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De resto, toda perfeição dever ser evitada, pois representa um perigo, o fim absoluto,
as felicidade e pureza tão insuportáveis que, além de suspeitas, também atestariam nossa
perdição. Uma vez alcançado-a, que fazer, para onde ir? Cioran parece preservar, no fundo,
um desejo incontido, uma necessidade trágica de conflito, logo de imperfeição, necessidade
esta que o impede de entregar-se a qualquer coisa que possa levá-lo aos ditos ideais. Está
certo que o despertar o libera das aparências, mas o problema é que, ao mesmo tempo,
também dissolve o caráter trágico da existência, resolvendo tudo ao pôr um fim em todos os
problemas. Uma vez compreendido tudo, não há mais o que fazer, e então encontramo-nos
desocupados para sempre. Segundo o autor, não nos interessa, humanamente, um saber
absoluto e universal, dado que possuí-lo significaria não mais dispor da carência e das
imperfeições que nos permitem viver e agir. O que nos faz permanecer vivos, exercendo um
papel no mundo, são nossos males, nossas misérias e insuficiências, nossas contradições,
nossos defeitos e conflitos:
Não vivemos senão por carência de saber. A partir do momento em que se sabe, não se
abastece mais de nada. Enquanto permanecemos na ignorância, as aparências prosperam e
provocam uma suspeita de inviolabilidade que nos permite amá-las e detestá-las, estar em luta
com elas. Como nos medir com fantasmas? É isso que se tornam quando, desenganados, não
podemos mais elevá-las ao nível de essências. O saber, o despertar melhor dizendo, suscita
entre elas e nós um hiato que, infelizmente, não é um conflito, pois, se o fosse, tudo seria
melhor; não, trata-se na verdade da supressão de todos os conflitos, a abolição funesta do
trágico.
153
Como ele próprio afirma, Cioran sempre foi um “espírito de negação”: sempre se
sentiu “possuído” por uma espécie de tentação demoníaca que o faz negar tudo, até o inegável
– origem de seu ímpeto metafísico de erigir um Não maior que o universo. Ao mesmo tempo
em que não tem fé, identifica também, em sua natureza, essa inclinação ao não, à destruição,
sendo ambas, conforme costuma dizer, características inerentes ao seu ser. Negar: um vício
diabólico, com efeito, que, para não causar danos a ninguém, pelo menos não diretamente, é
transferido para a escrita (“as palavras, esse punhal invisível”
154
), por meio da qual Cioran
pode dar vazão, de forma verbal e indireta, a todo o seu furor negativo, a todo o rancor que
emana de sua bílis negra. Contradições de um ser que, fulminado por um excesso trágico de
vida, por uma paixão cega e insaciável por ela, não sabe o que fazer, como suportá-la, de
modo que sua paixão acaba se convertendo em negação
155
. Acreditando, “da mesma forma
153
Emil CIORAN, La chute dans le temps, in: Œuvres, p. 1141.
154
Id., História e utopia, p. 74-5.
155
Id., Entretiens, p. 32.