes. De saída, observa-se que essa
ontologia não carece fundar outro “mundo”, outra dimensão cognoscente,
que não a existente e factível. Nietzsche é, inclusive, extremamente crítico
de um tal procedimento. Como ele afirma:
Os filósofos costumam se colocar diante da vida e da experiência daquilo
que chamam de mundo do fenômeno como diante de uma pintura que foi
desenrolada de uma vez por todas, e que mostra invariavelmente o mesmo
evento: esse evento, acreditam eles, deve ser interpretado de modo correto,
para que se tire uma conclusão sobre o ser que produziu a pintura: isto é,
sobre a coisa em si, que sempre costuma ser vista como a razão suficiente do
mundo do fenômeno. Por outro lado, lógicos mais rigorosos, após terem
claramente estabelecido o conceito do metafísico como o do incondicionado,
e portanto também incondicionante, contestaram qualquer relação entre o
incondicionado (o mundo metafísico) e o mundo por nós conhecido: de
modo que no fenômeno precisamente a coisa em si não aparece, e toda
conclusão sobre esta a partir daquele deve ser rejeitada. Mas de ambos os
lados se omite a possibilidade de que esta pintura aquilo que para nós,
homens, se chama vida e experiência gradualmente veio a ser, está em
pleno vir a ser, e por isso não deve ser considerada uma grandeza fixa, da
qual se pudesse tirar ou rejeitar uma conclusão acerca do criador (a razão
suficiente). (…) Desse mundo da representação, somente em pequena
medida a ciência rigorosa pode nos libertar algo que também não seria
desejável , desde que é incapaz de romper de modo essencial o domínio de
hábitos ancestrais de sentimento; mas pode, de maneira bastante lenta e
gradual iluminar a história da gênese desse mundo como representação e,
ao menos por instantes, nos elevar acima de todo evento. Talvez
reconheçamos então que a coisa em si é digna de uma gargalhada homérica:
que ela parecia ser tanto, até mesmo tudo, e na realidade está vazia, vazia de
significado.
31
A ciência rigorosa que “pode nos libertar” representa justamente a
pesquisa pelo conjunto das existências singulares. A coisa em si, o elemento
externo e lógico que, segundo a metafísica geral, seria o responsável pelo
vir-a-ser do mundo, é caracterizada por Nietzsche como vazia de sentido. Os
fenômenos, aquela dimensão da existência relegada a segundo plano na
metafísica ocidental, seriam, eles próprios, de um ponto de vista ontológico,
acontecimentos vazios de sentido. O sentido da existência atribuído pela
metafísica revelaria uma perspectiva sobre o valor da vida, que Nietzsche
procura desarticular. Para ele, o sentido da existência, sua essência, não
reside fora do mundo, mas na própria experiência, na própria vida. Na
31
HDH, 16.
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74
valorização e sublimação de um sentimento de insatisfação e desprazer, a
cruzada metafísica buscaria a essência na supressão e redução do mundo a
um princípio teórico e de caráter eminentemente modelar. O sentimento
forte que, como chamamos atenção no primeiro capítulo, faz com que os
homens imaginem que “com sentimentos profundos chegamos ao profundo
interior”
32
, opera como uma espécie de catalisador desta perspectiva, sem
que entretanto o próprio filósofo se aperceba desta relação. E, neste ponto,
podemos obsevar, novamente, uma dupla argumentação em Nietzsche, que
se entrelaça em seus escritos. Por um lado, ele se posiciona contra a
“metafísica” e seus pressupostos lógicos, mas também, em certa medida,
contra o indivíduo metafísico, isto é, o indivíduo que alimenta a metafísica
com seu trabalho teórico. Por outro lado, Nietzsche articula outras
concepções em favor de sua própria ontologia. Neste último caso, ao
contrário dos filósofos metafísicos, ele não elabora sua ontologia de forma
sistemática não pelo menos como se compreende o sistema na filosofia
moderna ficando a cargo dos pesquisadores e comentadores a localização
e articulação dos textos que fundamentam essa ontologia.
Foucault talvez tenha sido o pensador que, na filosofia
contemporânea, melhor sintetizou essa “ciência rigorosa”. Através de sua
expressão “ontologia do presente”, francamente influenciada por Nietzsche,
ele historicizou o díptico essência/existência, dando-lhe um sentido
cambiante e impreciso, de acordo com a própria imprecisão e abertura de
sentido da realidade. A essência verdadeira do mundo é a “inocência do vir-
a-ser”
33
, isto é, a abertura de sentido da realidade (em Nietzsche, o eterno
retorno). E a existência é o movimento difuso da vida que se espraia pelo
universo (a vontade de poder). A partir dessas concepções, a ontologia de
Nietzsche ou pelo menos os aspectos ontológicos de seu pensamento
se configura de modo a desarticular os valores vigentes e levar seus leitores
à desestabilização moral.
32
HDH, 15.
33
CI, VI, 7 e 8
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75
3.1.3
Os limites da interpretação de Heidegger
Afirmar que Nietzsche criou uma ontologia pode parecer
simplesmente uma provocação gratuita contra Martin Heidegger, cuja
célebre interpretação possui como argumento central a idéia de que “o
pensamento de Nietzsche, em conformidade com todo o pensamento do
ocidente desde Platão, é metafísica.”
34
Se por um lado direcionamos nossos
argumentos no sentido de desarticular esta idéia, por outro reconhecemos
que Heidegger acerta ao inferir da obra de Nietzsche, o tema da verdade e
do ser. Portanto, não se trata, pelo menos preliminarmente, de uma
“resposta” a Heidegger; ao contrário, levamos em consideração sua
percepção de que Nietzsche, mesmo com toda sua artilharia pesada contra
quaisquer idealismos, ainda assim chamava atenção para questões dessa
natureza. Outra intuição de Heidegger que admitimos e buscamos
problematizar é a construção desta questão através da conexão entre dois
conceitos fundamentais: o eterno retono e a vontade de poder. Aqui também
admitimos em parte a conclusão heideggeriana de que “a determinação da
conexão entre [a doutrina do eterno retorno] com o pensamento fundamental
da vontade de poder”
35
se encontra no cerne da questão do ser para
Nietzsche. Adiante, entretanto, torna-se difícil, senão impossível,
acompanhar a perspectiva de Heidegger. Por mais que a famigerada, porém
curiosa, citação de Deleuze que compara o ato interpretativo ao ato sexual
reflita em certos aspectos a frase de Heidegger segundo a qual “toda
interpretação não somente deve extrair do texto a coisa de que se trata, (…)
[como também] tem que poder agregar algo próprio, proveniente de sua
própria coisa”
36
, há que se pôr em questão em que sentido determinadas
interpretações atingem graus diferentes de aproximação em relação à
“coisa” interpretada. Em termos nietzscheanos: o que importa em uma
interpretação qualquer é se ela estimula e reflete uma moral nobre ou
34
Heidegger, Martin. Nietzsche Zweiter band. “Nietzsches Metaphysik.” Berlim: 1961, p.
257.
35
Idem, op. cit., “Die ewige Wiederkher des Gleichen und der Wille zur Macht.” Berlim:
1961, p. 8
36
Idem, op. cit., “Nietzsches Metaphysik”, p. 262.
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76
escrava; se propicia uma abertura para a perspectiva afirmadora da vida com
todos seus sofrimentos, entraves e limites, ou se abre um caminho para a
regulação do sofrimento e a duplicação da realidade.
A estrutura desse sub-capítulo refletirá a preocupação quanto a
algumas questões que nos parecem fundamentais no que diz respeito à
inferência de Heidegger. Os pressupostos que são maquinados em sua
interpretação foram constituídos por elementos imprecisos que lhe conferem
um certo grau de equívoco e, por outro lado, usando uma expressão cara a
Nietzsche, um sentido de décadence, já que, como afirmamos no primeiro
capítulo, a décadence também estimula modos de vida regulados pela
introdução de elementos compensatórios. Buscaremos aqui problematizar as
idéias de Heidegger no mesmo passo em que prosseguiremos delineando a
ontologia de Nietzsche. Principalmente, traçaremos algumas linhas de
interpretação do eterno retorno, identificando na perspectiva histórico-
filológica e interpretativa de Mazzino Montinari a definitiva demonstração
das limitações inerentes à interpretação heideggeriana.
Para Heidegger, a ontologia fundamental tem por função precípua o
descobrimento da constituição fundamental do ser da existência,
representada pela assunção de sua finitude. A ontologia, tendo este caráter
“fundamental”, se ocuparia do ser enquanto elemento incondicionado, mas
não do ponto de vista formal (lógico), nem do ponto de vista da existência
mesma. Em Heidegger, o ponto de partida da reflexão sobre o ser é o
elemento que torna possível a existência o des-cobrimento da finitude.
Mas esta ontologia fundamental se configura como um primeiro passo para
o que Heidegger chamava “metafísica da existência.” Assim, o autor
submete novamente a ontologia à metafísica, o que em termos gerais
significa a submissão do ente à fantasmagoria conceitual, do “mundo
aparente” ao “mundo verdadeiro”, enfim, da existência à essência.
A metafísica, enquanto verdade do ente pertencente ao ser, não é nunca em
primeiro lugar a visão e o juízo de um ser humano, nunca somente um
edifício doutrinal e expressão de sua época. Tudo isto também o é, mas
sempre como conseqüência posterior e em sua fase externa. O modo,
entretanto, pelo qual alguém é conclamado a salvaguardar a verdade no
pensamento e assumir a rara disposição, fundamentação, comunicação e
preservação da verdade no projeto existencial-contemplativo [existezial-
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77
ekstatischen] delimita o que se chamará posição metafísica fundamental de
um pensador.
37
Heidegger imputa a Nietzsche esta “posição fundamental”, deslocando
a metafísica das disputas e polêmicas que marcaram seu percurso desde a
Grécia antiga, doando-lhe um sentido essencialmente supra-sensível.
Através de um procedimento teórico-especulativo, desloca o sentido
histórico da metafísica e a destaca no “interior do problema do ser.”
Heidegger, ao contrário de Nietzsche, concebia o “ser” em relação a uma
outra realidade, certamente mais nobre que a realidade vivida e efetiva.
Mais que isso, a verdade sobre o ser conclama: ela se revela ao pensador,
ela é autônoma em relação aos problemas mais gerais da vida, ela possibilita
a vida. Mas, para Nietzsche, o ser (a coisa em si) não se relaciona com o
ente, senão que ele é o próprio “ente.” Entre uno e múltiplo em Nietzsche,
só pode haver uma relação entre matéria e pensamento, entre valores, e não
entre algo que está dentro ou fora da ordem do real. Para Nietzsche, só
podemos refletir sobre essas questões enquanto valores, do lado de fora do
campo epistemológico da metafísica moderna e, portanto, fora daquilo que
Heidegger chamou “projeto básico e inicial da metafísica ocidental.”
38
Heidegger considera que, na medida em que Nietzsche mantém os
pontos de articulação basilares da metafísica ocidental o ser, a relação
entre uno e múltiplo ele ainda faz parte da história desta metafísica como
seu “acabamento” [Vollendung].
39
A posição fundamental a partir da qual a era da metafísica ocidental chega
ao seu acabamento se vê, então, integrada a uma controvérsia de uma
natureza totalmente diferente. O conflito não é mais a luta pelo domínio do
ente. Este se interpreta e se governa hoje em todas as partes de modo
“metafísico”, mas sem superar a essência da metafísica. O conflito é a
confrontação entre o poder do ente e da verdade do ser.
40
37
Idem, op. cit., p. 258.
38
Idem, op. cit., “Die ewige Wiederkher des Gleichen und der Wille zur Macht”, p. 8:
dem tragenden und die ganze metaphysik geschichte anfänglich.”
39
Idem, op. cit., p. 7.
40
Idem, op. cit., “Nietzsches Metaphysik”, p. 262.
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78
O projeto inicial que estrutura a metafísica ocidental (“o ente ancorado
no ser”
41
), portanto, é algo simultaneamente distinto e idêntico a seu
“acabamento.” Mas, em qualquer um dos sentidos, é considerado em termos
de uma oposição. São problemas diferentes, expostos segundo o mesmo
dualismo constitutivo. A “verdade do ser” perduraria como elemento
externo, configurado como condição transcendental, e delimitaria a posição
ambígua deste acabamento: posição histórica, mas que traz em seu cerne a
“verdade do ser.” O pensamento de Nietzsche, para Heidegger, refletiria a
posição fundamental da metafísica ocidental por expressar e problematizar
este confronto como acabamento na “história final” da modernidade.
Por mais que Nietzsche enfatize a sua concepção do que vem a ser a
metafísica um valor, delimitado pela condição do homem, esculpido a
partir de uma perspectiva sempre parcial e fragmentária, mas sobretudo,
décadent Heidegger, por seu lado, insiste em investir numa
caracterização metafísica da filosofia de Nietzsche. Diante de um sem
números de textos em que deixa bem clara sua posição quanto a esse
problema
42
, beira a estranheza o excerto de Heidegger, retirado do texto
intitulado O eterno retorno do mesmo e a vontade de poder, no qual ele
afirma que
A doutrina de Nietzsche não é, entretanto, superação da metafísica, senão
que é a mais extrema e cega reinvindicação de seu projeto inicial. (…) Mas
outra coisa está em jogo. Perguntar pelo sentido metafísico-histórico da
doutrina nietzscheana do eterno retorno de modo insuficiente, quebra ao
meio a íntima necessidade do curso histórico do pensar ocidental e assim, ao
exercer também ele [Nietzsche] a maquinação esquecida do ser, confirma o
abandono do ser.
43
O que atestaria esta posição de Nietzsche na história da metafísica
moderna, segundo Heidegger, é a “a determinação da conexão entre (a)
doutrina (do eterno retorno) com o pensamento fundamental da vontade de
poder.” Trataremos o tema da vontade de poder no terceiro capítulo, onde o
conceito será analisado em conformidade com o tema da “grande política.”
41
Idem, op. cit., “Die ewige Wiederkher des Gleichen und der Wille zur Macht”, p. 7:
“Seiendes gelichtet im Sein.”
42
Cf.: p. ex., ABM 12, 229; CI, III 3, VI 3; HDH 6, 8 e 9, entre diversos outros, inclusive
nos fragmentos póstumos.
43
Heidegger, op. cit., p. 12.
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79
Por ora, para que possamos avançar numa análise do eterno retorno,
tomemos a vontade de poder basicamente como “essência da vida”
44
pois
vida é precisamente vontade de poder”
45
o registro orgânico (a matéria
em toda sua dimensão e espessura) e inorgânico (o acontecimento, o
pensamento) da vida que se espraia pelo universo no eterno retorno do
mesmo. Heidegger afirma que, segundo esta unidade, Nietzsche cumpre os
requisitos da posição fundamental, desta vez conformada ao projeto
moderno. Mas de que modo ocorre esta conexão?
1. O pensamento do eterno retorno do mesmo concebeu [denkt] o
pensamento fundamental da vontade de poder antecipadamente em um
sentido metafísico-histórico, quer dizer, em direção a seu acabamento.
2. Ambos os pensamentos pensam [Gedanken denken] metafisicamente o
mesmo, no âmbito da modernidade e da história final [endgeschichtlich].
3. Na unidade essencial de ambos os pensamentos, a metafísica que chega
a seu acabamento [vollendende] disse sua última palavra.
4. Resta a unidade essencial inaudita, justificando uma época de completa
carência de sentido [Sinnlosigkeit].
5. Esta época cumpre com a essência da modernidade, que somente desta
maneira chega a si mesma.
6. Historicamente, este cumprimento é, ocultamente e contra a aparência
pública, a necessidade da transição que assume tudo o que passou e
prepara o caminho futuro em direção à guarda da verdade do ser.
46
Para Heidegger este ser, incondicionado, se revela intelectualmente,
sem entretanto se exprimir de forma histórica. A verdade, ainda que
considerada de um ponto de vista externo à história do corpo, se abre em
determinados momentos como “fundamento da história da metafísica”
47
,
revelando o sentido profundo do desenrolar histórico. O pensador, a quem a
verdade confia sua publicização, acessa o sentido da modernidade e o
enuncia como “ausência de sentido”, representada não por uma expressão
histórica qualquer, mas através de um silêncio repleto de significado. A
ausência de sentido, característica do acabamento do projeto moderno, é
produto da escuta do filósofo, que ao voltar os olhos para si mesmo percebe,
num “rasgo” da razão, o sentido profundo e, portanto, fundamental do
acabamento. Mas para Nietzsche, o problema ontológico não deveria ser
44
GM, II, 12.
45
ABM, 259.
46
Heidegger, op. cit., “Die ewige Wiederkher des Gleichen und der Wille zur Macht”, p. 9.
47
Idem, op. cit., “Nietzsches Metaphysik:, p. 260: “den Grundzügen der Geschichte der
Metaphysik nachzudenken.”
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avaliado em termos fundamentais, “pois no conjunto a humanidade não tem
objetivo nenhum” e, portanto, não possui um fundamento ao qual seria
preciso retornar. Claro está que, por mais que Heidegger traga a discussão
para o espaço da finitude, mais ele toma como referência o “mundo
verdadeiro” e essencial que o próprio Nietzsche buscou desarticular.
Heidegger concebe a questão antropomorficamente, a partir de um ser
cognoscente central. E neste ponto, reside uma outra diferenciação de
pressupostos entre a ontologia de Nietzsche e a metafísica na qual
Heidegger procura situá-lo. O eterno retorno e a vontade de poder não
podem ser pensados a partir da teoria do conhecimento moderna, na qual o
livre arbítrio e a concepção antropomórfica da realidade se entrelaçam para
fundar o problema. Aqui, como em toda a metafísica moderna, o homem
ainda se toma como o centro do mundo, tal como Nietzsche buscou
denunciar em diversas passagens de sua obra.
Mas se as evidências quanto ao caráter não-metafísico do pensamento
de Nietzsche e, particularmente, do eterno retorno, são abundantes, o que
leva Heidegger a considerá-los como o atestado definitivo da conformação
de Nietzsche ao projeto inicial da metafísica ocidental? É bem verdade que
a articulação teórica que Heidegger executa extrapola a problemática do
eterno retorno, referindo-se também à vontade de poder, ao niilismo, ao
Übermensch e à justiça. Mas é igualmente verdadeiro, como o próprio
Heidegger assume, que
o pensamento do eterno retorno é, sobretudo, anterior, quer dizer,
antecipador, por seu conteúdo, sem que Nietzsche mesmo tenha sido capaz
de pensar expressamente a unidade essencial (do eterno retorno) com a
vontade de poder e de elevá-la metafisicamente ao conceito.
48
Se enquanto submetia os entes aos valores supremos, “válidos até o
momento”
49
, o projeto original da metafísica garantia sua continuidade e
estabilidade, o “acabamento”, isto é, o confronto entre a verdade do ser e o
ente emancipado, por sua vez introduziria nas relações sociais a incerteza de
um mundo “invalorável.” O niilismo, a doença da vontade, é para
48
Idem, op. cit., “Die ewige wiederkher des Gleichen und der Wille zur Macht”, p. 10.
49
Idem, op. cit., “Nietzsches Metaphysik”, p. 275.
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Heidegger, justamente o processo de desvalorização dos “valores
supremos”, que ocorre quando a existência toma a palavra acerca do
problema do ser. Heidegger se serve da célebre sentença nietzscheana “O
valor total do mundo é invalorável”
50
para desenhar todo um sistema de
significação metafísica para o eterno retorno, que começa por definir o valor
total do mundo:
Este princípio fundamental da metafísica de Nietzsche não quer dizer que a
capacidade humana não está em condições de descobrir o valor total que,
entretanto, existiria ocultamente.
51
Adiante, Heidegger utiliza outra frase de Nietzsche, do mesmo
aforismo, para prosseguir seu raciocínio. A frase é apresentada da seguinte
forma: “O vir-a-ser (quer dizer o ente em sua totalidade) não tem nenhum
valor.” A partir desta última frase, tão incompleta quanto a primeira,
Heidegger deduz que
A proposição tem um sentido essencial. Expressa a carência de valor do
mundo. Nietzsche compreende todo “sentido” como “fim” e “meta”, mas
compreende fim e meta como valores. De acordo com ele, podemos dizer: “a
absoluta carência de valor, quer dizer de sentido”, “a carência de meta em si”
é “o principal artigo de fé” do niilista. Entretanto, não pensamos mais o
niilismo de forma “niilista” como uma dissolução que vai desintegrando-se
no nada. A carência de valor e de meta, então, tampouco pode significar um
defeito, o mero vazio, a mera ausência. Estes títulos niilistas para o ente em
sua totalidade se referem a algo afirmativo e algo essencial, a saber, ao modo
como isto traz à presença o todo do ente. A palavra metafísica para isto é: o
eterno retorno do mesmo.
52
Em oposição à carência de sentido, de “fim” e “meta” que, segundo
Heidegger, constituiria o fundamento do niilismo moderno, o eterno retorno
do mesmo, por sua vez, “traz à presença o todo do ente.” Articulado à
vontade de poder, o eterno retorno enceta o veredito final da metafísica
ocidental. A vontade de poder, como determinação do ente na modernidade,
e o eterno retorno como determinação do ente em sua “história final”, se
unem no pensamento de Nietzsche, mas somente o eterno retorno se articula
como “determinação.” A conexão entre a vontade de poder e o eterno
50
O.P.C. (XIII), p. 233. KSA 11[72].
51
Heideger, op. cit., “Nietzsches Metaphysik”, p. 283.
52
Idem.
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82
retorno a que Heidegger se refere significa, portanto, a afirmação de uma
preeminência do conceito, de um traço abstrato que restituiria o ente à sua
“essência.” Voltemos, pois, aos aforismo originais e completos a que
Heidegger alude. Primeiro, o aforismo 708 desta falsa obra que é A Vontade
de Potência:
Se o movimento total do universo tivesse um estado final seria necessário
que já o tivesse atingido. Ou o único fato fundamental é que não há
nenhuma finalidade: e toda filosofia ou hipótese científica (por exemplo o
mecanismo) no qual um tal estado se torna necessário, se acha refutado por
esta única realidade… Eu busco uma concepção de mundo que faz justiça
ao seguinte fato: o vir-a-ser deve ser explicado sem recorrer a esse gênero
de intenção finalista. Eu penso que o vir-a-ser se justifica a todo instante
(ou invalorável: aquilo que retorna ao mesmo): o presente não pode ser
justificado em razão de um futuro ou o passado em razão de um presente.
(…)
Mais rigorosamente: de uma maneira geral não admitimos nenhum ser,
porque então o vir-a-ser perde seu valor e aparece perfeitamente insensato
e supérfluo.
Consequentemente, resta perguntar: como a ilusão do ser pôde nascer
(como sua formação se tornou necessária)
(…)
mas, desse fato, reconhecemos que esta hipótese do ser é a fonte de todas
as calúnias no que diz respeito ao mundo.
(…)
1. o vir-a-ser não possui nenhum estado final, não repousa sobre um “ser.”
2. o vir-a-ser não é um estado aparente: talvez o mundo seja, ele mesmo,
uma aparência.
3. o vir-a-ser possui o mesmo valor a todo instante: a soma de seu valor
permanece igual a ele mesmo: em outros termos: o mundo não tem valor
porque lhe falta qualquer coisa, de acordo com o qual ele fosse valorável e
ao qual relativamente a palavra “valor” tem algum sentido.
O valor total do mundo é invalorável…
53
Ora, não é justamente contra quaisquer tipos de preeminência
ontológica que se insurge Nietzsche no aforismo em questão? É preciso,
neste caso, recorrer a uma distinção interna ao pensamento de Nietzsche, e
que tentamos refletir na estrutura de nossa dissertação, isto é, a distinção
entre os aspectos de sua obra que visam uma perspectiva do problema da
existência, e outro aspecto que visa o problema propriamente ontológico.
Nietzsche afirma que “o valor total do mundo é invalorável” porque à
medida em que sua concepção de mundo se adequa ao problema do valor da
vida, se distinguem elementos a partir dos quais podemos pensar e agir, e
53
O.P.C. (XIII), p. 233. KSA 11[72].
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outros elementos que, em sendo elemento absolutamente desconhecidos e,
pelo menos por ora, inatingíveis, não podemos nem nos referir sem recorrer
à metáforas e projeções antropomórficas. Se “o único fato fundamental é
que não há nenhuma finalidade” e não há nenhum “ser” a não ser o “vir-a-
ser”, então a concepção de mundo de Nietzsche afirma o ser como
movimento. O ser não “é”, por assim dizer; o ser “está sendo” na unidade
total e fulgurante do acontecimento pleno. O “vir-a-ser não possui nenhum
estado final, não repousa sobre um ‘ser’”, de modo que também não se pode
dizer que a ontologia de Nietzsche se articula a partir de “carências”, pois
não lhe falta nada, não é dado ao homem “esquecer” o ser… Nietzsche
registra uma concepção do ser que procura não incorrer nos mesmo erros de
interpretação que as concepções precedentes. E deixa claro que parte deste
trabalho se situa no campo da psicologia, indicando que, antes de mais nada,
cabe perguntar porque as diversas culturas e civilizações, para definir o
mundo, resvalaram em imperativos abstratos. Enfim, o mundo é invalorável
não por conta de um projeto qualquer, vinculado a qualquer perspectiva
compensatória do real, mas porque, como afirma Nietzsche, o mundo
“sempre retorna ao mesmo.”
Mas o que ocorre na relação entre o pensamento de Nietzsche e a
interpretação de Heidegger? O que levaria autores tão estimados a uma
divergência tão radical quanto a seus propósitos? Que Heidegger projetou
sobre Nietzsche seus desejos mais profundos em relação à tradição
metafísica ocidental, isto se confirma pela própria obra de Nietzsche e seus
ataques à metafísica. Mas será que estamos diante de um caso puramente
pessoal, em que a possível genialidade conceitual de Heidegger extrairia
conteúdos inexistentes e interpretações equívocas? A vontade de poder e o
eterno retorno são parte da ontologia de Nietzsche que, situados fora de seu
contexto efetivo, se tornam elementos ainda mais complexos. Mas como
situá-los em seu contexto? E de que contexto se trata? Walter Kaufmann
observa que
a imagem de Nietzsche como grande metafísico aparece junto com a
concepção de Nietzsche como politiker; não somente ambas as teses são
defendidas por Bäumler no mesmo livro, como são baseadas nos mesmos
princípios exegéticos isto é, a concentração nos fragmentos e notas que
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são tendenciosamente organizados de modo a produzir um ‘sistema’ bastante
divergente das intenções de Nietzsche.
54
Como Kaufmann, temos razão para crer que é a partir de uma
compreensão equívoca do eterno retorno, estimulada entretanto pela
irresponsabilidade editorial do Nietzsche-Archiv, mas também em virtude de
uma certa artimanha conceitual e boa dose de desatenção por parte de
Heidegger, que se alimenta o erro crasso de pensar a filosofia de Nietzsche
metafisicamente. Politiker, no sentido de um intelectual-funcionário do
Reich, Nietzsche certamente não era, ao contrário de Heidegger. Chega-se a
esse veredito justamente por vias tortas, extraídas erroneamente do caráter
ontológico do eterno retorno e da vontade de poder. Porque não se
compreende a ontologia imanente de Nietzsche, mas se percebe que ele toca
nesses problemas, se predica erroneamente ao filósofo o rótulo “metafísico.”
Por outro lado, sabe-se que a edição crítica organizada por Giorgio Colli e
Mazzino Montinari no final dos anos 60 não só alterou absolutamente a rota
dos estudos nietzscheanos, como também, através do descobrimento de uma
série de novos fragmentos censurados pelos editores do Nietzsche-Archiv,
ampliou a gama de problemas, trazendo conseqüências fundamentais para a
compreensão da “grande política”, do eterno retorno e da vontade de poder.
Mais que isso, longe de se resumir a uma erudição estéril, o minucioso
trabalho de Colli e Montinari se configurou como um passo fundamental nas
pesquisas acerca da obra de Nietzsche, embora seja importante dizer, em
termos preliminares, que “o trabalho editorial, filológico, (…) sozinho não é
suficiente para a compreensão de Nietzsche.”
55
Com isso não se quer dizer
que todas as interpretações da obra de Nietzsche antes de Colli e Montinari
são equívocas embora o sejam em boa parte; ou que uma interpretação
adequada a estes critérios não possa eventualmente “errar”, quero dizer,
trazer conteúdos à tona de forma equívoca, mesmo levando em consideração
a edição crítica. Ao contrário, a descoberta, reunião e organização crítica
dos fragmentos, determinados cronologicamente e em relação às leituras e
biografia do autor, precisa de forma diferenciada não só a gênese e
construção de idéias que permaneciam excessivamente evocativas ou
54
Kaufmann, Walter, Nietzsche. Philosopher, Psychologist, Antichrist, p. 416.
55
Montinari, Ler Nietzsche: O crepúsculo dos ídolos. p. 78.
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85
incompletas como a própria questão do eterno retorno do mesmo
como também, e sobretudo, idéias não exploradas ou mal exploradas, como
por exemplo a questão da “grande política.”
O fato é que erros terríveis foram encontrados por Colli e Montinari
ao cabo de sua pesquisa. A Vontade de Potência, por exemplo, foi
considerada obra magna de Nietzsche até a descoberta de que era apenas
uma compilação desarvorada, que trazia inclusive aforismos escritos por
outros autores e tomados como se fossem de Nietzsche.
56
Descobriu-se
também que “das ruínas da ‘Vontade de potência’ que, entretanto, jamais
fora um edifício, ele apanhou o material utilizável para o Crepúsculo dos
ídolos e O Anticristo.”
57
Afora estes equívocos grotescos, a própria
discrepância entre as interpretações de Deleuze, Heidegger, Klossowski,
Fink, entre outros, atestam que a obra de Nietzsche, profundamente
corrompida por seus problemas editoriais, se prestava a quaisquer tipos de
apropriações. E neste ponto, vale reconhecer aqueles que, diante do trabalho
de Colli e Montinari, souberam refazer suas perspectivas sobre Nietzsche.
Como afirma Ernani Chaves, em nota:
Como se sabe, o resultado do trabalho de Colli e Montinari recebeu
aprovação imediata das editoras Adelphi, de Milão e Gallimard, de Paris. Só
foi possível encontrar uma editora alemã, a partir da intermediação de Karl
Löwith, que Colli e Montinari conheceram pessoalmente no Colóquio
Royaumont, em 1964.
58
(…) foi Deleuze quem insistiu no convite a Montinari, para que ele
participasse do Colóquio em Royaumont. (…) Na Introdução escrita por
Deleuze e Foucault para a edição francesa, eles destacam a importância da
edição nos mesmos termos de Montinari. Quanto a Heidegger, embora tenha
morrido oito anos após o início da publicação da edição crítica, não
conhecemos nehuma alusão ao trabalho de Montinari.
59
56
Refiro-me ao fragmento 15 (41), do início de 1888, redigido por Charles Féré (1852-
1907), médico dos nervos e estagiário no serviço de Charcot, na famosa Salpêtrière de
Paris, de quem Nietzsche tomou emprestado o tema da décadence. Montinari, Ler
Nietzsche: O crepúsculo dos ídolos. São Paulo. In: Cadernos Nietzsche 3, 1997, p. 87. V.
também p. 128.
57
Montinari, op. cit, p. 80.
58
Chaves, Ernani. Ler Nietzsche com Mazzino Montinari. São Paulo. In: Cadernos
Nietzsche 3, 1997, p. 75.
59
Idem.
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86
No que diz respeito ao nosso problema, a questão do eterno retorno e
seu caráter essencialmente ontológico, a situação é ainda mais problemática.
Como Nietzsche afirma em Ecce Homo, o pensamento do eterno retorno do
mesmo, “a mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto
alcançar”
60
, foi cunhado em 1881. Antes das edições críticas, tomava-se o
fragmento 334 da falsa obra A vontade de potência como a referência
central no que diz respeito ao eterno retorno. Mas a pesquisa revelou que,
não somente esse “aforismo” havia sido arbitrariamente composto pelos
editores a partir da reunião de dois fragmentos díspares, como também foi
disposto na edição de A vontade de poder, absolutamente desvinculado do
grupo de textos que o contextualiza e esclarece. Somente após o trabalho
das edições críticas, tomamos contato com o conteúdo do caderno em que
foram recolhidos os primeiros fragmentos acerca do tema. O caderno data
da primavera-outono de 1881, contém 160 páginas e 350 fragmentos. Nele,
Nietzsche pretendia anotar idéias “para uma exposição científica do eterno
retorno.” Estes textos foram publicados na íntegra definitivamente em 1973,
e antes desta publicação, era impossível reunir subsídios adequados à
compreensão do eterno retorno. A gênese do conceito está ligada a um
debate com o qual Nietzsche se envolveu acerca da possibilidade de “morte
térmica do universo”, estimulada pelos dois primeiros princípios da
termodinâmica, que dizem respeito à entropia. O debate trazia à baila uma
renovada polêmica entre a concepção linear e a concepção circular do
tempo
61
, na qual Nietzsche buscava se posicionar. Tomados por um “forte
grau de intertextualidade", esses fragmentos testemunham a consciência que
Nietzsche possuía acerca de questões concernentes à cosmologia, mas eram
lidos e interpretados absolutamente deslocados de seu contexto. De modo
que, antes de elucidar esta intertextualidade, o eterno retorno do mesmo
permanecia numa esfera evocativa, que em nada auxiliava seus
comentadores. Perdidos, estes trataram logo de preencher os espaços
esvaziados pela inevitável incompreensão com especulações que mais
deturparam do que esclareceram as idéias de Nietzsche.
60
EH, Z, 1.
61
D’Iorio, Paolo. O eterno retorno. Gênese e interpretação, p. 71.
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87
Segundo pesquisadores, o caderno M III 1 de 1881 é um dos raros
exemplos nos quais Nietzsche inicia o desenvolvimento de um conceito e
mantém os mesmos argumentos nos textos seguintes: trata-se portanto de
um elemento fundamental de seu pensamento, com o qual o filósofo moldou
sua concepção de mundo. E eis que, verificando os textos deste caderno de
1881, encontramos o seguinte fragmento:
O mundo das forças não é passível de nenhuma diminuição: pois senão, no
tempo infinito, se teria tornado fraco e sucumbido. O mundo das forças não é
passível de nenhuma cessação: pois senão esta teria sido alcançada, e o
relógio da existência pararia. O mundo das forças, portanto, nunca chega a
um equilíbrio, nunca tem um instante de repouso, sua força e seu movimento
são de igual grandeza para cada tempo. Seja qual for o estado que esse
mundo possa alcançar, ele tem de tê-lo alcançado, e não uma vez, mas
inúmeras vezes. Assim, este instante: ele já esteve aí uma vez e muitas vezes
e igualmente retornará, todas as forças repartidas exatamente como agora: e
do mesmo modo se passa com o instante que gerou este, e com o que é filho
do de agora. Homem! Tua vida inteira, como uma ampulheta, será sempre
desvirada outra vez e sempre se escoará outra vez, um grande minuto de
tempo no intervalo, até que todas as condições, a partir das quais vieste a ser,
se reúnam outra vez no curso circular do mundo. E então encontrarás cada
dor e cada prazer e cada amigo e cada inimigo e cada esperança e cada erro e
cada folha de grama e cada raio de sol outra vez, a inteira conexão de todas
as coisas.
62
A concepção do eterno retorno se situa, nesses cadernos, num debate
cosmológico que contava com filósofos e cientistas como Eduard von
Hartmann, Otto Caspari e Eugen Dühring, citados por Nietzsche em
diversas passagens.
63
Os aforismo do caderno M III 1, incluindo o aforismo
acima, atestam que Nietzsche não só buscava formular respostas aos
sistemas cosmológicos da época, como também, na contrapartida de seus
argumentos, ele desenhava sua concepção ontológica. O eterno retorno,
portanto, longe de se afigurar metafisicamente, é produto de um debate
muito específico, no qual Nietzsche se apoiou para construir os aforismos
em questão. Se ele afirma que o mundo das forças não é passível de
nenhuma diminuição e de nenhuma cessação, é porque responde
diretamente a Eduard von Hartmann, para quem a concepção teleológica do
62
Obras incompletas, p. 389.
63
Cf.: O.P.C. (XIV); KSA 19 [10]. .”..essas nulidades tagarelas, como o Sr. E. Von
Hartmann, o inconsciente, ou um canalha que escarra a bile e a peçonha do anti-semitismo
berlinense, E. Dühring, que se arroga abusivamente do título de filósofo...”
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mundo pressupunha uma liberação progressiva do tempo, conforme o
desenrolar de uma luta metafísica entre princípios lógicos e ilógicos. Se ele
afirma que o mundo não se expande, nem se equilibra em repouso, é porque
responde ao organicismo de Otto Caspari, para quem a concepção de mundo
passava “de uma visão do orgânico enquanto máquina à do cosmo enquanto
organismo.”
64
Portanto, em primeiro lugar, a ontologia nietzscheana não se
encaixa no rótulo metafísico, sobretudo porque, ao contrário do que afirma
Heidegger, o debate está situado em outra esfera de conhecimento que não o
especulativo-metafísico. O eterno retorno é um conceito que nasce de um
diálogo com uma série de interlocutores, cujo debate fora apagado pela
edição desastrada dos textos.
O “retorno” não deve ser entendido como “repetição”, mas como
reiteração ou afirmação total, quer dizer: todas as forças que compõem o
universo são, por assim dizer, absolutamente afirmadas, inclusive a dor, o
sofrimento, e, sobretudo, aquilo que a dimensão humana não pode ou não
consegue apreender. O eterno retorno é também uma declaração de
ignorância, na medida em que, como afirmava Espinosa, “não sabemos o
que pode um corpo.” O eterno retorno é a fulguração do acontecimento
pleno como a única realidade possível, como a única realidade existente e
essencial. Quando Nietzsche afirma que “encontrarás” cada coisa outra vez,
não quer dizer que veremos “novamente”, como algo externo que
“reencontramos”, mas que tudo é o mesmo, infinitamente. Mas, se como
afirmamos no início deste sub-capítulo, a hipótese de Heidegger acerca da
conexão entre a vontade de poder e o eterno retorno é, a principio correta, a
que tipo de conexão estamos nos referindo? Se o eterno retorno é afirmação
absoluta e a vontade de poder é “essência de vida”, qual a relação entre as
duas?
Ao definirmos a vontade de poder basicamente como “essência da
vida”
65
, a matéria em toda sua dimensão e espessura, mas também o
pensamento, damos certamente um aspecto ôntico à sua definição, como se
o eterno retorno, tal como desejou Heidegger, representasse a dimensão
verdadeira deste mundo de aparência. Mazzino Montinari situa a questão de
64
D’Iorio, op. cit., p. 87.
65
GM, II, 12.
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89
uma outra forma e, segundo nosso entendimento, contrária a Heidegger.
Com relação à frase final de O Crepúsculo dos Ídolos, em que Nietzsche
afirma ser o “mestre do eterno retorno”, Montinari escreve que
Esta posição, no fim, do pensamento do eterno retorno do mesmo, não me
parece ocasional. Este é um pensamento que está na conclusão de toda uma
história de vida e paixão. Através de sua afirmação, a vida torna-se
justificada, o mundo redimido, quando toda a dura realidade da vida for
percorrida por uma vontade de potência múltipla. Este pensamento não se
deixa compreender por fórmulas, ou melhor, todas as suas formulações são
provisórias e superáveis, na medida em que abarca num todo a vida, o
mundo e o tempo, mas não de forma transcendental, porque ele já expressa a
totalidade. Através dele acontece a confirmação da imanência após a morte
de Deus. (…) Por conseguinte, existe uma tensão no pensamento do eterno
retorno, considerado por um lado como fundamento especulativo último,
como inocência do vir-a-ser, como redenção do mundo, como a mais elevada
forma de afirmação da vida, e por outro lado, como confrontação com
situações particulares, seja a filosofia até então, ou a modernidade, o
niilismo e a décadence, a moral ou a religião, uma tensão que não é
superada, que por princípio não deve ser superada. Uma sistematização geral
da vontade de potência como princípio eliminaria, por um lado, a resolução
da luta necessária ao perspectivismo e, por outro, se igualaria à construção
de uma metafísica da vontade de potência (análoga à metafísica
schopenhauriana da vontade de vida). Mas, a presença do pensamento do
eterno retorno impede toda sistematização. (…). O sentido filosófico do
Crepúsculo dos Ídolos não é uma sistemática da vontade de potência, mas
sua superação no pensamento do eterno retorno mesmo.
66
A vontade de poder, múltipla, tão essencial quanto existente, é
absolutamente afirmada no eterno retorno do mesmo. Esta conexão não se
dá como determinação, como afirmou Heidegger, pois não há possibilidade
de que o eterno retorno possa sistematizar a vontade de poder. Montinari
chama atenção para o fato de que o eterno retorno na obra de Nietzsche
impede toda “sistematização”, quer dizer: a “coisa em si”, que na história da
metafísica ocidental possibilitaria a constituição e cristalização da verdade e
da essência do mundo, não pode ser afirmada senão enquanto valor, isto é,
enquanto produto da mente humana. A superação da sistemática da vontade
de poder se dá no mesmo passo que a superação do pensamento do eterno
retorno, mas isto não significa um voltar atrás, nem um ir à frente, mas a
assunção absoluta da existência em toda sua plenitude. Não nos esqueçamos
que, se uma ontologia emerge em Nietzsche é porque seu pensamento busca
66
Montinari, op. cit., p. 89.
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90
uma perspectiva adequada e positiva do problema do valor da vida; mas no
mesmo passo, se se pensa a existência do ponto de vista de seu desenrolar
efetivo, percebe-se que, em sendo a antropomorfização da realidade um
elemento recorrente e fundante de religiões e concepções décadents, a
afirmação do eterno retorno do mesmo é uma declaração de princípios que
se exprime na força mesma, e não fora dela. Heidegger acerta, novamente
em parte, quando afirma que “o ente que enquanto tal tem caráter
fundamental da vontade de poder só pode ser, em sua totalidade, eterno
retorno do mesmo”; mas, adiante, ele traduz Nietzsche para o campo
epistemológico da metafísica, afirmando que “a entidade do ente e o todo do
ente exigem reciprocamente, desde a unidade da verdade do ente, o modo de
sua respectiva essência.” Assim, reparte e sistematiza novamente o eterno
retorno e a vontade de poder, quando, na ordem do real, ambos são
afirmados no mesmo movimento total. Para Montinari, se a sistemática da
vontade de poder eliminaria o perspectivismo pois uma “sistemática”
resumiria uma série de perspectivas cogitáveis, tal como na metafísica
kantiana , é justamente na superação do eterno retorno, isto é, sua
afirmação absoluta, que a vontade de poder foge a toda sistematização
metafísica, afirmando todos os pontos de vista possíveis.
Qual pode ser a nossa doutrina? Que ninguém dá ao ser humano suas
características, nem Deus, nem a sociedade, nem seus pais e ancestrais,
nem ele próprio (…). Ninguém é responsável pelo fato de existir, por ser
assim ou assado, por se achar nessas circunstâncias, nesse ambiente. A
fatalidade do seu ser não pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que
foi e será. Ele não é conseqüência de uma intenção, uma vontade, uma
finalidade próprias, com ele não se faz a tentativa de alcançar um “ideal de
ser humano” ou “um ideal de felicidade” ou um “ideal de moralidade” é
absurdo querer empurrar o seu ser para uma finalidade qualquer. Nós é que
inventamos o conceito de “finalidade”: na realidade não se encontra
finalidade… Cada um é necessário, é um pedaço de destino, pertence ao
todo, está no todo não há nada que possa julgar, medir, comparar,
condenar nosso ser, pois isso significaria julgar, medir, comparar, condenar
o todo… Mas não existe nada fora do todo!
67
Cada um é necessário, “está no todo”, não importa se são coisas
subjetivas ou externas, não importa se pensamentos, sentimentos, extensão
etc. Neste aforismo, percebe-se claramente o entrelaçamento ambigüo entre
67
CI, VI, 8. Os grifos são do autor.
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91
as perspectivas cultural e ontológica que marcam o discurso nietzscheano.
Apólogo de uma rigorosa disciplina de si, Nietzsche certamente não
afirmaria que ninguém é responsável pelo fato de (…) ser assim ou
assado”, se não estivesse se referindo à uma posição ontológica. Se estivesse
situado na esfera cultural e moral, ele certamente faria uma apologia do
cultivo de si, de uma responsabilidade por seus gestos e atos. Cabe ao leitor
se orientar no mar agitado dos textos nietzscheanos, discernindo os
problemas no emaranhado de idéias.
3.1.4.
O eterno retorno: entre o pensamento e a experiência
As discrepâncias entre a interpretação de Heidegger e o pensamento
de Nietzsche ocorrem porque o eterno retorno não representa simplesmente
um conceito. Em Ecce Homo, Nietzsche descreve o momento de sua criação
como produto de uma experiência peculiar, afirmando inclusive que ela já
havia sido prenunciada não somente em estudos, mas na mudança de seu
gosto, particularmente em relação à música. De forma que talvez ele tenha
razão quando afirma que, devido ao seu caráter “pessoal”, o pensamento do
eterno retorno “por muito, muito tempo tem de ser pequeno e impotente.”
68
Para Klossowski, por exemplo, o eterno retorno é a afirmação de uma alta
tonalidade da alma (hohe stimmung), um sentimento decorrente de uma
experiência peculiar. Mas este alto sentimento não deve ser tomado como o
“sentimento forte”, ou como norma, pois, como afirma Nietzsche, “as leis
mais profundas da conservação e do crescimento exigem o contrário: que
cada qual invente a sua virtude, o seu imperativo categórico.”
69
Entretanto,
afirma Klossowski:
Não existiria, na experiência vivida por Nietzsche, uma antinomia implícita
entre o conteúdo revelado e o ensino desse conteúdo (como doutrina ética),
assim formulado: age como se tivesses que reviver inúmeras vezes e deseja
viver inúmeras vezes pois, de um modo ou de outro, terás que reviver e
recomeçar?
70
68
Obras incompletas, p. 390.
69
AC, 11
70
Klossowski, op. cit., p. 77.
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92
Se o encontro entre a experiência vivida e a necessidade de comunicá-
la, culmina na ausência de conteúdo, visto que, de um ponto de vista
externo, a intensidade afetiva só pode ser representada, e não
experimentada, o que nos autorizaria, então, a pensar o eterno retorno como
parte de uma ontologia, se ela mais cedo ou mais tarde, recairá novamente
no antropocentrismo? Quando este sentimento se evapora, resta a
experiência como lembrança; mas o que teria ocorrido a seu conteúdo?
Poderia a mais elevada forma de afirmação ter-se transmutado em
perspectiva ética? Se a antinomia entre experiência e conhecimento é
flagrante neste sentido, sob que aspectos se pode conceber o eterno retorno
como perspectiva ontológica?
Em primeiro lugar, “reviver inúmeras vezes” não significa retornar ao
mesmo espaço e tempo, nem buscar repetir somente as experiências
agradáveis, nem afirmar seus valores através do mero orgulho pessoal. A
expressão “como se” (viva como se…) não está relacionada a um tempo que
se esgota, ou a uma definição de caráter, mas ao cultivo da “alta tonalidade
da alma”, que pode ser formulada também como a busca por nosso próprio
“imperativo categórico.” A vida, inclusive, não pode ser pensada em termos
de passado ou futuro; nossas experiências são meros produtos das
interpretações dos acontecimentos sucessivos, de modo que somente nos
resta viver sob o mais alto sentimento. Guardemo-nos
71
inclusive de
perguntar o que é o tempo para Nietzsche. Ele é apenas uma projeção útil à
regulação de sistemas criados pela mente humana. O corpo envelhece não
porque o tempo passa, mas porque o movimento auto-produtivo da realidade
e das coisas não cessa. O tempo não anda para frente, mas também não é
puramente circular, pois a superação da vontade de poder no eterno retorno
não “retorna”, mas se “afirma” no mesmo. Até a concepção circular do
tempo não passa de uma projeção mental, pois o círculo, ao retornar ao
71
Diversos aforimos do caderno M III 1 iniciam-se com a forma retórica “Guardemo-nos
de dizer...” (Hüter win uns) que, segundo Paolo D’Iorio, é uma alusão irônica endereçada a
Eugen Dühring. Acerca do caráter paródico desta forma de expressão, v. D’Iorio, Paolo.
Op. cit., p. 74.
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93
“mesmo” não está retonando à parte anterior.
72
O “tempo” não anda para
frente, não progride. Como vontade de poder, representa apenas uma força,
gerada pelo exercício do pensamento, e que, na ontologia de Nietzsche,
também se afirma no “círculo”, não fora dele. A ilusão de um tempo
progressivo resulta do confronto psicológico gerado pela falsa estabilidade
da consciência e a ruína do corpo. A própria sucessibilidade temporal é
produto da memória, e a continuidade entre o alto sentimento e o momento
“seguinte” se mostra precária. De modo que a parte comunicável do
conteúdo da experiência do eterno retorno, portanto, é seu aspecto ético, por
assim dizer. Assim, reformulemos a frase de Klossowski: age (sempre)
como se tivesses que reviver inúmeras vezes esta (ou aquela…) alta
tonalidade da alma.
Klossowski afirma que, nesta experiência, o “esquecimento”
desempenha um papel essencial, mas não para reiterar a interpretação de
Heidegger. Para ele, “o esquecimento esconde o eterno devir e a absorção
de todas as identidades do ser.”
73
Ao nível orgânico, a individuação dos
elementos naturais visíveis aos olhos humanos ocorre por conta da coesão
atômica dos corpos, e o envelhecimento atesta, não uma suposta
“passagem” do tempo, mas o inexorável movimento da matéria e da
realidade. No entanto, no plano do pensamento, não somos uma identidade
fechada sobre si mesma. Para Nietzsche, o pensamento consciente,
inclusive, não possui a importância que lhe é atribuída na modernidade.
Como ele afirma:
Comparada ao enorme e múltiplo trabalho pró-e-contra, tal como se pode
observar na organização vital de cada organismo, o mundo consciente
quanto a sentimentos, intenções, apreciações de valor, não é mais do que
uma parte ínfima.
74
72
D’Iorio, op. cit.; p. 70-71. D’Iorio afirma que o principal equívoco de Deleuze foi ter
concebido o eterno retorno a partir de um fragmento isolado (IX, 11 [311] de 1881), em que
Nietzsche, em que o filósofo discute a concepção cirular do tempo de Johannes Gustav
Vogt. Por questões editoriais, restou a concepção circular enunciada no aforismo em
questão. Mas D’Iorio lembra que: “Pela ação combinada de recortes arbitrários de
fragmentos, da perversão da ordem cronológica, de omissões e imprecisões (...) o diálogo
entre Nietzsche e Vogt é apagado e parece que Nietzsche (...) está em vias de criticar sua
própria idéia de eterno retorno como um ciclo.”
73
Idem.
74
O.P.C (XIII), p. 171; KSA 10 [37].
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94
A consciência para Nietzsche é uma parte ínfima da natureza que,
delimitada pelo “sentimento consciente”, se mantém ludibriada pela suposta
estabilidade da matéria. Mas não haveria uma característica funcional neste
sentimento consciente, que o faria se desenvolver de modo muito específico,
recalcando outras identidades, e mesmo outras possibilidades de
pensamento consciente? Klossowski sustenta que, após a experiência
extática que lhe inspirou o eterno retorno, Nietzsche articulou uma memória
do “esquecimento”, sobre a qual se projetaram as diversas identidades
possíveis que, embora afirmadas no eterno retorno do mesmo, foram
ilusoriamente rechaçadas pela concepção teleológica, em nome do princípio
de realidade e da pessoa responsável.
Devemos sublinhar a importância da perda da identidade que se tinha antes.
A “morte de Deus” (do Deus fiador da identidade do eu responsável) abre
para a alma todas as suas possíveis identidades, já apreendidas nas diversas
stimmungen (tonalidades da alma) da alma nietzscheana; a revelação do
eterno retorno traz como necessidade as realizações sucessivas de todas as
identidades possíveis: “todos os nomes da história, no fundo, sou eu”
finalmente “Dioniso e o crucificado.”
75
O esquecimento a que se refere Klossowski é o esquecimento da
identidade consciente, que por sua vez, livre da ignorância antropocentrista,
se desgarra de sua figura “oficial” e incorpora a condição pulsional ao
pensamento consciente. Vale penetrarmos mais a fundo no intricado
argumento de Klossowski.
A anamnésia coincide com a revelação do eterno retorno. Como pode o
Retorno não trazer o esquecimento? Aprendo não apenas que eu (Nietzsche)
estou de volta ao momento crucial onde culmina a eternidade do círculo,
exatamente quando a verdade do retorno necessário me é revelada; mas
aprendo também, ao mesmo tempo, que eu era outro, diferente daquele que
sou agora, porque esqueci essa verdade, logo tornei-me outro ao aprendê-la.
Será que vou mudar e esquecer, mais uma vez, que mudarei necessariamente
durante uma eternidade até reaprender de novo essa revelação?
76
Porque se abria para as diversas identidades do ser, refletindo a
absoluta ausência de sentido do real, a experiência do eterno retorno foi
fundamental para Nietzsche sentir sua perfeita necessidade, tanto como
75
Klossowski, p. 77.
76
Idem.
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95
pensamento supremo, quanto como sentimento elevado.
77
Assumindo o
eterno retorno como uma experiência, Klossowski mantém a ontologia de
Nietzsche longe de quaisquer antropomorfismos, porque assume o elemento
fundamental, afetivo e experiencial de sua ignorância, e não confere leis
externas ao mundo, senão como exercício do pensamento. De forma que,
como experiência da afirmação absoluta, o eterno retorno é também uma
crítica aos princípios de realidade e identidade. Nas palavras de Klossowski,
Nietzsche opera a partir de uma “consciência da inconsciência”
78
, quer
dizer, uma consciência do eterno retorno e das identidades recalcadas pelo
princípio de realidade. O eterno retorno é a própria totalidade do devir, o
que não quer dizer que, de um ponto de vista psicológico essa afirmação
tenha um caráter contemplativo. Ao contrário, se é no próprio pensamento e
seus movimentos relativamente imprevisíveis que o delírio identitário se
cristaliza, é neste mesmo registro que procederá sua desconstrução.
Tomando o signo do Círculo vicioso como definição do Eterno Retorno do
Mesmo, um signo chega ao pensamento nietzscheano com um
acontecimento que vale por tudo que um dia pode acontecer, por tudo o que
aconteceu, por tudo o que poderia acontecer no mundo, ou seja, no próprio
pensamento.
79
Contra todas as cosmologias da época, a concepção de Nietzsche é
apresentada como uma experiência, e não como um pensamento que, de
forma mágica, infere a essência do universo. Mas, uma tal cosmologia não
remeteria também às possibilidades e limites do conhecimento humano?
Quer dizer, não estaria embutida nessa concepção uma teoria do
conhecimento”? Na medida em que a ordem do real é definida como
abertura de sentido e afirmação de todas as coisas, interditando quaisquer
finalismos, quaisquer antropomorfismos, não seria a própria experiência e a
própria realidade o único palco da atividade humana? E mais que isso: não
estaríamos definitivamente enredados nesta enorme gama de afetos e
relações, definidos e limitados tanto pelas condições biológicas e fisico-
químicas, quanto pela ação da moral sobre nossos modos de vida? Num
77
Idem, p. 80.
78
Idem.
79
Idem, p. 86.
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96
certo sentido, se nos afirmamos no círculo ou melhor, se somos o círculo,
pois não estamos “inseridos” , vivendo segundo certas limitações, só
temos duas formas de lidar com a vida, ambas “culturais”: ou nos referindo
aos aspectos retrospectivos, referente aos produtos e resquícios de tudo o
que já foi vivenciado e produzido por nossos antepassados; ou nos referindo
aos aspectos prospectivos, relativos às projeções e planejamentos para o
futuro. Sem que se perceba esses aspectos, e a forma como Nietzsche lida
com eles, os componentes da crítica dos valores morais podem passar como
mero estilismo: a “visão geral”, a genealogia, a interpretação, o aforismo, a
criação de valores, entre outros, são elementos retrospectivos e prospectivos
definidos pela ontologia de Nietzsche.
Pensar os movimentos da crítica em termos de retrospecção e
prospecção pode fornecer outra base teórica, para evitar a manutenção da
imagem terrível e incompleta que se tem do pensamento político em
Nietzsche. A urgência da “grande política” é uma urgência por ação, pois
não há mais nada que possa ser realizado senão a ação do pensamento e do
corpo. A inação, a conformação, a adequação são, no entanto, formas de
ação, como veremos no capítulo seguinte. Pode parecer curioso que, após
um capítulo inteiro dedicado à ontologia, retornemos à política. Mas, à
medida em que Nietzsche prossegue em sua pesquisa acerca do valor da
vida, à medida em que o problema do valor da existência se afigura de
forma múltipla em seu pensamento, o filósofo descobre nas teorias
existentes o elemento décadent, responsável pela má compreensão acerca da
abertura de sentido da realidade. Se, como afirmamos no início desse
capítulo, é o pensamento do humanismo metafísico que distingue as
filosofias políticas que grassaram na era moderna, então é na desarticulação
de seu pressuposto teológico e teleológico que se articula a filosofia política
de Nietzsche, sobretudo concernente à “grande política.”
A ilusão da política, da qual sorrio do mesmo modo como os
contemporâneos sorriem da ilusão religiosa de outros tempos, é antes de
tudo mundanização, a crença no mundo e o tirar da cabeça “além” e
“ultramundo.” Seu alvo é o bem-estar do indivíduo fugaz: por isso o
socialismo é seu fruto, isto é, os indivíduos fugazes querem conquistar sua
felicidade, por associação; não têm nenhuma razão para esperar, como os
homens de almas eternas e de vir-a-ser eterno e futuro vir-a-ser melhor. Meu
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97
ensinamento diz: viver de tal modo que tenhas de desejar viver outra vez, é a
tarefa, pois assim será em todo caso! Quem encontra no esforço o mais
alto sentimento, que se esforce; quem encontra no repouso o mais alto
sentimento, que repouse; quem encontra subordinar-se, seguir, obedecer, o
mais alto sentimento, que obedeça; Mas que tome consciência do que é que
lhe dá o mais alto sentimento, e não receie nenhum meio! Isso vale a
eternidade!
80
Contra a “pequena política” niveladora, Nietzsche opõe um postulado:
tome consciência do que é que lhe dá o mais alto sentimento, não importa
como o traduzirão em palavras. Não é certamente uma exortação à
realização de qualquer coisa, do cultivo de qualquer sentimento. Ao
contário, se a efetivação da mais alta tonalidade da alma é algo subjetivo,
por outro lado, ela tem um caráter bem preciso: ela é alta tonalidade, o
sentimento mais nobre possível, o que significa dizer: o sentimento mais
autônomo. Mesmo a subserviência, mesmo a obediência, caso sejam
afirmadas pelo indivíduo como seu mais alto sentimento, deve ser projetada
e cultivada. Pode-se entender este trecho como uma espécie de cínica
conclamação para aqueles que querem submeter-se ao trabalho, por
exemplo. Mas não se pode atribuir a Nietzsche o rótulo de individualista,
pois, lembremos, ele aposta suas fichas no tipo superior mas também em sua
capacidade de inocular o germe da mudança, pois não está em nosso poder
atuar externamente ao corpo de valorações pelo qual estamos envolvidos.
Trata-se portanto, mais uma vez, na afirmação do que se é, dessa vez, em
toda a sua dimensão, e não exclusivamente no pensamento consciente. Para
Nietzsche, nós não somos pessoas “conscientes”, racionais, senão que
conseguimos, em meio ao caos da existência, reunir um grande número de
subsídios para que esta consciência oficial ganhe forma. O que Nietzsche
estimula, em última instância, é à experimentação das diversas identidades
recalcadas pelo normatividade da cultura.
A reformulação no campo epistemológico do problema “homem” e do
problema “mundo”, característicos do humanismo metafísico, é condição
fundamental para que se concebam novas possibilidades de organização
política e social. De nossa parte, supomos que uma perspectiva adequada
acerca do problema da existência em Nietzsche deva levar em conta, ao
80
Obras incompletas, p. 390.
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98
mesmo tempo, a ontologia e a política. A ontologia de Nietzsche,
desprovida de finalidade, situa o homem como componente da natureza,
entre a transitoriedade e o efêmero, entre a eternidade e o “retorno do
mesmo.” A política, pois, se põe como efetividade, mas também como
caminho possível para os indivíduos libertados do jugo religioso e
metafísico. No que diz respeito às experiências políticas que privilegiam o
indivíduo fugaz como fim em si mesmo, Nietzsche é categórico: a política
moderna estimula arranjos sociais e valores morais que reduzem as
possibilidades de cultivo e aprimoramento do tipo homem, condenando-o à
contenção e regulação do “rebanho autônomo.” Como elemento
prospectivo, destinado à projeção do futuro, a política em Nietzsche tem
nome e sobrenome: a “grande política” (der große Politik). A “consciência
da inconsciência” se traduz em organização social quando, apesar de saber-
se limitado por condições ontológicas, o indivíduo celebra, não sua
liberdade, mas, sobretudo, a indestrutível e plena necessidade da vida
mesma. A “grande política” em Nietzsche é a fruição desta necessidade,
como o mais alto sentimento que se pode ter. Espero com essas reflexões
indicar alguns apontamentos que justifiquem as fórmulas intempestivas da
“grande política”: ela não pode mediar o baixo sentimento, muito menos se
conciliar com ele.
Passemos a analisar em que sentido a crítica dos valores morais
articula os elementos retrospectivos e prospectivos que se entrelaçam na
perspectiva ontológica do pensamento de Nietzsche.
3.2
Elementos da crítica: prospecção e retrospecção em Nietzsche.
Na medida em que a crítica não se propõe a guiar o pensamento, mas
a abalar as crenças e o “instinto de rebanho” do leitor, e estimulá-lo a
constituir novas formas de vida, faz-se necessária uma avaliação dos meios
pelos quais Nietzsche procura atingir seu objetivo. A pesquisa acerca dos
modos de vida e da cultura, implicam na preparação e constituição de uma
outra sensibilidade moral, de modo a repercutir na própria vida do leitor que
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99
compartilha de seu movimento. Por outro lado, é pautada na perspectiva
cosmológica do eterno retorno e no caráter múltiplo da vontade de poder
que esta pesquisa se desenrola através de elementos retrospectivos e
prospectivos. De modo que, nesta segunda parte do segundo capítulo,
gostaríamos de indicar algumas outras características acerca da crítica dos
valores morais, pois nos diversos componentes intelectuais e morais que
atravessam a problemática da “grande política”, entrevemos não somente a
perspectiva ontológica do pensamento nietzscheano, como também o
método crítico e seus procedimentos peculiares.
3.2.1
Estatuto do conhecimento
Simultaneamente à preocupação de estabelecer um pensamento em
viva conexão com a vida e a existência, Nietzsche realiza a crítica tendo em
vista a "grande visão do curso, dos valores da cultura
81
ou como sugere
Oswaldo Giacóia, "uma futura visão geral"
82
. Constituída pelos subsídios e
elementos teóricos que possibilitam a “visão geral” sobre os destinos do
homem, a crítica pode ser compreendida como crítica de conjunto da
produção e da conduta humana total. Elemento retrospectivo do pensamento
nietzscheano, a “visão geral” corresponde a um sentido muito específico do
que vem a ser “conhecimento” e, também, a um certo tipo de indivíduo,
apto a corresponder a todos os requisitos da “grande tarefa.” Pois, se por um
lado, a crítica dos valores morais opera sobre o campo da conduta e dos
afetos, buscando uma perspectiva alternativa às premissas da modernidade
política, por outro, Nietzsche recusa a simples denúncia. Para não vacilar
pelos caminhos da ideologia, é necessário que o indivíduo perceba a
dinâmica dos movimentos aparentemente subterrâneos das formas de vida,
buscando colecionar o máximo possível de pontos de vista, adquiridos num
processo contínuo de preparação. O tipo superior do cristianismo, tal como
buscamos problematizar no primeiro capítulo, primava pela convicção e
pelo regime afetivo aguçado. O tipo superior nietzscheano possui outra
81
EH, CW, 2.
82
Giacóia. "Introdução.” In Cadernos da Filosofia: Cadernos de Tradução n° 3, p. 9.
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100
constituição: ele é, por definição, um experimentador. Se o tipo superior do
cristianismo que pode também ser considerado como o tipo superior para
Kant primava pela atenção à lei e ao dever, e pela obediência impessoal,
para Nietzsche ele deve “criar a si mesmo”
83
, deve estabelecer o seu
“imperativo categórico”.
84
O conhecimento para Nietzsche está relacionado a dois elementos
específicos. Primeiro, o conhecimento é um afeto e, como tal, está inscrito
não na esfera metafísica do saber um saber do “outro mundo” , mas
nos próprios sentidos
85
, no embate dos impulsos que se relacionam em
nosso corpo.
86
De modo que o conhecimento não se posiciona fora da nossa
constituição individual, pois ele é parte desta constituição. Na medida em
que o conhecimento é derivado dos nossos sentidos e que, por outro lado,
estamos parcialmente enredados às prescrições morais sob as quais fomos
formados, romper a barreira do atavismo moral constitui a primeira atitude
para conhecer. Este rompimento, nem sempre prazeroso, requer uma série
de experiências que, no entender de Nietzsche, significam “má experiência”
87
afinal a principal característica do filósofo do futuro é o prazer no
experimentar.
88
O conhecimento, tal como Nietzsche o entende, requer que
estejamos abertos para violentar nossa sensibilidade moral, “deslocar
perspectivas”
89
e experimentar novas formas de vida. A “visão geral” que
opera no pano de fundo da crítica nunca é algo conquistado e estático, mas
um fundo móvel, a partir do qual retiramos não as “soluções”, mas os
problemas característicos da crítica. Entretanto, Nietzsche introduz um
elemento na crítica enquanto crítica do “passado” em relação simultânea
com uma crítica do futuro, isto é, como criação de valores, reproduzindo a
tensão entre elementos do pensamento, ora retrospectivos, ora prospectivos.
Esta concepção do conhecimento em Nietzsche, portanto, não possui
somente um aspecto reprodutivo, mas sobretudo, criativo. O conhecimento
requer que o indivíduo não só reconheça os valores em curso em suas
83
CI, IX, 49.
84
AC, 11.
85
CI, III, 3.
86
ABM, 6.
87
Idem, 204.
88
Idem, 210.
89
EH, II, 1.
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101
nuances constitutivas, como também que ele crie valores. Resumindo, numa
fórmula cara a Nietzsche, “conhecer é criar.”
90
Através desta concepção do conhecimento, pode-se perceber de que
forma Nietzsche concebe o papel da filosofia, e portanto, do filósofo. Ele
não deve somente investigar a criação dos valores, como também deve
apresentar alternativas a esses valores, deve criar novos valores e, portanto,
novas formas de vida. A crítica constitui desta forma um pensamento
criativo, efetuado em dois movimentos. O primeiro movimento é a
interpretação do jogo de forças que reside no interior de qualquer
acontecimento, fixando um sentido “sempre fragmentário e parcial.”
91
O
segundo movimento é a criação de novas perspectivas, novos valores. Como
afirma Deleuze, “o elemento diferencial não é a crítica de valor dos valores
sem ser também o elemento positivo de uma criação.”
92
Como a
transvaloração de todos os valores se refere à moral como forma de vida, a
“criação” neste caso se refere à constituição de outros hábitos, práticas e
idéias que não as criadas e cultivadas pelo cristianismo e pela modernidade
política.
3.2.2
Nota sobre a Interpretação
Uma das principais características da crítica dos valores, tal como
Nietzsche a concebeu, é a afirmação do sentido de um fenômeno a partir de
uma interpretação, síntese dos elementos retrospectivos e prospectivos do
pensamento nietzscheano. Mas, dada a abertura de sentido da realidade, as
avaliações até então empreendidas pelos homens só podem ser consideradas
como interpretações parciais, fragmentárias e incompletas. A crítica se
configura então como mais uma interpretação, ainda que uma interpretação
diferenciada. Por este motivo, Nietzsche afirma que a “moral é apenas uma
interpretação de determinados fenômenos, mais precisamente, uma má
90
ABM, 211.
91
Deleuze, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, p. 17.
92
Idem, p. 2.
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102
interpretação.”
93
A interpretação, tal como Nietzsche a compreende, trata de
recompor à exaustão a gênese de cada fenômeno, buscando todo o roteiro de
apropriações e transformações pelos quais passaram até desembocar nas
formas atuais. Por esta razão, Nietzsche faz uma apologia da preparação: o
filósofo deve corresponder a essa pluralidade, tornar sua própria vida uma
aventura, especializar-se em quase tudo, percorrendo os mais diversos níveis
do pensamento e da prática para compreender o máximo de pontos-de-
vista.
94
Cabe ao filósofo o delicado trabalho de interpretar e avaliar os
acontecimentos. Quanto mais abrangentes forem suas perspectivas sobre os
mais diversos problemas, maiores serão as possibilidades de gerar algo
novo, algo que traga renovação para o corpo de valores no qual ele próprio
está inserido. A interpretação crítica, tal como Nietzsche a realizou, é uma
atividade que prima pela extemporaneidade, porque vai necessariamente de
encontro aos valores em curso, valores compartilhados por todos.
3.2.3
Nota sobre o aforismo
O fato de boa parte do pensamento de Nietzsche ter sido escrito por
aforismos não se resume meramente a uma expressão estilística. Para
elaborar seu contra-discurso, Nietzsche se utilizou desta forma de expressão,
influenciado pelos moralistas franceses, principalmente La Bruyére. Um
aforismo, a história nos confirma, revela, propositadamente, múltiplos
sentidos. De nazistas a beatniks, passando por homens de ciência, muitos
vêem em Nietzsche um precursor. Por que seu pensamento é suscetível a
tantas interpretações, muitas delas equivocadas? Extrapolando a questão
editorial, a que aludimos anteriormente, o aforismo é produto de uma
concepção perspectivista do mundo. O aforismo não nos fala sobre
essências imutáveis, e talvez por isso haja tanto espaço para o equívoco. A
complexidade do aforismo reflete a complexidade do real: o real é fonte
constante de uma infinidade de ocorrências que são pinçadas e avaliadas ao
93
Cf.: CI, VII, 1, ABM, 108.
94
ABM, 211.
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103
sabor das motivações e dos hábitos daquele que o interpreta. Para Nietzsche,
cada história é uma interpretação elaborada conforme os valores de quem a
escreve. Se a história tradicional busca nos reportar a algo de “verdadeiro” a
partir dos acontecimentos marcantes de qualquer época, Nietzsche, ao
contrário, avaliará o quantum e a qualidade da interpretação contida tanto na
necessidade declarada de uma suposta “verdade”, quanto na probabilidade
desta “vontade de verdade” dizer mais do filósofo e do historiador que sua
própria interpretação. A tarefa crítica demanda uma habilidade específica no
trato com informações e hábitos que nos chegam como herança, pois eles
nos chegam superpostos e misturados. Nietzsche adota uma compreensão
pluralista da realidade e por isso o aforismo é complexo e multifacetado: o
aforismo mantém uma relação intrínseca com a exterioridade.
95
Cada
aforismo é uma máquina de sentidos, que dialoga com a história, a ciência, a
filosofia, o cotidiano, os limites do homem, a religião, a vida enfim. O
aforismo é um organismo sensível que lida igualmente com o pensamento e
com a vida, e por isso está revestido por uma gama de indeterminações,
“aguardando” o intérprete, aquele que se disporá a ruminar seu conteúdo.
Por isso Nietzsche é tão polêmico: a cada perspectiva, uma nova
interpretação. Heidegger e Deleuze, duas das mais célebres interpretações
de seu pensamento, divergem radicalmente na maioria das vezes, e não
somente porque acessaram um Nietzsche truncado e incompleto, mas
sobretudo por conta de suas aspirações pessoais em relação ao autor. Tarefa
sem precedentes, a crítica revestiu-se de uma forma também original,
caracterizada pela abrangência temática. Se o sistema, tal como o
conhecemos na modenidade, centraliza um tema e o desenvolve
gradativamente, o aforismo por sua vez nunca se liga a um tema exclusivo;
ele até pode traduzir uma preocupação básica, mas de modo algum revela
objetividade conceitual. Portanto, certa imprecisão que se observa, certa
displiscência quanto ao conteúdo específico de alguns aforismos, podem
parecer um enigma ao leitor, mas um enigma sobre o qual ele poderá
exercer uma interpretação, não simplesmente ao nível intelectual, mas
também em termos de atividade.
95
Deleuze, Gilles. “Pensamento nômade.” In Marton, Scarlett, org., Nietzsche hoje. São
Paulo. Brasiliense. 1985.
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104
3.2.4
Diagnóstico e criação
96
A interpretação possui portanto um duplo aspecto: como diagnóstico e
como criação. O diagnóstico não leva em consideração apenas o fato ou a
interpretação dominante. Ao contrário, busca precisar o sentido e o valor
97
“sempre parcial e fragmentário”
98
de um fenômeno qualquer, fixado
segundo o método genealógico isto é, a análise da “coisa documentada, o
efetivamente constatável, o realmente havido.”
99
A criação é o próprio
movimento de superação e inversão dos valores vigentes através de uma
realização prática. Esses dois elementos, segundo Nietzsche, conduzem a
uma visão geral da humanidade, a um contexto teórico em que os critérios
de interpretação da produção humana levam em consideração os limites,
vícios e trejeitos de sua constituição física, mental e, em última instâcia,
moral.
É precisamente contra os “fatos eternos” da metafísica e da religião,
que a crítica busca “pequenas verdades despretensiosas achadas com
método rigoroso.”
100
Em Além do bem e do mal, Nietzsche afirma que
realiza uma psicologia como “morfologia e teoria da evolução da vontade de
poder”
101
, que procura na constituição complexa da cultura e dos indivíduos,
as motivações profundas que enformam os diversos modos de vida.
Também afirma a necessidade de se coletar e ordenar “um imenso domínio
de delicadas diferenças e sentimentos de valor que vivem, crescem,
procriam e morrem (...) como preparação para uma tipologia da moral”.
102
Adiante, no capítulo três, analisaremos a tipologia e morfologia em relação
à vontade de poder. Por ora, tomemos a morfologia como o substrato
96
Deleuze se utiliza das palavras “interpretação” e “avaliação” (evaluation) para identificar
o mesmo “duplo movimento.” Como a palavra avaliação possui entre nós um significado
marcado pelo ato de julgar segundo parâmetros pré-estabelecidos e não criativamente,
como quer Deleuze, referindo-se ao poema como a “avaliação” ou “a coisa a ser avaliada”
preferimos adotar aqui a palavra “criação”, mais adequada ao sentido e ao modo como
Nietzsche concebe a produção dos chamados “novos valores.” Ele mesmo usa a palavra
“criação” como tarefa do “filósofo do futuro” em ABM, 211 e 260.
97
Deleuze, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, p. 1.
98
Deleuze, Gilles. Nietzsche. Paris, PUF, 1996, p.17.
99
GM, P, 7.
100
HDH, 3.
101
ABM, 23.
102
Idem, 186.
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105
expressivo e observável das formas de vida; e a tipologia como o substrato
qualitativo das formas de vida enquanto expressão moral, quer dizer,
enquanto expressão de nobreza ou baixeza diante da vida. De forma que a
crítica se dirige, de um modo geral, aos aspectos reativos dos valores em
curso, ao mesmo tempo que busca esses valores na produção efetiva. Por
outro lado, ela também determina elementos diferenciais e qualitativos do
fenômeno analisado: se exprime uma vontade ativa (nobre) ou reativa
(escrava). O produto desta empreitada teórica, sempre parcial e
fragmentário, é o diagnóstico. Entretanto, o aspecto diagnóstico da crítica
não a explica de todo:
Talvez seja indispensável, na formação de um verdadeiro filósofo, (…) ter
sido crítico, cético, dogmático e historiador, e além disso poeta,
colecionador, viajante, decifrador de enigmas, moralista, vidente, “livre
pensador” e praticamente tudo, para cruzar todo o âmbito dos valores e
sentimentos humanos e poder observá-lo com muitos olhos e
consciências(…). Mas tudo isso são apenas precondições de sua tarefa: ela
mesma requer algo mais ela exige que ele crie valores. (…) os autênticos
filósofos são comandantes e legisladores (…) seu “conhecer” é criar, seu
criar é legislar, sua vontade de verdade é vontade de poder.”
103
É indispensável, assim, após a violentação da própria sensibilidade
moral e exposição a múltiplas experiências, criar valores. A questão moral
pode indicar um caminho de compreensão na medida em que, ao contrário
da filosofia política de inspiração hobbesiana e rousseauniana, ela não é
prescritiva, e sim investigativa. Seu objeto de investigação é o “clangor total
do mundo”
104
, todas as idéias, todas as matérias, todas as relações. Como
subconjunto desta ontologia materialista, alçado a mais ambígua das
características, está o homem, suas práticas e interpretações. A crítica,
portanto, é este duplo movimento diagnóstico e criativo com o qual o
“filósofo do futuro” produzirá as condições para a superação do “animal de
rebanho.”
103
Idem, 211.
104
Obras incompletas, p. 33.
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106
3.2.5
A resposta genealógica
A genealogia é, por definição, a forma da retrospecção em Nietzsche.
No âmbito do aspecto diagnóstico-interpretativo da crítica, Nietzsche
elabora uma “genealogia da moral” no sentido de precisar o elemento
diferencial e qualitativo dos valores morais: o alto e o baixo, o nobre e o
escravo, o ativo e o reativo. Se um valor qualquer se exprime já na sua
origem através de uma atitude reativa, isto é, qualificada a partir de um
“não” a outros valores, então os pensamentos e atitudes que estimulará serão
baixos e seu portador e enunciador só poderá pensar baixamente; ao
contrário, pensa ativamente aquele que não depende de outrem para afirmar
sua essência, não deseja para o outro o que é uma tarefa para si mesmo. Sua
crítica, pois, se direciona contra o aspecto reativo, “baixo”, “adaptativo” do
pensamento e da cultura modernas, sem que isso signifique necessariamente
um retorno ao tradicionalismo e às formas de organização social anteriores
aos estados de direito e ao movimento da burguesia democrática. “Que
tenha surgido tão tarde [uma genealogia da moral] deve-se ao efeito inibidor
que no mundo moderno exerce o preconceito democrático, no tocante a
qualquer questão relativa às origens.”
105
Ir às origens, entretanto, não
significa retornar ao passado, ou buscar princípios metafísicos, buscar a
“alta origem” dos valores. Ao contrário, como lembra Foucault, a
genealogia se opõe à busca da origem (ursprung), se considerarmos essa
busca no sentido das significações ideais características da metafísica. É a
busca pela proveniência (herkunft) e pela emergência (entestehung) dos
valores que caracteriza a pesquisa por sua origem em Nietzsche. O célebre
enunciado foucaultiano “o começo histórico é baixo”
106
, se contrapõe à
ilusão da alta origem dos valores, o “exagero metafísico” de uma origem
desprovida das vicissitudes da história: “seus abalos, suas supresas, as
vacilantes vitórias, as derrotas mal digeridas, que dão conta dos atavismos e
das hereditariedades.”
107
Ir às origens é fazer a crítica dos valores, descobrir
105
GM, I, 4.
106
Foucault, Michel. "Nietzsche, a genealogia, a história", p. 18
107
Idem, p. 19.
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107
como e onde eles emergem, se afirmam ou negam a vida, quais as forças
que dele se apoderam e nele imprimem um sentido particular:
Meu desejo (…) era dar (…) uma direção melhor, a direção da efetiva
história da moral, (…) contra essas hipóteses inglesas que se perdem no
azul. Pois é óbvio que uma outra cor deve ser mais importante para um
genealogista da moral: o cinza, isto é, a coisa documentada, o efetivamente
constatável, o realmente havido, numa palavra, a longa, quase indecifrável
escrita hieroglífica do passado moral humano!
108
No âmbito do diagnóstico, o método da crítica nietzscheana é
genealógico porque se define pela pesquisa minuciosa e pela rigorosa
avaliação do elemento diferencial que determina a atividade ou reatividade
de um fenômeno. Para compreender o sentido de um fenômeno, portanto, é
preciso interpretar as forças que nele convergem e lhe constituem; pois se o
elemento diferencial aparece misturado ao cotidiano, tanto quanto nos livros
e nas decisões políticas, ele definitivamente não é um elemento puro e bem
definido. Nenhuma civilização, porém, nem mesmo a civilização grega,
viveu ou vive imersa exclusivamente em sentimentos ativos ou reativos.
Não está em jogo somente a qualidade do elemento diferencial, mas também
a proporção de atividade ou de reatividade que se manifestam num
determinado fenômeno. É necessário, em suma, que o filósofo lhe dê um
sentido. O cinza, como “a cor do genealogista”, é a metáfora de uma
habilidade no trato com as nuances: a leveza e a rapidez de seu pensamento,
mas também a consciência de sua tarefa. O primeiro passo para a
compreensão do método genealógico é o reconhecimento de que a origem
de qualquer coisa, por mais complexa que seja, se refere a valores que estão
ou já estiveram em curso na história. Nietzsche afirma: “(…) aprendi a
separar o preconceito teológico do moral, e não mais busquei a origem do
mal por trás do mundo.”
109
Os valores não são previamente elaborados por
Deus ou qualquer força transcendental: eles pressupõem uma criação, e
mesmo se tomarmos um valor, longínqüo demais para que se reconstitua
suas causas primeiras, sempre haverá uma nova força lhe emprestando
novos significados. A tarefa crítica nos leva a buscar o elemento genético
108
GM, Prólogo, 7.
109
Idem, Prólogo, 5.
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108
dos valores e nos conduz à realização de uma genealogia do objeto. O
segundo passo é o exame do elemento diferencial que decide sobre seu
valor. Interpretar e avaliar a sucessão de forças que se apoderam de um
objeto qualquer, para depois desvelar o elemento diferencial (o alto, o baixo,
o escravo, o nobre) que, na origem, determina seu significado.
Mas todos os fins, todas as utilidades, são apenas indícios de que uma
vontade de poder se assenhorou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o
sentido de uma função; e toda a história de uma “coisa”, um órgão, um uso,
pode desse modo ser uma ininterrupta cadeia de signos de sempre novas
interpretações e ajustes, cujas causas nem precisam estar relacionadas entre
si, antes podendo se suceder e substituir de maneira meramente casual.
110
Na sucessão de fenômenos que a genealogia busca analisar, o
surgimento casual é a regra. Mas o sentido e o significado do fenômeno se
altera no âmago dos interesses de quem o percebe. O que se altera são os
valores daqueles que decodificam o fenômeno, ao sabor de suas preferências
e contingências. Surge então o tema da máscara: cada eventualidade, cada
fenômeno, não se mostra espontaneamente. Uma forma bem acabada na
aparência, submetida à análise profunda, se revela um turbulento jogo de
forças. A força atual é a máscara provisória do fenômeno, cujo maior trunfo
é produzir a crença de que a identidade do fenômeno é a sua própria.
Nietzsche, por exemplo, alude aos signos do passado como modelo, isto é,
utiliza-os, empresta-lhes novas máscaras. Apropria-se deles conforme sua
vontade, mas somente enquanto forem capazes de fornecer exemplos
eficazes para designar forças ativas e reativas. Perspectivas ativas afirmam a
vida ao invés de negá-la: “a vida ativa o pensamento e o pensamento, por
seu lado, afirma a vida.”
111
Qualquer perspectiva nostálgica, que remeta ou não à tradição, atua
reativamente sobre a cultura, servindo de caução aos valores em curso,
afirmando o princípio de identidade entre o fenômeno e a vontade. Em
Nietzsche, os signos do passado são sempre re-interpretados, adquirem uma
nova máscara, e passam a uma outra condição. Ele, como filósofo, deu o
exemplo: os pré-socráticos foram reinventados num sentido muito
110
Idem, 12.
111
Deleuze, Gilles. Nietzsche, p. 18.
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109
particular. Eles retornaram preenchidos por um pathos que elabora
livremente seus valores em função de si mesmo. Nietzsche os faz modelo de
força ativa. A idéia de uma renovação da tradição, pois, não se adequa ao
pensamento de Nietzsche, a menos que entendamos, na sucessão de sentidos
e de valores que ele emprega, o resgate de valores antigos, o que
definitivamente não lhe cabe.
Afirmações pouco categóricas como, por exemplo, “a energia de
querer uma vontade por longo tempo, já é um tanto mais forte na
Alemanha”
112
demandam, além do conhecimento das condições e
circunstâncias, um método de observação. Sob quais perspectivas Nietzsche
pode aventar hipóteses acerca de um suposto grau de “vontade” do povo
alemão? Trata-se de uma escolha: por qual razão Nietzsche recusa a
preponderância dos fatos históricos proeminentes? Justamente por ter a
convicção de que todo fato está cercado por uma infinidade de
interpretações
113
, e que a preponderância de uma interpretação sobre outras
pode revelar algo além da objetividade dos historiadores e jornalistas; e
mais: ao concluir as premissas desta pluralidade, Nietzsche imprime sua
“marca”, a marca de sua própria interpretação. Aí reside uma reviravolta na
história do pensamento: a partir deste momento o filósofo não carece nem
deseja para si nem para seus pensamentos a “universalidade”, nem aspira às
verdades do “absoluto”, nem sequer imagina “pensar do ponto de vista da
eternidade.” A resposta genealógica traduz em boa parte o problema central
da crítica, mais precisamente, o problema da complexidade que envolve a
criação e a sedimentação dos valores.
***
A partir dessas constatações acerca da crítica, em que sentido
podemos dizer que Nietzsche manteve como centro de suas preocupações os
problemas políticos de sua epoca? Até que ponto podemos pensar Nietzsche
e a política contemporânea? Em nenhum desses dois tópicos podemos
112
ABM, 208.
113
Deleuze, Gilles. Nietzsche, p. 3: "Eis porque Nietzsche não acredita nos “grandes
acontecimentos” ruidosos, mas na pluralidade silenciosa do sentido de cada
acontecimento.” Cf. também Z, “De grandes acontecimentos.”
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110
concebê-lo como um filósofo da política, mas, ao contrário, como um
pensador radicalmente crítico no que toca os problemas de natureza política.
Não a partir dos valores estabelecidos, mas da própria possibilidade de
criticá-los; não a partir de mistificações conceituais, características das
filosofias políticas de todas as épocas, mas de um pensamento capaz de
trazer problemas para a prática efetiva. A política, mais especificamente a
“grande política”, é, para Nietzsche, um problema que se refere à conduta e
à constituição do corpo social, mas somente porque estes elementos estão
plenamente ligados à produção de valores morais e sua respectiva e variada
introjeção no comportamento dos indivíduos. Para desestabilizar os valores
petrificados pelo hábito e pela convicção, Nietzsche expõe a “grande
política” como uma problemática multifacetada, ora referindo-se a uma
crítica da modernidade política a democracia republicana jurídico-
institucional, sobretudo , ora analisando os fenômenos políticos da época
a partir de critérios pouco comuns no campo da filosofia política. Por vezes,
este contra-discurso soa mal até mesmo aos ouvidos mais fortes. Mas se
levarmos em consideração que a desestabilização da moral de rebanho é seu
objetivo, e atentarmos para o que ele indica nas entrelinhas, perceberemos
que a “grande política” é uma espécie de corolário das idéias que Nietzsche
desenvolve a partir de 1871 com Verdade e mentira no sentido extra-moral,
quando se inicia sua pesquisa acerca dos valores morais: trata-se portanto de
desarticular o discurso do poder e fazer com que o homem supere a
dicotomia cristã e moderna que o encerra num mundo de belas idéias e
miséria real.
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111
4
Diagnóstico e profecia: a “grande política”
Num reino onde, a todo momento nosso olhar é devolvido, não
há tempo para expressar coisas em palavras…
Mishima, Sol e aço
4.1
A “Grande Política”: apresentação
O tema da “grande política” certamente representa um dos frutos mais
amargos gerados pelo contra-discurso nietzscheano. Primeiro, por se tratar
de uma expressão conjectural, que não diz respeito nem a um conceito, nem
a uma categoria, acaba por estimular uma interpretação parcial e incompleta
de seu pensamento. Em segundo lugar, porque percebemos que a cada
aplicação, Nietzsche nos remete a um contexto histórico específico, o que
torna o sentido da “grande política” ainda mais impreciso. Entretanto,
mesmo se pudéssemos dar um sentido filosoficamente rigoroso à “grande
política”, este certamente não indicaria uma filosofia política nietzscheana,
pois ela não existe propriamente. E esta talvez seja a maior dificuldade para
quem deseja preparar um trabalho sobre Friedrich Nietzsche e a política: a
descentralização temática, o zigue zague de informações, deduções,
especulações sobre os mais diversos temas. Sabemos de antemão que a obra
não é sistemática, se tomarmos o sistema tal como se consagrou na
modernidade filosófica. Não há um livro de Nietzsche dedicado somente à
política, assim como não há uma ontologia, uma lógica ou uma estética
isoladas. Não há, nem pode haver, uma avaliação do Contrato Social,
tampouco uma Crítica da razão pura, pois não se trata de circunscrever,
mas de pôr em crise todos os campos epistemológicos, todos os sistemas de
valores e de produção e conservação do instinto de verdade. Como então
abordar esses assuntos se eles se encontram esparsos no emaranhado de seus
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112
escritos? Por este motivo até mesmo uma simples observação serve como
impulso para as especulações dos leitores e comentadores.
A “grande política” reside, portanto, na superfície de um contexto
marcado duplamente pela indeterminação, sistemática e contextual. De um
lado sabemos que a expressão é parte de um contexto filosófico de absoluta
exceção, pois Nietzsche desenvolveu seu pensamento à margem dos
sistemas filosóficos com os quais podemos identificar a tradição moderna.
De outro lado, a “grande política” revela a imprecisão de uma expressão
errante, cujo sentido se altera de um aforismo para outro, conservando
porém algumas características em comum. A isso vem somar-se o estilo do
autor, muitas vezes considerado literário”, alternando bom-humor,
especulações abruptas, psicologia e arquétipos, retratos, juízos marcantes e
extremados e até mesmo poemas. Entretanto, para Keith Ansell-Pearson e
Oswaldo Giacóia, a “grande política” diria respeito tanto ao “alargamento
de sentido e horizonte para questões de natureza política”
1
, quanto a uma
“conjunção de legislação filosófica e poder político”
2
, que proporia metas
em vistas de uma “outra humanidade.” No entanto, em todas as ocorrências
da “grande política”, o sentido da palavra política não corresponde às
práticas e idéias da política de gabinete, nem à filosofia política
contratualista, nem a quaisquer “nacionalismos”, pois “o que deve
resplandecer na ‘grande política’ não é a nação, mas o homem mesmo
colocado em gegensatz (contraste) ao monstruoso processo de
mediocrização e rebaixamento produzido pela pequena política.”
3
Neste
sentido, são muitas as dificuldades que nossa “sensibilidade moral” enfrenta
quando nos deparamos com o sentido político da filosofia de Nietzsche, e
isto afirmamos com base não somente nas discussões teóricas acerca de sua
filosofia, mas sobretudo a partir dos seus pressupostos ontológicos e
existenciais. Como afirmamos no capítulo um, uma política em Nietzsche
não se presta a garantir a segurança individual, ao contrário, elogia o perigo
e a má experiência como fonte de sabedoria; não demoniza o desconhecido
1
Giacóia, Oswaldo. “A grande política: Fragmentos.” In: Cadernos da Filosofia:
Cadernos de Tradução n° 3, São Paulo, IFCH/UNICAMP, 2002b, p. 8.
2
Ansell-Pearson, Keith. Nietzsche como pensador político Uma introdução. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p. 161.
3
Viesenteiner, Jorge L.. “A grande política e sua relação com os fragmentos inéditos
Kriegserklärung de Nietzsche.” In: Revista de Filosofia, Curitiba, 2003, pp. 12-23.
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113
e o estrangeiro; não se pauta em nenhuma espécie de “contrato.”
4
Por outro
lado, o fato de que a ontologia nietzscheana predica à ação humana a
contrução dos valores, explica em parte a urgência da “grande política.”
Propomos nas próximas páginas uma reflexão a respeito da “grande
política”, em conexão direta com a crítica dos valores morais.
4.1.1
A “grande política” como análise
A primeira ocorrência da “grande política” diz respeito aos aspectos
gregários da política e da cultura, e exprime um tipo de observação sobre o
tecido social marcado sobretudo pela análise da conduta e dos modos de
vida. Como conclusão do capítulo intitulado “Um olhar sobre o Estado”, em
Humano, Demasiado Humano, podemos ler a respeito da “grande politica e
suas perdas”, em que Nietzsche chama atenção para um evento comum na
história da humanidade: “o momento em que a massa está disposta a
empenhar sua vida, seus bens, (...) para dar a si mesma tal fruição suprema
e, como nação vitoriosa, tiranicamente arbitrária, dominar as outras
nações”
5
. Em Aurora, a “grande política” aparece enquanto “necessidade do
desenvolvimento do poder, que não apenas nas almas dos príncipes e
poderosos, mas também nas camadas baixas do povo.”
6
. Trata-se de um
ponto de vista sobre a política profundamente afinado com a filosofia de
Maquiavel, pois busca a constituição do poder na própria conduta humana.
Aqui, a “grande política” emerge como uma interpretação sobre a situação
política européia através da observação e análise das motivações efetivas
que orientam os grupamentos humanos. É importante frisar que neste
processo, embora Nietzsche reúna elementos acerca da conduta geral dos
indivíduos o que permite que, em outros trechos de sua obra, ele possa se
referir a diversos tipos de moral, de diferentes países toma a Europa de
seu tempo, no mais das vezes, como caso singular.
4
GM, II, 17.
5
HDH, 481.
6
A, 189.
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114
É bem verdade que em Humano, Demasiado Humano e Aurora, a
vontade de poder ainda não ocupa o lugar privilegiado das obras posteriores
nem é citada; mas, desde já, sugerimos que, ao menos em seu registro
propriamente “afetivo”, quer dizer, em sua relação com as possibilidades da
conduta e da expressão individual, a vontade de poder aparece
embrionariamente como pano de fundo para a “grande política.” Ansell-
Pearson, por exemplo, embora conceba o problema moral em Nietzsche
segundo uma suposta oposição entre moralidade e vida
7
, reconhece que ele
recorre à vontade de poder como contra-discurso à modernidade política e a
seus preceitos.
8
Mark Warren, autor de Nietzsche and the political thought,
reserva um capítulo inteiro à vontade de poder, diferenciando cerca de sete
acepções diferentes para o conceito: vontade de poder como prática, pathos,
physis, interpretação, história, evolução cultural e reflexão. De forma geral,
entretanto, Warren afirma que a vontade de poder é, sobretudo, uma crítica
ontológica da prática, que diz respeito, em última instância, às múltiplas
possibilidades de intervenção efetiva na realidade. Para Nietzsche, esta
gama de possibilidades não pode ser simplesmente subjugada por força de
uma lei moral, seja ela religiosa ou jurídica, sob pena de forjarmos uma
perspectiva ilusória do homem e da humanidade. A vontade de poder não
seria uma representação do mundo ou o mundo em si, mas “uma visão de
mundo interna às nossas estruturas de ação”
9
, levando em consideração a
discrepância entre o discurso e a prática, as aspirações e os resultados. O
diagnóstico da “grande política”, neste primeiro momento, se baseia na
observação microscópica dos elementos afetivos que norteiam os embates
políticos, e indica os sintomas daquilo que Nietzsche mais tarde identificará
como enfraquecimento da vontade, “o sombrio espectro do niilismo.”
Se a “grande politica”, a princípio, pode ser tomada como
“alargamento de sentido e horizonte para questões políticas”, este
alargamento diz respeito sobretudo às possibilidades de reação individual
7
Esta afirmação não leva em conta o fato de que Nietzsche dirige sua crítica não contra a
moral ou a moralidade em si, mas contra os caminhos que os indivíduos tomam quando não
percebem que a moral é conjuntural, histórica, e não possui o caráter de “verdade absoluta”,
mas fornece padrões de comportamento específicos. Num certo sentido, a moral é
inevitável, cabendo ao indivíduo não se deixar dominar por ela.
8
Ansell-Pearson, op. cit., p. 169.
9
Warren, Mark, op. cit., p. 111.
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115
contra os elementos domesticadores da vontade de poder. Deste modo, a
“necessidade do desenvolvimento do poder” que caracteriza a primeira
acepção da “grande política”, não é vista com bons olhos por Nietzsche. As
perdas ocasionadas por esta “grande política”, dizem respeito à submissão
da exceção à regra, como forma de conservação. Por um lado, a violência e
a expropriação são expurgadas do trato público e canalizadas para fora,
segundo a rentável economia da guerra. Mas, em contrapartida, os
indivíduos são utilizados como engrenagem de uma máquina totalmente
voltada para a conservação da maioria em detrimento das exceções.
Nietzsche lamenta que, entre esses indivíduos, os rebentos mais “nobres
(…) e espirituais” sejam sacrificados em favor da maioria, para ele, um
sintoma claro de rebaixamento do homem. A “grande politica” testemunha
um momento na obra de Nietzsche em que a vontade de poder se refere a
uma certa espontaneidade afetiva, tosca e moralista, mas, ainda assim, mais
verdadeira que as abstrações características da interpretação religiosa,
jurídica e institucional.
10
Ela ainda não é “grande” pela forma prospectiva
que a definirá mais tarde, mas pelo caráter “materialista” com que o próprio
Nietzsche se utiliza para interpretar o problema. A “grandeza” está no
método de observação, na possibilidade de interpretar, livre do peso
normativo e repressivo característico da filosofia política moderna.
Neste ponto, é importante relembrar que a crítica da moral que
Nietzsche empreende não é exatamente uma crítica à moral em si, mas à sua
aclimatação em ambientes religiosos ou democráticos. Nietzsche duvida que
o avanço da razão científica e institucional possa de fato elevar o tipo
homem a “estados mais completos de humanização”
11
. A igualdade
preconizada pelo aparelho jurídico-institucional não procede, sobretudo se
contrastarmos com a violenta história da humanidade. A “grande política”,
10
Neste aspecto, é notória a ligação entre o pensamento de Nietzsche com o de outros dois
autores: Maquiavel e Espinosa. Maquiavel e a verità effetuale, a tomar sua própria
experiência efetiva no trato com o poder como parâmetro para a reflexão; Espinosa e sua
análise dos afetos, descrita na parte III da Ética, classificando o comportamento humano
segundo critérios imanentes à prática efetiva. O que parece unir os três autores, embora em
contextos diferentes, é a recusa absoluta de uma finalidade ontológica da existência. (v.
Calvetti, Carla Gallicet. Spinoza lettore del Machiavelli. Milão. Università Cattolica del
Sacro Cuore, 1972.)
11
Cândido, Antônio. Posfácio - O portador. In.: NIETZSCHE, F. W. Obras completas. São
Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 411.
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neste momento, é resultado de um tipo de análise incomum na história da
filosofia política: não figura somente como diagnóstico de uma situação
específica, mas também como um modo de compreensão das relações
humanas. Esta obstinação coletiva, a que Nietzsche denomina por ora
“grande política”, não é propriedade de nenhum povo, de nenhuma pátria,
mas um elemento humano, demasiado humano. Tanto que Nietzsche
considera esta obstinação parcialmente positiva, até que sobrevenham os
elementos do nacionalismo, a “delirante estupidez e ruidosa garrulice da
burguesia democrática”
12
.
4.1.2
A “Grande Política” e a vontade de poder
Adiante, já no contexto do projeto crítico em Além do Bem e do
Mal e Genealogia da Moral surge uma segunda inflexão da “grande
política”:
o apenas guerras na Índia e complicações na Ásia deverão ser necessárias
para que a Europa se livre do seu maior perigo, mas também convulsões
internas, a desintegração do império em pequenas unidades, e sobretudo a
introdução da estupidez parlamentar, incluindo a obrigação de cada um ler
seu jornal no café da manhã. Não digo isso como se desejasse: o contrário
seria antes do meu agrado isto é, um crescimento tal da ameaça russa, que
a Europa teria que resolver tornar-se igualmente ameaçadora, adquirindo
uma vontade única mediante uma nova casta que dominasse toda a Europa,
uma demorada e terrível vontade própria que se propusesse metas por
milênios para que enfim terminasse a longa comédia de sua divisão em
pequenos estados, e também sua multiplicidade de ambições dinásticas e
democráticas. O tempo da pequena política chegou ao fim: já o próximo
século traz a luta pelo domínio da Terra a compulsão à “grande
política.”
13
Uma primeira mudança em relação à acepção anterior: a “grande
política” é definida em oposição à “pequena política.” A “pequena política”
neste trecho, portanto, é entendida como a política democrática, tal como ela
se desenvolve na segunda metade do século XIX: a constituição abrupta de
12
ABM, 254.
13
Idem, 208.
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117
um privilégio do homem médio em detrimento da exceção, a divisão da
Europa em Estados Nacionais, a “longa comédia” de suas “ambições
dinásticas e democráticas.”.. Claro está que a “pequena política” a que
Nietzsche se refere, diz respeito aos valores da modernidade política e
exprime o enfraquecimento da vontade. A “grande política”, neste caso, é a
antítese da “pequena política.” E o que é a “pequena política” neste trecho
senão os elementos reativos e gregários, aos quais Nietzsche se referia no
trecho anterior? Isto é: aquilo que se denominava “grande política” a
afirmação da pátria através do poder militar, como forma de expurgo e
interdição da violência interna em vistas de maiores graus de sociabilidade
torna-se, em Além do Bem e do Mal, a “pequena política.”
Qual o sentido que a expressão “grande política” adquire diante desta
inversão? Há certamente uma correção quanto à sua qualidade. Ela é agora
o contrário do que Nietzsche aponta como degeneração do tipo homem, o
contrário do homem moderno, rebaixado pelos mecanismos morais.
Seguindo as correções de rumo do seu projeto crítico, a vontade de poder
ajusta e adiciona elementos à “grande política.” Nietzsche especula a
respeito de uma suposta “vontade russa”, onde “a energia de querer está há
muito recolhida e acumulada.” Ele se pergunta: e se o crescimento da
ameaça russa determinar uma situação insustentável para a Europa: como
ela responderá, posto que sua divisão em estados menores a enfraquece e
debilita? Ele afirma que seria do seu agrado que a Europa “adquirisse uma
vontade única” contra a ameaça russa. O que significa adquirir uma vontade
única? Seria Nietzsche o arauto de um conservadorismo militaresco, a
prescrever a disciplina como método para se alcançar a supremacia pela
força? Ao contrário: aqui, o termo vontade está ligado, não a um “desejo”,
mas à vontade de poder como conceito.
a vida é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e
mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e,
no mínimo e mais comedido, exploração mas por que empregar sempre
essas palavras, que há muito estão marcadas de uma intenção difamadora?
Também esse corpo (…) no qual os indivíduos se tratam como iguais, (...)
deve, se for um corpo vivo e não moribundo, fazer a outros corpos tudo o
que os seus indivíduos se abstêm de fazer uns aos outros: terá de ser a
vontade de poder encarnada, quererá crescer, expandir-se, atrair para si,
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118
ganhar predomínio não devido a uma moralidade ou imoralidade
qualquer, mas porque vive, e vida é precisamente vontade de poder.
14
Em Além do Bem e do Mal, a vontade de poder possui dois aspectos
que se embaralham e se complementam. Como vida, possui um sentido
ontológico estritamente materialista: ela é sobretudo uma força, plástica,
maleável conforme as motivações e ocorrências que definem seu sentido.
Ela reivindica incessantemente o poder como essência positiva do real,
como “forma básica da vontade”
15
. Neste sentido, a vontade de poder é
“essência da vida”
16
, “instinto de liberdade”
17
, “primazia fundamental das
forças espontâneas”
18
, cuja natureza violentadora e conformadora deseja,
em primeiro lugar, expandir-se, ampliar-se, agredir. Como afirma Gérard
Lebrun, reiterando a questão antropomórfica a que aludimos no segundo
capítulo:
O que é a “vontade de potência”? O que ela menos é: uma nova articulação
do devir; o que é: o que permite confiar o devir a seu puro surgimento, sem
acréscimo, sem fabulação. ‘Nem um ser, nem um devir, mas um pathos o
fato mais elementar, a partir do qual se produz um devir, um agir.’ Retórica
que age ao contrário de todas as demais, ela nos obriga a sinalizar o
acontecimento em sua Einmaligkeit [“unicidade”], proíbe-nos
definitivamente de re-situá-lo num maquinário ‘demasiado humano’,
artificialista. Não, o acontecimento não é ‘produzido’, ele não ‘deflagra’
nada, não ‘obedece’ a nada, não é ‘forçado’ (‘coagido’) por nada. No regime
da vontade de potência, ele não passa, por assim dizer, de seu Wesen, sua
essência, desde que entendamos por essa palavra a exclusão de toda e
qualquer glosa antropomórfica.
19
A vontade de poder é, portanto, a constituição efetiva de um pathos, a
partir do qual se articulam as diversas essências do mundo, os diversos
devires. O acontecimento, em sua Einmaligkeit, não é redutível a nenhum
postulado regulatório, mas se exprime como força unívoca, insubstituível.
Entretanto, vejamos: a vontade de poder, diz Deleuze, “é ao mesmo tempo
um complemento da força e algo interno”
20
. Se o caráter ontológico de uma
força se define pelo movimento de apropriação, o complemento, por sua
vez, se define por seu sentido, ativo ou reativo. Deste modo, um ato ou uma
14
ABM, 259.
15
Idem, 36.
16
GM, II, 12.
17
Idem, II, 18.
18
Idem, II, 12.
19
Lebrun, Gérard. O avesso da dialética, p. 133. Os grifos são do autor.
20
Deleuze, Gilles. Nietzsche e a filosofia, p. 40.
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idéia seriam medidos não por sua vontade, mas sobretudo pela qualidade
complementar de sua vontade: se é uma vontade ativa, que afirma a vida, ou
se é uma vontade reativa, que simplesmente segue os valores em curso. Ao
contrário do que afirmam comentadores como Paolo D’Iorio e Mark
Warren, ativo e reativo são categorias plenamente utilizadas por Nietzsche,
que Deleuze simplesmente situa em sua interpretação. Vejamos o trecho do
texto de Deleuze, analisado por D’Iorio:
Um dos textos mais importantes que Nietzsche escreveu para explicar o que
entendia por vontade de poder é o seguinte: “Este conceito de força
vitorioso, graças ao qual nossos físicos criaram Deus e o universo, precisa de
um complemento; é preciso atribuir-lhe um querer interno que chamarei
vontade de poder.” A vontade de poder é portanto atribuída à força, mas de
um modo muito particular: ela é ao mesmo tempo um complemento da força
e algo interno. Ela não lhe é atribuída à maneira de um predicado. Com
efeito se fazemos a pergunta “quem?”, não podemos dizer que a força seja
quem quer. Só a vontade de poder é quem quer, ela não se deixa delegar nem
alienar num outro sujeito, mesmo que este seja a força. (...) A vontade de
poder é o elemento do qual decorrem, ao mesmo tempo, a diferença de
quantidade de forças postas em relação e a qualidade que, nessa relação,
cabe a cada força.
21
D’Iorio, por sua vez nota que
No manuscrito de Nietzsche, ao contrário, não se lê innere Wille (querer
interno), mas innere Welt (mundo interno). Não se pode pois de maneira
alguma afirmar que a vontade de potência é “ao mesmo tempo um
complemento da força e alguma coisa de interno”, igualmente porque isto
reproduziria um dualismo que a filosofia monista de Nietzsche se esforça, a
todo preço, para eliminar.
22
Reconhecemos a correção de D’Iorio. Mas, por outro lado, diante da
ontologia de Nietzsche e do conteúdo absolutamente relacional da vontade
de poder, supomos que Deleuze, amparado de fato por uma série de textos
problemáticos, mesmo assim aponta no conceito alguns elementos ainda
assim condizentes com a ontologia de Nietzsche. Se atentarmos para o que
diz Deleuze, perceberemos que a divisão do conceito vontade de poder se
afigura mais como uma observação quanto à sua qualidade, do que como
fixação de uma perspectiva dualista. Se a vontade de poder só pode se
21
Idem, op. cit., p. 40-41.
22
D’Iorio, op. cit., p. 102.
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exprimir em termos de uma relação, e por outro lado, esta relação, de um
ponto de vista total, é o mundo, há então de fato uma dupla dimensão que,
entretanto, não confere necessariamente um sentido dualista à expressão.
Como observamos no primeiro capítulo, atividade e reatividade são apenas
elementos expressivos referentes à qualidade das ações e dos agenciamentos
na perspectiva da crítica dos valores, isto é, em relação à moral nobre ou
escrava. Do ponto de vista da atividade humana, como observamos no
capítulo um, a moral nobre e a moral escrava não são morais opostas, mas
sempre complementares. Ao mesmo tempo, como obsevamos no capítulo
dois, a vontade de poder se afirma na totalidade do eterno retorno, sem que
nenhum conteúdo prévio possa lhe conferir sentido. Por mais que
compreendamos as restrições e correções de D’Iorio, não podemos deixar de
observar que Deleuze não se coloca em favor de qualquer espécie de
dialética, já que seu livro busca desarticular uma concepção que unia
Nietzsche a Hegel. Por isso Deleuze afirma que “a vontade de poder é o
elemento do qual decorrem, ao mesmo tempo, a diferença de quantidade de
forças postas em relação e a qualidade que, nessa relação, cabe a cada
força”, não porque uma força se opõe à outra em termos dualistas, mas
porque essa oposição siginifica em primeiro lugar o movimento do devir,
daquilo que se afirma no eterno retorno do mesmo. A totalidade do ser,
entendida como vontade de poder afirmada no eterno retorno do mesmo, é
determinada pela gama de relações que se superpõem no “clangor total do
mundo”
23
, tanto em relação à totalidade, isto é, seu conteúdo genético,
quanto em relação aos agenciamentos, quer dizer, a perspectiva, que
corresponde aos diversos sentidos imanentes à realidade total. A dimensão
ontológica e relacional, pois, não se afigura como dualismo, mas como
afirmação completa daquilo que Deleuze, inspirado por Nietzsche, chamava
“ser-diferença.”
Por isso, Deleuze afirma que é preciso evitar dois contrasensos:
primeiro, que a vontade de poder quer o poder
24
, e, segundo, que a vontade
de poder é, no plano das relações humanas, sinônimo de luta. Se assim
fosse, ela dependeria única e exclusivamente da força bruta e da moral. Mas
23
Obras incompletas, p. 33.
24
Idem, p. 65.
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o que é o poder, entendido sob a sua forma mais rasteira, senão o
recenseamento dos valores em curso e sua cristalização em valor moral? A
vontade de poder não pode ser confundida com a ação daqueles que
dominam o poder político e as honras; ela é o substrato de toda vida, de toda
ação humana. Nietzsche nos lembra que “em si, ofender, violentar, explorar,
destruir não pode naturalmente ser algo ‘injusto’, na medida em que
essencialmente, isto é, em suas funções básicas, a vida atua ofendendo,
violentando, explorando, destruindo, não podendo sequer ser concebida sem
esse caráter.”
25
Na primeira acepção da “grande política”, vimos que
Nietzsche elabora um sentido para a politica, baseado na recusa dos
preceitos ilusórios característicos da modernidade política. Depois, porque
encerrava uma vontade ambígua por dominação externa e segurança interna,
a “grande política” se tornou a “pequena política”, pois “sua ação é no
fundo reação”
26
. A “grande política” agora seria esta capacidade de
manipular o elemento diferencial da vontade através de um ato efetivo. Não
uma reação, mas uma ação.
Deleuze nos diz que “Nietzsche nunca escondeu que a filosofia do
sentido e dos valores deveria ser uma crítica”
27
. Em todas as suas acepções,
a “grande política” é produto da crítica dos valores morais, entendida
provisoriamente como análise tipológica e morfológica
28
da vontade de
poder. As palavras tipologia e morfologia são utilizadas por Nietzsche em
momentos fundamentais. Em Além do Bem e do Mal, Nietzsche relaciona a
tipologia com a necessidade de coletar e ordenar “um imenso domínio de
delicadas diferenças e sentimentos de valor”, numa clara alusão ao método
genealógico
29
; ainda em Além do Bem e do Mal, Nietzsche se refere à
“morfologia e teoria da evolução da vontade de poder” como uma
psicologia que “desce às profundezas” para sondar, na constituição
25
GM, II, 11.
26
Idem, I, 10.
27
Deleuze, Gilles, op. cit., p. 1.
28
As palavras tipologia e morfologia são utilizadas por Nietzsche em momentos
fundamentais. Em Além do Bem e do Mal, p.85, Nietzsche relaciona a tipologia com a
necessidade de coletar e ordenar “um imenso domínio de delicadas diferenças e
sentimentos de valor”, numa clara alusão ao método genealógico; em Além do Bem e do
Mal, p.29, Nietzsche se refere à “morfologia e teoria da evolução da vontade de poder”
como uma psicologia que “desce às profundezas”, isto é, que busca na constituição
complexa da cultura e dos indivíduos, as reais motivações dos diversos modos de vida.
29
ABM, 186.
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complexa da cultura e dos indivíduos, as reais motivações dos diversos
modos de vida. Tipológica porque busca pensar a qualidade dos padrões de
conduta moral segundo o critério seletivo ativo/reativo; morfológica, porque
busca esta tipologia na observação genealógica da conduta humana e de sua
expressão efetiva. A partir destes critérios Nietzsche deflagra uma lógica da
existência que, de um lado, articula o princípio ontológico total do eterno
retorno do mesmo e os limites e possibilidades que esta articulação imprime
na atividade humana. Assim, compreende-se mais adequadamente, por
exemplo, porque Nietzsche afirma que “a autêntica invenção dos fundadores
de religiões é, em primeiro lugar, fixar uma determinada espécie de vida e
de costumes cotidianos”
30
. Portanto, a crítica investiga “as condições e
circunstâncias nas quais (os valores) nasceram (…) desenvolveram e se
modificaram”
31
, para posteriormente qualificá-los a partir de um critério
seletivo. O que se interpreta é a vontade de poder que se exprime nos modos
de vida, não os modos de vida tal como se apresentam. A crítica dos valores
é o exercício de investigação pelo elemento diferencial e qualitativo da
vontade de poder expressa nos modos de vida: o alto e o baixo, o nobre e o
escravo. É preciso entender essas palavras tanto no seu movimento
propriamente intelectual, quanto nos aspectos afetivos correlatos. Nietzsche
pergunta de onde provém o valor dos valores, mas, ao fazê-lo, não pergunta
somente por “idéias.” O ressentimento, a má consciência e o ideal ascético
são as expressões tipológicas e morfológicas que atestam o diagnóstico
nietzscheano segundo o qual a Europa “estaria fatalmente morta de sua
vontade.” Todos esses modos de vida pressupõe uma reatividade, ou contra
o estrangeiro, ou contra si mesmo, ou contra a vida. A “pequena política”,
contra qual Nietzsche prescreve a “grande política”, é a expressão da
reatividade, incrustada nas práticas, condutas e hábitos dos europeus. Sua
crítica, pois, se direciona contra o aspecto reativo, “adaptativo” do
pensamento e da cultura modernas, sem que isso signifique necessariamente
o retorno a um tradicionalismo tardio.
30
GC, 352.
31
GM, Prólogo, 6.
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123
Para Nietzsche, todo corpo, todo fenômeno “químico, biológico,
social, político”
32
é uma relação de forças, a própria força se definindo
por esta relação
33
. Nesse movimento, as forças se exprimem como vontade
de poder, mas seu elemento diferencial é determinado na própria relação,
isto é: em qualquer processo, as forças dominantes, ativas, e as forças
dominadas, reativas, se relacionam e se hierarquizam numa luta contínua.
As forças reativas não são por isso, menos fortes e resistentes; ao contrário,
também afirmam seu poder: a obediência, a adequação, a adaptação, a
regulação, a utilidade e todos os valores em que se baseiam os mecanismos
científicos e as finalidades metafísicas são reativas, mas não menos
poderosas. Essas forças marcam o “triunfo da moral escrava”, as “ambições
dinásticas e democráticas” que levam tanto ao esquartejamento da
Europa, quanto à obrigação de ler seu jornal no café da manhã, e
resultam no sombrio e perigoso espectro do niilismo da sociedade de
controle e de conforto, como ele afirma com a ironia habitual: o que eles
gostariam de perseguir com todas as forças é a universal felicidade do
rebanho em pasto verde, com segurança, ausência de perigo, bem-estar e
facilidade para todos.”
34
Segundo Nietzsche, as forças reativas estão
levando a melhor...
Assim, a “grande política”, como prescrição contra a “pequena
política”, quer dar sentido a uma outra concepção do mundo e da vida,
pautada na atividade das energias primárias e criadoras. A “grande política”,
em sua segunda acepção, assume um caráter prospectivo, e diz respeito a
uma “ação política” ativa em constraste com os preceitos e práticas reativas
da “pequena política.” Nietzsche afirma que somente uma transvaloração
de todos os valores, isto é, somente a superação/inversão dos valores em
curso renovaria as perspectivas em relação ao futuro do homem e
aumentaria sua capacidade de autodeterminação. Somente a criação de
outros valores, outros para quê, e portanto, outros “modos de vida”, podem
abrir caminho para a dissolução do rebanho autônomo e a reconfiguração
ativa das relações políticas. Ao afirmar que “gostaria que a Europa
32
Deleuze, Gilles, Nietzsche e a filosofia, p. 33.
33
Müller-Lauter, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. p. 84 e p. 98.
34
ABM, 44.
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124
adquirisse uma vontade única contra a ameaça russa”, Nietzsche indica sua
preferência: que a “vontade européia”
35
se desenvolvesse num sentido ativo,
e não reativo; que a força plástica da vontade pudesse ser manipulada
conforme suas características primárias de interpretação e criação, e não a
partir de características secundárias de adaptação e regulação, como por
exemplo a idéia de “estado-nação.” Não exatamente uma exortação à
guerra, mas um contra-discurso que põe em xeque a própria confusão
“dinástica e democrática”, contraditoriamente ocasionada por motivações
individuais como cobiça, vaidade, ignorância... “Opiniões públicas
indolências privadas.”
36
4.1.3
Diagnóstico e Profecia
A evolução da “grande política” neste momento da obra
nietzschenana, seu deslocamento de uma acepção reativa para a
“transvaloração de todos os valores”, corresponde às correções de rumo do
projeto crítico, isto é: a “grande política” e seu percurso de acepções
acompanha o desenvolvimento do projeto crítico. A vontade de poder, por
exemplo, central à obra nietzscheana, é introduzida no plano político por
conta dos desdobramentos da crítica. Assim, os dois aspectos essenciais da
crítica: a) seu caráter diagnóstico: a análise e desarticulação dos valores
vigentes, expressos nos modos de vida; e b) sua dimensão criativa: a criação
de valores, mantêm com a “grande política” uma relação intensiva, em que
ora o diagnóstico, ora a criação definem a correlação de forças. Em sua
primeira acepção, a “grande política” se refere ao desenvolvimento reativo
do poder, segundo a análise dos valores e condutas que levam à guerra:
35
Müller-Lauter, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche, p. 94. Adiante,
o autor afirma que “um homem (…) forma um quantum de poder que organiza em si
inúmeros quanta de poder. Em oposição e associação com outros homens, ele próprio
pertence a organismos mais abrangentes.” (p. 96) Assim, a “vontade européia” indicaria
um complexo de vontades, que por sua vez aludem ao raio expressivo e valorativo
imanente à produção imanente da cultura. De modo que a vontade de poder não é nem
resultado nem produção, mas expressão valorativa dos artefatos morais e materiais que
compõem o mundo.
36
HDH, 482.
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125
aqui, o diagnóstico é fundamental na argumentação; já em Além do Bem e
do Mal e Genealogia da Moral, além do aspecto diagnóstico, introduz-se o
elemento criador para uma transvaloração de todos os valores, por sua vez,
em menor grau em relação aos escritos dos anos seguintes. Se o juízo que
Nietzsche faz da situação política européia já soa estridente em Além do
Bem e do Mal, nos fragmentos póstumos de 1888 ela adquire contornos
delirantes, justamente porque não conserva não pode conservar os
valores que garantem a estabilidade e a normalidade, antes necessários
como ponto de apoio para o exercício de demolição dos valores. Por esta
chave de compreensão, entende-se bem porque Nietzsche sugere a
constituição de uma “vontade única” contra a ameaça russa
37
: é uma
fórmula intempestiva que conclama os tipos superiores a se posicionarem
contra a arregimentação indiscriminada e estéril ocasionada pelo avanço das
instituições democráticas.
Segundo Nietzsche, o movimento democrático, assim como o cristão,
substitui a diferença de valores intrínseca entre os grupamentos humanos
diferença esta geralmente marcada por disputas edulcorando-os sob a
nomeclatura bem acabada da religião e da política. Não se trata de uma
apologia do conflito, mas um alerta para o fato de que o direito
constitucional, assim como a religião, procuram adestrar a conduta segundo
critérios abstratos, em favor de maior sociabilidade. Nietzsche interpreta
este fenômeno como uma “acusação à vida”: ao invés de transformar a vida
através do seu ato, o homem moderno vive sustentado pelos valores de
fachada do discurso juridico, policial, sacerdotal… Para ele, a crescente
adequação do homem moderno à comodidade e aos benefícios do estado
policial implica num problema de longo alcance: “Como criar um partido da
vida, forte o bastante para a “grande política?”
38
Se a “grande política”,
como diz Nietzsche, busca “elevar a humanidade como um todo”
39
, é
porque se trata das possibilidades concretas de intervenção sobre seu
destino.
37
Sobre a acepção da “grande política” nos escritos póstumos de 1888/89, v. Viesenteiner,
Jorge L.. “A grande política e sua relação com os fragmentos inéditos Kriegserklärung
de Nietzsche.” In: Revista de Filosofia, Curitiba, 2003, pp. 12-23.
38
FP (XIV), p. 378; KSA 25 [1].
39
Idem.
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126
Em Ecce Homo, no capítulo em que se considera um destino,
Nietzsche proclama: “somente a partir de mim haverá “grande política” na
terra.” Este é o mote para que seus textos seguintes tenham como escopo
menos o diagnóstico que a tarefa de produzir, ainda que intelectualmente, os
elementos ativos da transvaloração. A “grande política”, em sua forma final,
portanto, pode ser considerada uma política da interpretação
40
, por oferecer
de forma direta e objetiva soluções e propostas para uma sociedade formada
por “tiranos-artistas.” Claro que muitas destas propostas são inviáveis,
absurdas, até mesmo ingênuas, visto que a fisiologia, pelo menos por ora,
não “reinará sobre todas as coisas.” Entretanto, por trás dos juízos
extremados desta “política da interpretação”, Nietzsche promove uma outra
perspectiva que, por um lado, examina e investiga na conduta, nos hábitos,
na produção humana efetiva e até mesmo na fisiologia, como veremos
abaixo as reais motivações dos valores, e não na metafísica, na religião
ou nos “valores superiores”; e, por outro, recusa a representação política e
filosófica como expressão do poder; o poder reside sobretudo na conduta
efetiva, individual e coletiva.
Portanto, o diagnóstico gerado sob a perspectiva teórica da “grande
política” é sempre intempestivo, sempre fora de moda, sempre impertinente.
No mais das vezes consiste na articulação entre princípios de constituição
do corpo social, história dos valores mesclada à história contida nos livros e
crítica desmistificadora da filosofia política e da filosofia do direito. Assim,
articulada aos elementos centrais da crítica nietzscheana, a “grande
política”, como produção de uma transvaloração ao nível do pensamento e
da prática política, reporta ao desenvolvimento efetivo das forças em
questão, recusando a representação como expressão do poder e, neste
caso, tanto a representação política quanto a filosófica. Hoje, o aparelho
jurídico-institucional no qual se baseia o Estado permanece
irremediavelmente atrelado ao capital financeiro, e seus interesses
40
Deleuze, Gilles. “Pensamento nômade.” p. 59. Em “Pensamento nômade”, texto de 1972,
Deleuze nos fala a respeito do “estilo como política” e compara Nietzsche com Kafka: em
ambos os casos, trata-se de “fazer passar algo que é incodificável em alemão”, isto é:
construir, utilizando a língua alemã, uma máquina de guerra contra o alemão. A “política da
interpretação”, na medida em que exprime uma “guerra de morte” contra a modernidade e
seus valores, joga em diversos níveis com a criação de contextos e valores específicos.
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127
certamente não dizem respeito a uma improvável solução global”, muito
pelo contrário: o que observamos hoje na política mundial são as convulsões
do Estado de direito em direção à sua transformação em mera e pífia
“representação.” A Nietzsche é preciso conceder este diagnóstico não
como uma profecia no sentido ordinário, mas segundo uma outra fórmula,
tão intrincada quanto a “grande política”, segundo a qual o “profeta não tem
obrigação de acertar, sua função é profetizar.”
41
4.1.4
A “liga anti-germânica”: fisiologia e cultura
Zaratustra convoca para a guerra: “Deveis amar a paz como meio para
novas guerras.” Mas, ele observa, uma guerra de guerreiros, não de
soldados.
42
Uma guerra espiritual contra toda degeneração do tipo-homem.
Dos escritos finais de Nietzsche, chamados escritos “patológicos”, um dos
mais curiosos sustenta o título “a grande política”, no qual Nietzsche afirma
que traz a guerra:
Eu trago a guerra. Não entre povo e povo; não tenho palavra para exprimir
meu desprezo pelos detestáveis interesses políticos das dinastias européias,
que fazem do incitamento egoísta e presunçoso dos povos contra si um
princípio e quase um dever. Não entre classes. Pois não temos nenhuma
classe superior, portanto também <nenhuma> inferior. [...] Eu trago a
guerra entre todos os absurdos acasos de povo, estado, raça, profissão,
educação, formação: uma guerra como entre ascensão e declínio, entre
vontade de vida e desejo de vingança contra a vida, entre honestidade e
mentiras matreiras... [...] Primeira proposição: a grande política quer
tornar a fisiologia senhora sobre todas as outras questões; ela quer criar um
poder, forte o suficiente, para cultivar a humanidade como um todo e mais
elevada [...]. Segunda proposição: guerra de morte contra o vício; viciosa é
toda forma de contra-natureza. [...] Segunda proposição: criar um partido
da vida, forte o suficiente, para a grande política: a grande política torna a
fisiologia senhora sobre todas as outras questões, ela quer cultivar a
humanidade como um todo, ela mede o nível de raças, de povos, de
indivíduos segundo seu futuro- [---], segundo sua garantia de vida que
carrega em si [...]. Terceira proposição: o restante segue daqui.
43
41
Gomes, Paulo Emílio S.. “Nota Aguda.” In.: Glauber Rocha. Rio de Janeiro. Paz e Terra,
1977.
42
Z, “Da guerra e dos guerreiros.”
43
FP (XIV), p. 377; KSA 13, 25[1].
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128
É certo que Nietzsche não esclarece os meios para a realização desta
tarefa; mas não é menos certo que, na medida em que a filosofia política
moderna notadamente a de Rouseau e de Tocqueville se caracteriza
pelo estabelecimento de uma condição geral de igualdade, a “grande
política”, por sua vez, representa a denúncia do niilismo, a “doença da
vontade européia”
44
ocasionada por este mesmo nivelamento cultural. A
referência à guerra, portanto, não se afigura como belicismo, mas como
guerra espiritual contra os resultados e descaminhos do processo político
europeu. Entretanto, ao falar de política e de uma “guerra espiritual”,
Nietzsche toca o tema da fisiologia. Qual o sentido desta estranha alusão?
O tema da fisiologia ocupa um lugar privilegiado nesse conjunto de
textos que, durante muitos anos, foram considerados como preliminares de
um livro que não veio a existir propriamente, A vontade de poder. Destes
fragmentos derivaram, pela ordem cronológica, Crepúsculo dos Ídolos, O
Caso Wagner, O Anticristo e Ecce Homo, livros nos quais a questão
fisiológica se articula com a política, a cultura e o sentido de décadence.
Sabe-se que este excerto particularmente faz parte de uma série de
fragmentos, reunidos sobre o título Kriegserklärung, “Declaração de
Guerra”, que figurariam no último capítulo de Ecce Homo, “Por que sou um
Destino?”
45
Fazem parte, portanto, não somente da última fase da produção
de Nietzsche, mas, precisamente, dos últimos dias antes que a doença lhe
acometesse definitivamente.
A partir da crítica dos valores morais e de seus procedimentos
peculiares, podemos nos perguntar acerca dos propósitos de Nietzsche
quando une esses dois temas num só contexto. Ora, se a crítica busca exortar
o leitor a promover uma avaliação total dos artefatos morais que perpassam
a constituição do mundo contemporâneo, sobretudo os valores iluministas
que amparam os sistemas políticos; se esta crítica se exerce dentro das
limitações ontológicas dadas; se, por outro lado, esta “crítica” não pode
prescindir de um “cultivo de si” e de uma preparação para a
44
ABM, 208.
45
A relação entre a “grande política” e os fragmentos póstumos Kriegserklärung podem ser
apreciadas na dissertação de mestrado de Jorge Viesenteiner. Viesenteiner, Jorge L.. “Três
hipóteses hermenêuticas a propósito do tema da ‘grande política’ em Nietzsche.”
Dissertação de mestrado, PUC-SP, 2002.
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129
experimentação; e se, enfim, esta crítica é inseparável de uma ação, então,
só se pode concluir que a “grande política” figura como corolário do projeto
crítico, tal como Nietzsche o concebeu. O tom de boutade que uma tal
referência à fisiologia pode adquirir, situada num contexto teórico
basicamente político, não deve ser ressaltado como mero desatino
ocasionado pela saúde debilitada, sem que se recorde o problema do
niilismo e sua relação fundamental com a fisiologia. Como “ódio aos
instintos”, isto é, “desejo de vingança contra a vida”, o niilismo europeu
deriva, sobretudo, de uma má compreensão do corpo e de seus aspectos
afetivos correlatos. Para Nietzsche, o desenvolvimento do estado na Europa
representa nada mais do que a momentânea e limitada hegemonia de
determinados tipos de relação com a vida, geralmente caracterizados pela
má compreensão dos aspectos afetivos e fisiológicos, que por sua vez,
permitem o desenvolvimento de um contexto social perpassado pela
obediência e pela convicção. A nação, algo como o “espírito de um povo”, é
tomada por Nietzsche como valor externo, definido metafisicamente, mas
que todavia confere ao rebanho autônomo uma coesão útil e prática.
Particularmente em relação à Alemanha de seu tempo, Nietzsche é bastante
claro quanto a essas observações:
A nova Alemanha representa uma grande soma de qualidades herdadas e
adquiridas: de sorte que ela pode talvez, daqui a um tempo, derramar em
volta, e mesmo com prodigalidade, o tesouro acumulado. Seu advento não é
o advento de uma alta cultura, e ainda menos, de um gosto delicado, de uma
nobre “beleza” dos instintos; mas as virtudes mais viris que não se podem
encontrar em nenhum país da Europa. Muita boa vontade e respeito próprio,
toda confiança nas mudanças e toda reprocidade dos deveres, o gosto pelo
trabalho, muito endurecimento, e uma moderação hereditária que apela
mais ao aguilhão que ao freio. E eu acrescentaria ainda que nós obedecemos
na [Alemanha] sem que a obediência se torne humilhante…
46
Nietzsche nota que a situação da “Nova Alemanha” do Rei Guillaume,
se ampara todavia em valores adquiridos hereditariamente, conservando o
processo militaresco de endurecimento e mediocrização da cultura do
período bismarckiano. Lembremos que a característica da “grande política”
em Humano, demasiado humano era justamente a relação entre a obediência
46
O.P.C. (XIV), p. 287. KSA 19 [1].
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130
e a virilidade alemãs em sintonia com o desenrolar dos acontecimentos
históricos. Os termos políticos desta discussão, entretanto, adquirem em
Nietzsche uma dimensão diferenciada, pois seu critério não é a organização
da sociedade civil, mas o cultivo da cultura, da “alta cultura.” Esta “alta
cultura”, longe de confirmar a cultura européia oficial, remete a uma
estranha relação com os instintos e com o gosto, pois deve derivar-se do
mais alto sentimento. Algumas conexões entre fisiologia e cultura são,
portanto, elementos efetivos desta “grande política”.
O diálogo de Nietzsche com a fisiologia é marcado por uma série de
situações inusitadas, a qual já nos referimos anteriormente.
47
Sua
compreensão do assunto e dos debates que ocorriam à sua época é a de um
esforçado aprendiz, como escreve Montinari:
Chama a atenção de todo leitor do Crepúsculo dos ídolos, que Nietzsche
utiliza uma nova terminologia: Sócrates como raquítico, bastardo e de
desenvolvimento decadente, o criminoso típico como monstro,
despotenciação, degenerescência e degenerado, fisiologia, psicologicamente
degenerado, estado de necessidade fisiológica, sentimentos fisiológicos
fundamentais, "nós fisiólogos", aprisionamento pela doença, decadência e
esgotamento e, por toda parte, décadence: esta terminologia sinaliza em
Nietzsche um desvio em direção à fisiologia contemporânea. Algumas
semanas depois, seu espírito é vencido sob estes signos: em uma de suas
últimas declarações, quer "homenagear a fisiologia.” Um esquisito ar de
hospital sopra contra nós, de muitas páginas do Crepúsculo dos ídolos. (…)
A invasão do medi-cínico (do processo de medicalização das condutas) é um
distintivo do amortecido século XIX. Criminosos e prostitutas, alcoólatras e
neuróticos, degenerados e loucos: Dégénerescence et criminalité é um tema
popular dos fisiólogos, é o título de um livro de Charlés Féré que Nietzsche,
no começo de 1888, pouco depois de sua publicação, estudou e anotou e a
quem ele deve seu conhecimento acerca do regime das doenças no Caso
Wagner e muitas outras coisas no Crepúsculo dos ídolos. (…) Os póstumos
mostram, da mesma maneira que o Caso Wagner e o Crepúsculo dos ídolos,
profundos traços da ocupação de Nietzsche com este fisiólogo. (…) Ao
mesmo tempo em que Nietzsche tentou acompanhar a mais recente situação
da fisiologia, ele produziu para si mesmo e para seus contemporâneos
conceitos e metáforas pregnantes.
48
Em uma de suas célebres biografias, pode-se conferir o contexto
pessoal e político no qual Nietzsche redige esses últimos aforismos.
Pessoalmente, parecia sentir a doença avançar, ora posicionando-se cada vez
mais deseperadamente contra as articulações políticas de seu tempo, ora
47
V. Nota 181.
48
Montinari, Ler Nietzsche: O crepúsculo dos ídolos, p. 85.
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131
tomando para si as mais amplas e complexas tarefas no sentido de
desarticular essa mesma política. As “últimas considerações” atestam este
desespero, quando Nietzsche afirma estar pronto para governar a terra.
49
Percebe-se um afastamento gradativo das questões propriamente filosóficas
e especulativas, em direção a uma guerra encarniçada contra a política de
gabinete. O contexto é a Alemanha, na qual Bismarck acaba de adquirir um
novo adversário:
A experiência da guerra de 1870 lhe ensinou o quanto de sofrimento a
arrogância de uma dinastia imbuída de seu poder (Napoleão III, no caso)
poderia, por uma guerra real, infligir aos homens. Ele compreendeu
igualmente nessa ocasião, que uma vitória militar poderia corresponder a
uma inferioridade cultural e espiritual. Isto, Jacob Burckhardt lhe ensinou. O
novo tabuleiro político berlinense o fez recear o fato de que a Europa não
estava preparada novamente para o desequilíbrio a curto prazo em
semelhante catástrofe. Nietzsche, cuja consciência já era profunda, não
atentará mais para as graves tensões que opõe o jovem imperador Guillaume
II ao partido Bismarck-Stoecker e se afasta dos dois homens da cena política
berlinense. Por um instante, ele percebe o perigo ameaçador e se lembra que
não tem um minuto a perder para conjurar: tarefa à qual ele se sente
convocado e obrigado: ao título que lhe agrada com efeito, e que uma
audiência rapidamente o autoriza a gabar-se de primeiro espírito
filosófico de sua época.
50
Diante dos “embates dinásticos e democráticos” que se instauram na
Europa de seu tempo, Nietzsche percebe o grande perigo: não a guerra em
si, mas a inferioridade cultural e espiritual que esta “guerra real” traria para
a grande maioria dos homens. Uma guerra que, amparada em um sem
número de artefatos morais, resultaria num regime de poder comprometido
somente com a manutenção do Estado, promovendo fatalmente o
empobrecimento da cultura. Nietzsche toma partido de uma outra política,
cuja preocupação central não seria o belicismo e a conquista territorial. Foi
sob este viés equivocado, inclusive, que se sustentou uma opinião
absolutamente despropositada acerca da “grande política”, a partir da qual
foi majoritariamente compreendida durante o século XX. Como seu
contemporâneo, o historiador Jacob Burckhardt, ao invés de “uma história
política”, Nietzsche voltou-se para uma “investigação da história da
49
FP (XIV), p. 384; KSA 25 [19].
50
Janz, Curt Paul. Nietzsche: Biographie, p. 394.
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cultura.”
51
Trata-se portanto de um “combate à cultura” nos termos
manifestos pelo Reich
52
, isto é, como adoção dos valores a que Nietzsche
anteriormente se referira como “contrários à vida”, ou “superiores à vida”, a
saber, as idéias de povo, pátria, soberania etc. Mas em contrapartida, tal
como não está em nossas mãos prescindir de valores morais e de afetos
reativos, o mesmo vale para a cultura: não está em nosso poder descartá-la,
de modo que nos resta apenas cultivá-la no sentido de um enobrecimento
espiritual.
À necessidade urgente de situar-se nesse debate, Nietzsche alia todos
os elementos da sua crítica dos valores morais e de sua concepção cultural
da política, em direção a uma tomada de posição radical e efetiva a uma
tarefa, como ele se referia. A urgência desta posição, não se sabe se
vinculada aos desdobramentos de sua filosofia, ou se à “catástrofe
eminente”
53
que ele próprio antevê, confere à produção subseqüente um
clima tão delirante quanto propositadamente dissonante em relação aos
acontecimentos e aos valores vigentes. Em carta para Overbeck, em 26 ou
27 de dezembro de 1888, ele escreve:
Eu trabalho nesse momento em uma memória [promemoria] visando o rumo
[histórico] europeu, a fim de constituir um liga anti-germânica. Apertarei o
Reich dentro de um “espartilho de ferro”
54
e o forçarei a uma guerra
desesperada. Não terei as mãos livres, pois não estarei seguro da
personalidade do jovem imperador e de seus comparsas.
55
Diante da incerteza gerada pela situação política européia, a qual
Nietzsche reservava suas mais duras críticas, o filósofo é tomado por uma
necessidade desesperada de uma ação positiva em favor da cultura. A
valorização do “alto sentimento”, a cultura da ação e da vontade, a
afirmação da autonomia do homem e a consciência da inconsciência se
aliam para criar um contra-discurso extremamente incoveniente do ponto de
vista dos valores em curso. Esta tensão, nos parece, adquire um caráter
51
Cf.: Oliveira, Janaína Pereira de. O Futuro Aberto: Jacob Burckhardt, G.W.F. Hegel e o
Problema da Continuidade Histórica, p. 3.
52
Cf.: O.P.C. (XIV), p. 384; KSA 25 [18]: “O Reich mesmo é uma mentira: nem
Hohenzollern, nem um Bismarck jamais pensaram na Alemanha...”
53
Janz, Curt Paul. Op. Cit., T. III, p. 394.
54
No original, corset de fer. N. do T.
55
Idem, p. 395.
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exortativo, na medida em que a “grande política” é uma perspectiva, mas
também, e sobretudo, uma ação. Se “o tempo da pequena política chegou ao
fim”, então não se trata de uma nova política sindical, nem da política
parlamentar, nem de política institucional de nenhuma natureza. Nietzsche
exorta o leitor à realização da “grande política.” Entretanto, como ele
afirma em um excerto de Além do bem e do mal, esta não é uma tarefa de
todos: “supondo que um estadista conduzisse seu povo à situação de ter de
exercer a “grande política”, para qual este é por natureza mal disposto e
preparado (...)”
56
Nietzsche descreve uma situação extremamente delicada
que aponta para o esfacelamento do Estado europeu, a reboque da
“estupidez parlamentar”, movimento que ele não vê com bons olhos, porque
revela uma “compulsão à pequena política”, isto é, uma política dos
prepostos institucionais que, por sua vez, exprimem o baixo impacto da
vontade européia. Este rebaixamento se refere sobretudo a uma
incapacidade de auto-determinação das massas. A “pequena política”, com
suas leis e novas representações do estado, desestimula nos indivíduos a
inclinação à atividade e ao agenciamento, incitando-os a viver segundo as
convicções e o desejo do Estado.
Por outro lado, a “grande política” é inseparável de uma ação ou
atividade. A atividade, isto é, a verdadeira descarga da vontade, tal como
Nietzsche já havia chamado atenção em Genealogia da moral (“a ação é
tudo”
57
), passa de elemento retórico a uma atmosfera de realização, que se
exprime necessariamente na execução de um projeto: é na relação com a
exterioridade, isto é, com os embates efetivos e as reais motivações que
constituem a política e não as convicções doutrinais da Realpolitik
que se exprime a “grande política.” A ação, tal como Nietzsche entende,
parte entretanto de uma compreensão do corpo e da sua relação com a vida.
A fisiologia, portanto, é fundamental na filosofia de Nietzsche. É ela que
fornece os padrões e limites dessa ação; é ela que determina nossa
capacidade para obedecer ou mandar; é a relação com nosso corpo em
movimento que determina nossos valores.
56
ABM, 241.
57
GM, I, 13.
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A “grande política” representa uma guerra desesperada contra tudo
aquilo que compactua com a política moderna. As formas de antinatureza,
que acusam os sentidos e os instintos, indicam que, no mesmo processo de
dependência política, se inscreve também a gradativa ruína do corpo. Não
que o corpo não se desgaste na “grande política”, o que seria absurdo; mas é
certo que o trabalho aviltante, a alimentação desregrada o próprio
desconhecimento da repercussão da alimentação sobre a produção dos
afetos
58
o ócio urbano, o vício, todos esses elementos conjuram para a
determinação de uma cultura da dependência. O alargamento do sentido da
política ocorre em Nietzsche muito por conta dessas observações sobre a
fisiologia, pois o ato de arruinar o corpo propicia, por sua vez, a
suscetibilidade de comportamento que dá sustentação à constituição da
forma-Estado. Entretanto, não se trata de um vitalismo estéril e
individualista, pois ao mesmo tempo que a disciplina corporal deve se
estabelecer individualmente, ela deve também compactuar com a formação
da cultura. No percurso dessa experiência, supõe-se, o compartilhamento
social, tal qual o moral e o cultural, é inevitável.
Fazer a fisiologia “mãe de todas as coisas” pressupõe uma rigorosa
disciplina de si, pois não se poderia dar continuidade aos padrões de
interdependência que se projetam da família para o estado, e vice-versa: há
que se cultivar o corpo e o espírito e, para Nietzsche, esta não pode ser
tarefa do estado sem que se perpetue um tipo de relação prejudicial aos
homens. Se o “restante segue daí”, tal como ele afirma no excerto que inicia
este sub-capítulo, os meios e métodos para uma tal organização social, que
Nietzsche não parece muito preocupado em esclarecer e esta é a maior
objeção de seus comentadores à “grande política” não podem ser
prescritivos, mas imanentes à atividade efetiva. Mais que isso: a “grande
política” requer uma atividade constante de interpretação da realidade, mas
justamente aquela interpretação que se sabe “interpretativa”, isto é, a
interpretação da consciência da inconsciência, a interpretação que deseja
experimentar todas as identidades possíveis, em nossa perspectiva, uma
58
Cf. EH, II, 1.
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135
política da interpretação. Justamente o tipo de interpretação que ele leva a
cabo nesses escritos, supostamente patológicos.
4.1.5
“Grande política” como política da interpretação
A “profecia” em Nietzsche, entretanto, não tem caráter premonitório,
mas delirante. Um delírio que age em função de uma perspectiva, um delírio
construtivo. A “grande política” portanto, pode ser considerada uma política
da interpretação na medida em que é um contra-discurso, pois Nietzsche
cria perspectivas como se estivesse a olhar para um tableau vivant. Por isso,
quando nos fala sobre uma “grande política”, ele está realizando uma leitura
conjectural. Nietzsche reformula a “grande política”, pois ela é culminância
de um processo complexo, onde não cabe o simples recenseamento de
verdades provisórias. Portanto, não mais a boa vontade e o bom senso para
desvendar e revelar as verdades tarefa da filosofia durante a era
moderna mas a habilidade e a altivez para determiná-las e afirmá-las, a
despeito de quaisquer valores.
A “grande política” se afigura como um delírio porque não conserva
as informações em curso, não afirma a estabilidade dos valores
comunitários, é sempre estranha, sempre estridente em relação a esses
valores. Nietzsche, o tipo superior, busca inocular na comunidade os
elementos de uma transgressão premeditada. Quando sugere “uma
demorada e terrível vontade própria que se propusesse metas por milênios”
para a Europa, quando supõe o estadista que dá a seu povo o direito de
governar seus modos de vida
59
que são a expressão de seus valores ,
quando prescreve a barbárie contra a “fantasmagoria conceitual”
60
alemã,
Nietzsche causa estranhamento. Quando sua filosofia se radicalizou no
sentido de uma análise radical dos valores, mais especificamente com
Humano, demasiado humano, os amigos o abandonaram, pois não
59
ABM, 241.
60
Idem, 254.
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136
compreendiam a filosofia como uma tarefa criadora.
61
Nietzsche, entretanto,
contribuia com uma intervenção radical sobre as coisas do mundo, através
da criação de outras perspectivas, anacrônicas e incovenientes. Ele nos
propõe a seguinte argumentação: se são os valores o motor principal,
motivação de todos os modos de vida, tenhamos ao menos o cuidado para
não nos deixarmos dominar por eles. Ao contrário, tentemos trazer para
nossos modos de vida a expressão de uma criação. Tentemos não submeter
ao crivo da moral, sempre sedimentado, nossos atos e nossos gestos, como
se houvessem valores superiores que mantivessem confortavelmente nossa
guarda. Os escritos nietzscheanos são um convite à mudança constante, à
outra responsabilidade, não mais incriminatória como a responsabilidade
kantiana, mas uma responsabilidade perante o valor da vida.
Vejamos o exemplo abaixo, onde Nietzsche sugere uma vingança
premeditada do povo judeu:
Não seria próprio da ciência oculta de uma realmente grande política da
vingança, de uma vingança longividente, subterrânea, de passos lentos e
premeditados, o fato de que Israel mesmo tivesse de negar e pregar na cruz o
autêntico instrumento de sua vingança, ante o mundo inteiro, como um
inimigo mortal, para que o mundo inteiro, ou seja, todos os adversários de
Israel, pudesse despreocupadamente morder tal isca? E porventura seria
possível, usando-se todo o refinamento do espírito, conceber uma isca mais
perigosa? Algo que em força atrativa, inebriante, estonteante, corruptora,
igualasse aquele símbolo da cruz sagrada, aquele aTerrador paradoxo de
um Deus na cruz, aquele mistério de uma inimaginável, última, extrema
crueldade e autocrucificação de Deus para salvação do homem?...
62
Neste sentido, observemos a comparação que Nietzsche faz entre a
moral cristã e a democracia. Em outro trecho, já citado, ele diz que “o
movimento democrático constitui a herança do movimento cristão”
63
,
identificando em ambos a expressão de uma moral reativa e niveladora. Ora,
Nietzsche dispõe in loco dos mais pungentes exemplos práticos de
decadência, justamente numa época em que a igreja católica perde mais e
mais poder perante a constituição do Estado de direito. Por que se aventurar
61
Analisando a “euforia de Turim”, Pierre Klossowski nota que “os amigos não refletem
sobre a gênese emocional de um pensamento. E quando Nietzsche os convida a pensar com
ele, é para que sintam primeiro, portanto, na sua própria emoção prévia, que ele os está
convidando formalmente.” Klossowski, op. cit., p. 241.
62
GM, I, 8.
63
ABM, 202.
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137
neste delírio interpretativo, senão pela necessidade extrema de acessar
outras perspectivas? Vejamos quais perspectivas são consideradas no trecho
acima. Primeiramente, “Israel”, crucificando Jesus Cristo, estaria resolvendo
um problema político momentâneo e simultaneamente gerando perspectivas
futuras de poder, se não econômico, pelo menos cultural. A suposição de
Nietzsche é a de que Israel sublimou seu ódio através de um processo de
inversão: Cristo aparece primeiro como um condenado à morte, para
posteriormente figurar como um irresistível objeto de culto “aquele
aterrador paradoxo de um ‘Deus na cruz’, pois somente no aporte do
cristianismo um deus morre para salvar outros indivíduos. Com este trunfo
nas mãos, supostamente operando uma alteração radical da escala de valores
vigentes, “Israel” pôde estabelecer sobre seus inimigos uma espécie de
domínio cultural, o que Nietzsche percebe como um domínio na escala dos
valores. Por isso ele diz que o que se opera neste caso é uma grande
política da vingança, justamente porque no processo de dominação, há
uma alteração nos valores, conduzida em prol de maiores unidades de poder.
Do mesmo modo, mas percebendo uma segunda nuance no texto
acima, Nietzsche sugere que este procedimento de Israel é próprio de uma
“ciência oculta” da vingança. A “vingança de Israel” seria a de forjar uma
isca simbólica, inclusive prescindindo de força física, para fisgar seus
inimigos. A “grande política” neste caso, seria um movimento, como
Nietzsche descreve, “longividente, subterrâneo, de passos lentos e
premeditados, a partir do qual se consolida e oficializa o culto acerca de
novos valores. À primeira vista, é exatamente por conta de um processo
extremamente complexo de avaliação da realidade que o autor pode sondar
um fenômeno tão estranho quanto profundo.
Em que sentido se encontra exatamente a “grande política”? Ela é
representada como uma ocorrência, algo que, de fato, aconteceu ou, ao
contrário, resulta de uma política da interpretação? Isto é: seria a grande
política, nesse caso, uma nova perspectiva que parte, sobretudo, do próprio
pensamento de Nietzsche? Ou seria a “ciência oculta” e a “alteração dos
valores” o resultado de uma “grande política” de Israel? Voltemos ao texto:
Nietzsche nos pergunta se não seria o evento “Jesus” próprio de uma
“ciência oculta.” Ora, não é claro que, neste caso, a grande política é um
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delírio? Caso contrário teríamos que admitir que Pilatos projetou um plano
de metas, tal qual Nietzsche desejou também para a Europa. Descartando
uma tal idéia podemos perceber que a “ciência oculta” a qual Nietzsche se
refere diz respeito à sua percepção do acontecimento, isto é, às maquinações
que ele exprime através do aforismo e da resposta genealógica. O que ocorre
de fato é que a partir de uma leitura a princípio absurda de um fato histórico
longínquo, Nietzsche depreende um sentido estridente, sobretudo em
relação ao ideário contemporâneo. Com propósitos críticos, em vistas de se
abrir uma porta inédita, uma outra perspectiva, Nietzsche deixa soar seu
argumento, ainda que ruidoso. Ora, não deixa de ser uma perspectiva, por
assim dizer, exótica, mas é realmente curioso observar a adoração européia
por um ícone judeu. Vivendo às turras com suas colônias, a Europa adotou o
catolicismo como se nascesse do seu próprio ventre.
O que interessa de fato aí, é o elemento diferencial da interpretação. A
“grande política”, enquanto política da interpretação, se dá necessariamente
como força ativa: já de saída, a vingança de Israel não pode ser uma “grande
política”, porque se por um lado afirma uma alteração nos valores, é,
sobretudo, em função de uma reatividade que opera tal alteração. Isto é,
Israel não se afirma como uma força que se define por si só, senão que
carece de outrem que o defina. O instrumento da vingança, o símbolo de um
deus na cruz, remete a sentimentos reativos, isto é, a receitas pré-
estabelecidas para a vida. Salvação, piedade, culpa são sentimentos reativos
que se definem por uma relação com os chamados valores superiores,
valores que estão supostamente acima do valor efetivo da vida e dirigem o
homem para a crença cega, sentimento reativo por definição. Sua avaliação,
portanto, foi desenvolvida como um novo ponto de vista sobre o assunto,
tão novo quanto intempestivo.
O que faz a diferença portanto, é a motivação: Nietzsche interpreta um
gesto, um acontecimento, ampliando a possibilidade para a criação de outras
perspectivas para o acontecimento, que por sua vez, é afirmado uma vez por
todas no eterno retorno. Mas a avaliação do ponto de vista de uma política
da interpretação, não pode prescindir de um caráter positivo e criador. Se ela
for aparentemente criadora, como pode parecer à primeira vista a suposição
de uma “vingança de Israel”, deve-se avaliar em última instância o seu
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elemento diferencial, isto é, a qualidade e a quantidade das forças que se
apoderam do acontecimento, se estabelecem relações ativas ou reativas.
Somente a partir daí podemos perceber se a “grande política”, enquanto
política da interpretação, pode ser assim considerada.
O que Nietzsche espera do leitor não é a adoção automática de suas
idéias. Há que se imputar ao leitor o dever de “ruminar”, um trabalho de
feedback, essencial no pensamento nietzscheano. A todo momento o
aforismo se presta à reconstrução, cabendo ao leitor maquinar as
engrenagens provocativas do texto em função de novas descobertas. É
claramente perceptível no texto nietzscheano: trata-se de um convite ao
leitor. No plano geral da história da filosofia, a diferença de Nietzsche
aparece aqui, mais que em qualquer outra característica. Já dissemos, ele
não é o “bom pai”, o pedagogo competente que vai nos ensinar “como
conhecemos”, ou se podemos ou não conhecer tal e tal coisa. Se
trouxéssemos a concepção de Nietzsche para os dias de hoje, a interpretação
adequada acerca do pensamento residiria na esfera das neurociências, nnao
da especulação metafísica. A “grande política”, como política da
interpretação, é um trabalho para o Übermensch, pois somente o seu espírito
de pesquisador-artista pode ampliar o que está escrito no livro. Assim, em
relação à vida e ao pensamento, a tipologia do super-homem nos mostra
quão inadequados e desproporcionais são e devem ser seus experimentos. A
percepção do acontecimento, a compreensão da qualidade dos pontos de
vista a própria construção dessa habilidade no trato com o que se
experimenta acerca dos acontecimentos gerais, aparentes ou não tudo
isso implica numa perspectiva sobre a vida, diretamente ligada à construção
de um saber necessariamente múltiplo. Não se pode admitir, nem desejar,
viver somente a partir de uma perspectiva nobre. Há que se percorrer e
conhecer todas as perspectivas, com vistas à pluralidade da análise
genealógica. Mas, por outro lado, há que se produzir novas perspectivas
sobre a vida e o pensamento.
Ora, tanto o trabalho de criação quanto o de interpretação, pilares da
tarefa crítica, devem necessariamente pressupor uma visão de mundo. A
“grande política” é uma ocorrência qualquer, mesmo quando se dá como
política da interpretação. No mesmo passo, a política da interpretação é
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140
necessariamente uma ocorrência, pois está no mundo. O filósofo-intérprete
cria perspectivas sobre o mundo justamente porque o compreende de uma
forma específica. A crítica pressupõe a adoção, não somente de uma visão
de mundo, mas de uma série de perspectivas sempre renovadas. Por que se a
todo instante somos bombardeados pelo “aqui” e o “agora” sob a forma de
uma turba de ocorrências, a menos que queiramos atenuar sua
complexidade, temos que manter uma perspectiva perante esta gama de
acontecimentos. A visão de mundo que se acautela perante qualquer
princípio de identidade entre o que se passou e o porvir, deixa margem para
a criação, pois não se compromete com nenhum ideário específico, nenhum
pressuposto de natureza religiosa.
Portanto, a “grande política”, enquanto política da interpretação, é um
ato criador, pois nela ressoam os elementos positivos de uma criação. Caso
seguisse o conselho de Nietzsche, a Europa afirmaria sua vontade ativa
através de uma grande política? Não necessariamente. O que lemos é
somente a expressão de um delírio: a reviravolta no comportamento
europeu, a unificação dos estados nacionais em prol de uma Europa forte,
mas também e sobretudo, a reversão dos valores em curso. Um delírio-
modelo, algo impensável ainda hoje, mas que traduz a dimensão prática dos
valores democráticos a doença que Nietzsche denunciou bem como
seu antídoto (que não se dá a partir de uma fórmula, e por isso é
dramatizado por Nietzsche). A grande política não se presta à
realização… a menos que se dê, de fato. Somente o ato criador pode
determiná-la, e seu criador é o filósofo-intérprete, o Übermensch. Ao
filósofo é dada a tarefa de observar a dinâmica dos valores, do jogo-de-
forças que se ergue nos múltiplos significados de cada acontecimento. A
“grande política” pode simplesmente irromper, imperceptível. Cabe ao
filósofo-intérprete fazê-la emergir em toda sua dimensão transgressora,
abrindo caminho para a repercussão na vida prática.
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141
5
Conclusão
Tornai-vos duros!
Zaratustra
1
A pesquisa acerca dos aspectos e elementos políticos do pensamento
de Nietzsche possui um destino certo: ela desemboca necessariamente nesta
desesperada e intrincada “grande política.” A “grande política” representa o
corolário das pesquisas que Nietzsche desenvolve a partir de Verdade e mentira
no sentido extra-moral (1873), acerca da gênese e desenvolvimento dos valores
morais. Obscurecida pelas vicissitudes editoriais urdidas pela irmã de
Nietzsche, Elizabeth Förster-Nietzsche, que relegaram-na a uma expressão
aparentemente patológica, a “grande política” hoje pode ser adequadamente
elencada entre as expressões fundamentais do pensamento de Nietzsche.
Impregnada pelos problemas relativos à crítica dos valores morais, a
expressão concentra, não somente os componentes teóricos que dão forma a
essa crítica, mas uma urgência de desmistificação, sentido e, sobretudo,
ação. Uma tal tarefa, posta como declaração de guerra, nos faz perguntar:
precisamos de fato de uma “grande política”? Isto é, uma política que
procura desarticular os valores em curso, uma política da criação de
valores? Na medida em que Nietzsche expressa uma urgência prática,
devemos nos perguntar se estamos prontos para ela? Ou a “grande política”
é apenas um artefato exótico, uma fórmula patológica criada por um
indivíduo tomado pela euforia?
Observando o mundo contemporâneo por uma ótica nietzscheana, isto
é, segundo uma crítica dos valores, se chega à conclusão de que os valores
superiores compõem a mola mestra das relações internacionais. Isto porque
há uma crença generalizada e silenciosa na diplomacia, como forma de se
obter canais de diálogo entre as nações. Entretanto, qualquer pessoa que
refletisse a fundo esta questão, longe de mudar de opinião, ao menos
1
Z, “De velhas e novas tábuas”, 29.
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142
reconheceria que enquanto os diplomatas permanecerem na condição de
agentes de interesses nacionais, estarão submetidos a um processo lento e
degradante de auto-conservação. Para Nietzsche, diplomacia é apenas um
“valor superior” e reativo, justamente porque sua ação está ligada à
manutenção dos valores gregários em favor de maior sociabilidade,
interditando a abertura para a mudança. A “grande política” não é,
definitivamente, uma política de conservação dos valores da pátria e do
estado, mas, sobretudo, uma política transnacional e aventureira. Mas quem,
da imensa massa de comandados, acederia a um sistema político que
pregasse o fim das instituições, das leis, da educação, dos tribunais, dos
impostos, dos sindicatos, dos exércitos, supermercados e shoppings? Quem
de fato está pronto para a “grande política”, considerando seu pressuposto
básico, isto é, o desenvolvimento e aprimoramento contínuo da vontade de
poder? O delírio da “grande política” atinge um tal grau de insensatez
porque reflete a guerra desesperada que Nietzsche deseja travar contra todos
os elementos deste processo de apequenamento do homem contemporâneo.
Sua guerra é uma guerra pela cultura, pela formação de uma outra
possibilidade de desenvolvimento humano, diferente do que grassou na
modernidade. É, portanto, uma guerra desesperada contra o Estado e sua
condição tutelar.
Ao contrário da política em Rousseau que Nietzsche considerava
“um sintoma do desprezo a si mesmo”, justamente por buscar as causas de
sua miséria nas classes reinantes
2
, a “grande política” não parte da
necessidade de mediações entre o Estado e o indivíduo. Embora a abolição
total do Estado seja uma quimera, pois sua constituição é amparada, em
graus diferentes, pela própria legitimação individual e coletiva, não
devemos compreender a “grande política” atenuando as propostas absurdas
e o desprezo pela diplomacia. É justamente diante da dura verdade, que
Nietzsche concebe sua análise do Estado. Ele não acredita que sua
responsabilidade enquanto filósofo deva se ater às necessidades do rebanho
autônomo. Assim, expressando a dura contradição entre a constituição do
corpo social e a constituição do poder, Nietzsche produz um contra-discurso
2
O.P.C. (XIII), p. 83. KSA, 9 [146].
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143
em oposição o papel do estado, mas, sobretudo, contra essa legitimação
indiscriminada por parte da imensa maioria dos indivíduos. O desespero da
“grande política” advém desta terrível constatação. Lembremos Zaratustra:
“Onde cessa o estado, somente ali começa o homem que não é supérfluo.”
3
Se há, na história da filosofia, algum pensamento político semelhante,
este é o de Espinosa, que, como Nietzsche, buscou dar uma dimensão
estritamente materialista e prática à democracia. Espinosa fornece subsídios
para os pesquisadores que buscam desarticular e desmistificar a mistura de
“transcendentalismo normativo hobbesiano, de vontade geral rousseauniana
e aufhebung hegeliana”, que segundo Toni Negri, tem por função “separar
produção e constituição, sociedade e estado.”
4
Sobretudo porque a
democracia é um princípio, seu compartilhamento só poderia se dar de
forma total, e não como “princípio estéril”, como nota Tocqueville. Todos
os indivíduos de fato, deveriam compartilhar os valores democráticos como
princípio ativo, definindo os caminhos a serem tomados a partir de sua
própria condição. O Estado, entretanto, não estimula uma tomada de
consciência com essas proporções; ao contrário, incentiva a dependência,
carece da dependência dos indivíduos. Se este raciocíno parece absurdo,
mais absurdo ainda é a condição tutelar do estado em relação a seus
comandados que, como afirmamos no capítulo dois, passa por uma flagrante
contradição performática. A “grande política” em Nietzsche propõe que a
“mudança de valores” seja sobretudo uma “mudança de criadores.”
5
Entretanto, a formação do estado moderno revelou sua contrapartida na
reprodução de uma educação para a escravidão: a forma como se configura
a organização do estado hoje estimula a crise dos valores, que, em última
instância é a crise da autonomia: “Não desprezemos isto: nós mesmos, nós
espíritos livres, somos um ‘transmutação de todos os valores’, uma formal
declaração de guerra e de vitória a todas as velhas concepções do
‘verdadeiro’ e do ‘falso’.”
6
Se buscássemos compreender a “grande política” a partir de uma
perspectiva republicana, se a comparássemos com o aporte crítico da
3
Z, “Do novo ídolo.”
4
Negri, Antonio. A anomalia selvagem: poder e potência em Spinoza, p. 24.
5
Z, “De mil e um fitos.”
6
AC, 13.
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modernidade política, isto é, sem compreendê-la em seu devido contexto,
poderíamos certamente incorrer no equívoco de comparar as formas da
expressão ao legado platônico do rei-filósofo. Mas deve-se afastar esta
perspectiva, pois, como observa Oswaldo Giacóia:
Inverter o platonismo não significa, no fundo, retornar à sofística ou ao
realismo cru de Tucídides; significa, antes, levá-lo além e acima de si
mesmo, superá-lo e transfigurá-lo numa espécie de grandeza, profundidade e
elevação cuja virtude não consiste na violência ou na crueldade da
dominação física ou política, mas naquilo que se poderia denominar domínio
de si, tornar-se senhor de seus próprios demônios.
7
Para Nietzsche, entretanto, a reforma e a manutenção não bastam. Não
bastam o trabalho, a moradia, a educação, as leis justas, a polícia eficaz, se
os modos de vida estão comprometidos por valores superiores, que, como
vimos, interditam a autonomia. Em suma, não se pode alterar os estados de
coisas sem pressupor a mudança dos valores e, portanto, dos criadores de
valores. Não se pode, em suma, crer que essa “grande política”, de alguma
forma, dependa da autoridade; antes, ela carece de uma tomada de posição,
de uma mudança efetiva, tão inatingível, quanto necessária. Inatingível
porque não se pode supor que absolutamente todos os indivíduos serão
orientados para esse fim; necessária porque, de outra forma, o rei-filósofo
permanecerá, substituído porém pela razão técnica e pelo capitalismo
financeiro e espetacular.
Por outro lado, observemos o seguinte: o filósofo-intérprete elabora os
elementos da “grande política” a partir de uma perspectiva ambivalente: de
um lado, o cultivo de si, que gera a perspectiva ativa; de outro, um olhar
sobre a cultura, que é, simultaneamente, um olhar sobre a constituição do
corpo social. Entretanto, é importante observar que a “grande política” não
carece do genealogista para ocorrer, pois, sob a ótica do pensamento de
Nietzsche, não está em poder do filósofo definir por uma alteração total do
corpo social: sua atuação é limitada. A função da “grande política”,
portanto, não é “mudar o mundo”, pois, nos parece, não há sombra nem de
messianismo, nem de transcendentalismo normativo na obra de Nietzsche.
7
Giacóia, Oswaldo. “O platão de Nietzsche. O Nietzsche de Platão.” São Paulo. In:
Cadernos Nietzsche 3: 1997.
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A “grande política” é uma ação que não depende do intérprete para
repercutir sobre os valores. Como então salvaguardar a crítica de um
relativismo estéril, se posso viver a partir de sentimentos que eu suponho
como ativos, mas sem me perguntar até que ponto eles geram mudanças no
curso dos acontecimentos? Desse ponto de vista, Nietzsche pode parecer um
perigoso aliado em direção a um hedonismo pós-moderno, uma boa razão
para viver a vida burguesa das funções e prazeres imediatos. A “grande
política”, tal como a entendemos aqui, é a expressão contrária dessa
hipótese, pois permite vislumbrar os sentimentos ativos como uma ação, e
não somente como uma perspectiva sobre a qual atuam forças
exclusivamente intelectuais. Afinal, ela tem por horizonte o problema do
valor total da vida.
Para finalizar, uma nota em relação à crítica dos valores morais: o
interesse pela fisiologia atesta a firme convicção de Nietzsche acerca do
caráter orgânico da produção de valores. E neste ponto, me parece, ele
indicou um caminho que somente hoje, com os avanços da neurociência,
pôde ser desenvolvido. A “verdade”, o “pensamento consciente”, o
“julgamento moral”, todos esses valores que, durante o pensamento
moderno filosófico-especulativo, foram concebidos como a priori
inorgânico, têm sua gênese e desenvolvimento na ordem orgânica, e podem
ser explicados em termos físico-químicos, advindos de fatores muito
precisos como alimentação, clima, entretenimento, por exemplo. De modo
que o organismo humano, literalmente falando, tem importância
fundamental na produção da idéia, ou pelo menos, no caráter ideativo do
nosso pensamento, e não o contrário, como se comprova hoje. Acerca deste
último aspecto, suas intervenções em Ecce Homo são “premonitórias”:
Deus é uma resposta grosseira, uma indelicadeza para conosco, pensadores
no fundo até mesmo uma grosseira proibição para nós: não devem
pensar!… De maneira bem outra interessa-me uma questão da qual depende
mais a “salvação da humanidade” do que qualquer curiosidade de teólogos: a
questão da alimentação. Para uso imediato, podemos colocá-la assim: “como
você deve alimentar-se para alcançar seu máximo de força, de virtù no estilo
da Renascença, de virtude livre de moralina?”
8
8
EH, II, 1.
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146
Nietzsche e sua crítica dos valores morais, na busca por uma verdade
múltipla, em direta conexão com o universo, anteviu o caráter orgânico da
produção e manutenção de valores. Para ele, o homem se pôs a tagarelar
sobre o que não sabia, pois não tinha condições para conhecer a constituição
daquilo que se convencionou chamar pensamento e razão. Mesmo sua
ignorância a respeito não fez com que o homem freiasse a criação de normas
para fins de controle social, revelando sua mais íntima vontade de poder. E
nisso, me parece, Nietzsche foi não somente um precursor, como,
simultaneamente, um ignorante assumido: sua ignorância, que em certa
medida era sua modéstia em relação ao que poderia de fato “fazer” e
“pensar”, o elevou à condição de observador. De observador a fino
psicólogo, de fino psicólogo à “profeta”: não o profeta-macaco das
religiões, arautos da antinatureza, mas o profeta do corpo. Contra os
palhaços da existência e suas certezas dessensualizadas, a profecia
nietzscheana se contrapôs com a volúpia da vida e do pensamento:
“Volúpia: aguilhão e pelourinho para todos os penitentes desprezadores do
corpo, amaldiçoada como ‘mundo’ por todos os trasmundanos: porque
escarnece e ludibria todos os mestres do erro e do disparate.”
9
Resta-nos
dizer que, a pesquisa neurocientífica acerca dos valores e dos julgamentos
morais encaminha-se para uma confirmação das intuições de Nietzsche. O
que, infelizmente, não interditará as resistências e antipatias a seu
pensamento, ao contrário: intensificarão ainda mais os contrasensos e
desvios de interpretação. E ressaltarão, de forma dura e inexorável, sua
máxima: de que a humanidade “preferirá ainda querer o nada, a nada
querer.”
10
9
Z, “Dos três males”, 2.
10
GM, III, 1.
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147
6
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