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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
MARIA REGINA CARIELLO MORAES
A REINVENÇÃO DA ACUPUNTURA:
Estudo sobre a transplantação da acupuntura para
contextos ocidentais e adoção na sociedade brasileira
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
SÃO PAULO
2007
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
MARIA REGINA CARIELLO MORAES
A REINVENÇÃO DA ACUPUNTURA:
Estudo sobre a transplantação da acupuntura para
contextos ocidentais e adoção na sociedade brasileira
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de MESTRE em Ciências da Religião,
sob a orientação do Prof. Dr. Frank Usarski
SÃO PAULO
2007
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião
Maria Regina Cariello Moraes
A REINVENÇÃO DA ACUPUNTURA:
Estudo sobre a transplantação da acupuntura para
contextos ocidentais e adoção na sociedade brasileira
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
orientador: Prof. Dr. Frank Usarski
___________________________________________
Prof. Dr. Silas Guerriero
___________________________________________
Prof.a. Dra. Leila Marrach Bastos de Albuquerque
___________________________________________
___________________________________________
SÃO PAULO
2007
Ao Papi (in memorian).
Ao homeopata, amigo e anti-guru:
Dr. Edson de Barros Santos.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Frank Usarski, querido Mestre, cujo apoio foi
fundamental, por sua paciência, cumplicidade e carinho, sem falar da exímia condução desse
trabalho. “Deus lhe pague”, Professor, por suas intervenções geniais.
Ao Prof. Dr. Silas Guerriero, pelo incentivo, interesse, dicas e principalmente por seus
cursos maravilhosos, que tantas idéias incitaram, sem os quais essa dissertação não se
concretizaria.
À Prof.a. Dra. Leila Marrach Bastos de Albuquerque, pelo estímulo, confiança,
preciosas dicas, e por sua generosidade em compartilhar textos, idéias e amplo conhecimento
sobre corporeidades alternativas.
Ao amigo Prof. Dr. Joachim Andrade, pela força e solidariedade, e pela gentileza de
traduzir o resumo para o inglês.
Aos diretores, professores e alunos das escolas visitadas na pesquisa de campo, bem
como aos demais entrevistados, pela colaboração e disponibilidade.
Ao Alê, pelo empurrão inicial.
A ALEGRIA DOS PEIXES
Zhuang zi e Hui zi atravessavam o rio Hao pelo açude.
Disse Zhuang zi:
“Veja como os peixes pulam e correm livremente.
Isto é sua felicidade”.
Respondeu Hui: “Desde que você não é um peixe,
como sabe o que torna os peixes felizes?”
Zhuang respondeu: “Desde que você não é eu,
como é possível que saiba que eu não sei
o que torna os peixes felizes?”
Hui argumentou: “Se eu, não sendo você,
não posso saber o que você sabe,
daí se conclui que você, não sendo peixe,
não pode saber o que eles sabem”.
Disse Zhuang: “Um momento:
vamos retornar à pergunta primitiva.
O que você me perguntou foi:
“como você sabe o que torna os peixes felizes?”.
Dos termos da pergunta, você sabe, evidentemente,
que eu sei o que torna os peixes felizes.
Conheço as alegrias dos peixes no rio
através de minha própria alegria,
à medida que vou caminhando à beira do mesmo rio”.
Zhuang zi , cap XVII, 13 (MERTON, 2002, p. 146-147)
RESUMO
A medicina chinesa originalmente era parte de um conjunto mágico-religioso,
fundamentava-se na cosmologia taoísta e sofreu influências do confucionismo e budismo.
Passou por diversas modificações durante a milenar história chinesa, foi secularizada após a
Revolução Cultural e na atualidade adquiriu características ocidentais. A aplicação de agulhas
é um dos seus métodos terapêuticos, que vem sendo traduzido como acupuntura para o
Ocidente desde o século XVII.
A ampla difusão da acupuntura nas últimas décadas foi acompanhada por
transformações sócio-históricas que permitiram sua assimilação em novos contextos culturais.
As medicinas orientais foram valorizadas no Ocidente a partir da contracultura, que
contestava o conhecimento racional científico como único produtor da verdade e a separação
cartesiana entre corpo, mente e espírito. Paralelamente à importação de tratamentos
medicinais, ocorreram modificações nas concepções religiosas ocidentais e emergiram novas
corporeidades que favoreceram a adoção de práticas orientais de saúde.
Como resultado do processo de inclusão da acupuntura em contextos ocidentais,
surgiram novos jeitos de praticar a terapêutica chinesa, várias reinvenções da arte de aplicação
das agulhas para adaptação à cosmovisão ocidental e ao modo de vida moderno.
O objetivo dessa dissertação é apresentar uma reconstrução histórica das
transformações da medicina na China e no Ocidente, da transplantação da acupuntura como
elemento desvinculado do conjunto simbólico original para países ocidentais, e do processo
de adoção da acupuntura na sociedade brasileira, delineando os possíveis modos de praticar
acupuntura no Brasil contemporâneo.
Palavras-chave: acupuntura; religiosidade chinesa; relação Oriente-Ocidente; transplantação
religiosa; destradicionalização
ABSTRACT
The chinese medicine originally was the part of magic-religious universe,
fundamented on the taoist cosmology and later suffered due to the influence of confucionism
and budism. It passed through several modifications during the history of milleniums of
China; was secularized after the Cultural Revolution and assimilated western characteristics in
the recent times. The application of needles is one of its teraphic tecniques, which has been
translated as acupuncture to the western culture since XVII century.
The ample diffusion of acupuncture in the last decades which was accompanied by the
socio-historical transformations permitted its assimilation to the new cultural contexts. The
eastern medicinal techniques were valued in the west during the period of counter culture,
which contested the rational cientific knowledge as unique producer of the truth e cartesian
separation between body, mind and spirit. Parallelly the imporation of medicinal treatments,
paved the way in the modification in the western religious conceptions and emerged new
corporities which favoured the adoption of eastern practices of health.
With the result of the process of inclusion of acunpuncture in the western contexts,
new ways of practicing the chinese therapy have emerged, several reinventions of the art of
application of needles have taken place in order to adapt to the western cosmovision and to
the life in modern times.
The objective of this dissertation is to present the historical reconstruction of
transformation of medicine in China and in the West; the transplantation of acupuncture as an
element desconnected to the original simbolic universe to the western countries, and the
process of adoption of acupuncture in the brazilian society, delienating the possible modes of
practing acupuncture in contemporary Brasil.
Key-words: acupuncture, chinese religiosity, east-west relation; religious transplantation;
detraditionalization.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES E TABELAS
Figura 1 - Representação da união entre yang e yin (Tai Chi).................................................25
Figura 2 – O caminho aparente do sol......................................................................................27
Figura 3 – Exemplos de polaridades Yin – Yang.....................................................................27
Figura 4 - Wu xing - classificação em cinco fases ou elementos..............................................27
Figura 5 – O Lo shu ou quadrado mágico.................................................................................28
Figura 6 – Resumo cronológico das idéias e crenças religiosas na China até o início
do séc. XX...............................................................................................................43
Figura 7 – Associação entre os trajetos, os “órgãos e vísceras” e as 5 fases ou elementos......55
Figura 8 - Ilustração do 12 trajetos de Ch’i no corpo humano..................................................56
Figura 9 - Circulação horária de Ch’i pelos trajetos.................................................................57
Figura 10 – Relações entre os cinco elementos ou cinco fases.................................................60
Figura 11 – Sistema de classificação em cinco elementos ou fases aplicado ao corpo............60
Figura 12 – Exemplo de yin-yang aplicado ao diagnóstico......................................................61
Figura 13 – Correlação entre trajetos e pulsos..........................................................................61
Figura 14 – Ilustração da localização dos pulsos......................................................................61
Figura 15 – Mapa da língua para diagnóstico...........................................................................62
Figura 16 – A área reflexa da orelha.........................................................................................64
Figura 17 - Resumo comparativo entre medicina clássica chinesa e medicina ocidental
convencional...........................................................................................................74
Figura 18 – Mapa OMS da mundialização da acupuntura......................................................147
Figura 19 - Quadro comparativo das modalidades de acupuntura..........................................189
Figura 20 – Ilustração da associação entre acupuntura e bem-estar na mídia.
Propaganda da Brastemp em página dupla na Revista Cláudia (pg.1)................231
Figura 21 – Continuação da propaganda da Brastemp na Revista Cláudia (pg. 2).................232
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO..................................................................................................................13
PARTE I. A METAMORFOSE DA MEDICINA CHINESA.......................................17
1 A medicina no contexto histórico-cultural da China.......................................................18
1.1 Cosmovisão chinesa: integração céu-homem-terra................................................19
1.1.1 Características do pensamento chinês......................................................21
1.1.2 Céu: totalidade e ordem cósmica.............................................................24
1.1.3 Terra: o movimento de transformação da natureza..................................26
1.1.4 Humanidade: correspondência simbólica e eficácia realizadora..............28
1.1.5 Principais correntes do pensamento chinês..............................................29
1.1.5.1 Taoísmo: a ordem vem da natureza........................................30
1.1.5.2 Confucionismo: a ordem vem da sociedade...........................32
1.2 Formação do pensamento médico chinês...............................................................33
1.2.1 Terapia oracular e medicina dos demônios (1523 a 480 a.C.).................36
1.2.2 Medicina de correspondência sistemática (480 a.C. a 220 d.C.)..............37
1.2.3 Cura religiosa: taoísmo místico e budismo (220 d.C. a 1300 d.C.)..........38
1.2.4 Taoísmo Alquímico: drogas, elixires, práticas corporais
(400 d.C. a 1700 d.C.)..............................................................................40
1.3 A expansão da medicina chinesa para outros países da Ásia..................................42
1.4 Tradicional Chinese Medicine (TCM) : ocidentalização e secularização da
medicina chinesa contemporânea............................................................................45
2 Medicina Chinesa e Medicina Ocidental: diferentes saberes e racionalidades
médicas.................................................................................................................................50
2.1 Correspondência simbólica: a racionalidade da medicina chinesa clássica...........51
2.1.1 Os “três tesouros” taoístas na medicina clássica: Ch’i, Jing, Shen..........53
2.1.2 Morfologia: os trajetos de Ch’ i...............................................................54
2.1.3 Dinâmica vital: a circulação de Ch’i .......................................................57
2.1.4 Doutrina Médica: origens e efeitos das enfermidades..............................58
2.1.5 Diagnose: identificação do potencial e planejamento estratégico............58
2.1.6 Tratamento: prevenir é o melhor remédio................................................63
2.2 O desenvolvimento do modelo de racionalidade biomédica ocidental..................65
2.3 Principais diferenças entre racionalidade chinesa clássica e
racionalidade biomédica ocidental.........................................................................70
PARTE II – O CAMINHO DAS AGULHAS PARA O OCIDENTE................................75
3 A adoção da acupuntura como alternativa à medicina convencional ocidental...........76
3.1 Medicinas não-convencionais: um fenômeno ocidental antigo..............................78
3.2 A tradução da acupuntura: do oriente imaginário dos jesuítas à acupuntura
energética francesa..................................................................................................80
3.3 Circunstâncias sócio-culturais da emergência das alternativas .............................86
3.3.1 As influências da estética da espontaneidade e da contracultura na
constituição de novas corporeidades........................................................87
3.3.2 A crise de sentido e a insurgência de religiosidades alternativas
no Ocidente............................................................................................89
3.3.3 Espiritualização do corpo: novas representações de corpo, saúde e
religiosidade como resistência à modernidade........................................91
3.3.4 A articulação das medicinas não-convencionais com dissidências da
psicanálise.................................................................................................94
3.3.5 Desumanização da medicina: a crise da medicina ocidental convencional
.................................................................................................................96
3.4 O êxito das medicinas alternativas..........................................................................98
4 O referencial holístico na adoção da acupuntura..........................................................105
4.1 O espectro semântico do termo holístico..............................................................107
4.2 Fontes inspiradoras das religiosidades alternativas e do ideário holístico............109
4.2.1 Heranças do séc. XIX: movimentos religiosos ocidentais e
religiosidades orientais...........................................................................111
4.2.2 Desenvolvimento da abordagem holística no séc. XX...........................113
4.3 Religiosidades alternativas: corpo, saúde e visão holística...................................117
4.3.1 Características das religiosidades alternativas........................................120
4.3.2 O corpo como veículo de salvação.........................................................121
4.4 Re-significação holística da saúde: acupuntura e cura energética........................124
4.5 A busca de legitimidade: aliança entre ciência e religião.....................................127
5 “Negócio da China”: a mundialização da acupuntura..................................................132
5.1 Prevenção: a nova ordem mundial na saúde.........................................................133
5.2 Religiosidades alternativas, novas corporeidades e ideologia do bem-estar........137
5.3 A legitimação da acupuntura como prática de saúde no final do séc. XX:
de alternativa à técnica auxiliar da medicina ocidental........................................141
PARTE III – ACUPUNTURA À BRASILEIRA...............................................................148
6 A transplantação da acupuntura para o contexto cultural brasileiro..........................149
6.1 As ondas de transplantação da acupuntura para o Brasil......................................152
6.1.1 Contato (1810-1957): medicina chinesa no contexto da imigração
asiática....................................................................................................155
6.1.2 Confronto (1958-1978): a acupuntura “energética” de Spaeth..............158
6.1.3 Adaptação (1979-1994): acupuntura como medicina alternativa.........160
6.1.3.1 O impacto do processo de legitimação da acupuntura e do
movimento alternativo no universo étnico tradicional............161
6.1.3.2 O contexto sócio-cultural da adoção da acupuntura na
década de 1980........................................................................164
6.1.3.3 A crise na saúde brasileira e a inclusão da acupuntura no
sistema público........................................................................166
6.1.4 Instrumentalização (a partir de 1995): acupuntura como ferramenta
complementar......................................................................................168
6.1.4.1 Acupuntura é “ato-médico”.....................................................171
6.1.4.2 A resistência não-médica: acupuntura é método energético
milenar.....................................................................................173
6.1.4.3 A construção da noção de acupuntura científica através da
imprensa escrita......................................................................175
6.2 A guerra das agulhas e a ambiguidade contemporânea:
acupuntura científica X acupuntura energética.....................................................176
7 Escolas de acupuntura: a institucionalização do saber não-médico.............................183
7.1 Uma tipologia das práticas de acupuntura no Brasil.............................................184
7.1.1 Tradicional...........................................................................................185
7.1.2 Holística...............................................................................................187
7.1.3 Instrumental.........................................................................................188
7.2 Uma tipologia das escolas de acupuntura no Brasil..............................................190
7.2.1 T -Tradicional......................................................................................193
7.2.2 H - Holística........................................................................................196
7.2.3 TH - Tradicional-holística...................................................................199
7.2.4 IH - Instrumental-holística..................................................................202
7.3 Análise dos dados coletados na pesquisa..............................................................204
7.4 O diálogo das escolas com a sociedade brasileira: as práticas ambulatoriais.......213
7.5 A invenção de novas técnicas...............................................................................215
7.6 Conclusões sobre a pesquisa.................................................................................220
CONCLUSÃO.......................................................................................................................225
REFERÊNCIAS....................................................................................................................233
ANEXO..................................................................................................................................244
13
APRESENTAÇÃO
Como uma prática terapêutica construída durante o processo histórico cultural da
China, ao longo de milênios, a acupuntura, ramo da medicina chinesa mais conhecido no
Ocidente, estava inserido num contexto cosmológico que identificava o ser humano em
relação com o universo e a sociedade em que vive, formando com eles um todo indivisível.
Na transplantação para países ocidentais, a acupuntura foi desvinculada da cosmologia taoísta
e passou por quase completa remodelação, adquirindo novas explicações teóricas e novos
formatos, muitas vezes restando apenas a inserção das agulhas.
A palavra acupuntura foi criada por jesuítas, no séc. XVII, para denominar a
terapêutica das agulhas. A tradução não se restringiu aos termos linguísticos, mas implicou
em re-interpretações de conceitos que não m correlação nas concepções ocidentais.
Podemos dizer, portanto, que a acupuntura é, por definição, uma reinvenção ocidental da arte
chinesa de inserir agulhas nos corpos para tratamento de saúde.
No decorrer do século XX, a acupuntura vem sendo reinventada de diferentes modos,
praticada de novos jeitos, com novos significados, em que os elementos mais explicitamente
religiosos (budistas e taoístas, por exemplo), fundamentais na formação das concepções
chinesas, muitas vezes são excluídos. Por outras vezes, no entanto, esses elementos são
deslocados para novos conjuntos simbólicos religiosos adequados ao momento
contemporâneo, como é o referencial holístico.
No processo de aproximação com o pensamento ocidental, antes de ser secularizada e
reduzida a uma técnica auxiliar eficaz, ou seja, reinventada como acupuntura científica ou
acupuntura médica, a terapêutica chinesa teve um importante papel no conjunto das chamadas
medicinas alternativas, oferecendo suporte teórico para novas concepções de corpo e saúde,
que vêm se popularizando nos meios ocidentais. Isso pode ser notado principalmente no
empréstimo de categorias e concepções para outras práticas alternativas, tais como: yin-yang,
circulação de Ch’i
1
no organismo e no Universo, correspondência entre macro e
microcosmos, corpo como unidade físico-psíquico-espiritual, etc. Essas idéias coadunam-se
perfeitamente às concepções das medicinas e terapias não-convencionais.
1
O conceito de Ch’i ou Qi será detalhado no segundo capítulo, no tópico sobre a racionalidade da medicina
chinesa clássica. Por enquanto, basta-nos saber que no Ocidente é traduzido como uma espécie de sopro ou
energia vital. Para facilitar a leitura utilizaremos termos “abrasileirados”, que são mais conhecidos fora do meio
terapêutico. Segue uma relação de correspondência entre os termos que serão utilizados nesse trabalho e a
correspondência no original em Pinyin: Ch’i = Qi; Tao = Dao; taoísmo = daoísmo; Tao Te Ching = Dao De Jing;
I Ching = Yi Jing; Tai Chi Chuan = Taijiquan; Chi Kung = Qigong.
14
A noção de corpo que extrapola o físico e abarca o energético emergiu mais
fortemente a partir das últimas décadas do séc. XX. Faz parte de um conjunto de crenças
holísticas, que pode ser entendido como a principal intersecção entre as novas formas de
religiosidades e os novos movimentos de saúde. No âmbito das novas religiosidades e novas
corporeidades constituintes do complexo alternativo, podemos dizer que a acupuntura foi
reinventada como medicina vibracional
2
ou medicina energética.
No Brasil, antes rotulada como medicina alternativa, e muitas vezes associada ao
público denominado “místico-esotérico”, a acupuntura atualmente ganhou status de ciência e
está sendo utilizada como técnica auxiliar de tratamento, tanto em consultórios médicos
particulares como na rede pública de saúde. Acompanhando o processo de legitimação na
sociedade brasileira, podemos perceber uma drástica modificação na postura da corporação
médica, que até cerca de trinta anos atrás combatia a acupuntura, considerada mágico-
religiosa ou até charlatanismo, e atualmente pretende restringir legalmente sua utilização por
profissionais sem formação em medicina. Essa mudança teve reflexos na sociedade brasileira
e contribuiu para a popularização de uma acupuntura reduzida a instrumento de combate às
dores.
O objetivo dessa dissertação é apresentar uma reconstrução do processo histórico de
transplantação da acupuntura para países ocidentais e da sua adoção na sociedade brasileira.
Partimos das seguintes indagações: em que medida a transformação da acupuntura em
procedimento científico teria impactado práticas anteriores que, sejam tradicionais ou
pautadas pela cultura holística do emaranhado alternativo, encontravam-se numa ordem
simbólica diferenciada do modelo biomédico? As práticas tradicionais e holísticas baseadas
em conjuntos simbólicos mágico-religiosos teriam desaparecido?
Interessava-nos compreender quais circunstâncias sócio-históricas favoreceram a
adoção da acupuntura e o que teria acontecido para que fosse repentinamente convertida em
procedimento científico, uma vez que a existência de corpos sutis e realidades não-ordinárias
são pressupostos fundamentais desse tipo de tratamento. Tínhamos por hipótese que as
práticas mágico-religiosas e as crenças holísticas ainda poderiam ser encontradas entre
acupunturistas “não-médicos”, apesar das novas explicações científicas para justificar a
eficácia das agulhas.
2
A denominação medicina vibracional vem sendo usada por alguns praticantes de medicinas alternativas
(acupunturistas, entre outros) por serem tratamentos baseados na canalização de energias naturais de cura
(MARTINS, 2000, p. 54). O termo também foi utilizado por Albanese (apud. AMARAL, 2000, p.67).
15
Assim, na tentativa de entender as transformações da acupuntura e sua situação no
mundo contemporâneo, faremos uma longa viagem da China Antiga até o Brasil, analisando
os modos como essa prática chinesa vem sendo reinventada nos paises ocidentais. Optamos
pela organização do trabalho em ordem cronológica. Examinamos a dinâmica das relações
entre Oriente e Ocidente do ponto de vista histórico, procurando observar quais elementos
foram preservados, modificados e descartados no processo de inserção dessa terapêutica
oriental na cultura brasileira.
Começaremos com a exposição do universo chinês, das peculiaridades do conjunto
cultural original da acupuntura e do processo histórico que levou à metamorfose da medicina
nesse país. Faz-se necessário esclarecer que a dificuldade para apontar datas e fatos históricos
da China é imensa, conforme foi sublinhado por diversos estudiosos (Granet, Unschuld,
J.Campbell, Eliade). A tradição chinesa é oral e a história desse povo é contada de outra
forma, por isso as datas não são precisas e variam conforme os autores. Não fatos e
registros confiáveis, nem mesmo entre os textos clássicos, que muitos foram escritos por
discípulos dos mestres. Sem falar da queima de livros, quando a dinastia Qing assumiu o
poder (213 a.C.), e das reformulações impostas pelo governo chinês aos seus pesquisadores
no último século.
Dentro desse quadro de incertezas que é a visão ocidental sobre o Oriente, nossa
referência de cultura chinesa antiga será o reconhecido sinólogo Marcel Granet, que deixou
uma reflexão antropológica aprofundada sobre a concepção de mundo chinesa, sobre a
organização social e os hábitos culturais derivados dela. Entre os poucos pesquisadores da
cultura chinesa sob a perspectiva da antropologia médica, destacamos Paul Unschuld que se
dedicou ao estudo da história do pensamento médico chinês e das condições sócio-políticas
que propiciaram o desenvolvimento das idéias sobre os cuidados com a saúde, centrais na
cultura chinesa.
Para demonstrar a metamorfose da medicina chinesa, além de Paul Unschuld,
utilizaremos publicações de autores brasileiros (Luz, Barsted, Jacques, Nogueira)
pesquisadores do “Projeto Racionalidades Médicas” (IMS-UERJ), que em seus estudos sobre
a realidade da acupuntura no Brasil percorreram esse árduo caminho de reconstrução das
idéias que compunham o conjunto simbólico da racionalidade chinesa clássica e suas
divergências com a racionalidade médica ocidental. Com o auxílio dessa literatura,
procuraremos entender a formação dos vários sistemas terapêuticos que resultaram na
medicina chinesa contemporânea, bem como o processo de racionalização dos conceitos
básicos da medicina tradicional no contato com a cultura ocidental.
16
Na segunda parte, analisaremos o processo histórico de adoção da acupuntura no
Ocidente e discutiremos o fenômeno das medicinas alternativas, principalmente a partir de
dos estudos de Laplantine e Rabeyron sobre o caso francês, e de Paulo Henrique Martins e
Madel Luz, sobre o caso brasileiro. Também examinaremos a relação das medicinas não-
convencionais com a cosmovisão holística, com as religiosidades orientais e com novas
formas de religiosidades não institucionais. A adesão às novas religiosidades colaborou para a
constituição de um mercado “alternativo” de cura. Para entendermos essas relações,
utilizaremos principalmente as idéias de Françoise Champion, entre rios outros autores da
sociologia da religião, dedicados ao estudo dos novos movimentos religiosos.
Na terceira parte, abordaremos o processo histórico da transplantação da acupuntura
para o Brasil, as dificuldades para alcançar a legitimação, os conflitos e interesses políticos
que estão em jogo, e a situação atual da regulamentação da prática no país. Adaptaremos os
modelos analíticos de Baumann e Usarski para delimitar ondas históricas de transplantação. A
exposição do histórico brasileiro será baseada em pesquisas realizadas no IMS-UERJ (Luz,
Nascimento, Nogueira), sobre a utilização da acupuntura por médicos da cidade do Rio de
Janeiro e a implantação na rede pública de saúde. Também serão utilizados dados recolhidos
na Internet.
Apresentaremos ainda nossa pesquisa empírica, realizada em escolas de acupuntura da
cidade de São Paulo. Constatamos a existência de diferentes modalidades de acupuntura
praticadas na metrópole paulistana, onde convivem imigrações asiáticas (chinesa, coreana e
japonesa), público alternativo e Nova Era, bem como pesquisas científicas de ponta sobre a
eficácia da acupuntura. A pesquisa resultou na construção de duas tipologias: de práticas e de
escolas de acupuntura no Brasil. Finalizando, analisaremos a intervenção ambulatorial no
espaço das escolas e a invenção de técnicas, a partir das novas concepções de energia, do que
é acupuntura e de como funciona, especialmente no meio holístico.
Esperamos com isso contribuir para uma visão menos distorcida da prática de
acupuntura no Brasil, e para a melhor compreensão da relação entre as alterações no campo
religioso e o fenômeno da transplantação de práticas orientais de saúde para contextos
ocidentais.
17
PARTE I
A METAMORFOSE DA MEDICINA CHINESA
18
1 A medicina no contexto histórico-cultural da China
Nossos estudiosos não compreendem a ciência; assim fazem uso dosmbolos
“yin-yang” e crenças nos cinco elementos para confundir o mundo (....). Nossos
médicos não compreendem a ciência: nada sabem sobre anatomia humana, mas
também nada sabem da análise médica; quanto ao envenenamento bacterial e
infecções, nunca ouviram falar disso (...). O ápice de suas ilusões delirantes é a teoria
do Qi que, na verdade, aplica-se mais aos acrobatas e aos sacerdotes taoístas. Nós
nunca compreenderemos esse tal de Qi, mesmo que o procurássemos por toda parte no
universo. Todas essas noções imaginárias e crenças irracionais devem ser corrigidas
na sua raiz pela ciência, porque para explicar a verdade pela ciência temos que provar
tudo pelos fatos.
Chen Duxiu, então futuro primeiro secretário geral do Partido
Comunista Chinês, em 1919 (BARSTED, 2003, p. 9).
Nosso objetivo nesse primeiro capítulo se explorar o universo chinês antigo e os
fundamentos básicos dessa civilização acompanhando o processo histórico de transformação
das idéias que resultou na modernização da medicina chinesa e na exportação da acupuntura
secularizada para o Ocidente. Uma segunda preocupação nesse momento é apresentar a
diversidade dos sistemas terapêuticos que compuseram a medicina chinesa (terapias
oraculares, medicina dos espíritos, xamanismo, medicina budista, cura taoísta, alquimia,
farmacologia, etc) em contraste com o os conceitos científicos que estão fundamentando a
prática da acupuntura na contemporaneidade, seja na China, seja no Ocidente. Pretendemos
deixar evidente que a imagem de acupuntura tradicional restrita às teorias da correspondência
sistemática foi uma construção ocidental, uma vez que na China esse não é o único sistema
utilizado, e nenhum sistema médico é “puro”, pois o hibridismo é quase uma regra no meio
chinês.
Como veremos, a pluralidade é uma característica marcante da cultura chinesa, por
isso não podemos falar em medicina como um único sistema cultural, uma vez que
concepções surgidas em diferentes momentos históricos convivem sem substituição de um
antigo conceito por um novo. São vários sistemas “parcialmente sobrepostos, parcialmente
antagônicos, mas todos representativos da medicina chinesa” (UNSCHULD, 1985, p. 4).
Contudo, abstraindo a variabilidade e o intenso hibridismo característicos dos sistemas
terapêuticos chineses, é possível identificar um núcleo de idéias que fundamentaram a cultura
chinesa de um modo geral, pelo menos desde a dinastia Shang (1500 a.C.), estruturando a
organização social, as crenças, o comportamento, a conduta, a medicina, e que podem ser
percebidas em diversas escolas de pensamento, independentemente do momento histórico, até
a proclamação da República no início do século XX. Exemplos disso são os princípios básicos
de totalidade, manifesta em movimento contínuo de alternância das bipolaridades yin-yang.
19
Essas noções se perdem na pré-história da China e formam um núcleo permanente, embora
reinterpretado de acordo com o contexto histórico. Assim, os cuidados com a saúde na cultura
chinesa adquirem um sentido específico relacionado àquela particular visão de mundo.
Nas diferenças entre a cosmovisão chinesa antiga e a ocidental percebe-se um abismo
cultural, pois são diferentes modos de apreensão da realidade. Do ponto de vista ocidental
etnocêntrico e evolucionista, a medicina chinesa clássica pode parecer atrasada ou primitiva,
uma vez que seus conceitos são derivados de noções consideradas irracionais
3
que não se
conciliam com o pensamento científico moderno. Mas na China desenvolveu-se um outro
modo de ser e pensar o mundo, uma lógica inconcebível para os ocidentais que torna
complexa qualquer tentativa de tradução.
A ampla divulgação da acupuntura junto ao grande público como um tratamento de
eficácia comprovada cientificamente oculta a radical transfiguração dos conceitos teóricos
que fundamentam a medicina chinesa. A ocidentalização da medicina na China representou a
fragmentação de um conjunto simbólico construído durante a milenar história dessa nação,
que não distinguia ciência de outros tipos de saberes. Conhecendo um pouco mais da cultura e
religiosidades chinesas, poderemos verificar as re-significações que a prática de acupuntura
sofreu em sua transposição para o Ocidente e na cientifização da medicina imposta pelo
Estado chinês no século passado.
1.1 Cosmovisão chinesa: integração céu-homem-terra
(...) O macrocosmo e os microcosmos comprazem-se igualmente em conservar
hábitos veneráveis. O universo não passa de um sistema de comportamentos, e os
comportamentos do espírito não se distinguem dos comportamentos da matéria. Não
se estabelece distinção entre matéria e espírito. A noção de alma, a idéia de uma
essência inteiramente espiritual e que se oporia ao corpo e ao conjunto dos corpos
materiais, é absolutamente alheia ao pensamento chinês (GRANET, 2004, p. 239).
O mundo chinês é uma totalidade em que tudo está interligado pela lei de
correspondência entre macro e microcosmos, não separações. A cosmovisão chinesa é
monista e é também holista, pois está baseada na predominância da unidade do todo sobre as
partes. Por outro lado, essa totalidade manifesta-se sempre como dualidade, de modo bipolar,
em opostos complementares yin-yang. As categorias yin-yang são relativas à cada
circunstância específica, não podendo ser cristalizadas, pois yin transforma-se em yang e
3
Lembramos que as categorias dicotômicas racional / irracional, natural / sobrenatural, objetivo / subjetivo, são
intrínsecas ao pensamento ocidental, não são relevantes na composição da cultura chinesa até a intensificação do
contato com o Ocidente.
20
vice-versa. A alternância yin-yang produz um movimento rítmico que rege o universo, a
natureza e a humanidade. Portanto a totalidade chinesa não é absoluta, é relativa, está em
constante movimento de transmutação em fases cíclicas.
Além das concepções de totalidade e movimento, relatadas acima, Granet (2004, p.
25) aponta duas outras categorias essenciais na construção da cosmovisão chinesa que são:
ordem e eficácia realizadora. A integração entre céu e terra equivale à ordem e harmonia no
mundo e depende da ação humana. Tomando o céu (yang) como representante do cosmos e a
terra (yin) como representante da natureza, a atitude humana determinará a ordem ou a
desarmonia no mundo, dependendo de seguir ou não os princípios universais de yin-yang e
fases de transformação.
É nesse sentido que a humanidade é mediadora da relação céu e terra, a função do ser
humano é a ordenação de todas as atividades sociais de acordo com os ciclos de
transformações naturais que seguem os ritmos cósmicos. O papel da humanidade era a
manutenção da harmonia do universo mediante a sincronização entre o ritmo social e os ciclos
da natureza (estações do ano). Essa tarefa de colocar ordem no mundo era realizada através da
correspondência entre as categorias simbólicas. Esse seria “o caminho do céu ao qual
corresponde, na Terra, o caminho do homem”, nas palavras do sinólogo Wilhelm (1995, p.
127).
Essas noções de totalidade, ordem, movimento e transformação (ou mutação)
refletem-se em todos os aspectos da vida chinesa, constituindo-se num modelo de conduta
social (GRANET, 2004) que rege o pensamento chinês. Granet (2004, p. 253) observou que
na cosmovisão chinesa:
O homem deve tudo à civilização: deve-lhe o equilíbrio, a saúde, a qualidade
de seu ser. Os chineses jamais consideram o homem isolando-o da sociedade; e nunca
isolam a sociedade da natureza. Não pensam em colocar acima das realidades vulgares
um mundo de essências puramente espirituais; tampouco pensam, para ampliar a
dignidade humana, em atribuir ao homem uma alma distinta de seu corpo. A natureza
compõe um reino. Uma ordem única que rege a vida universal: trata-se da ordem
que a civilização lhe imprime (GRANET, 2004, p. 253)
.
O universo chinês é concebido como uma totalidade, composta por micro mundos
inter-relacionados, dentre eles os seres humanos, guiados pelo movimento ritmado e
ordenador que alterna yin e yang. As idéias de universalidade e relação de interdependência
entre partes e todo estão presentes em diversas correntes do pensamento chinês e são mantidas
desde a antiguidade, atravessando o longo processo histórico. A idéia de separação não faz
sentido porque a ordem cósmica depende da organização social, que deve refletir e influenciar
21
o universo. A ação humana é mais importante que o sobrenatural ou transcendente, que,
segundo Granet, não é sobrevalorizado, pois é parte do mundo cotidiano.
1.1.1 Características do pensamento chinês
As crenças que predominaram na China estão relacionadas principalmente aos cultos
aos ancestrais, à existência de fantasmas e demônios, à integração da humanidade com a
natureza (terra) e com o cosmos (céu) - proposta pelo Taoísmo - e ao desenvolvimento da
virtude e do modo de agir correto - propostos pelo Confucionismo. Na religiosidade chinesa, a
humanidade, os espíritos e as divindades convivem naturalmente no cotidiano. Por muitos
séculos não parece ter havido necessidade de organização religiosa eclesiástica; instituições,
templos e hierarquias sacerdotais surgiram somente após a chegada do budismo no séc. I d.C.
Na opinião de Granet, os fantasmas, demônios e espíritos antepassados não chegavam
a inspirar nos chineses o mesmo terror que causam nas religiões ocidentais, pois podiam ser
imediatamente afastados pelos ritos, ou seja, pela ação simbólica que pode manipular o
sobrenatural. Para o autor: “os chineses adotam em relação ao sagrado (quando não se
empenham em eliminá-lo do pensamento) uma atitude de tranqüila familiaridade” (GRANET,
2004, p. 352). Os chineses teriam uma certa obsessão pela ação ritualística porque ela pode
devolver a ordem ao mundo concreto ou prevenir a desordem futura.
Ainda que revestidas de personalidades humanas, as divindades chinesas eram
adoradas enquanto princípios cósmicos (por exemplo, o Rei de Jade que representa o Tao). A
idéia mais próxima de “santidade” é a sabedoria alcançada com desenvolvimento de virtude,
cuja noção não se confundia com bem e mal, era uma “sugestão de comportamentos a seguir,
que convence mais pelo prestígio das atitudes” (GRANET, 2004, p. 239). A sabedoria
chinesa, essencialmente humana, propõe modelos exemplares de conduta que representam a
harmonia cósmica. Os deuses chineses não seriam capazes de eximir a humanidade da sua
própria tarefa no mundo (GRANET, 2004, p. 352).
No nosso modo de entender, descrevendo a religiosidade chinesa Granet denota certa
ambigüidade, pois, se por um lado demonstra que o sobrenatural não é alheio ao cotidiano,
estando diluído em todas as atividades, por outro parece diminuir a importância da
religiosidade na vida social chinesa. Nas palavras do autor:
Muitas vezes se disse que os chineses não tinham religião, e vez por outra se
ensinou que sua mitologia era, por assim dizer, inexistente. A verdade é que, na China,
a religião, tal qual o direito, não era uma função diferenciada da vida social. (...) O
sentimento do sagrado desempenha um grande papel na vida chinesa, mas os objetos
22
de veneração não são deuses (no sentido estrito). Criação erudita da mitologia política,
o Soberano do Alto tem apenas existência literária. Esse patrono dinástico, cantado
pelos poetas da corte real, nunca deve ter gozado de grande crédito junto à plebe. (...)
Nem os taoístas nem os confucionistas lhe têm a menor consideração. Para eles, os
únicos seres sagrados são os santos ou os sábios. Para o povo eram os magos, os
inventores e os chefes. (...) Mal se chega a encontrar algum vestígio, nas crenças
populares, de um animismo inconsciente. Acredita-se em fantasmas nos espíritos dos
mortos, em demônios vingativos e em toda sorte de duendes: em certos momentos eles
podem inspirar terror, mas este é afastado com uns poucos exorcismos (...) O
pensamento não é ocupado por deuses: o corpo de fiéis de cada um deles é restrito e
sua existência é local, momentânea: passada a festa acabou-se o deus (GRANET,
2004, p. 351-352).
Granet procurava destacar a existência de uma lógica subjacente à cultura e
religiosidade chinesa que impedisse comparações hierárquicas com outras culturas. Como
religião e magia eram consideradas atrasadas em relação à ciência ocidental, e por escrever
em uma época em que a civilização chinesa era considerada por alguns sinólogos
4
uma etapa
menos evoluída da ocidental, possivelmente Granet evidenciava o lado “desencantado”
chinês, a requintada visão de mundo, mais do que as crenças sobrenaturais e as práticas
mágico-religiosas populares ritualizadas no cotidiano, porque isso poderia qualificar os
chineses como um povo místico.
É difícil acreditar, no entanto, que o aprimorado pensamento filosófico secularizado
desenvolvido pelas elites intelectuais taoístas e confucionistas tenha alcançado as massas
populares rurais chinesas de um modo mais amplo. Mesmo assim, seria um erro classificar as
concepções chinesas do ponto de vista das categorias construídas no Ocidente, tais como
magia e religião. Fugiria ao propósito do nosso trabalho discutir as várias definições de
religião e magia das ciências sociais. De maneira muito simplificada, podemos entender que a
religião envolveria a crença em uma entidade superior, portanto alienada do mundo humano,
mas que poderia interferir concretamente mediante uma atitude ética consoante aos valores
morais que a divindade estabelece. A magia pressuporia uma capacidade humana de interferir
no mundo concreto através de ações sobrenaturais, porém de modo autônomo, que depende
mais da vontade humana do que da interferência divina, que poderia ser manipulada pela ação
mágica. Ciência, por sua vez, na concepção ocidental seria um método objetivo de
investigação e comprovação de hipóteses.
4
Por exemplo, Chavannes é citado por Granet (2004, p. 136) por causa da insistência em procurar influências
ocidentais nas invenções chinesas e afirmar que os chineses não seriam capazes de maior desenvolvimento
tecnológico. Granet condenava esse tipo de atitude que colocava a ciência ocidental como a mais alta etapa
evolutiva ainda por ser alcançada pela precária ciência chinesa.
23
Sublinhamos apenas que essas distinções e definições não se aplicam à cultura chinesa
tradicional; essas fronteiras não existiam antes do contato com o Ocidente. Muito embora a
civilização chinesa tenha desenvolvido avançado conhecimento tecnológico (arquitetura,
astronomia, cavalaria, medicina, etc) e vários conjuntos de crenças e rituais religiosos
coexistentes ainda hoje (deus celestial, antepassados, demônios, imperadores, sábios e Tao),
no caso chinês não poderíamos falar separadamente em “ciência”, “magia”, “religião”, “arte”,
“filosofia”, pois todos esses saberes estão agrupados no cotidiano chinês como uma coisa só.
Assim, quando afirmarmos que a medicina chinesa antiga era parte de um sistema
mágico-religioso, queremos dizer com isso que sua metodologia não se coaduna com o
método científico moderno, uma vez que suas teorias baseiam-se na correspondência
simbólica e na existência de fenômenos que são irracionais segundo os critérios ocidentais.
Ou seja, quando utilizarmos as categorias “mágico-religioso” ou “irracional” ou
“sobrenatural”, estaremos nos referindo a uma oposição ao método científico consolidado
após a modernidade, mas não aqui nenhuma intenção de hierarquizar esses diferentes
saberes.
Analisando a civilização chinesa, Granet concluiu que o pensamento chinês não é
especulativo, mas orientado para a prática das ações concretas no mundo. Haveria mesmo um
certo desprezo pelas formas analíticas (GRANET, 2004, p. 23). A cultura chinesa privilegia o
símbolo, a metáfora e a analogia como ferramentas de comunicação. A palavra falada ou
escrita adquire extrema importância por ser equivalente à uma ação educativa. A linguagem
chinesa é considerada monossilábica e figurativa, as sílabas (os ideogramas) são símbolos que
evocam uma série de imagens ou pinturas vocais. Quando as sílabas são conjugadas formando
ideogramas complexos, surgem novos conjuntos simbólicos. Os ideogramas ou sílabas
possuem vários significados, dependendo da entoação vocal, da mímica e do contexto
(GRANET, 2004).
Como o significado das palavras é dado através do som (o sopro), a linguagem
também se insere no sistema de classificação chinês através da correspondência entre notas
musicais, yin-yang e fases de transformação (madeira, fogo, terra, metal, água). As palavras
causam impacto sentimental, não servem apenas à comunicação direta, mas indicam atitudes.
São sugestões de conduta. De acordo com Granet: “a palavra chinesa é viva e faz parte de
uma tradição oral e pragmática de ensino” (GRANET, 2004, p. 23). A prosa e a poesia são
muito próximas e estão imbuídas de ritmo; a música tem o poder de ordenar.
24
Não há, na concepção chinesa, necessidade de buscar as causas e origens, é suficiente
realizar a ordenação mediante o arranjo dos símbolos. As noções ocidentais de causa e efeito
são substituídas por outras noções como as de avesso e direito ou yin-yang (GRANET, 2004).
Como observou Granet:
Os filósofos chineses de todas as escolas nunca deixaram de pensar que o
sistema nacional de símbolos, fruto de uma longa tradição de sabedoria, só poderia ser
em seu conjunto, ao mesmo tempo adequado e eficaz: o que equivale a dizer que
professavam em relação a ele a confiança que nos inspira, no Ocidente, a razão
(GRANET, 2004, p. 26).
1.1.2 Céu: totalidade e ordem cósmica
Na cosmovisão chinesa antiga o universo era um ovo cósmico. O tempo e o espaço
eram categorias concretas e interligadas que correspondiam a yang e yin, luz e sombra,
masculino e feminino, céu e terra, e que constituíam a totalidade chamada de Tao. Na
cosmologia taoísta, que embasou a cultura chinesa a partir do séc. VI a.C, não existe definição
possível para o Tao. É o tudo e o nada, o vazio e o todo, sempre esteve e sempre estará. Ao
mesmo tempo é o princípio, o processo e o fim. Muitas vezes é traduzido como caminho ou
via. O Tao em estado latente é o Céu Anterior - o caos primordial, atemporal e dinâmico - que
enquanto potencialidade está na origem de tudo (CHERNG, 2006, p. 14). O Céu Posterior é o
estado de manifestação do Tao no mundo, tanto nas coisas concretas como nas abstratas.
Nos microcosmos o Tao se manifesta pela tensão entre as polaridades complementares
yin e yang, que, lembramos mais uma vez, não são absolutos, um existe em relação ao
outro. O Tai Chi (figura 1) é a linha divisória entre yin e yang, o eixo da manifestação que
transcende a dualidade e que equivale ao momento da fecundação do universo. Da relação
yin-yang surgem as cinco fases de transformações
5
(fogo, terra, metal, água, madeira) que
originam o mundo concreto (10.000 seres ou 10.000 coisas). O Tao é uma força criativa
presente em todas as suas manifestações, que não pode ser observável diretamente, mas pode
ser constatado por seu efeito ou resultado na realidade palpável. O Tao é transcendente e
imanente ao mesmo tempo, não existe separação entre criador e mundo.
5
As cinco fases também são chamadas Wu xing (5 elementos). Xing pode ser traduzido como elemento e
também como caminho ou via. Então os assim traduzidos 5 elementos seriam 5 vias, 5 caminhos ou 5 formas da
totalidade denominada Wu xing (GRANET,2004, p. 191).
25
Figura 1 - Representação da união entre yang e yin (Tai Chi)
A relação entre yin-yang é regida por um movimento rítmico de alternância em que
ora predomina yin, ora predomina yang, mas nenhum deles se extingue totalmente. Cada
polaridade engendra o surgimento da polaridade oposta. Isso é representado pelo ponto branco
em yin e pelo ponto preto em yang. Tudo no universo está em constante mutação, o
movimento cósmico é uma transformação ininterrupta de yin em yang e vice-versa, passando
por fases cíclicas a exemplo da natureza na qual tudo nasce, cresce, morre, renasce.
Marcel Granet afirma que na cosmogonia chinesa o Tao não é a “causa primária”, pois
“nada se cria no mundo, e o mundo não foi criado” (GRANET, 2004, p. 207). O universo
chinês é um conjunto de articulações harmoniosas e o Tao é o emblema que evoca, além da
totalidade, um centro de responsabilidade. O Tao refere-se ao movimento de alternância e
mutação entre yin e yang, que produz um ritmo ou sinfonia cósmica que domina a ordenação
do mundo. O emblema do Tao representa o maestro ou regente responsável pela
harmonização das polaridades contrastantes (GRANET, 2004, p. 203). Para Granet, o Tao é o
eixo de circulação:
O Tao tornou-se emblema de uma ordem soberana depois de haver
representado, inicialmente o eixo mastro ou gnômon em torno do qual giram a
sombra e a luz. (...) O Tao é um total constituído por dois aspectos (yin-yang) que, por
sua vez, também são totais, pois substituem inteiramente um ao outro. O Tao não é a
soma deles, mas o regulador de sua alternância. (...) A mesma totalidade acha-se em
cada uma das aparências, e todos os contrastes são imaginados segundo o modelo da
oposição alternada entre luz e sombra. Acima das categorias yin e yang, o Tao
desempenha o papel de uma categoria suprema, que é a um tempo a categoria de
poder, total e ordem. Exerce o papel de um poder regulador. Não cria os seres: faz
com que eles sejam como são. Rege o ritmo das coisas. Toda realidade é definida por
sua posição no tempo e no espaço; em toda realidade está o Tao; e o Tao é o ritmo do
espaço-tempo (GRANET, 2004, p. 203).
Embora concepções básicas da cultura chinesa – tais como Tao, classificação em
yin/yang e cinco fases - tenham sido sistematizadas entre IV e III a.C., após o surgimento do
confucionismo e taoísmo, Marcel Granet demonstra que essas idéias estavam implícitas nas
26
estruturas sociais do mundo chinês antigo (cerca de 1500 a.C.). Principalmente as noções de
totalidade, de correspondência entre macrocosmo e microcosmos, de movimento rítmico de
transformação análogo ao deslocamento do rei no tempo e espaço, e de Tao como centro
regulador, representado pelo soberano.
1.1.3 Terra: o movimento de transformação da natureza
A Terra, mais precisamente a China, era representada como uma base quadrada (terra,
espaço, quadrado) unida a uma cúpula (céu, tempo, redondo). Imaginava-se que às margens
desses quatro lados havia quatro espécies de bárbaros, em regiões onde também moravam
gênios e bestas. O teto das habitações era arredondado (céu sobre a terra), pois todas as casas
eram representações do mundo.
A concepção chinesa combinou o movimento de rotação da terra, que produz a
alternância luz e sombra (yang-yin), com o movimento de translação, representado pelas
diferentes fases climáticas, em um mesmo movimento de transformação ou mutação contínua
da natureza e do cosmos. Assim a mutação yin-yang é subdivida em fases (figura 2), ou
movimentos de transformação, que foram relacionados às estações primavera, verão, outono e
inverno e aos elementos madeira, fogo, metal, água. A fase do elemento terra, associado ao
centro, seria um período de repouso
6
.
Essa combinação gerou um sistema de classificação por representações simbólicas que
atribuem qualidades ao mundo concreto. Todas as coisas e todos os fenômenos encontram
correspondência nesse sistema combinatório entre yin-yang e as 5 fases ou 5 elementos,
exemplificado pelas tabelas a seguir (figura 3 e 4).
6
Na literatura consultada a localização desse período é controversa, alguns defendem que a estação da terra, que
é a da umidade e das chuvas, esteja distribuída durante o ano todo, nos períodos finais de cada estação. Outros
dizem que é o período final do verão, antes do início de outono. É importante lembrar que isso tem reflexos na
medicina chinesa, uma vez que em cada estação a circulação de Ch’i é mais intensa em determinado elemento,
conferindo um desequilíbrio natural ao organismo, com tendência ao excesso ou predominância de uma área
específica. Por exemplo, no outono são comuns os distúrbios respiratórios e essa estação está relacionada ao
elemento metal, que rege o pulmão; no período do elemento terra são as funções digestivas que estariam mais
sobrecarregadas.
27
Figura 2 – O caminho aparente do sol
Figura 3 – Exemplos de polaridades Yin – Yang
Yin Yang Yin Yang
Sombra Luz Frio Calor
Terra Céu Direita Esquerda
Noite Dia Inverno Verão
Escuro Claro Água Fogo
Feminino Masculino Ascendente Descendente
Quadrado Redondo Baixo Alto
Espaço Tempo Lua Sol
Figura 4 - Wu xing - classificação em cinco fases ou elementos (GRANET, 2004:231-236).
Energias da terra Madeira Fogo Terra Metal Água
Energias do Céu Vento Calor Umidade Secura Frio
Estações do ano Primavera Verão 5ª estação Outono Inverno
Pontos cardeais Leste Sul Centro Oeste Norte
Números 3 / 8 2 / 7 5 4 / 9 1 / 6
Cores Verde Vermelho Amarelo Branco Preto
Classes de animais De escamas De plumas De pele nua De pelos Cascos duros
Emblemas Estrelas Sol Terra Casas Lua
Notas musicais Kio Zhi Khong Chang Yu
Protetores da casa Porta interna Lareira Pátio central Portão principal
Alameda, poço
Alimentos vegetais Trigo Feijão Milho miúdo
branco
Sementes
oleaginosas
Milho miúdo
amarelo
Animais domésticos Carneiro Frango Boi Cão Porco
28
1.1.4 Humanidade: correspondência simbólica e eficácia realizadora
Na China antiga tempo (céu-yang) e espaço (terra-yin) eram marcados ritualmente. Os
ritos acompanhavam o ritmo da natureza e seguiam um complexo calendário móvel
7
. O
palácio real (Ming Tang) era construído à imagem do Lo shu ou quadrado mágico (figura 5),
composto por nove salas equivalente às nove regiões do país
8
. O rei deslocava-se pelo palácio
de acordo com o calendário e segundo a correspondência entre os números das salas, as
estações do ano e os pontos cardeais. Percorrendo as salas ele percorria simbolicamente as
regiões do país. Era guardado um período para o recolhimento, quando o rei se instalava na
sala central do palácio e os ritos eram suspensos. Através dos ritos, o espaço se relacionava
com o tempo cíclico, representando a união entre yang-yin (tempo-espaço, céu-terra),
intermediada pela humanidade na figura do soberano. O palácio ritual (Ming Tang)
simbolizava o centro do mundo e o rei era o eixo de ligação entre o céu e a terra. A virtude do
rei regulava a vida cósmica (GRANET, 2004).
Figura 5 O Lo shu ou quadrado mágico, ao qual correspondia o palácio real
(GRANET,2004, p. 119)
4 9 2
3 5 7
8 1 6
Os chineses antigos utilizavam um complexo sistema simbólico, tomando por base um
diagrama mítico no qual associavam números, estações do ano, pontos cardeais, e os
elementos madeira, fogo, terra, metal e água. Números, notas musicais, elementos, sabores,
cores, são todos emblemas relacionados às rubricas mestras de classificação (yin-yang e
madeira, fogo, terra, metal, água). Os emblemas evocam símbolos que estão inseridos numa
ordem sistêmica global. Espaço, tempo, sociedade, indivíduo, natureza, cosmos, tudo é
ordenado através da correspondência entre símbolos, aos quais, pela simples ordenação,
foram conferidos poderes de eficácia realizadora. Isso se reflete na linguagem, nas estruturas
7
Lembramos que o calendário tradicional chinês é luni-solar e variável, renovado anualmente conforme ciclos
astrológicos que conferem a cada ano características específicas. Essa variação anual seguia um ciclo
quinquenial, em que o ano solar era dividido em 366 dias e o ano religioso em 360. O ano tinha 6 meses de 29
dias e 6 meses de 30 dias, os dias eram divididos em 12 horas. Os primeiros 12 dias do ano representavam o ano
todo, por isso esse período era reservado para a realização de celebrações rituais (GRANET, 2004, p. 77-78).
8
De acordo com a mitologia chinesa o quadrado mágico teria aparecido para um dos imperadores no casco de
uma tartaruga.
29
sociais, nos costumes, nas habitações, na organização dos ritos e das festas, no calendário e
nas atividades humanas. De acordo com Granet, a classificação do mundo em emblemas ou
símbolos é uma espécie de etiqueta para os chineses:
A representação que os chineses têm do universo repousa numa teoria do
microcosmo. Esta se liga às primeiras tentativas de classificação do pensamento
chinês. Deriva de uma crença extremamente arraigada: o homem e a natureza não
constituem dois reinos separados, mas uma única sociedade. É esse o princípio das
diversas técnicas que regulamentam as atitudes humanas. A Ordem universal se
realiza graças a uma participação ativa dos seres humanos e como efeito de uma
espécie de disciplina civilizatória. Em lugar de uma ciência que tivesse por objetivo o
conhecimento do mundo, os chineses conceberam uma etiqueta de vida, que eles
supõem suficientemente eficaz para instaurar uma Ordem Total. A categoria da Ordem
ou da Totalidade é a categoria suprema do pensamento chinês: tem como mbolo o
Tao, emblema essencialmente concreto. (GRANET, 2004, p. 24)
A conformação do corpo humano segue o mesmo modelo de universo e de princípio
de correspondência simbólica que estabelece reciprocidade entre natureza e sociedade, entre
físico, moral e espiritual, através do compartilhamento de um mesmo ritmo cósmico
(GRANET, 2004, p. 231). Matéria e espírito, corpo e alma, natural e social, não são
diferenciados, distinguem-se apenas planos mais sutis dos mais grosseiros (GRANET, 2004,
p. 238). O corpo humano também está sujeito às leis que regem yin-yang e as fases de
transformação no mundo. Colocar ordem no corpo faz parte da etiqueta e equivale a colocar
ordem no universo, conforme sublinhou Granet:
A fisiologia e a higiene ou a moral confundem-se com a física ou melhor
com a história, isto é, com a arte do calendário; a anatomia e a psicologia ou a lógica
se confundem com a cosmografia, a geografia ou a política; e o essencial na política é
a arte posteriormente denominada de geomancia (feng shui)– graças à qual os
chineses pretenderam ordenar o mundo, aplicando-lhe seu sistema de classificações,
isto é, as regras de sua morfologia social. Geomancia e calendário, morfologia e
fisiologia comuns ao macrocosmo e ao microcosmo, esse é o saber total e única regra.
(...) Qualquer ser seria rebelde e fomentador de desordem se infringisse as mínimas
prescrições da etiqueta. (...) É graças a ela que se realiza a ordem do universo. Ela
deve comandar cada gesto e cada atitude dos seres, pequenos e grandes (GRANET,
2004, p. 238).
1.1.5 Principais correntes do pensamento chinês: taoísmo e confucionismo
O taoísmo e o confucionismo são escolas de pensamento que forneceram as noções
básicas da medicina chinesa, de corpo, de adoecimento, de comportamento voltado para a
manutenção da saúde, e os principais conceitos de correspondência simbólica aceitos
oficialmente até início do séc. XX. Tanto no taoísmo do período anterior à unificação da
China (206 a.C.), quanto no confucionismo, não dogmatismo, nem metafísica
30
propriamente dita. Propõem modelos de sabedoria, receitas práticas de procedimento no
mundo e descrições de quais atitudes corretas contribuem para o equilíbrio entre homem,
natureza, meio social e cosmos, visando organizar o universo e a sociedade. As seitas e
escolas, taoístas e confucionistas, somente estruturaram um conhecimento que já estava
presente desde a dinastia Shang (1500 a.C.) com algumas modificações.
A diferença entre taoísmo e confucionismo está principalmente no meio para alcançar
a ordem, mas ambos perseguem o objetivo da ordem e da totalidade: para os taoístas a ordem
está na natureza, para o confucionismo a ordem vem da sociedade. Se por um lado o taoísmo
apresentava indiferença ao mundo, por outro lado o confucionismo pretendia reformá-lo.
Poderíamos resumir isso nas seguintes palavras-chaves: o taoísmo está para jogo, autonomia e
natureza; enquanto o confucionismo está para rito, hierarquia e sociedade. Ou seja, seriam
“opostos complementares” como natureza e sociedade, como yin-yang.
Tanto no taoísmo antigo quanto no confucionismo, o sobrenatural pode existir, porém
não possui extrema importância, o principal é o poder humano de modelar o mundo
(GRANET, 2004). O taoísmo é marcadamente mais religioso e mágico, mas, conforme
Granet, não exatamente deuses transcendentes, mesmo no taoísmo místico
institucionalizado os sábios e imperadores (humanos, portanto) é que o venerados como
divindades.
Taoísmo e confucionismo enfatizam o auto-aperfeiçoamento: o autodomínio é o
domínio do universo, dominando-se o micro domina-se o macro. Segundo Granet:
(...) os taoístas insistem no valor da autonomia, os confucionistas no da
hierarquia; mas o ideal a Idade Áurea, o Reino da Sabedoria que eles tencionam
efetivar é sempre um ideal de entendimento entre os homens e entendimento com a
natureza (GRANET, 2004, p. 353).
1.1.5.1 Taoísmo: a ordem vem da natureza
A partir de 400 a.C., aproximadamente, surgiu um movimento que pregava o retorno à
natureza, o isolamento nas montanhas e florestas, a contemplação e a prática de cnicas
corporais que auxiliassem o desenvolvimento interior. Foi uma reação subversiva contra a
corrupção dos governos tirânicos que se estabeleciam na época, por isso os seguidores dessa
doutrina eram perseguidos. Para esse movimento os valores sociais, como busca de fama e
fortuna, eram incompatíveis com o cultivo de um ideal de sabedoria e com as metas taoístas
de saúde e longevidade. Preferiam a vida simples e o anonimato à vida no meio da
civilização. Nas palavras de Granet, “os taoístas eram amigos dos homens, mas zombavam de
31
suas obras” (GRANET, 2004, p. 303). Os efeitos da sociedade seriam nocivos, pois
impediriam o ritmo natural da vida (GRANET, 2004, p. 310).
Como a cultura chinesa era basicamente agrária, as metáforas taoístas o extraídas
dos movimentos cíclicos da vegetação, do fluxo das águas e do som produzido pelo ritmo da
natureza em transformação. Os taoístas acreditavam que “estudando os princípios da natureza
compreenderiam as forças que regem a humanidade”. Suas metáforas, portanto, não eram
voltadas para o transcendental, mas para o natural (BARSTED, 2003, p. 39-40). As escolas
taoístas formularam a idéia de Tao como processo, retirando a característica de receita,
método ou regra. Para eles o Tao, apesar de servir como orientação da conduta, é uma via, um
caminho, que aponta um ideal de perfeição, de ordem e harmonia a serem atingidos
(GRANET, 2004).
Com a inserção do budismo na China (I d.C.) surgiram dois conjuntos religiosos
híbridos que combinam taoísmo, budismo, confucionismo, culto aos ancestrais e crenças em
demônios e fantasmas: a) o taoísmo religioso institucional (também conhecido como taoísmo
místico), clerical, litúrgico e ritualístico, em que são adoradas entidades (sábios e
imperadores) que representam o Tao; b) o budismo Chan, que é um budismo da
espontaneidade, em que sábios são associados a “bodhisattvas” (humanos iluminados). Desse
modo, na China seguir o caminho do meio e realizar o Tao tornaram-se sinônimos
(CAMPBELL, J., 2000, p. 357).
A partir do séc. III d.C., por influência da cultura indiana (budista e hinduísta),
desenvolveu-se uma corrente de taoísmo alquímico, que buscava a imortalidade de duas
formas: externa e interna. Algumas fontes do taoísmo tardio (tanto do taoísmo institucional
religioso quanto do taoísmo alquímico) são os costumes xamanistas como o êxtase místico
através de práticas respiratórias, ingestão de poções mágicas e bebidas embriagantes, que
fariam os sacerdotes ou sábios “voarem”. O êxtase seria uma maneira de manter a
imortalidade simbólica, que, segundo Granet, também era encontrada no período clássico,
embora não fosse muito enfatizada (GRANET, 2004).
No taoísmo da alquimia interior, mais próximo do taoísmo clássico, a busca de
imortalidade foi substituída pela busca de longevidade, que seria “a arte de alimentar a vida”
ou “a arte de não morrer”, representada pelo cuidado com a saúde e o corpo. Nesse taoísmo,
privações da carne e ascese não eram punições morais, visavam à purificação do corpo para
aumentar a longevidade. A santidade seria a liberdade do “arroubo místico” ou da
espontaneidade cotidiana, de seguir a ordem natural do universo. A conhecida representação
32
dos sábios taoístas como alegres e brincalhões, remete à ingenuidade da infância, à mítica
“Era de Ouro” equivalente à harmonia cósmica (GRANET, 2004, p. 309).
Tanto no taoísmo do período clássico da era Han, como no taoísmo tardio, as práticas
respiratórias visavam simular um circuito fechado correspondente ao embrião, como forma de
renovação da vida em contato com as origens. Os exercícios físicos tinham como objetivo
conservar a flexibilidade do corpo, pois a falta de flexibilidade seria a morte. Por isso
qualquer dogma seria pernicioso. O auto-aperfeiçoamento taoísta consistia em melhorar a
espontaneidade corporal, eliminando excessos da artificialidade cultural. “Deixar ser o que é”,
sem intervenção ou controle, esse seria o princípio de Wu-wei, o “não fazer”, não interferir no
ritmo natural do mundo (GRANET, 2004).
1.1.5.2 Confucionismo: a ordem vem da sociedade
Confúcio viveu supostamente entre 551 a 478 a.C. e influenciou fortemente o
pensamento chinês. Porém sabe-se muito pouco sobre a vida deste sábio e existem muitas
lendas a seu respeito. Não se pode afirmar com certeza se foi ele o autor de textos clássicos,
pois foram muito alterados em períodos posteriores. A ênfase do confucionismo está no modo
de agir, no desenvolvimento da virtude, na benevolência, no desapego, no reencontro da
humanidade com sua natureza, que na perspectiva de Confúcio é social, através da poesia, da
arte, dos ritos, das celebrações.
Para o confucionismo, através do uso correto do corpo, evitando os excessos e
preservando os bons costumes e as tradições no cotidiano, a ordem e a harmonia poderiam ser
mantidas na sociedade. Confúcio defendia a manutenção das tradições como forma de ordem
social. No caso a tradição era o sistema de classificação em yin-yang e fases, denominado por
Confúcio de “sistema de nomes”. Dar o nome certo às coisas equivalia à organização da
sociedade e do mundo em yin-yang e 5 fases. Confúcio acreditava na hierarquia, porém
almejava o desenvolvimento de uma política igualitária e humanista, assentada na virtude do
governante. Criou um sistema de exames para ingresso em cargos públicos apoiado na
competência, que possibilitou a instauração de uma burocracia no poder.
Os primeiros seguidores de Confúcio entendiam que o estado paradisíaco era uma
sociedade justa e equilibrada, em que cada um tinha o seu lugar. A harmonia seria alcançada
através da observância da disciplina, tendo como exemplo os heróis civilizadores (sábios
imperadores míticos). Embora o confucionismo tenha se degenerado em uma burocracia,
haveria nele algo de religioso, uma espécie de culto à civilização através da valorização da
33
educação, das tradições, dos ritos e da moral. Confúcio não negava o Tao, mas para ele a
realização do Tao ocorreria pela via social, pela maneira correta de conviver em sociedade.
Acreditava que as especulações religiosas eram inúteis, seria melhor ocupar-se primeiro com
a existência humana (GRANET, 2004).
Confúcio seria responsável pelo processo de racionalização das crenças chinesas.
Embora não rejeitasse o Tao, nem Tian, nem os cultos aos antepassados, valorizava os ritos
religiosos apenas como instrumentos de coesão social. Mas não se interessava por
especulações teológicas, preocupava-se com a ação concreta no mundo (GRANET, 2004).
A burocracia confucionista que predominou após a unificação da China promoveu um
esvaziamento dos aspectos emocionais dos ritos oficiais, que se tornaram mera convenção.
Apesar da racionalização das crenças impostas pelo Estado, nos cultos domésticos as massas
continuaram a adorar o “Senhor do Céu” e deuses cada vez mais especializados e funcionais
9
.
Os cultos aos deuses e divindades permaneceram extra-oficialmente como assunto privado,
mas eram depreciados pelos intelectuais (WEBER, 1992, p. 453-481).
1.2 Formação do pensamento médico chinês
A medicina passou por muitas transformações de acordo com as circunstâncias
históricas da China e teve amplo desenvolvimento durante a “época dos clássicos”
10
, em que
floresceram taoísmo e confucionismo e muitos textos foram escritos. A totalidade composta
pela complementaridade entre yin-yang é uma idéia formadora da concepção chinesa desde o
período Shang (1500 a.C.), mas sua conjugação com as cinco fases de transformação
(madeira, fogo, terra, metal, água) foi consolidada entre séc. IV e III a.C. originando a teoria
de correspondência simbólica, que embasou a medicina desde então. Em dinastias posteriores
como Sui (581-618 d.C.), Tang (618-907 d.C.) e Song (960-1279 d.C.), ocorreram novos
desenvolvimentos baseados em textos clássicos da era Han (206 a.C a 221 d.C.), que,
entretanto, podem ter sido reinterpretados.
O desenvolvimento da medicina chinesa acompanhou o processo histórico de
formação das idéias religiosas e políticas, conforme demonstrou Unschuld (1985). Citamos
9
Por exemplo, deuses do vento, do trono, da guerra, dos estudantes, da sabedoria, heróis divinizados, e até
mesmo o próprio Confúcio (WEBER, 1992, p. 453-481).
10
Joseph Campbell define como “época dos clássicos” aquela que vai desde o séc. V a.C. aV d.C., quando
começaria a “época das crenças”. Outros autores como Granet e Unschuld também utilizam essa cronologia.
Entretanto, quando nos referimos ao taoísmo clássico, o compreendemos nos limites da era Han, que termina em
II d.C.
34
como exemplo o conceito de espírito maléfico ligado ao fenômeno do vento que com o
decorrer do tempo foi se transformando e derivou a noção de vento perverso e mais tarde a
noção de Ch’i. A partir do séc. V a.C., os espíritos perderam a importância como causadores
de doenças e o comportamento tornou-se fator determinante da saúde do indivíduo, por causa
do confucionismo.
Uma certa laicização da medicina foi resultado da racionalização das crenças
promovida por Confúcio. Isso pode ser notado especialmente nos conceitos da medicina
desenvolvidos naquela época. Mas a contribuição taoísta também foi inegável, pois forneceu
as explicações cosmológicas que embasaram as concepções de conformação e funcionamento
do corpo, bem como as receitas de saúde e vida natural. Além disso, a presença do taoísmo na
medicina possibilitou a conservação de uma ponte com as curas mágico-religiosas, ou seja, as
terapias oraculares, a medicina dos demônios, o xamanismo, a alquimia e a medicina budista,
contra-balanceando a tendência secularizante do confucionismo.
Um segundo exemplo da correlação entre a concepções da medicina chinesa e os
acontecimentos históricos é a modificação do sistema de quatro elementos (Si fang) para
cinco elementos (Wu xing) produzida pelo debate político entre taoístas e confucionistas.
Após a unificação da China (II a.C.), em paralelo ao conflito político entre governo central e
os soberanos de rios reinos, acontecia uma importante discussão entre taoístas e
confucionistas sobre a forma de exercício do poder e suas justificativas ideológicas.
Confucionistas, que nessa época formavam a burocracia do Estado, defendiam a idéia de Tian
como divindade antropomórfica representada pelo imperador. Seria uma consciência moral
mais elevada que a humana, que possuía emoções e manifestava sua vontade através dos
oráculos. Taoístas, por sua vez, entendiam que os fenômenos do universo resultam de uma
relação estímulo-ressonância entre categorias que compartilham o mesmo Ch’i e por isso
afetam-se mutuamente. Pretendiam que a intenção moral fosse substituída por ressonância
cósmica, assim os fenômenos não estariam sujeitos a julgamentos morais (BARSTED, 2003,
p. 28).
Desse debate resultou a idéia de Tao como caminho, como cinco vias possíveis de
transformação (madeira, fogo, terra, metal, água). Tao, força impessoal, substituiu a divindade
Tian, poder central e princípio moralizador, simbolizado pela figura do rei. A representação
do movimento cósmico em quatro fases (Si fang) correspondentes a quatro pontos cardeais
regidos por um centro (o rei correspondente à terra) foi substituída pelo movimento em cinco
fases (Wu xing) incluindo o elemento terra como uma das fases de transformação no mesmo
nível hierárquico dos outros quatro elementos (madeira, fogo, metal e água). Dessa maneira,
35
ficaram estabelecidas cinco fases de transformação, ou cinco elementos, que se sucedem
ciclicamente e se controlam reciprocamente, permitindo a conexão direta entre céu-homem-
terra sem a intermediação do rei ou do centro (BARSTED, 2003, p. 148). Nascia assim um
princípio básico da medicina chinesa que é a concepção dos cinco elementos regidos
simultaneamente por forças distintas de geração e dominação
11
.
Após IV d.C. a medicina foi influenciada também pelo budismo, medicina ayurvédica
e pela alquimia indiana, porém manteve a concepção de corpo humano como totalidade
microcósmica, cujo funcionamento segue a mesma lógica de todas as esferas da cultura, ou
seja, o sistema de classificação em cinco fases (Wu xing) e a bipolaridade yin-yang.
O médico e antropólogo Paul Unschuld pesquisou a influência das circunstâncias
sócio-econômicas na formulação dos conceitos da medicina chinesa, distinguindo sete
sistemas terapêuticos que, embora tenham surgido em diferentes épocas e conjunturas sócio-
políticas, não se sucederam linearmente e na prática interagem até a atualidade: a) terapia
oracular; b) medicina dos demônios; c) cura religiosa; d) terapia pragmática com usos de
drogas farmacêuticas e fitoterápicos; e) medicina budista; f) medicina de correspondência
sistemática; g) medicina ocidental (JACQUES, 2005, p. 22).
O autor atribui maior peso às influências confucionistas na medicina chinesa antiga,
mas adverte que o confucionismo predominou como orientação do Estado durante a maior
parte da história da China, e talvez os conceitos da medicina taoísta tenham sofrido
reformulações confucionistas ao longo do tempo
12
(JACQUES, 2005, p.16).
A seguir trataremos da formação histórico-social dos principais sistemas terapêuticos
constituintes da medicina chinesa a partir do modelo proposto por Paul Unschuld (1985).
Acompanharemos as transformações da medicina chinesa no decorrer da história, de acordo
com a ideologia predominante em cada época, até a adoção de concepções ocidentais. Embora
a civilização chinesa seja muito antiga, e alguns autores como Eliade (1992) enfatizem a
existência da cultura Yang-shao, de descendência matrilinear, entre 4365 e 4000 a.C., a
maioria dos estudiosos prefere se apoiar em evidências arqueológicas mais consistentes, do
período Shang (1523 a.C.) em diante. É desse ponto que iniciaremos o histórico.
11
Ciclo de Geração - Força criadora: Fogo gera terra; terra gera metal; metal gera água; água gera madeira;
madeira gera fogo. Ciclo de Dominação - Força destruidora: Fogo derrete metal; metal corta madeira; madeira
rasga terra; terra absorve água; água apaga fogo. Lembramos que, para alguns autores, o ciclo de dominação
entre as fases teria sido concebido antes da unificação da China, ainda na época dos “Estados Guerreiros”.
12
Muitos textos taoístas e confucionistas podem ter sido interpretados por vários discípulos até 500 anos após a
suposta autoria por grandes mestres. Lao zi, por exemplo, a quem se atribui a autoria do Tao Te Ching, pode ter
sido um personagem legendário, não há comprovações de sua existência (GRANET, 2005).
36
1.2.1 Terapia oracular e medicina dos demônios (1523 a.C a 480 a.C.)
Durante a dinastia Shang (1523-1027 a.C.), desenvolveu-se uma sociedade agrária
composta por pequenas cidades e governada por um rei. Predominavam cultos aos
antepassados e ao deus celeste Shang Ti, o Senhor do Alto, um soberano mítico dotado de
virtudes que seria um ancestral da dinastia Shang. Essa crença justificava o poder do
soberano, que era submetido a um rigoroso cerimonial para provar sua virtude e em caso de
desastres submetia-se a ritos expiatórios (ELIADE, 1992, p. 21). Nos rituais ofereciam-se
sacrifícios animais e humanos para Shang Ti e para os antepassados. Na visão da cultura
Shang, a comunidade era composta por pessoas vivas e mortas que dependiam umas das
outras, por isso os ritos de oferendas aos ancestrais eram muito importantes (UNSCHULD,
1985, p. 18).
Nesse período possivelmente ocorreram imigrações de correntes circumpolares que se
caracterizavam pelo xamanismo (CAMPBELL, J., 2002, p. 313). Os xamãs eram
intermediários entre os vivos e os mortos, podiam manipular as forças naturais através dos
ritos e consultar oráculos. A doença na cultura Shang era vista como resultado de um
fenômeno ambiental associado aos espíritos (vento perverso, por ex.), de um infortúnio
causado por um ancestral descontente, ou pela forma de governar do rei. A prevenção era
realizada com oferendas e ritos para aplacar os espíritos e ancestrais reais, realizados apenas
pelo próprio soberano ou por xamãs, seus representantes, que atendiam somente a nobreza
(UNSCHULD, 1985, p. 24-26).
Não havia medicina voltada para o indivíduo, era uma terapia social para harmonizar
mortos e vivos, a sociedade era tratada através dos ritos. Desde essa época a doença indicava
uma crise. A diagnose de possíveis crises era realizada através dos oráculos para todos os
assuntos, visando à prevenção e ao planejamento estratégico para a medicina, o clima, a
política, as guerras, as viagens, as alianças, etc. (UNSCHULD, 1985, p. 24-26).
No período Zhou antigo (1027-772 a.C.) o feudalismo se desenvolveu e foi possível
um certo equilíbrio sócio-político. Essa época caracterizou-se pelo culto aos ancestrais e aos
reis, mas não houve rompimento com as práticas xamânicas incorporadas culturalmente. Ti
era uma divindade celeste com características antropomórficas, que era clarividente e
onisciente, mas foi desvinculada dos antepassados dos Shang. Também havia deuses do solo e
cultos à terra como força cósmica complementar ao céu (ELIADE, 1992, p. 23-24).
Na medicina, a influência dos antepassados diminuiu e os demônios invasores
tornaram-se responsáveis pelo surgimento das doenças. Os xamãs, que perderam prestígio
37
junto à nobreza, mas ganharam poder sobre as camadas populares, realizavam exorcismos
coletivos e individuais para expulsar demônios (JACQUES, 2005, p. 24). A terapêutica
consistia no exorcismo de pessoas e ambientes, conjurações e encantamentos, uso de amuletos
e talismãs para afastar maus espíritos e prevenir o adoecimento (UNSCHULD, 1985, p. 39).
No período Zhou oriental (772-480 a.C.), começou a desintegração do feudalismo com
uma sucessão ininterrupta de guerras intra-feudos e contra invasores. Coexistiam adoração
aos ancestrais e crenças em demônios. Ti foi perdendo os aspectos humanos e no final desse
período transformou-se em Tian, divindade impessoal equivalente ao Céu, e depois, por
influência de Confúcio, em um “princípio ordenador cósmico e garantidor da moral”
(ELIADE, 1992, p. 23). Como vimos, Confúcio supostamente viveu entre 551 e 478 a.C., e
seria responsável pelo processo de racionalização das crenças chinesas.
1.2.2 Medicina de correspondência sistemática (480 a.C. a 220 d.C.)
O período Zhou tardio (480-221 a.C.), que antecedeu e preparou a unificação da
China, é denominado de “Estados Guerreiros” ou “Reinos Combatentes”. Foi uma época de
rompimento com sistema político de hierarquia por linhagem e transição para uma
administração burocrática civil - composta por especialistas, religiosos, militares e
intelectuais, que se digladiavam pelo poder (BARSTED, 2003, p. 145).
Discípulos de Confúcio conviviam com o surgimento do movimento taoísta por volta
de 400 a.C. e com o moralismo de Mo zi, importante opositor de Confúcio, que viveu entre
480 e 400 a.C. Vários embates teóricos ocorreram nesse período, o confucionismo acabou
prevalecendo no Estado burocrático instaurado na China unificada, embora a cosmologia
taoísta tenha fornecido os principais conceitos cosmológicos que fundamentaram a medicina
chinesa clássica.
A unificação da China foi iniciada com a dinastia Qing, que nome ao país, no
período de 221 a 206 a.C., mas foi concluída apenas no próximo período, da dinastia Han. O
imperador Qing promoveu uma grande queima de livros (213 a.C.) e construiu a Grande
Muralha. A época seguinte, da dinastia Han (206 a.C. a 220 d.C.), foi marcada por uma
política mais estável e por um grande desenvolvimento econômico. No início da Era Han
configurou-se uma burocracia confucionista, baseada nos sistemas de exames para cargos
públicos desenvolvido por Confúcio, que aparentemente oferecia iguais oportunidades para
todos os cidadãos, mas na prática favorecia determinadas camadas da população (JACQUES,
38
2005, p. 42). A unificação permitiu o intercâmbio entre o sul e o norte do país, ao mesmo
tempo em que as trocas de idéias com o Ocidente, com a Índia budista e a Pérsia foram
intensificadas (CAMPBELL, J., 2002, p. 336).
A proposta da medicina de correspondência sistemática foi conciliar as diferentes
escolas de pensamento em torno de um ideal comum: a unificação da China. As principais
teorias foram elaboradas durante um período que vai dos “Reinos Combatentes” (V a.C.) até o
final da era Han (221 d.C.), que é um dos mais férteis do pensamento chinês. Profundas
mudanças ocorreram no plano institucional político, religioso e médico, resultando na
sistematização de idéias básicas da cosmovisão chinesa na medicina, tais como: Tao, yin-
yang, cinco fases de transformação e circulação de Ch'i no organismo.
O médico Tsou Yen (350–270 a.C.) seria o responsável pela reunião de teorias
inicialmente divergentes, inserindo a correspondência entre yin-yang e cinco fases (Wu xing)
na medicina, conjugada às orientações confucionistas de desenvolvimento da virtude e ação
correta (JACQUES, 2005, p. 31). A medicina de correspondência sistemática busca uma
síntese de diferentes conceitos, com base no sistema tradicional de classificação em fases, que
é reconhecido por taoístas, confucionistas e pela população em geral.
Aproximadamente no séc. II ou I a.C., o conceito de circulação de Ch’i no organismo
estava sendo consolidado na medicina e já eram descritos trajetos no corpo humano em
importantes textos dessa época, como por ex. o Huang Di Nei Jing Tratado de Medicina
Interna do Imperador Amarelo e o Nan Jing - Clássico das Questões Difíceis, considerados
fontes confiáveis pelos pesquisadores. Porém, não ficava claro o que circulava nesses trajetos,
supostamente seria Ch’i. Indicações de exercícios físicos como tratamento também são
encontradas nos textos clássicos desse período (JACQUES, 2005, p. 43-44).
1.2.3 Cura religiosa: taoísmo místico e budismo (220 d.C. a 1300 d.C.)
No final da era Han surgiu o taoísmo religioso, bem diferente do taoísmo clássico, por
organizar-se em uma igreja com hierarquia, corpo sacerdotal e um patriarca: o Mestre
Celestial. O fundador foi Chang Ling, que no séc. II d.C. coletava dízimos dos seus
seguidores, por isso essa corrente foi denominada “O Tao das cinco sacas de arroz”
(CAMPBELL, J., 2002, p. 342). É possível que as influências estrangeiras, principalmente do
budismo, somadas às propostas confucionistas, tenham contribuído para o surgimento do
taoísmo tardio ou taoísmo religioso.
39
O budismo foi introduzido na China em 65 d.C., mas sua influência tornou-se mais
forte após a queda da dinastia Han, do séc. III d.C. em diante. Durante o período Han houve
uma aproximação entre confucionismo, taoísmo e budismo e mais tarde (IV d.C.) os Budas e
Bodhisattvas foram associados aos sábios taoístas. O taoísmo organizado institucionalmente
tornou-se religião oficial em 440 d.C., sufocando o budismo emergente, mas isso não impediu
que o mosteiro budista Shaolin fosse fundado em 495 d.C. (APOLLONI, 2004, p. 24-25). No
séc. VI, Bodhidharma (520 d.C.), um lendário monge indiano (28º patriarca da Ordem
Budista Ortodoxa) teria fundado o budismo Chan, reunindo características do budismo e do
taoísmo (CAMPBELL, J., 2002, p. 343).
De 581 a 604 d.C, um imperador da dinastia Sui (420-617 d.C.), devoto budista,
patrocinou o mosteiro ShaoLin. No início da dinastia Tang (618-906 d.C.) o budismo foi
novamente adotado como religião do Estado, em retribuição ao apoio militar dos monges
Shaolin (APOLLONI, 2004:31). Entre 626 e 649 d.C., além de servir ao expansionismo Tang,
as grandes viagens foram motivadas pelo budismo, nessa época (645 d.C.) a literatura budista
foi intensamente traduzida do sânscrito para o chinês e foi construído o primeiro “Grande
Pagode”. Mas entre 841 e 845 d.C. uma reação neo-taoísta e neo-confucionista destruiu
templos budistas e escravizou monges, restringindo as tradições budistas aos rituais de
casamento, nascimento e morte das camadas populares (CAMPBELL, J., 2002, p. 356).
Tanto o taoísmo religioso quanto o budismo retomaram os cultos aos antepassados, a
terapia oracular, a medicina dos demônios e o xamanismo. No taoísmo religioso a doença
adquiriu conotações morais, de punição por comportamento em desacordo com as tradições e
preceitos religiosos; a cura se dava pela realização de rituais dirigidos por sacerdotes taoístas.
A diferença entre medicina dos demônios e cura religiosa taoísta está no enfoque individual
dos ritos de cura da última, que na medicina dos demônios ainda predominavam rituais
coletivos (UNSCHULD, 1985).
A interferência budista na medicina ocorreu principalmente nas concepções de corpo e
doença. O corpo budista é composto de quatro elementos (terra, água, fogo e vento), idéia
similar à classificação chinesa, mas é dividido em várias camadas, do físico ao mais sutil. A
doença seria causada tanto por demônios e espíritos maus como por conduta inadequada nessa
ou em outras vidas (karma). A cura se dava através de técnicas secretas de meditação,
controle de respiração, encantamentos, uso de amuletos, poções e penitências para eliminação
de karma, todos ensinados pelos monges (UNSCHULD, 1985, p. 143).
Os monges eram como xamãs, além de curar doenças possuíam mediunidade, faziam
milagres, predições e exorcismos. A medicina praticada pelos budistas baseava-se na
40
compaixão, no altruísmo, e aliviava o sofrimento das camadas populares. Muitos mosteiros
budistas funcionaram como hospitais na China, durante o séc. VIII d.C. (UNSCHULD, 1985,
p. 149).
Vários textos médicos dessa época combinam taoísmo, budismo. alquimia e medicina
dos espíritos. Ao contrário da medicina de correspondência sistemática da era clássica, a
medicina budista não se preocupava com a existência terrena e a sociedade harmoniosa, mas
com a liberação do ciclo de nascimento e morte que causa sofrimento. Buda seria o “rei dos
médicos” e ao mesmo tempo o remédio para todos os males. Na literatura médica chinesa de
influência budista, a doença podia ser causada por: a) desarmonia entre elementos que
compõem o corpo; b) nutrição desbalanceada; c) meditação excessiva; d) demônios; e)
deidades malignas, como Mara; f) conduta imprópria durante experiência prévia
(UNSCHULD, 1985, p. 138-143).
No período Song (960-1270 d.C.), a onda neo-confucionista atingiu também a
medicina. Questionando preceitos budistas, como por exemplo, a realidade ser pura ilusão, o
médico Chang tsai (1020 a 1077) argumentava que Ch’i (a matéria fina ou sutil) existiu desde
o início dos tempos, todas as coisas eram reais porque advinham da condensação de Ch’i e no
final retornavam à forma sutil. Chang tsai retomou conceitos da era Han, acrescentando-lhes
um tom ético: se tudo era feito de Ch’i, todos os homens eram irmãos (UNSCHULD, 1985).
Ainda que nos períodos Ming (1368-1643) e manchú Qing (1644-1911), através do
contato com os jesuítas tenham sido introduzidas concepções ocidentais de corpo e saúde na
China (anatomia e fisiologia, por ex.), indisposições psicológicas ou problemas psiquiátricos
permaneciam sendo tratados pela medicina demonológica. Autores conhecidos desse período
descrevem tratamentos fitoterápicos (como chá de folhas de pêssego, por ex.) para expulsão
de demônios e encantamentos ainda eram muito utilizados pela medicina na corte imperial
(UNSCHULD, 1985, p. 216-217).
1.2.4 Taoísmo alquímico: drogas, elixires, práticas corporais (400 d.C. a 1700 d.C.)
Entre séc. IV e VII d.C., chineses viajavam para Índia em busca de textos
fundamentais budistas, que foram traduzidos para o chinês desde o séc. V d.C. Mas a Índia
nessa época passava por uma revalorização do bramanismo, cujas práticas e valores chegaram
também à China (CAMPBELL, 2000, p. 255). Assim, a medicina ayurvédica e a alquimia
indiana passaram a influenciar o taoísmo e a medicina chinesa.
41
O taoísmo da alquimia externa predominou até o séc X. A busca pela imortalidade da
carne era realizada através da manipulação de drogas e da confecção de elixires. As fórmulas,
muito populares na corte, visavam à transformação da matéria tornando-a imperecível
(CAMPBELL, J., 2002). Na medicina, isso se refletiu na fitoterapia e na dietoterapia, pela
utilização de singulares misturas de componentes minerais, animais e vegetais nos
tratamentos. A busca de imortalidade, porém, contrapunha-se aos ideais de conformação às
leis da natureza propostas pelos taoístas do período Han, para os quais o processo natural de
envelhecimento e morte era inexorável.
Assim, pode-se entender que a alquimia exterior aproximava-se mais do xamanismo,
da feitiçaria e da terapia oracular da época feudal, do que da medicina de correspondência
sistemática da época clássica, embora tenha proporcionado amplo desenvolvimento da
medicina chinesa como um todo, uma vez que os alquimistas se empenharam na pesquisa
empírica e descobriram inúmeros tratamentos farmacêuticos utilizados até a modernidade.
Um conhecido médico chinês, Sun Simiao (581-682 d.C.), taoísta, budista, alquimista
e erudito que, segundo contam, refugiou-se nas montanhas e morreu com 100 anos, coletou
saberes populares sobre ervas e redigiu importantes textos da farmacopéia chinesa,
descrevendo 800 substâncias e cerca de 6000 plantas. Também descobriu “pontos-extras” e
“pontos-fantasmas” para tratamento do espírito, associou doenças ao calor, frio, secura e
umidade e desenvolveu a moxabustão.
O taoísmo da alquimia interna começou a ganhar importância entre séc. VI e VII d.C.,
possivelmente influenciado pelas técnicas do Yoga e pelo budismo Chan (misto de budismo e
taoísmo) que se popularizou na China e também no Japão, onde originou a corrente Zen. Na
corrente de alquimia interior a longevidade é a meta, a imortalidade é simbólica e os recursos
para atingi-la encontram-se nos cuidados com o próprio corpo em concordância com os ritmos
da natureza. Posteriormente o taoísmo da alquimia interior derivou conhecidas práticas
corporais, como por exemplo, o Tai Chi Chuan (séc. XVII) e o Chi Kung, que associam a
meditação e a contemplação às técnicas de circulação de Ch’i (CAMPBELL, J., 2002).
42
1.3 A expansão da medicina chinesa para outros países da Ásia
Entre séc. VI e VII a medicina chinesa foi difundida na Coréia, Japão e Indochina,
passando por desenvolvimentos próprios nos outros países, com adaptação das cnicas para
os novos ambientes. Isso ocorreu principalmente durante a dinastia Tang (618-907 d.C.),
período em que a China viu um grande crescimento cultural, além da expansão máxima de
seu território na Ásia, contida apenas pela resistência islâmica. A política expansionista dos
Tang possibilitou maior abertura ao estrangeiro e intercâmbio com várias culturas asiáticas. A
medicina chinesa nesses países foi divulgada em conjunto com a medicina budista, que
predominava na época.
No Japão, a técnica da moxabustão foi aperfeiçoada. No séc X, Tamba Yassutomo
escreveu uma coletânea baseada em textos supostamente anteriores à época Tang, que teriam
sido preservados no Japão. Mas a medicina japonesa desenvolveu-se principalmente no séc.
XVII, em que foram criadas técnicas hidroterapêuticas (os banhos) e outras fisioterápicas para
tratamento das tropas militares, como massagens (an-ma) e quiropraxia (manipulação do
sistema ósseo e muscular).
No séc. XVII, Waichi Suguyama, que era deficiente visual, inventou a canaleta para
inserção de agulhas (o mandril). Esse acupunturista se aprofundou no estudo das terapias
através do toque, inclusive fundou uma escola de massagem para deficientes visuais em 1682.
O shiatsu, técnica que mistura massagem e medicina chinesa utilizando pressão com as mãos
sobre os pontos de acupuntura, surgiu posteriormente no séc. XIX. A medicina ocidental foi
introduzida no Japão nos séc. XVII e XVIII e tornou-se predominante na era Meiji (1868),
quando a medicina oriental foi proibida nas escolas médicas japonesas (PAI, 2005, p. 41).
Na Coréia, no séc. XIX, um monge budista criou a medicina constitucional coreana,
reunindo teorias clássicas chinesas e a concepção budista de corpo, composto por quatro
elementos (terra, vento, fogo e água). A medicina constitucional coreana é uma tipologia que
define quatro temperamentos humanos, seus comportamentos e tratamentos específicos
respectivos a cada tipo. A alimentação e a acupuntura são as técnicas mais utilizadas pela
medicina coreana.
43
Figura 6 - Resumo cronológico das idéias e crenças religiosas na China até o início do
século XX
13
Período histórico Mitos, ritos e crenças Medicina
1523 a 1027 a.C.
Império Shang
Imigração de povo condutor de carruagens e
de corrente xamanista. Culto ao Senhor do
Alto, Ti, através do rei que é seu filho.
Terapia oracular e xamânica.
Medicina atua sobre a sociedade
através de ritos.
1027 a 772 a.C.
Zhou antigo Feudalismo
certo equilíbrio sócio-político
Ti tem características antropomórficas,
desvinculação de Ti dos Shang; pai do
Duque de Zhou inventou a combinação dos
oito trigramas básicos originando 64
hexagramas. Culto aos ancestrais e aos reis.
Xamanismo, Demônios causam
doenças, exorcismos coletivos e
individuais são a cura.
772 a 480 a.C.
Zhou médio - desintegração
do feudalismo
Crenças em demônios e espíritos malignos
coexistem com Tian, deus celeste impessoal,
princípio ordenador cósmico. Inicio do
processo de racionalização das crenças
através de Confúcio.
Dissociação entre a medicina e
crença em demônios; surgem os
conceitos de vento, frio, calor e
umidade como energias
perversas causadoras de doenças.
551 a 478 a.C.
época em que teria vivido
Confúcio
Confúcio - ênfase no modo de agir, no
desenvolvimento da virtude, na educação,
benevolência, no reencontro da harmonia da
humanidade através da poesia, da arte, dos
ritos e celebrações. Ritos religiosos tinham a
função de propiciar coesão social. A ordem
cósmica dependia da ordem social.
Para o confucionismo, através do
uso correto do corpo, evitando os
excessos e preservando bons
costumes de alimentação,
moradia e vestimenta, a ordem, a
harmonia e a saúde podem ser
mantidas.
480 a 221 a.C
período Zhou tardio -
estados guerreiros
Período caótico de guerras intra-reinos e
contra estrangeiros. Efervescência cultural,
surgem várias escolas de pensamento,
inclusive o taoísmo.
Na medicina surgem conceitos e
termos associados ao tema bélico
que são transpostos para o
orgânico: ataque, defesa,
dominação do mais forte pelo
mais fraco, etc.Nesse período a
noção de vento como espírito
migrou para Ch’i.
A partir de 400 a.C.
movimento filosófico taoísta
teria vivido Lao zi.
O taoísmo pregava o retorno à natureza, o
isolamento nas montanhas e florestas, a
contemplação, a harmonização do corpo com
o universo, a prática de técnicas corporais
que auxiliassem o desenvolvimento interior.
A ordem cósmica dependia da ordem
natural; a vida em sociedade corromperia.
Para taoístas corpo é um
microcosmo do universo, seguir
o ritmo cósmico natural era
saúde, os excessos da vida em
sociedade faziam adoecer.
Entre 350 e 200 a.C
Viveu o médico Tseu Yen.
Sistematização da medicina através da
junção de teorias taoístas, confucionistas e as
classificações tradicionais (yin-yang e 5
fases de transformação).
Surgimento dos princípios
fundamentais da medicina
chinesa clássica.
221 a 206 a.C -Unificação da
China - rei Qing.
Promoveu uma grande queima de livros (213
a.C.) e construiu a Grande Muralha.
206 a.C. a 220 d.C.
dinastia Han - política mais
estável, desenvolvimento
econômico.
No início burocracia confucionista e no final
taoísmo religioso é adotado pelo Estado.
Maior contato com Índia e Ocidente. Rota da
Seda desde I a.C.
Grande desenvolvimento da
medicina chinesa; importantes
clássicos como Nei Jing e Nan
Jing foram escritos nessa época.
13
A composição do quadro foi realizada a partir das seguintes fontes: CAMPBELL, J. (2002), UNSCHULD
(1985), LUZ (1993), JACQUES (2005), BLOISE (2000), site www.acupuntura.org, revista História Viva ano 2,
n. 18.
44
Período histórico Mitos, ritos e crenças Medicina
Em 65 d.C. Aproximação taoísmo, budismo e
confucionismo. Fundação do primeiro
mosteiro budista “Cavalo Branco”.
Práticas corporais que uniam
budismo, taoísmo e hinduísmo.
135 d.C. a 208 d.C. viveu
médico taoísta Hua To
Hua To criou jogos dos 5 animais. Início associação entre saúde e
artes marciais.
147 a 167 d.C. taoísmo
religioso
Chang Ling fundou uma igreja taoísta com
corpo sacerdotal hierárquico: os Mestres
Celestiais; “Tao das cinco sacas de arroz”,
dízimo da população sustentava clero.
Chang Chi (142-220?) teria
combinado a medicina de
correspondência com
farmacologia.
De 300 d.C. até 589 d.C.
neo-taoísmo foi religião
oficial em 440 d.C. e
suprimiu budismo. Taoísmo
alquímico - alquimia externa
Decadência do confucionismo e vivificação
do taoísmo com influência hinduísta e
budista. Taoísmo da espontaneidade dos Sete
Notáveis do Bosque de Bambu e taoísmo da
imortalidade, busca de êxtase, taoísmo
místico.
Busca pela imortalidade era
realizada através da manipulação
de drogas e ervas, da confecção
de elixires muito populares na
corte, e fórmulas que visavam à
transformação da matéria.
520 d.C. -Bodhidharma,
monge budista indiano
Fundação do budismo Chan.
580 a 618
Dinastia Sui
Os Sui patrocinam mosteiro budista Shaolin
(fundado em 495) em troca do apoio militar
e político dos monges. Grande adesão da
população ao budismo. Invasão da Coréia em
598 d.C.
Fundada a primeira escola de
medicina chinesa “Colégio
Imperial de Medicina”. As
teorias são difundidas para
Coréia.
618 a 906 -período Tang ,
estado burocrático, monarcas
se diziam descendentes de
Lao zi. Os Tang eram
mestiços entre chineses e
povo nômade.
Entre 630 e 650, Wu Hou,
única Imperatriz do Céu”,
adotou o taoísmo. Retorno às
tradições justificavam trono
ideologicamente.
Cultura urbana, cidade com 1,5 milhão hab.
Política expansionista Tang, grande contato
com outros países da Ásia.Popularização do
budismo por um monge japonês (Enin) e
outro indiano(Buddhapala);
Tradução de textos budistas para chinês e
construção do “Grande Pagode” em 645 d.C.
Reação confucionista e taoísta destrói
templos budistas, em cerca de 840 a.C.
Muçulmanos chegam à China séc. X.
Alquimia e medicina budista
influenciada pela ayurvédica;
monges budistas atendiam
população e mosteiros eram
hospitais em 700 d.C.
Entre 620 e 630 várias escolas de
medicina são fundadas
Sun Su-miao médico budista,
taoísta e alquimista em 581-682
d.C. Expansão da medicina
chinesa para Japão e Indochina.
960 até 1270 -
dinastia Song, -
neoconfucionismo amplo
desenvolvimento cultural
Predominava Budismo Chan e taoísmo da
alquimia interior, cuja meta é a longevidade.
Imperador patrocinou impressão de literatura
budista em chinês
Florescimento das artes marciais.
Neoconfucionismo gera nova
onda secularizante na medicina.
Mapas dos canais de Ch’i e seus
pontos foram desenhados em
estátua de bronze.Intensificaram-
se os estudos sobre acupuntura.
1280 até a 1367
invasão de Genghis Khan ,
dinastia mongol Yuan
Marco Pólo viveu na China durante 24 anos,
foi amigo do imperador Kublai Khan.
Retornou em 1292.
Fundada a primeira Faculdade de
Medicina independente do
império; associação entre
fitoterapia, dietoterapia e 5 fases
1368 a 1643- dinastia Ming –
restauração neoconfucionista
1514 portugueses em Macau
Absolutismo; jesuítas chegam à China entre
séc. XVI e XVII, divulgam conceitos
anatômicos e fisiológicos ocidentais.
Surgem revisões da literatura
sobre acupuntura.
1644 a 1911
dinastia manchú Qing
1757- abertura do porto do
Cantão
1912 República Popular da
China
No séc XVIII ocorreu grande aumento
populacional, produção alimentícia
insuficiente, guerras séc. XIX.
Guerra do Ópio em 1839-1842.
1850-1864- Levante popular Taiping.
1864-1878 – Levante muçulmano.
1895- China perde guerra p/ Japão
A medicina chinesa entra em
processo de decadência, com a
desintegração da cultura
tradicional chinesa e substituição
gradativa por valores ocidentais.
A fitoterapia se torna a principal
técnica de tratamento.
45
1.4 Tradicional Chinese Medicine (TCM): ocidentalização e secularização da medicina
chinesa contemporânea
Os contatos entre europeus e chineses se aprofundaram na dinastia Ming (1368-1644)
e a partir d a utilização da medicina chinesa foi sendo substituída gradativamente pela
medicina ocidental. Jesuítas e médicos cristãos desde os séculos XVII e XVIII procuravam
ensinar a medicina ocidental aos chineses como uma demonstração de superioridade ocidental
cristã (UNSCHULD, 1985, p. 238). Segundo Unschuld: “O missionário médico cristão não
estava concentrado no corpo chinês, mas na mente chinesa. Não era o número de pacientes
curados que importava, mas o número de chineses convertidos” (UNSCHULD, 1985, p. 239).
Os missionários protestantes chegaram em 1820 e o atendimento de saúde ocidental
ainda nessa fase estava baseado nos preceitos teológicos da fé e da moralidade cristã. Peter
Parker, médico missionário protestante, abriu clínica na China em 1835 e conseguiu
financiamento com sociedades missionárias européias para implantação de vários hospitais
(UNSCHULD, 1985, p. 238). Isso foi determinante para a construção de uma boa imagem da
medicina ocidental na China até 1920. Porém esses hospitais não eram sequer capacitados
para atender a população adequadamente: 92% não tinham água pura, 73% não tinham
esterilização e 50% não banhavam seus pacientes (UNSCHULD, 1985, p. 241). Em 1920, a
Universidade de Yale estabeleceu uma escola de medicina moderna ocidental na China e
esses hospitais foram fechados (UNSCHULD, 1985, p. 241).
Desde o final do século XIX havia uma tendência pró-ocidental no próprio meio
acadêmico chinês (BARSTED, 2003, p. 10). Em 1872 foi enviado o primeiro grupo de
estudantes chineses para os EUA. Nessa época, cirurgias, morfina, farmacologia química,
assepsia e anestesia, eram novidades que comprovavam os benefícios e a efetividade da
medicina ocidental. Esse sucesso inspirou muitos chineses a seguirem a profissão de médico
ocidental, principalmente porque esta adquiriu grande prestígio social (UNSCHULD, 1985, p.
241). Desvalorizada, a medicina chinesa foi proibida no período inicial da república, em 1929
(BARSTED, 2003).
No entanto, Paul Unschuld afirma que pelo menos até a década de 1940 as práticas
mágico-religiosas, tais como uso de amuletos e encantamentos, terapias demonológicas,
medicina oracular e curas budistas e taoístas, sobretudo os ensinamentos do médico Sun
Simiao (séc. VII), ainda estavam presentes majoritariamente na China, principalmente na
população rural (UNSCHULD, 1985, p. 224). Muitas tradições transmitidas oralmente através
de círculos esotéricos podem ter sobrevivido ao período republicano.
46
Após a fundação da República Popular da China em 1949, o governo de Mao Tse
Tung resgatou a medicina chinesa e a implantou juntamente com a medicina ocidental nos
hospitais públicos (FERREIRA, 1993, p. 70). Mao resgatou a medicina tradicional, mas
iniciou sua modernização de acordo com o modelo da medicina racional científica. Na década
de 1950, na ânsia revolucionária de rompimento com o passado, o cientificismo preencheu a
lacuna deixada pelo esvaziamento da tradição. A versão maoísta do marxismo apareceu como
atualização do confucionismo e “a ciência moderna ocidental assumiu o papel da doutrina de
correspondência sistemática” (UNSCHULD, 1985, p. 245).
Em seu próprio meio de origem a medicina chinesa sofreu um processo de laicização,
modernização e ocidentalização, passando a incorporar concepções racionalistas da ciência
ocidental. Suas práticas foram reestruturadas de acordo com a nova ordem de pensamento
materialista. Foi criada a atual e hegemônica Tradicional Chinese Medicine” (TCM), que
apesar do nome recusa os princípios tradicionais, ou seja, é uma invenção maoísta. Suas
principais características são: preocupação com critérios científicos ocidentais; exclusão das
categorias taoístas; negação de princípios básicos Ch’i, yin-yang, cinco elementos e canais de
circulação, considerados místicos e primitivos; tendência à materialização (BARSTED,
2003).
Depois da Revolução Cultural (1966) muitos médicos tradicionais foram perseguidos
politicamente e emigraram para Europa, EUA e América Latina (JACQUES, 2005, p. 48).
Fora da República Popular, especialmente em Hong Kong e Taiwan, as tradições da medicina
budista e da terapia demonológica foram preservadas e continuaram se desenvolvendo
(UNSCHULD, 1985, p. 260). A medicina chinesa maoísta concentrou-se em explicar
cientificamente a eficácia da acupuntura e descobrir princípios ativos nos ingredientes de
antigas drogas da farmacopéia chinesa (UNSCHULD, 1985, p. 257). Desde a década de 1980,
com a abertura ao mercado capitalista, iniciada por Deng Xiaoping, diversas pesquisas vêm
sendo realizadas em projetos de cooperação entre China e Ocidente
14
, buscando comprovar
cientificamente a eficiência da acupuntura, principalmente na área de analgesia.
As principais teorias explicativas da acupuntura atribuem sua ação ao estímulo de
“locais em que existem terminais nervosos, gerando impulsos elétricos que ativam a liberação
de substâncias neurotransmissoras do sistema nervoso central, modulando as funções físicas e
psíquicas” ou à ação sobre hipotálamo e pituitária (BARSTED, 2003). Em 2000,
pesquisadores em neurofisiologia da Universidade da Califórnia, confirmaram, através do uso
14
Para uma descrição mais completa e detalhada, do ponto de vista biomédico, das pesquisas científicas acerca
da eficácia da acupuntura, sugerimos a leitura de JACQUES (2005).
47
de ressonância magnética cerebral, o efeito da acupuntura sobre o sistema nervoso central
15
,
fato também comprovado em experiências com animais. Ainda assim, como a eficácia do
tratamento com acupuntura é maior entre os povos orientais, autores mais céticos atribuem
esse resultado às influências culturais
16
.
As pesquisas realizadas com animais demonstram que realmente ocorre liberação de
substâncias analgésicas pelo cérebro com a aplicação de agulhas (JACQUES, 2005, p. 120).
Mas a percepção da dor entre os humanos envolve aspectos fisiológicos, psicológicos e
culturais, variando de acordo com o indivíduo e sua cultura
17
. Por outro lado, pesquisas
comprovaram que a acupuntura falsa não é tão eficaz na analgesia quanto a inserção de
agulhas nos pontos indicados pelas teorias clássicas chinesas (JACQUES, 2005, p. 119).
Pesquisas mais recentes (2002), indicaram como hipótese que o efeito da acupuntura pode ser
propagado através do tecido conjuntivo, que permeia todo o corpo. Nesse caso, os trajetos de
Ch’i desenhados pelos chineses representariam uma descoberta empírica de uma rede
distribuída pelo organismo, que integraria várias funções fisiológicas (JACQUES, 2005, p.
141).
Oficialmente a ciência ocidental admite que a acupuntura apresenta eficácia no
tratamento de dores ósseo-musculares e de problemas psicossomáticos, com atuação
principalmente preventiva, sendo grande auxiliar na regulação do sistema imunológico. Mas,
na realidade, ainda não conclusões definitivas sobre os efeitos biológicos da aplicação de
agulhas. Os critérios científicos de comprovação experimental do tratamento com acupuntura
são dificultados, uma vez que nas teorias da medicina chinesa tradicional uma enfermidade
pode ser originada em diferentes circunstâncias da circulação de Ch’i, de acordo com a
singularidade do quadro de cada paciente, o que inviabiliza medições estatísticas mais exatas
e estudos duplo-cegos
18
(JACQUES, 2005, p. 86-87). Portanto, os efeitos da acupuntura
ainda estariam dentro das margens de ação de quaisquer intervenções determinadas pelo
relacionamento de confiança entre terapeuta e paciente (JACQUES, 2005, p. 95).
Exemplos práticos atuais das mudanças processadas na acupuntura chinesa por causa
das novas concepções científicas são a maior profundidade da inserção de agulhas e a
manipulação da agulha inserida para estimular as terminações nervosas. No modelo
15
Cf. História da acupuntura no Brasil. Jornal da Acupuntura. Acesso em jul. 2007.
16
Cf. Comparação entre a medicina chinesa e a ocidental. CEIMEC. Acesso em jul. 2007.
17
Segundo Jacques, o estímulo à dor pode variar de acordo com traços psicológicos e estados de atenção e
ansiedade (JACQUES, 2005, p. 107). Também segundo Hong Jing Pai, acupunturista e médico do Centro da Dor
do HC-FMUSP, a percepção à dor é adquirida culturalmente (PAI, 2005, p. 133).
18
O método duplo-cego baseia-se na comparação de grupos idênticos em todos os fatores que possam influenciar
o resultado da experiência, visando eliminar interferências externas (JACQUES, 2005, p. 87).
48
tradicional antigo, recomenda-se uma inserção mais superficial, com variações no modo de
inserir e retirar agulhas conforme o tipo de Ch’i (BARSTED, 2003, p. 13). De acordo com os
preceitos da medicina clássica as agulhas devem ser colocadas de modo inclinado na direção
do fluxo de Ch’i daquele canal para efeito de tonificar insuficiências e em direção inversa
para sedar excessos. Na concepção científica a direção e o ângulo de inserção das agulhas
levarão em consideração as ramificações neurológicas (PAI, 2005, p. 120-121).
Na China capitalista contemporânea a acupuntura é pragmática e sintomática, o
paciente submete-se a um grande número de sessões e a freqüência é elevada (BARSTED,
2003, p. 15). Na opinião de alguns autores, isso sugere que os distúrbios se estabilizam,
porém a cura não é atingida como ocorre quando o tratamento segue a teoria clássica. Outros
autores alertam ainda para a perda da qualidade do encontro clínico nos métodos utilizados
pela medicina hegemônica chinesa (BARSTED, 2003, p. 12).
Nos hospitais chineses atualmente o tratamento fitoterápico predomina sobre a
acupuntura, que não é sobrevalorizada como no Ocidente (NOGUEIRA, 2003, p. 136). As
receitas fitoterápicas originalmente seguiam a teoria dos 5 elementos e yin-yang, não havia
preocupação com o princípio ativo das plantas ou vitaminas presentes nos alimentos, como
acontece na ciência ocidental. As fórmulas magistrais chinesas combinam minerais, ervas,
raízes, cascas, insetos e elementos animais estranhos para o estômago ocidental
19
.
Notícias recentes relatam que a China está vendendo a patente de determinada fórmula
fitoterápica para um laboratório farmacêutico inglês, que será o responsável pela sua
promoção internacional. Segundo o texto: “Especialistas chineses acreditam que esta é a
grande chance esperada pela MTC (medicina tradicional chinesa) de ser aceita por toda a
comunidade internacional”
20
. A China já teria conseguido acordo com 67 países para a
implantação prática de medicina chinesa, ou melhor, da acupuntura e da fitoterapia.
A anestesia cirúrgica através da acupuntura é cada vez menos praticada na China,
restringindo-se aqueles pacientes alérgicos ou com insuficiências graves que impedem a
utilização de anestésicos químicos (PAI, 2005, p. 178). Dados da OMS (2002) indicam que a
prática da medicina tradicional na China está em torno de 40% em comparação com a
medicina convencional alopática desenvolvida no meio ocidental
21
.
19
Ex: pele de calango, cigarra, escorpião, cavalo-marinho, centopéia, fezes de morcego, pênis de foca, chifre de
antílope, casco de tartaruga, etc. (LUZ, D., apud LUZ, M., 1995).
20
Cf.: China vende patente à indústria farmacêutica. Associação Médica Brasileira de Acupuntura(AMBA).
AMBA News. Acesso em: jul. 2007.
21
Cf. Estratégias da OMS sobre medicina tradicional (2002-2005), publicado em 2002. A título de comparação o
mesmo relatório indica que em países africanos a utilização de medicinas tradicionais está em torno de 80%.
49
No Ocidente, ao contrário, a acupuntura tem recebido cada vez maior atenção
enquanto prática de saúde, porém no âmbito da medicina convencional foi adotada
majoritariamente dentro do referencial neurofisiológico, no qual os princípios fundamentais
da medicina chinesa clássica acabam subvertidos. Ou seja, para ser apropriada pela medicina
convencional, a acupuntura precisou primeiro ser reinventada como procedimento científico.
Nesse novo quadro, surgiram modalidades como a craniopuntura ou acupuntura escalpeana
(aplicada no couro cabeludo), baseada na neuroanatomia, a eletroestimulação dos pontos para
aumentar a produção de substâncias neuroquímicas, e pesquisa-se o efeito da infiltração de
xilocaína e polivitamínicos em conjunto com a aplicação das agulhas (PAI, 2005, p. 126).
Na tentativa de síntese entre as duas medicinas prevaleceu a diagnose e terapêutica que
seguem o modelo generalista ocidental, direcionado para o tratamento de um repertório de
doenças determinado pela OMS
22
, ao invés de procurar atender padrões individuais de
desequilíbrio (NASCIMENTO, 1997, p. 34). Porém, apesar da hegemonia da “Tradicional
Chinese Medicine” (TCM) no sistema de saúde oficial chinês, e da difusão da acupuntura
científica no Ocidente, a procura de sistematização do conhecimento também levou a um
resgate dos textos clássicos entre alguns poucos médicos chineses e principalmente no meio
ocidental considerado alternativo ou contracultural (BARSTED, 2003, p. 11).
Por fim, na China contemporânea possivelmente ainda convivem várias abordagens
nas diversas regiões do país, da mais tradicional à mais moderna, muitas vezes combinadas na
prática de um mesmo terapeuta, embora o modo de utilização tradicional esteja cada vez mais
restrito às províncias afastadas e aos pequenos povoados, e a modalidade secularizada
predomine no plano institucional (NOGUEIRA, 2003, p. 137).
Esperamos ter demonstrado que o deslocamento da acupuntura para o contexto
científico, portanto ocidentalizado, implicou em uma metamorfose que no nosso modo de
entender equivale a uma reinvenção da terapêutica chinesa como acupuntura científica,
operada pelos esforços conjuntos do governo chinês e de pesquisadores ocidentais. Esse fato
possibilitou a expansão da acupuntura para os meios médicos ocidentais. Buscando explicar
melhor a idéia de reinvenção da acupuntura prosseguiremos com um detalhamento dos
princípios da medicina chinesa clássica comparando-os com a racionalidade da medicina
convencional ocidental, que embasa a prática contemporânea de acupuntura.
22
Em 1979 a OMS recomendou a utilização da acupuntura e divulgou uma lista de doenças que podem ser
tratadas através da inserção de agulhas com eficácia. Essa lista foi revista e ampliada em 2002 (PAI, 2005, p.
45). Basicamente citamos algumas indicações: dores musculares e ósseas, sinusite, enxaqueca, artrite
reumatóide, gastrite, depressão, hipertensão, asma, bronquite, paralisia facial, insônia, fibromialgia, lombalgia,
tendinite, etc.
50
2 Medicina Chinesa e Medicina Ocidental: diferentes saberes e racionalidades médicas
Todas as coisas sobre a terra e no espaço se comunicam com as energias Yin e
Yang. O ser humano é um pequeno universo, já que o corpo humano tem tudo que o
universo tem. No universo, nove estágios (a saber Ji, Yan, Qing, Xu, Yang, Jing,
Yu, Liang e Yong), e o homem tem nove orifícios (sete orifícios yang: dois ouvidos,
dois olhos, duas narinas, e uma boca; dois orifícios Yin: orifício externo da uretra e do
ânus); cinco tons musicais no universo, o homem tem cinco órgãos sólidos
responsáveis pelo armazenamento das atividades mentais (o fígado armazena a alma, o
coração armazena o espírito, o baço armazena a consciência, os pulmões armazenam o
espírito inferior, os rins armazenam a vontade); doze períodos solares no universo,
e o homem tem doze canais. As energias Yin e Yang do ser humano correspondem às
energias Yin e Yang do universo, e as energias Yin e Yang do todas as coisas
(incluindo o homem) se comunicam com as do universo.
(Sheng Qi Tong Tian Lun, cap. 3
23
)
Dando continuidade à idéia de invenção contemporânea da acupuntura científica,
vamos focalizar nosso olhar sobre a aplicação direta dos princípios cosmológicos chineses nas
práticas de saúde, explicitando suas diferenças com a lógica médica ocidental moderna. A
apresentação dos fundamentos básicos da medicina chinesa, embora seja tarefa complexa, é
necessária para demonstrar a transfiguração operada na prática da acupuntura, quando ocorre
uma subtração dos elementos mágico-religiosos, considerados “supersticiosos” e
“ultrapassados pela ciência”.
Para a comparação entre a medicina chinesa e a medicina ocidental, utilizaremos o
conceito de racionalidade médica construído pela socióloga da saúde Madel Luz, que permite
confrontar os sistemas médicos sem hierarquizar evolutivamente os saberes construídos em
diferentes sociedades
24
. De acordo com Luz, para ser racionalidade médica um sistema
medicinal deve apresentar: a) morfologia (anatomia); b) dinâmica vital (fisiologia); c)
doutrina médica (concepção do que é a doença e de como opera); d) sistema terapêutico
(tratamento); e) sistema diagnóstico; f) uma cosmologia que embasa todos os itens anteriores.
Em qualquer racionalidade médica há uma cosmovisão implícita, isso acontece inclusive na
racionalidade biomédica ocidental (LUZ, M., 2005, p. 84).
Tomando como ponto de partida o conceito desenvolvido por Luz, explicaremos o
funcionamento do corpo humano segundo a racionalidade chinesa clássica. Antes de
23
Disponível em: http://www.acupunturabrasil.org/classicos/neijing3.htm.
24
A autora considerou que possuem racionalidade médica apenas sistemas médicos complexos, ou seja, aqueles
que organizam, registram e transmitem seus conhecimentos de professor para aluno, de modo oral ou escrito,
mas sistematizados como escolas de pensamento, com construções conceituais teóricas e investigação empírica
própria, tais como a homeopatia, a ayurvédica e a chinesa. Desse modo ficam excluídas da categoria
racionalidade médica as medicinas tradicionais indígenas, africanas, populares e outras ligadas mais
explicitamente a sistemas de crenças religiosas, como a antroposofia, bem como terapias alternativas que
utilizem conceitos metafísicos (LUZ, M., 2005, p. 55).
51
procedermos a uma comparação com a racionalidade biomédica, examinaremos o
desenvolvimento dos principais conceitos médicos ocidentais. Como nosso objetivo é destacar
os contrastes entre as concepções de corpo e saúde que contradizem a prática de acupuntura
dentro do referencial científico, na apresentação dos modelos das racionalidades chinesa e
ocidental estaremos considerando apenas as linhas predominantes de medicina, consideradas
como “tipos ideais”. Sobretudo na medicina ocidental, por enquanto estamos abstraindo a
existência de linhas terapêuticas paralelas que questionavam conceitos biomédicos, tema do
nosso próximo capítulo.
2.1 Correspondência simbólica: a racionalidade da medicina chinesa clássica
A medicina chinesa é um conjunto eclético composto por diferentes sistemas
terapêuticos igualmente representativos (UNSCHULD, 1985). Os médicos chineses sempre
utilizaram combinações de vários sistemas e várias técnicas, seja dentro da lógica de
correspondência simbólica consolidada na época clássica, seja no âmbito das curas religiosas
xamânicas, taoístas e budistas. Apesar dessa diversidade, a cosmovisão integrativa que
direciona a atitude humana para a ordenação do mundo, mediante a classificação simbólica,
perpassa todas as atividades sociais e fundamentou a medicina durante séculos. Uma ruptura
na racionalidade chinesa, durante o século XX, originou dois modos de praticar a medicina:
um tradicional, que prossegue na transmissão dos ensinamentos ancestrais, e um moderno,
científico, que inova nas explicações, nos métodos e na prática terapêutica.
De acordo com Paul Unschuld, no Ocidente a acupuntura destacou-se das demais
técnicas da medicina chinesa, sendo aceita principalmente conforme duas perspectivas: a)
adoção da medicina de correspondência simbólica
25
sistematizada durante o período clássico;
b) apropriação dentro do padrão científico ocidental, como ocorre na China contemporânea
(UNSCHULD, 1985).
Na visão da maioria dos acupunturistas ocidentais, a medicina de correspondência
sistemática representa melhor a tradição chinesa, seria mais “genuína”, que seus conceitos
foram engendrados na época em que floresciam taoísmo e confucionismo, pilares do
pensamento chinês. Como a nova escola científica chinesa foi batizada de “Medicina
Tradicional Chinesa” (MTC), o termo “tradicional” tornou-se ambíguo para mencionar o
conjunto de práticas antigas, baseadas em categorias metafísicas do ponto de vista científico.
25
A medicina de correspondência simbólica foi denominada por Unschuld de “medicina de correspondência
sistemática”. Na opinião do autor, é mais racionalizada por influência do confucionismo (UNSCHULD, 1985).
52
Assim, a medicina pré-maoísta é, geralmente, denominada pela literatura ocidental de
medicina clássica chinesa, convenção que muitas vezes oculta re-interpretações nem sempre
consensuais entre os praticantes.
Não podemos ter certeza que a medicina de correspondência simbólica teria sido
preservada intacta até seu registro nos livros clássicos da era Han (entre II a.C e II d.C.). Os
conceitos chineses percorreram um longo caminho até chegarem ao Ocidente no formato
atual, de modo que ocorreu uma re-interpretação ocidental da medicina chinesa clássica,
sobretudo da acupuntura, em traduções secularizadas para adequação às concepções
racionalistas ocidentais. A abstração dos aspectos taoístas mais explicitamente religiosos, e
dos preceitos da medicina budista incorporados na medicina chinesa no decorrer do tempo, é
bastante comum nas traduções dos conceitos tradicionais para as línguas ocidentais.
Possivelmente, a medicina da época clássica apresenta uma racionalidade, que, embora de
outra ordem simbólica, permitiu alguma tradutibilidade para o contexto secular ocidental,
sendo mais bem aceita nesse meio (LUZ, M., 1997, p. 27).
Ainda que tenhamos consciência que o modelo clássico que chegou ao Ocidente não é
“puro”, já que sempre estão envolvidas re-interpretações ocidentais nas traduções, serão esses
conceitos básicos que iremos expor em seguida como contraposição à interpretação biomédica
da acupuntura. Ressaltamos, mais uma vez, que estamos resumindo esses conceitos para
efeito de compreensão do processo de transformação das práticas de acupuntura. É apenas
uma estrutura básica que representa o modelo reconhecido como clássico, de modo mais ou
menos consensual no meio acupunturista ocidental, embora a tradução de muitos termos e
concepções sejam bastante polêmicas.
Mesmo com o filtro da visão ocidental, esses princípios compõem um núcleo que
obteve o reconhecimento internacional passando a representar a tradição chinesa (pré-maoista
ou pré-republicana). A racionalidade chinesa clássica seria, então, aquela alicerçada
principalmente na existência e circulação de Ch’i
26
no organismo e na correspondência entre
princípios entendidos aqui como categorias simbólicas (yin-yang e cinco elementos), idéias
rejeitadas pela ortodoxia médica oficial, tanto na China atual como no Ocidente.
Descreveremos cada tópico da medicina chinesa clássica de acordo com análises
realizadas por Daniel Luz e Dennis Barsted, pesquisadores do Projeto Racionalidades
Médicas do IMS-UERJ. Ambos os autores deixam claro que esse é o formato com que a
racionalidade chinesa clássica chegou ao Ocidente, depois de muito transformada, e assim
26
Escreve-se Qi, a pronúncia chinesa é “Tchii”; Ki é a grafia coreana e japonesa, nesse caso pronuncia-se “qui”.
53
é utilizada pela maioria dos acupunturistas na atualidade. Como a cosmologia chinesa foi
explorada no capítulo anterior, vamos apenas examinar alguns conceitos chaves da medicina
de correspondência simbólica, derivados do taoísmo, tais como Ch’i, Jing e Shen, que Barsted
chamou “categorias inefáveis” (BARSTED, 2006, p. 45).
2.1.1 Os “três tesouros taoístas” na medicina clássica: Ch’i, Jing, Shen
Ch’i, Jing e Shen são os três tesouros taoístas, ou as três instâncias que compõem o
corpo humano conferindo-lhe vitalidade. Os três estão interligados e são interdependentes,
necessitando uns dos outros para se manifestarem. A noção de Ch’i derivou da racionalização
das crenças durante o período dos “Estados Guerreiros”, quando a idéia de “vento” como
entidade espiritual migrou para um fenômeno natural (JACQUES, 2005, p. 36). Ch’i não tem
uma tradução ocidental precisa, o termo energia vital” mais que uma tradução foi uma
interpretação ocidental. Muitos autores utilizam os termos “sopro”, “pneuma”, “espírito”,
“ar”. Seu significado literal seria “vapores que emanam do solo (ou da fermentação do arroz)
em direção ao céu”. Ch’i também seria para alguns "o movimento de uma substância sutil e
invisível” (FERREIRA, 1993), e para outros equivaleria ao “movimento da água se
transformando em vapor” (BARSTED, 2003, p. 161).
Ch’i surgiu do Tao, junto com yin e yang, portanto faz parte do plano sutil, mas seria
perceptível por seus resultados no plano físico. Manifesta-se nos organismos como Ch’i do
céu (Yang Ch’i), adquirido com a respiração; e em Ch’i da terra (Yin Ch’i), adquirido pela
alimentação (BARSTED, 2003, p. 96). Ambos são recebidos pelos seres vivos no momento
do nascimento, mas também podem ser adquiridos em vida. O Ch’i nos seres vivos também
assume o modo de Ch’i ancestral, herdado junto com a constituição genética.
Ch’i pode assumir diferentes aspectos tais como Jing e Shen
27
. Jing é o aspecto mais
denso, é a condensação de Ch’i na matéria, está relacionado à hereditariedade (Céu Anterior
ou pré-manifestação) e à alimentação (Céu Posterior ou pós-manifestação). Shen é o aspecto
mais sutil, é a manifestação individual de consciência em contato com o Tao (BARSTED,
2006, p. 45). Na tradução ocidental Shen seria uma espécie de “alma” ou “espírito”,
representaria o Tao dentro da pessoa. Granet lembra que na concepção chinesa antiga o corpo
não se separa do espírito: “não é a alma que dá vida ao corpo, Shen aparece após o
enriquecimento corporal”. Segundo o autor os demônios aparecerem na forma material
27
Costuma-se traduzir Jing como essência ou suporte da matéria. A tradução de Shen seria espírito, mente,
consciência, mas lembrando que o chinês não separava corpo de espírito.
54
(pedras e animais, por ex.) e os ancestrais são alimentados através do corpo de alguém
(GRANET, 2004, p. 244). Para os taoístas, cada ser nasce com uma determinada quantidade
de Ch’i, que é armazenada no Shen, e sua longevidade depende da administração dessa
reserva (BARSTED, 2006, p. 49). Segundo Barsted:
Shen seria uma espécie de consciência presente na origem, no
desenvolvimento, e no fenecimento de todas as coisas. Jing seria uma espécie de
matéria prima sutil de toda manifestação. Qi seria algo sutil perceptível através do
resultado de sua ão. Seria visto como uma espécie de substância imaterial, o Qi
primordial, que no processo cosmogônico auto-organizado, condensaria-se no meio
material constituinte de todas as coisas no mundo (BARSTED, 2003, p. 111).
2.1.2 Morfologia: os trajetos de Ch’i
O corpo chinês não é apenas físico, nele locais de produção e armazenagem de
Ch’i, conceito ligado ao plano sutil. O Ch’i circula no organismo seguindo trajetos mapeados
pelos chineses e denominados “meridianos” pelos ocidentais (Soulié de Morant), em alusão às
coordenadas imaginárias do planeta. Os trajetos seriam semelhantes a canais ou hidrovias por
onde o Ch’i se deslocaria. Alguns pontos desses trajetos ao serem estimulados permitiriam a
desobstrução do fluxo de Ch’i, restabelecendo a saúde e vitalidade do organismo. São 12
trajetos principais
28
, muitas vezes traduzidos como “canais energéticos”, por não serem
biologicamente identificados. São agrupados em seis pares acoplados de yin-yang
classificados em cinco elementos ou fases: madeira, fogo, terra, metal, água.
Os trajetos são inseparáveis dos Zang Fu, que são traduzidos no Ocidente como
“órgãos e vísceras”, mas seriam “entidades organofisiopsiquícas originadas do céu e da terra
(LUZ, D., 1993, p. 4). Segundo Daniel Luz, “os Zang Fu são centros que sediam os espíritos,
armazenam essências e produzem Qi no organismo” (LUZ, D., 2006, p. 97). Dos Zang
originam-se os tecidos, os orifícios do corpo e os Fu, que são responsáveis pela recepção,
digestão e absorção dos nutrientes e do Ch’i dos alimentos, e pela excreção dos resíduos.
Na leitura ocidental, os Zang são yin e associados aos órgãos maciços (fígado,
coração, baço-pâncreas, pulmão, rim), os Fu são yang e associados às vísceras: vesícula,
intestino delgado, estômago, intestino grosso, bexiga. Entretanto, suas funções não
correspondem àquelas determinadas pela biomedicina ocidental para esses “órgãos e
vísceras”, por isso a tradução dos Zang fu é bastante controversa. Por exemplo, alguns
traduzem um dos Zang como “baço-pâncreas”, outros traduzem apenas como “baço”; o Zang
28
outros canais de circulação de Ch’i, historicamente mais recentes, que não estão sendo tratados aqui. A
saber: vasos maravilhosos, distintos, Lo e tendinomusculares.
55
“pulmão” não é responsável apenas pelo sistema respiratório, mas também por tudo que se
relaciona com a pele, pois administra as relações entre o interior e o exterior do organismo,
tais como o tato. Outro exemplo: com a retirada de um rim ou da vesícula biliar, os Zang e Fu
correspondentes não perdem suas funções, que a fisiologia, a psicologia e os aspectos sutis
estão inter-relacionados.
Um outro problema nessa correlação ocidental: dois trajetos pertencentes ao elemento
fogo não possuem correspondência com órgãos e vísceras, sequer são sico-materiais: Xin
Zhu (circulação-sexualidade) e San Jiao (triplo-aquecedor) (LUZ, D., 1993, p. 28-29).
Xin Zhu é traduzido como “circulação-sexualidade” (por Soulié de Morant) entre
vários outros termos (“circulação-sexo”, “mestre do coração”, “príncipe do coração”, etc).
Tem a função de proteger o coração e seria a morada do Shen (JACQUES, 2005, p. 57-60).
San Jiao, ou “triplo-aquecedor”, regula a absorção, circulação e eliminação de nutrientes e a
distribuição do Ch’i pelo organismo (JACQUES, 2005, p. 59).
Alguns “órgãos” seriam responsáveis pelo armazenamento de substâncias vitais: Jing
(essência) é armazenado nos rins, Ch’i (sopro) no pulmão, Shen (espírito) no coração e Xue
(sangue) no fígado. Ch’i (sopro), Jing (essência) e Shen (espírito) são considerados
substâncias vitais, assim como Xue (sangue) e Jin-Ye (líquidos), que serão tratados no
próximo item. Mas segundo Granet (2004) os conceitos de substância e força são ocidentais,
não existem no pensamento chinês clássico.
Figura 7 – Associação entre os trajetos, os “órgãos e vísceras” e as 5 fases ou elementos
Fases ou elementos Madeira Fogo Fogo Terra Metal Água
Trajeto yin –
deslocamento
ascendente de Ch’i
associação c/ órgão
Fígado Coração Circulação-
sexualidade
Baço-
Pâncreas
Pulmão Rim
Trajeto yang -
deslocamento
descendente de Ch’i -
associação c/ víscera
Vesícula
Biliar
Intestino
delgado
Triplo-
aquecedor
Estômago Intestino
grosso
Bexiga
56
Figura 8 - Ilustração do 12 trajetos de Ch’i no corpo humano (6 PARES YIN –YANG)
57
2.1.3 Dinâmica vital: a circulação de Ch’i
Além de Ch’i (sopro), também circulam pelo organismo Xue (sangue) e Jin-Ye
(líquidos). Os três estão interligados: Ch’i (sopro) fornece vitalidade aos órgãos, Xue (sangue)
a base material sem a qual o Ch’i se dispersaria, Jin-Ye (líquidos) umidece o corpo.
Xue (sangue) é um aspecto denso de Ch’i, circula pelos vasos sanguíneos e pelos
canais acompanhado de Ch’i. O baço é responsável pela nutrição do Xue (sangue), o fígado
pelo armazenamento e o coração por seu movimento. A circulação de Ch’i no corpo humano
segue um roteiro horário específico, em que de duas em duas horas se intensifica em
determinado trajeto. Determinados pontos dos trajetos fazem conexões entre dois trajetos yin-
yang do mesmo elemento, ou entre trajetos de diferentes elementos.
A dinâmica de funcionamento do organismo segue o modelo cósmico de alternância
entre yin e yang e movimento em cinco fases de transformação (madeira, fogo, terra, metal,
água). A referência é sempre o sistema de correspondência simbólica que relaciona todas as
coisas do mundo a yin-yang e aos cinco elementos. Os trajetos são associados aos
comportamentos, emoções e virtudes através da correspondência com as “paixões”: alegria,
dor, medo, amor, ódio, cólera, desejo (GRANET, 2004, p. 235). Na medicina chinesa clássica
a fisiologia e a psicologia estão intimamente ligadas (GRANET, 2004, p. 237).
Figura 9 - Circulação horária de Ch’i pelos trajetos
Trajetos de circulação de Ch’i
no organismo
Horário Modo Fase
Pulmão (P) 3 às 5 Yin
Intestino Grosso (IG) 5 às 7 Yang
Metal
Estômago (E) 7 às 9 Yang
Baço-Pâncreas (BP) 9 às 11 Yin
Terra
Coração (C) 11 às 13 Yin
Intestino Delgado (ID) 13 às 15 Yang
Fogo
Bexiga (B) 15 às 17 Yang
Rim (R) 17 às 19 Yin
Água
Circulação-sexualidade (CS) 19 às 21 Yin
Triplo-Aquecedor (TA) 21 às 23 Yang
Fogo
Vesícula Biliar (VB) 23 às 1 Yang
Fígado (F) 1 às 3 Yin
Madeira
58
2.1.4 Doutrina Médica: origens e efeitos das enfermidades
Na concepção clássica, a doença é uma conseqüência da perturbação da circulação de
Ch’i no organismo. Mas a doença não é estática, é um processo dinâmico e gradativo que se
inicia ainda no plano sutil. A noção de adoecimento processual permite classificar qualquer
perturbação, mesmo as indisposições psicológicas, como potenciais enfermidades. A
alternância entre yin e yang e entre as cinco fases gera saúde, a imobilidade ou estagnação faz
com que haja predominância de uma categoria sobre outras, causando adoecimento (LUZ, D.,
p. 2006).
Por influência confucionista, a idéia de harmonia que produz saúde está relacionada ao
comedimento à conduta virtuosa, que evita os excessos e se conforma às vias naturais,
segundo as regras dos cinco elementos ou fases (LUZ, D., 2006, p. 109). Também para os
taoístas a conduta deve estar de acordo com o movimento natural do universo e das estações
do ano. A doença é a desordem, a ausência de harmonia com o mundo, que pode ser causada
por fatores externos e internos. A ordem (equivalente ao Tao) é alcançada pela
correspondência com as cinco fases e yin-yang.
Os fatores externos causadores de doenças são climáticos, chamados seis sopros”
(vento, calor, fogo, frio, umidade, secura), mas fazem adoecer quando penetram
fisicamente no organismo, principalmente através da pele, tornando-se “perversos”. Nesse
caso são chamados “seis excessos”. As epidemias são consideradas uma invasão de Ch’i
pestilento”, que ocorre através da boca e nariz, e, assim como os fatores perversos, são
combatidos através do fortalecimento imunológico. Os fatores internos resultam de expressão
excessiva ou insuficiente das emoções, de resposta inadequada ao movimento das estações ou
de alimentação desequilibrada (LUZ, D., 2006, p. 109).
2.1.5 Diagnose: identificação do potencial e planejamento estratégico
Diagnóstico e tratamento não são separados na medicina chinesa clássica. A ênfase do
diagnóstico está sempre no movimento de transformação: é necessário identificar o potencial
de uma situação e seus efeitos futuros para elaborar uma estratégia de tratamento e evitar
efeitos nocivos (BARSTED, 2003, p. 47-50). A previsão do adoecimento permite a
intervenção terapêutica para desalojar a “influência perversa” de um trajeto e reforçar a defesa
59
daquele para o qual a enfermidade se dirigiria, provocando sua expulsão do organismo (LUZ,
D., 1993, p. 24).
O objetivo do diagnóstico é identificar e tratar oposições fundamentais entre os
chamados cinco elementos (BARSTED, 2006, p. 71). Os elementos ou fases estão
relacionados entre si por movimentos de oposição ou fortalecimento, controlando ou
estimulando mutuamente o fluxo de Ch’i, da seguinte maneira (figura 10): a) ciclo de geração,
força criadora: fogo gera terra; terra gera metal; metal gera água; água gera madeira; madeira
gera fogo; b) ciclo de dominação, força destruidora: fogo derrete metal; metal corta madeira;
madeira rasga terra; terra absorve água; água apaga fogo.
Na concepção clássica os mesmos sintomas podem ter diferentes origens, mas sempre
revelam um desequilíbrio de forças entre os cinco elementos, que se configura como um
quadro individual. O diagnóstico deve identificar quais elementos estão em conflito naquele
paciente, procurando um tratamento que module excessos e deficiências. Sinteticamente, na
literatura consultada aparecem definições de determinadas “síndromes”, que são quadros
sintomáticos mais comuns para determinadas configurações de forças entre os elementos, e
que são classificados de acordo com certos critérios: externo-interno, frio-calor, deficiência-
excesso, yin-yang (WEN, 1985, p. 39).
A distribuição de Ch’i no organismo é avaliada por diversos métodos. a) por
correspondência micro e macro entre áreas reflexas (língua, orelha, pés, pulsos); b) por
evidências e indícios: cheiro, cor e aspecto da pele, timbre da voz, formato das unhas, etc; c)
apalpação de áreas do corpo e pontos dos trajetos, identificando insuficiências e excessos
(yin/yang); d) interrogatório, investigação do histórico pessoal do paciente.
A língua é uma importante ferramenta visual para o exame das deficiências e excessos
de Ch’i nos elementos ou trajetos. Olha-se o formato, a cor, espessura, movimento
espontâneo, etc. Os pulsos podem ser classificados em até 28 maneiras diferentes, como por
exemplo: cheio, vazio, lento, rápido, firme, superficial, suave, profundo, irregular, etc. ( LUZ,
D., 2006).
O diagnóstico clássico utilizava preferencialmente os indícios visuais (cor da pele,
aspectos da língua e dos olhos, etc), auditivos (voz, peito, etc) e olfativos (odores), em
segundo lugar o interrogatório, e em última instância utilizava a correlação entre os pulsos e
os trajetos. Para o bom médico a definição do tratamento era obtida apenas com a percepção
do estado do paciente em relação às qualidades dos cinco elementos (figura 11)
(UNSCHULD, apud. LUZ, D., 2006, p. 132).
60
Figura 10 – Relações entre os cinco elementos ou cinco fases
Figura 11 – Sistema de classificação em cinco elementos ou fases aplicado ao corpo humano
29
Fases ou
elementos
Madeira Fogo Terra Metal Água
Energias do Céu Vento Calor Umidade Seca Frio
Estações do ano Primavera Verão 5ª estação Outono Inverno
Pontos cardeais Leste Sul Centro Oeste Norte
Elementos
corporais
Músculos Sangue Carne,
gordura
Pele e pelos Ossos
Tecidos Tendões Tecido vascular Conjuntivo Pele, cabelos
Medula,
cérebro
Emoções Decisão/
irritação
Hiperexcitação Reflexão/
obsessão
Rigor Prudência
Paixões Cólera Alegria/ ódio Prazer/dor,
vontade
Tristeza/
alegria
Medo /
amor
Cores Verde Vermelho Amarelo Branco Preto
Sabores Ácido Amargo Doce Picante Salgado
Cereais Trigo Milho Centeio Arroz Feijão
Animais Frango Carneiro Boi Cavalo Porco
Voz Grito Fala Canto Choro Gemido
Atitude da voz Chamar Rir Cantar Lamentar-se Gemer
Atitude corporal Abraçar Agitar-se Arrotar Tossir Tremer
Odores Rançoso Queimado Perfumado Carnoso Pútrido
Líquidos Lágrimas Suor Saliva Muco Urina
Sentidos Visão Palavra Paladar Olfato/ tato Audição
Órgãos dos
sentidos
Olhos ngua Boca Nariz Ouvidos
29
A tabela foi construída a partir de GRANET (2004, p. 231-236) e D. LUZ (2006, p. 94).
61
Figura 12 – Exemplo de yin-yang aplicado ao diagnóstico
30
YIN YANG
Sinais Sintomas
Doença crônica Doença aguda
Início gradual Início rápido
Alteração lenta do quadro Alteração rápida do quadro
Frio Calor
Sonolência, apatia Agitação, insônia
Deita-se encolhido Deita-se esticado
Face pálida Rubor facial
Voz fraca Voz alta
Falar pouco Falar muito
Respiração lenta e superficial Dispnéia
Ausência de sede Sede
Urina profusa e pálida Urina escassa e escura
Diarréia Constipação
Língua pálida Língua vermelha
Saburra branca Saburra amarela
Pulso vazio Pulso cheio
Figura 13 – Correlação entre trajetos e pulsos
31
Região do pulso Profundidade o esquerda Mão direita
Proximal (na linha
da articulação do
pulso)
Superficial
Profundo
Intestino Delgado
Coração
Intestino Grosso
Pulmão
Medial Superficial
Profundo
Vesícula biliar
Fígado
Estômago
Baço
Distal Superficial
Profundo
Bexiga
Rins
Triplo aquecedor
Circulação-sexualidade
Figura 14 – Ilustração da localização dos pulsos
30
Cf. JACQUES (2005, p. 30).
31
Cf. LUZ, D. (2006, p. 131).
62
Figura 15 – Mapa da língua para diagnóstico
63
2.1.6 Tratamento: prevenir é o melhor remédio
Ao contrário da medicina ocidental, que visa eliminar a doença, a medicina chinesa
clássica é preventiva e trata a pessoa como uma unidade micro-cósmica da natureza, da
sociedade e do universo. Busca-se estimular as defesas do organismo ao invés de combater a
doença, que é um processo natural no fluxo da vida, assim como o envelhecimento e a morte.
A idéia é que mesmo na ausência de doenças a vitalidade sempre pode ser ampliada. O corpo
deve ser administrado estrategicamente, assim como o Estado (LUZ, D., 2006, p. 107). Por
influência do confucionismo, a responsabilidade pela saúde foi transferida para o próprio
indivíduo (LUZ, D., 2006, p. 109).
Cada estação climática pede uma reação diferente do organismo, um determinado tipo
de conduta e um tratamento específico. Cada indivíduo é tratado na singularidade do seu
quadro clínico
32
e em relação com o movimento das cinco fases e yin-yang (LUZ, D., 2006).
O que é visto como yin em uma fase da doença, na outra pode ser yang, tudo é relativo
(BARSTED, 2006, p. 51).
O sistema terapêutico está baseado na reciprocidade (estímulo-ressonância) entre as
cinco categorias correspondentes (BARSTED, 2006, p. 70). Várias técnicas são utilizadas em
conjunto e de acordo com a situação: acupuntura, moxabustão (estímulo dos pontos com
calor), massagem, dietética, fitoterapia, exercícios terapêuticos. Todas as terapêuticas,
inclusive a alimentação e a fitoterapia, estão baseadas na correspondência simbólica
sistemática. Na medicina clássica os pontos para acupuntura, moxabustão ou massagem são
escolhidos e combinados visando produzir determinados efeitos e evitar outros, de acordo
com o diagnóstico do potencial da situação, levando-se em conta o quadro global do indivíduo
(BARSTED, 2006, p. 56).
A atitude virtuosa do terapeuta é muito valorizada na medicina clássica. Nos textos
taoístas clássicos, do séc II d.C., são encontradas recomendações para que o médico entre em
contato com o vazio, o Tao, como modo de adquirir mais sensibilidade e estar mais perceptivo
à realidade do paciente (BARSTED, 2006, p. 46). No séc. VI d.C., o médico Sun Simiao criou
um código ético que recrimina a recusa ao tratamento de pacientes necessitados, bem como
caracteriza o bom médico como “aquele que mantém o espírito calmo e a mente inabalável,
buscando a sintonia com o Tao” (BARSTED, 2006).
32
Um exemplo da singularidade de cada paciente é a “tartaruga mística”, uma técnica da medicina oracular
muito utilizada no diagnóstico e tratamentos clássicos. Através de cálculos numerológicos sobre a data de
nascimento do paciente, podem ser identificados pontos proibidos para manipulação em determinados períodos
do dia, do mês ou do ano corrente (BARSTED, 2006, p. 58).
64
Figura 16 – A área reflexa da orelha
65
2.2 O desenvolvimento do modelo de racionalidade biomédica ocidental
A medicina ocidental originou-se na Grécia Clássica, com Hipócrates, que se baseava
em duas idéias: higéia e panacéia. Higéia é a vis medicatrix naturae, consiste no potencial
auto-regenerador do corpo humano como de toda a natureza, a saúde para Hipócrates era a
harmonia no convívio com os outros seres e com a natureza. Panacéia é a busca de um
remédio externo na natureza para reconstituir a harmonia do corpo (SAYD, 1998, p. 24). A
função do médico para Hipócrates não era apenas de diagnosticar, mas “prever os rumos da
doença e intervir como regulador entre os humanos e o ambiente” (SAYD, 1998, p. 26).
Na medicina hipocrática, higéia predominava sobre panacéia. A virtude era muito
importante para a manutenção da saúde. Os hábitos de alimentação e conduta não deveriam ir
contra a natureza e a cura advinha principalmente dos esforços pessoais. O uso da panacéia
era considerado obscuro, pois ao subverter a ordem natural com um elemento externo (o
remédio) a atividade médica aproximava-se da intervenção do feiticeiro. Mais tarde a idéia de
higéia perdeu a hegemonia e panacéia prevaleceu (SAYD, 1998, p. 26).
Foi principalmente o romano Galeno (130-201 d.C.) quem fundou os princípios que
predominaram na medicina ocidental até o séc. XIX. A noção de doença de Galeno estava
vinculada ao desequilíbrio de humores (bile, sangue, linfa e a atrabílis, ou bile negra) e a
terapêutica era a panacéia, o elemento exterior alterador da doença. Galeno não vinculava
saúde à virtude nem à harmonia com as leis naturais. Utilizava grande quantidade e
variabilidade de remédios, pois entendia que o próprio corpo escolheria os mais adequados
para seu tratamento. Visava provocar catarses através de sangrias e purgantes para purificação
do organismo e regulação dos humores (SAYD, 1998, p. 34-35).
Na Idade Média as concepções cristãs foram acrescentadas aos preceitos de Galeno e o
corpo tornou-se um obstáculo no caminho da salvação: deveria ser sobrepujado e transmutado
para que a alma fosse purificada dos pecados. A saúde era a salvação da alma. Esta
“transferência de pólo, da natureza medicatriz e mantenedora para a natureza que se regozija
na transmutação” é um processo que se aprofundará durante esse período (SAYD, 1998, p.
36). A princípio a natureza é o “campo de disputa entre o bem e o mal, o corpo se separa da
alma e somente essa tem importância” (SAYD, 1998, p. 36). Tanto alquimistas quanto
cristãos buscavam realizar a transformação da natureza imperfeita através de elementos
externos, sejam eles a hóstia ou as substâncias químicas (SAYD, 1998, p. 36). Mais tarde a
66
idéia de transmutação foi associada pelos alquimistas com sabedoria e purificação mental para
a salvação (SAYD, 1998, p. 37).
Na Alta Idade Média, as práticas de cura ainda seguiam receitas celtas e germânicas e
principalmente receituários de ervas da época de Galeno. Com as cruzadas, preceitos árabes
de higiene e dieta foram assimilados dentro da teoria galênica de equilíbrio de humores.
Devido à influência árabe, a medicina se aproximou da alquimia e substâncias metálicas -
como mercúrio e arsênico - foram introduzidas na provocação de catarses.
O Renascimento abriu novas perspectivas para a investigação da natureza, o
questionamento dos dogmas cristãos possibilitou a liberdade de criação para a humanidade e o
deslocamento do teocentrismo para o antropocentrismo. A idéia de seres humanos como
“criaturas testemunhas da criação” é substituída pela idéia de “herdeiros de Deus que são
senhores da natureza” (SAYAD, 1998, p. 41). O polêmico médico Paracelso (1493-1541)
rompeu com os preceitos galênicos e recuperou tradições populares de cura, estabeleceu uma
terapêutica analógica e oracular, fundamentada na alquimia, na astrologia, na natureza e em
Deus. Para o médico, a natureza ofereceria as indicações terapêuticas das ervas através de
sinais cifrados. A medicina de Paracelso utilizava remédios naturais, metais e misturas
químicas, mas operava por analogias simbólicas, por exemplo “uma noz com olhos
desenhados na casca é boa para doenças oftálmicas” ou “a folha com feitio de rim é boa para
doenças renais” (SAYAD, 1998, p. 41).
No processo de transformação da medicina, desde Galeno até o séc. XIX, “a cura
passou a vir de algo exterior ao homem, algo que o transforma ou purifica, passou a ser
encontrada por meios esotéricos, mágicos e religiosos” (SAYAD, 1998, p. 43). Diversas
escolas terapêuticas que surgiram desde então seguiram Galeno, Paracelso, ou ambos, mas
“todas praticavam o uso intenso de drogas com fins catárticos, todas as teorias justificavam a
necessidade de eliminação, e todos os medicamentos eram empregados com esse objetivo, do
antimônio às ervas naturais” (SAYAD, 1998, p. 42).
A noção de doença foi modificada no séc. XVII, deixando de ser relacionada aos
pecados e à possessão e voltando a ser um evento natural (SAYD, 1998, p. 45). “A confiança
na harmonia universal fundada na razão” foi transposta para a natureza. A separação da razão
técnica dos assuntos religiosos operada pelas teorias de Descartes (1596-1650) acabou por
incentivar um retorno ao modelo hipocrático de natureza como fonte de saúde. Mas a
natureza, o corpo e as doenças tornaram-se objetos observáveis, a serem descritos e
classificáveis através da razão (SAYD, 1998, p. 45). O corpo passou a ser visto como uma
67
máquina separada do espírito que a anima, com funcionamento independente que segue leis
naturais que podem ser manipuladas.
Segundo Sayd, tanto para Leibniz (1646-1716) como para Descartes (1596-1650), dois
filósofos racionalistas do séc. XVII, a força “mantenedora e medicatriz” da natureza estava
associada à Razão Suprema e à Bondade Divina que não desamparavam a humanidade em seu
sofrimento (SAYD, 1998, p. 46). Para Leibniz, mais que da medicina, a cura vinha da
natureza. Para Descartes, era necessário compreender a razão da natureza, que indicaria os
meios de cura:
Tanto o organismo possui forças próprias quanto a natureza oferece meios
curativos. A busca da cura só pode se basear, também, em propostas racionais,
derivadas da observação e da classificação da doença, e de elementos da natureza que
podem servir como remédio (SAYD, 1998, p. 46).
No final do séc. XVII, duas correntes surgiram na medicina européia, ambas herdeiras
da visão hipocrática, para a qual o indivíduo, para obter saúde, deveria seguir regras
estabelecidas pela natureza como um “exercício de desenvolvimento de virtude”
(NASCIMENTO, 1997, p. 20). Tanto Hoffmann (1660-1742) como Stahl (1660-1734)
diziam-se hipocráticos, no sentido de enfatizar a profilaxia, a confiança na natureza e o
“cuidado de si, a observação do que é bom ou nocivo para o próprio organismo, de modo a
evitar ao máximo, o recurso ao médico” (SAYD, 1998, p. 49).
A idéia de ser “médico de si-
mesmo” adentrou a primeira metade do séc. XVIII, atraindo as elites. Contudo as camadas
populares continuavam utilizando os curandeiros (SAYD, 1998).
Por um lado, o mecanicismo de Hoffmann seguia o modelo cartesiano. Entendia a
natureza como um mecanismo em funcionamento e o corpo humano como máquina
hidráulica, composta por órgãos articulados (NASCIMENTO, 1997, p. 20). Para Hoffmann,
que era iluminista, a dilatação e contração dos órgãos gerava o movimento dos humores
(aqueles de Galeno) e os distribuía pelo organismo. Esse espasmo contínuo era natural e auto-
regulável (SAYD, 1998, p. 48).
Por outro lado, Stahl, criador do vitalismo, defendia a existência de uma substância
transcendente que habitaria somente os seres vivos, como uma espécie de fluído vital. A
natureza seria fonte dessa força geradora de vitalidade e saúde; o desequilíbrio do fluído vital
nos organismos causaria doenças. Segundo Sayd (1998, p. 47): “Stahl é místico, seu vitalismo
é animista: a alma e o princípio vital não prescindem da idéia de Deus”.
As revoluções científicas dos séc. XVII e XVIII trouxeram no progresso e
entusiasmo pelo domínio da natureza, mas a medicina ainda era vista com desconfiança pela
68
população. As práticas catárticas galênicas, como a sangria e o purgante, ainda
predominavam. As epidemias se alastravam (peste, sífilis, varíola, lepra) e os hospitais eram
lugares de onde as pessoas geralmente saiam mortas, por isso os cuidados caseiros da
medicina tradicional popular eram preferidos aos tratamentos médicos (SAYD, 1998, p. 49).
Nesse período os charlatões não se distinguiam em nada dos médicos.
No final do séc. XVIII nasceu o conceito de medicina ligada à ação disciplinar sobre a
sociedade. As doenças tornaram-se patologias causadas por fatores externos que invadem o
corpo humano. A associação entre medicina e Estado possibilitou o estabelecimento de uma
política de higienização da sociedade. Esse amplo projeto de reforma social visava o
saneamento das cidades e abrangia diversas áreas, da saúde pública à educação. A fundação
de escolas de medicina corroborou para a institucionalização do saber médico como
autoridade legítima, hierarquicamente superior ao restante da população. As clínicas
tornaram-se centros para estudos de anatomia, fisiologia, classificação das doenças e
medicamentos, e assim viabilizaram a sistematização do conhecimento. Por outro lado,
segundo Madel Luz, nesse momento “a concepção de corpo doente, como corpo individual,
objeto de intervenção médica, ajuda a constituir o indivíduo moderno” (LUZ, M., 2004, p.
131).
A doença foi progressivamente reduzida ao plano biológico e fisiológico. Nas palavras
de Luz, ocorreu uma “dupla objetivação”, o corpo humano doente “foi objetivado como sede
das doenças e as doenças objetivadas como entidades patológicas” a serem combatidas como
inimigas (LUZ, M., 2004, p. 123). O desenvolvimento da anatomia, fisiologia e patologia
alicerçaram a clínica moderna. Era importante, sobretudo, conhecer a doença e aniquilar as
epidemias, o corpo do paciente tornou-se um “grande laboratório vivo do progresso médico-
farmacêutico” (LUZ, M., 2004, p. 125). Tanto o corpo individual como o social, tornaram-se
alvos da intervenção medicamentosa, mas não aquela da panacéia hipocrática, que concebia a
doença em relação ao meio-ambiente e que podia ser tratada com elementos naturais (LUZ,
M., 2004, p. 125). Na medicina moderna que nasceu com a clínica, a intervenção através de
medicamentos químicos é a principal arma no combate da doença. A saúde passou a ser vista
como ausência de patologia e a cura passou a representar a eliminação dos sintomas (LUZ,
M., 2004, p. 125).
Pinel (1745-1826), um dos organizadores da clínica moderna, líder da Escola de Paris,
enfatizava a atitude cética e experimental. Era acusado de obsessão pelo diagnóstico e
menosprezo pelo tratamento dos doentes (SAYD, 1998, p. 53). Broussais (1772-1838), que
substituiu Pinel em 1816, impôs um sistema de tratamento fundamentado na idéia de “doença
69
decorrente de uma reação do organismo às agressões do meio, que o excitariam ou
inflamariam” (SAYD, 1998, p. 56).
Várias substâncias foram disponibilizadas pelas descobertas farmacêuticas durante o
séc. XIX, como por exemplo, a morfina destilada do ópio em 1805. A cirurgia pode
desenvolver-se graças aos novos procedimentos assépticos, assim tornou-se possível estudar o
funcionamento do corpo humano vivo, não mais através de cadáveres (LUZ, M., 2004). A
fisiologia foi consolidada pelas investigações de Claude Bernard (1813-1878) que utilizava
métodos objetivos de experiência com animais e averiguação de hipóteses (SAYD, 1998, p.
58).
Segundo Sayd (1998, p. 64), no séc. XIX a divulgação da “medicina sem médico”
substituiu aquela do “médico de si mesmo”, muito comum no séc. XVIII, mas ambas
indicavam uma oposição à corporação médica e ao monopólio do saber, não propriamente ao
conhecimento desenvolvido pela medicina:
No decorrer do séc. XIX, o desprestígio do clínico era evidente na abundância
de publicações intituladas “medicina sem médico”, editadas com o objetivo explícito
de fornecer ao leitor a instrução necessária para se tratar sem recorrer a médicos. (...)
eram textos de divulgação de anatomia, fisiologia, dietas, listas de medicamentos, em
tudo extraídos do saber produzidos pelos cientistas oficiais. A resistência se dava
contra a figura do profissional, contra a corporação que se organizava e queria
monopolizar esse saber e o direito ao seu uso (SAYD, 1998, p. 63).
Ao separar a doença do doente, o sujeito do objeto, o médico do paciente, a medicina
positivista do séc. XIX preparou o reconhecimento institucional e jurídico da superioridade do
saber biomédico frente às curas tradicionais e populares, que passaram a ser consideradas
mágicas e arbitrárias, portanto não-científicas (MARTINS, 2003, p. 111). A ascensão política
da corporação médica como elite foi favorecida pela associação com a força repressora do
Estado, que lhe outorgou poder para disciplinar, higienizar e moralizar a população. Ao
mesmo tempo, constituiu-se uma racionalidade médica objetiva e científica, que passou a
determinar os parâmetros de validação da verdade. Segundo Martins:
A clínica moderna buscou constituir-se no berço de um conhecimento
definitivo sobre a doença e a cura. Para isso, produziu um discurso sobre a
universalidade da ciência médica (discurso de classificação e de controle da doença
vista como um fenômeno rebelde), o que lhe permitiu colocar-se numa posição oposta
às demais medicinas, tidas como saberes particulares e não-científicos, isto é, frutos da
ignorância popular e da tradição mágica e irracional (MARTINS, 2003, p. 130).
A Segunda Guerra Mundial foi um marco que determinou, por um lado, a ampliação
do desenvolvimento tecnológico. Por outro, revelou o fim da utopia do progresso e abriu
possibilidades para o questionamento da neutralidade política da ciência. Duas tendências
70
emergiram na medicina desde então: a tecnifização e a reumanização (MARTINS, 2003, p.
132). Na primeira perspectiva, o grande avanço técnico da ciência e da medicina, aliado aos
interesses econômicos de grupos privados, fez prevalecer os valores utilitários na biomedicina
durante o séc. XX. A compartimentação em áreas cada vezes mais especializadas aumentou o
distanciamento entre o médico e o sujeito doente. Desencadeou uma coisificação das doenças
e possibilitou a mercantilização da medicina, levando à constituição de um capitalismo
médico especulativo, a partir da segunda metade do séc. XX, que subordinou a biomedicina à
lógica de mercado (MARTINS, 2003). Na segunda perspectiva, de reumanização, a
racionalidade biomédica e o conceito de corpo como mera máquina biológica vêm sendo cada
vez mais questionados nas sociedades pós-industriais, inclusive dentro da medicina oficial.
2.3 Principais diferenças entre a racionalidade chinesa clássica e a racionalidade
biomédica ocidental
Conforme demonstramos, as concepções chinesas clássicas sobre corpo, saúde e
doença são completamente divergentes das ocidentais modernas. Isso tem reflexos no tipo de
medicina que cada sociedade construiu. De acordo com as particularidades inerentes às duas
racionalidades médicas podemos destacar algumas diferenças fundamentais. Enquanto na
visão biomédica o corpo é fragmentado e a meta é a eliminação da doença, vista como um
agente exterior inimigo, dissociado do indivíduo, na racionalidade chinesa clássica o corpo é
uma unidade bio-psiquico-espiritual, integrada ao ambiente natural, social e cósmico. A saúde
é o resultado dessa integração, a doença é a falta de ordem. São dois enfoques diferentes para
tratamento e diagnóstico: o ocidental incide sobre a doença, o chinês clássico sobre o
indivíduo. No primeiro o paciente é passivo, pois a doença está fora dele. No segundo ele é
ativo, a doença é uma desarmonia que ele pode ajudar a corrigir através da correspondência
simbólica.
A medicina convencional ocidental sobrevaloriza os diagnósticos objetivos,
especialmente os realizados com alta tecnologia. A identificação da doença através do exame
acaba sendo mais importante que a situação do sujeito humano em seu sofrimento (LUZ, M.,
2005). O tratamento convencional é alopático, rápido e invasivo, realizado através de
medicamentos químicos. Por outro lado, na medicina chinesa clássica, o diagnóstico procura
prever distúrbios que ainda não se manifestaram, o tratamento está voltado também para a
prevenção, é uma correção de caminhos mais que uma eliminação da enfermidade.
71
Para serem utilizados, os métodos diagnósticos da medicina chinesa clássica exigem o
desenvolvimento de uma sensibilidade que não é racional, é intuitiva e visa captar sinais sutis.
Esse método investigativo é característico das medicinas tradicionais de modo geral. Esteve
presente na semiologia médica ocidental até a implantação do método científico experimental
e objetivo, na medicina do final do séc. XVIII. Não é um saber objetivo, está mais próximo do
método indiciário descrito por Ginzburg, do que do método científico ocidental.
Seguindo o raciocínio de Ginzburg, a oposição básica entre a racionalidade científica e
os saberes tradicionais, sejam ocidentais ou chineses, estaria no modo de conhecer os
fenômenos. O método científico é generalizante, busca comprovações através da
quantificação de eventos. Enquanto no paradigma indiciário, a abstração de detalhes
singulares é impossível, pois eles são fundamentais. O modelo indiciário não comporta a
quantificação do método experimental científico, pois “funda-se em sutilezas não-
formalizáveis, freqüentemente nem traduzíveis em nível verbal” (GINZBURG, 2003, p. 167).
Não pode ser exatamente generalizado, pois parte de aspectos individuais específicos, “sua
força e seu limite” estão na fragilidade de lidar com o instrumento da abstração (GINZBURG,
2003, p. 167).
O método indiciário possui rigor, mas um rigor flexível, em que são fundamentais
observações de “formas mudas”, e um certo “faro” ou “intuição” do investigador, seja ele um
historiador ou um médico. Depende de capacidades desenvolvidas através da experiência
prática e da apuração dos sentidos. A intuição de que fala Ginzburg
33
é a que “une
estreitamente o animal homem às outras espécies animais” (GINZBURG, 2003, p. 179).
Os saberes indiciários seriam um patrimônio cognitivo herdado dos nossos ancestrais
caçadores, desenvolvidos para farejar, decifrar e registrar pistas, sinais e símbolos, como
indícios de possíveis eventos, tais como pegadas, odores e pelos soltos indicariam a
localização de um animal. Esses saberes tradicionais também são chamados de venatórios,
adivinhatórios ou semióticos. Segundo o autor, “o que caracteriza esse saber é a capacidade
de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar à uma realidade complexa não
experimentável diretamente” (GINZBURG, 2003, p. 152). São saberes antigos no Ocidente
que, apesar das revoluções científicas processadas a partir do séc. XVII, foram mantidos nas
sociedades ocidentais através dos romances e das práticas populares, recebendo novas
significações com as ondas orientalizantes dos séculos XVIII e XIX.
33
O autor faz questão de distinguir a “intuição arraigada nos sentidos”, presente no método indiciário, que está
ao alcance de todos os seres humanos, daquela intuição “supra-sensível dos vários irracionalismos dos séculos
XIX e XX”, acessível apenas para “iniciados”.
72
Pudemos verificar, nas páginas anteriores, que até o séc. XIX, grande parte das
práticas médicas européias estavam, de certa forma, afinadas com o pensamento médico
chinês tradicional
34
. Para a medicina hipocrática, “a doença em si era inatingível”, seu
conhecimento dava-se pela análise do desenvolvimento do quadro do paciente (GINZBURG,
2003, p. 155). O diagnóstico correspondia à decifração (passado) e o prognóstico à
adivinhação (futuro). Até o nascimento da clínica (final do séc. XVIII) na medicina ocidental
“o corpo vivo era por definição inatingível”, a dissecação de cadáveres não possibilitava a
dinâmica de funcionamento da vida. A doença não era quantificável, uma vez que em cada
indivíduo assumia diferentes características (GINZBURG, 2003, p. 166).
Conforme Ginzburg:
Ao longo do séc. XVIII, a situação muda. Há uma verdadeira ofensiva cultural
da burguesia que se apropria de grande parte do saber, indiciário e não-indiciário, de
artesãos e camponeses, codificando e simultaneamente intensificando um gigantesco
processo de aculturação, já iniciado com a Contra-Reforma (GINZBURG, 2003, p.
167).
O método indiciário foi recuperado e sistematizado por Morelli, no final do séc. XIX,
como modo de averiguar autenticidade de obras de arte, e com finalidade de investigar
possíveis falsificações. Os estudos de Morelli teriam influenciado a psicanálise
35
. O
investigador constatou a importância das características secundárias que passam
despercebidas ao senso comum, “detalhes triviais”, mas que são por isso mais difíceis de
serem imitados. Ao invés de evidências óbvias, procurava indícios e pistas ocultas, fatores
que parecem irrelevantes, mas que na verdade são reveladores. Ginzburg, porém, aponta uma
distinção entre o método dos caçadores e o método de Morelli:
Uma coisa é analisar pegadas, astros, fezes (animais ou humanas), catarros,
córneas, pulsações, campos de neve ou cinzas de cigarro; outra é analisar escritas,
pinturas ou discursos. A distinção entre a natureza (inanimada ou viva) e cultura é
fundamental (...) Ora, Morelli propusera-se buscar, no interior de um sistema de signos
culturalmente condicionados como o pictórico, os signos que tinham a
involuntariedade dos sintomas (e da maior parte dos indícios). (...) Morelli reconhecia
a individualidade do artista (GINZBURG, 2003, p.171).
Com essa exploração do modelo indiciário detectado por Ginzburg, pretendemos
demonstrar que, se por um lado os métodos da medicina clássica chinesa são compatíveis com
aqueles utilizados no Ocidente por muito tempo, como pudemos notar esse modelo não se
34
Na realidade, esse modelo indiciário continuou sendo usado na medicina ocidental até a segunda metade do
séc. XX, principalmente pelos clínicos gerais, aqueles médicos da família”, no diagnóstico de doenças
acessíveis somente através da observação de sintomas sutis. Seria um modo de “inferir as causas a partir dos
efeitos” (GINZBURG, 2003, p. 153).
35
O método de Morelli, era semelhante a uma arqueologia, inspirou tanto A.C. Doyle, criador do personagem
Sherlok Homes como também Sigmund Freud, pai da psicanálise. Os três, Morelli, Doyle e Freud, possuem em
comum a formação em medicina e seguem um modelo baseado na semiótica médica, cujas raízes são antigas
(GINZBURG, 2003, p. 153).
73
coaduna com o padrão científico. O modelo indiciário não pode ser generalizado, está
direcionado para as características subjetivas, singulares de cada personalidade, que não
podem ser controladas pela razão objetiva, pois passam desapercebidas aos sujeitos
individuais, deixando, porém, marcas sutis que podem ser identificadas por observadores
minuciosos.
Talvez um dos motivos do crescimento do interesse pela medicina chinesa,
especialmente pela acupuntura, nos meios ocidentais, tenha sido justamente o resgate de um
paradigma presente nos antigos saberes ocidentais, que considera as singularidades
individuais, sem, no entanto, aliená-las do meio social em que se desenvolvem. O modelo
indiciário das medicinas tradicionais também é subjacente ao desenvolvimento da psicanálise
e parece ser mais adequado à importância atribuída à subjetividade na modernidade tardia, do
que o modelo biomédico generalista e uniformizador, hegemônico nas sociedades pós-
industriais.
Martins observa que a racionalidade biomédica cartesiana reproduziu as concepções
morais cristãs de separação entre corpo e espírito na idéia de separação entre corpo e razão, o
que contribuiu para a domesticação dos corpos e para o controle social (MARTINS, 2003, p.
126). A medicina que disciplinou o corpo individual e o corpo coletivo pôde prevalecer
enquanto a ciência biomédica conseguiu manter essa separação e abafar a “dinâmica
psicoemocional da sociedade”, porém sofreu dois grandes impactos (MARTINS, 2003, p.
125).
O primeiro impacto no paradigma biomédico positivista foi a introdução do conceito
de inconsciente pela psicanálise freudiana, que rompeu com a idéia de corpo unicamente
biológico. A partir do desenvolvimento da psicanálise o corpo ganhou uma psique, uma
dimensão oculta da razão. Através da psiquiatria os conceitos da psicanálise puderam alcançar
a medicina, abalando as bases anatômicas e fisiológicas da medicina dominante (MARTINS,
2003, p. 131). Uma perspectiva de reação à medicina técnica capitalista foi insuflada pelo
movimento de contracultura, que propiciou o resgate das concepções tradicionais de saúde e o
surgimento de novas formas de tratamento como alternativas ao modelo alopático biomédico
e à medicina hospitalar empresarial. Isso determinou o segundo grande impacto no paradigma
biomédico que resultou na emergência das medicinas alternativas ou paralelas.
Como veremos nos capítulos posteriores, antes de ser considerada um procedimento
científico, a acupuntura foi incluída no Ocidente como medicina alternativa à racionalidade
biomédica. As medicinas denominadas alternativas ou paralelas são uma combinação
eclética de diferentes práticas tradicionais de cura, medicinas vitalistas, metafísica e
74
psicanálise, reunidas em um ideal comum de reaproximação entre médico e doente, e de
revalorização dos aspectos simbólicos da cura que escapam aos argumentos racionalistas
(MARTINS, 2003).
Mais recentemente, desde o final do séc. XX, a acupuntura vem sendo incorporada
como técnica complementar aos tratamentos da medicina convencional, conforme a lógica de
combate aos sintomas das doenças e de eliminação da dor, característica da racionalidade
biomédica ocidental. Assim, podemos entender que a acupuntura praticada de acordo com o
padrão generalista da racionalidade biomédica é uma total ruptura com o modelo tradicional
chinês, caracterizando-se como invenção de uma nova técnica ocidental de inserção de
agulhas no corpo para tratamento de pequenos distúrbios de saúde.
Figura 17 – Resumo comparativo entre medicina clássica chinesa e medicina ocidental
convencional
Chinesa Clássica Ocidental
Saúde Equilíbrio e fluidez da circulação de Ch’i
no organismo; resultado da harmonia entre o
ser humano e seu ambiente, natural, social,
entre macrocosmo e microcosmos; bem-estar
físico-mental-espiritual.
Ausência de doença; saúde é uma
mercadoria.
Doença Sintoma de desarmonia, distúrbio da
circulação do Ch’i, quebra de uma certa
ordem cósmica.
Patologia, doença é dissociada do
indivíduo; imaginário bélico, doença é
invasão exterior.
Cura Reequilíbrio das polaridades yin-yang;
restabelecimento do fluxo de Ch’i.
Eliminação da doença.
Tratamento Preventivo; incide sobre a pessoa.
Visa à cura, incide sobre a doença,
ataque aos elementos invasores;
utilização de químicos.
Paciente Ativo – alimentação, exercícios, auto-
regulação do organismo, participação na cura;
auto-gestão da saúde.
Passivo: médico é o curador, e
paciente depende dele para obter a
cura e é alienado da sua própria
situação.
Corpo Unidade dinâmica, psico-físico-emocional,
microcosmo que reproduz o macrocosmo,
Inclui o corpo sutil, visão monista, união
corpo-mente-espírito.
Fragmentado em órgãos com funções
separadas; máquina animada pela alma
(Descartes); visão dualista; corpo
separado do espírito.
Diagnóstico Indiciário; considera o histórico individual do
paciente e diversos aspectos de sua aparência,
como cor da pele, tom da voz, língua, além da
apalpação dos canais e dos pulsos para
identificar excesso ou falta de Ch’i.
Racional e objetivo, dependente da
tecnologia, visa obter comprovação
científica através de exames;
fetiche científico-tecnológico
Enfoque Enfoque no tratamento, na saúde e vitalidade;
arte terapêutica.
Enfoque no diagnóstico das doenças;
normalidade / patologia; técnica.
Paradigma Indiciário; signos, emblemas e sinais indicam
realidade não diretamente observável.
Generalista; método experimental de
comprovação efetiva através de
quantificação.
75
PARTE II
O CAMINHO DAS AGULHAS PARA O OCIDENTE
76
3 A adoção da acupuntura como alternativa à medicina convencional ocidental
Existem várias acupunturas. Uma é simplista e primitiva. Consiste em picar no
local da dor, sem preocupação por outros conhecimentos. Salvo para as dores recentes,
produz alívio de curta duração. Outra, em nível mais elevado, utiliza alguns pontos em
fórmulas apreendidas de memória conhecendo só a moléstia sem preocupar-se com os
doentes, nem com as interações. Permite regular medianamente os órgãos, porém não
ataca a causa profunda das moléstias, nem das ordens da vitalidade.
(George Soulié de Morant, apud LUTAIF, 2005, p. 25).
Retomando as idéias dos capítulos anteriores, a medicina chinesa é composta por uma
pluralidade de sistemas terapêuticos, mas no Ocidente a acupuntura recebeu maior atenção do
que outras técnicas e foi adotada conforme duas perspectivas: a) tradicional: adoção do
sistema clássico de correspondência simbólica, denominada acupuntura clássica; b)
modernizada: apropriação dentro do padrão científico ocidental, como acontece na China
contemporânea, denominada acupuntura científica.
A intenção desse capítulo é recompor as condições sócio-históricas que possibilitaram
a abertura do Ocidente para a prática tradicional de acupuntura. Muito antes de ser
considerada científica, a inclusão da acupuntura no conjunto das medicinas alternativas à
medicina biomédica alopática foi fundamental para sua aceitação no Ocidente. Nesse sentido,
nosso principal tema será o fenômeno da expansão das medicinas não-convencionais, de um
modo genérico, sem focalizar especificamente a acupuntura e a medicina chinesa.
De uma maneira geral, podemos dizer que até a década de 1960 a acupuntura seguiu o
mesmo fluxo dos elementos orientais, gozando de pouca expressividade em comparação com
outras tradições asiáticas, sobretudo as de origem budista e hinduísta. Em relação às outras
medicinas não-convencionais ou tradicionais, orientais ou ocidentais, a chinesa pouco se
destacava. A França foi o país que melhor acolheu a acupuntura, engendrando novas técnicas
e traduzindo a tradicional terapêutica chinesa para o resto da Europa, embora em uma
linguagem adaptada ao pensamento ocidental.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) foi a primeira a utilizar o termo medicina
alternativa (1962), no singular, para denominar principalmente o conjunto das medicinas
tradicionais, nacionais, regionais ou orientais (chinesa, ayurvédica, homeopatia, indígena,
popular, etc) (LUZ, M., 2005, p. 37). As medicinas não-convencionais, especialmente as
tradicionais, vêm sendo amplamente incentivadas pela OMS
36
desde o final da década de
36
De acordo com LAPLANTINE; RABEYRON (1989, p. 17-21), a lista da OMS inclui entre muitas outras:
homeopatia, acupuntura, moxabustão, reflexoterapia, iridologia, auriculoterapia, aromaterapia, astrologia,
radiestesia, radiônica, “Touch for Health”, psicodrama, gestalt, bioenergética, terapia orgônica, psicossíntese,
dietética, jejum, banhos, fitoterapia, yoga, meditação, cura pela fé, cura metafísica, medicinas populares, etc.
77
1970, e foi nesse contexto que a acupuntura emergiu como uma prática de saúde
mundializada. Somente a partir dos anos 90 começou a se distanciar das demais terapias
orientais e do conjunto das chamadas medicinas alternativas, ganhando um status mais
elevado de método científico. Conforme o relatório de estratégias da OMS sobre medicinas
tradicionais (2002-2005):
Medicina tradicional (MT) é um termo amplo que se refere não à medicina
tradicional chinesa, a ayurvédica hindu, a medicina árabe, e as diversas formas de
medicina indígena. As terapias da MT incluem terapias com medicação, que utilizam
ervas, partes de animais e minerais, e terapias sem medicação, como a acupuntura, as
terapias manuais, terapias espirituais e exercícios individuais para obter bem-estar e
prevenir enfermidades. Em países onde o sistema sanitário dominante é o alopático, a
medicina tradicional se classifica como medicina “complementar”, “alternativa” ou
“não-convencional” (tradução nossa).
Nesse caso, a acupuntura é medicina tradicional na China, mas no Ocidente ela é
alternativa, complementar ou não-convencional
37
. Nos meios ocidentais esses termos
referem-se ao amplo grupo de práticas que não fazem parte dos modos dominantes de saúde
europeus. Mesmo os sistemas desenvolvidos na Europa desde o séc. XVIII, como a
homeopatia e sistemas quiropráticos, que poderiam ser considerados tradicionais europeus,
são classificados como complementares alternativos, que não foram reconhecidos pela
medicina alopática.
As medicinas alternativas também são denominadas brandas, suaves ou doces, em
oposição à medicina alopática, considerada dura e agressiva. Não são recentes no Ocidente,
permaneceram marginalizadas até serem recuperadas pelo movimento de contracultura
(LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 34).
Antes de retomarmos o processo histórico de adoção da acupuntura até sua inclusão
nas medicinas alternativas, vamos entender as origens das medicinas não-convencionais
ocidentais, para posteriormente analisarmos as circunstâncias de sua ascensão na segunda
metade do século XX. Por último, apresentaremos algumas análises sobre o êxito das
medicinas brandas nas sociedades ocidentais contemporâneas e suas diferenças com a
medicina convencional alopática.
37
De acordo com o mesmo relatório, medicina tradicional geralmente refere-se à África, América Latina,
Sudeste Asiático e Pacífico Ocidental. Na América do Norte, Europa e Austrália, essas medicinas tradicionais
são denominadas alternativas, complementares, ou também não-convencionais ou paralelas.
78
3.1 Medicinas não-convencionais: um fenômeno ocidental antigo
Conforme expusemos, por muito tempo na Europa não havia diferenciação entre a
medicina e as curas populares. Essa distinção aconteceu a partir do final do séc. XVIII,
quando as instituições médicas e científicas tornaram-se instâncias normalizantes,
substituindo as instituições religiosas nessa função. No mesmo período passou a ocorrer
paralelamente na Europa um movimento que tentava integrar o pensamento mágico e a
ciência através da “laicização”, “especialização” e “urbanização” da medicina popular de
origem camponesa (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 55). Um dos precursores desse
movimento foi o médico austríaco Franz Mesmer (1734-1815), que influenciou diversas
correntes, médicas e para-médicas, com a idéia de “magnetismo animal” e “fluido vital”.
Em 1778, Mesmer anunciou em Paris a descoberta de um fluído magnético que
penetrava os seres vivos e cercava tudo no mundo. Seria um meio de ação da gravidade e
podia ser controlado pela mente. Na concepção mesmerista, a doença era causada por
obstáculos ao deslocamento do fluído através do corpo. As técnicas de cura desenvolvidas por
Mesmer consistiam em massagens em “pólos magnéticos” do corpo, imersão em cubas com
limalha de ferro e água “fluidificada” e indução de crises, tais como convulsões, para
restaurar a saúde, que seria a harmonia com a natureza. Mesmer, que utilizava hipnotismo e
truques mágicos, não dispensava cenários e indumentárias nas suas dramatizações, tais como
salas especiais para as crises e manto lilás nos ombros (DARNTON, 1988, p. 12-18).
Para o senso comum da época, descobertas como a gravidade, a eletricidade e os
gases, que possibilitaram o vôo em balões, eram tão miraculosas como aquelas apresentadas
por Mesmer. A existência de gases invisíveis como hidrogênio e oxigênio tornava plausível a
idéia do fluído que a tudo permeava
38
(DARNTON, 1988, p. 12-18). As idéias de Mesmer
influenciaram diversas correntes religiosas dos séculos seguintes, como a teosofia e o
espiritismo, confluindo para um ponto em comum com as práticas não-convencionais de
saúde. O magnetismo e a hipnose desenvolvidos por Mesmer foram também inspiração para a
psicologia e para-psicologia.
A antiga oposição ao saber médico institucionalizado tem raízes não no
mesmerismo como também no vitalismo. As medicinas não-convencionais geralmente
seguem o modelo vitalista, do químico e médico alemão G. E. Stahl (1660-1734), citado no
38
Poderíamos conjecturar que a noção chinesa de Ch’i (descrita no tópico sobre a racionalidade clássica chinesa)
tenha sido traduzida no Ocidente como uma correspondência do fluído de Mesmer ou do Oxigênio presente na
atmosfera.
79
capítulo anterior. Mesmo sendo rejeitado pela ciência, o vitalismo não deixou de influenciar
boa parcela dos médicos. Stahl não acreditava que a vida pudesse ter origem em simples
elementos químicos, haveria uma substância inteligente imaterial que regeria o corpo vivo, e
que foi identificada como uma força ou fluído vital (NAGY, 2003, p. 256).
Ainda no séc. XVIII, dois médicos seguidores de Stahl - Barthez (1734-1806) e
Bordeo (1732-1776) - introduziram o vitalismo na Escola de Montpelier, mas com uma
característica iluminista, desvinculada de explicações religiosas (SAYD, 1998, p. 48). A
Escola de Montpelier rivalizava com a Escola de Paris, principal representante da clínica
moderna, e influenciou fortemente a medicina francesa nos séculos seguintes, lançando as
sementes para o desenvolvimento, no final do séc. XIX, de uma linha humanista neo-vitalista,
Essa linha, porém, era materialista, procurava secularizar a “força vital” comparando-a com
conceitos de gravidade da física mecanicista (SAYD, 1998, p. 108).
As correntes vitalistas do séc. XIX são chamadas medicinas paralelas, pois brotaram
no seio da própria medicina científica, principalmente como reação ao racionalismo
positivista. Embora tenham comparecido timidamente na história, surgiram como um espelho
da racionalidade científica, desenvolvendo-se paralelamente e derivando novas ramificações
(LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 28). Alguns exemplos são a homeopatia e a
antroposofia.
A homeopatia foi criada pelo médico Hahnemann, que em 1810 publicou o “Organon
da Ciência Médica Racional” (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 28). Hahnemann
opunha-se diretamente à alopatia. Para a homeopatia, a doença era um processo individual
singular, não era igual para todas as pessoas. As causas deveriam ser tratadas na origem com
substâncias dinamizadas energeticamente, pelo princípio de semelhança, não mais pelo
princípio de oposição dos medicamentos alopáticos, que visavam o combate da doença e a
eliminação dos sintomas. A homeopatia é uma medicina naturalista de influência hipocrática
que reúne higéia e panacéia, em que a busca individual de conformação às leis naturais
conduz à saúde.
A medicina antroposófica, criada por Rudolf Steiner em 1903 (LAPLANTINE;
RABEYRON, 1989, p. 28) também segue o naturalismo e o vitalismo. Steiner combinava o
ocultismo da linha teosófica com conhecimentos científicos da época. Buscava desenvolver
uma medicina que dialogasse com outros saberes como a pedagogia, as artes e a agricultura
(LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 28).
O desenvolvimento das medicinas paralelas está ligado ao interesse pelo ocultismo e
esoterismo no final do séc. XIX. Esses movimentos espiritualistas reivindicavam a tradição
80
esotérica de antigas civilizações, cujas distâncias espaciais e temporais permitiram reescrever
sua história (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 27). No séc. XIX, numerosos médicos se
interessaram pelo vitalismo, mesmerismo (magnetismo animal), ocultismo e kardecismo.
Porém as práticas paralelas foram discriminadas como “supersticiosas” e “atrasadas” até o
movimento de contracultura semear idéias que propiciassem uma reação contra os valores
instituídos nas sociedades ocidentais (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 34).
3.2 A tradução da acupuntura: do oriente imaginário dos jesuítas à acupuntura energética
francesa
A aplicação de agulhas é apenas um entre tantos métodos terapêuticos da medicina
chinesa
39
que vem sendo traduzido como acupuntura para o ocidente desde o séc. XVII. A
palavra acupuntura deriva do latim e foi criada por missionários jesuítas que estiveram na
China e no Japão (acum significa agulha e punctum significa picada ou punção). Em chinês é
denominada Zhen-Jiu, expressão que ao mesmo tempo significa estímulo com agulhas e com
calor (PAI, 2005, p. 23).
Desde Marco Pólo o Oriente era retratado como um lugar idílico, cheio de maravilhas,
riquezas e quimeras, imagem que foi reforçada pelos relatos de navegantes e missionários,
que ajustaram suas experiências de viagem às expectativas ocidentais. A partir do séc. XVI e
XVII, viajantes e jesuítas que estiveram na China, Tibet e Japão, começaram a descrever as
concepções e costumes exóticos desses povos, como, por exemplo, a acupuntura.
A imagem dos chineses era ambígua, na visão européia eles eram ao mesmo tempo
bárbaros e civilizados. Debates teológicos da época discutiam a presença ou não de
concepções religiosas entre os chineses (CARDOSO, 1991, p. 10-11). Matteo Ricci, jesuíta
italiano fundador da Missão Católica na China, que viveu de 1582 até sua morte em 1610,
criou um modelo missionário de inculturação como estratégia de conversão dos chineses ao
cristianismo. Graças a Ricci e seus jesuítas as idéias científicas ocidentais penetraram na
China
40
, e missões foram instaladas para ensinar aos chineses conhecimentos sobre
astronomia, matemática, física e química.
Ricci estabeleceu a política de “ser chinês para atingir os chineses”, que atravessou
todo o séc. XVII causando intensa polêmica. Aprendeu a língua e os costumes, respeitava os
39
Outros são a moxabustão (estímulo de pontos com calor), tui-ná (manipulação vertebral e massagem), a
dietética, fitoterapia, e as artes corporais como o Tai Chi Chuan e Chi Kung.
40
Cf. A igreja católica na China. Câmara de Comércio e Indústria Brasil/China. Acesso em jul. 2007.
81
cultos aos ancestrais, a adoração ao Senhor do Céu (Tian) e a veneração a Confúcio, tendo ele
mesmo adotado os ritos. Foi o pioneiro na tradução cristã das doutrinas chinesas e o
responsável pela associação entre Tian e o Deus único cristão. Os ritos confucionistas não
eram vistos como religiosos por Ricci, mas como ações morais, de amor filial ou admiração.
Os cristãos na China eram estimulados a adotá-los, evitando, no entanto, aparentar
superstição
41
. Os ritos eram tão importantes para os chineses que a realização das cerimônias
era obrigatória no exame para ingresso em cargos públicos e nem mesmo os europeus eram
dispensados de sua execução.
Nesse contexto de deslumbramento frente ao exótico, a inserção de agulhas no corpo
despertou a curiosidade de médicos e religiosos ocidentais que se ocuparam em entender e
traduzir as artes terapêuticas chinesas para a linguagem ocidental (JACQUES, 2005, p. 46).
Os jesuítas franceses foram os primeiros a procurar entender a medicina chinesa. Em 1671
Padre Herviéu escreveu “Os segredos da medicina dos chineses” (RAMALHO, 2006, p. 38)
42
.
Em 1682, o médico alemão Andréas Cleyer traduziu para o latim um texto médico chinês e
escreveu um tratado de pulsologia próprio (JACQUES, 2005, p. 45). Ainda no séc. XVII, o
médico holandês Rhine escreveu um relato sobre medicina chinesa
43
.
Desde o séc. XVII missionários dominicanos contestavam a conduta ritual dos cristãos
na China, o que levou o papa Clemente XI a proibir mais tarde, entre 1704 e 1705, a prática
de ritos tradicionais chineses pelos cristãos, e considerar herege a associação entre as
entidades chinesas e o Deus católico. Esse episódio, conhecido como “Controvérsia dos ritos
chineses”, foi um incidente político grave nas relações entre China e Ocidente, resultando na
expulsão dos jesuítas e europeus em 1723
44
.
Mas a proposta de Ricci, que envolvia uma aproximação entre a cultura européia e
chinesa a partir do argumento de que adoravam o mesmo deus, entusiasmou filósofos
ocidentais, tais como Leibniz, a fazer novas leituras das concepções teológicas cristãs
(CARDOSO, 1991, p. 10-11). Leibniz, filósofo e matemático, colaborou para a idéia de
Oriente como dimensão européia, construindo uma representação do chinês como um reverso
do ocidental, porém com coerência própria. Entendia que a mesma humanidade manifestava-
se na pluralidade de identidades, eram diferentes prismas de uma realidade, diferentes versões
de um único Deus (CARDOSO, 1991, p. 13).
41
Cf. Matteo Ricci: a missão conforme o Vaticano II, no século XVI. Revista “Mundo e Missão (PIME).
Acesso em jul. 2007.
42
Veja também História da acupuntura no Ocidente. Sociedade Médica Brasileira Médica de Acupuntura
(SMBA). Acesso em: jul. 2007.
43
Cf. História da Medicina Chinesa. Dr. Marcos Vinicius Ferreira. Acesso em jul. 2007.
44
Cf. Matteo Ricci: a missão conforme o Vaticano II, no século XVI. Op. cit.
82
Os relatos de viagem inundaram a Europa do c. XVIII, alimentando o movimento
romântico com uma imagem ideal de tradição espiritual oriental pura, sem a contaminação
das concepções cristãs (BAUMANN, 2002, p. 39). Os jesuítas, por sua vez, enalteciam os
chineses como merecedores da conversão cristã, na tentativa de obter financiamento para as
missões junto às cortes européias
45
.
Durante o século XVIII alguns ocidentais que estiveram no Oriente escreveram sobre
a medicina chinesa
46
. Na segunda metade desse século, dois outros médicos alemães
iniciaram estudos sobre as bases neurológicas da acupuntura. Nessa época, a medicina de
correspondência sistemática da era Han ainda não era muito compreendida (JACQUES, 2005,
p. 45). Na verdade, no séc. XVIII o vitalismo e o mesmerismo causavam muito mais
entusiasmo nos pesquisadores médicos do que as técnicas chinesas. Apesar das poucas
publicações sobre medicina chinesa, a inserção de agulhas ainda não era praticada, foi Berlioz
quem introduziu a prática de inserir agulhas com fins terapêuticos na Europa, em 1809
47
.
Na segunda metade do séc. XIX, ao mesmo tempo em que o imperialismo europeu
semeava a modernização na cultura chinesa, o Oriente atraía intelectuais, artistas e filósofos
europeus. Segundo Martin Baumann, “modernizadores asiáticos e ocidentais convertidos
procuraram delinear um caminho de pensamento racional de acordo com as últimas
descobertas das ciências naturais” (BAUMANN, 2002, p. 41). Os textos eram o principal
meio de entrada das tradições orientais, mas a tradução impregnava de sentido ocidental
cristão os ensinamentos asiáticos. O estudo intelectual e o aprendizado racional dos
ensinamentos orientais adquiriram maior importância que os aspectos devocionais, que eram
rejeitados (BAUMANN, 2002, p. 40).
O espiritismo e a Teosofia
48
foram alguns movimentos que surgiram no Ocidente
nesse período e que pretendiam conciliar o pensamento oriental com o ocidental (AMARAL,
2000, p. 21). Esses movimentos adentraram o séc. XX e inspiraram muitos outros. Alguns
bebiam na fonte do mesmerismo e do desenvolvimento dos poderes mentais, outros adotavam
as tradições orientais fora do contexto religioso como “filosofia de vida”. As tradições
orientais somente puderam ser difundidas mais amplamente, tanto nos EUA quanto na
45
Os iluministas e a China. História por Voltaire Schilling. Acesso em jul. 2007.
46
Tais como: Valsalva (1707), Kaempfer (1712), Du Halde (1735), Dujardin (1774), Vicq d'Azyr (1787), Diede
(1787). Cf. História da acupuntura no Ocidente. Sociedade Médica Brasileira Médica de Acupuntura (SMBA).
Acesso em jul. 2007.
47
Cf. História da acupuntura no Ocidente. Op. cit.
48
No próximo capítulo trataremos com mais atenção o surgimento desses movimentos no contexto da formação
de novas religiosidades.
83
Europa, quando surgiram traduções mais acessíveis e atraentes para as concepções ocidentais
(BAUMANN, 2002, p. 42).
Nos EUA, por exemplo, a visão intelectualizada de um budismo racional, científico e
pragmático conviveu com o budismo tradicional dos imigrantes chineses que invadiram a
Costa Oeste americana durante a década de 1880, em busca de trabalho na mineração de ouro.
Os chineses sofriam forte discriminação no solo americano, suas tradições e práticas eram
vistas com curiosidade e ao mesmo tempo com desconfiança, pois sem o verniz modernizador
as tradições populares chinesas eram incompreensíveis para os americanos nessa época
(BAUMANN, 2002, p. 42; RAMALHO, 2006, p. 46-47).
No âmbito de influência do pensamento positivista predominante na medicina do séc.
XIX, a acupuntura despertava pouco interesse. A França foi o primeiro país a aceitar a
acupuntura, difundida-a para o resto da Europa. Talvez devido ao contato intenso com a
Indochina, os franceses foram os que mais se ocuparam de traduções e interpretações da
acupuntura do ponto de vista ocidental. Em 1863, o francês Dabry de Thiersant publicou "A
medicina dos chineses”, citando textos clássicos chineses (JACQUES, 2005).
Outro francês, o diplomata e sinólogo Georges Soulié de Morant, morou vinte anos na
China e estudou acupuntura com mestres tradicionais. Retornando à Europa definitivamente
em 1927, dedicou-se aos estudos e à divulgação da acupuntura tradicional. Escreveu “A
acupuntura chinesa” em 1929, primeiro de uma série de livros, fundamentados em traduções
próprias de textos “reconhecidos como síntese da experiência clínica chinesa” (JACQUES,
2005, p.48).
Soulié de Morant, que não era médico, chegou a ser acusado de prática ilegal de
medicina pela Ordem dos Médicos da França, mas foi inocentado (RAMALHO, 2006, p. 41).
Foi o primeiro instrutor ocidental de acupuntura, iniciou o processo de transmissão dos
conhecimentos chineses na Europa. Resgatou a medicina chinesa do período clássico e
estabeleceu compatibilidades com o pensamento ocidental, criando termos como “energia
vital” e “meridianos”, que não são apenas traduções, são re-interpretações dos conceitos
chineses na perspectiva das descobertas científicas da época (LUTAIF, 2005, p. 33-34). De
acordo com Lutaif (2005, p. 21), Soulié de Morant dizia que Ch’i era uma força imaterial e
sutil, cuja idéia essencial “poderia ser expressa como vapor, força, energia, respiração, influxo
nervoso e, nos últimos tempos, influxos elétricos e ondas de telefonia”.
Além disso, o acupunturista criou um sistema alfanumérico para identificação dos
pontos dos canais condutores de energia, até hoje utilizado, que facilitou sobremaneira a
assimilação da acupuntura no Ocidente (LUTAIF, 2005, p.47). Também fez adaptações para a
84
pulsologia chinesa, introduzindo novos segmentos em cada pulso (LUTAIF, 2005, p. 62) e
iniciou, junto com o discípulo médico Dr. Niboyet, as primeiras investigações sobre a
eletricidade dos pontos de acupuntura (LUTAIF, 2005, p. 31-32). Soulié de Morant e seus
seguidores acreditavam que a “energia vital humana poderia ser totalmente elétrica”
(LUTAIF, 2005, p. 93).
Poderíamos dizer que foi pelas mãos de Soulié de Morant que a onda orientalizante
do séc. XIX atingiu a acupuntura no séc. XX, no sentido de aproximar o pensamento oriental
e ocidental. O sinólogo combinou as teorias chinesas com noções possivelmente derivadas do
vitalismo e do mesmerismo, e com conceitos oriundos da Física Quântica e da psicanálise,
criando uma nova escola de “acupuntura energética”. Após diversos estudos de casos, as
conclusões desse acupunturista francês indicaram que a acupuntura era “soberana nos estágios
iniciais, mas a medida em que alterações avançavam para lesões orgânicas, tornava-se
necessário recorrer aos medicamentos e à cirurgia” (JACQUES, 2005, p. 85).
Ainda na primeira metade do séc. XX, o médico vietnamita Van Nghi
49
, que fixou
moradia na França, traduziu o Clássico Interno do Imperador Amarelo (II ou I a.C.)
diretamente de uma versão anterior aos comentários acrescentados na dinastia Tang (VII a X
d.C.), supostamente conservada intacta no Vietnã. Assim como Soulié de Morant, Van Nghi
defendia que a medicina chinesa e a medicina ocidental deveriam ser reunidas em uma
medicina, e também foi seguido por muitos médicos acupunturistas franceses.
É interessante notar que a França foi o berço da clínica moderna e ao mesmo tempo
constituiu-se como solo fértil para as medicinas paralelas, que se opõem ao modelo
convencional da biomedicina estabelecido a partir do final do séc. XVIII. Não podemos
esquecer que, além da medicina francesa ter sofrido interferências do mesmerismo e do
kardecismo, na Escola de Montpelier floresceu o neo-vitalismo materialista, sob o qual muitos
médicos humanistas franceses reuniram conceitos biológicos com vitalismo, psicologia e
espiritismo (SAYD, 1998, p.108).
Em contraposição ao modelo cartesiano e ao racionalismo científico da biomedicina,
na França puderam se desenvolver medicinas derivadas de práticas tradicionais de saúde que
foram mantidas pelas camadas populares à margem da medicina oficial e que afloraram como
medicinas alternativas nos anos sessenta, ganhando a partir daí maior visibilidade
(LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p.49).
49
Cf. Nguyen Van Nghi. Answers.com. Acesso em jul. 2007.
85
Por influência de Soulié de Morant, nesse país desenvolveu-se uma linha de
acupuntura própria. O acupunturista francês teve inúmeros discípulos médicos (Chamfrault,
Roger de La Fuyé, Groux, Ferreyrolles e Niboyet), especialmente homeopatas. Um deles, Dr.
Niboyet, em 1955 demonstrou a baixa resistência elétrica dos pontos de acupuntura. Outro,
Bossy, da Escola de Montpelier, na década de 1970 indicou a relação da constituição da pele
com os canais chineses, fato que explicaria as projeções de micro-sistemas como orelha e íris.
O médico Paul Nogier criou, em 1951, a “auriculoterapia francesa”, na qual a orelha
corresponderia ao formato do feto invertido. Na realidade, partiu da observação em pacientes
que se tratavam com uma assim chamada “curandeira”, que utiliza o tratamento através de
pontos na orelha, possivelmente os pontos chineses. Nogier apenas sistematizou e deu o nome
de auriculoterapia, acrescentando explicações psicológicas. Trata-se de uma reinvenção da
técnica auricular, baseada em técnica tradicional chinesa. Porém Nogier criou um novo mapa
da orelha, com novas leituras dos pontos (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 16).
A acupuntura francesa pretende ser secularizada, totalmente desprovida dos aspectos
mágico-religiosos, mas utiliza conceitos como yin-yang, macro e microcosmos, circulação de
energia vital pelo organismo, que são explicados pela abordagem “energética” e
psicossomática, embora rebatidos pela medicina convencional. A França foi uma das
primeiras a incluir a acupuntura e a homeopatia como disciplinas em universidades de
medicina (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 8).
Nos EUA, apesar da presença chinesa desde o final do séc. XIX, a medicina chinesa
permaneceu quase desconhecida até a década de 1960, quando ocorreu um novo movimento
imigratório chinês. A partir desse período as práticas de saúde chinesas passaram a interessar
um pouco mais os americanos (RAMALHO, 2006, p. 45). Mas o boom da acupuntura
aconteceu após a ampla divulgação pela mídia dos bons resultados obtidos no tratamento de
um jornalista americano que visitou Pequim (1971) na comitiva do presidente Nixon
(JACQUES, 2005, p. 49). Em 1973 foi fundada a Associação Americana de Medicina
Chinesa, em 1975 a acupuntura foi regulamentada em alguns Estados americanos, a partir daí
foram estabelecidas parcerias com os chineses para a realização de pesquisas dentro dos
moldes científicos.
Nas últimas décadas do século XX, enquanto acelerava-se a ocidentalização da
medicina na Ásia, ocorria uma revalorização progressiva das medicinas tradicionais e
alternativas na América e Europa. Inspiradas em concepções filosóficas espirituais, as
chamadas medicinas alternativas foram valorizadas progressivamente por influência do
movimento de contracultura, que contestava o conhecimento racional científico como único
86
produtor da verdade. Conforme já apontamos, é primeiramente nesse cenário de ruptura com a
racionalidade biomédica como instância de poder que a acupuntura alcançou as camadas
médias urbanas ocidentais com o rótulo de medicina alternativa.
3.3 Circunstâncias sócio-culturais da emergência das alternativas
A maior visibilidade das medicinas não-convencionais, incluindo a acupuntura, em
contextos ocidentais nas últimas décadas está relacionada a uma série de eventos simultâneos
que fazem parte de um amplo movimento de transformação cultural incentivado pela
contracultura, que repercutiu nas décadas posteriores atingindo os costumes e as
religiosidades, e produzindo novas representações de corpo e saúde.
Esses fatores culturais contribuíram para o florescimento dessas medicinas e tiveram
reflexos nas definições oficiais da OMS. Difícil distinguir em que medida a OMS reconheceu
um fato dado ou foi uma propulsora das medicinas alternativas, sabe-se que existem
interferências entre as várias esferas sociais religiosa, sanitária, econômica, política - que
definiram as estratégias de saúde estabelecidas pelos órgãos mundiais
50
. Com o decorrer do
tempo o termo alternativo tornou-se polissêmico (LUZ, 1997, p. 15), abarcando uma
diversidade de práticas de saúde heterogêneas, nem sempre alternativas, cuja principal
característica é a contraposição ao materialismo científico, mediante a afirmação da existência
de uma essência vital de caráter metafísico que habita os seres humanos e pode ser
manipulada terapeuticamente.
As principais críticas contra a medicina alopática biomédica poderiam ser resumidas
nas seguintes imagens metafóricas: “o corpo é uma máquina”, “o doente é um objeto, o
médico é um mecânico, a doença é uma deterioração e o hospital é uma oficina de conserto”
(LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 36). A medicina alopática é considerada agressiva,
pois guerreia contra a natureza, enquanto as medicinas não-convencionais “confiam na
natureza e nas reações do organismo”, para essas últimas “curar é defender, proteger e
acolher” (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 45). Além da recuperação de modelos
hipocráticos de saúde, alcançáveis com o desenvolvimento de hábitos saudáveis e através de
meios naturais, as medicinas não-convencionais tratam os indivíduos em sua singularidade,
não apenas na dimensão biológica, mas psíquico-emocional e espiritual.
50
Trataremos desse assunto em capítulo posterior.
87
Embora seja um conjunto eclético, as várias medicinas da cultura alternativa têm como
denominador comum uma reação “aos fracassos e carências da medicina positiva”, reside o
principal motivo de sucesso dessas práticas de saúde (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p.
34). O crescimento das medicinas não-convencionais manifesta-se como reivindicação de
alteração na racionalidade médica visando uma humanização. Trata-se, sobretudo, de uma
ruptura com a unilateralidade da racionalidade médica mecanicista, de um movimento que
expressa uma série de rejeições aos valores tecnicistas vigentes (LAPLANTINE;
RABEYRON, 1989, p. 35).
Com a contracultura estabelecia-se uma recusa ao mito do progresso, uma reação
contra a massificação e uniformização dos indivíduos, contra o anonimato, contra o modelo
patriarcal, contra a objetivação da sociedade e do indivíduo, contra a cultura intelectual.
Reivindicava-se o retorno à simplicidade rural, a valorização do corpo e da natureza, e menos
brutalidade em uma medicina mais personalizada (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p.
36). O movimento contracultural atingiu também as instituições médicas, estimulando críticas
à medicina convencional por parte de jovens médicos que defendiam a personalização dos
tratamentos e a apropriação simbólica da doença pelo doente (LAPLANTINE; RABEYRON,
1989, p. 41-42).
A seguir, levantaremos as condições contraculturais que propiciaram o
desenvolvimento de novas religiosidades e corporeidades, como parte de um complexo
alternativo, cujo auge na década de 1980 foi determinante para a expansão das medicinas não-
convencionais. Por último, analisaremos as lacunas deixadas pela medicina alopática
biomédica que vêm sendo preenchidas pelas medicinas alternativas e os principais motivos
para o êxito dessas últimas junto ao público ocidental.
3.3.1 As influências da estética da espontaneidade e do movimento de contracultura na
constituição de novas corporeidades
Após a Segunda Guerra Mundial, ainda na década de 1940, foi relevante a influência
da Estética da Espontaneidade enquanto movimento de vanguarda artística predecessor da
contracultura na contestação dos valores do liberalismo empresarial (ALBUQUERQUE,
2005). Essa linha estética criticava o individualismo utilitário, o dualismo e o racionalismo,
através da expressão livre da espontaneidade do artista, privilegiando sua subjetividade na
busca de interação com outros sujeitos. Foi um movimento humanista de tendência integrativa
que abrangeu tanto a área artística (a pintura, a música, a dança, a literatura) como também a
88
psicologia e a filosofia
51
(ALBUQUERQUE, 2005, p. 5). Visava reconciliar corpo, emoções e
razão na interação entre as subjetividades. Pretendia construir, mediante a articulação com
tradições indígenas, “novas possibilidades de relações entre os seres-humanos e o ambientes”
(ALBUQUERQUE, 2005, p. 5). Havia um interesse comum pelos estudos do inconsciente e
pelo diálogo intercultural com simbolismos de tradições indígenas, que, ao postular a
existência de uma essência anterior ao pluralismo cultural
52
, expressava crítica ao
eurocentrismo (ALBUQUERQUE, 2005, p. 5-6).
Nos anos 1950, os poemas de Allen Ginsberg, bem como os trabalhos do escritor Jean
Kerouac, abertos às influências orientais, sobretudo o zen-budismo, representaram uma
continuidade da estética da espontaneidade, que utilizava o improviso para protestar contra a
infertilidade da racionalização burocrática (ROSZAK, 1972, p. 132-134). Segundo Roszak,
buscava-se uma arte que não tivesse o intelecto como mediador (ROSZAK, 1972, p. 134). Na
opinião do autor:
A aventura visionária a que Ginzberg e a maioria dos primeiros escritores beat
foram atraídos é consistentemente de imanência, e não de transcendência. É um
misticismo nem escapista, nem ascético. (...) o que procuram é um misticismo
mundano: um êxtase do corpo e da terra, que de algum modo abranja e transforme a
mortalidade. Tem como meta uma alegria que inclua até (ou, talvez principalmente) as
obscenidades corriqueiras de nossa existência (ROSZAK, 1972, p. 136).
As leis de imigração asiática para os EUA foram flexibilizadas a partir da década de
1960, o que propiciou maior contato com as tradições orientais. Especialmente o zen budismo
e o taoísmo foram influências determinantes no movimento de contracultura. Os escritores
beat criaram um estilo de vida estilizado de espiritualidade Zen, que se propagou na
contracultura como modo de aceitação do mundo como ele é, em suas imperfeições, sem
resistência aos deleites profanos. Allan Watts e D.T. Suzuki foram os principais divulgadores
do Zen nos EUA. Watts popularizou o taoísmo e o Zen através da tradução para a linguagem
da ciência e psicologia, vulgarizando-os, na opinião de Roszak
53
(ROSZAK, 1972, p. 138).
Como expressou Roszak, o que a contracultura ofereceu foi “um extraordinário
abandono da arraigada tradição de intelectualidade secular, cética, que constituiu durante
51
Segundo a autora, as fontes intelectuais desse movimento foram John Dewey, Whitehead, Jung, o
existencialismo, o surrealismo, a psicologia gestalt e Zen budismo (ALBUQUERQUE, 2005, p. 5).
52
Por exemplo, a idéia de participação mística, que é encontrada nos trabalhos de Whitehead e também em Jung,
remete a uma totalidade extra-física anterior, que corresponde a uma essência da qual todos os seres humanos
compartilham (ALBUQUERQUE, 2005, p. 6).
53
O autor observa também que ocorreu forte ênfase na sexualidade nas interpretações contraculturais das
religiões orientais, criticadas inclusive pelo próprio Watts pela “excessiva licenciosidade” (ROSZAK, 1972,
p.142).
89
trezentos anos o principal instrumento de trabalho científico e técnico no Ocidente”
(ROSZAK, 1972, p. 147).
Estava em pauta, naquele período, o questionamento da autoridade concedida à
consciência objetiva como único determinante da verdade. Era um movimento de
contraposição à burocratização e ao processo de racionalização extrema desencadeado pela
industrialização, que estaria automatizando os seres humanos. A superioridade da consciência
objetiva sustentava a tecnocracia, e por isso buscavam-se novos meios de consciência não-
intelectiva, como, por exemplo, as percepções sensoriais e extracorpóreas. Nesse sentido, as
novas religiosidades ofereciam um manancial de experiências simbólicas, não racionais, mas
que possuíam sentido de conhecimento subjetivo e intrapsíquico.
Nas décadas posteriores ao movimento de contracultura, as idéias de espontaneidade e
improvisação migraram para esferas mais psicológicas que artísticas, as experiências de
expansão da consciência foram substituídas por técnicas terapêuticas direcionadas para a
expressão da sensibilidade e das emoções como meio de enfrentamento dos desafios da ordem
neoliberal (ALBUQUERQUE, 2005, p. 9).
3.3.2 A crise de sentido e a insurgência de religiosidades alternativas no Ocidente
Conjuntamente ao fenômeno de ascensão das medicinas não-convencionais, apareciam
novas formas de religiosidade no Ocidente, religiosidades alternativas ao modelo dualista
cristão, que colaboraram para a legitimação de tratamentos de saúde alternativos dentro de
uma perspectiva monista de corpo como unidade bio-psico-espiritual, ao mesmo tempo em
que fundamentaram a crítica ao modelo mecanicista proposto pela biomedicina.
Em sua maioria, os autores da sociologia da religião que analisaram esses novos tipos
de religiosidade concluíram que, possivelmente, a decepção com as causas políticas e com a
corrupção das instituições teria levado ao deslocamento do interesse para novos movimentos
espirituais, em busca de narrativas que oferecessem novos sentidos à existência. O
recrudescimento das tradições blicas, especialmente do catolicismo, como modo de
explicação da realidade junto às camadas médias e altas das populações ocidentais,
representaria uma rejeição às instituições religiosas e ao dualismo judaico-cristão.
Robert Bellah (1986) procurou entender a formação de uma nova consciência religiosa
no Ocidente a partir da crise de legitimidade das instituições religiosas, iniciada na década de
1960 com os movimentos de contestação, que manifestavam uma profunda insatisfação com
90
os valores vigentes da cultura americana. Insatisfação com as duas tradições de pensamento
mais importantes nos EUA: a religião bíblica e o individualismo utilitário. De um lado o
discurso de virtude e caridade, de outro o interesse privado acima do bem público, que
resultou na corrupção das instituições religiosas. O individualismo utilitário acabou por
invadir a ciência, a tecnologia e todas as instâncias burocráticas. O descontentamento da
contracultura era dirigido à instrumentalização da natureza, dos afetos, das relações sociais,
que deveria ser transformada pela ordem revolucionária. Era principalmente um
descontentamento com a desintegração ética generalizada.
Na opinião de Bellah:
As igrejas estavam totalmente despreparadas para lidar com a nova
espiritualidade dos anos 60. A demanda por uma imediata, poderosa e profunda
experiência religiosa, que fazia parte do deslocamento de um instrumentalismo
orientado para o futuro, para um significado e uma satisfação presentes, o pode ser
atendida em seu conjunto pelas corporações religiosas. (...) Como se tudo isso não
fosse suficiente, a arrogância bíblica em relação à natureza e a hostilidade cristã para
com a vida impulsiva mostraram-se, ambas, alheias ao novo clima espiritual. Assim, a
religião da contracultura não foi, em geral, blica. Ela foi retirada de diversas fontes,
incluindo a dos índios americanos. Suas influências mais profundas, porém, vieram da
Ásia (BELLAH, 1986, p. 26)
.
A nova consciência religiosa seria uma “nova consciência da questão dos fins”
(BELLAH, 1986, p. 23). As promessas de felicidade através de riqueza e status não faziam
mais sentido, pois os efeitos destruidores do capitalismo se tornavam mais evidentes. As
igrejas cristãs foram associadas ao poder autoritário, buscava-se uma experiência religiosa
direta e imediata ao invés de um futuro garantido pela virtude.
Muitos valores morais cristãos não sobreviveram aos questionamentos e
transformações dos costumes iniciados na década de 1960. Em especial, o padrão cristão de
família nuclear patriarcal e o modelo de sexualidade então vigentes, que foram sendo
abandonados no decorrer das décadas seguintes, juntamente com as tradições bíblicas.
Proporcionalmente ao declínio da adesão às crenças cristãs, aumentou o número dos que se
declaram sem religião, ou seja, sem pertencimento a uma Igreja ou religião específica, embora
por vezes reze ou medite individualmente (CHAMPION, 1996, p. 710-711).
Isso representaria mais um protesto contra o monopólio de Deus pelas Igrejas, do que
propriamente contra o Deus cristão. Disseminava-se a opinião de que é possível ser cristão
sem freqüentar instituições religiosas. A partir das décadas de 1970 e 1980 as instituições
religiosas não interessavam, mas o cristianismo não desapareceu, tornando-se difuso e
pulverizado em atividades laicas, como a filantropia, a pedagogia e a militância política, que
substituíram o sacerdócio e a frequência às Igrejas (CHAMPION, 1996, p. 709).
91
As práticas religiosas orientais proporcionavam experiências subjetivas, além de
oferecerem propostas filosóficas que se contrapunham à dominação da natureza e à
coisificação humana. O principal alvo da crítica contracultural era o dualismo e a
separatividade. Uma das crenças fundamentais das religiosidades orientais é a unidade entre
tudo e todos no universo. Essa idéia não se contrapunha às tradições cristãs de amor a todos
os seres e era um argumento contra a concentração do poder político-econômico nas mãos das
elites, denunciada pelos jovens (BELLAH, 1986, p. 32).
As religiões orientais acenaram com possibilidades mais atraentes para a
contemporaneidade, como o desenvolvimento da subjetividade, a realização da consciência
universal dentro de cada indivíduo, relativização das verdades e da moral, abertura ao
pluralismo, valorização dos momentos singulares da biografia individual eternizada
(incluindo a vida presente, passada e futura) através de conceitos de karma e reencarnação.
Além disso, as religiões orientais ofereciam técnicas corporais para transformação
pessoal (yoga, meditação, Tai Chi Chuan, Chi Kung, etc) e receitas práticas de sabedoria para
a vida cotidiana. Os conceitos orientais contribuíram para a “polissemia dos significantes
religiosos” ocidentais contemporâneos, assim “Deus não remete forçadamente para o Deus
pessoal cristão, mas tanto para uma energia como para o divino em cada ser(CHAMPION,
1996, p. 712).
3.3.3 Espiritualização do corpo: novas representações de corpo, saúde e religiosidade como
resistência à modernidade
O movimento de contracultura deflagrou um processo de reação contra a hegemonia
da racionalidade científica e contra a separação entre corpo e espírito, decretada pelas
tradições cristãs. Essa contraposição aos valores vigentes não é nova no meio ocidental, suas
origens remontam aos movimentos dos séculos anteriores, mas de efetivamente novo a
contracultura semeou a liberação dos corpos, o que vem propiciando uma alteração na
corporeidade ocidental em direção ao corpo monista, bioespiritual.
Após o movimento de contracultura, novos modelos corporais resultaram da defesa da
espontaneidade e da reconciliação corpo-mente-espírito; contestava-se a fragmentação do
indivíduo e a sobrevalorização da razão. Desse período emergiram propostas alternativas não
ao modelo de corpo, mas aos modelos de civilização e de racionalidade vigentes
(ALBUQUERQUE, 2004, p. 146). Albuquerque (2004) destacou a formação de novas
92
corporeidades a partir de uma nova sensibilidade religiosa
54
, desencadeada contra o controle
social dos corpos na modernidade. Esse processo de reação teve início no final do século XIX,
em contraposição ao positivismo das ciências biomédicas que “desencantaram” a natureza
biológica, mas vem se afirmando mais fortemente desde os anos 1960.
A corporeidade moderna está apoiada “na relação dualista e hierárquica da mente
sobre o corpo” (ALBUQUERQUE, 2004, p. 146). Essa concepção dualista direcionou o
comportamento humano para o controle do corpo, da mente, dos afetos, das emoções, bem
como da natureza em geral. Sobre esse processo de submissão e treinamento do corpo,
denominado por Norbert Elias de processo civilizador, Albuquerque observa que:
Caracterizado pelo domínio do consciente sobre a emoção e o inconsciente, o
processo civilizador deixou suas marcas no corpo, expressas pelo autocontrole e pela
repressão dos impulsos espontâneos. Desenvolve-se então um autocontrole íntimo,
que visa domesticar as inclinações primárias, irrefletidas e espontâneas
(ALBUQUERQUE, 1998, p. 6).
As novas corporeidades e novas religiosidades recusam a superioridade dos aspectos
racionais, opõem-se à subjugação do corpo, emoções e afetos, incentivando o
desenvolvimento da percepção sensível. Ambas, religiosidades e corporeidades, são
permeadas por idéias monistas de totalidade cósmica e imanência divina no ser humano. As
novas religiosidades não rejeitam o corpo físico, mas o englobam num conjunto mais amplo
de representações simbólicas, que envolvem manifestações espirituais, expressão livre de
emoções e sentimentos, e retorno da espontaneidade natural.
O corpo nas medicinas e religiosidades alternativas (que se opõem ao modelo dualista
cristão) é uma micro-representação do universo, as partes do corpo são retratos holográficos
do corpo todo. O corpo é a identidade do indivíduo, é o seu território. É também a natureza
presente na própria pessoa, o templo da centelha divina, o sustentáculo do espírito. O corpo,
enfim, integra o indivíduo com o ambiente, natural, social e cósmico. A valorização da saúde
e do cuidado com o corpo é, então, acentuada, bem como a responsabilidade individual, já que
a cura corresponderia à autotransformação, autoconhecimento, auto-realização, mediados por
práticas terapêuticas corporais, com objetivo de recuperação da naturalidade humana
obliterada com a modernidade (ALBUQUERQUE, 2004, p. 139).
A autora identificou alguns traços
55
marcantes das religiosidades alternativas e das
novas corporeidades que indicam negação da modernidade (ALBUQUERQUE, 2004, p. 143-
144): a) desafio do determinismo das leis científicas; b) crítica à civilização moderna, à
54
Nova sensibilidade religiosa foi o termo utilizado pela autora para designar as novas religiosidades.
55
Esses traços também podem ser encontrados nas medicinas não-convencionais, conforme constatamos na
pesquisa de campo, sobretudo em palestras dos congressos de acupuntura.
93
industrialização e artificialismo; c) idéia de que a modernidade está doente; d) recusa das
limitações da medicina moderna; e) recuperação de qualidades inatas ao ser humano, perdidas
no processo de modernização; f) apelo a um oriente imaginário na “busca de soluções para o
processo civilizador”, que subjugou o corpo à mente (ALBUQUERQUE, 1998, p. 6).
De acordo com Albuquerque, a construção de novas corporeidades se apresenta como
resposta para as pesadas conseqüências da civilização sobre o corpo. Essa crítica ao processo
civilizador aparece principalmente como “transposição metafórica dos males do corpo e da
mente para os males culturais da história”, que poderiam também corresponder à ausência de
narrativas contemporâneas que confiram sentidos mais amplos ao papel da humanidade
(ALBUQUERQUE, 2004, p. 146-147).
Martins também associa as transformações das representações de saúde, corpo e
religiosidades, com o questionamento da racionalidade moderna, apontando para a
emancipação de um imaginário relacionado ao “prazer de viver e ao bem-estar do indivíduo”,
em oposição à corporeidade cartesiana (MARTINS, 1999b, p. 82). A constituição de um
corpo unidade que conecta diferentes planos, do natural (biológico) ao cósmico metafísico
(energético), no qual a cura orgânica ocorre pela regulação energética, implicou na
substituição das antigas práticas religiosas por práticas terapêuticas que procuram responder
questões de ordem física, psíquica e espiritual. Sobre o surgimento das novas representações
de corpo e saúde, Martins diz que:
(...) fazem parte de uma reação cultural que busca emancipar o corpo como
veículo de liberação reflexiva de desejos e emoções, insurgindo-se contra a imagem
maquínica e reducionista da tradição cartesiana. A re-significação do tema saúde
rearticula o corpo físico com o corpo afetivo-emocional, cuja conseqüência mais
imediata é a desculpabilização de um número crescente de indivíduos com relação ao
cristianismo tradicional. Desse modo, os novos rituais de cura alternativos se de uma
parte auxiliam na cura de doenças orgânicas, de outra, contribuem para libertar os
corpos dos imaginários punitivos tradicionais. Assim, esses novos rituais favorecem
uma nova religiosidade que integra, sem contradizer, os ganhos da racionalidade
moderna (MARTINS, 1999b, p. 83).
Na visão de Martins, as novas atividades de saúde acabam por remodelar hábitos,
crenças e estilo de vida em torno da concepção de cura global do indivíduo, contribuindo para
a construção de uma corporeidade mais positiva, que contrasta com a imagem utilitária de
corpo perfeito do hedonismo consumista. Essas práticas apóiam-se na “filosofia do bem-
estar”, integram saúde com conforto e prazer, denunciando a “insuficiência dos ideais
utilitaristas dominantes” (MARTINS, 1999b, p. 88). O autor considera que:
A ressignificação do imaginário do corpo humano não atinge, porém, apenas o
corpo físico, mas é todo o imaginário social que é reconstituído. Contra um
94
racionalismo cartesiano que ambicionava eliminar as emoções, as fantasias e a
imaginação, emerge um corpo-linguagem que questiona o antigo corpo-instrumento
para valorizar culturalmente as imagens fantásticas, as emoções e os desejos
(MARTINS, 1999b, p. 85).
3.3.4 A articulação das medicinas não-convencionais com dissidências da psicanálise
Assim como as medicinas não-convencionais, a psicanálise se contrapunha ao sistema
reducionista e cientificista, e foi, por muito tempo, marginalizada pela racionalidade
biomédica, até sua valorização após a década de 1960. Com o tempo foi sendo assimilada
pelo saber oficial e pelo meio médico, deixando de ser considerada uma medicina paralela
(LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 29). Entretanto, as dissidências da psicanálise, tais
como a psicologia junguiana, as terapias reichianas e a bioenergética de Alexander Lowen,
sempre estiveram próximas do pensamento metafísico, combinando psicologia com medicinas
paralelas através das concepções energéticas, e foram, por isso, mantidas apartadas do meio
científico.
Na primeira metade do século XX, tanto o pensamento psicanalítico como as correntes
dissidentes pós-freudianas colaboraram para uma transformação cultural de um modo mais
amplo, oferecendo novos conceitos para a elaboração de um individualismo reflexivo e
também para a construção de uma noção de corpo composto por dimensões não apenas
físicas. Destacamos especialmente as influências que exerceram C. G. Jung e W. Reich sobre
o movimento da contracultura, as medicinas não-convencionais e as novas terapias. Ambos
possuem tendências românticas, porém o segundo é um pouco mais influenciado pelo
iluminismo, no sentido de refutar tradições religiosas e utilizar métodos experimentais para
investigação de suas hipóteses.
Muitas idéias de Jung posteriormente foram apropriadas pelas religiosidades
alternativas, fornecendo bases argumentativas para as crenças da religiosidade do Eu, dentro
do referencial psicológico. Por exemplo, a busca do individuo total (corporal, racional,
emocional e simbólico) era uma obsessão no pensamento junguiano. Segundo a linha de
psicologia profunda construída por Jung, haveria uma essência primordial ligando os seres
humanos que seria acessível através do desenvolvimento psíquico em direção à realização do
seu potencial divino (o self) e da expressão espontânea da originalidade individual. Jung
denominou a essência ou totalidade de inconsciente coletivo, cujas manifestações seriam
arquetípicas, ou seja, seguiriam determinados padrões estabelecidos, matrizes simbólicas
95
universais, cujas formulações em imagens variam de acordo com os sistemas simbólicos das
culturas em que se inserem.
Reich, por sua vez, contribuiu principalmente para a construção de novas
corporeidades com estudos experimentais sobre a energia vital, ou Orgônio, uma energia
sexual derivada da idéia libido de Freud, que teria correspondência no plano biológico.
Regularia a saúde e o bem-estar do organismo. Essa bioenergia sexual, responsável pela
vitalidade do organismo e pela saúde psico-física, seria natural, mas estaria bloqueada pela
imposição social da moralidade sobre o corpo físico, impedindo seu funcionamento adequado
(RUSSO, 1993, p. 119). A repressão moral ficaria, de acordo com as teorias reichianas,
inscrita nos músculos em forma de “couraças”.
As idéias reichianas foram, mais tarde, recuperadas pelos jovens da contracultura,
servindo como apoio para o movimento de liberação sexual e para a construção de uma
imagem de corpo com reflexividade, com certa sabedoria e discernimento, que prescinde da
razão intelectiva. Essa representação corporal permeia tanto as novas religiosidades como as
medicinas e terapias não-convencionais. Na análise de Jane Russo (1993), a necessidade de
liberação do corpo para a liberação do sujeito, a localização dos males psíquicos no corpo, a
oposição entre natural e social, e a idéia de energia vital presente no organismo e no ambiente,
são pontos de confluência entre as medicinas alternativas e as teorias reichianas (RUSSO,
1993, p. 123).
Na década de 1960, alguns intelectuais reuniram-se em Esalen
56
(EUA), em torno do
desenvolvimento de terapias e medicinas não-convencionais, que combinassem concepções
orientais, crenças numa “grande-unidade” e em “força vital”, e novas correntes da psicologia.
Em Esalen, conviviam re-interpretações do pensamento junguiano e reichiano, psicologia
humanista (criada por Abraham Maslow), gestalt de Fritz Perls, práticas orientais (como yoga
e meditação) e técnicas para expansão da consciência. Esse conjunto terapêutico visava à
ampliação da autonomia individual frente ao meio cultural e ao desenvolvimento das
potencialidades humanas. Por isso estava incluído no que foi denominado Movimento do
Potencial Humano (CAROZZI, 1999, p. 157).
As novas terapêuticas eram geralmente ancoradas em técnicas corporais praticadas
em grupo. O núcleo de Esalen influenciou sobremaneira a articulação das terapias com as
novas religiosidades e o surgimento de um estilo alternativo. Na década de 1970 as idéias de
desenvolvimento do potencial humano foram adicionadas aos conceitos teosóficos divulgados
56
Entre outros que passaram por Esalen: Abraham Maslow, Aldous Huxley, Gregory Bateson, Stanislav Grof
(CAROZZI, 1999, p. 156).
96
pela comunidade esotérica de Findhorn (Inglaterra) alimentando o ideário das novas
religiosidades no que se refere à recuperação da centelha divina que une energeticamente cada
ser humano ao todo cósmico (CAROZZI, 1999, p. 160).
Também Alexander Lowen, um dos dissidentes reichianos, criador do termo
bioenergética, teve importante participação na elaboração de uma corporeidade reflexiva, no
sentido de apregoar o reencontro do indivíduo consigo mesmo através do seu corpo (RUSSO,
1993, p. 126). Após os anos 1970, ocorreu um processo de psicologização da sociedade para o
qual a bioenergética de Lowen contribuiu bastante, popularizando a terapia para pessoas
normais e o crescimento pessoal mediante a transformação da psique (RUSSO, 1993, p. 126).
3.3.5 Desumanização da medicina: a crise da medicina ocidental convencional
De acordo com Luz, além de uma crise sanitária mundial, também estaria ocorrendo
uma crise dentro da própria medicina ocidental, tanto paradigmática, devido às novas
descobertas das neurociências e da psicossomática sobre as causas das doenças, como ética,
por causa do desenvolvimento da genética, da fetichização dos aparelhos tecnológicos e da
mercantilização dos procedimentos médicos (LUZ, M., 2005).
Essa crise, deflagrada com a contracultura a partir da década de 1960, foi intensificada
no final do século XX, especialmente nos EUA, em que grandes corporações médicas
privadas receberam incentivos financeiros públicos para substituírem o Estado na gestão
nacional da saúde. Com a posterior associação em lobby dessas empresas médicas com
indústrias farmacêuticas e biotecnológicas, o sujeito doente transformou-se em consumidor
dos bens de saúde e a medicina direcionou-se estritamente para o lucro (MARTINS, 2003, p.
117). Dessa “perversão das práticas médicas”, ou “desumanização da medicina”, como diz
Martins, resultou uma crise ou cisão dentro do campo médico, da qual tendências opostas se
radicalizaram na medicina ocidental: a tecnoutilitarista (predominante nos EUA) e a
humanista (mais difundida na Europa) (MARTINS, 2003, p. 134).
Entre outros motivos, a incapacidade da medicina biotécnica de resolver os problemas
de saúde atuais levou a um resgate do modelo anterior à consolidação da racionalidade
médica científica
57
. Essa rejeição ao modelo dominante acontece porque ele privilegia “a
vitória sobre as doenças, em detrimento das acomodações individuais e mais sutis, que em
57
Mas na opinião de Luz, essa crise se apresenta somente no plano institucional interno, pois de um modo geral,
o saber biomédico ou a racionalidade médica ocidental persiste sendo hegemônica como produtora de verdade
nas sociedades ocidentais atuais.
97
todos os tempos o homem teve (e terá) de fazer com a doença e o sofrimento
(LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 24). A postura ocidental da medicina pré-moderna
que se pretende resgatar nas medicinas não-convencionais é denominada por Luz de “arte de
curar” e por Martins de “dádiva médica”. Mas esses autores estão falando da mesma coisa, de
uma antiga dimensão humana da medicina ocidental, desprezada pela biomedicina
contemporânea, que está sendo recuperada na modernidade tardia pelas chamadas medicinas
alternativas.
A medicina corporativa, segundo Luz, se afastou da “arte de curar o sofrimento
humano, deslocando o foco da terapêutica para a diagnose das doenças”, esse teria sido um
dos fatores do aumento da procura por tratamentos alternativos (LUZ, 2005, p. 37-62). A
“dádiva médica” seria, segundo Martins, “uma entrega ritual dos males do paciente ao
curador”, sem a qual a cura não se processa:
A validade da cura obedece, então, a uma certa simbolização do sofrimento
que passa pelos vínculos criados entre o curador e o doente. A figura do médico como
curador é central nesse processo, e sua presença física, independentemente do que ele
pense sobre isso, introduz uma subjetividade que é necessária à cura. Caso o paciente
não confie no profissional, provavelmente o tratamento tem grandes chances de
insucesso (MARTINS, 2003, p. 74).
Conforme Martins, que segue a linha de pensamento de Marcel Mauss, todas as
medicinas são simbólicas, todos os sistemas simbólicos são eficazes. A cura está
fundamentada na reciprocidade entre médico e paciente e “na possibilidade de troca de dons
de vida e de morte, que é essencialmente gica” (MARTINS, 2003, p. 80). O componente
mágico estaria na “confiança do paciente na competência do profissional e na sua capacidade
de eliminar o mal” (MARTINS, 2003, p. 81). Porém a medicina oficial vem se afastando
dessa dimensão simbólica que está sendo esvaziada pelo pragmatismo-utilitarista (MARTINS,
2003, p. 80).
No prefácio do livro “A desumanização da medicina” de Paulo Henrique Martins,
Renato Ortiz explica a associação entre medicina e magia que pode ser inferida do
pensamento de Marcel Mauss:
Por exemplo, a magia é considerada por Mauss um ato técnico, porém, ela
somente pode existir, manifestar-se, permeada pela relação simbólica feiticeiro /
cliente. A técnica é, nesse sentido, banhada de simbolismo, forma de inseri-la, de
maneira não apenas racional, no seio da sociedade. O mesmo raciocínio pode ser
aplicado à medicina oficial. Como a magia, ela é um saber específico visando à cura
desta ou daquela doença. O cálculo do feiticeiro, assim como dos médicos modernos,
supõe uma relação causal entre o diagnóstico, os métodos empregados e o resultado
obtido. No entanto, tanto a magia como a medicina, para existirem socialmente, não
podem ser reduzidas apenas à racionalidade da busca dos fins; uma teia simbólica, é
bem verdade distinta, as envolve (ORTIZ, R. apud MARTINS, 2003, p. 23).
98
Martins argumenta, conforme Mauss, que a medicina é um fenômeno social total, e
que a inter-relação entre a sociedade e o indivíduo, o médico e o doente, é mediada pela
circulação de bens materiais e simbólicos. Assim acontece em todos os sistemas de cura. A
doença seria uma ausência de expressão simbólica adequada, que corresponderia a uma
desumanização:
Essa desumanização é, sobretudo, caracterizada pelo fato de a extrema
especialização disciplinar – acompanhada pelo inevitável distanciamento entre médico
e doente – contribuir para eliminar o espaço e o tempo necessários à expressão
simbólica do sofrimento e suprimir a possibilidade do cidadão-doente expressar seu
desamparo. A ineficácia operacional do biocartesianismo com relação a um número
importante de patologias da atualidade fica evidenciada quando se trata de
enfermidades cujos diagnósticos e curas exigem métodos que integrem também a
dinâmica da subjetividade, por estarem relacionadas a distúrbios culturais, psíquicos,
emocionais e mesmo religioso-espirituais (MARTINS, 2003, p. 35).
A crescente especialização na formação médica acabou abrindo uma lacuna, antes
preenchida pelo clínico geral e médico familiar, de atendimento mais personalizado ao
doente. O especialista não se identifica com o sofrimento do paciente, seu interesse é otimizar
o tempo do atendimento e o ganho econômico. Essa fragilidade da medicina contemporânea
resultou no aumento das incertezas de diagnósticos e maior possibilidade de erros médicos
(MARTINS, 2003). A medicina biomédica especializada tornou-se incapaz de resolver
sofrimentos e enfermidades tais como insônia, depressão, stress, angústia existencial,
insegurança afetiva, pânico, etc., que são derivados dos efeitos da industrialização das
sociedades (MARTINS, 2003, p. 71).
3.4 O êxito das medicinas alternativas
As medicinas alternativas tornaram-se populares entre os jovens da contracultura e
posteriormente passaram por um processo de institucionalização, sendo legitimadas pelas
sociedades ocidentais nas últimas décadas do séc. XX. Pesquisas realizadas na França
revelaram que, em 1978, 34% dos franceses recorreram a algum tratamento alternativo pelo
menos uma vez na vida. Em 1985, esse percentual aumentou para 49%, dos quais 21%
utilizaram a acupuntura (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 31).
Conforme Martins, 69% dos americanos utilizavam algum tipo de medicina alternativa
em 1997 (MARTINS, 2003, p. 47). Segundo a OMS, em 1999, o percentual de pessoas que já
utilizaram medicinas alternativas ao menos uma vez, principalmente a homeopatia, a
acupuntura e a fitoterapia, seria de: 48% na Austrália; 70% no Canadá; 49% na França; 42%
99
no Reino Unido; 31% na Bélgica. No Reino Unido, cerca de 40% dos médicos alopáticos
utilizavam alguma técnica alternativa, enquanto no Japão, esse percentual estava entre 60 e
70%; 46% na Suíça; 42% nos EUA. Quanto à medicina tradicional (local), na China
respondia por 40% dos tratamentos de saúde, enquanto no Chile a porcentagem correspondia
a 71% e 40% na Colômbia.
De acordo com a OMS (2002-2005), a acupuntura é bastante popular, praticada em
pelo menos 78 países, não por médicos alopáticos, como por acupunturistas sem formação
em medicina. Segundo dados da Federação Mundial de Acupuntura e Moxabustão, na Ásia há
cerca de 50.000 acupunturistas e o número estimado de acupunturistas na Europa é de 15.000,
incluindo médicos alopáticos. Nos EUA, foram expedidas 12.000 licenças para acupunturistas
e a prática está legalizada em 38 Estados. No Reino Unido, 46 % dos médicos praticam ou
recomendam acupuntura aos pacientes. Na Bélgica, 74 % dos tratamentos por acupuntura são
receitados por médicos. Na Alemanha, 77% das clínicas para tratamento de dor utilizam
acupuntura.
Esse sucesso das medicinas não-convencionais como fenômeno social vem sendo
investigado mais recentemente nas ciências sociais e geralmente são enfatizados dois fatores:
a atenção ao indivíduo
58
e a importância dos aspectos simbólicos para a cura, que são
menosprezados pela medicina hegemônica. Madel Luz levanta questões sócio-econômicas
59
que teriam levado a OMS a incentivar a utilização das medicinas alternativas em escala
mundial, essa nova política internacional interferiu sobremaneira na aceitação dessas práticas
pelas corporações médicas, possibilitando maior divulgação. Além disso, as transformações
nas representações de corpo e saúde nas sociedades atuais permitiram maior abertura para
novas formas de tratamento.
As medicinas alternativas, segundo Luz, são inovadoras em relação à alopatia da
medicina hospitalar nos seguintes aspectos: a) na reposição do tratamento do sujeito como
objetivo central da atividade do curador, aspecto que vem sendo desprezado pela medicina
convencional; b) na revalorização da relação médico-paciente como fator simbólico essencial
do processo de cura; c) na busca de métodos terapêuticos menos tecnológicos e menos
custosos d) no incentivo à prevenção e educação; e) na busca da autonomia do paciente,
58
Essa também parece ter sido a conclusão da OMS em relatório recente (2002-2005): “as medicinas tradicionais
e complementares alternativas desenvolveram-se de formas distintas, sendo muito influenciadas pelas condições
culturais e históricas dos locais em que em que são adotadas, mas suas bases comuns o um enfoque holístico
da vida, o equilíbrio entre mente, corpo e seu entorno, e a ênfase na saúde ao invés da doença. Em geral o
praticante concentra-se na condição global do paciente, não na enfermidade particular que essofrendo. Esse
enfoque mais completo da saúde fez com que essas medicinas resultassem numa proposta muito atrativa para
muitos” (tradução nossa).
59
Esses aspectos sócio-econômicos serão tratados em capítulo à parte.
100
ênfase na promoção da saúde e da cidadania, transformação do indivíduo em agente de cura
de si mesmo; f) diminuição da dependência de médicos e remédios (LUZ, M., 2005, p. 62).
Sobre o desenvolvimento de autonomia do paciente para promover a própria saúde, em
suas pesquisas Luz observou que esse fator é variável entre as medicinas alternativas:
Em princípio tais medicinas tendem a propiciar um conhecimento maior do
indivíduo a respeito de si mesmo, de seu corpo e de seu psiquismo, com uma
conseqüente busca de maior autonomia ante o seu processo de adoecimento,
facilitando um projeto de construção (ou de reconstrução) da própria saúde. Esse
processo torna-se claro quando entrevistam pacientes de homeopatia da rede pública.
Também se pode notar o mesmo processo em pacientes da medicina ayurvédica em
hospital público. na Medicina Tradicional Chinesa, é com a prática dos exercícios
derivados das artes marciais, como o Tai Chi Chuan, que se nota esse tipo de
mudança, pela qual o paciente passa a ser menos dependente de remédios e de
médicos, passando a tornar-se um agente de cura de si mesmo. Outros tipos de
terapêutica da medicina chinesa, como a massagem e a acupuntura, por sua própria
natureza, facilitam a passividade (MADEL, M., 2005, p. 68-69).
As medicinas humanistas, como Martins (2003, p. 206) prefere chamar as medicinas
alternativas, propõem uma revalorização da experiência ritual curador-doente. De acordo com
esse autor, ao buscar resolver as tensões entre indivíduo e sociedade presentes na doença, as
medicinas humanistas propiciam uma organização simbólica da cura. Na visão de Martins, a
relação entre medicina e magia é estreita:
Nesse sentido, a medicina moderna apenas tem eficácia simbólica, porque o
ato de cura aparece como mágico para o doente, a magia que se expressa na
expectativa do paciente com relação à sabedoria do curador e também no efeito prático
do medicamento prescrito (MARTINS, 2003, p. 81).
A pluralidade das práticas de saúde presentes na atualidade estabelece um limite para a
hegemonia da medicina biotécnica e desumanizada, obrigada a conviver com tratamentos
não-convencionais que defendem principalmente as reciprocidades entre corpo, razão,
emoção. Essas medicinas restabelecem o espaço de cura subjetivo dos atores sociais e
representam um movimento de reivindicação de democratização da ciência e da medicina
(MARTINS, 2003, p. 207).
Martins fez uma observação interessante quanto ao modo como a acupuntura é re-
significada nas sociedades ocidentais. Segundo o autor é comum a idéia de que é mais
confortável receber acupuntura no Ocidente do que na China, pois na realidade o
acupunturista chinês não está interessado nas palavras do paciente, sua escuta é não verbal, e
o acupunturista ocidental segue uma linha muito mais psico-terapêutica, que não foi herdada
da tradição chinesa, mas da tradição ocidental.
Nessa comparação, porém, a novidade não é o silêncio do chinês, mas a escuta
do francês, o que revela que a sua acupuntura não é a mesma tradicional, já que ela foi
101
refeita por uma técnica de escuta que é herdada não da medicina chinesa, mas dos
sistemas de cura biopsíquico modernos (MARTINS, 2003, p. 265).
Laplantine e Rabeyron (1989) analisaram a expansão das medicinas suaves na
sociedade francesa, após a década de 1970, como um fenômeno social de descontentamento
com a medicina convencional alopática, ou medicina dura. Fenômeno que pode ser estendido
para o Ocidente, de uma maneira geral. Também na opinião desses autores, é tanto na
dimensão simbólica da cura, como na experiência subjetiva da relação terapeuta-paciente,
abandonadas pela medicina positivista e privilegiadas pelas medicinas tradicionais populares,
orientais ou alternativas, que devemos buscar as razões do sucesso das medicinas suaves
(LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 34). Os médicos paralelos ou curadores modernos
“aceitam ouvir o inacreditável” e “estar doente é querer ser amado, protegido, é querer
encontrar alguém que não duvide” (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 60).
As idéias centrais das medicinas suaves são: a) o doente deveria recuperar um poder
do qual foi privado e ter acesso a um saber do qual foi excluído; b) a medicina alopática é
brutal e invasiva, atua contra a natureza por atacar quimicamente a doença sem levar em conta
efeitos colaterais; c) a doença é uma ruptura do vínculo entre o paciente e ele mesmo; d) a
doença é uma interrupção da correspondência entre o macrocosmo e os microcosmos
(LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 41-42).
As principais diferenças entre medicina oficial e medicinas paralelas destacadas por
Laplantine e Rabeyron (1989) são: a) o pensamento biomédico é espacializante, a doença está
localizada num espaço invadido por germes, vírus e bactérias, enquanto nas paralelas o foco
está na dimensão temporal da cura, o tratamento é lento e a atitude de espera pela resposta
natural do organismo é incentivada; b) a racionalidade da medicina convencional é objetiva,
enquanto a das paralelas é subjetiva; c) os aspectos sociais da cura são revelados pelas suaves
e ocultados na prática da medicina convencional; d) tanto na biomedicina como nas curas
religiosas ou alternativas a relação entre curador e curado é dual, o curador é um
intermediário, mas se na primeira a distância entre médico e paciente é a regra, nas segundas
o contato do toque sutil ou concreto é essencial (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 53-
59).
Comparando os curadores populares com os curadores modernos, representados pelos
praticantes paralelos, médicos ou não, esses autores entendem que os primeiros seriam extra-
médicos que lutam contra as forças externas, no caso o demônio, e os segundos seriam para-
médicos que manipulam “energias” do próprio paciente para recuperar sua força física
102
(LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 56). Outra diferença é a profissionalização.
Enquanto nas práticas populares o dom de cura é recebido por um número limitado de
pessoas, que o utilizam gratuitamente, nas medicinas suaves o conhecimento é adquirido por
estudo intelectual ou “iniciação” e os honorários são cobrados de acordo com o mercado
profissional
60
(LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 56).
Como ponto comum entre as medicinas alternativas e as curas religiosas Laplantine e
Rabeyron destacam que ambos os modos de cura (extra-médicos e para-médicos) procuram
responder as insatisfações que o racionalismo não consegue aplacar. A principal diferença
reside no fato das medicinas paralelas ou alternativas buscarem sua legitimação no seio desse
racionalismo que combatem. Por exemplo, as categorias limpeza e desintoxicação, presentes
nas medicinas populares são interpretadas de modo científico pelas medicinas brandas. O
tratamento com ervas transformou-se em fitoterapia, o passe tornou-se cura magnética, etc.
Nas palavras dos autores:
Enfim, as próprias designações dos sistemas de cura em questão adquirem
uma transmutação que nos parece totalmente significativa desse fenômeno social, que
não é mais residual, porém pretende participar integralmente da modernidade (e dela
efetivamente participa no que ela tem de mais ambivalente). (...) Não se trata mais de
preces, porém de fluídos; não se tratam mais de espíritos benéficos ou maléficos,
porém de ondas ou de energias positivas e negativas. O feiticeiro torna-se um
radiestesista; o vidente, um parapsicólogo; o benzedor um quiroprático
(LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 56).
Por ser frágil, a legitimidade da prática paralela tem que ser reafirmada a cada
consulta. A legitimação é conferida, sobretudo, pela fidelidade da clientela, pela visibilidade
na mídia ou validação de algum cientista (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 59-60). As
medicinas suaves almejam uma diferenciação das curas mágico-religiosas, pois visam atingir
um público que aspira destaque intelectual das camadas populares julgadas “mais ignorantes”
ou “mais atrasadas”
61
(LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p.50-51).
O modo de praticar as medicinas não-convencionais, a exemplo do que acontece com
a acupuntura, pode ser tanto tradicional ou esotérico, que persegue o elo perdido entre o
mundo concreto e o transcendente, como modernizado, desvinculado de elucubrações
metafísicas e das concepções de unidade cósmica (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p.
79). As fronteiras entre as práticas médicas legítimas e as desautorizadas não são fixas, pois
60
Nesse sentido, Martins entende que a cobrança de honorário - seja pelos médicos humanistas, seja pelos
alternativos não-médicos ou por curadores populares estaria incluída na circulação de bens simbólicos e na
reciprocidade entre médico-paciente. Para Martins, mais importante que a retribuição financeira seria o foco do
atendimento no sujeito, o pagamento resultaria num compromisso social do paciente com o tratamento
(MARTINS, 2003, p.38).
61
As medicinas alternativas são um movimento essencialmente urbano e representam um status mais elevado em
relação às medicinas populares, que são de origem camponesa. (BARROS, 2000, p.181).
103
no fundo “os mundos da ciência e das medicinas paralelas não são totalmente estranhos um
ao outro” (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 83). Além disso, a ordem médica
encontra-se atualmente preparada para assimilar qualquer técnica que tenha eficácia desde que
satisfaça “as sacrossantas leis da ciência” (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 79).
Tomemos o exemplo da acupuntura. Com esse tipo de procedimento, ela se
torna uma entre outras reflexoterapias. O médico que a exerce nessa ótica buscará na
neurofisiologia ou em outros suportes biológicos suas próprias referências conceituais.
O homeopata “cientista” também existe. diagnostica com base na experimentação
em laboratório, e considera a lei de similitude como uma lei natural, sem integrá-la em
qualquer globalidade energetista. O mesmo problema se coloca para todas as
abordagens paralelas, em níveis diferentes evidentemente, podendo também ser
resultante da importância social conquistada pela técnica e do desejo de seus
praticantes de “reconhecimento oficial” (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 79) .
Finalmente, Laplantine e Rabeyron alertam para dois excessos que devem ser evitados
na análise da expansão da procura por medicinas paralelas: a) a postura positivista que
menospreza as medicinas simbólicas e atribui sua utilização ao atraso intelectual e ignorância;
b) os movimento radicais antimédicos, análogos ao antigo movimento anticlerical. Lembram
ainda que embora o sucesso das medicinas suaves resulte da contestação do modelo médico
instituído, muitos usuários são ocasionais e não excluem a alopatia, apenas estão
decepcionados com ela, enquanto outros, ao aderirem aos tratamentos alternativos, abraçam
também uma visão de mundo. Segundo os autores:
Para uns, os recursos às medicinas brandas pode corresponder a uma
preocupação com a saúde, a beleza e a juventude. O que se procura através dos
complementos alimentares, das curas dietéticas, das receitas vegetarianas, ou dos
regimes de emagrecimento, associados ou não aos esportes e à ginástica, é uma
higiene física. Outros, ao contrário, manifestam uma busca de saúde que ultrapasse um
projeto estritamente preventivo ou terapêutico. O que se procura é, então, um bem-
estar físico e mental, e mesmo espiritual, a melhoria de si-mesmo, o despertar, a
conscientização, a sabedoria. Situamo-nos agora decididamente do lado do sagrado, e
freqüentemente mesmo do secreto, e rapidamente franqueamos a fronteira daquilo
que, em nossa cultura, é reservado à saúde e daquilo que é reservado à salvação. Mas
estaríamos errados se pura e simplesmente opuséssemos técnicas de higiene a rituais
médico-religiosos, pois toda técnica, ainda que medicinal, também tem uma dimensão
ritual, e os rituais podem conter em si mesmos uma eficácia propriamente terapêutica
(LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 33-34).
Em suma, as medicinas alternativas são parte de um fenômeno amplo que envolve
transformações no campo das religiosidades a partir do movimento de contracultura, que
contribuíram para a revalorização do corpo e dos aspectos simbólicos da cura. Especialmente
o questionamento das concepções cristãs de separação entre corpo e espírito foram valores
culturais cultivados desde os anos 1960 e que resultaram em modificações das representações
corporais na segunda metade do séc. XX.
104
Os modelos de saúde alternativos importados de outras culturas ou redescobertos na
cultura tradicional local estão centrados no paciente, na dimensão global que envolve físico-
mental-espiritual, baseiam-se nas idéias de força vital universal que anima os seres vivos
(vitalismo), de integração da humanidade com a natureza, e de equilíbrio individual como
caminho para a saúde da comunidade em geral (LUZ, M., 2005, p. 53). Essas idéias, como
veremos a seguir, fazem parte de um ideário holístico, que perpassa as religiosidades, as
corporeidades e as representações de saúde da atualidade, e que acabam interferindo também
na racionalidade médica dominante.
Para concluir, retornamos ao início deste capítulo, quando falávamos das principais
perspectivas em que a acupuntura foi adotada no ocidente: a tradicional e a científica. A
medicina de correspondência sistemática foi eleita no meio ocidental alternativo para
representar a tradição chinesa, mas, no entanto, os conceitos chineses clássicos percorreram
um longo caminho até chegarem ao Ocidente no formato atual, de modo que inevitavelmente
ocorreram re-interpretações ocidentais, sobretudo da acupuntura, em traduções secularizadas
para adequação às concepções racionalistas ocidentais.
No nosso modo de entender, mesmo quando é adotada no meio ocidental de modo
tradicional ou clássico, a acupuntura praticada no âmbito das medicinas alternativas adquire
re-significações referentes aos novos contextos culturais, que embora não descaracterizem
totalmente a terapêutica chinesa, dadas as afinidades ideológicas com o complexo alternativo,
constituem-se como um novo jeito de praticar acupuntura, que não é nem tradicional, nem
científico, mas se insere na perspectiva das medicinas energéticas ou vibracionais, que
seguem o referencial holístico. Esse será nosso próximo assunto.
105
4 O referencial holístico na adoção da acupuntura
De-finir essa visão holística seria, portanto, limitar, dar uma forma, limites,
um fim, ao infinito do Ser; de-finir a visão holística não seria pedir ao Ser que se
descrevesse a si mesmo? (...) em suas partes menores e através destas, o Ser examina a
si mesmo de maneira infinita; poder-se-ia dizer, nesse sentido, que a visão holística do
real, essa holoscopia”, seria a soma de todas as visões limitadas de todos os seres.
Chegamos dessa maneira a evitar a projeção antropomórfica do ser humano no Ser? A
resposta depende, sem dúvida, do grau de realização de cada ser humano; (...) um ser
transparente por completo será, por sua vez, a visão holística, porque não haverá mais
separação entre o “visionário”, o objeto da visão e a própria visão; não haverá senão o
Ser (WEIL, 1990, p.16).
No capítulo anterior falávamos da crise de significados ocorrida a partir da
contracultura, que resultou na rejeição ao dualismo cristão e à racionalidade biomédica
cartesiana, criando circunstâncias favoráveis à expansão das medicinas não convencionais. A
proposta deste capítulo é discutir as transformações operadas no campo religioso, no que se
refere à valorização de crenças monistas no Ocidente e ao surgimento de religiosidades
alternativas, que permitiram a inclusão de práticas medicinais orientais nas sociedades
ocidentais. Essa nova configuração religiosa demandou uma série de produtos e serviços,
criando um mercado para a acupuntura e outras medicinas brandas. Nosso objetivo é entender
o ideário vibracional, ou energético, ao qual nos referimos como ideário holístico, subjacente
às religiosidades e medicinas alternativas e que conduziu a prática de acupuntura no Ocidente
durante as últimas décadas do século XX.
Diante da expansão do intercâmbio entre Oriente e Ocidente nas últimas décadas, as
práticas orientais foram instauradas de modo efetivo nas sociedades ocidentais, especialmente
nos grandes centros urbanos. Por um lado, países orientais de culturas milenares, como a Índia
e a China, onde filosofias espirituais serviram de base à estruturação social, se abriram ao
Ocidente. No contra-fluxo, o Ocidente passou a utilizar filosofias e religiões orientais em
busca de explicações cosmológicas que preenchessem o vazio espiritual deixado pela
decadência de suas instituições religiosas. Ao contrário do Oriente, que passa por um processo
de ocidentalização, representado pela industrialização, desenvolvimento econômico e
modernização capitalista, o “próprio Ocidente o mostra mais entusiasmo similar por seus
próprios valores e crenças” (CAMPBELL, C., 1997, p. 20).
Nesse sentido, Colin Campbell discute o possível deslocamento da teodicéia ocidental,
dualista e objetiva, para outra monista e subjetiva que antes caracterizava o Oriente. Na
opinião do autor está ocorrendo uma orientalização do Ocidente, que aponta um crescente
abandono da idéia de humanidade superior à natureza e a sua substituição pela idéia de
106
“humanidade como parte da entrelaçada teia da vida espiritual e sensitiva” (CAMPBELL, C.,
1997, p. 20).
Para o autor, embora muitos elementos sejam importados e transformados, mantendo-
se apenas semelhanças superficiais com os originais, são assimilados porque está sendo
resgatada uma visão de mundo monista que esteve presente no Ocidente, na mística cristã,
baseada na experiência religiosa individual e na união com uma “consciência universal”
(CAMPBELL, C., 1997, p. 16). Esse modo vem sendo adotado pelas sociedades ocidentais,
segundo Campbell, através da substituição de crenças na salvação da alma por conceitos de
auto-aperfeiçoamento emprestados do Oriente, mas que adquirem novos sentidos em
contextos ocidentais.
Tanto o ambientalismo
62
e os movimentos ecológicos quanto a abordagem holística
seriam manifestações da cosmovisão oriental, pois atribuem à natureza e ao planeta
dimensões cósmicas. Essa cosmovisão apresenta a possibilidade de salvação do mundo
através da auto-transformação, posições quase religiosas na visão do autor. A versão moderna
da teodicéia oriental seria caracterizada pelo otimismo, individualismo e relativização. A
concepção de divino é impessoal e imanente, tudo está interligado, “tudo e todos fazem parte
do fundamento divino” (CAMPBELL, C., 1997, p. 12).
A importância atribuída à natureza e ao corpo, a responsabilidade individual pela
manutenção da própria saúde, a participação dos aspectos psíquico-emocionais e espirituais
na composição do corpo saudável, são pontos de congruência entre vários campos (as
religiosidades, as medicinas e terapias não-convencionais, vertentes da psicologia) e que
fazem parte do conjunto holístico. Essas idéias estão relacionadas à imanência divina no
indivíduo e são decorrentes das transformações culturais da última metade de século.
Nas décadas de 1970-1980, floresceram movimentos derivados da contracultura como
o “alternativismo”, o “naturalismo”, o “vegetarianismo”, que nessa época estavam
explicitamente imbricados de religiosidade. Os novos movimentos de saúde não se
distinguiam dos novos movimentos religiosos de origem oriental e das novas formas de
religiosidades desvinculadas de compromissos institucionais. Nessas religiosidades
predominam experiências individuais e combinações pessoais de elementos retirados de
diferentes conjuntos simbólicos. As religiosidades de origem oriental e a espiritualidade
“errante” , individualizada, estilo Nova Era, são parte essencial do complexo alternativo.
62
Campbell sugeriu afinidades entre a crença em reencarnação ou transmigração da alma e o desenvolvimento
dos movimentos ecológicos. O respeito aos animais e plantas, dotados de alguma forma de consciência, a
sacralização da natureza, noções de auto-desenvolvimento e ecologia interna, são elementos orientais, senão
religiosos (CAMPBELL, C., 1997, p.15)
.
107
Todos esses movimentos comungam de um ideário de integração planetária através da
energia e de recuperação da natureza, que pode ser chamado de holístico. As crenças
holísticas fundamentam ideologicamente a busca de uma nova ordem científica que aceite o
conceito de energia vital e de integração cósmica.
Nesse sentido, descreveremos as principais características das religiosidades
alternativas, na perspectiva de vinculação com novas representações de corpo e saúde através
da idéia de “energia”, e da adesão às crenças monistas. Em seguida, trataremos da abordagem
holística como visão de mundo que perpassa todos esses temas e permite a convergência entre
diferentes grupos e correntes, sejam religiosas, psicológicas, medicinais ou mágicas, em uma
mesma tendência de buscar aproximar ciência e religião. Antes de iniciarmos, porém, face ao
caráter polissêmico da palavra holística, gostaríamos de esclarecer melhor o significado que
estamos empregando aqui.
4.1 O espectro semântico do termo holístico
O termo holístico é frequentemente associado às medicinas e terapias não
convencionais, que compartilham uma visão global do ser humano e muitas vezes é utilizado
no senso comum para designar qualquer estrutura sistêmica, em que todo e parte se
relacionam de modo interdependente. Tornou-se apenas mais um sinônimo de rede
integrativa. Então, antes de tratarmos da cosmovisão holística, cabe uma delimitação
conceitual daquilo que entendemos por holística. Na nossa visão, procede a distinção já
apontada por alguns autores entre o conceito de holismo e de holístico, porque no primeiro o
todo tem preponderância sobre as partes, o que não acontece no segundo.
Para D’Andrea, as crenças das novas religiosidades não são “holistas”, mas sim
“holísticas”, porque “nãopredominância do todo cósmico sobre a parte” como no holismo,
ao contrário, na holística o indivíduo prevalece sobre o todo (D´ANDREA, 2000, p. 77).
Também na opinião de outro autor, James Beckford, há maior enfoque no indivíduo ou então,
e talvez principalmente, no eixo de ligação entre a unidade individual e a totalidade, do que na
totalidade propriamente dita (BECKFORD, 1984). Ou seja, a holística não se opõe ao
individualismo.
Nesse caso, o termo holista seria mais apropriado para nomear os conjuntos
integrativos em geral, enquanto holístico refere-se a um movimento de contraposição à
racionalidade científica clássica, que pode ser localizado historicamente. Estamos falando
aqui da abordagem holística ou do paradigma holístico, que pretende reunir ciência e
108
religião, formulado ou proposto possivelmente entre as décadas de 1970 e 1980, e que desde
então vem sendo cada vez mais comentado como prenúncio de uma “nova era na ciência”,
uma superação da racionalidade cartesiana.
Muitas concepções das novas religiosidades e das medicinas não-convencionais
apontam para uma cosmovisão que pode ser chamada de holística, tais como: adesão ao
monismo; contestação da hegemonia da racionalidade científica; afirmação da existência de
um “princípio ordenador inteligente” que rege o universo e da conexão de tudo no mundo
através de energia; adoção da idéia de “consciência planetária”; rejeição à fragmentação dos
saberes e a qualquer idéia de separabilidade (CHAMPION, 2001, p. 26).
Através dessas idéias a abordagem holística fornece explicações cosmológicas que dão
sentido à existência. São crenças centrais, de acordo com Champion, e que poderiam servir
como orientação ética de conduta, no sentido de solidariedade, de reciprocidade, cooperação,
fraternidade. Valores que no fundo se coadunam com os ideais cristãos. Por trás de tudo
uma essência cósmica, uma energia primordial, “somos todos um”, “tudo no universo é uma
unidade”. A idéia é que tudo está interligado por “energia”, conceito traduzido
cientificamente pelo referencial holístico e transposto para a natureza do corpo como bio-
eletricidade ou como bio-energia.
Na opinião de Beckford, a holística seria uma cosmovisão e um veículo de
religiosidade, porque fornece significado para a vida humana. O divino é colocado na
percepção de reciprocidade entre o indivíduo e o cosmos. Tanto o relacionamento, o elo,
como o senso de sociabilidade são sacralizados. Concordando com Beckford, consideramos a
holística uma cosmovisão que comporta uma espécie de religiosidade, pois fornece um
sentido cosmológico para a existência, muito embora na modernidade tenha adquirido
conotações secularizadas e pragmáticas referentes ao contexto histórico-cultural
contemporâneo. Por suas características de aproximação entre os saberes e aparência
secularizada, a holística se dilui nas diversas esferas sociais tornando-se quase imperceptível
enquanto modo de religiosidade. Pode, inclusive ser encontrada nos ambientes científicos.
No nosso modo de entender, a cosmovisão holística seria uma recriação da
cosmovisão oriental, conforme apontado por Campbell, mas que na versão contemporânea é
dotada de determinadas características, tais como busca de plausibilidade mediante a
apropriação do referencial científico, ênfase nas individualidades e não na totalidade,
combinação com a religiosidade do eu e com as correntes terapêuticas pós-freudianas, diálogo
com as ciências exatas e biológicas, tendência à secularização.
109
Então, quando nos referimos à holística estamos falando de uma visão de mundo
utópica, que procura um consenso entre ciência e religião como modo de explicação dos
fenômenos extraordinários, que fornece um modelo de conduta para os indivíduos, baseado
no monismo, na integração entre tudo e todos no universo através da energia, e que se
configura como fundamento das novas formas de religiosidade e das medicinas não
convencionais.
De acordo com Champion, essa “aspiração a um mundo unificado e reencantado” é
uma espécie de protesto que esteve presente no romantismo, nas correntes esotéricas do
séc. XIX, no simbolismo e no surrealismo, e que nos anos 1970 se pulverizou em vários
movimentos terapêuticos, religiosos e ecológicos, que tinham em comum a “recusa à
concepção estabelecida de mundo e a ciência que a produziu” (CHAMPION, 2001, p. 30). A
seguir, vamos analisar algumas fontes que contribuíram para a composição desse ideário
holístico comum às religiosidades e medicinas alternativas.
4.2 Fontes inspiradoras das religiosidades alternativas e do ideário holístico
Conforme D´Andrea (1996), as origens das crenças das novas religiosidades estão no
debate entre iluminismo e romantismo em torno do projeto civilizador moderno, sobre a
dominação ou a integração da humanidade à natureza (D’ANDREA, 2000, p. 88). Essas duas
correntes fazem-se presentes constantemente nas religiosidades alternativas, até os dias atuais,
e perpassam também as medicinas não convencionais. uma vertente para-científica que é
neo-iluminista, que critica a religião tradicional e busca a fundamentação da em bases
científicas. Busca também o controle racional das emoções e do corpo, e o controle da
realidade através do poder mental. Nesse sentido, essa corrente valoriza o projeto racionalista,
“tende a sacralizar a ciência e seu motor operatório básico: a razão” (D´ANDREA, 2000, p.
89).
Por outro lado, são muitas as influências românticas, que vêm principalmente de
Rosseau, tais como a conclamação ao retorno da humanidade à sua natureza, resgate de uma
essência humana perdida com o estabelecimento da civilização, associação entre
“degeneração humana e avanço tecnológico”, sacralização da natureza, e, sobretudo, um ideal
de perfeição humana a ser atingido, que será a fonte da religiosidade do Eu nos séculos
seguintes (D’ANDREA, 2000, p. 89).
110
A religiosidade do Eu é uma continuidade do romantismo presente na corrente
intelectual alemã do século XIX. Influenciada pelo contato com as tradições orientais, essa
vertente romântica pregava o “auto-cultivo do self” com objetivo de aperfeiçoamento do
espírito (D’ANDREA, 2000, p. 90). O ideal de “transformação do indivíduo pelo
desenvolvimento harmônico das forças vitais, mentais e espirituais” seria, segundo Bellah
(apud D’ANDREA, 2000, p. 93) parte de um “individualismo de expressividade da alma”,
que contaminou intelectuais, artistas, poetas e escritores do séc. XIX, surgindo inicialmente
como contraposição ao individualismo utilitário.
No individualismo expressivo, a perfeição é alcançada pela realização espiritual do
indivíduo que redescobre em si uma manifestação da pluralidade divina. É uma condição de
imanência da totalidade divina no ser humano. Trata-se de reabilitar a natureza divina da
humanidade, desse modo, a autenticidade de cada indivíduo (a sua natureza original) deve ser
expressa livremente de forma criativa, pela dimensão sentimental ou artística (D’ANDREA,
2000, p. 96). Entre outras influências da matriz expressivista estão: estímulo da
espontaneidade, da expressão das emoções e sentimentos, da manifestação artística e da
criatividade, desenvolvimento da subjetividade, culto à natureza e recusa da artificialidade
tecnológica. O contato com a essência da “consciência cósmica primordial” se faria através da
integração com a natureza. Segundo D’andrea:
São duas diferentes formas de perceber, avaliar e relacionar-se com a cultura,
a natureza e a pessoa. No neo-iluminismo, a natureza é o espaço do descontrole e da
falta de luz, devendo ser conhecida e controlada pela humanidade, a civilização que
tem a razão e a ciência como epítomes. Estas resolverão os problemas da humanidade,
realizarão a paz, a verdade e a abundância na Terra. Tal representação utópica projeta-
se na visão de pessoa: o corpo, ainda que templo da alma, é um campo de perigos e
potencialidades que a mente deve dominar, desenvolver e canalizar para a auto-
evolução. No expressivismo New Age, o problema, ao contrário, reside na cultura,
local da máscara e da hostilidade. Tais problemas serão superados com o
reencontro do ser humano consigo mesmo, pelo resgate da essência e da sabedoria que
se perderam quando o ser humano se separou da natureza (D’ANDREA, 2000, p. 54).
Desde o séc. XIX duas correntes de individualismo estão presentes nos novos
movimentos religiosos, a utilitária e a expressiva, tendências essas que permaneceram
paralelamente interferindo nas religiosidades alternativas que emergiram no final do século
passado. Heelas (1996, p. 18) classificou da seguinte maneira as tendências presentes nas
religiosidades alternativas: a) ênfase no “amor-sabedoria”: influenciada pelo romantismo,
sacralização da natureza, integração cósmica, expressão de emoções, cultivo da sensibilidade;
b) ênfase no “poder-energia”: influenciada pelo iluminismo e utilitarismo, prosperidade,
poder do pensamento para obter sucesso, saúde e realização financeira.
111
4.2.1 Heranças do séc. XIX: movimentos religiosos ocidentais e religiosidades orientais
Françoise Champion localizou as principais crenças das novas religiosidades nos
movimentos religiosos que surgiram no séc. XIX, no esoterismo e ocultismo influenciados
por Eliphas Levi e Papus, no espiritismo de Kardec, na Teosofia de Madame Blavatsky, e de
seus seguidores como Rudolph Steiner (antroposofia), Annie Besant e Alice Bailey. A
Sociedade Teosófica, fundada por Madame Blavatsky em 1875, foi fundamental para a
combinação de elementos hinduístas e budistas com para-psicologia, ocultismo e tradições
esotéricas. As diversas correntes que se instalaram no séc. XIX, esotéricas, ocultistas e de
tendência orientalista, recusavam o dualismo entre o natural e a intervenção sobrenatural e,
com exceção do kardecismo, rejeitavam a separação entre o humano e o divino (CHAMPION,
1996, p. 721).
A autora considera que o espiritismo desempenhou papel relevante na formação de
novas religiosidades, principalmente na tentativa de aproximação entre religião e ciência. O
espiritismo surgiu a partir de uma desestabilização do cristianismo pelas ciências naturais no
final do séc. XIX e despertou interesse em muitos cientistas e médicos da época. O
espiritismo questionava o cristianismo católico e buscava uma associação com a ciência,
instituição reconhecida como método superior de investigação da verdade. Como pretendia
transformar a tradição religiosa em ciência, utilizava explicações científicas para os
fenômenos sobrenaturais, baseadas em invenções então recentes como a telegrafia, o telefone
e o fonógrafo. As idéias de captação e transmissão eram transpostas para a religião de modo a
explicar uma possível comunicação telepática no futuro (CHAMPION, 2001, p. 34).
Um evento histórico marcante para a proliferação de tradições religiosas orientais no
Ocidente foi o Parlamento Mundial das Religiões, realizado em 1893 nos EUA, reunindo
vários líderes religiosos protestantes, esotéricos, ocultistas e intelectuais interessados em
religião e no Oriente (AMARAL, 2000, p. 22). Entre eles estavam Vivekananda e o monge
zen Soyen Shaku, cujos ensinamentos atraíram discípulos ocidentais, possibilitando o
estabelecimento de organizações budistas e hinduístas no Ocidente (CHAMPION, 1996, p.
722). Os principais divulgadores das religiões orientais foram os seguidores da teosofia,
filósofos, escritores e artistas (BAUMANN, 2002, p. 40).
O diálogo com as religiões orientais era, entretanto, mediado por líderes religiosos
representantes de movimentos modernizadores, já bastante influenciados pela cultura
ocidental, que defendiam um despojamento da aparência místico-devocional das tradições,
valorizando os aspectos intelectuais (AMARAL, 2000, p. 23).
112
Os movimentos religiosos do séc. XIX esotéricos, ocultistas, teosóficos - buscavam
aproximar tradições antigas, sobretudo orientais, com o pensamento ocidental científico,
através de re-interpretações secularizadas (BAUMANN, 1996). A via de contato privilegiada
com os ensinamentos orientais era a tradução de textos, a investigação intelectual na fonte
original das antigas tradições conferia maior legitimidade ao conhecimento.
Várias concepções e crenças presentes nas novas religiosidades se originaram desses
movimentos do séc. XIX: a evolução progressiva através do sistema reencarnacionista; a
atribuição de responsabilidade ao indivíduo pelo progresso espiritual; crença numa tradição
primordial subjacente a todas as doutrinas, de modo que é possível uma convergência entre
diferentes religiões; adoção de concepções monistas das religiões orientais; tendência ao
ecletismo e sincretismo; perspectiva milenarista; afirmação do individualismo; crença no
poder realizador do pensamento (CHAMPION, 1996, p. 720-721). Como observou D’Andrea,
apesar de compartilharem idéias românticas que remetem à essência cósmica e integração
entre os seres, haveria nessas correntes religiosas do séc. XIX um certo viés neo-iluminista,
que reafirmava o progresso através da racionalização.
Outro movimento desse período que teve considerável importância na propagação de
idéias das religiões orientais, concernentes à integração da humanidade com a natureza e com
uma essência divina, foi o Transcendalismo, vertente artístico-literária romântica inspirada no
hinduísmo, que atingiu pensadores americanos e europeus a partir do final do séc. XIX e que
ingressou as primeiras décadas do séc. XX. Seus principais representantes foram Emerson e
Thoureau (CHAMPION, 1996, p. 722).
Entre as religiosidades do séc. XIX e suas herdeiras do séc. XX duas principais
descontinuidades, conforme Champion (1996). Num primeiro momento o estudo intelectual
dos ensinamentos era mais valorizado, bem como seu caráter iniciático e secreto, não
chegando, porém, a impactar a vida dos simpatizantes. No período posterior, no séc. XX,
embora de âmbito privado, essas religiosidades estenderam-se para a vida cotidiana através de
receitas de bem-viver e práticas aplicadas a esferas sociais distantes do campo religioso. O
auto-aperfeiçoamento místico contemporâneo pode ser obtido tanto mediante práticas rituais
de cunho religioso, quanto pelo auxílio de atividades terapêuticas corporais, ou até mesmo
através de regras de comportamento que podem ser estendidas ao mundo profissional e
financeiro. São, portanto, formas religiosas impregnadas de pragmatismo (HEELAS, 1996).
A experiência interior de transformação pessoal que envolve o lado sentimental afetivo
e corporal foi privilegiada em detrimento dos aspectos teológicos. Assim, a segunda
descontinuidade em relação ao c. XIX é a introdução da psicologia como articuladora das
113
religiosidades com o restante da vida social. De acordo com Bellah, no século XX o
individualismo expressivo acabou ganhando afinidades íntimas com a cultura psicológica
(BELLAH, 1985, apud D’ANDREA, 2000, p. 93). Então, o tipo de hibridismo que
predominou nas religiosidades contemporâneas envolveu principalmente a combinação entre
religiosidade e psicologia (CHAMPION, 1996, p. 720).
4.2.2 Desenvolvimento da abordagem holística no séc. XX
Embora a palavra “holos” seja de origem grega (todo), o termo “holismo” foi cunhado
em 1926, por J. C. Smuts, no livro “Holismo e Evolução” (MORA, 1981, p. 1545). A idéia de
“holística” enquanto “novo paradigma científico ou “nova era na ciência” se desenvolveu
durante o século XX, inspirada no modelo da física quântica, que revolucionou a ciência com
novas noções de tempo, espaço e luz. O princípio das incertezas e os conceitos relativistas
colocavam em xeque verdades que sustentavam a concepção cartesiana e mecanicista do
mundo, bem como questionavam a separabilidade entre sujeito e objeto de investigação. A
nova física gerou uma série de especulações sobre realidades extraordinárias, e foi uma das
principais inspirações do ideário holístico.
Nos anos 1930, a idéia de “holismo” influenciou a biologia, a psicologia da gestalt e a
psicologia junguiana. Jung teria sido um dos pioneiros da abordagem holística, na tentativa de
aproximação entre psicologia e física em cartas que trocava com o físico Wolfgang Pauli, na
primeira metade do séc. XX (1932-1958). Jung havia tomado contato com a cultura chinesa
através de seu amigo sinólogo Richard Whilhelm. Fortemente influenciado pelas tradições
orientais, Jung buscava identificar no átomo aquela essência primordial que comporia os
arquétipos e o inconsciente coletivo. A partir do diálogo da psicologia com a nova física e
com a tradição chinesa, nos anos 1930 criou conceitos como o de energia psíquica e
sincronicidade, que contestavam a racionalidade da ciência clássica.
No final da década de quarenta, figuras que foram importantes influências intelectuais
das religiosidades alternativas faziam referência a uma ciência espiritualizada. Alice Bailey,
seguidora da Teosofia, utilizou esse termo em obra de 1949, “Education in the New Age”,
onde apresenta a “Era de Aquário” e a proposta de “fusão entre uma nova ciência e a nova
espiritualidade, no sentido de formação de um novo holismo” (D´ANDREA, 1996, p. 166).
114
Em 1952, N. M. Peale publicou “O poder do pensamento positivo”, um best-seller que
inaugurou o modelo otimista de transformação da realidade pelo controle mental e alimentou
o ideário energético holístico com princípios de transmissão vibracional.
Ao processo de transformação do pensamento científico desencadeado pela física
quântica e às idéias religiosas decorrentes dos movimentos religiosos do séc. XIX, somaram-
se os fluxos migratórios asiáticos para a América na primeira metade do séc. XX. Sobretudo
japoneses, mas também chineses, a princípio imigraram para trabalho temporário, mas
acabaram se estabelecendo nos EUA e tornando-se parte da classe média americana na década
de sessenta (BAUMANN, 2002, p. 43). As leis de imigração de orientais para os EUA foram
flexibilizadas nos anos 50 e 60, possibilitando maior contato com tradições orientais, como
hinduísmo, budismo e a corrente zen. Professores asiáticos começaram a visitar o Ocidente e
realizar palestras. O Zen, por exemplo, foi intensamente divulgado entre os americanos por
D.T. Suzuki, na década de cinqüenta, sendo popularizado e propagado pelo movimento de
contracultura
63
. A partir dos anos 60, diferentes correntes budistas começaram a instalar
escolas e centros em países ocidentais com objetivo de expansão e difusão das suas idéias
64
.
Após a década de 1970 o budismo teve um rápido crescimento no Ocidente, que pode
ser associado às mudanças culturais desencadeadas pelo movimento de contracultura, à busca
de religiões não cristãs e ao renovado interesse por “experiência religiosa e espiritualidade”
(BAUMANN, 1996, p. 355). A adoção do budismo entre ocidentais a partir dessa época foi
favorecida pela possibilidade de aplicação prática dos ensinamentos na vida cotidiana,
satisfazendo necessidades ocidentais modernas. O budismo globalizado que emergiu após os
anos setenta adquiriu um caráter mais universalista e ecumênico, direcionado para a expansão
no Ocidente e a convivência plural de escolas com diferentes orientações no mesmo espaço
geográfico (BAUMANN, 2002, p. 41). A influência do budismo modernizado nas concepções
holísticas é bastante forte, bem como do taoísmo e do hinduísmo.
No capítulo anterior falamos da contraposição aos valores vigentes que eclodiu com
o movimento de contracultura e contribuiu para o surgimento de novas corporeidades e
valorização das medicinas não-convencionais. As mesmas influências participaram
sobremaneira na formação da abordagem holística. Com a retração do movimento de
contracultura, a partir da década de 1970, a esperança utópica de uma nova sociedade
deslocou-se para os referenciais religiosos, para as idéias de energia e consciência divina, que
63
Conforme exposto no cap. 3, Allan Watts, Allen Ginsberg e Jack Kerouac fizeram a ponte entre o zen e o
movimento de contracultura (BAUMANN, 2002, p.49).
64
Sobretudo a linha Zen, o budismo Terra Pura e a organização laica Soka Gakkai (BAUMANN, 2002, p. 50).
115
embasaram as concepções holísticas e ao mesmo tempo conservaram a idéia de transformação
global do ser humano e da sociedade a partir de ações individuais (CHAMPION, 2001, p. 28).
Com a desilusão política, os ideais coletivos migraram para a esfera privada, para a dinâmica
da salvação pessoal, seja na dimensão religiosa, seja na dimensão psicológica.
De acordo com Champion:
A referência a crenças em realidades não-ordinárias constituiu-se em recurso
que garantia o poder quando a impotência política o fracasso de meios propriamente
humanos tornara-se evidente. (...) Na realidade, a dimensão política está nesse caso
dissolvida na meta de realização pessoal integral, que é da libertação individual que
se espera a felicidade coletiva (CHAMPION, 2001, p. 28).
Nesse sentido, de transformação individual como modo de atuação social, na década
de 1970 as psicoterapias expandiram-se e ampliaram sua influência nas grandes cidades.
Nessa época desenvolveram-se novas correntes psicológicas holísticas como o Movimento do
Potencial Humano e a psicologia transpessoal
65
. Esta última mais explicitamente religiosa,
pois admite a experiência mística como modo de cura (CHAMPION, 2001, p. 29). Um dos
representantes da psicologia transpessoal, Pierre Weil é a figura mais vinculada ao termo
abordagem holística na atualidade. Incansável divulgador das propostas holísticas, escreve
livros ligados diretamente ao tema e participou da fundação de universidades holísticas na
França e no Brasil.
Nos anos 1970 ainda estava presente a crítica social herdada da contracultura. A
fragmentação do conhecimento em saberes especializados (operada pela ciência clássica) e do
ser humano em partes (operada pela medicina convencional) era contestada através da
abordagem global. A concepção holística de totalidade e interdependência entre as partes
também comparece nos movimentos ecológicos e alternativos, ao mesmo tempo em que é
influenciada por eles. Apesar de ser acusada de teológica, a Hipótese Gaia
66
, proposta em
1969 por Lovelock, na qual a Terra seria um imenso organismo vivo, um ecossistema global
do qual todos os seres vivos são parte, serviu como bandeira ecológica nos anos 1970,
correspondendo a uma espécie de sacralização da natureza.
Em 1972 foi publicado o relatório “Os limites do Crescimento”
67
, encomendado pelo
Clube de Roma
68
, que denunciava a depredação ambiental causada pelo avanço da
industrialização e a escassez de recursos naturais, que poderia sobrevir caso o modelo de
produção desenfreada não fosse modificado. Nesse mesmo ano, que marcou a luta ambiental,
65
Alguns expoentes da psicologia transpessoal são Ken Wilber e Stanislav Grof.
66
Cf. A hipótese Gaia. CFCH-UFSC. Acesso em jul. 2007.
67
Cf. Meio ambiente: história, problemas, desafios e possibilidades. IBPS. Acesso em: jul. 2007.
68
Para mais informações veja: FGV no Clube de Roma. FGV-EBAPE. Acesso em: jul. 2007.
116
foi criado o primeiro partido verde na Suécia, onde se realizou a Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, da qual surgiu o conceito de eco-desenvolvimento.
Aperfeiçoado e renomeado mais tarde para desenvolvimento auto-sustentável, esse conceito
valoriza os conhecimentos locais ou tradicionais na gestão do meio ambiente, procurando
articular estratégias de crescimento com gestão ambiental.
Em 1979 foi realizado o Colóquio de Córdoba, reunindo físicos, psicólogos
junguianos e líderes religiosos para discutir a aproximação entre ciência e religião e as
recentes descobertas científicas que confirmavam realidades concebidas pelas religiões
(CHAMPION, 2001, p. 26). A partir dos anos 1980, a proposta de aliança ciência e religião,
ou o “novo paradigma holístico”, ganhou adeptos no meio científico
69
e atingiu o grande
público através das obras do físico Capra, que promoveu interpretações que reuniam tradições
orientais, como o budismo e o taoísmo, com a física quântica. Além disso, não podemos
esquecer que o próprio Dalai Lama é um grande entusiasta da holística, participando
intensamente da sua divulgação através de palestras e de discursos nos meios de
comunicação.
A linguagem da física quântica foi apropriada para dar conta da noção de energia vital,
tanto nas religiosidades como nas medicinas alternativas. De acordo com Amaral, a metáfora
do quantum, equivalente a um “mínimo indivisível, comum a tudo no universo”, foi
transposta para a “essência cósmica primordial”, ao qual está ligado um “self superior,
definido como não matéria”, que seria a “menor unidade do indivíduo”, manifesta em luz e
energia (AMARAL, 2000, p. 65). O pensamento, de acordo com essa concepção, também
corresponderia a ondas de energia, podendo interferir de modo concreto no mundo através do
efeito vibracional “a fim de remover bloqueios e facilitar processos de comunicação, no nível
mais fundamental, para efeitos de cura” (AMARAL, 2000, p. 66).
A base para uma ética holística foi a teoria da “Conspiração Aquariana”, de Marylin
Ferguson, publicada em 1980, que após o refluxo da contracultura apresentou uma narrativa
coletiva substituta para a ordem política, abrindo a possibilidade de transformação do mundo
a partir da transformação individual. Conforme a narrativa, especialmente explicitada no livro
de Ferguson (1980), a Nova Era seria uma época futura, em que a paz e a harmonia reinariam
no mundo, e que será estabelecida quando a maioria dos indivíduos atingirem um
determinado estágio evolutivo, graças a sua auto-transformação. Assim, o desenvolvimento
psíquico-espiritual individual contribuiria para a evolução planetária, de modo geral.
69
Champion cita alguns nomes do meio acadêmico que estariam, na sua opinião, “encantados” com a visão
holística: Edgar Morin, Francisco Varela, Prigogine, David Bohn, F. Capra.
117
O fato é que a “abordagem holística” e a teoria da “Conspiração Aquariana”, que
remete à mítica Nova Era, andam de mãos dadas, desenvolvem-se paralelamente, e oferecem
explicações e sentido para a existência, embasando as religiosidades alternativas e os novos
movimentos de saúde. Pode-se entender que a Nova Era, nesse sentido, seria também uma
realização interior de um potencial divino imanente em cada pessoa, o encontro do indivíduo
com a própria centelha divina, que no plano macro pode transformar o mundo. Esse tipo de
religiosidade individualizada, fundamentada na experiência pessoal, também é chamada de
espiritualidade do Eu. Na realidade é uma espécie de psico-espiritualidade, um novo jeito de
se relacionar com a religião que caracteriza a contemporaneidade e que cabe perfeitamente
dentro do ideário holístico (CAMPBELL, 1997, p. 14; SOARES, G., 2004, p. 121).
4.3 Religiosidades alternativas: corpo, saúde e visão holística
A expansão das novas formas de religiosidades e da adesão às crenças de origem
oriental, bem como a propagação de uma espécie de religiosidade difusa, enrustida, invisível
ou encoberta por secularização, é um fenômeno mais visível a partir do final do séc. XX.
Essas religiosidades contemporâneas diferenciam-se dos movimentos religiosos anteriores
pela ênfase no desenvolvimento espiritual individual de âmbito privado, pelo pluralismo
religioso, pelo trânsito entre diversos grupos e pela articulação com a cultura psicológica
contemporânea. Não é possível definir exatamente os contornos desse fenômeno, tamanha sua
complexidade. Enquanto expressão estatística os novos movimentos religiosos, um dos termos
mais utilizados para designar as religiosidades alternativas, são inexpressivos.
Nota-se, porém, que desde o movimento de contracultura a idéia de sobrenatural e as
crenças vêm mudando, e que as tradições bíblicas vêm perdendo o vigor, como demonstram
pesquisas sobre decréscimo de interesse pelas crenças cristãs nas últimas décadas
(CAMPBELL, C., 1997, p. 10; CHAMPION, 1996, p. 706). As novas religiosidades são
geralmente de âmbito privado, sem vínculos institucionais, fragmentadas ao modo da
bricolagem, em que o indivíduo escolhe elementos de diferentes áreas de conhecimentos
antigos e modernos (religião, ciência, filosofia, arte) para compor um mosaico singular de
crenças e sentidos.
Champion define da seguinte forma as religiosidades paralelas, que correspondem
aquilo que chamamos de religiosidades alternativas, por apresentarem oposição ao modelo
dualista cristão:
118
Todas as religiões não cristãs, os diversos esoterismos e todas as crenças e
práticas para-religiosas, antigas (vidências, por exemplo) ou novas (meditação, por
exemplo). Essas religiosidades paralelas desenvolveram-se consideravelmente nos
últimos vinte anos, em grande parte a partir dessa religião flutuante libertada pela
perda de influência das grandes instituições religiosas (CHAMPION, 1996, p. 713).
De acordo com a autora, na contemporaneidade todas as crenças, cristãs ou não,
tornaram-se flutuantes e incertas, decompostas em elementos soltos que podem ser
recombinados individualmente (CHAMPION, 1996, p. 708). As religiões tradicionais,
especialmente as orientais, são fontes de onde se obtém elementos para os arranjos
individuais. Teria ocorrido principalmente uma “decomposição do mágico-religioso em favor
do simplesmente mágico, com tendência ao para-científico, ao psicológico, ao humanismo
revisitado” (CHAMPION, 1996, p. 727). As novas religiosidades são regidas por uma dupla
lógica, uma pragmática e outra de experiência afetiva, ambas direcionadas para o bem-estar, a
realização pessoal e a felicidade (CHAMPION, 1996, p. 713). A autora observou que:
Sai-se do sistema religioso quando, para além da reinterpretação de crenças ou
de práticas religiosas reinterpretações que são sempre a regra e em que o
pragmatismo desempenha sempre um importantíssimo papel estamos
manifestamente perante reutilizações estruturadas por uma dinâmica totalmente
profana. É essa justamente a tendência dominante na nebulosa místico-esotérica
(CHAMPION, 1996, p. 726)
.
Para Heelas essas religiosidades manifestam-se preferencialmente na forma de
“espiritualidade individualizada”, mas também como “espiritualidade que perpassa tudo que é
natural, e liga todas as pessoas à ordem cósmica” (HEELAS, 1996, p. 18). Heelas lembra que
a religiosidade do Eu é antiga, mas “o modo como é utilizada por vezes é pós-moderno”,
dentro da lógica hedonista ou consumista (HEELAS, 1996, p. 23-25). Para o autor:
Levando-se em conta todos os outros serviços prestados no âmbito da Nova
Era por exemplo, com relação às medicinas alternativas é altamente provável que
aspectos da Nova Era estejam sendo amplamente disseminados. É também possível
que algumas das pessoas que procuram a Nova Era para fins recreativos terminem por
adotar certas características do movimento. (HEELAS, 1996, p. 28).
As idéias geradas no bojo desses movimentos foram disseminadas amplamente nos
ambientes cosmopolitas, tanto interferindo em religiões instituídas como gerando novos
estilos de vida e novas linguagens. A proliferação de técnicas inicialmente religiosas para
contextos seculares acabou constituindo um mercado específico de produtos e serviços cujos
principais consumidores são as camadas médias e altas, mas cujos apelos vêm também
atingindo camadas mais populares a partir da última década do séc. XX, principalmente
devido à divulgação na mídia.
119
A meditação budista, por exemplo, tradicionalmente restrita aos monges ascetas, no
Ocidente foi estendida também para a comunidade leiga. Então a meditação passou a ser
praticada “não como treinamento enraizado num sistema religioso, mas como técnica de
presença atenta unida à uma abordagem de cura psicológica” (BAUMANN, 2002, p. 59). As
práticas devocionais tradicionais adquiriram novo papel na contemporaneidade, reunindo
rituais, experiência mística individual e compreensão racionalista. A meditação atualmente é
utilizada completamente fora do âmbito religioso, seja em ambientes empresariais para
relaxamento da mente, seja em espaço hospitalar para aumentar o bem-estar dos pacientes.
Conforme destacou D’ Andréa sobre as crenças do Movimento Nova Era
70
:
(...) atraem a atenção de segmentos da população ocidental, especialmente
aqueles de situação material e cultural privilegiada, envolvidos com a matriz
expressivista ou romântica. Artistas, escritores, cosmopolitas são os segmentos mais
afeitos a essa exotização. Apesar de minoritários, entretanto, por seu posicionamento
de prestígio e influência, eles afetam significativamente o desenvolvimento de gostos
e preferências em largos estratos da classe média (D’ANDREA, 2000, p.113).
Na opinião de Leila Amaral, Nova Era não é exatamente um substantivo, um conjunto
que se possa delimitar, mas é um adjetivo, uma lógica caleidoscópica da modernidade tardia,
que atinge as religiosidades com a característica de desterritorialização. Nesse sentido, o
adjetivo Nova Era poderia ser aplicado às religiosidades contemporâneas em geral, como
influência que modifica inclusive as religiões institucionalizadas. Seria uma espiritualidade
errante, em que o trânsito e a multiplicidade de credos é quase a regra. O sobrenatural, o
metafísico e o espetacular se interpenetram, diversos elementos consumidos no mercado de
bens simbólicos são continuamente recombinados “no sentido de instrumentalização do
indivíduo, para que ele possa triunfar sempre, impor sua vontade e enfrentar poderes em luta,
cercando-se de numerosas precauções gicas” (AMARAL, 2000, p. 33). A autora ressalta,
no entanto, que embora com menor grau de influência, alguns aspectos das novas
religiosidades apontam para o desejo de preenchimento de uma lacuna de sociabilidade, de
pertencimento à uma conjuntura maior, de compartilhar dos grupos sociais, porém de uma
maneira mais solta (AMARAL, 2000).
Uma das chaves para a compreensão das religiosidades contemporâneas é a
possibilidade de arranjos pessoais de crenças retiradas de diferentes sistemas religiosos e
também científicos, numa combinação eclética em que são justapostos elementos tradicionais
e modernos, orientais e ocidentais, mágico-religiosos e psicológicos. Nesse sentido, o
70
O Movimento Nova Era é uma das variantes dos Novos Movimentos Religiosos ou das religiosidades
alternativas, a mais proeminente na mídia e a mais diluída nas sociedades pela proliferação dos serviços
oferecidos em torno do tema.
120
religioso e o secular se combinam nas articulações entre crenças e utilitarismo, tornando a
religiosidade invisível, pois disseminada em um amplo leque de serviços. A possibilidade
infinita de conjugações entre diferentes elementos inviabiliza um exato dimensionamento da
propagação de concepções das novas religiosidades para outras esferas sociais.
4.3.1 Características das religiosidades alternativas
Champion sintetizou algumas características das religiosidades alternativas tais como
individualismo, pluralismo, ecletismo, trânsito freqüente entre grupos religiosos, substituição
da crença pela experiência individual, recusa do controle institucional das crenças, primazia
da emoção sobre a razão, preocupação com a saúde e com o corpo, adesão às crenças
monistas (recusa da separação entre humano e divino, entre natural e sobrenatural, entre
corpo, mente e espírito); crítica às insuficiências da modernidade; otimismo exacerbado
71
e
crença em imanência divina na humanidade (CHAMPION, 1996, p. 715-717).
De um modo geral, poderíamos resumir da seguinte maneira os principais aspectos
dessas religiosidades, apontados pela maioria dos autores:
a) prática individual calcada na experiência pessoal direta com a divindade, experiência mais
sensorial que intelectual, que prescinde da mediação de instituições religiosas e de dogmas
doutrinários. Religiosidade do Eu, o divino está dentro de cada ser humano, é uma centelha
divina da totalidade cósmica; busca de auto-realização através da auto-transformação e auto-
conhecimento, mediante atividades psico-terapêuticas, para recobrar elo com totalidade
cósmica através do self; o Eu, ou self , é a manifestação da totalidade no indivíduo e reúne o
lado racional e o irracional; a salvação seria a realização do Eu, isto é, daquele potencial
original equivalente à natureza autêntica de cada indivíduo;
b) ecletismo, combinação entre tradição e modernidade, entre religioso e secular (ou profano);
trânsito entre diversos grupos religiosos e sistemas de crenças; decomposição das tradições
religiosas e das ciências em elementos que são rearranjados de acordo com a escolha pessoal;
c) retorno à natureza, crítica à civilização atual e à artificialidade tecnológica, valorização do
cuidado do corpo e da saúde como via de purificação para realização do divino no indivíduo;
expressão dos sentimentos e das emoções, incentivo ao desenvolvimento da sensibilidade e da
espontaneidade, correspondente a deixar a natureza operar por si mesma; sacralização da
natureza;
d) otimismo, crença no progresso e no poder ilimitado do pensamento e da razão; busca de
legitimação científica, ciência é instância portadora da verdade; reação contra racionalidade
cartesiana, mas não propriamente contra ciência; crença no futuro da humanidade (Nova Era);
crença na onipotência da mente humana para modificar o mundo real seja através da magia,
seja através de ciência;
71
Presente, por exemplo, na crença em desenvolvimento da humanidade, em progresso individual e coletivo
através das reencarnações, que possibilitam evolução constante. O otimismo também é perceptível na crença no
poder do pensamento positivo para atrair bons agouros.
121
e) crenças monistas; totalidade divina e imanência na humanidade; não separação e não
fragmentação, continuum corpo-mente-espírito, humanidade-natureza-cosmos; essência
cósmica, uma mesma essência por trás de todas as religiões e saberes; uma mesma verdade
dita em diferentes linguagens (arte, ciência, filosofia, religião); relação de correspondência
entre micro e macro cosmo; tempo eterno e cíclico; espaço infinito.
4.3.2 O corpo como veículo de salvação
A salvação, na concepção das religiosidades alternativas, se daria neste mundo (e não
no além), através da felicidade e do prazer que implicam em saúde, bem-estar e prosperidade.
A salvação é equivalente à auto-realização, que advém do autoconhecimento e
autotransformação, alcançados através do trabalho corporal (psico-corporal ou psico-
esotérico) (CHAMPION, 1996). O corpo é, portanto, veículo da salvação e por isso deve ser
cuidado. O auto-aperfeiçoamento é voluntário, não é de ordem moral, mas principalmente
afetiva, que se realiza no plano psíquico, emocional e corporal.
Conforme observou Champion:
Os modelos de perfeição estavam totalmente orientados para este além: para
uma felicidade, é certo, mas fora da vida terrestre. Hoje em dia, o cristianismo torna-se
também promessa de felicidade neste mundo, e a infelicidade tende a ser considerada
um escândalo. A experiência afetiva que se procura, cada vez mais constituída como
critério de validação das crenças, implica os sentidos e o corpo de uma forma também
neste ponto muito diferente da do passado, pois se orienta para a felicidade, e até para
o prazer (CHAMPION, 1996, p. 713)
Nas religiosidades alternativas a saúde equivale a um sinal de bem-aventurança. Pode
ser uma graça divina recebida por merecimento (a doença é muitas vezes vista como um
karma adquirido nessa vida ou em vidas passadas), mas, sobretudo, ela é conquistada através
do esforço pessoal e da virtude, do procedimento ético que previne o aparecimento de
doenças. Manter-se saudável não é um dever como também um método de salvação. O
adoecimento é reflexo da desarmonia do corpo, causado tanto por fatores espirituais como
pela artificialidade da vida moderna. A cura depende do retorno ao “equilíbrio natural” do
organismo.
Na opinião de Soares (1994), na cultura alternativa (religiosidades, medicinas, etc) a
cura equivale de certo modo a uma purificação, obtido pelo desenvolvimento “anímico e
psicológico” através de três vias principais: o alimento puro para o corpo físico; o alimento
espiritual que advém do convívio harmonioso entre os humanos e com a natureza; terapias
que se aplicam sobre circulação de energia (SOARES, L., 1994, p. 198). A cura está na
natureza porque ela é anterior à humanidade e participa da essência primordial, não estaria
122
contaminada pelos artificialismos das civilizações. A natureza possuiria uma inteligência ou
sabedoria, um princípio ordenador “dotado de sentido, acessível ao humano” (SOARES, L.,
1994, p. 193).
A idéia de bem-estar através do corpo e qualidade de vida, principalmente no sentido
de retorno ao natural, em contraposição às artificialidades da vida moderna, aparece muito nos
discursos das medicinas não-convencionais. Essas idéias de bem-estar, de auto-cuidado, de
responsabilidade pela manutenção da própria saúde e felicidade, tanto são conciliáveis com as
religiosidades e medicinas alternativas, quanto com os valores hedonistas, de culto ao prazer e
culto ao corpo. Como bem observou Champion, a salvação neste mundo implica em conceitos
de felicidade e saúde que correspondem aos critérios atuais da modernidade tardia:
A salvação procurada, a esperança de uma felicidade total, diz respeito à vida
nesse mundo e é, no essencial, concebida segundo os critérios dominantes na
sociedade atual. Assim, implica a saúde, pois esta é o bem mais precioso do indivíduo
contemporâneo, uma saúde definida nos termos socialmente dominantes: não apenas
na ausência de doença, mas também bem-estar geral sem essas dorzinhas, como a
dor nas costas, que o prejudicam - , vitalidade, beleza” (CHAMPION, 1996, p. 716).
Para além do individualismo intrínseco às novas religiosidades, seja na versão
expressivista ou utilitária, outras perspectivas de análise que destacam a importância dos
ideais de integração planetária, de transformação da consciência individual e comunitária, de
busca de harmonia e paz global, para a construção de novos valores éticos, de cooperação e
solidariedade.
No budismo, por exemplo, que foi uma das fontes inspiradoras das religiosidades
alternativas, o espírito é inseparável do corpo e o “corpo está no mundo”, logo o espírito não
pode ser separado do mundo (SOARES, G., 2004, p. 156). O budismo apregoa que “a
harmonia do universo e aprimoramento espiritual começam no próprio corpo”, que não deve
ser maltratado, mas sim respeitado (SOARES, G., 2004, p. 156) O corpo é indispensável,
porém não pode ser visto como um fim em si mesmo, o bem-estar é obtido a partir da conduta
ética com relação a todos os seres. As ações visam melhorar não a própria vida, mas a de
todos em geral. Assim, também o progresso econômico e tecnológico é almejado, mas
acompanhado de valores éticos de solidariedade (SOARES, G., 2004, p. 161-170).
Nesse sentido, os valores budistas poderiam ser alternativos ao individualismo
utilitário, por incentivarem a mútua dependência entre os seres e a geração de laços de
sociabilidade. Principalmente a noção de compaixão, em que o outro é sempre considerado
nas ações individuais. A meta budista não é melhorar a vida privada, mas também a coletiva,
e nesse sentido no budismo não seria enfocada apenas a salvação individual.
123
De acordo com Amaral (1996, p. 58-67), as concepções holísticas presentes nas novas
religiosidades revelam no fundo um desejo de fusão em uma totalidade, de recuperação de
uma unidade perdida e restabelecimento de vínculos sociais rompidos no modo de vida
cosmopolita. Isso está expresso no ideal de comunidade e de cura, que equivaleria à harmonia
do indivíduo com o coletivo:
O “imaginário holístico” oferece, através das experiências Nova Era de cura, o
contexto de significados últimos para a vida humana, enfatizando a interdependência
entre as dimensões física, espiritual e material da vida humana e a relação primeira de
todos os seres entre si e com o universo, oferecendo aos seres humanos apenas duas
alternativas: criar o conflito ou a harmonia entre essas múltiplas dimensões. O ato de
curar colocar-se-ia assim, do lado do restabelecimento da harmonia, como uma
escolha moral de renovação da amizade, restabelecimento da paz, conciliação de
opostos, nos diferentes domínios da vida individual, coletiva e planetária, isto é, “a
grande reconciliação”. Dessa forma a linguagem do corpo vem assumindo um
importante papel na restauração, simbólica e ritual, da comunicação entre o indivíduo
e o todo da vida, incluindo tanto a vida cotidiana como a vida planetária e natural
(AMARAL, 1996, p. 58-59).
A “grande reconciliação” equivaleria a uma transformação radical que restauraria a
harmonia no indivíduo, na natureza e na sociedade. Aspira-se principalmente à “restauração
da saúde da terra”, pois o mundo contemporâneo é visto com desconfiança (AMARAL, 1996,
p. 55). Nesse sentido os ideais alternativos de cura “expressam compromisso não com o
bem-estar individual, mas com a restauração do bem-estar na comunidade humana e não
humana” (AMARAL, 1996, p. 54). O indivíduo então, através da dimensão do self, teria o
sentido de “ser em comunicação” com uma “comunidade sem essência”, da qual o imaginário
holístico é uma representação simbólica (AMARAL, 2000, p. 96).
Podemos verificar, no entanto, que os ideais de integração coletiva, comunidade
cósmica e “grande reconciliação” comparecem cada vez menos no discurso holístico em
geral. Lembrando das duas vertentes das religiosidades alternativas citadas por Heelas, uma
mais romântica denominada de contracultural, e outra utilitária e neo-iluminista, que o autor
chamou de ala da prosperidade, diríamos que, aparentemente, o que se percebe é um grande
recrudescimento da corrente contracultural, a partir dos anos 1990, tanto nas religiosidades
como nas medicinas alternativas. Sobre a tendência utilitária desses movimentos, Amaral
observou que:
O tema central, no caso do pólo da prosperidade”, permanece fortemente
dirigido para a idéia de um Deus interno, porém com menos ênfase no holismo
cósmico ou na crítica ao establishment, a favor de uma versão mais hedonista e bem-
comportada do indivíduo. Essa identificação do self com Deus conferiria ao homem-
indivíduo um poder tamanho que o levaria a influenciar sobremaneira o mundo
externo, à moda mágica. O universo de valores que se constitui a partir dessa idéia-
124
mestra vem exercendo uma atração surpreendente em setores entusiasticamente
engajados no mundo do trabalho e dos negócios (AMARAL, 2000, p. 31).
Enfim, as novas visões de corpo, saúde e espiritualidade se articulam de diferentes
modos na alta modernidade, podendo inscrever-se tanto no culto da estética corporal e na
busca da eterna juventude como em um projeto de salvação nesse mundo, que pode ser
individual através da manutenção da vitalidade com qualidade de vida, ou social, no sentido
de cooperação solidária e atitude ecológica, que leve ao bem-estar não apenas individual.
Como destacou Amaral:
O corpo, com suas contradições interiores, apresenta-se como mbolo dos
paradoxos vividos na trajetória histórico-social dos indivíduos. Esse corpo “fala”,
indica as contradições e conflitos, tornando-se possível exprimir, compreender, dar
sentido e pensar sobre os acontecimentos desordenados do mundo e da pessoa. Isto é,
o corpo oferece uma linguagem para o indivíduo pensar as suas relações com as
pessoas e com a natureza (AMARAL, 2000, p. 69).
4.4 Re-significação holística da saúde: acupuntura e cura energética
Como vimos, a conexão entre as novas religiosidades, novas corporeidades e
medicinas não-convencionais se faz principalmente através das crenças holísticas de
integração cosmos-natureza-humanidade e corpo-mente-espírito, pela sacralização da
natureza e pela representação de saúde como equilíbrio do organismo, equivalente à harmonia
do ser com o ambiente, natural, social, cósmico.
A saúde nas religiosidades e medicinas alternativas corresponde à circulação
desimpedida da energia cósmica (vital) pelo organismo, conforme identificou Amaral:
Curar significa, neste caso, harmonizar as energias do corpo de maneira que
elas ressoem com as mais amplas forças e leis da natureza. As técnicas de cura se
constituem, assim, de manipulações, isto é, de intervenções do “curador”, através de
trabalho sutil, no vel físico-energético, com a finalidade de remover obstruções que
impedem a operação da lei harmonial. Os corpos devem vibrar para renovar as forças
naturais de acordo com as leis cósmicas e, se necessário, uma intervenção ativa deve
ocorrer para “tornar a natureza mais natural”, porque a harmonia deve ser ajudada
(AMARAL, 2000, p. 62).
Um dos pilares das novas representações de corpo, saúde e espiritualidade é a
existência de uma força, fluído ou energia vital que perpassa tudo no mundo, inclusive os
seres humanos, e que faria a conexão entre o indivíduo e o universo. A integração dos
humanos entre si e com a natureza é uma espécie de “comunhão inteligente”, que se faz pela
“energia”, articuladora entre corpo, natureza e espírito, as três pontas da tríade que sustenta a
cultura alternativa (SOARES, L., 1994, p. 198). De acordo com Luis Eduardo Soares, a
125
energia é a moeda corrente no meio alternativo, pois sendo material e imaterial ao mesmo
tempo, funciona como uma mediadora que alinhava o corpo, a natureza e o plano cósmico.
Diz o autor: “a síntese que incorpora corpo e espírito sob o signo da energia confere à
natureza qualidades que a humanizam, espiritualizando-a” (SOARES, L., 1994, p. 193).
Retomamos, agora, a acupuntura como prática de saúde que primeiramente se
consolidou no Ocidente dentro do conjunto de medicinas alternativas, devido a toda essa
conjuntura sócio-cultural de transformação dos valores religiosos e corporais, descrita nos
tópicos anteriores. Ora, é na medicina chinesa que a noção de força ou energia vital
comparece de modo mais explícito pela associação com o Ch’i.
A importância da acupuntura foi nima até a década de 1930, quando Soulié de
Morant, principal divulgador da acupuntura no meio europeu, conseguiu traduzir as teorias
chinesas para uma linguagem compreensível, que fazia sentido no novo contexto cultural.
Iniciou, assim, uma aproximação entre a medicina chinesa e a concepção ocidental,
especialmente através do diálogo com as ciências (como a física quântica, a biologia, a
geografia e a psicologia, por exemplo). A tradução de Ch’i para energia vital, e dos trajetos de
Ch’i como meridianos, de sua autoria, seriam definitivas no Ocidente, representando a
reinvenção da acupuntura como medicina energética ou vibracional.
A tradução de Ch’i para a idéia de energia vital permitiu uma ponte da medicina
chinesa com as medicinas paralelas desenvolvidas no Ocidente, tais como o vitalismo de
Stahl, o Mesmerismo
72
, a homeopatia, a antroposofia, etc., sistemas citados em capítulos
anteriores. A noção de energia também abriu um diálogo com religiosidades ligadas ao
esoterismo, ao ocultismo, à teosofia, ou derivadas do hinduísmo e do budismo, bem como
com aquelas correntes de para-psicologia, influenciadas pelo magnetismo de Mesmer, ou pela
doutrina de correspondência e a canalização de energia, desenvolvidas por Swedenborn
73
. De
acordo com Albanese, essas teorias sobre energia vital correspondiam a um modelo de
universo harmonioso em que “os limites entre matéria e não-matéria tornaram-se fluídos, (...)
a matéria tornou-se espiritual e o espírito foi percebido como possuindo uma forma material
refinada” (ALBANESE apud AMARAL, 2000, p. 64).
72
Como vimos, Mesmer teria descoberto o magnetismo animal, que é um tipo de magnetismo cósmico. De
acordo com Amaral, Mesmer acreditava que “todo ser humano irradia esse fluído magnético, podendo usar esse
magnetismo para influenciar as mentes e os corpos de outras pessoas” e seus métodos de cura eram baseados na
transmissão de força vital para o paciente (AMARAL, 2000, p. 63).
73
Swedenborg (1688-1772) preconizava uma “mútua ressonância entre as esferas terrestres e celestes”. Seria um
dos precursores do espiritismo. Ainda no séc. XVIII criou a noção de canalização de energia, que exerceu forte
influência no kardecismo do séc. XIX, sobretudo na idéia de mediunidade (AMARAL, 2000, p. 62-63).
Swedenborg reconhecia que a natureza correspondia ao espírito e que um influxo divino permeava o mundo
(AMARAL, 2000, p. 62-64).
126
Além disso, a energia vital também é uma categoria chave para algumas correntes pós-
psicanalíticas como as junguianas e reichianas, o que possibilitou a articulação das teorias
psicológicas, ainda que re-significadas, com os sistemas de cura vibracional. O pressuposto
reichiano de energia vital relacionada a bioenergia sexual
74
foi bastante difundido nas décadas
posteriores à contracultura, constituindo uma ponte eficaz entre as terapias corporais pós-
freudianas e as medicinas alternativas.
De modo que, a maioria das medicinas não-convencionais ou tradicionais podem ser
também chamadas medicinas vibracionais ou energéticas, levando-se em conta que sempre
abordam aspectos energéticos e propõem a manipulação da energia vital para
restabelecimento da saúde (AMARAL, 2000, p. 62). Assim, podemos considerar como
sistemas de cura energética ou vibracional tanto a homeopatia, a antroposofia e os florais,
que utilizam remédios vibracionais, quanto à cura através de cristais, metais, imãs e
pirâmides, radiestesia, radiônica, magnetoterapia, aromaterapia, cromoterapia, auriculoterapia,
Reiki, entre outros, bem como a acupuntura praticada no meio alternativo.
Acima de tudo, no campo das medicinas vibracionais ou energéticas, busca-se uma
realidade que extrapole o indivíduo. A eficácia da cura residiria na “grande reconciliação”, no
reencontro do indivíduo com uma totalidade abrangente que engloba natural, social e
metafísico, entendida como junção entre matéria e espírito e como integração entre a psique e
o corpo biológico.
A noção de energia aproxima vertentes alternativas religiosas e não religiosas,
constituindo-se como ponto de convergência entre diferentes grupos numa mesma visão de
mundo holística, na qual se destacam os cuidados com a saúde e o corpo, a espiritualidade, a
harmonia com a natureza, no sentido de recuperar um equilíbrio perdido (SOARES, L., 1994,
p. 199). Atualmente a idéia de energia continua embasando as idéias holísticas, porém cada
vez mais desvinculada dos valores religiosos espirituais e justificada por posições pseudo-
científicas, na tentativa de validar os aspectos mágicos de sua manipulação para obtenção de
saúde, felicidade, bem-estar e prosperidade.
74
O orgasmo, para Reich, equivaleria a uma descarga de energia não utilizada em outras atividades, essencial
para a saúde física e mental. A repressão dos instintos sexuais corresponderia a uma dominação política, na
medida em que a energia (ou Orgônio) acumulada seria desviada para o aumento da produção.
127
4.5 A busca de legitimidade: aliança entre ciência e religião
A abordagem holística defende a flexibilização de todas fronteiras e a aproximação
dos saberes visando, principalmente, uma aliança entre ciência e religião (CHAMPION, 2001,
p. 30). Desse modo todos os conhecimentos e saberes podem ser relativizados, ciência e
religião são vistas como diferentes formas de explicação da mesma essência, entendida como
única realidade, a verdade por trás de todas as coisas. Seriam apenas diferentes linguagens
que falam do mesmo fenômeno. O ideário holístico fundamenta a convivência entre o
referencial científico e a idéia de circulação de energia ou sopro vital universal, que é negada
pela racionalidade científica.
Para Champion a tendência holística de “espiritualizar a ciência” e “cientifizar a
religião”, presente especialmente nos tratamentos de saúde não convencionais é um fenômeno
pouco investigado que está em crescimento atualmente e poderia ser objeto de estudo tanto da
sociologia da saúde como da sociologia da religião (CHAMPION, 2001, p. 38). Na análise da
autora, a tendência mágico-religiosa, que evidencia-se na afirmação da existência de
realidades não-ordinárias, revela uma pretensão de escapar aos limites impostos pela ciência
clássica, principalmente às limitações da mente humana. As idéias de plano sutil ou plano
energético, de transmissão de energia entre pessoas e o ambiente, a no poder concreto do
pensamento sobre o mundo real, indicam crenças otimistas na capacidade humana infinita.
Essas crenças seriam parte de um pensamento mais mágico que religioso, em que
prevalece a vontade humana para manipular o mundo concreto. Mágico, para Champion,
significa “fundado no princípio de correspondência e semelhanças, que envolve um
sobrenatural não integrado no religioso”, que inscreve-se na perspectiva de “responsabilidade
individual e estímulo à ação” (CHAMPION, 2001, p. 39).
Champion analisa a aliança ciência-religião, isto é, a busca de explicações científicas
que legitimem fenômenos sobrenaturais, como esperança que um dia a ciência explique tudo,
o que indica uma crença na onipotência da ciência para resolver os problemas humanos.
Então, paradoxalmente, ao recorrer às explicações científicas para os fenômenos
sobrenaturais, a holística acaba reiterando a maior legitimidade da ciência frente às
explicações mágico-religiosas, muito embora conteste a hegemonia da racionalidade
científica. O movimento de contracultura questionou a cosmovisão científica clássica e os
valores do industrialismo. Da crítica ao processo de racionalização e intensa tecnifização
emergiram estilos de vida direcionados para a dimensão não intelectiva da consciência;
contestava-se o “mito da consciência objetiva” e a tecnocracia dele derivada, que invadiu
128
todos os domínios sociais. De acordo com Roszak, o mito diz que uma única forma de
conhecimento, um modo de conhecer a realidade, que é o objetivo. Ao buscar
plausibilidade no referencial científico, a holística re-instaura o mito da consciência objetiva,
combatido pela contracultura, e conseqüentemente reafirma a superioridade da ciência para
dar conta da realidade (ROSZAK, 1972).
Nas últimas décadas do séc. XX, as descobertas científicas começaram a interessar
mais o público, revistas especializadas tornaram o conhecimento mais acessível, a formação
educacional passou a contemplar mais esses temas, de modo que esses fatores contribuíram
para a construção de uma imagem de ciência super poderosa (CHAMPION, 2001, p. 35). O
avanço científico acontece tão rapidamente que não pode ser acompanhado pelo senso
comum, isso dá margem à idealização de realizações que na verdade são impossíveis.
No final do séc. XVIII ocorreu um fenômeno semelhante, pois as revoluções
científicas e tecnológicas, para a época, eram tão imprevisíveis que qualquer absurdo poderia
receber crédito. Gravidade, eletricidade, balões dirigíveis, gases, eram novidades que
incitavam especulações; a humanidade estava cercada de poderes ocultos (DARNTON, 1988,
p. 18). Os leitores da época não separavam ficção de realidade e muitas fantasias científicas
circulavam. Consta que um jornal francês, por brincadeira, anunciou a descoberta de um novo
princípio que permitiria fabricar sapatos para andar sobre as águas, desde que recebesse
contribuições financeiras para o projeto. O jornal arrecadou uma enorme quantia,
comprovando o clima de otimismo por causa das novas descobertas e a grande expectativa
quanto à capacidade da razão humana para dominar “poderes invisíveis” (DARNTON, 1988,
p. 30).
O imaginário moderno está impregnado da idéia de superioridade da ciência como
modo de explicação da realidade. Com a secularização, no sentido de dissociação entre
religião e Estado, e a privatização das crenças, as explicações explicitamente religiosas sobre
o mundo caíram no descrédito. No mundo atual, a plausibilidade é conferida pela ciência
porque o público consumidor médio se apóia nela, embora os aspectos mágico-religiosos não
desapareçam, apenas se mantenham encobertos pela aureola secularizada (BERGER, 1985;
ALBUQUERQUE, 2006). Nesse sentido, a holística oferece uma confortável camuflagem
científica para aspectos mágico-religiosos tornando-os aceitáveis intelectualmente.
Ademais, os limites da legitimidade científica não são fixos, especialmente na
atualidade, estão constantemente sendo redefinidos e variam de acordo com as leis de cada
país. Dependem mais de questões políticas e disputa de saberes do que propriamente de
considerações científicas. Por exemplo, o magnetismo na França está totalmente excluído da
129
área médica, enquanto nos EUA é oficializado pela corporação médica como Therapeutic
Touch (toque terapêutico), e vem sendo ensinado nas faculdades desde a década de 1980,
chegando, inclusive, a receber incentivo financeiro do Estado de Nova York (LAPLANTINE,
1989, p. 64).
A abordagem holística ocupa uma zona fronteiriça entre os saberes tradicionais e a
racionalidade científica, que possibilita os mais inusitados hibridismos, não necessariamente
ratificados pelas instituições acadêmicas internacionais, mas que foram inegavelmente
legitimados pelo senso comum (LAPLANTINE, 1989, p. 44). O indivíduo do séc. XXI não
parece muito preocupado com a veracidade das explicações científicas, basta que haja
alguma, que de preferência remeta à física quântica ou às últimas descobertas das
neurociências. Conforme apontou Champion, o indivíduo contemporâneo é aquele:
(...) que aceita como referência sua experiência pessoal, pouco preocupado
pela confrontação intelectual, pela exigência de rigor ou espírito crítico, um indivíduo
pragmático para quem a categoria útil vale mais que a categoria veraz, pois o que
conta hoje não é a salvação (religiosa ou secular), em outro lugar ou no futuro, mas a
vida presente, a vida aqui. Importa menos que uma crença seja verdadeira ou não, e
mais o que ela pode trazer em termos de bem-estar, felicidade pessoal, ajuda nas
dificuldades e possibilidades de desempenho em uma sociedade na qual o desempenho
é cada vez mais valorizado (Champion, 2001, p. 40).
Assim, as propostas holísticas embasam a criação de uma infinita lista de novas
técnicas de saúde, que são reinvenções ocidentais das tradições ou re-interpretações da
ciência, mas que fazem sentido dentro do referencial energético. Para citar alguns exemplos
de reinvenções que dizem respeito diretamente à medicina chinesa e acupuntura, lembramos
da “cromoacupuntura” ou “colorpuntura”, que é a substituição das agulhas por luzes
coloridas.
Outro exemplo é o do-in, técnica derivada da medicina chinesa, supostamente
desenvolvida no Japão, no séc. XIX, que consiste em pressionar os acupontos com os dedos
tomando por base um receituário genérico para pequenos distúrbios e enfermidades. Segundo
terapeutas especializados
75
, o termo do-in seria a tradução de Tao-yin, antiga prática chinesa.
Entretanto, na tradução para a língua japonesa Tao torna-se Do, utilizado como sufixo, não
como prefixo (CHERNG, 2000, p. 21). Portanto, caso fosse uma tradução de Tao-yin para o
75
Juracy Cançado (1996, p. 17), principal especialista em do-in no Brasil, diz que o termo do-in deriva de Tao-
yin (o caminho suave). Contudo, o taoísta Chergn (2000, p.17) diz: “A palavra japonesa para Tao é Do, como em
Judô. No Japão, como herança da cultura chinesa, o nome de muitas artes recebe o sufixo Do, indicativo de
caminho. Judô é traduzido literalmente como caminho da suavidade, shodo é caminho da escrita, kendo é
caminho da espada”.
130
japonês, não poderia ser do-in
76
, talvez fosse In-do, assim como judo, shodo, kendo, etc. Na
realidade, o do-in é um hibridismo entre auto-massagem japonesa e chinesa, pontos de
acupuntura e padronização ocidental. A diferença é que as práticas orientais (tui-ná, tao-yin,
shiatsu) estão atreladas às teorias de correspondência simbólica e equilíbrio de Ch’i no plano
da singularidade individual, enquanto o tratamento por do-in é igual para todos que sofrerem
dos mesmos males. Assim, podemos considerá-lo como uma “invenção de tradição”.
Também a macrobiótica, entendida no meio alternativo como dietética tradicional
chinesa, é uma invenção japonesa de Michio Kushi (também divulgador do do-in),
que altera
drasticamente os conceitos da medicina chinesa, uma vez que inverte a posição céu-terra para
os alimentos. Na cultura chinesa o céu é yang e a terra é yin, enquanto na re-interpretação
japonesa da macrobiótica, o céu é yin e a terra é yang
77
.
A obsessão holística pela legitimidade científica acabou colaborando para efeitos
inesperados. Por exemplo, na maioria das vezes os saberes tradicionais e alternativos são
incorporados pela medicina convencional alopática e têm sua lógica corrompida, pois
direcionada para doenças e dores localizadas, sem acréscimo qualitativo da relação terapeuta-
paciente. Esse fato fica evidente na transformação da acupuntura em ciência por decreto,
muito embora os constituintes básicos dos sistemas terapêuticos chineses não se conciliem
com modelos experimentais objetivos.
Ou então, esses saberes são completamente secularizados e despojados de seus
aspectos mágico-religiosos, como é o caso da energia vital que mais recentemente vem sendo
explicada tomando de empréstimo os estímulos aos neurotransmissores. Ou então através dos
impulsos bio-elétricos, que transportam informações pelo corpo, à semelhança dos dados
transmitidos pela web. Nessa leitura, a energia seria uma informação organizacional que
direcionaria as estruturas subatômicas e que poderia ser modulada pelo pensamento, já que
este também é composto por ondas vibracionais. A intenção do terapeuta para a cura seria
muito importante, porque assim ele transmitiria essa informação “vibracionalmente” para o
paciente. A cura, nesse sentido, não mais corresponderia ao reequilíbrio energético, mas à
reorganização das informações vibracionais (no plano “micro-quântico”) em direção à saúde.
Dentre as reformulações ocidentais da acupuntura, o modo tradicional, apesar de re-
interpretado, e o modo energético ou vibracional, do referencial holístico, mesmo que pseudo-
secularizado, ainda possuem afinidades maiores com a cosmovisão chinesa antiga do que a
76
Segundo informação verbal de um terapeuta holístico, possivelmente o termo do-in é uma “gíria”, tradução
para o inglês de auto-massagem, no sentido de do in yourself .
77
Informação verbal de acupunturista entrevistado que praticou a macrobiótica.
131
técnica de inserir agulhas, utilizada nos moldes estritamente biológicos da medicina ocidental
convencional. Dizemos isso porque, para além da tentativa de secularização, mantêm a
valorização de aspectos simbólicos, emocionais e psíquicos da cura, transpondo-os para o
imaginário de saúde da modernidade tardia.
Na verdade, a legitimação científica da acupuntura não foi apenas uma conquista da
abordagem holística, nem foi uma demanda tão acentuada do público leigo e pouco crítico,
mas principalmente atendeu aos interesses macro-econômicos da política sanitária
internacional, e das grandes corporações médicas, fatores de considerável importância para a
aceitação dessa terapêutica no Ocidente, como poderemos verificar no próximo capítulo.
132
5 “Negócio da China”: a mundialização da acupuntura
Reducir el exceso de mortalidad, morbilidad y discapacidad, especialmente em
poblaciones pobres y marginadas es una de las direcciones estratégicas de la OMS
para 2002–2005. Puesto que la MT
78
es una forma de atención sanitaria muy accesible
y asequible en muchos países con ingresos bajos, la OMS está promoviendo su
inclusión donde la seguridad y eficacia es algo probado en planes para mejorar
el estado sanitario. Al mismo tiempo, la población global anciana está teniendo mayor
incidencia de enfermedades crónicas y la MT/MCA ofrece médios potenciales para la
curación de dichas enfermedades. De echo, en los países desarrollados cada vez son
más lãs personas que hacen uso de la MT/MCA — em combinación con o em lugar de
la medicina alopática para ayudar a aliviar el dolor crónico y/o mejorar la calidad
de vida (OMS 2002–2005, p. 47).
Nesse capítulo vamos tratar dos fatores sócio-econômicos que contribuíram para a
inclusão da acupuntura no meio médico convencional, como ferramenta auxiliar. Para que a
aceitação fosse possível, foi necessária uma transformação da acupuntura de modo a ser
apropriada sob a ótica alopática, e subordinada aos critérios de validação científica. Com isso
a acupuntura pôde ser mundializada, mas por outro lado, o novo modo de praticar, dentro da
perspectiva unicamente neurobiológica (conforme delineamos no capítulo 1), abriu caminho
para um processo de tecnifização das agulhas.
Na análise de Madel Luz, os fatores que mais contribuíram para o aumento da
utilização de tratamentos de saúde não-convencionais no Ocidente foram uma dupla crise, na
saúde e na medicina, e o surgimento das novas representações de corpo, saúde e pessoa, uma
vez que a cultura hedonista pós-moderna rejeita a idéia de corpo como máquina (associada à
biomedicina), e enfatiza o natural e o ecológico como fonte de saúde, não dissociada da
estética (LUZ, M., 2005, p. 49-50).
Esperamos ter deixado clara a crise da medicina convencional, tanto paradigmática,
pelo confronto com as racionalidades alternativas e a psicossomática, quanto ética, decorrente
da “desumanização”, bem como a modificação nas representações de corpo e saúde no
sentido holístico. Porém, ainda não falamos da política mundial de prevenção sanitária, nem
do mercado de saúde e bem-estar gerado pelas novas configurações culturais, como condições
que favoreceram a reprodução da prática de acupuntura nos contextos ocidentais, inclusive
dentro das redes hospitalares. Então, em seguida abordaremos esses assuntos, para depois
descrevermos o deslocamento da acupuntura do complexo alternativo para a oficialidade.
78
MT - Medicina Tradicional; MCA é Medicina Complementar Alternativa.
133
5.1 Prevenção: a nova ordem mundial na saúde
Desde o início da década de 1970 nas reuniões mundiais entre ministros da saúde
discutia-se a proposta de Atenção Primária à Saúde, que envolvia também educação e
saneamento básico, principalmente para países da América Latina (BARROS, 2000, p. 57).
Era um modelo que se contrapunha à medicina hospitalar e farmacêutica, de altíssimo custo.
A busca por outras racionalidades foi uma alternativa para tentar reverter o quadro de crise
internacional na saúde, diante da incapacidade da medicina tecnológica em solucionar os
graves problemas sanitários globais (LUZ, M., 2005).
A partir de 1976, a OMS passou a conceber saúde como resultado de um bem-estar
físico, mental, social e espiritual, e não apenas como ausência de doença. O ser humano
doente começou a ser percebido nas dimensões integradas física, psicológica e social
(QUEIROZ, 2006, p. 20-22). Um importante fato político marcou o setor internacional da
saúde em 1978, quando foi realizada pela OMS a Conferência Internacional sobre Ação
Primária de Saúde, em Ata-Alma (URSS), cujo lema era “Saúde para todos no ano 2000”.
Dessa conferência surgiram propostas de incentivo à utilização de medicinas
tradicionais e alternativas, sobretudo em países pobres. Para Madel Luz, Ata-Alma foi um
marco histórico do triste quadro sanitário mundial, agravado com a globalização e o aumento
da desigualdade social, pois naquela época (1978) eram dois terços da humanidade carentes
de saúde, e atualmente três quartos da população do planeta encontra-se nessas péssimas
condições (LUZ, 2005, p. 48). De acordo com o relatório da OMS:
As pessoas passaram a ser casos sem personalidade, e se tem perdido o
contato entre quem presta assistência médica e quem a recebe. (...) a maioria dos
sistemas de atenção à saúde resultam cada vez mais complexos e custosos e de
duvidosa eficácia social, deformados pelas imposições da tecnologia médica e pelos
esforços mal orientados de uma indústria que facilita à sociedade bens de consumo de
caráter médico. (...) O objetivo é melhorar a qualidade de vida e a obtenção de
benefícios sanitários ótimos para o maior número de indivíduos possíveis, através da
aceitação de uma maior responsabilidade em matéria de saúde por parte das
comunidades e dos indivíduos e sua ativa participação em esforços para alcançá-los
(OMS, 1978, apud BARROS, 2000, p. 57 – tradução nossa).
Segundo o sociólogo da saúde Nelson Felice de Barros, as determinações da OMS
instituíram uma quebra da hegemonia da racionalidade médica científica, por uma instituição
mundial:
A partir dessas propostas, o pensamento do campo da saúde deveria
privilegiar, em vel mundial: os modelos de medicina tradicional e seus agentes; o
uso de tecnologias mais baratas e mais simplificadas, porém com o critério de
eficiência, eficácia e efetividade; o desenvolvimento individual da responsabilidade
134
pela saúde; o tratamento do indivíduo como sujeito que recebe atenção; enfim, um
modelo de prática médica mediado por uma nova racionalidade. (BARROS, 2000, p.
58).
A estratégia da OMS coincidiu com um momento de transformação cultural receptivo
às medicinas tradicionais. Por influência da contracultura surgia uma tendência de recusa à
racionalidade científica, de repúdio ao progresso tecnológico, considerado devastador da
natureza, de maior preocupação com a defesa do meio-ambiente e dos direitos universais
como a saúde, enfim, de crítica ao modelo convencional da medicina alopática (BARROS,
2000).
A interferência da OMS foi crucial, pois, além do estímulo às medicinas tradicionais e
alternativas, ampliou o conceito de saúde para abarcar também dimensões simbólicas e
reivindicar um modelo mais humano (e mais barato) de tratamento do sujeito doente. A OMS
também passou a estimular a formação de agentes de saúde não necessariamente médicos, o
que afetou diretamente o inflado campo profissional médico. Não bastasse enfrentar a
concorrência de outros especialistas da saúde, como os psicólogos
79
, por exemplo, agora
atividade médica também se via ameaçada por curadores sem formação especializada.
Diz a OMS:
Se prestará atenção ao desenvolvimento de novas categorias de agentes de
saúde, à participação e reorientação, na medida do necessário, das pessoas que
exercem a medicina tradicional e das posturas tradicionais, quando existirem (OMS,
1981, apud BARROS, 2000, p. 58 – tradução nossa).
Além disso, o modo de vida metropolitano demandou novas modalidades de cuidado
com a saúde e o corpo, que a tendência cada vez mais pragmática do circuito alternativo
soube atender, e que as corporações médicas foram obrigadas a englobar para não perderem
clientes do novo filão do mercado de cura
80
. Laplantine e Rabeyron (1989, p. 69) relatam a
difícil situação dos jovens médicos franceses na década de 1980. Aquele que pretendesse ser
clínico geral teria seus consultórios esvaziados rapidamente por causa da crescente
demografia de especialistas médicos. As medicinas alternativas ofereciam um modelo teórico
e terapêutico confortável para esses médicos, além de um retorno financeiro não
negligenciável
81
.
79
Na década de 1970 houve uma explosão do campo psi e muitos psicólogos já ingressavam na área de terapias e
medicinas alternativas (RUSSO, 1993).
80
Por exemplo, na França (1989) existiam 50.000 curadores sem formação médica para 49.000 médicos, 38.000
padres e 4200 psicanalistas (LAPLANTINE; RABEYRON, 1989, p. 49).
81
Barros ressalta, no entanto, que o simples oportunismo econômico não sustentaria a contradição paradigmática
a que o médico convencional tem que se submeter para aprender as técnicas tradicionais/alternativas (BARROS,
2000, p. 181).
135
Mas na realidade o modelo neoliberal, de “privatização do setor público da saúde e
racionalização dos serviços médicos” (MARTINS, 2003, p.103), prevaleceu na medicina
convencional a partir das últimas décadas do culo XX, que viram o enfraquecimento das
abordagens sociais e o fortalecimento das grandes organizações de saúde. As políticas da área
da saúde passaram a ser decididas pelas grandes empresas financeiras, não mais pelos
médicos. A medicina tecnoutilitarista é extremamente dependente da indústria farmacêutica,
das indústrias de equipamentos e das empresas de seguro privado
82
. Segundo Martins, essa
vertente desenvolveu-se a partir dos EUA e expandiu a lógica de consumo para o mercado de
cura de forma transnacional, aumentando ainda mais a exclusão nos países não desenvolvidos.
Os governos destes países foram pressionados a mesclar o modelo de capitalismo médico com
o de atenção primária à saúde (MARTINS, 2003, p.104).
Enquanto a estratégia de atenção primária à saúde se difunde a partir da
Conferência de Ata-Alma, os centros hegemônicos da economia mundial revalorizam
o mercado como mecanismo privilegiado para a alocação de recursos e questionam a
responsabilidade estatal na provisão de bens e serviços para o atendimento de
necessidades sociais, inclusive a saúde (PAIM & ALMEIDA, 2000, apud MARTINS,
2003, p.105).
A crise sanitária tem, portanto, origem sócio-econômica, pois a desigualdade social
agravada pela globalização comprometeu ainda mais a saúde de grande parte da população
mundial no final do século XX. O tema saúde tornou-se cada vez mais prioritário nas agendas
dos organismos mundiais, uma vez que graves problemas sanitários (tais como epidemias,
ressurgimento de doenças extintas, drogas, violência, desnutrição, etc) poderiam ser
solucionados através de políticas públicas preventivas e educacionais. Além de satisfazerem
as necessidades preventivas, as medicinas tradicionais e alternativas utilizam recursos pouco
custosos e produzem um efeito positivo para os pequenos distúrbios psicossomáticos, que
constituem a maior parte das queixas das classes trabalhadoras na atualidade, e que causam
prejuízos que podem ser contabilizados em dias sem produção
83
.
Nos anos 1990 começou a circular um novo conceito de medicina complementar, que
acopla as práticas tradicionais e alternativas à medicina convencional, sem oposições.
82
De acordo com Ramalho, “o setor da saúde também é um dos principais empregadores em todo o mundo. As
indústrias de produtos relativos à saúde, incluindo-se aí desde as indústrias que produzem medicamentos,
hemoderivados e equipamentos avançados até o setor de prestação de serviços, que tem estabelecido empresas
de seguro privado ou de planos de saúde em diversos países, vêm aumentando sua atuação no campo
internacional” (RAMALHO, 2006, p. 80-81).
83
Entre as camadas médias européias dissemina-se o que Michel Jourbert (apud. LUZ, 2005, p. 42), em estudo
sobre caso francês, chamou de “pequena epidemiologia do mal-estar”. Corresponde ao aumento de distúrbios
psico-orgânicos sem exatidão diagnóstica (dores difusas, ansiedade, depressão, pânico, dores na coluna vertebral,
etc.) entre as classes trabalhadoras causando grande prejuízo financeiro ao sistema público de saúde.
136
Entretanto, o termo complementar tende a se tornar um pretexto para a subordinação
dos saberes tradicionais e alternativos à racionalidade biomédica. Sobre o modelo
complementar, Barros comentou:
Enquanto a proposta de saúde coletiva tem como fundamento a
interdisciplinaridade e a multiprofissionalidade, ou seja, uma busca de associar
diferentes idéias, modelos e práticas no domínio do modelo biomédico, por outro lado
a medicina complementar não exige a dissolução do modelo caro, com eficácia
relativa e iatrogênico da medicina alopática, mas pelo contrário, passa a procurá-lo
com o fim comum de se alcançar melhores níveis de saúde (BARROS, 2000, p. 66).
O conceito de medicina complementar adequou-se perfeitamente aos interesses da
medicina especulativa, que não excluía recursos diagnósticos e alopáticos, e ainda
possibilitava manter o controle sobre as práticas alternativas dentro do espaço da medicina
hospitalar. Mas para isso foi necessário estabelecer critérios de eficácia e padronizações que
tornassem as medicinas doces mais técnicas.
Desse modo, absorvidas pelo utilitarismo biomédico, as medicinas alternativas vêm se
expandindo amplamente na atualidade e começam a mobilizar recursos financeiros
consideráveis. De acordo com o relatório OMS (2002-2005), em muitos lugares do mundo o
gasto com medicinas tradicionais e complementares alternativas não é apenas importante, mas
também está crescendo rapidamente. Na Malásia, os gastos anuais somam US$ 500 milhões,
comparados com US$ 300 milhões em medicina alopática. Nos EUA o gasto total com
medicinas complementares e alternativas em 1997 foi estimado em US$ 2.700 milhões. Na
Austrália, Canadá e Reino Unido estimam-se US$ 80 milhões, US$ 2.400 milhões e US$
2.300 milhões respectivamente. O governo chinês investiu US$ 92,5 milhões na pesquisa e
desenvolvimento da medicina tradicional chinesa, nos últimos cinco anos
84
.
Apesar da enorme importância da implantação do modelo de atenção primária à saúde
e da política preventiva, o incentivo à utilização das medicinas alternativas recebeu algumas
reflexões críticas que apontam afinidades sutis com o neoliberalismo, tais como a colaboração
na diminuição do papel do Estado e transferência de responsabilidade da saúde para os
indivíduos, que, através do conceito de auto-cuidado e com a justificativa de desenvolvimento
de autonomia, podem acabar abandonados à própria sorte (BARROS, 2000, p. 110).
A política mundial de saúde estabelecida a partir da década de 1970 determinou que
riscos de doenças, epidemias e morte devem ser conhecidos e controlados antecipadamente,
através de administração preventiva que incentive nos indivíduos a auto-responsabilidade pela
saúde. Ou seja, no plano ideológico, a gestão dos riscos da saúde é, assim, transferida para a
84
Cf. China se converte na segunda maior produtora global de matérias-primas farmacêuticas. Shanghai.
Câmara de Comércio e Indústria Brasil/China, 08/06/2005. Acesso em jun. 2007.
137
esfera do privado, “é necessária ação contínua de um sujeito eficiente e adaptável, que
previna-se a vida toda através de alimentação, exercícios, terapias, meditações, etc”
(SOARES, G., 2004, p. 166-167). Sobre isso, argumenta G. Soares:
Ocorre, assim, uma generalização da vigilância e cuidados necessários para
manter a “normalidade” e construir eternamente uma boa saúde. É dever do indivíduo
zelar pela sua saúde, policiar-se e administrar seus riscos. A atenção volta-se para a
ação sobre si, não mais o olhar sobre o outro. A autonomia e a responsabilidade
advindas da interiorização do discurso do risco forma o indivíduo. O cuidado de si
deve ser contínuo, para não depender da assistência do outro ou do Estado. As novas
estratégias preventivas tentam convencer que o perigo mais devastador reside dentro
de cada um, nos comportamentos cotidianos. A medicina preventiva visa, sobretudo,
proteger os indivíduos contra eles mesmos. O maior inimigo dos sujeitos na atualidade
é o si mesmo. Afinal, a forma de se alimentar, de beber, de fumar, de dirigir, de fazer
amor, de fazer exercícios, etc. tem repercussões diretas sobre o próprio estado de
saúde (Badou, 1994). E grandes males que levam à morte, como o alcoolismo, o
tabagismo, não são doenças contagiosas, dependem do cuidado exclusivo de si. O
irresponsável é um desviante. Os que não procuram uma existência livre de riscos não
são capazes de cuidar de si, não cumprem seus deveres como cidadãos autônomos e
responsáveis (SOARES, G., 2004, p. 67).
5.2 Religiosidades alternativas, novas corporeidades e ideologia do bem-estar
Porém, indo-se além das esperanças despedaçadas dos anos 60, emergiu desse
período uma privatização cínica, uma redução da solidariedade e a preocupação com o
menor círculo possível de pessoas, o que é realmente assustador (BELLAH, 1986, p.
27).
Na visão pessimista de Bellah, o resultado da contracultura foi negativo e acabou
reforçando o individualismo utilitário que rejeitava. O autor notou que após os anos 1970 as
formas de religiosidades derivadas do movimento de contestação foram contaminadas por
aquele individualismo utilitário, e, em maior ou menor grau, foram reinterpretadas. Os
princípios originais da contracultura foram direcionados para a esfera privada e para a auto-
realização através de experiências individuais. O conhecimento através da experiência
imediata passou a ser mais valorizado que as doutrinas e argumentações intelectuais, sem, no
entanto, excluir a busca de legitimação científica das crenças (BELLAH, 1986, p. 31).
Na análise de Beckford, as novas religiosidades e as medicinas não-convencionais
estariam estabelecendo uma conexão entre ética, espiritualidade e saúde através da categoria
holística. As crenças holísticas, na visão do autor, estariam impregnadas pela ideologia
neoliberal, uma vez que reforçam a idéia de auto-suficiência individual justificando a ausência
do Estado na promoção do bem-estar social (BECKFORD, 1984).
No imaginário holístico, quando o indivíduo toma a responsabilidade por seus próprios
pensamentos e ações, disso resultam benefícios para a humanidade e para o planeta. Ou seja, a
138
autotransformação é localizada no contexto cósmico e social; a auto-realização implica o
progresso universal. Acredita-se que é possível restabelecer a relação entre o indivíduo e a
totalidade, apenas pela escolha e vontade do próprio indivíduo. nisso um reconhecimento
da liberdade individual de escolha entre harmonia e conflito que reafirma o potencial de
soberania humana. Essas crenças assegurariam que a desarmonia do mundo é ilusória e
reparável, o estado de equilíbrio poderia ser atingido através da promoção de idéias
adequadas. Para obter auto-conhecimento e sensação de bem-estar, é necessário autocontrole
e auto-monitoramento mental e corporal constante. Então, o ideal de saúde enquanto bem-
estar físico-psiquico-espiritual se dissemina em todas as atividades cotidianas.
Beckford critica o utilitarismo pragmático presente em muitas dos novos movimentos
religiosos e de saúde. Após a década de 1970, o formato que as instituições com orientações
holísticas em geral adquiriram aproximou-se dos modelos empresariais; a racionalidade
invadiu a espiritualidade e a saúde. Muitos valores presentes no discurso desses movimentos –
por exemplo, a idéia de que a capacidade de crescimento é ilimitada, a necessidade de ser
flexível, o aperfeiçoamento pessoal como forma de incrementar o desempenho e a eficácia, a
importância do bom relacionamento pessoal, a noção de que todos podem ser treinados para
uma função - são princípios da ideologia neoliberal, aos quais a classe média (principal
público desses movimentos) está acostumada, e que reafirmam a crença otimista que os
esforços disciplinados serão recompensados (idéia, aliás, combatida pela contracultura).
A ntese do mundo holístico é chamada “A lei da atração”. Trata-se de uma
explicação para o funcionamento do universo baseada na conduta otimista e no pensamento
positivo. O pessimismo atrairia circunstâncias negativas para vida, estando nas mãos de cada
ser humano realizar os ideais de cura, felicidade, prazer, sucesso, prosperidade, através da
postura otimista frente à vida. “Acreditar é realizar”, isso seria possível pela emissão
vibracional de imagens mentais associadas às emoções e sentimentos, que darão a intensidade
energética necessária para a concretização dos desejos. Nesse sentido, a felicidade, a saúde, o
bem-estar, dependeriam unicamente da atitude do indivíduo frente à vida, seriam da ordem da
responsabilidade individual, alcançáveis pelo controle das próprias emoções. Nesse caso, ser
infeliz ou estar doente tornou-se uma indelicadeza para com a sociedade, pois inclusive pode
contaminar os ambientes e as pessoas com vibrações negativas.
A lei da atração diz que todos vivemos em um universo vibracional, que
funciona de maneira muito parecida com as ondas eletromagnéticas que um rádio ou
uma televisão liberam para que funcionem. Ou seja, ao potencializarmos intenções e
emoções, elas automaticamente irão se transformar em vibrações fortes que emanam
para o universo. O que você pensa, você sente. O que você sente, você vibra. O que
você vibra, você atrai. E é isso que o universo lhe dará: o que você mesmo atraiu. (...)
139
Sendo assim, o seu progresso depende de você mesmo e, quando mais cedo a
pessoa adotar uma posição positiva em relação à vida, mais cedo será recompensado.
Mais do que isso, a Lei da Atração afirma que o tempo presente é o que deve ser
vivido, ao mesmo tempo em que é preciso esquecer os sofrimentos do passado e as
incertezas do futuro
85
.
No que se refere às corporeidades, a cultura de massa contribuiu para o deslocamento
do corpo físico como instrumento de trabalho na modernidade, para instrumento de prazer e
entretenimento, na modernidade tardia, um “lugar de conforto e de emancipação do desejo”
adaptado ao estilo de vida consumista (MARTINS, 1999b, p. 85). Em certo sentido essa
representação revelou o desejo de libertação social dos aspectos opressivos do trabalho
(MARTINS, 1999b, p. 87). Por outro lado, no mundo globalizado as representações corporais
também foram contaminadas pelos valores do individualismo utilitarista. Emergiram duas
diferentes corporeidades resultantes da emancipação dos corpos: aquela do “corpo perfeito e
saudável”, ferramenta para obtenção de status e ascensão social, introduzida pelo
neoliberalismo, e outra, que retoma saberes tradicionais estigmatizados pelo racionalismo
científico para construir uma imagem de corpo menos descartável, que possibilite “ao mesmo
tempo a busca de individualidade e da singularidade e, também, um certo compromisso com o
social” (MARTINS, 1999b, p. 86).
No entanto, a “filosofia do bem-estar” a que se referia Martins
86
(1999b, p. 88), que
surgiu como contraposição ao controle dos corpos e ao utilitarismo dominante, vem sendo
progressivamente apropriada pela “indústria do bem-estar”. No âmbito das medicinas não-
convencionais nota-se que a associação entre saúde e estética é cada vez mais freqüente. A
mídia é em grande parte responsável pela construção dos conceitos de bem-estar e qualidade
de vida, re-apropriados pelo discurso alternativo no sentido mercadológico para ampliação
das redes de clientes. Existe toda uma economia de mercado cujo tema é o “bem-estar” e a
“qualidade de vida”, geralmente relacionados ao retorno ao natural, que envolve as medicinas
não-convencionais.
Como apontou Gabriela B. Soares, o corpo e a saúde tornaram-se fundamentais na
constituição do sujeito contemporâneo (SOARES, G., 2004, p. 155). O corpo tornou-se livre
para, no entanto, transformar-se em mercadoria de consumo, o que alterou a imagem que o
sujeito faz de si próprio (SOARES, G., 2004, p. 147). As identidades construídas com base
em representações corporais que enfatizam a modelação estética do corpo são marcadas pela
efemeridade; o corpo é modificado para ser suporte de identidades momentâneas. Para atender
85
Revista “A lei da atração” (2007, p. 8).
86
Conforme comentamos anteriormente, no capítulo 3.
140
a necessidade de “corpos voláteis, criativos e inteligentes que respondem ao mercado”, o
indivíduo tornou-se consumidor de si mesmo e do seu corpo (SOARES, G., 2004, p. 53).
Conservar-se jovem e saudável e adquirir longevidade são obrigações que dependem
da auto-administração e do auto-monitoramento. O indivíduo é o único responsável pela
gestão dos riscos da própria saúde, que exige disciplina corporal, mental e espiritual. Na
modernidade tardia o adoecimento adquire conotação de fracasso pessoal e denuncia falta de
controle sobre o próprio corpo; a doença é uma irresponsabilidade e “o irresponsável é um
desviante” (SOARES, G., 2004, p. 166-167). Através das medicinas alternativas e das terapias
corporais, o corpo adquiriu reflexividade levando o indivíduo a tornar-se “perito de si mesmo,
de seu corpo e sua saúde” (SOARES, G., 2004, p. 55). Porém, acreditar que é possível
impedir totalmente o adoecimento é uma quimera, que o corpo tem limites, embora muitas
vezes sejam encobertos pelos ideais de saúde, longevidade, boa forma e beleza (SOARES, G.,
2004, p. 60-61).
Madel Luz notou que as terapias derivadas de outros saberes e racionalidades iriam de
encontro aos valores da cultura hedonista individualista, que incentiva o auto-cuidado como
bem de consumo essencial tanto para a manutenção do emprego como para a obtenção de
dinheiro, status e poder (LUZ, M., 2005, p.99). O corpo é o território do indivíduo, sua
propriedade privada e uma ferramenta de construção de prestígio. Nessa perspectiva
utilitarista, a imagem de corpo veiculada dentro do conjunto de valores dominantes de
individualismo, competitividade e consumismo é de “unidade delimitadora do indivíduo em
relação ao outro” (LUZ, M., 2005, p. 99).
Luz, contudo, não ignora a polissemia atual das noções de corpo e saúde e a presença
de múltiplos sentidos atribuídos às práticas que os envolvem, não se restringindo ao
significado de auto-cuidado utilitarista, associado à “cultura do corpo e da estética”. Em uma
parcela da população, mais intelectualizada, estariam emergindo concepções de corpo como
unidade bio-social-espiritual integrada e de saúde-vitalidade ligadas aos saberes tradicionais,
em contraposição ao corpo perfeito e ao corpo biomédico (LUZ, M., 2005, p. 116).
Entretanto, referindo-se ao Brasil, a autora percebeu que para grande parte da
população, principalmente nas camadas de renda mais baixa, saúde ainda representa ser
cuidado e amparado, poder recuperar o corpo, que é um instrumento de trabalho, pois
“adoecer pode significar abrir falência ou comprometer a sobrevivência” (LUZ, M., 2005, p.
101). Devolver a saúde ao corpo doente representa, para essa parcela populacional, romper
com a exclusão social imposta aos não sadios (idosos, desempregados, inválidos, etc.) (LUZ,
M., 2005, p. 116).
141
Em suas pesquisas, a autora observou que o comedimento, no sentido de contenção de
excessos, ainda é uma das representações centrais da saúde na cultura contemporânea (LUZ,
M., 2005, p.103). Esse comedimento é uma noção da sociedade burguesa ocidental que nada
tem a ver com as noções orientais de equilíbrio, mas é “uma tentativa de controlar o medo do
desvio dos indivíduos pelo excesso, e a perda conseqüente de limites que põe em risco a
ordem” (LUZ, M., 2005, p.131). A autora afirma que “entre os pacientes da rede pública de
saúde encontra-se com frequência uma representação autoculpabilizante dos excessos no
comer, no beber, ou em outros hábitos, como origem do seu adoecimento” (LUZ, M., 2005,
p.103).
Enfim, todas essas concepções de corpo e saúde, tenham influências utilitárias ou
expressem anseios por uma revolução humanista, convivem num modelo híbrido,
“caleidoscópico”
87
, conforme as palavras de Luz, que é característico da modernidade tardia.
É nesse contexto da pluralidade e ambigüidade contemporâneas, momento em que
prevalecem combinações de toda ordem, inclusive de tradição oriental com objetividade
científica, que se torna possível a convivência entre diferentes corporeidades e racionalidades
médicas, desde aquelas que contestam a medicina convencional (os custos e efeitos colaterais
dos remédios alopáticos, as intervenções agressivas ao corpo, etc.) e que estimulam o auto-
cuidado e o retorno ao natural, até a biomedicina que incentiva a utilização de diagnósticos
tecnológicos, que a acupuntura começa a se consolidar como tratamento dos males ocidentais.
5.3 A legitimação da acupuntura como prática de saúde no final do séc. XX:
de alternativa à técnica auxiliar da medicina ocidental
A construção da legitimidade da acupuntura no mundo ocidental durante os anos
setenta contou com um cenário internacional bastante favorável. Primeiro porque havia
intenção de aproximação entre EUA e China. Após ampla divulgação pela mídia dos bons
resultados obtidos no tratamento de um jornalista americano em visita a Pequim (1971), o
presidente Nixon (1972) reatou as relações diplomáticas com a China, rompidas desde a
implantação do regime maoísta em 1949 (JACQUES, 2005, p. 49). A acupuntura foi
regulamentada em alguns Estados americanos a partir de 1975 e foram estabelecidas parcerias
com os chineses para a realização de pesquisas dentro dos moldes científicos. E segundo,
87
O adjetivo “caleidoscópico” também é aplicado por Leila Amaral (2000) para designar as novas religiosidades,
devido às suas características de movimento constante e hibridismo.
142
porque a partir de 1976, a OMS começava a recomendar as medicinas tradicionais, além do
interesse despertado pela conjuntura contracultural.
Ainda na década de setenta a OMS enviou médicos para estudos de até três meses na
China, programa estendido a não-médicos na década de oitenta (JACQUES, 2005, p. 49). Nos
anos oitenta e noventa, diante da expansão do intercâmbio entre China e Ocidente, a
acupuntura foi instaurada de modo efetivo nos grandes centros urbanos ocidentais, mas essas
práticas sofreram transformações e foram recriadas adaptando-se ao modo de vida ocidental
moderno. As medicinas orientais são geralmente apropriadas e re-interpretadas pelo público
ocidental, que tende a decompor os sistemas em elementos diagnósticos ou terapêuticos,
recombinados segundo a lógica ocidental pós-moderna de bricolagem (LUZ, M., 2005, p. 88-
91). No caso da acupuntura, é evidente sua maior utilização como técnica para tratamentos de
dores musculares ou ósseas, desvinculada dos procedimentos tradicionais.
A acupuntura foi considerada medicina alternativa no Ocidente até meados da década
de 1990, quando as pesquisas científicas sobre sua eficácia foram expandidas. Após
conferências promovidas nos EUA pelo National Institutes of Health (NIH) e US Food and
Drug Administration (FDA) para discutir a eficácia e segurança da acupuntura, em 1996 as
agulhas de acupuntura foram reclassificadas de “instrumentos médicos experimentais” para
“instrumentos médicos regulamentados”. Na tentativa de elaborar um consenso, foram
realizadas duas revisões da literatura sobre acupuntura visando sua padronização e
legitimação (JACQUES, 2005, p. 50). Em 1997 foram estabelecidos critérios metodológicos
tanto para as pesquisas como para a clínica, o treinamento em acupuntura passou a ser
estimulado nas escolas de medicina, abrindo-se a possibilidade de cobertura financeira das
práticas de acupuntura pelos seguros de saúde (recomendada pelo NIH). Ao mesmo tempo, a
partir daí a acupuntura podia ser controlada segundo o parecer das instâncias científicas.
O relatório da NIH (1997) julgou que a acupuntura pode ser realmente considerada
eficaz para náuseas (pós-operatórias, decorrentes de gestação ou de tratamento
quimioterápico) e tratamento odontológico s-operatório. Emitiu parecer favorável à
utilização da acupuntura para uma limitada lista de distúrbios, mas que ainda devem ser
melhor pesquisados: cefaléia, lombalgia, fibromialgia, dor miofascial, osteoartrite, síndrome
do túnel do carpo, dependência química, reabilitação de acidente vascular encefálico, cólicas
menstruais, asma. Não ficou evidente em que medida os mecanismos biológicos estão
envolvidos na ação da acupuntura e persiste a indefinição quanto a Ch’i e os trajetos. Foram
também recomendadas pesquisas adicionais sobre as questões fisiológicas.
143
A localização dos pontos de acupuntura, por exemplo, variou no decorrer dos milênios
e nos vários países. Esse é um tema controverso, questionado pelo NIH (1997). Cerca de
1.500 pontos foram identificados pela medicina tradicional. A OMS reconhece a eficácia de
apenas 361 pontos, mas detectou diferenças em 92 deles. Por isso, recentemente, em 2005,
foi realizada uma padronização conjunta
88
entre China, Japão e Coréia, em parceria com
OMS.
Nesses países asiáticos a acupuntura também vem passando por um processo de
modernização das tradições. Na segunda metade do séc. XX muitas técnicas foram inventadas
tomando como base as teorias da medicina chinesa antiga. No Japão, Nakatami inventou a
eletroestimulação dos pontos de acupuntura, método denominado Ryodoraku, que deflagrou a
produção e exportação de aparelhos eletrônicos
89
para localização e estimulação dos pontos,
que são locais de baixa resistência elétrica da pele. Akabane investigou diferentes tolerâncias
térmicas dos pontos e popularizou a utilização de agulhas intradérmicas (hinaishin).
Na década de 1970, outro japonês, Manaka, investigou e desenvolveu o método de
utilização de agulhas de diferentes metais (ouro e prata) a partir da teoria de oxido-redução
dos pontos de acupuntura. Em 1975, na Coréia, foi criada por Tae Woo Yoo a acupuntura nas
mãos, a koryo sooji chim, baseada na correspondência micro-macro entre a mão e o resto do
corpo. Desde a década de setenta japoneses e coreanos vêm pesquisando várias novas
tecnologias com objetivo terapêutico, que conjugam conceitos da medicina oriental e
ocidental.
Na China também foram criadas novas técnicas, como a craniopuntura, inventada por
um neurocirurgião chinês na década de 1970, que consiste em introduzir agulhas no couro
cabeludo, pois estímulos diretos na área próxima ao córtex teriam maior efeito para doenças
cerebrais, como os Acidentes Vasculares Cerebrais. Essa cnica reúne reflexologia (relação
entre áreas micro-macro), pontos de acupuntura e explicações neurológicas.
A ascensão da acupuntura de medicina alternativa para ferramenta regulamentada no
meio ocidental contou com forte apoio do governo chinês. Esse talvez seja um diferencial
importante para a acupuntura. A homeopatia, por exemplo, goza de enorme popularidade,
maior até que a acupuntura, embora não seja tão divulgada pela mídia e não seja um
procedimento medicinal cientificamente comprovado. Salvo a fitoterapia, as demais
88
Cf. China, Japão e Coréia do Sul padronizam pontos de acupuntura. Folha On-line, 11/01/2005.
89
O Japão apresenta forte tendência a adicionar tecnologia à medicina tradicional. Há uma indústria
especializada em aparelhos auxiliares, não apenas para a acupuntura, mas também para a massagem.
144
medicinas e terapias não-convencionais continuam sendo menosprezadas pela maioria dos
cientistas e médicos.
Na estratégia econômica chinesa, a indústria de matérias-primas farmacêuticas tem
grande peso. A China é a segunda maior produtora mundial de fitoterápicos, os EUA lideram
o setor
90
. Atualmente, Japão e China se destacam no estudo das plantas medicinais como
fontes para novos remédios. O governo chinês pretende ampliar as exportações de matéria-
prima para medicina chinesa, especialmente os fitoterápicos, por isso vai financiar pesquisas
científicas e investir na divulgação desses produtos como alternativa aos remédios químicos
ocidentais.
Em reunião conjunta de 16 ministérios, foi aprovado recentemente um plano de
desenvolvimento e apoio científico para que a medicina chinesa possa se tornar, até 2020,
"um grande avanço da inovação chinesa no cenário mundial". O governo tem a intenção de
estabelecer um sistema padronizado para os tratamentos da medicina tradicional chinesa e
para a utilização das fórmulas magistrais
91
. A acupuntura é o carro chefe da medicina chinesa
no Ocidente, mas carrega consigo a indústria de medicamentos não alopáticos chineses.
Uma segunda hipótese para a boa aceitação das agulhas no Ocidente, seria, de acordo
com Paul Unschuld (apud LUZ, M., 1996, p. 64), a familiaridade aparente com o manuseio de
agulhas, produzidas com o auxílio tecnológico, e da suposta identificação da rede neurológica
com os canais condutores de Ch’i, que oferece a possibilidade de entendimento racional e
expectativa de futura comprovação científica. No modelo ocidentalizado de acupuntura ocorre
uma certa fetichização das agulhas, representadas como instrumentos técnicos para estímulo
neurofisiológico. Na acupuntura o paciente permanece deitado e totalmente passivo,
recebendo uma aplicação de agulhas. Então, poderíamos também cogitar que no imaginário
de saúde ocidental esse tratamento pode até ser associado ao método de injetar medicamentos
através das agulhas. Ou seja, a associação entre agulhas e cura não é somente chinesa, está
presente na racionalidade biomédica ocidental.
Assim, na perspectiva da acupuntura reduzida à técnica de inserção de agulhas,
facilmente prevalecem as características da biomedicina: a separação sujeito e objeto, o
quadro individual de desequilíbrio é substituído por tratamentos genéricos, a especialização
em áreas: neuroacupuntura, acupuntura para enfermidades cardíacas, acupuntura para dores
musculares, acupuntura estética, etc.
90
Cf. China se converte na segunda maior produtora global de matérias-primas farmacêuticas. Op. cit.
91
Cf. Medicina tradicional chinesa vai se aliar à pesquisa científica para ampliar mercado. mara de Comércio
e Indústria Brasil/China, 23/03/2007. Acesso em: jul. 2007.
145
A divulgação da acupuntura como tratamento de eficácia totalmente comprovada não
corresponde exatamente ao real, na verdade é reconhecida para algumas doenças (40 na
OMS, 300 na medicina tradicional). As pesquisas são voltadas principalmente para
comprovação da eficácia em casos clínicos, de modo a tornar lícito o método de inserção de
agulhas como procedimento de saúde. Os mecanismos de ação da acupuntura permanecem
sem consenso no meio científico.
O conceito de Ch’i é a base da medicina chinesa e não tem suporte científico. Num
primeiro momento, até a década de 1990, a tradução como energia vital foi essencial para a
introdução da acupuntura no Ocidente, pois a aproximava do vitalismo, característico das
medicinas não-convencionais. Num segundo momento, vêm surgindo explicações neuro-
químicas para Ch’i que procuram afastar a acupuntura das teorias vitalistas. Nessa nova visão,
Ch’i seria a “informação necessária para manter um sistema complexo” (JACQUES, 2005, p.
39). De acordo com Birch e Felt:
A pesquisa das bases materiais ou energéticas do Ch’i deve buscar sinais que
param, iniciam ou regulam um processo e não algo de intensidade suficiente para
produzir trabalho, que a informação é transmitida por meio e eventos bioquímicos
ou bioelétricos que ocorrem em níveis de energia muito mais baixos do que os
requeridos para efeitos metabólicos ou neurológicos. (...) Ch’i deveria ser pensado
como um modelo de ordem e comunicação universal. (...) A idéia mais próxima de
Ch’i no pensamento ocidental moderno é de uma matriz generativa, na qual todos os
elementos interagem por meio da troca de informação (apud JACQUES, 2005, p. 39).
É interessante notar que essa maneira de entender Ch’i também comparece no discurso
holístico atual, no sentido da informação de cura e não mais de energia:
(...) O superparadigma do universo-energia faz parte de tudo que se sabia
sobre a máquina térmica, sobre a revolução industrial, que era baseada no carvão e nos
conceitos de força e energia. Atualmente nós temos outra visão. Nós temos coisas
novas sendo descobertas, e acho que a principal delas é a parte mais nova da física que
é chamada de computação quântica. A computação quântica concluiu
inequivocamente que os bits de informação têm entropia. Ou seja, eles carregam em si
uma forma de modificar o universo. E eles provavelmente são os tijolinhos iniciais do
universo. São os bits básicos do universo, e eles são precursores da energia. Hoje não
existe mais sentido em falar do universo-energia. Hoje nós falamos na linguagem do
universo-informação. Isso não quer dizer que no futuro não tenhamos um novo
superparadigma, com outra compreensão do mundo. Mas, hoje a melhor compreensão
não é o universo-energia porque nós já passamos dessa fase (ROCHA FILHO, 2003).
Queremos dizer com tudo isso que existe uma cooperação de vários setores da
sociedade (OMS, médicos, acupunturistas, terapeutas holísticos, pacientes) visando legitimar
a acupuntura do ponto de vista científico. A reinvenção da acupuntura como método científico
é quase um pré-requisito para sua oficialização. De um jeito ou outro algum dia descobrirão
146
ou inventarão uma explicação plausível para a eficácia da acupuntura, porque embora o
consenso das instâncias legitimadoras do saber ainda não tenha sido encontrado, o consenso
popular sobre a “cientificidade” da acupuntura parece estar se consolidando.
Por fim, apresentamos a análise de Renato Ortiz (apud. MARTINS, 2003, p. 23) sobre
a pluralidade das práticas de saúde no mundo globalizado. No entender do autor, “é fato que
mundialização não é sinônimo de homogeneização” e que “o padrão global” da medicina
alopática é obrigado a “dividir espaço” com as práticas alternativas, mas é importante destacar
que as relações assimétricas de poder, que concedem maior autenticidade à medicina
hegemônica, obrigam a remodelação dos tratamentos alternativos em bases científicas.
O autor observou que:
Cada uma dessas terapias encontrava-se antes enraizada numa civilização, por
exemplo, a tradição chinesa ou hindu; porém num mundo globalizado elas se
expandem enquanto procedimentos desterritorializados, distantes de sua localidade de
origem. O acupunturista, brasileiro, norte-americano ou francês, pouco ou nada sabe
da medicina chinesa, e eu acrescentaria, isso no fundo não lhe interessa tanto. Sua
intenção é específica, deslocada do lugar no qual foi criada e desenvolvida. Muitas
dessas técnicas tendem a ser legitimadas pelos seus praticantes como sendo algo
oriental, em contraposição à frieza e ao mecanicismo ocidental. Trata-se, porém, de
um discurso autojustificativo, pois na verdade a própria oposição Oriente/Ocidente
torna-se discutível com a mundialização da cultura. (...) Pode-se ainda dizer que o
surgimento de práticas terapêuticas alternativas é um indício claro de desenvolvimento
de setores de classe média mundializada, para os quais as terapias tradicionais
populares são insatisfatórias (elas não querem confundir-se com as camadas mais
pobres das sociedades), assim como os limites da medicina oficial. Portanto, um
cenário de redefinição de valores revelando um quadro dinâmico de mudanças,
expectativas e incertezas (ORTIZ, R. apud. MARTINS, 2003, p. 25-26).
O fato é que, por uma série de razões paralelas, mais rapidamente que outras formas de
tratamentos considerados alternativos, a acupuntura popularizou-se junto aos médicos e ao
público ocidental e ganhou o status de complementar à biomedicina. Paradoxalmente, em
oposição aos ideais naturais da contracultura que propiciaram a utilização das alternativas, a
legitimação da acupuntura decorreu da ampliação das pesquisas científicas sobre sua eficácia,
da intensa divulgação da mídia e da sua incorporação dentro da racionalidade biomédica.
Esses fatores colaboraram de uma forma ou outra para a instrumentalização dessa
terapêutica nas sociedades contemporâneas ocidentais e orientais. Conforme foi sendo
subordinada à racionalidade científica ocidental, a acupuntura acabou submetida também à
lógica capitalista de produção e consumo de bens de cura, e à mercantilização da saúde que
caracteriza a medicina biotécnica na atualidade.
147
Figura 18 – Mapa OMS da mundialização da acupuntura (OMS, 2002-2005)
148
PARTE III
ACUPUNTURA À BRASILEIRA
149
6 A transplantação da acupuntura para o contexto cultural brasileiro
O que se entende normalmente por Medicina Tradicional Chinesa (MTC) é
uma ciência milenar da China que nada possui em comum com a medicina ocidental,
alopática (...). É importante notar que a MTC trabalha com uma espécie de energia
vital que os chineses chamam de Qi. Todas as técnicas envolvidas utilizam-se desta
energia, procurando atingir o equilíbrio energético no paciente, fortalecendo seu
organismo e tratando dessa forma o mal que o acomete. A MTC o trabalha
diretamente com órgãos e sistemas do corpo como a medicina ocidental, mas sim com
o Qi de cada órgão, suas variações e manifestações. Sendo assim, a Medicina
Tradicional Chinesa (MTC), multi-milenar, não possui qualquer relação com a
medicina alopática ocidental e seus princípios
92
.
Agora que refizemos o longo percurso das agulhas, desde a China Antiga até o
Ocidente contemporâneo, vamos analisar a inclusão da acupuntura na sociedade brasileira.
Nosso objetivo é traçar um histórico do processo brasileiro de legitimação da acupuntura
frente à corporação médica. A exemplo do que aconteceu em outros países, até a década de
1970 a acupuntura era praticamente desconhecida no Brasil, apesar da intensa imigração
asiática (japonesa, chinesa e coreana) que ocorreu nesse país.
De modo geral, as mesmas condições apresentadas nos capítulos anteriores para a
aceitação da acupuntura no Ocidente valem para o Brasil, ou seja, a interferência da OMS e a
crise sanitária mundial, a crise na medicina convencional, a influência da contracultura e do
movimento alternativo, as novas representações religiosas e corporais, a intensa divulgação na
mídia, a dinâmica do mercado de saúde.
No Brasil, a acupuntura foi considerada “charlatanismo”, “misticismo” e “medicina
alternativa”. Foi reconhecida como “especialidade médica” em 1995. Desde então, a
exclusividade da prática de acupuntura é reivindicada judicialmente pela corporação médica,
que a considera um procedimento invasivo, de natureza cirúrgica, para o qual somente
médicos teriam autoridade. Para ser aceita como “especialidade médica a acupuntura foi
deslocada do conjunto simbólico da medicina chinesa e despojada dos seus fundamentos
taoístas, considerados metafísicos. Assim como acontece em outros países ocidentais e na
China contemporânea, no Brasil a acupuntura vem passando por um processo de transposição
de um lugar mágico-religioso para outro racional-científico.
No nosso modo de ver, a principal diferença no caso brasileiro é a drástica
transformação da postura das corporações médicas diante da acupunturam, que, em apenas em
três décadas, passaram de um extremo, como pedido de prisão de acupunturistas por prática
ilegal de medicina, para outro, que é o monopólio médico da acupuntura. O Brasil é um dos
92
Cf. Acupuntura e MTC. Associação de Medicina Chinesa e Acupuntura (AMECA). Acesso em: jul. 2007.
150
pioneiros na tentativa de restrição da acupuntura ao meio médico. Na grande maioria das
nações a acupuntura pode ser praticada por médicos tradicionais e outros profissionais da
saúde, conforme recomenda a OMS
93
.
A luta política pela legitimação da acupuntura no Brasil foi intensa, liderada por
profissionais sem formação em medicina e marcada pela oposição médica. As transformações
operadas na concepção do que é acupuntura e nas explicações sobre a eficácia, bem como as
implicações da luta pelo monopólio médico na última década, vêm alterando o modo de
praticar a acupuntura não apenas entre os médicos, mas também entre acupunturistas
imigrantes, técnicos acupunturistas e profissionais de diversas áreas da saúde.
A compreensão do processo histórico brasileiro é, então, necessária para a
identificação das modalidades de acupuntura que convivem atualmente com a cultura
brasileira e de como as práticas se constituíram. Buscando entender as especificidades da
adoção da acupuntura como técnica de saúde no Brasil, nossa inspiração foram dois modelos
de análise histórica da transplantação de tradições religiosas para novos contextos, utilizados
por Martin Baumann e Frank Usarski.
O modelo de Baumann, que distingue quatro etapas da inserção de tradições em
culturas anfitriãs, foi aplicado pelo autor para o estudo da introdução do budismo na Europa.
Frank Usarski, por sua vez, delineou três ondas históricas da inserção do budismo no Brasil.
Durante um longo período, até meados da década de 1990, a acupuntura não se diferenciava
de outras práticas tradicionais orientais, de forma que esses modelos nos parecem também
adequados para o entendimento da adoção da acupuntura na sociedade brasileira.
Baumann investigou o processo de internacionalização do budismo do ponto de vista
da modernização das tradições na Ásia, como decorrência do imperialismo, e na perspectiva
do impacto causado pelos grandes fluxos migratórios, seja nos meios culturais ocidentais
anfitriões, seja nas tradições dos imigrantes asiáticos em território estrangeiro (BAUMANN,
1996). O autor dividiu o processo histórico de transplantação do budismo para o Ocidente em
fases conforme as especificidades de cada época, caracterizando diferentes modos de inclusão
de tradições orientais no Ocidente: a) contato e tradução, até fim do séc. XIX; b) do final do
século XIX até a Primeira Guerra Mundial, adoção dos ensinamentos budistas de forma
intelectualizada; c) após Primeira Guerra, práticas espirituais e devocionais são acrescentadas
ao estudo racional de textos budistas; d) Após Segunda Guerra, rios novos grupos budistas
93
Até onde conseguimos verificar, a acupuntura é monopólio médico na Arábia Saudita, Áustria, Portugal,
Uruguai, México e Colômbia (veja RAMALHO, 2006, p. 48 e site acupuntura.pro.br). Nos EUA a legislação
varia conforme os estados, alguns restringem a acupuntura aos médicos ou a prática deve ocorrer sob sua
supervisão, cerca de vinte estados não fazem essa exigência (RAMALHO, 2006, p. 47).
151
se estabeleceram no Ocidente e ocorreu uma valorização da meditação como prática mística
individual.
Frank Usarski, (2002a) traçou uma linha histórica para a difusão do budismo na
sociedade brasileira em três ondas: a) budismo de imigração no séc. XIX; b) primeira geração
de convertidos, até a cada de 1970; c) segunda geração de convertidos, a partir dos anos
1970. A característica da primeira geração de conversão é a adoção de um budismo
intelectualizado. Na segunda geração prevalece a adoção do budismo tibetano, como prática
mística individual, e de um budismo globalizado, racional, pluralista, com tendência à
universalização, organizado em redes mundiais de instituições religiosas e associações laicas
(USARSKI, 2002a, p. 15-18). Segundo Usarski, o budismo de conversão teve maior impacto
social no Brasil, sobretudo no período da segunda geração de adoção, porque gerou
modificações nas tradições, tanto no meio cultural anfitrião como no ambiente étnico
94
(USARSKI, 2002a, p. 13-14).
Martin Baumann apontou algumas estratégias de adequação do budismo ao Ocidente
que podem ser encontradas, de modo mais amplo, na transplantação de outras tradições
orientais, como, por exemplo, a acupuntura. O processo de transplantação dos elementos
orientais para o Ocidente, segundo a visão de Baumann, não ocorre de maneira linear. Uma
tradição estrangeira não precisa passar por todas as fases e estratégias de adaptação para ser
incluída no novo contexto, tudo depende da flexibilidade das culturas envolvidas para o
diálogo e a troca; cada país é um caso singular (BAUMANN, 1994). Entre as possíveis
estratégias de inclusão de tradições orientais identificadas pelo autor estão:
a) Tradução: sempre envolve adaptação, é uma mediação entre duas culturas; tradução da
língua e dos conceitos; invenção de novos termos;
b) Redução: torna o conhecimento compreensível tanto quanto possível; há idéias que não são
assimiláveis pela nova cultura e necessitam de explicações que acabam esvaziando e
reduzindo os conceitos para a compreensão da cultura anfitriã; a redução envolve uma seleção
de conteúdos
95
;
c) Re-interpretação: ênfase em determinados elementos que estão de acordo com as
concepções da cultura anfitriã;
d) Tolerância: os ensinamentos e idéias originais são alterados tendo em vista a adaptação;
e) Assimilação: esvaziamento do compromisso com a tradição; maior liberdade de criação e
interpretação em termos da cultura anfitriã;
94
Shoji (2002a) também diferenciou o budismo étnico - praticado no Brasil entre os imigrantes asiáticos como
forma de sobrevivência cultural - do budismo de conversão, que sofreu influência norte-americana. Esse autor
analisou o processo de aculturação dos imigrantes que resultou em uma reinterpretação brasileira do budismo
chinês e coreano, e identificou um outro tipo de budismo no Brasil, que tem maior adesão que outras linhas: o
budismo de resultados, de forte apelo popular, próximo do budismo japonês Nichiren (SHOJI, 2002b).
95
Por exemplo, a razão e o entendimento racional são enfatizados na tradução do budismo para o Ocidente, bem
como a palavra escrita e as fontes textuais. Percebemos que o mesmo acontece na acupuntura.
152
f) Absorção: incorporação de elementos e símbolos das tradições estrangeiras, interpretados de
acordo com as tradições da cultura anfitriã até mesmo pelos imigrantes; ambigüidade e
adaptação;
g) Aculturação: despojamento das características originais e apropriação dentro da lógica
cultural anfitriã
96
Nesse sentido, seguindo os modelos de análise histórica utilizados por Baumann
(1996) e Frank Usarski (2002a), com adaptações para o universo em questão, localizamos
quatro ondas históricas de inserção da acupuntura no Brasil, como veremos a seguir: a)
contato: da imigração do século XIX até final da década de 50; b) confronto: o processo de
legitimação durante as décadas de 60 e 70; c) adaptação: institucionalização por influência da
cultura alternativa nos anos 80 e 90; d) instrumentalização: popularização e profissionalização
após “ato-médico”, a partir de 1995.
Embora possam ser delimitadas cronologicamente por acontecimentos históricos para
efeito de análise, as ondas de acupuntura se interpenetram e extrapolam as fronteiras fixas das
datas. Procuramos fazer uma correspondência entre os períodos históricos e a adoção da
acupuntura por diferentes agentes em cada época. A recomposição histórica do processo de
adoção da acupuntura serve como suporte para a análise das transformações que a prática vem
sofrendo desde que chegou ao Brasil com os imigrantes.
6.1 As ondas de transplantação da acupuntura para o Brasil
Na primeira onda (séc. XIX até 1957), a acupuntura não era conhecida do público
brasileiro, sendo utilizada apenas por imigrantes asiáticos como mais uma das muitas formas
de tratamento da medicina chinesa. Enquanto isso, a sociedade brasileira também não
distinguia a acupuntura das outras terapêuticas chinesas, que eram associadas à magia e
desvalorizadas quanto ao seu poder de eficácia. A procura por esse tipo de tratamento de
saúde entre os brasileiros era insignificante.
A segunda onda (1958 a 1978) começou quando a acupuntura francesa foi introduzida
no Brasil pelo fisioterapeuta luxemburguês Friederich Spaeth, que em 1958 foi o primeiro
instrutor de acupuntura no Brasil. Nessa época, seus discípulos eram alguns poucos médicos e
profissionais da saúde (fisioterapeutas, biomédicos, etc.) que iniciaram a campanha pela
oficialização da profissão. No final da segunda onda, em 1977, a profissão de acupunturista
96
Outro exemplo, a combinação de meditação budista com conceitos psicológicos e exercícios físicos para
facilitar a assimilação dos ensinamentos budistas. No caso da acupuntura, essa estratégia fica evidente na
interpretação de Ch’i como bioeletricidade para apropriação dentro do referencial científico.
153
estava instituída pelo Ministério do Trabalho, em nível técnico. Iniciou-se uma nova fase, em
que a acupuntura não podia ser objeto de perseguição, mas continuou sendo considerada
mágico-religiosa pelos médicos, e associada ao público denominado “alternativo” ou
“místico-esotérico” pela população brasileira.
A terceira onda (1979 a 1994) teve grande impacto em diferentes níveis da sociedade
brasileira, com conseqüências para a comunidade étnica, para a medicina ocidental e para o
sistema público de saúde. A influência do Alternativismo e do movimento Nova Era ampliou
a procura por medicinas não-convencionais, transformando a acupuntura praticada pelos
imigrantes, uma vez que proporcionou uma abertura para o diálogo entre as duas culturas,
oferecendo uma possibilidade de tradução. Também em 1979, a acupuntura passou a ser
oficialmente recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Ao mesmo tempo, a
medicina convencional foi atingida com as práticas alternativas, passando por uma crise que
obrigou as corporações médicas a uma revisão de estratégias.
Disso decorreu uma nova etapa no processo, a quarta onda (desde 1995), iniciada
quando a acupuntura passou a ser especialidade médica. A acupuntura, nessa última onda,
vem sendo deslocada do conjunto simbólico da MTC, usada de forma sintomática (ou seja,
para tais sintomas, agulha em tais pontos genéricos) e direcionada para a dor.
Cada onda possui características específicas de acordo com o momento histórico-
cultural e os grupos sociais de praticantes que predominam no período. Em cada onda surge
um novo tipo de praticante, que pratica acupuntura de um novo jeito, e que passa a
protagonizar a história. A emergência de um novo grupo de praticantes e de um novo modo de
prática interfere nos grupos anteriores, que reorganizam suas práticas e discursos conforme as
novas influências. Os grupos de praticantes protagonistas e coadjuvantes convivem, dialogam
e se afetam mutuamente no decorrer do processo de legitimação. O surgimento de uma nova
onda, e de um novo tipo de protagonistas no processo, não elimina o modo anterior de prática
da acupuntura, que continua se desenvolvendo paralelamente entre antigos acupunturistas,
porém com modificações adquiridas no contato intra-grupos.
Assim, a acupuntura tradicional, supostamente praticada no ambiente étnico, não
seduziu a sociedade brasileira até o final da década de 1960. Devido ao interesse pelo Oriente,
ao naturalismo, à contracultura, etc, a acupuntura tradicional começou a ser cada vez mais
valorizada nas décadas seguintes. Mas o fortalecimento do movimento alternativo e Nova Era
passou a influenciar a prática dos imigrantes, que assimilaram o discurso holístico.
Embora encabeçado por ocidentais, o processo de inclusão da acupuntura alterou
significativamente a relação dos praticantes asiáticos com a sociedade brasileira, criando
154
abertura para um diálogo cultural. Causou uma transformação no modo de praticar a
acupuntura, que passou a incluir as interpretações holísticas. Por outro lado, os acupunturistas
imigrantes tornam-se coadjuvantes do processo histórico, os novos protagonistas passaram a
ser os terapeutas holísticos do circuito alternativo.
Por sua vez, a linha Spaeth iniciada em 1958 também foi se transformando nos anos
80 e 90, sendo influenciada pelo alternativismo e Nova Era. A acupuntura francesa de Spaeth
ainda hoje é praticada, inclusive entre muitos médicos acupunturistas, mas atualmente
também vem aderindo à complementaridade entre medicina ocidental e oriental.
Mais tarde, com o “ato-médico” (1995), ocorreu nova revolução no modo de praticar e
entender a acupuntura, que atingiu os modos tradicionais e holísticos. Os médicos
substituíram os terapeutas holísticos enquanto protagonistas do processo de inclusão da
acupuntura, estabelecendo novos parâmetros e produzindo uma hiper-divulgação da técnica
das agulhas.
Podemos notar que a busca por aprendizado de terapêuticas chinesas acompanhou a
adesão a novas religiosidades, especialmente na primeira geração da adoção (1958-1994), em
que predominavam camadas populacionais mais intelectualizadas e contraculturais. Mas essa
situação pode estar se modificando desde a virada do século, com a popularização da
acupuntura deslocada do conjunto simbólico da medicina chinesa. Demarcamos a segunda
geração de adoção da acupuntura a partir do “ato-médico” em 1995, pois entendemos que ele
causou uma ruptura, implicando posteriormente na apropriação da arte terapêutica chinesa
como uma técnica de inserir agulhas.
Optamos pela apresentação de um quadro resumo cronológico desse processo para
depois, nos próximos tópicos, explicar mais detalhadamente a história da acupuntura no
Brasil, a organização dos atores sociais desse processo, as transformações decorrentes do
surgimento de cada novo grupo de praticantes e as modalidades de acupuntura predominantes
em cada período.
155
Onda Primeira onda Segunda onda Terceira onda Quarta onda
Período 1810 a 1957 De 1958 a 1978 De 1979 a 1994 A partir de 1995
Fatos que
delimitam a
onda
1810- Imigração
chinesa
1958- início do
ensino de acupuntura
por ocidentais e p/
ocidentais
1979 –
recomendação da
OMS
1995 – Acupuntura é
especialidade médica
Quanto à
adoção por
ocidentais
Restrita à
comunidade
étnica
Primeira geração de adoção
Segunda geração de
adoção
Etapas da
acupuntura no
Brasil
Pré-institucional Legitimação.
Através de Spaeth e
discípulos
Institucionalização.
Através da fundação
de escolas e centros
“alternativos”
Profissionalização.
Disseminação da
acupuntura para o
grande público
através dos médicos
Representação
da acupuntura
Magia;
primitivismo;
curandeirismo
Exotismo; crendice;
charlatanismo
Misticismo;
esoterismo;
medicina alternativa
Método científico;
técnica auxiliar;
med. complementar
Características
das ondas de
transplantação
Contato Confronto,
conflito
Adaptação,
resgate de tradições,
ambigüidade
Instrumentalização,
Inovação e auto-
desenvolvimento;
Estratégia de
adaptação
predominante
Restrição à
comunidade
étnica
Tradução, redução Tradução e
reinterpretação;
tolerância;
Assimilação;
absorção;
aculturação
Praticantes
Protagonistas
Imigrantes
asiáticos
Spaeth e discípulos,
que eram médicos e
profissionais da
saúde (biomédicos,
fisioterapeutas, etc)
Terapeutas holísticos
que aprendiam no
exterior, ou com
imigrantes e
discípulos de Spaeth
Médicos e
profissionais da saúde
(fisioterapeutas,
psicólogos,
enfermeiros, etc)
Praticantes
Coadjuvantes
Não há notícias
sobre prática
entre ocidentais
Imigrantes asiáticos Imigrantes asiáticos e
descendentes; Spaeth
e discípulos; alunos
médicos que se
separaram de Spaeth
Descendentes de
imigrantes asiáticos;
discípulos da linha
Spaeth; terapeutas
holísticos
Modalidade de
prática surgida
em cada onda
Acupuntura
Tradicional,
enraizada na
cosmovisão
oriental da
comunidade
asiática.
Acupuntura
energética francesa;
intelectualizada,
psicologizada, busca
de explicações
racionais para o
mágico-religioso
Acupuntura Holística,
conjuga tradicional e
moderno, oriental e
ocidental, mágico-
religioso e científico
Acupuntura
instrumental,
racional-científica,
desprovida dos
fundamentos taoístas,
considerados
metafísicos
6.1.1 Contato (1810-1957): medicina chinesa no contexto da imigração asiática
A acupuntura foi trazida ao Brasil pelos imigrantes asiáticos a partir do séc. XIX, junto
com outras técnicas chinesas de tratamento de saúde. Em 1810, desembarcaram na cidade do
Rio de Janeiro os primeiros chineses para trabalhar na lavoura do chá, aos quais sucederam-se
outros até o fim do séc. XIX, predominando sempre a descriminação étnica e péssimas
condições de trabalho. Em 1908, os japoneses começaram a chegar em São Paulo.
156
Tanto o primeiro fluxo imigratório chinês do séc. XIX, quanto o fluxo japonês na
primeira metade do séc. XX, tiveram menor impacto na transplantação da medicina chinesa
para o Brasil, em comparação com os fluxos seguintes dos anos 1960 e 1970, porque nesses
últimos os imigrantes não eram substitutos para mão-de-obra agrícola. No caso chinês muitos
eram comerciantes, profissionais liberais ou intelectuais, que devido a uma conjuntura política
e econômica optaram por se estabelecer no Brasil (SHOJI, 2004). Além disso, na cada de
sessenta o novo fluxo imigratório chinês somou-se ao de imigração japonesa (de 1953 a 1962)
e coreana (a partir de 1963), o que realimentava as tradições orientais (SHOJI, 2004).
Seria necessária uma pesquisa entre os poucos imigrantes orientais ainda vivos, que
presenciaram esse período, para registrar historicamente as transformações ocorridas.
Sabemos que a fitoterapia, dietoterapia, exercícios físicos e massagens são muito utilizados
pelas populações da China e Japão, e que no universo étnico tradicional não
preponderância da acupuntura como ocorre no ocidente, todas as técnicas são utilizadas em
conjunto de acordo com a necessidade. Conforme depoimento de acupunturistas e pacientes
descendentes de orientais, entre os japoneses, por exemplo, a moxabustão e a massagem eram
corriqueiras no meio familiar, como são os chás na cultura brasileira. Esses conhecimentos
eram transmitidos oralmente às novas gerações, seja de pai para filho, seja de mestre para
discípulo.
A maioria dos imigrantes asiáticos em São Paulo é de origem japonesa (1,26 milhão),
mas essa cidade abriga a maior comunidade chinesa (cerca de 200.000) e coreana (cerca de
80.000) do Brasil (USARSKI, 2002a). O bairro da Liberdade foi durante muito tempo uma
espécie de “gueto”, devido à barreira lingüística dos imigrantes, que ali puderam manter suas
tradições culturais, inclusive religiosas.
Embora os princípios fundamentais do conjunto da medicina chinesa sejam taoístas, a
contribuição do budismo é perceptível, especialmente nas artes corporais. Além disso, a
religiosidade dos povos do extremo-oriente é marcadamente pluralista, não necessidade de
exclusividade a uma linha. O próprio taoísmo é sincrético e foi modificado pelo budismo
chinês adquirindo aspectos devocionais, assim como o budismo zen teve influência taoísta
(SHOJI, 2004).
O budismo é predominante entre os imigrantes asiáticos em geral, mas várias linhas
são seguidas pelos diferentes grupos étnicos
97
. O budismo foi um fator de coesão entre
97
O budismo japonês se estabeleceu no Brasil em 1936 e sua institucionalização foi ampliada após a Segunda
Guerra, com a chegada de várias correntes (Jôdo Shinshú, Zen, Nichiren, entre outras). Em 1958, foi fundada a
Federação das Seitas Budistas no Brasil, para agregar todas as linhas em torno de objetivos comuns (USARSKI,
157
imigrantes chineses, japoneses e coreanos, pois apesar da heterogeneidade das diversas
correntes as grandes celebrações religiosas eram também atividades sociais da comunidade
asiática (USARSKI, 2002a).
Com relação ao taoísmo, encontramos três linhas que chegaram ao Brasil. A primeira é
mais próxima do popular chinês, possui um templo em Santo Amaro e é freqüentada apenas
por imigrantes chineses. A segunda linha foi trazida por Liu Pai Lin, chinês que imigrou para
São Paulo em 1975, após um período em Taiwan
98
. É um taoísmo da alquimia interior,
direcionado para a saúde, longevidade, meditação e aprimoramento do espírito. A terceira
linha de taoísmo é a Ordem Ortodoxa Unitária, taoísmo stico com rituais e culto a
divindades, trazida pelo fundador da Sociedade Taoísta do Brasil
99
, Wu Jih Cherng, sacerdote
taoísta Kao Kon Fa Shi (Alto Ofício, Mestre da Lei) de Taiwan, e por seu pai Wu Chao-
Hsiang, nos anos setenta (NASCIMENTO, 1997, p. 38).
Assim como o budismo, a medicina chinesa pode ter representado uma convergência
entre imigrantes do extremo-oriente no Brasil, pois independentemente das diferenças entre as
técnicas desenvolvidas nesses países, tema que mereceria um estudo à parte, elas repousam
sobre uma base filosófica comum que contrasta fortemente com a racionalidade ocidental. A
medicina chinesa foi exportada para países da Ásia nos séculos VI e VII, período de
influência budista na China. No Japão e Coréia a medicina chinesa foi adaptada às novas
realidades e surgiram novas técnicas e teorias. Mas as matrizes dessas medicinas permanecem
sendo macro-micro, yin-yang, classificação em elementos (na Coréia são quatro elementos) e
circulação de Ch’i em trajetos do corpo. No Brasil, as antigas e novas técnicas japonesas e
coreanas foram reincorporadas ao arsenal da medicina chinesa, da qual são derivadas, de
modo que podemos desconsiderar as particularidades de cada etnia e tratá-las como parte de
um conjunto homogêneo básico.
Foi um longo período de contato desde o século XIX, em que a discriminação aos
imigrantes orientais era intensa. Até meados da década de sessenta, a acupuntura passou por
uma fase pré-institucional, em que, como uma técnica da medicina chinesa era considerada
charlatanismo (NASCIMENTO, 1997, p. 47). Durante muito tempo, essa medicina foi
2002a). O budismo chinês se estabeleceu tardiamente, em 1964 (templo Mituo Amitabha), assim como o
coreano, em 1988 (SHOJI, 2004).
98
Informações colhidas de depoimento de Liu Chih Ming à Sonia Maria de Freitas em 11/12/2002, registrado no
Memorial do Imigrante, caderno 272.
99
As atividades da Sociedade Taoísta do Brasil começaram no templo do Rio de Janeiro, fundado em 1991, e se
expandiram para São Paulo, onde foi fundado o segundo templo em 2000. Embora seja uma ordem sacerdotal,
divulgam o taoísmo clássico como um caminho filosófico de aperfeiçoamento cotidiano. Informações colhidas
no site da instituição (Cf. http://www.taoismo.org) e em depoimento do regente do templo de São Paulo.
158
praticada somente dentro da comunidade asiática como forma de resistência cultural, de
preservação das tradições.
O conflito dos acupunturistas imigrantes com a cultura brasileira, mais
especificamente com os órgãos de vigilância sanitária, aflorou na década de sessenta quando a
acupuntura passou a ser praticada por ocidentais que reivindicavam a legalização dessa
técnica no sistema de saúde oficial.
6.1.2 Confronto (1958-1978): a acupuntura “energética” de Spaeth
O principal divulgador da acupuntura entre os brasileiros foi um ocidental, o
fisioterapeuta Friedirich Spaeth, nascido em Luxemburgo e naturalizado brasileiro. Dr.
Frederico, como era conhecido, após um curso na Alemanha fundou em 1958 a Sociedade
Brasileira de Acupuntura e Medicina Oriental, e começou a ensinar ocidentais em São Paulo.
Em 1961, junto com dois médicos fundou o Instituto Brasileiro de Acupuntura, em 1972
transformado em ABA - Associação Brasileira de Acupuntura (FREITAS, 2004). Nessa
época, Spaeth e um médico foram presos, outros médicos sofreram censura pública do
CREMESP (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) por praticar
acupuntura.
A perseguição aos acupunturistas obrigava uma mobilização dos imigrantes asiáticos.
Os ocidentais se organizavam em associações desde 1961, mas, além da dificuldade da
língua portuguesa, os grupos étnicos tendiam a não encontrar espaço na mídia e apoio do
poder público (NASCIMENTO, 1997, p. 66). A organização dos acupunturistas orientais
aconteceu tardiamente, em 1971, quando o japonês Kazuo Irisawa fundou a Associação de
Acupuntura do Estado de São Paulo, reunindo acupunturistas chineses, japoneses, coreanos, e
seus descendentes
100
.
Spaeth trouxe para o Brasil a linha de acupuntura francesa, de Georges Soulié de
Morant, cônsul francês responsável pela tradução da acupuntura para a linguagem
“energética”, na Europa dos anos trinta (NASCIMENTO, 1997, p. 38). A ABA era filiada à
Sociedade de Acupuntura de Paris, da qual Spaeth foi eleito presidente. A maioria dos seus
alunos tinha formação médica e alguns profissionais eram formados na área da saúde. Sua
estratégia foi a aproximação entre a acupuntura e a medicina ocidental, para a legitimação no
100
Essa entidade mais tarde originou o Sindicato dos Profissionais em Acupuntura, Moxabustão, Do-in e
Quiropraxia do Estado de São Paulo, em 1989, e uma federação nacional de sindicatos similares em 1990.Cf.
História do SATOSP. Sindicato dos Acupunturistas e Terapias Orientais do Estado de São Paulo. Disponível
em: <http://www.satosp.com/historia_satosp.html>. Acesso em out. 2006.
159
meio acadêmico e junto à opinião pública (NASCIMENTO, 1997, p. 50). Durante a década de
setenta a homeopatia progressivamente era aceita, mas a acupuntura ainda enfrentava
resistência médica e através da mídia era veiculada a mensagem de acupuntura associada à
crendice e ao curandeirismo.
Spaeth conseguia espaço nos jornais de grande circulação e se contrapunha “aos
místicos e leigos que praticavam a acupuntura”, defendendo a idéia de que a “acupuntura era
uma ciência” (NASCIMENTO, 1997, p. 50). Procurava se destacar dos autodidatas e de certa
forma também dos imigrantes, embora não os atacasse diretamente. Informava sobre o
reconhecimento internacional da acupuntura, sobre as recomendações da OMS para a
utilização das medicinas tradicionais e suas vantagens como, por exemplo, a eficácia, os
baixos custos, o estímulo às defesas naturais do organismo, o desenvolvimento de autonomia
do paciente, os aspectos preventivos.
Defendia a regulamentação da prática e ensino de acupuntura somente para
profissionais de saúde, incluindo médicos, e sua adoção no sistema blico junto com a
medicina ocidental, o que mais tarde acabaria favorecendo a subordinação da acupuntura à
classe médica (NASCIMENTO, 1997, p. 51).
A introdução da acupuntura pelo viés científico reiterava a validação da cultura
ocidental frente ao exotismo das práticas chinesas, e demarcava um campo de atuação
diferenciado das práticas dos imigrantes asiáticos (NASCIMENTO, 1997, p. 51). Sabemos,
contudo, que a linha “energética” francesa foi bastante influenciada por Soulié de Morant,
pela tradição vietnamita e pela holística nascente na década de trinta. Na verdade, essa
acupuntura segue a tendência holística de valorizar os aspectos para-científicos e
psicossomáticos dos tratamentos “energéticos”, e enfatizar as explicações da pós-psicanálise e
a parceria entre medicina oriental e ocidental.
Em 1977, Spaeth deu um importante passo, encaminhando ao Ministério do Trabalho
um pedido de cadastramento da profissão de médico acupunturista (NASCIMENTO, 1997, p.
74). Não pretendia com isso restringir a atividade aos médicos, apenas acreditava na
acupuntura como uma arte de cura, um outro tipo de medicina, por isso a importância do
termo médico acupunturista, além disso, nesse momento representava politicamente muitos
acupunturistas médicos. Conseguiu apenas que a acupuntura fosse incluída na Classificação
Brasileira de Ocupações como atividade profissional de nível médio, porém sem
regulamentação da prática. Ficou oficialmente definida como atribuição do acupuntor, “a
160
realização de prognósticos energéticos por meio de métodos da medicina tradicional chinesa
para harmonização energética, fisiológica e psico-orgânica”
101
.
6.1.3 Adaptação (1979-1994): acupuntura como medicina alternativa
Como sabemos, em 1979 a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou a
acupuntura como tratamento terapêutico eficaz para 40 doenças. O fenômeno da expansão das
medicinas alternativas foi analisado em capítulos anteriores. As estratégias da OMS
destinavam-se aos países não desenvolvidos e nas décadas de 1970 e 1980 havia especial
preocupação com a América Latina. As medicinas tradicionais são amplamente praticadas
nesse continente, quase sempre fora do âmbito oficial, principalmente a utilização de ervas e
as curas religiosas. Madel Luz (2005, p. 59) classificou as medicinas não-convencionais da
América Latina em três tipos:
a) medicinas tradicionais indígenas, de característica xamânica e mágico-religiosa, em
que predominam ervas (fitoterapia), “benzeção” e sincretismo com catolicismo
popular;
b) medicinas afro-americanas, também xamânicas, mais voltadas para o sistema de
cura religioso mediúnico (Candomblé, Umbanda, kardecismo), que utilizam “passes”,
fitoterapia e homeopatia popular, e requisitam empenho do paciente, seja através de
oferendas às entidades, de trabalhos de cura ou atitudes morais que predisponham a
saúde (purificação);
c) medicinas derivadas de sistemas complexos tradicionais (ayurvédica, chinesa e
também homeopatia), que possuem racionalidades próprias que possibilitam a
“tradutibilidade terapêutica” para a medicina ocidental, e por isso tendem a serem
legitimadas pela ciência e pela medicina oficial.
Nesse último grupo estão as medicinas habitualmente denominadas alternativas, que
desde o final do século XX vêm se difundido das camadas mais intelectualizadas para as
menos educadas formalmente (LUZ, M., 2005, p. 60).
As diretrizes de Ação Primária à Saúde impactaram a política pública brasileira
impondo a implantação de práticas tradicionais consagradas internacionalmente como a
homeopatia e a acupuntura. Esse fator foi muito importante porque fortaleceu o movimento
pró-legitimação da acupuntura que já ocorria desde a década de 1960, mas que nas décadas de
80 e 90 ainda contava com o apoio de alguns poucos médicos.
Em 1979, graças aos esforços de Spaeth, a UNIRIO (antiga Escola de Medicina e
Cirurgia do Rio de Janeiro) passou a oferecer cursos de acupuntura para profissionais das
101
Cf. ANAMO informa. Associação Nacional de Acupuntura e Moxabustão (ANAMO). Disponível em:
<http://www.acupuntura.org.br/anamo.html>. Acesso em set. 2006.
161
áreas da saúde, ministrados por ele, iniciando-se o processo de institucionalização
102
. Na
década de oitenta a estratégia foi a realização de congressos nacionais, nos moldes
acadêmicos, em várias capitais do país. O primeiro foi realizado em 1981, em Pernambuco
(NASCIMENTO, 1997, p. 53). A grande resistência dos conselhos de medicina em legalizar a
prática fez com que alguns médicos se distanciassem de Spaeth a partir de 1984, criando
associações próprias, que mais tarde se tornaram as principais defensoras do “ato-médico” na
acupuntura.
Ao mesmo tempo, a década de 1980 foi o período de maior desenvolvimento do
movimento alternativo e do movimento Nova Era no Brasil, uma fase ainda contracultural,
em que os ideais de vida natural começavam a gerar um estilo de vida diferenciado, que
incluía tratamentos de saúde não convencionais. Assim, a abordagem holística preconizada
por esses movimentos proporcionou uma abertura para a inclusão da acupuntura na sociedade
brasileira, sendo abraçada também pelos acupunturistas imigrantes. A medicina convencional
alopática também foi atingida pelas práticas alternativas durante a década de 80, passando por
uma crise que obrigou as corporações médicas a uma revisão de planos.
6.1.3.1 O impacto do processo de legitimação da acupuntura e do movimento alternativo no
universo étnico tradicional
Somente no final da década de setenta, os orientais puderam lecionar acupuntura, pois
dominavam melhor o português. Entre outros imigrantes destacamos dois mestres taoístas.
Em 1977, Wu Chao-Hsiang (pai de Wu Jih Cherng, fundador da Sociedade Taoísta do Brasil),
fundou o Instituto de Medicina Chinesa na cidade do Rio de Janeiro, onde ensinava artes
marciais e medicina chinesa (NASCIMENTO, 1997, p. 38). Em São Paulo, Liu Pai Lin
começou a lecionar em 1977, com auxílio de discípulos tradutores. Iniciou na floricultura do
filho, no bairro de Pinheiros, e no ano seguinte passou a ensinar Tai Chi Chuan em espaço da
Missão Católica Chinesa e na Fundação Nova Acrópole (HEMSI, 2000, p. 103). Mais tarde,
em 1982, Pai Lin fundou o Centro de Cultura e Ciência Oriental, em São Paulo, onde
ensinava medicina chinesa, Tai Chi Chuan e Chi Kung. Ambos (Hsiang e Pai Lin) ofereciam
cursos para alunos que tivessem o segundo grau completo, atual nível médio.
Durante a década de 80 começaram a surgir nos grandes centros urbanos diversas
escolas de medicina tradicional chinesa e artes marciais, dirigidas por asiáticos e por
102
Cf. A história da Acupuntura no Brasil. Jornal da Acupuntura. Acesso em: ago. 2007.
162
ocidentais. Esse foi um período de institucionalização da acupuntura, em que foram criadas
várias associações profissionais, em que se anunciava um conflito direto com a corporação
médica por causa do monopólio da prática.
Em 1983, foi criada a AMECA (Associação de Medicina Chinesa e Acupuntura),
composta principalmente por asiáticos e descendentes. Como estratégia de fortalecimento,
essa entidade se filiou à WFAS (Federação Mundial de Acupuntura e Moxabustão) e estreitou
os vínculos com a China, através de alguns membros influentes e de parceria com o Centro
Internacional de Exames de Acupuntura de Beijing (que qualifica acupunturistas nível A e B).
A abertura da China possibilitou maior contato com a medicina chinesa atual e permitiu a
associação dos imigrantes chineses com o país de origem através do Consulado da República
Popular da China, estabelecido em São Paulo em 1985 (APOLLONI, 2004, p. 67).
Podemos considerar que na década de oitenta predominava um resgate das tradições e
uma reafirmação da identidade étnica. A valorização das tradições orientais aumentava
conforme a adesão às religiosidades alternativas, sobretudo ao Movimento Nova Era, intensa
na época, o que conferia identidade e auto-representação mais positivas para os acupunturistas
asiáticos. A China antiga era uma referência forte de tradição genuína, um Oriente mítico
reverenciado tanto por ocidentais, como por imigrantes chineses, coreanos e japoneses. O
aprendizado com um mestre chinês ou um curso realizado na China era um atestado de
“verdadeira medicina chinesa”.
Evidenciava-se uma ambigüidade, pois a China antiga era a referência de uma
acupuntura verdadeira, porém era um Oriente idealizado pelos ocidentais, que não
correspondia à imagem atualizada da cultura chinesa. Ao mesmo tempo ocorria uma
transformação da medicina chinesa, que indicava uma adaptação às necessidades ocidentais
urbanas.
As influências do movimento Alternativo e da Nova Era ampliaram a procura por
medicinas não-convencionais, transformando a acupuntura praticada pelos imigrantes, uma
vez que possibilitaram uma abertura para o diálogo entre as duas culturas. Ofereceram uma
possibilidade de tradução da acupuntura através de conceitos holísticos, que aliam tradições
religiosas e explicações emprestadas da física quântica ou da psicologia pós-freudiana
(psicossomática e psicologia junguiana).
A partir desse período, os acupunturistas asiáticos podem ter começado a utilizar a
linguagem holística, característica do mundo alternativo, como forma de adequação à cultura
brasileira. A acupuntura recebia traduções e re-interpretações do meio ocidental, que eram
incorporadas por muitos imigrantes. Os orientais manifestavam tolerância com o novo
163
contexto, adaptando os tratamentos para a sensibilidade latina à dor, para a freqüência de
aplicações possível na conturbada vida urbana, para a fitoterapia brasileira, para a nova
tendência naturalista ocidental, etc.
Em São Paulo, uma vez que o número de imigrantes japoneses é mais elevado que
outras etnias, entre os acupunturistas orientais os japoneses são maioria. Mas quase todos os
acupunturistas japoneses, coreanos e chineses, conjugam tanto antigas como novas teorias,
práticas coreanas (constitucional, koryo sooji), métodos japoneses (Manaka, Akabane,
Nagano) e aparelhos eletrônicos asiáticos em geral (ryodoraku, etc).
O reconhecimento médico da acupuntura também causou impacto sobre os grupos
étnicos asiáticos, pois muitos imigrantes que praticavam a acupuntura tradicionalmente, sem
diploma oficial, foram obrigados a uma maior mobilização política para continuar atuando
profissionalmente. Pela dificuldade de articulação política, a comunidade de acupunturistas
orientais foi a principal prejudicada pela tentativa de monopólio da acupuntura pela
corporação médica. Os acupunturistas asiáticos das novas gerações freqüentemente escolhem
profissões da saúde que reconhecem a acupuntura como especialidade, para que possam
praticar legalmente. Por outro lado, muitos imigrantes orientais formaram-se na China, Japão
e Coréia, e não conseguem validar seus diplomas no Brasil, sendo ainda hoje obrigados a
freqüentar cursos brasileiros para a obtenção do certificado que valide sua atividade
profissional de acupunturista.
Atualmente, com a ocidentalização da medicina chinesa, japonesa e coreana,
acupunturistas orientais também vêm aderindo à instrumentalização dessa técnica, à sua
redução aos tratamentos específicos (ósseo-musculares, estéticos, etc.), aos diagnósticos
eletrônicos, às explicações neurofisiológicas, e ao direcionamento da acupuntura para a
eliminação das dores. Alguns imigrantes asiáticos se formaram em medicina e lutam pelo
reconhecimento da acupuntura no Brasil, embora sigam diferentes caminhos e posições.
Dentre os médicos acupunturistas asiáticos encontramos desde aqueles que defendem a
prática de acupuntura por multiprofissionais, segundo uma concepção de tratamento
“energético”, como aqueles que pretendem o monopólio médico e a cientifização da técnica.
164
6.1.3.2 O contexto sócio-cultural da adoção da acupuntura na década de 1980
Paralelamente ao processo de legitimação da acupuntura no Brasil, ocorriam
revoluções no campo religioso que implicavam numa crescente adesão aos novos movimentos
religiosos de origem oriental e às novas formas de religiosidade, aos quais são associados
novos movimentos de saúde. Foi principalmente na perspectiva contracultural de busca de
filosofias orientais (zen-budismo, taoísmo, budismo tibetano, hinduismo, gurus indianos) que
muitos brasileiros entraram em contato com a acupuntura, e adotaram essa entre outras
práticas como a meditação, o yoga, a ayurvédica, o Tai Chi Chuan, a macrobiótica, na maioria
das vezes aprendidas de maneira autodidata ou com mestres brasileiros formados nos EUA,
Europa e mesmo no Oriente (China, Japão, Coréia, Índia). No caso da medicina chinesa,
muitos alunos tiveram a oportunidade de freqüentar aulas de mestres imigrantes que no final
da década de setenta começaram a ensinar no Brasil, além de cursos então oferecidos por
Spaeth e discípulos, para profissionais da saúde.
O Colóquio de Córdoba em 1979 e a publicação do livro “A conspiração aquariana”
de Ferguson, em 1980, projetaram a holística e a Nova Era para o cenário mundial
(CHAMPION, 2001, p. 26). D´Andrea ressaltou que a Nova Era brasileira sofreu influência
da contracultura americana, do espiritismo kardecista e também da cultura psicológica
difundida principalmente nos anos oitenta (D´ANDREA, 1996; RUSSO, 1993). Mas, embora
o Brasil reproduza o movimento dos EUA e Europa, a abordagem naturalista e anti-
tecnológica encontra ressonância na cultura popular brasileira (NASCIMENTO, 1997, p. 48).
Após o fim da ditadura militar, o interesse foi desviado da política para outras esferas,
como a espiritual individual, em busca de novas utopias. Principalmente na segunda metade
dos anos oitenta, o alternativismo e o naturalismo alcançaram os jovens das camadas médias
urbanas e a procura por tratamentos não convencionais foi ampliada (SOARES, L., 1994). O
ethos alternativo brasileiro”, cuja visão de mundo é holística, segundo Luis Eduardo Soares
seria um tipo de nova consciência religiosa - o misticismo ecológico - caracterizado pela
individualidade, pluralidade e trânsito. Seria uma religiosidade pautada no trinômio corpo-
espírito-natureza, nos binômios saúde-doença, equilíbrio-desequilíbrio, harmonia-desarmonia,
intuição-razão, mistério-ciência, unidade-fragmentação, e nas noções de energia e trabalho.
No Brasil, os anos 1980 foram a época áurea das comunidades rurais e medicinas
alternativas, da holística, da romântica Nova Era como utopia milenarista e também como
utopia política, uma vez que buscava o auto-desenvolvimento sustentável e comunitário
independente da esfera governamental. A adoção da prática da acupuntura por ocidentais
165
nesse período, tanto enquanto terapeutas como enquanto pacientes, representava a adesão a
um estilo de vida relacionado a um projeto utópico de contraposição aos valores vigentes, e de
resgate do equilíbrio perdido na comunidade planetária. Tratava-se da construção de um
mundo saudável e harmônico.
Em 1986, Pierre Weil fundou em Brasília a Universidade Holística. No eixo Rio-São
Paulo, o movimento Nova Era se organizava efetivamente através da divulgação da cultura
alternativa em rádios, TVs e imprensa escrita, as comunidades alternativas se reuniam na
ABRASCA (Associação Brasileira de Comunidades Alternativas), os livros de Paulo Coelho
começavam a ser publicados. Isso tudo possibilitou a institucionalização das terapêuticas
alternativas em geral, incluindo a acupuntura, através da implantação de centros de estudos e
escolas, espaços comerciais privados, mas com uma ideologia de propagar os ideais holísticos
e a Nova Era.
Devido a vários fatores culturais, as medicinas alternativas passaram por um processo
de popularização na sociedade brasileira. O mercado de consumo dos bens de cura ampliou-se
com o aumento da demanda por novas formas de tratamentos e produtos naturais. Foi sendo
configurado um novo campo profissional de “terapeuta holístico” baseado na “espiritualidade
terapêutica” (TAVARES, 1998). A área de comunicação e marketing foi o primeiro elo entre
a “concepção holística” e o mercado consumidor. Durante toda a década de oitenta foram
propagados os ideais do “novo paradigma”, o modelo de “vida natural”, as terapêuticas não
convencionais. Foi surgindo uma série de serviços em torno desses temas, especialmente
cursos sobre os novos conhecimentos e treinamentos profissionais. Mais tarde, nos anos
noventa, essa fase romântica seria ultrapassada, cedendo ao utilitarismo e às regras do
mercado de consumo, emergindo um novo tipo de holística, a pragmática.
De acordo com Luz, alguns médicos brasileiros, comprometidos com a “arte de curar”,
partidários da contracultura e descontentes com o modelo de medicina oficial, encontraram
nas medicinas tradicionais (homeopatia, ayurvédica, chinesa) e nos conceitos holísticos e
psicológicos um modo mais atrativo de relação médico-paciente, além de representar uma
nova área de trabalho (LUZ, 2005, p. 75). O aumento da procura por medicinas alternativas
por uma classe com maior poder aquisitivo fez com que até mesmo os médicos ortodoxos
prestassem atenção a esse produto simbólico.
Poderíamos dizer que a acupuntura pôde ser legitimada na sociedade brasileira
porque houve uma interferência direta da OMS, devido à crise sanitária internacional, e
também porque houve demanda de um segmento com alta disposição para o consumo, o que
forçou a corporação médica a aceitar essa prática como especialidade, para impedir que outras
166
categorias profissionais se apropriassem dos bens de cura que atendiam melhor as
necessidades da elite.
6.1.3.3 A crise na saúde brasileira e a inclusão da acupuntura no sistema público
No processo de legitimação da acupuntura no Brasil, podemos perceber que as
disputas que marcaram a década de 60 e 70, entre médicos e “curandeiros”, na década de 80
foram substituídas pela disputa entre médicos alopáticos e médicos alternativos, foi uma fase
em que se mediam forças entre especialistas do campo médico (BARROS, 2000).
Em 1980, a homeopatia foi reconhecida como especialidade médica. Seguindo o
modelo de atenção primária à saúde, o “Programa Médico na Família” foi implantado em
alguns municípios brasileiros, buscando a ação preventiva junto às populações de baixa renda,
com enfoque na correção de hábitos de higiene pouco saudáveis, educação para alimentação
adequada e autonomia do paciente. Esse modelo favoreceu a adoção de terapêuticas não-
convencionais na rede pública, que foram, entretanto, subordinadas à racionalidade médica
ocidental, e adotadas como ferramentas complementares (LUZ, 2005, p. 80).
A inclusão da acupuntura no sistema público de saúde iniciou-se oficialmente no Rio
de Janeiro, em 1981. Os serviços foram estendidos para as clínicas da dor dos hospitais
universitários da UFRJ e UERJ, eram experiências piloto multidisciplinares que envolviam
diversas áreas - neurologia, anestesiologia, psiquiatria, fisiatria, clínica médica e acupuntura
(NASCIMENTO, 1997, p. 92). A partir de 1985 a homeopatia, fitoterapia e acupuntura foram
incluídas oficialmente no atendimento público do município do Rio de Janeiro (LUZ, 2005, p.
72). Nessa época foram realizadas diversas mudanças no setor da saúde, houve uma
democratização e descentralização das políticas públicas com transferência de
responsabilidade para a esfera municipal. Havia um movimento político a favor da reforma
sanitária e da universalização do acesso ao atendimento médico (NASCIMENTO, 1997, p.
56).
A partir da década de oitenta, cada vez maior número de terapeutas alternativos
ingressou no mercado profissional. Os acupunturistas não podiam ser oficialmente
perseguidos pela corporação médica, uma vez que exerciam uma profissão instituída, mas os
médicos que praticavam acupuntura ainda sofriam censuras públicas do Conselho Federal de
Medicina (CFM). Isso fez com que médicos acupunturistas se organizassem para a defesa de
seus interesses, e principalmente para manter seu prestígio de médico face à corporação
167
científica. A organização dos médicos acupunturistas vinha ocorrendo desde meados da
década de 1980, quando se afastaram de Spaeth e fundaram a Sociedade Médica Brasileira de
Acupuntura (SMBA). Em 1986, foi criada nova instituição médica, a Associação Médica
Paulista de Acupuntura (AMPA), a princípio uma filial regional da primeira, mas depois
tornaram-se concorrentes.
Em São Paulo, sempre houve maior resistência à utilização da acupuntura nos grandes
hospitais e principais universidades. Desde 1973, a Dra. Satiko T. Imamura utilizava, de
forma discreta, a eletro-estimulação japonesa (ryodoraku) dos pontos de acupuntura, no
Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas (PAI, 2005, p. 47). Mas
somente em 1989 a acupuntura foi adotada como forma de tratamento no Centro de Dor do
Hospital das Clínicas (HC), pelo chinês Dr. Hong Jin Pai, um dos fundadores da SMBA
Sociedade Médica Brasileira de Acupuntura (FREITAS, 2004).
Muitas escolas de acupuntura para “não-médicos”, de nível técnico, estavam surgindo
nesse período. Então, em 1987, a Sociedade Médica Brasileira de Acupuntura (SMBA) criou
o Centro de Estudo Integrado de Medicina Chinesa (CEIMEC), voltado para o ensino da
acupuntura sob a perspectiva da complementaridade entre medicina chinesa e ocidental.
Atualmente esse curso conta com apoio docente de médicos do Hospital das Clínicas e
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e da SMBA. É o único curso
privado autorizado a fornecer o certificado médico em São Paulo. Outros são os cursos de
universidades públicas.
A disputa pela autoridade da acupuntura não se restringe somente à prática: é uma
disputa também pelo saber. A formação do dico acupunturista a partir daí passou a ser
supervisionada pela comunidade científica acadêmica, para que a acupuntura pudesse ser
integrada aos conhecimentos modernos da biociência, através demonstração científica de sua
ação.
Embora o processo de inclusão da acupuntura na rede pública tenha se iniciado nos
anos 1980, o modelo de utilização de medicinas tradicionais como ação primária proposto
pela OMS não podia ser consolidado no Brasil por causa da resistência médica e da forte
influência política dessa classe profissional. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu
como diretrizes do SUS (Sistema Único de Saúde) prioridade para atividades preventivas,
dando margem à ampliação da oferta de tratamentos não convencionais (NASCIMENTO,
1997, p. 57). Em 1988, a CIPLAN (Comissão Interministerial de Planejamento), que incluía
secretarias dos Ministérios da Saúde, Previdência e Assistência, Educação e Cultura,
168
Trabalho, decidiu implantar a acupuntura nas unidades públicas de assistência do país,
praticada exclusivamente por médicos (NASCIMENTO, 2006, p. 150).
Na década de noventa os grupos progressistas da reforma sanitária perderam força nos
governos municipais, mas a crise financeira do setor público, intensificada, impôs um
refreamento dos setores médicos mais ortodoxos (NASCIMENTO, 1997, p. 58). Nessa
década foram criados ambulatórios de acupuntura em vários hospitais públicos do Estado de
São Paulo. Algumas universidades estaduais e federais começaram a oferecer residência e
cursos de especialização para médicos. Também foram criados setores específicos de ensino e
pesquisa nessa área. A acupuntura também vinha sendo praticada no sistema público em
Pernambuco, no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro.
A partir de meados da década de 90, os médicos começaram a alegar que a acupuntura
é um conhecimento científico em fase experimental e uma técnica auxiliar da medicina
ocidental com eficácia comprovada. Essa modificação na postura da corporação médica frente
à acupuntura teve implicações na sociedade brasileira, pois tanto propiciou maior divulgação
desse tipo de tratamento como causou um aumento da procura por formação profissional em
acupuntura.
Com o ingresso da acupuntura na rede pública, e o reconhecimento como
especialidade por outras categorias profissionais
103
, as corporações médicas modificaram sua
estratégia, adotando a prática dentro de um referencial científico ocidental, direcionado para o
combate à dor e para o tratamento de um número limitado de doenças, definido pela OMS.
6.1.4 Instrumentalização (a partir de 1995): acupuntura como ferramenta complementar
Durante a década de noventa ganhava força a idéia de “medicina complementar”,
conceito que oculta uma subordinação das medicinas não-convencionais à racionalidade
ocidental. O “complementar” não exclui a tecnologia, a indústria farmacêutica, a indústria de
equipamentos para diagnósticos e tratamento, e, geralmente, encobre o monopólio médico
(BARROS, 2000). A incorporação do saberes tradicionais como ferramentas auxiliares da
medicina ocidental e a inclusão de características da biomedicina nas medicinas tradicionais
são estratégias que atendem aos interesses médicos, pois assim não é necessário rivalizar com
os métodos não convencionais, principalmente na rede pública de saúde (NASCIMENTO,
103
Oficialmente os fisioterapeutas reconheceram a acupuntura como especialidade em 1985 e os biomédicos em
1987. Mas dentistas, psicólogos e veterinários já praticavam acupuntura informalmente.
169
1997). Por outro lado, atende também a necessidade não-médica de legitimação dos saberes
emergentes.
A partir de 1992, a Sociedade Médica Brasileira de Acupuntura (SMBA) começou a
promover congressos sobre acupuntura médica, geralmente divulgando pesquisas recentes
sobre comprovação da eficácia e estudos de caso sobre a atuação das agulhas em
determinados distúrbios. Em 1992, médicos da AMPA (Associação Médica Paulista de
Acupuntura) criaram um setor específico de Medicina Chinesa e Acupuntura dentro do
Departamento de Ortopedia e Traumatologia da UNIFESP
104
. Em 1995, médicos da SMBA
também criaram um novo curso de especialização no Instituto de Ortopedia e Traumatologia
da FMUSP e um ambulatório no Centro da Dor do Hospital das Clínicas (FREITAS, 2004, p.
108).
Embora as concepções sobre as teorias da medicina chinesa da SMBA não fossem
hegemônicas no meio médico (já que médicos da SMBA desconsideravam Ch’i e cinco
elementos por serem “primitivos”), havia, porém, um certo consenso entre as organizações no
que se refere à construção da idéia de acupuntura científica e do monopólio médico da prática.
Do crescimento do interesse da comunidade médica pelas tradições chinesas, emergiu
o conflito entre os médicos ocidentais e os “não-médicos”, ou seja, terapeutas formados
pela teoria oriental, que praticam profissionalmente a medicina chinesa, sem, no entanto, ter
formação médica oficial. Os médicos reivindicam a exclusividade de diagnosticar, o que
significa que o tratamento com acupuntura só poderia ser feito sob supervisão médica.
Nascimento (1997) entrevistou médicos e pacientes da rede municipal do Rio de
Janeiro. Uma das suas constatações foi a estratégia da medicina dominante, de incluir
características da biomedicina nas demais medicinas tradicionais. Como resultado da
pesquisa, Nascimento identificou grande resistência entre os médicos públicos em perceber a
“individualidade e a integridade” do paciente, a tendência é o tratamento das doenças e
principalmente o alívio da dor.
Um outro estudo, realizado por Nogueira (NOGUEIRA, 2003), abordou a opção de
médicos convencionais pela formação em acupuntura no Instituto de Acupuntura do Rio de
Janeiro (IARJ). Muitos médicos entrevistados apresentaram interesse prévio por práticas
orientais ou formação anterior em medicinas alternativas (homeopatia e ayurvédica),
psicossomática e medicina familiar/preventiva, e demonstram insatisfação com a medicina
ocidental, algumas vezes também com a homeopatia (NOGUEIRA,2003, p. 140). Mas, em
104
Com isso ganharam maior poder e em 1994 fundaram a AMBA (Associação Médica Brasileira de
Acupuntura), gerando regionais próprias no interior do Estado de São Paulo e em outros Estados do país,
passando a concorrer diretamente com a SMBA, enquanto órgão representativo dos médicos acupunturistas.
170
geral, os saberes tradicionais são utilizados de forma complementar, ou seja, subordinada, à
biomedicina.
Para apresentar uma referência atual, de acordo com pesquisa realizada em 2003 pelo
cirurgião Kazusei Akiuama
105
, para tese de doutorado defendida na Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (FMUSP), 52% dos médicos em São Paulo prescrevem
tratamentos alternativos. Entre os mais citados na pesquisa estão acupuntura, homeopatia,
terapias de grupo, dietas (da Lua e de Atkins, por exemplo), massagens alternativas
(tailandesa, shiatsu), florais de Bach e hipnose. Ainda segundo os resultados da pesquisa, para
81,3% dos médicos essas terapias são úteis para o tratamento do paciente; 91% deles
concordam que é importante o médico ter conhecimento delas; 62,4% já tiveram contato
pessoalmente com essas práticas e 52,2%, profissionalmente. Esses números demonstram,
conforme o pesquisador, que os médicos gostariam de ter mais conhecimento sobre as
medicinas alternativas, mesmo que a maioria delas seja ilícita.
Vale ressaltar que o mercado profissional médico já está bastante saturado no Brasil, o
que impele os formados a buscar novas áreas para atuação. De acordo com a Associação
Médica Brasileira de Acupuntura (AMBA):
O Brasil tem hoje mais de 315 mil médicos em atividade, um para cada 560
cidadãos, muito mais que a relação de um para mil, recomendada pela Organização
Mundial da Saúde. Em São Paulo, são mais de 90 mil médicos, um para cada 470
habitantes. Na capital e em cidades como Campinas e Ribeirão Preto, a proporção é de
um médico para 260 cidadãos
106
.
Evidentemente esse grande número de médicos disputa o cliente de maior poder
aquisitivo que pode pagar uma consulta particular ou o cliente médio dos convênios de saúde.
O setor público, no entanto, continua carente de profissionais.
A adoção da acupuntura pelos médicos é geralmente respaldada pela eficácia, como
defesa contra a pressão ainda exercida pela ortodoxia da medicina oficial, que rejeita as
racionalidades das terapêuticas tradicionais. A qualidade de especialidade médica conferiu um
espaço legítimo para os médicos acupunturistas dentro de sua própria categoria profissional
(NOGUEIRA, 2003, p. 144), de forma que a disputa pela prática da acupuntura pôde ser
105
Cf. 52% dos médicos prescrevem tratamentos alternativos. Universia Brasil. Acesso em jul. 2007.
106
Cf. Novos cursos de medicina em São Paulo: irresponsabilidade. Associação dica Brasileira de
Acupuntura (AMBA). Acesso em jul. 2007.
171
direcionada para categorias externas ao campo médico, ou seja, os “não-médicos” ou
multiprofissionais
107
.
6.1.4.1 Acupuntura é “ato-médico”
Em 1995, a acupuntura foi finalmente reconhecida no Brasil pelo Conselho Federal de
Medicina. Em 1997, o Instituto Nacional de Saúde dos EUA (NIH) recomendou aos sistemas
de saúde que subsidiassem o tratamento por acupuntura e no ano seguinte a acupuntura foi
reconhecida como especialidade pela Associação Médica Brasileira (AMB), que é um órgão
superior na hierarquia das corporações médicas
108
.
Em 1998, foi criado o curso de especialização da Faculdade de Medicina da
UNIFESP, por médicos da AMBA, e fundado o pronto-socorro de acupuntura no Hospital
São Paulo. Além de um laboratório de pesquisas com sede própria, que desde 1997
funcionava em espaço conjunto com a psicobiologia e fisiologia. Com apoio de médicos
franceses e brasileiros, em 1998 foi criada a Associação Médica Mundial de Acupuntura, à
qual a AMBA é filiada. Em 1999, a UNIFESP sediou o I Congresso Mundial de Acupuntura
para Médicos
109
. Contrariando as definições preliminares da OMS, a UNIFESP e a AMBA
estão empenhadas em tentar restringir mundialmente a acupuntura aos médicos, exportando a
obsessão brasileira de obter o monopólio da prática.
A necessidade de duas diferentes associações médicas (SMBA e AMBA) com os
mesmos objetivos, de obter reconhecimento da acupuntura junto ao Conselho Federal de
Medicina e restringir a prática aos médicos, indica que ainda não há homogeneidade de idéias
entre esses profissionais. De fato, são duas linhas divergentes de pensamento que
correspondem às duas principais faculdades de medicina de São Paulo. Em uma a acupuntura
foi incluída no setor de tratamento da dor (FMUSP), na outra (UNIFESP) foi inserida num
setor multidisciplinar de pesquisa.
107
Recentemente, em 2006, os profissionais da área de saúde publicaram uma nota repudiando o termo “não-
médico”, considerado preconceituoso por situar os médicos numa posição diferenciada. Preferem ser chamados
de acupunturistas multiprofissionais. Utilizaremos os dois termos no decorrer do capítulo.
108
Também foi criado o Colégio Médico de Acupuntura (CMA), instância máxima que agrega AMBA e SMBA,
e representa os médicos acupunturistas frente à Associação Médica Brasileira (AMB) e ao Conselho Federal de
Medicina (CFM). A função do CMA é oferecer formação em acupuntura, realizar provas e emitir o título de
especialista médico. O primeiro concurso para obtenção desse tulo foi realizado em 1999 (FREITAS, 2004, p.
109).
109
Cf. O primeiro pronto-socorro de acupuntura no Ocidente. Jornal da paulista. Acesso em: out. de 2006.
172
As diferenças das duas linhas não estão apenas na amplitude da atuação da acupuntura,
que na primeira fica restrita ao tratamento da dor, e na segunda estende-se aos tratamentos de
distúrbios psicossomáticos, mas também nos modos de explicação científica da eficácia, e na
dissociação ou não da acupuntura do conjunto simbólico da medicina chinesa ou da holística.
É interessante notar que nas duas associações médicas a liderança da luta pelo monopólio da
acupuntura está nas mãos de imigrantes asiáticos, em diferentes vertentes, mas que enquanto
médicos aderiram à cientifização da acupuntura.
Em 2001, Conselho Federal de Medicina (CFM) entrou com uma ação na justiça
contra outros conselhos profissionais da área da saúde
110
, que já haviam reconhecido a
acupuntura como especialidade
111
, oficializando o “Ato-médico”. Desde então, os
acupunturistas multiprofissionais são acusados de “exercício ilegal da medicina pela prática
da acupuntura”, para a qual somente médicos teriam competência
112
. Vale lembrar que a
prática de acupuntura na área odontológica e veterinária é aceita pela corporação médica, pois
é colocada fora de sua alçada.
Em 2003 mais dois conselhos, dos psicólogos e dos educadores físicos, reconheceram
a especialidade em acupuntura. A SMBA e a AMBA vêm perdendo importantes batalhas
judiciais pelo “ato-médico” na acupuntura. Em maio de 2006, sete profissões
113
foram
autorizadas a praticar acupuntura no SUS (Sistema Único de Saúde) de acordo com a Política
Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. A aprovação do Conselho Nacional de
Saúde (CNS) foi unânime, embora a “indicação inicial levada ao Ministério da Saúde fosse
para que somente profissionais médicos utilizassem a acupuntura no SUS, bem como,
somente esses profissionais pudessem inscrever-se nos futuros concursos públicos para
preenchimento de cargos que seriam criados”
114
. Essa decisão representou uma derrota
histórica para a corporação médica, pois fica revogada a resolução vigente desde 1988, que
restringia a acupuntura à prática médica no SUS.
110
De acordo com resolução 218 de 06/03/1997 do Conselho Nacional de Saúde são considerados profissões
da saúde: Assistentes Sociais, Biólogos, Profissionais de Educação Física, Biomédicos, Enfermeiros,
Farmacêuticos, Fisioterapeutas, Fonoaudiólogos, Médicos, Veterinários, Nutricionistas, Odontólogos, Psicólogos
e Terapeutas Ocupacionais.
111
Na época, as seguintes categorias já tinham reconhecido oficialmente a acupuntura como especialidade
profissional, antes do conselho de medicina (CFM): fisioterapeutas em 1985, biomédicos em 1986, enfermeiros
em 1997, farmacêuticos, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais em 2001.
112
Cf. ANAMO informa. Associação Nacional de Acupuntura e Moxabustão. Acesso em: set. 2006.
113
As seguintes profissões foram contempladas pela decisão: fisioterapia, biomedicina, educação física,
psicologia, enfermagem, farmácia e medicina.
114
Cf. ANAMO informa. Associação Nacional de Acupuntura e Moxabustão. Acesso em: set. 2006.
173
6.1.4.2 A resistência não-médica: acupuntura é método energético milenar
Atualmente, entre 25.000 e 30.000 multiprofissionais praticam a acupuntura no Brasil,
enquanto cerca de 8.500 médicos são acupunturistas, dos quais somente 2.500 possuem título
oficial de especialista médico (PAI, 2005, p. 50). Ou seja, a maior parte dos acupunturistas
não são médicos, talvez nem mesmo tenham curso superior, e entre a minoria de médicos que
optaram pela formação em acupuntura os cursos reconhecidos pelo CMA e SMBA (órgãos
médicos) são pouco procurados (FREITAS, 2004). Ou seja, grande parte dos médicos
acupunturistas formou-se em escolas não-médicas, provavelmente de tendência holística
energética.
A discussão sobre a autoridade da prática de acupuntura no Brasil impôs uma
organização associativa dos “não-médicos” ou multiprofissionais, dentre os quais estão: a)
imigrantes e seus descendentes, que receberam esse conhecimento por transmissão oral; b)
profissionais sem formação superior, que fizeram cursos técnicos, e terapeutas holísticos, que
fizeram cursos não reconhecidos; c) graduados em áreas da saúde, nível superior. Diferentes
grupos que se uniram em defesa de seus direitos, e também de interesses comuns como a
estabilização profissional, a expansão da medicina chinesa para a rede pública e a ampliação
do mercado de trabalho.
Nos últimos dez anos foram fundados sindicatos e entidades, principalmente em São
Paulo, para tentar barrar a tentativa de monopolização da acupuntura pela corporação médica.
Em 1996, o então Sindicato Nacional dos Profissionais de Acupuntura e Terapias Afins
propôs um projeto de lei que regulamentava a acupuntura para “todos os profissionais da
saúde” e os acupunturistas não ligados a essas profissões teriam que comprovar que já
praticavam. Em 1998, esse sindicato foi substituído pelo Sindicato de Acupunturistas e
Terapias Orientais do Estado de São Paulo (SATOSP) reunindo todos os setores “não-
médicos” de São Paulo. Em 2004, o SATOSP contava com 2.000 filiados, a maioria de
orientais (FREITAS, 2004, p.111).
Além de buscar a legitimação da sua prática nas descobertas científicas, os
acupunturistas não-médicos também recorrem à identificação com a medicina chinesa
contemporânea, como fonte de autenticidade, e à afiliação a associações internacionais, como
fonte de reconhecimento profissional. O diploma de acupuntura conferido por alguma escola
chinesa (Beijin, Shangai, Hong-Kong, etc) adquire muita importância como forma de
validação do conhecimento por outra instância, que não o Conselho Federal de Medicina. Por
outro lado, contraditoriamente, a escola de “Medicina Tradicional Chinesa (MTC)” da China
174
atual também aderiu aos critérios científicos ocidentais, que revalidam a medicina
convencional, e reforçam o combate à dor e o tratamento de um repertório de doenças
relacionadas pela OMS.
Os congressos promovidos pela AMECA (Associação de Medicina Chinesa e
Acupuntura) conjugam desde as técnicas mais tradicionais até as mais modernas, como
tratamentos específicos para obesidade, reumatismo, prevenção de rugas, tui-ná taoísta,
pulsologia, diagnóstico através das mãos (áreas reflexas, formatos dos dedos, avaliação das
unhas, etc.). O ecletismo se faz presente também no discurso de outras associações, como a
ANAMO (Associação Nacional de Acupuntura e Moxabustão) e SATOSP (Sindicato de
Acupunturistas e Terapias Orientais do Estado de São Paulo). No IX Congresso da ANAMO,
realizado em setembro de 2006, alguns temas foram: Chi Kung Médico”,
“Cronoacupuntura”
115
, “cromopuntura” (cores), “acutone” (vibrações sonoras), “acupuntura à
distância” (através da radiônica), “quantec”
116
. Todas as associações defendem que a
acupuntura é uma metodologia terapêutica energética, por isso não pode ter sua utilização
restrita ao “ato médico”.
Porém não uma rejeição total à ciência ocidental, que é uma das referências de
legitimidade devido ao reconhecimento da eficácia da acupuntura. Parece haver uma certa
aceitação do papel complementar ou coadjuvante da medicina chinesa. Embora a qualificação
de “complementar” seja muitas vezes refutada em discursos, não se contesta o tratamento de
determinadas doenças através da medicina convencional e demonstração de abertura para
parceria com médicos nas redes hospitalares. A modernização das técnicas também é bem-
vinda entre esses acupunturistas, e muitas vezes incentivada, como a manipulação dos pontos
através de fita adesiva, ímãs e comprimidos de composto de silício (stipper), a utilização de
modernas cnicas japonesas e coreanas de estimulação de pontos e aparelhos tecnológicos
como o laser, os medidores de pulso e a eletro-estimulação (riodoraku).
Os multiprofissionais se valem da idéia de democratização da acupuntura para a
justificação de sua prática por profissionais de todas as áreas. Em sua argumentação contra o
monopólio médico, chamam a atenção para a ampliação do atendimento à população de baixa
renda e se propõem como agentes de saúde que orientam os indivíduos para cuidarem da
própria saúde. De fato, muitas instituições “não-médicas” (associações, sindicatos e escolas),
115
Técnica tradicional chinesa, também chamada de “tartaruga mística”, que consiste no cálculo de pontos de
acupuntura pessoais de acordo com data e horário do nascimento através de numerologia.
116
Aparelho de diagnóstico eletrônico que, através de leitura energética (da mão, da foto ou do fio de cabelo da
pessoa, por exemplo), propõe protocolos de tratamentos de homeopatia, florais e pontos de acupuntura.
175
costumam promover atendimento a preços populares (que variam entre 5,00 e 20,00 reais) em
ambulatórios que funcionam como estágio para acupunturistas iniciantes.
A função social de suprir a carência na área da saúde vai de encontro aos ideais da
OMS, ao mesmo tempo em que permite uma articulação com a população que respalda a luta
contra o ato-médico”. O status de “complementar” atende também aos interesses dos
multiprofissionais, à medida que fornece mais credibilidade para essas práticas, e possibilita
um lugar para as medicinas não-convencionais dentro das redes de saúde, públicas e
particulares, ainda que de modo subordinado à racionalidade ocidental.
6.1.4.3 A construção da noção de acupuntura científica através da imprensa escrita
A mídia atua como importante formadora de opinião pública e expressa a posição dos
setores organizados da sociedade. A forte organização da corporação médica possibilita que
receba mais atenção dos meios de comunicação. Nesse sentido, Nascimento analisou matérias
sobre acupuntura nos principais jornais do Rio de Janeiro e São Paulo (de 1974 a 1995) e
classificou as notícias em três fases: legitimação, institucionalização, regulamentação
(NASCIMENTO, 1997).
Na década de 70, fase de legitimação, os jornais noticiavam discussões sobre a eficácia
da acupuntura e destacavam a legitimidade da medicina convencional. No período de
institucionalização, na década de 80, com a inclusão na rede pública, as notícias mostravam a
polêmica sobre exclusividade médica, e indicavam os riscos da acupuntura sem supervisão
médica, como por exemplo, a contaminação por falta de esterilização das agulhas e perfuração
de órgãos por falta de conhecimento de anatomia. Em 1990, o diretor do Conselho Regional
de Medicina (CRM) dizia: “Não há provas de que a acupuntura tenha relação com a
medicina” (NASCIMENTO, 1997, p. 59).
Mas durante a década de 90, a regulamentação como especialidade médica ganhou os
jornais. Passaram a prevalecer matérias com linguagem científica, que ressaltavam a
incorporação da acupuntura pela ciência, a substituição das idéias de fluxo de energia por
explicações neurofisiológicas, e a correlação dos pontos da acupuntura com a anatomia. A
principal idéia transmitida era que o profissional sem formação em medicina podia errar o
diagnóstico, expondo o paciente a riscos.
Nascimento observou uma ausência de expressão da população sobre acupuntura nos
jornais. No que se refere à representação da acupuntura transmitida à opinião pública,
176
verificou que, num primeiro momento, a procura por esse tipo de tratamento era associada a
um “ato de fé” ou à ingenuidade, um “ato a ser corrigido” (NASCIMENTO, 1997, p. 69).
Mais tarde, a ação analgésica da acupuntura passou a ser ressaltada e a prática começou a ser
representada como método eficaz no combate às dores, especialmente as “reumáticas,
articulares, da coluna vertebral, por artroses e artrites e musculares”, as mais citadas
(NASCIMENTO, 1997, p. 71).
Na opinião da autora, o reconhecimento se deu acima de tudo devido à eficácia no
alívio da dor, mas a “aceitação no âmbito da medicina ocidental tendia a ocorrer
independentemente e apesar do modesto avanço observado no projeto que buscava explicar
essa medicina exótica dentro de pressupostos científicos” (NASCIMENTO, 1997, p. 67).
6.2 A guerra das agulhas e a ambiguidade contemporânea: acupuntura científica X
acupuntura energética
O “ato médico” passou a definir o campo da acupuntura no Brasil, pois o
posicionamento que se tem frente ao monopólio da acupuntura pelos médicos influencia o
modo como é praticada a acupuntura, a partir das diferentes concepções do que é e de como
funciona, que justificam ou refutam a exclusividade médica. Podemos notar as diferenças de
concepções entre os médicos e os multiprofissionais a partir dos discursos a seguir, sobre
pulsologia:
A pulsologia, ou seja, o exame do pulso, era antigamente uma técnica
importante de diagnóstico: palpando-se a artéria radial do pulso seria possível
diagnosticar qualquer doença. Atualmente, é utilizada para avaliar a freqüência, ritmo
e quantidade do pulso, como a avaliação de qualquer médico. Os chineses antigos
achavam que as emoções estão ligadas à função do fígado. Portanto, as doenças
ligadas aos problemas emocionais eram relacionadas aos problemas do fígado, como
por exemplo, enxaqueca, gastrite ou colite. Sabemos hoje que esses conceitos não são
verdadeiros e muitas vezes são confundidos e mal interpretados; por isso,
necessidade de evitar o uso dessa linguagem antiga, e os termos científicos médicos
devem ser adotados
117
.
O Huang Di Nei Jing (Livro do Imperador Amarelo), justifica a seleção do
pulso radial da seguinte forma: a região radial pertence ao Tai Yin da mão e do
pulmão; o Pulmão controla o Qi de todo o corpo e nele se reúnem todos os vasos; por
isso, o canal Tai Yin reflete as mudanças ocorridas no sangue e o Qi em todo o
organismo (...) A respiração tanto do médico, quanto do paciente, tem um papel
crucial no diagnóstico através do pulso, pois ajuda a determinar a freqüência. Deve ser
natural, profunda, harmônica e regular, especialmente no caso do médico, que a sua
117
Esse discurso foi retirado do site pessoal do Dr. Hong Pai (www.hong.com.br), médico do HC-FMUSP e da
SMBA, em março de 2005. Numa segunda consulta no início de 2006, percebemos que esse trecho foi excluído,
mas o médico permanece seguindo essa linha de pensamento em seu livro, editado em 2005 (PAI, 2005, p.98).
177
respiração é a referência para determinar a freqüência do pulso. Assim, uma inspiração
e expiração são consideradas um ciclo respiratório. A contagem do pulso será
realizada em um ciclo respiratório. O médico deve estar com sua mente atenta e
concentrada no que está sentindo. Não devem existir pensamentos parasitas ou
ansiedade nessa hora. O espírito concentrado e a mente calma e vazia de pensamentos
são os princípios básicos na toma do pulso
118
.
A Sociedade Médica Brasileira de Acupuntura (SMBA) frequentemente promove
congressos e debates em torno da questão da legitimidade científica da acupuntura. Procura
desqualificar os aspectos “místicos”, reflexos da “tradição primitiva e mágica” da antiga
China, e valorizar as causas neurofisiológicas. A SMBA nega o efeito da acupuntura devido à
circulação de Ch’i e recusa o diagnóstico através da pulsologia e língua, pilares da medicina
tradicional chinesa. São consideradas interpretações míticas ultrapassadas pela ciência. A
analgesia é atribuída à inserção de agulhas, pois a localização de 90% dos pontos coincide
com áreas de terminações nervosas e 70% são pontos de extrema sensibilidade à dor em
qualquer situação - como feixes musculares, tendões, articulações (PAI, 2005, P. 64).
Para os médicos a acupuntura é científica, trata-se de um conhecimento médico em
fase experimental. sobrevalorização da ação das agulhas, a acupuntura é considerada uma
“técnica invasiva de natureza cirúrgica”, o que justifica que seja utilizada somente por
profissionais com formação em medicina. A eficácia da inserção das agulhas é comprovada
cientificamente, segundo os médicos, pois a aplicação das agulhas libera substâncias químicas
no organismo produzindo efeito analgésico e antiinflamatório. Também aumenta a produção
de neurotransmissores e atua positivamente no sistema imunológico. Como os pontos
mapeados pelos chineses são locais de terminações nervosas, acredita-se que quanto maior a
profundidade da inserção, melhor o tratamento.
Embora ainda não existam evidências conclusivas sobre os seus mecanismos de
atuação em diversos distúrbios, a eficácia é o grande trunfo para a legitimação da prática de
acupuntura junto à classe médica, pois muitos médicos ainda não se convenceram disso.
Inclusive, a maioria quase absoluta das pesquisas científicas no Brasil tem esse enfoque,
provar que a acupuntura funciona para determinados casos.
Na prática, a acupuntura é utilizada pelos médicos como uma ferramenta
complementar para o tratamento de determinadas doenças. A moxabustão (estímulos com
calor) também é utilizada, mas o estímulo dos pontos com laser e a reflexologia (micro-
sistemas) são vistos com reservas pelo acupunturistas médicos ortodoxos, pois não foram
118
Cf. Diagnóstico através do pulso. Associação de Medicina Chinesa e Acupuntura. Ernesto Garcia, no XVI
Seminário da Associação de Medicina Chinesa e Acupuntura. Acesso em: jun. 2005.
178
investigados suficientemente pela ciência. A ventosa (aplicação de recipientes de vidros sobre
a pele), entretanto, é aceita e recomendada como “relaxante”, pois é praticada no Ocidente
desde a época de Hipócrates” (PAI, 2005, P. 174).
Entre os médicos acupunturistas há, porém, uma corrente mais progressista que segue
a escola francesa do médico Van Nghi. Este médico vietnamita, falecido em 1999, viveu a
maior parte de sua vida na França e, ainda hoje, exerce forte influência sobre a acupuntura
médica francesa, e também sobre a ala mais heterodoxa da acupuntura médica brasileira.
Conforme dissemos no capítulo 3, Van Nghi dedicou-se à tradução de textos clássicos da
dinastia Tang (séc. VII a X), que teriam sido preservados no Vietnã. Defendia uma medicina
única que reunisse a oriental e a ocidental, uma “medicina do homem e para o homem”
119
.
A influência da acupuntura francesa predomina na Associação Médica Brasileira de
Acupuntura (AMBA) e na UNIFESP. A linha francesa tem clara orientação holística. Não
separa aspectos físicos dos aspectos emocionais e aceita a existência dos micro-sistemas
(orelha, pés, língua, ossos, etc) como representações holográficas do corpo humano, através
dos quais é possível tanto o diagnóstico quanto o tratamento. Além da acupuntura, outros
tratamentos chineses que seguem a teoria dos cinco elementos são reconhecidos por essa ala
médica, como a fitoterapia, a dietoterapia e a auriculoterapia (reflexologia através de pontos
da orelha). Mas é uma holística mais neo-iluminista, digamos assim, com tendência
materialista, ao menos no discurso. Por outro lado, o mesmo discurso não consegue esconder
a ambigüidade com relação à categoria “energia”, de nenhum modo comprovada
cientificamente. Por exemplo, durante exposição sobre medicina energética no sistema
digestório no IV Simpósio Brasil-França, promovido pela AMBA, o Dr. Tran Viet Dzung,
discípulo do falecido e famoso médico vietnamita Dr. Van Nghi, disse que:
Para entender as funções da medicina chinesa ou medicina energética, durante
o processo digestório é necessário ter um bom conhecimento do sistema do ponto de
vista alopático, para compreender o potencial dos estímulos e o caminho da energia
em seu processo natural para condução das terapias.
O especialista fez questão que ficasse clara essa conceituação, pois em sua opinião “a
medicina alopática é visível e palpável, enquanto a medicina energética não se vê, apenas
observa-se seus resultados que nada mais são do que um reforço complementar”. Segundo o
médico, “esse raciocínio está comprovado com base nos modernos recursos da medicina
moderna ocidental e que, portanto, estas duas formas de terapia não concorrem entre si, mas
119
Cf. The Founding of Institute Van Nghi. Institute Van Nghi. Acesso em: out. 2006.
179
se interagem e proporcionam resultados mais eficientes”
120
. O discurso é ambíguo: insiste na
condição “energética”, nada científica, ao mesmo tempo em que reforça a maior competência
médica para a prática de acupuntura.
Para essa corrente de pensamento, a explicação da eficácia da acupuntura ultrapassa as
teorias sobre o poder analgésico das agulhas, está ligada à influência das emoções e de fatores
subjetivos no processo de adoecimento e cura
121
. No laboratório da UNIFESP, desde 2000 são
utilizados recursos como a meditação, a neurolinguística e a regressão (nessa vida) para o
tratamento de pacientes com câncer ou traumas emocionais. A presença dessas técnicas é
justificada como tratamento pela imaginação e o nome dado é “mobilização de energia (Qi)
mental”, que seria “uma nova abordagem das emoções do passado para possibilitar processo
de cura no presente”
122
.
No X Congresso Médico Brasileiro de Acupuntura da AMBA, realizado em junho de
2006, algumas palestras foram, por exemplo: “auriculoterapia”, “alinhamento energético
vital”, “micro-sistemas dos ossos e dos músculos”, Chi Kung médico”, “a linguagem e o
comportamento humano: sua importância no processo de adoecimento energético” e
“Introdução das neurociências à acupuntura”. Essa última, ministrada pelo Dr. Yun-Tao Ma
(EUA), visava apresentar possíveis relações dos mecanismos de atuação da acupuntura com o
sistema límbico, analisadas através de ressonância magnética
123
.
Através do seu site, a AMBA também divulgou notícias sobre novas técnicas como a
cromopuntura
124
(estímulo dos pontos através de luzes coloridas), que sempre foram
consideradas “energéticas”. Vale lembrar que em abril de 2006, por ocasião da visita do Dalai
Lama no Brasil, a UNIFESP foi co-organizadora, junto com a Associação Palas Athena, da
palestra de Sua Santidade sobre “Ciência e Espiritualidade”
125
. Também é interessante notar
que na seqüência do Simpósio Médico Brasil-França, ocorrido em abril de 2007, houve uma
confraternização entre os médicos com meditação e vocalização de mantras para energias
positivas
126
.
Como pudemos notar, os temas desses congressos médicos, acima citados, pouco
diferem daqueles abordados em congressos de acupuntura para “não-médicos”, ocorridos
nesse mesmo ano, embora para o segmento multiprofissional a acupuntura seja uma
120
Cf. Medicina energética no sistema digestório. AMBA. Acesso em: jul. 2007.
121
Cf. Terapia três em um. Revista Isto É On-line, n. 1613, 25/08/2000. Acesso em: out. 2007.
122
Cf. Qi Mental – Desde quando são formadas as emoções? CENTER-AO. Acesso em: ago. 2007.
123
Cf. Programação Científica. AMBA. Acesso em: out. 2006.
124
Cf. Acupuntura cromática. AMBA. Acesso em: out. 2006.
125
Cf. Ensinamentos do Dalai Lama às Sanghas e organizadores de sua visita ao Brasil em 2006.
CENTER-AO - Centro de Pesquisa e Estudo da Medicina Chinesa. Acesso em out. 2006.
126
Cf. Medicina energética no sistema digestório. AMBA. IV Simpósio Brasil-França. Acesso em: jul. 2007.
180
“metodologia terapêutica energética” e para o segmento médico a acupuntura seja
“científica”.
Para os acupunturistas “não-médicos”, o fato de a acupuntura ser energética justifica
que seja praticada por profissionais de qualquer área, pois é uma “técnica não-invasiva”, que
pode prescindir da inserção de agulhas (estímulo através de cores, vibrações sonoras, imãs,
etc.). A eficácia da acupuntura seria resultado da manipulação de um “corpo sutil”, cuja
existência é negada cientificamente, e nesse caso essa prática não poderia se constituir como
atividade médica exclusiva.
Na defesa da sua prática contra o monopólio médico, os multiprofissionais utilizam a
argumentação dos céticos para afirmar que a acupuntura não é científica
127
. Afirmam,
ironicamente, que médicos, céticos e místicos (aqueles que praticam acupuntura energética,
segundo a visão médica) têm pontos de convergência: místicos e céticos concordam sobre a
natureza holística da acupuntura, portanto não é científica; médicos e místicos indicam o uso
da acupuntura por sua eficácia comprovada, que é negada pelos céticos; e por fim, médicos e
céticos concordam que o uso da acupuntura pode causar danos aos pacientes, o que é negado
pelos místicos. Mas os céticos afirmam isso por não acreditarem na eficácia da acupuntura e
os médicos como justificativa para seu monopólio.
As pesquisas sobre a eficácia da acupuntura são alvo da crítica de céticos por não
apresentarem sistematização científica adequada
128
. Segundo site da “Sociedade a Terra é
Redonda”, estudos mais cuidadosos mostram que o efeito placebo é tão eficaz quanto a
acupuntura no alívio da dor. Afirmam que a atuação da acupuntura é principalmente
psicológica, e questionam o efeito devido à localização dos pontos em áreas de terminações
nervosas
129
. Os médicos, por sua vez, admitem que o sucesso terapêutico da acupuntura é
maior em países orientais, o que poderia indicar efeito psicológico
130
. Mas, no entanto, com
relação ao placebo, dizem que estudos clínicos controlados demonstram que a acupuntura
contribui para aliviar a dor crônica em 50 a 70% dos pacientes, enquanto que o placebo
beneficia apenas 30 a 35% dos casos (PAI, 2005, p. 160).
Percebe-se que apesar da contraposição entre médicos e multiprofissionais, no que se
refere ao pretendido monopólio da prática, ambas as categorias acreditam que a acupuntura é
uma ciência passível de confirmação. A grande diferença está na concepção de Ch’i, seja
entendido como sopro vital ou como energia, que é considerado uma idéia metafísica pelos
127
Cf. ANAMO informa. Associação Nacional de Acupuntura e Moxabustão. Acesso em: out. 2006.
128
Cf. Acupuntura: os fatos. Sociedade a Terra é Redonda. Acesso em out. 2006.
129
Ibid.
130
Cf. Comparação entre a medicina chinesa e a ocidental. Centro Integrado de Medicina Chinesa (CEIMEC).
181
médicos acupunturistas mais ortodoxos, e explicado por “não-médicos” segundo um “novo
paradigma científico”, inaugurado pela física quântica. A qualidade “energética” das cnicas
da medicina chinesa não é de forma nenhuma associada pelos acupunturistas
multiprofissionais ao sobrenatural, místico-esotérico ou religioso. Ao contrário, esses termos
são considerados pejorativos, pois conferem características mágicas às práticas de acupuntura
ou as aproxima da cura pela fé
131
.
Observamos, pela Internet, que nos poucos cursos qualificados pela SMBA, para a
atribuição de certificado de médico acupunturista, são mantidas as disciplinas de diagnose
chinesa, terapêutica através do equilíbrio de Ch’i, yin-yang e teoria dos cinco elementos,
ainda que conjugadas com um direcionamento para o tratamento da doença e com uma re-
interpretação biomédica. Embora na visão científica a eficácia tenha causa neurológica, e por
isso o local de inserção das agulhas não equivaleria necessariamente aos pontos determinados
pelos chineses, ainda são utilizados esses últimos pontos, pois segundo os médicos as
pesquisas demonstram que assim os resultados são melhores (PAI, 2005, P. 160). Segundo
Pai, médico do HC-USP e da SMBA, “à luz da ciência muitas dúvidas foram esclarecidas,
porém muitas esperam ser elucidadas” (PAI, 2005, P. 116). A ação da acupuntura sobre
náuseas, vômitos, enxaquecas e reumatismo, por exemplo, ainda não foi entendida, mas
“sabe-se que é seguro e eficaz” (PAI, 2005, P. 116).
Levando-se em conta que também alguns médicos consideram válidos os pressupostos
da medicina chinesa clássica, tendo aderido anteriormente à abordagem holística, às
racionalidades alternativas, aos saberes tradicionais ou até mesmo a algum tipo de
religiosidade oriental (NOGUEIRA, 2003, p. 140), é possível afirmar que a oposição entre os
dois tipos de profissionais (médicos e “não-médicos”) está, sobretudo, no campo político e
econômico, na luta pela delimitação do mercado de cura, muito mais do que no modo de
explicação da realidade e nas diferenças de concepções filosóficas ou científicas.
No que se refere aos usuários brasileiros da acupuntura, pesquisas com pacientes da
rede pública indicaram que uma reafirmação do paradigma biomédico na abordagem da
doença e cura (NASCIMENTO, 1997). As principais conclusões foram:
a) uma associação da acupuntura com terapêutica da dor, especialmente ósseo-
muscular (“problema de coluna”, artrite, artrose, reumatismo) e unanimidade em
relatar alívio, redução da dor e maior mobilidade após a aplicação;
b) o paciente utiliza a acupuntura mais como último recurso do que como alternativa;
geralmente tentou outros tratamentos sem sucesso, por iniciativa própria ou
indicação médica
132
;
131
Isso foi observado por Tavares (1998) com relação aos terapeutas holísticos da Grande Rio de Janeiro.
132
Esse ponto também foi apontado por Pai (2005).
182
c) dentre outras razões citadas, estão os efeitos colaterais dos medicamentos, o alto
custo dos remédios, o aval da mídia
133
;
d) atenção e dedicação dos terapeutas são os fatores mais valorizados;
e) o médico ou acupunturista é visto como um especialista capaz de devolver a saúde.
Entre os pacientes da rede pública entrevistados, Nascimento verificou uma maioria de
mulheres, de meia idade a idosas; com queixas de dores crônicas, associadas ao sistema
músculo-esquelético, ou dificuldades de movimento; que buscam alívio das dores; embora
demonstrem incredulidade em relação à cura, tentam barrar o avanço da doença através da
acupuntura (NASCIMENTO, 1997). Outra pesquisa, da UNIFESP
134
, em São Paulo, apontou
dados semelhantes, maioria de mulheres entre 40 e 69 anos, 40 % classe A e B, 63 %
queixavam-se de dores musculares ou ósseas, 52 % procuraram acupuntura por indicação de
amigos, 21 % por indicação médica e 13% pela mídia, 23 % se curaram, 63% obtiveram
melhoras.
Segundo Nascimento (1997), a busca por medicinas em que o aspecto simbólico seja
preservado pode até ser uma reação à abordagem tecnicista e à perda da relação médico-
paciente, representando uma tentativa de deslocar a ênfase no combate à doença para a
elevação do nível de saúde e bem-estar. Mas no Brasil isso se reflete de diferentes maneiras
conforme as classes sociais, mesmo porque faz parte da prevenção uma estrutura salutar:
moradia decente, água limpa, tratamento de esgotos, alimentação adequada e educação.
Portanto a associação entre hábitos de vida, cura e autotransformação não é possível
inteiramente na sociedade brasileira, como querem os acupunturistas, médicos
135
ou não.
Concluindo, percebe-se que no Brasil o mais importante para médicos,
multiprofissionais e para pacientes, é que a acupuntura é útil e eficaz, tanto para a
consolidação de um mercado de bens de cura, como para o restabelecimento da saúde e
amenização do sofrimento humano. Seja através de eficiência cnica, seja através da eficácia
simbólica.
133
Ibid.
134
Cf. Estudo mostra perfil de usuário de acupuntura. Jornal da Paulista. UNIFESP, n. 135 , ano 12, set. 1999.
135
Na pesquisa de Nogueira (2003) os médicos apontaram como principais obstáculos para o tratamento nos
próprios pacientes: a) a busca de resultados imediatos; b) a falta de engajamento no que se refere à alteração de
hábitos pouco saudáveis.
183
7 Escolas de acupuntura: a institucionalização do saber “não-médico”
Por fim, chegamos à apresentação da nossa pesquisa de campo, realizada entre
fevereiro de 2006 e junho de 2007, junto a três escolas “não-médicas” de acupuntura da
cidade de São Paulo. Ao longo desse trabalho percorremos o caminho das agulhas até o
Brasil, reconstruindo o processo histórico da transplantação da acupuntura e da sua aceitação
em nossa sociedade. Nesse último capítulo, vamos proceder a uma análise do momento
presente, identificando os modos como é praticada a acupuntura brasileira na
contemporaneidade. Com a apresentação da parte empírica do trabalho, pretendemos
contribuir para o melhor entendimento das questões levantadas nos capítulos anteriores,
ilustrando a reinvenção da acupuntura no Ocidente - ou seja, a criação de novos jeitos de
explicar e aplicar as teorias e técnicas chinesas - mediante a observação da adoção da
acupuntura no contexto brasileiro.
A pesquisa em instituições de ensino possibilitou a análise da transplantação nas duas
perspectivas: do processo histórico e das diferentes práticas contemporâneas. Selecionamos
três escolas que foram fundadas na década de 1980, por imigrantes asiáticos que chegaram ao
Brasil nos anos sessenta e setenta, e que participaram ativamente da história da acupuntura
brasileira. Não presenciaram as modificações que a prática vem sofrendo, como em alguns
casos atuaram efetivamente para que isso acontecesse. Essas instituições de ensino formam
grande número de acupunturistas atualmente, sendo representativas da adoção da acupuntura
no país. São vinculadas ao Sindicato de Acupunturistas e Terapias Orientais do Estado de São
Paulo (SATOSP) ou à Associação de Medicina Chinesa e Acupuntura (AMECA),
organizações que lutam contra o “ato-médico” na acupuntura.
Na perspectiva histórica, a fundação de escolas de acupuntura, intensificada a partir da
terceira onda (1979-1995), correspondeu à institucionalização e propagação do saber “não-
médico” para ocidentais. As escolas de medicina chinesa para “não-médicos” participaram da
difusão da acupuntura num momento em que ainda não havia reconhecimento da medicina
oficial
136
. A atividade de acupunturista estava registrada oficialmente, mas não era
regulamentada (não é até hoje). Há mais de duas décadas as escolas “não-médicas” participam
da luta pela legitimação da acupuntura “energética” e pela regulamentação da profissão de
136
Porém, de acordo com um acupunturista entrevistado, formado nessa onda de transplantação, mesmo na
época de Spaeth a abertura das escolas não visava tanto à divulgação da medicina chinesa ou acupuntura, mas
era principalmente uma forma de obter maior retorno financeiro, pois a procura pela clínica ainda era pequena.
Não se ganhava dinheiro com atendimento, enquanto a procura por formação em acupuntura aumentava cada vez
mais. As associações de acupuntura, ainda segundo o entrevistado, eram uma forma de oferecer alguma
certificação para os alunos, o objetivo final era atender a demanda por mais cursos.
184
acupunturista, acompanhando o processo de transformação dessa prática. Através das escolas,
os saberes tradicionais e alternativos adquiriram um lugar na sociedade brasileira.
Do ponto de vista da análise sobre o presente, as escolas de acupuntura representam
janelas para as práticas contemporâneas. No âmbito das instituições de ensino pudemos
observar as modificações que a acupuntura sofreu e as modalidades de acupuntura que podem
ser encontradas no país atualmente.
Optamos pelo segmento “não-médico” porque, como sabemos, representa a maioria
dos acupunturistas brasileiros (no mínimo 75%). Os alunos dos cursos de acupuntura para
multiprofissionais, ou “não-médicos”, serão os acupunturistas de amanhã. A cidade de São
Paulo é um espaço diferenciado do restante do país por causa da maior presença asiática, e
porque os líderes políticos dos acupunturistas, de todas as facções, encontram-se nessa
metrópole. Portanto, uma vez que São Paulo é centro irradiador de tendências, analisar o
processo de formação dos acupunturistas nessa cidade pode auxiliar a identificar qual a
tendência futura da prática de acupuntura no Brasil.
Faz-se necessário sublinhar que esse universo de pesquisa é imenso e dinâmico.
Aquilo que chamamos de instrumentalização da acupuntura, no sentido de tecnifização e de
deslocamento de um lugar mágico-religioso para outro científico, secularizado, é um processo
recente, de pouco mais de uma década, ainda em andamento na sociedade brasileira. Tudo
muda de um dia para o outro conforme os conflitos políticos se desenrolam e novas
descobertas científicas são divulgadas. Torna-se, portanto, extremamente difícil acompanhar
as rápidas transformações da acupuntura. Por esses motivos, a pesquisa de campo que
apresentaremos a seguir é um flash, relativo a um momento histórico determinado. Assim,
esboçaremos um panorama das práticas de acupuntura no Brasil a partir da observação das
instituições de ensino, deixando claro que esse tema, ainda pouco estudado, requer um
aprofundamento impossível no tempo de um mestrado.
7.1 Uma tipologia das práticas de acupuntura no Brasil
As modalidades de acupuntura definidas a seguir foram concebidas como “tipos
ideais”, ou seja, foram elaboradas a partir de observação empírica, porém não
necessariamente correspondem às práticas de todos os acupunturistas da cidade. A tipologia
acentua traços característicos que funcionam como balizadores para uma classificação das
práticas de acupuntura em diversos matizes, de acordo com uma gradação do mais tradicional
185
ao mais ocidentalizado, facilitando a análise do pesquisador. Portanto, dificilmente as
modalidades podem ser encontradas em estado puro. Geralmente, as práticas individuais dos
terapeutas são marcadas pelo hibridismo entre diferentes modalidades.
Apesar das posições oficiais das categorias médicas e multiprofissionais, médicos
que praticam acupuntura tradicional ou holística, assim como profissionais da área da
saúde e imigrantes asiáticos que praticam acupuntura instrumental. Ou então, um aluno de
escola tradicional pode, em consultório, praticar a acupuntura de modo holístico ou
instrumental e explicar cientificamente. Como em tudo na modernidade tardia, o indivíduo
praticante imprimisuas escolhas pessoais no exercício da clínica. Dessa maneira, os tipos
descritos a seguir são apenas as possibilidades mais previsíveis.
Os critérios básicos utilizados para determinar a gradação dos tipos foram: a adesão ao
referencial taoísta, holístico ou científico; os estilos de combinação, com quais técnicas e
métodos terapêuticos, se orientais ou ocidentais, se tradicionais ou modernos, se artesanais ou
tecnológicos; a explicação de Ch’i a partir do conjunto simbólico mágico-religioso ou
materialista-científico; o direcionamento do tratamento para o indivíduo como um todo ou o
simples combate aos sintomas.
Assim, na tentativa de entender a acupuntura brasileira, construímos uma tipologia das
práticas com relação a três possibilidades, que serão detalhadas nos tópicos seguintes:
a) tradicional - acupuntura inserida no conjunto simbólico da medicina tradicional chinesa,
que não distingue ciência e religião;
b) holística - acupuntura praticada a partir do conjunto simbólico da holística, entendida como
uma atualização ou re-interpretação da cosmovisão chinesa, com adaptações para o contexto
contemporâneo, que pretende aliar ciência e religião, separadas pela modernidade;
c) instrumental - acupuntura deslocada do conjunto simbólico mágico-religioso, utilizada
como instrumento auxiliar da medicina ocidental (como um método científico eficiente no
combate a dor).
7.1.1 Tradicional
Todo mundo, quando quer aprender a verdadeira acupuntura tradicional
chinesa precisa conhecer o Taoísmo. (...) Se você nega essa teoria então não vai
conseguir aprender esse tipo de técnica. Agora, muitos profissionais que estão
dizendo que aplicam as agulhas pelo método científico isso acontece no mundo
inteiro mas parece que no fundo querem aprender acupuntura mais rápido, tipo
“Express”. Mas se você faz uso da acupuntura fora da visão de energia, fora dos 5
elementos, fora do yin/yang, não tem relação com a essência dos antigos. Chamam de
“acupuntura moderna”.
(...) De outra forma não haveria nem a percepção da energia vital, mas apenas
eletricidade, magnetismo, aparelhos. O terapeuta assim tem que confiar em aparelhos
186
e não mais em uma energia mais delicada, mais profunda, mais humana. Essa energia
não dá para pegar com bateria, com aparelho eletrônico.
(Mestre Tai
137
, diretor da escola T)
A acupuntura tradicional é aquela praticada segundo o referencial taoísta ou budista, e
em conjunto com outras técnicas também chinesas, como a massagem Tui-ná, a fitoterapia, a
dietoterapia. Sua lógica é a da correspondência simbólica entre yin-yang e os 5 elementos. Ao
contrário da medicina convencional ocidental, que combate à doença, a chinesa tradicional é
preventiva, trata a pessoa como um todo corpo-mente-espírito que está em constante relação
com o cosmos, a natureza e a sociedade. As estações climáticas, o horário do atendimento, as
relações com o ambiente, são fatores importantes do ponto de vista tradicional.
Na concepção chinesa tradicional a doença é uma conseqüência do desequilíbrio de
Ch’i no organismo. Ch’i seria a manifestação do Tao, jamais separada dos aspectos
espirituais. O diagnóstico clássico é subjetivo, realizado através dos pontos dos meridianos e
da reflexologia (o micro reflete o macro): nos pulsos verifica-se o Ch’i dos meridianos; a
análise de língua, orelhas, unhas, cor da pele, cheiro, palpação dos pés, mãos e costas indicam
quais os trajetos e elementos estão afetados. O método de percepção e apreensão do quadro do
paciente é aquele indiciário, do qual nos falava Ginzburg (2003) no capítulo 2 da dissertação.
Os taoístas seguiam métodos completamente naturais e eram contra as artificialidades
da civilização. Portanto a acupuntura tradicional prescinde de qualquer meio tecnológico que
não seja artesanal, orgânico e natural. Um fator importante que marca a linha tradicional, é a
prática de Chi Kung, Tai Chi Chuan e outras artes corporais meditativas. A conduta ética e o
auto-aprimoramento do acupunturista são muito valorizados, bem como o cuidado com o
paciente e a atenção aos sinais sutis, que apenas podem ser percebidos na interação terapeuta-
paciente. A prática da acupuntura tradicional requer disciplina para o desenvolvimento da
percepção sutil e manutenção do próprio Ch’i, de maneira que o terapeuta possa estar apto
para manipular o Ch’i alheio. Como demonstra a fala do mestre taoísta a seguir:
Isso é muito importante! Você precisa exercitar, ter seu próprio treinamento.
De manhã deve praticar Tai Chi Chuan ou Chi Kung, tem que treinar os seis sons, para
eliminar problemas do corpo e captar energia da natureza. Periodicamente você
precisa ir a um lugar onde exista bastante energia. Quando recebe mais energia, tem
mais poder para ajudar os outros. Outro fator importante é cuidar bem da alimentação.
A qualidade de atendimento tem que ser olhada, pois é isso que garante seu ótimo
resultado. O terapeuta não pode ir simplesmente tratando todos os clientes que
chegam. Tem que definir um limite, porque isso também contribui para a qualidade do
resultado.
137
As citações são trechos de entrevistas publicadas na Internet, os nomes dos diretores e das escolas que são
objeto dessa pesquisa foram trocados.
187
(...) A primeira coisa é que o terapeuta precisa cuidar de sua vida: alimentação,
estilo de vida, evitar tomar friagem e vento, deixar tudo em equilíbrio, como um
taoísta. Não abusar de sua energia, não gastar de forma desnecessária. A segunda coisa
é manter nosso espírito centrado, não disperso, sempre conservando dentro do corpo
essa luz do espírito, mantendo-a acesa, sem abusar nem gastar em demasia. Além
disso, deve-se buscar também o equilíbrio de movimento e serenidade isso significa
que o terapeuta precisa praticar meditação e movimentos, como já vimos: Tai Chi, Chi
Kung, ginástica, etc. Tudo isso é ótimo. E precisa sempre continuar estudando, sempre
estudando. Sempre algo para aprender. Sempre se aprofundar no Nei Ching, em
Fitoterapia, em MTC, para aumentar nosso conhecimento. E finalmente, cuidar de
seus pacientes como se fossem de sua própria família, com compaixão.
(Mestre Tai, diretor da escola T).
No âmbito tradicional não são necessárias explicações científicas para justificar o
funcionamento da acupuntura, entre outros tantos métodos terapêuticos chineses, pois seguem
leis cósmicas que serviram às gerações anteriores e devem ser preservadas e transmitidas às
gerações futuras para o bom encaminhamento da ordem universal.
7.1.2 Holística
No Ocidente existe a idéia errônea de que a acupuntura trata somente dor e
inflamação, e usa apenas agulhas. A acupuntura verdadeira consiste na estimulação de
pontos e meridianos, com a finalidade de corrigir os distúrbios energéticos entre os
órgãos, tecidos e meridianos. Para diagnóstico, terapêutica e acompanhamento, utiliza
os fundamentos filosóficos Yin Yang e Cinco Elementos. Para estimulação, os
acupunturistas empregam agulha, calor, massagem, exercício, fricção, ventosa, ímã,
eletricidade, ultra-som, laser, cor, esparadrapo, semente, esfera metálica, óxido de
titânio com membranas semicondutoras, etc. Os acupunturistas brasileiros têm
trabalhado de forma correta, valorizando os fundamentos filosóficos; infelizmente,
muitos médicos acupunturistas do Brasil ainda estão limitados às agulhas e aos
tratamentos sintomáticos, por não acreditar na circulação energética nem na filosofia
oriental.
(Dr. Huan, diretor da escola H)
Esse tipo corresponde à “acupuntura energética”, que trabalha com a tradução de Ch’i
para energia vital, procurando equilibrá-la no organismo do paciente. A modalidade de
“acupuntura energética” já foi parcialmente explorada no capítulo anterior, quando discutimos
as atividades “não-médicas”. A denominação holística parece mais adequada, porque permite
abranger a conjugação das concepções vibracionais com as explicações científicas,
característica da aliança ciência e religião a que se propõe a abordagem holística.
A acupuntura holística segue os mesmos princípios da acupuntura tradicional, e seu
diagnóstico também é subjetivo, porém a tradução de Ch’i como “energia vital” possibilita a
associação com diversas práticas, orientais e ocidentais, antigas e modernas. Ambas as
188
modalidades, tradicional e holística, trabalham com a prevenção e acreditam na manifestação
das doenças ainda num plano sutil do paciente, antes de atingir o corpo físico.
Sendo a acupuntura uma prática energética, a inserção das agulhas pode ser mais
superficial, os pontos podem ser estimulados através de quaisquer técnicas que manipulem
“energia”. Apesar de procurar seguir uma linha mais próxima do clássico chinês (Ch’i, yin-
yang e os 5 elementos), a acupuntura é combinada com técnicas diagnósticas ocidentais, tais
como a radiestesia (pêndulos), cinesiologia (testes energéticos neuro-musculares), tratamentos
com florais, aromaterapia, e outras técnicas recém-inventadas, denominadas “acupuntura não
invasiva”, que substituem as agulhas por imãs, pastilhas de dióxido de silício, cores e sons.
A abordagem holística, por suas características de relativismo, flexibilidade,
interdisciplinaridade, justifica a utilização das mais diversas técnicas em conjunto. São
freqüentes as alusões à sica quântica para explicar que Ch’i é igual a energia, e energia é
igual matéria. Muitas vezes a aliança entre ciência e religião permite também a associação da
acupuntura com práticas mágico-religiosas como a astrologia, cristais, radiestesia, johei, reiki,
alinhamento de chakras, visualizações, etc.
Nota-se entre os praticantes de acupuntura holística uma tendência de justificar suas
práticas como sendo científicas, porém segundo uma concepção de mundo que inclui a
existência de realidades não-ordinárias a serem ainda desvendadas pela ciência. Geralmente
analisam o resultado das pesquisas científicas sobre a eficácia da acupuntura positivamente,
como um indício de futura comprovação da existência de Ch’i e de comprovação das
características sutis do tratamento pela acupuntura.
7.1.3 Instrumental
Os conhecimentos filosóficos, de cerca de 3 mil anos, formaram a linguagem
médica da época, para explicar o fenômeno das doenças, baseados em conhecimento
médico primitivo. Atualmente ainda persiste uma ligação com essa linguagem, mas ao
associar-se a acupuntura com os conhecimentos médicos modernos, muitos conceitos
foram eliminados, tais como a idéia de que o ponto de acupuntura é o lugar que tem
muito Ch’i, ou que a noite é yin....
(Dr. Hong Jin Pai, médico da SMBA e do centro da
dor do Hospital das Clínicas, docente da FMUSP
138
)
Essa modalidade corresponde à “acupuntura científica” ou “acupuntura médica”, da
qual falamos. Uma vez que os holísticos reiteram as características científicas da
acupuntura e que podemos encontrar profissionais “não-médicos” que praticam acupuntura
138
Esse trecho também foi excluído do site pessoal do Dr. Hong Pai (www.hong.com.br).
189
segundo a concepção médica, bem como médicos que seguem as modalidades holísticas,
optamos pela diferenciação através do termo “instrumental”. Lembramos que o termo
instrumental no contexto dessa dissertação significa uma tendência à tecnifização da
acupuntura e à hierarquização dos saberes, sobrevalorizando a ciência ocidental.
Denominamos acupuntura instrumental aquela utilizada como auxiliar da medicina
convencional no tratamento das dores, especialmente as de origem ósseo-muscular, e
subordinada à lógica ocidental do combate às doenças. Não objetiva o tratamento preventivo
do indivíduo como um todo, mas resolver um problema localizado. Os trajetos de Ch’i sequer
são considerados, importa mais o efeito neurológico da inserção das agulhas. Essa modalidade
é direcionada principalmente para o alívio das dores, para a medicina do esporte, para
tratamentos estéticos, ortopédicos e de distúrbios geriátricos. Seu respaldo está na eficácia,
nas recentes descobertas neurocientíficas, e pode estar emergindo como nova tendência para
as próximas décadas.
Figura 19 - Quadro comparativo das modalidades de acupuntura
TRADICIONAL
Lógica Simbólica: Cosmologia chinesa, taoísmo
Explicação Princípios de Ch’i, yin-yang, 5 elementos; micro-macro (unidade céu-homem-terra); Tao;
Prática A acupuntura faz parte de um conjunto que é a medicina chinesa, sistema de técnicas ou artes
terapêuticas chinesas (fitoterapia, dietética, moxa, Chi Kung, Tui-ná); reflexologia (parte é
microcosmo do corpo) dos pés, mãos e orelhas;
Objetivo Restabelecer o fluxo de Ch’i no paciente, através da harmonização yin/yang e 5 elementos; o
equilíbrio de um ser está relacionado com o equilíbrio do todo
Enfoque Preventivo; atua no plano sutil, evitando que a doença se manifeste no plano físico; o paciente é um
microcosmo do Tao, indivíduo não está dissociado do todo cosmos, natureza e sociedade.
Diagnóstico De Ch’i por pulsologia, análise de língua, orelhas, unhas, pés, mãos, pele, etc;
HOLÍSTICA
Lógica Simbólica: religiosidades alternativas, pluralismo religioso, referencial holístico (relativismo,
flexibilidade, rompimento de fronteiras, unidade homem-natureza; unidade corpo-mente-espírito);
Explicação Segue os mesmos princípios da acupuntura tradicional, mas explicação através da física quântica;
aliança ciência-religião; tradução de Ch’i como energia vital
Prática A acupuntura é energética; associação com outras técnicas não-convencionais ocidentais e orientais
como imãs, sementes, cristais, reiki, cores, sons, pílulas de silício, florais, aromas, etc.
Objetivo Restabelecer o fluxo da energia vital no paciente, como indivíduo.
Enfoque Preventivo; também atua no plano sutil para evitar doença; maior importância do indivíduo como
unidade corpo-mente-espírito, e como agente de autocura.
Diagnóstico
Energético; além de cnicas chinesas utiliza cinesiologia, radiestesia e medidores eletrônicos de
pulso
INSTRUMENTAL
Lógica Ciência: racionalismo e comprovação científica
Explicação Causas neurofisiológicas, acupuntura aumenta liberação de neurotransmissores.
Prática Valorização da ação das agulhas; técnica auxiliar subordinada à racionalidade médica ocidental.
Objetivo Eliminar a dor e combater a enfermidade
Enfoque No tratamento da doença.
Diagnóstico
Ocidental convencional; rejeita pulsologia, análise de língua, reflexologia, Ch’i e os trajetos.
190
7.2 Uma tipologia das escolas de acupuntura no Brasil
As escolas selecionadas como objeto da pesquisa de campo surgiram na terceira onda
de transplantação (1979-1995), em que aumentava a procura por tratamento e formação em
terapias alternativas, no nosso modo de ver, por causa da proliferação das religiosidades
alternativas e porque se configurava um novo campo profissional, ainda em expansão. Vários
acupunturistas ocidentais formados durante essa onda de adaptação da acupuntura às
concepções ocidentais, via referencial holístico ou alternativo, tornaram-se professores ou
diretores de escolas, reproduzindo os saberes aprendidos numa linguagem mais compreensível
para os alunos ocidentais.
Com a abertura de instituições de ensino iniciava-se timidamente a profissionalização
da acupuntura, que vem se consolidando na onda mais recente após “ato-médico” (1995). A
formação de acupunturistas requeria não maior organização política de classe como a
estruturação do saber em formatos pedagógicos que possibilitassem a assimilação dos
conteúdos chineses pelos brasileiros. As escolas “não-médicas” de acupuntura que surgiram
na primeira geração de adoção, antes de 1995, costumavam ser um foco de resistência à
tecnifização da acupuntura, situação que pode estar começando a mudar com a tendência
contemporânea de instrumentalização da acupuntura nas escolas surgidas mais recentemente,
na quarta onda.
Ao contrário de outras similares, as três escolas orientais estudadas são mais
conhecidas do público ocidental. Provavelmente porque adquiriram comunicabilidade com a
cultura urbana brasileira, conseguindo traduzir a medicina chinesa para uma linguagem mais
acessível. A primeira escola descrita é uma das poucas no Brasil, senão única, que segue a
linha tradicional chinesa pré-republicana. As outras duas escolas, de clara orientação holística,
são as maiores no ramo, juntas formam cerca de 500 acupunturistas por ano. Uma delas, a
maior e mais antiga, desde 1981 oferece cursos em diversas capitais e formou cerca de 3000
acupunturistas em 25 anos (cerca de 10% dos acupunturistas do país
139
). Além de ter formado
139
Cabe lembrar que o número de acupunturistas “não-médicos” no país é estimado entre 25.000 e 30.000, e o de
médicos acupunturistas em 8.500. Segundo o ex-presidente do SATOSP, efetivamente não pesquisas
estatísticas a respeito. Atualmente estima-se que cerca de 5.000 novos alunos “não-médicos” sejam formados por
ano (90% deles são graduados nas áreas da saúde). São cerca de 200 escolas de medicina chinesa no Estado de
São Paulo, das quais somente 20 são sindicalizadas. A maioria oferece cursos de acupuntura, mas entre essas
associações de Tai Chi Chuan, por exemplo. A maioria das 200 escolas deve formar cerca de 20 alunos por ano,
de onde se obtém um número entre 4.000 e 6.000 alunos / ano. Por outro lado, com relação aos médicos, estima-
se que aproximadamente 150 novos médicos obtêm, por ano, o Título de Especialista em Acupuntura promovido
pelo Colégio Brasileiro de Acupuntura (Cf. Acupuntura. CENTER-AO - Centro de Pesquisa e Estudo da
Medicina Chinesa ). Acesso em jul. 2007.
191
profissionais que abriram novas escolas durante essas últimas décadas, tendo, portanto
propagado uma linha de pensamento. A terceira escola oscila entre o tradicional e o holístico.
Apesar de concentrarmos a pesquisa empírica nessas três instituições, visitamos sites
de outras escolas fundadas mais recentemente, por médicos e profissionais da área da saúde,
identificando uma tendência de acupuntura mais instrumentalizada. Confirmamos essa
constatação freqüentando o espaço ambulatorial de uma dessas escolas recentes e também
pelos depoimentos de dois alunos que estudaram em instituições surgidas na quarta onda
(após o “ato-médico” de 1995).
Além de pesquisar pela Internet, assistir palestras em dois congressos de acupuntura
para não-médicos, acompanhar aulas, realizar entrevistas e conversas informais com diretores,
professores e alunos, fizemos observações participantes nos ambulatórios de acupuntura das
escolas para sentir “na carne”, não os efeitos das agulhas, mas, sobretudo, quais são as re-
significações dessa terapêutica no contexto brasileiro. Nosso foco foi o modo como se pratica
a acupuntura, porque ele é o resultado do ensino, aquilo que se concretizará no atendimento,
ou seja, no contato direto com os pacientes brasileiros.
As escolas estritamente instrumentais não fazem parte do nosso universo de pesquisa,
que são os “não-médicos”. Por enquanto, dificilmente encontraremos no Brasil práticas
apenas instrumentais fora das instituições médicas, pois elas correspondem a um modelo
neurobiológico radical, que pouquíssimos médicos ortodoxos defendem. O tipo de escola
instrumental seria aquele encontrado somente no ambiente acadêmico das faculdades públicas
de medicina. E ainda assim, sabemos que os modos de explicar e praticar a acupuntura não
são consensuais entre as duas principais escolas de medicina de São Paulo. Por isso, entre as
escolas “não-médicas” geralmente encontramos a prática instrumental apenas de forma
hibridizada, combinada com a holística, conforme descreveremos adiante. Por outro lado,
encontramos ainda um tipo híbrido de escola que conjuga aspectos holísticos à modalidade
tradicional, que também será analisado.
Os critérios para a tipologia das escolas foram os mesmos seguidos para a
classificação das práticas. Classificamos as escolas segundo uma gradação que vai do mais
tradicional, entendido como próximo do chinês clássico, ao mais ocidentalizado, ou
descaracterizado. Lembramos, mais uma vez, que são tipos ideais, que não necessariamente
serão encontrados de maneira pura ou corresponderão a todas as escolas reais. Sobretudo no
caso do tipo instrumental holístico, utilizamos principalmente pesquisa pela Internet,
recortando elementos de diversas escolas. Portanto essa categoria não está associada
diretamente com uma escola específica do universo empírico, mas representa um estilo de
192
escola recente no Brasil, com tendência à instrumentalização, que é resultado da
popularização da acupuntura como técnica auxiliar, embasada na neurobiologia.
Por questões éticas, ocultamos os nomes das escolas visitadas, bem como os nomes de
entrevistados e pessoas envolvidas com as escolas de algum modo, seja em entrevistas,
conversas informais ou mesmo nos discursos retirados da Internet. Se por um lado isso nos
permite maior liberdade de análise, sem invasão da privacidade do objeto, por outro restringiu
a apresentação de observações de campo que evidenciassem as escolas, tais como os nomes,
que revelam por si as orientações das instituições, os dados referentes à localização, que
poderiam nos dar pistas sobre o público freqüentador das escolas, as referências de sites das
escolas para futuras pesquisas, e informações que apontassem as identidades dos atores
envolvidos, alguns dos quais são figuras importantes do desenvolvimento da acupuntura no
Brasil
140
.
A solução que encontramos para a identificação das escolas pesquisadas foi denominá-
las através de siglas que indiquem sua classificação em nossa tipologia: a) T escola
tradicional; b) H – escola holística; c) TH – escola tradicional holística; d) IH – escola
instrumental holística.
Os dois tipos mais tradicionais (T e TH) estão ligados a duas diferentes linhas taoístas
introduzidas no Brasil por imigrantes chineses nos anos setenta; seu referencial é a China
antiga. Os outros dois (H e IH) são mais modernos e racionalizados, seu referencial é a China
contemporânea.
As iniciais dos nomes dos atores indicarão qual escola eles representam
141
. Assim,
segue uma tabela com a associação entre as escolas e os nomes
142
. Além desses, na categoria
“outros”, estão dois acupunturistas entrevistados que estão relacionados indiretamente às
escolas TH e H: Osvaldo, sacerdote regente da Sociedade Taoísta do Brasil e Otávio, ex-
presidente do Sindicato de Acupunturistas e Terapias Orientais de São Paulo (SATOSP).
Escola Diretores Professores Alunos
T – Tradicional Tai e Tang Tadeu Ti , Tânia Ti
TH - Tradicional holística
Thawen Thui;
Thina Thui
Thereza, Thaís,
Theodoro
Thamires, Thelma, Thônia, Thomas
H – Holística Huan Helena, Horácio,
Hélio
Heloísa e Hilda
140
Contudo, apesar do nosso esforço, alguns personagens são históricos, aparecem freqüentemente nos meios de
comunicação e seus dados biográficos são quase públicos, tornando-se impossível impedir seu reconhecimento.
141
Esse recurso de estabelecer “famílias” de entrevistados e informantes através das iniciais do nome foi
utilizado por Russo (1993) e facilita a identificação.
142
Conforme a necessidade, eventualmente citaremos novos nomes de informantes que não foram entrevistados
formalmente, seguindo essa mesma regra de associação com as escolas pelas iniciais.
193
A seguir descreveremos nossos tipos ideais, explicando as diretrizes de cada tipo de
escola e qual acupuntura pretendem implementar. A descrição das instituições foi baseada na
auto-apresentação em folhetos publicitários e na Internet. Incluímos observações de campo e
informações coletadas em entrevistas e conversas informais.
Antes, porém, cabe esclarecer que basicamente existem dois tipos de cursos de
acupuntura que podem ser oferecidos pelas escolas, e que serão citados durante as descrições:
a) Técnico profissionalizante, reconhecido pela Secretaria de Educação do Estado de
São Paulo, desde 2003, caso siga a grade curricular mínima de 1300 horas (inclui
anatomia, fisiologia, patologia, farmacologia, psicologia, etc). O pré-requisito é a
conclusão do ensino médio.
b) Especialização para graduados na área da saúde. Caso a escola seja associada a
alguma instituição acadêmica de nível superior, está autorizada pelo MEC (Ministério
de Educação e Cultura) a fornecer certificado de pós-graduação Latu Senso para
alunos do curso de especialização, desde que seus conselhos profissionais reconheçam
a acupuntura como especialidade. Nesse caso, é o MEC que regulamenta: 800 horas
teóricas e 400 horas práticas.
7.2.1 Escola T - Tradicional
A escola T foi fundada em 1987, pelo chinês Tai, filho de um renomado mestre taoísta
chinês que imigrou para São Paulo na década de 1970. Segue a linha tradicional de relação
mestre-discípulo e transmissão da filosofia, literatura, artes e medicina chinesas segundo os
princípios taoístas. Tem por objetivo a manutenção de tradições chinesas no Brasil. O carisma
do falecido mestre, agora transmitido ao filho Tai, taoísta e budista, é a principal referência de
legitimidade dessa escola. Tai é bastante reconhecido no campo da acupuntura, formou-se em
Taiwan entre os anos sessenta e setenta com mestres taoístas que abandonaram a China por
causa da Revolução Cultural.
É uma escola pequena, administrada pela família de Tai, mais especificamente por sua
esposa chinesa. O marketing quase inexiste, não anunciam em meios de comunicação, o
folheto e o site oferecem poucas informações, que podem ser obtidas mais detalhadamente
por telefone ou pessoalmente. No ambiente chinês da escola (móveis, decoração, etc), temos a
impressão de que o tempo não passou e que o falecido mestre taoísta ainda está ali.
Na opinião da aluna Tânia Ti, não haveria intenção de expansão dos negócios
:
Não é um negócio aquilo para ele, porque senão ele punha outras pessoas,
ampliava, então aquilo para ele não é um negócio mesmo, ele quer ter certeza que é
ele mesmo que está passando as informações, que aquilo está sendo passado certo,
então ele tem uma coisa ética com aquilo que ele aprendeu.
194
Os folhetos enfatizam ensinamentos secretos para obter a longevidade e técnicas
taoístas ligadas à alquimia interior. Entretanto, de acordo com alunos entrevistados, essas
técnicas não são ensinadas em aula, mas apenas para alguns poucos discípulos escolhidos ou
para os filhos de Tai. Ou seja, são conhecimentos herméticos transmitidos de modo
tradicional, pai-filho ou mestre-discípulo.
O curso de acupuntura da escola T tem duração de 24 meses. As aulas são mensais,
durante um final de semana inteiro todo mês. A escola abre apenas uma nova turma por ano,
de cerca de 20 alunos. Conforme informações dos entrevistados, a desistência é pequena.
Geralmente os alunos são pacientes de Tai ou são alunos de outros cursos, como Tai Chi
Chuan, Chi Kung, Feng Shui, Tui-ná. Tai é o único professor do curso (além dele, apenas um
monitor e um professor de anatomia) e supervisiona pessoalmente os ambulatórios. Sobre a
acupuntura ensinada na escola T, direcionada para o quadro individual do paciente, relata
Tânia Ti:
(...) Porque a gente aprende a ler o pulso, olhar a língua, não é assim, você não
vai pondo agulha igual para todo mundo. Primeiro você vai ver a cara da pessoa, o
tom de voz, enfim, como é que está a cor dela, olha a língua, o pulso, como está o
cabelo, se está brilhante. Tira a história da pessoa também, a pessoa te conta um monte
de coisa, e você fecha um diagnóstico. Que não é lombalgia, é, por exemplo, calor
no fígado. É alguma ndrome ou algum estado, então, umidade no baço, enfim, essas
coisas. E aí você vai tratar conforme isso. Então tem alguns pontos que tiram umidade,
alguns pontos que tiram fogo. Então você tem que ir atrás dessa coisa mais geral, e
depois por pontos locais se for alguma dor. Isso a gente aprende a fazer. Agora tem
uns casos mais complicados que a gente vai e pergunta para ele. discute um
pouco e tal. E ele explica, mas ele não explica demais.
O filho de Tai, Dr. Tang, recém-formado em medicina, está sendo treinado desde
pequeno para substituir o pai e o avô na liderança da escola. Atualmente auxilia Tai na
supervisão dos ambulatórios e também participa dos cursos como aluno ou monitor. Após
nosso questionamento sobre os destinos da escola nas mãos de um médico, se haveria
alterações dos princípios tradicionais da escola, o aluno Tadeu Ti, que foi discípulo do
falecido patriarca taoísta, disse:
Ele (Tang) é médico ocidental e médico oriental, é doutor em acupuntura
também. Ele fez comigo o primeiro curso de acupuntura na escola. O primeiro curso
do Tai no Brasil, participou o filho e a filha. Pequenininhos ainda, 6 ou 7 anos, e o pai
colocou para fazer. A filha depois fez comércio exterior. Quando o pai de Tai era vivo
ele dizia para unir as duas medicinas. Todo mundo prega isso. O filho do Tai faz o
curso de fitoterapia comigo agora, na escola T, o pai obriga ele a fazer o curso. A
visão dele não é contaminada, pelo contrário. Primeiro começou com seu avô, pai do
Tai, que era mestre. Aliás, começou com o tio-avô do avô. O Tai também é mestre, ele
também (o médico Tang), é o próximo da linhagem.
195
Aparentemente, não uma busca de diálogo com o referencial científico, a
acupuntura é praticada à maneira antiga e dentro do âmbito da cosmologia taoísta. Nessa
escola a associação entre acupuntura e tratamento do espírito não é camuflada: o Ch’i não é
justificado pelas novas descobertas da ciência, mas por fatores cósmicos e espirituais.
Percebe-se, no entanto, que o atual mestre utiliza a linguagem da energia” para se referir aos
fenômenos chineses, que é uma tradução holística de Ch’i. Porém a estrutura conceitual
taoísta permanece. Os aspectos mágico-religiosos comparecerem fortemente nos
ensinamentos da escola T, conforme o depoimento de Tânia Ti:
(...) Ele fala, na verdade, que a gente teria que estar treinando, fazer Tai Chi,
teria que estar treinando a energia interna, fazer Chi Kung, não sei o quê, e a única
coisa que ele fala é assim, você tem que mentalizar o que você está querendo fazer, e
mentalizar que aquele ponto está influindo na pessoa. Quando coloca as agulhas tem
que estar fazendo isso, ele até fala, com uma mão você coloca a agulha com a outra
mão você capta energia para estar mandando para o paciente. Porque você é um canal
na verdade, você aprende, você tem que ser um canal limpo por isso você tem que
fazer todas essas práticas e tal. Que não é todo mundo que faz. Eu mesma nunca fiz
Tai Chi, até tenho vontade. E aí, isso você faz para ser um veículo bom, e para você
saber com o que você está lidando, que você não está lidando com uma receita de
bolo.
(...) Agora, outras coisas que ele falou, tipo, quando você está atendendo, você
tem que mentalizar uma cor vermelha não sei aonde, botar uma planta não sei das
quantas no consultório, que parece um pouco de Feng-shui, parece até um pouco de
mágica. Mas ele acha que aquilo funciona. Tem coisa que eu acho que funciona
também. Eu acho que essa coisa de você mentalizar o que você esfazendo, eu acho
que ajuda muito. E ajuda muito a você se destacar tamm daquilo, porque você está
querendo curar a pessoa, parece que interfere assim (o ego). E quando você consegue
se afastar você fica mais aberta, acho, intuitivamente, para fazer uma coisa que tenha
pé e cabeça. Isso ele fala bastante, só que ele fala do jeito chinês, né.
Nas escolas tradicionais, os aparelhos eletrônicos e as novas técnicas diagnósticas
holísticas são dispensados, pois o mais importante é o Ch’i do paciente em conexão com o
universo, como defende Tai:
O natural me parece o melhor tratamento, pois é sempre gradual, nunca forte
nem rápido. Ao invés do laser, usamos a energia do paciente e do Universo.
(Mestre Tai)
Apesar da confiança dos alunos Tadeu Ti e Tânia Ti na preservação das tradições na
escola T, notamos algumas mudanças no último semestre que podem ser reflexos das novas
gerações. Por exemplo, o programa do curso de acupuntura apresentado na Internet foi
modificado, incluindo o ensino de técnicas modernas como a craniopuntura (baseada em
196
neurologia) e a eletro-estimulação
143
, chamando atenção para o tratamento de algumas
enfermidades (artralgia, tratamento para varizes, estética, vícios, emagrecimento) e para a
fitoterapia (o novo investimento chinês). Além de incluir o nome do Dr. Tang na supervisão
do ambulatório, o que, evidentemente, confere maior legitimidade, pois trata-se de um
“médico”. Atualmente, além de cursos a escola oferece também excursões para a China
guiadas pelo Mestre Tai, o que indica um novo interesse na expansão dos negócios.
Contudo, esses fatores ainda não chegam a descaracterizar a identidade da escola.
Sabemos que as tradições modificam-se no decorrer das gerações e a escola T não é exceção.
Sublinhamos apenas que para Tang, futuro mestre, nascido e criado no Brasil, formado em
medicina ocidental convencional, provavelmente as tradições chinesas possuem um sentido
diferente daquele atribuído por seu pai e avô, imigrantes, e a resistência de Tang à
racionalidade biomédica ocidental deve ser bem menor que das gerações anteriores, o que
poderá interferir na linha da escola no futuro.
7.2.2 Escola H - Holística
A escola H foi fundada em 1981, pelo Dr. Huan, ativo defensor dos direitos dos
acupunturistas e da legalização das medicinas alternativas. Huan é chinês, chegou ao Brasil no
início dos anos sessenta, ainda rapaz, após breve passagem pela Malásia. Formou-se na
Universidade de São Paulo, como médico cirurgião vascular, e participou intensamente do
movimento alternativo brasileiro. Fundador de diversas associações, foi um articulador
político entre acupunturistas da linha Spaeth e imigrantes asiáticos. Digamos que é um
sucessor de Spaeth na luta pela regulamentação da acupuntura. Pretende a divulgação,
modernização e popularização das técnicas orientais e se contrapõe fortemente às corporações
médicas, que o processam pela prática de acupuntura desde os anos setenta.
Apesar de imigrante chinês, Huan cresceu e educou-se no Brasil, aprendeu acupuntura
aqui, sendo bastante influenciado pela contracultura e cultura alternativa. Provavelmente a
holística, o alternativismo e o naturalismo foram suas pontes com a sociedade brasileira. Está
143
Também é possível que se trate apenas de estratégia para atrair público. Segundo Tânia Ti, “mas a gente teve
uma aula de eletro-acupuntura. Na aula ele falou assim, oh, pode usar, é bom, é bom para quem é viciado,
quem precisa parar de fumar, porque precisa de um estímulo mais forte, tal, mas não importa, se você quiser
você põe agulha, se quiser põe isso aqui (o eletro), e se quiser não põe nada”.
197
bastante envolvido com a radiestesia e a radiônica. Como sabia chinês, inicialmente traduzia
professores chineses e possivelmente desenvolveu-se na acupuntura de forma autodidata
144
.
Não tem compromisso forte com a tradição chinesa, ao contrário, busca modernizá-la,
aproximando-a das concepções ocidentais, porém sob o referencial holístico. A tendência
romântica e contracultural da abordagem holística é uma marca forte da escola, bem como a
tendência pragmática à expansão e modernização.
O objetivo da escola H é estimular a inovação das técnicas e a utilização de
acupuntura energética através de “instrumentos não invasivos” (como ímãs, ervas, fita
adesiva, luzes coloridas, sons, etc). A escola orgulha-se de possuir o programa “mais eclético
e compacto do Brasil” e apresenta características utilitárias, por exemplo, propõe um “ensino
rápido, objetivo e pragmático”, voltado para a colocação no mercado profissional. De acordo
com o site da escola:
Os cursos têm como principais características serem os mais amplos, mais
ecléticos e mais compactos do país. Seus professores conseguem passar a essência das
matérias de forma simples e prática. Não enganamos os alunos com notícias falsas
sobre Acupuntura; não enrolamos os alunos com aulas desnecessárias. Procuramos
fornecer todos os passos fundamentais para que todos possam pesquisar e desenvolver
as técnicas, modernizá-las e até mesmo criar novas terapias.
Para Dr. Huan
145
, não é possível ensinar a fundo os princípios taoístas nos cursos, esse
conteúdo fica diluído nas várias disciplinas específicas, e os alunos vão assimilando isso no
decorrer dos semestres. O diretor afirma que os alunos, em sua maioria, não estariam
interessados em filosofia oriental, o objetivo seria aprender acupuntura para ter uma profissão.
Por isso, a escola não tem a preocupação de transmitir ensinamentos taoístas, mas de formar
terapeutas que contribuam para melhorar a precária situação da saúde no Brasil. São raros os
alunos que estão ali em busca de conhecimento tradicional chinês, ou que estudam taoísmo.
“Afinal, até os médicos hoje em dia colocam agulhas para tratar as doenças e pronto, até a
China atual já está ocidentalizada”, diz ele.
Também na opinião do Prof. Hélio, somente 1% dos alunos procuram tornar-se
acupunturistas por empatia com a filosofia oriental: “a grande maioria visa somente adquirir
uma profissão, ou melhor, um diploma”. Ainda segundo esse professor, no curso técnico a
desistência é pequena (uns 10%), mas no curso de especialização para profissionais da saúde
esse percentual é de cerca de 30%, seja porque não acreditam ou não aceitam bem as teorias
144
Informações obtidas de alunos de Huan e professores da escola H, bem como de outros informantes que
conhecem sua biografia. Oficialmente, o diretor não divulgou como aprendeu acupuntura.
145
Informação verbal, em conversa informal (15/2/2006).
198
da medicina chinesa, seja por causa da dificuldade de aprendizado ou da demora para
conseguir praticar, seja por questão financeira (o retorno do investimento vem a longo prazo).
Por sua vez, o Prof. Horácio aponta diferenças entre os alunos do curso técnico e do
curso de especialização da escola H. Na opinião desse professor, poucos alunos do curso
técnico desistem, porque a “procura deles é pela medicina tradicional chinesa de um modo
mais amplo, que inclui a filosofia oriental”.
É interessante notar que entre as escolas pesquisadas, é na escola H que encontramos
maior predominância de adesão às novas formas de religiosidade entre os alunos do curso
técnico com os quais conversamos. A característica contracultural e combativa da escola,
bem como o envolvimento com o circuito alternativo
146
, atrai muitos terapeutas holísticos
que, embora atuem profissionalmente algum tempo, não possuem o diploma reconhecido
que o curso técnico de acupuntura oferece. Esse público tem interesse não apenas nos
fundamentos da medicina chinesa, mas também no grande leque de técnicas orientais e
ocidentais oferecidas pela escola, para compor livremente a sua linha terapêutica pessoal.
Podemos perceber isso no depoimento da aluna Heloísa:
A gente não trabalha só com agulhas, tem ímã, que é magnetoterapia, tem
RMA, tem florais, tem fito-brasileiro, fito-chinês, tem as técnicas da tartaruga mística.
Com esse método a melhora é muito boa, você tem um resultado melhor porque está
mexendo na essência do paciente, com o que ele veio para essa vida com deficiência.
Então você vai estar harmonizando e tratando outra coisa que a pessoa tenha, sei lá,
dor de cabeça, dor na face. Mas tem outros jeitos, um leque de opções de tratamento, e
o terapeuta escolhe o que é melhor naquele momento e como a pessoa quer. (...)
Porque às vezes as pessoas têm medo de agulha, então você usa ímãs, sementes,
magneto. Funciona igual. Tem Korya, que é uma técnica coreana na mão, tem a
sistêmica, na orelha, no crânio, você escolhe com o paciente o que é melhor para
ele, o que ele está aberto a receber. Às vezes a pessoa não quer agulha, então tem
moxa, tem um milhão de coisas para escolher, a gente aprendeu isso. (...) Com
radiestesia, se você não tem certeza das coisas você vai pendular, trabalha com
radiestesia para acupuntura, ou então aqueles testes de cinesiologia neuromuscular,
o´ring test, você tem como saber o teste exato da pessoa para fechar o diagnóstico.
Lógico que no dia a dia do ambulatório não para ficar pendulando ou usar outra
técnica, porque demanda tempo, então a gente usa coisas mais práticas, como aurículo,
crânio, sistêmica, ventosa, moxa. Para idosos o moxa é muito bom, porque não usa
agulhas. Isso é muito bom, eu conheci pessoas de outras escolas que não tinham esse
leque de tratamentos, você explica para a pessoa, então ela fala: vamos fazer isso
agora. E você vai educando a pessoa até usar agulhas.
A escola H oferece cursos de magnetoterapia, radiestesia, radiônica, florais de Bach,
cinesiologia aplicada, craniopuntura, iridologia. Possui uma clínica-escola bastante popular e
bem estruturada e também uma escola virtual. Foi pioneira no ensino à distância, na produção
146
Observamos indicações de aproximação com a rede de terapeutas holísticos, alternativos e místico-esotéricos
ligados à Nova Era, principalmente em anúncios da escola em jornais específicos desse público, tais como “O
Legado” e “Magnus”, que também são distribuídos na escola.
199
de cursos em DVD (antes em VHS) sobre acupuntura e outras terapias, e na promoção de
excursões e cursos de acupuntura na China. Também participa do programa “Terapias
Alternativas” de uma rede comunitária de TV e colabora em cursos de acupuntura em Porto
Velho, Brasília, Rio de Janeiro, S. Luís, Teresina, Cuiabá, Florianópolis, Curitiba, Maringá, S.
José dos Campos e Araçatuba. Recentemente, abriu filiais em Bauru e Sorocaba.
7.2.3 Escola TH - Tradicional-holística
(...) As mudanças que hoje nós observamos na natureza estão acontecendo
muito de um reflexo das atitudes do ser humano sobre ela, mas antigamente não tinha
efeito estufa, redes eletromagnéticas contagiosas espalhadas pelo mundo inteiro, a
devastação não era tão grande. Então, quando a gente fala em interação, é uma
interação mútua, em conjunto, e o chinês pensava nisso tudo influenciando sua saúde.
(...) A gente vai começar a observar que os fundamentos da MTC vão além da saúde e
envolvem também a questão do universo. Para o chinês, que não tinha uma filosofia
cristã e sim uma filosofia taoísta, ele nunca pensou numa criação e sim no
aparecimento do universo de uma pura energia. (...) E essa explosão imensa (Big-
Bang) equivale na Medicina Tradicional Chinesa (MTC) à fase do grande caos, sem
distinção entre matéria e energia, era energia na sua pura concepção. Em seguida, essa
energia foi se condensando para se materializar, porque a primeira fase se caracteriza
pela expansão, pela ocupação desses dos dois terços que nós temos no universo. E a
segunda fase se caracteriza pela condensação da energia, ou seja, essa condensação vai
dar em alguma coisa que nós vamos ver. Mas o que é esse Ch’i? Esse Ch’i se chama
de energia. Porque energia, para a MTC, é também matéria.
(Dra. Thina Thui, em aula inaugural da escola TH)
A Escola TH, fundada em 1987, é mais aberta a inovações que a escola T, e um pouco
menos eclética que a escola H. Pretende ser um centro de estudos de medicina oriental
(chinesa, coreana e japonesa). Seu atual proprietário, o coreano Thawen Thui (Coréia do
Norte) é acupunturista 40 anos e sacerdote da Sociedade Taoísta do Brasil. Dirige a escola
desde 1994. A relação mestre-discípulo é valorizada na pessoa e experiência de Thawen Thui.
O slogan da escola é “qualidade de ensino mantida pela tradição”. O processo de transmissão
da direção da escola e do carisma do mestre para a filha Dra. Thina Thui, cirurgiã dentista,
está bastante adiantado. Além de dirigir a escola efetivamente, ela é a principal professora.
Mas a escola conta com professores de várias linhas: sacerdotes taoístas, fisioterapeutas que
não acreditam em Tao, professores de anatomia e fisiologia que não são acupunturistas.
Na infância, Thawen Thui viveu alguns anos na China antes do regime comunista,
depois voltou para a Coréia do Sul, onde estudou em uma missão cristã e mais tarde se
formou em medicina oriental. Na juventude imigrou para os EUA, onde clinicou e lecionou.
Conta o diretor:
200
Quando fui para os EUA não sabia falar inglês, meu mestre disse: 32 dias de
navio, leia o livro. Se entender bíblia, vai entender como ocidental pensa”.
Thui desembarcou nos EUA na década de sessenta, então com cerca de 24 anos e
muito provavelmente foi influenciado pelas idéias holísticas propagadas no clima
contracultural da época. Veio ao Brasil para fazer turismo, mas resolveu ficar e casou-se com
uma brasileira (não descendente de asiáticos). Um amigo coreano, antigo proprietário da
escola TH, tendo voltado para Seul, deixou a escola para Thui. Em 1996, por causa da
ofensiva médica, as escolas H e TH fizeram uma tentativa de fusão, desfeita em 2000. De
acordo com Thui, havia diferenças de objetivos: a escola H pretendia uma maior
diversificação e modernização das técnicas, abertura que a escola TH recusava, pois preferia
manter as técnicas orientais tradicionais.
No tipo tradicional-holístico as tradições orientais são mais valorizadas do que no tipo
holístico, porém não são exclusivas, mas conjugadas com algumas técnicas ocidentais (como
teste do anel neuromuscular), aparelhos tecnológicos (laser, riodoraku), e principalmente com
técnicas modernas inventadas no Japão e Coréia, a partir da medicina chinesa. Mas os
aparelhos são utilizados apenas para estimular os pontos, o diagnóstico é realizado pelo
método tradicional (pulso, língua, etc), sem prescindir do auxílio do teste ocidental do anel,
para “confirmar” o diagnóstico.
Embora haja relação estreita com a Sociedade Taoísta do Brasil, a associação entre
acupuntura e aspectos espirituais é veementemente negada. Vale ressaltar que a linha seguida
pela Sociedade Taoísta também mescla tradição religiosa com explicações oriundas da
abordagem holística. Mestre Thui (ele é chamado de mestre pelos alunos) fez questão de
deixar claro que “a escola não pretende impor crenças”, preocupando-se em distanciar a
acupuntura, o budismo e o taoísmo, que possuem origens “filosóficas”, de práticas espíritas
ou africanas. Para Thui:
Misturar medicina chinesa e religião atrapalha. Ch’i pode ser interpretado
Deus ou não. Tao não é religião, é filosofia, é natureza. Não é necessariamente
espiritual, pode ser interpretado espiritualmente ou não. Não é espiritual, é
psicossomático. Na medicina chinesa o corpo não é sico, é corpo-mente-espírito.
Acupunturista trata corpo-mente-espírito, mas não é obrigatório tratar espírito, só
quando precisa. Mas não é todo mundo que sabe, não é para todos os alunos que
ensino. Se o aluno pedir, explico. O mais importante é mudar o cotidiano, a
alimentação, a maneira de ver o mundo, de conviver com as pessoas. É isso o que
quero, não passar crenças. Cada um acredita no que quer.
Nessa escola constatamos uma ambigüidade. Por um lado baseia-se no referencial
taoísta, na interação entre cosmos, humanidade e natureza, no caráter preventivo, e no reflexo
201
dos hábitos cotidianos na manutenção da saúde. Por outro lado, as características holísticas se
fazem perceber na atualização da cosmologia chinesa para as teorias da aparição do universo
e na analogia entre Ch’i, matéria e energia, a partir das explicações da física, procurando uma
comprovação dos aspectos metafísicos do tratamento e uma tradução ocidental para a filosofia
chinesa.
O apelo ao referencial científico é forte e a física quântica é muito utilizada para
explicar a eficácia das práticas orientais. O taoísmo presente na escola é aquele idealizado
pelo Ocidente, mais próximo do assim chamado “taoísmo filosófico”, uma invenção
ocidental, do que da religiosidade popular chinesa. A acupuntura é considerada uma prática
“energética” e científica. A comprovação da existência da energia” (Ch’i) já teria ocorrido
cientificamente, porém sua divulgação seria impedida por causa de interesses políticos e
econômicos a que estão submetidos os cientistas.
De acordo com o diretor, o público que procurava cursos de acupuntura mudou muito
nas últimas décadas. Até o final da década de setenta, a maioria dos alunos eram descendentes
de asiáticos, os cursos eram ministrados em inglês
147
. Na década de 80, a proporção entre
alunos asiáticos e ocidentais se inverteu e o português dos imigrantes melhorou. Ainda
segundo Thui, a desistência diminuiu muito, antes era de cerca de 50%, atualmente entre 10 e
15% dos alunos desistem. O diretor explica isso da seguinte maneira:
Nível escolar cresceu. Aluno hoje entende mais e fica. O método pedagógico
foi melhorado. Os alunos do técnico desistem mais porque não têm amadurecimento,
os alunos do outro curso (especialização) têm mais compromisso profissional.
Segundo Prof.a. Thais, atualmente os alunos buscam o curso por motivos
essencialmente profissionais, antes vinham em busca de auto-conhecimento. A professora
também apontou diferenças entre os alunos do curso técnico e do curso de especialização,
voltado para área da saúde. No primeiro tipo de curso, os alunos muitas vezes ainda não
passaram por uma graduação:
Ainda não desenvolveram um raciocínio metodológico, não foram adestrados
pela carreira acadêmica, então ficam viajando no taoísmo, na religião, na filosofia, e
entram em conflito com os alunos que querem inserir agulhas, geralmente aqueles
que vieram da área da saúde. Mas isso varia de turma para turma. Nessa turma de
ano, 30 % recebe bem o I Ching, e para o resto é insano. Na turma do ano a
proporção é inversa.
Segundo Thawen Thui: “agora nem precisa de marketing, porque a procura aumentou
e a fama da escola aumentou”. De fato, assim como a escola T, a escola TH tem um
marketing muito pouco agressivo. Apesar disso, a instituição de ensino, que até recentemente
147
Thawen Thui leciona acupuntura no Brasil desde 1976.
202
era uma empresa “caseira”, de cunho familiar (só tinha um funcionário), atualmente está em
franco crescimento. A escola vem expandindo suas instalações e contratando novos recursos
humanos, muito provavelmente por ser a única que oferece diploma Pós-graduação Latu
Senso.
7.2.4 Escola IH - Instrumental-holística
Para a medicina chinesa 100 % das doenças têm fator emocional. Segundo os
antigos chineses, se um órgão ficar doente, outros órgãos também serão lesados. Por
isso, a Medicina Tradicional Chinesa trata o paciente como um todo. (...) O Ch’i é a
energia que promove as atividades dos nossos órgãos. Quando o yang está aumentado,
aparecem palpitações cardíacas, pressão alta, insônia, ansiedade, etc. A deficiência do
yin pode manifestar-se por emagrecimento ou obesidade, diabete, hipertiroidismo. (...)
Se um paciente tiver gastrite nervosa, provavelmente é porque o elemento Madeira
(fígado) está hiperativo por causa de emoções como a raiva. Isso se reflete no
estômago, promovendo a hiperacidez, daí a gastrite. (...) Somos uma espécie de
psicólogo que investiga a causa dos sintomas de uma forma mais profunda, para
depois definirmos os pontos que precisam ser trabalhados no paciente. A dor de
cabeça de uma pessoa pode ser igual à de outra, mas com certeza suas origens são
diferentes.
(Dr. Ysao Yamamura, ex-presidente da Associação Médica Brasileira de
Acupuntura (AMBA), e chefe do setor de Medicina Chinesa da UNIFESP
148
)
As escolas IH são derivadas da acupuntura médica instrumental, mas mantém algumas
particularidades holísticas. Contudo, a tendência instrumental é predominante na conjugação
das práticas. Geralmente fundadas após o “ato-médico”, por médicos ou profissionais da área
da saúde, sobretudo fisioterapeutas, as escolas IH estão voltadas para o público formado em
áreas biomédicas, e também atrai médicos que buscam um modelo “menos primitivo de
acupuntura, equivalente ao mais secularizado. Não mantêm laços com o mundo alternativo.
Apesar das características biomédicas, as escolas instrumentais-holísticas reconhecem os
princípios energéticos das terapias naturais, porém a energia é vista como um fenômeno
natural, bioeletrético.
Os acupunturistas formados nas áreas da saúde costumam emprestar as explicações e o
modo de praticar da linha médica mais progressista, que dialoga com a holística (como no
trecho citado acima). Essa linha enfatiza os aspectos que confirmam a unidade corpo-mente,
os distúrbios emocionais como causadores de doenças, o tratamento do indivíduo como um
todo, os princípios de equilíbrio de energia, e a relação micro-macro entre o corpo e suas
partes. No entanto, os aspectos espirituais tradicionais são sub-valorizados em prol do
148
Cf. O jeito oriental de curar. Jornal Nippo-Brasil On-line, 05/10/2006. Acesso em out. 2006.
203
reconhecimento científico e da modernização das técnicas. A influência de fatores emocionais
recebe mais atenção que fatores sociais e ambientais (as estações do ano, por exemplo, são
muito importantes para a medicina tradicional chinesa).
As escolas IH baseiam-se na prática da China contemporânea, que é secularizada.
Muitas vezes trazem mestres chineses para a formação de acupunturistas no Brasil, outras
vezes usam métodos de teleconferência para as aulas com chineses. Uma das marcas da
instrumentalização é o incentivo às pesquisas para comprovação da eficácia das agulhas em
estudos de caso, com bases em metodologia científica, e aos estudos sobre analgesia e
tratamento das patologias articulares. Não rejeição da circulação de energia no organismo,
mas a explicação de Ch’i conforme a linha instrumental holística é totalmente secular,
baseada em argumentações de renomados médicos acupunturistas, como essa:
As agulhas de acupuntura possuem efeito bioelétrico. O conceito de energia
dos antigos chineses é atualmente compreendido como estímulo das fibras nervosas A-
delta e C. Com os conhecimentos dos efeitos da agulha de acupuntura em
neuroanatomia e neurofisiologia, o mecanismo da ação da acupuntura tornou-se
científico. Hoje, a dor é uma das grandes indicações da acupuntura. Por meio de
determinado aprofundamento da agulha, o médico acupunturista consegue mandar
para o cérebro (sistema nervoso central) um impulso biolelétrico que bloqueia
determinadas áreas e elimina a dor
149
.
As escolas instrumentais-holísticas consideram que a medicina oriental e a ocidental
são complementares e imprescindíveis. Os interesses dessas escolas parecem estar, acima de
tudo, na formação cnica profissional. Apostam na fragmentação da acupuntura em áreas
especializadas, tais como estética, patologias articulares e ósseo-musculares,
neuroacupuntura, etc. Os fatores religiosos e tradicionais da medicina chinesa são relevados e
o conhecimento técnico do tratamento das doenças são mais valorizados que o equilíbrio
energético do organismo individual.
Muitas escolas IH oferecem cursos específicos para aplicação de agulhas nas áreas de
estética, pediatria, dermatologia, cardio-pneumologia, neurologia, etc, como ilustrado nos
programas de cursos anexos. Embora a abordagem holística compareça no discurso dessas
escolas, principalmente no que se refere aos aspectos psicossomáticos das doenças e à
holografia do corpo, ocorre preponderância do referencial científico e tendência de
fragmentação da acupuntura em áreas técnicas.
Citamos como exemplo da instrumentalização, uma rápida conversa que tivemos com
uma jovem fisioterapeuta, em seu primeiro dia de aula. Resolveu fazer o curso por indicação
de amigas, também fisioterapeutas, que lhe disseram que no começo é difícil acompanhar as
149
Acupuntura é científica. Associação Médica Brasileira de Acupuntura (AMBA). Acesso em: jul. 2007.
204
aulas porque “parece tudo viagem”, “que não tem nada a ver”, “mas depois você vê na clínica
que funciona e começa a fazer sentido o que eles dizem no curso”. Disse também que “é
ótimo para a fisioterapia porque é possível atender várias pessoas ao mesmo tempo; você
coloca as agulhas em um e atende o outro, porque o resultado é muito rápido e eficaz”.
A linha instrumental-holística, na nossa visão, é aquela que tem maior possibilidade de
expansão nas próximas décadas, porque as novas concepções de “energia” dos médicos
acupunturistas heterodoxos tendem a ser assimiladas pelos holísticos e tradicionais, na medida
em que o discurso médico é considerado mais legítimo, tem mais expressividade na mídia, e
atende a necessidade de explicações plausíveis para a acupuntura.
7.3 Análise dos dados coletados na pesquisa de campo
Nesse tópico analisaremos qualitativamente os discursos coletados no campo.
Selecionamos informações recorrentes na pesquisa, que nos parecem mais relevantes, e que,
embora não sejam consensuais, aparecem várias vezes nas escolas tradicional, holística e
tradicional-holística.
De um modo geral, constatamos muitas convergências no que se refere ao cuidado
com o paciente, ao tratamento do indivíduo como um todo, à função pedagógica do terapeuta
e à concepção de circulação energética no organismo. A explicação sobre Ch’i é, no entanto,
bastante variada, do espiritual ao extremamente secularizado. Os contrastes mais drásticos
serão percebidos na comparação entre as duas pontas do gradiente: a escola Tradicional e a
Instrumental-Holística. Entre as escolas Holística e Tradicional-Holística as variações são
menores, afinal estiveram unidas anteriormente. Primeiramente levantamos as principais
concordâncias, e mais adiante examinaremos as diferenciações.
a) Principais convergências
Na opinião dos entrevistados a condição energética da acupuntura não está diretamente
relacionada com religiosidade, espiritualidade ou aspectos mágico-religiosos, podendo ser
praticada tanto de modo secularizado como para finalidade espiritual. No último caso,
pontos de acupuntura específicos para tratamento do espírito, mas esse é um conhecimento
hermético que somente poucos mestres dominam e que demanda muitos anos de treinamento.
Os entrevistados demonstraram receio de associar acupuntura com religião, e com isso retirar
205
sua legitimidade. A categoria “religião” geralmente é rejeitada, pois associada com igrejas,
crenças, cega. Os termos “religiosidade” e “espiritualidade” são mais bem aceitos entre os
mais tradicionais e holísticos, mas, sobretudo entre graduados na área da saúde, a associação
da acupuntura com fatores religiosos causa estranhamento e até constrangimento.
A medicina chinesa tem aspectos religiosos? Não diria religiosos, mas
espirituais, a gente ocidental separa corpo e mente, corpo e espírito. O chinês,
principalmente o chinês tradicional, e a medicina tradicional chinesa, ela lidava com o
espírito e lidava com o corpo através da energia. E os antigos mestres também, e os
mestres que detém algum segredo também, trabalham com o conceito de que o mundo
não é isso que a gente vê. Tem aspectos do mundo que a gente não vê, que a gente
não detecta e não reconhece. E não é porque eu não vejo que eu falo que então não
existem, eu também não vejo a onda do celular e meu celular funciona, então existem
coisas que a gente não vê, mas que não pode dizer que não está lá.
(Osvaldo, sacerdote taoísta).
Com relação ao esoterismo, por exemplo, a escola não faz uma abordagem
esotérica, até porque isso é um estigma que existe relacionado à medicina chinesa,
para que ela possa continuar, por exemplo, na América do Sul, que ela possa tirar
totalmente a idéia esotérica, porque senão ela não pega. Então, todas essas tentativas
para tentar neutralizar essa abordagem. (aluno Thomas)
Evidencia-se uma necessidade de distanciamento das curas religiosas populares, que
são discriminadas, algumas vezes associadas diretamente ao espiritismo de Kardec ou às
religiões afro-brasileiras. Para os acupunturistas, a condição de “terapêutica energética”
coloca a acupuntura num patamar hierarquicamente superior às práticas populares
150
.
Se você colocar a espiritualidade como energia, como invisível, sim, a
acupuntura tem a ver com espiritualidade. Mas não como uma prática mística ou
esotérica. A acupuntura é científica. Ela não é comprovada cientificamente, mas as
bases dela poderão ser comprovadas. O mestre sempre falou que o Tao é a mãe da
ciência. Tudo que es ali pode e deve ser pesquisado. Prática para repor energia
perdida, para eliminar a energia turva, isso existe, Chi Kung, Tao-yin, que é parecido,
é desbloqueio de meridianos. Não colocaria o termo espiritual porque aqui no Brasil
lembra Kardec e espiritismo. Eu treino energia. Essa coisa de espiritismo é meio
pesado, né. O treinamento do Tao engloba três coisas, a prática da medicina, a prática
do movimento e a da serenidade. O Movimento é o Tai Chi, Chi Kung, as artes
marciais taoístas. E a prática da serenidade é a meditação. O Tao tem o objetivo, como
tem o budismo também e outras religiões, de fazer um contato maior com a natureza e
com deus. Mas não esse negócio de baixar espírito, práticas de xamanismo, etc, esse
tipo de coisa não tem no Tao (aluno Tadeu Ti).
Poucos acupunturistas, mais tradicionais, associam Ch’i com Tao ou Deus ou Cosmos.
Tem gente que chama de sopro, não tem tradução, é como se fosse um vapor
que carrega uma energia nutritiva e pulsa feito um sopro. Esse som, tchii, é a idéia do
Ch’i, tem movimento, tem um impulso, é algo fluindo com esse impulso, mas é algo
sutil. Vapor é sutil, e também é nutritivo, tem a idéia de vapor, e de arroz cozinhando
150
Isso também foi apontado por Tavares (1999) em pesquisa junto aos terapeutas holísticos da Grande Rio de
janeiro.
206
que também é nutritivo. Então é uma energia substancial nutritiva e que tem essa
pressãozinha de impulso, essa energia de impulso. (Osvaldo, sacerdote taoísta)
Sei que ele existe, não sei explicar, e a gente sente, tranqüilamente para
sentir o Ch’i, em meditação, exercício, o lance do cosmos, da terra. Eu acho que é
espiritual e é físico também. Energia vital, né, o corpo, acho que já vai entrar no plano
da espiritualidade. Nossa, é bem complexo. Ele é sentido. É mais gostoso sentir do que
explicar. Tem força espiritual nele, força de cada um, de seu deus, de cada deus, a
gente pede força para ele, energia para ele, é o Ch’i que ele vai te armazenar para ter
força para lutar, tanto físico quanto espiritual tem que ter o Ch’i. As plantas e os
animais também teriam o espiritual, ou não teriam, vai saber. Mas se alimentam do
Ch’i, pela energia do sol, do alimento, da terra, isso é espiritual também. Uns falam de
um jeito, outros falam de outro, você não sabe, na verdade. (Aluna Hilda)
Geralmente, procuram desvincular Ch’i de aspectos espirituais e aproximá-lo de
explicações científicas. Para a maioria dos entrevistados, a noção de energia ou Ch’i é de algo
natural, e não sobrenatural. Para justificar isso, sobretudo os profissionais graduados na área
da saúde, valem-se do pensamento médico acadêmico, segundo o qual a energia vem dos
alimentos, do oxigênio, da bioeletricidade. Também associam Ch’i com ancestralidade ou
com DNA.
Energia é realmente uma boa tradução, vem daquilo que nos mantém, seja
alimento, ar. Na gestação fomos formados com Ch’i, na gestação a mãe passa o Ch’i,
não é uma força muscular, vem da mãe para o filho, dos alimentos, do ar junto com os
alimentos. (Prof.a. Thereza, fisioterapeuta)
Genoma. Está no seu DNA. Se você pensar no Ch’i como a essência que você
recebeu dos seus pais, é aquilo que você recebeu. Se a gente traduzir para a ciência
você recebeu o que? Um pouquinho de energia, né, um pouco de cromossomos da sua
mãe (yin) e do seu pai (yang). (Profa. Helena, bióloga)
Pelo que eles falam é a energia que percorre os meridianos, que vai suprir todo
o corpo físico, tenho o conhecimento que vem através de alimentos, de ancestralidade,
que seria o DNA da medicina ocidental, e a mescla, esse funcionamento gera o
equilíbrio, a força dos órgãos. É como eu acredito, estou entendendo melhor o
funcionamento agora (aluna Thamires, administradora).
É uma energia no corpo, todos nós possuímos uma energia no corpo, e os
pontos de acupuntura vão trabalhar essa energia, tratar a saúde da pessoa. Se a pessoa
não se alimenta ela não tem energia, a medicina chinesa fala que se a pessoa não se
alimenta ela fica com uma resistência baixa, energia baixa (faz relação entre energia e
alimentação). Quando faz acupuntura ela desmaia. Então tem que se alimentar aos
pouquinhos para que a energia possa ser forte no corpo da pessoa. Vem do alimento.
(aluna Thelma, esteticista)
Por outro lado, vários entrevistados disseram acreditar na transmissão ou troca de
energia entre terapeuta e paciente, principalmente se o paciente é tocado. Alguns acham
necessário se proteger com amuletos, tais como cristais. Muitos dizem que seria melhor
207
praticar Chi Kung ou meditar para abastecer-se de energia e precaver um possível déficit, mas
poucos o fazem.
Então, essa coisa energética, antes de eu botar a mão em paciente eu só achava
que existia. E principalmente na massagem eu comecei a ver que existe mesmo, que
você tem que prestar atenção e trabalhar mesmo sua energia, porque senão em vez de
fazer bem, você faz mal, ou para seu paciente ou para você mesmo. Então quando eu
comecei a atender com massoterapia, eu ficava doente, eu ficava com a doença que a
pessoa tava. Às vezes a pessoa deslocava a doença, de um lugar ia para outro, né. E
com o tempo você vai vendo que você consegue separar você do outro e consegue
entender melhor dessa coisa de energia. E eu acho que é um jeito de exercer a
medicina em que você tem um contato mais íntimo com a pessoa. Se eu fosse médica
e atendesse num posto de saúde eu não ia ter esse convívio tão direto com o ser
humano como é num consultório. (aluna Tânia Ti)
No dia a dia o acupunturista está alterando energeticamente a pessoa, curando
também o espírito da pessoa (além da parte física) e para isso o acupunturista tem que
estar, não diria espiritualmente, mas energeticamente bem, tem que estar regulando
sua própria energia, por exemplo, através da prática de Chi Kung, Tai Chi Chuan, ou
meditação. (Prof. Hélio)
Para mim, as agulhas servem como antenas, e você equilibra muitas coisas
não físicas como emocionais. Você equilibrando tirando, de certa forma, a
estagnação de energia que provoca dores e deficiências orgânicas. (...) Você vai
receber uma pessoa que está precisando, enfim, evidentemente ela vampiriza. Se você
não está preparado você se acaba, fica prostrado, sem energia. (Prof. Horácio)
Os entrevistados são a favor de mais pesquisas científicas, buscam reconhecimento da
ciência e muitas vezes se apóiam em pesquisas não oficiais. Mas, ambiguamente, a
superioridade das instâncias científicas para definir a legitimidade das práticas de saúde é
contestada. Espera-se uma renovação da ciência, que signifique abertura para novas
realidades, ou seja, uma aliança entre ciência e religião.
Eles vão ter um monte de resultados, vão comprovar um monte de coisas, mas
vão ficar sempre limitados. Na verdade vai ter uma grande ampliação, uma grande
mudança, acho que vai acontecer na hora que houver abertura para questionar os
fundamentos filosóficos da ciência positivista, que a física quântica e a teoria da
relatividade estão mais na frente. Física e biologia estão um pouco mais na frente,
enxergando essas inter-relações e interdependências. A parte tecnológica, a parte
técnica, médica, principalmente, é mais lenta para poder acompanhar essa visão
holística. Que é uma mudança estrutural imensa, que envolve não só o médico,
envolve as indústrias farmacêuticas, envolve a indústria da tecnologia médica,
envolve todo o conceito dessa idéia de como a gente vê saúde.
(Osvaldo, sacerdote taoísta)
Ciência é fundamental, mas tem seus pecados, o fato de ser tudo exato, a gente
não acha respostas então ela como se fosse uma coisa que não existe. Como a
acupuntura mesmo, poderia ser fato, mas ela não como comprovado e descarta.
Concordo que é o que a ciência busca, tentar mostrar uma resposta, mas não é
mostrar a resposta porque tem coisas que não se explica. A acupuntura também é
neurofisiológica, mas é muito mais do que isso. Porque a gente vai trabalhar até a
espiritualidade. (aluna Hilda)
208
Embora as explicações científicas sejam consideradas válidas e utilizadas para conferir
legitimidade, a eficácia da acupuntura não é explicada pelo efeito neurológico da inserção das
agulhas, mas pela desobstrução do circuito energético.
Queira ou não, o organismo libera química (endorfina) quando as agulhas são
inseridas. E a analgesia acontece por efeito neurofisiológico quando são utilizados
pontos analgésicos, como por exemplo IG4. Mas a eficácia da acupuntura na
utilização de outros pontos que não são analgésicos ocorre por causa do lado
energético, e não por causa das substâncias liberadas no sangue ou efeito
neurofisiológico. Não concordo com as teorias médicas que afirmam que a aplicação
de agulhas em pontos fora dos meridianos também faz efeito. (Prof. Hélio)
Os acupunturistas entrevistados não são contra a utilização de medicina convencional,
sobretudo em caso agudos. São contra os abusos da corporação médica, que pretende o
monopólio da acupuntura. Não recusam parcerias com a medicina convencional, nem hesitam
em encaminhar pacientes aos médicos alopáticos. Alguns defendem que os exames
diagnósticos convencionais são úteis para auxiliar a acupuntura, porém não são suficientes
para detectar enfermidades que ainda estão no plano sutil. Nesse sentido, a função de
“complementar” às vezes é bem aceita, mas rejeita explicitamente a subordinação.
A acupuntura tanto pode complementar a medicina convencional química
como ser trabalhada de forma autônoma, sendo empregados todos os recursos da
medicina tradicional chinesa. É realmente um método simples, eficiente e econômico.
Reduz consideravelmente o custo da assistência médica e dos remédios, e proporciona
melhor qualidade de vida para os usuários. (Dr. Huan, diretor da escola H)
A acupuntura não é complementar, é uma medicina completa, não
complementa nada, não depende de medicina nenhuma, existe 8.000 anos.
Pesquisas com ressonância magnética também demonstraram que quando se coloca
uma agulha no ponto da bexiga (dedinho do pé) a visão é ativada. Porém não
nenhuma ligação neurológica entre esses dois pontos, mas o meridiano da bexiga
que os une. Exames convencionais é que auxiliam a medicina chinesa (exames
diagnósticos tecnológicos como ultra-som, exames de sangue, e outros).
(Prof. Theodoro)
A gente não se incomoda de ser chamado de complementar. não quer ser
submetido por isso. (Prof.a. Thais)
Os entrevistados criticam principalmente o modo técnico e frio dos médicos
praticarem a acupuntura. Acreditam que é fundamental a interação entre terapeuta e paciente.
O paciente é o professor do acupunturista, quando toca em uma pessoa, um nó
no músculo ensina algo para o acupunturista. (...) Muitos acupunturistas colocam
agulha, sai, e manda enfermeiro tirar. Está errado, tem que ficar com o paciente o
tempo todo. (Prof. Hirino, acupunturista asiático da “velha-guarda” em palestra)
(...) mas lá (nos convênios médicos) a aplicação de agulhas é feita num
ambulatório com várias macas em série, passa uma enfermeira que anota as queixas,
um médico indica em quais pontos devem ser inseridos, e pode ser outro médico que
vai e insere as agulhas. O verdadeiro acupunturista coloca as agulhas e fica
209
verificando a língua, para ver se modificou a cor, os aspectos, enquanto as agulhas
estão aplicadas, isso é sinal de que já está fazendo efeito. Também estimula ainda mais
a agulha no ponto, olha o paciente, e trata como uma pessoa, não como um número. O
acupunturista do convênio sequer fala com o paciente, e o trabalho é compartimentado
entre ele e outros. (aluna Hilda, terapeuta holística)
Hoje uma vertente que acham que é uma neo-acupuntura, mas é uma acu-
piada, é copiada. Não pode ser classificada como acupuntura, porque é um
espetamento muscular, um agulhamento muscular (alunos Tadeu Ti).
Parece ser consensual a idéia de que a função do terapeuta não é curar, mas educar
para hábitos saudáveis e orientar para a auto-cura. O acupunturista é um coadjuvante da cura.
O terapeuta orienta. A cura a pessoa vai buscar. A pessoa pode se autocurar. A
gente pega muito paciente que não quer se curar. Ele vai em busca do médico, do
terapeuta, mas ele não quer se tratar, por mais que faça a pessoa não sai do mesmo
quadro. São pessoas dependentes, sensíveis, carentes principalmente, que não querem
se curar. (aluna Hilda, terapeuta holística)
De novo, o taoísmo trabalha com uma visão integrada das coisas, então essa
idéia de que tem um camarada que cura e outro que é curado é uma coisa cortada,
quebrada. um sistema em desarmonia, o que é necessário para fazer esse sistema
restaurar a harmonia, às vezes precisa de uma interferência externa, mas sempre é
necessária também uma interferência interna. Então o terapeuta é um participante
desse processo, ele pode conduzir alguém no sentido de restaurar mais rapidamente ou
mais harmonicamente esse equilíbrio. Mas falar que o terapeuta é quem cura, isso é
uma visão ocidental, uma visão quebrada. No taoísmo está todo mundo colaborando.
(Osvaldo, sacerdote taoísta)
A função do terapeuta é realmente tratar esse paciente e principalmente educá-
lo, para saber o que é a acupuntura, que ela não é um milagre. (...) O terapeuta indica
o caminho dessa cura. Agora, curar, cura, acho que dificilmente a gente consegue.
Pode acontecer sim, mas não somos nós que efetuamos, que temos o controle disso.
Conseguimos cura no consultório? Sim. Como diz um Mestre: todo dia fazemos
milagres, se a gente consegue fazer uma pessoa que não tem uma alimentação legal, se
alimentar melhor, ela vai se sentir melhor, vai ter menos doenças, então a gente acaba
de fazer uma cura, depende de como a gente vê a cura. (Prof.a. Helena)
b) Principais diferenças
Além das divergências de concepções e modos de praticar, levantadas no decorrer
das descrições das escolas, as principais diferenças estão no conteúdo dos cursos oferecidos e
no tipo de público que freqüenta cada escola.
Salvo na escola tradicional (ou pelo menos em menor grau e por enquanto), os cursos
geralmente são marcados pelo pragmatismo e pela preocupação com a inserção no mercado
de trabalho, como qualquer curso técnico. Enquanto ambiente institucional, as escolas
possuem, além de diretrizes filosóficas e pedagógicas, predisposições políticas, planejamento
210
econômico, estratégias de marketing e crescimento, e participam de redes de relacionamento.
Ou seja, são empresas estruturadas racionalmente com objetivos pragmáticos. Observamos
que esses fatores também atingem a orientação das escolas e a metodologia de ensino.
Assim, nas escolas H e IH os princípios tradicionais ficam obscurecidos ou
permanecem no plano do marketing, como forma de legitimação e credibilidade. Nas escolas
IH, geralmente ocorre uma descaracterização das práticas, seguindo a tendência da medicina
chinesa contemporânea, ocidentalizada, de sobrevalorização da eficácia analgésica da
acupuntura, sobretudo no tratamento de distúrbios ósseo-musculares.
A escola T oferece apenas curso técnico, mas não emite diploma como as outras, pois
a grade disciplinar não é adaptada àquela exigida pela Secretaria da Educação. Isso permite
maior liberdade na transmissão de concepções taoístas. Enquanto nas outras escolas maior
empenho em traduzir a acupuntura nos moldes ocidentais. No caso das escolas H e TH, além
de cursos técnicos reconhecidos pela Secretaria de Educação, são oferecidos cursos de
especialização em acupuntura para graduados na área da saúde
151
(psicólogos, biomédicos,
dentistas, fisioterapeutas, enfermeiros, farmacêuticos, etc). A escola TH possui parceria com
uma instituição de ensino superior, por isso está autorizada a emitir título de pós-graduação
Latu Senso.
A diferença entre os cursos técnicos e de especialização está nas disciplinas de
anatomia e fisiologia, que não são obrigatórias para profissionais de saúde, que receberam
esses conhecimentos na graduação. Em ambas as instituições os dois tipos de cursos (técnico
e especialização) possuem praticamente o mesmo programa, a mesma grade, e a mesma carga
horária. Embora a grade curricular seja estabelecida pelos órgãos normativos (secretaria de
educação estadual e Ministério da Educação), e por isso as variações programáticas de escola
para escola sejam pequenas, extra-oficialmente os conteúdos das disciplinas variam conforme
a orientação da instituição.
No caso da escola T, os conteúdos relativos aos fundamentos taoístas são enfatizados e
recebem maior carga horária. Nas escolas H e TH os fundamentos de medicina chinesa
correspondem à cerca de 30% do curso, oferecem maior variabilidade de conteúdos,
contemplando antigas e novas técnicas, orientais e ocidentais.
Nas escolas IH, a metodologia de pesquisa científica e os tratamentos específicos para
as enfermidades mais comuns são enfatizados no programa dos cursos. Mas disciplinas de
151
O curso de especialização de H, que até o último semestre atendia diversos profissionais da saúde, nesse
semestre corrente passou a aceitar apenas alunos fisioterapeutas e enfermeiros, alegando que H está credenciada
para oferecer especialização apenas pelo COFFITO (Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional) e
pelo COFEN (Conselho Federal de Enfermagem). Não sabemos o motivo dessa modificação.
211
metodologia para pesquisa também são oferecidas no curso de Pós-graduação da escola TH,
provavelmente é uma imposição do MEC. Como ilustração, colocamos alguns programas de
cursos no anexo, no final da dissertação.
A bibliografia é muito variável. As três escolas selecionadas utilizam apostilas
próprias. Segundo os entrevistados, os clássicos são citados nas apostilas, mas não leitura
direta desses textos. Os autores mais conhecidos dos alunos são B. Auteroche, G. Maciocia e
Tom Sintan Wen. É interessante notar que esses autores buscam uma ponte com a visão
biomédica ocidental. Alguns alunos graduados nas áreas da saúde disseram utilizar também o
livro do médico brasileiro Dr. Ysao Yamamura (“A arte de inserir agulhas”), lançado
recentemente. Muito embora Yamamura seja um militante pró “ato-médico”, seu livro utiliza
a linguagem “energética”, porém traduzindo Ch’i como bioeletricidade natural dos corpos.
A aluna Tânia Ti relatou que após formar-se na escola T em 1997, atuando
profissionalmente como acupunturista sentiu cobrança dos clientes no que se refere a uma
formação na área da saúde, que era graduada em História. Então decidiu fazer graduação
em fisioterapia e atualmente cursa especialização em acupuntura em uma escola para
profissionais da área da saúde, tipo IH. Em seu depoimento, observamos nitidamente as
diferenças de ensino entre as duas pontas do nosso gradiente, as escolas tradicionais e escolas
instrumentais-holísticas:
Ele (Tai) começa o curso falando do yin e do yang. E fica muito naquilo: o
que significa o preto, o que significa o branco, aquela bolinha no meio, e os
movimentos todos, e fala de I Ching também. Essa fundamentação filosófica é super
bem dada. No outro não. Inclusive as pessoas não sabem nem 5 elementos direito.
estão no segundo ano, sabem por um monte de pontos, mas você que a pessoa não
lembra direito, quem vem primeiro, madeira, fogo, entendeu? Que é o fundamento do
negócio.
Tânia Ti comenta a diferença do método pedagógico tradicional chinês, que não tem a
preocupação de traduzir para conceitos ocidentais, como nas demais escolas:
(...) E o Tai, apesar de não falar português direito, ele sabe bastante e você
acaba aprendendo. Aí que tá, o chinês tem um jeito completamente diferente de
ensinar, né. Então ele fala um negócio, mas não fala muito o porque, ele vai falar
porque depois, agora você não está preparado para aprender isso. Ele fala põe tal,
tal e tal ponto. É? Por quê? Ah, porque é assim. Na outra escola não, tem uma
tentativa de sanar essa ansiedade que a gente tem, né. Então tem uma explicação mais
fisiológica, eles tentam fazer essa ponte entre o Ocidente e o Oriente. no Tai não.
Só que o Tai é mais consistente em termos de medicina chinesa mesmo, né.
A aluna aponta também a tendência de praticar acupuntura conforme a racionalidade
biomédica, encontrada nas escolas IH:
(...) Eu estou um semestre (na nova escola), eu entrei no meio do
curso e tive um professor muito bom, mocinho. Ele tem toda essa noção de medicina
chinesa, ele não sai pondo ponto igual para todo mundo não. Mas ele tem uma
212
tendência mais, sei lá, ele é fisioterapeuta também, então tem uma tendência
fisiológica. Às vezes ele faz umas coisas que eu nunca vi o Tai fazendo. Por exemplo,
pega o músculo retro-femural e liga dois pontos. Não está preocupado com o
meridiano e tal, ele está preocupado com este músculo.
Comparando a escola tradicional com as holísticas (TH, H e IH), nessas últimas ocorre
maior tendência ao ecletismo e à modernização, bem como maior empenho na tradução da
acupuntura para a visão ocidental. Com a ressalva de que a escola TH recusa a substituição de
agulhas por alguns elementos (cores, sons, silício, esparadrapo), mas por outro lado,
ambiguamente, aceita o uso de imãs, laser e eletrônicos. O “teste do anel neuromuscular”,
rejeitado pela escola T, é amplamente estimulado pelas escolas H e TH para conferência do
diagnóstico realizado pelo método chinês. Outra diferença é a utilização auxiliar de
tecnologia, rejeitada pelos mais tradicionais.
Achar ponto com aparelhinho funciona? Funciona, que o chinês achava
pontos sem aparelhinho e funcionava muito bem. Porque para o cientista ocidental,
você precisa ter uma comprovação que todo mundo enxerga. E quando o camarada
está ensinando o método tradicional, ele fala o ponto é aqui. Mas por que aí? Você não
está sentindo? Não. Tem um desenvolvimento de sensibilidade mesmo, e alguns têm
mais habilidade, mais condição de desenvolver e outros tem menos. E essa
sensibilidade se adquire ao longo de muito tempo, coisa que o ocidental não tem
paciência de esperar. Então são princípios diferentes. Não que o aparelhinho não
localize os pontos, não que o ponto localizado com aparelhinho não funcione,
funciona, mas eu fico dependente do aparelhinho e não trabalho com a minha
sensibilidade. Acupuntura, a gente chama de arte de sabedoria, não de ciência.
Ciência é uma coisa muito seca. A arte é uma coisa que tem sensibilidade. Tem toda
uma técnica, mas tem algo de sensibilidade. Tem yin e yang juntos. Não tem só razão,
tem algo de intuição, tem algo de misterioso. A acupuntura médica não trabalha com o
conceito de Ch’i, trabalha com neurotransmissor. (Osvaldo, sacerdote taoísta)
Eu particularmente não gostaria nem de pensar nisso (na tecnologia) a
princípio, para não me acomodar na detecção. Eu ainda sou daqueles que prefere por a
mão mesmo, tentar sentir com a ponta do dedo. Então eu acho que tem que ter um
lado intuitivo bastante aguçado, você tem que ter uma percepção. Que não é
exatamente cognitiva. (aluno Thomas).
No que diz respeito ao público das escolas, também notamos algumas diferenças. Os
alunos que procuram a escola T são os que buscam conhecimentos taoístas. Aqueles que
escolhem a escola H o geralmente simpatizantes da cultura alternativa, muitas vezes o
praticantes de outras terapêuticas não-convencionais. Nessas duas escolas, T e H, o público
feminino é majoritário (cerca de 80%). Na escola TH, ao contrário das outras duas, o público
é mais variado (60 % mulheres) e os alunos mais freqüentemente são iniciantes, não tiveram
contato profissional prévio com as medicinas alternativas ou filosofias orientais. Talvez por
esse motivo a desistência no curso técnico da escola TH (30%) é maior que nas outras duas
213
escolas (10%). Um dos alunos explicou a desistência como um desapontamento dos alunos
sem prévia informação sobre concepções orientais:
Eu acho que num primeiro momento, você tem um grande encantamento, mas
quando você percebe que a coisa é mais em baixo, que não é fácil como parecia, que
de repente não basta você fazer, estar “viajando”, que talvez demore um pouco mais
de tempo para aprender aquilo, então as pessoas vão ficando mais desanimadas, elas
vão caindo mais na real. Algumas pessoas acabam desistindo do curso depois de 3
meses, porque percebem que é muito diferente do imaginavam. (alunos Thomas)
7.4 O diálogo das escolas com a sociedade brasileira: as práticas ambulatoriais
Todas as escolas pesquisadas possuem clínica e ambulatório para estágio ou aulas
práticas dos alunos. As consultas têm baixo custo (entre R$ 5,00 e R$ 20,00) e atendem
camadas baixas e médias da população. As principais características dos ambulatórios das
escolas tradicionais e holísticas (T, TH e H) são atenção e cuidado com o paciente, que é
tratado em sua singularidade, bem como a atuação pedagógica de orientar para hábitos
saudáveis.
Constatamos que no caso de alunos graduados na área da saúde, independente da
escola, prevalece a formação profissional original sobre o modelo chinês. Por exemplo, o
diagnóstico de uma dor é muitas vezes realizado pelo raciocínio biomédico e biomecânico, da
anatomia e fisiologia dos órgãos, sobretudo entre os fisioterapeutas, que tendem a identificar
as disfunções musculares e articulares com os movimentos mecânicos. Os psicólogos, por sua
vez, tendem a interpretar os sintomas pelos aspectos emocionais e psicossomáticos.
Quanto mais tradicional a escola, mais personalizado o atendimento. Nas escolas
instrumentais-holísticas o atendimento tende a ser mais genérico. Nas escolas IH a anamnese
não é detalhada; o quadro de equilíbrio individual não é analisado. A única pergunta é “quais
são suas principais queixas?”, e a escolha dos pontos é dirigida para os sintomas. À
semelhança do que acontece na rede pública de saúde, conforme já apontado por Nascimento
(1997) e Luz (1995), o atendimento é mais frio, técnico e sintomático. Inclusive, em algumas
escolas IH que mantêm parceria com médicos, o estágio é realizado em serviços públicos de
saúde.
De acordo com Luz (1995, p. 65) na rede pública o profissional atende mais de uma
pessoa por vez, as instalações oferecem pouca privacidade e muitas vezes o acupunturista fica
restrito a usar pontos que não impliquem em despir o paciente. Além disso, o tempo das
consultas está muito aquém do necessário para anamnese e diagnósticos mais aprofundados.
Na rede pública a acupuntura predomina totalmente sobre outros recursos como ventosa e
214
moxabustão, que exigem mais atenção ao paciente. Essas características foram percebidas no
ambulatório de uma escola IH que freqüentamos.
No que se refere às escolas tradicionais e holísticas (T, TH e H), o atendimento no
ambulatório é coletivo, mas o acupunturista atende um paciente por vez. São utilizadas
diferentes técnicas, das mais tradicionais às mais modernas, dependendo da escola, porque
para os alunos o ambulatório é um laboratório, é o espaço da experiência. As escolas mais
tradicionais (T e TH) improvisam um esquema de cortinas ou biombos para preservação da
privacidade e possuem algumas poucas salas pequenas para atendimento individual. O tempo
da primeira consulta varia entre uma hora (T e H) e duas horas e meia (TH). Essa consulta é
mais longa porque levanta o histórico de saúde do paciente. Na escola IH visitada, ao
contrário das outras escolas (T, TH e H), esse levantamento inicial durou cerca de 10 minutos.
No sentido de democratização da acupuntura, os ambulatórios das escolas representam
um importante papel. Embora com interesses utilitários, de divulgação para legitimação e
treinamento de alunos, os ambulatórios suprem as necessidades de parcelas populacionais que
não poderiam pagar consultas particulares que custam entre R$ 50,00 e R$ 100,00, nem
esperar por até seis meses na fila de ambulatórios públicos. Os ambulatórios funcionam como
um serviço de extensão das escolas para a comunidade. Além de proporcionar tratamentos de
saúde não convencionais, divulgam, informam, orientam. Pudemos observar que a ação
pedagógica de saúde se estende também aos funcionários, que acabam envolvidos de alguma
forma com as práticas orientais.
Citamos especialmente o ambulatório da escola H, que embora um pouco mais
instrumentalizado que as escolas T e TH, atende um grande número de pessoas. Aos sábados,
o espaço da escola H transforma-se numa grande feira de saúde (ervas, livros, sanduíches
naturais, artefatos, etc) que ocorre o dia todo em paralelo com as aulas e a clínica. Essa escola
localiza-se num bairro classe média-alta, mas nota-se entre os freqüentadores do ambulatório
uma maioria de mulheres, funcionárias da região, algumas empregadas domésticas, que
moram na periferia e que visitam a clínica aos sábados, muitas vezes levando os filhos. O
ambulatório, muito concorrido, não conta apenas com acupuntura, mas também com shiatsu e
florais de Bach.
Conforme depoimento do Prof. Hélio:
A escola H tem essa filosofia de não tratar apenas a doença e a dor, mas a
pessoa como um todo, tanto na clínica, quanto na escola, e procura passar isso aos
alunos. Porém, no ambulatório da clínica, porque a consulta é mais rápida, tem mais
gente, e às vezes o paciente é atendido por diferentes alunos durante o tratamento, é
necessário atender a principal queixa do paciente, e não é possível atingir o equilíbrio
energético. Mas no ambulatório da escola é diferente, porque o mesmo aluno
215
acompanha o paciente durante todo o tratamento, mais tempo para a consulta e
nesse caso é possível um aprofundamento, visando também à alteração energética.
Levando-se em conta que na contemporaneidade a medicina convencional hospitalar,
especialmente a brasileira, devido à crise ética que vem passando, é vista pela população com
o mesmo receio e desconfiança com que as pessoas do século XVIII viam as clínicas
(MARTINS, 2003), esses ambulatórios são “uma benção” para a população mais carente de
recursos, pois podem substituir o atendimento público com mais humanismo. Citamos o caso
de uma senhora com cerca de sessenta anos, doméstica, com problemas no joelho, aguardava
com esperanças sua primeira consulta no ambulatório de acupuntura. Não tinha medo das
agulhas, pois “se curava os japoneses” podia curá-la também. “Só não tenho em cirurgia”,
disse ela, já que “um vizinho tinha um problema na perna e saiu do hospital ainda mais torto”.
Em conversa informal com outra doméstica, ao terminar a sessão de shiatsu disse: “ah, minha
filha, eles são uns anjos na terra, a gente sente uma felicidade quando sai daqui”.
7.5 A invenção de novas técnicas
Os holísticos são campeões na invenção de técnicas, de jeitos novos de praticar a
acupuntura. Criaram rias novas técnicas inspiradas ns teorias chinesas tais como a
cromopuntura ou colorpuntura, que são estímulos dos pontos com luzes coloridas; acutone,
estímulo através de sons; stipper, estímulo com pílulas de dióxido de silício; magnetoterapia,
estímulo com imãs; e muitas outras.
Algumas novas técnicas foram criadas no Brasil por médicos
152
e “não-médicos”,
como, por exemplo, a terapia Atan, que utiliza fita adesiva para estimular ou sedar pontos.
Conforme a combinação de recortes da fita, são gerados símbolos, de modo que o desenho do
esparadrapo (se vazado ou cheio) determina a tonificação ou sedação de Ch’i. A
auriculoterapia com sementes de mostarda é uma técnica antiga, mas uma inovação brasileira
foi a combinação do estímulo do ponto com a propriedade terapêutica de sementes de plantas
brasileiras (fitoacupuntura). Por exemplo, o estímulo dos pontos com semente de mamão teria
efeito no funcionamento intestinal, de acordo com uma aluna.
Diversas novas técnicas diagnósticas e terapêuticas são utilizadas pelos acupunturistas
brasileiros, citaremos apenas as mais usadas como o teste neuromuscular do anel (B-digital ou
152
Também o médico brasileiro Dr. Ysao Yamamura, da AMBA, desenvolveu um novo micro sistema (retrato
holográfico do corpo) de Ossos Longos, Crânio e sculos, que “envolve os conceitos dos Canais de Energia
(Meridianos), simetricidade do corpo com o Jing Shen (Essência dos Rins)”. Cf. Cursos exclusivos para médicos
acupunturistas. CENTER-AO - Centro de Pesquisa e Estudo da Medicina Chinesa. Acesso em: jul. 2007.
216
O´RING), baseado no magnetismo e na cinesiologia aplicada (que reúne cinesiologia,
medicina tibetana, indiana e chinesa). Supostamente o teste é científico, já que é desenvolvido
pela Touch for Health Foundation, reconhecido oficialmente pela comunidade médica dos
EUA. Essa técnica foi divulgada através do livro “Seu corpo não mente”, de John Diamond
(1978).
Consiste numa espécie de oráculo corporal, em que respostas a perguntas sobre o
corpo e saúde do indivíduo são obtidas através da medição da força muscular produzida pela
união dos dedos polegar e indicador do paciente. Por exemplo, indaga-se ao corpo se ele pode
comer certo alimento ou não, um vidrinho contendo esse alimento é colocado na mão do
paciente e o terapeuta mede a força neuromuscular do anel da outra mão. Maior força indica
uma resposta afirmativa, menor força significa resposta negativa. Essa força oscilaria
conforme a “energia” (positiva ou negativa) de determinados elementos. Assim, o contato
com um celular ligado ou uma barra de chocolates diminuiria a resistência, enquanto o
contato com um copo de água mineral aumentaria a resistência.
Esse teste é especialmente utilizado por holísticos (incluindo tipos híbridos com
tradicional ou instrumental) para confirmar os diagnósticos realizados por métodos
tradicionais chineses (pulsologia, língua, etc). No imaginário acupunturista, o teste do anel
representa uma forma objetiva de diagnóstico. Por trás dessas idéias encontram-se o retorno à
natureza e a reflexividade atribuída ao corpo: “o corpo sabe, o corpo fala” (CAROZZI, 1999),
“no corpo uma natureza sábia”, “os produtos artificiais roubam energia”, enquanto “dos
produtos naturais e orgânicos se obtém a energia positiva”. Foi inventado por um “não-
médico”, que vendeu a patente para os médicos, de modo que o termo O’RING está proibido
para os profissionais sem formação em medicina.
Também ocorrem recriações de várias técnicas tradicionais chinesas baseadas em Ch’i,
como o Chi Kung, que atualmente é utilizado na rede pública de saúde sueca com o nome de
Chi Kung Médico e vem sendo divulgado por médicos no Brasil. Também falamos da
“técnica de mobilização de Ch’i mental”, desenvolvida por um médico brasileiro, e de outra
técnica tradicional, a tartaruga mística (seleção de acupontos de acordo com data e horário de
nascimento), que foi rebatizada de cronoacupuntura.
A colorpuntura pode ser explicada de forma científica, segundo um palestrante do
congresso de acupuntura. Nessa aula, podemos observar o modo holístico de secularizar os
aspectos sutis:
Não basta mais ter resultados, mas temos que mostrar que funciona
cientificamente, para ser reconhecido pela comunidade científica. O que é
217
colorpuntura? É aplicar cores nos pontos, não porque são mágicos ou místicos, mas
porque têm fundamento científico. Como entende a medicina tradicional chinesa,
quando Ch’i é energia física, dentro do corpo humano manifesta-se como corrente
elétrica. O corpo é um sistema bioelétrico. Para produzir hormônio tenho que gerar
carga elétrica, impulso elétrico. Acredito que seja a carga elétrica que estimule a
neurotransmissão. (...) A colorpuntura trabalha coma a memória interna das células.
Foi comprovado que as células se comunicam por feixes de luz. Duas energias básicas
no mundo, a luz e o som. (...) A agulha atua no plano físico, a luz atua no bioelétrico
do corpo.
Seguindo os mesmo princípios, o acutone - estímulo dos pontos através de ondas
sonoras emitidas por diferentes diapasões - foi inventado na década de 1970 por um músico
francês que esteve no Oriente. Cada nota musical teria uma função. Para explicar
cientificamente o acutone, o palestrante se valeu de exemplo citado em um filme clássico
holístico (“Quem somos nós”), em que a configuração microscópica das moléculas da água é
afetada de forma harmônica ou simétrica por uma música clássica, e de forma caótica por uma
música agitada. Diz o palestrante: “assim como as ondas sonoras afetam a água, afetam
também o nosso corpo, que é majoritariamente composto por água”.
No mesmo congresso para multiprofissionais falavam de acupuntura à distância,
através da radiônica
153
, uma para-ciência prima da radiestesia. Deram exemplos de uma
espécie de “vudu”, em que um boneco era espetado por uma agulha com o fio de cabelo do
paciente. Dessa forma, afirmam, o paciente poderia ser tratado a quilômetros de distância.
Apresentaram aparelhos eletrônicos desenvolvidos na Alemanha (local de referência
para a cientificidade): Vega-test, EAV (eletro acupuntura de voll) e Quantec
154
, que não
avaliam energeticamente o paciente através de fotos, energias das mãos ou fio de cabelo,
como são capazes de registrar informações, de dosagens homeopáticas e de pontos de
acupuntura a serem estimulados, em cartões magnéticos que seriam usados nos bolsos dos
pacientes, para efeito de tratamento. Mais que energético, o tratamento seria magnético.
Outros aparelhos seriam capazes de dinamizar a água produzindo remédios homeopáticos.
153
Radiônica é uma para-ciência que trabalha com conceito de troca de energia entre os indivíduos e o ambiente,
uma espécie de “feng-shui hi-tec”. Segundo a radiônica, as redes elétricas, celulares, etc, bem como aquelas
desavenças familiares ou sociais interferem negativamente nos organismos provocando doenças. A radiônica
trabalha com o conceito de vários planos corporais do mais sico aos mais sutis, está baseada no esoterismo,
ocultismo e magnetismo. Cf. Radiônica. Biolifestyle. Acesso em: ago. 2007.
154
O QUANTEC custa US$ 12.000, determina tratamentos de acupuntura, homeopatia e florais, faz leitura de
tarot e anjos, também realiza tratamento à distância; é capaz de medir energia do ambiente e usa cristal de
quartzo; explicações baseadas nos “campos mórficos ou morfogenéticos”, “consciência coletiva” e “memória
universal nas células”.O VEGATEST: custa entre US$ 20.000 a 30.000, faz diagnóstico e gravação de cartão
magnético com ondas inversas de biorritmo. diversos modelos, alguns também tratam por som ou cor. Sua
explicação baseia-se na “bioressonância” (informação de palestrante no IX Congresso Nacional de Acupuntura e
Moxabustão – nov. 2006). Veja nas referências os sites: QUANTEC e VEGA.
218
Todas essas técnicas têm excelentes explicações principalmente baseadas nas “teorias
dos campos morfogenéticos”, ainda não validadas pela ciência. São todas práticas
“energéticas”, “mágico-religiosas”, que preferimos denominar de “holísticas”, baseadas na
idéia de transmissão de energia, de cura ainda no plano sutil, de equilíbrio de energia do corpo
no plano físico, psíquico e algumas poucas vezes também no plano espiritual.
Como já comentamos, as explicações mais freqüentes sobre a energia estão associadas
à eletricidade, ou bioeletricidade do corpo, mas ouvimos também explicações a partir da
informática: transmissão de informações através de impulsos elétricos, codificação e
decodificação, “a Internet é algo invisível, mas que existe”. Nossa impressão é que a própria
concepção de energia está se transformando para a concepção de informação.
Essa idéia foi levantada por um físico (holístico), especializado em psicossomática, em
um congresso junguiano. Mas observamos que é uma tendência de explicação entre os
acupunturistas holísticos e instrumentais-holísticos. De acordo com o físico (ROCHA FILHO,
2003), a noção de energia surgiu por causa da quina a vapor, que dependia de energia para
se movimentar. “O universo inteiro foi sendo compreendido em termos energéticos”. Na
opinião de Rocha filho, depois da física quântica e do princípio da incerteza, esse paradigma
universo-energia estaria ultrapassado, e agora ficaria melhor renomear a energia de
informação; seria um modelo informacional. Ele relaciona essa informação com a intenção do
pensamento transmitida em ondas, que afetaria o nível subatômico, conforme a famosa
(embora não citada pelo físico) “lei da atração”, que rege o imaginário das novas
religiosidades. Argumenta o físico:
A energia não tem estrutura, não é composta, e na verdade sequer é algo
material. A energia é um potencial de realização de trabalho, e como potencial, é mais
filosófico que material. (…) que energia depende da forma. Isso é informação, não
é energia. A quantidade de informação que algo possui define sua complexidade, e é
essa informação que determina como a energia será utilizada.
No caso da homeopatia, Rocha Filho diz que não vê melhor exemplo para a
substituição do modelo energético pelo modelo informacional, enquanto forma de explicação.
Vocês vêem essa água aqui nesse vidrinho? Eu a pego e chacoalho cem vezes.
Essa água nunca mais vai ser a mesma, pois essa água esteve na minha mão e nela tem
alguma coisa diferente, com toda certeza. Eu não tenho a menor dúvida disso e nem as
pessoas que acreditam em homeopatia. Mas se você mandar para um laboratório eles
não vão achar nada diferente nela. Não vai ter um átomo estranho. Não vai ter cheiro,
nem uma partícula diferente, não vai ter esquentado nem esfriado, e os laboratoristas
vão dizer: “aqui só há água”. Mas nós sabemos que tem alguma coisa diferente aqui. O
que essa água ganhou quando foi chacoalhada por mim, e não por uma máquina, foi a
minha intenção de levar a cura a outro ser. Intenção que agora é simbolizada pela
água, que é levada pela água. Chacoalhar, então, é um processo necessário apenas no
nível simbólico. O que a água ganhou foi informação. (…) Essa água contém um
219
significado e se isso for mostrado para alguém, e a pessoa perceber a informação
contida nessa água, ela pode ser curada.(…) Não há nada nessa água a não ser
intenção de cura. E funciona. Mas intenção não é energia, não é campo. É informação.
Mas então, como ficam os medicamentos homeopáticos produzidos por máquinas que
“gravam” informações programadas na água (qual medicamento, qual potência, etc). E os
cartões magnéticos para a cura? Em que medida conteriam intenção de cura?
As contradições e ambigüidades predominam no meio holístico, sobretudo quando
pretendem justificar as novas técnicas de acordo com concepções científicas. Apesar da
rejeição da associação da acupuntura com práticas gico-religiosas, explicitada em
discursos, os acupunturistas holísticos utilizam tratamento energético à distância (aquela
espécie de “vudu” que citamos) e recomendam a utilização de um adesivo (com um desenho
pictórico capaz de barrar freqüências “negativas”) no aparelho celular para evitar a
interferência das ondas eletromagnéticas. Apesar da preconização do retorno à natureza
primordial da humanidade, da reaproximação médico-paciente e da reumanização da
medicina, os diagnósticos e tratamentos tecnológicos, que são recursos da racionalidade
biomédica operados pelo principio da objetividade, são incluídos e bem aceitos nas práticas
holísticas, embora distanciem o terapeuta do paciente pela mediação do equipamento.
É interessante notar que, ao mesmo tempo em que a tecnologia é de certo modo
fetichizada por alguns poucos acupunturistas, o tema da contra-modernidade e a idéia de que
“a modernidade está doente”, no sentido de “crítica às características da civilização moderna,
como o materialismo, a industrialização e o artificialismo” (ALBUQUERQUE, 2004, p. 143-
144), comparecem fortemente no discurso da maioria dos palestrantes dos congressos que
assistimos. O modo de vida contemporâneo causa doenças, bem como a presença de antenas
de celulares, rádio e TV, fios da rede elétrica, a poluição, a pouca atividade física,
sedentarismo, alimentação inadequada, agrotóxicos. Falta seguir o ritmo natural para obter
saúde. Isso indicaria o desejo de “recuperação de qualidades inatas ou inerentes ao ser
humano, como forças imemoriais, energias, harmonias ou equilíbrios, perdidos com a
modernidade” (ALBUQUERQUE, 2004, p. 143-144). Pudemos perceber isso nas palestras
dos congressos que assistimos
155
:
Na modernidade, no escritório, não recebemos a luz solar, há sintomas que são
atribuídos ao emocional, mas são bioelétricos, não têm consistência física, mas
energética. Duas laranjas, uma cultivada organicamente e a outra não, depois de três
dias a orgânica está apodrecida porque com agrotóxicos a carga elétrica é menor.
155
Assistimos os seguintes congressos: X Congresso Nacional de Acupuntura e Moxabustão (22-24 set. 2006) e
II Congresso de Terapias Tradicionais e Vibracionais (17-19 nov. 2006).
220
Quando o ser humano ingere alimentos sem carga elétrica fica doente. A gente precisa
repor a carga elétrica senão adoece.
As pessoas estão cada vez com o sistema imunológico mais inibido, não
porque fazem menos atividades físicas, não é porque alimentação piorou, antes
comiam porco com polenta, e hoje em dia as pessoas vão para as academias. Mas
porque elas se alimentam somente de substâncias químicas, porque têm menos carga
elétrica. A gente esquece do sutil, da freqüência de ondas.
Antigamente não havia açúcar e chocolate, no máximo uma fruta, não havia
sal refinado. Na China não tinha gado, no máximo porco, rapadura ou mel. Não
adianta tonificar baço-pâncreas se continua comendo açúcar, com stress e
sedentarismo, morando do lado de uma casa noturna. muitos parasitas no
ambiente: acústicos, eletromagnéticos (celular, micro-ondas), geopatogênicos (feng-
shui, correntes de água, etc).
Até a década de 1960 as doenças estavam mais no plano físico, eram
decorrentes de atividades na agricultura, por exemplo. Deixamos de ficar doentes por
fatores externos (vento, etc.). Quando minha mãe lavava roupa no tanque a
possibilidade de vento frio era maior. Mas hoje temos as ondas eletromagnéticas.
Fomos treinados para ver as coisas físicas, mas impulso nervoso é eletro-magnético.
7.6 Conclusões sobre a pesquisa de campo
Constatamos que entre os acupunturistas entrevistados ocorre uma rejeição à religião
como modo de explicação do mundo, predominando uma tentativa de justificar as
características sutis do tratamento pela acupuntura através da ciência (uma ciência que, na
concepção nativa, está atrasada, mas no futuro poderá explicar fatores metafísicos).
Visivelmente um receio geral de que a credibilidade da acupuntura possa ser abalada pela
associação com misticismo, esoterismo ou metafísica. Por isso, tendencialmente, a
religiosidade presente na acupuntura está oculta nas entrelinhas, no conceito de energia ou
Ch’i, mas a “energia” não é associada pelos acupunturistas com aspectos mágico-religiosos,
ela é “naturalizada”.
Evidentemente, esse é um recurso de legitimação da acupuntura, pois nenhuma
explicação para Ch’i ou energia vital foi encontrada por enquanto. Além disso, as novas
formas de religiosidades individualizadas e compostas à moda bricolage permitem que muitas
crenças gico-religiosas não sejam percebidas assim por seus usuários. Conforme foi
observado por D’Andrea (2000), quem é Nova Era em geral não sabe que é, ou não admite.
Portanto, cristais, radiestesia, magnetismo, são vistos como científicos, não como técnicas
mágico-religiosas ou espirituais. É nesse sentido que afirmamos que a associação entre
religiosidade e acupuntura é rejeitada, mas, no entanto, mantém-se de forma dissimulada.
221
As crenças holísticas ainda são predominantes entre os acupunturistas, principalmente
entre os mais antigos, formados na primeira fase de adoção (entre 1958 e 1995), e encobrem
uma espécie de religiosidade não-institucional que recorre à conjugação de explicações
científicas e mágico-religiosas para justificar a existência de realidades extraordinárias, como
são os “corpos sutis” e a “energia”. A necessidade de legitimação científica está relacionada
com um descrédito da religião como forma de explicação da realidade na atualidade
(BERGER, 1985), porém esse fato não impede a permanência de crenças, que apenas
adquirem uma “maquiagem” científica.
A holística seria uma mediadora que atualiza os referenciais cosmológicos chineses
em formas contemporâneas de religiosidade, baseadas em explicações racionalizadas,
conferidas por conhecimentos filosóficos e psicológicos, e em experiências individuais, que
incluem o cuidado com a saúde e o corpo como práticas espirituais do cotidiano. Por outro
lado, a holística fornece uma referência limítrofe que afasta a acupuntura do curandeirismo
popular e ao mesmo tempo possibilita uma identidade para os terapeutas, que os distingue da
prática alopática da medicina convencional, já desacreditada, como observou TAVARES
(1998) sobre o holismo terapêutico no Rio de Janeiro.
Conforme apontamos, muitos acupunturistas possuem crenças que implicam na
existência e transmissão de algum tipo de energia vital entre as pessoas. Acreditam,
sobretudo, na doação de energia do terapeuta para o paciente: “o acupunturista é sugado”. A
questão da crença no “vampirismo” do paciente foi analisada por Daniel Luz (apud LUZ, M.,
1995), já que é uma recorrência também encontrada entre os acupunturistas dos setores
públicos de saúde. O autor entende que “trata-se de sincretismo entre as noções de contágio e
transmissão com as de energia vital: o adoecimento é um desequilíbrio na energia vital, que
pode ser transmitido para ou absorvido pelo terapeuta” (apud LUZ, M., 1995, p. 73). Na
opinião de Daniel Luz:
Essas representações, vale dizer, vão contra a tradição da medicina chinesa,
em que o padrão singular de desordem do Ch’i de um sujeito não pode de forma
nenhuma se transmitir para outro, nem o Ch’i de uma pessoa pode ser sugado por
uma adoecida. Um terapeuta pode conseguir a transmissão do Ch’i curativo pela
palma da mão para reverter quadros de desarmonia, mas para tanto tem que treinar
arduamente a disciplina (....) O que a tradição chinesa propugna é que o terapeuta,
como qualquer pessoa sensata, faça uso de treinamento para que o desgaste inerente a
suas atividades não prejudique sua saúde (LUZ, D., apud LUZ, M., 1995, p. 73).
No âmbito das ciências da religião, entendemos que a crença na transmissão de
energia é arraigada na cultura brasileira, fortemente impregnada pela religiosidade africana. A
inveja, o mau-agouro, o olho-gordo, a “benzeção”, são representações do imaginário
222
brasileiro presentes em todas as correntes religiosas, mesmo as mais cristãs. De forma que,
principalmente após os anos 1980, essa idéia de contágio foi facilmente sincretizada com a
energia vital das medicinas alternativas, com as concepções orientais de circulação de Ch’i
no Universo, e com a bioenergia das correntes pós-psicanalíticas.
Os alunos que são profissionais da área da saúde apresentam maior resistência à
assimilação das concepções “energéticas” de corpo e adoecimento. Mas conforme os
depoimentos de alunos e professores, algumas representações de saúde são assimiladas
durante o curso de acupuntura entre os alunos de forma geral, como por exemplo, a
importância da alimentação e exercícios físicos, a responsabilidade individual sobre a cura, o
auto-cuidado, os hábitos preventivos de saúde, o equilíbrio de energia, a relação entre físico e
psíquico, etc. Vários alunos relataram mudanças de hábitos nesse sentido.
Detectamos que a acupuntura instrumental, aquela sem comprometimento com os
princípios tradicionais ou com os ideais alternativos, e que divulga uma acupuntura
direcionada para o combate à dor, vêm se proliferando no séc. XXI, proporcionalmente à
modificação do perfil dos alunos que procuram cursos de acupuntura na única perspectiva de
especialização profissional.
De acordo com a Prof.a. Helena, o perfil dos alunos que procuravam os cursos de
acupuntura vem mudando desde o início do milênio. Antes eram pessoas mais velhas, que
tinham formação em diversas áreas, e atualmente são pessoas bem mais jovens, recém-
formadas no ensino médio, ou recém-graduadas nas áreas da saúde. Prof.a. Thaís concorda
que o perfil dos alunos mudou bastante. Disse que antes procuravam estudos em medicinas
alternativas em geral, para auto-conhecimento, para cuidar de si mesmos, da família e dos
amigos. Faziam um “sincretismo mais religioso”, diz ela, combinando religiosidades hindus,
japonesas, chinesas. Desde 2002, mais ou menos, os alunos são muito jovens, recém-
graduados, principalmente em fisioterapia, e ainda são hesitantes com relação aos
fundamentos da acupuntura.
Com a ampliação do mercado profissional, a tendência à mercantilização da
acupuntura é grande. Não podemos deixar de considerar que o utilitarismo foi determinante
na vertente da prosperidade, presente nas religiosidades alternativas desde o séc. XIX. Assim,
o pragmatismo também marca o discurso holístico contemporâneo, conforme indicado em
capítulos anteriores. As escolas holísticas já falam em acupuntura em massa nas empresas,
com técnicas energéticas que permitem o atendimento de até 80 pessoas num mesmo dia
156
.
156
Informações coletadas em palestras no X Congresso Nacional de Acupuntura e Moxabustão. 22-24 set. 2006.
223
Os cursos de especialização são cada vez mais popularizados e a carga horária de
1.200 horas, estabelecida pelos órgãos públicos de educação, é insuficiente para a formação
com qualidade. Poucos alunos pensam como o aluno Thomas, que acredita ser necessária uma
educação continuada do acupunturista, que não deve ficar restrita ao curso básico:
Eu acho que um bom acupunturista é uma pessoa que saiba estudar. Que num
curso de um ano e meio com habilitação técnica, não vai conseguir entender e apurar o
conteúdo juntado em 2.000, 3.000 anos, não é possível. Tem que ter uma humildade
de saber que não vai conseguir aprender tudo, que o vai dominar todas as técnicas.
Você precisa ter acesso à bibliografia, não para você estudar com apostilas.
Então um bom acupunturista é aquele que sabe pesquisar, que tem um interesse,
espírito de procura, né. Que vai em busca de prática, de um bom mestre, que ele não
vai ficar sozinho. Então ele vai para uma escola para ter uma graduação, para ter uma
coisa legalizada, mas depois de um ano e meio em uma escola não garantia de que
você saiba. Eles te dão até coisas bastante avançadas, mas e aí, como é que você vai
articular tudo, como é que você vai fazer aquilo? As pessoas não têm espírito de
procura. Elas estão esperando que alguém passe aquilo para você. É como se não
tivessem entendido ainda que a medicina chinesa é pesquisa, é vivência. Poucas
pessoas que eu tenho visto ficam horas e horas estudando, que eu acho que é
adequado. Agora eu não sei como vai ser no futuro.
De acordo com o relatório OMS (2002), o ideal seria que acupunturistas médicos
cumprissem uma carga horária mínima de 1.500 horas e os não-médicos uma carga horária de
2.500 horas. Mas nesse caso, a concepção vigente é que as 1.000 horas de diferença seriam
preenchidas com disciplinas da racionalidade biomédica (anatomia, fisiologia, etc). Na
realidade, os cursos para técnicos com nível educacional médio, por possuírem maior carga
horária e freqüência diária, são muito mais aprofundados nas disciplinas orientais do que os
cursos para profissionais da saúde. No entanto, os cursos técnicos tendem à extinção, pois
cada vez mais a sociedade brasileira cobra uma formação de nível superior dos
acupunturistas.
De acordo com palestra do Dr. Huan em congresso de acupuntura, o acupunturista
chinês contemporâneo estuda cerca de 5 anos, dos quais 2 anos e meio são dedicados à
medicina convencional. Mas os acupunturistas chineses antigos, como o tradicional mestre
Tai, por exemplo, cumpriam uma carga horária muito maior, estudavam cerca de 7 anos,
dedicados apenas à medicina tradicional e ao estágio prático (informação de Tânia Ti, baseada
em relato de Tai em aulas).
Além disso, os cursos de acupuntura estão se tornando uma fonte de novos
empreendimentos, como importação e comércio de fitoterápicos chineses e artefatos para
massagem e acupuntura, e, mais recentemente, viagens monitoradas para a China, seja para
turismo, seja para cursos rápidos. O mercado de trabalho voltado para a indústria do bem-
estar, está crescendo vertiginosamente, conforme indica a reportagem abaixo. A acupuntura
224
tende cada vez mais a engrossar esse filão de “qualidade de vida e bem-estar”, principalmente
conforme a área da saúde for ficando saturada, e mais profissionais das áreas biomédicas
forem se deslocando para a acupuntura e outras terapêuticas holísticas.
Segundo a revista Vencer:
O mercado de trabalho para os profissionais do bem-estar, que se dedicam a
práticas e terapias corporais, vai de vento em popa. Violência, trânsito, custo de vida
elevado, jornada de trabalho estressante, competitividade, pouco tempo para se
alimentar bem, desfrutar momentos de lazer e cultivar laços afetivos – tudo isso
contribui para o aumento do estresse e suas conseqüências como dores musculares,
enxaquecas, ansiedade e noites mal-dormidas. Ávido por encontrar alívio para esses
males, é cada vez maior o público de academias, centros terapêuticos, clínicas, spas
urbanos... São pessoas em busca de tranqüilidade, paz de espírito e, principalmente, de
um corpo relaxado após um dia atribulado. (...) Talvez por ser a cidade brasileira com
maior número de pessoas estressadas por metro quadrado, São Paulo reúne um
panorama mais generoso de ofertas, pois concentra ainda uma quantidade significativa
de clínicas de estética (que cada vez mais apresentam terapias alternativas em seus
serviços) e hotéis de luxo, equipados com spas. A cidade abriga também um número
impressionante de cursos do setor. (...) Preocupadas com a qualidade de vida de seus
funcionários e também com o número de faltas justificadas com atestado médico –,
algumas empresas vêm adotando a ginástica laboral como rotina. De quebra, abre-se
mais um espaço no mercado de trabalho para os profissionais dessa área
157
.
Como apontou o ex-presidente do SATOSP, a saturação do mercado profissional dos
acupunturistas não demora. Nesse caso, a disputa por clientes pode ficar ainda mais acirrada.
Ousamos prever que quando o conflito entre médicos e “não-médicos” for resolvido, novas
disputas políticas surgirão, desta vez dentro do campo “não-médico”, pela hegemonia
profissional das práticas. Por exemplo, segundo o pensamento de alguns acupunturistas
fisioterapeutas “a fisioterapia é a profissão mais próxima da acupuntura, principalmente no
que diz respeito à reabilitação”. É interessante notar que começa a surgir uma mobilização dos
fisioterapeutas pela apropriação de cnicas orientais de massagem, tais como o shiatsu e a
quiropraxia, e dos educadores físicos, pelo monopólio das técnicas corporais ocidentais, como
as artes marciais e o Tai Chi Chuan.
157
Cf. Profissionais do bem-estar. Revista Vencer n. 58. Acesso em: ago. 2007.
225
CONCLUSÃO
Retomando a idéia condutora desse trabalho, entendemos que qualquer um dos tipos
de práticas encontradas entre os ocidentais são reinvenções contemporâneas da acupuntura.
Dizemos isso porque qualquer tentativa de tradução das concepções chinesas recai numa re-
significação do ponto de vista ocidental. Nesse sentido, mesmo a acupuntura tradicional, mais
próxima da acupuntura chinesa antiga, quando praticada por brasileiros está sujeita às
interpretações ocidentais, especialmente as holísticas. Sabemos que as tradições não se
mantêm intactas, são dinâmicas mesmo entre grupos étnicos, por isso a acupuntura praticada
no ambiente étnico não pode ser considerada exatamente uma reinvenção, mas seria ingênuo
supor que não ocorra interferência da cultura brasileira na prática tradicional. Esse tema, no
entanto, demanda investigações mais aprofundadas.
A acupuntura holística, que inclusive prescinde das agulhas, nada mais é do que uma
invenção baseada nas artes terapêuticas chinesas, que agrega técnicas “místico-esotéricas” -
tais como alinhamento de chakras, radiestesia, cura à distância - com psicologia junguiana,
alta tecnologia (aparelhos eletrônicos) e tentativas de explicações científicas segundo uma
“nova ciência”. Por último, o que então dizer da técnica de inserir agulhas, inventada pela
medicina convencional ocidental, a acupuntura instrumental, que, com o pretexto de
modernização, descartou todos os pressupostos da medicina chinesa e ficou apenas com as
agulhas?
Podemos, então, falar de múltiplas reinvenções contemporâneas da acupuntura, que,
pensando em dois extremos mais pragmáticos, vão desde a perspectiva holística de reposição
energética do desgaste causado pelo sedentário modo de vida urbano, até a perspectiva
científica, de submissão ao referencial neurobiológico. Esse último reduz a arte chinesa à
técnica protocolar de eliminação dos sintomas de enfermidades mais frequentes, que
interferem na produtividade dos trabalhadores nas sociedades industrializadas. Em comum,
todos os tipos de prática possuem: a) a crença na eficácia da acupuntura, independente da
explicação para o fato; b) a defesa de um tratamento menos agressivo (e natural) que possa
reduzir os efeitos perniciosos dos medicamentos químicos.
Em cada uma das modalidades descritas, determinados elementos são preservados,
modificados e descartados. O tipo tradicional tende a manter maior quantidade de elementos
e concepções originais, mas as traduções das categorias taoístas para concepções holísticas
são definitivas. O tipo holístico descarta as agulhas para buscar novas possibilidades,
modifica as concepções taoístas para aproximá-las do pensamento científico, moderniza as
226
práticas para torná-las mais objetivas, porém preserva a concepção de integração cósmica
entre os seres através de energia. O tipo instrumental, por sua vez, descartará os fundamentos
taoístas, modificará as práticas e as explicações para adequar a acupuntura aos procedimentos
científicos, e preservará apenas as agulhas.
Claro que a convivência entre diferentes formas de atuação faz parte da gica da
modernidade tardia e do pluralismo característico das metrópoles, assim encontraremos
diversas modalidades de acupuntura convivendo em São Paulo, da mais tradicional à mais
ocidentalizada, conforme os três modelos descritos, na maior parte das vezes hibridizados.
Contudo, é possível que em outras regiões do país, mais conservadoras, predomine uma
acupuntura tipicamente instrumentalizada, que é a mais propagada nas redes públicas de
saúde, pois oferece maior confiabilidade. Esse assunto também mereceria novos estudos.
Evidentemente, ainda haveria muito por investigar, considerando-se os poucos
trabalhos acerca da acupuntura e das medicinas alternativas no Brasil, bem como a
complexidade e dinamismo inerentes a um campo híbrido entre saúde e religião, como foi
assinalado por Champion (2001). No entanto, após a pesquisa alguns pontos podem ser, senão
respondidos, ao menos vislumbrados. Então, para finalizar esse trabalho, retornamos a
algumas das nossas indagações iniciais.
No que diz respeito às condições culturais que favoreceram a adoção da acupuntura
em contextos ocidentais, destacamos alguns principais fatores (LUZ, M., 2005; MARTINS,
2003): a) as alterações de valores religiosos e representações corporais produzidos pela
contracultura; b) a busca de tratamentos mais personalizados, face à mercantilização da
medicina convencional; c) as descobertas recentes das neurociências, que atestaram a
influência das emoções no estado de saúde; d) o baixo custo do tratamento, a ausência de
efeitos colaterais e de contra-indicações.
A consolidação da acupuntura como uma das estrelas das medicinas alternativas, junto
com a homeopatia, ocorreu graças às contestações dos valores vigentes promovidas pela
contracultura, que culminaram na aceitação do corpo como veículo de prazer e salvação nesse
mundo, e na idéia de ligação entre todos os seres através de uma “essência cósmica”
manifesta em “energia”. O movimento de contracultura anunciou uma reação contra o
progresso, contra a excessiva racionalização do mundo, contra a artificialidade da vida
moderna. Propôs o retorno à natureza e o resgate do corpo enquanto natureza. Questionou a
superioridade do espírito e da razão sobre o corpo. Todas essas idéias vêm interferindo nas
representações corporais, ao mesmo tempo em que oferecem suporte para a religiosidade do
Eu - baseada no auto-cuidado, na busca de salvação neste mundo através do corpo, na
227
manutenção da saúde como sinal de virtude, na expressão das emoções, no retorno da
espontaneidade corporal, no culto ao prazer e ao otimismo.
A maior procura por tratamentos orientais, como é a acupuntura, indica, por um lado
um processo de alteração das concepções de corpo e saúde no Ocidente, que incluem
realidades não-palpáveis. Mas, por outro lado, como apontamos, na transplantação para
novas culturas as práticas orientais foram recriadas e adaptadas aos novos contextos, perdendo
características originais fundamentais e assimilando concepções ocidentais. Nos referimos,
sobretudo, à sua inclusão no mercado de bens de cura e sua submissão à lógica do consumo.
Embora na atualidade idéias ligadas às medicinas alternativas, como, por exemplo, o
“retorno ao natural” e “integração entre ser humano e natureza”, tenham se acomodado à
produção e consumo de bem-estar, e correspondam a um certo hedonismo, em que predomina
o cultivo do corpo saudável e perfeito, a propagação das novas concepções corporais resultou
de um protesto contra valores utilitários, que propiciou a ampliação da procura por
tratamentos medicinais não-convencionais. O ideal de tratamento natural, no qual se inscreveu
a acupuntura, acabou por ser apropriado de modo utilitário, dentro da perspectiva da
“indústria do bem-estar”, de incentivo às práticas de combate ao stress e eliminação de
pequenos distúrbios e enfermidades.
Além das transformações sócio-culturais ocorridas na segunda metade do séc. XX, que
afetaram paralelamente a esfera religiosa, as concepções de corpo e saúde e as convicções da
medicina alopática, também o plano macro-político ofereceu condições para a implantação da
acupuntura em países ocidentais. Lembramos que a ampla difusão da acupuntura no Ocidente
contou com o incentivo da OMS, uma vez que a crise mundial de saúde requeria métodos
mais eficientes e baratos, proporcionados pelas medicinas tradicionais e alternativas.
A mundialização da acupuntura também foi fortemente apoiada pelo governo chinês,
que pretende disseminar uma técnica secularizada e aumentar as exportações de
medicamentos não-alopáticos chineses. Por último, com a expansão do mercado de produtos e
serviços voltados para o “bem-estar e qualidade de vida”, a acupuntura despertou o interesse
da comunidade científica, que se empenha em pesquisas que permitam estabelecer critérios
que determinem o controle da acupuntura por instâncias normativas do saber.
No Brasil, a conversão da acupuntura em procedimento científico causou grande
impacto nas práticas anteriores. Primeiro, porque a partir de 1995, com o “ato médico” que
iniciou a quarta onda de transplantação, vem ocorrendo uma reformulação das explicações
sobre a ação da acupuntura também no meio étnico tradicional e no meio alternativo. Mais
que uma estratégia de adaptação, a busca de legitimação científica atualmente é uma
228
necessidade que se impõe para a regulamentação profissional da prática de acupuntura e para
a defesa legal dos direitos dos acupunturistas “não-médicos”.
Segundo, porque a corporação médica liderou intensa campanha de divulgação da
acupuntura (do tipo científico) nos meios de comunicação, possibilitando sua difusão para
outras camadas populacionais, não restritas ao público alternativo e Nova Era. Contudo, a
ampliação do mercado profissional também vem causando uma instrumentalização da
acupuntura, à medida que atualmente atrai profissionais formados pela racionalidade
biomédica, que não têm nenhum comprometimento com preceitos da medicina chinesa e das
medicinas alternativas. De maneira que, para esse novo tipo de praticante, a acupuntura é vista
como mera técnica de combate às dores, pouco importa as origens das explicações.
Por outro lado, paradoxalmente, afirmamos que, na maioria das vezes, as práticas
permanecem no âmbito mágico-religioso, talvez mais mágico do que religioso (CHAMPION,
1996; 2001), ainda que os praticantes não tenham clareza disso e até prefiram afirmar o
contrário. Principalmente, grande tendência de modernização e hibridismo, com utilização
conjunta de diversas cnicas terapêuticas, antigas e novas, que não são de origem chinesa, às
vezes nem mesmo orientais (O´ring, radiestesia, florais, cinesiologia, aromaterapia,
cromoterapia, etc.), que são consideradas vibracionais ou energéticas e que ainda não foram
apropriadas pela medicina oficial.
Constatamos que o ideário holístico por enquanto ainda se faz presente nas práticas de
acupuntura, uma vez que foi a partir da cultura alternativa vinculada às novas formas de
religiosidades, que a acupuntura se tornou conhecida fora das comunidades étnicas. A
holística foi utilizada como estratégia de adaptação de imigrantes asiáticos praticantes de
medicina chinesa, pois permitiu um alinhamento entre o resgate de tradições orientais, a
necessidade de inclusão social e o reconhecimento junto a uma camada de maior status
(geralmente consumidora de cultura alternativa). E ainda forneceu meios para uma tradução
em conceitos da cultura ocidental anfitriã. Muitos brasileiros formados nessa época, pela linha
Spaeth ou com mestres imigrantes, são hoje professores ou donos de novas escolas,
propagando a concepção holística.
No nosso modo de entender, a predominância do modo holístico de acupuntura,
geralmente hibridizado com o modo instrumental, está associada a dois principais fatores: a) a
maioria dos acupunturistas brasileiros, incluindo os médicos, formou-se em escolas que
surgiram no bojo do movimento alternativo, com imigrantes asiáticos e ocidentais que
ancoravam suas práticas na abordagem holística; b) o público-alvo da atividade profissional
do acupunturista é composto por pessoas da classe média e alta, entre as quais, notoriamente,
229
encontram-se os adeptos das novas formas de religiosidade e novos movimentos religiosos de
origem oriental. Esse público é especialmente atraído por tratamentos direcionados para a
ordem simbólica, muito embora demonstre interesse pelas explicações racionais, que tanto
podem ser fornecidas pelo referencial científico, como podem ser “maquiadas”
cientificamente pela abordagem holística.
Entretanto, as concepções e práticas mágico-religiosas da linha tradicional ou
holística não podem ser simplesmente classificadas como “místico-esotéricas”. Essa
discriminação não existe, à medida que inclusive os médicos das universidades federais,
reconhecidos “templos científicos” do país, recorrem aos meios “energéticos”, embora
afirmem ser a acupuntura um procedimento científico. Conforme explicamos nos capítulos
anteriores, a acupuntura praticada por muitos médicos não é adequada aos padrões científicos,
por ser conjugada com uma série de novas técnicas holísticas (cromopuntura, chakras, etc) ou
com técnicas tradicionais secularizadas (meditação).
Nesse caso, poderíamos classificar a acupuntura da linha francesa por eles praticada
como instrumental-holística. A mobilização de Ch’i mental, por exemplo, é uma técnica
criada por um médico brasileiro, descendente de japoneses, que está sendo difundida entre os
acupunturistas, médicos e não-médicos, inclusive no espaço das universidades públicas.
Podemos observar pelos programas de cursos anexos, como uma escola restrita aos médicos,
porém de orientação instrumental-holística, oferece curso de tratamento da obesidade pela
“mobilização de Ch’i mental”. O que se observa é uma nova estratégia médica de alteração da
concepção de Ch’i, para que ao invés de descartada, essa noção, naturalizada biologicamente,
possa ser apropriada pela medicina convencional.
A corporação médica brasileira almeja que a acupuntura seja praticada de forma
secularizada. Porém, a maioria dos acupunturistas brasileiros, médicos ou não, alia tradição
com tecnologia, conhecimentos mágico-religiosos e científicos, saberes orientais e ocidentais,
antigos e modernos, em uma espécie de chop suey holístico” de práticas terapêuticas, que
dificilmente seriam aceitas pela ortodoxa medicina convencional.
Arriscamos opinar que a tendência do acupunturista brasileiro é de explicar a
acupuntura através da ciência, conjugar holisticamente uma vastidão de técnicas energéticas,
que, pressupostamente, podem “arrasar a energia do terapeuta”, e, no entanto, aplicar as
agulhas de modo instrumental, levando em consideração, não o quadro individual de
desequilíbrio energético, mas os sintomas das doenças, como numa espécie de receita pré-
determinada.
230
Como desde o início do século XXI, 90% dos formados acupunturistas são graduados
na área de saúde, e proliferam-se cursos de especialização em acupuntura ao estilo biomédico,
com periodicidade de um final de semana por mês, isso provavelmente determinará uma
mudança no campo brasileiro das próximas décadas. A tendência que se delineia para o futuro
é que cada vez mais a prática brasileira de acupuntura seja instrumentalizada, cientifizada e
ocidentalizada. Ou no máximo, continuará sendo conjugada a uma série de práticas gico-
religiosas modernizadas pela abordagem holística, que são criadas e recriadas constantemente
pelos terapeutas, de modo pragmático, para tornar os tratamentos mais rápidos e econômicos,
seguindo a lógica capitalista da indústria do bem-estar e do mercado de cura.
231
Figura 20 – Ilustração da associação entre acupuntura e bem-estar na mídia
Propaganda da Brastemp em página dupla na Revista Cláudia (pg.1)
232
Figura 21 – Continuação da propaganda da Brastemp na Revista Cláudia (pg. 2)
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Mensagem do presidente. Associação Médica Brasileira de Acupuntura(AMBA). X Congresso
Médico Brasileiro de Acupuntura da AMBA. 15-17 jun. 2006. Disponível em:
<http://www.amba.org.br/congresso/presidente.asp>. Acesso em: 07 out. 2006.
Nguyen Van Nghi. Answers.com. Disponível em: <http://www.answers.com/topic/nguyen-
van-nghi>. Acesso em: 29 jul. 2007.
Novo conceito em meridianos. Associação Médica Brasileira de Acupuntura (AMBA).
I Simpósio Brasil-EUA. São Paulo, 24-26 nov. 2006. Disponível em:
<http://www.amba.org.br/v2/pagina.asp?IDPagina=/::>. Acesso em: 30 jul. 2007.
Novos cursos de medicina em São Paulo: irresponsabilidade. Associação Médica Brasileira
de Acupuntura (AMBA). 07/02/2007. Disponível em:
< http://www.amba.org.br/v2/pagina.asp?scripto=swkdfo&idpagina=039&shjert=mcontct >.
Acesso em: 29 jul. 2007.
242
Perguntas mais freqüentes sobre acupuntura. Sociedade Médica Brasileira Médica de
Acupuntura (SMBA). Informações. Disponível em < http://smba.org.br/v2/informacoes.php>.
Acesso em: 10 ago. 2007.
O primeiro pronto-socorro de acupuntura no Ocidente. Jornal da Paulista. UNIFESP, ano 11,
n. 116. Disponível em: <http://www.unifesp.br/comunicacao/jpta/ed116/assiste2.htm#ind>.
Acesso em: 01 out. 2006.
Profissionais do bem-estar. Revista Vencer On-line. n. 58. Disponível em:
<http://www.vencer.com.br/materia_completa.asp?codedition=58&pagenumber=3>.
Acesso em: 07 jul. 2007.
Programação Científica. Associação Médica Brasileira de Acupuntura(AMBA). X Congresso
Médico Brasileiro de Acupuntura da AMBA. 15-17 jun. 2006. Disponível em:
<http://www.amba.org.br/congresso/prog_grade.asp>. Acesso em: 07 out. 2006.
Qi Mental Desde quando são formadas as emoções? CENTER-AO - Centro de Pesquisa e
Estudo da Medicina Chinesa. Disponível em:
<http://www.center-ao.com.br/qi_mental01.asp?st=3>. Acesso em: 10 ago. 2007.
Quantec. Líderes en el campo de la radiónica y de la biocomunicación instrumental.
Disponível em:
<http://www.liaolivericursos.com.br/representacoes/Quantec/html/index.html>.
Acesso em: 10 ago. 2007.
Quantec. WILLKOMMEN-Instrumentelle Biokommunikation mit QUANTEC. Disponível em:
<http://www.quantec.ch/>. Acesso em: ago. 2007.
Radiônica. Biolifestyle. Disponível em: <http://www.biolifestyle.org/br/index.php?pid=106>.
Acesso em: 10 ago. 2007.
Sindicato dos Acupunturistas e Terapias Orientais do Estado de São Paulo (SATOSP) foi
modificado. Consulta anterior: <http://www.satosp.etc.br>. Acesso em: set. 2006.
Atualmente disponível em: <http://www.satosp.com>. Acesso em: 10 ago. 2007.
Sociedade Taoísta do Brasil. Disponível em: <http://www.taoismo.org.br>. Acesso em: 05
ago. 2007.
Terapia três em um. Revista Isto É On-line, n. 1613, 25/08/2000. Disponível em:
<http://www.terra.com.br/istoe/1613/medicina/1613terapia.htm>. Acesso em: 25 out. 2006.
The Founding of Institute Van Nghi. Institute Van Nghi. Disponível em:
<http://www.institutevannghi.net/pages/founding.html>. Acesso em: out. 2006.
Tratamento de ponta. Revista Vida Simples On-line. Ago. 2004. Disponível em:
<http://vidasimples.abril.com.br/edicoes/019/03.shtml>. Acesso em: 25 out. 2006.
Trabalhos Científicos. Associação Médica Brasileira de Acupuntura (AMBA). X Congresso
Médico Brasileiro de Acupuntura da AMBA. 15-17 jun. 2006. Disponível em:
<http://www.amba.org.br/congresso/trabalhos.asp>. Acesso em: 07 out. 2006.
243
Vega Audiocolor. Top Star Inductive Therapies.
Disponível em: <http://www.topstar.med.br/vega.htm>. Acesso em: 10 ago. 2007.
Vega Expert: Determina as causas de modo rápido, eficaz e significativo.
Disponível em: <http://www.vegatest.com/img/pdf/es_br_expert.pdf>. Acesso em: ago. 2007.
Vega Check. Disponível em: < http://www.vegatest.com/img/pdf/es_br_check.pdf>.
Acesso em: 10 ago. 2007.
Vega MRT: Regeneração e desintoxicação.
Disponível em: <http://www.vegatest.com/img/pdf/es_br_mrt.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2007.
X Congresso Médico Brasileiro de Acupuntura da AMBA. Associação Médica Brasileira de
Acupuntura (AMBA). 15-17 jun. 2006.
Disponível em: <http://www.amba.org.br/congresso/index.asp>. Acesso em: 07 out. 2006.
52% dos médicos prescrevem tratamentos alternativos. Universia Brasil – Disponível em:
<http://www.universia.com.br/html/noticia/noticia_clipping_bjibf.html>.
Acesso em: 07 jul. 2007.
244
ANEXO
Programas dos cursos de acupuntura de acordo com os anúncios das escolas na Internet:
1) Escola T – Tradicional - curso técnico em acupuntura
Periodicidade: um final de semana por mês (24 meses)
- Técnicas secretas de tonificação e sedação.
- Agulha de Fogo.
- Métodos preciosos de controle de subida e descida da energia.
- Aurículoterapia.
- Técnica de manipulação da Arte Antiga da Medicina Tradicional Chinesa.
- Método eficaz de localização de pontos conforme transmissão da Linhagem Agulha de Ouro.
- Técnicas avançadas de Acupuntura no tratamento de diversas doenças.
- Experiências do Mestre Tai em vários tratamentos.
- Vários segredos da Linhagem Agulha de Ouro.
- Acupuntura de mão e pé.
- Ambulatório com atendimento à população.
Conteúdos incluídos no último semestre (supostamente por influência do filho médico de Tai):
- História, teoria e bases fundamentais da MTC
- Anatomia geral e palpatória
- Os Quatro métodos diagnósticos da MTC
- Etiologia e patologia da MTC
- Diferenciação das Síndromes
- Métodos de eliminação das energias negativas do terapeuta e paciente
- Outras técnicas utilizadas na MTC (Kwa Sa, Ventosa, agulha cutânea e intradérmica,
eletroacupuntura, aurículoterapia, agulha de Fogo, crânioacupuntura, agulha de mão e pé, entre
outros)
- Técnica de manipulação da Arte Antiga da Medicina Tradicional Chinesa.
- Técnicas avançadas de Acupuntura no tratamento de diversas doenças como artralgias, doenças
masculinas e femininas, estética, parar de fumar, emagrecimento entre outros
- Tratamento com uso da alimentação e fitoterápicos
- Técnica de tratamento para varizes
- Ambulatório com atendimento à população supervisionado pelo Mestre Tai e Dr. Tung
2) Escola TH – Tradicional-holística
- curso técnico em acupuntura - periodicidade: diário noturno (18 meses, 1500 horas)
- curso de especialização em medicina tradicional chinesa Pós-Graduação Lato Sensu
Periodicidade: um final de semana por mês (24 meses, 1200 horas)
- Estudo aprofundado da acupuntura e medicina tradicional Chinesa através de aprendizado detalhado
e panorâmico;
- Micro-sistemas: aurículo acupuntura, acupuntura nas mãos e craniopuntura;
- Terapias e técnicas complementares: eletro-acupuntura, laser-acupuntura, fitoterapia chinesa,
acupuntura constitucional coreana, moxaterapia, ventosa, sangria, magnetoterapia, Chi kung e I Ching;
- Noções básicas de anatomia, fisiologia, patologia, imunologia, microbiologia, farmacologia e
psicologia;
- mais 300 horas de Estágio Prático Supervisionado em Ambulatório na própria sede, aos sábados.
245
Escola TH - matriz curricular – curso técnico em acupuntura
COMPONENTES CURRICULARES CARGA HORÁRIA
Fundamentos Essenciais de Saúde 24
Legislação Sanitária
16
Anatomia e Fisiologia Geral
92
Noções Básicas da Patologia Geral
60
Noções Básicas de Psicologia
28
Fundamentos de Acupuntura I 100
Téc. de Estimulação Complementares em Acupuntura I 40
Terapias Complementares em Acupuntura I 40
Total da Carga Horária do 1º Módulo 400
Noções Básicas de Imunologia/Microbiologia
60
Metodologia da Pesquisa Científica I
16
Elementos de Reabilitação Geral 16
Fundamentos de Acupuntura II 200
Téc. de Estimulação Complementares em Acupuntura II 48
Terapias Complementares em Acupuntura II 60
Total da Carga Horária do 2º Módulo 400
Noções Básicas de Farmacologia Geral 60
Metodologia da Pesquisa Científica II
24
Gestão de Pequenos Negócios 12
Téc. de Estimulação Complementares em Acupuntura III 144
Terapias Complementares em Acupuntura III 160
Total da Carga Horária do 3º Módulo 400
Carga Horária do Estágio Supervisionado 300
CARGA HORÁRIA TOTAL 1.500
Escola TH - matriz curricular – curso especialização em acupuntura / Pós-graduação Latu Senso
COMPONENTES CURRICULARES CARGA HORÁRIA
TEORIA
PRÁTICA
TOTAL
Fundamentos da Medicina Tradicional Chinesa e Acupuntura 115 260 375
Técnicas de Estimulação Complementares em Acupuntura 40 120 160
Terapias Complementares em Acupuntura 60 140 200
Fisiopatologia Energética e Terapêutica em Acupuntura 96 230 326
Fundamentos Essenciais de Saúde 25 50 75
Noções Básicas de Anatomia e Fisiologia Geral 32 0 32
Noções Básicas de Patologia Geral 16 0 16
Noções Básicas de Farmacologia Geral 16 0 16
CARGA HORÁRIA TOTAL 400 800 1200
246
3) Escola H – Holística
curso de especialização
curso de especialização em acupuntura energética e terapias orientais
Periodicidade: um final de semana por mês (30 meses/ 1300 horas)
1o. MÓDULO – FUNDAMENTOS DA MTC, AURICULOTERAPIA, CRANIOPUNTURA
Aula 1: Apresentação do Curso e Bases Filosóficas da MTC (Tao e In / Iang); Substâncias Fundamentais e
Circulação Energética; 5 Elementos I (Noções Gerais)
Aula 2: Oito Critérios Diagnósticos; Zang-Fu; Auriculoterapia Oriental e Manipulação das Agulhas
Aula 3: Etiopatogenia; Interrogatório; Pontos Auriculares Franceses; Obesidade, Tabagismo
Aula 4: Inspeção e Língua; Teste Neuromuscular; Auriculoterapia Francesa
Aula 5: Pulsologia Radial; Reflexo Auriculocardíaco; YNSA1
Aula 6: YNSA2 e Craniopuntura Chinesa; Discussão de Casos Clínicos; Síndromes Energéticas
2o. MÓDULO – PONTOS E APLICAÇÕES, DIAGNÓSTICOS ENERGÉTICOS
Aula 7: Localização dos Pontos Su Antigos; 5 Elementos II (Regra Mãe-Filho, Ciclo Ko, Pontos de Tonificação
e de Sedação); Ryodoraku
Aula 8: 5 Elementos III (Técnica dos 4 Pontos); Grandes Meridianos, Pontos Fonte; Akabane e EAV
Aula 9: Pontos de Assentimento, Vaso Governador e Método Shu-Mo; Vaso Concepção e Pontos de Alarme;
Vasos Maravilhosos
Aula 10: Ambulatório; Métodos de Seleção dos Pontos; Pontos Lo e suas Aplicações
Aula 11: Ambulatório; Moxabustão, Ventosa e Sangria; Pontos Xi e Pontos da Cabeça e do Pescoço
Aula 12: Ambulatório; Cinesiologia Aplicada e O-Ring Test
3o. MÓDULO TRATAMENTOS E TÉCNICAS PARA APARELHO LOCOMOTOR
(ACUPUNTURA TRADICIONAL, CONSTITUCIONAL E FITOTERAPIA)
Aula 13: Ambulatório; Acupuntura Constitucional Coreana
Aula 14: Ambulatório; Eletroestimulação e Analgesia; Dores Periféricas (Síndromes Bi, LER)
Aula 15: Ambulatório; Ações Energéticas dos Pontos; Shang Han Lun, Síndromes das 4 Camadas e Síndromes
dos 3 Aquecedores
Aula 16: Ambulatório; Fitoterapia Ocidental e Farmacoterapia Oriental (4 Ch’i, 5 sabores, 4 direções, 8
terapêuticas)
Aula 17: Ambulatório; Farmacoterapia (18 classes, Fármacos importantes); Fórmulas Magistrais
Aula 18: Ambulatório; Pontos Extras; Magnetoterapia; Coluna Vertebral (Lombociatalgia, Cervicobraquialgia)
4o. MÓDULO – CRONOBIOLOGIA, CONSTITUCIONAL, TRATAMENTOS E TÉCNICAS
Aula 19: Ambulatório; Quiropuntura; Clínica Geral (Hipertensão, Cefaléia e Sinusite)
Aula 20: Ambulatório; Distúrbios Psicossomáticos e Gastroenterologia; Ginecologia e Obstetrícia
Aula 21: Ambulatório; Métodos Cronobiológicos: Lin Gui Ba Fa (Tartaruga Mística) e Zi Wu Liu Zhu;
Pediatria
Aula 22: Ambulatório; Constituições e Temperamentos de Requena, e Oligoterapia Catalítica; 5 Elementos IV
(transferência, estações, horários etc.)
Aula 23: Ambulatório; Manaka; Colorpuntura
Aula 24: Odontologia; Veterinária; Laserterapia
5o.MÓDULO
Aula 25 a 30: Assuntos a serem escolhidos pelos alunos
Aula 30: Monografias
247
4) Escola IH – Instrumental-Holística
curso de especialização em acupuntura
Periodicidade: um final de semana por mês (24 meses)
-Fundamentos da Medicina Tradicional Chinesa;
-Diagnóstico da Medicina Tradicional Chinesa (pulso e língua);
-Ramos da MTC (tui-ná, Ch’i Qong, fitoterapia chinesa)
-Canais e Colaterais;
-Técnicas de inserção e manipulação de agulhas;
-Ciências Ocidentais - revisão de anatomia e fisiologia;
-Instrumentos e recursos auxiliares (moxabustão, ventosa, laserpuntura, eletroacupuntura, Gua Sha,
magnetoterapia, agulhas intradérmicas, sangria...);
- Microssistemas da acupuntura: acupuntura auricular chinesa; acupuntura craniana chinesa e
japonesa; acupuntura coreana nas mãos; acupuntura do 2º metacarpo; acupuntura do punho-tornozelo;
acupuntura constitucional;
-Acupuntura aplicada às patologias;
-Psicologia aplicada;
-Deontologia, Administração e Legislação.
-Metodologia científica e da pesquisa;
-Metodologia do ensino Superior (somente para pós, formação de professores de Ensino
Superior);
-Prática ambulatorial;
-Monografia.
Escola IH - matriz curricular – curso especialização em acupuntura / Pós-graduação Latu Senso
COMPONENTES CURRICULARES CARGA
HORÁRIA
Filosofia Oriental - Anatomia 90
Filosofia Oriental Aplicada M.T.C. - Neurofisiologia 60
Fisiologia Oriental I - Fisiologia I 90
Anatomia Funcional na M.T.C. I - Fisiologia Oriental II 90
Fisiologia Oriental III - Etipatogenia 90
Semiologia na M.T.C. I - Semiologia na M.T.C. II 120
Semiologia na M.T.C. III - Semiologia na M.T.C. IV - Ambulatório I 180
Patologia I - Ambulatório II 180
Patologia II - Microssistemas - Acupuntura Auricular- Ambulatório III 90
Acupuntura e Psicologia - Ambulatório IV 90
Microssistemas II - Fitoterapia e Dietética - Ambulatório V -
Legislação - Ética e Higiene
180
Metodologia Científica
120
Total carga horária
1380
248
Escola IH - Programa de curso avançado de especialização para acupunturistas com formação
básica completa (que já possuem 1200 horas de carga horária)
Periodicidade: um final de semana por mês (6 meses)
1º MÓDULO: NEUROLOGIA :
Seqüelas de DVE; Paralisia facial; Esclerose Múltipla; Mal de Parkinson; Craniopuntura
2º MÓDULO: REUMATOLOGIA:
Artrite; Artrose; Fibromialgia; Espondilite Anquilosante; Lupus eritematoso sistêmico; Agulhamento aquecido
3º MÓDULO: DERMATOLOGIA / EMERGÊNCIA: Herpes zoster; Acne;
Urticária; Psoríase; Cólica renal; sangria, Fraturas (até chegada ao hospital); Febre alta; Hipertensão;
4º MÓDULO: CARDIO-PNEUMOLOGIA
Asma; Bronquite; Tosse; Patologias coronarianas,hipertensão arterial;
5º MÓDULO: ENDOCRINOLOGIA / GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA
Hipertireoidismo; Diabetes; Obesidade; Mioma uterino; Infertilidade; Síndrome da Menopausa
6º MÓDULO: GASTROENTEROLOGIA / PEDIATRIA: Diarréia; Gastrite; Constipação;
Síndrome do Cólon Irritável; Distrofia muscular; Hieratividade; acupuntura epidérmica.
5) Conteúdo programático do curso de acupuntura estética de uma outra escola IH:
> Origem da Acupuntura
> Diagnósticos na Acupuntura
> Técnica de redução abdominal
> Técnica de redução de flancos e culotes
> Técnica de diminuição de estrias
> Técnica de diminuição de celulites
> Técnica de diminuição de marcas de expressões
> Técnica de diminuição de rugas
> Técnica de tonificação facial
> Técnica de fortalecimento de pescoço
> Técnica de diminuição de bolsas oculares
> Técnica de diminuição de olheiras
> Técnica de diminuição de vasinhos
> Técnica de hipocromia
> Técnica de hipercromia
> Técnica de levantamento de seios
> Técnica de aumento do volume glúteo
> Técnica de tonificação de glúteo
> Técnica de alopecia
> Cinesiologia com Acupuntura Estética
> Dietoterapia Chinesa.
> Administração correta de alimentos segundo 5 elementos.
> Tratamentos para Obesidade protocolos e pontos específicos
de acordo com as.
> Disfunções energéticas, pontos auriculares, sistêmicos, laser,
moxaterapia.
> Técnicas de estimulações pós colocação e retiradas de agulhas.
> Acupuntura Estética Facial Avançada
Novas técnicas, tratamentos e pontos faciais
Uso de Haihua, laser na face.
> Acupuntura Estética Corporal Avançada
novas técnicas , tratamentos e pontos
corporais.
> Uso de haihua, laser no corpo.
> Drenagem Linfoenergética reequilibrio
energético através da drenagem nos
meridianos.
>Terapias Complementares na Acupuntura
Estética.
> Acupuntura e gessoterapia, Acupuntura e
argiloterapia.
>Novas Técnicas Chinesas em tratamentos
estéticos gorduras localizadas (culotes,
flancos, pescoço, barriga).
> Microssistemas do 2º metacarpo da MTC
> Novos tratamentos sistêmicos: com
agulhas semi-permanentes, sementes,
magnetos.
> Pontos de Potencialização para
tratamentos de anorexia e emagrecimento.
Domingo: Ambulatório
Discussão após atendimento
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
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Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo