Download PDF
ads:
Carla Pinhassi Santos
A escuta de sujeitos adolescentes que vivenciaram o
abrigamento: contribuições psicanalíticas
Mestrado em Psicologia Social
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
Carla Pinhassi Santos
A escuta de sujeitos adolescentes que vivenciaram
o abrigamento: contribuições psicanalíticas
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de
Mestre em Psicologia Social sob
orientação do Professor Doutor Raul
Albino Pacheco Filho.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
2007
ads:
3
BANCA EXAMINADORA
_____________________________
_____________________________
_____________________________
4
Relampiano – Música: Lenine e Paulinho Moska
Tá relampiano, cadê neném?
Tá vendendo drops no sinal pra alguém
Tá relampiano, cadê neném?
Tá vendendo drops no sinal pra alguém
Tá vendendo drops no sinal...
Todo dia é dia, toda hora é hora
Neném não demora pra se levantar
Mãe lavando roupa, pai já foi embora
E o caçula chora pra se acostumar
Com a vida lá de fora do barraco
Hai que endurecer um coração tão fraco
Pra vencer o medo do trovão
Sua vida aponta a contramão
Tá relampiano, cadê neném?
Tá vendendo drops no sinal pra alguém
Tá relampiano, cadê neném?
Tá vendendo drops no sinal pra alguém
Tá vendendo drops no sinal...
Tudo é tão normal, tal e qual
Neném não tem hora para ir se deitar
Mãe passando roupa do pai de agora
De um outro caçula que ainda vai chegar
É mais uma boca dentro do barraco
Mais um quilo de farinha do mesmo saco
Para alimentar um novo João Ninguém
E a cidade cresce junto com neném
5
Dedicatória: Dedico esta dissertação a todos os adolescentes que me proporcionaram a
oportunidade de compartilhar suas vidas, seus percursos, seus encontros e desencontros,
ensinando-me mais sobre a vida e sobre mim mesma.
“(...) Eu não tenho mais a cara que eu tinha
No espelho essa cara não é minha
Mas é que quando eu me toquei achei tão estranho
A minha barba estava deste tamanho
Será que eu falei o que ninguém ouvia
Será que eu escutei o que ninguém dizia
Não vou me adaptar
Me adaptar
Não vou me adaptar
Me adaptar”
Música: Não vou me adaptar
Arnaldo Antunes
6
Agradecimento Especial: A pessoas muito preciosas com quem tenho tido o
privilégio e a oportunidade de compartilhar minha existência: Flávio, meu amor,
companheiro e amigo querido, pela dedicação e pelo amor, em todos os momentos
que compartilhamos; e aos filhos, Mariana e Rafael, que enchem nossos corações de
alegria e aprendizado a cada dia, tornando mais suave a tarefa de estar no mundo.
Amo vocês!
Aos meus avós queridos, que não se encontram mais entre nós: Manoel, Emil e
Hercília, pelo carinho e amor sempre a mim dispensados, e por me marcarem,
profundamente, com suas histórias de vida, seus valores e seus ideais;
7
Este trabalho é resultante de um longo percurso, onde me deparei com uma
infinidade de situações, sentimentos, oportunidades, limitações e angústias.
Agradeço a todas as pessoas que me acompanharam e que estiveram comigo, neste
percurso, com suas contribuições, em diferentes momentos e de diferentes formas:
Ao meu pai querido, por ter me sustentado e me ensinado a ir além do aparente, na luta
pelos meus ideais e por torcer por mim, sempre! Te amo pai.
A minha mãe, por ter me ensinado a importância de me posicionar frente às minhas
escolhas;
A Marisa, tipo-mãe formidável e querida, que a vida me presenteou e por quem tenho
profunda admiração e carinho; Obrigada, querida: pelas tardes de trabalho, pelo apoio e
pelo carinho, sempre!
Ao meu irmão, Marcos e a Lana por compartilharem conosco parte de nossas vidas;
Às minhas irmãs queridas, Camila e Cris e ao Richard, por acreditarem em mim e pelo
carinho com nossos pequenos;
A Ina querida, pelo carinho, sempre. Auguri!
A Valéria, companheira fiel de todas as horas, pelo zelo, dedicação e cuidado destinados a
mim e a minha família;
A Etty, sogrinha querida amiga e companheira de todas as horas;
Ao Delpino, sogrão querido, por me favorecer com seu saber;
A Lígia e ao Paulo, pelos momentos de descontração. Afinal, ninguém é de ferro...;
A Andréa Sacco, pelas tardes de tutela e cuidado com o meu pequeno e pelas conversas
sobre as coisas da vida;
Ao Marcelo Taddeo, pelos cuidados e carinho destinados à nossa pequena;
A Maria de Lourdes Trassi Teixeira e Isabel K. Marin, professoras fundamentais na minha
formação universitária, que me despertaram, na graduação, para questões relativas ao
trabalho institucional;
Ao meu orientador, Raul Albino Pacheco Filho, por ter escolhido e investido em meu
trabalho;
Ao prof. Doutor Sérgio Ozella e a prof. Doutora Jurema Teixeira, por terem aceitado o
convite de participarem da banca examinadora e por terem contribuído com seus saberes
na realização deste trabalho;
Ao professor Leon, que foi capaz de proporcionar o aprendizado e a interlocução
8
respeitosa;
A professora Maria do Carmo Guedes, pela compreensão e pela profunda sabedoria
conosco partilhada;
Aos professores da Pós-graduação em Psicologia Social e a Marlene pela ajuda e
competência;
Aos colegas da Pós-graduação em Ciências Sociais, em especial à Professora Myrian Veras
Baptista, pelo exemplo de dignidade e coragem;
A Capes e ao CNPq por terem proporcionado condições para a realização deste trabalho e
respeitado meu período de licença maternidade;
Aos meus queridos amigos de labuta no social pela interlocução sempre...
Aos amigos que compartilharam destes e de outros momentos: Sandra, Alê, Simão, Débora,
Paulinha, Cícero, Armando, Daniel, Valéria, Francisco César, Alessandra, Sérgio, Kênia,
Fábio, Maria, Fabinho, Andreinha, PC, Marcelo, Ana, Rosangela, e os seus respectivos
pequenos...
Em especial, a Mônica e ao John, amigos de todos os momentos. Muito obrigada pela
solidariedade, amizade, cuidado e ajuda que possibilitou a finalização deste trabalho.
Aos amigos da Pós em Psicologia Social: Gorete, Margarete, Geison, Guilherme, Celso,
Vinícius, Cynara e Sílvio pelas interlocuções, pelas risadas, reflexões; pelas angústias e
aulas compartilhadas;
As colegas do Cartel de adolescência: Rinalda, Eliane, Adriana e Sandra Berta com quem
compartilhamos teorias, experiências e inquietações.
9
RESUMO
Santos, Carla P. A escuta de sujeitos adolescentes que vivenciaram o abrigamento:
contribuições psicanalíticas. São Paulo, 2007. 195 p. Dissertação de Mestrado em Psicologia
Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Esta dissertação tem como proposta a reflexão sobre o abrigamento de adolescentes na
cidade de São Paulo, tendo como referência teórica a psicanálise.
A institucionalização de adolescentes é prática recorrente desde o Brasil Colônia; no
decorrer da nossa história, este atendimento sofreu inúmeras alterações aliadas às
implementações de leis e de políticas públicas. A população adolescente abrigada
corresponde a uma parcela da nossa sociedade pobre de recursos econômicos. Existe, na
atualidade, um número significativo de casas-abrigo destinadas ao atendimento desta
população, conseqüentemente, um número alto de crianças abrigadas. Este trabalho se
propôs a escutar sujeitos que vivem, ou viveram, institucionalizados nestas casas, no período
correspondente às suas adolescências. O discurso desses sujeitos, no cotejamento com a
teoria psicanalítica, propiciou a compreensão de como vivenciaram esta experiência, quais
laços foram estabelecidos, quais as conseqüências do abrigamento em seus processos
subjetivos e, de que modo esta experiência contribuiu e/ou dificultou a sustentação no
processo do adolescer. As análises destes discursos nos permitiram, inclusive, refletir sobre
aspectos relacionados ao funcionamento oferecido pelas casas-abrigo e do lugar que ocupam
na nossa sociedade.
Palavras-chave: casas-abrigo, psicanálise, sociedade, constituição subjetiva e sujeitos
adolescentes.
10
ABSTRACT
Santos, Carla P. Listen to adolescents who lived in sheltered housing: psychoanalytical
contributions. São Paulo, 2007, 195 pages. Paper for Master Degree in Social Psycology,
Pontifica Universidade Católica de São Paulo.
This essay object is to ponder over the sheltered housing for adolescents in São Paulo city
based on psychoanalytic theory references.
To institutionalize adolescents has been a common and repeated practice since Brazil was a
colony. During our history that kind of attendance was changed many times because of new
laws and public policies. The teenagers that live in that kind of housing come from the
poorest part of population in our society. Nowadays, there is a significant number of shelters
which aim to attend this part of the population, and a great number of sheltered children as
well. This essay aim to listen to individuals who live or have lived under those conditions
during their adolescences. What they say, based on psychoanalytic theory, will enable us to
understand how they felt the experience, which links they built up, whit consequences were
brought to their subjective perception and how their personal growth was affected.
Having analyzed that material we could reflect on the way sheltered-housing works and its
importance in our society.
Key words: shelters, psychoanalysis, society, subjective constitution and adolescents.
11
SUMÁRIO:
Introdução............................................................................................................1
Capítulo I - Método e Procedimento
1.1 - Pressupostos metodológicos.....................................................................................9
1.2 - As entrevistas..........................................................................................................15
1.3 - Os sujeitos...............................................................................................................17
Capítulo II – História das instituições e das políticas públicas criadas na
nossa sociedade para o atendimento da infância e adolescência
2.1- A infância e adolescência abandonadas e institucionalizadas no Brasil..................19
2.2 - Infância, adolescência e os abrigos.........................................................................40
Capítulo III – Família e a constituição do sujeito................................................48
3.1 - A constituição subjetiva dos sujeitos e o Complexo de Édipo................................54
3.2 - O sujeito adolescente...............................................................................................70
Capítulo IV - Análise do relato dos sujeitos entrevistados
4.1.1 - Primeira entrevista: caso N...................................................................................80
4.1.2 - Considerações teóricas sobre o caso N.................................................................92
4.2.1 - Segunda entrevista: caso M..................................................................................99
4.2.2 - Considerações teóricas sobre o caso M...............................................................112
4.3.1 - Terceira entrevista: caso P...................................................................................121
4.3.2 - Considerações teóricas sobre o caso P................................................................142
4.4.1 - Quarta entrevista: caso J......................................................................................154
4.4.2 - Considerações teóricas sobre o caso J.................................................................164
Capítulo V - Considerações finais:..........................................................................172
Referências bibliográficas.........................................................................................190
12
Introdução:
O objeto de estudo deste trabalho é a escuta de adolescentes, em situação de risco ou
abandono, que passaram pela experiência de terem vivido em abrigos, durante um período
de suas vidas. O interesse por esse estudo originou-se de nossa prática profissional, nos
últimos cinco anos, como psicóloga em dois Abrigos do Estado de São Paulo destinados ao
atendimento da população adolescente com idade entre 12 e 17 anos e 11 meses
1
, de ambos
os sexos. Atuamos, também, em uma Casa de Retaguarda destinada ao atendimento de
adolescentes do sexo feminino, na faixa etária de 12 a 17 anos e onze meses de idade.
A prática de institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil começou na época da
colonização portuguesa. Os jesuítas iniciaram esta prática, trazendo órfãos de Portugal para
permanecerem sob seus cuidados e acolheram, no Brasil, filhos de índios. Estas crianças
permaneciam em casas custeadas pela corte portuguesa, as quais eram chamadas de Casas
dos Muchachos
2
. Ao longo dos anos, foram criadas leis e políticas de atendimento, visando
especificamente o atendimento a esta população. A lei mais recente dirigida ao atendimento
desta população é o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
3
– aprovado em 1990, que
conta, entre suas inovações, a referente aos abrigos
4
.
Assistimos, na prática, apesar da existência deste conjunto de leis e de políticas públicas,
direcionadas para o atendimento a esta população, não haver garantias quanto à sua
efetivação. Até hoje, nos deparamos com atendimentos e atuações inadequadas e fora dos
parâmetros da legalidade. Atualmente, no Brasil, existem cerca de 20.000 crianças e
adolescentes que vivem em abrigos, distanciados de sua família de origem. O que revela o
quanto essa prática é recorrente e atual em nossa sociedade.
A sociedade, em geral, tem contato com essa realidade através da veiculação dos meios de
comunicação. Quando a mídia o faz, evidencia aspectos ideológicos coerentes com os
interesses econômicos e políticos dominantes.
1
Ao completar 18 anos pela legislação, o adolescente não pode mais ficar abrigado.
2
Priore,1991.
3
Conjunto de leis direcionadas ao atendimento e proteção da criança e do adolescente, o qual inclui direitos e
deveres e apresenta indicações para implantação de programas, objetivando o atendimento de crianças e
adolescentes em situação de risco e abandono.
4
Artigo 92 do ECA.
13
Nas oportunidades de aparição desta parcela da população através dos meios de
comunicação em massa representados pela mídia, a criança ou adolescente é, em geral,
referenciado, de forma maniqueísta, como portador da violência e/ou ameaça à integridade
da população ou como vitimizado pela sua condição.
“A atuação da mídia na divulgação de informações prescinde de análises críticas,
constantes e adequadas relativas à defesa dos direitos da infância e da adolescência. Como
conseqüência da surdez seletiva, não se ouve quem precisa ser ouvido: as crianças, os
adolescentes, seus pais e responsáveis e alguns dos principais atores do sistema de garantia
de direitos, diretamente responsáveis pela mediação da relação das crianças e dos
adolescentes com os demais setores da sociedade, inclusive a própria mídia” (Corrêa,
2006: 22).
5
Os abrigos são equipamentos que compõe, pela legislação, uma das medidas de proteção às
crianças e adolescentes ameaçados em seus direitos básicos, sendo uma alternativa de
moradia provisória, que não tem como função a privação de liberdade
4
. Devem, também,
oferecer atendimento personalizado, em um espaço com características e estrutura
residenciais, propiciando aos atendidos acesso à educação, esporte, saúde lazer e à vida na
comunidade local. A medida de abrigamento é um serviço oferecido, pelo Estado, para o
adolescente e para a família de classes menos favorecidas da sociedade.
Rizzini (2006) afirma que 100% da população atendida pelos abrigos, em nossa sociedade
são provenientes “da classe pobre da nossa sociedade (p.92)”.
5
In: Abrigo: comunidade de Acolhida e sócioeducação. Texto publicado originalmente na revista Ciranda:
Central de Notícias dos Direitos da Criança e do Adolescente.
4
Artigo 101- parágrafo único do ECA.
14
Como foi anteriormente citado, também trabalhamos, durante alguns anos, em Casas de
Retaguarda. A função destas Casas era a de abrigar adolescentes pelo período máximo de
quarenta e oito horas e, finalizado esse prazo, estes deveriam ser encaminhados ao serviço
ou local adequado ao atendimento de seu perfil (abrigo, clínica de drogadição, clínica
psiquiátrica, etc.). Havia, porém, muita dificuldade no encaminhamento de adolescentes e
muitos acabavam permanecendo nestas casas por meses e até anos, resultando em uma
prática parecida com outra de qualquer abrigo.
Estas casas eram mantidas pelo Estado, para dar conta do contingente de adolescentes
encaminhados para o abrigamento pelo Poder Judiciário, que necessitavam de proteção
imediata e/ou se encontravam nas mais diversas situações de risco pessoal e social: situação
de rua, drogadição, ameaça de morte por traficantes de drogas, vítimas de abuso sexual e/ou
violência, portadores de deficiência física ou psiquiátrica, orfandade, conflitos familiares,
gravidez não aceita na família, saída da internação da FEBEM - infrator, pais adotivos que
devolviam o adotante, pais com dificuldades emocionais, sociais, alcoolistas ou drogaditos.
As Casas de Retaguarda eram, na época, mantidas sob responsabilidade do Estado e
apresentavam como norma e princípio a recepção de todo e qualquer adolescente.
Entretanto, diferentemente desta norma, era crescente o número de instituições existentes
em São Paulo, que só disponibilizavam vagas para o recebimento de crianças de sete a doze
anos de idade. Mas quando estas crianças alcançavam a faixa etária limite (doze anos), eram
encaminhadas para outras casas que as atendessem dos doze aos dezoito anos de idade.
A esta situação se acrescentava uma dificuldade específica quando se tratava do
abrigamento de adolescentes, pois era evidente a insuficiência de instituições que
trabalhavam com esta população. Verificamos a escassez do número de casas destinadas a
este atendimento.
15
Pudemos, inclusive, vivenciar a mudança de perfil de atendimento em uma casa-abrigo em
que trabalháramos. Esta casa-abrigo, que atendia crianças e adolescentes de 12 a 18 anos,
definiu que passaria a atender, a partir de uma determinada data estabelecida pela direção,
crianças de 7 à 12 anos. Os adolescentes que não tivessem idade correspondente à nova
proposta, deveriam ser encaminhados para outras instituições ou serem desabrigados. Os
encaminhamentos foram realizados às pressas sem qualquer cuidado específico com estes
sujeitos adolescentes.
O discurso recorrente entre os profissionais desta casa, antes da efetivação da mudança de
faixa etária a ser atendida, era sobre a necessidade de encaminhar os adolescentes mais
velhos, separando-os dos novos que iriam chegar. Os profissionais repetiam constantemente:
“Devemos separar as laranjas podres do resto para não estragarem as novas que vão
chegar”, “Ninguém quer trabalhar com esse tipo de população! Esse povo, ninguém quer,
dá muito trabalho e dor de cabeça!”; ou o discurso recorrente dirigido aos adolescentes da
casa: “Por que você não vai embora? Quero ver quem vai te querer, ninguém gosta de
trabalhar com adolescentes, aqui você tem tudo e ainda se queixa...”.
Estes profissionais, freqüentemente, cobravam dos adolescentes a gratidão por estarem
sendo assistidos por eles. Esta gratidão era cobrada, quando na imposição de ordens os
adolescentes as questionavam e muitas vezes não as cumpriam. Segundo eles, os
adolescentes lhes deviam atitudes de obediência e submissão.
Evidenciava-se, também, através dos discursos dos profissionais, a preferência pelo trabalho
com crianças menores de doze anos. Os adolescentes eram referidos como culpados pela
própria condição de abrigados e como sujeitos que não mereciam investimento. Esses
discursos, muitas vezes baseados em supostos saberes provenientes de teorias
desenvolvimentistas e psicológicas, justificavam, de forma bastante precária, um
atendimento deficitário em relação à população atendida.
16
A questão do atendimento dirigido a adolescentes nos suscitava uma série de
questionamentos, nos intrigando a forma como os profissionais se dirigiam a estes e os
atendiam. Os sujeitos abrigados mal eram escutados em suas questões. O atendimento desta
população nos parecia não levar em conta o adolescente e suas necessidades.
Por muitas vezes, tivemos a impressão que o abrigamento não contribuía com o
desenvolvimento e sustentação dos sujeitos institucionalizados, ao mesmo tempo que se
configurava, em muitos casos, como o único espaço de tutela possível a alguns dos sujeitos.
A escolha da pós-graduação e o trabalho de pesquisa aqui desenvolvido têm estrita relação
com os questionamentos relativos a este percurso profissional: o dia a dia do trabalho
institucional fez emergir, dentre outras questões, a indiferenciação entre o profissional de
psicologia e o de assistência social. A dissertação busca, somada aos fundamentos teóricos
nela evidenciados, resgatar a importância da escuta psicanalítica, ferramenta fundamental no
desenvolvimento deste trabalho.
Quando iniciamos a pesquisa do mestrado, tínhamos como intenção trabalhar o papel e a
função do abrigo na sociedade capitalista e as conseqüências desta vivência para os
abrigados. Contudo, à medida que fomos avançando neste trabalho, passamos a ter maior
interesse na pesquisa das questões subjetivas do sujeito adolescente abrigado e a ter menor
interesse no estudo da função social dos abrigos. Embora reconheçamos a importância do
estudo do abrigo como função social, de seu lugar na sociedade de regime capitalista, nosso
maior interesse centrou-se no sujeito adolescente que viveu institucionalizado, parte de sua
vida. Entrevistar estes adolescentes, sem que estivéssemos trabalhando nos abrigos onde
moravam, nos pareceu uma excelente oportunidade de escutá-los de outro lugar, do lugar de
pesquisadora e psicanalista.
17
O que os adolescentes teriam a dizer a respeito de terem vivido parte de suas vidas
institucionalizados? Quais as conseqüências da institucionalização sobre seus processos
subjetivos? O que o abrigamento representou para esses sujeitos? Como foi vivenciado?
Quais laços foram estabelecidos? De que modo a experiência do abrigamento contribuiu
e/ou dificultou a sustentação que envolve o adolescer? - são estas as perguntas com as quais
procuramos nortear nossa dissertação.
Aliados a estes fatores,consideramos que o estudo sobre a adolescência na sociedade
contemporânea é extremamente relevante, por ser este um momento crucial no processo de
subjetivação do sujeito. Neste processo a psicanálise nos mostra que o sujeito adolescente
questiona, pois os modelos identificatórios se afrouxam.
O psicanalista Rassial (1995) afirma que a adolescência é o paradigma da crise identitária.
Os adolescentes são suportes do sintoma em sua dimensão dupla: ao mesmo tempo
individual e social; quando uma criança entra no processo da adolescência coloca em
questão, além de sua identidade, a questão da identidade dos pais, do conjunto do casal
social e interroga imediatamente o laço social em sua totalidade (p.88).
O adolescente é impelido, tanto pelo meio que o cerca quanto pelas suas próprias
determinações inconscientes, pulsionais e identificatórias a fazer escolhas.
Como fala Matheus (2000) apoiando-se teoricamente em Ruffino:
O adolescente é obrigado a se posicionar frente a questões de três ordens: no nível sexual,
em seu posicionamento no universo familiar e na formulação de uma ética que sustente suas
escolhas e suas ações (p.66)”.
18
Alberti (2004) apresenta a adolescência como um longo trabalho de escolhas e de
elaboração da falta no Outro. Escolhas estas que não prescindem de indicativos e direções
anteriores que o sujeito recebe ao longo da infância. Segundo a autora, durante todo o
processo do adolescer, o sujeito deve continuar recebendo esses indicativos, sendo
fundamental que não falte quem os transmita (p.10).
Concordantes com os autores acima referenciados, perguntamos: como se dá a sustentação
do processo de adolescer do sujeito que se encontra abrigado neste período de sua vida?
Esta dissertação, tendo como base a teoria psicanalítica, pretende possibilitar a reflexão de
aspectos relacionados ao viver institucional, a partir do discurso de sujeitos que passaram
por esta experiência. Foram realizadas duas entrevistas com adolescentes moradoras de
abrigos e outras duas com jovens adultas que viveram o período correspondente às suas
adolescências em abrigos, mas que não estavam abrigadas na época da entrevista. Estas
jovens adultas desabrigadas, à época da entrevista, tinham mais de dezoito anos.
Os abrigos serão aqui citados tanto em suas estruturas físicas como nas de funcionamento,
por constituírem os espaços onde transcorrem estas experiências.
Partimos do princípio que o adolescente, embora pertença a uma classe social específica,
sempre está envolto e imerso pela sociedade - com suas características próprias históricas,
políticas e sociais - a qual o convoca de diferentes formas e com diferentes encargos. O
sujeito adolescente conta, nestas convocações, com sua subjetividade e seu desejo que o
determinam no processo de adolescer.
O corpo desta dissertação traz, no primeiro capítulo, o método e o procedimento da
pesquisa.
No segundo capítulo, de cunho histórico, são apresentados dados referentes à infância e à
adolescência abandonada, institucionalizada e pobre de recursos econômicos no Brasil,
assim como as políticas destinadas ao seu atendimento, verificando-se o lugar dado a esta
parcela da infância e adolescência ao longo da história. Retrata o processo que deu início ao
surgimento das primeiras instituições de acolhimento no Brasil, incluindo a legislação
brasileira, o surgimento dos abrigos, a legislação que o oficializou, sua estrutura e os
19
aspectos jurídicos relacionados a seu funcionamento.
O terceiro capítulo, alicerçado pela teoria psicanalítica, aprofunda o estudo do sujeito,
focalizando a família e a constituição do sujeito, constituição esta compreendida na travessia
do Complexo de Édipo. Este capítulo busca oferecer material teórico necessário para as
análises das entrevistas realizadas com adolescentes.
No quarto capítulo são apresentados os relatos integrais dos sujeitos entrevistados e
realizadas as análises das entrevistas, conciliando as singularidades das experiências e dos
discursos dos sujeitos entrevistados, com uma atenção global às suas articulações com as
instâncias e aspectos da sociedade em que se inserem. A escuta destes adolescentes propicia
a compreensão de como vivenciaram, ou vivenciam, a experiência do abrigamento e as
implicações subjetivas enquanto sujeitos.
No quinto capítulo serão abordadas as conclusões alcançadas. O produto final do trabalho
deste capítulo traz, a partir das entrevistas realizadas e do desenvolvimento teórico do corpo
desta dissertação, uma análise crítica da vivência do abrigamento por sujeitos adolescentes.
Apontamentos são levantados relativos à dinâmica, à estrutura e às funções dos abrigos em
nossa sociedade.
20
Capítulo I - Método e procedimento:
1.1- Pressupostos metodológicos:
Na introdução nos referimos, diversas vezes, ao adolescente como “sujeito adolescente”.
Torna-se fundamental que iniciemos este capítulo pontuando brevemente o significado de
sujeito na psicanálise.
“O sujeito, em psicanálise, é o sujeito do desejo, que Sigmund Freud descobriu no
inconsciente. Este sujeito do desejo é um efeito da imersão do filho do homem na
linguagem. É preciso, pois distingui-lo tanto do indivíduo biológico quanto do sujeito da
compreensão”. (...) “Efeito da linguagem, não é um elemento dela: ele ex-siste (mantém-se
fora), ao preço de uma perda, a castração (Chemama, 1995:208)”.
Partimos do princípio que o sujeito emerge e se “humaniza” em contato com a linguagem,
sendo, portanto, de fundamental importância que se pense o adolescente levando-se em
conta a sociedade que o cerca e o Outro
6
a quem responde enquanto sujeito.
Ogilvie (1987) ao trabalhar em Lacan a formação do conceito de sujeito, cita:
“O sujeito só é tão facilmente apreendido, na totalidade de sua extensão pelas
determinações da cultura, por portar já em si esta alteridade, que é, ela própria, o efeito da
presença desse campo no qual ele surge e que o cerca por todos os lados (p.102)”.
“Um indivíduo é, portanto, sempre muito mais do que ele mesmo: é antes de tudo uma
atividade que ao mesmo tempo supõe e reproduz, desenvolvendo-se, um meio, isto é, sistema
de relações, de significações e de elementos integrados que formam uma realidade (p.66)”.
Nas obras de Lacan e Freud, o sujeito se constitui na cultura, na sociedade, a partir do
simbólico. Em Freud, a criança é apresentada como um ser que nasce imerso no caos das
6
O grande Outro lacaniano: “Lugar onde a psicanálise situa, além do parceiro imaginário, aquilo que,
anterior e exterior ao sujeito, não obstante o determina. (Chemama, 1995:156)”.
21
pulsões e sua inserção na cultura e no social dependem da introjeção da lei e da castração,
transmitidas através do complexo de Édipo
7
. A finalização do Édipo com a ameaça de
castração imposta pelo pai na interdição do incesto coloca o sujeito frente à cultura e as leis
da sociedade. Nas obras sociais (Psicologia de grupo e análise do ego, 1922; O Mal Estar na
Civilização-1930) o sujeito é constantemente referenciado em relação ao social; discorre
sobre os fenômenos sempre os articulando com o subjetivo (aquilo que é da ordem do
sujeito) na sua interface com a ordem do social.
Em Lacan, o sujeito não está separado do social. No seu desenvolvimento teórico sobre a
teoria do Édipo, também trabalha com a interdição paterna; porém, Lacan subverte a ordem
freudiana no que se refere à relação do homem com a natureza e a cultura; trabalha com a
anterioridade lógica da linguagem e suas leis, que constituem o sujeito por uma forma de
inscrição no campo da linguagem que o antecede.
A análise dos aspectos subjetivos dos sujeitos que vivenciam uma determinada experiência,
como a do abrigamento, não exclui a reflexão sobre os abrigos, lugar onde estas
experiências se inscrevem.
Porém, como escreve Mariano (2001), ao trabalharmos com crianças e adolescentes em
situação de vulnerabilidade e institucionalizadas, corremos o risco de focarmos apenas a
problemática institucional, excluindo o sujeito.
“(...) se não ficarmos atentos, podemos deslocar nosso foco somente para as instituições e
não para a presença da criança e do jovem dentro destes espaços com as respectivas
estratégias utilizadas para conseguir escapar ou sobreviver a tudo isso (p.29)”.
7
Freud, S. A Dissolução do Complexo de Édipo (1924).
22
Outro aspecto trabalhado por este autor em sua dissertação refere-se à dificuldade de acesso
que se tem em relação à experiência e a vivência das crianças e dos adolescentes
institucionalizados. Os únicos documentos de acesso a estas experiências encontram-se, na
maioria das vezes, em poder do Judiciário (laudos periciais) e em laudos feitos por médicos
que atenderam essas crianças e adolescentes durante o processo de institucionalização.
“Quando se trabalha com a infância pobre e desvalida temos uma dificuldade ainda maior,
pois essas não deixam diários, escritos, relatos, cartas ou outros documentos escritos
(p.29)”.
Estes aspectos observados e assinalados por Mariano (2001) vêm ao encontro do que a
pesquisadora observou em seu trabalho prático, bem como no trabalho de levantamento
bibliográfico para a realização desta pesquisa. Na prática profissional participamos de
raras reuniões de equipe; quando estas aconteciam, as discussões incidiam sobre o
andamento da instituição e sobre a dificuldade de atuação dos profissionais. Os
adolescentes atendidos raramente eram assunto destas reuniões. Observamos, também,
que o volume de publicações existente referente a abrigo, enquanto instituição, e de
publicações visando o trabalho do profissional que atua nestas instituições, é bem maior
do que as publicações focando a experiência dos sujeitos abrigados. Parece-nos ser
fundamental, para pensar o abrigamento, partir da escuta daqueles que vivem ou
vivenciaram esta experiência.
Matheus (2000), ao se referir ao trabalho de pesquisa em psicanálise, utiliza-se, para
exemplificá-la, dos conceitos de singularidade e universalidade:
“A articulação em questão pode ser concebida a partir das noções de singularidade e
universalidade, como dimensões opostas e complementares no recorte sobre a condição
humana. A universalidade é composta da diversidade de sujeitos, não podendo ser
circunscrita a nenhum caso específico; refere-se ao conjunto (p.91)”.
23
Assim, as particularidades de cada um dos sujeitos apontam para a coletividade, porém, a
coletividade não pode se restringir à somatória dos sujeitos. Esses sujeitos devem ser
pensados na sua experiência e vivência particulares.
A psicanálise tem como objeto de estudos o sujeito, sujeito dividido - marcado por aquilo
que lhe escapa e que não pode controlar - marcado pela linguagem, via de expressão de seus
desejos, de suas angústias, encontros e desencontros.
Esta dissertação, fundamentada na teoria psicanalítica, tem como metodologia de pesquisa a
escuta de sujeitos adolescentes com experiência em abrigamento, através de entrevistas não
diretivas.
Nascimento (2004), em sua tese, ao tratar sobre a escuta de sujeitos institucionalizados, cita
Lacan:
“Todas essas tentativas, denuncia Lacan, são normatizadoras e adaptativas, em sua
pretensão de abafar o desejo: trata-se de tapeações moralizantes, é com o desejo que o
sujeito está comprometido, e é pela sua enunciação que deve se tornar responsável (p. 10)”.
A escuta destes sujeitos traz aspectos relativos à vivência do abrigamento. Nosso foco de
pesquisa incidirá nas questões: o que representou, para estes sujeitos, viverem
institucionalizados no período de suas vidas correspondente à adolescência? O que o
abrigamento representou para estes sujeitos? Quais laços foram estabelecidos? Quais as
conseqüências da institucionalização sobre seus processos subjetivos? De que modo à
experiência do abrigamento contribuiu e/ou dificultou a sustentação do processo que
envolve o adolescer?
Cada um dos sujeitos apresenta, dentro da sociedade, sua história singular. Isto se
materializa, nesta dissertação, através dos sujeitos aqui entrevistados. O interesse por estas
histórias não se dá por um pretenso dado objetivo, mas sim por elas constituírem recortes
subjetivos de uma história vivida.
Esta pesquisa não tem como caráter metodológico a quantidade. Seu enfoque incide sobre
a experiência e vivência singular de cada sujeito, não tendo, como objetivo, a obtenção de
representatividade estatística.
24
O pesquisador está incluído enquanto objeto de análise e reflexão em seu trabalho de
pesquisa, não sendo neutro ou nulo.
“Em outras palavras, o psicanalista, em seu esforço de compreensão do “sujeito” que lhe
fala, descobre que suas interpretações, se ele não se resguardar, serão sempre
profundamente marcadas por sua própria subjetividade. O desnível hierárquico, fator de
“objetividade” que se espera encontrar numa observação com pretensão científica, entre o
sujeito e o objeto, está aqui totalmente ausente: um sujeito é confrontado com outro sujeito
e entrevê nele problemas que estão longe de deixá-lo neutro ou indiferente. Seu próprio
“desejo”, isto é, o sistema de suas atitudes e de suas opções inconscientes, de suas
disposições de espírito, poder-se-ia dizer, deve, portanto ser analisado. Não se tem o hábito
nas ciências de se preocupar com as intenções ou com o estado de espírito do
experimentador: é impossível, aqui, abstrair-se deles (Ogilvie, 1987:40)”.
Nesta pesquisa o processo de elaboração conceitual que se dá no interior das reflexões,
através dos relatos colhidos, inclui o pesquisador. A psicanálise enfoca o estudo o
inconsciente, diferenciando-se das demais ciências que irão se sustentar, teórica e
cientificamente, tendo como objeto de estudo a razão e a consciência.
“A teoria psicanalítica pode dar-nos, assim, aquilo que faz de toda ciência não uma pura
especulação, mas uma ciência: a definição da essência formal de seu objeto, condição de
possibilidade de toda aplicação prática, técnica, aos próprios objetos concretos (Althusser,
1985:68)”.
Os discursos serão trabalhados visando além do manifesto, tendo ênfase na singularidade do
sujeito. Faço uso das palavras de Teixeira (2002):
25
“A escuta analítica permite alcançar, além do discurso manifesto e explícito, aquilo que é
da ordem do inconsciente, latente por meio de atos falhos, de esquecimentos, de silêncios e
dos significantes (p.28)”.
Concordantes com Farias (1996) ao se referir ao trabalho de pesquisa em psicanálise,
partimos do princípio que esta deve centrar-se na busca da singularidade do sujeito,
priorizando o particular e não em possíveis generalizações.
Partimos do pressuposto de que os sujeitos (adolescentes abrigados), apesar de não
preexistirem à estrutura social, só existem devido à mesma, mas não a reproduzem como
simples reflexo, interagindo de forma dialética e também a constituindo.
Propomos, neste trabalho, deslocar o foco do adolescente como sujeito de direitos instituídos
juridicamente para o foco do adolescente como sujeito de desejo, refletindo sobre a
subjetividade deste, sobre aquilo que é singular a cada um dos sujeitos na vivência do
abrigamento.
Concordamos com Nascimento (2004) ao referir-se à análise destes mesmos aspectos,
fazendo uso da teoria lacaniana em que enfatiza não haver possibilidade de se pensar o
sujeito humano a partir de direitos e deveres universais ditados “a priori”.
Para além do trabalho realizado pela pesquisadora em instituições abrigo e em seu contato
com as políticas públicas, cabe à mesma escutá-los em seus desejos, fantasias e medos.
26
1.2 - As entrevistas:
Na dissertação foram entrevistados quatro sujeitos, duas adolescentes que, na época,
residiam em abrigos do Estado de São Paulo e duas adultas - jovens que moraram em
abrigos durante suas adolescências e que, na época da entrevista, não se encontravam mais
abrigadas. Estes sujeitos foram escolhidos pelo fato de estarem fortemente marcados pela
vivência do abrigamento.
Explicamo-lhes que estávamos trabalhando com questões relativas aos abrigos, pensando-as
através do relato de pessoas que vivenciaram esta experiência, sendo nosso objetivo escutá-
las. As entrevistas foram pouco dirigidas. Durante a realização das mesmas, a pesquisadora
procurou interferir minimamente no discurso dos sujeitos, deixando livre a cadeia
associativa. Apenas quando interpelada pelas entrevistadas, buscou responder pontualmente
as questões colocadas.
Antes do início de cada entrevista esclarecemos que não seriam realizadas perguntas
direcionadas, a não ser quando o pesquisador tivesse necessidade de algum esclarecimento.
Assim sendo, cada qual poderia abordar os aspectos que escolhesse. A proposta inicial da
pesquisadora era de realizar um encontro com cada um dos entrevistados; porém, a
adolescente P. nos solicitou um encontro a mais, o qual lhe foi concedido. Em conseqüência,
sua entrevista foi mais extensa.
Esclarecemos que preservação do sigilo quanto ao nome das entrevistadas e das instituições.
Portanto, utilizamos nomes fictícios, preservando a identificação daqueles que compuseram
a amostra.
Solicitamos a autorização de todos os entrevistados para gravação das entrevistas. Todos
concordaram. Na transcrição das mesmas, preservamos o discurso de forma literal, sem
alterações.
O trabalho de análise foi realizado a partir de fragmentos discursivos dos sujeitos
entrevistados, relacionando-os com a argumentação teórica. O destaque desses fragmentos
foi feito tendo como fio condutor suas respectivas histórias de abrigamento.
Na análise das entrevistas, também buscamos conciliar as singularidades e particularidades
das experiências e dos discursos dos sujeitos, levando em conta suas articulações com as
instâncias e aspectos da classe social na qual se inserem. Nesta análise a pesquisadora focou
27
alguns aspectos, não preservando a seqüência temporal discursiva das entrevistadas. A
análise se realizou em concomitância com esta focalização do discurso colhido nas
entrevistas.
Julgamos pertinente abordar uma questão referente ao trabalho aqui realizado: a da extensão
do método psicanalítico enquanto investigação fora do âmbito da clínica.
Vários teóricos questionam a legitimidade da extensão da psicanálise ao ultrapassar o
contexto clínico. A psicanálise extra-clínica é nomeada, por alguns teóricos, como
psicanálise aplicada ou como psicanálise em extensão.
Matheus (2000) discorre sobre esta questão. Para ele um dos aspectos cruciais que envolvem
a psicanálise extra-clínica é o perigo da deriva interpretativa, trazendo a ameaça da análise
selvagem. Porém, uma colocação interessante do mesmo autor, ao se apoiar teoricamente
em Plon, é não serem estes riscos privilégio da psicanálise aplicada, sendo inerentes à
própria clínica psicanalítica, visto a análise selvagem ser passível de acontecer em qualquer
sessão de análise, ou seja, no âmbito clínico. Assim, conclui Matheus (2000), a deriva
interpretativa e a extensão abusiva do pensamento analógico não é exclusividade do campo
de estudos da psicanálise aplicada, sendo essas características da própria psicanálise, o que
nomeia como “fragilidade epistemológica”.
“Entende-se assim, que o que marca a fragilidade epistemológica na psicanálise, é também
o que lhe confere um estatuto incomparável, o que a destaca entre as ciências humanas: o
desafio da investigação de algo tão indeterminado como o inconsciente. A dificuldade em se
especificar o processo de construção do conhecimento na psicanálise se mostra inevitável,
em função do desafio de se aproximar daquilo que parece incerto, incoerente e
contraditório. Se há um déficit epistemológico na psicanálise, este é o preço a ser pago pela
escolha de seu objeto de investigação (p.19)”.
1.3- Os sujeitos:
Os sujeitos entrevistados foram convidados a participar da entrevista conforme sua
disponibilidade de local, dia e horário. Todas as entrevistadas tiveram algum contato
anterior com a entrevistadora, no período de abrigamento. Acreditamos ter esta suposta
transferência, facilitado o desenrolar das entrevistas.
28
Na época das entrevistas N. e M., ambas adultas - jovens com 23 e 21 anos respectivamente
- encontravam-se desabrigadas há alguns anos. A entrevistadora as conheceu quando
trabalhou em um abrigo durante três anos, mas não acompanhou o desabrigamento de
ambas, pois nesta época já se encontrava afastada deste trabalho. Não foi estabelecido
nenhum tipo de contato com estas adolescentes após suas saídas desta instituição. O contato
para as entrevistas foi restabelecido através do Orkut
8
Após a explicação do tipo de pesquisa a ser desenvolvido, tanto N. como M. se ofereceram
voluntariamente para participar. Ficou evidente, nos discursos das entrevistadas, o fato da
entrevistadora ter compartilhado parte de um período de suas vidas. Ambas fizeram, durante
a entrevista, referências a pessoas, funcionários e acontecimentos desta época. É interessante
notar, pelos relatos, que ambas fizeram espontaneamente uma descrição do vivenciado
desde quando a pesquisadora saiu da instituição. A transferência estabelecida pelas
entrevistadas com a pesquisadora se manteve, colocando-a como “psicóloga do abrigo”,
aquela que as ouvia quando institucionalizadas.
Em relação às adolescentes abrigadas entrevistadas P. e J., com 16 e 15 anos de idade
respectivamente, a entrevistadora as conheceu em uma casa de retaguarda de adolescentes
do sexo feminino, onde trabalhou. O contato e o convite para a realização das entrevistas
foram feitos, após um encontro eventual em uma estação de metrô da cidade, quando ambas
retornavam de um curso que realizavam fora do abrigo. Foi-lhes descrito o trabalho de
pesquisa e feito o convite para a participação de ambas, as quais aceitaram prontamente.
A seguir, a pesquisadora entrou em contato com o abrigo no qual atualmente residem, para
solicitar autorização para a participação delas nas entrevistas em dia, local e horário
diferenciados e determinados por cada uma das adolescentes.
Ambas preferiram que isto ocorresse fora do abrigo, escolhendo o local aonde realizavam
um curso de preparação para o mercado de trabalho. Este local também autorizou a
utilização das salas para a realização das entrevistas.
8
Site de relacionamentos da internet.
29
As entrevistas tiveram duração média de 2 horas. Apenas a adolescente P. nos solicitou a
marcação de mais um horário, pois, segundo ela, o tempo havia sido insuficiente.
Atendemos sua necessidade e a entrevista foi realizada em dois dias. Respeitamos, nas
entrevistas, o tempo que cada um dos sujeitos delimitou. A entrevistadora não interferiu nos
discursos, realizando apenas alguns apontamentos quando necessários, focando o objetivo
do trabalho de pesquisa: apreender e poder ouvir as experiências das entrevistadas em
relação ao abrigamento. As características de cada um dos sujeitos serão colocadas mais
especificamente no capítulo de análise, à medida do trabalho com seus discursos.
Todas as entrevistas foram realizadas com pessoas do sexo feminino. Esta não foi uma
escolha proposital, pois o convite foi extensivo também para sujeitos do sexo masculino.
Estes, curiosamente, não se voluntariaram. Valeria a pena questionar a que este fato poderia
estar vinculado, mas, por enquanto, deixamos a questão em aberto.
30
Capítulo II: História das instituições e das políticas públicas criadas na nossa
sociedade para o atendimento da infância e adolescência
2. 1 - A infância e adolescência abandonadas e institucionalizadas no Brasil
Muito se discute, na atualidade, a respeito da exclusão e da importância da preservação dos
direitos das crianças e dos adolescentes nos diversos segmentos da nossa sociedade. Muitos
trabalhos, inclusive psicanalíticos, têm se debruçado sobre o estudo do que representariam,
na contemporaneidade, estes personagens da nossa sociedade.
Os adolescentes, muitas vezes, são o foco por serem provocadores de questões a respeito da
cultura e da forma em que a nossa sociedade está organizada. Desses estudos e suas análises
emergem questões que nos possibilitam pensar sobre os impasses atuais da subjetividade em
nossa sociedade.
Assistimos, na prática, um aparente descaso e desrespeito em relação aos direitos destes
adolescentes. A existência da lei não necessariamente assegura a prática profissional ética e
crítica que leve em conta a singularidade de cada um dos sujeitos.
Trassi (2006), faz uma crítica contundente em relação ao mal - trato social destinado aos
jovens e adolescentes de baixa renda, moradores de rua e das periferias de São Paulo, jovens
candidatos a ocupar uma vaga em um dos abrigos desta cidade.
“E, no entanto, são a maioria da população brasileira, aquela que mais cresce, mais povoa
nossas cidades, nossas esquinas e nossos medos. Deveriam ser tratados como o futuro do
Brasil, mas são rejeitados e pisoteados, porque esse futuro pertence ao capital, o trabalho
seletivo para esse capital não lhes reserva lugar”. (...) “Na nossa vida, eles se tornam,“os
outros”, o que não queremos que nossos filhos sejam, que nossos filhos se tornem. São
exemplos desumanizados de vidas perdidas, de riscos de amizades com nossos filhos, de
contaminadores- com drogas, com violência, com gangues- dos círculos fechados em que
educamos e protegemos nossos filhos dos riscos (p.9)”.
Ozella (2003), através de anos de pesquisa científica, transcorre em seu trabalho, a respeito
da responsabilidade do profissional de psicologia, no que se refere à disseminação e
31
concepção da adolescência. Segundo esse autor, essa prática, permeada por um discurso
cristalizado e fruto de obras da década de oitenta, presentifica a naturalização,
universalização e patologização desta etapa da vida, excluindo, inclusive, as diferenças
econômicas.
Alberti (2004) fala a respeito dos desejos sustentados, socialmente, em relação à
adolescência e a sua existência e aponta o quanto esse desejo pode ser muitas vezes
mortífero.
“(...) muitas vezes constatamos, em relação aos nossos adolescentes, muito mais um desejo
de morte do que de vida. Penso, por exemplo, nos menores da chacina da Candelária, em
1993, no Rio de Janeiro, em relação aos quais, só um desejo se mostrou eficiente: o de que
eles não existissem mais (p.8)”.
Este capítulo discorrerá a respeito da história da infância e adolescência pobre de recursos
econômicos, no Brasil, apresentará como e quando se iniciou a prática de institucionalização
desta parcela da população e quais concepções criaram as legislações e políticas públicas
destinadas ao seu atendimento. As Ciências Sociais e a História estarão presentes pelas suas
contribuições nesta área de pesquisa, enriquecendo e contribuindo, com dados que serão
considerados nas nossas discussões. Acreditamos que as questões relacionadas ao
abrigamento de adolescentes é um evento histórico-cultural que possibilita além da leitura
psicanalítica, a reflexão com outros campos do conhecimento. Esta dissertação, apesar de
estar fundamentada pela psicanálise, apresentará a interlocução, com outras áreas do
conhecimento, acima referidas. Faço uso das palavras de Matheus (2000):
“A tensão produzida pelo confronto entre saberes é mobilizadora, e a perspectiva de que
um destes - no caso a psicanálise - seja tomado como supremo, detentor de uma verdade
que se impõe como indubitável, é sedutora (p.21)”.
“O respeito pelos conhecimentos especializados produzidos em outros campos do saber, tal
como proposto por Freud, constitui uma alternativa”.
9
9
Freud, Sigmund. Nuevas Conferencias de introducción al psicoanálisis, p.134. In: Matheus (2000), p.23.
32
“(...) a psicanálise não pode ser vista como saber sobre o indivíduo exclusivamente. Uma
vez preocupada com a natureza humana e suas vicissitudes, também dispõe a refletir sobre
a dimensão social e política que dela faz parte. É por isso que é útil e até necessário, à
psicanálise, buscar saberes outros, como a sociologia e a história, cujos conhecimentos
possam colaborar para suas análises (p.26 e 27)”.
Os acontecimentos enfrentados, na atualidade, por uma parcela da adolescência usuária dos
abrigos, não são novos na nossa sociedade. A infância e a adolescência passaram, no
percurso da historia brasileira, por um processo de institucionalização. Os dados colocados
neste capítulo, somados ao capítulo teórico, e as entrevistas darão corpo à nossa reflexão
sobre adolescentes abrigados.
A infância estará incluída no relato histórico por não haver, a princípio, na nossa história,
distinções entre o atendimento oferecido para crianças e adolescentes. Outra diferença que
foi se estabelecendo: crianças e adolescentes carentes de crianças e adolescentes infratores.
Destas distinções estabelecidas ao longo da história, decorreram a criação de legislações,
políticas públicas e o desenvolvimento de estudos científicos específicos, nos quais se inclui
a psicologia e a psicanálise.
Segundo Priore (1991), os portugueses, ao colonizarem o Brasil, influenciaram
culturalmente, com sua prática, em relação à infância e a adolescência baseadas nos moldes
europeus. Os jesuítas trouxeram crianças órfãs de Portugal e, no Brasil, acolheram os filhos
de uniões não aceitas pelos índios, pois estes não aceitavam, nem consideravam como filhos,
as crianças que eram frutos do relacionamento entre mulheres índias e brancos ou negros.
Priore (1991) relata que, os órfãos indígenas rejeitados eram acolhidos pelos jesuítas
portugueses, os quais os nomeavam como “órfãos da terra”. Estas crianças ficavam aos seus
cuidados, junto com as crianças órfãs trazidas de Portugal, em casas chamadas “Casas dos
Muchachos”. Estas casas foram criadas entre 1550 e 1553. Havia nestas casas a presença de
algumas crianças e adolescentes indígenas que eram deliberadamente apartadas de suas
tribos pelos jesuítas e levadas para serem catequizadas e educadas por eles.
33
Nestas casas moravam juntos: os órfãos, os indígenas e os jesuítas, que tinham uma rotina
disciplinada, com horários definidos para o estudo, reza, confissão, pequenos trabalhos,
refeições, lazer e repouso. Essas casas eram custeadas pela Coroa Portuguesa.
“A acolhida de crianças e adolescentes em abandono se inicia com o processo de
colonização do Brasil, quando as crianças indígenas eram apartadas de suas tribos e
levadas para um local específico para serem educadas e catequizadas”.(...) “Diante da
resistência do índio à doutrina cristã, os jesuítas investiram na educação e catequese das
crianças indígenas. Eram consideradas“almas menos duras”,isto é, mais propensas a
aceitar a doutrinação católica (SAS, 2004:27)”.
A educação infantil, da época, era fortemente baseada no modelo ideológico da criança -
Jesus
10
, que trazia uma concepção arraigada em fundamentos morais e religiosos e uma
disciplina baseada em castigos e ameaças corporais, em que se pregava o amor correcional -
análogo à prática religiosa da autopunição - bem como a imposição da pedagogia do medo,
com o objetivo da desvalorização do corpo e das necessidades físicas.
Porém, como discorre Priore (1991), na chegada da puberdade, os índios órfãos que até
então seguiam as ordens e padrões de disciplina e comportamento impostos pelos jesuítas,
não mais demonstravam obediência, e os preceitos antes válidos não faziam mais efeito. As
raízes, segundo os jesuítas, afloravam.
“O que se demonstra inelutável é o rompimento, ao chegarem os indígenas à adolescência,
com o tempo jesuítico. Ela é o momento por excelência de deixar a “casa dos muchachos” e
voltar para casa... retornar às origens, tendo então somado referências gentílicas às
contribuições da cultura européia cristã. Despojados da fantasia de pequeno - Jesus, os
mamelucos, mestiços e índios estavam então livres, para escrever por sua vez e de forma
definitivamente sincrética, outra história em outro papel (p.25)”.
No século XVII, a problemática relacionada ao abandono de crianças aumentava, o que
10
Como descrito por Priore (1991), o mito da criança–santa, aliada a idealização da criança menino - Jesus,
onde a imagem era da criança divinizada portadora de doçura, inocência e afabilidade que tocaria a todos que a
cercassem. Essas almas infantis, segundo a concepção jesuítica da época, eram capazes de converter os fiéis e
pagãos e assim o trabalho com as crianças indígenas resultaria na conquista da alma indígena.
34
preocupava as autoridades. As crianças eram, a princípio, colocadas nas portas das casas de
famílias, porém, esta prática não dava conta do contingente de crianças abandonadas.
Priore (1991) descreve que, em 1738, seguindo a tradição portuguesa; são criadas no Brasil
as Santas Casas de Misericórdia, que passaram a assumir os cuidados dos órfãos e
abandonados, colocados na Roda dos Enjeitados ou Expostos
11
. Estas casas foram abertas
em vários pontos do Brasil (Bahia, Minas, Rio de Janeiro e São Paulo), e eram geridas por
nobres. Apesar de várias críticas à sua forma de atendimento, estas instituições
sobreviveram até o século XIX, mais especificamente em São Paulo, até 1948. No mesmo
ano em que são criadas as Santas casa de Misericórdia, são criadas também instituições
complementares à Roda, que são: o Seminário da Glória destinado ao atendimento de
meninos, e o Seminário de Santana, que atendia meninas.
Discorre Priore, (1991), quando as crianças sobreviviam (pois nas Santas Casas o índice de
mortalidade infantil era alto, devido à falta de higiene e assepsia), eram encaminhadas, ao
completarem sete anos de idade: quando do sexo masculino, eram mandadas para o
Exército, para a Marinha ou aos seminários e, quando do sexo feminino, eram mandadas
para famílias substitutas ou para as ordens religiosas. Apesar do grande índice de
mortalidade dentro das casas, o contingente de crianças que conseguiam sobreviver e atingir
a idade de sete anos era grande, e estes encaminhamentos não davam conta do número de
crianças a serem atendidas.
Priore (1991) descreve que passam, então, a serem criados os orfanatos-escola rurais, no
intuito de absorver todas as crianças e adolescentes em situação de abandono. Estes
orfanatos eram geridos por famílias e atendiam coletivamente as crianças e adolescentes. As
famílias responsáveis pelos orfanatos-escola tinham como recompensa do governo a
propriedade da terra que ocupavam. Assim, começaram a surgir, nos meados dos anos de
1870, instituições para atendimento dos menores abandonados.
11
A roda ocupava o lugar de uma janela dando face para a rua e girava em um eixo vertical, de forma que ao
depositar o bebê, dava-se uma volta na roda e este passava para dentro, sem que houvesse contato com as
atendentes, mantendo assim o anonimato das mães, como descrito por Leite, Miriam L.M. (1991).
Estas
crianças eram fruto de relacionamentos considerados vergonhosos na época: de mulheres de maior poder
econômico com negros; filhos de mulheres pobres sem recursos e filhos de mulheres negras que ao darem a luz
eram obrigadas por seus senhores a colocar seus filhos na Roda para que estes as alugassem (as mães) para
famílias ricas como amas de leite.
35
Segundo Lodonõ (1991), o crescimento dos grandes centros urbanos se acentuava, e com
este crescimento o número de crianças e adolescentes que perambulavam pelas ruas também
aumentava muito, bem como a criminalidade infantil.
12
Na legislação brasileira não havia
diferenciação entre o tratamento e a punição destinada ao adulto e à infância, sendo comum
o aprisionamento conjunto de adultos, crianças e de adolescentes.
“Eram, pois, menores abandonados as crianças que povoavam as ruas do centro das
cidades, os mercados, as praças e que por incorrer em delitos freqüentavam o xadrez a e
cadeia, neste caso passando a serem chamados de menores criminosos (p.135)”.
Discorre Lodonõ (1991) que, os juristas, tendo em vista a problemática apresentada, bem
como as transformações da jurisprudência internacional, passaram a se dedicar mais às
questões relacionadas à infância e à adolescência, iniciando um processo no qual começou a
ser pensada a diferenciação na legislação de adultos e crianças e adolescentes.
Recorreu-se a estudos internacionais para avaliar se o Estado deveria administrar a área da
infância.
12
Eram comuns os pequenos furtos praticados por crianças e adolescentes, como os batedores de carteira.
36
Nesta época, final do século XIX, começou a ser instituído jurídica e socialmente o termo
“menor”, para denominar a criança ou o adolescente pobre e desprotegido moral e
materialmente pelos seus responsáveis.
Segundo Lodonõ (1991), os asilos de órfãos, abandonados e desvalidos, daqueles que
fugiam do controle das famílias e ameaçavam a ordem pública, tornaram-se práticas
comuns. Foram criadas uma série de instituições com nomes diversos como:
reformatórios,educandários, escolas de preservação, instituto disciplinar, etc, e estas
instituições apresentavam como proposta: educação moral, prevenção ou regeneração e o
sentimento de amor ao trabalho.
O Estado passou a assumir uma política onde a responsabilidade pela situação da
menoridade e do abandono das crianças e dos adolescentes não foi negada, este continuava
mantendo alguns procedimentos, mas esta responsabilização era estendida aos pais de
origem. Aliada a esta prática, a visão do menor abandonado como vítima e, a preocupação
de que este menor passasse a ser um futuro delinqüente também crescia.
Segundo Mariano (2001), no Rio de Janeiro é criado, em março de 1899, pelo médico
higienista Arthur Moncorvo Filho, o Instituto de Proteção e de Assistência à Infância do Rio
de Janeiro com a parceria do Judiciário, que tinha como objetivo participar na elaboração de
políticas voltadas para a criança brasileira em estado de pobreza, doentes e em situação de
abandono e risco moral. O programa propagava a higiene infantil disseminando a idéia de
que, através da puericultura, o Brasil poderia atingir ideal de povos civilizados, pelo
melhoramento da raça e da aplicação das regras de eugenia.
“O Departamento da Creança, órgão criado pelo Dr. Moncorvo Filho era uma espécie de
organização não governamental, mantida por ele próprio, sem o menor auxílio do governo,
fosse do Estado ou do Município. Durante o período de vida do Instituto ele se tornaria uma
referência nacional no trato com a criança, proliferando filiais pelo país afora, difundindo
os ideais propostos pelo Dr. Moncorvo Filho de como tratar a infância. Assim, Moncorvo
abria as portas para um debate que ganharia corpo com as discussões eugênicas de
cuidados a crianças abandonadas, meninos de rua, mulheres grávidas, recém nascidos e
toda uma gama de miseráveis que habitavam as ruas brasileiras (p.71)”.
37
“A estrutura institucional de Moncorvo Filho reforçava as hierarquias sociais e de gêneros
e ao mesmo tempo, oferecia ao governo um modelo organizacional e institucional para a
assistência à infância
13
”.
Lodonõ (1991) coloca que, a necessidade da existência de uma lei que amparasse a
menoridade começa a se fazer urgente, bem como a necessidade de uma mudança na
atuação do Estado. No início de 1900, por decreto, foram criadas a nível estadual e
municipal, uma série de instituições destinadas a albergar crianças abandonadas julgadas
como criminosas.
“A idéia de destinar as instituições criadas a formar e educar, como objetivo de prevenir a
criminalidade do menor e do adulto, confrontava-se com a idéia de encaminhar as
instituições para o castigo e punição, com o objetivo de reprimir nos moldes das pessoas
adultas (p.141)”.
A idéia de prevenção, através da assistência aos menores, começa a tomar mais força e em
1921, a partir da lei orçamentária 4.242 de 05/01, foi criado o serviço de Assistência e
Proteção à Infância Abandonada e aos Delinqüentes, iniciando o processo de substituição da
problemática da infância como uma questão de polícia, para uma questão de assistência e
proteção.
“Assim, a questão da criança abandonada, vadia e infratora, pelo menos no plano da lei,
deixou de ser uma questão de polícia e passou a ser uma questão de assistência e proteção,
garantida pelo Estado através de instituições e patronatos. A atenção à criança passou a
ser proposta como um serviço especializado, diferenciado, com objetivos específicos. Isso
significava a participação de saberes como os do higienista, que deveria cuidar da sua
saúde, nutrição e higiene; os do educador, que devia cuidar de disciplinar, instruir,
tornando o menor apto para se reintegrar à sociedade; e os do jurista, que devia conseguir
que a lei garantisse essa proteção e essa assistência (Lodonõ, 1991:142)”.
Estes questionamentos dão início às políticas públicas de atendimento à infância e à
adolescência. As crianças e adolescentes que não se enquadravam nos padrões dos grandes
13
Wadsworth, 1999:103. In Rotondaro, 2005:12.
38
reformatórios,eram tratadas com o objetivo de correção e disciplina. Os abandonados e
carentes eram tratados por entidades religiosas.
Rizzini (1993), relata que a prática de recolhimento de menores, desenvolveu-se aliada à
polícia, em acordo com o juizado de menores. Foram criadas delegacias especiais para
abrigar menores que aguardavam encaminhamento judiciário. Estes eram tratados com
violência como em outras delegacias.
Rotondaro (2005), também discorre sobre esta prática:
“Na década de 20 foi legitimada a intervenção do Estado na família, não só pela suspensão
do pátrio poder, mas pela apreensão dos menores abandonados, mesmo contra a vontade
dos pais. Na lei, as situações definidas como abandono eram: não ter habitação certa, não
contar com meios de subsistência, estar empregado em ocupações proibidas ou contrárias à
moral e aos bons costumes e vagar pelas ruas ou mendigar. Percebemos que essas
restrições aplicavam-se principalmente aos pobres. (p.13)”.
Mariano (2001) descreve que, em 1927, com o decreto 17.343/A, é criado o Código de
Menores, o primeiro conjunto de leis elaborado para o controle da infância e adolescência
abandonada. As ideologias correcionais, normativas e repressivas, aliadas à ciência, servem
de inspiração para o governo da época, e em 1941, o governo Getúlio Vargas inaugura o
SAM -Serviço de Assistência ao Menor, que funcionava no Distrito Federal.
39
“A forte presença de juristas na elaboração do Código de Menores de 1927 traria
conseqüências para uma maior criminalização dos problemas envolvendo as crianças e
jovens, sendo que o aspecto geral da lei ganharia um caráter legalista, que se apoiava no
mundo jurídico e nos saberes médicos (p.74)”.
Segundo este autor, no ano de 1934, através do decreto 6.476, passa a ser necessária à
presença do laudo médico nas instituições, posteriormente acrescido, do laudo psicológico e
do assistente social, na avaliação dos casos.
“Neste contexto, ao ser preso o menino deixa de ser considerado somente “ ocioso ou
vadio”, como era definido no final do século XIX e nas primeiras três décadas do século
XX, para passar a ser visto também como um “doente”, portador de anomalias que os
levam para aquele tipo de vida (Mariano, 2001:77)”.
Prossegue, Mariano (2001), em São Paulo, em 1954, por decreto do governo Federal é
inaugurado o RPM – Recolhimento Provisório de Menores, destinado a meninos e, em 1959,
o COF -Centro de Observação Feminina, que se destinava a meninas. Ambos realizavam a
triagem de adolescentes com idade entre 14 e 18 anos com conduta anti-social. Estes dois
órgãos ficaram sob orientação da Secretaria de Promoção Social até 1975, sendo
posteriormente substituídos pela FEBEM -Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor.
Em 1964, a esfera do governo militar é quem controla a assistência à infância, o governo
assume, durante a ditadura militar do pós 64, o papel de interventor e responsável pela
atenção à criança e ao adolescente em abandono, ao pobre e ao infrator. É criada, em 1964, a
FUNABEM -Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor e, depois de nove meses, é criada
a PNBEM – Política Nacional do Bem-Estar do Menor, introduzida através da lei 4.513 de
dezembro de 1964, baseada na Declaração Universal dos Direitos da Criança, divulgada pela
Organização das Nações Unidas, destinada a crianças/ adolescentes das classes populares do
Brasil.
Passetti (1982) relata sobre os primeiros estudos realizados, tendo como foco a infância e
adolescência pobre de recursos econômicos:
“Neste período, são realizadas em São Paulo as semanas de Estudo do Problema do
40
Menor, que tinham a participação do Ministério Público, Tribunal de Justiça, Igreja,
políticos, médicos, psicólogos e assistentes sociais que questionavam a ordem moral
buscando a etiologia da delinqüência e do abandono, propondo a intervenção
multidisciplinar no comportamento, valores e costumes de crianças e adolescentes pobres
de classes populares (p.149)”.
Segundo Passetti (1982), a FUNABEM -Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor surge
para a dissolução do SAM por uma série de problemáticas e, por se considerar ultrapassadas
as técnicas de reeducação deste serviço, as quais incluíam, inclusive, a violência física como
força repressiva.
É da Política Nacional do Bem-Estar Social que surge a FEBEM, que em São Paulo nasce
no ano de 1976. Mesmo com discurso inovador, continua mantendo a mesma estrutura e
funcionamento dos modelos a que se propõe a substituir, sendo sua política de caráter
repressivo e autoritário.
Há uma constante falência e substituição dos serviços prestados à população adolescente e
infratora, porém, estes serviços, na verdade, não se alteraram: o que muda é a sua roupagem.
Estes serviços estão em pleno acordo com a cultura e história da infância e juventude no
nosso país e com as forças e organizações políticas instituídas, como bem colocado por
Passetti (1991):
“(...) a modernização da instituição vem sempre acompanhada de um discurso inovador,
não necessariamente o pacto com o novo significa abolição do antigo, mas, o que tornará o
velho, novo, será justamente a forma discursiva. Noutras palavras, a substituição de
controles sociais velhos por novos torna-se impossível quando os velhos são satisfatórios na
maioria dos aspectos e, quando não se altera o foco de percepção do poder da instituição
pelos clientes” (p. 168).
Segundo Rizzini (1993), em 1978 - Ano Internacional da Criança - da pesquisa e do estudo
sobre a criança brasileira, são resultantes movimentos e formações de associações em defesa
à criança e ao adolescente. É instaurada pela Câmara dos Deputados a CPI do menor. ONGs
(Organizações não Governamentais) ligadas à Pastoral do Menor da Arquidiocese de São
Paulo e o Movimento de Defesa do Menor criam programas opcionais ao Estado,
oferecendo novas formas de assistência às crianças e adolescentes.
41
“As estatísticas sociais retratavam uma realidade alarmante na década de 80 onde parcelas
expressivas da população infanto-juvenil pertenciam às famílias pobres ou miseráveis, eram
cerca de 30 milhões de abandonados e marginalizados (p.18)”.
Segundo Rizzini (1993), denúncias da imprensa em relação ao tratamento e atendimento
prestado à infância e à juventude, reforçam a participação da sociedade, a qual passa a exigir
mudanças. Surgem outros modelos de trabalho e atendimento como as Comunidades
Educativas de Minas Gerais ou Comunidades Terapêuticas, em São Paulo. Algumas das
instituições destinadas à menoridade carente passam a adotar o regime semi-aberto, onde as
crianças e adolescentes, ao invés de ficarem confinadas, passam a ter permissão de
freqüentar equipamentos externos na comunidade: escolas, clubes, parques, cursos, etc...
Foram criados as Casas da Juventude e os Centros de Convivência Infantil
14
como processos
alternativos à internação. Houve o surgimento da Pastoral do Menor e do Movimento
Nacional dos Meninos e Meninas de Rua. Criou força à idéia de se acabar com as
instituições totais, iniciando-se um processo de novo olhar sobre a criança e o adolescente.
O Código de Menores (Lei Federal n. 6.697 de 10/10/79) vigorou de 1979 até 1990. Neste, a
população a ser atendida era definida a partir do conceito de situação irregular que se referia
à população privada de condições essenciais de subsistência, saúde e instrução obrigatória,
determinadas pela falta, omissão ou impossibilidade dos pais ou responsáveis.
Como citado por Lazzari (1998):
“A regularidade estatística servia para o Código de Menores sintetizar a situação de
miséria como irregular. Os dados destinavam–se tanto a estarrecer a opinião pública como,
simultaneamente, paramentar políticas sociais, no caso, discriminatórias e excludentes
(p.20)”.
O Código de Menores dirigia-se ao conjunto de crianças e adolescentes de famílias pobres
14
As Casas eram mantidas pela FEBEM - estas tinham como característica o fato de serem casas abertas onde
os adolescentes podiam dormir, fazer as refeições e sair durante o dia, tendo total autonomia no ir e vir. Estas
não existem mais: foram fechadas.
42
supostamente desestruturadas.
“O conceito de situação irregular explicitava, então, que seus vetores estavam orientados
para o controle de uma população potencialmente propensa à delinqüência, gerada pela
pobreza e desestruturação familiar (Lazzari, 1998:21)”.
Segundo Passeti (1991), em 1987 a criança é tema da Campanha da Fraternidade promovida
pela CNBB - Comissão Nacional dos Bispos do Brasil, e os resultados das discussões foram
retomados no processo constituinte, no qual os movimentos sociais se articularam na defesa
dos direitos das crianças a dos adolescentes. O saldo desse movimento encontra-se no artigo
227 da constituição Nacional.
“Caberá ao Estado, através de políticas sociais estabelecidas em conjunto com associações
e conselhos populares e de representantes da “sociedade civil”, responsabilizar-se pelas
crianças de acordo com a Constituição de 1988 (p.150)”.
Passetti (1991), descreve que, em 1990, é extinta a FUNABEM e entra em vigor o ECA -
Estatuto da Criança e do Adolescente-Lei número 8.069 de 13/07/1990, que passa a ser a
legislação norteadora no atendimento à criança e ao adolescente. Em dezembro de 1993, é
criado o LOAS - Lei Orgânica de Assistência Social, que irá regulamentar e incorporar a
assistência social ao sistema de proteção social.
43
Azevedo (2000), discorre a respeito do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente,
ponderando que este estatuto desconsidera a questão econômica como determinante e deixa
de tratar a violência, tendo como enfoque a miserabilidade, priorizando a criança e o
adolescente como pessoas em desenvolvimento, com direitos a serem assegurados.
Diferencia crianças e adolescentes carentes dos abandonados, violentados e infratores
conforme circunstância por cada um deles vivenciada.
“De fato, o ECA trouxe a possibilidade de uma mudança radical no padrão centralizador,
clientelista e passivo em que sempre foram pautadas as relações das políticas públicas de
atendimento, para com seus destinatários. Com ele se abriram as perspectivas para uma
verdadeira revolução, não só para a formulação das políticas públicas na área da infância
e da juventude, mas também na estrutura de funcionamento das instituições ( p.35).”
Com a aprovação do ECA, em 1990, a FUNABEM foi substituída pela FCIBIA- Fundação
Centro Brasileiro da Infância e Adolescência, extinta após cinco anos no início do Governo
do Presidente Fernando Henrique Cardoso.
“As ações referentes à área da infância e da juventude é assumida pela Política Nacional
de Assistência Social, ministério da Assistência Social (SAS, 2004:35)”.
Como colocado na publicação da Secretaria de Assistência Social, em 2004, uma das
inovações e definições do ECA é a respeito dos abrigos
15
. Esta nova legislação irá viabilizar
o reordenamento institucional, exigindo o atendimento em casas pequenas no lugar das
grandes instituições. Os abrigos passarão a caracterizar-se como uma entidade de
atendimento e de proteção para a preservação dos direitos das crianças e dos adolescentes,
onde ficam estabelecidos, pela lei (ECA-cap:2), os princípios, deveres, obrigações jurídicas,
ordenação do espaço físico, forma de atendimento, dentre outros.
15
No ECA- A legislação na integra a respeito dos Abrigos encontram – se nos artigos: 90,IV; 92, I a IX; 92,
par.único, VI; 93; 94, par.I; 101par. único
44
No artigo 92, deste Estatuto, estão determinados os princípios e critérios norteadores deste
tipo de atendimento:
I- Preservação dos vínculos familiares;
II- Integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção
na família de origem;
III- Atendimento personalizado e em pequenos grupos;
IV- Desenvolvimento de atividades em regime de co-educação;
V- Não desmembramento de grupo de irmãos;
VI- Evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e
adolescentes abrigados;
VII- Participação na vida da comunidade local;
VIII- Preparação gradativa para o desligamento;
IX- Participação de pessoas da comunidade no processo educativo.
A população atendida nesse tipo de serviço, casas-abrigo e de retaguarda, é de classe baixa,
pobre de recursos econômicos
16
. Muitas delas sobrevivem nas ruas, em espaços urbanos
longe de suas famílias de origem. Seus pais e/ou cuidadores, quando existem, são pessoas
com poucos recursos econômicos, moradores das favelas e/ ou periferias de São Paulo,
muitas vezes migrantes de outros estados brasileiros. A finalidade destas instituições é de
acolher e proteger a criança e o adolescente expostos às mais diversas situações de violência
e risco pessoal e social.
No ano de 2006, em um seminário sobre abrigamento, foi divulgado o número de 20.000
crianças e adolescentes abrigados no Brasil.
17
16
Segundo pesquisa nacional realizada pelo IPEA no plano nacional de promoção, defesa e garantia do direito
de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária. No ano de 2004.
17
II Seminário Abrigar: proteção e cuidado integral-Coordenação Instituto Camargo Correia, Equipe Abrigar e
NECA: Associação dos Pesquisadores de Núcleos de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente.
45
Segundo publicação da Secretaria de Assistência Social, datada de 2004, o ECA trouxe
também a criação de órgãos para acompanhar o cumprimento da lei nele estabelecida,
garantindo seu cumprimento. Estes órgãos são os Conselhos Tutelares - órgãos que têm
participação e poder da sociedade, e os Conselhos Municipais e Federais dos Direitos das
Crianças e Adolescentes.
Em São Paulo, no que se refere às instituições que se propõem ao atendimento da população
infratora, é a Febem que permanece com esse trabalho até a atualidade, apesar das inúmeras
problemáticas e dificuldades que permeiam esse serviço.
Segundo publicação da SAS (2004), a FEBEM continua trabalhando com os moldes da
ditadura militar. A Fundação Estadual do Bem Estar do Menor encontra-se sob
responsabilidade do governo estadual, mas sob supervisão das políticas públicas federais.
A publicação da Secretaria de Assistência Social (2004), descreve que na década de oitenta
a Febem iniciou a municipalização das unidades do interior de São Paulo, que se
caracterizavam por serem instituições totalitárias, dando início à desativação de unidades
para crianças e adolescentes em situação de risco, instalando casas com atividades abertas
para as crianças e adolescentes. Na década de noventa, foram instalados novos modelos
institucionais e, em 1992, foram desenvolvidas propostas de transformação dos grandes
complexos da Febem. O Complexo Imigrantes foi desmontado, sendo as crianças e
adolescentes transferidos para Casas de Convivência, iniciando um novo modo de gestão.
Neste mesmo ano, ocorreu uma grande rebelião no Tatuapé e se redefiniu que a Febem
atenderia jovens em conflito com a lei. Foram então fechadas outras unidades da Febem que
não trabalhavam com jovens infratores, como o complexo Raposo Tavares, que atendia um
número de quatrocentas crianças e adolescentes. Em 1996, foi desativada, a Unidade
Sampaio Vianna, que atendia quatrocentas e cinqüenta crianças de zero a sete anos de
idade
18
.
“O fechamento da Unidade Sampaio Viana foi a representação simbólica e concreta da
transição e ruptura na história do atendimento à criança institucionalizada na cidade de
18
A Unidade Sampaio Viana funcionou por quase cem anos, sendo por muitos anos porta de abrigamento,
chegou até a funcionar de 1825 até 1951 com a presença da Roda dos Expostos (SAS, 2004). A pesquisadora
acompanhou o processo de desativação, no ano de 1996, a época, como estagiária na unidade em parceria com
a PUC/SP.
46
São Paulo (SAS, 2004:37)”.
A publicação da SAS descreve que, no ano de 2004, definiu-se que a Febem estaria
vinculada à Secretaria de Estado da Justiça, e que novos programas e atividades exigidos
pela lei Federal e pela ONU -Organização das Nações Unidas para a atuação com jovens
infratores, deveriam ser colocados em prática, porém é uma atuação permeada por denúncias
de maus tratos, torturas físicas e psíquicas em relação aos adolescentes, além de
superlotação, propostas pedagógicas não implementadas, unidades sem estrutura física
adequada, corpo funcional mal remunerado e sem suporte técnico para a atuação com os
adolescentes, etc.
O Estado tem realizado, através do governador, promessas de, no ano de 2006, fechar as
grandes unidades, dividindo-as em pequenas casas para o atendimento destes adolescentes
em pequenos grupos.
Como coloca Trassi (2006), ao discorrer a respeito da manutenção deste serviço no Estado
de São Paulo e dos serviços prestados:
“Em São Paulo, as práticas da organização destinada ao cumprimento da medida
socioeducativa de privação de liberdade (FEBEM-SP) são, também, aspectos que adquirem
relevância por conta da radicalidade com que ali se concentram as formas de crueldade no
trato com o adolescente. Isto é particularmente importante porque revela um Estado que
guarda, nesta organização, resquícios das práticas repressivas do período totalitário.
Caracteriza-se como um Estado transgressor de suas responsabilidades no trato com
adolescentes cuja marca em suas biografias é a transgressão à lei. No caso da FEBEM-SP,
a expressão da violência refere-se ao regime de vida carcerária e à tortura com estratégias
disciplinares: aprender a viver em condições intoleráveis, sob a guarda do Estado, que
também monopoliza a violência e sob os nossos olhares de conivência – uma outra
expressão da violência (pgs. 15 e 16)”.
“A única FEBEM existente no país até hoje, 2004, é a do Estado de São Paulo. Todos os
Estados já romperam com o modelo e a memória desse órgão da ditadura militar (SAS,
2004:34)”.
47
Como relatado acima, a FEBEM continua em funcionamento, mesmo fora dos padrões
estabelecidos pela lei. Como isso ocorre? Essa discussão não cabe neste trabalho, pois a
reflexão a respeito desta realidade nos desviaria do tema que pretendemos nos aprofundar.
Porém, este é mais um exemplo de como existência da lei, da normatização, não garante
necessariamente que os direitos dos adolescentes sejam cumpridos na prática.
Como pudemos perceber, através dos diversos autores, aqui citados, desde a colonização e
conseqüente ação civilizatória, se estabeleceram diferenças sociais, culturais, raciais e
econômicas. A infância e a adolescência fazem parte desta configuração e composição
social.
As leis foram construídas e elaboradas em nosso país por legistas brasileiros, sustentados
por modelos de outros países (tanto europeus como americanos), importando-se o modo e o
modelo de trabalhar com a criança e o adolescente em situação de abandono, risco ou
infração. A importação de modelos para elaboração de leis que norteiam inclusive a
construção das políticas públicas, desconsidera as diferenças econômicas, políticas, culturais
e sociais.
Uma das características da legislação brasileira, historicamente construída, é de legislar o
indivíduo pobre de recursos econômicos, como aquele que se encontra em situação irregular,
tratando-o como desviante, devido ao fato de não se adaptar aos moldes e padrões
socialmente estabelecidos.
A presença do saber médico na formulação da legislação, dos programas e políticas de
atendimento, também se fazem presentes na nossa história. Estes saberes são os portadores,
durante anos, da concepção higienista, propondo e reforçando a eliminação das diferenças e
a normatização dos comportamentos individuais.
No decurso da história, surgem os profissionais de psicologia e de assistência social, os
quais passam a fazer parte das instituições de atendimento à infância e adolescência. Estes
profissionais, coerentes com a ideologia dominante, adotam parâmetros de atendimento a
esta população, formulando laudos a respeito da personalidade, inteligência e
comportamento das crianças e adolescentes, classificando as aptidões, os reflexos, os
comportamentos e a capacidade mental, através de material técnico específico para esse
48
fim.
19
Galvão (2005), fundamentada pela teoria sócio-histórica, ao tratar sobre a questão do
desabrigamento, também trabalha sobre as concepções e a prática desses profissionais.
“A entrada e a interferência do poder disciplinar dos higienistas e do poder médico em
geral contribuiu para que a atenção à infância passasse a ser proposta como um serviço
especializado, diferenciado, com objetivos específicos. Dessa forma, as crianças e
adolescentes que apresentassem desvios de conduta deveriam ser estudados, examinados,
qualificados, de modo a se buscar um enquadramento dentro de certos padrões morais,
físicos, sociais, afetivos e intelectuais (p.12)”.
Galvão (2005), ao se referir à atuação do profissional de psicologia, discorre a respeito da
responsabilidade de sua prática. Indica que este, diversas vezes, colabora com a segregação
social, na atuação classificatória e normatizadora dos sujeitos, prática, essa, aliada aos
interesses da classe dominante.
“Também a psicologia esteve a serviço da higienização. Naturalizou o que era particular a
uma classe dominante e estigmatizou o que era produto de condições e desigualdades
sociais, como a prostituição e a loucura. Como conseqüência, os sujeitos foram
responsabilizados pelo seu fracasso. A psicologia reforçou que comportamentos das elites
fossem vistos como normais padrões de conduta, enquanto toda diferença foi considerada, e
ainda é, como desvio a ser corrigido e recuperado (pgs. 26 e 27)”.
A pesquisadora se deparou, diversas vezes, com pedidos que visavam a efetivação deste
trabalho. Verificou que esta atuação se faz presente em diversos segmentos relacionados ao
atendimento da infância e da juventude. A pontuação destes aspectos são aqui colocados,
pela importância que a pesquisadora credita aos mesmos. Esta forma de trabalho avaliativa,
classificatória e normatizadora, diferencia-se completamente do método de trabalho e da
concepção psicanalítica. Por isso a escolha desta teoria para a fundamentação deste trabalho,
uma vez que se relaciona diretamente com as questões relativas ao atendimento de
adolescentes no âmbito institucional, entendendo-os como sujeitos de desejo e não sujeitos
19
Muitos teóricos discorrem à respeito da concepção e atuação destes profissionais e da disseminação de
saberes teóricos científicos. Ozella, Sérgio org. (2003) em Adolescências Construídas, é um dos autores que
investigou sobre estas questões em relação ao profissional de psicologia.
49
de direito.
Lazzari (1998) discorre sobre o trabalho técnico nas instituições, referindo-se as FEBEMs.
Pensamos que esta fala pode ser transposta à atuação do profissional de psicologia que
trabalha nos abrigos:
“Na medida em que o pobre é culpado por sua condição de pobreza, é imperativo cuidar
dele e dos seus problemas para proporcionar-lhe maior bem estar social. Esse indivíduo, já
se encontra em situação irregular diante da sociedade por carência econômica, é mais uma
vez segmentado, por apresentar problemas psíquicos e distribuído em instituições austeras
(p.29)”.
“A partir do trabalho de técnicos especializados, a instituição reforçou aquilo que se
denomina de higiene pública, se propondo a retirar crianças e adolescentes das ruas - como
se isso fosse possível - internando-os sob regime de rígida disciplina e adestramento (p.
30)”.
Poli (2005), psicanalista lacaniana que desenvolveu sua tese fundamentada no atendimento
clínico com sujeitos adolescentes abrigados; também se refere ao trabalho normativo
desenvolvido no âmbito institucional:
“Contudo, como a maioria das instituições sociais reguladas pelo saber técnico –científico,
a direção do trabalho consiste na “normatização” dos sujeitos - sua adequação ao ideal
fálico social - que conduz à eliminação das idiossincrasias, entendidas como “sinais de
patologia”, sob o crivo da nostalgia psiquiátrica (p.197)”.
Um outro aspecto que consideramos como um fator relevante, decorrente da nossa prática
profissional, diz respeito ao uso político feito pelo Estado em relação à institucionalização
de alguns adolescentes. Algo bastante recorrente era o recebimento de adolescentes
moradores de rua, que se negavam terminantemente a permanecer institucionalizados,
encaminhados para a casa-abrigo, logo empreendiam fuga. Estes casos evidenciavam a
fragilidade desta aparente solução para o problema de permanência de crianças e de
adolescentes nas ruas de São Paulo. Essas ocorrências tendiam a gerar um ciclo de entrada e
fuga.
50
Nosso objetivo não é trabalhar sobre este recorte, porém é interessante observar que o que se
inscreve na lei – ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente - é que o abrigo funcione
como uma instituição para proteger a criança e o adolescente, e não para afastá-lo ou
segregá-lo do meio social.
Como podemos verificar no decurso deste capítulo, a parcela populacional pobre de
recursos, representada neste trabalho pelos adolescentes usuários dos abrigos, é maioria em
nossa sociedade e seu número só tende a aumentar devido a vários fatores socialmente
impostos
20
. O determinismo econômico representado na diferença da distribuição de renda
gera uma série de outras condições, como precariedade de moradia e de alimentação, de
atendimento à saúde física e mental, de acesso à educação e ao lazer, etc. A infância e a
adolescência abrigada fazem parte desta realidade social.
21
O ECA rompeu, em termos legislativos, com o atendimento e tratamento dado anteriormente
à infância e adolescência brasileira. Porém, apesar do fato deste conjunto de leis existir e ser
conseqüência de um movimento social, que reconheceu a necessidade de mudanças na área
da infância e juventude, sua implementação não tem sido suficiente para modificar a
ideologia construída e fundamentada ao longo de nossa história. Há algo que vai além, que
nos escapa e que reedita um tipo de atendimento que não leva em conta o direito desses
sujeitos, que ocupam um lugar social de exclusão.
A este contexto soma-se, algumas vezes, a necessidade destes adolescentes serem abrigados.
O abrigamento é um atendimento que contribui e/ou dificulta a sustentação do processo que
envolve o adolescer destes sujeitos? O que será que estes sujeitos têm a dizer, a respeito do
fato, de terem vivido, parte de suas vidas, institucionalizados? É sobre estes aspectos que
levam em conta a dimensão subjetiva dos sujeitos, que este trabalho irá investigar, sendo
fundamental ouvi-los, cientes do entorno social que os circunda, suas histórias e suas
formações de laço social.
20
Muitos autores, de diversas especificidades teóricas têm se debruçado sobre o estudo destes aspectos.
Praticamente todos autores citados neste capítulo trazem reflexões a respeito desta questão no desenvolvimento
de seus trabalhos.
21
Esses aspectos são detalhadamente citados em levantamento e pesquisa recente do IPEA: Plano Nacional de
Promoção, Defesa e Garantia do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, a
qual será citada neste capítulo.
51
A discussão sobre a problemática do alto número de crianças institucionalizadas é atual e
recente. O abrigo tem sido um recurso social bastante utilizado e a provisoriedade do
abrigamento não tem sido respeitada.
22
Vamos prosseguir, na próxima seção, trazendo algumas informações e dados mais
específicos a respeito do atendimento e das características dos abrigos e também das
políticas públicas criadas para a sua efetivação enquanto equipamento de caráter protetivo,
destinado ao atendimento à infância e adolescência. Estes dados virão enriquecer nossas
discussões nos próximos capítulos.
2.2- Infância, adolescência e os abrigos
“Casa-abrigo: Lócus institucional que resguarda, abriga face reversa do abandono, da
violência física e sexual. Mentes abrigadas. Obrigadas a conviver com outro terminal que é
produto da mesma sociabilidade, que ora os nega, porque objetos deslocados do desejo, ora
as renega, porque futuros cidadãos. Elemento civilizador blindado com a morada. Não a
própria, nem as do plano de habitação, mas que transita entre os doze e os dezoito anos
(Lazzari, 1998:128)”.
Segundo Lazzari, (1998) em 1987, foi criada em São Paulo, a Secretaria do Menor, que
iniciou uma prática tendo como base os seguintes programas destinados a crianças e
adolescentes em situação de risco social e abandono:
1-SOS Criança;
2- Casa Aberta - a criança ou o adolescente passava o dia fora retornando durante
a noite;
3-Casa Moradia - que atendia adolescentes trabalhadores;
4- Casa Renascer - atendia crianças e adolescentes usuários de drogas;
5-Casa-abrigo - atendia crianças e adolescentes abandonados e vitimizados
23
.
22
Vide pesquisa do IPEA;
23
Vitimizados é a terminologia usada para designar casos em que a criança ou o adolescente sofrem
espancamentos e maus tratos por parte da família, responsável ou terceiros.
52
O SOS Criança de São Paulo funcionava como uma unidade central de triagem e
encaminhamento de situações que requeriam o abrigamento de crianças e adolescentes em
situação de risco.Os abrigos funcionavam como retaguarda deste serviço: para onde eram
encaminhadas as crianças e adolescentes que chegavam ao SOS Criança. Estas crianças e
adolescentes, encaminhadas ao SOS, eram provenientes de encaminhamentos diversos: do
serviço policial, que os retirava das ruas de São Paulo, da família, dos Fóruns através das
Varas da Infância e da Juventude e dos Conselhos Tutelares
24
. Podia ocorrer também, da
criança e do adolescente solicitarem entrada neste serviço espontaneamente.
“As casas abrigo tiveram inicio em novembro de 1987, com criação de duas casas com
capacidade para quinze crianças ou adolescentes entre dois e dezessete anos sendo uma
unidade para cada sexo. Em 1988, foi estabelecido que o prazo de permanência destas
crianças e adolescentes deveria ser de 60 dias e neste ano foram criadas mais duas casas,
mistas para crianças de 2 a 12 anos. Além de oferecer abrigo temporário, o programa
objetivava estabelecer uma rotina diária com a clientela durante a estadia, através da
familiarização com as regras da casa, pois segundo a secretaria as crianças e adolescentes
atendidos estavam distantes das regras sociais (Lazzari, 1998:108)”.
Como podemos verificar, as casas abrigo com função de acolhimento à população atendida
pelos serviços do SOS Criança, foram fundadas antes da implementação do ECA.
Segundo Lazzari (1998), estes abrigos mantiveram como modelo de atendimento
25
o caráter
disciplinar repressivo ditado pelo Estado, onde “as crianças e adolescentes deveriam ser
disciplinadas e regradas por estarem distantes das regras sociais (p.109)”.
Com a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente ficam redefinidas, pela lei, as
funções e a forma dos atendimentos nas casas-abrigo. O Estatuto estabelece que: para
aqueles que cometeram algum ato infracional e tem idade inferior aos doze anos, devem ser
24
Os Conselhos Tutelares iniciaram sua atuação, no Estado de São Paulo, em 1991. Estes Conselhos ocuparam
bairros da cidade de São Paulo e sua atuação se dirige à garantia de direitos das crianças e dos adolescentes, os
conselheiros são eleitos
pela população local e tem como função o atendimento a famílias, crianças e
adolescentes, podendo encaminhar seus usuários para programas que atendam melhor as suas necessidades,
tendo autonomia inclusive de solicitar e encaminhar uma ordem de abrigamento, no caso em que for
diagnosticada essa necessidade. Atualmente, o número de conselhos aumentou para trinta e cinco, com o
número de 175 conselheiros trabalhando na cidade de São Paulo.
25
Modelo similar dos grandes reformatórios e das instituições especializadas em atendimento a população
infratora.
53
aplicadas medidas protetivas e não sócio-educativas.
Artigo 98 do Eca:
“As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos
reconhecidos nesta lei forem ameaçados ou violados: I - por ação ou omissão da sociedade
ou do estado; II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; III-em razão de sua
conduta”.
Guará (1993) descreve que, segundo o ECA, o abrigo é o equipamento social de caráter
protetivo, destinado ao atendimento à população carente e/ou abandonada e em situação de
risco pessoal e/ou social, que tenha seus direitos violados ou ameaçados. Medida
temporária, que deve ser utilizada em última instância, quando esgotadas todas as
possibilidades de permanência da criança ou adolescente na família de origem ou
substitutiva, até que a situação se configure de outra forma e possa haver o retorno dessa
criança ou adolescente para o convívio no âmbito familiar. Os abrigos devem atender grupos
de no máximo vinte crianças e/ou adolescentes em uma casa, a fim de preservar a
individualidade de cada criança ou adolescente.
Concordamos com o que descreve Nascimento (2004), visto que, observamos a
concretização destes aspectos na prática.
“A determinação jurídica referente ao retorno do adolescente para sua família de origem
ou substituta, acentuou o descompasso entre o que deveria acontecer e o que realmente se
efetiva, visto que o retorno envolve uma série de dificuldades relacionadas ao adolescente,
a família, aos encaminhamentos jurídicos e a sociedade. O que geralmente resulta na
permanência da criança ou do adolescente em instituições por anos, em muitos casos, até
completarem a maioridade
26
(p.5).”
Como cita Guará (1993), as casas-abrigo devem atender crianças e adolescentes com perfis
diferenciados e específicos – crianças de zero a sete anos, crianças de sete a doze anos ou
26
Como citado anteriormente neste trabalho, ao completar dezoito anos de idade, o adolescente não pode mais
permanecer na casa-abrigo, devendo, durante o período de permanência, ser trabalhado para que, ao completar
a maioridade, possa assumir o gerenciamento da sua vida.
54
adolescentes de doze a dezessete anos e onze meses, dos sexos feminino, masculino ou em
casas mistas, com crianças ou adolescentes de ambos os sexos.
Como apresenta publicação da Secretaria de Assistência Social, datada de 2004, os abrigos
irão se diferenciar pelas características relativas ao atendimento: breve, continuado e de
permanência por períodos indeterminados. Estes abrigos estão sob gestão e responsabilidade
do Estado, Município, Organizações não Governamentais e Filantrópicas.
Segundo Guará (1993), cada casa-abrigo se caracteriza, pelo o perfil que atende. Este
atendimento pode ser dirigido à: crianças e/ou adolescentes vitimizados fisicamente e/ou
sexualmente, crianças e/ou adolescentes em período gestacional, com vivência de rua,
órfãos, filhos de pais que se encontram encarcerados, soros positivos, portadores de
necessidades especiais, drogaditos, filhos de pais destituídos do pátrio poder e etc.
O trabalho de pesquisa desenvolvido pela Secretaria de Assistência Social em parceria com
a Prefeitura de São Paulo, o NCA - Núcleo da Criança e do Adolescente da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e o Judiciário, no ano 2004, citado diversas vezes nesta
dissertação, sobre os abrigos e a população abrigada, estimou a existência de 4.800 crianças
abrigadas em São Paulo, sendo a maior concentração na faixa etária de seis a dezesseis anos
de idade. Constatou que a maior parte dos abrigos existentes na cidade de São Paulo foram
fundados após a promulgação do ECA, quando se efetivou legalmente a necessidade de
desmanche das instituições totais representadas pelos grandes reformatórios e orfanatos.
Dentre os motivos mais citados para o abrigamento estão: a negligência ou abandono,
problemas relacionados à saúde e às condições sociais, à violência física intrafamiliar e a
drogadição dos pais.
Uma das conclusões indicadas pela pesquisa refere-se à organização e prioridades
estabelecidas pelas políticas públicas de atendimento à população.
Em geral, os motivos parecem estar relacionados à precariedade das políticas públicas
que atendam à demanda dessa população. Políticas de maior amplitude, direcionadas à
habitação, à saúde, à educação, ao trabalho, certamente concorreriam para que grande
parte dessas crianças e adolescentes permanecesse com seus familiares (SAS, 2004:129)”.
55
Sobre as famílias das crianças e adolescentes abrigados, dados obtidos nessa pesquisa
delinearam um perfil caracterizado pela ausência da figura paterna e pela situação
resultante de um processo de exclusão social: baixa escolaridade, desemprego, sub-
emprego, precariedade de moradia, quadro, por vezes, agravado pela saúde mental
comprometida e dependência química.
Segundo pesquisa do IPEA, de âmbito nacional, atualmente, no Brasil, há cerca de vinte
mil crianças e adolescentes atendidos em 589 abrigos. Os dados demonstram que os
abrigos, no Brasil, são o locus da pobreza, e o perfil de meninos e meninas encontrados
nessas instituições, em nada corresponde às expectativas da sociedade para adoção, cuja
preferência recai nos bebês da cor branca e do sexo feminino.
No que se refere proposta do ECA, de inserção de crianças e adolescentes abrigados em
programas de adoção, como possibilidade de encaminhamento, caso não haja recursos na
família de origem, temos uma colocação a fazer, em decorrência da nossa prática
profissional nos últimos anos: assistimos diversas vezes, nos abrigos em que trabalhamos, a
devolução dos filhos adotados, quando estes atingiam a adolescência. Estes eram devolvidos
para o Estado (através dos Fóruns), com diversas justificativas por parte dos pais: rebeldia,
desrespeito, indisciplina, etc. O Estado aceita essas “devoluções”, encaminhando esses
adolescentes para os abrigos. A análise desta situação caberia a outra dissertação, merecendo
análise cuidadosa dos envolvidos no processo; porém essa é uma prática comum e
representa a vivência de alguns adolescentes abrigados, devendo aqui ser mencionada.
Os motivos de abrigamento mais citados foram: pobreza (24,2%), abandono (18,9%),
violência doméstica (11,7%), dependência química dos pais ou responsável, incluindo
alcoolismo (11,4%), vivência de rua (7,0%) e orfandade (5,2%).
56
O Levantamento Nacional também mostrou que a grande maioria desses meninos e meninas
moradores dos abrigos, (86,7%) têm família, sendo que apenas (58,2%) destes mantêm
vínculos com os familiares. Dentre causas apontadas para as famílias não estarem com seus
filhos, a principal é a pobreza.
É interessante aqui apontar para a discrepância existente entre a lei e o que de fato ocorre,
apesar de constar que a carência de recursos materiais não consiste motivo para a perda ou
suspensão do poder familiar, esta é a causa primeira indicada como justificativa para o
abrigamento.
Um outro aspecto que se concluiu: a institucionalização se mantém como caminho utilizado
indiscriminadamente – muitas vezes, considerado o único possível – para a proteção da
infância e da adolescência, demonstrando que o princípio da excepcionalidade da medida de
abrigo não vem sendo respeitado.
Em São Paulo, o SOS Criança encerrou definitivamente seus serviços no ano de 2004,
quando desativaram as Casas de Retaguarda conveniadas. O processo de desativação foi
longo e gradual, tendo se iniciado em 1998. Como profissional deste serviço, contratada
pelo Estado, pudemos participar do processo.
Segundo publicação da SAS (2004), o SOS Criança foi substituído por Centros de
Referência chamados de Estações Cidadania. São Paulo possui cinco unidades
regionalizados pelas macro regiões da cidade: Centro-Oeste, Leste Um, Leste Dois, Norte e
Sul. O atendimento nestas estações é diuturno e conta com o trabalho de equipe de
acolhimento, cadastro, encaminhamento, notificação para os órgãos responsáveis (Fóruns) e
familiares.
Para cada Centro de Referência funcionam duas casas de Acolhida (funcionamento similar
às Casas de Retaguarda). Estas têm capacidade para vinte e cinco crianças ou adolescentes
que podem permanecer por no máximo uma semana, sendo posteriormente encaminhados.
A casa-abrigo de permanência para a qual o adolescente será encaminhado deve realizar,
57
como toda casa –abrigo, laudos periódicos e visitas domiciliares à família de origem,
informando ao Fórum a respeito de tudo que envolve sua vida. Toda casa que abriga
crianças e adolescentes está sob tutela da Vara da Infância e da Juventude do Poder
Judiciário. Estes documentos, a que em geral estes adolescentes não têm acesso, constituem
o histórico da vida destas crianças e adolescentes.
Nascimento (2004) fala a respeito da forma em que se realizam estas documentações e
registros:
“Se por um lado, tal procedimento auxilia na compreensão dos seus percursos, por outro,
estes relatórios muitas vezes acabam se tornando discursos que determinam lugares da
exclusão e do anonimato. Isto porque o que deveria singularizar o sujeito com sua própria
história, pode se tornar discursos para uma normatização que ditará as regras, tanto para
a criança como para a instituição, do bom comportamento, da boa educação e da boa
saúde, pois na medida em que é visto como sujeito de direitos, deve estar submetido às leis
do direito legislativo (p. 5)”.
Concordamos com Lazzari (1998), quando coloca que existência de abrigos na nossa
sociedade nos moldes estabelecidos pelo ECA e a discussão a respeito do trabalho oferecido
é recente; pois, apesar de a Lei ter sido implementada há 17 anos, os estudos relacionados
são novos, e as discussões iniciais sobre a existência dos abrigos ficaram pautadas, durante
muito tempo, na implantação da Lei e na criação dos órgãos Estaduais e Municipais para a
fiscalização e implementação deles.
Tem se acentuado a produção de trabalhos, no âmbito acadêmico, e de reflexões, em vários
espaços de nossa sociedade, sobre o fim da institucionalização, sustentados pela defesa da
necessidade da implementação de políticas públicas que tenham como centro de ação social
o resgate, o fortalecimento e a atenção aos núcleos familiares. Estas propostas apresentam
como alvo de crítica o atendimento dirigido, atualmente, às famílias, pelas políticas públicas
que têm suas ações sustentadas pelo caráter tutelar
27
. A nova, proposta é que a família seja
pensada como sujeito político e não como sujeito de assistência. Sendo o abrigo um
equipamento social que institucionaliza, tem se repensado sobre a ação destes, propondo-se
27
O Plano Nacional de Defesa, Proteção, Promoção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes a
Convivência Familiar e Comunitária contempla esses aspectos.
58
alternativas que não incidam nem propiciem o afastamento dos sujeitos do meio familiar.
59
Capítulo III: Família e a constituição do sujeito
Ao discorrermos sobre o adolescente abrigado, algumas questões se fazem pertinentes: e os
pais destes adolescentes, quem são? Aonde se situam neste processo? Um dos apontamentos
realizados no primeiro capítulo deste trabalho refere-se ao fato de que o conjunto de
adolescentes que passa por abrigos se constitui, em sua maioria ou quase totalidade, por uma
classe social menos favorecida, sendo em geral marcados pela miséria econômica,
educacional e até física. Muitas vezes, se articula a condição de miséria econômica à miséria
afetiva, isto é, falta de recursos destes adolescentes e de suas famílias para lidarem com as
adversidades com as quais são confrontados no dia-a-dia. Os pais de origem destes
adolescentes também são apresentados como pessoas sem recursos, gerados pela classe
social a que pertencem. Essa ideologia da classe dominante tem por base uma crença que o
menos favorecido economicamente não teria recursos para subjetivar.
Não pretendemos nos pautar em uma concepção que apresente o adolescente e sua família
como vitimizados, em razão do regime econômico e da classe social a que pertencem.
Porém, o que ocorre é que o adolescente de classe baixa, bem como suas famílias, são
convocados socialmente de forma diferenciada dos adolescentes e das famílias pertencentes
a outras classes sociais. E são estes sujeitos que recorrem ao abrigamento.
Somada a essa configuração, ocorre do abrigamento sinalizar a presença de situações, onde
a relação com os pais de origem apresenta-se com conflitos de várias ordens. Estes
adolescentes saem de casa por motivos diversos, que envolvem diretamente a sua família:
problemas de relacionamento, de agressão física ou sexual, de alcoolismo ou drogadição por
parte dos pais ou do próprio adolescente, de miserabilidade
28
, de envolvimento deste
adolescente ou de seus pais com traficantes que passam a ameaçar os familiares por dívidas
com o tráfico, etc. Muitas vezes, estes adolescentes vão morar nas ruas ou são abrigados
pelo sistema judiciário, que julga insustentável a convivência destes com suas famílias ou na
localidade (comunidade) onde residem; assim como, eles próprios e/ou seus familiares
recorrem ao abrigamento pela vivência de situações limite - algo dentro do contexto familiar
não é mais suportado. Poderíamos dizer que estes adolescentes estão respondendo ao que há
60
de sintomático na estrutura de sua família?
Lacan (1938), em Complexos Familiares, propõe que na espécie humana a cultura ocupa o
lugar da natureza, sendo a família ou grupo familiar o constituinte de uma estrutura da
ordem da cultura. Demonstra, teoricamente, que a realidade social e psíquica, relacionada ao
grupo familiar, possui uma especificidade que se diferencia de todos os fenômenos sociais.
Ela é a transmissora da tradição, dos ritos, dos costumes, da conservação de técnicas e
patrimônios, da primeira educação e da aprendizagem da língua. Na família que se operam
os processos fundamentais, organizadores e estruturantes do desenvolvimento psíquico, os
quais ultrapassam os limites da consciência.
O Complexo Familiar é da ordem da cultura: organizador da tendência biológica onde o
instintivo no ser humano falha; diferente do animal onde o que o organiza é puramente
biológico, instintivo. O ser humano nasce pertencendo a uma determinada cultura, porém, a
mente humana não é simples reflexo da cultura a que pertence, não sendo o caráter social
sua essência.
“O ser humano não é apenas, por essência, um ser social, mas é um ser social na medida
em que não é outra coisa. Em outros termos, o caráter social do ser humano não vem se
acrescentar, de maneira essencial, a um conjunto de determinações próprias ao reino dos
seres vivos em geral, mas vem ocupar o lugar de carência, de uma ausência caracterizada e
específica (Ogilvie, 1987:92)”.
A família a que Lacan se refere, não é a nuclear e monogâmica. Família se refere às relações
de aliança que o sujeito irá estabelecer.
28
Como citado anteriormente, apesar de, pela lei, o fator miserabilidade não ser considerado argumento para o
afastamento da família de origem, sabemos o quanto esse fator influencia.
61
Como coloca Alberti (2004) - no século XX, ocorreram transformações e modificações na
estrutura da família, o que atingiu também as classes sociais menos privilegiadas. A
configuração familiar passa a assumir, na nossa sociedade, formas de organização
diversificada: mãe com vários filhos de pais diferentes, pais que não residem com os filhos,
convivência com padrastos, filhos criados por avós, longe da família de origem e etc.
Estas famílias irão introduzir seus filhos na sociedade. Essa transmissão é realizada a partir
dos princípios, das subjetividades de cada um dos componentes e de como esta família é
convocada socialmente.
Ocorre, por exemplo, que muitas famílias, na atualidade, são compostas por mães e filhos,
sendo o pai ausente. Na experiência profissional da pesquisadora, esta composição era
recorrente. Pudemos verificar também no capítulo anterior, através de pesquisa realizada
pelo IPEA, o quanto essa configuração familiar é recorrente na atualidade.
Neste sentido, poderíamos, então, supor que a ausência do pai seria um disparador da
desestruturação familiar e, conseqüentemente, um dos determinantes de muitas destas
famílias terem, em um período de suas vidas, recorrido ao abrigamento de seus filhos.
Partindo dessa premissa estaríamos considerando, a princípio, que a ausência do pai no
ambiente familiar acarretaria conseqüências negativas, quanto ao desenvolvimento psíquico
das crianças e dos adolescentes. Porém, é importante ressaltar que não existe, teoricamente,
nada que sustente uma explicação tão diretiva e simplista. O fato de uma família e seus
filhos recorrerem ao abrigamento é composto por uma série de variáveis, algumas das quais
nos aprofundaremos nesta dissertação.
Retomando a questão referente à presença concreta do pai no ambiente familiar acreditamos,
apoiados em Lacan, que este fato não implica, necessariamente, em uma ausência na
subjetivação destes sujeitos.
62
O pai, enquanto função simbólica, faz-se presente, de alguma forma, através do desejo da
mãe em relação a este. Este pai pode ter seu lugar marcado pelo fato de ter procriado seu
filho, por ter fecundado a mãe. Com isso não estamos atribuindo a função paterna à
paternidade genética, mas sim colocando a importância de considerarmos que o pai pode ter
seu lugar marcado, independentemente do fato de estar ou não presente. Como coloca
Alberti (2004) - será esse pai, que ao final do Complexo de Édipo, terá como função garantir
o sujeito simbolicamente.
A mãe também tem sua função no desenvolvimento do sujeito. Lacan (1969), em seu
trabalho: “Duas Notas sobre a criança”, fala da importância do investimento materno. Cada
mãe apresentará um interesse particularizado em relação aos cuidados de seus filhos, sendo
este vínculo único e não universalizável. Esse investimento é o lugar simbólico oferecido em
relação ao seu filho, podendo ser carregado tanto de aspectos positivos quanto negativos.
Uma mãe, por exemplo, pode investir em seu filho afirmando que ele não fora desejado e
nem querido, que ela já tinha filhos suficientes, ou que não gosta dele, que não o aceita. Este
investimento, mesmo carregado de aspectos negativos, dará um lugar simbólico ao filho. As
conseqüências desta relação criança-mãe, assim como da relação criança-mãe-pai, só
poderão ser avaliadas posteriormente.
Partimos, neste trabalho, do princípio que as relações estabelecidas entre pai, mãe e criança
são fundamentais e necessárias para a constituição subjetiva de cada um dos sujeitos. Como
se dá a vivência destes aspectos para o sujeito abrigado, uma vez que apresenta modalidades
de relações as mais diferenciadas com os pais de origem?
Um dos posicionamentos frente às crianças e adolescentes moradores de rua, em situação de
risco e abandono, é de culpabilização do próprio sujeito e dos seus pais pela situação dos
seus filhos. Esse posicionamento, muitas vezes inclusive defendido por alguns teóricos,
carrega em si a “política da culpabilização”. Conseqüente atuação, baseada nessa premissa,
resulta em uma prática de onde se extraem conclusões deterministas sobre a subjetividade
dos sujeitos envolvidos.
Haveria então um determinado perfil de pais ou de estrutura familiar capaz de gerar um
determinado tipo de filho? Se partíssemos dessa premissa, em que lugar estaria a escolha de
cada um dos sujeitos? Propomos esta reflexão: em que medida as posições dos sujeitos são
63
respostas ao que lhes é oferecido pelo complexo familiar e na sociedade e, em que medida é
possível considerarmos a autonomia destes sujeitos em relação ao que lhes é oferecido?
Uma das políticas adotadas, inscritas na lei, determina que a criança ou adolescente abrigado
não estará mais sob responsabilidade legal de seus pais de origem. Quem passa a assumir
provisoriamente este papel é o diretor da casa-abrigo
29
. A instituição passa a ter como
função, provisoriamente, algo da ordem do familiar por uma imposição da lei. Ou seja, a
família é uma referência importante, o abrigo deve oferecer um atendimento com modelo
próximo ao familiar e ao mesmo tempo, deve ser um espaço que deve propicie o retorno do
adolescente à família de origem
30
. Ao abrigo cabe, inclusive, o encaminhamento dos pais a
serviços adequados, para auxiliá-los e fortalecê-los na superação de suas dificuldades,
visando que possam voltar a receber os filhos em suas famílias
31
.
Como coloca Marin (1999):
“A articulação passa pela família, por um imaginário de família que nos constitui a todos
(p.11)”.
Quais serão as conseqüências, tanto para o abrigado quanto para a instituição, ao assumir a
guarda legal de crianças e adolescentes?
Poli (2005) discorre sobre estes aspectos, indicando a ruptura do adolescente com a família
como algo extremamente delicado:
“O ingresso dos adolescentes na instituição de abrigagem coloca-os, pois, diante de uma
clivagem difícil, por vezes impossível de sustentar. O julgamento social diante de situações
de desestruturação é imediato: destitui a guarda da família e a acusa de displicência com
sua prole. Isso significa que o ato de internação da criança ou do adolescente é registrado
como falha moral (p.199)”.
29
Artigo 92 do ECA.
30
Aqui são excluídos os casos onde fica estabelecida interdição judicial dos pais para visitação dos filhos. Um
exemplo onde pode ocorrer interdição é quando há vitimização sexual e/ou física dos filhos pelos pais. Será o
sistema judiciário quem irá definir se os pais devem ou não visitar e ter contato com seus filhos e com qual
peridiocidade.
31
Como inscrito no ECA artigo 92.
64
Caberia aos profissionais do abrigo auxiliar o adolescente a rever sua história, a
contextualizar o porquê da necessidade do abrigamento, oferecendo a estes possibilidades de
expressão e de elaboração desta ruptura. A historicização de cada um dos sujeitos abrigados
é fundamental para o processo de subjetivação. E estes sujeitos devem ser pensados não
como vitimas da realidade familiar e social em que estão imersos.
Faria (2003) define e diferencia, através da teoria psicanalítica, os conceitos de
responsabilização e culpabilização. Para a autora, as mães não são culpadas, mas
responsáveis pelo destino subjetivo de seus filhos. Na distinção dos dois conceitos, trabalha
com responsabilização como algo comparável à responsabilidade do sujeito em relação ao
seu próprio sintoma, resultado de uma implicação que ele mesmo desconhece. Já na
culpabilização há uma intencionalidade. Esse posicionamento e diferenciação dos conceitos
realizados por Faria vem ao encontro do que compartilhamos e tomamos teoricamente como
sendo uma leitura psicanalítica. A culpabilização estaria do lado da imposição da ideologia
reinante e a responsabilização estaria do lado das escolhas do sujeito.
Podemos pensar que o sujeito responde ao que existe de sintomático na estrutura familiar,
assim como responde ao social, mas as respostas e a forma como são emitidas por cada um
dos sujeitos é singular e própria.
O sujeito apresentará posicionamentos subjetivos particulares, tanto em relação à mãe
quanto ao pai, não sendo possível definir regras e características fundamentais que um pai
ou uma mãe devam ter. O que não exclui a responsabilidade
32
destes pais na constituição
subjetiva de seus filhos.
Iremos, na próxima seção, teorizar sobre como os sujeitos se constituem e se estruturam,
desde os primórdios de suas vidas, tendo como referência universal o Complexo de Édipo.
Posteriormente, com o conjunto de entrevistas realizadas, refletiremos sobre as estruturas
destes sujeitos adolescentes, na sua interface com a realidade familiar e social que estão
imersos.
32
Responsabilidade, definida aqui, como o que foi colocado anteriormente - “Responsabilidade como referente
a aquilo que se passa na singularidade do vínculo de cada um de seus pais com seus filhos”.(Faria, 2003:202).
65
3.1 - A constituição subjetiva dos sujeitos e o Complexo de Édipo
A constituição subjetiva do sujeito depende do pai e da mãe, não apenas como geradores dos
seus filhos, mas como aqueles que irão exercer as funções materna e paterna, sendo o
complexo de Édipo, uma das formas aqui escolhidas, para descrever o papel destas duas
funções nessa constituição. O Édipo é aqui trabalhado como universalmente estruturante e
fundante na articulação entre o subjetivo e o social.
Como descreve Alberti (2004), através da análise das neuroses, Freud teorizou sobre o
Complexo de Édipo. Esse complexo define as relações psíquicas na família,
independentemente da variação social desta, podendo as figuras parentais estarem ou não
relacionadas ao pai e a mãe, sendo variáveis de acordo com a estrutura familiar e social. Um
tio, por exemplo, pode ocupar a função paterna dependendo da sociedade. Podemos,
portanto, pensar a estrutura do sujeito tendo como princípio o Complexo de Édipo
independentemente da organização familiar em que este sujeito esteja inserido. A forma de
organização familiar não é, portanto, impeditiva da estruturação do sujeito, podendo assumir
características diversas.
Em “Três Ensaios Sobre a Sexualidade” (1905), Freud, descreveu, através de investigações
e da prática terapêutica com seus pacientes, ter chegado à conclusão que a etiologia das
psiconeuroses encontrava-se em acontecimentos ocorridos na infância, relacionados com
impressões de caráter sexual. A importância dos fatores sexuais na produção da neurose e a
existência de uma vida sexual na infância são presentes na psicanálise. Freud se debruçou, a
princípio, no estudo da sedução, como fator desencadeante das neuroses, chegando até a
teorização do Complexo de Édipo. Este Complexo é, em Freud, central e universal, no que
se refere à organização da sexualidade humana. E está referido ao conjunto de relações que a
criança estabelece com as figuras parentais
33
.
Como colocado em Marques (2006), Freud, em 1908, ao analisar o pequeno Hans, se
confrontou, dentre outras questões, com a concepção de criança de sua época: seres
inocentes e despossuídos de qualquer sexualidade. A cura de Hans se deu por meio da
33
O conceito de complexo de Édipo atravessa toda a obra freudiana (1897 a 1938). A obra de Freud, Sigmund:
A dissolução do Complexo de Édipo (1924). In. Obras Completas. Vol XIX é uma referência.
66
análise de questões que desvelavam a sexualidade infantil, abrindo caminho para novas
pesquisas sobre a infância e sobre a teoria do Complexo de Édipo (p.16).
Lacan, relendo Freud, propõe, no Seminário V (1957/1958), a divisão do Complexo de
Édipo em três tempos lógicos. No Seminário IV (1956/1957), trabalha a relação mãe-criança
e o lugar do pai nessa relação. A obra de Freud sobre o Complexo de Édipo, bem como as
duas obras de Lacan, acima citadas, apresentam um material rico que nos auxiliará nas
reflexões sobre a relação mãe, criança e pai, bem como sobre a constituição subjetiva
sustentada por essas relações.
Lacan (1957/1958), no Seminário V, teoriza sobre as funções paterna e materna, que não
podem ser identificadas e nem reduzidas às presenças concretas de pai e mãe, no ambiente
familiar. A concretude da presença não implica necessariamente em uma função operante,
assim como a carência desta função não tem necessariamente relação com a ausência na
família.
“Percebeu-se, então, que um Édipo poderia constituir-se muito bem, mesmo quando o pai
não estava presente (p.172)”.
“Falar de sua carência na família não é falar de sua carência no complexo, é preciso
introduzir uma outra dimensão que não a dimensão realista, definida pelo modo
caracterológico, biográfico ou outro de sua presença na família (p.174)”.
Um ponto comum na obra freudiana e lacaniana, referente ao Complexo de Édipo, diz
respeito à relação inicial que a criança estabelece com a mãe e a interdição sobre essa
relação, resultante da função paterna. Em Freud (1905) o Complexo de Castração relaciona-
se á questão anatômica: ter ou não ter o pênis. Já, em Lacan (1956/57), refere-se à função
simbólica ocupada pelo pai, distinguindo as vertentes simbólica e imaginária da castração,
estabelecendo uma relação entre a anatomia e seu valor simbólico.
A experiência do corpo como unidade no bebê é resultante, para Freud e para Lacan, de uma
construção que só é possível a partir da relação com o outro. Esse outro, em Lacan, é
nomeado como Outro Materno.
67
O Édipo, em Lacan, não pode ser separado do estádio do espelho. O bebê, que a princípio é
desprovido de uma unidade corporal, estabelece a imagem do seu próprio corpo como
unidade a partir da alienação fundamental e inicial no Outro materno.
Lacan, assim como Freud, demonstra o quanto o papel da mãe na relação com o bebê vai
além da satisfação das necessidades: a mãe irá nomear e significar os gestos, os choros da
criança fornecendo a ela uma determinada imagem de si mesma. Assim como espelho,
fornece para a criança o ponto de partida para uma rudimentar identificação. Lacan, no
Seminário IV (1956/1957), irá trabalhar o Complexo de Édipo, subdividindo-o em três
tempos lógicos, não havendo uma cronologia fixa referente a cada um deles. Cito Lacan no
Seminário V, ao discorrer sobre o Complexo de Édipo e sua ordenação em três tempos:
Nos esquemas que proponho a vocês e que são extraídos do sumo da experiência, procuro
produzir tempos. Eles não são, forçosamente, tempos cronológicos, mas isso não vem ao
caso, já que também os tempos lógicos só podem desenrolar-se numa certa sucessão
(p.205)”.
68
A conquista da imagem do próprio corpo como unidade, a partir da alienação no Outro
materno como espelho, é trabalhada em Lacan como o primeiro tempo do Édipo.
A mãe compõe a primeira relação de realidade vivida pela criança e será ela quem irá
traduzir e decodificar o choro do bebê, relacionando-o com a necessidade da criança,
naquele momento. No inicio de sua existência, encontra-se completamente assujeitada ao
Outro materno, uma vez que é a mãe que irá significar e satisfazer as suas necessidades.
Lacan nomeia, no Seminário V (1957/58), esse assujeitamento da criança ao Outro materno
ou grande Outro como um assujeito, pois a criança encontra-se completamente assujeitada
ao Outro Materno. Na mesma medida, a mãe é uma mãe onipotente, que tudo provê. Essa
dependência e assujeitamento da criança à onipotência do Outro materno é chamada por
Lacan de dom materno. Neste primeiro tempo do Édipo, se o dom materno é vivenciado
pelo bebê, enquanto recusa deste dom, isso resultará em uma experiência de frustração e
falha para o bebê. Faria (2003) trabalha com esse conceito e, em sua obra, sustentada
teoricamente em Lacan, cita:
“Vale lembrar que essa figura da mãe enquanto um Outro onipotente, do início do
complexo de Édipo, também pode ser encontrada no texto freudiano. Segundo Freud,
quando a criança encontra-se sob primazia do falo, ela não apenas supõe que todos os
seres são providos de pênis - inclusive a mãe - como dá um destaque especial como suposta
detentora do falo (p.53)”.
Freud (1923) em “Organização Genital Infantil”, a mãe é, imaginariamente, portadora do
pênis.
34
34
(...) “Em Freud, desde o início, a castração foi ligada à posição central atribuída ao Complexo de Édipo,
como elemento de articulação essencial a toda evolução da sexualidade. O falo, em Freud, é associado ao
órgão sexual de ordem anatômica e, conseqüentemente, a castração no desenvolvimento edípico será
desenvolvida em torno desse órgão na dialética do ter ou não ter (Lacan, Jacques, Seminário IV: 61)”.
69
“Freud nos diz que, no mundo dos objetos, existe um cuja função é paradoxalmente
decisiva, a saber, o falo. Este objeto é definido como imaginário, não é possível de modo
algum confundi-lo com o pênis em sua realidade, que é, propriamente falando, a sua forma,
a imagem erigida. (Lacan, Seminário IV: 71)”.
Lacan irá destacar, no Seminário IV(1956/1957), a questão da falicidade: a mãe como
portadora do pênis para a mãe portadora do falo, deslocando a importância do caráter
simbólico dessa suposição.
Em outras palavras, o falo em questão - nós o reconhecemos desde logo - é um objeto
simbólico (p.155)”.
Simbolicamente, não é o pênis, mas a criança que ocupa a posição de falo materno,
oferecendo para a mãe uma satisfação provisoriamente substitutiva, vindo a preencher um
lugar onde supostamente passa a não haver mais falta. Esse lugar da falta que a criança vem
ocupar é um lugar que já existia antes do nascimento desta, na estrutura da mãe, o falo que a
mãe não tinha, falo este, simbólico. Lacan discorre sobre esse aspecto no Seminário
IV(1956/1957):
“Freud, por seu lado, nos diz que a mulher tem, dentre suas faltas de objetos essenciais, o
falo, e que isso está estritamente ligado à sua relação com a criança. Por uma simples
razão - se a mulher encontra na criança uma satisfação é, muito precisamente, na medida
em que encontra nesta algo que atenua, mais ou menos bem, sua necessidade de falo, algo
que o satura. Não considerando isso, desconhecemos não somente o ensino de Freud, mas
os fenômenos que se manifestam a todo instante na experiência (p.71)”.
Esse estatuto de falo tem sua vivência diferenciada no que se refere à mãe e a criança. Para a
criança, esse falo é imaginário: a criança tem a ilusão de ser o falo materno. Essa ilusão, por
parte da criança, só é mantida pela identificação imaginária daquilo que é o objeto de desejo
da mãe. A identificação com o falo para a criança, no primeiro tempo, é primitiva, não se
constituindo ainda como objeto simbólico. Para a mãe, porém, o falo é um objeto simbólico.
O estatuto da criança perante o falo irá se modificar, no percurso do complexo de Édipo,
portanto, nos tempos seguintes.
70
“(...) a relação do filho com o falo se estabelece na medida em que o falo é objeto de desejo
da mãe (Lacan, Seminário V: 190)”.
O fato do falo constituir-se como um objeto simbólico para a mãe, antes do nascimento do
filho, indica a existência de um elemento simbólico anterior à entrada do sujeito no
complexo de Édipo.
Antes do nascimento de um bebê, a mãe já estabelece uma relação com o simbólico.
Relação esta que irá marcar o sujeito. Nesta relação da mãe com o simbólico se encontra o
pai, tendo sua presença marcada através do desejo da mãe. Este pai se faz presente, através
do Outro materno.
No segundo tempo do Édipo, ocorrerá a incidência da castração na criança, incidência esta
que está totalmente atrelada à percepção da mãe como castrada e como um sujeito faltante.
Cito, abaixo, descrição de Lacan, no Seminário V, do que se opera no segundo tempo do
Édipo:
“Esse é o estádio, digamos, nodal e negativo, pelo qual aquilo que desvincula o sujeito de
sua identificação liga-o ao mesmo tempo, ao primeiro aparecimento da lei, sob a forma
desse fato de que a mãe é dependente de um objeto, que já não é simplesmente o objeto de
seu desejo, mas o objeto que o Outro tem ou não tem. A estreita ligação desse remeter a
mãe a uma lei que não é dela, mas de um Outro, com o fato de o objeto de seu desejo ser
soberanamente possuído, na realidade, por esse mesmo Outro a cuja lei remete, fornece a
chave da relação do Édipo (p. 199)”.
71
Faria (2003), descreve sobre esse tempo:
“Se trata dos efeitos da falta do Outro sobre a própria criança, e não de algo que se efetiva
nesse sujeito que é a mãe (p. 63)”. (...) “A castração materna pode ser entendida a partir da
incidência que tem sobre a criança, uma incidência cujo efeito é por também a criança em
falta, tirando-a da identificação imaginária ao falo. É uma dupla incidência da castração,
porque a percepção de que a mãe é castrada implica na percepção de que a criança não é o
falo que supunha ser (p. 64)”.
Freud coloca em questão a castração da mãe: na percepção da criança, a mãe não possuir o
pênis: se ela não o possui, alguém o tirou.
Em Lacan, nos Seminários IV e V, a castração da mãe é representada, não como a ausência
anatômica do pênis, mas como a ausência da mãe. Sendo essa ausência, não somente física,
mas uma ausência onde se evidencia a existência de outros interesses e desejos maternos,
além do bebê. A ausência da mãe é percebida de alguma forma, pela criança, como um
enigma relacionado ao desejo materno.
Como cita Faria (2003)-o enigma e a ausência irão criar condições para que a criança se
insira no campo simbólico; pois será através da simbolização que a criança irá lidar com a
presença e com a ausência da mãe, desvinculando sua dependência efetiva do desejo
materno, subjetivando algo novo, onde passa a situar uma falta no Outro. A mãe,
representada para a criança no primeiro tempo do Édipo como Outro onipotente, passa, no
segundo tempo do Édipo, a ser percebida como um Outro marcado pela falta e pelo desejo.
Essa falta, para Lacan, é definida como privação, onde o objeto delineia algo que falta ao
Outro, falta essa, real. A criança, que antes se encontrava no lugar do falo materno, agora,
com a percepção em relação à falta da mãe, constata que não é mais seu este lugar. A
constatação deste fato permite que a criança simbolize. Esse efeito da constatação da
privação materna não é diferente no menino e na menina e ambos deixam de ser o falo. É
necessário, primeiramente, em relação ao falo, que a criança aceite tê-lo ou não, a partir da
descoberta que não o é.
O pai entra em função como aquele que priva, castra, interdita, sendo representante de uma
interdição em relação à privação materna. Essa relação estabelecida pela criança em relação
72
ao pai é imaginária.
O pai entra pela via da castração materna, à medida que vem como representante de algo
que falta para essa mãe. Para que esse pai tenha um lugar como lei, irá depender do que irá
se articular como mensagem através da mãe.
A mãe é submetida a uma lei, que tem no segundo tempo do Édipo, o pai como
representante. A esta lei, a própria mãe já se encontra submetida.
Para Lacan, o segundo tempo é nodal no Édipo, é o momento que caberá ao sujeito aceitar,
registrar, simbolizar e dar significação à privação da mãe pelo pai, privação essa em que a
mãe é objeto. Deste posicionamento do sujeito que irão depender as diferentes saídas do
complexo de Édipo.
Em Freud, em “A dissolução do Complexo de Édipo”, datado de 1924, o pai também é
pensado como aquele que interdita a relação da criança com a mãe, aparecendo como rival
que disputa com a criança sua atenção e cuidados exclusivos. Um apontamento realizado por
Freud, é que também os irmãos podem despertar rivalidade ou serem desejados. Lacan
discorrerá sobre os irmãos em “Complexos Familiares” (1938). Fala sobre o papel do irmão,
representado pela intrusão e pela rivalidade. Só após o terceiro tempo do Complexo de
Édipo, é que o irmão pode ser adotado no plano das identificações parentais, onde para o
sujeito, o irmão deixa de ser um obstáculo para se tornar alguém digno de amor ou ódio.
No terceiro tempo do Édipo é que se dá a configuração total do complexo de Édipo, definido
como ordenador da sexualidade. Este processo depende fundamentalmente da instauração da
metáfora paterna e da articulação do falo como significante.
73
No terceiro tempo do Édipo, o pai irá deixar de ser o privador, passando a ser aquele que
possui o falo e que pode dá-lo. O pai pode dar porque possui. Simbolicamente é essa a
função do falo. Como descreve Lacan, no seminário V:
“O terceiro tempo é este: o pai pode dar à mãe o que ela deseja, e pode dar porque o possui
(p.200)”. (...) “No terceiro tempo, portanto, o pai intervém como real e potente (p.201)”.
Faria (2003), descreve sobre o terceiro tempo do Édipo, em Lacan:
“O objeto que faz do pai um pai doador é esse objeto que, podendo circular, pode ser dado
tanto à mãe quanto para a criança-aí está à saída do Édipo - e deixa de ser um objeto do
qual estaria o pai investido imaginariamente, em sua onipotência privadora (p. 77)”.
Este pai que tem o falo é um pai potente, que dá à mãe o que ela deseja; porém a mãe
continua desejando, o que faz com que o falo adquira seu estatuto de objeto simbólico-
como aquele que preenche, mas que não satura, não esgota.
No terceiro tempo, o falo adquire o estatuto de objeto simbólico e o pai toma a função
simbólica de portador da lei. (Lacan, Seminário V):
“O pai entra em jogo como, isto é certo, como portador da lei, como proibidor do objeto
que é a mãe. Isso, como sabemos, é fundamental, mas está totalmente fora da questão, como
esta é efetivamente introduzida para a criança. Sabemos que função do pai, o Nome-do-Pai,
está ligada a proibição do incesto (p.194)”. (...) “o pai como aquele que é culturalmente
portador da lei, o pai como investido pelo significante do pai, intervém no Complexo de
Édipo de maneira mais concreta, mais escalonada, por assim dizer (p.194)”.
“A maneira como o pai intervém nesse momento, na dialética do Édipo, é extremante
importante de considerar (p. 211)”.
Como discorre Faria (2003), no segundo tempo do Édipo, a mãe é percebida como
desejante: instala-se um enigma de algo que a criança não consegue alcançar. O significado
desse desejo pode ser dirigido ao pai, que passa a ser significado como o desejo da mãe.
Porém, o desejo materno não é exclusivamente significado pelo pai. Para que haja metáfora
74
paterna, o pai deve ser substituído por um significante: o pai vem representar um
significante substituindo o significante do desejo materno. Esta articulação desvincula a
criança do desejo materno. Para que o pai seja tomado como função simbólica é necessário
que deixe de ser o significado do desejo materno, indo além, ocupando o lugar do
significante do desejo materno.
Citamos Lacan, no Seminário V:
“O essencial é que a mãe funde o pai como mediador daquilo que está para além da lei dela
e de seu capricho, ou seja, pura e simplesmente, a lei como tal. Trata-se do pai, portanto
como Nome-do-Pai, estreitamente ligado à enunciação da lei, como todo desenvolvimento
da doutrina freudiana no-lo anuncia e promove. E é nisso que ele é ou não é aceito pela
criança como aquele que priva ou não priva a mãe do objeto de seu desejo (p.197)”.
Para Lacan, a função paterna é fundamental e necessária, podendo admitir significações
diferentes. O falo adquire a configuração de objeto simbólico, através da ordenação do
campo simbólico pelo pai.
Faria (2003), apoiando-se teoricamente em Lacan, descreve que o falo, ao assumir o estatuto
simbólico, indica que o sujeito pode tê-lo algum dia. No menino, o fato de o pai ser
representado como detentor do falo, gera um ponto de identificação e, na menina gera o
reconhecimento como àquele que o possui. A identificação representa a internalização no
sujeito desse pai como ideal de eu, o que cria condições de a criança construir a identidade
sexual.
75
“Esse percurso tem como conseqüência o estabelecimento da identidade sexual, no qual as
saídas femininas, do lado da busca pelo falo que não tem, e na masculina, do lado da
suposição de tê-lo como o pai, não consistem senão em formas de apreensão deste corpo
simbólico, que permitem dar significação ao real da pulsão inscrita no corpo (p.86)”.
Embora a questão anatômica não seja o único determinante da posição sexual do sujeito, é
sobre o real do corpo que atua a significação fálica que ordena o complexo de Édipo.
Freud, ao teorizar a respeito do Complexo de Édipo, indica que este finaliza através da sua
dissolução. Poderíamos, teoricamente, substituir dissolução por repressão, ocasionada pela
ameaça de castração. Este processo de organização fálica, na presença do Complexo de
castração, ocorrerá de forma diferenciada no menino e na menina, porém, em ambos se fará
presente.
Lacan também trata destes aspectos no Seminário V:
“Dito de outra maneira, ter ou não ter o pênis, não são a mesma coisa. Entre os dois, não o
esqueçamos, há o complexo de castração. Aquilo que se trata no complexo de castração
nunca é articulado e se faz completamente misterioso. Sabemos, no entanto, que é dele que
dependem estes dois fatos: de um lado, o menino se transforme em homem, e de outro, a
menina se transforme em mulher (p. 192)”.
O Complexo de Édipo, em Freud, nos indica a existência de duas operações: a dissolução e
o recalque. A dissolução não tem término. O recalque estabelecerá uma barreira entre o
inconsciente e o pré-consciente. Sendo o superego herdeiro do Complexo de Édipo, onde
pela lei, estabelecerá uma barreira em relação ao incesto. O recalcamento da sexualidade
permanecerá latente até a puberdade, quando haverá um retorno do recalcado. Permanecerá,
durante a fase de latência, um ideal em relação à imagem parental que irá garantir,
posteriormente, a passagem do sujeito pela adolescência.
76
Segundo Freud (1924), em: “A Dissolução do Complexo de Édipo”, frente à castração e o
abandono das catexias de objeto, estas são substituídas por identificações. A autoridade
paterna é introjetada, formando o núcleo do superego, o qual assume a severidade do pai,
perpetuando a proibição contra o incesto. Neste processo, ocorre também a sublimação e
dessexualização das tendências libidinais do Complexo de Édipo as quais, em parte, são
inibidas em seus objetivos e transformadas em impulsos de afeição. Esse processo dá início
ao período de latência.
“A autoridade do pai ou dos pais é introjetada no ego e aí forma o núcleo do superego, que
assume a severidade do pai e perpetua a proibição deste contra o incesto, defendendo assim
o ego do retorno da catexia libidinal. As tendências libidinais pertencentes ao Complexo de
Édipo são em parte dessexualizadas e sublimadas (coisa que provavelmente acontece com
toda transformação em uma identificação) e em parte são inibidas em seu objetivo e
transformadas em impulsos de afeição. Todo processo, por um lado, preservou o órgão
genital-afastou o perigo de sua perda-e, por outro, paralisou-o-removeu sua função. Esse
processo introduz o período de latência, que agora interrompe o desenvolvimento sexual da
criança (p.221)”.
Lacan, no Seminário V, discorre sobre a finalização do Édipo e sobre a fase de latência:
“É por intervir como aquele que tem o falo que o pai é internalizado no sujeito como ideal
do eu, e que, a partir daí, não nos esqueçamos, o complexo de Édipo declina. Não quer
dizer que o menino vá tomar posse de todos de todos os seus poderes sexuais e exercê-los,
como vocês bem sabem. Muito pelo contrário, ele não os exerce nem um pouco, e
poderíamos dizer que, aparentemente, decai do exercício das funções que haviam começado
despertar. A metáfora paterna desempenha nisso um papel que é exatamente o que
poderíamos esperar de uma metáfora-leva a alguma coisa que é da ordem do significante,
que fica guardada de reserva, e cuja significação se desenvolverá mais tarde. O menino tem
todo direito de ser homem, e o que lhe possa ser contestado, mais tarde, no momento da
puberdade, deverá ser relacionado a alguma coisa que não tenha cumprido completamente
a identificação metafórica com a imagem do pai, na medida em que essa identificação se
houver constituído através desses três tempo (p.201).” (...) “Também lhes saliento que o
desfecho do complexo de Édipo, como todos sabem, é diferente na mulher. Para ela, com
efeito, essa terceira etapa, como sublinha Freud-leiam seu artigo sobre o declínio do Édipo,
77
é muito mais simples. Ela não tem que fazer essa identificação nem guardar esse título de
direito à virilidade. Ela, a mulher, sabe onde está, sabe onde deve ir buscá-lo, o que é do
lado do pai, e vai em direção àquele que o tem (p. 202)”.
A partir da castração se encontra o ponto de ordenação para a construção da identidade
sexual. Em Lacan, existem diversas maneiras de o sujeito posicionar-se frente à castração,
dependendo de sua forma singular diante dos significantes que o marcam. Na saída do
Complexo de Édipo que se dará à formação do supereu e a identificação do eu. O ideal do
eu será a imagem antecipadora da unidade do eu, representando sua finalização. Citamos
Lacan, no Seminário V, ao discorrer sobre as funções relacionadas ao Complexo de Édipo:
“Com respeito ao tema histórico do complexo de Édipo, tudo gira em torno de três pólos-O
Édipo em relação ao supereu, em relação à realidade e em relação ao Ideal do eu. Ideal do
eu na medida em que a genitalização, ao ser assumida, torna-se um elemento do Ideal do
eu. A realidade na medida em que se trata das relações do Édipo com as afecções que
comportam uma subversão da relação com a realidade-a perversão e a psicose (p.174)”.
Apesar de Lacan ter demonstrado que a função paterna opera independente da presença ou
ausência concreta do pai, no ambiente familiar, pode ocorrer do pai não ser identificado
como agente da castração. Ao não ocupar este lugar se torna, enquanto função, inoperante.
Tanto Freud quando Lacan relacionam a falta de endereçamento ao pai com a ausência de
função paterna operante, implicando na ausência da castração. A ausência da metáfora
paterna, denominada por Lacan como foraclusão, é determinante da estrutura psicótica.
Citamos Lacan, no Seminário V:
“A castração manifesta-se, portanto, em toda nossa experiência, e particularmente, nos que
são seus objetos privilegiados, ou seja, os neuróticos, no plano imaginário (p.175)”.
Como discorre Faria (2003), a foraclusão do Nome-do-Pai
35
representa o fato de não haver
no sujeito, instância simbólica que barre a mãe. Enquanto na neurose a castração, como
relatado acima, sofre recalcamento, na psicose ela é foracluída, faltando ao sujeito a
35
“Trata-se do que eu chamo de Nome-do-Pai, isto é, o pai simbólico. Esse é um termo que subsiste no nível
do significante, que, no Outro como sede da lei, representa o Outro. É o significante que dá esteio à lei, que
promulga a lei. (Lacan, Seminário V: 152)”.
78
castração para ordenar o campo simbólico e sua relação com a realidade. O pai, na psicose,
não intervém como lei.
O Complexo de Édipo, em Freud, diz respeito à passagem do homem da natureza à cultura;
sendo a castração o que finaliza o Édipo, (o desejo natural da mãe fica ameaçado com a
castração) onde o pai impõe uma lei, interditando. O que permite com que o sujeito seja
colocado frente à cultura, a lei da sociedade que é a proibição em relação ao incesto. Faria
(2003) cita Freud:
“Freud apresenta a criança como um ser que nasce imerso no caos das pulsões e cuja
inserção na cultura e no social dependem da introjeção da lei e da castração, através do
complexo de Édipo (p. 122)”.
Assim sendo, este complexo, nos permite pensar a constituição de um sujeito e sua inscrição
no campo da cultura através da castração.
Como cita Faria (2004), o Nome-do-Pai barra o desejo materno, permitindo, na elaboração
do Complexo de Édipo, que o sujeito busque investimentos fora da família. A medida em
que o pai garante o sujeito simbolicamente, ele sustenta o adolescente na cultura lhe
atribuindo-lhe lugar na comunidade. Esse pai não tem que ser necessariamente o biológico.
Em Freud a criança introjetará a autoridade paterna sob a forma de superego, sendo a
formação dos ideais e da moral resultantes deste processo. A entrada da criança na fase de
latência, onde a libido fica represada e se redireciona, por exemplo, para atividades sociais,
responde pela entrada da criança na cultura.
Em Freud, a entrada do sujeito na cultura se dá com a finalização Edípica. Em Lacan, a
entrada do sujeito na cultura precede a finalização do Édipo, através da linguagem e das suas
leis, as quais precedem o sujeito. Faria descreve, apoiando-se teoricamente em Lacan, sobre
a entrada do sujeito na cultura:
“Para Lacan há uma ordem simbólica que preexiste ao sujeito infantil e segundo a qual
será preciso que ele se estruture. A relação do sujeito com a ordem simbólica implica, de
um lado, a preexistência desta ordem simbólica ao sujeito e, de outro, a necessidade de um
79
posicionamento do sujeito em relação a esta ordem simbólica que lhe é pré-existente, e que
dá ao sujeito seu estatuto. É o que Lacan denomina de sujeito barrado ($), o sujeito
atravessado pela linguagem (Faria, 2003:123)”.
Campos (2006), autor que se apóia teoricamente em Lacan, descreve que a linguagem
não é um instrumento para utilização do ser humano, mas é a própria forma de
inauguração do sujeito pelo Outro, a partir da ação do significante. A linguagem é o que
diz tanto sobre o sujeito quanto sobre o social e, apesar de ser um código coletivo,
também possui significação singular para o sujeito. (p.159)
Ao aceitarmos, teoricamente, o Complexo de Édipo como estrutura simbólica capaz de
oferecer ao sujeito condições subjetivas deste posicionar-se na ordem da linguagem que o
antecede, percebemos que a interdição do sujeito em relação à mãe, pressupõe a existência
de uma lei anterior ao sujeito, a qual se impõe. Essa lei, anterior ao sujeito, é uma lei que
inclusive a mãe a ela está submetida. A existência e submissão da mãe a uma lei anterior a
esse sujeito,representam o atravessamento deste pela cultura e por aspectos da sociedade na
qual se encontra inserido. No Seminário V, Lacan trata destes aspectos:
“A lei da mãe, é claro, é o fato de que a mãe é um ser falante, e isso basta para legitimar
que eu diga a lei da mãe. Não obstante, essa lei é, por assim dizer, uma lei não controlada.
Reside simplesmente, ao menos para o sujeito no fato de que alguma coisa em seu desejo é
completamente dependente de alguma outra coisa, que sem dúvida já se articula como tal, e
que é realmente da ordem da lei, só que essa lei está, toda ela, no sujeito que a sustenta,
isto é, no bem querer e no mal querer da mãe, na mãe boa ou má (p.195)”.
A anterioridade lógica da linguagem, em relação ao sujeito, pode ser verificada também no
primeiro tempo do Édipo, quando a mãe transmite a cultura e a ordem através da linguagem,
ao cuidar de seu bebê, que ainda não tem domínio do simbólico. A criança subjetiva o que a
ela se apresenta como anterioridade lógica no Outro materno.
Freud, ao teorizar o complexo de Édipo coloca a existência de uma completude que é
perdida com a entrada do sujeito na cultura. Em ‘O mal-estar na cultura’ (1930), analisa
80
diversos aspectos desta e as formas pelas quais os sujeitos se enlaçam a ela. Nesta obra,
discorre sobre algo que os sujeitos têm que abandonar para viver em sociedade, deste
algo abandonado provém o Mal Estar. Para Freud, o homem, ao viver em sociedade, ao
fazer parte de uma cultura tem que, para a esta pertencer, submeter-se a uma lei que o
impede, não havendo possibilidade de realização plena. Citamos Freud:
“Grande parte das lutas da humanidade centralizam-se em torno da tarefa única de
encontrar uma acomodação conveniente - isto é, uma acomodação que traga felicidade -
entre a reivindicação do indivíduo e as reivindicações culturais do grupo, e um dos
problemas incidem sobre o destino da humanidade é o saber se tal acomodação pode ser
alcançada por meio de alguma forma específica de civilização ou se esse conflito é
irreconciliável (p.166 e 117)”.
Na teoria lacaniana, esse gozo é perdido desde sempre porque o sujeito se constitui pela
linguagem. A falta é estrutural e o Complexo de Édipo oferece elementos para o sujeito se
organizar frente a esta falta. Citamos Faria (2003), ao tratar desse aspecto:
“A dimensão simbólica oferece condições para que o sujeito ponha em jogo a função
simbólica da castração. As formações imaginárias tomam lugar, sob a forma do
enredamento de uma história pessoal (p.136)”.
81
3.2 - O sujeito adolescente
Como discorre Alberti (2004), a sociedade capitalista estabelece padrões que são explorados
pela mídia, objetivando a venda de determinadas imagens que visam o consumo.
Encontramos, dentre estas, a do adolescente ideal com características praticamente
universais. A exploração dessa imagem eleva o adolescente a um ideal da cultura atual.
Já, os adolescentes marginalizados são apresentados com uma imagem pautada em
características engessadas, não correspondendo a esta imagem de adolescente ideal.
Contrariamente, a imagem que os reproduz, explorada e vendida através dos meios de
comunicação, os faz portadores da violência e da criminalidade ou vítimas da sociedade e da
falha educacional de seus responsáveis.
Trassi (2005) faz menção a este aspecto:
“Na mentalidade de amplos setores sociais há uma representação social falsa de que o
adolescente é responsável pelos índices de criminalidade (p.15)”
A reflexão sobre as ideologias relacionadas a essas parcelas da adolescência em nossa
sociedade e o tipo de investimento realizado pela mídia, evidencia a tentativa de
normatização e de naturalização dos sujeitos, tendo como pano de fundo a dominação
capitalista na exploração do consumo.
A psicanálise do ego, adotada por uma das escolas norte-americanas, é representante dessa
ideologia. À medida que se fundamenta na questão adaptativa do sujeito, resulta em uma
psicanálise ideológica que se mantém a serviço das representações burguesas. Esta distorção
da psicanálise sofre críticas de muitos marxistas e psicanalistas. A psicanálise é, na
realidade, subversiva, constituindo-se como uma teoria que vem questionar o que é
estabelecido como verdade, trabalhando com a contradição inerente a todos os sujeitos.
Lacan propõe a releitura da obra freudiana, a fim de revitalizar o objeto de estudo da
psicanálise e defendê-la de reduções e desvios. Este é um dos fatores que justificam a
presença deste autor nesta dissertação. Campos (2006), ao tratar da adolescência, também
82
aborda esta questão em sua dissertação:
“Lacan (1956-1957) denomina de psicologia do ego esta psicanálise que procura
normatizar o sujeito. A psicologia do ego ressalta a possibilidade do indivíduo manter uma
relação com um objeto constituído a priori (natural, da essência humana). Um dos maiores
erros cometidos por muitos dos psicanalistas é eliminar o caráter subversivo da psicanálise
– questionador da ordem social vigente – ao procurarem estabelecer um caminho de
normatização ou fortalecimento do ego. O fortalecimento do ego (ou estabelecimento da
identidade final) é uma forma de domesticação do sujeito e é um sintoma premente na
modernidade (...) É com esta posição de normalizar o sujeito que o pensamento lacaniano
vem a romper (p.118)”.
Quando falamos de sujeito adolescente abrigado, a quem nos referimos? Quem é esse
sujeito? Antes, teremos que pensar sobre quem é o sujeito adolescente para a psicanálise.
Segundo Calil (2003), o conceito de adolescência surgiu pela primeira vez no século XIX,
apresentado por Rousseau, em sua obra Emílio ou da Educação. Nesta obra, a adolescência é
definida como um segundo nascimento, provocado pela emergência da sexualidade,
empurrando o adolescente para além de si mesmo, para a humanidade, gerando uma
turbulenta revolução, manifesta em mudanças de humor, rebeldia e instabilidade. (p. 144).
Alberti (1996) também trata do surgimento da denominação “adolescência” no século XIX,
descrevendo que, a partir deste século, o adolescente passa a ser identificado por seu
funcionamento de forma particular, diferindo tanto das crianças quanto dos adultos. A
determinação destas diferenças no século XX e o estabelecimento de uma disciplina
resultaram em uma identificação dos jovens de uma determinada faixa etária com esse
significante. A adolescência tornou-se um traço identificatório para os sujeitos humanos de
uma determinada faixa etária (p.43).
Calil (2003) crítica Freud e alguns teóricos psicanalistas. Para a autora, estes, a partir de um
paradigma evolucionista, reforçaram a idéia da adolescência como um período de crise,
caracterizado por turbulências emocionais, aliadas às mudanças corporais e hormonais, onde
o sujeito passaria por um período de luto e angústia, período este enfatizado pelo conflito
entre pais e filhos. Este processo reproduziria um “status” adolescente diferenciado da
83
condição infantil. Esta posição da psicanálise, segundo a autora, consolidou o processo de
naturalização da adolescência como uma etapa turbulenta, confusa e necessária no
desenvolvimento do ser humano (p.144).
Alberti (1996), porém, afirma
36
:
“A ciência procura inscrever o fenômeno da adolescência num texto compreensível. Mas a
psicanálise se distingue deste movimento em sua abordagem, pois não é para explicara a
adolescência que vai estudá-la, mas para tentar dar conta dos fatores que levam o sujeito a
se identificar com a adolescência. (...) Para a psicanálise de Freud com Lacan, o que lhe
interessa é saber em que medida a identificação do sujeito com a adolescência interage com
o que Freud recuperou da foraclusão que a ciência exige: o desejo de cada sujeito singular
(p.56)”.
Esta mesma autora descreve: “a adolescência não é originalmente um conceito estudado
pela psicanálise, mas nem Freud nem Lacan deixaram de se referir a ela. (p.9)”.
Freud, ao tratar da adolescência em sua obra “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
(1902), discorre sobre a passagem da infância para a adolescência e a nomeia como
puberdade. Esta se inicia após a fase de latência e apresenta como característica fundamental
a eclosão da sexualidade
37
: a maturação genital aliada a uma atualização do saber
inconsciente com a reativação do complexo de Édipo em seus desdobramentos, o qual se
reeditará de forma diferenciada da primeira infância. Nesta obra Freud diferencia conceitos
cruciais na psicanálise: instinto, referente à ordem do biológico e libido, referente ao
elemento primário do psiquismo, que tem como função a manutenção da energia do
aparelho psíquico.
Lacan, ao trabalhar com os conceitos de instinto e pulsão, enfatiza o homem marcado pela
cultura, não havendo a possibilidade de apresentar comportamentos apenas decorrentes da
ordem do instintivo. Enquanto no animal o biológico é organizador, no humano, será para
além do instintual que se inscreverá a pulsão, abrindo para a ordem do desejo.
Não há, portanto, um paralelismo entre o que é da ordem do orgânico e o que é da ordem do
36
Autora que se baseia teoricamente em Lacan.
37
Sexualidade, segundo Freud, universal para o ser humano.
84
psiquismo.
Ao tratarmos sobre o adolescente, independente da classe social a que pertença, nos filiamos
teoricamente ao que é posto por Alberti (1996). A autora não trabalha a adolescência como
uma fase “especial” e delimitada etariamente, caracterizada por um período de crise.
Discorre sobre o sujeito adolescente tomando-o na sua singularidade, definido por seu início
na puberdade, este sujeito irá se deparar com a conjunção do real do sexo e a
responsabilidade do ato. O sujeito adolescente irá renomear o que foi inscrito,
anteriormente, nos três tempos do Édipo.
Segundo esta autora, a fragilidade das determinações biológicas, se evidencia no
adolescente, no encontro com o Outro sexo.
“A sexualidade, no ser humano, é integralmente permeada e determinada pelo fato dele
sempre se constituir a partir de sua relação com o Outro, ou seja, a cultura, a linguagem, o
desejo do Outro”. (...) “É evidente que a biologia determina muita coisa no homem, mas a
sexualidade é por si só um campo que a psicanálise define como determinado pela relação
com o Outro, a ponto de um sujeito nascer biologicamente com as características
específicas de um sexo, mas se identificar de outra forma”. (...) “É em função disso também
que o fato de o sujeito se identificar com outro sexo que não o biológico nada tem de
aberrante ou desviante, ao contrário, só comprova a disjunção entre a identificação sexual
-que implica a constituição psíquica -e as características biológicas (p.28)”.
Não existe, portanto, para a psicanálise tanto freudiana quanto lacaniana, a possibilidade
traçarmos na adolescência, um paralelismo entre o que é da ordem do biológico e o que é da
ordem do psiquismo. Aliás, não há esta possibilidade no que se refere ao humano. Dado isto,
concluímos que não há possibilidade de traçar a adolescência com caracterizações dadas “à
priori” determinando, inclusive, seu inicio e sua finalização cronológica.
Muitos teóricos propõem que, no término da adolescência, o sujeito seria portador de uma
identidade. Esta questão identitária não existe para a psicanálise lacaniana. O sujeito é desde
sempre marcado por um traço, porém não podemos dizer que é uma identidade, mas sim
algo deste sujeito, que o identifica. Não há, portanto, a possibilidade de um saber pré-
concebido do próprio sujeito, esta concepção não é analítica.
85
Campos (2006) trabalha, em sua dissertação, sobre a adolescência e sobre os pressupostos
teóricos existentes para o estudo da mesma. Segundo este, muitos teóricos se fundamentam
no estudo da adolescência, tendo como referência: ora as determinações biológicas, ora as
determinações históricas.
A colocação de diferentes autores que se dedicam ao estudo da adolescência, tem como
intuito esclarecer que discordamos teoricamente que a psicanálise se caracterizaria por uma
ciência que normatiza e naturaliza os sujeitos. A psicanálise está a serviço de escutar os
sujeitos e a teoria vem dar suporte a esta escuta.
Alberti (2004) diz que cada um dos sujeitos irá atravessar a adolescência em seu trabalho
singular de elaboração de escolhas e da falta no Outro. Esta é a tarefa adolescente: ter que
fazer escolhas. As referências primárias do sujeito terão um papel fundamental nesta
operação, circunscrevendo as mesmas. O sujeito irá se separar dos pais, fazendo uso das
suas referências pessoais que servirão para a realização da operação que circunscreverá o
seu adolescer. Nesta operação, o sujeito adolescente terá que incorporar o Outro da infância,
de maneira que não seja tão dependente da idealização dos pais. Essa separação dos pais
idealizados só pode acontecer, se o sujeito os tiver anteriormente os incorporado.
O adolescente, após ter passado pelos três tempos do Édipo e pela fase de latência que
precede a puberdade, não é mais o falo materno, não tem mais que satisfazer os desejos e a
demanda deste Outro materno, assim como, não tem que satisfazer as demandas do pai.
Ao mesmo tempo, o sujeito adolescente irá confrontar-se com o desamparo fundamental,
onde o Outro não pode mais protegê-lo, da mesma forma ele não pode mais corresponder a
o que esse Outro dele deseja. O adolescente se apercebe, portanto, como simbolicamente
castrado, assim como seus pais também o são. Através da castração que o sujeito se
inscreverá na cultura.
Alberti (2004) discorre sobre o processo do adolescer em que a idealização dos pais sofre
abalos. Neste processo, o sujeito passa a questionar e identificar as limitações e
insuficiências dos pais, percebendo que há falhas nestes. O fato de se deparar com essas
falhas, com o Outro castrado, faz com que tenha que se deparar com seu próprio desamparo
86
e com o fato de que não dá mais para esperar que o Outro faça por ele, mas que ele tem que
fazer as escolhas por si próprio. Para efetuar esta operação, o sujeito irá utilizar os recursos
que simbolicamente possui.
Na adolescência, há, portanto, o desvelamento da falha do ideal do pai, da imagem
idealizada que o sujeito tinha até então em relação a este.
Segundo Alberti (2004), neste processo de alienação e separação, outro componente que se
fará presente será o real do sexo, onde o sujeito irá se deparar com as transformações reais
de seu corpo biológico; aliadas a estas transformações, o adolescente terá que se deparar
com suas determinações inconscientes, pulsionais e identificatórias (reedição edípica), tendo
que se posicionar na partilha dos sexos. Esse processo é chamado por Lacan de encontro
com o real, o encontro com algo que não simbolizável, da ordem do irrepresentável.
O corpo não é só biológico, é também efeito da linguagem, pois só irá existir a partir do
recalcamento promovido pela linguagem. Sendo o corpo produto da linguagem e do
recalque estará submetido às marcas que ocorreram na vida do sujeito. A estruturação da
imagem corporal pela socialização será imposta pela demanda do Outro.
Como teoriza Alberti (2004), a identificação e a escolha sexual na adolescência levam
também a desconstrução de ideais já existentes, o sujeito adolescente se depara com a
necessidade de construção das próprias referências. Esse processo só se estabelecerá através
da introjeção dos pais da infância.
Matheus (2000) discorre sobre o distanciamento do adolescente das figuras parentais,
mostrando que esse leva o sujeito a se deparar com outras figuras de autoridade, ficando
mais permeável aos modelos identificatórios oferecidos socialmente, pois neste processo de
separação dos pais, buscará outras referências em seus pares e em espaços fora da família.
Segundo Alberti (2004) o sujeito de estrutura psicótica, ao adolescer, irá se deparar com a
ausência da inscrição simbólica do Nome do Pai. Sem a referência à castração, não é
possível pensar a adolescência, pois, na adolescência, o sujeito irá elaborar a própria
castração, para o sujeito que não possui estrutura neurótica esse processo se torna inviável.
87
“O problema é outro quando falta a própria sustentação simbólica, e aí temos a psicose,
estrutura subjetiva que se constrói a partir do fato de que o sujeito precisa posicionar-se
frente ao irrepresentável, mesmo quando há foraclusão do Nome-do-Pai e de sua
conseqüente referência fálica ( p.47)”.
Os sujeitos de estrutura psicótica vão buscar referências concretas, na tentativa de
restabelecer algum investimento, buscando a preservação de alguma forma de uma
unicidade, mesmo que imaginária.
As três grandes referências, segundo Alberti (2004), na adolescência ao Outro são: O Outro
da cultura, da metáfora paterna e do sexo.
“O adolescente é esse sujeito que escolhe sustentado na alienação ao Outro mas
inscrevendo, na relação com o Outro, a vertente da separação. O trabalho da adolescência
se inscreve na elaboração desse binômio: alienação e separação. Atravessá-la é também
suportar o fato humano de que somos todos alienados e, ao mesmo tempo, poder tirar
conseqüências absolutamente singulares dessa mesma alienação -e servir-se dela (p.65)”!
Segundo Matheus (2000), o adolescente procura distanciar-se do modelo familiar, buscando
na sociedade e na cultura, referências compartilhadas pelos seus pares de geração. Os ideais
de geração são a formação de compromisso entre a oposição e a reafirmação das referências
legadas pelas gerações precedentes e pelo momento histórico vivido pela sociedade a que
pertencem.
Esse sujeito adolescente faz parte, portanto parte de uma cultura. A cultura é
transgeracional, mas toda geração acrescenta algo seu à cultura. Como colocado no primeiro
capítulo deste trabalho, a adolescência provoca muito “barulho” na sociedade a que
pertence. Um dos trabalhos da adolescência é realmente este, provocar barulho, provocar
mudanças e fazer valer suas contribuições à sociedade.
Interessante pensarmos que existe, atualmente, um movimento onde a adolescência parece
ter perdido esse papel, sendo normatizada. O adolescente parece estar sendo sufocado
socialmente, não tendo lugar para colocar suas contribuições.
88
Para se operacionalizar qualquer mudança, é imprescindível que exista, dentro da cultura e
da sociedade de uma época, modelos e referências a que se possa questionar. A exemplo
disto, as determinações e características do regime econômico capitalista a que estamos
submetidos.
“(...) o discurso capitalista não dá nenhuma direção, não promove qualquer laço social, e
tampouco leva em conta a castração. Tudo deve ser passível de recuperação, nada pode ser
perdido, mas tudo deve ser sempre reaproveitado, e ninguém aí assume uma posição de
mestria frente ao adolescente (p.68)”.
O próprio adolescente não é visto como sujeito, sendo convocado a aproveitar, a comprar e a
promover mais usufruir. Cria-se a imagem, reforçada constantemente pela mídia e pelos
meios de comunicação, do adolescente ideal como sendo; o que consome e propõe o
consumo.
Ao mesmo tempo se atribui socialmente à adolescência, principalmente a marginalizada, o
estatuto de detentora da violência e da marginalidade ou de vítima, se uma organização
social. Uma questão que levantamos com o propósito reflexivo: será que esses estatutos não
têm sido oferecidos com o fim de suprimir quaisquer movimentos adolescentes que
provoquem modificações e questionamentos em relação à sociedade atual? Não cabe aqui
nos atermos a essa questão, mas sim levantarmos a hipótese de que esse pode ser um dos
usos da sociedade atual.
Alberti (1996) descreve que a pedagogia tomou de empréstimo o termo “adolescência”, na
tentativa de enquadrar uma juventude que lhe dava medo, mas que, ao mesmo tempo,
fascinava e seduzia. Critica a posição de alguns psicanalistas pós-freudianos, avaliando a
forma com que estes tratam teoricamente a adolescência, levantando a hipótese de haver
nestes, algo que os aproxima do uso teórico feito pela pedagogia.
Alberti (2004) acentua que, o enredamento promovido pela sociedade capitalista cria
condições para que o adolescente tenha dificuldades de se separar deste Outro social, a que
também pertence, diferenciando-se e singularizando-se neste processo.
“(..) discurso capitalista, aquele que foraclui
38
a perda, escamoteia a angústia de
38
Forclui, foraclusão (s.f) alemão: Verwerfung; francês: foraclusion. Segundo J. Lacan : “Falta que dá à
psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose”.In. Sobre uma questão preliminar a
89
castração... (p.67)”.
Nesta sociedade, a droga é muitas vezes usada pelo adolescente, por levá-lo a consumir um
gozo aparentemente fácil, onde a falta fica abafada, escamoteada. Muitas vezes, o
adolescente faz uso da droga na busca de ideais novos, na busca da separação do Outro.
Porém, quando o sujeito não se depara com a falta inerente a todos, também não se depara
com seus desejos: se não há falta, não há desejo.
A relação do sujeito com o Outro do sexo, colocada por Alberti (2004), diz respeito à falta
de referências no sujeito, para dar conta do sexo que não o dele, um aspecto onde é
impossível saber tudo; introduzindo um limite para o sujeito, que se referem à própria
experiência onde se desconhece como submeter o parceiro aos seus desejos bem como se os
seus desejos serão correspondidos.
“Quando se trata do encontro com o sexo, o que está em jogo sempre é o Outro sexo,
mesmo quando o sujeito prefere um parceiro do mesmo sexo. Isso porque o sexo implica
dois, ou seja, malgrado todas as fantasias de união e harmonia entre parceiros, na vida real
a coisa é sempre bastante diferente ...(p.69)”.
“O Outro sexo, com o qual o sujeito adolescente se encontrará é, finalmente, o nome da
coisa que separa toda sua experiência dos sonhos infantis, apontando nele sua
incompletude, determinando impossíveis, exigindo uma posição sexuada dependente de sua
maior ou menor coragem para enfrentar o seu destino de definitivamente humanizar-se”
(p.70).
O real do sexo é o encontro com a real impossibilidade do encontro sexual como encontro
complementar entre sujeitos; e compreende a descoberta da impossibilidade da completude
e da complementaridade através do encontro sexual. A promessa edípica de completude pela
posse do falo revela-se um ardil, não há possibilidade de um gozo pleno. Em Lacan, esse
encontro faltoso é a emergência do real, onde o sujeito deve assumir sua dimensão de falta.
todos tratamentos possíveis da psicose, 1957. O efeito radical da foraclusão sobre a estrutura deve-se não
apenas à mudança de lugar significante, mas igualmente ao estatuto primordial, daquele que é excluído; o pai
como símbolo significante do Nome-do-Pai ,cujo significado é correlativo é o da castração. (Chemama,
1995:79 e 80)”.
90
Capítulo IV: Análise do relato dos sujeitos entrevistados
Acreditamos que nosso papel, além de entrevistadora, foi o de depositária da história de
cada um desses sujeitos. Cada qual, de sua forma, falou sobre suas experiências e histórias
de vida, suas fantasias, suas raivas, contradições e percepções nas experiências vivenciadas.
4.1 - Primeira entrevista: caso N.
A primeira entrevista foi realizada com uma adolescente que permaneceu abrigada dos onze
aos dezoito anos de idade, passando por diversas instituições. Será nomeada aqui como N. e
encontrava-se, na data da entrevista, com 23 anos de idade. Tem pele negra, é expressiva e
comunicativa. Demonstrou, prontamente, interesse em participar deste trabalho, colocando-
se de forma bastante disponível: combinou dia, horário e local que seria melhor para ela e lá
estava no horário combinado. “Claro que posso participar, porque não? Tudo bem ser na
igreja? Porque fico lá direto”. A entrevistada recebeu a entrevistadora de forma afetuosa,
dizendo estar com saudades e participou ativamente da entrevista mantendo um discurso
praticamente ininterrupto.
Conhecemos N., ao trabalhar por três anos e seis meses em um abrigo do Estado,
conveniado com a Secretaria de Esportes e Turismo. Este abrigo era também conveniado ao
SOS Criança, recebendo encaminhamentos diretamente deste órgão e dos fóruns da cidade
de São Paulo. Caracterizava-se por ser misto, com adolescentes de doze a dezoito anos de
idade, chegando a abrigar, durante um período, o número de setenta e três adolescentes.
Ficou instalado por cinco anos em um espaço público, voltado ao esporte da cidade de São
Paulo e era mantido pelo Estado. Após cinco anos de existência, tornou-se uma ONG,
passando a estar somente sob responsabilidade de uma das Secretarias do Estado de São
Paulo, e tendo como responsável um dos gestores desta mesma secretaria.
91
N. viveu nesta instituição durante cinco anos. Em seu prontuário, constava que seu pai era
músico e fora assassinado quando N. tinha oito anos de idade, por motivo desconhecido. Na
mesma época, o irmão mais velho da adolescente, também foi assassinado. N. morava com a
mãe e a irmã mais velha, portadora de esquizofrenia. Quando tinha onze anos, a irmã, em
um suposto surto, matou a mãe a facadas. Sua irmã foi internada em um manicômio judicial
e N. foi morar com uma tia, mas não se adaptou. A tia levou-a ao Fórum que aencaminhou
para um abrigo.
Após um ano abrigada nesta última instituição, realizamos um trabalho de retorno da
adolescente à casa materna, pois esta não havia mais retornado ao local após a morte da mãe
e verbalizando ter muito medo. N. foi levada a esta casa, mas não conseguiu entrar, não
aceitando ir até a casa da tia e impedindo, inclusive, qualquer forma de comunicação com
esta.
N. solicitou, após dois anos, que retornássemos a casa materna e também à casa das tias. Na
época, participava de um projeto, através do abrigo, onde aprendeu a tocar violino e queria
convidar a tia para assisti-la em sua primeira apresentação pública. Foi à casa materna e se
deparou com os resquícios do assassinato e com muitos objetos que estavam intocados
desde a morte de sua mãe. A partir desta visita, e do que dela derivou, foi revisto seu
planejamento de vida, que passou a ter como prioridade seu retorno para a casa materna que
na maioridade passaria a ser dela. A pesquisadora participou deste processo que se iniciou
com a realização de uma grande limpeza nesta casa. Foi alugada uma caçamba e na data
marcada retornamos ao local. N. jogou vários móveis e objetos fora e passou a refletir sobre
a possibilidade de explorar aquele imóvel em benefício próprio, o que incluía ir lá morar
após completar dezoito anos de idade.
A pesquisadora foi transferida para o SOS Criança, não acompanhando o desligamento da
adolescente da instituição. O contato só veio a ser feito cinco anos depois, através do Orkut,
e combinamos realizar a entrevista em dia, local e horário confortável para ela. O local
marcado pela adolescente foi uma das sedes da igreja Universal A entrevista foi realizada no
dia 22.07.2006.
Ao chegar ao local, fui apresentada pela adolescente para a esposa do pastor: - “Essa é a
minha psicóloga, lá do orfanato onde eu morei”.
92
N. contou que era responsável por um grupo de jovens na igreja. A entrevista, que teve duas
horas de duração, foi realizada na sala que acontecem uns destes cursos, um dos quais ela
ministra em parceria com outros colegas. Trataram-na com respeito, chamando-a de obreira.
N. correspondia a todos com grande entusiasmo.
Pesquisadora: - Nossa! Quanto tempo!
N: - Quanto né?
Pesquisadora: - E aí, como você tá?
N: - Puxa eu tô bem. Encontrei Jesus. Tou aqui na igreja venho pra cá direto, menos quinta.
Faço um trabalho com a turminha do grupo de jovens, fazemos gincanas, campeonatos,
apresentações, viagens... Puxa, do pessoal lá do abrigo, às vezes falo com a S., o R.
trabalha comigo lá.
N: - Puxa, o cara, lá, do abrigo colocou a gente em uma pensão. Ficava o tempo todo
enchendo a gente: é vocês já tão quase com 18 anos, não vão embora, não? N., você não vai
embora? Vai pra casa da tua avó”. Casa da minha avó... Casa da minha avó nada, casa da
minha tia, cheia de gente, sem espaço pra mim... Ficava humilhando a gente, prá gente sair
fora. Daí um dia ele me irritou tanto que saí andando. Quando voltei, ele falou: você saiu
sem autorização, agora não pode voltar mais, acredita? Ele fazia isso de propósito com
todo mundo, enchia, enchia, quando a pessoa saía dizia que não podia voltar mais. Pois é,
daí falou que eu tinha que ir pra uma pensão, e que eles iam pagar. Me levou e levou mais
um monte de gente: a G., a R., lembra? Aquelas lá só se metiam em confusão. Eu acabei
ficando em um quarto que era da mulher da G., no fim saí de lá porque o cara parou de
pagar a pensão e deixou a gente lá. Eu não conseguia arrumar emprego, ganhava oitenta
reais do violino, mas oitenta reais não dá pra nada. Morria de fome.
A G. agora tá presa, sei lá o que ela fez, quando saí de lá fui pra casa da minha tia. Elas
um dia foram embora me largaram sozinha naquele lugar. Fui pra minha tia. Fazer o quê?
Bom, da turma do abrigo, a G. foi presa, o P. também e as meninas: a R., lembra da R.?
Então tá com filho. A V. também, a D., o M, esse pessoal é doido. Depois coloca o filho no
mundo e daí? Vai dar o que pra ele? O filho vai ser um igual a ele. Foi bom que arrumei
trabalho, o Dr. M (ex diretor do abrigo/ dono de uma empresa) é muito bom, trabalha prá
caramba o homem, nossa, esse trabalha, não para, incrível. A gente nem vê ele, muita
responsabilidade, naquela época não trabalhava, nunca tinha trabalhado, era só o dinheiro
do violino, não dava pra nada mesmo.
Igual, o filho vai pedir um tênis à mãe não vai ter como dar, a mãe pode até trabalhar, mas
o dinheiro não dá não. Eu, heim?!... Bom, então daí fui prá minha tia, minha avó que
93
morava com ela tava com a diabetes super alta e minha tia ajudou a matar ela. Minha avó
pedia suspiro pra ela e acredita que ela dava!? Dava cada sacão... Não era pra dar, mas
ela dava. Minha tia ajudou a matar minha vó, minha vó diabética, suspiro. Sacão de
suspiro, direto. Minha vó se esbaldava, se esbaldava. Ela dava só uns três, quatro prá mim
e prá minha prima e ó mandava pra dentro. Mas sabe do que ela morreu? De assadura.
Ela só ficava sentada, o dia todo. Passava um remédio, mas não adiantava. Ela tinha uma
perna amputada, daí amputou a outra, não saia mais da cadeira. Chamaram o resgate,
diabetes não cicatriza, aí começava a inchar a pela dela, ficava em carne viva. Foi pro
hospital com o resgate, chegou lá ele disseram que ela tinha que fazer uma plástica, só que
a diabetes dela tava super alta. Deram um remédio prá ela pra baixar a diabetes e ela não
resistiu e acabou morrendo.
Mas minha vó tinha quase noventa anos, era tão forte. Era racista a velhinha só porque
tinha olho azul, filha de português, né? Com a minha prima nem falava só porque ela era
mais negra, falava só comigo, e vó... Essa época eu não tava mais lá. Quando minha vó
morreu já tinha saído. Quando fiquei lá foi muito ruim, minha tia tava do mesmo jeito. Eu
saía, ela mexia nas minhas coisas, olhava tudo, minha agenda, minha comida, porque lá na
minha tia eu tinha que dividir tudo, se eu tinha uma bolacha tinha que dividir, e lá é muita
gente. Um dia ganhei oito bolachas, acabou tudo e eu nem comi. O pessoal da igreja fez
uma corrente que deu 2700 reais. Daí foi ótimo porque construíram um quartinho prá mim
lá fora. Dormia eu e a minha prima no quartinho, foi bom, isso foi bom. Mas é muita gente
minha tia, meus primos, os filhos dos meus primos, um banheiro, tudo apertado e a loca da
minha tia.
Mas daí arrumei emprego na M. Eu já tinha ligado pro Dr. M. algumas vezes, mas ai ele
sempre dizia não, não, não. Daí um dia vim prá igreja e pedi pra Jesus, liguei pra ele no
outro dia e consegui. Ele pediu prá eu ir lá fiz uma entrevista e ele disse: tem três meses de
experiência, se você não for bem, não vai ser efetivada. No fim fiquei um ano como
estagiária e tou lá há dois e pouco no total. Pedi prá Deus e fui atendida.
Comecei na administração e hoje tou tipo secretária do setor e aprendo coisa pra caramba
lá. Aprendi muito. Comecei num setor lá de cima e agora tou em outro bem melhor. Tou
contente e acho que eles também, sei lá. O Ronaldo também tá lá. Mas não falo muito com
ele porque eu ganhei um curso pela empresa e esse curso era longe da minha casa, falei prá
ele se podia dormir na dele esses dias e ele foi falando pro meu chefe que eu ia dormir na
casa dele. Não gostei, quê isso? As pessoas têm que saber da minha vida agora? Porquê ele
tinha que comentar? Dali prá cá não falei mais com ele. Dormi lá no Felipe, do ginásio.
94
Não continuei mais o violino, é muita coisa e é no horário do trabalho, não dá. Não é
porque conheço o Dr. M. que ele me trata com diferença, ele falou quando me contratou se
você não der certo aqui, já sabe. E ele é assim mesmo. Nem vejo muito ele -trabalha muito.
N: Trabalho lá e venho pra cá quase todos os dias, a pastora não deixa eu vir nas quintas,
fala que é demais. Saio, trabalho, venho pra cá e vou pra casa. Tou morando na minha
casa. Como as coisas mudam, mudaram depois que eu vim pra cá. Minha casa tá bonitinha
reformadinha, qualquer dia você tem que ir lá. Sabe o que eu queria? As minhas fotos
sumiram, quer dizer a dona G. pegou. Puxa, as fotos da gente lá no projeto, das viagens,
das tias, queria elas. Um dia ela vai me devolver.
Entram pessoas na sala e todas chamam a N. de obreira. Ela conta que coordena um grupo
de jovens da igreja. Que adora o que faz e que tem encontros todos os sábados e várias
atividades externas.
N: O violino eu não continuei mais, só o inglês que eu estudo. Fui para o abrigo em 96/97.
Como fui parar lá? É que meu pai morreu quando eu tinha oito anos, daí quando minha
irmã matou minha mãe, eu tinha uns onze anos, me tiraram de lá correndo depois foram me
explicar, minha irmã foi pro Juqueri e eu fiquei na casa de uns tios que me maltrataram
muito, tinha que dormir num colchão, no chão, só comia pão com manteiga, café com leite,
e foi um choque para mim. Não tinha uma fruta, um leite com chocolate, nada. “– Ah, se
quiser vai comer isso”. Diziam: “se quiser é isso que tem pra comer”. Fiquei muito mal,
com febre alta, desidratada, quase morri, fui parar no posto, mas pensa que alguém me
levou? Não, não, não, fui sozinha, me arrastando, fui a pé... Até o posto. Me deram um
monte de remédios para baixar a febre, para melhorar, e queriam que voltasse para lá.
Voltei e elas nem ligaram, disseram que eu não tinha nada de grave. Eu disse aqui eu não
vou ficar não. E daí a outra tia, a Aparecida, disse pra eu ficar na casa dela. Eu disse não
quero ficar na casa de nenhuma. Aí ela foi lá, dar entrada no juiz. Aí a assistente social
perguntou e eu disse: eu não quero ficar com nenhuma das duas. Ah, mas porque você não
quer? Adivinha... Porque elas são maravilhosas, me tratam muito bem, por isso que eu não
quero.
Do Fórum me mandaram prás C. de M. Nossa, cheguei lá, tomei um choque. Quando
cheguei lá todo mundo tinha que se vestir que nem freira. Credo. Minhas tias nunca vieram
me visitar. Elas batiam na gente, puxavam a orelha. Eu não queria ficar naquele lugar. Um
dia eu tomei um puxão de orelha lá, quase que me arrancaram... Fui prá lá em 97. Tinha
11/12 anos. Lá tinha tudo quanto era gente: tinha criança pequena, pequena mesmo. Eu
não quis morar na casa da minha tia porque em casa minha mãe me dava de tudo, de tudo
95
mesmo, tinha a melhor comida. Fiquei lá um mês. Fiz de tudo pra ir embora. Tentei fugir,
mas minhas fugas foram frustradas. Qualquer lugar era melhor do que lá. Quando daí
descobri que se aprontasse elas me mandavam embora, ah, é? Daí falei - se quem apronta
for embora, vou aprontar. Comecei a aprontar. Eu pensei, então vou aprontar todas, se der
vou até fugir, preferia morar na rua do que morar ali.
Todas minhas fugas foram frustradas Me esforcei, e fui expulsa. Achei o máximo! Daí elas
me levaram pro fórum e de lá me mandaram pra uma casa de passagem. No Jardim M. I.,
fiquei lá um mês, comecei a estudar, prá mim tava ótimo. Só que daí, uma vez comentei uma
coisa, brincando. Não planejava nada disso. Tava melhor lá, só que um dia disse que queria
pular da janela. A mulher, acho que ela levou muito ao pé da letra, era brincadeira. Tava a
educadora A., os meninos. Eu brinquei. Não tava com essa intenção. Aí pegou me mandou
embora de lá. E colocou na observação: que eu planejava me suicidar. Me mandaram
embora de lá. Aí não tinha lugar pra eu ficar, aí me mandaram pro SOS. As minhas tias não
me visitaram. “Ah, eu queria te visitar, mas não deu”. Fui transferida.
Quem nem, quando eu fui para o T., minhas tias não me visitavam. A tia C. ficou tão
nervosa, tão nervosa, que disse pra ela: ou você vem visitar a N. e levar ela prá passar o
Natal e ano novo aí ou vou levar isso pro juiz prá ele prender, vou levar no juiz prá te
prender porque ela é sobrinha de você, e você não tem consideração, falou um monte prá
ela. Levou, porque foi obrigada. Daí ela veio.
Daí eu nunca tinha ido lá no SOS Criança. Me entregaram lá, me levaram pra tomar
banho, lanchar, aí me deixaram lá, jogada. Fui dormir umas três horas da manhã. Eu tava
dormindo, quando era quatro da manhã, falaram: “vamo levantá, vamo pro abrigo. Vamo
pro abrigo, quatro horas da manhã. Nem me falaram nada, só me deram banho, lanche, só.
Me largaram, lá”.
As meninas grandes queriam me bater. “Essa é fresquinha, vamo bate nela!” Queriam me
bater. Eu fiquei lá, fugindo das meninas.
Aí me levaram lá pro DAR 1. Chego lá, daí lá gostaram de mim. Aí tinham umas pequenas,
daí logo, claro, fiz amizade com as meninas que eram da minha idade. Tinha tudo uns treze
anos. Mor penca, daí fiz amizade com elas. A gente não dormia junto com as meninas
grandes porque a gente tinha medo. Elas aprontavam, jogaram xixi na cara de uma menina.
Jogaram xixi na F.,uma menina que dormia com a gente, puseram ela pra dormir com a
gente. É, elas vão ver. Todas meninas pegaram uma garrafa, a gente cortô a garrafa, todo
mundo fez xixi na lá dentro. Pusemos assim: em cima da porta do quarto, se alguém
entrasse de madrugada, iam tomar um banho antes. Prá que... a gente não parou pra
96
pensar. Um litro de madrugada. Quem entra de manhã? A educadora prá acordar a gente.
Coitada... Ela já tinha tomado um banho de café com leite de manhã, porque tinha um
problema lá em baixo, coitada... Logo ela, ela ficou doida. A gente falou: tia desculpa. Não
era prá acertar a senhora. Explicamos, prá ela e ela entendeu, né? Mas teve que ir prá
casa, naquela situação não podia mais continuar, foi prá casa se trocou, voltou. Ela
morava perto, ela voltou.
Aí, tá bom, as meninas aprontavam muito. A S. inclusive pegou até meningite. Ela nadava
com a gente na caixa, d’água. Ninguém teve nada, mas a S. pegou meningite. Ficou três
meses internada. A S. era da mesma idade, né? Nadava eu, a S. e as meninas. A gente tava
lá nadando, na caixa d’água. Desde o DARI conheço a S. Era aquela bagunça. A gente
dormia lá em cima escondido, num lugar lá que todo mundo tinha medo de entrar. Só a
gente não tinha. Tinha um buraco, só a gente passava, também. Só a gente cabia. As
meninas grandona não passava, não. A gente entrava, aí dormia lá. Levava os cobertores,
fazia cama.
Ninguém percebia, ninguém. A gente fingia que ia pro quarto e ó. Colocava coisa assim na
cama, ficava lá em cima. A gente arrumava coisas prá comer. Ficava conversando
contando historinha. Isso que a gente fazia.
Aí, depois de lá, dividiram, falaram que era porque aquilo tudo de gente não ia dar. Aí
dividiram a gente por faixa etária. Quem tinha até 14 anos no máximo, ia pro PCA. Quem
tinha de 14 a 15 ia para o T., quem tinha de 16 ou 17 ia pro B. Ou ia pra V. M., aí
dividiram.
Aí fui pro PCA. Lá era legal. Aí, mas assim, não tinha perspectiva nenhuma, não podia
estudar, não podia, aí fiquei um tempão sem estudar. Fiquei no total uns três anos sem
estudar. Ninguém deixava, eu queria estudar. Aí eu repetia que queria estudar, que era a
melhor aluna da sala na 5
a
. série, quando tava na minha casa. Era a melhor aluna da sala
em todas as matérias. Quando depois fui pro P. continuei estudando era a melhor aluna da
sala, lembra? Passava direto. Até no feriado queria ir pra escola. Lembra? Na boa. Aí
depois a gente tava lá, não tinha perspectiva nenhuma, né? Não podia fazer nada. Só ficar
lá. Eu ficava o dia inteiro sem fazer nada.
Aí eu entrei no teatro. Aí eu fui levada à força para o teatro, fui fazer teatro. O tio educador
falou: coloca ela aí. Falei não, não quero. Vem, arrastaram o B. e o C., os dois tios, me
pegaram pelo braço e me arrastaram. Me levaram e fiquei lá emburrada. Os tios diziam
que eu tinha cara, que eu tinha pose de atriz. Aí eu comecei fazendo o teatro. Só que fui
começando a pegar os melhores papéis. Fui passando para vários papéis, tinha uns grandes
97
que perderam os papéis para mim, falavam: “N. faz isso aí!” Eu ia lá e fazia, e o pessoal
perdia o papel, os outros ficavam doidos comigo, eu que ganhava os prêmios de melhor
atriz. Até a Globo queria me contratar para ser atriz, pra fazer novela. Isso é sério.
Não sei se a senhora se lembra de uma atriz, C.? O R. e a C. faziam teatro, a gente fazia. O
diretor de novela da Globo, que tem aquela atriz americana, daí, ele falou nossa vou levar
eles pra fazer novela lá no Rio. Veio ver a gente e tudo. Tá deixou tudo pronto pra gente ir
pro Rio, a gente não conseguiu autorização para sair do abrigo. Prá gravar na novela.
Tinha um cara que veio fazer um teste, a gente fez. Deram tipo uns 50 reais, no teste. Assim,
só prá tipo, pela participação. Muito engraçado, foi legal. Apresentei naquele Bibi
Ferreira, no Sérgio Cardoso. Foi muito legal.
Daí.Mudou a direção do SOS Criança, mudou pra R.. Não era mais P. Aí entrou a R.
Mandou as tias embora e mandou trancar a gente lá no orfanato. Não podia ir pra canto
nenhum. A gente ficou semana trancada sem poder fazer curso, nem no SOS Criança.
Ficamos trancadas, sem fazer nada.
Daí fui transferida pro T., aí fiquei lá. No T. foi legal por que estudava. No T. podia
estudar. Agora, a diretora de lá pôs todo mundo prá estudar. Mesmo que ela era brava, eu
gostava. Uma vez lembro que tava com preguiça, uma vez só. Nunca faltei na escola de
bobeira, era a melhor aluna da sala, uma vez só que tava com preguiça. Tava com muito
sono, nossa. Ela me deixou de castigo o dia inteiro. Nossa. Tive até uma vez um pesadelo
com ela. Mas ela era legal. Me dava todos os materiais, por fora, né? Por que o abrigo não
dava nada. Tinha que dar, às vezes, a parte, porque o orfanato não cobria. E ela que dava
os materiais que a escola pedia. Era uma escola boa, uma região boa, escola boa. Aí
comecei a estudar lá.
Do T. fui pro I, no P.(abrigo). Fiquei quatro e pouco lá, quase cinco anos. Cheguei lá tinha
acabado de fazer quinze. Quer dizer, fiquei total até quase até os dezenove anos, no total.
Não posso reclamar de lá. Tinha a professora que dava aula de inglês e coral, aprendi
muito com ela. Às vezes, combino de ir na casa dela, mas acabo não indo. Não consigo, não
tenho tempo.
Aí, bom, foi um lugar que aprendi mais as coisas, foi lá que aprendi inglês, consegui fazer
violino, é, foi lá que eu consegui estudar, mas não acabei porque a T. (coordenadora em
uma época), me atrapalhou. Fiz até 1
o
. até o toco, passei para o 2
o
. Vou ver se faço um
curso por aqui de final de semana e acabo. Vou lá sábado que vem. É só mais um ano e
meio. Não tenho ânimo pra ir. Fico tão cansada a semana inteira. Tenho que fazer. Agora,
agora, não tenho mais ânimo nenhum. Não tenho pique, não dá, trabalho a semana toda,
98
fico cansada. Lá era muito legal... Legal, o problema nem é tanto o lugar. Mas quem cuida
do lugar, exatamente quem cuida não sabe das coisas que acontece, só sabe quem está por
dentro, quem tá direto é quem sabe. De um plantão pro outro tem muita diferença.
Acontecia muita diferença. Por exemplo, tinha umas meninas lá, que gostava do plantão de
tal tia. Ah, aquele plantão era maravilhoso. O conjunto de plantão tinha uma coisa, assim...
O plantão da tia G. era um plantão pesado. Ninguém gostava. O problema não era tanto
ela, mas o grupo. Ela era chefe do plantão, mas aí tinha B. que humilhava todo mundo.
Aquela B., e aquela magrela C., ninguém gostava. Tinha uma turminha lá que só Deus. Aí
já, o outro plantão, tinha umas tias legais, mas tem sempre, tinha uma que atrapalhava.
Tinha aquela tia M., aquela velhinha. Aquela mulher era doida, doida, aquela tia. (risos). A
gente ria dela, ela não ficava humilhando ninguém, nada disso, é que ela pegava muito no
pé. Mas o pior plantão que passou, era o dessa B. A B., credo, tem uns funcionários...
A tia da cozinha queria bater nela, a M. tadinha da tia M., lembra do dia que ela se
queimou? Foi sem querer, aconteceu. Aí queimou tudo, ela saiu correndo pelo corredor,
pegou a roupa do varal, passava no rosto, eu vi, queimou o rosto dela todo. Foi sem querer
foi o tio A. Pegou também numa tia de cabelão, não lembro o nome. Foi sem querer. O
pessoal se matando lá no churrasco por causa de carne. Daqui a pouco só vi neguinho
correndo e o cabelo de todo mundo queimado. Queimou tudo, o cabelo de todo mundo. Eu
vi a tia correndo. Todo mundo saiu correndo para ver o que tinha acontecido, a tia pegou a
roupa do varal, passou assim no rosto, e a pele saindo, a pele saindo, todo mundo correu
atrás dela pra ver o que tinha acontecido. E ela: AAAAAHHHHH! Começou a gritar.
Peguei o maior susto, caiu tudo, a pele do rosto, para apagar o fogo. Foi horrível. Ela
queimou só um pouco o cabelo, mas foi terrível. Foi horrível, horrível. Foi terrível aquele
dia. Comi só umas bananas e fui no hospital ver ela. A ida pro abrigo, dependendo, é
terrível. Já é um choque. Totalmente diferente do que a pessoa tá acostumada, pelo menos
do que eu tava.
Dependendo da pessoa que vai para o abrigo, dependendo do abrigo, dependendo de quem
cuida, das pessoas que trabalham. A gente que tá lá que sabe... Uma coisa é certa, muito
certa, dependendo muito da pessoa que tá no abrigo, depende muito da pessoa, o caráter
dela e depende de quem cuida, de tudo isso depende o abrigo e como a pessoa vai ficar.
Depende não diretamente do responsável, mas dos subordinados, que cuidam diretamente
dessas crianças. Acho que não dá pra quem cuida misturar seus problemas psicológicos, do
tipo, quem teve depressão. Esse tipo de pessoa é a pior pessoa prá cuidar dos outros. Uma
porque ela tá estressada, tem que ser uma pessoa forte, uma pessoa forte prá cuidar dessas
99
crianças, porque a própria pessoa emotiva atrapalha. Atrapalha muito. Porque ela não vai
entender o que aquela criança vai querer, qual é a necessidade, ela não entende, elas
falam: mas meu filho em casa não tem o que você tem aqui. Meu filho não tem o que vocês
têm aqui, tá bom, e daí? O que tem a ver uma coisa com a outra? Tem pai e mãe pra dar
amor e pra dar carinho. Não dá, não pode ser uma pessoa emotiva pra trabalhar. Não
pode. E também a pessoa que trabalha lá, ela não pode ser do tipo assim, como posso
explicar... Ah, que nem o tio E., não pode ser uma pessoa, que pensa só no dinheiro, que só
que saber de receber, tem que trabalhar e dar o melhor dela independente do que seja.
Principalmente porque tá tratando com seres humanos que estão sofridos. Como se fossem
esfaqueados. Tá cuidando daqueles esfaqueados. Então...Pro funcionário dar mais
facadas? Não, o funcionário tá lá pra ajudar a cuidar das feridas. Muitas das vezes eles
dão mais facada ainda. A criança que estão lá se sente pior, pior. Eu acho que as pessoas
que fumam também não deviam trabalhar lá. Porque eles induzem as crianças a fumarem,
que nem a tia C. ela fumava e dava cigarro prá L., aí a L. não parava porque a tia dava
cigarro. A tia ajudava, dava cigarro escondido pra ela. Ou seja, tava até levando a menina
pro vício. Tá certo, a menina já tinha o vício, já tinha, mas a senhora não concorda, que se
a pessoa, por exemplo, tem que ter um espelho. O funcionário é um espelho, o abrigado
tem que olhar pro funcionário de dizer assim: eu quero ser assim! Aí ele tá ajudando e tá
ajudando lá na frente. Ele vai querer ser um cidadão, ele vai se espelhar. Agora, se ele não
tem em quem se espelhar...e geralmente puxa pelo lado negativo. A tendência é essa, ir pro
negativo. É muito pouco que se escapa. São poucos.
Pesquisadora: - Escapar do que?
N: - Da vida... São poucos... Muitos se acabam, se entregam. Ou senão começam a ter filho
adoidado. Não tem nem condições de criar, é doloroso, imagina, por exemplo, não tô
julgando ninguém, mas o que a R. vai poder oferecer pros filhos dela? O que vai dar pra
eles? Hoje eles são crianças pequenas, mas e depois? Amanhã vai querer um tênis, e daí? E
vão querer o mais caro porque os amiguinhos da escola vão ter. E aí? Criança é criança,
vai querer igual aos amiguinhos, não vai entender. A R. trabalha mas o tanto que
ganha...,não dá. Amanhã, ela vai ver danoninho na casa dos outros, vai querer, e aí.
Criança é criança vai querer. Eu sei porque fui criança faz pouco tempo. A pessoa quer e
cabou, é criança.
Mas falando de novo do abrigo prá melhorar, quem trabalha tem que tá realmente
capacitado prá ajudar o outro. Sabe, antes de colocar aquela pessoa prá trabalhar lá tem
que ver a vida de cada um. Como ela é em casa. Como ela é com os parentes. Se ela é muito
100
nervosa, estourada, se ela tem respeito com as crianças dos outros, não só a dela. Vê se ela
sabe cuidar das crianças dos outros, dos vizinhos. Com certeza, se ela tá tratando mal,
como é o relacionamento dela com as crianças dos outros, com os vizinhos, tem que saber
tudo isso prá contratar, na minha opinião.
Tem que ser capacitada pra tá lá senão faz isso, tinha os bons funcionários e tinha os
perebas. Tinha os perebas da vida. Que ajudava a dar mais facada. Ao invés de levantar.
Trabalhavam só por causa do dinheiro, dinheiro, bolsinho cheio todo mês. Tinha gente que
falava assim: ó a gente aqui cuidando desses marginais, que nem a gente ouvia falar.
Ninguém é marginal, a gente não era marginal, marginal era quem tava chamando a
gente. Ninguém era marginal, ninguém tava lá porque escolheu. Até porque, se tivesse que
escolher não taria. Ninguém escolheu pra tá naquela situação.Lembra daquela educadora a
C.? Nossa, ela adorava me humilhar.
Sabia que eu cheguei até a procurar minha irmã. Queria ajudar ela. Hoje eu já tenho uma
estrutura pra chegar nela. Com certeza gostaria de ajudar. Não tenho ódio, não tenho
mágoa, muito pelo contrário porque se parar prá pensar. Sei que ela nunca vai ter paz na
vida, a vida inteira vai martela na cabeça dela o que ela fez, vai carregar isso a vida
inteira. Disseram que ela tá curada. Ela vai ficar com essa dor, guardar isso a vida intera,
na mente dela. Você matou, você é assassina. Isso vai ficar na mente dela. Ela nunca vai ter
paz. Por mais que ela venha, por exemplo, aqui, se concerta não adianta isso vai tá dentro
dela.
Eu, hoje tenho vários amigos aqui na igreja, a pastora me proibiu de vir aqui às quintas-
feiras, por que ela diz que todos os dias é demais. Minha vida é isso, me ajudou muito.
Tenho uma estrutura. Gosto de trabalhar lá na M aprendi muito, muito mesmo e ainda
tenho muito pra aprender. Como as coisas mudam, consegui ir morar na minha casa que tá
reformadinha. Um dia você tem que ir lá.
Namorado eu não tenho. Precisa Deus me mostrar e mostrar para o outro. Aqui é diferente,
se Deus permitir, nós vamos começar a se gostar. Eu nunca fiz aquilo lá não. Deus me livre.
Por aqui é só depois que casar, daí sim. Credo. Tenho uma reunião prá ir agora.
Ah, ainda tou indo naquele médico do regime, lembra? Ele pega no meu pé. Tou indo lá de
quinze em quinze dias. Olha, eu como ou uma bolacha de sal, ou um pão light, como tudo
light. Ah, o médico é legal, só é chato que ele vive pedindo pra fazer um monte de exames.
Hoje comi queijo com bolacha no café, almocei normal salada, arroz, um pouco e carne só
frita, sem nada e uma fruta. Agora à tarde tomo um chá, uma fruta e a noite janto, acho que
nessa semana perdi uns cinco quilos, sem brincadeira. Tenho que ir já tou atrasada. Nossa
101
tava com saudades, me convida pra almoçar um dia na sua casa, quando acabar o regime.
Você sabe o que eu gosto. Pior que sou maior fresca pra comer, mas adoro doce.
Adoro aqui, sabia ? Puxa quem sabe um dia você não vem também pra cá. A gente faz tanta
coisa junto: viaja, apresenta peça, faz oração, adoro esse lugar. Às vezes, vejo o pessoal do
abrigo, vou falar que vi você. Lembra do M.P. também tá com filho. Te falei?
4.1.1 - Considerações teóricas sobre o caso N.
O fato de a pesquisadora ter tido contato com N., durante seu abrigamento permitiu o
estabelecimento de uma transferência que parece ter favorecido a realização da entrevista.
N. nos apresentou para a pastora da igreja como: “Essa é a minha psicóloga, lá do orfanato
onde eu morei”.
Descreve sua ida para o abrigo como conseqüência da desestruturação de sua família
nuclear, após o assassinato de sua mãe, quando sua irmã, portadora de esquizofrenia,
assassinou sua mãe à facadas. Antes de ser abrigada, foi levada para a casa de uma tia; na
época encontrava-se com onze anos - idade correspondente à entrada do sujeito na
puberdade. Como coloca Lacan, a família é constituinte da ordem de uma especificidade e
um compartilhamento que se diferencia de todos os fenômenos sociais. O fato de N. não ter
encontrado referências na família extensiva, nem formações de aliança que a auxiliassem
frente a esta vivência, acarretou a busca de outro espaço que a acolhesse. Nesta
circunstância, N. e a família recorreram ao Fórum.
“Do fórum me mandaram pras C. de M. Nossa, cheguei lá tomei um choque”.(...) “A ida
pro abrigo, dependendo, é terrível. Já é um choque. Totalmente diferente do que a pessoa
tá acostumada, pelo menos que eu tava”.
No discurso de N., o significante “choque” evidencia o fato de ter se defrontado com outros
valores na casa de sua tia, a ruptura abrupta e violenta do núcleo família, assim como seu
ingresso na instituição.
102
É importante destacar o quanto o atendimento oferecido por esta primeira casa, para a qual
N. foi encaminhada, funcionava nos moldes dos grandes internatos
39
, não atendendo às
normatizações estipuladas pelo ECA desde 1990.
N. não se adaptou e foi encaminhada para uma casa de passagem, onde permaneceu por um
curto período, devido a uma situação em que a adolescente relata ter “brincado que iria se
suicidar”. A instituição lidou com este fato de forma concreta, pois, frente ao temor de que a
adolescente pudesse vir a passar ao ato, encaminhou-a para outro serviço (SOS Criança).
No relato deste episódio N. não fez referência a qualquer escuta de seu sofrimento.
Poderíamos dizer que algo apontava para uma demanda de ser olhada, escutada e de
verificar o quanto se fazia presente no desejo do Outro (no caso, as educadoras).
Concomitante, o “brincar de se suicidar” estaria relacionado a uma tentativa de evitar a
angústia, desaparecendo, sumindo do mundo e da nova situação que se configurava.
Alberti (1996) afirma que a tentativa de suicídio, na infância e na adolescência, implica
sempre em um apelo ao Outro, não se constituindo como uma pura passagem ao ato.
Denota, sempre, uma dificuldade no relacionamento, algo que passou despercebido ao
Outro: N. não chegou a tentar o suicídio, mas o “brincar sobre” indica estar relacionado a
este apelo ao Outro.
Nesta sucessão de encaminhamentos, N. não teve nenhuma sustentação da família, em sua
travessia pelos abrigos. Descreve seu encaminhamento para o SOS (Unidade Central de
Triagem do Estado), como um atendimento em que inexistia qualquer atenção aos aspectos
subjetivos do sujeito atendido. Este serviço a encaminhou para um dos abrigos conveniados.
Esta foi a quarta instituição para onde foi encaminhada e, pela primeira vez, faz referência
ao estabelecimento de laços com outros pares. Este fato parece tê-la fortalecido: passou a
reagir frente às dificuldades encontradas, utilizando-se de recursos próprios para sentir-se
menos ameaçada e construindo condições que a fizessem mais acolhida.
Em seguida, é transferida para outro abrigo conveniado. Nesta casa, contraditoriamente ao
que se inscreve no ECA
40
, não existiam atividades de co-educação, imperando a ociosidade.
40
Artigo 92.
103
O Estado, responsável por este serviço, mostrou-se falho em relação à preservação dos
direitos dos adolescentes que se encontravam sob sua tutela.
Apesar do ECA inscrever que devem ser evitadas recorrentes transferências, N. relata a
quinta em um curto período de tempo. Não há trabalho algum que considere os laços
estabelecidos nos abrigos.
Em seu relato, emerge o significante orfanato ao fazer referência ao abrigo, que sugere sua
condição de orfandade.
Nesta nova casa-abrigo foi efetuado contato com a família, concretizando o que se inscreve
no ECA: o abrigo deve preservar e reintegrar o vínculo do adolescente com a família. Este
contato, porém, foi efetivado de forma totalmente imprópria, com ameaças e mentiras. A
ação desta profissional está sustentada na ideologia que culpabiliza a família pelo
abrigamento do adolescente.
Fica presente no discurso de N., em vários momentos, a referência aos estudos como algo
que a identifica em sua história de vida, indicando a importância de retomá-los. N. se
deparou, pela primeira vez em sua vivência institucional, com a escuta a um desejo por ela
expresso, estabelecendo um laço significativo com a diretora que a atendeu. Esse
investimento afetivo no âmbito institucional foi algo novo para N., porém ocorreu nova
transferência para um sexto abrigo, onde permaneceu até ser desabrigada.
As recorrentes transferências e a descontinuidade no atendimento provocam uma série de
desorganizações de ordem objetiva e subjetiva. N. ficou à mercê das políticas públicas, o
que se efetivou no cumprimento da lei, sem levar em conta o sujeito abrigado. Em relação
aos aspectos subjetivos não parece haver, no âmbito institucional, a valorização dos laços
estabelecidos, sejam estes com outros pares ou com os profissionais que atuam nestas
instituições. Frente às recorrentes transferências e os períodos sem freqüentar a escola, N.
não conseguiu finalizar os estudos.
Na sexta casa-abrigo, N. encontrou novas referências e estabeleceu novos laços, alguns dos
quais mantém até a atualidade. Este abrigo foi o que a acolheu por um período mais longo.
104
Relata ter feito cursos de capacitação (o que vem ao encontro do que se inscreve na lei do
ECA), que possibilitaram que fosse vista de forma diferenciada.
N.foi abrigada, na idade correspondente à adolescência: momento da maturação genital
aliada a uma atualização do saber inconsciente, com a reativação do Complexo de Édipo em
seus desdobramentos. Segundo Alberti (1996) a adolescência coloca em questão o
Simbólico
41
que, até então, dava conta de todo o questionamento do sujeito. Diante disto o
adolescente terá duas opções: questionar o Simbólico ou evitar esta questão.
N. refere-se, de diversas formas, à importância dos educadores na sustentação deste
processo que envolve o adolescer. Alberti (2004) coloca como fundamental a transmissão de
direções e indicativos ao longo de todo o processo adolescente, enfatizando a necessidade de
que haja quem os transmita.
Ao descrever sobre o educador, N. revela diferenças de atendimentos e falta de ações coesas
nos diferentes plantões. O significante humilhação emerge na cadeia discursiva, indicando a
ação de alguns educadores frente a ela. Anteriormente, fizera uso deste significante ao
descrever atitudes das tias dirigidas a ela.
N. insiste na necessidade de um Outro que cuide, que sustente o desenrolar do adolescer: ao
descrever o ideal de funcionário, indica que muitos destes não foram capazes de lhe oferecer
o que necessitava, não da ordem do objetivo, mas sim da ordem do afetivo. No caso de
adolescentes abrigados, esse trabalho exige disponibilidade e capacidades específicas.
“Principalmente, porque tá tratando com seres humanos que estão sofridos. Como se
fossem esfaqueados. Tá cuidando desses esfaqueados. Então... pro funcionário dar mais
facadas? Não, o funcionário tá prá cuidar das feridas. Muitas vezes dão mais facadas
ainda”.
Os significantes esfaqueados”, “dar mais facadas” e “cuidar das feridas são portadores
de vivências traumáticas por ela experimentadas, apontando para uma possível reedição
41
(alem.:symbolische; fr.: symbolique; ing.: symbolic). “Função complexa e latente que envolve toda a
atividade humana, comportando uma parte consciente e outra inconsciente, ligadas à função da linguagem, e
105
desse horror: a mãe esfaqueada. Remete à ação de alguns educadores, na relação com os
abrigados, à medida que estes não se mostram capazes de acolher e de “cuidar de suas
feridas”.
“(...), mas a senhora não concorda que, se a pessoa, por exemplo, tem que ser um espelho.
O funcionário é um espelho... o abrigado tem que olhar pro funcionário e dizer assim: eu
quero ser assim”!
N. fala da necessidade de haver, dentro do âmbito institucional, referências que ofereçam a
possibilidade de espelhamento. A função do espelho, aqui, aparece no campo das
identificações. Parece-nos que N. buscava nos educadores um suporte, um reconhecimento
do Outro em relação a ela.
“Tinha gente que falava assim: - ó a gente aqui cuidando desses marginais, que nem a
gente ouvia falar. Ninguém é marginal, a gente não era marginal, marginal era quem tava
chamando a gente. Ninguém era marginal, ninguém tava lá porque escolheu. Até porque, se
tivesse que escolher, não taria. Ninguém escolheu pra tá naquela situação”.
O discurso do profissional aparece contaminado pela ideologia em que: o adolescente de
classes populares que recorre ao abrigamento é marginal. Esta posição de alguns
profissionais incide de forma negativa na subjetividade dos abrigados. Mas N., pelos
recursos que simbolicamente possuía, não se identificou com o lugar de marginal a ela
oferecido.
Um outro aspecto, evidenciado em seu discurso, é o uso perverso das regras por parte do
abrigo, materializado na atitude do coordenador que provocou uma saída da adolescente,
sem autorização da casa, e depois, não permitiu seu retorno, justificando não ter autorizado
esta saída.
N. descreve o processo de seu desabrigamento como algo imposto, para o qual estava
despreparada. Este foi efetivado de forma simplista, indicando a precariedade do trabalho
técnico na presença de questões normativas, dentro do âmbito institucional. Esta forma de
atuação desconsidera as particularidades dos adolescentes e de suas histórias de vida.
mais especialmente, à do significante. (...) Reconheceu-se seu princípio como o que organiza, de forma
subjacente, as formas predominantes do imaginário.( Chemama, 1995:199).”
106
O desabrigamento não foi trabalhado de forma a lhe dar condições para sustentar essa
experiência sozinha, pois não poderia, nem afetiva, nem materialmente, recorrer aos
familiares ou aos outros pares.
Na adolescência, há a confrontação do sujeito com o desamparo fundamental em que o
Outro não mais o protege. Frente a esta vivência, N. escolhe retornar para a casa da tia e
recorre à igreja, espaço diferenciado do familiar, onde se depara com outras referências que
a sustentam material e psiquicamente.
Coerentemente com o adolescer, N. recorre a referências e laços estabelecidos, quando
esteve abrigada, como os que estabeleceu com o ex-diretor. Este pai idealizado lhe atribui
um lugar diferenciado na sociedade: o de trabalhadora, onde a trata como alguém capaz, não
a discriminando. Diferentemente do que lhe foi dado na família e nos abrigos, este lugar
simbólico oferece a possibilidade de N. fazer suas escolhas, utilizando os recursos que
possui. Alberti (2004) descreve que, ao distanciar-se das figuras parentais, o sujeito se
identifica com outras figuras de autoridade. N. encontra essa referência neste pai idealizado.
N. institui dois pais idealizados (Dr. M., materializado no ex-diretor, e Jesus) por quem se
reconhece escutada, atendida e sustentada, neste momento de sua vida.
Passa a freqüentar a igreja diariamente, como um ritual obsessivo. Esta assume uma função
estruturante, para além do pai da realidade, um pai simbólico que a acolhe: é reconhecida e
se relaciona com outros pares. Com essas referências, N. retorna à sua casa de origem.
Coordena um grupo de jovens da igreja, dizendo adorar o que faz. Demonstra vontade de ter
suas fotos, de rever sua história, da qual o abrigamento faz parte por esta via dos laços
estabelecidos.
Faz referência aos pares com quem compartilhou a experiência de abrigamento,
diferenciando-se daqueles com quem não encontra identificação. Seu discurso é permeado
de por menções ao fato de ela e de seus pares pertencerem a uma classe social menos
favorecida economicamente. Como discorre Alberti (2004), a adolescência é um trabalho
singular de elaboração de escolhas e da falta no Outro, momento subjetivo em que as
referências primárias têm um papel fundamental. Acreditamos que N. pôde vivenciar os
processos fundamentais e estruturantes da constituição psíquica, no âmbito de sua família
107
nuclear, os quais lhe ofereceram condições para sobreviver psiquicamente, nesta sua
travessia pelo abrigamento.
“Eu sei, porque fui criança faz pouco tempo. A pessoa quer e cabou, é criança”. Ao se
identificar como criança que foi, podemos entender que se considerava um sujeito desejante.
Hoje, enquanto adulta, podemos interrogar como se situa em relação ao seu desejo.
O transcorrer de seu processo de adolescência sugere não ter sido suficiente, para que N.
resolvesse satisfatoriamente as questões relacionadas à sua sexualidade. Alberti (2004) fala
da necessidade do sujeito adolescente construir suas próprias referências, o que inclui a
identificação e a escolha sexual: o encontro com o Outro sexo leva também a desconstrução
de ideais já existentes.
O que é chamado de separação dos pais, na adolescência, é um movimento que implica,
primeiramente, na incorporação dos pais através de uma identificação com os mesmos;
estes, internalizados, passam a integrar o supereu, herdeiro do Complexo de Édipo. Segundo
Alberti (1996): “A dificuldade da adolescência dependeria, então, da própria ferocidade
desse supereu que, quanto mais terrível, tanto maiores as dificuldades do sujeito, maiores
os conflitos que teria, sobretudo no que diz respeito ao campo de sua sexualidade, ao
campo do desejo que, de uma forma ou outra, é sempre sexual (p.34)”.
Para N., o encontro com Outro sexo deve ser autorizado pelo pai maior – Deus. Demonstra
que, apesar do Nome-do-Pai estar para ela representado pela igreja como a barra, a lei, a
castração, esta ainda é precária. Isto se evidencia pela dificuldade em aproximar-se do que é
da ordem do sexual: espera que “Deus me livre”. Assim, filia-se de forma obsessiva aos
rituais religiosos, não havendo espaço para o que é da ordem do desejo. Quando fala que
Deus teria “que me mostrar e mostrar para o outro” para que possa relacionar-se, indica
precisar da mediação do Pai onipotente para se exercer como mulher.
4.2 - Segunda entrevista: caso M.
A segunda entrevista foi realizada no dia 02.08.2007, com M., na época, com de 21 anos de
idade. Esta aceitou participar desta pesquisa prontamente, porém foi muito difícil
marcarmos local, data e horário. Passaram-se semanas até que ela conseguiu marcar o dia da
108
semana e o horário. O local, a princípio, foi um empecilho, até a adolescente deixar claro
que preferia que a entrevistadora decidisse onde esta seria realizada. Ficou combinado que a
entrevista seria realizada no consultório da pesquisadora.
Após um mês do primeiro contato, realizamos a entrevista. Todos os contatos foram
realizados via e-mail. Na data da entrevista, M. atrasou vinte minutos. Quando nos
encontramos, a adolescente disse que havia chegado antes do horário, no local combinado, e
decidiu que, ao invés de aguardar, iría pegar um ônibus e dar uma volta para o tempo passar:
“só para não ficar esperando, dei uma volta a mais de ônibus” - disse ela. Demonstrou
alegria em rever a entrevistadora, mas parecia apreensiva, demonstrando evidente
ambigüidade. Ambas não se viam e não mantinham contato há cinco anos.
A adolescente também pertencia ao abrigo aonde a pesquisadora trabalhou, permanecendo
durante quatro anos nesta instituição. Assim como no caso de N., a entrevistadora não
acompanhou o desligamento de M. da instituição, sendo transferida antes da ocorrência
deste fato.
O histórico familiar (conhecido pela pesquisadora ao trabalhar na instituição) foi
reproduzido na entrevista através do discurso da entrevistada: a este, foram acrescidos
detalhes desconhecidos pela pesquisadora até então.
Em seu histórico familiar, constava que sua mãe era casada com seu pai e juntos tinham
quatro filhos. Quando M. tinha três anos de idade, seu pai faleceu, por motivo que a
adolescente desconhece. A família morava no Nordeste. A mãe trouxe M. e seu irmão mais
velho para São Paulo, deixando os dois filhos menores com parentes próximos. Após sua
vinda para São Paulo, M. não teve mais contato com esses irmãos. A mãe de M. casou-se
novamente. Quando M. tinha seis anos de idade, o padrasto matou sua mãe. Logo em
seguida, juntou-se com outra companheira, levando M. e o irmão para morarem com eles.
Essa nova companheira maltratava-os. O irmão de M. fugiu de casa, quando tinha 12 anos e
M., com a mesma idade, fugiu também. O padrasto, nesta época, já se encontrava preso,
devido ao assassinato da mãe de M.
109
Iniciou a entrevista, discorrendo sobre os acontecimentos, desde sua última saída da
instituição, parecendo estar ainda muito mobilizada por tudo que vivenciou.
M: Nossa quanto tempo, caramba!!!
Pesquisadora:- É mesmo, bastante. Como você está?
M: Tô bem, agora tô melhor. Nossa, a senhora não viu quando me levaram pra pensão.
Gente, eu não sabia nem fazer um arroz. Fui fazer um arroz com salsicha e ficou: em cima-
sequinho, em baixo -uma água só. (risos). Essa foi uma deficiência lá do projeto. Eu não
tinha noção de como cozinhar, ai, ai... A senhora não acompanhou, já não tava mais lá.
Um dia, eu cheguei da escola e, quando cheguei em casa, fui pro meu quarto. Quando olhei,
minhas coisas não estavam mais lá. Daí, nem esperaram eu almoçar, nada. Olhei nos
armários, nas minhas coisas, tinham pegado tudo, nem sei como. Me chamaram na sala
daquele E. e falaram: - Olha, você sabe que nós vamos mudar e que, no novo lugar, o que
vai valer é outra faixa etária, então nós vamos te levar embora. Você vai pra uma pensão.
Que??!!! Pegaram em mim e falaram: - Bom, vamos descer que suas coisas tão no carro. –
Fui ver, minhas coisas tavam dentro da perua, tudo.
Eu fui a primeira de todas a ser levada. Nossa, aquele E. foi comigo, a gente andou, andou,
uns lugares que eu nem sabia, nem nunca tinha visto. Me deixaram lá. Ninguém falou
comigo, me avisou antes, nada.
Cheguei, lá me deixaram; me apresentou a mulher da pensão, que era em O. e disse que ia
pagar por seis meses. Pagar nada, tinha que ficar ligando prá ele, pedindo prá ele pagar.
Prá falar a verdade, ele pagou uns quatro meses, nos dois últimos meses eu que paguei,
ainda bem que tinha a E. (trabalho).
Aliás, porque eu tava lá na E. que ele me levou antes. Mas lá, outro dia teve uma festa lá
com o pessoal, legal mesmo. A E. que me salvo, porque eu almoçava lá, ganhava os passes
e uma ajuda de custo.
Depois levaram a L., que ficou lá comigo. Daí a gente foi conhecendo, fazendo amizade
com as outras meninas da pensão. Mas no começo foi horrível, horrível mesmo. Nossa, e o
primeiro dia que fui pra escola sozinha? Gente, eu não tava acostumada a acordar sozinha.
De repente, não tinha ninguém pra me acordar e eu continuei estudando, estudei até o fim.
Imagine, a escola ficou a mesma, ninguém mudou; aí eu tinha que sair de O. e ir até o C.
(bairro) prá depois sair de lá e ir para a E.( trabalho) que era em S.
110
Fiquei três anos na E., já tava fazendo pós-graduação. O pessoal de lá me zoava: EEEE,
M., tá fazendo pós aqui, é? Fiquei uns seis meses indo na escola; era muito longe. Nossa, eu
chorava dia e noite, chorava...
Quando a L. foi pra lá, foi mais fácil prá ela, eu já sabia como era, expliquei prá ela... já
sabia fazer arroz com salsicha (risos). Daí eu mostrei tudo pra ela. Ensinei. Ela também
tava na E. Isso era bom, eu gosto pra caramba da L. Ás vezes, é duro conviver assim junto,
mas eu sou fácil, sou quieta, fico na minha. Uma época, morei também com a G., na mesma
pensão. Daí, depois fui estudar no outro ano perto da E., aí ficava mais fácil e fui acabar na
V. M. que a tia R. arrumou um supletivo pra mim. Eu não sabia nada de documento, não
sabia que tinha que pegar papel na escola, levar na outra, pedir histórico, até hoje não sei e
acabo deixando tudo prá última hora. Fiz, comecei o cursinho na Poli, mas parei, porque
tava namorando uma pessoa e aí morando junto e ele foi pra E. (país no exterior), falou que
ia me levar, mas no fim acabou indo sozinho. Ele tinha 32 anos e dava aula na faculdade x.,
daí ele foi falou que depois eu ia, fique mal e parei o cursinho. Mas, até a matrícula do
cursinho eu demorei pra fazer.(risos).
Ó a E. me ajudou muito mesmo, chorava com a A. P. (coordenadora do trabalho) no fim,
quando ele não pagava a pensão, a sorte é que a gente ganhava uma cesta básica. Aí eu
cheguei pra A.P. e falei: Sabe o que é? É que ele não paga, e a gente não tem dinheiro
porque o que a gente recebia era uma ajuda de custo. Daí ela falou com o pessoal e o
pessoal resolveu dar dinheiro ao invés da cesta foi o que salvou. Outro dia tava falando
com o R.(outro adolescente). (risos). A gente passava o mês com $ 50,00 reais e passava.
Bom, a gente almoçava lá. Era bom pra caramba. O R. se deu bem, ele tem voz, né? Não é
que nem eu. Tá trabalhando na M. tá bem lá. Chegou lá no Dr. M. e pediu e ele deu. A G.
também trabalhou lá, foi na caruda e pediu, eu não, não tenho coragem. Mas sei lá o que
ela fez, disseram que ela tava presa lá no P. (outro Estado). Não sei, nunca mais vi ela.
Será que ela tá mesmo? Uma época, morei com ela, ela é sapatão. Tem umas meninas que
pareciam que era, não eram mais parecia, quando a gente era lá da casa. Nossa lembra a
G e a J., aí. Depois a J. namorou com aquele professor, aliás, eu nunca gostei dele. Ele
catava todas, ficava com todo mundo e o pior é que a gente já é assim, mais carente por
causa da nossa vida, aí ele ia lá e já viu. Depois, desprezava as meninas, aparecia com
outras, eu nunca gostei dele. Não fazia a aula dele, não confiava, sei lá... ele tinha uma
coisa guardada. A J. jura que ficou grávida dele. Lembra? Ela ficava atrás dele e ele fez ela
tirar. Eu não gosto dele. Teve menina que credo, sofreu! Demoraram muito prá tirar ele de
lá, demorou, prá saberem o que ele fazia. O pessoal acha ele lindo, eu não acho. Ele fica
111
falando com os meninos, com o R. outro dia tava lá na casa dele, ele mente muito. Ele fala
que eu sou sapatão. Sá porque não dei nunca trela pra ele. Deixa ele, mas dá raiva.
Lembra a N.? Tá com a mãe dela, eu adoro a N., ela combina comigo, ela foi prá casa da
mãe, a gente conversa pra caramba. Ela ficou também na E.
Lembra, a senhora colocou a gente lá. O tio G. já tinha me dado aula de corte e costura no
SOS e deu lá também. Até que tiraram o convênio e ele foi embora.
Lembra o P? Outro dia a N. tava no ônibus e o ônibus dela foi assaltado, foi vê quem tava
com arma na mão o P. Credita? Ela não sabe se ele reconheceu. Acho que reconheceu, mas
aí ela ficou com medo de demonstrar que conhecia e o pessoal do ônibus achar que ela tava
de armação com ele. Teve um pessoal que... credo, descambou, mas dava prá ver... O D.,
virou bandido, dava prá perceber, sei lá porque se é da personalidade, sei lá. A R. lembra?
Teve uma filha de um cara, se envolveu com droga, coisa assim. Ela morava perto de onde
eu trabalhava, lá na B. na frente.
Eu saí da E., porque o pessoal me falou: N. cê tá fazendo pós-graduação. Aí, fiquei um mês
sem trabalhar. A tia R. arrumou esse emprego prá mim. Esse outro e esse que eu trabalho
agora. Fiquei lá quase dois anos, mas daí o pessoal começou a atrasar vale, salário, até
hoje não me pagaram meus direitos falaram que vão pagar em agosto.
Então, a R. teve uma filhinha linda, com esse cara que mexia com droga, sei lá acho que
depois que a filha nasceu ela entrou um pouco nos eixos. A L. tá morando com a mãe dela e
os irmãos menores tão no P. (abrigo). Então, sabe a R.? Olha a fofoqueira aqui. Uma
época, ela sumi; aí eu perguntei prá ela, quando ela apareceu, como ela tava. Ela falou que
tava bem, mas que a filha dela, que deve ter uns dois anos agora, tava com a sogra dela.
Quer dizer ex-sogra. Ah,sei lá, com a avó. Mas a L. disse que era mentira, que a filha dela
tava num abrigo, o juiz tirou dela. Porque ela tava sem onde morar. Depois deu um tempo,
parece que ela foi visitar a filha e pegou ela e sumiu prá não tirarem dela. Acho que foi
morá em S. (cidade). Outro dia, ela me ligou, falou que tá bem, que tá morando em uma
Kitnet na Av.N.J.,sei lá se é verdade. Eu perdi o telefone dela. Minha agenda do celular
pifou, o visor ficou ruim e não dava prá ver nada de telefone. Perdi o telefone de um monte
de pessoas. Lembra a K? Virou mó bandida. Ela sempre foi meio esquentada. Daí o E.
pegou e mandou ela prá casa dela e ela não gostava. Parece que ela ficou assim depois
disso, quer dizer, ela não parecia. E o D.? Ô menino irritante. Um dia fui na casa da K. e
uma vez o D. fez num sei o que prá ela. Me falou que se eu visse ele que era pra falar que
ela ia pega uma arma com um cara lá e pegar ele. Eu falei: Credo K., num fui mais lá.
112
Eu tava pagando a pensão, aí fiz amizade com as meninas e a gente combinou de morar
junto, aí saiu quatro, o tio E. lembra dele? Ela mora lá perto, às vezes vai ver como a gente
tá. Ele ficou revoltad, quando a gente saiu. Mas como ele disse: ele, como educador, não
pode fazer nada. Posso fazer uma pergunta?
Pesquisadora: Pode.
M. Uma pergunta que sempre fica na minha cabeça, que eu fico pensando, pensando. A
senhora saiu de lá por minha causa?
Pesquisadora: Não, com certeza, não. Saí, porque tomei uma posição em relação ao que
estava sendo feito com vocês, isso era inevitável.
M: Ai que bom! O tio L.F. falou que não, mas sei lá, foi bom que perguntei, agora tiro da
cabeça.
Então, o tio E. (educador) ajudou a gente a achar uma casa lá perto e a gente foi morar lá.
Era legal, só que aí a B. engravidou, ela não ia mais quere ficar com a gente, e também
tinha a A., ele era estranha... Uma vez sumiu dinheiro meu, super ruim. Daí a gente mudou
ficou só eu e mais duas.
Só que depois, bom eu gostava da R. mas aí eu comecei namorar aquele cara e daí eu saí de
lá e fui mora com ele. A gente se conheceu morando junto. Morei com ele mais ou menos
um ano e agora eu moro com a S. a filhinha dela e a Z. que ajuda a cuidar. Ela é linda
adoro ela. Agora acho que, finalmente, vou morar sozinha. Que nem eu falo: primeiro fui
morar no SOS, um monte de gente, depois no DARI, mais um monte, depois no T., daí tinha
menos, depois no P., depois na pensão - menos gente ainda, depois, com as meninas, depois
com meu namorado, agora com a S. a M. e a Z. e depois sozinha, foi diminuindo. Faz, que
dizer, vai fazer, o ano que vem, dez anos que saí de casa.
Sabe de quem tenho saudade? Do T. Ah, outro dia vi o L.F., eu tava no ônibus e ele tava
empurrando uma carroça, sabe aquelas carroças de papel? Eu desci do ônibus pra falar
com ele e ele falou que, pelo menos, não tava roubando. É né, ele tá certo, mas foi tão
esquisito.
Eu saí de casa com treze anos, saí e bati na casa de uma mulher, procurando alguém pra
me adotar. Falei pra ela que tinha me perdido da minha mãe, que não sabia o lugar de
casa. Menti. A mulher viu aqueles guardinhas de moto, sabe? Que passa na rua, à noite?
Viu ele e chamou, me mostrou e ele me levou pra delegacia. Chegou lá, eles me
perguntaram meu nome, eu falei outro, menti de novo. Inventei uma história, lá. Como já
era tarde, eu dormi lá mesmo. No outro dia, me levaram pro SOS.
113
O SOS era aquilo: um monte de gente, aquele lugar enorme que todo mundo dorme junto.
Mas eu não ligava. Tinha uma menina lá, a D., falo com ela até hoje. A D. chorava,
chorava, daí eu fazia carinho no cabelo dela e falava - não chora. As meninas achavam que
eu era sapatão. Era nada, eu gostava dela. Depois, a gente se encontrou no DAR1 e no T., a
gente se fala até hoje, ela é muito legal. Eu fiquei lá seis dias. Sabe como eu sou, né? Fico
quieta no meu canto; ficava lá quieta, os tios deixavam a gente lá. Porque o SOS é aquela
coisa. Tinha gente que, nesses dias assim de frio, só entrava prá dormir, prá comer e prá
dormir. Depois sai, no outro dia, e depois volta, à noite; os tios deixam largado, nem ligam.
Aí depois, se vai pra casa de passagem porque tá lá muito tempo; vai e quando chega lá
foge, aí volta pro SOS. È assim, o SOS. Eu fiquei bem lá, nunca esqueço o que eu pensei. Eu
pensei assim: Na minha casa, eu chorava todo dia, aqui, não chorei nenhum, então, aqui é
melhor.
Depois de lá, fui pro DARI, lá era assombrado. Agora lá é uma FEBEM, dizem que lá foi
manicômio cadeia, vai vê por isso que é assim, a gente falava que era assombrado. Tudo
sujo, lá era muito sujo. Só menina, um monte. Lá que eu peguei meningite. A senhora já
deve saber: fui nadar na caixa d’água. Eu falo que foi castigo, porque eu e a N. se juntamos
e eu falei prá tia, que a gente ia sair; se ela deixasse a gente podia sair. E lá tem uns cinco
andares, é muito grande, então a pessoa não sabe de você. Daí, eu falei que a gente ia na
Igreja, a tia deixou. Saímos de fininho e subimo na caixa de água...fiquei com meningite e
com otite, acho que foi lá, não sei. Sempre falo que fui castigada, porque disse que ia na
Igreja, menti. Eu não gosto de mentir, é mentir e dá bobagem, aliás, todo mundo se
aproveita disso que eu tenho. Lá no P., todo mundo perguntava as coisas pra mim. Como
desvio sempre da conversa...
Então, a senhora sabe se eu posso ver meu prontuário? Queria ver esse negócio da
meningite. E o Fórum, será que posso?
A pesquisadora respondeu que não sabia como funcionava que, talvez, ligando no Fórum
aonde tinha processo, conseguisse marcar alguma entrevista e verificar como funcionava.
M: Eu queria, também, ver no meu processo o endereço dos meus irmãos, eu sei que lá tem;
a senhora conseguiu e anotou lá.
Dissemos a ela que, se havia anotado no prontuário da instituição, certamente também
tinha esta informação no Fórum, pois todos os dados que tínhamos, passávamos para este
órgão.
Bom, voltando ao DAR1, lá só tinha menina, um monte. Fiquei com a meningite, fui
internada. Eu dizia que tava com dor de cabeça, nunca me esqueço. As tias me levaram na
114
enfermaria do SOS, deram uma Besetacil, daí continuei ruim. Me levaram no posto, deram
outra Besetacil, não adiantou... tinha tanta dor de cabeça que não conseguia nem comer.
Daí, a tia falou - agora chega: Vou levar a menina no hospital, isso não tá certo. Eu tava
tão ruim que, não sei porque, os caras não conseguiam tirar o líquido lá das costas. Credo,
parecia que eu ia morrer, nunca esqueço. Disseram que eu tive a meningite viral, aquela
que é mais fraca. Mas eu queria ver isso no meu prontuário.
Aí, voltei pra lá. Lá parecia Febem, mesmo... a gente não fazia nada, não estudava, nada,
ficava lá. Eu lembro que gostava de subir lá em cima e tomar sol, deitava lá com as
meninas e tomava sol, isso era bom. Mas e quando tinha briga? Nossa, tinha um corredor
grande, assim, parecia mal assombrado, tudo escuro, as meninas brigavam e daí fechavam
aqueles portões grandes. Parecia Febem. Tudo sujo, escuro. E aquela briga. E a comida,
era Danadai, mó ruim. Bandejão, horrível, credo! Era muito Febem. E tinha umas meninas
lá com uns 16 anos, sapatão. Tinha a mãe, o pai. Que nem eles fazem na rua. A mãe e o pai
dão proteção pros menores. Eles pegam uns bobões menores e usam eles. Comigo, ninguém
mexia. Eu ficava lá na minha, quieta, com as meninas da minha idade, eu tô fora.
Tinha um quarto lá, credo, eu me lembro bem. O quarto era todo pintado de vermelho. Lá
tinha uma mãe e um pai - os dois eram mulher, só entrava naquele quarto quem eles
quisessem e eles davam proteção. Eu nunca entrei lá. Daí, um dia, resolveram separar por
idade. Puxa, tinha uns tios legais lá. Tinha a tia C., lembra, que depois foi pro P.? Então,
ela era de lá. Ficava sentada no corredor o tempo todo. Quando eu vi ela, lembrei: eu nem
gostava e nem desgostava. Nem sei o que quer dizer DARI, deveria saber, né?
Bom, daí eu fui para o T., prá lá foi um monte de menina. Foi a D., foi a N., nossa e lá tinha
também a J. e a R. que depois foi pro P., a D. não foi não, hoje ela mora com a mãe dela.
Lá no T. era legal, era bom, porque a gente estudava, só lá que eu comecei a estudar de
novo. Não tinha ainda contado minha história de verdade prá ninguém, demorei um ano
pra contar. O pior é que não contei prá minha assistente social, não gostava dela. Lá não
tinha psicóloga, só assistente social. Daí, um dia que a minha assistente faltou, contei prá
outra que eu gostava. É horrível quando você não gosta da assistente, ela vivia no meu pé,
ficava tentando disfarçar, mas queria informações da minha vida, confirmar se era aquilo
mesmo, mas eu não gostava dela e também não queria voltar pra casa. Mas confiei na outra
assistente. Como era o nome dela mesmo? Não lembro, acho que era R., será? Bom, daí
contei a verdade, que eu tinha fugido de casa. No outro dia a minha assistente chegou e viu
que eu tinha contado prá outra, fiquei quieta. Aliás, essa mulher é meu carma depois mudei
de abrigo e ela ficava no meu pé, ia atrás de mim em tudo quanto era lugar, eu tava no
115
karatê, ela ia no karatê, eu tava na quadra, ela ia na quadra. Só porque ela sabia que eu
não mentia, aí ficava atrás de mim. Lembro uma vez que ela ficou, ficou atrás, só prá tirar
informação e contar pro E.; eu não contei pra ela, falei: Ah é, ela quer saber só prá contar
pra ele? Fui lá e contei direto prá ele, e pronto. Lembro que ela falou: Você já fez isso uma
vez e agora fez a segunda. Olha só, eu pensei: que interesseira, tava atrás de mim só pra
tirar informação, e ainda guarda mó coisa do que aconteceu lá no T. Eu,heim? Ô
mulherzinha xarope. No dia que me levaram pra pensão, lá tava ela junto.
Bom, desviei de novo do que eu tava falando. Então, lá no T. era bom, porque eu voltei a
estudar, e eu sempre gostei de estudar, não faltava, nem nada. Puxa, a diretora de lá era
legal... eu gostava, só que lá, a gente ficava preso. Só podia sair acompanhado com
educador. Mas tem que se assim, né? Eles não sabem o que os adolescentes podem fazer.
Mas eles se preocupavam com a gente. Levavam a gente prá passear, à noite, na praça S.
R., levava a gente prá passear final de semana. Tinha as escalas de limpeza todo dia, e lá, a
comida também era Denadai, credo! Era marmita e não bandejão. Ô comida ruim.
Lá no P., as moças da cozinha faziam todo dia e era bom; o P.A. que doava as coisas. O
estoque era lotado de coisa, só que teve o R., quando, ele entrou lá na direção, gente! Eles
pegavam tudo prá ele; o P.A. dava um monte de coisa boa, que a gente via chegando, e eles
pegavam prá eles, não chegava na gente.
Ó eu de novo! Lá no T. tinha uns tios muito legais, tinha o tio E., nossa... eu adorava ele.
Ele contava história prá gente, à noite; de manhã, ele acordava a gente com maior coisa.
Eu lembro que ele puxava a coberta e cantava: gosto muito de você, leãozinho, caminhando
sobre o sol, gosto muito de você, leãozinho. Todo mundo adorava ele, ele tratava a gente
diferente, a gente precisava disso, quando a gente não tem família, a gente tem os tios como
se fossem parte, é importante pra gente. A gente chamava o tio de ursinho, ele ficava todo
vermelho, a bochecha dele, vermelha, amava ele. Tinha outras tias legais - a S., nossa,
adorava ela.
Um dia, a tia D. ( diretora do abrigo), chamou a gente e explicou que tinha aberto o projeto
e que eles pediram prá mandar as meninas mais sossegadas pra lá, e daí, como eu sempre
fui quieta, fui escolhida, a N. também foi, a D. não foi não. Nossa, eu chorei tanto, mais
tanto, não queria ir embora. A tia explicou que ia ser melhor prá gente, e que a gente podia
ter mais futuro. Mas e os tios? E as pessoas de lá? A gente não queria mudar.
Mas fomos; tenho até foto, a tia deixou a gente tirar... eu tenho a foto de todas nós que
fomos, umas acabaram fugindo de lá. Tinha uma menina que fugiu; outro dia, encontrei
com ela na rua, ela veio prá cima de mim, acho que ia me roubá. Falei: peraí você não era
116
do T., do SOS, do P? Daí, ela me contou que tava na rua e que tinha uma filha, já era de
maior. (risos) Sabe o que eu lembrei? Do M., o M. era lá do projeto e daí, ele com uns 16
anos uma mulher queria adotar ele. Adotar ele (risos). A mulher que adotou teve filho com
ele e tudo, ele mora com ela até hoje, adotou ele.
No projeto era bom, ainda mais no tempo da tia L. quando ela cuidava de tudo. Nossa, ela
era demais, acompanhava a gente em tudo, se preocupava, ia ver se a gente tava comendo,
ia ver quando a gente ia dormir, às vezes, punha a gente na cama. As meninas, ela chegava
uma por uma e perguntava, todo mês, se precisava de xampu, de creme, de absorvente. E
ela dava prá gente o bom, não que nem aquele cara que entrou depois, fazia. Se tinha
passeio, lá tava ela logo cedo, às vezes, no fim de semana. Nossa, era bom! Eu fazia,
atletismo, fazia karatê, depois fiz o violino. Só saí do violino por causa da E. Eu tinha que
escolher, e achei que pro meu futuro era melhor a E. Lá era bom, às vezes, fico
conversando com o R. e a gente fica lembrando dos tios, dos esportes, de tudo. Ele fala que
a gente aproveitou pouco, mas a gente fez o que deu, a gente era criança. Eu cheguei lá
com 13 anos fiquei até os 17. Ele ainda continua na M. tá bem, dirige, viaja. Ele se deu
bem, eu não sabia se ele ia se dar bem, ele tem jeito prás duas coisas, sei lá. Que bom que
deu certo. Achei que dos meninos, ele que se deu melhor.
Então, aí tiraram a tia L. ... Puxa, todo mundo ficou revoltado, abalou tudo. Eu acho que
eles não deviam deixar interferir assunto pessoal com a gente, porque prejudica muito. Daí,
ele saiu, e daí piorou um pouco, todo mundo faltou na escola, até eu, que nunca tinha
faltado, faltei uma semana. A tia ia me procurar, eu ficava escondida embaixo da cama. Lá,
a gente tinha escala de limpeza, mas era tudo assim, né, por cima. Às vezes, dava a loca e a
gente limpava que ficava um brilho.
E lá tinha os meninos... Puxa, tenho saudades do T.A., nem sei mais dele, de nada dele, ele
sumiu. Tinha o R. .... nossa, tenho uma pilha de cartinha que ele me mandava. Só que o M.
(irmão), também gostava de mim. Quando a J., namorada do R., foi embora, nós ficamos
juntos. Lembra aquele lance do R. que ele não podia aparecer, era verdade mesmo? Virava
e mexia, ele dava reportagem, aparecia em entrevista. Era verdade?
Pesquisadora: A mãe dele disse que sim, ele estava ameaçado de morte, porque era
aviãozinho, onde morava e fez alguma coisa que os traficantes não gostaram. Não me
lembro o que foi: se ficou com o dinheiro, com a droga, só sei que ele era procurado, por
isso aquele cuidado todo com ele. Mas ele mesmo não colaborava muito.
M: É, eu também era aviãozinho da minha madrasta. Credo, não suporto droga, nunca
experimentei, até hoje. Por isso eu falo: sei lá, acho que depende da pessoa, porque eu via a
117
minha madrasta prepará o crack, o pó, secar a maconha e nunca gostei. A maconha me dá
dor de cabeça. Uma vez, coloquei o dedo no pó e experimentei. Nossa, não gostei, é amargo
e anestesia a língua. Minha madrasta fazia eu entregar e cuidar dos filhos dela. Apanhava
todo dia dela, todo dia. Entregava, às vezes, um pacotão. Por isso eu falo: a melhor coisa
que aconteceu foi eu estar no abrigo. Sei lá, tanta gente se envolveu com droga, acho que
depende da pessoa, do que ela nasce. Minha mãe não usava droga, nunca. Nem meu
padrasto. Ele trabalhava na C. e ganhava bem, a gente vivia bem. Daí foi despedido,
começou a beber e eu acho que ele deve ter se metido com droga. Ele batia na minha mãe,
ficava falando que ia matar ela. Eu não lembro muito da minha mãe, só lembro umas
coisas. Umas coisas eu lembro bem. Minha mãe traía meu padrasto, disso eu lembro. Ela
levava a gente com ela até o centro e encontrava com um homem, com a gente junto. Eu
lembro dele, acho que trabalhava com condução. Eu lembro direitinho da minha mãe
beijando ele. Acho que meu padrasto sabia, acho que foi tudo junto. Não fui eu que contei.
Eu lembro a gente em casa, e meu padrasto batendo na minha mãe, ele batia forte, forte
mesmo, lembro de ter visto a cabeça dela assim, aberta, aparecendo um negócio branco por
dentro. Lembro que, no outro dia, o banheiro tava cheio de sangue tudo assim espirrado na
parede. Eu sabia que ela tava morta, quando vi ela no chão, mas sei lá, parecia que eu não
queria saber, queria me enganar, não pensar. Eu sabia que ele tinha matado ela de tanto
bater, não sei porque foi. Depois, um dia, quando tava com a minha madrasta, fui com ela
na cadeia visitar - ele me abraçou e pediu perdão, chorando. Ela me deu, quando visitou
ele, uma vez, um monte de carta dele pra mim e me trouxe. Eu nunca mais vi ela, disse pro
tio L.F. que um dia queria ser uma mosquinha pra ir lá de fininho e ver de longe. Mas ir
assim não, nunca tive coragem. Demorei dez anos prá conseguir contar isso que aconteceu,
a primeira pessoa que eu falei foi a tia L. lembro que eu contei e chorava, chorava.
Demorou prá eu falar. A segunda foi o tio L. F. e a senhora.
Não lembro quase nada da minha mãe. Mas eu sinto muita falta de mãe. Não dela, mas de
ter uma mãe. Acho que por isso que a gente se apega nos tios, a gente não tem família. Eu
sinto falta quando estou sozinha, tipo agora, quando me deixaram lá na pensão. É uma
solidão, é uma coisa por dentro. Eu cheguei a procurar a tia L., mas ela perdeu o marido,
tá mal, não consegui falar com ela. Vou procurar mais. Sabe, o ruim do P. foi isso de
desligamento, de terem tirado a gente de lá sem avisar, sem nada.
Nossa, eu não sabia fazer comida. E dinheiro, então? E conta? Como faz como gasta,
(risos) eu não sabia nada. Até hoje, faço confusão. O tio L.F. que me dá uns conselhos, tipo:
guarda dez por cento do que você ganha, prá quando tiver uma emergência tipo: ficar
118
doente, precisar comprar um remédio. O tio E. também dá uns toques. Lá no projeto, a
gente ficou uma parte da nossa vida. Outra coisa que foi ruim foram essas mudanças de
direção, bagunçou tudo. A gente, lá quase não saía e é engraçado que eu fico muito em
casa, quase não saio.
Namorei pouco, só aquele moço que eu morei junto. Lá no projeto, era tudo mocinha, uma
época. Nossa, e quando vinha gente de fora pro ginásio, eu, a R. e a N. ficava descendo pra
ver eles. E quando vinha os meninos do futebol ? Eu não ia lá no lado deles tinha medo. A
L. que acho que foi uma vez só. Tinha os caras do judô... a gente ficava vendo eles no
ginasinho. A gente ia ficar lá com eles e com a tia R., a gente se escondia, quando os tios
procuravam.
E um dia que eu dormi lá fora, na praça? Um dia, eu e a N. cabulamos aula, sabe prá que?
Prá ir na Igreja. (risos). Onde já se viu cabular aula prá ir prá igreja, só a gente, mesmo.
Outra vez, pra ir lá no Itaú Cultural. Que bobeira, cabular aula por isso! Se pedisse prás
tias, elas deixavam na hora, e ainda ficavam mó felizes: Ai, ai, elas vão no Itaú Cultural!!!!.
Tinha gente que não saia de lá, de lá e do Parque, todo dia. A N., todo dia, ia lá no Itaú. A
G. já não ia todo dia no parque.
Uma época, eu namorei o R., mas foi só duas semanas. E quando eu comecei a namorar, e a
tia pediu prá eu levar meu namorado lá, prá ela conhecer. Nossa, que vergonha! Falou pra
ele de camisinha, de coisa e tal... Nossa eu queria morrer. Tá certo, tem que falar, mas que
vergonha. Namorei ele dois anos e meio. Depois, namorei o que eu morei junto, a gente se
conheceu morando junto. Por mim, namorava ele, mesmo ele tando longe, mas não quero
mais ir prá lá, prá E. Eu namorava, porque sou meio bobona com essas coisas.
Eu gostava do P. e de uns tios também, tem uns que eu ainda vejo. A tia R., que me ajudou a
achar meu primeiro trabalho; quando saí da E., eu fiquei um mês sem trabalhar. Ela
também que achou o segundo, esse que tou trabalhando. Ela é legal, dá maior força.
Quando tava procurando escola, prá acabar, ela que me indicou o supletivo. O A. trabalha
com ela, na loja dela. Ele mora com o A. Os dois são gêmeos, moram juntos. O A. é mais
esquentado, mas quando o A. se invoca - sai de perto! Um dia, lá no ginásio, távamos
assistindo um treino e a E. ficou: Uiuiui. A., uiuiui, A. E ele: Pára E., pára E. Até que se
invocou. Nossa, eu olhei prá tras e só vi um em cima do outro e ele dando na E. Todo
mundo falou: nossa, o A., heim? Ele é meio tímido - mas uma coisa é ele, na frente de todo
mundo, com os outros. Outra coisa, é ele só com a gente. Tem coisa que ele não fala. Você
pergunta, pergunta, e ele não fala. Finalmente, outro dia, ele falou. Perguntei da A. e ele
119
disse: Tá casada, morando no Jd. N. Amanhã vou ver ele. A senhora nunca mais falou com
ele?
Pesquisadora: Não, fala que eu mandei um grande abraço.
M. Falo sim, vou lá, depois que sair do trabalho, que nem eu vim aqui. Puxa, que horas
são? Tenho que ir, porque meu ônibus só passa até às 11:00 hs. Sabia que eu fiz terapia por
três anos? Quando saí do P. (abrigo), pedi prá A.P., lá da E., arrumar uma pessoa pra mim.
Eu não tava bem. Daí eu fiz três anos, me ajudou muito.
Tou procurando uma Kit prá morar, se a senhora souber alguma coisa, não por aqui, que é
muito caro. Lá pelo onde eu moro é longe, eu tô cansada de morar longe, parece sina.
Nossa, morar em O. e trabalhar em S., o pior era morar em O., estudar no C. e trabalhar
em S. ... Ô sina. Mas eu tô bem. Lá onde eu trabalho, tô na parte administrativa. O pessoal
viaja direto prá acompanhar os turistas. Meu chefe tá em L., e falou que não agüenta mais,
falou que na próxima vai mandar o G. e o F. eu falei: E eu chefinho, não quer mandar?
Quem sabe, um dia... Ainda tô lá há três meses. Cuido da parte administrativa. O meu chefe
falou que vai ver um professor e obrigar que todo mundo aprenda inglês.
Acho que eu vou, não sabia que era tão tarde, passou muito rápido. Por mim, ficava aqui
falando, falando. Pensei que você, com essa entrevista, fosse me fazer chorar.
Pesquisadora: Por quê?
M: Sei lá, pensei. Vou falar pros meninos que eu vi a senhora.
Pesquisadora: Mande um abraço prá eles.
Tá. Vou indo.
4.2.1 - Considerações teóricas sobre o caso M.
M. foi encaminhada ao Serviço do SOS Criança, após fuga da casa de sua madrasta; sua
história é marcada pela pobreza, miséria, e pelo fato de ter sido explorada de forma violenta
pelo tráfico. Frente a estas vivências, julga o fato de ter sido abrigada de forma positiva, pois
este espaço lhe ofereceu proteção e tutela, vindo ao encontro do que se inscreve no ECA. A
idade em que M. saiu de casa foi correspondente à entrada na puberdade: conseguiu
questionar e identificar as limitações da vida em comum com a madrasta. Deparou-se com o
desamparo e, não suportando mais o que vivenciava no contexto familiar, assumiu suas
escolhas, fugindo de casa em busca de cuidado, tutela e adoção.
120
Este acontecimento, sucede o fato de ter ido residir com a madrasta, após o assassinato de
sua mãe pelo padrasto. M. testemunhou esta ocorrência, quando tinha seis anos de idade. Ao
descrever tal acontecimento, seu relato é carregado de emoção e evidente dificuldade.
Apesar de relatar desconhecer o motivo do assassinato da mãe, seu discurso sugere culpa ao
descrever, não ter sido ela quem contou ao padrasto, que a mãe se encontrava com outro
homem.
“Minha mãe traia meu padrasto, disso eu lembro. Ela levava a gente com ela até o centro e
encontrava com um homem com a gente junto. Eu lembro dele, acho que trabalhava com
condução. Eu lembro direitinho da minha mãe beijando ele. Acho que meu padrasto sabia,
acho que foi tudo junto. Não fui eu que contei”.
Alberti (1996) faz referência à culpa trazida no discurso dos pacientes, no âmbito analítico.
Segundo esta autora, Freud afirma que: quando um sujeito se acusa, é porque deve haver
razão para esta culpa. Em um suposto trabalho de análise, tendo M. como paciente, no
rastreamento desta culpa, poderia advir sua implicação subjetiva, frente ao assassinato da
mãe. Porém, a partir uma única entrevista, o que nos cabe é um assinalamento em relação a
esta questão.
Em sua constituição familiar, descreve a ausência do pai biológico, dizendo-se criada pelo
padrasto. Percebe-se, pelo relato, que a violência doméstica fazia parte de sua família
nuclear.
M. refere que “demorou” dez anos para conseguir falar sobre a cena da morte da mãe.
O silêncio de M., quanto a este fato, sugere uma forma de defesa, tanto frente à violência do
mundo externo, quanto à sua hostilidade em relação ao padrasto e a mãe, que não a
preservaram de situações conflitivas.
Após a fuga da casa da madrasta, é levada por um policial para o SOS Criança. Neste relato,
sobressai a forma de funcionamento desta unidade central de triagem: rotatividade dos
adolescentes, tempo de permanência, atuação dos profissionais, etc.
Apesar da precariedade deste atendimento, M. respondeu a esta situação, dizendo-se mais
segura do que em sua casa. Identifica-se como alguémquieta”, utilizando-se do silêncio
como defesa.
121
“Eu fiquei lá seis dias”. (...) “Eu fiquei bem lá, nunca esqueço o que eu pensei. Eu pensei
assim: Na minha casa eu chorava todo dia, aqui não chorei nenhum, então aqui é melhor”.
Neste contexto, estabeleceu laços com outros pares, acolhendo aqueles que compartilhavam
a mesma experiência.
M. vivencia, como algo assustador, a primeira transferência para um dos abrigos
conveniados ao SOS, fazendo referência a esta casa, como um ambiente destinado à
exclusão (manicômio, cadeia, FEBEM). Em seu relato, evidencia-se o descumprimento do
Estado, no que se inscreve no ECA, art. 92: atendimento personalizado em pequenos grupos
e atividades em regime de co- educação. Este local funcionava há dez anos, portanto,
meados de 1996. Apesar do ECA ter sido implementado em 1990, fornecendo parâmetros de
como deveria ser o atendimento ao adolescente, em situação de risco, este era prestado de
forma totalmente irregular, fora dos parâmetros da lei.
A angústia vivida por M., aliada ao fato de ter tido meningite nesta casa, parece aproximá-
la, fantasiosamente da morte. Alberti (1996) descreve que todo ato e ação humana inscreve-
se num laço social associado às condições morais. O problema coloca-se, quando essas
condições chegam a impedir toda ação do sujeito, por um imperativo cultural, levando-o a
uma inibição que o proíbe mudar o futuro. M., ao entrar nesta instituição, depara-se com
condições e referências totalmente diferenciadas daquelas que vivenciou até então, o que
aparece representada na sensação de morte, onde impera a falta de credibilidade no futuro.
Emerge em seu discurso o significante “mentir”, em outras vezes, relacionado às situações
onde se percebe ameaçada. Lembremos que, quando efetua a saída da casa da madrasta,
mente para se proteger.
Em seu relato, presentifica-se o desconhecimento de sua história de vida e de seus
parentescos. M. demonstra interesse e desejo neste resgate. Este aspecto merece especial
atenção, pois o reconhecimento e a reconstrução da história do sujeito é de fundamental
importância para sua estruturação subjetiva. A interrogação de M.,exemplifica como a
história do sujeito abrigado fica fragmentada, frente a todo processo que envolve a
122
institucionalização: em geral fica restrita aos documentos produzidos pelos técnicos do
abrigo, pelos Fóruns onde os adolescentes têm processo, e por médicos que o atenderam.
42
M. descreve uma forma de organização dentro da instituição que obedece ao modelo
familiar, este reproduzido pelas adolescentes com vivência de rua. Frente a este fato, utiliza-
se novamente do silêncio, para não participar com aquilo que não partilha.
Lacan, em Complexos Familiares, afirma que a estrutura do sujeito, independentemente da
organização social a que pertença, tem como referência o complexo familiar. Estas
adolescentes reproduzem este modelo com laços estabelecidos na instituição, sendo as
figuras de pai e mãe relacionadas a um Outro que as protege e sustenta, no caso, outras
adolescentes mais velhas. Tais identificações ali, independem das características sexuais
biológicas presentes. Como teoriza Alberti (2004), o sujeito é portador de características
biológicas de um sexo, mas pode identificar-se sexualmente de outra forma. Este Outro que
as sustentam, poderia ser um educador.
M. é transferida para uma outra casa, juntamente com outros pares com quem estabeleceu
laços. Pela primeira vez, ao relatar sua história, faz referência à retomada dos estudos, um
investimento do Outro em relação a ela, contrapondo-se ao desinvestimento da madrasta e
da instituição pela qual passou. Esta nova casa abrigo respeita, em relação a este aspecto, o
que se inscreve no ECA.
Emerge a questão transferencial e a importância do laço estabelecido entre abrigado e
cuidador. M. desenvolveu uma transferência persecutória, negativa, com uma das
profissionais, enquanto, com outra estabeleceu uma transferência capaz de sustentar e
suportar o relato de sua história de vida: pela primeira vez, contou para alguém, no âmbito
institucional, sobre sua fuga da casa da madrasta. Este fato demonstra que, muitas vezes, o
profissional está capacitado a exercer a função de cuidar, mas apresenta dificuldades em
estabelecer uma transferência capaz de sustentar o abrigado no enfrentamento de suas
questões.
42
M. nos perguntou se sabíamos se poderia ter acesso a seu prontuário. A entrevistadora, posteriormente,
entrou em contato com o Fórum e foi informada que a busca da própria história por adolescentes desabrigados
é bastante comum. Podem solicitar o desarquivamento de seus processos, no Fórum que os acompanhava,
quando abrigados e solicitar uma entrevista com um técnico da Vara da Infância e da Juventude. A
pesquisadora repassou essas informações para a adolescente.
123
Nesta casa, ela e os outros pares eram acompanhados por um educador em suas saídas. A
ação deste abrigo, frente às saídas externas, é contrária ao que se inscreve no ECA, em que o
abrigamento não implica em privação de liberdade. Entretanto, M. vivenciou esta situação
como um cuidado e preocupação com ela.
Este abrigo ofereceu a M. algo diferenciado no que se refere ao estabelecimento de laços
com os educadores. M. discorre sobre a importância disto, demonstrando ter necessidade de
referências que a sustentem afetivamente. Para M., alguns educadores ocuparam um lugar
de cuidado próximo ao familiar:
“Lá no T., tinha uns tios muito legais, tinha o tio E., nossa, eu adorava ele, ele contava
história pra gente, à noite; de manhã, ele acordava a gente com maior coisa. Eu lembro que
ele puxava a coberta e cantava: Gosto muito de você, leãozinho, caminhando sobre o sol,
gosto muito de você, leãozinho. Todo mundo adorava ele, ele tratava a gente diferente, a
gente precisava disso, quando a gente não tem família a gente tem os tios como se fossem
parte, é importante prá gente. A gente chamava o tio de ursinho, ele ficava todo vermelho,
a bochecha dele vermelha, amava ele. Tinha outras tias legais a S., nossa adorava ela.”
Ocorre nova mudança para a terceira casa abrigo. Evidencia-se o sofrimento de M. frente à
quebra de laços estabelecidos, os quais aparecem, em seu discurso, como portadores de
fundamental importância para o abrigamento. O silenciar novamente emerge como um
traço particular que a identifica e que faz com que seja escolhida dentre os outros.
“Um dia, a tia D. chamou a gente, e explicou que tinha aberto o P., que eles pediram prá
mandar as meninas mais sossegadas prá lá, e daí como eu sempre fui quieta, fui escolhida,
a N. também foi, a D. não foi não. Nossa, eu chorei tanto, mais tanto... não queria ir
embora. A tia explicou que ia ser melhor pra gente, e que a gente podia ter mais futuro.
Mas e os tios? E as pessoas de lá? A gente não queria mudar”.
Frente a esta mudança, o abrigo, ao qual pertencia, oferece a possibilidade do sujeito
historicizar tirando fotos.
M. suportou essa quebra, mas descreve sobre pares, que reagiram de outra forma em relação
a esta ruptura, e que acabaram fugindo, morando nas ruas:
124
“Umas acabaram fugindo de lá. Tinha uma menina que fugiu, outro dia, encontrei com ela
na rua, ela veio pra cima de mim, acho que ia me roubar. Eu falei: Peraí, você não era do
T. do SOS, do P? Daí ela me contou que tava na rua e que tinha uma filha, já era de maior.
(risos)”.
Permaneceu abrigada na nova casa no período correspondente à sua adolescência, fase esta
em que Alberti (2004) descreve a incidência de modificações físicas, aliadas à atualização
do saber inconsciente, com a reativação do Complexo de Édipo e seus desdobramentos.
Estabeleceu, nesta casa-abrigo, um laço com uma coordenadora, o que foi experienciado por
M. como da ordem do maternal. Este laço suportou, inclusive, seu relato sobre a morte da
mãe: “a primeira pessoa que eu falei foi a tia L. Lembro que eu contei e chorava, chorava.
Demorou prá eu falar”.(...) “demorei dez anos para conseguir contar o que aconteceu”.
Esta funcionária, porém, foi afastada da instituição, o que provocou evidente sofrimento de
M. frente a mais este rompimento.
As recorrentes transferências dos adolescentes para outras instituições, assim como as
demissões e transferências dos profissionais, atualizam as vivências dos rompimentos
afetivos experenciados por estes abrigados no âmbito de suas famílias de origem.
Apontamos para a necessidade de um trabalho, por parte da instituição, que possa sustentá-
los subjetivamente, nestes momentos de transição.
M. ressalta que, nesta casa, teve a possibilidade de realizar alguns cursos, vindo de acordo
com o que se inscreve no ECA.
Apesar das inúmeras adversidades de sua história de vida, M. demonstra ter recursos
subjetivos que a possibilitam fazer escolhas, visando um projeto futuro.
Em seu relato, emerge o medo no confrontamento com o outro sexo como se lhe faltasse
referências para dar conta do sexo que não o seu. Alberti (2004) afirma que o encontro com
o outro sexo introduz um limite para o sujeito, no que se refere à própria experiência: nela
desconhece como submeter o parceiro aos seus desejos, bem como se seus desejos serão
correspondidos.
125
Ao descrever o encontro com o outro sexo
43
, indica a permissão do abrigo para que isto
ocorra, aliado a um cuidado em relação às abrigadas. Esta permissividade representa um
respeito em relação aos sujeitos adolescentes abrigados, uma vez que favorece o desenrolar
do adolescer. Segundo Alberti (2004), o sujeito adolescente irá se deparar com o Real do
sexo: confrontação com a impossibilidade da completude entre os sexos.
Este mesmo abrigo permitia as saídas externas, apresentando um atendimento diferenciado
em relação ao abrigo T., sinalizando uma posição institucional que vem ao encontro do que
se inscreve no ECA.
As relações estabelecidas entre mãe, pai e criança são fundamentais para a constituição
subjetiva do sujeito. M. teve esta vivência, no âmbito familiar, em um período limitado de
sua vida. Como coloca Alberti (2004), na adolescência, o sujeito se depara com o fato de ser
simbolicamente castrado e com a dimensão da falta inerente à condição humana. No relato
de M. emerge, diversas vezes, a importância de ser cuidada, tutelada. É isso que busca ao
fugir da casa da madrasta, e se estende ao ambiente dos abrigos, nos laços que estabelece
com os educadores. Essa necessidade é apresentada por M. de forma acentuada, o que em
seu discurso aparece como “falta de mãe”. A função materna não precisa coincidir com a
pessoa (mãe) e aqui é aplicada aos educadores, à medida que atribui a estes esta função.
Transferencialmente,é o que busca suscitar: ser cuidada. Este pedido latente atravessou toda
a entrevista.
O desabrigamento é um dos aspectos que compõe o abrigamento, devendo ser tratado e
trabalhado, desde a entrada dos sujeitos na instituição. A efetivação do desabrigamento de
M. transcorreu de forma totalmente imprópria, evidenciando a escassez de um trabalho que
fundamente a ação do abrigo, bem como de um preparo junto à adolescente. O que se
efetivou foi o mero cumprimento da lei, da norma, sem qualquer atenção em relação ao
sujeito implicado. No caso de M., seria de extrema valia que esse preparo tivesse
acontecido, pois o abrigamento foi vivenciado por ela como proteção e tutela.
O fato de estar trabalhando, provocou a aceleração de seu desabrigamento, o que não é
coerente com a normatização, pois ainda não completara dezoito anos.
43
“Quando se trata do encontro com o sexo, o que está em jogo sempre é o Outro sexo, mesmo quando o
sujeito prefere um parceiro do mesmo sexo (Alberti, 2004:69)”.
126
O abrigo não cumpre o compromisso firmado com a adolescente no que se refere ao custeio
de uma pensão por um período determinado.
M. descreve o abrigo como ocupando uma função da ordem do familiar, o que a sustentava e
auxiliava na organização de aspectos práticos. Neste processo de desabrigamento,
confrontou-se com o desamparo fundamental, onde o Outro não mais a protegia e, da mesma
forma, não mais teria este Outro a quem responder.
Neste processo, buscou referências em outras figuras de autoridade: no trabalho, nos adultos
com quem manteve laços significativos, quando abrigada, e em pares que compartilharam a
mesma vivência.
O trabalho que desenvolvia teve fundamental importância para M., frente à vivência do
desabrigamento. Buscou neste, o suporte afetivo e financeiro que possibilitou sua
reorganização e sustentação neste período. Pode-se dizer que encontrou, na empresa, aquilo
que seria imprescindível e que o abrigo não lhe ofereceu nesta fase de transição.
44
M. descreve despreparo para tarefas de ordem prática e avalia este aspecto como uma
deficiência do abrigamento. Assim como, no encontro com o outro sexo, quando
desabrigada, diz-se também despreparada. Alberti (2004) descreve que a identificação e a
escolha sexual levam também à desconstrução de ideais já existentes e à necessidade de
construção das próprias escolhas. M., ao encontrar-se com a real impossibilidade do
encontro sexual e com a conseqüente descoberta da incompletude, assume sua dimensão de
falta, embora expresse dificuldade em lidar com seus desejos e fantasias.
Assim como N., M. discorre sobre os outros pares com quem compartilhou o abrigamento,
pontuando aqueles com os quais se identifica e aqueles que não. Fala sobre as escolhas
frente ao desabrigamento e ao fato de terem que arcar com seu estar no mundo. Frente ao
confrontamento com o desamparo fundamental, fazem suas escolhas e se inscrevem na
cultura com os recursos que simbolicamente possuem, somados às possibilidades
econômicas e sociais que lhe são oferecidas.
44
Este trabalho tinha como característica ser um programa que só atendia jovens abrigados, preparando-os para
o mercado de trabalho. Era composto por atividades profissionalizantes e por desenvolvimento de um trabalho
prático.
127
M. menciona um dos pares que engravidou, e que não pôde permanecer com o filho, por não
ter condições de sustentá-lo. Este fato retrata como, muitas vezes, estes adolescentes
reproduzem, através dos filhos, as mesmas histórias que culminaram em seus abrigamentos.
Apesar das aparentes dificuldades, M. nos sugere ter atravessado o processo que envolve o
adolescer. Vivenciou seu abrigamento como capaz de lhe oferecer tutela e onde estabeleceu
laços com pessoas que lhe forneceram referências. A muitas delas recorre, atualmente,
buscando sustentação para a superação das dificuldades com que se confronta. Seu discurso
apresenta, muito além da queixa daquilo que o abrigo possa não lhe ter oferecido, a
importância do mesmo, na sustentação subjetiva em seu transcurso do adolescer.
Encerra a entrevista, solicitando a ajuda da pesquisadora na busca de um local para morar
sozinha. Como se agora conseguisse estar só, sem necessidade de estar tão próxima às
pessoas, como até então aconteceu.
4.3 - Terceira entrevista: caso P.
A terceira entrevista foi realizada com uma adolescente de 16 anos, que mora em um abrigo
da cidade de São Paulo. Conhecíamos essa adolescente, nomeada aqui como P., da casa de
retaguarda que trabalhamos, onde essa permaneceu por quatro meses. Após este período, foi
encaminhada para uma casa de permanência. Na época, foi a pesquisadora quem a levou.
Todas as adolescentes que chegavam na casa de retaguarda eram informadas que: sua
estadia estava condicionada ao momento que surgisse uma vaga em uma casa de
permanência. Quando havia uma vaga à disposição, a direção e a equipe técnica (psicóloga e
assistente social) estabeleciam quem seria encaminhada. A adolescente tomava ciência da
vaga, assim que ficava decidido que ela iria para a nova instituição, ficando combinado data
e horário, a fim de que pudesse ter espaço para se organizar e se despedir dos colegas e
funcionários. No período que antecedia sua transferência, eram realizadas as transferências
escolares, médicas, etc.
O processo de encaminhamento para o abrigo de permanência, na época, incluía uma
entrevista preliminar na instituição que receberia a adolescente. Esta entrevista foi realizada
128
com a adolescente e com o profissional que a acompanhou (no caso, a pesquisadora). A
nova instituição colhia dados referentes ao comportamento da adolescente, na casa de
retaguarda, com os funcionários e com as outras adolescentes, a rotina da adolescente
(atividades que desenvolvia, como cursos, escola, etc), o histórico familiar (familiares
existentes e contatos realizados) e a condição de saúde física. Uma das exigências desta casa
de permanência, para receber a adolescente era de que esta não tivesse envolvimento com
drogas, nem vivência de rua e que tivesse o perfil de alguém que se adequasse bem às regras
e à rotina da nova casa.
No caso de P., após o seu encaminhamento, não tivemos mais contato. A entrevistadora a
reencontrou anos depois, para a realização da entrevista. Esta foi realizada no local onde ela
fazia um curso, durante a semana Contatamos a instituição em que a adolescente residia,
solicitando autorização para a realização da mesma.
A entrevista aconteceu em dois dias, 10 e 28 de agosto de 2006. Após a finalização da
primeira, a adolescente pediu para a pesquisadora que marcasse um novo horário, em que
pudesse falar mais. O novo encontro foi marcado.
Em seu histórico, constava que P. e sua irmã (quatro anos mais velha) eram órfãs de pai e
mãe. Sua mãe foi morta quando cometia um assalto. Na época, P. tinha cinco anos de idade.
Ela e a irmã moraram um período com o pai e uma tia paterna. Porém, seu pai também foi
morto e os vizinhos denunciaram a tia por maus tratos. P. quase foi adotada, permanecendo
com esta suposta adotante, durante três anos, porém, sua irmã não autorizou a adoção. Foi
encaminhada a um abrigo de permanência, mas não se adaptou. Foi então, encaminhada ao
SOS criança, sendo no mesmo dia, levada para a casa de retaguarda.
Atualmente, essa casa de retaguarda não existe mais. Com o processo de municipalização do
atendimento de carentes e abandonados, no Estado de São Paulo, todas as casas do estado
que atendiam essa população foram fechadas, e as crianças e adolescentes, encaminhadas
para casas da Prefeitura de São Paulo.
P: Puxa, lembra da casa da D.?(casa de retaguarda). Lembra da M? Tá na rua. E a E.F.,
lembra que ela fazia programa com os caras? Voltou a fazer. Credo, um monte daquelas
meninas que ficaram lá, tão na rua. Tem umas no centro, outras na praia, em Santos, por
129
aí. Tem umas que eu sei que tão em uma casa-abrigo. O C.(casa-abrigo) a Senhora
conhece? Lá tão a B. e a J. ... Caramba! Lembra da M.? Puxa, ela voltou prá Bolívia,
lembra dela? Todos os tios achavam que ela era santa, mas ela fazia tudo por trás, debaixo
dos panos. Que nem a J., que faz tudo assim. Nossa, lembra quando a tia D. ficava brava?
Credo... sai de baixo! Ela acabava com todo mundo. Prá mim, isso era falta de rola. Né? As
tias ficam sem e descontam na gente. Lembra de uma tia, do cabelão, mó louca, que tinha
um namorado locão também? Ela era legal. Puxa, tinha a tia R., a tia, S. ..., encontrei ela
numa casa que eu morei, mas mandaram ela embora, porque falaram que ela era muito
boazinha, que não se impunha prás crianças. Mas quando ela era da casa da D., ela era
legal, ela fazia bingo com a gente, lembra? Quem se comportava, ela fazia bingo.
Lá em casa, as tias ficam na seca e descontam na gente. Se elas dessem um pouquinho, não
ficavam assim, ficavam mais relaxadas, trabalhavam mais felizes. Que nem, as tias adoram
jogar as coisas na cara, meu, eu detesto quando elas fazem isso. Por exemplo: você tá
limpando a cozinha, daí ela acha que tá mal feito. Daí começam a reclamar: - Bom, quem
mora aqui são vocês, vocês que fiquem na sujeira. Devem ter vindo da favela, eu saio daqui,
filha, e vou pra minha casa, com a minha família, agora você, fica aqui. Deixa sujo, deixa.
Meu, isso dá um ódio, uma raiva. Uma vez, lá na D., eu falei:- Ah, é? Vocês querem
limpeza, então vai - joguei água pra caramba, e demorei, demorei, um tempão. E a tia
falou: Nossa, como tá ficando bom... mas não dá pra ir mais rápido? Agora vai ficar bom.
Espera...(risos). Demorei um tempão.
Elas pegam no nosso pé. Aquela tia que a senhora falou, no telefone, é uma que quando
começa, credo! Outro dia briguei com a mulher da cozinha. Ela ficou regulando um pão,
ficou falando que eu ia ficar gorda, que ela não ia dar. Eu até gosto dela, mas eu falei:
Meu, por que você não enfia esse pão no seu cú? O pão, a cozinha, a comida, enfia! A tia
veio falar comigo e eu expliquei: meu, ela me regulou um pão. Por que? O que ela vai fazer
com um pão? Eu sei quando tenho que comer menos.
A comida lá na casa da D. que eu não comia. Eu, não. Aquela comida inchava a gente,
todas as meninas. Tem salitre naquela comida, urgh. A comida de onde eu tô é aquele
básico, eu não gosto muito. Fiquei de disciplina, por causa dessa discussão, mas só uma
semana.
Depois que saí dali, lembra, tia, quando você me levou? Fiquei com um medo, chorei tanto,
tanto. Me deu raiva do homem da perua, eu chorando e ele rindo da minha cara. No fim foi
bom, porque lá tinha menino, era bem casa, era uma casa mesmo. Também tinha escala,
tudo, mas era diferente.
130
Só que lá era diferente, eles não deixavam a gente telefonar que nem lá na D. , e quase não
falaram com a minha tia, acho que falaram só uma vez. Daí, eu parei de ir lá, fui parando,
parando, não fui mais. Nunca mais. Ela também tem aqueles pensamentos antigos, sei lá, a
minha tia adotiva. Pensa assim: ela foi prá Febem, tá lá com os bandidos. Só porque eu fui
pro SOS, ela já pensa assim. Não fiquei lá nem um dia, nem dormi lá... só fiquei um pouco,
até que a mulher me levou, mas ela, sei lá. Ela não entende. Meu, eu era mó mimada, tava
acostumada no conforto, no bem bom, lembra, tia? Eu estranhei pra caçamba.
Tinha um monte, um monte de roupa boa. As meninas, se bobeasse pegavam tudo. Eu
guardava no pertence. Quando a tia me levou, ainda tinha um monte. Eu era muito
pequena, tinha só nove anos.
Nesse novo abrigo, eles dão roupa nova só no Natal; durante o ano, é usada mesmo, de
doação que as pessoas fazem. Eu era pequena mesmo. Tem uma menina lá na nossa casa
que tem 10 anos, a A., mas ela não é que nem eu era, ela é assim, conhece tudo, já.
Eu perdi meu cabaço o ano passado, a mina, sei lá, acho que já foi. A tia não sabia. Mas
esses dias tive que contar porque eu falei que queria ir no ginecologista, daí né, tive que
falar que eu não era mais. Senão, até hoje, ela não ia saber. As tias falam assim: o que
vocês acham? Que vão no médico, que vão tomar remédio? Pílula, né? Não vão não, prá
quê? Prá sair dando por aí? Não vão não.
Lembra das meninas lá do abrigo?(casa de retaguarda). Meu, as meninas davam pros caras
tudo, lembra? Prá aquele T., nossa! A tia falava: -Você dá prá aquele pinto sujo? Pinto de
ferro, ela falava, porque todo mundo queria dá prá ele. As meninas viviam na pensão do
cara. Saiam da escola, iam pra pensão. Atrás dele e dos amigos dele. Um dia, a tia catou
ele e falou um monte e ele parou de ir lá, mas não adiantou muito por causa das meninas. A
P. morena, ela foi prá praia com ele, voltou... Ela era tão bonita, virou aquele trapo, aquela
coisa. Sabe a A., que eu tô te falando? A pequena? A menina bebe, e tudo. Eu não bebo
mais. O sargento me pediu. Não é porque ele morreu que eu não vou cumprir, eu prometi,
nem uso mais droga, pode oferecer que eu não uso.
O sargento me adorava; sabia que ele ia me adotar? Ele me adorava, tudo ele me
perguntava. Todo mundo tinha medo dele, mas ele gostava de mim. Também, eu não mentia.
Às vezes, passava o pano prás meninas, mas não mentia, não. Disfarçava.
Sabia que, por minha causa, ele deixou todo mundo fumar? Eu cheguei lá e contei prá tia
que eu fumava, não adiantava nada esconder. Aí, ela falou que lá não podia e pegou meu
cigarro. Ele viu e me perguntou se eu ia continuar fumando. Eu disse que ia, que era vício e
que não dava prá eu parar assim. Daí, ele perguntou se eu ia fumar escondido. Eu falei que
131
ia. Prefiro falar a real do que,que nem, as meninas que ficam fumando, pedindo pros outros
na rua. Eu falei a real. Daí, ele falou prá tia me devolver o cigarro, e disse que preferia que
eu fumasse ali do que na rua. Depois até uns meninos começaram a fumar. Eu que comecei
com essa coisa de cigarro. Foi por minha causa que começou.
Nossa, ele acreditava em mim. Me deu uma raiva que ele morreu. Só porque ele ia me
adotar. Ele sempre ia lá, perguntava como eu tava, morreu de câncer. Com quarenta e
poucos anos. Que raiva.
Uma vez, eu e as meninas cheiramos cola, nossa... chegamo lá tudo esquisita. Eu achava
tudo engraçado, dessa vez que ele me deu bronca. Perguntou prás meninas, quem tinha
pegado a cola e eu falei que tinha sido eu, prá passar um pano prás meninas. Ele falou que
era mentira minha, ele sabia que eu não sou disso. Daí, a menina, grogui de tudo, falou que
tinha sido ela. Ela falou, ele ficou tão bravo, achei que ia me bater. Gritô, gritô, e disse que
só não ia bater em mim, porque tava na frente dos outros. Daí eu jurei, jurei que não ia
fazer mais isso e não faço mesmo; não é porque ele morreu que eu vou fazer, eu jurei, tá
jurado. As tias ligaram pra minha irmã, falando um monte de mim, que eu era isso, que eu
era aquilo. O quê? Minha irmã é firmeza, ela me defendeu, ô. Ela falou:- É por causa das
coisas aí, ela devia tá em casa, já falei prá ela. Ela não vem, porque não quer. Eu fico na
minha irmã, mas sinto maior falta do abrigo, aí, fico lá ligando prá casa, converso com os
meninos, com as meninas, fico pendurada no telefone.
Acostumei lá com um monte de gente. Em casa é muito parado, fico um pouco lá e já fico
querendo voltar, é muito quieto. O que tem lá? Minha irmã, minha sobrinha, só. Ah, e meu
cunhado.
E uma vez que eu briguei com a minha irmã? Fiquei um tempão sem falar com ela. O
sargento me defendia. Minha irmã ligava lá e ele falava: - Você não tá vendo que ela não
quer falar com você. Não liga mais. (risos). Ele me defendia.
Eu briguei com ela por causa do meu cunhado, que foi mó ignorante com ela. Disse que
queria bater nela, quando eu vi, fui prá cima dele. Bati, mas bati. Daí, ela ainda foi
defender ele. Daí me deu uma coisa... bati nela também. E vim embora, prá casa. Fiquei um
tempão sem falar com ela. Até no Natal, não quis nem falar, nem ir lá.
A tia falou que a gente ia ficar no abrigo. O quê? No abrigo? Falei: se eu ficar no abrigo,
eu quebro tudo, eu apronto, nossa, não vai prestar. Aí, no fim, fui pra casa de uma tia: eu, a
J. e a A. Ficamo lá. A tia falou: - Não vão beber. Eu ainda não tinha prometido nada, o
quê? Bebi cerveja, bebi champagne, bebi vinho, nossa, bebi tudo. Daí ficamo lá na varanda,
132
vendo o pessoal passar na rua. Um menino ficava me olhando, me olhando, daí a J. falou: -
Vai lá, fica com ele. Mas eu não queria ficar não.
Sabe, eu gosto de um menino que foi lá do abrigo, ele foi embora, foi pra casa dele, e as
meninas não querem que eu fique assim. Daí a J. falou: vai lá. Eu disse pra ela: - Só se você
for também. Daí tinha um amigo dele, e sabe como a J. é? Toda assim, se veste que nem
putona, fica com todo mundo. Eu não, eu não gosto. Daí a gente desceu. Meu, eu tava
falando, quando tava lá em cima que o menino era feio. Meu, o menino era lindo. Nossa, a
J. falou:- Ele é lindo! E era mesmo, eu fiquei com aquele menino lindo. A gente foi dar uma
volta, lá em cima, depois da curva, de uma subida que tinha. Lá eu fiquei com ele e a J. com
o outro. Mas só dei uns beijos, saí fora, não gosto que fique assim, credo, me pegando,
urgh. A tia falou outro dia que viu ele e que ele perguntou de mim. Ai... (risos), bonito, mas
nada a ver, gosto do menino que era do abrigo, não adianta.
Agora, que eu falei pra tia que tinha dado, ela quer que tome injeção, pra quê? Eu não dou,
prá que vou tomar? Dizem que faz maior mal. Eu não. Qualquer coisa, usa camisinha. Eu
falo, não quero pegar doença, nem fica grávida. Mas as tias têm medo.
E um dia que peguei disciplina? Lá onde eu moro, agora chama disciplina, e não castigo.
Não pude sair no final de semana. Eu sai de casa e falei que ia na casa da minha irmã. Só
que daí, fui pro salão, fiquei lá a noite inteira, só que daí, não quis ir prá minha irmã, tava
mó cedo, queria ir pra casa direto. Fora que eu queria chegar logo, porque eu não tinha
comido nada. Não tinha comido desde o almoço do outro dia. Fui no salão, bebi, e ainda
passei mal, mó mal. Os meninos me levaram mó perto, e me deixaram lá. Sempre vou nesse
salão, conheço todo mundo lá. Daí, quando cheguei em casa, a tia perguntou onde eu tava.
Falei prá ela que tinha descido do ônibus e que, ao invés de ir pra casa, que tinha ido pro
centro, ficar com uns malucos lá que eu conheço. Menti porque já pensou se eu falo pra tia
que passei a noite no salão? Nossa, ela me mata! Mil vezes falar que eu fiquei no centro que
dormi por lá nos buracos, do que falar do salão.
A tia ligou prá minha irmã e me pôs de disciplina. Minha irmã é firmeza, me defendeu.
Minha irmã me leva tudo, tudo mesmo, ou senão, eu pego lá, quando vou. Me dá pacote de
cigarro, me dá creme, xampu, essas coisas. Os meninos falam que eu sou Patricinha,
porque eu fumo Free. A minha irmã só me dá Free. Quando eu briguei com ela, comecei a
fumar Derby, que eu comprava com o dinheiro que eu tinha guardado. Os meninos me
zoavam: ish, tá pobre? Até minha irmã, quando a gente voltou a se falar,falou: - Derby? Eu
falei pra ela: é né. Tô pobre.
133
Uma vez, essa que fiquei de disciplina. Eu tinha um dinheiro, daí as meninas compraram
vinho, e a gente tomou uma garrafa num dia. No outro dia, elas compraram mais duas e
ninguém viu. Porque lá não é que nem lá na D., não fazem revista, nada. Daí a gente bebeu
mais duas garrafas. Nossa, os meninos me viram dançando, pela janela, e depois eles
falaram que acharam estranho que eu tava de top. A P. de top? Porque eu não uso essas
coisas, as meninas usam, mas eu não. Não gosto dessas roupas. Aí a tia percebeu. Nossa,
deu maior confusão. Foi o último dia que eu levei bronca do sargento, depois disso, nunca
mais, nunca mais mesmo. Pode me oferecer que eu não quero. Mas aquele dia a gente
zuou.(risos).
Depois que eu fui lá prá casa-abrigo F.F., fiquei lá um tempo. Lá era bom, como eu falei;
uma casa assim, como uma casa. Ia prá escola e tudo. Mas daí, lá fechou, daí me
mandaram pro D.B., também fechou, daí me mandaram pro N.L; só que lá tinha uma tia
que eu conheci na primeira casa que eu morei, quando saí da casa da minha tia adotiva.
Essa tal de C. me odiava. Logo que me viu, disse: aqui você não vai ficar. Quando eu fui lá
prá A.B., a primeira casa que eu fiquei, aprontava pra caramba, também... lá era de freira.
Imagina? Freira. Não dá, né? Bom, essa tia fez que fez, que eu fui embora. Ainda fiquei lá
um pouco, fiz curso de rádio e locução, mas logo me mandaram pra esta casa onde eu tô.
Lá que eu encontrei de novo a J. Teve uma outra menina, que foi da casa de passagem, que
dava uma de boa, queria bater em todo mundo, por causa de um moleque, lá. Meu, quando
eu vi ela chegando lá em casa falei: - Você lembra de mim? Ela disse que não. E eu disse
que lembrava muito bem dela. Rapidinho ela se mandou, foi embora.
Agora, lá em casa, eu me dou bem com todo mundo: com os meninos, com as meninas,
acostumei a morar tudo junto. Que nem eu falei, não consigo ficar muito na minha irmã.
Quero morar lá até eu ficar de maior, aí depois, eu vou morar na casa que é minha, que
minha tia, aquela que ficou comigo, quando minha mãe morreu, tá morando; tiro ela de lá e
fico morando lá. É minha.
Daí, enquanto eu tô na casa, vou aproveitar e fazer curso, estudar, isso tudo. Agora, tou
fazendo a oitava, com esse negócio de mudar de abrigo, fiquei atrasada na escola. Tou na
oitava, mas tô fazendo supletivo, em um ano e meio acabo, tô com 16, dá certinho. Também
tô fazendo um curso no S., um curso sobre trabalho. Tô bem assim, prefiro ficar no abrigo.
Faz pouco tempo que eu fiz um curso, tipo curso, lá em Bragança Paulista, fiz regressão. A
tia falou se eu queria e eu disse que queria. A J. já tinha feito. Chama A, tinha muita gente
de tudo quanto é jeito e lugar, daí, na regressão passei mó mal, as mulheres de lá até me
ajudaram. Lá eu vi que a minha mãe me abortou quatro vezes, quer dizer: me abortou na
134
primeira e eu voltei, me abortou na segunda e eu voltei de novo, na terceira de novo, já na
quarta, ela não conseguiu. Daí eu entendi que eu escolhi mesmo esta mãe. Eu voltei várias
vezes, eu escolhi, agora entendo melhor as coisas. Antes, eu tinha um sono de ficar o dia
inteiro dormindo. Acordava tomava café, dormia. Acordava, almoçava, dormia. Acordava,
jantava, dormia de novo e dormia a noite inteira. Lá no curso, me falaram que era um jeito
inconsciente que eu tinha de morte. Um sono de morte. Quando a gente dorme, nosso
espírito sai do nosso corpo, e a mulher falou que podia acontecer de, um dia, eu não
acordar mais, de eu não voltar. Sei que melhorou. Ce vê, tô fazendo o curso, tô estudando...
Às vezes, eu chego em casa e fico cansada, fico querendo dormir, mas só às vezes. A tia
fala: - A vida não é esse mole que vocês têm, não! Meu, eu fico cansada. Às vezes, tem coisa
pra fazer do curso.
Havíamos combinado com a responsável do abrigo um tempo determinado para a realização
da entrevista. Interrompemos a mesma e demos continuidade dali a duas semanas, no
mesmo horário.
Pesquisadora: Ontem, liguei no abrigo para confirmar nosso encontro, e disseram que vocês
tinham ido ao médico.
P: É mano, ontem a gente chegou do curso, almoçou e as tias foram logo falando prá gente
tomar banho que íamos no ginecologista. Elas nem avisam a gente antes, credo! Falam em
cima da hora. A J. também foi, mas não deixou a mulher examinar não. A mulher foi me
enrolando, primeiro me pesou, depois me mediu, depois tirou a pressão, daí que me
examinou. Fiquei meio nervosa, meia hora prá olhar, e eu lá com as pernas abertas. Falei
pra mulher: - Meu, vai demorar muito? Caramba, que demora! Daí ela falou que eu tava
com uma ferida. Perguntou se eu tinha vida sexual ativa. Falei prá ela que já tava até
criando teia, que virou museu. E daí ela disse que era no fundo e não parecia mesmo de
relação. Como não tenho nada e nunca tinha feito isso. Papa, né? Então, vai vê que já tava
aí, há muito tempo, e eu não sabia. Agora vou ter que fazer uns exames lá. Tirá sangue, o
outro chama ultra, sei lá, não sei direito o que é não.
Pesquisadora: Ultrasson?
P. È esse mesmo o nome. Vou fazer. Falei prá mulher prá apressar o mais rápido possível
pra ver o que é. Fiquei com o maior medo, fiquei pensando: -E se eu tiver com HPV, meu, e
se eu tiver doente? Mó ruim. Sabe, eu tava ficando com um menino lá do abrigo. Dei uns
beijos nele, mas eu avisei desde o começo. Eu não sou fiel, eu não quero e não vou levar a
sério, não é nada sério. Avisei o menino. A gente ficou mais ou menos uma semana. Daí eu
fui prá escola na terça e o B. apareceu lá. Já veio tirá satisfação comigo: - Quem é esse
135
frango, que eu vou pegar ele. Eu disse prá ele: - Meu, não é frango, não é galinha, não é
pintinho, não te interessa. A gente já não namora mais. Que cê tá falando?
Eu falei prá ele que não queria mais ficar com ele, já tava com ele desde o final do ano
passado. Falei prá ele que queria beijar outras bocas, que não queria ficar com ele, não. E
daí ele aparece lá na escola falando um monte. Ainda bem que o outro menino, lá do
abrigo, não foi. Meu, o B. é capaz de fazer ele de paçoca, eu tenho medo, sei lá. Bom, daí já
tinha discutido com ele um monte, e até tava achando engraçado. Daí pensei: poxa, ele veio
até aqui só pra me ver, tá tendo maior interesse, ah, vou dar uns beijos nele!
Como eu já sabia, que ia chegar lá no abrigo, e o menino que eu fiquei ia saber, logo que
cheguei já fui avisando: Ó, o B. foi lá na escola e eu dei uns beijos nele. Ele veio falar,
porque eu tinha feito aquilo com ele. Eu falei: eu te avisei, você sabia. Falei que ia ser
corno, não menti e nem te enganei. Daí o L. veio se meter, defendendo ele. Falei pra ele:
meu, que cê tá dizendo? Não foi com você, o corno é ele e não você. Você não tem nada a
ver com isso. Nossa! Ele foi até falar com a tia. Eu falei: firmeza, porque uma outra vez ele
aprontou comigo, depois veio pedir desculpa. Mas eu avisei, desta vez, não vem, não, não
vou voltar mais a falar com você. E não vou mesmo. Ele se mete numas coisas que não tem
nada que se meter. O menino é folgado, folgado tia, tem que ver.
O pior que o menino que eu gosto tá em Minas, ele eu gosto mesmo, ele eu não colocaria
chifre. Não sei aonde ele mora, não tem nem como mandar carta, nem endereço eu tenho,
ele é a paixão à distância. Ele era de lá do abrigo. Não tinha, também, nem como namorá
ele, fica todo mundo te controlando. Não deixam a gente namorar. Não, mano. Não dá pra
gente namorar, credo (namoro dentro do abrigo).
Tem umas meninas que namoram uns meninos da escola e não falam que moram em abrigo.
Eu não, eu falo, pelo menos eu tenho teto. As meninas que moram lá na rua, que ficam lá na
Sé, nesses dias de frio, vão todas lá pro C., é tudo louca, muita cola.
Ô tia, eu acho a cola pior que a maconha, acho mesmo, me dá maior pena, pelo menos a
maconha, é natural, tia. As menina compram saquinho assim, com um tanto de cola dentro,
um real, cada saquinho. Os caras vendem o saquinho prás meninas, porque a gente de
menor não pode comprar cola , né? Daí eles compram, e, sabe aqueles sacos de
salgadinho? Então, eles compram e vendem. Mais a cola dá pra sair sim, tem que ter força
de vontade. Cola, deixa aleijado, tia. Deixa retardado. O cara usa, fica meio assim, lesado.
As meninas usam prá nada, muitas usam cola prá esquecer os problemas, só que, tia elas
cheiram, cheiram, cheiram, e daí elas ficam querendo mais cola e cheiram de novo, cheiram
e cheiram. Aí depois, elas param assim, ó, e daí que elas vão ver onde elas tão. Nem sabe
136
onde tão. E mata, até o cigarro tá matando, eu fumo, mas to tentando pará. Maior grana, aí
é maior ruim. O ruim é que eu fico muito nervosa, começo a sentir falta. Tem dias que eu
vou fumar só às cinco da tarde, tia, os outros começam a falar e eu tô nervosa, fico nervosa.
O mais que eu consegui foi ficar até seis da tarde sem fumar, foi o mais. Eu não to indo prá
casa e minha irmã que dá dinheiro, né? Daí, eu vou lá na rua pegar, só que eu falo prás
tias, vai ficar mó mal pro P. (abrigo onde mora), pro nome do P.
Eu tô de disciplina, por isso não to indo pra casa. Me deixaram mó tempão. A tia chegou,
né, e falou que eu tava dando pro N. mais eu não tava dando pro N. Eu falei que não tava
dando. Só que os meninos ficam brincando de camisinha com a bexiga, aí, eu falei assim
prá tia que eu não tava dando, daí, eles encontravam as camisinhas e ficavam falando que
ou era eu ou era a J. Aí eu bufei, aí eu falei assim: Ó, eu to dando pro seu ma-ri-do, aquele
véio pançudo. Aí a tia bufou, aí eu fiquei de disciplina. Aí a tia virou e falou assim, que ela
tinha motivo de sobra pra fazer BO, né? Aí eu falei, faz BO, BA, BB, BC, B4, B5, faz o que
você quiser, o b a ba inteiro. Aí ela veio falar bosta, aí ela ouviu merda, falei mó pá pra ela.
Ela veio falá, que no sei o que, que no sei o que. Eu falei: fica quieta tia, já falou demais no
meu ouvido, não tô fazendo nada.
Isso foi na segunda feira passada, não na outra. Daí ela falou que eu ia ficá um mês, né? Aí
eu, tá bom, né. Vocês vão me deixar um mês, aqui trancada? Mas aí, ela me deixou de
disciplina, né? Daí, adivinha? Vou lá, no final de semana que ela não tá lá em casa, eu
saio. Ainda peço autorização prá tia. E ela deixa. Eu falo: ó tia, eu vou até lá em cima e já
volto, vou dar um rolê e já volto. Aí né, ó, ela falou que era um mês, né? Daí ela perguntou
se já tava acabando. Aí eu falei que só faltava um final de semana, só. Aí ela falou bem
assim: - Só mais um? Só tia, cê num falou que era um mês? E o outro, o outro e o outro,
começo a confundir a cabeça dela, aí ela se confunde. Que nem da J., ela pergunta e aí J.?
E você? Ela fala: já acabou. Já acabou? Tem certeza? Aí ela falou, N. já tá acabando? Só
falta mais uma, filha, porque eu vou pra casa no próximo. Lógico. Eu ouvi ela falando prá
orientadora, prá mandar eu prá casa o mais rápido possível. Aí a tia falou bem assim, né?
N. ouvi falar que a casa fica um sossego, quando você não passa o final de semana aqui,
você fica mexendo com os moleques, fica aprontando, faz os meninos fazer um inferno, cê
tem que ir pra casa.
Ela fala: não sei mais o que a gente faz com você, se te deixa de disciplina - você apronta,
se te manda prá tua casa, não adianta de nada. Ela tava falando que não sabe mais o que
fazê. Aí ó, prá cê vê. Acharam uma camisinha dentro da perua. Mas só que tinha revistinha
pornô. Ela não vem falar dessa revistinha pornô, ela só fala da camisinha. Aí depois, eu
137
cheguei lá e falei prá ela: tia, que história é essa que tinha camisinha lá na perua, mas que
também tinha revista pornô? E a tia fica falando que sou eu ou a J. Só que eu falei que
fiquei sabendo da revistinha pornô, né? Daí o sangue sobe e desce, aí depois eu falei prá
ela: o que eu vou fazer dentro da perua com camisinha e revistinha pornô? Eu já fiz siririca
e tive que usar camisinha? Os meninos que vão lá, à noite. Os meninos lá são tudo porco.
Só porque eu tava ficando com o menino, ela já foi dizendo que era eu. Eu já falo: eu não
dei prá menino daqui, porra nenhuma! Eu não dou prá qualquer um que queira me comer.
Aí eu falei prá ela: meu, eu tô falando a verdade. Eu lá vou ficar com esses meninos de
abrigo? Se eu gostá tudo bem, mas agora, se eu não gostá, sem chance. O único menino que
eu gostei de abrigo foi o R., mas só dele que eu gostei.
O D., ainda vem. Mas tem uns meninos tudo porco, com mor cheiro de suvaco. Eu falo prá
eles: pode passar um limão aí. Mó fedido. Quando é hora do almoço, aquele cheiro. Falo:
tia, ó esse menino aí, tia, mó cheiro. Lá é mó grande, mas só que aí, os meninos ficam longe
e não se cuidam, a gente fica separado - cada um dorme em um alojamento.
A gente dorme só com as meninas e com as pequenininhas. Tem que ver, elas são o cão. Um
mais louco que o outro, toma Gardenal, ainda. Tem uns lá que tomam, dois tomam, outro
não. Tem um de oito, um de nove e um de seis. É tudo o cão. De menina tem a de dez, tem a
de sete, de oito e de seis. O quê, mano? A menor é a mais atentadinha. Outro dia eu tava lá
assistindo a T.V, e ela falava: Prililin, prililin, prililin, arroz, feijão pra mim. E aí eu: meu
Deus sossega, fica quieta, e ela bem assim: acabou a empadinha acabou a empadinha,
acabou a empadinha...(cantando). Aí eu falei: ô não é assim não. E ela respondeu: é que é
outra versão. Pra ce vê. Tem uma parte que fala assim: é só Mara, sei lá não sei direito, eu
sei que ela fala assim: é só maracujá, cê acha?
E não tem a aquela música assim - festa no AP? Então, ela fala: é festa na floresta bobeou
levou na testa. E ela vira assim e dá na nossa cabeça... assim, ó: bobeou, levou na testa. E
dá um tapa na gente. Ploft. É desse jeito... até os pequenininhos. Chega no mês que faz
aniversário, ela fala: o que cê vai me dá, que cê vai me dá? Eu falo: não vou dá nada, não.
Ontem, vi ela com os irmãos dela, brigando com eles, eles queriam brincar e ela brigando.
Aí eu só ouvi ela falá: eu só vou brincá com vocês se vocês deixarem eu fazer o que eu
quiser. Aí os menino falô: não, não, a gente que começou, então cê não vai brincar. Então,
não vou brincá, e sentou lá fora. O irmão de seis anos falou: vamo, vamo brincá? Vamo,
vamo. Não, ceis vão deixar eu fazer o que eu quiser? Aí os menino: não, não, não, não.
Então, eu não vou brincá. Aí, o outro irmão dela: deixa ela faze tudo que ela quisé, ô. Aí os
menino: tá bom, você vai brincá. E daí ela: então vamo brincá de seu mestre mandô. Mas a
138
gente tá brincano de pega -pega... Aí ela: mas só vou brincá de seu mestre mando. Não, ah,
não, seu mestre mandou não. Mas é o que eu queria. Terrível ela. Esses irmãos são em
cinco é: Ja, Je, Jan., Ju e o C. O juiz tirô eles da mãe, a mãe não podia sustentá, o juiz
tirou. Tem que vê, tia. E eu falo prá ela: vem aqui, ó... seu cabelo, parece Chitãozinho e
Chororó. E ela: ô Ja! Olha ela.
Não tem um programa na Zorra Total, que tem a ver com o Chitãozinho e Chororó? Eu zoo
ela, e ela fala: Ah não, Pp. ... Seu cabelo ta pareceno do Chitãozinho e Chororó. Ah, não,
ah não Pp.
Ela é calminha, mas as outras meninas que tinha não era calminha. Mas ela, é mó comédia
essa menina. Bota música e fica lá dançando, ce olha e fala: parece gente. E ela, outro dia,
bateu no irmão dela, tem que ver, deu um safanão no irmão dela. Ela é mandona, cê não faz
o que ela quer, prá você vê. Ela fala que não pode falar palavrão. Outro dia, ela foi prá
escola e quando voltou, só xingava: Ô seus bando de filha da puta. Aí eu fui lá, falar com
ela: caralho, você não sabe que não pode falar palavrão? Você num tá falando?- Desse
jeito. Mas você não pode falar, você falô primeiro, não pode falar. Tem que vê ela falando.
Tem um parquinho lá, né? Tem um quartel atrás da nossa casa. Aí, ela fica de lá de cima
pros caras do quartel: ô totoso, ô totoso...- ela berra. A tia: Ai, meu Deus, desse tamanho e
já chamando os caras de gostoso.
Tinha a T. lá, né? A menina era pior que essa aí, ela mexia com os meninos lá de casa.
Provocava e tudo. Aí, né, os meninos tavam na sala assim, deitado, né? Aí, ela dizia assim:
é bonitinho, mas beija maaal. Os meninos queriam matar ela. Ela vinha da escola, aí ela
vinha correndo, me abraçava, e tinha uma outra, pequenininha, a L., ela ia prá creche, né?
Chegava da creche, que eles davam lanche, e ela guardava o lanche dentro da bolsa. Aí ela
chegava, e falava prá outra pequena: ó T., ó que eu te trouxe? Aí elas ficavam brincando
juntas, uns cinco minutos, aí ce só ouvia: sai daqui! Cê tá me deixando stressada. Desse
jeito. Sai daqui, sai. Aí a gente ia lá, e perguntava prá T., o que foi. Ela tá me deixando
estressada. Ela tá me deixando louca. É assim, tia. Ela falava assim: eu vou crescê, vou tê
bunda, vou ser mais gostosa que você. Vou namorar o namorado da P., desse jeito. Ela
falava pro D., que era um menino de lá, que ele era namorado dela. Ela foi embora, porque
a DRADS mandou levar todos os pequenos, só agora que tá voltando os meninos pequenos,
não os mesmos, a gente já tava até acostumado.
A L., logo que ela voltava da escola, ela ficava lá no sofá e no chão e não saía de lá, até eu
chegar; se eu chegasse às três horas, a menina tava lá, me esperando, não saia de lá até eu
chegar. Quando eu ia prá casa, a tia falava que era um sacrifício fazer essa menina dormir.
139
Quando eu ia saí, ela falava: não, você não vai prá casa não. Fica aqui com a L. As tias
falavam: tá vendo, ce não gosta de mimar? Agora fica. A menina, nossa tia, a menina, olha,
a primeira palavra dela foi P., hein? (nome da adolescente). Aí, depois, ela aprendeu a
falar palavrão com as meninas. Aí ó, ela tava um dia penteando o cabelo, ela é loirinha com
o cabelinho bem cacheadinho. Aí ela puxava daqui, puxava de lá, aí acho que enroscou o
cabelo e ela falava bem assim: Ai, caralho! Desse jeito. Aí a tia: que é isso?
E quando a mãe dela foi buscá ela? Meu Deus do céu, acho que a mãe dela ficou com ódio
de mim. Porque a mãe dela foi visitá ela. Aí L., olha a mãe dela, sua mãe. Não, não, não. -
ela falava. E a mãe dela: quem é a sua mãe? Ela saiu correndo e desceu lá pra baixo, né? A
mãe dela ia catá ela e ela: não! E não vai, não vai e não vai e não ia com a mãe dela. A
mãe dela: que cês fizeram com a minha filha? Nada fia, você não vem vê ela, não vem
nunca. Agora a culpa é nossa? Aí, a mãe dela deu danone prá ela prá comprá ela. Aí, ela
pegou o danone e saiu correndo. Saiu atrás de mim e disse: toma, toma. Eu: não, não L. Aí
ela: toma totoso.
Quando ela foi embora? Meu Deus do céu. Ela foi na perua, ela: entra, entra, senta, senta.
Falaram que ela ia embora, mas só que ela não entendia nada. Tem que vê, eu fiquei doente
por causa dela, lembrando dela na caminha ... as meninas choravam e me chamavam: o P.,
o P...e eu falava: ô vai dormi.
A gente ouve assim - as tias falam que a gente não pode se apegar nas crianças, porque é
uma casa de abrigado. Mas aí eu falei assim: elas acostumam com a gente que nem como
com as orientadoras, que a gente vai fazê? Uma vez, eu peguei o maior ódio da tia Z., né?
Porque tinha uma pá de minina pequena, lá na casa. Aí a tia pegô e falô bem assim pra
mim: não é pra você ficá pegando as menina pequena.
É que as menina não obedecia as orientadoras e só fazia o que eu pedia( risos). Ela grita e
as menina falavam: eu não vou lá. Daí eu falei assim: que se ferre, então, que se
mordam.Eu quero que me deixem em paz. Aí a tia pegou, né, e falou: P. você tem que ajudá
aqui.
A tia ia prá catá elas, elas saiam correndo. Mó pinote. Aí a tia pegô e falô bem assim, né,
passou uma semana, e eu não fazendo nada, aí a tia pegô, e começou a reclamar : a P., não
tá ajudando, ninguém obedece, tá terrível. Eu falei, não vô... não vô. Cê ficô falando bosta
prá mim, agora se ferre.
140
As meninas, não P., vai, vai. As meninas: vai, P. vai. Eu falei: ó, eu tô conseguindo dormi,
comê, sossegada, conseguindo fazê tudo certinho. Se elas não tão conseguindo, o problema
é delas. Não recebo prá isso. Aí, às vezes, eu brigava, né: eu não quero saber de vocês, eu
não gosto de vocês, bem assim pra elas. Aí, mas a gente ama você. Mas eu te odeio C., na
hora de ir embora a gente chorou junto. A menina, que eu gostava mais, falou: você vai me
buscar, P.?Vô, eu vô, não sei quando, mas eu vô. Eu sei onde ela tá, tô pensando em ir lá.
Só que a tia, ela não vai deixar eu ir. Tenho que ir escondido, porque ela, ó, disse que ela só
me chamô e, que eles ligaram lá do outro abrigo, na P., dizendo que, se ela continuasse
assim desse jeito, que iam devolvê ela. A tia disse que elas tavam ficando quase doente, que
tudo que elas faziam, elas ficavam chamando: P., P.,. Quem é P.?- a orientadora de lá
perguntou. Elas disseram: é uma abrigada. E a tia disse, então: se elas não melhorarem
aqui, a gente vai devolvê. Aí, a tia disse: então, você nem aparece lá no portão. Eu disse:
ah, lógico que eu vou aparecê. As meninas foi tudo transferida, porque, ó, foi transferida, a
L., C., M., D., C., R., e A., P. e M. Tudo pro mesmo abrigo. Todos pequenos. Aí a tia ligou lá
e a C., disse: deixa eu falá com ela, daí falô, falô. Cê num falô que vinha? Cê não falou? Eu
tô te esperando. Esperando, tá esperando...
Aí eu vô vê, antes de eu sair dessa disciplina, né, eu vô saí e ir prá lá, que é mais perto, qué
dizer, mais ou menos perto de onde a gente tá morando. Aqui é o bairro de V. C., lá é bairro
do J., é perto. Agora ficô a gente; os meninos que ficaram são um bando de fundungo.
Sabe, o que eu acho ruim de morar em abrigo? Eu acho ruim do abrigo, quando as tias
começam a mandar muito, sabe? Não conversam com você. Dá ordem, sabe? Traz os
problemas delas de casa. Aí, a gente que paga pelo pato. E as partes que são boas no
abrigo são: as meninas, os meninos, um monte de gente junto. Essa é a parte boa. E os
curso também, os curso são bons, é legal.
Eu, que nem eu falei, né?Do como vim parar aqui? A minha mãe morreu, daí eu fiquei com
a minha tia, que é irmã do meu pai; daí, meu pai morreu e eu fui pro abrigo. Depois que
meu pai morreu, eu fui pra um brigo de freira, o A. B. .Aí, depois eu fiquei lá um tempo, aí,
depois eu saí, a tia me mandou eu embora, porque eu aprontava. Também, trancada, né tia?
Direto sem sair, nem pra ir prá escola, estudava lá dentro mesmo. Daí, eu saí e fui pró P.,
no P., eu ia ser tipo, adotada, mas daí né, minha irmã não deixou. A minha tia adotiva. Sabe
tia, quando eu morava com aquela minha tia, irmã do meu pai, minha tia começou a bater
muito na gente, aí, antes do meu pai morrê minha irmã fugiu - nesta época, meu pai tava
preso. Aí, meu pai foi solto, daí, meu pai também morreu. Minha irmã foi falá com meu pai
prá mora com ele, mas logo que ele saiu, porque assim, lá no G.(bairro), as bocada era
141
tudo dele. Aí, quando meu pai foi preso, minha mãe assumiu uma parte, aí, quando ela
morreu, outras pessoas vieram e tomaram o lugar; daí, quando ele saiu, eles mataram ele.
É, foi isso. A minha tia que eu fui morá não era assim, muito pelo contrário, minha tia era
crente. Eu também tenho um irmão, que quase ninguém sabe, tia. Daí, minha tia batia
muito. Aí minha irmã falou assim, que ela ia sair, mas que ela ia voltá pra pegá a gente. A
gente era pequeno ainda, daí ela foi embora. Aí, depois ela falô que ia voltá pra pegar a
gente e ela não volto. Ficô eu e meu irmão né, aí a minha tia batia prá caramba na gente -
em mim e no meu irmão. Aí eu fiquei lá, né. Sabe, eu não queria ir embora e deixá lá o meu
irmão. Ela botava muito medo na gente, dizia que a gente ia prá Febem, Febem. Aí, quando
eu fui pro A.B. e quando eu não gostei, meu irmão ficou lá, na minha tia. Ele é menor que
eu. Eu falei assim, né, primeiro eu vô, depois você vai. Aí eu vô vê como que é lá, né? Daí,
se for ruim você não vai, se for bom cê vai. Cê ficá apanhando! Pelo menos cê sabe que, no
abrigo, a tia não vai te bater. Mas minha tia botava maior medo.
Daí, depois que eu saí desse abrigo, o A. B., eu fui pro SOS. Aí meu irmão ficô lá direto. E
em 2003, começo de 2004, eu soube que ele tava em abrigo. Ele não agüentou mais ficá lá
na minha tia. E agora ele tá na casa da minha irmã. Minha irmã descobriu que ele tava na
rua e chamou ele prá ir morar com ela. Minha irmã falou que não vai tirar meu irmão de
casa, prá deixar ele na rua ou morar no abrigo. Melhor ele ficar com ela do que ficar em
abrigo. Tiraram ele do abrigo que ele tinha ido e mandaram ele prá minha tia de novo, aí
ele foi morar com a minha irmã, aí o juiz falou que não, e mandou ele pro C.C. ( casa de
passagem), daí ele ficou na rua de novo. Daí minha irmã pegou e pediu prá ele ir morar
com ela, ele tá lá, mas tá escondido do juiz. Na próxima vez, que minha irmã for chamada
lá no Fórum, eu quero ir junto com ela. Que isso? Eles preferem que meu irmão fique na
rua do que ficá com a minha irmã? Vou falá uma pá de bagulho, ele tá em casa bem, e
vocês vão querer tirar ele? Se ele passa necessidade, pelo menos não passa na rua, passa
ao lado da família dele.
Eu sei lá, saí lá do A.B. e fui, depois, pro P., do P. que eu quase fui adotada e minha irmã
não deixou. Ela falou: Minha irmã, eu não vou deixá, ela não entendia aqueles negócios
direito. Disse: Não, não vou deixá. Acho que ela pensou que era uma família ruim, que ia
me levar embora... aí, minha irmã falou: não, não vai. Eu queria, lógico, maior vida mansa,
que eu ia tê, e ela não deixou. Eu cheguei a ficar um pouco e aí eu voltei, aí eu falei: ah,
não vou ficar nem na sua casa, nem na casa da tia de novo, vou pro abrigo. Daí que eu fui
lá pro SOS. Tinha dez anos, quando eu fui pro SOS. Aí fiquei lá um pouco, daí me
142
mandaram pro J.B., daí fechou e eu fui pro N.L., daí pra casa de retaguarda, pro F.F., e
assim vai, um monte de lugar. O lugar que eu mais fiquei é onde eu tô.
Também, quando eu cheguei tinha um monte de adolescente, quase tudo adolescente,
quarenta e cinco na casa. Já pensou, tia? Maior farra. Por isso que eu fiquei. Tinha farra
prá caramba. Nossa! E quando as meninas saíam do alojamento. Onde tá fechado, agora,
era o alojamento das meninas e dos meninos ... era lá embaixo. Ficava uma orientadora
com os meninos e outra, com as meninas. Aí as meninas, como eram poucas meninas, a tia
colocava as menores prá dormir e a gente também dormia.
Tinha uma, tia logo que eu entrei, que era um amor, um amorzinho de pessoa. Ela era
jovenzinha, aí juntava ela e parecia que ela era uma das abrigadas. Juntava eu, ela, a J., e
a A., aí a gente subia e aloprava a parte dos meninos. Jogava pedra na janela, no telhado, e
ela junto. Depois, descia todo mundo correndo (risos), pro tio não ver a gente. Fingia que a
gente tava dormindo. Daí o tio chamava: A., A., que era o nome da tia. E aí ela também
fingia que tava dormino e ia lá: oi, oi - maior cara de pau. O tio falava que tinha gente
batendo na janela e um monte de coisa, e ela dizia: deixa prá lá, deixa prá lá,eu tô
morrendo de sono e as meninas tão tudo dormindo. Aí o tio: não foi as meninas? Não-ela
respondia. A porta delas tá trancada e a chave tá aqui, elas tão dormindo. Uma vez, a gente
subiu, subiu assim, né... bem agachadino, pro alojamento dos meninos; os meninos viam a
gente da sala de TV, eles viam a gente, a gente não podia ir no alojamento dos meninos. Aí,
também, a gente dormia assim: tinha a C., e do lado dela tinha a F.,à noite, a gente ia lá e
colocava pasta no cabelo dela, pasta de dentes. E a tia ajudava. Ela punha também. A tia
era doidinha, doidinha. A tia falava: - vamos P., colocar pasta no cabelo de alguém. E eu:
vamo, tia. E a gente tacava pasta. Era doidinha. Ela saiu, porque ela disse que não queria
ficar mais no P., porque ela via as injustiças que faziam com a gente e ela não ia conseguir
mais ficar calada. Aí a tia pegou e falou assim: o quê? Tanta coisa que eu acho errado e
não vou poder fazer nada? Tinha tia, lá, que era maior mãezona e tinha tia que não, que
nem a tia A., que fazia tudo assim, com a gente. Aí, era um plantão tudo errado e outro
plantão tudo certo.
Aí, a tia A.nunca tinha fumado maconha. A A. ela era louca prá experimentar. Aí, um dia,
eu cheguei em casa assim, né, e disse pra ela: tia, hoje eu tô bem loca. Não agüento mais
fumar maconha. E ela disse: cê fumou tudo e não trouxe nem um pouquinho pra mim? Aí
eu: oxe tia! Ce tá louca é, tia? Não, eu queria mesmo. Então, tá, se você quer...
E ela era da família do sargento. Aí, ela era muito regrada. E ela sempre teve vontade de
fazer um monte de coisa. Até aí, ninguém ensinou. Aí, um dia, foi ela, fui eu, dentro do
143
banheiro fumá, dentro do banheiro. Porque foi assim: ela casou com um policial; quando
ela foi trabalhar no P. ela já era casada com ele, então ele dominava ela, eu falava pra ela:
tia, você é muito burra, faz tudo que ele quer, e ele não deixava ela fazer nada. Quando eu
tava fumando, ela falava: deixa eu fumar. Não tia, cê não vai por a boca no meu cigarro.
Mas acabava deixando ela fumar, aí a tia tossia (risos), tossia, tossia,...A melhor época do
P. foi essa. Um dia, eu falei prá ela: ô tia, eu trouxe maconha prá você experimentar. E ela
disse: porque você não me avisou? Eu pegava do meu marido. Ele dá uns enquadrões nos
meninos e pega a maconha deles e leva prá casa. E eu posso pegá prá mim. Ele levava prá
casa, antes de levar prá delegacia, né? Aí, dessa vez, eu falei: ô tia, é a última vez, viu? Daí
a tia falou: cê sabe o que eu vou sentir, P? E eu disse: a única coisa que vai dar é um
pouquinho de tontura. Então, tá - ela disse. E ela fumando com a gente? (risos) Durante a
noite, era firmeza. Ela trabalhava no plantão da noite. Aí, a gente ia assim, no meio do
mato, fumar um baseado e a tia, bem louca, lá com a gente. Ela bem louca lá com a gente, e
ela ria, eu falava prá ela: ô tia, pára de dar gana, tia. Porque ó: esperava os meninos
dormirem, trancava a porta, aí ia eu a A. e a tia fuma um baseado no meio do mato e aí a
gente voltava. E ela mó loca, dava risada. Ninguém agüentava. Nessa época, a J. não tava,
perdeu a melhor época do P.
Ela vivia reclamando do marido dela, ele obrigava ela a fazer boquete. Eu falava prá ela: o
quê, tia? Manda ele enfiar o pau no cu, tia, que é mano. Ela não, não sei o que, não sei que
lá. O que, tia? Ela dizia que casou com ele porque, além de ter ficado grávida, ainda tinha
o pai dela que era muito sério. Eu falava prá ela: ô tia, não faz mais não, não faz mais não.
Ela dizia que ele obrigava, eu falava prá ela: corre! Um dia, eu falei pra ela: - O tia, não
faz mais não, senão não dou mais meu cigarro prá você fumar não. Enfia a bocona lá e
depois, vem fumar do meu cigarro. (risos) Desse jeito.
Daí, né, o marido dela começou a ir lá no P.(abrigo). Ela não fazia mais nada que ele
obrigava. Aí, uma vez, ele foi lá no P. brigar com ela: é você não sei o que, não sei mais o
que, aí, quando você tem um tempo, quando eu falo uma prá você, você já retruca, começa
a fazer show. E eu só pensei: firmeza! Aí eu peguei e falei assim: ah, filho, você veio
discutir a sua relação aqui dentro do P.? Eu vou falar com o meu tio.- que era o sargento.
Você pode discutir, mas aqui não. E a tia: vai, vai. Pois ele prá fora. E ela era bonitinha.
Ela era loirinha assim, ó, com cara de monguinha...Assim até, não sei o que acontecia que,
quando o marido dela ia lá falar bosta dela pro pai dela, ela tomava na cara. Do pai dela.
Aí eu falava bem assim: do jeito que é, parece que casou com bandido, prá levar na cara.
Eu hein? Apanhar depois de casada. Que horror!
144
Ah, mas era a maior bagunça, depois, foi todo mundo embora. Agora, só tem vinte, às vezes,
vinte e cinco, no máximo. Não tem mais graça. Antes, cê tinha que vê, os moleques iam lá e
falavam com uma tia que era a maior fofoqueira. Eles falavam: tia, você vai ver aquela
estátua lá perto do coqueiro? Era tudo aquilo de moleque. Um bando de moleque cavalão.
E só tinha nove meninas. Cê tinha que vê. E os moleques falô prá tia M., lá do coqueiro,
sentava todos e, quando a tia ia lá vê o que era, os moleques ficavam aloprando, aloprando
a tia. Quando eles começavam a aloprar a gente, eu ficava bem quieta, só na minha. Aí, eles
gostavam de aloprar a A., porque a A., era a maior galinhazinha (risos).Aí a A., lá né, e
eles: vai, nota de um real, né? Aí, a A.ia lá dentro de casa: P., ó os meninos me aloprando,
me fala o apelido não sei lá de quem. Daí, eu ia lá e aloprava. Aí os meninos: É preta, cê tá
mandando a A. zoar a gente? Eu, hein? Não sei de nada.(risos). Aí tinha o G., né? O G. era
maior bonito, mas era muito folgado e a A. era apaixonada por esse menino. E ele era alto
e magro. Eu falava prá ela: chama ele de Vera verão. Aí, a A:- Ô primavera verão!!(risos).
E eu: - Chama ele de antenão, chama ele de antenão. E ela chamava. E ele falava: o P.,
você que tá mandando ela? E eu: eu não, eu não.(risos). Era tão legal. Daí ó: a A., foi pro
P.C. o G. foi pra o D., o J., foi prá Minas, o L. foi pra casa da mãe. O resto, a gente nem
sabe prá onde foi. Desfez tudo, mano.
Era prá mim tê rodado faz tempo, só não rodei por causa do sargento. Por causa dele. Toda
listinha que tinha, eu tava dentro. Aí o sargento: não, a P., eu não tiro daqui. E eu ficava lá
e eu atormentava o sargento, perturbava ele, nossa tia, só via as tias bufando. A tia Z., que
ainda trabalha lá, me deixava de disciplina no sábado, né? Daí ele chegava lá e falava: P.
levanta. E eu: eu não, tô de disciplina. Vô levantá prá quê? Prá vê mato? Ele: não, cê vai
saí comigo, hoje. E eu: eba! Daí, no outro dia, a tia vinha tirá um barato da minha cara:
como foi seu final de semana? E eu: foi ótimo, eu saí, eu fui comer no Mc Donald’s... Aí a
tia: quem mandou? E eu: o sargento, fala com ele. E a tia:- assim não dá, assim não é
possível, a gente coloca de disciplina... Aí, neste dia, o sargento chegou bem na hora, e
disse: que foi? Pode falar comigo, fui eu que tirei. E a tia: não, não é isso, é que, ela tava de
disciplina. Ele perguntava porque. Ela falava e ele respondia: Por causa disso ela tava de
disciplina? Por causa dessa besteira?- ele falava. Ela não agüentava, mas ela escutava.
Ele me levava no Mac, às vezes, no Ibirapuera; às vezes, quando ele tava com disposição, a
gente ia lá pra chácara dele. Nem tem como pensá maldade, porque ele era viadão.
Ninguém encrencava com nóis. Ele era boiolão. E sem contá que ele era mais velho, ele não
via maldade não. Uma comédia. (risos).
145
E quando eu chegava bem loca em casa, tia? Lá no P., aí ele olhava bem na minha cara e
mexia com a cabeça, olhando prá minha cara, e dizia: cara de pau! E ainda balança a
cabeça prá mim! Cê ainda balança a cabeça prá mim? Toma todo tipo de cachaça e ainda
balança a cabeça prá mim? E eu: ô tio, chega, chega, chega. Ele falava um monte prá mim:
não, agora cê vai ficá aqui ouvindo. Ás vezes, ele me colocava de castigo no quarto, feito
que nem criança, sentada, de cabeça baixa. E eu ficava. E ele dizia: não quero você nem
olhando prás paredes. E eu ficava... às vezes, eu até dormia. P., eu vou te deixar de
disciplina! Tá bom, eu falava. E ele: - eu já te falei, eu já te expliquei. Ele ficava vermelho.
E ele: eu vou te deixar de disciplina, porque todo mundo vai querê fazê o mesmo, e não sei
o que. Pode ficar dentro do quarto. E eu: mas nem sábado e domingo eu posso sair?(risos).
Já começa hoje - ele falava.
Daí, no outro dia, ele ia lá no alojamento: – Cadê a P.? Tá dormindo - as tias falavam. Aí
ele: meu Deus, que tanto que essa menina dorme, ela vai morrê. E as tias:- Não, não. Tira
ela do quarto, tira ela do quarto – ele dizia.
Teve uma vez que foi eu e a A., fomos beber, né? Aí eu fiquei de disciplina e eu não queria
ficá no quarto, e ele que me colocou, né? Aí eu falei: ah é, mano? Eu não vou ficar no
quarto não. Aí ela falou bem assim: mas se você sair, o sargento vai brigá, né? E eu, ainda
tem um jeito. Aí eu tomei uma pá de comprimido. Daí eu comecei a passá mal. Daí ele: só
que não ia acontecer nada, eu só ia ficá com sono. Aí ele: que você sente? só sono. Ele
perguntou, porque a A., foi lá e falou prá ele que eu tava desmaiando. E minha pressão
caiu, aí eu fiquei com sono. Aí ele: meu Deus, mexeu com o emocional dela, ficar dentro do
quarto. (risos). Daí me levou no médico, né? Daí, eu não contei que tinha tomado os
remédios. O médico achou que tinha caído a minha pressão, porque a tia falô pro médico
que eu tinha mania de ficar fazendo regime. E ele achou que era falta de comida, de alguma
coisa. Aí o médico perguntou o que tinha acontecido, né? Aí eu respondi que eu tava de
disciplina, no quarto. Aí o médico falou: ela comeu? Aí o sargento falou: eu não vi ela
comer, eu acho que deve ter mexido com o emocional dela e ela não comeu. Aí tirou eu e a
A., da disciplina.(risos). Aí eu falei prá A.: eu vô fazê isso, toda vez que eu ficá de
disciplina. Ainda fiz umas duas vezes, porque, na época, eu tomava Gardenal, daí eu
pegava um monte, que eu nem tomava, eu guardava e tomava. Mas depois com o tempo ele
falou que não era mais prá eu tomá o Gardenal, e eu não tomei mais. Quer dizer, eu nem
tomava, eu fingia que tomava. Mas ele era legal, eu ia na casa da família dele e tinha uma
irmã dele que eu ia sempre. Ele ia dá entrada no Fórum, como se ela fosse me
adotar,porque eles não iam deixar ele, porque ele era homem, sozinho. Mas aí ele morreu,
146
que droga! As duas vezes que eu ia ser adotada, não deu certo. Mas eu nunca mais usei
droga, ele pediu e eu nunca mais, prometi. Mano, eu falo, eu prometi eu cumpro.
O Sargento era muito legal, eu adorava ele. Há muito tempo que eu tinha que ter rodado,
mas ele me segurou. Todas as listas de encaminhamento prá outro abrigo, lá tava meu
nome. Mas o sargento falava: o quê? A P., não vai; eu fiquei. No fim, eu já tava indo nos
fins de semana, na casa da irmã dele, porque o Fórum não deixava eu ir na casa dele, por
esse motivo de ele ser homem. Ele era legal ... tava doente, muito doente, e acabou
morrendo. Ele ia me adotar, e eu queria.
Mas, naquela época, fazia muita coisa errada, hoje não faço. Não passo mais pano prá
ninguém. Fumava maconha prá caramba, mas como eu prometi, parei. Hoje em dia, o
máximo que eu faço é dar risada das meninas, quando elas fumam. Elas perguntam se eu tô
roubando a brisa delas, eu não. É que é muito engraçado ver elas loucas. Esse final de
semana, elas fumaram e foram ver um filme, depois me perguntavam as coisas do filme e
eu, só de zoeira, falava: isso não passou, isso não teve não! Elas falavam: não? Meu, então
é do bão, ou nós tamo ficando louca. Acho que as tias desconfiam delas, mas pensam que
quem fumou fui eu, porque eu dou muita risada. É muito engraçado, me mato de rir, de ver
elas. Agora, a J. parece que quer fumar, mas eu não passo mais pano pra ninguém, falei
prá ela: Se você quer fazer, faz, mas faz direito. Eu já falei, ela que sabe. A vida é dela.
Bom, tenho que ir embora, senão já viu. Tia, vai um dia lá no abrigo conhecer como é lá.
Foi bom que a gente conversô por aqui, senão lá a tia ia dizer, sei lá, ficar de olho, não ia
dá prá eu falá tudo, sei lá, todo mundo ia ficar de zóião.
4.3.1 - Considerações teóricas sobre o caso P.:
A história de P. é marcada pelo fato de seus pais pertencerem a uma classe social menos
favorecida, socialmente, e terem envolvimento com o tráfico e com o crime. P. é a filha do
meio, tem dois irmãos, todos filhos do mesmo pai e da mesma mãe. Faz referência a seu
encaminhamento para uma casa abrigo, aos 9/10 anos de idade, dizendo-se “pequena”.
A idade em que P. foi institucionalizada, corresponde à fase de latência, fase em que,
antecedente à puberdade, sustenta um ideal em relação à imagem parental que garantirá a
passagem do sujeito pela adolescência. Citamos Lacan, ao discorrer sobre esta fase, no
Seminário V:
147
“É por intervir como aquele que tem o falo que o pai é internalizado no sujeito como Ideal
do eu, e que, a partir daí, não nos esqueçamos o complexo de Édipo declina”. (...) “a
criança detém consigo todas as condições de se servir dela no futuro. A metáfora paterna
desempenha nisso um papel que é exatamente o que poderíamos esperar de uma metáfora –
leva á instituição de alguma coisa que é da ordem do significante, fica guardada de reserva,
e cuja significação se desenvolverá mais tarde (p.201)”.
No discurso de P., o “ser pequena” está, também, relacionado ao fato de não ter tido o
encontro com o Outro do sexo: “Eu era pequena mesmo. Tem uma menina lá na nossa casa
que tem 10 anos, a A., mas ela não é que nem eu era... ela é assim, conhece tudo, já. Eu
perdi meu cabaço o ano passado, a mina sei lá, acho que já foi”.
Anterior ao seu abrigamento, P. residiu com sua tia paterna, após a morte de seu pai e de sua
mãe. Sua mãe foi morta ao cometer um assalto e, nesta época, a adolescente tinha cinco anos
de idade. P. morava com o pai, traficante e “dono de uma bocada”, em uma das favelas de
São Paulo. Foi preso e, ao ser liberto, foi morto pelos traficantes que ocuparam seu ponto de
tráfico. Nestas condições, P. e seus dois irmãos foram residir com a tia materna. Na casa
desta tia, P. se deparou com valores e referências diferenciadas aos de sua família nuclear e,
aliado a isto, passou a sofrer maus tratos por parte da mesma.
Como discorre Lacan, a família nuclear é constituinte da ordem de uma realidade psíquica
diferenciada. Não foi estabelecida, junto à tia paterna, uma aliança capaz de permitir a
permanência de P. em sua casa. Frente a estas dificuldades, é encaminhada para uma casa-
abrigo, onde também se deparou com valores e referências com os quais não se identificou.
Novamente transferida, para outra casa-abrigo, estabeleceu laço com uma pessoa que teve
interesse em adotá-la (P. refere-se a ela como tia adotiva), tendo residido com esta senhora
durante três anos. P. enfatiza que, esta lhe ofereceu acolhimento e condição material
superior a que lhe foi oferecida por sua família nuclear, não mencionando a importância
deste laço, no que se refere ao aspecto afetivo. No transcorrer do processo de adoção, sua
irmã posicionou–se de forma contrária, o que impediu a adoção legal e acarretou seu
encaminhamento para o SOS Criança. Para P., esta posição da irmã foi interpretada como
148
um cuidado em relação a ela. Permaneceu por um dia neste SOS, sendo transferida para uma
casa de passagem
45
.
P. relata sua entrada nesta nova, casa conveniada ao SOS, manifestando estranhamento em
relação ao espaço físico, aos códigos e a convivência. Neste contexto estabeleceu novos
laços e identificou-se com pares que compartilhavam a mesma experiência.
Como descreve Lacan, em “Complexos Familiares”, as famílias introduzem seus filhos na
sociedade: essa transmissão é realizada a partir da subjetividade de cada um dos
componentes e de como esta família é convocada socialmente.
Citamos Lacan, Seminário V:
“Numa obra, assim como em qualquer produção de palavras, existem dois planos. Por um
lado, há o que ela diz, o que ela formula em seu discurso, o que ela quer dizer, na medida
em que há em seu sentido, separando o quer e o dizer, sua intenção. Além disso, nós não
seríamos analistas, no sentido como tento fazer as coisas serem entendidas aqui, se não
soubéssemos que, às vezes, ela diz um pouquinho mais do que isso. De hábito, aliás, é nisso
que consiste nossa abordagem - em captar o que é dito para além do que se quer dizer
(p.169)”.
Através de seu exercício profissional, a pesquisadora pode verificar que muitos
adolescentes, que são encaminhados para as casas de passagem, têm vivência de rua e fazem
uso de um linguajar carregado de palavrões e códigos relativos a esta vivência. Na escuta da
persistência deste linguajar, o profissional poderá supor a necessidade de uma marca que os
diferencie. Durante toda a entrevista esta forma de expressão se evidenciou no discurso de P.
Podemos inferir que o insucesso da adoção, que teve como conseqüência seu retorno para
uma vida institucional, reaproximou-a de suas origens e ao fato de pertencer, assim como os
outros pares, a uma classe social menos privilegiada, atravessada pela marginalidade
46
.
Portanto, a presença maciça dos palavrões em seu discurso poderia ser compreendida com
uma forma de resistência a esta marginalização.
45
O SOS Criança ao qual P. foi encaminhada, diferenciava-se, em sua estrutura física e organizacional,
daquele no qual N. e M permaneceram.
46
Aqui referente a estar à margem do regime econômico e a criminalidade.
149
Quanto aos educadores, P. assume uma posição subjetiva de questionamento, frente a este
Outro, apontando para limitações e insuficiências. Ao relatar sobre suas vivências na casa de
retaguarda, bem como em outras casas, faz referências aos educadores com quem
estabeleceu laços, e que não foram capazes de a sustentar e auxiliar. Em seu discurso,
emergem situações que parecem estar fundamentadas em uma ideologia que discrimina e
culpabiliza o abrigado, pelo fato de ter que permanecer institucionalizado. P. destaca a fala
de uma educadora da casa de passagem que incide sobre estes aspectos:
“Bom, quem mora aqui são vocês, vocês que fiquem na sujeira. Devem ter vindo da favela;
eu saio daqui, filha, e vou para minha casa, com minha família, agora você, fica aqui”. Ao
que P. comenta: “Meu, isso dá um ódio, uma raiva”.
Poderíamos dizer que P., à época da entrevista com 16 anos de idade, ao avaliar o que
vivenciou o faz coerentemente com o que Alberti (2004) descreve como um dos processos
do adolescer: questiona e identifica as limitações e insuficiências daqueles que ocupam o
lugar de pais e/ou responsáveis, percebendo que nestes há falhas. O fato de se deparar com
este Outro castrado, acarreta a percepção do seu próprio desamparo, e o fato de que não dá
mais para esperar que o Outro faça por ela, mas que tem que realizar as escolhas por si
próprio. Percebemos que esta especificidade do adolescer permeou toda a entrevista.
Sendo encaminhada para uma casa de permanência, P. demonstrou temor e sofrimento
frente à nova situação. Descreveu o atendimento e organização desta casa como próxima à
ordem do familiar. Porém, contrariamente ao que se inscreve no ECA, não havia um
trabalho que incidisse na reaproximação de P. aos familiares, nem às referências com que P.
mantinha laços significativos. Entre esses últimos, o que mantinha com a tia, que pretendia
adotá-la. Responsabiliza o abrigo por este afastamento, somado ao fato de perceber, nesta
mesma tia, pré-conceitos em relação a institucionalização: “Ela também tem aqueles
pensamentos antigos, sei lá, minha tia adotiva. Pensa assim: ela foi prá FEBEM, tá là com
os bandidos. Só porque eu fui pro SOS, ela já pensa assim”.
Descreve que a casa-abrigo em que reside foi a que a acolheu por um período maior. Sua
história institucional foi marcada por diversas transferências, tendo passado, desde a saída
150
da casa de sua tia paterna, por seis instituições até chegar à casa abrigo em que se encontra
atualmente.
Evidencia-se, no discurso de P., o fato de passar pelo processo do adolescer dentro do
âmbito institucional. Neste processo, estabelece laços, quebra as regras, faz uso de drogas e
tem o encontro com o outro sexo. Relata que fuma cigarro e, que fez uso de droga e bebida
alcoólica. Quanto ao uso de drogas pelos adolescentes que vivem nas ruas, no centro de São
Paulo, avalia que estes o utilizam como um amortecedor, um artifício frente às dificuldades
da vida. Relata que estas adolescentes usam droga para se distanciarem dos seus problemas,
descrevendo como se opera a venda de drogas nas ruas.
Freud, em sua obra: “O Mal Estar na Civilização” (1930), descreve a função da droga como
um recurso ao qual recorrem alguns sujeitos, para lidar com o mal-estar decorrente do
encontro com as exigências culturais. Discorre sobre as renúncias, em relação às pulsões
sexuais e agressivas, que têm que fazer para viver em sociedade, provindo disto o que
nomeia de Mal-Estar. Para suportar o que é exigido pela civilização, alguns sujeitos fazem
uso, segundo Freud, de uma série de medidas paliativas, com o intuito de atenuar o
sofrimento, frente à impossibilidade de realização plena. Dentre estas medidas, se encontra a
utilização de substâncias tóxicas, que fornecem a produção imediata de prazer, o
afastamento do mundo externo, o amortecimento físico e psíquico mediante as
preocupações, afastando o sujeito da pressão da realidade e possibilitando que esse encontre
um refúgio em um mundo próprio.
Em Lacan, a entrada do sujeito na cultura se dá nos primórdios da vida, através da
linguagem e suas leis, as quais precedem o sujeito. A ordem simbólica preexiste ao sujeito,
diante da qual este irá se estruturar. O Simbólico não dá conta do Real
47
, portanto, a falta é
estrutural. O Complexo de Édipo oferece condições para o sujeito se organizar frente a esta
falta.
Segundo Alberti (2004), o uso de droga na adolescência pode ter como função “um gozo
fácil, onde a falta fica abafada e escamoteada”. Muitas vezes, segundo a mesma autora, o
47
“Aquilo que, para um sujeito, é expulso da realidade pela intervenção do simbólico”. (...) “ Definido como
o impossível, o real é aquilo que não pode ser simbolizado totalmente na palavra ou na escrita e, por
conseqüência, não cessa de não se escrever (Chemama, 1995:182)”.
151
adolescente também o faz, na busca da separação do Outro. Não temos como afirmar, qual o
sentido do uso da droga para P., pois, somente um processo de análise poderia indicar quais
as significações, para ela, deste uso.
P. identifica-se como alguém que não fornece droga para seus pares. Ao se referir a este
traço, demonstra ser reconhecida pelo diretor da casa-abrigo: “ele sabia que não sou disso”.
Capaz de questionar e identificar as limitações e insuficiências dos pais, que eram
traficantes,diferencia-se deles, fazendo suas escolhas. Neste processo, busca referências em
outras figuras de autoridade e estabelece um laço com o diretor do atual abrigo onde reside,
conferindo-lhe uma função paterna de interdição, o que a coloca em um lugar diferenciado.
Segundo Lacan, trata-se de um corte característico do terceiro tempo do Édipo, em que a lei,
ao mesmo tempo que proíbe a relação fusional com a mãe, dá abertura ao social. A relação
estabelecida com “o sargento” reedita esta sustentação simbólica, atribuindo-lhe um lugar
no abrigo: “O Sargento era muito legal, eu adorava ele. Há muito tempo que eu tinha que
ter rodado, mas ele me segurou. Todas as listas de encaminhamento prá outro abrigo lá
tava meu nome. Mas o sargento falava: o quê? A P.? Não vai. Eu fiquei”.
O sargento também demonstrou desejo em adotá-la, porém veio a falecer. Para P. essa
figura de pai morre apenas fisicamente: a manutenção da promessa de parar de fazer uso de
droga e de bebida alcoólica, mantém vivo o pai simbólico, reeditado pelo sargento: “(...) eu
jurei, jurei que não ia fazer mais isso e não faço mesmo, não é porque ele morreu que eu
vou fazer, eu jurei, tá jurado”.
O pai garante o sujeito simbolicamente lhe atribuindo lugar na comunidade: esse pai não
tem que ser necessariamente o biológico. Citamos Lacan, Seminário V:
“Trata-se do pai, portanto, como Nome-do-pai, estreitamente ligado à enunciação da lei,
como todo desenvolvimento da doutrina freudiana no-lo anuncia e promove (p.197)”.
P. faz referência a uma situação onde o sargento a coloca de castigo. A isto, responde
tomando medicação psiquiátrica, dizendo: “não ia acontecer nada, eu só ia ficar com
sono”.(...) “minha pressão caiu”.(...) “ainda fiz isso umas duas vezes”. Esta situação
sugere haver, por parte de P., um apelo dirigido a àquele que a sustenta, no abrigo: ao
sargento.
152
P. descreve uma série de situações relacionadas à sexualidade, evidenciando as dificuldades
da instituição, na abordagem destas questões, pela escassez de referências nos educadores e
funcionários, que permitissem esse compartilhamento dentro de um cuidado técnico e ético.
Esta dificuldade fica escamoteada pela suposta preocupação com a questão da gravidez, na
adolescência, e o que se evidencia como caminho utilizado pela instituição é o da repressão.
À emergência da sexualidade na adolescência, esses profissionais parecem contar apenas
com os próprios recursos pessoais, ficando em posição muito identificada ao adolescente,
sem respaldo para lidar com estas questões. P. relata, a partir de uma consulta médica
ginecológica, seu desconhecimento em relação aos procedimentos médicos e ao seu próprio
corpo. Seria interessante e produtivo, se a instituição pudesse trabalhar de forma diferente
com esses aspectos, uma vez que, na idade correspondente à adolescência, o sujeito irá se
deparar com as transformações do corpo biológico, assim como com as determinações
inconscientes pulsionais e identificatórias, ao se posicionar na partilha dos sexos.
No âmbito institucional, lidar com a subjetividade, no que tange à sexualidade dos sujeitos,
é tarefa complexa, mas considerar estes fatores é prepará-lo para lidar com seu universo
pulsional durante e ao fim do período de abrigamento.
Percebe-se, através de seu discurso, que P. age de acordo com o esperado na adolescência:
questiona e quebra as regras impostas pela instituição. Porém, o abrigo demonstra
dificuldade na manutenção e sustentação destas determinações, deflagrando a falta de
coesão da equipe. É no sintoma que a adolescente age, testando os limites impostos.
Alberti (2004) discorre sobre a dificuldade de alguns pais, na sustentação da adolescência
dos filhos. Segundo a autora, faz parte do processo do adolescer que os filhos percorram a
“via da separação” em relação aos pais: criticando-os e atingindo-os no âmago, com a
finalidade de enfraquecê-los. Seria de grande ajuda para o adolescente, que seus pais
suportassem seu próprio aniquilamento, pois, ao reafirmarem suas posições, fornecem ao
adolescente referências que o auxiliarão nas escolhas a serem realizadas.
Parece nos que esta é a demanda de P., dentro do âmbito institucional, ao quebrar as regras e
ao questionar. O abrigo responde a esta ação, impondo punições, referidas por P. como
ficar de disciplina”. Interessante assinalar que “castigo” e “disciplina” aqui se tornam
sinônimos.
153
Assim como os pais favoreceriam seus filhos, ao sustentar sua posição frente a estes, seria
de grande valia se o abrigo mantivesse um posicionamento coeso e coerente, pois estaria
auxiliando o adolescente a se deparar com limitações, oferecendo-lhe referências.
Dentro deste contexto, P. relata o encontro com o outro sexo, com um adolescente abrigado
na mesma casa. Nesta construção, descreve suas escolhas e posicionamentos.
“O pior que o menino que eu gosto tá em Minas, ele eu gosto mesmo, ele eu não colocaria
chifre. Não sei onde ele mora, não tem nem como mandar carta, nem endereço eu tenho, ele
é a paixão à distância. Ele era de lá do abrigo. Não tinha também nem como namorar, fica
todo mundo te controlando. Não deixam a gente namorar. Não, mano. Não dá pra gente
namorar, credo”.
Como descreve Alberti (2004), o adolescente é convidado, pelo meio que o cerca e pelas
determinações inconscientes, pulsionais e identificatórias, a posicionar-se na partilha dos
sexos: “Ele agora se depara com o fato de que há mais desencontros com o outro sexo do
que encontros, e que mesmo estes, são sempre faltosos e marcados pela incompletude
(p.26)”.
O fato de referir-se, várias vezes, a “ser pequeno, ser menor parece indicar que estes
significantes são portadores de vivências relacionadas a uma faixa etária significativa de sua
vida.
Ao discorrer sobre as meninas menores, coloca-se como referência, ocupando uma posição
frente a elas que, embora favorecendo a sustentação de seus abrigamentos, rivaliza e
compete com as educadoras. Este fato evidencia que, no ambiente do abrigo, não é só o
educador que pode se tornar uma referência para o abrigado, este lugar pode ser ocupado
inclusive por outros pares, como visto na entrevista de M.
A visita da mãe de uma destas meninas é interpretada por P. como “comprar o afeto da
filha”, denunciando sua falta de crença em um afeto legítimo nesta relação. Podemos supor
que este fato abrigue a transferência de questões relacionadas à sua própria vivência,
enquanto filha.
154
Através do “curso de regressão” em que “viu” que a mãe a abortou quatro vezes, mas que
ela “voltou” (...) “daí eu entendi que escolhi mesmo esta mãe”, P. demonstra um processo
de ressignificação e reelaboração da própria história. A mudança na percepção daquilo que
havia vivenciado, fez com que saísse do lugar de objeto a mercê do Outro, para uma posição
de escolha da própria história. Saindo do que se refere como sono de morte (situação
psíquica em que se encontrava, enquanto objeto frente ao desejo do Outro, desejo este
mortífero, uma vez que não a convocava enquanto sujeito) apropria-se de sua vida e de suas
escolhas.
Na mudança de abrigo das meninas menores, por efetivação das políticas públicas, P.
descreve a ruptura de um laço e o sofrimento de ambas, frente a isto, emergindo em seu
discurso o significante “doente”, como um traço identificatório entre ela e a menina
transferida. P. se vê confrontada com este lugar de “mãe que cuida /mãe que abandona”,
expresso na angústia, frente ao compromisso assumido de buscar a menina transferida.
Repete-se, também, a situação, anteriormente vivida, em que sua irmã fez a promessa de vir
buscá-la na casa da tia paterna, mas nunca a efetivou: “Aí, minha irmã falou assim, que ela
ia sair, mas que ela ia voltá prá pegá a gente. A gente era pequeno ainda, daí ela foi
embora. Aí, depois ela falô que ia voltá prá pegar a gente e ela não voltô. Ficô eu e meu
irmão né?”
A reação do abrigo, frente a esta situação, merece um assinalamento, uma vez que prega o
distanciamento e a evitação de laços afetivos, revelada na lógica institucional implícita no
discurso da educadora: “as tias falam que a gente não pode se apegar nas crianças, porque
é uma casa de abrigado”.
Ao mesmo tempo, evidencia-se a ambigüidade da instituição, frente a esta lógica ao orientar
a adolescente a não cuidar dos menores e ao mesmo tempo cobrar que ela o faça.
O abrigo que recebe as meninas menores reforça essa orientação, apontando para um novo
fator: há uma pré-concepção de que a criança só será aceita, caso comporte-se como o
esperado, como o desejado pela instituição, não havendo espaço para manifestações da
subjetividade. É fundamental que o abrigo possa compreender que a criança, desde sempre,
é sujeito, devendo ser respeitada e interpelada enquanto tal.
155
Segundo Lacan, em “Complexos Familiares”, os irmãos podem despertar rivalidade ou
serem desejados. No segundo tempo do Édipo, o papel do irmão é representado pela intrusão
e rivalidade e, só no terceiro tempo é que o irmão poderá ser colocado no plano das
identificações parentais, deixando de ser obstáculo, para se tornar alguém digno de amor ou
de ódio.
Na falta dos pais, P. e os irmãos estabeleceram um laço de cunho parental que os coloca
como referência entre si. Ao descrever seu primeiro ingresso em um abrigo, P. relata ter se
oferecido para ir, anteriormente a seu irmão, a fim de preservá-lo de uma experiência que,
supostamente, poderia não ser boa. Ao protegê-lo desta forma, faz algo parecido com a
proteção que dispensou às meninas pequenas do abrigo. Atualmente, ao saber que este irmão
estava morando nas ruas, defende que deveria permanecer na casa da sua irmã, aos seus
cuidados.
Refere-se a esta irmã como alguém a quem pode recorrer, quer econômica, quer
afetivamente. Apesar disto, escolhe permanecer no abrigo, espaço a que, recorrentemente,
se refere como “sua casa”, assim como o faz à casa de sua irmã. P. discorre sobre os cursos e
capacitações oferecidos pelo abrigo, avaliando que não teria acesso a estes, se estivesse
morando com sua irmã.
Justifica sua permanência no abrigo, pelos laços estabelecidos com os outros pares.
Podemos pensar que, assim como se filia aos irmãos, no âmbito familiar, no abrigo,
desenvolve laços importantes, identificando-se com outros adolescentes, distanciando-se das
referências familiares e realizando, assim, uma operação característica da adolescência.
Discorre sobre uma educadora, com quem se identificava, por posicionar-se da mesma
forma que os outros adolescentes. A possibilidade do estabelecimento deste laço parecia
exercer uma fascinação sobre P.: durante seu relato, demonstra entusiasmo, falando de
forma exaltada.
Esta educadora não assumia o lugar de cuidadora, colocando-se na mesma posição que as
abrigadas, ao não contribuir com a manutenção e organização, não estabelecendo, nem
obedecendo, ela própria, às normas da instituição. Nesta situação os papéis se invertem: a
adolescente relata cuidar da educadora, ao ouvi-la e aconselhá-la, inclusive em questões
relacionadas à sua sexualidade.
156
P. avalia este posicionamento como errado, demonstrando o quanto o educador deve
colocar-se em posição de tutela. Só assim, o profissional permitirá a construção de balizas e
parâmetros que poderão servir de ancoragem aos adolescentes, nos momentos mais
complexos de suas subjetivações.
P. queixa-se da ausência de um Outro que com ela se comunique e a escute, oferecendo-lhe
direções e parâmetros, mesmo que sejam por ela contestados, para suportar e sustentar seu
adolescer:“sabe o que eu acho ruim do abrigo? Quando as tias começam a mandar muito,
sabe, não conversam com você”.
As diversas mudanças de abrigo acarretaram um atraso na escolaridade de P., porém,
juntamente com a orientação da casa–abrigo, pôde escolher o supletivo como forma de
reparação.
Sobre sua permanência no abrigo, refere-se como escolha sua: “Tô bem assim, prefiro ficar
no abrigo”. Este é apresentado como um local em que P. sente-se protegida por usufruir de
uma estrutura e organização que possivelmente não teria, caso estivesse sob os cuidados de
sua irmã.
Discorre sobre alguns pares com quem compartilhou a experiência de abrigamento na Casa
de Retaguarda e sobre suas escolhas, frente a esta vivência. Neste relato, descreve o circuito
abrigo-rua e a dificuldade que dele se origina, pois, muitos de seus pares ocultam o fato de
estarem abrigados: “Tem umas meninas que namoram uns meninos da escola e não falam
que moram em abrigo. Eu não, eu falo! Pelo menos tenho teto”.
P. relata sobre seu desabrigamento de forma vaga e distanciada: “Quero morar lá até eu
ficar de maior, aí, depois, eu vou morar na casa que é minha, que minha tia, aquela que
ficou comigo quando minha mãe morreu, tá morando; tiro ela de lá e fico morando lá. É
minha”.
157
4.4 - Quarta entrevista: Caso J.
A quarta entrevista foi realizada no dia 24 de agosto de 2006, com uma adolescente de 15
anos. Conhecíamos esta adolescente, do período em que trabalhávamos em uma casa de
retaguarda, onde permaneceu por um ano. Acompanhamos seu encaminhamento, para um
abrigo de permanência, através de uma colega do serviço social. A adolescente será
chamada aqui por J. e reside, na mesma casa-abrigo que a adolescente P.
A entrevista, aconteceu no local em que realiza um curso de preparação para o mercado de
trabalho. Contatamos o abrigo em que reside, solicitando autorização para a realização da
mesma, e confirmando a possibilidade desta ocorrer no local e no horário estabelecido pela
adolescente. A responsável pela adolescente, no abrigo, permitiu a realização da mesma sem
nenhuma objeção.
J. iniciou a entrevista dizendo estar com muita vergonha de falar com a pesquisadora.
Reafirmamos que ficasse à vontade para decidir se gostaria ou não de participar da pesquisa.
Retomamos que seria preservado o sigilo, em relação ao seu nome e também aos nomes das
pessoas que fossem citadas, bem como das instituições aonde permaneceu. Explicamos que
a entrevista não seria no formato de perguntas e respostas e que nosso objetivo era poder
ouvi-la, naquilo que desejasse falar, naquele momento. Pedimos sua autorização para gravar
nossa conversa.
A adolescente, apesar de se dispor a participar, apresentou uma evidente resistência. Teve
dificuldade em falar sobre alguns aspectos de sua vida e, no final da entrevista, demonstrou
que havia chegado ao seu limite, falando de forma lenta e dispersa. Dizia: Ah, é isso... Ah, é
só isso... Ficamos com a sensação que, no início da entrevista, apesar da resistência, a
adolescente discorreu sobre aspectos que não a angustiavam tanto. Entretanto, no transcorrer
da mesma, pareceu-nos agitada e angustiada, querendo sair da situação. Nossa hipótese é
que, ao entrar em contato com certos temas, fica visivelmente transtornada pelo conteúdo
afetivo colocado em circulação, através do relato. Diferentemente do que com as outras
entrevistadas, a pesquisadora teve menor contato com J., desconhecendo, inclusive, seu
histórico de abrigamento.
158
Estes dados nos levam a supor que a transferência estabelecida teve marcante influência na
forma como transcorreu a entrevista.
Pesquisadora: Neste trabalho, estou entrevistando pessoas que passaram pelo abrigamento.
Meu interesse de pesquisa é sobre quem vive ou viveu essa experiência. Como que é viver
em abrigo? Eu entrevistei pessoas que já moraram em abrigo e estou entrevistando você, que
mora em um abrigo. Então, não tem resposta certa.
J. Eu quero participar sim, é que tou com vergonha; sei lá. Não sei por onde começar.
Deixa eu ver seu gravador. Nossa! Que velho, que antigo. Se soubesse, trazia o que tem lá
em casa. Esse aqui é velho demais. Sabe, eu faço curso de locução e rádio e a gente tem
aula e usa direto gravador, faz entrevista ... Eu tenho até que fazer uma entrevista.
Pesquisadora: É mesmo? Entrevista do quê?
J. Ah, não sei direito, eles vão explicar na próxima aula. Sabe, não tem muita gente que faz
esse curso, lá do abrigo. Mas eu gosto. A gente aprende um monte de coisa.
A adolescente me pediu a fita, colocou no gravador, ligou, posicionou, testou, verificou os
botões. Pronto, pode começar.
Pesquisadora: Então, tem alguma coisa que você gostaria de contar, falar...
Ai tia, que vergonha! Eu fui morar em abrigo, porque eu fugia muito de casa. Da casa da
minha mãe adotiva. Depois que eu conheci minha mãe biológica, eu me revoltei e comecei a
sair de casa. A minha mãe adotiva me contou tudo, sempre me falou que eu era adotiva.
Mas eu sempre queria conhecer minha mãe. A minha mãe adotiva levou prá eu conhecer
ela, quando eu tinha 12 anos. Tava com doze anos. Eu fui morar com a minha mãe adotiva,
quando eu tinha dois anos, mas ela me adotou, quando eu tinha cinco. Então, elas duas se
conheciam, não eram amigas, se conheciam. Aí, um dia, minha mãe, quando eu tava com
dois anos, me levou na casa lá da minha mãe adotiva e pediu prá ela ficar comigo por uns
dias. E ela não queria ficar, porque ela sabia que ela não ia voltar; aí ela esperou meu pai
chegar e pediu prá ele. Aí, meu pai falou que podia. E pegou e ficou comigo. Nisso eu tinha
dois anos, aí com cinco, fui adotada. Aí eu não vi mais minha mãe.
Eu não lembro dela. Não lembro dela, mas durante muito tempo eu tinha muita raiva da
minha mãe. Eu tinha muita raiva, porque eu achava, quando eu era pequena, achava injusto
ela tá com meus irmãos, que são quatro, e ter deixado eu. Ficou com os quatro! Quando eu
fui a última vez lá, ela tava com o quatro. Eu fui lá, eu era pequena. Eu era pequena e não
159
tinha nem como perguntar - não entendia nada - porque que ela não tinha ficado comigo.
Agora, se hoje, eu vê ela hoje, ela vai ter que falá tudo, tudo.
A minha mãe adotiva tem quatro filhos. Quando ela me adotou eram três e eu era a menor.
Aí, depois, em 96, ela teve a C.,- ela tem dois homens e duas mulheres. A menor, agora, tá
com dez anos e tem um irmão mais velho que é casado, tem minha outra irmã, também, que
casou e faz tempo que não vejo ela. E tem um que tem vinte anos, que mora com a minha
mãe, mora com eles. Eu fugia de casa, porque eu me revoltei. Porque, da última vez que eu
fui lá, eu ouvi ela falando com o meu tio, irmão dela, né? Falando que ... eu ouvi tudo que
ela falou prá ele. Ela falava prá ele que prá ela não importava, que eu podia até ficar na
rua. Que não importava. Minha mãe falando com meu tio. Eu não sei, mas eu penso assim,
já que ela não quis ficá comigo, eu acho que foi por causa do meu padrasto. Que ela ficou
com ele e não quis ficar comigo, por causa do meu padrasto. Meu padrasto não queria,
então, ela resolveu me dar do que ficar comigo. Minha mãe biológica.
Na verdade, quando eu sai de casa, eu não dormi nenhuma noite na rua. Eu logo fiz
amizade com uma mulher que trabalha lá, no centro, né? Que tem barraquinha, sabe?
Aquelas que vende passe? Eu conheci ela e fui prá casa da mulher, lá. Aí depois, ela me
levou lá na delegacia. No outro dia, ela me levou na delegacia e, de lá, me levaram pro
SOS. Do SOS me levaram prá casa. Aí, não deu certo ... Aí eu fugi de novo. E fiquei
morando com a irmã da mulher que me levou a primeira vez prá casa. Daí, fiquei um bom
tempo lá. Eu ajudava ela.
Eee, ooo, como eu tava sem documento nenhum, o ex-marido dela me levou no Fórum. Aí
do Fórum me levaram pro SOS, e daí,me levaram lá pro B. (Casa de Retaguarda).
Lá, foi a primeira vez que fui pro abrigo. Eu tinha treze anos. Sempre que eu vou lá pro
centro, eu vejo ela, a mulher que eu tava. Eu fiquei na D. ( nome da diretora da casa de
retaguarda) um ano ou um pouco mais, um ano e pouquinho. Que nem, ó, esse abrigo que
eu tô agora, na P., eu tinha discutido com a coordenadora lá, né?
Discuti com ela, né? Por causa que eu fiquei falando do passeio do fim de semana. O
pessoal marcou prá ir lá naquele negócio do trânsito, e eu fiquei falando: o que a gente vai
fazer lá? Daí ela falou que ia ver os negócios lá de trânsito; e eu falei que não sabia prá
quê. Nossa, ela ficou nervosa! E falou que se eu não quisesse ir, não ia. Daí eu falei que
não queria, e fiquei irritando ela. Daí ela me deixou um mês de disciplina, sem sair.
Não tô nem aí, fico lá descansando, ouvindo música. Mas daí a gente, esses dias, voltou a se
falar, né? Fiquei três semanas sem falar com ela. Eu fiquei sem falar com ela, porque a
gente discutiu. Aí a gente voltou a se falar, aí, ontem, ela veio perguntar prá mim, o que
160
tava acontecendo comigo, que eu tava muito calma. Eu falei: num tô calma nada, ô. Tô na
minha. Vou ficá na minha, agora, né? Eu aprontei muito.
No ano passado, enchi a cara lá no abrigo. Vitória do Corinthians, né? Tinha que encher a
cara. Não, falando sério, tava nervosa, né? Daí o Corinthians tava jogando. Aí falaram que
eu e as menina que beberam iria passar o natal lá dentro, né? Eu nem ligo, nem ligo de
ficar lá. Eu sabia que eles não iam deixar. Ia ficar cinco meninas dentro de casa. A
orientadora ia trabalhar por causa de cinco meninas? Cinco meninas? Não, então, aí a
gente foi prá casa, duas meninas, fomos prá casa da orientadora que trabalhava no..., dia
no Natal. Então, daí a gente pegou e fomos.
Passamo o Natal fora. Só o ano novo que a gente passou lá dentro. A gente não queria sair.
No Ano Novo, a gente ficô lá dentro do abrigo, mesmo. Não todo mundo. O pessoal foi prá
casa, mas eu não quis ir, por causa do meu pai. A gente não tá se falando. Porque... pelo
fato de eu ter morado com o C., meu namorado. Aí ela e ele (pai e mãe adotivos) pensava
que eu tava grávida. Eu, grávida, com o C? Não! (risos)
Do C., não! Agora não. Eu corria o risco, corrê ... eu corria, mas não era a hora de eu
engravidar. Eu fiquei depois da casa do B.( Casa de Retaguarda), lá na A. (abrigo). Lá que
eu conheci ele. Ele foi embora, o irmão dele o E., que fugiu. O C. não. O C. fez dezoito, né?
Daí o E. ficô lá sozinho. Ele não queria ficar lá, daí ele fugiu. O C. saiu de lá e foi morá
sozinho. Aí depois, o E. foi morar com ele. Ele tava trabalhando lá num hotel, na Av. P.
Não lembro do que. Quando eu fui morá com ele, eu ficava em casa. Eu morei lá na A.(
abrigo), acho que mais de um ano, aí, quando eu fui embora, a gente não tava se falando.
Eu fui embora prá casa da minha mãe. Voltei prá mora com ela. Aí, não sei como que ele
conseguiu arrumar o número de telefone da minha casa, e ligava todo dia. Ele ligava todo
dia ... todo dia, ele me ligava. Meu pai só olhava, não falava nada.
Sabe, não é que eles não deixam eu namorar, é que assim, era prá eu ter namorado...,
minha mãe queria que eu saísse de casa, só casada. E prá ela, namoro tem que ser dentro
de casa. E também, ela é evangélica. Por isso, também, que a gente não se dá. A religião é
muito diferente. Não tem nem como. Aí ele começou a ligar, ligar, ligar, daí, ligava todo
dia. Daí começou a falar, vamo morá junto? Daí, eu fugi de casa e fui morar com uma
amiga minha. Fugi, não agüentava mais o meu pai. Eu já ia morá fora. Foi em novembro do
ano passado que aconteceu isso; já não ia ficá mais em casa. Eu tava ajudando a minha
irmã a cuidar de um menino, aí minha irmã me deu dez reais. Aí, foi nessa que ela me deu
dez reais que eu peguei, meu pai falou que era prá mim i embora, que tava mais fácil prá
ele, se eu fosse embora, e não precisasse ir no Fórum. Aí eu peguei e falei - já que ele qué
161
que eu vá embora ... arrumei minhas coisas e fui. Agora sempre que eu vô lá em casa, lá na
minha casa, vê minha mãe, eu vô em dia que ele não tá.
A minha mãe nem sabia que eu ia embora, ela tinha ido prá igreja e, que nem, eu tinha que
me arrumar, tomar banho, prá também ir pra igreja. Aí eu peguei e falei prá ela que eu não
ia. Aí ela foi e eu peguei e sai de casa. Me criaram na igreja, mas num...E minha mãe não
aceita o fato de eu ter ido morar com o C. Ela pensou que eu tinha engravidado. Pensou
uma par de coisa. Eu fui prá casa da minha amiga. Depois da casa da minha amiga, eu
encontrei ele de novo, porque ele não sabia onde eu tava morando, né? Aí, encontrei ele de
novo. Aí, depois de um tempo...que eu fui encontrar ele de novo, daí, eu fui morar com ele.
Mas não lembro quanto tempo fiquei morando com ele. Ele sempre foi ciumento e a gente
brigava muito. Ele não deixava, ele não gostava, ééé..... que eu vestisse bermudão, sabe?
Camiseta, não gostava de me vê de roupa curta. Não gostava que eu ficava abraçando os
menino. Aí também, eu ficava em casa, até ele voltar. Lá, eu não estudei, nem nada. Aí, às
vezes, eu subia na casa das meninas, minhas amigas, não tinha nada prá fazê. Ele ficava
com raiva. Quando ia na minha amiga, não falava nada pra ele. Eu fazia as coisas, mas a
roupa dele eu não lavava não. Eu lavava só de vez em quando. Ele que lavava, ele gostava.
Ele gostava de lavar roupa ... Uma vez, quando a gente tava lá na A. (abrigo que moraram
junto), tinha umas roupas minhas no tanque, né? Não lembro o que eu tinha feito, que eu
não tinha conseguido lavar. Aí, eu deixei lá. Aí, eu fui prá escola; quando eu voltei da
escola, ele tava estendendo minhas roupas. Aí, eu olhei assim, né, olhei assim ... E o pessoal
disse: Nossa! Isso que é amor, estendendo roupa prá você. (risos). Eu sinto saudades dele.
Mas não tenho vontade de voltar a morar com ele, só como amigo mesmo. A gente brigava
muito, não dava certo. Tanto que, quando eu saí de lá, saí com a roupa do corpo. Deixei
tudo: minhas roupas, minhas fotos, minhas cartas.
Quando saí da minha mãe, também deixei tudo. Uma vez, voltei lá prá pegar tudo, aí
disseram que ele não tava mais lá, que tinha ido embora. E daí, eu não sei prá onde ele
mudou. Mas agora, tô lá no abrigo e lá, tenho um monte de coisa, tenho um monte de coisa
lá. Quando eu mudei, eu fazia tudo, até a comida, sabia fazer porque sempre que minha
mãe cozinhava eu ficava olhando, olhando ... Aí, quando eu fui morar lá com a minha
amiga, eu ajudava a fazer. Daí eu fui aprendendo. Aquela amiga, que fui prá casa dela,
quando saí de casa. Aí, quando fui morar com o C., nem morava muito longe dela, às vezes,
ia até na casa dela. Subia até de a pé, lá.
162
Agora que tou lá no abrigo, às vezes, vejo ela - quando vou fazer serviço fora, quando a tia
me pede prá levar os documento lá no Fórum João Mendes, eu que vou. Daí vejo ela. Vou
no Fórum entregar relatório, documento, essas coisas.
Mas lá não é melhor que o B. (Casa de Retaguarda), porque lá a gente zoava, zoava. Subia
no portão, ficava chamando os meninos na rua, subia no portão prá ver o movimento na
rua. Agora, lá não, lá a gente não tem como, é afastado da rua. Não tem nada, só tem o
quartel. É do lado do quartel. A gente, ás vezes, vai no quartel. Uma vez, a gente foi lá em
uma festa junina que teve, foi legal. A gente foi esse ano e o ano passado.
Tem um monte de menino bonito, mas é tudo metido, metido mesmo. Que nem um menino
que faz curso aqui, e estuda na minha escola, maior metido, não fala comigo. Sei lá o que é.
Mas tá bom.
Voltando pro C., acho que eu fiquei com ele mais ou menos um ano morando com ele. Daí,
quando eu saí de lá ... um dia, quando ele tava trabalhando, fui pra casa da minha mãe.
Meu pai nem falou comigo. Daí, antes da minha mãe me levar no Fórum, ele falou um
monte, eu fiquei quieta, ouvindo. Dormi lá, e depois, no outro dia, minha mãe me levou no
Fórum. Daí, de lá, fui pro P. (abrigo em que reside). Tô lá há um ano e pouco. Um ano e...,
é... e pouco. Um ano e oito, nove meses, por aí. Mas lá eu tô bem. Tou indo na escola, já tou
no segundo colegial. E eu mudei muito, mudei mesmo, no meu comportamento, o meu jeito
de pensar. Porque, agora, eu acho que eu tô diferente, eu penso que tá perto de eu fazer
dezoito anos. Eu fico pensando o que é melhor prá mim. E antes não, nem pensava nisso.
Penso que eu quero, quer dizer, tenho um sonho, sempre tive, de ser secretária executiva.
Eu sonho com isso. E tou estudando prá isso, né? E se Deus quiser, eu vou conseguir, né?
Tô fazendo esse curso, já fiz um de informática, tô conseguindo fazer as coisas. Eu sei que
não vou começar logo como secretária, que vou ter que começar lá de baixo, mas eu
começo como recepção, prá depois eu conseguir algo a mais, né? Na verdade, não é - se eu
conseguir trabalhar como secretária. É, eu vou conseguir. Eu vou fazer.
Também, tem assim ... a gente que mora em abrigo, a gente não tem muito valor, assim...
prás pessoas. É verdade que as pessoas acham, sabe o quê? Que só porque a gente mora
em abrigo a gente é marginal, a gente não tem valor. Mas não é nada disso, não tem nada a
ver. Eu acho assim, a gente tem que mostrar prá eles que a gente não é aquilo que eles
pensam, né? Se a gente não se der valor ... assim, não é porque a gente mora em abrigo que
a gente é assim, né? A gente tem a nossa hora de aprontar, mas a gente também tem a nossa
responsabilidade. A gente também faz o possível prá cumprir a nossa responsabilidade.
Que nem - lá eles se preocupam em cursos prá gente, porque eles não querem que a gente
163
saia de lá do jeito que a gente entrou. Então, eles se preocupam com a gente, isso eu acho
legal. Eu me dou bem com as pessoas, mas tem hora que tem umas briguinhas assim, né?
Entre a gente tem. Que nem, no momento eu tô brigada com um menino lá. Pior que não
tem nada a ver: ficar inventando coisa pros outros que não tem nada a ver. Eu já fiquei com
ele, mas, só fiquei. Mas isso nem me preocupa muito.
Ah, mas teve um curso que a gente fez que ajudou muito, muito mesmo. É tipo, mil, mil e
poucos reais, mas eu ganhei, quer dizer, quem pagou foi o pessoal que cuida desse curso. É
caro. Então, quando eu fui fazer, foi através do pessoal do M., já ouviu falar?
Pesquisadora: Não, nunca ouvi.
Então, eu fazia terapia, e tem um pessoal que vai lá em casa, que é desse M., eles dão
alimento, doação, coisa assim. Aí, foi eles que me falaram, né? Eu tava fazendo terapia,
com um pessoal que trabalha com o A., na verdade é um grupo, tem muitas pessoas.
Daí, fiz um treinamento com ele, com o A., mas só que esse treinamento que eu fiz,que são
três dias, é diferente, porque você vai de um jeito e volta de outro. A gente vai na sexta e
volta no domingo. Aí, quando alguém novo vai, quem já foi leva a pessoa. É uma pessoa de
lá que cuida das coisas do A., tem que ser uma pessoa que já foi. Por exemplo, se uma
menina do abrigo for a primeira vez, eu que acompanho, junto com alguém de lá. Apesar de
que, eu não sou madrinha de ninguém, assim, porque eu sou de menor. Eu posso ser a
madrinha junto com uma pessoa mais velha. Lá, o procedimento a gente não pode falar. Se
não, a pessoa fica esperando na hora: ah, isso que vai acontecer agora ... isso que vai
acontecer depois, estraga.
Que nem, quando eu fui, recomendaram que a gente ... como fala? Que a gente ... ah, não
sei explicar. Quando eu fui, todo mundo me zoava e eu não entendia o porquê da zoação. O
pessoal zoava e eu não entendia. Falavam: ah, você vai passar o final de semana lá? Mas
eu não entendia.
Do abrigo, só fui eu mais dois meninos, três pessoas. Depois, foi mais uma. Então daí, eu
parei a terapia, né? Eu comecei dia 22 de dezembro e terminei, tive alta, em fevereiro; aí,
em abril, eu fui fazer o treinamento.
Lá é diferente, não é a mesma coisa que a gente faz na terapia. O treinamento é diferente:
lá tem o A., que é um japonesinho chato. Ele é chato, ele é chato. Na hora do treinamento,
ele é chato. Insuportável. Mas depois, é um amor de pessoa. No meu treinamento, né, teve
um rapaz que tava falando com o dono da equipe lá, né? Daí, o A. falou prá ele: se você
quer ir, você vai ver, você vai limpar o sapato do A. Ele falou: tá bom, né. Ele errou. Teve
164
que passar um paninho no sapato dele. O sapato dele tem brilho; aí ele bateu o paninho lá,
prá ver se tava brilhando.
Aí, teve uma parte ali, que o A., falava com todo mundo, tinha 160 lá. Parece que tem
treinamento que tem até, deixa eu ver, 200, 200 pessoas. E o legal é que tem muita gente
que não gosta de dividir quarto, né? E lá tem que dividir. Lá divide. Eu dividi com duas
pessoas. Com duas mulheres. Eles dividem assim: de três a quatro pessoas num quarto. Por
que assim a gente já conversa, já vai se conhecendo. O treinamento é difícil. É muito difícil.
Ali é como se fosse vivido um momento. Me ajudou muito, me ajudou bastante. Me ajudou,
porque eu compreendi muita coisa, muita mesmo.
E ó, durante anos eu tive e alimentei ódio, ódio pela minha mãe. Eu não me sinto mais
igual, eu não sinto mais aquele ódio que eu sentia dela. O primeiro treinamento você faz
sozinha, ele queria fazer o treinamento em sete dias. Mas ninguém pode assim, parar tudo
isso, então ele dividiu em dois. Aí, o segundo treinamento é quinta, sexta e sábado, ou
quarta, quinta e sexta. Eu ainda não vou fazer, porque, lá no abrigo, tão pensando em
primeiro levar outras pessoas, né? Prá depois eu fazer o segundo.
Eu fiz maior amizade com a tia que foi comigo, que me levou; eu ligo pra ela direto. Ah, é
isso!
Ah sabe, uma coisa que eu penso. Assim, de morar em abrigo? É que tem muita gente que
acha que, porque a gente mora em abrigo, a gente não presta. Sabe, as pessoas que pensam
assim, não sabem nem como que é, não sabem, não. Porque a gente tá ali, porque é
necessário. Tem gente lá em casa, de toda idade, desde os pequenos até os grandes. Tem
uma de três anos, uma de cinco, um de uns sete, mais ou menos, oito, por aí, essa idade.
Tem uma orientadora de manhã e outra de noite. As meninas dormem todas num quarto e
os meninos no outro. Tem o alojamento A, que é das meninas, só tem menina e tem o B., que
tem só menino, os meninos. O quarto da gente é na frente da sala que a gente assiste a
televisão, na frente da sala. A gente só é separado prá dormir, fica menino e menina na sala
de T.V, assistindo filme, o que for, tudo junto. Agora, puseram uma televisão no quarto que
é das meninas, porque, que nem, os meninos gostam de ver mais futebol, coisa assim e as
meninas já gostam de outras coisas, então dava muita briga e agora tá melhor, colocaram
uma televisão no nosso quarto. A gente é diferente, a gente gosta de assistir novela, daí a
gente assiste no nosso quarto e eles assistem lá na sala. Mas por exemplo: tem vez que eles
assistem uma coisa que a gente gosta, tipo quando eles assistem um desenho que passa lá
no nove, daí eu assisto, porque eu gosto, aí eu vou lá na sala, senão ,não vou não. Que nem,
às vezes, tem filme, daí todo mundo assiste junto, mas isso é mais no final de semana. É uma
165
casa normal. Sabe, eu não me vejo, não me vejo saindo de lá. Não dá nem prá imaginar
sair, ficá longe do pessoal, eu já acostumei. Acostumei. Eu posso até ir prá minha casa, no
final de semana, mas só vou de vez em quando. Porque tem o negócio com o meu pai, eu só
vou lá, quando eu sei que ele não vai tá.Eu quero fazer um futuro prá mim. E não dá prá
ficá dependendo dos outros, sempre. Eu penso em construir meu futuro. Agora, eu tô lá
dentro, eu tô dependendo deles lá. Aí, quando eu for embora, quando eu sair de lá, não vai
ter ninguém prá me ajudar.
A fita não tá acabando?
Pesquisadora: Realmente está.
Na aula de rádio, a gente aprende um monte de coisa. A mexer com gravador, a falar no
rádio, locução. A gente aprende como, por exemplo, você deve falar, você tem que mexer
várias vezes no gravador, antes de gravá-lo, você grava, aprende a não fazer fala na hora
errada. A gente aprende prá caramba.
Ah,é isso! A senhora tem que ir lá conhecer. È só marcar com a tia Z., ela é muito legal, por
mais que a gente brigue, não tem como ficar sem falar com ela. A tia, ela é assistente social,
e a outra que tem lá é coordenadora, e tem dois orientadores: um de manhã e um à noite. È
só mulher, tem quatro mulheres, lá é só mulher que trabalha. Tem a mulher da cozinha, e
faxina ... essas coisas, a gente que faz. Os meninos fazem tudo que nem o nariz deles. Que
nem, outro dia, deu a maior raiva! Era meu dia de fazer limpeza, né? Daí, a tia pediu prá
mim ir lá no Fórum; eu fiquei quase uma hora esperando o ônibus. Tava maior trânsito, já
tava tarde, quase sete horas. Daí eu lá, quase uma hora, esperando no ponto. Já tava
estressada, cheguei em casa era quase oito horas, e ainda tinha que ir pra escola, né? Eu
tinha saído prá levar os documentos lá no Fórum. Aí, não deu nem tempo de eu ir na escola,
aí cheguei em casa, lavei a louça - só que era outra menina que tinha que ter lavado - Aí eu
perguntei prá ela por que ela não tinha lavado e ela não respondeu nada. Aí, eu já tava bem
irritada, daí eu não queria falar com a tia, porque era minha faxina, mas era dia de ela
lavar a louça, daí eu me irritei e irritei ela, daí eu falei com ela. Daí, quando eu passei por
ela, eu tava tremendo de nervoso, daí falei um monte prá ela, daí ela mudou totalmente, mas
não tou nem aí, mas aí eu já tava maior nervosa. Daí a orientadora falou com a tia, aí a tia
falou que não podia fazer nada, no caso que, agora, ela me irrita, ela me irrita mais ainda,
a menina.
Tem vez que eu acordo, de manhã, já brigando com ela... é folgada, porque só ela não quer
fazer as coisas, todo mundo que tá lá, tem que fazer. Agora, todo dia, eu levanto e brigo
com ela. Ela tem ... acho que uns dez, onze anos, já tá bem grandinha. Eu sou uma das mais
166
velhas, então, ajudo a tia nas coisas e, às vezes, com as menores. A menina não se toca: não
lavou a louça e não lava. Outro dia, eu acordei ela, porque todo mundo já tinha levantado,
menos ela. Daí ela falou:eu não tenho aula hoje, aula cedo. Eu respondi: e daí que você não
tem aula hoje, não tô nem aí! Não tem aula, então levanta e vai lavar a louça e não ficar aí
deitada na cama. Eu falava e ela não respondia, eu falava e ela não respondia, daí eu
comecei a puxar ela da cama, ela falou: cê tá me machucando. Eu falei: eu não tô te
machucando, eu tô te segurando. Ela falou: mas você não é minha mãe! Eu falei: ainda bem
que eu não sou sua mãe, se eu fosse sua mãe, você ia apanhar todo dia. Não, eu não
agüento uma coisa dessas. Aí ainda ela ficou lá, o, o maior tempo. Deu tempo de eu me
arrumar, de tomar café, e ela tava lá, quando eu terminei de tomar o café, ela tava lá
pegando a louça prá lavar. Também, aí dela se não fosse lá lavar a louça. A tia falou que
era prá ela lavar, é prá ela lavar.
As meninas novas que chegam lá, eu já falo, porque, ás vezes, a tia fala prá mim: ó, tal dia
tem que lavar louça, tal tem que lavar a roupa. Sempre quem ajuda lá sou eu. Eu cuido, né?
Se eu posso ajudar, eu ajudo. E enquanto me pedem, eu dou a ordem, mas elas não dão
valor, as meninas não dão valor aonde elas tão vivendo, morando, daí elas não fazem nada.
Eu que não vou pôr a mão na cabecinha delas, não. E olha que, muitas vezes, eu defendia
elas; agora, não fez, vai fazer, não lavou, lava. Tem horas que não dá. A gente tenta, mas
não dá. Elas pensam que, sei lá, lá também é a casa delas. Ah, tia, é isso, sei lá. Acho que
não tem mais nada prá eu falar, acho que tá bom.
Pesquisadora: Então tá bom, obrigada.
4.4.1 – Considerações teóricas sobre o caso J.:
J. apresentou, durante toda a entrevista, um ritmo discursivo extremamente truncado, com o
uso repetitivo de diversas palavras. Foi encaminhada para uma casa-abrigo, por ter fugido
diversas vezes da casa da mãe adotiva. Este fato sinaliza a existência de situações conflitivas
neste ambiente, que tornaram sua permanência insustentável.
Mesmo tendo conhecimento de sua adoção, ao conhecer a mãe biológica, aos doze anos de
idade, J. “se revolta” e passa a empreender fugas da casa da mãe adotiva. A idade em que
busca a mãe biológica é correspondente ao início da sua puberdade.
167
Como discorre Alberti (2004), a idealização dos pais, no processo que envolve o adolescer,
sofre abalos, e o sujeito passa a questionar e a identificar limitações e insuficiências nestes.
Coerente com este processo, J. parece questionar os pais adotivos, indo em busca de suas
origens e do “re-conhecimento” da mãe biológica. Foi “levada pela mãe” à casa da mãe
adotiva aos dois anos de idade, mas a adoção legal só ocorreu aos cinco. A ênfase dada por
J. a este espaço de tempo, sugere uma suposta ausência de desejo de sua mãe adotiva em
relação a ela.
Como discorre Lacan, no Seminário V, a constituição subjetiva do sujeito depende do pai e
da mãe, não apenas como geradores dos seus filhos, mas como aqueles que irão exercer as
funções maternas e paternas. Os pais adotivos assumem esta função. A ascendência do pai
sobre o desejo da mãe se presentifica no relato de J., quando refere que esta só permaneceu
com ela após a autorização do pai adotivo. À inconsistência do desejo materno, J. antepõe o
desejo do pai,sugerindo uma maior confiança neste laço estabelecido: é o pai quem autoriza
sua permanência na casa. Vale ressaltar que J. não se refere a este (como o faz com a mãe)
como pai adotivo, mas simplesmente como pai. A marca de ser deixada pela mãe biológica
(“minha mãe me deixou”) se faz enigma que a acompanha desde então.
Lacan, nos Seminários IV e V, afirma que a castração da mãe é representada pela ausência
desta, em conseqüência da busca por outros interesses e desejos, além do bebê. Tal ausência
é percebida pela criança como um enigma relacionado ao desejo materno. Neste processo, a
mãe é percebida como um Outro, marcado pela falta e pelo desejo. J. busca seu lugar neste
enigma a ela oferecido.
Citamos Lacan, Seminário V:
“(...) a relação da criança com a mãe, na medida em que a criança revela depender do
desejo da mãe, da primeira simbolização da mãe como tal, e de nada mais. Através desta
simbolização, a criança desvincula sua dependência efetiva do desejo materno da pura e
simples vivência dessa dependência e alguma coisa se instituí, sendo subjetivada num nível
primário ou primitivo. Essa subjetivação consiste, simplesmente, em instaurar a mãe como
aquele ser primordial que pode ou não estar presente. No desejo da criança, em seu desejo
próprio, esse ser é essencial. Não se trata da simples apetência das atenções, do contato ou
da presença da mãe, mas da apetência de seu desejo (p.188)”.
168
Faria (2003) discorre sobre este aspecto, acentuando que o vínculo entre mãe e filho é único
e não universalizável: cada mãe apresentará um interesse particularizado em relação a cada
um de seus filhos. Esse investimento é o lugar simbólico oferecido pela mãe e pode ser
carregado tanto de aspectos positivos quanto negativos. A adolescente relata ter “raiva da
mãe” ao perguntar-se o porquê de ter sido escolhida entre os quatro irmãos para “ser
deixada”.
Lacan, em “Complexos Familiares”, discorre sobre o laço entre os irmãos, após o terceiro
tempo do Édipo, em que deixam de ser um obstáculo, para serem adotados no plano das
identificações parentais como dignos de amor ou de ódio. Os irmãos biológicos parecem
ocupar, para J., uma posição da ordem da rivalidade e da intromissão:
“Porque, eu achava, quando eu era pequena, achava injusto ela tá com meus irmãos, que
são quatro, e ter deixado eu. Ficou com os quatro! Quando eu fui a última vez lá, ela tava
com os quatro. Eu fui lá, eu era pequena. Eu era pequena e não tinha nem como perguntar,
não entendia nada, porque que ela não tinha ficado comigo. Agora, se hoje, eu vê ela hoje,
ela vai ter que falá tudo, tudo”.
A mãe adotiva também tem quatro filhos, porém, os laços estabelecidos entre J. e esses
irmãos, embora possam parecer de outra ordem, reproduzem seu lugar de excluída: sendo a
única adotada de quatro irmãos, também é marcada pela diferença, por um certo
estrangeirismo nesta família adotiva.
Aos doze anos, suas fugas por “revolta” (re-volta?) reinstalam o enigma, fazendo um apelo
ao Outro. O re-encontro com a mãe biológica confirma, em palavras, o que J.
imaginariamente sustentava: esta declara não importa-se com ela. Frente a isto, defende-se
do abandono, abandonando. Na busca de explicações para o enigma criado, responsabiliza o
padrasto pelo fato da mãe tê-la “dado” para outra família. Esta construção nos faz supor que
há uma versão em que preserva o desejo da mãe por ela, colocando a responsabilidade do
abandono em um outro.
Ao relatar sua primeira fuga, não deixa claro de qual casa e de que mãe está falando,
reproduzindo, assim, uma espécie de indiferenciação entre as mães. O significante “fui
dada” aponta para o lugar de objeto em que se coloca frente ao Outro, o que persiste quando
169
pede abrigo para qualquer estranho que encontre a sua frente, recorrendo a pessoas com
quem não manteve qualquer laço anterior.
Em sua segunda passagem pelo SOS Criança, aos 13 anos de idade, é encaminhada para
uma casa de retaguarda conveniada, na qual permaneceu por “um ano e pouquinho”.
Interessante apontarmos que, contrariamente ao que se inscreve na legislação (as Casas de
Retaguarda devem manter os adolescentes aos seus cuidados pelo período máximo de três
meses), esta adolescente permaneceu nesta casa por um período muito superior ao prazo
determinado, só, posteriormente, sendo encaminhada para um abrigo de permanência. Faz
poucas referências a esta casa-abrigo, referindo-se ao seu encontro com um dos adolescentes
lá abrigados. Este adolescente, por completar sua maioridade, foi desabrigado e J. foi
reencaminhada pelo abrigo para a casa de seus pais adotivos. Porém, novamente, não
conseguiu lá permanecer, reproduzindo a seqüência de fugas, desta vez, por ter diferenças
com o pai devido ao seu namoro. Ao desempenho da função paterna somam-se
intercorrências de rejeições expressas pelo pai, acompanhadas de omissão da mãe.
Alberti (2004) descreve situações nas quais, diante de uma série de reações adversas por
parte do filho, os pais desistem de desempenhar sua função, entendendo que não são mais
ouvidos, levados a sério, respeitados e desistem. Separam-se dos filhos, antes de estes
poderem se separar deles, invertendo os papéis daquilo que seria esperado na adolescência.
A única solução aí encontrada pelo adolescente é a de lutar, desesperadamente, pela atenção
daqueles.
“O efeito da desistência é normalmente assustador: o adolescente se vê deixado cair.
Desesperado e perdido, o adolescente inicia uma busca que pode ser uma completa
catástrofe na tentativa de alcançar novamente a mão dos pais o que, como uma bola de
neve, tem cada vez mais dificuldades de conseguir (P.22)”.
Parece que este foi o movimento dos pais adotivos, ao não suportarem os questionamentos e
diferenças de J.. Esta, por sua vez, responde à rejeição, reagindo de forma imediata e
concreta. Ter fugido três vezes, em busca de outras referências e modelos com os quais
pudesse se identificar, também aponta para uma forma primitiva de resposta ao desamparo:
ao perceber que não dá mais para esperar que o Outro faça por ela, parte, de forma pouco
170
elaborada, na tentativa de realizar suas próprias escolhas. Ao morar com o namorado,
descreve dificuldades frente a este convívio, atuando na repetição da fuga, deixando para
trás tudo o que lhe pertencia, da mesma forma que o fez, quando saiu da casa de sua mãe
adotiva. Sintomaticamente, numa aparente formação de compromisso, foge da situação na
repetição do “deixei tudo” para o Outro.
“Eu sinto saudades dele. Mas não tenho vontade de voltar a morar com ele, só como amigo
mesmo. A gente brigava muito, não dava certo. Tanto que, quando eu saí de lá, saí com a
roupa do corpo. Deixei tudo: minhas roupas, minhas fotos, minhas cartas. Quando saí da
minha mãe, também, deixei tudo”.
Alberti (2004) discorre sobre o fato do sujeito se deparar, na adolescência, com o Real do
sexo: o encontro com a real impossibilidade do encontro sexual como um encontro
complementar entre sujeitos que compreende a descoberta da impossibilidade da
completude e complementaridade, através do encontro sexual. Em Lacan, esse encontro
faltoso é a emergência do Real, onde o sujeito deve assumir sua dimensão de falta.
Frente às dificuldades deste encontro, J. retorna para a casa da mãe adotiva, que a entrega ao
Fórum, sendo encaminhada para a casa-abrigo, em que atualmente se encontra. Discorre
sobre sua vivência neste abrigo como: “lá tenho um monte de coisa, tenho um monte de
coisa lá”.
Estabelece laço com a coordenadora, obtendo desta relação referências e balizas para a
sustentação do processo relativo ao seu adolescer. A coordenadora lhe oferece a
possibilidade de brigar, romper, “ficar sem falar” e posteriormente reatar: “a tia Z., ela é
muito legal, por mais que a gente brigue, não tem como ficar sem falar com ela”. A
experiência relativa a esta confiabilidade, no que suporta de brigas e questionamentos com a
possibilidade de reatar, parece ser algo inovador na vivência desta adolescente. Esta
coordenadora lhe ofereceu um lugar diferenciado na instituição, ao tratá-la como alguém
capaz: “Vou ao Fórum entregar relatório, documento, essas coisas”.(...) “a gente tem as
nossas responsabilidades” e relata o cumprimento das funções que lhe são designadas:
“(...) porque, às vezes, a tia fala prá mim: ó, tal dia tem que lavar louça, tal dia tem que
lavar roupa. Sempre quem ajuda lá sou eu. Eu cuido, né? Se posso ajudar, eu ajudo. E
171
quanto me pedem eu dou a ordem, mas elas não dão valor, as meninas não dão valor aonde
elas estão vivendo, morando, aí elas não fazem nada”.
J. valoriza esse espaço que foi capaz de lhe oferecer outras referências e possibilidades de
identificação, diferentemente do que lhe foi oferecido junto à mãe e à sua família adotiva.
Descreve os papéis dentro da instituição, nos quais se inclui, atribuindo-se algumas funções,
com um papel diferenciado frente às meninas menores. Coloca-se no limiar entre ser
cuidada e ser cuidadora, adulta e criança, que remete a uma nova perspectiva em termos de
lugar subjetivo ocupado:
“A tia, ela é assistente social, e a outra que tem lá é coordenadora, e tem dois orientadores,
um de manhã e um à noite. É só mulher, tem quatro mulheres, lá é só mulher que trabalha.
Tem a mulher da cozinha e ... faxina, essas coisas, a gente que faz .Eu sou uma das mais
velhas, então, ajudo a tia com essas coisas e, às vezes, com as menores”.
J. relata perceber-se de forma diferente: “Mas lá eu tô bem. Tou indo na escola, já tou no
segundo colegial. E eu mudei muito, mudei mesmo, no meu comportamento, o meu jeito de
pensar. Porque agora eu acho que eu tô diferente, eu penso que tá perto de eu fazer dezoito
anos. Eu fico pensando o que é melhor prá mim. E antes não, nem pensava nisso. Penso que
eu quero, quer dizer, tenho um sonho, sempre tive. De ser secretária executiva. Eu sonho
com isso. E tou estudando pra isso, né? E, se Deus quiser, eu vou conseguir, né? Tô fazendo
esse curso, já fiz um de informática, tô conseguindo fazer as coisas”.
Este abrigo a sustenta subjetivamente, propiciando condições para que se desenvolva,
enquanto sujeito desejante. Faz escolhas em relação à própria vida, discorre sobre seus
sonhos e projetos futuros, colocando seu desejo em circulação e assumindo-se capaz de
construir condições para atingir seus objetivos.
O investimento do abrigo em relação a J., enquanto sujeito, fica explicitado na “terapia” e no
“treinamento” que realizou através do abrigo
48
. Parece sentir-se valorizada por isso quando,
48
Um assinalamento em relação a esta questão: muitos abrigos buscam atendimento psicológico individual
para os abrigados, fora do âmbito institucional; outros são contrários e defendem que as dificuldades devem ser
tratadas na casa-abrigo, através dos laços estabelecidos. São posicionamentos que partem de pré-concepções
diferenciadas, incidindo sobre o sujeito abrigado.
172
dentre tantos, ela e mais três pessoas foram as escolhidas. Ser merecedora deste
investimento, por si só, constitui-se em um valor subjetivo para J:
“Treinamento é difícil. É muito difícil. Ali é como se fosse vivido um momento. Me ajudou
muito, me ajudou bastante. Me ajudou, porque eu compreendi muita coisa, muita mesmo, e
ó, durante anos, eu tive e alimentei ódio, ódio pela minha mãe. Eu não me sinto mais igual,
eu não sinto mais aquele ódio que eu sentia dela”.
Este “treinamento” lhe ofereceu a possibilidade de ser escutada, de rever sua história e
compartilhá-la com outras pessoas, realocando sua posição em relação à mãe biológica e ao
lugar que lhe foi oferecido por esta.
O preconceito da vivência de abrigamento surge na referência à ideologia de que o
adolescente de classe baixa, institucionalizado, é marginal:
“Também tem assim, a gente que mora em abrigo, a gente não tem muito valor, assim, prás
pessoas. É verdade que as pessoas acham, sabe o quê? Que só porque a gente mora em
abrigo, a gente é marginal, a gente não tem valor. Mas não é nada disso, não tem nada a
ver”.(...) “Sabe, as pessoas que pensam assim, não sabem nem como que é, não sabem, não.
Porque a gente tá ali, porque é necessário. Tem gente lá em casa, de toda idade, desde os
pequenos até os grandes”.
Este preconceito vem fazer eco à sua história, enquanto desvalorizada pela mãe biológica e
pela adotiva. Este abrigo, entretanto, se institui como um lugar diferenciado na sua
possibilidade de subjetivação, amparando-a em seu processo de adolescer. Diz do abrigo
como sua “casa normal”: “Sabe, eu não me vejo, não me vejo saindo de lá. Não dá nem prá
imaginar sair, ficá longe do pessoal, eu já acostumei. Acostumei”.
Hoje, aos quinze, faltam três anos para que J. seja desabrigada. A possibilidade de se
deparar com esta separação parece angustiante: “Eu quero fazer um futuro prá mim. E não
dá pra ficar dependendo dos outros, sempre. Eu penso em construir meu futuro. Agora, eu
tô lá dentro, eu tô dependendo deles lá. Aí, quando eu for embora, quando eu sair de lá, não
vai ter ninguém prá me ajudar”. Desta perspectiva, a saída do abrigo implica numa perda
muito significativa e na confrontação com uma situação de desamparo, em que terá que
173
contar apenas com os próprios recursos. Seria de fundamental importância que o
desabrigamento de J. pudesse ser trabalhado, a fim de auxiliá-la neste processo.
Encerra a entrevista, falando de seu lugar no abrigo como um espaço que valoriza e do qual
se apropria. Alberti (2004) descreve o processo do adolescer como o sujeito adolescente
devendo incorporar o Outro da infância, de maneira que não seja tão dependente da
idealização dos pais. O abrigo tem dado suporte a este processo, favorecendo que faça uso
dos laços ali estabelecidos para efetivar esta operação.
174
Capítulo V – Considerações finais:
As entrevistas nos propiciaram um material rico para refletirmos sobre os sujeitos abrigados
e as questões do abrigamento. Alguns recortes feitos são julgados pertinentes, por estarem
estritamente relacionados a aspectos assinalados no corpo dessa dissertação.
Em consonância ao trabalho desenvolvido por Marin (1999), ao longo de todo o processo
que circunscreveu esta pesquisa, ficamos movidos pelo desejo de tentar responder e,
principalmente, propor saídas para as questões emergentes dos discursos das adolescentes.
Este aspecto se evidencia quando sugerimos alternativas de atuação concomitantemente às
análises das entrevistas. Optamos por não deixar de lado esta tendência, pois foi a prática
que nos impeliu à busca de sistematização para as questões encontradas. Algumas delas
serão retomadas neste capítulo.
A teoria de Althusser (1985) tem rigorosa relação com esta dissertação, possibilitando a
articulação de questões relacionadas aos abrigados e a existência de abrigos em nossa
sociedade. Esse autor trabalha com as formações ideológicas que estão inteiramente
relacionadas às práticas exercidas; acentua e valoriza a prática, trabalhando com a
articulação entre a política e a filosofia, defendendo a materialidade das instituições e dos
aparelhos ideológicos do Estado. As concepções ideológicas que permeiam, concebem e
mantêm o atendimento à adolescentes abrigados, em nossa sociedade, têm estrita relação
com as práticas exercidas com, e em relação à, esta população.
Altoé (1990) trabalha sobre o que era oferecido pela FEBEM, enquanto instituição total, no
atendimento a carentes e abandonados. O SOS Criança, anteriormente atrelado à FEBEM e
respondendo à mesma Secretaria
49
, compunha o conjunto de atendimentos oferecidos pelo
Estado. Todas as quatro adolescentes por nós entrevistadas passaram por este modo de
atendimento. Quando houve o processo de municipalização, esse serviço deixou de estar sob
responsabilidade do Estado e, conseqüentemente, da FEBEM. Filiando-se, teoricamente, a
Franco Basaglia, o qual defende a existência na psiquiatria do que nomeia como “crime de
paz”, esta autora propõe que este conceito possa ser transposto para outras populações
49
Secretaria do Bem-Estar Social
175
socialmente segmentadas, o que se aplica às crianças e adolescentes institucionalizados. A
autora defende, ainda, que a responsabilização pelo atendimento prestado à infância e
adolescência institucionalizada deva ser estendida a toda sociedade.
“A criança, como o índio, o negro, não é uma engrenagem da máquina política. Portanto
não existe. Qualquer que seja o regime político ela está, como o velho, o desviante e o
louco, mais próxima do animal que do gênero humano. É feita para ser observada,
classificada, avaliada, julgada, separada, aprisionada. Está “fora do jogo” (p.9)”.
Algo acontece, socialmente, para a negligência com esta realidade e, neste sentido, somos
todos coniventes com o que é oferecido, visto que fazemos parte dessa sociedade e temos
posições em relação a ela.
Altoé (1994) defende que esta parcela da infância e adolescência não pertence ao regime
econômico e político capitalista, estando excluídas, “fora do jogo”. Defendemos, porém,
que estas crianças e adolescentes estão inseridos neste regime e nele cumprem a sua função:
mesmo não tendo poder de consumo e ficando à margem, se fazem presentes, indicando
características e aspectos intrínsecos a nossa forma de organização social, econômica e
política.
Para Althusser (1985), as ideologias fazem parte da ordem do vivido, tendo existência
material, operando a serviço da ocultação das reais condições do indivíduo oprimido.
Fundamentando-se, teoricamente, em Marx, Althusser reconhece a psicanálise teórica e
cientificamente ao estabelecer interlocuções com Freud e Lacan, autores de fundamental
importância neste presente trabalho.
176
Ao funcionarem como aparelhos ideológicos do Estado, os abrigos perpetuam o padrão
imposto pela classe dominante. Vale lembrar que, na história social brasileira da infância e
da adolescência abandonadas, a instituição socialmente criada e antecessora dos abrigos
era o chamado “reformatório”. Tal nomeação fazia eco aos propósitos reformistas que
visavam “reformar ou reformular” os sujeitos institucionalizados, transformando-os no que
a sociedade deles esperava. As normatizações integrantes das leis (Código de Menores)
orientadoras dos que fundam ou trabalham nessas instituições pautavam-se em concepções
higienistas e focavam uma reeducação adaptativa ao convívio social.
O abrigo é uma destas instituições que exerce o efeito de sujeição sobre os sujeitos
abrigados. Sujeição, aqui nomeada, segundo Althusser: mecanismo onde o sujeito se
reconhece como sujeito e ao mesmo tempo se sujeita a um Sujeito Absoluto. As unidades de
abrigo, embora com atuações específicas, são organizadas a partir da ideologia dominante
representada pelos aparelhos ideológicos do Estado.
Marin (1999), também trata sobre estes aspectos:
De um lado, sabemos o quanto as instituições reproduzem a ideologia dominante,
colocando-se a serviço do controle social e da manutenção do sistema vigente. Por outro, a
psicologia institucional nos dá uma série de elementos para entender como as pessoas
integrantes da instituição se organizam, a fim de manter uma dinâmica que satisfaça as
suas necessidades pessoais e, em última análise, esse sistema social (p.49)”.
Através dos discursos dos sujeitos entrevistados, podemos verificar esta reprodução na
prática: o profissional que trabalha com essa população, muitas vezes, culpa os sujeitos por
estarem abrigados. Todas as entrevistadas relatam situações experienciadas com os
educadores que espelham esta situação.
Enriquez (1991) classifica as instituições em seu caráter cultural, simbólico e imaginário. O
caráter cultural é referente à instituição como um sistema de valores, de normas, de
pensamentos e de ações que devem modelar o comportamento dos seus agentes, junto aos
sujeitos que lhe são confiados ou que lhe solicitaram algo. O caráter simbólico refere-se aos
mitos, aos rituais, aos heróis tutelares que venham a sedimentar a ação dos membros da
177
instituição, legitimando e dando sentido às práticas. E o caráter imaginário refere-se ao que a
instituição pretende capturar dos indivíduos, na armadilha de seus próprios desejos
narcísicos e de identificação, nas suas fantasias de onipotência, ou na necessidade de amor,
colocando-se no lugar de quem pode responder aos desejos mais excessivos ou mais
arcaicos.
Ao tratar sobre o âmbito institucional descreve:
“As instituições, enquanto sistemas culturais, simbólicos e imaginários, apresentam-se,
portanto, como conjuntos englobantes, visando imprimir a sua marca distintiva sobre o
corpo, o pensamento e a psiqué de cada um dos seus membros. Elas vão favorecer a
construção de indivíduos para a sua devoção, na medida que conseguiram se instaurar
para eles como pólo ideal e a obcecá-los com o ideal. (p.79)”.
Os abrigos são instituições pertencentes e gerenciadas ou pelo Estado, ou por ONGs
(Organizações Não Governamentais), ou entidades filantrópicas (freqüentemente religiosas)
ou, ainda, de iniciativa privada. As casas pertencentes ao Estado apresentam características
de funcionamento e estrutura diferenciadas das de ordem privada (ONGs). No entanto, essas
diferenças ficam encobertas pela ideologia dominante, materializada através das leis: o ECA
regimenta como as casas abrigos devem atender e, em quais moldes esse atendimento deve
ser realizado. A normatização do atendimento, aparentemente, as unifica a despeito de suas
diversidades e contradições.
O ECA apresenta um conjunto de leis direcionado ao atendimento e proteção de crianças e
adolescentes, tendo como proposta a melhoria no serviço a eles prestado e preservação dos
seus direitos. Os abrigos estão contemplados neste conjunto de leis, fato que acarretou o
desmonte de grandes internatos, visando a melhoria na qualidade do atendimento.
A implementação do ECA objetiva que os abrigos ofereçam um atendimento padronizado
quanto à estrutura física e ao atendimento destinado à família, à criança e ao adolescente.
Tal uniformização pressupõe a eliminação das diferenças: os abrigos, de fato, podem
178
oferecer um atendimento padronizado quanto ao espaço físico e à sua organização.
Entretanto, depara-se com a impossibilidade de seu cumprimento quanto ao corpo funcional
e ao trabalho desenvolvido, uma vez que a equipe e os adolescentes apresentam suas
questões particulares e subjetivas, implicando, necessariamente, em diferenças. Exemplos
diversos deste descumprimento surgiram no transcurso das entrevistas. Ao nos apoiarmos,
teoricamente, na psicanálise constatamos como fundamental o respeito à diferença e à
subjetividade do sujeito abrigado.
Servimo-nos, teoricamente, da colocação de Marin (1999), ao descrever a instituição como
reprodutora dos padrões sociais de controle e alienação através das pessoas que nela vivem,
mas apresentando contradições que permitem um movimento de mudança.
Recorramos à conceituação de Althusser (1985):
“Que o sujeito humano é descentrado, constituído por uma estrutura que também tem um
“centro” apenas no desconhecimento imaginário do “eu”, ou seja, nas formações
ideológicas em que se “ reconhece” (p.71)”.
Em seu retorno a Freud, Lacan afirma não haver relação do sujeito com o mundo que não
seja mediada pela linguagem, sendo nela introduzido através dos laços sociais. Nos lapsos,
atos falhos e sintomas destacam-se os significantes da cadeia que apontam para o discurso
inconsciente. O sujeito é descentrado, não havendo como separar externo de interno, o
dentro/fora que caracteriza sua contradição. A realidade do mundo físico se dá através do
Imaginário, Simbólico e Real.
A transmissão do Simbólico se impõe aos seres humanos, mesmo antes do nascimento: a
criança já está designada a um lugar pelos pais, pela família e pela sociedade. O sujeito é
marcado, desde sempre, pela Lei, pela cultura, pelo Outro. Assim, todos os sujeitos aqui
entrevistados foram estruturados por este processo.
A categoria filosófica de “sujeito consciente de si” vem de encontro à concepção jurídica -
sujeito responsável pelos seus atos e obrigado a obedecer normas - bem como da psicologia.
Esse sujeito dotado de consciência é objeto da ciência, da psicologia e de vertentes outras da
psicanálise, onde é perpetuada a tendência de naturalização do todo.
179
Neste trabalho a escuta se dirige não ao sujeito de direito, mas ao sujeito de desejo: como
experienciaram o abrigamento a partir de suas particularidades e quais laços foram
estabelecidos. Fazendo uso das palavras de Teixeira (2002), os discursos dos sujeitos
entrevistados nos remetem “ao percurso, à origem, ao presente e ao que o futuro anuncia,
sendo a pesquisadora, enquanto ouvinte, testemunha”.
Enriquez (1991), ao tratar das características das instituições terapêuticas, salienta que os
sujeitos as interpelam em busca de cura e/ou assistência e, simultaneamente, se põe
dispostos à submissão. Esta caracterização pode ser transposta para a instituição-abrigo:
aquele que a procura, seja o adolescente ou sua família, espera ser atendido em suas
necessidades, predispondo-se à submissão. O autor descreve os sujeitos que buscam essa
modalidade específica de atendimento, tendo por denominador comum o confronto com
vivências da ordem do arbitrário, e não da ordem do estruturante. Sujeitos que se
confrontaram com experiências que ele denomina de excesso, como por exemplo: “de apego
envolvente, de excesso de pancadas, de ódio destruidor, de votos de morte, de indiferença
dos pais que os fazem viver em uma situação de carência insuportável o que faz com que
esses sujeitos não se confrontem com limites e interdições aceitáveis (p.81)”.
Ora, em conformidade com Lacan, é do excesso que se trata no encontro do sujeito com o
Real.
Abaixo selecionamos fragmentos na escuta das entrevistadas:
- N. deparou-se aos oito anos com a morte do pai e do irmão e, aos onze, com a morte da
mãe, esfaqueada pela irmã.
- M. assistiu ao assassinato da mãe pelo padrasto, supostamente pelo fato da mãe possuir um
amante.
- P. teve seus pais assassinados em decorrência de seus envolvimentos com tráfico de
drogas.
- J. relata que foi dada, aos dois anos de idade, pela mãe biológica para a mãe adotiva.
Cada um destes sujeitos, ao discorrer sobre suas experiências de vida e sua história singular,
relata vivências onde o que se impõe é da ordem do traumático, do Real, do que resiste à
representação. Essas experiências, marcadas nos discursos em suas particularidades,
180
permitem uma aproximação teórica entre o que Enriquez nomeia como experiências de
excesso e Lacan como encontro com o Real traumático.
Segundo Henriquez, a civilização moderna favorece a eclosão de sujeitos abandonados a si
próprios, a quem os pais não puderam servir de referência, por serem portadores de
limitações, ou terem sido expostos a elas, o que interfere diretamente no processo de
subjetivação de seus filhos. Em conseqüência, estes sujeitos tendem a buscar sustentação em
seus pares ou nos ideais que a mídia propõe, visto a dificuldade de se confrontar com a
alteridade, pois a sua não foi reconhecida.
Lacan, em “Complexos Familiares”, coloca a família com introdutora de seus filhos na
sociedade, sendo a transmissão realizada em conformidade com a subjetividade de cada um
dos componentes, e do modo como esta família é convocada socialmente.
Pudemos verificar, através das entrevistadas, que todas as famílias de origem, são de uma
classe social menos favorecida economicamente. Os sujeitos entrevistados se estruturaram
subjetivamente no âmbito familiar, o que lhes permitiu fazer uso deste legado na reedição
edípica vivenciada dentro do âmbito institucional. Em seu processo de adolescer, cada um
dos sujeitos procurou apoio, em substitutos das posições edípicas, que lhes desse alguma
sustentação. Assim, a adolescente P. apoiou-se no sargento (diretor do abrigo); J.
demonstrou sofrer por não ter encontrado sustentação na família adotiva, bem como na
família de origem, mas traz o abrigo e alguns dos seus representantes (coordenadora),
capazes de sustentá-la neste processo; N., atualmente, apóia-se na igreja, na religião e em
seu “pai maior-DEUS”, bem como no pai idealizado (Dr. M); M. encontrou esse apoio em
alguns educadores e professores, com quem mantém contato atualmente, depois de
desabrigada.
181
Discorremos, nas considerações teóricas referente a cada uma das entrevistadas, sobre a
importância evidenciada em seus discursos de quem as sustentasse, no desenrolar de seus
processos do adolescer. Marin (1991), ao discorrer sobre a institucionalização de crianças e,
apoiando-se teoricamente em Mannoni, defende a importância do suporte do Outro frente à
institucionalização:
“Se considerarmos, de acordo com Maud Mannoni, ser essa possibilidade, a do espaço da
demanda, da criança perceber que tem um lugar a partir do desejo do Outro, e que,
portanto, ela também é um ser desejante, a condição para o estabelecimento da Identidade
não parece ser impossível de se dar, dentro de uma instituição (p. 116)”.
No discurso de N. o educador emerge como alguém que deveria ter a função de modelo.
Contrariando esta expectativa, a adolescente descreve educadores que discriminam e tratam
os adolescentes de forma a “feri-los ainda mais”. No discurso de M., o educador também
aparece com uma importância fundamental: “a gente precisava disso, quando a gente não
tem família, a gente tem os tios como se fossem parte, é importante prá gente”.
Enriquez (1991) aborda um aspecto institucional relacionado ao cuidador
50
, àquele que se
propõe a atender os sujeitos que buscam a instituição. Este autor nomeia o “cuidador” como
operador institucional. E interroga: “o que é que motiva esses operadores sociais nas
relações com seus pacientes? (p.86)”.
Transpomos essa pergunta à equipe e ao educador que atende os adolescentes nas casas-
abrigo, pois, no discurso de todos os sujeitos entrevistados, o educador foi mencionado
diversas vezes, cada um trazendo à tona aspectos relacionados a este operador social.
Qual será o lugar que cada um dos educadores se coloca, em relação à população que
atende? Podem levar em conta as histórias de perdas sucessivas que se evidenciam nos
discursos dos abrigados?
50
Nas entrevistas os “cuidadores” foram nomeados como: educador e orientador.
182
Marin (1999) discute a respeito da escassez de espaço nas instituições, que facilite o
trabalho do “atendente”, visto ter contato direto com o abandono e a falta. Segundo esta
autora, seria um auxílio para este funcionário, a existência de espaços propiciadores à
discussão, à reflexão e orientação sobre seu papel frente às dificuldades encontradas.
Enriquez (1991), apoiando-se teoricamente em Kaës (1976), nomeia os profissionais que
trabalham no âmbito institucional como seres marginais (p.87).
“Ser marginal significa comportar-se de uma maneira não congruente com o sistema social
e se interessar por aquilo que quase não o preocupa: a verdade e a autonomia do sujeito,
pois o sistema social fundamentalmente é apenas um lugar de disfarce e de hipocrisia que
pede aos indivíduos que sejam apenas os produtores - consumidores de que ele precisa para
a sua própria perenidade (p.87)”.
Este autor adverte como esse lugar implica na possibilidade de negação ou de esquecimento
das exigências da sociedade e da realidade histórica. O perigo, salienta Enriquez, repousa na
implicação da vontade deste profissional querer tornar-se referência central para aquele que
atende e, inversamente ao esperado neste lugar de marginal, tornar-se impedimento para o
sujeito se desprender e separar. Por outro lado, o mesmo autor adverte do perigo fascinante
da identificação do profissional com o atendido.
“Na medida em que o próprio paciente é um marginal (a sociedade contemporânea tende a
considerar como“anormal” qualquer pessoa doente, ansiosa ou em estado de abandono), o
terapeuta, corre o risco igualmente de ser fascinado pelo seu paciente, de se identificar com
ele e com sua normas ou, pelo menos, de estabelecer com ele uma conivência tal que
acabará contribuindo para criar uma situação na qual a análise se tornará impossível (p.
88).”
Verificamos que tal situação pode também ocorrer no caso das educadoras. Na fala de P.,
que ao referir-se a uma delas, diz: “(...) era jovenzinha, aí juntava ela e parecia que ela era
uma das abrigadas”. Ao identificar-se com as demais adolescentes, a educadora estabeleceu
183
um laço calcado na indiferenciação quanto às adolescentes a quem deveria atender. É
imprescindível que estes profissionais sejam instrumentalizados e escutados em suas
questões subjetivas, tornando-se aptos a suportar o lugar ao qual serão convocados por cada
adolescente.
Como discorre Lacan em “Complexos Familiares”, a constituição subjetiva dos sujeitos está
vinculada aos pais, não apenas enquanto geradores dos filhos, mas como aqueles que irão
exercer a função materna e paterna. Tomando como referência universal o Complexo de
Édipo na estruturação do sujeito, o pensamos não apenas circunscrito ao pai e mãe de
origem, mas estendido a quem irá exercer estas funções, que poderão variar de acordo com a
estrutura familiar e social. Neste sentido, podemos pensar o abrigo e seu corpo funcional
como estrutura de nossa sociedade, passível de ocupar um lugar importante na subjetivação
dos sujeitos adolescentes abrigados. Para P., o sargento, que lhe dá um lugar diferenciado no
abrigo; para M., o educador, que canta ao acordá-la, a coordenadora, que está atenta às suas
necessidades, a professora, que a auxilia na transferência de escola; para N., o diretor, que
lhe arruma trabalho; para J., a coordenadora do abrigo, que lhe confere responsabilidades.
Todas estas situações transferenciais sugerem possibilidades do âmbito institucional
constituir-se em suporte ao momento subjetivo especial do adolescer.
Inversamente, as entrevistas também evidenciaram ações de educadores que se mostraram
insuficientes na sustentação deste processo, mantendo com os adolescentes relações e
posições inadequadas: M. fala de um professor de dança, do abrigo, que mantinha
relacionamentos sexuais com as adolescentes, aproveitando-se de sua posição para assediá-
las. P. menciona uma educadora que fazia uso de drogas, juntamente com as abrigadas.
Considera-se destratada por profissionais do abrigo, por incidirem de forma imprópria na
questão do abandono que sofreu, pois usaram este argumento como artifício, para que o
grupo de adolescentes executasse tarefas domésticas. N. relata a ação de alguns educadores
ao fazerem uso da força bruta como forma de convencimento para que freqüentasse um
curso de teatro. A mesma adolescente revela que, alguns deles, nomeavam os abrigados por
“marginais”.
Certamente, por estas questões éticas inadmissíveis, esses educadores apresentam perfis
incompatíveis ao exercício da função.
184
Há condições objetivas previamente relativas ao exercício das funções dos educadores, em
uma casa abrigo. Ocorre, entretanto, do profissional demonstrar-se apto, quando de sua
contratação, mas no transcurso do exercício profissional, a mobilização de suas questões
subjetivas impossibilitarem o desempenho desta função. É importante, portanto, enfatizar a
necessidade das instituições desenvolverem meios que ofereçam recursos para os
profissionais no exercício desta prática.
Guará (2006), ao tratar dos abrigos, acentua a importância da existência de supervisões
periódicas, de capacitação e de investimento, na formação dos educadores e da equipe.
Defende a concepção, da qual partilhamos, de formação contínua destes profissionais, bem
como a importância de haver, dentro de cada casa-abrigo, um espaço propício à reflexão e à
discussão das ações.
“A formação oferece momentos que estimulam reflexões capazes de gerar uma maior
compreensão sobre as práticas utilizadas e seu processo de criação e reprodução, sobre as
relações que se estabelecem e sobre sentimentos que perpassam o fazer educativo de todo
dia. Possibilitando o aprofundamento e o conhecimento sobre aquilo que está sendo
produzido pelo processo de trabalho nas várias dimensões que ele abarca (p.4).”
Partidários desta proposta,reafirmamos: a existência de um trabalho de formação continuada
dentro da instituição, orientaria os educadores para o confronto com questões emergentes no
processo do adolescer, como o são as relativas à sexualidade. Exemplo disto, é encontrado
no relato de P., quando descreve a escassez de referências para esta escuta específica.
Ainda que o abrigo possa funcionar como um facilitador no processo de subjetivação dos
sujeitos abrigados, é importante que a instituição não se coloque como substituta da família.
Marin (1999) faz referência a este aspecto:
“... a instituição, enquanto tenta se colocar como substituta total da família, fazendo-se de
pai e mãe, ou melhor, da mãe com pai ausente, procurando negar a falta vivida pela
criança, estará, justamente, impedindo a vivência da demanda. Se acreditarmos que é a
partir da falta de ser que o sujeito pode manifestar seu apelo, viver seu desejo, orientar-se e
fazer sua própria história é preciso deixar surgir esse espaço da falta. Não se deve apenas
preencher totalmente a criança, mas também permitir que ela questione sua origem, fale do
seu abandono, entenda quem, no momento está ocupando os lugares de proteção e apoio e,
185
ao mesmo tempo, de limite e ordem e para onde deve seguir seu destino (qual o futuro
possível colocado para ela) (pgs.48 e 49)”.
Poli (2005) escreve sobre o adolescente abrigado, tendo como referência sua prática clínica
com esses sujeitos. Esta autora faz pontuações que colaboram para a reflexão sobre o
abrigamento, a família e o processo de subjetivação na intersecção com a instituição.
“Em se tratando de adolescentes, a inscrição da instituição no lugar da função parental
problematiza a realização da operação que seu momento de vida convoca. Ao ter na
instituição um substituto parental, a alienação do sujeito aos significantes deste Outro
comporta o apagamento do primeiro registro familiar (p.199)”.
Segundo esta autora, esta alienação, ancorada no apagamento do primeiro registro familiar,
não permite uma substituição simbólica ou deslocamento. Descreve alguns casos de
pacientes, adolescentes institucionalizados, que passaram a recusar seu lugar na família ao
serem institucionalizados.
Segundo Poli (2005) muitos adolescentes assumem um posicionamento acusatório em
relação à família de origem, pela sua situação, ou então, sentem vontade de fugir da
instituição para reencontrar os laços familiares, por se sentirem culpados de os terem
abandonado. “A alternância entre estas posições - verso e reverso da mesma questão:
posição de acusação ou culpa – era o mais habitual (p.199)”.
A autora defende, inclusive, que a filiação familiar é insubstituível, pois só ela dá ao outro o
suporte para a inscrição no Real, Simbólico e Imaginário. A singularidade de uma relação
intersubjetiva, diz a autora, implica em eu e tu reais, onde a transmissão do desejo é
possível.
“(...) é preciso que haja um significante que o nomine. O que só é possível por meio do
suporte de um outro/Outro que empresta seu corpo, seu lugar e seu nome para que a
autenticação de uma versão singular do Real seja possível (p. 201)”.
Como pontuamos, as colocações de Poli foram obtidas a partir dos discursos de sujeitos em
análise. Esta dissertação é circunscrita à análise dos discursos das entrevistas dos
adolescentes abrigados, não havendo, portanto, possibilidade de uma equiparação de dados.
186
Incita-nos, porém, a ampliar a discussão, aqui proposta, sobre os efeitos do abrigamento nos
processos subjetivos dos sujeitos. Ponto relevante, nesta discussão, é que o período de
abrigamento possa oferecer oportunidades ao sujeito abrigado, para que elabore suas perdas
e quebras familiares, sem negar a existência das mesmas.
As adolescentes entrevistadas vivenciaram situações familiares extremamente adversas,
necessitando serem tuteladas, inclusive, para a preservação de suas integridades físicas. N. é
explorada pela madrasta para fazer o tráfico de drogas, sofrendo sevícias por parte desta.
Passa a viver um grande afastamento de sua família de origem, não mantendo contato com a
mesma há dez anos. M. é levada ao abrigamento por uma situação violenta de
desestruturação do núcleo familiar, e seu discurso é permeado por um significante recorrente
que remete à sua condição de orfandade: mesmo abrigada, não consegue restabelecer
contato com a família. P. é confrontada com o assassinato de seus pais e é violentada,
fisicamente, pela tia, com quem passou a residir. O abrigamento dá- lhe condições de
retomar contato com a família de origem, através da irmã. Incompatibilizada com a família
adotiva, J. procede a busca pela mãe biológica, sendo mais uma vez rejeitada. No espaço de
abrigamento, encontra suporte suficiente, que lhe permite voltar a visitar a mãe adotiva.
Enriquez (1991) trata de outros aspectos institucionais que se relacionam com o atendimento
oferecido pelos abrigos. Segundo este autor, as instituições vivem (...) “sob a égide de uma
ideologia igualitária e cada um dos operadores exerce no seu campo um papel
terapêutico”.
Oliveira (2000) cita Soller, abordando o mesmo aspecto: “Lacan refere-se a uma
uniformização do gozo que tem como imperativo ‘todos iguais’, o qual acarretaria uma
foraclusão das diferenças no sentido preciso de exclusão do simbólico (Oliveira apud
Soller, 1998:299)”. A autora adverte para uma característica do trabalho institucional que
pode favorecer rivalidades: (...) “cada um dos especialistas pode sucumbir ao desejo de
pensar que os progressos dos pacientes são devidos a sua técnica específica e que a ação de
outros especialistas constituem um entrave (p.91)”.
Estas reflexões teóricas são confirmadas no relato de N. ao discorrer sobre as diferenças de
condução e orientação entre os plantões, assim como no discurso de P. ao relatar a
dificuldade do abrigo na manutenção de normas devido à falta de coesão da equipe: uns
187
funcionários estabelecem as regras, outros as quebram. A mesma adolescente discorre sobre
uma situação na qual profissionais do abrigo, incapazes de sustentar as regras e limites,
ameaçam realizar um Boletim de Ocorrência, fazendo uso de um organismo de caráter
repressivo externo à instituição. A pesquisadora pôde testemunhar, no transcurso de sua
atividade, a recorrência a este recurso disciplinar, o que é indicativo de um sintoma
institucional.
Outro aspecto de ordem disciplinar afrontador da questão hierárquica na instituição surge no
discurso de P., ao descrever uma situação na qual a coordenadora, ao impor determinada
disciplina”, é desautorizada pelo diretor “sargento” diante dos adolescentes. Os exemplos
trazidos através das entrevistadas,evidenciam a existência de rivalidades entre/e nas equipes
de técnicos e educadores, provocando distanciamento dos sujeitos abrigados.
Enriquez sustenta que as instituições tendem a resolver as diferenças no trabalho técnico
através de reuniões, nas quais o foco das discussões são os “casos-problema”, de forma a
negar a existência das relações de poder e do peso diferenciado de cada profissional no
âmbito institucional.
“As verdadeiras questões raramente são abordadas, pois se fossem poderiam surgir
conflitos específicos que questionam a segurança de cada um (p.91)”.
Podemos estabelecer um paralelo entre um aspecto observado por Alberti (2004)
51
, na
procura dos pais por tratamento analítico para seus filhos, e a escuta às questões subjetivas
dos adolescentes, no âmbito institucional. Segundo esta autora, é comum a demanda dos
pais servir como invólucro para questões subjetivas referentes a eles próprios, e não aos
filhos. O abrigo e a equipe podem incorrer no mesmo engodo, tornando-se incapazes de
escutar o adolescente e, trazendo para a discussão temas que não se relacionam a ele, de
fato, mas que reproduzem questões e impasses subjetivos obscuros dos próprios técnicos e
educadores.
Como discorre Marin (1999): “Podemos assim, entender que as instituições desenvolvem
por si próprias, sistemas de defesa que são produtos da interação entre os membros da
instituição, garantindo a manutenção de seu sistema de defesa pessoal (p.50)”.
51
P.32.
188
Quanto ao desabrigamento, as entrevistas evidenciam pontos importantes para a reflexão.
Deste momento complexo, neste processo, lembremos que a legislação norteadora dos
abrigos propõe o abrigamento do adolescente até dezoito anos de idade, a partir do que
deverá ser encaminhado. Para M. e N., houve a efetivação desta medida, mas sua aplicação
transcorreu de forma totalmente imprópria: descrevem esta experiência como um
rompimento brusco, violento, sem qualquer preparo e planejamento. Torna-se, de
fundamental importância, a existência de um preparo específico, que vise instrumentar tanto
a equipe técnica quanto o adolescente para o enfrentamento deste processo. A falta deste
trabalho não favorece a elaboração do luto pela perda da tutela institucional, assim como
não possibilita, ao desabrigado, um planejamento para a vida futura. Como descrito no
ECA, espera-se que o adolescente, enquanto abrigado, freqüente a escola e seja preparado
para o mercado de trabalho, saindo da instituição, adaptado ao regime econômico e social
no qual será reinserido.
Assim, ao completar dezoito anos, N. foi encaminhada para uma pensão, sem ter adquirido
condições materiais e subjetivas para se sustentar. M. foi desabrigada às pressas, meses
antes de completar sua maioridade, como se houvesse urgência da instituição em fazê-lo.
Ambas descrevem essa experiência como um abandono feito de forma impositiva. No caso
de P. e J., ainda abrigadas à época das entrevistas, a questão do desabrigamento é referida,
evasivamente, ao citarem cursos realizados através do abrigo, que as capacitariam para a
manutenção de suas sobrevivências. Na prática, como se colhe nas entrevistas descritas, as
orientações do ECA ficam muito aquém do proposto.
Uma proposta de trabalho, na perspectiva da preparação para o desabrigamento do
adolescente, deve contemplar capacitações objetivas, como as que foram relatadas por M.:
cozinhar, lidar com dinheiro, acordar sozinha, etc. Aspectos aparentemente simples, de
serem trabalhados no dia a dia, mas que necessitam atenção particularizada a cada um dos
abrigados. Outro aspecto inscrito na legislação (artigo 92- ECA) refere-se à preservação e
aproximação dos abrigados à sua família de origem ou sua integração em uma família
substituta. Portanto, é esperado que o adolescente, ao ser desabrigado, pudesse recorrer a
estas referências.
189
Cada casa-abrigo tem sua forma diferenciada de trabalhar a proposta de reaproximação do
abrigado com seus vínculos familiares. Estes laços, em geral, estão fragilizados por
situações de crise que culminaram no abrigamento do adolescente. Havendo possibilidades
para tanto, é importante que o abrigo medie o contato com os familiares, de modo a
implicá-los durante o período de abrigamento. Nesta implicação, cabe a casa-abrigo ouvir
os sujeitos abrigados, assim como a família, para ampliar a compreensão da busca por este
recurso. Também é fundamental que a família possa participar do projeto de vida deste
adolescente, visando, inclusive, o momento de desabrigamento.
A família deve ser pensada pela instituição, como uma possibilidade, e não como a única
saída. Muitas vezes, fica evidenciado o distanciamento entre o proposto pela lei e o que é
possível ser efetivado. Exemplo disto, no caso de N., é a proposta do coordenador, para que
retornasse à sua família extensiva, proposição esta totalmente deslocada do que era
possível, tanto para ela como para a própria família. J. apresentou, em seu relato, a situação
de desabrigamento inadequado, que a levou a fugir da família adotiva e retornar à
instituição.
As adolescentes M.e N. fizeram referências a vários pares, com os quais compartilharam a
experiência do abrigamento, discorrendo sobre o contato mantido com estes, fora do âmbito
institucional. Muitos passaram a viver na ilegalidade - assaltando, traficando. Outros
casaram, tiveram filhos e vários conseguem manter-se economicamente através de trabalho.
Ambas relataram que, mesmo estando desabrigadas, mantiveram laços com educadores,
professores, diretores, em transferências significativas que sustentaram seus processos
subjetivos.
Como pontua Teixeira (2001), na teia social, cada um é colocado na luta pelo desejo de
reconhecimento. O sujeito se constitui a partir do desejo do Outro, desejo do desejo do
Outro.
52
Constatamos, ao longo de nossas entrevistas, a procura de ter um “lugar a partir do desejo do
Outro” sob diferentes formas. Ao escutarmos os discursos destas adolescentes abrigadas,
fomos confrontados com suas buscas de reconhecimento pelo Outro, tanto no âmbito
familiar como no âmbito institucional. O trabalho, aqui realizado, nos mostrou a importância
52
P.57.
190
da escuta psicanalítica, na compreensão das construções subjetivas de cada um dos
abrigados.
Para Alberti (2004), o sujeito atravessa a adolescência com seu trabalho singular de
elaboração de escolhas e da falta no Outro. Será o trabalho de escuta psicanalítica passível
de ser implementado no âmbito institucional? Haveria como particularizar esta escuta para
cada um destes sujeitos adolescentes, respeitando seus processos de escolhas? Este é um dos
desafios do trabalho institucional: o respeito aos sujeitos em seus processos subjetivos.
Como coloca Oliveira (2000), a efetivação do trabalho teórico-prático na instituição abrange
a singularidade daquele que atende e a singularidade de quem é atendido.
“A questão da singularidade faz ‘furo’ nessa ilusão de uma verdade universal ou de uma
totalidade que seja generalizável a todos os pacientes, tal como se aprende na teoria.
(p.21)”.
Segundo Freud, a civilização é geradora de mal-estar que se expressa em tarefas
impossíveis: governar, educar e analisar.
“Não é de admirar, portanto, que tenha surgido a expectativa de que o interesse
psicanalítico nas crianças beneficiaria o trabalho da educação, cujo objetivo é orientar e
assistir as crianças em seu caminho para diante e protegê-las de se extraviarem.
Minha cota pessoal nessa aplicação da psicanálise foi muito leve. Em um primeiro estádio,
aceitei o “bon mot” que estabelece existirem três profissões impossíveis educar, curar e
governar , e eu já estava inteiramente ocupado com a segunda delas. Isto, contudo, não
significa que desprezo o alto valor social do trabalho realizado por aqueles de meus amigos
que se empenham na educação
53
”.
Seria isto extensivo ao abrigamento?
53
Freud, S. (1925) In. Prefácio à juventude desorientada de Aichhorn. Obras Completas; vol XIX. . Este
volume discorre sobre o trabalho comdelinqüentes” em instituições.
191
Referências bibliográficas:
ALBERTI, Sônia (1996). Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Editora: Relume
Dumará.
_______________ (2004). O adolescente e o outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Edição
2004.
ALTOÉ, Sônia (1990). Infâncias Perdidas: o cotidiano nos internatos-prisão; Rio de
Janeiro: Ed.1990.
ALTHUSSER, Louis (1918). Freud e Lacan. Marx e Freud: uma introdução crítica-
histórica/ Louis Altusser; tradução e notas José Evangelista; revisão Alaíde Inah Gonzáles.-
Rio de Janeiro: Edições Graal, segunda edição-1985.
__________________ (1918). Aparelhos Ideológicos do Estado: tradução de Walter José
Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro; introdução crítica de José Augusto Guilhon
Albuquerque.-Rio de Janeiro: Edições Graal, segunda edição - 1985.
AZEVEDO, Marisa Seixas Tardelli de: (2000). Adolescência Infratora: um rito de passagem. Dissertação de Mestrado, em psicologia
social. Pontifícia Universidade Católica. São Paulo.
BAPTISTA, Myrian Veras/ coordenação (2006). Abrigo: Comunidades de Acolhida e
socioeducação. São Paulo: Instituto Camargo Corrêa.
CAMPOS, Geison Fernando V.A. (2006). Adolescência: de que crise estamos falando?
Dissertação de mestrado, em psicologia social. Pontifícia Universidade Católica. São Paulo.
CALIL, Maria I. (2003). De menino de rua a adolescente: análise sócio - histórica de um
processo de ressignificação do sujeito. In. Adolescências Construídas: uma visão da
psicologia sócio-histórica / org. Sérgio Ozella. São Paulo: Cortez, 2003.
CORRÊA, M. (2006). In: Abrigo: Comunidade de acolhida e sócio educação/ coordenação
Myrian Veras Baptista. São Paulo: Instituto Camargo Corrêa.
192
CHEMAMA, Roland (1995). Dicionário de Psicanálise/ Roland Chemama; trad. Francisco
Franke Settineri. - Porto Alegre. Artes Médicas Sul.
ENRIQUEZ, Eugéne (1991). O trabalho da morte nas instituições. In. A instituição e as
instituições: estudos psicanalíticos/ René Kaës...(et al.); tradução Joaquim Pereira Neto. São
Paulo: Casa do Psicólogo.
ECA (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n. 8069 de 13 de julho de 1990.
Imprensa Oficial do estado de São Paulo.
FARIA, Michele.R (2003). Constituição do sujeito e estrutura familiar: O complexo de
Édipo de Freud a Lacan. Taubaté - SP: Editora e Livraria Universitária Cabral.
FARIAS, Francisco. R. (1996). A Pesquisa em Psicanálise: o Cogito Cartesiano e o
Inconsciente Freudiano. In: F.R. Farias, B. Favaret, C. E. Leal, E. Bohadana, G. F.T.
Oliveira, S. Sklar (orgs), Freud: O Interesse Científico de uma Filosofia Inquieta. Rio de
Janeiro: Revinter
FREUD, S. (1905). Três Ensaios sobre sexualidade. In. Obras Completas. Edição Standard
Brasileira. Rio de Janeiro: Imago 1980, vol. VII.
________. (1922). Psicologia de Grupo e a Análise do Ego. In: Obras Completas. Edição
Standard Brasileira das obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, vol. XVIII.
FREUD, S. (1923). Organização Genital Infantil. In. Obras Completas. Edição Standard
brasileira. Rio de Janeiro: Imago 1980, vol. XIX.
________. (1924). A Dissolução do Complexo de Édipo. In. Obras Completas. Edição
standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago 1980, vol. XIX.
________ (1925). Prefácio à juventude desorientada de Aichhorn. In. Obras Completas.
Edição Standard brasileira. Rio de Janeiro. Imago 1980, vol XIX.
193
________. (1930). O Mal-estar na Civilização. In: Obras Completas. Edição Standard
brasileira. Rio de Janeiro: Imago.1980, vol. XXI.
GALVÃO, Adriana C.D.P (2005). “O adolescente des-abrigado”: a construção de sentidos
acerca do desligamento e saída do abrigo. Trabalho de conclusão de curso. Pontifícia
Universidade Católica-SP.
GUARÁ, Isa. F. da Rosa ect al (1993): Trabalhando Abrigos. São Paulo. IEE PUC/ SP;
Brasília; Secretaria de Assistência Social/ MPAS.
GUARÁ, Isa M. F. da Rosa (2006). In. Abrigo: Comunidades de Acolhida e socioeducação.
/ coord. Myrian Veras Baptista. São Paulo: Instituto Camargo Corrêa.
LACAN, Jacques (1938). Os Complexos Familiares na formação do indivíduo. Rio de
Janeiro. Jorge Zahar, edição 1987.
______________ (1956-1957). Seminário IV - A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, edição1999.
______________ (1957-1958). Seminário V – As formações do inconsciente. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, edição 1999.
LAZZARI, Márcia Cristina (1998). Panacéia Burocrática: uma secretaria de governo para
crianças e adolescentes no Estado de São Paulo. Dissertação de mestrado, em ciências
sociais. Pontifícia Universidade Católica. São Paulo
LEITE, Mirian Lichitz Moreira. (1991). O óbvio e o contraditório da roda. In. História da
criança no Brasil. São Paulo. Editora Contexto.
LODONÕ, Fernando Torres (1991). A origem do conceito menor. In. História da criança no
Brasil. São Paulo. Editora Contexto.
MANNONI, Maud (1999). A criança sua doença e os outros. São Paulo: Editora Via
Lettera.
194
MARQUES, Margareth. S. (2006). A Escuta ao abuso sexual: o psicólogo e o sistema de
garantia de direitos da criança e do adolescente sob a visão da psicanálise. Dissertação de
mestrado em psicologia social. Pontifícia Universidade Católica. São Paulo.
MARIANO Alexandre Hélvio (2001) O cotidiano de crianças pobres desvalidas no final do
século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Dissertação de mestrado em história.
Pontifícia Universidade Católica. São Paulo.
MARIN, Isabel Silva Khan (1999). FEBEM, família e identidade: o lugar do Outro. São
Paulo, Editora Escuta.
MATHEUS, T.C. (2000). Ideais na Adolescência: falta de perspectivas na virada do século.
Dissertação de mestrado em psicologia social -Universidade de São Paulo – USP.
NASCIMENTO, R.A. (2004) Estudo de caso de um adolescente acolhido em casa-abrigo.
São Paulo, Tese de Doutorado em psicologia clínica-Universidade de São Paulo USP. São
Paulo.
OLIVEIRA, Beatriz Silveira A.de (2000) Instituição e Psicanálise: da impotência à
impossibilidade. Dissertação de mestrado em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
OGILVIE Bertrand (1987) Lacan: a formação do conceito de sujeito. Rio de Janeiro:
Editora. Jorge Zahar.
OZELLA, Sérgio (2003). Adolescências Construídas: a visão da psicologia sócio-histórica.
São Paulo: Cortez.
PASSETTI, Edson (1991). O menor no Brasil Republicano. In História da Criança no
Brasil. Editora Contexto.
_________________ (1982). Política Nacional do Bem-Estar do Menor. Dissertação de
Mestrado, em ciências sociais. PUC. São Paulo.
195
PESQUISA IPEA -Levantamento Nacional Rede SAC - resultante da elaboração do Plano
Nacional de Promoção, Defesa e Garantia do Direito de Crianças e adolescentes à
Convivência Familiar e Comunitária. (2004).
POLI, Maria Cristina (2005). Clínica da Exclusão: a construção do fantasma e o sujeito
adolescente. São Paulo: Casa do Psicólogo.
PRIORE, Mary Del (org.) (1991). História da Criança no Brasil. São Paulo: Editora
Contexto.
PRIORE, Mary Del (org.) (1991). O papel branco, a infância e os jesuítas na colônia. In.
História da criança no Brasil. São Paulo: Editora Contexto.
RASSIAL, Jaques J. (1995). Hipóteses sobre a adolescência. In. Revista da associação
psicanalítica de Porto Alegre. Ano V. Número 11- Novembro de 1995.
RIZZINI, Irene (1993) A criança no Brasil hoje: desafio para o terceiro milênio. Rio de
Janeiro: Editora Universitária Santa Úrsula / CESPI.
____________ (coordenação) (2006). Acolhendo crianças e adolescentes: experiências de
promoção do direito à convivência familiar e comunitária. São Paulo: Editora Cortez.
ROTONDARO, Daniela. P., 2005. O Abrigo pode ser um ambiente facilitador no
desenvolvimento de crianças e adolescente?- Grupo psicoterapeutico como instrumento de
trabalho. Dissertação de mestrado, em psicologia clínica. USP. São Paulo.
SAS (SECRETARIA MUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL), 2004. Reordenamento
de Abrigos infanto-juvenis da cidade de São Paulo: construção da política interinstitucional
de defesa dos direitos de convivência familiar e comunitária das crianças e adolescentes de
São Paulo/ Secretaria Municipal de Assistência Social...[et al.]. São Paulo.
196
TEIXEIRA, Jurema (2002). As lembranças de vida de mulheres portuguesas e afro -
descendentes. Tese de doutorado em Ciências Sociais. PUC. São Paulo.
TRASSI, Maria de L. (2006). Adolescência-violência: desperdício de vidas. São Paulo,
Editora Cortez.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo