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MAURICIO DE AQUINO
A VÓS SUSPIRAMOS NESTE TREM DA VIDA:
catolicismo, criação religiosa e identidade na devoção a Nossa
Senhora Aparecida do Vagão Queimado de Ourinhos-SP (1954-2006).
Dissertação apresentada à
Faculdade de Ciências e Letras de
Assis UNESP Universidade
Estadual Paulista para a obtenção do
título de Mestre em História (Área de
Conhecimento: História e
Sociedade).
Orientador: Dr. Eduardo Basto de
Albuquerque.
ASSIS
2007
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP
Aquino, Mauricio de
A657v A vós suspiramos neste trem da vida: catolicismo, criação
religiosa e identidade na devoção a Nossa Senhora Aparecida
do Vagão Queimado de Ourinhos-SP (1954-2006) / Mauricio
de Aquino. Assis, 2007
200 f. : il.
Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras
de Assis – Universidade Estadual Paulista.
1. Igreja católica – Brasil. 2. Catolicismo. 3. Religiosidade.
4. Identidade. 5. Maria, Virgem, Santa e a igreja – História. I.
I. Título.
CDD 282
232.91
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Para
Luciana, minha amada esposa,
Antônio e Joana, meus veneráveis pais,
Mauricéia, minha querida irmã.
AGRADECIMENTOS
Esta pesquisa histórica sobre a devoção a Nossa Senhora Aparecida do Vagão Queimado
não poderia ter sido feita sem a ajuda de muitas pessoas. Agradeço a todas elas pela
consecução desse meu objetivo, de modo especial:
- aos meus pais, Antônio de Aquino Sobrinho e Joana Aparecida Cezar de Aquino,
pela formação humana, baseada no amor e na justiça, pela motivação e ajuda
contínua, material e imaterial, que sempre me dispensaram;
- à minha esposa, Luciana Fernandes de Aquino, pela motivação, compreensão e
carinho;
- a todos os meus familiares que souberam compreender as ausências do parente
historiador;
- no plano acadêmico, meus agradecimentos calorosos ao professor Dr. Eduardo
Basto de Albuquerque, pela confiança em meu trabalho, pela paciência e
compreensão ante minhas limitações, pela orientação competente e adequada
durante todo o processo de pesquisa;
- à professora Drª. Andréa Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi, pela ajuda e
pelas palavras de incentivo quando esta pesquisa era ainda um pré-projeto;
- aos professores Dr. Reinéro Antônio Lérias e Dr. Ivan Esperança Rocha, pelas
contribuições a esta pesquisa, através das intervenções seguras e pertinentes durante
o exame de qualificação, bem como ao Dr. Sidinei Galli que, ao lado do Dr.
Reinéro, compôs a banca de defesa desta dissertação;
- aos padres Aristheu, David e Urbano, bem como aos funcionários da Paróquia-
Santuário de Nossa Senhora Aparecida do Vagão Queimado e da Paróquia do
Senhor Bom Jesus, em Ourinhos-SP, por cederem e auxiliarem na obtenção de
documentos;
- aos depoentes dessa pesquisa: Lourival Argenta, Norival Vieira, Rafael Conte, Irmã
Vivalda e Sônia Nicolau, pela acolhida simpática e generosa, por contarem suas
experiências e compartilharem informações imprescindíveis para a execução deste
trabalho;
- aos colegas de ofício da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jacarezinho-
PR, da Faculdade Corporativa de Piraju-SP, e da Diretoria de Ensino da Região de
Ourinhos-SP, pelo apoio e companheirismo ao longo dessa jornada de pesquisa.
Resumo
Este trabalho é uma pesquisa histórica sobre o processo de construção da devoção a Nossa
Senhora Aparecida do Vagão Queimado de Ourinhos, Estado de São Paulo. O início do
culto data de 1954, ano em que uma imagem de Nossa Senhora Aparecida foi encontrada
intacta em um vagão queimado, e se estende até nossos dias. No entanto, esta pesquisa
analisa as descontinuidades e contradições dessa devoção que se consolidou depois da
ereção da Diocese de Ourinhos em 1999. Explica esse complexo percurso através dos
processos de significação e ressignificação do sagrado no âmbito da relação histórica entre
Igreja Local e Central, ou seja, entre a Igreja Católica de Ourinhos, a Igreja Católica do
Brasil e a Cúria Romana. Aponta ainda para a criação religiosa e identitária inerentes a essa
devoção como resultado de um contínuo processo de negociação simbólica entre Instituição
e Devotos a partir das práticas e representações da comunidade católica ourinhense. Além
disso, demonstra a repotencialização da devoção mariana no Catolicismo Brasileiro
contemporâneo, seus usos locais e globais, em tempos de modificação nos modos de crer e
organizar a fé.
PALAVRAS-CHAVE: Igreja Católica; Catolicismo Brasileiro; Devoção Mariana; Criação
Religiosa; Identidade.
Abstract
This work is a historical research on the process of construction of the devotion Nossa
Senhora Aparecida do Vagão Queimado of Ourinhos, state of São Paulo. The beginning of
the cult date of 1954, year where an image of Nossa Senhora Aparecida was found
unbroken in a burnt wagon, and if extends until our days. However, this research analyzes
the discontinuities and contradictions of this devotion that was only consolidated after the
erection of the diocese of Ourinhos in 1999. It explains this complex passage through the
meaning processes of a sacred one in the scope of the historical relation between local and
central church, or either, enters the Church Catholic of Ourinhos, the Church Catholic of
Brazil and The Vatican. It still points with respect to the religious and identity creation
inherent to this devotion as resulted of a continuous process of symbolic negotiation
between Institution an Worshippers form practical and the representations of the
community ourinhense catholic. Moreover, it demonstrates the repowered of the devotion
to the Mary in the Brazilian Catholicism contemporary, its local and global uses, in times of
modification in the ways to believe and to organize the faith.
KEY-WORDS: Church Catholic; Brazilian Catholicism; Devotion to the Mary; Religious
Creation; Identity.
SUMÁRIO
Introdução
08
1. Aparecida intacta
1.1 Nos trilhos da Sorocabana
15
1.2 Catolicismos
35
1.3 Mariofania
50
2. Imagem em triunfo
2.1 Nossa Senhora des-Aparecida
64
2.2 À procura da imagem
84
2.3 O Santuário de Nossa Senhora Aparecida
104
3. Mãe Aparecida do Vagão Queimado
3.1 Nossa Senhora Aparecida do Vagão Queimado
116
3.2 Por uma identidade diocesana
142
3.3 Tensões constitutivas
161
Conclusão
173
Referências bibliográficas
178
Introdução
Ser membro de uma comunidade humana é
situar-se em relação ao seu passado (ou da
comunidade), ainda que apenas para rejeitá-lo. O
passado é, portanto, uma dimensão permanente
da consciência humana, um componente
inevitável das instituições, valores e outros
padrões da sociedade humana. O problema para
os historiadores é analisar a natureza desse
“sentido do passado” na sociedade e localizar
suas mudanças e transformações
1
.
Este é um estudo
histórico sobre a devoção a Nossa
Senhora Aparecida do Vagão
Queimado
2
, da cidade de Ourinhos,
Estado de São Paulo. O início do
culto data do ano de 1954 e se
estende até os dias de hoje. Esta
pesquisa, no entanto, vai ressaltar as
descontinuidades e as reinvenções
1
HOBSBAWM, Eric. O sentido do passado. IN: ______. Sobre História. Tradução de Cid Knipel
Moreira.São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p. 22.
2
Doravante usarei a abreviatura NSAVQ para designar a Nossa Senhora Aparecida do Vagão Queimado.
inerentes a essa devoção, em seus
diferentes momentos, articulados e
em tensão com os projetos do
Catolicismo local e universal, bem
como com as vicissitudes sociais de
Ourinhos, do Brasil e do Mundo nas
últimas décadas.
Para o
desenvolvimento da pesquisa utilizei
fontes eclesiais como os Livros
Tombo da Paróquia Catedral do
Senhor Bom Jesus e da Paróquia
Santuário NSAVQ, ambas de
Ourinhos. Outras fontes compõem
esse conjunto: folhetos diversos,
Boletins Diocesanos, broches, marca-
páginas, livro de cantos, preces
oficiais, atas, decretos, requerimentos,
cartas, relatórios. Usei, outrossim,
encíclicas papais e documentos
elaborados pela CNBB.
também os
documentos do Poder Público de
Ourinhos como os decretos por
ocasião de eventos ligados a NSAVQ
e a construção de um monumento em
sua homenagem. Também me servi
dos inquéritos da Estrada de Ferro
Sorocabana sobre os acidentes que
ocorreram em seus trilhos no ano de
1954.
Utilizei, outrossim,
a mídia local e regional como os
extintos jornais Correio de Noticiais,
Folha da Manhã e Diário da
Sorocabana. O conjunto principal de
fontes jornalísticas constitui-se de
edições dos mais relevantes
periódicos ourinhenses da atualidade:
Jornal da Divisa, Folha de Ourinhos
e Debate. A estes acrescento alguns
artigos da Folha de São Paulo acerca
da visita do papa Bento XVI ao
Brasil.
Encontrei muitas
informações na Rede Mundial de
Computadores, a Internet. A maioria
desse material trouxe preciosas
informações a respeito da atuação da
Igreja no Brasil e no Mundo, bem
como sobre alguns movimentos
eclesiais discutidos neste trabalho,
por exemplo, o do cismático bispo D.
Carlos Duarte da Costa que fundou a
Igreja Católica Apostólica Brasileira.
As fotografias
ocupam um relevante espaço nesta
pesquisa. Inseri as fotos como
verdadeiras fontes e não como
simples ilustrações. Assim, elas nos
encaminham para outra dimensão de
inteligibilidade e nos desafiam a ir
para além das aparências que
revelam.
O uso das fontes
orais também foi de capital
importância para suprir as lacunas
deixadas pela documentação escrita e
ensejar a incorporação de
perspectivas, sentimentos e desejos
não encontrados nos relatos
padronizados da história da devoção.
Esta, apesar de sua origem remontar a
1954, apareceu em um manual de
história do município em 2004. Esse
fato e a índole do trabalho exigiram
também a inserção e a análise dos
mais importantes textos da
historiografia ourinhense.
Abordei estas e
outras fontes a partir do pressuposto
de que nenhum documento é neutro e
sempre traz consigo a opinião da
pessoa e/ou Instituição que o
produziu. Por isso procurei
historicizar as fontes em seus
ambientes de produção e de usos.
Usos que ensejam ressignificações.
Inspirado em
Jacques Le Goff, analisei todas as
fontes a partir do conceito de
documento/monumento. Em texto
clássico
3
sobre esse conceito, Le
3
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento, IN: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, 1984. v.1, Memória/História, p. 95-106.
Goff, aponta para o alargamento da
noção de documento no decurso do
século XX, compreendendo tudo
aquilo que atesta e exprime a
presença humana. De acordo com ele,
documentos e monumentos seriam os
dois tipos de materiais da memória.
Os monumentos, como herança e
evocação do passado, vinculam-se ao
poder, à intenção de perpetuar
determinadas lembranças para as
gerações futuras. Já os documentos,
resultam de escolhas de historiadores
que lhe atribuem valor de prova, de
evidência. No entanto, prossegue esse
eminente historiador, não existe
documento inócuo, objetivo. Todo
documento é monumento, na medida
em que é um produto da sociedade,
das relações de poder que o
selecionam e atribuem algum valor,
conferindo-lhe uma carga de
intencionalidade. Nesse sentido, o uso
do conceito de
documento/monumento me ajudou a
identificar as estratégias utilizadas
pela sociedade e pelas instituições no
sentido de perpetuar determinada
memória acerca da devoção objeto
desse estudo.
Memória que é
sempre e constantemente negociada,
construída, como nos ensina Michael
Pollack
4
. O caráter seletivo e
emocional da memória aponta para a
manipulação de lembranças e
esquecimentos. Elemento
imprescindível do processo de
identificação social, a memória é
objeto de disputas e conflitos, reais e
simbólicos, na formação de
coletividades. E mais, atentos a Pierre
Nora, sabemos que a memória na
sociedade hodierna necessita de
lugares especiais para ser guardada,
preservada em seus laços de
4
POLLACK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, (5) 10:203, 1992.
continuidade: são os lugares de
memória. Materiais, simbólicos,
funcionais esses lugares têm como
centros de produção as Instituições:
econômicas, políticas, religiosas etc.
Estas são consideradas as guardiãs da
memória
5
.
Dito isso,
avancemos nestas explicações
iniciais. Nos capítulos que seguem,
tentei articular uma abordagem
analítica com uma abordagem
cronológica. Cronológica, não linear.
A vantagem da abordagem
cronológica se justifica por essa
favorecer o entendimento de
processos simultâneos e propiciar
uma melhor compreensão do
desenvolvimento do processo de
construção da devoção a NSAVQ,
propósito geral deste trabalho.
5
LE GOFF, Jacques. Memória. IN: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984.
v.1,Memória/História, p. 11-50.
Pensei o processo
de construção sociocultural a partir
das idéias de Peter Berger. Ele define
cultura como a totalidade dos
produtos do homem, materiais ou
não. É essa instintiva capacidade
humana de produzir, de significar,
que origina o processo dialético de
construção e reconstrução da
sociedade. Tal processo é constituído
por três momentos: a exteriorização,
etapa em que os seres humanos criam
e recriam o mundo fenomenológico
ao (re) significá-lo; a objetivação,
momento em que os produtos da
atividade cultural se distinguem de
seus criadores como facticidade e
entidade hipostática; e, por fim, a
interiorização, fase na qual os seres
humanos se apropriam
subjetivamente dessa realidade
objetivada e a refazem atribuindo-lhe
novos significados que dinamizam
esse processo dialético de construção
sociocultural
6
. Como toda teoria, esse
modelo é passível de críticas e não
contempla toda a complexidade do
real. o o concebi como premissa,
mas como problema e sugestão
criativa que ilumina e responde, a
meu ver, as questões que levantei ao
longo da pesquisa.
Os esclarecimentos
do parágrafo anterior também são
úteis acerca do tratamento dado à
instituição Igreja Católica Apostólica
Romana ao longo das próximas
páginas. Em nenhum momento
afirmo que as estratégias e ações da
Igreja, em particular, da Igreja de
Ourinhos, ocorreram no sentido de
falsear a realidade ou abusar e
explorar a (boa) de seus devotos.
Este trabalho pretende mostrar,
inspirado nas sugestões de construção
6
BERGER, Peter. O Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. Tradução de José
Carlos Barcellos. São Paulo: Paulinas, 1985. p.16 et passim. Utilizei, outrossim, ainda nesta direção de
construção sociocultural, as sugestões teóricas de Roger Chartier. Cf. CHARTIER, Roger. História Cultural:
entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
sociocultural e da força da
iconografia e da instituição religiosa
na constituição de identidades
formulada por Régis Toledo de
Souza
7
, que a devoção a NSAVQ
originou-se de um complexo processo
de negociação simbólica entre a
Igreja e os devotos ourinhenses.
Assim, ainda que a Igreja seja a
grande arquiteta dessa construção
religiosa, os devotos não receberam
passivamente as ações e
representações oriundas da
Instituição, ao contrário, argumento
que os devotos, ao produzirem
sentidos no consumo, condicionaram
a Igreja a escolher símbolos e práticas
consoantes com suas representações e
necessidades.
Tratando do
Catolicismo darei ênfase àquilo que
acredito ser o seu princípio dinâmico:
7
SOUZA, gis Toledo de. Identidade de devotos católicos populares: iconografia e instituição religiosa
como elementos mediadores. 2001. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social). PUC, São Paulo, 2001. p.90
et passim.
a capacidade de crescer na
diversidade, de incorporar
elasticamente a pluralidade religiosa
que o refaz e o reformula
constantemente
8
. É essa sua
capacidade de reinvenção que enseja
criações religiosas extremamente
originais. Criações efetivadas a partir
de complexas trocas culturais entre os
diferentes sujeitos e instituições,
segundo as injunções e os projetos do
momento, em intensa e tensa
produção de sentidos negociados que
culminam sempre na (re) constituição
de identidades religiosas, deliberadas
ou não. Para enfrentar e discutir essas
e outras questões nesse A vós
suspiramos neste trem da vida, dividi
o trabalho em três grandes capítulos.
O primeiro busca
aproximar o leitor do ambiente
histórico, eclesial e geográfico do
8
Tal visão da dinâmica do Catolicismo é formulada pelo antropólogo social brasileiro Carlos Alberto Steil.
Cf. STEIL, Carlos A. O sertão das romarias. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
acidente envolvendo um trem misto e
um caminhão tanque, que ocorreu na
cidade de Ourinhos no ano de 1954.
O acidente gerou grande pânico na
população local. O encontro de uma
imagem intacta de Nossa Senhora
Aparecida em um dos vagões
queimados, após um vento insólito
que deslocou as chamas provocadas
pelo impacto para longe dos depósitos
de combustível próximos do local do
acidente, foi visto como verdadeira
mariofania, i.e., como uma
manifestação da divindade de Maria,
mãe de Jesus Cristo, pela comunidade
de crença do Catolicismo ourinhense.
Assim, procurarei rastrear os
elementos culturais que favoreceram
tal leitura mariofânica do encontro da
imagem.
O segundo capítulo
apresenta a devoção entre os anos de
1954 e 1980. Reconstituirei os
sinuosos e curiosos rumos dessa
devoção ourinhense ao longo desses
26 anos. Vicissitudes, como
comprovarei, que resultaram das
profundas e significativas mudanças
sociais e eclesiais do período.
Focalizarei nessa parte do trabalho a
incipiente individualização da
imagem de Nossa Senhora Aparecida,
salva do vagão queimado, bem como
discutirei as situações, ações e
representações que envolveram o
constructor da devoção, monsenhor
Violante, e a comunidade católica
ourinhense nessa época.
O terceiro capítulo
enfatiza a devoção na
contemporaneidade, sobretudo a
partir de 1999, com destaque para o
Ano do Cinqüentenário (2004) do
encontro da imagem. Novamente as
transformações sociais e religiosas
são convocadas para explicar o
original desenvolvimento do culto.
Nesse momento histórico ocorre a
consolidação do processo de
particularização da imagem de
NSAVQ. Partindo do princípio de
que o simbolismo é universal, mas a
escolha dos símbolos é sempre
particularizada na experiência
religiosa cultural, como orienta
Eduardo Basto de Albuquerque
9
,
analisarei nesta parte do trabalho os
símbolos escolhidos pela Igreja, após
dinâmica negociação com os devotos,
para construir a nova devoção e
redefinir a identidade católica local.
Algumas conclusões encerram a
pesquisa que procura, outrossim,
demonstrar a repotencialização da
devoção mariana, seus usos locais e
globais, em tempos de modificação
nos modos de crer e organizar a fé.
9
ALBUQUERQUE, Eduardo Basto de. Orações & Rezas Populares. Porto Alegre: Rígel, 2004. p. 109.
1. Aparecida intacta.
Vagões e caminhões em chamas, tudo destruído,
E os soldados do fogo, encontraram entre cinzas
E madeiras ardentes, uma pequena imagem
De Nossa Senhora Aparecida intacta, sem
A destruição pelo fogo ardente. Era a mãe de
Jesus,
Nossa Senhora Aparecida, que veio para ficar
em Ourinhos e na região
10
.
1.1 Nos trilhos da Sorocabana.
Em 03 de agosto de 1954, o jornal ourinhense Correio de Notícias,
dedicou o seu 82º número, a um fato que tomava as mentes e as bocas dos habitantes de
uma pequena cidade do interior paulista, oriunda, como tantas outras, da expansão da
estrada de ferro no início do século XX.
10
SILVA, Norival Vieira da. Faz 50 anos que a Virgem Aparecida reside conosco em Ourinhos. Jornal da
Divisa, Ourinhos, 31 jul. e 01 ago. de 2004, p.A-2.
De fato, a história
de Ourinhos
11
está umbilicalmente
ligada ao avanço da Estrada de Ferro
Sorocabana, no sudoeste do Estado de
São Paulo, como se pode observar
nos mapas apresentados a seguir. As
origens da E.F.S. (Estrada de Ferro
Sorocabana) remetem à Companhia
Ituana de Estradas de Ferro, criada
em 1870 com o objetivo de construir
uma ferrovia ligando Itu a Jundiaí.
Dissidentes desse consórcio, que
queriam uma linha entre São Paulo e
Ipanema
12
, via Sorocaba, criaram,
ainda em 1870, a Companhia
Sorocabana. No ano seguinte foi
constituída a E.F.S.
11
Essa reconstrução da História de Ourinhos baseia-se principalmente em: ALVES, Paulo. Ourinhos: uma
perspectiva histórica (1905-1994). Ourinhos: Prefeitura Municipal, s/d; D´AMBRÓSIO, Oscar (org.).
Ourinhos: um século de história. São Paulo: Noovha América, 2004; DEL RIOS, Jefferson. Ourinhos:
memórias de uma cidade paulista. Ourinhos: Prefeitura Municipal, 1992.
12
Refere-se ao Distrito de São João do Ipanema, criado para estruturar a Fábrica de Ferro Ipanema (1809-
1895), hoje no município de Iperó, na microrregião de Sorocaba.
Situação atual de Ourinhos no Estado de São Paulo. Disponível em www.ourinhos.sp.gov.br Acesso em: 17
jan. 2007.
O primeiro trecho foi inaugurado em 1875, ligando São Paulo a Ipanema.
A E.F.S. acompanhou o progresso da lavoura cafeeira no interior paulista e três anos depois
do primeiro trecho, estendia suas linhas até Tietê, Tatuí, Itapetininga e Botucatu. Em
1877, a E.F.S. une-se a Companhia Ituana e dão origem a Companhia União Sorocabana e
Ituana, formando a maior rede ferroviária do Estado, com 820 km de extensão e 222 km de
vias fluviais nos rios Piracicaba e Tietê.
Entretanto, a fusão não obteve os resultados pretendidos. A extensão das
linhas até as fronteiras do Paraná e Mato Grosso, oneraram demasiadamente a Companhia
que foi forçada a liquidar seus negócios. Entre 1904 e 1905, a estrada foi arrendada pelos
governos federal e paulista. Este último transferiu-a para um consórcio estrangeiro: desse
modo a União Sorocabana passou a se chamar Sorocabana Railway Company, até 1919,
quando voltou à administração do governo de São Paulo.
A região do Paranapanema tinha, naquele momento, uma dupla função:
por um lado, estava destinada ao avanço da lavoura cafeeira, por conta da qualidade de suas
terras; por outro, estava estrategicamente localizada na direção das fronteiras do Paraguai e
da Bolívia, locais de antigos conflitos territoriais entre essas nações e o Brasil. Fronteiras
que precisavam ser consolidadas.
A construção da estrada de ferro na região da atual cidade de Ourinhos, em 1900. Fonte: D´AMBRÓSIO,
Oscar (org.). Ourinhos: um século de História. São Paulo: Noovha América, 2004. p.14.
Desse modo, o transporte fluvial e ferroviário, pelo Paranapanema, era
fundamental para as pretensões econômicas e políticas do país. No início do século XX, a
expansão ocorria a todo vapor: homens, ferros, picaretas e outros materiais tomaram conta
da paisagem local, como atesta a foto da gina anterior. Ainda nesse sentido, transcrevo
um relatório de Alfredo Maia, diretor superintendente da Sorocabana, publicado em 1907,
citado por Jefferson Del Rios, esclarecedor a respeito da situação:
A linha do Paranapanema, talvez a de mais futuro pela extensão que pode tomar a
produção da zona, é igualmente importante como via de comunicação para o
Mato Grosso. A concessão da linha do Paranapanema foi feita em 1888 na
persuasão que fosse navegável o Paranapanema [...]. Para certificar-me desse
fato, confiei aos engenheiros Adolpho Pereira e Jo Brotero o encargo de
verificar as dificuldades opostas pela natureza ao tráfego fluvial [...]. A comissão
levou seus estudos até o Paraná, pouco acima do Salto Grande das Sete Quedas,
do qual trouxe belíssimas fotografias [...] mas trouxe também a certeza de que
apenas um simulacro de navegação para o calado máximo de 0,45m pode ser
realizado no Paranapanema, mediante custosas obras desde a Foz do Tibagy até a
do Pirapó, que corre do estado do Paraná e deságua em frente à Serra do Diabo.
[...] Diante de tão dura realidade, o que é preciso fazer é levar a linha férrea até
abaixo do Pirapó, ou talvez, diretamente à barranca do Paraná, quando se quiser
que essa linha preencha a função de uma artéria de viação nacional
13
.
Foi nesse contexto que surgiu a cidade de Ourinhos. O nome aparece pela
primeira vez no singular (Ourinho) em um mapa produzido pelo Estabelecimento Gráphico
Weiszflog Irmãos, de São Paulo, registrando não a existência da cidade, mas, de um ponto
da Sorocabana Railway Company. Contudo, a Ourinho daquele mapa era, na verdade, a
atual cidade paranaense de Jacarezinho, na fronteira entre São Paulo e Paraná. Ourinho era,
a princípio, o nome de um riacho que desembocava no ribeirão Fartura, afluente do
Paranapanema, e cortava parte da fazenda Ourinhos. A Ourinho paranaense foi rebatizada.
13
DEL RIOS, Jefferson. Ourinhos: memórias de uma cidade paulista. Ourinhos: Prefeitura Municipal, 1992.
p.22.
E, assim, o Posto da Estrada de Ferro, instalado em 1908, na parte paulista da fronteira foi,
por influência do riacho e da fazenda, oficializado pela Sorocabana como Ourinhos
14
.
Em 1909, eram embarcados cerca de 198.000 quilos de café. Com cerca
de um milhão de pés de café, a vila de Ourinho torna-se Distrito Policial em 1910. O posto
da E.F.S. foi elevado à categoria de Estação em 1912. Tal elevação foi decisiva para o
progresso econômico e demográfico de Ourinhos. Com efeito, cinco anos depois, e com
cerca de dez mil habitantes, o Distrito, vinculado ao município de Salto Grande do
Paranapanema, estava a caminho da emancipação. Assim avalia a Comissão
Considerando-se que os motivos alegados na representação, em abono à idéia da
criação do município de Ourinho, encontram confirmação categórica nas
informações prestadas, das quais ressalta a certeza de que o Distrito de Paz de
Ourinho, já atingiu um considerável grau de desenvolvimento e de que, em futuro
muito próximo, será um dos mais importantes núcleos de população e riqueza do
interior paulista, e que pela sua situação econômica está em condições de possuir
administração própria pela qual e mais diretamente e com maior interesse seja
[...] propiciada a expansão de suas forças vivas e cuidado o serviço de higiene
pública, é esta comissão de parecer que seja discutido e votado o seguinte projeto
de lei:
O Congresso Legislativo do Estado de São Paulo decreta:
Artigo - É criado, no território do Distrito de Paz de Ourinho, o município do
mesmo nome, na Comarca de Santa Cruz do Rio Pardo.
14
SILVA, Norival Vieira da. Buscando o nome da cidade de Ourinhos na história e não em simples
suposições. Jornal da Divisa, Ourinhos-SP, 13/14 dez. de 2001, p.A-2.
Artigo - As divisas do novo município serão as mesmas do atual Distrito de
Paz, a saber: começam na foz do rio Pardo com o rio Paranapanema, até frontear
o espigão do lado direito do córrego do Lageadinho e daí rumo até o quilômetro
511 da Estrada de Ferro Sorocabana; daí seguem a procurar o espigão do lado
esquerdo do córrego Barreirinho ou Barreiro e pelo cume deste espigão descem
até o ponto onde este terminar; e daí seguem rumo até a Ponte Preta, sobre o Rio
Pardo, e daí descem pelo rio Pardo até a foz do Paranapanema, ponto de partida.
Artigo 3º - Revogam-se as disposições em contrário. Sala das sessões, 3 de
dezembro de 1917
15
.
Um ano depois, o governador Altino Arantes assinou a Lei Estadual
nº1618, de 13 de dezembro de 1918. Data em que se comemora o aniversário de Ourinhos
(no plural, como no documento oficial assinado por Altino Arantes). Em março de 1919 é
instalado o município. No ano seguinte, a capela do Senhor Bom Jesus é elevada à
condição de paróquia.
O primeiro templo, rústico e provisório, ficava, de acordo com o
testemunho de Norival Vieira, na parte “abaixo da linha”, isto é, no sentido contrário à
porta de entrada da estação, retratada na foto da próxima página. Tempos depois, outro
templo foi instalado no sentido inverso, na região da cidade denominada “acima da linha”.
Esta reservada para as principais lojas, escolas e residências. A outra incluía o reduto dos
operários, do cemitério, da delegacia e dos bordéis. De certa forma, essa estratificação
social e urbana caracteriza a cidade até os dias de hoje
16
.
15
DEL RIOS, Jefferson. Ourinhos: memórias de uma cidade paulista. Ourinhos: Prefeitura Municipal, 1992.
p.24.
16
MARTINS, Eitor. Minha vida, minha História. Ourinhos: Edições Cristãs, 2006. p.32.
Estação de Ourinhos no primeiro quartel do século XX. Fonte: D´AMBRÓSIO, Oscar (org.). Ourinhos: um
século de história. São Paulo: Noovha América, 2004. p.19.
Em 1920, acima da linha, perto da principal praça da cidade, a Mello
Peixoto, foi lançada a pedra fundamental da igreja matriz do Senhor Bom Jesus, abençoada
por D. Lúcio Antunes de Sousa, primeiro bispo da diocese de Botucatu qual pertencia a
paróquia de Ourinhos) criada em 1908, desmembrada da Arquidiocese de São Paulo, no
turbilhão de mudanças acarretadas pela expansão dos trilhos da Sorocabana e da reforma
interna do Catolicismo na passagem do século XIX para o século XX - temática que
analisarei em outro momento deste trabalho.
Em 1923, o roco de Ourinhos, padre David Corso, benzeu os altares
laterais e as imagens de São Roque e do Sagrado Coração de Jesus. Em 1924, ocorreu a
benção do altar-mor e de inúmeras imagens e estandartes de irmandades locais. No Natal de
1925, foi celebrada a primeira missa na nova igreja
17
.
Em maio de 1931, D. Carlos Duarte da Costa, que mais tarde
protagonizaria um movimento cismático dando origem a Igreja Católica Brasileira
18
,
17
DIOCESE DE OURINHOS. Boletim Informativo, jul.ago. de 2000, p.1.
18
DONATO, Hernani. Achegas para a História de Botucatu. 3.ed.Botucatu: Prefeitura Municipal, 1985.
p.309-10. D. Carlos Duarte da Costa (1888-1961) foi afastado da diocese de Botucatu em razão de problemas
administrativos, depois foi designado Bispo de Maura, uma extinta diocese africana. Foi excomungado em
1945, por criticar a aliança da Igreja Católica Romana com os regimes totalitários e pregar o fim do celibato e
empossou o padre Victor Moreno como novo roco de Ourinhos. Em sua administração
(1931-5) foi criada e promovida a Congregação Mariana. Essa iniciativa estava inserida em
um projeto maior, liderado pelo Cardeal do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme, que visava
criar uma identidade católica nacional através da devoção mariana, conforme assinalou o
historiador Lourival dos Santos, em sua dissertação sobre o desenvolvimento do culto a
Nossa Senhora Aparecida. Lourival acentua que “a devoção tornava-se uma das molas
mestras da construção de um imaginário nacional”
19
. Construção que satisfazia ao, ainda
provisório, governo Vargas e ia ao encontro do ideal de neocristandade do Cardeal Leme.
Esse projeto ganhou força quando, em 16 de julho de 1930, a Santa declarou Nossa
Senhora Aparecida Padroeira do Brasil
20
.
Significativamente, no mesmo mês em que padre Moreno tomava posse,
acontecia uma apoteótica peregrinação ferroviária da imagem da Virgem Aparecida ao Rio
de Janeiro. Diante de aproximadamente um milhão de fiéis e do novo governante do país,
Getúlio Vargas, o Cardeal Leme consagrou a nação brasileira a Nossa Senhora Aparecida -
“Rainha do Brasil”
21
. Naquele mesmo ano, foi realizado um grande Congresso Mariano por
ocasião dos 1500 anos do Concílio de Éfeso (431 d.C.), no qual foi definido o dogma da
Maternidade Divina. Em Éfeso, Maria recebeu o título sobre o qual se fundamenta toda
devoção mariana: Theotokos, isto é, Mãe de Deus
22
.
da indissolubilidade do sacramento do matrimônio. Foi canonizado pela Igreja Católica Apostólica Brasileira
(ICAB), em 1970, como São Carlos do Brasil. Disponível em www.icab.org.br. Acesso em: 11 nov. 2006.
19
SANTOS, Lourival dos. Igreja, Nacionalismo e Devoção Popular. Dissertação (Mestrado em História).
FFLCH, USP, São Paulo, 2000. p.107.
20
BRUSTOLONI, Júlio João. História abreviada do santuário de Aparecida. 8.ed. Aparecida: Santuário,
2004. p.39.
21
FERNANDES, Rubem C. Aparecida: nossa rainha, senhora e mãe, saravá! IN: SACHS, Viola (org.). Brasil
& EUA: religião e identidade nacional. São Paulo: Graal, 1988. p.90; SANTOS, Lourival dos. Igreja,
Nacionalismo e Devoção Popular. Dissertação (Mestrado em História). FFLCH, USP, São Paulo, 2000.
p.124.
22
Os mariologistas são unânimes em indicar o Concílio de Éfeso como o grande marco do desenvolvimento
do culto marial. A partir da controvertida noção de TheotokoS foi construída a doutrina mariana. Cf.
As teses desse Congresso Mariano procuravam
mostrar argumentos teológicos que justificassem o destaque dado pelos católicos
ao culto mariano, questionado pela entrada do Protestantismo no Brasil.
Procurava-se reforçar e legitimar um fato: a devoção popular a Nossa Senhora
23
.
Ainda nessa direção, em 1931, mais especificamente no dia 12 de
outubro, dia do “Descobrimento da América” e da chegada do Catolicismo ao Novo
Mundo, foi inaugurado o Cristo Redentor. Aproveitando o ensejo, o Cardeal Leme, tendo
por platéia as principais autoridades civis, religiosas e militares do Brasil, fez
reivindicações católicas fundamentadas na força da Igreja em mobilizar ações populares
24
.
Nesse contexto histórico e eclesiológico, a Congregação Mariana de
Ourinhos, organizada pelo padre Victor Moreno, se consolidava como principal movimento
religioso e político da cidade. Rafael Conte, congregado mariano entre as décadas de 1940
e 1970, testemunhou que
Ourinhos chegou a ter mil e quinhentos congregados marianos. Era uma força
extraordinária. Criou força na época do papa Pio XI. Foi uma grande obra
mariana. Difundiu o culto mariano de uma forma tão grande.
PELIKAN, Jaroslav. Maria através dos séculos. Tradução de Vera Camargo Guarnieri. São Paulo: Cia. das
Letras, 2000. p. 84-6; DUQUESNE, Jacques. Maria. Tradução de Karini Janini. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2005. p.98-105; BOYER, Marie-France. Culto e imagem da Virgem. Tradução de Paulo Neves. São
Paulo: Cosac & Naify, 2000. p.14; CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Tradução de Carlos Felipe Moisés.
São Paulo: Palas Athena, 1990. p.190; DELUMEAU, Jean; MELCHIOR-BONNET, Sabine. De religiões e de
homens. Tradução de Nadyr de Salles Penteado. São Paulo: Loyola, 2000. p.204.
23
SANTOS, Lourival dos. Igreja, Nacionalismo e Devoção Popular. Dissertação (Mestrado em História).
FFLCH, USP, São Paulo, 2000. p.125.
24
BEOZZO, José Oscar. A Igreja entre a Revolução de 1930, o Estado Novo e a Redemocratização. IN:
PIERUCCI, Antônio Flavio et al. História Geral da Civilização Brasileira: o Brasil Republicano, v.4:
economia e cultura (1930-1964). 2.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p.293-7.
Rafael está bem informado. Afinal, o papado de Pio XI (1922-1939) foi o
marco da difusão da Congregação Mariana. Esse movimento iniciado pelos Jesuítas
25
era
comum no Brasil Colonial. Arrefeceu-se com a expulsão dessa Ordem Religiosa, mas não
desapareceu. Incentivada por Pio XI, em tempos de crise mundial, ainda sob o mistério das
mensagens de Nossa Senhora de Fátima aos pequenos pastores portugueses (1917), a
Congregação Mariana do Brasil, em consonância com o projeto do Cardeal Leme, superou
em incidência e quantidade as Congregações Marianas de outros países. Rafael afirmou
também que a principal imagem de Maria venerada entre os congregados ourinhenses era a
de Nossa Senhora Aparecida
26
. Examinados pelo distanciamento do olhar histórico, posso
afirmar desde já, que esses fatos apontam para a bem sucedida romanização do Catolicismo
ourinhense e seu alinhamento ao projeto de D. Sebastião Leme.
Entre a instalação do município e meados da década de 1940, a população
ourinhense saltou de quatro mil e quinhentos habitantes para cerca de quinze mil. As crises
política e econômica que assolaram o Estado de São Paulo na década de 1930, não
impediram o crescimento da malha ferroviária até o Paraná, com o objetivo de escoar o
algodão produzido naquela região. Com investimentos estrangeiros, sobretudo britânicos, a
25
WRIGHT, Jonathan. Os Jesuítas: missões, mitos e histórias. Tradução de Andréa Rocha. Rio de Janeiro:
Relume Damará, 2006.p.60-2.
26
Essa escolha vincula-se, talvez, ao papel ocupado pela Virgem Aparecida na diocese de Botucatu. Além de
várias capelas e paróquias dedicadas a Nossa Senhora Aparecida, ela foi escolhida como padroeira do
Batalhão Diocesano que, em 1932, formado por D. Carlos Duarte da Costa, deveria reforçar, ainda que
simbolicamente, as tropas paulistas contra o governo getulista. Cf. DONATO, Hernani. Achegas para a
história de Botucatu. 3.ed. Botucatu, SP: Prefeitura Municipal, 1985. p. 359. Além disso, segundo
depoimentos de Rafael Conte e Norival Vieira, a devoção a Nossa Senhora Aparecida se manifestava nas
inúmeras casas comerciais (farmácias, bares etc.) que levavam o seu nome. Muitas pessoas, homens e
mulheres, também eram batizadas com o nome da Santa: Aparecidas e Aparecidos.
estrada de ferro ganhou sobrevida, superou a crise e voltou a crescer no final da década de
1940
27
.
Foi nessa época que o padre da Congregação dos Oblatos de São José,
Pedro Magnone, chegou pelos trilhos da Sorocabana a cidade de Ourinhos. Seu intuito era
analisar as possibilidades de construção de uma Casa Religiosa para os padres Josefinos.
Agradava-lhe a posição geográfica da cidade, ligando o sudeste ao sul do país, regiões
estratégicas para o avanço dos Josefinos em terras brasileiras. Além disso, o bispo de Assis,
D. Antônio José dos Santos, havia proposto ao padre Eugenio Gheerlone, superior dos
Josefinos, a doação de um terreno em Ourinhos tendo como contrapartida a garantia de que
os Oblatos de São José edificariam um seminário e acolheriam os seminaristas de sua
diocese. D. Geraldo Proença Sigaud, bispo de Jacarezinho, também estava preocupado com
a formação de seus seminaristas e, com o mesmo desejo de D. Antônio, auxiliou os Oblatos
de São José na implantação da nova casa
28
.
Em 1948 foi abençoada a pedra fundamental do seminário por D. Geraldo
e D. Antônio. O arcebispo de Botucatu, D. Frei Henrique Golland Trindade, enviou como
representante o monsenhor José Melhado, acompanhado do pároco local, padre Eduardo
Murante companheiro de padre Magnone na implantação da Casa Josefina. O seminário
foi consagrado a Nossa Senhora de Guadalupe, a pedido do superior geral padre Gheerlone.
O seminário foi inaugurado em 15 de abril de 1950, constituído por 85 estudantes vindos
27
ALVES, Paulo. Ourinhos: uma perspectiva histórica (1905-1994). Ourinhos, SP: Prefeitura Municipal, s/d.
p.3.
28
CONGREGAÇÃO DOS OBLATOS DE SÃO JOSÉ. Seminário Josefino Nossa Senhora de Guadalupe: 50
anos. Ourinhos, SP. 1998.p.5-10.
das dioceses de Assis e Jacarezinho, junto com aqueles que se preparavam para a vida
religiosa josefina
29
.
Naquela mesma época, padre Murante iniciava a construção de uma nova
igreja. Ele argumentava que a igreja da praça Mello Peixoto, construída na década de 1920,
retratada a seguir nos anos 1940, não comportava a atual comunidade de católicos. A
crescente urbanização do município exigia um novo e ampliado templo. Padre Murante e
Padre Magnone estavam empenhados, também, na organização de movimentos eclesiais
que contassem com o protagonismo leigo, em particular, a Sociedade de São Vicente e a
Congregação Mariana.
Área central da cidade de Ourinhos, retratando a Igreja Matriz da década de 1940. Fonte: Acervo do Museu
Municipal Histórico e Pedagógico de Ourinhos.
Essas atitudes iam ao encontro da orientação da Igreja do Brasil que
procurava se reorganizar após o abalo interno causado pela morte do Cardeal Leme, em
1942. Os novos rumos da Igreja passavam pela presença marcante do laicato (sobretudo a
29
CONGREGAÇÃO DOS OBLATOS DE SÃO JOSÉ. Seminário Josefino Nossa Senhora de Guadalupe:
50 anos. Ourinhos, SP. 1998. p.10-11.
Liga Eleitoral Católica LEC, a Juventude Operária Católica JOC, e a Juventude
Universitária Católica JUC) que, entre outras coisas, contribuiu para uma reestruturação
do episcopado, abrindo novas zonas de compromisso e ação da Igreja, que, no pós-Segunda
Guerra, mobilizou-se em prol de uma reforma social que culminou com a criação da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 1952
30
.
Assim, no início dos anos 1950, com cerca de vinte e cinco mil
habitantes, Ourinhos parecia um canteiro de obras, reflexo das transformações por que
passava a cidade. Duas grandes igrejas projetadas, a do Senhor Bom Jesus e a de Nossa
Senhora de Guadalupe, o centro sendo ampliado e asfaltado, a abertura de novos bairros e a
rodovia SP-270 (Raposo Tavares) sendo estendida até Presidente Epitácio
31
.
Na foto que segue, visualizamos a Ourinhos do início dos anos 1950.
Note à esquerda, ao fundo, a (nova) igreja matriz do Senhor Bom Jesus, ainda em
construção. À direita, também ao fundo, observamos a torre da antiga igreja, demolida em
1955.
30
PIERUCCI, Antônio F.; SOUZA, Beatriz M.; CAMARGO, Cândido P. F. de. Igreja Católica:1945-1970.
IN: PIERUCCI, Antonio Flavio et al. História Geral da Civilização Brasileira: o Brasil Republicano, v.4:
economia e cultura (1930-1964). 2.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p.346-54.
31
ALVES, Paulo. Ourinhos: uma perspectiva histórica (1905-1994). Ourinhos, SP: Prefeitura Municipal, s/d.
p.4; D’AMBRÓSIO, Oscar (org.). Ourinhos: um século de história. São Paulo: Noovha América, 2004. p.47.
Fonte: D’AMBRÓSIO, Oscar (org). Ourinhos: um século de história. São Paulo: Noovha América, 2004. p.
41.
Mas, agora, voltemos ao fato que corria pela boca do povo ourinhense e
que marcaria a história religiosa do município, estampado na primeira página do jornal
Correio de Notícias, de 03 de agosto de 1954.
Nos trilhos da Sorocabana sobre os quais nasceu a cidade de Ourinhos,
nos quais corriam as riquezas da região - trilhos que transportavam além de coisas, pessoas
e idéias, projetos e desejos, ocorreu um terrível acidente envolvendo um trem misto e um
caminhão tanque, numa área próxima a um grande depósito de combustível. Era esse o fato
estampado na primeira página do Correio de Notícias com o título “TREMENDA
COLISÃO PROVOCA VIOLENTO INCÊNDIO”. A reportagem começava assim:
Ourinhos viveu horas de verdadeiro pânico na tarde de sábado com um
desastre que por pouco não se transforma numa catástrofe de
conseqüências imprevisíveis
32
.
Esta a epígrafe e o tom do texto do dia 03 de agosto, sobre o acidente que
ocorrera três dias antes, em 31 de julho de 1954. O artigo descreve, detalhadamente, o
acidente e o pânico que se abateu sobre a população. Afinal
Com a violência do impacto o carro-tanque explodiu, provocando violento
incêndio que atingiu a locomotiva Diesel, a qual imediatamente teve a sua carga
de combustível também tomada pelas chamas que a envolveram por completo.
Localisados (sic) bem próximos do sinistro estavam os grandes depósitos de
gasolina das citadas companhias
33
, que somente não foram atingidas por uma
questão de pura sorte, e que si tal acontecesse então hoje estaríamos a lamentar
um desastre de prejuisos (sic) materiais e de vida, que ficaria como marco
fúnebre na vida de Ourinhos
34
.
O texto continua a afirmar a gravidade do acidente e a “pura sorte” da
cidade diante da tragédia:
O pânico tomou conta da população das adjacências, que abandonando seus lares,
carregando o essencial, fugia para a parte alta da cidade, temerosa do perigo
32
TREMENDA colisão provoca violento incêndio. Correio de Notícias, Ourinhos, 03 ago.1954, p.01.
33
As companhias Esso, Gulf, Standard e Texaco.
34
TREMENDA colisão provoca violento incêndio. Correio de Notícias, Ourinhos, 03 ago.1954, p.01.
iminente que corria. [...] Por sorte, também, não soprou o vento tão comum aqui
em Ourinhos, contribuindo assim para evitar fossem as chamas, levadas para
outros lugares, provocando novos incêndios
35
.
Entretanto, havia ainda o perigo do alastramento do fogo em direção aos
vagões de passageiros. Nesse caso, Norival Vieira, autor do artigo, precisa recorrer a uma
expressão que atinja a dramaticidade da situação. Abandona a expressão “pura sorte” e
escreve:
Por verdadeiro milagre o fogo não se propagou aos carros de passageiros que
vinham ligados a composição mixta. Achavam-se separados do local onde se
iniciou o fogo apenas pelo carro de bagagem que também foi totalmente tomado
pelas chamas e destruído toda a sua carga
36
.
O pânico e a luta das pessoas contra o fogo destacam-se nessa foto do
incêndio.
35
TREMENDA colisão provoca violento incêndio. Correio de Notícias, Ourinhos, 03 ago.1954, p.01.
36
TREMENDA colisão provoca violento incêndio. Correio de Notícias, Ourinhos, 03 ago.1954, p.01.
Correria, pânico e orações ante o fatídico acidente. Fonte: Acervo do Santuário Diocesano de NSAVQ.
Mas, não era a primeira vez que a cidade presenciava um acidente nos
trilhos da Sorocabana. A estrada de ferro corta, ainda hoje, toda a cidade. No início da
década de 1950 a atual malha ferroviária estava constituída em sua estrutura básica. Os
ourinhenses estavam acostumados com os apitos e gritos que vinham dos trilhos. Segundo
o depoimento do já conhecido Rafael Conte, telegrafista da E.F.S. em 1954, eram comuns
acidentes envolvendo trens e pedestres, ciclistas ou carroceiros nas passagens de nível da
ferrovia. Em meados daquele mesmo mês de julho de 1954, ocorrera um acidente entre um
trem misto e um caminhão. É o que revela um documento interno da E.F.S., parte de um
inquérito administrativo que tinha por objeto esse acidente:
Dando cumprimento ao determinado pela portaria datada de 08 de outubro findo
[...] para, em comissão, apurar as causas e responsabilidades pelo acidente
ocorrido na passagem de vel do km 501, dia 16/07/1954, às 21:30, acidente
esse que passamos a historiar: o trem n.6, locomotiva 3305 [...] apanhou o
caminhão de marca ‘Dodge’ [...] naquela passagem de nível [...] o citado
caminhão, que estava vasio (sic), [...] ao transpor a referida passagem de nível,
derrapou, indo a parte dianteira cair dentro da valeta de proteção, ficando a
carroceria sobre a banqueta da linha e atravessada, exatamente às 20:30 [...]
37
.
O motorista deixou o caminhão encalhado e saiu em busca de ajuda. Era,
em todos os sentidos, tarde demais. Chegou a avisar os funcionários da Sorocabana que
estavam na estação, distante três quilômetros do local, que às 21:30h, tornara-se palco de
um acidente que quebrou todos os vidros do trem e vitimou seus passageiros com
ferimentos leves. Mas, talvez pela trivialidade do fenômeno, esse acidente passou
despercebido. Sem notas ou comentários, registrado apenas por meio de um inquérito
interno cujo final suspendeu os funcionários envolvidos por quinze dias.
O acidente do dia 31 de julho era sem precedentes. Daí, entre outros
fatores, ter sido noticiado em rede nacional pelo célebre Repórter Esso. O telegrafista
Rafael Conte afirmou que de qualquer ponto da cidade era possível ver as labaredas que se
formaram. O acidente aconteceu às 15:15h, segundo documento da E.F.S., e o estrondo
pôde ser ouvido por quilômetros, como destacou a irmã Vivalda, freira da Congregação das
Irmãzinhas da Imaculada Conceição, moradora de Ourinhos desde 1952, que naquele
momento estava no, parcialmente construído, Colégio Santo Antônio, distante cerca de 3
km do local do acidente. Três pessoas morreram: o maquinista José Stefani, o foguista
Vergílio Pinto Amaral e o motorista do caminhão Palmito Túlio. Várias pessoas ficaram
gravemente feridas. A foto abaixo revela a força do impacto e a nuvem de fumaça que
tomou o ambiente, aumentando a dramaticidade da situação.
37
ESTRADA De Ferro Sorocabana, Inquérito administrativo nº 1001, 30 ago. 1954.
O “sinistro” de 31 de julho de 1954. Fonte: Acervo do Santuário Diocesano de NSAVQ.
O desastre só não foi maior porque muitas pessoas auxiliaram no combate
às chamas. Sem um corpo de bombeiros na cidade, os funcionários da E.F.S. e da
SANBRA (Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro), que detinham materiais contra
incêndios, iniciaram os trabalhos enquanto se aguardava a vinda do Corpo de Bombeiros da
capital.
Diante de tamanha tragédia, em meio ao pânico instaurado pelo incêndio,
muitas pessoas colocaram-se em oração, como relatou Lourival Argenta, com 15 anos na
época, testemunha ocular do acidente e das ações que se seguiram. Segundo ele
Naquela hora não tinha quem não rezasse. O fogo estava indo para o lado da
companhia, ventava, mas o vento mudou de direção. Então os bombeiros
conseguiram controlar o incêndio e depois começaram o rescaldo
38
.
Para Lourival Argenta, que morava próximo ao local do acidente,
caracterizado por fortes e constantes ventanias, o vento tranqüilo e soprando em direção
contrária a dos depósitos de combustível foi um verdadeiro milagre, que se confirmaria no
imaginário
39
religioso local com o encontro inusitado e misterioso de uma imagem intacta
de Nossa Senhora Aparecida, no interior de um vagão incinerado. Nas linhas do artigo do
Correio de Notícias:
Nota curiosa e que impressionou profundamente a nossa população, foi o
encontro pelos bombeiros, de uma imagem de N. S. Aparecida inteiramente
intacta entre as cinzas das bagagens contidas no vagão incendiado que separava
os carros de passageiros dos carros tanques. É de se registrar que o conteúdo
daquele vagão, por várias foi totalmente incinerado, somente escapando a sua
carcassa (sic) por ser de aço. Sofreu ainda durante o rescaldo ação contínua de
abundantes jatos de água e nada sofreu a imagem encontrada pelos bombeiros.
Impressionados, também pelo achado, desejavam os bombeiros levarem consigo
a imagem para entronizarem-na no quartel de sua corporação. Por sugestão,
entretanto do Dr. Gilberto Porto, delegado auxiliar de polícia, foi a mesma
38
TESTEMUNHA do encontro da imagem de Nossa Senhora do Vagão Queimado conta como foi o 31 de
julho de 1954. Jornal da Divisa, Ourinhos, 31 jul. 2004, p.8.
39
O conceito de imaginário empregado neste trabalho fundamenta-se em LE GOFF, Jacques. O imaginário
medieval. Tradução de Manuel Ruas. Portugal: Estampa, 1994. p.11-18.
deixada nesta cidade, tendo sido entregue pelo Ten. Marcondes, ao Sr. Prefeito
Municipal, em cuja ocasião foram batidas chapas fotográficas
40
.
Lourival Argenta
também acompanhou o encontro da
imagem. Em seu relato a visão de
quem vivenciou cada momento do
misterioso achado
Então passaram a apagar o fogo em um vagão que estava com uma mudança.
Começaram a jogar água, parecia um forno e foram tirando as coisas que estavam
dentro. Devia ser umas 9 da noite, quando um bombeiro puxou com um gancho
uma caixa que estava pegando fogo. Eu estava ali, bem perto dele. A caixa tinha
muitos panos, de repente o bombeiro abaixou-se e pegou a imagem de Nossa
Senhora. Ele a lavou e eu fiquei ali olhando e em seguida mandaram que eu a
segurasse
41
.
O adolescente Lourival não sabia que a pequena imagem que segurava, se
tornaria, no futuro, um dos maiores símbolos do Catolicismo ourinhense. Catolicismo
marcado, em 1954, por duas formas básicas: a tradicional e a romanizada.
1.2 Catolicismos.
40
TREMENDA colisão provoca violento incêndio. Correio de Notícias, Ourinhos, 03 ago.1954, p.01..
41
TESTEMUNHA do encontro da imagem de Nossa Senhora do Vagão Queimado conta como foi o 31 de
julho de 1954. Jornal da Divisa, Ourinhos, 31 jul. 2004, p.8.
Religião dos conquistadores, o Catolicismo foi implantado no Brasil
desde o início da colonização. Era uma das bases de sustentação ideológica do projeto
colonial português. Por isso, a Igreja, sob o regime do Padroado
42
, assumiu o modelo
medieval da Cristandade: íntima relação com o Estado; estímulo ao espírito cruzadista;
manutenção da ortodoxia através da Inquisição.
O efetivo estabelecimento do Catolicismo e da colonização lusitana foi
contemporâneo do Concílio de Trento (1545-1563). Eminentemente dogmático e
moralizante, esse Concílio foi uma reação peremptória aos ideais reformistas do século
XVI.
Segundo Guttilla, os princípios tridentinos de uma Igreja sacramental e
dogmática não foram aceitos integralmente pelos bispos portugueses e pela Coroa
Lusitana
43
. Desse modo, o modelo Igreja-Cristandade contribuiu para a manutenção de um
Catolicismo tipicamente ibérico no Brasil do período colonial. Um tipo de Catolicismo que
a historiografia consagrou como “tradicional”
44
.
Em linhas gerais, Steil destaca três principais características do
Catolicismo tradicional: sua origem laica, seu sentido devocional e seu caráter
penitencial
45
.
42
Por meio do regime de Padroado a Coroa Portuguesa controlava a Igreja, transformada em mais um órgão
da administração lusitana. Cf. AZZI, Riolando. Formação histórica do Catolicismo popular brasileiro. IN:
VVAA. A Religião do Povo. São Paulo: Paulinas, 1978. p.45; GUTTILLA, Rodolfo. A casa do santo e o
santo de casa. São Paulo: Landy, 2006. p.43.
43
GUTTILLA, Rodolfo. A casa do santo e o santo de casa. São Paulo: Landy, 2006., p.42.
44
AZZI, Riolando. O Catolicismo popular no Brasil: aspectos históricos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1978. p.05s;
OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. O Catolicismo do povo. IN: VVAA. A Religião do Povo. São Paulo: Paulinas,
1978. p.75s. WERNET, Augustin. A Igreja Paulista no século XIX. São Paulo: Ática, 1987, p.47.
45
STEIL, Carlos Alberto. Catolicismo e cultura. IN: VALLA, Victor V. (org.). Religião e cultura popular.
Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.21-5.
A origem laica dessa forma de Catolicismo brasileiro fundamenta-se,
primeiramente, no regime de Padroado, afinal, este estabelecia o domínio de um leigo (não
clérigo), no caso o monarca português, como chefe efetivo da Igreja
46
. Além disso, o
Padroado submetia todas as pessoas ao Catolicismo que, com efeito, permeava a vida e a
cultura da sociedade colonial.
A natureza laica do Catolicismo tradicional remete, outrossim, ao
protagonismo exercido pelos leigos no Catolicismo ibérico. Procissões, manifestações
públicas de piedade ruidosas e sinceras, festas e devoções eram promovidas, organizadas e
mantidas pelos leigos. Essas práticas continuaram no Brasil colonial, sobretudo, em razão
da escassez de sacerdotes numa América Portuguesa de dimensões continentais. Para Pedro
Ribeiro de Oliveira, esse laicismo religioso lusitano, reinventado no Brasil, sustentou o
Catolicismo brasileiro durante seus primeiros séculos:
O quadro do antigo Catolicismo luso-brasileiro é de um Catolicismo assentado
sobre organizações e lideranças leigas. Inclusive, é esse assentamento sobre os
leigos que nos permite entender o dinamismo do Catolicismo brasileiro do
passado, apesar da debilidade do clero
47
.
Ainda segundo Pedro Ribeiro de Oliveira, reiterando e complementando
sua afirmação a respeito do protagonismo leigo, as irmandades e confrarias foram os
principais suportes da religião Católica no Brasil colonial. Assim,
46
GUTTILLA, Rodolfo. A casa do santo e o santo de casa. São Paulo: Landy, 2006. p.46-7.
47
OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. O catolicismo do povo. IN: VV.AA. A religião do povo. São Paulo:
Paulinas, 1978. p.73.
Nas cidades e vilas de certa importância, elas tinham uma organização formal,
constituíam por vezes um grande patrimônio econômico, e mantinham, por
própria conta, capelas e cemitérios. Nas zonas do interior, se constituíam em
grupos sem organização formal, apenas nucleados em torno da figura do
“festeiro”. Mas, em ambos os casos, eram esses grupos de leigos, que
promoviam, organizavam e abrilhantavam as festas religiosas e difundiam as
devoções aos santos
48
.
Esse sentido devocional das práticas religiosas nos leva ao segundo
aspecto do Catolicismo tradicional, que pode ser descrito por um conhecido adágio popular:
muita reza, pouca missa, muito santo, pouco padre.
Em O imaginário medieval, Jacques Le Goff nos fez perceber como a
santidade era o valor essencial da Idade Média sendo o santo, com efeito, a figura central
daquele cristianismo
49
. O culto aos santos conseguiu articular o local e o universal, o antigo
e o novo, configurando-se como a principal estratégia da Igreja na difusão de suas idéias e
valores. Isso porque
Foi através da hagiografia cristã que os cultos locais da Trácia até a
Escandinávia e do Tejo até o Dnieper- foram reduzidos a um “denominador
comum”. Graças à sua cristianização, os deuses e os lugares de culto de toda
Europa não receberam apenas nomes comuns, mas reencontraram, de uma certa
maneira, seus próprios arquétipos e, conseqüentemente, suas valências
48
OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. O catolicismo do povo. IN: VV.AA. A religião do povo. São Paulo:
Paulinas, 1978. p.75.
49
LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Tradução de Manuel Ruas. Portugal: Estampa, 1994.p.14
universais: uma fonte da Gália, considerada sagrada pela presença de uma
figura divina local ou regional, tornou-se santa para a cristandade inteira, após
sua consagração à Virgem Maria. Todos os caçadores de dragão foram
assimilados a São Jorge ou a um outro herói cristão, todos os deuses da
tempestade a Santo Elias. De regional e provincial, a mitologia popular torna-se
ecumênica. (...) A cristianização das camadas populares da Europa fez-se
sobretudo graças às Imagens: elas podiam ser reconhecidas em todos os
lugares; bastava apenas revalorizá-las, reintegrá-las e dar-lhes novos nomes
50
.
Até o século XII, o culto aos santos estruturava-se em torno das relíquias,
sobretudo, dos mártires, os heróis da fé. Depois, o culto foi deslocado das relíquias para as
imagens. Essa nova forma de culto, denominado iconodulia, i.e., o culto aos santos através
de suas imagens, teve início na Península Ibérica, de onde provém a maior parte dos relatos
a respeito de imagens que são misteriosamente ‘encontradas’, manifestando sua intervenção
e indicando o local em que desejavam ser cultuadas
51
.
Essa inflexão devocional contribuiu para a ampliação do hagiológico e
para a expansão do culto aos santos. Isso se deve ao fato de as relíquias pertencerem,
geralmente, às grandes catedrais e abadias. Ainda que fosse freqüente o ‘milagre social’ da
multiplicação de ossos, dentes e fios de cabelo dos santos, essa forma de culto limitava sua
expansão popular. Sendo assim, a inflexão em direção a iconodulia liberou as práticas
50
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. Tradução de Sônia C. Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
p.174-5.
51
STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias. Petrópolis: Vozes, 1996. p.161-2; VAUCHEZ, André.
Milagre. IN: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (orgs.). Dicionário Temático Medieval. Tradução
de Hilário Franco Júnior. Bauru: EDUSC, 2002. v.2. p.210.
devocionais, antes sob controle eclesiástico, ensejando também a deflagração de cultos
locais
52
.
Estas reflexões vão ao encontro das análises de Riolando Azzi sobre a
iconodulia no Brasil. Ele assinala a centralidade da devoção aos santos no Catolicismo
tradicional brasileiro e aponta para a permanência do imaginário religioso medieval. Em
suas palavras
Esse espírito devocional tem suas raízes mais profundas na própria Idade
Média. Com efeito, ele foi elaborado durante a Idade Média como uma forma
de resistência à imposição do Catolicismo romano oficial. Mediante o culto dos
santos, as populações lusitanas da Idade Média podiam continuar expressando
o sentimento religioso numa forma mais adequada à sua cultura e à sua
tradição
53
.
Sendo assim, o culto aos santos tornou-se lugar de conflitos, resistências,
tensões e acomodações na longa história de trocas culturais ensejadas pelo Catolicismo ou
pelos Catolicismos. No Catolicismo tradicional que tende a personificar realidades
abstratas, atitude típica da cultura popular segundo Peter Burke
54
, o santo não é uma
entidade transcendente, distante, mas, é encarnado na imagem que o representa
55
. A
52
VAUCHEZ, André. Milagre. IN: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (orgs.). Dicionário Temático
Medieval. Tradução de Hilário Franco Júnior. Bauru: EDUSC, 2002. v.2. p.210-11.
53
AZZI, Riolando. Formação histórica do Catolicismo popular brasileiro. IN: VV.AA. A Religião do Povo.
São Paulo: Paulinas, 1978. p.52.
54
BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. Tradução de Alda Porto. São Paulo: Cia. das Letras,
1989. p.197.
55
OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. O catolicismo do povo. IN: VV.AA. A religião do povo. São Paulo:
Paulinas, 1978. p.79.
imagem estabelece o contato entre o santo e o devoto. Nessa relação o sagrado é uma
realidade que se pode ver, tocar e que se deixa tocar.
Essa relação entre o santo e o devoto pode assumir duas formas básicas:
de aliança e contratual. Na primeira, ocorre uma espécie de filiação espiritual. A pessoa,
geralmente desde o seu nascimento, é consagrada, ou consagra-se, a um santo. Por voto ou
tradição familiar a pessoa compromete-se regularmente a render graças a seu patrono
celestial. Em troca o santo protege seu afilhado na terra e facilita seu acesso a vida eterna
56
.
A relação devocional contratual, por sua vez, não tem a perenidade
característica da devoção de aliança. Nessa o devoto e o santo contraem um acordo que
finda quando o devoto recebe a graça ou paga a promessa. A transitoriedade e o
pragmatismo dessa relação estão ancorados na crença da especialidade dos santos. No
imaginário católico tradicional cada santo tem sua especialidade
57
. Destarte, na lógica
devocional diante de uma tempestade, invoca-se a proteção de Santa Bárbara; antes de uma
viagem, invoca-se São Cristóvão, e assim por diante
58
.
Tanto a relação de aliança quanto a contratual expressam o cerne do
Catolicismo tradicional: a relação direta e pessoal entre o devoto e o santo. É o que afirma
Pedro Ribeiro de Oliveira
56
OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. O catolicismo do povo. IN: VV.AA. A religião do povo. São Paulo:
Paulinas, 1978., p.75; STEIL, Carlos Alberto. Catolicismo e cultura. IN: VALLA, Victor V. (org.). Religião e
cultura popular. Rio de Janeiro: DP&A, 2001., p.22.
57
Essa especialidade indica o campo de ação do santo, isto é, a sua capacidade de intervenção na realidade do
devoto. Segundo Josildeth Gomes Consorte, santos e milagres são um par constante, que não podem ser
pensados separadamente no Catolicismo devocional. Cf. GUTTILLA, Rodolfo. A casa do santo e o santo de
casa. São Paulo: Landy, 2006. p.13. Já Brandão, acrescenta que o devoto espera, para além dos milagres, a
proteção da religião. Cf. BRANDÃO, Carlos R. Os deuses do povo. São Paulo: Brasiliense, 1986. p.140.
58
OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. O catolicismo do povo. IN: VV.AA. A religião do povo. São Paulo:
Paulinas, 1978. p.78.
O santo está ao alcance imediato do fiel: na imagem, na estampa, nos
santuários, num cruzeiro à beira da estrada, numa gruta, ou nos arredores do
cemitério. O fiel não precisa recorrer a um mediador especializado para
contactar o santo; vai diretamente a ele, conversa com ele, expõe seus
problemas, agradece as “graças”, ou simplesmente presta seu ato de culto
59
.
A terceira característica dessa forma de Catolicismo é seu aspecto
penitencial. O maior símbolo do cristianismo, a cruz, remete para a dor e o sofrimento, para
a dimensão expiatória da religião. As práticas devocionais são, também, relações corporais.
Os corpos do santo (imagético) e do devoto falam entre si, entram em contato no
movimento, na ação, no gesto. A procissão põe corpos em movimento. O beijo aproxima e
integra devotos e santos. Promessas exigem atitudes de sacrifício.
A profusão de santuários dedicados ao Senhor Bom Jesus durante o
período colonial de nossa História aponta, segundo Azzi
60
, para a identificação entre os
sofrimentos vivenciados pelos fiéis e a paixão do Cristo
61
. Nesse sentido, Steil afirma
Através da penitência se realiza um processo de identificação entre o sagrado e
o profano. Ou seja, ser católico não é algo que se define pela adesão a um
59
OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. O catolicismo do povo. IN: VV.AA. A religião do povo. São Paulo:
Paulinas, 1978. p.79.
60
AZZI, Riolando. O Catolicismo popular no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1978. p.51-72.
61
Na década de 1990 o antropólogo Carlos Alberto Steil e a historiadora Solange Ramos David observaram,
respectivamente, nas romarias ao Bom Jesus da Lapa, na Bahia, e ao Menino da Tábua, em Maracaí, Estado
de São Paulo, essa identificação entre os sofrimentos experimentados pelos devotos e a paixão do santo
protetor. Para Steil, “o paradigma da via-crucis cujo mistério aproxima a potência divina à fragilidade
humana, dava coerência e sentido à jornada e revestia a experiência de um caráter dramático” . Cf. STEIL,
Carlos Alberto. O sertão das romarias. Petrópolis: Vozes, 1996. p.97. Em David, “é necessário o romeiro se
sacrificar, para se purificar e poder se apresentar ao santo. A idéia do sacrifício esno custo da viagem, na
possível falta do trabalho, na própria viagem após um dia de trabalho” . Cf. DAVID, Solange Ramos de
Andrade. Um estudo de religiosidade popular. Dissertação (Mestrado em História). FCL, UNESP, Assis,
1994. p.100.
determinado corpo de verdades ou pela aceitação de um código moral, mas
através da identificação com o sofrimento e a paixão
62
.
Ao lado desse Catolicismo tradicional leigo, devoto e penitencial,
presente no Brasil desde a colonização por iniciativa, grosso modo, do clero secular e dos
colonos, convive uma outra forma de Catolicismo que denominaremos “romanizado”.
Incentivado desde o século XVI pelos jesuítas
63
, essa forma de Catolicismo fundamentada
nos ideais do Concílio de Trento será a bandeira de luta da quase totalidade do episcopado
brasileiro na metade do século XIX
64
.
Esse Catolicismo é, primeiramente, romano, isto é, seu epicentro é Roma.
Os ideais tridentinos, suscitados em um contexto de Reformas Religiosas e de consolidação
dos Estados Absolutistas, reafirmaram os poderes papais e autoproclamaram Roma como
coração do cristianismo, sede da verdadeira religião. A partir de Roma, propôs-se uma
reforma centralizadora na Igreja Católica
65
. Afinal, é sobre a autoridade do Papado que se
estabelece o Catolicismo romanizado. Em Oliveira, observamos que enquanto o
Catolicismo tradicional ancora-se na ação do leigo e no princípio devocional “o
Catolicismo romano (...) se assenta sobre outra base: a autoridade do papa e, por extensão,
dos bispos e padres”
66
.
62
STEIL, Carlos Alberto. Catolicismo e cultura. IN: VALLA, Victor V. (org.). Religião e cultura popular.
Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.23.
63
Nas palavras de Jonathan Wright: “O Catolicismo [tridentino] estava fazendo ambas as coisas, é claro:
adorar santos e sacramentos dizia respeito a articular uma espiritualidade católica havia muito acalentada e
tinha a ver com a rejeição da inovação protestante. Os jesuítas apoiaram avidamente ambas as campanhas”.
WRIGHT, Jonathan. Os Jesuítas: missões, mitos e histórias. Tradução de Andréa Rocha. Rio de Janeiro:
Relume Damará, 2006. p.41.
64
GUTTILLA, Rodolfo. A casa do santo e o santo de casa. São Paulo: Landy, 2006. p.51.
65
GUTTILLA, Rodolfo. A casa do santo e o santo de casa. São Paulo: Landy, 2006. p.51-3.
66
GUTTILLA, Rodolfo. A casa do santo e o santo de casa. São Paulo: Landy, 2006. p.73.
A afirmação de Oliveira nos conduz à segunda característica do
Catolicismo romanizado: seu clericalismo. O Concílio de Trento enfatiza a primazia do
clérigo sobre o leigo. Nessa ótica, o sacerdote, por meio do sacramento da Ordem, torna-se
o único capaz de mediar as relações entre Deus e os fiéis. Por outro lado, essa filosofia
tridentina encontrava respaldo na necessidade de diferenciar o clérigo do leigo, em um
novo contexto de formação sacerdotal
67
.
A primazia do clérigo também está diretamente ligada ao aspecto
preponderantemente sacramental do Catolicismo romanizado. Nesse sentido, André
Vauchez
68
argumenta que desde o século XIII, após as reformas iniciadas pelo papa
Inocêncio III e Gregório IX, a Igreja procurou valorizar os milagres eucarísticos
enfatizando o grande milagre que ocorre na missa. Os princípios tridentinos confirmaram
essa orientação sacramental, como percebeu Azzi, ao diferenciar os significados da
salvação nas duas formas abordadas de Catolicismo: enquanto no romanizado a salvação
reside na prática dos sacramentos, na forma tradicional ela se encontra na devoção aos
santos
69
.
A tendência romanizadora do Catolicismo brasileiro ganhou força na
última metade do século XIX
70
. Quando Pio IX inicia seu pontificado em 1846, parecia
tomar o caminho contrário de seu predecessor, o conservador Gregório XVI (1831-1846).
67
WRIGHT, Jonathan. Os Jesuítas: missões, mitos e histórias. Tradução de Andréa Rocha. Rio de Janeiro:
Relume Damará, 2006. p.56.
68
VAUCHEZ, André. Milagre. IN: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (orgs.). Dicionário Temático
Medieval. Tradução de Hilário Franco Júnior. Bauru: EDUSC, 2002. v.2.p.210.
69
AZZI, Riolando. O Catolicismo popular no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1978., p.156.
70
As análises de certos episcopados da última metade do século XIX revelam os conflitos reais e simbólicos
ocorridos no processo de implantação do Catolicismo romanizado no Brasil. Destacam-se o clássico A Igreja
Paulista no século XIX, de Augustin Wernet, e O cardeal Arcoverde e a reorganização eclesiástica, de
Alceste Pinheiro de Almeida, tese de doutoramento, não por coincidência, sob orientação de Wernet.
Entretanto, no século do liberalismo, do cientificismo, das revoluções e contra-revoluções a
Igreja deveria defender-se do crescente secularismo.
Diante desse quadro, Pio IX opta por continuar as críticas ao liberalismo
proferidas por seu predecessor. Segundo Roque de Barros, a encíclica
71
Quanta cura (1864)
e o Syllabus que a acompanha, constituem a expressão doutrinária do movimento de Pio IX,
concretizada no Concílio Vaticano (1869-70) e no dogma da infalibilidade papal
72
. Rodolfo
Guttilla aponta para o fato desse movimento corroborar as teses tridentinas, em um novo
contexto de ameaça aos valores católicos
73
.
A criação do Colégio Pio Latino-americano (1859)
74
para formar, nos
moldes romanos, o episcopado da América Latina; a Questão Religiosa
75
, que desestruturou
as relações entre Igreja e Império e a Proclamação da República, separando Estado e
Igreja
76
, compõem o quadro de transformações do Catolicismo brasileiro no final do século
XIX.
Nesse contexto
A reação da Igreja tomou a forma dupla da resistência ao controle estatal e da
promoção de mudanças internas, com a recuperação da disciplina, educação e
71
Neste trabalho serão mantidos os nomes latinos das encíclicas e bulas papais - convenção do Vaticano que
remete à tradição judaica de nomear os textos sacros por meio de suas palavras iniciais.
72
BARROS, Roque S. M. de. Vida Religiosa e A Questão Religiosa. IN: ELLIS, Myriam et al. História
Geral da Civilização Brasileira: O Brasil Monárquico, v.4: declínio e queda do Império. 2.ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2003. p. 325-6. Ainda segundo Roque Barros, o papa Pio IX lança suas veementes críticas ao
liberalismo e proclama o dogma da infalibilidade em um cenário de ameaça ao território da Igreja em Roma
por conta do processo de Unificação Italiana. A partir daí a Igreja e o Estado Italiano entrarão em um conflito
(A Questão Romana) que se findará apenas em 1929, com o Tratado de Latrão.
73
GUTTILLA, Rodolfo. A casa do santo e o santo de casa. São Paulo: Landy, 2006., p.57.
74
SANTOS, Lourival dos. Igreja, Nacionalismo e Devoção Popular. Dissertação (Mestrado em História).
FFLCH, USP, São Paulo, 2000. p.41. Em 1934, foi criado, em Roma, o Colégio Pio Brasileiro, desmembrado
do Colégio Pio Latino Americano.
75
GUTTILLA, Rodolfo. A casa do santo e o santo de casa. São Paulo: Landy, 2006. p.59-60.
76
STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 231-2.
estilo devocional canônicos. A importação maciça de missionários europeus foi
um passo decisivo para este fim. Com a separação da Igreja e do Estado, na
República, o episcopado tomou conta dos santuários e buscou ordens religiosas
na Europa que pudessem encarregar-se da sua administração
77
.
Examinemos mais de perto essas inflexões no Catolicismo brasileiro,
convencionalmente reunidas no conceito de “romanização”
78
.
A resistência ao controle do Estado Republicano, que marca o processo
de autonomia da Igreja, após séculos de Padroado, revela-se na disputa instaurada entre
essas instituições pela representação da nação brasileira. Simultaneamente, a Igreja
reivindica para si a representação popular, afinal, o Brasil é um país católico; e ataca o
governo republicano, identificado com os racionalistas e cientificistas que procuram
secularizar e ateizar a sociedade. Ocorria uma luta simbólica pelas almas do povo
brasileiro, como indicou José Murilo de Carvalho em seu livro A formação das almas. Para
Carvalho, as negociações simbólicas entre Igreja, República e Sociedade levariam a pensar
numa representação que indicaria a complexidade do imaginário social brasileiro: Nossa
Senhora Aparecida sustentando em seus braços o Tiradentes esquartejado (a pietá cívico-
religiosa)
79
.
Nesse contexto, a Igreja procurava reorganizar-se internamente, criando
dioceses e seminários, bem como buscando assumir o controle dos santuários. Para Beozzo,
77
FERNANDES, Rubem sar. Aparecida: nossa rainha, senhora e mãe, saravá! IN: SACHS, Viola (org.).
Brasil & EUA: religião e identidade nacional. São Paulo: Graal, 1988. p.92.
78
Segundo Steil, a noção de romanização do Catolicismo brasileiro foi sugerida por Roger Bastide e
desenvolvida por Ralph Della Cava e por Pedro A. Ribeiro de Oliveira. Esta ação reformadora tinha por
objetivo moldar o Catolicismo brasileiro conforme o modelo romano. Cf. STEIL, Carlos Alberto. O Sertão
das romarias. Petrópolis: Vozes, 1996. p.229.
79
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. p.94 e 142.
a essência dessa reforma interna se traduz na idéia de purificação. Purificação de uma
Igreja serva do Estado; purificação de uma Igreja dominada pela superstição do leigo e pelo
desregramento do padre brasileiro
80
. Daí a necessidade de controlar os centros de devoção
popular e convocar padres estrangeiros para administrar esses centros e os seminários.
Pedro Ribeiro de Oliveira afirma que em 1920 a Igreja Católica no Brasil
já estava estruturada conforme o modelo romano
81
. Todavia, não podemos considerar que o
Catolicismo romanizado tenha suplantado, mecanicamente, o Catolicismo tradicional. Na
prática, eles continuaram a conviver e a estabelecer trocas simbólicas. Oliveira aponta para
esse fato. Segundo ele
O Catolicismo romano sofreu um processo de reelaboração, conservando
elementos da tradição luso-brasileira e reinterpretando os elementos do
Catolicismo romano de uma maneira própria
82
.
Também Steil, em sua análise do santuário do Bom Jesus, afirma
O Catolicismo popular local e o romanizado estabelecem entre si um jogo onde
a tradição e a novidade, as antigas e novas devoções, as crenças populares e os
conceitos racionalizados da teologia são usados por ambos num processo
criativo de apropriações e reapropriações
83
.
80
BEOZZO, José Oscar. Irmandades, santuários, capelinhas de beira de estrada. Revista Eclesiástica
Brasileira, Petrópolis-RJ, 148, dez. 1977, p.752-3.
81
OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. O catolicismo do povo. IN: VV.AA. A religião do povo. São Paulo: Paulinas,
1978. p.75.
82
OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. O catolicismo do povo. IN: VV.AA. A religião do povo. São Paulo:
Paulinas, 1978. p.75-6.
83
STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias. Petrópolis: Vozes, 1996. p.236-7.
Ainda segundo Steil, a Igreja não rompe com as noções de milagre e de
santidade que a acompanham desde a Idade Média. O que a romanização objetiva é o
alinhamento integral das práticas religiosas aos ditames do modelo romano. Ela promove
uma espiritualidade sacramental, centralizada no clérigo.
Um exemplo real pode esclarecer a nova postura do episcopado brasileiro
romanizado. Acompanhemos a atitude de D. Jerônimo Tomé da Silva, arcebispo da Bahia,
responsável pelo santuário de Bom Jesus da Lapa. Em 1903, o santuário sofreu um incêndio
que consumiu a imagem do Bom Jesus e inúmeros objetos litúrgicos, restando apenas a
imagem do Sagrado Coração de Jesus. Ciente do ocorrido, D. Jerônimo escreve uma Carta
Pastoral na qual interpreta o fato como fruto da Providência: o fogo é o símbolo da
renovação que consome a imagem do Senhor Bom Jesus (devoção do Catolicismo
tradicional) e miraculosamente mantém intacta a imagem do Sagrado Coração de Jesus (a
nova devoção romanizada). Nesse caso exemplar, “tratava-se de acionar o mesmo
mecanismo que suscitara o culto tradicional ao Bom Jesus, centrado em sua imagem
milagrosa, para dar crédito à nova devoção”
84
.
O supracitado santuário de Bom Jesus e o de Aparecida são modelos
clássicos da passagem do controle da devoção dos leigos para os clérigos estrangeiros. Suas
histórias revelam, outrossim, que a Igreja precisou negociar os significados do culto com os
devotos, sob pena de não reconhecimento e fracasso
85
.
84
STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias. Petrópolis: Vozes, 1996. p.238-9.
85
SANTOS, Lourival dos. Igreja, Nacionalismo e Devoção Popular. Dissertação (Mestrado em História).
FFLCH, USP, São Paulo, 2000; STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias. Petrópolis: Vozes, 1996.
Sobre o conceito de negociação” ver as obras: BURKE, Peter. História e Teoria Social. Tradução de Klauss
Brandini Gerhardt; Roneide Venâncio Majer. São Paulo: UNESP, 2002. p. 123 e BURKE, Peter. Hibridismo
cultural. Tradução de Leila S. Mendes. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2003. p.45-8.
Os devotos, por sua vez, se apropriaram dos elementos da nova
espiritualidade, adaptando-os às práticas do Catolicismo tradicional. Pedro A. Ribeiro de
Oliveira constatou que esse relacionamento, permeado de influências recíprocas, entre os
Catolicismos tradicional e romanizado, foi ativamente apropriado pelos devotos que
reinterpretaram o Catolicismo romanizado de modo a adequá-lo a relação direta e pessoal
com o santo, geralmente no interior de sua casa
86
.
Em 1920, quando foi criada a paróquia do Senhor Bom Jesus, em
Ourinhos, a estrutura romanizada estava implantada no Catolicismo brasileiro. A criação
da diocese de Botucatu, em 1908, fez parte desse processo de reorganização interna da
Igreja. As atividades religiosas nas igrejas e capelas ourinhenses foram centralizadas nos
párocos desde o início. Estes, por sua vez, fomentaram os novos movimentos de leigos,
como a Congregação Mariana e a Conferência Vicentina, que substituíram, paulatinamente,
as antigas irmandades e confrarias.
O Catolicismo ourinhense não vivenciou os dramáticos conflitos entre as
práticas religiosas tradicionais e romanizadas, como nos santuários de Bom Jesus e de
86
Esse processo foi denominado por Pedro Ribeiro de Oliveira de “Catolicismo privatizado”. Cf. OLIVEIRA,
Pedro Ribeiro de. O catolicismo do povo. IN: VV.AA. A religião do povo. São Paulo: Paulinas, 1978. p. 77.
Rodolfo Guttilla, em seu estudo sobre a devoção a São Judas Tadeu, do Jabaquara, em São Paulo, intitulado A
casa do santo e o santo de casa (São Paulo, Landy, 2006), articula idéias do antropólogo Roberto DaMatta e
do historiador Pedro Ribeiro de Oliveira, para demonstrar as diferentes atitudes do devoto na casa e na rua,
no santuário e no culto doméstico. A partir dessa dialética entre o público e o privado revela o caráter
privatizado da devoção a São Judas Tadeu, tendência do culto aos santos nas metrópoles atuais. André Luiz
da Silva, em seu estudo As faces de Maria (dissertação de mestrado, São Paulo, PUC, 2003), sobre a devoção
a Nossa Senhora de Shoenstatt, em Ubatuba, por meio das capelinhas que diariamente circulam pelas casas,
também aponta para a tendencial privatização das práticas devocionais na contemporaneidade. Em ambos os
casos, o culto privado e o culto litúrgico situam-se numa estrutura diádica, de inter-relação e
interdependência. Contudo, enquanto Guttilla apresenta tal privatização enfatizando seu aspecto de resistência
dos devotos tradicionais ao modelo de Igreja pós-Vaticano II; Silva, por sua vez, articula essa índole
devocional às transformações sociais e ao novo padrão aparicionista mariano calcado em “locuções
interiores”, próprias da ‘atual’ religião do self.
Aparecida. Ele surgiu no curso de uma dinâmica de acomodação
87
dos conflitos reais e
simbólicos que ocorreram no seio do Catolicismo durante o processo de romanização. A
igreja matriz foi dedicada ao Senhor Bom Jesus, “Santo” típico do imaginário católico
tradicional, mas, já sob controle dos clérigos. Os altares laterais punham frente a frente o
também tradicional São Roque
88
e o Sagrado Coração de Jesus, estandarte das novas
devoções romanizadas.
O convite dos bispos de Assis, Botucatu e Jacarezinho aos padres
Josefinos, também se insere nesse contexto eclesiológico. Eram padres estrangeiros que
vinham ao Brasil para formar sacerdotes e controlar um santuário dedicado a uma “nova”
santa: Nossa Senhora de Guadalupe. Afinal, ainda que a Virgem de Guadalupe fosse
conhecida dos brasileiros desde os primeiros séculos da colonização, como afirma Nilza
Botelho Megale
89
; sua incidência e popularidade no Catolicismo brasileiro eram
inexpressivas conforme aponta as pesquisas de Lourival dos Santos a respeito das
principais devoções do Brasil colonial
90
. Além disso, em Ourinhos, como vimos, a
padroeira do santuário não foi escolhida pelos fiéis, mas pelo superior dos Josefinos.
1.3 Mariofania.
87
Steil usa o conceito dinâmica de acomodação para se referir às adaptações e consensos construídos a partir
da mistura de sentidos e práticas tradicionais com aqueles produzidos pela Igreja num contexto de
transcendência do sagrado, como o da romanização. STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias.
Petrópolis: Vozes, 1996. p.88. Em outro texto, Steil afirma que a principal característica do Catolicismo é sua
elasticidade, capaz de reunir discursos e significados dispares. Cf. STEIL, Carlos A. Catolicismo e cultura.
IN: VALLA, Victor V. (org.). Religião e cultura popular. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.33.
88
MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. IN: SOUZA, Laura de Mello e
(org.). História da Vida Privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Cia.
das Letras, 1997. v.1. p.167.
89
MEGALE, Nilza Botelho. Invocações da Virgem Maria no Brasil. 6.ed.Petrópolis: Vozes, 2001. p. 232.
90
SANTOS, Lourival dos. A família Jesus e a Mãe Aparecida. Tese (Doutorado em História). FFLCH, USP,
São Paulo, 2005. p.64-6.
Para as testemunhas do acidente, bem como para grande parte da
população ourinhense, o encontro da imagem em um vagão queimado, logo após um vento
insólito, era o sinal visível da intervenção divina. A situação vivida pelos habitantes de
Ourinhos diante do acidente foi caracterizada pelo horror e pelo medo. Medo da morte.
Colocados diante dessa situação extrema, participaram de uma experiência numinosa, um
misto de pavor e temor que foi explicado pela intervenção e manifestação do sobrenatural –
para Mircea Eliade uma verdadeira hierofania
91
.
Tudo isso foi
registrado naquele texto do Correio
de Notícias sobre o incêndio e o
encontro da imagem. Para além do
pânico, da dor e do medo, o texto
revela um outro sentimento. Uma
outra dimensão. Uma interpretação de
raiz religiosa, católica, mariana que
traduzia e encontrava eco na cultura
religiosa local. Tratou-se de uma
verdadeira teodicéia, entendida como
Uma explicação (...) em termos de legitimações religiosas, de qualquer grau de
sofisticação teológica que seja (...)
91
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Tradução de Rogério Fernandes. São
Paulo: Martins Fontes, 2001. p.16.
Importa salientar aqui de modo especial que essa explicação não precisa vincular-
se a um sistema teórico complexo. O camponês iletrado que comenta a morte de
um filho referindo-a à vontade de Deus está se engajando na teodicéia tanto como
o sábio teólogo que escreve um tratado para demonstrar que o sofrimento do
inocente não nega a concepção de um Deus de bondade e poder ilimitados
92
.
Diante daquele
fenômeno anômico, portador do terror
e do medo, a teodicéia preencheu o
vazio de sentido peculiar a tal
situação com as representações
culturais próprias da comunidade de
crença ourinhense. Desse modo,
estavam ali, no “vento deslocado” e
na “imagem intacta”, os sinais
visíveis do milagre de Nossa Senhora
Aparecida. Essa leitura mariofânica
do encontro da imagem alimentava-se
de um rico imaginário católico ligado
à mãe de Jesus.
Em primeiro lugar,
de se considerar a reconhecida
92
BERGER, Peter. O Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. Tradução de José
Carlos Barcellos. São Paulo: Paulinas, 1985. p.65.
relevância de Maria no Catolicismo
93
.
E, no caso latino-americano, existia
um agravante favorável a hiperdulia,
i.e., ao culto à mãe de Jesus: o
Catolicismo ibérico que desembarcou
na América do século XVI era
preponderantemente devocional e
iconófilo. De acordo com Serge
Gruzinski, os conquistadores,
primeiros responsáveis pela
cristianização do Novo Mundo,
trouxeram consigo inúmeras imagens
de santos e de Jesus Cristo
destacando-se, em quantidade, as da
Virgem Maria. Esse apego às
imagens, próprio do Catolicismo
medieval tardio, consolidou-se com a
Reconquista e se transformou em uma
característica marcante da identidade
ibérica
94
. Tal fato era reforçado,
naquele contexto, sobretudo, por
93
Jean Delumeau e Sabine Melchior-Bonnet afirmam que “é impossível abordar o passado e o presente do
cristianismo sem dar um amplo espaço a Maria, mãe de Jesus. (...) O desenvolvimento do “culto” prestado a
Maria marcou fortemente o Catolicismo e a Igreja ortodoxa”. DELUMEAU, Jean; MELCHIOR-BONNET,
Sabine. De religiões e de homens. Tradução de Nadyr de Salles Penteado. São Paulo: Loyola, 2000.p.201.
94
GRUZINSKI, Serge. La guerra de las imágenes. Traducción de Juan J. Utrilla México: FCE, 1994. p.40-
43.
Maria tornar-se o símbolo da
identidade religiosa católica na luta
contra a apostasia dos reformistas
protestantes
95
.
Sendo assim, e levando em conta outros fatores, o Catolicismo português
era profundamente mariano. A figura de Maria esteve presente na formação da nação
lusitana, contribuindo para o sentimento de unidade, e é significativo que D. Afonso
Henriques, fundador da monarquia portuguesa (1139), tenha consagrado o Reino, seus
sucessores e súditos à Mãe de Deus. E, a partir de D. Afonso, os monarcas se confiavam à
proteção de Maria e em sua homenagem erigiam belos templos e mosteiros (como o de
Alcobaça) e os conventos do Carmo e de Mafra. Portugal punha-se sob “o grande manto”
da Virgem que a todos protege, como mostra a figura abaixo.
95
GOMES, Plínio Freire. Um herege vai ao paraíso: cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição
(1680-1744). São Paulo: Cia. das Letras, 1997. p.103. Segundo esse autor o culto a Mater Dei passou por um
crescimento sem precedentes a partir da Baixa Idade Média. A consolidação e ápice de seu culto coincidiram
com as Reformas Religiosas, e por isso ela se tornou o maior símbolo da identidade católica na Contra-
Reforma. Ainda sobre o desenvolvimento do culto marial, Jaroslav Pelikan e Jacques Duquesne apontam o
século XII, como o “século de Maria”, em razão da centralidade devocional e teológica em torno da
Theotokos. Segundo eles tal crescimento pode ser atestado, entre outras coisas, pelo surgimento de inúmeras
catedrais dedicadas a Nossa Senhora (Notre Dame). Essa expressão “Nossa Senhora”, teria surgido, segundo
Jean Delumeau, nesse contexto, designando respeito, confiança e afeição do povo que via em Maria sua
protetora e advogada. O terço e as rosas, grandes símbolos marianos, também m sua origem nesse período.
Cf. PELIKAN, Jaroslav. Maria através dos séculos: seu papel na história da cultura. Tradução de Vera
Camargo Guarnieri. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.p.189-203; DUQUESNE, Jacques. Maria: a mãe de
Jesus. Tradução de Karini Jannini. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p.116; DELUMEAU, Jean;
MELCHIOR-BONNET, Sabine. De religiões e de homens. Tradução de Nadyr de Salles Penteado. São
Paulo: Loyola, 2000. p.201.
Para os historiadores Jean Delumeau e Sabine Melchior-Bonnet, a piedade popular invoca Maria contra todos
os perigos e infelicidades que espreitam a humanidade. Daí o sucesso, desde o século de Maria, da imagem da
“Virgem do grande manto”. Sob seu manto, Maria protege a humanidade inteira. Obra de D. de
Montepulciano. Fonte: DELUMEAU, Jean; MELCHIOR-BONNET, Sabine. De religiões e de homens.
Tradução de Nadyr de Salles Penteado. São Paulo: Loyola, 2000. p.202-7.
À Virgem foram atribuídas as vitórias (Nossa Senhora do Vencimento)
sobre os mouros, a descoberta do ‘caminho das Índias’ e a restauração da independência
lusitana em 1640 –nesta o rei D. João IV ratifica o ato de D. Afonso Henriques
consagrando o Império Português, inclusive o Brasil, à Virgem da Conceição
96
.
96
BOFF, Clodovis. Maria na cultura brasileira: Aparecida, Iemanjá, Nossa Senhora da Libertação.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.p. 9-17. Juliana Beatriz de Almeida, em sua tese de doutoramento intitulada
Senhora dos Sete Mares: Devoção Mariana no Império Colonial Português, sob orientação de Ronaldo
Vainfas, apontou, mais recentemente, para a intrínseca relação entre a devoção a Maria, a catolização e a
implantação da ordem colonial no Império Lusitano.
Os colonizadores trouxeram essa profunda devoção a Maria e a
propagaram em terras brasileiras. É o que afirma Nilza Botelho Megale
Várias efígies da Mãe de Deus (...) chegaram ao nosso país trazidas por
marinheiros ou colonizadores lusitanos, que espalharam o culto das invocações
em moda ou das padroeiras de suas províncias ou cidades natais. Além da
Senhora da Esperança que veio na nau de Pedro Álvares Cabral e da Senhora
da Glória, que consta ter chegado à Terra de Santa Cruz em 1503, muitas outras
como as do Ó, do Monte, da Luz, da Graça, da Escada, ornamentaram os
altares dos mais antigos templos coloniais
97
.
Nesse sentido, é significativo que
A primeira igreja construída no Brasil, por volta do ano de 1535, no litoral de
Boipeba (Bahia), muito provavelmente também foi dedicada à Virgem sob a
invocação de Nossa Senhora da Graça. A sua construção está envolta pela
lenda: uma belíssima senhora teria aparecido em sonho à princesa indígena,
Paraguaçu, esposa do português Diogo Álvares (Caramuru), pedindo-lhe a
construção de uma igreja. Ora, Paraguaçu e Caramuru são considerados como
sendo o primeiro casal da raça mestiça brasileira. O templo foi erguido no lugar
onde está hoje o mosteiro de Monserrate, no qual está sepultada Paraguaçu.
Ainda hoje se venera a pequena (seis palmos) imagem da Virgem da Graça
98
.
97
MEGALE, Nilza Botelho. Invocações da Virgem Maria no Brasil. 6.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p.17-
8.
98
BOFF, Clodovis. Maria na cultura brasileira: Aparecida, Iemanjá, Nossa Senhora da Libertação.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. p.15.
Como acabamos de ler, a presença de Maria é incisiva desde o início da
colonização
99
. Em contato com outros sistemas culturais e símbolos sagrados, ocorre uma
sinergia simbólica que altera e enriquece a religiosidade mariana no Brasil. Cabe citar aqui
os cultos sabáticos, o culto aos orixás e as múltiplas práticas de feitiçaria e magia que, de
algum modo, relacionavam-se à devoção a Maria
100
. As afirmações do historiador Luiz
Mott corroboram essa idéia da centralidade do culto mariano no Brasil colonial:
Um dos traços marcantes da espiritualidade luso-brasileira sempre foi a devoção
preferencial de nossos colonos por Maria Santíssima. Tão presente estava Nossa
Senhora no imaginário, nos sermões, nas preces, como titular das igrejas e
capelas, como Madrinha dos neófitos, nas dezessete festas anuais à Virgem
consagrada, que, em 1574, o italiano Rafael Olivi, sitiante letrado, preso como
blasfemo na capitania de Ilhéus, ponderava que ‘os portugueses exageravam na
veneração às imagens de Nossa Senhora’
101
.
Assim, consideramos que toda a densidade simbólica de um imaginário
de longa duração contribuiu para a leitura mariofânica do encontro da imagem intacta, em
99
A mariologista Lina Boff, a partir de uma perspectiva ligada a Teologia da Libertação, considera que a
devoção a Maria, vinculada ao papel da mulher nas sociedades ameríndias, contribuiu decisivamente para a
sustentação do Catolicismo latino-americano: “(...) em muitos períodos da colonização, a cristã sobreviveu
graças à estrutura espiritual de caráter mariano popular, a qual encontrou nele o seu caminho e a sua dinâmica
enquanto vocação cristã do povo. Foi essa devoção que conservou e desenvolveu, como de, a de um
povo muito próximo do Catolicismo, mas geograficamente afastado do padre e afastado da evangelização
mais profunda e mais completa”. BOFF, Lina. Maria na vida do povo: ensaios de mariologia na ótica latino-
americana e caribenha. São Paulo: Paulus, 2001.p.99.
100
AZZI, Riolando. Formação histórica do Catolicismo popular brasileiro. IN: VVAA. A Religião do Povo.
São Paulo: Paulinas, 1978. p.62s. VAINFAS, Ronaldo; ALMEIDA, Juliana Beatriz de. Nossa Senhora, o
fumo e a dança. IN: NOVAES, Adauto (org.). A outra margem do Ocidente. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.
p.204s.
101
MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. IN: SOUZA, Laura de Mello e
(org.). História da Vida Privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Cia.
das Letras, 1997. v.1. p.184-5.
um vagão incinerado, pela comunidade católica ourinhense. Entretanto, essa consideração
responde a parte do problema. Para compreendermos tal leitura, devemos examinar
outros elementos culturais vinculados a ela.
O Catolicismo ourinhense, em 1954, estava marcado pela presença da
Virgem Maria. Os padres Josefinos haviam construído o seminário e, nas adjacências,
levantavam um santuário dedicado a Nossa Senhora de Guadalupe. A Congregação
Mariana tinha um grande peso moral e espiritual na comunidade. E, como vimos, divulgava
a devoção a Nossa Senhora Aparecida, santa escolhida pelo episcopado brasileiro desde,
pelo menos, sua coroação em 1904 como símbolo da identidade católica nacional.
Seguramente, Nossa Senhora Aparecida não tinha a significatividade
atual. Ela ainda não havia se tornado a “Santa Pop”
102
, consagrada pelos diversos meios de
comunicação. Sua festa, instável como os primeiros tempos de sua devoção, ainda não era
celebrada em 12 de outubro. Entre 1939 e 1955, sua festa ocorria em 8 de setembro,
explícita associação entre a Santa e a celebração política da Independência do Brasil.
Mas, o ano de 1954 colocou-A em evidência. Santa Paulista, que
participara das procissões a favor da Revolta Constitucionalista de 1932 e contra o
comunismo em 1945
103
, era lembrada nas festividades comemorativas dos 400 anos da
cidade de São Paulo. Além disso, era o ano do cinqüentenário da coroação da imagem,
amplamente divulgado, sobretudo, pela realização do Primeiro Congresso da Padroeira do
Brasil, concomitante às festividades da Semana da Pátria e do dia de Nossa Senhora. Por
102
SANTOS, Lourival dos. A família Jesus e a Mãe Aparecida. Tese (Doutorado em História). FFLCH, USP,
São Paulo, 2005. p.248-66.
103
SANTOS, Lourival dos. Igreja, Nacionalismo e Devoção Popular. Dissertação (Mestrado em
História).FFLCH, USP, São Paulo, 2000.p.149-50.
fim, antes de ser Aparecida, ela era denominada “Imaculada Conceição”, cujo dogma
104
completava 100 anos, ensejo para o Vaticano proclamá-la
Rainha do Céu
105
.
Assim, ainda que Rubem C. Fernandes tenha apontado para o fato de a
Virgem Aparecida não conseguir efetivamente se tornar, mesmo hoje, o símbolo nacional
do Catolicismo, apesar dos títulos indicarem o contrário, ele reconheceu que as barras do
manto de Aparecida estendem-se sobre São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro
106
. E isso
desde que ela foi reconhecida pela Igreja em 1743.
Nesse sentido, é importante considerar que as barras do manto de
Aparecida recobriam a comunidade católica de Ourinhos. A imagem de Nossa Senhora
Aparecida, encontrada intacta em um vagão queimado, era em si mesma prenhe de
significados. Ativava nos corações e nas mentes das pessoas a história de uma imagem de
Maria encontrada nas águas do Paraíba por pescadores em situação de risco, ante a
despótica cobrança de peixes pelos edis da Vila de Guaratinguetá. Tudo para abrilhantar o
banquete do Conde de Assumar, governador das Províncias de São Paulo e Minas Gerais
em 1717. Segundo o mais antigo relato escrito sobre o encontro da imagem, datado de
1757, pelo vigário de Guaratinguetá, padre João de Morais e Aguiar, os pescadores
104
Em 8 de dezembro de 1854, através da bula Ineffabilis Deus, o papa Pio IX declarou o dogma da
Imaculada Conceição. Segundo Jaroslav Pelikan, a idéia de que Maria fosse privilegiada por uma concepção
sem a mácula do pecado remete ao início da Cristandade medieval. Os Concílios da Basiléia (1439) e de
Trento (1545) debateram exaustivamente essa questão. Mesmo sem possuir valor canônico, a idéia da
Imaculada Concepção de Maria era difusa entre os fiéis e incentivada pela Igreja. A corroboração canônica
dessa noção religiosa causou, no entanto, litígios entre teólogos ortodoxos, protestantes e católicos, afinal,
confirmar a imaculada conceição de Maria é colocar em xeque a decisão humana da Virgem em ser a Mãe do
Salvador, e, com efeito, também a própria humanidade e morte de Jesus Cristo. O aparecimento da Virgem
poucos anos mais tarde da Ineffabilis Deus, em Lourdes (1858), serviu para reforçar esse dogma. PELIKAN,
Jaroslav. Maria através dos séculos: seu papel na história da cultura. Tradução de Vera Camargo Guarnieri.
São Paulo: Cia. das Letras, 2000. p.247; 255-69.
105
PELIKAN, Jaroslav. Maria através dos séculos: seu papel na história da cultura. Tradução de Vera
Camargo Guarnieri. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.p.275-87.
106
FERNANDES, Rubem César. Aparecida: nossa rainha, senhora e mãe, saravá! IN: SACHS, Viola (org.).
Brasil & EUA: religião e identidade nacional. São Paulo: Graal, 1988. p.85-112.p.96.
Começaram a lançar suas redes no porto de José Correia Leite e continuaram
até o Porto de Itaguaçu, distância bastante longa, sem apanhar peixe algum.
Mas, lançando no Porto de Itaguaçu sua rede, João Alves tirou o corpo da
Senhora, sem cabeça; lançando mais abaixo outra vez a rede, tirou a cabeça da
mesma Senhora, não se sabendo nunca quem ali a lançara.
Guardando a imagem na canoa, envolta num pano, e continuando a pescaria,
não tendo até então apanhado peixe algum, daí por diante foi tão copiosa a
pescaria em poucos lanços, que, receoso, e os companheiros, de naufragarem
pelo muito peixe que havia nas canoas, se retiraram para suas casas, admirados
do sucesso
107
.
Outro pescador presente ao milagre dos peixes, Filipe Pedroso, levou a
imagem para casa e durante quinze anos venerou-a com sua família e amigos. Em 1732, o
filho de Filipe, Atanásio Pedroso, construiu um pequeno oratório no porto de Itaguaçu,
local do encontro da imagem. Aí o culto tornou-se popular. Nessa época ocorrem inúmeros
milagres, com destaque para o célebre milagre das velas, e várias pessoas da região e
viajantes e peregrinos vão rezar diante da pequena estátua enegrecida. Em 1745, é
construída, sob a administração do vigário de Guaratinguetá e da nobreza local, a primeira
capela. Mais graças são alcançadas, datam desse período o milagre do escravo liberto, do
menino salvo das águas do rio, entre outros.
107
BRUSTOLONI, Júlio João. História abreviada do Santuário de Aparecida. 8.ed. Aparecida, SP: Editora
Santuário, 2004.p.15.
Em 1893, a antiga capela foi ampliada e sagrada por D. Lino Deodato,
bispo de São Paulo, como “santuário episcopal”
108
. Como vimos, no início do século XX
Nossa Senhora Aparecida tornou-se instrumento do episcopado para fazer valer seus
valores e ideais no regime republicano.
Com efeito, a imagem de Nossa Senhora Aparecida transmitia para a
comunidade ourinhense, a partir das imagens e representações que carregava, a mesma
intervenção protetora que oferecera aos pescadores do Paraíba. Ela estava inserida numa
tradição religiosa ligada às imagens milagrosamente descobertas, típicas, como vimos, do
Catolicismo tradicional de raízes ibéricas.
Para Steil, o encontro miraculoso de imagens da Virgem Maria pode ser
considerado um elemento padrão das aparições marianas da Idade Moderna. Nesse período
As suas manifestações se dão especialmente através de imagens que são
descobertas em lugares distantes dos centros urbanos, junto à natureza. (...) Os
videntes, com muito maior recorrência do que na Idade Média, são pessoas que
estão em níveis inferiores na estrutura social e não possuem um conhecimento
formal da religião. Podem ser um índio, como na aparição de Nossa Senhora de
Guadalupe, no México, ou pescadores, como no relato de Aparecida do Norte,
em que a imagem é milagrosamente retirada das águas do rio Paraíba.
Nesses relatos é sempre Maria quem toma a iniciativa do encontro com os
devotos e escolhe a comunidade à qual quer se manifestar. Através da aparição
108
BOFF, Clodovis. Maria na cultura brasileira: Aparecida, Iemanjá, Nossa Senhora da Libertação.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. p.20-3.
ela estabelece um dialogo não apenas com o vidente, mas com o conjunto dos
habitantes da região
109
.
Ourinhos estava sob o signo religioso de duas santas desse padrão
aparicionista: Nossa Senhora de Guadalupe e Nossa Senhora Aparecida. A primeira,
apareceu para um índio; a segunda, a pescadores. Por isso, o historiador José Oscar Beozzo
afirma que elas são santas populares
110
.
Essas santas, tão próximas e populares, estruturavam o imaginário
religioso ourinhense da época, isso explica porque é patente nos depoimentos das pessoas
que vivenciaram o acidente de 1954, a idéia de que Maria intercedeu impedindo uma
catástrofe maior. E, como vimos, esse também é o tom final do texto jornalístico que
abordou o acidente e o pavoroso incêndio que se seguiu.
Evidentemente, o entendimento dessa leitura mariofânica exige que
examinemos os sentidos atribuídos a imagem no Catolicismo brasileiro do período. Para
Rubem C. Fernandes, a romanização consolidou uma ambivalência de sentidos aos
símbolos católicos, sobretudo, às imagens. A esse processo Fernandes denominou dupla
significação. Segundo ele
Quando os crentes negam o valor daquelas “imagens de barro”, os padres e os
devotos reúnem-se em defesa de seus Santos. Com efeito, a grande disputa
entre católicos e protestantes no Brasil está focalizada no culto aos Santos, o
109
STEIL, Carlos Alberto. As aparições marianas na história recente do Catolicismo. IN: ______; MARIZ,
Cecília L.; REESINK, Mísia L. (orgs.). Maria entre os vivos: reflexões teóricas e etnografias sobre aparições
marianas no Brasil. Porto Alegre: UFRGS, 2003. p.25-6.
110
BEOZZO, José Oscar. A Igreja entre a Revolução de 1930, o Estado Novo e a Redemocratização. IN:
PIERUCCI, Antônio Flavio et al. História Geral da Civilização Brasileira: o Brasil Republicano, v.4:
economia e cultura (1930-1964). 2.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p.295.
que é percebido como uma característica distintiva do Catolicismo. Por outro
lado, quando se encontram a sós, padres e devotos manifestam idéias diversas
sobre o significado da santidade
111
.
Por isso, no mesmo texto, Fernandes, ao tratar do culto a Nossa Senhora
Aparecida, afirma: “o clero e o povo, no Brasil, nunca rezaram exatamente para a mesma
imagem”
112
.
Já Steil, aponta para uma ressignificação da devoção às imagens, no
constante processo de apropriações criativas entre os Catolicismos tradicional e
romanizado. Nesse processo a iconodulia foi aproximada da concepção sacramental da
Igreja romanizada. Assim
A associação entre o santo e a sua imagem é uma variante da doutrina católica
sobre os sacramentos. A defesa das imagens faz parte da “identidade católica”,
isto é, a sua insistência quase obsessiva sobre a importância do significante. A
devoção às imagens faz parte da cadeia de atos, que Sanchis denominou
“cascata de sacramentos”, onde a imagem não evoca ou simboliza uma
realidade de outra natureza ou de outra ordem, no sentido em que simplesmente
orientaria para esta outra realidade o pensamento, mas a realiza e faz existir
para os devotos
113
.
111
FERNANDES, Rubem C. Aparecida: nossa rainha, senhora e mãe, saravá! IN: SACHS, Viola (org.).
Brasil & EUA: religião e identidade nacional. São Paulo: Graal, 1988. p.100.
112
FERNANDES, Rubem C. Aparecida: nossa rainha, senhora e mãe, saravá! IN: SACHS, Viola (org.).
Brasil & EUA: religião e identidade nacional. São Paulo: Graal, 1988. p.91.
113
STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias. Petrópolis: Vozes, 1996. p.243.
Polissêmica e sacramental, a imagem indicou para a comunidade
ourinhense a presença divina e protetora da Virgem Maria. Não qualquer Maria, mas a
Padroeira do Brasil: Nossa Senhora Aparecida. Ela, que por sua própria materialidade e
significatividade, condicionava e criava expectativas no imaginário religioso local. E temos
de admitir o poder da imaginação coletiva, ou das imagens compartilhadas, para fazer com
que as coisas aconteçam, ou, em outras palavras, para construir novas realidades sociais.
Resta ainda, um último conjunto de elementos a ser explorado. No texto
do Correio de Notícias e no depoimento de Lourival Argenta, é dado destaque ao “vento”.
Nessa associação, do encontro da imagem com a Natureza, percebemos um paralelo com as
aparições de Maria no mencionado padrão moderno que sempre ocorrem acompanhadas de
fenômenos naturais pouco comuns
114
.
Por outro lado, se nos inspirarmos na noção de cultura bíblico-católica
brasileira
115
, de Steil, poderíamos afirmar que o “fogo” e o “vento” indicaram para a
comunidade de crença ourinhense a presença do Espírito Santo
116
nos trilhos da
Sorocabana, locus do desenvolvimento da cidade e do fatídico incêndio que ensejou uma
mariofania.
114
THEIJE, Marjo de; JACOBS, Els. Gênero e aparições marianas no Brasil. IN: STEIL, Carlos Alberto;
MARIZ, Cecília L.; REESINK, Mísia L. (orgs.). Maria entre os vivos: reflexões teóricas e etnografias sobre
aparições marianas no Brasil. Porto Alegre: UFRGS, 2003. p.40.
115
Carlos Alberto Steil, a partir das idéias de Otávio Velho e Pierre Sanchis, formulou o conceito cultura
bíblico-católica brasileira onde as imagens e simbolismos bíblicos, difundidos textual e oralmente, sofrem
uma bricolagem quando associadas às referências geográficas, históricas, estéticas e culturais do seu meio,
sob a mediação de uma visão católica, que enfatiza o aspecto sacramental no interior da “cascata de
sacramentos” concebida por Sanchis. STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias. Petrópolis: Vozes,
1996. p.151.
116
Na Bíblia, o fogo simboliza a presença da divindade, a purificação, a ira divina e, sobretudo, as teofanias.
o vento, simboliza o sopro de Deus, e por extensão o próprio espírito de Deus. MACKENZIE, John.
Dicionário Bíblico. Tradução de Álvaro Cunha. São Paulo: Paulinas, 1983. p.303-8; 359-60. Urge ressaltar,
nesse aspecto, que Maria é invocada também como ‘esposa do Espírito Santo’ na ladainha dos congregados
marianos da época em estudo.
Além disso, para os congregados ourinhenses e demais devotos da
Virgem o dia da semana em que ocorreu o acidente, um sábado, logo faria pensar em Nossa
Senhora que esse é o dia dedicado especialmente a Mater Dei. De acordo com Jacques
Duquesne, essa tradição Católica remonta ao “século de Maria”:
No século XII, adquirira-se o hábito de rezar para Maria especialmente aos
sábados: certo Pedro Damião, monge camáldulo (ordem italiana fundada no
século XI), explicou que era normal dedicar à Virgem o dia de sábado, em que,
segundo a Bíblia, Deus havia repousado (nela, sobre ela)
117
.
Em síntese, por trás da leitura mariofânica realizada pela comunidade de
crença ourinhense existiam manifestações culturais, reinventadas e reapropriadas, naquele
contexto histórico, ancoradas nos princípios e práticas do Catolicismo local cuja dinâmica
interna, em contato com as vicissitudes do Catolicismo universal e nacional, daria rumos
sinuosos e curiosos à devoção voltada para a pequena imagem de Nossa Senhora
Aparecida, encontrada intacta em um vagão queimado. É o que veremos no segundo
capítulo.
2. Imagem em triunfo
Bondosa Mãe, na Imagem pequenina
Intacta, fulgurante e tão querida
Derramai sobre nós a paz divina
117
DUQUESNE, Jacques. Maria: a mãe de Jesus. Tradução de Karini Jannini. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2005. p.174-5.
Guardai-nos sempre no correr da vida
118
.
2.1 Nossa Senhora des-Aparecida.
O encontro da imagem intacta de Nossa Senhora Aparecida causou
espanto e temor na população ourinhense. A veneração foi imediata. Os bombeiros
paulistanos até queriam levar consigo a imagem miraculosa. Foram impedidos, como
informa o artigo do Correio de Notícias, pelo delegado local e, por fim, entregaram-na ao
prefeito Domingos Camerlingo Caló. Fotos registraram a ocasião. A que reproduzimos
abaixo configurou a memória histórica desse evento.
O tenente Marcondes entrega a imagem ao prefeito Caló. Fonte: Acervo do Santuário de NSAVQ.
A pequena imagem está no centro da fotografia. E é em torno dela que as
pessoas, significativamente, se reúnem. Ela é o ponto de convergência, símbolo de
identidade e unicidade, acima das contradições e dos conflitos sociais. É sinal de poder. Por
isso as principais autoridades estão em primeiro plano. Efetiva-se uma recíproca
legitimação. As demais pessoas estão atrás, esforçam-se para serem vistas e para
118
CONTE, Rafael. O triste episódio de 1954. Folha de Ourinhos, Ourinhos-SP, 25 jul. 2004, p.08.
aproximarem-se da imagem santa. É uma explícita representação das estratificações sociais
e do poder simbólico que emana de um ícone sagrado
119
.
Ainda sobre essa situação, mas, por outro viés, devemos pensar a respeito
da fotografia transformada em documento/monumento, isto é, determinando a imagem do
evento, sendo, não obstante, produto da sociedade que o fabricou, segundo as relações de
força que aí detinham o poder
120
. Por isso devemos entender que a fotografia
É agente do processo de criação de uma memória que deve promover tanto a
legitimação de uma determinada escolha quanto, por outro lado, o esquecimento
de todas as outras
121
.
Nesse sentido, Norival Vieira afirmou em depoimento que, o prefeito
Caló
122
, proprietário do Correio de Notícias, fez questão de divulgar essa foto em que
recebia a imagem de Nossa Senhora. Pretendia associar seu governo à imagem da Santa
seguindo o exemplo do presidente da época, Getúlio Vargas, que incentivou a devoção a
Nossa Senhora Aparecida, como instrumento nacionalista, no bojo de sua política
populista
123
.
No dia seguinte ao acidente, a imagem foi levada ao hospital da cidade,
dirigido pelo doutor Monzillo. Ela ficou ali durante alguns dias antes de ser levada a um
119
STEIL, Carlos Alberto. Catolicismo e cultura.IN: VALLA, Victor V. (org.). Religião e cultura popular.
Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.38-9.
120
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. IN: ENCICLOPÉDIA EINAUDI. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1984. v.1, Memória/História, p.102.
121
CARDOSO, Ciro F.; MAUAD, Ana M. História e Imagem: os exemplos da fotografia e do cinema. IN:
CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio
de Janeiro: Campus, 1997. p.407.
122
Domingos Carmelingo Caló foi prefeito de Ourinhos de 1952 a 1959 e de 1968 a 1969.
123
SANTOS, Lourival dos. Igreja, Nacionalismo e Devoção Popular. Dissertação (Mestrado em
História).FFLCH, USP, São Paulo, 2000. p. 35 et passim.
dos altares laterais da igreja matriz de Ourinhos. Mas, surpreendentemente, contrariando
todos os sinais que apontavam para o desenvolvimento de uma linear, feliz e tranqüila
devoção a Nossa Senhora Aparecida, nos deparamos com o desaparecimento do culto a
Virgem, encontrada intacta no vagão queimado. O que teria acontecido?
Entramos em terreno pantanoso. Defrontamo-nos com uma “realidade
opaca”. Todavia, acredito que uma possível resposta a essa questão, passa pela
compreensão do impacto e da incidência de alguns acontecimentos nacionais e locais sobre
a comunidade ourinhense. O impacto nacional viria naquele mesmo mês de Agosto de
1954: o suicídio de Getúlio Dornelles Vargas, que comoveu todo o país e centralizou as
atenções. Nas palavras do historiador Boris Fausto
O suicídio de Getúlio teve efeito imediato. A massa saiu às ruas em todas as
grandes cidades, atingindo os alvos mais expressivos de seu ódio: caminhões que
carregavam a edição do jornal antigetulista O Globo foram queimados e houve
tentativas de tomar de assalto a representação diplomática dos Estados Unidos,
no Rio de Janeiro
124
.
A imprensa ourinhense, no rastro da imprensa nacional, acompanhou
atentamente o desenrolar dos acontecimentos em torno da morte de Getúlio Vargas: a
multidão que acorreu ao seu velório, as inúmeras manifestações de afeto e apoio ao “pai
dos pobres” e o tumultuado interregno do governo Café Filho
125
.
124
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 11.ed. São Paulo: EDUSP, 2003. p.418.
125
MENDONÇA, Sônia Regina de. As bases do desenvolvimento capitalista dependente. IN: LINHARES,
Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil. 9.ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p.343.
Localmente, outro processo atraía a atenção da comunidade católica
ourinhense: a atuação dos Oblatos de São José na construção de seu santuário. Se, por um
lado, a ereção do Seminário de Nossa Senhora de Guadalupe contribuiu para a consolidação
da identidade mariana do Catolicismo ourinhense, favorecendo a leitura mariofânica do
acidente de 1954, como vimos no capítulo anterior; por outro lado, a devoção a essa
Virgem, invocada como Padroeira da América Latina desde 1910, concorreu para o
desaparecimento da veneração a imagem encontrada no vagão queimado. Pensemos um
pouco mais sobre essa última afirmação.
Desde sua chegada em Ourinhos, a Missão Josefina propunha expandir
seu campo de atuação. Concluído o seminário, chegou a vez de envidar todos os esforços
na construção de um santuário digno da Virgem de Guadalupe. Para isso, ao longo dos anos
50 e 60, foram realizadas e promovidas festas, quermesses, apresentações artísticas,
campanhas na imprensa escrita e falada, nas associações de leigos atuantes, enfim, de
diferentes modos os padres procuraram reunir a comunidade católica ourinhense em torno
de sua causa
126
.
O apoio dos bispos regionais, do pároco local e a ação do Superior Geral
dos Oblatos, enviando mais padres para a casa de Ourinhos, contribuíram decisivamente
para o crescimento da Ordem no Brasil e para sua influência no Catolicismo ourinhense da
época. Em 1956, Ourinhos torna-se a sede da Delegação Josefina brasileira. Nos anos que
seguem, envia inúmeros noviços e freis para finalizarem seus estudos filosóficos e
teológicos na Itália. Em 1961, é ordenado o primeiro padre brasileiro da Congregação. A
126
CONGREGAÇÃO DOS OBLATOS DE SÃO JOSÉ. Seminário Josefino Nossa Senhora de Guadalupe: 50
anos. Ourinhos, SP. 1998. p.14-21.
cerimônia ocorreu em Ourinhos e movimentou toda a comunidade católica. Em 1964, o
evento se repetiu
127
.
Os devotos deambulam em torno de Nossa Senhora de Guadalupe, promovida pelo Catolicismo ourinhense
nos anos 50 e 60 do século passado. Fonte: Acervo pessoal de Norival Vieira da Silva.
A marcante presença Josefina, promovendo a devoção a Nossa Senhora
de Guadalupe, como atesta a foto acima, atraindo e movimentando a comunidade católica
local, contribuiu para o desaparecimento da veneração a imagem de Nossa Senhora
Aparecida.
Entretanto, acredito que a efemeridade do culto deu-se, em grande parte,
pela postura da Igreja local, mais especificamente pela ação do pároco da igreja do Senhor
Bom Jesus, diante do encontro da imagem. A Igreja Católica não reconheceu o fato como
prodígio sobrenatural. Na verdade, nem foi chamada para isso. Na fotografia que
analisamos o padre não está presente, a imagem foi entregue ao prefeito. O reconhecimento
do fenômeno partiu do povo, dos leigos, algo menos desvalorizado do que combatido pela
127
CONGREGAÇÃO DOS OBLATOS DE SÃO JOSÉ. Seminário Josefino Nossa Senhora de Guadalupe: 50 anos.
Ourinhos, SP. 1998. p.15-20.
Igreja da época, afinal, o clero romanizado pretendia controlar as devoções, novas e/ou
antigas. Ainda que a (tardia) entrega da imagem ao padre Murante indique, conforme
analisei, a bem sucedida romanização do Catolicismo ourinhense, o clero havia sido
excluído da legitimação do sagrado.
E, talvez, por isso, padre Murante não tenha se preocupado em divulgar a
história e o culto à imagem encontrada no vagão queimado. Apenas colocou-a em um canto
de um dos altares laterais, do qual, segundo testemunho de Norival Vieira, recebeu
inicialmente certa veneração particular, traduzida no desfiar do rosário, de algumas pessoas
que conheciam o fato de 1954.
Padre Murante, que auxiliara padre Magnone na implantação da Casa
Josefina, talvez estivesse mais propenso a valorizar a devoção a Nossa Senhora de
Guadalupe Virgem da América, sob total controle do clero. Como a História confirmou,
Murante não acolheu o evento miraculoso” e, muito menos, demonstrou qualquer atitude
em promover a devoção em torno da imagem encontrada no vagão incinerado. Os meses
passaram e a história do acidente e do milagre foi esquecida. A imagem desapareceu
simbólica e fisicamente da igreja ourinhense.
Isso mesmo. A imagem desapareceu no final dos anos 1960. Mas, sinal da
negação eclesiástica e da amnésia popular, seu desaparecimento foi notado em 1973
quando monsenhor Violante, motivado por alguns leigos, dentre eles os nossos conhecidos
Rafael Conte e Lourival Argenta, iniciou a busca pela imagem, como veremos adiante. Em
agosto de 1973 o jornal Diário da Sorocabana estampava a reveladora manchete:
“OURINHENSES QUEREM SABER ONDE ESTÁ A IMAGEM SALVA DO
INCÊNDIO DE 1954”
128
.
Além de saber sobre o onde, quero analisar o porquê e o como desse
fenômeno. Para isso não devemos nos ater apenas a dinâmica religiosa local. O fenômeno
da Nossa Senhora des-Aparecida situa-se no contexto mais abrangente da recepção das
idéias do Concílio Vaticano II pelas lideranças da Igreja Católica no país.
Em Janeiro de 1959, o papa João XXIII anunciou a convocação do
Concílio Ecumênico Vaticano II. O Concílio foi inaugurado em outubro de 1962.
Interrompido pela morte de João XXIII, em junho de 1963, e pelo conclave que se seguiu,
elegendo Paulo VI como novo pontífice, o Vaticano II foi encerrado em dezembro de 1965.
Esse Concílio mudou a face da Igreja Católica ao questionar sua relação
com a sociedade moderna, com as diferentes religiões e religiosidades, com os governos,
com os mais necessitados... e, ao suscitar tais questionamentos, rever a própria organização
e dinâmica interna da Ecclesia. As idéias e ações incitadas por esse Concílio tiveram efeitos
de caráter global, transformando relações sociais e práticas religiosas, fazendo do Vaticano
II um evento ímpar no cenário religioso do século XX
129
.
Para Beozzo, esse foi o Concílio da Igreja do Brasil. Se o Vaticano I
contou com apenas 7 Padres Conciliares Brasileiros, o Vaticano II, em sua abertura,
acolheu 204 deles. Se entre esses concílios o episcopado mundial havia pouco mais que
dobrado, o brasileiro havia se multiplicado por dezessete, e tinha um peso considerável à
128
NUNES, Sérgio. Ourinhenses querem saber onde está a imagem salva do incêndio de 1954. Diário da
Sorocabana, Ourinhos, 19.08.1973, p.01.
129
BEOZZO, José Oscar. Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II: Participação e Prosopografia – 1959-
1965. Tese (Doutorado em História).FFLCH, USP, São Paulo, 2001. p.22-41.
época do Concílio, sendo o terceiro maior do mundo. As intervenções brasileiras foram
significativas ao longo das sessões conciliares, corroborando sua relevância no contexto
eclesial. O Concílio contribuiu, outrossim, para a inserção da Igreja do Brasil “num
complexo tecido de relações com as demais igrejas do mundo todo, com as outras igrejas da
América Latina e redefinindo suas relações com o centro romano”
130
.
Internamente, a inexorável permanência dos Padres Conciliares
Brasileiros em Roma ensejou experiências comunitárias, relações de cumplicidade,
situações de estudos e debates sobre a realidade sócio-eclesial do Brasil. Esboçou-se, assim,
uma identidade própria da Igreja do Brasil, caracterizada, como as discussões e ações
revelavam, por uma pluralidade de concepções acerca da inserção da Igreja no mundo
moderno
131
. Tudo isso em um momento nevrálgico e fatídico da História do Brasil. Nas
palavras de Beozzo
O Concílio encaixa-se ainda num período de dramáticas mudanças políticas e
sociais no país. O fato de os bispos encontrarem-se regularmente ao longo dos
quatro anos que antecederam a crise (1962-3), com ela coincidirem (1964) e a
sucederem (1965), do início dos anos sessenta, ao golpe militar de 1964,
permitiu à instituição Igreja-católica situar-se como corpo episcopal, frente a
estas mudanças, talvez como nenhuma outra instituição ou grupo nacional, com
exceção dos militares
132
.
130
BEOZZO, José Oscar. Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II: Participação e Prosopografia
1959-1965. Tese (Doutorado em História).FFLCH, USP, São Paulo, 2001.p.28.
131
BEOZZO, José Oscar. Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II: Participação e Prosopografia – 1959-
1965. Tese (Doutorado em História).FFLCH, USP, São Paulo, 2001. p.226.
132
BEOZZO, José Oscar. Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II: Participação e Prosopografia – 1959-
1965. Tese (Doutorado em História).FFLCH, USP, São Paulo, 2001. p.38.
As contradições e disparidades do episcopado brasileiro quanto a inserção
da Igreja no mundo moderno, apareceram também no posicionamento eclesial diante da
Ditadura Militar, como lemos em Beozzo. Se, por um lado, a Igreja deveria colocar-se a
favor dos princípios evangélicos e conciliares, sobretudo provenientes da Gaudium et Spes,
lutando com autonomia para transformar realidades marcadas pelo desrespeito à dignidade
humana e à fé cristã; por outro, ela ainda dependia dos recursos financeiros provenientes do
governo, o que desembocava na manutenção permanente ou esporádica dos antigos laços,
sem falar, que o governo autoritário caiu como uma luva para o episcopado conservador e
tridentino, servindo de álibi para a recusa e resistência, moderada ou radical, das idéias
reformistas propostas pelo Vaticano II.
É ainda Beozzo que nos ajuda a compreender esse período. Segundo ele,
ante esse cenário
A Igreja passou por muitas crises, na aplicação dos decretos e conclusões do
Concílio, recebidos com alívio e entusiasmo pelas classes médias e intelectuais,
com certa resistência popular às mudanças bruscas na liturgia, à supressão de
devoções populares, retirada dos santos da Igreja e apresentação de um
cristianismo secularizado
133
.
Os anos imediatamente posteriores ao Concílio exemplificariam essas
antíteses e abririam inúmeras feridas
134
no Catolicismo brasileiro. A temporalidade e a
133
BEOZZO, José Oscar. História da Igreja no Brasil. IN: ARNS, Paulo Evaristo; BEOZZO, J.O. O que é
Igreja. São Paulo: Brasiliense, 1981. p.161.
134
Aludo aqui à afirmação de Beozzo a respeito das mudanças oriundas do Vaticano II: “A onda iconoclasta,
retirando os santos das igrejas, suprimindo procissões e proibindo manifestações populares, como congadas,
reizados, dissolvendo associações e irmandades e ridicularizando devoções tradicionais, inauguraram um
espacialidade foi desigual nesse complexo processo. Uma breve e simples comparação,
entre os casos do santuário de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, e de São Judas Tadeu, em São
Paulo, pode nos ajudar a entender tal situação histórica.
Sob a bandeira do Vaticano II, os padres redentoristas holandeses,
responsáveis, em 1965, pelo santuário de Bom Jesus da Lapa, procuram racionalizar o
Catolicismo local, desvalorizando a piedade popular e retirando as imagens da igreja.
Propunham um culto sem imagens. Típico desse momento da Igreja do Brasil, como se
percebe na análise de Steil,
Especialmente os primeiros anos do Concílio foram marcados por uma onda
iconoclasta que tirou das igrejas as imagens em muitas dioceses e paróquias,
considerando essas devoções como expressões alienadas da tradicional que
deveria ser erradicada para que se pudesse ser cultivada uma fé autêntica
135
.
Ainda segundo Steil, essa situação prolongou-se até 1973 quando, após
inúmeros embates, os redentoristas holandeses são substituídos por redentoristas poloneses,
que por conta da Cortina de Ferro não haviam vivenciado os princípios do Vaticano II,
sendo, em razão disso, mais transigentes com as práticas devocionais. A substituição revela
as relações de força na Lapa, bem como o processo de negociação de sentidos entre a Igreja
e os devotos. Sob pena de perder os fiéis ou o controle do santuário, os Redentoristas
alteram sua estratégia.
conflito agudo e abriram uma ferida profunda na alma popular”. BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil: De
João XXIII a João Paulo II, de Medellín a Santo Domingo. 2.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. p.87.
135
STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias. Petrópolis: Vozes, 1996. p.270.
no santuário de São Judas Tadeu, os primeiros anos pós-Vaticano II
não alteraram, segundo Guttilla, a orientação pastoral paroquial até 1974. Entre 1974 e
1979, ocorreram mudanças no sentido de transformar o devoto em agente pastoral,
mantendo-se as práticas devocionais a São Judas Tadeu. Mas
Esse ponto de vista não prevalecerá no paroquiato seguinte, entre os anos de
1979 e 1983. Totalmente identificado com as teses conciliares, o vigário
assumirá a Paróquia de São Judas Tadeu disposto a restituir simbolicamente ao
Cristo Crucificado o altar até então ocupado pelo santo Apóstolo do
Jabaquara
136
.
Esses exemplos apontam para o fato da recepção do Vaticano II não
seguir um modelo linear, ainda que tendencial, influenciado, indubitavelmente, pelas
especificidades de cada Igreja local.
A paróquia do Senhor Bom Jesus, em Ourinhos, dirigida pelo clero
secular, seguiu a tendência geral dessa nova fase da Igreja do Brasil. Entre o fim do
Concílio e a CELAM de Medellín (1968), o roco local, padre Arnaldo Beltrami,
protagonizou uma onda iconoclasta e colocou em xeque a autoridade episcopal.
Arnaldo Beltrami nasceu em Ourinhos, no dia 21 de Fevereiro de 1937.
De 1958 a 1962, estudou Teologia e Jornalismo em Roma. Foi ordenado sacerdote, também
em Roma, no ano de 1961. Esses poucos dados biográficos nos ajudam a compreender as
veementes ações de Beltrami a favor das teses conciliares. Afinal, os seus estudos
136
GUTTILLA, Rodolfo. A casa do santo e o santo de casa. São Paulo: Landy, 2006., p.118.
teológicos e a especialização em Jornalismo, ocorreram concomitantemente às etapas
preparatórias e iniciais do Vaticano II.
O Concílio marcou a trajetória desse sacerdote. Ainda que não tenha
participado diretamente do Vaticano II, podemos inferir, inspirados em Beozzo, que a
experiência tão próxima das discussões conciliares transformou a vida de Arnaldo Beltrami,
tal como aconteceu com os prelados brasileiros diretamente ligados a esse evento
137
.
De volta ao Brasil, padre Beltrami trabalha como cooperador na pequena
cidade de Pederneiras. Até que em 1966, aos 29 anos de idade, assume a paróquia do
Senhor Bom de Jesus, em sua terra natal. A população ourinhense da época aproximava-se
rapidamente dos cinqüenta mil habitantes. Vivenciava, em ritmo lento, mas crescente, as
inflexões do êxodo rural e as mutações peculiares da sociedade moderna.
E é nesse período, entre 1966 e 1968, que a imagem de Nossa Senhora
Aparecida, encontrada intacta no vagão queimado em 1954, é tirada do altar e colocada,
com tantas outras, em uma das salas da sacristia. Era exigência litúrgica e ideológica da
época retirar as imagens do templo, como que para purificá-lo das superstições e desvios
rituais oriundos da ignorância religiosa do povo.
Segundo o testemunho da empresária ourinhense Sônia Nicolau, sua mãe,
Irene Nicolau, foi chamada, junto com uma amiga, pelo padre Beltrami até uma sala repleta
de imagens, nas dependências da igreja do Senhor Bom Jesus. Ele queria que elas
escolhessem algumas delas. Era uma forma de agradecer aos auxílios financeiros que
137
BEOZZO, José Oscar. Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II: Participação e Prosopografia – 1959-
1965. Tese (Doutorado em História).FFLCH, USP, São Paulo, 2001. p.390. Adiantando algumas
considerações apontamos para o fato de Arnaldo Beltrami, depois monsenhor, ser reconhecido atualmente
como um dos grandes comunicadores da História da Igreja Católica no Brasil. Entre 1983 e 1991, atuou como
assessor de imprensa da CNBB em Brasília. Em 1992, foi convidado pelo Cardeal Arns para assumir o
Vicariato Episcopal da Comunicação da Arquidiocese de São Paulo. Exerceu essa função até 11 de outubro de
2001, quando faleceu, vitima de infarto.
recebera para a sua paróquia. Dona Irene disse a filha que escolheu a imagem da Virgem
Aparecida sem saber que era a mesma encontrada no vagão queimado em 1954, não
obstante, conhecesse a história do acidente. Dona Irene levou a imagem para sua casa, em
Ipaussu, cidade vizinha, e colocou-a sobre uma cômoda, que fazia às vezes de oratório, em
seu quarto. Inúmeras imagens do patrimônio espiritual e histórico da igreja tiveram o
mesmo destino.
Foi uma verdadeira “violência simbólica” impetrada aos participantes do
culto às imagens, atestada por meio de recentes testemunhos que deixam entrever certa
mágoa e aversão ante essa atitude de padre Beltrami. Rafael Conte e Lourival Argenta
assinalam que tal atitude “foi um exagero”, enquanto Norival Vieira, afirmou, em um de
seus artigos, que a ação do padre foi um “arroubo de modernismo”
138
.
Beltrami também se envolveu nas “crises” que assolaram a Arquidiocese
de Botucatu em 1968. Ano de convulsões estudantis. Ano também do AI-5 e da
Conferência de Medellín.
Em 19 de Abril de 1968, o arcebispo D. Henrique Golland Trindade torna
pública a sua renúncia, concomitante a designação do novo arcebispo, D. Vicente Marchetti
Zioni. A se acreditar no historiador botucatuense, Hernani Donato, D. Golland Trindade,
que oficialmente se afastou por motivo de saúde, na prática vivia um conflito aberto com
parte de seu clero, impregnado pelas idéias conciliares de inculturação e colegialidade. Essa
seria a verdadeira razão da renúncia
139
.
138
SILVA, Norival Vieira da. Geraldo Osório de Lima um dos sobreviventes envolvidos diretamente no
acidente do Vagão Queimado. Jornal da Divisa, Ourinhos-SP, 31 jul. 2002, p.A-2.
139
DONATO, Hernani. Achegas para a história de Botucatu. 3.ed. Botucatu, SP: Prefeitura Municipal, 1985.
p.311.
De fato, a leitura atenta do Livro Tombo da paróquia do Senhor Bom
Jesus de Ourinhos, deixa entrever alguns embates entre o arcebispo e seu clero. Assinado
pelo Vigário Geral da Arquidiocese, Monsenhor lvio Maria Dario, os avisos números
307, 315 e 318 do ano de 1963, indicam problemas disciplinares ligados ao recente uso do
clergyman.
O aviso 307, intitulado “O uso do clergyman
140
”, de 19 de março,
recomendava a leitura da instrução da Sagrada Congregação do Concílio, de outubro de
1962, a despeito do uso do clergyman, em substituição ao hábito talar. Mas, três meses
depois, o Vigário Geral, em aviso intitulado “Ainda o hábito eclesiástico”, escreve
Comunicamos aos revmos. Srs. Sacerdotes, que a licença dada pelo Exmº Sr.
Arcebispo Metropolitano, em publicação feita no “Monitor Diocesano” da
quinzena de março do corrente ano, a respeito do hábito eclesiástico, continua
em vigor, lembrando a todos os sacerdotes da arquidiocese que
“CLERGYMAN” significa para nós, segundo a mente da Sagrada Congregação
do Concílio, terno completo de cor preta ou cinza escuro e colarinho romano.
Lembramos, outrossim, que o uso do clergyman é permitido nas
circunstâncias enumeradas no referido aviso
141
.
Nesse aviso percebemos, retrospectivamente, os primeiros sintomas da
crise arquidiocesana. O direito episcopal procurando reger as novas atitudes dos sacerdotes.
Todos fundamentando sua ação nas incipientes diretrizes conciliares, todavia, apropriando-
140
O clergyman, em inglês “homem do clero”, é um colarinho de plástico acoplado à camisa, usado por
padres e bispos, que substitui o uso da batina.
141
LIVRO TOMBO da Paróquia do Senhor Bom Jesus de Ourinhos, 19 mar. 1963, aviso 307.
se delas de modo diametralmente diferente. As admoestações não surtem os efeitos
desejados, ao contrário, parecem incitar ainda mais as atitudes consideradas inconvenientes
pelo arcebispo. É o que se infere a partir da leitura do aviso número 318, intitulado
“Clergyman com dignidade”, de 12 de setembro:
Por mandato do Exmº Sr. Arcebispo Metropolitano, lembramos, fraternalmente,
aos nossos caríssimos sacerdotes que não se deixem levar por exemplos vindos
de fora. As prescrições ou as licenças a respeito do uso do clergyman, em nossa
Arquidiocese, são bem claras e bem determinadas, quanto ao modo e quanto às
ocasiões para estarmos de acordo com a vontade da Santa e a orientação da
CNBB.
O uso do colarinho romano é obrigatório, assim como é proibido, severamente, o
uso do clergyman na celebração da santa Missa e administração dos sacramentos.
E se é permitido o uso do clergyman em viagens, etc. não o é nas reuniões do
clero e outras reuniões semelhantes. Novas determinações ou licenças mais largas
esperemos do Concílio ou da CNBB.
Guardemos a palavra, que foi tão bem recebida e bem interpretada, por toda a
parte “clergyman com dignidade”
142
.
Alguns padres, acreditando talvez no próprio protagonismo da Igreja local,
não estavam dispostos a esperar por “licenças mais largas”. O Vigário Geral procura
admoestar com cuidado, indicando a delicada situação vivida pela Arquidiocese naquele
momento. Outros avisos condizentes, sobretudo, às reformas litúrgicas têm a mesma
tonalidade. Os exemplos poderiam ser mencionados à exaustão, mas, não é objetivo desse
142
LIVRO TOMBO da Paróquia do Senhor Bom Jesus de Ourinhos, 12 set. 1963, aviso 318.
trabalho aprofundar tais reflexões, ainda que relevantes. Interessa-nos a idéia de que esses
pequenos conflitos e desentendimentos culminariam na denominada “revolta dos padres”.
Revolta inserida numa abrangente crise de autoridade” por que passou a Igreja naquele
contexto
143
.
A razão da revolta não está, obviamente, na renúncia de D. Golland
Trindade, mas, na nomeação de D. Zioni. No dia 22 de abril, três dias após a nomeação, 29
padres, entre eles Arnaldo Beltrami, dirigem carta a D. Zioni, concluindo-a assim:
O Clero, numa visão teológico-conciliar de Igreja, Presbitério e Episcopado,
consciente de sua corresponsabilidade no Governo da Igreja Diocesana, na
mencionada reunião [de Avaré] decidiu livremente e por unanimidade pedir a V.
Excia., que, dentro da verdade, da justiça e da caridade, reconsidere sua aceitação
para ser o Metropolita da Arquidiocese de Botucatu
144
.
Pautando-se nos princípios de colegialidade e estruturas participativas no
governo da Igreja
145
, os padres insurretos desejavam a anulação da indicação de D. Zioni,
afirmando que tal ato não resultara de ampla consulta entre o clero diocesano. O novo
arcebispo responde negativamente a solicitação dos padres. Em 28 de abril, estes escrevem
nova carta, reiterando a solicitação e ameaçando deixar a arquidiocese em caso de nova
resposta negativa.
143
“Convém lembrar que o Concílio Vaticano II desencadeara um processo de insatisfação generalizada
sobretudo entre o clero, configurando o que se chamou de ‘crise de autoridade’.” PIERUCCI, Antônio F.;
SOUZA, Beatriz M.; CAMARGO, Cândido P. F. de. Igreja Católica:1945-1970. IN: PIERUCCI, Antonio
Flavio et al. História Geral da Civilização Brasileira: o Brasil Republicano, v.4: economia e cultura (1930-
1964). 2.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p.372.
144
DONATO, Hernani. Achegas para a história de Botucatu. 3.ed. Botucatu, SP: Prefeitura Municipal, 1985.
p.312.
145
BEOZZO, José Oscar. Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II: Participação e Prosopografia
1959-1965. Tese (Doutorado em História).FFLCH, USP, São Paulo, 2001.p.37.
A questão se arrasta. Em junho de 1968 toma as páginas dos principais
jornais de São Paulo. O posicionamento favorável ao novo arcebispo se torna patente. Mas,
vozes dissonantes
146
. A CNBB é cautelosa. Prefere designar um administrador
apostólico até deliberar sobre o caso. É escolhido D. Romeu Alberti, bispo de Apucarana,
ex-bispo auxiliar de São Paulo em 1964. Naquele mesmo mês
Em Ourinhos, os padres Luis Soares Vieira, José Carvalho, Benedito Pereira dos
Santos, Alberto Martins, José Eduardo Augusti, Pedro Beltrami, Arnaldo
Beltrami e o clérigo Tito Cerasoli lançam manifesto “Entrevista coletiva”.
Renovam considerações e impugnações e confirmam: “a) deixaremos nossas
paróquias e nossa diocese dia 17 deste; b) não vamos deixar de servir à Igreja que
tanto amamos; c) iremos trabalhar em outras dioceses e com outros bispos”
147
.
Os sociólogos franceses, Jacques Zylberberg e Pauline Côté
148
, tratariam
por dissidentes esse padres insurretos, no interior do conceito de dissonância cognitiva.
Esse termo diz respeito “a diferença percebida entre as expectativas doutrinais e o
funcionamento concreto da instituição”, sobretudo, em razão de a Igreja inserir-se
ambiguamente na modernidade. Nessa perspectiva, aqueles que vivem dissociados de parte
das regras da instituição, aceitando silenciosamente a discrepância entre expectativa e
146
A mais eminente dessas vozes é a de D. Hélder Câmara. Sobre a revolta dos padres de Botucatu ele
afirmou: “a rebeldia dos padres é uma declaração de que os padres e leigos desejam ser ouvidos pela Igreja
antes que qualquer superior seja nomeado”. Disponível em www.pe-az.com.br/domhelder/1970.htm Acesso
em: 15 jan. 2007.
147
DONATO, Hernani. Achegas para a história de Botucatu. 3.ed. Botucatu, SP: Prefeitura Municipal, 1985.
p.313.
148
ZYLBERG, Jacques; CÔTE, Pauline. Dominação teocrática, dissonâncias eclesiais e dissipação
democrática. IN: LUNEAU, René; MICHEL, Patrick (orgs.). Nem todos os caminhos levam a Roma: as
mutações atuais do Catolicismo. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes,
1999. p.27.
atitude, recebem o nome de dissonantes; contudo, os que denunciam publicamente esse
descompasso entre doutrina e prática, são denominados dissidentes.
A despeito dessa situação, Rafael Conte e Norival Vieira relatam que o
dissidente padre Arnaldo Beltrami considerava D. Zioni um intransigente conservador, cuja
visão era muito limitada ante a nova situação da Igreja pós-Vaticano II. Esses depoimentos
vão ao encontro de uma carta de D. Hélder Câmara, de novembro de 1965, a respeito de D.
Vicente Zioni, eleito à época, Secretário Nacional do Ministério Sacerdotal, citado por
Beozzo:
Como explicar que, após 4 anos de Concílio, os Bispos do Brasil elejam por
maioria absoluta, para o S.N.[Secretariado Nacional] do Ministério Sacerdotal,
um Irmão nosso que não faz segredo de sua posição reacionária, muito distante
da abertura conciliar?
149
Além de indicar as mencionadas contradições do Vaticano II na Igreja do
Brasil, o texto aponta para o caráter reacionário do novo arcebispo botucatuense revelando
certa coerência de atitude do clero local.
Em julho daquele mesmo ano de 1968, a Igreja Botucatuense se
envolveria em mais uma crise típica do período
150
. Esta foi deflagrada por estudantes da
149
BEOZZO, José Oscar. Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II: Participação e Prosopografia
1959-1965. Tese (Doutorado em História).FFLCH, USP, São Paulo, 2001.p.243.
150
“Ainda em 1966, a partir de setembro, a questão estudantil continua a contar, em diversos pontos do país,
com o apoio da Igreja. Greves e passeatas se sucedem em Piracicaba, Ribeirão Preto, Recife, Salvador, São
Paulo e Botucatu, sofrendo forte repressão policial”. PIERUCCI, Antônio F.; SOUZA, Beatriz M.;
CAMARGO, ndido P. F. de. Igreja Católica:1945-1970. IN: PIERUCCI, Antonio Flavio et al. História
Geral da Civilização Brasileira: o Brasil Republicano, v.4: economia e cultura (1930-1964). 2.ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p.376.
Faculdade de Botucatu, que reclamavam da falta de estrutura de seu campus, ao então
governador estadual Abreu Sodré, em visita política à cidade de Botucatu.
Sofrendo represálias de grupos favoráveis a Sodré e com medo de serem
presos, alguns estudantes se refugiaram no Seminário Arquidiocesano São José, vazio de
seminaristas, em razão da crise vocacional da época, mas, morada dos padres botucatuenses
que se rebelaram ante a designação de D. Zioni. De acordo com Hernani Donato, “reuniam-
se no seminário duas vibrantes, coincidentes e mutuamente apoiadas contestações”
151
.
D. Romeu Alberti colocou-se ao lado dos estudantes e declarou o
Seminário território livre para todos os que receassem punições. A CNBB foi informada
dos acontecimentos pelas autoridades civis e militares de Botucatu, mas, após contato com
D. Alberti, resolveu não se imiscuir no caso. Em Agosto, o líder estudantil Geraldo Nunes
Filho e o padre Eduardo Augusti foram presos, por subversão política, e conduzidos ao
DOPS da capital. obtiveram o habeas corpus no final daquele mês, quando os
estudantes já haviam se dispersado.
O envolvimento dos padres na revolta anti-Sodré, agravou ainda mais o
movimento de rebeldia clerical ante a designação de D. Zioni. De um lado, pela postura de
D. Alberti, favorável às manifestações estudantis e aberto ao protagonismo dos padres, seu
posicionamento contrastava ainda mais com a reacionária figura de D. Zioni. Por outro
lado, os leigos mais influentes da arquidiocese eram favoráveis a posse do novo arcebispo,
alinhado as classes dominantes, que reiterava a intenção de assumir o posto designado pela
Santa Sé. O que ocorreu em 12 de abril de 1969, quase um ano depois da indicação.
151
DONATO, Hernani. Achegas para a história de Botucatu. 3.ed. Botucatu, SP: Prefeitura Municipal, 1985.
p.183.
Dos 30 padres signatários do manifesto contrário a designação, 27 se
retiraram da arquidiocese, o que representava 60% do clero secular. O padre Arnaldo
Beltrami fazia parte desse grupo. Ele foi para a Diocese de Apucarana, acolhido por D.
Alberti. trabalhou por treze anos, até ser convidado para a Assessoria de Imprensa da
CNBB, em 1983.
Rafael Conte, na época presidente dos Vicentinos, conta que nos
primeiros anos que se seguiram à posse de D. Zioni, Ourinhos passou a ser vista como a
sede de um movimento cismático. Por isso, o novo arcebispo enviou para a paróquia do
Senhor Bom Jesus “padres disciplinadores”. Ainda segundo Rafael, esses padres
centralizaram todas as atividades paroquiais e investigaram a permanência de indivíduos
ligados aos padres rebeldes.
As vicissitudes oriundas do Vaticano II e a posterior ação dos
‘disciplinadores’, feriram a comunidade católica ourinhense, sobretudo da paróquia do
Senhor Bom Jesus. Mas, a chegada de Monsenhor Oswaldo André Violante transformaria a
vida paroquial e daria novos rumos a história da devoção a Nossa Senhora Aparecida,
encontrada intacta no vagão queimado.
2.2 À procura da imagem.
Monsenhor Violante chegou em 1970 à paróquia do Senhor Bom Jesus.
Professor do Seminário de Botucatu e membro do Cabido Metropolitano em 1959, Violante
passou a década de 1960 em Piraju, onde foi agraciado com o título de Monsenhor. Foi um
dos signatários do primeiro manifesto contra D. Zioni, mas logo se retratou. Culto e
diplomático, mas também, firme e sagaz, segundo os depoimentos de Norival Vieira,
Rafael Conte e Lourival Argenta, Violante tinha as características necessárias para gerir
uma das maiores e mais problemáticas paróquias da arquidiocese, cujo templo
apresentamos na imagem abaixo.
A igreja do Senhor Bom Jesus, atual Catedral da Diocese de Ourinhos. Uma das mais belas construções locais
tornou-se símbolo do município, cartão postal da cidade. Fonte: D’AMBRÓSIO, Oscar (org.). Ourinhos: um
século de história. São Paulo: Noovha América, 2004. (Prefeitura Municipal de Ourinhos, SP). p.59.
Violante encontrou uma cidade com 49.221 habitantes, segundo os dados
do IBGE. Ainda segundo os mesmos dados, 42.247 habitantes se diziam católicos, cerca de
85% da população. Mas, o crescimento das igrejas ditas “evangélicas” era expressivo,
atingindo 9% da população. O espiritismo contava com 2%. Os números são significativos
e apontam para certa proximidade entre o campo religioso ourinhense e o nacional,
caracterizado pelo declínio do Catolicismo e avanço de evangélicos e espíritas
152
. Eis um
quadro do período
A partir de 64, vê-se a Igreja, que marcara a sua relação com o Estado por um
movimento ambíguo e pendular quer de apoio e colaboração, quer de críticas
diante de antagonismos e entraves mais agudos -, necessariamente compelida a
redefinir posições, a começar por sua própria estrutura interna. A repressão
política dos movimentos de Ação Católica especializada nos anos pós-1964, que
apressou a decisão da hierarquia de retirar-lhe o apoio institucional que, de
resto, já vinha sendo recusado pelos setores radicais desses movimentos -,
obrigaria o episcopado a investir esforços e recursos em novas modalidades de
apostolado leigo, que se configurassem como menos vanguardistas e menos
arriscadas: a renovação da vida paroquial através daquilo que, em 1965, o
Plano de Pastoral de Conjunto denominava de “comunidades de base”.
Nos anos de 1967 e 68, os conflitos entre Igreja e Estado se multiplicariam na
medida mesma em que a nova ordem estatal escalava o caminho da direita e da
força e voltava contra a sociedade o rosto do terror. (...)
Na década de 70 aprofunda-se o conflito entre a Igreja e o Estado que se
manifesta de maneira multiforme, em níveis variados da estrutura hierárquica,
tanto do Estado, como da Igreja. As mudanças do Catolicismo, apoiando
152
PIERUCCI, Antônio Flávio. Secularização e o declínio do Catolicismo. IN: SOUZA, Beatriz M.;
MARTINO, Luis Mauro Sá (orgs.). Sociologia da Religião e Mudança Social. São Paulo: Paulus, 2004. p.11-
21. p.13-8. Sobre o tão mencionado Declínio do Catolicismo, urge mencionar, para estimulante reflexão, o
alerta do sociólogo francês René Luneau, em texto de 1995: “a sociologia atual do Catolicismo, na França e
alhures, ainda é mais complexa do que poderia parecer e que, talvez, seja imprudente anunciar, desde agora,
‘a crise terminal do Catolicismo’”. LUNEAU, R. A Igreja Católica no futuro. IN: ______; MICHEL, Patrick
(orgs.). Nem todos os caminhos levam a Roma: as mutações atuais do Catolicismo. Tradução de Guilherme
João de Freitas Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. p.386.
movimentos de emancipação de categorias sociais excluídas e defendendo os
direitos humanos contra o arbítrio e a violência do Estado autoritário e ditatorial,
parecem ocorrer de modo gradual, prosseguindo em ritmo irregular, mas
seguindo tendência coerente
153
.
Ainda na tentativa de apresentar sumariamente o ambiente histórico e
eclesiológico da época, recorremos às observações de Michael Lowy
154
a respeito da Igreja
na América Latina. Para Lowy, ela estaria dividida em quatro grandes vertentes: a primeira,
caracterizada por um pequeno grupo ultra-reacionário, como a TFP (Tradição, Família e
Propriedade); a segunda, representada por uma forte corrente tradicionalista e
conservadora, ligada às classes dominantes, bem como à Cúria Romana; a terceira,
manifesta em uma corrente reformista e modernista, com certa autonomia em relação à
Cúria Romana, pronta a defender os direitos humanos e as necessidades dos setores
populares; por fim, a quarta vertente seria representada por um pequeno e influente setor,
próximos a Teologia da Libertação, engajados na luta ativa junto aos movimentos
populares, trabalhadores e camponeses.
A Arquidiocese de Botucatu se enquadraria na segunda grande vertente:
tradicionalista, ligada às classes dominantes e à Cúria Romana. E tal como a Cúria
caracterizava-se por uma infinidade de contradições em relação às diretrizes e metas
anunciadas pelo Vaticano II. De acordo com Beozzo, as contradições da Cúria Romana,
nesse período, se revelariam no deslocamento de bispos “progressistas” do centro nervoso
153
PIERUCCI, Antônio F.; SOUZA, Beatriz M.; CAMARGO, Cândido P. F. de. Igreja Católica:1945-1970.
IN: PIERUCCI, Antonio Flavio et al. História Geral da Civilização Brasileira: o Brasil Republicano, v.4:
economia e cultura (1930-1964). 2.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p.376-7.
154
LOWY, Michael. Marxismo e Teologia da Libertação. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo:
Cortez: Autores Associados, 1982. p. 34 et passim.
do país (Centro-Sul) para outras áreas menos expressivas, bem como pela ação da Cúria em
desfazer as redes de articulação entre conferências episcopais de diferentes países e
continentes, que não passavam pelo centro romano e seu controle
155
.
Acrescente-se a essas informações, as indicações de prelados,
publicamente conservadores, aos altos cargos da Hierarquia Eclesiástica, como ocorreu, por
exemplo, com os mencionados bispos D. Geraldo Proença Sigaud
156
e D. Vicente Zioni,
promovidos, respectivamente, aos arcebispados de Diamantina e Botucatu.
Monsenhor Violante se inseria nesse cenário arquidiocesano de modo sui
generis. Formado na época áurea da “romanização”, ele foi signatário do primeiro
manifesto anti-D.Zioni, de que se retratara rapidamente, optando por continuar na Igreja de
Botucatu
157
. Todavia, essa atitude sinaliza para certa autonomia e vontade de transformar as
práticas religiosas, a partir dos debates sobre a Igreja no mundo moderno. Ainda que os
princípios do Catolicismo romanizado fundamentassem, em última instância, sua leitura de
mundo.
Um homem culto como ele deve ter acompanhado o desenvolvimento das
reflexões conciliares para a América Latina, essência da II Conferência Geral do
Episcopado Latino-Americano, realizada em Medellín, Colômbia, no ano de 1968. Uma
155
BEOZZO, José Oscar. Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II: Participação e Prosopografia – 1959-
1965. Tese (Doutorado em História).FFLCH, USP, São Paulo, 2001. p.247 e 251.
156
Sobre o conservadorismo de D. Sigaud conferir: SILVA JR., Alfredo Moreira da. Catolicismo, Poder e
Tradição. Dissertação (Mestrado em História). FCL, UNESP, Assis, 2006.
157
DONATO, Hernani. Achegas para a história de Botucatu. 3.ed. Botucatu, SP: Prefeitura Municipal, 1985.
p.327.
Igreja que opta pelos pobres e procura libertar o Homem, eis os princípios fundamentais
emanados dessa CELAM, segundo o bispo D. Cândido Padin
158
.
E, de acordo com a historiadora Solange Ramos David, essa mesma
Conferência havia determinado uma nova postura diante da religiosidade popular: a Igreja
deveria agora acolher tais práticas religiosas com o intuito de impregná-las com o
evangelho do Cristo Ressuscitado. A partir de Medellín foram incentivados inúmeros
estudos e trabalhos sobre a religiosidade do povo
159
.
Não posso afirmar exatamente quando o Monsenhor soube da história da
imagem de Nossa Senhora Aparecida, encontrada no vagão queimado. O certo é que em
seus primeiros anos de paroquiato, procurou reorganizar os movimentos e associações
religiosas, interagir com as autoridades locais e envidar esforços no trabalho de
evangelização, via jornais e rádios da cidade, como atestam Rafael Conte e Lourival
Argenta. Visitava as famílias e procurava se relacionar com todas as pessoas, obtendo, em
pouco tempo, o afeto e o respeito da população. Sua atuação foi reconhecida pelo próprio
arcebispo, que o designou Vigário Geral da Arquidiocese de Botucatu e Vigário Episcopal
da Região de Ourinhos.
Lutar contra a perda de fiéis tornou-se, segundo Rafael Conte, um desafio
da Igreja Católica de Ourinhos naquele período. Para isso, templos deveriam ser
158
MORAIS, João F. R. de. Os bispos e a política no Brasil: o pensamento social da CNBB. São Paulo:
Cortez: Autores Associados, 1982. p.41.
159
DAVID, Solange Ramos. O Catolicismo Popular na Revista Eclesiástica Brasileira (1963-1980). Tese
(doutorado em História). FCL, UNESP, Assis, 2000. p. 50-3. Urge citar que a Cúria Romana, em mais uma
ação contraditória, procurou desarticular o CELAM de Medellín, tecendo estratégias para colocar na
presidência da Conferência o tutelado Cardeal Trujillo. Cf. CABRAL, Newton D. de Andrade.
Contextualização para o Estudo de Instituições Eclesiais Católicas atuantes no Brasil após 1960: um esboço a
partir da Arquidiocese de Olinda e Recife. IN: BRANDÃO, Sylvana (org.). História das Religiões no Brasil.
Recife: UFPE, 2004. v.3. p.80-1.
construídos nos novos bairros, afastados da igreja matriz, mas, também, os fiéis deveriam
ser atraídos por uma Igreja mais viva e significativa.
Desse modo, a história do acidente de 1954 ia ao encontro do desejo de
Violante de construir um templo dedicado a Nossa Senhora, no bojo das transformações
que procurava realizar. É isso que se depreende da entrevista que concedeu ao jornal Diário
da Sorocabana, em 1973,
Tudo começou quando, conversando com um dos paroquianos, vim a saber do
fato de 1954, que eu também desconhecia. Julguei que isso pudesse enriquecer
a idéia da construção de um Santuário
160
.
Assim, a mesma Igreja que negara o prodígio de 1954, acolhia, agora, a
sugestão do povo, mas sob controle da hierarquia. Ainda que boa parte da população
ourinhense desconhecesse o evento, ou, talvez, por isso mesmo, a história de uma imagem
intacta em um vagão queimado poderia unir a comunidade católica local, após as crises do
final da década de 1960 e no interior do novo contexto religioso dos anos 1970. Sobretudo,
porque a história tinha por protagonista Nossa Senhora Aparecida, cuja devoção, nesse
momento, havia se consolidado
161
. Contribuiu para isso a ação dos militares que, entre
160
INICIADA campanha para construção do Santuário de Nossa Senhora Aparecida falta ainda encontrar a
imagem. Diário da Sorocabana, Ourinhos-SP, 26 ago. 1973, p.01.
161
Em 1967, na celebração do 250º aniversário do encontro da imagem, o Papa Paulo VI outorgou a imagem
de Nossa Senhora Aparecida a Rosa de Ouro, insigne honraria. A cerimônia de entrega aconteceu em agosto
pelo legado papal, cardeal Amleto Cicognani, ao cardeal arcebispo de Aparecida, D. Carlos Motta. Estiveram
presentes na solenidade, o presidente Costa e Silva e o governador de São Paulo Abreu Sodré. Na ocasião, D.
Motta afirmou que Aparecida havia se tornado a “metrópole espiritual da pátria”.SANTOS, Lourival dos.
Igreja, Nacionalismo e Devoção Popular. Dissertação (Mestrado em História).FFLCH, USP, São Paulo,
2000. p.180-2. Para o historiador oficial do Santuário de Aparecida do Norte, o Jubileu de 1967 “marcou o
extraordinário crescimento do Santuário”. BRUSTOLONI, Júlio João. História abreviada do Santuário de
Aparecida. 8.ed. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2004.p.41.
1965 e 1969, promoveram inúmeras peregrinações da imagem pelo país, com ampla
cobertura da imprensa
162
, procurando associar a imagem da Santa ao novo regime
instaurado no Brasil em 1964
163
.
Segundo testemunho de Lourival Argenta, ele e Violante procuraram a
imagem em todos os lugares possíveis da igreja matriz. Não encontraram. Inferiram então
que a imagem teria sido doada, como tantas outras, na reforma litúrgica pós-Vaticano II.
Desse modo, o Monsenhor inicia uma campanha à procura da imagem de Nossa Senhora
Aparecida que rapidamente ganha a mídia local. Primeiro, nos programas radiofônicos
eclesiais, dirigidos pelo próprio Monsenhor, depois, através dos jornais ourinhenses. Sem
mencionar, a divulgação oral da campanha feita durante as missas e nas conversas do
cotidiano.
Em agosto de 1973 se intensificam a campanha de procura da imagem e o
debate em torno do significado do evento de 1954. Os jornais locais, sobretudo, o Diário da
Sorocabana, abordaram esse momento. De um lado, porque estavam socialmente ligados
aos ferroviários e ao Monsenhor, de outro, porque esse tema mostrou-se polêmico e
interessante podendo aumentar a tiragem das edições
164
.
162
A cobertura da imprensa foi importante para divulgar a campanha nacional dos devotos em prol da
construção do novo santuário. Vale lembrar que recursos federais foram usados para construir a passarela que
liga a antiga Basílica à Nova e a Praça em torno do Santuário. Cf. SANTOS, Lourival dos. Igreja,
Nacionalismo e Devoção Popular. Dissertação (Mestrado em História).FFLCH, USP, São Paulo, 2000. p.184.
Segundo Brustoloni, “entre 1965 e 1969, aconteceu a peregrinação da Imagem pelas capitais do Brasil e
cidades maiores. Foi um triunfo mariano”. BRUSTOLONI, Júlio João. História abreviada do Santuário de
Aparecida. 8.ed. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2004. p.41.
163
SANTOS, Lourival dos. Igreja, Nacionalismo e Devoção Popular. Dissertação (Mestrado em
História).FFLCH, USP, São Paulo, 2000. p.183-8.
164
Os jornais ourinhenses não dispõem de verdadeiros arquivos. Muitos jornais funcionaram por pouco tempo
ou esporadicamente. É muito difícil encontrar jornais anteriores a 1985. Mais difícil ainda é encontrar dados
relativos ao número de vendas. Mas é estimulante pensar na intrínseca relação entre o interesse
mercadológico dos jornais e as devoções locais, como apontou Solange Ramos David. Cf. DAVID, Solange
R. de Andrade. Um estudo de religiosidade popular: O Santo Menino da Tábua. Dissertação (Mestrado em
História). FLC, UNESP, Assis, 1994.p.82.
Em 19 de Agosto, o Diário da Sorocabana, trazia a seguinte manchete:
“OURINHENSES QUEREM SABER ONDE ESTÁ A IMAGEM SALVA DO
INCÊNDIO DE 1954”. O artigo retoma a história do acidente e procura mostrar sua
relevância a partir das explicações de antigos ferroviários que testemunharam o fenômeno.
O termo milagre não aparece neste artigo. A imagem é concebida como elemento de
memória do evento, como lemos nesse fragmento
Rafael Conte, José de Carvalho, Jorge Franula, José Eurípedes, José
Damasceno, são alguns dos ferroviários que presenciaram o acontecimento que
hoje volta a ser comentado pelo que dele restou: uma imagem de Nossa
Senhora Aparecida, que foi encontrada intacta entre os destroços do
incêndio
165
.
Ainda nesse tom, o artigo continua
O Monsenhor já se manifestou sobre a necessidade de se localizar a imagem de
Nossa Senhora Aparecida. Ela está ligada a um episódio bastante significativo
para o qual se voltaram todas as atenções e, por isso mesmo, ligou-se à história
do município, onde muitos de seus devotos estão empenhados em construir o
seu santuário
166
.
165
NUNES, Sérgio. Ourinhenses querem saber onde está a imagem salva do incêndio de 1954. Diário da
Sorocabana, Ourinhos, 19 ago. 1973, p.01.
166
NUNES, Sérgio. Ourinhenses querem saber onde está a imagem salva do incêndio de 1954. Diário da
Sorocabana, Ourinhos-SP, 19 ago. 1973, p.01.
A imagem foi concebida como artefato histórico do município. Os
devotos mencionados poderiam ser devotos da (nacional) Nossa Senhora da Aparecida,
atraídos pela réplica local. O milagre ocorrido em Ourinhos estaria implícito ou, talvez,
nem existisse no imaginário de muitos. Mas, um santo existe sem milagre? Segundo a
antropóloga Josildeth Gomes Consorte, a resposta é negativa. Para ela,
Santos e milagres são um par constante. Andam juntos no imaginário católico,
por todo o mundo, cultuados pela Igreja e venerados pelos fiéis. Sua popularidade
está diretamente ligada ao número e à natureza dos milagres que lhe são
atribuídos
167
.
Daí a relevância do tema “milagre” para devotos, clero e sociedade. Por
isso, a polêmica em torno do caráter miraculoso da imagem viria à tona, na edição do
Diário da Sorocabana, de 23 de agosto de 1973, na seguinte manchete: TESTEMUNHA
DO INCÊNDIO DE 1954 DEPÕE PARA O REPÓRTER: ENTREGUEI A IMAGEM AO
PREFEITO, MAS NÃO ACREDITO QUE FOI MILAGRE”. O debate, trazido à arena do
jornal, punha de um lado, Jorge Franula que afirma
O que aconteceu foi coincidência, mais nada. O fogo, apenas, não chegou onde se
encontrava a imagem, e por esse motivo, não a atingiu. O vagão onde ela se
encontrava só queimou até a metade
168
.
167
CONSORTE, Josildeth Gomes. Apresentação. IN: GUTTILLA, Rodolfo W. A casa do santo e o santo de
casa: um estudo sobre a devoção a São Judas Tadeu, do Jabaquara. São Paulo: Landy, 2006. p.13.
168
ENTREGUEI a imagem ao prefeito, mas não acredito que foi milagre. Diário da Sorocabana, Ourinhos-
SP, 23 ago. 1973, p.01.
O jornalista conclui
Ele insiste sobre a “coincidência que preservou a imagem das chamas”,
preferindo essa hipótese. Não acredita em milagre
169
.
E o texto segue indagando: “a presença da imagem naquela composição,
foi ou não a responsável pela preservação da própria cidade de Ourinhos?”. E logo em
seguida, como que uma resposta do próprio jornal à pergunta suscitada, apresenta-se a
entrevista com Marcilio Juliano, que acompanhou de perto o acidente e auxiliou no trabalho
de remoção dos escombros. Segundo esse ‘debatedor’
mesmo um milagre pode explicar o fato da cidade inteira não ter sido
destruída, porque o fogo estava muito perto dos depósitos de gasolina. É claro
que o trabalho do pessoal da SANBRA também tem que ser levado em conta,
mas só mesmo a providência poderia ter atendido o apelo de muita gente. Porque,
quando os bombeiros chegaram de São Paulo, já estava quase tudo apagado
170
.
E o artigo, após informar sobre a campanha de procura da imagem, finda-
se assim
169
ENTREGUEI a imagem ao prefeito, mas não acredito que foi milagre. Diário da Sorocabana, Ourinhos-
SP, 23 ago. 1973, p.01.
170
ENTREGUEI a imagem ao prefeito, mas não acredito que foi milagre. Diário da Sorocabana, Ourinhos-
SP, 23 ago. 1973, p.01.
A história que durante 19 anos, foi conhecida pelos moradores mais antigos
de Ourinhos, começa a ser recontada sob múltiplas versões, em decorrência do
desaparecimento da imagem que se tornou objeto de todas as atenções
171
.
Três dias depois, em 26 de agosto, o debate continua. Na verdade, as
informações são no sentido de confirmar o caráter miraculoso do evento, assumido pelo
próprio jornal. Rafael Conte, nosso conhecido depoente, é entrevistado pelo Diário, que
escreve
O sr. Conte, que é católico praticante, afirma que a realização de um milagre não
se somente na cabeça do povo. Ele é um fato concreto. motivos de sobra
para essa crença, ainda mais para quem presenciou a tragédia de 1954. A
Providência Divina evitou que houvesse maior número de vítimas. Deus atendeu
o apelo do povo ourinhense, que conservou a sua fé até que o fogo fosse
dominado
172
.
O artigo enfatiza o “cenário dantesco” do evento, afirmando ser o maior
incêndio da história de Ourinhos, indelével na memória de seus mais antigos moradores.
Por fim, atualiza os leitores a respeito da procura da imagem e do início de uma nova
campanha: a da construção de um santuário para Nossa Senhora Aparecida.
Finalmente, em 2 de setembro, o Diário estampa a esperada notícia:
“ESTAVA EM IPAUÇU A IMAGEM DE NOSSA SENHORA APARECIDA
171
ENTREGUEI a imagem ao prefeito, mas não acredito que foi milagre. Diário da Sorocabana, Ourinhos-
SP, 23 ago. 1973, p.01.
172
INICIADA campanha para construção do Santuário de Nossa Senhora Aparecida falta ainda encontrar a
imagem. Diário da Sorocabana, Ourinhos-SP, 26 ago. 1973, p.01.
MONSENHOR VIOLANTE INTENSIFICA A CAMPANHA PARA A CONSTRUÇÃO
DO SANTUÁRIO”. Segundo o artigo, D. Irene Nicolau soube da campanha de procura da
imagem por meio do jornal Diário da Sorocabana e depois foi até o Monsenhor. Mas, a
filha de Irene, Sônia Nicolau, explicou a situação de outra maneira ao repórter do jornal
Debate, na edição de 31 de julho de 2005,
Uma prima que morava em Ourinhos, ouviu no rádio sobre a procura da santa e
ligou para minha mãe contando. Ela devolveu imediatamente a imagem à
igreja
173
.
Na realidade a entrega não foi imediata, como veremos adiante
deslizamentos picos da memória. Por outro lado, tudo leva a crer que o Diário queria se
autopromover. Mas, continuemos. A reportagem de 2 de setembro, outrossim, põe um
ponto final no debate, ao menos no âmbito do jornal, em torno da existência de um milagre
no evento de 1954. Dessa vez, a palavra não é dada a uma testemunha ocular, mas, ao líder
espiritual da comunidade católica local. Nas palavras do artigo
Referindo-se ao episódio, monsenhor Violante declara: “Não existe nada que
impeça uma inclinação piedosa transformar um fato, por mais natural que ele
seja, num milagre. rios fenômenos naturais podem ter contribuído para que o
fogo não atingisse a imagem, mas a preservação de uma cidade inteira, que não
173
ENCONTRO de imagem em incêndio completa 51 anos. Debate, Ourinhos-SP, 31 jul. 2005, p.8.
sofreu nenhuma conseqüência, é alguma coisa um pouco mais além de um
simples fato natural”
174
E o Monsenhor, no mesmo artigo, afirma
que encontramos a imagem, organizaremos uma procissão apoteótica,
altamente significativa, e a sugestão de um milagre, estará colorindo e
enriquecendo tudo aquilo que for feito em torno de N.S. Aparecida
175
.
Violante aproveita a potencialidade da “sugestão do milagre” para
dinamizar sua atuação pastoral e promover a construção de um santuário mariano. Valoriza
a densidade simbólica dessa leitura mariofânica, ao procurar a verdadeira imagem
encontrada no vagão queimado. Mas, por que não simplesmente venerar qualquer outra
estátua de Nossa Senhora Aparecida? Por que procurar aquela imagem presente no evento
de 1954?
Porque cada imagem é única no imaginário católico brasileiro
176
. De
acordo com Pedro Ribeiro de Oliveira,
A minha Nossa Senhora Aparecida (imagem e santa) que ganhei quando criança
não é a mesma Nossa Senhora Aparecida (imagem e santa) que outra pessoa tem,
174
ESTAVA em Ipauçu a imagem de Nossa Senhora Aparecida Monsenhor Violante intensifica a
campanha para construção do Santuário. Diário da Sorocabana, Ourinhos-SP, 02 set. 1973, p.01.
175
ESTAVA em Ipauçu a imagem de Nossa Senhora Aparecida Monsenhor Violante intensifica a
campanha para construção do Santuário. Diário da Sorocabana, Ourinhos-SP, 02 set. 1973, p.01.
176
Nesse sentido, vale lembrar o que aconteceu com a imagem de Nossa Senhora Aparecida, de Aparecida do
Norte, em 16 de maio de 1978. Nesse dia ela foi (des) feita em 165 pedaços pelo iconoclasta Rogério Marques
de Oliveira, identificado como doente mental. De modo algum pensaram em substituí-la. Ela foi restaurada
no MASP, por especialista italiano. Cf. SANTOS, Lourival dos. Igreja, Nacionalismo e Devoção Popular.
Dissertação (Mestrado em História).FFLCH, USP, São Paulo, 2000. p.192.
nem a mesma que está no altar da igreja: em cada imagem do mesmo santo há um
santo diferente
177
.
Nesse sentido, a imagem ganha especificidade e vínculo com determinada
pessoa ou comunidade a partir de sua história nela e com ela. Por isso, Steil afirma que os
santos
Permanecem, de algum modo, participando das vicissitudes deste mundo
através de suas imagens, capazes de sentir, chorar, sofrer, locomover-se, falar,
indicar caminhos etc. A imagem de um santo, portanto, não é apenas uma
representação que evoca alguém que esteve entre os vivos, mas é um
“sacramento”: algo que torna presentes no mundo visível, de forma eficaz e
real, personagens que transitam entre os vivos e os mortos. Ou seja, uma
relação entre a imagem e o santo que os torna uma única e mesma coisa
178
.
Vimos que a iconodulia passou por um processo de ressignificação na
implantação do Catolicismo romanizado, em um campo católico preponderantemente
tradicional. Assim sendo, ao mesmo tempo em que as alterações históricas e eclesiais
modificaram as práticas religiosas elas ensejaram deslizamentos de sentidos e de
significados no imaginário católico. Imaginário composto por tempos vividos que não se
esgotam nos quadros temporais da cronologia aritmética, como nos ensina Serge
177
OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. O catolicismo do povo. IN: VV.AA. A religião do povo. São Paulo:
Paulinas, 1978. p.79.
178
STEIL, Carlos Alberto. Catolicismo e cultura.IN: VALLA, Victor V. (org.). Religião e cultura popular.
Rio de Janeiro: DP&A, 2001. IN: Victor V. Valla (org.), Religião e cultura popular, Rio de Janeiro, DP&A,
2001. p.23.
Gruzinski
179
. E é a partir dessas considerações que devemos entender a relevância da
imagem de Nossa Senhora Aparecida para os devotos ourinhenses. Também nessa devoção,
o poder simbólico da imagem reside em sua autenticidade e historicidade.
Ainda nessa direção, urge considerar que as diretrizes racionalizantes,
engendradas pela cúpula eclesiástica nacional ou estrangeira, bem como boa parte das
discussões e conflitos que ocorreram por detrás do altar, não suplantaram o princípio
devocional do Catolicismo brasileiro. Isso explica a sua permanência na Igreja Pós-
Vaticano II. De fato, como nos orienta Steil, “o tradicional permanece, reproduz-se e
atualiza-se nas franjas da instituição”
180
.
A verdadeira imagem representaria também o monumento, no sentido
atribuído por Jacques Le Goff
181
, do acidente que marcou a história de Ourinhos em 1954.
Nesse caso, a devoção ourinhense não polarizaria os usos da imagem cristã, como ocorreu
no início do culto a Virgem de Guadalupe, analisado por Serge Gruzinski. Segundo ele
Tudo girou em torno da questão da representação do invisível. E, não se tratava
de um simples debate sobre a forma ou o estilo, mas da definição, do
funcionamento e do uso adequado da imagem: imagem-memória contra imagem-
miraculosa, imagem didática contra imagem taumatúrgica (minha tradução)
182
.
179
GRUZINKI, Serge. La guerra de las imagenes. Traducción de Juan J. Utrilla. México, DF: FCE, 1994.
p.129.
180
STEIL, Carlos Alberto. Catolicismo e cultura.IN: VALLA, Victor V. (org.). Religião e cultura popular.
Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.17.
181
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. IN: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa
da Moeda, 1984. v.1.Memória/História. p. 95.
182
GRUZINKI, Serge. La guerra de las imágenes. Traducción de Juan J. Utrilla. México, DF: FCE, 1994.
p.109. No original: “Todo giró sobre la cuestión de la representación de lo invisible. Y no se trataba de un
simple debate sobre la forma o el estilo, sino de la definición, del funcionamiento y del buen uso de la
imagen: imagen-memoria contra imagen-milagro, imagen didáctica contra imagen taumaturgica”.
A imagem de Nossa Senhora Aparecida condensaria os múltiplos
significados e sentidos atribuídos ao evento de 1954. Seria, a imagem-memória, o
monumento de um importante capítulo da história ourinhense e, outrossim, ícone sagrado
cuja eficácia se revelara em um milagre que salvara a cidade de Ourinhos; mas, também,
imagem didática, capaz de levar o povo a uma melhor compreensão da própria e do
Catolicismo no mundo moderno, sem, negar o seu caráter taumatúrgico, afinal, tal negação
poderia esvaziar a densidade mítica da devoção, correndo o risco de destruir o próprio
culto. Essas afirmações coincidem com a idéia de Rubem C. Fernandes de que Nossa
Senhora “tem sido o elo de ligação que faz possível comunicar-se por sobre a dupla
significação”
183
, isto é, acima da tensa polissemia que constitui o Catolicismo brasileiro.
Depois de encontrar a imagem o Monsenhor organizou, minuciosamente,
a procissão de carros que traria a imagem de volta para Ourinhos. Como ele mesmo
afirmou, deveria ser algo “apoteótico”, grandioso. Talvez estivesse pensando nas procissões
rodoviárias que marcaram o triunfo da imagem de Nossa Senhora Aparecida, em sua
peregrinação nacional, no final dos anos 60.
O evento deveria ser, outrossim, “altamente significativo” para a
comunidade ourinhense. Por essa razão ele esperou quase um ano para o translado. Queria
que a procissão acontecesse no vigésimo aniversário do encontro da imagem. Postulava,
também, como relataram Rafael Conte, Lourival Argenta e Norival Vieira, encontrar a
proprietária da imagem, a senhora Dulce Mendes da Silva, e reunir as testemunhas oculares
do fenômeno de 1954. Não foi, portanto, casual o fato da procissão rodoviária e da
183
FERNANDES, Rubem C. Aparecida: nossa rainha, senhora e mãe, saravá! IN: SACHS, Viola (org.).
Brasil & EUA: religião e identidade nacional. São Paulo: Graal, 1988. p.10.
entronização da imagem acontecerem em 1974. O Monsenhor lidava, deliberadamente,
com as imagens e os símbolos do imaginário local.
O trabalho de preparação se intensifica em julho de 1974. No arquivo da
Paróquia do Senhor Bom Jesus, encontramos cartas e requerimentos, assinados por
Violante, convidando e solicitando a presença das autoridades locais, da Corporação de
Bombeiros e dos funcionários da Circunscrição de Trânsito.
Esses documentos revelam que a procissão de carros fez parte de um
amplo programa católico por ocasião da festa do padroeiro de Ourinhos, celebrada em 06
de agosto, feriado municipal. Nesse dia a missa seria presidida pelo arcebispo D. Vicente
Zioni.
Os textos apontam também para certa institucionalização da história da
imagem. Longe dos debates do ano anterior, Violante resume esse fato em uma carta,
endereçada ao comandante da Corporação de Bombeiros
Como é de todos sabido, no incêndio de vagões da hoje Fepasa, nas imediações
de Ourinhos, foi encontrada entre os escombros, uma pequena e devota imagem
de Nossa Senhora Aparecida, que foi acolhida com carinho pela população e
preservada, em vários lugares, até a presente data. Ocorrendo este ano o 20º
aniversário desse fato e tendo em mira fundar um Centro Comunitário Cristão e
um Santuário Religioso, a Comissão, gostaria de contar com a prestigiosa
presença e participação dessa Corporação, uma vez, que na ocasião alguns
Bombeiros participaram ativamente na extinção do pavoroso incêndio, conforme
consta da documentação, inclusive fotográfica, existente em arquivo
184
.
A história e o culto passam a ter uma visão oficial da Igreja. Adiante
discutiremos as ações de Violante nesse sentido. Nesses mesmos textos, Monsenhor
escreve que o evento tem um “grande significado” e que para ele haverá “concorrência da
massa popular”: indícios das expectativas do clérigo em relação ao evento e a devoção que
promovera. Enfim, o apoteótico evento foi marcado e amplamente divulgado em Ourinhos
e Região. Eis o folheto de divulgação:
184
VIOLANTE, Mons. André Oswaldo. Correspondência ao Tenente Antônio Amaro Neto, comandante da
Corporação de Bombeiros de Ourinhos, 31 jul. 1974.
Observando atentamente o anúncio da procissão de carros, batizada com
o nome de Imagem em Triunfo, detectamos um diferenciador relativo a invocação de Nossa
Senhora Aparecida, representado na frase “SALVA DO VAGÃO QUEIMADO EM 1954”.
Ainda não era a atual NSAVQ, mas, já havia certo destaque para sua particularidade.
Segundo o jornal Folha da Manhã, de 04/08/1974, cuja manchete era
“INCÊNDIO NÃO QUEIMOU IMAGEM DE N.S. APARECIDA”, cerca de mil carros
constituíram a procissão rodoviária que saiu de Ipaussu, após missa na frente da casa da
família Nicolau, até Ourinhos. O carro-chefe da procissão rodoviária foi todo enfeitado para
o evento. Portava as bandeiras do Brasil, do Estado de São Paulo e do Município como se
observa na foto abaixo. Depois, foram ouvidas as testemunhas oculares do fenômeno de
1954 e ocorreu a doação oficial da imagem para a paróquia do Senhor Bom Jesus, pela
senhora Dulce Mendes da Silva. Por fim, a pequena imagem, outrora negada e esquecida
foi solenemente entronizada na igreja matriz.
Imagem em triunfo: Nossa Senhora Aparecida, salva do vagão queimado em 1954, é solenemente recebida
em Ourinhos. Fonte: Acervo pessoal de Norival Vieira da Silva.
A matéria sobre o evento deve ter chamado a atenção dos ourinhenses,
dado que foi reeditada, cinco dias depois, com um novo título: “IMAGEM SALVA 20
ANOS CHEGA À IGREJA”. O artigo reitera a índole miraculosa do evento de 1954
Quando as labaredas se tornavam cada vez mais perigosas, um vento forte soprou
inesperadamente, desviando as chamas para o lado oposto aos depósitos de
combustível. Os ferroviários consideraram aquilo um milagre, embora ainda não
soubessem da presença de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida num dos
vagões da composição incendiada.
No trabalho de procura e remoção das vítimas um ferroviário encontrou entre o
entulho uma caixa que entregou ao capitão Caldas para que a abrisse. O achado
despertou a curiosidade dos presentes e, desmontada, a caixa, constatou-se que
continha a imagem de N.S. Aparecida, completamente intacta.
Esse fato, aliado ao fenômeno do vento, levou os ferroviários a acreditarem num
milagre e a imagem passou a ser venerada na região
185
.
O artigo descreveu os fatos narrados pelas testemunhas oculares do
acidente, convidadas por Violante para aquele evento. Ali foi estabelecido certo padrão
oficial da Igreja para se narrar a história do encontro da imagem e da devoção. A seguir,
tratarei das ações do Monsenhor no sentido de consolidar tal padrão narrativo e,
simultaneamente, erigir o santuário a Nossa Senhora Aparecida, salva do vagão queimado
em 1954.
185
IMAGEM salva há 20 anos chega à igreja. Folha da Manhã, Ourinhos-SP, 09 ago. 1974, p.01
2.3 O Santuário de Nossa Senhora Aparecida.
Ao analisar a devoção a São Judas Tadeu, Guttilla afirma
A devoção a São Judas Tadeu é um fenômeno de natureza diversa das devoções
aos santos tradicionais, em que a comunidade devota, numa afirmação da vontade
coletiva, elege seu santo protetor após ter vivenciado uma hierofania, isto é, uma
manifestação do sagrado (sinalizada, como no caso da pequena virgem negra de
Aparecida do Norte, pela aparição misteriosa da imagem ou, mais comumente,
por um milagre atribuído ao santo protetor eleito pelo grupo). O enorme sucesso
da devoção que se constelou em torno de São Judas Tadeu deveu-se, antes, ao
empenho do fundador e primeiro vigário da paróquia, padre João Busher, em
promover o padroeiro
186
.
Como acabamos de ler, Guttilla aponta para dois fenômenos na origem
das devoções: um, promovido pela coletividade após uma hierofania; outro, engendrado por
um clérigo, como padre Busher, constructor da devoção a São Judas Tadeu, no Jabaquara,
em São Paulo.
No caso ourinhense, que ora analiso, parece haver uma mistura dos
fenômenos apresentados por Guttilla. De um lado, ocorreu uma hierofania (ou mariofania)
que fez a comunidade venerar de imediato a imagem encontrada intacta no vagão
186
GUTTILLA, Rodolfo. A casa do santo e o santo de casa. São Paulo: Landy, 2006. p.78-9.
queimado; de outro, a veneração coletiva mostrou-se efêmera, e, vinte anos depois, foi
ressuscitada pelas mãos de um clérigo.
Isso não soa estranho considerando que essas ambivalências, tensões e
complementaridades constituem o Catolicismo e o culto a atual NSAVQ. A polissemia
irresolvida é o princípio dinâmico do Catolicismo brasileiro. E isso porque
Enquanto as religiões afro-brasileiras e o protestantismo se subdividem em
muitos grupos autônomos e em muitas denominações independentes, o
Catolicismo tende a absorver a diversidade no seu próprio interior. Neste sentido,
alguns estudiosos das religiões no Brasil têm observado que, se a lógica das
religiões afro-brasileira e do protestantismo é a lógica da divisão, a do
Catolicismo é a da elasticidade. Ou seja, enquanto as religiões afro-brasileiras e o
protestantismo crescem dividindo-se, o Catolicismo cresce incorporando as
diferenças
187
.
Maria Lúcia Montes concordaria com essa afirmação de Steil. Para ela, a
abertura à alteridade é o grande diferencial do Catolicismo no campo religioso brasileiro.
Em sua trajetória histórica ele foi e é capaz de “permitir a incorporação, em um universo
comum de sentido, de muitas crenças e práticas rituais outras
188
. Sendo assim, comporta
um processo de contínua recomposição de elementos e referências culturais, engendrado
187
STEIL, Carlos Alberto. Catolicismo e cultura.IN: VALLA, Victor V. (org.). Religião e cultura popular.
Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.33.
188
MONTES, Maria Lúcia. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. IN: NOVAIS, Fernando (dir.).
SCHARWCZ, Lilia M. (orgs.). História da Vida Privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea.
São Paulo: Cia. das Letras, 1998. v.4.136-7.
por situações e injunções específicas. O Catolicismo sobrevive por sua capacidade de “re-
invenção”.
Reinvenções e reapropriações dizem respeito à produção de sentidos. E é
no rico jardim simbólico do Catolicismo, laboratório indispensável para qualquer alquimia
religiosa brasileira, que o Monsenhor cultivou uma nova devoção. Efetivou uma criação
religiosa. Para Maria Isaura Pereira de Queiroz
A criação religiosa, e, portanto simbólica, no Brasil, buscaria o fortalecimento da
coesão interna do grupo ou sociedade, assegurando a permanência de seu
patrimônio cultural (já transformado, é verdade, mas esta circunstância não
parece pesar na adesão dos fiéis), protegendo-o de um possível desaparecimento,
que preludiaria, em última instância, o desaparecimento também do grupo ou da
sociedade
189
.
Em um momento de grandes inflexões históricas e eclesiológicas,
sobretudo, na turbulenta paróquia do Senhor Bom Jesus de Ourinhos, envolta por conflitos
e discórdias, o monsenhor Violante usa da secular força atrativa dos santos para mobilizar
os fiéis e dinamizar o Catolicismo local.
Depois da entronização da imagem na igreja matriz Violante envidou
todos os esforços na construção do santuário. Concomitantemente, inicia um trabalho de
levantamento das fontes históricas do evento de 1954. Queria reconstituir a história da
189
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Identidade Nacional, religiões, expressões culturais. IN: SACHS,
Viola (org.). Brasil & EUA: religião e identidade nacional. São Paulo: Graal, 1988. p.80.
imagem, base da nova devoção. De acordo com Rodolfo Guttilla, citando Kenneth L.
Woodward, isso seria imprescindível, dado que
Para fazer um santo ou para comungar com os santos reconhecidos, que
saber primeiro a história deles. (...) Na verdade, não seria exagero dizer que os
santos são as suas histórias
190
.
Assim, a construção do santuário e a divulgação da fama sanctatis da
imagem de Nossa Senhora Aparecida, salva do vagão queimado em 1954, caminham de
mãos dadas. É o que se pode inferir a partir da leitura de um requerimento, de 23 de
dezembro de 1977, enviado pelo Monsenhor ao superintendente da Fepasa pedindo-lhe “a
gentileza de fornecer” à paróquia do Senhor Bom Jesus, “da melhor maneira e na forma
mais ampla e mais completa possível, dados e elementos precisos referentes ao incêndio
ocorrido em Ourinhos a 31.07.54”. Isso porque
o pedido que ora faço a V. Exci. prende-se ao fato de desejar obter a reconstrução
da verdade histórica do sinistro com base em documentos que segundo penso,
deva existir em Registro da Fepasa
191
.
E mais,
190
GUTTILLA, Rodolfo. A casa do santo e o santo de casa. São Paulo: Landy, 2006. p.80.
191
VIOLANTE, Mons. André Oswaldo. Requerimento ao superintendente da Fepasa, 23 dez. 1977.
por gratidão e devoção o nosso povo está erigindo em local bem próximo ao
sinistro, um templo em louvor à Nossa Senhora Aparecida, pois entre os objetos e
mudanças de uma família amiga, foi encontrada intacta, no bagageiro daquele
Mixto, uma Devota Imagem da mesma Senhora, Imagem essa que depois de
muita pesquisa e procura, foi encontrada e doada à esta Paróquia
192
.
“Obter a reconstrução da verdade histórica” era o objetivo de Violante.
Será que as múltiplas versões sobre o evento de 1954, denunciadas pelo artigo do Diário da
Sorocabana, de 23 de agosto de 1973, ainda incomodavam o Monsenhor e atrapalhavam o
desenvolvimento da devoção e da construção do santuário?
Novamente caminhamos em território instável e nada sólido. Não há
registros de contestações públicas. Silêncios da História. Jorge Franula, no entanto, não
havia mudado de posicionamento. Outros, talvez, comungassem de sua opinião... Por outro
lado, essa atitude de historiógrafo, uma das facetas do Monsenhor, corresponde às
exigências de uma consciência e de um pensamento racionalizado que pretende estabelecer
a verdade objetiva dos fatos para além das narrativas orais, algo peculiar a Igreja
Romana
193
, de acordo com Steil. para Augustin Wernet, seria uma estratégia eclesial
para controlar, ainda que provisória e parcialmente, os significados em torno da nova
devoção
194
.
Essa “reconstrução da verdade histórica”, por sua vez, conteria omissões
e silêncios a respeito de situações que denunciariam a negação eclesiástica, a descrença e
192
VIOLANTE, Mons. André Oswaldo. Requerimento ao superintendente da Fepasa, 23 dez. 1977.
193
STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias. Petrópolis: Vozes, 1996. p.205-6.
194
Essa interpretação da reconstrução da História de uma devoção como estratégia de controle do culto foi
sugerida pelo historiador Augustin Wernet, durante palestra na UNESP, campus de Assis, em Abril de 2005.
certa amnésia popular em relação à imagem de Nossa Senhora Aparecida. Afinal, como a
instituição Igreja e a comunidade católica local poderiam explicar o desprezo por uma
imagem que ora veneravam? Como aceitar e conviver com essa dolorosa e inconveniente
memória?
O gênero hagiográfico resolveria essas questões espinhosas. Esse gênero
não leva em conta as pertinentes críticas aos relatos de vida que Pierre Bourdieu condensou
na expressão “ilusão biográfica”. Em outras palavras, a escrita hagiográfica da História não
permite contradições e contra-testemunhos, e usa deliberadamente um sentido narrativo
atribuído a posteriori. Em Michel de Certeau
195
, aprendemos que o discurso hagiográfico
deve apresentar vidas exemplares, heróicas e virtuosas, com o objetivo de atrair os devotos
e comunicar a fé, “mostrando como, através de um santo (exceção), a história está aberta ao
‘poder de Deus’”. Assim, se efetivou a consolidação do padrão narrativo da Igreja e a
dinâmica do trabalho de luto e lembrança da memória, para usar uma linguagem peculiar a
François Dosse
196
, a despeito da história da veneração à imagem da Virgem encontrada em
um vagão queimado.
É preciso ter mente, todavia, que essa reconstrução histórica estava
inserida em um projeto maior, que rondava Ourinhos desde meados dos anos 1970: a
criação de uma nova diocese tendo a cidade por sede eclesiástica. Desse modo, segundo
Norival Vieira, o Monsenhor, candidato a primeiro bispo da nova diocese, trabalhava
ininterruptamente para levantar dados e informações, organizar relatórios e dossiês que
contribuíssem para a criação da nova jurisdição eclesiástica.
195
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 2.ed. 2.reimp. São
Paulo: Forense, 2006. p.266-78.
196
DOSSE, François. A História. Tradução de Maria Elena Ortiz Assumpção. Bauru, SP: EDUSC, 2003.
p.288.
Mais do que nunca, dizia o Monsenhor, ainda segundo Norival Vieira, a
comunidade ourinhense deverá estar unida para obter a graça da nova diocese. O Santuário,
importante elemento do patrimônio espiritual do Catolicismo brasileiro
197
, local aonde o
povo vai para pagar suas promessas, restabelecer e fortalecer os laços com o santo, entrar
em contato com o sagrado, seria de fundamental importância para a constituição dessa
unidade. Afinal, de acordo com Beozzo, o Santuário recorda
Às pessoas sua pertença a uma comunidade maior visível e invisível,
comunidade de romeiros e devotos aqui na terra e comunidade com os santos lá
no céu
198
.
Lourival Argenta relata que, entre 1974 e 1978, foram inúmeras as festas
e quermesses em prol da construção do santuário. O Monsenhor conclamava a participação
do povo e lembrava que a ereção do santuário era uma promessa contraída com Nossa
Senhora por conta da proteção que oferecera a cidade de Ourinhos.
No início de outubro de 1978, mês inicial do pontificado de João Paulo II,
é divulgada a inauguração da nova igreja ourinhense. Veja, a seguir, o folheto de
divulgação.
197
BEOZZO, José Oscar, Irmandades, santuários, capelinhas de beira de estrada. Revista Eclesiástica
Brasileira, Petrópolis-RJ, 148, dez. 1977, p.751s.; STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias. Petrópolis:
Vozes, 1996. p.94 et passim; AZZI, Riolando. O Catolicismo popular no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1978.
p.51-71.
198
BEOZZO, José Oscar, Irmandades, santuários, capelinhas de beira de estrada. Revista Eclesiástica
Brasileira, Petrópolis, 148, dez. 1977, p.752.
O ato, amplamente divulgado, fazia parte das comemorações do 60º
aniversário do município de Ourinhos 1918-1978. No domingo, dia 15 de outubro, a
imagem de Nossa Senhora Aparecida foi triunfalmente levada e entronizada no santuário a
ela dedicado. O Jornal da Divisa, de 19 de outubro de 1978, escreveu artigo sobre o evento
intitulado “SANTUÁRIO NOSSA SENHORA APARECIDA. INAUGURAÇÃO: UMA
APOTEOSE”. Nesse dia, segundo o texto desse artigo,
Estiveram presentes, além do nosso Arcebispo, D. Vicente Marcheti Zioni,
autoridades civis, jurídicas, militares, representações de irmandades e
movimentos religiosos, da Loja Maçônica, Escoteiros, Interact, Lions, Rotary
Club, Sr. Jean Nicolau e esposa (casal que por muitos anos guardou,
carinhosamente, a imagem salva do incêndio), e grande número de fiéis que
apesar do sol e do calor naquela manhã, lotara, a Igreja e outros que
permaneceram fora durante toda a Missa
199
.
A comunidade ourinhense, católica ou não, estava representada nesse
grande evento em torno da pequena imagem encontrada no vagão queimado. A presença do
arcebispo tornava oficial a devoção, ainda presa, naquele momento, à identidade católica
nacional, inspirada por Nossa Senhora Aparecida. D. Zioni encerrou a celebração
anunciando “a possível criação do Bispado de Ourinhos”. A boa nova encheu de alegria a
comunidade católica, sobretudo, ao ‘possível’ primeiro bispo, Oswaldo André Violante.
No ano seguinte foi organizado um grande programa por ocasião do dia
de Nossa Senhora Aparecida. Dessa vez, o Monsenhor convidou um especialista de
Aparecida do Norte: o padre redentorista
200
Arthur Bonotti. A relação entre a Aparecida do
Norte com a Aparecida de Ourinhos
201
se recrudesceu. Pe. Bonotti liderou as Santas
Missões em Ourinhos incentivando e promovendo a participação popular na festa de Nossa
Senhora. De 5 a 14 de Outubro aconteceram orações diárias do terço, novenas, quermesses
e missas. De acordo com o artigo “1º ANIVERSÁRIO DO SANTUÁRIO DE N.S.
APARECIDA”,
199
SANTUÁRIO Nossa Senhora Aparecida. Inauguração: uma apoteose. Jornal da Divisa, Ourinhos-SP, 19
out. 1978, p.03.
200
Desde 1902, os redentoristas de Aparecida do Norte, levam uma imagem de Nossa Senhora Aparecida para
as Santas Missões pelo Brasil. Um dos fatores do desenvolvimento e da divulgação do culto a Virgem de
Aparecida. Cf. BRUSTOLONI, Júlio João. História abreviada do Santuário de Aparecida. 8.ed. Aparecida,
SP: Editora Santuário, 2004. p.53.
201
Interessante pensar que nesse contexto, o nosso conhecido depoente, Norival Vieira, sugeriu ao monsenhor
Violante a invocação Nossa Senhora Aparecida de Ourinhos, para a imagem encontrada no vagão queimado
em 1954.
Os frutos espirituais foram bastante expressivos, com numerosas confissões,
comunhões e participação à Santa Missa. O Santuário que é apenas uma vez
menos do que a Igreja Matriz do Senhor Bom Jesus, tornou-se pequeno para
abrigar o número de fiéis que a ele acorriam
202
.
A “multidão” que acorria ao novo santuário mariano de Ourinhos, fruto
de um intenso trabalho de negociação de sentidos e de recursos, materiais e simbólicos, do
monsenhor Violante, era constituída por parte dos 52.871 católicos ourinhenses, cerca de
88,5% da população, segundo os dados do IBGE para 1980. A percentagem de protestantes
era de 9%, para uma população total de 59.738 habitantes.
A comparação desses dados locais com os nacionais, bem como entre os
números do IBGE de 1970 com os de 1980, revela importantes e curiosas conclusões: se
por um lado, o Catolicismo ourinhense mantinha-se, ainda que em menor escala levando
em conta o último censo, abaixo da percentagem nacional de católicos que era de 89,2%;
por outro lado, os católicos de Ourinhos haviam crescido 3,5% em relação aos dados de
1970, enquanto os números da demografia Católica nacional apontavam, no mesmo
período, um decréscimo de 1,1%, sustentando a Teoria do Declínio
203
.
Com base nesses dados podemos afirmar que, ao menos no campo
religioso ourinhense, ocorreu uma inversão da lógica do declínio do Catolicismo. E é aqui,
nesse tipo de consideração, que reside o fascínio e a importância dos jogos de escalas:
mostrar que as realidades específicas são mais complexas e fugidias do que sugerem
202
1º ANIVERSÁRIO do Santuário N. S. Aparecida. Jornal da Divisa, Ourinhos-SP, 19 out. 1979, p.03.
203
Dados nacionais obtidos em PIERUCCI, Antônio Flávio. Secularização e o declínio do Catolicismo. IN:
SOUZA, Beatriz M.; MARTINO, Luis Mauro (orgs.). Sociologia da Religião e Mudança Social. São
Paulo: Paulus, 2004. p.16.
conceitos e interpretações homogeneizantes. Nos leva, outrossim, a admitir que a devoção
cultivada por Violante contribuiu, ainda que parcialmente, para essa inversão. O santuário,
retratado na foto abaixo, tornou-se, assim, referência ímpar para o Catolicismo local.
O templo dedicado a Nossa Senhora Aparecida, encontrada intacta no vagão queimado, em foto atual. Fonte:
D’AMBRÓSIO, Oscar (org.). Ourinhos: um século de história. São Paulo: Noovha América, 2004. (Prefeitura
Municipal de Ourinhos, SP). p.66.
Em julho de 1980 o papa João Paulo II visitava o Brasil e consagrava a
Basílica de Aparecida. Em um de seus discursos assinalou que
Neste lugar onde a Virgem, há mais de dois séculos, marcou um encontro
singular com a gente brasileira. Com razão, para aqui se voltam, desde então, os
anseios desta gente, aqui pulsa, desde então, o coração católico do Brasil. Meta
de incessantes peregrinações vindas de todo o país, esta é a capital espiritual do
Brasil
204
.
204
CNBB. Pronunciamentos do Papa no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1980. p.125.
As palavras do pontífice indicam o triunfo da imagem encontrada nas
águas do Paraíba, transformada, pela ação dos devotos e da Igreja, em um dos maiores
símbolos do Catolicismo brasileiro. Naquele mesmo ano, o general-presidente João Batista
Figueiredo, sancionou a lei que fez do dia 12 de Outubro feriado nacional.
Em Ourinhos, uma réplica de Nossa Senhora Aparecida, promovida por
monsenhor Violante, atraíra um grande número de fiéis. A criação religiosa, que, como
apontou Maria Queiroz, instala-se em momentos de perigo da coesão social, contribuiu para
redefinir e atualizar a identidade do Catolicismo ourinhense, em meio a uma nova dinâmica
de acomodação.
Entretanto, com Monsenhor, o sentido da nova devoção, constituído na
tensão entre o local e nacional, pendia para o nacional. A Nossa Senhora Aparecida, salva
do vagão queimado em 1954, continuava presa a sua matriz de Aparecida do Norte.
Continuava sendo a réplica local da Mãe nacional.
Foi com a efetiva criação da diocese, muito tempo depois do esperado
e com outro bispo, em 1999, que a imagem foi individualizada e venerada plenamente por
sua significatividade local. Esse é o tema do próximo capítulo.
3. Mãe Aparecida do Vagão
Queimado.
Mãe Aparecida do Vagão Queimado: Com e
confiança em tua maternal
proteção, hoje exaltamos tua maternal
Bondade
205
.
3.1 Nossa Senhora Aparecida do Vagão Queimado.
No dia 30 de dezembro de 1998, o Papa João Paulo II criou, pela Bula Ad
Aptius Consulendum, a Diocese de Ourinhos. Foi a realização de um antigo sonho
ourinhense. Todavia, para muitos, uma satisfação parcial. Isso porque esperavam que o
primeiro bispo local fosse o carismático monsenhor Oswaldo André Violante. Por essas
ironias típicas da História, o grande militante desse projeto não viveu o bastante para
acompanhar a ereção da nova diocese. Faleceu em 1994.
A última década e meia do ministério presbiteral de Violante, aconteceu
em um cenário histórico e eclesial marcado por inúmeras transformações e conflitos. No
Brasil, a ditadura chegou ao fim e, ainda que num processo regado a contradições, deu-se
passos decisivos no sentido da redemocratização do país. Fora do Brasil, a URSS entrou em
profunda crise até desaparecer com o recrudescimento da recomposição geopolítica de seu
205
Fragmento da oração Mãe Aparecida do Vagão Queimado, distribuída no Santuário Diocesano de NSAVQ
de Ourinhos.
antigo território. A Guerra Fria acabou e a idéia de Globalização e/ou Mundialização
tornou-se o novo conceito explicativo da realidade social
206
.
Nesse período, a população ourinhense passou de 59.738 (dados do IBGE
para 1980) para pouco mais de 76.923 (dados do IBGE para 1991) habitantes. Ourinhos
manteve certo ritmo de desenvolvimento. Sua economia baseada no comércio e na
agricultura sobreviveu às intempéries da época. Mas o Catolicismo ourinhense parecia
perder forças. Se, levando em conta os dados do IBGE, em 1980 a cidade tinha 88, 5% de
católicos, esse número cai para 84, 8% em 1991, e despenca para 75, 5% em 2000 – quando
Ourinhos já contava com 93.868 habitantes. A percentagem de católicos em Ourinhos
superava a percentagem média nacional, contudo, o Catolicismo local voltava a se
enquadrar na Teoria do Declínio.
O Catolicismo vivia sob o signo do ambíguo pontificado de João Paulo II.
Seu nome de pia era Karol Wojtyla. Nasceu em 18 de maio de 1920, na cidade de
Wadowice, Polônia. Foi eleito papa em 16 de outubro de 1978. O vaticanista John
Cornwell afirma que sua insólita vitória, mormente por sua origem polonesa, reside no fato
de Wojtyla ter atraído as simpatias de prelados progressistas e conservadores. Nas palavras
de Cornwell
Os progressistas acreditaram, no começo, que esse
era um papa para dar continuidade ao espírito do
Concílio e acelerar as reformas inacabadas. Os
206
HELD, David; McGREW, Anthony. Prós e contras da globalização. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p.07; HOBSBAWM, Eric. Tempos interessantes: uma vida no século XX.
Tradução de S. Duarte. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.p. 311-44 SILVA, Francisco C. T. da. Brasil em
direção ao século XXI. IN: LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil. 9.ed. Rio de Janeiro:
Campus, 2000.p. 385-445.
conservadores, por outro lado, confiavam em que um
prelado criado no Catolicismo da Polônia,
tradicionalista e de uma rija têmpera provada ao
longo da história, restabeleceria muitas disciplinas e
valores, e baniria ao mesmo tempo quaisquer
esperanças remanescentes alimentadas por católicos
de um matiz socialista
207
.
Cornwell continua seu texto afirmando que poucos poderiam prever o
quanto o pontificado de João Paulo II desapontaria os progressistas. Para delírio dos
conservadores, o novo pontífice assumiria uma autoridade papal centrista e absolutista.
Propunha uma verdadeira restauração católica assentada naquilo que Libâneo
profeticamente denominou de “volta a grande disciplina”
208
, ou, em outras palavras, em um
processo de recentralização da Igreja utilizando o ofício petrino e a expansão da Cúria
Romana como instrumentos de disciplinarização e ordenamento autoritário a partir de
concepções eclesiais neotridentinas
209
.
Essas afirmações podem soar estranhas a ouvidos desavisados. Isso
porque João Paulo II aproveitou muito bem seu carisma de líder religioso, seu talento
teatral e a necessidade compulsiva da mídia em encontrar personagens para seu system star,
207
CORNWELL, John. A face oculta do pontificado de João Paulo II. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de
Janeiro: Imago, 2005.p.83.
208
BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil: De João XXIII a João Paulo II, de Medellín a Santo Domingo.
2.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. p. 212. Nesta obra, padre Beozzo, em capítulo intitulado Tensão e diálogo
as relações entre a Santa e a Igreja do Brasil, analisa detalhadamente as contradições do pontificado de
João Paulo II e o explícito favorecimento dos movimentos conservadores na gestão desse pontífice.
209
Cf. CORNWELL, John. A face oculta do pontificado de João Paulo II. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de
Janeiro: Imago, 2005. p.83 e 326; ZYLBERG, Jacques; CÔTE, Pauline. Dominação teocrática, dissonâncias
eclesiais e dissipação democrática. IN: LUNEAU, René; MICHEL, Patrick (orgs.). Nem todos os caminhos
levam a Roma: as mutações atuais do Catolicismo. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.p.30-4; GUTTILLA, Rodolfo. A casa do santo e o santo de casa.São Paulo:
Landy, 2006. p.150.
no sentido de construir uma imagem de si associada à luta pelos direitos humanos, pela
liberdade e pela democracia e, sobretudo, pela luta anticomunista. A revista Time chegou a
chamá-lo de John Paul Superstar. No entanto, essa imagem desaparecia quando, entre
quatro paredes, reunia, advertia e exortava os bispos dos muitos países em que passava.
Cornwell argumenta que seu pontificado foi marcado pela ambigüidade. Assim, de um
lado, ele revelou ser um homem de rara profundidade de alma, um evangelista infatigável;
de outro, mostrou-se extremamente dogmático e autoritário
210
.
O gesto de beijar o solo, característica marcante desse pontífice, pode
revelar, por exemplo, tal ambigüidade: teatralmente e/ou misticamente, valoriza o solo que
o recebe; despoticamente, confirma com um beijo, como fazia Cura D’Ars santo de sua
predileção, o domínio sobre sua paróquia. Concebendo a si mesmo como Pastor Universal
ele teria direito sobre todas as paróquias. Bispos e padres seriam reles colaboradores. A
colegialidade episcopal restringia-se a calorosos discursos e elegantes textos teóricos. Na
prática nunca existiu.
Cornwell exemplifica suas análises com uma passagem acerca da visita
de João Paulo II ao Brasil no ano de 1980. Segundo ele
(...) em 30 de junho, viajou para o Brasil, numa visita
de 12 dias. Houve as habituais concentrações: meio
milhão de jovens saudaram-no em Belo Horizonte,
chamando-o em coro “João de Deus! Nosso Rei!”,
que se tornou o estribilho salmodiado de um extremo
ao outro desse vasto país quando viajou das planícies
210
CORNWELL, John. A face oculta do pontificado de João Paulo II. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de
Janeiro: Imago, 2005.p.09.
aos desertos e às florestas, através de aldeias, cidades
e grandes metrópoles. Por toda a parte foi afável,
indulgente, compassivo, enquanto caminhava através
de favelas ou era conduzido ao longo dos rios. Mas a
portas fechadas com seus bispos, era o autoritário.
Havia muita coisa que lhe desagradava no Brasil; as
defecções em massa para o evangelismo protestante,
o ativismo político de padres e a mistura de
Catolicismo e magia local. No Recife, fez uma
preleção de quatro horas para os bispos. A Igreja,
disse-lhes ele, não é deste mundo; devem prestar
mais atenção à doutrina social papal e fazer tudo o
que estiver ao alcance deles para fomentar a unidade.
Devem amar os pobres, mas evitar a luta de classes.
Não contassem com seu apoio aos padres
revolucionários. Deixou seus bispos atordoados
211
.
Leonardo Boff, em texto recente por ocasião da primeira visita do Papa
Bento XVI ao Brasil, corrobora as afirmações de Cornwell e apresenta um quadro
eclesiástico das últimas décadas. Para esse autor existiriam duas posições eclesiais ante a
modernidade: uma de confronto, outra de diálogo. O Concílio Vaticano II foi fruto de uma
opção pelo diálogo, foi um verdadeiro “aggionarmento”. Nas palavras de Boff
211
CORNWELL, John. A face oculta do pontificado de João Paulo II. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de
Janeiro: Imago, 2005.p.98-9.
Este “aggionarmento” trouxe grande vitalidade em
toda a Igreja, especialmente na América Latina, que
criou espaço para aquilo que se chamou de Igreja da
base ou da libertação e da Teologia da Libertação.
Mas acirrou também as frentes. Grupos
conservadores, especialmente incrustados na
burocracia do Vaticano, conseguiram se articular e
organizaram um movimento de restauração, de volta
à grande tradição.
Este grupo foi enormemente reforçado sob João
Paulo 2º, que vinha da resistência polonesa ao
marxismo. Chamou como braço direito e principal
conselheiro, seu amigo, o teólogo Joseph Ratzinger,
elevando-o diretamente ao cardinalato e fazendo-o
presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, a
ex-Inquisição
212
.
Boff continua o artigo afirmando que Ratzinger
213
, atual Bento XVI, foi o
mentor intelectual da opção pelo confronto com a modernidade. A partir de Boff, Cornwell
e Joanoni Neto pode-se afirmar que o pontificado de João Paulo II (seguido nesses itens por
Bento XVI) caracterizou-se, de um lado, pela perseguição aos membros de correntes
212
BOFF, Leonardo. Bento 16 e a guerra na Igreja. Folha de São Paulo, São Paulo-SP, 13 maio 2007, p. A-
12. Conferir também CORNWELL, John. A face oculta do pontificado de João Paulo II. Tradução de Álvaro
Cabral. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p.111s.
213
Como prefeito da CDF, o cardeal Ratzinger perseguiu inúmeros teólogos. Entre estes estava o ex-frade
franciscano Leonardo Boff. Sobre essa e outras perseguições da Santa conferir: BEOZZO, José Oscar. A
Igreja do Brasil: De João XXIII a João Paulo II, de Medellín a Santo Domingo. 2.ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
1996. p. 212 et passim.
teológicas pouco alinhadas a ortodoxia romana (como a Teologia da Libertação e a
Teologia Feminista);e, de outro, pelo favorecimento explícito aos integrantes de
movimentos católicos conservadores, dos quais retirou a maioria dos novos bispos e
assessores, como Opus Dei, Legionários de Cristo, Neocatecumenato, Focolari, Comunhão
e Libertação, Renovação Carismática Católica entre outros
214
. Significativamente, o
primeiro bispo de Ourinhos, Salvador Paruzzo, saiu de um desses movimentos
conservadores.
Ele nasceu em 15 de outubro de 1945, na cidade de Montedoro, província
de Caltanisseta, Itália. Após concluir os estudos filosóficos e teológicos no Seminário
Episcopal de Caltanisseta, foi ordenado sacerdote em 1969. Trabalhou na diocese local até
o ano de 1979 quando, como missionário Fidei Donum, veio para o Brasil. Primeiro, na
Diocese de Piracicaba, onde permaneceu dez anos. Depois, na Diocese de Osasco, onde
liderou as ações do movimento Focolari, de origem italiana, e das revistas “Perspectivas de
Comunhão” e “Cidade Nova”, ambas desse mesmo movimento. No dia 30
de Dezembro de
1998
215
o papa João Paulo II o nomeou como primeiro bispo da Diocese de Ourinhos.
D. Salvador foi ordenado em 19 de março de 1999. Dois dias depois
assumiu oficialmente a nova diocese. O grande desafio do novo bispo era preparar, em um
214
JOANONI NETO, Vitale. Fronteiras da Crença: da libertação ao carisma, a presença católica na cidade de
Juina (1978-1998). Tese (doutorado em História). FCL, UNESP, Assis, 2003. p.162; CORNWELL, John. A
face oculta do pontificado de João Paulo II. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Imago, 2005.p.111 et
passim.
215
Não parece acaso o fato de inúmeros padres de movimentos conservadores, isto é, alinhados a restauração
católica efetivada pela Cúria Romana, serem eleitos para o episcopado em 1998, afinal, esse é o ano da carta
apostólica Apostolus Suos que essencialmente exige ligação direta das conferências episcopais com Roma,
origem institucional do sacerdócio. Tal medida enfraqueceu ainda mais as conferências e impediu a atuação
de assessores e peritos nesses órgãos. Sobre a autoritária política de nomeação de bispos efetivada pelo
Vaticano e suas relações, não menos autoritárias, com os episcopados locais conferir: BEOZZO, José Oscar.
A Igreja do Brasil: De João XXIII a João Paulo II, de Medellín a Santo Domingo. 2.ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
1996. p. 279-89; HERVIEU-LERGER, Daniele. O Bispo, a Igreja e a Modernidade. IN: LUNEAU, René;
MICHEL, Patrick (orgs.). Nem todos os caminhos levam a Roma: as mutações atuais do Catolicismo.
Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. p. 297.
curto período de tempo, sua diocese para o Grande Jubileu do ano 2000. A relevância desse
evento para a Igreja Romana manifesta-se na carta apostólica de 1994, Tertio Millenio
Adveniente, na qual João Paulo II não hesitou em propor a preparação para o Jubileu do ano
2000 como uma das chaves de interpretação de seu pontificado, bem como de todos os
pontificados do século XX. Antes e depois dessa carta convidou todos a envidarem esforços
na tarefa de uma nova evangelização. Talvez porque, como afirmou René Luneau, o
mundo, se algum dia o foi, deixou de ser cristão
216
.
Em Ourinhos D. Salvador procurou travar contato com as autoridades
locais, visitar as comunidades e planejar as ações rumo ao Grande Jubileu. E foi nesse
contexto que ele conheceu a história da imagem encontrada no vagão queimado.
Nesse tempo a devoção novamente arrefecera. Segundo os depoimentos
de Lourival Argenta e Norival Vieira, a saúde fragilizada e a sobrecarga de tarefas
impediram que o monsenhor Violante continuasse a promover a vida religiosa do santuário
dedicado a Nossa Senhora Aparecida. A leitura do Livro Tombo da paróquia do Senhor
Bom Jesus, referente aos anos de 1980 a 1998, aponta para a decrescente realização de
atividades religiosas e sociais nesse santuário. A missa de 12 de outubro aconteceu
invariavelmente, mas, a antiga ênfase à sua particularidade e ao milagre de 1954
desaparecem.
O arrefecimento das práticas tradicionais de devoção a Nossa Senhora
Aparecida, salva do vagão queimado, não ocorreu apenas pela ausência do Monsenhor.
Acredito que tal fato tenha ocorrido, outrossim, pela chegada de atitudes e práticas
religiosas ligadas à Teologia da Libertação, promovidas pelos padres e irmãos da
216
LUNEAU, René. Quando se aproxima o terceiro milênio...IN: ______; MICHEL, Patrick (orgs.). Nem
todos os caminhos levam a Roma: as mutações atuais do Catolicismo. Tradução de Guilherme João de Freitas
Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. p.10.
Congregação dos Oblatos de São José e da Ordem dos Teatinos, recém chegados a região,
além dos padres diocesanos admirados com as técnicas e as metodologias (a famosa tríade
recuperada da Ação Católica: “ver, julgar, agir”) das Comunidades Eclesiais de Base
217
.
Assim, sobretudo a partir da Pastoral da Juventude, foram difundidas
novas práticas religiosas assentadas na leitura social da Bíblia, em procissões no estilo de
passeatas, em cantos profanos entoados como hinos sacros, enfim, nas diversas
possibilidades de inserir a religião na vida cotidiana, o evangelho no chão que se pisa...
Porém, o Catolicismo ourinhense é, por sua trajetória histórica,
preponderantemente mariano e tradicional. Os que não nutriam simpatias pela nova versão
do Catolicismo que chegara a cidade, preferiam apegar-se aos santos de casa e a dimensão
privada da fé. O próprio sentido atribuído à devoção a Nossa Senhora Aparecida, salva do
vagão queimado, favorecia tal atitude, afinal, seu significado nacional absorvia o local. Na
tensão entre o nacional e o local, o primeiro sobrepunha-se ao segundo. Sendo assim, o
devoto não precisaria dirigir-se apenas ao templo da Avenida Gastão Vidigal, geralmente
fechado nesse período, mas poderia cultivar sua devoção rezando diante das estampas e das
imagens domésticas ou expostas nos templos paroquiais, ou, ainda, participando
periodicamente de romarias ao “coração católico do Brasil”, como o papa João Paulo II se
referiu a Basílica de Aparecida.
De fato, a devoção a Maria não declinou nesse período. Para o
antropólogo social Carlos Alberto Steil, o início do processo de desinstitucionalização da fé
nos anos 1970 não impediu a proliferação de aparições marianas e a repotencialização
217
CONGREGAÇÃO DOS OBLATOS DE SÃO JOSÉ. Seminário Josefino Nossa Senhora de Guadalupe: 50
anos. Ourinhos, SP. 1998.p.25s.; LIVRO TOMBO da Paróquia do Senhor Bom Jesus de Ourinhos 1980-
2000.
popular de antigas venerações à e de Jesus. Ainda segundo esse autor, os anos 1980 e
1990 e o início do século XXI “têm assistido a uma proliferação significativa de aparições
marianas não no Brasil, mas em todos os países de tradição católica ou com número
expressivo de católicos em sua população”
218
. O documento Aparições e revelações
particulares da CNBB, de outubro de 1989, indica a preocupação da Igreja Católica ante o
fenômeno aparicional destacado por Steil. As primeiras palavras do texto são
esclarecedoras
Nos últimos anos, o número de “aparições” e
“revelações” particulares, principalmente de Nossa
Senhora, tem aumentado significativamente. A
própria repercussão desses fenômenos junto aos
meios de comunicação social indica que também têm
crescido a expectativa desses fenômenos, no meio do
povo.
Tudo isso coloca à Igreja e, mais especificamente, ao
seu ministério hierárquico, algumas questões de
ordem doutrinal e pastoral
219
.
Esse fragmento e o restante do texto apontam para certa impotência da
hierarquia católica ante esse fenômeno devocional. Não é mais possível controlar tais
práticas, como outrora. Por isso o documento termina sugerindo ao clero que trate o
218
STEIL, Carlos Alberto; MARIZ, Cecília L.; REESINK, Mísia L. (orgs.). Maria entre os vivos: reflexões
teóricas e etnografias sobre aparições marianas no Brasil. Porto Alegre: UFRGS, 2003. p.08.
219
CNBB. Aparições e revelações particulares. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 1990.p.09.
fenômeno de modo objetivo, mas sem se esquecer que ele representa um potencial
evangelizador, ligado à religiosidade popular, que não pode ser deixado de lado”
220
.
A socióloga Cecília Loreto Mariz também enfrentou essa questão. Em
texto de 2002, intitulado Aparições da Virgem e o Fim do Milênio, Mariz discorda das
teorias que afirmam existir uma relação necessária entre aparições-mensagem apocalíptica-
fim de milênio, como se esses eventos se explicassem mutuamente. Para essa socióloga o
fenômeno aparicional de fins do século XX foi engendrado pela maior divulgação desses
eventos pela mídia.
Assim, criou-se certas expectativas miméticas e uma impressão de surto
aparicional quando, na verdade, ocorreria simplesmente um maior registro e troca de
informações sobre estes. Ainda segundo Mariz, esse fenômeno, mais registrado e midiático,
é possível em um contexto de mudança de atitude da Igreja em relação ao mesmo. No
passado a Igreja reprimia bastante esses relatos. Atualmente ela não pode se dar a esse luxo.
Isso porque, de um lado, a Igreja perdeu parte de seu poder sobre a população, de outro, em
razão desses relatos serem ótimos aliados da instituição em um mundo caracterizado pela
secularização e pelo pluralismo religioso
221
.
Essa junção entre impotência da hierarquia, autonomia devocional,
pluralismo religioso e mídia aparece na tese de doutoramento do historiador Lourival dos
Santos intitulada A família Jesus e a Mãe Aparecida: História Oral de devotos negros da
Padroeira do Brasil (1951-2005). No último capítulo de sua tese, defendida em 2005,
afirma que Nossa Senhora Aparecida tornou-se a santa pop do Brasil contemporâneo.
220
CNBB. Aparições e revelações particulares. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 1990., p.60.
221
MARIZ, Cecília Loreto. Aparições da Virgem e o Fim do Milênio. Ciências Sociais e Religião, Porto
Alegre, 4:35-45, 2002.
Desde os anos 1960 a imagem encontrada no rio Paraíba transcende as dimensões do
Catolicismo e aponta para questões de identidade nacional, negritude, liberdade entre
outras. A formação de uma sociedade consumista aprofundou esse processo. Assim
O ícone de Nossa Senhora Aparecida tornou-se
concretamente onipresente na sociedade brasileira
graças à capacidade de reprodução industrial de sua
imagem. Estou falando da multiplicação da imagem
encontrada em todas as partes: em altares
improvisados de bares e pequenos comércios; em
camisetas, “santinhos”, pingentes e outros suvenires;
tatuada na pele de presidiários; nas oferendas em
encruzilhadas e nos terreiros de candomblé e altares
domésticos de todo tipo. À presença material da
imagem corresponde também outra, virtual. Nos
meios de comunicação, por meio de celebridades, nas
telenovelas, nas bancas de jornal: Nossa Senhora
Aparecida está na moda
222
.
Lourival dos Santos continua suas reflexões afirmando que o episódio que
ficou conhecido como “o chute na santa” demonstrou a popularidade da Nossa Senhora
Aparecida e repotencializou o seu uso. O fato aconteceu em 12 de Outubro de 1995. Nesse
dia o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Sérgio von Helde, chutou a imagem de
222
SANTOS, Lourival dos. A família Jesus e a Mãe Aparecida. Tese (Doutorado em História).FFLCH, USP,
São Paulo, 2005. p.248.
Nossa Senhora Aparecida durante seu programa televisivo na Rede Record como se
observa na foto a seguir. A estratégia do bispo von Helde para corroborar sua pregação a
respeito da idolatria católica e da ineficiência das imagens de barro, despertou a ira de
inúmeros fiéis e autoridades religiosas cristãs e não-cristãs
223
.
O bispo Sérgio von Helde chuta a imagem de Nossa Senhora Aparecida em seu programa televisivo. Fonte:
disponível em www.fotosupload.blogger.com.br/chute2.jpg Acesso em: 22 de maio 2007.
Por trás da luta estava também a disputa televisiva entre a Rede Globo e a
Rede Record. Iniciou-se uma “guerra santa” recheada de intolerância, denúncias fundadas e
infundadas e manipulação de fatos e da (boa-) de muitas pessoas. Lourival dos Santos
afirma que esse acontecimento acordou a “maioria silenciosa”, os católicos não-praticantes,
que em um cotidiano repleto de incertezas recorre as práticas e representações religiosas do
Catolicismo na busca de sentido e segurança para a própria vida, ainda que não participe
diretamente das práticas e crenças proporcionadas pela Instituição.
Já Maria Lúcia Montes interpreta o episódio e as repercussões de “o chute
na santa” como indicadores das novas relações de força e de uma nova economia política
223
SANTOS, Lourival dos. A família Jesus e a Mãe Aparecida. Tese (Doutorado em História).FFLCH, USP,
São Paulo, 2005.p.251-3 e também MONTES, Maria Lúcia. As figuras do sagrado: entre o público e o
privado. IN: NOVAIS, Fernando (dir.). SCHARWCZ, Lilia M. (orgs.). História da Vida Privada no Brasil:
contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. v.4 p.65.
do simbólico no campo religioso brasileiro contemporâneo. Montes explica que nas últimas
décadas ocorreu um rearranjo global do campo religioso no Brasil influenciado pela
cristalização de uma modernidade ambivalente. Houve uma nova configuração das relações
entre público e privado, indivíduo e instituição. Segundo essa autora
Assim, a religião que, no Brasil, por quatro séculos, na figura da Igreja
Católica, fora indissociável da vida pública, imbricada com a própria estrutura
do poder de Estado por meio da instituição do padroado, pareceria enfim ter se
inclinado definitivamente para o campo do privado, agora dependente quase de
modo exclusivo de escolhas individuais
224
.
Ainda segundo Montes, essa exclusividade das “escolhas individuais”
ensejou a ampliação e diversificação do mercado de bens de salvação: nessa situação as
Igrejas teriam de aceitar o desafio de serem gerenciadas como empresas, num campo
religioso fluido, com baixo grau de institucionalização, sofrendo a concorrência constante
da proliferação das seitas
225
e abertas a uma fragmentação devocional de práticas e crenças.
Nesse sentido é pertinente citar os resultados da pesquisa do sociólogo
Lemuel Guerra. Segundo esse professor da UFPB, em seu trabalho As influências da lógica
mercadológica sobre as recentes transformações na Igreja Católica:
224
MONTES, Maria Lúcia. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. IN: NOVAIS, Fernando (dir.).
SCHARWCZ, Lilia M. (orgs.). História da Vida Privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea.
São Paulo: Cia. das Letras, 1998. v.4 p.69.
225
Urge mencionar que um dos principais objetivos da V Conferência Geral do Episcopado da América
Latina e do Caribe, em Aparecida do Norte, entre 13 e 31 de maio de 2007, foi discutir a questão da perda de
fiéis em um mundo secularizado e religiosamente plural. Conferir CARIELLO, Rafael. Igrejas do papa e da
América Latina se opõem em encontro. Folha de São Paulo, São Paulo-SP, 13 maio 2007, p. A-8.
Nos contextos de pluralismo acentuado em que vivemos, passou o tempo em
que as instituições religiosas podiam propor à sociedade um conjunto de
exigências relativas à fé e aos comportamentos, esperando uma aceitação social
imediata. Nas sociedades contemporâneas, onde os indivíduos são
crescentemente orientados para decidir livremente a respeito de que modelo de
religiosidade (quando escolhem um) vão adotar, o que as organizações
religiosas oferecem tem que ser atrativo para os potenciais consumidores.
Assim, o ethos do consumo, que prevalece em termos de sociedade inclusiva, e
o pluralismo do campo religioso, são elementos fundamentais para entender
como a lógica mercadológica determina a dinâmica de transformações dos
modelos de religiosidade
226
.
A leitura de Lemuel Guerra prende-se ao Paradigma do Mercado
Religioso de Peter Berger. Sendo assim, na visão desse autor, a própria opção preferencial
pelos pobres, slogan da CELAM de Medellín e da Igreja Católica nos anos 1960, refletiria
uma preocupação da instituição em preparar uma reação ao avanço religioso de
pentecostais e afro-brasileiros que se acentuara nas camadas mais pobres da população.
Todavia, os bens de salvação intelectualizados e que exigiam sério engajamento nas CEBs,
não atraíram o grosso da população que se manteve ligado as práticas católicas tradicionais
ou migraram para religiões pentecostais e neopentecostais.
Para Guerra, o investimento nos movimentos conservadores da Igreja
Católica, como a Renovação Carismática Católica, revelaria uma reorganização da
instituição ante o fracasso mercadológico do Catolicismo progressista. Em um contexto de
226
Texto disponível em www.pucsp.br/rever/rv2_2003/t_guerra.htm. Acesso em: 07 mar 2006.
secularização e pluralismo religioso, a Igreja deveria oferecer um Catolicismo otimista ou
de auto-ajuda mais adequado às necessidades espirituais dos fiéis-consumidores. Assim
O fenômeno do padre Marcelo Rossi, do padre Zeca, e do padre Macário
Batista, figuras que ganham visibilidade através da mídia nacional no final da
última década do século passado, indicam mudanças nesse panorama, ligadas
ao retorno do Catolicismo a um modelo mais místico e espiritualista. A
proposta de um “novo Catolicismo”, ou de um “Catolicismo de terceira via”
desses padres, pop stars da fé, são sinais de uma igreja preocupada em se
mobilizar para enfrentar os novos tempos de competição
227
.
Ainda que a perspectiva adotada por Guerra não explique tout court as
recentes transformações ocorridas na Igreja Católica, ao menos, sugere um quadro do
campo religioso brasileiro na passagem do século XX para o século XXI, caracterizado,
como vimos em outros autores, pela disputa das almas de indivíduos que compõem um
mundo cada vez mais fluido, no qual as formas de agir e pensar perdem validade antes
mesmo de se solidificar. Vivemos, na feliz metáfora de Zygmunt Bauman, em uma
modernidade-líquida. Estendendo o pensamento de Bauman para o cenário religioso posso
afirmar que vivemos em tempos de religiosidade líquida
228
.
Isso posto, podemos avançar no entendimento da utilização da imagem de
Nossa Senhora Aparecida, salva do vagão queimado, no novo projeto da Igreja Católica
227
Texto disponível em www.pucsp.br/rever/rv2_2003/t_guerra.htm. Acesso em : 07 mar 2006.
228
Este caráter fluido e instável da sociedade contemporânea, analisado por Z. Bauman (entre outros em seu
Vida Líquida, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007), e sua influência sobre a religiosidade foi analisado pela
antropóloga Leila Amaral a partir do conceito de “cultura religiosa descentralizada e errante”. Cf. AMARAL,
Leila. Deus é Pop: sobre a radicalidade do trânsito religioso na cultura popular de consumo. IN: SIEPIERSKI,
Paulo D.; GIL, Benedito M. (orgs.). Religião no Brasil: enfoques, dinâmicas e abordagens. São Paulo:
Paulinas, 2003. p. 97-108.
ourinhense. No início de 1999, o Santuário era dirigido pelo padre Aristeu B. Cyrillo que
havia passado pela igreja em meados dos anos 1980. Em sua segunda gestão, o padre
Aristeu encontrou um templo em péssimas condições materiais e sem práticas religiosas
regulares. Mas isso mudaria com a criação da diocese. Segundo padre Aristeu, “o bispo D.
Salvador Paruzzo, assim que soube da história do Santuário, sentiu que era hora de
valorizar os fatos com a perspectiva de nova evangelização”
229
.
Um bispo alinhado às políticas da Santa e sensível aos anseios
espirituais do povo, como D. Salvador, não perderia o ensejo de promover a devoção a
Nossa Senhora
230
, prática tal cara ao papa João Paulo II e ao movimento focolarino, criado
por uma mulher, Chiara Lubich
231
. Ás vésperas do Grande Jubileu essa era a principal
estratégia do novo bispo para mobilizar seu rebanho.
Era necessário agir com rapidez. Mesmo sem saber muito bem a história
da devoção, como se nota na página de abertura do Livro Tombo do Santuário Diocesano
de NSAVQ, D. Salvador pediu ao padre Aristeu que organizasse o evento com a ajuda de
pessoas importantes da cidade e da comunidade, bem como com o auxílio da mídia local,
sobretudo, os jornais Jornal da Divisa e Folha de Ourinhos e a Rádio Clube de Ourinhos.
229
CERCA de 2 mil pessoas visitaram o Santuário no dia da Padroeira. Jornal da Divisa, Ourinhos-SP, 18 out.
2000, p.03.
230
Recentemente, por ocasião da visita da Imagem Peregrina de N.S. de Fátima a Ourinhos, entre 22 e 23 de
maio de 2007, D. Salvador afirmou que “Ourinhos tem uma ligação muito forte com Nossa Senhora. Temos
aqui dois Santuários, de Nossa Senhora de Guadalupe e de Nossa Senhora do Vagão Queimado”. MADER,
Rose Pimentel. Imagem Peregrina de Nossa Senhora de Fátima é recebida com emoção em Ourinhos. Jornal
da Divisa, Ourinhos-SP, 23 maio 2007, p.2.
231
Chiara Lubich nasceu em 1920, na cidade de Trento, Itália. Nos anos 1940, em meio a Segunda Guerra
Mundial, Chiara e amigos fazem uma releitura do evangelho a partir dos princípios de Amor e Unidade.
Procuram viver e difundir esses valores. Consideram-se “dos focolares”, isto é, ligados ao fogo do Espírito
Santo. O reconhecimento eclesiástico local ocorreu ainda nos anos 40, em 1947. Em 1990, o papa João Paulo
II aprovou por completo o Movimento dos Focolares. Esse mesmo pontífice afirmou que o esse Movimento
expressa o perfil da Igreja do Concílio, aberta ao diálogo. Por fim, urge mencionar que Chiara Lubich,
fundadora dos Focolares recebeu inúmeros prêmios e títulos internacionais em virtude de sua atuação a favor
do diálogo e do ecumenismo, da paz e do amor. Conferir www.focolares.org.br Acesso em: 09 de maio 2007.
Site oficial do movimento no Brasil.
Para a felicidade de todos os envolvidos, no ano de 1999, o Grande Incêndio completaria
45 anos. Esse foi o fio condutor da campanha.
As celebrações começaram em 03 de outubro, com uma novena
preparatória. A organização do evento estava nas mãos dos principais grupos conservadores
do Catolicismo local: RCC, Cursilho da Cristandade e focolarinos. No dia 12 de outubro,
dia da Padroeira, as ações iniciaram-se às 06:00 horas, com uma mensagem ao povo de
Ourinhos e Região através da Rádio Clube. Ao longo do dia haveria ainda Missa com
Bênção aos fiéis devotos, recitação do Terço Mariano e finalmente, às 18:00 horas, a missa
concelebrada por D. Salvador e sacerdotes da diocese durante a qual seriam ouvidas as
testemunhas oculares do acidente de 1954, como fizera monsenhor Violante nos anos 1970.
Em seguida, aconteceria a procissão com a imagem de NSAVQ e a sua coroação.
O Jornal da Divisa ampla cobertura ao evento. A edição datada de
12/13 de outubro de 1999 é quase por completa dedicada às comemorações a NSAVQ. A
manchete afirma “PROCISSÃO SERÁ O PONTO ALTO DAS COMEMORAÇÕES DE
HOJE”. Ao longo das páginas reportagens sobre os principais aspectos históricos da
devoção e entrevista com o padre Aristeu. Os relatos seguem o padrão narrativo estipulado
por monsenhor Violante. O pressuposto básico é o indiscutível caráter miraculoso da
imagem. A verdade está posta em palavras e imagens como revela esse fragmento de um
dos artigos da edição em análise, significativamente intitulado O milagre de Aparecida em
Ourinhos
A história atribuída ao milagre, no interior de um
vagão da Estrada de Ferro Sorocabana, em 31 de
julho de 1954, quando a imagem de N.S. Aparecida,
foi encontrada intacta nas cinzas de móveis em brasas
da mudança do sgto. Luiz Mendes da Silva, da Força
Aérea Brasileira que seguia para Londrina PR, ainda
empolga seus devotos. A imagem da Nossa Senhora
do Vagão Queimado será reverenciada hoje em missa
campal, em homenagem à Padroeira do Brasil, às 18
h, concelebrada pelo bispo d. Salvador Paruzzo,
marcando o quadragésimo ano do acidente
232
.
O texto é acompanhado de uma foto que já analisamos em outro momento
deste trabalho. Veja a foto com a legenda elaborada pelo autor desse artigo, B. Pimentel.
No pior momento do incêndio na locomotiva, as labaredas que estavam se avolumando, de repente foram
contidas por um vento inesperado...
232
PIMENTEL, B. O milagre de Aparecida em Ourinhos. Jornal da Divisa, Ourinhos-SP, 12 e 13 out. 1999,
p.8.
Novamente (já mencionamos os equívocos na página inicial do Livro
Tombo, de 1999, do Santuário de NSAVQ) podemos notar a falta de familiaridade com a
história da imagem e da devoção manifesta no fato de B. Pimentel informar que a
celebração marca “o quadragésimo ano do acidente”, quando na verdade, como vimos, se
festejava o quadragésimo quinto ano – 1954-1999.
Além disso, a partir desse fragmento textual podemos entrever certa
confusão entre Nossa Senhora Aparecida e NSAVQ. Mais adiante discutirei essa tensão
entre as “aparecidas”, que a meu ver, é elemento constituinte dessa devoção ourinhense. No
momento, urge analisar a fixação e a consagração do adjetivo substantivado “do vagão
queimado”.
Com Violante a devoção objeto desse estudo pendia para seu significado
nacional. Em Ourinhos existia uma réplica local da mãe nacional. Não obstante, a
necessária e tímida individualização da imagem ensejou especulações acerca de seu nome.
Vimos que o nosso depoente Norival Vieira sugeriu chamá-la de Nossa Senhora de
Ourinhos e muitos outros a designavam como NSAVQ. Jairo Teixeira Diniz, um dos
adeptos dessa segunda concepção, concluiu um artigo datado de 05 de Outubro de 1979
com as seguintes palavras
Espera-se que o povo ourinhense, devoto que é de Nossa Senhora Aparecida,
colabore para que, no mais breve espaço de tempo tudo esteja concluído na
“Casa de Nossa Senhora” – O Santuário de Nossa Senhora Aparecida do
“Vagão Queimado”
233
.
233
SANTUÁRIO comemora 1º aniversário. Jornal da Divisa, Ourinhos-SP, 05 out. 1979, p.08.
Até onde sei esse é o mais antigo texto com a denominação NSAVQ.
Ainda presa às aspas em 1979, em razão do contexto histórico-eclesial, essa invocação de
origem popular será fixada e consagrada pela Igreja Católica de Ourinhos, recentemente
elevada à sede de uma nova jurisdição eclesiástica. Sem aspas ela se desenvolve até
distinguir-se, no limite do possível, da Nossa Senhora Aparecida de Aparecida do Norte.
D. Salvador e padre Aristeu punham em prática a orientação da Igreja no
documento de 1989 sobre as aparições marianas: o potencial evangelizador dessas
devoções não poderia ser deixado de lado. Em tempos de perda do poder institucional e de
pluralismo religioso a Igreja de Ourinhos, mais uma vez, voltaria seu olhar para a pequena
imagem encontrada no vagão queimado.
Aproveitar toda a potencialidade do poder simbólico dessa imagem de
Maria passava por sua particularização. Como nos ensina a antropóloga social sia Lins
Reesink, ainda que o imaginário católico reconheça a díade unidade/multiplicidade da
Virgem Maria, é seu caráter particular que faz com que seus devotos vibrem com ela.
Segundo essa autora os católicos têm
Consciência da unidade/pluralidade da Virgem. Mas esse conhecimento do
plural é abstrato, não experienciado. O que vale mesmo é a particularização,
juntamente com uma especificidade de Nossa Senhora
234
.
234
REESINK, Mísia Lins. Nossa Senhora de Anguera, Rainha da Paz e do Mundo Católico Contemporâneo.
IN: STEIL, Carlos Alberto; MARIZ, Cecília L.; REESINK, Mísia L. (orgs.). Maria entre os vivos: reflexões
teóricas e etnografias sobre aparições marianas no Brasil. Porto Alegre: UFRGS, 2003. p.89-138.p.135.
É a particularização e a especificidade que valem, que significam a vida
da comunidade de crença. E é no ato de nomear e consagrar que a Igreja constrói e controla
a nova devoção. Como afirmou Serge Moscovici
Ao nomear algo, nós o libertamos de um anonimato perturbador, para dotá-lo
de uma genealogia e para inclui-lo em um complexo de palavras específicas,
para localizá-lo, de fato, na matriz de identidade de nossa cultura
235
.
Mais adiante veremos as relações entre essa devoção e a identidade
religiosa da Diocese de Ourinhos inspirada nessa passagem de Moscovici. Agora basta
compreendermos a densidade simbólica desse ato de criação religiosa consubstanciado na
original invocação a Nossa Senhora. Invocação nascida no meio dos leigos, apropriada e
oficializada pelos clérigos.
A própria presença do bispo nessa celebração já é prenhe de significados.
Ele personifica a Igreja como indica a velha e conhecida fórmula: Ubi Episcopus, ibi
Ecclesia, isto é, onde está o Bispo, está a Igreja. Sua presença oferece reconhecimento
oficial ao culto a NSAVQ. É ele, a Igreja, o intermediário com o sagrado, a ponte entre o
humano e o divino, aquele que detém e gerencia a economia simbólica do culto. A foto a
seguir, do bispo com a imagem entre os devotos, aponta para essas afirmações, bem como
para a negociação de sentidos entre a Instituição e os devotos. A plausibilidade da devoção
depende de práticas e representações aceitas e desejadas pelos fiéis.
235
MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. Tradução de Pedrinho
Guareshi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. p.66.
D. Salvador Paruzzo caminha entre os fiéis com a imagem de NSAVQ, no dia 12 de outubro de 1999. Fonte:
Acervo do Santuário Diocesano de NSAVQ.
E mais, nessa cerimônia de 1999, o bispo eleva canonicamente a capela
de Nossa Senhora Aparecida à condição de Santuário Diocesano de NSAVQ. Tal elevação
surpreendeu os fiéis que desde a origem do templo o concebiam como santuário. Nas
palavras do artigo do Jornal da Divisa de 14 de outubro de 1999
No início da missa, D. Salvador presenteou a população assinando o decreto
episcopal que elevou a capela Nossa Senhora à condição de Santuário. A
assinatura do decreto foi surpresa para boa parte da população que
considerava o fato consumado desde a inauguração da capela, em 1979
236
.
Notamos, de novo, outro equívoco cronológico. O texto informa que a
capela foi inaugurada em 1979, entrementes, sabemos que de fato sua inauguração ocorreu
236
BISPO eleva capela à condição de Santuário. Jornal da Divisa, Ourinhos-SP, 14 out. 1999, p.03.
em 1978, no 60º aniversário da cidade de Ourinhos. Reiterando, sinais e indícios de
desconhecimento acerca da história da imagem e da devoção. Por outro viés, essa elevação
canônica, sancionada muito antes pelos fiéis, se insere no projeto diocesano do Grande
Jubileu. Nesta solenidade da Igreja Católica Apostólica Romana, tempo de festa e de graça
para os crentes, algumas igrejas, sobretudo os santuários, deveriam ser escolhidas como
espaços para obtenção de indulgências. A recém criada Diocese de Ourinhos não dispunha
de nenhum santuário canônico sob a gestão de padres diocesanos. Essa necessidade aliada
ao processo de particularização da imagem de Nossa Senhora Aparecida, encontrada intacta
em um vagão queimado, ensejaram a criação do “novo” Santuário que em 2001 tornou-se
paróquia.
Entre 2002 e 2004
237
, a particularização da imagem atingiu seu auge. Em
2002, o padre Aristheu, com a anuência do bispo e de membros da comunidade do
Santuário, decidiu organizar uma festiva e grandiosa comemoração por ocasião do 31 de
Julho. Assim, institui-se um dia singularmente dedicado a NSAVQ.
Em 2003, foi elaborado o projeto de Celebração do Ano do
Cinqüentenário –1954-2004. A imagem peregrinou pela diocese e sua história foi
extensamente divulgada pela mídia, como veremos em outro momento desse trabalho.
Enfim, no Ano do Cinqüentenário, após cuidadoso trabalho de engenharia religiosa,
sobretudo da parte de D. Salvador e padre Aristeu, o processo de particularização se
consolida com a criação de um ícone ímpar e de uma oração oficial de autoria do bispo
237
Urge lembrar que esse período coincide com outra grande celebração engendrada pelo Vaticano: o Ano do
Rosário entre outubro de 2002 e outubro de 2003. João Paulo lançou esse evento com a carta apostólica
Rosarium Virginis Mariae. Nessa carta o papa insere um novo conjunto de mistérios na oração do Rosário, os
Mistérios da Luz, e reitera a importância de Maria na espiritualidade e na vida cristã. Por fim, não nos
esqueçamos que a Igreja do Brasil nesse período comemorou o Centenário da Coroação de Nossa Senhora
Aparecida – 1904-2004.
ourinhense. Podemos observá-los juntos nesse “santinho” distribuído no Santuário em julho
de 2004.
No ícone destaca-se a representação da imagem encontrada em 1954,
simples, pequena, com certas imperfeições. Mas, autêntica e única. Ela está no interior de
um trem-oratório. Sua santidade é explicitada pelos raios de luz e pelas estrelas que junto às
nuvens apontam para a transcendentalidade da imagem. Ela é símbolo espiritual de maior
relevância do Catolicismo local. Por fim, estampado na locomotiva e abaixo da imagem o
nome pela qual é invocada: NSAVQ.
A oração elaborada especialmente para o Ano do Cinqüentenário reúne
elementos históricos, particulares, com práticas e crenças oriundas do patrimônio espiritual
do Catolicismo. Em Orações & Rezas Populares, do competente historiador das religiões
Eduardo Basto de Albuquerque, aprendemos que a oração é também prática social. Como
súmula de crenças e ritos, como vestígio de concepções e práticas, a prece pode e deve ser
abordada e utilizada historicamente. Nesse sentido, a prece em análise, composta por um
bispo, tem caráter institucional, tem interesses diversos daqueles das preces populares.
Ainda segundo Albuquerque
Ora, as orações oficiais católicas buscam transmitir os elementos doutrinários
ortodoxos. Daí seus textos conterem trechos retirados dos textos bíblicos ou
composições, em geral, dos santos, mas todas foram examinadas e sancionadas
pelas autoridades eclesiásticas, permitindo e recomendando sua utilização pelos
fiéis
238
.
Esses elementos estruturantes das orações oficiais equacionados por
Albuquerque são facilmente identificados na prece de D. Salvador. Ao lado dos aspectos
locais e particulares da devoção (“trem”, “libertando a cidade do fogo libertador”), estão as
dimensões trinitária e cristológica da ortodoxia (“Intercedei com Jesus, Vosso Filho, junto
ao Pai/para que fortalecidos pelo Espírito”) bem como fragmentos da popular e reconhecida
oração mariana denominada “Salve Rainha” (“ó clemente, ó piedosa, ó doce, sempre
Virgem Maria”). A prece oficial reconhecimento institucional a devoção a NSAVQ
inserindo-a, simultaneamente, na linha da ortodoxia católica. Confeccionada e
recomendada pela Igreja, esta prece difundirá a devoção e os valores a ela agregados pela
238
ALBUQUERQUE, Eduardo Basto de. Orações & Rezas Populares. Porto Alegre: Rígel, 2004. p.15.
Instituição em sinergia com os múltiplos sentidos atribuídos pelos fiéis, afinal, como nos
ensina Michel de Certeau, há produção no consumo
239
.
D.Salvador e padre Aristeu concelebram a missa do Cinqüentenário em 31 de julho de 2004. Fonte: Acervo
do Santuário Diocesano de NSAVQ.
O Ano do Cinqüentenário marcou o ápice do processo de particularização
da imagem de Nossa Senhora encontrada intacta em um vagão queimado. Na missa solene
de 31 de julho de 2004, celebrada em palco montado na frente do Santuário, como podemos
observar na foto acima, destacam-se os símbolos criados e reinventados pelos
concelebrantes para individualizarem a imagem: no alto o título singular de NSAVQ, o
cenário de fundo é caracterizado por um trem, a imagem encontrada e ora venerada está em
um belo andor a direita, nas alfaias e paramentos litúrgicos pode-se ver o ícone ímpar da
Senhora do Vagão Queimado e durante a missa os clérigos e cerca de 3.000 fiéis rezaram a
239
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves.
11.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.p.40.
prece que invoca a intercessão de NSAVQ. Se ela intercedeu pela cidade em situação de
perigo, ela também intercederá por cada um de seus fiéis ante o medo e a incerteza
inerentes ao mundo coevo, por isso os devotos, diante de sua imagem, oraram e oram assim
“a vós suspiramos neste trem da vida”.
Imbricado a esse processo de particularização estava um outro relativo a
construção de uma identidade diocesana que, em uma sociedade secularizada e pluralista,
diz respeito também à própria identidade católica local. Esse é o tema que abordarei a
seguir.
3.2 Por uma identidade diocesana.
Nas últimas décadas, sobretudo a partir do desenvolvimento dos Estudos
Culturais nos anos 1980, inúmeros intelectuais têm demonstrado a falácia de uma
concepção de identidade baseada nas noções de essência e homogeneidade
240
. Dentre esses
intelectuais destaca-se Stuart Hall. Para esse autor a identidade deve ser pensada de modo
estratégico e posicional. Essa concepção de Hall aceita que
(...) as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia,
cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas
multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem
240
SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. IN: SILVA, Tomaz Tadeu da
(org.). Identidade e diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 6.ed.
Petrópolis, RJ:Vozes, 2006. p.89-100.
se cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historicização
radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação
241
.
Hall continua suas reflexões afirmando que as identidades culturais de
uma determinada comunidade são formadas e transformadas no interior da representação.
Para Hall o controvertido conceito de representação designa um sistema de signos,
unicamente em sua dimensão significante, ou seja, como pura marca material. Aqui, a
representação é um traço visível, exterior.
Seguindo as análises de Hall, o brasileiro Tomaz Tadeu da Silva afirma
que a representação assim concebida se caracteriza como forma de atribuição de sentido.
Como os sentidos são, segundo esses autores, os elementos de identificação e de construção
de identidades, estas dependem da representação. Nas palavras de Tomaz Tadeu da Silva
(...) a representação é um sistema lingüístico e cultural: arbitrário,
indeterminado e estreitamente ligado a relações de poder. (...) É também por
meio da representação que a identidade e a diferença se ligam a sistemas de
poder. Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a
identidade
242
.
Esse fragmento que acabamos de ler nos alerta a despeito das relações de
poder na construção de identidades. É importante termos isso em mente ao analisarmos tal
241
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? IN: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença:
A perspectiva dos Estudos Culturais. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 6.ed. Petrópolis, RJ:Vozes, 2006.
p.108.
242
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? IN: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: A
perspectiva dos Estudos Culturais. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 6.ed. Petrópolis, RJ:Vozes, 2006.
p.91.
processo na Diocese de Ourinhos. Afinal, a Diocese ao nomear singularmente a imagem
encontrada no vagão queimado dá a ela, como sugeriu Moscovici, determinada existência e
sentido. O ato de nomear e consagrar faz da Igreja, nos termos de Jacques Le Goff, a
criadora e a guardiã da memória em torno da imagem objeto de devoção. É ela, Igreja, o
verdadeiro lugar de memória. E a memória é elemento essencial da construção de
identidade
243
.
Os sentidos que tecem as identidades estão contidos nas histórias, nas
memórias que ligam passado e presente, e no imaginário formado por elas. São essas
imagens compartilhadas, continuamente reinventadas e reformuladas, que sustentarão a
identidade de uma comunidade.
Vimos que a criação da Diocese de Ourinhos apresentou inúmeros
desafios à Igreja local e ao seu líder, o bispo D. Salvador, em meio à complexa realidade
social e religiosa do mundo coevo. O principal desafio geral deste episcopado, acredito,
consistia na construção de uma identidade diocesana e, com efeito, na redefinição da
própria identidade católica local. Assim, com o propósito de impor determinada imagem de
si, a Igreja de Ourinhos utilizou várias estratégias que analisarei a partir de agora.
Uma das principais ações visando a criação dessa identidade é explicitada
na capa do Calendário Diocesano de 2000. Veja-a.
243
Cf. LE GOFF, Jacques. Memória. IN: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,
1984. v.1.Memória/História. p.45-6 e POLLACK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, (5) 10:212, 1992.
A imagem é reveladora. A igreja Catedral do Senhor Bom Jesus (símbolo
da própria Diocese) colocada, através de um significativo processo de montagem, no meio
da praça de São Pedro. A Igreja de Ourinhos é associada ao Vaticano e por extensão a
midiática figura de João Paulo II. Outrossim, a imagem explicita o alinhamento da política
eclesial de D. Salvador (cujo brasão episcopal está no alto da capa à esquerda) aos ditames
da Cúria Romana.
Outro caminho desse processo passa pela aproximação da Igreja com os
símbolos municipais. Se a Diocese é de Ourinhos, sua identidade deve ser constituída
também pelas representações ligadas à cidade. Dado o vínculo existente entre o prefeito de
Ourinhos Claudemir Ozório Alves da Silva, gestão 2001-4, e o padre Aristeu essa tarefa se
tornou mais fácil e eficaz. Houve um acordo de interesses.
A Diocese procurava identificar-se cada vez mais com a cidade e dela
retirar os sentidos para a constituição da própria identidade e a de seus fiéis. O governo
municipal procurava na Igreja um baluarte para sua política e um caminho para
potencializar o turismo local. Em razão dessa união, em janeiro de 2002, o boletim
informativo da Diocese passa a se chamar Terra e Povo de Ouro (tradução literal do dístico
do brasão de Ourinhos: TERRA POPULUSQUE AUREI) como se pode observar na
imagem abaixo.
Por outro lado, a prefeitura incentiva, ainda que indiretamente, por meio
de Neuza Fleury, secretária municipal da Cultura na gestão de Claudemir, a monografia de
conclusão de curso em Turismo de Séfara M. Molitor, intitulada O turismo religioso no
santuário de NSAVQ, em Ourinhos-SP (UEPG/2003)
244
. Neste trabalho a turismóloga
244
Conferir também a monografia: BERLANDI JR., Luiz Lazara. Proposta de turismo religioso no Santuário
de Nossa Senhora Aparecida do Vagão Queimado. Ourinhos, 2005. (Monografia apresentada à Faculdade
Estácio de Sá de Ourinhos, para obtenção do título de Bacharel em Turismo).
Séfara, que trabalhava na época com Neuza Fleury, retoma superficialmente a trajetória
histórica da devoção e concentra-se na análise da estrutura física do Santuário visando
prepará-lo para receber mais devotos.
Em seu texto revela-se certo fascínio e expectativa diante da possibilidade
do Santuário tornar-se um grande centro de romaria. A partir desse trabalho articulou-se um
projeto de turismo religioso entre a comunidade do Santuário e o Núcleo de Estudos de
Turismo (NETUR) da Faculdade Estácio de Sá de Ourinhos. A articulação, entretanto, foi
efêmera
245
.
A NSAVQ atraía os interesses políticos, econômicos e religiosos da
comunidade ourinhense. Sua história unia símbolos caros ao município de Ourinhos, como
o vagão que se destaca no brasão municipal, com os da devoção a Nossa Senhora
Aparecida, ícone do Catolicismo no sudeste do Brasil. A Senhora do Vagão Queimado
ligava as memórias do município com as da Igreja, do local com o nacional, do profano e
civil com as do sagrado e religioso.
Sendo assim, em 2004, Ano do Cinqüentenário, ano de eleições, o
prefeito inaugura um obelisco em homenagem a Senhora do Vagão Queimado. Segundo o
Jornal da Divisa que cobriu o fato
O obelisco é um artefato concreto em forma de cruz e no centro será colocada a
imagem de Nossa Senhora. A cruz receberá iluminação por trás.
Para o prefeito Claudemir, “essa é uma maneira de registrar uma parte importante
da história da cidade e também de respeitar a fé do povo”.
245
NETUR. Ata de reuniões 2004.
Ele também destacou que o obelisco faz parte do projeto turístico religioso que
vem sendo desenvolvido pela prefeitura, onde consta, por exemplo, a recuperação
da Capela Sagrada Família da Vila Margarida, entregue à população no ano
passado, durante as comemorações do aniversário de Ourinhos
246
.
O ato do prefeito Claudemir retoma a idéia de meados dos anos 1970,
analisada no segundo capítulo, da imagem enquanto artefato histórico do município. Na
verdade, em 2004, a imagem torna-se um referente e o monumento um significante, ou
melhor, simulacro de simulacro. Vamos nos deter um pouco mais na análise desse
monumento a NSAVQ, cuja foto observamos abaixo.
246
PREFEITO vistoria obelisco que homenageará Nossa Senhora do Vagão Queimado. Jornal da Divisa,
Ourinhos-SP, 28 jul. 2004, p.A-3.
Monumento em homenagem a NSAVQ. Fonte: Acervo pessoal do autor.
Ele se revela como um discurso religioso em forma de monumento. Nele
está embutida a visão que identifica a verdadeira religião com o cristianismo (cruz) em cujo
interior, como essência, está a devoção a Maria (imagem de Nossa Senhora Aparecida no
centro da cruz). Ainda nessa direção podemos sugerir, inspirados em Pierre Francastel, que
esse monumento está inscrito num campo de difusão de signos plásticos que visa controlar
o imaginário dos devotos
247
.
247
FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa. Tradução de Mary Amazonas Leite de Barros. 2.ed. São
Paulo: Perspectiva, 1993. p.39.
A representação, na concepção de Stuart Hall e Tomaz Tadeu da Silva, de
NSAVQ será a pedra de toque da construção da identidade diocesana. Divulgar a devoção e
seus símbolos é contribuir para a difusão de sentidos e imagens compartilhadas que
constituem a identidade católica local desejada. Podemos aplicar ao culto à imagem da
Senhora do Vagão Queimado, salvaguardadas as especificidades, as palavras de Steil sobre
o culto ao Bom Jesus da Lapa
Muito mais do que o corpo de doutrinas ou de princípios morais, o culto à
imagem é uma força centrípeta que liga a periferia católica ao seu centro
institucional, o que permite à Instituição manter a hegemonia do Catolicismo
dentro de uma sociedade que se fragmenta em centenas de novos grupos
religiosos
248
.
Steil afirma na seqüência de sua reflexão que a imagem é símbolo
polissêmico e totalizador, capaz de estabelecer uma relação entre os devotos e a Igreja que
torna possível a experiência da communitas catholica
249
. Acredito poder afirmar o mesmo a
respeito da imagem de NSAVQ.
Nesse sentido, o ícone mariano ourinhense deveria ser transformado em
objeto do cotidiano para granjear maior popularidade e incidência simbólica. Para atingir
esses propósitos a Igreja confeccionou broches e marca-páginas amplamente difundidos,
reproduzidas adiante.
248
STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias. Petrópolis: Vozes, 1996. p.130.
249
TURNER, Victor W. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Tradução de Nancy Campi de Castro.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1974. p.161-2.
Ainda nessa direção, foi composto um Hino, com aval de D. Salvador,
que difunde o padrão narrativo da história da devoção instituído por monsenhor Violante e
coloca a Diocese sob a proteção de NSAVQ. O uso de hinos e canções têm se mostrado
eficaz na divulgação e consagração de devoções no Catolicismo brasileiro, como se
depreende das análises de Lourival dos Santos, sobre Nossa Senhora Aparecida, e de
Solange Ramos David, sobre a devoção ao Santo Menino da Tábua de Maracaí, citados
em outros momentos deste trabalho. Observemos a letra do Hino a NSAVQ, extraída do
livro de cantos do santuário dedicado a ela.
Num incêndio muito feio. Num vagão todo queimado. Um milagre sobreveio pela
virgem praticado.
Ò Senhora Aparecida, do vagão que foi queimado, seja nossa Mãe querida,
esteja sempre ao nosso lado. (bis)
Tudo ali foi consumido, mas a imagem preservada. Tudo, tudo foi perdido,
menos a imagem sagrada.
Naquele incêndio terrível, Ourinhos foi preservada. E o que seria impossível, por
Maria foi realizado.
Sagrada Imagem da Virgem, Senhora Aparecida, sem um sinal de fuligem, foi
encontrada. Que vida!
A Diocese de Ourinhos, protegei Virgem Maria. Guiai sempre os caminhos,
como luz, noite e dia.
No capítulo “A Padroeira Cantada: Nossa Senhora Aparecida nas canções
dos devotos”, da tese citada do historiador Lourival dos Santos, as canções são
entendidas como pontos de partida e de chegada de uma experiência coletiva do culto a
Virgem Maria. Para a formação de identidades é imprescindível a existência desse tipo de
experiência coletiva. Por esse viés, as canções “ao mesmo tempo em que são produtos, elas
também condicionam sentidos que a devoção assume na vida dos indivíduos e dos
grupos”
250
. O Hino em análise exalta o poder miraculoso da imagem, poder que legitima
sua condição de intercessora. Seu milagre fundador beneficiou a comunidade, por isso sua
proteção deve ser invocada em favor da coletividade, isto é, da Diocese comunidade de
fé.
250
SANTOS, Lourival dos. A família Jesus e a Mãe Aparecida. Tese (Doutorado em História).FFLCH, USP,
São Paulo, 2005. p.224.
Se o processo de construção de identidade exigia a divulgação desses
símbolos e sentidos, tal problema foi resolvido com o auxílio da mídia local. Além dos
interesses mercadológicos dos meios de comunicação, existia certo vínculo entre estes e o
carismático padre Aristeu. Essas afirmações advêm principalmente da leitura atenta do
Livro Tombo do Santuário Diocesano de NSAVQ. Vejamos alguns exemplos.
Em registro de Outubro de 2000 lemos: “A imprensa falada e escrita de
Ourinhos deu respaldo à nossa festa com entrevistas, momentos marianos, mensagens e
reportagens que atingiram o grande público”.
Na mesma direção, mas agora com a entrada da TV Modelo, hoje TV
TEM, filiada regional da Rede Globo, aponta um registro de Julho de 2002: “É de registrar-
se a boa divulgação e destaque que a mídia local deu ao acontecimento. O fato importante
foi a reportagem da TV Modelo, em seu noticiário ao meio dia e 18:45h, de âmbito
regional, com boa repercussão entre os cristãos. A equipe de TV, de Bauru e Ourinhos,
fizeram um magnífico trabalho”.
Poderíamos prosseguir por longo tempo nas citações de registros que
mostram a estreita ligação entre a devoção a NSAVQ e a mídia local e regional. Mas
acredito que os exemplos mencionados sejam suficientes no sentido de argumentarem a
favor da relevância da mídia para a divulgação dos sentidos dessa devoção e, com efeito,
para a constituição e o fortalecimento dos laços de identidade religiosa. Confirmam,
outrossim, a hipótese de dinamização das aparições e devoções efetivadas pela mídia, como
sugeriu Cecília Loreto Mariz.
A mídia divulgava, sobretudo, a história da imagem, seguindo o padrão
narrativo produzido por Violante. A divulgação sistemática dessa história é uma das
principais ações no sentido de constituir a idéia de uma experiência comum, homogênea,
típica dos relatos fundadores de identidade. Vejamo-los.
No Boletim Informativo da Diocese de Ourinhos de setembro/outubro de
1999 lemos:
A imagem de Nossa Senhora Aparecida surgiu intacta das cinzas do incêndio no
vagão da Estrada de Ferro Sorocabana.
A história atribuída ao milagre, no interior de um vagão da Estrada de Ferro
Sorocabana em 31 de julho de 1954, quando a imagem de Nossa Senhora
Aparecida, foi encontrada intacta nas cinzas de móveis em brasas da mudança do
sargento Luiz Mendes da Silva, da FAB, Força Aérea Brasileira que seguia para
Londrina, Estado do Paraná, ainda hoje empolga seus devotos
251
.
Um ano depois, em outra edição do mesmo Boletim:
No dia 31 de julho de 1954, um caminhão-tanque carregado de combustível
chocou-se violentamente contra um trem que também transportava combustível.
O choque aconteceu na passagem de linha E.F.S., na vila Moraes. No impacto,
explodiu o caminhão e incendiou-se. Rapidamente o fogo alastrou-se por toda a
composição. Três vítimas fatais: o motorista do caminhão, Palmiro Túlio, o
maquinista, José Stefani e Virgilio Pinto Amaral, foguista.
O estrondo da explosão, as grossas nuvens de fumaça negra, as labaredas de
grande proporção provocaram pânico e correria entre os moradores da redondeza.
Atônitos, muitos acorreram a local do sinistro, cooperando com os ferroviários na
251
DIOCESE DE OURINHOS. Boletim Informativo, Set./Out.1999, p. 10.
luta contra o fogo ou rezando, pedindo a proteção divina. Bombeiros da
SANBRA, empregados da ESSO,GULF, ATLANTIC e TEXACO, todos se
juntaram no esforço comum.
Mas crescia a ansiedade e o medo. Perto do local do sinistro estavam grandes
depósitos de gasolina e óleo diesel. Se fossem atingidos pelo fogo, ocorreria uma
tragédia gigantesca! Até o conhecido “Repórter Esso” deu a notícia em âmbito
nacional. Foi mobilizado o corpo de Bombeiros de São Paulo, que aqui chegou
em avião da FAB. Quando a situação parecia incontrolável e a tragédia iminente,
eis que de repente soprou um forte vento, direcionando as chamas em sentido
contrário à área de risco. Todos se reanimaram e redobraram esforços. Depois de
7 horas de luta, a situação estava sob controle e o perigo totalmente afastado. Não
houve quem o visse no vento forte a providencial mão de Deus. A agonia
transformou-se em preces e gratidão!
Durante o trabalho de rescaldo e procura de vítimas, chamou a atenção de todos
um fato curioso: num dos vagões queimados, estava uma caixa intacta! Abriram-
na com curiosidade e eis que encontraram, envolta num lenço de seda, uma
pequena imagem de Nossa Senhora Aparecida. Espanto, comoção, lágrimas!
Nossa Senhora Aparecida salvara o povo de Ourinhos! Logo nasceu, espontânea,
a promessa de construir uma capela para abrigar a “milagrosa” imagem e
perpetuar o grande evento. Seu nome? Santuário de NSAVQ
252
.
Os dois primeiros relatos transcritos foram publicados pelo Boletim
Informativo da Diocese. Em ambos notamos, sem grande surpresa, o modelo narrativo
elaborado por Violante. Não lugar para discussão em uma hagiografia. O padrão
252
DIOCESE DE OURINHOS. Boletim Informativo, Set./Out. 2000, p.28.
seqüencial é o mesmo: data histórica do acidente grande incêndio pânico cidade em
perigo orações vento insólito encontro da imagem veneração imediata ereção do
santuário a NSAVQ.
Novamente usaram os silêncios da História. A negação eclesiástica e
certo descaso popular são esquecidos. Esse também foi o destino de toda ação de Violante
na promoção da devoção, que é descrita como “espontânea” desde seu nascimento como
indica explicitamente o segundo relato. Sem falar no anacronismo que remete a invocação
NSAVQ aos primeiros tempos da devoção. Situação real daquilo que Eric Hobsbawm
denominou de tradição inventada
253
.
Continuemos as análises sobre os relatos fundadores. Focalizemos agora
os publicados na imprensa regional e em livro financiado pelo Poder Municipal. Vejamos o
texto do Jornal da Divisa de 30 de julho de 2004, Ano do Cinqüentenário:
Amanhã, às 20h, o Santuário de NSAVQ celebrará a missa da Gratidão,
comemorando os 50 anos do encontro da imagem de Nossa Senhora Aparecida.
Desde junho, a imagem está sendo exposta à visitação pública nas cidades da
região. O retorno ao altar do santuário está previsto para o dia 5 de outubro.
Uma história divina envolve a imagem de NSAVQ. No dia 31 de julho de 1954
ocorreu uma colisão entre um caminhão-tanque e um trem que puxava oito
vagões carregados de combustível. No impacto houve uma forte explosão
seguida de incêndio. O medo tomou conta da cidade, porque o acidente ocorreu
próximo a um grande depósito de combustível gerando um risco iminente de
ocorrer uma tragédia sem precedentes.
253
HOBSBAWM, Eric. Introdução: A Invenção das Tradições. IN: ______; RANGER, T. (orgs.). A Invenção
das Tradições. Tradução de Celina Cardim Cavalcante. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 09.
Em meio ao nico, eis que um vento soprou permitindo que uma locomotiva,
conduzida pelo corajoso maquinista Virgilio Albertini, avançasse em meio às
chamas e arrastasse os vagões pra longe. Começa, então, o trabalho de rescaldo.
Eis o grande mistério: no interior de um dos vagões foi encontrada uma caixa.
Dentro dela, envolta em um lenço de seda, uma imagem de Nossa Senhora
Aparecida. Hoje, ela ocupa seu merecido lugar de destaque no altar do
Santuário Diocesano de NSAVQ que fica na Avenida Gastão Vidigal, 369, na
vila Moraes
254
.
O texto é revelador pelo que ele deixa de dizer. Não contesta. Não abre
novos caminhos interpretativos. A hagiografia e o anacronismo se mantêm. Parece seguir à
risca os ditames da guardiã da memória.
Por fim, citamos o relato do livro Ourinhos: um século de História, de
Oscar D’Ambrósio, elaborado em 2004 sob os auspícios da Prefeitura Municipal de
Ourinhos. O relato está significativamente inserido no capítulo sobre as tradicionais (o dia
31 de julho?) comemorações municipais. O que foi dito acerca do texto do Jornal da Divisa
pode ser aplicado a este. Todavia, essa posição não causa estranhamento se levarmos em
conta a reciprocidade de interesses entre a Igreja de Ourinhos e o Poder Público Municipal
nesse período, como vimos anteriormente. Leiamos o texto de D’Ambrósio
O dia 31 de julho tem um grande significado histórico e religioso para a cidade
de Ourinhos. Nesse dia, em 1954, na passagem da linha da Estrada de Ferro
254
MISSA vai celebrar os 50 anos de N.S. Aparecida do Vagão Queimado. Jornal da Divisa, Ourinhos-SP,
30 jul. 2004, p. A-3.
Sorocabana, na vila Moraes, aconteceu um incêndio de grandes proporções,
ocasionado por uma colisão entre um caminhão-tanque, carregado de
combustível, e um trem misto, do qual faziam parte oito vagões-tanque,
também carregados de combustível.
Com o impacto, houve uma grande explosão, que alastrou o fogo por toda a
composição. Foi, segundo testemunhas, uma cena que jamais sairia da
lembrança dos que assistiram a ela. A população se mobilizou e, num esforço
comum, se juntou na luta contra o fogo. As pessoas começaram a fazer uma
corrente de oração, pedindo ajuda e a proteção divina.
Os bombeiros de São Paulo chegaram em um avião da FAB Força Aérea
Brasileira e, quando a situação parecia completamente fora de controle, um
vento muito forte começou a soprar em direção contrária à área de risco, pois
era cercada de depósitos de combustíveis. Isso reanimou todos os que
combatiam o incêndio e redobraram os esforços para elimina-lo. Depois de
quase sete horas de muita luta, a situação ficou sob controle e o perigo foi
totalmente afastado.
A agonia transformou-se em preces de gratidão, e a surpresa de todos veio a
seguir, pois, durante o trabalho de rescaldo à procura de vítimas, foi encontrada
num dos vagões uma caixa intacta. Quando foi aberta, embalada num lenço de
seda estava uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Daí nascia a promessa
de se construir uma capela para abrigar aquela imagem e assim perpetuar os
votos de agradecimento.
Desse modo foi feito. No dia 15 de outubro de 1979, foi inaugurada a Igreja de
NSAVQ, e no dia 12 de outubro de 1999 o bispo da Diocese de Ourinhos, D.
Salvador Paruzzo promulgou o decreto que elevou a capela à condição de
Santuário Diocesano de NSAVQ. Assim, anualmente, no dia 31 de julho é
celebrada a missa de agradecimento à proteção recebida
255
.
A extensão dos textos citados se justifica pela possibilidade de
compararmos, ainda que brevemente, os relatos sobre a história da imagem encontrada em
1954 e a decorrente devoção que suscitou. A origem desses relatos é diversa: Boletim
Diocesano, Jornal da Divisa e um livro de História de Ourinhos. Obviamente não foram os
únicos suportes para o relato devocional, ainda que sejam os principais. Todos apontam
para a ubíqua utilização do padrão narrativo hagiográfico elaborado por monsenhor
Violante.
Esse padrão adequava-se, tempos depois de sua criação, ao propósito
eclesiástico de construir uma identidade diocesana e católica contemporânea a partir da
imagem de Nossa Senhora
256
. A negação eclesiástica e os tempos de arrefecimento, quando
não esquecimento, do ímpeto popular são apagados. Os debates travados acerca do caráter
miraculoso da imagem e a recente fixação do nome NSAVQ não são ditos. Novamente os
interesses do presente regem a narrativa sobre o passado. Entretanto, isso não é incomum
nas histórias de identidade como nos orienta Eric Hobsbawm ao analisar a formação dos
Estados nacionais
As nações são entidades historicamente novas fingindo terem existido durante
muito tempo. É inevitável que a versão nacionalista de sua história consista de
255
D’AMBRÓSIO, Oscar (org.). Ourinhos: um século de história. São Paulo: Noovha América, 2004. p.66-7.
256
Já vimos neste trabalho os diversos usos da iconodulia no sentido de constituir identidades. Sobre a
questão da iconografia e da instituição religiosa como mediadores de identidade, conferir: SOUZA, Régis
Toledo de. Identidade de devotos católicos populares: iconografia e instituição religiosa como elementos
mediadores. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social). PUC, São Paulo, 2001.
anacronismo, omissão, descontextualização e, em casos extremos, mentiras. Em
um grau menor, isso é verdade para todas as formas de história de identidade,
antigas ou recentes
257
.
Todos esses elementos (anacronismo, omissão, descontextualização e
mentira) constituintes, segundo Hobsbawm, das histórias de identidade podem ser
encontrados, com intensidades variáveis, nos relatos sobre a devoção ourinhense que
transcrevi anteriormente e em outros mais acerca da imagem e da devoção.
Por fim, urge lembrar, alertados por Carlos R. Brandão
258
, que aquém e
além do bem e do poder, a religião cria e oferece o sentimento de sentido que parece ser
aquilo buscado pelos sujeitos da devoção. Esta sustentada por tensões e
complementaridades, conflitos e consensos que constituem o princípio dinâmico do
Catolicismo brasileiro. Passemos agora à análise dessa dinâmica católica no culto de
NSAVQ.
3.3 Tensões constitutivas.
Afirmei nos capítulos anteriores que a polissemia irresolvida constitui o
princípio dinâmico do Catolicismo. Em uma obra coletiva, Pierre Sanchis e outros
renomados pesquisadores da religião no Brasil explicitaram esse fato na escolha do título:
Catolicismo: Unidade Religiosa e Pluralismo Cultural. Vimos que para Steil o Catolicismo
257
HOBSBAWM, Eric. Não basta a história de identidade. IN: ______. Sobre História: ensaios. Tradução de
Cid K. Moreira. 2. reimp.São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p.285.
258
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Crença e Identidade. IN: SANCHIS, Pierre (org.). Catolicismo: Unidade
Religiosa e Pluralismo cultural. São Paulo: Loyola, 1992. p. 24.
cresce incorporando a diversidade. A dialética religiosa do uno e do múltiplo se realiza na
catolicidade. Sendo assim, Maria se torna a expressão máxima do Catolicismo na medida
em que reúne em si o uno e o múltiplo, a tradição e a novidade, o local e o universal da
cultura católica.
As diversas faces de Maria revelam essa multiplicidade dentro da
unicidade elástica do imaginário católico. A fortiori a iconografia revela esta característica
do culto mariano. Nas palavras de Reesink
A iconografia é quase puramente mbolo [do fenômeno da multiplicidade],
tendo em vista que as imagens de Maria modificam a sua própria forma
corporificada, esta funcionando também como representação, como símbolo da
teodicéia e das qualidades marianas, representação simbólica que
sobredetermina o sensível
259
.
É esta unidade/pluralidade da Virgem que justifica e possibilita suas
aparições em diversos lugares, isto é, a particularização do culto mariano em suas
diferentes faces tem um referente único na história de Maria, a mãe de Jesus Cristo,
fundamentada na tradição bíblico-católica.
Tal tradição é reinventada e reformulada, segundo determinadas
circunstâncias e situações históricas. É matéria-prima de engenharia religiosa. Foi assim
com a devoção a Nossa Senhora Aparecida surgiu de uma criação religiosa original. Nas
palavras de Lourival dos Santos
259
REESINK, Mísia Lins. Nossa Senhora de Anguera, Rainha da Paz e do Mundo Católico Contemporâneo.
IN: STEIL, Carlos Alberto; MARIZ, Cecília L.; REESINK, Mísia L. (orgs.). Maria entre os vivos: reflexões
teóricas e etnografias sobre aparições marianas no Brasil. Porto Alegre: UFRGS, 2003. p.136.
Não se pode pensar em espontaneidade para explicar o surgimento do culto à
“Virgem Mãe Aparecida”. Antes, é preciso supor que a singularidade adquirida
por sua Imagem-matriz está ligada a uma evolução que combina padrões
diferentes, importados e adaptados à realidade dos católicos brasileiros. Pode-
se considerar a devoção à Nossa Senhora Aparecida como uma fusão das
devoções de Na. Sra. do Rosário e de Na. Sra. da Conceição. Essa mescla
resultou da constante troca cultural e simbólica entre as elites e as camadas
populares, no que diz respeito às práticas religiosas
260
.
Essa passagem da dissertação do historiador Lourival é reveladora e
sumária. Destaca a significativa fusão entre a Nossa Senhora da Conceição, Padroeira do
Império Luso como vimos no primeiro capítulo, e a Nossa Senhora do Rosário, principal
devoção dos escravos e das Irmandades constituídas por estes. A imagem de N.S. da
Conceição encontrada dividida nas águas do rio Paraíba recebeu um rosário que selaria (na
verdade um sutil disfarce para ocultar sua ruptura) a união entre o corpo e a cabeça.
A imagem da Conceição, venerada muito antes da definição do dogma da
Imaculada, representa o Catolicismo institucional, romanizado. O Rosário, objeto de
devoção popular, representa o Catolicismo tradicional sempre suscetível de “re-uniões” e
“re-ligações”. Símbolos que apontam para a afirmação transformada em tese de
doutoramento, defendida em 1999 na UNESP, campus de Assis, da historiadora Martha dos
260
SANTOS, Lourival dos. Igreja, Nacionalismo e Devoção Popular. Dissertação (Mestrado em
História).FFLCH, USP, São Paulo, 2000. p.25.
Reis: o título é expressivo O culto à Senhora Aparecida: síntese entre o Catolicismo oficial
e o popular no Brasil .
Esta síntese enquadra-se na dinâmica do Catolicismo e remete para o
processo de negociação de sentidos entre Igreja Institucional e Igreja de Devotos na
construção e consagração de práticas e representações religiosas. Lourival enfrentou essas
questões em sua dissertação. Suas análises mostraram que a Igreja, a partir da segunda
metade do século XIX, utilizou estampas como veículos de comunicação com os devotos.
Em 1854, o bispo D. Antônio Joaquim de Melo mandou imprimir, na Europa, a primeira
estampa oficial de Nossa Senhora Aparecida iniciando a tentativa de romanização do culto.
Significativamente esta estampa representava a “Aparecida” segundo sua referente
Conceição, isto é, branca. Inaugurou-se um modelo impregnado da estética européia e dos
valores do Catolicismo romanizado.
Entretanto, essa estampa não foi aceita pelos devotos. Não representava a
verdadeira Nossa Senhora Aparecida. Por isso, em um clássico processo de negociação de
sentidos, a gravura que retratava uma santa de padrão romanizado foi sendo alterada até o
modelo que conhecemos hoje, mostrando o esforço que a Igreja teve de fazer para adaptar-
se ao culto popular e tentar intervir nele
261
.
As tensões entre as práticas e representações dos Catolicismos assumidos
e exercidos pela Instituição e pelos devotos se transubstanciaram em uma nova devoção
mariana: o culto a Nossa Senhora Aparecida. Adriana Vaz Ramos, em texto do Cadernos
de Semiótica e Religião da PUC-SP, também analisou esse processo de criação religiosa.
Segunda ela
261
SANTOS, Lourival dos. Igreja, Nacionalismo e Devoção Popular. Dissertação (Mestrado em
História).FFLCH, USP, São Paulo, 2000. p.36-46.
Utilizamos os conceitos de Pross sobre o simbolismo do poder para nomear de
apropriação simbólica o fato de os pescadores terem partido de uma invocação
à Virgem Maria bastante conhecida por eles, N.S. da Conceição, para criarem
uma outra identidade religiosa, N.S. Aparecida
262
.
Acredito que a devoção a NSAVQ, objeto deste estudo, passou por
semelhante processo. Também na devoção ourinhense ocorreu uma apropriação simbólica,
na acepção de Adriana Vaz Ramos, que partiu da conhecida invocação de Nossa Senhora
Aparecida para criar uma outra. Criação religiosa que redefiniu práticas, reformulou
representações e orientou uma nova identidade. Todavia, as diferenças existem e não são
desprezíveis. As temporalidades, os propósitos e os investimentos são assimétricos entre a
N.S. Aparecida e N.S. Ap. do Vagão Queimado como vimos ao longo desse trabalho. E
mais, é imprescindível destacar que enquanto a N.S.Aparecida já se mantém por si só, com
toda a força de sua particularização; a N.S. Ap. do Vagão Queimado, no entanto, depende
ainda dos sentidos emanados da primeira para existir. Vamos analisar essas questões a
partir de algumas estampas de Nossa Senhora em folhetos distribuídos no Santuário por
ocasião de grandes eventos da comunidade católica local.
Comecemos por uma estampa de 2001. Ela se caracteriza pela confusão
entre invocação e representação. Invoca-se NSAVQ representada por uma imagem de
Nossa Senhora Aparecida, como se pode observar abaixo.
262
RAMOS, Adriana Vaz. A negra rainha aparecida: aspectos semióticos da imagem de Nossa Senhora
Aparecida. IN: Cadernos de Semiótica e Religião – Babel, Lorena-SP, PUC-SP, 1:29, 1997.
Esta estampa de 2001, e as que apresento a seguir, dos anos de 2002 e
2003, foram confeccionadas no contexto do processo de particularização da imagem de
NSAVQ, estudadas anteriormente. Assim, desejo apontar para outra dimensão desse
processo, agora ligado à construção negociada da representação de NSAVQ.
Nesses folhetos de 2002 e 2003 estampa-se a célebre imagem de Nossa
Senhora Aparecida. Talvez, ainda que inconscientemente, essa representação da Santa Pop
do Brasil tenha sido usada para atrair a atenção da mídia local e dos fiéis. Mas, trazia a
incômoda realidade de ser uma santa de outra terra, apesar da incidência ‘nacional’.
Apontava para uma identidade religiosa nacional, abstrata. A Diocese precisava concretizar
uma identidade local, e conseguiria realizar tal projeto, particularizando também sua
representação a partir de símbolos locais. Vimos esses símbolos ao analisar o ícone e a
oração criados especificamente para NSAVQ. A partir de 2004 esse ícone tornou-se
predominante, como observamos nessas imagens.
Nessa análise das estampas procuro chamar a atenção para o fato de que a
confusão e a tensão entre as representações de Nossa Senhora Aparecida e de NSAVQ
apontam para aquilo que constitui e reproduz o culto: a conversão do capital simbólico da
N.S.Aparecida para a N.S. Ap. do Vagão Queimado. Esta devoção se dependura naquela.
Daí o dia 12 de outubro ser tão celebrado quanto o dia 31 de julho. Por isso, mesmo
divulgado o ícone da Senhora do Vagão Queimado, o Santuário continua a usar a clássica
imagem da Aparecida. Veja esse folheto de 2005.
Por fim, observemos abaixo uma estampa reveladora acerca do que
afirmei sobre a tensão constitutiva do culto a Senhora do Vagão Queimado.
Este folheto traz o programa do Ano Eucarístico inaugurado no final de
2004. Outro evento proposto pela Cúria Romana no limiar do terceiro milênio. As duas
invocações estão presentes. Destaca-se a Nossa Senhora Aparecida por ocasião de sua festa
nacional. Contudo, o mais relevante para a questão que estamos tratando é o ícone da
Aparecida no centro do folheto. Olhando atentamente identificamos os símbolos da
Aparecida local, entrementes, a imagem triangular e ofuscada da Virgem não define qual
das Aparecidas está sendo representada. Ideal ximo da Igreja ourinhense: as diferenças
entre elas são transcendidas e ambas aparecem fundidas em uma iluminada representação
da Mãe Aparecida, de Ourinhos e do Brasil.
Conclusão
Uma imagem não é apenas a justaposição de
diversos signos, mas o resultado articulado
deles. Ademais, uma imagem nunca é autônoma,
pois seu significado está ao menos em parte
relacionado com o conjunto no qual ela se
encontra inserida, isto é, com sua localização
física e com a utilização social que recebe
263
.
Uma imagem sagrada não é feita, é encontrada. Foi assim com a imagem
de NSAVQ, objeto de estudo desse A vós suspiramos neste trem da vida. No imaginário
religioso brasileiro não importa a origem natural da imagem, mas sua vontade divina de ser
encontrada pelos homens. Poderoso símbolo religioso do Catolicismo, a imagem, sobretudo
de Nossa Senhora, tem servido séculos como veículo de comunicação entre a Igreja e os
Devotos, suscetível de se adaptar aos mais discrepantes e contraditórios interesses e
projetos. Com efeito, ela é mbolo maior da marca indelével do Catolicismo: sua
capacidade de crescer na diversidade, de se reproduzir e sustentar na irresolvida polissemia
de seus inúmeros símbolos.
No Catolicismo brasileiro a Virgem Maria foi utilizada inúmeras vezes
pela Igreja nas muitas lutas contra o racionalismo, o republicanismo, o comunismo, o
protestantismo e o pentecostalismo. Nos últimos tempos a luta maior foi contra o
secularismo, concebido muitas vezes como sinônimo de ateísmo. No entanto, nada é mais
263
FRANCO JR., Hilário. Eva Barbada: Ensaio de mitologia medieval. São Paulo: EDUSP, 1996. p.96.
enganoso. O secularismo, como se percebe nesta pesquisa, caracteriza-se menos pela perda
da e mais pelas contínuas transformações nos modos de crer e de organizar as práticas
religiosas. Resulta em desinstitucionalização da fé e em teodiversidade.
A Virgem não serviu apenas a desígnios eclesiais. Não foram raras as
vezes em que o Poder Público e outras instituições sociais se serviram de seu capital
simbólico. Em Ourinhos, desde o encontro da imagem, o Poder Municipal procurou
associar-se, quando conveniente, à imagem miraculosa. A mídia local, outrossim,
promoveu-a publicamente e obteve, como atestam recorrentes reedições de reportagens
sobre a Nossa Senhora Aparecida encontrada no vagão queimado, lucratividade com tal
iniciativa.
Mas, indubitavelmente, a grande promotora e gestora do culto, foi a Igreja
Católica. Ainda que a legitimação primária do caráter sagrado da imagem tenha partido dos
leigos, foi ela que imprimiu o ritmo da devoção. Isso não quer dizer que os devotos leigos
tenham recebido passivamente as idéias e princípios da Instituição. Acredito que este
trabalho demonstrou o exercício da Igreja de Ourinhos em negociar sentidos e práticas com
seus fiéis. O longo processo de particularização da imagem revela as trocas simbólicas
entre as crenças e práticas dos fiéis e as doutrinas e projetos da Igreja Católica.
Foi assim desde o limiar da criação religiosa que produziu a devoção a
NSAVQ. O constructor da devoção, monsenhor Violante, em meados dos anos 1970
aproveitou-se da força simbólica de Nossa Senhora Aparecida, amplamente divulgada pela
Igreja e pelo Estado Militar, e da leitura mariofânica de boa parte da comunidade
ourinhense acerca de um acidente que marcou a história da cidade, para promover a
devoção à pequena Aparecida Intacta em um vagão queimado. Ele não titubeou. Lidou
deliberadamente com os símbolos do imaginário local e fez da pequena réplica da e
nacional o centro do Catolicismo local que passava por uma nova dinâmica de acomodação
de seus conflitos internos e externos. A Imagem triunfou sobre as diferenças e incertezas,
sobre os conflitos reais e simbólicos enfrentados pelo Catolicismo da época. Em Ourinhos,
ainda que por pouco tempo, houve uma inversão da hegemônica lógica do declínio do
Catolicismo. Essa inversão foi, em parte, produto do investimento da Igreja ourinhense na
pequena imagem de Nossa Senhora.
Após novo período
de arrefecimento devocional, em
tempos de secularização e de
verdadeira religiosidade líquida, no
contexto do ambíguo pontificado de
João Paulo II, a pequena imagem
encontrada no Grande Incêndio de
1954 novamente caiu nas graças da
Igreja. De certo modo essa “re-
utilização” institucional aponta para a
reconhecida densidade simbólica da
devoção nos anos anteriores e que
agora estava fora do espaço público.
A ereção da Diocese de Ourinhos e a
chegada de seu primeiro bispo, D.
Salvador, revivificaram a devoção e
aprofundaram a particularização da
imagem.
Esse processo de particularização ocorreu simultaneamente a grandes
eventos do Mundo Católico: o Grande Jubileu de 2000, o Ano do Rosário 2002-2003 e o
Ano Eucarístico 2004-2005. Foi contemporâneo, outrossim, de acontecimentos e processos
sociais locais: projeto turístico-religioso do Poder Municipal e construção de uma
identidade diocesana por parte da Igreja de Ourinhos, incipiente jurisdição eclesiástica, no
limiar do século XXI.
Para atingir esses diversos propósitos a Igreja investiu, com o apoio da
mídia e do poder público local, na individualização da imagem: fixou e consagrou a
invocação NSAVQ, elevou canonicamente a capela da imagem à condição de Paróquia-
Santuário Diocesano, investiu em propaganda, criou um ícone (logotipo) singular e orações
dirigidas especificamente a Aparecida de Ourinhos. Tudo foi criado a partir de um uso
inovador, sui generis, do patrimônio histórico-cultural do Município e do Catolicismo
brasileiro. Mas, o essencial dessa criação, sua tensão constitutiva, reside no fato de
converter o capital simbólico da imagem de Nossa Senhora Aparecida para a de NSAVQ.
Destinos mistos. Enfim, essa apropriação simbólica instituiu uma nova identidade
religiosa.
Ainda nesse processo deve-se destacar os relatos fundadores. Desde os
tempos do Monsenhor a Igreja procurou padronizar o relato fundador da devoção. Seguindo
o modelo hagiográfico e os elementos estruturantes de uma história de identidade
(omissões, descontextualizações, anacronismos, mentiras), Violante elaborou o padrão
narrativo da história da devoção que suprimiu a negação e o descaso eclesiástico, a amnésia
e o arrefecimento devocional dos leigos, os debates acerca do caráter miraculoso da
imagem e o anacrônico uso da invocação NSAVQ para se referir a imagem antes de 1999,
ou pelo menos, 1979, ano do texto mais antigo com essa denominação.
Argumentei que o modelo de relato criado por Violante foi bem sucedido,
afinal sua ubiqüidade corrobora a hipótese de que ele se tornou o padrão narrativo da
história da imagem e da devoção. Isso porque vai ao encontro dos símbolos e imagens que
compõem o imaginário religioso local. Aqui, como em todo o trabalho, percebe-se as
reconstruções da memória, sua reorganização em função das preocupações pessoais e
coletivas do momento, engendradas por comunidades ou instituições. Memória que é
sempre e constantemente negociada, construída.
Por fim, procurei apontar para o fato de que o campo católico
contemporâneo, apesar do processo de desinstitucionalização da fé, tem, paradoxalmente,
na Instituição seu grande referencial. Imersas na modernidade-líquida as pessoas buscam
na Instituição a segurança e a certeza que não encontram no dia-a-dia. Mas, essa relação
não é unilateral. Os fiéis não apenas consomem os bens simbólicos produzidos, também os
produzem ao consumirem aquilo que desejam e necessitam em determinado momento de
suas vidas. Foi assim com a devoção a NSAVQ.
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VIOLANTE, Mons. André Oswaldo. Requerimento ao superintendente da Fepasa, 23 dez.
1977.
Entrevistas:
1. Norival Vieira da Silva.
Norival nasceu em Santa Cruz do Rio Pardo no ano de 1930. Com formação em Filosofia,
Teologia, Pedagogia e Sociologia, atuou como professor e jornalista em Ourinhos e região
desde meados do século XX até o início dos anos 1990. No final dos anos 1960 foi vice-
prefeito de Ourinhos. Reconhecido historiador local. Detém um riquíssimo acervo
fotográfico acerca da história de Ourinhos que me foi disponibilizado sendo imprescindível
na execução desta pesquisa. Conversamos por duas vezes, em Abril e Agosto de 2006, em
sua casa. De sua entrevista destaco o fato de ele informar-me sobre a autoria do célebre
artigo desta história: Tremenda colisão provoca violento incêndio, no jornal Correio de
Notícias, de 03 de Agosto de 1954. Segundo me contou, ele escreveu inúmeros artigos para
jornais ourinhenses sem explicitar que era o autor destes textos. Além deste fato pouco
conhecido, Norival fez importantes considerações a respeito das relações entre devotos,
Igreja e Poder Público.
2. Rafael Conte
Rafael nasceu em Ourinhos no ano de 1929. Nossa conversa aconteceu em Abril de 2006,
em sua casa. Desde cedo, acompanhando os passos familiares, engajou-se nos movimentos
eclesiais, sobretudo, os da Congregação Mariana e Vicentinos. Passou boa parte da vida
trabalhando na ferrovia. Foi ele que telegrafou a São Paulo chamando o Corpo de
Bombeiros para auxiliar no combate ao fogo causado pelo incêndio de 31 de Julho de 1954.
Líder da Ação Católica local em meados do século XX, suas informações foram muito úteis
no esclarecimento das relações entre a Igreja e os devotos, em tempos conturbados do
Catolicismo ourinhense. Ao longo da entrevista, Rafael apresentou textos e livros da
Congregação Mariana em seu tempo áureo.
3. Lourival Argenta.
Lourival nasceu em Ourinhos no ano de 1939. Nossa conversa aconteceu em Maio de 2006,
em sua oficina. Não conversamos muito. Ele pediu que eu procurasse sua entrevista no
jornal Diário de Ourinhos: Testemunha do encontro da imagem de Nossa Senhora do
Vagão Queimado conta como foi o 31 de Julho de 1954. Proprietário de uma funilaria em
Ourinhos, Lourival destacou em nossa rápida conversa o caráter miraculoso do evento de
1954 e sua emoção ao segurar a imagem encontrada intacta no vagão queimado. Destacou
também sua relação com monsenhor Violante e sua atuação nos anos 1970.
4. Irmã Vivalda.
Nasceu em Santa Catarina. Chegou em Ourinhos no ano de 1947. Conversamos em Abril
de 2006. A conversa foi muito rápida. Irmã Vivalda disse não saber nada de novo sobre a
história da devoção a NSAVQ. Relatou apenas que estava no Colégio Santo Antônio
quando ocorreu o acidente e que dali conseguiu avistar as labaredas nos trilhos da
Sorocabana.
5. Sônia Nicolau.
Nasceu em 1953. Conversamos em Maio de 2006, em sua loja na rua Rio de Janeiro. Ela é
filha do casal Nicolau. Sua mãe, dona Irene, recebeu a imagem de Nossa Senhora
Aparecida encontrada intacta no vagão queimado das mãos do padre Arnaldo Beltrami.
Irene, através de sua filha, deu preciosas informações sobre seus contatos com os padres
Beltrami e Violante. Sônia falou sobre o evento de 1974, a procissão rodoviária
denominada Imagem em triunfo. Testemunhos imprescindíveis.
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