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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Carlos Magno Camargos Mendonça
E o verbo se fez homem.
As iconofagias midiáticas e as estratégias de docilização da sociedade de controle.
Doutorado em Comunicação e Semiótica
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de Doutor em
Comunicação e Semiótica sob a orientação do Prof. Doutor
Norval Baitello Júnior.
SÃO PAULO
2007
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2
Banca Examinadora
Orientador: Dr. Norval Baitello Júnior
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Dr. Gonzalo Abril Curto
Universidad Complutense de Madrid
Dra. Malena Segura Contrera
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Dra. Elizabeth Alfeld Rodrigues
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Dr. Fábio Cypriano
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
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3
Para Mendonça e Vera Helena,
expressões do amor infinito.
4
Agradecimentos
Ao Norval Baitello Júnior, pelo investimento na proposta e pelos caminhos ofertados;
ao César Guimarães, por tudo sempre;
ao Bruno Souza Leal, pelas interlocuções, leituras e opiniões atentas;
ao Gonzalo Abril, pela tutoria e ensinamentos;
ao Vicente Romano, pela disponibilidade em debater os conceitos da pesquisa;
ao Enderson Cunha, pelas sugestões e pela revisão do texto;
ao Departamento de Comunicação Social da UFMG, pelas condições propiciadas;
ao Maurício Mellone, pelo acolhimento fraterno;
aos meus amigos todos, pela paciência...;
ao Programa ALBan, por financiar o estágio doutoral;
à Capes, por financiar o doutorado;
à escola pública, que, mesmo sob condições adversas, insiste na produção do conhecimento;
à minha família espanhola, por me adotarem;
à minha família, prêmio em minha vida, pela aposta e o apoio constante;
ao Cláudio Dias, por ser o parceiro, o companheiro, a matéria dos meus sonhos.
5
sumário
Resumo 05
Abstract 06
Índices de figuras 08
Introdução 09
1 A vertical, a disciplina e o controle 17
1.1 Entre o céu e a terra 32
1.2 Dos buracos da toupeira aos vigorosos anéis da serpente 48
2 God save the queer 67
2.1 Santiago, Consolação, Hortaleza: três aparições 68
2.2 Santiago. Primeira aparição 70
2.3 Consolação. Segunda aparição 77
2.4 Hortaleza. Terceira aparição 83
3. A serpente está na terra e o programa está no ar 96
3.1. A aliança e o anel 101
3.2 Subjetividade e Iconofagia 110
3.3 Princípios e procedimentos para a análise 114
4 Os olhos da serpernte são olhos que tudo vêem 117
4.1 Visibilidades e identidades: o encontro entre os corpos como material
para a construção subjetiva 121
4.1.1 Subir e descer: a serpente no pé da escada 123
4.1.2 A tensão entre o anel da serpente e o estabelecimento da horizontal 126
4.2 A visibilidade social do corpo gay 131
4.2.1
A mídia secundária como fator decisivo para
a visibilidade homossexual 133
4.3 O incremento da propaganda 139
5 Possíveis leituras 147
5.1 A experiência narrada nas revistas 148
5.2 Montagens e colagens: um princípio para a construção dos textos verbo-visuais 153
5.3 La batalla por la educación 154
5.4 Sinuca de bico – um pequeno contra-ponto 156
5.5 Derribando cercas: uma possível leitura iconofágica 158
5.6 A moda e o modo: as palavras e as imagens 163
5.7 A vida partilhada nos símbolos como o fator de diferença 167
Considerações finais 171
Referências 176
6
Resumo
O objetivo geral desta pesquisa é analisar os modos pelos quais as estratégias da
sociedade de controle encontram no regime discursivo da propaganda e da publicidade um
terreno fértil para atingir seu ponto máximo: o corpo. Investigamos como estes regimes balizam
operadores que visam modelar o corpo e a subjetividade e onde estes encontram formas de
resistência. Sobre o corpo debruçam-se, além dos múltiplos afetos, desejos e humores, olhares
atentos neste palco privilegiado das manifestações das experiências humanas. Lugar de
conflitos, de explicitação de alteridades e de revelação dos traços identitários, o corpo tem
ganhado contornos definidos em pesquisas das mais diversas áreas do conhecimento.
Entendemos que a ciência da comunicação apresenta-se como locus privilegiado para o estudo
deste polifônico objeto. Três princípios foram fundamentais para o trabalho de pesquisa e
para a construção dos procedimentos analíticos: as reflexões em torno da noção de sociedade
disciplinar, desenvolvida por Michel Foucault – conseqüentemente a noção de sociedade de
controle que Deleuze deriva deste conceito–; as noções de vertical e horizontal que Harry
Pross cunhou; e a noção de iconofagia proposta por Norval Baitello Júnior. Com a primeira
noção buscamos compreender como as linhas de força das duas sociedades (a disciplinar e a
de controle) atuam como conformadoras de corpos, identidades e subjetividades. Com a
segunda observamos como os corpos desenvolvem mecanismos de resistência frente aos
processos iconofágicos existentes no regime discursivo pesquisado. Com a terceira procuramos
descobrir na dimensão relacional do cotidiano o aspecto positivo da iconofagia como
instrumento de resistência. O objeto empírico da pesquisa são textos verbo-visuais veiculados
na revista espanhola Zero (revistas de estilo, entretenimento e comportamento destinadas
aos gays). Contrastamos os textos verbo-visuais da revista Zero com os das revistas francesas
Têtu (segmentada para homossexuais), Numéro Homme, Vogue Homme e Le Officel Homme
(não segmentadas para homossexuais). Tal contraste teve como função detectar as
semelhanças e as diferenças entre os textos verbo-visuais que narram o corpo do homem.
Entendemos estes textos como espaços de experiências semióticas complexas, nos quais
diversos planos de significação se articulam para a composição da mensagem.
Palavras-chave: Poder, vertical, horizontal, subjetividade, iconofagia, homossexualidade
7
Abstract
The general mission of this investigation is to analyze the ways about which the
strategies of the control society find in the discursive regime of the propaganda and the publicity
a fertile land to reach their maximum point: the body. We investigated as these regimes sight
to model to the body and the subjectivity and where these find resistance forms. On the body
they are, in addition to the multiple affection, desires and humors, you watch kind in this
privileged scene of the manifestations of the human experiences. Place of conflicts, revelation
of the identitários outlines, the body has caputured contours defined in investigations of the
diverse areas of the knowledge. We understand that the science of the communication appears
as locus privileged for the study of this object. Three principles were fundamental for the work
of investigation and the construction of the analytical procedures: the reflections around the
society notion to discipline, developed by Michel Foucault - consequently the notion of control
society that Deleuze derives from this concept -; the slight knowledge of vertical and horizontal
that Harry Pross coined; and the propose notion of iconofagia by Norval Baitello Junior. With
the first notion we looked for to understand as the lines of force of the two societies (to discipline
and the one to it of control) act like conformadoras of bodies, identities and subjectivities. With
second we observed as the bodies in front of develop mechanisms of resistance the existing
iconofágicos processes in the investigated discursive regime. With third we looked for to discover
in the relational dimension of daily the positive aspect of iconofagia like resistance instrument.
The empirical object of the investigation are texts verb-lines of vision spread in the Spanish
magazine Zero (magazine of style, entertainment and behavior destined to gays). We resisted
texts verb-lines of vision of magazine Zero with those of you confiscate French Têtu (segmented
for homosexuals), Numéro Homme, Vogue Homme and Him Officel Homme (not segmented for
homosexuals). Such resistance had like function to detect the similarities and the differences
between texts verb-lines of vision that narrate the body of the man. We understand these texts
like spaces of complex semiotics experiences, in which diverse planes of meaning articulate
for the composition of the concept message.
Keywords: Power, vertical, horizontal, subjectivity, iconofagia, homosexuality
8
Índice de figuras
p. 87
p. 88
p. 93
p. 94
p. 129
p. 130
p. 131
p. 132
p. 134
p. 135
p. 136
p.137
p. 138
p. 140
p. 141
p. 144
p. 146
p. 153
p. 156
p. 157
p. 160
p. 165
p. 166
p. 167 .
Capa da Shangay Express, edição 309, 2007.
Texto verbo-visual Decadent Rock Star, revista ZDM, edição 05, ano 2006, páginas
100, 101, 104.
Textos verbo-visuais da revistas Numéro, edição 13, 2006, páginas 207, 208, 218
e da revista Key, edição 04, página 49.
Imagem de divulgação da coleção de inverno 2007 do estilista Marc Jacobs.
Capa da revista Veja, 26 de abril de 1989.
Anúncio da marca Raer divulgado na ZDM, edição 05, ano 2006.
Anúncio do ar-condionado Carrier, 1942.
Imagem de divulgação da campanha Laundrette e frame do vídeo Laundrette. 1985.
Fotografia Two young men, de Wilhelm von Gloeden, 1900..
Fotografia de Tab Hunter, site de divulgação do ator, ano 2006.
Reprodução da capa da primeira edição da revista Physique Pictorial – Nov. 1951; e da
edição de 1953. Fonte: The complete reprinte of Physique Pictorial. Berlin:
Taschen, 1997.
Ilustração de Tom of Finland para a revista Physique Pictorial - 1959 Fonte:
The complete reprinte of Physique Pictorial. Berlin: Taschen, 1997.
The cowboy-Viktor, Pierre et Gilles,1978; Querelle de Brest, Andy Warhol; Man in a
Polyester Suit, Robert Mapplethorpe, 1981.
Textos verbo-visuais da revista Têtu, edição 121, abril de 2007, página 76, e da
Numéro, edição 13, ano 2007, página 141.
Anúncio publicado na ZDM Cuidate, abril de 2007.
Texto verbo-visual jornalístico da revista ZDN Cuidate, abril 2007
Textos verbo-visuais revista Mate Travel, 2007, páginas 91,91,92.
Textos verbo-visuais da revista Zero, edição 84, página 18; edição 91, páginas 64 e 65.
Texto verbo-visual de O Dossier Educación, publicado na Revista Zero, edição 91,
páginas 48 e 49.
Capa do caderno Canal Extra, do Jornal Extra, de 05 de agosto de 2007.
Textos verbo-visuais do editorial Derribando cercas, revista ZDM, edição 05, ano
2006, páginas 48 e 49.
Textos verbo-visuais do editorial Derribando cercas, revista ZDM, edição 05, ano
2006, páginas 51, 52 e 53; e fotograma do filme Brokeback Mountain.
Textos verbo-visuais revista Mate Travel, 2007, páginas 93 e 94.
Texto verbo-visual Decadent Rock Star, revista ZDM, edição 05, ano 2006, páginas
105 e 106.
9
E o verbo se fez homem. Na imagem bíblica encontraremos o Cristo feito carne, um
ser indiviso, uno, a imagem encarnada do pai. O verbo é a substância de Deus materializada
em um corpo humano: olho para o Filho e vejo o Pai. Pela obra do Divino Espírito, o verbo foi
transformado em matéria. Beneplácito de Deus para se igualar aos homens e assim professar
seus princípios. Tudo isto graças a uma santíssima trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
O verbo que investigamos guarda semelhanças e distinções para com o verbo bíblico.
Ele não é mais único e se incorporar sucessivamente. Tornou-se um homem de corpo imagético,
encarnado na rede simbólica. Um ser enunciado, presa dos discursos, moldado nos textos. O
verbo tenta manter o filho como a imagem do pai. Mas, o pai enunciador disputa com o filho a
fonte dos sentidos. O filho não que ser apenas a imagem do pai. O pai, então, ofertou ao filho
uma infinitude de imagens. Não foi uma aposta do pai na diversidade do filho, mas um modo
pelo qual o pai poderia travestir suas regras de controle. O filho percebeu e passou a
transformar as imagens do pai. Tal como a narração bíblica, esta ação sustenta-se em uma
trindade: o poder, a comunicação e a iconofagia.
O verbo pai encarnou no filho para participar da vida de todos. O poder, tal como o pai,
atravessa a vida, pretende controlá-la. Todavia, a vida não se deixa aprisionar. Como um
fluido, ela escapa por entre os dedos do poder, mesmo quando parece não haver mais espaço
Introdução
10
entre as mãos que a detém. O poder se materializa sobre os corpos, provoca mutações físicas,
condiciona os desejos. Fonte de disciplina e controle, o poder comuta seus significados para,
sobre valores antigos, estabelecer novos planos de sentido. Ele elegeu todos os espaços
para a sua manifestação, não depende do altar para transmutar o pão e o vinho em
corpo-santo. A liturgia do poder é feita nas escolas, nas fábricas, nos espaços de
sociabilidade, na comunhão do consumo. O poder varia os símbolos, mas mantém o sentido.
O corpo e o alvo das estratégias do poder. Este frágil objeto revelou-se forte e, dia-a-dia, se
transformou junto e frente ao poder.
A ciência da comunicação requer uma pluralidade de conceitos e noções para pensarmos
o corpo. Tal ciência nos oferta um conjunto de condições para lidarmos com a complexidade
do corpo, que solicita um exercício de pesquisa que coloque em diálogo os diversos corpos
que compõem um corpo. Seja nas manifestações artísticas dos vídeos de Matthew Barney,
nas performances de Eduardo Kac, nos projetos de Stelarc, nas criações da chamada jovem
arte britânica – que tem nas dimensões espaço-temporal do corpo sua fonte de inspiração,
nas obras de Rosângela Rennó, ou ainda nas inscrições tribais das agregações juvenis dos
grandes centros urbanos, a dimensão plural do corpo convoca uma prática transdisciplinar
para seu estudo. O corpo revela-se um objeto multifacetado e, como tal, um privilegiado
agregador de narrativas
1
para os estudos da ciência da comunicação.
No início de nosso trabalho, o objeto de estudo nos parecia restrito ao território da
comunicação e das práticas comunicativas. Porém, um olhar mais astuto nos revelou que este
objeto ramificava-se de um modo bastante complexo. Assim, ele requereu de nós a aproximação
entre fronteiras diversas do conhecimento, porosas o suficiente para que pudéssemos contemplar
as variantes de cada matriz de pensamento, bem como propiciar trocas entre estas matrizes.
Temos por hipótese que as estratégias da sociedade de controle (conforme a
caracterização que Gilles Deleuze extrai de Michel Foucault) encontram no regime discursivo
da propaganda impressa um terreno fértil para atingir seu ponto máximo: o corpo. Investigamos
1
Nos servimos aqui das palavras de Pablo Vila para explicitar o conceito de narrativa do qual nos servimos: Para expresarlo
en muy pocas palabras podríamos decir que esta nueva manera de estudiar las identidades sociales sostiene, parafraseando
a Fredric Jameson (1981), que la narrativa es una categoría epistemológica que fue tradicionalmente confundida con una
forma literaria. Y no sólo esto sino que, de acuerdo con Ricoeur (1984), la narrativa es uno de los esquemas cognoscitivos más
importantes con que cuentan los seres humanos, dado que permite la comprensión del mundo que nos rodea de manera tal
que las acciones humanas se entrelazan de acuerdo a su efecto en la consecución de metas y deseos. En otras palabras, si
por un lado parece no haber comprensión del tiempo humano fuera de su inserción en un marco narrativo, por otro lado la
narrativa sería la única forma cognoscitiva con que contamos para entender la causalidad en relación a las acciones de los
agentes sociales. (VILA. www.sibetrans.com/trans/trans2/vila.htm.2001)
11
como este discurso
2
baliza operadores que visam modelar o corpo e onde este corpo encontra
meios de resistência. Tais estratégias conformam corpos, identidades e subjetividades por
meio de determinados processos de produção e circulação de narrativas – independentemente
da orientação editorial dos veículos de comunicação que suportam estas narrativas.
Compreendemos por orientação editorial a reunião de elementos expressivos, de estratégias
de abordagem do leitor, de seleção de temas, de opções estéticas, de aproximação a valores
políticos e ideológicos, capaz de insuflar as narrativas.
O objeto empírico de nosso exame são os textos verbo-visuais veiculados em alguns
números da revista espanhola Zero, segmentada para o público homossexual. Para
comprovação de parte de nossa hipótese, tencionaremos os textos verbo-visuais produzidos
para o público homossexual com os produzidos para o público heterossexual em veículos
como Numéro Homme, Vogue Homme e Le Officel Homme (França). Outros veículos poderão
ser utilizados como imagens incidentais para a comparação. Em nosso recorte trabalharemos
o corpo do homem.
Para efeito de contextualização, apresentamos dois momentos distintos na origem das
inquietações que estimularam o nosso projeto de pesquisa doutoral:
- em nossa Dissertação de Mestrado
3
, quando tratamos das relações entre corpo e
tecnologia. Elegemos como objetivo daquela pesquisa a identificação dos traços de
sociabilidade e dos modos de produção da subjetividade que se encenavam na trama de
referências ou no circuito comunicativo que se estabeleceu entre a obra literária
3
Subjetividade e sociabilidade na atitude ciberpunk. Orientação Prof. Dr. César Geraldo Guimarães. Banca examinadora:
Profª. Drª. Vera França (UFMG) e Prof. Dr. André Lemos (UFBa). Julho de 1999.
2
En el campo de la semiótica narrativa y en el de la lingüística, el discurso puede ser identificado como el proceso semiótico,
y analizado conforme a uma teoria específica del discurso que lo presenta como el conjunto de aquellos hechos y procesos
semióticos que tienen lugar en el plano del llamado ´eje sintagmático del lenguaje`, es decir, el plano de las emiciones frásicas
y discursivas efetivamente por el hablante. El ´discurso`, en el campo de la semiótica y de la lingüística, se opone al ´texto`, por
cuanto el primero corresponde al eje sintagmático de las efectuaciones pragmáticas de la lengua, mientras el segundo
corresponde al plano de las efectuaciones grafemáticas. No obstante, las fronteras formales entre uno y outro se han desdibujado
como resultado de ciertos efectos de uso, donde el ´discurso`, en cuanto práticas efectiva del habalnte, suele ser considerado
como un texto, y asimismo, el ´texto`, suele ser presentado en los términos de un ´discurso` susceptible de análisis. De este
modo, es posible hablar de un ´discurso filosófico` o de un ´discurso político` como un conjunto de práticas que afectan tanto
al plano sintagmático como al plano paradigamático de la lengua, y possen una cierta unidad y coherencia lógico-formal.”
(HODGSON, 2005: 14-15)
“Tomado em sua acepção mais ampla, aquela que ele tem precisamente na análise do discurso, esse termo designa menos
um campo de investigação delimitado do que um certo modo de apreensão da linguagem: este último não é considerado aqui
como uma estrutura arbitrária, mas como a atividade de sujeitos inscritos em contextos determinados. Nesse emprego, discurso
não é susceptível de plural: dizemos ´o discurso`, ´o domínio do discurso` etc. Por supor a articulação da linguagem sobre
parâmetros de ordem não lingüística, o discurso não pode ser objeto de uma abordagem puramente lingüística.”
(MAINGUENEAU. 2000: 43)
12
Cyberpunk Neuromancer (1984), de Willian Gibson, alguns filmes de ficção científica do
mesmo estilo, além de manifestações - tanto de comportamento quanto de linguagem -
que têm no espaço imaterial da rede internet o seu principal lugar de existência. Sob o
emblema de uma trama ou de um circuito feito de componentes heterogêneos (diferentes
regimes de signos, elementos tecnológicos e humanos, formas técnicas e formas sociais),
buscamos descrever o elo que é próprio da comunicação, responsável por unir a
subjetividade e a sociabilidade, o indivíduo e a comunidade, o corpus e o socius. A atitude
cyberpunk surgiu então caracterizada como um religare próprio das sociedades
tecnológicas ou, nos termos de Michel Maffesoli, como um laço social orientado por um
estilo estético.
- O segundo momento foi durante o biênio 2001/2002, quando participamos de uma
pesquisa junto ao Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade da UFMG - Gris. Nosso
sub-projeto teve como tema central a análise das narrativas do portal
www.vivafavela.com.br, com o objetivo de investigar a apropriação social da técnica e
sua capacidade de estabelecer laços sociais de novo tipo, conformados a partir da
emergência de traços comunitários mediados por tecnologias informáticas e
comunicacionais. Naquele momento, pretendíamos, ainda, identificar como os signos
heterogêneos que compõem o repertório simbólico destas comunidades (expressões como
as gírias, as representações materiais e simbólicas do vivido, as manifestações do
cotidiano, dentre vários outros) migram para a rede telemática como elementos
fundadores de uma narrativa cotidiana e identitária que se revela neste laço de novo
tipo. Naquela época, o modo como os corpos se narravam e eram narrados nos instigaram
a pensar os princípios deste projeto.
O ingresso no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia
Universidade de São Paulo, no ano de 2004, possibilitou uma reestruturação da pesquisa em
dois outros momentos. Primeiro, no investimento em novas leituras, as quais tive contato nas
disciplinas oferecidas pelo professor Norval Baitello Júnior. Segundo, na realização do estágio
doutoral na Unversidad Complutense de Madrid, Espanha, quando conhecemos os métodos
de análise semiótico verbo-visual levados a cabo pelo professor Gonzalo Abril Curto.
A intensidade das novidades nas perspectivas investigativas nos levou à conclusão de
que necessitaríamos rearticular o objeto inicialmente proposto para a pesquisa: a publicidade
e propaganda destinada a produtos de beleza ou técnicas de embelezamento. O
13
aprofundamento das questões propostas por Harry Pross e o contato com a semiótica
desenvolvida por Ivan Bystrina nos colocaram sob um novo céu do conhecimento. Para azeitar
a aproximação por nós pretendida – Harry Pross, Michel Foucault e Gilles Deleuze - e
encontrar uma pertinência que afastasse a possibilidade de ecletismo gratuito, iniciamos
uma investigação daqueles pensadores e métodos de conhecimento que foram constituidores
dos autores que nos interessam.
Para dar conta da reorientação dos caminhos da pesquisa, procuramos nos afastar
de uma concepção informacional em que o sentido é conduzido por uma lógica puramente
transmissiva dos meios de comunicação. Entendemos que o objeto de estudo nos exigia
tomar como ponto de partida a dimensão relacional presente nos fenômenos comunicativos.
Desta maneira, evitamos uma simples aplicação dos termos analíticos sobre o objeto empírico
e, ao modo de um método arqueológico-genealógico, buscamos observar a natureza
acontecimental de tais fenômenos.
Àquela altura, estávamos diante da necessidade de buscarmos noções forjadas a partir
das mobilidades sociais e de significação. Os processos de intersemioses das culturas, a
combinação de múltiplos códigos na produção de textos culturais, a diversificação das formas
gregárias, a desestabilização de uma identidade constituída por um padrão único, nos levaram
a procurar nos traços da cultura do cotidiano, da vida ordinária, as performances que
paulatinamente transformaram os meios e seus dispositivos de tradução social.
Encerrada a etapa de feitio dos créditos no programa de pós-graduação, partimos para
um estágio doutoral no programa de doutorado Planteamientos teóricos, estructurales y éticos
de la comunicación de masas, do Departamento de Periodismo III, Facultad de Ciências de la
Información, Universidad Complutense de Madrid, Espanha, sob a tutoria do professor Gonzalo
Abril Curto. Saímos do Brasil tendo como objeto de análise campanhas publicitárias de beleza
e técnica de embelezamento publicadas nas revistas Marie Claire, Vogue Brasil e Elle Brasil.
O trabalho de coleta dos dados já estava efetuado. Porém, à medida que se complexificava o
quadro teórico-conceitual, percebíamos a urgência em rearticular o objeto da pesquisa. As
trocas de experiências investigativas no estágio doutoral ofereceram a mescla necessária para
o redesenho de nosso objeto.
O método utilizado pelo professor Gonzalo Abril, trabalhado no curso de doutorado
Elementos de análisis semiótico-discursivo de textos verbovisuales”, combina elementos das
teorias das imagens, da semiótica visual e um conjunto de outras disciplinas para estudar
14
discursos que congregam distintas formas expressivas – sejam elas artísticas, arquitetônicas,
das telas dos meios eletrônicos ou das páginas impressas. Em nosso entendimento, este
método parte de um conceito da comunicação como uma atividade doadora de sentido, porém
sem um funcionamento autônomo e sim transformada na prática social. Nesta medida, três
perspectivas são utilizadas para o trabalho com estes discursos:
- análise das formas textuais e conseqüentemente de suas relações enunciativas,
chamada perspectiva estrutural;
- observação dos espaços onde estas práticas sociodiscursivas se encenam, chamada
perspectiva crítica;
- análise das condições históricas e culturais em que se desenvolveram tais práticas,
chamada perspectiva genealógica.
Ao tomar contato com o método exposto pelo professor Gonzalo Abril nos primeiros
encontros de orientação, nos seminários do grupo interdisciplinar de sociossemiótica e no curso,
nos atentamos para a possibilidade de investigar a produção simbólica e discursiva que se tramava
na cena homossexual espanhola. A movida madrilenha, o surgimento e crescimento do bairro de
Chueca em Madrid, a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, dentre outros
fatos modificaram o cenário social e cultural da cidade de Madrid e de várias cidades da Espanha.
A identidade homossexual experimentava uma outra visibilidade no país, pois além dos espaços
de sociabilidade foram criadas formas para a comunicação entre os diversos grupos.
Durante os três primeiros meses do estágio doutoral, duas etapas ocuparam nosso
tempo de trabalho:
1. o exercício de revisão bibliográfica que teve por função mapear e experimentar
alguns conceitos fundamentais para a tese;
2. a coleta um grande número de materiais de formação de opinião destinado ao
público homossexual. Após a primeira triagem, nos concentramos somente nos materiais
impressos e destinados aos gays.
Como resultado da primeira etapa de trabalho elaboramos dois roteiros de atuação. O
primeiro roteiro foi destinado a uma entrevista com o professor Vicente Romano Garcia, parceiro
de pesquisa e tradutor de Harry Pross para o espanhol. O segundo roteiro estava destinado
ao trabalho de observação da distribuição e consumo dos materiais impressos.
A segunda etapa concentrou-se na escolha do veículo a ser analisado. Ao chegarmos
em Madri, tivemos contato com duas publicações importantes destinadas ao público
15
homossexual: Shangay e Revista Zero. O acompanhamento de alguns números das duas
revistas nos possibilitou perceber o nível de importância destes veículos. Com conteúdos
editorais distintos, Shangay e Zero possuem como ponto comum: o foco em estilo e cultura.
O contato com a bibliografia encontrada na Espanha – especialmente a tradução de
algumas obras de Harry Pross e as duas entrevistas realizadas com Vicente Romano Garcia -
, nos indicava a necessidade de uma melhor adequação do objeto. A explicitação de alguns
conceitos de Harry Pross e de Michel Foucault exigiu a busca de um objeto que demonstrasse
a possibilidade de rompimento de uma cadeia dominante de sentido. Ao nosso ver, a revista
Zero atendia parte desta demanda. A partir de então, nos dedicamos a um acompanhamento
dos espaços do “ambiente homossexual”, tais como: cafés, bares, lojas de roupas e acessórios,
restaurantes e pontos de encontros no bairro de Chueca e adjacências. Mapeamos lugares
indicados pelas revistas e realizamos entrevistas informais. O primeiro cruzamento dos dados
nos permitiu efetuar um esboço da análise.
De posse desse desenho, nos chamou a atenção à disparidade de opiniões em relação
à Zero. Por exemplo, se a revista era exaltada por um grupo, por outro ela era execrada.
Todavia, ficava claro que a revista possuía um bom índice de leitura nos dois grupos.
Indistintamente, opinando favorável ou contrariamente, os entrevistados sempre faziam
referências a temas recentes abordados pela revista.
Paralelamente a essa fase de acompanhamento e entrevistas desses grupos,
decidimos fazer um trabalho de mídia comparada. Elencamos algumas revistas do mercado
espanhol e internacional, destinadas ao público masculino heterossexual, consumidor de
moda e estilo para compararmos as produções dos editorais destes veículos com o da
revista Zero. Tal comparação pretendeu responder a uma questão semiótica: qual a
intenção de significação destas revistas, tanto as destinadas aos homossexuais quanto
as destinadas aos heterossexuais?
As seções de saúde e beleza possuem, praticamente, a mesma pauta. Sendo assim, a
comparação entre a revista Zero e as revistas masculinas espanholas e estrangeiras revelou
um dado comum: os anunciantes. Fabricantes de cremes para rejuvenescimento, perfumes,
bebidas, telefonia, sapatos, relógios, roupas, utilizam os mesmos anúncios para as revistas
destinadas aos homens gays e aos homens heterossexuais. Da mesma forma, diversas fotos
dos editoriais de moda poderiam trafegar entre os dois tipos de revista. A alta qualidade gráfica
também é um fato comum entre os veículos analisados.
16
Frente as semelhanças, passamos a buscar as diferenças nos modos pelos quais
os homens gays são representados. Acreditamos que a manifestação de afeto entre pares
exposta nos textos verbo-visuais da revistas homossexuais era o diferencial. Muitas vezes
esta manifestação estava dada em uma gestualidade queer. O corpo assumia sua dimensão
de display de sentimentos, de modo inicial de comunicação, tomado como mídia primária
para descrever a que mundo pertence. Quando exercita sua condição de mídia primária, o
corpo não é um suporte de signos, mas um articulador de discursos, um revelador e um
partícipe de textos culturais.
A revista não é uma panacéia para todos os males, bem sabemos. Ela está
articulada entre a regras de funcionamento da publicidade e da propaganda e os desejos de
parte dos homossexuais. O conteúdo editorial refere-se a um coletivo homossexual, que
denominamos coletivo de leitores da revista. Todavia, a revista não pode ter reduzida sua
importância na construção de uma visibilidade homossexual ou ser tomada como um
instrumento que pretende a inclusão somente pelo consumo. Como meio de comunicação, a
revista tem um recorte, uma segmentação e comunica para o público pretendido.
O que pretendemos demonstrar ao longo desta tese é que mesmo quando as estratégias
de controle e de violência simbólica atingem o corpo é possível perceber como nos mundos do
cotidiano ele encontra formas para resistir. Entendemos que este corpo partilhado na vida
ordinária entre os desejos, os modos de representação, suas potências e fragilidades, se
rearticula e encontra formas de sobreviver para além dos discursos articulados pelo poder.
Compreendemos que a resistência sempre nasce na resistência. Se os atores do espetáculo
cotidiano permitem por um lado serem apropriados pela mídia, por outro eles recriam
possibilidades de resistência frente às estratégias de conformação destes e de outros meios.
Os movimentos do cotidiano – como o banal, o hedonismo e o orgiástico, as pulsões gregárias
que se sustentam na frivolidade e na aparência, a estetização da vida comum – permitem a
criação de linhas de fugas frente às estratégias de modelização e docilização desenvolvidas
na sociedade de controle. Estas linhas de fuga funcionam ao modo de um despertar dos corpos.
Elas injetam princípios criativos que garantem vidas singulares e não sobrevidas idênticas,
empobrecidas em relação aos quadros da experiência e submetidas às estratégias da sociedade
de controle, como detalharemos adiante. Tanto os exercícios de resistência quanto os de
submissão só podem ser compreendidos no teatro do cotidiano.
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18
“Tudo que não invento é falso.”
“Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No
começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro
escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço
de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações
que estariam enterradas por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu
havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos
clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras
possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria
então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros
sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava
horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. Logo a turma perguntou:
o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a eles, meio entresonhado, que eu
estava escovando palavras. Eles acharam que eu não batia bem. Então eu joguei a escova fora.”
Manoel de Barros
Inventar os conceitos. Esta ação orientou todo o percurso filosófico de Gilles Deleuze.
Propiciar a conversa entre o conceito e a ação, impulsionar o pensador para o percurso que
congrega diferentes matrizes entre as ciências e as artes como possibilidade para (re)descobrir
a vida, foi a tônica crucial do pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Ao referir-se ao
Anti-édipo, obra de Deleuze e Guattari fortemente influenciada pelas reflexões de Michel
Foucault, Éric Alliez nos oferta uma descrição precisa do agudo pensamento deleuziano.
Com uma política do ser, mais do que uma metafísica, uma política das ciências, mais do que
uma epistemologia, uma política da sensação, mais do que uma estética, uma política do
inconsciente, mais do que uma psicologia, uma micropolítica do desejo, em vez de uma psicanálise,
uma política da língua e uma pragmática, mais do que uma lingüística dos signos, uma ética dos
devires, mais do que uma filosofia política... e, portanto, associada a uma ecologia especulativa
das práticas, toda uma política da filosofia, para “resistir ao presente” e “inventar novas
possibilidades de vida”. (ALLIEZ, 2000: 15)
Não temos a pretensão de construir operações conceituais tão sofisticadas quanto as
19
dos pensadores até então referidos. Mas temos neles nossa inspiração para nos debruçar
sobre o nosso objeto. Este exercício exige de nós uma interlocução com diferentes áreas das
ciências humanas, especialmente aquelas dedicadas à compreensão dos processos discursivos
e imagéticos da atividade comunicacional.
O entendimento da comunicação como parte da experiência cotidiana da vida ordinária
determina os movimentos iniciais do nosso exercício de pesquisa. Nosso ângulo teórico
privilegia as reflexões filosóficas de Michel Foucault, Félix Guattari e Gilles Deleuze; os estudos
da experiência estética – levados a cabo pelo Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência, da
Universidade Federal de Minas Gerais; a semiótica da cultura, proposta por Ivan Bystrina; e a
investigação das formas simbólica efetuadas por Harry Pross.
A invocação do poema Escova e da epígrafe do livro Memórias inventadas: a
infância, de Manoel de Barros, nos serve como metáfora poética para o gesto que este
capítulo nos exige: compreender o pensamento, como relembrou Peter Pál Pelbart ao
referir-se a reivindicação de Gilles Deleuze, como um exercício de vida; descobrir a
coloração de alguns conceitos sob determinado foco; experimentar os métodos para
descobrir o que neles faz crescer nossa potência questionadora. Por estas exigências,
neste capítulo pretendemos localizar os pontos de vistas dos pesquisadores que nos
interessam. Acreditamos ser de fundamental importância a contextualização dos autores
que influenciam nossas diretrizes de pesquisa. Como base de nosso instrumental analítico,
a trindade invocada no título acima será debatida em toda a trajetória da pesquisa. Ao
modo de uma demarcação, descreveremos neste capítulo alguns caminhos que levam à
aproximação os três pontos teórico-metodológicos propostos.
Para atendermos à reivindicação de Deleuze, necessitamos compreender as ciências
como integrantes da vida social, dotadas de uma dimensão histórica e processual – tomamos
esta dimensão processual não como a tradução de uma sucessão previsível de acontecimentos,
mas uma troca permanente entre modos de apreender o mundo. Entendemos que o
conhecimento sistematizado deve interagir regularmente com o objeto ou conceito observado.
É essa feita que complexifica os estudos da comunicação: possuir um objeto dotado
de grande mobilidade, imprimindo, assim, uma necessidade regular de atualização do conceito.
O conhecimento que se acumula sobre os objetos ditos da comunicação originam-se em
disciplinas diversas e experimentações regulares. Como no desenvolvimento das ciências
sociais, na comunicação as perspectivas calcificadas em territórios mais sedimentados
20
convivem com os estudos que realizam seus primeiros feitos, servindo a primeira, na maioria
das vezes, de base ao segundo. Este emaranhado, que tem no rastro uma quantidade de
vestígios teóricos, sugere algumas perguntas ao tema. Se dentre as características básicas
de uma disciplina está a identidade conferida pela tradição dos seus estudos e métodos,
podemos afirmar que a comunicação se apresenta como disciplina? Como estão limitados os
seus objetos? Ou ainda, como se desenha o campo da comunicação?
De imediato, compreendemos que a indagação do que vem a ser comunicação e quais
são seus objetos não pode ocorrer sobre um patamar de certezas únicas, de disputas pela
detenção de verdades absolutas. A comunicação, este conceito e este objeto tão múltiplo, nos
embaraça exatamente em sua diversidade. O tema tem em si o ímã que garante agregações.
Mas, precisamos lembrar que o cotejo entre modos distintos de conhecimento só se efetiva
em zonas de interfaces. Estas zonas são como pontes que permitem a interlocução entre
algumas formas interpretativas do mundo. A conexão entre estes contornos teóricos deve evitar
um ecletismo gratuito, falsamente apropriado ou ousado. “Lembramos que as perspectivas
interdisciplinaristas (quando são evocadas) não eliminam a necessidade de especializações
na pesquisa – apenas sugerem que estas não precisariam se fazer segundo a clivagem
disciplinar.” (BRAGA, 2004: 01)
A noção de disciplina, como pensada nas ciências sociais, define a fronteira
caracterizadora dos campos de estudos. Maria Immacolata Vassallo de Lopes nos lembra que
as disciplinas das ciências sociais foram clivadas no século XIX e esta clivagem respondia
mais a uma organização dos estudos acadêmicos e menos a uma demanda do objeto. Nos
dizeres da autora:
Essas clivagens eram: a) a demarcação entre o estudo do mercado (a economia), do estado (a
ciência política) e da sociedade civil (a sociologia); b) a divisão entre o estudo do mundo moderno/
ocidental (a economia, sociologia e política) e o mundo não-moderno/não-ocidental (a
antropologia); c) do mundo presente (a economia, sociologia e política) e o mundo passado (a
história). (LOPES, 2004: 5)
A evolução da sociedade e das ciências sociais propiciaram críticas a essas clivagens.
O crescente número de pesquisadores, cientistas, investigadores de distintas ordens das
ciências sociais que passaram a colaborar entre si e a dedicar-se a objetos comuns,
engrossaram o caldo crítico. As propostas transdisciplinares, como acentua Lopes,
evidenciaram pontos frágeis nas fronteiras disciplinares. A troca entre as disciplinas tornou-se
inevitável. Apesar de não romperem as fronteiras, estas propostas invocaram uma adequação
21
da lógica disciplinar. “Uma das formas de lidar com esta situação foi a tentativa de criar novas
designações ‘interdisciplinares’, como sejam os estudos da comunicação, as ciências da
administração e as ciências do comportamento.” (Relatório Gulbenkian apud LOPES. 2004:
06) O território interdisciplinar passou a abrigar objetos e conceitos resultantes de
sobreposições teóricas, da mesclagem de métodos, das convergências entre os saberes.
Não são poucas as críticas à perspectiva interdisciplinar, mas há que se reconhecer o
inegável mérito nele existente: mesmo que resguardados os limites de origem, colocar em
diálogo as especializações institucionalmente separadas, faz emergir objetos só compreensíveis
sob cruzamento destes saberes. Para Lopes, as formas de trabalho científico que buscam a
convergência dos saberes criam um campo em que a sobreposição das disciplinas é,
historicamente, fundamental e crescente.
(...) os campos de estudo aparecem como um novo padrão emergente a que se pode chamar
transdisciplinarização ou pós-disciplinarização (...), um movimento para a superação dos limites
entre especialidades fechadas e hierarquizadas, e o estabelecimento de um campo de discurso e
práticas sociais cuja legitimidade acadêmica e social vai cada vez mais depender da profundidade,
extensão, pertinência e solidez das explicações que produza, do que do prestígio institucional
acumulado. (LOPES, 2004:9)
A comunicação como campo de conhecimento
1
surge neste território multidisciplinar.
Por sua característica primeira – possibilitar a ligação entre os seres vivos -, a comunicação
não se furta a nenhuma ocorrência da sociedade. Sua ostensiva presença produz uma
impressão inicial do conceito e de seus objetos restrita a um conjunto empírico midiático,
como comenta Vera França:
A comunicação tem uma existência sensível; é do domínio do real, trata-se de um fato concreto de
nosso cotidiano, dotada de uma presença quase exaustiva na sociedade contemporânea. Ela está
aí, nas bancas de revista, na televisão de nossa casa, no rádio de nossos carros, nos outdoors da
cidade, nas campanhas dos candidatos políticos e assim por diante. Se estendemos mais os exemplos
(e também nosso critério de pertinência), vamos incluir nossas conversas cotidianas, as trocas
simbólicas de toda ordem (das produções dos corpos às marcas de linguagem) que povoam nosso
dia-a-dia. (FRANÇA, 2001: 39)
França sublinha a necessidade de dissociar a idéia de uma existência da comunicação
vinculada exclusivamente aos meios massivos ou às realidades constituídas no encontro destes
1
Nos serviremos da descrição de Jairo Ferreira para ilustrar a noção de campo de conhecimento: “O campo de conhecimento
é uma proposição em que os paradigmas e as teorias fundantes, as práticas científicas normalizadoras e institucionalizadas,
as rotinas e as formas como agentes em interação se articulam com um determinado conhecimento, através do discurso
científico, de seus procedimentos práticos e concretos, de suas formas de interações com outros, criam objetos, problemas e
temas, compartilhando trilhas singulares de pensar o mundo, deslocando-se conforme os fluxos discursivos e concretos de
produção de sentido.” (FERREIRA, 2004: 115/116)
22
meios com nossas experiências cotidianas. A autora remonta a Francisco Rüdiger para
lembrar que a comunicação social e os meios de comunicação não devem ser confundidos e
que possuem dimensões de pesquisas diferenciadas, não vinculadas estritamente uma à
outra. Ainda na perspectiva desta ressalva, é preciso perceber que os processos de
comunicação são impetrados pelos humanos, portanto, diferenciados dos processos de
mediação viabilizados pelos meios tecnológicos. Desde os primórdios, a comunicação é
parte integrante da vida humana, desse modo foi inevitável o desenvolvimento de meios de
suporte e transmissão para ampliar as possibilidade de comunicação. A este respeito,
vejamos o que diz o midiólogo Régis Debray:
As leis da história, do grupo, da troca, não mudaram de um dia para o outro, com o aparecimento da
eletricidade e do elétron. Nem mesmo antes, com os tipos móveis e o papel chifon. Disso resulta a
suspeita de que a mídia, palavra total, não contenha o seu próprio princípio de intelegibilidade. Que
esse campo de estudos e de realidade peque por excesso de espessura (especialmente temporal).
Que a nossa mídia seja, no fundo, uma variação contemporânea, hipertrofiada, ensurdecedora,
superexposta, de uma variante básica mais encoberta, menos provocante e, contudo, presente em
todos os modos de comunicação, em todos os estádios cronológicos da circulação dos signos: o
dispositivo da veiculação. Órgão de transmissão. O suporte invisível, em grego upokeimenon, que
se encontra abaixo sem se mostrar. Chamemo-lo de médium, termo neutro e singular (facecioso, na
língua francesa, presente do espiritismo ao materialismo, ou do divinatório ao operatório). (DEBRAY,
2000:143)
Se em um primeiro momento há o direcionamento – do sentido compreensivo da
comunicação - para o conjunto de objetos empíricos, em um passo seguinte França demonstra
que a palavra comunicação comporta a dimensão de conceito, apresentado-se como
possibilidade interpretativa das práticas sociais. Ao investigar os limites do objeto da
comunicação, França nos explica que este se define sob o olhar do pesquisador, os recortes e
as aproximações que ele promove entre a empiria e a teoria. Conhecer é um construto do
sujeito sobre o objeto.
(...) o objeto da comunicação não são os objetos “comunicativos” do mundo, mas uma forma de
identificá-los, de falar deles – ou de construí-los conceitualmente. E aqui chegamos ao veio tocado
por nossa indagação: quando se pergunta pelo objeto da comunicação, não nos referimos a objetos
disponíveis no mundo, mas àqueles que a comunicação, enquanto conceito constrói, aponta, deixa
ver. Essa é a natureza de um “objeto de conhecimento”: construções edificadas pelo próprio processo
de conhecimento, a partir de suas ferramentas e do seu “estoque cognitivo” disponível (o conhecimento
com o qual se conta para poder conhecer mais). (FRANÇA, 2001: 42)
A apreensão do objeto da comunicação ocorre frente a uma tensão entre os limites que
definem a comunicação como ciência e a dinâmica social que impõe uma revisão constante
dos termos analíticos. Como aponta Braga (2004), a amplitude de possibilidades de abordagens,
23
bem como o alargamento das opções teórico-metodológicas ou ainda epistemológicas, nos
coloca em uma situação de perguntarmos mais como tal objeto será abordado pela comunicação
e menos qual é a sua pertinência para os estudos da comunicação.
Na esteira deste debate, França nos esclarece que a produção das teorias da
comunicação resulta da combinação de inúmeros esforços compreensivos que se desdobram
sobre o fazer da comunicação e os meios – e, consequentemente, o estoque de conhecimento
acumulado por esse fazer -, com os estudos investigativos da realidade comunicativa. Esta
combinação, aliada a um permanente exercício de sistematização, impulsiona o conhecimento
científico da comunicação.
Mas, é preciso lembrar, segundo França, os obstáculos existentes para este campo de
estudo: o enviesado debate entre teoria e prática, a necessidade de sedimentar matrizes de
conhecimentos diversos capazes de ofertar referenciais próprios ao campo. Para ilustrar esta
lembrança, a autora compara o surgimento das ciências sociais ao surgimento das teorias da
comunicação. No primeiro caso, o esforço teórico foi o responsável por segmentar a indivisível
realidade social e, através de vários recortes, originar um número de disciplinas. No segundo
caso foi o inverso, as práticas, a criação e o desenvolvimento dos novos meios demandaram
os estudos da comunicação. Isto produziu a idéia de um primado da prática sobre a teoria,
seguido de um conjunto de inconvenientes.
Com freqüência, o estudo da comunicação se desenvolve voltado para a obtenção de determinados
resultados, guiados por finalidades específicas – o que certamente compromete o desenvolvimento
crítico necessário ao conhecimento. Cumpre ainda lembrar o poder de que se reveste a comunicação
na sociedade contemporânea, a função que ela desempenha no seio das relações políticas,
econômicas e sociais. O que significa dizer: o conhecimento da comunicação não está isento do
revestimento ideológico e de condicionamentos de toda a ordem.
A crítica à proximidade e identificação exageradas com a prática, em outros casos, produziu o excesso
inverso, que é o deslocamento. O isolamento da abstração intelectual, a adoção de esquemas teóricos
fechados produziram, por vezes, não apenas o distanciamento, mas mesmo o desprezo pela empiria.
Ora, uma teoria que se coloca fora do horizonte da prática que a fundamenta se converte em pura
abstração. A onipotência de uma teoria que abandona a referência das questões concretas e
específicas da realidade comunicativa que a cerca acarreta também a perda de seu papel explicativo
– e de sua razão de ser. (FRANÇA, 2001:48-49)
Uma vasta gama de práticas, saberes, dinâmicas, atividades estão à sombra da grande
tenda investigativa da comunicação. Assim, amparados novamente nos termos de França,
nenhum esquema conceitual consegue alcançar tamanha extensão. Para tanto, esta empiria
multifacetada exige uma construção teórica complexa, tanto em seu aporte teórico quanto em
24
sua abordagem empírica. Tal complexidade depende dos instrumentais de disciplinas variadas.
Desde o início da sistematização do campo da comunicação, uma série de filiações teóricas
foram utilizadas. “Esta herança heteróclita tanto enriquece os olhares quanto dificulta a
integração teórica e metodológica do campo.” (FRANÇA, 2001:48-49) A referida herança e a
extensão do objeto arranham aquilo que define uma disciplina: a consolidação de um método
resultante de uma tradição de trabalho. Tanto França quanto Lopes (2004) reconhecem que
os estudos da comunicação não possuem uma tradição que o contenha em uma fronteira
disciplinar. Porém, isto não significa o desconhecimento do acúmulo de estudos específicos
da comunicação. Apesar de não possuir um campo disciplinar próprio, estes estudos já possuem
marcadores que o localizam:
Eles não estão exatamente ou especificamente em nenhum outro campo; hoje não é correto (não
corresponderia à realidade) dizer que se encontram espalhados em vários campos. Já podemos
identificar (e devemos registrar) a continuação e o agrupamento de um razoável “estoque” de estudos,
um pequeno patrimônio de conhecimento específico sobre a comunicação. Estes estudos trazem a
marca de suas várias disciplinas de origem; a reflexão sobre a comunicação suscita a contribuição
de várias disciplinas, atravessa fronteiras estabelecidas, promove migrações conceituais, colagens,
justaposições. (...) É na medida desse movimento de congregação de olhares diversos, com o objetivo
de construir um novo olhar, que podemos pensar o campo de estudo da comunicação enquanto
domínio ou espaço interdisciplinar (lembrando que a interdisciplinaridade é transitória: quando ela
consegue se estabilizar, criar referências, fincar estacas – aí, sim, podemos falar do surgimento de
um domínio novo). (FRANÇA. 2001: 51)
Luiz C. Martino (2001) considera que a característica interdisciplinar de um determinado
campo de estudo não dispensa a necessidade de demarcação de objeto. Pelo contrário, ela
exige uma atenção especial para evitar que seu objeto seja diluído no objeto de outras ciências.
O pesquisador infere que a definição do objeto é, atualmente, o maior problema dos estudos
em comunicação. Para Martino, este problema se deixa ver na sua real intensidade quando
leva-se em conta a amplitude semântica da palavra comunicação e suas evocações,
mas sobretudo o fato que os processos comunicativos atravessam praticamente toda a extensão
das Ciências Humanas. Estes processos se identificam com a cultura, mas igualmente com grande
parte da atividade psicológica, eles constituem a matéria da análise histórica e se sobrepõem a
extensas zonas dos processos sociais. Em outras palavras, a natureza dos estudos em Ciências
Humanas – que têm no homem, um ser essencialmente comunicativo, seu objeto comum – faz com
que a análise dos processos comunicativos seja um ponto de passagem quase obrigatório, o que
dificulta a delimitação mais precisa do objeto da Comunicação, uma vez que ele se encontra misturado
às análises de outras disciplinas. (MARTINO, 2001: 28)
Os apontamentos de Martino nos relembram a impossibilidade de se criar uma matriz
teórica síntese capaz de comportar o fundamento dos estudos das Ciências Humanas. Ao
mesmo tempo, ele avalia que os estudos da comunicação caminham para a radicalização da
25
interdisciplinaridade – fato dificultador à abertura de espaço para o estabelecimento de uma
disciplina autônoma. A reversibilidade deste quadro reside na inversão das funções: que seja
abandonada a característica de campo de interseções passivas para transformar-se em uma
“interdisciplinaridade que seja o fruto de uma exigência do próprio objeto, o que pressupõe a
explicitação e a definição deste objeto.” (MARTINO, 2001: 29)
Os ângulos teóricos escolhidos em nossa pesquisa privilegiam o afastamento de uma
concepção linear do processo comunicativo. Comungamos das perspectivas que contemplam
o pesquisador, através de seus modos de apreensão e abordagem de um acontecimento ou
um conceito, como aquele que na relação com o observável faz emergir o objeto. Porém,
mesmo que a comunicação não possa ser definida, ainda, como uma disciplina, com uma
tradição de estudo e método próprio, é imperativo ao pesquisador o reconhecimento de um
caminho já consolidado de estudos nesta área. Ao nosso ver, a calcificação de parte deste
esqueleto teórico nos oferta algumas balizas para caracterizar o objeto de estudo da
comunicação: a comunicação humana, o pensamento sobre a comunicação humana, as formas
de mediação, a recepção midiática, os meios e suas produções simbólicas. A existência de um
capital cultural neste campo auxilia na definição do objeto da comunicação, mas não deve ser
tomada como possibilidade de blindagem do objeto, particularizado na diversidade de
abordagens que comporta.
A institucionalização dos estudos em comunicação, a multiplicidade de pesquisas no
tema, a ampliação e evolução dos meios, as modificações sociais ocorridas a partir da relação
dos media com a sociedade, colocaram em cheque a ótica quantitativa do processo
comunicacional – típica do modelo funcionalista americano. A crença na soberania de uma
das partes como ordenadora dos discursos (o emissor) e à outra parte (o receptor) cabe uma
ação passiva frente a ação verticalizada, a despreocupação com a dimensão relacional da
comunicação demonstraram, para os pesquisadores, a incapacidade do modelo funcionalista
de fundamentar o campo de estudos da comunicação. Os estudos e a compreensão da
comunicação como algo pertencente ao terreno da experiência dos envolvidos no processo,
como algo que reivindica os elementos da vivência comum para ser acionada, trouxe uma
roupagem que revestiu de novos interesses a pesquisa no tema. Próximo de um horizonte
fenomenológico, nos diz Eduardo Duarte Gomes da Silva:
Para Merleau-Ponty, essa é outra característica da comunicação: ela não existe antes das
consciências envolvidas se encontrarem. Ela é um terceiro plano cognitivo que emerge e que
não estava contida inicialmente nos planos de nenhuma das partes que reterritorializam um
26
terceiro cogito emergente. A comunicação então é uma virtualidade que se atualiza na relação.
Mas as consciências envolvidas não se fundem em numa só. Elas continuam a ser individuais. A
suspensão relativa dos conceitos tácitos permite o encontro ou a formação de um pensamento ou
entendimento, mas cada uma carrega sua versão desse entendimento, dessa coexistência. Ela não
se faz a mesma para todas as consciências envolvidas. O campo comum não anula a experiência
pessoal de cada consciência. Algo se torna comum, torna-se comungável, pertencente a todos que
estão em relação, mas cada consciência experimenta, redefine-se e redefine a percepção dessa
coexistência. Mediante sua fenomenologia da percepção, na qual as consciências se encontram,
Merleau-Ponty atinge o centro etimológico da palavra comunicação. (SILVA, 2003: 48)
A dificuldade de circunscrição da comunicação aos limites de um campo passa, também,
pela amplitude que a definição do termo possui. (MARCOS, 2003; MARTINO, 2001, 2005;
SILVA, 2003) A palavra ganha, cada vez mais, uma utilização cotidiana ampla, chegando a
caracterizar processos das ciências biológicas e exatas – logo fala-se de comunicação das
células, das máquinas, dos animais. Porém, relembramos uma afirmação que fizemos
anteriormente, quando caracterizamos o objeto: entendemos como objeto dos estudos da
comunicação à comunicação humana e suas relações. Sentidos do termo como tornar comum,
comungar, colocar em ação, reafirmam a necessidade relacional inerente à comunicação. Nas
palavras de Silva, alcançar a etimologia do termo é fundamental para definir os demarcadores
que sinalizarão as fronteiras do campo da comunicação.
Podemos observar que o problema do conceito e do objeto não possui data recente
de nascimento (MARTINO, 2001, 2003. FRANÇA, 2001). Martino faz duas observações, a
partir de uma visão retrospectiva dos estudos da comunicação, que coloca o objeto ora
junto aos meios de comunicação, ora próximo à cultura de massa. O ponto de partida da
primeira observação é a concepção dos termos comunicação de massa e meios de
comunicação que detêm as grandes escolas. Para Martino, o funcionalismo americano não
possui uma conceituação para os termos. O condicionamento da pesquisa no modelo
funcionalista privilegia objetos como a persuasão, produção da notícia e o controle social,
em detrimento do estudo dos meios de comunicação. A não existência de uma pesquisa
teórica ou conceitual sobre os meios de comunicação denota um problema grave, ou mesmo
um erro, para uma perspectiva científica.
Se de um lado, há por parte do funcionalismo americano um desprezo pela análise dos
instrumentos tecnológicos envolvidos nos processos comunicativos e, consequentemente, um
afastamento de uma dimensão de eficácia que contempla os meios de comunicação como um
dos elementos estruturantes de uma sociedade; do outro, a análise de fundamento marxista
27
da Escola de Frankfurt requer – no pensamento de Martino - uma interlocução com a análise
dos meios, a partir de uma perspectiva destes como tecnologias da inteligência, com vistas a
considerar a extensão e a importância da relação entre os processos comunicativos –
garantidores dos laços sociais - e os dispositivos tecnológicos. (MARTINO. 2001: 30)
A segunda observação de Martino está na superação da oposição entre a cultura e os
meios de comunicação de massa.
Não se trata, porém, de subsumir um termo no outro, como é moda no determinismo tecnológico
(a técnica prevalece sobre a cultura), nem, ao contrário, de desintegrar o objeto da Comunicação
numa metafísica da cultura (a cultura desencarnada de sua materialidade). Também não se
pode perder de vista que o objeto aqui em questão não é todo e qualquer fenômeno comunicativo,
mas apenas aqueles restritos à dimensão humana e mediatizados por dispositivos técnicos.
(MARTINO. 2001: 29-30)
Maria Céres P. S. Castro destaca que os paradigmas decorrentes do modelo informacional
têm como pano de fundo três pares antinômicos com ênfases distintas. O primeiro compreende
a comunicação como algo estratificado, que pode ser tomado em seus modelos isoladamente do
acontecimento social ou mero instrumento de uma dinâmica global; o segundo dá-se no
entendimento da comunicação como um processo unilateral, que a emissão da mensagem será
sempre um processo unilateral e linear mesmo quando houver a troca de papéis emissor/receptor;
o terceiro interessa-se pela comunicação abordada a partir da emissão de sinais audio-visuais,
estudados em seus aspectos operacionais ou à comunicação em sua natureza simbólica, processo
de significação e operações de codificação e decodificação. (CASTRO, 1997: 18)
Castro afirma que muitos estudos estão polarizados entre um par ou outro, tornando-
se reféns ou de uma abordagem tão ampla que distancia a explicação da ação específica dos
meios ou uma abordagem tão restrita do processo comunicativo que não consegue percebê-lo
em sua articulação com o social. Comenta Castro:
Ora, a presença de dois fatores exige que a análise da comunicação social se faça valendo-se de
outra perspectiva e de outros fundamentos. De um lado, a relevância da ação dos media na sociedade,
expressa na intensidade e na extensividade dos processos comunicativos mediáticos presentes em
todos os campos da vida social, configura uma das especificidades do “viver contemporâneo”. A
comunicação deixa de ser definida como simples meio técnico envolvido numa teia de relações e
passa a ser concebida como uma forma de relação social que permeia e participa da configuração
do social. Não se reduzindo ao aparato tecnológico, mas dele absorvendo uma lógica própria de
funcionamento, a comunicação na contemporaneidade torna-se um espaço socioeconômico e cultural,
de fato uma dimensão nova e essencial da sociabilidade contemporânea. Por outro lado, o
desenvolvimento de outros campos de estudo, especialmente daqueles relacionados à linguagem,
exige que se conceba o processo comunicativo como instituído pelo social, ao mesmo tempo em
que, por seus procedimentos operatórios próprios e pelas relações que agencia, se apresenta também
como instituinte da teia de relações configurada socialmente. (CASTRO, 1997:19)
28
As transformações sociais ocorridas a partir do século XVIII modificaram a noção e a
função da comunicação. Entre as Revoluções Iluministas e a Revolução Industrial, o mundo
ocidental assistiu a uma mutação no modos gregários. Pouco a pouco, o contrato institucional
substitui os laços tradicionais: a comunidade dá lugar à sociedade.
2
À época, esta mudança
de organização da vida em grupo afastou o recém surgido indivíduo moderno da garantia de
pertencimento a uma comunidade pelos laços familiares ou tradicionais. O indivíduo moderno
estava frente a uma rede de comunidades múltiplas, com hierarquias e afinidades diferenciadas.
Os reflexos dessas mudanças puderam ser percebidos nas novas formas associativas do
cotidiano, refletindo, especialmente, sobre os processos de conformação da identidade – não
mais una ou assegurada nos traços da tradição.
A formulação da sociedade une duas linhas que se tornarão indissociáveis, segundo
Martino: a necessidade de comunicação surgida a partir da necessidade de engajamento
coletivo do indivíduo moderno na nova ordem social que se descortinava, e o crescente
desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, possuidores de uma função específica
naquele novo cenário: conectar o indivíduo a sua coletividade.
É nesse cenário que surgem os princípios do paradigma que sustentará a chamada
Teoria da Informação. Tal teoria nasceu de uma demanda por investigar os fenômenos e impactos
da grande revolução das formas comunicativas. Àquela época, do início aos meados do século
XX, era premente determinar os atores e os papéis do campo da comunicação, bem como
fortalecê-lo teoricamente. Claude Elwood Shannon publicou, em 1948, uma monografia chamada
The mathematical theory of communication como parte das publicações de resultados de
pesquisas dos laboratórios da empresa de telecomunicações Bell Systems, filial da American
2
“(...) as noções de comunidade e sociedade remetem não a uma realidade objetiva, como Durkheim e a tradição
positivista a apresentaram, mas uma consciência do vivido social. Assim, comunidade e sociedade não existem fora de
uma construção intersubjetiva, ou seja, fora do reconhecimento mútuo dos sujeitos. Essa é a razão pela qual os valores,
as idéias, as crenças, em suma, tudo que nos faz agir e reagir em nossa vida social, constitui já a sociedade e a
comunidade em permanente construção.
Não deveríamos dizer a comunidade ou a sociedade, mas sim a comunidade dinâmica e a sociedade dinâmica –
Wertgemeinschaft e Wertesellschaft, usando as expressões alemãs de Weber. Para entender como a realidade social se
constrói nessa intersubjetividade – o que requer uma análise dos fenômenos de consciência – adotei a perspectiva fenomenológia,
guiado pela noção de sentido e de atividade orientados significativamente.
Essa é a expressão de Max Weber em Economia e Sociedade, quando estuda os tipos de ação social – a atividade
significativamente orientada, isto é, uma atividade que só existe em função do sentido a ela atribuído. (...)
(...) Weber afirma que, para que a vida em comunidade ou sociedade funcione, é preciso que os sujeitos ou atores sociais se
dêem uma chance – essa é a palavra que ele usa. As atividades dos atores sociais são uma chance de serem recebidos pelos
outros atores em torno deles. Se eles não agissem dessa forma, poderíamos dizer que a vida em comum seria quase impossível.
(...) Weber diz que, na vida social, quando estamos na presença da interação social, todos os sujeitos sabem que há uma
probabilidade importante e real de que o modo de agir para com eles responda a suas expectativas. Nas teorias fenomenológica
e hermenêutica há um termo importante: horizontes de expectativa.” (TACUSSEL, 1999: 04)
29
Telegraph & Telephone. No ano de 1949, a monografia foi republicada pela Universidade de
Illionois, com comentários de Warren Weaver. A Teoria Matemática da Comunicação abordava o
processo comunicativo de maneira linear: um emissor transmite uma mensagem para um receptor
através de um meio. Os proponentes dos modelos eram matemáticos e engenheiros, dedicavam-
se ao estudo das telecomunicações. O foco da pesquisa estava centrado na melhoria da
transmissão da informação; a busca por um modo de garantir a circulação da informação em
maior quantidade, com o menor nível de ruído possível e em um tempo cada vez mais curto.
Essa teoria é o resultado de trabalhos que começaram no anos de 1910, com as pesquisas do
matemático russo Andrei A. Markov sobre as teorias das cadeias de símbolos na literatura,
prosseguiram com as hipóteses do americano Ralph V. L. Hartley, que em 1927 propõe a primeira
medida precisa da informação associada à emissão de símbolos, o ancestral do bit (binary digit) e da
linguagem da oposição binária, e depois com as do matemático britânico Alan Turing, que concebeu
a partir de 1936 o esquema de uma máquina capaz de tratar essa informação. A teoria de Shannon
também foi precedida pelo trabalhos de John von Neumann, que contribuiu para a construção da
última grande máquina de calcular eletrônica, antes da chegada do computador, elaborado entre
1944 e 1946, a pedido do exército americano, a fim de medir as trajetórias balísticas, e pelas reflexões
de Nobert Wiener, fundador da cibernética, essa ciência do comando e do controle, a cujos cursos
Shannon assistiu. (MATTELART, A. & M, 2000: 59)
Sob a angulação teórica da cibernética, a informação era tratada por eles como
algo controlável, como dados organizados e gerenciados. Rapidamente, a generalidade
deste modelo teórico foi encarada como a solução para o problema de demarcação teórica
para o campo da comunicação. Paralelamente, por ser tão geral, o modelo serviu aos
mais diferentes tipos de estudos.
Para os autores, a problemática da comunicação pode ser equacionada em três níveis: o técnico, o
semântico e o pragmático, resolvendo-se o primeiro soluciona-se o conjunto. O problema semântico
refere-se ao significado das informações; o problema pragmático refere-se à capacidade das
informações modificarem o comportamento das pessoas: podemos reduzi-los ao problema da precisão
com que se processa a transmissão de informações do emissor para o receptor, à medida que se
compreende por informação todo sinal capaz de provocar reações no comportamento de dado sistema.
Noutros termos, a problemática da interação se reduz ao problema da transmissão de informação,
tem a ver com o estabelecimento das condições necessárias para a otimização da transferência de
mensagem do emissor para o receptor, diz respeito à capacidade do canal conduzir as informações
sem ruído para o destinatário, capacidade esta que é passível de definição técnica. (RÜDIGER,
1998: 19)
O modelo privilegiava o estudo da mensagem, da quantidade de informação contida nesta
mensagem e da eficácia ou necessidade da mensagem. A recepção e decodificação da mensagem
dependeria da forma como foram organizadas as informações. Como sistema organizado era preciso
conter o crescimento do nível interno de desorganização – entropia – existente em todo sistema
físico. O contexto de emissão, recepção ou significação da mensagem não interessava aos autores.
30
A transposição do modelo para a análise das interações sociais provocou o surgimento
de novos paradigmas, que por sua vez acrescentavam componentes ao modelo original. Apesar
de ter irrigado por longo tempo as pesquisas em comunicação, as críticas à Teoria da Informação
foram inevitáveis; especialmente, a partir das mudanças nos estudos e a criação de programas
acadêmicos destinados ao tema (ou à institucionalização da pesquisa), da evolução dos meios,
do afastamento de uma perspectiva empiricista contida no modelo. Não pretendemos descrever
aqui a linha histórica dos modelos criados em torno da Teoria da Informação, mas ressaltar
que eles possuíam uma característica comum: o processo comunicativo estudado como
processo linear e hegemônico. França (2002) nos explica:
Se esta era a visão que orientava a pesquisa em comunicação, sobretudo os estudos empreendidos
pelos pesquisadores norte-americanos (a chamada “pesquisa administrativa”), também no campo
oposto – o das correntes marxistas e do pensamento crítico – permanecia o mesmo paradigma
linear da comunicação. Lembremos rapidamente o conceito de Indústria Cultural (apresentado por
T. Adorno e M Horkeimer no final da década de 40), que deu conta do processo de massificação e
alienação promovido pela prática cultural-mercadológica dos meios de comunicação. Ou dos estudos
sobre o Imperialismo Cultural (desenvolvidos na década de 70), que retratava um mundo alimentado
por uma poderosa indústria da informação, entretenimento e dominação ideológica, sediada
notadamente nos Estados Unidos. Do ponto de vista da comunicação, trata-se do mesmo esquema:
um emissor (dominador e todo poderoso) produzindo mensagens para um receptor (dominado,
passivo). (FRANÇA, 2002: 60-61)
A massa crítica que se avolumou frente a essa percepção vetorizada da comunicação
começou a ser formada já no início da segunda metade do século XX. Um número cada vez
maior de estudos indicava que o modelo informacional era inapropriado para sustentar um
campo de estudo. Alguns aspectos acentuavam esta inapropriação. A comunicação não ocorre
apenas pelos sistemas massivos, portanto os conceitos de informação propostos não
alcançavam a dimensão relacional da comunicação. A concepção de um emissor sempre como
ponto forte enfraquecia o receptor, colocava-o em uma situação de passividade e, por
conseqüência, desconsiderava suas experiências e condições interpretativas; apesar de alguns
aspectos do modelo matemático terem sido abolidos ao longo do tempo, uma referência
marcadamente técnica orientava a Teoria da Informação.
O último aspecto apontado acima deixa ver um entendimento da organização social a
partir da disponibilidade de tecnologias da informação. Como as sociedades efetivamente não
se organizam deste modo, é evidente a desconsideração das formas de interação operadas a
partir de produtos simbólicos capazes de constituir valores de um grupo, instrumentos de
interpretação e modos de interação deste grupo com o mundo. O receptor não era um ponto
isolado, individualizado, ele se comunicava via dispositivos técnicos, mas também se
31
relacionava com todo um conjunto de instituições, de estruturas sociais, de organizações
culturais. De outra feita, era preciso cunhar um conceito de comunicação que contemplasse a
dimensão relacional (RÜDIGER, 1998. FRANÇA, 2002). A existência de uma crítica ao modelo
da Teoria da Informação ainda na primeira metade do século XX não significou uma assimilação
rápida de outros pressupostos teóricos.
É interessante registrar o relativo ostracismo a que foram legadas – no mesmo período, por parte
dos estudiosos da comunicação – outras concepções e autores (como A. Schutz, G. Simmel, G. H.
Mead e o interacionismo simbólico, a Escola de Chicago, a Escola de Palo Alto) que em uma
perspectiva completamente distinta, enfatizam a natureza interativa das trocas simbólicas, a
intervenção criativa dos homens, o dinamismo inscrito no terreno da experiência e do vivido, a
diversidade e o pluralismo que marcam as pequenas cenas do cotidiano. A explicação da pouca
importância atribuída a essas contribuições pode ser imputada ao fato de que tais autores nadavam
contra a corrente, num século e numa ciência social voltados para a construção das grandes verdades
e das generalizações totalizadoras. (FRANÇA, 2002: 61-62)
Apenas nos anos 60 os estudos norte-americanos das chamadas Escola de Chicago e
Escola de Palo Alto
3
ganharam uma reverberação maior. Na década de 1930, H. Blumer,
pertencente à Escola de Chicago, cunhou o termo interacionismo simbólico, desenvolvido a
partir das concepções de George Herbert Mead. Tal como a Escola de Palo Alto, o pensamento
produzido nestes colégios privilegiavam a intercessão entre linhas de estudos oriundas da
antropologia, sociologia, lingüística, psicossociologia, pedagogia dentre outros campos.
A título de esclarecimento, vale lembrar que o modelo matemático foi desenvolvido em
1949, alguns anos depois dos estudos propostos pelas escolas acima referidas. Porém, já no
começo do século XX criou-se e foi largamente estimulado os estudos denominados Mass
Comunication Research, que também reuniam áreas diversas do pensamento para analisar,
quase sempre, a dimensão quantitativa da comunicação. Não podemos esquecer que este
estudo privilegiava a pesquisa da eficiência, possuía um enfoque empiricista e instrumental
3
“Nos anos 40, um grupo de pesquisadores americanos provenientes de horizontes tão diversos quanto a antropologia, a
lingüística, a matemática, a sociologia ou a psiquiatria tomam rumo inteiramente contrário ao da teoria matemática da comunicação
de Shannon, em vias de se impor como referência dominante. A história desse grupo, identificado como o ‘colégio invisível’ ou
‘escola de Palo Alto’ (do nome da pequena cidade na periferia ao sul de San Francisco, EUA), inicia-se em 1942, impulsionada
pelo antropólogo Gregory Bateson, que se associa a Birdwhistell, Hall, Goffman, Watzlawick etc. Afastando-se do modelo linear
da comunicação, trabalham a partir do modelo circular retroativo proposto por Nobert Wiener. (...) Nessa visão circular da
comunicação, o receptor tem um papel tão importante quanto o emissor. Tomando de empréstimo conceitos e modelos da
abordagem sistêmica, mas também da lingüística e da lógica, os pesquisadores da escola de Palo Alto tentam explicar uma
situação global de interação, e não apenas estudar algumas variáveis tomadas isoladamente. Baseiam-se, assim, em três
hipóteses. A essência da comunicação reside em processos relacionais e interacionais (os elementos contam menos que a
relações que se instauram entre eles). Todo comportamento humano possui um valor comunicativo (as relações, que se
respondem e implicam mutuamente, podem ser concebidas como um vasto sistema de comunicação) observando a sucessão
de mensagens situadas no contexto horizontal (a seqüência de mensagens sucessivas) e no contexto vertical (a relação entre
os elementos e o sistema), é possível deduzir uma ‘lógica da comunicação’.” (MATTELART, A. & M., 2000: 67-68)
32
da comunicação – o que concentra o estudo na pesquisa de uma comunicação midiática apenas.
A Teoria Matemática, seguida dos estudos da Corrente Funcionalista, será, posteriormente, o
fundamento teórico do Mass Comunication Research. Os funcionalistas – seguidores dos
estudos do cientista político e pesquisador da Universidade de Chicago Harold D. Lasswell
(Propaganda Techniques in the world war, 1927) - investigavam o trigônio indivíduo, meios de
comunicação de massa e sociedade.
Quem diz o quê por que canal e com que efeito? – Com esta fórmula, que o tornou célebre e
aparentemente não apresenta ambigüidade, Lasswel, em 1948, dota a sociologia funcionalista da
mídia de um quadro conceitual que, até então, alinhava apenas uma série de estudos de caráter
monográfico. Traduzido em setores de pesquisas, resultam daí, respectivamente: “análise do controle”,
“análise do conteúdo”, “análise das mídias ou dos suportes”, “análise da audiência” e “análise dos
efeitos”. (MATTELART, A e M., 2000: 40)
O nome funcionalismo é oriundo de uma das perspectivas centrais de pesquisa: o
funcionamento do sistema social com todos os seus componentes – incluso os meios de
comunicação de massa. Reafirmamos que não é nosso interesse descrever todos os modelos
que se dedicaram a pensar a comunicação. Esta breve sinalização histórica de elementos das
chamadas teorias da comunicação objetiva iluminar algumas questões que nos parece
fundamental para a trajetória que pretendemos trilhar.
1.1. Entre o céu e a terra
Localizados os pontos importantes para nos orientar em um mapa compreensivo da
comunicação – a noção de campo, de disciplina e de objeto da comunicação -, necessitamos
convocar o pensamento base que sustentará nossa pesquisa e buscar um diálogo entre os
autores que os representam. O cotejo entre o pensamento de Foucault e Pross reivindica de
nós a busca por um possível denominador comum, pois, a princípio, são formas de pensar
bastante distintas: por um lado, as interações simbólicas, sustentáculos da sociedade, trazidas
a baila pela comunicação e gerenciadas pelas instituições, alicerçam o conceito de verticalismo
desenvolvido por Harry Pross; por outro lado, o pensamento de Foucault, que ultrapassa os
postulados do esquerdismo, oferece uma reflexão radical para investigar como diversos regimes
discursivos são frutos de procedimentos vindos das microfísicas do poder e, deixa claro, que
várias das práticas discursivas a que estamos submetidos funcionam como ferramentas
disciplinares.
33
Pross e Foucault concordam que o gerenciamento institucional da atividade simbólica
objetiva o controle social e pretendem alcançar a produção da subjetividade. Pross cria uma
classificação dos sistemas de mediação a partir da comunicação que se origina do corpo e
a ele sempre retorna. O corpo, nesta perspectiva, é um embrião de sociabilidade e todo o
conjunto gestual dele decorrente trama a teia de relações comunicacionais, sistemas
simbólicos e formas culturais. Para darmos início a aproximação destas formas
aparentemente longínquas de pensamento, nos parece urgente localizar sobre qual momento
do pensamento dos dois autores nos apoiaremos.
O pesquisador alemão Harry Pross é classificado em muitos estudos como teórico da
mídia. Pretendemos privilegiar outro aspecto do trabalho deste autor. Para aclararmos nosso
argumento, vejamos alguns fragmentos da descrição que Vicente Romano faz da trajetória do
pesquisador, na apresentação da versão castelhana da obra Zwänge. Essay über symbolische
Gewalt, traduzido como La violencia de los símbolos sociales, páginas nove à 14, 1989.
Nascido em 1923, Harry Pross doutorou-se em ciências sociais e história, em 1949, na
Universidade de Heidelberg. Dedicou-se nos anos seguintes à prática jornalística – foi redator,
editor, trabalhou em veículos impressos e eletrônicos, tanto públicos quanto privados. Em
1952, Pross rumou para os Estados Unidos onde se dedicou aos estudos de política na Hoover
Library, da Universidade de Stanford, e nas Universidades de Columbia e Minnesota. De retorno
à Europa, o pensamento de Pross destacou-se e foi reconhecido como particularmente
significativo no contexto alemão, observação feita pelo Daily Telegraph quando o pesquisador
visitou a Inglaterra. Sua trajetória docente teve início em 1962, na Hochschule für Gestaltung
de Ulm. Nos anos seguintes, suas pesquisas e seus artigos renderam para Pross uma indicação
de membro ordinário do Pen Club da República Federal Alemã.
Associada a uma produção intensa, Pross realizou uma série de viagens por países da
África, da Ásia e da antiga URSS. Estas viagens acrescentaram ao perfil militante de Pross
um conjunto de elementos que acirraram sua luta contra a dominação dos países ricos do
norte sobre os países pobres do sul. A entrada na Universidade Livre de Berlin ocorreu em
1968, Pross tornou-se catedrático de Publizistik (comunicação social e pública) e diretor do
Institut für Publizistik.
Romano lista uma produção de 15 obras, entre ensaios e livros. Tal lista revela um
traçado do pensamento de Harry Pross. A condução investigativa dessas obras deixa ver um
inegável dado comum presente em todas as obras: uma preocupação com os meios, que
34
culminará com a publicação, em 1971, de Medienforschung (Investigação dos meios) e será
repercutida em ensaios posteriores.
Tendo como princípio que a experiência humana está intimamente ligada à preservação
da vida, Harry Pross afirma que toda comunicação começa e termina no corpo. O que está
entre um corpo e outro corpo é mídia. Apesar de investigar os meios e sua história em várias
outras obras, é a classificação efetuada pelo autor em Medienforschung que concentra este
debate. Ela tornou-se determinante em vários estudos desenvolvidos no Brasil e no exterior.
Segundo esta classificação, o corpo possui e exerce a mídia primária de qualquer sistema de
comunicação. Tem no rosto o primeiro display comunicativo. O corpo utiliza a mídia primária
para exercer uma comunicação de proximidade. São parâmetros de comunicação baseados
no toque, no cheiro, no paladar. Uma comunicação que exige que os corpos estejam no mesmo
espaço e tempo, portanto, uma comunicação restrita.
Durante muito tempo, o uso das mídias primárias pelos hominídeos possibilitou o
desenvolvimento de linguagens próprias, formas corporais de comunicação próximas da
natureza, ainda não inseridas na cultura. Com a criação da mídia secundária ingressamos na
cultura. A mídia secundária representa a inscrição do homem sobre as coisas, a marcação
pelos sinais. As pedras como suporte eternizavam a presença do homem no mundo. Foi a
criação de formas de comunicação que não dependeriam mais de corpos situados no mesmo
tempo e espaço para ocorrem. Informações que poderiam ser acionadas a partir do manuseio
e decodificação de códigos inscritos em um suporte. As imagens eternizaram o homem. Elas
surgiram como pictogramas, evoluíram para hideogramas e transformaram-se em letras. No
refinamento das representações os homens puderam criar as narrativas textuais.
O processo de produção da mídia secundária está relacionado aos processos de
agregação comunitária. Este tipo de mídia exigiu dos homens a criação de sistemas de
codificação e decodificação das linguagens e sinais. É um tipo de mídia que pressupõe um
aprendizado. Os dados culturais formaram-se no corpo e no psíquico. Ornar-se, pintar-se,
vestir-se estabeleciam sistemas de comunicação tanto quanto apreender o significado das
imagens para determinado grupo.
A mídia secundária poderia ser transportada e armazenada. Se por um lado isto foi a
grande vantagem deste tipo de mídia, por outro o custo de circulação foi uma grande
desvantagem. Era preciso ganhar tempo no tratamento, armazenamento e circulação das
informações. Uma mídia de base elétrica foi a solução: a mídia terciária. Esta mídia exige
35
instrumentos técnicos para a emissão e a recepção. Sua capacidade de transmissão de sinais
é bastante eficiente, atingindo um grande número de pessoas com um único sinal ao mesmo
tempo. Esta possibilidade reduz consideravelmente o custo de transmissão. A criação da mídia
terciária foi extensão total do humano sobre o mundo. A ampliação de todas as potencialidades
comunicativas do corpo elevadas à máxima potência pelos processos de mediação. As mídias
não são estanques, não esgotam em si mesmas. Elas são cumulativas, agregam elementos
umas das outras. Todas as mídias pretendem a sincronização do corpo, da experiência.
Naquela época, um grande avanço desta classificação foi inserir o corpo no processo
comunicativo. Atualmente, decorre dessa classificação, ao nosso ver, um equívoco recorrente:
tem-se negligenciado o corpo como possuidor da mídia primária para conferir-lhe a dimensão
de corpo-mídia, mídia em um sentido puramente informacional. O corpo não é mídia nesta
medida, sobre ele convergem todas as mídias, mas o corpo é mais que um suporte, que um
meio de transmissão de informações. Se Pross considera a comunicação como troca de
experiência, como relação, como instrumento político, como poderia ele reduzir o corpo a um
status de media informacional? Nossas expressões ou gestos não estão prontos ou explicados
em um manual do usuário de um meio técnico. Eles são uma linguagem forjada na relação
social, como descrito por ele na obra, de 1981: Zwänge. Essay über symbolische Gewalt
(Ensaios sobre a violência simbólica).
Nessa mesma obra evidencia-se a influência metodológica da fenomenologia da
experiência de Merleau-Ponty sobre Pross. Sob esta influência torna-se inviável a classificação
do corpo como mídia. Norval Baitello Jr, no artigo O tempo lento e o espaço nulo (2004),
esclarece que a classificação que Pross realiza é dos sistemas de mediação.
Se Merleau-Ponty o influenciou metodologicamente, o filósofo neo-kantiano Ernest
Cassirer deixou uma forte herança no pensamento de Pross. Tal como Cassirer, Pross concebe
o mundo como um universo simbólico, potencializado pelos meios e pelo papel que eles
possuem na constituição desta sociedade. Nos termos do autor, a experiência social é
atravessada pelos meios, mas não se esgota neles. Os meios servem à administração de um
conjunto de símbolos para atuarem sobre a formação identitária. Há, de acordo com ele, um
movimento ordenador verticalizado na produção do comportamento. Não apenas sob os
aspectos econômicos, mas em todos os outros, um verticalismo das formas simbólicas, dos
que estão acima ordenando os que estão abaixo, garantindo a manutenção da ordem e do
controle do comportamento.
36
Pross adverte que a recepção e manutenção das formas simbólicas que trafegam nestas
mídias ocorrem sempre sob conflito, necessitam disto para sobreviver, evoluir e se atualizar.
As formas de protesto, inicialmente investigadas em Publizistik (Comunicação Social), 1970,
são tomadas como ação comunicativa em Protest. Versuch über das Verhältnis von Form und
Prinzip (Protesto. Ensaio sobre a relação entre forma e princípio), 1971. De acordo com
Romano, nessa obra Pross constrói uma tese de que a política é uma regulação de
comunicação. Deste modo, os níveis de clareza e abertura da comunicação definem a
possibilidade ou não da realização do bem comum. As duas obras, próximas temporalmente,
registram o modo como Pross convida a comunicação a servir de instrumento analítico para
os acontecimentos sociais. Ao referi-se a obra Publizistik, Romano destaca o modo como Pross
instiga a ciência da comunicação a questionar a visão que ela possui de público. É necessário,
segundo o comentador, ampliar a margem de liberdade do homem sob a integração entre as
teorias e as práticas comunicativas.
A esta altura nos deparamos com um Harry Pross próximo do pensamento da Escola
de Chicago e das bases do Interacionismo Simbólico. Do mesmo modo que os interacionistas,
Pross concebe a sociedade como resultado da comunicação – por isto a reivindicação presente
em Publizistik. Os processos de comunicação estão estruturados sobre cadeias simbólicas,
por conseguinte, as pessoas interagem através de trocas simbólicas. Para os interacionistas,
A comunicação representa um processo estruturado simbolicamente, constitui o emprego de símbolos
comuns com vistas à interação, que funda a própria sociedade. A realidade social em que as pessoas
vivem é construída através de símbolos: os seres e as coisas só se tornam fonte de motivação
quando ganham sentido, estabelecido no processo da comunicação. O significado das coisas deve
ser visto, portanto, como um produto da interação social mas, ao mesmo tempo, como uma condição
de possibilidade da comunicação. (RÜDIGER, 1998: 34-35)
A sociedade decorre da comunicação, sem ela não há interação. A comunicação organiza
a interação social, permite aos sujeitos a construção da sociedade, da vida em comum. O
estabelecimento do contexto cultural e os códigos manipulados na comunicação estabelecem
os princípios sociais aos grupos. Os símbolos só adquirem valor ao serem reconhecidos e
respeitados, a partir daí passam a guiar o grupo. O valor do símbolo não pode ser interpretado
a partir de uma experiência individual, única. Ele deve ser estabelecido com valor igual para o
grupo social. Esta perspectiva afasta a comunicação do mero processo de transmissão de
informação e a coloca como possibilidade de ação em comum.
A formação teórica de Pross foi contemporânea à fundação dos estudos da comunicação.
37
Lembramos que a comunicação como campo de estudo advém da interseção disciplinar, a
partir de um objeto que demandava uma abordagem interdisciplinar. À época, o pensamento
de Pross recebeu toda esta influência do debate sobre a revisão das clivagens disciplinares.
Três anos após seu doutoramento, tornou-se pesquisador nos EUA, período em que a sua
formação política e a herança de Cassirer abrem as portas para a interlocução com os
pressupostos da Escola de Palo Alto – especialmente na interlocução com a antropologia – e
do Interacionismo Simbólico. Como alertam Armand e Michèle Mattelart (2000), o
desenvolvimento destas correntes de pensamento ocorreu especialmente nos países anglo-
saxões e de língua alemã. Ainda, se remontarmos às influências teórico-metodológicas de
Pross encontraremos um caminho que nós leva na direção das sociologias interpretativas –
interacionismo simbólico, fenomenologia social, etnometodologia. Estas sociologias
(...) que se desenvolveram a partir dos anos 60 nos países anglo-saxões, aprofundaram a clivagem
entre as sociologias atentas aos microprocedimentos e às chamadas sociologias estruturais,
interessadas nas coações sociais exteriores ao indivíduo e consagradoras do primado da “sociedade”
sobre o sujeito, da estrutura sobre a prática.
Se o interacionismo simbólico e a etnometodologia encontram na obra de George Simmel,
como na de George Herbert Mead, elementos de base, estas correntes constroem-se sobretudo
ao longo do trabalho de progressiva superação da sociologia parsoniana da ação. (MATTELART,
A. & M., 2000: 132)
Para Pross, a experiência cotidiana dos sujeitos conceberá a hierarquia das formas
simbólicas. A interação simbólica é compreendida por ele como uma capacidade cognitiva dos
seres humanos. Em todos os momentos de nossa existência o gestual, as expressões corporais,
o modo como falamos, o quê falamos ou não, como devemos nos vestir neste ou naquele
lugar, como devemos nos portar, são formas simbólicas que nos dispõem na sociedade. O
corpo adquire estas textualidades e a comunicação, através da propagação, garante o valor
delas. Isto significa dizer que a comunicação ascende o hominídeo ao humano, oferece a
possibilidade de interpretar e reinterpretar os símbolos, dessa forma reorganizar a sociedade
regularmente na existência histórica. A comunicação figura então como uma faca de dois gumes:
por um lado, ela pode propiciar a democracia, a igualdade, o consenso; por outro lado, ela
pode ser arbitrária, mantenedora da insegurança, da ignorância, do medo e da violência. A
tese do verticalismo, construída por ele em Zwänge. Essay über symbolische Gewalt, elucida
esta aproximação. Nos termos de Rüdiger:
Conforme os interacionistas, a sociedade é uma estrutura simbólica criada pelo processo de
38
comunicação. Do ponto de vista simbólico, representa uma estrutura vertical, baseada numa
complexa escala de valores, que classifica em hierarquias as coisas, os gestos e os homens.
Os símbolos se relacionam hierarquicamente, conforme princípios de ordenamento que lhes
conferem diferentes valores. Do ponto de vista comunicativo, representa ao contrário, um
processo horizontal de reunião, em que predomina o contato face a face, parece que todos
estão no mesmo plano. (RÜDIGER, 1998: 40-41)
A organização arbitrária das formas simbólicas é denominada pela sociologia como
“violência simbólica”
4
. Bourdieu buscou no marxismo a noção de capital para subsidiar o termo.
Esta ação cria os instrumentos para a localização dos sujeitos que possuem o capital em
maior quantidade (dominantes) e os sujeitos que possuem o capital em menor quantidade
(dominados). Apesar de originado nos estudos da economia, a noção de capital incorpora
dimensões do político, do social, do cultural, do simbólico, do lingüístico. O acúmulo deste
capital e o controle da circulação do mesmo, por parte dos dominantes, caracterizam a violência
simbólica.
A noção marxista de “luta de classes” é o ponto de partida para Harry Pross (1989)
elaborar uma tese sobre o verticalismo. Segundo o autor, devemos ultrapassar a perspectiva
do antagonismo entre o capital e o proletariado. Ultrapassar não significa abandoná-lo, mas a
partir deste antagonismo compreender uma lógica própria de funcionamento, uma “lógica de
classes”. Pross questiona a eficiência daquilo que considera ser uma redução operada pela
lógica marxista para analisar todos os conflitos sociais – a luta de classes. Como imagem à
crítica, ele cita o anarquista russo Mikhail Bakunin. Este afirmou que quando o proletariado
ocupasse o poder instalariam uma nova série de privilégios e renovariam as antigas relações
de sobreposição, de verticalização.
De ningun modo ha surgido la unidad perfecta esperada por Marx. La lógica marxista de las clases,
que subordinaba todo antagonismo entre proletariado y capital no es patente. Evidentemente hay
grupos, clases, capas, estamentos sociales, com rasgos comunes, que no si integran en los puntos
de vista de capital y trabajo. La sociedad de clase no es tan sencilla como se presenta según las
clases y criterios de partido, proclamados com pretensión de verdad por la politburocracia. (PROSS,
1989: 19)
A idéia de politburocracia resulta da observação histórica feita por Pross da ascensão
dos bolcheviques ao poder na Rússia. Para ele, a suposição de Bakunin se cumpriu e pode
ser confirmada na afirmação dos críticos ao poder de que a burocracia socialista era a outra
forma da classe exploradora. A burocracia, em partilha com o pensamento de Alfred Weber, é
5
Sobre o tema, cf.: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5.ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
39
para Pross um modo de manutenção do poder. Sob este entendimento, ele formula algumas
considerações ao conceito marxista de solidariedade. Este conceito indica união, luta comum,
que conta com a concordância de todos trabalhadores, por um mundo novo. Um mundo onde
será abolida a propriedade privada e toda a classe operária irá se solidarizar na luta contra o
inimigo comum: o fim dos antagonismos de classe. A realização da predição de Bakunin é
para o autor a demonstração que a luta precisará ocorrer tanto do lado de fora das fronteiras
da classe como do lado de dentro. A politburocracia policia quem é o divergente, o dissidente
e o declara como aquele que ataca a verdade real. O verticalismo esta presente em todas as
dimensões da vida social.
A ciência, nos termos de Pross uma associação de sentidos, estrutura-se
lingüisticamente sobre uma terminologia própria, seu significado é produzido por sobre um
conjunto de signos concretos. Para se fazer entender, ela serve-se de um conjunto de
metáforas. Lança mão de imagens de sentidos originados em outros lugares para
conseguirem uma apreensão maior. As ciências devem, para expressar-se, ir ao encontro
da linguagem coloquial (grifo de Pross).
Tal sucede en la polémica de las ciências sociales en torno a la “sociedad de clase”. Por mucho que
se presuponga que “arriba” y “abajo” solo son recursos para construir un modelo teórico, este modelo
responde a la profunda aversión contra la desigualdade humana que se manifesta en el linguaje
cotidiano. Vemos, pues, que el problema lingüístico de las ciencias es un problema social puesto
que la comunicación lingüística relativiza todos los demais factores. (PROSS, 1989: 22)
As proposições de classe alta e baixa, ascensão ou queda social, tão como os outros
símbolos, encontram validade e tornam-se realidade na linguagem coloquial. Pross explica
que a sociedade de classe apresenta-se como uma metáfora técnica – como as utilizadas por
Hegel, Karl Marx e Karl Popper. A explicação relembra que estas metáforas foram elaboradas
em um contexto em que a técnica predetermina as condições sociais.
Os “edifícios da sociedade humana” de Hegel, as “instituições como fortaleza” para Popper,
as alegorias cristãs de céu e inferno, o “castelo forte” de Lutero, as “superestruturas” de Karl
Marx e Engels, guardam forte semelhança entre si (PROSS, 1989: 23). Para Pross, as narrativas
cristãs das visões de escadas que levavam da terra ao céu, servem como imagem de fundo a
uma metáfora para o verticalismo. Ancorado na teologia da escada celestial, escrita pelo abade
Juan Klimakos, no mosteiro de Sinai, no século VIII, ele nos ensina que a escada celestial
transformou-se na “escada da virtude” e, posteriormente, na “escada de ascensão social”. Mesmo
tendo perdido o sentido original, manteve-se o signo com possibilidades de outras relações.
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En los relatos cristianos, al pie de la escalera se hallaba el monstruo que debia vencerse para
alcanzar los peldaños. Quienquiera que deseara ascender por la escalera del cielo debia vencer
primero al dragón o a la serpiente que hallaba a su pie. En las representaciones profanas de la
escala del ascenso social, este dragón posee denominaciones aparentemente racionales, tales como
alienación, exploración, nível de desarrollo, menos privilegiados, ambiente lingüístico, desigualdad
de oportunidades. Simples conceptos bajo los que uno puede imaginarse cosas diferentes, pero que
tiene en común el hecho de que requieren atención para la escalera que debe sacarmos de las
desventajas mencionadas y llevarmos al cielo de las ventajas plenas. (PROSS, 1989: 23-24)
Devemos enxergar na metáfora da escada uma possibilidade de cruzamentos de eixos
e planos. O verticalismo ocorre de cima para baixo. Mas, entendemos que para o autor, este
eixo possui postos de intercessão, patamares, condições de status, que colocam as pessoas
em degraus diferentes. Estes degraus ou patamares de status relacionam-se diretamente com
as condições e acúmulos de poder. Pertencente a uma outra matriz de pensamento, mas com
preocupações semelhantes, John B. Thompson (1998), ao construir uma teoria social da mídia,
analisa o poder sobre quatro formas: o poder econômico, o poder político, o poder coercitivo e
o poder simbólico. Cada forma de poder alimenta a outra. Neste momento, iremos nos ater a
forma do poder simbólico. Posteriormente, no capítulo que discutiremos a comunicação de
massa e a propaganda, retomaremos todas as formas de poder de modo aprofundado. O poder
simbólico (ou cultural), advém da produção, transmissão, circulação e recepção de significados
das formas simbólicas. Inerentes à vida social, as formas simbólicas garantem a nossa
comunicação com os outros, nos socializam e alimentam os recursos daquilo que o autor chama
meios de informação e comunicação. Vejamos o que diz Thompson:
Estes recursos incluem os meios técnicos de fixação e transmissão; as habilidades, competências e
formas de conhecimento empregadas na produção, transmissão e recepção da informação e do
conteúdo simbólico (que Bourdieu chama de “capital cultural”); e o prestígio acumulado, o
reconhecimento e o respeito tributado a alguns produtores ou instituições (“capital simbólico”). Na
produção de formas simbólicas, os indivíduos se servem destas e de outras fontes para realizar
ações que possam intervir no curso dos acontecimentos com conseqüências as mais diversas. As
ações simbólicas podem provocar reações, liderar repostas de determinado teor, sugerir caminhos
e decisões, induzir a crer e descrer, apoiar os negócios do estado ou sublevar as massas em revolta
coletiva. Usarei o termo “poder simbólico” para me referir a esta capacidade de intervir no curso dos
acontecimentos, de influenciar as ações dos outros e produzir eventos por meio da produção e
transmissão de formas simbólicas. (THOMPSON, 1998: 24)
Dois pontos pedem esclarecimentos frente ao acima citado: ao compreender o papel
que a mídia possui na constituição da modernidade, Thompson não partilha das idéias de
Adorno e Horkheimer quanto a um consumo das formas simbólicas e culturais a partir de uma
posição cordata do receptor frente a ordem social instalada ou, ainda, sem nenhuma autonomia
na recepção; a expressão “poder simbólico”, emprestada de Bourdieu, é tomada aqui em um
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aspecto diferente do original. Bourdieu aponta como sendo uma das possibilidades de
realização deste poder o desconhecimento por parte de que é submetido a ele. Thompson,
por sua vez, indica a existência de uma concordância das partes fincadas em crenças comuns
e cumplicidades. Assim, esta forma de poder contará sempre com uma instituição que o
alimente, o transforme em legítimo, garanta sua sobrevivência, podendo ser instituições
religiosas e as formas simbólicas de salvação; instituições educacionais e a formação para a
vida; os meios de comunicação e a ampla divulgação de valores.
O desenho da escada então se complexifica. Não estamos frente a um dragão ou a
uma serpente apenas. Mas, nos deparamos com dragões e serpentes em todos os degraus,
cada um deles com novos exercícios de verticalização, todos com níveis de institucionalização
e meios de comunicação e informação que garantem a produção e circulação de suas formas
simbólicas. Se aliarmos então as perspectivas de Pross e Thompson para observamos estes
pontos de interseção no eixo vertical, poderemos desenhar o seguinte esquema:
No esquema acima entendemos como patamares de poder simbólico as diferentes fases
da vida humana e suas relações de poder: a criança e o adulto; o aluno e o professor, o
empregado e o empregador. Cada patamar garante os exercícios disciplinares que sustentarão
o próximo patamar. Portanto, eles sempre serão atravessados pelo eixo verticalizador, que
organiza o poder simbólico e tenta condicionar a experiência vivida. A imagem de ascensão e
queda social está vinculada a uma contextualização e ao quadro de experiências que compõe
as referências dos indivíduos. Os meios de comunicação e informação garantem a circulação
das formas simbólicas necessárias ao processo, na verdade eles estão envolvidos em todas
as etapas. Lembramos que a mídia é um instrumento, um meio de informação que serve à
comunicação. Por isto utilizamos aqui “meios de comunicação e informação”.
Eixo verticalizador
Patamares de poder simbólico
gerenciados pelas instituições
Meios de comunicação e informação
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Esta última observação é necessária para que não caiamos no equívoco de imaginar
que os meios de informação e comunicação gerados a partir da modernidade inauguram todo
o processo de verticalização. Os rituais mitológicos e religiosos são, ao longo da evolução
humana, responsáveis por corporificar os conceitos de ascensão e queda. O esquema
sociedade de classe se espelha nesta simbologia. Nos termos do autor, as alegorias cristãs
de céu e inferno, inscreveram o sentido de que bom é o que está acima, ruim é o que está
abaixo e melhor o que está nos limites da altitude. Pross afirma que esta perspectiva serve
tanto à investigação do marxismo como das idéias de valor capitalista. A esta altura, percebemos
que a importância conferida por Pross aos ritos e às mitologias na constituição das culturas
possui um diálogo com os pensamentos de Nobert Elias e Ivan Bystrina.
Nobert Elias caracterizou as condutas humanas como culturais, elaboradas em um
tempo e em um espaço bem definidos. Cada novo comportamento exigiu um novo instrumento
que, circularmente, gerou novos comportamentos. Agregar-se afetivamente, viver em
comunidade, buscar o semelhante, definiu o passo inicial para a grande caminhada em direção
à humanidade. Organizados em agregações nômades, nossos ancestrais viviam da colheita
de frutos e de pequenas caças. Naquele momento, não havia estratificação social, machos e
fêmeas contavam com os mesmos direitos e deveres no grupo. O equilíbrio populacional aliado
a uma oferta satisfatória de alimento garantiam uma vida harmônica e próxima da natureza.
Com a escassez da colheita, o crescimento dos grupos e as mudanças climáticas ocorreu
uma reorientação no percurso trilhados por aqueles grupos. Na era do ferro, o homem começou
a abater animais de maior porte. Tal fato permitiu a eles uma ingestão maior de proteínas,
bem como utilizar-se das peles para se proteger das baixas temperaturas decorrente do
resfriamento do planeta. As novas armas eram a consagração do poder de morte conquistado
pelos homens. Daquele momento em diante a vida harmônica cede lugar a disputas constantes
por comida e novos territórios para a colheita. Os grupos adquiriram novos contornos, os
machos assumiram o comando e os guerreiros mais fortes e bem sucedidos passaram a exercer
a liderança. O grupo não era mais pautado por uma organização cooperativa. Aliada à criação
dos novos instrumentos estava a armação de uma rede simbólica. Os homens investiram-se
de um poder cultural e esta rede simbólica foi fundamental para a manutenção das relações
de poder que começavam a ser estabelecidas. Desenhavam-se ali os primeiros traços de
estratificação social e sexual.
Ainda na vida nômade, mitos e ritos já povoavam o imaginário daqueles povos. Os
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homens abandonaram a vida nômade, fixaram-se na terra e criaram propriedades. Fixados na
terra, os homens fundamentaram a base de uma comunidade agrícola e lançaram a semente
que frutificou como a sociedade que conhecemos. O desenvolvimento das condutas humanas
sempre tiveram como meio de transporte a comunicação e, deste modo, tornaram-se,
gradativamente, global e definiram a humanidade e seus processos civilizadores em cada
tempo. O tempo, tema caro a Elias, é encarado como uma instituição trabalhada e refinada
por séculos. Tal como as condutas, a consciência do tempo também é cultural.
A fabricação de instrumentos e utensílios, a constituição dos saberes, a caracterização
e a organização do espaço em que viveriam, a codificação de comportamentos e a
hierarquização de valores engrossavam o caldo originário daquilo que Ivan Bystrina (1995)
nomeou como a segunda realidade do homem: o universo da cultura. Bystrina entende a cultura
como algo essencialmente social, como um fenômeno comunicacional, como resultado de uma
ação contratual entre os sujeitos. Os contratos que os sujeitos firmam conferem subsídios à
produção simbólica e às relações comunicacionais. Nesta perspectiva, é necessário
compreender os primeiros contratos para compreender o amadurecimento da cultura humana.
A consciência da morte é o ponto de partida. Ao tornar-se consciente da morte, o homem
precisou preservar a vida, produzir algo maior e mais duradouro que a morte. Abriam-se, à
época, as portas para o ingresso no terreno da cultura e das imagens. Um terreno em que os
princípios contratuais estavam sob a regência do homem e não da natureza. A cultura, segunda
realidade do homem, é um conjunto de instrumentos que atuam sobre a primeira realidade – a
natureza – e possui seu sustentáculo na escrita.
O conceito de segunda realidade proposto por Bystrina é diferente do conceito de
segunda natureza desenvolvido por Edgar Morin. Bystrina utiliza o termo segunda realidade
para dar ênfase à idéia de um universo da cultura como algo construído, fabricado. O termo
natureza (Morin) pode remeter a um universo dado, enquanto o termo realidade remete a um
universo que é resultado da ação dos homens. É preciso lembrar que quando Morin faz
referência a uma segunda natureza, ele pressupõe a existência de uma primeira natureza. A
primeira realidade, para Bystrina, é criada pela natureza. A primeira realidade é da ordem do
biológico e a segunda realidade é da ordem do social. A forma social é uma complexificação
da forma biológica.
Através da escrita o homem estendeu seu tempo, venceu a morte. Ele teve a
oportunidade de deixar sinais capazes de demonstrar sua crença em um tempo menos efêmero
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e mais duradouro. Mas esta escrita não está restrita à escrita das palavras, ela é pré-alfabeto,
é imagética. A palavra imagem (do latim imago) conta com duas vertentes semânticas: a primeira
ligada à noção de visibilidade e a segunda como o retrato de quem morreu, máscara mortuária.
No terreno das imagens, os homens não estariam mais atrelados ao tempo da natureza. A teia
da segunda realidade tramada sobre a primeira – a natureza -, tem seu construto no objeto
material fornecido pelo produtor de signos e que será recebido e interpretado por outros
produtores de signos. Todo ser vivo é, por definição, produtor de signos.
O signo tem que ser capaz de ser percebido pelos sentidos, tem de ser produzido por seres vivos –
animais ou homens – e recebido e interpretado por receptores igualmente vivos. Cada objeto
conhecido por nós contém em si uma informação latente, que nós percebemos pelos nossos sentidos.
Neste momento, aquela informação latente modifica-se e transforma-se em uma informação
atualizada. Por isso, tudo o que percebemos já é uma informação atualizada do objeto. Os signos
são objetos especiais porque não contêm apenas informações sobre si próprios, mas também
informações sobre aquilo que está imanente dentro dele. (BYSTRINA, 1995: 04)
Para a Semiótica da Cultura, a semiose possui três dimensões: uma pragmática –
produtor/emissor, signo, receptor (os pólos emissor e receptor são produtores de signo); uma
semântica, que relaciona-se ao signo e ao significado; uma sintática, que está entre os
diferentes tipos de signo. Para Bystrina, o cruzamento destas dimensões propicia o nascimento
de textos, que devem ser percebidos como complexos significativos, pertencentes às variadas
linguagens e aos variados sistemas de signos, estando sob o julgo de um universo de códigos
reguladores (os contratos).
Os textos, resultados de uma vinculação de complexos de signos que adquirem sentido
a partir de um contexto, possuem uma função socializadora, coletivizante, informativa, ética,
estética, emotiva e expressiva. O texto em sua função social estabelece, obrigatoriamente,
uma função cultural, que não pode ser limitada ao texto suportado na palavra e está presente
na história humana desde o início. Os textos, em Ivan Bystrina, podem ser categorizados a
partir de suas funções predominantes. Os textos instrumentais priorizam um objetivo técnico e
cotidiano, eles estão presentes no mundo animal e nos estágios iniciais e elementares da
humanidade, ligados diretamente às atividades de sobrevivência das espécies. Os textos
racionais priorizam os objetivos lógicos, são textos matemáticos e das ciências naturais,
surgiram nas culturas civilizadas. Os textos criativos e imaginativos situam-se na centralidade
da cultura humana e são necessários à sobrevivência psíquica dos homens, são compostos
pelos temas artísticos, pelas ideologias, pelos mitos e ritos. A função do texto não é estanque
e ele pode desenvolver múltiplas funções simultaneamente.
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Do mesmo modo que Bystrina, outros estudos semióticos conferem ao texto uma
perspectiva mais ampla. Para Lotman, et. al. (1975), o texto está conectado diretamente com
a cultura e só poderá ser compreendido a partir das relações existentes entre a cultura e os
produtores de signos nela situados. As experiências, as vivências coletivas, as crenças, os
mitos, os fatos comuns e os particulares estão entrelaçados na cultura e, por conseguinte,
nos textos. A maneira como nos relacionamos com o outro, com o espaço, com o tempo e com
a cultura determina o modo como nos comunicamos.
The fundamental concept of modern semiotics – the text – may be considered a connecting link
between general semiotic and special studies such as Slavistics. The text has integral meaning and
integral function (if we distinguish between the position of the investigator of culture and the position
of its carrier, then from the point of view of the former the text appears as the carrier of integral
function, while from the position of the latter it is the carrier of integral meaning). In this sense it may
be regarded as the primary element (basic unit) of culture. The relationship of the text with the whole
of culture and with its system of codes is shown by the fact that on different levels the same message
may appear as a text, part of a text, or na entire set of text...
...The concept “text”is used in a specifically semiotic sense and, on the one hand, is applied not only
to messages in a natural language but also to any carrier of integral (‘textual’) meaning – to a ceremony,
a work of the fine arts, or a piece of music. On the other hand, not every message in a natural
language is a text from the point of view of culture. Out of the entire totality of messages in a natural
language, culture distinguishes and takes into account only those which may be defined as a certain
speech genre, for example, ‘prayer’, ‘law’, ‘novel’, and others, that is to say, those which possess a
certain integral meaning and fulfill a common function. (LOTMAN. Et al., 1975: 62)
De acordo com Lotman, et. al. (1975), os textos necessitam de uma percepção que
ultrapasse uma mera ação de transcrição. O texto cultural é um sistema complexo de conexões
e relações formadas no contínuo conector entre a língua primária e as múltiplas linguagens
que a atravessam. Ao nos remontarmos aos princípios da Semiótica da Cultura, encontramos
em Bystrina outro fator importante para pensarmos a produção dos textos culturais: a relação
entre os códigos e os textos. Norval Baitello Jr., em uma nota de tradução da obra Tópicos de
Semiótica da Cultura, esclarece que Bystrina utiliza as variantes primário, secundário e terciário
em substituição às expressões hipolingüístico, lingüístico e hiperlingüístico. Esta substituição,
segundo Baitello Jr., deve-se ao fato de estas últimas expressões estarem fortemente ligadas
aos estudos da Lingüística e os princípios da Semiótica da Cultura vincularem-se a uma base
epistemológica.
Os códigos primários regulam todas as informações existentes nos organismos; eles
transportam e processam informações, mas não produzem signos e não interpretam signos.
Os códigos primários também regulamentam as informações. A cor de uma flor transmite uma
46
informação segundo a qual os pássaros e os insetos se orientam. Mas esta informação ainda não é um
signo, é um pré-signo. O que falta para que ela se torne um signo é a intenção: a planta não tem a
intenção de ter uma cor, esta informação está contida em seu código genético.(BYSTRINA, 1995: 06)
Neste caso, o termo intenção é compreendido no que ele tem de ligação com as vontades
conscientes e inconscientes. As fronteiras estabelecidas pelos procedimentos institucionais
baseiam-se nas informações conscientes e inconscientes dos envolvidos, por exemplo: a
postura do filho frente à hierarquia maior do pai, do aluno frente ao professor, de um funcionário
frente ao seu superior. Em todos os casos há um conjunto de signos que podem demonstrar
apreço, respeito ou afeto conjugados a posturas corporais que podem demonstrar
distanciamento, desafio ou frieza.
Talvez, para diferenciar informação não sígnica da informação sígnica – para diferenciar a informação
e o signo – devamos esclarecer que o signo é portador da informação, mas nem toda a informação
é um signo. O signo porta informações não apenas sobre aquilo que designa ou representa, mas
também sobre si próprio. Isto é importante para o artista no caso da função estética do signo.
Existe um princípio de estruturação que dá conta de como a informação se estrutura. Não se trata de
uma simples percepção diante de uma casa ou de um objeto qualquer, mas de uma percepção de
como esses objetos se organizam. (BYSTRINA, 1995: 06)
Os princípios organizadores dos textos encontram-se nos códigos secundários: os
códigos da linguagem. Estes códigos formam as gramáticas das chamadas línguas e linguagens
naturais. Os códigos secundários se aproximam dos códigos primários por pertencerem a uma
dimensão técnica e instrumental. Assim, tanto os códigos secundários quanto os códigos
primários ainda não são a cultura. Os códigos culturais são os códigos terciários de onde
surgem os textos culturais.
Os códigos terciários contam com o fator intencionalidade. Esta intenção está presente
no emissor produtor de signos, bem como no receptor, também produtor de signos. Nos dois
casos a intenção pode ser consciente ou inconsciente. Isto significa dizer que para decodificar
determinado texto o receptor deverá estar aberto ao texto. O produtor de signos só ocupa o
posto emissor se houver reciprocidade do receptor. Ou seja, o receptor não está a mercê do
emissor. O processo de comunicação exige o dado relacional para acontecer.
Os códigos secundários exigem aprendizagem, seus repertórios têm que ser estimulados
socialmente. Os códigos terciários, ou os textos culturais, interferem e modificam os códigos
primários e secundários. Bystrina, calcado nos estudos de Lotman e Jakobson, ressalta que
os códigos terciários baseiam-se nas experiências e nas hipóteses construídas pelos produtores
47
de signo, sejam eles emissores ou receptores. Os códigos terciários possuem alguns pontos
evidenciadores de sua estrutura, como a binariedade, a polaridade e a assimetria.
A binariedade não é um privilégio dos códigos terciários, os códigos primários e
secundários têm, do mesmo modo, sua construção fincada na oposição binária. Todo o processo
de desenvolvimento dos códigos terciários ou culturais ancorou-se no princípio básico da
oposição entre vida e morte. De acordo com Bystrina, as posições binárias predominam sobre
o desenvolvimento da cultura humana, particular ou geral.
A polaridade dá valor à binariedade. Estes valores visam facilitar a tomada de
decisão frente a estrutura binária. Cada pólo sempre receberá um valor e, por conseguinte,
orientará uma decisão. A polaridade é percebida nas ações ordinárias do cotidiano, nos
atos de preservação da vida, no estabelecimento de mecanismos que os homens criam
para vencerem as dificuldades.
Como possuem estruturas binárias e polares, os códigos terciários possuirão,
conseqüentemente, assimetrias. Porém, os textos culturais permitem algumas reduções ou
eliminações das oposições assimétricas.
A primeira possibilidade é de que as oposições binárias são eliminadas através da identificação.
Num provérbio do antigo Egito temos um exemplo: o que está acima também está abaixo. Daí nasce
uma ligação necessária entre o céu e a terra, e da terra com o mundo inferior.
A Segunda possibilidade é a da supressão da negação. As oposições são conectadas em sistemas
pluricompostos, não apenas binários. Isso possibilita que os pólos possam ser caracterizados ora
positivamente ora negativamente. A primeira ligação das oposições binárias se dá, naturalmente, na
tríade. Por exemplo: na tríade Céu, Terra, Inferno.
...A terceira tentativa, muito radical, de suprimir a polaridade é a inversão. A inversão é uma troca dos
pólos opostos. Por meio da inversão, a força do negativo deve ser superada, ou então “engajada”, e
isso acontece nas situações em que o negativo se torna insuportável ou insuperável... Um exemplo:
nas ditaduras o povo percebe o autoritarismo como negativo; no entanto, na ideologia marxista a
ditadura do proletariado é conotada positivamente e entendida como a parteira da sociedade do
futuro. Há, portanto, uma patente inversão.(BYSTRINA, 1995: 09)
De acordo com os interesses de nossa pesquisa, precisamos nos ater a dois pontos
específicos dos descritos até o momento: a intenção nos processos de significação e assimetria
dos códigos terciários culturais. Os princípios de desenvolvimento dos códigos terciários são
invariáveis em qualquer cultura e a assimetria possui sempre um pólo negativo mais forte que
o positivo. Novamente, a oposição vida e morte é um dado expressivo. A morte é mais forte
que a vida, por isso é preciso criar meios para preservar a vida.
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A inserção do tempo é uma característica dos textos culturais. As experiências para se
localizar no tempo e no espaço e a orientação dos corpos na buscas de uma sincronização
foram algumas tentativas de preservação da vida. A existência dos textos secundários, as
línguas e as gramáticas, ainda não representam a cultura. Transformar-se-ão em textos culturais
quando forem contextualizados, sincronizados, narrados.
1.2. Dos buracos da toupeira aos vigorosos anéis da serpente
O filósofo francês Gilles Deleuze criou uma caracterização para as sociedades surgidas
a partir de meados do século XX que atualiza as elaboradas por Michel Foucault para descrever
as sociedades dos séculos XVIII, XIX e parte do XX: as chamadas sociedades disciplinares.
Sucessora das sociedades de soberania – marcadas pelas pilhagens, pelas conquistas
sangrentas -, o termo forte das sociedades disciplinares era a criação, o desenvolvimento e a
manutenção de meios de confinamento. Como destacam Paul Rabinow e Hubert Dreyfus (1995),
ao publicar a obra Vigiar e Punir (1975), Foucault traz a baila um debate sobre a genealogia
do indivíduo moderno a partir das formas institucionais do poder.
Na referida obra, Foucault aponta a estreita relação existente entre as tecnologias
disciplinares e a constituição da sociedade moderna. O projeto desta aproximação objetivou
um corpo docilizado, miserável na existência e na resistência, resultado de um novo poder
científico-judiciário. “O livro de Foucault não é, obviamente, uma litania do progresso. Ao
contrário, é uma narrativa sombria do crescimento da tecnologia disciplinar dentro de uma
rede histórica mais ampla do biopoder” (DREYFUS e RABINOW, 1995: 158). Foucault explicita
que o livro tem por objetivo ofertar “uma história correlativa da alma moderna e de um novo
poder de julgar; uma genealogia do atual complexo científico-judiciário onde o poder de punir
se apóia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e mascara sua
exorbitante singularidade.” (FOUCAULT, 2005: 23)
A empreitada para elaborar esta história correlativa deve evitar restringir-se a
investigação da evolução das regras e procedimentos penais e jurídicos, o que pode gerar
como conseqüência uma super valorização dos avanços do “humanismo ou o desenvolvimento
das ciências humanas”; bem como ultrapassar a perspectiva – tal como a utilizada por E.
Durkheim -, de pesquisar as “formas sociais gerais”. Suportado em quatro princípios e
49
ressaltando que este caminho investigativo foi iniciado por outros pesquisadores, Foucault
sintetiza seu procedimento:
Em suma, tentar estudar a metamorfose dos métodos punitivos a partir de uma tecnologia política
do corpo onde se poderia ler uma história comum das relações de poder e das relações de objeto.
De maneira que, pela análise da suavidade penal como técnica de poder, poderíamos compreender
ao mesmo tempo como o homem, a alma, o indivíduo normal ou anormal vieram fazer a dublagem
do crime como objetos da intervenção penal; e de que maneira um modo específico de sujeição
pôde dar origem ao homem como objeto de saber para um discurso com status “científico”.
(FOUCUALT, 2005: 24)
Mesmo que Foucault destaque que o caminho não foi por ele iniciado, Deleuze aponta
o ineditismo do filósofo na concepção e na abordagem do poder. Ao modo de um
esquadrinhamento da obra, Deleuze desenha seis postulados que funcionam como chaves de
leitura à diferenciação entre a perspectiva do esquerdismo e a perspectiva de Foucault,
apresentada no livro Vigiar e Punir.
O postulado da propriedade remete o poder para uma determinada classe ou grupo.
Foucault explicita que o poder não pertence ou foi conquistado por nenhum grupo. O poder
não é uma propriedade, mas uma estratégia.
Este novo funcionalismo, esta análise funcional certamente não nega a existência das classes e de
suas lutas, mas as insere num quadro completamente diferente, com outras paisagens, outros
personagens, outros procedimentos, diferentes desses com os quais nos acostumou a história
tradicional, inclusive a marxista: “inúmeros pontos de enfrentamento, focos de instabilidades, cada
um comportando seus riscos de conflito, de lutas e de inversão pelo menos transitória das relações
de força”, sem analogia nem homologia, sem univocidade, mas com um tipo original de continuidade
possível. Em suma, o poder não tem homogeneidade; define-se por singularidade, pelos pontos
singulares onde passa. (DELEUZE, 1998: 35)
O postulado da localização situa o poder nas mãos do Estado. Foucault expõe uma
outra perspectiva: uma “microfísica do poder”. Nesta perspectiva, o poder não está no Estado,
mas o próprio Estado é resultante de uma congregação de focos diversos e engrenagens
múltiplas. Tanto o Estado quanto os sistemas privados estabelecem níveis de convivência que
estão mais para ordem da manutenção e menos para ordem da implementação por parte do
Estado, através de atos de aprovação e controle.
Uma das idéias essenciais de Vigiar e Punir é que as sociedades modernas podem ser definidas
como sociedades “disciplinares”, mas a disciplina não pode ser identificada como uma instituição
nem como um aparelho, exatamente porque ela é um tipo de poder, uma tecnologia, que atravessa
todas as espécies de aparelhos e de instituições para reuni-los, prolongá-los, fazê-los convergir,
fazer com que se apliquem de um novo modo. (...)
(...) o funcionalismo de Foucault corresponde a topologia moderna que não assinala mais um lugar
50
privilegiado como fonte de poder e não pode mais acertar a localização pontual (existe aí uma
concepção de espaço social tão nova quanto a dos espaços físicos e matemáticos atuais, como,
recentemente, em relação à continuidade). Notar-se-á que “local” tem dois sentidos bem diferentes:
o poder é local porque nunca é global, mas ele não é local nem localizável porque é difuso. (DELEUZE,
1998: 35)
No postulado da subordinação, o poder oriundo dos aparelhos estatais subordina-se a
um modo de produção, aos moldes de uma infra-estrutura. Deleuze explica que é possível
estabelecer correspondências entre os regimes punitivos e os modos de produção. O filósofo
relembra que os mecanismos punitivos e disciplinares relacionam-se ao crescimento
demográfico no século XVIII e ao crescimento da produção industrial, este último com vistas a
uma composição capaz de extrair todo e qualquer tipo de força. Ainda assim, para Deleuze
não é possível encarar esta perspectiva apenas sob a luz da determinação econômica, “mesmo
se dotarmos a superestrutura de uma capacidade de reação ou de ação de retorno”. A economia
opera sobre mecanismos de poder que atuam sobre os corpos e sobre a alma, no campo
econômico, nos espaços produtivos, nas relações de produção.
O que ainda há de piramidal na imagem marxista é substituído na microanálise funcional por uma
estreita imanência na qual os focos de poder e as técnicas disciplinares formam um número
equivalente de segmentos que se articulam uns sobre os outros e através dos quais os indivíduos de
uma massa passam ou permanecem, corpos e almas (família, escola, quartel, fábrica e, se necessário,
a prisão). “O” poder tem como característica a imanência de seu campo, sem unificação transcendente,
a continuidade de sua linha, sem uma centralização global, a continuidade de seus segmentos sem
totalização distinta: espaço serial. (DELEUZE, 1998: 37)
No quarto postulado, o poder possui uma essência e é um atributo que diferencia quem
exerce de quem é objeto, a estruturação dominante/dominado. Deleuze enfatiza que o poder
é operatório, logo não possui essência. Também, o poder não será atributo, será sempre
relação, um investimento sobre dominantes e dominados.
Analisando as cartas régias de aprisionamento, Foucault mostrará que o “despotismo do rei” não vai
de alto a baixo como um atributo de seu poder transcendental, mas é solicitado pelos mais humildes,
pais, vizinhos, colegas que querem que se prendam um ínfimo incitador de desordens e usam o
monarca absoluto como um “serviço público” imanente, capaz de regular conflitos familiares, conjugais,
de vizinhança ou profissão. (DELEUZE, 1998: 37)
No postulado da modalidade, o poder teria sua ação fincada na ideologia e na violência,
agindo por repressão, propaganda, coerção, ilusão. Deleuze encontra em Foucault os elementos
que demonstram que o poder não age por ideologia, mesmo na ação sobre as almas, ou serve-
se necessariamente da violência quando atua sobre os corpos. A violência, nos termos de
Foucault, especifica a relação da força sobre a força.
51
Uma relação de forças é uma função do tipo “incitar, suscitar, combinar...” No caso das sociedades
disciplinares, dir-se-á: repartir, colocar em série, compor, normalizar. A lista é indefinida, variável
conforme o caso. O poder “produz realidades”, antes de reprimir. E também produz verdade antes
de ideologizar, antes de abstrair ou de mascarar. (...) Foucault não ignora de modo algum a repressão
e a ideologia, mas, como Nietzche já havia visto, elas não constituem o combate de forças, são
apenas a poeira levantada pelo combate. (DELEUZE, 1998: 38-39)
O sexto postulado, o da legalidade, entende que o poder do Estado sempre será
expresso na lei. Por suas vez, a lei será resultado de uma dupla ação: em certos momentos
como mantenedora de um estado de paz, construído à força bruta; em outros momentos como
resultado de uma disputa entre mais fortes e mais fracos. Sempre há, na dupla ação, uma
cessação forçada pela guerra. Neste ponto, Deleuze chama a atenção para um dado
fundamental na perspectiva de Foucault:
Um dos temas mais profundos do livro de Foucault consiste em substituir a oposição, por demais
grosseira, lei-ilegalidade por uma correlação final ilegalismo-lei. A lei é sempre uma composição de
ilegalismo, que ela diferencia ao formalizar. (...) A lei é uma gestão dos ilegalismo, permitindo uns,
tornando-os possíveis ou inventando-os como privilégio da classe dominante, tolerando outros como
compensação às classes dominadas, ou, mesmo, fazendo-os servir à classe dominante, finalmente,
proibindo, isolando e tomando outros como objeto, mas também como meio de dominação. É assim
que as mudanças na lei no século XVIII, têm como fundo uma nova distribuição dos ilegalismos, não
porque as infrações tendem a mudar de natureza, aplicando-se cada vez mais à propriedade e não
às pessoas, mas porque os poderes disciplinares recortam e formalizam de outra maneira essas
infrações, definindo uma forma original chamada “delinqüência”, que permite uma nova diferenciação,
um novo controle dos ilegalismos. Mas, o que é comum às repúblicas e às monarquias ocidentais é
terem erigido a entidade da Lei como suposto princípio do poder, para obterem uma representação
jurídica homogênea: o “modelo jurídico” veio recobrir o mapa estratégico. O mapa dos ilegalismos,
entretanto, continua a trabalhar sob o modelo da legalidade. E Foucault mostra que a lei não é nem
um estado de paz nem o resultado de uma guerra ganha: ela é a própria guerra e a estratégia dessa
guerra em ato, exatamente como o poder não é uma propriedade adquirida pela classe dominante,
mas um exercício atual de sua estratégia. (DELEUZE, 1998: 39-40)
Manuel Maria Carrilho considera que a singularidade de um filósofo está na capacidade
deste formular novos problemas a partir de sua obra. Para ele, os problemas pensados na
filosofia são da ordem da transitoriedade, da mobilidade
5
, e desta forma encontram evolução
na proposição de novos problemas.
A identidade dos problemas através da história não passa de uma tese oriunda das exigências
escolares da filosofia, a que o ecletismo moderno procurou dar espessura de uma doutrina. E os
problemas constituem-se sempre através de complexas relações entre o objeto de um estudo e o
método de investigação: é deste conjunto que pode nascer, num movimento de interferências mútuas,
uma filosofia. Com Michel Foucault ela tomou um nome preciso: o de genealogia.
5
“Mobilidade que é certamente o sentido fundamental do “retiro” do mundo com que H Arendt, em páginas luminosas do The
Life of Mind, caracterizou o trabalho do pensamento: o retiro como condição de acesso aos mais agitados, tumultuosos interstícios
do mundo.” (CARRILHO, 1989: 34)
52
Genealogia não designa, contudo, uma teoria, mas uma estratégia. E ela foi-se definindo à medida
que a obra se realizava, não no seu começo. (CARRILHO, 1989: 30-31)
Foucault, nos termos próprios de Carrilho, na obra A História da loucura na Idade
Clássica, de 1961, questiona a descrição do desenvolvimento do pensamento ocidental fincado
em uma perspectiva evolutiva guiada pela razão. Essa perspectiva articula uma “imagem oculta”
que fornece para a razão a capacidade máxima de guia, mesmo quando os momentos históricos
revelam pausas ou interstícios no chamado processo evolutivo do pensamento. O filósofo
dedicou-se então à investigação da parceria entre a razão e a loucura e a demonstração de
que esta parceria foi fundamental para a formação do pensamento ocidental. “Projeto de uma
ousadia extrema, esta história da loucura definia-se, como assinalou Derrida, como uma
arqueologia de um silêncio que, por um lado, pretende fazer falar a própria loucura e, por
outro, destacar as condições de produção de um discurso de verdade sobre ela.” (CARRILHO,
1989: 31)
Como nos explica Carrilho, nas obras O nascimento da Clínica (1963) e As palavras e
as coisas (1966) Foucault dá continuidade aos estudos sobre as condições de possibilidade
dos discursos. Na primeira, o foco é a análise de como essas possibilidades “permitiram a
constituição – como domínio empírico e como estrutura da racionalidade – da ciência médica
e a emergência de um novo tipo de experiência da doença.” (CARRILHO, 1989: 31) Na segunda
obra, o filósofo define e nomeia o método e o objeto de seus estudos: a arqueologia – o
método; a episteme
6
– o objeto.
À época, Foucault pretendia, “demarcando-se tanto em relação à história das idéias
como à história da filosofia ou das ciências, investigar as condições de possibilidades dos
conhecimentos e das teorias.” (CARRILHO, 1989: 31) O projeto de Foucault, naquele
momento, objetivava observar de que forma os conhecimentos julgados externos aos critérios
da racionalidade, desprovidos de condições de perfeição, fincavam-se na história por sua
condição de possibilidade. “É a partir daqui que Foucault explica o aparecimento de novas
ciências (filologia, economia, biologia) que, se por um lado são constitutivas de um novo
6
Segundo o dicionário Houaiss da língua portuguesa, o substantivo feminino episteme possui as seguintes acepções: 1 na
filosofia grega, esp. no platonismo, o conhecimento verdadeiro, de natureza científica, em oposição à opinião infundada ou
irrefletida. 2 no pensamento de Foucault (1926-1984), o paradigma geral segundo o qual se estruturam, em uma determinada
época, os múltiplos saberes científicos, que por esta razão compartilham, a despeito de suas especificidades e diferentes
objetos, determinadas formas ou características gerais [O surgimento de um nova episteme estabelece uma drástica ruptura
epistemológica que abole a totalidade dos métodos e pressupostos cognitivos anteriores, o que implica uma concepção
fragmentária e não evolucionista da história da ciência.]
53
objeto de saber, o homem, por outro lhe traçam, na complexa lógica de seus
desenvolvimentos, o fim.” (CARRILHO, 1989: 31)
Alguns anos depois, em 1969, Foucault publica o livro A arqueologia do saber. Nesse
livro tanto o método quanto o objeto ganham um contorno melhor. Como explica Carrilho, o
que é clarificado é a função investigativa que debruça-se sobre “a análise dos regimes de
verdade que regulam a partilha dos enunciados em verdadeiros e falsos”. (CARRILHO, 1989:
32) Estas reflexões de Foucault revelam outros pontos fundamentais para a história do
pensamento. Estes pontos estão para além da ordem dos discursos ou do determinismo
de uma história das idéias ou sistemas filosóficos. Eles podem ser percebidos quando
observamos a articulação existente entre as práticas discursivas e as não discursivas. “É
aqui, nesta articulação do discursivo com o não-discursivo, que a genealogia se define,
tratando-se agora de investigar, mais do que as condições de possibilidade, as condições
de emergência dos saberes” (CARRILHO, 1989: 32). Deleuze refere-se do seguinte modo
à obra A Arqueologia do Saber:
A arqueologia não era apenas um livro de reflexão ou método geral, era uma orientação nova,
como uma dobra reagindo sobre os livros anteriores. A arqueologia propunha a distinção entre
duas espécies de formações políticas, as “discursivas” ou de meios. Por exemplo, a medicina
clínica no fim do século XVIII é uma formação discursiva; mas ela o é em relação às massas e às
populações que dependem de outro tipo de formação, e implicam em meios não-discursivos,
“instituições, acontecimentos políticos, práticas e processos econômicos”. Certamente os meios
produzem também enunciados, e os enunciados também determinam os meios. Além disso, as
duas formações são heterogêneas, apesar de inseridas uma dentro da outra: não correspondência
nem isomorfismo, não há causalidade direta nem simbolização. A Arqueologia tinha então um
papel de charneira: ela colocava a firme distinção das duas formas, mas como se propunha a
definir a forma dos enunciados, contentava-se em indicar a outra forma, negativamente, como o
“não-discursivo”. (DELEUZE, 1998: 40-41)
Nessa esteira, surge a articulação entre os saberes e os poderes. Carrilho
relembra que para Foucault os poderes e os saberes ligam-se um ao outro através dos
sistemas de comunicação, das formas de registros, dos modos de funcionamento
característicos de cada um.
Foucault mostra, em Surveiller et Punir, como a emergência das ciências psi-(psicologia, psiquiatria,
pedagogia) só foi possível devido a uma complexa inversão histórica dos processos de
individualização, inversão que se opera através do exercício de um poder disciplinar “panóptico”
que, nas cadeias, nas escolas ou nas casernas, pratica minuciosamente a análise, a descrição e o
registro do comportamento individual; e o que decorre daqui, é que não se pode continuar a pensar
o poder como o que exclui ou censura, mas antes como algo que “produz real, domínios de objetos
e rituais de verdade”.
54
Deste modo, a noção de epistema, que se referia apenas à ordem do discurso, dá lugar à de dispositivo.
Noção eminentemente genealógica, ela define “um conjunto claramente heterogêneo, comportando
discurso instituições, arranjos arquitetônicos, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, ou seja, elementos tanto do dito como do não-dito”
(in Onicar, nº 10, p. 63). (CARRILHO, 1989: 32)
Foucault nos alerta que mesmo quando os investimentos do suplício são reduzidos e
as penalidades são transformadas, quando os crimes são reclassificados e os princípios do
humanismo são implementados, quando a tortura e o trabalho forçado dão lugar a reclusão
punitiva e corretiva, objetiva-se o corpo, suas forças, suas formas de resistência, seu
partilhamento e submissão. Os estudos do corpo devem, nos termos foucaultianos, abandonar
os limites dos estudos biológicos, que foram ao longo dos tempos construídos em seu entorno,
romper com o exclusivismo da interface que correlaciona processos históricos de observação
do corpo submetidos a “acontecimentos” – grifo de Foucault -, biológicos; para percebê-lo
num campo político.
Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm
alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos,
obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo
relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força
de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação, mas em compensação
sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição
(onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e
utilizado); o corpo se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso.
(FOUCAULT, 2005: 25-26)
A submissão opera-se tanto pelas formas da violência e da ideologia, quanto por
tecnologias estruturadas e organizadas, sutis e diretas ao mesmo tempo, mas sempre físicas,
sem necessariamente serem violentas. Elas não estão ligadas a um único centro de emanação,
são difusas; e não se suportam em apenas um certo tipo de instituição – todas se servem
delas e a elas impõem novas modulações.
Quer dizer que pode haver um “saber” do corpo que não é exatamente uma ciência de seu
funcionamento, e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las; esse saber
e esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo.
... Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e
instituições, mas cujo o campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes
funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças. (FOUCAULT, 2005: 26)
Nos ensina Foucault que o poder exercido nessa microfísica deve ser compreendido
como estratégia, rica em manobras e táticas e não presa a propriedades, resultante de uma
55
rede complexa, tensa e em atividade constante. Um tipo de poder que se exerce, mas que não é
propriedade das classes dominantes, do Estado, dos contratos, dos comportamentos, da
conformação dos gestos e dos corpos. Ele está em todos, atravessa a todos, sustenta-se sobre
todos, entre as complexas engrenagens e a “especificidade dos mecanismos e modalidades”.
Analisar o investimento político do corpo e a microfísica do poder supõe então que se renuncie – no
que se refere ao poder – à oposição violência-ideologia, à metáfora da propriedade, ao modelo do
contrato ou da conquista; no que se refere ao saber, que se renuncie à oposição de que é “interessado”
e do que é “desinteressado”. Ao modelo do conhecimento e ao primado do sujeito. Dando a palavra
um sentido diferente do que lhe era dado no século XVII por Petty e seus contemporâneos, poder-
se-ia sonhar com uma “anatomia” política. Não seria um estudo do Estado tomado como um “corpo”
(com seus elementos, seus recursos e suas forças) mas não seria tão pouco o estudo do corpo e do
que lhe está conexo tomados como um pequeno Estado. Trataríamos aí do “corpo político” como um
conjunto dos elementos materiais e das técnicas que servem de armas, de reforço, de vias de
comunicação e de pontos de apoio para as relações de poder e de saber que investem os corpos
humanos e os submetem fazendo deles objetos de saber. (FOUCAULT, 2005: 25)
Foucault, como destacam os comentadores Dreyfus e Rabinow, relata o surgimento
e a consolidação de um “indivíduo moderno” como projeto comum “daquilo que ele chama
efeitos instrumentais das formas históricas específicas do poder” (DREYFUS e RABINOW,
1995: 158). Para os autores, Foucault requer que observemos as prisões e as punições
como “uma função social complexa”.
As prisões são, entretanto, a principal figura que Foucault usa para esclarecer a mudança de atitude
em relação à disciplina no Ocidente. Um modo sucinto de apresentar a história das relações de
poder e das relações de objeto resume-se nas três figuras da punição que Foucault nos mostra. São
elas: a tortura como uma arma da soberania, a correta representação como um sonho de reformadores
humanistas na Época Clássica, e a prisão e a vigilância normalizadora enquanto encarnação da
tecnologia do poder disciplinar. Em cada caso, o tipo de punição ilustra a maneira pela qual a sociedade
trata os criminosos como objetos a serem manipulados. Nos três casos, o principal objetivo é mudar
a balança das relações de poder numa sociedade maior, enquanto o objetivo secundário, mas a ele
relacionado – pelo menos na segunda e na terceira figuras – é a transformação do criminoso.
(DREYFUS e RABINOW, 1995: 159)
Todas essas estratégias convergem sobre o corpo. Foucault não é econômico ao
acentuar o entrelaçamento histórico das tecnologias do poder e da disciplina para ampliar as
formas de biopoder. Na sociedade de soberania a tortura pública dos criminosos funcionava
como uma confirmação do poder do soberano. Quem atacasse a lei atacava na verdade o
corpo do soberano. Portanto, o prisioneiro deveria ser punido e confessar seu crime em público,
como um gesto político. A intervenção sobre o corpo espetacularizava a dor como demonstração
de poder. O condenado não deveria apenas morrer em público, mas ser supliciado em público.
Porém, o ritual demorado e farto em crueldade passou a ocasionar indignação e, muitas das
56
vezes, tornou-se palco de manifestações e injúrias por parte do condenado e posteriormente,
com grande regularidade, do povo. A reunião pública para o ritual de suplício transformou-se
em momentos de estímulo à violência e de risco para o poder do soberano.
Não tocar mais no corpo, ou o mínimo possível, e para atingir nele algo que não é o corpo propriamente.
Dir-se-á: a prisão, a reclusão, os trabalhos forçados, a servidão de forçados, a interdição de domicílio,
a deportação – que parte tão importante tiveram nos sistemas penais modernos – são penas “físicas”:
com exceção da multa, se referem diretamente ao corpo. Mas a relação castigo-corpo não é idêntica
ao que ela era nos suplícios. O corpo encontra-se aí em posição de instrumento ou de intermediário;
qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo
de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem. Segundo essa
penalidade, o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições.
O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. O castigo
passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos. Se a
justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justificáveis, tal se fará à distância, propriamente,
segundo regras rígidas e visando um objetivo bem mais “elevado”. Por efeito dessa nova retenção,
um exército inteiro de técnicos veio substituir o carrasco, anatomista imediato do sofrimento: os
guardas, os médicos, os capelães, os psiquiatras, os psicólogos, os educadores; por sua simples
presença ao lado do condenado, eles cantam à justiça o louvor de que ela precisa: eles lhe garantem
que o corpo e a dor não são os objetos últimos de sua ação punitiva.” (FOUCAULT, 2005: 14)
Paulatinamente, uma nova forma simbólica de coerção e identificação dos condenados
foi elaborada. O corpo passou a portar uma marca, um símbolo negativo que identifica e publicita
o criminoso. A justiça afasta-se progressivamente do corpo. O cumprimento das sentenças é
feito por órgãos administrativos, protegendo a justiça da imagem ruim ocasionada pela execução
da penas. Aliado a isso, uma quantidade de dispositivos técnicos são desenvolvidos para
abreviar o sofrimento na pena de morte: como as máquinas de enforcamento e a guilhotina.
Ambos reduziam o tempo da execução e agem, nas palavras de Foucault, mais sobre a vida e
menos sobre a morte – máquinas que operam aos níveis da subjetividade coletiva. A morte na
guilhotina modifica a relação entre o carrasco e o condenado. O contato entre os corpos dos
dois ocorre em um breve instante. O carrasco não tem mais a presença duradoura das épocas
do suplício, é preciso e mecânico na execução.
Quase sem tocar o corpo, a guilhotina suprime a vida, tal como a prisão suprime a liberdade, ou uma
multa tira os bens. Ela aplica a lei não tanto a um corpo real e susceptível de dor quanto a um sujeito
jurídico, detentor, entre outros direitos, do de existir. Ela devia ter a abstração da própria lei.
(FOUCAULT. 2005: 16)
Da família até a fábrica, nas sociedades disciplinares o indivíduo sempre transitava
pelos espaços de confinamento. Para Deleuze, a fábrica é o meio que melhor visualiza o
projeto daquelas sociedades: “concentrar; distribuir no espaço; ordenar no tempo; compor no
espaço-tempo uma força produtiva cujo o efeito seja superior à soma das forças elementares.”
57
(DELEUZE, 1998: 219) A disciplina obteve o apogeu na primeira metade do século XX, na
mesma época entre um quadro de crise. Os responsáveis pelos meios de confinamento, sem
exceção, debatiam a crise instalada e, no pós Segunda Guerra, há o paulatino abandono da
sociedade disciplinar para o ingresso na sociedade de controle. Segundo Deleuze:
“‘Controle’ é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que
Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virilio também analisa sem parar as
formas ultra-rápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam
na duração de um sistema fechado. Não cabe invocar produções farmacêuticas extraordinárias,
formações nucleares, manipulações genéticas, ainda que elas sejam destinadas a intervir no
novo processo. Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou mais tolerável, pois em
cada um deles se enfrentam as liberações e as sujeições.” (DELEUZE, 1998: 220)
A caracterização efetuada por Deleuze aponta um dado diferencial entre as duas
sociedades: é o uso da linguagem. Deleuze observa que, na sociedade disciplinar, o indivíduo
inicia um novo estado a cada vez que passa por um meio de confinamento. Se na sociedade
disciplinar a linguagem comum a esses meios é analógica, na sociedade de controle entre os
“controlatos” – diferentes modos de controle -, ela é numérica. Ser numérica não significa
necessariamente ser binária. O que a caracteriza como numérica é sua capacidade de interligar
os diferentes controlatos, sem interrupções, compondo uma geometria própria. “Os
confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como
uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante...” (DELEUZE,
1998: 221). O binômio fábrica/empresa é a imagem utilizada para descrever estas moldagens
auto-deformantes. Enquanto a fábrica controlava todos os seus trabalhadores transformando-
os em um corpo único, que se equilibrava sobre a discrepância entre os altos níveis de produção
e os baixos níveis de salário; a empresa instaura a rivalidade como sistema de estímulo,
colocando um indivíduo contra o outro.
Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da
caserna à fábrica), enquanto nas sociedade de controle nunca se termina nada, a empresa, a
formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação,
como que de um deformador universal. (DELEUZE, 1998: 221-222)
Dois modos de identificação – a assinatura e o número de matrícula -, configuram a
sociedade de disciplina que serve-se do poder massificante tanto para moldar corpos quanto
individualidades. Deleuze observa que Foucault concebia a origem deste “duplo cuidado do poder”
58
no poder pastoral do sacerdote sobre o rebanho. Na sociedade de controle, a linguagem numérica
substitui o modo de identificação assinatura e número de matrícula pela senha, pelas cifras.
Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se “dividuais”,
divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou “bancos”. É o dinheiro que
talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades, visto que a disciplina sempre se
referiu a moedas cunhadas em ouro – que servia de medida padrão -, ao passo que o controle
remete a trocas flutuantes, modulações que fazem intervir como cifra uma percentagem de
diferentes amostras de moeda. A velha toupeira monetária é o animal dos meios de
confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle. Passamos de um animal ao
outro, da toupeira à serpente, no regime em que vivemos, mas também na nossa maneira de
viver e nas nossas relações com o outrem. O homem da disciplina era um produtor descontínuo
de energia, mas o homem de controle é antes ondulatório, funcionando em órbita, num feixe
contínuo. Por toda a parte o surf já substitui os antigos esportes. (DELEUZE, 1998: 222)
Outro ponto a ser observado na diferenciação entre as duas sociedades são as máquinas
presentes em cada uma delas. As máquinas expressam as formas sociais e seus fluxos. Nas
sociedades de soberania eram operadas máquinas simples como os relógios e as alavancas.
Nas sociedades de disciplina foram criadas as máquinas energéticas e nas sociedades de
controle surgiram as máquinas informáticas. As diferenças entre as máquinas da disciplina e
do controle revelam uma transformação no capitalismo. Se nas sociedades disciplinares havia
um capitalismo marcado pela concentração e produção, nas sociedades de controle há um
capitalismo de pós-produção, que negocia serviços e ações
7
.
Por isso ele é essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa. A família, a escola, o
exército, a fábrica não são mais espaços analógicos distintos que convergem para um proprietário,
6
A noção de máquina é fundamental para o pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Como explica Manuel Maria
Carrilho: “ O que é uma máquina? É algo que funciona, que se justifica pelo seu funcionamento: ela produz, produz sempre,
todo o seu funcionamento é produtivo, é ausência total de mediação. Uma máquina não se interpreta, analisa-se. Análise de
pequenas peças, do modo como estas afectam o conjunto maquínico. A máquina situa-se ao nível da produção, a interpretação
ao da representação. Leiam-se as primeiras linhas do Anti-Édipo: ‘Isto funciona por toda a parte: umas vezes sem parar, outras
descontinuamente. Isto respira, isto aquece, isto come (...). Mas que asneira ter dito o isto. O que há por toda a parte são
máquinas, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com as suas ligações e conexões. Uma máquina-órgão está
ligada a uma máquina-origem: uma emite o fluxo que a outra corta. (...) Mas as máquinas (sociais, técnicas ou desejantes)
especificam-se pela sua qualificação: todas as máquinas são da mesma natureza, mas funcionam segundo regimes diferentes.
Com a teoria da conexão das máquinas sociais e desejantes elimina-se o velho dualismo sociedade/indivíduo, a velha e tantas
vezes aberrante polémica marxismo/freudismo, por uma efectiva deslocação do problema, pelo radical abandono da problemática
em que estas questões têm sido colocadas. À conhecida fórmula que diz que o homem só formula problemas que pode
resolver é preciso acrescentar que se de fato os resolve é formulando novos problemas, e que a solução é uma incessante
miragem. O que produz uma máquina? Produz fluxos, termo indeterminado que designa tudo que resulta dum processo
produtivo: dinheiro, escrita, desejo. (CARRILHO, 1989: 27)
59
Estado ou potência privada, mas são agora figuras cifradas, deformáveis e transformáveis, de uma
mesma empresa que só tem gerentes. Até a arte abandonou os espaços fechados para entrar nos
circuitos abertos do banco. As conquistas de mercado se fazem por tomadas de controle e não mais
por formação de disciplina, por fixação de cotações mais do que por redução de custos, por transformação
do produto mais do que por especialização da produção. A corrupção ganha aí uma nova potência. O
serviço de vendas tornou-se o centro ou a alma da empresa. Informamos que as empresas têm uma
alma, o que é efetivamente a notícia mais terrificante do mundo. O marketing é agora o instrumento de
controle social, e forma a raça impudente de nossos senhores.” (DELEUZE, 1992: 224)
Para elucidar esta reflexão e evidenciar a crise das instituições, Deleuze utiliza quatro
exemplos para materializar os processos sócio-técnicos típicos do controle: o regime das
prisões, o regime das escolas, o regime dos hospitais e o regime de empresa. Mesmo que
originados na sociedade disciplinar, eles recebem atualizações tecnológicas na sociedade de
controle. No primeiro exemplo, o prisioneiro pode receber as “coleiras eletrônicas” que o
possibilita ser controlado mesmo fora da prisão. Como acréscimo ao exemplo, podemos nos
lembrar que, a partir do mês de agosto do ano de 2005, no estado de São Paulo, já é possível
a tomada de depoimentos de prisioneiros pelo sistema de tele-conferência. O prisioneiro não
necessita mais ser removido do presídio para o fórum para ser ouvido. Sua permanência na
instituição de confinamento, de acordo com a administração do Estado, aumenta a segurança
e reduz custos. No segundo exemplo, a ação de formação permanente ao lado de um
progressivo abandono da pesquisa na universidade desenham o panorama escolar. No terceiro
exemplo, há a substituição do “corpo individual ou numérico”, característico da sociedade
disciplinar por uma matéria “dividual a ser controlada”.
As pesquisas de doentes potenciais é lembrada por Deleuze como a efetuação da distância
médico e paciente. Não obstante, é oportuno destacar que as pesquisas genéticas por um lado
representam um grande avanço no tratamento de doenças degenerativas e incuráveis, por outro
oferecem o risco da eugenia ao indicarem no mapa genético as possibilidades de saúde ou
doença do feto. No último exemplo, a relação ente o trabalho, o dinheiro, os produtos e os
homens é reconfigurada pela empresa. Nos bancos, máquinas fazem a maior parte do atendimento
aos clientes. Nas empresas de telefonia, o serviço de tele-marketing e atendimento ao consumidor
distanciam, sob a falsa alegação de aproximação, o usuário. Esta empresa existe como uma
imagem para quem a consome, ela é um valor de marca.
Michael Hardt, na abertura do artigo A sociedade mundial de controle, lembra a metáfora
que Gilles Deleuze tece para descrever a passagem do “espaço estriado” para o “espaço liso”:
“os túneis estruturais da toupeira estão sendo substituídos pelas ondulações infinitas da
serpente” (HARDT, 2000: 357). Diferentemente da sociedade disciplinar, na sociedade de
60
controle as fronteiras institucionais disciplinares (o estado, a família, o trabalho, a escola etc.)
foram dissolvidas, formando um “espaço liso”. O autor, após contextualizar o percurso traçado
por Deleuze para formular a idéia da sociedade de controle, enfatiza a necessidade de colocar
em diálogo outras passagens que considera fundamental para a compreensão da formação da
sociedade do controle, e que ampliam a imagem ofertada pelo filósofo francês. Observemos
como Hardt descreve o desenho que promove o diálogo destas passagens:
Pretendo, portanto, tentar desenvolver a natureza dessa passagem, estabelecendo sua relação
com a passagem da sociedade moderna à sociedade pós-moderna, tal como expressa Frederic
Jameson, mas também com o “fim da história” descrito por Francis Fukuyama e com as novas
formas de racismo em nossa sociedade, segundo Étienne Balibar e outros autores. Mas, sobretudo,
pretendo situar a formação de que fala Deleuze em termos de dois processos que Toni Negri e eu
tentamos elaborar ao longo dos últimos anos: qualificamos o primeiro desses processos de
enfraquecimento da sociedade civil, o que, assim como a passagem à sociedade de controle, remete
aos declínios das funções mediadoras das instituições sociais; com o segundo, ocorre a passagem
do imperialismo, produzido, inicialmente pelos Estados-nação europeus, ao império, à nova ordem
mundial, que se entende hoje em torno dos Estados Unidos, com as instituições transnacionais e o
mercado mundial. Dito de outro modo, quando falo de império entendo uma forma jurídica e uma
forma de poder bastante diferente dos velhos imperialismos europeus. Por um lado, segundo a
tradição antiga, o império é o poder universal, a ordem mundial, que talvez se realize hoje pela
primeira vez. Por outro, o império é a forma de poder que tem por objetivo a natureza humana,
portanto o bio-poder.”(HARDT, 2000: 358)
Hardt, referindo-se à ampliação do biopoder e conseqüentemente da biopolítica
8
,
baseia sua argumentação em três pontos. No primeiro ponto, o desmoronamento das
fronteiras entre o “dentro” e o “fora”, a fragilização das noções de território (que fundamenta
a soberania da modernidade), sinalizam o fim da dialética entre ordem civil e ordem natural.
A privatização do espaço público produz um número cada vez maior de espaços fechados,
individualizantes. Esses espaços não propiciam a comunicação ou a interação, empobrecem
a dimensão do político. O fim do fora se traduz também com o fim da história de conflitos. “A
história terminou precisamente e, apenas, à medida que é concebida em termos hegelianos
– como movimento de uma dialética de contradições com o jogo de negações e de superações
absolutas.”(HARDT, 2000: 361)
8
Encontramos aspectos consonantes com o pensamento de Hardt nas reflexões de Giorgio Agamben: “Os ‘enigmas’ que
nosso século (Século XX) propôs à razão histórica e que permanecem atuais (o nazismo é só uma forma inquietante dele)
poderão ser solvidos somente no terreno – a biopolítica – sobre o qual foram intrincados. Somente em um horizonte biopolítico,
de fato, será possível decidir se as categorias sobre cujas oposições fundou-se a política moderna (direita/esquerda; privado/
público; absolutismo/democracia etc.), e que se foram progressivamente esfumando a ponto de entrarem hoje numa verdadeira
e própria zona de indiscernibilidade, deverão ser definitivamente abandonadas ou poderão eventualmente reencontrar o
significado que naquele próprio horizonte haviam perdido. E somente uma reflexão que, acolhendo a sugestão de Foucault e
Benjamin, interogue tematicamente as ideologias da modernidade aparentemente mais distantes entre si poderá fazer sair o
político de sua ocultação e, ao mesmo tempo, restituir o pensamento à sua vocação prática.” (AGAMBEN, 2002: 12)
61
No segundo ponto, o avanço do racismo é a tônica. Hardt coloca como questão a forma
e a estratégia do racismo na sociedade atual. Em oposição à sociedade moderna, o racismo
não se sustenta mais em bases biológicas, mas culturais. O anti-racismo pós-moderno
encontrou aí sua bandeira forte, ele estabelece uma luta contra a determinação hierárquica
biológica do racismo moderno. Os grupos modernos anti-racistas reivindicavam o
reconhecimento das diferenças entre as raças como diferenças sociais e culturais e não
biológicas. Tal discurso foi absorvido pela teoria racista imperial na passagem à sociedade de
controle. O deslizamento permanente dos planos do “espaço liso” proporcionou argumentos
sociais e culturais às teorias racistas pós-moderna e imperial.
A teoria racista imperial não discorda da idéia de que as diferenças são culturais e que o
desenvolvimento dos indivíduos são conseqüências de contextos históricos e sociais. Hardt
remonta a Étienne Balibar para nos alertar que este tipo de racismo abandona a noção de raça
e assume uma perspectiva diferencialista. Ao considerar as diferenças culturais, este tipo de
racismo causa uma sensação de haver um comportamento mais flexível que os previstos nos
determinismos biológicos. Mas o autor nos alerta para o limite imposto para a flexibilidade na
teoria racista imperial. Esta teoria racista estabelece todo um discurso “essencialista” que solidifica
as diferenças em bases tão fortes quanto eram as bases biológicas. Não é uma teoria hierárquica
e sim segregacionista, nos termos de Hardt. A aproximação entre a teoria imperial e a teoria
racista pós-moderna é grande, ressalta o autor, e demonstra a capacidade que as duas têm de
articular as perspectivas das diferenças culturais com uma consistente separação social. Não é
uma teoria de exclusão social, mas de estratégias de inclusão diferencial.
No terceiro e último ponto, a ausência da diferenciação entre o “dentro” e o “fora”
repercute nos modos de produção de subjetividade
9
. Hardt lembra que a produção social da
9
Em um primeiro desenho da noção de subjetividade, Márcio Souza Gonçalves, ao analisar contribuições filosóficas como as de
Descartes, Hume, Kant e Nietzsche acrescidas da perspectiva de Freud, nos diz: “Pensar a subjetividade humana é então pensar
além da consciência um inconsciente pulsional, repleto de pulsões de conservação e sexuais (primeiro dualismo) e de pulsões de
vida e de morte (segundo dualismo). Temos assim um sujeito acentrado no sentido de que a consciência não funciona como centro
fundamental; um sujeito opaco, dado que incapaz de apreender a totalidade de seu próprio ser; um sujeito, finalmente, cujo livre
arbítrio da consciência é limitado pela força mesma das pulsões que o determinam.” (GONÇALVES, 2005: 05)
Félix Guattari, em relação à produção da subjetividade, ressalta que: “Considerar a subjetividade sob o ângulo da sua produção
não implica absolutamente, a meu ver, voltar aos seus sistemas tradicionais de determinação do tipo infra-estrutura material –
superestrutura ideológica. Os diferentes registros semióticos que concorrem para o engendramento da subjetividade não
mantêm relações hierárquicas obrigatórias, fixadas definitivamente. Pode ocorrer, por exemplo, que a semiotização econômica
se torne dependente de fatores psicológicos coletivos, como se pode constatar com a sensibilidade dos índices da Bolsa em
relação às flutuações da opinião. A subjetividade, de fato, é plural, polifônica, para retomar a expressão de Mikhail Bakhtine. E
ela não conhece nenhuma instância dominante de determinação que guie as outras instâncias segundo uma causalidade
unívoca.” (GUATTARI, 1993: 11)
62
subjetividade é um elemento fundamental para pensadores como Gilles Deleuze, Félix Guattari,
Michel Foucault, Althusser dentre outros. Estes pensadores desconsideram a possibilidade de
uma subjetividade dada a priori e favorecem uma outra – forjada nos acontecimentos sociais,
como uma engrenagem em constante construção e com grande mobilidade.
A produção da subjetividade na sociedade imperial de controle tende a não se limitar a lugares
específicos... Portanto, no colapso generalizado, o funcionamento das instituições é, ao mesmo
tempo, mais intensivo e mais disseminado. Assim como o capitalismo, quanto mais elas se desregram
melhor elas funcionam. De fato, começa-se a saber que a máquina capitalista só funciona se
esfacelando. Suas lógicas percorrem superfícies sociais ondulantes, em ondas de intensidade. A
não-definição do lugar da produção corresponde à indeterminação das subjetividades produzidas.
As instituições sociais de controle no império poderiam, portanto, ser percebidas em um processo
fluido de engendramento e de corrupção da subjetividade. (HARDT, 2001: 368)
Hardt destaca a permanência do aspecto de produção social da subjetividade (a
produção na fábrica social) e observa que neste modo de produção não há o funcionamento
por oposição, mas por intensificação. Com a ausência das fronteiras há uma ampliação dos
padrões dos “espaços fechados”. A crise das instituições acaba por fazer circular as lógicas
institucionais por todos os lugares.
Ao lado da ampliação das lógicas institucionais que repercutem sobre a produção da
subjetividade, o empobrecimento da experiência operado pela sociedade do controle tenta produzir
um certo tipo de perda da singularidade
10
, falseando este processo com a oferta de uma
individualidade massificada. A noção de singularidade de que nos servimos é a desenvolvida
Deleuze – elaborada a partir da filosofia de Espinosa, especialmente da obra Ética. Para Deleuze:
As singularidades são os verdadeiros acontecimentos transcendentais: o que Ferlinghetti chama de
“a quarta pessoa do singular”. Longe de serem individuais ou pessoais, as singularidades presidem
1 Sobre o tema, comenta Michael Hardt: “Confortemo-nos aqui com o princípio espinosista do ser. Como uma primeira
aproximação, poderíamos dizer que a singularidade é a união do monismo com a positividade absoluta do panteísmo: a
substância única infunde diretamente e anima o mundo inteiro. O problema com esta definição é que ela deixa em aberto uma
interpretação idealista da substância, e permite a confusão entre o infinito e o indefinido. Em outras palavras, de uma perspectiva
idealista, a substância absoluta poderia ser lida como uma indeterminação, e o panteísmo poderia ser lido como acosmismo.
A leitura de Deleuze, contudo, elimina esta possibilidade. O ser é singular não apenas porque é único e absolutamente infinito
mas, o que é mais importante, porque é notável. Essa é a abertura impossível da Ética. O ser singular, enquanto substância,
não é “distinto de” ou “diferente de” qualquer coisa fora de si mesmo; se fosse, nos teríamos de concebê-lo, em parte, através
de uma outra coisa, e assim não seria substância. Entretanto, o ser não é indiferente. Aqui podemos apreciar a radicalidade da
definição de Espinosa da substância: ‘Entendo por substância aquilo que é em si e por si concebido, i. e., aquilo cujo conceito
não requer o conceito de uma outra coisa, do qual devesse ser formado’ (Demonstração 3). A distinção do ser nasce de dentro.
Causa sui significa que o ser tanto é infinito quanto definido: o ser é notável. A primeira tarefa da distinção real é, assim, definir
o ser como singular, reconhecer a sua diferença sem referência a, ou dependência de qualquer outra coisa. A distinção
realmente não numérica define a singularidade do ser, à medida que o ser é absolutamente infinito e indivisível, ao mesmo
tempo em que é distinto e determinado. A singularidade, em Deleuze, nada tem a ver com a individualidade ou particularidade.
É em vez disso, o correlato da causalidade eficiente e da diferença interna: o singular é notável porque é diferente em si
mesmo.” (HARDT, 1996: 109-110)
63
à gênese dos indivíduos e das pessoas: elas se repartem em um “potencial” que não comporta por
si nem Ego (Moi) individual, nem Eu (Je) pessoal, mas que os produz atualizando-se, efetuando-se,
as figuras destas atualização não se parecendo em nada ao potencial efetuado. É somente uma
teoria dos pontos singulares que se acha apta a ultrapassar a síntese da pessoa e a análise do
indivíduo tais como elas são (ou se fazem) na consciência. Não podemos aceitar a alternativa que
compromete inteiramente ao mesmo tempo a psicologia, a cosmologia e a teologia: ou singularidades
já tomadas em indivíduos e pessoas ou o abismo indiferenciado. Quando se abre o mundo pululante
das singularidades anônimas e nômades, impessoais, pré-individuais, pisamos, afinal, o campo do
trancendental.” (DELEUZE, 1974: 105-106)
Uma individualidade igual, nada singular, dotada dos mesmos estratos subjetivos e
que não reconhece os planos ou as fronteiras da alteridade, pretende alcançar nossos corpos
e espíritos na sociedade de controle. O aguçamento das formas de empobrecimento da
experiência sustenta-se sobre camadas históricas. Walter Benjamin, especialmente nos ensaios
Experiência e pobreza e O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, ressalta
o declínio de duas condições humanas na modernidade: a de experenciar e a de narrar. Dito
desta forma, as duas condições parecem desvinculadas uma da outra. Mas, como destaca
Benjamin, uma condição suporta a outra, sendo impossível definir patamares hierárquicos
para alguma delas. O homem tornou-se, paulatinamente, pobre em experiências comunicáveis
e, por conseguinte, pouco narrativo. A miséria surgida da experiência subtraída da humanidade
desvincula o homem de seu patrimônio cultural. Benjamin afirma que o desenvolvimento técnico
glorificou este processo – a técnica sobrepondo-se ao homem.
Experiência e pobreza foi produzido em 1933. Três anos mais tarde, Benjamin retorna
ao tema em O Narrador. O empobrecimento na troca de experiências teve como resultado o
declínio da narrativa clássica. A narrativa clássica fundada no vivido, no aconselhamento do
mais experiente, forjada nas rodas de conversa, matéria-prima do viajante para a confecção
do artesanato da memória, perdeu lugar para a atualidade da informação
11
. Porém, esse
acontecimento não esteve dotado apenas de esterilidade. Benjamin nos revela que o
11
Sobre este tema comenta Silviano Santiago, no ensaio O narrador pós-moderno: “Quem narra uma história é que a experimenta
ou quem a vê?... No primeiro caso, o narrador transmite uma vivência; no segundo caso ele passa uma informação sobre outra
pessoa... Em termos concretos: narro a experiência de um jogador de futebol porque sou jogador de futebol; narro as experiências
de um jogador de futebol porque acostumei-me a observá-lo. No primeiro caso a narrativa expressa a experiência de uma ação;
no outro, é a experiência proporcionada por um olhar lançado. Num caso, ação é a experiência que se tem dela, e é isso que
empresta autenticidade à matéria que é narrada e ao relato; no outro caso é discutível falar de autenticidade da experiência e do
relato porque o que se transmite é uma informação obtida a partir da observação de um terceiro. O que está em questão é a noção
de autenticidade. Só é autêntico o que eu narro a partir do que experimento, ou pode ser autêntico o que eu narro e conheço por
ter observado?... Tento uma primeira hipótese de trabalho: o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação
narrada, em atitude semelhante a de um repórter ou de um espectador. Ele narra a ação enquanto espetáculo a que assiste
(literalmente ou não) da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou biblioteca; ele não narra enquanto
atuante.” (SANTIAGO, 1989: 38-39) Lembramos que Santiago, como ele próprio ressalta, serve-se da noção de narrador de
forma mais ampla do que a proposta por Benjamin.
64
empobrecimento da experiência, comum a toda a humanidade, foi gerador de “uma nova
barbárie”. Nesse processo apareceu um novo grupo de humanos que se contentam com pouco,
mas que são capazes de criar apesar deste pouco. A pobreza da experiência não contém um
resultado positivo ou negativo em si. Ela opera a partir da necessidade do homem libertar-se
de um certo tipo de experiência. Esse homem que tudo devora – nos termos benjaminiano –,
cansou-se, esgotou-se frente ao projeto grandioso da vida, restou-lhe o sonho noturno como o
executor das facetas mirabolantes da existência e o estado desperto diurno para arrastar a
tristeza e o desânimo.
Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie.
Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente,
a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita
nem para a esquerda. Entre os grandes criadores sempre existiram homens implacáveis que operam
a partir de uma tábula rasa. Queria uma prancheta: foram construtores. A essa estirpe de construtores
pertenceu Descrates, que baseou sua filosofia numa única certeza – penso, logo existo – e dela
partiu. Também Einstein foi um construtor assim, que subitamente perdeu o interesse por todo o
universo da física, exceto por um único problema – uma pequena discrepância entre as equações de
Newton e as observações astronômicas. Os artistas tinham em mente essa mesma preocupação de
começar do princípio quando se inspiravam na matemática e reconstruíam o mundo, como os cubistas,
a partir de formas estereométricas, ou quando, como Klee, se inspiravam nos engenheiros. Pois as
figuras de Klee são por assim dizer desenhadas na prancheta, e, assim como num bom automóvel
a própria carroceria obedece à necessidade interna do motor, a expressão fisionômica dessas figuras
obedece ao que está dentro. Ao que está dentro, e não à interioridade: é por isso que elas são
bárbaras. (BENJAMIN, 1996: 115-116)
Ao que nos parece, o que Walter Benjamin reivindica é a observação da capacidade
das experiências de, ao transmitirem alguma forma de saber ou conhecimento, contribuírem
para a constituição de um modo de invenção de si, para um gesto de sobrevivência, para a
abertura de potencialidades criativas dos sujeitos. Tais experiência – em sua dimensão ético-
estética –, relacionam-se com as práticas de subjetivação decorrentes dos elementos
heterogêneos do cotidiano.
Como um bárbaro benjaminiano, Boaventura de Sousa Santos ilustra, muito bem, a
opção estética para fortificar as ligações entre as experiências e subjetividade. No livro Escrita
INKZ. anti-manifesto para uma arte incapaz ele se diz de uma geração de cansados, que já viu
tudo, entregue ao déjà vu, destinada a celebrar a esterilidade de uma geração que não produziu
nada de novo na arte. No desfácio do livro – o grifo é de Santos –, fica explicitada a condição
de produção da obra: “Este livro é uma tentativa de remediar o irremediável.” (SANTOS. 2004:
11) O bárbaro Boaventura produziu uma escrita curta e rápida que possui brechas e espaços
para a imaginação artística de quem as lê. A Escrita INKZ é uma arte incapaz que, como nos
65
diz seu criador, só é possível sob a forma da ausência e da emergência. Uma arte que não se
move para que as outras se movam, que dá títulos a objetos de arte não existentes e que só
ganham existência na imaginação dos leitores. Cada título, estrofe ou verso – segundo Santos
-, contém uma narrativa pessoal a ser percebidada artisticamente pelo leitor. O autor aconselha
ao leitor utilizar a Escrita INKZ como um medicamento escrito servido em doses individuais,
um título a cada dia, para aprender a construir uma nova experiência. Uma experiência estética
na subjetividade do leitor.
A Escrita INKZ parte da idéia que a subjetividade do novo milênio é constituída por seis mônadas:
figura, cidade, andamento, momento, mulher nua e orador-ninguém. São o contrário dos heterônimos
já que estão sempre presentes sob diferentes formas em tudo o que somos e, portanto, em toda a
arte de que somos capazes. Todos somos figura, cidade, andamento, momento, mulher nua e orador-
ninguém. Cada um à sua maneira e segundo o tempo e o lugar. (...)
Além das seis mônadas, somos uma outra mônada, a mônada-cão. A mónada-cão é uma mónada
muito especial porque tem autonomia em relação às outras mônadas. A sua especificidade é ser a
voz autônoma e livre das outras mônadas. Ou seja cada mônada tem uma mônada-cão. Ao contrário
do que pensava Leibniz, as mônadas não são entidades sem janelas. Têm janelas e essa janela é a
mônada-cão. Por isso, todos nós, além de figura, cidade, andamento, momento, mulher nua e orador-
nínguém, somos cão. Por ser a voz livre de todas as outras mônadas, é a única que se expressa na
primeira pessoa. (SANTOS, 2004: 15)
Se há a possibilidade de resistir a partir das experiências ordinárias, de descobrir uma
capacidade transformadora mesmo no quadro de miserabilidade da experiência, ela deve
ocorrer nas alternativas aos jogos manipulados pelo exercício do controle que pretendem
condicionar as experiências, fundamentar o vivido, enclausurar a existência e, especialmente,
controlar a produção da subjetividade. Controlar a subjetividade é controlar a vida
12
. As práticas
de subjetivação servem tanto aos comportamentos dos sujeitos comuns quanto aos
procedimentos da maquinaria institucional. Ou seja, as práticas de subjetivação oriundas dos
agenciamentos sociais possui uma via de mão dupla onde trafegam estratégias de controle e
exercícios de resistência. A tensão neste trânsito coloca frente a frente as práticas de
subjetivação e a invenção de si dos indivíduos.
A máquina subjetiva capitalista se desfaz e refaz a todo o momento, com seus tentáculos
12
“De qualquer modo, se é verdade que no domínio produtivo o capital penetra e mobiliza a subjetividade em escala crescente,
e nesse sentido ele é invasivo numa medida jamais vista anteriormente, é preciso reconhecer, em contrapartida que essa
subjetividade mobilizada funcione em rede, coletivamente, numa sinergia produtiva... Mas é preciso insistir: a subjetividade
não é algo abstrato, trata-se da vida, mais precisamente, das formas de vida, das maneiras de sentir, de amar, de perceber, de
imaginar, de sonhar, de fazer, mas também de habitar, de vestir-se, de se embelezar, de fruir, etc. Se é um fato que a produção
de subjetividade está no cerne do trabalho contemporâneo, é a vida que aí está em jogo. O trabalho precisa da vida como
nunca, e seu produto afeta a vida numa escala sem precedentes.” (PELBART, 2000: 37)
66
tece, permanentemente, os fios que enredam os indivíduos. Neste movimento eterno, ela
engendra instrumentos que tentam garantir a existência de uma subjetividade totalizante que
elimine as singularidades. A construção de uma sociedade da submissão é projeto do mercado
mundial. Peter Pál Pelbart (2000) chama a atenção para o empobrecimento da vida e seu
conseqüente efeito nefasto sobre o espírito. Para o autor, o capital ocupou todas as instâncias
da existência. A todo o momento a vida é racionalizada para render mais, no trabalho, no
lazer, na família, em tudo. Não há limites para o capital, seus fluxos (imagens, informações,
conhecimentos, serviços) afetam e formatam nossa subjetividade. Os traçados das cidades
privatizam os espaços públicos, tudo é ofertado e cobrado, quase nada é dado. Aos indivíduos
restou, como nos alerta Pelbart, o empobrecimento da experiência.
Privados do canto, das palavras, do corpo, da vida, viveríamos um pouco aquela depauperação da
experiência de que nos fala Walter Benjamin, quando mostra que diante da guerra, da inflação, da
fome e da humilhação, o “frágil e minúsculo corpo humano”, que de repente se viu no centro de uma
“paisagem diferente em tudo”, em que as únicas coisas reconhecíveis eram as nuvens, parecia
afinal mais pobre em experiência comunicável do que antes, não mais rico. Se já não estamos
diante da guerra, inflação, humilhação e pobreza tal como os combatentes de 14, é preciso dizer que
num certo sentido a depauperação mencionada parece apenas aumentar. (PELBART, 2000: 25)
Remontando a Pross, na simbologia cristã o dragão representa o mal, nas simbologias
científicas modernas da escada os homens representam os obstáculos. Os homens prejudicam
uns aos outros, são a nova imagem do mal. Nesta escada há um outro dragão sobre nossas
cabeças, um dragão imaginário. Este dragão é tipificado por um grupo de pessoas, um demônio
personificado nos exploradores. Organizar a carreira, vencer os obstáculos profissionais,
alcançar o lugar dos chefes, ascender verticalmente. A capacidade de adaptação é fundamental
para a sobrevivência em uma sociedade onde quem ascendeu deve evitar ao máximo a queda.
Além disto, deve cuidar para que outros mantenham o dragão aos pés da escada.
67
capítulo 02
God save the queer
68
2.1 Santiago, Consolação, Hortaleza: três aparições.
Descrever o objeto ou, para dizer melhor, o modo como o objeto se apresentou para
nós foi um desafio. Usamos o termo desafio pela natureza própria do nosso objeto: o corpo e
a produção da subjetividade. O objeto nos tomou de assalto em diferentes momentos. Em
cada momento foi depositada uma parcela do objeto. O somatório destas parcelas permitiu o
recorte: as imagens homoeróticas do corpo masculino em revistas de moda e estilo. Ou seja,
não foi um bloco maciço como o granito que aguardava o artista para revelar a escultura que
estava em baixo da pedra bruta. Ele se mostrou como um mosaico, um fractal e, através dos
modos de leitura que nossa experiência em certos tipos de mundo nos propiciou, se oferecia a
ser lido. A vida mundana, orgiástica – para lembrar os termos de Michel Maffesoli, foi a irrigadora
da relação entre nossa pesquisa e a construção do nosso objeto. Decidimos, então, por um
texto um pouco distinto dos regularmente produzidos para esta etapa do trabalho de pesquisa.
Optamos por uma mistura das reflexões do texto teórico com o estilo narrativo do gênero
crônica.
A crônica tem como tema os acontecimentos inscritos em um tempo presente, quase
imediato, e dispostos na vida ordinária dos sujeitos. Um acontecimento coletivo ou envolvendo
apenas um indivíduo pode vir a ser o centro da narrativa. Interessa mais ao narrador o que
está por detrás da história e não o que está claro e evidente no fato observado. A possibilidade
que o gênero oferta de plasmar as experiências do observador e do observado em um texto
nos chamou a atenção. Este texto reúne o antes e o depois da experiência do narrador e do
narrado, bem como funciona ao modo de um terceiro elemento para o leitor.
A experiência do observado alimenta o narrador que informa ao leitor. O narrador
funciona como aquele que furta pequenos traços de identidade do observado para construir a
personagem. No gênero crônica, a narração privilegia o mundo ao redor do narrador, a vida
69
cotidiana e os seus elementos. A experiência do narrador permite os comentários, as
observações, os convites das questões às personagens. O narrador deixa ver uma qualidade
estética da experiência cotidiana registrada na crônica.
Ao invocar alguns aspectos da crônica para o texto teórico, pretendemos recompor o
percurso traçado na nossa percepção do objeto. Optamos por tratar os momentos de revelação
do objeto como aparições. A palavra aparição pode conter um sentido de relativo aos fantasmas.
Também, ela pode ser interpretada como manifestação do divino e dos momentos em que os
movimentos dos astros são visíveis. Todavia, nos interessa sua vinculação com o sentido de
epifania, de percepção do mundo através do banal, apreensão da vida pelo comum ou pelo
fragmento intuitivo e simbolicamente revelador.
Três cidades em três países nos propiciaram uma epifania. Percebemos que as três
aparições revelavam os traços locais e as conexões globais de nosso objeto. Mesmo que sob
conflitos, a identidade homossexual disponibiliza códigos globais. A cultura mediática possui
uma grande responsabilidade neste processo. Filmes, páginas web, moda, música, revistas,
novelas e séries televisuais, literatura, produtos sobre os quais circulam os símbolos de um
modus vivendis. A arquitetura dos espaços de sociabilidade homossexual nas grandes cidades
– como bares, lojas, boates e clubes, também possuem traços comuns.
Os produtos dos media e as interações entre grupos distintos, bem como a
circulação de pessoas entre países permitem a troca de experiência que sedimenta os
códigos comuns às identidades. Harry Pross diz que a diferença entre uma bandeira e um
pedaço de pano é o valor simbólico a ela atribuído. Este valor simbólico funciona como
uma legislação, um conjunto de regras abrigados naquele signo. A bandeira não representa
apenas demarcações de fronteiras territoriais. Ela incorpora os princípios de quem a
impunha. A bandeira do arco-íris
1
, sinal gráfico identificador das manifestações e espaços
públicos dos homossexuais em todo o mundo, é sustentada por uma rede relacional na
qual os nós são o estilo de vida. Seu valor simbólico não necessita apenas da sua existência
física para ser percebido. O estilo de vida garante esta interpretação. As roupas, os gestos,
os corpos marcam a presença dos sujeitos no mundo, seus pertencimentos grupais e
1
Os símbolos como representação das lutas homossexuais e da busca por uma identidade de grupo começaram a ser utilizados
após o evento de 28 de junho de 1970, no bar Stonewall, em Nova York, EUA. Desde então uma gama de símbolos gráficos
representou o coletivo. Em 1978, o comitê organizador da San Francisco Gay Pride promoveu um concurso para definir o
símbolo que iria identificar a parada. O designer gráfico ganhador foi o norte americano Gilbert Baker, criador da bandeira do
arco-íris, que após várias transformações tornou-se o atual símbolo internacional da diversidade sexual.
70
gostos. Esta potência de sentido do estilo de vida é traduzida no dito popular como: “fulano
está levantando a bandeira”.
A padronização global dos códigos de uma identidade homossexual não ocorre fora
das disputas do poder. A tensa relação entre o controle e a resistência pode ser percebida,
especialmente, na configuração dos corpos. O padrão dominante do homem branco e
heterossexual cola seus códigos de identidade aos códigos da identidade homossexual. Tal
fato ganha relevos quando são analisadas as diferenças de nível na garantia e execução de
direitos entre gays e lésbicas. Em muitos países, as lésbicas enfrentam a repressão à
homossexualidade e a repressão à mulher, simultaneamente. Por outro lado, a
homossexualidade feminina é vítima de um apagamento histórico e, como conseqüência, tem
dificuldades na conquista de direitos específicos, por exemplo.
As três aparições trazem a tona o início de nosso exercício analítico. Elas tratam do
momento em que a intuição é testada pelo pensamento racional, das nossas inquietações, de
como as perguntas começaram a ser articuladas. Por serem um misto entre a crônica e o texto
teórico, a narrativa é em primeira pessoa do singular.
2.2 Santiago. Primeira aparição.
Próximo ao meu aniversário, no ano de 2005, fui presenteado com uma obra de título A
imagén y semejanza, datada de 2002, pertencente a uma série de um fotógrafo chamado
Johny Ayvivve. A obra estava exposta no bar Vox Populi, definido como gay friendly, no centro
do bairro Bellavista, em Santiago do Chile. O presente me agradou e me intrigou na mesma
proporção. Ao ver aquela imagem logo percebi sua aura homoerótica. Na foto, um homem
vestido de mulher com um estandarte na mão ocupa o centro da imagem. O figurino é uma
roupa de estilo medieval: um vestido longo de saias sobrepostas, uma peruca de fartos cachos,
luvas, cordões e prendedor de cabelo com plumas. A pose do modelo, uma mão na cintura e a
outra segurando um estandarte, a cabeça projetada para frente, oscila entre um desafio do
tipo “tá olhando o quê?” e a sedução crítica de um beijo principiado em um sorriso cínico. Logo
atrás desta figura central, um tanto de fragmentos de corpos deixa ver outras figuras. Dentre
estes fragmentos, na altura da cabeça da personagem central, há como pano de fundo um par
de pernas masculinas contidas dentro de um calção preto, justo e curto.
71
Não era a existência de uma personagem masculina com trajes femininos que conferia
para aquela imagem os elementos de uma identificação com o universo gay. Era preciso vencer
a tentação de encontrar logo um interpretante final, antecipando a gama de significações
daquela cadeia semiósica, e estabelecer o encontro com um interpretante dinâmico e, desta
forma, escolher outras possibilidades de sentido ofertadas pela imagem em momentos distintos
da semiose. O nome da obra me chamou a atenção pela proximidade que tem com a definição
própria da semiótica peirciana para conceituar imagem. Diz Júlio Pinto:
“A idéia da imagem está ligada ao conceito de ícone. Peirce diz, no CP 2.276, que um ícone é um
representâmen ‘cuja a qualidade representativa é uma sua Primeiridade como primeiro’. E mais, ‘um
signo por primeiridade é uma imagem de seu objeto’ e ‘ só pode ser uma idéia, pois deve produzir
uma idéia interpretante’. Num parágrafo subseqüente (2.280), ele fala de mimetismo como sendo
uma das propriedades do ícone. A imagem concluir-se-a então, tem um caráter inegável de
semelhança.” (PINTO, 1995: 26)
Teixeira Coelho Netto explica que o “ícone é um signo que tem alguma semelhança
com o objeto representado” (NETTO, 1980: 58). Como tal, era preciso valorizar os traços
icônicos da obra e neles encontrar marcas de identidades que a imagem em questão era capaz
de portar, ou seja, descobrir na especialidade daquele ícone uma dimensão indicial. Aquela
imagem deveria ser percebida nos seus atributos de qualissigno, suas virtualidades, seus
modos de interconexão, suas possibilidades de atualização e suas qualidades. Lembramos
que estas qualidades são as qualidades da primeiridade
2
.
Charles S. Peirce, ao descrever a relação do signo com seu objeto, observa que o
objeto denotado pode ser desde perceptível até inimaginável. O signo pode ter mais de um
objeto ou um objeto complexo. Representar um objeto é uma condição do signo. O signo pode
ainda ser parte de um signo. Assim sendo, as roupas e os gestos do corpo na foto podem
deixar a condição de representação de uma fantasia – um homem vestido de mulher -, para
servirem como signos de outra interpretação – o corpo queer ali revelado. Esta revelação é
própria da característica do signo de conter sempre uma emanação de seu objeto. O objeto é
2
La Primeridad de por sí no es una cualidad concreta (como, por ejemplo, la sensación del color y la forma de una manzana
que quizás estuviéramos percibiendo en este momento). No es más que una mera posibilidad, sin partes definibles, sin
antecedentes ni consecuencias. Es simplemente lo que es, sin que alguien sea plenamente consciente de la cualidad que es.
Peirce se refiere a la Primeridad como pura libertad, espontaneidad, originalidad, la posibilidad de que acontezca algo nuevo.
Es, por ejemplo, cuando en el instante en que alcanzo a percibir un libro azul sobre la mesa, lo que veo, aún (todavía) sin
consciencia de lo que veo, es sencillamente una mancha de cierto color antes de que la haya clasificado como una forma
rectangular de color azul, y sin que la haya denominado ‘libro’. Es nada más una cualidad, sin conexión con todo lo demás que
hay a su alrededor. Es sólo una posibilidad que, en algún momento futuro, quizás pueda formar parte de una clasificación
determinada de manera que entre en interrelación semiótica con otros signos posibles. (MERRELL, 2006)
72
na verdade um objeto da relação triádica do signo. Como explica Netto, o objeto está entre o
Primeiro (signo) e o Terceiro (Interpretante). Vejamos o exemplo que nos dá Netto, remontando
a explicação de David Savan:
O exército A está cercado pelo exército B: um mensageiro de A é mandado para o campo de B. Este
mensageiro é um signo de A, a ser interpretado por B. Este mensageiro, M, representa A, é uma
parte destacada de A – em outras palavras, é uma enunciação, enunciada por A. As roupas de M,
seu aspecto físico, seu rosto, sua voz, sua entonação e seu discurso serão interpretados por B.
Deste modo, M está criando ou determinando um Interpretante através de todos esses seus traços
que se revelam aos olhos de B. Isto não significa que ele crie a atividade de interpretar: B já vinha
interpretando todos os signos de que dispunha a fim de chegar a uma conclusão sobre as condições
materiais e psicológicas de A. O que M faz é focalizar a interpretação de B sobre ele mesmo, M, de
modo a criar ou determinar aquela interpretação particular que sua apresentação material sugere a
B. Fica assim claro, através deste exemplo, que se o Objeto não dá início ao processo de interpretação
a partir dele mesmo, ele pelo menos dirige essa interpretação para a sua materialidade específica –
não sendo possível evitar uma análise ou alguma abordagem do Objeto se se quer alcançar o
Interpretante próprio que lhe diz respeito. (NETTO, 1980: 58)
Os termos que irão decidir a significação daquele objeto para quem o observa dependerá
do diálogo entre o contexto do objeto e do observador. O signo formado a partir deste diálogo
é um signo amplo, pois coloca em jogo conhecimentos e experiências diversas para ser
explicado e compreendido. O signo necessita da experiência do intérprete. Aquela foto, aquele
corpo guiavam minha interpretação a partir da reunião de minha experiência pessoal no
chamado “ambiente” ou “meio gay” com as suas características e gestos.
Outro ponto a ser vencido consistia em conseguir avançar na concepção de mimese –
deixando de lado a noção do termo como cópia do real, repetidor de um gestual de valores e
tradição; para acolher a noção de um gesto que possibilita ao homem uma atualização quando
é utilizado e, deste modo, não permanece ligado apenas ao gesto fundador. G. Gebauer e C.
Wulf sublinham a dimensão antropológica existente na mimese:
(...) caracterizamos a mimese como tipos de relações humanas particulares e que se transformam
historicamente. Esta visão pode surpreender, pois geralmente a mimese é limitada à área da estética
e ao significado de imitação. Quando nos aprofundamos nos significados antigos, pré-platônicos
deste conceito, mas também nas explicações desenvolvidas no século XX, deduzimos daí uma
dimensão antropológica. Os processos miméticos têm uma importância essencial na vida e no
desenvolvimento do homem e da espécie humana em geral. As relações que o sujeito mantém com
os seus contemporâneos e com o meio ambiente animado e inanimado são advindas particularmente
de níveis de desenvolvimento primários marcados por atos de ajustamento, refazimento, incorporação
do já achado e da imitação dos fenômenos. Isto acontece nas atividades construtivas e nos processos
corporais, nos quais é construída uma determinada relação sensitiva com o mundo. Todavia isto
ocorre abaixo do grau de processos cognitivos. Aqui podemos falar de um conhecimento do mundo
por meio do corpo, um connissance par corps (Bourdieu) que já ganha suas primeiras cognições
acerca da regularidade do mundo, da sua criação material e da correspondência com outros. Nos
73
atos miméticos não há diferenciação entre verdadeiro e falso nem entre o bem e o mal. Os processos
miméticos direcionam-se antes ao comportamento, às formas de sensação e às representações do
que às valorações éticas e teóricas de verdade. (GEBAUER, 2004: 37-38)
Esta condição, descrita por Gebauer e Wulf, de o ato mimético não deferenciar
entre o verdadeiro e o falso ou entre o bem e o mal nos atentou para a condição remática
do signo. O rema, primeiro da terceira categoria, relaciona-se ao interpretante. O rema
não experimenta valores. Ele possui a possibilidade do poder significar, porém esta
significação pode ou não ser verificada. Ele se revela como o signo de possibilidades
qualitativas e por sua aproximação com o interpretante invoca as dimensões pragmáticas
do signo. Este signo representa a possibilidade de uma ou outra qualidade do objeto.
Para Peirce, uma qualidade denota um objeto por meio de traços comuns entre os dois.
Neste sentido, o qualissigno é um ícone. O estado de possibilidade lógica do qualissigno
vincula sua interpretação ao rema. A partir da dimensão de Peirce, observamos um signo
que estaria na classe do qualissigno icônico remático.
Munido desta lente para olhar a obra, me fiz as seguintes perguntas: como as qualidades
presentes nas imagens daqueles corpos traziam para mim uma possibilidade narrativa de uma
identidade do universo gay? Quais elementos estavam intricados na figura do modelo central
e o corpo que surge ao fundo da cena? Em que medida as duas figuras presentes na imagem
obscurecem o objeto a que inicialmente estão ligadas para deixar ver um outro tipo de signo?
Estas perguntas me chegaram não linearmente, mas ao modo de uma cadeia
semiósica que se organizava e se desorganizava a cada vez que eu buscava a imagem. O
recorte escolhido pelo artista, o congelamento daquele instante com as suas opções
descritivas, possibilitava a atualização da obra na experiência do outro. Não interessa se
a foto registrou um heterossexual vestido de mulher em uma manifestação cultural ou um
homossexual vestido de mulher em um ato político ou em uma gay pride; este caráter
verossímil é o que menos importa. A narrativa que vejo encontra em mim a outra parte do
sentido. Minha parcela de sentido atribui um valor aos corpos presentes na foto articulado
a rede simbólica tramada em minha experiência. A articulação dos termos do valor decorre
da importante aproximação entre a mimese e a experiência cotidiana. Aprendizado de
comportamentos e gestos miméticos vivificam-se mutuamente. O corpo desempenha o
papel central neste processo, pois é sobre ele que se operam os princípios de criação e
recriação de mundos. As definições destes mundos são dadas pelos atos dos homens,
calçadas em referências preexistentes, mas também com possibilidades criativas frente
74
às oportunidades ou as tensões. A cognição compartilha o espaço com o sensível para a
produção desse conhecimento. A experiência relacional define os rumos da ação.
A imagén y semejanza comunica pelo dito e pelo possivelmente dito. O artista torna o
possivelmente dito compreensível para mim ao usar um termo esperado no processo
comunicativo. A experiência comum possibilita a enunciador e a enunciatário saber que o termo
existe, mas sem ser pronunciado. A predisposição do enunciatário para receber a mensagem
do enunciador será garantida pela dedutiva cumplicidade da experiência. Apesar de geográfica
e culturalmente distantes, o acumulo de experiências comuns entre eu e o artista nos acerca,
nos coloca em relação, nos dá familiaridade.
As práticas e produtos da comunicação mediática alimentam o caldo de cultura global
que dá a conhecer o estilo de vida homossexual. Estes signos trafegam sobre as vias das
identidades. Eventos como as gay pride, reivindicações comuns em diversos países por
igualdades de direitos, criação e circulação de objetos estéticos que abordam o tema deixam
ver as manifestações dos homossexuais na esfera pública. Sob forte tensão e grandes
divergências uma identidade se organiza. Os valores simbólicos desta identidade estimularam
o reconhecimento do discurso que para mim se enunciava. Sob os termos de M. Bakthin (1992),
nossa interação, mediada pela obra artística, recorre ao contexto social para encontrar uma
compatibilidade que garanta o sentido. A enunciação da obra, sua objetivação externa, é por
mim interpretada através das categorias forjadas em meu contexto social.
Estas categorias de compreensão são da ordem da experiência. As experiências
estimulam as mudanças nos fluxos da vida. Os sentidos a elas reportados são resultantes da
relação de troca entre o que experimenta e o objeto sobre o qual ocorre o acontecimento. O
ato é transformado em experiência quando um mediador ingressa no processo entre o sujeito
que experimenta e o acontecimento e estimula uma transformação – capaz de gerar uma outra
ação. Esta transformação ocorre sob as determinações tanto da cognição quanto da sensação.
A atividade do sentir, da sensação, é a atividade corporal. A experiência devolve ao corpo seu
papel na geração do conhecimento.
David Le Breton (2003) aponta o trabalho dos primeiros anatomistas como o marco
inicial para a separação entre o homem e seu corpo. Para Le Breton, a publicação em 1543 do
livro De humani corpori fabrica, de Andrés Vesálio, instaura a mudança epistemológica
responsável por princípios governadores da medicina e da biologia, desde as modernas às
contemporâneas. O método de trabalho de Vesálio era o da observação direta. Como professor,
75
ele utilizava este método em sala de aula, revolucionando o ensino da anatomia. Aos alunos
era repassada a lição que a observação direta na dissecação era o método mais eficaz e
confiável. O uso do termo fábrica remete a dimensão de construção arquitetônica do corpo.
Com os anatomistas, o corpo humano passa por inúmeras investigações, na colocação entre
parênteses do homem que ele encarna. A formulação do cogito por Descartes prolonga historicamente
a dissociação implícita do homem de seu corpo despojado de valor próprio. (...) Descartes formula
com clareza um termo-chave da filosofia mecanicista do século XVII: o modelo do corpo é a máquina,
o corpo humano é uma mecânica discernível das outras apenas pela singularidade de suas
engrenagens. Não passa, no máximo, de um capítulo particular da mecânica geral do mundo.
Consideração fadada a um futuro próspero no imaginário técnico ocidental dedicado a consertar ou
a transfigurar esta pobre máquina. Descartes desliga a inteligência do homem da carne. A seus
olhos, o corpo não passa do invólucro mecânico de uma presença; no limite poderia ser intercambiável,
pois a essência do homem reside, em primeiro lugar, no cogito. Premissa da tendência “dura” da
Inteligência Artificial, o homem não passa de sua inteligência, o corpo nada é a não ser um entrave.
(LE BRETON, 2003: 18)
Esta divisão dual entre o homem e seu corpo e a separação cartesiana corpo e mente,
reduze o corpo a um meio de transporte de informações para o conhecimento, retira dos órgãos
sua participação na apreensão do mundo. A globalidade do ser humano está na inteireza entre
o homem e seu corpo. As mídias primárias desenvolvidas pelo corpo criam as condições
relacionais com o mundo, tão necessárias à experiência. A apreensão do mundo e do
conhecimento passa pela materialidade do corpo. O corpo tem no pensamento uma versão
inteligente da experiência. Corpo e pensamento, sensação e cognição, atuam juntos nas
alterações de funções decorrentes de novas experiências: a fruição frente a um objeto estético,
por exemplo. Os corpos são meu elo de ligação com A imagén y semejanza, eles me revelam
um modo de estar no mundo. Os corpos silenciosos da obra desvelam a grafia dos corpos de
um dos mundos de minha experiência. Como destaca Adriano Duarte Rodrigues,
“Na comunicação, o horizonte da experiência é elaborado pela pergunta subjacente aos processos
de transação. Pode ser explicitada quando o interlocutor questiona o sentido daquilo que é dito:
‘Porque diz isto?’ ‘O que o leva a dizer-me isto, neste momento?’ Mas o horizonte construído no
processo comunicacional não diz apenas respeito à dimensão expressiva, ao mundo enunciado na
e pela linguagem. Está igualmente subjacente à dimensão pragmática, ao agir humano com sentido:
‘Porque faz isto?’ ‘Porque me fazes isto a mim, neste momento?’... Na comunicação, cada um responde
uma pergunta. Embora situada na sua própria experiência do mundo, esta pergunta é também uma
elaboração de uma nova experiência. Daí sua singularidade e imprevisibilidade e, ao mesmo tempo,
o seu reconhecimento como experiência familiar” (RODRIGUES, 1990: 72)
Reconheço o vivido. Esta vivência é materializada por um conjunto de símbolos,
resultado de uma efetiva troca de mensagens, que deixa claro os traços que definem os lugares
de pertencimento dos interlocutores. Chegamos a um ponto em que a primeira pergunta
interliga-se com a segunda. Os elementos de um possível traço de identidade do universo gay
76
sustenta-se sobre os corpos. Não apenas pela grafia dos corpos, mas também pelo modo
como estão dispostos, oferecendo abertura que revelam passagens para outras imagens. Para
mim, esta abertura deixa ver um entrelaçamento entre os corpos da obra e os corpos da drag
e do gogo boy das paradas gay. “Montados” e “Sarados” são imagens recorrentes destas
festividades e participam do vasto leque de identificação do universo gay. O “afeminidado” e o
“marmorizado”, dois travestidos que elevam o gênero à enésima potência para depois pendurá-
lo no pêndulo que flutua sobre o masculino e o feminino. Fred Góes e Nízia Villaça, remontando
as reflexões de Judith Butler sobre o gênero, nos dizem:
O gênero deixou de ser uma identidade estável, ou lugar de agenciamento do qual as ações procedem.
O gênero é uma identidade tenuemente constituída por meio da repetição estilizada de atos, gestos,
performances variadas que constroem a ilusão de um self com uma sexualidade definida. O comentário
da autora confirma o interesse que vêm despertando os aspectos sócio-culturais constitutivos da
identidade corporal. A transexualidade é um termo que vem sendo usado para acolher o travestimento,
os drag queens, drags kings, as mudanças de sexo e todas as misturas na composição de uma
semiótica textual.” (VILLAÇA, 1998: 188)
As personagens que fazem o pêndulo girar e transgridem os limites do gênero
efetuam este movimento a partir do gesto performativo. A performance é compreendida
aqui a partir da noção de Paul Zumthor (2000). Nesta noção, a performance é tomada
como um momento fundamental no processo comunicativo, pois ela possibilita a união
entre o tempo da emissão e recepção das mensagens. Assim, a mensagem é emitida e
percebida simultaneamente e contextualizada no território da ação. O corpo tem uma função
central neste ato único que é a performance. Um sem números de traços heterogêneos,
não dispostos hierarquicamente, revelado nos gestos, na voz, no vestir, no vocabulário,
conecta enunciação e recepção. A conexão depende da existência de um universo comum
entre enunciador e receptor. Este universo comum estabelece os critérios do que Zumthor
chama de competência necessária à performance. Esta competência é da ordem do
conhecimento. O emissor comunica aquilo que conhece ou que lhe pertence. Esta marca
do emissor configura uma apresentação e uma exposição, mas ela é na verdade uma
ação dele sobre as condutas e uma forma de buscar alterá-las. O gesto performativo pode
fazer emergir elementos de um gênero ou de outro, bem como um composto híbrido dos
dois, para estar presente em um dado contexto. O mundo gay, como parte integrante do
social, estabelece os reguladores dos seus processos comunicativos. Modos de vestir, de
andar, de comer, de falar, de ver, criam um “letramento gay”, por assim dizer. Os sujeitos
dos coletivos gays e lésbicos, como quaisquer outros coletivos, utilizam seus corpos como
77
articuladores deste discurso, determinam seus sinais e os introjetam na linguagem do grupo.
A performance encarna-se nos corpos.
O entrelaçamento entre os corpos pode responder em parte a última pergunta feita a
obra que observamos. Os caminhos da cadeia semiósica novamente se misturam e retornamos
à importância da mimese. Há uma estrutura imagética e mítica que rege nosso corpo. Esta
estrutura permite que criemos parâmetros de reconhecimento do corpo próprio e do corpo
grupal. Tanto em um como em outro, o processamento das imagens exógenas depende da
organização de imagens endógenas. Os rituais, as festas, a moda, a indústria da beleza e da
saúde, as religiões, as escolas, as famílias, dentre outras instituições, fornecem aspectos
verbais e não verbais para o repertório dos coletivos sociais. Este conjunto de imagens externas
dialoga com o conteúdo interior do participante do coletivo e garantem os mecanismos de
sedução ou endurecimento do seu corpo.
Identificar-me com uma obra e nela encontrar a aura homoerótica dependeu da minha
inscrição corporal grupal. Ver aqueles corpos é como me ver no espelho, não em busca de
meu corpo individual, mas ao encontro dos depoimentos coletivos que se somam para me
narrar como agente de um panorama social. Bastou olhar para reconhecer aquilo que a minha
experiência no mundo gay me ensinou: o modo de ler aquele universo. E, para não turvar os
olhos, é melhor parar de pensar, pois, como disse Manuel de Barros, quem reúne e guarda
muita informação, perde a capacidade de adivinhar, de divinar...
2.3 Consolação. Segunda aparição.
Era uma ensolarada manhã de sexta-feira. Uma manhã comum em que resolvi ir à
livraria. Segui para o metrô, despreocupadamente, observando as ruas de São Paulo.
Embarquei na Estação Clínicas para descer na próxima: a Consolação. Ao desembarcar do
trem, encaminhei-me para a saída da rua Augusta, esquina com a avenida Paulista. Na
plataforma da estação, o dia começou a mudar, eu estava prestes a presenciar um
acontecimento. Ao meu lado passou rapidamente um cabelo. Não era um cabelo comum, eram
fios descolorados fixados para cima na franja, nas laterais fios em um tom mais escuro
avançando sobre o rosto e a parte traseira composta por um volumoso desfiado. Nada se
movia naquele cabelo, tudo estava cuidadosamente fixado e desarrumado.
78
Abaixo daquele cabelo vinha um corpo delgado, esguio. Diferentemente do cabelo,
tudo naquele corpo se movia. A cada vez que os pés tocavam o chão era como se uma
placa tectônica se movesse e balançasse tudo acima. Seu passo mesclava delicadeza e
decisão, como os passos das modelos internacionais ao adentrarem as passarelas. A malha
branca compunha com a calça jeans rasgada, lavada, “stonada” e os óculos escuros, que
ocupavam quase todo o rosto, o visual urbano. Na cena jovem da metrópole, a composição
da roupa pode nos levar a uma confusão entre quem é o “bofinho”
3
e quem é o gay. Porém,
se a veste aproxima os dois, os gestos os particularizam. O repertório, a pauta corporal,
sinalizava: não era o “bofinho”, era o gay. Não era o descolado urbano que subia as
escadas. Era o gay que surgia na avenida Paulista pela fenda do concreto, na velocidade
dos degraus da escada rolante. Tornava-se visível para o maior corredor financeiro do
país ao modo de uma imagem em câmera lenta. Tudo isto às dez da manhã. Era um corpo
para ser visto. Um conjunto imagético unindo roupa, os gestos afeminados, os cabelos ao
estilo de uma diva. Era um corpo queer
4
, não restava dúvida. Nada naquele corpo era
discreto ou feito para se misturar com a imagem dos ternos “cor de asfalto gasto” dos
homens de negócio. Era o colorido, uma aparição na Consolação.
Minha observação constante, nos poucos minutos de duração da cena, em nada
incomodava o dono do corpo. Afinal ele estava lá para ser visto, mostrava-se sem pudor.
Se fosse cinema seria uma imagem-tempo, uma imagem de um corpo modificado em seu
estado e velocidade pelos humores e os afetos claramente demonstrados, tal como ensinou
Deleuze. Esta oferta chamou minha atenção para algo que estava para além daquele corpo,
ou para dizer melhor, no entorno do gesto deste tipo de corpo. Afigurou-se para mim um
corpo resistente ao canibalismo presente nas formas simbólicas comportamentais
hetorossexuais dominantes. Desde pequeno, uma rede simbólica ocupa-se do
endurecimento do corpo do homem. Homem não faz assim, não chora, não é afetivo, não
fala fino, não rebola. O corpo do homem deve ser o porto seguro, o arrimo. Nesta rede
simbólica não há um valor de sentido que aproxime corpo frágil e segurança. Cria-se uma
imagem disciplinadora que devora o corpo do outro. Aos termos de Norval Baitello Jr.,
3
Bofe é o termo utilizado comumente no linguajar gay para designar o homem heterossexual.
4
Compreendemos a formação dos corpos a partir das relações sócio-culturais e das formas de poder que as regem. Neste
sentido, se o corpo é um locus privilegiado para as ações de dominação, ele também o será para os exercícios de resistência.
O corpo queer possui um repertório gestual próprio – seja nas características de mídia primária ou secundária. Esta propriedade
contém traços do grupo ao qual pertence, revela sua comunidade. Deste modo, este corpo caracteriza-se como resistente aos
parâmetros normativos heterossexuais.
79
presas de uma iconofagia, um signo, um símbolo, uma imagem inflada do que é ser homem.
Esta devoração não é sutil e a violência por ela exercida conta com uma maquinaria
sem fim: a família que rejeita o filho delicado e ele impõe castigos, a escola que discrimina e
expõe o menino afeminado, a manutenção social de códigos de comportamentos que ordenam
os novos suplícios a quem pretende escapar deles. Aquele corpo fabular provavelmente passou
por tudo isto, mas mantém-se com uma narrativa, como um articulador de discurso que após
resistir diz com segurança: sou bicha.
Imaginei a que horas aquele cabelo começou a ser feito para estar, às dez da manhã,
brilhando na avenida Paulista. Pensei em como aquele sujeito saiu de seu apartamento; desceu
o elevador com outras pessoas – deixando para trás um rastro de perfume e cheiro de gel,
mousse e pomada, tudo aquecido pelo secador de cabelos -, cumprimentou o porteiro e ganhou
as ruas. Não restava dúvida, era um corajoso corpo resistente. Escolher o que cobre o corpo
– a roupa é uma mídia secundária -, adornar-se com o gestual, utilizar uma cadência vocal e
um léxico nos localiza no mundo. A moda que usamos diz do modo como vivemos.
Se a moda é um modo, controlar o corpo é condicionar fluxos de comunicação entre o
nosso corpo, nossa subjetividade e a cultura. Evitar a fabulação de um corpo é cercear seu
potencial de comunicação. Um corpo se vincula sempre a outro corpo. Este vínculo, este
encontro de corpos caracteriza exercícios de subjetivação. Nos relembra Hélio Rebello Cardoso
Jr. (2002) que a subjetivação não se baseia apenas no encontro casual dos corpos, mas também
se articula a partir do encontro esperado, preparado.
Os processos de subjetivação são do domínio do preparo para os encontros onde não somos
esperados, ou, inversamente, eles são o domínio da espera daqueles encontros para os quais
estivemos nos preparando. Na ética da subjetivação, não há apenas o imprevisto e o casual, mas,
igualmente, a conquista de um “governo de si” que enseja a condução contingente do próprio processo.
A ética da subjetivação, com essa configuração genérica, logicamente, evoca a pergunta sobre seus
perigos, pois trata-se sempre de experimentações. Ora, porque os encontros de corpos, às vezes,
acarretam modos de vida tristes, que sufocam, que desgastam ou fazem cair no vazio?
Toda a subjetivação exige prudência, pois a linha que conduz ou encaminha um encontro de corpos
é a mesma que pode entrar em uma vibração maléfica ou suicida ao abri-se para outras forças.
(CARDOSO JR., 2002: 190)
Como nos chama a atenção Cardoso Jr., subjetivação e subjetividade são conceitos
distintos na filosofia de Foucault e Deleuze. As subjetividades são nucléolos surgidos no interior
da subjetivação. Estes nucléolos reduzem a velocidade da subjetivação – caracterizada como
80
o contato das dobras do si com as forças cósmicas. Junto com a redução da velocidade
da subjetivação, a subjetividade fornece pontos de parada para o processo de
subjetivação. Uma das tentativas de controle dos processos de subjetivação pode ser o
endurecimento da subjetividade. Nesta equivalência de subjetivação e encontros de
corpos, o controle sobre a subjetividade pode preparar a regra dos encontros, torná-los
previsível sob um número de princípios. No caso de uma cultura heterossexual dominante
criou-se uma gama de regras sobre como deve ser o corpo do sujeito nascido com o
sexo masculino. Pode-se ser homem aos modos dos caminhoneiros ou dos empresários,
dos jogadores de futebol ou dos pagodeiros, dos modernos urbanos ou dos intelectuais,
enfim pode-se colocar dúvidas sobre como ser homem, mas nunca sobre o que é ser
homem – ser homem é algo dado.
Se os processos de subjetivação representam a criação de modos de vida, as
tentativas de controlar a subjetividade são buscas de condicionamento do “governo de
si”, ou da autonomia de um sujeito ou de uma identidade. Conquistar este condicionamento
significa conduzir o processo de subjetivação. Sob esta perspectiva, Deleuze e Foucault,
como assinala Cardoso Jr., destacam a importância da subjetividade, pois ela terá um
papel decisivo na criação de modos de vidas alegres ou tristes. Neste sentido, vem à
cena a necessidade da prudência ética no processo de subjetivação. Cardoso Jr. aponta
dois perigos a serem enfrentados na busca por esta prudência:
Em primeiro lugar, a perda da subjetividade pode precipitar-se numa subjetivação desatada, onde a
captação de forças se torna impossível e onde uma força não encontra mais o recesso para dobrar-
se sobre si mesma. Na precipitação, é a própria “dobra do si” que não pode mais dobrar-se, fazendo-
se flácida ou complacente. Neste caso, o processo de subjetivação torna-se vazio e a perda da
subjetividade se esvai em uma “linha de morte” ou de “destruição” e o “governo de si” se dissipa.
Em segundo lugar, a subjetividade pode sufocar-se. Neste caso, a “dobra do si” fecha-se em torno
da subjetividade ou confunde-se com ela. O sujeito endurece, infla e perde o contato com as forças
da subjetivação. Desta feita, o que ocorre é que, na subjetividade, a força se relaciona consigo
mesma de modo falseado, fechando-se sobre si mesma ou voltando contra si. O governo de si
torna-se simplesmente clausura de um território conquistado. É como se pudéssemos aportar uma
subjetividade primitiva ou natal, nostálgica, que somente precisaríamos adubar para florescer.
(CARDOSO JR., 2002: 191-192)
O poder e o saber, tal como os processos de subjetivação, conectam-se com a
história. O poder não é da ordem da concordância, mas da dominação. Como parte da
dominação, por longo tempo as diferenças de gêneros foram compreendidas a partir
das diferenças biológicas. Isto garantiu a supremacia masculina. Sandra R. G. Almeida
81
observa que, a partir desta compreensão, os homens por serem mais fortes fisicamente
seriam superiores às mulheres, ocupando lugares privilegiados como agentes na esfera pública.
Dentro desta lógica perversa, os homens, por sua constituição e força físicas, estariam em posição
de superioridade, atuando, assim, como provedores únicos da família e como agentes da esfera
pública. As mulheres, por outro lado, por sua função materna e suposta fragilidade física, estariam
relegadas ao espaço privado, exercendo atividades estritamente ligadas ao plano doméstico, como
o cuidado com a casa e os filhos. Nesse contexto, o conceito de gênero estava automaticamente
ligado ao de sexo como categoria única que determinava o papel dos indivíduos, reforçando, por
conseguinte, a convicção na inferioridade feminina vis-à-vis a superioridade masculina. (ALMEIDA,
1998/99: 90)
Como o discurso da dominação coloca o homem como superior e a mulher como inferior,
o homem delicado será “mulherzinha”. Almeida recorre à marcação de Judith Butler para
esclarecer que é preciso compreender as políticas de identidades para além da dicotomia
masculino/feminino. Butler destaca que a construção do gênero é uma construção política e
de identidades constituídas discursivamente. Almeida comenta que a crítica norte-americana
indica dois pontos cruciais na sua teorização sobre as questões do gênero: a instabilidade
das relações de gênero, decorrente de mudanças sociais e culturais; a interação regular e
constante entre gênero e fatores sociais.
As regras de formação dos discursos de dominação articulam significados de discursos
múltiplos: o determinismo biológico, as classificações científicas ou a manutenção de sistemas
ideológicos – familiares, econômicos ou políticos. A validação dos enunciados dos discursos
de dominação demanda uma intenção de significação destes outros discursos. Um dos
argumentos chaves no combate ao avanço dos direitos homossexuais é a manutenção da
família. Os valores morais que garantem o formato tradicional da família são incongruentes
com as relações fincadas em outras afetividades distintas da heterossexual. Esta matéria moral
é responsável não apenas por ligar a família, mas por ocultar uma engrenagem que garante o
funcionamento da maquinaria subjetiva capitalista. O intuito produtivo que sustenta o capital
comanda o processo de significação. Ele unificará o regime de formação dos enunciados. As
práticas discursivas, como nos mostrou Foucault, organizam os enunciados em tempo e espaços
regidos por regras históricas.
As práticas discursivas sobre a busca de complementaridade afetivo-sexual entre
pessoas do mesmo sexo, relembra o sociólogo Luiz Mello de Almeida (2001), é historicamente
combatida alternadamente sob o enfoque religioso, jurídico ou médico. O sociólogo considera
que, apesar de descaracterização da homossexualidade como doença e da progressiva
82
descriminalização da prática homossexual, o caráter pecaminoso não foi afastado dos
homossexuais. A manutenção deste caráter coloca o homossexual na condição de não humano,
transgressor do divino, da natureza e das leis dos homens.
Se por um lado as imagens e discursos nos devoram, imprimindo sobre nós as marcas
discursivas do poder, por outro devorar os discursos e as imagens dominantes e revalorizá-las
pode ser um modo de resistência. Baittelo Jr. recorre a Rodrigo Browne e Victor Echeto para
descrever a inversão antropofágica como forma de resistência:
Re-devorar (os corpos, as idéias, as imagens) para resgatá-los, é a divisa, reafirmar o próprio corpo
pelo sentido tátil-odontológico, reafirmar as dentições antropofágicas como grito de guerra canibal
contra um mundo que nos quer imagens puras, como puros espíritos cartesianos, apenas res cogitans,
sem res extensa. A proposta de reviravolta ou re-revolução odontológica retoma a idéia nietzcheana
de Umwertung aller Werte (re- ou trans-valoração de todos os valores) e também a metáfora de
ruminação, em Nietzche/Zaratrusta. (BAITTELO JR, 2005: 22)
Não podemos nos esquecer que Nietzche afirmava que o conhecimento não era
transcendente, mas um valor humano. No processo de conhecimento, o homem, distante de
ser divino, cria generalizações dominantes. Estas generalizações devem ser formadas a partir
de leis invariáveis. Elas propiciam aos homens crescerem em potência, em vontade de poder.
Conhecer é um exercício de poder e dominação. Junto ao conhecimento o homem inventa a
moral, um duo a serviço da vida que generaliza em detrimento da particularização. Por traz
deste duo existe a vontade de poder. Generalizar um tipo de corpo é sacralizar um corpo e
execrar outro. No caso em questão, o corpo viril será virtuoso quando enquadra-se no
comportamento previsível engendrado pelas estruturas dominantes. Quem não se enquadrar
deverá ser punido, criticado, difamado em praça pública. A imagem da execração será
disciplinadora, com uma função de evitar que outros corpos hajam a maneira do execrado.
Uma microfísica do poder que se arquiteta sobre o corpo. Como nos ensina Foucault:
Analisar o investimento político do corpo e a microfísica do poder supõe então que se renuncie – no
que se refere ao poder – à oposição violência-ideologia, à metáfora da propriedade, ao modelo do
contrato ou da conquista; no que se refere ao saber, que se renuncie à oposição de que é “interessado”
e do que é “desinteressado”. Ao modelo do conhecimento e ao primado do sujeito. Dando a palavra
um sentido diferente do que lhe era dado no século XVII por Petty e seus contemporâneos, poder-
se-ia sonhar com uma “anatomia” política. Não seria um estudo do Estado tomado como um “corpo”
(com seus elementos, seus recursos e suas forças) mas não seria tão pouco o estudo do corpo e do
que lhe está conexo tomados como um pequeno Estado. Trataríamos aí do “corpo político” como um
conjunto dos elementos materiais e das técnicas que servem de armas, de reforço, de vias de
comunicação e de pontos de apoio para as relações de poder e de saber que investem os corpos
humanos e os submetem fazendo deles objetos de saber. (FOUCAULT, 2005: 25)
Aquele corpo queer demonstrava para mim uma outra potência, uma outra forma de
83
sobrevivência. Um devorador que na re-revolução de sua presença abandonava o “parecer
ser” o corpo heterossexual para alcançar o “ser” o corpo queer. A corporalidade queer não é uma
lacuna, um hiato entre o que deseja o poder masculino heterossexual e a configuração do corpo
gay. Ela deve integrar um estilo de vida próprio, que ultrapasse – como ensina Bourdieu –, o
habitus reprodutor de um sentido objetivo, capaz de perpetuar uma única cultura corporal. Como
imagem, aquele corpo queer fortalecia-se na visibilidade. Era o escudo imagético às avessas.
Nos termos de Baittelo Jr., considerando que as imagens são fóbicas por definição, as estratégias
dominantes utilizam as imagens como escudos de sobrevivência. Vejamos o que ele nos diz:
O medo, no entanto, ao contrário do que tendemos a crer, não apenas assusta, espanta e afugenta,
mas também atrai e prende. Imobiliza, mas também move, comove e nos remove de nossas posições.
As atitudes diante do medo são também ambivalentes como o próprio sentimento. Michael Balint
desenvolve uma tipologia de singular operatividade para a compreensão das reações diante do
perigo da vida: partindo das palavras gregas “ochneo” (temer, exitar, apegar-se) e “baino” (andar),
[de onde vem o sufixo “-bata” da palavra “acrobata” (o que anda nas alturas)], Balint caracteriza dois
tipos básicos de atitude, o ocnófilo e o filobata. O primeiro busca as situações de proteção, o segundo,
as de risco e aventura. O primeiro é meticuloso, cuidadoso [não nos esqueçamos que “meticuloso”
vem de “metus” – latim – que dá origem às palavras “medo” e “miedo” – em português e espanhol -
]. O segundo é arrojado, vai em direção ao perigo. O primeiro teme o vazio e por isso se apega
sempre a algo que preencha o vazio ou que o acompanhe no vazio, sua relação com os objetos é
primitiva, de apego de proximidade. O segundo ama o risco e o perigo (o vazio da probabilidade, a
possibilidade da morte) e o vazio da distância lhe é amigável até que o perigo se apresente se
materialize. (BAITTELO JR., 2005: 23)
Este escudo de sobrevivência oferecido pelas estratégias do poder é forjado a partir
de matérias existentes nas micropolíticas que atuam sobre o corpo. Em verdade, dizemos que
as imagens que esta política impõe sobre os corpos são de inspirações filobáticas. Elas
ancoram-se sobre o heroísmo, sobre o desprendimento, como o ponto máximo a ser alcançado.
Neste sentido, podemos ver as formas de dominação do poder masculino heterossexual atuando
sobre o ambiente gay. Nos chats, nos bares, nas boites, é comum a afirmação: “não curto
afeminado”. O afeminado aparece como alguém menor, aquele que não alcançou o estado
“parecer ser” o corpo heterossexual. Novamente, quem não alcança este ideal deve ser banido.
O controle do poder masculino heterossexual se materializa no condicionamento do prazer e
do desejo: desejaremos apenas um tipo de corpo e de comportamento.
2.4 Hortaleza. Terceira aparição.
Sábado. O final do verão proporcionava uma luz própria a Madrid. O tempo quente e
seco, o céu com um azul de beleza ímpar, a cidade povoada por pessoas de todos os cantos
84
do mundo, tudo convidava a beber uma cerveja. Descemos a escadaria do prédio e ganhamos
a rua com o firme propósito de saciar nossa sede de líquidos e de imagens. Caminhamos pela
rua Mayor, onde morávamos, até a praça Puerta del Sol. Dali subimos a rua Preciados,
chegamos à rua Gran Via e partimos em direção ao edifício Metropolis. Tínhamos a sensação
de caminharmos pelas ruas de Salvador em um sábado de carnaval na Bahia, tamanho o
turbilhão de gente. Havia pouco tempo que meu companheiro chegara à cidade. Este contato
inicial entre ele e a cidade gerava uma impressão de que tudo tinha acabado de nascer e
estava pronto a nos saudar: todos aqueles prédios seculares, praças, monumentos, galerias e
vitrines. Tudo se materializava à medida que víamos, tocávamos a cidade com o olhar.
Nossos olhos, ouvidos, boca, mãos, nariz, juntavam-se para levar até a mente as
sensações, os cheiros, os paladares, as percepções visuais e auditivas do espaço urbano.
Éramos como membros de uma tribo iconofágica a devorar a cidade. O pensamento, como
alguém que prepara pacientemente um bom prato, separava de cada experiência o seu sabor,
o seu saber. Ele organizava em nossa mente o mapa semiótico do lugar.
Juntos, nós construíamos histórias particulares sobre a cidade. Histórias marcadas
por singularidades, sem se repetir em cada um de nós a qualidade do perceptível. Mesmo
estando lado a lado, os acontecimentos nos acometiam com uma temporalidade própria a
cada um. Não era uma experiência comum, destas que ocorrem todo o dia e a todo o
momento. Não era uma simples interação, tão necessária à vida, entre nós e o ambiente
produzido por continuidade das experiências. Era uma experiência. Uma experiência vital
nos termos de John Dewey:
(...) tenemos una experiencia cuando el material experimentado sigue su curso hasta su cumplimento.
Solamente de vez en cuando se integra aquélla y se delimita de otras experiencias, dentro de la
corriente general de la experiencia. Una parte del trabajo se termina de un modo satisfactório; un
problema recibe su soclución; un juego se ejecuta completamente; una situación; ya sea ia de comer,
jugar una partida de ajadrez, llevar una conversación, escribir un libro, o tomar parte de una campanha
política, queda de tal modo redondeada que su fin es consumación, no una cesación. Tal experiencia
es un todo y lleva con ella su propria cualidade individualizadora y de autosuficiencia. Es una
experiencia. (DEWEY, 1949: 34)
Dewey separa as condições de tensões e conflitos entre o sujeito e o mundo
registradas na experiência, das condições particulares do que ele chama de “uma
experiência”. A experiência é formada por um contínuo, por uma ligação entre o ponto de
partida e o de chegada da experiência. Ela é composta por partes com identidades próprias,
mas que se atualizam entre si. Para Dewey, o movimento destas experiências não comporta
85
pausas, ao passo que “uma experiência” é formada por pausas destinadas ao repouso, ao
tempo do gozo, de aproveitar prazerosamente.
“Madrid é uma cidade onde devemos caminhar olhando para cima”, me dizia um amigo
madrilenho. Em busca das imagens do alto dos prédios, chegamos ao edifício Metropolis.
Embriagados de imagens, nos dirigimos à praça de Chueca para beber umas cervejas. Bem
na praça, em um bar chamado Angel Sierra, as pessoas ocupavam as calçadas e parte da
praça como lagartos ao sol, entre cañas (cerveja em copo) e azeitonas. Gays, lésbicas,
heterossexuais, turistas ou não, davam um ar de festa à tarde de sábado. Risadas, conversas
com sotaque, paqueras e combinações para os programas noturnos no cenário de um dos
maiores bairros homossexuais do mundo.
O famoso bairro de Chueca, lugar de lojas de marcas famosas e de glamour, endereço
de restaurantes, cafés e clubes badalados, era um antigo bairro decadente que foi,
paulatinamente, desde o início dos anos de 1990, ocupado e transformado pela cena
homossexual. Em suas ruas trafegavam tipos de homossexuais representantes dos vários
subgrupos estéticos, “luxoréxicos” em busca das marcas internacionais, transeuntes correndo
no horário de trabalho, turistas buscando conhecer o que consideram um comportamento exótico
de homens que andam abraçados pelas ruas ou mulheres que se beijam apaixonadamente.
Para os turistas, em muitas situações, a manifestação pública do afeto entre pessoas do mesmo
sexo interessa tanto quanto as vitrines de marcas famosas.
As opiniões sobre Chueca oscilam entre aprovações e recusas do grupo homossexual.
Muitos consideram que o bairro falsea uma identidade homossexual, é fortemente marcado
pelas estratégias de mercado e dominado pelo chamado empresariado gay de Chueca. Outros
consideram o bairro como um espaço único para a manifestação dos anseios homossexuais.
Para além de prós e contras, é inegável o estabelecimento de uma sociabilidade de um novo
tipo no bairro. Para Fernando Villaamil, Chueca ultrapassa os guetos que se afirmam a partir
das fissuras da homofobia. Sobre este território físico erguem-se as formas de sociabilidade e
as condições existenciais dos homossexuais. Um território simbólico, político e afetivo onde
os sujeitos podem experimentar diferentes modos de ser homossexual.
(...) comprender lo que significa Chueca desde el punto de vista de las formas de existencia social
que configura supone entrar a contemplar las relaciones de poder y los mecanismos y los mecanismos
de subordinación que conforman como totalidade: eso que aqui vamos a tratar de interpretar como
la “normalidad gay” da lugar a la elaboración de posiciones identitarias diversas, desde la identificación
com sus valores y formas de entender el mundo, a la exclusión em grados diversos y gracias a
mecanismos no siempre obvios. Ello no quiere decir que no existia un discurso gay que se hay
86
convertido em hegemónico, aunque el desarrollo de uma sociabilidad gay es algo más complejo que
la elaboración de una representación gay en la arena de la opinión pública, por más que sea éste un
factor importante. Existen otras experiencias y otros discursos, que, eso sí, no pueden ignorar la
preeminencia de lo gay normativo, puesto que lo resisten, lo reelaboran o lo incorporan desde otras
posiciones sociales. (VILLAAMIL, 2004: 67 – 68)
Após algumas cervejas, resolvemos flanar mais um pouco. Andávamos pela rua
Hortaleza quando meu companheiro apanhou algumas revistas de distribuição gratuita na porta
de um café. Entre os materiais recolhidos, havia uma revista chamada Shangay Express. Tinha
o formato de um tablóide, cerca de 60 páginas, impressão colorida em todas as páginas, uma
boa qualidade editorial, informação sobre peças de teatro, shows, lançamentos musicais,
comportamento e moda. Ao seguir pela rua Hortaleza resolvi manter-me atento aos outros
estabelecimentos comerciais pertencentes ao “ambiente homossexual” na intenção de encontrar
novamente a revista. Ela estava na porta de quase todos. Uma vez que havia retornado para
casa, comecei um exame do veículo com o objetivo de mapear a edição.
Na segunda capa havia um anúncio de página dupla de um produto para a pele
masculina. A propaganda, do fabricante Nivea, divulgava um creme hidratante para homens
com a seguinte chamada: “Ruega fuerte. Mostra tu mejor cara”. Este anúncio me chamou a
atenção, pois ele já havia sido por nós observado em veículos impressos destinados ao público
heterossexual. Ao longo de Shangay Express, anunciantes como a marca esportiva Adidas,
vodka Absolut, roupas Dolce Gabanna, dividiam espaço com empresas do mundo da música,
do cinema e com propagandas de espetáculos teatrais. O veículo possuía uma carta invejável
de anunciantes. Impressionou-me a qualidade gráfica da peça, a resolução das imagens e o
registro das cores. Aquele meio, de produção cara, sobrevivia da verba de publicidade e era
distribuído gratuitamente. No expediente, uma informação surpreendeu-me ainda mais: estavam
na edição 294. A Shangay Express editava também uma agenda – Shanguide - contendo a
programação cultural destinada ao público homossexual e simpatizante nas maiores cidades
espanholas. A agenda também possui distribuição gratuita e conta com um grande número de
anunciantes. (Entra capa da Shangay e o anúncio da nívea)
Instigado pelo encontro da revista, resolvi inteirar-me das outras publicações existentes
com o objetivo de fazer um exercício de mídia comparada. Determinei como área de
investigação os estabelecimentos comerciais situados na rua Hortaleza e imediações. Privilegiei
inicialmente os veículos de distribuição gratuita e selecionei dez para a comparação. Todos os
materiais encontrados tinham uma qualidade inferior a da Shangay Express – ora pelos aspectos
87
gráficos ora pelos aspectos editoriais. O número
e o perfil de anunciantes encontrados em
Shangay Express não se repetia nos outros
veículos de distribuição gratuita. Além da
destinação do público, algumas abordagens,
especialmente as relativas a lutas por direitos de
gays e lésbicas, criavam pontos de aproximação
entre as revistas comparadas.
Durante a pesquisa, encontramos um
folheto de divulgação do Les Gai Cine Mad,
Festival Internacional de Cinema Lésbico e Gay
de Madrid. O número de publicações disponíveis;
a existência de um bairro que concentrava o
“ambiente homossexual”; o “ambiente” constituído não apenas por bares, boates e clubes,
mas também por lojas, livrarias, restaurantes e cafés; a legalização do casamento entre pessoas
do mesmo sexo; a realização de um festival de cinema temático; evidenciavam algumas
dimensões do conjunto institucional que tecia a rede simbólica da cena homossexual na cidade
de Madrid. Políticas e afetos da subjetividade aliados a ritualísticas próprias funcionavam como
demarcadores para a navegação da identidade homossexual.
Meu companheiro assumiu a tarefa de auxiliar-me no que começava a se definir como
uma pesquisa de campo. Voltamos várias vezes ao bairro de Chueca, em horários e locais
diferenciados. Quando íamos separados, destacávamos os aspectos singulares e depois
voltamos juntos para debater o observado. A regularidade da freqüência no bairro nos permitiu
um reconhecimento inicial de tipos freqüentadores. Este reconhecimento nos fez compreender
a cartografia dos diferentes grupos no bairro – se a mistura aparecia nas ruas, nos espaços
fechados o que regia era a estratificação, ora por idade, ora por tipo físico, ora por
identificação e interesse comum em determinadas práticas sexuais. Na busca por informação,
encontramos mais material de divulgação do festival de cinema. Listamos o que veríamos e
compramos um par de passaportes para os filmes. No dia da estréia, encontramos um público
composto em sua maioria por militantes homossexuais e pessoas ligadas ao cinema. Na
sede do evento, entre a grande variedade de materiais gráficos disponíveis, duas publicações
nos chamaram a atenção: as revistas Zero e Orientaciones.
Capa do exemplar 309, 2007, da
publicação Shangay Express.
88
Orientaciones é uma publicação da Fundación Triangulo. Sediada em Madrid, esta
é uma fundação sem fins lucrativos com o objetivo de lutar pela igualdade e contra a
descriminação dos homossexuais. A revista é bem diferente das examinadas até então.
Ela tem o perfil de uma revista acadêmica destinada a refletir sobre temas de interesse do
coletivo homossexual. Os autores possuem, geralmente, uma vinculação com algum tipo
de pesquisa ou universidade.
A revista Zero é editada pelo Grupo Zero Comunicación. É editorialmente semelhante
a Shangay Express, vendida em muitas bancas de jornal e livrarias em toda a Espanha, além
de circular em alguns países europeus. No conteúdo da revista figuram temas como saúde,
viagens, moda, crítica de livros, filmes, espetáculos teatrais; bem como temas relacionados
aos direitos homossexuais. O número de anunciantes é grande e a maioria é de marcas
internacionais. Sob a marca guarda-chuva da revista estão as edições especiais: Decora, Zero
de Moda, Destino, Cuidate, Vihve.
Se a revista Orientaciones afasta-se da perspectiva de que o laço que une o coletivo
homossexual é o do mercado, as diretrizes mercadológicas figuram com destaque na revista
Zero. Este fato pode ser percebido não apenas pelo tipo de anunciante, mas também pela
produção de imagem da revista. Os editoriais de moda estão ao nível das revistas internacionais
especializadas. O editorial da quinta edição da Zero de Moda, do mês de outubro de 2006,
chamado Decadent rock stars, fotografado por Andrés Jiménez, exemplifica com maestria esta
Textos verbo-visuais do editorial Decadent Rock Stars. O texto da esquerda é a abertura e o da direita
pertence ao miolo do editorial. No texto verbo-visual da direita, o corpo que está ao fundo porta uma
qualidade queer, há uma delizadeza no olhar e no modo pelo qual ele segura o tecido. As peças de roupa
que cobrem os corpos e o balde com a bebida conferem à cena um jogo erótico.
89
aproximação. O requinte da produção em nada deixa a dever a editoriais de revistas como
Vogue Homme International, L´Officiel Homme ou Numéro Homme.
Os corpos figurados no editorial, a ambientação das fotos, a produção de moda,
possuem um diálogo intenso com os editoriais das revistas de moda não segmentadas para
o público homossexual. Ter contato com o referido editorial foi como abrir uma caixa de
perguntas. Se isolássemos algumas fotografias em que há uma manifestação de afeto entre
os modelos, as imagens poderiam saltar facilmente entre as revistas? Há uma aura
homoerótica no modo de representar o homem na moda? Os padrões de controle do biopoder
desconhecem as orientações sexuais e atuam de formas indistintas sobre os corpos? Os
anunciantes ocupavam várias páginas da revista porque se parecem com a revista ou porque
a revista se parece com eles?
Retomamos o exercício de comparação de mídia e aproximamos a revista Zero da
revista francesa Tetu e da revista norte-americana Out. As revistas três possuem um projeto
editorial muito semelhante. Para estabelecer um termo comparativo confiável colocamos em
paralelo as imagens da revistas Zero e as imagens de mais duas revistas espanholas destinadas
ao homem heterossexual: Gentleman e Nox. A primeira é uma revista mensal para o homem
contemporâneo, entre 30 e 55 anos, de classe alta, com bom nível de formação, consumidor
de produtos de luxo e preocupado com os cuidados do corpo. Os conteúdos de Gentleman
privilegiam a sofisticação para a busca de prazer. A segunda revista não possui distribuição
mensal e o calendário de publicação é determinado pelas estações climáticas. Seu conteúdo
é muito semelhante ao da revista Gentleman.
Após compararmos as cinco revistas, percebemos algumas características de
aproximação e distanciamento entre elas. Se considerarmos o perfil de anunciantes, há
uma variação entre as revistas Gentleman e Nox em relação às demais. As duas contêm
anúncios de carros de diversas marcas. Fora este dado, os anúncios de produtos de beleza
e de técnicas de embelezamento, por exemplo, são muito semelhantes. Os editoriais de
moda e as listas de produtos mais desejados ou dicas de presentes em datas especiais são
similares. Outro fato que nos chamou a atenção foram os tipos de corpos existentes nas
publicações comparadas: segmentadas para o heterossexual ou o homossexual, elas utilizam
o mesmo padrão corporal. Aliados aos corpos, os termos dos textos nas seções de cuidados
corporais e saúde são os mesmos.
Os corpos construídos nas imagens e nos textos dos anúncios e dos editoriais das
90
revistas estão condicionados por experiências geradas no seio do controle. A comunicação
mediática neste processo tem a função instrumental de repartir os corpos, evitar sua unidade,
reduzir as formas de contato. O corpo nas campanhas publicitárias de beleza é seccionado
por produto. Uma anatomia feita de fatias de mercado. O controle da experiência pelas táticas
do biopoder funciona por cortes, por separação. As terminologias dos anúncios adquirem um
valor de máquinas de guerra: vencer as gorduras, eliminar as rugas, a batalha contra o
envelhecimento. Se a experiência necessita de um contínuo para ser compreendida e valorada,
parar o tempo biológico é fraturar a experiência. A eterna juventude da saúde gorda do capital
(Deleuze) exposta nas campanhas de publicidade enclausura a experiência em uma única e
produtiva fase da vida: aquela em que o sujeito terá força e disposição para ascender os
degraus da escada eterna. Subir e descer, ascender socialmente, rejuvenescer sempre.
Como nos ensinou Foucault e Pross, em alguns momentos da história a violência
simbólica privilegia uma ação sobre os corpos, em outros sobre os mitos e os valores morais
ou legais. Em tempos contemporâneos, a sofisticação da circulação das mensagens nos meios
de comunicação reestrutura as estratégias de controle. Formas diversas de violência convivem
e são satisfeitas na mesma tela – seja ela impressa, televisual ou digital. Dentro do veículo de
comunicação, a maciez da pele hidratada do modelo que anuncia produtos cosméticos em
nada contrasta com as fotos jornalísticas das matérias das revistas – ao lado de um anúncio
de Dolce Gabanna, onde os corpos são esculturais, não aprece a imagem do corpo transformado
pela aids, por exemplo. A estetização da vida nas páginas funciona como a satisfação do jogo
de violência simbólica. Uma imagem bela que cega o espelho e estimula a consciência daquilo
que não deveremos ser, pois, nesta lógica, devemos sempre nos afastar daquilo que não é
belo, cuidado e produtivo.
Não restou dúvida que os anunciantes anunciam nas revistas porque elas se parecem
com eles. Em algumas propagandas a criação serve-se do desejo heterossexual como apelo. É
o caso do creme Veet para depilação masculina. O anúncio continha o torso desnudo de um
homem forte sendo abraçado pelas costas por uma mulher e com a seguinte chamada: “sin vello
más bello.” Esta peça publicitária foi veiculada na revista Zero do mês de julho e em outras
revistas destinadas a heterossexuais. A relação de sedução heterossexual do anúncio poderia
promover uma desconexão com a revista homossexual, todavia a forma do corpo masculino
garantia uma outra conexão com o restante da revista. O fragmento (abdome desnudo e liso)
isolava o desejo heterossexual presente na imagem, para valorizar o efeito do produto, um corpo
91
depilado sem marcas ou sofrimento, como os outros corpos existentes nas propagandas e editorais
de moda. Não importa se era um braço feminino a enlaçar um homem, importa o torso depilado,
a qualidade da depilação. A promessa de eficácia do creme no resultado da depilação, geralmente
com a finalidade de melhorar a visibilidade da definição muscular, revela uma outra interface. O
condicionamento do desejo sobre o corpo do homem constrói um único tipo de corpo para homens
gays e heterossexuais. O homem desejável é jovem, magro, forte e másculo, mesmo quando
está em situação de afeto com outro homem. O gay emplumado, afeminado não aprece nos
anúncios. Voltamos ao padrão dominante do macho branco.
Se por um lado um conjunto de imagens coloca em questão a produção discursiva
sobre o corpo queer, por outro não podemos ceder a tentação de desclassificar a importância
das revistas comerciais destinadas aos homossexuais, limitando-as a reprodução dos modelos
e formatos de veículos heterossexuais. Desde os anos de 1970, na luta contra a repressão e
a pela descriminalização das condutas homossexuais nos tempos do franquismo, aos períodos
atuais, quando pessoas do mesmo sexo se casam legalmente, a identidade homossexual na
Espanha experimentou uma outra visibilidade. A constituição de territórios legais, existenciais
e físicos (como o bairro de Chueca), garantiu um tipo de manifestação capaz de delimitar
pontos significativos do coletivo. A criação de meios de comunicação destinados a este público
resulta de um movimento de dupla face:
1. o investimento em uma produção própria do discurso sobre o coletivo homossexual;
2. a percepção do potencial de um público ávido por consumir uma grande gama de
produtos e se reconhecer neles.
Toda esta modificação não ocorreu sem embates e desgastes. Se por um lado a visibilidade
homossexual se ampliava, por outro os dispositivos normativos passaram a operar com maior
evidência no combate ao discurso homossexual. Assim sendo, criar meios de comunicação
estruturados, com uma boa carta de anunciantes, com regularidade em produção e distribuição,
possibilita o estabelecimento de um enunciado produzido por atores da cena homossexual. Este
enunciador coletivo, o meio de comunicação, oferece defesas e reivindicações em palavras
impressas e recria o ambiente e a forma de apresentar-se nele pelas fotos e editorais. São
textos verbos-visuais que trocam experiências com a rua e com a página.
Uma outra imagem do homossexual surge nas revistas produzidas por e para eles.
Esta imagem não possui uma unidade. As mensagens das revistas sofrem questionamentos
constantes. Ao tomarmos conhecimento destes questionamentos nos perguntamos: o que reflete
92
a grafia dos editoriais e as matérias das revistas? O reflexo existente é uma simples
transferência dos elementos do cotidiano do “ambiente homossexual”? O corpo descrito nas
revistas é um ponto forte na discórdia. Há um número maior de revistas destinadas aos gays e
que confere pouca expressão para as lésbicas. Algumas associações que defendem os direitos
das lésbicas afirmam que estas revistas reproduzem o modelo social heterossexual dominante.
Segundo estas associações, os veículos retratam um homem jovem, branco, com boa condição
financeira, bem vestido e penteado. Elas observam que o ingresso de grandes anunciantes,
compreendendo quase 90% dos valores de manutenção dos veículos, vincula as pautas
jornalísticas aos interesses publicitários. Estas associações avaliam a inexistência de outros
corpos como uma cessão aos parâmetros do mundo heterossexual dominante gerando os
chamados “burgays”, para o usar o termo de Shangay Lili – personagem histórica na cena e
na luta pelos direitos homossexuais na Espanha.
A observação apresentada acima é feita também por vários gays e muitas das vezes
manifesta na sessão carta aos leitores das revistas, especialmente na revista Zero. Nestas
cartas, os leitores criticam a revista por não se reconhecerem nos editoriais de moda e
estilo. Seus corpos, feitos no cotidiano, estão distantes dos corpos iluminados pelos holofotes
da propaganda. A tensão na produção das imagens está entre o vivido e o apresentado,
entre o corpo que se encena no teatro do cotidiano e o corpo que figura nas páginas. Porém,
ainda na sessão de cartas, a grande maioria destaca a importância das matérias e artigos
que abordam temas relacionados à defesa dos direitos homossexuais.
A recepção das mensagens das revistas aqui analisadas não ocorre de modo vertical.
Os atores do coletivo homossexual recriam as possibilidades de resistência frente às estratégias
de conformação tanto dos veículos produzidos a partir da vida do “ambiente” quanto dos outros
meios. Os movimentos do cotidiano – como o banal, o hedonismo e o orgiástico, as pulsões
gregárias que se sustentam na frivolidade e na aparência, a estetização da vida comum –
permitem a criação de linhas de fugas frente às estratégias de modelização e docilização.
Estas linhas de fuga funcionam ao modo de um despertar dos corpos. Elas injetam princípios
criativos que garantem vidas singulares e não sobrevidas idênticas, empobrecidas em relação
aos quadros da experiência e submetidas às estratégias da sociedade de controle.
A rede simbólica articulada nas revistas pesquisadas chamou nossa atenção novamente
para os gestos dos corpos que figuram no universo gay. Por mais que as matérias sobre
cuidados físicos e os editorais de moda aproximem revistas gays e não gays, o modo de tratar
93
o corpo e seus desejos exige diferenças. Nas revistas gays
5
afigurou-se para nós um a
mais; a presença de um certo corpo resistente ao canibalismo presente nas formas
simbólicas comportamentais dominantes – há algo para além da aura homoerótica comum
nas fotos de moda, existe um repertório corporal tipicamente homossexual. A corporalidade
queer não é uma lacuna, um hiato entre o que deseja o poder masculino heterossexual e
a configuração do corpo homossexual. Ela deve integrar um estilo de vida próprio, que
ultrapasse – como ensina Bourdieu -, o habitus reprodutor de um sentido objetivo, capaz
de perpetuar uma única cultura corporal.
Uma aproximação descuidada das imagens publicadas em revistas de moda
convencionais e editoriais de moda de revistas gays pode dar a ilusão que a modelagem dos
corpos unifica os textos verbo-visuais e nos levar a uma cilada das estratégias de controle: a
política regularmente estabelecida da prática do “armário”
6
. A imagem do armário é utilizada
como espaço de proteção e repressão. A obscuridade de uma sexualidade não assumida cria
uma falsa imagem de proteção ao homem que pratica sexo com outro sem colocar em cheque
o estatuto normativo do gênero. Porém, na verdade este homem torna-se presa de uma
regulação castradora em que o armário se torna o único espaço de mobilidade para ele, um
O primeiro e o segundo texto verbo-visual
foram publicados na revista francesa Numéro,
edição 13, 2006. O terceiro foi publicado na revista brasileira Key, edição 04, 2007. O primeiro e o
terceiro texto verbo-visual têm como tema o transformismo. O segundo revela parte da nádega do
modelo. Os três textos, publicados em revistas não segmentadas para homossexuais, fazem apelo a
uma estética homoerótica.
5
Apesar de destinadas a um público homossexual, as revistas têm em seu conteúdo um número maior de informações
destinadas aos gays.
6
Sobre o tema, conferir: SEDGWICK, E.K. Epistemology of the closet. Berkeley and Los Angeles: University California Press,
1990.
94
Imagem da campanha não
veiculada pela Vogue
sujeito que vive na sombra. A aura homoerótica
utilizada nas fotos das revistas convencionais tem a
função de vender os produtos anunciados para
heterossexuais e homossexuais ao mesmo tempo. É
uma tentativa de modificar os humores e os afetos,
que na verdade significa modificar a velocidade dos
corpos – torná-los sedutores aos dois públicos,
porém, como uma sexualidade embaçada, a
afetividade explícita entre pessoas do mesmo sexo é evitada. Um claro exemplo deste
procedimento foi o ocorrido entre a revista Vogue e a marca Marc Jacobs. A Condé Nast recusou
para a edição de 2007 da Men’s Vogue, publicação bi-anual destinada ao público masculino, a
campanha de inverno 2007 da marca Marc Jacobs, fotografada por Jurgen Teller. A imagem
proibida pela revista retrata dois homens se beijando, deitados em uma colcha de peles de
urso em uma floresta. A assessoria da marca informou que a revista Vogue avaliou o anúncio
como muito homoerótico para seu perfil editorial. Segundo informação coletada no dia 28 de
junho de 2006 no site de Érika Palomino: “‘Eles [a equipe da Men’s Vogue] não conseguiram
lidar de forma confortável com a campanha’, declarou um porta-voz da marca. A revista nega
o bas-fond: ‘Nunca houve nenhuma questão se o anúncio seria aceito’, disse um representante
da publicação. Outras revistas, como a masculina Details e a gay Out já decidiram publicar a
campanha nos seus próximos números.”
Para combater a maquinaria imagética disposta à desqualificação é preciso, por parte
dos grupos marginalizados, fazer circular um outro discurso. Os textos verbo-visuais das
revistas analisadas são uma importante ferramenta do discurso homossexual. Tal como nos
ensina Foucault, os discursos estão estruturados sob o domínio do poder. Assim, é
fundamental aos grupos marginalizados assumirem suas narrativas tecidas no cotidiano e
fornecerem imagens para operarem como elementos constituidores da subjetividade. A
criação de um meio de comunicação dirigido ao homossexual, com um conteúdo não
destinado a pornografia, mas como espaço de debate e conhecimento, colabora para a
formação de uma identidade homossexual distinta. Este meio de comunicação pode trabalhar
na quebra dos dispositivos de violência, nos termos Foucault, que se servem de uma
caracterização estereotipada do grupo para garantir sua exclusão, ou ainda para estabelecer
uma norma do modo como ser homossexual.
95
Quando grupos marginalizados assumem a produção e a circulação de informação sobre
si mesmos promove uma estetização da experiência a partir da apropriação de formas
simbólicas que, historicamente, estavam sob a guarda de grupos dominantes. Não apenas
atividades culturais das mais diversas ordens e celebrações ocupam as páginas das revistas
analisadas, debates sobre lutas e direitos homossexuais compõem a pauta destes veículos de
comunicação. Os meios de comunicação tradicionais, geralmente, reforçam um tipo único de
imagem de homossexual, registram um corpo capaz apenas de fazer rir, exposto como o exótico.
Mesmo que na internalidade do mundo homossexual os grupos defendam seus pactos
e particularidades, estratégias discursivas sustentadas nos meios de comunicação homossexual
podem reordenar camadas de sentido dentro da cultura em um manejo fundamental a uma
produção subjetiva resistente a dominação, tal como pensado por Foucault, Deleuze e Guattari.
As imagens são essenciais neste processo. A consolidação destas revistas reflete a
consolidação de um grupo social que modifica sua participação na esfera pública. Descobrir a
comunicação das interações, dos encontros dos corpos, que revela os sujeitos, que desvela o
ser é encontrar uma forma de resistência, frente às estratégias do biopoder que travestiram o
cuidar de si em formas de controle.
96
caca
caca
ca
pítulo 3pítulo 3
pítulo 3pítulo 3
pítulo 3
a sera ser
a sera ser
a ser
pente está na terpente está na ter
pente está na terpente está na ter
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rr
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a ea e
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o pro pr
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oo
oo
o
gg
gg
g
rr
rr
r
ama está no arama está no ar
ama está no arama está no ar
ama está no ar
97
A frase da canção “Como vovó já dizia”, de Raul Seixas, censurada no ano de 1975
pela ditadura militar, tem no título deste capítulo a força da metáfora de Deleuze. A serpente
não mais rasteja apenas, seus anéis chegam em todos os lugares pelas ondas
eletromagnéticas. A mídia terciária deu asas à serpente. O Jornal da Globo, exibido pelo
canal de televisão Globo, no dia 11 de junho de 2007, veiculou uma reportagem com o
seguinte título: “Quase liberdade”. A pauta da matéria foi o uso, pela primeira vez no Brasil,
de tornozeleiras de monitoração por cinco presos do estado da Paraíba. Os presos serão
cobaias, palavra empregada na reportagem, dos testes de um novo equipamento de vigilância
de detentos em regime semi-aberto. As tornozeleiras eletrônicas, que os voluntários deverão
portar de 6h às 19h, são cobertas pela calça. A monitoração é feita via satélite. O
equipamento, desenvolvido por uma empresa paraibana, emite um sinal que permite a
localização permanente do preso. O aparelho possui um sistema antifraudes. Caso as
tornozeleiras sejam violadas um sinal será emitido para a central de controle. O Instituto de
Metrologia da Paraíba fará o acompanhamento do teste para aferir a qualidade, durabilidade
e funcionalidade do equipamento.
No dia 26 de abril de 2007, no caderno Cotidiano do jornal Folha de São Paulo, o
monitoramento eletrônico de presos foi notícia. A matéria apresentava alguns aspectos do
debate, iniciado em 2001, no Congresso Nacional e no Conselho Nacional de Política Criminal
e Penitenciária sobre o uso de uma pulseira eletrônica para a monitoração de presos por
delitos de nível médios. Para os favoráveis, o baixo custo do sistema é o diferencial. Para os
98
contrários, o monitoramento constante é uma invasão da privacidade do preso. Tanto a pulseira
quanto a tronozeleira têm um funcionamento semelhante ao monitoramento de veículos. Muitas
empresas se servem do sistema como mecanismo de segurança, especialmente as
transportadoras de valores.
As duas matérias jornalísticas nos inquietaram por questões diversas. Os
argumentos do debate transformam o corpo em dois tipos de número: os do código binário
que identificam o preso pelo sinal eletrônico; os das planilhas financeiras, que identificam
o preso a partir do valor do seu custo de manutenção. A discussão sobre a privacidade do
preso colide com uma visão cristalizada de que o criminoso deixa de ser um sujeito de
direitos. Uma vez transgredidas as regras do contrato social, a reclusão dos sujeitos
envolvidos na transgressão não é apenas uma penalização, mas uma marca que os coloca
em um grupo a ser excluído. Na fala da personagem da matéria do Jornal da Globo, o
verbo empregado em tempo futuro acentua a sensação de não pertencimento por parte
dos presos: “(...) viveremos em conjunto com a sociedade”.
O afastamento do cotidiano, via a reclusão como instrumento de punição, torna o preso
uma sombra social. Um corpo opaco fechado dentro dos muros da prisão. Neste sentido, os
corpos viventes dentro daquela fronteira são assombrações. Os limites das prisões recortam
existências, desenham planos na subjetividade que tentam enclausurar os fluxos dos devires.
O exercício simbólico da correção se executa na tentativa de transformação do devir dos presos.
Para os seres que pagam suas penas nos infernos escuros, na maioria das vezes a luz
que lhes chegam é a da tecnologia, das imagens midiáticas que revelam suas existências. A
vida no inferno vem para a tela como um cavaleiro apocalíptico. Geralmente, a aparição das
imagens produz uma dupla visão sobre os espaços de reclusão: ali se reúnem aqueles que
não devem ser seguidos, conseqüentemente, devem ser esquecidos; quando são lembrados,
o apelo marcante da narrativa é a barbárie como forma de vida – se perdermos nossos limites
é ali que chegaremos, fica a mensagem. Os relatos dos momentos de tensão e conflito entre
as forças que atuam na prisão se inscrevem sobre os corpos. Naqueles infernos, os corpos
experimentam todo tipo de violência. Os voluntários paraibanos querem a oportunidade de ser
enxergados de uma outra maneira. Quando os seus corpos voltarem para as ruas não estarão
com marcas visíveis da reclusão, um dispositivo de controle levará, sem alarde, a prisão junto
com ele. A serpente voa desde o corpo do preso aos aparelhos prisionais.
Corpo produtivo e corpo submisso. Este par converte os corpos em forças úteis, nos
99
ensina Foucault. Alinhado ao pensamento de Foucault, Pross acrescenta que nos processo de
formação da consciência submissa há sempre uma confluência de mídias. Nos testes de
monitoramento esta confluência transforma os corpos em códigos. Os corpos do vigilante e do
vigiando são planificados. A multiplicidade das experiências dos envolvidos é reduzida e
calcificada no aspecto único “de porque vigio” e “porque sou vigiado”. Tornados dados na
mídia terciária, há o apagamento das experiências dos corpos que estão nas pontas opostas
dos aparelhos eletrônicos de codificação e decodificação do sinal eletrônico. O que há é apenas
o vigilante e o vigiado, não há nenhuma outra experiência para além destas identificações. A
pulseira ou a tornozeleira são mídias secundárias para suportar o aparelho que emite o sinal
do corpo interpretado. Transformado em informação, em um sinal eletrônico, resta a este corpo
o status de corpo-mídia. Este corpo-mídia nada tem a ver com o corpo como mídia primária,
como articulador primeiro de expressões comunicativas determinadas pelas regras de
comportamento e os padrões culturais do grupo a que pertence. A mídia primária só é possível
na riqueza da experiência, na apreensão cultural; o corpo-mídia da informação é o oposto:
existe na redução da experiência, no corpo transformado em dado.
As transformações dos processos de penalização, correção e vigilância, encontram
nos sistema de monitoramento eletrônico de presos uma sofisticada tecnologia de controle e
disciplina do corpo, tal como as formulou Foucault. As transmutações nas técnicas disciplinares
são constantes para se alcançar um máximo de eficácia. Mudanças na violência simbólica
para aturar melhor nos núcleos existenciais, estes são os princípios reguladores das
transformações dos sistemas. Se antes o preso era um número, uma ficha, agora ele é um
algoritmo, um corpo transformado em ponto no mapa digital. Um controle silencioso. Sobre o
preso não há mais a marca do ferro quente, nem o peso da vexação pública. A marca física é
substituída pelo sinal invisível, por uma onda que é uma companheira e uma vigilante constante.
O controle físico é exercido a distância e sem o toque. O corpo não é colocado em uma violência
física direta, ele é disciplinado tecnologicamente.
Se na dimensão de corpo-mídia ele é a informação digital, o sinal eletrônico, a
experiência restrita a um vigiado, resta para o preso como instrumento de resistência o
corpo e a capacidade de articulação como mídia primária. Colocar-se em contato com
outros gestos, estabelecer outros níveis relacionais, comungar experiências distintas das
prisionais, significa para o detento cobrir o corpo como uma vestimenta simbólica distinta:
“Será um benefício pra gente e pra as nossas famílias, né? Porque nós vamos ter acesso
100
em casa, trabalharemos normalmente (...)”, disse o preso na matéria do Jornal da Globo.
É fato comum para Pross, Foucault e Deleuze o reconhecimento do investimento político
sobre o corpo. O pensamento dos três converge na crença de que um conjunto de ações e
saberes condiciona o corpo sob lógicas econômicas e produtivas; sob aspectos políticos e
simbólicos. Os processos de estabelecimento de necessidades e de controle estão implicados
em estruturas organizadas de sujeição. Os corpos envolvidos neste emaranhado devem enviar
sinais, demonstrar concordância com que lhe é exigido. No caso dos presos voluntários nos
testes, emitir sinais adquire um caráter literal.
O aspecto multiforme das tecnologias políticas desenvolvidas sobre o corpo foi uma
força motriz em nossa investigação. Desde o início, nos instigava o modo dispersivo e não
contínuo no funcionamento destas tecnologias. Foucault é enfático ao considerar que elas
podem estar presentes, simultaneamente, nos discursos de uma instituição ou em aparelhos
estatais. As ferramentas manuseadas por estas tecnologias políticas podem ser percebidas
em discursos midiáticos, em valores morais, em dimensões econômicas, em aspectos
contratuais da vida social, enfim a todo o momento.
Por que dizer de uma descontinuidade se estas tecnologias estão presentes nas mais
variadas instâncias da existência? Porque, como bem explica Foucault, há uma impossibilidade
em localiza-las em um tipo definido de instituição ou aparelho estatal. Cada uma destas
instituições ou aparelhos estatais recorrerá indistintamente às tecnologias, porém fará usos
distintos de seus aspectos, ou seja, colocará em relevo as nuances que lhes interessem. A
ordenação das regras de funcionamento, concebida pelas instituições e aparelhos estatais,
ocorre sobre o corpo e forma o que Foucault chamou de microfísica do poder. A eficácia do
desempenho da microfísica do poder depende da carga simbólica depositada em cada ação:
violência simbólica que afasta a violência física, mas garante a encarnação dos valores nos
corpos e suas forças.
Invocamos as matérias jornalísticas no início deste capítulo para nos auxiliar na
introdução daquilo que é o cerne de nossa discussão neste momento: os procedimentos para
abordarmos o corpo e os discursos que pretendem condicioná-lo. Esta abordagem está longe
de ser uma metodologia, ela é o resultado da aproximação entre algumas noções e conceitos
com uma visada ao procedimento metodológico para o exame de nossa hipótese. Na introdução
geral de A história da Filosofia, François Châtelet (1974) observa que “informar é registrar
diferenças”. Não queremos ser o que Foucault chamou de “malabaristas intelectuais” que
101
sobrevivem à base de classificações. A diferença aqui informada pretende alcançar o comum,
ou seja, as influências das noções e conceitos selecionados sobre o nosso modo de conceber
o exame do objeto e a construção da tese. A etimologia do termo influência, originado no latim
medieval, é ação dos astros sobre os destinos humanos, mas também pode ser interpretada
como ação emanada pelos astros para condicionar os seres animados e inanimados e
determinar sua existência. Quando nos deixamos influenciar por conceitos e noções,
direcionamos nosso olhar para um modo de ver a vida.
A composição do quadro teórico-conceitual de nosso trabalho passa pela aproximação
entre as perspectivas conceituais de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Harry Pross. Ao
tomarmos o cotejo entre os pensadores por interseções, pretendemos evitar uma idéia de
continuidade entre os pensamentos. Entendemos que são cruzamentos, pontos onde ocorrem
encontros das perspectivas. A qualidade destas interseções fomentou nossa questão e
procedimento para analisarmos nossa empiria.
3.1. A aliança e o anel
A aliança teórica que buscamos tem um caráter especulativo e propositivo – no que se
refere ao investimento teórico das aproximações e na colocação em prática dos resultados
deste investimento. É característica da trajetória investigativa de Pross, Deleuze e Foucault
uma permanente e rigorosa revisão metodológica e conceitual. Tal revisão pontua patamares
e saltos sem impedir uma visão de conjunto da obra. Neste sentido, para descrever como
percebemos as interseções entre eles, é preciso abordar influências conceituais e
metodológicas que atuam sobre o conjunto da obra.
Foucault dedicou-se ao que chamou de “tematizações singulares”, fato comum a
Deleuze. A grande contribuição desta maneira de analisar foi, mais que estabelecer um método
interpretativo, oferecer uma nova forma de abordar os objetos, cada qual com seus métodos.
Em suas trajetórias, Pross, Foucault e Deleuze passaram pelos métodos mais importantes
nas ciências humanas do século XX: o estruturalismo, a fenomenologia, o marxismo e a
hermenêutica. Entretanto, não se fixaram restritamente em nenhum deles. Esta ação não
representou um evitar a tais métodos. Eles reconheceram as qualidades e avanços de cada
um, apresentaram críticas e seguiram em busca de métodos próprios.
102
Os livros Estructuras simbólicas del poder e La violencia de los símbolos sociales, de
Harry Pross, derivam, juntamente com outras influências, do pensamento de Pierre Bourdieu
e sua noção de violência simbólica. Apesar de não poder ser classificado como um estruturalista,
Pierre Bourdieu colaborou expressivamente para o que Robert Bocock chamou de “projeto
estruturalista”, tendo como foco de estudos as estruturas dos signos e símbolos, e avançou
para além do estruturalismo em direção ao “pós-estruturalismo”
1
.
A investigação de Bourdieu, entre os anos 1960 e 1980, teve como base analítica o
consumo de uma série de bens e produtos, além do comportamento no uso destes produtos,
para examinar como isto diferenciava o estilo de vida de grupos sociais de status diversos. As
formas de acesso e ênfases aos diferentes modos de capital (cultural, econômico, social)
distinguiam, por exemplo, não apenas pobre e ricos, mas também membros da elite. Ao lado
do econômico, Bourdieu ampliou o sentido do termo capital para a cultura e a educação. Para
ele, as sociedades capitalistas industriais criaram uma forma de capitalismo intelectual, que
tem na educação uma máquina produtora de sentido com múltiplos operadores simbólicos.
El análisis de Bourdieu puede calificarse de “estructuralista” en el sentido de que quiso subrayar las
categorias en una estructura de acceso a los modelos econômicos o simbólicos del capitalismo. No
es, sin embargo, un estructuralista en el sentido de que no piense que las diferencias econômicas,
culturales y sociales existen solo en la esfera de lo simbólico y no en “estructuras objetivas” en el
mundo “real” (Baudrillard llegó a mantener esta última postura en sus últimos escritos).
Este punto de vista resulta de peso al abandonar la noción fundamental de que existen estructuras
(estructuras de clase, de status social, de etnia y sexo) que producen efectos reales en los indivíduos
independientemente de sus propia consciencia subjetiva. Por outra parte, dichas estructuras no
determinan los actos de los agentes, sus creencias, valores y deseos. Las estructuras categorizantes
ponen límites a ciertos deseos sociales y culturales. (BOCOCK, 2003: 95-96)
Os limites impostos aos desejos sociais e culturais são afirmados a partir de uma rede
simbólica extensa. A lógica produtiva do capital, ou o capital como o único produtor de universais
– para remontarmos às palavras de Deleuze, impõe os marcos limites e os validam em processos
educacionais, míticos e morais, na manutenção de um modelo único de família, na validação
de sistemas políticos e ideológicos, dentre muitos outros. Os projetos educacionais, para
Bourdieu e Pross, são privilegiados operadores de violência simbólica. Estes projetos
incorporam em suas estratégias múltiplas dimensões formativas. Eles agem no conjunto da
1
El pos-estructuralismo conservó algunas de las características fundamentales del estructuralismo, como el reconocimiento de la
importancia de la estructura profunda en el lenguaje, así como en otros sistemas culturales formados por símbolos. Pero perdió el
dogmatismo de algunas de las interpretaciones estructuralistas de Marx, como la de Althusser(...) (BOCOCK, 2003: 93)
103
sociedade e não apenas no espaço escolar. Atuam sobre um território onde as variações nas
interações sociais, as regras particulares de cada grupo, a absorção e a recusa aos valores
ideológicos colocados em circulação, dentre uma infinidade de outros fatores, convivem sob
forte tensão. Este nível de tensão produz uma instabilidade necessária à violência simbólica.
A desestabilização atualiza a violência simbólica.
Bocock destaca que Bourdieu apontou para um posicionamento não uniforme entre os
membros pertencentes a uma mesma estrutura. As análises de Bourdieu fazem crer que os
grupos só agem de modo conjunto para se preservar quando estão diante de algum fato que
os abale e requer deles a tomada de decisão como agentes sociais. Esta é uma perspectiva
distanciada da versão economicista marxista. “La posición estructural de un grupo es
simplemente eso: una posición que puede ser ocupada por cualquier grupo o individuo
específico como resultado de la mobilidad vertical” (BOCOCK, 2003: 96). A noção de vertical e
horizontal cunhada por Pross encontra aqui seu ponto de interseção. É fundamental lembrar
que tanto para Pross quanto para Bourdieu o pertencimento do indivíduo a uma determinada
estrutura não é capaz de gerar uma cadeia simbólica autônoma e igualitária. Uma série de
outras relações comporá esta cadeia simbólica.
Um dos elos fundamentais para essa cadeia é a interseção entre os projetos
educacionais e os espaços de formação extra muro escolar. Aliados à escola, outros espaços
de formação dão continuidade aos princípios dos projetos educacionais. O gerenciamento
destes espaços pretende uma mediação da experiência dos sujeitos, produzida com a finalidade
de controle e ordenação. O indivíduo necessita do conhecimento para mover-se no mundo
mediado, sabem bem os operadores da violência simbólica. A escola seria a responsável por
conectar o capital econômico e o capital cultural para validar a forma social do primeiro. No
espaço da escola, a disciplina do corpo e seus gestos, a uniformização dos alunos, a correção
das posturas – físicas e morais, são instrumentos políticos orquestrados para o feitio do corpo
útil. Microfísicas do poder. Remontamos novamente ao terreno da tecnologia política do corpo,
um saber elaborado estrategicamente para servir ao controle do poder. O saber como forma
de poder. Nos diz Foucault:
Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma
propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma
“apropriação”, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvele
nele uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade, que um privilégio que se pudesse
deter; que lhe seja dado como modelo antes a batalha perpétua que o contrato que faz uma cessão
ou a conquista que se apodera de um domínio. (FOUCAULT, 1987: 26)
104
O poder como exercício e não como propriedade oferece uma grande mobilidade e
uma imensa capacidade de adaptação para as estratégias de dominação. Este poder é móvel
à medida que não se apóia apenas nas táticas do dominante. Se as táticas determinam onde
se pode chegar, as estratégias mostram como chegar ao ponto desejado. Deste modo, o poder
tem como estratégia apoiar-se nos dominantes e dominados, atravessá-los, transformá-los. O
corpo sujeitado é também um item importante nas estratégias do poder, não devem ser
desprezados, pois são frutos de um investimento do poder. Como ensina Foucault, no exercício
da resistência os corpos submissos partem dos pontos que alcançam no poder para traçar
suas ações. Estes corpos retiram os instrumentos de transformação daquilo que sobre eles foi
investido para a submissão.
Subjetividade bombardeada por uma intensa atividade simbólica. A textualidade gerada
a partir da encarnação das formas simbólicas sobre as palavras e os corpos dá força aos
objetos de investigação dos trabalhos de Pross, Foucault e Deleuze. Para eles, este objeto se
revela na articulação entre a experiência e a reflexão, junção inaugurada por Kant. Amparado
no pensamento filosófico de Wilhelm Dilthey, filósofo da história e da cultura, Pross concebe a
seguinte linha interpretativa: ação, experiência, conhecimento. Cada ação gera uma experiência
que por sua vez produz conhecimento. O conhecimento gerado exige uma nova ação, que
pedirá uma outra experiência e mais novos conhecimentos. Este processo vai ao infinito.
Para Pross, cada etapa da vida do homem estabelece um valor simbólico e uma nova
rede de signos se cria. A realidade mediada transforma-se também em realidade controlada
por aqueles que detêm uma maior condição de produção simbólica, que podem estabelecer
valores sígnicos. De acordo com Pross, desde seu nascimento o homem está preso a uma
rede de relações que determinarão toda a sua vida. Esta rede é formada pela sociedade, a
cultura, a economia, a política, as mitologias e as religiões.
Nas palavras de Pross, a consciência crítica é de extrema importância não apenas
para o conhecimento da rede simbólica, mas para a conquista de algum nível de liberdade
frente às formas do poder manifestas nos sistemas simbólicos. Esta liberdade de resolução do
homem, esta governabilidade de si mesmo – para usar o termo foucaultiano -, dependerá de
sua instalação em um espaço/tempo e da forma como manejará as mediações existentes neste
espaço/tempo. Lembremos da metáfora da escada que Pross utiliza para descrever os
processos de verticalização a que estamos sujeitos. Cada degrau da escada é um patamar de
valores, um anel da serpente. Tal como afirmou o sociólogo, os processos de verticalização
105
serão sempre acompanhados da experiência de dentro e fora. A cada vez que um signo é
produzido, nos explica ele, há a criação de um espaço interior entre o sujeito e o signo, além
de um espaço exterior que suporta o signo. Por assim dizer, a cada vez que um signo é criado
e valorado verticalmente, cria-se abaixo dele todo um campo de sentido dotado de valores de
acima e abaixo.
La demarcación vertical como objeto transforma el espacio en entorno (Unraum). Este espacio entorno
marcado a los cuatros lados lo hemos denominado campo. La ocupación del campo marcado con
signos ha resultado ser su apropiación simbólica. El campo así apropiado es, a su vez, símbolos
para espacios mayores; esto permite transferir a otras relaciones sociales las decisiones tomadas
en el campo de juego y en campo de batalla. (PROSS, 1989: 44)
A crença na existência de uma mediação sígnica entre o homem e sua realidade foi
herdada de Ernest Cassirer. Este acreditava que, com o passar do tempo, fomos eternizando
a mediação sígnica em nossas vidas. Nos relacionarmos com o ambiente em que vivemos por
meio dos processos de mediação do signo, sejam eles artísticos, religiosos, lingüísticos, morais,
jurídicos, sociais. Por meio dos signos criamos um mundo de ilusões, considerou Cassirer.
Esta rede de signos, codificada e decodificada nos processos de socialização, será uma
estrutura de poder, como afirmou Pross. A produção das imagens é um elemento privilegiado
deste poder a que Pross se refere – uma comunicação para além da palavra, disposta nos
monumentos, na arquitetura, na organização das cidades, nas imagens das manifestações
artísticas.
A economia por Pross implementada das trocas simbólicas está concebida sob uma
visão estruturante – o sujeito está sempre condicionado pela estrutura. Porém, esta estrutura
não é autônoma ou autopoiética, ela é produzida no interior das relações sociais e se servem
das formas comunicativas para validar seus símbolos. Tal como em Bourdieu, é imperioso
lembrar que para Pross este condicionamento à estrutura se faz sob aspectos que devem ser
trabalhados para além do marxismo. Pross apresentou em diferenciados estudos a necessidade
da revisão de terminologias desta corrente. Esta revisão é possível em seu trabalho através
das contribuições de um pensamento pós-estruturalista. O estreitamento com as reflexões de
Bourdieu oferta dados para a compreensão da noção da vertical em Pross.
Foucault também avança para além da lógica marxista de luta de classes para descrever
as relações entre o saber e o poder. Para o filósofo, o aprofundamento desta relação ocorre
na sociedade, sem estar circunscrita às interações entre o Estado e os cidadãos ou nos limites
das classes. Deleuze efetuou um movimento semelhante ou como afirmou: ele e Guattari jamais
106
deixaram os princípios marxistas, pois não imaginavam seus estudos fora da investigação das
estratégias do capital.
Apesar de ser factível a presença dos elementos do estruturalismo em sua obra,
Pross não é um estruturalista. Ele é um investigador formado sob a angulação teórica dos
estudos alemães. Para ser preciso, a influência mais marcante sobre o projeto intelectual
de Pross é a do pensamento kantiano. Seu exame da comunicação inter-relaciona métodos
analíticos diversos. A interpretação efetuada por Pross da violência simbólica parte de um
diálogo com o pensamento de Pierre Bourdieu, tem interlocução com elementos da
antropologia filosófica de Ernest Cassirer, da fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty e
da filosofia do neokantiano Wilhelm Dilthey.
A influência de Wilhelm Dilthey reforça a proximidade de Pross ao interacionismo
simbólico. Dilthey implementou uma transformação no método investigativo entre as ciências
e contribuiu sobremaneira com a fenomenologia. Para ele, as ciências físicas possuem um
objeto inanimado, em contrário às ciências do espírito e sociais, nas quais o objeto é mutante.
Este espírito vivo dos objetos das ciências humanas e sociais impede uma concepção
dicotômica que separa pensamento e emoção, formação da subjetividade e estabelecimento
de valores sociais. A movimentação da vida social não permite a criação de formas
interpretativas estáticas, leis estáveis, que sirvam de instrumentos interpretativos ao que Dilthey
chamava de ciências culturais. Ao propor este método, ele reivindicou que as ciências sociais
fossem interpretativas e não apenas descritivas. Sob o ponto de vista do filósofo, as ciências
naturais se ocupam da descrição enquanto as sociais deveriam se ater à compreensão.
Dilthey considerava que os estudos das ciências humanas não existem fora da interação
entre a experiência pessoal e as expressões do espírito transcritas nos gestuais, nas palavras
e nas artes. Para ele, esta interação só poderia ser percebida sob a luz da história, pois se
não fosse assim o conhecimento sempre seria parcial. As propostas de Dilthey reverberaram
em uma série de formas analíticas e escolas do século XX, tais como: a fenomenologia, a
hermenêutica e o interacionismo simbólico.
O trabalho de Dilthey alimentou, também, o método de compreensão do ser humano
levado a cabo por Martin Heidegger. A revisão da fenomenologia efetuada por Heidegger e por
Merleau-Ponti influenciou diretamente a Foucault e a Pross. Nas obras que investigamos,
Pross serve-se dos princípios da fenomenologia da experiência vivida, desenvolvida por
Merleau-Ponty. Desde este pensamento é possível compreender a reivindicação de Pross para
107
colocar o corpo no centro da análise das formas comunicativas. O corpo será para Pross,
como foi na concepção de Merleau-Ponty, um gestor de experiências. Segundo Dreyfus e
Rabinow, Foucault sofreu influências da fenomenologia de Heidegger e Merleau-Ponty:
Na Sorbone, assistiu à explicação de Merleau-Ponty daquilo que chamaria mais tarde de
fenomenologia da experiência vivida. Em suas conferências e no seu influente livro, Fenomenologia
da Percepção, Merleau-Ponty tentou mostrar que o corpo vivido mais do que o ego transcendental
organizava a experiência, e que o corpo, como um conjunto integrado de habilidades, não era
submetido ao tipo de análise intelectualista, através das regras, desenvolvidas por Husserl. Foucault
também estudou a clássica reelaboração da fenomenologia feita por Heidegger, em Ser e Tempo, e
apresentou favoravelmente a hermenêutica ontológica de Heidegger, em seu primeiro trabalho
publicado, uma longa introdução a um ensaio do psicanalista heideggeriano, Ludwig Binswanger.
(DREYFUS e RABINOW, 1995: XVII)
Em verdade, Foucault se acercou da hermenêutica, porém, como uma característica
forte de seu modo de trabalho, procurou ultrapassá-la. Sua ênfase na investigação do
investimento do poder na planificação social o fez abandonar os pressupostos da hermenêutica
da suspeita proposta por Heidegger. Do mesmo modo, ele afastou-se dos pressupostos da
fenomenologia de conferir o sentido a um sujeito transcendental.
Em relação ao estruturalismo, assim como Pross, mesmo que em alguns momentos
tenha se seduzido pelo método, Foucault reagiu enfaticamente ao ser classificado como tal.
Quando em 1973, nos debates posteriores às conferências proferidas na Pontifica Universidade
Católica do Rio de Janeiro – publicados sob o título de A verdade e as formas jurídicas (1996)
-, Foucault foi questionado sobre a possibilidade de ele e Deleuze serem estruturalistas,
respondeu que os dois analisavam as hierarquias e não as estruturas.
Tamanha negativa não invalida o fato de que, mesmo sem assumir o estruturalismo,
Foucault efetuou nos anos 60 do século XX um movimento de aproximação com as inquietações
intelectuais levadas ao palco francês por Roland Barthes, Louis Althusser, Claude Lévi-Strauss,
dentre outros. Esta aproximação é percebida nas obras História da loucura na idade clássica
(1961), O nascimento da Clínica (1963), As palavras e as coisas (1964), A arqueologia do
saber (1969). Neste último livro, Foucault apresentou a noção de arqueologia, conceito chave
para toda a sua produção, e se dedicou a descrever um percurso metodológico.
Foucault nunca foi um estruturalista propriamente falando, ou um pós-estruturalista, e mais
tarde ele até mesmo recua em relação a suas enfáticas afirmações na Arqueologia de que o
discurso é um sistema governado por regras semelhantes ao apresentado por várias versões
do estruturalismo, e que é autônomo e auto-referente, como os pós-estruturalistas afirmavam
naquela época. Entretanto, é importante confrontar a posição de Foucault na Arqueologia
exatamente porque ela compartilha alguns pressupostos fundamentais com a abordagem
estruturalista. (DREYFUS e RABINOW, 1995: XXI)
108
A Arqueologia do saber foi a obra em que Foucault mais se aproximou de uma análise
estrutural. Naquele momento, ele procedeu a um distanciamento das análises institucionais
para atentar-se ao refinamento de uma análise dos discursos. Este refinamento não parte de
uma negativa ou contraste com as análises institucionais efetuadas em História da loucura na
idade clássica. Foucault realça a criação da ciência do homem como ancorada em um tipo de
desenvolvimento da instituição. Mesmo que ele descreva as ciências do homem como um
discurso autônomo, as instituições estão por detrás. Lembremos que na História da loucura
na idade clássica ele trata as modificações nos processos de confinamento a partir das
transformações na economia e das pressões surgidas dentro dos próprios espaços de
confinamento. O nascimento da ciência do homem efetiva uma planificação social, ou ainda,
oportuniza um controle amparado em uma base científica.
A análise arqueológica evita uma valoração dos níveis de veracidade das propostas
das ciências humanas. Este nível de neutralidade frente a verdade desta ciência está
justificado na questão do método arqueológico ser construído a partir do que ele chamou de
uma teoria do discurso. Como todos os termos das ciências do homem são tomados como
“discursos-objetos”, Foucault propôs em seu método arqueológico uma investigação da
medida que estas ciências servem à liberdade e à escravidão. A investigação analisa a
vinculação deste discurso a uma prática disciplinadora, conectada a vontade de um sistema
que maneja as forças socializadoras.
Foucault reviu suas posições em relação ao método arqueológico e partiu para um
encontro com a genealogia de Nietzsche. Esta revisão não significou o abandono completo
do método arqueológico, ele criou um método arqueológico genealógico que o possibilitasse
correlacionar as teorias, a produção dos valores e das verdades com as práticas
institucionais de onde elas emergem. As práticas sociais imprimiam uma vontade de
verdade nos valores instituídos, um sistema de validação do poder. Neste sentido, o
surgimento das ciências do homem serve a este sistema. A dubiedade existente no
nascimento destas ciências é que, se por um lado elas representam uma evolução nos
níveis de liberdade, por outro elas validam as práticas disciplinares do poder e servem a
este quando escoram tais práticas com suas verdades.
Tanto para Pross quanto para Foucault, Deleuze e Félix Guattari, o poder penetra a
vida social e se serve da linguagem para engendrar suas ferramentas. Para o primeiro, ele se
revela como uma escada que o indivíduo tem que galgar, sempre vertical; para os dois últimos
109
o poder possui uma forma rizomática, que tudo invade, de crescimento horizontal. Se Deleuze
se serviu da metáfora da toupeira e da serpente para descrever a sociedade de controle,
utilizaremos a imagem das escadas de uma gravura de Escher para caracterizar a vertical de
Pross. Na obra Subindo e descendo Escher cria uma imagem para representar a instabilidade
eterna, o relativismo: monges que sobem e descem uma escada eterna que sempre leva ao
mesmo ponto. O homem sofre todos os efeitos da verticalidade até a fase adulta, quando
alcançará a horizontal ou o manejo das linguagens para se tornar um verticalizador. Porém,
em cada fase da vida opera uma forma de poder, mesmo quando o homem chega à horizontal
outras verticais se apresentarão a ele. Não é mais aprender a caminhar, como comer e o que
falar ou não dizer. Mas, o cargo a conseguir, a informação a adquirir, a aparência a manter ou
tudo junto. Podemos inferir que cada degrau tem seu rizoma. O poder sofistica suas ferramentas
de controle à medida que o individuo avança na vida. Destarte, o poder não possui apenas
uma forma rizomática, mas rizomas sobre rizomas, degraus sobre degraus. Os modos de
simbolização operam a violência necessária ao controle em cada etapa da produção subjetiva.
Foucault revelava todo seu trabalho como um modo de colocar-se frente à vida, de
enfrentá-la. O mesmo se pode dizer de Deleuze e Pross. Este enfrentamento da vida parte
de uma crença comum a ele: não existe uma forma única capaz de interpretar a todo o
mundo de maneira igual. A construção de uma verdade universal opera uma violência
sobre os indivíduos, um apagamento das alteridades, é incompatível com uma idéia de
produção de subjetividade. O conjunto de regras desta verdade única será o operador de
quem exercita o controle. O dominador – encarnado não em um indivíduo, mas em
instituições diversas -, mobiliza estes símbolos.
Nos termos dos autores aqui debatidos, os jogos de violência são disputados ao longo
da história, mudam suas regras de acordo com os tempos, absorvem elementos daquilo que foi
utilizado como de resistência a eles. Como destaca Pross, as formas de comunicação, desde as
da comunicação empírica até as das sofisticadas redes técnicas, determinam quais são os níveis
de possibilidade e ocorrência na política. A função simbólica gerenciada pelos meios de
comunicação atualiza sobre os indivíduos a presença do poder. Qualquer forma de poder depende
do tráfego simbólico para perpetuar-se. A junção kantiana, experiência e conhecimento,
responsável pela promoção do sujeito à condição de sujeito e objeto de seu próprio conhecimento,
na acepção de Pross e Foucault, orienta este tipo de exame da vida social e revela-se útil tanto
à análise histórica dos mecanismos de resistência quanto aos de controle.
110
A maneira como se serviram dos componentes dos métodos afunilam o universo destes
pensadores. Apesar de os articularem de formas distintas no estudo dos seres humanos, são
posicionamentos críticos de interesses muito próximos. O trio parte para uma expedição
investigativa de um universo revelador das condições de criação e manutenção do poder,
fundadas na produção e circulação das formas discursivas e simbólicas. Na bagagem desta
expedição, deixam para traz a concepção de um sujeito fechado, pronto, acabado, para dar
lugar a idéia de uma subjetividade, em que devires múltiplos atuam permanentemente na
formação do indivíduo, sempre mutante e em expansão. Foucault, Pross e Deleuze recusam a
idéia de um sujeito imutável – concepção herdada de Nietzsche, com uma essência sempre
estável. Em suas afinidades temáticas, compreendem que um entrecruzamento de poderes,
acontecimentos históricos, vivências pessoais, organizações mitológicas e religiosas, se
depositam sobre o indivíduo como camadas de sentido que o compõe. Não um sujeito uno,
mas uma subjetividade em transformação.
3.2 Subjetividade e Iconofagia
Ao interpretar o motivo pelo qual a esquizoanálise encontrou nos campos da psicanálise
brasileira um terreno fecundo para seu crescimento, Suely Rolnik (2000) formula algo bastante
interessante para nossas indagações: a esquizoanálise se desenvolveu no Brasil graças a
nossa subjetividade antropofágica. Sobre nós, os brasileiros, atua um inconsciente maquínico-
antropofágico. Este inconsciente é capaz de nos guiar na contramão das figuras-padrão geradas
pelo mercado com a função de orientar as subjetividades em crises.
O argumento de Rolnik é sustentado pela feliz aproximação entre a antropofagia de
Oswald de Andrade e o conceito de subjetividade de Deleuze e Félix Guattari. Apesar de se
destinar a outra questão, a reflexão de Rolnik nos é muito útil e esclarecedora. Para a autora,
a subjetividade é objeto de uma produção infinita que se manifesta impetuosamente sobre o
indivíduo. Processos de individuação ou subjetivação que têm lugar no encontro de fluxos
heterogêneos dos quais as conseqüências são os indivíduos e seus contornos. Segundo Rolnik,
os agenciamentos coletivos e impessoais condicionam a formação das figuras da subjetividade,
que são por princípio efêmeras (ROLNIK, 2000: 452 – 453). Ao remontarmos às idéias de
Guattari, temos a seguinte definição para o termo Agenciamento:
111
O termo Agenciamento não comporta nenhuma noção de ligação, de passagem, de anastomose
entre seus componentes. É um Agenciamento de campos possíveis, de virtuais tanto quanto de
elementos constituídos sem noção de relação genérica ou de espécie. Dentro desse quadro, os
utensílios, os instrumentos, as ferramentas mais simples, as menores peças estruturadas de uma
maquinaria adquirirão o estatuto de protomáquina. (GUATTARI, 1993: 47)
No exercício compreensivo proposto por Guattari, o fragmento resultante da
decomposição da ferramenta é capaz de ressuscitar o imaginário sobre a ferramenta, sua
função, quem a operava e em que contexto. Pensar no sentido inverso é o exercício – como
que a partir do fragmento podemos chegar a protomáquina. Do mesmo modo que encontramos
nos fragmentos das ferramentas os vestígios de seus usos e histórias, observamos nos objetos
e nos gestos que compõem os ambientes dos textos verbo-visuais que analisamos engrenagens
de máquinas de sentido a serviço da totalidade de uma significação. Os Agenciamentos que
interessam a nossa investigação são aqueles que investem em condições cognitivas e afetivas
para fixar na memória coletiva um tipo único de desejo sobre o corpo – a representação de um
modelo de corpo como guia da navegação subjetiva.
Os autores aproximados por Rolnik têm em comum uma crítica vigorosa aos modos de
subjetivação que são subalternos a uma lógica identitária e representacional. No exercício
crítico, segundo a autora, Deleuze e Guattari traçam os limites do plano onde ocorre a produção
da subjetividade: o corpo sem órgãos.
É nesse corpo que os encontros com o outro, não só o humano, geram intensidades que os autores
definirão como “singularidades pré-individuais” ou “proto-subjetivas”. Os agenciamentos de tais
singularidades são exatamente aquilo que irá vazar dos contornos dos indivíduos, e que acaba
levando à sua reconfiguração. (ROLNIK, 2000: 453)
Chegamos, a partir do argumento de Rolnik, em um ponto do nosso interesse: o ziguezaguear
da produção da subjetividade dominante em épocas de capitalismo globalizado, tal como investigado
por Deleuze e Guattari, e a proposta de onde é possível encontrar algum tipo de resistência.
Seguindo o raciocínio de Rolnik, o capitalismo globalizado coloca em movimento fluxos originados
de todos os lugares do mundo. O aumento nestes fluxos da quantidade da mestiçagem a enésima
potência tem como efeito uma dissolução das identidades e subjetividades locais. Como adverte
Rolnik, a cada vez que os fluxos globais bombardeiam dimensões locais desestabilizam-se as
subjetividades de tipo identitário. A desestabilização dos padrões tradicionais do local deixa a
subjetividade sem rumo. Os mercados estabelecem, então, estratégias para controlar a
reorganização das subjetividades. Atento ao movimento de desestabilização, eles criam, para cada
etapa e tipo de dissolução, uma figura-padrão a ser seguida.
112
As figuras-padrão dos mercados não estão vinculadas a contextos geográficos,
culturais ou comportamentais. Elas são determinadas pelas demandas do próprio mercado.
Deste modo, funcionam como um a priori para a subjetividade. Tal processo tem como
resultado uma homogeneização global. Nos ternos da autora, subjetividades locais rígidas
substituídas por subjetividades globais flexíveis. Rolnik chama a atenção para a não
totalidade desta substituição. As subjetividades vivem sob a convivência tensa entre as
alucinantes velocidades dos mercados e as raízes tradicionais do local. À medida que são
velozes, os mercados são voláteis em suas órbitas. Isto impacta as identidades locais com
mais força – responder as demandas das órbitas do mercado pode significar para as
identidades esvaecer suas características locais. Forças que puxam para lados diferentes e
colocam a subjetividade em crise.
O reconhecimento da crise traz consigo a necessidade de reação. Rolnik explica que são
falsos muitos dos dilemas nos quais se envolve a subjetividade na tentativa de reagir. Como
exemplo, ela recorre às reivindicações de defesa das identidades levadas a cabo por algumas
demandas religiosas ou étnicas. A expressão “falso dilema” se aplica no sentido de que estas
reivindicações não modificam o tabuleiro sobre o qual se encena o jogo de uma subjetividade
conduzida por aquilo que Rolnik definiu como um regime identitário e figurativo. De acordo com
Rolnik, os planos de intensidade do corpo sem órgão representam uma saída deste ciclo.
A incorporação do plano intensivo que é o corpo sem órgãos, na cartografia da subjetividade indica
uma pista: é o próprio tabuleiro do regime identitário o que está para ser posto em questão. Não em
nome do fascínio niilista do caos, mas para viabilizar a produção de uma subjetividade heterogenética.
No lugar de imagens a priori em torno das quais se reconfiguram as subjetividades desterritorializadas,
o que se pode vislumbrar são modos de existência singulares e heterogêneos. Tais modos se criam
em função do mapa de intensidades que vai se traçando nesse denso processo de hibridações que
assistimos em nossos dias. Isso requer, no entanto, que se escute o corpo sem órgãos, o que
implica em desenvolver um ouvido atento à emergência das formas de expressão, um ouvido que
consiga não ficar sintonizado exclusivamente seja com os significados, seja com o significante, seja
com ambos. (ROLNIK, 2000: 454 – 455)
O desenvolvimento do ouvido implica em reconhecer a força da boca do corpo sem
órgãos. O que diz e devora esta boca? A existência singular torna mais complexa a realidade
e maior a distância de um modelo único – características do mundo de hoje. Como acentua
Rolnik (1998), o movimento de construção e desconstrução das realidades opera a partir da
ampliação do subjetivo mapa de possíveis e sob relações de dominação, subordinação e
interdependência. O acréscimo no número de possíveis torna mais instável o solo da realidade
única – característica das subjetividades de hoje. A multiplicação e a reinvenção dos possíveis
113
colocam as realidades para navegarem na maré dos fluxos e se perderem no oceano,
nuança Rolnik.
Subjetividades hoje: arrancadas do solo, elas têm o dom da ubiqüidade – flutuam ao sabor das
conexões mutáveis do desejo com fluxos de todos os lugares e todos os tempos, que transitam
simultâneos pelas ondas eletrônicas. Filtro singular e fluido deste imenso oceano também fluido.
Sem nome ou endereço fixo, sem identidade: modulações metamorfoseantes num processo sem
fim, que se administra dia a dia, incansavelmente. (ROLNIK, 1998: 01)
Esta subjetividade que não toca o chão, que navega o tempo todo, levou consigo a
sensação daquilo que Rolnik chamou do “sentir-se em casa”. Perdemos em consistência
subjetiva, a casa simbólica que nos abrigava. Um mundo móvel que desestabilizou os territórios
físicos e existenciais. Não fixado nas predições sobre a qualidade destas mudanças, geralmente
feitas por vozes com opiniões opostas – “é o fim de tudo” ou “é a real possibilidade de existência
para tudo” -, o corpo sem órgãos escuta a voz singular. A qualidade sonora desta voz dá
possibilidade ao ouvido de escutar notas de uma ópera que narra a existência em um mundo
nem melhor, nem pior do que outros. O mundo móvel desta voz é singular nos problemas, nas
formas de encará-los e encontrar soluções. No cenário da ópera em que canta a voz singular
está um céu em constante mutação. As mudanças das conjunturas astrais no céu das
existências produzem mapas subjetivos que exigem cartografias de sentido responsáveis por
torná-lo inteligível e por revigorar uma tomada de consistência subjetiva.
Nesta faixa de sintonia, pode-se captar uma voz que vem do Brasil, voz muito antiga na tradição
desse país, que em algum momento recebeu o nome de “antropofágica”.
A inspiração da noção de antropofagia vem da prática dos índios tupis que consistia em devorar
seus inimigos, mas não qualquer um, apenas os bravos guerreiros. Ritualizava-se assim uma certa
relação com a alteridade: selecionar seus outros em função da potência vital que sua proximidade
intensificaria; deixar-se afetar por estes outros desejados a ponto de absorvê-los no corpo, para que
partículas de sua virtude se integrassem à química da alma e promovessem seu refinamento.
(ROLNIK, 1998: 02)
O Manifesto antropofágico, de Oswald de Andrade (1928), de onde Rolnik busca a
inspiração para o uso do termo, determinou a partir dos anos de 1930 um modo de pensar a
cultura brasileira. O manifesto mostra a extensão ética da relação com o outro que governa o
ritual antropofágico dos índios tupis e busca aplicar esta extensão para a análise da cultura.
Para podermos nos servir da noção de uma subjetividade antropofágica em nosso exame,
precisamos recorrer a uma outra noção: a de iconofagia. O conceito foi proposto por Norval
Baitello Júnior (2000) para explicar o processo de autodevoração das imagens: imagens que
114
devoram imagens para formar outras imagens; imagens formadas para controlar imagens;
construção por processos imagéticos dos caminhos do desejo. Segundo Baitello Júnior, vivemos
a era da cultura iconofágica.
No navegar eterno das subjetividades os meios de comunicação são os navegadores
em alguns momentos. Por seus usos é possível colocar em circulação comportamentos
controladores disfarçados de reivindicações identitárias. A propaganda e o jornalismo organizam
repertórios de figuras-padrão à subjetividade desterritorializada. Como destaca Baitello Júnior,
a referência iconográfica é fundamental aos textos verbo-visuais dos meios de comunicação.
Com grande velocidade eles efetuam cortes e colagens de imagens oriundas de mundos
diversos, de linguagens distintas, de suportes diferenciados para colocarem em suas telas ou
páginas novas imagens.
3.3 Princípios e procedimentos para a análise
A partir do quadro teórico-conceitual que descrevemos, estabelecemos os seguintes
princípios e procedimentos para a análise das revistas escolhidas como objeto empírico.
1. A resistência ao poder nasce no poder. A trajetória de transgressão às regras é
posta em caminho desde o poder. Este é o ponto fundamental para a análise. Deste
procedimento deriva a questão: a proximidade entre os tipos de corpos das propagandas
e dos editoriais de moda é fato comum nas revistas destinadas aos homossexuais e nas
destinadas aos heterossexuais. Mudam-se alguns elementos visuais, mas a conformação
dos corpos é a mesma. A reprodução de um modelo único para o corpo objetiva o
condicionamento do desejo a este modelo. As indústrias da beleza e do estilo gerenciam
as estratégias de condicionamento. Nosso objeto empírico, ao oferecer condições de
continuidade a esta imagem de corpo, teria sua importância reduzida na articulação e
circulação do discurso gerado pelos homossexuais? Seriam as revistas meras
reprodutoras de um modelo corporal vigente e normalizado pela cultura heterossexual
dominante?
2. Os processos iconofágicos servem tanto aos mecanismos de controle quanto aos
atos de resistência. Se as imagens nos transportam rapidamente a um mundo e nos
vestimos de imagens para nos mover nele, a voz singular pode utilizar as imagens para
115
devorar as figuras-padrão da subjetividade dominante. A seqüência própria de imagens
de um meio para o outro pode servir tanto como possibilidade de dominação quanto
como extensão de um discurso de resistência. Lembremos que para Foucault e Deleuze
o discurso, qualquer que seja ele, movimenta fluxos do desejo.
3. Os editoriais, as propagandas e a publicidade serão tomados como textos verbo-
visuais. Nos serviremos da definição que Gonzalo Abril utiliza no curso Elementos de
analises semiótico-discursivo de textos verbovisuales, para o termo textos verbo-visuais:
formas discursivas que combinam representações escriturais de segmentos lingüísticos
com componentes icônicos e gráficos, em espaços homogêneos de inscrição visual e
experiência semiótica. Esta opção nos oferece a condição de analisar criticamente as
revistas no seu conjunto. Tomaremos por análise crítica o exame das práticas discursivas
dos textos verbo-visuais publicados nas revistas e das relações de sentido que elas
propiciam. Entendemos que estes textos verbo-visuais guardam um sistema de
significação complexa: estão compostos por uma diversidade de substâncias expressivas
– sejam visuais ou textuais; como textos culturais, reúnem elementos discursivos da
subjetividade do público pretendido; fortalece o plano horizontal do grupo para o qual se
dirige; utilizam gráficos, ícones, ilustrações de alta qualidade que favorecem a recepção
da informação.
4. As revistas serão observadas em suas edições regulares e edições especiais. No
caso da revista Zero, trabalharemos com dois exemplares da Zero de Moda, um exemplar
da ZDM Cuidate, três exemplares regulares escolhidos entre os meses de novembro
2006 e maio de 2002. Em relação as edições destinadas a moda e aos cuidados corporais
são comuns as reportagens que se referem a produtos de beleza ou técnica de
embelezamento nomeando os fabricantes. Para tanto, é necessário estabelecermos, com
um objetivo didático, uma distinção entre as noções de publicidade e propaganda.
Resguardada a polêmica que envolve a diferenciação entre os termos, utilizaremos
publicidade como a ferramenta em que o anunciante estimula, de forma gratuita, a
circulação de informação sobre o seu produto, porém não possui controle efetivo sobre
a mensagem e não aparece como assinante da peça – release para a imprensa,
demonstração de produtos e atividades de relações públicas para o incremento da
divulgação. Nas ações de publicidade o emissor é o próprio veículo que noticia o produto.
116
Deste modo a mensagem possui uma maior credibilidade. Entendemos que propaganda
é uma ação paga para propagar os valores dos produtos de uma organização. O
anunciante tem um controle da mensagem na propaganda, ele é o próprio emissor
2
.
5. O público leitor das revistas representa uma fração do grupo homossexual. Logo,
o discurso da revista não pode ser tomado como um discurso geral do grupo. Porém, ele
é irrigado pelos temas que atingem de forma global o grupo. Trataremos o público da
revista como um coletivo homossexual. Utilizamos o termo “coletivo” para designar a
associação, formal ou informal, de atores sociais com interesses semelhantes. Estes
atores preservam sua identidade multifacetada, o que confere ao coletivo um aspecto
de inespecífico. A aproximação destes atores pode ocorrer seja por uma mobilização em
razão de alguma ocorrência – o combate a uma ação homofóbica, por exemplo, seja
pelo pertencimento a comunidades estéticas. Dentre o público pretendido, as revistas
buscam um coletivo, um número de leitores que se identifica com sua mensagem, mas
que são atravessados por outros discursos. A opção pelo termo “coletivo” objetiva uma
desvinculação da noção de gay community. Esta noção, fortemente utilizada pelos
americanos, define as atividades de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros como
algo planejado e regular, partilhada em interesses políticos e sociais de modo a
caracterizá-los como uma comunidade.
6. Denominamos editorial de moda os ensaios fotográficos e as informações
jornalísticas que reunidos formam um texto verbo-visual com a função de situar o leitor
sobre a opinião do veículo em relação ao tema. Publicados em edições regulares ou
especializadas, tais textos verbo-visuais comportam os processos de edição de
jornalística e os materiais de publicidade divulgados pelos criadores de moda. Assim,
nos servimos de modo ampliado da noção de editorial como texto que expressa a opinião
e a ideologia do veículo jornalístico aliada a um regime descritivo visual.
2
Sobre o tema cf.: RIZZO, E. Publicidade e sua história. IN: Publicidade e cia. CONTERA, M. & HATTORI O. T. São Paulo:
Pioneira Thompson Learning, 2003.
117
capítulo 4
os olhos da serpente são
olhos que tudo vêem
118
Por que inscrever nosso tema em uma linha do tempo? Porque mais que criar uma
moldura histórica ou uma sucessão linear de fatos, entendemos que a conquista da horizontal
ocorre sob embates, sob a tensão entre o permitido e o proibido, entre o desejado e o
controlado, entre a voz e o silêncio. No plano individual ou coletivo, o caminho de ascensão à
horizontal depende de nossa condição de simbolização e de resistência ao domínio e ao
condicionamento da violência simbólica. Engana-se quem pensa que a horizontal é um plano
único, um éden onde o guerreiro depois da batalha bárbara beberá o leite e o mel no crânio
dos inimigos. A horizontal é uma conquista diária. No cotidiano, na vida ordinária dos sujeitos,
ela se firma nas relações banais e nas grandes conquistas comunitárias. A horizontal é um
direito a voz, é elevar-se em dignidade. A horizontal desconhece o silêncio, jamais será muda:
ela é da ordem da interação, das trocas simbólicas entre intérpretes capazes de interpelarem
o mundo sob os textos culturais de seu grupo. A vertical não poupa ninguém. A horizontal se
oferta a todos. Acreditamos que a construção de uma visibilidade homossexual, por um lado,
é um projeto empenhado em transformar o modo de simbolizar este grupo por parte de seus
atores, por outro, e uma tentativa de conter e apagar os corpos e os desejos destes mesmos
atores pelas táticas e estratégias do poder.
Por que nos afastamos de uma descrição linear? Porque sobre um determinado
acontecimento figura uma sucessão de tempos distintos: crenças e valores cristalizados há
muito tempo, urgência em transformar os fatos sociais, tempo de maturação das transformações.
O tempo social é descrito na simbolização. Para a socialização ampla desta rede simbólica os
homens constroem mídias e processos de mediações. A matéria prima da mídia é o tempo, diz
Harry Pross. Os media formatam um tempo social, eles sincronizam a sociedade. O tempo é
uma das principais vertentes da comunicação. O tempo não é a linha estendida na qual
prenderemos troços de existência um após o outro. Ele é a colcha de retalhos cozidos entre si
pelos fios da experiência dos sujeitos.
119
Media, tempos e símbolos. Os símbolos duram mais que os homens, professou Pross.
Sem dúvida, eles duram o tempo da humanidade. O tempo não se firma sobre o indivíduo e
sim sobre o coletivo. Os media doam ao tempo social a possibilidade de ampliarem seu alcance
e estenderem o valor de seus símbolos. Ao construir sua tipologia da mídia, Pross descreve a
forma como concebemos o tempo e o espaço. Para ele, estas duas dimensões são conformadas
pelas mídias. Todavia, a noção de mídia em Pross é mais ampla, não se restringe ao
entendimento de meio de suporte e transporte de informação. Os processos de mediação e a
produção de mídias estão condicionados a uma dinâmica relacional. É esta dimensão relacional
a responsável por quebrar a hegemonia dos media massivos, por exemplo. A decodificação da
cadeia simbólica que circula nos meios depende da experiência dos sujeitos. Todos nós, de
acordo com Pross, percebemos ou estabelecemos uma noção de tempo e espaço através de
experiências pré-predicativas. São elas as responsáveis por nossas percepções de claro e
escuro, noite e dia, fome e saciedade, fala e silêncio, enfim da percepção do nosso entorno. A
primeira experiência deste tipo que temos é o nascimento: a experiência do estar dentro e ir
para fora. Este acontecimento é fundamental para a nossa concepção de espaço. Nos primeiros
meses de vida, percebemos o mundo na horizontal. Nesse período, o mundo, que antes era o
espaço físico do útero, se revela naquilo que ele tem de físico e de não físico, de natural e de
simbólico. No amadurecimento de nossa percepção do mundo, ainda na mais tenra infância,
partimos para uma outra experiência pré-predicativa: a conquista da vertical. Há na vertical
um exercício de subordinação: um superior que se comunica com um subordinado. A vertical
estabelece uma dependência do subordinado.
As minorias sofrem por parte da vertical a repetição da experiência pré-predicativa de
perder a segurança do útero, da casa materna. A vertical coloca o corpo desnudo das minorias
na areia do circo romano, entre os gladiadores e os leões. Resta a estes corpos produzirem,
para sobreviverem, suas armaduras simbólicas: suas mídias secundárias. Palavras e imagens
alimentam o corpo simbólico que cobre a carne humana. O corpo corre entre a espada e a
presa, não corre em linha reta. Ele efetua movimentos de vai e vem, pára, descansa, muda os
ritmos. Tal como pensou Foucault, movimentos descritos no diagrama e não na linearidade
sucessiva dos fatos. Entre outras, a palavra fato significa indumentária. Nos vestimos desta
roupagem acontecimental para nos mostrarmos ao mundo. Por isto, utilizamos o modo do
diagrama para observarmos como, dentro da rede social, os homossexuais construíram sua
visibilidade. Sustenta a base desta construção a busca pelo o estabelecimento de uma
120
comunicação entre iguais, ou seja, a busca da horizontal. Porém, a efetivação desta construção
passa pelo domínio da vertical. Os sujeitos encontram na horizontal as condições para uma
autodeterminação, para decidirem por si mesmos, para estabelecerem o caminho do próprio
grupo. A vertical é o espaço da heterodeterminação, de homogeneização. A mídia massiva é
vertical. Para estabelecer uma comunicação de longo alcance e ampliar a horizontal foi
necessário ocupar espaços na vertical midiática.
No diagrama que apresentamos aqui está o primeiro ponto de nosso princípio analítico
fundamental: a resistência ao poder nasce no seio do poder. Para tanto, procuramos perceber
como os homossexuais enfrentaram a disputa na arena midiática. Entendemos a arena como
o espaço onde se travavam as batalhas dos gladiadores, mas também como o local onde a
ave macho seduz a ave fêmea por meio de um cortejo que envolve a exibição. Na arena
midiática desenvolve-se, então, a luta e a sedução. Para a ascensão dos homossexuais e a
autodeterminação de sua imagem, foi preciso criar meios de comunicação capazes de ampliar
a voz do grupo. As mídias secundárias foram primordiais neste processo.
A literatura, a pintura e a fotografia possibilitaram aos homossexuais uma experiência
estética transformadora. Na arena, os materiais das artes e dos meios de comunicação serviram
para uma estetização do grupo e para o estabelecimento da uma poética da vida ordinária do
mundo homossexual. Esses materiais artísticos e midiáticos tornaram possível uma experiência
estética, uma abertura, uma via de trânsito para a experiência com o mundo. Devemos
compreender a experiência estética como não restrita aos objetos artísticos e não limitada ao
debate que polariza objetos artísticos e cultura de massa. Devotamos a ela uma das chaves
de leitura existentes entre os sujeitos e o mundo. Assim sendo, a dimensão estética dos
fenômenos comunicativos no cotidiano é capaz de descrever uma comunidade, revelar laços
identitários de um grupo ou manifestar vínculos afetivos entre os sujeitos. Para César Guimarães
A existência da experiência estética( ...) interessa a comunicação por dois motivos: de um lado, ela
permite estabelecer as relações entre arte, experiência estética, vida cotidiana e fenômenos
comunicativos para além do tema recorrente da mediatização da cultura; de outro lado, ela oferece
a oportunidade de imaginar a constituição de comunidades não apenas através da natureza
argumentativa dos discursos, mas também por meio das formas expressivas que abrigam o afeto e
o pathos. (GUIMARÃES, 2002, P. 97)
A dimensão estética, entendida aqui como vinculada à vida ordinária e colocada frente
às racionalidades não-estéticas, instrumentalizou e instrumentaliza a visibilidade homossexual.
As revistas que hoje estetizam a vida homossexual só existem porque há um passado
que abriga momentos de silêncio alternados a momentos de ensurdecedores barulhos dos
121
gritos de dor e de protestos dos sujeitos homossexuais. Fluxos de subjetividade aliados à
fome iconofágica deram vida a estas mídias que nos servimos como objeto empírico. A produção
da subjetividade e a iconofagia são os princípios que guiam a escrita deste capítulo. Para
além de uma pausa entre a descrição do objeto, a apresentação dos princípios e procedimentos
de análise e a análise dos editoriais, este texto objetiva demonstrar o modo como se alicerçou
o edifício social que veio a abrigar as revistas.
As areias do palco central da arena midiática e das ampulhetas que medem o tempo
são retidas no deserto da serpente. Portanto, conquistas e derrotas ocorrem sobre tempos e
espaços que possuem uma matéria-prima parecida. Assim sendo, para a produção deste
capítulo, optamos por mesclar na escrita uma descrição localizadora de alguns acontecimentos
aos conceitos que nos são caros. Para tanto, dividimos o capítulo em três momentos diretamente
relacionados: a constituição de identidades e subjetividades, o papel das mídias secundárias
nesta constituição e o avanço das estratégias de controle sobre os limites da horizontal
conquistada pelos homossexuais. As imagens apresentadas estarão seguidas de um texto-
legenda com um pequeno comentário semiótico. Tais textos-legenda dialogam com os
argumentos da escrita, objetivando a configuração do capítulo como um texto verbo-visual.
4.1 Visibilidades e identidades: o encontro entre os corpos
como material para a construção subjetiva
... não se trata de imaginar que o desejo é reprimido, pela boa razão de que é a lei que é constitutiva
do desejo e da falha que o instaura. A correlação de poder já estaria lá onde está o desejo: ilusão,
portanto, denunciá-lo numa repressão exercida a posteriori; vão, também, partir à cata de um desejo
posterior ao poder. (FOUCAULT, 1990: 79-80)
O cristianismo classificou, desde sua expansão no Império Romano, as atividades
sexuais ou trocas afetivas entre pessoas do mesmo sexo como um pecado – praticado contra
a natureza. Posteriormente a classificação da prática como pecado veio a categorização como
ato ilícito e passível de penalização. Juntamente ao acréscimo de valor sobre a prática,
determinada biblicamente como sodomia, um conjunto discursivo passou a operar a partir das
instituições com a finalidade de controlar esta forma de desejo. Instrumentos punitivos e de
vexação pública foram desenvolvidos visando explicitar, o mais possível, quão dura seria a
pena para aquele que insistisse naquela prática. Na Idade Moderna, o ideal de crescimento
122
das classes burguesas estimulou a determinação de um modelo familiar único para sustentar
a lógica produtiva do capital. Este modelo era pautado em uma relação de fidelidade entre um
homem e uma mulher. Aliando-se aos princípios religiosos, o ideal burguês estimulou a noção
do sexo como pecado – salvo quando destinado à procriação, e reforçou os aspectos punitivos
sobre a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo. Crime e pecado marcavam as
subjetividades dos condenados. Sentir prazer era pecado, sentir prazer com alguém do mesmo
sexo era crime e pecado – um acumulo de sentido que funcionava como ferramenta para
enquadrar a máquina dos desejos. (FOUCAULT, 1988 e 1990)
Foucault nos explica o modo como o poder utilizou a lei para construir a unidade de
seus dispositivos de controle sexual. Para o filósofo, o poder legislador é um destes dispositivos.
Ele exerce o controle sobre o sexo sem distinguir níveis de atuação. Seja qual for o aparelho
ou instituição sobre a qual se apóia, o poder jurídico atua da mesma forma. Esta atuação
ocorre na tríade de funcionamento simples e infinito: a lei, a censura e a interdição. A lei, do
Estado ou da família, da escola ou da igreja, atua sobre as estruturas constitutivas do sujeito
com nuances que, na verdade, apenas mascaram a igualdade nos procedimentos do poder.
Em qualquer uma das instâncias o poder é o poder e a lei será a validação do poder. Nos diz
Foucault que o direito encarna a forma geral do poder e põe em vigor o que é lícito e o que não
é lícito, o que é transgressão e qual deverá ser o castigo. Há uma regulação em que a lei
pressupõe obediência. A lei da obediência é o equipamento de disciplina subjetiva que
transforma os sujeitos em “sujeitados”.
À homogeneidade formal do poder, ao longo de todas essas instâncias, corresponderia, naquele
que o poder coage – querer que se trate do súdito ante o monarca, do cidadão ante o Estado, da
criança ante os pais, do discípulo ante o mestre – a forma geral da submissão. Poder legislador, de
um lado, e sujeito obediente do outro. (FOUCAULT, 1990: 82)
A mecânica da maquinaria do poder legislador é pouco criativa ou, como diz Foucault,
pouco inventiva em suas táticas, resultando disto uma imposição para que ela se reproduza
sempre do mesmo jeito. Neste quadro, no poder está contida apenas a potência da definição
do limite, um poder não é produtivo. Para Foucault, o poder jurídico é dotado da anti-energia,
é eficiente apenas na condição de manter a obediência. No ato de resistência, a energia da
desobediência é retirada da anti-energia do poder jurídico. A concentração desta anti-energia
gerou o trinômio lei, dominação e obediência. A resistência dos sujeitos que teimavam em
buscar o prazer sexual com pessoas do mesmo gênero encontrou nesta concentração um
outro trinômio: desobediência à lei constitutiva do desejo, transgressão e gozo.
123
Engrenagens discursivas e não discursivas colocam em permanente reconstrução a
máquina subjetiva disciplinar do poder. Máquina que pretende disciplinar os desejos dos seres
desviados do caminho do grande bloco subjetivo heterossexual. Entre tais engrenagens, na
segunda metade do século XIX, o discurso científico criou o termo homossexual para classificar
as pessoas que mantinham um comportamento afetivo e ou sexual dentro do próprio gênero.
De pecado para crime, a partir do ano de 1869, a prática foi abordada como uma doença – o
homossexualismo, termo introduzido pelo médico húngaro Karoly Benkert. Quatro anos depois,
Albert Moll criou o adjetivo heterossexual para qualificar aqueles que mantinham relações de
afeto e ou práticas sexuais com o sexo oposto. Os corpos dos condenados juridicamente pela
prática de sodomia passaram a servir como objeto de investigação médica. As ciências médicas
buscavam no corpo algo que diferenciasse os indivíduos pertencentes ao grupo homossexual
dos demais. O homossexual era visto como um grupo único, com padrões comportamentais
comuns entre si, um grupo fora do grupo heterossexual dominante. Os condenados foram
transformados em cobaias médicas e submetidos a toda sorte de horrores em favor de uma
investigação corporal para encontrar o que tratar naquela enfermidade (FOUCAULT, 1988).
Os médicos, sem sucesso, buscavam no corpo uma textualidade que confirmasse o saber
sobre aquela enfermidade – a diferença encontrada no corpo validaria os aspectos dos
homossexuais como um grupo homogêneo, maldito e enfermo.
Além das ciências médicas, as ciências psicológicas tentaram desvendar as razões do
chamado comportamento sexual desviante. O homossexualismo ganhou status de trauma e
uma série de tratamentos foi desenvolvida nos hospitais psiquiátricos para a cura da
enfermidade. Pecador, ilegal, doente físico e mental; com o passar do tempo o estigma sobre
os homossexuais aumentou e fomentou novos modos de discriminação e preconceito.
4.1.1 Subir e descer: a serpente no pé da escada.
A metáfora do subtítulo é de Harry Pross: o dragão dos infernos impede a chegada aos
degraus da escada que leva ao céu. Para subir a escada é preciso vencer o dragão. Mas, o
dragão se reproduz em outros patamares da escada. Logo, o dragão é um só (o poder), mas
com um corpo segmentado em diversas partes e níveis capazes de gerar novos dragões (a
violência simbólica). A serpente é como o dragão: está em todos os degraus da escada.
Invocamos a imagem da escada de M. Escher para simbolizar o pensamento de Pross: a escada
124
é infinita. Escravos da gravidade, como disse Escher, quando subimos nos deparamos com a
força vertical do poder, rodopiamos, as vezes voltamos ou nos debatemos tentando nos mover
para todos os lados. Cansados e frente a altura dos degraus descobrimos a possiblidade:
cavalgar no devir. Deleuze considerou que o devir é da ordem da aliança, das simbioses das
trocas entre seres de escalas e reinos diferentes. O ser, no devir, não está na evolução, mas
na transformação. O devir não estabelece filiação ou dependência. O devir se opõe a vertical.
A vertical pretende organizar planos subjetivos duros. O devir buscar colocar em diálogo a
diversidade na horizontal. A vertical vem de cima para baixo, o devir cresce para todos os
lados. A vertical nos condiciona, o devir nos afeta. A vertical estabelece os blocos, o devir
encontra a quebra, a fissura dentro dos processos socioestruturais para assim continuar seu
movimento infinito. A identidade plural GLBT se serve do devir para chegar a horizontal.
Fernando Villaamil (2004) chama a atenção para a necessidade de analisarmos os
processos socioestruturais de grande alcance para percebermos o percurso traçado pela
identidade homossexual em busca de sua consolidação e visibilidade. Para o sociólogo, as
normas de regulação da sexualidade estão relacionadas com as transformações sociais.
Na esteira dos estudos do historiador social Jeffrey Weeks, Villaamil demonstra que,
ao final do século XIX, a preocupação com os fatores que ameaçavam a estrutura familiar foi
o motivador para o estabelecimento de padrões que regulassem a homossexualidade e
reforçasse o homossexual como ser desprezível. Para encarnar estas medidas foram
desenvolvidas campanhas de exclusão dos homossexuais, envolvendo ações de saneamento
para a higienização da vida social. Estas campanhas utilizavam a violência simbólica para
efetivar suas formas de disciplina. A medicalização e a terapização das pessoas que mantinham
cópula com parceiros do mesmo sexo foi uma etapa importante dessas campanhas. O
refinamento das técnicas de vigilância da sexualidade qualificava o casamento como um
sacramento divino, a fidelidade como uma condição para a sobrevivência, e as outras formas
de manifestação da sexualidade como degeneração que deveria ser investigada e normatizada.
Livros, cartilhas e almanaques foram mídias de destaque destas campanhas para ampliar o
poder vocal do dominante e silenciar os dominados.
Junto às contribuições de Weeks, Villaamil lança mão das análises de J. D´Emilio para
demonstrar que na lógica marxista a estruturação dos processo de identidade também passa
pelo modelo nuclear familiar. A análise de J. D´Emilio rememora as sociedades agrárias onde
a família era centro da produção. O sistema funcionava a partir de uma redução das alternativas
125
1
Sobre este aspecto, conferir: DAVI, Edmar Henrique D. & RODRIGUES, Jane de Fátima. “A cultura homossexual nas revistas gays.” IN:
http://www.propp.ufu.br/revistaeletronica/edicao2002/G/A%20CULTURA%20.PDF
do modo de vida. As poucas alusões a outras formas de vida social colocavam a família, seus
costumes e valores, como a única referência para a vida em grupo. Com a mudança nos padrões
de produção, o trabalho assalariado e os novos modos de vida nas cidades, fragilizaram o
modelo familiar agrário. Nos centros urbanos, era possível então procurar outras atrações
sociais, culturais e sexuais.
No século XX, a construção de saberes sobre os homossexuais estava marcada por
um duplo sentido: enquanto um conjunto institucional e científico preocupava-se em encorpar
as teorias responsáveis por validar a classificação da prática sexual como uma enfermidade,
grupos de defesa dos direitos homossexuais lutavam, com argumentos também científicos,
para demonstrar a inapropriedade da classificação
1
.
O trabalho de organização da identidade homossexual passou pela oportunidade da
vida urbana no século XX, mas também pela vigilância iniciada na segunda metade do século
XIX. O corpo homossexual classificado pelas ciências médicas ganhou visibilidade e
materialidade. Inspirou, assim, os interesses da regulação moral e da vigilância. Regulação
moral porque mesmo quando se acreditava que o sujeito trazia desde seu nascimento a
homossexualidade, havia situações sociais que poderiam acentuar a intensidade das práticas
homossexuais. Vigilância porque mesmo sendo algo congênito era uma situação de diferença
que deveria ser acompanhada e contida.
Na primeira metade do século XX, nas grandes cidades da Europa Ocidental e dos
Estados Unidos, muitos homossexuais tentavam organizar um estilo de vida e deter sobre
seu poder a visualidade sobre seu corpo. Porém, eles não eram os únicos que queriam
construir uma visibilidade do corpo homossexual. Instituições médicas e psicológicas,
igrejas, governos, dentre outros, punham em circulação uma série de discursos
classificatórios do corpo e da identidade homossexual. Sob o raciocínio desses aparelhos
e instituições era preciso atuar no enquadramento dessas “subjetividades discrepantes” –
corpo de homem com desejos de mulher.
À época, os termos jurídicos, das ciências médicas e psicológicas manipulavam
elementos de violência simbólica a partir de suas práticas discursivas. Mídias secundárias
foram criadas com o objetivo de servir a estas novas condutas. A lei da justiça e a lei do
médico deveriam conter o corpo. A palavra impressa deveria estender o poder da lei. O
126
estabelecimento de saberes sobre o corpo homossexual funcionava como um controlador social.
Sob a angulação da violência simbólica homofóbica o corpo homossexual, mais que a
enfermidade, representava o vírus que propagava o mal social.
Se um aparato de mídias secundárias havia sido criado com a função de sincronizar
os corpos na sociedade, de modo mais tímido – mas não menos importante, os grupos de
homossexuais utilizaram a mesma estratégia para produzir um discurso resistente. Esta
resistência nem sempre era combativa. Em muitos momentos ela foi sutil e delicada. Mais
do que reivindicar, a resistência era um registro da existência. A voz silenciada usava poucos
decibéis para dizer: existimos e estamos aqui. Para tanto, as ações de resistência se serviram
naqueles momentos da literatura e das artes visuais. O controle da performance social deu
voz a uma mídia e silenciou outra. Enquanto a primeira inculcava uma arbitrariedade
simbólica, a segunda subsumia os indivíduos homossexuais na esfera pública. O devir, como
combate às significações arbitrárias da violência simbólica, carregava com discrição as
marcas da comunicação homossexual impressas nas mídias secundárias. Mesmo que
geograficamente distantes, as mídias secundárias foram capazes de estabelecer as fronteiras
de um território existencial comum. Para comunicar, a mídia secundária não necessita da
proximidade física entre os corpos, mas sim da proximidade ideológica.
4.1.2 A tensão entre o anel da serpente e o estabelecimento da
horizontal
A expansão das cidades, a transformação da vida urbana, a imigração, o turismo, a
consolidação de mercados emergentes são fatores que, para Villaamil, favoreceram a
sedimentação de uma identidade homossexual. Segundo ele, no território urbano ocidental
do século XX produziu-se, entre as fendas dos blocos normativos, uma rede social de
homossexuais. Sob este ângulo, a ocupação dos espaços desvalorizados facilitou a produção
de experiências coletivas de formas inéditas de identidade sexual (VILLAAMIL, 2004: 13-
14). Para o sociólogo, as migrações do campo para a cidade e entre as cidades foram
decisivas para a disseminação do estilo de vida homossexual.
La aparición de redes de interación entre los homosexuales, en un primer momento bajo el signo de
la clandestinidad, abre um proceso de retroalimentación, em el que la estabilización e
institucionalización de la interación homosexual, supone mayor visibilidad, lo que atrae a nuevas
127
cohortes que encuentran facilitado el proceso de resocialización que, em cada vez mayor medida,
se impone como forma de vivir la homosexualidad. (VILLAAMIL, 2004: 14)
O mundo homossexual se afirmava culturalmente, definia seus contornos, organizavam
suas formas de comunicar e interagir. Lembremos que, para a semiótica da cultura, o texto é
a unidade mínima da cultura. A produção de textos culturais representa a enunciação de práticas
e comportamentos designados por seus autores como elementos de identidade de um
determinado grupo. O reconhecimento destes e a incorporação destes enunciados por outros
indivíduos determina o poder de aderência simbólica do grupo enunciador.
Atentos a essa organização, os mercados perceberam os movimentos para a ampliação
dos espaços homossociais – nas relações de trabalho, no âmbito familiar, nos lugares de
entretenimento, nos media. Rapidamente os mercados se tornaram um instrumento de pressão
em favor da identidade homossexual. Sem querer reduzir a análise ao aspecto econômico, a
percepção do poder de compra desse público foi decisiva para a afirmação do próprio público.
Isto não significa que os mercados tenham abraçado a luta pelos direitos. Eles criaram
estratégias a partir de espaços já abertos e transformaram estes espaços em lugares de
visibilidade para esta nova identidade. A associação do homossexual masculino com a imagem
do homem que se cuida, investe no cuidado de seu corpo sem se preocupar com o gasto, é um
assalariado que gasta apenas consigo próprio, seduziu enormemente as instituições do capital.
O aumento do número de pessoas que se assumiam homossexuais e começavam, na cena
urbana dos paises de capitalismo desenvolvido, a desenhar um modelo coletivo de vida chamou
a atenção dos mercados. Para Davi e Rodrigues (2002) a combinação das reivindicações dos
grupos de defesa e a percepção pelos mercados do potencial de consumo do grupo levaram à
mudança de rumos na história dos homossexuais na segunda metade do século XX.
Nos anos 60, 70 e 80 do século XX os grupos de defesa dos direitos homossexuais
ganharam força. Junto com o crescimento dos grupos veio a modificação nas práticas
discursivas. No final dos anos de 1970 foi retirada do Manual de Diagnóstico de Doenças
(DSM-III) pela Associação Americana de Psiquiatria a caracterização do homossexualismo
como doença. O termo foi abandonado e substituído por homossexualidade – o sufixo “ismo”
caracterizava uma doença, ao passo que homossexualidade determina um comportamento.
Apesar de haver registros de manifestações pelos direitos dos homossexuais desde
1961, os movimentos organizados da sociedade civil dedicados a luta pela defesa dos direitos
homossexuais – tal como o vemos hoje, nasceram em 1970. Naquele ano, foi realizada uma
128
marcha para comemorar a passagem de um ano do motim de Stonewall
2
. No evento, que
comemorou o aniversário de um ano do motim marcou, também, a fundação das
organizações engajadas na lutas pelos direitos dos gays, lésbicas, bissexuais e
transgêneros - GLBT. O dia 28 de junho foi determinado como o dia mundial da consciência
homossexual e do orgulho GLBT.
Uma efervescência social e cultural ambientava o nascimento das organizações GLBT.
A ideologia da revolução sexual do final dos anos de 1960 figurava na orientação do
movimento. Na música, o estilo Glam Rock fazia apologia à androgenia. David Bowie foi um
ícone do Glam, seu visual era extravagante e suas atitudes carregadas de uma ambigüidade
sexual. Lado a lado, pessoas do mundo GLBT, feministas e negros somavam esforços para
resistir contra as forças responsáveis por segregar, excluir e descriminar. Meios de
comunicação foram criados pelos grupos para a formação de um público e para a circulação
das informações de interesse desse público. As publicações do movimento GLBT tinham um
cunho político. Paralelamente ao debate político, o número de revistas dedicadas ao
fisiculturismo e que eram largamente consumidas por gays continuava a crescer.
Se em alguma medida havia naquele tempo uma certa tolerância com a consolidação de
uma sexualidade desviada dos modelos normativos, ela só atingia os homens. As conquistas
estavam concentradas nos homens homossexuais, evidenciando a diferença entre gays e
lésbicas
3
. Ainda ali, onde se buscava o direito das minorias, o domínio masculino se manteve.
Quando o homem homossexual alcança a horizontal ele leva consigo sinais, impressões inscritas
pela violência simbólica da dominação masculina. A competição masculina, ensinada desde a
infância, e o individualismo são presenças da vertical dentro da horizontal. Aliados aos aspectos
culturais, os mercados reforçam estes posicionamentos. A vaidade do gay impulsiona e é
impulsionada por um mercado milionário – roupas, acessórios, produtos de beleza, técnicas de
embelezamento. Tal como os heterossexuais, os corpos dos gays devem ser preparados para
viver este estilo de vida que o capital proporciona. A construção do desejo envolve então a
apresentação dos corpos, a ambiência em que estão, o que comem, como se deslocam.
2
No dia 28 de junho de 1969, o bar Stonewall Inn, em Nova York, sofreu mais uma das regulares ações de repressão policial.
A alegação era a mesma: o bar seria fechado por ser um lugar onde se reuniam os homossexuais e isto era crime. Como
sempre acontecia, a polícia abordou os freqüentadores com agressividade, o bar foi esvaziado e cerca de 200 pessoas
aguardavam na rua sob voz de prisão. Porém, naquela noite uma mulher reagiu a prisão e os outras pessoas resolveram se
manifestar contra a polícia. Elas gritavam contra a violência policial, arremessaram garrafas e pedras. A localização geográfica
do bar permitiu que, rapidamente, outros manifestantes chegassem e se juntassem ao grupo. Nas três noites que se seguiram,
a rua Christopher, onde estava localizado o bar, foi palco de manifestações contra a repressão aos homossexuais.
3
Sobre o tema, cf.: BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
129
Capa da revista Veja, 26 de
abril de 1989, “Cazuza. Uma
vítima da aids agoniza em
praça pública.
Os homossexuais buscavam escapar da dominação das
forças verticalizadas do poder. A estratégia para resistir passa
necessariamente pelo alcance da horizontal, ou seja, pelo domínio
de uma rede simbólica que seja capaz de significar uma
identidade. Invocando a Pross, a organização simbólica desta
horizontal é a ordenação de um conjunto de enunciados capazes
de traduzir um discurso homossexual, de alcançar os domínios
da autoderteminação.
A horizontal é um oásis no deserto da heterodeterminação.
Ela é também um marco subjetivo que serve de porto para as
pausas da subjetivação. Nos fluxos da vertical, a serpente deixa
seus anéis sobre a areia. Ela não se importa se a leveza do grão
facilitará ao vento desmanchá-los. Ela fará outros, infinitamente.
Os anéis da serpente não devem ser eternos. Interessa à serpente o movimento para fazer os
anéis, pois é ele que a impulsiona. Interessa a serpente o deslocamento dos grãos no vento,
pois assim haverá mais deserto. Deserto, é o que rodeia a subjetividade controlada pela
serpente. Existência igual, cor igual, forma igual, sem vida – deserto de corpos iguais.
Nos anos de 1980 com o surgimento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida –
aids, os homossexuais sofreram um novo e grande ataque. A síndrome passou a ser chamada
de câncer gay. As ações homofóbicas lançavam mão da superioridade moral daqueles que
estavam seguros por não possuírem práticas de risco. As práticas de risco estavam associadas
aos hábitos dos drogaditos, prostitutas e homossexuais. Veículos jornalísticos estampavam
em suas capas as imagens dos corpos marcados pela síndrome.
Os movimentos sociais investiram em ações de conscientização em relação às
responsabilidades individuais e à importância da prevenção. Ao mesmo tempo em que
produziram informação para seus públicos, as organizações GLBT pressionaram os
governantes rumo ao estabelecimento de políticas públicas para a contenção da síndrome.
Como toda doença, a aids modificou o comportamento e criou novos parâmetros culturais. A
experiência homossexual foi transformada pela necessidade de estabelecer uma outra
representação. Era preciso afastar o estigma que aproximava a enfermidade da
homossexualidade, bem como reorganizar o universo homossexual. O discurso homofóbico
histórico era reavivado em sua plenitude: castigo divino, punição do promíscuo, marca física
130
Anúncio de página dupla veiculado
na revista ZDN, número 05, 2006.
Neste texto verbo-visual, as mãos
da criança são a aliança para o par.
O toque entre as pernas dos
homens indica a proximidade sexual
da dupla. O fundo neutro valoriza o
sofá que se transforma em moldura
para a cena familiar.
sobre corpo que possui o comportamento desviante. O recrudescimento da homofobia incitava
à marginalização dos homossexuais.
Frente aos conflitos sociais e para evitar a marginalização, os homossexuais
redefiniram suas práticas e limites identitários. O reconhecimento de grupo social que
primeiro se organizou no combate e prevenção da síndrome, conferiu para os homossexuais
um papel político diferente na esfera pública. O conhecimento do risco, a consciência da
ação individual na prevenção – a prática do sexo seguro, a mudança dos hábitos para a
escolha de parceiros, o investimento em relações afetivas estáveis, configuraram a
possibilidade de uma nova homossexualidade.
Nos países de capitalismo avançado, o ambiente urbano na década de 1990 abrigava
uma cena homossexual bastante distinta das décadas anteriores. Mesmo de modo contraditório
a aids projetou politicamente os grupos homossexuais. A síndrome modificou a cultura
homossexual. Em combate a imagem de um corpo enfermo, muitos gays passaram a exibir um
corpo-vigoroso. A presença de pares nos ambientes do mundo homossexual e a valorização
do relacionamentos afetivo-sexuais duradouros repercutiam como o afastamento da
promiscuidade – adjetivo regularmente utilizado nas ações homofóbicas. Os homossexuais
assumiram uma outra representação sobre si. Se a aids reforçou a idéia de homossexual
desprezível, réprobo, a organização política para a prevenção, as conquistas financeiras e a
mudança no estilo de vida auxiliavam na nova figuração dessas personagens sociais.
Nos grandes centros urbanos, novas famílias começaram a se formar e a dizer de sua
existência. Eram uniões de dois homens ou duas mulheres que exigiam o reconhecimento de
131
Este anúncio de 1942 compara o ar-
condicionado Carrier com um super-
homem. Carrier é, segundo o anúncio,
uma máquina perfeita como o corpo do
homem. Homem e máquina como um
dueto para acelerar a produção.
seu status familiar. A existência pública desse novo modelo familiar apontava dois fatos: os
homossexuais não são portadores de uma vida absolutamente individual; a evidência
da possibilidade de construção de um outro modelo familiar – que guardava uma
distância, mas também uma proximidade como o modelo idealizado pela burguesia. Esta
possibilidade abalou profundamente os territórios existências que o poder normativo
havia reservado para o grupo até então.
4.2 A visibilidade social do corpo gay
A insubordinação civil contra a regulação sexual tornou-se recorrente na Europa e nos
Estados Unidos a partir dos anos de 1970. O aumento da visibilidade dos homossexuais foi
acompanhado de perto pelas organizações do capital. Já nos anos de 1980, em países como
Estados Unidos da América, França, Itália e Alemanha, o homossexual masculino passou a
figurar no plano de venda de muitas empresas. Bocock (2003) considera que a saturação da
exposição da imagem feminina, denunciada pelos
movimentos sociais ligados aos temas da mulher nas
décadas de 1960 e 1970, motivou o mercado a lançar
mão das imagens do corpo do homem como objeto de
sedução. Muitos produtos foram testados antes com o
público masculino homossexual para depois serem
lançados para o público masculino heterossexual. Sob
a visão dos movimentos feministas daquela época, o
uso comercial dos corpos dos homens era um fator de
rebaixamento para eles. Inicialmente foram utilizadas
imagens de partes desnudas do corpo, como o torço,
para anunciar produtos de higiene pessoal.
A aparição dos corpos masculinos desnudos na
propaganda a partir dos anos de 1980 tem um apelo
bem diferente das imagens masculinas existente nos
anúncios do início do século XX. Os anúncios da
primeira metade do século passado serviam-se de
132
Imagem do vídeo Laundrette para a
divulgação em veículo impresso da
campanha.
Frame do vídeo Laundrette.
corpos apolíneos e vigorosos como arautos da disciplina. No entorno daqueles corpos estava
a mensagem responsável por manter um ideal de masculinidade cravado no homem branco,
jovem, higienizado e saudável. Havia naqueles anúncios um importante repertório simbólico
sobre os modos de ser homem. Naquele momento, a propaganda tinha, prioritariamente,
uma função educativa. Novos produtos chegavam aos mercados. Era preciso ensinar as
pessoas o quê e como usar, criar mercados para o número infindável de produtos da
terceira fase da revolução industrial. O progresso industrial mudava tudo e os corpos
deveriam estar saudáveis para enfrentar as transformações. O corpo masculino na
propaganda era vigoroso, mas pouco erotizado.
A partir da década de 1980, o corpo do homem passou a ser objeto erótico na
propaganda. A marca de jeans Levi´s, para o relançamento da calça Levi´s 501, veiculou, em
1985, um anúncio em que um rapaz (o modelo e cantor inglês Nick Kamen) chegava a uma
lavanderia, tirava toda a roupa, colocava na máquina e aguardava de cuecas a finalização da
lavagem sob o olhar atento das pessoas que estavam em volta. A estratégia aumentou, segundo
dados da empresa, em mais de 800% as vendas do jeans e colocou o vídeo, chamado
Laundrette, na posição de um clássico da propaganda. A propaganda estava em outra fase de
sua história: mais que ensinar o consumidor como usar um produto ou demonstrar a
superioridade de uma marca sobre sua concorrente, ela deveria entreter o consumidor.
No dia 22 de agosto de 2007, no programa matinal “Bom dia mulher”, veiculado pela
Rede TV, uma clínica de cirurgia plástica anunciava próteses de silicone a preços promocionais
133
naquele dia. Havia no anúncio, feito pelo representante da clínica em conversa com a
apresentadora, um preço especial também para lipoaspiração. Nos anúncios de remédios do
início do século, o corpo saudável estava associado à máquina perfeita. Nas propagandas do
início do século XXI, o corpo é uma máquina de prazer. A função da máquina é produzir sempre
portanto, o corpo deveria ter uma imagem de apto a produção, saudável para a produção.
Como máquinas, o corpo poderia sofrer reposições, mudanças nas engrenagens. Órgãos
saudáveis no balcão das ofertas, correção das imperfeições estéticas do corpo nas matérias
dos jornais, o rejuvenescimento vendido em cápsulas. Ao longo dos anos estas propostas de
transformação foram levadas à enésima potência. Máquinas capitalistas de funcionamento
infinito. Disciplina que molda o corpo por dentro e por fora. Controle sobre a busca e a oferta
de prazer: o desejo submetido a uma forma corporal única. Uma imagem encarnada em uma
carne comum para cobrir o corpo de todos.
4.2.1
A mídia secundária como fator decisivo para a visibilidade
homossexual
As primeiras fotos de nu masculino e o uso estratégico comercial do corpo do homem
pela propaganda estão separados por quase 100 anos. As primeiras imagens fotográficas de
um nu masculino tiveram um objetivo científico. Em 1872, o inglês Eadweard Muybridge
empregou, nos Estados Unidos da América, a fotografia de corpos de homens e mulheres nus
para demonstrar o funcionamento da locomoção. O caráter científico do trabalho não foi
suficientemente forte para barrar o escândalo em relação ao uso de imagens de homens nus.
Outro fato que limitou o sucesso do trabalho de Muybridge era que os corpos masculinos
exibiam belas formas. A beleza corporal era o índice de que houve uma escolha cuidadosa
daqueles modelos, o que colocou em dúvida a orientação sexual de Muybridge.
No final do século XIX, na Itália, dois outros fotógrafos começaram a registrar corpos
masculinos nus, mas desta vez sem nenhum objetivo científico: Barão de von Gloeden e
Guglielmo Plûschow. Primos, os dois registraram homens nus em cenários que imitavam a
Grécia antiga. Os fotógrafos alemães montaram seu estúdio em uma pequena cidade litorânea
chamada Taormina. Todas as fotos eram produzidas com os homens e o ambiente local e em
sua maioria vendidas para turistas – quase sempre homossexuais. O trabalho de von Gloeden
134
4
Sobre o tema, conferir: SMALLS, James. Homosexuality in art. New York: Parkstone Press Ltd, 2003.
e Plûschow rapidamente começou a
circular pela Europa e a ser premiado
em vários salões. A beleza das fotos
e dos modelos atraiu para a pequena
cidade do litoral italiano
personalidades como Oscar Wilde,
Truman Capote, Tennessee Williams,
Jean Cocteau, dentre outros
4
.
O nu masculino começava a
se tornar um negócio lucrativo. As
fotos de von Gloeden e Plûschow
abriram caminho para a publicação
de catálogos com o tema. A comercialização dessas peças gráficas experimentou um
crescimento até a Primeira Guerra Mundial e, já naquela época, governos e igrejas não viam
com bons olhos a expansão desse negócio. O interesse pelo corpo masculino desnudo chegou
às telas de cinema. Rodolfo Valentino foi um dos primeiros astros a ser capturado pelas lentes
fotográficas como símbolo sexual. Era o nascimento do beefcake. Este termo é uma
contraposição ao termo cheesecake que, em 1934, passou a ser usado para designar as belas
e famosas registradas em cartazes e calendários. Desde o fim do século XIX, uma série de
postais para pendurar (os pin up) mostrava imagens de belas mulheres em situações sensuais,
nunca totalmente nuas. Elas passaram a ser chamadas de as pin-ups. Marylin Monroe é
considerada a atriz que melhor personificou as pin-ups.
Iconofagicamente, as imagens do homem desnudo na propaganda seguem o caminho
aberto pelo beefcake. Se na propaganda de início de século XX a presença masculina era
pouco erotizada, nas telas do cinema as imagens de homens másculos, com o peitoral desnudo,
chamavam a atenção de mulheres e homens. Nos anos de 1950, Tab Hunter era um símbolo
sexual do cinema. As produtoras usaram seu aspecto de “bom moço” para fazer um contra
ponto com a imagem de “garoto problema” de James Dean ou de “bad boy” de Marlon Brando.
Hunter deveria, em suas entrevistas, reforçar sempre a importância de uma vida matrimonial.
O tipo físico do louro de pele bronzeada rendeu ao ator, que nasceu com o nome de Arthur
Kelm, o nome fantasia de hunter – caçador. Seu visual corporal deveria inspirar segurança e
Two young men. Wilhelm von Gloeden, 1900.
135
virilidade. O homem branco, louro que trazia tranqüilidade e
fé na família. Tab Hunter só assumiu publicamente sua
homossexualidade aos 75 anos. A circulação das imagens de
artistas de cinema como pin-ups e beefcakes compôs a
estratégia de transnacionalização do cinema norte-americano
e seus padrões éticos e estéticos.
Entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, o
aumento da circulação de imagens do corpo masculino
estimulou a prática do culto ao corpo por parte dos homens. O corpo cultuado foi o fomento
para o surgimento de revistas destinadas a este mercado. O público consumidor de tais veículos
de comunicação nem sempre era formado apenas por fisiculturistas – mulheres e gays tornaram-
se consumidores. A diversificação do público provocou uma mudança na estética das imagens,
que ficavam cada vez mais carregadas no erotismo.
Em 1951, Bob Mizer criou em Los Angeles, EUA, a Physique Pictorial (PP), revista do
Athletic Model Guide (AMG), estúdio de fotografias homoeróticas fundado por Mizer em 1945.
Ele montou seu estúdio em casa e recrutava seus modelos nas ruas, em paradas de ônibus e
estações de trens. Como o conteúdo homoerótico era proibido por lei, Mizer dourava a revista
com um apelo atlético. Por este motivo, sofreu várias perseguições judiciais por promover a
homossexualidade. A situação para este tipo de veículo só foi modificada em 1968, quando a
revista Grecian Guild Pictorial venceu uma ação na Suprema Corte Americana com o argumento
que suas fotografias de nus masculinos eram objetos artísticos. Estava inaugurada uma nova
fase de crescimento para este tipo de publicação.
A capa da primeira edição da revista Physique Pictorial tem um valor emblemático para
a percepção do crescimento do culto ao corpo. As máquinas de produzir imagens modelaram
um tipo de corpo masculino nas revistas. Um corpo jovem e muito trabalhado por exercícios
físicos, mesmo quando delgado o corpo é forte. Na ilustração da capa, o homem e a natureza
estão misturados, há uma continuidade entre eles. A perna do modelo e a do corcel formam
uma unidade simbólica: guerreiro que domina o corcel, guerreiro que é parte do corcel. O
guerreiro e o corcel compartilham a mesma força, integram um signo de masculinidade. Ele
vem entre as brumas das ondas domando seu cavalo em pêlo – homem e cavalo. Não é um
homem qualquer, é o herói. A crina cobre a genitália e divide o corpo do modelo ao meio. O
braço levantado e a posição da crina formam um triângulo imaginário que valorizam o tórax e
Tab Hunter no início da
carreira
136
o abdômen. Homem idealizado que domina a
natureza, o domínio do cavalo como a demonstração
de força e distinção. O corpo do homem é exaltado
sem o uso de nenhum acessório. O corpo musculoso
aparece como sendo o corpo natural, sem a
intervenção de nenhuma técnica de embelezamento.
Este texto verbo-visual é quase um retorno à
imagem do homem retratado nos quadros
renascentistas. Como lembra Umberto Eco, naquele
tempo o homem era o centro do mundo e deveria ser
representado em toda a sua potência. Um homem
que deveria ter como marca o poder, ostentar o
poder. Eco relembra que a dominação masculina de
animais remonta a uma iconografia clássica de poder
masculino (ECO, 2004: 202 – 205). Na iconografia
referenciada por Eco os homens foram retratados
dominando animais ferozes ou indomáveis como
forma de poder. A capa da PP, edição de inverno de
1953, utiliza esta referência. Outro aspecto
importante a ser observado na capa é a desproporção
das formas físicas. Algumas partes do corpo são
propositalmente maiores que outras para valorizar o
físico do modelo. A arma utilizada pelo guerreiro
lembra um falo. A pata do animal aponta para a
genitália do homem. Pata, linha do abdômen e tórax,
ponta da arma sobre a cabeça, elementos que criam
uma área tensa na figura e determinam a leitura do
texto verbo-visual que é a capa.
A maneira heróica de representar o corpo
masculino nas páginas da PP chamou a atenção de
um artista para quem, também, o corpo do homem
guardava essas características: Tom of Finland. O
Reprodução da capa da primeira
edição da revista Physique Pictorial
– Novembro de 1951
Fonte: The complete reprinte of
Physique Pictorial – Taschen 1997
Reprodução da capa da revista
Physique Pictorial – Novembro de
1953 Fonte: The complete
reprinte of Physique Pictorial -
Taschen 1997
137
artista nasceu no ano de 1920, na costa sul da
Finlândia, e foi batizado como Touko Laaksonen. Em
sua infância viveu um país que tinha poucos anos de
independência, cercado pela vida rude do campo.
Esta vida estava encarnada nos corpos dos homens
de seu cotidiano: lenhadores, fazendeiros, caçadores.
Com uma educação refinada, garantida pelos pais que
eram professores, Touko estudou literatura, artes
visuais e música. Aos cinco anos, ele começou a
desenhar um rapaz musculoso de uma casa vizinha.
A observação constante do jovem Urho (nome cujo
significado é herói) permitiu a Touko estabelecer um
traço no desenho que valoriza as masculinidade do corpo e se tornaria sua marca. Em 1939,
Touko mudou-se para Helsink com o objetivo de estudar propaganda e artes. Com o início da
Segunda Guerra e a invasão alemã na Finlândia, Touko começou a praticar sexo com os soldados
alemães, com os marinheiros, com os uniformizados militarmente. Quando não tinha sexo, o
artista se trancava no quarto e criava seus heróis: fazia seus secretos “desenhos sujos”. Seus
desenhos retratavam os homens com quem ele gostaria de se encontrar. No ano de 1956, sob o
pseudônimo de Tom, Touko enviou uma série de desenhos para a Physique Pictorial. Bob Mizer
gostou tanto que publicou a capa da edição de primavera de 1957 com um de seus desenhos.
Nos anos que se seguiram, o sucesso foi tão grande que Touko, à medida que viu a
demanda por seus “desenhos sujos” crescer, assumiu como nome o pseudônimo de Tom of
Filand. Com o aumento da fama, Tom abandonou a propaganda para viver exclusivamente
de arte. A junção com a fotografia refinou sua técnica e seus trabalhos deixavam o “desenho
sujo” para se tornar o que alguns críticos chamaram de a inversão da imagem do gay. Até o
surgimento dos desenhos de Tom, que sempre retratavam um clima homoerótico entre homens
fortes e belos, os gays eram representados como cópias de mulheres.
A mistura de elementos da arte e dos media; as imagens eróticas, sensuais, pornográficas;
engrossava um caldo representativo que mais tarde comporia o texto verbo visual da propaganda.
Fotógrafos como Herbert List, George Platt Lyness, Bruce of Los Angeles, Minor White produziram,
entre os anos de 1930 e 1950, um significativo repertório de imagens de corpos masculinos cobertos
por um apelo homoerótico.
Ilustração de Tom of Finland para a revista
Physique Pictorial - 1959
138
Nos anos de 1960, Andy Warhol deixou sua contribuição para esse tipo de imagem.
Warhol foi um dos precursores do que se tornou a Pop Art: um movimento que usava os códigos
da propaganda para efetuar uma crítica ácida à sociedade de consumo. A primeira exposição
de sucesso de Warhol, em Nova York, no ano de 1952, foi influenciada pela literatura: “15
desenhos baseados nos escritos de Truman Capote”. Warhol, nos anos 60, deu início aos
trabalhos em série e assumiu o conceito de produzir como uma máquina. No caminho desse
conceito, o artista deu o nome de Fábrica ao seu estúdio. Após o uso de produtos, pessoas
mundialmente conhecidas passaram a inspirar Warhol.
A matéria adequadamente formada dos objetos artísticos da Pop Art privilegiava os
elementos da comunicação midiática. Dentre os artistas da Pop Art, a obra de Pierre et
Gilles combinou estilos e tendências para abordar o homem nu. A arte dos dois franceses é
inspirada na cultura popular, na vida cotidiana, no banal. A qualidade estética da obra dos
artistas foi um dos fatores favoráveis para a mudança da opinião dos críticos sobre o nu
masculino na fotografia como objeto de arte. Geralmente, a crítica despreza esse tipo de
fotografia por considerá-las de interesse restrito aos desejos de mulheres e gays e não
representarem um objeto artístico.
Tal como Pierre et Gilles, o trabalho do fotógrafo nova-iorquino Robert Mapplethorpe
foi fundamental na reversão da crítica sobre a fotografia de homens. Nos anos de 1980, ele
registrou em suas imagens, de um modo intenso, o corpo masculino. Membro assíduo dos
clubes de sadomasoquismo, Mapplethorpe levava para as fotos suas vivências e experiências
nesse ambientes. Várias de suas obras foram censuradas. Por outro lado, a beleza de muitas
The cowboy-Viktor
Pierre et Gilles,1978
Man in a Polyester Suit
Mapplethorpe, 1981
Querelle de Brest.
Andy Warhol
139
outras foi a responsável por sensibilizar público e crítica e inverter o curso do discurso crítico
sobre o nu masculino na fotografia.
4.3 O incremento da propaganda
Com a nova etapa da vida homossexual e com as mudanças no padrão de consumo
abriu-se espaço para, a partir de meados da década de 1990, o surgimento de veículos de
comunicação destinados à divulgação dos estilos de vida homossexual. As transformações
culturais vivenciadas pelo grupo interessaram aos mercados. Produtos e serviços passaram a
anunciar e a criar estratégias de propaganda e publicidade direcionadas para este público.
Foucault afirmava que a sexualidade é construída historicamente. O homossexual vive
sua diferença com o heterossexual exatamente na sexualidade. Assumir-se publicamente,
defender e ampliar seus espaços existenciais, organizar-se politicamente, conquistar postos
significativos no mercado de trabalho, foram estratégias para a tática de mudança da visibilidade
homossexual na vida ordinária.
Os novos discursos passaram a ser veiculados em revistas de moda, cultura e estilo
para descrever a vida homossexual. No início dos anos 2000, paises como EUA, França, Itália,
Inglaterra, Bélgica, Holanda e Espanha colocaram em circulação revistas para o público
homossexual com um conteúdo que privilegia estilo de vida e o chamado homoerotismo light
em oposição ao pornográfico.
Os investimentos dessas revistas se concentraram prioritariamente sobre o público
gay por três motivos: primeiro, considerava-se que os anúncios de produtos e serviços
existentes nas revistas femininas contemplavam as lésbicas; segundo, o mercado avaliou que
as lésbicas investem menos em cuidados corporais e no consumo de bens supérfluos que os
gays; terceiro, o mercado de produtos masculinos, especialmente o de cosmética,
experimentava um crescimento considerável desde meados da década de 1990. Em certa
medida, a dominação masculina organizou este mercado e seus veículos.
A pós-modernidade possui uma aura feminina, afirmou Michel Maffesoli. Na vida urbana,
os homens de classe média e alta passaram a valorizar os chamados “comportamentos
sensíveis”. Homens mais delicados e dedicados às suas relações afetivas, bem como
preocupados com os cuidados estéticos de seus corpos. Começava-se a operar uma mudança
radical nos corpos masculinos. Corpos estetizados sob as novas regulações do biopoder, sob
140
Acima, ensaio fotográfico para a revista
francesa Têtu, número 121, abril de 2007.
Abaixo, editorial de moda da revista francesa
Numéro, 13, ano 2007.
Os dois textos verbos-visuais anunciam
roupa de banho. Os corpos são muito
parecidos. O corpo é moldura para a imagem
da peça de banho. Os braços que sustentam
o corpo no ar, o tóraz e o abdômen
trabalhado valorizam a forma física. O plano
detalhe do texto de baixo destaca o vigor
masculino. O plano geral de acima registra
um corpo menos tenso e mais delicado.
as novas aceses. O corpo deveria ter o aspecto
bem cuidado, porém sem perder a imagem de
virilidade e segurança típicas do ideário sobre
o papel do homem. O redesenho do corpo do
homem, transformado no musculoso sensível,
passou a ocupar tanto as páginas das revistas
direcionadas prioritariamente para gays quanto
as direcionadas aos heterossexuais
masculinos. Se até as imagens de Tom of
Finland os gays eram representados como
cópias de mulheres, nos anos 2000 as
fotografias de moda e propaganda uniram o ideal
de corpo masculino para heterossexuais e
homossexuais.
No ano de 1994, o jornalista Britânico
Mark Simpson criou o termo metrossexual para
definir o homem urbano heterossexual que se
dedicava a sua beleza e aos cuidados do corpo.
Nos anos que se seguiram imediatamente após,
o termo foi equivocadamente associado aos
gays. Em 2002, Simpson publicou um artigo em
que definia o jogador David Beckhan como o
representante máximo dos metrossexuais. Este
tipo de homem é caracterizado por investir
muito tempo em compras e em centros de
estéticas, por usar produtos cosméticos para
pele e cabelo, fazer as unhas e freqüentar
lugares sofisticados. A sofisticação está
também em seus carros, nas casas onde vivem
– decoradas com obras assinadas por artistas
e designers conhecidos, nas comidas que
consomem.
141
Anúncio publicado na ZDM
Cuidate, abril de 2007.
O pronome feminino é sobreposto
pelo masculino. A permanência do
pronome feminino na frase
evidencia o valor agregado da
marca em respeitar a diversidade.
A estratégia peça é transmitir ao
público do veículo a mensagem:
seja que tipo de homem você for
– heterossexual ou gay, use
L´oreal.
Marcas internacionais direcionaram linhas de produtos para o segmento metrossexual.
A mudança no comportamento de consumo do homem está conectada a uma nova lógica do
cuidar de si. Estes homens procuram nas revistas masculinas informações sobre como se
cuidar, o que está em moda para vestir, cortes de cabelo que valorizem seus estilos e que são
feitos em centros de beleza e não mais nas barbearias. Nas revistas, ao lado de anúncios de
carros, aparecem hidratantes, cremes anti-idade, tratamento estético dos dentes, técnicas de
redução de gordura, despertam o interesse do público masculino. Os gays que nos anos de
1970 começaram a consumir produtos cosméticos destinados a mulheres, abriram as portas
para a entrada no mercado deste tipo de produtos para os homens. Em países da Europa
ocidental e da América do Norte, atualmente, anunciantes, como a marca francesa de
cosméticos L´oreal, criam peças publicitárias diferenciadas para metrossexuais e gays.
No dia 12 de abril de 2005, o jornal português Diário de Notícias trazia a seguinte
manchete: “EUA: Publicidade gay e lésbica cresce em flecha”. A matéria jornalística abordava
o aumento de verbas em publicidade massiva destinada ao público GLBT. Segundo os dados
apresentados pelo jornal, naquela época, dentre as 500 maiores e mais fortes marcas
142
americanas cerca de 150 investiam em propaganda e publicidade dirigidas às comunidades
gay e lésbica. Os números do ano de 2004 revelavam um crescimento ainda maior que o dos
anos anteriores. O jornal teve como fonte a pesquisa Gay Press Report 2004, realizada pela
empresa Rivendell Media e pela agência Prime Access. De acordo com a pesquisa, houve
uma concentração do aumento em publicações segmentadas para homossexuais, um percentual
de 28,4%, ultrapassando a casa dos 207 milhões de dólares. O crescimento, em veículos não
segmentados para o público GLBT, de anúncios em que se pode identificar conteúdos
especificamente homossexuais foi de mais de 241%, em relação ao ano de 2003.
A pesquisa desenha um gráfico de curva ascendente que demonstra um aumento
progressivo nos anos 2000. Em 1994, eram 19, no grupo das 500 empresas listadas pela
revista americana Fortune, que investiam no segmento GLBT. No ano de 2001, o número subiu
para 72 empresas. Em dez anos, o índice de empresas interessadas no segmento registrou o
astronômico crescimento de mais de 680%. Todas elas desejam uma boa fatia do bolo de 610
milhões de dólares que este público tem para gastar.
O aporte de verbas, nos termos do relatório de pesquisa, deve-se a uma percepção
das mudanças sociais ocorridas nos EUA. Em 2004, dois Estados e duas cidades aprovaram o
casamento homossexual. Sob a análise dos profissionais da propaganda e do marketing, a
legalização das relações gerou demandas específicas para o público GLBT. O mercado
publicitário focou esforços primeiramente em serviços: advogados e contabilistas representaram
14,9% do total de anúncios; bares, clubes e restaurantes figuraram com 14%; serviços
telefônicos com um índice 9,7%; imobiliário com 9,2%; saúde e bem estar com 8,1%; serviços
profissionais com 7,1%; arte e entretenimento com 6,9%; viagens com 6,9%, dentre outros
com valores menores.
Ainda de acordo com o relatório, os anunciantes preferiram veicular suas campanhas
em jornais e revistas locais – sendo que os jornais retiveram cerca de 58,6% dos investimentos
contra 20,4% das revistas. Os guias sobre entretenimento ocuparam o terceiro lugar,
acumulando 18% das verbas de publicidade. As publicações de alcance nacional ficaram com
2,7% dos anúncios.
Em maio de 2007, a Rivendell Media e a Prime Access divulgaram o Gay Press Report
2006, comprovando um novo crescimento dos investimentos em mídia segmentada para público
GLBT no ano. O relatório apontou um aumento de 5,2% nos investimentos, somando valores
da ordem dos 223 milhões de dólares. A pesquisa comparou o aumento nos investimentos
143
em mídias segmentadas e não segmentadas para o público GLBT no período de 1996 a
2006. No caso das mídias segmentadas o índice foi de 205% e no caso das não
segmentadas o índice foi de 5,2%.
O diretor da organização não governamental norte-americana Commercial Closet,
Mike Wilke, chamou a atenção para o surgimento do marketing para homossexuais. Nesta
nova modalidade do marketing, o homossexual é o foco da ação de comunicação comercial
e não o pano de fundo de anúncio, como foi tratado até o final dos anos de 1990. A Rivendell
e Prime Access informaram que os integrantes do universo GLBT possuem características
de consumo que interessam a qualquer fabricante: apostam em quem investem em
publicidade homossexual; são clientes fiéis às marcas; o preço não é o fator decisivo da
compra, por isto tendem a comprar produtos que reúnem qualidade e estilo; como em geral
não possuem família descendente, o capital para investir em si é maior; consomem grande
parte dos ganhos em viagens e entretenimento.
O homossexual é um grande negócio, concluiu o mercado. A inclusão dos homossexuais
nas estratégias do marketing não significa preocupação com as diferenças ou dedicação a um
trabalho social para diminuir as resistências ao grupo. O mercado trabalha somente sobre o
espaço que já foi conquistado pelos homossexuais na disputa social. Dentro deste espaço, o
investimento em publicidade e propaganda nos meios de comunicação segmentados para o
público GLBT acontece de um modo regulado. A linha ideológica do veículo, a qualidade gráfica,
o tratamento das reportagens, o grupo de colabores e articulistas presente no corpo editorial,
entre outros fatos, determinam o perfil do anunciante. O anunciante, por sua vez, estabelece
padrões estéticos para o veiculo.
Para além do óbvio sobre a semelhança dos veículos com seus anunciantes, é preciso
estar atento ao fato de que anunciantes participam da existência dos veículos, tanto ética
quanto esteticamente. Eticamente porque os caminhados trilhados pela linha editorial, os ideais
defendidos, as abordagens e os temas escolhidos estão organizados sob a perspectiva de
sobrevivência do veículo – isto pode significar colocação ou retirada de pautas jornalísticas,
por exemplo. Na lógica do capital, quem compra paga o preço pedido e exige garantias. O
anunciante não investirá em algo que poderá comprometer a marca. Esteticamente porque os
elementos dos anúncios são encontrados no projeto gráfico do veículo. Cores, iluminação e
tratamento das fotografias, ilustrações, disposição da informação na página. Mais à frente
destes aspectos, nas revistas dedicadas ao estilo, ao luxo, à moda e ao comportamento, os
144
corpos das propagandas têm os mesmos
contornos dos corpos dos editoriais.
Ao analisarmos a edição especial
da revistas Zero de Moda, especial
Cuidate, percebemos que a edição em
muito se assemelha a um catálogo de
produtos. Em todas as 146 páginas há
publicidade ou propaganda de um produto
ou técnica de embelezamento. Os
modelos selecionados para ilustrar as
matérias jornalísticas são visualmente
muito semelhantes aos modelos das
propagandas. A continuidade dos
elementos gráficos dos anúncios na
revista pode ser analisada sob dois aspectos: o anunciante produz uma uniformização do
texto verbo-visual da revista; uma manifestação do biopoder que encontra no controle das
formas corporais um lugar de expressão.
Umberto Eco diz que: “usualmente um significante veicula conteúdos diversos e
interligados, e, portanto, aquilo que se chama ‘mensagem’ constitui, o mais das vezes, um
TEXTO cujo o conteúdo é um DISCURSO em diversos níveis.” (ECO, 1980: 48) Na concepção
de Eco, um texto é o somatório de diversos códigos ou subcódigos. Os códigos são tomados
por Eco como um sistema de significação que estabelece a união de entidades presentes e
ausentes na mensagem. O código determina uma relação de “estar para” entre a materialidade
de algo e a percepção do destinatário da mensagem. Assim, o texto verbo-visual das revistas
analisadas é um produto da crença em um estilo de vida homossexual, cultuado por um certo
coletivo, conjugado a uma perspectiva do consumo que pretende estabelecer quais são os
parâmetros para se pertencer àquele estilo de vida. O texto verbo-visual da propaganda e da
publicidade costura a significação das revistas.
Se nos século XVIII, como argumentou Foucault, as estratégias do biopoder estavam
sob o comando dos administradores das cidades; no século XIX a produção de um saber
sobre a sexualidade medicalizou os atos sexuais e transformou a relação entre o indivíduo e o
grupo – o sexo sai da esfera privada da família e os desejos mais íntimos passam a ser
Texto verbo-visual jornalístico da revista ZDN Cuidate,
abril 2007
145
investigados nos gabinete e consultórios; no século XXI o dispositivo de controle da sexualidade
e do prazer passa pelo marketing. O biopoder usa a propaganda para renovar o novo mito de
“Prometeu acorrentado”. Neste novo mito a ave não come apenas o fígado, ela devora as
imagens do corpo: aves iconofágicas. A punição também é diferente, como são imagens que a
ave devora, o corpo deste novo Prometeu está completamente exposto à luz. Ele não terá
sequer o silêncio e a escuridão da noite para se recompor. Honrando seu nome, Prometeu –
aquele que sabe antecipadamente, resta ao corpo ludibriar a ave com as imagens que oferece.
Mas, o que a ave impõe ao corpo quando devora suas imagens? Este ser alado, que
tem nas ondas midiáticas a guia de seu vôo, estabelece para o corpo a competição consigo
mesmo: vencer a natureza e o tempo. Na verdade, deter o tempo. Ela exige o abandono do
corpo em favor de uma carne comum a todos, a encarnação das imagens de um tipo de corpo:
uma encenação entre o corpo e a imagem. Todavia, uma imagem dura o tempo de sua
exposição. Sendo assim, a repetição das imagens do corpo funciona como um processo de
geração de imagens. O termo geração significa, entre outros, o modo organizado como um ser
gera outro. O processo de geração das imagens sobre o corpo por meio das estratégias de
publicidade e propaganda pretende gerar um outro ser – um Prometeu acorrentado às muralhas
do consumo.
Vencer o tempo e a natureza: ato divino. Na competição consigo mesmo o corpo
materializa a divindade, aquele que deve ser contemplado e adorado. O comunicólogo Norval
Baitello Junior chama a atenção para o aspecto de extensão de determinadas fases da vida
humana nas sociedades ocidentais contemporâneas. Inspirado em Edgar Morin, Baitello Junior
(2003) fala dos processos de “juvenilização” do homem que levam para a vida adulta as
características da vida jovem e da infância. “Não se quer apenas o próprio tempo da vida,
quer-se também o tempo de outras vidas, se possível ainda quer-se experimentar até mesmo
o tempo infinito das vidas dos deuses. Daí a nova era dos deuses, permanentemente jovens e
poderosos.” (BAITELLO JR, 2003: 119) Viver sob o signo da juventude, como alerta o
comunicólogo, é viver sob a crença da eternidade de um poder e uma força característica dos
jovens. Tais processos serão oportunidades expressivas para a criação de verticalismos através
do uso e abuso dos símbolos juvenis como instrumentos de poder.
O editorial de moda “Paixão de Cristo”, publicado na revista alemã Mate, número 02, ano
2007, conjuga o divino e a juventude. Um Cristo, totalmente erotizado, barroquizado por marcas
de roupas famosas, encena a via sacra entre apóstolos jovens, belos e sedutores e delicados.
146
Dualismo na imagem: o sagrado e o desejo profano, o corpo masculino forte e delicado. O afeto
entre o Cristo e os apóstolos é homoafeto. O divino desejado como o lugar onde devo chegar, o
homem que eu quero ser e ter. Um Jesus pop-star que veste roupas da moda.
O texto verbo-visual da lavagem do pé é algo
significativo. O pé tem um valor especial nas
representações do corpo queer. Assim como a áxila
tem o valor da cavidade que guarda a umidade e o
calor das partes internas do corpo, as extremidades
do corpo – as mãos, os pés, o nariz - têm valor
fálico. Os modelos, que estão ao fundo da cena,
olham para o pé do apóstolo e não para o Cristo. O
apóstolo que é banhado está com o torso desnudo,
suas vestes são a calça dobrada e o lenço, como
um manto santo, na cabeça. De olhos fechados,
como em um momento de prazer, o Cristo lava o pé
do apostolo. A camisa aberta e o buraco na calça do
Messias deixam ver parte da perna e do torso. No
primeiro plano deste texto verbo-visual, o corpo que
banha e o que é banhado estão a mesma altura,
corpos em comunhão.
147
capítulo 5
possíveis leituras
148
5.1 A experiência narrada nas revistas
No capitulo anterior abordamos a noção de experiências pré-predicativas em Harry
Pross. Para este último capítulo, gostaríamos retomar a noção de experiência do filósofo
pragmatista John Dewey – que utilizamos no capítulo II. Mesmo seguindo caminhos
absolutamente particulares, Dewey e Pross partem de uma base comum: a filosofia de Kant.
Apesar das críticas vigorosas que Dewey apresentou ao pensamento de Immanuel Kant, a
base de sua crença na dimensão relacional da experiência está na filosofia kantiana.
Kant escreveu, no ano de 1784, um artigo no jornal alemão Berlinische Monatsschrift
em que coloca em questão a Aufklärung (a ilustração)
1
. Naquele artigo, o filosofo alemão
provocava o leitor sobre a autonomia dos sujeitos ou o modo como transferimos para os outros
a condição de decisão e nos tornamos subjugados. O que Kant invocava era a condição de
ser autônomo como definidora da modernidade. Para o filósofo, era preciso abandonar a
condição de seguidores de alguém ou algo externo como exemplos para determinar nosso
caminho. Era necessário ao homem aprender a caminhar com as próprias pernas. O homem
deve buscar a autonomia e não a heteronomia. A heteronomia, conceito criado por Kant, é o
conjunto de lei que o sujeito recebe e que o colocam sob o domínio de alguém ou de uma
coletividade. Tão logo nascemos, ingressamos nesse conjunto de leis. Depende de cada sujeito
movimentar-se para abandonar a heteronomia e buscar a autonomia, um modo próprio de
pensar. Porém, este modo próprio de pensar não significa, para Kant, um abandono da lei. O
homem racional equilibra a liberdade de pensamento e a obediência a lei. Harry Pross é um
herdeiro do pensamento da Ilustração. Suas noções de vertical e horizontal estão fincadas
nas concepções kantianas: autonomia e heteronomia para Kant, autodeterminação e
heterodeterminação para Pross.
1
Sobre o artigo cf.: FOUCAULT, M. Ditos e escritos II – arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
149
O sujeito do conhecimento, segundo Kant, só alcançaria o objeto do conhecimento
observando-o nos contornos de sua realidade. Todavia, era necessário compreender que o
conhecimento só seria possível a partir da junção dos dois pontos de vista: da experiência e
seus enlaces; do pensamento racional projetado sobre a experiência.
Márcio Gonçalves ressalta que Kant vai além de Hume ao considerar que o âmago do
conhecimento encontra-se na razão. Este gesto coloca o sujeito como condição inicial ao
processo de conhecimento. A formação moral e intelectual de Kant forjou as noções de seu
idealismo transcendental: haverá sempre um conjunto de juízos necessários e universais que
independem de nossa experiência com o mundo para estabelecer seu valor de verdade. Eles
se aplicam sobre a experiência do mundo para interpretá-la, mas são independentes dela. Se
por um lado há os juízos analíticos, dados a priori, há por outro os juízos sintéticos, originados
na experiência existente entre o sujeito e o mundo, ampliadores do conhecimento do sujeito.
A condição a priori, este juízo analítico, está fincada no sujeito.
É no sujeito, em função do sujeito e de sua estruturação em Sensibilidade, Entendimento e Razão
que a verdade, a ética e a estética (no duplo sentido de experiência e reflexão sobre o belo e o
sublime) podem existir. Assim como o sujeito “põe” o espaço e o tempo onde experienciamos o
mundo (os a priori da sensibilidade), “põe”, de um modo mais geral, as verdades que produz.
(GONÇALVES, 2004: 03-04)
A noção de alma proposta por Hume será a organizadora a priori das experiências
para Kant. Para ele, a alma determina a ordem de nossas experiências, modela o universo,
põe em ordem juízos que são ao mesmo tempo sintéticos e analíticos. Assim, a alma será
a responsável pela determinação dos seus objetos de saber. A organização dos saberes
limita o conhecimento humano ao descrito e analisado sob as categorias do conhecimento
científico. Kant nos alerta que só conhecemos o racionalizado, o apreendido no subjetivo,
o fenômeno e não o mundo ou as coisas.
O trabalho de Kant, para Dewey, ao mesmo tempo em que buscou uma interligação
entre a experiência e a razão, não conseguiu libertar-se totalmente da crença em
conceitos fixos. Estes conceitos, os chamados a priori, seriam os responsáveis por
organizar na mente a experiência e nos ofertar o conhecimento dos objetos. Como
conseqüência disto, há uma desvalorização de alguns tipos de experiências,
especialmente as consideradas mais caóticas. A crítica de Dewey segue no sentido de
que a filosofia de Kant foi responsável por fazer valer uma ordem direta entre
racionalização e subordinação dos indivíduos aos princípios fixos – como a lei e os
150
valores morais. Os conceitos a priori eram introduzidos de fora e verticalmente na experiência.
Os elementos da experiência primária – experiências presentes anteriormente ao
ingresso do indivíduo no grupo social, nos tomam de assalto e nos fazem crer em sua
existência sem grandes questionamentos. Isto também nos leva a acreditar sem
questionamentos em muitos dos comportamentos sociais, morais, políticos, religiosos. Para
Dewey, o exame do duplo laço que amarra o que experienciamos e como o experienciamos
nos revela que cremos e antecipamos aquilo que socialmente nos é imposto a crer. Esta
imposição estrutura-se sobre as regras da convivência em comum, a educação, as leis, as
tradições, as organizações e determinações sociais. As autoridades modelam coisas, nos
fazem acreditar nas coisas não pelo que elas são, mas pelo o que elas se tornaram. O
filósofo afirma que o valor atribuído aos objetos é conseqüência da interconexão social e
dos costumes, condicionadores efetivos de nossa experiência sobre eles.
Sempre tendemos mais ao objeto experienciado que ao ato de experimentar. Esta
afirmação projeta o experienciado como algo dotado de uma totalidade absorvente. A totalidade
produz em nós a impressão de que a coisa, o fenômeno ou o comportamento sempre esteve
ali, como se fosse da ordem da natureza. Para Dewey, a força motriz que faz os homens
mudarem esta percepção encontra energia na vaidade, no direito de posse, no risco ao prestígio
e ao poder. Somente quando alguns destes aspectos são abalados é que o indivíduo tende a
separar o que lhe é peculiar e o que é peculiar ao grupo. Estes aspectos mostram as condições
de controle e de elaboração da eterna sujeição do homem. Um mundo entregue somente ao
destino não se presta a ser controlado. Se por um lado o reconhecimento de alguns fenômenos
como típicos às ações humanas possibilitou a efetivação de medidas de controle, por outro
estabeleceu mecanismos de resistência capazes de alterar aquilo que falsamente foi atribuído
como da ordem da natureza e, portanto, imutável. A concepção do sujeito como centro da
experiência e o desenvolvimento do subjetivismo possibilitaram a formação de agentes capazes
de transformação a partir de experimentações e da socialização daquilo que foi cognizado
pela experiência. (DEWEY, 1980: 12-13)
A experiência contém a vida e a história dos homens, é o modo como vivemos,
suportamos a vida, conhecemos, nos organizamos, produzimos cultura. A experiência determina
o que comemos, o que não gostamos, os nossos desejos e medos. Para Dewey, ela unifica
sujeito e objeto, coisa e pensamento. É significativo que “vida” e “história” possuam a mesma
plenitude de sentido indiviso. Vida denota uma função, uma atividade compreensiva, em que
151
organismos e ambiência acham-se incluídos. Somente em conseqüência da análise reflexiva
resolve-se em condições externas - ar respirado, alimento consumido, terreno percorrido - e
as estruturas internas - pulmões respirando, estômago digerindo, pernas caminhando. A
extensão de “história” é amplamente conhecida: as proezas realizadas; as tragédias sofridas;
também o comentário humano, o registro, a interpretação que inevitavelmente se seguem.
Objetivamente, a história compreende rios, montanhas, campos e florestas, leis e instituições;
subjetivamente, inclui propósitos e planos, os desejos e emoções, através dos quais aquelas
coisas são administradas e transformadas. (DEWEY, 1980: 10)
Dewey ressaltou as qualidades ulteriores existentes no material da experiência ordinária.
Para observamos a existência dos indivíduos, o filósofo aponta a urgência em si considerar os
diversos fenômenos da vida social, da estética, do místico, dentre outros.
Raramente se afirma que a experiência estética e moral revela características das coisas reais tão
verdadeiramente quanto o faz a experiência intelectual, e que a poesia pode ter, tanto quanto a
ciência, importância metafísica; e quando tal afirmação é feita, provavelmente tem alguma significação
mística ou esotérica, em vez de tomada em honesto sentido comum.
(...) Os fenômenos da vida social são tão relevantes para o problema da relação entre o individual e
o universal quanto os da lógica; a existência, na organização política, de fronteiras e barreiras, da
centralização, do intercâmbio através de fronteiras, de expansão e de absorção, tornar-se-á
exatamente tão importante para as teorias metafísicas do discreto e contínuo quanto o que decorre
da análise química. A existência da ignorância tanto quanto da sabedoria, do erro e até da insanidade,
tanto quanto da verdade, será tomada em consideração. (DEWEY, 1980: 16-17)
Percebemos que as revistas organizam esteticamente alguns dos muitos discursos da
vida homossexual. As narrativas nelas existentes guardam dimensões subjetivas da história
ordinária de seu público. O relato de experiências homossexuais ou a descrição de um dos
mundos homossexuais possível põe no campo relacional a luta pela transformação. Os veículos
fazem perguntas aos jogos de poder. Quando os questionam, ingressam nos jogos para
reivindicarem sua possibilidade de construir verdades sobre seu público.
A descrição da experiência não é literatura de fatos. Ela representa a abertura de
possibilidades para sujeitos que estão distantes de local onde ocorreram as experiências
narradas. Pross afirma que os media sincronizam a sociedade. Sem dúvida. Porém, esta
sincronização pode servir as minorias. Em nosso exercício de observação, tivemos uma atenção
especial com a seção “cartas” na revista Zero. Dentre os números analisados, por mais de
uma vez, pessoas do interior da Espanha destacavam a importância dos debates propostos
pela revista para quem vive distante de Madrid ou Barcelona. Um leitor chamado Héctor, na
152
edição 91, narrou o martírio que sofre por ser gay em uma pequena cidade espanhola de seis
mil habitantes. Na carta, o leitor chamava a atenção que as humilhações por ele sofridas iam
do espaço escolar aos insultos na rua. “Se mi quitan las ganas de salir de casa y si lo hago voy
siempre por las calles laterales a la principal esquivando a la gente”. O quadro das experiências
descrito não envolve apenas o glamour da vida gay endinheirada dos grandes centros urbanos.
Na edição de número 96 da revista Zero, um leitor disse que, nas bancas do bairro
onde vivia, a revista era colocada ao lado de revistas gays com conteúdo pornográfico. Ao
longo da carta, a leitora afirmou que a revista se destinava a diversos públicos dentro do
segmento. Para concluir sua carta, o leitor que assinava como Sergio disse: “Vamos, que
propongo que para que lleguemos a la normalización total coloqueis stands junto a las barras
de pan, em los super, y que seáis algún dia suplemento de cualquier Super Pop, que de ahí
salimos muchas y muchos.” A proposta do leitor está investida de um desejo de visibilidade
dos leitores e da revista como um grupo comum na experiência cotidiana. Em outras palavras,
a carta pedia o reconhecimento dos homossexuais como agentes de uma vida banal, ordinária,
sujeitos que pagam seus impostos, trabalham, se divertem e têm seus meios para se comunicar.
A apreensão destes meios não ocorre sem embates. Os padrões de beleza corporal
impostos pela publicidade e reproduzidos em sua maioria pelas revistas são regularmente
questionados. A vida cotidiana tenciona o corpo, o atrita a aspereza do tempo, do trabalho, da
instabilidade orgânica. No mundo dos textos verbo-visuais da publicidade o tempo é congelado
e o desejo preso por vetores verticais. Disse o leitor Pablo Jesús Sesma na seção Carta,
edição de número 84, da revista Zero:
El canon de la publicidad ha esculpido com su devastadora labor “zapa” en las mentes de los jóvenes.
Ser joven significa belleza y fortaleza, en cambio, la vejez fealdad y poco funcional para el sexo.
Predomínio de la falocracia, el tamaño enorme es poder y belleza. La voluptuosidad del culo pone a
hervir las venas. La fuerza del choque de la belleza neutraliza los verdaderos sentimientos de los
demás y hacen invisibles a los que están fuera de los cânones. Los modelitos forman el panel social
de la masa idolátrica, no por amor sino por la obsesión del sexo por el sexo como um fetiche
insustituible a los sentimientos y emociones de los demás. El verdadero AMOR es arrinconado por la
publicidad confundiéndolo com la “paganización” del diós “afrodito”.
A carta foi publicada dentro de um box vermelho, sob o título Imperio de la belleza, ao
final da seção. O interessante é que esta edição incluía o especial Zero de Moda. Em todos os
editoriais de moda da edição especial imperam o modelo de corpo padronizado pela
propaganda. O texto do leitor tem um papel considerável na edição. A publicação da carta em
destaque atinge dois códigos: por um lado significa a contemplação da preocupação manifesta
153
pelo leitor e que expressa o descontentamento de vários outros leitores; por outro lado,
demonstra a impossibilidade da revista – dentro do seu conceito editorial – desvencilhar-se do
império da beleza determinado pela a propaganda. Esta combinação de códigos constrói uma
mensagem que caracteriza o discurso da revista.
5.2 Montagens e colagens: um princípio para a construção dos
textos verbo-visuais
As revistas estão organizadas sob a lógica da montagem e da colagem, modos de
funcionamento próprios da iconofagia. Estes modos funcionam também para transformar a
página em texto verbo-visual e ainda converter a revista em um veículo que não se dedica
apenas ao sensacional, mas desenvolve um papel social. Neste último vetor, elas operam a
par e passo com a experiência do coletivo de leitores. A estratégia compreende dois
movimentos: aplicar os princípios do marketing para identificar o segmento a qual elas se
destinam; encontrar as causas em que se engaja seu público para estabelecer os vínculos de
proximidade com eles. Os textos dos colaboradores revelam este vínculo. Nestes textos, são
tratados os temas contemporâneos que afetam os homossexuais e abordadas as reivindicações
éticas que a experiência frente a estes temas exige. Há um diálogo entre o artigo, as ilustrações,
as fotografias e as reportagens para o fortalecimento da edição. Aquilo que deveria ser matéria-
prima à fotografia jornalística ganha uma outra estetização, funciona muito próximo ao regime
discursivo da publicidade. O que observamos na edição ZDM Cuidate se repete nas edições
regulares: há uma unidade no tratamento imagético das revistas.
Zero 84 p18
Zero 91 pp 64 – 65
154
Essa proximidade entre as imagens é típica aos processos iconofágicos. Nesta lógica
podemos estabelecer o seguinte esquema: imagens da publicidade e propaganda devoram as
imagens jornalísticas. Como resultado há uma nova imagem, inflada pelas características
discursivas das imagens anteriores. Ao entrarem em circulação, o texto verbo-visual é
fragmentado pelo leitor, que recorta a revista de acordo com seus interesses. Os textos verbo-
visuais recortados pelo leitor são transformados em uma outra imagem que é resultado das
experiências do leitor com o veículo e com o mundo. A experiência ordinária do leitor se organiza
a partir de formas discursivas e de afetos. Portanto, o vínculo com as revistas é estabelecido
de forma particular aos sub-grupos dentro do coletivo de leitores.
As revistas, enquanto textos verbo-visuais, guardam uma dimensão hipertextual e
intertextual. Na primeira dimensão está contemplada a diversidade de regimes discursivos
que atuam na composição do texto verbo-visual: regimes oriundos da literatura – artigos
produzidos por escritores que colaboram com a revista Zero, por exemplo; das artes – as
ilustrações e fotografias; do jornalismo; da publicidade e da propaganda. Ao tomarmos o texto
como unidade mínima da cultural conferimos outros contornos à dimensão intertextual. Sob
esta perspectiva, a dimensão intertextual possui componentes que funcionam entre si e com
numerosas relações de interdependência ou de subordinação a aspectos sócio-culturais. Ou
seja, a rede simbólica intertextual é de uma significação complexa, ela promove a conversação
entre textos culturais. Se atrás de uma imagem sempre há outra imagem, para o texto não
será diferente. O texto verbo-visual, então, será um somatório de textos e imagens capaz de
articular significações vindas de lugares e situações distintas, de inter-relacionar textualidades
que estão para além da palavra, de promover afetos, bem como estimular experiência
semióticas. Assim sendo, o texto verbo-visual coloca em nível de igualdade no exercício da
comunicação o campo da significação e dos afetos, em outros temos, uma semântica intencional
coligada a dimensões não discursivas do texto.
5.3 La batalla por la educación
As revistas são uma oportunidade de formação complementar aos espaços regulares
destinados a produção do conhecimento: as escolas. A recorrente abordagem de alguns
temas relacionados com a causa homossexual não caracteriza uma ação tautológica, uma
repetição gratuita. Pelo contrário, ela informa e educa. A homofobia e a responsabilidade da
155
educação transformadora é um tema forte nas revistas segmentadas para os homossexuais.
O Dossier Educación, publicado na Revista Zero, edição 91 , debateu a necessidade
da revisão dos parâmetros educacionais em relação ao comportamento afetivo-sexual nas
escolas. Na mesma edição uma reportagem chamada “Lucha de clases” destacou a importância
do trabalho anônimo de homossexuais no espaço escolar. O personagem da matéria foi um
professor de biologia que ensinava, em Maspalomas, Gran Canária, o valor da diversidade.
Estes meios de comunicação são um importante instrumento na produção de uma informação
sobre experiências bem sucedidas de integração, bem como na denúncia de perpetuação de
preconceitos e exclusão por orientação sexual ou constituição familiar. A homoparentalidade
coloca desafios para escola, habituada aos modelos normativos de família. Quase sempre o
estudante, mesmo sendo heterossexual, é discriminado por ser filho de homossexuais. Para
estes estudantes, muitas das vezes, os rituais coletivos que exigem a presença da família são
transformados em espaço e tempo de constrangimento.
A violência exercida contra os estudantes ou profissionais homossexuais da educação
transita entre a agressão física e a simbólica. O poder se serve da escola para a sua
manutenção. Ao lermos o Dossier Educación torna-se evidente a manutenção de uma
maquinaria da violência simbólica, mas também é apresentado um conjunto de medidas bem-
sucedidas de combate a esta violência.
A escola como espaço de disciplina e manutenção de poderes começa a sofrer novas
tensões. Não vivendo no isolamento social, ela é atravessada por devires múltiplos que colocam
a sua existência no fluxo da mudança. A luta democrática por ampliação dos direitos de grupos
historicamente excluídos reverbera sobre a escola. A produção discursiva dos movimentos
sociais dá voz a sujeitos silenciados e põe em circulação novos saberes. Quando novos saberes
ascendem ao debate público há um redesenho das configurações de poder e a escola tem que
se readequar – seja para permitir níveis de abertura, seja para se fechar ainda mais.
As palavras saberes e sabores possuem a mesma raiz. Aprende-se com mais facilidade
aquilo que é saboroso. Por outro lado, ensina-se também pela lembrança do dissabor. A
violência física é um instrumento controlador que tem no dissabor seu modo de ação. Pela
violência física e simbólica muitas vezes são inscritos no corpo os valores da moral e da
norma. Por outro lado, símbolos são disponibilizados para oferecerem resistência a violência
simbólica e evitarem a violência física – assumir-se homossexual é o primeiro passo para se
afastar de violências como a chantagem ou o constrangimento. Neste sentido, nos pareceu
156
interessante que nas duas últimas páginas do Dossier Educación há uma matéria chamada “Hijos
de la cultural homosexual – 12 razones para que los adolescentes digan ´gracias´ a los gays”. As
razões expostas reúnem ícones da cultura midiática – como Madona, as festas do orgulho
homossexual, a arte, o sexo, os cuidados de si, enfim o caldeirão cultural que cozinha uma vida
banal. Ao invocar a vida banal a revista trivializa para o adolescente o fato de ser homossexual.
Este ato de trivializar cria uma ordenação sígnica para resistir a violência. As duas páginas que
poderiam parecer bobas, desnecessárias em um especial sobre educação, revelam uma
preocupação importante: designar símbolos para estabelecer um novo juízo sobre fatos e pessoas.
Remontando a Pross “Educar significa transmitir los símbolos almacenados de la propia cultura.
(PROSS, 2006: 06) Na medida da observação de Pross, educar significa criar símbolos e tornar-
los fisicamente perceptíveis. Quanto mais há comunicação maior será a disputa pelos símbolos.
5.4 Sinuca de bico – um pequeno contra-ponto
Se a dimensão descontínua das tecnologias políticas do corpo permite que instituições
e aparelhos estatais tracem suas estratégias de poder, permite também que outros grupos
implementem suas estratégias de resistência. A luta homossexual pela inclusão de conteúdos
157
Capa do caderno Canal Extra
que combatam a homofobia em veículos de
comunicação não segmentados para os
homossexuais configura uma destas estratégias. Esta
luta pretende fazer valer os instrumentos legais que
penalizem quem cometer a descriminação por
orientação sexual. Quando a sociedade legisla para
um determinado fator ela reconhece a existência e a
importância de tal fator. Lutar por uma transformação
na legislação é lutar por existir. As revistas que se
dedicam aos temas da homocultura desempenham um
papel fundamental nesta luta, diferentemente dos
meios tradicionais. O que percebemos no momento atual é uma preocupação em mostrar
homossexuais como uma medida de responsabilidade social, porém sem aprofundar ou
radicalizar o debate sobre as questões que envolvem o grupo. Sob esta ótica, devemos
estar atentos à incorporação de temas homossexuais nos produtos de entretenimento dos
media – no caso do Brasil, especialmente as telenovelas, programas televisuais de auditórios
e alguns programas de rádios.
O escritor Gilberto Braga construiu o casal gay Rodrigo e Thiago, interpretado pelos
atores Carlos Casagrande e Sérgio Abreu, para a telenovela brasileira “Paraíso Tropical”. No
folhetim, levado ao ar pelo canal Globo de televisão, o casal está junto há seis anos e levam
uma vida comum. De acordo com à orientação da emissora, não deveria existir nada de exótico
ou algum conflito em relação a orientação sexual do casal: eles trabalham, têm uma vida
social ativa, são solidários com os amigos. O casal é tão contido que pouco se tocam, não tem
amigos gays, todos os seus programas sociais são feitos com heterossexuais. Veiculada no
horário nobre da telenovela no Brasil, a trama trata o casal de maneira morna, uma idealização
de casal que mantém os corpos sob absoluto controle.
“As bolas da vez”. Com este título a capa do caderno Canal Extra, do Jornal Extra,
de 05 de agosto de 2007, foi dedicada a Carlos Casagrande e Sérgio Abreu. A abertura da
matéria “Sinuca de Bico” chamava para a possibilidade dos atores protagonizarem o
primeiro beijo gay da telenovela brasileira. Porém, ao longo do texto, por três vezes, é
demonstrada a impossibilidade da ação. As informações dão conta da importância do casal
para a redução do preconceito, mas explicitam também que não há a intenção de romper
158
barreiras. Segundo as pesquisas da emissora, o casal não sofre nenhum tipo de rejeição,
mas as cenas de contato físico íntimo não são desejadas pelo público.
A telenovela somente incorpora em sua narrativa as questões que já possuem um nível
de aceitação na opinião pública. A manifestação de afeto e contato íntimo entre pessoas do
mesmo sexo materializa a realização de um outro desejo que não os da heterossexualidade.
Não se pode desconsiderar a importância da inclusão do tema, é fato. Mas, também é evidente
que a presença de homossexuais nas tramas é uma das “bolas da vez”, para plagiar a manchete
do Canal Extra, na telenovela. Esta incorporação dá uma ilusão de que tais meios dão voz às
lutas e necessidades dos homossexuais, quando na verdade não passam de estratégia para a
manutenção dos índices de audiência – uma pseudo teleresponsabilidade social.
5.5 Derribando cercas: uma possível leitura iconofágica
Norval Baitello Júnior afirma que vivemos um tempo de uma escrita imagética, tramada
em infinitas linhas textuais, temos a condição de pensar o processo iconofágico como
colaborativo à subjetividade antropofágica. O editorial de moda intitulado Brokeback (o negrito
em back está na imagem de capa do editorial), edição de número quatro da revista espanhola
Zero de Moda, ano de 2006, é um bom caso para observarmos esta colaboração.
A primeira capa da edição tem a manchete ¡De cine! La moda que llega de las pantallas.
Pequenas chamadas atentam para a moda masculina inspirada nas obras de Hitchcock e em
outros filmes como La Dolce Vita (1960), de Frederico Fellini, e Brokeback Mountain (2005),
de Ang Lee. O fotógrafo Eduardo P.V. Rubaudonadeu reconstrói em Brokeback imagens do
filme de Ang Lee. Na capa da revista o editorial tinha a chamada: Brokeback derribando cercas.
Na condição de um editorial, este texto verbo-visual está em conformidade com a orientação
ideológica do veículo de comunicação. Para compor a textualidade do editorial de moda,
geralmente três formas narrativas são mescladas: da propaganda, publicidade e jornalismo.
Com os recursos narrativos da primeira e segunda cria-se uma ambientação para narrar uma
história possível, descrita em corpos e objetos. Com os recursos narrativos do jornalismo
descreve-se os produtos utilizados na narrativa ficcional, as tendências apresentadas, os
argumentos criativos para as roupas, a informação sobre moda no geral. Vários enunciados
engrossam o coro do discurso do editorial de moda: os desfiles, os catálogos e as ferramentas
159
de publicidade dos estilistas e das marcas; a linguagem da propaganda; as imagens postas
em circulação pelos media; as culturas das ruas; as tradições locais; as tensões e reivindicações
sociais, enfim. O editorial de moda é iconofágico por natureza.
A mescla entre as narrativas jornalísticas, da publicidade e da propaganda põe em
diálogo recursos da narrativa ficcional e não ficcional para produzir a informação de moda.
Luiz Alberto Brandão Santos (2002) aponta que na análise dos discursos verbais é recorrente
o fato de considerar que toda narrativa, seja ela ficcional ou não, é regida por um estatuto
realista. Segundo o princípio de Santos, qualquer narrativa envolve três categorias: tempo,
espaço e sujeito. Há um nível de flexibilidade nestas categorias, podendo ser caracterizadas
por duração, localização e voz. Os editores ao escolherem o filme como inspiração põem em
diálogo a voz do coletivo homossexual de leitores da revista e o discurso saído da obra de Ang
Lee. Como parcela do grupo de homossexuais, o coletivo de leitores participa do debate geral
que envolve o grupo.
De acordo com Brandão, pelas três categorias é possível estabelecer, tendo como
fundamento o plano textual, uma similaridade com a experiência sensível do receptor do texto
narrativo. Deste modo permite-se a convocação do termo “realista”.
Além disso, também remetem a certas características comumente associadas à noção de corpo,
como mobilidade ou mutabilidade, para a categoria tempo; circunscrição ou contextualização, para
espaço; e unidade ou identidade, para sujeito. Tais características atuam, no cerne de um texto
verbal, como índices de reconhecibilidade dos fundamentos da experiência do corpo. O que equivale
a dizer que definem a natureza realista, neste sentido amplo, de toda narrativa. Ou ainda, que a
narrativa se funda nessa abertura para fora de si, que sua textualidade pressupõe um vínculo estreito
com referências extratextuais, pelo menos no que concerne às três categorias básicas mencionadas.
Não se deve esquecer, é claro, que quando se fala de noções associadas ao corpo, ou a experiência
sensível, já se está descartando a crença de um “materialismo” ou “empirismo” essencialistas. O
corpo também é conceito. O sensível também é da ordem do inteligível. (SANTOS, 2002: 182 – 183)
A experiência do desejo contido, do amor proibido, da emoção reprimida vivida
pelos corpos em Brokeback Mountain, em algum momento ocorre de modo intenso na vida
do homossexual. Em certa medida, os expectadores do filme tiveram em um dado instante
da existência sua fictícia montanha Brokeback. O acontecimento contém, no espaço
imaginado, todos os corpos possíveis. É este acontecimento, este devir, que acopla a
experiência sensível com a narrativa do filme. O editorial de moda da revista Zero se
alimenta deste fluxo onde navega a similaridade entre a experiência vivida e o ficcional.
“Ficcionalizar” o filme no editorial de moda é para a revista uma tentativa de aproximar-se
da experiência do seu coletivo de leitores.
160
Nos veículos jornalísticos, os editoriais são a ponte entre o leitor e o veículo, expressam
a voz do veículo entoada nos sons dos leitores. Esta ponte veículo/leitor deve guardar um
movimento constante de ir e vir. O editorial, sendo palavra escrita em uma coluna que define
o pensamento da edição ou um texto verbo-visual, marca a personalidade do veículo. A
enunciação do editorial pretende ser partícipe na constituição da subjetividade do coletivo de
leitores da revista. O sentido da enunciação se realiza na relação de alteridade entre a revista
e o leitor. Filme e revista articulam seus enunciados pensando nos seus coletivos de leitores:
fragmentos de subjetividade a se interconectarem para a produção de um sentido. Emile
Benveniste e Mikhail Bakhtin afirmam que a enunciação se sustenta em múltiplos enunciadores,
quem fala não tem autonomia do sentido daquilo que fala. O sentido é constituído
polifonicamente. Bakhtin, ao reflexionar sobre “o discurso de outrem”, considerou:
A enunciação do narrador, tendo integrado na sua composição uma outra enunciação, elabora regras
sintáticas, estilísticas e composicionais para assimilá-la parcialmente, para associá-la à sua própria
unidade sintática, estilística e composicional, embora conservando, pelo menos sob uma forma
rudimentar, a autonomia primitiva do discurso de outrem, sem o que ele não poderia ser completamente
apreendido. (Bakhtin, 1992: 145)
As figuras de dois homens vestidos com roupas jeans, chapéus e botas remetem ao
universo dos cowboys. Porém, é a enunciação do título que conecta o texto verbo visual ao
filme. Esta conexão remete à identificação dos corpos presentes na narrativa com a experiência
sensível do receptor.
O filme conta a história de dois jovens contratados, no verão de 1963, para pastorear
ovelhas na imaginária montanha de Brokeback, em Wyoming – umas das regiões mais
conservadoras do Estados Unidos da América. No isolamento da montanha, Ennis Del Mar e
Título com referência ao filme e que
determina a ambientação do
editorial.
Descrição das roupas utilizadas na
produção de moda.
161
Jack Twist iniciam um relacionamento físico que evoluiu para o amoroso e marcou suas vidas
para sempre. O filme tornou-se rapidamente tema de debates acalorados. Desde os sites
dedicados ao público homossexual até os espaços acadêmicos, Brokeback Mountain foi
aclamado como umas das mais controversas obras que tratam do amor homossexual. Em
países como a China e Bahamas o filme, vencedor de três Oscar, foi censurado por suas
cenas explicitas de homossexualismo. Por narrar o amor proibido entre dois homens com
imagens que se acercam a dos cowboys, um dos personagens mais significativos da
representação heterossexual americana, a estréia de Brokeback Mountain foi cercada por
tensão no Estados Unidos. A obra, mesmo sem poder ser considerada um western, adoçou
com afetividade homossexual o estilo. De acordo com a Comissão Cristã de Cinema e Televisão
daquele país, o filme configura-se como uma “tediosa propaganda neomarxista homossexual”.
Brokeback Mountain foi um fenômeno de bilheteria, arrecadou cerca de 180 milhões
de dólares em todo o mundo. O filme trata do perdedor e de seus medos. Este pode ser um
dos motivos pelos quais o discurso impetrado pela obra tenha encontrado brechas para entrar
no regime discursivo do cinema holywoodiano. O discurso das minorias tem interessado a
este regime discursivo. No Brasil, o nome do filme foi O Segredo de Brokeback Mountain. O
uso da palavra “segredo” é bastante significativo. Ennis e Jack encontram o amor em segredo,
guardados pela natureza, distantes da cultura. O slogan do filme “O amor é uma força da
natureza” coloca o sentimento deles em dois lugares: o da liberdade do instinto natural e o da
proibição da norma cultural. A natureza é aquilo que tentamos controlar historicamente, mas
que de tempos em tempos ela se rebela contra a cultura. O sentimento que insiste em romper
o limite da montanha é como uma tempestade que imunda e transborda os corpos de Ennis e
Jack, forçando uma nova configuração de suas subjetividades.
A vida durante aqueles tempos na montanha ofereceu para os corpos das personagens
uma outra experiência. A experiência partilhada no afeto mudou as subjetividades de Ennis e
Jack. Desterritorializadas da segurança heterossexual, desde o encontro na montanha as
subjetividades de Ennis e Jack se debatem entre o desejo e a norma. Após anos sem se ver,
quando se reencontram – sendo já homens casados, buscam no refúgio da natureza o local
para viverem seu amor proibido. As vidas cotidianas de Jack, envolvido na rudeza do trabalho
no campo, e de Ennis, humilhado regularmente pelo pai rico da esposa, têm uma subjetividade
endurecida pela regra social. No interior desta calcificação subjetiva há o desejo que teima
em sair. Vidas pobres e tristes presas em corpos esculpidos no mármore social.
162
Por suas adequações mercadológicas, o cinema holywoodiano está distante do plano
de intensidades do corpo sem órgão que se coloca como ouvidor dos homossexuais. Via de
regra, este cinema funciona como produtor de figuras-padrão a serviço do controle da
reterritorialização subjetiva. Como uma mega instituição, esta indústria cinematográfica
mantém-se atenta a movimentação das transformações dos mapas subjetivos. Sendo assim,
esta corporação produtora de imagens funciona como uma organizadora ou recriadora de
possibilidades no mapa de subjetivo. Travestidos de abertura, o que ela põe em circulação
são pequenos troços de desejos dos discursos das minorias manuseados segundo suas regras.
“... Se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que ele lhe advém” (FOUCAULT,
2001: 07), disse a instituição ao desejo em um diálogo imaginado por Foucault em “A ordem
do discurso”. O discurso não narra lutas, ele é aquilo por que lutamos, nos ensinou o filósofo.
O discurso entoado pelo filme, controlado pelas leis do mercado, ecoa na voz singular dos
grupos de homossexuais. Se a instituição espera a hora certa, segundo suas táticas, para
tratar da questão homossexual e coloca a serviço de suas estratégias uma maquinaria
imagética, o corpo sem órgãos dos grupos de homossexuais aproveita esta brecha para
operacionalizar suas estratégia de resistência. Colocar em ação sua boca como uma máquina
de devorar imagens, degluti-las e devolve-las aos grupos interessados em uma outra carga de
valor é a estratégia do corpo sem órgãos.
Conjunção de mídias sobre os corpos, diria Pross. Máquinas que operam como máquinas
de guerra entre o controle e a resistência. As máquinas de guerra nos colocam sempre nos
campos de batalhas, disse Foucault e Deleuze. As estratégias de controle instituem seus
dispositivos como marcos para o movimento da subjetivação, como nucléolos que podem
endurecer a subjetividade.
A revista Argentina El guapo, Ano 1, número 2, julho de 2007, titulou a coluna dedicada
à televisão como “Los tiempos cambian”. O texto aborda a transformação ocorrida em roteiros
de séries televisas daquele país após a exibição nos cinemas de Brokeback Mountain. A revista
considera que o filme foi o “empurrão que faltava” para que os produtores percebessem a
importância da inclusão da temática homossexual em seus produtos e para que galãs
entendessem que a interpretação de um personagem homossexual pode ser importante para
suas carreiras. Se por um lado é sabido que esta inclusão está acordada sob uma adequação
do mercado, por outro a revista acentua a importância dos novos tratamentos que são dados
às relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo. Segundo a coluna, várias séries da televisão
163
argentina tratam, atualmente, as relações homossexuais para além da questão da orientação.
As relações são colocadas naturalmente no roteiro, como há um casal heterossexual, há um
casal homossexual, cada qual com suas diferenças e semelhanças.
Já em seu nascedouro, o cinema foi um importante interlocutor da voz singular dos
homossexuais. A possibilidade da união do discurso homossexual e cinematográfico foi
explorada pelo Institut für Sexualwissenschaft (Instituto para estudos da sexualidade), fundado
na cidade de Berlin pelo médico Magnus Hirschfeld, em 1919. O Instituto financiou o primeiro
filme dedicado a temática homossexual: Anders als die Andern (1919), do diretor alemão Richard
Oswald. O filme denunciava os prejuízos e os danos provocados pelo parágrafo 175 da lei
alemã. Este parágrafo dispunha sobre a penalização de homossexuais. O filme Mädchen in
Uniform (1931), da diretora alemã Leontine Sagan, foi o primeiro a mostrar o amor lésbico.
A consolidação do cinema no século XX como um meio áudiovisual capaz de estimular
diálogos, transformar padrões culturais vigentes e promover a circulação de discursos para
um grande público, foi acompanhada com especial atenção pelos defensores da causa
homossexual. Pier Paolo Pasolini, Derek Jarman e Rainer Werner Fassbinder se serviram
desta capacidade do cinema para transgredir, através de seus filmes, os padrões normativos
de suas épocas. Homossexuais assumidos, eles foram responsáveis por propiciar uma
existência simbólica do homossexual no cinema. Esta existência simbólica convocava para a
existência cotidiana de homens e mulheres que amam pessoas do mesmo sexo. Os três
diretores reivindicaram as dimensões políticas do tema em seus experimentos estéticos. Mais
do que abordar a possibilidade ou a impossibilidade do afeto entre pares, eles trataram da
política de um desejo. Provocar imagens, no sentido duplo que o verbo provocar possui, foi
uma política de resistência destes diretores frente às estratégias de apagamento simbólico
dos homossexuais promovido pelos parâmetros heteronormativos. “O cinema é produtor de
realidade”, nos ensinou Deleuze (1998: 76).
5.6 A moda e o modo: as palavras e as imagens
Em um belo artigo
2
chamado “As imagens que nos devoram: antropofagia e iconofagia”,
Baitello Júnior cria uma imagem interessante para falar da iconofagia: a corrida entre a máquina
2
O artigo foi produzido para o encontro “Imagem e violência”, produzido pelo Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e
da Mídia – Cisc, na cidade de São Paulo, em 2000. Disponível na biblioteca do site: www.cisc.org.br
164
de escrever e a máquina de costura. O evento foi uma performance dadaísta levada a cabo no
ano de 1919 na cidade de Berlin. Ao final venceu a máquina de costura, sendo esta atirada ao
chão como protesto.
Talvez sem saberem a extensão de sua brincadeira-heppenning, os dadaístas estavam vislumbrando
naquele momento a derrota da escrita e sua lentidão e a vitória da sutura, do pesponto e da costura
em seu gesto veloz de juntar pedaços. Já estávamos vivendo em um mundo ora rasgado, ora
recortado, ora dilacerado e que somente se manteria como imagem de mundo se fosse costurado
na forma de montagem ou colagem. (BAITELLO JÚNIOR, 2000: 02)
Uma cultura da colagem satisfaz aos grandes distribuidores de imagens. Estas imagens
inscritas na velocidade não exigem atenção do expectador. A pregnância destas imagens na
memória é feita por fragmentos, restos de imagens destinados a atualizar as novas imagens.
A escrita, explica Baitello Júnior, nasceu da redução das imagens figurativas. As espacialidades
bidimensionais foram sendo reduzidas até as espacialidades unidimensionais. Nasceu desta
redução a linha da escrita. A palavra linha determina o fio que se utiliza para cozer e a pauta
que sustenta a escrita. Segundo o comunicólogo, esta determinação dupla representa o
encontro no nascimento de uma dupla guarda sob a égide da mídia secundária: a escrita e a
roupa, por conseguinte a moda.
Apesar de nascida sob a mesma égide, ressalta Baitello Júnior que cada uma seguiu
um caminho diferente. A escrita veio das imagens que, reduzidas, criaram linhas, as linhas
tramadas formaram e criaram as roupas. Estas duas irão se reencontrar na escrita imagética
do século XX, especialmente nas obras do design gráfico e da publicidade. Como produtor de
imagens em larga escala, os meios utilizam as imagens como objetos de sedução.
Compreendemos que o editorial de moda e de estilo se serve primordialmente desta sedução
para produzir uma dupla entrada em seu texto verbo-visual: há uma sedução que tem por
finalidade a criação de formas de identificação, a partir da descrição e da estetização dos
elementos de um determinado mundo; há uma mimese de outras imagens que em certa medida
refere-se ao mundo representado.
Tomemos como referência o editorial Brokeback, comentado no item anterior. O que
pretende o editorial quando mimetiza em suas fotos as cenas do filme? Como funciona o sentido
do editorial em uma revista homossexual remetendo-se a um filme no qual a homossexualidade
se debate dentro da subjetividade endurecida da vida rude do campo? No filme, o amor só é
possível na morte, ou seja, a castração, a falta do outro silencia o desejo. Mas o texto verbo-
visual da revista promove um estímulo ao desejo, ele seduz, já não é mais a imagem do filme,
165
é o editorial de moda que mescla a publicidade e estetiza, através dos atributos da propaganda,
o jornalismo. Mais que uma imagem que vai a outra para se referenciar, esta iconofagia se
alimenta dos valores colocados em jogo pelo filme e pela revista. O jogo se realiza no editorial.
É interessante notar que as regras do jogo na revista são distintas do filme, não pelas
características próprias de cada meio, mas pela opção de sentido que cada um fez da história
e a mensagem que cada meio quer comunicar.
As roupas descrevem quem as usas, elas produzem uma escrita identitária. Na cadeia
de significação dos textos verbo-visuais das edições especiais de moda e da edição Cuidate
da revista Zero é evidente a organização da informação de moda inspirada no cotidiano da
Fotograma do filme Brokeback Mountain
Textos verbo-visuais da revista Zero de Moda
166
vida de uma parcela dos homossexuais e a construção de personagens que legitimam os
parâmetros do vestir divulgados pela revista. Contrastamos aqui dois exemplares destes textos
com a finalidade de abordar, nos termos de Baitello Júnior, o ato antropofágico por definição:
o beijo. São dois momentos que retratam beijos distintos, o beijo de Judas em Cristo – no
editorial Paixão de Cristo, publicado da revista alemã Mate -, e o beijo anunciado do editorial
Decadente Rock Star, publicado na revista Zero.
Para Baitello Júnior, toda comunicação nasce do vínculo inicial da amamentação. O
beijo é um contato entre as mídias primárias. No caso da amamentação, corpo de mulher
transformado em mãe e, portanto, contextualizado no afeto e no cuidado; corpo da criança
contextualizado em filho como ser que busca o cuidado. Toque entre os corpos com função de
afago e alimentação. Se pesarmos em uma dimensão positiva da iconofagia encontraremos
na representação do beijo presente nos textos verbo-visuais aqui observados mais que o abismo
típico da devoração das imagens, mas a ponte para a particularização das mensagens.
Particularização no sentido que aquele é o beijo homoerótico, de um amor que quer dizer e diz
seu nome. Esta mensagem é individualizada para o segmento ao qual as revistas se destinam.
O beijo de Judas em Cristo é descrito no editorial como uma devoração, uma comunhão de um
Acima, os corpos que dormem formam uma
moldura para o Cristo. Todos se tocam e
também tocam o Cristo: um só corpo, uma
comunhão.
Ao lado, o beijo. Judas toca com os lábios
e o corpo o Cristo.
167
corpo que busca o outro. O corpo de Judas toca o de Cristo, não apenas os lábios se encontram.
No texto verbo-visual do editorial Decadente Rock Star o vigor do encontro entre os
corpos descreve uma cena de devoração para saciar o desejo. As mãos que seguram os braços
unificam os corpos. As mãos, para Pross, são nossos instrumentos de localização e de
percepção do mundo. Através delas tocamos nosso entorno, nos conectamos a ele. A mão que
prende o corpo com força, a cadeira tombada, os olhos que se olham com firmeza e as bocas
entreabertas revelam a entrega dos corpos. O copo de vinho branco espumante em primeiro
plano remete à perspectiva fálica. A perna desnuda de um dos modelos indica que o beijo é só
o início da conjunção dos corpos. Não há a necessidade de explicitar o beijo, ele já está ali.
Será visto por cada receptor de uma forma diferente, é a parcela de cada um na interpretação
da imagem. Escrita que aborda a moda para falar de um modo de ser.
5.7 A vida partilhada nos símbolos como o fator de diferença
“Tá dominado, tá tudo dominado”, diz o funk carioca do Furacão 2000. Este é o primeiro
pensamento que nos ocorre quando olhamos para as revistas que estabelecemos como objeto
empírico. Sob uma mirada inicial reconhecemos que, segmentadas ou não para o público
168
GLBT, as revistas
3
dedicadas ao estilo de vida, moda, luxo, viagens, cuidados do corpo e
beleza são iguais. Desta constatação primeira nos surge a pergunta: a única diferenciação
então é o público para o qual a revista se destina, pois no restante elas são iguais? Não,
as diferenças vão além. Devemos evitar este silogismo simples para analisar os veículos
que elegemos. Mesmo que eles estejam organizados sob as normas e as estruturas
capitalistas; ainda que seu aspecto gráfico vise atrair novos investimentos de publicidade
e propaganda; ou que muito de seu espaço seja destinado mais a entreter que a informar;
as revistas são fundamentais para evidenciar outros tipos de visibilidade homossexual.
Talvez estes meios de comunicação digam muito pouco para o público geral. Talvez
digam muito pouco também para diversos segmentos do mundo homossexual. Mas,
indiscutivelmente, elas são um equipamento valoroso da vida e da cultura GLBT. Apesar
de destinadas a um coletivo dentro do amplo grupo dos homossexuais, as revistas
representam mais do que apenas um espaço onde temas recorrentes são tratados –
como a homofobia, a aids, a luta por direitos e as conquistas. Estes veículos de
comunicação estão em uma triangulação semiótica com o leitor e sua experiência na
vida homossexual. É possível que surja desta consideração uma crítica: “revistas como
a espanhola Zero e a francesa Têtu se referem apenas aos burgays, elas refletem
somente esta pequena parcela do mundo homossexual”.
Na medida desta crítica, as revistas privilegiariam apenas um tipo de simbolização e
na triangulação adquiririam uma supremacia sobre os outros dois vértices, chegando mesmo
a condicioná-los. Defendemos, porém, que a intenção de significação deste núcleo simbólico
pretende alcançar o interprete com valores de significação agregados que não são os de
narcotização das consciências. Muito antes pelo contrário, estes veículos produzem valores
na articulação com a experiência ordinária de seus leitores. Tal articulação possui uma função
cognitiva, materializada na relação simbólica da revista com seu público. Uma rede simbólica
só possível no vínculo entre as partes envolvidas. Os símbolos, tal como Pross os definiu,
reproduz em um objeto geral e não individual. Nesta medida, os símbolos formam parte das
3
Muniz Sodré caracterizou a revista como um meio de comunicação que é uma extensão da imprensa diária. O objetivo destes
veículos pode variar entre a opinião ou o aprofundamento de temas de natureza humana. De acordo com a avaliação de Sodré,
nas revistas de luxo o jornalismo está atrelado a publicidade e a propaganda. “É evidente que as revistas elegantes (especialmente
as femininas) fornecem informações desejáveis sobre assuntos específicos, mas na realidade elas funcionam mais como
departamentos auxiliares do Consumo (os anúncios são pagos, em geral, por indústrias de roupas, cosméticos, diversão, etc)
do que como um sistema fortemente caracterizado por um produto original, que seria a informação, com vistas a opinião
pública. A idéia de catálogo sobrepõe-se um pouco à de notícia.” (SODRÉ, 1980:44)
169
experiências dos envolvidos na relação de produção e interpretação simbólica. Nos apropriamos
dos signos sob a guia de nossas realidades sociais. Deste modo, Pross define a simbolização
como uma função designadora, que alinha a representação de uma classe de objetos com as
consciências interpretantes.
La facultad designadora, natural al hombre, su capacidad de dar signos y recibirlos y poner em
práctica reflexivamente esa capacidad de distancia de mera naturaleza. Lo que significa para el
hombre “realidad” es captado por él a través de los médios artificiales de los signos, de forma que
para él no hay más realidad que la experimentada y objetivadad por signos. (PROSS, 1980: 23-24)
Pensamos que é um risco avaliar as revistas somente sob uma perspectiva
mercadológica ou nos limites do recorte que determina um grupo a ser influenciado. O mercado
não é autônomo, ele flutua ao sabor dos comportamentos sociais. Por exemplo, como
explicitamos anteriormente, o aumento dos investimentos em publicidade e propaganda para
o mercado GLBT, em 2004 e anos posteriores, foi resultado de uma mudança jurídica de grande
impacto: a aprovação do casamento homossexual. Por outro lado, como bem diz Baitello Júnior
(2006), limites e fronteiras não servem apenas para isolar, servem também para aproximar:
quando criamos fronteiras, criamos juntamente os vizinhos. Acreditamos que o mais adequado
é perceber estes meios de comunicação em sua perspectiva relacional, em sua interação com
a experiência do público receptor de suas mensagens. O público pretendido pelas revistas
não vive dentro de uma bolha social, sua experiência com os media não está restrita apenas a
um meio de comunicação. Na trama de sua experiência, no seu exercício de experimentar a
vida, o leitor prende por entre os dedos fios narrativos, vindos de diversas fontes, para tecer
suas redes simbólicas. Na composição de seu ethos, de seu ambiente, as revistas são um dos
elementos ativos. Definitivamente, elas não têm a totalidade da influência sobre os leitores,
são apenas fontes de referência às experiências do grupo que pretende alcançar.
Sem dúvida nenhuma, as revistas selecionadas repetem um conhecimento sobre o
corpo elaborado pela indústria da beleza e da técnica do embelezamento. Mas, além disso,
elas colocam em circulação um conhecimento da vida homossexual produzido por atores da
cena homossexual, relatando acontecimentos da vida ordinária destes sujeitos: a festa, o
encontro, a moda, os lugares de sociabilidade, os anseios e as lutas. Remontado novamente
a pensamento de Pross, é um atributo dos sujeitos definir o curso da socialização. Conceber
as relações entre os objetos e os signos, organizar e inter-relacionar as cadeias de signos a
ponto de se transformarem em simbolismos altamente sofisticados, são processos iniciados
nas experiências iniciais da corporeidade individual dos sujeitos – ou seja, a experiência inscrita
170
no corpo forma e é formada na ação simbólica. A interação entre o leitor e a revista acontece
sob a designação do médium como símbolo de algumas experiências do grupo.
Outrossim, o modo como ocorre o encontro dos corpos nos editoriais de moda e estilo
está pleno de uma afetividade típica de seu público. São corpos que narram não apenas uma
coleção ou produção de moda, eles fabulam as situações vividas pelo coletivo de leitores da
revista. São imagens produzidas com a função de ser um duplo do objeto que representam.
Nessa lógica, as revistas convocam o leitor para participar dela, para dentro dela – seja por
reconhecimento, identificação ou mesmo desejo de estar ali.
O projeto editorial das revistas coloca em movimento palavras e imagens. Em se
considerando a revista Zero, veículo central de nossa análise, percebemos que os temas dos
artigos e reportagens referem-se a situações de interesse direto da vida homossexual. A
disposição dos corpos nos textos verbo-visuais da Zero desvela um gesto, uma forma de
comunicação do corpo forjada nos ambientes do mundo gay. Nestes textos, palavra e imagem
se juntam para descrever uma forma corporal não dada na forma física, mas na cultura. Médium
ampliado que compartilha um mundo de sentido. Baitello Júnior tomou de empréstimo a noção
de mundo partilhado (Mit-Welt) de Rudolph Zur Lippe para ampliar o conceito de corpo.
Este (o corpo) é compreendido neste contexto não apenas como espaço físico, mas já como entidade
comunicativa, como trânsito e movimento, como mídia e pensamento, como história e narrativa.
Estamos portanto diante de um corpo semiótico e cultural, composto de significados, símbolos e
sinais, de memórias e histórias, tanto quanto de órgãos e trocas bioquímicas. Um corpo é, sim, um
todo orgânico que apenas sobrevive sob determinadas condições físicas, mas que em contraposição
requer igualmente a permeabilidade dos limites estabelecidos pela pele individual. No corpo semiótico
e cultural, a base física é expandida pelo corpus de significados trazidos por outros corpos, por suas
trajetórias, por suas vidas e suas histórias. (BAITELLO JÚNIOR, 2006: 85)
Quiçá a similaridade do padrão estético entre as revistas segmentadas para homossexuais
e as segmentadas para heterossexuais faça a real diferença. Quando representantes do mundo
GLBT produzem textos culturais com os temas da homoafetividade, produzem as narrativas sobre
si mesmo com as mesmas condições editoriais e comerciais que os veículos destinados ao público
heterossexual, colidem frontalmente como os modelos desejosos de associar as práticas
homossexuais, especialmente as masculinas, apenas a promiscuidade e pornografia. Estes
modelos visam empurrar os homossexuais para o beco sombrio das práticas proibidas. Registrar
o afeto entre os corpos nos textos verbos-visuais ficcionais e documentais fortalece, na
simplicidade da ação, um exercício de resistência a domesticação que pretende enclausurar os
corpos. A demonstração de amor entre pares é, neste sentido, um projeto libertário.
171
considerconsider
considerconsider
consider
ações fações f
ações fações f
ações f
inaisinais
inaisinais
inais
172
Dentre todas as realizações a comunicação é a mais notável. Trata-se de um prodígio, diante do
qual a transubstanciação se torna pálida, que as coisas passem a ser capazes de transferir-se do
plano das impulsões externas para o desvelamento, para o homem, e assim para si próprias; que o
resultado da comunicação possa ser a participação e o ato de compartilhar. Quando ocorre o
comunicar-se, todos os eventos da natureza tornam-se sujeitos a reconsideração e a revisão; são
readaptados para que enfrentem as exigências da conversação, quer seja esta o discurso público,
quer seja o discurso prévio chamado pensamento. (Dewey, 1980: 29)
Ao final da nossa dissertação, retomei a noção de rizoma (Deleuze e Guattari) para
retratar a imagem do trabalho - um segmento provisoriamente interrompido, potencialmente
aberto a novas conexões e ramificações. Chegar ao final da tese nos produz uma sensação
semelhante: o ponto final não é uma impossibilidade de prosseguir. O lugar de fala propiciado
pela pesquisa é um ponto inicial na trajetória investigativa do pós-tese.
À medida que construíamos o quadro teórico-conceitual nos deparamos com a
necessidade de reconfigurar nosso objeto. As perguntas surgidas sob a angulação teórica que
se formava indicavam um outro caminho para a análise. Começamos a entender a noção de
horizontal (Pross) como um território existencial (Deleuze e Guattari) a ser conquistado no
dia-a-dia. Com a definição dos contornos do quadro, este princípio revelou-se como chave.
Para que pudéssemos pensar a inter-relação entre dominação e resistência, foi preciso
equacionar os pesos entre os efeitos do verticalismo e as possibilidades de conquista da
horizontal.
Em nenhum momento tomamos o equacionamento dos pesos sob uma visada ingênua
de que a resistência tem força igual ao poder. A desigualdade de forças não significa ausência
de força. É esta força, ainda que menor em quantidade, que coloca em atrito os fluxos da
vertical com a horizontal. O fluxo da horizontal se expande de modo irregular. Ele é
permanentemente cortado pelo fluxo da vertical. Enquanto um ponto se interrompe, outro passa
a crescer em um lugar diferente e assim o fluxo horizontal segue seu caminho.
O fluxo da vertical é o fluxo da homogeneidade, da indiferenciação. Contrariamente, o
fluxo da horizontal é o da transformação, da multiplicidade. O vertical é da ordem da imposição,
173
o horizontal é da ordem da conquista. A autonomia dos sujeitos é processual, ocorre sob
avanços e retrocessos. A busca pela autoderteminação é cercada pelos enfrentamentos. A
sofisticação da violência simbólica serve bem às estratégias de controle vertical do poder. Um
sem número de máquinas de produzir imagens coloca os sujeitos em exposição constante,
sujeitados às imagens. As estratégias de controle alcançaram os corpos, se inscreveram neles,
imprimiram sobre o corpo um regime discursivo imagético despótico. Este regime efetiva um
discurso que pretende estabilizar uma noção do corpo como máquina produtiva. Como regime
discursivo, ele opera no controle do desejo. Frente as diferenças de temporalidades e
durabilidades próprias a cada corpo, resta as estratégias do controle recorrer aos media como
instrumento de sincronização. A ação de sincronizar é na verdade um corte no tempo. Como o
tempo não se estagna, a sincronização não significa igualar tempos; mas, estabelecer
verticalmente um tempo em que os corpos devam estar.
Estar no tempo sincronizado dos media é como estar preso em uma fenda do tempo.
Como uma metáfora invocada da pintura Saturno devorando a un hijo, de Francisco de Goya,
um corpo simbolizado devora os corpos biológicos. Os corpos imagéticos que circulam nos
media tentam comer as cabeças dos outros corpos, transformar os sujeitos em homens com a
cabeça de papelão, tal como satirizou João do Rio. Mas, o cotidiano permite ao corpo outras
experiências que não apenas a dos media. Com um movimento dialético entre a dureza e a
delicadeza o corpo, na vida ordinária, é marcado pelo tempo, modificado pela dor, tencionado
pelos medos, relaxado pelos prazeres. É na experiência da vida ordinária que o corpo resiste.
A experiência é uma ação, um encadeamento de acontecimentos na vida dos sujeitos.
O acontecimento é algo sobre o qual atribuímos um valor, produzimos uma sensação,
uma mudança no estado do mundo. Ele deve ser compreendido como singularidade, na
extensão e na qualidade das forças que se assenhoram do tanto quanto existe. O acontecimento
é pluralidade (Deleuze). O acontecimento põe o corpo a cavalgar no devir em direção a
horizontal.
Como parte de nossa conclusão, é fato que as revistas analisadas reproduzem o modelo
normativo de corpo desenhado pelas estratégias de controle. Compreendemos que as revistas,
por sua linha editorial, estão submetidas às regulações da publicidade e da propaganda.
Todavia, é preciso sermos cuidadosos para não invalidar a importância destes meios para a
identidade homossexual.
Se isolarmos apenas as imagens dos corpos na informação de moda, nas propagandas
174
e na publicidade, o que encontraremos é uma unidade de sentido entre a revista Zero e as
demais a que foi contrastada. Os corpos são muito parecidos. Tornou-se evidente para nós
que nas imagens dos corpos está construído um objeto comum tanto para os desejos
homossexuais quanto para os heterossexuais. Porém, se deixamos o recorte e nos atentarmos
ao conjunto da revista, é possível perceber um outro caminho. Os textos verbo-visuais das
revistas são uma narrativa identitária considerável do coletivo de leitores.
As revistas utilizam o modelo de corpo vigente, mas sob a lógica de uma cultura
homossexual. Elas não podem ser consideradas um mero reprodutor dos formatos das
publicações heterossexuais, dissipando-se qualquer possibilidade de existir uma atitude de
resistência. Mesmo existindo um padrão de produção muito próximo entre as revistas
comparadas, há nas revistas destinadas aos homossexuais uma iconofagia dotada de um valor
positivo, uma revitalização das presas antropofágicas do dominado. Não é prudente, para
uma análise crítica dos veículos, desconsiderar o lugar de fala da revista homossexual e como
este lugar está inscrito nas pautas veiculadas.
O reconhecimento de um valor positivo da iconofagia não foi pensado sob a forma de
um silogismo simples: como há um valor negativo, haverá um positivo. Ao assumirmos como
princípio o pensamento foucaultiano de que a resistência ao poder nasce no seio do próprio
poder, percebemos que os atos de resistência podem e se servem da iconofagia. É como
dizer: sua imagem permanecerá, mas será acompanhada de meu texto. Ou ainda, para
utilizarmos a figura das comutações em Roland Barthes, os acontecimentos, as experiências
da vida homossexual enxertam mudanças no plano de significação das imagens dominates.
Como algo comutado, a iconofagia positiva fará nascer um novo sentido decorrente da
articulação entre os valores pré-existentes na imagem e o contexto sócio-cultural dos
receptores.
A revista é dos elementos da cultura homossexual. Tal como a esta cultura, a revista é
atravessada por extratos da cultura homossexual. Sob harmonia ou sob embate, sempre há
uma convivência entre os valores simbólicos de matrizes culturais distintas. Este princípio nos
levou à conclusão de que Pross assume o signo triádico do modelo semiótico americano para
colocar a cultura como o terceiro. Pross critica o conceito de signo cunhado por Charles S.
Peirce. A primeira vista, a crítica pode indicar um distanciamento da noção de signo cunhada
pelo americano. Entretanto, Pross não abandona por inteiro a noção peirciana. A noção de
signo para Peirce é de processo, enquanto a de Ferdinand Saussure é de sistema. O signo
175
peirciano é sempre triádico, ao ponto que o signo saussuriano é binário. Pross buscará em
Max Bense uma definição símbolo – que foi derivada da noção triádica de Peirce. Ao
compreender a proposta de Bense como uma semiótica relacional, Pross conceberá o signo
como um trípode em que o ponto axial é o símbolo, apreendido na rede da cultura.
Pross entende os signos como uma relação. Sua concepção acerca da violência
simbólica exige uma análise dos aspectos históricos e culturais a que estão vinculados os
assujeitados. A relação triádica do signo, para ele, estará sujeita aos processos de socialização.
O estabelecimento e o reconhecimento da rede de signos e símbolos está condicionado à
consciência crítica do sujeito. A rede da cultura está composta, então, por uma trama de
referências simbólicas. Essa urdidura usa os fios dos teares de sentido das mais diversas
experiências. A noção de texto verbo-visual como espaço de experiências semióticas e afetivas
nos possibilitou perceber a importância da revista envolvida no processo de socialização de
seu público. Esta conclusão é decorrente do entendimento da revista não como uma sucessão
de imagens e textos, mas como um texto verbo-visual que articula códigos oriundos do regime
visual e do regime textual para constituírem um novo texto.
O mundo homossexual, como qualquer outro, é diverso. Podemos detectar formas
parecidas de viver a homossexualidade nos grandes centros urbanos capitalistas. Estas formas
não são capazes de definir contornos rígidos de uma comunidade. Elas representam traços
comunitários retirados de subconjuntos sociais que permitem o reconhecimento de algum nível
de identificação de comportamentos e de linguagem. O estilo estético das revistas se destina
a um grupo de homossexuais, que denominamos o coletivo de leitores da revista. Assim sendo,
a revista Zero quer comunicar para um público recortado e ansioso por um tipo de informação.
Não foi nossa proposta efetuar uma crítica sobre o fato dela comunicar para o “burgay” –
argumento forte na crítica contrária a este tipo de meio. Mais que estabelecer um juízo de
valor sobre para quem a revista se destina, nos pareceu mais interessante perceber se é
realizada a proposta de comunicação pretendida. Acreditamos que sim. Para nós, a revista
extrai sentidos existenciais do coletivo e os devolve como novos elementos para a constituição
da subjetividade. As formas da vida social do coletivo se apropriam do discurso da revista de
um modo desigual, propositalmente desigual, cada indivíduo toma para si o que lhe interessa.
O próprio modo de recepção, envolvido em uma série de outros meios de informação, evita
que a revista seja um instrumento de obliteração do coletivo. O coletivo antecede a revista,
seu estilo de vida já estava instalado quando a revista nasceu.
176
A revista não está restrita aos aspectos sensacionais em suas abordagens. Para
contemplarmos outras dimensões, devemos nos afastar da concepção da revista como espaço
de fetichização do consumo. Sob seus componentes heterogêneos diferentes regimes de signos
são organizados como substâncias significativas de uma forma social – a vida de um grupo
homossexual. Concluímos que a ação de comunicação propiciada pelo veículo conecta
subjetividades pela descrição de formas de sociabilidade.
A experiência do coletivo de leitores com a revista está orientada por um estilo estético.
A mensagem da revista não é capaz de reduzir os comportamentos individuais isolados,
conferindo homogeneidade ao coletivo. Ela apenas descreve um religare (Michel Maffesoli)
próprio das sociedades de consumo. A possibilidade de existência de meios como a revista
espanhola Zero, a revista americana Out, a revista francesa Têtu, ou qualquer outra de projeto
editorial parecido a estas, é conseqüência da complexificação das relações sociais e das
conquistas de direitos não apenas homossexuais, mas humanos. Esvaziar a importância destes
meios sob o pretexto de que se dedicam apenas ao fútil é acabar com um instrumento discursivo
e abrir espaço para a dominação.
O discurso é aquilo pelo qual se luta, nos ensinou Foucault. No decorrer desta tese
tentamos demonstrar que a luta pelo discurso homossexual foi marcada pelo silêncio e grito,
pela visibilidade e pela invisibilidade, movimentos sempre encenados sobre o corpo. O corpo
foi exposto para ser torturado, humilhado, investigado, punido e controlado. Mas o corpo sempre
escapou e na reinvenção da vida, no cotidiano, encontrou suas linhas de fuga. Os fenômenos
estéticos vindos dos materiais da arte ou dos media serviram à experiência de resistência ao
silêncio imposto aos homossexuais. Não podemos ceder a tentativa regular do poder de barrar
a emancipação. Acreditamos que encontramos nas revistas uma manifestação de sentido
destinada ao outro, a celebração de estilo de vida, a busca de uma pulsão gregária de um
grupo. Se há uma possibilidade para o corpo resistir esta possibilidade está presente na relação
e não na atitude narcisista e solitária. A revista não é o espelho de Narciso. A mão que folheia
a página é a mesma que toca o mundo. Como ela pode abrir a revista onde quiser, ou selecionar
o começo da leitura de onde interesse o dono da mão, pode reordenar o quadro de sentido
que a rodeia. A resistência está no banal, o corpo persiste pelo afeto.
177
Referências
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Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior - Capes
Programa ALBan, Programa de bolsas de alto nível da União Europeia para América Latina,
bolsa nº E06D100482BR.
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