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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE
SÃO PAULO
PUC-SP
RINA TEREZA D’ANGELO NUNES
FONOAUDIOLOGIA E MEMÓRIA:
Narrativas sobre o Início das Práticas Fonoaudiológicas
na Cidade de Salvador
MESTRADO EM FONOAUDIOLOGIA
SÃO PAULO
2007
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
RINA TEREZA D’ANGELO NUNES
FONOAUDIOLOGIA E MEMÓRIA:
Narrativas sobre o Início das Práticas Fonoaudiológicas na
Cidade de Salvador
MESTRADO EM FONOAUDIOLOGIA
Dissertação apresentada à banca
examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de
MESTRE em Fonoaudiologia, sob a
orientação da Professora Dra. Suzana
Magalhães Maia.
SÃO PAULO
2007
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM
FONOAUDIOLOGIA
Banca Examinadora
_________________________________
_________________________________
_________________________________
_________________________________
Dedicatórias
A Dona Palmira e Seu Lauro D’Angelo
(e) ternos presentes
A Pedro Osmar
meu amado, amoroso ouvinte
A Vitória e Pedro
“cordas do coração”
Agradeço,
Aos amigos,
porque sem eles nada tem graça
Aos colegas narradores, sem os quais não haveria histórias:
Eva Musa Cataldi de Almeida
Carmen das Graças Fernandes
Silvia Ferrite Guimarães
Olga Rodrigues LimaTanajura
Silvia Reis
Valéria Leal
Renata D’Arc Scarpel
Maria Regina Grangeiro
Aidil Borges Prazeres
Ana Maria Pimenta da Fonseca
Lia Mara (Eliete Leal de Araújo)
Leonora Bastos da Silva
Hercilio Pereira de Melo
Sonia Maria Batista Veloso
Ana Regina Graner Falcão
A Suzana,
Para sempre querida orientadora, pela competência, compromisso,
carinho, por tudo de bom que foi o nosso reencontro.
A duas Anas, queridas, D. Ana (mãe) e Ana Graner (filha),
pela cumplicidade.
A todos os meus alunos e em especial às alunas auxiliares de
pesquisa: Cristiane Oliveira, Lilian Paternostro, Rafaella Góes e Taynara
Lopes pelo sofrido trabalho de transcrição.
A todos os professores do curso e em especial ao Tuto por me haver
apresentado o universo da História Oral, que eu adorei.
Aos membros da banca de qualificação: Professora Ana Lucia Tubero
e Professor Gilberto Safra por tudo e principalmente pela delicadeza.
A Claudia Perrotta pela ajuda no enfrentamento
do “eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras...”
A D. Nilda, Seu Osmar e todos da família, pela
consideração positiva que me anima todos os dias.
À Maria Maurity, Marlene Danesi, Zulmira Martinez, Gracita Didier e
Mara Rissato pelo auxilio no acesso à literatura.
A todos os Pacientes, eterna gratidão.
NUNES, R. T. D. Fonoaudiologia e Memória: Narrativas sobre o início
das Práticas Fonoaudioloógicas na Cidade de Salvador. 194 f.
Dissertação de Mestrado em Fonoaudiologia. Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. 2007
O objetivo central deste trabalho foi reconhecer os diferentes modos como
a Fonoaudiologia foi pensada e vivida em Salvador Bahia. Para tanto,
foram colhidas narrativas de fonoaudiólogas precursoras, buscando em
suas experiências um saber que se configurasse como fonte para
compreensão do passado, presente e projeção de futuro. A investigação
foi realizada na perspectiva da Metodologia da História Oral, ou seja, a
história contada por seus próprios atores, de modo a se preservar fontes
e transcender o aspecto estático dos documentos escritos. Os
depoimentos foram transcritos, textualizados, transcriados e analisados
numa perspectiva fenomenológica, buscando interrogar seus significados
e interpretações frente ao contexto social local e à literatura da área.
Observou-se que recordar é processo complexo, sendo que a memória de
cada um traz elementos de sua singularidade, mas também do grupo e do
momento histórico em que vivemos. A reflexão das experiências
partilhadas pelas vozes das narradoras emoldura a Fonoaudiologia em
Salvador como acontecimento singular e, ao mesmo tempo, característico
da forma como a área foi se constituindo no Brasil, sendo destacados
aspectos tais como: prevalência de um trabalho fonoaudiológico privatista,
como resultado de políticas públicas; o reconhecimento por parte dos
pacientes como forma primordial de divulgação da área; investimento no
trabalho de institucionalização da área; primeiras práticas
fonoaudiológicas voltadas para a educação de pessoas surdas e com
deficiência mental; compromisso com a pessoa antes do compromisso
com “técnicas”, “escolas” e/ou “correntes teóricas”.
Palavras-chave: Fonoaudiologia História Narrativas Pessoais
Memória.
NUNES, R. T. D. Speech Language Pathology and Remembering:
Narratives on the beginning of Speech Language Pathology in the
City of Salvador. 194 f. Master's degree dissertation in Speech Language
Pathology. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2007
The central objective of this work was to recognize the different manners
in which Speech Language Pathology was conceptualized and
experienced in Salvador – Bahia. To that end, narratives of pioneers in the
field of Speech Language Pathology were collected and their experiences
were used to look for a knowledge that represented a source for
understanding the past, present as well as future projection of Speech
Language Pathology. The investigation was accomplished using the
methodological perspective of Oral History, in other words, using history
told by its own actors in order to preserve sources and to transcend the
static aspect of the written documents. The testimonies were transcribed,
converted to a textualization, organized into a transcreation, and analyzed
in a phenomenologic perspective to interrogate their meanings and
interpretations in relation with the local social context and with the
literature of the area. It was observed that to remember is a complex
process because the memory of each one brings elements of his
singularity and also of the group and of the historical moment in which it
was experienced. The reflection of the experiences shared by the
narrators' voices frames Speech Language Pathology in Salvador as a
singular event and, at the same time, underscores that it is characteristic
of the area as well as of the whole of Brazil. Outstanding aspects are: (1)
prevalence of private speech-language pathology services as a result of
public politics; (2) recognition of Speech Language Pathology by the
patients as an important service and their role in the promotion of the
profession; (3) efforts put into the institutionalization of the profession; (4)
origins of Speech Language Pathology services going back to deaf and
mental deficiency education; (5) commitment to the person before
commitment to the "techniques", "schools" and/or "theoretical currents."
Keywords: Speech Language Pathology – History – Personal Narratives.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................
11
Escolha do Percurso Metodológico.......................................
17
CAPITULO I: Histórias da Fonoaudiologia no Brasil..............
23
CAPITULO II: Percurso Teórico-Metodológico......................
38
1. História ..................................................................................
38
2. Memória ................................................................................
42
3. Narrar ....................................................................................
47
4. História Oral ..........................................................................
51
5. Colaboradoras /Narradoras ..................................................
55
5.1. Entrevista Marco-zero ..............................................
55
5.2. Fonoaudiólogas que fazem história..........................
57
CAPITULO III: A Voz das Narradoras...................................
60
1. História de Carmen Fernandes ............................................ 64
2. História de Olga Tanajura .................................................... 93
3. História de Lia Mara ............................................................. 110
4. História de Leonora Bastos .................................................. 139
5. História de Sonia Veloso ...................................................... 157
CAPITULO IV: Raízes..........................................................
170
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................
186
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................
190
ANEXOS
10
XVIII
Os dias não se descartam nem se somam, são abelhas
que arderam de doçura ou enfureceram
o aguilhão: o certame continua,
vão e vêm as viagens do mel à dor
Não, não se desfia a rede dos anos: não há rede.
Não caem gota a gota de um rio: não há rio.
O sonho não divide a vida em duas metades,
nem a ação, nem o silêncio, nem a virtude:
a vida foi como uma pedra, um só movimento,
uma única fogueira que reverberou na folhagem,
uma flecha, uma só, lenta ou ativa, um metal
que subiu e desceu queimando-se em teus ossos
(Pablo Neruda, Ainda, 1977 p.49)
INTRODUÇÃO
11
“Eu sempre digo que a Arquitetura não é fundamental, não é
importante. O importante é a vida. É o indivíduo ser solidário,
compreender que não está sozinho. (...) Cada um vem,
escreve a sua historinha e vai embora, de modo que a gente
tem que se adaptar. A vida é um adaptar permanente. E a
gente tem que fazer o que pode e saber que os outros
merecem respeito.” (OSCAR NIEMEYER, 99 anos)
A história diz de nossa condição humana, nos remete à origem e
nos leva a refletir sobre a vida presente. Não podemos compreendê-la
sem compreendermos como nos tornamos o que somos, sempre
constituídos na relação com os outros ancestrais, contemporâneos e os
que virão –, em uma linha de tempo que nos permite avançar, recuar,
perdoar, remediar. Inventamos o mundo e buscamos referências dessa
invenção para diminuir a angústia que nos habita como passageiros deste
mundo.
A história tem, pois, estreitas relações com memória e identidade.
Quando fazemos história, estamos contando uma experiência,
transmitindo aquilo que sabemos sobre os acontecimentos, afetos e
sofrimentos que marcaram um viver, um “saber”. É movimento que cria
subjetividades diferentes e maneiras diversas de pensar e ver o vivido,
abrindo perspectivas.
E foi justamente no sentido de conhecer os diferentes modos
como a Fonoaudiologia tem sido pensada e vivida que apresento nesta
dissertação as narrativas de fonoaudiólogas precursoras da profissão na
cidade de Salvador, Bahia. O conhecimento histórico é constituído aqui de
experiências vividas, vozes que falam de um saber que se torna fonte
para compreensão de aspectos do presente e projeção de futuro.
12
A escolha deste tema, obviamente, não foi aleatória, mas
somente a partir do seu desenvolvimento é que fui me dando conta do
quanto episódios da minha história interagem significativamente com a
história da área e com a forma como escolhi abordá-la. É quase como se
esta pesquisa fosse uma predestinação. Afinal, “Todas as histórias
contadas pelo narrador inscrevem-se dentro da sua história...” (BOSI,
1999, p. 89).
Assim, inicio compartilhando com meu leitor alguns aspectos
pessoais que me levaram à escolha do tema, bem como introduzo os
sentidos que serão atribuídos ao longo do texto para Homem constituído
historicamente na relação com o Outro, e o lugar da Memória e o Narrar
como forma de compartilhar experiência e conhecimento sobre o
Humano.
Recuperar cada pedra que compôs o mosaico da intenção de
pesquisar o tema proposto sempre me emociona, me surpreende como
uma revelação sobre ser/estar constituído em comunidade, portando um
conhecimento transgeracional.
Algumas lembranças aparentemente prosaicas emergem repletas
de significados, ilustrando, de alguma forma, os sentidos de
memória/história que me propus adotar na construção desta dissertação.
Uma dessas lembranças, por exemplo, é o meu encantamento com a
disciplina de História, na época do colégio. A imagem vem colorida pelo
acolhimento de um professor. Parece banal, e eu me pergunto: por que
justamente esta lembrança entre tantas? Em um texto do educador Paulo
13
Freire, que fala de Memória, do encontro com o Outro na nossa
constituição como pessoa, encontrei uma possível resposta:
“Às vezes, mal se imagina o que pode passar a representar na
vida de um aluno um simples gesto do professor. O que pode
um gesto aparentemente insignificante valer como força
formadora ou como contribuição à do educando em si mesmo”
(FREIRE, 1996, p.42).
Lembranças da vida familiar também se fazem presentes pelas
imagens de alguém sempre contando histórias. Em diferentes contextos,
meus pais (mãe com fortes tradições locais e pai filho de imigrantes
italianos) narravam com freqüência suas lutas pessoais, perdas,
aprendizagens e, principalmente, coragem e esperança. Havia uma fala
recorrente de meu pai ao se referir a temas como “eternidade”,
“ressurreição”, “reencarnação”. Ele dizia: continuamos vivos através da
memória do que fomos, dos nossos atos, da convivência, das histórias
que contarão de nós. Como destaca SAFRA:
“O narrar refere-se à possibilidade de se contar uma
experiência, pois no cerne de todo narrar uma experiência.
Ao narrarmos uma situação buscamos compartilhar uma
experiência de vida, tornado-a presente” (SAFRA, 2006,p. 24).
Quanto à Fonoaudiologia, posso dizer que ela faz parte de minha
vida, sendo que venho assimilando suas transformações históricas desde
minha formação profissional (1974/77), que se deu por volta de dez anos
depois da institucionalização da área (1961/2), até os dias atuais, em
minha atuação como terapeuta, desde 1978, e também como formadora
de novos profissionais na Universidade do Estado da Bahia – UNEB,
desde 2001.
Iniciei a atividade clínica em Fonoaudiologia no interior de São
Paulo, na cidade de Mococa, numa época em que este trabalho era
14
quase ausente na região. Nesse mesmo período, mantinha vínculo com a
rotina acadêmica, como professora instrutora no Curso de Fonoaudiologia
da Instituição em que me graduei em Campinas. Em 1982, iniciei o
Mestrado em Distúrbios da Comunicação na PUC-SP, o qual foi
interrompido pela minha mudança para Salvador, em 1984.
A atividade clínica que vinha exercendo não sofreu interrupção,
uma vez que em Salvador encontrei colegas que me acolheram e me
ofereceram oportunidade de trabalho.
No início, havia uma sensação de deslocamento e abandono, em
parte provocada pela mudança e ausência de referências locais e, em
parte, pela distância do meio acadêmico. São Paulo estava mesmo muito
longe, e a informação não chegava tão rapidamente como hoje.
Racionalizar as dores iniciais de estranhamento, pela desvalorização da
Fonoaudiologia em Salvador, idealizando o sul maravilha” era fácil. Este
equívoco, na minha leitura de hoje, estava relacionado a “uma certa
identidade colonialista paulista”, que “só achava bonito o que era
espelho”. Bendita clínica que nos ensina tanto a se ajudar, ajudando.
Passado o medo do novo e o ataque de prepotência/resistência e
finalmente me abrindo aos meus interlocutores locais, pude aproveitar as
possibilidades de crescimento profissional e pessoal: a clínica refletida e
compartilhada com a cultura local, em que encontramos suportes
generosos e significativos oferecidos pela Psicanálise, Educação, Arte,
História, Antropologia e etc.
15
A Fonoaudiologia tinha a sua forma de acontecer em Salvador
na ocasião, havia ainda uma compreensão incipiente das possibilidades
de nosso trabalho pela população, poucos profissionais, mas muitos
comprometidos com as demandas locais, ainda reprimidas,
experimentando um reconhecimento motivador por parte desta população
beneficiada.
Em 1995, a possibilidade de implantação do 1º Curso de
Fonoaudiologia na Universidade Federal da Bahia UFBA, levou essa
instituição a oferecer um Curso de Especialização em Fonoaudiologia,
cujo objetivo maior era preparar fonoaudiólogos locais para o exercício da
docência. Participei desse curso e desenvolvi, junto com uma colega, a
Monografia de conclusão, buscando conhecer a disponibilidade do
atendimento fonoaudiológico específico às pessoas Afásicas na cidade de
Salvador. Isso ocorreu não só por se constituir em área de meu interesse,
mas por ter informações epidemiológicas sobre o elevado índice de
doenças cérebro-vasculares na população dessa cidade, que, por si só,
implicaria um olhar diferenciado para o cuidado fonoaudiológico.
Esse foi o primeiro movimento de inquietação em direção a
compreender as faces de nossa área em Salvador, e evidenciou uma
grande carência de fonoaudiólogos, considerando a população e suas
necessidades. No que diz respeito ao atendimento à pessoa afásica,
pode-se dizer praticamente ausente.
Por sinal, até o presente momento, não contamos com a inserção
de fonoaudiólogos nos quadros de saúde do Estado, sendo que no
16
quadro municipal a profissão foi efetivada muito recentemente, em 2001
1
,
mas com uma oferta absolutamente insuficiente. Na Saúde Pública em
Salvador temos somente fonoaudiólogos em prestação de serviços por
meio de empresas contratadas, mas em número escasso, considerando
as demandas, e em precárias condições de trabalho, determinadas,
principalmente, pelo caráter temporário.
Em 2001, ao iniciar a atividade docente no recém implantado
curso de Fonoaudiologia na Universidade do Estado da Bahia UNEB
2
, a
responsabilidade com formação que anunciava a perspectiva de trabalhar
o futuro veio reforçar minha inquietação quanto a conhecer o modo como
nossa área se apresentava localmente. Nos momentos de reflexão sobre
a identidade profissional, sentia certo desconforto por ausência de
referências, e pensava: como compreender/planejar sem saber, sem
referências do passado?
Afinal, ater-se a aspectos da comunicação humana, como faz a
Fonoaudiologia, gera complexidades que nos colocam sempre em
trânsito, buscando afirmações, adaptações, identificações. Podemos
observar essa condição nos relatos sobre as primeiras práticas
instituídas, que emergiram junto à Medicina, à Educação e à Psicologia,
ao sabor das determinações sociais e também pessoais. Uma breve
análise dos periódicos nacionais que circulam na área mostra a luta
constante para, diante da influência de tantos outros saberes, não nos
1
Após mobilização da Associação Profissional dos Fonoaudiólogos do Estado da Bahia
APROFEB (Institucionalizada em 1980 e registrada em 1994), dois fonoaudiólogos
foram admitidos por concurso público.
2
UFBA e UNEB 1999; UNIME 2002; Faculdades JORGE AMADO 2004; FAN
(Feira de Santana/BA) – 2004 UNIRB – 2005
17
desviarmos da essência de nossa área de atuação – profissionais de
cuidados para com o outro.
De fato, vivi e vejo que fizemos mudanças significativas na área.
A produção científica cresceu em quantidade e qualidade e, atualmente,
não dependemos de literatura estrangeira para constituir a formação
profissional, como ocorria nos primórdios. Ampliamos e aprofundamos
áreas de atuação na Saúde Coletiva, nos Diagnósticos Auditivos, na
Neonatologia, no trabalho em Cabeça e Pescoço, etc.
Assim como nossa área, também é visível que tenho vivido
experiências de muitas mudanças que emolduram o novo, a diversidade,
instigando adaptações e indagações. Diante de tantas transformações,
novidades e desafios, perguntar para compreender e encontrar alguma
estabilidade é quase vital.
Nessa medida, buscar a história da Fonoaudiologia pode ser uma
forma de diminuir a distância em relação ao passado para ir adiante,
especialmente em relação à visão fragmentada de sua constituição, da
qual todos nós fizemos parte; e pareceu-me residir a possibilidade de
criar novas raízes.
A ESCOLHA DO PERCURSO METODOLÓGICO
Quando surgiu a vontade de conhecer a experiência dos colegas
fundadoras em Salvador, me vi diante de um dilema. Idealizava História
como reunião de documentos e fatos cronologicamente organizados,
representando uma verdade, e nesse sentido percebia certa limitação,
18
porque estava em pauta uma história recente. Porém, a oportunidade de
cursar como aluna especial a Disciplina Introdução à História da Ciência,
no Programa de Pós-Graduação em Filosofia, História e Ensino de
Ciência da Universidade Federal da Bahia – UFBA, trouxe uma nova
concepção de conhecimento histórico, que ampliou minhas possibilidades
de estudo, em especial no que diz respeito à possibilidade de realização
de entrevistas abertas com testemunhas da história recente, uma
contribuição fundamental do sociólogo Simon Schwartzman
3
.
Esse foi o primeiro passo que me levou a adotar a perspectiva da
História Oral como percurso metodológico. O segundo foi a leitura de
“Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos”, da Professora Ecléa
Bosi, que me mostrou a possibilidade de desenvolver uma investigação
intersubjetiva, em que a experiência do outro toca em pontos
fundamentais do viver que transcendem o lugar em que ocorrem,
oferecendo referenciais teóricos para a apreensão dos sentidos de
História, Memória do vivido e Narrativa, e abrindo caminho para os
escritos do Professor Gilberto Safra e a compreensão de homem histórico
constituído em comunidade.
A Metodologia da História Oral constitui um recurso moderno,
usado para a elaboração de documentos, arquivamento e estudos
3
SCHWARTZMAN, Simon. Um Espaço para a Ciência: A Formação da Comunidade
Científica no Brasil. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia. Centro de Estudos
Estratégicos, 2001. Acesso em 21/08/2007
Disponível em: <www.schwartzman.org.br/simon/spacept/espaco.htm>
Foram realizadas entrevistas abertas com 70 cientistas graduados entre 1910 e 1950
que desempenharam papel importante na História da Ciência do Brasil do ponto de
vista científico ou institucional. Elas estão disponíveis para consulta no Centro de
Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil, na Fundação Getúlio
Vargas, RJ.
19
referentes a pessoas e grupos história viva, do tempo presente. É o
registro da história de vida de indivíduos que, ao focalizar suas memórias
pessoais, constroem uma visão dinâmica da trajetória do grupo social ao
qual pertencem. Compreende uma série de técnicas que buscam reunir,
preparar e usar entrevistas gravadas em áudio ou deo como fonte
primária de pesquisa. O objetivo é a preservação do conhecimento que
está na experiência e memória das pessoas, constituindo-se em um
instrumento fundamental para a compreensão do passado recente. Optar
por História Oral é trabalhar com a subjetividade e a linguagem que se
constrói dentro de um processo histórico.
Importante destacar que, dentre os gêneros da História Oral, este
trabalho situa-se como História Oral Temática, uma vez que se
compromete com o esclarecimento ou opinião do depoente-narrador
sobre um evento definido, que, neste caso, são as suas experiências na
Fonoaudiologia em Salvador, Bahia.
Em síntese, poderia dizer que SCHWARTZMAN me apresentou a
possibilidade de conhecer perguntando a quem viveu a experiência; BOSI
me esclareceu por que e como perguntar, a reverência do momento da
entrevista, os efeitos do entrelaçamento entre depoente-narrador e
pesquisador; e SAFRA trouxe a compreensão desse entrelaçamento com
os sentidos de História, Memória e Narrar.
São muitas as razões que me levaram a este tema e a esta forma
de abordá-lo. Vou citá-las o necessariamente em ordem de
importância, consciente de que não se esgotam e que novas experiências
20
irão se encarregar de ampliá-las: gratidão pelo acolhimento recebido em
Salvador; necessidade de encontrar referências pessoais e profissionais;
necessidade de emoldurar um certo modo de fazer Fonoaudiologia em
Salvador; uma forma de celebrar meu enraizamento na cidade; valorizar,
por meio da divulgação dos relatos, as experiências das precursoras de
nossa profissão, mostrar às novas gerações de fonoaudiólogos as lutas
enfrentadas e vencidas e as que virão; destacar aspectos de nossa
constituição como profissionais de cuidados que estão além do tempo e
espaço – a solidariedade.
Esta pesquisa apresenta, então, as histórias das precursoras do
exercício profissional da Fonoaudiologia na cidade do Salvador, por meio
de suas memórias e narrativas; ou seja, de histórias encarnadas e
singulares, testemunhos presentes de uma interpretação do passado que
nos oferta generosamente reflexões sobre nossa constituição numa área
de atividade de cuidado profissional para com o Outro.
O trabalho está estruturado da seguinte forma:
Capítulo I Histórias da Fonoaudiologia no Brasil
apresentamos um levantamento bibliográfico sobre histórias da
Fonoaudiologia em sites de busca da Internet e base de dados
acadêmicos, e analisamos histórias já contadas sobre a Fonoaudiologia
no Brasil, buscando os seus sentidos e contribuições na nossa
compreensão como categoria profissional. Apresentamos os trabalhos
desenvolvidos por FIGUEREDO NETO (1988), BERBERIAN (1993),
SILVEIRA (1996), DANESI e MARTINEZ (2001) e DIDIER (2001).
21
Capítulo II Percurso Teórico-Metodológico explicitamos os
supostos teóricos que nortearam a definição do objeto da pesquisa A
história da Fonoaudiologia em Salvador na voz das suas precursoras
elegendo a produção acadêmica de BOSI, SAFRA e suas referências
para trazer os sentidos de: história, memória oral, narrar/narrativa e
enraizamento. O caminho metodológico para orientar a construção das
histórias das depoentes foi a Metodologia da História Oral, tendo como
base as proposições de MEIHY. Apresentamos também cada um dos
depoentes que participaram da investigação.
No Capitulo III A voz das narradoras iniciamos
apresentando as entrevistas transcriadas de cinco fonoaudiólogas
precursoras; em seguida, são feitos alguns comentários, destacando o
contexto e o tom vital dessas entrevistas.
Capitulo IV Raízes Tendo em vista o exercício da
Fonoaudiologia, e buscando a reflexão das experiências partilhadas pelas
vozes das narradoras, analisamos brevemente os seguintes aspectos: a
construção da Fonoaudiologia em Salvador como acontecimento singular
e ao mesmo tempo universal; prevalência de um trabalho fonoaudiológico
privatista, como resultado de políticas públicas; reconhecimento por parte
dos pacientes como forma primordial de divulgação da área; investimento
no trabalho de institucionalização da área; primeiras práticas
fonoaudiológicas voltadas para a educação de pessoas surdas e com
deficiência mental; o compromisso com a pessoa antes do compromisso
com “técnicas”, “escolas”, “correntes teóricas”.
22
CAPÍTULO I:
HISTÓRIAS DA FONOAUDIOLOGIA NO BRASIL
23
É crescente o número de trabalhos cujo objeto de investigação é
o conhecimento histórico. Isso pode ser facilmente identificado em um
levantamento preliminar em bancos de dados de rias áreas do
conhecimento. São de fato muitas histórias: de pessoas, profissões,
empresas, lugares, acontecimentos, etc.
Diante disso, Bosi (2004) questiona se o movimento de
recuperação da memória nas Ciências Humanas é, apenas, uma “moda
acadêmica” ou tem origem mais profunda, como necessidade de
enraizamento. A autora conclui dizendo: “Do vínculo com o passado que
se extrai a força para formação de identidade. (...) Fontes de outras
épocas repropõem questões sobre o presente”.
No caso da Fonoaudiologia, estudá-la contemplando sua
dimensão histórico-social possibilita delinear suas identidades e
compreender seus debates atuais no interior das relações sociais. Até por
que, como qualquer outra prática social, trata-se de uma criação humana
cujas idéias estão imersas na filosofia e no entendimento de mundo.
Trabalhar sua história é, nessa medida, uma forma de apropriação de
senso crítico e contextualização que encaminha para uma politização, um
compromisso social. E isto pode ser realizado por caminhos diversos,
cabendo então a explicitação dos sentidos de cada escolha.
Um levantamento bibliográfico sobre histórias da Fonoaudiologia
em ferramentas de busca da Internet e base de dados acadêmicos
24
mostrou alguns trabalhos desenvolvidos no Canadá
4
, na Austrália
5
e nos
Estados Unidos
6
e artigos que tratam, de forma sincrônica, dos
acontecimentos que construíram a Fonoaudiologia na Argentina
7
,
Colômbia
8
, Chile
9
e Brasil
10
.
No trabalho intitulado Getting Here: A short history of Speech
Pathology in America”, DUCHAN
11
constrói um percurso histórico por
meio da análise de publicações da área, estabelecendo quatro períodos:
1) Anos de formação: publicações sobre distúrbios da comunicação
anteriores a 1900 até a Guerra Mundial em 1945; 2) Período de
construção: de 1945 a 1965 grande influência da Psicologia; 3) Era
Lingüística: de 1965 a 1975 e 4) Revolução Pragmática de 1975 a 2000.
Podemos observar, então, que a construção da Fonoaudiologia contou
com a contribuição de outras áreas do conhecimento, principalmente
Psicologia e Lingüística.
4
Acesso em 27/03/07. Disponível em:
<www.slp.utoronto.ca/Assets/SpeechLanguage+Pathology/assets/0203SLP_History.
pdf >
5
Disponível em: <http://www.speechpathologyaustralia.org.au/Content.aspx?p=104>
Acesso em 27/03/2007
6
Acesso em em 27/03/2007. Disponível em:
<www.asha.org/about/publications/leaderonline/archives/2002/q4/021224a.htm> e
< www.acsu.buffalo.edu/~duchan/history.html >
7
Acesso em 27/03/2007. Disponível em:
< www.urosario.edu.co/FASE1/rehabilitacion/pregrado_fonoaduologia.htm > e
< www.asalfa.org.ar/htm/asalfa/historia.htm >
8
Acesso em 27/03/2007. Disponível em:
< http://mtl.fonoaud.utalca.cl/docs/abril_2006/Fonoaudiologia_Colombia_1.pdf >
9
Acesso 27/03/2007. Disponível em:<http://www.fonoaudiologiachile.cl/fono_03.htm>
10
MEIRA, I. - Breve relato da história da Fonoaudiologia no Brasil. In: MARCHESAN, I.Q.
et al; ZORZI, J.L.; GOMES, I.C.D. Tópicos em Fonoaudiologia, IV. São Paulo,
Lovise, 1997. GOLDENBERG, M. Um olhar sobre a Fonoaudiologia no Brasil.
Revista Fonoaudiologia Brasil, dez 98. Ano 1, nº 1. Conselho Federal de
Fonoaudiologia; Cardoso, Carla; Abreu, Thaís T. A Fonoaudiologia na Bahia: uma
história recente. Revista Bahiana de Saúde Pública; 28 (1): 96-99, jan-jun. 2004.
11
Acesso 27/03/2007. Disponível em:
< http://www.acsu.buffalo.edu/~duchan/new_history/overview.html >
25
Em formato mais denso e regionalizado, encontramos no Brasil
os livros que trazem Histórias da Fonoaudiologia no Rio Grande do Sul e
Rio de Janeiro e dissertações de mestrado cujos objetos são histórias da
Fonoaudiologia nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro e no Estado
de Pernambuco. Sobre esses trabalhos faremos considerações buscando
apreender seus sentidos.
Outros autores antes dos acima citados, como ANTONIO
AMORIM (1982) e ISABEL CAPPELLETTI (1985), haviam se referido a
aspectos da constituição história da Fonoaudiologia. Mas FIGUEREDO
NETO (1988) foi pioneira no aprofundamento dessa temática,
desenvolvendo uma pesquisa que relata o início das práticas
fonoaudiológicas em São Paulo, além de sistematizar os acontecimentos
históricos envolvidos na implantação dos primeiros cursos superiores de
Fonoaudiologia na cidade (USP/1961/PUC-SP/1962). Para a autora,
conhecer as origens e preservar a História é o caminho ideal no
reconhecimento de identidades, algo fundamental na superação do
tecnicismo e imediatismo que acredita caracterizar a Fonoaudiologia
como profissão especializada.
Além de destacar atores, instituições (Laboratório de Fonética e
Acústica LFA, Santa Casa e AACD) e documentos envolvidos na
implantação dos cursos superiores, FIGUEIREDO NETO (1988) também
discute aspectos sócio-políticos anteriores ao aparecimento destes cursos
(1930-1960), vinculando a emergência e necessidade do profissional
26
fonoaudiólogo ao ideário Nacionalista do Estado Novo, a partir da década
de 30, e ao Desenvolvimentista, em 1950.
Conta-nos que a medicalização dos problemas sociais
decorrentes, entre outros aspectos, da adoção de uma Língua-Padrão
Nacional Higienizada fez surgir a patologização da linguagem, que
precisava de médicos para o diagnóstico e professores para sua
correção.
Como metodologia de pesquisa, a autora entrevistou profissionais
pioneiros e aqueles envolvidos na criação dos primeiros cursos. Levantou
documentos relacionados ao movimento sócio-político que sustentava os
Projetos da Saúde Escolar e da Escola Nova, como por exemplo, os anais
do Congresso Nacional de Língua Cantada (CNLC), atos e decretos,
jornais e também os referentes à organização inicial dos primeiros cursos
universitários.
Diante desse material, pôde inferir que a apresentação no CNLC
do estudo “Vícios e Defeitos nas falas das crianças dos Parques Infantis”
se constituiu como produto dessa ideologia nacionalista. A autora aponta
que os médicos e professores
12
eram considerados como os
responsáveis pelo processo reeducativo, sendo que os primeiros
“pensavam” e os segundos executavam”, inaugurando as discussões
atuais sobre as atribuições do fonoaudiólogo em relação a médicos e
outros profissionais (veja o Ato Médico)
13
e indicando atividades que,
12
Professores de califasia, ortofonia e ginástica especializada.
13
O Projeto de Lei 025/2002, que institui o Ato Médico, é de autoria do ex-senador
Geraldo Althoff (PFL/SC). O texto da matéria, que sofreu algumas modificações,
ainda condiciona à autorização do médico o acesso aos serviços de saúde e
27
hoje, poderiam ser atribuídas às ações de Promoção de Saúde, como:
ginástica respiratória, música, teatro, hora do conto ou histórias e “higiene
vocal”.
O trabalho de FIGUEREDO NETO (op. cit.) enuncia os primórdios
da Fonoaudiologia na cidade de São Paulo vinculados à atividade
pedagógica e mesclados com posturas do médico e psicólogo, tendo
como pano de fundo os movimentos sócio-políticos presentes no período.
Porém, leituras equivocadas do estudo produziram um discurso
prevalente entre os fonoaudiólogos de que a História da área teria tido
origem na década de 60, a partir da criação dos primeiros cursos
universitários e pela necessidade de um tratamento técnico/ especializado
de pessoas portadoras de distúrbios da comunicação.
Em 1993, BERBERIAN questiona esse discurso, desenvolvendo
uma pesquisa documental na qual discute a presença das práticas
fonoaudiológicas no contexto sócio-econômico-político do Brasil no
período de 1920 a 1940.
Documentos e trabalhos acadêmicos realizados desde o início do
século XX mostram que os distúrbios da comunicação aos quais a
Fonoaudiologia se dedica foram objetos de atenção e atitudes em
estabelece uma hierarquia entre a Medicina e as demais profissões da área. Em
campanha contra essa proposta e trabalhando com base no princípio da
multidisciplinaridade na Promoção da Saúde adotado pelo Sistema Único de Saúde
SUS, profissionais de diferentes categorias da área de saúde defendem que o
Conselho Federal de Medicina se volte para o campo democrático do debate e trate o
assunto com uma visão menos corporativista, na tentativa de ampliar a discussão para
melhorar o atendimento aos cidadãos. Os dicos podem e devem trabalhar a
regulamentação de sua profissão, como forma de a sociedade reconhecer a
competência específica desses profissionais, mas não em detrimento de qualquer
outra profissão na área da saúde. Acesso em 03/02/2007. Disponível em:
<http://www.naoaoatomedico.com.br/paginterna/oquee.cfm>
28
diferentes períodos da história da humanidade, não ocorrendo apenas por
volta da década de 60. A autora destaca que a preocupação com o
tratamento de distúrbios dessa natureza surgiu no Brasil quando essas
iniciativas passaram a ter um papel importante nas formas de organização
social.
14
Uma análise do contexto sócio-histórico do país
15
a partir da
década de 20 mostra uma política sistemática de controle da linguagem
que criava a necessidade de medidas para sua padronização e
normatização, incluindo-se aí o tratamento de pessoas portadoras de
patologias. Assim se justificou a origem da Fonoaudiologia, embora o alvo
fossem pessoas (imigrantes estrangeiros) que, em função das variações
dialetais, vinham “contaminando a língua oficial do Brasil”.
BERBERIAN (1993) observa que a elaboração dos currículos
para a formação dos cursos acadêmicos de Fonoaudiologia na década de
60 foi possível devido a práticas e conhecimentos sistematizados
anteriormente. Nessa medida, essa institucionalização surge como uma
forma de legitimar o controle da linguagem que há décadas já vinha
sendo desenvolvido, vinculado ao universo médico e educacional.
Como parte do questionamento a respeito do marco referencial
institucional como origem da área, a autora discute discursos que, ao
colocarem a Fonoaudiologia como uma profissão jovem (25/30 anos),
trabalham no sentido de não enfrentamento dos conflitos e confrontos
14
Podemos observar este aspecto no que diz respeito ao grande desenvolvimento das
práticas fonoaudiológicas relacionadas às pessoas afásicas no EUA no pós guerra.
15
Um Brasil inserido num ideário mundial de “Eugenia Social” que se construía no pré
Guerra.
29
naturais que a habitam como prática social. São eles: organização como
grupo profissional por meio da criação de órgãos representativos;
valorização e compreensão das áreas afins; campo de trabalho e
remuneração limitados; imagem “tecnicista” da natureza do trabalho e a
delimitação do seu campo de conhecimento teórico-prático a partir do seu
caráter interdisciplinar de atuação.
Quanto a este último aspecto, referente à delimitação do seu
campo teórico-prático, a autora discute a proposição de que a
Fonoaudiologia estabelece com outras áreas uma relação de
“empréstimos”, e que isso colocaria em risco sua autonomia. Argumenta
que a Medicina, a Lingüística, a Psicologia e a Educação têm influência
direta na identidade do fonoaudiólogo, pois foram essas as áreas que
sistematizaram os pressupostos das formas de controle da linguagem que
originaram o processo de constituição de um ramo especializado de
tratamento – a Fonoaudiologia.
“[A Fonoaudiologia] (...) foi e continua sendo
constituída também por outras áreas de intervenção social
tendo em vista que não é possível nenhuma prática original ou
pura, dada a natureza interdisciplinar dos trabalhos voltados a
atender o homem (...)” (BERBERIAN, 1993, p.16 ).
Outra pesquisadora que optou por recuar no tempo, de modo a
elucidar os atores, interesses e ambiente do processo histórico da área,
foi SILVEIRA (1996). A autora pôde compreender o “caráter
privado/elitista e técnico/curativo”, pouco afeito ao pensar crítico de suas
bases teóricas que observa predominar na Fonoaudiologia.
SILVEIRA (op. cit.) descreve e analisa historicamente as práticas
que contribuíram para delimitar o perfil da Fonoaudiologia na cidade do
30
Rio de Janeiro, entre 1963 e 1981. Estabelece, então, dois marcos
referenciais: a criação do Curso de Terapia da Palavra na Secretaria
Estadual de Educação do Estado da Guanabara, em 1963, e a
Regulamentação da profissão de fonoaudiólogo, em 1981, destacando
iniciativas pioneiras na constituição do perfil e formação profissional.
Destaca, ainda, duas matrizes constitutivas no movimento pioneiro de
formação da Fonoaudiologia: a médica e a educacional.
A matriz médica tem início entre 1910 e 1967, com publicações
referentes aos problemas neurológicos e otorrinolaringológicos que
afetavam a comunicação humana, com os programas higienistas e com a
presença do médico foniatra.
Cursos de curta duração, realizados entre 1964 e 1966 na
Associação Brasileira Beneficiente de Reabilitação (ABBR) e organizados
pelo foniatra Dr. Pedro Bloch, iniciaram a capacitação para o exercício
fonoaudiológico, inaugurando a polêmica quanto à autonomia da área
em relação à Foniatria. Outras iniciativas foram a implantação da Unidade
de Tratamento de Foniatria no Centro de reabilitação da ABBR (1968) e o
“Curso de Logopedia”, ligado ao setor de otorrinolaringologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Todas elas podem explicar tanto
a marca tecnicista da Fonoaudiologia, uma vez que esta era tomada
como a parte técnica da Foniatria, como a disputa por autonomia em
relação à área médica, principalmente na regulamentação da profissão.
Quanto à matriz educacional, destaca-se o setor de Ortofrenia e
Psicologia do Instituto de Pesquisas Educacionais (IPE), ligado à
31
prefeitura da cidade do Rio de Janeiro; na época, o Distrito Federal, que
atendia a demanda da rede estadual para as crianças com problemas na
escolaridade e também organizava cursos para profissionais. Crianças
com baixos resultados no teste ABC
16
, de Lourenço Filho, eram então
encaminhadas para esse setor, sendo que o atendimento prestado
evidencia as influências escolanovistas, referidas também na história
da Fonoaudiologia na cidade de São Paulo, com conseqüente
“biologização” das dificuldades infantis.
Ainda segundo SILVEIRA (op. cit.), a Sociedade Pestalozzi do
Brasil, idealizada pela psicóloga Helena Antipoff, estabeleceu em 1960
uma sede no Rio de Janeiro, dando início a práticas fonoaudiológicas com
deficientes mentais. Profissionais dessa instituição (Lucia Bentes e Ruth
Pereira) receberam bolsas de estudos da Organização dos Estados
Americanos (OEA) para um curso de Terapia de Linguagem no México,
com o compromisso de formar terapeutas da linguagem no Brasil. Então,
em 1964, 1966 e 1968, foram promovidos cursos de dois anos de duração
para cumprir essa meta.
17
A autora destaca também a atuação do Instituto Nacional de
Surdo-Mudos (INSM), ou Instituto Nacional de Educação de Surdos
(INES, a partir de 1957), que trouxe sua contribuição na constituição da
Audiologia e promoveu cursos de formação. Em 1951, tem início o Curso
Normal de Formação de Professores Especializados na Educação de
16
Este teste tinha o objetivo aferir o nível de maturidade necessária ao aprendizado da
Leitura e Escrita.
17
Olga Tanajura, uma das colaboradoras da presente dissertação, refere sua formação a
partir deste grupo.
32
Surdos, com a inclusão de disciplinas que, hoje, fazem parte dos
currículos de Fonoaudiologia; e, em 1956, foi fundado o Centro de
Logopedia, com um perfil clínico atendendo queixas de comunicação da
população da cidade
18
.
A Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), em 1961, abriu aulas de “Dicção” (ministradas por Edméé
Brandi) para seus alunos de Didática da Faculdade Nacional de Filosofia;
posteriormente, essa iniciativa foi transformada no Gabinete de
Aperfeiçoamento da Expressão Oral, com cursos oferecidos a toda a
universidade, tendo um perfil estético, mas vinculado à área educacional.
Ainda em 1961, um convênio entre a Secretaria Estadual de
Educação da Guanabara e a Fundação Ford (EUA) deu origem ao Centro
de Terapia da Palavra, tendo à frente Abigail Caraciki, que foi enviada a
Londres para se especializar. O Centro promoveu, em 1963,
o primeiro
curso com intenção definida de formar Terapeutas da Palavra e espalhou
unidades por todo o Estado da Guanabara, que eram gerenciadas por
professoras que realizaram o curso.
Esse Centro teve importante papel na divulgação e consolidação
da Fonoaudiologia (Terapia da palavra), através da realização do Iº e IIº
Simpósio Brasileiro de Terapia da Palavra (1967/ 1969) e a fundação da
Sociedade de Terapia da Palavra. A partir de 1972, porém, novas
orientações governamentais colocavam o Centro fora de suas prioridades,
18
Sonia Veloso, colaboradora deste estudo, relata a participação de professoras de
Salvador nesta formação e afirma o início das primeiras práticas fonoaudiológicas
quando estas ampliam o trabalho para além dos surdos, atendendo as demandas
locais de outros problemas de comunicação.
33
e ele se tornou parte do Instituto Helena Antipoff, como Assistência a
Terapia da Palavra, ficando no Estado de 1963 até 1972, quando foi
transferido por Abigail Caraciki para o Centro de Educação e Pesquisa da
Terapia da Palavra do Instituto Cultural Henry Dunant, o qual mantinha
convênio com a Cruz Vermelha.
Em 1967, foi inaugurado o Curso de Logopedia no Hospital São
Francisco, vinculado ao Departamento de Otorrinolaringologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ. Apesar dessa
vinculação, não era um curso da UFRJ, era particular e mostrava um perfil
mais educacional do que médico, sendo formado por um grupo de
professoras de classes comuns e especiais. Essa situação irregular de
funcionamento do curso dentro da universidade acabou contribuindo para
sua saída da Instituição em 1975. Foi transferido para o Instituto Superior
de Ensino (ISE), mas encerrou suas atividades em 1978, por problemas
internos. Essa iniciativa da universidade pública fracassou e perdeu-se
a oportunidade de se constituir um grande centro de ensino, pesquisa e
extensão em Fonoaudiologia no Rio de Janeiro.
Foi implantado, então, no Serviço de Saúde Escolar do Instituto
de Educação
19
, em 1969, um setor de Foniatria, que funcionava com uma
equipe multiprofissional. O trabalho desenvolvido neste Instituto originou,
em 1979, o Iº Congresso de Fonoaudiologia em Educação, que foi
determinante na estruturação profissional da área, lembrando que a
regulamentação da profissão ocorreu exatamente dois anos após esse
19
Este Instituto foi fundado em 1932 por Fernando Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço
Filho para a formação de professores.
34
evento
20
. SILVEIRA (1996) conclui reafirmando a influência da educação
e medicina na configuração da Fonoaudiologia, que como qualquer outra
prática se construiu no complexo jogo das relações sociais.
No Rio Grande do Sul, DANESI e MARTINEZ (2001) organizaram
um livro com relatos de profissionais que viveram e contribuíram para a
estruturação da Fonoaudiologia no Estado. Esses relatos relacionam as
origens da área à mobilização das famílias que procuravam soluções para
seus filhos “deficientes”; a educadores preocupados em auxiliar seus
alunos com dificuldades; a médicos que buscavam conhecimentos além
da medicina para atender seus pacientes e ao investimento de
professores de canto.
A chegada da especialista em fala e linguagem, Luiza Gratzfelt,
em 1905, para se dedicar à educação de uma criança surda, foi um marco
referencial que determinou, anos mais tarde, a criação da primeira escola
de surdos de Porto Alegre. Essa iniciativa teve desdobramentos no
desenvolvimento das práticas fonoaudiológicas, fazendo com que a
“história da Fonoaudiologia em muitos momentos se confunda com a
História da Educação de Surdos” (DANESI e MARTINEZ, 2001, p. 48).
As décadas de 60 e 70 foram momentos férteis para a área,
devido aos cursos ministrados pelo médico argentino Julio Bernaldo
Quirós; ao retorno de muitos fonoaudiólogos, que se preparavam em São
Paulo, Rio de Janeiro e no exterior; à organização de classe (ASFA
Associação Riograndense de Fonoaudiologia e AFARS Associação
20
Olga Tanajura, colaboradora neste estudo, faz referência a sua participação neste
Congresso representando a Fonoaudiologia de Salvador, Bahia.
35
Fonoaudiologica do Rio Grande do Sul); à criação do Curso de
Fonoaudiologia em Santa Maria (RS) e à luta pela regulamentação da
profissão, com destaque para a participação ativa da fonoaudióloga Alda
Leite Rodrigues.
A história da Fonoaudiologia em Porto Alegre é a história pessoal
de mulheres e homens que acreditavam nas suas possibilidades de
entender a forma pela qual o sujeito se comunica com o mundo.
“Voltando um olhar para o passado, constato que a
Fonoaudiologia desempenhou um papel relevante na minha
vida. Tratar das alterações da comunicação despertou em mim
uma forma diferente de olhar as pessoas e o mundo. Fui,
pouco a pouco, me modificando, fui tendo mais humildade e
desenvolvendo uma super consciência, através de uma busca
constante de respostas, não só para meus pacientes, mas
para minha própria pessoa” (DANESI, 2001, p.166).
Saindo do eixo Sul/Sudeste, temos no Nordeste o trabalho de
DIDIER (2001). A autora realizou um estudo sobre as origens da
Fonoaudiologia em Pernambuco, por meio de fontes documentais
(Faculdade de Ciências Humanas de Olinda, Universidade Católica de
Pernambuco e Secretaria de Educação de Pernambuco) e contatos com
logopedistas precursoras, buscando estabelecer comparações com os
estudos realizados sobre as origens da Fonoaudiologia na cidade de
São Paulo, mais precisamente com o trabalho de BERBERIAN.
Observou, então, que havia um paralelo quanto à postura política social
higienizadora, mas esta não era estendida a questões da fala, devido ao
fato de Pernambuco não ter influências de imigrantes estrangeiros;
portanto, sem apelo à unificação e ao controle da língua. Destacou, ainda,
que em Pernambuco havia a mesma postura observada em São Paulo
36
quanto a responsabilizar o aluno e sua família pelos fracassos escolares,
desconsiderando as questões sociais.
Em síntese, as histórias da Fonoaudiologia descritas pela
literatura mostram que a construção de todas elas apresenta
particularidades dos seus lugares de acontecimento e uma diversidade de
intenções e argumentações, tais como compreender a origem à luz do
momento sócio-político vigente (FIGUEREDO NETO, 1988); recuar no
tempo de forma a ilustrar que o marco institucional da profissão, com os
primeiros cursos de graduação, foi precedido de um processo social
(BERBERIAN, 1993); compreender as dimensões técnicas e curativas
que predominam no campo profissional (SILVEIRA, 1996); informar às
novas gerações as dificuldades e conflitos no processo de constituição da
Fonoaudiologia por meio da exposição da caminhada de diversos atores
(DANESI e MARTINEZ, 2001); estudar as origens do fazer
fonoaudiológico em Recife em confronto com o de o Paulo (DIDIER,
2001). Também os métodos empregados (pesquisa de documentos,
instituições e entrevistas orais) estão inscritos em uma dimensão maior,
que é vislumbrar no projeto histórico a possibilidade de se delinear
identidades e provocar reflexões fundamentais para o desenvolvimento da
área.
37
CAPÍTULO II:
PERCURSO TEÓRICO- METODOLÓGICO
38
Adotar o paradigma de que História não é coleção de fatos
e/ou ação de notáveis, mas é também gesto encarnado que se manifesta
na voz de quem viveu, foi o primeiro passo que me levou às contribuições
teóricas de Ecléa BOSI e Gilberto SAFRA. As idéias desses autores me
permitiram uma compreensão de Homem constituído historicamente e
explicitaram as concepções da Memória e do Narrar como processos de
autoconhecimento e forma de enraizamento. Narrar possibilita acesso à
memória, que traz a experiência vivida, um saber transgeracional - são
processos de compreensão e adaptação do humano entre humanos, e
muito dizem de nossa condição.
1. HISTÓRIA
“Quando se trata de história recente, feliz o pesquisador que
se pode amparar em testemunhos vivos e reconstituir
comportamentos e sensibilidades de uma época!” ECLÉA
BOSI (2004, p.16 e 17).
Definir História é falar da História da humanidade. De todos e de
um. Do singular, que encaminhou a reflexão de muitos, quando pensamos
nas escolas históricas, e dos singulares, que fazem suas histórias todos
os dias, de todos os tempos.
Na introdução de “História e Memória”, LE GOFF (1996) discorre
sobre a etimologia da palavra “História”, trazendo o sentido de “procurar”,
que remete a encontrar, a reunir e, ao mesmo tempo, a buscar, que é
estar aberto à compreensão. É preciso, pois, perguntar:
“A história está sempre no centro das controvérsias. Que
assuntos deve tratar? Os acontecimentos apenas, ou também
os desígnios da providência, os progressos da humanidade,
os fenômenos repetitivos, as estruturas? Deve por a tônica na
39
continuidade ou pelo contrário, nas revoluções, nas rupturas,
nas catástrofes? Deve ocupar-se prioritariamente dos
indivíduos promovidos ao papel de heróis ou de massa; de
quem tem o poder e autoridade no estado ou na igreja ou, pelo
contrário, dos camponeses, do proletariado, dos burgueses,
da população no seu conjunto e de todas as classes que a
compõem? (.....) Trata-se de uma projeção, talvez
inconsciente de preocupações ideológicas contemporâneas no
passado ou de um conhecimento, através de documentos e
monumentos, de economias, de sociedades, de civilizações
afastados de nós no tempo? (....) constitui uma forma literária,
uma narração dos fatos ou uma ciência que os estabelece, os
descreve e os explica.(... ) O debate que põe em jogo todas
estas interrogações e ainda outras continua desde a
Antiguidade e tem todas as possibilidades de se prolongar no
futuro” (LE GOFF, 1996, p. 164/165).
A História é a ação dos homens sobre a natureza, suas relações
e transformações. Quem a faz são os homens com suas maneiras de
pensar, sentir e agir, em permanente movimento, com avanços e recuos,
gerando processos de interação, concorrência, competição, conflito,
acomodação. o histórias sobre tempo ou espaço; histórias sobre
homens.
BOSI (2004) diz que a História que estudamos na escola não
aborda o passado recente, fazendo parecer que se constitui de uma
sucessão linear de lutas de classes por forças diferentes, afastando
aspectos do cotidiano como se fossem de importância menor.
Por outro lado, SAFRA (2002, 2004) coloca que o ser humano é
história e que conceber o homem independente do seu meio, de seu
acontecer e de suas ações no mundo é perder de vista fenômenos
importantes na compreensão da condição humana, porque esta demanda
a presença do outro. O campo cultural continuidade à espécie
humana, transcendendo a vida pessoal e sendo, pois, fundamental para a
sensação de contribuição à herança cultural da humanidade. Isso é
40
realizado por meio dos filhos, da arte, da religião, da História, da ação
política, trazendo a vida do Homem através das gerações. Os objetos
culturais atravessam o tempo e dialogam com seres humanos de outras
épocas.
Nesse sentido, o autor nos apresenta a noção de SOBORNOST
o homem constituído historicamente no passado, no futuro, com os
contemporâneos, com a natureza e com as coisas, em comunidade.
Trata-se de uma concepção ontológica fundamental no pensamento
russo, utilizada nos vértices filosófico, psicológico e teológico, e que
procura iluminar as condições fundamentais para o acontecer humano,
cuja afirmação fundamental é que qualquer situação que frature ou
impeça Sobornost adoece o ser humano.
“SOBORNOST assinala que cada ser humano é a
singularização de muitos. Compreender o ser humano como
singularização da vida de muitos implica dizer que cada ser
humano é a singularização dos seus ancestrais e é
pressentimento dos que virão. Isso não equivale afirmar
somente a existência da influência cultural, mas sim que o
sentido de si é um fenômeno ontológico comunitário, isto é,
acontece em meio à comunidade e como comunidade. Evento
transgeracional, vindo da história em direção ao futuro. A
verdade de si mesmo acontece e se revela somente pelo
reflexo do rosto do outro” (SAFRA, 2004, p.43).
A história do indivíduo é a própria história da humanidade. A
história do homem é a história de suas transformações e, por decorrência
e propriedade, é a própria história da sociedade.
“Poderíamos afirmar que o ser humano é a singularização de
toda a história da humanidade. Cada pessoa é única e
múltipla, pois ao mesmo tempo em que se individualiza, o faz
presentificando seus ancestrais e aqueles com quem
compartilha sua existência” (SAFRA, 2004, p. 25).
Não dúvida da nossa existência como pessoas. O conteúdo
interno de nossa vida pensamentos, afetos, aspirações, desejos,
41
emoções é próprio de cada um de nós; porém, essa forma de ser não é
natural, universal e tão pouco linear. É, sim, determinada historicamente
em decorrência do movimento e das transformações ocorridas na
sociedade. O homem é singular porque sua vida é singular, mas o
conteúdo de sua vida é social, plural.
Quando contamos nossa história, estamos transmitindo aquilo
que sabemos sobre os acontecimentos, afetos e sofrimentos que
marcaram nossas vidas, um “saber” sobre nós mesmos como
protagonistas. Movimento constante que cria subjetividades diferentes e
maneiras diversas de pensar e ver a vida.
História não é reedição do acontecido, é fruto da interpretação.
Ela pode ser feita por meio de depoimentos de pessoas que viveram os
acontecimentos, o que diz respeito à história contemporânea, ou de
documentos (da arte, quadros, fotografias, mapas, jornais, atas, etc),
sendo que, mesmo neste último caso, sempre se submetida à
interpretação, uma vez que, para elegê-los e articulá-los, é preciso partir
de suposições; portanto, podem ser escritas histórias diferentes a partir
da mesma documentação, do mesmo material. Trata-se, pois, de uma
construção sobre o vivido que ocorre no presente.
Com relação aos depoimentos orais, esta relação com a
interpretação torna-se mais óbvia, uma vez que a memória elege o que
será narrado; ou seja, o narrador lembra aquilo que foi relevante ou
significativo. Dois narradores que vivenciaram o mesmo fato o
compreendem cada um a partir da sua singularidade.
42
2. MEMÓRIA
“É preciso começar a perder a memória, ainda que se trate de
fragmentos desta, para perceber que é esta memória que faz
toda a nossa vida. Uma vida sem memória não seria uma vida,
assim como uma inteligência sem possibilidade de exprimir-se
não seria uma inteligência. Nossa memória é nossa coerência,
nossa razão, nossa ação, nosso sentimento, sem ela somos
nada” LUÍS BUÑUEL (1982, p.11)
Memória é tudo aquilo que uma pessoa se lembra, como também
sua capacidade de lembrar. É o processo de aprender, armazenar e
recordar uma informação. Não está localizada na alma, como acreditavam
os gregos antigos, mas não deixa de ser alma, já que transcende o tempo
e o espaço.
Em “Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos”, remetendo-
se a autores como Bergson, Halbwachs, Bartlett e William Stern, ECLÉA
BOSI nos apresenta uma compreensão dos sentidos de memória
fundamental no esclarecimento sobre os caminhos desta pesquisa.
Pautando-se em Bérgson
21
, afirma a autora que o universo das
lembranças não se constitui do mesmo modo que o universo das
percepções. A memória seria o lado subjetivo de nosso conhecimento das
coisas, e sua espontaneidade e liberdade se opõe aos esquemas
mecanicistas que a alojam em algum lugar no cérebro. O passado se
conservaria inteiro e independente no espírito, sendo sua existência
inconsciente. Nessa medida, a memória em si mesma é subjetiva e livre,
uma conservação espiritual do passado sem a intervenção social e
cultural.
21
HENRI-LOUIS BERGSON (1859 - 1941). Filósofo francês influente na primeira metade
do século XX. Prêmio Nobel de Literatura (1927). Obras principais: Matière et mémoire
(1896) L'Évolution créatrice (1907)
43
Já com Halbwachs
22
, BOSI traz a contraposição de memória
como produto de uma atividade puramente subjetiva, introduzindo uma
visão psicossocial da mesma. Halbwachs trata a memória não mais como
relação corpo e espírito, mas como “quadros sociais”, o que é coerente,
como diz BOSI, com sua formação na Sociologia. Ele argumenta que a
conservação total do passado e sua ressurreição só seriam possíveis se o
adulto mantivesse intacto o sistema de representações, bitos e
relações sociais da sua infância. A memória da pessoa é a memória do
grupo, e até as imagens do sonho, que são mais desgarradas do coletivo,
não fogem da determinação do presente. Lembranças da infância estão
sempre misturadas com o que nos foi contado. Outro exemplo é a
experiência da releitura de um livro, que mostra a dificuldade de reviver o
passado tal e qual como foi, impossibilidade que toda pessoa que lembra
tem em comum com o historiador.
Para BOSI, a memória social está na lembrança dos velhos,
porque estes têm uma história social bem desenvolvida, diferente de
jovens e adultos que estão absorvidos pelas lutas do presente. No caso
do adulto, a evocação do passado é fuga, arte, lazer, contemplação;
para o idoso, é trabalho, ocupação consciente do próprio trabalho, da sua
vida.
22
MAURICE HALBWACHS (1877-1945) Sociólogo francês da escola durkheimiana,
estudou filosofia com Henri Bergson, do qual recebeu muitas influências.
44
Afinada com as reflexões de Halbwachs, apresenta Bartlett
23
,
segundo o qual a matéria prima da recordação não surge em estado puro
na linguagem do falante que recorda, mas é estilizada pelo ponto de vista
cultural e ideológico do grupo a que este pertence. Ou seja, redes de
convenção verbal conduzem a lembrança. Há relação entre o ato de
lembrar e a importância existencial e social do fato recordado para aquele
que recorda. O que se lembra está condicionado ao interesse social do
fato lembrado, e o como se lembra, ao temperamento e caráter daquele
que lembra.
Bartlett fala do tratamento que cada imagem nova sofre na
memória fazendo uma analogia com o processo de modelagem que dada
forma cultural civilizada sofre ao ser transferida para um grupo indígena.
As possibilidades são: simplesmente incorporar (Assimilação); ou
descartar os aspectos estranhos a sua prática social (Simplificação); ou
dar uma relevância especial a um aspecto que é detalhe na fonte original
(Retenção parcial ou hipertrofia de detalhe) ou então construir uma “outra”
forma simbólica, transformar o que foi recebido. Há, pois, construção
social da memória. BOSI (1999, p. 66) afirma: “A memória das pessoas
também dependeria desse longo e amplo processo, pelo qual “fica” o que
significa. E fica não do mesmo modo: às vezes quase intacto, às vezes
profundamente alterado.”
23
SIR FREDERIC CHARLES BARTLETT (1886-1969) psicólogo britânico e professor de
Psicologia Experimental na Universidade de Cambridge. Reino Unido. Obra de
referência: Remembering (Cambridge University Press, Cambridge, 1932).
45
BOSI (op.cit.) finaliza suas reflexões teóricas com William Stern
24
e a dualidade na consideração da memória: as mutações da pessoa e, ao
mesmo tempo, a sua “unidade constante” permitem um período de
latência das percepções, que por motivos diversos aflora a memória. Uma
unidade constante que permite a reanimação de uma imagem que foi
recebida muito tempo antes, denominada “pessoa”. O passado entra
plasticamente no universo pessoal, e a lembrança é a história da pessoa
e suas experiências vividas.
Conclui BOSI que os modos de recordação de uma pessoa
podem ser compreendidos pela narrativa da sua vida – sua Memória.
Memória é um conceito tão ligado à história, que se confunde
com ela – para alguns, a memória é criada a partir da história; para
outros, a primeira é anterior à segunda. História é a construção do que
lembramos. Guardamos aquilo que, por um motivo ou por outro, tem ou
teve algum significado em nossas vidas, mas não representa um
depósito de tudo o que nos aconteceu; é uma reconstrução psíquica e
intelectual que faz uma representação seletiva do passado não do
indivíduo, mas dele inserido num contexto familiar, social, nacional. É,
portanto, coletiva e visa garantir a continuidade e resistir à mudança do
tempo e rupturas da vida; ou seja, é elemento essencial da identidade, da
percepção de si e dos outros (ROUSSO, 2001).
24
WILLIAM LEWIS STERN (1871-1938) Filosofo e Psicólogo alemão, pioneiro no campo
da Psicologia da Personalidade e Inteligência.
46
História e Memória pouco ou nada têm a ver com o conceito de
verdade; ou melhor, questionam a verdade tornando-a lembrança de certa
forma ficcional, uma narrativa que se recria e na qual se acredita.
"A construção e a narração da memória do passado, tanto
coletiva quanto individual, constitui um processo social ativo
que exige ao mesmo tempo engenho e arte, aprendizado com
os outros e vigor imaginativo" (THOMPSON, 1988, p.185).
A memória une o passado com o presente e permite o futuro. O
lembrado é sempre depois do acontecido, e o tempo entre o
acontecimento e a recordação traz novos códigos de análise; sendo
assim, a lembrança não é o vivido.
As memórias individuais alimentam-se da memória coletiva e
histórica e incluem elementos mais amplos do que a memória construída
pelo indivíduo e seu grupo. Submetem-se a questões inconscientes, como
o afeto, a censura, entre outros, sendo que um dos elementos mais
importantes que afirmam o caráter social da memória é a linguagem. As
trocas entre os membros de um grupo se fazem por meio de linguagem.
Lembrar e narrar se constituem da linguagem, que é, pois, o instrumento
socializador da memória, reduzindo, unificando e aproximando, no mesmo
espaço histórico e cultural, vivências tão diversas como o sonho, as
lembranças e as experiências recentes (BOSI, 1999).
A memória coletiva tem a importante função de contribuir para o
sentimento de pertinência a um grupo de passado comum, que
compartilha memórias. Ela garante o sentimento de identidade do
indivíduo calcado numa memória compartilhada não só no campo
histórico, do real, mas sobretudo no campo simbólico.
47
Recordar a própria vida é fundamental para o sentimento de
identidade, e lidar com a lembrança fortalece a autoconfiança
(THOMPSON, 1988).
As memórias são a matéria-prima da História. Elas podem ser
orais ou materiais - as primeiras dizem respeito diretamente às narrativas,
que é o meio de acessá-las, e as materiais dizem respeito à arte: pintura,
música, fotos, filmes etc.
BOSI (2004) destaca que a memória oral é um instrumento
precioso na constituição da crônica do cotidiano, pois a história dos
documentos oficiais não conta das paixões individuais que estão atrás
dos acontecimentos. A maior riqueza da memória oral está no
afastamento da unilateralidade, uma vez que faz surgir pontos de vista
contraditórios.
A valorização da memória histórica apresenta-se:
“...idealmente como âncora e plataforma. Enquanto âncora,
possibilita que, diante do turbilhão de mudança e da
modernidade, o nos desmanchemos no ar. Enquanto
plataforma, permite que nos lancemos para o futuro com os
pés solidamente plantados no passado criado, recriado ou
inventado como tradição” (LOVISOLO, 1989, p. 17).
3. NARRAR
“A narração é uma forma artesanal de comunicação. Ela não
visa a transmitir o “em si” do acontecido, ela o tece até atingir
uma forma boa. Investe sobre o objeto e o transforma”
(ECLÉA BOSI, 1999).
O Narrar é a forma de acesso à memória. Tem a função de
exorcizar o passado, glorificando, compreendendo. Quando o vivido é
passado para as palavras, ele se torna História, um acontecimento, uma
48
re-elaboração das dores e alegrias. Isto instaura a possibilidade de
redimir o já vivido, atribuindo novos significados, perdoando, convivendo e
aprendendo.
BENJAMIN (1994) é autor freqüentemente citado quando se
busca a compreensão do narrar. Inicia o capitulo “O Narrador:
Considerações sobre a obra de Nikolai Lescov”, levantando a questão de
que a arte de narrar está em vias de extinção e que quando se pede num
grupo que alguém narre, o embaraço é generalizado, como se
“estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e
inalienável: a faculdade de intercambiar experiências”. Seu texto fala da
narrativa em relação ao romance como gênero literário, mostrando a
ruptura que este último representou em relação ao mundo cultural do
narrador. BENJAMIN comenta as narrativas de Lescov
25
destacando que
elas giravam em torno da idéia de acontecimento exemplar que trazia
sabedoria na sua força alegórica, sendo que não cabiam explicações nem
comentários, o acontecimento narrado. E é justamente com essa
tradição que o romance rompe – a linguagem alegórica já não é suficiente
e é preciso explicar e comentar os fatos.
Dois grupos de narrativas, que se relacionam, são comentadas
por BENJAMIN, uma que vem pelo viajante (“Quem viaja tem muito que
contar”), trazendo os lugares distantes, e outra pelo camponês que nunca
saiu de sua terra, mas que participa da ligação entre gerações, suas
25
Nikolai Lescov.(1831-1895) “Escritor da Rússia antiga, dos contos ligados as narrativas
orais em circulação. Ele viajava pela Rússia reunindo documentos, lendas, coisas
estranhas contadas em linguagem popular” (...) Leskov é um clássico russo da maior
importância, à altura de Tolstoi, Tchecov e Dostoievski” (PEREIRA, 2005, p.10 e 11).
49
histórias e tradições. “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a
fonte a que recorreram todos os narradores”. Para o autor, as melhores
narrativas escritas o aquelas que não se distinguem das orais, que
são possíveis graças a experiência vivida. A narrativa é uma comunicação
artesanal que encerra em si uma dimensão prática, um conselho, um
ensinamento moral ou de jeito de viver.
“(...) se “dar conselhos” parece hoje antiquado, é porque as
experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em
conseqüência, não podemos dar conselhos nem a nós
mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos responder a
uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de
uma história que está sendo narrada. (..) O conselho tecido na
substancia viva da existência tem um nome: sabedoria”
(BENJAMIN, 1994, p. 200).
Para SAFRA, (2006, pp. 21-24) de fato, os textos de Leskov
ensinam sobre a condição humana e a vida, assinalando que toda obra
humana acontece no acolhimento da tradição e pela ruptura desta mesma
tradição. O Narrar articula-se, então, entre a tradição e o que virá, junta o
passado, o presente e o futuro. Significa compartilhar uma experiência,
que é ao mesmo tempo pessoal e transgeracional; para tanto, é
necessário que a pessoa esteja enraizada em uma comunidade, pois é a
presença do Outro. no narrar o paradoxo de se “estar aberto para o
inédito com um pé na tradição” (SAFRA, 2006).
“A narrativa, ao mesmo tempo em que possibilita o tempo da
experiência, sempre nos apresenta o para além tempo. É o
tempo do eterno. Por essa razão encontramos no narrar uma
experiência que resiste ao esquecimento. Ele constitui, desse
modo, a memória do que é significativo: a verdade da
condição humana” (SAFRA, 2006, p. 30).
A narrativa se contrapõe à informação, porque fala da experiência
vivida, do conselho, daquilo que nos enraíza. Estamos vivendo o tempo
da anti-experiência, porque, limitando o convívio pela “pressa”, pelo ritmo
50
de vida acelerado, substituímos a “prosa” do vivido pela informação que
vem apartada do humano e não tem rosto, que não permite o
compartilhar, que não traz a sensação de pertencimento aos dramas do
viver que nos comungam, essencial para o enfrentamento das dores
desse viver. O que sentimos, pensamos e sofremos outros também
sentiram, pensaram e sofreram; e ter a consciência disso acalma e
oferece alento para caminhar na vida (SAFRA, 2004).
SAFRA (2006) observa dois aspectos fundamentais do narrar: a
possibilidade de nos reconciliar com a vida frente ao destino, uma vez que
visualizar passado, presente e futuro em processo nos posiciona frente a
questão da morte, abrindo possibilidade de lidar com a finitude, e a
abertura ao perdão como compreensão dos encontros e desencontros na
experiência e sua superação, que permite o caminhar.
Narrar para poder viver, para continuar vivendo e, se possível,
para seduzir e posteriormente envolver o ouvinte com a história, ou
melhor, na história, é texto sempre associado à narradora exemplar
Sherazade, dos contos “As Mil e Uma Noites
26
, e também à epigrafe
“Todas as mágoas são suportáveis quando fazemos delas uma história ou
contamos uma história a seu respeito”, de Isak Dinesen
27
, usada por
Hanna Arendt no início do capítulo V do seu livro “A Condição Humana
28
são, de fato, instâncias exemplares dos sentidos atribuídos por SAFRA
ao narrar.
26
As Mil e Uma Noites: obra clássica da literatura árabe, consistindo numa coleção de
contos orientais compilados entre os séculos XIII e XVI.
27
Isak Dinesen (1885/1962). Escritora dinamarquesa.
28
Arendt, Hannah. A condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1997.
51
4. HISTÓRIA ORAL
“Às vezes até queremos fazer a história dos outros, mas a
escolha do tema, a organização do projeto e a condução das
entrevistas demonstram que estamos sempre fazendo
também nossa própria história” (RUBEM FIGGOT, apud
MEIHY, 2005, p. 122).
três principais posturas a respeito do status da História Oral.
Uma advoga a História Oral como técnica, ou seja, a utilização da
entrevista como fonte de informação complementar; a segunda postula
um status de disciplina e a terceira a defende como metodologia; ou seja,
estabelece e ordena procedimentos de trabalho funcionando como ponte
entre teoria e prática (AMADO e FERREIRA, 2001).
Neste estudo optamos pela terceira opção - elegendo
procedimentos e seus pressupostos teóricos para auxiliar a busca das
experiências das pessoas frente a determinados acontecimentos,
possibilitando a recuperação do vivido através da narrativa.
A Metodologia da História Oral constitui um recurso moderno
usado para a elaboração de documentos, arquivamento e estudos
referentes a pessoas e grupos. Compreende todo um conjunto de
atividades anteriores e posteriores à gravação de entrevistas com
pessoas que podem testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas,
instituições, modos de vida ou outros aspectos da história contemporânea
história viva, do tempo presente. É o registro da história de vida de
indivíduos que, ao focalizar suas memórias pessoais, constroem uma
visão dinâmica da trajetória do grupo social ao qual pertencem. Sua
utilização data dos anos 50, após a invenção do gravador, nos Estados
52
Unidos, na Europa e no México, sendo praticada entre historiadores,
antropólogos, cientistas políticos, sociólogos, pedagogos, teóricos da
literatura, psicólogos, fonoaudiólogos e outros. Optar por História Oral é
trabalhar com a subjetividade e a linguagem que se constrói dentro de um
processo histórico.
PAUL TOMPSON (1988, p. 197/198) observa:
“Toda fonte histórica derivada da percepção humana é subjetiva, mas
apenas a fonte oral permite-nos desafiar essa subjetividade: descolar as
camadas da memória, cavar fundo em suas sombras, na expectativa de
atingir a verdade oculta. Se assim é, por que não aproveitar essa
oportunidade que nós temos entre os historiadores, e fazer nossos
informantes se acomodarem relaxados sobre o divã, e, como
psicanalistas, sorver em seus inconscientes, extrair o mais profundo dos
seus segredos?”.
A História Oral permite aproximar depoente e pesquisador,
trazendo conhecimento e respeito mútuo e a possibilidade de acesso a
uma pluralidade de memórias e perspectivas do passado, ultrapassando a
descrição para compreender seus significados. “(...) O fundamento
essencial da Historia Oral é estabelecer a relação entre identidade e
memória – ou vice-versa (...) (MEIHY, 2006, p. 142)
Vários são os gêneros de História Oral, sendo que este estudo
pode ser classificado como História Oral Temática, diferenciando-se de
História Oral de Vida, uma vez que relaciona os detalhes da vida pessoal
do narrador à temática central – Histórias da Fonoaudiologia em Salvador.
A construção das narrativas obedeceu às seguintes etapas:
Meu contato profissional/pessoal com os colegas fonoaudiólogos
na cidade do Salvador levou-me a observar um número significante de
53
profissionais que poderiam ser eficientes colaboradores/depoentes
29
nesta tarefa de construir narrativas sobre faces da Fonoaudiologia nesta
cidade.
Diante da impossibilidade da participação de um número muito
extenso de colaboradores, e das limitações de tempo do projeto, optamos
pela formação da rede, que constitui uma subdivisão da colônia, ou
seja, do grupo estudado (fonoaudiólogos na cidade do Salvador), para
estabelecer os parâmetros de escolha dos colaboradores. Forma-se a
rede pela realização de uma entrevista inicial, denominada “ponto zero”,
com um colaborador que conheça a história do grupo e que, a partir do
seu depoimento, indica os próximos colaboradores.
A entrevista “ponto zero” foi realizada com a fonoaudióloga
Carmen das Graças Fernandes, por ter conhecimento de que a mesma
mantém uma forte rede de contatos com fonoaudiólogos que iniciaram
suas práticas em Salvador antes e após 1979, data do início da sua vida
profissional em Salvador, além de contínua militância profissional na
Associação Profissional dos Fonoaudiólogos do Estado da Bahia
(APROFEB).
As entrevistas foram desenvolvidas em três etapas:
Na Pré-entrevista houve a preparação do encontro; ou seja,
foram feitos acertos sobre local, horário, tempo de entrevista,
procedimentos de registro e esclarecimentos sobre o projeto e seus
desdobramentos, tais como a transcrição absoluta, que é a passagem
29
Na História Oral o depoente é denominado colaborador porque assume papel
significativo durante todo o processo.
54
completa, com todos os detalhes sonoros, da entrevista gravada para a
escrita (inclui: sons de campainhas, barulho de animais, ruídos em geral);
transcrição literal: é a passagem de todas as palavras de uma entrevista
para o texto escrito; textualização: é a transcrição trabalhada, integrando
as perguntas, estabelecendo a lista de palavras importantes e das
expressões básicas das histórias, sendo que é nesta fase que é escolhido
o tom vital; transcriação: é a entrevista trabalhada em sua fase de
apresentação pública. As correções gramaticais, entre outros aspectos,
devem ser estabelecidas nessa etapa. É o texto recriado e legitimado pelo
colaborador após a sua conferência, ou seja, é a versão por ele
autorizada.
Uma questão importante para quem trabalha com História Oral
em sentido completo, ou seja, não usando apenas as gravações como
meras entrevistas, diz respeito ao momento em que se encontra o Tom
Vital. Trata-se da frase escolhida para ser colocada na introdução, que
serve como guia para a leitura da entrevista, uma vez que representa uma
síntese moral da narrativa. Definir o tom vital é essencial para se
compreender que toda entrevista tem uma mensagem central, subjetiva
(MEIHY, 2006).
Foram também prestados esclarecimentos sobre o uso das
entrevistas na dissertação, a responsabilidade do autor na guarda do
material e a possibilidade de arquivamento das gravações e transcrições
em Projeto de Memória da Fonoaudiologia em Instituição depositária a ser
definida futuramente. O colaborador assinou termo de conhecimento das
55
suas atribuições e do entrevistador, assim como o consentimento para a
realização da entrevista. (Anexos A e B )
30
.
Entrevista: Foi explicado ao colaborador que relatasse a sua
história na Fonoaudiologia na cidade do Salvador guiado pela sua
memória, ficando ao seu critério decidir por onde começar. O
entrevistador faria intervenções somente se fosse necessário. O tempo
máximo de gravação foi 90 minutos.
Pós-entrevista: foram feitos agradecimentos e esclarecimentos
sobre o andamento do projeto, e o colaborador trabalhou na conferência
do texto transcriado até que este fosse autorizado para a publicação.
5. COLABORADORAS/ NARRADORAS
As colaboradoras deste estudo foram todas mulheres. De fato, a
Fonoaudiologia é uma profissão que vem sendo majoritariamente
construída por mulheres.
31
Vamos apresentá-las começando por Carmen
das Graças Fernandes, a entrevista marco zero.
5.1 ENTREVISTA MARCO ZERO
Carmen foi escolhida para iniciar a rede de colaboradoras pelo
estreito contato com fonoaudiólogos que atuam em Salvador desde antes
de 1979, ano de início da sua vida profissional nessa cidade, e pela atual
30
O projeto foi aprovado pelo Parecer da Comissão de Ética em 10/04/2006 sob o
0010/2006 atendendo os critérios éticos da Portaria 196/96 do Conselho Nacional de
Saúde.
31
PEREIRA, A.C. Fonoaudiologia e História oral: uma narrativa sobre uma
profissão construída por mulheres. Dissertação de mestrado da PUC-SP,1999. A
autora faz uma reflexão sobre o predomínio feminino na Fonoaudiologia onde observa
o embate entre o desempenho dos papéis femininos mais tradicionais e exercício
profissional no mundo do trabalho. Concebida como atividade dirigida a crianças com
horário flexível, viabiliza a dupla jornada feminina no trabalho.
56
e constante militância profissional como membro da APROFEB
Associação Profissional dos Fonoaudiólogos do Estado da Bahia.
Natural de Petrópolis, Estado do Rio de Janeiro, na ocasião deste
estudo Carmen tinha 50 anos de idade. Graduou-se em Fonoaudiologia
pela Universidade Católica de Petrópolis (RJ), em 1978, e iniciou suas
atividades profissionais em Salvador em 1979, numa instituição
reabilitadora Clínica Pinto Duarte. Estava então atuando em consultório
particular e como docente. Mostrou-se receptiva a participar como
colaboradora e entusiasmada com o projeto e com a possibilidade de
compartilhar suas experiências, além de sempre reforçar a importância
desse conhecimento para nossa classe em Salvador.Tempo de
entrevista: 150 minutos.
Partindo das suas referências, construímos a rede de
colaboradores realizando a “colheita” das narrativas dos colegas
fonoaudiólogos, totalizando quinze
32
entrevistas (quatorze mulheres e um
homem), com duração média de 90 minutos, gravadas em vídeo. Destas,
somente quatro colaboradoras que iniciaram suas práticas em Salvador
antes de 1979 e a entrevista marco zero serão apresentadas. As
entrevistas o abordadas nesta oportunidade poderão constituir um
32
Marco de referência de inicio das atividades em Salvador: PRECURSORAS
DÉCADAS DE 50/60: 1.Lia Mara, 2.Olga Tanajura, 3. Aidil Prazeres e 4. Sonia Veloso;
1976: 5.Eva Musa, 6.Leonora Bastos da Siva, 7.Carmen Fernandes, 8.Silvia Reis,
9.Regina Grangeiro, (Marisa Gondim, Eliane Giusti); 1984: 10. Ana Pimenta, 11. Ana
Graner Falcão, 12.Hercílio, (Helena Linhares, Célia Fernandes, Ivalda Gomes )
1990: 13.Silvia Ferrite, 14.Renata Scarpel, 15.Valéria Leal, (Claudia Lopes, Célia
Thomé, Cecília Pereira, Gloria Canto e Carla Padovani). Os nomes em negrito e
entre parênteses foram contactados e poderão se constituir narradores para projeto
futuro juntamente com as entrevistas realizadas, mas não trabalhadas nesta
dissertação.
57
arquivo aberto a novas investigações. Apenas uma colaboradora desistiu
de sua participação após a conferência, porque não ficou satisfeita com
sua entrevista e não quis que sua gravação fosse arquivada, como
previsto no desdobramento do projeto.
As pessoas que compõem este banco de dados receberam
informações sobre o desenvolvimento da pesquisa e cópias das
transcrições e textualizações das entrevistas para conferência, assim com
uma cópia da entrevista gravada em vídeo.
5.2 FONOAUDIÓLOGAS QUE FAZEM HISTÓRIA
Elieth Leal D’Araujo (Lia Mara), fonoaudióloga, 74 anos, natural
de Salvador, graduada em Direção Teatral em 1972 e professora
aposentada da Escola de Arte Dramática da Universidade Federal da
Bahia UFBA. Viveu as primeiras práticas fonoaudiológicas em Salvador
no início dos anos 60 e continua até hoje realizando um trabalho
relacionado à comunicação humana em um espaço que construiu em sua
casa. Tempo de entrevista: 90 minutos
Olga Lima Rodrigues Tanajura, natural de Caetité, interior da
Bahia, fonoaudióloga pelo Curso de Terapia da Palavra ministrado pelas
professoras Lucia Bentes e Ruth Pereira, no Rio de Janeiro, em 1968,
graduada em Pedagogia em 1978, em atuação nas práticas
fonoaudiológicas desde o final da década de 50. Trabalha atualmente em
seu consultório particular e já cuidou de muitas gerações de baianos,
sendo um nome reverenciado por todas as gerações de fonoaudiólogos e
profissionais de áreas afins em Salvador.Tempo de entrevista: 90 minutos
58
Sonia Veloso, fonoaudióloga, 60 anos, natural de Caetité, interior
da Bahia, graduada em Pedagogia, funcionária pública aposentada da
Secretaria de Educação do Estado da Bahia. Pioneira em Salvador no
trabalho com Audiologia e pessoas surdas. Atualmente, atende em seu
consultório particular e trabalha com grupos de relações interpessoais e
pessoas surdas. Tempo de entrevista: 50 minutos
Leonora Bastos da Silva, 53 anos, fonoaudióloga graduada pela
Universidade Católica de Petrópolis (RJ) em 1975, natural da cidade do
Rio de Janeiro, com início do exercício fonoaudiológico em Salvador em
1976. Atualmente, trabalha em consultório particular e atua em Saúde
Coletiva na área de Saúde Mental como funcionária da Prefeitura de
Salvador e prestadora de serviço na Secretaria da Saúde do Estado da
Bahia. Tempo de entrevista: 90 minutos.
Vamos, então, às narrativas.
59
“(...) Do novelo emaranhado da memória,
da escuridão dos nós cegos,
puxo um fio que me parece solto./
Devagar o liberto,
de medo que se desfaça entre os dedos./
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a maciez quente do lodo vivo/.
É um rio/.
Corre-me nas mãos, agora molhadas/.
Toda a água me passa entre as palmas abertas,
e de repente não sei se as águas nascem de mim,
ou para mim fluem./
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas
o próprio corpo do rio.(...)
(SARAMAGO, Pequenas Memórias, p.14
2006)
CAPITULO III:
VOZ DAS NARRADORAS
60
“(...) lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar,
com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A
memória não é sonho, é trabalho. (...)” ( BOSI, 1999).
Não é minha intenção aqui buscar pontos de vista comuns, nem
destacar congruências e incongruências das histórias apresentadas, mas
deixar com que as vozes das narradoras provoquem a ampliação de
reflexões sobre nós mesmos e sobre a Fonoaudiologia como prática
social.
As entrevistas, de fato, falam por si mesmas, tal a riqueza das
experiências narradas. E, por isso, configuram-se sempre como um
desafio, porque despertam imeros questionamentos a respeito do que
pode ser revelado, do que se quer lembrar ou esquecer, dos fatos, dos
sentimentos que despertam e da escuta que se oferece ão marcada
pela intersubjetividade. Recordar não é, portanto, um processo
espontâneo e livre, mas exige esforço e empenho, “dá trabalho”
memória é trabalho.
Por fim, apesar de as memórias serem constituídas das
experiências compartilhadas sobre o tema definido Fonoaudiologia
vivida em Salvador -, elas serão sempre singulares e únicas, pois cada
uma dessas pessoas traz consigo uma experiência própria de vida.
Interessante observar a postura dos colaboradores e do
entrevistador em todas as fases da realização das entrevistas.
Na pré-entrevista sentimentos tais como orgulho por ter sido
lembrado; medo de não recordar os fatos, de não oferecer dados
fidedignos, numa compreensão de que história são verdades
61
incontestáveis, que necessitam de datas e fatos; resistência quanto à
confiabilidade do projeto (alguns não conheciam a pesquisadora);
preocupação em focar dados institucionais também na compreensão de
que a história é institucional, só diz respeito a entidades constituídas
oficialmente (o início da associação profissional, cursos).
Lembro-me que me surpreendi com os meus sentimentos antes
de realizar as entrevistas. Considerava uma rotina fazer os contatos,
afinal é a “minha coleta de dados”; mas, a cada telefonema, era
surpreendida, pois uma quase entrevista acontecia. As pessoas se
entusiasmavam (mesmo as resistentes), e eu me sentia gratificada com a
proposta, sem falar naquela curiosidade boa que aumentava a motivação
para o trabalho.
Fui à primeira entrevista com uma ansiedade que não entendia.
Dizia: “Calma Rina, é uma entrevista”. Sem ainda saber, pressentia
a importância e os efeitos do momento que se aproximava, que
estaríamos participando de uma aventura comum de gratidão pelo
aprendizado na escuta e de orgulho do passado digno de recordar
(MAALOUF, 2005). E a ansiedade persistiu até o último encontro, que
a experiência tinha trazido a compreensão. Esta frase faz todo sentido:
“Narrar oferta à pessoa a possibilidade de se apropriar das experiências
que lhe visitaram como um saber sobre a condição humana” (SAFRA,
2006, p. 28).
O ato da entrevista, propriamente dito, trouxe um universo
imprevisível de sentimentos. O início era formal, um pouco angustiado e
62
defendido, mas depois adquiria uma liberdade, e a recordação fluía sem
pudor, trazendo o vivido reconstruído.
Minha impressão era de estar presenciando um guerreiro
narrando suas sagas. Choros, explicações, conclusões inesperadas,
gratidão, perdão e redenção e, principalmente, a surpresa quanto à
capacidade de evocar as lembranças e do rumo independente da
narrativa.
Emocionava-me a cada palavra, por trazer experiências vividas
em comum, por falar de pessoas comuns que já partiram em várias
direções, pela confiança de dividirem comigo parte de suas essências,
assim como por presenciar o orgulho pela área em que atuamos.
Ao iniciar a seqüência de entrevistas com Carmen Fernandes,
estava impregnada de uma necessidade de colher fatos, mesmo que
teoricamente já tivesse me apropriado de outros sentidos para as
entrevistas; mas, de repente, comecei a me dar conta de que cada
encontro produzia novos efeitos na realização dos próximos. Minha
postura foi ficando cada vez mais pessoal, e minha forma de introduzir a
entrevista foi se modificando no sentido de buscar histórias de vida na
Fonoaudiologia em Salvador. As colaboradoras foram, passo a passo, me
esclarecendo que os fatos estavam encarnados e que a essência estava
exatamente aí. Elas também tentavam, inicialmente, se ater aos fatos
fonoaudiológicos locais”, mas, quase sem perceber, iam assumindo a
Fonoaudiologia na vida. Observei esses efeitos quando uma das últimas
colaboradoras iniciou sua entrevista dizendo “estou aqui atendendo ao
63
convite da minha colega Rina, para que eu pudesse falar como surgiu a
Fonoaudiologia na minha vida”.
Após as entrevistas, a maioria dos colaboradores ligou para fazer
considerações, oferecer fotos, informações e contar novos fatos. Observo
uma mudança de postura, quase uma cumplicidade velada estabelecida
entre mim e minhas colaboradoras. Antes do exame de qualificação, reuni
então o grupo, para conversarmos sobre o trabalho realizado, e foi
muito gratificante observar os discursos pontuados de entusiasmo por
lembranças compartilhadas, pela sensação de orgulho pelas lutas
empreendidas e pelos planos de trabalho futuro que formulavam.
Vamos ouvir as vozes. Escolhi apresentar as narrativas pela
ordem de realização das entrevistas, visto que, a cada novo encontro,
minha postura e minha escuta se colocavam inevitavelmente afetadas
pelo anterior, porque a cada história compartilhada eu não era a
mesma. Acredito que essa seqüência pode oferecer ao meu leitor
condições de observar aspectos da intersubjetividade, articulando as
tramas que se desenvolveram e que, pelo meu envolvimento, podem ter
me escapado neste momento.
No final de cada narrativa, faço alguns comentários e reflexões,
observando o contexto de realização das entrevistas e a busca do “tom
vital”, como definido por MEIHY (2006).
64
1. HISTÓRIA DE CARMEN FERNANDES OU O SENTIDO DA
GRATIDÃO
Hoje é 24 de março de 2006 e meu nome é Carmen das Graças
Fernandes. Cheguei a Salvador em maio de 1979, para trabalhar na Clínica
do Dr.Júlio Pinto Duarte
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substituindo a fonoaudióloga Leonora Bastos da
Silva. Graduei-me em dezembro de 1978 e vim para Salvador para
trabalhar com crianças com Paralisia Cerebral e Atraso de Linguagem.
Encontrei uma série de dificuldades no início, porque eram poucos os
fonoaudiólogos e eu conhecia Leonora e Sônia Tocantins. Como recém-
formada, tinha necessidade de alguém que me desse suporte, embora
tivesse encontrado um serviço já montado.
Em 1980, fui convidada para participar de uma reunião na Clínica
de Leonora, que nesta época trabalhava com Maria Amália, fonoaudióloga,
que foi embora de Salvador, mas precursora, como Olga Tanajura, Lia
Mara, Aidil Prazeres, Sônia Veloso. Na verdade, a reunião foi solicitada por
Olga Tanajura, que, retornando de um Congresso no Rio de Janeiro,
procurou congregar os colegas em Salvador para dar apoio ao movimento
de regulamentação da profissão. O grupo era constituído de 18
fonoaudiólogas, todas mulheres, residindo em Salvador, na grande maioria
por causa do trabalho de seus maridos no Pólo Petroquímico de Camaçari.
Muitas delas só ficaram um ou dois anos e depois retornaram ao seu local
de origem. Foi uma época de muito entusiasmo, e a motivação da
regulamentação da profissão trouxe reuniões semanais, atividades
33
Neurologista já falecido, pioneiro no tratamento da Paralisia Cerebral em Petrópolis,
RJ.
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científicas, elaboração de documentos e até visitas a Brasília. Olga optou
por não estar à frente do movimento, e Leonora assumiu a liderança, sendo
as reuniões realizadas no seu consultório.
Estas reuniões me proporcionaram acolhimento, na medida em
que laços pessoais começaram a se estreitar. Eu me sentia muito só, e
embora conhecesse pessoas de outras áreas, elas não estavam tão
disponíveis. Lembro-me de algumas pessoas que participavam das
reuniões, como Sônia Siqueira, Isabel Guimarães, Maria da Assunção
Sanches. Maria da Assunção foi uma pessoa muito importante nessa fase,
porque ela cedeu carro, motorista, advogado da firma do marido e ajudou
muito. Ela já faleceu e a sua lembrança me emociona, porque, nesta
época, eu tinha apenas 23 anos e nosso relacionamento foi marcado por
um tom maternal, porque ela estava sempre presente, cobrando, exigindo,
mas sempre ajudando. Infelizmente ela nos deixou muito cedo, mas, de
certa forma, conseguiu ver a profissão regulamentada e se realizou
profissionalmente.
Esta associação era chamada de Núcleo Pró-Associação dos
Fonoaudiólogos do Estado da Bahia. Fomos a Brasília duas vezes,
inclusive representamos o Estado da Bahia no dia da regulamentação da
profissão. Lembro-me da Maria Nólia Lacerda, fonoaudióloga de Brasília
que participou ativamente do movimento de regulamentação da profissão e
deu muito apoio a nós, da Bahia. Veio muitas vezes a Salvador, ministrou
cursos e nos recebia em sua casa em Brasília. Seu marido era militar e
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tinha uma rede de contatos importantes, o que possibilitou abertura de
espaços e visibilidade a nossa área.
Com a regulamentação da profissão, surgiu um movimento
chamado Movimento Interestadual em prol da Fonoaudiologia MIEF.
Lembro que a Maria Maurity, que você conhece, participava no Rio de
Janeiro. Elizabeth Teixeira, lingüista da UFBA, realizou cursos para nós, o
que, de alguma maneira, nos incentivou a entrar em contato com a
Universidade Federal da Bahia, e começamos a ter mais contato com
outras associações.
Este núcleo pró-associação realmente foi importante na
regulamentação da profissão, na aproximação entre os profissionais locais
e na realização de algumas atividades cientificas, mas nós não
conseguimos concretizar a regulamentação legal da associação, nos
perdemos na burocracia. Como em geral ocorre com associações de
classes, as pessoas deixaram de comparecer às reuniões. Leonora e
outras pessoas da diretoria se sentiam sobrecarregadas, necessitando
mudar de função, se dedicar mais ao consultório, e Silvia Reis assumiu e
se manteve até um ou dois anos após a regulamentação da profissão.
No inicio dos anos 80, a Legião Brasileira de Assistência LBA
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foi responsável pela chegada de vários profissionais a Salvador. Parece-
34
Legião Brasileira de Assistência (LBA), agência federal criada nos anos 40 e
transformada, ao longo do tempo, no instrumento por excelência do clientelismo e dos
interesses particularistas. Este padrão centralizado vem passando por inflexões
significativas. Um passo decisivo de descentralização foi dado logo no início do governo
Fernando Henrique, com a extinção da LBA e com a mais decidida transferência dos
recursos federais para os Fundos Municipais de Assistência Social, para prefeituras ou
diretamente para escolas, reforçando assim a tendência subterrânea de ampliação da
autonomia e responsabilidade local em matéria de assistência social. Disponível em:
<http://www.mre.gov.br/CDBRASIL/ITAMARATY/WEB/port/polsoc/asocial/desinst/apresen
t.htm> Acesso em 15/05/2007
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me que, por determinação do governo, para se conveniar, toda clínica
necessitava ter na equipe, entre outros profissionais, um fonoaudiólogo. Fui
contratada inclusive nesta condição. A fonoaudióloga Maria Regina
Grangeiro deve ter sido uma das primeiras pessoas a trabalhar pela LBA no
Instituto Guanabara, que existe até hoje, e cuja proprietária é a
fonoaudióloga Maria José.
Desde estudante eu tinha vontade de trabalhar com surdos, mas a
Clínica Pinto Duarte não pôde me favorecer isto, porque exigia uma
estrutura técnica e profissional alheia aos objetivos da instituição. Dr. Júlio
Pinto Duarte foi uma pessoa extremamente importante no Brasil e no
mundo, na área de Paralisia Cerebral. Foi diretor da Faculdade de
Fonoaudiologia de Petrópolis e em sua clínica se realizavam os estágios
curriculares. Ele trouxe para Salvador várias fonoaudiólogas, inclusive
Sonia Tocantins, que conheci antes de pensar em ser fonoaudióloga e que
me ajudou muito. Hoje não temos mais contato, mas permanece um
vínculo, uma história.
Algum tempo depois de ter deixado a Clínica do Dr. Pinto Duarte,
soube que ele morreu atropelado. Era muito inteligente e tinha muita
energia e saúde, um verdadeiro atleta. Não aparentava idade e acho que,
se não fosse pelo acidente, iria viver muito. Ele deixou filhos cuidando da
clínica de Petrópolis e veio morar em Salvador, buscando talvez uma
melhor qualidade de vida, porque gostava muito de mar, correr na praia.
Acho que via em Salvador a possibilidade de aliar trabalho e lazer, algo que
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a gente sonha na aposentadoria. Eu sonho com uma aposentadoria
trabalhando e tendo lazer.
Recebi dele e equipe todo o suporte que necessitava e, em 1981,
deixei a sua clínica para trabalhar em consultório particular. A gente vai
criando asas e quer alçar vôo, o tempo vai passando, vamos envelhecendo
e mudando os objetivos, procurando os próprios caminhos. O consultório
era na Clinica Psiquê, no bairro da Graça, constituída por psicólogos e
psicanalistas, onde trabalhei durante um ano. Foi uma experiência saudável
e interessante, porque era novo para mim o contato com psicanalistas, e foi
também meio um choque, porque um profissional não conhecia o trabalho
do outro.
Falando da divulgação, as pessoas não conheciam o nosso
trabalho, e os encaminhamentos eram feitos de modo vago. Os
profissionais diziam assim: “Ah! Vai naquele consultório, que tem um
foniatra”. Nós éramos conhecidas como: foniatras, logopedistas, terapeutas
da fala. “Você tem uma gagueira? Vai lá, pode ser bom esse trabalho,
experimenta”. Nem sempre os pacientes iam, e quando iam, muitas vezes
não aderiam, porque faltava clareza e suporte no momento do
encaminhamento. Havia certa fragilidade nesses encaminhamentos.
Mas não demorou muito e nós conseguimos alguma estabilidade
graças ao trabalho de arregaçar as mangas e ir pessoalmente conversar
com os profissionais, as escolas, professores, diretores, etc. Todas se
esforçaram e, com a chegada de novas profissionais a partir de 1982, o
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quadro já era totalmente diferente, principalmente por conta da LBA que
colocava a atenção à criança como “obrigatoriedade”.
Em 1982, fui trabalhar em um consultório na Av. Garibaldi, com a
fonoaudióloga Altair Cadrobbi Pupo
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(Lila) e a psicóloga Dircineia Marchi.
Conheci Lila em Salvador, num curso, e conhecendo meu interesse em
atender pessoas surdas, denominadas na época deficientes auditivos, ela
me convidou para trabalharmos juntas. Foi um período importante, porque
pude me dedicar a algo que, na época, era minha maior expectativa. Acho
que se eu não tivesse tido este suporte teria sido muito difícil para mim
trabalhar com surdo. Na época eu pensava assim: “estou falando com
alguém que tenho certeza que não está entendendo; que eu tenho certeza
que está ouvindo pouco o que eu estou dizendo”.
O fato de ser novata na profissão gerava muitas ansiedades, e
tanto Lila como Dircinéia me apoiaram neste processo. Os pacientes e os
pais também contribuíram de forma essencial para meu crescimento
pessoal. Hoje eu tenho pacientes casados e com filhos e me sinto um
pouco avó, pois fui até a batizado de filhos dos meus ex-pacientes.
Muitos terminaram o curso universitário e são bem sucedidos. Sou muito
grata a todos por terem contribuído para que eu me mantivesse nessa
profissão, que fui descobrindo aos poucos. Temos uma idéia, quando
estudantes, mas, quando começamos a trabalhar, a realidade é diferente,
embora eu tivesse 1404 horas de estágio prático extracurricular.
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Fonoaudióloga pela PUCSP (1974). Docente da PUCSP com experiência em Surdez.
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O suporte mesmo foi quando eu precisei caminhar com meus
próprios pés. Fiz supervisão quando Lila voltou para São Paulo entre 1983
e 1984. As pessoas contribuíram para meu crescimento em todos os
aspectos e acho que também contribui para vida deles, porque recebo este
retorno. O conhecimento fonoaudiológico que você oferece aos pacientes
através do seu trabalho, mesmo não se misturando nas relações, tem
repercussão pessoal, no destino deles. Por exemplo, você faz um trabalho
com o surdo, ele se identifica, melhora, começa a falar e obtém suporte
necessário para suas relações interpessoais, tudo isto através da
comunicação que foi desenvolvida por este trabalho. Quando ele começa
também a caminhar com os próprios pés, há uma reciprocidade, não é uma
situação unilateral. o é assim: eu tenho todo o conhecimento e o outro
não tem nada para me dar. Eu sempre de alguma maneira estou
aprendendo com a outra pessoa, enfim a gente trata de humano mesmo.
Sei que eu tenho a obrigação de ter conhecimento profissional, de me
especializar, de oferecer suporte técnico, mas passa tudo pelo humano,
pela possibilidade de crescimento conjunto.
Acho que é isso que vai fazer com que nossa história se perpetue
e abrindo espaços para a melhora de todas nós. Se eu não aprendesse
também como profissional, eu o iria adiante, eu não iria aprender
somente nos livros. A experiência prática que essas pessoas me
possibilitaram, confiando na minha proposta, possibilitou que eu estivesse
hoje ensinando numa universidade. Essas pessoas me permitiram isso e
me sinto muito feliz, muito gratificada de poder, ainda jovem, conviver com
71
essas pessoas. O melhor entendimento do nosso trabalho, por parte dos
profissionais, tornou os encaminhamentos mais efetivos, com maior
motivação e satisfação dos pacientes, e estes fizeram nossa divulgação,
através das escolas que freqüentavam, familiares e amigos.
O pessoal da Odontologia nos recebeu desde o início de braços
abertos. No prédio da Av. Garibaldi, onde fui trabalhar com Lila, conheci
vários odontólogos que nos encaminhavam muitos pacientes e abraçaram
a nossa causa: Dr. Bonfim, Dr. Delcik, Dr. Edno e Dra. Miriam Cléa, que
nos deixou precocemente, mas tem uma obra continuada pelos seus
alunos. Eu penso que a morte não interrompe um processo, porque ela
deixou semente e a gente sente muita falta dela. Dra. Celina Siquara e Dra
Jandira me convidaram para ministrar aulas na Odontopediatria, na
Universidade Federal da Bahia; não me recordo se era para
especialização ou de extensão.
Estou contando à medida que as memórias estão vindo e,
provavelmente, vou negligenciar o nome de algumas pessoas. Peço
desculpas antecipadamente, mas é muita emoção e fica difícil você ser
racional ao falar dessas coisas, embora eu tenha até tentado me preparar,
mas não pra decorar um texto, ler um texto. São pessoas que, de certa
forma, forneceram um modelo profissional inicial, um incentivo. Eu era
muito inexperiente ao sair de Petrópolis e foi um grande desafio para mim,
aos 23 anos, deixar uma cidade pequena e vir para Salvador. Lembro-me
de Alda Leite, Sonia (não me lembro o sobrenome), um pessoal do sul, de
Curitiba, que eu conheci na época da regulamentação da profissão.
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Depois chegaram Rina e Célia Fernandes, em 1984, e foi uma
outra etapa. A LBA não atuava muito, mas nem lembro como isto foi
acontecendo. Foi a fase em que começamos a perder a noção de quantos
fonoaudiólogos tinham em Salvador. Lembro-me de Silvia Hellhammer e
Regina Borreli, que trabalhavam na Clínica Neuroevolutiva, cuja proprietária
era a fisioterapeuta Alba, e dos consultórios de Sônia Veloso, Maria Amália,
Leonora, Sônia Tocantins, Olga Tanajura, Lia Mara, Eva Musa, Edil, Aidil,
Marise. Um dos primeiros homens fonoaudiólogos aqui na Bahia foi
Hercílio, depois veio Cid Saraiva, que foi para Feira de Santana, assim
como Jussara e Desirré Degrow. Em Feira de Santana, a clínica Otorrinos
do Dr. Washington também trouxe alguns fonoaudiólogos.
Quanto aos otorrinolaringologistas, Dr. Rui Lobo e toda equipe
abriram as portas para nós. Quando Lila foi embora, eles automaticamente
entenderam que eu poderia substituí-la e me apoiaram. Dr Rui Lobo foi
extremamente amigo dos fonoaudiólogos, como é até hoje.
Em 1984/ 1985, a Associação estava praticamente no nome,
com poucas reuniões e alguns eventos. Acho que nesta época houve
necessidade de dedicação maior aos consultórios e à prestação de
serviços. Nós éramos poucas, muito ocupadas, começando a constituir
família, filhos pequenos, e era muito difícil conciliar tantas atribuições.
Cursos e livros específicos eram muito difíceis e tínhamos
necessidade de nos deslocarmos para outros centros para a formação. Fiz
muita supervisão em o Paulo, o que implicava muitos custos, porque
deixava de trabalhar e tinha despesas com passagens e
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hospedagem.Tínhamos muitos pacientes, mas o investimento era muito
alto. Acho muito positivo a nossa preocupação em buscar formação, e
também foi maravilhoso poder descobrir, aqui na Bahia, outras
possibilidades. Participávamos de cursos e grupos de estudos na área de
Otorrinolaringologia, Odontologia, Psicanálise, Pedagogia, Lingüística com
Elisabeth Teixeira na UFBA, na Psicopedagogia, por exemplo, com Katia
Godinho e a equipe do CRIA
36
, com Débora, Heloisa e Tereza Cristina, que
faziam muitos encaminhamentos e sempre nos davam voz nos seus
eventos.
Tenho uma satisfação muito grande com a cidade de Salvador,
com as pessoas, os profissionais e, principalmente, com os pacientes; acho
difícil sair daqui. O reconhecimento vinha nos encaminhamentos, e tem
uma particularidade: mesmo com o trabalho concluído, a família às vezes
telefona e diz: “olha, ele está trocando de escola, eu gostaria da sua
assessoria”. Encontro casualmente pacientes que não reconheço, porque
cresceram, mas a mãe reconhece, apresenta, elogia. Encontro pacientes
de outras colegas que também falam: “Ah! você é fonoaudióloga! Lembra
fulana de tal, foi paciente de Rina, foi paciente de Célia, de Leonora”.
A comunidade nos valoriza muito, está faltando os órgãos públicos
terem essa visão. Fizemos inúmeras tentativas através da Associação
Profissional dos Fonoaudiólogos do Estado da Bahia – APROFEB, em
1982/1983, fizemos parcerias com muitas pessoas na época, visitamos
gabinetes de vice-prefeito, secretários da Saúde da Prefeitura e do Estado.
36
Grupo de profissionais em Educação que organizavam eventos científicos na área.
74
Silvia Reis possibilitou vários contatos, e a única concretização foi na
prefeitura, sendo que com muito custo conseguimos colocar o
fonoaudiólogo no seu quadro de profissionais. O Estado foi e é ainda
extremamente difícil. Em 1992/1993, Silvia Reis convocou os
fonoaudiólogos para uma nova reunião para tratar de assunto relacionado a
prefeitura, o entusiasmo voltou e reativamos a Associação. Formamos uma
diretoria: Rina, Claudia Lopes, Leonora, Valéira Leal, Ignês e eu e a
APROFEB foi finalmente legalizada. Nesta fase, houve um concurso
público federal no Hospital das Clínicas, e entraram duas colegas: Silvia
Ferrite e Renata Scarpel, mas somente a primeira assumiu.
Quando cheguei a Salvador, as Avaliações Audiológicas eram
realizadas por técnicos. Sônia Veloso foi pioneira na Audiologia e depois
Eliane Giusti. Os exames eletrofisiológicos não eram feitos em Salvador,
então era necessário encaminhar para São Paulo. Os pais tinham que
investir em passagem, hospedagem, exame, além de abdicar do seu
trabalho ou usar o período de férias, porque os exames eram realizados
somente durante a semana.
Rui Lobo foi pioneiro na realização dos exames auditivos
eletrofisiológicos e isto foi muito importante, porque, além da redução do
custo financeiro, não interrompia o trabalho fonoaudiológico e ainda
diminuía a ansiedade da família. As famílias iam a cada seis meses a São
Paulo, e as avaliações (Audiológicas e de Linguagem) pareciam ser a
solução para todos os problemas, desqualificando, de certa forma, o
atendimento local em função de um atendimento idealizado no “sul
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maravilha”, com repercussões no processo terapêutico. Com os exames
auditivos eletrofisiológicos sendo realizados aqui, os pais começaram a
achar desnecessário ir a São Paulo somente para as avaliações de
Linguagem, uma vez que estavam sendo acompanhados em Salvador.
Logo que cheguei a Salvador, a indicação de aparelho auditivo era
realizada por vendedores, ou então os pacientes iam à São Paulo. A
chegada de Lila a Salvador foi importante porque ela trouxe uma nova
visão. Ela era professora licenciada da PUC-SP e trouxe uma proposta de
trabalho diferenciado. Dr.Hélio Lessa
37
e muitos outros
otorrinolaringologistas nos deram muito apoio encaminhando pacientes.
Dr. Rui Lobo contratou vários fonoaudiólogos, sendo que a
primeira foi Silvia Ferrite; depois vieram Eliane Giusti, que se mantém até
hoje invicta em Audiologia no Hospital San Raphael; Gisele, que hoje
está em Vilas do Atlântico; Silvia Helhammer, que voltou para São Paulo;
Ângela Colognesi, que hoje mora em Aracaju, mas trabalhou comigo na
Psiquê. Hoje temos muitos fonoaudiólogos trabalhando em Audiologia e
indicação de aparelho, como Maria Cecília Pereira, Rodrigo Brayner e
outros.
Até a década de 90, nós éramos ainda muito poucos
fonoaudiólogos em Salvador. Em 93, tínhamos em torno de 45
fonoaudiólogos, porque as pessoas vinham, passavam um período e iam
embora. A Petrobrás e o Pólo Petroquímico trouxeram e levaram embora
muitos fonoaudiólogos.
37
Medico Otorrinolaringologista. Professor da Faculdade de Medicina da UFBA
76
Com a abertura de novos cursos de formação pelo Brasil, muitos
fonoaudiólogos começaram a chegar a Salvador, vindos principalmente do
Nordeste e São Paulo. não era mais o Pólo Petroquímico que trazia, a
demanda era outra. Entre outros, vieram de Pernambuco Maria da Glória
Canto e Ana Maria Pimenta, que foi a responsável pela abertura de
inúmeros serviços em Audiologia em Salvador.
Lembrei-me que encontrei Regina Borreli e ela me contou que se
aposentou, mas de forma diferente, por exemplo, de Eva Musa, que se
aposentou pela idade avançada e por problemas de saúde. Ela assume
que se aposentou da Fonoaudiologia, e acho até que seria interessante
conhecer o percurso de alguém que teve começo, meio e decidiu deixar a
área. Pergunto-me: “Como é se aposentar na Fonoaudiologia?”. Não
consigo ver isto para mim. No momento, tenho procurado me dedicar a
outras atividades, como a docência, e diminuir o trabalho em consultório,
mas não vislumbro uma aposentadoria, isto nem passa pela minha cabeça.
A Fonoaudiologia me capturou.
Eu era muito influenciada pelo meu pai para seguir a carreira de
Administração e fiz o curso técnico de secretariado pensando na realização
do sonho dele. Era inconsciente, e só pude ver isto muito tempo depois na
minha análise. Ele comprava coleção de secretariado pra mim, e o seu
sonho era me ver numa embaixada, trabalhando numa prefeitura, falando
vários idiomas. Era uma pessoa de pouca escolaridade, assim como minha
mãe, e os dois aprenderam a ler e escrever porque alguém ensinou por um
mês ou dois, mas meu pai era uma pessoa culta. Ele ouvia o rádio e com o
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rádio aprendeu muitas histórias. Muitas vezes tenho os livros nas mãos e
vejo como é difícil aprender e ele aprendeu por ouvir, ouvir história como a
que você está ouvindo agora, histórias do Brasil e do mundo Tenho um
gosto muito grande pelo rádio e acho que, de certa forma, isto me colocou
na área da comunicação. Eu tive que achar algum lugar na comunicação
para justificar ter saído um pouco fora daquilo que meu pai, de alguma
maneira, tinha sonhado para mim. Digo: “Olha pai, o seu rádio lhe ensinou
muitas coisas e isto é comunicação. A Fonoaudiologia também estuda a
comunicação e, embora seja saúde, tem o aspecto da interação, da
comunicação”.
Estava com 17 anos quando meu pai faleceu, faltando um ano
para concluir o curso de secretariado, e eu precisei trabalhar, porque
financeiramente estava muito difícil. Tinha o maior preconceito em relação
à área da saúde, porque não gostava de ouvir histórias de pessoas com
doença. Fui a uma firma de empregos e eles forneciam alguns dados do
local do trabalho, mas identificavam apenas pelas iniciais. Não quis nem
olhar e aceitei o trabalho. Quando soube que era a Clínica Dr. Pinto
Duarte, eu poderia ter recusado, mas aceitei o desafio. A vida escolheu por
mim. Era um internato para crianças portadoras de Paralisia Cerebral, e eu
achava que iria ficar na secretaria, longe da clínica, mas isto não ocorreu
trazendo, felizmente modificações positivas na minha forma de encarar a
situação. Fui para substituir uma secretária e acabei ficando também 15
dias no Setor de Eletroencefalograma, com dona Matilde Viveiros, uma
pessoa muito importante para mim, que me ensinou a fazer os
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eletroencefalogramas. Fui contratada para trabalhar nos dois setores. Fazia
anamnese e adorava o contato com o paciente. Fiz amizade com o pessoal
da Fisioterapia, me encantei com a Fisioterapia e comecei a sonhar em ser
fisioterapeuta. conheci a fonoaudióloga Sonia Tocantins, que veio para
Salvador , devido ao trabalho do marido, um pouco antes de mim.
Fiz vestibular para Fisioterapia, com segunda opção em
Fonoaudiologia, e passei na segunda opção. Fiquei muito triste, mas
resolvi cursar, pensando em mudar no próximo semestre e aproveitar as
matérias básicas. Não conhecia nada da área, mas, no contato com os
livros de Fonoaudiologia, me encantei com as Afasias e depois com o
trabalho com Surdos. Comecei a pensar: “Nossa! Mas é isso que eu quero
fazer, parece muito mais comigo”.
A Clínica Pinto Duarte me abriu as portas, e eu fui estagiária de
observação desde o semestre; e no semestre iniciei o estágio prático
supervisionado. Fátima e Marilene, coordenadoras do setor, permitiam que
eu atendesse, embora fosse nova no curso. Estavam sempre estudando,
nos reuníamos na hora do almoço e não havia uma distância entre elas e
os estagiários.
Eu ficava o dia todo por conta da Fonoaudiologia, muitas vezes
sem almoço, e as condições financeiras não eram nada boas. Minha mãe
nos sustentava com um salário mínimo. Pedro, meu cunhado que
faleceu, e minha irmã Clara Fernandes nos ofereciam o suporte material de
ter uma casa, um teto. Minha e, Alzira Morelli Fernandes, também
apostou e vendeu um terreno de herança para comprar os livros do
79
semestre e pagar o semestre inteiro da faculdade. No semestre, o
governo surgiu com crédito educativo e no semestre ofereceu também
uma ajuda de custo.
Esse meu cunhado se comportava às vezes como meu pai, acho
que mesmo quando meu pai ainda era vivo, e me atrapalhou um pouco. Ele
tinha uma firma, me ofereceu trabalho como secretária e deve ter sido difícil
para ele, porque eu segui um outro rumo. Isso não era dito, mas eu sentia
na expressão dele e eu tinha muito medo dele.
Na verdade, minha mãe me deu suporte moral e de ânimo para
optar pelo “pássaro voando”. A Fonoaudiologia na minha vida foi o “pássaro
voando”, porque o certo era eu trabalhar com meu cunhado e seguir a
carreira de administração, estava na mão. E acho que deu certo. Parece
que tinha que ser, porque as coisas foram acontecendo. A Clínica Pinto
Duarte começou a me remunerar no 4º semestre e passei a ter mais de um
salário mínimo e carteira assinada.
Motivações pessoais me fizeram vir para Salvador. Petrópolis é
uma cidade de clima frio, fechada, tradicional, um pouco depressiva, e eu
queria sair e passear, pois ficava muito dentro de casa. Meu sonho era ir
para o Sul estudar e me instrumentalizar melhor e depois ir para o
Nordeste, talvez Norte. Pensava que trabalhar no Nordeste poderia
contribuir para mudar o meu país. Um sonho que acabou se materializando.
Formei em dezembro de 1978, e até março de 1979 estava
inquieta e insatisfeita. Pensava: “Quero voar, não quero ficar em Petrópolis,
quero desgarrar um pouco da família e viver novas situações”.
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A saída de Leonora da Clínica do Dr. Pinto Duarte em Salvador
trouxe a necessidade de outra fonoaudióloga, e desta vez esta
oportunidade representava o “pássaro na mão”. Havia Salvador e ir para o
sul deveria ser descartado. Sentia-me insegura tanto pessoal como
profissionalmente, mas aceitei o desafio e recebi todo o apoio tanto do Dr
Julio Pinto Duarte como de Sonia Tocantins.
Depois que saí da Clínica Pinto Duarte, trabalhei muitos anos
basicamente com indivíduos surdos, e 10 anos iniciei um novo caminho
que considero um retorno, “saudade do desejo” de atender pessoas com
comprometimento muscular. Isto tem se concretizado de uns seis/sete anos
para cá e está voltado à Motricidade Orofacial.
Iniciei trabalho voluntário na Associação Brasileira de Odontologia/
Secção Bahia – ABO-BA com intenção de trabalhar com pessoas que
apresentavam dor orofacial crônica. Através de Dr. Maria Rita Xavier,
recebi apoio e acolhimento de vários odontólogos, tais como Dr. Antonio
Nilton Leite dos Santos, Dr. Marcos, Dr. Kleber, Dr. Adrião. Lembrei-me da
época do Centro Odonto-médico Itamaraty e do acolhimento de Dra. Miriam
Cléa e Dr. Delcik, entre outros, e minha impressão era de que estava
retomando uma aliança de interdisciplinaridade numa convivência no
mesmo espaço físico. Ministrei aulas nos cursos de Especialização em
Odontopediatria e Ortodontia, convidada respectivamente pela Dra. Celina
Siquara e Dr. Antonio Nilton.
Em 2002, fiz um curso na UNIFACS de Clínica da Dor, o qual não
tinha nenhum fonoaudiólogo no seu corpo de professores. Observei a
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necessidade de especialização nesta área, porque a graduação não atende
esta especificidade. Patrícia Gouveia vinha atuando nesta área porque
havia feito o Curso de Especialização do CEBEO- BA
38
, com Dr. João
Macedo.
A demanda da ABO-BA
39
era de pacientes ligados à área de
Ortodontia, e então convidei a fonoaudióloga Ignês para trabalhar comigo
como voluntária. Tem até uma história engraçada e curiosa que aconteceu
com nossa presença na ABO-BA. Quando começamos, não havia sala
disponível para o nosso atendimento e então resolvemos fazer um
levantamento da demanda dos pacientes, enquanto a equipe da ABO
providenciava uma sala pra nós. E assim foi durante três meses, e quando
eu estava quase desistindo, Dra. Maria Rita ligou informando que havia
uma sala fechada disponível, mas que necessitava de uma arrumação.
Além do trabalho de levantamento da demanda, nos fazíamos também o
trabalho de conquista do espaço físico, indo atrás de encontrar um arquivo,
mesa, cadeiras que pudéssemos levar para nossa sala. Começamos a
atender os pacientes aguardando o momento da criação do Setor de Dor
orofacial (o meu objetivo inicial), que só foi concretizado recentemente com
a Dra. Maria Rita Xavier.
Falando de Motricidade Orofacial, o podemos esquecer o
trabalho de divulgação pioneiro de Valéria Leal e Claudia Lopes, que
fizeram supervisão e cursos com Irene Marchesan, uma pessoa que
respeito muito pela divulgação do nosso trabalho nesta área em todo o
38
Centro Baiano de Estudos Odontológicos.
39
Associação Baiana de Odontologia
82
Brasil. Nesta minha nova fase, a Éster Bianchini e a Cláudia Felício
também são referências importantes. São pessoas que vieram a Salvador
com muita disponibilidade e boa vontade. Foi pelo esforço de Valéria Leal e
Cláudia Lopes que foi inserido no Congresso Internacional de Odontologia
da Bahia uma secção de Fonoaudiologia. Hoje somos parceiros dos
odontólogos e, só para ilustrar, temos os mesmos descontos dos membros
da ABO em seus eventos.
Voltando à questão do surdo, lembrei-me dos pacientes que
vinham do interior periodicamente para o atendimento aqui em Salvador.
Eles passavam aqui uma ou duas semanas e fazíamos o trabalho
terapêutico de orientação familiar. Com a chegada de colegas no interior,
como Iara em Itabuna e Magda em Vitória da Conquista, isto deixou de
ocorrer com freqüência.
Em 1986/87, ao conhecer Jorge, hoje meu marido, que morava em
São Paulo, vivi um impasse quanto a uma possível mudança de Salvador,
mas Jorge optou por ficarmos aqui, considerando, entre outros aspectos,
minha estrutura profissional construída. Ele é o companheiro que sempre
me apoiou na minha profissão, com demonstração de admiração e orgulho
pelo nosso trabalho. O sonho dele é que uma das nossas filhas fizesse o
curso de Fonoaudiologia. Acho interessante, porque ele poderia desejar
que as meninas fizessem engenharia ou alguma profissão relacionada ao
seu campo profissional. Acho que este apreço também está vinculado ao
que a Fonoaudiologia, de maneira indireta, proporcionou a ele
profissionalmente. Ele trabalhava no Pólo Petroquímico na área de
83
engenharia quando conheceu Rui Lobo e ficou encantado com a
aparelhagem eletrônica na área da saúde. Através da fonoaudióloga, Silvia
Hellmammer soube que o hospital São Rafael precisava de um técnico
eletrônico para manutenção de equipamentos hospitalares, e ele se
preparou, obteve a vaga e até hoje trabalha na área hospitalar.
Sempre recebi muito apoio de Jorge e de minhas filhas, Marina (18
anos) e Bianca (15 anos), e sinto-me feliz pelo orgulho que eles
demonstram pelo meu trabalho.
Com o crescimento das nossas filhas e concluído o curso de
Clínica de Dor em 2004, comecei a visualizar a possibilidade da carreira
docente, algo que até então não havia me ocorrido, porque não me sentia
preparada e também pouco disponível para o empreendimento.
Em 2005, assumi a docência no Curso de Fonoaudiologia da União
Metropolitana de Educação e Cultura UNIME, iniciando uma nova etapa
profissional. Como todo início, foi difícil, voltei a ser estudante de domingo a
domingo. Horas de estudo para me instrumentalizar e me disciplinar a
aprender. Os estudantes demonstram necessidades, e você descobre que
também são suas. A prática clínica, neste momento, faz a diferença, e
parece que tudo se integra. Tenho planos de reduzir a carga horária do
consultório e me dedicar mais à docência, porque como supervisora de
estágio também me realizo vendo o paciente crescer. Depende do meu
conhecimento a qualidade profissional do aluno, e indiretamente estou
exercendo influência no processo terapêutico.
84
Cada dia me sinto mais envolvida com a idéia de produzir trabalho,
textos, material técnico, algo que antes não entendia a dimensão e nem
valorizava o que produzia. O estudante me faz entender o meu crescimento
profissional.
Agradeço a Renata Scarpel (pioneira no trabalho fonoaudiológico
em Cabeça e Pescoço no Hospital Aristides Maltez), pela confiança e
indicação, Carla Padovani, pelo convite para trabalhar no Curso de
Fonoaudiologia da UNIME, e a Gloria Canto e Rina, pelo incentivo nesta
nova etapa que empreendo na Fonoaudiologia. Acho muito saudável a
convivência com os colegas dentro da Faculdade e me sinto tão motivada
que dou aulas o dia todo e ainda continuo o trabalho à noite, com um
entusiasmo e disposição que não me julgava capaz
Carla Padovani, uma pessoa extremamente empenhada e
empreendedora, tem promovido Cursos de Especialização e recentemente
firmou um convênio entre a Clínica de Fonoaudiologia da UNIME e o
Sistema Único de Saúde – SUS, cuja estrutura será exemplar para abertura
de outras clínicas, com ganho para os alunos e para a comunidade.
dois anos Valéria Leal, Ana Maria Pimenta, Renata Scarpel,
Renata Mathias e eu, entre outras, assumimos a diretoria da APROFEB.
Gostaria de marcar que estamos precisando de fonoaudiólogos mais jovens
que possam se inserir nesse trabalho. Temos uma estimativa de 400 a 500
profissionais no Estado da Bahia, mas nosso número de associados é
muito pequeno, embora façamos a divulgação nas faculdades, nos cursos,
etc.
85
Observamos, desde 1980/1981, que há sempre a necessidade de
uma forte motivação para as pessoas se agregarem, ou seja,
regulamentação da profissão, organização de um grande congresso,
mobilização para abertura de mercado, entre outras. Pergunto-me o que
mais mobilizaria as pessoas para virem para uma associação de classe e
ainda não tenho respostas. É muito difícil congregar. Nossas reuniões
normalmente são realizadas uma vez por mês e aparecem os membros
da diretoria.
Gostaria que a APROFEB fosse adiante, não fechasse e se
tornasse uma ABO-BA no futuro, no sentido de instituição de classe de
cunho científico, com uma sede própria. Meu desejo é termos uma
APROFEB onde odontólogos pudessem também trabalhar como
voluntários. Sinto-me muito triste com a possibilidade de não ter uma nova
diretoria que leve adiante a APROFEB. Sei que, em algum momento,
poderemos ter um sindicato, um conselho estadual, mas o papéis
diferentes. Vejo a Associação de classe como uma instituição que promove
eventos científicos, promove interdisciplinaridade, oferece acolhimento para
quem está chegando na cidade. Sindicato e conselho também acolhem,
mas a associação tem a possibilidade de um acolhimento mais amplo, ela
possibilita que o colega venha e ministre um curso, que o colega se associe
e divulgue seu trabalho através da associação.
Considero o papel da APROFEB muito importante, e por isso me
candidatei à diretoria outra vez, até sem ter muita vontade, pois não havia
mais tantas pessoas que quisessem continuar. Venho incentivando alunos
86
a pensarem nisso para que ela não termine e tenha seu espaço. Temos
uma poupança modesta, que é o símbolo do nosso sonho, e não gastamos
esse dinheiro, porque um dia ele vai comprar a nossa sede. A APROFEB
funciona nos nossos consultórios e não temos funcionário.
Atualmente trabalho na ABO como docente da UNIME, com oito
alunos em um Estágio Extra-Muros, numa excelente oportunidade de
mostrar o trabalho do fonoaudiólogo para os odontólogos, promovendo a
afirmação do nosso campo de conhecimento, abertura de mercado e
caminhos para aperfeiçoamento na área.
A APROFEB tem participado de vários eventos, como Congresso
de Otorrinolaringologia, Congresso Humanitário, promovido pela sociedade
de Otorrinolaringologia através do Dr. Nilvano Andrade e Dra. Clarice Saba,
Semana da Voz, Semana do Idoso, Sociedade Brasileira de Medicina do
Trabalho. A APROFEB teve um papel importante na implantação dos
cursos de graduação em Fonoaudiologia em Salvador. Maria Augusta
40
veio pessoalmente na reunião da associação, nos convidar para participar
do processo de implantação do Curso de Fonoaudiologia da UFBA. A
UNEB, através do diretor do Departamento de Ciências da Vida, Professor
Jurandy, nos convidou e abriu as portas para a realização das
comemorações, junto à comunidade, do dia do fonoaudiólogo, em 2005.
Várias colegas, tais como Célia Thomé, Maria da Glória Canto,
Ana Maria Pimenta e Silvia Ferrite, vêm participando de atividades do
Conselho Regional de Fonoaudiologia em Recife.
40
Professora do Instituto de Ciências da Saúde. Idealizadora do curso de Fonoaudiologia
da UFBA.
87
Olga Tanajura, assim como Lia Mara, além de pioneiras na
Fonoaudiologia na Bahia, também são pioneiras no trabalho de
expressividade com políticos e executivos. Quando cheguei em Salvador,
participei de um Grupo de trabalho com Lia Mara no Pelourinho, na
Faculdade de Medicina, e foi muito interessante. Ela era diretora de teatro e
tinha um trabalho, digamos assim, voltado à estética na comunicação. Era
um grupo imenso e aberto para advogado e para qualquer pessoa que
tivesse interesse no tema. Ela associava trabalho corporal, estratégia de
comunicação. Independente de ser fonoaudióloga, foi muito interessante
porque eu conheci várias pessoas.
São inúmeros colegas, e o tempo é curto para citar e se reportar a
todos na dimensão e importância que todos merecem. Trabalharam comigo
no mesmo espaço físico Rina, Célia e a psicóloga Ana Cristina Rigobello,
que, além do grande envolvimento pessoal e amizade, contribuíram para
ampliar as reflexões quanto à postura profissional, ética, anamnese,
primeira entrevista, o lugar da psicanálise, etc. Separamo-nos, fomos
criando asas, agregando outros valores, fazendo outras escolhas, e cada
um foi para seu consultório.
São muitas coisas a serem faladas. Agradecer aos alunos que me
permitem essa realização. Nomeá-los também, eu acho até que eu
conseguiria nomear todos. Vou me reportar à turma que está saindo,
porque eu acho que vou ter a oportunidade de gravar até outras vezes, com
as outras turmas. Esta turma vai deixar saudades. É necessário que saiam,
para poder semear esse trabalho ou outro diferente, na visão renovada dos
88
jovens. Vão para o interior ou para outras cidades levando ajuda. Marcela
e Diana, meus orientandos, João, Ricardo, Carlinha, Ana Paula, não pra
falar todos porque o tempo é curto. A todos que são muito queridos desejo
que façam parte da APROFEB em algum momento, que levem adiante
seus sonhos, que façam diferente, mas façam com o sentimento da paixão.
Desejo que o fonoaudiólogo tenha uma casa profissional, uma
associação que possa ter uma clínica prestando atendimento às pessoas
pelo SUS, que possa promover cursos de especialização, aperfeiçoamento,
extensão e acolha as pessoas que estejam chegando.
Estou entusiasmada com nossos cursos de graduação, mas o meu
desejo é que não tenha cursos demais porque há perda na qualidade.
Espero que haja um consenso da comunidade fonoaudiológica e dos
dirigentes das faculdades quanto ao equilíbrio na oferta de cursos.
Cada profissional tem uma contribuição na vida e no mundo, na
história da humanidade, e se cada um de nós trabalhar uma idéia utópica,
ela deixa de ser utópica e passa a ser prática, porque é uma questão de
valores. Tenho muitos motivos para acreditar nisso pela minha história de
vida. Na minha época, eu teria, no máximo, chegado a ser uma professora
primária, mas o desejo, a determinação em não desistir e insistir me
levaram a um curso universitário, a conhecer a Europa, Estados Unidos,
algo pouco visível para uma criança pobre. A possibilidade da
concretização depende de inúmeros fatores, e acho que, na nossa história,
digo nossa história porque é uma história familiar que inclui Jorge, Marina e
89
Bianca, é uma história de desejo, sonho, de arregaçar as mangas e de ir
atrás.
Deixo uma mensagem para o aluno carente, o profissional que
passa dificuldade, que não desista, que siga em frente, que atrás dos
seus sonhos, que venda o seu aparelho de som, seu carro, que venda o
que tem, mas busque seu sonho, porque as coisas materiais m depois
outra vez. Se vo está realizado profissionalmente, está realizado como
pessoa, tudo mais vem, e o que não vir, passa.
Quando comecei a dirigir carro, sentia muito medo, mas houve um
momento dirigindo na Avenida Paralela que pensei assim: “Bom, eu
tenho duas opções: desistir ou insistir”. A possibilidade de pensar em duas
coisas, duas palavras da ngua, me permitiu chegar a dois valores, e eu fiz
minha escolha: “insistir”.
Algo que considero importante para o fonoaudiólogo é pensar que,
por lidar com a linguagem, por lidar com a palavra, tem uma
responsabilidade muito grande no peso do que fala e como fala. Quando
nós, fonoaudiólogos, lidamos com o paciente, o como se fala e o que se
fala podem significar que ele continue ou ele desista da terapia, que ele
prossiga no processo de vida dele, que seja um benefício ou o. Isto
significa cuidado com nossa formação no aspecto ético, acadêmico, enfim,
com tudo que tenha uma visão melhor do ser humano. Estudar a técnica é
importante, mas perder a dimensão do humano inviabiliza a técnica.
Não sei quem vai me assistir, quando e em que época, por isso
pensei em deixar essa mensagem do insistir. Agradeço a você a
90
oportunidade e essa possibilidade que você está proporcionando à
Fonoaudiologia da Bahia. A diretoria atual da associação tinha planos de
fazer essa documentação, mas é algo extremamente trabalhoso. Parabéns
pela escolha. Não sabemos o alcance deste trabalho, mas tenho certeza
que seu intuito é que ele possa ser uma semente para quem vem depois,
além de privilegiar outras pessoas da forma como estou me sentindo
privilegiada por você agora.
Recentemente, recebi pela internet uma mensagem do
fonoaudiólogo Fábio Lessa aos fonoaudiólogos da Bahia, dizendo que
teríamos o destaque nacional que merecemos. Ele faz um elogio pra gente
e acho que seu trabalho só vem somar e mostrar que hoje estamos tímidos,
escondidos, mas que temos uma dimensão maior.
(Acréscimo solicitado pela narradora na última conferência da
transcriação em junho de 2007)
“Outras situações são bastante favoráveis ao sucesso da
Fonoaudiologia na Bahia. Dentre elas destaco a importância do MINTER
UNIME/PUCSP para a formação de docentes e incentivo a pesquisas.
Desde maio de 2007 estamos participando das reuniões do
Conselho Estadual de Saúde realizadas na Secretaria Estadual de Saúde
da Bahia (SESAB) a convite do Secretário de Sude Dr. Jorge Solla. O
convite foi feito na Audiência na SESAB pela solicitação da
fonoaudióloga Silvia Ferrite da APROFEB. Estavam presentes Silvia
Ferrite, Maria da Glória Canto representando a APROFEB e eu
representando o Conselho Regional de Fonoaudiologia – 4ª região. Nossos
91
objetivos foram: 1. apresentar as atribuições do fonoaudiólogo e abordar a
carência do profissional no serviço público estadual. 2. solicitar orientação
sobre como trabalhar para a inclusão do fonoaudiólogo no serviço público
do Estado da Bahia.
Destaco o evento Fonoaudiologia e Ciência promovido anualmente
na UNIME por iniciativa e coordenação da fonoaudióloga Dra. Carla
Padovani, coordenadora do Curso de Fonoaudiologia da UNIME, como
uma oportunidade de obtenção de conhecimentos e trocas de experiências.
Neste ano de 2007, houve um número expressivo de participantes
destacando-se a presença de grande número de alunos e professores da
Faculdade Jorge Amado”.
COMENTÁRIOS E REFLEXÕES
Como já foi dito, a escolha de Carmen das Graças Fernandes
como entrevista marco zero ocorreu pelo reconhecimento de que essa
profissional reunia os requisitos necessários para colaborar de forma
eficiente na formação da rede para o desenvolvimento metodológico
desta pesquisa. Assim eu pensava ao iniciar o trabalho. Mas não foi
isso!
Quando cheguei a Salvador em 1984, carregando minhas malas,
ou melhor, buscando uma terra para deitar minhas raízes reviradas, foi
Carmen quem se apresentou como o jardineiro que orienta a fixação da
“muda”. Recebeu-me cheia de entusiasmo, e trabalhamos juntas durante
seis anos, até que, como ela mesma refere na entrevista, há um momento
em que “voamos para outros campos”. Um tempo feliz e de muito
92
crescimento, tanto pessoal como profissional. Como não ser ela a minha
referência inicial na compreensão que busquei neste trabalho?
Cheguei a esta primeira entrevista com muita ansiedade,
temerosa de a gravação não dar certo, de roubarem a câmera
emprestada, etc. Sem saber, eu pressentia a importância e os efeitos
do momento que se aproximava, que estaríamos participando de uma
aventura comum de “gratidão pelo aprendizado na escuta e de orgulho do
passado digno de recordar” (MAALOUF,
2005).
Carmen buscou organizar a narrativa orientando-se pela
cronologia dos fatos relacionados à Fonoaudiologia em Salvador, como
por exemplo sua chegada à cidade em 1979, destacando, no entanto, a
sua fragilidade nesse momento e a necessidade de acolhimento. Nesse
sentido, observo que, embora retome sempre questões institucionais, seu
foco parece concentrado na oportunidade de destacar esse acolhimento
recebido em vários contextos e o dever ético do reconhecimento.
Fui surpreendida pela forma como essa minha primeira
colaboradora revestiu algumas situações compartilhadas de novos
significados, mostrando que a memória opera em novos códigos de
análise, porque não somos os mesmos de quando vivemos o lembrado
(BOSI, 1999); e compreendi melhor a epígrafe que havia me
impressionado ao folhear o livro de Hanna Arendt: “Todas as mágoas são
suportáveis quando fazemos dela uma história ou contamos uma história
a seu respeito” (Isak Dinesen)
93
Em relação ao exercício da Fonoaudiologia, a narrativa de
Carmen é repleta de reflexões exemplares suportadas pela experiência.
Podemos destacar algumas: a reciprocidade no exercício clínico, a idéia
de que o conhecimento técnico e conhecimento do outro como
semelhante estabelecem uma relação de cooperação no compromisso
com o cuidado e nunca de disputa.
O tom que prevalece é o da gratidão, por tudo e por todos. Pela
família, que Carmen tem orgulho de lembrar, e que dela se orgulha; pelos
momentos difíceis que lhe deram a oportunidade de lutar; pelo
acolhimento que recebeu de outros profissionais e colegas e pela
contribuição que a Fonoaudiologia ofertou a sua vida e vice-versa.
SAFRA (2002) afirma que é a ão, a obra que possibilita ao ser
humano que seu gesto escape da temporalidade. A memória é a
possibilidade que o homem tem de se ver como ser histórico entre
gerações, e sua recuperação cura a dispersão e sentido à vida. A
gratidão ao passado nos salva do medo da morte.
A realização desta entrevista iniciou para mim o sentido do narrar
como possibilidade de reconstrução do vivido, o lugar do perdão e da
gratidão e a riqueza que a metodologia da história oral oferece na colheita
das histórias, que, até então, só havia pressentido nos livros.
2. HISTÓRIA DE OLGA TANAJURA OU O SENTIDO DO ENTUSIASMO
Meu nome é Olga Rodrigues Lima Tanajura e hoje é cinco de
maio de 2006. Meu interesse pelos problemas da voz e da fala iniciou-se
94
muito cedo porque eu fui disfônica desde criança. Eu tinha uma
curiosidade enorme pela maneira como as pessoas falavam, adorava ver
pessoas falando bem, prestava atenção e gostava de ver o timbre de voz
quando era bonito.
Nós éramos oito irmãos, o mais velho fazia residência em
Medicina no Rio de Janeiro e eu era a caçula. Em 1948, uma tia nos
convidou para passear no Rio de Janeiro e foi um passeio maravilhoso,
porque o Rio naquele tempo era uma delícia, além de ser um sonho para
uma adolescente de Caetité, interior da Bahia.
Meus tios tinham filhos da minha idade e estes, muitos amigos,
que me apelidaram de “rouquinha”. Devido a isto minha tia recomendou
ao meu irmão que me levasse a uma consulta com otorrinolaringologista.
Não me lembro nome de médico, sei que ele fez um exame e
recomendou gargarejos e nebulizações, pois naquela época não se
falava, nem se pensava em tratamento de voz. Fiz durante algum tempo e
depois desisti.
Fiz Escola Normal em Caetité e, apesar da disfonia, decidi
lecionar. Meu pai não aprovava, mas um irmão que morava em Jequié, e
era agrônomo e fiscal do Banco do Brasil, conseguiu para mim uma
“Cadeira” para eu lecionar. Ele estava casado e como viajava muito eu
fazia companhia à sua esposa. Foi um tempo muito animado, porque
havia muitas festas na cidade e eu gostava de dançar. Dava aulas no
ensino fundamental e gostava de ensinar.
95
Em 1954, viajei novamente ao Rio de Janeiro e fui a uma reunião
social na casa de um irmão do Dr. Anísio Teixeira
41
, meu conterrâneo,
que naquele momento era diretor do Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos INEP. Ao saber que eu era professora, perguntou-me se
eu não queria fazer um curso no INEP, o qual estava oferecendo Bolsas
de Estudos para pessoas de outros Estados. Informou que havia vários
cursos, inclusive trabalhos manuais, mas que conhecia a minha família e
sabia que não tínhamos perfil para estes e por isto me aconselhava a
fazer um curso para ensinar crianças excepcionais. Nesta época eu
achava que crianças excepcionais eram crianças muito inteligentes, mas
ele explicou que era exatamente o contrário, ou seja, crianças com
dificuldades para aprender. Propôs que eu visitasse a Sociedade
Pestalozzi do Brasil, e como eu nunca tinha visto crianças retardadas, não
gostei e no dia seguinte o procurei dizendo que não queria. Ele
perguntou-me quanto tempo havia passado e quando disse que foram
duas horas, pediu que eu retornasse com uma carta de recomendação e
me ofereceu uma Bolsa especial para fazer um curso. Ficaria uma
semana e, se me adaptasse, poderia fazer o curso.
A Sociedade Pestalozzi do Brasil foi criada pela Dra. Helena
Antipoff
42
, uma educadora russa, que veio para o Brasil no tempo da
41
Anísio Spínola Teixeira (1900/1971). Nasceu em Caetité, filho do líder local Dr.
Deocleciano Pires Teixeira e D. Ana Spínola Teixeira. Formou-se em Direito, em 1923,
ocupando logo o cargo de Diretor da Instrução da Bahia (que atualmente equivale a
Secretário). Lutou toda a vida para levar a educação a cada um dos brasileiros.
Engendrou e fundou a Universidade Nacional de Brasília UNB, da qual foi reitor. Foi
perseguido por suas idéias pela ditadura militar. Faleceu misteriosamente no Rio de
Janeiro em 17 de abril de 1971.
42
Helena Wladimirna Antipoff (1892/1974). Bacharelado em Ciências na Sorbonne e
Psicologia no Instituto Jean-Jacques Rousseau em Genebra, com especialização em
96
revolução, diziam até que era parente dos czares. Era uma pessoa
extraordinária e inteligentíssima.
Após três dias, aquelas crianças tão meigas me cativaram tanto
que fui ao Dr. Anísio dizer que aceitava o curso. Este curso abriu um novo
mundo pra mim, tive professores maravilhosos. Acho que naquele tempo
as pessoas que ministravam aulas eram mais idealistas. Lembro-me de
Ofélia Boisson Cardoso
43
, psicóloga muito conhecida no Rio de Janeiro,
ministrava aulas belíssimas, onde ouvi falar, pela primeira vez, de Freud e
também de Ombredane
44
, um psicólogo francês que se dedicava aos
problemas de linguagem. Ela nos deu noção de dislalias, dislexias e
afasias.
Psicologia Educacional. Foi professora de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento de
Professores - MG (1929), fundadora da Sociedade Pestalozzi de Belo Horizonte (1932) e
professora fundadora da cadeira de Psicologia Educacional na Universidade de Minas
Gerais (atual UFMG). Cria o termo "excepcional" e o primeiro teste psicológico brasileiro.
Suas pesquisas trouxeram conclusões bastante interessantes, como por exemplo:
relação rendimento físico e intelectual com as condições sócio-econômicas; critica ao
sistema de ensino brasileiro, atribuindo as diferenças obtidas nos testes pelas crianças
brasileiras, devido ao ambiente social-cultural-escolar; propos o conceito de "inteligência
civilizada", em que considera, além das habilidades inatas, também a determinação
social, econômica, cultural e pedagógica; afirmava que os testes mentais medem menos
a inteligência individual da criança que suas condições de vida. Realizou trabalho
semelhante àquele da Sociedade Pestalozzi, no Rio de Janeiro, o qual viria a dar base
para a criação da Sociedade Pestalozzi do Brasil. Dentre várias realizações, deve-se
destacar a Fazenda do Rosário, fundada em 1940, cuja finalidade era se tornar um
núcleo de atendimento e pesquisa sobre crianças excepcionais.
43
Ofélia Boisson Cardoso. Psicóloga brasileira, nascida no final do século XIX e falecida
em 1994. Sua primeira obra (1944): "Ensinar a aprender", traz um conceito
revolucionário para a época: falar que também se ensina alguém a aprender, e o
somente se repassa conteúdo da mesma forma, para qualquer um. Em 1945 exerceu a
Chefia do Serviço de Ortofrenia e Psicologia do Centro de Pesquisas Educacionais da
Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura do Rio de Janeiro e, depois, chefiou a
Seção de Pesquisas Pedagógico-Sociais do Serviço de Assistência a Menores do
Estado do Rio de Janeiro – SAM.
44
André Ombredane (1898-1958). Contratado pela Faculdade Nacional de Filosofia da
Universidade do Brasil para a cátedra de Psicologia Geral e Experimental do
Departamento de Filosofia, lecionando até 1944.
97
Conheci também Pierre Weil
45
, professor de Psicologia em Belo
Horizonte, autor de vários livros e atualmente budista e idealizador da
Universidade Holística Internacional de Brasília – UNIPAZ.
Gostaria de acrescentar que o Dr. Anísio Teixeira, no tempo do
Presidente Juscelino, criou a Universidade de Brasília e fez projetos
maravilhosos, que, se não tivessem sido barrados pelo Golpe de 64,
o
Brasil estaria 30 anos mais avançado. Ele achava, por exemplo, que a
criança tinha que ficar o dia inteiro na escola, e a Escola Parque em
Salvador
46
foi uma amostra do que ele queria. Era uma maravilha, porque
a criança carente passava o dia na escola e sabe-se que ela em casa não
tem a mesma orientação que a escola pode oferecer.
Em 1957, as o termino de um noivado, saí de Caetité e aceitei
o convite de D. Elizabeth Chaves (ex-aluna de Dra. Helena Antipoff) para
trabalhar no Instituto Pestalozzi, que ela havia fundado em Salvador.
Algum tempo depois, para sua decepção e de todos os pais, o
Governador Antonio Balbino
47
fechou o Instituto Pestalozzi, talvez por
considerar que gastar com excepcionais o valia a pena. D. Elisabeth
Chaves solicitou então ao Secretario Estadual de Educação a
permanência deste grupo para trabalhar em outros projetos e estudos, até
45
Pierre Weil (1924) Diretor do Departamento de Pedagogia e Orientação Profissional do
Serviço Nacional do Aprendizagem Comercial do Brasil de 1949 a 1958. Consultor
Psico-Pedagógico do Instituto Pestalozzi do Rio do Janeiro. Foi professor de Psicologia
Social, Psicologia Industrial e Psicologia Transpessoal na Universidade Federal de Belo
Horizonte/MG. Consultor privado em Psicoterapia de grupo, Dinâmica de Grupo e
Psicodrama. Desde 1987 é Presidente da Fundação Cidade da Paz e Reitor da
Universidade Holística Internacional de Brasília (UNIPAZ).
46
Centro Educacional Carneiro Ribeiro, chamado também de Escola Parque foi
fundada em Salvador no bairro da Liberdade por Anísio Teixeira em 1950. Ali foram
colocados em ação os princípios da Escola Nova, como a valorização de atividades
práticas e de lazer.
47
Antonio Balbino Governador da Bahia de 1955 a 1959.
98
que se conseguisse reabrir a escola. Os pais das crianças tiveram que
procurar escolas particulares. Era um tempo em que se fazia muito teste
de Q.I.
Eu continuava disfônica e alguém sugeriu que eu procurasse a
Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, porque havia
chegado Madame Suzete, uma professora francesa que ensinava a
impostação de voz, e Ana Edler, professora de Dicção. Naquele tempo, a
UFBA era uma coisa maravilhosa. A Escola de Teatro era lindíssima,
tinha um belo jardim com um lago e recebia muitos atores do Rio de
Janeiro, como Sérgio Cardoso, Maria Fernanda e outros. Martins
Gonçalves era o diretor e fui lhe pedir para assistir as aulas de
impostação de voz, mas ele informou que era necessário fazer vestibular
para freqüentar o curso de interpretação. Entrei, passei um ano e meio,
mas saí porque era necessário participar das peças e eu não tinha planos
de me tornar atriz.
Nesta mesma época, eu tinha alunos particulares com
deficiência mental e achava que eles necessitavam falar melhor, mas não
sabia como ajudá-los. Encontrei, na Escola de Teatro, o livro “Defectos de
la diccion infantil”, de Tobias Corredeira Sanches
48
. Mandei buscar um
exemplar deste livro no Rio de Janeiro e com ele fui trabalhando a fala
das crianças, gostando muito e deixando as mães satisfeitas porque as
crianças começaram a falar melhor.
48
Corredera Sánchez,Tobias. Defectos en la dicción infantil. Ed.Kapelusz: Buenos
Aires. 2ªed. 1958.
99
Minha disfonia continuava a mesma, porque na Escola de Teatro
o trabalho era impostação para pessoas normais, não para quem tinha
patologia, mas mesmo assim foi importante, porque significou o começo
do meu trabalho de fala com as crianças que chegavam a mim.
Em 1961, fiz um curso de três meses nos arredores de Belo
Horizonte na Fazenda do Rosário de Dra. Helena Antipoff. A fazenda era
uma comunidade de pessoas com deficiência mental que tinham suas
casas e trabalhavam, um projeto maravilhoso. Conheci as psicólogas
Lúcia Bentes e Ruth Pereira que tinham feito cursos no Chile e
ministravam aulas de Foniatria no Instituto Brasileiro de Reeducação
Motora (RJ) IBRM.
49
Adorei suas aulas, e percebendo meu interesse
elas contaram que estavam indo ao México com Bolsa de Estudos da
OEA para um curso no Instituto Mexicano de la Audicion, la Voz y el
Lenguage e que na volta tinham como compromisso a realização de um
curso no Rio de Janeiro e que gostariam de contar com a minha
presença.
O Instituto Pestalozzi da Bahia foi reaberto e voltei para trabalhar
no Setor de Terapia da Palavra, e foi nesta época que conheci os
Voluntários da Paz, jovens voluntários americanos que em suas
especialidades desenvolviam alguns trabalhos. A voluntária Sharon Levy
disse que era speech therapist e perguntou-me se poderia me ajudar no
Pestalozzi. Parece-me que no Hospital das Clínicas tinha outra voluntária
que trabalhou com Lia Mara.
49
Instituto Brasileiro de Reeducação Motora – IBRM, instituição filantrópica, sem fins
lucrativos, fundada em 1955, com o objetivo de valorizar e promover a pessoa portadora
de deficiência e distúrbios no desenvolvimento neuropsicomotor.
100
Na década 60, outras pessoas em Salvador já trabalhavam com
correção de fala e voz, principalmente com crianças. Eram professoras
primárias que fizeram curso no Instituto Nacional de Educação de Surdos
INES no Rio de Janeiro, mas que também trabalhavam com ouvintes.
Lembro de Vandiva Aquino, Aldina de Souza, Alcina Lopes e, mais tarde,
Sonia Veloso.
Voltando de Belo Horizonte, D. Elisabeth Chaves falou que Dr.
Fernando Nova havia solicitado uma professora para trabalhar como
“Foniatra” no Instituto Baiano de Reabilitação IBR
50
. Ao informá-lo que
nenhuma professora estava habilitada para exercer esta atividade, ele
respondeu que não havia esta especialidade na Bahia, mas que tinha
muitos livros com quais se poderia aprender. Por indicação de D.
Elizabeth fui trabalhar no IBR. No início fiquei um pouco assustada, mas
ele me tranqüilizava oferecendo livros, o Tratado de Foniatria de Renato
Segre
51
foi um deles, e reforçando sempre que devagar iria adquirindo
experiência. Nesta ocasião, fui procurar no Rio de Janeiro o Dr. Pedro
Bloch, um homem admirável, extraordinário, notável foniatra e escritor, e
ele me recebeu maravilhosamente bem, foi delicadíssimo e convidou-me
para assistir algumas sessões de atendimento de pessoas afásicas na
ABBR. Foram 15 dias de observação, além de muita referência
bibliográfica.
50
O IBR foi fundado no dia 16 de janeiro de 1956, por um grupo de baianos, liderados por
Dr. Fernando Nova, com o objetivo de atender a pacientes com disfunções motoras,
através de serviços de reabilitação física e psicológica. Este trabalho visava também a
reintegração social do indivíduo portador de sequelas.
51
SEGRE, Renato. Tratado de Foniatria. Buenos Aires:Ed. Paidós. 1955
101
Como fui obtendo alguns resultados, começaram a aparecer
muitas crianças com problemas de fala e então aluguei uma sala para
atender. Hoje o IBR foi assumido pela Fundação José Silveira
52
.
Em 1964, recebi um cartão de D. Lúcia Bentes informando a
realização do “Curso de Terapia da Linguagem com Enfoque
Psicopedagógico”
53
no Rio de Janeiro. Não fui logo no primeiro, porque
tinha muitas responsabilidades no Instituto Pestalozzi, mas a necessidade
de aperfeiçoamento e estudo em terapia da linguagem era tanta que em
1968 deixei tudo em Salvador e fui ser aluna novamente. Passei por uma
seleção com pessoas de outros Estados e iniciei o curso, que na época
era considerado de alto nível. Fiquei dois anos na casa do meu irmão, o
que era uma grande oportunidade, porque eu não tinha nenhuma ajuda
de custo.
Ao retornar deste curso de D. Lucia Bentes no Rio de Janeiro
participei de programas de televisão, fiz palestras, reuniões com
professores e também dentistas, porque, nesse curso, já havia sido
introduzidas noções mais específicas de Motricidade Oral.
52
IBR e Fundação Jose Silveira. No decorrer de algumas décadas, o IBR trabalhou
muito para os baianos, mas atravessou graves crises financeiras, chegando quase ao
fechamento de suas portas. A população se mobilizou, reivindicou pela continuidade
dos excelentes e únicos serviços e depois de um processo de intervenção, requerido
pelo Sindisaúde, o Governo da Bahia passa o IBR para a administração da Fundação
José Silveira. Atende uma dia de 3 mil pacientes / s. englobando prestação de
serviços em áreas como clínica, fisiatria, neurologia, ortopedia, pediatria, reumatologia,
urologia, estimulação precoce, fisioterapia, fonoaudiologia, hidroterapia, odontologia,
psicologia, psicomotricidade, psicopedagogia, terapia ocupacional e serviço social.
Além de atender através do SUS, que abrange 96% dos pacientes, o IBR dispõe de
convênio com vários planos de saúde da rede privada do mercado.
53
Lúcia Bentes e Ruth Pereira organizaram três cursos de Terapia da Linguagem, nos
anos de 1964, 1966 e 1968. SILVEIRA, Vera Pavão. Da Terapia da Palavra à
Fonoaudiologia: Práticas Fonoaudiológicas na Cidade do Rio de Janeiro de 1963.
Dissertação de Mestrado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ. 1996.
p. 61.
102
Fui convidada por Urânia Tourinho Peres, na época psicóloga e
hoje psicanalista muito conhecida, para trabalhar na Clínica de
Atendimentos Psicológicos e Psiquiátricos CLAPP, e foi ótimo porque
trabalhei ao lado de psicólogas, psicomotricista, psicanalistas, etc. Deixei
o IBR e fiquei somente com o Instituto Pestalozzi e os clientes particulares
na CLAPP. Foi nesta época que a CLAPP acolheu os psicanalistas
argentinos (Emilio Rodrigué, Luiz Córdoba e Varon) que tiveram que
abandonar a Argentina por problemas políticos. Eles realizaram um curso
maravilhoso sobre teoria e prática da Psicanálise - eu fiz esse curso
durante três anos, duas vezes por semana, e foi muito importante para o
meu trabalho.
Em 1969, fiz no Rio de Janeiro um curso na Rádio do Ministério
da Educação ministrado por Maria da Glória Beauttenmüller, que era
famosa. Nesta ocasião, Glorinha me recomendou cuidar da minha voz e
eu fui procurar Dona Ester Leão, uma professora muito famosa e antiga
de impostação de voz no Rio de Janeiro, mas infelizmente ela se
encontrava impossibilitada numa cadeira de rodas e indicou a professora
Lilia Nunes, que tinha feito um curso na Alemanha e também trabalhava
com impostação de voz muito tempo no Rio de Janeiro. Ela também
não pode me assistir e indicou Solange Thiers da Silva, com quem fiz a
reeducação da minha voz, ficando com uma voz muito melhor, que nem
se comparava com a que eu tinha antigamente.
Em 1970, a psicanalista Urânia Tourinho fez um estágio no
Centro de Medicina e Reabilitação no Estoril, em Portugal, e me contou
103
que tinha um curso superior de Terapia da Palavra, me sugerindo a
possibilidade de fazer um estágio lá. Escrevi à minha colega Arlete Farad
em Belo Horizonte sobre o assunto e, por incrível coincidência, ela me
respondeu dizendo que Dr. Santana Carlos, diretor clínico do Centro de
Medicina e Reabilitação do Estoril, chegaria à cidade e ela iria comunicar-
lhe esta vontade. Ele foi muito receptivo e ofereceu estágio e
hospedagem na ala do Hospital que recebia os estrangeiros, e Arlete e eu
passamos seis meses em Portugal. Tivemos a oportunidade de conhecer
muito sobre o trabalho com afasia, porque, devido à guerra com Angola,
era para este Centro que eram enviados os feridos.
Também fiz estágio no Hospital Santa Maria em Lisboa e seu
diretor era o professor Carlos Larroudé Gomes
54
. Eu o conheci no meu
curso no Rio de Janeiro e tive o privilégio de vê-lo em Lisboa ensinando
algumas terapeutas da palavra a trabalhar com indivíduos
laringectomizados. Foi uma noção rápida, mas ajudou a aceitar alguns
encaminhamentos.
Em Portugal, as fonoaudiólogas eram chamadas Terapeutas da
Palavra e as primeiras fizeram formação na Inglaterra. Este Centro de
Medicina e Reabilitação era um serviço fora da realidade de Portugal,
parecia que você estava na Suíça. As instalações eram excelentes e tudo
era maravilhoso, foi um tempo muito bom. Era a época da ditadura e no
ano seguinte à minha volta eles tiveram uma revolução.
54
Professor Carlos Larroudé Gomes, otorrinolaringologista e pesquisador português.
104
Eu e Arlete passeamos muito pela Europa, porque era facílimo
tomar um trem e chegar à Madri, Paris. Fomos à Inglaterra de avião com
um casal de brasileiros que tinham um centro de Paralisia Cerebral em
Brasília.
Lembrei-me que Dr. Cortizo, médico em Salvador, encaminhou-
me um senhor com laringectomia total, surdez e catarata e eu lhe disse
que, antes de atendê-lo, iria ao Rio de Janeiro procurar uma supervisão.
Recebi supervisão de Verena Bernini, uma argentina que trabalhava
muito bem com laringectomizados e na volta aceitei o caso. Foi um caso
extraordinário, porque esse homem estava perdido completamente,
estava sem fala, tinha sido abandonado pela mulher e chorava muito.
Consegui que ele falasse o /pá/, e ele sentiu uma emoção extraordinária e
conseguiu adquirir uma fala que, considerando as circunstâncias do seu
caso, pode-se dizer ótima. Um amigo disse que ele estava com um
defeito: conversando demais.
Quando voltei de Portugal, encontrei as fonoaudiólogas Maria
Amália Penedo e Laís Pereira trabalhando também na CLAPP.
Em 1975, os otorrinolaringologistas Dr. Hélio Lessa, Dr.Cortizo e
Dr. Antonio Borja nos convidaram para fazer umas palestras no auditório
da Ordem dos Advogados da Bahia (OAB) e este paciente com
laringectomia se ofereceu para falar do seu caso e foi ótimo. Ele falou
muito bem e disse que eu tinha restituído não a voz dele, mas também
a vida, porque ele, que era aposentado, conseguiu até um novo
contrato para trabalhar e se casou novamente. Alguns anos depois, numa
105
reunião da APROFEB. encontrei uma psicóloga que tinha ido a este
evento e ela me falou da emoção extraordinária que tinha sentido ao
assistir este depoimento.
Na cada de 70, Leonora Bastos da Silva tinha chegado e
outras também do Rio e São Paulo foram chegando.
Em 1978, ano em que conclui o Curso de Pedagogia na
Universidade Católica do Salvador UCSAL, recebi uma carta de Lea
Latari
55
convidando-me para fazer parte do Congresso de
Fonoaudiologia e Educação promovido pela Secretaria Estadual de
Educação e Cultura do Rio de Janeiro. Foram seis dias de debates sobre
a situação da Fonoaudiologia e a elaboração de um documento síntese
das suas diretrizes profissionais. Lembro-me que os destaques foram os
foniatras Dr. Pedro Bloch, do Rio de Janeiro, e Dr. Mauro Spinelli e Dr.
Alfredo Tabith, de o Paulo, entre outros, porque antes eram eles que
cuidavam da voz, o havia fonoaudiólogos. Eles se especializaram fora
do Brasil e deram muita força à Fonoaudiologia.
Este congresso foi presidido por Edmée Brandi de Souza Melo
com a participação de muitos fonoaudiólogos, como Abigail Caracik, uma
pessoa muito dinâmica com um trabalho maravilhoso no Rio de Janeiro,
que me sugeriu formar um grupo de fonoaudiólogos na Bahia.
No curso de Teoria e Prática em Psicanálise da CLAPP,
encontrei a colega Leonora Bastos da Silva e juntas decidimos reunir e
organizar os fonoaudiólogos na Bahia, isto aconteceu em maio de 1980.
55
Pioneira no trabalho de recuperação de pessoas com Afasia no Rio de Janeiro.
106
Publicamos um edital no jornal local “A Tarde” convidando todo o
pessoal que trabalhava na área. Várias pessoas compareceram, inclusive
diretoras de clínicas, diretoras de escolas. Lembro-me de Silvia Santos
Reis, Aidil Prazeres, Lia Mara e Haydee Holander (uma fonoaudióloga de
São Paulo, trabalhava em consultório anos) e outras que não me
lembro. Foi ótimo, mas não entendo o porquê de não termos guardado
esta primeira ata. As reuniões aconteciam na clínica que Leonora e
muitas colegas que estavam chegando começaram a participar como
Carmem Fernandes (me substituiu na Escola Baiana de Medicina),
Angela Colonesi, Assunção, Maria Regina Granjeiro, Cid e muitos outros
fonoaudiólogos que eu gostaria lembrar o nome de cada um.
Começamos a receber muita correspondência de Brasília,
através de Maria Nólia, que trabalhava pela oficialização da profissão.
Silvia Reis foi a várias reuniões em São Paulo e Brasília.
A APROFEB (Associação Profissional dos Fonoaudiólogos do
Estado da Bahia) obteve seu registro em 1994, mas desde 1980
participava ativamente fazendo muitas reuniões, trazendo fonoaudiólogos
do Sul para ministrar cursos: Irene Marchesan, Beatriz Padovan, Maria da
Glória Beutermuller entre outras.
Em 1981, promovi na CLAPP um curso para professores, que
necessitavam informações sobre questões da linguagem. Participaram 15
escolas particulares e elas gostaram muito, porque eu dei noções das
patologias da fala, e elas se sentiram apoiadas no trabalho.
107
Durante seis anos ministrei a disciplina Noções de Fononiatria
para os cursos de Terapia Ocupacional e Fisioterapia na Faculdade
Bahiana de Medicina.
Continuei trabalhando na CLAPP e depois que conheci a Europa
me deslumbrei (porque antes eu conhecia Buenos Aires e Montevidéu)
e meu ideal tornou-se trabalhar para me manter e viajar para o Exterior.
Conheci “meio mundo” (risos) e foram viagens maravilhosas e
inesquecíveis. Fui também a muitos congressos da área: no Ceará, no
Recife, no Rio de Janeiro, São Paulo etc.
Em 1997 tivemos em Salvador um Curso de Especialização em
Voz do CEFAC, ministrado por Silvia Pinho e coordenado por Valéria Leal
e Janaina Pimenta, que foi muito importante para mim, porque significou
uma reciclagem, onde aprendi muitas coisas novas.
Depois de 16 anos trabalhando na CLAPP, fui para o meu
consultório, onde trabalho até hoje.
Para encerrar gostaria de dizer às novas turmas que devemos
sempre seguir nossos ideais, não desistir diante das dificuldades e aceitar
os desafios como estímulos para ir adiante. Eu sou apaixonada pelo que
faço, foi algo que fui fazendo e obtendo sucesso e ficando cada vez mais
encantada, buscando aprender e indo para o Rio de Janeiro, São Paulo,
enfim, todos os lugares que me possibilitassem meios para crescer mais.
COMENTÁRIOS E REFLEXÕES
Olga foi a terceira entrevista que realizei, e a segunda das quais
estou tratando neste trabalho. O contato com esta colaboradora foi fácil,
108
porque nos relacionamos desde que cheguei a Salvador. Ela também tem
responsabilidades na fixação das minhas raízes nessa cidade e foi
importante para o meu processo de eleger como área de interesse e
estudo o trabalho com pessoas afásicas.
Algumas semanas após nosso contato, Olga me procurou, muito
preocupada com sua participação, porque não tinha muitos documentos e
achava que isso poderia comprometer a fidedignidade de seu
depoimento. Observei que, apesar de ter lhe explicado a dinâmica da
entrevista, ela se angustiava porque portava um conceito de História
tradicional, como um retrato de um acontecimento, como verdade única,
que precisava ser “registrada em cartório”. Esclareci suas dúvidas
explicando que o seu depoimento iria compor/ fazer a História da
Fonoaudiologia em Salvador e que o importante era que ela pudesse
compartilhar a evocação das suas experiências vividas na área, porque
precisamos conhecer nossas raízes, para poder pensar no futuro. Ela se
acalmou e marcamos a entrevista.
Olga preparou o nosso encontro no seu consultório com muito
cuidado e reverência. Recebeu-me com a cerimônia de alguém que
prepara um acontecimento para o futuro. Ajudou-me no melhor
posicionamento da câmera, trouxe fotos, certificados e teve, ainda, a
delicadeza de me servir, após a entrevista, um pequeno lanche.
A entrevista iniciou com certa ansiedade e preocupação com
algumas anotações, mas suas rebeldes recordações desafiaram o script
que ela havia planejado. Em alguns momentos, ela manifestava
109
preocupação com essa autonomia das lembranças, supondo que sua
narrativa estava confusa. Não era isso que eu observava.
Olga iniciou sua narrativa trazendo uma lembrança da
adolescência como fundamento para sua opção pela Fonoaudiologia,
sendo que a sucessão das suas experiências pessoais e profissionais é
marcada pelo tom do entusiasmo. As memórias de lugares,
acontecimentos e pessoas nos oferecem imagens de uma saudade que
não tem a marca do perdido, mas do conquistado, do vivido plenamente:
Rio de Janeiro da década de 40/50; as festas na cidade do interior onde
lecionava; o encontro com o Professor Anísio Teixeira, a mudança de
perspectiva e vida na sua visita à Sociedade Pestallozi, as instalações da
Faculdade de Teatro da UFBA, seus cursos e professores, sua
determinação em aprender, conhecer, a descoberta de que seu trabalho
mudava a vida das pessoas, as viagens, o curso do CEFAC e todas as
coincidências que deram rumos a sua vida.
Contou com entusiasmo sua trajetória na construção de um saber
entre a prática e as possibilidades teóricas, um fazer intuitivo que buscava
ser compreendido, porque estava comprometido com o outro.
Os desdobramentos dessa nossa aventura comum têm sido
interessantes. Temos partilhado experiências sobre o trabalho
fonoaudiológico cujos temas são as relações memória/linguagem e o
idoso. Olga me contou recentemente seu projeto de investir nessa área,
porque seu consultório fica na Barra, um bairro com muitos idosos.
Sempre criando, buscando, e com muito entusiasmo.
110
Sobre entusiasmo, sua etimologia vem de duas palavras gregas
“En" e “Theos”, significando “preenchido de Deus”. A pessoa
entusiasmada, segundo os gregos, era aquela possuída por um dos seus
deuses e, por causa disso, poderia transformar a natureza e fazer as
coisas acontecerem. O entusiasmo é diferente de otimismo, porque
significa mais do que acreditar que vai dar certo, significa acreditar que
possui a capacidade de transformar, de fazer dar certo. O entusiasmo
inspira confiança, neutraliza o egoísmo e reforça o desejo de prosseguir
frente às dificuldades.
3. HISTÓRIA DE LIA MARA OU O SENTIDO DA COSMOVISÃO (do
Humano?)
Hoje é 23 de julho de 2006. Meu nome é Lia Mara para a
Imprensa, mas de batismo é Eliete Leal de Araújo. Dizem que quando se
fica velho ou se fica sábio ou se fica chato, e contar minha vida me parece
história da carochinha, porque estou sempre olhando para frente. uma
Mãe de Santo que diz: “Se Deus não quis botar os olhos nas costas, se o
não vira pra trás e muito menos o pescoço é porque a gente não tem
que ficar olhando para trás”.
Eu estou sempre caminhando para frente, ainda mais agora com
74 anos. É meio complicado lembrar minha relação inicial com a
Fonoaudiologia, mas eu vou tentar. Lembro-me que, quando criança,
pegava tampas de caixa de talco ligava um fio entre elas e ficava falando.
Todo mundo dava risada e descobri que era porque eu era gaga. Não
111
achei graça nenhuma porque, uma vez reconhecido o meu problema,
todo mundo começou a me dar conselhos: “faça assim, faça assado,
respire fundo”, e ainda tinha uma pessoa da minha família que pegava
uma colher de pau e batia na minha cabeça. E eu pensava: “o que é que
de errado se uns achavam graça e outros querem que eu não faça
isso?”. Na escola, eu dizia “p p p p”, e como não saía “presente”, preferia
passar por burra do que por gaga. Chamavam-me e eu ficava calada,
fazendo que estava distraída e agravando mais a situação.
Tornei-me professora de dicção na Escola de Teatro porque
descobri que, ao falar como eu mesma, gaguejava, mas, quando pegava
um personagem, isto não acontecia. Descobri que se o problema não
estava na fala, deveria estar em mim. Foi uma grande descoberta poder
administrar isso e não controlar, porque eu passei toda minha juventude
controlando e isso me dava um enorme desgaste emocional. É por isto
que entendo o problema dos outros, entro em empatia e, quando alguém
me procura, faço tudo para tirar e não para botar pecado e culpa na
história.
Através destas aulas fui convidada para ministrar aulas de
respiração na Escola de Surdos Wilson Lins
56
. Logo ao chegar, me
ocorreu que não estava trabalhando com surdos, mas com pessoas,
crianças. Pensava: “vou trabalhar com a voz ou com a pessoa?”.
Brincava muito com as crianças e, quando elas estavam exaustas, eu
56
A Escola Estadual Wilson Lins, especializada em surdos desde 1959, desempenha
trabalho com os surdos, atendendo 196 alunos da à séries, que estudam Língua
Brasileira de Sinais LIBRAS e freqüentam o ensino fundamental. O principal objetivo
é a escolarização, mas também são oferecidos cursos de Libras para os pais,
voluntários e a comunidade de Ondina, o bairro onde se localiza a escola.
112
pegava a mangueira do jardim, jogávamos água um no outro e a aula
começava relaxada. Eles perdiam toda aquela agressividade e eu ficava
próxima deles, eles não me temiam. Naquele tempo, era uma porção de
séries juntas, e eu trabalhava buscando ajudá-los a sentir com as mãos o
ar saindo pela boca e o próprio corpo. Era muito gratificante.
O reconhecimento por este trabalho fez com que “Irmão Dubois”,
o diretor do Instituto de Psicologia da Universidade Católica do Salvador –
UCSAL, me procurasse para trabalhar com problemas de linguagem e
também para participar de um curso específico que seria oferecido por
uma fonoaudióloga norte-americana integrante dos Voluntários da Paz
(Peace Corps/ Corpos da Paz)
57
, chamada “Carol Perry”. Este encontro
no Instituto foi uma delícia, porque todas as interrogações que eu tinha
foram sendo respondidas em parte, e me tornou mais segura no que
vinha trabalhando. Foi um deslumbramento, porque a professora, por
sorte minha e azar dela, era também gaga. Ela administrava a gagueira e
eu também lhe ajudava, porque, quando ela estava num clima
confortável, não gaguejava. Como eu tinha pegado o personagem Lia
Mara, estava ótima e não gaguejava. Talvez agora esteja desconfiando o
porquê de não gaguejar mais, talvez seja porque peguei uma “sub
personalidade” minha.
Eu também era jornalista, não tinha dificuldades na escrita, e
como era tagarela ia atropelando tudo, mas dava um jeito. Nós fizemos
uma relação muito boa e conseguimos fazer um grupo aqui na Bahia. Ela
57
CORPOS DA PAZ (Voluntários da Paz Peace Corps) foram criados no inicio do
governo Kennedy com o objetivo de enviar voluntários para servir por dois anos em
projetos de assistência técnica e comunitária nos paises do Terceiro Mundo.
113
dava as aulas teóricas, e as partes mais científicas nós íamos para o
Hospital das Clínicas e a nossa formação ficou no Instituto de Psicologia e
no Hospital das Clínicas. Ela tinha um programa de curso e fazia umas
provas terríficas. Eu me insurgia contra aquelas provas, brigava com ela
porque tinha que escrever tudo e achava que não precisava tanta
metodologia. Fizemos juntas a tradução de uma monografia sobre
laringectomizados “Sua Nova voz” - e fui cuidar destes pacientes sob
sua supervisão.
Eu tenho três volumes de atividades que realizei sobre fala. Disse
que iria jogar tudo fora quando me aposentasse da Faculdade de Teatro,
porque toda hora me pediam esse currículo para provar minhas
atividades, mas, como a sociedade não permite que a gente viva sem
provas, eles devem estar guardados, preciso procurá-los. Diria que
eles são de mil novecentos e lá vai fumaça, porque minha memória é
esfumaçante.
Lembrar Carol Perry me emocionou porque ela me deu um
bastão e disse que eu tinha que desenvolver a Fonoaudiologia no Brasil,
o que era uma responsabilidade muito grande, principalmente porque eu
estava envolvida nas atividades do teatro e não podia assumir isto.
Estava encenando como atriz a “A Casa de Bernarda Alba”, de Garcia
Lorca (Autor Espanhol, 1898 1936), e era professora de teatro. Eu não
queria sofrer, porque, cada vez que ia tratar de criança com problemas,
entrava em empatia e queria solucionar a vida de todo mundo.
114
Iniciei os primeiros atendimentos supervisionados por Carol e fui
para os EUA por causa da monografia que tínhamos traduzido sobre
laringectomizados. usavam a Laringe artificial e eu usei técnicas para
voz esofágica (refrigerante para dar arroto) e brinquei um pouco com o
“meu paciente”. Acho que não se deve dizer paciente, mas interlocutor,
porque paciente traz uma posição passiva, e eu não gosto. Quando
terminou a sessão, ele já estava fazendo as vogais. Antes eu tinha me
preocupado em saber um pouco da história de vida dele para
estabelecermos um nculo, naturalizar a situação e diminuir o impacto
daquela laringe artificial que se constituía numa sentença. Uma outra
supervisora disse que, além de eu ser criativa ao usar as técnicas, me
colocava muito próxima do cliente. Não que eu ficasse vestindo a pele
dele, mas eu compreendia a história de vida dele, porque também já tinha
vivido uma história de dificuldade de comunicação muito grande. Sabia o
que é querer falar e não poder. Pode ser disfonia, ou se é sei o quê,
mas, de qualquer maneira, o encontro com o outro é importante para ser
aceito socialmente.
Comecei a gostar da Fonoaudiologia, mas isso significava largar
meu teatrinho, que me gratificava muito. Naquele tempo, eu era um pouco
vaidosa, não sei se ainda sou, mas eu sei que me identifiquei muito com
disfonia. Engraçado é que eu era gaga, mas me identifiquei muito com
disfonia.
A voz pra mim é a alma da pessoa, é o alto-falante. Penso que
quando a pessoa tranca a garganta é porque ela “engoliu muito sapo”.
115
Acredito que temos que trabalhar tocando a pessoa por dentro, não
querendo a performance de uma voz impostada (”miniminiminimi”)
58
,
porque, quando ela estiver numa situação fronteiriça, voltaria tudo.
Procurei sempre o acompanhamento de terapeutas emocionais e foi uma
parceria foi muito boa, porque, enquanto eles cuidavam da emoção, eu
pegava aquele rtice de emoção e com ele podia se resolver o
problema. Nós nos divertimos muito porque aprendíamos muito com o
cliente e também éramos muito rigorosas com resultados, sem sermos
ansiosas. Havia disciplina em relação aos resultados e o tempo
necessário para atingi-lo.
Fui cuidando de disfonia e busquei aprender mais coisa. Fiz
muitos cursos para trabalhar o corpo, considerando o impulso do corpo
para soltar impulso de voz. Estudei expressão corporal e karatê para
aprender a jogar agressividade, associando impulso e velocidade para
tirar o som de dentro do corpo. Se ele podia soltar quanto tinha impulso
externo, ele poderia soltar se soubesse colocar e abrir a laringe. Colocava
a voz tecnicamente soltando a laringe somaticamente, partindo também
do emocional. Procurei capoeira também, porque ela tem uma coisa de
recuo, de avanço, de prestar atenção.
Estudava o que vinha na cabeça, o que me parecia relacionado
com a fala, embora aparentemente não tivesse. Lembro-me que, naquele
tempo, nem sei em que ano foi, tinha uma revolução no pedaço e eu
estava na Escola de Teatro, e as pessoas não podiam dizer o que
58
Lia Mara faz referência a um exercício técnico para o trabalho com Voz.
116
sentiam, um desconforto entre o que pensavam e diziam, e eu parti
muito para expressão corporal. As pessoas faziam gestos e inventavam
língua. Eu não tentava fazer sons, tentava liberar sons. Era diferente
porque dava mais autenticidade, mais organicidade à fala quando eles
tivessem na vida, no dia a dia. Eu usei muito trabalho com expressão
corporal e foi daí que veio toda a minha intimidade com o corpo.
Convidei para vir ao Brasil o Serge Peyrot
59
, que fazia algo
baseado em Mèziéres.
60
Fiquei 280 horas com ele para entender a
questão do prejuízo corporal. Fiz também três anos de Tai Chi Chuan,
onde se colocava a energia, mas também havia um equilíbrio interno. O
trânsito interno dependia muito de uma liberdade interna, e quando
engarrafava o trânsito no órgão de crise que ficava na garganta, você
também podia liberar o som pelo trabalho de corpo. tinha feito também
Yoga, mas achei que o Tai Chi Chuan juntava a Yoga com movimento e
abria muito o peito naqueles exercícios que entravam em sintonia com
animais.
Fiz o curso de três anos do “Trauma tem cura”, com Peter
Levine
61
, aqui em Salvador. Ele falava sobre o trauma que deixa no corpo
59
Serge PEYROT. Fisioterapeuta francês que fez formação com Françoise MÉZIÈRES,
em busca de uma compreensão global do equilíbrio postural do ser humano.
Disponível em: <http://www.abtm.com.br> Acesso em 17/05/07
60
Françoise MÉZIÈRES (1909-1991). Fisioterapeuta francesa que desenvolveu um
método de reeducação postural. Disponível em:
<http://www.wgate.com.br/conteudo/medicinaesaude/fisioterapia/cinesio/metodo_mezi
eres.htm> acesso em 15/05/07
61
Peter LEVINE. Responsável pela origem e desenvolvimento do Somatic Experiencing®
(Experiência Somática®). Doutor em Biofísica Médica e Psicologia. Durante seus 35
anos de estudos em estresse e trauma contribuiu com uma variedade de publicações
científicas e médicas. Foi consultor da NASA durante o desenvolvimento do Space
Shutle e ensinou em hospitais e clinicas de dor nos U.S.A. e na Europa.
117
o rastro e que quando você trabalha o sensorial pode limpar aquela
cicatriz e liberar não pela re-encenação da história, mas por uma
reorganização corporal que está no emocional. Isto tudo era uma procura
minha para, em menos tempo possível, respeitando o indivíduo, fazer
com que ele se libertasse da escravidão, da gaiola que vivia, de se sentir
preso na comunicação com o outro.
Eu sou mais pela voz do que pelas palavras e fazia diagnóstico
da voz, mesmo sem ter esses aparelhos todos. Sentia quando uma
pessoa estava falando a verdade e quando estava fazendo uma voz
postiça. Havia muito locutor de rádio que falava todo impostado, mas no
dia a dia era fanhoso e isto era uma salada vocal. Onde estava o
indivíduo dentro dessa salada é que era a minha preocupação maior.
Conhecendo este repertório, ele poderia fazer a voz que quisesse e não
se prejudicava somatizando uma doença. Ficava consciente que podia
fazer voz em cima, podia fazer voz em baixo, podia fazer voz média,
podia fazer o que quisesse sem trancar a garganta. O meu problema era
liberar a área da garganta, mas se ele estivesse desajustado, ia procurar
outro órgão de crise, e então eu entrava com apoio psicológico.
Hoje não trabalho mais com patologia e sim com a comunicação
como um todo: a linguagem falada, escrita, cinema, teatro, quando uma
pessoa quer fazer uma palestra, uma conferência. Para vocês que estão
tomando o bastão, acho interessante trabalharem com a infância,
porque é aí que começa a inibição de fala.
118
Estou falando como Gato Mestre e eu o gosto de ficar dando
conselho, só porque eu sou mais velha. Minha avó dizia que água e
conselho se a quem pede, mas acho que o currículo de
Fonoaudiologia precisava mudar um pouco e incluir muita Psicologia e
Antropologia, além de procurar pessoas que tivessem solidariedade com
o próximo, porque têm pessoas que estão com outros objetivos de vida
e podem até ter sucesso em outras áreas, posar para revista de moda,
tudo isso, mas para ser fonoaudióloga tem que realmente curtir uma de
estudar muito.
O mundo muda toda hora, as pessoas estão com novos
problemas, novos medos e novas infâncias. Hoje é necessário preparar o
pessoal que esta chegando, na creche, se possível. Quando a criança
começa a engatinhar, andar e cair, ninguém acha ruim; agora, quando
começa a falar e gagueja, logo é rotulada de gago ou então surdo-mudo.
O surdo-mudo libera som, inclusive nesta escola Wilson Lins nós até
fizemos um showzinho, onde eles sentiam a vibração pelos pés,
dançavam, emitiam som, e se sentiam ótimos, porque faziam também
uma leitura da face das pessoas, não dos fonemas, mas das
expressões emocionais. Desde aquele tempo, eu já pensava assim e
agora que o bastão está passado a mil pessoas a preocupação maior é
quem se recruta para ser fonoaudiólogo. Atualmente, eu tenho visto na
área da saúde, principalmente os médicos, uma preocupação mais com o
computador do que com o que o paciente sente. Você faz uma série de
exames de laboratório, que muitas vezes nem são lidos direito, e você fica
119
passando de um lado pra outro, apavorado e emocionalmente se
arrebentado. Quem não está doente, acaba ficando.
Hoje estamos numa fase belíssima, as pessoas se interessando
pela Fonoaudiologia, sobretudo aqui na Bahia. Fico encantada, porque
pessoas competentíssimas e confio nessa juventude e aspiro que a
história tenha um bom final ou que não tenha final nenhum, sejam
reticências.
No Instituto de Psicologia da Católica, atendia pessoas com
problemas de comunicação em grupo e individual. Se a pessoa tinha
muita dificuldade de entrar em qualquer grupo, o suporte era individual
porque não ia ser violentado. Pessoas que procuram ajuda por problema
de inibição tem muito medo de julgamento, e o pior julgamento é o dele
mesmo sobre si mesmo. Ele fica pensando sempre que está aquém do
nível de expectativa do outro e pinta o interlocutor como algoz e entra na
situação de fala como se fosse para a guilhotina. Às vezes, ele estuda
500 livros e na hora dá um branco. Eu acho que o maior órgão da fala é o
cérebro. Ele pode organizar a imaginação, como se faz com o ator.
Por exemplo, quando eu falei da Carol Perry me veio a idéia da
passagem do bastão e isto me emocionou. Se eu fosse trabalhar um ator
em cima disso, eu realmente usaria a memória afetiva e ele entraria
nessa faixa emocional que eu entrei e daria a fala certa. Se eu tiver
trabalhando com uma pessoa com inibição de fala e pintar” uma platéia
horrorosa, ele naturalmente não dirá uma palavra, então começamos a
trabalhar com ele comendo pelas bordas, dando mais gratificação e
120
recursos para que ele possa imaginar a platéia, entrar na imaginação, dar
suporte para só depois ele ir para o grupo. Em geral, eu trabalho no grupo
de sete depois reduzo para grupo de quatro.
Carol Perry voltou para os EUA, mas veio outra pessoa depois
dela
62
. Eu não me lembro quantas pessoas fizeram parte desse primeiro
curso, porque houve depois uma triagem. Tenho a impressão que Carol
olhava muito a personalidade e considero que no que a gente faz precisa
ter muita doação, tem que estar disponível.
Tenho muita esperança de que as pessoas aprendam a falar e,
sobretudo, aprendam a ouvir, porque senão, no Brasil, não teremos
formação de massa crítica. Nós estamos precisando muito de percepção
de mundo, e penso que nossa missão é de responsabilidade cívica. As
pessoas estão girando muito em torno do individual, a relação com o
computador, a relação com a fantasia do outro. O espaço pessoal está
ficando muito entre quatro paredes, e a gente esquece que, enquanto
uma pessoa passa fome, o mundo todo corre perigo. Está na hora de a
gente mudar a cabeça e lembrar que precisamos de uma coisa chamada
SO-LI-DA-RI-E-DA-DE. Acho que Fonoaudiologia sem filosofia de vida
não vai para lugar nenhum.
A disciplina que eu ministrava na Escola de Teatro era Expressão
de Voz, e como era eletiva, acabavam as vagas e os alunos se
inscreviam como ouvintes, e minha aula ficava cheia de ouvintes, virava
comício. Entrava a moça que vendia goiaba na porta, o menino do
62
Depois de Carol Perry chegou a Salvador Sharon Levy, referida também por Olga
Tanajura.
121
cafezinho e virava teatrão, mas tudo baseado na aceitação da voz do
outro, no ritmo do outro, na pulsação do outro, sempre permissividade e
liberdade de deixar o outro ser o quiser ser. A mulher que vendia goiaba
não se sentia mal porque era incorporada a todo mundo, era
compromisso do grupo receber o outro. Se na vida você recebe todo
mundo, por que na aula não recebe? Foi dque partiu muito desse tipo
de trabalho que eu dou para leigo. Quando as pessoas chegam aqui, para
trabalhar a voz, eu faço uma entrevista para ver se estão preparados para
freqüentar o grupo. Não procuro saber muita coisa sobre social e o
político, eu peço que venha para a aula vestido de maneira simples
para que possa fazer movimento de corpo. No primeiro momento, deixo
que uns falem com os outros para fazer um vínculo entre eles e deslocar
um pouco o comando. As pessoas ficam livres para dizerem o nome, a
história, até inventar, se quiserem. O sujeito pode falar, gritar, dizer
besteira, porque ninguém exige dele. O curso acontece duas vezes por
semana durante dois meses. No final, eles podem fazer uma palestra,
uma conferência, uma roda de samba, uma música ou ficar na platéia.
É um espaço livre para ninguém se sentir ameaçado.
Eu nunca dei nota e, graças a Deus, na minha matéria, não tinha
que fazer avaliação, porque, como é que se avalia alguém que entrou
pequeno e sai grande e outra que entrou grande e sai maior ainda? Eu
não gosto de pré-requisito; entra todo mundo, porque estão todos ali para
aprender e ter confiança de que não vão ser ridicularizados, porque eu
acho que o maior medo de quem quer se comunicar é o medo do ridículo.
122
Esse espaço onde trabalho foi construído com meu salário da
Escola de Teatro. Eu idealizava ter um espaço de liberação de fala que
não incomodasse ninguém e nem fosse incomodado. Hoje eu atendo a
empresas, pessoas que têm necessidade de fazer chefia, mas tem pavor
de se comunicar com o outro. muitas pessoas dizendo o que fazer,
mas não dizem como, e o indivíduo fica com uma responsabilidade
enorme de ser sociável. um medo infantil de dar entrevista, que acaba
sendo dada por quem não pode dar, provocando um mal entendido para a
empresa. Embora a pessoa saiba o que fazer, ele deve saber como fazer.
Esta entrevista mexeu comigo, me fazendo procurar minha vida.
Você sabe que não sei quanto tempo eu tenho de aposentada. Como
meu cérebro não “deleta” coisa boas e coisas ruins, eu deletei” foi tudo.
Fiquei com o necessário para minha profissão, e de vez em quando
me lembro das vitórias e fracassos. Quando você me pediu, ainda tentei
procurar, mas ganhei uma sinusite e então preferi dar uma parada,
porque vi que meu inconsciente ainda não está preparado pra encarar,
mas eu vou saber, porque agora eu vou ter que procurar meus
certificados. Estou satisfeita porque eu vi que acertei um pouquinho
Teve uma história que eu ia me esquecendo. Meu irmão era
diretor da Rádio Excelsior e fazia um programa de auditório, e, quando eu
quis provar que não era gaga, aproveitei que ele viajou e não tinha com
quem deixar o programa e fui fazer o programa e me diverti muito.
Lembro-me que a área perto da Radio Excelsior era barra pesada. Tinha
123
um cara chamado Aviãozinho que era ladrão e entrou no programa. Foi
ótimo, porque eu vi que não era gaga mesmo.
Depois, veja quantos pecados eu tive, fui ser cronista social.
Achava gozado as pessoas se vestirem toda e ficarem sempre dando
risada. Só saía retrato de quem ria e de quem era poderoso. Queria saber
qual era o milagre que ninguém se chateava e vi que era muito
artificialismo, são só bons atores. Nem sempre o que parece é o real. Mas
foi bom porque também havia gente boa. Eu não culpo ninguém, porque,
para mim, todo mundo faz o que quer, mas eu não queria ter aquela vida
de passar horas fazendo maquilagem, horas fazendo num sei que lá,
horas pra ficar bonita, tira de cá, bota de lá, não era a minha. eu voltei
para os surdos-mudos, mudos não, que não eram mais, e ao Instituto
de Psicologia, pois tinha responsabilidade com a Fonoaudiologia.
Com a tradução da Monografia “Sua nova voz”, fui procurar Isis
Meira em São Paulo e ela me encaminhou para Mauro Spinelli. Mostrei-
lhes a monografia e voltei para a Bahia. Soube depois que uma
fonoaudióloga chamada Beatriz apresentou num congresso em São Paulo
ou Rio. Fui para porque queria conhecer o que se fazia em outro lugar,
e Isis me recebeu muito bem, indicou muitos livros. Isto fica um pouco
nebuloso para mim, porque nesta época eu fazia muitas coisas.
A Carol Perry me deu um certificado e disse que eu podia
atender, mas eu sempre tive a loucura da insatisfação. Quanto mais
estudava, mas eu via que a coisa era grande demais. Com patologia
fiquei mais com disfonia e estética de voz. Acho que estética entre aspas,
124
porque eu trabalho mais a organicidade da voz, visto que meu objetivo
era fazer a pessoa descobrir sua voz orgânica, seus próprios sons, seus
sons internos, seus urros e berros, seus gritos e sussurros, seus
fantasmas e tamm seus anjos. Conhecer-se, conhecer sua voz e com
isso poder fazer o personagem que quiser. Você não impõe voz, você
administra e aumenta o repertório. Eu preferi procurar a organicidade da
voz talvez por causa da minha formação de teatro. Grotowski
63
dizia
“Você vai para sua casa com as suas pernas ou com suas idéias. Não
adianta dar adestramento para o falante se você não trabalhar a mente da
pessoa para se libertar e gostar de si mesma. Tenho a impressão de que
podemos, neste teatro da vida, ter uma performance aceitável, mas eu
prefiro que seja uma verdade aceitável, porque de performance
estamos saturados.
Um tempo atrás fui a uma escola pedir uma capa de livro infantil
para um projeto de treinamento de linguagem com professores do ensino
básico, um trabalho que procurasse dar segurança para as crianças,
deixando elas explorarem seus sons, encontrando sua voz. Encontrei
uma professora que competia com as crianças. Dei uma porção de lápis e
papel e disse: “olha, façam o que vier a cabeça, podem até fechar o olho
e deixar a mão mandar, soltar o interno”. A professora fez um palhaço e
mostrou às crianças, e todos na sala só desenhavam palhaço. Uma
delas chegou a sentar ao lado para copiar a cor do palhaço da outra. Se
63
Jerzy GROTOWSKI. Encenador polonês. Considerado um quatro maiores diretores de
Teatro do século XX, juntamente com Stanislavski, Meyerhold e Brecht. Suas teorias e
práticas influenciaram e seguem influenciando inúmeros encenadores e grupos em
todos os continentes.
125
não começarmos a fazer isso agora, qual é a geração que vamos ter
depois? Preocupo-me com presente e futuro, e está na hora da gente
trabalhar urgentemente os professores, porque a moça tinha qualidades,
mas precisava ser trabalhada a ter confiança em si mesmo, porque
competir com crianças de seis anos é loucura.
Faço o trabalho com fonética, mas não é muito a ”minha praia”.
Por exemplo, atualmente estou trabalhando com um ator em um filme
para que ele consiga a dança do orixá, e assim possa penetrar no espírito
do Orixá e trazer naturalmente a sua entonação. Ele é baiano e não tem
problema, mas se ele não fosse baiano, eu teria que trabalhar essa parte.
Teríamos que ver o baianês” e o “iorubabaianês”, cuja melodia viria
ajudando-o a liberar o quê, por algum motivo, ele teria inibição para fazer.
Lembrei-me de uma senhora inteligentíssima que entrou em
pânico total porque foi designada para gerenciar uma empresa no
nordeste e não gostava de falar nem ao telefone, quanto mais dirigir
reunião com vendedores. Como ela ficava na linguagem escrita, eu
brincava dizendo: “linguagem escrita é cadáver, vamos dar alma às
palavras, vamos brincar com as palavras”, e perguntei-lhe se ela tinha
memória de algum acontecimento desagradável envolvendo a fala. Ela
contou-me que, quando tinha entre nove e dez anos, foi chamada para ler
em sala de aula e a professora primária (que naquele tempo não tinha
computador, mas ficava também fazendo suas coisas, enquanto o aluno
lia) resolveu olhar para ela de repente e dar um estouro, (que até hoje ela
não entendeu naturalmente atrapalhou o que ela fazia). De medo, ela
126
fez xixi na frente da sala toda, começando seus problemas de
comunicação. Quando ela me contou isto, eu solicitei um trabalho com um
terapeuta. O curso de Peter Lavine me ajuda muito.
Esta entrevista me trouxe muitas lembranças por exemplo, a
dança com Aviãozinho no programa de auditório. Era muito divertido, e
como queria a coisa pura, eu experimentava esses personagens
populares que não têm vergonha, problema de julgamento é gordo, tem
a barriga desse tamanho, está com a pele pintada de vermelho e azul, é
um arco íris e dançam numa ótima. Eles não têm o comportamento
cerimonioso e utópico de serem os melhores do mundo em tudo. Eles são
o que são. No dia que em todo mundo for o que é, eu acho que o mundo
vai mudar um pouco.
Esta sinusite que você me botou vai piorar, porque agora quero
procurar meus documentos para saber quando me aposentei e onde
estão meus diplomas.
Iniciei o trabalho com o indivíduo laringectomizado sob
supervisão de Carol e logo ele começou a emitir sons. Era uma fala
gutural, mas encantadora, porque ele era animadíssimo. Ele queria exibir
que estava laringectomizado, se sentia vitorioso por estar ultrapassando
as dificuldades e começou a dar muitas entrevistas. Faz tantos anos isso,
e eu nunca mais tive notícia dele. Ele chegou a assobiar (já pensou um
laringectomizado assobiando?), e durante este trabalho, a Carol não se
envolvia diretamente, porque queria que eu ganhasse confiança em mim
mesma. Era uma ótima professora e dizia: se auto-avalie e veja como
127
você planeja outra sessão. Propus-me a ensiná-lo a ensinar outros,
porque ele faria isto melhor do que nós.
Acredito também que o trabalho deve começar antes da cirurgia,
para que não se sentissem mutilados. E estou encantada em saber que,
hoje, o trabalho com laringectomizado ocorre antes, durante e depois da
cirurgia. O nosso amigo ali era a prova viva de que é possível superar
estas dificuldades.
Foi durante este trabalho que surgiu a oportunidade de viajar ao
EUA. Lembro-me que estava fazendo uma peça de teatro e o pessoal de
teatro ficou zangado porque larguei tudo e viajei. Era em Washington,
mas não me lembro o local. Só me lembro que a nossa mala ficou perdida
e não tínhamos nada para vestir e ficamos o tempo todo telefonando para
saber das malas. Chegamos três minutos atrasadas no hall do hotel, e o
motorista disse que, nos EUA, havia hora pra tudo e que aqueles três
minutos tinham realmente complicado a vida dele, porque ele tinha que
buscar outras pessoas. Era lógico, mas pra mim foi um espanto danado.
Fomos para uma sala com espelho-espião que eu nunca tinha
visto. Ficamos vendo as laringes artificiais e me pediram que eu
apresentasse o método. Disse que precisava conversar com ele para
conhecê-lo, porque senão iria só saber a garganta que ele tinha, e o que
me interessava era se ele podia confiar em mim. Comecei a brincar com
ele, dizer de onde eu vinha e ele contou sobre sua vida, que era uma
pessoa muito comunicativa. Tomamos refrigerantes e iniciamos uma
competição de arroto em tom de brincadeira, e no final ele conseguiu
128
emitir as vogais. Penso que, se tivesse conosco uma pessoa que pudesse
ficar com ele depois, seria mais interessante. Mas não uma pessoa
formal, que ensinasse a técnica pela técnica, mas um companheiro [neste
momento, Lia Mara inverte a entrevista e pede informações sobre o
trabalho atual com laringectomizado, sobre Isis Meira da PUCSP, sobre
outras colegas].
Nós tínhamos aulas na UCSAL, Rua Francisco Ferraro, nº 17, em
Nazaré, atrás do Colégio Central. Aleluia! Eu me lembrei do mero. Foi o
Orixá que desceu aqui. [Ficou muito animada com a lembrança do
endereço]. Era um Instituto dirigido por Irmão Dubois, um religioso muito
idealista, que conseguiu dentro da UCSAL um Instituto para cuidar das
pessoas. Ele era um cuidador e se cercava de gente em quem acreditava
e que também acreditava nele, mas a UCSAL parece que não gostava
muito destas iniciativas, porque custava dinheiro e não sei se ele sabia
lidar com essa parte de administração. Houve algum problema de gestão,
não de qualidade de trabalho, e a Instituição retirou o apoio as suas
iniciativas. Ele criou Instituto de Psicologia e tenho a impressão que foi ele
quem trouxe os Voluntários da Paz.
Acho que esta noite eu não durmo de felicidade, pois a minha
memória está voltando. Vou procurar nos meus alfarrábios e achar esses
certificados, inclusive eu sei as demandas que enfrentei, porque tive que
estudar muito as apostilas de Carol. Naquela época, não chamava
Fonoaudiologia, era Foniatria. Foi Dr. Mauro Spinelli
64
que me explicou a
64
Médico Foniatra
129
diferença, que Foniatria era para médicos e que nós éramos uma
atividade paramédica, e chamava-se Fonoaudiologia.
Lembrei-me de Martins Gonçalves
65
, uma grande figura do teatro
aqui na Bahia. Ele participou da organização do “1º Congresso Brasileiro
de Língua Falada para o Teatro”, em Salvador, no ano de 1956, que deve
ter em Anais. Martins Gonçalves me colocou junto com a orquestra
sinfônica para eu ler Pedro e o Lobo, e eu senti o quanto por dentro você
precisa de segurança. Nesta época, não conhecia Tai Chi Chuan, não
conhecia “base”, não conhecia “eixo”, não tinha “comunicação com o
cosmo” e tive que enfrentar. Eu vi quanta dificuldade se pode ter na voz
quando se tem que ter um ritmo e entrar com som da orquestra. Mais uma
vez, eu acho que Carol tinha razão, precisava estudar para salvar os
outros daquele desgaste que eu sentia.
Na escola de Teatro tive aula de Dicção com Ana Edler (era
assim que chamavam a disciplina e lutei muito para que ficasse
Expressão Vocal), aulas de esgrima, que dignidade e altivez,
expressão corporal com dança primitiva e análise de texto; se bem que
quem vai falar em público não faz análise de texto, não sabe como vai
dizer. A escola de teatro me deu o suporte que precisava para saber
sobre patologia. Trabalhava com pessoas que estavam no chão, que
tinham perdido a automatização do falar. Eu vi um filme, “Gato em Teto
65
Cenógrafo, crítico e diretor teatral, nasceu no Recife, em 1919. Organizou e dirigiu a
Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (Salvador, 1955/61). Professor de
interpretação no Museu de Arte Moderna de o Paulo (1964/68) e de indumentária
histórica na Escola Nacional de Belas Artes. Montou várias peças e foi crítico teatral do
jornal O Globo, RJ. Seus principais trabalhos como cenógrafo e figurinista: "Desejo"
(1946), "Édipo Rei" (1948), "Crime na Catedral" (1955), "As Criadas" (1966). Morreu no
Recife, em 1973.
130
de Zinco Quente”
66
, onde se mandava o rapaz andar e ele não sabia mais
andar porque tinha desautomatizado a marcha. Na fala, quando
desautomatiza, é um problema grande recuperar essa automatização.
Era daí que vinha um pouco da minha responsabilidade social,
com a qual luto até hoje e quero continuar lutando para ensinar a
professora de ensino básico a não colocar problema nos meninos. Tenho
até um projeto aprovado na Prefeitura. Fazer um trabalho de linguagem
não verbal e verbal com a professora para que ela possa estar preparada
pra soltar sua própria voz, seu próprio corpo e saber o que acontece com
pessoas que estão sobre camisa de força, respeitar o momento da
criança.
COMENTÁRIOS E REFLEXÕES
Contextualizar a entrevista de Lia Mara parece-me interessante,
uma vez que oferece dados para a reflexão do significado de contar uma
história de vida, narrar. Lembrava-me apenas de ter me encontrado com
ela uma vez, em um evento de Fonoaudiologia em Salvador, e nem tinha
certeza de que ela se recordava desse nosso breve encontro. Era para
mim uma situação atípica, porque todos os outros depoentes até então
mantinham comigo relações de amizade.
Em nosso primeiro contato telefônico, expliquei a proposta da
entrevista, e inicialmente ela não se mostrou receptiva. Mas, no decorrer
de nossa conversa, aceitou colaborar, ainda que reticente quanto à data.
66
Filme realizado em 1958, baseado na obra do escritor americano Tennessee Williams.
(1911-1983).
131
Pediu-me que lhe telefonasse alguns meses depois (depois do São João),
pois estava muito ocupada. Conforme combinado, voltei a procurá-la e
marcamos para o dia 23 de julho, um domingo, às 16h00. Talvez esse
horário fosse quase um pedido para que eu desistisse, mas isto não
ocorreu, porque provavelmente eu já pressentia a riqueza do seu
depoimento.
Cheguei a sua casa na hora combinada e, na ânsia de realizar
logo a entrevista, disse-lhe que gostaria de montar o equipamento de
filmagem e que depois ficaria mais tranqüila para conversarmos. Durante
a montagem, ela tentava conversar, mas como eu estava preocupada
com o equipamento, apenas lhe respondia vagamente. Incomodada pela
situação, ela me disse: “Olha eu estou me sentindo invadida. Eu não lhe
conheço, você chega aqui e vai montando este equipamento sem a gente
conversar”. Nesse momento, parei e percebi que ela tinha toda razão.
Apesar de nossa conversa pelo telefone sobre o projeto, Lia Mara não me
conhecia, e isso era impeditivo para nossa entrevista. Generosamente,
ela me lembrou a reverência do momento da narrativa. Compartilhar o
vivido é compartilhar algo que tem valor de sagrado, envolve
cumplicidade, empatia, respeito e, principalmente, conhecimento mútuo.
Parei com tudo e me coloquei à disposição para nos
conhecermos. Passamos duas horas tomando chá e conversando sobre
nossas vidas, trabalho, família, o mundo, a Fonoaudiologia, etc, antes de
iniciarmos a gravação. Comecei a entrevista cheia de insegurança, pela
falta de cuidado anterior, com a expectativa de que seu relato seria bem
132
objetivo, pouco permeado de emoções, quase burocrático, apesar de
percebê-la uma narradora envolvente.
A resistência inicial para a entrevista foi gradualmente sendo
substituída pelo entusiasmo. As lembranças se tornaram mais vivas, a
emoção aflorou, e Lia chegou a chorar, pedindo que eu interrompesse a
fita para se recompor.
Consegui recuperar sua disposição em colaborar com meu
trabalho e pudemos observar, juntas, os efeitos da entrevista. Uma
semana após esse encontro, fui surpreendida com seu telefonema me
oferecendo seus documentos e outros dados de que tinha se lembrado. A
partir desse dia, temos nos falado com freqüência sobre os mais variados
temas, e a resistência inicial foi substituída por um acolhimento que tem
feito bem a nós duas.
Interessante que Lia Mara inicia trazendo as origens, as vivências
da infância para explicar o percurso de sua vida, suas escolhas e também
a possibilidade de compreensão do sofrimento do outro frente a suas
dificuldades de comunicação. Ela faz referência à empatia, trazendo-a
como fundamental no exercício clínico-terapêutico: olhar com o olhar do
outro, considerar a possibilidade de uma perspectiva diferente da nossa.
Uma visão tecnicista e equivocadamente dita científica, sem acolhimento
do sentir do outro, exclui a possibilidade de empatia, visto que o saber
está com quem usa a técnica, e o outro é apenas receptáculo, é vazio, é
massa de modelar que não reage, é objeto. Não há outro.
133
Observo na Fonoaudiologia, no seu ensino, na sua literatura e na
observação do meu próprio percurso de aprendizagem da clínica, que
esse aspecto estrutural de estar terapeuta não é tratado como essencial,
mas complementar – compõe o exercício fonoaudiológico. As justificativas
se apóiam no argumento de que “Fonoaudiologia é uma área jovem, está
se construindo.... ou então isto não é cientifico, é muito subjetivo”.
Lia Mara encontrou no Teatro uma maneira de superação das
suas dificuldades de comunicação, viabilizando compreender-se e, ao
mesmo tempo, se abrir para receber o outro. Isso faz pensar em
reciprocidade e transformação: transformar vivências difíceis em
possibilidade de crescimento pessoal. A todo instante somos desafiados a
escolher entre ser criadores da realidade ou reprodutores de uma
realidade imposta. Essa sua relação com o Teatro me fez lembrar e
quase compreender a frase: “A arte requer o homem inteiro”....
67
Traz, também, o início das práticas fonoaudiológicas em Salvador
relacionado ao trabalho com a pessoa surda. Seu relato sobre a forma
como o desenvolvia é muito interessante, porque não traz uma marca
pedagógica com ênfase em “ensinar o surdo a se comportar como o
ouvinte”, enquadrá-lo na oralidade predominante por meio de técnicas,
mas sim iniciar pelo conhecimento mútuo, de se colocar próximo para
saber. Sua narrativa reforça o trabalho com surdos como precursor das
práticas fonoaudiológicas, uma vez que isto também está presente nas
histórias narradas no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Pernambuco,
67
Pesquisa sobre frase na rede de internet refere que ela está citada no livro de Jung.
Não conheço sua obra, mas a frase é muito interessante e reflexiva.
134
merecendo destaque sua postura de trabalho que considera o outro como
diferente, que necessita ser compreendido para ser ajudado.
Fato marcante nas suas colocações é a concepção de que não
trabalha com categorias nosológicas, mas com pessoas. Porta uma visão
do encontro terapêutico fonoaudiológico como promoção do sujeito, como
outro que oferece, pelo seu conhecimento específico e humanista, o
Cuidado. Gagueiras, afasias, surdez etc, são condições que pessoas
apresentam, não são as pessoas.
Lia Mara relata também a presença dos Voluntários da Paz
(Peace Corps) em Salvador, com um trabalho dirigido especificamente à
Fonoaudiologia. Consultei a Professora Cecília Azevedo
68
, que
desenvolveu trabalhos sobre essa entidade no Brasil, no intuito de
compreender melhor essa presença em Salvador, e ela me ofereceu o
seguinte depoimento por e-mail:
“De fato, estudei no meu doutorado a presença dos Corpos da
Paz no Brasil, mas não tenho conhecimento desta atuação
específica. Fui aos EUA e coletei relatórios da agência, de
avaliadores externos aos programas, dos próprios voluntários.
Mas meu interesse era menos o aspecto técnico e muito mais
o político-ideológico. Cerca de 150 ex-voluntários
responderam ao questionário por mim enviado e dentre eles
vários participaram em programas de Saúde-Desenvolvimento
Comunitário. Mas, dentre esses, a maioria trabalhava como
visitador(a) sanitária, operador de RX, nada muito
especializado. Os voluntários mais especializados se dirigiram
para as Universidades, especialmente a UnB. (....) Sei que os
programas da Bahia ficaram conhecidos pela maior
independência dos voluntários em relação às diretrizes de
Washington, graças à perspectiva mais progressista e
relativista do diretor regional. Cheguei a entrevistar um ex-
voluntário na Bahia que veio a ser diretor nacional dos Corpos
da Paz no Brasil. Mas ele não faz qualquer menção a temas
ligados à área de saúde em sua entrevista”.
68
Cecília AZEVEDO Professora do Departamento de História da Universidade Federal
Fluminense. Dedica-se à História Contemporânea das Américas, com destaque para
História dos Estados Unidos, política externa e relações interamericanas no século XX.
135
Por meio de pesquisa na internet, localizei a fonoaudióloga
Sharon Levy (citada pela colaboradora Olga Tanajura), que chegou
depois do retorno de Carol Perry ao EUA. No site do Peace Corps
69
ela
faz um depoimento muito interessante sobre sua experiência no Brasil,
mas não refere nada relacionado à Fonoaudiologia. Escrevi-lhe na
intenção de conhecer sua experiência em Salvador e também obter o
contato de Carol Perry. Ela respondeu
70
com muita atenção fazendo
referências a Lia Mara.
O encontro de Lia com Carol Perry trouxe contribuições
importantes para a formação de minha colaboradora. Ajudou-a na
compreensão da sua prática, reforçou sua autoconfiança por meio da
forma acolhedora com que Carol realizava a supervisão e permitiu que
pactuassem ajuda mútua quanto à fala, uma vez que ambas viviam a
experiência de gaguejar, trazendo uma medida mais humana ao seu
modo de falar. Suas experiências falam do significado de “boa
professora”. Compreendia Carol como alguém que lhe ajudava a aprender
estando ao lado e estimulando o exercício de autoconhecimento.
69
Vale à pena ler sobre sua experiência no Brasil. Disponível em:
<www.expcvsbrazil.com/stories/menu.htm> acesso em 05/02/07.
70
“Hi Rina, I don't know if I responded before but I will again. I'm sorry I have to write in
English. I speak and understand Portuguese but never really learned to spell and write.
I had a fantastic experience in Salvador between 1966 and 1968. I had not been told
that two Peace Corps volunteers had started a training program until I actually arrived
in Brazil. I had only my Bachalor's Degree at that time but I did my best to use the skills
I had practiced in University Clinics; with both children and adults. I did work at both a
private clinic with ? ( I forgot her name) and with Lia Mara de Araujo at the Hospital Das
Clincas. Lia Mara and I also became friends and she made my adjustment in Bahia
easier; I was only 22 at the time. We still love everything about Brazil.I was glad to see
that the Speech Clinic was still functioning at the Hospital das Clinicas when I visited
there 8/05. Are there particular questions you have? Tell me more about yourself; I
read Portuguese without difficulty. Please send me a way to communicate with Lia
Mara or give her my email address”.
136
Características das relações humanas produtivas, fundantes daqueles
que se nomeiam como terapeutas.
Perceber que consegue evocar memórias que acreditava
“perdidas” animou Lia e acrescentou mais entusiasmo a sua narrativa.
Esse é um momento que ilustra o trabalho de memória e a narrativa como
possibilidades de reconstrução, reflexão e valorização do vivido.
No relato da sua experiência com o “paciente” laringectomizado
71
,
faz colocações que temos de tomar como pontos de reflexão para a
nossa prática fonoaudiológica: a confiança do paciente no terapeuta
precede a técnica; não confiança sem espaço para se conhecer; a
criatividade no uso da técnica é oferecida pelo próprio paciente;
compreendê-lo nas suas dificuldades é se colocar como Outro que o
reconhece não confusão nos papéis. O conhecimento legítimo do
Paciente sobre sua condição pode se constituir num movimento de
solidariedade, trazendo benefícios mútuos na superação das dificuldades,
viabilizando o trabalho em grupos de ajuda. Reforça na atuação
fonoaudiológica a exigência de uma postura de cuidado, de
disponibilidade para com o outro, mas com rigor na atuação,
compreendido como metodologia – esclarecimento do percurso.
Ajudar o Paciente a enfrentar a laringectomia desde o momento
que é informado dessa possibilidade é realmente realizar o Cuidado. É
71
Lia Mara diz: “Não se deve dizer “Paciente”, mas interlocutor, porque paciente traz
uma posição passiva e ela não gosta.” Pensei : “Paciente” também pode sugerir “ter
paciência” com a própria condição para permitir o cuidado necessário – afinal as
significações estão abertas.
137
poder acolher o sofrimento e ajudar a amenizá-lo nas possibilidades de
reabilitação.
Mais uma vez, a experiência de Lia Mara mostra o lugar do outro
alguém que escuta. Lugar ativo que permite a ajuda porque naquele
que ajuda as suas próprias possibilidades de constituição. Um provérbio
de origem sul-africana, da etnia Zulu, fala exatamente da mutualidade e
processualidade da construção de identidades-alteridades; diz: “Eu sou o
que vejo de mim em sua face; eu sou porque você é”.
72
Ao relatar sua visita aos EUA, por meio dos Voluntários da Paz, é
interessante a seleção que realizou, pois os nomes institucionais ficaram
em algum recôndito da memória, e os acontecimentos que mobilizaram
emoções retornaram repletos de cores: a angústia da perda das malas e
as diferenças culturais relativas à consideração do atraso.
A compreensão de como a memória se apresenta pode ser bem
ilustrada no livro Memória e Sociedade de Ecléa Bosi, quando a autora
discute a posição de autores como Bergson, Halbwachs e Bartlet, que
pode ser sintetizada na seguinte citação, que se encontra no seu livro
Tempo de Memória, de 2003:
“ (...) fique-nos a idéia da Memória como atividade do espírito, não
repositório de lembranças. (...) A memória é sim um trabalho sobre o
tempo, mas sobre o tempo vivido, conotado pela cultura e pelo
indivíduo”.
Com Lia, observo que houve uma clara mudança de postura
quanto à formalização do tempo vivido. No início da entrevista, ela parecia
não desejar confrontar datas e dados (“mil novecentos e fumaça”, “não sei
72
Citado na Sessão de Encerramento da XIII International AIDS Conference, em Durban,
África do Sul, julho 2000. Apud: AYRES, J. R. C. M. O Cuidado, os modos de ser
(do) humano e as práticas de saúde. Saúde e Sociedade, V 13, n. 3, 2004. p.25
138
quantos anos de aposentada”); mas, com o tempo, se entusiasma com a
possibilidade de buscar os documentos, talvez por reconhecê-los nesse
momento como testemunhas de uma história que vale à pena ser
lembrada/contada/escutada, comprovação da aventura vivida, da saga
(“esta entrevista está me fazendo procurar pela minha vida”).
Acrescenta, nesse contexto, uma crítica à supervalorização do ter
comprovação em contraposição ao ser capaz de realizar. Quem está
inserido no contexto acadêmico conhece os excessos e os equívocos. Ela
viveu e sabe. Lembrei-me de uma história contada por Rubem Alves,
Urubus e Sabiás:
"Tudo aconteceu numa terra distante, no tempo em que
os bichos falavam... Os urubus, aves por natureza becadas
mas sem grandes dotes para o canto, decidiram que, mesmo
contra a natureza eles haveriam de se tornar grandes
cantores. E para isto fundaram escolas e importaram
professores, gargarejaram dó-ré-mi-fá, mandaram imprimir
diplomas, e fizeram competições entre si, para ver quais deles
seriam os mais importantes e teriam a permissão para mandar
nos outros. Foi assim que eles organizaram concursos e se
deram nomes pomposos, e o sonho de cada urubuzinho,
instrutor em início de carreira, era se tornar um respeitável
urubu titular, a quem todos chamam de Vossa Excelência.
Tudo ia muito bem até que a doce tranqüilidade da
hierarquia dos urubus foi estremecida. A floresta foi invadida
por bandos de pintassilgos tagarelas, que brincavam com os
canários e faziam serenatas para os sabiás... Os velhos
urubus entortaram o bico, o rancor encrespou a testa e eles
convocaram pintassilgos, sabiás e canários para um inquérito.
Onde estão os documentos dos seus concursos? E
as pobres aves se olharam perplexas, porque nunca haviam
imaginado que tais coisas houvesse. Não haviam passado por
escolas de canto, porque o canto nascera com elas. E nunca
apresentaram um diploma para provar que sabiam cantar, mas
cantavam simplesmente....
— Não, assim não pode ser. Cantar sem a titulação
devida é um desrespeito à ordem.
E os urubus, em uníssono, expulsaram da floresta os
passarinhos que cantavam sem alvarás...
MORAL: Em terra de urubus diplomados não se ouve
canto de sabiá". (ALVES, R. 1995 p.81)
139
Essa fábula exemplifica sua crítica à colocação da técnica como
algo que transcende a pessoa. Mostra que a técnica é o manejo da
situação que permite e facilita o autoconhecimento e a aceitação. A
pessoa necessita encontrar seu “jeito”, sua “voz”, livrar-se de
artificialismos que aprisionam e fazem sofrer; e é a este pedido que o
terapeuta se coloca à disposição.
Lia Mara faz, ainda, uma reflexão sobre a atualidade,
questionando a postura de individualidade e superficialidade que tem nos
invadido, pela supremacia da pressa, do culto exclusivo da aparência em
detrimento da essência; e aconselha, com propriedade, que, na formação
do fonoaudiólogo, deveriam ser incluídas disciplinas que trouxessem uma
Cosmovisão, como Antropologia, Psicologia, etc e, principalmente,
reflexão sobre os sentidos de So-li-da- ri-e-da-de.
4. HISTÓRIA DE LEONORA BASTOS DA SILVA OU O COMPROMISSO
SOCIAL
Hoje é 16 de agosto de 2006. Sou Leonora Bastos da Silva,
fonoaudióloga 31 anos. Acho que posso começar a contar essa
história dizendo que tenho muito orgulho de ser fonoaudióloga, graças a
Deus. Penso que não poderia exercer outra profissão na vida, não
saberia. Meu pai sempre quis que eu fosse médica, e eu também. Ele
dizia que, antes, eu deveria ser professora, porque tinha que ter uma
profissão. “Eu posso morrer e você precisa logo de uma profissão, depois
você faz o que você quiser.” Por essa razão, fiz o Curso Normal no Rio de
140
Janeiro e estava concluindo o último ano quando ele morreu e não
assistiu a minha formatura. Foi um dia muito triste.
Comecei a trabalhar como professora aos 18 anos, em uma
classe de alfabetização numa escola particular, no bairro de Santa
Tereza, no Rio de Janeiro. Como sempre fui inquieta, no segundo
semestre matriculei-me em um curso pré-vestibular. Achava que não
tinha condições de fazer Medicina, porque tinha estudado em colégio de
freiras, sentia-me sem preparo, uma bobagem. Decidi então fazer o
vestibular unificado em dezembro de 1971, e Fonoaudiologia foi minha
primeira opção. Não tinha a mínima idéia do que era. Fui aprovada para a
Universidade Católica de Petrópolis. Tive a sorte de me apaixonar pela
minha profissão. Graduei-me em 1975, e de para nunca deixei de
trabalhar como fonoaudióloga.
No último semestre, o diretor da Escola de Reabilitação onde eu
estagiava, Dr.Júlio Pinto Duarte
73
, convidou-me para trabalhar num
serviço de Paralisia Cerebral que estava montando em Salvador. Eu
respondi sem pensar que aceitava. Estava sem expectativa porque meus
pais tinham falecido e a minha irmã ia se casar e mudar para Curitiba.
Depois me arrependi e fiquei sem coragem de dizer que não queria mais
vir. Acabei vindo para Salvador com muito sofrimento.
Ao chegar aqui, em janeiro de 1976, eu e outras colegas baianas
da área de Fisioterapia, que haviam feito o curso Bobath
74
em Petrópolis,
73
Neurologista, pioneiro no tratamento da Paralisia Cerebral em Petrópolis, RJ.
74
Método utilizado no tratamento das disfunções motoras do Sistema Nervoso criado
pela fisioterapeuta Berta Bobath nos anos 30. Foi Introduzido no Brasil por Ely Koegler
141
percebemos que o interesse do Dr. Pinto Duarte em abrir um serviço de
Paralisia Cerebral tinha motivações pessoais e não só profissionais.
A Clínica de Paralisia Cerebral era particular, caríssima para os
pacientes. Ele era uma autoridade na área da Paralisia Cerebral. A equipe
era formada por mim, fonoaudióloga, duas fisioterapeutas, uma terapeuta
ocupacional e uma professora. Mas o serviço não funcionava bem porque
oscilava de acordo com sua vida pessoal; e, assim, a todo momento, ele
ameaçava fechar o serviço. Fizemos então uma lista de reivindicações,
que ele inicialmente aceitou, mas depois voltou atrás e então pedimos
demissão em massa.
Deixei a Clinica Pinto Duarte quase dois anos após chegar do Rio
de Janeiro, e Carmen Fernandes me substituiu. Tive sorte porque
estava trabalhando no Instituto Baiano de Reabilitação (IBR), depois fui
para a APAE, que por exigência da LBA precisou contratar
fonoaudiólogos com graduação. Essas experiências me levaram a
conhecer algumas colegas na área da Psicanálise, tais como Suzana
Nascimento, Deane Fiuza, Maria Cândida Tavares, Maria Lúcia Andrade
e outras, com as quais trabalhei muitos anos na Rua Milton de Oliveira, no
bairro da Barra.
Fazia parte desse grupo uma fonoaudióloga vinda do Rio de
Janeiro, Maria Amália Jourdan Penedo, que na época era chamada de
logopedista. Ela convidou-me para trabalhar com ela num contrato verbal
de supervisão; ou seja, eu atendia, passava o relatório dos pacientes para
em 1962 e sua autorização para a formação de profissionais foi dada a Sonia Gusman
em 1970.
142
ela. O pagamento era dividido 40% para mim e 60% para ela. Funcionava
como uma supervisão que eu não pedia, mas ela me dava. Eu aceitei e
trabalhei durante muitos anos assim, até que, durante uma reunião
clínica, a equipe questionou a situação e rompemos o combinado. Hoje,
Maria Amália é psicanalista, mora no Rio de Janeiro e de vez em quando
nos encontramos. Trabalhei mais de 14 anos nessa clínica.
Não me recordo bem, mas por volta de 1979/1980 pensei em
procurar fonoaudiólogos que trabalhavam em Salvador. Eu achava que eu
era a única. Um belo dia eu encontrei Olga Tanajura. Conversamos e
combinamos de publicar um edital em um jornal local (“A Tarde”)
convocando os colegas para uma reunião na clínica onde eu trabalhava,
na Rua Milton de Oliveira. Nessa reunião compareceram, entre outras,
Eva Musa, Lia Mara, Silvia Reis, Olga. Acho que esse foi o primeiro
momento de reunião da classe aqui em Salvador. Silvia Reis, baiana,
graduada no Rio de Janeiro tinha acabado de voltar para Salvador. Havia
outras colegas de Salvador que trabalhavam na área e se denominavam
terapeutas da palavra, logopedistas, professoras de fala e chamavam os
pacientes de “alunos”.
Assim formou-se o embrião de uma associação profissional, onde
fui presidente, vice-presidente, mas oficiosamente, pois a associação não
tinha ainda registro como associação profissional.
Eu sempre fui uma profissional muito inquieta e, em todos esses
anos, nunca trabalhei somente em consultório particular. De certa forma,
143
achava um tanto elitizado. Durante o período que passei na APROFEB
75
,
me preocupava muito com questões sociais, de levar a Fonoaudiologia
para camadas mais carentes da população, e acredito que isto me levou
ao serviço público.
Lembro-me de colegas queridas dessa época: Helena Linhares,
Regina Grangeiro, Célia Fernandes, Cláudia Lopes, Rina, Silvia Reis,
depois Cleonice, Glorinha Canto, Maria Cecília Pereira, Assunção (que é
falecida), Ana Maria Pimenta, Célia Thomé, Silvia Ferrite e tantas outras.
Com esse esboço de APROFEB, que era uma associação sem
registro, nesta época, trabalhamos no reconhecimento da profissão junto
ao Congresso Nacional e o MIEF–Movimento Interestadual das Entidades
Fonoaudiológicas.
76
Tenho muito orgulho de ter participado dessas
reuniões em Salvador e em outros Estados, na luta pela criação do
Conselho Federal de Fonoaudiologia e reconhecimento da profissão junto
ao Congresso Nacional. Fomos a algumas sessões na Câmara dos
Deputados e no Senado, em Brasília, eu, Silvia Reis, Assunção, que
faleceu, com colegas de São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, etc.
Houve um encontro em Salvador com Alda Leite Rodrigues de Porto
Alegre. Nesse dia, fizemos uma reunião na minha casa para bater papo,
acho que até tenho umas fotos.
Em 1983, iniciamos o cadastramento dos fonoaudiólogos de
Salvador e daqueles que não eram, mas podiam comprovar cinco anos de
75
Associação Profissional dos Fonoaudiólogos do Estado da Bahia, institucionalizada
em 1980 e registrada em 1994.
76
Formado entidades de vários Estados do Brasil lutando em prol do reconhecimento da
profissão de fonoaudiólogo.
144
exercício profissional. Esse 1º cadastramento, isto é, registro no Conselho
Federal de Fonoaudiologia, foi feito no meu consultório, na Rua Milton
Oliveira, 167, Barra.
Considero importante o que fizemos na APROFEB, que foi
buscar a criação do cargo de Fonoaudiólogo no Estado da Bahia e no
município de Salvador. Conseguimos apenas no município, durante o
mandato do prefeito Fernando José
77
, que criou também nessa época o
cargo de Intérprete de Língua de Sinais.
Na administração da prefeita Lídice da Mata
78
tivemos uma
reunião com seu Secretário da Saúde, Dr.Eduardo Mota, pleiteando a
inclusão da Fonoaudiologia nos concursos público da área da Saúde. Ele
nos pediu um levantamento da necessidade de atuação do fonoaudiólogo
em todos os postos de saúde da cidade de Salvador. Foi feito um mutirão
com os colegas fonoaudiólogos. Foi muito trabalhoso. Deslocamos-nos
por muitos bairros distantes, como Valéria, São Cristóvão, Itinga e outros.
Esse documento foi entregue ao Dr. Eduardo Mota. Acredito que deve
estar na gaveta dele até hoje, porque nada foi feito. Não conseguimos
nada.
Em função de outros compromissos profissionais e também por
ter trabalhado muitos anos nesta atividade de associação de classe,
afastei-me da APROFEB. Achava que era uma associação muito
elitizada, sentia que seu foco era mais na categoria profissional, com
pouca preocupação social, e isso me incomodava. Era constituída de
77
Prefeito Fernando Jose Guimarães Rocha (1989-1993)
78
Prefeita Lídice da Mata (1993-1997)
145
profissionais de consultório, que não levavam muito em conta essa barra
pesada que é o dia-a-dia da saúde em Salvador e no Estado da Bahia.
Finalmente em 2000, no mandato do prefeito Antonio
Imbassahy
79
, aconteceu o primeiro concurso para a área da saúde que
incluía fonoaudiólogo, com uma oferta de três vagas. Achei que devia
fazer este concurso porque batalhei para que ele acontecesse. Passei em
3º lugar. Como as primeiras colegas classificadas não foram tomar posse,
eu e Noemi fomos convocadas e assumimos respectivamente os Centros
Terapêutico Municipal Dr. Rubim de Pinho, no bairro de Itapagipe, e
centro Terapêutico Municipal Aristides Novis, no Engenho Velho de
Brotas. Mais um motivo de orgulho para mim, ser a primeira
fonoaudióloga no serviço público em Salvador, aprovada em concurso
público.
Senti-me muito feliz em poder trabalhar num centro de saúde
pública como fonoaudióloga. Logo que cheguei, encontrei outros
fonoaudiólogos contratados por uma empresa terceirizada pela prefeitura,
sem nenhuma garantia trabalhista e salários atrasados. Lembro-me de ter
sido testemunha na Delegacia Regional do Trabalho, de uma colega que
havia chegado de Porto Alegre. Estava sem receber pagamento, numa
situação muito difícil. Achei a situação muito grave. Entrei em contato com
a APROFEB, que na época tinha como presidente Luiza, colocando para
ela que haviam fonoaudiólogos aprovados no concurso da prefeitura que
poderiam ser convocados. Não sei o que foi feito pela APROFEB. Esta
79
Prefeito Antonio Imbassahy (1997-2005)
146
situação continua até hoje, com a mesma empresa num sistema de alta
rotatividade de profissionais que realizam Audiometria Tonal e Vocal e
Imitanciometria.
Coloquei esta questão em algumas reuniões de equipe do Rubim
de Pinho, para a Coordenação deste centro de saúde. O assunto foi
encaminhado para a Secretaria Municipal da Saúde, mas nada aconteceu
até agora. Que houve um concurso, houve, e foram chamados dois
profissionais. Faço questão de deixar este registro aqui, pois é uma
situação absurda.
Em 1993 ou 1994, não me lembro bem, quando eu ainda estava
na APROFEB, recebemos a visita da professora Maria Augusta Dantas,
do Nascimento do Instituto de Ciências da Saúde (ICS), da Universidade
Federal da Bahia, falando da possibilidade de criação do Curso de
Fonoaudiologia. Fiquei muito feliz e animada com essa idéia. Ela e seu
marido, o professor Luiz César Dantas do Nascimento, que na época era
o diretor do ICS, estavam muito engajados nesta luta. Convidaram-nos
para fazer parte de uma comissão que criaria esse curso. A APROFEB
formou uma comissão, da qual tomei parte juntamente com as colegas
Silvia Ferrite, Maria Cecília Pereira, Cláudia Lopes e Célia ReginaThomé.
Quando iniciamos na UFBA esse projeto de graduação, demos
conta que não tínhamos em Salvador fonoaudiólogos com experiência em
docência para assumir o curso. Começamos então um projeto de Curso
de Especialização em Fonoaudiologia
80
, cujo objetivo principal era para
80
Foram duas turmas deste curso em 1995/97 e 1997/99
147
capacitar fonoaudiólogos interessados na docência. Assim foi implantado
o curso de Fonoaudiologia na UFBA. Cada membro desta comissão
recebeu como remuneração uma bolsa para o curso de Especialização.
Foi um projeto muito bom e me orgulho de ter participado dele. Fui
professora substituta na UFBA durante dois anos. Antes disto, também
lecionei durante cinco anos no curso de Fisioterapia da Escola Bahiana
de Medicina, 3º ano, numa disciplina chamada Fonoaudiologia.
Antes desta iniciativa da UFBA, nós atendemos na APROFEB a
solicitação da Universidade Católica do Salvador (UCSAL) de um projeto
para a implantação de um curso de Fonoaudiologia, que não foi
implantado mesmo após termos trabalhado meses. Deste grupo de
trabalho fizeram parte, além de mim, Regina Granjeiro, Glória Canto entre
outras colegas. Também recebi o mesmo convite do Instituto Adventista
do Ensino do Nordeste (IAENE)
81
, para fazer um projeto de implantação
de curso de Fonoaudiologia. Por conta disto, convoquei vários
profissionais, como a lingüista Elisabeth Teixeira, o médico Paulo
Perazzo, otorrinolaringologista, vários fonoaudiólogos para colaborarem,
sem nenhuma remuneração. Organizei uma visita ao Campus de
Cachoeira. Tudo ficou engavetado com argumentos tais como “não tem
nenhum fonoaudiólogo adventista e a Instituição é adventista...”.
Depois disso, a mesma professora, Claudia Bahia, que tinha me
solicitado o projeto para o IAENE em Cachoeira, foi montar o curso de
81
IAENE – Instituto Adventista do Ensino do Nordeste com sede na cidade de
Cachoeira, interior da Bahia
148
fisioterapia na FIB
82
e novamente convidou-me. Desta feita, constitui um
grupo de trabalho com vários fonoaudiólogos, foi um imenso trabalho e
nada foi adiante. Claudia Bahia foi para a UNIRB
83
e me fez o mesmo
convite, e mais uma vez nada aconteceu. Hoje, a UNIRB abriu o Curso de
Fonoaudiologia, não sei foi aproveitado o projeto em que trabalhei
quatro anos. Recebi também convite da FTC
84
, que estava montando
vários cursos da área de Saúde e queria um projeto para o de
Fonoaudiologia. Tudo era urgente para atender os prazos do Ministério da
Educação, formulários para e para cá. Não deu em nada. Isso é algo
que eu não faço mais, cansei de tanta falta de compromisso.
No Centro Terapêutico Municipal Dr. Álvaro Rubim de Pinho,
cheguei sem saber o que me esperava. Nunca havia trabalhado na área
de Saúde Mental. sou fonoaudióloga generalista, tenho que dar conta
de uma grande demanda de pacientes. O que eu não posso atender,
como dislexias, disfonias orgânicas, etc, faço encaminhamento para
outros serviços. O problema é: para onde?
Com a proposta da reforma psiquiátrica no Brasil, surgiram os
CAPS Centro de Atenção Psicossocial.
85
No distrito sanitário de
Itapagipe, o Rubim de Pinho precisou dividir suas instalações como um
CAPS, atualmente intitulado CAPS Dr. Adilson Sampaio. Assim comecei
estudos na área de saúde mental. No CAPS, realizei com a psicóloga
82
FIB – Centro Universitário da Bahia
83
UNIRB – Faculdade Regional da Bahia
84
FTC – Faculdade de Tecnologia e Ciências
85
CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, serviço extra-hospital comunitário que realiza
cuidados intra e extra-muros a portadores de transtornos mentais. RABELO, A.. R et
al. Um manual para o CAPS Centro de Atenção Psicossocial. Série Saúde Mental.
Neuropsiquiatria UFBA . 2005.
149
Joelma Rosado, a “Oficina dar Voz”, cujo objetivo era trabalhar o discurso
do psicótico, muitas vezes em crise. Foi uma experiência muito boa, que
estimulou-me muito a aprender mais.
O CAPS Adilson Sampaio saiu do Rubim de Pinho e foi para
endereço próprio, na Rua do u, 77, no Caminho de Areia. Continuei no
Rubim de Pinho, pois a coordenadora não me cedeu para o CAPS.
Concordo que sou mais útil neste ambulatório do que num CAPS adulto,
até porque, na Portaria do Ministério da Saúde que regulamenta os CAPS
adultos, não fonoaudiólogo na equipe. Há um item que refere outros
profissionais, onde o fonoaudiólogo poderia se inserir, mas geralmente se
privilegiam outras áreas, como por exemplo as oficinas terapêuticas,
porque são atividades geradoras de renda e de resgate da cidadania.
A reforma psiquiátrica vem trazer um novo olhar no atendimento
à saúde mental. Havia a cronificação da doença e re-internações
freqüentes a cada crise. Ela tem como objetivo o resgate da cidadania do
paciente portador do transtorno mental, acabando com as internações
prolongadas que levavam à cronificação e com o enfoque terapêutico
muito voltado apenas para a medicalização. Ela se estruturou com o
apoio de familiares e profissionais comprometidos com a mudança desse
modelo, buscando dar ao doente mental um empoderamento da sua
cidadania, a garantia de seus direitos humanos, a possibilidade de ser
incluído, de fazer parte da sociedade. A criação do CAPS surge como um
modelo substitutivo ao hospital psiquiátrico. Em situações de crise de
surto, o paciente pode e deve ser atendido em qualquer hospital, ou seja,
150
devemos ver a doença mental como qualquer outra doença, como uma
hipertensão, diabetes, etc.
A Reforma Psiquiátrica que foi voltada para pacientes adultos
trouxe também mudanças no atendimento às crianças e adolescentes
com transtornos mentais. Considero isso muito bom, porque havia
crianças autistas e psicóticas em instituições e serviços que não eram
especializados para os transtornos mentais graves na área da infância e
adolescência.
Em novembro de 2004, Paulo Gabrielle, psiquiatra e psicanalista,
Coordenador de Saúde Mental do governo do Estado da Bahia, convidou-
me para trabalhar no Centro de Atenção Psicossocial da Infância e
Adolescência CAPSia - Liberdade.
86
A Portaria do Ministério da Saúde
que regulamenta o CAPSia, diferente do CAPS adulto, tem fonoaudiólogo
na equipe. Sou contratada por uma fundação ligada à Associação
Bahiana de Medicina (FABAMED), que presta serviços a Secretaria da
Saúde do Estado da Bahia (SESAB). O CAPSia - Liberdade é docente-
assistencial, ou seja, oferece também campo de estágio na área da saúde
mental da infância e adolescência. Atualmente, tem estagiários do curso
de Medicina e Psicologia da Escola Baiana de Medicina, FTC, UCSAL e
UFBA. Por ser docente-assistencial, não foi municipalizado. É mais um
motivo de orgulho para mim, porque não conheço, além de Noemi, no
Centro Terapêutico Municipal Dr.Aristides Novis, e eu, outros
86
CAPSia-Liberdade Centro de Atenção Psicossocial da Infância e Adolescência
Distrito da Liberdade.
151
fonoaudiólogos em Salvador que realizem este trabalho em CAPS. É mais
um campo de trabalho para a Fonoaudiologia.
No CAPSia nós trabalhamos em equipe transdisciplinar formada
por psicólogos, musicoterapeuta, educador físico, serviço social,
enfermagem, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, atendendo crianças e
adolescentes portadores de sofrimento psíquico: psicoses, autismos
infantil, neuroses graves.
Mais uma vez, Deus me abençoou, porque sou apaixonada por
esse trabalho. Estou cursando especialização em saúde mental na
Faculdade de Medicina da UFBA, e tenho planos de mestrado também
nesta área. Minha monografia é sobre o grupo de recepção, porta de
entrada do CAPSia Liberdade, que recebe as pessoas que chegam ao
serviço pela primeira vez. Trabalho neste grupo desde novembro de 2004
com outros colegas. Existem vários trabalhos escritos sobre grupos de
recepção, que nos CAPS opõem-se à triagem do antigo ambulatório. Em
minha monografia, pretendo estudar, quantificar e observar a demanda,
porque, apesar de ser uma unidade de Saúde Mental para os casos de
autismo, psicoses infantis e neuroses graves, a maior demanda é de
queixas, tais como: “ah! ele é agressivo”, “é inquieto”, “a professora
mandou e deu queixa no conselho tutelar”, “ele está pegando algumas
coisas em casa”, “a tia morreu e ele chorando, tá triste”, além dos
distúrbios de aprendizagem. São queixas de dificuldades emocionais e de
aprendizagem que podem ser resolvidas de forma ambulatorial, em
152
serviços de psicologia, psicopedagogia, mas não são demandas para
CAPS.
Pretendo propor em minha monografia a criação de um
ambulatório resolutivo nas áreas de Psicologia, Psicopedagogia,
Fonoaudiologia, etc, para atender esta demanda de ambulatório, no
Distrito da Liberdade.
Acho que o que eu mais falo agora é sobre saúde mental e
Fonoaudiologia. Quando estudantes de Fonoaudiologia vêm aqui, eu digo
“Vocês precisam lutar pela profissão, colocar a nossa associação
profissional para frente, vocês são o futuro. Nós já demos a nossa
contribuição na criação dos Conselhos Federal e Regionais, associações,
entrada na saúde pública, etc. um campo imenso aberto para o
fonoaudiólogo. Ainda há muitos espaços a conquistar.” Não é que eu
tenha perdido o entusiasmo, mas chega um momento da vida que vo
vai buscando outros caminhos.
Fiz formação em Psicanálise na CLAPP
87
, motivada por ter
trabalhado em uma clínica que só tinha psicanalistas. A CLAPP era uma
clínica onde Olga Tanajura atendia e havia vários psicanalistas lá, como
Urânia Tourinho, Aurélio Souza, Emilio Rodrigué e sua esposa Marta
Berlim, Sandra Pedreira, Regina Sarmento etc. Eles foram meus
professores, todos excelentes. Nunca atuei como Psicanalista. A
Psicanálise sempre me ajuda no meu trabalho como fonoaudióloga.
87
CLAPP Clínica de Atendimento Psicológico que funcionava no bairro da Barra com
Urânia Tourinho, Aurélio Souza, Sandra Pedreira, Emilio Rodrigué, etc.
153
Gosto de atender em consultório, mas o trabalho em equipe, de
discutir casos, discutir o serviço, questionar, ir construindo e
desconstruindo é muito motivador. Acho o trabalho somente em
consultório muito limitado. Considero-me atualmente uma trabalhadora do
SUS e sinto-me feliz por isto, precisamos ter consciência social.
O Centro de Saúde Mental Dr Álvaro Rubim de Pinho é um
ambulatório de saúde mental adulto, mas como fonoaudióloga atendo
também crianças e adolescentes.
O serviço é territorializado e assiste à população da Península de
Itapagipe e do Subúrbio Ferroviário. Receber não significa tomar para
tratamento. Encaminho os casos que não tenho condições de atender.
Lembrei também que trabalhei no Centro de Educação Especial
da Bahia CEEBA
88
anos atrás, por seis meses, com a colega Maria
Cecília Pereira, que fazia as avaliações audiológicas e eu, a parte
terapêutica. Quando encerrou o contrato, fomos dispensadas. Pensei até
em fazer um trabalho voluntário
89
, mas o foi aceito por não ser
permitido no serviço público.
Nós, fonoaudiólogos da Bahia, precisamos nos mobilizar para
fortalecer a nossa categoria profissional e prestarmos um atendimento
mais amplo à população, principalmente a mais desassistida.
A Prefeitura de Salvador tem convocado algumas categorias para
atuar nos CAPS municipais, mas não os fonoaudiólogos que foram
aprovados no concurso público em 2000. Isto deve ter relação com nossa
88
CEEBA – Centro de Educação Especial da Bahia
89
A regulamentação do trabalho voluntário coloca que ele deve ser prestado fora da
área de formação do voluntário, tendo em vista não se configurar “mão de obra barata”
154
falta de mobilização. Quando entrei no Centro Terapêutico Municipal Dr.
Álvaro de Rubim de Pinho, vi a necessidade de mais atendimentos
fonoaudiólogos lá. Enviei um fax para a APROFEB explicando a situação
e pedindo um posicionamento para a convocação dos aprovados. O
governante não sabe o que é a clínica e somos nós que temos que
mostrar a necessidade e fazer propostas de trabalho. Com a abertura dos
CAPSia poderíamos aproveitar os aprovados no concurso do
município. No Estado, temos ainda que lutar para criar o cargo de
fonoaudiólogo para a Fonoaudiologia ser incluída no concurso público
para saúde. Quando eu estava na APROFEB, a classe política justificava
a não oferta de cargo no serviço público para fonoaudiólogo, amparada
no argumento de que, por não termos cursos de graduação na Bahia, não
havia mão-de-obra disponível. Agora a realidade é outra, porque
existem cursos de graduação em Fonoaudiologia. Eu sempre digo ao
estudante de universidade pública: toda a população paga a formação do
aluno do ensino superior público, portanto, este aluno, quando
profissional, deve dar o retorno atendendo à população, principalmente os
mais desfavorecidos. É um compromisso social que devemos ter.
Se tivesse que escolher entre o consultório e o serviço público,
eu fechava o consultório. Só este ano contraí escabiose duas vezes.
Tem colegas que dizem: “vamos usar guarda-pó”, mas o CAPSia tem um
modelo diferente do modelo médico-hospitalar. O serviço público de
portas abertas atende a todos que chegam. É claro que o paciente é
afastado para tratamento da escabiose, mas isto acontece por trabalhar
155
com camadas tão pobres da sociedade. Ainda muito a se fazer no
Brasil: educação, saúde, saneamento básico, emprego e muita coisa.
Quando uma mãe diz que o filho precisa de fonoaudiólogo, mas é caro,
eu fico triste. Fonoaudiologia é saúde e saúde é direito de todos.
Quero agradecer a oportunidade que você me deu de parar e
fazer uma retrospectiva do meu percurso profissional. Tenho 31 anos de
atuação profissional, mas parece que comecei ontem. Ainda tenho muito
que aprender. Desejo muito sucesso nesse trabalho de mestrado, que
Deus te dê forças, que você persevere e que, no final, você dê uma bonita
contribuição, não só para você, mas para toda a Fonoaudiologia,
principalmente na Bahia.
Diz-se comumente que o brasileiro é um povo sem memória e o
que você está fazendo é exatamente resgatar a história da
Fonoaudiologia e dos cidadãos e cidadãs fonoaudiólogos e de todos
ligado a nós. Esse seu trabalho, Rina, traz um reconhecimento de que
começamos algo, plantamos uma semente. Ainda um longo caminho
pela frente, e eu espero que o percurso seja o de dar à Fonoaudiologia
acessibilidade a todos os que dela precisarem e ao profissional
fonoaudiólogo uma consciência político-social.
COMENTÁRIOS E REFLEXÕES
Para contextualizar a entrevista de Leonora, começo pelo
agendamento. Duas condições foram marcantes: a dificuldade para
encontrar o dia, uma vez que estava atarefada com aulas no final de
156
semana e com pouco tempo para me receber em seus locais de trabalho
no serviço público, e o atendimento às regras para a gravação em vídeo
das entrevistas nesse local. Ela me informou que um deles tinha como
exigência a apresentação de um documento solicitando a permissão para
que a entrevista fosse realizada em suas dependências, e que se tratava
de um processo burocrático, talvez um pouco longo. Após algumas
conversas, conseguimos realizar a entrevista no CAPSia Liberdade, e
pude testemunhar a enorme demanda de trabalho que minha
colaboradora enfrenta nesse local.
Leonora foi a primeira referência de fonoaudióloga que recebi ao
chegar a Salvador. Como podemos ver pela sua narrativa, e também pela
minha lembrança, ela sempre esteve envolvida com as questões
institucionais e sociais. Exercer a cidadania e atuar de forma responsável
para nossa institucionalização sempre pautaram seus posicionamentos.
Na ocasião deste estudo, estava afastada dos órgãos de classe locais,
mas engajada na luta para que a Fonoaudiologia possa se constituir um
direito da pessoa e que os órgãos públicos sejam responsáveis por isso.
Compreende que a Saúde só virá se a riqueza for distribuída, mas que
um conjunto de políticas e ações que devem ser tomadas para responder
às necessidades mais imediatas da população.
Em sua narrativa fica evidente que temos muito a caminhar e
trabalhar para que possamos chegar a compartilhar os benefícios que os
avanços da modernidade podem oferecer ao ser humano. E sua obra
como possibilidade de continuação nas novas gerações.
157
Leonora se considera uma trabalhadora do Sistema Único de
Saúde SUS, consciente de que necessidade de aparelhamento dos
serviços de saúde por meio da oferta de salários mais dignos, condições
adequadas de trabalho e seriedade nas atitudes, para que o compromisso
social com a população e com o Serviço Público supere o interesse
meramente corporativo.
5. HISTÓRIA DE SONIA VELOSO OU A MUDANÇA EM ESTRUTURA
Estamos em 20 de setembro de 2006.
Meu nome é Sonia Veloso.
Minha história na Fonoaudiologia começa na Secretaria de Educação do
Estado da Bahia, quando fui nomeada para o núcleo de Educação
Especial. Eu era pedagoga, mas sem nenhuma formação especial. Em
1972, fui fazer um curso de um ano no Instituto Nacional de Educação de
Surdos (INES), o que despertou meu interesse sobre a Surdez.
Considerando que a formação não era suficiente para assumir um
trabalho dessa natureza, decidi no horário disponível fazer estudos e
pesquisas nas Faculdades Estácio de Sá e também no hospital da Cruz
Vermelha, onde tive o primeiro contato com pessoas que falavam em
Logopedia, ainda não se dizia Fonoaudiologia.
Voltei a Salvador e ao trabalho na Secretaria da Educação e
sentia-me insegura no que tinha aprendido no Rio de Janeiro sobre
Surdos, porque era uma metodologia oralista
90
, com muita rigidez, sendo
90
“Para os oralistas, a linguagem falada é prioritária como forma de comunicação dos
surdos e a aprendizagem da linguagem oral é preconizada como indispensável para o
desenvolvimento integral das crianças. De forma geral, sinais e alfabeto digitais o
proibidos, embora alguns aceitem o uso de gestos naturais, e recomenda-se que a
158
que não havia contato nenhum com as crianças em gestos. No INES,
nesta época, embora as crianças surdas falassem o tempo todo entre
elas usando gestos, quando chegavam à sala de aula era silêncio e
uma situação constrangedora, porque o professor ficava repetindo e
falando só o tempo todo. Eu achava tudo isto muito estranho. Como a
escola era um internato, nós fazíamos as refeições em um refeitório
comum, dividido em três setores: um para a diretoria, outro para nós e
outro para os alunos. Ficávamos encantadas observando como os alunos
se comunicavam entre eles usando gestos, mas ninguém podia fazer
porque era proibido.
Quando voltei a Salvador fui conhecer a Escola para Surdos
Wilson Lins”
91
e observei que o ensino era muito precário e professores
tinham a mesma formação que eu havia recebido. Edil Barreto ficou
com o acompanhamento dessa Escola. Em 1973, o MEC ofereceu um
curso na Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da
Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
DERDIC
92
e fui escolhida para fazer este curso. Foi uma surpresa, porque
o nível era completamente diferente daquele realizado no Rio de Janeiro.
recepção da linguagem seja feita pela via auditiva (devidamente treinada) e pela leitura
orofacial” (TRENCHE, 1995, apud LACERDA, Cristina B.F. Um pouco da história das
diferentes abordagens na educação dos surdos. Cad. CEDES. Campinas, v. 19, n. 46,
1998)
91
A Escola Estadual Wilson Lins é especializada em surdos desde 1959 e atende 196
alunos da 1ª a 4ª séries que estudam Libras e o ensino fundamental. O principal objetivo
é a escolarização, mas também o oferecidos cursos de Libras para os pais,
voluntários e a comunidade de Ondina, bairro onde se localiza a escola.
92
Centro de Referência no tratamento de portadores de distúrbios de audição, voz e
linguagem, que há mais de três décadas presta, sem fins lucrativos, assistência a
pessoas de famílias economicamente desfavorecidas. Fundada em outubro de 1954 e
incorporada à PUCSP em 1969. A partir de 1972 assumiu também o compromisso com
a formação de profissionais, passando a constituir o local das atividades práticas
supervisionadas dos Cursos de Fonoaudiologia e Pedagogia da PUCSP.
159
Tive como professores Dr. Orozimbo Alves, Dr. Evaldo Rodrigues, Dr.
Mauro Spinelli, Dr. Alfredo Tabith
93
e a lingüista Maria Cristina da Cunha
Pereira.
94
Era uma equipe maravilhosa. Como sempre fui boa aluna em
química, sica, biologia, me entusiasmei muito com física acústica e
lingüística. a abordagem também era dentro da metodologia oral, mas
o trabalho era muito bem estruturado na escola. Como eu ficava na
escola o tempo todo, no outro horário eu fazia estágio com o professor
Fernando Leite de Carvalho e Silva
95
, na parte de Audiologia Clínica,
realizando triagem e com a Professora Leslie Piccollotto Ferreira
96
, com
quem tive contato com técnicas de voz para ajudar os surdos, além das
tradicionais técnicas de abordagem de fala.
Passei mais de um ano em São Paulo fazendo este curso, e
quando voltei a Salvador observei que intervir na Escola Wilson Lins
nesta época seria muito difícil, devido à resistência dos professores de
formação tradicional em aceitar orientações de uma pessoa jovem, e
decidi então trabalhar com a educação precoce de crianças surdas.
Criamos um núcleo de Educação Precoce para o atendimento a
surdez no bairro de Ondina, vinculado à Secretaria de Educação,
funcionando em salas cedidas, onde hoje é o Instituto Pestallozzi.
Comecei a me angustiar com este trabalho, porque conhecia todas as
condições necessárias para que o Oralismo pudesse dar certo, mas as
93
Foniatras
94
Professora PUCSP, lingüista da DERDIC / PUCSP com experiência em Linguagem e
Surdez.
95
Médico Foniatra (1963), na ocasião, chefe do Departamento de Fundamentos da PUC-
SP e responsável pelo setor médico da DERDIC.
96
Fonoaudióloga pela PUCSP (1971), professora titular da PUCSP, com experiência na
área de Voz.
160
condições eram precárias, pois as salas o tinham nenhum tratamento
especial para o trabalho, as crianças não tinham aparelho, e o que nós
chamávamos de “educação precoce” não se realizava, porque as crianças
chegavam com 5/6 anos.
As crianças chegavam tarde e sem avaliação auditiva;
observando que não tinha quem fizesse essa avaliação, eu comecei a
chatear um pouco os médicos que faziam nessa época avaliação
audiológica usando uma atendente. Foi nesta época que o Instituto
Bahiano de Otorrinolaringologia (IBO) me convidou para fazer avaliação
audiológica infantil usando o Peep Show
97
. Era algo bem simples na
época, mas que dava para fazer uma triagem melhor e também uma
orientação mais cuidadosa com os pais, porque a mãe recebia o
diagnóstico de surdez do filho pelo médico sem nenhum apoio.
Encaminhávamos para exames auditivos objetivos em São Paulo os
casos suspeitos com as condições financeiras para isto, e aqueles sem
essas condições eram acompanhados, observando a criança e orientando
os pais para observá-los em casa também.
Passei a desempenhar esse papel no IBO, e a educação
precoce começou funcionar. Fazia um trabalho de orientação com as
mães e consegui duas professoras e pedagogas sensacionais Angelina
Ladeia e Mirandinha Campos, que faziam um trabalho maravilhoso dentro
daquela realidade e as psicólogas Ceres Cordeiro Santana que criou a
97
Peep Show” foi desenvolvido com a finalidade de auxiliar na avaliação de crianças de 2
a 6 anos de idade. Elaborada em 1947 por Dix & Hallpike, a técnica baseia-se no
condicionamento de Pavlov e tem o objetivo de fazer a associação de estímulos sonoros
e visuais. Nesta técnica a criança é instruída a apertar um botão diante da apresentação
de um estímulo sonoro. Pode ser realizado em campo livre ou fones.
161
Escola de Pais e o Coral e Ana Angélica Maia Portela que junto com
Simone criaram uma avaliação psicopedagógica para surdos.
Eu lutava muito na Educação Especial na Secretaria da
Educação pela criação de um centro de surdos e conseguimos criar o
CEDAS Centro de Estudos da Surdez, onde nos reuníamos toda sexta-
feira com outros profissionais, como psicólogos, pedagogos, professores.
Nessas reuniões discutíamos sobre Surdez, a necessidade de avaliação
em outros níveis e chegamos a publicar uma revista com o patrocínio da
Petrobrás.
Na Secretaria da Educação, havia Aldina
e Vandiva que
trabalhavam como logopedistas, atendendo crianças de classe especial
com dificuldades na fala. Elas eram professoras antigas da Secretaria da
Educação que fizeram o curso do INES e atendiam crianças especiais e
também aquelas que vinham pela queixa da escola. O atendimento era no
prédio da Secretaria da Educação, que, na época, funcionava no Palacete
Catarino, no bairro da Graça. Quando se aposentaram em 1975, elas me
passaram essa clientela e eu fiquei assistindo a Educação Precoce e
atendendo na Secretária de Educação, que também oferecia no mesmo
local o serviço de Psicologia.
Os surdos só eram atendidos no espaço que funcionava no bairro
de Ondina e na escola Wilson Lins. Havia também uma colega minha,
Aidil Barreto, que cursou o INES e também esteve em São Paulo, que
dava supervisão na área de surdez na escola Wilson Lins. Ela atuava na
Escola Wilson Lins e eu na Educação Precoce.
162
A Educação Precoce caminhava, mas as crianças não tinham
como comprar aparelho e quando conseguiam não havia condições de
fazer a manutenção. Era um caos, mas ainda assim um trabalho legal.
Começamos nesta época a experimentar a Comunicação Total
98
, quando
veio aquela onda de Comunicação total.
Buscávamos um lugar para funcionar o Centro de Surdez,
sofrendo com as muitas promessas do Estado, até que conseguimos um
terreno junto ao Instituto Pestalozzi e a construção do prédio começou a
se concretizar, e hoje é onde está instalado o Centro de Educação
Especial da Bahia (CEEBA)
99
. Idealizávamos um Centro de Surdos como
um lugar de pesquisa, capacitação e multiplicação de profissionais, um
local de excelência onde pudéssemos experimentar vários tipos de
abordagens para com o surdo.
Foi nesta época que eu comecei a atender alguns surdos. Cecília
Bevilacqua
100
me conhecia e me telefonou de São Paulo, encaminhando
98
“O descontentamento com o oralismo e as pesquisas sobre línguas de sinais deram
origem a novas propostas pedagógico-educacionais em relação à educação da pessoa
surda, e a tendência que ganhou impulso nos anos 70 foi a chamada comunicação total.
(...) A Comunicação Total é a prática de usar sinais, leitura orofacial, amplificação e
alfabeto digital para fornecer inputs lingüísticos para estudantes surdos, ao passo que
eles podem expressar-se nas modalidades preferidas" (Stewart 1993, p. 118). (...). A
oralização não é o objetivo em si da comunicação total, mas uma das áreas trabalhadas
para possibilitar a integração social do indivíduo surdo” LACERDA, Cristina B.F. Um
pouco da história das diferentes abordagens na educação dos surdos. Cad.
CEDES.Campinas, v. 19, n. 46, 1998
99
Espaço especializado e complementar para o atendimento ao aluno de Necessidades
Educacionais Especiais, visando a integração dos mesmos no ensino regular e na
comunidade. Oferece modalidades de serviços na área educacional, de apoio
especializado e profissional, destinado aos alunos com deficiência de todos os níveis de
ensino da rede oficial e também extensivo à comunidade geral. Conta com uma equipe
de especialistas integrada por psicólogo pedagogo, psicopedagogo, fonoaudiólogo,
musicoterapeuta, fisioterapeuta, dentista, professores especializados e instrutores.
100
Fonoaudiologa pela PUCSP (1970), professora titular da USP, com experiência na área
de Surdez e Implante Coclear.
163
pacientes avaliados pelo Dr. Orozimbo Alves Costa
101
. Foi um trabalho
muito bom e eu tive muitos pacientes que desenvolveram e outros que
não conseguiram. Não vou dizer que foi 100% de jeito nenhum, mas tive
um paciente que foi e é, até hoje, um caso extraordinário. Cecília
Bevilacqua e todo mundo em São Paulo queriam apresentar o caso em
congresso, porque ele tinha uma perda auditiva profunda e uma
comunicação maravilhosa. Hoje ele está formado, fez pós-graduação e foi
um caso muito bom, porque ele também era muito inteligente e a família
tinha todas as condições possíveis, embora outros com a mesma perda
auditiva e as mesmas condições não iam adiante. Iniciei também o
atendimento clínico, não de surdez, mas de outros casos e comecei a
trabalhar na Fonoaudiologia.
O Centro de Educação Especial finalmente ficou pronto e
conseguimos salas com o sistema FM, cabine de avaliação audiológica e
também salas para atendimento fonoaudiológico, porque buscávamos
criar condições para que o fonoaudiólogo pudesse fazer parte do quadro
de profissionais do Estado. Algumas pessoas foram contratadas, mas o
Estado não assumiu esse compromisso e até hoje o Fonoaudiólogo não
está inserido neste quadro.
Eu me aposentei da Secretaria da Educação e me afastei. Nós
conseguimos formar um grupo de estudos da Surdez no Curso de
Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde ministrei três
cursos sobre o tema. Sensibilizamos uma professora de Lingüística a
101
Medico Otorrinolaringologista (1961), professor titular da Universidade de São Paulo
com experiência em Surdez e Implante Coclear.
164
participar e me coloquei a disposição, mesmo aposentada, para continuar
trabalhando no grupo, mas, com a mudança de governo, o vínculo com a
universidade foi cortado e o grupo se desfez. Havia muitas pessoas
interessadas neste grupo, como Professor Jorge Salles e a professora
Ana Amélia Carvalho que eram da UFBA e hoje trabalham na Faculdade
Rui Barbosa. A partir disso foi iniciado o atendimento a pessoa surda na
UFBA pelo serviço de psicologia. O CEEBA que nós pensamos não é
nada do que é hoje.
Fiquei muito desanimada com o grupo de estudo, porque
trabalhávamos e nos dávamos conta que nada seria aplicado na prática.
No Estado é muito difícil trabalhar um projeto de longo prazo.
Eu tive a felicidade de trabalhar na Secretaria da Educação
naquilo que eu queria, não tive imposição. Atuei em prevenção,
participava de reuniões sistemáticas do UNICEF sobre prevenção e
causas da Surdez e coordenei um grupo que trabalhava com Agentes
Comunitários (ACs). Fazíamos reuniões junto do Projeto Axé, que
funcionava na igreja de Santo Antonio da Barra. Participei também de um
projeto liderado por uma psicóloga da Secretaria da Educação com os
coordenadores de escolas de Salvador. Infelizmente, nos projetos do
Estado, quando sai a pessoa que está na coordenação do projeto, as
coisas acabam. Promovemos muitos cursos de formação de professores
de surdos, inclusive em universidades, com Nelson de Luca Preto
102
, a
fonoaudióloga Ana Maria Pimenta, em Audiologia, e outros.
102
Professor da Faculdade de Educação da UFBA.
165
Antes era a Escola Wilson Lins que atendia pessoas surdas,
depois começaram a ser implantadas classes especiais em escolas
comuns nos bairros de João das Botas, no morro do Gavazza, no colégio
Serravale do bairro da Pituba, na Cidade Baixa, que, acredito, funcionam
até hoje.
A escola Wilson Lins passou por uma reformulação e constitui
hoje o Centro de Capacitação de Profissionais da Educação e de
Atendimento às Pessoas com Surdez “Wilson Lins” (CAS)
103
, funcionando
muito bem. Duas pedagogas do grupo de estudos da UFBA estão no CAS
e também fazem Mestrado na Uneb.
Na clínica em que atuo hoje temos um grupo de estudos sobre
Surdez, mas na linha do Bilingüismo.
104
Eu passei por todo esse processo
de mudança, primeiro trabalhei muito tempo como oralista, depois não
experimentei comunicação total, mas discutimos a viabilidade de sua
implantação na educação precoce e, agora, estou estudando bilingüismo,
que é outra maneira de lidar com a surdez. Estou sempre estudando,
porque gosto de estudar. Faço atendimento clínico, participo do grupo de
estudos sobre Surdez, de um grupo de relações interpessoais e também
estudo inglês para mim mesma.
103
Criado com o objetivo de oferecer cursos de Libras e Português para Surdos, formar
professores intérpretes e atender pessoas surdas no âmbito educacional, o CAS já
capacitou 150 professores, cerca de 100 familiares de alunos e 200 policiais.
104
Essa proposta defende a idéia de que a língua de sinais é a língua natural dos surdos,
que, mesmo sem ouvir, podem desenvolver plenamente uma ngua visogestual. Certos
estudos (Bouvet 1990) mostram que as línguas de sinais são adquiridas pelos surdos
com naturalidade e rapidez, possibilitando o acesso a uma linguagem que permite uma
comunicação eficiente e completa como aquela desenvolvida por sujeitos ouvintes. Isso
também permitiria ao surdo um desenvolvimento cognitivo, social etc. muito mais
adequado, compatível com sua faixa etária”. LACERDA, Cristina B.F. Um pouco da
história das diferentes abordagens na educação dos surdos. Cad. CEDES. Campinas,
v. 19, n. 46, 1998.
166
Minha atuação no momento atual é na CRESCER
105
Centro de
Atendimentos Especializados, onde faço atendimento clínico e sou
diretora administrativa. Ainda atendo alguns surdos e estou
experimentando trabalhar o português escrito com um paciente surdo,
acompanhada de Josélia, uma professora interprete surda do CAS, como
tradutora em línguas de Sinais, embora eu ofereça também a pista oral,
se necessário. Outra paciente surda é uma menina que usa alguns
gestos, mas se comunica mais pela linguagem oral.
Eu acho que o Bilingüismo é um caminho ultrapassando a visão
de deficiência e contempla o surdo como diferente. A diferença como
singularidade. O atendimento ao surdo nessa visão leva em conta sua
condição bilíngüe-bicultural. No oralismo, para conseguir linguagem, a
criança fica muito sacrificada, são 24 horas no ar, uma família muito
interessada, um aparelho 24 horas e um sobressalente, se precisar.
Uma das coisas que me preocupa é de que forma colocar o mais
cedo possível a criança em contato com a língua de Sinais, para que ela
desenvolva de forma natural, porque esta não é aprendida, é natural
como a nossa. Aqui em Salvador ainda temos muita dificuldade, porque a
comunidade surda ainda está se estruturando. O CAS está fazendo um
trabalho muito bom, está organizando a comunidade surda, estão se
interessando e questionando e, a partir daí, politizando, vai melhorar
bastante. Uma visita ao CAS pode ser bem interessante. Eu acho que,
quanto mais cedo a exposição à língua de Sinais, maior possibilidade de
105
CRESCER Centro de Atendimentos Especializados. Fundado em de Agosto de
1985 com atendimentos em psicologia, Fonoaudiologia, Psicopedagogia e Assessoria.
167
um uso bem estruturado. Mas como? Onde e com quem colocar o
bebezinho para aprender a linguagem de Sinais?
Vejo que um caminho para a Fonoaudiologia dentro dessa
abordagem bilíngüe, embora tenha um grupo radical que acha que não.
Penso que se a família faz opção pela linguagem oral, nós temos que ser
democratas, porque também é possível fazer um trabalho bom nesta
orientação. Fiquei satisfeita ao saber que as novas diretrizes curriculares
dos Cursos de Fonoaudiologia incluem LIBRAS.
Concluindo, gostaria de colocar que penso que a Fonoaudiologia
é uma profissão que exige muito estudo, porque cada paciente é um
desafio e temos que estar atentos para não fazer uma receita para todos.
Eu acho que ser cuidadoso e ético é da maior importância, e pautei
trabalhar nestes princípios, o que não quer dizer trabalhar sem nenhuma
falha.
COMENTÁRIOS E REFLEXÕES
A entrevista de Sonia Veloso foi a última, e transcorreu com
tranqüilidade, com minhas “ansiedades sobre controle”, diferente do que
já havia ocorrido nas entrevistas iniciais. O agendamento também foi fácil,
talvez por que a minha experiência tivesse me ensinado a deixar de
lado as expectativas e apreciar a trama sutil das lembranças se
construindo, talvez por que as entrevistas e os momentos são únicos.
Sua narrativa tem a marca da tranqüilidade na reflexão sobre o
vivido. Os caminhos que tomou na construção de um trabalho com
pessoas surdas exemplificam o amadurecimento que nunca esteve
168
apartado da consideração dos sentidos de pessoa e comunicação. O
posicionamento teórico desta minha colaboradora na questão das
pessoas surdas e suas famílias não está vinculado a modismos
acadêmicos, mas à experiência.
Observo que inicia e encerra essa narrativa com o mesmo tema,
evidenciando que as perguntas vão continuar sempre quando se trata de
ser humano. É bonito poder apreciar que a experiência lhe proveu de uma
tranqüilidade para se colocar como humana entre humanos às vezes
equivocada, mas nunca sem compromisso com o outro.
169
CAPITULO IV:
RAÍZES
170
(...) “Podemos colher enorme quantidade de informações
factuais, mas o que importa é delas fazer emergir uma visão
de mundo” (BOSI, 2003, p. 18).
Encontramos nas narrativas as motivações individuais que se
sustentam sob alguns traços comuns, sendo interessante conhecer como
cada colaboradora sentiu ou percebeu as mudanças, como sintetizou os
acontecimentos buscando uma identidade, porque esta é indissociável da
memória, estando aberta a negociações de valores antigos e novos.
Neste capítulo, optei então por nortear as considerações dirigindo
o olhar para a construção singular da Fonoaudiologia em Salvador, que
traz aspectos comuns com o percurso histórico da área no país.
Em primeiro lugar, destaco que, nas histórias escritas no Brasil
sobre a Fonoaudiologia, é recorrente a associação entre o aparecimento
das primeiras práticas descritas e as ações/intervenções em saúde
pública, que, estruturadas sob os vários paradigmas históricos,
estabeleceram modelos e objetivos da atenção. Salvador também
compartilhou desse momento.
FIGUEREDO NETO (1988), por exemplo, refere que a
medicalização dos problemas sociais decorrentes, entre outros aspectos,
da adoção de uma Língua-Padrão Nacional Higienizada fez surgir a
patologização da linguagem, que precisava de dicos para o
diagnóstico e professores para sua correção.
BERBERIAN (1993) destaca que a preocupação com o
tratamento de distúrbios da comunicação surgiu no Brasil quando essas
171
iniciativas passaram a ter um papel importante nas formas de organização
social; ou seja, práticas fonoaudiológicas implicadas em posturas e
medidas públicas em saúde.
SILVEIRA (1996) refere como momento precursor a criação do
setor de Ortofrenia e Psicologia do Instituto de Pesquisas Educacionais
(IPE), ligado à prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, na época o Distrito
Federal, para atender a demanda da rede estadual de crianças com
problemas na escolaridade. Uma iniciativa pública para práticas
fonoaudiológicas na saúde e educação.
Destacamos, nas narrativas colhidas sobre a Fonoaudiologia em
Salvador, algumas experiências que se incluem nessa perspectiva, como
por exemplo: a presença do PEACE CORPS, situado em momento
histórico de “ajuda externa” de perfil voluntário aos programas sociais
internos.
“Este trabalho fez com que “Irmão Dubois”, o diretor do
Instituto de Psicologia da Universidade Católica do Salvador
UCSAL, me procurasse para trabalhar com problemas de
linguagem e também para participar de um curso específico
que seria oferecido por uma fonoaudióloga norte-americana
integrante dos Voluntários da Paz (Peace Corps/ Corpos da
Paz) chamada “Carol Perry” (LIA MARA).
“O Instituto Pestalozzi da Bahia foi reaberto e voltei para
trabalhar no Setor de Terapia da Palavra e foi nesta época que
conheci os Voluntários da Paz, jovens voluntários americanos
que em suas especialidades desenvolviam alguns trabalhos. A
voluntária Sharon Levy disse que era speech therapist e
perguntou-me se poderia me ajudar no Pestalozzi” (OLGA
TANAJURA).
Também como programas públicos de ação em saúde/educação,
temos a atuação em práticas fonoaudiológicas de professoras dentro da
SECRETARIA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO DA BAHIA (“professoras de
Calafasia”).
172
“(...) Na década 60, outras pessoas em Salvador
trabalhavam com correção de fala e voz, principalmente com
crianças. Eram professoras primárias que fizeram curso no
Instituto Nacional de Educação de Surdos INES no Rio de
Janeiro, mas que também trabalhavam com ouvintes (...)”
(OLGA TANAJURA).
“Na Secretaria da Educação, havia Aldina
e Vandiva que
trabalhavam como logopedistas, atendendo crianças de classe
especial com dificuldades na fala. Elas eram professoras
antigas da Secretaria da Educação que fizeram o curso do
INES e atendiam crianças especiais e também aquelas que
vinham pela queixa da escola. (...) Quando se aposentaram
em 1975, elas me passaram essa clientela e eu fiquei
assistindo a Educação Precoce e atendendo na Secretária de
Educação, que também oferecia no mesmo local o serviço de
Psicologia” (SONIA VELOSO).
“Criamos um núcleo de Educação Precoce para o
atendimento a surdez no bairro de Ondina, vinculado à
Secretaria de Educação, funcionando em salas cedidas, onde
hoje é o Instituto Pestallozzi” (SONIA VELOSO).
No final dos anos 70 e início dos anos 80, temos fonoaudiólogos
que chegaram a Salvador para trabalhar em clínicas de reabilitação que
mantinham convênio com a FUNDAÇÃO LEGIÃO BRASILEIRA DE
ASSISTÊNCIA SOCIAL LBA. Vejamos o que disseram as
colaboradoras:
“(...)Tive sorte porque estava trabalhando no Instituto
Baiano de Reabilitação (IBR), depois fui para a APAE, que por
exigência da LBA precisou contratar fonoaudiólogos com
graduação” (LEONORA).
“No início dos anos 80, a Legião Brasileira de
Assistência – LBA foi responsável pela chegada de vários
profissionais a Salvador. Parece-me que, por determinação do
governo, para se conveniar, toda clínica necessitava ter na
equipe, entre outros profissionais, um fonoaudiólogo(...), em
1984, e foi uma outra etapa. A LBA não atuava muito,
mas nem lembro como isto foi acontecendo (...)” (CARMEN
FERNANDES).
Consultando a fonoaudióloga Maria José C. Lobo Teixeira da
Silva, proprietária do Instituto Guanabara, instituição dedicada ao
atendimento a crianças com necessidades especiais em Salvador desde
1970, ela informou que, “para firmar convênio com a LBA, foi necessário
173
“importar” fonoaudiólogos de outros estados, uma vez que, dentre os
critérios para a realização deste convênio, havia a necessidade de formar
uma equipe multidisciplinar com inclusão do fonoaudiólogo, considerando
um determinado número de crianças”.
A LBA foi a primeira instituição pública federal de assistência
social no Brasil, criada em outubro de 1942, cuja presidência estava
assegurada às primeiras-damas da República. Em 1946, redefiniu sua
finalidade para a defesa da maternidade e da infância, tornando-se uma
fundação em 1969. Após cinco anos (1974), foi incorporada ao Ministério
da Previdência e Assistência Social (MPSA), e em 9 de fevereiro de 1979,
o Decreto-Lei 8.2.1979 aprova seu estatuto, estabelecendo como objetivo
principal a prestação de assistência social à população carente, mediante
programas de desenvolvimento social e de atendimento às pessoas,
independentemente da vinculação destas a outra entidade do SINPAS
(Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social). Estabelece dez
diretrizes, sendo que, dentre elas, podemos destacar a “definição da
assistência social como englobando, prioritariamente, assistência pré-
natal e natal, reforço alimentar na faixa de 0 a 6 anos de idade,
assistência aos excepcionais e amparo à velhice; celebração de
convênios com escolas públicas e particulares, empresas,
municipalidades, associações e instituições assistenciais e filantrópicas
para execução de programas de assistência social; participação no
174
custeio de programas de assistência social de quaisquer entidades
privadas por ela previamente aprovados”
106
.
No primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-
1998), a LBA foi extinta, e seu patrimônio foi repassado aos estados e
municípios, sendo a grande maioria dos técnicos encaminhada para as
secretarias estaduais (MONFREDINI, 2003).
Em sua dissertação sobre gestão e política de assistência social
no Brasil, MONFREDINI faz a seguintes considerações sobre a LBA:
“A diversidade de atuação [da LBA], apesar de
apresentar certa flexibilidade, tinha em sua marca a
descontinuidade e a ausência de mecanismos de controle e de
integração, favorecendo o uso político da instituição que
acabou por desgastar sua imagem. Os traços centrais que
reproduziram um perfil do órgão podem ser vistos por algumas
características mais gerais de: i) grande flexibilidade nas
formas de atuação; ii) descontinuidade dos programas; iii)
ausência de mecanismos de controle, participação social,
planejamento e avaliação; iv) desarticulação das ações; v) uso
político da instituição e fonte permeável à corrupções e
fraudes” (MONFREDINI, 2003, p.56)
É possível identificar nas narrativas das minhas colaboradoras as
lutas empreendidas no cotidiano, por meio de um trabalho
fonoaudiológico privatista; ou seja, de baixa ou quase ausente inserção
no serviço público, sendo o acesso da população somente mediante o
pagamento.
Temos, portanto, em Salvador, uma Fonoaudiologia construída
pela iniciativa privada. E isso é resultado de políticas públicas que não
primam pelo planejamento estratégico de longo prazo, que mudam ao
sabor das conveniências, o que parece exemplar no caso da cidade de
Salvador.
106
Acesso em 01/08/2007. Disponível em:
< http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=211687>
175
“Em 1957, (...) aceitei o convite de (...) para trabalhar no
Instituto Pestalozzi, que ela havia fundado em Salvador.
Algum tempo depois, para sua decepção e de todos os pais, o
Governador Antonio Balbino fechou o Instituto Pestalozzi,
talvez por considerar que gastar com excepcionais não valia a
pena. (...) Os pais das crianças tiveram que procurar escolas
particulares” (OLGA TANAJURA).
“No Instituto de Psicologia da Católica eu atendia
pessoas com problemas de comunicação em grupo e
individual. (...) Era um Instituto dirigido por Irmão Dubois, um
religioso muito idealista, que conseguiu dentro da UCSAL um
Instituto para cuidar das pessoas. Ele era um cuidador e se
cercava de gente em quem que acreditava e que também
acreditava nele também, mas a UCSAL parece que não
gostava muito destas iniciativas, porque custava dinheiro e
não sei se ele sabia lidar com essa parte de administração.
Houve algum problema de gestão, não de qualidade de
trabalho e a Instituição retirou o apoio as suas iniciativas” (LIA
MARA).
“A Educação Precoce caminhava, mas as crianças não
tinham como comprar aparelho e quando conseguiam o
havia condições de fazer a manutenção. (...) O Centro de
Educação Especial finalmente ficou pronto (...) e também
salas para atendimento fonoaudiológico, porque buscávamos
criar condições para que o fonoaudiólogo pudesse fazer parte
do quadro de profissionais do Estado. (...) mas o Estado não
assumiu esse compromisso e até hoje o Fonoaudiólogo não
está inserido neste quadro. (...) Eu fiquei muito desanimada
com o grupo de estudo, porque trabalhávamos e nos dávamos
conta que nada seria aplicado na prática. No Estado é muito
difícil trabalhar um projeto de longo prazo” (SONIA VELOSO).
“(...) em 1981, deixei a sua [Clínica Pinto Duarte] clínica
para trabalhar em consultório particular. A gente vai criando
asas. (...) O conhecimento fonoaudiológico que você oferece
aos pacientes através do seu trabalho, mesmo não se
misturando nas relações, tem repercussão pessoal, no destino
deles. Por exemplo, você faz um trabalho com o surdo, ele se
identifica, melhora, começa a falar e obtém suporte necessário
para suas relações interpessoais, tudo isto através da
comunicação que foi desenvolvida por este trabalho”
(CARMEN FERNANDES).
“(...) As crianças chegavam tarde e sem avaliação
auditiva; observando que não tinha quem fizesse essa
avaliação, eu comecei a chatear um pouco os médicos que
faziam nessa época avaliação audiológica usando uma
atendente. Foi nesta época que o Instituto Bahiano de
Otorrinolaringologia (IBO) me convidou para fazer avaliação
audiológica infantil usando o “Peep Show”” (SONIA VELOSO).
“No Centro Terapêutico Municipal Dr. Álvaro Rubim de
Pinho cheguei sem saber o que me esperava. Nunca havia
trabalhado na área de Saúde Mental. sou fonoaudióloga
generalista, tenho que dar conta de uma grande demanda de
pacientes. O que eu não posso atender, como dislexias,
176
disfonias orgânicas, etc, faço encaminhamento para outros
serviços. O problema é: para onde?” (LEONORA).
Observamos que, com esse trabalho privado, único possível
nesse contexto de grande demanda da população e pouco compromisso
dos órgãos públicos, as precursoras da Fonoaudiologia em Salvador
foram adquirindo experiência, investindo na formação e percebendo os
efeitos desse trabalho, que era muito reconhecido pelos pacientes. Esse
reconhecimento fez com que elas ganhassem confiança para divulgar a
área:
“Como fui obtendo alguns resultados, começaram a
aparecer muitas crianças com problemas de fala e então
aluguei uma sala para atender” (OLGA TANAJURA).
“(...) Ao retornar deste curso de D. Lucia Bentes no Rio
de Janeiro, participei de programas de televisão, fiz palestras,
reuniões com professores e também dentistas, porque, nesse
curso, haviam sido introduzidas noções mais específicas de
Motricidade Oral” (OLGA TANAJURA).
“(...) Falando da divulgação, as pessoas o conheciam
o nosso trabalho, e os encaminhamentos eram feitos de modo
vago.(...) Havia certa fragilidade nesses encaminhamentos.
(...) Mas não demorou muito e nós conseguimos alguma
estabilidade graças ao trabalho de arregaçar as mangas e ir
pessoalmente conversar com os profissionais, as escolas,
professores, diretores, etc. Todas se esforçaram (...)”
(CARMEN FERNANDES).
É interessante observar como elas relatam com muito orgulho e
entusiasmo as lutas vencidas pelos pacientes, demonstrando uma
cumplicidade /solidariedade com eles:
“(...) Em 1975, (...) Dr. Hélio Lessa (...), Dr.Cortizo e Dr.
Antonio Borja nos convidaram para fazer umas palestras no
auditório da Ordem dos Advogados da Bahia (OAB) (....) um
paciente com laringectomia se ofereceu para falar do seu caso
e foi ótimo. Ele falou muito bem e disse que eu tinha restituído
não a voz dele, mas também a vida (...). (OLGA
TANAJURA).
“(...) Iniciei o trabalho com o indivíduo laringectomizado
sob supervisão de Carol e logo ele começou a emitir sons. Era
uma fala gutural, mas encantadora porque ele era
animadíssimo. Ele queria exibir que estava laringectomizado,
177
se sentia vitorioso por estar ultrapassando as dificuldades e
começou a dar muitas entrevistas. Faz tantos anos isso e eu
nunca mais tive notícia dele. Ele chegou a assobiar (já pensou
um laringectomizado assobiando) (...)” (LIA MARA).
“(...)Tenho uma satisfação muito grande com a cidade
de Salvador, com as pessoas, os profissionais e,
principalmente, com os pacientes; acho difícil sair daqui. O
reconhecimento vinha nos encaminhamentos, e tem uma
particularidade: mesmo com o trabalho concluído, a família às
vezes telefona e diz: “olha, ele es trocando de escola, eu
gostaria da sua assessoria”. Encontro casualmente pacientes
que não reconheço, porque cresceram, mas a mãe reconhece,
apresenta, elogia. Encontro pacientes de outras colegas que
também falam: “Ah! você é fonoaudióloga! Lembra fulana de
tal, foi paciente de Rina, foi paciente de Célia, de Leonora””
(CARMEN FERNANDES).
Além do trabalho pontual de cada profissional em clínicas
privadas, podemos destacar também um grande investimento paralelo no
trabalho de institucionalização da área: reconhecimento da profissão,
organização de classe em Salvador e a persistência no objetivo de
conseguir a formação de novos profissionais.
“(...) Abigail Caracik, uma pessoa muito dinâmica com
um trabalho maravilhoso no Rio de Janeiro, que me sugeriu
formar um grupo de fonoaudiólogos na Bahia” (OLGA
TANAJURA).
“(...) Em 1980, fui convidada para participar de uma
reunião na Clínica de Leonora, (...) Na verdade, a reunião foi
solicitada por Olga Tanajura, que, retornando de um
Congresso no Rio de Janeiro, procurou congregar os colegas
em Salvador para dar apoio ao movimento de regulamentação
da profissão” (CARMEN FERNANDES).
“Não me recordo bem, mas por volta de 1979/1980
pensei em procurar fonoaudiólogos que trabalhavam em
Salvador. (...) Encontrei Olga Tanajura. Conversamos e
combinamos de publicar um edital em um jornal local (“A
Tarde”) convocando os colegas para uma reunião na clínica
onde eu trabalhava na Rua Milton de Oliveira. (...) Acho que
este foi o primeiro momento de reunião da classe aqui em
Salvador” (LEONORA).
“(...) Nesta época, trabalhamos no reconhecimento da
profissão junto ao Congresso Nacional e o MIEF Movimento
Interestadual das Entidades Fonoaudiológicas. Tenho muito
orgulho de ter participado destas reuniões em Salvador e em
outros Estados na luta pela criação do Conselho Federal de
Fonoaudiologia e reconhecimento da profissão junto ao
Congresso Nacional” (LEONORA).
178
“Na administração da prefeita Lídice da Mata tivemos
uma reunião com seu Secretário da Saúde (...). Ele nos pediu
um levantamento da necessidade de atuação do
fonoaudiólogo em todos os postos de saúde da cidade de
Salvador. Foi feito um mutirão com os colegas fonoaudiólogos
(LEONORA).
“(...) Recebemos a visita da professora Maria Augusta
Dantas do Nascimento do Instituto de Ciências da Saúde
(ICS), da Universidade Federal da Bahia, falando da
possibilidade de criação do Curso de Fonoaudiologia (...).
Antes desta iniciativa da UFBA nós atendemos na APROFEB
a solicitação da Universidade Católica do Salvador (UCSAL)
de um projeto para a implantação de um curso de
Fonoaudiologia, que não foi implantado (...)”
(LEONORA).
Em relação a outras histórias já relatadas sobre a Fonoaudiologia
no Brasil e as apresentadas pelas minhas colaboradoras em Salvador,
podemos destacar em comum uma matriz formadora que diz respeito ao
investimento na educação de pessoas surdas e com deficiência mental,
em âmbito geral nas ações ligadas ao poder público, e no particular, na
mobilização de pais interessados em oferecer oportunidades aos seus
filhos.
Nesse contexto, parece-me interessante referir aspectos da
história da educação do surdo no Brasil, tratados no trabalho de SOARES
(1996).
A autora refaz o percurso histórico do Instituto Nacional de
Educação de Surdos INES, tradicional instituição no Rio de Janeiro,
desde a sua fundação no final do século XIX até o final da administração
da professora Ana Rimoli, em 1961, na intenção de compreender a
incorporação do oralismo como método pedagógico na educação do
surdo na década de 50.
179
Entre os aspectos relevantes tratados, destaco priorizar a
oralização (preparar para a escola) em detrimento da escolarização e os
seus desdobramentos: foco em técnicas para trabalhar a fala, com perfil
individualizado, abordagem terapêutica que se aproxima do enquadre da
Fonoaudiologia, e a preparação de professores de vários estados do
Brasil, incluindo a Bahia, por meio de cursos oferecidos pelo governo,
para a reprodução desse modelo:
“Na Secretaria da Educação, havia Aldina
e Vandiva
que trabalhavam como logopedistas, atendendo crianças de
classe especial com dificuldades na fala. Elas eram
professoras antigas da Secretaria da Educação que fizeram o
curso do INES e atendiam crianças especiais e também
aquelas que vinham pela queixa da escola (...)” (SONIA
VELOSO)
“Minha história na Fonoaudiologia começa na
Secretaria de Educação do Estado da Bahia (...) Eu era
pedagoga, mas sem nenhuma formação especial. Em 1972
fui fazer um curso de um ano no Instituto Nacional de
Educação de Surdos (INES), o que despertou meu interesse
sobre a Surdez” (SONIA VELOSO).
“Através destas aulas [aula de dicção na escola de
Teatro da UFBA] fui convidada para ministrar aulas de
respiração na Escola de Surdos Wilson Lins. Logo ao chegar,
me ocorreu que não estava trabalhando com surdos, mas
com pessoas, crianças. Pensava: vou trabalhar com a voz ou
com a pessoa?” (LIA MARA).
Assim como relatado em São Paulo (AACD) e Rio de Janeiro
(Sociedade Pestalozzi), Salvador também traz na origem das suas
primeiras práticas fonoaudiológicas o trabalho com pessoas com
deficiência mental, por meio das iniciativas da Sociedade Pestalozzi da
Bahia, Instituto Bahia de Reabilitação IBR, Clínica de Paralisia Cerebral
Dr. Pinto Duarte, APAE e outras instituições credenciadas pela LBA.
“(...) Nesta época eu achava que crianças excepcionais
eram crianças muito inteligentes, mas ele [Dr Anísio Teixeira]
explicou que era exatamente o contrário,(...) Propôs que eu
visitasse a Sociedade Pestalozzi do Brasil (...) aquelas
crianças tão meigas me cativaram tanto que fui ao Dr. Anísio
180
dizer que aceitava o curso. Este curso abriu um novo mundo
pra mim (...)” (OLGA TANAJURA).
“(...) Em 1957, (...) saí de Caetité e aceitei o convite de
D. Elizabeth Chaves (ex-aluna de Dra. Helena Antipoff) para
trabalhar no Instituto Pestalozzi, que ela havia fundado em
Salvador” (OLGA TANAJURA).
“(...) eu tinha alunos particulares com deficiência
mental e achava que eles necessitavam falar melhor, mas não
sabia como ajudá-los. Encontrei (...) o livro “Defectos de la
diccion infantil” de Tobias Corredeira Sanches. (...) com ele fui
trabalhando a fala das crianças(...)” (OLGA TANAJURA).
“Cheguei a Salvador em maio de 1979, (...) e vim para
Salvador para trabalhar com crianças com Paralisia Cerebral e
Atraso de Linguagem” (CARMEN FERNANDES).
“(...) No último semestre [1975], o diretor da Escola de
Reabilitação onde eu estagiava, (...) convidou-me para
trabalhar num serviço de Paralisia Cerebral que estava
montando em Salvador. (...) Deixei a Clinica Pinto Duarte
quase 2 anos após chegar do Rio de Janeiro (...) Tive sorte
porque estava trabalhando no Instituto Baiano de
Reabilitação (IBR), depois fui para a APAE” (LEONORA).
Por fim, nessas cinco histórias precursoras, é marcante o trabalho
de reflexão sobre o fazer clínico na Fonoaudiologia. Observo que as
narrativas tocam em dimensões que encontram ressonância em
proposições discutidas por SAFRA (2004), quando se refere à clínica na
contemporaneidade e à concepção de homem constituído historicamente,
único e múltiplo, que se singulariza pela presença de outros do passado, do
presente e que virão, das coisas e da natureza. É nosso dever, como
clínicos, nos colocarmos humanos entre humanos. Vejamos o que o autor
nos diz sobre a clínica:
“Testemunhamos em nossos consultórios, ao longo dos
anos, situações inusitadas, que colocam em questão nossas
teorias e nossa prática clínica. Para fazer frente a essas
questões e sermos fiéis a nossa vocação de clínicos, temos de
nos posicionar como eternos aprendizes. O inédito e o singular
visitam a cada dia nossos consultórios, ensinando-nos novas
maneiras de caminhar em direção à revelação da condição
humana” (SAFRA, 2004, p. 21).
.......................................................................................................
181
“Ao voltarmos para a situação clínica, veremos que ela se
caracteriza pelo cuidado que estabelece as condições
necessárias ao acontecer humano. Esses são fatos que me
levam a afirmar que a clínica é essencialmente ética (
ηθοζ
), e a
ética é clínica! Nessa perspectiva, cai por terra toda concepção
que busca definir a situação clínica a partir de procedimentos
técnicos. A técnica assim compreendida joga o paciente em
direção ao conceituável, roubando-lhe o indizível e os mistérios
do seu ser. Este é o homem-coisa e não mais ser, não mais
presença” (SAFRA, G. 2004, p. 27).
Nas vozes das narradoras uma visão de mundo que se
expressa em valores essenciais para o acontecer humano, como a
gratidão, o entusiasmo, o respeito e o acolhimento ao jeito de ser do outro,
a responsabilidade social, a solidariedade, o compromisso com a pessoa
antes do compromisso com “técnicas”, “escolas”, “correntes teóricas” etc.
É possível identificar nas narrativas situações exemplares,
conselhos tecidos na experiência que considero bons momentos de
reflexão para a Fonoaudiologia, e por isso finalizo destacando-os aqui:
A clínica é dialética, e paciente e terapeuta se constituem
mutuamente. O investimento do terapeuta pelo conhecimento
que surge dessas demandas chama-se compromisso. O estar
mutuamente afetado implica acolhimento em comunidade.
“Fui cuidando de disfonia e busquei aprender mais coisa.
Fiz muitos cursos para trabalhar o corpo (...). Estudei expressão
corporal e karatê (...) Estudava o que vinha na cabeça, o que
me parecia relacionado com a fala, embora aparentemente não
tivesse. (...) tinha feito também Yoga, mas achei que o Tai
Chi Chuan juntava a Yoga. (...)Fiz o curso de três anos do
“Trauma tem cura”, com Peter Levine. (...) Isto tudo era uma
procura minha para, em menos tempo possível, respeitando
o indivíduo, fazer com que ele se libertasse da escravidão,
da gaiola que vivia, de se sentir preso na comunicação com o
outro” (LIA MARA).
“Tenho muita esperança que as pessoas aprendam a
falar e, sobretudo, aprendam a ouvir, porque senão no Brasil
não teremos formação de massa crítica. Nós estamos
precisando muito de percepção de mundo e penso que
nossa missão é de responsabilidade cívica. As pessoas estão
girando muito em torno do individual, a relação com o
182
computador, a relação com a fantasia do outro. (...) Está na
hora de a gente mudar a cabeça e lembrar que precisamos de
uma coisa chamada SO-LI-DA-RI-E-DA-DE. Acho que
Fonoaudiologia sem filosofia de vida não vai para lugar
nenhum” (LIA MARA).
“O conhecimento fonoaudiológico que você oferece aos
pacientes através do seu trabalho, mesmo não se misturando
nas relações, tem repercussão pessoal, no destino deles.
Por exemplo, você faz um trabalho com o surdo, ele se
identifica, melhora, começa a falar e obtém suporte necessário
para suas relações interpessoais, tudo isto através da
comunicação que foi desenvolvida por este trabalho. Quando
ele começa também a caminhar com os próprios pés, uma
reciprocidade, não é uma situação unilateral. Não é assim: eu
tenho todo o conhecimento e o outro não tem nada para me dar.
Eu sempre de alguma maneira estou aprendendo com a outra
pessoa, enfim a gente trata de humano mesmo. Sei que eu
tenho a obrigação de ter conhecimento profissional, de me
especializar, de oferecer suporte técnico, mas passa tudo pelo
humano, pela possibilidade de crescimento conjunto
(CARMEN FERNANDES).
A relação terapêutica é complexa, porque as pessoas são
complexas e as possibilidades de trabalho não podem se
reduzir à aplicação de técnicas.
“Tornei-me professora de dicção na Escola de Teatro
porque descobri que, ao falar como eu mesma, eu gaguejava,
mas quando pegava um personagem isto não acontecia.
Descobri que se o problema não estava na fala, deveria
estar em mim. Foi uma grande descoberta poder administrar
isso e o controlar, porque eu passei toda minha juventude
controlando e isso me dava um enorme desgaste emocional. É
por isto que entendo o problema dos outros, entro em empatia e
quando alguém me procura faço tudo para tirar e não para
botar pecado e culpa na história” (LIA MARA).
“Eu sou mais pela voz do que pelas palavras e fazia
diagnóstico da voz, mesmo sem ter esses aparelhos todos(...).
Havia muito locutor de rádio que falava todo impostado, mas no
dia a dia era fanhoso e isto era uma salada vocal. Onde estava
o indivíduo dentro dessa salada é que era a minha
preocupação maior” (LIA MARA).
“Conhecer-se, conhecer sua voz e com isso poder fazer o
personagem que quiser. Você não impõe voz, você administra e
aumenta o repertorio (...) Não adianta dar adestramento para o
falante se você não trabalhar a mente da pessoa para se libertar
e gostar de si mesma. Tenho a impressão de que podemos
neste teatro da vida ter uma performance aceitável, mas eu
prefiro que seja uma verdade aceitável porque de performance
já estamos saturados” (LIA MARA).
183
“(...) eu lhe disse que antes de atende-lo iria ao Rio de
Janeiro procurar uma supervisão. (...) Foi um caso
extraordinário, porque esse homem estava perdido
completamente, estava sem fala, tinha sido abandonado pela
mulher e chorava muito. Consegui que ele falasse o /pá/, e ele
sentiu uma emoção extraordinária (...) (...) nos convidaram para
fazer umas palestras no auditório da Ordem dos Advogados da
Bahia (OAB) e este paciente com laringectomia se ofereceu
para falar do seu caso (...) disse que eu tinha restituído não só
a voz dele, mas também a vida (...) (...) anos depois numa
reunião da APROFEB encontrei uma psicóloga que tinha ido a
este evento e ela me falou da emoção extraordinária que
tinha sentido ao assistir este depoimento” (OLGA TANAJURA)
“Eu acho que o Bilingüismo é um caminho
ultrapassando a visão de deficiência e contempla o surdo
como diferente. A diferença como singularidade.(...) Vejo que
um caminho para a Fonoaudiologia dentro dessa abordagem
bilíngüe, embora tenha um grupo radical que acha que não.
Penso que se a família faz opção pela linguagem oral, nós
temos que ser democratas, porque também é possível fazer
um trabalho bom nesta orientação” (SONIA VELOSO).
Uma técnica, uma teoria, um conceito não podem se aplicar ao
humano de forma universal; podem, quando muito, iluminar
uma das infinitas faces que todos os dias serão renovadas pela
conspiração de passado, presente e futuro, no jogo eterno e
misterioso da criatividade humana.
“A voz pra mim é a alma da pessoa, é o alto-falante.
Penso que quando a pessoa tranca a garganta é porque ela
“engoliu muito sapo”. Acredito que temos que trabalhar
tocando a pessoa por dentro, não querendo a
performance de uma voz impostada (”miniminiminimi”),
porque quando ela estiver numa situação fronteiriça voltaria
tudo” (LIA MARA).
“Através destas aulas fui convidada para ministrar aulas
de respiração na Escola de Surdos Wilson Lins. Logo ao chegar
me ocorreu que não estava trabalhando com surdos, mas
com pessoas, crianças. Pensava: vou trabalhar com a voz ou
com a pessoa?” (LIA MARA).
“No INES, nesta época, embora as crianças surdas
falassem o tempo todo entre elas usando gestos, quando
chegavam à sala de aula era silêncio e uma situação
constrangedora, porque o professor ficava repetindo e falando
só o tempo todo. Eu achava tudo isto muito estranho. Como a
escola era um internato, nós fazíamos as refeições em um
refeitório comum, dividido em três setores: um para a diretoria,
outro para nós e outro para os alunos. Ficávamos encantadas
observando como os alunos se comunicavam entre eles usando
184
gestos, mas ninguém podia fazer porque era proibido(SONIA
VELOSO).
“(...)Tive muitos pacientes que desenvolveram e outros
que não conseguiram. (...) tive um paciente que foi e é, até hoje,
um caso extraordinário. (...) ele tinha uma perda auditiva
profunda e uma comunicação maravilhosa. (...) foi um caso
muito bom, porque ele também era muito inteligente e a família
tinha todas as condições possíveis, embora outros com a
mesma perda auditiva e as mesmas condições não iam
adiante” (SONIA VELOSO).
O clínico então é um aprendiz-cuidador, aberto a todo o
conhecimento que possa ajudá-lo a cuidar, na
interdisciplinaridade da ciência, nas diversas manifestações da
arte, nas religiões, na cultura, etc.
(...) acho interessante trabalharem com a infância,
porque éque começa a inibição de fala.(...) Hoje é necessário
preparar o pessoal que esta chegando, na creche se possível.
(...) Quando a criança começa a engatinhar, andar e cai
ninguém acha ruim, agora quando começa a falar e gagueja,
logo é rotulada de gago ou então surdo-mudo.(...) O mundo
muda toda hora, as pessoas estão com novos problemas,
novos medos e novas infâncias (LIA MARA).
“Minha a dizia que água e conselho se a quem
pede, mas acho que o currículo de Fonoaudiologia precisava
mudar um pouco e incluir muita Psicologia e Antropologia,
além de procurar pessoas que tivessem solidariedade com
o próximo (...)” (LIA MARA).
“a Fonoaudiologia é uma profissão que exige muito
estudo, porque cada paciente é um desafio e temos que estar
atentos para não fazer uma receita para todos. Eu acho que
ser cuidadoso e ético é da maior importância, e eu pautei
trabalhar nestes princípios, o que não quer dizer trabalhar sem
nenhuma falha” (SONIA VELOSO).
Se a clínica acontece nas histórias construídas/vividas entre
terapeuta e paciente, as relações de supervisão entre
profissionais devem ser cuidadas para que não atravessem
essas histórias, transformando o colega em instrutor, o paciente
em receptor de técnicas e “clínica” em treinamento.
“Fazia parte deste grupo uma fonoaudióloga vinda do
Rio de Janeiro, Maria Amália Jourdan Penedo (...) Ela
185
convidou-me para trabalhar com ela num contrato verbal de
supervisão, ou seja eu atendia, passava o relatório dos
pacientes para ela.(...) Funcionava como uma supervisão
que eu não pedia, mas ela me dava. Eu aceitei e trabalhei
durante muitos anos assim, até que durante uma reunião
clínica, a equipe questionou a situação e rompemos o
combinado (...) (LEONORA).
“Rui Lobo foi pioneiro na realização dos exames
auditivos eletrofisiológicos e isto foi muito importante, porque,
além da redução do custo financeiro, o interrompia o
trabalho fonoaudiológico e ainda diminuía a ansiedade da
família. As famílias iam a cada seis meses a São Paulo, e as
avaliações (Audiológicas e de Linguagem) pareciam ser a
solução para todos os problemas, desqualificando, de certa
forma, o atendimento local em função de um atendimento
idealizado no “sul maravilha”, com repercussões no
processo terapêutico” (CARMEN FERNANDES).
As narrativas são preciosas e reveladoras, ilustrando que a
experiência de vida oferta sabedoria, que está para além do factual, do
conhecimento. o é olhar o paciente como um objeto de estudo. É uma
relação amorosa e verdadeira, com todos os seus riscos. É apreensão do
sentido de que a clinica (cuidar) ocorre quando condições de confiança
mútua, humildade e empatia possibilitam a comunhão de experiências e
sentimentos entre terapeuta e paciente. Uma relação viva expressa pelo
nome de Solidariedade abertura para o sentimento do outro, que
reconhecemos pelo nosso destino comum somos humanos. Finalizo
com a voz de Lia Mara:
“(...) entendo o problema dos outros, entro em empatia e
quando alguém me procura faço tudo para tirar e não para botar pecado e
culpa na história. (...) Não que eu ficasse vestindo a pele dele, mas eu
compreendia a história de vida dele, porque também tinha vivido uma
história de dificuldade de comunicação (...) precisava conversar com ele
para conhecê-lo, porque senão iria saber a garganta que ele tinha e o
que me interessava era se ele podia confiar em mim. (...) se tivesse
conosco uma pessoa que pudesse ficar com ele depois, seria mais
interessante. Mas, não uma pessoa formal que ensinasse a técnica pela
técnica, mas um companheiro. Está na hora de a gente mudar a cabeça e
lembrar que precisamos de uma coisa chamada SO-LI-DA-RI-E-DA-DE.
Acho que Fonoaudiologia sem filosofia de vida não vai para lugar nenhum”
(LIA MARA).
186
CONSIDERAÇÕES FINAIS
187
Não há, de fato, uma única história são muitas as que vêm
construindo a Fonoaudiologia na cidade de Salvador. São muitas as faces
que se apresentam na colheita das experiências vividas. Constituem
percepções do passado ligado ao hoje, em continuidade, num processo
histórico nunca concluído. Foram quinze entrevistas realizadas que
viajaram por rios tempos e espaços, e nesta dissertação são
apresentadas cinco delas, de profissionais que podemos denominar como
precursoras da Fonoaudiologia em Salvador.
Elaborar considerações tendo como referência as entrevistas
transcriadas não foi tarefa fácil, porque a impressão dominante era de que
nada mais poderia/ deveria ser dito. Nas inúmeras leituras, obviamente
encantadas, de cada uma das narrativas, na busca de critérios para
dialogar com meu referencial teórico, surpreendi-me com a lembrança do
que havia acontecido na realização das minhas primeiras entrevistas. Ao
ouvir as primeiras gravações, observei que sempre as finalizava
sugerindo ao meu colaborador que deixasse uma mensagem, como se
todas as mensagens não tivessem sido dadas ao longo de toda a
narrativa.
O narrar nos oferta um conhecimento tecido na experiência, que,
além de iluminar a reflexão, nos coloca em pertencimento e nos concede
conforto, algo como: “Puxa! Não tinha pensado nisso”; “Já pensei nisto e
achava que estava sozinho”; “É, não foi fácil, mas ele lutou e venceu”,
trazendo nas histórias a dimensão do humano ou, melhor dizendo,
daquilo que nos irmana.
188
O encontro com a Metodologia da História Oral, ilustrado pelo
trabalho de Eclea Bosi foi fundamental para o meu acesso às narrativas,
por se constituir uma forma artesanal de comunicação, que não visa a
transmitir o acontecido, mas vai tecendo até atingir uma forma boa.
(BOSI, 1999).
Frente às sagas das minhas colaboradoras, me senti enfrentando
o desafio de me constituir narradora de uma outra história, partindo das
nossas comunidades de destino: a Fonoaudiologia e a dimensão humana.
Uma história puxando a outra.
E a trama foi acontecendo pelo registro biográfico de cada uma
das minhas narradoras trazendo seus desafios singulares, suas
presenças na identidade factual dos caminhos da Fonoaudiologia em
Salvador e transbordou em sutilezas profundas revelando a experiência
na clinica a partir de um lugar de solidariedade.
Elas contaram sobre uma clinica da pessoa inteira, que não quer
investigar, decifrar, interpretar, prescrever, corrigir, enquadrar, onde as
pessoas trabalham junto, vivendo a experiência do encontro. Uma clinica
que busca acompanhar e reconhecer o que de singular se organizou em
cada pessoa: repertório linístico, as questões transgeracionais,
constelação familiar para além do registro do vivido, do psíquico, aberto
para o sentimento, para a reciprocidade e a aspiração de todo humano:
estar incluído, fazer parte, ser cuidado. Eis o que Leonardo Boff
107
compartilha conosco nesta fábula sobre o Cuidado:
107
Fabula de Higino, escravo de César Augusto, comentada por Leonardo Boff em
“Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela Terra, pg. 45/46.
189
“Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um
pedaço de barro. Logo teve uma idéia inspirada. Tomou um
pouco de barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto
contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter.
Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que
Júpiter fez de bom grado.
Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura
que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto
o seu nome.
Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu, de
repente, a Terra. Quis também conferir o seu nome à criatura,
pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-
se então uma discussão generalizada.
De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse
como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu
justa:
“Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de
volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura.
Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto,
também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer.
Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro,
moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela
viver.
E uma vez que entre vocês há acalorada discussão
acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada
Homem, isto é, feita de mus, que significa terra fértil”.
(BOFF, 2001, p. 46)
Ao longo de todo este trabalho aqueceu meu coração a surpresa
de reconhecer na literatura e nos meus interlocutores mais próximos algo
que para mim parecia tão pessoal. Isto pode parecer óbvio, até mesmo
para mim, mas sei que não é. Na escuta das narrativas, nas leituras eu
pensava: como eles sabem? Eles sabem, porque somos todos humanos
e sabemos, carregamos destinos comuns alimentados de sonhos,
esperanças, dores, alegrias, fragilidades, medos e o mistério, enfim
anseio e saudade do futuro.
Raízes: lembranças da nossa condição humana
Isto são apenas considerações iniciais ......
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
190
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Vestibulareso Paulo: Ars Poética, 1995.
AMADO, J; FERREIRA, M.M. (coord.) Usos & abusos da história oral.
4ª Ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2001.
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ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 1987.
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literatura e história da cultura. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BERBERIAN, A. P. A Normatização da ngua nacional: Práticas
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BOSI, E. Memória e Sociedade Lembranças de velhos. Ed. o
Paulo: Cia da Letras, 1999.
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THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz
e Terra. 1988.
195
ANEXOS
196
ANEXO A:
Carta de Cessão (Modelo 1)
Salvador, ______, de ________________ de ____________
Ao Pesquisador ______________________________________
Eu, _____________________________________, estado civil
___________, documento de identidade _____________________,
declaro para os devidos fins que cedo os direitos de minha entrevista,
transcrita e autorizada à Pesquisadora
___________________________________ para ser usada integralmente
ou em partes, sem restrições de prazos e citações, desde a presente
data. Da mesma forma, autorizo a terceiros que a ouçam e usem citações
dela, ficando vinculado o seu controle à pesquisadora acima citada ou
Instituição que tenha a sua guarda. Abdicando de direitos meus e de
meus descendentes, subscrevo a presente, que terá minha firma
reconhecida em cartório.
_____________________________________
Nome e Assinatura do colaborador
Carta de Cessão (Modelo 2)
Salvador, ______, de ________________ de ____________
Ao Pesquisador ______________________________________
Eu, _____________________________________, estado civil
___________, documento de identidade _____________________,
declaro para os devidos fins que cedo os direitos de minha entrevista
gravada, transcrita e autorizada, para ser utilizada somente na
dissertação de Mestrado de Rina Tereza D’Angelo Nunes do Programa de
Estudos Pós-Graduados do MINTER Unime/PUCSP, cujo título é
Reconstrução Histórica da Fonoaudiologia em Salvador, para ser usada
integralmente ou em partes, sem restrições de prazos e citações, desde a
presente data.
Subscrevo a presente, que terá minha firma reconhecida em cartório.
_____________________________________
197
ANEXO B:
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
AO PARTICIPANTE DESTE ESTUDO
O Sra. ______________________________ está sendo convidada a
participar da pesquisa que se intitula “Reconstrução histórica da
Fonoaudiologia na cidade do Salvador” do Programa de Estudos Pós-
Graduados em Fonoaudiologia da PUC-SP em parceria com a UNIME
Salvador. Bahia. ( MINTER)
O objetivo deste estudo é reconstruir a Fonoaudiologia na cidade
do Salvador pela narrativa oral dos seus profissionais. Considero que esta
reconstrução histórica das práticas fonoaudiológicas na cidade do
Salvador poderia trazer amadurecimento na compreensão do seu papel
como construtora do conhecimento, subsídios para a reflexão e tomada
de posição quanto à formação profissional, assim como uma direção na
mobilização para a oferta destes serviços à população.
Caso aceite participar como colaborador desta pesquisa, o (a)
Sr.(a) participará, segundo sua disponibilidade, de uma (1) ou duas (2)
entrevistas livres com duração média de 1:30 horas com o pesquisador
sobre a sua vivência e história na Fonoaudiologia na cidade do Salvador.
Estas entrevistas serão gravadas em vídeo e farão parte da pesquisa.
A transcrição das gravações será submetido a sua conferência e
autorização para a utilização na pesquisa.
Sua contribuição através dos relatos é constitutiva da proposta
deste trabalho, significando um registro de sua participação no processo
de estruturação e desenvolvimento da Fonoaudiologia em Salvador.
Fica claro que sua participação é voluntária, não sendo obrigado
a participar das entrevistas, mesmo que tenha assinado o
consentimento de participação. Se desejar, poderá retirar seu
consentimento a qualquer momento.
198
Não haverá nenhum pagamento em dinheiro ou qualquer outro
bem pela sua participação, assim como o (a) Sr. (a) não terá nenhum
custo adicional.
A Sra. poderá esclarecer suas dúvidas durante toda a pesquisa
com a pesquisadora no endereço: Rua Eng. Ademar Fontes, 254. Apto
601, Pituba ou pelos telefones 34520777 / 91211077 e e-mail:
Considerando que as entrevistas poderão fazer parte de um
acervo público institucional, comprometo-me, como pesquisador
responsável, a cuidar para que os dados coletados somente sejam
utilizados com a autorização expressa do entrevistado/colaborador.
__________________________________
Nome do Entrevistado / Data: ____/____/______
____________________________________________
Assinatura do Entrevistador / Data: ____/____/______
___________________________________________
Assinatura da testemunha / Data: ____/____/______
Declaro que obtive de forma apropriada e voluntária o
Consentimento Livre e Esclarecido deste paciente para a participação
neste estudo.
_______________________________
Assinatura do responsável pelo estudo/ Data: ____/____/______
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