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Maria do Carmo Facó Soares
Reverberações whitmanianas
no universo de Pessoa
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em Estudos de Literatura do Departamento
de Letras da PUC-Rio
Orientador: Cleonice Serôa da Motta Berardinelli
Rio de Janeiro
Setembro de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521259/CA
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Maria do Carmo Facó Soares
Reverberações whitmanianas
no universo de Pessoa
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
graduação em Estudos de Literatura do Departamento de
Letras do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-
Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
____________________________________
Profa. Cleonice Berardinelli
Orientadora
Departamento de Letras – PUC-Rio
____________________________________
Prof. Paulo Henriques Britto
Departamento de Letras – PUC-Rio
____________________________________
Prof. Ronaldo Menegaz
Academia Brasileira de Letras – ABL
____________________________________
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, de de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521259/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da
autora e do orientador.
Maria do Carmo Facó Soares
Graduou-se em Letras, Português - Inglês na UFRJ em 1977.
Há 35 anos dá aulas de inglês em colégios e cursos de
línguas. Atualmente ensina Língua e Literatura Inglesa no
curso de Letras, além de Inglês Técnico para os cursos de
Ciência da Computação e Engenharia, na Universidade
Católica de Petrópolis. Trabalha também como tradutora e
intérprete.
Ficha Catalográfica
CDD: 800
CDD: 800
Soares, Maria do Carmo Facó
Reverberações whitmanianas no universo de
Pessoa / Maria do Carmo Facó Soares ; orientadora:
Cleonice Serôa da Motta Berardinelli. – 2007.
65 f. : il. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Letras)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2006.
Inclui bibliografia
1. Letras Teses. 2. Walt Whitman. 3. Fernando
Pessoa. 4. Álvaro de Campos. 5. Alberto Caeiro. 6.
Modernismo. 7. Influência. 8. Inspiração. 9.
Sensacionismo. I. Berardinelli, Cleonice Serôa da
Motta. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521259/CA
Fernando Antonio Nogueira Pessoa
(1888 – 1935)
Walter Whitman Jr.
(1819 - 1892)
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Para meu pai, Eddie, em memória,
e para minha mãe, Maria da Penha.
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Agradecimentos
À minha amiga e comadre, Lígia Saramago, por seu apoio e incentivo, por acreditar em
mim e, principalmente, por me fazer acreditar em mim.
À Profa. Doutora, Cleonice Berardinelli, que sendo, nas palavras de Eduardo Lourenço,
exegeta e analista rigorosa do verbo de Pessoa”, soube orientar-me segura e sabiamente.
Aos professores, Ronaldo Menegaz, Paulo Britto e Alexandre Montaury, por terem aceito
fazer parte da minha banca.
A todos os que foram meus professores no Mestrado, pelos ensinamentos que ampliaram
minha visão.
À Fundação Celso da Rocha Miranda, pelos auxílios concedidos.
À Francisca Ferreira de Oliveira, por seu atendimento sempre eficiente e carinhoso.
À minha amada filha, Ciana Soares Lago, pelo incentivo e interesse em meus estudos.
À minha querida mãe, sem cuja ajuda nada teria sido possível.
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Resumo
Facó, Maria do Carmo; Berardinelli, Cleonice. Reverberações Whitmanianas no
Universo de Pessoa. Rio de Janeiro, 2007. 65 p. Dissertação de Mestrado –
Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Esse trabalho tem como finalidade confirmar a importância da obra do poeta Walt
Whitman, Leaves of Grass, na produção poética de Fernando Pessoa. Seu contato com o
poeta americano foi decisivo para o aparecimento de dois de seus mais significantes
heterônimos: Álvaro de Campos e Alberto Caeiro. Whitman, que ainda em meados do
século XIX já figurava como um precursor do Modernismo, teria tido grande influência na
obra do poeta português. Tentaremos demonstrar como se efetuou essa influência,
estabelecendo pontos de convergência e intertextualidade entre os dois escritores, tanto do
ponto de vista formal quanto dos temas escolhidos, observando alguns poemas relevantes
da produção pessoana. Investigaremos também alguns aspectos dessemelhantes
encontrados nas obras dos poetas citados. Nesse processo serão estudados mais de perto os
poemas Saudação a Walt Whitman, Ode Triunfal e Passagem das Horas de Campos, além
dos poemas que compõem O Guardador de Rebanhos de Caeiro.
Palavras-chave
Walt Whitman; Fernando Pessoa; Álvaro de Campos; Alberto Caeiro;
Modernismo; influência; inspiração; sensacionismo.
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Abstract
Facó, Maria do Carmo; Berardinelli, Cleonice. Whitmanian Reverberations in
Pessoa’s Universe. Rio de Janeiro, 2007. 65 p. Master’s Degree Disssertation
Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
This work aims at confirming the importance of Walt Whitman’s work, Leaves of
Grass, in Fernando Pessoa’s poetic production. His contact with the American poet was
paramount for the appearance of two of his most significant heteronyms: Álvaro de
Campos and Alberto Caeiro. Whitman, who still in the mid XIX century was already a
forerunner of Modernism, supposedly had great influence over the Portuguese poet’s
work. We will attempt to demonstrate how this influence was exercised, by establishing
convergence and intertextuality points between the two authors, both as far as form and
themes are concerned, observing some relevant poems in the pessonian production. We
will also investigate some differences found in the comparison of the poets’ works. In the
process, the following poems will be studied more closely: Saudação a Walt Whitman,
Ode Triunfal, and Passagem das Horas by Campos, besides the poems that make up O
Guardador de Rebanhos by Caeiro.
Keywords
Walt Whitman; Fernando Pessoa; Álvaro de Campos; Alberto Caeiro; Modernism;
influence; inspiration; sensacionism.
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Sumário
1. Considerações Iniciais 10
2. Fernando Pessoa e a língua inglesa 12
3. Walt Whitman e o ‘modernismo antecipado’ 16
4. Encontro com Whitman 18
5. Vanguarda Européia e a Revista Orpheu 20
6. Álvaro de Campos 24
6.1. Song of Myself e Saudação a Walt Whitman 30
6.2. Unanimismo e Sensacionismo 34
6.3. Song of Myself e Ode Triunfal 37
6.4. Baudelaire e a Modernidade 39
7. Alberto Caeiro 42
7.1 A Ética da Simplicidade 45
8. Dessemelhanças entre os dois poetas 53
9. Considerações Finais 61
10. Bibliografia 64
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1.
Considerações Iniciais
Qualquer tentativa de desvendar a obra de Fernando Pessoa será sempre
dar braçadas num mar infinito e profundíssimo. Não sua obra tem sido
estudada por um sem número de intelectuais de todo o mundo, como se presta a
sempre novas e originais interpretações, tamanha a riqueza de sua linguagem
poética. Nesse vasto mar, procuraremos chegar a alguma praia que nos resgate do
afogamento das palavras vãs.
Embora Portugal sempre tenha tido uma respeitável e reconhecida tradição
poética, encimada pelo grande Camões, foi através do Modernismo Iconoclasta
veiculado pela genialidade de Pessoa que sua poesia se expandiu para além do
território lusitano, despertando o interesse de estudiosos por toda a Europa, Brasil
e Estados Unidos. É justamente a este país que retornamos para encontrar aquele
que foi um grande catalisador da poesia pessoana: Walt Whitman.
A presente dissertação tem por objetivo pesquisar até que ponto Leaves of
Grass
1
, a obra prima de Whitman, impactou a produção poética de Fernando
Pessoa. Procuraremos demonstrar como o poeta português absorveu e transformou
esse impacto, observando o efeito prismático que a leitura de Whitman causou,
pois sua deflagração no universo de Pessoa ecoou não apenas no hiperbólico e
exaltado Álvaro de Campos, como também no poeta da ‘natureza’ aqui
representado por Alberto Caeiro, acentuando, assim, a enorme importância que
teve para o processo criativo da “mãe que lhes deu à luz”.
Utilizar-se-ão para essa análise, que busca detalhar alguns aspetos de
influência e intertextualidade, Song of Myself poema que inicia Folhas de Relva,
e considerado o mais representativo da poética whitmaniana –, os poemas
Saudação a Walt Whitman, Ode Triunfal, Ode Marítima e Passagem das Horas
de Álvaro de Campos, e alguns poemas de O Guardador de Rebanhos de Alberto
Caeiro.
1
Todas as citações dessa obra de Whitman, do posfácio de Rodrigo Garcia Lopes, assim como a
maioria das traduções contidas nesse trabalho, foram retiradas do volume: WHITMAN, Walt.
Leaves of Grass = Folhas de Relva / tradução e posfácio Rodrigo Garcia Lopes. São Paulo:
Iluminuras, 2006, e a ele nos referiremos apenas como Leaves of Grass.
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11
Escolhemos essa aproximação exegética, pois foi o próprio Álvaro de
Campos quem colocou os três poetas juntos na segunda parte de seu artigo
publicado no número quatro da revista Athena, intitulado “Apontamentos para
uma Estética Não-Aristotélica”, onde categórica e peremptoriamente afirma:
“até hoje[...] houve três verdadeiras manifestações de arte não aristotélica. A
primeira está nos assombrosos poemas de Walt Whitman; a segunda está nos
poemas mais que assombrosos do meu mestre Caeiro; a terceira está nas duas
odes – a Ode Triunfal e a Ode Marítma – que publiquei no Orpheu. Não pergunto
se isto é imodéstia. Afirmo que é verdade.”
2
Usando essa afirmação de Pessoa como ponto de partida para essa tríade,
que elege esses poetas como os fundadores de uma ruptura poética, estaremos
seguindo a sugestão de um dos grandes estudiosos de Pessoa, Eduardo Lourenço,
que nos diz logo na abertura de seu livro Fernando, Rei da nossa Baviera
3
:
“Custa-me imaginar que alguém possa um dia falar melhor de Fernando Pessoa
que ele mesmo. Pela simples razão de que foi Pessoa quem descobriu o modo de
falar de si tomando-se sempre por um outro.”
Observadas as convergências, sugeriremos também em que aspectos o
poeta americano e o português divergem e seguem caminhos diferentes na
composição de suas poéticas tão essenciais à literatura ocidental.
2
Posfácio de Richard Zenith - Fernando Pessoa – Poesia completa de Alberto Caeiro. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005, p. 217.
3
LOURENÇO, Eduardo. Fernando Rei da nossa Baviera. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da
Moeda, 1986, p. 9.
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12
2.
Fernando Pessoa e sua relação com a língua inglesa
Eu não sei porquê,
Meu desde donde venho,
Sou o ser que vê,
E vê tudo estranho.
Fernando Pessoa
Fernando Pessoa, tendo sido criado em Durban, colônia inglesa na África do Sul,
para onde sua família se transferira devido ao fato de seu padrasto haver sido nomeado
Cônsul de Portugal, recebeu sua educação inicial em língua inglesa. Sua assimilação da
nova cultura se deu por completo, como não poderia deixar de ser, uma vez que fora
transplantado para essa terra estranha numa idade muito propícia, aos sete anos. Aluno
brilhante e sempre voltado às letras, naturalmente demonstrou, desde o início, interesse
pela literatura de língua inglesa. Além disso, em sua época, a hegemonia do mundo
pertencia à Inglaterra, e Portugal, embora possuísse algumas colônias, era um país de
importância secundária que, como outros países da Europa, se curvava ao colonialismo
britânico.
Seu primeiro poema em inglês foi escrito aos treze anos quando ainda era
estudante, e Charles Robert Anon e Alexander Search figuram entre os primeiros
heterônimos por ele utilizados enquanto ainda jovem. A escolha desses nomes revela,
desde então, as características de indefinição e busca, que revelaria mais tarde em seus
heterônimos da maturidade, uma vez que “Anon” e “Search” significam,
respectivamente, “anônimo” e “busca”.
Ademais, o bilingüismo de Pessoa pode também ter sido um dos fatores que
ensejaram o seu desdobramento em heterônimos, uma vez que as pessoas que
experimentam uma vivência cultural inserida em duas culturas diversas, se por um lado
enriquecem sua visão do mundo, por outro, têm sua identidade afetada e vivem numa
espécie de mundo paralelo que propicia uma tendência à indefinição e ao deslocamento.
Parece-nos também interessante lembrar que em fevereiro de 1904, Fernando
Pessoa, com apenas 15 anos, recebe, ainda em Durban, o prêmio “Queen Victoria
Memorial Prize”, destinado ao melhor ensaio em exames de matrícula na Universidade
do Cabo, concorrendo com outros 898 candidatos. O prêmio monetário deveria ser
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13
transformado em livros ao gosto do premiado. Apesar de ainda adolescente, escolhe as
obras completas de Ben Jonson, as Vidas dos Poetas de Dr. Johnson, além das obras
poéticas de John Keats, Tennyson e Edgar Allan Poe escolhas nada vulgares para sua
idade e que já definem seu refinamento literário e o escritor em potencial que se
revelaria mais tarde.
Georg Rudolf Lind, no prefácio do livro Páginas Íntimas e de Auto-
interpretaçaõ,
44
menciona a importância que a língua inglesa teve na formação e caráter
do poeta, quando afirma que: “as poucas notas realmente autobiográficas datam, quase
todas, da primeira mocidade (e foram, por isso escritas em inglês), quando o jovem
andava a procura do seu destino”. Destino esse que, como bem se sabe hoje em dia, foi
inteiramente traçado para compor o desenho de uma obra magistral, e em muitos
aspectos insondável, acolhida em todos os cantos do planeta.
Maria da Encarnação Monteiro também reafirma esse mesmo aspecto em seu
livro Incidências inglesas na Poesia de Fernando Pessoa
5
, ao dizer:
Vem 1914, o “ano triunfal” da criação literária de Poeta e Alberto Caeiro, o Mestre, e
Álvaro de Campos, “engenheiro sensacionista”, não podem negar as fundas afinidades
na expressão e em algumas facetas do conteúdo ideológico, com o poeta-cosmos, Walt
Whitman, “filho da poderosa Manhattan”, o assombroso representante do ideal
dionisíaco em literatura.
Um outro argumento que nos parece relevante é o de que a língua inglesa serviu
a nosso poeta como meio de subsistência, uma vez que ele se mantinha com as
traduções de correspondências para empresas de importação e exportação. Além disso,
são famosas as inúmeras traduções literárias feitas por ele de obras de autores
renomados como The Scarlet Letter, de Hawthorne, e de contos e poemas de Edgar
Alan Poe, entre outros, além de ter vertido poemas de Camões para o inglês. Obras
esotéricas de grande importância também se incluem em sua produção como tradutor,
como A Clarividência, de Anne Besant, e A Voz do Silêncio de Helena Blavastsky.
Pode-se acrescentar, de passagem, que todas essas obras tiveram também grande
importância em sua criação poética.
4
PESSOA, Fernando. Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Lisboa: Edições Ática. p. XIII, 1966.
5
MONTEIRO, Maria Encarnação. Incidências Inglesas na Poesia de Fernando Pessoa. Coimbra:
Coimbra Editora, 1956, p. 24.
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14
Em suas leituras, vários autores ingleses aparecem entre seus favoritos, como
Shakespeare, Milton, Matthew Arnold, Francis Bacon, Robert Browning, Charles
Dickens, para citar alguns. Além disso, Pessoa produziu extensa obra escrita em inglês:
os “35 sonnets” em 1912 ou 1913, que seriam publicados em 1918 e que,
curiosamente, segundo o próprio Pessoa, foram uma tentativa de escrever à maneira de
Shakespeare; o poema “Antinuous”, de 1915; Inscriptions”, datado de 1920; e
“Epithalamium” de 1913. Esses poemas foram reunidos sob o título de English poems I,
II e III. Mais tarde, na revista inglesa The Athenaeum, Pessoa publicaria o poema
“Meantime” aos 30 de janeiro de 1920. Seu heterônimo, Thomas Crosse, traduziu para
o inglês alguns poemas de O Guardador de Rebanhos (The Keeper of Sheep), além de
ter escrito um longo prefácio sobre essa obra.
Outro ponto que confirma o débito pessoano para com a cultura inglesa é o fato
de, em sua carreira literária, ele jamais haver desistido de se apresentar como poeta
inglês, tendo, inclusive, retirado o acento circunflexo que originalmente havia em seu
nome Pessôa com o objetivo de torná-lo mais “cosmopolita”. Em março de 1923,
publicou, em Portugal, na Revista Contemporânea, o poema “Spell”. Álvaro de
Campos, um dos heterônimos que mais se aproxima do poeta ‘ele-mesmo’, ‘fez seus
estudos de engenharia em “Glasgow”, e a Ode Triunfal, talvez o seu poema mais
eminentemente inspirado em Whitman, foi escrito em “Londres”.
Mesmo em seu último suspiro, pouco antes de morrer, Fernando Pessoa pediu
uma folha de papel para escrever suas últimas palavras. Não foi a língua portuguesa a
escolhida para esse momento de despedida, mas sim, mais uma vez, a língua inglesa,
que havia iniciado seu caminho literário e que agora o fechava com a frase:I know not
what tomorrow will bring”
6
. Referir-se-ia o poeta ao futuro de sua obra, à repercussão
de seus poemas no mundo que os recebeu durante sua vida de forma tímida e pouco
acolhedora? Ou, ainda, questionava ele o destino de sua alma após a passagem para o
outro lado, uma problemática metafísica tantas vezes presente em sua produção
literária? Seja qual for sua verdadeira indagação, não teria sido ele inconscientemente
inspirado pelos sintagmas que adornam a parte final do longo poema de Whitman, The
Sleepers
7
, cujo tema a noite tanto se aproxima da indefinição da morte? I know not
how I came of you, and I know not where I go with you…”
8
6
Não sei o que trará o amanhã
7
Os Adormecidos
8
Não sei como vim de você, nem sei aonde vou com você...
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Parece-nos bastante claro que todos esses fatos contribuem para enfatizar e
confirmar a importância do idioma inglês em sua vida, tanto do ponto de vista
biográfico, quanto ao que concerne sua produção artística.
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16
3.
Walt Whitman e o ‘modernismo antecipado’
... o experimento mais audaz e mais vasto
que a história da literatura registra
Jorge Luis Borges
a propósito de Folha de Relva
Walt Whitman, pondo-se à frente de seu tempo, como ocorre quase sempre com
artistas geniais, embora ainda apresentasse traços românticos, antecipou os movimentos
da vanguarda européia e do modernismo, como detalharemos mais adiante.
Em julho de 1855 publicou a primeira edição de Folhas de Relva. Outras oito
edições surgiriam posteriormente, e em cada uma delas o poeta tentaria aprimorar sua
obra, uma vez que correções e novos poemas foram, pouco a pouco, a ela acrescentados,
ou em alguns casos, suprimidos. Segundo os críticos, no entanto, tais tentativas não
foram bem sucedidas, pois nenhuma dessas edições tardias continha a envergadura e o
impacto inicial da primeira edição. Esta obra inicial, e praticamente a única de sua
carreira, demorou muito a ser absorvida pela crítica. O próprio Whitman, para
minimizar esse efeito negativo inicial, escreveu diversos artigos anônimos nos jornais
elogiando-a e a seu autor.
Após o tempo necessário de ‘decantação’ para que pudesse ser devidamente
entendida e aceita, sua obra revolucionária teve significação ímpar não apenas nas
literaturas de língua inglesa, como na literatura mundial. Ralph Waldo Emerson, o
maior intelectual e figura literária da época, cujo transcendentalismo havia influenciado
Whitman, maravilhado com a leitura do livro, escreveu uma carta ao poeta onde
declarou: “Esfreguei meus olhos um pouco para ver se esse raio de sol não era ilusão” e
considerou Folhas de Relva como “a mais extraordinária peça de inteligência e
sabedoria que a América jamais produziu.”
Até esse momento, a literatura americana se encontrava totalmente submissa aos
cânones ditados pela Europa, embora vozes dissonantes se fizessem ouvir, como as
de Emily Dickinson e do próprio Emerson. É através de Walt Whitman que esse grito se
amplia e a literatura americana incorpora à sua expressão um definitivo lastro de
liberdade. Numa época de tantas transformações sociais, políticas e conflitos raciais,
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Leaves of Grass configura-se como uma Declaração de Independência da poesia
americana. Nas palavras do poeta e tradutor brasileiro, Mario Faustino:
Walt Whitman anuncia uma nova terra, um novo homem, uma nova liberdade, um novo
amor. E as coisas novas deviam ser ditas de uma forma nova criou ele o seu verso
originalíssimo, solto, flexível, expressivo e adaptável como poucos...
9
Num movimento, talvez inconsciente, que já antecipava as correntes modernistas
que surgiriam no início do século 20, de ruptura com a tradição e com os recorrentes
temas apresentados até então pela poesia, Whitman refletiu essa liberdade não só nestes,
quanto na maneira livre em que escrevia seus versos longos e brancos que, no entanto,
continham as cores de todas as camadas sociais e de uma profusão de temas que
abarcavam desde momentos ‘poéticos’ e bucólicos, até a descrição de cenas urbanas,
passando por experiências pessoais onde a sexualidade aparece como um de seus
grandes temas e que tanta polêmica gerou na sociedade puritana de então –,
ampliando-se até temas ligados à expansão da consciência e à universalidade.
A estrutura diversificada, rapsódica e peripatética de seus versos, acrescidos de
catálogos caóticos e sem unidade, que com freqüência rompiam a expectativa do leitor,
antecipava a característica modernista do fluxo de consciência que surgiria mais
tarde. É o próprio Campos quem nos adverte para essa magnitude e multiplicidade em
Saudação a Walt Whitman:
Nunca posso ler os teus versos a fio... há ali sentir de mais...
Atravesso os teus versos como a uma multidão aos encontrões a mim,
E cheira-me a suor, a óleos, a actividade humana e mecânica.
Nos teus versos, a certa altura não sei se leio ou se vivo,
Não sei se o meu lugar real é no mundo ou nos teus versos,
Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural,
Ou de cabeça pra baixo, pendurado numa espécie de estabelecimento,
No tecto natural da tua inspiração de tropel,
No centro do tecto da tua intensidade inacessível.
10
9
FAUSTINO, Mario. Poesia-Experiencia. São Paulo: perspectiva, 1976, p. 78 apud Leaves of Grass p.
216.
10
Todas as citações dos poemas de Álvaro de Campos são provenientes do volume: Poemas de Álvaro de
Campos / Fernando Pessoa; fixação do texto, introdução e notas de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1999. A ele nos referiremos com a sigla PAC, p. 68.
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18
4.
Encontro com Whitman
Uma originalidade arrebatadora
é o componente crucial do gênio literário,
mas essa mesma originalidade é sempre canônica,
à medida que reconhece e interage com os precursores.
Harold Bloom
He most honors my style
who learns under it to destroy the teacher
11
Walt Whitman
Registra-se 1914, justamente o ano da publicação de Orpheu, como a época do
primeiro contato de Pessoa com a obra de Walt Whitman. É reconhecida por críticos a
enorme influência que esta teria na poética de Fernando Pessoa, tanto do ponto de vista
estilístico quanto temático. Eduardo Lourenço
12
, no ensaio intitulado Walt Whitman e
Pessoa, nos ensina que a leitura de Folhas de Relva causou uma ‘perturbação absoluta’
em seu processo criativo, e acrescenta:
Do encontro de Pessoa com a poesia de Walt Whitman surgiu, [...] a totalidade da
arquitetura heteronímica. [...] Mas os heterônimos, tais como textualmente se
concretizaram, são o resultado da deflagração do universo de Pessoa confrontado
com o universo de Walt Whitman. Alberto Caeiro e Álvaro de Campos foram, para
Pessoa, a maneira como integrou
13
o impacto fulgurante de Whitman sem se
desintegrar ao seu contato.
Tal desintegração realmente não poderia ter ocorrido, pois, mais que uma
influência, o que se passou entre os dois poetas foi uma verdadeira conexão que
estabeleceu um vínculo para além do espaço e do tempo. Não teria sido necessário nem
que, se a cronologia assim o permitisse, eles se tivessem encontrado, tamanha a
envergadura da comunhão de sensibilidades evidenciada entre os dois. Álvaro de
Campos, de certa forma, elege-se uma espécie de continuador da obra do bardo
americano, quando, em Saudação a Walt Whitman, encosta a morte de um ao
11
Mais honra meu estilo quem aprende como destruir o mestre.
12
LOURENÇO, Eduardo. Poesia e Metafísica. Lisboa: Sá da Costa editora, 1983, p. 157-261.
13
grifos do autor
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nascimento do outro: “E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias”.
Na realidade, sabemos que Álvaro de Campos “nasceu” em 1890 e que Whitman
viria a falecer em 1892.
No entanto, é justamente essa fusão que vai gerar um prolongamento, mas
também uma fissura, um rompimento com o “cantor da alma e do corpo” – como
Whitman também é conhecido –, pois é claro que, em se tratando do gênio que foi
Fernando Pessoa, ele teria que ir além, que trair, superar o seu mestre, obedecendo,
afinal, à exortação do próprio Whitman citada em nossa epígrafe.
Retomando o ensaio de Lourenço, gostaríamos de ressaltar o fato de ele se
referir aos dois heterônimos como “filhos de Walt Whitman”, pois o que ocorreu a partir
da leitura de Leaves of Grass não foi “mera influência formal,” embora nesse plano
ninguém o tivesse ultrapassado, mas sim uma perturbação absoluta no mecanismo
criador e na visão de mundo de Pessoa. Tentaremos desvendar, então, até que ponto se
estabelece essa ‘filiação’ ou esse rompimento com ela, e de que maneira cada
heterônimo absorveu e devolveu ao mundo essa união, segundo as características
próprias de cada um.
Campos, no qual o poeta põe toda a emoção que não ousou sentir como ele-
mesmo, eufórico e desvairado, no afã de ser tudo de todas as maneiras”, pinta um
desenho da confusão da civilização moderna e de suas contradições, para, assim,
esquecer-se de si mesmo e da enorme angústia existencial que o atormenta.
Caeiro, mais contido e “objetivo”, comunga com Whitman nos aspectos mais
relacionados à observação da natureza, num moderno panteísmo iconoclasta, enquanto,
paralelamente, observa não o mundo a sua volta, mas também, metalinguisticamente,
a sua obra.
Essas duas vertentes inspiradas pelo ‘velho’ Walt serão abordadas com mais
detalhes e oportunamente exemplificadas em nosso trabalho.
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20
5.
Vanguarda Européia e a Revista Orpheu
Cada palavra que cai de sua boca demonstra
silencioso desdém e desafio às velhas teorias e forma.
Cada frase anuncia novas leis;
nem uma vez seus lábios se abrem,
senão em conformidade com eles.
Walt Whitman sobre Walt Whitman
Na Europa no fim do século 19, surge, quase ao mesmo tempo, principalmente
na França, Itália e Alemanha, uma plêiade de novos movimentos ao mesmo tempo
diversos e semelhantes, pois todos têm um traço em comum: a busca de originalidade e
a criação de novas correntes estéticas que preconizem a ruptura com a tradição,
podendo, assim, espelhar a insatisfação do homem moderno com as repetições de temas
e técnicas da arte feita até então. A aparição desse novo homem multifacetado, que
precipita novos canais de expressão na arte, filosofia, ciência e sociologia, busca
expressar a complexidade interna e externa de sua trajetória na terra.
Na literatura, Rimbaud, Verlaine e Mallarmé haviam aberto a porta de acesso a
essa nova via que então se descortinava. Segundo Paul Valéry:
A extrema diversidade de suas obras ajustando-se à variedade dos modelos oferecidos
pelos poetas da geração precedente, permitiu e permite conceber, sentir e praticar a
poesia de uma quantidade admirável de maneiras muito diferentes.
14
Dando continuidade a essa tendência, no período que vai de 1886 a 1914,
entramos em contato, na Europa, com uma arte boêmia, inquieta e rebelde que produzirá
uma série de movimentos de vanguarda que influenciarão mais tarde a literatura
portuguesa. Entre eles destacamos:
O futurismo, liderado na França e na Itália por Marinetti, que, através de mais de
30 Manifestos, de forma agressiva e intransigente, se colocava radicalmente contra a
arte vigente, a ponto de achar que obras do passado devessem ser destruídas. Marinetti
exaltava a vida moderna, o culto da máquina e da velocidade, enquanto rompia com a
14
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. Petrópolis, RJ: Vozes,
1997, p. 41.
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21
lógica e a sintaxe, a favor da imaginação e das palavras em liberdade. O expressionismo
alemão reivindicava a expressão da vida interior e a insatisfação com a vida objetiva,
identificando-se com os aspectos oníricos e mitológicos, enfim, com tudo o que
escapasse do raciocínio e da lógica.
Também o cubismo, embora usado primordialmente para designar a obra dos pintores
franceses, será importante para a literatura por ter servido de inspiração para o
Interseccionismo criado por Fernando Pessoa, além de fomentar em ambas as
expressões artísticas uma quebra dos paradigmas anteriores. Preconizava nas artes
plásticas o rompimento com a perspectiva renascentista, e na poesia a ruptura com a
métrica e com a unidade temática.
Fernando Pessoa veio a público pela primeira vez em 1912 através de uma série
de artigos para a revista A Águia, intitulados “A nova poesia portuguesa”, divididos em
duas partes: “A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada” e “A nova
poesia portuguesa no seu aspecto psicológico” onde, de certa forma, anuncia sua
própria aparição no cenário literário português, ao prever a chegada do “Supra-
Camões”. Em 1914, na revista A Renascença, publica os poemas ‘Pauis’ e ‘Ó sino da
minha aldeia’, agrupados sob o título Impressões do Crepúsculo, sugestivo título em
conformidade com a tendência ainda simbolista da época. Nasce o Paülismo, que
aproveita o legado deixado por Teixeira de Pascoaes, mas vai além, caracterizado pelo
sentimento do “vago, sutil, complexo”, um certo desrespeito à gramática, o escrever
suspenso, pontuado de reticências e hiatos do pensamento, que encontrará vários
adeptos em Orpheu, notadamente Mário de Sá-Carneiro.
Após o Paülismo, Fernando Pessoa criará ainda o Sensacionismo e o
Interseccionismo. O primeiro diretamente influenciado pelo Futurismo de Marinetti, e,
como veremos adiante, também por Walt Whitman, estaria relacionado com a
apreensão múltipla da realidade através das sensações e a utilização do poema para a
conversão dessas mesmas sensações. O Interseccionismo, proveniente do
Sensacionismo, seria a contrapartida do Cubismo na literatura, definido nas palavras do
próprio Fernando Pessoa como: “o sensacionismo que toma consciência de cada
sensação ser, na realidade, constituída por diversas sensações mescladas.
15
Em 1914, período marcado pela efervescência criadora de nosso poeta, surgem
os principais heterônimos de Fernando Pessoa, “deflagrados”, como vimos, após a
leitura de Walt Whitman. Nesse primeiro momento, ainda são por ele chamados de
15
PESSOA, 1966, p. 187.
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22
pseudônimos, cuja genealogia até hoje é matéria de aprofundados estudos. Um deles
seria inaugurado com uma ‘triunfante’ aparição no ano seguinte, na revista Orpheu:
Álvaro de Campos, com Opiárioe Ode Triunfal’ foi, assim, o primeiro heterônimo a
vir a público.
A revista, lançada simultaneamente em Portugal e no Brasil, em março de 1915,
tem seu início com a reunião de alguns artistas poetas e pintores que, fugindo da
guerra no resto da Europa e imbuídos das correntes modernistas da época, voltam a
Lisboa e reúnem-se, com os que aqui haviam permanecido, nos cafés da Baixa, onde
partilham seus gostos e aspirações literárias e decidem fundar uma nova revista
patrocinada pelo pai de Mário de Sá-Carneiro. A princípio haviam escolhido o nome
Esfinge, muito ao gosto de Sá-Carneiro, para depois o mudarem para Europa, numa
clara tentativa de incorporar Portugal às vogas do momento e afastar o isolamento em
relação à Europa a que sempre esteve destinado. Não dúvida da importância desse
momento para a cultura de língua portuguesa. Não apenas a revista veiculou poemas de
vanguarda, mostrando em Portugal uma poesia inovadora e genial, mas também serviu
como um ícone, um marco de uma nova era para a literatura lusitana. Nas palavras de
Maria Aliete Dores Galhoz:
“Que constitui, pelo que nos parece, a persistência reconhecida atual de Orpheu? Por
um lado o seu texto poético considerando-o puramente um todo elaborado de criação
e realização que toca mais uma vez o plano da poesia maior e guarda a exigência de
primeiras grandezas onde já não é maior. Esta é a validade inlocalizada de Orpheu! Por
outro lado, a sua importância como acontecimento, que forçou um incomum mas
indispensável ponto de referência no fluir da nossa vida cultural”
16
Seus participantes, jovens ousados e rebeldes, pintores e poetas, além de
quererem exprimir seus talentos incontestáveis, tinham também como objetivo chocar,
agredir o burguês lepidóptero’, e balançar a estagnação do provincianismo português.
Sabiam que estavam à frente de seu tempo e que não seriam compreendidos. O próprio
Pessoa não só o atesta como antecipa o caráter universal dessas obras:
16
ORPHEU 1 e 2, 1915; 2
a
edição, Lisboa. Contexto, 1994, p. 23.
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23
“Somos portugueses que escrevem para a Europa, para toda a civilização; nada somos
por enquanto, mas aquilo que agora fizermos será um dia universalmente conhecido e
reconhecido.”
17
O título da revista nos fornece algum indício de seu conteúdo, situando-a num
âmbito mítico e simbólico. Na verdade, apesar de todo o vanguardismo que a
publicação preconizava, a metade dos poemas que figuram são ainda de forte teor
simbolista, alguns ainda paúlicos, seguindo a corrente iniciada por Fernando Pessoa, e
cerca de quarenta por cento do conteúdo da revista pode ser considerado realmente
modernista, por conter elementos futuristas, interseccionistas e até pré-surrealistas.
Na ‘Ode Triunfal’ de Álvaro de Campos encontram-se muitos elementos dos
Manifestos Futuristas de Marinetti, assim como a influência de Walt Whitman, mais
precisamente do poema I sing the body electric’. Nele, num Sensacionismo delirante
que tudo quer abraçar, entramos em contato com a apologia da máquina e do progresso,
o uso de longas enumerações, os ambientes urbanos, a moda, a velocidade, a
efemeridade das notícias, as diversas profissões surgidas com a industrialização, enfim,
a representação do Eu moderno, secular. Em outras palavras, muitos dos temas que
haviam sido, em meados do século XIX, genialmente antecipados por Whitman.
17
PESSOA, 1966, p. 187.
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6.
Álvaro de Campos
Tenho escrito mais versos que verdade.
Tenho escrito principalmente
Porque outros têm escrito.
Se nunca tivesse havido poetas no mundo,
Seria eu capaz de ser o primeiro?
Nunca!
....
Sentir tudo de todas as maneiras
Álvaro de Campos
A primeira epígrafe nos insere no contexto da aceitação por Pessoa de
possíveis influências que teria recebido de vários poetas seus precursores e da
necessidade de suas existências, para que ele também tivesse, com seu trabalho artístico,
dado continuidade à sua própria existência como poeta. Poeta da multiplicidade, dos
mais diferentes modos de sentir e interpretar o mundo, ser um não lhe foi suficiente.
Ciente da fragmentação do ser tão evidenciada pela modernidade sentiu a urgência
da criação de heterônimos, que, por sua vez, através do sensacionismo, também se
subdividem em muitos. Assim, chegamos à segunda epígrafe para explicar sua escolha.
Por mais que essa última epígrafe, que abre o poema Passagem das Horas,
tenha sido utilizada em diversas empreitadas exegéticas como um dos principais
aspectos que sintetizam a primeira fase da obra de Álvaro de Campos, não poderíamos
deixar de mencioná-la, tal sua importância de ponto de união entre o bardo americano e
o modernista português, como tentaremos demonstrar.
A idéia de um sentir hiperbólico e diversificado presente em Campos poderia
configurar-se como uma extensão do sentimento que motivou o surgimento dos
heterônimos, pela necessidade de experimentar todas as sensações e também o desejo de
saber o que todos sentem e fazem. Tal ânsia de onisciência e onipresença representaria
uma maneira de se afastar de si, de sua angústia e incompletude existenciais. Assim
como Whitman que afirma: all these I feel or am”, Campos nos diz na Passagem das
Horas::
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25
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma cousa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.
18
Assim, é Álvaro de Campos o heterônimo pessoano que, de imediato, mais se
assemelha ao poeta americano. Talvez essa pronta identificação se deva ao fato de a
forma ser mais imediatamente percebida do que os meandros e múltiplos significados
que o conteúdo encerra, sobretudo em um poeta cuja ambigüidade e contradição se
revelam como uma marca pulsante de sua natureza esfíngica.
A semelhança entre os dois criadores, quanto à forma, deve-se aos longos versos
livres e brancos, às extensas enumerações, inclusive caóticas, às exclamações exaltadas,
além de outros recursos poéticos, como paralelismos e anáforas.
As enumerações podem ser articuladas com uma nova técnica da qual Whitman
foi grande entusiasta: a fotografia. Não apenas deixou-se fotografar inúmeras vezes,
como em seu próprio livro introdutório, aparece em uma foto que nos várias
indicações de seu estilo e ‘postura’ diante da arte e da vida. Em uma pose desafiadora e
portando vestimentas simples e informais, reitera visualmente a proposta de ruptura que
seus poemas encerram.
Embora criticada por alguns como substituta da pintura, a fotografia era utilizada
então para a compilação de catálogos de imagens. Da mesma forma, Whitman introduz
em seus versos, em suas longas enumerações, diferentes tipos de descrições, onde cada
verso corresponderia ao passar das páginas de um álbum fotográfico. Podemos
praticamente visualizar essa intenção, ou esse novo olhar que capta um momento vital,
no trecho a seguir, entre tantos outros, no qual o uso do verbo no presente e de uma
construção anafórica enfatizam essa captação do momento:
The pure contralto sings in the organloft,
The carpenter dresses his plank . . . . the tongue of his foreplane whistles its wild
ascending lisp,
The married and unmarried children ride home to their thanksgiving dinner,
The pilot seizes the king-pin, he heaves down with a strong arm,
The mate stands braced in the whaleboat, lance and harpoon are ready,
The duck-shooter walks by silent and cautious stretches,
The deacons are ordained with crossed hands at the altar,
The spinning-girl retreats and advances to the hum of the big wheel,
18
PAC, p. 92.
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26
The farmer stops by the bars of a Sunday and looks at the oats and rye,
The lunatic is carried at last to the asylum a confirmed case,
19
E ele prossegue infinitamente, citando outros tipos humanos: o tipógrafo, o
anatomista, a mulata, o bêbado, o maquinista, o policial, o porteiro, que fazem parte de
seu arquivo infinito de captação de uma realidade que tudo inclui e da qual nada se pode
subtrair.
Este mesmo anseio de inclusão é observado em Campos, quando igualmente
cita, em Passagem da Horas, um complexo números de personagens:
O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece,
O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria,
E...
E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças,
O ladrão de estradas, o salteador dos mares,
O gatuno de carteiras, o sombra que espera nas vielas
Todos são a minha amante predilecta pelo menos um momento na vida.
20
Também nesse mesmo poema, nos deparamos com uma interessantíssima e ultra
moderna colagem caleidoscópica, que o próprio poeta compara seu monóculo a um
caleidoscópio na qual ele descreve as intensas e simultâneas atividades de um
momento urbano. Nesse contexto, a palavra rua se desloca e se interconecta com os
mais variados elementos físicos, pontuando todos os momentos do poema e
atravessando como um raio a percepção do poeta que apreende todos os detalhes
fragmentados que o cercam. Os poucos verbos da construção sintática, primordialmente
composta por substantivos que realçam a concretude da descrição, também estão no
presente ou no infinitivo para, assim como o faz Whitman, valorizarem a captação do
momento presente.
19
Leaves of grass, p. 60.
A voz pura do contralto canta na galeria do órgão,
O marceneiro apronta sua prancha.... a língua da paina assovia seu cicio selvagem e ascendente,
As filhos casados ou solteiros voltam ao lar pra ceia de Ação de Graças,
O piloto segura firme o leme, gira-o para baixo com o braço forte,
O imediato braceja a baleeira, prepara a lança e o arpão,
O caçador de patos caminha em silêncio, pé ante pé,
Os diáconos são ordenados com as mãos cruzadas diante do altar,
A jovem tecelã vai e vem junto com o zum da roda imensa,
O fazendeiro pára nos balcões de domingo e olha a aveia e o centeio,
O lunático é enfim levado pro asilo, caso confirmado,
20
PAC, p. 93.
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27
Rumor tráfego carroça comboio carros eu-sinto sol rua,
Aros caixotes trólei loja rua vitrines saia olhos
Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua
Passeio lojistas «perdão» rua
Rua a passear por mim a passear pela rua por mim
Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá
A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos oblíquos das montras,
O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua
O meu passado rua estremece camion rua não me recordo rua
Eu de cabeça pra baixo no centro da minha consciência de mim
Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua
Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés
Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços
Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno,
Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua.
21
Reunindo os dois textos acima e ainda sobre esse uso da palavra como um
substituto da visualidade fotográfica, é interessante lembrar o ensaio de Rolland Barthes
intitulado, A Câmara Clara”, onde, segundo o autor, ao nos depararmos com uma
determinada fotografia, sempre nos chama a atenção a percepção de um detalhe, que o
autor descreve como algo que:
[...] parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar. [...] remete também à idéia
de pontuação e em que as fotos de que falo são, de fato, como que pontuadas, às vezes
até mesmo mosqueadas, com esses pontos sensíveis; essas marcas, essas feridas são
precisamente pontos. A esse segundo elemento [...] chamarei então punctum; pois
punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte [...] O
punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me
fere).
22
Numa livre associação, percebem-se nas passagens acima, descrições que se
assemelham a essas fotografias que exercem sobre o leitor essa mesma função de
destacar determinados pontos sensíveis, que nos atravessam como uma flecha, “ferindo”
nossa sensibilidade.
A mancha gráfica utilizada por ambos os poetas é bastante semelhante, uma vez
que ambos fazem uso de versos longos inseridos em extensos poemas, como o são Song
of Myself, Passagem das Horas e as Odes Marítima e Triunfal. As odes, embora
bastante longas, não chegam a ter as mais de 50 páginas do principal poema de
Whitman. Comprovando essa assertiva, gostaríamos de citar Cleonice Berardinelli ao
21
PAC, p. 100.
22
BARTHES, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. 4a ed. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1993, p. 30.
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28
discorrer sobre Álvaro de Campos, em seu artigo que analisa a trajetória dos diferentes
eus pessoanos:
[...] começou futurista e sensacionista, apregoando a beleza do presente e do futuro,
fazendo o elogio da máquina e do progresso; estimulando-se artificialmente com doses
maciças de Walt Whitman, para imitá-lo na sua fraternidade feroz e terna”, na sua
“inspiração de tropel”, na sua “intensidade inacessível”.
23
Para comprovar mais um ponto de aproximação no que concerne à forma
utilizada por ambos em seus poemas, gostaríamos de trazer apenas algumas das dezenas
de exemplos de anáforas e paralelismos. Tais repetições conseguem o efeito de enfatizar
a continuidade, o movimento para frente, assim como a tentativa de ampliação e o
hiperbolismo das idéias. Construções que vemos em Whitman:
And I know that the spirit of God is the eldest brother of my own,
And that all the men ever born are also my brothers . . . . and the women my sisters and
lovers,
And that a kelson of the creation is love;
And limitless are leaves stiff or drooping in the fields,
And brown ants in the little wells beneath them,
And mossy scabs of the wormfence, and heaped stones, and elder and mullen and
pokeweed
24
encontramos também em Campos, na Passagem das Horas:
Ave, salve, viva a unidade veloz de tudo!
Ave, salve, viva a igualdade de tudo em seta!
Ave, salve, viva a grande máquina universo!
Ave, que sois o mesmo, árvores, máquinas, leis,
Ave, que sois o mesmo, vermes, êmbolos, ideias abstractas,
25
na Saudação a Walt Whitman,:
Todo o Universo de cousas, de vidas e de almas,
Todo o Universo de homens, mulheres, crianças,
Todo o Universo de gestos, de actos, de emoções, de pensamentos,
23
BERARDINELLI, Cleonice. Estudos de literatura Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional -Casa da
Moeda, 1985, p. 223.
24
Leaves of Grass, p. 50.
E eu sei que o espírito de Deus é meu irmão mais velho,
E que todos os homens que já nasceram até hoje são meus irmãos .... e todas as mulheres minhas irmãs e
amantes,
E que o amor é a quilha da criação;
E infinitas são as folhas tensas ou pensas pelos campos,
E as formigas marrons nas poças sob elas,
E a sebe cheia de ervas de musgos, pilha de pedras, sabugueiro, verbasco e erva-dos-cancros.
25
PAC, p. 105.
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29
Todo o Universo das cousas que a humanidade faz,
26
na Ode Triunfal:
Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
27
e na Ode Marítma:
Os navios que entram a barra,
Os navios que saem dos portos,
Os navios que passam ao longe
28
As similitudes entre os dois autores encontram-se não apenas no que diz respeito
à forma, mas também aos temas, e, no que concerne à temática, não seria exagero
sugerir que o Sensacionismo criado por Fernando Pessoa e tão amplamente utilizado
por Álvaro de Campos, assim como sua inclinação para uma literatura de cunho
unanimista ambos tão presentes em Whitman também poderiam ter sido por ele
inspirados. Prova disso é encontrarmos em ambos os autores versos bastante parecidos,
embora, o poeta português tenha, repetimos, de forma genial e única, sabido imprimir-
lhes sua marca indelével.
Assim, Pessoa se aproxima de Whitman, absorve-o, e como veremos, supera-o,
pois os prenúncios de modernidade que se percebem em Walt Whitman são retomados,
e ainda ampliados em Campos, que é um dos mais exatos e exaltados representantes da
Modernidade em Portugal.
26
Ibidem, p. 71.
27
Ibidem, p. 26.
28
Ibidem, p. 37.
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30
6.1
Song of Myself e Saudação a Walt Whitman
E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,
De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.
Álvaro de Campos
Sê plural como o universo
Fernando Pessoa
Em alguns autores a história de suas vidas pode não ter grande importância se
confrontadas com suas obras. Tal não é o caso de Walt Whitman. O autor nasceu numa
época em que os Estado Unidos, país novo e em plena formação de sua identidade,
lutava para conciliar os diferentes grupos étnicos que empreendiam uma dura luta pela
sobrevivência e pela superação das dificuldades. Além disso, o país buscava libertar-se
das imposições sócio-políticas e culturais provenientes da Inglaterra e da Europa, de um
modo geral.
Nesse panorama eminentemente pragmático, a literatura não ocupava um lugar
de destaque, apesar de já existir um time de escritores de primeira linha que a essa altura
contribuíam de forma efetiva para a criação de uma afirmação cultural naquele país:
Herman Melville (que curiosamente também vivia em Nova York, conhecia Whitman
de vista, mas nunca chegou a ter um encontro com ele), Ralph Waldo Emerson (que
escreveu a famosa carta que Whitman levava consigo em seu bolso e que tanto o
defendeu dos ataques’ conservadores), Edgar Allan Poe, Henry David Thoreau e
Nataniel Hawthorne, entre outros.
O poeta vivenciou uma situação familiar complicada, pois sua numerosa família
– Whitman teve nove irmãos – tinha problemas financeiros e ele, durante bom tempo de
sua vida, foi-lhe arrimo, cuidando devotadamente de um irmão retardado e de outro,
louco. Whitman sempre se sentiu responsável pelos seus e cuidava dos irmãos como se
fossem seus filhos. Por coincidência, o ano de lançamento de Leaves of Grass foi
também o ano da morte de seu pai e ele teve que assumir, dessa forma, quase
simultaneamente, o papel de ‘pai’ de seus irmãos e da moderna poesia americana.
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31
Com um âmbito de ação bastante extenso, pois além de poeta foi também
professor, tipógrafo e jornalista, fez de sua obra não apenas um veículo da capacidade
criativa do grande artista que era, mas também um eco das características de uma época
a valorização do homem e de sua atuação no mundo, aliados a questionamentos
espirituais e filosóficos, sem deixar, contudo, de apontar as injustiças do mundo e os
horrores da guerra, incorporando, assim, à sua escrita, temas de relevância para o século
em que nasceu.
O ambicioso poema Song of Myself, que ocupa mais de 50 páginas e cerca da
metade do volume inicial de Leaves of Grass, revela especial interesse em nosso estudo,
pois possui vários aspectos que não apenas introduzem traços do modernismo, como – e
por isso mesmo – teriam servido de referência à poética pessoana.
Nele, Walt Whitman, de forma abrangente e heterogênea, à maneira de um
jornalista antenado com a realidade e interessado em vários assuntos, apresenta ao leitor
um caleidoscópio de temas que contemplam os mais variados assuntos e que mais
parecem versões amadurecidas de uma prosa jornalística. E de fato o eram, uma vez que
seus poemas aproveitam várias das anotações contidas em seus cadernos onde estão
compiladas notícias e temas do dia a dia que ele ‘amadurece’, transformando-as em
poesia.
Por detrás da aparente temática solipsista que o título do poema sugere, assim
como o primeiro verso I celebrate myself que faz a promessa de celebração do eu
poético, o que na realidade encontramos em seus versos é uma espantosa variedade de
temas, que expressam desde o mundo material em torno do poeta – com todas as
paisagens e seres que dele fazem parte – à transcendência cósmica.
Seu leque de assuntos é vastíssimo e se estende rizomaticamente pelos mais
diversos e contraditórios terrenos, num interminável delírio verbal. O material contido
no poema compreende: passagens eróticas, temas geológicos, astronomia, batalhas no
mar, massacres de guerra, vários animais descritos em suas atividades, índios, negros,
imigrantes, quakers, mulheres, crianças, vívidas descrições da natureza, vários tipos de
tendências religiosas, inúmeras profissões, cenas urbanas e do campo, estonteantes
expansões cosmológicas. Tudo isso sem excluir divagações metafísicas e
questionamentos espiritualistas.
Nessa múltipla sinfonia, tudo parece girar na órbita de sua percepção. O fluir de
surpresa em surpresa, formando catálogos agressivos e aparentemente aleatórios, parece
justamente o que se faz necessário para uma mente que nada quer excluir e que revela o
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32
paradoxo de ser um eu, com uma identidade própria e, ao mesmo tempo, todas as coisas
e todo o universo. Idéia como dissemos antes provavelmente inspiradora para o
Sensacionismo de Álvaro de Campos.
E toda essa miríade de quadros – todo esse mundo visível e invisível que
alimenta o pensamento do poeta surge sem cerimônia, sem uma narrativa estruturada
que possa dar ao leitor alguma linearidade a ser seguida. Entretanto, esse estilo
deliberadamente diverso, entrecortado, e que possui uma unidade apenas indireta,
termina por alcançar um efeito global. Assim como os diferentes instrumentos de uma
orquestra acabam harmonizando-se ao tocar uma bela sinfonia, o poema surge como o
grande herói dessa epopéia de palavras.
o é difícil imaginar como a percepção aguda e sensível de Pessoa se deixou
abalar por essa celebração da vida tão intensa e variada, por esse desejo de fusão com a
natureza, com os outros homens, enfim, com todo o universo.
A homenagem mais evidente que Fernando Pessoa jamais prestou a um autor foi
a composição de um poema, onde explicitamente, em seu título, isso fica
evidenciado: Saudação a Walt Whitman. Poderia haver uma forma mais clara de
informar a magnitude da importância que Whitman teve para o processo criativo de
Pessoa? Além disso, parece que a composição do poema deveras o preocupou, pois,
antes mesmo de compô-lo, elaborou um projeto onde detalhava sua estrutura.
Paralelamente ao poema propriamente dito, várias versões menores, como esboços
que são feitos antes da pintura final. Além desse ‘definitivo’ e consagrado poema,
um outro que se intitula apenas Walt Whitman. Essa foi a sua maneira de celebrar o
momento de encontro com aquele que chamou de “meu irmão em Universo”, “meu
grande herói”, “Meu velho Walt, meu grande Camarada,”.
A pluralidade de temas e sensações no poema introdutório de Leaves of Grass
foi bem apreendida por Pessoa que a ressalta em várias instâncias de seu poema-
homenagem de Álvaro de Campos; seja quando ele comenta o posicionamento do poeta
americano em versos como: “Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das
cousas.”, seja quando mostra sua ambivalência e anseio de totalidade no emprego
freqüente do pronome indefinido tudo, mas que nesse caso define muito bem o objetivo
do poeta de se consubstanciar com a totalidade do mundo, através do uso de palavras
que encerram antíteses, como na passagem:
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33
Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,
Grande democrata epidérmico, contíguo a tudo em corpo e alma,
Carnaval de todas as acções, bacanal de todos os propósitos,
Irmão gêmeo de todos os arrancos,
....................................................................................
Íncubo de todos os gestos,
Espasmo pra dentro de todos os objetos de fora,
29
Em ambos os poetas se percebe a ânsia pela liberdade de expressão, a
necessidade de se livrar das amarras impostas pelos cânones tradicionais impostos à
literatura, para que possa surgir a pulsão da criação original, quando exclamam,
ditirambicamente, em versos bem semelhantes, primeiro Whitman: “Unscrew the locks
from the doors! / Unscrew the doors themselves from their jambs!
30
Depois, Campos:
“Não quero fechos nas portas! / “Não quero fechaduras nas portas”. Idéia que vai num
crescendo, supera a sugestão de Whitman e culmina nos exaltadíssimos versos:
Abram-me todas as janelas!
Arranquem-me todas as portas!
Puxem a casa toda para cima de mim!
Quero viver em liberdade no ar,
31
Nesses poemas, escritos na primeira pessoa, em tom confessional como
frequentemente ocorre na poética de Campos, ambos parecem buscar a identidade com
Deus. Diz Whitman: “And I know that the hand of God is the elderhand of my own, /
And I know that the spirit of God is the eldest brother of my own,”
32
Enquanto Campos
afirma sensacionisticamente: “Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com
Deus, / Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa,”.
29
PAC, p. 67. Os grifos são nossos.
30
Leaves of Grass, p. 76.
Arranquem os trincos das portas! / arranquem as próprias portas dos batentes!
31
PAC, p. 74.
32
Leaves of Grass, p. 49.
E sei que a mão de Deus é minha irmã mais velha, / e sei que o espírito de Deus é meu irmão mais velho
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34
6.2
Unanimismo e Sensacionismo
A experiência poética, autêntica, aflora de regiões profundas da
alma, salutares e benéficas, preexistentes à segregação das
consciências individuais, e que, a partir desse regaço coletivo,
seguiram os seus passos dolorosos. Brota dessas regiões onde todos
os seres vibram ainda, em uníssono, e onde, consequentemente, a
sensibilidade e a ação do indivíduo valem para toda a humanidade.
Jung
O Unanimismo, ou seja, a expressão da vida e dos sentimentos coletivos, tão
bem e belamente descritos por Jung na epígrafe que acabamos de ler, e o papel do poeta
como divulgador e médium dessa expressão, estarão presentes tanto em Song of Myself
como em Saudação a Walt Whitman.
No primeiro poema inúmeros exemplos desta ânsia. Uma delas é o trecho a
seguir, no qual, após uma longa descrição de tipos humanos, homens vivos e mortos,
jovens e velhos, percebe-se no poeta o desejo de comunhão com eles:
The living sleep for their time....the dead sleep for their time,
The old husband sleeps by his wife and the young husband sleeps by his wife;
And these one and all tend inward to me, and I tend outward to them,
And such as it is to be of these more or less I am.
33
Ou em outras instâncias, quando afirma que é de: “Of every hue and trade and
rank, of every caste and religion”
34
; e mais adiante: “These are the thoughts of all men
in all ages and lands, they are not original with me”.
35
Ainda em Song of Myself, nos deparamos com versos onde é nítido o desejo de
união com a humanidade que, para o poeta, parece não ter fronteiras: “In all people I see
33
Leaves of Grass, p. 64.
Em seu tempo os vivos dormem....em seu tempo os mortos dormem,
O velho dorme ao lado da esposa e o jovem dorme ao lado da esposa;
Estendem-se pra dentro de mim, e eu me estendo para fora deles,
E, seja lá o que forem, mais ou menos eu sou.
34
Ibidem, p. 66.
De cada raça e cor e classe, de cada casta e religião.
35
Ibidem, p. 66.
Estes pensamentos são de todos os homens de todas as eras e terras, não se originaram comigo”.
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35
myself. None more and not one a barleycorn less,/ And the good or bad I say of myself I
say of them.”
36
Em Álvaro de Campos, possivelmente inspirado por Whitman, também
encontramos esse mesmo anseio de fusão, porém mais fortemente expresso pelo poeta
português: “Quero intercalar-me, imiscuir-me, ser levado, / Quero que me façam
pertença doída de qualquer outro,” Ou ainda nos versos:
Não quero intervalos no mundo!
Quero a contigüidade penetrada e material dos objetos!
Quero que os corpos físicos sejam uns dos outros como as almas
Não só dinamicamente, mas estaticamente também!
37
O Sensacionismo a apreensão da realidade através das múltiplas sensações e a
utilização do poema para a conversão dessas mesmas sensações que veio a lume com
a publicação da revista Orpheu, havia sido introduzido por Whitman, ainda que ele
não tivesse explicitamente criado essa vertente poética, como o fez Pessoa. E mais uma
vez cito a Saudação a Walt Whitman, em versos bastante representativos do
sensacionismo e do unanimismo, nos quais Campos expressa seu desejo de fusão não só
com seu grande heróimas com todo o universo: “E conforme tu sentiste tudo, sinto
tudo, e estamos de mãos dadas, / De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o
universo na alma.”
E mais além reafirma essa união e a profusão de sensações por aquele
inspiradas:
Meu velho Walt, meu grande Camarada, evoé!
Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade,
Sou dos teus, desde as sensações dos meus pés até à náusea em meus sonhos,
38
Muitas semelhanças ainda poderiam ser encontradas entre esses dois magistrais
poemas. Mostramos alguns exemplos, mas temos a certeza de não termos esgotado o
assunto. O que importa dizer é que, além de se perceber a presença do bardo americano
nesse em outros poemas de Campos, a criação de Saudação a Walt Whitman, por sua
36
Ibidem, p. 70.
Em todo mundo vejo a mim, ninguém um grão maior ou menor que eu,
Se falo bem ou mal de mim, falo deles também.
37
PAC, p. 74.
38
PAC, p. 68.
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36
vez, mudou a forma como Whitman é lido. Após a leitura do poema-homenagem de
Pessoa-Campos, ao leitor é oferecida uma dimensão maior e mais completa para a
compreensão e absorção do longo e complexo poemas que é Song of Myself.
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37
6.3
Song of Myself e Ode Triunfal
Eu, ao menos, sou bastante para indicar o Caminho!
Vou indicar o Caminho!
Álvaro de Campos
A Ode Triunfal, poema inaugural de Álvaro de Campos, que, como dissemos
atrás, surge no primeiro número de Orpheu, é, juntamente com Saudação a Walt
Whitman e Passagem das Horas, o que mais se assemelha aos poemas whitmanianos.
Nesse primeiro momento de empolgação futurista, o poeta quer tudo cantar e a tudo dar
voz. Numa tentativa de anular-se nessa comunhão, descreve como numa alucinação, por
vezes sado-masoquista, o mundo das fábricas e dos progressos tecnológicos, e a
humanidade nesse cenário inserida.
Poema que introduz o sensacionismo criado pelo poeta, respira inovação e
modernidade por todos os poros para cantar essa “Nova Revelação metálica e dinâmica
de Deus”. A tentativa de múltipla e atemporal apreensão da realidade fica, também
aqui, evidenciada pelo uso exagerado do pronome indefinido tudo e seus derivados
todos e todas, que surgem 46 vezes ao longo do poema, enquanto a partícula all, que
sintetiza todos os vocábulos em português, aparece mais de 70 vezes no poema de
Whitman.
Sua exaltação também se revela pelo uso de mais de 100 pontos de exclamação
ao longo do poema, e do exagerado uso de interjeições dos mais variados tipos, que
enfatizam o estado de excitação e delírio que quer transmitir.
O que poderia causar algum estranhamento no poema é sua total ausência de um
direcionamento moral, pois, na ânsia de tudo incluir, o poeta não se priva de utilizar até
mesmo passagens completamente desprovidas de qualquer posicionamento ético. Vê-se
também, nessa atitude, a intenção de chocar a burguesia de então, arraigada nos
princípios católicos e monarquistas de um Portugal que não acompanhava os avanços
do resto da Europa, além de também traduzir a ânsia de liberdade de expressão tão
reivindicada pela Era Moderna. Inúmeros são os exemplos:
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
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38
[...]
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.
[...]
Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos -- e eu acho isto belo e amo-o! –
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
39
Em curioso contraste com a loucura gerada pela modernidade e o progresso,
no poema literalmente um parêntese, onde o poeta faz uma reflexão que estabelece
contraste entre a fúria das máquinas e a simplicidade da nora puxada pelo burro no
quintal de sua infância. Tal imagem contrapõe a pureza de seu passado ainda intocado
pelo progresso e pelo dinamismo das máquinas à complexidade da atualidade.
Concluindo, niilistamente, no entanto, que: havemos todos de morrer.
(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje. . . )
40
O poeta arrasta-nos ao longo de todo o poema, num frenesi sem fim que canta o
resultado da Revolução Industrial, até concluir, exausto, sua inépcia e fracasso na
tentativa de atingir o ideal proposto por Whitman, e tão prontamente por ele aceito, de
consubstanciação com toda a multiplicidade do universo, no lamento: Ah não ser eu
toda a gente e toda a parte!”.
39
PAC, p. 21. Como não poderia deixar de ser, este verso foi censurado durante o regime salazarista.
40
Ibidem, p. 25.
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39
6.4
Baudelaire e a Modernidade
É em Baudelaire, um dos principais introdutores da era Moderna que nos iremos
inspirar como mais um ponto de apoio para demonstrar a justaposição dessas duas
importantes figuras literárias. Em seu belo ensaio sobre a Modernidade
41
, Baudelaire, ao
discorrer sobre a criação artística, exclama: Poucos homens são dotados da faculdade
de ver; há ainda menos homens que possuem a capacidade de exprimir!”
42
. Mais
adiante, revela que o objetivo do artista é “tirar da moda o que esta pode conter de
poético no histórico, de extrair o eterno do transitório.”
43
A esse produto da percepção e subseqüente ordenação da memória do autor, que em
nosso caso se refere à poesia, mas que pode se estender a qualquer obra de arte,
Baudelaire chama de Modernidade, por ele definida como o transitório, o efêmero, o
contingente,”“ a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável”
44
Em um freqüente ponto de aproximação que se observa nos dois poetas, vemos
como ambos extraem do cotidiano citadino o tema de suas abras. Whitman descreve
esse dia-a-dia com o foco fotográfico no momento, ressaltado pela listagem de
substantivos e pelo uso de verbos no presente e no gerúndio que traz à tona uma grande
enumeração de tipos humanos, que ao passarem, são fixados pelo olhar atento e único
do poeta.
Tal clima de fixação do presente talvez, como vimos, inspirado pela
fotografia, que se processa através do olhar do poeta, encontramos em sonf of Myself”,
onde o burburinho e o tumulto da rua, com seus acontecimentos imprevisíveis,
convivem com veículos e artefatos que definem e arquivam a época em que ocorreram.
Rodrigo Garcia Lopes, no posfácio da versão bilíngüe por ele traduzida de Folhas de
Relva, ressalta essa característica do poeta, ao afirmar:
“Ele se excitava com o tráfego, o barulho, a multidão composta de muitas raças e
culturas, de todos aqueles modos de viver e de novas linguagens. Whitman absorvia e
41
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade: o pintor da vida moderna; [organizador Teixeira
Coelho]. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura).
42
Ibidem, p. 23.
43
Ibidem, p. 25.
44
Ibidem, p. 26.
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40
celebrava as diferenças en-masse, e a diversidade que fazia uma grande cidade ou
país.”
45
E é essa diversidade e burburinho que vemos explicitados em seus versos:
The blab of the pave .... the tires of carts and sluff of bootsoles and talk of the
promenaders,
The heavy omnibus, the driver with his interrogating thumb, the clank of the shod
horses on the granite floor,
The carnival of sleighs, the clinking and shouted jokes and pelts of snowballs;
The hurrahs for popular favorites …. The fury of roused mobs,
The flap of the curtained litter – the sick man inside, borne to the hospital,
The meeting of enemies, the sudden oath, the blows and fall,
The excited crowd the policeman with his star quickly working his passage to the
center of the crowd;
The impassive stones that receive and return so many echoes,
The souls moving along …. Are they invisible while the least atom of the stones is
visible?
What groans of overfed or half-starved who fall on the flags sunstruck or in fits,
What exclamations of women taken suddenly, who hurry home and give birth to babes,
What living and buried speech is always vibrating here …. What howls restrained by
decorum,
Arrests of criminals, slights, adulterous offers made, acceptances, rejections with
convex lips,
I mind them or the resonance of them …. I come again and again.
46
Os versos de Álvaro de Campos que gostaríamos de contrapor aos de Whitman
acima citados, devido à semelhança que há entre eles, aparecem na Ode Triunfal e
descrevem, assim como aqueles, um momento urbano que o raio da vista do poeta
alcança e nos revela:
45
Leaves of Grass, p. 236.
46
Ibidem, p. 54.
O blablablá das ruas .... rodas de carros e o baque das botas e papos dos pedestres,
O ônibus pesado, o cobrador de polegar interrogativo, o tinir das ferraduras dos cavalos no chão de
Granito,
O carnaval de trenós, o retinir de piadas berradas e guerras de bolas de neve;
Os gritos de urra aos preferidos do povo .... o tumulto da multidão furiosa,
O ruflar das cortinas da liteira – dentro um doente a caminho do hospital,
O confronto de inimigos, súbito insulto, socos e quedas,
A multidão excitada – o policial e sua estrela apressado forçando passagem até o centro da
multidão;
As pedras impassíveis recebendo e devolvendo tantos ecos,
As almas se movendo .... será que são invisíveis enquanto o mínimo átomo das pedras é visível? Que
gemidos de glutões e famintos que esmorecem e desmaiam de insolação ou de surtos,
Que gritos de grávidas pegas de surpresa, correndo pra casa para parir?
Que fala sepulta e viva vibra sempre aqui .... quantos uivos reprimidos pelo decoro,
Prisões de criminosos, truques, propostas indecentes, consentimentos, rejeições de lábios
convexos,
Estou atento a tudo e as suas ressonâncias .... estou sempre chegando.
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41
He-lá as ruas, he-lá as praças, he-lá-la foule!
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
Comerciantes; vadios; escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubs aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença demasiada acentuada das cocottes;
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer;
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!
(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disso tudo!)
47
Ainda que se observem diferenças concernentes aos diferentes momentos
civilizatórios, pois ainda segundo Baudelaire, “cada época tem seu porte, seu olhar e
seu sorriso”, vemos em ambos os poetas a intenção de descrever e partilhar a
fugacidade de um momento: seja ele a caótica atividade urbana do Brooklyn em meados
do século XIX, ou a burguesia lusitana do início do século XX que Pessoa nos descreve.
Outro interessante ponto de convergência nos dois fragmentos é a reflexão
metafísica da existência da alma subjacente a toda essa gente que se movimenta na
passarela urbana. Em Whitman temos The souls moving along”
48
; enquanto Campos
exclama: “E afinal tem alma dentro!”. Demonstrando, assim, a preocupação
metafísica em ambos os poetas que vai além das aparências, refletindo sobre a condição
humana e perscrutando assuntos que tangem a transcendência e a espiritualidade.
47
PAC, p. 21.
48
As almas se movendo
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42
7.
Alberto Caeiro
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar
Alberto Caeiro
I believe in the flesh and the appetites,
Seeing hearing and feeling are miracles,
and each part and tag of me is a miracle
49
Walt Whitman
Alberto Caeiro diferentemente de seu ‘discípulo’ Álvaro de Campos que, logo
após a criação de seus poemas, os teve publicados na revista Orpheu surgiria em
1925, na revista Athena, 36 anos após seu ‘nascimento’. Pessoa teria escondido O
Guardador de Rebanhos durante tanto tempo como um tesouro para um momento mais
oportuno, ou por temer qual seria sua repercussão? O fato é que sua estréia, apesar da
genialidade que encerrava, causou pouco interesse.
Os 49 poemas que totalizam a obra do poeta foram editados na íntegra,
tardiamente, apenas em 1946, no terceiro volume das Obras Completas de Fernando
Pessoa editado pela Ática.
50
Pode parecer no mínimo contraditório que Walt Whitman tenha servido de
inspiração a poetas aparentemente diversos como o são Campos e Caeiro. Talvez o
próprio Whitman nos possa dar uma explicação para essa dupla e quase incongruente
influência, quando diz em Song of Myself:
Do I contradict myself?
Very well then....I contradict myself;
I am large....I contain multitudes.
51
49
Acredito na carne e nos apetites,
Ver e ouvir e sentir são milagres, como é milagre cada parte e migalha de mim.
50
PESSOA, Fernando. Obras Completas. Lisboa: Ática, volume III, 1946.
51
Leaves of Grass, p. 128.
Me contradigo?
Tudo bem, então .... me contradigo;
Sou vasto.... Contenho multidões.
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43
Álvaro de Campos, como já vimos, parece ter-se deixado influenciar pelos
aspectos mais exaltados da vida urbana, pelo tom delirante e ditirâmbico de Whitman,
que incluía extensa amplitude temática, e a urgência de trazer para a sua poesia a
totalidade da existência, dos menores aos mais grandiosos aspectos e que, para veiculá-
los, tenha criado o Sensacionismo e adotado uma versificação semelhante à que
Whitman introduzira.
Paralelamente, observamos que Caeiro, apresentando quase uma réplica
reduzida da prosódia de Whitman, utilizando aspectos formais não idênticos, mas
bastante próximos aos dele como os versos livres e irregulares, a construção sintática
simples, as frases em ordenação paratática, o uso de construções anafóricas – também se
tenha deitado na relva plantada por Whitman. Toda essa simplicidade frasal buscaria
demonstrar a noção de pretensa objetividade com que constrói os seus versos:
Pretendo encostar as palavras à idéia / E não precisar dum corredor / do pensamento
para as palavras”. Observemos também no seguinte poema alguns dos aspectos
mencionados:
Deito-me ao comprido na erva
E esqueço tudo quanto me ensinaram.
O que me ensinaram nunca me deu mais calor nem mais frio.
O que me disseram que havia nunca alterou a forma de uma coisa.
O que me aprenderam a ver nunca tocou os meus olhos.
O que me apontaram nunca estava ali: estava só o que ali estava.
52
Sobre as sensações na apreensão da realidade, observemos as duas citações que
introduzem esse tópico. Elas apresentam um aspecto que, ao mesmo tempo, une e
bifurca a visão dos dois poetas estudados. Em Caeiro, o sentido que é primordialmente
utilizado, pelo menos segundo a sua intenção, é o da visão, que ele próprio explicita no
verso: Vi como um danado”. Inúmeras são as referências em O Guardador de
Rebanhos a essa função. Essa percepção do mundo através do olhar , encontra-mo-la ,
por exemplo em:
[...]
Por que sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura
53
52
Todas as citações de textos assinados por Alberto Caeiro foram colhidas do volume: Poesia Completa
de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa; edição Fernando Cabral Martins Richard Zenith. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005, aqui abreviado pela sigla PCAC, p. 149.
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44
Olho e comovo-me,
Comoco-me como a água corre quando o chão é inclinado
E a minha poesia é natural como o levantar-se vento...
54
Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!
55
[...]
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
56
Também estão presentes nos Poemas Inconjuntos:
Sempre que penso uma coisa, traio-a.
Só tendo-a diante de mim devo pensar nela,
Não pensando, mas vendo,
Não com o pensamento, mas com os olhos.
57
O poeta americano, por sua vez, expande e diversifica suas sensações. Para ele,
todas as formas de percepção são utilizadas em sua comunhão com a natureza.
To behold the daybreak!
The little light fades the immense and diaphanous shadows,
The air tastes good to my palate.
58
I hear the bravuras of birds . . . . the bustle of growing wheat . . . . gossip of flames . . . .
clack of sticks cooking my meals.
I hear the sound of the human voice . . . . a sound I love,
I hear all sounds as they are tuned to their uses . . . . sounds of the city and sounds out of
the city . . . sounds of the day and night;
59
I merely stir, press, feel with my fingers, and am happy,
To touch my person to some one else's is about as much as I can stand.
60
53
PCAC, p. 27.
54
Ibidem, p. 39.
55
Ibidem, p. 51.
56
Ibidem, p. 92.
57
Ibidem, p. 107.
58
Leaves of Grass, p. 78.
Admirar o amanhecer!
A luz fraca dissolve as sombras diáfanas e imensas,
O ar é agradável ao paladar
59
Ibidem, p.81.
Ouço as bravuras dos pássaros .... o crepitar do trigo crescendo .... os cochichos do fogo .... o estalar de
gravetos cozinhando minha comida.
Ouço o som da voz humana .... esse som que amo,
Ouço todos os sons enquanto são afinados para o uso .... sons da cidade e sons fora da cidade .... sons do
dia e da noite;
60
Ibidem, (p. 82)
Apenas mexo, aperto, sinto com os dedos e fico feliz,
Tocar minha pessoa em outra é o máximo que posso suportar.
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45
7.1
A Ética da Simplicidade
Embora, como já vimos, a poesia de Whitman se abra para abarcar todo o
universo, sua escolha para título de seu livro, Leaves of Grass (Folhas de Relva) não foi
direcionada às estrelas ou planetas do longínquo cosmos, e nem mesmo às majestosas
árvores e densas florestas, mas à simplicidade orgânica e imediata de um elemento da
natureza acessível a todos: a erva que, para mais, cresce rente ao chão, sob os pés. É
justamente esta palavra, a simplicidade desse tema, que Caeiro retoma em seus poemas.
Observemos como as palavras ‘relva’ e ‘erva’ – essa última utilizada na tradução
do título da versão feita em Portugal de Leaves of Grass aparecem em O guardador
de Rebanhos como um refrão que, de certa forma, pontua a presença de Whitman e
funciona como uma metáfora da filosofia que se pretende ingênua e aparentemente
descomplicada, de observador da natureza, adotada por Caeiro. (Nas próximas citações,
todos os grifos são nossos)
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
61
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
62
[...]
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
63
O luar quando bate na relva
Não sei que cousas me lembra...
[...]
Para que bate o luar na relva?
64
Vi que não há Natureza,
Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
65
61
PCAC, p. 17.
62
Ibidem, p. 28.
63
Ibidem, p. 34.
64
Ibidem, p. 44.
65
Ibidem, p. 74.
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46
Encontramos também outros exemplos em Poemas Inconjuntos:
Quando a erva crescer em cima da minha sepultura,
66
Todas as opiniões que há sobre a Natureza
Nunca fizeram crescer uma erva ou nascer uma flor.
Fecho os olhos, e o meu corpo, que está entre a erva,
Pertence inteiramente ao exterior de quem fecha os olhos
67
Deito-me ao comprido na erva
E esqueço tudo quanto me ensinaram.
68
Em alguns versos de Song of Myself um clima de ingenuidade e pureza que
poderia ter sido sugerido a Caeiro, pois muito se assemelha ao encontrado em alguns de
seus versos:
A child said, What is the grass? Fetching it to me with full hands;
How could I answer the child?....I do not know what it is any more than he.
I guess it must be the flag of my disposition, out of hopeful green stuff woven.
Or I guess it is the handkerchief of the Lord.
A scented gift and remembrancer designedly dropped,
Bearing the owner’s name someway in the corners, that we may see and remark, and
say Whose?
69
Essa idéia de simplicidade, opondo-se à civilização e à cultura, é um dos temas
emblemáticos da poética do bardo americano. Em diversas instâncias, encontra-se em
seus poemas a confirmação de tal intenção. Para ele também o poema deveria ser uma
experiência direta com a vida, sem a interferência da cultura e do saber
institucionalizado, estabelecendo uma ligação imediata com a natureza. Logo no início
de Song of Myself, ele promete ao leitor esse contato direto e sem intermediações:
66
Ibidem, p. 100.
67
Ibidem, p. 123.
68
Ibidem, p. 149.
69
Leaves of Grass, p. 50.
Uma criança disse, O que é a relva? Trazendo um tufo em suas mãos;
O que dizer a ela? .... sei tanto quanto ela o que é a relva.
Vai ver é a bandeira do meu estado de espírito, tecida de uma substância de esperança verde.
Vai ver é o lenço do Senhor,
Um presente perfumado e o lembrete derrubado por querer,
Com o nome do dono bordado no canto, para que possamos ver e examinar e dizer de Quem é?
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47
Stop this day and night with me and you shall possess the origin of all poems,
You shall possess the good of the earth and sun . . . . there are millions of suns
left,
You shall no longer take things at second or third hand . . . . nor look through the eyes
of the dead . . . . nor feed on the spectres in books,
You shall not look through my eyes either, nor take things from me,
You shall listen to all sides and filter them from yourself.
70
Em outra passagem de Song of Myself, observa-se essa valorização dos sentidos
sobre o intelecto, que tantas vezes aflora também no poeta-pastor.
Oxen that rattle the yoke or halt in the shade, what is that you express in your
eyes?
It seems to me more than all the print I have read in my life.
71
Ou ainda nos seguintes versos:
Logic and sermons never convince,
The damp of the night drives deeper into my soul.
72
A morning-glory at my window satisfies me more than the metaphysics of
books.
73
Caeiro aproveitou de Whitman o lado mais tranqüilo e contente, e absorveu
esses aspectos temáticos relacionados ao ‘culto da natureza’, à idéia de oposição ao
Conhecimento que afasta o homem da pureza de ser e de sentir, porém revistos,
ampliados e mais profundamente intelectualizados. Os mesmos versos brancos, porém
mais curtos e inseridos em poemas de extensão bem menor, seriam mais condizentes
com a tranqüilidade e comedimento que aparentemente encerram. Aparentemente, pois
70
Ibidem, p. 46.
Fique este dia e esta noite comigo e você vai possuir a origem de todos os poemas,
Vai possuir o que há de bom da terra e do sol .... sobrarão milhões de sóis,
Nada de pegar coisas de segunda ou de terceira mão .... nem de ver através dos olhos dos mortos, .... nem
de se alimentar dos espectros nos livros,
E nada de olhar através dos meus olhos, nem de pegar coisas de mim,
Você vai escutar todos os lados e filtra-los a partir de seu eu.
71
Ibidem, p. 58.
Bois que chacoalham a canga e as correntes ou param na sombra, o que dizem seus olhos?
Pra mim isso diz mais que todos os artigos que já li.
72
Ibidem, p. 85.
Lógica e sermões não são convincentes
O sereno da noite penetra mais fundo em minha alma.
73
Ibidem, p. 78.
A ipoméia na janela me dá mais prazer que a metafísica dos livros.
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48
se sabe que o que nega a todo instante – o pensamento, a intelectualização, a metafísica,
a filosofia é justamente o que faz em seus poemas. (Afinal, não se pode esquecer que,
enquanto Walt Whitman é Walt Whitman, Caeiro é ao fim e ao cabo, Fernando Pessoa.)
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
74
[...]
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nêle
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fêz para pensarmos nêle
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para êle e estarmos de acôrdo...
75
[...]
Ah, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estúpidos
Ao pé da clara simplicidade
E saúde em existir
Das árvores e das plantas!)
76
A idéia contida no poema número V, que sintetiza muito bem essa postura
não/filosófica, possivelmente inspirada por Whitman, permeia o seu rebanho de
pensamentos:
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sôbre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sôbre Deus e a alma
E sôbre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
[...]
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
74
PCAC, p. 16.
75
Ibidem, p. 19.
76
Ibidem, p.22.
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49
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
“Constituição íntima das cousas”...
“Sentido íntimo do Universo”...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o comêço da manhã está raiando, e pelos lados das arvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
77
No prefácio de Whitman para a primeira edição de Leaves of Grass, antevê-se a
forte ligação temática com o culto da natureza e a apologia da simplicidade. A arte, para
ele, deveria ser um meio de expressão da vida simples e desprovida de artifícios, um
espelho da própria natureza, para, assim, atingir o seu triunfo. Tal idéia é expressa até
mesmo em sua linguagem corporal e na maneira despojada em que se veste na foto que
ilustra o livro.
But to speak in literature with the perfect rectitude and insousiance of the movements of
animals and the unimpeachableness of the sentiment of trees in the woods and grass by
the roadside is the flawless triumph of art.
78
Whitman fez a exegese de sua obra, anonimamente, tendo como principal
objetivo promover seu livro e defendê-lo dos ataques lançados contra ele. Fernando
Pessoa e seus heterônimos dialogavam entre si, e, da mesma forma, recorreram a
empreitadas exegéticas para analisar as obras uns dos outros. Em Páginas Íntimas e de
Auto-interpretação, no capítulo intitulado: Para a compreensão de Alberto Caeiro”,
Ricardo Reis compara Whitman a Caeiro, afirmando que o último:
77
Ibidem,, p. 23.
78
Leaves of Grass, p. 22.
Mas falar de literatura com a perfeita integridade e espontaneidade encontradas nos movimentos dos
animais e com o irrepreensível sentimento das árvores na floresta e da relva à beira da estrada é o triunfo
infalível da arte.
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50
Difere de todos os poetas de maneira diferente daquela em que todos os grandes poetas
são diferentes de outros grandes poetas. A sua individualidade possui-a ele de maneira
diferente da de todos os poetas que o precederam. Whitman é bem inferior a esse
respeito. Para explicar Whitman, mesmo numa base em que se lhe reconheça toda a
originalidade concebível, basta-nos pensar nele como alguém que viveu [amou?]
intensamente a vida, e daí brotam os seus poemas como flores de uma moita.
79
Nesse mesmo volume, a presença de Whitman é explicitamente admitida em
vários momentos. Ricardo Reis, em sua análise, afirma que Caeiro se parece com
pouquíssimos poetas: Whitman, Francis Jammes e Teixeira de Pascoaes, mas conclui:
“Com quem mais se parece é com Whitman.” E mais adiante, nos diz: “Como Whitman,
Caeiro nos deixa perplexos”.
Essa perplexidade advém de vários fatores, sendo, possivelmente, como afirma
Reis, proveniente do espanto que se tem diante da contemplação do novo. A idéia de
uma poesia totalmente objetiva, ainda que saibamos que essa total objetividade, afinal
de contas, não tenha sido atingida por Caeiro, é um dos toques de originalidade
pretendidos pelo poeta.
Tal concepção surge repetidas vezes no Prefácio de Whitman. trechos nos
quais se tem a nítida impressão de que o poeta americano está definindo a intenção da
poética de Caeiro. Por exemplo, ao dizer:
The art of art, the glory of expression and the sunshine of the light of letters is
simplicity. Nothing is better than simplicity . . . . nothing can make up for excess or for
the lack of definiteness.
80
Em um poema de O Guardador de Rebanhos, encontramos idéia bem próxima a
esta:
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor,
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
81
79
PESSOA, 1966, p. 345.
80
Leaves of Grass, p. 220.
A arte das artes, a glória da expressão e os raios solares da luz das letras estão na simplicidade. Nada é
melhor do que a simplicidade .... nada pode compensar o excesso ou a indefinição.
81
PCAC, p. 23.
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51
Talvez o contato com a natureza sem o intermédio do pensamento que tudo
intelectualiza - pretendido por Caeiro, mas que, como se sabe, não atingido, tenha, na
verdade, encontrado seu cantor nos versos de menor intensidade metafísica e ainda
portadores de resquícios românticos de Whitman. Homem mais simples e que realmente
tinha um contato mais intenso e direto com os campos, tão próximos do Brooklyn onde
vivia, como ele mesmo admitia e pretendia, não era um homem das letras ligado à
intelectualidade da época. Tencionava ser um canal direto da natureza para aqueles que
o lessem. Queria que o que ele assumisse, os leitores também assumissem, como nos
convida a fazer logo no início de “Song of Myself”:
I celebrate myself,
And what I assume you shall assume,
For every atom belonging to me as good belongs to you.
82
Reforça essa idéia o que nos ensina Paul Zweig em seu livro Walt Whitman. A
formação do poeta:
... pois sempre insistiu em que não era um literato, adequadamente instruído numa
universidade e em viagens ao exterior, escorado pela diligente leitura de bons livros.
Quando falava, era a natureza humana desprovida de adornos que falava
83
.(o grifo é
nosso)
Assim, parece-nos que toda a pureza e simplicidade metafísica buscadas junto à
natureza, e não alcançadas por Caeiro, podem ter tido como fonte os poemas
whitmanianos, para produzir, consciente ou inconscientemente, um sentimento bem
próximo das idéias de Whitman. Talvez devido ao fato de o poeta americano ter
chegado mais perto da atitude pretendida por Caeiro, este tenha-o absorvido e
transformado, pois, ao final, sabemos que seus pensamentos não ficaram circunscritos à
sua vontade de ser mero observador e que, na verdade, as ovelhas tresmalharam-se
pela encosta”.
Para concluir, recorremos mais uma vez a Fernando Pessoa, que nesse trecho
até pouco inédito de autoria de Álvaro de Campos, fazendo o usual jogo bem-humorado
82
Leaves of Grass, p. 45.
Eu celebro a mim mesmo,
E o que eu assumo você vai assumir,
Pois cada átomo que pertence a mim pertence a você.
83
ZWEIG, Paul. Walt Whitman, A Formação do Poeta. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1988.
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52
de sua múltipla personalidade, – brinca com o tema de que aqui tratamos, ora admitindo
a influência que Caeiro recebeu, ora negando-a:
Differences between Whitman and Caeiro are clear:
Caeiro is clear; Whitman is confused, muddled.
84
Caeiro is a subtler rhythmist than Whitman.
Caeiro is far more than an intellectual than Whitman.
We are convinced there is no influence at all.
85
Podemos concordar ou não com a peremptória afirmativa de Campos, mas um
aspecto nos parece bem definido: não há como camuflar a revolução operada na vida
artística de Pessoa pelo poeta da democracia, seja em Álvaro de Campos, seja em
Alberto Caeiro. Será de fato contraditória a influencia de Whitman em poetas tão
diferentes como Campos e Caeiro? Talvez, mas parece que a contradição, encontramo-
la também em Whitman. Se nele não vemos a presença explícita dos heterônimos
utilizados por Pessoa, percebemos, no entanto, sua intrínseca multiplicidade, que
aparece ao final de Song of Myself, e a que já nos referimos anteriormente.
84
indefinido
85
São claras as diferenças entre Whitman e Caeiro; / Caeiro é claro, Whitman é confuso, indefinido /
Caeiro possui um ritmo mais sutil que Whitman. / Caeiro é muito mais intelectual que Whitman. /
Estamos convencidos de que não há absolutamente nenhuma influência. (tradução nossa)
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53
8.
Dessemelhanças entre os poetas
I am satisfied .... I see, dance, laugh, sing;
86
Wondering amazed at my own lightness and glee,
87
Walt Whitman
Que foi todo o meu ser? Uma grande ânsia inútil –
Álvaro de Campos
Um dos aspectos que de imediato nos chama a atenção quanto à dessemelhança
entre os poetas estudados, é o que se refere à preocupação de cunho social. Muito
embora a poesia de Whitman não seja exatamente o que se pode chamar de ‘engajada’,
percebe-se em seus poemas uma temática que inclui a situação de abandono em que
viviam as camadas menos favorecidas da população: índios injustiçados e arrancados de
suas terras, escravos negros explorados nas plantações de tabaco, arroz e algodão e a
imensa população de imigrantes europeus, sobretudo irlandeses famintos, que era
despejada no nordeste dos Estados Unidos, todos eles alvos de discriminação e
xenofobia. Whitman os acolhe em seus poemas, mostra a humanidade em todos esses
povos. Essa solidariedade com os menos afortunados e oprimidos por uma elite que os
via apenas como meios de atingirem seus objetivos de geração de riqueza, não a
encontramos em Pessoa. Em Caeiro, por exemplo, vê-se uma indiferença bastante
afetada no que concerne às questões de injustiça social, tal como no poema XXXII d’O
Guardador de Rebanhos, onde observamos exatamente o oposto, a indiferença diante
das questões sociais e o não envolvimento do poeta que diz:
Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.
E olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
86
Estou satisfeito .... vejo, danço, rio, canto;
87
Vagando surpreso com minha própria leveza e felicidade,
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54
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.
(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu – não sofrerão.
Todo mal do mundo vem de nos importarmos uns como os outros,
Quer para fazer o bem, quer para fazer o mal.
88
vários poemas de Whitman em que este se coloca como o portador das
várias vozes minoritárias. Escolhemos um trecho de Song of Myself onde fica bem
evidenciada essa proposta. Para enfatizar essa intenção, o poeta faz uso da repetição no
início de cada verso da palavra “voices”
89
criando um eco, que amplitude à idéia e
reforça seu grito.
Through me many long dumb voices,
Voices of the interminable generations of slaves,
Voices of prostitutes and of deformed persons,
Voices of the diseased and despairing, and of thieves and dwarfs,
Voices of cycles of preparation and accretion,
And of threads that connect the stars – and of wombs, and of the fatherstuff,
And of the rights of them the others are down upon,
Of the trivial and flat and foolish and despised,
Of fog in the air and beetles rolling balls of dung.
90
Também em Campos pode-se encontrar essa temática, mas destituída de uma
real solicitude, pois, segundo Berardinelli, ela está para reforçar seus próprios
conflitos internos, sua angústia existencial. Citando suas palavras: “Ainda quando
parece voltar-se para os problemas humanos, o que neles é tão-somente um
alargamento dos seus, um reflexo de suas preocupações.”
91
Ou ainda, diríamos, tais
88
PCAC, p. 57.
89
vozes
90
Leaves of Grass, p. 76.
Por mim passam muitas vozes mudas há tanto tempo,
Vozes das intermináveis gerações de escravos,
Vozes das prostitutas e pessoas deformadas,
Vozes dos doentes e desesperados e dos ladrões e anões,
Vozes dos ciclos de preparação e acreção,
E dos fios que conectam as estrelas – e do útero e do sêmen paterno,
E dos direitos dos que são oprimidos pelos outros,
Dos deformados e insignificantes e tontos e imbecis e desprezados,
Do fog no ar e besouros rolando bolas de bosta.
91
BERARDINELLI, Cleonice. Estudos de literatura Portuguesa. Rio de Janeiro: Casa da Moeda, 1985,
p. 234.
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55
problemas seriam abordados apenas para uma constatação da pluralidade da vida, da
amplitude do universo que tudo abarca, para que mais uma vez tudo possa ser sentido
de todas as maneiras. Exemplifiquemos com uma passagem da Ode Triunfal:
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosa gente humana que vive como os cães,
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!
92
Se não demonstra muita preocupação com os menos afortunados, parece
importante para Campos apontar falhas concernentes à futilidade da burguesia que passa
seu tempo nos cafés e bares, Nos cafés oásis de inutilidades ruidosas” [...] Luzes e
febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis”. E antecipa mesmo uma crítica à
sociedade de consumo, que já naquela época começava a existir: “Ó fazendas das
montras! ó manequins! ó últimos figurinos! / Ó artigos inúteis que toda a gente quer
comprar”.
Outra diferença que se percebe, e aqui ainda falamos de Campos, diz respeito ao
anseio de fusão sobre o qual discorremos acima. Percebe-se que esse anseio de união
que ocorre em um é diferente do que permeia o poema do outro. Walt Whitman nos
parece muito mais ingênuo e puro em sua proposta de integração com o universo,
revelando nessa atitude resquícios de romantismo; enquanto Álvaro de Campos
demonstra histerismo, masoquismo e uma ânsia de desintegração da identidade no
Universo, que não estão presentes em Whitman.
Whitman tem passagens bastante dolorosas e pungentes, mas, como vimos, é
para demonstrar sua solidariedade com o sofrimento humano, da mesma forma que, em
sua vida, assistiu e cuidou dos soldados feridos na Guerra Civil Americana de 1864.
Após uma tempestade no mar, diz: I am the man .... I suffered .... I was there”
93
ou
ainda em vários outros momentos, na mesma parte do poema:
92
PAC, p. 25.
93
Leaves of Grass, p. 96.
Eu sou o homem .... eu sofri .... eu estava lá.
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56
The disdain and calm of martyrs,
The mother condemned for a witch and burnt with dry wood, and the children
gazing on;
The hounded slave that flags in the race and leans by the fence, blowing and
covered with sweat,
The twinges that sting like needles his legs and neck,
The murderous buckshot and the bullets,
All these I feel or am.
94
……………………………..
Agonies are one of my changes of garments;
I do not ask the wounded person how he feels …. I myself become the wounded
person,
My hurt turns livid upon me as I lean on a cane and observe.
95
…………………………….
I am the mashed fireman with breastbone broken …. tumbling walls buried me in
their debris,
96
(os grifos são nossos)
Enquanto Whitman aparece, em muitos instantes, feliz, em êxtase, Campos é
sempre amargurado, angustiado, incorporando as temáticas existencialistas próprias de
seu tempo, magistralmente colocadas na Ode Triunfal. Sua descrição, no entanto, é
perpassada pelo delírio, pela febre. Sua ânsia de imiscuir-se com tudo é raivosa e
exaltada, bem diferente do tom mais leve e feliz que tantas vezes surge no texto do
poeta americano. Assim, temos em diferentes trechos de Sonf of Myself a expressão
desse contentamento que não se percebe em Campos:
The atmosphere is nor a perfume …. It has no taste of the distillation …. It is
odorless,
It is for my mouth forever . . . . I am in love with it,
I will go to the bank by the wood and become undisguised and naked,
I am mad for it to be in contact with me.
97
94
Ibidem, p. 96.
O desdém e a calma dos mártires,
A mãe condenada como bruxa e queimada com madeira seca, seus filhos assustados assistindo a
tudo,
O escravo fugitivo que vacila na fuga, apoiado na cerca, ofegante, pingando de suor,
Fisgadas que ferem suas pernas e seu pescoço como agulhas,
O tiro mortal de chumbo grosso e as balas,
Tudo isso sinto ou sou.
95
Ibidem, p. 96.
A agonia pé uma de minhas mudas de roupa;
Não pergunto pro ferido como ele se sente .... eu mesmo me torno a pessoa ferida,
Minha dor se volta para mim, lívida, enquanto me apóio na bengala e observo.
96
Ibidem, p. 96.
Sou o bombeiro com o esterno esmagado .... paredes desabadas soterraram-me nos escombros,
97
Ibidem, p. 45.
A atmosfera não é nenhum perfuma .... não tem gosto de destilação .... é inodora,
É para minha boca para sempre .... estou apaixonado por ela,
Vou até a margem junto à mata, sem disfarces e nu,
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57
I am satisfied . . . . I see, dance, laugh, sing;
98
Swiftly arose and spread around me the peace and joy and knowledge that pass
all the art and argument of the earth;
99
I exist as I am, that is enough,
If no other in the world be aware I sit content,
And if each and all be aware I sit content
100
I merely stir, press, feel with my fingers, and am happy,
101
No array of terms can say how much I am at peace about God and about death.
102
Mais uma vez recorremos a Eduardo Lourenço, que em seu elucidativo capítulo
dedicado à percepção que Pessoa teve de Whitman, e a que nos referimos antes,
estabelece uma comparação entre eles, a partir do ponto de vista da corporalidade.
Whitman, de forma audaciosa e única na literatura até aquele momento, canta o êxtase e
a glória das percepções que surgem através de seu corpo, que tem para ele a mesma
importância que a alma: I have said that the soul is not more than the body,/ And I
have said that the body is not more than the soul
103
Dedicando mesmo especial atenção
ao órgão sexual, como se verifica nos seguintes versos, nos quais, numa repetição
mântrica – it shall be you
104
enaltece o falo e o prazer que dele advém:
Divine am I inside and out, and I make holy whatever I touch or am touched
from;
The scent of these arm-pits is aroma finer than prayer,
[…]
If I worship any particular thing it shall be some of the spread of my body;
Translucent mould of me it shall be you,
[…]
Louco para que ela faça amor comigo.
98
Ibidem, p. 47.
Estou satisfeito....vejo, danço, rio, canto;
99
Ibidem, p. 49.
De repente se ergueram e grassaram à minha volta a paz e a sabedoria que superam toda arte e
argumento desta terra;
100
Ibidem, p. 70.
Existo como sou, isso me basta,
Se ninguém mais no mundo está ciente, fico contente,
E se cada um e todos estão cientes, fico contente.
101
Ibidem, p. 83.
Apenas mexo, aperto, sinto com os dedos e fico feliz,
102
Ibidem, p. 126.
Não há seqüência de palavras para dizer como estou em paz em relação a Deus e à morte.
103
Ibidem, p. 125.
Disse que a alma não é maior que o corpo,
E disse que o corpo não é maior que a alma,
104
será você
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58
You my rich blood, your milky stream pale strippings of my life;
Breast that presses against other breasts it shall be you,
[…]
Root of washed sweet-flag, timorous pond-snipe, nest of guarded duplicate eggs,
it shall be you,
Mixed tussled hay of head and beard and brawn it shall be you,
Trickling sap of maple, fibre of manly wheat, it shall be you;
Sun so generous it shall be you,
[…]
Winds whose soft-tickling genitals rub against me it shall be you,
[…]
Hands I have taken, face I have kissed, mortal I have ever touched, it shall be you.
I dote on myself . . . . there is that lot of me, and all so luscious,
Each moment and whatever happens thrills me with joy.
105
Whitman, poeta do corpo e da alma, parece muito à vontade em relação às
sensações produzidas por seu corpo. Extasiado diante de todas as funções provenientes
da corporalidade, ele as celebra e reverencia. Seu corpo é a interface que estabelece o
contato com o Universo que ele canta e glorifica. Afinal, senão pelos sentidos, que outra
forma haveria de comunhão e integração com tudo? Ouça-mo-lo ainda, quando diz:
The smoke of my own breath,
Echos, ripples, and buzzed whispers . . . . loveroot, silkthread, crotch and vine,
My respiration and inspiration . . . . the beating of my heart . . . . the passing of blood
and air through my lungs,
105
Ibidem, p. 77.
Sou divino por dentro e por fora, torno sagrado tudo que toco ou que me toca ;
O odor dessas axilas é um perfume mais caro que uma oração,
[...]
Se venerar uma coisa mais que outra, será alguma extensão do meu corpo ;
Translúcido molde de mim será você,
Protuberâncias e planuras, firme arado masculino, será você,
[...]
Você, meu rico sangue, colostro de minha vida em jatos brancos ;
Peito que aperta outros peitos, será você,
Raiz de cálamo úmido, narceja tímida, ninho onde dois ovos se guardam com carinho, será
você,
Feno emaranhado de cabeça e barba e músculo, será você,
Seiva gotejante do ácer, fibra de trigo macho, será você ;
Sol tão generoso será você,
[...]
Ventos cujos genitais fazem cócegas quando roçam em mim, será você,
[...]
Mãos que segurei, face que beijei, mortal que um dia toquei, será você.
Estou maluco por mim .... há tanto de mim e tudo é tão delicioso.
Cada momento e o que me acontece me enche de prazer.
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The sniff of green leaves and dry leaves, and of the shore and darkcoloredsea-
rocks, and of hay in the barn,
The sound of the belched words of my voice . . . . words loosed to the eddies of
the wind,
A few light kisses . . . . a few embraces . . . . a reaching around of arms,
106
[…]
Welcome is every organ and attribute of me, and of any man hearty and clean,
Not an inch nor a particle of an inch is vile, and none shall be less familiar than
the rest.
107
[…]
I mind how we lay in June, such a transparent summer morning;
You settled your head athwart my hips and gently turned over upon me,
And parted the shirt from my bosom-bone, and plunged your tongue to my
barestript heart,
And reached till you felt my beard, and reached till you held my feet.
108
[…]
Walt Whitman, an American, one of the roughs, a kosmos,
Disorderly fleshy and sensual . . . . eating drinking and breeding,
109
Se em Whitman temos o corpo e suas funções como um veículo de celebração
da vida e do prazer - Lourenço o denomina um místico da corporalidade algo muito
diferente encontraremos em Campos. No atormentado poeta modernista, sobretudo na
Ode Triunfal, encontraremos um corpo doente, mutilado, que se presentifica em várias
passagens de explícito sadomasoquismo;
106
Ibidem, p. 45.
A fumaça de minha própria respiração,
Ecos, ondulações, zunzuns e sussuros .... raiz de amaranto, fio de seda, forquilha e videira,
Minha respiração, minha inspiração .... a batida do meu coração .... passagem de sangue e ar por
meus pulmões,
O aroma das folhas verdes e das folhas secas, da praia e das rochas marinhas de cores escuras, e
do feno na tulha,
O som das palavras bafejadas por minha voz .... palavras disparadas nos redemoinhos de vento,
Uns beijos de leve .... alguns abraços .... o afago dos braços,
107
Ibidem, p. 47.
Bem vindos são todos os meus órgãos e atributos, e os de qualquer outro homem limpo e
sincero,
Nenhuma polegada ou partícula é ruim, e nenhuma será menos familiar que as demais
108
Ibidem, p. 49.
Lembro me de nós deitados em junho, numa transparente manhã de verão ;
Você pousou a cabeça em meus quadris e delicadamente veio para cima de mim,
E desabotoou minha camisa na altura do peito, e mergulhou a língua no meio coração nu,
E estendeu a mão para tocar minha barba, e estendeu a mão para tocar meus pés
109
Ibidem, p. 76.
Walt Whitman, americano, um homem rude, um kosmos,
Desordenado, corpulento e sensual .... comendo bebendo e procriando,
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Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
[...]
Por todos os meus nervos dissecados fora,
[...]
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
110
[...]
Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!
111
[...]
Deixa-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas,
E ser levantado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!
112
Observamos estas como sendo as principais diferenças concernentes à percepção
e representação do real nas obras pesquisadas.
110
PAC, p. 19.
111
Ibidem, p. 23.
112
Ibidem, p. 24.
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9.
Considerações Finais
Sobre um poema quase nunca há nada a dizer.
Deseja-se que seja amado, se for possível.
Cecília Meireles
O real não é representável e é porque
os homens querem constantemente
representá-lo por palavras
que há uma história da literatura
Roland Barthes
Antes de expor as considerações finais, retomaremos brevemente o rumo que
traçamos no vasto mar atlântico que une esses dois poetas. Esperamos que nossas
braçadas tenham servido para nos aproximarmos mais deles e que, dessa forma,
possamos compreender melhor e amar as obras dos geniais autores estudados, seguindo
o conselho de Cecília Meireles.
Primeiramente vimos a importância da língua inglesa na vida de Fernando
Pessoa, ensejando indubitável interesse de sua parte por autores americanos e ingleses.
Em seguida, tentamos demonstrar como o ‘modernismo antecipado’ de Walt
Whitman causou forte abalo na vida artística de Pessoa, a ponto de ter sido o possível
deflagrador de seus principais heterônimos. Em nosso percurso, não poderíamos deixar
de mencionar a importância da revista Orpheu como veículo desse modernismo, não
para Portugal como para o movimento vanguardista mundial.
Aproximando Álvaro de Campos do bardo americano, verificamos várias
instâncias onde sua presença se revela: os extensos poemas contendo longos e exaltados
versos; a presença de paralelismos e anáforas; o intenso sentir expresso por meio de
inúmeras exclamações e interjeições; o desejo de união com todo o universo; o
sensacionismo de Pessoa, possivelmente inspirado por Whitman; e, last but not least, a
grande diversificação temática.
Em Caeiro, encontramos similitudes no contato com a natureza, na proposta de
uma filosofia aparentemente apartada da intelectualidade e do constante pensar. nos
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62
dois o anseio de ser um canal direto, sem intermediários entre a percepção e a criação
artística.
Finalmente, discorremos sobre as diferenças entre eles. Vimos Whitman mais
preocupado com questões sociais, mais feliz com seu corpo e sua alma, sentindo mais
prazer com as sensações provenientes de sua corporalidade e dos contatos humanos: um
homem mais rude e simples; enquanto os dois heterônimos portugueses mostram-se
mais subjetivos, solipsistas e intelectualizados.
Enfim, dois grandes gênios, com pontos em comum, mas cada um com sua
personalidade inimitável e única.
Harold Bloom, em seu livro intitulado Gênio, apresenta os autores mais criativos
da literatura ocidental e, reunindo-os em conjuntos por afinidades, coloca Walt
Whitman no mesmo grupo que Pessoa, acompanhados ainda por Hart Crane, Federico
García Lorca e Luis Cernuda.
Talvez não seja muita elucubração afirmar que Fernando Pessoa, que foi tão
múltiplo e diversificado, espargindo-se em tantos fragmentos psicológicos, também
almejasse ter incorporado Walt Whitman como mais uma possibilidade de existência.
Seria gratuito o fato de ele afirmar repetidas vezes em Saudação a Walt Whitman:
Não sou teu discípulo, não sou teu amante, não sou teu cantor.
Tu sabes eu sou Tu e estás contente com isso! (grifo nosso)
O ultimo verso de Song of Myself, termina sem ponto final, sugerindo uma
continuidade, uma abertura, uma possibilidade de expansão, ou ainda, a espera de uma
resposta à sua voz que diz:
Failing to fetch me at first keep encouraged,
Missing me one place search another,
I stop some where waiting for you
113
E é aceitando seu convite, que, reiteradamente, em seu poema-homenagem,
Campos indaga sobre o comboio que parte para finalmente ir ter com ele, como uma
resposta à sua sugestão final:
(Quando parte o último comboio? –
Vilegiatura em Deus...)
113
Não me compreendendo a princípio não desista,
Não me vendo num lugar procure em outro
Em algum lugar eu paro e espero você
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...
Quando parte, Walt, o último comboio pra aí?
Mas para Pessoa que foi tantos, por que não a retro-união com aquele que pode
ser considerado como o mestre até mesmo do mestre Caeiro? Afinal de contas, Pessoa
acaba obedecendo a esse mestre longínquo no tempo e espaço, mas ao mesmo tempo
tão próximo dele ao acolher sua exortação: Mais honra meu estilo quem aprende como
destruir o mestre”. Pessoa, de fato, o destrói para tornar-se o maior e mais original
poeta da língua portuguesa, cuja maleabilidade de personalidade e talento produziu obra
tão rica e de inesgotáveis interpretações.
Durante toda essa tentativa de aproximar os dois poetas e desvendar um pouco
mais os mistérios que se escondem em mentes tão brilhantes, gostaríamos de não ter,
por nenhum momento, esquecido as palavras de Rainer Maria Rilke, em resposta ao
jovem poeta Franz Xaver Kappus que o inquire sobre o valor de seus versos, e a quem o
poeta alemão, com humildade e sabedoria, responde:
“Não nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de
crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão
longe de ser todas o tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior
parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra
nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras
de arte, – seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.”
114
Concluímos, então, assim como Whitman que não colocou um ponto final em
seu mais reconhecido e expressivo poema, Song of Myself , deixando-o aberto, fluindo
para respostas e complementações –, com a sugestão de que se façam outras tentativas
exegéticas sobre os poetas aqui estudados, pois muito ainda a ser dito, quer seja
sobre cada um individualmente, quer seja na comparação entre eles.
114
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um Jovem Poeta. Tradução de Paulo Rónai. Porto Alegre: Editora
Globo. 1970, p. 21.
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64
10.
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