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Angela Maria Rodrigues Laguardia
FAZES-ME FALTA, DE INÊS PEDROSA: UMA ALEGORIA
CONTEMPORÂNEA DA
SAUDADE
Belo Horizonte
2007
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Angela Maria Rodrigues Laguardia
FAZES-ME FALTA, DE INÊS PEDROSA: UMA ALEGORIA
CONTEMPORÂNEA DA SAUDADE
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras: Estudos
Literários, da Universidade Federal de Minas
Gerais, como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em Letras.
Área de Concentração: Teoria da Literatura.
Linha de pesquisa: Literatura, História e
Memória Cultural
Orientadora: Professora Doutora Constância
Lima Duarte.
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2007
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3
DEDICATÓRIA
À memória de minha avó Esther de Mello Branco. Por ter compreendido primeiro a
saudade, atravessando o Atlântico com a coragem e a ousadia que só o amor
conhece.
4
AGRADECIMENTOS
À orientação da professora Dra. Constância Lima Duarte que soube ser tecida de
saber e sabedoria, de uma direção firme e sensível, revestida pela leveza e
grandeza que a acompanham e de profundo respeito pelo meu trabalho.
Aos ensinamentos valorosos de meus pais, Hélio Rodrigues e Therezinha M. Branco
Rodrigues, mestres amorosos e imprescindíveis.
À contribuição preciosa da professora Dra. Conceição Flores, atenciosa ajuda, com
a qual iniciei a pesquisa.
Às lições importantes dos professores doutores Leda Martins, Sabrina Sedlmayer,
Ana Maria Clark e Luiz Alberto Brandão.
À acolhida e amizade da professora Dra.Tereza Virgínia Barbosa.
À presença e incentivo do professor Antônio Martinez de Rezende, amigo importante
e sincero.
Às orações de Angela Maria Bedeschi Faria, colega e amiga que conheci nesta
Instituição.
À generosidade e o carinho de minha prima Dalila que, de Portugal, me enviou livros
e sábias palavras sobre o caminho da saudade.
À paciência e escuta de Carlos Henrique Batista Pereira que digitou cuidadosamente
este trabalho.
Às secretárias do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, Letícia e
Rosana, pela prestimosidade.
À compreensão e apoio de minha família que, mesmo com o tempo de convivência
subtraído, procurou entender o meu anseio para concluir esta realização.
5
RESUMO
Fazes-me Falta (2002), de Inês Pedrosa, encena um relacionamento sob o
signo da morte e reflete sobre as relações de gênero, no Portugal contemporâneo.
Este estudo parte de conceitos elaborados sobre o tempo para tentar compreender
seus possíveis desdobramentos, refletidos nos relatos das personagens que são
confrontadas na fronteira vida/morte e nas diferenças representativas dos gêneros e
gerações historicamente distintas. A ligação entre este tempo e o tecido
memorialístico da narrativa permite a percepção dos mecanismos espelhados nessa
composição, sugeridos pela ausência e a falta que permeia a fala das personagens
e que originaria a saudade, mito representativo da alma portuguesa e alegoria
significativa na obra estudada.
Palavras-chaves: tempo, memória, saudade, contemporaneidade.
6
ABSTRACT
Fazes-me falta (2002), by Inês Pedrosa, puts on a relationship under the bell of the
death and reflects about the genre relations in the contemporaneous Portugal. This
study comes from concepts elaborated about the time, to try to understand its
possible unfolding reflected in the characters’ accounts which are confronted in the
boundaries of life and death, and in the differences that represent the genres and
generations historically distinct. The link between this time and the memorialistic
tissue from the narrative allows the perception of the mechanisms reflected on this
composition, suggested by the absence and misses that permeate the characters
speech and that would generate the saudade (homesickness), representative myth of
the Portuguese soul and significant allegory in the work studied.
Keywords: time, memory, saudade (homesickness), contemporaneousness.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................. 8
Parte I – Inês Pedrosa e a Literatura Portuguesa Contemporânea .................. 16
Parte II – O Lugar do Tempo ............................................................................. 38
Parte III – O Percurso da Memória .................................................................... 58
A Voz Feminina ................................................................................ 62
A Voz Masculina ............................................................................... 82
A Saudade Portuguesa .................................................................... 95
Conclusão ......................................................................................................... 110
Bibliografia ......................................................................................................... 114
Anexo: Entrevista com Inês Pedrosa ................................................................ 120
8
INTRODUÇÃO
Ausência
Desfiar tua ausência, pois me aflige
tecer sozinha este enternecimento,
e meu corpo é bordado pensamento
de juntar teu desejo ao meu desejo (...)
Musicar tua ausência, que meu sonho
— em cada gesto que se prenuncia
compõe nas veias pautas de agonia,
acordes dissonantes em meu corpo.
Yeda Prates Bernis
9
Fazes-me Falta. Com este título, Inês Pedrosa enuncia não somente a falta
em um âmbito subjetivo, mas dimensiona, através de uma narrativa memorialista, a
alma nostálgica do povo português.
A construção mimética do texto acontece por meio do diálogo entre as duas
personagens que contam suas histórias: a mulher, já morta, e o homem, na
constatação de seu desamparo. O relato ocorre alternadamente, permitindo ao leitor
observar os fatos narrados sob pontos de vista diferentes, ao mesmo tempo em que
não há “quebra” da interlocução dos narradores.
À medida que o perfil de cada personagem é delineado através dos temas
abordados, como política, história, amizade, sexo e violência, o leitor é introduzido
em um mundo de relações, de máscaras sociais e de valores de um Portugal
contemporâneo, que não abdica de um modo peculiar de ser neste universo das
manifestações humanas: o sentimento da falta, do pendor nostálgico e da saudade
como legado.
A leitura e a investigação desta “saudade” na narrativa de Fazes-me Falta,
considerando-se o tom memorialístico da obra e a autenticidade do vocábulo na
língua, literatura e cultura portuguesas, afiguram-se, não somente sedutoras, mas
objeto de possível entendimento de como esse sentimento ou modo de ser saudoso
ativaria a memória e a compreensão do tempo na obra de Inês Pedrosa.
De que maneira, então, seria essa saudade uma alegoria contemporânea?
Partindo do significado de alegoria como “toda concretização por meio de imagens,
figuras e pessoas, de idéias, qualidades ou entidades abstratas”, pois o “aspecto
material funciona como disfarce, dissimulação ou revestimento, do aspecto moral,
ideal ou ficcional”
(MOISÉS, 1978:15), as personagens do livro encarnariam
contemporaneamente o mito da saudade que, desde sua possível criação, busca
10
naqueles que experimentam “o gosto amargo de infelizes / delicioso pungir de
acerbo espinho” sua representação alegórica.
Uma outra perspectiva que se abre para a interpretação desta representação
na narrativa das personagens seria a omissão de seus nomes e a nomeação dos
demais, constituindo-se como marca de uma universalidade das mesmas, no
cenário da “ausência": um homem e uma mulher na busca da completude ou na
simulação de um desdobramento, que permite a reflexão sobre o tempo, sobre a
construção e desconstrução da memória e sobre as imagens que norteiam,
densificam, cristalizam ou espelham a compreensão destes signos (tempo e
memória) na linguagem que pontua os acontecimentos narrados.
O simulacro em que se instala a narrativa — o diálogo entre uma mulher
morta e um homem vivo — é o ponto de partida para a imersão nas lembranças
comuns das personagens-narradoras (ela mais jovem e cheia de esperanças de
mudar o mundo à sua volta, ele “quase velho” e carregado de descrenças) e
permitem desdobramentos sobre o papel do tempo e da memória para se chegar até
a “saudade”.
Para a reflexão destes “desdobramentos”, possíveis mecanismos da
construção da narrativa de Fazes-me Falta, recorro às teorias relativas ao tempo e à
memória fundamentadas por Henri Bergson, Walter Benjamim, Gilles Deleuze, Hans
Meyerhoff, dentre outros. Busco também uma aproximação com o caráter ambíguo
da obra no ensaio de Clément Rousseau sobre a ilusão (ROSSET, 1988), assim
como busco compreender a linguagem nostálgica ou saudosa que permeia o texto, a
partir do livro de Eduardo Lourenço, Mitologia da saudade e dos textos Elementos
Constitutivos da Consciência Saudosa e Problemática da Saudade, de Joaquim de
Carvalho.
11
Logo no início da narrativa, a narradora-morta enuncia seu lugar no tempo:
“Nesta primeira prega da transcendência, neste noante à margem do teu tempo e da
minha eternidade, e meu olhar sem órbitas move-se por ampliações máximas de
personagens mínimos” (PEDROSA, 2003:16)
1
. Esse tempo que parece não ser
mensurável e se colocar fora de uma ordem lógica, pode ser o “entretempo” a que
se refere Franklin Leopoldo e Silva, no capítulo sobre Bergson, Proust – Tensões do
tempo “...o tempo por meio da presença do instante intemporal, aquele que não é
passado nem presente, mas se situa no entretempo a partir da qual a obra ganhara
caráter de eternidade” (SILVA, 1996:151).
Os relatos e rememorações da narradora-morta neste “entretempo”, assim
como os do narrador-vivo, que obedece a um tempo diferente e angustiante,
anseiam a compreensão do tempo e sua apreensão “— por que vivemos como se o
tempo nos pertencesse infinitamente, como se pudéssemos repetir tudo de novo,
como se pudéssemos alguma coisa?” (PEDROSA, 2003:31); “Eu sou o tempo; sou
nada, o nada veloz e imóvel que molda o corpo do tempo.” (p.90) ou “Agora, o futuro
não existe; o tempo foi substituído pelo espaço onde tudo o que foi converge com
tudo que será” (p.93).
Esta percepção e tentativa de elaboração do tempo, presentes nas falas do
narrador-vivo, poderá ser entendida dentro da concepção de Bergson e seu conceito
de duração, segundo o qual “a duração significa simplesmente que experimentamos
o tempo como um fluxo contínuo. A experiência do tempo é caracterizada não
apenas por momentos sucessivos e múltiplas mudanças mas também por algo que
permanece dentro da sucessão e mudança” (MEYERHOFF, 1976:14).

1
As citações de Fazesme Falta e de outras obras da autora obedecerão ao registro da língua portuguesa
vigente em Portugal, assim como as citações dos seguintes autores portugueses: Álvaro Manuel Machado,
CarlosReis,EduardoLourenço,EduardoPradoCoelho,MariaAlziraSeixo,JoaquimdeCarvalhoeMiguelReal.
12
É no tempo vivido, não vivido e sonhado que a “memória” da escritura se
estabelece, revelando, nessa mistura, os diferentes reflexos de sua tecedura,
podendo ser objetos de estudo de diferentes teóricos e encontrando ressonância em
Fazes-me Falta.
Deste modo, torna-se pertinente observar que, para Walter Benjamim, é na
consciência do presente do sujeito que o “gesto da memória se efetua”, no
percebimento de um movimento na descontinuidade do tempo “que dimensiona a
um só tempo, o passado e o futuro” (CASTELLO BRANCO, 1994:37).
Assim, quando a narradora-morta destaca a importância da memória “Só na
enumeração das coisas mortas não se morre” (PEDROSA, 2003:154) ou do
esquecimento “Esquecemos alguma vez uma parte do que somos? Esquecemos
apenas o que podemos isolar na lembrança...” (p.37), temos o duplo gesto dessa
memória que é valorizado por Walter Benjamin e elaborado por Freud, através da
imagem do “bloco mágico”
2
.
Em Gilles Deleuze, a memória implicaria também a reflexão “...pode-se
chamar de síntese ativa da memória o princípio da representação sob este duplo
aspecto: reprodução do antigo presente e reflexão do atual” (DELEUZE, 2006:125).
E suas formulações a respeito do tempo relacionam-se com esse enfoque dado ao
presente: “O tempo não sai do presente, mas o presente não pára de se mover por
saltos que se recobrem parcialmente. É este o paradoxo do presente: construir o
tempo, mas passar neste tempo constituído” (p.123).

2
Para Freud, o aparelho perceptual pode ser aproximado de um bloco mágico, espécie de prancha
de resina ou cera, coberta por uma folha de papel transparente e por uma folha de celulóide. Para
utilizar o bloco, escreve-se sobre uma parte de celulóide com um estilete, que pressiona o papel
sobre a prancha de cera. A inscrição efetuada pelo estilete será apagada ao se levantar a folha de
celulóide, mas a prancha de cera conservará os traços da escrita que poderão ser vistos sob luz
apropriada. Dessa forma, a memória se conserva nesses traços mnêmicos inscritos na prancha de
cera, mas realiza-se também a partir de um processo de esquecimento, de apagamento, efetuado
pelo gesto de se levantar a folha de celulóide; ou seja, o processo da memória se dá por um duplo
gesto de esquecimento e rememoração, de perda e recuperação do traço. (CASTELLO BRANCO,
1994:35-36).
13
Em Fazes-me Falta, no esforço de definir esse tempo que Deleuze procurou
elucidar, a narradora-morta utiliza-se de uma imagem concreta: “Em cada cravo
seco se encontra o passado e o futuro de todos os cravos” (PEDROSA, 2003:182).
A narrativa é encenada no cruzamento de um diálogo espectral e enunciador de
muitas leituras ou possíveis interpretações. O simulacro é sedutoramente persuasivo
à medida que se tem a ilusão de que a personagem-narradora, a mulher morta, se
torna mais próxima na ausência do que na “antiga presença”, e a personagem-viva,
no despojamento de uma inesperada solidão, se detém na falta e passa a viver das
coisas realizadas e das imaginadas, no inventário do que perdeu e do quer
transformar em vivido.
Esta tentativa de fuga do real, de livrar-se do que incomoda e a criação de
uma outra realidade que se “supõe” ver é comentada por Clément Rosset: “Esta
recusa do real pode, naturalmente, tomar formas muito variadas. A realidade pode
ser recusada radicalmente, considerada pura e simplesmente como não-ser. Isto —
que julgo perceber — não existe” (ROSSET, 1988:12)
A linguagem de Fazes-me Falta, desde o título. é permeada pelas “faltas”,
pela melancolia e pela saudade. A narrativa parece servir de pretexto ao tema
nostálgico, sentimento arraigado da ausência. O narrador-vivo faz da palavra “falta”,
e da falta em si, o eco da sua angústia: “Fazes-me falta. Não te consigo inventar”
(PEDROSA, 2003:107), “Fazes-me falta, alguma vez te disse?” (p.125). Em meio a
essas “faltas”, rememorações e reminiscências, este sujeito “quase velho” pode
representar o elo na cadeia de ausências históricas (D. Sebastião) ou poéticas da
cultura portuguesa, assim como a narradora-morta é a versão mais jovem desse
espelhamento.
14
Partindo do princípio de que as personagens da obra de Inês Pedrosa
universalizam o conceito de incompletude, ao mesmo tempo que propiciam o
aprofundamento nas raízes da palavra “saudade” para a Língua Portuguesa e
Literatura, busco, através daqueles que pensaram sobre essa temática, aprofundar-
me neste tema.
Na primeira parte desta dissertação, intitulado Inês Pedrosa e a literatura
portuguesa contemporânea, discorrerei sobre o percurso da autora de Fazes-me
Falta, considerando as entrevistas, críticas e publicações sobre ela e seus livros,
situando-a no círculo de escritores contemporâneos. Ao mesmo tempo, faço uma
retrospectiva da Literatura Portuguesa em seus momentos significativos. Para isso
recorro, a alguns estudiosos como Miguel Real, Maria Alzira Seixo e Álvaro Manuel
Machado, dentre outros.
Em seguida, na parte intitulada O lugar do tempo, analiso o tempo sob a
perspectiva de cada narrador, considerando seu universo temático e o revezamento
sugestivo de narradores que, nesse simulacro, confrontam o tempo no “lugar” em
que cada um se encontra: um em vida e o outro na morte.
Na terceira parte, O percurso da memória, busco o entendimento da
construção da memória, observando a sua relação com o desejo, a fantasia e as
“faltas”, a partir do diálogo das personagens. Procuro analisar também a “saudade”
e suas relações com a memória, ativada pela questão da incompletude e pela
ausência que gera a melancolia e nostalgia, refletida nos relatos dos narradores.
O presente trabalho parte das afirmações legadas à saudade, considerando a
universalidade deste sentimento e destacando sua ressignificação dentro da cultura
portuguesa, para buscar, nas “faltas” afirmadas desde o título da obra, as “sombras”
sugeridas pela saudade que, se afigurando contemporaneamente na narrativa,
15
projetam-se em uma nova geração literária que, mesmo afirmando-se inovadora e
produtora de uma nova mentalidade cosmopolita, parece atualizar a “permanência
deste estado saudoso” nas reflexões sobre a ausência, a incompletude e a morte,
reveladas em Fazes-me Falta.
16
PARTE
I
I
NÊS PEDROSA E A LITERATURA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA
“Não é bem a vida que faz falta — Só aquilo que a faz viver.”
Para Sempre — Vergílio Ferreira
17
Fazes-me falta, terceiro romance da portuguesa Inês Pedrosa (2002), é sua
primeira obra publicada no Brasil (2003), no momento em que, coincidentemente, a
vida literária da escritora e a própria Literatura Portuguesa são marcadas
significativamente com a aproximação entre os dois países.
É a partir dessa intersecção que tento analisar a motivação da autora, suas
obras, assim como a representação desta literatura em Portugal e seu
“redescobrimento” no Brasil.
Fazes-me falta é o único livro da escritora escrito inteiramente à mão, em um
caderno que “celebrava o 18º Salon Du Livre de Paris, de que o Brasil era país-
tema.” <http://www.pacc.ufrj.br> Naquele caderno, forrado de tecido amarelo e
ilustrado com um pássaro comedor de livros, cujo bico é a bandeira do país, as
palavras irromperam tomadas de urgência, a partir de uma grande dor, na força de
uma escritura que lhe despoja da preocupação com a crítica ou eu-crítico, revelando
a construção do seu mundo ficcional.
Creio que o mais difícil é precisamente isto: despirmo-nos de toda a
exterioridade que nos envolve, das nossas noções de harmonia e
antagonismo, do olhar dos outros, e sermos capazes de arranhar o interior do
que somos e sentimos, esse lugar onde o tempo não passa e a sabedoria da
dor e do prazer brilham imutavelmente.
<http://pacc.ufrj.br/detalhe.php?nivel1_idpk=8&news...>
Lançado na Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro em 2003, Fazes-
me falta teve sua escrita iniciada em 1999 em um momento paradoxal da vida da
autora: o nascimento da filha, a morte de seu pai e de outras pessoas próximas:
“depois morreu Cardoso Pires, o Miguel Bastos, o Hermínio Monteiro e outras
pessoas de quem gostava muito. Comecei a ficar obcecada pela idéia de
morte (...) Um ano depois, no verão, surgiu a idéia de uma mulher jovem que
morria e cujo melhor amigo era mais velho. E comecei a escrever a mão, num
caderninho.” (JL, 2002: p.10)
Tem assim, diante de si, o papel como aliado, depositário de suas
interrogações, cúmplice no enfrentamento da morte e instrumento de permanência:
18
“Um livro sempre nos sobrevive, a encadernação dura muito mais do que nós.”
(ANGIOLILLO, Folha de São Paulo, maio 2003)
A aproximação de Inês com o Brasil, além do seu “manuscrito” e da língua
comum, acontece também pelo tema ecumênico da morte de Fazes-me falta, da
experiência da perda que aponta ironicamente para a vida constituída pela memória
das duas personagens que, instigadas pelo sofrimento da separação, buscam
respostas para sentimentos que se tocam como a amizade, a paixão e o amor.
Para Inês, “As palavras transformam o mundo...” (JL, agosto, p.10)
transforma-se e também atravessam o oceano para iniciar uma série de contatos da
escritora com o país:
Nestes últimos anos tenho mantido contato físico muito constante, com o país:
estive no Rio, em São Paulo, em Fortaleza e em Porto Alegre. Estive em Passo
Fundo, numas jornadas literárias inesquecíveis. Tenho dificuldade em isolar a
literatura portuguesa da brasileira. Para mim, pertencem à imensa e marítima
pátria da língua portuguesa. (FUKS, Folha de São Paulo, maio 2002, p.E3.)
Assim, em outubro de 2005, no I Encontro Lusófono de Cabo Frio, encontro
Inês
3
. As tardes literárias, os debates, entrevistas e saraus, enfocaram temas como
“o português de Portugal, África e Brasil” e a busca de uma unidade mais
significativa da língua comum, mas sobretudo enfatizaram “O Renascimento da
Literatura Portuguesa no Brasil”, tema de abertura do evento.
Escritores brasileiros, como Ivan Junqueira, Antônio Carlos Seccin, Antônio
Torres, Luiz Ruffato, Alexei Bueno e outros, recepcionaram o escritor Helder
Macedo, da velha geração, e os novos escritores portugueses: Jacinto Lucas Pires,
Francisco José Viegas, Felipa Melo, Paulo Nogueira e Inês Pedrosa, que destaco
neste trabalho.
Este intercâmbio obedece a uma tendência dos últimos três anos, quando
recentes escritores portugueses participaram da Festa Literária Internacional de

3
Emanexo,entrevistacomaescritora.
19
Parati, ou da 11ª Jornada Literária de Passo Fundo, de feiras de livros e
lançamentos no mercado editorial no país, despertando o interesse de um público
que consagrou José Saramago.
A renovação da Literatura Portuguesa e sua redescoberta pelo público leitor
brasileiro só poderá ser compreendida a partir dos acontecimentos marcantes que
definiram a história de Portugal e, conseqüentemente, se repercutiram naquela
sociedade e no conteúdo ideológico do romance português dos finais do século XX
até hoje: a redemocratização do país, em 1974, com o fim da ditadura salazarista, a
perda das colônias africanas, e o desenvolvimento econômico, que culmina com o
ingresso na Comunidade Européia em 1985.
Paulo Nogueira, brasileiro radicado em Portugal há vinte anos, analisa esse
período:
“Antes Portugal, era visto como um país tradicionalista e arcaico. O próprio
regime reacionário de Salazar procurou encerrar Portugal numa redoma de
provincianismo”, foi um tempo de asfixia para o país, mas recentemente, como
ele diz “houve uma diversificação temática e estilística acentuada” (BRAVO,
outubro 2005, p.54).
Os escritores que surgiram logo após esse momento histórico, denominados
Pós-colonialistas, refletiram criticamente sobre a nova identidade de Portugal — um
país deslocado dentro de uma Europa ocidental moderna e que carregava o legado
da descolonização. Neste período, houve um afastamento da literatura brasileira em
Portugal e vice-versa. Entrevistada sobre a difusão da literatura entre os dois países,
Inês Pedrosa crê, também, que:
...a culpa desse alheamento foi da nossa revolução em 1974, que fez com que, na
década de oitenta, nos voltássemos para o nosso próprio umbigo, felizes por
descobrirmos os nossos próprios talentos censurados. E havia muitos fantasmas
do colonialismo a exorcizar, de ambos os lados... <http://www.pacc.ufrj.br>
Assim sendo, a Revolução dos Cravos, em 1974, mencionada pela escritora,
marca um período histórico em Portugal e também na literatura do país. Os
20
acontecimentos políticos e sociais anteriores a esta data, assim como os que
sucederam a ela, particularizam diferenças importantes e tem sua ressonância no
conteúdo semântico do romance português, sendo pois determinantes para
compreensão da atual geração literária a que pertence Inês Pedrosa.
Segundo Miguel Real, a história do romance português do século XX poderia
ser compreendida em quatro fases, considerando-se os momentos históricos e as
obras significativas que espelharam suas relações semânticas com a realidade
social.
A primeira fase da história do romance português retrata uma “sociedade e
uma mentalidade de passagem do século”, assim como o rompimento “da herança
realista, ruralista e humanista dos ‘três’ Eças, evidenciando-se, também, a
passagem entre o regime monárquico e o republicano, refletidas respectivamente no
saudosismo de Teixeira de Pascoais e no nacionalismo de Lopes Vieira. Assim
como o conteúdo de Orpheu (1915) refletiria a instauração da República e extensões
da I Guerra.
Outros fatores relevantes deste período seriam o aparecimento da revista
Presença e a obra literária de J. Régio, que marcaria o momento intermediário do
romance português desta primeira fase, devido ao seu caráter singular e inovador
como “a consciência que o eu narrativo, sendo uno, é igual e constitutivamente
múltiplo” (REAL, 2001:81) ; as concepções sobre o tempo “matéria de narração
como processo estilístico do romance” e o espaço narrativo, que se constitui mais
como “referente inspirador”.
O surgimento do neo-realismo, diante das motivações políticas que levaram à
queda da primeira República, valorizaria mais as relações sociais em busca de uma
nova ordem política e a segunda fase do romance português — “Realismo
21
Substancialista”, ideologicamente, se pautaria nesta nova ordem social que, ora
seria mais subjetiva, ora mais objetiva, dependendo da inclinação estética do autor,
mas, dentro de uma “unidade narrativa, se organizaria de forma coerente e coesa
entre todos os seus elementos constituintes como o espaço, tempo, ação e
personagens. Cabendo apenas ao surrealistas portugueses “na década de 30 e a
passagem para 40” resistirem a esta ordem literária que tem uma perspectiva fixa.
A unidade narrativa da segunda fase do romance português só será
encerrada literariamente com A Sibila (1954) de Agustina Bessa Luís e Aparição
(1959) de Virgílio Ferreira, que vêm sugerir a possibilidade de uma outra “ordem”;
não linear, não racional e não necessária, contrária aos conceitos enformadores e
estruturais anteriores:
Com a Sibila, Agustina renova todo o nosso romance, mantendo-se
simultaneamente alheia a modas e radicando em contradições por vezes
férteis dum regionalismo-universalismo que caracteriza essencialmente a
nossa literatura (MACHADO, 1984:79)
Refletindo sobre a relação entre criação estética e história, nos períodos
acima citados, podemos ressaltar a análise de Álvaro Manuel Machado como
pertinente e esclarecedora:
(...) analisar o que na novelística portuguesa contemporânea constitui o mais
importante como tendência teórica, por um lado, e como reflexo da história, por
outro, leva-nos a repensar no que na nossa literatura, desde fins do século XIX
sobretudo, é o escritor como indivíduo criador e como testemunha (não só
politicamente mas também culturalmente) do seu tempo. E, talvez mais ainda,
leva-nos a repensar no que nessa literatura foi ou continua a ser limitado por
condicionalismos culturais, sociais e políticos. (MACHADO, 1984:34)
A sucessão de acontecimentos como a perda da Índia, a guerra colonial, a
crise estudantil, a Revolução do 25 de Abril, a adesão de Portugal à Comunidade
Européia são assim determinantes para compreensão do “espaço” na estrutura do
romance, assim como o desconstrutivismo da unidade formal que caracteriza a
terceira fase da história do romance português.
22
O romance reflete, em sua temática e estrutura, os efeitos dos anos de
repressão, dos marcos a que era preso. Sua unidade é desconstruída (há um
divórcio entre tempo, espaço, ação e personagens) acompanhando a desconstrução
do Estado Novo.
Ao longo das décadas de 60 e 70, Portugal se desconstrói, muda de rumo,
altera seu espaço fixo de 500 anos e o romance desconstrói-se, muda de rumo
e desprivilegia o espaço como elemento sólido e estável do romance. (REAL,
2001:86)
Segundo Maria Alzira Seixo, a partir de 1974 há uma tendência novelística
que privilegia “...o espaço romanesco enquanto escrita de uma terra cujo sentido se
busca, entre a marca que a história lhe imprimiu e o curso humano que a
transforma...” (SEIXO, 1986:72). As tendências do romance, anteriores a este
período, são reorganizadas, de forma agrupada ou divergente, em torno de:
Uma matriz comum que é o espaço da terra como centro de radicação do
universo romanesco; a terra como paisagem, a terra como sociedade, a terra
como lugar do humano, a terra como espaço do drama político, a terra
descentrada — As Áfricas — a terra como exterior — os exílios, as viagens.
(SEIXO, 1986:72)
Para Maria Alzira Seixo, “os romances de Virgílio Ferreira, Jorge de Sena,
Augusto Abelaira, José Cardoso Pires, Maria Velho da Costa, Nuno Bragança,
Almeida Faria, Casimiro de Brito e Antônio Lobo Antunes” são exemplos que
mostram a relação de sentido entre o espaço e a escrita: “escrever a terra em vez
de escrever sobre a terra...” ; “espaço de descoberta, ou pelo menos de
compreensão: Compreensão do sentido da liberdade enfim reencontrada.” (SEIXO,
1986:73)
A busca da identidade pós-revolução é acompanhada de transformações no
âmbito individual, nas instituições e nas relações com a sociedade, incidindo no
processo criativo e literário. A escritora Teolinda Gersão explica esse momento
histórico:
23
Portugal foi durante muito tempo um país isolado, por circunstâncias políticas e
geográficas. Mas hoje o isolamento quebrou-se, sentimos que fazemos parte
da Europa e do mundo e daí advém um novo impulso criativo. Chegou a hora
de repensar nossa identidade, noutro contexto. Sem mais o regime autoritário
para driblar, a literatura busca na linguagem a sua forma de liberdade, “vagar
pelo idioma, espaço herdado.” (MEDINA, 1983:454)
As décadas de 70 e 80, embora tão próximas, são representativas de
manifestações diferentes na sociedade portuguesa, decorrentes dos acontecimentos
históricos que incidiram ideologicamente sobre cada geração que, a partir de 74,
rompe com o discurso do totalitarismo e depois se distancia dos temas e paixões do
25 de Abril, abrindo-se para novas dimensões.
Assim, retomando ao “Desconstrucionismo”, referente à terceira fase da
história do romance português do século XX, segundo Miguel Real, ele só terminaria
na década de 80 “com a publicação dos romances de J. Saramago e de Lobo
Antunes, cujo modo reconstrutivo de escrita de narração os torna uma espécie de
patriarca do estilo, do conteúdo e da forma dos romances da “Geração de 90.”
(REAL, 2001:87)
Obras como Fado Alexandrino, Tratado das Paixões da Alma, Manual dos
Inquisidores, Esplendor de Portugal, Exortação aos Crocodilos e Não Entres Tão
Depressa Nessa Noite Escura, de Antônio Lobo Antunes, restabelecem a unidade
racional do romance de forma diferente do modelo clássico, “jogando principalmente
com o tempo e uma nova gramática da imaginação", pois o “tempo é todo um”
(p.87), podendo-se deslocar em espaços diferentes, de um parágrafo para outro,
obedecendo apenas ao “tempo” que a personagem se refere.
Podemos citar também, como exemplos, outras obras deste período de
“repensagem portuguesa”, levando-se em conta o caráter inovador da narração,
espaço de reflexão dos diferentes registros discursivos, na construção da pluralidade
fabulativa que vai se delineando nesta década. Entre elas, selecionamos
24
inicialmente o Livro do Desassossego (1926) de Fernando Pessoa — Bernardo
Soares, publicado em 1982, obra importante para o “entendimento de toda a ficção
no século XX e, atendendo ao seu tempo de redacção, reparar na pungente relação
que é possível estabelecer entre a sua escrita e a escrita dos tempos (poéticos,
sociais, políticos) de sua publicação.” (SEIXO, 1986:55)
Outras obras selecionadas são: Lusitânia (1981) e Cavaleiro Andante (1983)
de Almeida Faria, que também integram “as personagens no tempo efectivo e
afectivo do Portugal contemporâneo”. Estas obras pertencem a “Tetralogia
Lusitana”, iniciada por A Paixão (1965) e Cortes (1978) e narram a saga familiar de
um “clã semi-feudal” de latifundiários alentejanos em decadência, antes e depois da
revolução de abril de 1974. Porém, Lusitânia e Cavaleiro Andante são narrativas
epistolares entre os membros da família, dotadas de um discurso
predominantemente social.
Referências representativas da produção feminina, O Dia dos Prodígios
(1980) e O Cais das Merendas (1982) de Lídia Jorge, assim como O Silêncio (1981)
e Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo (1982) de Teolinda Gersão, embora
apontem para uma escrita romanesca distintas, são obras que se asseveram como
marcas significativas desta fase da literatura portuguesa, em que a autoria feminina
emerge de uma sociedade anteriormente patriarcal de repressão e silêncio, em
busca da liberdade e questionando também o papel da identidade individual e
coletiva no país.
“Em O Dia dos prodígios, tudo funciona como duplicidade paralela, há a
História e a história. As personagens são os portugueses, atores de uma História
que não foi contada — a Revolução dos Cravos — senão de uma história/parábola
— ‘O dia dos prodígios’”. <http://www.fflch-usp.br/dlcv/pos-graduação>. Lídia Jorge
25
recria o momento histórico, com o propósito de destacar aquele acontecimento como
parte da construção do conceito de nacionalidade.
O mesmo conceito em O cais das merendas é questionado, porém levando-
se em conta o contexto posterior à Revolução e o papel da sociedade portuguesa
como uma sociedade periférica que, em busca de um lugar dentro da própria Europa
e do sistema mundial, sofre um processo de aculturação:
Lídia Jorge desmistifica e dessacraliza o espaço e subverte os elementos
tradicionais, colocando à mostra a fragilidade do processo identitário quando
circunscrito a uma nova dependência cultural (ibidem)
Nos romances O silêncio e Paisagem com mulher e mar ao fundo de Teolinda
Gersão, o viés literário acontece principalmente através das personagens femininas,
representações da mulher portuguesa após o 25 de abril, ainda sob os ecos da
ditadura salazarista. Em seu ensaio Destinos e desejos femininos, sobre a obra O
silêncio, Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira faz a seguinte pergunta: “Seria a ditadura
um fenômeno sociológico ‘macho’, viril, masculino?” (OLIVEIRA, 2002:130)
As obras citadas “têm como pano de fundo o silêncio”, onde as vozes
femininas são encenações advindas de muitas outras vozes que foram confrontadas
dentro de uma sociedade predominantemente patriarcal:
Teolinda Gersão, escritora portuguesa contemporânea, aponta o universo
masculino como o senhor do poder, determinando as funções homem/mulher.
Em suas obras a mulher surge como força emergente, buscando modos de se
libertar. A mulher vive na inconsciência de si, submetendo-se ao outro até
entrar em crise e daí sair em busca da liberdade. (ROSIGNOLI, 2004:74)
A década de 80, portanto, intermediará o momento em que o “Desconstrucio-
nismo” esmorece, para dar lugar a uma nova geração que já assimilou as mudanças
históricas (a perda do Império e a entrada de Portugal na Europa), determinantes de
uma nova mentalidade, distanciada das questões relacionadas à identidade
portuguesa e vinculada a “costumes hedonistas e relativistas europeus”
(REAL, 2001:92), “desconfiada do social e das ideologias, colocando em seu lugar a
26
confiança nas instituições, no mercado e no indivíduo.” <http://www.fflch-
usp.br/dlcv/pos-graduação>.
Também denominada de geração cosmopolita, a “Geração de 90” constituirá
a quarta fase da história do romance português, apresentando, em seus novos
textos, diferentes tendências:
Se tentássemos caracterizar positivamente a recente ficção portuguesa de
novos autores surgidos na década de 90 certamente não encontraríamos um
conceito ou designação que definisse globalmente a sua multiplicidade de
registos de escrita, de conteúdo e dimensão ética das histórias narradas, de
estilos estéticos e, mesmo, um referente único que sintetizasse o sentido geral
do húmus cultural donde emergem os diversos romances e os diversos
autores. (REAL, 2001:97)
Para José Luís Peixoto, representante desta “Geração 90”, autor de Nenhum
olhar, romance que recebeu o Prémio José Saramago, o ecletismo literário da nossa
geração pode assim ser explicado: “Não temos necessidade de tomar uma postura
imediata contra esse regime, como na época de Salazar, isto possibilitou que cada
escritor seguisse seu caminho individual” (VEJA, agosto 2005, p.127). Voltada para
temas universais, a nova geração condensa as várias tendências do romance
português, “é uma geração mais cosmopolita, aberta a influências internacionais
como as literaturas americana e britânica, ou da vertente latina de Jorge Luís Borges
e seus seguidores” (VEJA, agosto 2005, p.127), como analisa a crítica Maria
Fernanda de Abreu, da Universidade Nova de Lisboa.
Dois romances, segundo Miguel Real, poderiam ilustrar o rompimento com o
passado e o surgimento desta nova literatura e podem evidenciar a nova posição
dos romancistas que caracteriza a “Geração 90”: Hotel Lusitano (1986) de Rui Zink,
quando questiona a ideologia literária dominante em Portugal desde 60 e proclama a
literatura como “vida” e não apenas “artificial manipulação de palavras”, e
27
O Pequeno Mundo (1988) de Luiza Costa Gomes que, a partir da epígrafe
4
da obra,
conclama o leitor ao esquecimento dos principais acontecimentos que marcaram a
história portuguesa recente (da revolução em diante), como as teorias
enformadoras, inspiradas nas vanguardas ou sob influência francesa.
A abertura para novas dimensões estéticas torna-se, deste modo, um
caminho natural para esta geração de novos autores que, ao mesclarem as
diferentes tendências, trariam, como substancial novidade para a literatura
portuguesa, “a ausência de uma transcendência exterior ao acto da escrita em
prosa, fazendo confluir em cada obra importante todos os estilos e processos
narrativos possíveis” (REAL, 2001:107).
Para este autor ainda:
(...) a Geração de 90 estatui-se, no conteúdo dos seus romances, como
síntese de 100 anos da história do romance português, como que
apresentando, mais numa obra, menos noutra, ora uma tendência realista,
ora desconstrutivista, ora subjetivista, ora histórica, ora perspectivista, ora
memorialista de caráter regional e, assim sendo tudo ao mesmo tempo,
reconstrói a relidade sem postular que a realidade apresentada é a única
existente. (REAL, 2001:104).
Sob esta perspectiva, Miguel Real constrói um quadro analítico dos
romancistas da “Geração de 90”, associando-os a uma determinada corrente literária
que espelha representativamente Portugal, com significativos “sintomas” que as
mudanças e as diferentes influências acarretaram naquela sociedade.
Poderíamos citar estas correntes, dividindo-as em quatro: Realismo Urbano
Total, romances com tema marcante sobre a cidade, com uma visão cosmopolita
que delineia as diversas fases da cidade e de seus habitantes: “Vida sem sentido”;
“Futuro assegurado materialmente, mas espiritualmente vazio”; “Incidência sobre

4
“Leitor! Este livro não fala do 25 de Abril. Não se refere ao 11 de Março e estáse nas tintas para o 25 de
Novembro. Pior, não menciona em lugar nenhum a guerra em África. Não reflecte sobre a nossa identidade
culturalcomopovo,nossofuturocomonação,nosso
lugarnacomunidadeeuropeia.
Suportaráoleitorumlivroassim?
Duvido.Foiàsombradobenefíciodessadúvidaqueoescrevieagoraodouapublicar.(GOMES,CostaLuísa
apudREAL,2001,p.92)
28
novos valores urbanos: acaso, encontro/desencontro, tempo fragmentado (...) cidade
como labirinto infinito, comunicação inautêntica...” e outras abordagens do tema.
Autores como Rui Zink, Pedro Paixão, Francisco Viegas, Jacinto Lucas Pires, Clara
Pinto Correia, Possidónio Cachapa, Luísa Costa Gomes e Inês Pedrosa, entre
outros, poderiam ser vinculados a esta temática.
Memorialismo, romances que tematizam o mundo rural: recuperação de
antigas imagens de Portugal, através da reescrita das suas representações culturais.
José Riço Direitinho, Abel Neves, Francisco Mangas e outros, representariam esta
tendência.
Novo Romance Histórico, romances de caráter histórico: “Um Novo Romance
Histórico”, uma nova concepção da História: “Não existe moral na História”; “Não
existem leis na História”. Podemos enumerar alguns dos autores que participariam
desta corrente: Sérgio Luis de Carvalho, Luis Felipe Castro Mendes, Rui A. Costa da
Silva, etc.
Na quarta corrente, denominada Mito-narrativas Refundadoras da Língua e da
História, temos romances constituídos em narrativas refundadoras da língua
portuguesa e dos valores marcantes da cultura portuguesa: “Reinvenção da língua
portuguesa através da sua subversão e reinvenção da História através da criação de
uma outra História”; “Trabalho narrativo sobre as imagens culturais e não sobre a
realidade social imediata”. Fiame Hasse Pais Brandão, José Saramago, Lobo
Antunes, José Luis Peixoto, Ana Teresa Pereira, Hélder Macedo e outros, são
representantes desta corrente, embora deva-se levar em conta que, segundo Miguel
Real, eles sejam exceções dentro do espírito de ruptura com a tradição literária que
norteou as outras correntes citadas.
29
Ao partir desta suposta sistematização da literatura, referida como
pertencente à “Geração de 90”, percebemos que as inovações ou diversificações
que elas propõem, seja pelo tempo recente, seja pela confluência de tendências
simultâneas, pelo momento em que a própria história do romance português é
questionado ou mesmo pela própria ruptura com a tradição literária, não existe ainda
um traçado firme, se é que podemos dizer isto em relação ao horizonte literário
português:
(...) o leitor não encontrará aqui o modelo linear de descriçãotemporal, como
não encontrará um evolução dialéctica de luta entre motivações individuais;
mas encontrará aqui, ao modo de um caleidoscópio, fragmentos, aspectos,
partes, visões parcelares, perspectivas, umas brilhantes, outras iridiscentes,
outras sombrias, mas sempre perspectivas (REAL, 2001:119).
Deste modo, ao tentar analisar a renovação da literatura em Portugal,
considerando-se o então período colonial até os dias atuais, retornamos ao início da
reflexão sobre esta literatura e sua ressonância em nosso país, assim como a
ampliação de suas fronteiras e o redimensionamento da língua comum. As palavras
que se seguem permitem o deslocamento deste olhar — ou a instigante inversão e
supõe uma reflexão sobre os novos autores e a língua portuguesa:
Temos, no coração do pequeno país, um continente literário a desvelar. São
autores com algumas características comuns (trato com a linguagem, certo
laivo de desencanto, peso da história, desconfiança com o futuro das relações
humanas) e com muita originalidade pessoal. A língua é nossa pátria. E nossa
pátria parece se expandir — como o universo — em direção a estrelas
brilhantes e buracos-negros plenos de energia criativa, prontas para nos
devorar. (João Paulo, ESTADO DE MINAS, novembro 2005)
Integrando-se ao círculo dos novos escritores da década de 90, a escritora e
jornalista Inês Pedrosa vem acrescentar à Literatura Portuguesa a voz feminina da
contemporaneidade. A experiência do jornalismo e a trajetória literária acabaram por
modelar uma sensibilidade estruturada na vivência da escrita e da realidade social,
conferindo-lhe a narrativa empenhada, atravessada por um espírito indagador,
comprometida com seu tempo: seja na consciência de uma memória cultural, nas
30
discussões sobre gênero, na militância política ou em qualquer assunto que diz
respeito às relações humanas.
Suas obras refletem o percurso e o amadurecimento dessa escritora que
começou como jornalista em 1983, com um estágio em O Jornal, antes mesmo de
licenciar-se em Ciências da Comunicação, na Universidade Nova de Lisboa, em
1984.
Foi no Jornal de Letras, em 1984, que fez um “curso de jornalismo, de
literatura, de cultura, de vida” (JL, agosto, 2002), onde se reunia semanalmente com
os colaboradores Augusto Abelaira, Eduardo Prado Coelho, Jorge Listopad e
Fernando Assis Pacheco. Passaria depois pelo Independente, pelo Expresso, pela
revista Ler e, finalmente, pela revista Marie Claire (entre 1993 e 1996), além de
algumas experiências em rádio e televisão.
Inês Pedrosa nasceu em Coimbra, “mas só porque não havia maternidade em
Tomar, que é realmente a minha terra” (JL, junho 2004, p.44) em 15 de agosto de
1962. Da professora primária, Virginia Rodrigues, veio o amor pelos livros e do avô
materno, Domingos Pereira, o grande incentivo literário: “contava-me a História de
Portugal e declamava Camões enquanto me passeava de barco a remos no rio
Nabão. Ele é o avô Matias no meu primeiro romance A instrução dos amantes (JL,
junho 2004, p.44). Após sua morte, quando tinha 11 anos, a acompanharam dois
importantes legados: a máquina de escrever, que utilizou até a chegada do
computador para escrever todos os textos, inclusive os jornalísticos, e a fotografia
que é a testemunha de todos os momentos de sua escrita.
Contrariando a vontade do pai, que queria vê-la em uma profissão mais
segura que não fosse aquela “que lidava com as palavras”, escolhe o jornalismo,
justamente por acreditar que seu destino era a escrita e por necessitar dela para
31
aplacar sua ansiedade e inquietude: “Escreve qualquer coisa que já ninguém te
atura” (JL, agosto 2002, p.9), recomendavam os amigos.
A sedução pelas palavras havia iniciado desde cedo, escrevendo histórias
infantis e aventuras “a maneira de Enid Blyton, depois uma novela sobre as agruras
da adolescência light avant la lettre e os inevitáveis poemas juvenis.” (JL, agosto
2002, p.9). No liceu, em Oeiras, escrevia cartas de amor encomendadas por aqueles
colegas, tanto os rapazes quanto as moças, que não tinham a habilidade de fazer
das palavras flechas para atingirem o coração de alguém.
Foi na biblioteca de seu pai, entre alguns livros escondidos na gaveta, antes
de 25 de Abril, que descobre as Novas Cartas Portuguesas, de Maria Teresa Horta,
Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno: “Li de fio a pavio e aprendi imenso,
porque era de uma total inocência...” (JL, agosto 2002, p. 9), assim como a edição
francesa da revista Marie Claire que a mãe comprava com suas reportagens sobre
“reivindicações das mulheres ou sobre a situação das mulheres árabes, matérias
que não mereciam uma linha nas publicações portuguesas.” (JL, agosto 2002, p. 9).
Estas leituras no âmbito familiar e, mais tarde, sua experiência como diretora
da revista Marie Claire acabaram por apontar os diversos caminhos que a escritora
trilharia em direção ao universo da alma feminina: recortando em seus romances o
papel da mulher portuguesa emergida na década de 90, trazendo à memória as
mulheres do passado, defendendo os direitos da mulher no presente, como cronista
do Expresso, onde escreve semanalmente em sua Crónica Feminina.
Intercalando a atitude jornalística com a escrita, Inês escreve seu primeiro
romance A instrução dos amantes (1992), antes havia escrito Mais ninguém tem
(1991), uma incursão no mundo da literatura infantil.
32
Em A instrução dos amantes, aborda o aprendizado do amor na adolescência,
em um título sugestivo, revelando, através de Cláudia e suas amigas, os conflitos
gerados pela paixão, em contraposição ao universo masculino, protagonizados pelo
namorado Ricardo e o amante Diniz. A amizade, as disputas dentro do grupo, as
relações familiares e os ecos do 25 de abril, também fazem parte do cenário
ficcional.
O segundo romance, Nas tuas mãos, recebe o Prémio Máxima da Literatura
de 1997. As indagações da autora sobre o feminino parecem ser medidas na história
de três mulheres: Jenny, a avó; Camila, a mãe; Natália, a neta, que narram, através
de diferentes espaços de interlocução: um diário, um álbum de fotografias e um
maço de cartas. Estes diferentes registros narrativos modulam as vozes das três
gerações que, delineadas por um perfil e uma memória própria do seu tempo,
também sintetizam a recente história de Portugal e a evolução da sociedade
portuguesa da metade do século XX até hoje, sob as impressões das personagens
femininas reveladas em suas trajetórias e reflexões.
Assim, Jenny tem um casamento de aparências e seu amor justifica a filha do
amante do marido que acolhe como sua: “O amor dissolve em fumo qualquer
escândalo, por mais estranho que ele surja aos nossos aparentes valores. O
escândalo a que não se sobrevive é o da ausência de amor...” (Nas tuas mãos,
2005:41). Camila, a fotógrafa, perde o amado de forma trágica, vai para
Moçambique e lá conhece Xavier, um guerrilheiro da FRELIMO, e desse
relacionamento nasce Natália: “Pensei que as imagens me poderiam curar, que
poderia colar os instantâneos do mundo sobre o sangue do meu coração e fazê-lo
parar. Pensei que o amor podia ser domesticado e o lado negro do instinto maternal
racionalizado.” (p.140-141). As cartas de Natália para a avó revelam o vínculo e a
33
sensibilidade herdadas da avó Jenny: “Descobri cedo nas fotografias da minha mãe
que a felicidade é uma colecção de instantes suspensos sobre o tempo que só
depois de amarelecidos pela ausência se revelam.” (p.150).
Depois do segundo romance, Inês publica a Fotobiografia de José Cardoso
Pires (1999): “um modelo de texto-crónica-notícia-relato cuja informação central,
transfigurada esteticamente, a autora tem o dom de transformar em conto.” (JL,
agosto 2005, p. 20).
Vinte Mulheres Para o Século XX (2000) nasce de um projeto jornalístico para
o semanário Expresso, com a publicação da biografia de Eva Perón e de outras
mulheres que marcaram o mundo neste primeiro século de emancipação. O livro é o
resultado destas publicações e de uma segunda parte inédita, destacando perfis
como: Simone de Beauvoir; Agustina Bessa-Luís; Coco Chanel e Madre Teresa,
entre outras. Estas escolhas, justificadas no prefácio, denotam o profundo interesse
da autora pelo papel feminino:
Cada uma destas vinte mulheres foi tocada por um qualquer dom, mas o que
as tornou diferentes de todas as outras, foi a história única que cada uma delas
elaborou contra o medo e o seu guardião — a tradição. Acompanhou-as
sempre essa filha da imaginação chamada coragem. Por isso, não se limitaram
a mudar o mundo — mudaram para além do seu tempo, a imaginação do
Mundo” (PEDROSA, 2000:16).
No ano seguinte, organiza uma antologia da poesia portuguesa, subordinada
ao tema de amor: Poemas de amor (2001), e confessaria em entrevista este seu
interesse pelo tema: “Interessa-me em particular a poesia e o tema do amor. Se
existe nos meus livros alguma interrogação permanente é sobre o amor — como se
faz que perdure?” <http://mulher.sapo.pt/print/xtAI/432657.htm>.
Fazes-me falta (2002), segundo a escritora, foi escrito a partir da experiência
de perda: “escrevi-o ao som da música dos meus mortos, ensaiando uma
aproximação mais radical à ciência da poesia, a poesia da política e a dança da
34
filosofia.” Sob o eco de fazes-me falta... fazes-me falta, duas vozes alternam seus
relatos, ora uma mulher que acabara de morrer, ora um homem na constatação de
seu desespero. Com fontes tipográficas diferentes, os cinqüenta capítulos do
romance, duplicados, simulam o espelho onde o “diálogo” ocorre.
O que se poderia supor como uma relação passional, descortina-se
surpreendentemente como “um processo mais complexo e desconcertante em que
estamos para além da amizade e do amor, num espaço de infinita sexualização,
pela pura e também impura ausência de corpos, numa espécie de invenção
impossível...” (COELHO, Público, Mil Folhas, abril 2002). Essa encenação passa,
então, a ser o pretexto para tematizar a “diferença”, não apenas nas discussões do
lugar do feminino ou masculino, mas também das oposições entre o velho e o novo,
da crença e da descrença e, principalmente, sobre os valores de uma sociedade,
representados pelas duas personagens: “Ele vem de uma guerra em África e de
alguma corrosão de ideais. Ela parte de uma ânsia desmedida de mudar o mundo e
reequilibrar a relação entre homens e mulheres” (COELHO, Público, Mil Folhas, abril
2002, p. 2).
Ainda em 2002, escreve A menina que roubava gargalhadas, homenageando
a filha Laura, e depois o livro de contos Fica comigo esta noite (2003). Reúne e
publica a coletânea de entrevistas Anos Luz Trinta conversas para celebrar o 25
de abril (2004), reunidas ao longo de sua atividade jornalística, em uma grande
diversificação de personalidades como Lobo Antunes, Eduardo Lourenço, Fernando
Dacosta, Rui Veloso, Vergílio Ferreira, entre outros:
Tive a felicidade de encontrar, maioritariamente, entrevistados empolgantes —
porém, confesso que até aos mais baços fui extraindo novos dados sobre a
natureza humana. Porque é isso que, acima de tudo, me faz acordar para cada
novo dia com entusiasmo: a infinita variedade da natureza humana. As minhas
paisagens são as pessoas. (Anos Luz, 2004:13-14).
35
O testemunho das vozes de diferentes “lugares” cineastas, ensaístas,
escritores, compositores, músicos e etc. são retalhos importantes dos últimos 30
anos da História de Portugal, ressignificados através das palavras de cada
entrevistado e de sua história, compondo o imenso tecido da identidade do povo
português.
Em 2005, publica Crónica Feminina, compilação de crônicas que há vários
anos vinha publicando no semanário Expresso, espaço de luta e reflexão:
Ao fim de uns anos, as crônicas ganham a cor sépia e reveladora dos diários,
mostram muito mais do que uma perspectiva individual acerca do mundo: são
um estendal de sonhos e inquietações, prazeres, ódios e amores de
estimação. Temas como aborto, a discriminação, o abuso sobre crianças, a
violência sobre as mulheres, a educação e a justiça atravessam os meus dias
com uma constância recorrente. (Crónica Feminina, 2005:13-14).
Ao exercício das crônicas, Inês credita “a consciência que hoje tenho da
capacidade de mobilização efectiva da palavra” (PEDROSA, 2005:15). Esta palavra
afiada busca os fatos e a essência destes acontecimentos, propiciando um terreno
que aproxima a jornalista da escritora:
Inês Pedrosa tem feito, nalguns dos seus textos, a ponte entre o labor da
jornalista (que é, profissionalmente, a sua origem) e o trabalho de ficcionista. A
crónica é aqui e de novo o elo de ligação entre dois campos que
modernamente (e sobretudo pós-modernamente) se intersectam, às vezes sem
visível linha de demarcação: o campo da representação ficcional e o campo da
referência ao real circundante, tangível e empiricamente conhecido. (REIS,
Carlos, JL, outubro 2005, p. 19).
Para Carlos Reis, em “O tempo de Crônica”, refletindo sobre o gênero, a
dimensão temporal da crônica é um aspecto relevante a ser considerado,
principalmente pela relação da crônica com o seu tempo, diferente no conto ou
romance, por dialogar com as circunstâncias diretas dos acontecimentos e:
...com o movimento da história ainda em decurso às vezes até com as
incidências, com as figuras, com os conflitos e com as motivações da pequena
história, quase sempre esquecida pela historiografia como ciência e repositório
da memória coletiva. (JL, outubro 2005, p.18)
36
Em seu livro Crónica Feminina, Inês Pedrosa demonstra a escrita
comprometida da cronista consciente da importância do “espaço” que o gênero
sugere “como exercício de intervenção social, como forma de poder cívico”
(PEDROSA, 2005:16) e instrumento de mudança:
Ainda acredito que o mundo pode melhorar à vista desarmada durante o breve
espaço da minha vida; se não acreditasse, não teria a perseverança de
escrever todas as semanas, esteja onde e como estiver, feliz ou infeliz, varrida
pela febre ou numa ebulição de festa. Dentro de todo cronista há um optimista
furioso — a própria zanga serve de testemunha a esse contrato de
encantamento com o mundo. (PEDROSA, 2005:14)
Os dois últimos livros, Carta a uma amiga (2005) e Do grande e do pequena
amor (2006), são escritos em parceria com a fotografia. O primeiro, uma novela
epistolar, inspirada na obra de Maria Irene Crespo, uma fotógrafa amadora que
empresta suas fotos ao texto. É a partir da descoberta de uma caixa de fotografias
que se desenrola a narrativa e “Carta a uma amiga é uma declaração política porque
expõe, exemplarmente, como tudo que é pessoal é político. Porque quase tudo
acontece condicionado pela ordem criada para o mundo” (PINHEIRO, JL, agosto
2006, p. 22). O segundo livro, Do grande e do pequeno amor, é um romance
fotográfico que realiza com seu amigo e ilustrador de seus livros, o designer Jorge
Colombo. “Os encontros e desencontros amorosos de uma historiadora e um
arquiteto que não conseguem viver separados” <http://www.instituto-
camoes.pt/CVC/livros/1090.html>, a história enfim, de um casal contemporâneo.
Participando também de um programa de popularização da leitura, promovido
pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, ou no programa de rádio A
biblioteca de minha vida, onde fazia entrevistas e falava de livros, a jornalista e
escritora interage com o leitor, reafirmando o valor que atribui à literatura e à
formação de novos leitores. Em 2005, em Lisboa, a peça de teatro Nove mulheres e
uma cadela é levada ao palco, resultado da colagem de textos de suas obras.
37
Sintonizada com o tempo presente, consciente da transformação do mundo através
das palavras, Inês Pedrosa dialoga com a literatura contemporânea à medida que
incorpora uma atitude reflexiva e mediadora entre a tecedura do texto e a realidade
factual.
Assimilando “A lição” de Barthes, comentada em crônica, Inês experimenta o
sabor do saber que o mestre da Semiologia tanto apregoou: “nesta lição cintila tudo
o que continuo a aprender — deslocando, desconstruindo, arredando, arredando
sempre. Lição de jornalismo, lição de literatura, lição aberta ao desejo de atingir a
inatingível câmara clara do mundo.” (Crónica Feminina, 2005:158), atravessando,
assim o oceano do conhecimento que a vida oferece e que ela, através das
palavras, consegue invocar.
38
PARTE II
O
LUGAR DO TEMPO
Oh, pedaço de mim,
Oh, metade afastada e mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento (...)
Oh, pedaço de mim,
Oh, metade arrancada de mim
Chico Buarque
39
O caráter original da narrativa de Fazes-me falta poderá ser analisado sob
vários aspectos da sua construção textual: a alternância de duas vozes nos
cinqüenta capítulos que compõem a obra; o desdobramento permitido por cada uma
delas, como o confronto que sugerem; e a interseção do tempo e do espaço que as
representações do feminino e do masculino encenam através dos relatos que
contrapõem vida e morte.
Cada um dos aspectos mencionados poderão refletir o papel do tempo que
permeia inquietamente o romance, seja através das falas das personagens ou nos
diferentes “tempos” (gerações) a que pertencem estas personagens; seja no olhar
especular lançado à sociedade contemporânea portuguesa; ou seja, principalmente,
sobre a “suspensão do tempo”, um mecanismo criado pela personagem que, já
morta, é anunciado do espaço em que ela passa a existir, convocando a outra em
vida para um diálogo supostamente impossível.
Partindo de uma estratégia narrativa que utiliza fontes tipográficas diferentes
para representar as personagens-narradoras, o da mulher em fonte simples e do
homem em forma negritada, instala-se no romance o espaço para o relato de cada
uma dessas vozes, que simulam um espelho à medida que testemunham os
acontecimentos comuns, observados a partir de cada subjetividade.
A tentativa de apreensão do tempo, através da linguagem, torna-se uma
necessidade de cada um dos pontos de vista “o tempo torna-se tempo humano na
medida em que é articulado de um modo narrativo, e que a narrativa atinge seu
pleno significado quando se torna uma condição da existência temporal” (RICOEUR,
1994:85). Para a mulher, a constatação do enigma da temporalidade “Por isso te
procuro com as palavras da vida, as palavras com que tu me reconheceste e
amaste. Mas que eu sei das horas que passaste a velar-me, que sei eu do tempo,
40
agora, que a vida se desenrola diante de mim como um filme longínquo?”
(PEDROSA, 2003:23), para o homem, a angústia de não poder deter mais o tempo
que sempre soube não dominar “a morte espreita sobre todos os prazeres dessa
cronologia a que nos agarramos para escapar ao tempo. O que somos para além do
que vamos sendo? O meu além eras tu — íman da minha íntima, impessoal
temporalidade” (p.13).
Esta inserção do sujeito “como ser de linguagem” na construção da
temporalidade foi defendida por Bachelard como uma tentativa de se organizar
perante a “desordem e o caos que a vida o submete”. Para o autor, o tempo não se
reduziria apenas à dimensão anterior e exterior ao sujeito, mas à maneira como ele
se inscreve e dinamiza esta dimensão.
A consciência deste tempo que escapa como as areias de uma ampulheta,
observada pelo narrador-vivo -“Se ao menos eu tivesse escrito cada um dos nossos
dias, anotado a seqüência das nossas conversas, agarrado o Tempo que nos foi
roubado” (p.103)- vai ficando mais clara à medida que ele quer dar continuidade ao
tempo que ficou para trás e só a linguagem poderia novamente redimensionar, como
referiu Bachelard.
“O tempo enquanto experimentado mostra a qualidade da relatividade
subjetiva, ou é caracterizado por uma espécie de irregularidade, não-uniformidade e
distribuição desigual na medida pessoal do tempo” (MEYERHOFF, 1976:13). Esta
“falsa flexibilidade” traz a ilusão de que podemos conduzir o tempo. Todos os
instrumentos da ciência para mensurar o tempo existem como uma necessidade de
dar objetividade, criar um padrão de referência e reconduzir-nos a esta “realidade”
também relativa, considerando, segundo Nobert Elias, em sua obra Sobre o tempo,
que:
41
A idéia de que os homens sempre teriam apreendido as séries de
acontecimentos sob a forma que predomina nas sociedades contemporâneas
— a das seqüências temporais integradas num fluxo regular, uniforme contínuo
— é contradita por toda sorte de fatos observáveis, tanto no passado quanto no
presente. As correções trazidas por Einstein para o conceito newtoniano de
tempo ilustram essa mutabilidade da idéia de tempo na era moderna. (ELIAS,
1988:35)
Para o mesmo autor, a história da evolução das sociedades humanas
testemunha as diferentes vivências e transformações sobre o conceito do tempo.
Isto também pode nos levar à conclusão de que os diversos estudiosos do tempo,
sejam eles cientistas ou filósofos, questionaram essa “relatividade”, “medida” e
“domínio”, expressos pelo narrador-vivo: “— por que vivemos como se o tempo nos
pertencesse infinitamente, como se pudéssemos repetir tudo de novo, como se
pudéssemos alguma coisa?” (PEDROSA, 2003:31), ou nas palavras sentidas da
narradora-morta “— as Curvas do Tempo esgotaram-se no minuto em que gerei
essa criança fora do sítio.” (p.225)
Curvar-se à tirania do tempo ou sentir-se soberano sobre ele é a condição
paradoxal que a voz masculina encontra para enfrentá-lo: “...só contornando a
monstruosa perfeição do tempo se podia vencê-lo. Assim pensava, enganei-me
porque o tempo não é pensável.” (p.90). É preciso sentir-se como o próprio tempo
para compreendê-lo e esquecer a dor da ausência, da perda e das feridas da
memória: “Eu sou o tempo; sou nada, o nada veloz e imóvel que molda o corpo do
tempo. Deixar de ser é ainda acatar as regras implacáveis de ser.” (p.90).
Estas sondagens recaem, deste modo, na relatividade já mencionada,
confirmada pelas palavras de Virgínia Woolf:
A mente do homem atua estranhamente sobre o corpo do tempo. Uma vez que
se aloje no singular elemento do espírito humano, uma hora pode ser esticada
cinqüenta ou cem vezes sua duração no relógio; por outro lado, uma hora pode
ser precisamente representada por um segundo através do relógio da mente.
(MEYERHOFF, 1976:13-14).
42
O conflito com o tempo parte também dessa “relatividade”, porque
aparentemente apenas o presente parece “apreender” a experiência momentânea
do tempo. Tem-se a impressão de um domínio sobre o fluir do tempo, muitas das
vezes movido pela necessidade de manutenção do que se perdeu e que se teme
esquecer, como sente a personagem-masculina no sentimento de desamparo e de
revolta pela ditadura do que lhe é impingido:
Tive medo de ir esquecendo, nos primeiros dias, mas não é verdade o que as
pessoas dizem sobre o tempo. Deus pode tirar-nos a vida — sim, esse gajo
tem uma cara boa para culpado — mas não percebe nada de pormenores.
Lixar o tempo é questão de acerto nos pormenores (PEDROSA, 2003:185).
Essa atitude dá-lhe a sensação de que também ele é “senhor do tempo”, que
naquele presente é possível reverter uma situação e continua: “Invento-te pura
criação minha, a mais real das amigas imaginárias. Sacudo-te do tempo, faço-te
minha amiga antes e depois da cronologia que te marcaram” (PEDROSA,
2003:185).
O presente, dentro da concepção linear do tempo, converge para uma certa
ordem do “antes” e “depois”, divisão temporal que foi analisada por Agostinho, no
livro XI das Confissões: “não há um tempo futuro, um tempo passado e um tempo
presente, mas um tríplice presente, um presente das coisas futuras, um presente
das coisas passadas e um presente das coisas presentes.” (RICOEUR, 1994:96).
Para Ricoeur, sobre esta estrutura temporal incide a ação, questionamento esse que
se pode fazer a esse tríplice presente:
Presente do futuro? Doravante, isto é, a partir de agora, comprometo-me a
fazer isto amanhã. Presente do passado? Tenho agora a intenção de fazer isto,
porque acabei de pensar que... Presente do presente? Agora faço isto,
porque agora posso fazê-lo: o presente efetivo do fazer atesta o presente
potencial da capacidade de fazer e constitui-se como presente do presente.
(RICOEUR, 1994:96).
Essa “aparente” divisão, de acordo com Bergson, não aconteceria, e sim o
tempo como um fluxo contínuo, concepção que é a base de seu conceito de duração
43
em Matéria e Memória, contrapondo também o conceito físico do tempo. Segundo
ele, a “Física transfere o tempo para a dimensão do espaço: o intelecto ‘espacializa’
o tempo.” (MEYERHOFF, 1976:14). Assim, para ele “é preciso portanto que o estado
psicológico que chamo ‘meu presente’ seja ao mesmo tempo uma percepção do
passado imediato e uma determinação do futuro imediato” (BERGSON, 1993:161),
elaborando suas idéias a partir da própria pergunta ao tempo presente:
O que é para mim, o momento presente? O próprio do tempo decorrer; o tempo
decorrido é o passado, e chamamos presente o instante em que ele decorre.
Mas não se trata aqui de um instante matemático. Certamente há um presente
ideal, puramente concebido, limite indivisível que separaria o passado do
futuro. Mas o presente quando falo de minha percepção presente, este ocupa
necessariamente uma duração. Onde portanto se situa essa duração? Estará
aquém, estará além do ponto matemático que determino idealmente quando
penso no momento presente? Evidentemente está aquém e além ao mesmo
tempo, é o que chamo de “meu presente” estende-se ao mesmo tempo sobre o
meu passado e sobre meu futuro. (BERGSON, 1999:161).
O presente torna-se uma espécie de plataforma, “por isso meu presente
parece ser algo absolutamente determinado, e que incide sobre meu passado”
(BERGSON, 1999:162). Este mecanismo pode ser percebido em Fazes-me Falta,
principalmente na personagem-viva que pretende “esticar” suas lembranças no
presente doloroso em que se encontra: diante do caixão da amiga que se foi, na
consciência do vazio inesperado “Estou sozinho. Sozinho com o coração em
bocados espalhados pelas tuas imagens” (...), “Dava-me agora um jeito um deus
qualquer para moço de recados. Um deus que te afagasse os cabelos e me
recordasse como eram macios” (PEDROSA, 2003:11). A certeza de que em um
instante tudo muda, da vida para morte, rouba dele a esperança reversível do
tempo. “Quando as coisas deixam de durar, alteram-se. O simples fato de deixarem
de ser altera-as, por mais que procuremos fazê-las estancar” (p.42), por isso o
presente é o aliado, a aparente continuidade do que ficou, da ilusão de que se
poderia alterar os acontecimentos “Meu presente portanto é sensação e movimento
44
ao mesmo tempo; e, já que meu presente forma um todo indiviso, esse movimento
de estar ligado a essa sensação, deve prolongá-lo em ação” (BERGSON, 1999:161).
A experiência com o tempo no presente não é mais acessível para a outra
personagem, a narradora-morta, tendo já experimentado a dor da perda dos pais —
“os meus pais despenharam-se sem mim numa curva de estrada, tinha eu catorze
anos e quis perder a Fé em Deus”, sabe que “A dor precisa de um corpo. Limite de
pele, unhas, ranho, suor. A incapacidade de sair, a coragem irremediável de viver o
tempo” (PEDROSA, 2003:71). Para o enfrentamento dessa nova dor, ela cria um
outro espaço que lhe permite relatar sua morte, suas rememorações e suas
impressões. O “quase impossível” diálogo convocado por ela é sugerido através
deste pacto ficcional, onde os enunciados trocados pelos locutores e,
conseqüentemente, alocutários, também dirigem-se a um terceiro alocutário: o leitor
implícito, testemunha das enunciações encenadas por estas personagens, que,
através de falas alternadas, conseguem dar a impressão de uma aparente
comunicação. Assim, nesta antítese temporal: vida/morte, cada narrador fala de um
lugar, determinando também um tempo específico para cada narrativa.
O presente que consola o narrador-vivo não pode fazer o mesmo pela
narradora-morta: ela encontra-se fora do tempo marcado e o espaço narrativo que é
criado surge de um atalho no labirinto do tempo, diferença narrativa instigante, que
permite a relatividade deste tempo como uma “suspensão” quase verossímil. A voz
feminina encontra, neste espaço, a condição de narrar em um tempo inteiramente
subjetivo, gerado pelo seu novo estado “Os meus olhos que já não o são vêem
agora tudo o que foi, tudo o que poderia ser, tudo o que é. Concentro-me no que é
— estou morta...” (p.23), partindo como diz “...aqui deste espaço sem espaço” em
busca de um lugar especial, passível de um novo olhar, protegido dos efeitos da
45
temporalidade que consome a vida: “Neste lugar sem lugar, passado e presente e
futuro são contemporâneos” (PEDROSA, 2003:23).
O entendimento deste dispositivo criado pela narradora-morta poderá ser
compreendido a partir do conceito de espaço, segundo o Dicionário de Narratologia:
...a integração do tempo no espaço define-se como cronótropo: “No
cronótropo literário tem lugar a fusão dos conotados espaciais e temporais num
todo dotado de sentido e concretude. O tempo que se faz denso e compacto
torna-se artisticamente visível: o espaço intensifica-se e insinua-se no
movimento do tempo, do entrecho, da história.” (REIS, 2000:139).
Este espaço é, então, nomeado pela narradora-morta como “noante”: “Nesta
primeira prega da transcendência, neste noante à margem do tempo e da minha
eternidade, o meu olhar sem órbitas move-se por ampliações máximas de
pormenores mínimos” (PEDROSA, 2003:16) e ao longo da narrativa vai se
repetindo, situando-a acima do mundo que deixou: “Flutuo por este noante em busca
dessas palavras a menos, atravessadas entre nós como um longo corredor de
prisão (p.27) e definindo a suspensão pretendida: “Mas o que é o passado? Só para
os vivos os mortos têm passado — o pior da morte é este presente obrigatório, este
noante suspenso.” (p.37).
Entrevistada sobre a razão da escolha da palavra “noante”, inventada por ela,
a autora justifica-se assim: “Simplesmente porque ‘limbo’, que seria seu sinónimo,
me pareceu uma palavra demasiado carregada de culpas e tristeza... Noante
pareceu-me uma palavra redonda e macia para definir esse sítio onde a protagonista
de Fazes-me Falta não havia estado antes...” (ciberduvidas.sapo.pt/php/resposta.php?id).
Em outros trechos da narrativa, a narradora-morta utiliza-se da expressão
limbo. Essa diferença de tratamento ao mesmo espaço parece insinuar uma
conotação mais forte para aquele momento descritivo, traduzindo um sentimento
confuso e carregado de crenças que são questionadas ao longo das rememorações.
46
O estado em que me encontro é muito mais angustiante: como se vivesse em
sonolência diante de um filme que já não posso recriar, vendo tudo, o passado
e o futuro, que afinal são um só ser hermafrodita, e aprendendo demasiado
tarde o que não fui capaz de ver. Deve ser isto o limbo. (PEDROSA, 2003:38).
O noante ou limbo, lugares deslocados no tempo, ausentes dos movimentos
que o tempo faz ou prováveis pinçamentos do instante temporal? A transitoriedade
poderia ser assim “congelada” no percurso do tempo? O conceito de “entretempo”
de Franklin Leopoldo e Silva poderia aproximar-se destas indagações e justificaria o
nascimento da obra literária “...o Tempo por meio da presença do instante
intemporal, aquele que não é nem passado nem presente, mas que se situa num
entretempo a partir do qual a obra ganhará o caráter de eternidade.” (SILVA,
1996:151). Portanto, a eternidade deste instante, deste espaço narrativo da voz
feminina no tempo é instrumento para criação. Pela percepção do entretempo, as
palavras são mediadas e revelam a essência temporal que determina aquela
transitoriedade.
É no noante que a protagonista de Fazes-me Falta sente-se consciente da
paixão que lhe provocou a morte e que em vida não resistia. “Nestas águas-furtadas
que não conhecestes morava um homem e no corpo dele era a minha morada. Mas
eu não sabia. E neste noante já nada posso contra essa ignorância, não tenho como
honrar o contrato carnal de habitação que estabelecêramos, às cegas.” (PEDROSA,
2003:68). É também lá que o tempo transfigura-se de saudade para evocar o amigo
que ficou em vida: “Faz-me falta a música para dançar ao teu lado neste noante em
que vago.” (p.171).
O “noante” é o espaço que abriga a protagonista, funcionando como
“observatório”, entrincheirado no tempo em que ela quer “congelar”, local que se
pretende seguro para as observações sobre si mesma e sobre o protagonista, que
se encontra à mercê do tempo, “condenado” às leis que regem a vida.
47
Este mecanismo evidencia-se como lugar da narrativa da personagem,
sugerido pela suspensão que lhe confere uma amplitude sobre os acontecimentos e,
conseqüentemente, compensando o sacrifício de morrer para ser “eterna”, ao
contrário do amigo que fica subjugado pelo inventário do vivido, preso no presente e
ausente de um futuro que só depois tem consciência do que almejava.
Assim, “O tempo é o veículo da narração como é também o veículo da vida”
(MEYERHOFF, 1976:25) e as experiências individuais com o tempo e no tempo
diferenciam os seres humanos e constroem histórias que dão significado ao próprio
tempo.
Os narradores de Fazes-me Falta incorporam tempos diferentes que se
encontram no tempo comum. As experiências e as subjetividades de cada geração
são espelhos que definem identidades e têm representações históricas e literárias. A
amizade é a ponte entre dois mundos que se descortinam através do registro do
tempo, um tempo que “faz-se em ritmo binário. Como um longo poema em ponto e
contraponto, a narrativa é salpicada pelo tempo do refrão — Fazes-me Falta — que
percorre o relato masculino...” (OLIVEIRA, 2005:6), eco doloroso da ausência
irremediável que parece responder ao relato feminino, que reveza desespero,
angústia e muitos outros sentimentos, até a vontade de consolar o amigo que ficou:
“Não me chores, meu querido: o melhor de mim vive ainda em ti, sempre viverá
nesse saber da fractura que me faltou, nessa coragem da incompletude que só
deste noante consigo finalmente ver.” (PEDROSA, 2003:27-28).
A narradora-morta é a amiga “roída pela própria posteridade”, uma rapariga
de 37 anos que corria “em contra-relógio”, que procurava “a imobilidade de um
tempo-pedra”. Professora universitária e depois deputada. Para o amigo, a mudança
não lhe causara bem: “Entraste para um mundo especializado onde mentir era
48
diferente de omitir” (PEDROSA, 2003:18), distante da época em que estudava
História e vivia procurando a verdade além dos fatos. Segundo o amigo, “Repetiam-
te que a verdade não existia — porque essa era a verdade do pedaço de tempo que
nos era dado viver. Mas tu não te instalavas no teu tempo. E preocupavas-te
continuamente em não te instalares num outro tempo que te tornasse anacrónica.”
(p.19).
À nova profissão entrega-se com sofreguidão, na crença de que é possível
“salvar o mundo” (p.170). Esta passagem traz muitas mudanças, aprendizados que
lhe desfiguraram a alma: “...adquiri habilidades negociais esconsas de que me
orgulhava. Aprendia, o que era outra forma de ensinar” (p.112). Na ansiedade do
agir, relaciona-se com um novo tempo, que confessa ao amigo do “noante” onde
está: “Um novo exercício de paixão — os dias passavam sem que desse por eles; o
tempo, que na História se me afigurava muitas vezes preguiçoso — embora nunca
circular, como tu pretendias — surgia-me agora despedaçado, um puzzle que
poderíamos refazer com as nossas pequenas mãos.” (p.112).
A política desnudou-lhe o mundo das intrigas, das invejas, das amigas
oportunistas, da burocracia que corrói os ideais. “A minha passagem do ensino para
política foi ainda e sempre uma insubordinação teórica — e eu pensava que estava
a fugir da teoria para a arte maior da vida” (p.28), constata no desalento da
eternidade em que se encontra, do lugar em que não pode mais lutar pelas crianças
desamparadas, defender as mulheres que sofrem injustamente, combater a
violência. Por isso, sente o peso do mundo, deseja poder voltar: “Pudesse eu por um
segundo tocar o rosto de uma criança para o estancar, para voltar a ter a ilusão de
que é possível estancá-lo, fechar as portas da dor, da tortura, da injustiça.” (p.183).
49
A narradora-morta não se sentia em sintonia com o seu tempo, com a
máscara da juventude: “Nunca soube o que eram ‘jovens’, nunca soube o que era ‘o
meu tempo.’” (PEDROSA, 2003:53). Situar-se no tempo que obedece às
convenções não foi possível, considerando que “O tempo — ou qualquer outra
categoria existencialista — só é significativo dentro do mesmo contexto de
experiência pessoal, não dentro do contexto da natureza.” (MEYERHOFF, 1976:25),
o fluxo temporal tem uma aparente continuidade que parece correlacionar-se com as
experiências do eu, atribuindo-lhe um valor “qualitativo” que nem sempre coincide
com o “quantitativo”.
Parecia existir, para ela, uma pressa que escorria para o túnel do tempo, uma
ânsia de viver intensamente, seja na paixão que a consumiu, gerando-lhe um filho,
em uma gravidez ectópica — “Morri com um sem-abrigo perdido no caminho para o
meu útero, morri porque o meu corpo decidiu gerar uma vida nova e se enganou”
(PEDROSA, 2003:15) — seja nas causas por que lutou: “morria aceleradamente,
lenha gananciosa, nessa ânsia de aquecer o mundo mais depressa do que todos os
fogos.” (p.151). Mas o tempo tem suas próprias leis sobre o destino “— as Curvas do
Tempo esgotaram-se no minuto em que gerei essa criança fora do sítio” (p.225), que
se sente, depois, liberta dos grilhões do tempo, assim como das palavras de seu
relato “já não preciso de contar histórias. Deixo cair todos os efeitos lustrosos e
atinjo o coração do amor, essa tinta espessa que flutua sobre o tempo e transfigura
tudo aquilo em que toca.” (p.233).
O narrador-protagonista fala do lugar da vida, paradoxo irônico para aquele
“quase velho” que se depara com a morte inesperada da amiga: “como é que eu
mato a tua morte?” (p.17). Diante do impossível, também quer alcançar a eternidade
junto àquela que foi capaz de morrer: “E se tu morreste, também eu serei capaz de
50
morrer, sem que as ondas nem o céu nem o silêncio se transformem. Cair em ti,
cada vez mais longe da mísera ficção de mim” (PEDROSA, 2003:14), inconformado
com a perda, que considerava sem sentido: “creio que nunca te vi doente — a não
ser de amor. Cultivavas o vício da paixão por um método implacável” (p.13).
A angústia registrada nas palavras do narrador expõe, de certo modo, a sutil
ironia que se estabelece na narrativa: a protagonista que tem paixão pela vida é
“sacrificada”, enquanto a personagem que se reconhece como alguém “quase
morto” sobrevive. Poderia se perguntar sobre a ilogicidade temporal que eles
representam na narrativa, um mais “próximo” da morte e outro “menos” e a
provocante inversão.
Outros questionamentos também seriam pertinentes, como: o papel da
mulher que luta para chegar ao poder e é “detida” em uma sociedade que privilegia
o poder político dos homens, como acontece com a própria personagem feminina
que se deparou com seus projetos que não lograram fim, ou mesmo o “aborto” como
símbolo das conquistas femininas que ainda não nasceram de fato.
Para este protagonista, um homem de sessenta e dois anos, o tempo
enunciado pela morte da amiga provoca-lhe não somente a revisão dos momentos
compartilhados, mas também o retorno de acontecimentos e momentos marcantes
que antecederam a época em que a conheceu. Ele mergulhou no eu mediado por
estas ressonâncias temporárias, reveladoras de novos contornos que o tempo foi
esculpindo através das experiências, espelhadas na identidade do tempo presente:
O tempo é carregado de “significação” para o homem porque a vida humana é
vivida à sombra do tempo; porque a pergunta o que “sou” apenas faz sentido
em termos do em que me tenho “tornado” isto é, em termos dos fatos históricos
objetivos juntamente com o modelo de associações significativas constituindo a
biografia ou a identidade do eu. (MEYERHOFF, 1976:25).
O presente, como disse William James (influenciado por Bérgson), tem “uma
certa largueza na qual nos empoleiramos e da qual olhamos em duas direções
51
dentro do tempo” (MEYERHOFF, 1976:17). O narrador-vivo, no sobressalto de uma
repentina solidão, ancora-se então no presente, do qual perspectivas temporais se
mesclam para aliviar a dor da perda: o tempo mais próximo são as reflexões sobre a
morte perante o caixão da amiga, os acontecimentos em torno do funeral. Os
demais tempos são alternados pelas lembranças da história que partilharam e o
“antes”, impregnado pelas vivências de uma guerra na África, dois divórcios e os
desencantos da infância que são prolongados na convivência difícil com a mãe e
irmãos.
Seu relato é uma tentativa de encontrar o tempo perdido, como se fosse
possível, através das palavras, resgatá-lo neste presente desolador. Entrevistado,
no funeral da amiga, sobre a amizade comum e o momento difícil que vivia,
responde que “É por isso mesmo que não falo dela. Continuarei apenas a falar com
ela”. (PEDROSA, 2003:121). Em outro momento, recorda-se da leitura interrompida
pelas frases que deslumbravam a amiga e a irritação que ele disfarçava com
sorrisos: “Mas depois, quando já te tinhas ido embora, no tempo em que era
possível que te fosses embora, eu lembrava-me das tuas leituras bruscas...” (p.47).
Quando a conheceu, sentia-se “esvaziado”, sentia a necessidade de
“experimentar de novo a arrogância aflita da juventude” (p.25), inscrever-se no curso
de História para preencher este vazio: “Precisava do sangue da batalha infinita.
Fazia-lhe falta o sangue das ideias dos outros, o sangue da História do Futuro que
escorre nas salas das universidades, nas margens intranqüilas dos livros” (p.25).
Encontra assim, na professora e, posteriormente amiga, o pretexto para voltar à luta.
Para ela, “toda a História da civilização fora construída sobre o objectivo sistemático
da exclusão das mulheres” (p.25), isto o incita à provocação: “...comentei que a
cadeira deveria intitular-se História das Musas, em vez de História das Mentalidades”
52
(PEDROSA, 2003:26) e torna-se o mote para um jogo de idéias que lhe devolve a
“cor” que já não tinha desde os “alvores da revolução”.
O tempo que queria tomar como seu só existia no limite que as palavras
impunham: a amiga não permitia que ele entrasse “na incauta claustrofobia desse
palácio de espelhos deformantes” (p.233) e os amigos achavam sua amizade um
“devaneio de velho, uma extravagância inconveniente. Uma afronta minha à
demasiada idade que nos unia” (p.65) ficava difícil entender que a ousadia dela era
o alimento que buscava para atravessar o tempo e aproximar esta diferença sobre a
qual ele tem dúvida: “Talvez não haja idades, só mortos ressoando pelos canais do
Tempo, mortos que, como ímãs, aproximam e afastam os que ainda não morreram”
(p.65).
Esta imagem que inquieta a voz masculina pode aproximar-se da
configuração do tempo definida por Kant, segundo Deleuze.
Tudo o que se move e muda está no tempo, mas o tempo, ele mesmo, não
muda, não se move, e muito menos é eterno. Ele é a forma de tudo o que
muda e se move, mas é uma forma imutável e imóvel. Não é uma forma
eterna, mas justamente a forma do que não é eterno, a forma imutável da
mudança e do movimento. (DELEUZE, apud GUIMARÃES,1997:41)
Considerando as mudanças como referências marcantes dentro do tempo, o
sentido ou significação dos acontecimentos é sempre uma marca subjetiva,
independente de uma aparente cronologia. Assim sendo, os fatos ou detalhes que
pareciam não ter importância, são ressignificados para este narrador-vivo no
desalento que a morte e a mudança provocaram.
Era necessário, por isso, falar do que foi possível em vida: que havia
escondido que dava aulas de História para “criminosos amadores (porque se fossem
profissionais não estavam atrás das grades)” (PEDROSA, 2003:65); das amigas
pouco fiéis que ela não percebia “Enganavas-te tanto sobre as pessoas” (p.128); da
África “não te contava as histórias da guerra em África que tu querias ouvir. Tinha –
53
as atirado para um caixão de silêncio e enterrado longe da minha vida, muito antes
de renascer ao teu lado” (PEDROSA, 2003:62); que a tese que ela “copiou” dos
trabalhos dele é razão de gratidão para ele: “se por uma vez pude melhorar a
orquestração da tua melodia, quem tem de ficar grato sou eu” (p.162). A
enumeração destes fatos e outros da narrativa parecem traduzir o desejo de
confissão, como prova maior da amizade que, despojada da “vida”, continuaria na
eternidade.
As diferenças e afinidades entre as personagens espelham a singularidade
dialógica que essas vozes representam, conforme Eduardo Prado Coelho descreve
em sua saudação a Fazes-me Falta, logo que foi lançado em Portugal:
(...) as duas vozes, a dela e a dele, a feminina e a masculina, se respondem e
dialogam não apenas na memória do que acontece de amizade e
cumplicidade, mas também na exaltação do que de amor não chegou a
acontecer... (COELHO, Público, 2002).
Nas descrições das personagens ou nos pontos de vista que cada uma
expressa sobre o mesmo tema, é possível perceber a dualidade da própria
temporalidade, ora aproximando os “amigos” em busca da verdade, valor
inquestionável que os unia, ou nas discussões sobre as melhoras do mundo:
“olhávamos à nossa volta e não víamos o tão apregoado deserto de valores, excepto
na boca dos que mais o denunciavam. O vazio era, para nós, esse consenso de
estereótipos sobre um passado mítico, Antes-da-Queda-da-Alma” (PEDROSA,
2003:51), ora revelando contrastes desconcertantes entre eles:
Podias viver a pão, água e cigarros — mas numa sair sem um lenço de seda
pura ao pescoço. Os teus lenços, como me embaraçavam, ao princípio. Por
causa deles, arquivei-te na pasta dos galãs decadentes. Eu era exactamente o
oposto: parecia-me um escândalo que se pudesse gastar o salário de um mês
numa fatia de tecido, escolhia a roupa em cestos de feira e nas cores dos
filmes dos ano 50, deixava-a amontoada nas costas da cadeira do quarto
semanas a fio. (PEDROSA, 2003:22)
A História é a disciplina que os une desde o princípio, pretexto para as
reflexões sobre os acontecimentos do passado e do presente, elemento de
54
intersecção entre eles, refletindo muitas vezes sobre as crenças e descrenças da
contemporaneidade — “Não acredito em nada, de facto, a não ser naquilo a que tu
chamavas “’O Bem’ e eu, alérgico ao odor de Igreja que se desprende dos
substantivos abstractos, prefiro chamar de capacidade de renovação humana.”
(PEDROSA, 2003:43-44) e exprimindo a necessidade de enxergar além da própria
História:
Sim, coincidíamos nessa visão do mundo que o desdém dos cínicos considera
optimista. Por cada acto de horror encontrávamos um quantidade infinita de
actos de amor. A nossa comum paixão pela História conduzia-nos à
generosidade humana: na sombra de cada ditador, encontrávamos uma
multidão de democratas; nas pregas de cada massacre, milhares de vidas
dedicadas à felicidade alheia. (PEDROSA, 2003: 44).
Apesar da coincidência das crenças, o narrador-vivo faz uma ressalva que
enfatiza a autenticidade e diferença entre eles: “Tu vias Cristo em cada pessoa, eu
via apenas a pessoa de cada pessoa. O que era exactamente a mesma coisa, se
descontarmos as tuas rezas, e a minha convicção de que, às vezes, o sangue só se
mata com sangue.” (p.44).
Segundo Franklin Leopoldo e Silva e seus comentários sobre a “percepção
sensível” de Bérgson, “Temporalidade é sobretudo transformação e é a
transformação que marca o ritmo de nossa história interior.” (SILVA, 1996:148). A
sensibilidade para perceber essas transformações, sejam elas internas ou externas
ao ser, evidenciariam a realidade em seus contornos definidos a partir desta
percepção.
À medida que os narradores vão percebendo, em seus relatos, as mudanças
operadas dentro de si, reconstituindo os fatos, a consciência desta temporalidade na
relação de amizade é permeada pela ternura, de acordo com o narrador-vivo: “Às
vezes parecia-me que procurávamos zangas para termos o prazer desse regresso à
intimidade — nisso a nossa bravura não se distinguia da persistência guerrilheira
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dos velhos casais.” (PEDROSA, 2003:210), ou nas reflexões da narradora “Detenho-
me cada vez mais na revisitação do bem que tantas vezes correu invisível sobre os
nossos dias.” (p. 220).
Portanto, o tempo é sempre uma marca na condução dos depoimentos que
têm a literatura também como uma referência intelectual, demonstrada através de
suas preferências e que são representativas daquelas gerações. Um diálogo que
pode ilustrar esta afirmativa é aquele em que o narrador pergunta à amiga o que é
uma alma e ela responde que “Alma é um vício”, ao que ele retruca que essa frase
não era dela, mas de “Fanny Owen da Dona Agustina” (p.42). A narradora encolhe
os ombros e responde: “claro, mas esta frase transformou-me a vida. E aquilo que
nos transforma é nosso, meu traste, queira ou não queira.” (p.42).
Em outro momento, o narrador relaciona as coisas que havia dado à amiga
em vida, entre elas “uma edição preciosa das Cartas de Mariana Alcoforado, que tu
emprestaste” e perdeste. “E uma carta da Virginia Woolf, que me custou uma pipa
de massa num leilão em Londres” (p.155) e que mais tarde vai encontrá-la misturada
com diversos objetos (chaves, extractos bancários, disquetes...) em uma gaveta.
O livro The End of The Affair, de Graham Greene, é sublinhado pelos dois. A
obra pertencia ao narrador que a havia encontrado em uma poltrona de avião há
muito: “guardei o livro para o reler contigo, anos antes de te conhecer.” (p.115). A
narradora também alude à obra, quando saudosa do amigo, como objeto comum
que “pararia o tempo”. Imagina o livro como um instrumento de possível
comunicação entre eles: “Abre um livro por favor” (p.120) e continua: “Abre-me The
End of THe Affair de Graham Greene e lê-me aquela passagem em que os dois
amantes se afastam depois do primeiro reencontro.” (p.120).
56
Outras passagens são reveladoras do intercâmbio literário: “Lê-me o fim da
Ressurreição do Tolstoi” (PEDROSA, 2003:121), pede ela, ou: “Lê-me os textos
dessa Maria Zambrano que eu te ensinei a amar, diz-me que ‘o coração é o vaso da
dor’ e entorna o teu sangue no meu coração morto que não consegue morrer.”
(p.121).
Havia uma admiração da parte do protagonista-homem em relação à avidez
da amiga para com os livros — “Devoravas os livros, com as mãos, com os olhos,
com todo o teu corpo. Adormecias em cima deles, na praia, na cama, no sofá,
sublinháva-los, acrescentavas frases, exclamações, interrogações.” (p.61). Ele
atribuía essa sofreguidão “de leoa” à pressa “de recuperar o Tolstoi, o Cervantes e o
Proust que não te haviam dado a ler na juventude.” (p.61). E acrescentava à mistura
que ela fazia com Deleuze e Ruth Rendell, Camilo e Duras e os contos de Tchekov
e os ensaios de Montaigne. E “até — suprema heresia! — Shakespeare e Berth
Bernage.” (p.61).
A literatura, depois, será a companheira da ausência que afeta o protagonista,
no resgate do que ficou e na esperança de preencher as lacunas deixadas pela
amiga:
Livros radiantes onde outros tinham escrito os teus sonhos e pesadelos, as
tuas inquietações. Sublinho-lhes as poucas frases que tinham ficado por
sublinhar. Mas nenhuma delas me consola, agora apenas literatura, na mortal
arrumação da História. (PEDROSA, 2003:162).
A Literatura, a História, os acontecimentos do “tempo comum” entre as
personagens e as rememorações anteriores a este tempo vão desnudando a relação
instituída no espaço da “amizade” e da situação aflitiva que ambos experimentam
com a morte que os separa, angustiados com o tempo, que escapa, indiferente à
vontade deles de trazer para o presente, o passado e a possibilidade de refazê-lo. O
que suscita, no narrador-vivo, a reflexão desta angústia:
57
...o tempo foi substituído pelo espaço onde tudo o que foi converge com tudo o
que será. A isso se chama ser contemporâneo. Viver na presunção pós-
moderna do presente infinito, entender tudo sem saber a fundo de nada.”
(PEDROSA, 2003:93).
A conclusão deste narrador, situado neste “tempo”, aponta também para
contradições da sociedade portuguesa e desta pretensa pós-modernidade que,
paradoxalmente, inova suas relações humanas e deixa entrever, nas observações
da protagonista-viva, sentimentos corrosivos e intemporais:
Nos países pequenos, a inveja torna-se um tema enorme e mistificador, e as
teorias da conspiração florescem rapidamente no canteiro da nossa
impaciência. Faltando-nos engenho e arte, barricamo-nos na impaciência das
teorias.” (PEDROSA, 2003:28).
É possível perceber no olhar destes protagonistas, um Portugal que se
redescobre, após a revolução e as mudanças que ocorreram no país, nas palavras
tomadas de empréstimo da narradora-morta quando rebate o amigo que queria
escrever sobre Portugal e “sonho incandescente da Europa” (PEDROSA, 2003:234),
“O sonho do centro de todos os centros, apaixonado pelo outro enquanto subúrbio
de si” (p.234) e ela diz que “não temos esse problema: habituámo-nos a olhar para
nós como o subúrbio da Europa inteira. Ou seja, vemo-nos como a caverna secreta
de Ali-Babá.” (p.234). Porém, a visão do amigo sobre a questão define ou reflete, na
obra, a história do povo português, convergindo o passado com o presente:
...escrevi um texto longo sobre essa epidemia de origem portuguesa de dobrar
o mundo até o fazer coincidir com os sonhos. Ou de ampliar os pesadelos à
dimensão épica de uma memória de bolso. (PEDROSA, 2003:234).
As confabulações das personagens ressoariam como eco nostálgico da
história de Portugal? Ou seria uma observação crítica desta divisão conflituosa em
que se encontra o país? Pois, ao mesmo tempo que se aproxima do “modelo
europeu”, Portugal quer salvaguardar uma identidade, uma maneira de ser muito
peculiar e saudosa.
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O revezamento dos narradores poderia, deste modo, sugerir um espectro
narrativo que, atravessado pelo tempo, permitiria que as dimensões deste tempo se
tornassem visíveis no decorrer da leitura da obra.
59
PARTE III
O
PERCURSO DA MEMÓRIA
Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo.
Mal de te amar neste lugar de imperfeição.
Onde tudo nos quebra e emudece.
Onde tudo nos mente e nos separa.
Sophia de Mello Breyner
60
Para compor o tecido memorialístico de Fazes-me Falta, a voz feminina e a
masculina “dialogam” na evocação de um passado comum, sugerido pelo confronto
destas rememorações, acrescentadas pelas digressões em tempos não
compartilhados por ambos, mas justificados pela imersão na memória de cada um e
nas possíveis relações que os acontecimentos relatados contribuem para o
conseqüente desnudamento destes “interlocutores” na fronteira vida/morte.
A articulação entre o tempo e o espaço na memória de cada narrador e o
modo como essa encenação ocorre na narrativa alternada do homem e da mulher, o
inventário do vivido e também do desejado, engendram “os fios” deste texto/tecido,
modulados pela “falta” e a necessidade de ir ao encontro das recordações,
testemunhas de um tempo que não pode ser mais alcançado, a não ser pelo próprio
ato de narrar:
(...) um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do
vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas
uma chave para tudo o que veio antes e depois. Num outro sentido, é a
reminiscência que prescreve, com rigor, o modo da textura. Ou seja, a unidade
do texto está apenas no actus purus da própria recordação, e não na pessoa
do autor, e muito menos na ação. Podemos mesmo dizer que as intermitências
da ação são o mero reverso do continuum da recordação, o padrão invertido da
tapeçaria. (BENJAMIN, 1994: 37-38).
O ato de recordar ultrapassaria, deste modo, a própria experiência passada,
segundo Benjamin, comentando a obra de Proust, “o importante, para o autor que
rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de
Penélope da reminiscência.” (BENJAMIN, 1994:37) Movidas pela premência da
morte enunciada, as vozes de Fazes-me Falta utilizam-se da linguagem para criar
uma nova urdidura temporal, construindo uma memória que renova, restaura os
acontecimentos, que são dotadas de uma nova percepção:
...é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo
sua existência vivida — e é dessa substância que são feitas as histórias —
assumem pela primeira vez uma forma transmissível. (BENJAMIN, 1994:207).
61
A morte é, assim, momento de consciência e cúmplice de um novo estado
que a protagonista quer dividir com o amigo, senhora, agora, deste mistério que
sempre a inquietou, assim como o questionamento sobre o papel de Deus, que
recorta o relato de ambos em diferentes trechos da narrativa.
A morte é um segredo bem guardado, o único de cujos direitos de autor Ele
não prescindiu. Posso contar-te a minha morte, aqui deste espaço sem espaço,
porque Ele sabe que já não vais ouvir. Mas sei que vais imaginá-la de muitas
maneiras diferentes, e que, por a imaginares, todas essas minhas mortes
existem já, neste nosso íntimo espaço de inexistência. (PEDROSA, 2003:15)
O ato de contar torna-se, desta forma, um rio que flui deste “espaço sem
espaço” ou “espaço da inexistência” ao encontro do tempo que só pode ser revertido
pela memória da narradora-morta, projetando-se através da linguagem, ora em
direção ao passado experimentado, ora a um futuro imaginado, ora ao presente
angustiado que “apreende” as palavras omitidas.
Há tantas coisas que nunca te disse — e dizias tu que eu falava demais. Flutuo
por este noante em busca dessas palavras a menos, atravessadas entre nós
como um longo corredor de prisão. Em vida, sussurrava: não te perdoo o que
não soubeste saber de mim. Este noante revela-me a verdade invingada: não
me perdoo o que não soube verter-te de mim. (PEDROSA, 2003:27)
A narrativa memorialística para a protagonista emerge, então, da necessidade
de preencher as lacunas deixadas pelas palavras não ditas, suspensas no passado,
reféns de um tempo que a memória quer resgatar, no presente da enunciação,
palavras trespassadas pela falta e que reverberam, também, nas palavras do
protagonista.
Para este protagonista, surpreendido pelo vazio repentino, espaço de
dolorosa constatação: “Estou sozinho. Sozinho com o coração em bocados
espalhados pelas tuas imagens” (PEDROSA, 2003:11), surpreendido pela tardia
conclusão: “Se ao menos eu tivesse escrito cada um de nossos dias, anotado a
seqüência das nossas conversas, agarrado o Tempo que nos foi roubado. Uma
narrativa, uma ilusão de ordem que estancasse a fluidez insignificante da vida”
62
(PEDROSA, 2003:103), escrever um passado como protagonista/narrador é uma
forma de subverter este tempo “roubado”, tentativa de dar continuidade a uma
história que só poderá ser reconstituída pela memória, possibilidade esperançosa de
superação.
Estas lacunas no tempo foram comentadas por Bachelard, a partir do conceito
de dureé, de Bergson:
O autor desenvolve a idéia de que o tecido do tempo é fundamentalmente
lacunar e a continuidade temporal não dever ser entendida como um dado,
mas como uma obra, um trabalho, uma construção do sujeito, diante sobretudo
da angústia que significa para ele a experiência da memória, o ato de reviver o
desaparecido (e, portanto, o descontínuo), de enfrentar a morte. (CASTELLO
BRANCO, 1994:28).
Portanto, é a partir do que faltou e da ausência que os narradores evocam
Mnemosyne, a deusa da memória, segundo a mitologia grega, mãe das musas
aquela que canta “tudo o que foi, tudo o que é e tudo o que será” (VERNANT,
1973:73). Para Benjamin, a deusa da reminiscência era para os gregos a musa da
poesia épica, que mais tarde daria origem à narração e ao romance.
A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transporta os acontecimentos
de geração em geração (...) Ela inclui todas as formas variedades da forma
épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador.
(BENJAMIN, 1994:211).
A “tecelagem” destes narradores é um trabalho de resgate deste passado
lacunar, compreendido na oposição de Mnemosyne/Memória e Lethe/Esquecimento,
no esforço contínuo de resguardar o que ficou ou “sobrou”. Ao mesmo tempo, se
constrói um “futuro” que poderia dar continuidade aos acontecimentos na extensão
de um presente narrativo que, embora gerado sob a perspectiva da morte,
singulariza esta literatura que tematiza a morte, como aquela “experiência do
inexperienciável”, sugerida por Lélia Parreira Duarte, na qual a convergência
paradoxal da criação se estabelece na fronteira do nada e do tudo.
63
Assim sendo, a narrativa de Fazes-me Falta, como um jogo de espelhos,
através de sua inversão, reporta-se ao sentido encontrado nos textos construídos
pela memória de cada narrador, refletindo em suas diferenças e oposições espaciais
a imagem de um relacionamento que se erigiu pela falta e que a morte “descobre”
para depois redimensionar.
A Voz Feminina
Arrancada da vida, paradoxalmente por outra vida que se instala em um
espaço equivocado — “Morri em eco, desdobrada. Morri com um sem-abrigo perdido
no caminho para o meu útero, morri porque meu corpo decidiu gerar uma nova vida
e se enganou” (PEDROSA, 2003:15) — a voz feminina inicia seu relato, procurando
ancorar-se e inquirir, ao mesmo tempo, a figura de Deus “Deus procura primeiro os
que sofrem antes do conhecimento específico da dor, talvez porque os outros sabem
demasiado para poderem ser salvos (...) Deus não sabia nada do Universo quando o
criou” (p.9). Desamparada, “o meu corpo está lá em baixo, num caixão, contemplado
e lembrado e chorado pela última vez” (p.10), na dureza de seu novo estado, agora
despojado de possibilidades, que somente a vida poderia oferecer e sem a
companhia do amigo:
Ninguém mais vai estar à minha espera, não terei de me disfarçar de
desculpas, não voltarei a iludir ou desiludir ninguém. Não voltarei a morrer no
corpo do único homem que me abriu no corpo a passagem secreta para a
morte. Não voltarei à desilusão do renascimento. Sobretudo, não voltarei a
desiludir-te a ti, o descrente que me ensinou a crer melhor, o meu pequeno e
velho Deus de algibeira, o meu amigo. (PEDROSA, 2003:10).
A solidão da morte, a angústia da voz que não pode ser mais ouvida é a
alavanca para a escrita memorialista, que parte, assim, de uma origem, que parece
“assombrar”, segundo César Guimarães, este gênero de texto:
Pensemos... nos textos para os quais a origem, embora fundada pela escrita, é
remetida ao exterior do gesto que a produz — em virtude de um recalcamento,
64
diríamos — e transformada em marco inicial, ponto zero de onde parte todo
sentido. (GUIMARÃES, 1977:19).
A memória, ainda segundo o autor, “procura fixar-se em alguma cicatriz,
corte, descontinuidade ilusória capaz de demarcar, ainda que fugazmente, o recuo
incessante da origem” (GUIMARÃES, 1977:21). Deste modo, o apelo da
protagonista dirigido a Deus -“...peço-Lhe que não me empurre tão depressa para
esse lugar iluminado que é a Sua Carne, peço-Lhe que me deixe matar saudades
desse mundo que deixei tão de repente. Matar saudades de ti” (PEDROSA,
2003:10) - é o esforço da memória para evitar o esquecimento a que o sujeito se
expõe na continuidade do tempo e que a escrita anseia resistir, procurando
aproximar o vivido e o lembrado.
O instante da ruptura, fronteira entre a vida e eternidade, para a protagonista,
aproxima-se da trajetória de descida ao Hades, onde, segundo o mito, era
necessário beber das duas fontes: Lette (esquecimento) e Mnemosyne (memória).
Mesmo separando a diferença entre o mito e a experiência referidos por ela, o
movimento que relaciona memória e esquecimento e a própria eternidade, marca
significativamente estas oposições e pode ser percebido em seu relato:
...e começar a girar um tempo que me pareceu infinito por dentro de uma rosa
de luz branca. As ondas de luz dessa rosa em espiral explicavam-me tudo o
que eu não sabia sobre a minha morte, e muito do que eu esquecera sobre a
minha vida. Coisas simples, como essa criança que eu gerava numa parte
inviável do meu corpo, no lugar cego e sábio da inconsciência. (PEDROSA,
2003:16).
O mergulho na luz traria a explicação sobre a morte da protagonista e a
recuperação daquilo que ela esquecera sobre a própria vida; assinala também o
momento em que será possível, então, encontrar o espaço do qual narrará: “neste
noante à margem do teu tempo e da minha eternidade, o meu olhar sem órbitas
move-se por ampliações máximas de pormenores mínimos” (p.16). Um “outro olhar”,
deste “lugar”, possibilita à protagonista “redescobrir” o amigo em seu também novo
65
estado, sujeito à perda repentina que lhe “descobre” as fragilidades “Deixaste a luz
da casa de banho acesa, as portas do roupeiro abertas e umas calças de bombazina
vermelho-escuras enrodilhadas ao lado da cama. Nem pareces tu”. (PEDROSA,
2003:16).
É neste atordoamento, desarmado pela contingência do acontecido e depois
no “reencontro” do enterro: “Nunca pensei ver-te de meias desemparelhadas — uma
cinzenta, a outra preta. Quando cruzaste as pernas e erguestes as costas com um
suspiro, deitando a cabeça para trás, apercebi-me desse pormenor e só então me
comovi” (p.21), que o amigo, em descoberto desalento, desapossado da antiga
postura que suscitava o enigma “Passei a vida inteira a querer interpretar-te” (p.21),
é contemplado pela protagonista morta no velório: “Pai Nosso, deixa-me olhar para
ele. Deixa que os meus olhos mortos subam na luz das velas, devagar, para olhar
para ele” (p.21).
Sob esta nova ótica, ela buscará na memória os acontecimentos que
“ordenam” uma história, onde se cruzam as lembranças, as expectativas e as
possíveis respostas que ela quer alcançar.
A memória é um instrumento de registro muito mais complicado e confuso do
que a natureza, os instrumentos feitos pelo homem ou os registros históricos.
Sua complexidade e confusão surgem do fato de que, ao invés de uma ordem
serial uniforme, as relações da memória exibem uma “ordem” de eventos
“dinâmica, não uniforme”. As coisas lembradas são fundidas e confundidas
com as coisas temidas e com aquelas que se tem esperança que aconteçam.
(MEYERHOFF, 1976:20).
As associações entre estes eventos estariam assim sujeitas a uma ordem
subjetiva, interna, independente dos acontecimentos exteriores, que obedecem a
uma seqüência temporal uniforme. Ambos são determinados por uma causalidade,
mas, segundo Bergson, estas conexões causais no mundo interior têm uma
qualidade de “interpretação dinâmica”, determinando um tempo “ordenado” pelo eu.
66
Para recordar-se do amigo e esquecer-se do cheiro do medo que
experimenta, entre outros cheiros no caixão “Aos vivos, incomoda-os o cheiro dos
mortos. Por isso o sufocam em flores, incenso, velas, tudo o que possam manter
esse cheiro longe do corpo concreto, ainda carne, ainda quente” (PEDROSA,
2003:21), a voz feminina evoca, então, as lembranças olfativas que possam lhe
assegurar um “possível” elo com o amigo e o mundo dos sentidos que já não lhe
pertence “Concentro-me em ti, no cheiro da praia, algas e rochas, no cheiro do mar
onde tantas vezes mergulhávamos juntos, nos cheiros da vida que me sabem deste
névoa maciça, da piedade irremediável de mim” (p.21).
Walter Benjamin, em sua reflexão sobre Proust, alude a esta relação entre os
odores e a memória:
Em vista da tenacidade especial com que as reminiscências são preservadas
no olfato (o que não é de nenhum modo idêntico à preservação dos odores na
reminiscência) não podemos considerar acidental a sensibilidade de Proust aos
odores. (BENJAMIN, 1994:48).
Esta aproximação “sinestésica” provoca o irrompimento do que significava o
amigo em vida:
Passei a vida inteira a querer interpretar-te — oh! delicioso desperdício! — e
nem sequer era por amor. Quero dizer, não era por causa daquela coisa que
põe as pessoas numa exaltação de posse e de sexo. Através de ti eu existia
antes de ter nascido, no vocabulário áspero e secreto de uma guerra que já
não me pertenceu — moita carrasco, gatilhos olvidados, o tanas. (PEDROSA,
2003:21-22).
A crença da protagonista em uma existência anterior à memória de um tempo
transcorrido poderia ser entendida como um anseio do “eu” na organização desta
memória e no próprio processo de identidade: o “’eu verdadeiro’ que Proust
recaptura da caótica multiplicidade da memória e impressões dos sentidos, é o eu
que organiza ativa e criadoramente a multiplicidade em alguma espécie de unidade
e estrutura” (MEYERHOFF, 1976:44).
67
Para compor, dentro desta estrutura memorialística, a imagem daquele que
deixou em vida, era preciso mergulhar dentro de si mesma, conhecer os motivos que
justificavam aquele relacionamento onde, sem ter nunca experimentado “isso a que
chamam a vertigem do corpo” (PEDROSA, 2003:22), havia sido possível. “Sem
dormir contigo, aprendi de ti as vitórias e misérias de um homem, o rigor turbulento
do prazer, o pavor de falhar, a relatividade das entregas como regra de entrega
absoluta.” (p.22).
O amigo descrito na narrativa emerge da mistura das recordações: “Eu era
sempre o que parecia, tu ias sendo tudo o que parecias” (p.22); da lacuna deixada
por ele, personificada nas ausências vividas por ela: “Falta-me alguém que não és
tu, falta-me o lugar da minha morte...” (p.23); do receio de que o amigo tivesse razão
em relação às “descrenças” que ele tanto apregoava: “E se o céu for o desencanto
em que crês? E se nossa amizade mal vivida não couber na perfeição do céu?
Deixa-me ser apenas a beleza magoada da tua vida, enquanto a vida for tua” (p.24).
O desejo de dizer-se é ainda maior quando a memória vai delineando o amigo
- “Há tantas coisas que nunca te disse” (p.27) - e se estende às palavras que
procura para ser entendida: “Por isso te procuro com as palavras da vida, as
palavras com que tu me reconheceste e amaste” (p.23), do espaço encontrado por
ela, “...neste noante onde flutuo, o meu espírito voraz de insignificâncias deleita-se
nas rememorações de frases destas, as frases que nunca foi capaz de entender”
(p.91), fora assim da esfera do tempo, em que todas as situações se mesclam,
surgidas da memória e do desejo de entender-se e entender o amigo:
(...) a reconstrução potencial do eu através da memória manifesta um aspecto
da ausência do tempo. Um padrão unificado, continuador da vida é transmitido
através do relato literário em que a multiplicidade de elementos diferentes que
compõem o eu — memórias, percepções e expectativas, ou passado, presente
e futuro — podem tornar-se co-presentes. (MEYERHOFF, 1976:50).
68
Portanto, dos diferentes “estados” em relação a esta amizade, expressos
pelos questionamentos e afirmações aludidos acima pela protagonista, tem-se a
impressão da busca por um sentido que as recordações trariam para compor a
história que ela considera inacabada e, conseqüentemente, se delineia como
enigma.
É possível perceber nestas interrogações, atravessadas pelas
impossibilidades, originadas pelo seu afastamento involuntário ou pelas
contingências do relacionamento, uma transferência, para o amigo, de suas
expectativas e frustrações. Daí o surgimento das “lacunas” que se tornariam mais
visíveis, entre elas, o próprio sexo que não aconteceu, em detrimento de uma
amizade que não deveria, segundo ela, atravessar “o rio traiçoeiro do sexo”,
proximidade carnal que passa para as “amigas” que arranjou para o protagonista e
“efetivam”, a uma distância protegida, a consumação de um desejo que parece
negar.
O amigo convergeria uma possível mistura de papéis: ora o pai protetor, ora o
“filho velho” que escolheu, ora o amigo próximo que a compreende e ao mesmo
tempo lhe faz oposição. Poderia se supor uma busca constante da protagonista,
motivada também pela tensão evidente entre a intimidade e o afastamento que se
tornariam cúmplices desta relação?
As datas aludidas pela voz feminina podem ser vistas não apenas como
registros de uma memória cronológica mas, principalmente, como uma referência ao
tempo marcado por um “fato” que possibilitasse explicar a amizade que os unia,
mesmo que fossem nas diferenças. “Na passagem do ano de 1990”, quando
jogavam mah-jong, ele interrompe o jogo para pedir que, caso ele não estivesse em
2000, ela jogasse por ele e ganhasse:
69
Nenhum de nós pôs a hipótese contrária — tu tinhas então 53 anos, eu apenas
28. Eu pensava que queria mudar o mundo, eu pensava que tu apenas queria
mudar de cenário. Eu pensava que pensava — por isso descobria tão pouco do
impossível de nós. (PEDROSA, 2003:27)
A esta suposta dicotomia se estendia também a inversão dos papéis na
diferença de idades: ela mais nova e professora dele, um homem maduro, fugindo
do lugar-comum, na diferença que ela quer transformar em encontro:
Fui tua professora na Universidade, não consegui servir-te de Mestre, mas
encontrei em ti esse privilégio maior do ensino: uma alma capaz de acrescentar
cor à tela que lhe apresentamos (PEDROSA, 2003:28).
A relação entre o ato de ensinar e aprender é questionada pela protagonista -
“O que é que te ensinei afinal? Tudo o que havia de original na minha tese de
doutoramento foi escrito e pensado por ti (...) suguei-te, copiei os teus trabalhos
sobre os paradoxos do ideário feminista...” (PEDROSA, 2003:28) -, que se sente
culpada por não ter agradecido ao amigo a “contribuição” que ela não havia
reconhecido em vida “Se ao menos tivesse dito ‘obrigada’(...) deixa-me dizer-lhe
esse obrigada que tanta falta me faz.” (p.28-29).
O “intercâmbio” de conhecimentos, no ambiente acadêmico, é revisto sob o
olhar da culpa e parece ironizar o processo que sustenta esta troca, principalmente
quando ela confessa a sua convicção forçada de que fora mentora das idéias que
ele apenas devolveu “ligeiramente ampliadas”, desconhecendo a “anônima
criatividade” que lhe proporcionou os louvores conquistados, no pretexto de que era
a escolhida por Deus.
As lembranças da protagonista são sempre intermediadas pela própria
surpresa consigo mesma -“Quem me dera parar de te ver” (PEDROSA, 2003:32) -,
confissão da vontade de esquecer e, paradoxalmente, de trazer à memória o amigo
que, perturbado pela falta, passou a ouvir as músicas que ela gostava. “Passas
horas de manhã na cama a ouvir as canções que eu amava e tu desdenhavas —
70
‘menina, isso não é música, é um passatempo de pobres de espírito!’” (p.32).
Músicas que trazem de volta o eco da canção do amigo Pascoal, como um refrão da
ausência sentida a que ambos estão condenados, sentenciados pela memória do
que foi e o desejo do não vivido:
Quero a luz escura dos sonhos contagiados/As sobras das almas que
inventámos/O coração ardido dos antigos namorados/As histórias que afinal
não contámos. (PEDROSA, 2003:32).
Do outro lado, margem oposta da vida, a voz feminina volta a lembrar-se do
que sempre lhe inquietava - “Queria desvendar o Grande Mistério: como vive ele,
longe de mim? Descubro-te a viver como eu vivia...” (PEDROSA, 2003:33), para
depois deparar-se com o medo de ser esquecida: “Tu és o único que não pode me
esquecer. Esquecemos alguma vez uma parte do que somos? Esquecemos apenas
o que podemos isolar na lembrança...” (p.37).
Desejo que revela o outro como projeção de si, do que deixou, do outro como
contraparte que se confunde na memória. Por isto, o medo de ser esquecida, de
“esquecer-se” ou de perder as lembranças que escolheu como significativas para a
história de si mesma.
Sobre esta reação seletiva da memória, de acordo com Bergson, no capítulo
“Da sobrevivência das imagens”, em Matéria e Memória, a nossa percepção já é
memória, a consciência “ilumina” o passado, mas temos dificuldade: “Em conceber
lembranças que se conservariam na sombra. Nossa repugnância em admitir a
sobrevivência integral do passado deve-se portanto à própria orientação de nossa
vida psicológica.” (BERGSON, 1999:176).
Portanto, quando a protagonista elege o que quer trazer para o presente da
lembrança, podemos entender como expressão deste “estado de falta” e anseio de
“conservar” apenas o que lhe pode mitigar a angústia da perda:
71
Trago-te no riso enterrado, nas lágrimas que me lançaste, escadas de incêndio
para a sabedoria da felicidade, na pele escaldada pelo brilho da noite, depois
do mar. Falámos demasiado para que eu recorde do que falávamos, vivemos
demasiadas vidas para que eu as possa separar. (PEDROSA, 2003:37).
E é a memória que ela referencia para declarar-se ao amigo que ficou em
vida:
A memória tende a desfibrar-se, víscera velha, nesta condição a que chamarei
apenas imaterial para não te assustar. Vejo tudo, continuadamente, o
espectáculo da vida interfere com os sentidos da minha deambulação ao
passado. Mas o que é o passado? Só para os vivos os mortos têm passado —
o pior da morte é este presente obrigatório, este noante suspenso. (PEDROSA,
2003:37).
Neste roteiro empreendido pela memória da protagonista, assim como no
processo de seleção das lembranças aludidos por Bergson, poderíamos analisar as
oscilações contidas neste trabalho de rememoração, no qual a protagonista, em uma
visão de si mesma, parece fundir-se ao amigo para dar continuidade a uma história
pretendida e, em outros momentos, alterna o medo de ser esquecida, ou até
substituída, com a compreensão de seu “novo estado” e o entendimento ou crítica
às situações compartilhadas com o protagonista.
Assim, quando se depara com “presente obrigatório”, debruçada sobre o
passado que indaga, esta voz feminina confessa ao amigo o desejo de saber de que
“material era feito” seu amor por ela, do mesmo modo, como quando criança
alfinetou os bichos da seda para saber como eram feitos. Próxima desta “crueldade
infantil”, a revelação: “Tomei a amizade como uma versão adulta e vacinada do
amor, o que significa que transferi para a casa dela a artilharia pesada do meu
batalhão de afectos” (PEDROSA, 2003:39).
A crença de que isso pudesse livrá-la “das armadilhas do desejo” e da “via
sacra da posse e do sacrifício” parece contrastar com a declaração posterior:
“Quanta candura — Uma vida inteira desperdiçada em candura — e nem sequer tive
tempo para mudar o mundo” (p.39). Observam-se, deste modo, as defesas criadas
72
pela protagonista como substituição do afeto que não ousou assumir ou que não se
sentiu encorajada o bastante para depois concluir que as “Grandes Causas” que
alimentavam sua vida não puderam ou não foram suficientes para mudança do
mundo pela qual ansiava, em um “desajuste” que o tempo não poderia devolver.
À sombra desta penosa hesitação, o mistério do não-vivido percorre toda a
narrativa da voz feminina, angústia de “certezas” que se ancoraram na razão e,
quando lembradas, podem ser revistas, destruídas da “armadura” que a protegia das
tendências de uma época ou de sua geração, na procura da outra parte: “Não sei
pensar sem ti (...) não sabes amar sem mim” (PEDROSA, 2003:40), anseio de
impossível entrega:
Nós éramos um do outro. Coincidimos e rejeitámos a coincidência, com a
petulância típica dos pobres, confinados à prisão do seu sofrimento. Nós
éramos um do outro e não descobrimos, preferimos respeitar os protocolos da
nossa era, dar prioridade à voz obrigatória do corpo. Nós éramos um do outro
de outra maneira — de uma maneira escura, espessa, transcendente.
(PEDROSA, 2003:40).
Para uma alma nostálgica - “Sempre fui nostálgica, sobretudo do que não
chegou a acontecer. Dos deslumbramentos a haver” (PEDROSA, 2003:51) -, as
lembranças, como em um jogo proposto pela memória, vão surgindo à medida que
os compartimentos desta memória vão se abrindo, elucidando para a protagonista
as possíveis respostas, ao mesmo tempo em que trazem as sensações
contraditórias que ficam no limiar de um passado irresgatável e um presente ainda
em curso pela recordação dos acontecimentos “Concentra-te na felicidade, para que
eu possa existir nela ainda contigo” (p.51).
No pedido ao amigo, ou no lúcido desabafo - “Não consigo soltar-me desse
futuro que não tive, feito das recordações do passado imaginado” (p.99) -, é possível
entrever os mecanismos utilizados pela memória: “As coisas lembradas são fundidas
73
e confundidas com as coisas temidas e com aquelas que se tem esperança de que
aconteçam.” (MEYERHOFF, 1976:20).
A voz feminina, vagueando por estes tortuosos caminhos que a memória
elegeu, reveza os pontos de vista sobre o mundo que eles “viam juntos”. Esta
contraposição das idéias expostas em seu relato confere autenticidade à relação,
representações de diferenças que, como linhas paralelas, se juntam em alguns
trechos do percurso e, nesta proximidade, conseguem manter, mesmo assim, a
distância que viabiliza a compreensão dos motivos que atraíram os protagonistas
para aquele relacionamento.
Partindo da certeza de que as palavras “Enganam e consolam (...) Como a
seda” (PEDROSA, 2003:53), em uma clara alusão à preferência pelos lenços de
seda do amigo e às suas palavras oportunistas testemunhadas por ela, que, ao
contrário, andava “à caça de palavras resplandecentes”, resultantes de seu modo
empenhado de ver a vida, a protagonista demonstra também através de outras
passagens, as coincidências ou discordâncias que poderiam instigar o diálogo: “Nós
nunca dissemos: Ah, no nosso tempo. Ah, os jovens. Nós nunca nos deixamos
mastigar pela versão retocada dessa ideologia velhíssima que confunde
transformação com degenerescência” (p.52), reafirmando o valor das palavras que,
neste trecho, se constitui em uma ponte entre as idéias que as idades poderiam
desmentir. Em outro momento, ela faz referência ao desentendimento
desencadeado pela contradição observada no amigo: “Tu, que aparentemente nada
fazias, defendias com ferocidade o liberalismo...” (p.60).
Ao amigo atribui o afastamento das pessoas: “Só agora vejo que afastavas
decididamente essas pessoas, movido pelo pobre e horrível e tocante abutre do
ciúme” (p.72). As palavras dele impingiram-lhe desconfianças em relação às
74
amizades -“Acusaste-me sempre e só de excesso de inocência” (p.72) - para depois
encontrá-lo abraçado “no Lux” com a amiga com quem ela cortara relações por
causa dele:
Dava-me às pessoas, nessa época; dava-me o melhor que podia, por isso
reagia tão mal aos sinais de desconfiança, malevolência e suspeição. Dei-me a
outras pessoas por causa de ti (...) Dei-me a tudo o que tu amavas e fiz de
conta que era inocente... Dou-te agora também a minha morte, para que
finalmente fiques do meu lado. (PEDROSA, 2003:74).
De forma inversa, em uma paradoxal generosidade, a protagonista preferiu
compartilhar dos amores do amigo, em uma tresloucada proximidade, na possível
busca da “intimidade” com o universo masculino que ele representava:
Nunca te desejei — mas gostava de imaginar o prazer do teu corpo noutros
corpos, gostava de te oferecer paixões, de te apresentar pessoas que te
transformassem num rapaz eufórico, obsessivo — mais parecido comigo
(PEDROSA, 2003:84).
Os depoimentos acima expressos pontuam a posição da narradora e projetam
uma das faces do protagonista. O ressentimento que se pode depreender e suas
palavras não apagariam o desprendimento de seus oferecimentos ao amigo, mesmo
podendo funcionar como um disfarce que se abre para duas suposições: a primeira
seria como uma atitude de voyeurismo e a segunda uma racionalidade “filtrada” pelo
desejo que mesmo sendo negado, pode existir.
Palavras escolhidas por ele atestavam as diferenças entre os gêneros: “As
mulheres demoram mais a apaixonar-se — mas também resistem mais ao processo
de desenamoramento” (PEDROSA, 2003:85) e contra as quais ela se insurgia: “As
mulheres trabalham para tudo, até para o amor. Exigem uma infinita construção de
rituais, conversas, uma certa familiaridade com o mistério. São muito menos
tolerantes com o imprevisível quotidiano e de extrema tranqüilidade face às grandes
desolações” (p.85). O confronto destes pontos de vista colocaria em destaque uma
das questões inquietantes da narrativa: as diferenças existentes entre um homem e
uma mulher e os “mecanismos” que desnudam a construção ideológica dos gêneros
75
que, muitas vezes, se esquecem de que, quando o tema é o amor e o sofrimento se
aproxima, somos todos indefesos.
O mesmo homem que é visto pela narradora como aquele que daria um
tratamento fugaz às suas paixões, comparadas ao nascimento dos cactos e “em
cactos se transformavam, passada a miragem” (PEDROSA, 2003:85), quando,
tomado de súbita consciência pela perda do amor que não desfrutou, traduz para si
mesmo as diferenças entre o sexo e o amor: “o amor desaba sobre nós já feito, não
o controlamos — por isso o sistema se cansa tanto a substituí-lo pelo sexo, coisa
gráfica, aparentemente moldável” (p.118), para depois entregar-se, sem as armas
que lhe condicionaram à cartilha do gênero: “Eu, educado no preceito alimentar de
que os rapazes comem as raparigas (...) Queria entregar-me nas tuas mãos” (p.118).
A rememoração da voz feminina, no decurso da narrativa, é um contínuo
esforço em direção à história que a memória quer organizar. Segundo Lacan, sobre
este papel dos vazios, “A rememoração (...) não preenche os buracos da memória,
mas sim revela os pontos decisivos da história do sujeito” (LACAN, apud
GUIMARÃES, 1997:16). Quando a protagonista enunciou que “Há factos
insignificantes que não esquecemos” (PEDROSA, 2003:91), há uma alusão que não
se pode afirmar verdadeira em relação à memória, mas, sim, de que aqueles fatos
deflagraram, no curso da rememoração, o surgimento de indagações que
“aparentemente” estavam “dormindo”.
A esta “insignificância”, mencionada por ela, seguiu-se a lembrança de um
casal que ela julgava viver perfeitamente em uma radiação contaminante, “eu era
muito nova, e aquele casal era para mim a paisagem da felicidade” (p.91), até ser
surpreendida pela pergunta de um colega sobre uma suposta homossexualidade de
ambos e um casamento de fachada.
76
A este episódio, no caleidoscópio da memória, no “aparente esquecimento”
da frase do colega, o eco no tempo “...neste noante, onde flutuo, o meu espírito
voraz de insignificâncias deleita-se na rememoração de frases destas, as frases que
nunca fui capaz de entender” (PEDROSA, 2003:91), na angústia do entendimento
de impotente memória “Tanto que aspirei à transcendência — para quê, se nem a
memória da minha voz posso encostar ao ouvido daqueles que amei?” (p.105) ou na
descrição do processo seletivo da mesma:
A maioria das pessoas selecciona as recordações para usar como bóias: aqui
fui feliz, é aqui que vou ficar (...) Ou então: aqui fui infeliz, e daqui não quero
passar. Distinguem-se assim, para uso quotidiano, optimistas e pessimistas —
recordadores profissionais (PEDROSA, 2003:142)
Para a voz feminina, “Só na enumeração das coisas mortas não se morre”
(PEDROSA, 2003:154): o inventário do que não existiu ou só existiu no campo das
possibilidades, para ela, não poderia morrer: “A nossa morta amizade (...) Sobrou
dela tudo que não dissemos. Tudo o que nos afastou, o tempo em que já não
existíamos” (p.154). Assim, a memória não se reduz apenas a um passado que
recolheu fatos vividos pela protagonista, mas percorre caminhos diversificados na
trajetória do tempo.
Quando a narradora-morta, refletindo sobre a pena de si mesma, conclui que
“A pena faz parte do amor” (p.182), ela busca uma comparação com um cravo
“vermelho, engelhado, esquecido” (p.182), para definir que “Em cada cravo seco se
concentra o passado e o futuro de todos os cravos” (p.182). Em Deleuze, através do
conceito de “objeto virtual”, o “cravo” poderia ser a representação da memória, num
gesto simultâneo em direção ao passado e presente.
Ali onde o passado se quer presente e o presente é sempre passado, onde o
futuro se introduz como uma determinante, como uma lei do que será lembrado
(é só no revivido que o vivido se deixa vislumbrar) — ali, nesse absurdo lugar
de um tempo sempre presente que se esvai. (CASTELLO BRANCO, 1994:35)
77
Esta referência aos cravos, considerando-se este conceito de “objeto virtual”,
elaborado por Deleuze, remeteria também à memória coletiva da história
contemporânea portuguesa, marcada pela Revolução dos Cravos, flores que
enfeitaram os fuzis militares e se tornaram símbolos da revolução pacífica de
Portugal. Os sentidos do cravo foram definidos por Maria Velho da Costa
5
, em, uma
analogia com a revolução e a escrita. Para Vítor Silva Tavares, “Os cravos de 25 de
Abril foram muito belos cravos líricos. Trata-se agora de semear todos os dias muito
belos cravos revolucionários.” (TAVARES, Apud Rosignoli, 1979:69). Esta
exortação à continuidade das idéias semeadas pela revolução ressoaria no discurso
da narradora que, na metáfora do “cravo seco”, poderia enxergar o significado
latente que o acontecimento trouxe para a história de Portugal e para os novos
rumos de sua sociedade.
Memória e tempo estão interligados na narrativa memorialística; o ato de
lembrar pressupõe uma perspectiva no tempo passado, apesar da impossibilidade
de volta a este momento registrado pela memória: “Não posso regressar ao escuro
do tempo, ao escuro das escadas dele, em bicos dos pés”. (PEDROSA, 2003:188).
Sentenciada por si mesma, a protagonista depara-se com a própria dualidade da
memória: o desejo de lembrar e apagar (se fosse possível) o tempo, aquilo que não
gostaria que fizesse parte da história que a memória quer narrar.
No enfrentamento das circunstâncias que a levaram à morte, a protagonista
reencontra-se com as fragilidades que a transportaram para além da vida e do que
julgava ser possível controlar: seu corpo carregava uma vida que se instalou
equivocadamente no vão de sua desatenção com o corpo: “Se eu não andasse tão
obcecada com aquilo a que tu chamavas a vida pública, talvez me tivesse

5
“flor sublinhada, macha, única flor de serrilha e hirsuta; e, cravo especiaria flor tão compacta de mínima,
pequeno sol negro e arisco sobre a palma da mão que tempera e costura o olho, a mão portuguesa, finória
tonta,mana”(COSTA,MariaVelhoda.ApudRosignoli,1979:70).
78
apercebido desse ser novo que nascia num sítio errado de mim” (p.202); “Engravidei
pragmaticamente, e nem dei por isso” (p.203); “De modo que não liguei àquelas
guinadas súbitas que me mordiam as entranhas como uma alcatéia” (p.203).
Desconhecendo os sinais do corpo, nas hemorragias que prenunciavam a
morte, e ignorando o pedido de outro amigo que queria vê-la, e insistiu no
pressentimento de algo que pudesse ocorrer com a amiga que já não via há seis
meses, a protagonista preferiu ceder aos apelos da política para fazer as
conferências sobre a situação das mulheres portuguesas, nas Câmaras Municipais
que não pertenciam ao seu partido e significavam um ponto de honra para si.
O caráter irônico da situação acima referido, que se apresenta como uma
“armadilha” para a protagonista e a dupla mensagem que se pode retirar deste
artifício retórico, seriam, segundo Lélia Parreira Duarte, elementos indispensáveis
“para perceber a relação oblíqua que se estabelece, no texto, entre o que nele se diz
e o que se quer fazer entender” (DUARTE, 2006:160). Dois pontos na história da
morte da protagonista poderiam então ser interrogados: por quê a morte decorrente
de uma gravidez? Por que ela esquece de si como mulher quando passa da vida
privada para a pública?
É importante lembrar que a carreira política da protagonista encontrava-se em
um momento crítico, seus projetos estavam fadados a serem esquecidos pelo seu
grupo parlamentar e aquele mês de março era imprescindível para ela fazer suas
conferências, já que políticos e jornalistas se interessavam pelas mulheres
justamente naquele mês. Na narrativa não se alude ao 8 de Março — Dia
Internacional da Mulher — o que se poderia supor como esquecimento soa como
outra ironia: apenas no mês de março existia esse interesse? Apenas pela
proximidade da data a ser lembrada, pretexto que de fato não é levado a sério? A
79
morte da protagonista, dentro desta cronologia, seria apenas uma coincidência? Ou
marcaria no texto a luta por uma emancipação feminina que ainda não foi totalmente
conquistada, “abortando” vidas/idéias que não conseguem realmente se
estabelecer? Na “desajustada desatenção” com o corpo, referida pela protagonista,
também se poderia fazer a leitura da omissão e da responsabilidade e domínio que
não deveriam ser esquecidos.
Da gravidez ectópica que lhe consumiu a vida vieram as rememorações do
encontro com o homem que “Plantara-me a morte no lado errado do corpo”
(PEDROSA, 2003:209). Quando se conheceram, “teria eu vinte e ele vinte e oito
anos” (p.204), encontraram-se no Frágil, um bar, em meio a uma multidão de seres
dançantes e os dois eram a exceção que o silêncio uniu: “Os meus olhos ficaram
presos à boca dele. Lábios grandes, polpudos, quase obscenos de imobilidade”
(p.204-205). Voltou depois ao Frágil e acordou em sua cama, sem ainda ter-lhe dito
o nome, “Quando não o encontrava sentava-me à porta dele...” (p.205). Da surpresa
inicial passou a evitá-la, principalmente quando ela o apresentou aos seus amigos.
“Chegávamos sempre a um ponto em que eu queria entrar no seu quotidiano e ele
fugia (...). Abandonei-o para sempre umas quatro ou cinco vezes. Não sei como é
que ele fazia para tropeçar em mim sempre que as minhas relações normais
estavam a entrar na normalidade absoluta, ou seja, na morte” (p.206).
Descobriu depois que ele estava “a derramar o seu sorriso envenenado sobre
os andaimes da alma de Florbela” (p.206). Conhecia Florbela, que era secretária do
seu departamento, vivia a convidá-la para acompanhá-la em saladas de frutas (sinal
de muita angústia ou paixão) e teve que ouvi-la sobre “os malabarismos do amante”
que considerava seu. Resolveu abandoná-lo quando Florbela a convidou para
conhecê-lo: “Nunca consegui encontrar o campo da travagem da tristeza. Morri
80
muito para não morrer (...) Preciso de trabalhar as tintas das minhas mortais
tristezas para atingir uma melancolia abstracta.” (p.208).
Após quatro anos, poucos meses antes de morrer, reencontrou-o e, não
obstante, a instintiva resistência cedeu. “Mas queria voltar a estar com ele, entregar-
me e vomitá-lo numa vingança florbélica. Ou seja, queria nadar no azul desse
mundo paralelo de que só ele parecia ter a chave.” (PEDROSA, 2003:209) Deste
encontro não ficou só, ou fatidicamente foi lançada ao mundo da ausência.
Os encontros e desencontros do relacionamento que deu origem à morte da
mulher de Fazes-me Falta e os ingredientes que formam a história repetida de
outros amores parecem encerrarem,em sua “banalidade”, o contraponto necessário
à verdadeira história de amor que a narradora quer contar. O encontro de corpos e a
paixão que acontece apenas para a mulher, assim como o descompromisso e a
traição sem culpa do homem, tipificam este relacionamento, contraste ardiloso, que
aponta para os relacionamentos comuns na atualidade, mas não isentam de
desfechos inesperados. Em um paralelo entre as duas histórias, podemos sublinhar
o vulto da incerteza e imprevisibilidade dessas relações.
Ausência que vira lamento, na repetida invocação pelo amigo: “a invocação é
já a consciência da perda” (LOPES, 2003:89); à distância, no noante, o
desdobramento deste amigo em pai se torna mais visível. “Substituí o Príncipe
Encantado pelo Amigo Maravilhoso, que eras tu. Podias ser meu pai, eras o meu
discípulo.” (PEDROSA, 2003:39). A ausência do pai, que morrera quando ela era
ainda adolescente, se mistura com a do amigo: “Não devolvi o último beijo que me
deste, o último beijo que o meu pai me pousa na testa” (p.83), confirmando para si
mesma o desdobramento do sentimento que nutre pelo amigo, ressonância do pai
81
que também já não existe: “Tu foste talvez o pai que eu escolhi, o meu amor em cruz
— Pai, Filho, Espírito Santo” (p.225).
Segundo Maria Lúcia Wilthshire de Oliveira:
A autora figura-se de morta para manifestar sua gratidão ao pai, dizendo-lhe as
palavras que não dissera em vida. Invertendo o axioma de Benjamin, ela
transfere a sabedoria para o amigo/pai e se penitencia da sua presunção
juvenil... (WILTHSHIRE, Abralic)
.
O pai a que ela reverencia poderia significar a proteção e a segurança que
almejou e continuou almejando na figura do amigo, ou o pai seria também a
metáfora da opressão? De todas as opressões? Da opressão das mulheres
portuguesas, em uma sociedade que ainda guarda a essência do patriarcado; das
sobras do Salazarismo; da ânsia de libertação do “jugo” de Deus, referenciado
várias vezes na narrativa? “Não serão Deus todos os pais? Os tirânicos, os
indiferentes, os obsessivos, arrastando-nos através de cordas de sangue, culpa,
remorso. Um Deus que matamos quando lhe cumprimos os sonhos” (PEDROSA,
2003:225).
Vagando no “noante” entre o passado vivido, o presente se desenrola da
perspectiva da observação e se encaminha para um futuro que antecipa para o
amigo: “Mas a alteração das curvas do tempo fará com que os teus dedos morram
entre as mãos da Teresa...” (p.226). A amiga que ele desdenhou o consola: “A
Teresa tem agora aquilo que te falta e é o melhor de mim, o que deixei de ser por
tanto querer fazer” (p.219). Esta expectativa da protagonista poderia ser uma
“compensação” que traria sentido para a história deles, como se fosse necessário
preencher o espaço que ficou, para só depois recebê-lo livre dos acontecimentos
que “mancharam” a trajetória dos dois: “Sei que estarei aqui, meu querido, como
uma réstia de espessura para te servir de Deus, para te dizer que vamos poder
recomeçar do zero, passar a limpo os cadernos esborratados da nossa amizade”
82
(p.226). Esvazia-se também do ciúme “a ave do diabo” que ela julgaria como uma
interposição entre Deus e a nossa fragilidade “A visão dessa curva do Tempo fez
voar para longe o pássaro do ciúme: Fica-me um frio desse desertar de asas —
como se, levando-me o ciúme, me levasse também um pedaço quente da carne que
eu já não tinha” (PEDROSA, 2003:226-227)
Assim, voltando da travessia que a memória lhe impôs como condição para a
elaboração da história que viveu, a voz feminina conclui: “Já não preciso de contar
histórias. Deixo cair todos os efeitos lustrosos e atinjo o próprio coração do amor,
essa tinta espessa que flutua sobre o tempo e transfigura tudo aquilo em que toca.”
(p.233) E ainda “O que importa não é o enredo, a forma, nem sequer a cor. O que
importa é a circulação conjunta de um corpo e de uma alma em torno do despojado
sedimento da sua verdade” (p.233).
...o que é peculiar ao gênero literário de memórias é que a reconquista do
vivido não é somente um trabalho de restauração, mas, sobretudo um esforço
de renovação (...) o homem observa os acontecimentos e as pessoas com a
inteligência e a sensibilidade que são dele, no momento em que escreve e não
aquelas que eram suas, nos momentos que procura arrancar do olvido. (MELO
FRANCO, 1979:58)
Rendida pela esperança, reconciliada com o amigo que não via há um ano
antes de morrer, “com suas reticências e vírgulas”: “Nunca escrevi um projecto de lei
sem pensar nas tuas reticências éticas. E nas vírgulas — a obsessão que tinhas
pelo rigor das vírgulas” (PEDROSA, 2003:233). A voz feminina reconcilia-se também
com as palavras: “O que agora vejo em absoluta claridade não são palavras — vejo
esse dia invelhecível em que começaremos de novo a viver uma história onde a
felicidade não seja um pretexto de martírio.” (p.233).
E por fim, a espera: “Estou à tua espera num sítio onde as palavras já não
magoam, não ferem, não sobram nem faltam. Esse sítio existe.” (p.235):
Nenhuma memória do passar é recuperável. Haverá sempre um desajuste —
entre o vivido e o que dele se pode contar — de onde decorrem tanto o
sentimento de perda irrecuperável como certa leveza da vertigem em que a
83
perda se ultrapassa a si própria: o que se perdeu, afinal, já era ficção. (LOPES,
2003:89)
A Voz Masculina
Impotente face à morte da amiga que já não via há quase um ano, no
desconcerto irremediável do tempo que não conseguiria recuperar, a voz masculina
reveste as palavras de ironia para descrevê-la em sua derradeira imagem: “Fizeste
uma morta bonita — mais bonita e serena que alguma vez foste, cachopa.
Compuseram-te a imagem. Disso vivem as figuras públicas, mesmo na morte. Viva a
imagem” (PEDROSA, 2003:12).
As palavras irônicas demonstrariam a indignação daquele que ficou,
ressentido da política que lhe roubara a amiga, retirando-lhe “o estilo” e sendo o
motivo de afastamento entre eles. As mesmas palavras registrariam a crítica ao
comprometimento com a “imagem”, reflexo de um sistema político que, na
contemporaneidade, tornou-se mais visível. Stuart Hall, em A identidade cultural na
Pós-Modernidade, aborda esta questão da identidade no mundo pós-moderno, onde
o sujeito fragmentado, se torna mais suscetível ao provisório:
...o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa,
essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel:
formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”
(HALL, 1987). (HALL, 2005:12-13).
A mesma política condecorou a amiga no funeral: “Querida — aquela
condecoração, vieram pregá-la ao teu corpo morto. Hienas. Dobrei-me sobre o
caixão para te beijar e arranquei-te do peito essa medalha de brilho fúnebre”
(PEDROSA, 2003:59), havia suspendido a medalha que ela iria receber pelo “labor
84
incessante em prol da Dignidade das Mulheres” (p.58), por causa de um projeto que
ela apresentara, propondo a perda da custódia dos filhos às mães tóxico-
-dependentes que se recusavam a tratar-se. Não haviam considerado a morte de um
bebê de nove meses que “morrera de fome e sede porque a mãe foi procurar droga
e nunca mais se lembrou dele” (PEDROSA, 2003:57). Aquela morte havia
perturbado a amiga, que lhe telefonara assombrada pelo choro da criança que
nunca vira, em madrugadas repetidas.
Ficou na memória do protagonista este último contato, ressonância da dor da
amiga, da qual ele se daria conta só depois “...aquela criança continuava a morrer
aos bocados dentro de ti. Precisavas de colo, leite e mel. Deixei-te a míngua, nessa
noite...” (PEDROSA, 2003:59). Arrependido de ter-se rendido a um posicionamento
que lhe furtara a companhia da amiga “A política decompôs-te o tom de voz: tornou-
se áspera e veloz, as gargalhadas curtas e esforçadas. Também por isso perdi o
gosto de te telefonar” (p.156).
Estes acontecimentos seriam lembrados posteriormente, mas acrescentados
pelo entendimento que os fatos insinuaram antes da morte da amiga e o
protagonista se vê, então, diante de um muro que construiu com atitude egoísta e
“enformada” nos preconceitos relativos à participação feminina na política,
esquecendo que o pedido de socorro não era da “política”, mas da mulher sensível,
a antiga companheira de ideais. A ambigüidade do comportamento masculino,
revelada na situação, questionaria a busca de uma nova identidade deste homem,
que ainda se vê atrelado a um modelo tradicional de patriarca do país, uma geração
nascida por volta dos quarenta, sob a influência das incoerências de uma guerra
colonial e à sombra do sebastianismo que lhes impingiu a ânsia de novas
conquistas.
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A política que se interpôs entre eles confronta este espaço
feminino/masculino, onde se pôde perceber o conflito entre gerações representativas
de realidades históricas diferentes. A voz do narrador-vivo, à sombra do
salazarismo, adverte a amiga, símbolo de resistência e luta por um país mais justo e
igualitário:
...o Estado é homem, e dos trastosos, para que te vais meter nisso?
Respondes-te-me que a liberdade é mulher. Como a Revolução. Ou a
Democracia. Ou a Igualdade. Poderia acrescentar: e a Inveja, e a Intriga, e a
Traição. Palavras, balões de colorir o vazio. (PEDROSA, 2003:156)
As vozes de Fazes-me Falta possibilitam um outro olhar sobre as relações de
poder na sociedade portuguesa contemporânea, percepção que a Literatura, assim
como outras artes, permite, segundo Edward Said, discernindo outras
possibilidades, além das já conhecidas historicamente e socialmente:
O papel do intelectual é, antes de mais nada, o de apresentar leituras
alternativas e perspectivas da história outras que aquelas oferecidas pelos
representantes da memória oficial e identidade nacional. (SAID, 2003:39)
As experiências e relações com a guerra de Angola, para o protagonista,
deixaram cicatrizes e marcas que acabaram por lhe moldar “um modo de ver e
sentir” que alimentava sua descrença e desconfiança em um sistema estabelecido e
em Deus — “Ou pensas que já me esqueci do inferno que me desaguaste em
África? Se sobrevivi àquele pesadelo, também sobrevivo a Ti, Deus sem dó”
(PEDROSA, 2003:31) — opondo-se a amiga que “...preferiste sempre ver os
bombeiros que salvam, os Mandelas que resistem, os jovens capitães que nos
entregam a liberdade do cravo na mão e voltam para casa” (p.43).
A crueza da guerra seria um dos motivos da descrença do narrador, da visão
de um deus que lhe avulta cruel e que, ressentido, interpela e ironiza como
tratamento de “imperialíssimo Barbudo”, após a partida da amiga. Ao mesmo tempo,
ao se referir ao Deus “dela”, responsabilizando pela alma de coveira da amiga, que
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foi “chamada cedo” para ajudá-Lo a ressuscitar os mortos, poderia se inferir uma
esperança, ainda que remota, da fé que nega, projetada na admiração da crença da
amiga.
Desconfiando dos que “ostentavam prisões e torturas como medalhas de
Superioridade Humana. Aprendi na guerra a desconfiar muitíssimo dos gajos que se
gabam dessas coisas — os heróis, pelo menos os que eu conheci, falavam pouco...”
(PEDROSA, 2003:172), o protagonista, ao retratar estas questões que lhe feriram a
alma, também descortina a relatividade do ”heroísmo”, construído no imaginário do
povo e alimentado pela falsidade dos que o levaram à desilusão naquela temporada
militar. As visões da guerra enegreceram-lhe a alma: “Vi a que ponto brilha a
bondade humana, no meio do horror criado pela sua natureza. Vi a merda de que
sou feito, nesse momento em que parei para descansar e o meu companheiro de
pelotão rebentou na mina que devia ser para mim” (p.200) e, depois da guerra, “Vi
também a traição (...) exercida a frio, com gestos de rotina” (p.200).
Os episódios da guerra e a realidade que se segue a ela deixariam cicatrizes
oriundas deste período, gerando a sensação de desamparo e carência, resquícios
de uma guerra testemunhada pelo protagonista e que traz conseqüências psíquicas,
já mencionadas por escritores como Lobo Antunes, romancista e psiquiatra que
serviu em Angola durante a guerra colonial.
Para este narrador-vivo, a ausência daquela que o havia arrancado da apatia
em que se encontrava, quando a conheceu, e, devolvida a vontade de crer -“Quando
tu vivias, eu podia acreditar na alma, lama, mala interestelar, o caraças que tu
quisesses. Porque a gente olhava para ti e via essa coisa transparente e firme, esse
nó de sangue, secreções e luz a pulsar como um farol” (p.30)-, se tornou uma perda
de si mesmo: “...quantos restos de ti fazem parte de mim” (p.80) pois, até o que mais
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resistira na amiga havia se tornado parte dele, em uma descoberta tardia da
confirmação que a memória e o desejo trazem para lhe consolar: “Chegaste a dizer
que eu era o eco da tua alma, ou já estou a inventar?” (p.42).
A “invenção” da protagonista é o recurso que o narrador-vivo buscou para
substituir a perda que a memória tenta suprir, principalmente, quando ele a vê
“reduzida” a uma fotografia que mantém em seu quarto: “És agora apenas uma
fotografia ao lado da minha insônia. Uma memória que me fala, sobretudo, como
todas as memórias, daquilo que não existiu. Nesta fotografia te esqueço.
Meticulosamente, de cada vez que me esforço por reter-te e começo a inventar-te.”
(PEDROSA, 2003:44-45):
...a memória é constituída por uma textura de imagens. Retratos, fotografias,
descrições, cenas, composições pictóricas, enfim, signos ou conjuntos de
signos que compõem uma imagem ou conjunto de imagens — esses são os
suportes nos quais a memória se inscreve, conformando múltiplas formas.
(GUIMARÃES, 1997:30)
Procurando reter a imagem da amiga, aquela que escapa da fotografia, o
narrador-vivo, preocupado com o esquecimento que pode lhe furtar a lembrança,
procura se lembrar dela o tempo inteiro, recolhendo, nas margens do tempo, os
fragmentos que compõem o quadro delineado pelo que rejeita perder e podem ser
confirmados na descrição seguinte, recurso da memória a que aludiu César
Guimarães:
Os olhos negros, escavados, sempre olheirentos. As tais sobrancelhas Kahlo.
O nariz adunco que te fazia fugir dos retratos de perfil. O sinal no pescoço alto,
à direita. Os braços ossudos, compridos. As mãos quadradas, como as unhas,
sempre cortadas rente. Sem verniz (...) A graça dos teus cotovelos pontiagudos
(...) A boca grande com uma fila imensa de dentes irregulares sempre a postos
para a próxima gargalhada. (PEDROSA, 2003:34)
A imagem recortada pela memória do narrador, ao longo da narrativa, é
acrescentada por outros contornos que emergem das lembranças. Conforme Hans
MEYERHOFF, “o mundo interior da experiência e da memória exibe uma estrutura
88
que é causalmente determinada mais por ‘associações significativas’ do que por
conexões causais objetivas do mundo exterior” (MEYERHOFF, 1976:22):
— A ti garota marota, tinha-te já praticamente esquecido, quando tiveste o mau
gosto de morrer. E eis-me preso à memória escura dos teus olhos, dos teus
passos saltitantes, da tua alegria convicta que a partir de certa altura começou
a açucarar demasiado a minha vida. (PEDROSA, 2003:50)
Em outro momento, quando o protagonista voltou ao cemitério, espaço da
finitude a que resiste, o frio da paisagem “azul” é associado “à carícia dos mortos
que muito — e quase sempre mal — amámos. Não se consegue amar
completamente senão na memória” (PEDROSA, 2003:153), tornando-se receptáculo
das lembranças que são conduzidas pelo caminho do afeto. A memória para este
narrador é recurso e alento que resiste ao “bafo do frio” que acompanha as histórias
partilhadas com as pessoas que amamos.
Uma outra referência ao frio e a impossibilidade de desvincular-se destas
relações da memória é relatada pela voz masculina diante do mar: “Olho para o mar
do Guincho, para essas ondas frias e violentas em que tanto gostavas de mergulhar,
e sinto-me também eu meio morto, meio frio” (p.13).
À proximidade de “estado”, o vazio de saudosa presença se mistura com a
ânsia de “igualdade” com a amiga que chamava de Sininho, “A tua alegria era um
vírus incurável. Chamava-te Sininho porque, como a fada de Peter Pan, refilavas
muito e espalhavas pó de ouro em tudo que tocavas.” (p.80). Órfão da alegria
contagiante da amiga, da saudosa oponente, “...a falta que me faz alguém que não
ache tudo normal” (p.62) e da obsessão que ela tinha pela vida, transitando entre a
felicidade e o sofrimento com extrema intensidade -“Ai de ti, se descobrisses que
viver demasiado é desistir da vida” (p.106) -, vaticinou em vão a voz masculina.
Possuído pelas lembranças, no obsessivo apego do que ficou, o protagonista
toma para si o lugar de depositário maior da memória da amiga, num gesto
89
desesperado de resguardá-la do mundo que havia deixado e não lhe era justo -
“Ninguém te recorda como eu” (p.70)-, principalmente dos amigos que atribuíram a
ela frases que ele não reconhecia como sendo dela e depois se apiedavam: “No
fundo era uma pessoa frágil. Perdeu os pais tão cedo, era de esperar.” (p.70),
inconformado com a hipocrisia daquelas pessoas que nas suas explicações
“prontas”, legaram à amiga o esquecimento: “Resumida a três postais velhos, ficas
mais fácil de arquivar.” (PEDROSA, 2003:70).
Deste modo, no eco da ausência -“Quem sou eu, neste inferno deslumbrante
preenchido pelo negro da tua ausência?” (p.107) -, outras ausências são evocadas;
as lembranças que dormiam nos “lençóis da memória” se desprendem e
surpreendem o narrador-vivo, nas rememorações que pareciam ir além do tempo
compartilhado, simulando a impressão de que já conhecia a amiga muito antes do
tempo real: “Às vezes julgava que já te conhecia desde o liceu. Muitas vezes te
encontrava mais atrás ainda, embalando o primeiro dos meus sonos, e quase te
chamava Mãe. A Mãe que eu queria ter tido — porque é que nós não podemos
escolher?” (p.76).
Sobre estes “distúrbios da rememoração”, teoria fundada por Freud, Lacan
observa que:
É explorando os distúrbios da rememoração, querendo restituir o vazio que a
história do sujeito apresenta, procurando passo a passo o que se tornaram os
acontecimentos de sua vida, que constatamos que eles vão se aninhar ali onde
não se esperava. (LACAN apud GUIMARÃES, 1997:36)
A memória como um misterioso labirinto, na lembrança da mãe, conduz a voz
masculina para um passado mais distante, carregado de recordações que lhe
marcaram e que vão surgindo à medida que a lembrança materna é
ressentidamente lembrada: “O amor materno que me foi dado sabia a sangue. Era
90
um bicho cego, escoiceando tudo o que me rodeava, todos os amores que eu
escolhi na vida” (PEDROSA, 2003:76).
Como em um porão, onde vamos jogando objetos que são redescobertos
depois de longo tempo, o protagonista vai “recolhendo” os fatos que trazem sentido
à sua história, as lembranças são as iscas de um passado mais profundo. “’Lembrar-
se’, em francês se souvenir, significaria um movimento de “vir” “de baixo”: sous-
venir, vir à tona o que estava submerso.” (BOSI, 1987:9).
Inicialmente, a lembrança constrangida de que não sabia, como os outros
rapazes, “correr, nadar, assobiar às raparigas” (PEDROSA, 2003:76); depois, a
infância; os irmãos que nasceram mais tarde; a falta de amigos e de parentes, que
eram distantes ou já haviam morrido; a ausência do pai, que a mãe dizia odiá-los e
por isso os havia abandonado. Descobriu não ser verdade, encontrou o pai quando
ele estava de partida do país. A memória do pai apagada, em todas as fotografias,
pela mãe: “Uma dessas imagens atraía-me em particular, pela sua montagem
perversa: era eu próprio, com uns dois ou três meses de vida, sorrindo para o vazio
suspenso no nada (...) de duas mãos ausentes.” (p.77-78).
Esta “imagem”, assinalada pela falta, reverbaria nas outras ausências do
protagonista, associada ao sentimento de perda, que se sucedem aos divórcios e o
desligamento antecipado da figura materna, que mais tarde seria transferido para a
amiga, em uma mistura originada pelo desejo, talvez, de preencher estes “vazios”.
A descrição do quarto da mãe, narrada pelo protagonista, destaca as
fotografias, figurações da memória, que a mãe escolhera: “O quarto de minha Mãe
era o seu santuário: aí havia fotografias minhas e dos meus irmãos, de todas as
idades.” (p.78), preocupada em preservar a imagem: “Quando se considerava feia
numa fotografia, apagava-se dela. Tinha um cuidado infinito com a posteridade e
91
com as aparências” (p.78). Ícones da memória, as fotografias eram testemunhos
silenciosos que narravam a história que a mãe protagonizou: omitindo a presença do
pai, exibindo a ausência e apagando os vestígios que pudessem denegrir a própria
imagem de “aristocrata húngara”.
Novamente ironizando a questão da imagem, o narrador insistiria nesta
recorrência do significado da imagem, seja no âmbito familiar, para cuidar das
aparências, ou nas informações explícitas ou implícitas que se reportam ao sentido
que a imagem tem naquela sociedade ou mundo globalizado.
Outras recordações da mãe e da casa onde morou são descritas pela voz
masculina: o primeiro casamento fracassado pela interferência da mãe; os odores da
casa, “um odor excessivo a maças maduras, compotas, veludos vermelhos,
molduras amolgadas onde olhos de sépia fechavam o mistério da vida” (p.93); as
visitas escassas à mãe e a sua morte: “Deixei morrer na solidão a mulher que me
trouxe ao mundo. Morreu de repente — são tão fáceis os mortos assim, rápidos,
contemporâneos” (PEDROSA, 2003:122).
Ironizando a morte, o narrador-personagem de Fazes-me Falta não só aponta
para a banalidade da finitude na sociedade contemporânea, como confirma,
segundo Lélia Parreira Duarte, em seu ensaio A morte e o saber da escrita em
textos da literatura portuguesa contemporânea, uma nova fase desta literatura que
“remete ao saber de uma escrita que afirma apenas o vazio da linguagem e da
morte” (DUARTE, 2006:154) e que tem, também, na ironia, uma marca recorrente:
“Um percurso pela literatura portuguesa revela a utilização constante da ironia e do
humor...” (p.161).
A morte, como um espectro, pontua a narrativa da voz masculina.
Assombrado por ela, “Desde que tu morreste, a morte ronda-me como uma
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namorada obsessiva.” (PEDROSA, 2003:140), sentiu-se penalizado pela morte da
amiga que não conseguiu evitar e, depois, quando soube que, no apartamento
vizinho, um pai havia matado uma criança de dois anos, e ele não pôde salvá-la
porque tinha “o som da televisão demasiado alto. Se não fosse a televisão seria um
disco, a rádio, qualquer coisa que enchesse a casa de música ou palavras”
(PEDROSA, 2003:149). Em uma atitude que reflete o auto-centramento do homem
moderno, refém de sons que possam preencher o vazio existencial, o protagonista
se pergunta entre a estupefação e a angústia: “Para onde foi a vida futura dessa
criança? (...) Onde moram os sonhos que não chegaram a nascer?” (p.149)
A proximidade com estas mortes podem ter “acordado” outros fantasmas da
vida do narrador-personagem que, no decorrer da narrativa, sente a necessidade de
exorcizá-los, acumulado pelas sombras da morte:
Guardo demasiados mortos velhos. Mortos estúpidos, com as tripas de fora,
olhos arregalados, perdidos no caminho para o outro mundo. Mortos de guerra
(...) Mortos que me encalharam o sono e os sonhos. Há anos que eles me
flutuam dentro do corpo, há anos que os despejo a conta-gotas para a
memória...” (PEDROSA, 2003:179).
Para Bergson, “cada lembrança constitui um ser independente e coagulado,
do qual não se pode dizer nem por que ele busca agregar-se a outros, nem como
escolhe, para associá-los em função de uma contigüidade ou de semelhança, entre
milhares de lembranças que teriam direitos iguais” (BERGSON, 1999:194). Não se
pode afirmar, com certeza, a origem dessas aproximações que ocorreram com o
protagonista. Todavia, a enumeração das “faltas”, a partir da perda da amiga, pode
ter despertado o sentimento de ausência que culmina na lembrança de outras
mortes.
Os mortos são, para o narrador-protagonista, pretexto para discussão sobre a
condução da morte na atualidade: “Arredámos os rituais da morte, porque nos
atravancavam a suposta ascese do luto. E ficámos assim, alagados de corpos que
93
fedem nas cavernas do coração.” (PEDROSA, 2003:179). A negação do luto e da
perda fazem parte deste tempo em que vivemos: “Os velórios são reuniões
terapêuticas, e a orientação terapêutica única é o esquecimento.” Como imagens
petrificadas, parecem servir a múltiplas outras necessidades do mundo moderno:
Os mortos tornaram-se manequins (...) pasto de teses eróticas, audiências e
estatísticas, refúgio regressivo de solidões que fazem da necrologia uma forma
de arte transdisciplinar. (PEDROSA, 2003:179).
O desrespeito pelos mortos também é explorado pela fotografia: “Os mortos
fotografam-se em resmas, quando morrem resmas...” (PEDROSA, 2003:179),
sugerindo a banalização das mortes em massa, que na sua repetição e semelhança
perdem o caráter de identidade e conseqüentemente a importância que não
interessa aos seus causadores, mascarando a violência que se assoma
generalizadamente na civilização atual.
Paradoxalmente, ele recorda a morte da mulher do amigo, que criou
embaraços pela sua insistência, justamente, em ir ao encontro destes “sintomas” da
contemporaneidade: “Quando a mulher do Alexandre morreu, ele velou-a dois dias e
duas noites seguidas, beijou-a, regou-a com lágrimas urradas e fotografou-a.
Fotografou-a, na cama e no caixão...” (p.180). A imagem aqui se inverte, não serve à
exposição e, sim, à condensação da lembrança e a desesperada prerrogativa que a
vida oferece ao obsessivo amor.
A memória para este narrador poderá ser entendida como “conservação do
passado; este sobrevive, quer chamado pelo presente, sob as formas da lembrança,
quer em si mesmo, em estado inconsciente.” (BOSI, 1987:15). Nos rumos tomados
pela memória, o desdobramento do desejo pode conduzir a “projeções” que as
lembranças engendram, transformadas pela resistência ao esquecimento. As
“aparições” da amiga -“Surges uma véspera de Natal, depois do jantar, com os teus
pais (...) não há luz nenhuma nos olhos da tua mãe (...) o teu riso (...) como se só
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esse riso pudesse unir aquelas três pessoas” (PEDROSA, 2003:185) - vão se
tornando mais freqüentes; na casa do amigo:
Eu subo a escada, em direção à casa, quando te vejo descer, de mão dada
com um homem cujos traços não fixo. Trazes um vestido de ramagens largas
(...) o mesmo extraordinário laço rosa nos caracóis, agora longos. Sorris-me, e
dizes-me: ‘Ainda não posso ficar contigo, é muito cedo’”. (PEDROSA,
2003:189).
Na aula de História, “com um laço azul completamente desadequado (e torto)
sobre os caracóis negros.” (PEDROSA, 2003:189).
Conforme Clément Rosset, em O real e seu duplo — Ensaio sobre a ilusão:
...o real só é admitido sob certas condições e apenas até um certo ponto: se
ele abusa e mostra-se desagradável, a tolerância é suspensa... Esta recusa do
real pode, naturalmente, tomar formas muito variadas. (ROSSET, 1998:12)
Para este escritor, a dificuldade de aceitar a realidade conduziria a mente a
estratagemas que “tolerariam” provisoriamente e condicionalmente a situações
apresentadas como difíceis, condição que só seria revertida pela própria interrupção
da percepção para fugir ao que é desagradável ou intolerável para a consciência. A
insistência ou teimosia do real poderia, então, se mostrar em outro lugar; em suas
variações, tomaria a postura do não-ser, negando ou suprimindo o real para evitar
uma “ruína mental” e outras vezes se comportaria como uma atitude de cegueira
voluntária. Deste modo, o “aparecimento” da protagonista, para o narrador, se
assemelharia ao fantasma criado por esta ilusão do desejo e da imaginação,
substituindo o real que se tornara cada vez mais pesado.
No descompasso entre a ilusão e a realidade, o narrador-vivo alterna estados
diversificados, à medida em que a sua narrativa vai chegando ao final, como em
uma passagem entre a vida que deixaria e o encontro esperado com aquela que
gostaria de novamente unir-se: “Porque tu morreste, experimento pela primeira vez o
sopro de eternidade — acredito agora que há um lugar do lado de lá onde tu me
esperas (...) Um sítio largo onde habita a melancolia dos que se recusam a largar a
95
vida, como tu.” (PEDROSA, 2003:211) Da esperança ao desejo de que este lugar
pretendido não seja apenas “uma miragem, do meu desconsolo, a vida sem ti não
me dói” (p.211). E ele pode, finalmente, renunciar ao “desamor esfarrapado dos
meus pais, ao coração esfogueado da minha mãe, à ausência do meu pai”
(PEDROSA, 2003:211), na tentativa desesperada de encontrar a amiga em Teresa,
a amiga da protagonista: “Vejo a Teresa com os teus olhos de morta, incêndios em
rescaldo. Ouço-te do interior da minha voz. Palavras calcinadas pela saudade da
vida, palavras que choram como cançonetas” (p.215).
Na derradeira imagem da amiga, o narrador-personagem, em confusas
lembranças ou projeções de lembranças, pressente a amiga antes de tê-la
conhecido: “És tu antes do tu que te conheci” (p.236). A visão descreve uma
adolescente que corre, com a leveza própria da idade, atravessando a estrada com
o sorriso que ele reconhece: “Empurro-te para o passeio, o teu corpo ágil salta para
a vida no último instante” (p.237), para fundir-se ao protagonista no momento em
que ele morre, ficando apenas a imagem “lá embaixo” da adolescente que corre em
uma relva com “cheiro de juventude perdida”.
Retomando a epígrafe que anuncia os relatos do protagonista “-Só o teu
sorriso dura. Mostrei-te o mar. Mostrei-to antes e depois de morreres”-, poderíamos
refletir sobre este espaço entre o antes e o depois que a voz masculina pretendeu
“eternizar”, mesmo que fosse no tempo de um sorriso, lembrando que “O
fundamento do tempo é a memória” (DELEUZE, 2006:122). A constituição deste
tempo para ele, articulada pela falta e ausência, projetaria em seu relato final uma
perspectiva de futuro, lograda na “adolescente que corre lá embaixo”, corroborando,
deste modo, com as especulações sobre o tempo e seu paradoxo: “constituir o
tempo mas passar neste tempo constituído” (p.123).
96
A Saudade Portuguesa
A representação da saudade em Fazes-me Falta só poderá ser compreendida
levando-se em conta o caráter paradoxal do simulacro em que a narrativa se insere;
a morte como “interdição” que permite o diálogo espectral das personagens que,
tomadas da ausência, se aproximam nesta singularidade, projetando-se nas
diferenças reportadas pela “falta” e pela nostalgia, atingindo a “saudade” que
embora pareça estar restrita ao âmbito subjetivo, encerra nas palavras narradas, o
sentimento do povo que a distinguiu como signo, independente de ser uma
experiência universal.
Cabe à voz feminina, do lugar da morte, “a forma vazia do tempo” (DELEUZE,
2006:166) exprimir, primeiro, a saudade do que ficou:
...peço-Lhe que não me empurre tão depressa para esse lugar iluminado que é
a Sua Carne, peço-Lhe que me deixe matar saudades desse mundo que deixei
tão de repente. Matar saudades de ti. Ou matar-te, como fazem as crianças,
para recomeçar uma outra história... (PEDROSA, 2003:10)
Segundo Deleuze, a morte é o “Tempo sem presente, com a qual não tenho
relação, ao qual não posso lançar-me, pois nele eu não morro, estou destituído do
poder de morrer, nele morre-se, não se pára e não se acaba de morrer...”
(DELEUZE, 2006:166-167). Deste modo, para a narradora-morta, dirigindo-se a
Deus e ao amigo, o retorno poderia significar um pretenso desligamento desta
“suspensão” a que se vê lançada e, ao mesmo tempo, como na “brincadeira das
crianças”, o desejo de poder participar do simulacro do “eterno retorno”, aludido
97
também por Deleuze: “O eterno retorno só concerne aos simulacros, aos fantasmas,
e só os simulacros e fantasmas é que ele faz retornar.” (p.184).
O reconhecimento dessa “saudade” como um “estado de ser”, anterior à
morte, pode então ser percebido pela personagem, no momento em que ela se
depara com seu “novo estado” no funeral, ainda no espaço do desajuste em que se
encontrava:
Concentro-me no que é — estou morta todos me choram, finalmente despidos
da maldade pequena, contínua, mineral, que os vivos entre si aplicam como lei
de sobrevivência. Era esta a glória que eu sonhava em adolescente: a de
congregar toda a tristeza em volta da minha saudade. (PEDROSA, 2003:23).
A narrativa de Fazes-me Falta, partindo do sentimento saudoso da voz
feminina, erige-se, então, pelas “faltas” que as personagens narram, lamento
repetido que ecoa nas falas alternadas e entremostram a dimensão da palavra
saudade e do anseio de ter o outro de volta para se tornar completo.
O desconsolo desta “falta” é sentido inicialmente pelo narrador, que se
encontra em vida à procura de palavras que possam remediar o “irremediável”:
“Fazes-me falta. Mas a vida não é mais do que essa sucessão de faltas que nos
animam. A tua morte alivia-me do medo de morrer. Contigo fora do jogo, diminui o
interesse da parada. E se tu morreste, também eu serei capaz de morrer...”
(PEDROSA, 2003:14). A morte preencheria o vazio da ausência, restituiria ao
narrador a igualdade de estado da amiga. De acordo com Deleuze, esta proximidade
não só seria possível, como não haveria “razão para estabelecer um instinto de
morte que se distinguiria de Eros” (DELEUZE, 2006:167) e “Tânatos significa, em
relação a Eros, uma síntese totalmente distinta do tempo, tanto mais exclusiva
quanto ele é destacada, construída sobre seus restos.” (p.167).
Em outro momento da narrativa, esta relação entre Eros e Tânatos pode ser
percebida na voz do mesmo narrador, magoado pela interferência de amigos que
98
haviam tramado um afastamento dos dois: “E nós deixámo-nos matar, porque está
na natureza do amor estilhaçar-se sem ruído, desfazer-se em vidros e pesar-nos no
lugar do coração até que a morte o restaure.” (PEDROSA, 2003:96).
A ressonância da “falta” e desse “amor” encontra-se também nas palavras da
amiga, que responde do “noante”, na tentativa de consolar o amigo e a si própria,
daquilo que só poderá ser restaurado pela memória: “Não me chores, meu querido:
o melhor de mim vive ainda em ti, sempre viverá nesse saber da fractura que me
faltou, nessa coragem da incompletude que só deste noante consigo finalmente ver”
(PEDROSA, 2003:27-28).
O espelhamento da falta descobre as lacunas que ficaram presas no tempo e
que a ausência traz para a superfície da memória, içadas pelo afeto e no desejo de
lembrar o que faz sentido para o vazio deixado pela outra parte: “Não se consegue
amar completamente senão na memória” (p.153), pontua o narrador: “Só na
enumeração das coisas mortas não se morre” (p.154), parece responder a
narradora.
Sob a ótica de Deleuze, Eros e Tânatos seriam oponentes de um ciclo, “no
fundo da memória”. Portanto, ao se referir à reminiscência, ele destaca o papel de
Mnemósina e Eros, na busca do passado e dos presentes que se interpenetram:
Toda reminiscência é erótica, quer se trate de uma cidade ou de uma mulher. É
sempre Eros, o númeno, quem faz penetrar neste passado puro em si, nesta
repetição virginal, Mnemósina. Ele é o companheiro de Mnemósina. De onde
virá este poder, por que será erótica e exploração do passado puro?...
(DELEUZE, 2006:131).
Para responder esta indagação, podemos considerar o comentário de
Eduardo Lourenço em relação às palavras de D. Duarte, em seu Leal Conselheiro,
onde temos a primeira meditação conhecida sobre a Saudade. E, entre as
especulações de como se origina este sentimento e suas razões, destacamos
particularmente, a sua ligação com a memória e o tempo:
99
Não a liga ainda ao viver do tempo humano enquanto tal. Mas entendendo-a
como um jogo da memória afetiva, ao precisar que não releva do entendimento
mas do coração, estabelece o nexo entre a saudade e o tempo. (LOURENÇO,
199:25).
Partindo da compreensão desta “memória afetiva”, as personagens de Fazes-
me Falta, focalizadas na ausência, estabelecem um diálogo que traduz as nuances
deste “sentir” que “tem mais a ver com a tristeza e o desgosto que com a felicidade.
Sentimos saudade, escreve D. Duarte, pela ausência de um ser ou de um lugar
amado” (LOURENÇO, 1999:27).
A ausência é, deste modo, o cenário onde as palavras se instalam, à revelia
da dor da voz masculina: “Quem sou eu, neste inferno deslumbrante preenchido
pelo negro da tua ausência?” (PEDROSA, 2003:107) e ainda inconformado por não
ter também a natureza como sua cúmplice: “Mas primeiro tenho que entender como
pode o sol brilhar com este despudor amarelo sobre um mundo em que tu já não
estás” (p.181).
O reconhecimento deste estado de ausência foi nomeado pelo filósofo
Joaquim de Carvalho como “próprio da consciência saudosa”, em seus artigos:
Problemática da Saudade e Elementos Constitutivos da Consciência Saudosa.
Para ele, não se poderia fazer uma ciência da saudade, compreendendo-se
que do mundo físico não emanaria a saudade: “só a consciência pessoal é
possuidora de saudade(...) este sentimento presente à consciência é um sentimento
evocativo...” (CARVALHO, apud, REAL, 2004:48).
De acordo com esta análise, a saudade é prisioneira do tempo, o tempo que
“ontologiza a saudade” e é instrumento decisivo para sua existência, constituindo-se
em passado que marca e desperta a consciência saudosa, a sua evocação.
Interligados na escala temporal, presente, passado e futuro exercem papéis
100
diferentes nesta “consciência saudosa”, não sendo apenas o futuro determinante
deste sentimento, por existir no plano da idealização:
(...) pode se dizer que o sentimento de saudade esmaga ou anula todas as
virtualidades da relação presente entre a consciência e o mundo nela
representado. Assim, a saudade nasce do contraste entre duas representações
da realidade: a actual, presente e desvalorizada, e a de certos momentos do
passado, afectivamente privilegiados. (CARVALHO, apud¸REAL, 2004:48-49).
Sendo assim, o sentimento que atormenta os protagonistas de Fazes-me
Falta¸ embora esteja circunscrito àquela narrativa, pode ser ressignificado à medida
que se reconhece o sentimento como inerente à condição humana
6
e que pode
assumir, segundo Joaquim de Carvalho, “diferentes formas, como a tristeza, a
nostalgia, a melancolia, a solidão contemplativa” (CARVALHO, apud REAL,
2004:49)
Para Eduardo Lourenço “A saudade, a nostalgia ou a melancolia são
modalidades, modulações da nossa relação de seres de memória e sensibilidade
com o Tempo” (LOURENÇO, 1999:12). Estas modulações, segundo ele, e “a própria
saudade reivindicada pelos portugueses” são sentimentos universais e pertencem
ao tempo humano, ligados à memória e à emoção, sendo, portanto, passíveis de
reversão, contrariando o tempo cronológico e irreversível. E “É o conteúdo, a cor
desse tempo, a diversidade do jogo que a memória desenha na sua leitura do
passado, o que distingue a nostalgia da melancolia e estas duas da saudade” (p.13).
A distinção destas modalidades são referidas a partir de um passado que é
convocado e que lhe confere sentido:
A melancolia visa o passado como definitivamente passado e, a esse título, é a
primeira e a mais aguda expressão da temporalidade (...) a nostalgia fixa-se
num passado determinado, num lugar, num momento, objetos de desejo fora
do nosso alcance, mas ainda real ou imaginariamente recuperável. A saudade

6
Asaudadeé umacontecimentoexclusivamentehumano; oserdivino,poressênciaactopuro, nãopodeter
saudades,porserincomcebivelquesintaopresentecomoperdadebensoutrorafruídos,eoanimaltambém
as não pode ter, porque o seu psiquismo é restrito ao sensível e ao que
lhe é presente com singularidade
concreta.(CARVALHO,2004:61)
101
participa de uma e de outra, mas de uma maneira tão paradoxal (...)
(LOURENÇO, 1999:13)
A voz feminina de Fazes-me Falta enuncia esta nostalgia referida por
Eduardo Lourenço: “Sempre fui nostálgica, sobretudo do que não chegou a
acontecer. Dos deslumbramentos do haver” (PEDROSA, 2003:51). Para ela, este
sentimento estava, principalmente, na sua ânsia de mudar o mundo que partilhava
com o amigo: “Olhávamos à nossa volta e não víamos o tão apregoado deserto de
valores, excepto na boca dos que mais o denunciavam. O vazio era, para nós, esse
consenso de estereótipos sobre um passado mítico” (PEDROSA, 2003:51).
A juventude e uma vontade combativa revestia seus “regressos” ao passado e
não permitiam uma postura conformada e nem enformada pelas ideologias
dominantes.
A melancolia, como conceito, poderia estar mais presente na voz masculina,
suas frustrações são da ordem do subjetivo; a infância, com a ausência paterna; os
dois divórcios; a guerra e a morte de um amigo próximo haviam lhe retirado a
“vivacidade” que sobrava na amiga: “Organizei a minha existência por iluminações.
Dessa forma, todo o amor e todas as vitórias me eram permitidas: já estava morto”
(p.49).
Tem-se a sensação de que o passado para o protagonista está mais “fixado”
a cicatrizes deixadas pelos acontecimentos que ancorariam estes “regressos”.
A forma como a melancolia e a nostalgia ou ambas se manifestam nas vozes
masculina e feminina poderia também “informar” sobre a origem da “saudade” que
se vincula aos respectivos passados destas vozes, sinalizadas pela crença da
mulher e frustração e ceticismo do homem.
Desdobradas em melancolia ou nostalgia, estas vozes, ao longo da narrativa
são transvestidas na saudade, seja na impaciência da voz masculina -“Fazes-me
102
falta, merda — já te disse?” (p.30)-, ou na sua desesperada fantasia: “...cada vez
que me esforço por reter-te e começo a inventar-te” (p.45); seja na presença que a
memória da voz feminina quer construir: “Todos os dias da minha vida estive contigo
— como se todas as amizades anteriores fossem só o caminho para chegar a ti,
como se todas as amizades posteriores fossem apenas a ausência de ti”
(PEDROSA, 2003:168), ou nas perguntas dela que ficaram sem resposta: “Quantas
palavras tiveste de esquecer para que pudesses dizer-mas pela primeira vez?
Quantas pessoas será ainda capaz de amar melhor do que nós os dois juntos
algumas vezes amámos, por amor de nós?” (p.142).
A saudade se apossa das personagens para “juntá-las” no passado que
desejam recordar: “Saudade subentende, naturalmente, memória — é memória em
estado de incandescência...” (LOURENÇO, 1999:32). Porém, para Eduardo
Lourenço, tanto a memória, a fantasia, como a imaginação seriam “faculdades” da
alma que podem ser representadas, ao contrário da saudade:
A saudade não é da ordem da representação, mas da pura vivência. A
consciência “saudosa” não joga consigo mesma, é palco de um jogo. Não é o
eu que contempla a saudade, analisa-a ou joga com ela; é ela que faz dele
joguete, que o avassala: o eu converte-se, por inteiro, em saudade. Não
estamos aqui no plano da psicologia, ou mesmo da gnoseologia, mas no plano
da ontologia. (LOURENÇO, 1999:33),
A sensação desta posse, impossível fuga de si mesmo, alcança a voz
masculina na sua orfandade, circunscrita ao espaço da saudade, suplicante de
milagrosa presença da amiga:
Faz-te fantasma, entra-me pela varanda, mostra-me o teu rosto desmoronado.
Durante muitos anos pensei em sair do país para ser estrangeiro, melhor. Mas
agora que o meu país és tu, já não tenho saída. Há cem milhões de estrelas,
só na nossa galáxia. E em todas elas o teu olhar existe, cintilação fria da
mentira de mim. (PEDROSA, 2003:106-107).
A relatividade deste espaço saudoso e de sua temporalidade vincula-se ao
ser, à sua criação e ao seu tempo, determinando o sentido que se dá aos
103
acontecimentos e às pessoas. Para a voz feminina, o espaço se torna duplamente
relativo, à medida que a saudade do amigo tanto se liga à vida que ficou para trás,
como é percebida de um local, “o noante”, onde o tempo parece estacionar-se.
Há um exercício nos sentimentos que não pode ser levado até o fim. Um lugar
onde a eternidade se instala e a novidade das vitórias desaparece. Um lugar
familiar num cinema de reprise, que já só pode existir depois de morto — como
recordação radiosa. Nós já tínhamos estado nesse lugar. Nós já éramos só luz,
estrela e, como estrelas, mortos. (PEDROSA, 2003:142).
Invertendo a projeção deste lugar, ao narrar do lugar da vida, a voz
masculina, em sintonia com a amiga que morreu, acredita em um lugar que possa
abrigar a melancolia “— acredito que há um lugar do lado de lá onde tu me esperas
(...) Um sítio largo onde habita a melancolia dos que se recusam a largar a vida,
como tu. Um lugar sem Deus — mas contigo” (PEDROSA, 2003:211). Esta
melancolia, segundo Heidegger, seria “consciência da nossa finitude, à nossa
essência de seres — para — a — morte.” (LOURENÇO, 1999:17).
Sentimentos de “regresso”, a melancolia, a nostalgia e, principalmente, a
saudade estão presentes nas personagens de Fazes-me Falta, obliteradas pela
ausência: “Entranho-me nas tuas paredes. Digo: claridade, e tu repetes, no meio do
sonho: claridade. Digo: sangue do meu sopro, e tu repetes: sangue do meu sopro.
Digo: estou aqui e tu devolves-me: ausência” (PEDROSA, 2003:229). Esta
impossibilidade de estar com o outro, na resposta da voz masculina, justifica estes
sentimentos que traduzem a falta e o desejo de completude.
A confissão do narrador-vivo, consciente da “metade que lhe falta”, sobrepuja-
se ao ceticismo que antes cultivava:
Ganhaste. Viciei-me na alegria de estar contigo, inclinado sobre as tuas frases,
ardendo pela primeira vez de desejo sobre teu corpo inexistente. Ganhaste,
Sininho. Aqui me tens, deslumbrado e impaciente, reconstituindo o tu que falta
nas fotografias, as conversas que se calhar nunca tivemos. (PEDROSA,
2003:100).
104
Afastado da vida, para se tornar mais próximo da amiga que não consegue
ficar longe; impregnado pela presença que tomou-lhe todo o espaço da ausência -
“Tudo está tocado por ti. Tu estás em tudo — noite negra ou inundada de dia,
montes, noite minha, noite nossa, noite dos teus braços que não há” (PEDROSA,
2003:100)-, o narrador-vivo percebe a saudade como algo comum à história deles:
“Os nossos amigos parecem-me fantasmas de ti — gente de repente demasiado
nova, demasiado viva para a minha saudade de nós” (PEDROSA, 2003:211).
Assim, como um refrão que não se cansa de repetir-se, a saudade é o halo
luminoso que circunda as palavras sentidas dos narradores que também buscam, na
música do amigo Pascoal, a confirmação para deste lamento:
Quero a luz escura dos sonhos contagiados
As sobras das almas que inventámos
O coração ardido dos antigos namorados
As histórias que afinal não contámos. (PEDROSA, 2003:35-36).
Consolo para o narrador-vivo, a música é o eco do que ficou da amiga, nas
palavras que passariam a ter sentido depois que ela se foi:
Passo os dias a imaginar
A tua sombra a passear
Desse outro lado do mar
No avesso do meu sol
Julgava saber já tudo
Deste amor grande e miúdo
Continente e conteúdo
Com alcance de farol. (PEDROSA, 2003:98).
Iluminar a ausência seria uma das razões da saudade, na travessia em que o
tempo faz nos corações que a sentem: “A saudade, descida no coração do tempo
para resgatar o tempo — o nosso, pessoal ou coletivo — é como uma lâmpada que
recusa apagar-se no meio da Noite.” (LOURENÇO, 1999:15). É a luz que “brilha
sozinha no coração de todas as ausências” (p.15), estejam onde estiverem. Porém,
esta saudade, possui um caráter singular no país que lhe nomeou e que seus poetas
105
ousaram cantar, contribuindo para tornar Portugal “miticamente a terra da saudade”
(p.23).
A esta afirmação de Eduardo Lourenço, acrescentar-se-ia a análise de
Joaquim de Carvalho, ao interrogar-se sobre a origem do sentimento saudoso, sua
possível exclusividade em terras portuguesas ou peculiaridade do país, assim como
seu caráter universal:
(...) por tradição lírica peninsular e circunstancialismos históricos de Portugal
como reconquistador de território (fronteiras instáveis) e país marítimo
(Descobrimentos), este sentimento tenha ganho entre nós um caráter
metafísico não presente na mentalidade de outros povos. (CARVALHO, apud
REAL, 2004:49).
O “fado”, como manifestação artística de Portugal, também lembraria este
estabelecimento da saudade. Sua origem etimológica vem do latim fatum,ou seja,
destino. Segundo alguns historiadores, o fado teria origem nos Cânticos dos Mouros
que, após a reconquista cristã, permaneceram em Lisboa, no bairro da mouraria. A
“dolência e a melancolia” daqueles cantos legaria a esta expressão musical os
possíveis prolongamentos como a saudade, a nostalgia, o ciúme e etc. Apesar da
evolução deste estilo musical, de suas inúmeras interpretações e mesmo
características ligadas à sua localização, como o fado de Coimbra, ainda
permanecem algumas qualidades que se identificariam com seu vínculo inicial, “o
cantar com tristeza e com sentimento mágoas passadas e presentes”.
Antes dos poetas, atribui-se ao rei filósofo D. Duarte, no princípio do século
XV, a investigação da “saudade”, partindo da melancolia que sentia e relacionando-a
a outros estados da alma como a tristeza, tédio e nojo. Sua contribuição no Leal
Conselheiro inverte a imagem romântica da saudade, que a vê como “amor distante
ou perdido, tanto quanto a pátria — que só o tormento fulminante da lembrança que
a si mesma se chama saudade permite recuperar como um sonho acordado”
(LOURENÇO, 1999:27). Todavia, de acordo com Eduardo Lourenço, “...é
106
inesquecível seu comentário a propósito do encanto específico da palavra saudade,
termo que não tem equivalente ‘nem em latim nem outra linguagem’, próprio como
nenhum outro para exprimir a estranheza e a sutileza de um sentimento de tal
complexidade” (p.23).
Em sua trajetória lírica, a saudade aparece “no amigo ausente”, na “amada
inacessível”, com a cumplicidade na natureza, que pode ser “o verde pinho” ou “as
ondas do mar”, extensões do amor que se transborda, uma saudade que, embora
ingênua e desprovida desta nomeação que hoje lhe é conferida, aparece como uma
manifestação importante para sua compreensão e onde se pode acrescentar
também o possível entendimento da evolução semântica da palavra.
Segundo Lucimar Luciano de Oliveira, em seu artigo “Oitocentos Anos de
Poesia do Mar em Língua Portuguesa”, em uma das cantigas de amigo, classificada
como “marinha ou barcarola”, João Zorro utiliza a palavra “suidade”, em pleno século
XIII, de fala galego-portuguesa. Em outra cantiga de amigo, citada na lírica profana
galego-portuguesa, como pertencendo a Fernan Fernandes Cogominho, temos “Non
queredes viver migo/E moiro con soidade”. Originária do latim “solitas, solitatis”
(solidão), na forma arcaica de “soedade, soidade e suidade” e sob influência de
“saúde” e “saudar”, a palavra saudade poderia ter sido cunhada, segundo lenda, na
época dos Descobrimentos e estaria incorporada à solidão dos portugueses em terra
estranha.
Presente nas relações em que o amor comparece, na Renascença, a forma
como este amor é visto por Bernardim Ribeiro e Camões muda a concepção deste
sentimento e da saudade, conseqüentemente, levada aos limites e transfigurando ou
sublimando este amor. As páginas de Saudades de Bernadim Ribeiro e as canções
de Camões, particularmente, exalam a angústia da ausência, não somente do ser
107
amado ou da pátria, mas do ser que a relaciona com o inexorável tempo. “Com
Camões, no limiar do Barroco, a visão neoplatônica cristianizada instaura a
verdadeira mitologia da saudade” (LOURENÇO, 1999:29).
O mesmo tempo, no Barroco, tem sua aliança com a eternidade e temos, nas
palavras de D. Francisco Manuel de Mello, um novo traçado da saudade, “um desejo
de eternidade e nostalgia eterna”, considerando “esta generosa paixão” como algo
“singular, universal e transcendente”:
É a saudade uma mimosa paixão da alma, e por isso tão subtil, que
equivocadamente se experimenta, deixando-nos indistinta a dor da satisfação.
É um mal de que se gosta, e um bem, que se padece: quando fenece, troca-se
a outro maior contentamento, mas não que formalmente se extinga: porque se
sem melhoria se acaba a saudade, é certo que o amor e o desejo se acabarão
primeiro. (...) Não necessita de larga ausência, qualquer desvio lhe basta, para
que se conheça. Assim prova ser parte do natural apetite da união de todas as
coisas amáveis e semelhantes: ou ser aquilo que falta, que da divisão dessas
tais coisas procede. (LOURENÇO, 1999:30).
Entretanto, é no Romantismo que a saudade terá um significado que
excederá ainda mais os muros do subjetivo e alcançará aqueles que se sentem
exilados de sua pátria, buscando na história de seu povo o que consideram perdido,
mas que não pode ou não deseja ser esquecido. E é justamente a escolha de
Camões, por Almeida Garret, como mito literário de configuração romântica, que
torna Portugal um caso único dentro da cultura européia. Com a publicação de
Camões, mais do que a centralização no destino do poeta guerreiro, o poema
consagrará aquele que se tornará um herói nacional, já que particulariza a história
do povo português através da epopéia Os Lusíadas, e os feitos marítimos dos
portugueses do século XV. Mas, com o Romantismo e Garrett, “a presença de
Camões na cultura portuguesa toma um sentido novo (...) é um sinal de mudança,
uma espécie de revolução cultural” (LOURENÇO, 1999:59):
O poema Camões é o primeiro grande texto português tecido como o poema
camoniano. Garrett dá, no entanto, um fundamento original, a essa
recuperação e a essa metamorfose do texto épico, fazendo da palavra
Saudade, e do sentimento que ela exprime, a sua verdadeira musa... o próprio
108
Camões é uma encarnação... de um sentimento que está para além dele, e que
todos os portugueses partilham, essa inexplicável mistura de sofrimento e de
doçura a que chamam saudade. (LOURENÇO, 1999:59).
Com o retorno de Camões, Garrett resgata do passado a figura de D.
Sebastião e o chamado sebastianismo messiânico, esta espera do salvador,
ausência mítica que também traz a melancolia e a tristeza romântica. “O
sebastianismo seria assim memória presente do bem anterior à nossa morte moral
em Alcácer-Quibir, um avatar da saudade lusíada” (LOURENÇO, 1999:52).
Outras roupagens da saudade se manifestaram na literatura de Portugal e na
história da saudade como enigma de um povo, que na sua dispersão por outras
terras e em seu destino marítimo, incorporou a nostalgia ao seu modo de ser e por
isso criou outras dimensões para a saudade.
Em Teixeira de Pascoaes, temos o ressurgimento da saudade dentro da
“Nova Renascença portuguesa”, teorizando o saudosismo, movimento de cunho
lusitanista, estruturado em torno da saudade portuguesa, por volta de 1910 a 1919:
A saudade é o próprio sangue espiritual da Raça; o seu estigma divino, o seu
perfil eterno. Claro que é a saudade no seu sentido profundo, verdadeiro,
essencial, isto é, o sentimento-idéia, a emoção refletida, onde tudo o que existe
(...) atinge a unidade divina. Eis a Saudade vista na sua essência religiosa (...)
(PASCOAES apud Paulo Motta Oliveira, 2002:134)
Esta perspectiva divina, para o escritor, poderá ser atribuída ao caráter
existencial da saudade que, sendo do mundo, é também saudade de Deus, presente
em todas as coisas e na natureza que, sacralizada, confere também ao homem a
sua existência:
A saudade pascoaesiana transcende assim o mero sentimento individual, para
assumir uma dimensão ontológica e metafísica. Na mesma medida em que
todo o Universo “é a expressão cósmica da saudade” enquanto “infinita
lembrança da esperança...” <http://www.instituto-camoes.pt>
De acordo com Eduardo Lourenço, apesar das aproximações e diferenças
com a visão de Teixeira Pascoaes, Fernando Pessoa “encarrega-se de reconduzir a
Saudade ao tempo, realidade misteriosa de que a saudade é uma das
109
manifestações. Ou melhor aos vários ‘tempos’ inconciliáveis cuja vivência está
vedada a um eu intrinsecamente plural.” (LOURENÇO, 1999:63) E, ainda segundo o
autor, o confronto de Fernando Pessoa com o fantasma de Camões, criado por
Garrett, em seu poema Mensagem, mesmo considerando o grande reconhecimento
literário universal do autor, não interferiria neste trajeto da saudade instaurada no
Romantismo:
...para além da mágoa e da saudade, erque-se o autor do único livro que não
se pode reescrever, pois ele que nos fez, tal como a nós mesmos continuamos
a sonhar-nos. O Romantismo foi também, ou sobretudo, uma maneira de dar
ao sonho antigo do nosso destino inscrito n’Os Lusíadas um futuro digno dele.
(LOURENÇO, 1999:63-64)
Ao analisarmos, nesta breve retrospectiva, o caminho da “saudade” na
literatura de Portugal, entrevemos o quanto a palavra saudade não se restringe
apenas ao seu significado semântico, mas, sobretudo, dimensiona um modo peculiar
de ser e sentir de um povo, que empresta este sentido único para a palavra saudade
e estende à sua literatura um traço que pode ser identificado até à
contemporaneidade.
Temos, nas palavras do narrador, uma evidência do legado camoniano:
“Esperavas demasiado de mim. Esperavas demasiado da vida. Vivias um
sebastianismo de alta rotação que às vezes me exasperava” (PEDROSA, 2003:122)
e um dos reflexos desta persistência da saudade na sociedade e literatura do país.
Assim, como para Teixeira Pascoaes “as palavras são seres”, se referindo à
saudade, em Fazes-me Falta, entre tantos ecos da saudade, pode-se pensar até
mesmo em duas versões da saudade encarnadas nas personagens confrontadas
pela ausência. A obra de Inês Pedrosa, ao enfatizar “a falta”, possibilitaria o encontro
com a saudade, visto que, nos conceitos de melancolia e nostalgia mencionados por
Eduardo Lourenço, temos a presença marcante da falta e a saudade “participa de
uma ou de outra, mas de uma maneira tão paradoxal, tão estranha — como
110
estranho e paradoxal a relação dos portugueses com o ‘seu’ tempo...” (LOURENÇO,
1999:14).
Deste modo, as personagens de Fazes-me Falta poderiam ser
representações alegóricas desta saudade na contemporaneidade, pretexto da “falta”
de sentido que o momento subordina ao povo que, passada a euforia da revolução,
o ingresso na Comunidade Européia e se deparando com um “novo tempo”,
marcado pela fragmentação da identidade e do vazio, busca uma nova direção, um
motivo para exercer a portugalidade, sintetizada neste “passado-presente” que não
quer abandonar.
As duas subjetividades, representativas da incompletude e do desejo de
fusão, universalizam o conceito de “falta” e de “saudade”, ao mesmo tempo que
trazem consigo a história do país de origem, para dar entendimento ao sentimento
que faz parte da personalidade do povo português enquanto povo que “está e não
está, é e não é”, como aludiu António José Saraiva; ou na conflituosa “saudade de
um futuro paradisíaco, imaginada imitação saudosista de um passado paradisíaco
(que nunca foi), mencionado por Eduardo Lourenço.
Poderia-se até pensar no sonho de Agostinho da Silva que concorda com o
papel messiânico que Fernando Pessoa acreditou para o país em um certo século.
Portugal mostrou ao mundo o que era o mundo: “precisa continuar essa obra e
passar agora a outro descobrimento muito mais importante, que é o descobrimento
da natureza humana e da sua realização plena” (SILVA, apud, REAL, 2004:28).
111
CONCLUSÃO
Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que vivemos!
Álvaro de Campos
Um pó luminoso insiste na memória.
Nuno Júdice
112
Para concluir, retomarei dois trechos de Fazes-me Falta. O primeiro na voz do
narrador-vivo:
Sofrestes tanto, na maratona torturante da paixão — ensina-me a sofrer.
Ensina-me uma dor que não passe, que possa fulgir no sulco das lágrimas
quando as lágrimas tiverem secado, que possa deixar um lastro sobre a mesa
em que minha cabeça pousou, desesperada. Ensina-me a mansidão desse
desespero onde fervem as alegrias passadas e futuras, o esplendor do êxtase
mortal. (PEDROSA, 2003:90).
O segundo, pertence à voz feminina, a narradora-morta:
Não importa o que se ama. Importa a matéria desse amor. As sucessivas
camadas de vida que se atiram para dentro desse amor. As palavras são só
um princípio — nem sequer o princípio. Porque no amor os princípios, meios,
os fins são apenas fragmentos de uma história que continua para lá dela, antes
e depois do sangue breve de uma vida. Tudo serve a essa obsessão de
verdade a que chamamos amor. O sujo, a luz, o áspero, o macio, a falha, a
persistência. (PEDROSA, 2003:136. Grifo nosso)
Os trechos supracitados nos permitem considerar que o amor, no decorrer do
tempo, continua suscitando indagações, refém das inquietudes que são afloradas
pelo constante enigma que ele produz nas criaturas, pátria sem rosto, reafirma sua
inclinação universal e atemporal, transcendendo as diferenças que não encontram
respostas e geram buscas constantes.
Sob o olhar das personagens, o amor se reveste de camadas reveladas a
partir da morte, fronteira irremediável da separação que gera a saudade. À sobra da
ausência, surgem os temas deste relacionamento que se afirma como amizade para
contar a história do amor que ficou na pretensão das palavras, na cumplicidade do
que não chegou a acontecer e no jogo do desencontro dimensionado pela falta.
No descompasso da incompletude, as personagens manifestam as tensões
que acarretam os gêneros, frutos das diferenças que são condicionadas pela
sociedade e que, quando o amor é levado ao extremo, podem desaparecer. Assim,
o homem de Fazes-me Falta despe-se de sua armadura para querer aprender a
amar com a amiga que já se foi e ela entende, do noante, que o que importa no
113
amor é a sua própria trajetória, inscrita dentro dos paradoxos que compõe sua
matéria.
A obra de Inês Pedrosa surpreende, ao “relançar a energia ficcional da
amizade, habitualmente relegada, no campo dos afectos romanescos, para um lugar
secundário” (COELHO, 2004), e ao colocar Deus como uma personagem que
poderia mediar a distância entre eles, embora O vejam de forma diferente. As outras
personagens que transitam nesta paisagem ficcional também contribuem para
estruturar a narrativa que, ao fundo, retrata a sociedade portuguesa contemporânea,
fadada a frustrações, manipulações da mídia, à violência e outros males universais
que lhe são emprestados.
Deste modo, situando-se em uma época que marca a sua temporalidade
como obra literária, Fazes-me Falta reflete a angústia de sua contemporaneidade,
sujeita às estruturas que assinalam este momento.
Para a escritora da obra, em recente entrevista, existe o anseio também de
captar este momento “...de criar uma voz clara, comunicante e simultaneamente
profunda que, no engodo do enredo, captasse a intemporalidade dos sentimentos
humanos” (ENTRELIVROS, 2007, nº24).
O tempo, como um eco que nunca se cala, continua a inquietar. Em Fazes-
me Falta, ele atravessa a narrativa para encontrar as personagens que teceram sua
história com os fios de suas vestes: o passado, o presente e o futuro. Presas a uma
cronologia instaurada pelos acontecimentos e pela finitude que a morte supõe, as
personagens têm na narrativa o espaço que permite o desdobramento deste tempo
e, na memória, o testemunho que permite a esperança “— vejo esse dia invelhecível
em que começaremos de novo a viver uma história onde a felicidade não seja um
pretexto de martírio” (PEDROSA, 2003:233).
114
Esta espera de possível felicidade remete analogicamente ao sebastianismo e
à saudade que se estende no seu desenrolar histórico e literário para, suponho,
também incorporar-se na narrativa de Fazes-me Falta. Analisando a visão que
Teixeira Pascoaes tem do sebastianismo e sua inscrição na saudade lusíada,
Eduardo Lourenço comenta que o sebastianismo poderia significar a saudade de um
tempo anterior à morte moral em Alcácer-Quibir.
A leitura do romance reporta-se novamente ao fragmento mencionado no
início desta conclusão, através da voz feminina, para quem “As palavras são só um
princípio”. A profundidade desta afirmação pode ser entendida nos episódios
narrados e, principalmente, no sentido que nossa leitura possa alcançar. Mais do
que a encenação das personagens, das marcas de literariedade e da leitura de uma
sociedade contemporânea, temos a contribuição da escritora: “Duras dizia que
escrevemos sempre sobre nós, e parece que isso é tanto mais verdadeiro quanto
menos autobiográfico for o livro” (ENTRELIVROS, 2007, nº24).
Para Miguel Real, escrevendo para o Jornal de Letras, temos a síntese da
escrita de Inês:
Em cada página sua vive, não uma visão imediata da realidade, mas de um
modo impulsivo, emocional, institualmente romântico, a realidade social
condensada na memória em forma de cultura e activada como escrita em
forma de compromisso e empenhamento. (JL, agosto/setembro 2005, nº 911)
Assim sendo, além das palavras do escritor e crítico literário Miguel Real, só
poderemos acrescentar que, mais que “o compromisso e o empenhamento”, temos
a testemunha de um tempo que também, certamente, se inscreverá na saudade.
115
BIBLIOGRAFIA
116
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<http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via02/via02-07. Acesso em:
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Editora Difel, 1973.
3. Outros Sites:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fado
http://www.cultura-brasil.com.br/termos.htm
4. Em Anexo:
Entrevista com Inês Pedrosa
121
ENTREVISTA COM INÊS PEDROSA — em 14/10/2005
As palavras guardam sempre dimensões misteriosas, imprevisíveis e, por
certo, encantadoras. Foi assim que elas criaram para mim um caminho para
encontrá-las em Fazes-me Falta e depois a escritora que deu vida a elas. Descubro
Inês Pedrosa nas tardes literárias do I Encontro Lusófono de Cabo Frio, em uma
Festa Portuguesa que a prefeitura organizou e teve espaço para outras atividades
relacionadas à cultura portuguesa. Surpreendo-me com a escritora: sua postura
firme e determinada é aliada a um modo de ser cativante e natural, integrada àquele
momento de interação entre os dois países e revelando uma sincera simpatia pelos
brasileiros. A visão da tenda que abrigou o evento, desafiando o vento, na cidade
em que Américo Vespúcio aportou em 1503, e o burburinho das “letras” que se
estendia até a noite, reporta-me à reflexão inicial sobre as palavras e o poder que
elas possuem de serem aventureiras dos sonhos daqueles que as reverenciam.
1) – Eduardo Lourenço, em seu livro Mitologia da saudade, disse que os
portugueses “da saudade fizeram uma espécie de enigma, essência da
existência, a ponto de a transformarem num mito”. As personagens de Fazes-
me Falta simbolizariam contemporaneamente esse pendor nostálgico do povo
português?
7
Inês Pedrosa – É... sabe (risos) que a simbologia é sempre póstuma para o autor.
As personagens de Fazes-me Falta “são assombradas” pela morte. E a morte
sempre que... Este sentimento de nostalgia, causado pela morte é universal. Se
assim não fosse, o livro não faria sentido noutras culturas. E então... O Eduardo
Lourenço, uma vez definiu também mito, eu acho que é em um livro chamado
Fernando, rei da nossa Baviera, que é Fernando Pessoa, deu uma definição de mito

7
A entrevista transcrita é fiel à gravação.
122
que eu acho muito bonita e que é a seguinte: ”Mito é vida que não passa na vida que
passa”. Então, quando morre alguém, há uma vida que não passa... Ah! Uma vida
que não passa, ou seja, que fica a passar em contínuo dentro de nós, e que cria
essa ligação com o passado. Não tive a preocupação de: vou falar de personagens
portugueses, não tive. Tive a preocupação de falar de personagens de idades
diferentes, de gerações diferentes, mais do que ser um homem, ser uma mulher,
com suas culturas específicas que enformam essa entidade, que eu acho que é
questão cultural, mas existe enquanto cultura. Então, vamos dizer, que não é o povo
português, porque acho que não é. Eu percebo que essa colocação do Sr. Eduardo
Lourenço é exata. Mas, significa que o povo português arranjou a “saudade”, como
as tribos da Amazônia podem arranjar máscaras. Não é uma máscara atrás da qual
se escondem, se defendem, se abrigam das intempéries. Mas, não é tudo que eles
são, e sim o seu cartão de visita. Na realidade, eu acho que o cartão de visita do
português é a “saudade”, mas depois, por trás, têm uma alegria de viver que eles
escondem. E o cartão de visita do brasileiro é a “alegria e o samba”, mas na
realidade, têm uma melancolia dos trópicos. Moacyr Scliar escreveu um ensaio
muito interessante sobre essa melancolia brasileira. E, portanto, penso que há
aquele sentimento de saudade, que faz parte da história da língua portuguesa, que é
uma história antiga, que passa por Portugal e que passa também pelo Brasil. E é
uma palavra específica, que inclusive é muito difícil de traduzir porque não é só
choro, não é só dor expressa, é também alegria de lembrar, alegria de ficar a
conviver com os fantasmas. Mas, penso eu, que há tantos fantasmas aqui no Brasil,
ou até mais, fantasmas da África e muito presentes no Candomblé, como há em
Portugal, por tanto tempo, que o português usa como enigma, mas não quer dizer
que esse enigma seja de Portugal.
123
2) – Tanto Fazes-me Falta como Nas tuas mãos parecem trazer a marca da
frustração feminina. A incompletude é algo que lhe inquieta sobremaneira ou é
apenas mote revelador da luta das mulheres, em especial as portuguesas, por
um “ideal”, em um mundo que, até então, parece privilegiar os homens?
IP – Ah!... Eu creio que há frustração feminina e há frustração masculina, porque
parece-me que no Fazes-me Falta, o homem é igualmente e sente uma frustração,
até maior do que ela. Então, não vejo que seja uma frustração de gênero. Vejo que a
frustração, provavelmente, é um grande motor da criatividade humana e ou da
inatividade. O homem do Fazes-me Falta foi um que ficou muito mais aquém de si,
nos seus sessenta e tantos anos de vida, do que a mulher que cumpriu muito dos
seus sonhos, atabalhoadamente, muitas vezes, nos seus trinta anos de vida. Não
vejo Jenny de Nas tuas mãos como mulher frustrada, ela vive o amor e a aceitação
e ela aceitou... Nem vejo a Camila exatamente. Como a uma mulher zangada, mas
não frustrada. Foi uma mulher que experimentou muito da vida, e até vejo, estar a
mulher como a vingadora das mulheres do interior, de certa forma, que é a primeira
mulher que leva, que arrasta um homem, praticamente pela mão, leva para a cama
onde a primeira mulher quis ser amada e quis se entregar e não conseguiu. Há até,
mesmo assim, uma passagem, um testemunho, vai um sentido da conquista do seu
direito ao seu corpo, do seu direito à sua paixão. A Jenny disse — Bom, o amor é a
aceitação, o amor pode ser platônico e eu vou ser feliz assim. Teve essa decisão e
viveu feliz, no seu entendimento. E a terceira mulher disse: — Eu vou fazer mais do
que isso e vou agarrar o amor pelo braço, fazer o amor chegar e trouxe. Então, não
parece que seja frustrada. Tristes serão! Serão mulheres com grande dose de
tristeza, mas também uma dose de alegria. De resto, em Portugal, quando saiu Nas
tuas mãos, a crítica disse que o final era demasiado feliz, era quase inverossímil de
124
tão feliz, que acabava num amor que se concretiza. Mas, eu penso que é
precisamente com essa idéia de mostrar que não é necessário viver só de
frustração, podemos vir agarrar as coisas, enfim, a idéia masculina agarra naquilo
que precisa, mas, por outro lado, o homem já reparou que a mulher vive a
frustração, o interdito, o homem tem interditos de não ter interditos. Um homem não
se pode escusar a uma mulher, o que é uma forma de interdito tão grave como a
mulher ter que recusar ao homem. A cultura masculina dizia: um homem tem que
estar sempre pronto para responder a uma mulher, porque senão não é homem de
verdade. E também levou muitos homens a dormir com muitas mulheres que não
gostariam de dormir, o que também é uma frustração. Então, eu vejo a frustração
dos dois lados.
3) – As duas vozes que dialogam em Fazes-me Falta dão corpo às diferenças
existentes entre um homem e uma mulher e, ao mesmo tempo, desnudam os
“mecanismos” de construção ideológica dos gêneros que, muitas vezes, se
esquecem que afinal somos todos “indefesos” quando o tema é o amor e o
sofrimento se aproxima. Fazes-me Falta abriga essa “fragilidade” como uma
reflexão ou um questionamento sobre a nossa condição de amantes e sobre a
expectativa gerada por esse sempre “tão sedutor amor”?
IP – Exatamente. (risos) É isso, eu não tenho nada a acrescentar.
4) – Podemos perceber em Fazes-me Falta e Nas tuas mãos que,
paradoxalmente, a mesma narrativa que privilegia as frustrações,
desigualdades e desencontros humanos, descortinando uma realidade que
compartilhamos, também nos mantêm reféns do encantamento poético
125
refletido nas falas e na composição das personagens. Até que ponto os
narradores dos romances citados se aproximam da escritora ou vice-versa?
IP – Esses narradores, na realidade, são personagens que eu encarno e, por isso, é
como se fosse. Eu fui pela primeira vez à Bahia, no princípio do mês passado, e teve
uma cerimônia de Candomblé. É como se baixasse um orixá, baixasse um espírito
que está ali, enquanto está a contar histórias dele e depois a vida dele. Um colega
meu, Paulo Vera, que foi a uma dessas sessões, disse numa turnê de promoção dos
nossos livros, uma frase do Martineme, que é muito curiosa: um escritor em turnê a
promover Um homem de desastres, de 97, assim como a mulher de Nas tuas mãos
é de 97, é um funcionário com um eu interior. Na realidade, esses personagens já
estiveram no meu corpo e não na vida deles. Então, tenho dificuldade de
conhecimento rico com aqueles que estou a escrever, estou a viver de uma forma
diferente, que estou a escrever um romance em que há um Deus, há um narrador
que vai introduzindo nesta personagem e nas outras, vivendo as diversas
expectativas e a mesma voz. Eu acho que as pessoas dizem: — Ah! Eu tenho medo
de usar o registro da primeira pessoa porque é mais condicional. Não fica mais
condicional porque até se estrutura mais. Eu, quando encarno a velhinha da Jenny,
não sou eu, não. É o meu discurso e quanto mais encarno nela, entendo e penso
como outra mulher, mais distante é o discurso dela, até do meu. Eu não sou um
Deus que está a controlá-la, não um narrador onipresente ou onisciente, eu sou ela!
Então não sou eu, sou ela. Agora, claro que no Nas tuas mãos e no Fazes-me Falta
é por todo um misto, embora esteja a narradora morta, ao contrário de mim que
estou viva, ela tem minha idade e eu procurei fazê-la muito diferente de mim em
muitas coisas. É política, que é uma coisa que não sou, mas tenho muito fascínio. É
magrinha, morena, com o tipo físico completamente diferente do meu, muito
126
parecida no imaginário com Frida Kahlo, mais magra, personagem feminina muito
forte, mas foi assim. Se eu fosse com a minha idade outra mulher, que mulher é que
eu seria? A mais próxima mulher que queria ser, se não fosse eu, então, seria ela.
Mas aquele homem não era eu de maneira nenhuma. Obrigou-me a uma pesquisa,
inclusive a vocabular. Tudo acaba por implicar pesquisa, são coisas que só
pensamos depois. Primeiramente, nesta mulher eu também não quis pôr a minha
fala, o meu discurso. Na realidade, fui procurar mulheres políticas, de diversos
partidos políticos, para perguntar: Como é nas instituições quando vocês falam, as
relações entre homens e mulheres? Na Câmara dos Deputados? Informei-me e
reparei muito na forma como elas falavam, têm um discurso muito mais pragmático e
termos mais fortes e pragmáticos do que o meu. Então, usei isso, como também usei
tudo o que me lembrava de meu pai, que era um homem dessa geração e que tinha
morrido há pouco tempo. Expressões, há muitas expressões que são dele, da
geração dele. E fui falar com homens da idade dele e fazê-los falar, o que é difícil,
sobre a experiência da Guerra Colonial, todos passaram pela Guerra Colonial ou
fugiram dela... e reparar como eles falam nas questões, não questões muito
precisas. Precisamente porque não são. Eu agora não estou a dizer por dizer. Eu
não estou confessável neste livro. O tema da morte e da força após morte era
fundamental para mim, eu precisava de resolvê-lo, só que eu não conseguia resolver
pensando na minha vida, portanto, eu precisava viver outras pessoas com o mesmo
problema para poder resolvê-lo. Como não é muito mais fácil, para usar um exemplo
de maneira corriqueira, mas muito visual: você tem a sua casa para arrumar, seu
escritório ou biblioteca, é muito complicado. Mas se uma amiga lhe pedir para
arrumar o escritório dela é mais simples. Nós temos uma visão superior. Então
vemos logo as coisas como são, exatamente assim...
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