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JAIR BERCÊ
O CANTO E O BAILADO PARA A LUA
CHEIA:
O SANTO DAIME INCORPORADO À VIDA
URBANA DE SÃO PAULO
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Professor Orientador : Dr. Rinaldo Sérgio Vieira Arruda
PUC/SP
SÃO PAULO – SP
2007
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JAIR BERCÊ
O CANTO E O BAILADO PARA A LUA CHEIA:
O SANTO DAIME INCORPORADO À VIDA
URBANA DE SÃO PAULO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em
Ciências Sociais, sob a orientação do Prof. Dr. Rinaldo
Sérgio Vieira Arruda .
PUC/SP
SÃO PAULO
2007
JAIR BERCÊ
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O CANTO E O BAILADO PARA A LUA CHEIA:
O SANTO DAIME INCORPORADO À VIDA
URBANA DE SÃO PAULO
BANCA EXAMINADORA:
__________________________________
__________________________________
__________________________________
PUC – SP / 2007
Dedicatória:
In memorian à minha mãe Yolanda Reis Bercê e meu pai Heitor Bercê.
In memorian ao Mestre Raimundo Irineu Serra e ao Padrinho Sebastião Mota
de Melo.
Este trabalho também é dedicado ao Padrinho Jonas Frederico (in memoiran) , que
infelizmente não tive o prazer de conhecê-lo em vida, mas cujos ensinamentos
espirituais seguem vivos junto aos irmãos daimistas da Igreja Flor de Luz.
AGRADECIMENTOS
O desafio de desenvolver este trabalho não foi, de forma alguma, o desenrolar de uma
caminhada solitária. Chegar até aqui seria algo impensável sem as valorosas colaborações que
recebi. Assim sendo, ofereço aqui meus sinceros agradecimentos a todos que contribuíram - direta
ou indiretamente - para que esta dissertação se tornasse realidade:
Primeiramente destaco minha gratidão à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
instituição que acreditou na relevância deste estudo e acolheu meu projeto;
Um agradecimento especial ao Professor Dr. Rinaldo Arruda que além de ser meu
orientador, foi um grande amigo e conselheiro nesta empreitada;
Ao apoio do CNPQ-CAPES , sem o qual dificilmente esta pesquisa teria se concretizado;
Minha imensa gratidão aos professores da PUC-SP que muito contribuíram com suas
críticas, sugestões e conselhos . Em especial a Carmen Junqueira, Josildeth Gomes Consorte,
Eliane Hoajaij Gouveia e Teresinha Bernardo;
À Igreja Flor de Luz e a toda Comunidade Céu de Midam, por possibilitarem a realização
da pesquisa de campo, recebendo-me com muito carinho, confiança e sempre de braços abertos :
Madrinha Maria do Carmo, Kelmir, Josélia Maria de Andrade, Maria Cecília Santos, Cecília,
Eliseu Ferreira, Lídia, Aldori Barbosa,Carlos Gomes, Zé Capitão, Ângelo Scalvi,Bruna Alves,
Cecília Helena, Silvia Miragaia, Celso Vendramini, Alexandre Frederico, Berenice, Maria Cecília
Frederico, Saulo Bonfim, Felícia Aparecida, Roberto Palmonari, Paulo Nilson, Ceciana, Lucia
Santos, Anaílton, Cícero, Sebastião de Albuquerque, à Dona Selva, Gisela e Demétrius, Roberto
Caramelo e tantos outros que prestaram seu inestimável apoio;
Ao artista plástico e grande amigo Ray , de Embu das Artes, pelas enriquecedoras
conversas e pelos ensinamentos sobre os “caminhos do Santo Daime”.
Ao amigo Cleveland, daimista do Céu da Lua Cheia;
Um agradecimento especial ao Padrinho Eduardo, pela alegria presente em nossas
conversas, pelos ensinamentos e entrevistas;
Aos irmãos do Céu de Maria e ao Céu Lua Cheia, em especial aos seus comandantes,
respectivamente : Glauco Villas Boas e Léo Artése;
Ao Walter Dias Júnior, comandante da Igreja Céu do Vale, pela amizade e apoio;
Aos amigos da PUC : Edson Benedetti , Aline Motta, Luiz Nunes de Almeida,Antonio
Leandro da Silva, Vânio Flábio Dias Ferreira, Vanessa Munhoz, Pedro Henrique Passos, Vaneska
Taciana, e a todos que me apoiaram nesta jornada;
Ao inestimável apoio de minha companheira Marta Jerônimo Bercê, pela dedicação e
paciência , pelo auxílio na revisão do texto e na transcrição das entrevistas;
Obrigado também à constante motivação dos amigos : Ricardo Alves da Costa, Evandro
Monteiro, Alexandre e Pedro Bonome;
A José Carlos, pelo estímulo e apoio;
À toda a minha família, em especial à irmã mais velha ; Maria Inêz Bercê.
Por último e não menos importante agradeço ao Daime, a esta bebida sagrada, pela
inspiração, pelos aprendizados e mudanças positivas que trouxe em minha vida.
RAMEFLETELUZ
Ramo, Folha e Bebida = Daime
Esta chave abre RAMA e com ela você penetra nos segredos de RAMA, que
são infinitos e de acordo com sua evolução você colhe os seus conhecimentos e
alivia suas reencarnações futuras, e assim sobe na escala da evolução do ser em si
com maior facilidade, pois como estamos aqui na Terra para aprender com esta
chave que abre o mundo mental, entramos nele e aprendemos direto do mental, sem
ser preciso vivenciar no mundo material, para aprendermos e evoluirmos e subir em
nossa escalada evolutiva.
Por isso que só uma porcentagem pequena, que toma contato com esta chave
é que penetra realmente em RAMA, pois a porcentagem maior ainda não está
preparada para este conhecimento, e se distrai vendo miragens da sua própria volta
e do seu dia a dia. Mas fizeram o contato e sabem que a chave existe, só que não
estão à altura de pô-la na fechadura e ter a força necessária para fazê-la girar e abrir
RAMA, mas sempre foi de bom proveito este contato, pois outros tantos ficam
satisfeitos só em saber que a chave existe, e não tem coragem nem de a
pegar(tomar). Assim sendo, tendo o contato com esta chave pergunte o que quiser e
aprenda o que puder, pois esta chave que vem do mundo vegetal para o animal é a
herança que não pode ser perdida da evolução.
Céu de Midam – Piedade – SP – Brasil
Mensagem recebida por
Padrinho Jonas (1935-2001)
(in memorian)
RESUMO
Quais os significados atribuídos ao Santo Daime pelos fiéis que buscam esta linha
religiosa específica em São Paulo? E quais os sentidos oferecidos pelo Santo Daime, neste
aparente caos que muitos vivenciam, e que alguns cientistas sociais denominam como pós-
modernidade, crise de paradigmas, e tantos outros nomes? Quais os caminhos do Santo Daime em
São Paulo ?
Para esclarecer estes questionamentos e propor uma saída possível para este
labirinto teórico é que me motivei a realizar este trabalho, que tem como objetivo compreender
como o Santo Daime cumpre o papel de trazer sentido ao vão deixado pelo que chamo de
“fragmentação da alma” , que se traduz na ausência de sentidos da chamada “ pós-modernidade”
. Procuro analisar de que forma a cosmologia e os rituais daimistas tentam juntar os cacos , e se
este processo consegue alcançar seu objetivo.
Começo esta análise , partindo do pressuposto que isso se dá por meio de processos
simbólicos - e muitas vezes de forma inconsciente – os quais vão formando identidade a partir de
determinados elementos do ritual e da cosmologia, dando assim coesão à comunidade religiosa,
estruturando um ethos e uma visão de mundo , ao mesmo tempo que oferecem ao indivíduo
daimista flexibilidade de escolha, vale dizer, liberdade .
Procurei construir tais respostas a partir da pesquisa etnográfica participante – seguindo os
passos teóricos e metodológicos de Geertz – na Comunidade Daimista Flor de Luz – Céu de
Midam. Busquei entender como a comunidade estudada abre espaço para o desenvolvimento de
uma linha cosmológica aparentemente muito diferente das existentes em outras Igrejas: A Linha
Cosmológica do Comando Estelar. Esta Linha Cosmológica será estudada nesse trabalho, com o
objetivo de mostrar a especificidade da Igreja Flor de Luz frente as demais igrejas do Santo
Daime no Brasil .
Procuramos responder também a seguinte questão : será que a Doutrina alcançará esse
propósito de gerar sentido – para estes indivíduos de São Paulo que se integram a esta
religiosidade em particular - ante a pós-modernidade? Em outras palavras, o Santo Daime
conseguirá direcionar a bom termo esta ambição de transformar o cotidiano de “ilusões” dos fiéis
através do despertar do que há de transcendental no homem ?
Dessa forma, pretendo mostrar também, como a vida cotidiana, o dia-a-dia, a vida em suas
articulações profissionais se correlaciona de forma normal com a rotina religiosa dos daimistas,
como é possível em qualquer outra religião considerada normal pela sociedade. Aquela clássica
questão antropológica de tornar familiar o que é exótico e de mostrar o exótico no familiar.
A principal senha para se adentrar nestes universos culturais será compreender o uso ritual
em São Paulo desta “planta para conhecimento” . Portanto, o daime é a chave para viajar – mirar
– por esses mundos todos. Ele é a nave que te põe em contato com todos esses universos
cosmológicos.
ABSTRACT
What does Santo Daime mean to believers who look for this specific religious line in São
Paulo? What senses can Santo Daime ofter to this chaos in wich lots of people apparently live in
and it is defined by social scientists as after –modernity, paradigm crisis and so on? What are the
paths led by Santo Daime in São Paulo ?
In order to throw a light on these questions and to point a way out of this theorical
maze I decided to do this work. Its goal is to comprehend the role of Santo Daime on filling the
blanks left by the thing I name “the sattering of the soul”, for the absence of definition it stands
for “after-modernity” . I attempt to analyze the way cosmology and the Daime rituals try to put
the pieces together and if this process achieve it’s goal.
The analysis is grounded on the belief that it happens through a symbolic process – most
times uncounsciously – wich builds identity based on some elements of the ritual and of
cosmology. This is what stabilish harmony among the religious comunity and makes and ethos
and a word view. At the same time it offers freewill, the is to say, freedom.
I tried to find the answers by a ethnographical research – following Geertz methodology
and theorical steps – at Community Daimista Flor de Luz, Céu de Midam. I tried to understand
the way this religious community develops a cosmological line which is apparenty way too
different from the ones we find in other religious community: The Star Command Cosmological
Line. This cosmological line is the object of my study in this work. The goal focuses on showing
the peculiarity of Church Flor de Luz before other Santo Daime religious communities in Brazil.
I also tried to answer this question: will the doctrine ever reach the point of bringing sense
to these people from São Paulo who come to this very religiosity in after-modernity era ? Stated
another way, will Santo Daime ever be able to lead to a good term this ambition of transforming
this routine of “illusion” by waking what is transcendental in mankind?
Thus, I intend to show how the everyday-life make a normal relation with the Daime
believers religious rountine just like the way it is possible in other religious communities. The
anthropological question of turning the exotic into familiar an showing the exotic in the familiar.
The main password to get into this cultural universe is the comprehension of the ritual use of this
“knowledge herb” . Therefore Daime is the key to roam – to look – for all these worlds . It is the
vessel that puts you in touch with this cosmological universe.
SUMÁRIO
PREFÁCIO_________________________________________________________________ 01
APRESENTAÇÃO___________________________________________________________ 07
Glossário Daimista____________________________________________________________15
CAPÍTULO 1 : ORIGENS_____________________________________________________22
CAPÍTULO 2 : O SANTO DAIME EM SÃO PAULO_____________________________ 34
2.1 – Definições teóricas___________________________________________________34
2.2 – O Santo Daime é uma religião ? ________________________________________40
2.2.1 – Estrutura Eclesial do Santo Daime ________________________ 45
2.3 – O Santo Daime como Xamanismo Cristão ________________________________49
2.4 – Céu de Maria : O Santo Daime em Osasco _______________________________ 54
2.4.1 – A Multiplicidade Religiosa em Osasco _____________________54
2.4.2 – A Energia Feminina do Céu de Maria ______________________58
2.5 – Conversa com um artista do Daime______________________________________62
2.5.1 – Sobre os Hinos do Santo Daime___________________________64
2.5.2 – Uma História de Ray no Céu de Midam ____________________68
CAPÍTULO 3 : SÃO PAULO E O FLOR DE LUZ _________________________________72
3.1 – O Núcleo Flor de Luz ________________________________________________73
3.2 – A Comunidade Céu de Midam e a Igreja Flor de Luz________________________84
3.2.1 – Espaço Sagrado_______________________________________ 91
3.2.2 – Guardiões do Céu de Midam ____________________________103
3.3 - Rituais no Céu de Midam ____________________________________________112
3.3.1 – Preparativos do Salão __________________________________114
3.3.2 – Preparativos dos Soldados da Rainha______________________116
3.3.3 – Concentração ________________________________________118
3.3.4 – Bailado ou Trabalho de Hinário __________________________120
3.3.5 – Trabalhos de Cura_____________________________________123
3.3.6 – Pronto Socorro do Daime _______________________________127
3.3.7 - O Feitio ____________________________________________128
3.3.8 – Osho em Daime ______________________________________134
3.4 – O Santo Daime e a Ponte Ocidente – Oriente _____________________________136
3.4.1 – A Trajetória de Ângelo, seu encontro com Osho e as meditações
com o Daime ____________________________________________________137
3.4.2 – A Umbanda e a Ligação Oriente – Ocidente ________________140
CAPÍTULO 4 : COMANDO ESTELAR _______________________________________142
CAPÍTULO 5 : MIRAÇÃO, CURA E TRANSFORMAÇÕES NA VIDA COTIDIANA__171
CONSIDERAÇÕES FINAIS __________________________________________________208
BIBLIOGRAFIA ____________________________________________________________214
ANEXOS __________________________________________________________________222
1
Prefácio
Um mergulho em uma cultura densa
Um acontecimento no início de meu contato com o Santo Daime fez-me recordar de
“Um Jogo Absorvente: Notas sobre a Briga de Galos Balinesa” de Clifford Geertz. Mais
especificamente a fuga da polícia, durante a visita de Geertz e sua esposa à uma rinha de
galos, quando finalmente nossos antropólogos deixaram de ser “invisíveis” e passaram a ser
aceitos pelo grupo. Claramente, corro risco de estar exagerando ao estabelecer esta
comparação, principalmente quando sei que há uma certa distância entre as características e
detalhes dos dois casos em questão. Mesmo assim , trago à tona este episódio para ilustrar
determinada situação da qual fiz parte, e que trouxe conseqüências positivas, no sentido de
enriquecer meu conhecimento e ampliar meu olhar antropológico sobre o Santo Daime.
Vamos a Geertz, portanto:
Enquanto caminhávamos sem destino, incertos ansiosos, dispostos a
agradar, as pessoas pareciam olhar através de nós , focalizando o olhar a
alguma distância, sobre uma pedra ou uma árvore , mais reais do que nós.
Praticamente ninguém nos cumprimentava, mas também ninguém nos
ameaçava ou dizia algo desagradável, o que seria até mais agradável do que
ser ignorado. (...) A indiferença, sem dúvida, era estudada; os aldeões
vigiavam cada movimento que fazíamos e dispunham de uma quantidade
enorme de informações bastante corretas sobre quem éramos e o que
pretendíamos fazer. Mas eles agiam como se nós simplesmente não
existíssemos e esse comportamento era para nos informar que de fato nós
não existíamos, ou ainda não existíamos. (GEERTZ, 1989, p. 185)
Em novembro de 2002, quando visitava a Igreja do Santo Daime chamada Céu de
Maria, no monte Santa Fé em Osasco – SP, poucos eram os diálogos entre eu os daimistas.
2
Era a primeira vez que comparecia a um ritual com a bebida sagrada, e tudo me parecia um
pouco estranho. Queria conhecer a doutrina, as crenças, o ritual e os simbolismos envolvidos
e achava que haveria uma exposição algo explícita sobre tudo. Entretanto parecia haver uma
espécie de barreira, de obstáculo à comunicação, uma certa falta de empatia. Na verdade, eu é
que era um estranho, que talvez precisasse mostrar qual era meu objetivo naquele lugar – que
não era apenas alguém querendo experimentar o “barato” de uma nova droga. Muito
provavelmente esta barreira existisse apenas na minha imaginação, irrigada pela tensão que a
situação – de participar de um ritual, de experimentar um enteógeno
1
- gerava em meu ser
interno.
Assim fluíam os acontecimentos, quando no terceiro trabalho de Santo Daime que
participei um fato novo mudou a relação entre eu e os “outros”. Um acontecimento similar `a
fuga desesperada da polícia no caso de Geertz em Bali , puxou-me para o interior das relações
intersociais do grupo : certa vez, ao participar de uma missa, chegando cedo ao sítio onde se
localizava a igreja, ofereci minha ajuda para organizar o salão onde seria realizada a Santa
Missa. Com rodeios, peguei na vassoura e ajudei a varrer a terra e o pó acumulados no piso
da Igreja, dando minha contribuição singela para os preparativos do trabalho espiritual
daquela data. Tal acontecimento gerou uma aproximação maior com os membros do grupo
religioso, criou uma confiança que até então não existia e serviu para que pudesse conhecer
melhor , adentrar o universo cultural dos daimistas.
Este fato também chama a atenção para a importância de se realizar uma pesquisa
etnográfica participante, já que a pretensa objetividade de um olhar posicionado externamente
deixa de revelar muitos aspectos da vida cultural e religiosa estudada pelo antropólogo. Sendo
assim, acredito que não é possível um afastamento total do objeto de estudo na antropologia
1
Bebida que traria a expansão da minha consciência.
3
social. Por outro lado,a pesquisa participante embora negue a possibilidade da neutralidade do
olhar do antropólogo, não retira o dever de pensar sua ação, de refletir sobre sua possível
influência nas informações colhidas, nas relações observadas, diálogos, e outros fatos do dia-
a-dia da pesquisa. Esta preocupação necessita estar sempre presente, do contrário há o
comprometimento do caráter científico da pesquisa. Deve-se perceber a alteridade e a
desigualdade presentes na relação entre pesquisador e pesquisado .
A antropologia – mesmo antes de ter imaginado realizar uma pesquisa etnográfica –
foi crucial para que me despisse dos medos e de meu estranhamento – requisito fundamental,
a meu ver, para participar a bom termo de um ritual sagrado daimista. Aqui faço uma pausa
para realizar uma reflexão sobre a antropologia e a viagem interior do antropólogo, derivada
do fato de se acreditar na verdade e no mundo dos “outros”, procurando seu nexo oculto e
dinamizador. Isto dentro de uma vocação crítica da Antropologia, de se assumir um postura
de “iniciado” na cultura do outro, conforme as palavras José Jorge de Carvalho:
O símbolo cultural, independente da área da vida que ilumine,
poderia servir como um marco na trajetória individual, de maneira que, ao
ser interpretado objetivamente e enfrentado subjetivamente, ajudasse a fazer
do antropólogo um ser humano cada vez mais rico, mais crescido em sua
observação das capacidades humanas e, quem sabe mesmo, mais capaz, em
todos os sentidos do termo, que quando iniciou sua peculiar busca acadêmica
pelo diferente. ( CARVALHO, 1992, p.12)
A antropologia se fortalece com Malinowski que abandona os gabinetes e parte para o
trabalho de campo, o mergulho na cultura nativa, o enfrentar de nosso estranhamento. A
etnografia, assim, possibilitaria ao antropólogo reconhecer o “comum humano através da
diferença” (idem, p.05) . Explicitando outras formas de fazer história, outros modos de viver,
outras culturas – este profissional oferece novas opções de ser ao conhecimento humano.
Oferece até, segundo Carvalho, “o modo antropológico de viver”, que implica em:
4
(... ) uma grande abertura para o outro, a capacidade de
relativização, o cosmopolitismo trabalhado, a imersão de corpo e alma na
comunidade distinta, etc. Ou seja, nesta altura da história da humanidade, ser
antropólogo é mais uma forma de ser humano, como em um momento o foi
o peregrino entre reinos, o andarilho buscador da verdade. (ibidem, p.05)
Seguindo por esse caminho é que nasceu em mim a motivação para realizar uma
busca etnográfica tendo como campo o Santo Daime. Mais especificamente o Santo Daime
em São Paulo. Dentro desta perspectiva, por ser o período do Mestrado um tempo delimitado,
fez-se necessário realizar um recorte dentro de tantas possibilidades que a pesquisa
possibilitara. Pois no início a proposta era estudar três igrejas principais de São Paulo: Céu de
Maria – localizada em Osasco - , Céu da Lua Cheia – em Itapecerica da Serra – e o Céu de
Midam – em Piedade. No entanto, houve a necessidade de reduzir este vasto campo de
pesquisa.
Dessa forma, concentrei minhas atenções no microcosmos de uma igreja do Santo
Daime em Piedade- Estado de São Paulo. Esta comunidade chamada Céu de Midam – Igreja
Flor de Luz – teve seu início na Capital paulista, graças a iniciativa do casal Maria do Carmo
e Jonas Frederico – que se tornaram respectivamente Madrinha e Padrinho do Santo Daime - ,
cresceu e tornou-se um terreno rico em seus símbolos, suas cosmologias, crenças e rituais. É
este universo que procuro analisar, compreender e explicitar através de um estudo etnográfico
fundamentado teórico e metodologicamente na antropologia interpretativa de Geertz, além de
outros autores que complementarão os caminhos teóricos desta empreitada.
Estudar o Santo Daime foi para mim como percorrer um caminho repleto de grandes
primores mas também de muitas dificuldades. Pessoalmente, conheci a bebida – o Daime – e
todo seu simbolismo religioso em 2002, sendo que logo depois iniciaria a pesquisa
etnográfica cujos resultados por ora apresento . Escrevo sobre primores, porque o Santo
Daime representou um universo cosmológico de uma riqueza esplêndida, que me presenteou
5
com um novo ânimo para a minha vida. Este ser sagrado – vinho das almas - significou para
mim um verdadeiro renascimento. E por isso sou muito grato ao Daime, e à irmandade
daimista, por ter me acolhido tão bem, pelas pessoas que conheci e que se tornaram grandes
amigos.
A primeira vez que observei aquele ritual repleto de símbolos, o templo todo decorado
com bandeirinhas multicoloridas – imaginava estar sob a tenda de um grande circo - todas
aquelas pessoas com suas fardas, cantando e bailando – em noites de lua cheia - com tanto
entusiasmo, não tive dúvidas : aqui há um espaço para o desenvolvimento de uma descoberta
etnográfica. Lacunas precisavam ser preenchidas. Além disso, minha procura espiritual havia
coincidido com a vocação antropológica e posso afirmar que esta intersecção de objetivos se
revelou muito frutífera em seus resultados.
Falo em dificuldades e obstáculos no caminho porque nem sempre é fácil adentrar
num universo religioso como o Daime – simultaneamente como participante e pesquisador.
As tensões e conflitos existiram, no meio deste fosso entre os afazeres da vida acadêmica e o
estar lá participando da Comunidade Daimista e dos rituais com o Daime. Algumas pessoas
do Santo Daime em princípio, não sem razão, acreditavam que a Ciência – mesmo em se
tratando da Antropologia, Ciência que procura dar voz ao “outro” – não poderia se intrometer
nos assuntos da Religião. Felizmente consegui romper estas barreiras e convencer a maioria
desta necessidade de conhecer sua cultura, seus símbolos e rituais e de como seria importante
registrar o modo daimista de ser, a partir de um olhar antropológico. Argumentei que este
trabalho poderia contribuir para vencer preconceitos e contribuir para a convivência do Santo
Daime com relação a outras religiões e a sociedade como um todo. Espero que o
conhecimento antropológico presente nesta dissertação possa servir também a este propósito.
Assim como o Daime é considerado um desvelador de ilusões, fico na expectativa que esta
6
pesquisa sirva também para romper os véus da mistificação e do preconceito sobre o ethos e o
modo daimista de viver, de construir sua própria concepção de religiosidade. Refletindo desta
maneira, procurei observar com familiaridade o que a um primeiro olhar poderia considerar
estranho – exótico, excessivo no interior desta comunidade - , assim como exercitei o
estranhamento do olho ao que poderia ser familiar.
Dessa forma, considero que o Santo Daime se constituiu numa grande teia
simbólica que adentrei com um olhar antropológico, participativo, sobre os ombros destes
soldados e rainhas do Império Juramidam; destes indivíduos que desbravam o território
incerto e caótico dos fragmentos e cacos de uma vida urbana pós-moderna em São Paulo.
7
APRESENTAÇÃO
Busco, neste trabalho,enfocar – a partir de uma perspectiva antropológica – o
universo simbólico e a cosmologia presentes nos rituais da religião conhecida como
CEFLURIS – Centro da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra - também denominada
Santo Daime, destacando o debate em torno do sincretismo presente em seu corpo doutrinário
e em sua definição do sagrado. Na verdade, questiono aqui o próprio conceito de sincretismo,
acreditando que – ao menos neste caso específico – torna-se melhor adequado à realidade
estudada o termo “ecletismo” . Dessa forma, procuro analisar como o universo cultural da
floresta é readaptado à vida urbana de São Paulo e de que maneira ganha vida ao se integrar a
aspectos de outras cosmologias religiosas. Nas cerimônias religiosas do Santo Daime –
conhecidas como “trabalhos” - estão presentes elementos da cosmologia indígena ou neo-
xamânica , afro-brasileira, aspectos da religiosidade oriental e do esoterismo europeu,
mostrando-se um movimento eclético, consonante com as especificidades da sociedade
urbana; voltada para as demandas de uma classe média, em sua maior parte formada por
profissionais liberais.
O que aqui apresento se sustenta – além das obras teóricas aqui discutidas - nos
resultados da etnografia realizada na Igreja Flor de Luz – Comunidade Céu de Midam filiada
ao CEFLURIS, localizadas no Estado de São Paulo – Piedade, além algumas observações de
rituais e entrevistas que realizei nas Igrejas Céu de Maria – localizada em Osasco - e Céu da
Lua Cheia – em Itapecerica da Serra .
Como se sabe, o Santo Daime é uma religião gerada a partir do contato entre o
conhecimento cultural de povos indígenas da Amazônia Ocidental com seringalistas vindos
do Nordeste no inicio do século XX , contando também com a influência do catolicismo
8
popular e de cultos afro-brasileiros , sendo que procura criar sua identidade como um grupo
eclético
2
em seus ritos simbólicos e como uma Religião de caráter brasileiro. Nesse aspecto, é
importante notar que, embora o uso indígena da beberagem conhecida por Ayahuasca tenha
sido registrada em vários países da América do Sul, será apenas no Brasil que surgem grupos
religiosos, integrados por populações não-indígenas. Faz-se necessário conhecer mais
profundamente as razões e as condições particulares que possibilitaram este fenômeno
cultural único no Brasil, mas qualquer perspectiva que se adote em relação a tal problemática,
deve-se passar pela especificidade cultural e histórica da formação da sociedade brasileira,
marcada pelo sincretismo religioso e pela forte presença cristã como núcleo aglutinador de
múltiplos universos religiosos. Assim, o Santo Daime faz parte do conjunto das linhas
religiosas que fazem uso de um enteógeno
3
dentro de um contexto ritualístico, com uma
doutrina e regras de comportamento peculiares. Portanto, será dentro deste contexto cultural
que um universo religioso específico cresce e se constrói, e alcança, a partir do início dos anos
80 a região sudeste, os grandes centros urbanos, espaço e tempo em que esta pesquisa
conquista corpo e sentido.
Assim sendo, procuro neste trabalho preencher lacunas etnográficas sobre a
cosmologia e rituais das religiões ditas “ayahuasqueiras”
4
, já que os trabalhos produzidos até
este momento – relevantes e ricos em suas perspectivas - não dão conta de responder a todas
as questões suscitadas pelo objeto de estudo supracitado, revelando a necessidade de novas
2
Ecletismo é um termo mais apropriado que sincretismo, já que este tem o inconveniente de indicar uma junção
desorganizada de elementos cosmológicos díspares e descoordenados. O ecletismo evoca a idéia de uma
totalidade, que envolve o membro da religião num conjunto de cosmologias que convivem entre si .
3
Expressão de origem grega, que significa “deus dentro”. Trata-se de um conceito mais apropriado que droga ou
alucinógeno – por exemplo – expressões estas carregadas de julgamento negativo e que desconsideram o ponto
de vista cultural dos que se integram aos rituais com uso de plantas consideradas sagradas.
4
As religiões ayahahuasqueiras são aquelas que fazem uso em seus rituais de uma bebida – considerada sagrada,
divina – elaborada a partir da infusão de duas espécies vegetais de origem amazônica: o cipó Banisteriopsis
9
iniciativas que dêem continuidade aos resultados teóricos estabelecidos pelas pesquisas então
realizadas. Além disso , trata-se de enriquecer o campo antropológico; difundir o
conhecimento cultural, o respeito e tolerância – diálogo com a sociedade e outras
denominações religiosas – , traduzir – enfim - a riqueza de uma religião que tem suas raízes
na cultura indígena da Amazônia Ocidental e que se propagou das mais diferentes formas em
regiões urbanas do Brasil .
Questões se impõem: Como se delineia o universo simbólico e ritualístico daimista,
com seu conjunto de conceitos e visões de mundo próprias? Qual a definição do “nós” e dos
“outros”
5
formulada por esse grupo ? Como cada Centro Daimista constrói sua identidade
frente aos demais Centros – numa relação tensa entre a especificidade e a unicidade ditada
pelo grupo – e como cada indivíduo daimista reage e se assume ante tal contexto ? De que
forma os “processos de cura” - orgânica e espiritual - contribuem para o crescimento, difusão
e coesão dos Centros, caracterizando-os assim como “Casas de Cura”? Podemos considerar o
Santo Daime como uma doutrina – ou praxis – xamânica e, se assim for, qual a natureza deste
xamanismo? As respostas não são fáceis, mas podem configura-se como uma fonte rica de
pesquisa e vir a ser parte integrante do conhecimento antropológico no Brasil. São esses os
motivos que assim servem de apoio e justificativa a este estudo.
O estudo dos hinários, orações e outros escritos do grupo religioso merecem
cuidado especial, pois a partir deles pode-se aprofundar a observação mais direta da pesquisa
de campo. Com relação aos hinos, foco minha atenção para compreensão das letras, origens,
autores (donos do hinário), o papel da musicalidade, a estrutura e o rigor do bailado
caapi e a folha Psychotria viridis. As três principais linhas religiosas são – segundo Labate (2002) : Santo
Daime, Barquinha e UDV.
5
É importante ressaltar que a identidade deste grupo se constrói em tensão com a sociedade, com as outras
religiões, inclusive com as religiões ayahuasqueiras de outras linhas doutrinárias.
10
associado a determinado hino. Este desempenha um papel de destaque, tanto assim, que o
Santo Daime, pode também ser definido como uma “ doutrina musical” , onde o conjunto de
todos os hinos representam o “livro sagrado” de ensinamentos dos daimistas tal como a Bíblia
para os Cristãos ou o Corão para o Islamismo. Interessante notar, da mesma forma, que a
simplicidade poética de muitos hinos e a repetição de seus versos no momento do canto
exercem a função de incluir aqueles moradores simples e iletrados da floresta, dentro de um
processo que vincula – de forma dinâmica e total - o indivíduo ao ethos do grupo religioso.
É importante lembrar que este trabalho tem como base de apoio principal as histórias
de vida , colhidas entre os integrantes da religião – diretamente ou através de outras fontes -,
registros fotográficos das cerimônias e do local onde estas ocorrem, sempre com o intuito de
decifrar os diferentes rituais do Santo Daime nos centros urbanos de São Paulo, com seus
atores em interação .
A definição de cultura que utilizo – teórica e metodologicamente - para adentrar no
universo religioso dos Centros urbanos do CEFLURIS está formulada por Clifford Geertz
(1989), como sendo uma teia de significados tecida pelo homem, ao qual este encontra-se
amarrado. Cultura, portanto que deve ser interpretada pela Antropologia, com seu ardor em
buscar significados a ela inerentes . No trabalho etnográfico, a cultura deve ser tratada como
“trabalhos de imaginação”, construídos com a “matéria social”, segundo nos afirma Geertz
(1998), e com o qual concordamos. Deve-se ler a cultura como se fosse um texto, sendo que
este se inscreve na intersubjetividade das relações sociais do outro, e portanto, é uma
interpretação da interpretação, uma leitura sobre o ombro do “nativo”.
Este trabalho também procura se orientar pelas principais teses e obras já escritas e
realizadas por antropólogos e outros cientistas sociais sobre as religiões ayahuasqueiras que,
apesar da riqueza – tanto em número de publicações e monografias defendidas como em
11
qualidade – há pontos de vista que ainda precisam ser abordados , além da necessidade de
aprofundamentos e continuidade sobre aspectos que começaram a ser objeto de análise. Em
especial, esta pesquisa dará continuidade a autores como Goulart (1996) , Araújo (1999) e
Labate (2002) que foram os pioneiros a estudar o fenômeno urbano das Religiões que fazem
uso ritual do enteógeno ayahuasca. Serão de fundamental importância conceitos
desenvolvidos por estes pesquisadores como é o caso de “cosmologia em construção” de
Sena Araújo, quando estuda a incorporação de novas cosmologias religiosas na Barquinha; ou
o termo “ecletismo” escolhido por Groisman (1999), cuja escolha atenta para a própria
interpretação que os daimistas tem de sua doutrina – envolvendo elementos católicos,
esotéricos, afro-brasileiros e kardecistas . Já autores, como é o caso de Macrae (1992),
passarão por uma leitura mais crítica, especialmente no momento em que desenvolvem o
conceito de sincretismo para tratar das cosmologias das religiões ayahuasqueiras.
Segundo o antropólogo Alberto Groisman ,reportando à tradição oral herdada dos
tempos de Raimundo Irineu Serra, podemos, caracterizar da seguinte forma o modelo de
espiritismo no Santo Daime:
A denominação ecletismo evolutivo traz consigo uma marca da
influência do espiritismo brasileiro na gênese do culto. Esta denominação me
pareceu muito adequada como forma de representar e justificar a
convivência entre diversos sistemas cosmológicos : a umbanda, o
esoterismo, o espiritismo kardecista, e outros, na cosmologia grupal. Ao
mesmo tempo, assinala a singularidade da concepção daimista do mundo
espiritual. ( GROISMAN ,1999, p. 46)
A questão sobre se haveria um caráter xamânico no Santo Daime, e sobre qual seria a
natureza deste xamanismo, também merece uma elucidação. Neste aspecto são válidos os
argumentos de Macrae , Araújo e Cemim, cada um a seu modo evidenciando a existência de
um sistema xamânico no CEFLURIS, ou de uma práxis xamânica como afirma Groisman
(1999). A discussão teórica em torno do xamanismo no Santo Daime, revela novas tensões,
12
principalmente quando voltamos nosso olhar para o Ritual da Lua Cheia, onde os cânticos e
os discursos locais referem-se diretamente a práticas “arcaicas de êxtase”
6
.
Faz-se importante esclarecer uma influência importante entre as cosmologias presentes
no Santo Daime , que é a dos princípios kardecistas , apresentados em publicações como O
Evangelho Segundo o Espiritismo, O Livro dos Médiuns, Gênesis, de Allan Kardec. O
Kardecismo alçou importância dentro do Santo Daime quando da vinda do Padrinho
Sebastião para o grupo, já que este personagem amazonense era respeitado médium e curador,
incorporando - por exemplo – o espírito de Bezerra de Menezes, médico brasileiro respeitado
“espírito curador”, entre a comunidade kardecista do Brasil.
Defendo a idéia de que diante do aprofundamento do paradigma da modernidade -
com todos os conflitos, tensões e ambivalências da vida urbana – os Centros Urbanos do
Santo Daime, dentro do universo de escolhas religiosas do mundo contemporâneo se
apresentam como uma saída para uma classe média urbana de São Paulo (Brasil) , saída de
resolução de dilemas, integração familiar e fonte de construção de uma identidade então
fragmentada. As “ cosmologias em construção” do Cefluris seriam então uma peculiaridade
deste mundo moderno e a “ Cosmologia Daimista” uma interpretação possível desta vida
urbana fragmentária. Dentro desta mesma dinâmica, embora haja o comando central do
Conselho Doutrinário do Cefluris – que distribui nacional e mundialmente o sacramento –
hoje presidido pelo Padrinho Alfredo Mota de Melo , cada um dos Centros exerce certa
autonomia e constrói assim sua própria identidade. É assim, por exemplo, que no Céu de
Maria - igreja central com capacidade para centenas de pessoas- há o comando do “Padrinho”
Glauco (cartunista do Jornal Folha de São Paulo ) onde se canta seu hinário intitulado
“Chaveirinho”, evocando sempre a proteção de Santa Maria, simbolizada por Nossa Senhora
6
“(...)a vocação xamânica, à semelhança de qualquer outra vocação,manifesta-se por uma crise, por uma ruptura
13
de Aparecida – Santa Padroeira do Brasil – numa imagem que fica na mesa em forma de
estrela salomônica (no centro do salão). Já o Céu da Lua Cheia se caracteriza pelos princípios
do chamado “ Xamanismo Cristão” e por um forte ecletismo – afro-brasileiro, esotérico,
budismo, religiosidade oriental, etc – como fica claro no Hinário de Lua Cheia, onde se canta
e baila para a Lua, para Oxossi, Krishna, Buda, Cristo, Saint Germain, a Águia e ao Leão –
tudo num único dia, numa mesma cerimônia. Já o Céu de Midam em Piedade – SP, é marcado
pela crença nos seres estelares, que seriam guardiães de nossas vidas aqui na Terra .
Torna-se fundamental esclarecer os caminhos metodológicos que adotei ao longo de
minha pesquisa etnográfica sobre o Santo Daime em São Paulo. De maneira mais geral, esta
tarefa foi direcionada pelos princípios metodológicos enunciados na etnografia
interpretativista de Clifford Geertz . Foi baseando-se em técnicas de observação direta e
participante, que se tornou possível a obtenção das informações e dados empíricos que por sua
vez serviram de matéria-prima para esta dissertação.
Realizei também entrevistas abertas, de caráter qualitativo com moradores do Céu de
Midam, com fardados e visitantes da Igreja Flor de Luz, assim como membros fardados das
Igrejas Céu da Lua Cheia – localizada em Itapecerica da Serra – e Céu de Maria – em Osasco,
São Paulo. Tais entrevistas seguiram um roteiro pré-estabelecido mas que muitas vezes sofreu
acréscimos e mudanças de acordo com as necessidades percebidas no desenrolar de cada
depoimento. As perguntas procuravam esclarecer e identificar as interpretações, sentidos e
significados atribuídos pelos fiéis ao Santo Daime. Procurou-se compreender quais as
transformações impressas em suas vidas a partir do momento que se tornaram adeptos desta
linha religiosa em particular. Vale a pena ressaltar que as entrevistas sempre foram precedidas
de um período informal de aproximação com o entrevistado, com a intenção de coletar dados
provisória de equilíbrio espiritual do futuro xamã.” (ELIADE, 1998, p. 03)
14
mais fidedignos, evitando respostas superficiais. Procurou-se na medida do possível gravar os
testemunhos em local propício à privacidade, evitando-se interrupções ou interferências.
A observação e participação nos trabalhos espirituais, assim como o convívio
cotidiano junto à Comunidade Céu de Midam em Piedade – São Paulo – foram fundamentais
para a elaboração desta pesquisa. Através deste convívio pude perceber a veracidade das
entrevistas, assim como pude presenciar o fenômeno do “não-dito” – aquela informação que
se encontra latente, que não aparece nas conversas mais superficiais, mas que é revelada
apenas quando se está inserido na rotina da comunidade e em sua rede de sociabilidade.
O dia a dia na Comunidade, os rituais religiosos, a ação das pessoas envolvidas com a
vida religiosa foram detalhadamente registrados no caderno de campo da pesquisa
etnográfica. Houve também o registro fotográfico dos rituais, das atividades na comunidade
religiosa e das pessoas e moradores do Céu de Midam. Este registro fotográfico teve a função
de construir um texto mais sólido e mais esclarecedor para aqueles a quem se destina sua
leitura. As histórias de vida somadas a estas imagens acabam por construir uma teia
simbólica, que a análise antropológica trata de interpretar – a partir de um olhar sobre o
ombro do “nativo”, como afirmaria Geertz.
Além disso, os documentos da Igreja Flor de Luz – anexados ao final desta dissertação
– foram fundamentais na medida em que auxiliariam na reconstrução da história desta Igreja,
assim como no detalhamento das datas e de outros dados específicos da vida burocrática da
instituição.
Considero, dessa forma, que também cada indivíduo que vivencia essa
“multiplicidade sagrada” constrói - com esta pluralidade de fragmentos sacros - sua própria
essência espiritual e seu caminho de interpretação –tanto das mirações que advém ao ingerir o
vinho sagrado como do contraste presente em sua vida moderna de ambivalências.
15
Glossário Daimista
Aparelho – trata-se do nosso corpo, da nossa matéria que, através da mediunidade recebe as
influências espirituais, que podem ser tanto positivas como negativas. Diz-se que nós somos
aparelhos comandados pela força do astral, do mundo espiritual. O termo “aparelho” faz parte
da influência kardecista existente no Santo Daime, assim como da tradição religiosa afro-
brasileira.
Atuado – sujeito no decorrer do trabalho de Daime que recebeu a presença de uma entidade
espiritual. Nos trabalhos do Santo Daime, só é permitida a atuação ou incorporação nos
trabalhos de São Miguel, trabalhos de banca aberta, ou trabalhos ligados ao chamado
“umbandaime” .
Cabeção ou Casca Grossa – diz-se da pessoa que ainda não adquiriu a sensibilidade
necessária para reconhecer os efeitos do Daime. Muitas vezes esta pessoa precisa tomar um
copo cheio de daime para começar a sentir seus efeitos.
Cipó Jagube – Banisteriopsis caapi é seu nome científico. É o cipó de origem amazônica
que somado à folha rainha, mais água e fogo formam este bebida sagrada, de propriedades
enteógenas, ou seja, capaz de provocar a expanção da consciência. O jagube representa a
força, e é considerado elemento masculino dentro das energias que formam o Daime. Ele
16
contém vários alcalóides como a Harmina, Harmalina que atuam principalmente como
inibidores de monoamina-oxidase (imaos) , ou seja, facilitando a absorção da DMT da folha
rainha pelo organismo.
Corrente – é a somatória do desempenho individual de todos os participantes de um trabalho
espiritual . Quando todos os adeptos procuram seguir as regras do ritual, quando cantam,
tocam seu maracá e bailam com alegria e firmeza, todos se beneficiam com a corrente
positiva gerada. Já num trabalho considerado “pesado”, a corrente se “quebra” e o
desempenho do ritual fica prejudicado. Nesta ocasião é papel do comandante do trabalho
tomar iniciativas para reorganizar a corrente.
Daimado – diz-se do indivíduo que ainda está sobre os efeitos do Santo Daime. Muitas vezes
mesmo depois do trabalho espiritual encerrado, você ainda sente – em diferentes graus – o
Daime agindo em sua consciência.
Eu Inferior – é a nossa matéria, nossos desejos e defeitos mais mundanos. São sentimentos
considerados mais inferiores como o ciúme, raiva, inveja que, se não controlados, podem
levar ao sofrimento e a infelicidade.
Eu Superior – é parte divina, a centelha de Deus, que há em cada um de nós. Representa a
nossa essência, o que verdadeiramente permanece de todas as encarnações pelas quais o
indivíduo passou – segundo a crença daimista. Ele representa os sentimentos, pensamentos e
valores considerados nobres ou superiores. É também chamado de memória divina ou
17
memória cássica. Nos trabalhos espirituais com o Daime deve-se buscar nosso eu superior, e
harmonizá-lo com o chamado “Eu Inferior”.
Disciplina – é uma postura requerida a todo daimista. Este deve respeitar as recomendações
do comandante do trabalho espiritual, devendo se apresentar no trabalho com a farda
impecável, etc. O seu contrário – a rebeldia – é constantemente condenada nos hinos.
Estrela – a estrela de seis pontas – estrela do Rei Salomão – é um símbolo que designa a
adesão do indivíduo à esta Doutrina Religiosa. No trabalho deve trazê-la no peito.
Farda – seria o uniforme utilizado pelos fiéis do Santo Daime. Existem dois tipos : a farda
branca, para ocasiões especiais, trabalhos de hinário e oficiais; e a farda azul, utilizada em
Concentrações, trabalhos de cura, Santa Missa e trabalhos não oficiais (datas fora do
calendário do CEFLURIS) .
Firmeza – Umas das qualidades mais enfocadas pelos daimistas. Trata-se da necessidade de
seguir os preceitos éticos e morais da doutrina, do dever de seguir os ensinamentos contidos
nos hinos. Diz respeito também a ser firme , durante o ritual , diante da força do Daime. O que
significa, prestar atenção aos hinos, cantá-lo com alegria e convicção, bailar e tocar seu
maracá corretamente.
Folha Rainha - Trata-se da folha de um arbusto conhecido cientificamente por Psychotria
viridis, é associado ao jagube para formar o Daime. Ela representa a luz, a miração , a energia
feminina contida na bebida. Possuí – quimicamente falando – a dimetil-triptamina ou
18
simplesmente DMT. Esta substância ingerida oralmente não teria nenhum efeito na mente
humana, pois seria destruída pelas enzimas do aparelho digestivo. No entanto, associoada aos
imaos do Jagube torna-se um forte poder psicoativo.
Maracá – Um dos principais instrumentos musicais do daimista, semelhante a um chacoalho.
Provavelmente, seu uso vem de influências indígenas. Além do som do maracá marcar os
passos do bailado, também representa uma arma espiritual e uma forma de se chamar a força
do Daime.
Miração - trata-se do êxtase provocado pela ingestão do Daime, representado por visões,
sons, percepções, insights e outros sinais de caráter psíquico ou religioso. Na maioria das
vezes a miração se manifesta na forma de imagens e cores durante o “vôo da alma” ,ou em
outras palavras, durante a expansão da consciência provocada pela bebida. O contexto ritual -
com os canções, a música, o incenso e o bailado - criam um clima propício para que os
adeptos penetrem neste estado de êxtase e mirem.
Padrinho – é o comandante da Igreja e/ou da Comunidade. Exerce uma liderança espiritual
e, geralmente, é dono de um carisma que garante o pleno desenvolvimento de sua posição.
Pegado – o mesmo que daimado.
Peia – espécie de castigo simbólico que a pessoa que toma daime pode sofrer. Pode se
manifestar no mal estar, vômitos, diarréia, e outras sensações desagradáveis. Acredita-se que
há uma entidade ou energia espiritual , chamada de “Marachimbé” que vem disciplinar
19
aqueles adeptos que por algum motivo desviaram-se de preceitos éticos presentes nos hinos e
na Doutrina Daimista.
Rodado - aquele que sofreu surto, também chamado de “surtado”.
Santo Cruzeiro – Um dos principais símbolos sagrados dentro da cultura do Santo Daime.
Trata-se da Cruz de Caravaca, com dois braços na horizontal, sendo que o segundo representa
a volta de Cristo à Terra, ou também pode ser interpretado, como a energia crística presente
no Mestre Irineu.
Surto - diz-se que o Daime é para todos mas que nem todos são para o Daime. Existem
pessoas que não se aconselha beber esta bebida. Principalmente quem apresenta sinais de
patologias psiquiátricas, quem é epilético ou faz uso constante de medicação psicotrópica. Se
a pessoa tiver uma semente lá dentro dela de desenvolver uma psicose, o Daime puxa esta
semente, e a pessoa pode acabar enlouquecendo. Estes casos são raros, mas podem ocorrer. O
abuso também desta bebida considerada sagrada pode gerar o surto. Na etnografia no Céu de
Midam, coletei um relato sobre uma pessoa que, em casa, tomava Daime todos os dias, todas
as horas, desregradamente, além de fazer uso de outras substâncias. O resultado foi que
surtou: todos os dias, às três da manhã ele sobe um morro próximo à sua casa, carregando
uma cruz de madeira do seu tamanho, gritando a todos os cantos que ele é um profeta e que
traz a salvação.
20
Trabalho – a cerimônia religiosa no Santo Daime recebe a denominação de trabalho. No
trabalho o daimista vai gradualmente buscando sua evolução espiritual e doutrinando os
espíritos que precisam de luz.
Vivas – são saudações ou louvores – dados em alguns intervalos entre um hino e outro - aos
seres divinos, a Jesus Cristo, São José, ao Mestre Irineu, ao Padrinho Sebastião , a Padrinhos e
Madrinhas, aos aniversariantes, aos visitantes, às crianças, ao Santo Cruzeiro, etc. Sempre há
uma ou duas pessoas designadas desde o ínicio do trabalho para dar estas vivas, que são
respondidos pela ala masculina do salão.
21
Figura I – Mestre Raimundo Irineu Serra
Figura II – Padrinho Sebastião Mota de Melo.
(As figuras I e II fazem parte da decoração da Igreja Céu do Vale
em Pindamonhangaba – SP) – Mestre Irineu e Padrinho Sebastião
encontram-se nessas imagens envolvidos pela folha rainha
e pelo cipó jagube – plantas que constituem o Santo Daime.
22
CAPÍTULO I - AS ORIGENS
Construiremos neste capítulo uma breve trajetória histórica das principais Religiões
Ayahuasqueiras
7
do Brasil, procurando enfatizar a linha religiosa fundada pelo amazonense
Sebastião Mota de Melo, cuja sigla C.E.F.L.U.R.I.S. – Centro Eclético da Fluente Luz
Universal Raimundo Irineu Serra – é mais conhecida pela denominação de “Santo Daime”
8
,
nome este que será utilizado nesta dissertação. Sabe-se que a utilização ritual da bebida
produzida a partir da associação do cipó Banisteriopsis caapi com outras plantas -
principalmente a folha da espécie Psychotria viridis – vem de longa data, fazendo parte da
tradição xamânica de diversos povos indígenas da Amazônia Ocidental . A palavra ayahuasca
- nome mais comum para esta bebida sagrada – é de origem quíchua, podendo ser traduzida
como cipó das almas ou ainda vinho das almas, pois sua ingestão garante o acesso ao mundo
espiritual - local privilegiado ,segundo a maioria dos povos que a utilizam, onde reside a
realidade verdadeira, em contraposição ao mundo cotidiano, mundo de ilusões.
Apresentaremos logo abaixo uma sucinta análise de alguns destes povos indígenas e suas
cosmologias e rituais ligados à ayahuasca. Embora não faça parte do objetivo desta pesquisa,
lembramos que foi graças a esses povos e aos chamados caboclos vegetalistas – mestiços de
origem branca e índia vivendo entre as regiões fronteiriças do Brasil, Peru e Bolívia –
somando-se à chegada de migrantes nordestinos atraídos pela economia da borracha, que
7
Segundo Labate ( 2002) Religiões Ayahuasqueiras são aquelas formadas por integrantes de populações não-
indígenas que fazem uso ritual da bebida ayahuasca a partir de uma releitura cristã das cosmologias indígenas e
dos caboclos vegetalistas da região amazônica – também chamados de curandeiros. Essas religiões trazem
também uma influência do espiritismo kardecista, do esoterismo europeu e das tradições afro-brasileiras.
8
Santo Daime é o nome do grupo religioso, assim como da bebida sagrada usada nos rituais.
23
veremos se constituir os primórdios das religiões brasileiras que se utilizam da ayahuasca em
seus rituais. Alguns traços essenciais da tradição cultural desses povos indígenas e caboclos
podem ser encontrados até hoje nos rituais do Santo Daime e outras religiões e grupos que
utilizam a bebida sagrada, tais como : a importância dos cantos para se chegar ao estado de
miração ou êxtase, o vôo da alma, a dança e o cuidado com as dietas do corpo antes e depois
do ritual, a dicotomia mundo de ilusões/mundo espiritual, entre outros.
Vejamos , portanto, algumas informações sobre o uso indígena da ayahuasca. Segundo
o antropólogo Glenn Shepard , os Machiguenga – habitantes da floresta tropical montanhosa
localizada na encosta leste dos Andes Peruanos – realizam rituais com a bebida kamarampi -
que significa “ remédio de vomitar” – com diversos objetivos : auxiliar o xamã no diagnóstico
e cura de doenças, trazer sorte para o caçador, reforçar os vínculos comunitários, etc. Também
os índios kampa ou ashaninka – como se autodenominam – consomem kamarampi
9
em suas
cerimônias sagradas . Segundo Paskoali (2002) os ashaninka buscam nestas cerimônias
alcançar a cura, a comunicação com os espíritos da floresta e a proteção espiritual contra os
maus espíritos e a feitiçaria.
Ainda segundo Paskoali, o xamã (ou dsoppineje ) do povo kulina
10
–– promove uma
viagem ao mundo do sagrado através de cânticos e da ingestão de Rami - nome dado à
ayahuasca , objetivando a cura, a previsão do futuro e a proteção contra os maus espíritos.
Já para os kaxinawá localizados no sudoeste do Peru e do Brasil, a bebida recebe o
nome de nixi pae ou “cipó forte” , e é utilizada em festas – que não ocorrem com muita
freqüência – com a motivação de contato com o sagrado e a comunicação com os espíritos do
nixi pae.
9
Os ashaninka e os machiguenga pertencem a famílias lingüísticas próximas – Aruák e Campa, respectivamente.
10
De família lingüística Aruak , são encontrados no Peru e no Brasil. No Acre, habitam a localidade do alto Rio
Purus (PASKOALI, 2002) .
24
Na etnia Baniwa – povo de língua Aruak , que vive na Amazônia, mais
especificamente na fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela – a bebida recebe o nome de
caapi e, era utilizada em rituais pré-guerra , sendo posteriormente ingerida nas danças com os
maracás . Tanto no caso da dança como nos preparativos para a guerra, o caapi era tomado
para dar coragem . O caapi – conforme Robin M. Wright – provocava nos indíos mudanças
de percepção, visões de formas geométricas e imagens coloridas , além de aparições de
anacondas.
Veremos agora quais foram as principais religiões que surgiram em torno do uso
sacramental desta bebida enteógena. Geralmente se identificam como principais linhas
religiosas que fazem uso da ayahuasca as seguintes denominações: o Alto Santo – primeira
igreja, que começou a se formar a partir de 1930, fundada por Raimundo Irineu Serra –; a
Barquinha – ligada a Daniel Pereira de Matos fundada em 1946 –, a UDV - União do
Vegetal criada a partir de 1960 por José Gabriel da Costa e o C.E.F.L.U.R.I.S. (Centro
Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Inineu Serra)criado pelo amazonense Sebastião
Mota de Melo e registrado oficialmente em 1974. Vale lembrar que tanto o Alto Santo como o
CEFLURIS se autodenominam como Santo Daime e consideram-se seguidores autênticos
dos ensinamentos de Raimundo Irineu Serra – o Mestre Irineu. Todavia , segundo Labate
(2002), há grandes diferenças e conflitos entre estes dois grupos , sendo que o Alto Santo se
tornou hoje um grupo mais tradicional e restrito ao Acre e o CEFLURIS expandiu-se – tanto
do ponto de vista ritualístico quanto espacial - para o Brasil e diversos países do globo.
O Santo Daime (CEFLURIS) e a UDV a partir dos anos 70 e 80 iniciam sua fase de
expansão, organizando centros em outros estados do Brasil além da Região Norte e ganhando
dimensão internacional. Já a Barquinha e o Alto Santo, como já foi dito acima, ficarão mais
localizados, permanecendo circunscritos à Região Norte.
25
Como se sabe, entre os primeiros protagonistas e fundadores do Santo Daime estão os
seringalistas vindos do Nordeste no inicio do século XX , que darão início a uma religião
gerada a partir de um mosaico eclético formado pelos seguintes elementos: conhecimento
cultural de povos indígenas da Amazônia Ocidental, a influência do catolicismo
popular,cultos afro-brasileiros e esoterismo – principalmente ligado ao Círculo Esotérico da
Comunhão do Pensamento e à linha Rosa Cruz . Dessa forma o Santo Daime procura – desde
sua origem - criar sua identidade como um grupo eclético em seus ritos simbólicos e como
uma Religião de caráter brasileiro.
A história das origens do Santo Daime se confunde com a biografia do maranhense
Raimundo Irineu Serra (1890-1971) - um dos principais fundadores do grupo religioso -,
motivo que nos traz a necessidade de acompanhar, de forma sucinta, a trajetória de sua vida.
Como tantos nordestinos, Irineu – nascido em São Vicente de Ferrer - Maranhão - parte para
o Acre por volta de 1912, buscando trabalho nos seringais. Lá, Irineu exerceu várias
ocupações : desde seringueiro e agricultor, assim como soldado da Guarda Territorial, na
delimitação das fronteiras entre Brasil (Acre) , Bolívia e Peru.
É uma tarefa díficil traçar com toda certeza os acontecimentos na vida de Irineu, pois
há ausência de dados – além do fato de sua história pessoal vir sempre associada ao mito
criado em torno de sua figura . Mircea Eliade (1972) nos traz a seguinte definição sobre o
mito:
A definição que a mim, pessoalmete, me parece a menos imperfeita,
por ser a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele
relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do
“princípio” . (ELIADE, 1972, p. 11)
Como veremos mais adiante, será através de um mito – que narra a iniciação de Irineu
- que se estabelecerão as bases para as origens do Santo Daime . Este tempo primordial –
26
próprio do mito - acaba por se confundir com o desenrolar dos acontecimentos na passagem
de Irineu pela região do Acre.
Sabe-se que ele passou pelas cidades de Xapuri , Brasiléia, e Sena Madureira , estando
também no Peru e Bolívia. Nestes locais, travou contato com etnias indígenas, onde
provavelmente conheceu a bebida conhecida entre outros nomes por Ayahuasca.. Entretanto
sua iniciação com esta bebida – de acordo com a maioria dos relatos - está marcada pelo
encontro com o caboclo vegetalista Dom Crescêncio Pizango . Segundo o depoimento
11
do
seringueiro Luiz Mendes do Nascimento, Pizango era um peruano que realizava um pacto
satânico com o uso da ayahuasca, sendo que no ritual as pessoas tomavam a bebida e
invocavam o nome do diabo, para atrair fortuna e facilidades na vida. Uma das versões desta
história é assim narrada:
Tomou a bebida e quando começou a trabalhar , botaram a boca no
mundo, chamando o demônio. Ele (Irineu ) também começou a chamar. Só
que na proporção que ele chamava o demônio, eram cruzes que iam
aparecendo. Ele se sentiu sufocado de tanta cruz que começou a aparecer . O
Mestre começou a analisar: ‘ O diabo tem medo da cruz e na medida que eu
chamo por ele, aparecem as cruzes. Tem coisa aí...’ Ele pediu para ver uma
série de coisas . Tudo que ele queria, ele pôde ver. Isso o impressionou
bastante. E assim foi a primeira vez... ( Luiz Mendes do Nascimento)
12
É importante destacar o nome de Antônio Costa, um negociador de borracha do Acre,
que torna-se amigo e protetor de Irineu Serra. É ele que apresenta o vegetalista Pizango a
Irineu, e que vai acompanhá-lo em outras vivências com a ayahuasca. Numa dessas ocasiões,
preparam e ingerem a ayahuasca - apenas os dois - e recebem a visão de uma mulher. Esta
aparece, de início, com o nome de Clara. Numa nova oportunidade , Irineu compreendeu que
ela era , na verdade , uma Deusa Universal:
11
Esta é apenas uma das versões sobre este encontro de Irineu com Pizâncio. Há outras versões, o que torna
difícil reconstruir estes fatos. Como foi dito acima, o mito da iniciação xamânica do Mestre Irineu se confunde
com sua própria história de vida.
12
Depoimento retirado da Revista COMUNIDAIME – Boletim do CEFLURIS – CENTENÁRIO DO MESTRE
IRINEU – ABRIL DE 1993.
27
(...) Na próxima vez, depois de tomar o Daime, ele armou a rede de
modo que a vista dava acesso a lua. Parece que estava cheia , ou quase cheia.
Era uma noite clara , muito bonita. E quando ele começou a mirar muito deu
vontade de olhar para a lua. Quando olhou , ela veio se aproximando, até
ficar bem perto dele , na altura do teto da casa. E ficou parada. Dentro da
lua, uma senhora sentada numa poltrona, muito formosa e bela. Era tão
visível que definia tudo, até as sobrancelhas ,nos mínimos detalhes . Ela
falou para ele:
- Tu tem coragem de me chamar de Satanás?
- Ave Maria, minha Senhora, de jeito nenhum!
- Você acha que alguém já viu o que você está vendo agora?
Aí ele vacilou , pensando que estava vendo o que os outros tinham visto.
- Você está enganado . O que estás vendo nunca ninguém viu. Só tu. Agora me
diz : quem você acha que eu sou?
Diante daquela luz, ele disse:
- Vóis sois a Deusa Universal!
- Muito bem . Agora você vai se submeter a uma dieta. Para tu poder receber o
que eu tenho para te dar.” ( Luiz Mendes do Nascimento)
13
Irieneu , dessa forma, havia recebido em miração
14
, a tarefa de realizar uma dieta de
macaxeira insossa , devendo permanecer cerca de oito dias na mata , tomando Daime , não
devendo ter nenhum contato com qualquer mulher. Realizando esta passagem, ao longo de
quatro dias , Irineu percebe que não precisava mais tomar o Daime, pois já vê os seres da
floresta e os espíritos – isto sem a necessidade de ingerir a bebida sagrada . Ao final dos oito
dias , Raimundo Irineu Serra recebeu a presença da Rainha da Floresta – Virgem da
Conceição – que lhe passou a missão de “ doutrinar o mundo inteiro”, como se canta em um
de seus hinos. Podemos afirmar, que este é o mito fundador que origina o Santo Daime como
linha religiosa. Dessa forma, Irineu funda em associação com Antonio Costa o Círculo de
Regeneração e Fé (C.R.F.) por volta de 1916 e, em 1930 cria o Centro de Iluminação Cristã
Luz Universal Alto Santo, em Rio Branco – AC, onde aos poucos vai estruturando e
modelando os trabalhos espirtuais com o Santo Daime. A Doutrina do Santo Daime,
13
Idem, 1993.
28
propriamente dita, inicia-se quando Irineu recebe um chamado da Rainha da Floresta para
abandonar a Guarda Territorial e assumir o posto de “General do Batalhão da Rainha da
Floresta” (Maia Neto, 2003: 95), momento em que implanta os trabalhos de cura e
concentração no bairro da Vila Ivonete, em Rio Branco.
Vejamos como a Madrinha Maria do Carmo, hoje com 60 anos, nascida em Rio
Branco, e dirigente da Igreja Flor de Luz – Piedade, São Paulo, fala sobre seu encontro com o
Mestre Irineu, quanto tinha dez anos, por volta do ano 1957:
Bem, para falar nisso . . . Em Rio Branco, há uns 40 anos atrás, era
como uma cidadezinha do interior , era pequena , ali todo mundo dizia assim
“oi como é que tá você ?” , hoje ainda tem isso , mas em menor escala. E o
Daime nasceu no Rio Branco, sabemos disso, todo mundo sabe que o Daime
foi fundado pelo Mestre Irineu e a gente na igreja católica ouvia falar do
padre muito sermão a respeito dessa seita, que ele chamava seita do diabo . E
eu era criança ouvia e ficava ali, ouvindo aquelas coisas que o padre falava
na hora lá da pregação, a seus fiéis. Então, o Daime foi assim, a gente vai
sabendo do Daime , dos acontecimentos, por de trás das cortinas, por de trás
dos bastidores, com o padre falando . E eu fui crescendo com aquela palavra,
mas eu era católica, então... E uma vez, para falar assim de como eu conheci
o Daime, desde criança, minha família tinha... aqui chamam mercearia , lá
era taberna , um linguajar assim de 40 anos atrás , tinha uma taberna , e eu
criança ficava por ali aí eu escutava as pessoas comentarem , conversarem.
Quando chegou uma conversa lá assim “ mas rapaz, ele tem um pé tão
grande , cabe numa caixa de sabão , o Irineu tem um pé grande mesmo !” . E
eu ouvia aquilo e ficava admirada. E aí eu olhei para dentro de uma caixa de
sabão zebu , hoje em dia não existe mais isso , que era sabão em barra ,
numa caixa comprida, acho que tinha uns 50 cm a barra de sabão, e eu como
criança fiquei na curiosidade de conhecer o Mestre Raimundo Irineu Serra
que naquele tempo era Raimundo Irineu Serra, né ... E ainda não tinha a
denominação de mestre. O pessoal falava o Irineu ... E eu fiquei curiosa,
para conhecer esta pessoa , que tinha um pé grande, como que ia caber um
pé dentro de uma caixa tão grande ? Daí eu consegui, com dez anos que eu
cheguei a conhecer o Mestre. Conhecer não, porque conhecer é ... é você ter
intimidade com uma pessoa, não, eu vi o Mestre , vi e lá em Rio Branco ,
tinha as festas juninas , era Santo Antônio, São João e São Pedro, então eles
faziam aquelas quermesses , para nós lá é arraial, os arraiais, para angariar
fundos, e havia um arraial lá na Colônia Custódio Freire , onde é justamente
hoje o Alto Santo . Então nesse período ajuntavam várias colônias e lá era
um entroncamento onde tinha várias colônias perto uma da outra, eram
14
Miração – estado de êxtase provocado pela ingestâo do daime, representado por visões, percepções , insights e
outros sinais de caráter psíquico ou religioso.
29
divisas uma como com a outra, tinha a Joarez Távora, Custódio Freire ,
Apolônio Sales , Adalberto Sena , então tinham várias colônias que se
ajuntavam e faziam a festa. E a Joarez Távora e a Custódio Freire eram as
mais famosas devido a estar o Mestre Irineu lá, que tinha os seus agregados e
aí eu conheci o Mestre . E eu era uma menina e fui para esse arraial, pedi
para minha mãe e uma vizinha, junto com suas filhas, me levou. Eu fiquei
naquela curiosidade... naquela curiosidade de ver o pé , é realmente... e aí,
quando nós fomos lá , aí teve uma hora lá , ele foi para o arraial e sentou ,
tinha que marcar presença no arraial , aí todo mundo fazendo a fila , quando
a minha amiga lá, minha colega chamou prá gente ir para a fila para tomar a
benção do padrinho , aí eu fui para a fila também, fiquei na fila para
cumprimentar o Mestre Irineu e tomar a benção e eu cheguei perto e já
olhando para o pé , mas naquele momento ali, nunca esqueci isso , eu fui
pedindo a benção mas não olhava nem para ele ... assim, vi , aquela
imponência que ele era muito grande , sentado numa cadeira ele se
sobressaia de todo mundo , de todos. E foi assim que conheci o Mestre
Irineu.
Madrinha Maria do Carmo.
Para Maria do Carmo - analisando estes acontecimentos a partir do momento presente
– este rápido contato com Mestre Irineu, em que pede sua benção, mas sem conseguir tirar os
olhos de seus enormes pés, que eram do tamanho de uma caixa de sabão Zebu, simbolizam o
início da Igreja Flor de Luz, representam um sinal de sua dedicação ao Santo Daime como
doutrina espiritual.
Falaremos agora, do segundo momento importante na História da Doutrina do Santo
Daime, que se inicia a partir da chegada no Alto Santo do amazonense Sebastião Mota de
Melo ( 1920-1990). Sebastião e seu povo, serão responsáveis, em 1974, pela fundação oficial
do CEFLURIS (Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra ) –
resultado de uma cisão do grupo originalmente criado por Irineu . Padrinho Sebastião, como
será conhecido por seus seguidores, chega em Rio Branco em busca de cura para uma doença
grave , já quase sem esperanças após ter passado por médicos e curadores da região. É lá que
conhece Raimundo Irineu Serra, que o convida para tomar contato com o Daime, e por
intermédio dessa bebida acaba por receber sua cura :
30
Tomei o Daime e fui para o meu cantinho. Era uma Concentração.
(...) Olhava os outros, tudo quieto. Com um pouco começou uma fervilhança
de um lado do corpo, passou pro outro, eu pensei : “O tal negócio tá
chegando.” Eu fui criando medo e me deu uma desimpaciência comecei
reparar nos outros. Eu quis sair do lugar onde estava , andei na pontinha do
pé, mas quando chego bem perto de onde a gente tomava o Daime ele me
deu um assopro. Eu achei tão fedorento! Aí voltei para trás. Quando eu vou
chegando no banco para me sentar de novo, uma voz falou: ‘O homem
perguntou se você era homem e você só fez é gemer! Foi aí que o negócio
aconteceu. O mundo acabou-se ! O corpo velho foi abaixo. O corpo no chão,
e eu, já fora do corpo, fiquei olhando para ele. E me sentia alegre, não tinha
nada de doença só quem sofria era o corpo que estava lá estirado . Nesse
momento se apresentaram dois homens que eram as duas coisas mais lindas
que eu já vi na minha vida! Brilhavam como o Sol!
(...)
Quando eles chegaram, pegaram meu esqueleto todinho na mão.
Puxaram meus ossos por inteiro, que nem uma espinha de peixe. Olhavam e
reviravam aquela ossada, separando a costela do espinhaço, depois danaram-
se a tirar tudo. Viravam e limpavam tudo. Me mostravam tudo. De repente
os ossos sumiram, quando dei conta já estavam no corpo. Aí, viraram a
carcaça que sobrou e partiram em pedaços, pendurando tudo nuns ganchos .
Puxaram para fora o intestino e ficaram com ele todo na mão. Depois
pegaram o fígado, cortaram, abriram e me mostraram. Tinha três bichos do
tamanho de um besouro. Eram eles que andavam para cima e para baixo,
provocando todo aquele mal. Um dos homens veio bem pertinho de mim,
que a tudo observava fora do corpo, e disse: “Estão aqui, quem estavam-lhe
matando eram esses três bichos, mas não tenha medo que desses você não
morre mais.” Aí eles meteram os órgãos e o esqueleto dentro do corpo e fui
acordar já dentro dele.
(Depoimento de Pad. Sebastião in ALVERGA, 1998, p. 61)
Após participar desta concentração presidida pelo Mestre Irineu, Sebastião se vê
com a saúde renovada como a de um menino; a partir de sua cura, torna-se um profundo
seguidor da doutrina daimista, vindo a se tornar um doutrinador , um líder que com seu
carisma e humildade procurou repassar a todos que lhe procuravam e que estavam a seu lado
as verdades espirituais que lhe foram reveladas com a luz do Santo Daime.
Segundo Pedro Dário, acreano de 59 anos, o padrinho Sebastião:
31
Era chamado de Sebastião Idalino. Dizia o povo “quem é aquele que
passa pela luz na noite?” . Gostava de acordar antes do Sol nascer, e já
começava a trabalhar. Ele construía canoas e gostava de fazer acabamento
nos barcos. Curava as doenças da matéria e do espírito. Era um bom rezador
nesta região (Colônia 5000) .
Pedro Dário
Com a morte de Mestre Irineu em 1971, ocorrem desentendimentos na direção do Alto
Santo, o que leva Sebastião Mota de Melo , a juntar “seu povo” , aproximadamente cem
irmãos, e organizar sua própria comunidade daimista. Será a Comunidade 5000, localizada na
área rural de Rio Branco:
A experiência comunitária iniciada na Colônia 5.000 foi, portanto, o
primeiro degrau no processo de Sebastião Mota, que o levou mais tarde a
plantar o povo de Deus no interior da floresta, cenário escolhido por Mestre
Irineu para a transição da velha para a Nova Era. (ALVERGA, 1992, 107)
Nessa época, começavam a chegar à região muitos jovens da classe média urbana –
entre eles hippies e mochileiros - da região sul e sudeste do Brasil. Tal encontro acaba por
atribuir uma face mais moderna ao Santo Daime, e, a estes jovens caberá a tarefa de expandir
as “santas doutrinas” – fundando igrejas e núcleos do CEFLURIS nos grandes centros
urbanos do sul . Entre eles se destacam Lúcio Mortimer e Alex Polari de Alverga, este que
nos anos da ditadura participou de movimentos contra os militares , sendo preso e torturado.
A Comunidade da Colônia 5000 representou, portanto o primeiro passo para a
construção do projeto espiritual, material e comunitário do Padrinho Sebastião. Alguns anos
depois deu-se início à peregrinação rumo ao centro da floresta amazônica, primeiro com a
instauração do Seringal Rio do Ouro e , mais tarde , na Vila Céu do Mapiá, que até hoje
permanece como grande centro religioso e de peregrinação – uma espécie de Meca – para
daimistas de todos os lugares do Brasil e do exterior:
32
O povo do Padrinho Sebastião abriu dois seringais , o primeiro “Rio
do Ouro”, quando saíram da Colônia Cinco Mil por motivos de expansão do
desmatamento, ocasionados pela pecuária e queimadas, em fins de 1979.
Estabelecendo-se em áreas cedidas pelo INCRA, passaram apenas três anos,
por ter aparecido o ‘dono das terras’ brigando pela sua posse. A comunidade
foi obrigada a retirar-se deixando grandes benfeitorias , como construção de
moradias , roçados , fruteiras, estradas de seringa etc. . No ano de 1983,
instalaram-se no
seringal Céu do Mapiá , localizado à margem esquerda do
Rio Purus, no Igarapé Mapiá. (CUNHA, 1986, p. 43)
Enquanto Raimundo Irineu Serra cristianizou a ayahuasca, atribuindo um novo
contorno ao seu uso sagrado e dando início à criação das Religiões Ayahuasqueiras, Sebastião
Mota de Melo será o responsável por iniciar a ampliação e renovação dos ritos e crenças do
Santo Daime, através de uma ênfase na construção de uma vida comunitária.:
Assim foi que a identificação da igreja e da Comunidade 5.000
representou um primeiro grande ensaio para o desenvolvimento posterior do
Rio do Ouro e do Céu do Mapiá . O povo se organizou nos mutirões e
vários roçados foram abertos. Juntou-se o gado, levantou-se um engenho de
açúcar, construiu-se a igreja, um armazém e muitas casas. ( ALVERGA,
1992, p. 109)
Sebastião Mota de Melo recebeu e acolheu os “visitantes” do sul do país, assim como
os jovens estrangeiros que chegavam até ele para conhecer esta “exótica” comunidade que
vivia no coração da floresta amazônica e que consagravam um “chá” dito alucinógeno.
No próximo capítulo será descrita a chegada do Santo Daime em São Paulo , e, em
seguida nos aprofundaremos na história da Comunidade Céu de Midam – Igreja Flor de Luz,
que foi um dos primeiros e mais significativos grupos daimistas que se instalaram nesta
metrópole.
33
Figura III – Glauco Villas Boas, cartunista do jornal Folha de São Paulo e comandante da Igreja Céu de
Maria.
34
CAPÍTULO 2 -
O Santo Daime em São Paulo:
Igrejas, Símbolos e Personagens.
2.1 Definições Teóricas
Pretendemos traçar uma análise do Santo Daime, do sentido daimista de ser, a partir
do que Geertz considera uma descrição densa da cultura desses indivíduos sociais. Procura-se
entender como os daimistas - como atores do jogo social - interpretam os significados
mostrados pelo daime nas mirações, nos rituais, no dia-a-dia e na vida em comunidade.
Considerando a cultura – metaforicamente falando - como um conjunto de textos que
demandam interpretação, a etnografia mostra-se um meio eficaz de compreendê-los a partir
do ponto de vista dos fiéis do Santo Daime. Estudaremos um caso local, uma comunidade
35
particular do Santo Daime, buscando compreender as especificidades ali presentes, sem a
pretensão de esgotar totalmente o assunto ou chegar a grandes generalizações etnológicas.
Em um primeiro momento , estaremos tratando o Santo Daime como religião, embora
como veremos mais adiante, os fiéis entrevistados na pesquisa podem defini-lo de outras
maneiras
15
. Dessa maneira, o primeiro passo que realizaremos é definir o que se compreende
como religião. Em afinidade com nossa linha teórica, adotaremos a definição de Geertz, para
quem religião é:
(...) um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas,
penetrantes e duradouras disposições e motivações dos homens através da
formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas
concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações
parecem singularmente realistas .
16
Preocupando-se com a dimensão cultural da análise religiosa, Geertz afirma ser
necessário à Antropologia Social alargar seus conhecimentos sobre Religião, para além da
contribuição deixada por Weber, Durkheim, Malinowski e Freud, pensadores clássicos do
tema. Faltaria, segundo o autor, uma análise que desvende como “a religião ajuste as ações
humanas a uma ordem cósmica imaginada e projeta imagens da ordem cósmica no plano da
experiência humana.”
17
. Conforme Geertz, sabe-se muito que isso ocorre mas não a maneira
como este processo se dá. Ao longo deste trabalho me guiarei por esta interrogação,
procurando construir uma explicação possível para esta experiência religiosa particular.
A partir da pesquisa participante no Céu de Midam, procurei apreender as estruturas
de significado através de observações, conversas, entrevistas, fotografias e pretendo
apresentar o resultado desta etnografia, tal como uma interpretação, um olhar sobre o ombro
do “nativo”, como diria Geertz..
15
Escola de Magia, Santa Doutrina , Escola de Conhecimento entre outras definições forma encontradas nas
entrevistas realizadas na comunidade Céu de Midam.
16
GEERTZ,Clifford . Interpretação das Culturas , (1989) p67.
36
Para esse objetivo, observo que há personagens, igrejas e símbolos do Santo Daime
em São Paulo, e nessa tríade me detenho para construi um mapeamento dos significados
culturais desta Religião Ayahuasqueira em um contexto urbano de fragmentação e ausência
de sentido próprios deste momento de aprofundamento da modernidade que vivenciamos. Os
significados nos remetem a símbolos, no caso, símbolos sagrados que, na perspectiva de
Geertz , existem para sintetizar o ethos - tom, caráter , estilo, disposições morais ou estéticas
- de um povo:
Os símbolos religiosos formulam uma congruência básica entre um
estilo de vida particular e um metafísica específica (implícita, no mais das
vezes) e, ao fazê-lo, sustentam cada uma delas com a autoridade emprestada
ao outro. (GEERTZ, 1989, p. 67)
Nesta perspectiva os fiéis do Santo Daime adotam este universo simbólico religioso,
não necessariamente para vencer o sofrimento – nem sempre algo possível – mas para fazer
deste um fardo que se possa compreender:
Para aqueles capazes de adotá-los, e enquanto forem capazes de
adotá-los, os símbolos religiosos oferecem uma garantia cósmica não apenas
para sua capacidade de compreender o mundo, mas também para que,
compreendendo-o, dêem precisão a seu sentimento, uma definição à suas
emoções que lhes permita suportá-lo, soturna ou alegremente, implacável ou
cavalheirescamente.
18
Em toda religião - e no nosso estudo de caso não poderia ser diferente – para conhecer
é necessário primeiramente acreditar, ter fé. A visão de mundo dos daimistas em geral, e,
particularmente em São Paulo, e mais especificamente no Céu de Midam acaba se delineando
como uma perspectiva entre outras, como uma forma específica de se ver a vida.
17
Ibidem. p. 67.
18
GEERTZ, Clifford , A Interpretação das Culturas. (1989)
37
Esse modo particular – que a religião oferece - de se ver o mundo e a vida, se
distinguem dos campos da ciência, da arte e do senso comum, conforme Geertz.
Os rituais, enquanto “comportamentos consagrados” tornam vívidos os modelos de
interpretação e ordenamento do mundo . No ritual:
(...) as disposições e motivações induzidas pelos símbolos sagrados
nos homens e as concepções gerais da ordem de existência que eles
formulam para os homens se encontram e se reforçam umas às outras.
19
Nele fundem-se o mundo vivido e o mundo imaginado, mediados por “um único
conjunto de formas simbólicas, tornando-se um mundo único.”
Segundo Geertz o grande desafio da religião é tornar compreensível a experiência do
caos . A existência humana seria insuportável sem a premissa de que a vida é compreensível e
de que – através do pensamento – podemos nos orientar dentro dela.
Agora, se relembrarmos os argumentos teóricos de Durkheim (1989) como parte dos
estudos clássicos da religião, perceberemos que esta pode ser considerada como um “universo
cognitivo” e que a vida social só é possível graças a ela, através de um vasto simbolismo que
teria a função de unir os indivíduos , ou seja, a religião poderia possuir o papel de “cimento
social”:
Na verdade, postulado essencial da sociologia é que uma instituição
humana não poderia repousar sobre o erro e a mentira: sem isso ela não
poderia durar. Se não tivesse por base a natureza das coisas, encontraria nas
coisas resistências que não conseguiria vencer .
( DURKHEIM, 1989, p.30)
Não há, pois, no fundo, religiões que sejam falsas. Todas são verdadeiras à sua
maneira: todas respondem, ainda que de maneiras diferentes, a determinadas condições da
vida humana.
19
ibidem , p 82
38
Nas Formas Elementares da Vida Religiosa , Durkheim conceitua a religião da
seguinte forma :
(...) uma religião é um sistema solidário de crenças seguintes e práticas
relativas a coisas sagradas, ou seja, separadas, proibidas : crenças e práticas
que unem na mesma comunidade moral, chamada igreja, todos o que a ela
aderem.
20
Dessa forma, Durkheim destaca a importância dos fiéis, da comunidade – a
igreja – para a constituição do que se denomina religião; ela não é apenas crenças e rituais,
mas é algo “eminentemente coletivo”. Este fato se revelou de forma evidente na etnografia no
Céu de Midam, onde a vida simbólica e as crenças da Igreja só faziam sentido e ganhavam
força, vivacidade, nos momentos de ação coletiva, seja nos rituais, onde os trabalhos
espirituais demandavam a participação e dedicação de toda a irmandade, como nos mutirões
para manutenção do espaço da comunidade.
Como os significados simbólicos presentes na religião ganham vida nos rituais, este
trabalho contará também em sua estrutura teórica com a contribuição do antropólogo Victor
Turner. Turner (1974) que distingue – ao falar dos ritos de passagem – os conceitos de
estrutura e communitas , dois “modelos” de correlacionamento humano justapostos e
alternantes:
O primeiro é o da sociedade tomada como um sistema estruturado,
diferenciado e freqüentemente hierárquico de posições político-jurídico-
econômicas, com muitos tipos de avaliação, separando os homens de acordo
com as noções de “mais” ou “menos” . O segundo, que surge de maneira
evidente no período liminar, é o da sociedade considerada como um
“comitatus” não estruturado, ou rudimentarmente estruturado e
relativamente indiferenciado, uma comunidade, ou mesmo comunhão de
indivíduos iguais que se submetem em conjunto à autoridade geral dos
anciãos rituais. ( TURNER, 1974, p. 119)
20
DURKHEIM, Émile.As Formas Elementares da Vida Religiosa. Paulus. São Paulo (1989) p. 79.
39
Dessa maneira, a “communitas” indicaria a vida em comum diferenciando-se das
distinções de posição hierárquicas presentes na estrutura. Ainda segundo Turner:
A “communitas” pertence ao momento atual; a estrutura está enraigada no passado e se
estende para o futuro pela linguagem, a lei e os costumes.
(. . .)
De tudo isso, concluo que, para os indivíduos ou para os grupos, a vida social é um tipo de
processo dialético que abrange a experiência sucessiva do alto e do baixo, de communitas e estrutura,
homogeneidade e diferenciação, igualdade e desigualdade. (idem, p. 138)
Este autor, à semelhança de Geertz, procura compreender os significados dos
símbolos de uma determinada cultura – “o outro” – em sua alteridade , ou seja, na perspectiva
do “nativo” – olhando sobre seu ombro - , tomando precauções para que a análise etnológica
não se torne apenas uma projeção do antropólogo e de seu universo cultural.
Acredita-se que os processos rituais podem nos ensinar muito sobre as peculiaridades
de diferentes povos e sociedades , desde que o antropólogo se dedique a conhecer como os
participantes do ritual vêem internamente a cerimônia, o modo como sentem e percebem-na.
Em uma de suas principais obras, O Processo Ritual (1974) , Turner nos mostra que não
basta apenas observar as pessoas realizando gestos estilizados ou cantando enigmáticas
canções, mas faz-se necessário um tremendo esforço para alcançar os significados que estas
palavras e movimentos possuem para elas. No caso dos rituais do Santo Daime isto também
se configura como uma grande verdade, o que determinou uma profunda atenção aos
trabalhos espirituais realizados na Igreja Céu de Midam, ouvindo as falas dos fiéis que
participaram do ritual, seus hinos, a dança ritual, e outros momentos e performances no
interior do salão sagrado.
40
Este autor afirma ainda que os símbolos dentro de um ritual são dinâmicos e múltiplos
em significados, onde compreendê-los exige que enxerguemos a totalidade do rito, sua
semântica , seu contexto.
Torna-se de grande relevância registrar aqui a forma que Turner conceitua o símbolo,
que, segundo o autor, teria a função de intermediar as relações entre “estrutura” e
“communitas”. O símbolo possui um caráter polissêmico, dinâmico e é investido de um
grande valor real para aquele que o vivencia em um ritual.
Dito isso, vejamos agora como se configura o Santo Daime como religião e como
cada daimista percebe-se no contexto destes símbolos sagrados , como cada indivíduo – a
partir daí - organiza sua experiência de vida .
2.2 O Santo Daime é uma religião ?
Iremos agora iniciar uma discussão sobre uma possível definição para o Santo Daime,
enquanto comunidade sagrada que compartilha rituais e preceitos entre si. Vou guiar esta
reflexão de acordo com os depoimentos colhidos pelos daimistas que participaram das
entrevistas no trabalho de campo; como estes compreendem seu grupo religioso, será este
nosso norte. Religião, doutrina, local de terapia, escola de conhecimento, escola de magia,
escola de bruxaria, escola espiritual, centro livre, centro eclético, essas foram algumas das
definições coletadas na pesquisa.
Para Ray , não podemos definir o Santo Daime como Religião :
Não , não é uma religião. Toda religião tem um deus próprio, por
exemplo, Buda é uma religião, quem é Deus? Buda. Muçulmanos tem uma
religião, quem é Deus? Maomé. O Cristianismo está calcado em Jesus
Cristo. Para que seja religião é preciso que haja um deus e que seja único. O
41
que não acontece no Santo Daime. Nós cantamos para a lua, nós cantamos
para Jesus Cristo, nós cantamos para Buda, nós cantamos para Krishna, nós
cantamos para todas as entidades. Quando você canta para todos, você não
cantou para ninguém. Porque não dá para adorar todo mundo e dizer, isso é
deus. Então nós temos a umbanda, cantamos para todas as entidades da
floresta, canta para a lua, ... você canta para todo mundo que te encanta.
Então não é uma religião. Como você vai ter uma religião que uma ora reza
para Cristo, outra ora para Krishna, outra ora para Maomé ? Não é uma
religião.
Está presente neste depoimento a noção de ecletismo
21
, assim como o conceito de
“Cosmologia em Construção” definido pelo antropólogo Sena Araújo (1999), ilustrando
como a cosmologia daimista agrega os mais diversos elementos das mais diferentes origens
religiosas ou místicas:
De cosmologia em construção denominamos um conjunto de
práticas religiosas que tendem a formar uma doutrina específica, em que
existe uma grande velocidade na incorporação e retirada de elementos
simbólicos das práticas religiosas ou filosóficas que, combinadas, compõe
sua cosmologia. (ARAUJO, 1999, p. 74)
Na continuidade da conversa com Ray , percebemos que, segundo suas concepções, o
Santo Daime, se não é religião , só pode ser definido como doutrina:
É uma doutrina. A diferença entre religião e doutrina eu vou te
contar... A doutrina é uma coisa que existe para educar, doutrinar é educar.
Quando você diz não é uma religião é uma doutrina, você usa meios para
educar. Não é educar de ser bonzinho , não. É educar de te ensinar um
caminho, para você seguir na Terra.
Basicamente, quem chega no Santo Daime não é nem um bonzinho.
Porque ele chega de crack , chega de heroína, de cocaína , chega de todos os
vícios dessa Terra , depois que ele mata a mãe ele chega no Santo Daime ,
quando a mãe desiste do desgraçado ele chega no Santo Daime (risos) .
Então o que você vai fazer com esse cara? Educar e disciplinar. Isso é
doutrinar. Alguns pensam que somos religião. Não, uma religião é uma coisa
mais complexa . Eu digo não, para ser uma religião você tem que ter um
deus, a disciplina do seu deus , o paraíso de seu deus. Por exemplo no
paraíso de Krishna você vai ter umas menininhas bonitinhas, todas cantando,
dançando . É diferente do paraíso de Jesus Cristo. No paraíso de Krishna
21
Cf. Groisman (1999)
42
você não tem purgatório e não tem pecado. Para os muçulmanos você vai ter
umas cem virgens lá no Paraíso...
Nessa perspectiva , o Santo Daime é uma doutrina porque ensina, disciplina e mostra o
rumo , indica um caminho para quem se encontrava perdido em um universo de ilusões e
vícios. Ray afirma ainda que o Santo Daime é uma doutrina do corpo. Para explicar o porquê
dessa designação , nosso entrevistado irá classificar os trabalhos com o Santo Daime em três
tipos:
Nós somos a doutrina de corpo. Nós temos três tipos de trabalhos, só
três. Temos o trabalho de cura. Qual é a função do trabalho de cura? Você
toma um daime dobrado e ele vai limpar o seu organismo, e você vai cagar e
peidar tudo que tem no corpo, vai purgar, e , enquanto seu corpo não estiver
limpinho , você não vai conseguir trabalhar naquele salão. É um trabalho de
limpeza do organismo . Então primeiro você limpa o organismo.
O sengundo trabalho é assim: a concentração. O que é a
Concentração. Nós vamos nos sentar durante seis horas, você toma o daime
para limpar sua cabeça, limpar seus pensamentos. E você vai se topar com
todos o seus pensamentos, você vai se topar com você mesmo. Você vai se
topar com todos os inimigos que você criou É um daime que dá miração, ele
vai abri seu córtex e você vai ter que limpar todos os seus pensamentos.
Você vai ter que perdoar, perdoar , perdoar... Enquanto você não perdoar vai
ficar cagando e vomitando lá no quintal . Cada vez que um pensamento te
atravessar, você vai correr para o banheiro. O primeiro trabalho limpa seu
corpo. O segundo trabalho limpa seus pensamentos.
O terceiro trabalho é o bailado. É uma marcha militar, dois prá lá dois
prá cá , durante doze horas. Você sabe o que é fazer dois prá lá dois prá cá
durante doze horas? Eu te dou uma idéia. Se você pegar um cavalo , um
alazão, um bom cavalo, e colocar ele para fazer trote , ele trota por oito
horas. Depois de oito horas o peito dele bomba, o coração explode dentro do
peito . Depois de oito horas o cavalo morre. Por isso que a cada seis horas
você precisa parar o cavalo, descansar ele , para depois seguir. O nosso
“cavalo” lá no salão baila doze horas, dois prá lá dois prá cá, num puta trote
alucinante. Quer um teste melhor para o seu organismo do que este? Doze
horas, e se bobiar ele ainda dá uma hora de amostra grátis...(risos) E como
é que o cara consegue? Você disciplinou seu organismo, disciplinou seu
pensamento, aí você está preparado para ser uma máquina prodigiosa. Por
isso que a nossa doutrina é uma doutrina de corpo.
Há portanto uma apuração que o novato passa, degrau a degrau, para poder finalmente
trabalhar de forma plena , exercer sua meditação numa cerimônia daimista. Primeiro o
43
trabalho de cura, para limpar o organismo de impurezas e vícios. Segundo, com o organismo
já limpo, o novato irá limpar seu pensamento, despojando-se de negatividade, de raiva , das
agressões que provocou a outros, e assim por diante. O terceiro trabalho é o bailado, quando a
pessoa já se encontra pronta para tornar-se uma “máquina prodigiosa”, na definição de nosso
informante. Ele indica portanto um caminho, claro que não o único possível, para aqueles que
estão ingressando no uso ritual da bebida sagrada.
Outro entrevistado, Padrinho Eduardo, acreano, com 76 anos também deixa claro em
seu depoimento que o daime significa doutrina:
O trabalho é disciplina, né, tem que ser tudo certinho , porque se não for
certo nada é certo. Porque uma doutrina né, uma doutrina é separado de
muitas coisas, se separa. Doutrina de um lado outras coisas de outro.
Tal como Ray, o Sr. Eduardo também percebe a doutrina como educação, como
disciplina, quando a bebida sagrada associada aos ensinamentos do hino passam a indicar um
caminho, uma ética para aquela pessoa que participa da cerimônia religiosa:
Tudo tem, tudo tem, essas coisas prá gente ver, mas se... o cara não percebe ,
né, o cara não percebe o que tem nos hino, direitinho ... Se não for direito
não vai. A gente tem que procurar uma atitude, né, ou de ir ou de ficar.
Porque o camarada ele não pode ir por dois caminhos, tem que ir ser um
caminho só. Ele vai por um caminho aqui, não dá certo , esse aqui também
não , esse também não tá... então, um só ele já está acostumado. Tem que
saber para onde está indo.
Entretanto, o entrevistado também deixa seu desapontamento com aquelas pessoas que
tomam Daime só para mirar, para ver coisas belas – só para ver primores , como dizia Irineu
Serra – e não segue a disciplina, ou seja, não aproveita os ensinamento para transformar sua
vida.
Aí está o negócio do povo beber Daime: tem que ir por um caminho
só . E aquela mesma vida, aquela vida antiga do povo . Mas no começo do
Daime não era assim, era outra vida, né ? E agora está sendo a mesma vida
que era está sendo .Quando fundou o Daime era coisa muito séria ... se você
44
fizesse uma coisa agora e tomasse Daime amanhã, você soltava que soltava
tudo . Não tinha nada encoberto que não fosse descoberto , descobria na
hora. Hoje em dia faz tudo, toma Daime e... nada acontece... não tem
disciplina , só vai se tiver disciplina ...
Já Angelo , sannyasi italiano que vive já no Brasil há mais de dez anos, o Daime ganha
a definição de Escola de Magia. Ele lembra uma fala do Padrinho Jonas que dizia: “Santo
Daime é uma escola de bruxaria ou de conhecimento” . Angelo só aceitou Jesus Cristo,
porque apostou na idéia de que o Daime não é religião. Para ele as religiões representam um
grande mal para a humanidade:
Eu não estava procurando uma religião. E ainda hoje, eu acredito que tenho
que evitar as religiões, porque as religiões só levaram a desgraça para o
mundo. Porque o Santo Daime não é uma religião do meu ponto de vista e o
meu ponto de vista foi inspirado pelo Padrinho Jonas e confirmado por ele,
mas uma escola de espiritualidade. Aí eu encontrei o meu caminho, você
está entendendo? Se fosse o caminho de Jesus Cristo nos patamares
religiosos não, eu detestava isso, então consegui aceitar Jesus Cristo só
porque isso aqui não é uma religião. Então não sendo uma religião, eu
endosso. Agora, tem muitos no Santo Daime que acham que o Daime é
religião. Agora cada um que se comprove com a sua realidade. Agora, eu
acho isso.
Há assim uma abertura no Santo Daime – CEFLURIS – em múltiplos aspectos, ou
seja, no campo doutrinário, no campo da sistematização cosmológica ou, como vimos acima,
na definição que cada indivíduo daimista tenta estabelecer para o seu grupo e suas práticas.
Para compreender esta liberdade de interpretação, torna-se importante escrever
também sobre uma corrente espiritual que muito contribuiu para a formação do ecletismo
existente na cosmologia do Santo Daime, qual seja, a Nova Era:
A caleidoscópica interação de credos, postulados e elementos
mítico-rituais parece expressar, performaticamente, um desejo de relativizar
os diferentes domínios e discursos constitutivos da experiência dos
trânsfugas, inclusive a mística e particularmente a holista [...] O trato com o
sagrado parece tornar-se mais fundamental que a religião, através de um
formalismo que não obedece, prioritariamente , a um recorte substantivo.
Neste caso, diria que, numa perspectiva Nova Era, importam menos a
religião ou a crença e mais o modo específico de relacionar elementos e
rituais. Esses elementos são extraídos do estoque global de recursos
45
culturais, a partir de uma lista de serviços e métodos de aprimoramento
pessoal e do mundo que pode se estender infinitamente. Trata-se de um
estilo que torna possível combinar e incorporar materiais provenientes,
inclusive, de matrizes religiosas consideradas discrepantes em relação à
cosmovisão Nova Era. (AMARAL, 2000, p.17)
Na conjuntura espiritual de nossa época, da qual nos fala a antropóloga Leila Amaral,
de novas condições de espiritualidade, podemos encontrar quatro elementos comuns tanto à
Nova Era como ao Santo Daime, na medida em que ambos se aproximam um do outro: a
influência da contra-cultura e dos projetos de comunidades alternativas; a defesa do
autodesenvolvimento baseado em terapias holísticas; a curiosidade pelo oculto, inspirada no
exoterismo do século XIX e no encontro do orientalismo, da religiosidade popular e indígena;
a defesa da sacralidade da natureza e do encontro com o eu interior.
Registradas as opiniões dos fiéis sobre a natureza do Santo Daime – escola de magia,
doutrina ou religião - , podemos afirmar, a partir de uma perspectiva antropológica, que o
Santo Daime pode sim ser denominado como Religião, pela estrutura que organizou ao longo
de décadas de existência, por possuir uma hierarquia de Padrinhos dotados de liderança
carismática. E, finalmente, como afirmaria Geertz, o Santo Daime é uma religião porque
conseguiu construir – de forma sólida e sistemática – um sistema de símbolos capaz de
fornecer aos seus fiéis concepções singularmente realistas de uma ordem de existência,
proporcionando, assim, uma visão de mundo e um ethos próprios para estes indivíduos.
2.2.1 – Estrutura Eclesial do Santo Daime
No Santo Daime existe toda uma estrutura hierárquica de poder, que se
fundamenta basicamente no dom carismático de seus principais líderes. Segundo Max Weber
(2004), o carisma pode ser considerado um dom pura e simplesmente vinculado ao objeto ou
46
à pessoa que por natureza o possui e que por nada pode ser adquirido. Entretanto, esta
qualidade permanecerá oculta se não for estimulado seu desenvolvimento.
A liderança carismática dos padrinhos
22
do Santo Daime está presente desde o início
da história desta linha religiosa. Mestre Irineu – homem negro, de cerca de dois metros de
altura – atraiu em torno de si seguidores, que percebiam nele as qualidades de um grande
curador, de professor, e de comandante :
Entre seus seguidores, Mestre Irineu desempenhava o papel do
patriarca benevolente e, no dia-a-dia de usa comunidade, servia ora como
advogado, ora como juiz, e até como delegado nas disputas que surgiam.
Considerava a si próprio como uma “árvore sombreira”; seu temperamento
alegre e hospitaleiro atraía visitas de todos os lados e, em certas épocas, sua
casa reunia diariamente de 25 a 30 visitantes. A todos acolhia de maneira
afável e não discriminatória. Mesmo discordando de alguém, era cuidadoso
na for
ma de expressar sua divergência, adotando um tom amigável e paternal.
(MACRAE, 1992, p. 66)
Sebastião Mota de Melo também exercia uma expressiva liderança carismática no
interior do grupo, sendo reconhecido por seus seguidores como uma pessoa simples, humilde,
mas dona de um conhecimento espiritual relevante. Mesmo antes de conhecer o Santo Daime,
já atendia pessoas doentes, pois desenvolvera a mediunidade e era um respeitado curador
espírita.
Segundo a antropóloga Beatriz Labate, a legitimação de um líder ayahuasqueiro ou de
sua igreja pode ser alcançado através de duas maneiras : a legitimação pela tradição ou a
legitimação carismática:
Concluindo : os dois modos de afirmar legitimidade não se excluem.
Um, a legitimação carismática, apela diretamente ao carisma (ou seja, à
legitimidade Espiritual). Outro, a legitimação tradicional, apela
indiretamente à legitimidade Espiritual – evoca-se filiação aos modelos
deixados pelo Fundador original. (LABATE, 2004, p. 271)
22
Podemos definir o padrinho como o líder espiritual, dotado de carisma, que comanda e dirige uma igreja
daimista, e que possui também uma ampla influência na comunidade de fiéis.
47
Com relação à legitimidade através da tradição, Labate nos traz importantes
informações :
Vimos, portanto, que a conexão com a origem tem a ver com uma
legitimação pela tradição (territorialidade, símbolos originais, etc) . Outra
forma de legitimação pela tradição, ligada a esta , é aquela garantida pelos
mecanismos de transmissão do patrimônio espiritual, ou, em outras palavras,
a relação com os Mestres fundadores (Raimundo Irineu Serra, Daniel Pereira
de Mattos e José Gabriel da Costa). Evoca-se parentesco, seja ele de filiação
ou descendência. (idem, p.269)
Para que um adepto torne-se padrinho, comande uma Igreja, deve cumprir alguns
requisitos básicos. Primeiro, necessita ter aceitação da comunidade, ou seja, sua liderança
implica em consenso do grupo como um todo. Em segundo lugar, o provável futuro
comandante deve possuir um desenvolvimento espiritual, um sinal do mundo astral que o
legitime como líder. A linha de hereditariedade pode se tornar um caminho para o sujeito
alcançar o posto de padrinho. Neste último caso, citamos o exemplo do Padrinho Alfredo
Gregório de Melo, que sucedeu seu pai – Padrinho Sebastião Mota de Melo – na direção do
CEFLURIS.
A iniciação de um novo padrinho também pode se dar por meio da relação mestre e
discípulo, como no caso de Mestre Irineu – o fundador das Santas Doutrinas – e de Sebastião
Mota de Melo, que seguiu de forma dedicada os seus caminhos e ensinamentos espirituais .
Da mesma forma, um padrinho pode ser designado por outro padrinho, com mais
experiência e tempo de direção de uma igreja.
Como estamos falando de um religião centrada no uso de uma bebida enteógena – o
Santo Daime - , fica evidente que o padrinho deve também ser um profundo conhecedor de
suas propriedades, de seu uso ritual e , principalmente, necessita conhecer o processo de
produção deste vinho das almas. Em outras palavras, geralmente o padrinho assume também a
48
posição de feitor do Daime. O conhecimento sobre todas as etapas do feitio – cerimônia
sagrada em que a comunidade se organiza para produzir o seu sacramento – torna este uma
pessoa de destaque na comunidade. Dentro do CEFLURIS podemos afirmar que há uma
hierarquia de feitores. Este fato foi relatado por Kelmir Jones – feitor e comandante da Igreja
Flor de Luz, Comunidade Céu de Midam – em entrevistas por mim realizadas. Para ele se
tornar um feitor foi necessário humildade ao conhecimento dos demais feitores da doutrina,
possuidores de maior experiência neste processo. O acreano Pedro Dário, 59 anos, é um dos
principais feitores dentro desta hierarquia, e foi um dos “professores” de Kelmir
23
.
A organização do CEFLURIS está centralizada na figura dos principais dirigentes
nacionais e mundiais da religião, e, há também o Conselho Doutrinário que rege a
padronização e aprimoramento dos trabalhos espirituais.
Hoje temos entre os principais dirigentes do CEFLURIS:
Padrinho Alfredo Gregório de Melo – Presidente do CEFLURIS.
Padrinho Alex Polari de Alverga – Vice-Presidente do CEFLURIS e membro do
Conselho Doutrinário e Ritual.
Padrinho Valdete Mota de Melo – Presidente do Conselho Doutrinário e Ritual.
Vale ressaltar que só ao Conselho Doutrinário cabe mudar os padrões de um
ritual ou aceitar uma nova modalidade de trabalho espiritual.
Assim, segundo Walter Dias Júnior :
Desde o início, o grupo constituiu-se a partir de uma estrutura rigidamente
hierarquizada, correspondente ao grau de desenvolvimento espiritual de cada
membro. Essa estrutura de poder era expressa publicamente, chegando-se a utilizar
patentes de inspiração nitidamente militar nas fardas (uniformes) durante os rituais.
Tais distinções eram “recebidas pelos devotos, diretamente do astral e revelavam
seus diferentes estágios de desenvolvimento dentro da doutrina; estando
23
Na secção “ Rituais no Céu de Midam” desta dissertação podem ser encontradas informações mais detalhadas
sobre o Feitio e sobre Pedro Dário.
49
relacionadas com o processo de aprendizagem e os dons divinos de cada um. Sua
organização era hierarquizada como a de um exército: o exército do General
Juramidam. ( DIAS Jr, 1992, p.74)
As estruturas mantenedoras da ordem e disciplina se reforçam, por
exemplo, através da dedicação de cada membro no ritual . Assim, as posições hierárquicas
assumidas pelos adeptos podem ser explicadas por uma série de elementos que conferem
poder ao indivíduo :
Hoje, elas são reafirmadas, por exemplo, através da posição que cada
um ocupa dentro dos rituais, das funções que exerce na organização da
igreja, nos atributos divinos que possui, no grau de conversão e “entrega” ao
culto, nos compromissos de cada um com a doutrina e em vários outros
aspectos de evidente destaque dentro do grupo. (idem: p. 75)
2.3 - O Santo Daime como Xamanismo Cristão
Alguns antropólogos e outros pesquisadores se utilizaram do termo “xamanismo” para
interpretar as crenças e rituais no Santo Daime. Como exemplo citamos Couto (1989) que
escreve sobre a existência de um “xamanismo coletivo” nos grupos daimistas, pois todos os
participantes do ritual seiram, potencialmente , xamãs quando ingerem a bebida sagrada e
realizam o “vôo da alma”, entrando assim em contato com o mundo espiritual e com as
entidades e seres desta dimensão .Já o antropólogo Groisman 1991) propõe o conceito de
“práxis xamânica”, pois haveria elementos dentro do ritual e cosmologia daimistas que
remeteriam ao xamanismo, sem necessariamente formar um sistema xamânico. Entre estes
elementos podemos citar o uso de substâncias expansoras de consciência, a concepção de um
50
mundo dual – o mundo espiritual verdadeiro (chamado também de mundo astral) em
contraposição ao mundo real (ilusório), a idéia de batalha espiritual , etc.
Dentro desta perspectiva de identificação do xamanismo com o Santo Daime ,
podemos contar com algumas reflexões trazidas por Jussara Araújo, que estudou uma
comunidade daimista no município de Aiuruoca, sul de Minas Gerais:
Nem todas as pessoas que participam de rituais de yagé participam,
necessariamente, de um ritual de iniciação xamânica . Muitos participam
para obter curas de doenças físicas ou psicológicas, como a dependência do
álcool ou das drogas químicas. Muitas entram e saem de um ritual xamânico
do mesmo modo, sem passar por nenhuma experiência.
( ARAÚJO, 1999, p.28)
Entretanto, todos que participam dos trabalhos espirituais do Santo Daime e são,
segundo Araújo, sensibilizados para a auto-cura, acabam por encontrar seu caminho de
renascimento. Se aceitarem que precisam renascer, deixar, abandonar a velha vida e mudar
em 180º suas atitudes e valores, então é como se tivessem passado por uma iniciação
xamânica de morte e renascimento :
Tradicionalmente excluída e cotidianamente violentada, a grande
maioria das pessoas que procuram o Santo Daime na região amazônica,
obtêm com a oaska seus raros momentos de consolo emocional, momentos
de religação com o sagrado, de busca de equilíbrio. (idem , p. 31)
De toda forma, podemos dizer que o xamanismo existente em São Paulo, nos rituais
daimistas, é uma reelaboração do que seria o xamanismo das populações indígenas, podendo
ser definida como “neo-xamanismo”. Isto, entre outras razões, porque no processo histórico
de constituição das religiões, grupos e linhas que fazem uso da bebida sagrada – a ayahuasca
– os sujeitos acabam por construir novas dinâmicas sociais, culturais e simbólicas. O Santo
51
Daime é hoje procurado por pessoas de diferentes classes sociais e também por indivíduos das
mais diversas nacionalidades.:
A mundialização cultural do Santo Daime é real. Para os oasqueiros
, o Santo Daime é um convite da floresta amazônica para vermos o ser
universal que temos dentro de nós”. (ibidem, p. 31)
As novas visões de mundo desses personagens das classes médias urbanas do Sul do
Brasil acabam por dar novos contornos à doutrina, cosmologia e rituais do Santo Daime.
Podemos perceber também, uma diferenciação – dentro desta perspectiva xamanística -
entre a salvação individual no catolicismo e a salvação coletiva, contida nos rituais do Santo
Daime :
Nem o advento do catolicismo e a adoção de seus arquétipos
modificou a idéia da salvação coletiva, presente nos rituais xamânicos. A
redenção no catolicismo é pessoal. No daimismo é coletiva. Por isso, o
daimista é um guerreiro. Seus irmãos também tem que estar bem. Esse é o
significado do vôo xamânico. É o vôo da águia não porque o guerreiro passa
a ver mais, como a águia. Não apenas isto. Mas porque, como a águia tem o
poder de fazer com que todos vejam do alto. É o pensamento que se eleva a
Deus. (op. cit , p 126-127)
Jussara Araújo nos fala também sobre o paralelo existente entre as culturas pré-
colombianas e a especificidade do xamanismo existente no CEFLURIS e sobre como ocorre
esta troca entre Deus e os pedidos que são feitos numa cerimônia daimista :
No Santo Daime de Irineu Serra, de Sebastião Mota e de Alfredo
Gregório há um resgate das normas e regras presentes nas culturas
ameríndias pré-portuguesa/espanhola. A diferença é que o ritual do sangue
foi substituído pelo ritual do amor. O sacrifício do daimista é o amor. Ele
baila, canta, toca instrumentos musicais e faz um exercício sobre o amor
divino. E assim oferece sua energia para a cura daqueles que vão às igrejas
daimistas em busca de uma cura física ou emocional. Por isso, ser daimista é
um ato de coragem. O daimista oferece sua ação cinestésica/seu amor, para
curar os doentes. Ele sofre mais é feliz, por que trabalha para a cura do
irmão. (op. cit. , p 127)
52
De toda forma o Santo Daime é definido por alguns de seus membros como
Xamanismo Cristão, uma doutrina e prática religiosa que agrega ocidente e oriente,
construindo – portanto – uma ponte entre estas duas tradições. Léo Artése, comandante da
Igreja Céu da Lua Cheia , em Itapecerica da Serra-SP, assim estabelece uma comparação
entre o Santo Daime e o Xamanismo :
A semelhança entre os trabalhos, são o vôo da alma, a jornada de
auto-conhecimento. O Daime é uma Doutrina Xamânica, por excelência.
Desde o sacramento (ayahuasca) até a farda (traje de poder), hinos (canção
de poder/ícaros) o bailado(dança ritual), as defumações (purificação e
limpeza), os instrumentos (maracá, tambores) e por aí vai. O xamanismo
pode ser subdividido atualmente em dois . O xamanismo tradicional : que
segue as tradições nativas. O neo-xamanismo : que adapta a essência, com
práticas terapêuticas, numa realidade urbana etc.. Eu não consigo me
classificar em nenhuma das duas linhas, eu prefiro dizer que xamanismo
para mim é Universal. Atualmente, muitos xamãs, inclusive no Peru, rezam
para Cristo. E, que Jesus, foi o Xamã Iluminado, e encarnou nesta Terra.
Podemos, numa abordagem mais abrangente dizer que Santo Daime é um
Xamanismo Cristão, a Umbanda também, a UDV, a Barquinha, o Catimbó,
os cerimoniais com cogumelos de Maria Sabina, e outros. Existem traços do
xamanismo em todas as religiões : no Budismo Tibetano, no Judaísmo, no
Tantrismo e até no Cristianismo.Quando uma pessoa diz que eu misturo, eu
respondo que não....Eu apenas não separo ! Pois tudo está conectado ! E esta
é a essência do Xamanismo.
Léo Artése, que pode ser considerado um xamã urbano, realiza um ritual denominado
“Trabalho de Lua Cheia” que se caracteriza – como ele próprio afirma - pelos princípios do
chamado “ Xamanismo Cristão” e por um forte ecletismo envolvendo vários elementos –
afro-brasileiro, esoterismo, budismo, religiosidade oriental, etc – como fica claro no ritual,
onde se canta e baila para a Lua Cheia, para Oxossi, Krishna, Buda, Cristo, Saint Germain, a
Águia e ao Leão – tudo num único dia, numa mesma cerimônia.
53
Figura IV – Trabalho Espiritual no Céu da Lua Cheia. Com o violão, Léo Artése, comandante
desta Igreja.
Figura V – Mesa Central do Céu da Lua Cheia (Itapecerica da Serra – SP)
Elementos: Cristais, sino tibetano, Virgem da Conceição, Mestre Irineu,etc.
54
2.4 - Céu de Maria : O Santo Daime em Osasco
Em sua expansão rumo aos grandes centros urbanos, o Santo Daime chegou até
Osasco – um dos principais municípios da Grande São Paulo. No bairro Santa Fé – quase
na divisa com a capital paulista – estruturou-se uma importante Igreja Daimista, filiada ao
CEFLURIS, cuja denominação é Céu de Maria. Ela agrega cerca de duzentos adeptos, a
maioria deles moradores desta caótica região metropolitana, além de atrair muitos
visitantes que buscam conhecer esta bebida sagrada e os rituais que dela fazem parte.
Antes de descrever as características do Céu de Maria, irei contextualizar – no
tópico seguinte - o município de Osasco, que apresenta uma pluralidade religiosa muito
marcante. É neste ambiente plural que teremos o surgimento do Céu de Maria, ligado as
tradições de uma religião cujas origens remontam à região amazônica .
2.4.1 – A Multiplicidade Religiosa em Osasco
O município de Osasco foi cenário de desenvolvimento de uma série de linhas religiosas
distintas entre si. A historiadora Galhano (1990) constata o crescimento do número de
migrantes – desde a década de 1960 - que se instalaram nessa cidade em busca de trabalho e
melhores condições de vida :
55
Estas levas vão formar novas periferias ao redor do município de
Osasco, criando bairros de casas auto-construídas, sem nenhum tipo de infra-
estrutura e sofrendo toda sorte de privação (...) (GALHANO: p. 19)
A autora descreve em sua dissertação de mestrado, as condições que deram origem à
formação de igreja pentecostais nas periferias de Osasco. No entanto, acredito que as mesmas
condições que explicam a constituição dessas igrejas também estão na raiz da criação de
outros grupos religiosos no município :
Esta população enfrentando crescentes dificuldades, desde a perda de
identidade, dos valores tradicionais, até o enfrentamento de problemas
materiais como emprego, moradia, transporte, saúde, torna-se vulnerável ao
apelo proselitista.
A Igreja através de uma ética religiosa oferece uma condição de
sobrevivência atuando não apenas enquanto conforto espiritual, mas também
oferecendo condições de estruturação da vida cotidiana.
( idem: p. 30)
A desestruturação social e cultural causada pela migração e a fragmentação da
identidade ajudam-nos a explicar o surgimento de diversas religiões e igrejas no município de
Osasco. Este processo se desencadeou na medida em que cada uma destas linhas religiosas
ofereciam aos fiéis uma possibilidade de “juntar” os cacos, recriar uma nova ordem e
identidade aos que se encontravam longe de suas origens.
Podemos afirmar que a diversidade de grupos populacionais que migraram para
Osasco, assim como a desigualdade entre as classes sociais deste município, se reflete na
diversidade religiosa que se multiplicou nessa região.
Iniciando esta sucinta descrição da rica religiosidade encontrada em Osasco, lembro
que na primeira vez que me dirigi ao Céu de Maria , seguindo um mapa que tinha em mãos,
56
acabei por me perder , chegando ao Centro Espiritualista Vale do Amanhecer, onde então
recebi informações de como chegar à comunidade do Santo Daime.
Um outro exemplo de caminho religioso seguido pelos habitantes de Osasco foram as
C.E.B.s. As Comunidades Eclesiais de Base encontraram um terreno propício ao seu
desenvolvimento, graças ao fato de Osasco ser um reduto operário – originários das
metalúrgicas da Região, assim como daqueles trabalhadores que utilizavam a região como
“cidade dormitório” , para se dirigirem às empresas da capital paulista. Entretanto, atualmente
percebemos – não só em Osasco mas em todo o país – o crescimento do movimento
Renovação Carismática Católica
24
, que busca resgatar a crença e prática dos chamado “dons”
do Espírito Santo – com o objetivo de arrebanhar os fiéis católicos e concorrer com as Igrejas
Neopentecostais.
A religiosidade afro-brasileira também está presente em muitos bairros,
principalmente da periferia de Osasco. Os centros de Umbanda e Candomblé se multiplicam
nas comunidades mais carentes. No município podemos encontrar, da mesma forma, os
centros espíritas ligados aos Kardecismo, freqüentados principalmente pela classe média.
Por fim, é evidente o crescimento vertiginoso das igrejas evangélicas, pentecostais e
neopentecostais . Nas proximidades de uma mesma avenida, por exemplo, no Bairro
Rochidalle (Av. Brasil) pode-se observar várias denominações evangélicas: Assembléia de
Deus – ministérios Belém, Madureira, Perus, Pirituba – Igreja Viva Aleluia , Igreja
Pentecostal do Reino Santo, Internacional da Graça, Universal do Reino de Deus e tantas
outras.
24
Conforme PRANDI, Reginaldo. Um Sopro do Espírito . Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 1997.
57
É nesse contexto, de uma religiosidade cuja riqueza e diversidade é quase inenarrável ,
que se criam as condições para surgir no Bairro Santa Fé, o Céu de Maria – Igreja do Santo
Daime liderada pelo cartunista do jornal Folha de São Paulo, Glauco Villas Boas.
Figura VI – Mesa Central da Igreja Céu de Maria. Em destaque a imagem esculpida em madeira
de Nossa Senhora Aparecida.
58
Figura VII – Trabalho Espiritual na Igreja Céu de Maria.
2.4.2 – A Energia Feminina do Céu de Maria
Numa pequena “montanha” próxima ao Pico do Jaraguá constituiu-se uma das maiores
Igrejas Daimistas do país: o Céu de Maria ou Centro Eclético da Fluente Luz Universal
Lúcio Mortimer. Comandada por Glauco Villas Boas, cartunista do Jornal Folha de São
Paulo, e por sua esposa Bia, esta Igreja tornou-se um exemplo para demais centros, por sua
fidelidade aos rituais e doutrina daimistas, sendo que muitos fiéis reconhecem no Céu de
59
Maria o retrato da floresta amazônica e, por conseqüência, da “Nova Jerusalém” dos daimistas
– o Céu do Mapiá. Esta constatação pode ser encontrada, por exemplo, nas canções – as
mulheres que puxam os hinos procuram seguir a padronização da Igreja Matriz, o Céu do
Mapiá, sendo que até a entonação da voz lembra em muito o sotaque dos acreanos e
amazonenses. Além disso toda a tradição de organização dos trabalhos procura ser mantida e
respeitada. Por último, há uma consideração muito grande pela figura do falecido Padrinho
Sebastião, pela viúva Madrinha Rita, pelos Padrinhos Alfredo e Valdete – sendo que estes
dois últimos são atualmente os principais dirigentes nacionais e mundiais da doutrina.
Entretanto, como já foi dito anteriormente, apesar de toda centralização que o
CEFLURIS exerce sobre as Igrejas do Santo Daime, há certo espaço para estas criarem sua
personalidade e demonstrarem suas especificidades . No caso do Céu de Maria, podemos
definir sua essência como sendo a “energia feminina” : é a imagem de Nossa Senhora
Aparecida sobre a mesa em forma de Estrela do Rei Salomão, são as 41 canções recebidas por
Glauco – o seu hinário intitulado Chaveirinho – que evocam sempre a proteção da Santa
Maria . Percebemos esta energia feminina no hino abaixo:
Viva a Casa de Maria
Viva ela como está
Vamos todos ficar firmes
Cada um em seu lugar
Que vai chegar mais aparelho
Para mais força aparelhar
Esta casa é de Maria
e de Jesus Cristo Redentor
Eu vou receber esta força
A força do meu Senhor
Para fundar com meu São Paulo
Uma casa de Amor
Viva Casa de Maria
E viva Mamãe Iemanjá
Vamos todos balançando
60
Como nas ondas do mar
É meu pai que está apurando
O que tem para apurar
Oh! Minha Santa Maria
Vem aqui nos perfumar
Vem aqui tirar o medo
Vem aqui nos clarear
Que o comando é de São Pedro
Ninguém queira duvidar.
(Hino “São Paulo” , Recebido por Glauco. Grifos nossos)
Como vemos, o Céu de Maria possui uma egrégora própria – seu próprio portal de
contato com o astral e os seres celestiais – trata-se da energia feminina que no hino acima
torna-se perceptível nos clamores à Santa Maria e à Iemanjá, por exemplo. Nas palavras de
Glauco:
Mestre Irineu recebeu a doutrina da Virgem Mãe, o Padrinho
Sebastião falava da força e da firmeza das mulheres. A música aqui é
firmada nas mulheres.
25
A história do Céu de Maria inicia-se no ano de 1993. Primeiramente, Glauco montou
um grupo de estudos do Santo Daime, cujos encontros se davam numa pequena casa no bairro
do Butantã em São Paulo. Algum tempo depois, o grupo se transferiu para uma casa maior, na
entrada da Cidade Universitária. Lá ocorrem alguns fatos que marcaram os primeiros passos
desta Igreja Daimista. A residência estava servindo como moradia por vários meninos de rua.
Além disso, em frente à casa havia um ponto de prostitutas e travestis. Não bastasse todos
esses entraves ou desafios a serem vencidos, os trabalhos espirituais eram freqüentemente
interrompidos pela polícia – os vizinhos não toleravam a cantoria dos hinos, já que na
maioria das vezes os trabalhos ocorriam à noite e de madrugada. Mauro Tagnin – fardado do
Céu de Maria e um de meus informantes – nos conta que :
61
Na Igreja do Butantã, havia problemas com os vizinhos, devido ao
barulho. Já baixou polícia, já que os trabalhos passavam das vinte e duas
horas. Um dia um vizinho falou barbaridades para a gente, que estava no
meio de um trabalho. Xingou que xingou todos nós até que, de repente, do
nada, o muro que dividia as duas casas veio a baixo. Só que caiu todo do
lado do vizinho que nos xingava. O resultado foi que ele se calou na hora,
parecia um castigo vindo de Deus.
Em relação aos meninos de rua, Glauco sentiu que era a hora de colocar em prática um
dos ensinos da Doutrina Daimista, a caridade
26
. Como resultado de sua solidariedade para
com estas crianças, colheu como fruto à dedicação de duas delas , conforme podemos
perceber em seu relato:
Era o amor do Cristo, mesmo, que eu sentia. Quando abri o portão daquela
casa tinha dez meninos de rua ali no fundo, numa fuinha, atocaiada. Um pacotinho,
de presente, pronto para começar o trabalho. Lembrei-me do banquete do Cristo,
quando Ele convidou todo mundo, mas estavam todos ocupados com seus negócios.
E aí Ele chamou o povão, os simples, os desvalidos. Quando o Céu de Maria abriu
ali, senti que tinha a força da caridade contra a miséria humana. Dois daqueles
meninos estão comigo até hoje.
Uma dessas crianças, de origem negra , hoje pode ser vista nos trabalhos do Céu de
Maria ocupando o papel de fiscal de salão, no batalhão feminino. O que demonstra a gratidão
que esta moça deve sentir, já que esta função exige muito cuidado dedicação, assim como
denota o reconhecimento que os membros da Igreja têm perante a ela.
Em 2000, o Céu de Maria galgou o título de “Igreja Oficial do Santo Daime em São
Paulo” . Gradualmente, alguns daimistas estão construindo uma Comunidade ao redor do
espaço da Igreja. Alfredo Mota de Melo, atual comandante do CEFLURIS, batizou a
comunidade de “Vila Astral” .
25
Relato extraído do endereço eletrônico http://www.ceudemaria.org.
26
Na verdade o incentivo à prática da caridade têm sua origem no Kardecismo, que é um dos elementos
religiosos que compõe as “cosmologias em construção” do Santo Daime.
62
A Igreja segue seus planos de crescimento e expansão, com a compra de um novo
terreno situado um pouco mais acima da localização atual. Com esta compra busca-se
concretizar um projeto ambicioso, que é o da construção de um templo, com arquitetura
arrojada, moderna e com capacidade para acolher de forma mais confortável um número
maior de fiéis. Para tanto, promove a participação de todos os membros para a arrecadação de
recursos que podem tornar este sonho possível. Esta é uma característica marcante dos
daimistas: agir de forma coletiva, realizar mutirões, tudo calcado em uma sociabilidade que
Walter Dias Junior (1994) define como uma “União Mística” – pois ela é gerada pela crença
em um mundo astral que os fiéis visitam em suas mirações.
2.5 - Conversa com um Artista do Daime
Um dos personagens importantes, envolvidos com o início do Santo Daime em São
Paulo é Ray, 55 anos – artista plástico de Embu das Artes. Ele colaborou na construção das
primeiras igrejas em São Paulo: a igreja Flor das Águas – em São Lourenço da Serra – que
teria sido a primeira ; o Céu da Lua Cheia – em Itapecerica da Serra, entre outras. Além disso
sempre contribui com seus conhecimentos para a estruturação de várias igrejas e núcleos do
Santo Daime. Mas a sua principal função na história do Santo Daime em São Paulo, como ele
próprio diz, é ser o “pintor da doutrina”. À semelhança dos “riscadores de milagres”
descritos no romance “Tenda dos Milagres” de Jorge Amado, Ray dá vida e expressão aos
sentimentos e símbolos religiosos vivenciados pelos seguidores da doutrina daimista. Nos
63
feitios
27
ele tomava o daime, e preparava a tela, as tintas, o pincel com o objetivo de retratar
este momento especial na vida do daimista:
Como era uma doutrina nova, e nós éramos a primeira igreja de São
Paulo, a Flor das Águas, em São Lourenço da Serra, a gente era 20, 30
pessoas , não era mais que isso, e numa cabaninha . Muitas vezes tinha gente
que ficava do lado de fora, porque não cabia todo mundo lá dentro. Eu dava
lugar porque eu estava pintando. Eu fui para pintar a doutrina, eu sou um
artista dentro da doutrina. Eu escrevo e eu pinto.
Figura VIII – “Colheita” – um dos quadros de Ray, representando a colheita da Folha
Rainha pelas mulheres daimistas.
Ray, até por seu espírito voltado para a liberdade que é intrínseca à seu ofício de
artista , não pode ser considerado um daimista “padrão” , conforme veremos no destrinchar de
sua história:
De verdade eu não sou religioso, eu não paro para rezar uma ave
maria ou um pai nosso. Eu só rezo lá dentro. Eu sou assim: se eu estou na
tribo eu sou índio , estou no campo eu sou jogador. Eu respeito a doutrina,
eu cumpro os mandamentos da doutrina, enquanto estou lá dentro com os
meus irmãos eu cumpro a doutrina. Aqui fora eu tenho a minha vida e já não
tenho mais nada a ver com ninguém.
27
Cerimônia em que a comunidade se reúne para a produção da bebida sagrada, o daime.
64
Este artista procura – ao tentar explicar sua própria posição dentro da doutrina -
dar um sentido para a palavra ecletismo – que está presente na sigla das Igrejas do Santo
Daime ligadas ao C.E.F.L.U.R.I.S - dizendo que fora dos rituais , no dia a dia, nós
somos livres , você pode ser o que você quiser, mas – enfatiza - tolere também que o
outro seja. Por isso – afirma - tem-se a liberdade de cantar , nos hinos do Santo Daime,
para todas as entidades . Nas suas palavras, o Centro eclético é reciprocidade:
Você aceita o índio ele te aceita, você aceita o branco, o branco te
aceita. Você tem que aceitar as pessoas como elas são. .É o princípio da
aceitação.
Já a bebida sagrada produzida a partir do cozimento em altas temperaturas da folha
rainha e do cipó jagube, que em sua alquimia transforma-se num vinho considerado mágico, é
chamada por Ray de Ayahuasca – a bebida da morte:
Porque depois que você toma Daime,nunca mais você vai ser o
mesmo . Você morre para o que era antes, e renasce . Ninguém que tomou
Daime é a mesma pessoa que chegou na igreja. Preste atenção nos irmãos
como eles eram e como eles ficam. O Daime te coloca no seu lugar e
disciplina. Se você não aceitar isso você não fica .
2.5.1 – Sobre os Hinos do Santo Daime
Em uma das entrevistas que realizei , conversávamos sobre o seguinte hino daimista:
TÁBUAS DE MOISÉS
Meus irmãos eu vou lembrar
O que ninguém se lembrou
Meu pai e minha Mãe
Tanto que recomendou
As tábuas de Moisés
65
Que o meu Pai entregou
Não ligaram importância
Não consagraram o amor.
Me vejo contrariado
Com o povo brasileiro
Querem que o meu Pai faça
Como faz lá no estrangeiro
Não sei o que o povo pensa
Que de tudo se esqueceu
Amam mais a ilusão
Do que meu Pai verdadeiro.
(Hino 81 – Recebido por Pad. Sebastião)
Esse hino cito como exemplo para relembrar a centralidade cristã e bíblica que existe
na Doutrina Religiosa do Santo Daime. A missão individual de cada fiel do Daime seria a de
se guiar pelos exemplos e pela vida de figuras bíblicas como a de Moisés. Aliás, Alex Polari
de Alverga em seus livros sugere que cada irmão – fiel do Santo Daime -se esforce , se
aprimore em cada trabalho que participar com o objetivo de um dia , quando atingir o auge
da iluminação e do caminho do auto-conhecimento, consiga perceber-se como parte desta
história bíblica, como reencarnação destas figuras religiosas ancestrais.
Ah ! As tábuas de Moisés é um hino. As tábuas são aquelas
pedras que ele carrega uma de cada lado. É assim, Moisés quando se retirou
para o Monte Sinai, deixou lá embaixo o povo que estava levando para a
Terra Prometida, havia saído do Egito e, quando ele estava no Monte Sinai ,
deixou o bando todo de judeus no pé do monte e foi conversar com Deus,
porque de todo o universo o único homem que conversou com Deus foi
Moises. Todos os outros homens Deus mandou um enviado, um arcanjo .
Então, o que acontece, com Moisés, não, ele falava pessoalmente, pelo
menos é o que os judeus afirmam ... Aí para você ter uma idéia da
dificuldade, você não sabe o que é sair com cem mil judeus, no meio de um
deserto, sem comida, sem água e sem nada. Você tinha que ir invadindo
tribos, e tomando tudo dos outros, porque você tinha que alimentar seu povo.
Porque quando eles saíram do Egito eles saíram sem nada, o faraó falou vai
embora e vai correndo, não dá para você imaginar, eles ficaram dez anos
andando no deserto. Aí ele para no Monte Sinai e parou para conversar com
Deus. Foi lá de cima que ele recebe os mandamentos. Deus pessoalmente
escreveu para ele, com raios celestes ele escreveu, e quando ele desce com as
duas tábuas ele vê o povo dele adorando o bezerro, porque ele demorou tanto
lá em cima para receber as tábuas - acho que Deus estava pensando-, que
66
quando ele desceu o povo já estava com fome, com o saco cheio,
desesperado e pedindo para qualquer deus que desse comida. Aí, viu que lá
embaixo os caras estavam com os bezerros de ouro. Porque o touro era o
deus egípcio, e aí então eles voltam a adorar o deus dos seus antigos
senhores e Moisés fica puto da vida. E aí ele pega a tábua, joga em cima do
ídolo e explode tudo. Então o hino fala desta situação...
Nesta fala Ray explícita uma das temáticas que se encontram nos hinos, que no fundo
tem a interpretação popular de histórias, passagens e personagens do Novo e Velho
Testamentos. E, sobre os hinos, que são a fonte de todos os ensinamentos e da cosmologia
daimista, Ray nos explica que:
(...) o hinário, ele de verdade ele é assim: ele vai cantando os
acontecimentos da Doutrina, ele vai acontecendo. Então, o Nova Era (hinário
do Padrinho Alfredo, atual dirigente do CEFLURIS) , por exemplo, o
pessoal saindo aqui do Bocão do Acre, sair de volta para o Rio do Ouro.
Tem um hinário, do Pad. Sebastião que conta a saída deles do Rio do Ouro
para o Mapiá. Então, os hinos, de verdade, eles aparecem num determinado
momento da doutrina. O recebimento de um hino tem um envolvimento
social , não é uma coisa composta, como algumas pessoas aqui no Sul
fazem. O pessoal aqui está aprendendo a compor hino, e a história não é
esta, não. O hinário ele tem que ser importante no momento para a doutrina.
Ele tem que ensinar alguma coisa .
Os hinos teriam portanto a função social de transmitir um ethos , o que seria segundo
Geertz (1989) o tom, o caráter , a qualidade de uma vida, seu estilo e disposições morais e
estéticas. Eles ensinam lições, reforçam a unidade do grupo, narram sua própria história, as
dificuldades encontradas para que esse povo se estabelecesse em uma terra e constituísse a
Comunidade do Santo Daime. Não obstante isso, o hino para a maioria dos daimistas , não
pode ser composto, na verdade ele é “recebido do astral” – tanto sua melodia como sua letra.
Para aqueles que seguem os princípios deixados por Mestre Irineu e Padrinho Sebastião não é
possível compor um hino, no entanto um dos resultados da expansão e modernização do Santo
67
Daime foi a flexibilização de muitos elementos de sua constituição doutrinária e ritualística
original. Assim, conforme nos informa Ray , é possível encontrar fiéis do Santo Daime
ligadas ao eixo Sul-Sudeste com uma concepção diferente do que seja um hino daimista, uma
forma de ver o hino que se afasta da visão tradicional daimista nascida no Acre, em Rio
Branco.
Podemos perceber portanto, que no processo de expansão do Santo Daime, há uma
dinâmica de transformação e de conservação. Um movimento que , ao mesmo tempo, destrói
e reconstrói, mas que também preserva a tradição.
Dessa forma o conjunto dos hinários representariam para os daimistas o “ Terceiro
Testamento” , teriam o mesmo valor que outros importantes livros sagrados:
A função do hinário é substituir o livro, os católicos têm a Bíblia, os
judeus têm a Toráh , os muçulmanos têm o Talmuth. O livro é o cerne
religioso. Nós não temos o livro, nós temos o hinário. Então todo o hino, por
obrigação, ele tem que educar os irmãos, ele tem que ensinar alguma coisa .
O hino tem uma função de ensinar, porque está substituindo um livro de
ensinamento . O hino é uma coisa assim, em primeiro lugar , ele é uma
imanência , ele é um problema que tem um local . Existe um problema no
local , aí então a solução vai aparecer assim, empacotada, pronta. Porque
pensando em um problema não é todo mundo que chega numa solução.
Alguma sensibilidade às vezes catalisa isso, é o recebedor. Ele é uma
entidade catalisadora, ele é o amálgama do conjunto , ele é o que agrega .
Então esta história dos hinos, é nada, porque tem uns hinozinhos aí que
cantar é até desperdício de melodia. Por que se o hino não te ensinar, não
adianta botar no livro, se não nós vamos botar tanta baboseira no hinário,
que o hinário não acaba nunca . O hinário é nosso livro de sabedoria,
portanto você não fica botando baboseiras nesse livro.
Os hinos assim, além de serem parte do livro sagrado do “Povo do Daime” , e portanto
com a função de ensinar e doutrinar, eles também carregam em si a função de agregar, nas
palavras de Ray. A sensibilidade do dono do hinário, permite que este catalise as entidades
espirituais e os seres do astral, que lhe enviam respostas para situações pelas quais a
comunidade passa e que dessa forma, segundo Ray , se materializariam no hino.
68
Entretanto nem todos concordam com o que afirma Ray. Celso Vendramini –
advogado que freqüenta o Céu de Midam - , por exemplo, irá afirmar que o hino é algo
enviado do astral, e que não possui relação alguma com a história terrena e profana. O hino é
um ensinamento do astral, um ensinamento espiritual e que tem relação com o merecimento
do fiel de recebê-lo mais do que sua sensibilidade ou a necessidade prática das pessoas da
comunidade naquele momento.
Continuando a relatar sobre a importância dos hinos no Santo Daime , Ray irá
informar que:
Um dia perguntaram para o Pad. Sebastião porque cantar. Ele virou e
disse assim “ Óh , está vendo esse povo aqui na floresta, eu podia pegar uma
bíblia e dar para cada um deles , sem problema nenhum, eles iriam pegar a
bíblia, colocar debaixo do braço e ir para casa . Só que eles não sabem ler .
Adianta uma bíblia para esse povo aqui no meio da floresta que não sabe ler
. Aí que ele descobriu que não era por aí. E ele resolveu cantar porque cantar
todo mundo sabe . O conhecimento foi passado cantado , porque ele nasceu
numa terra de pessoas que não sabiam ler . Esse cantar é a mesma teoria
xamânica de que em volta da fogueira você contava histórias. Em volta da
fogueira o conhecimento passava de irmão para irmão, de tribo para tribo, de
índio para índio. Era a história do pajé, era a história do xamã, e que hoje é o
hinário.
2.5.2 - Uma História de Ray no Céu de Midam
Escreveremos agora sobre a vivência de Ray em uma cerimônia de feitio
28
de daime
no Céu de Midam, em que nos relata sobre os personagens desta igreja e sobre seu papel
como pintor da doutrina:
O feitio estava marcado para julho no Céu de Midam, uma
comunidade que cresceu ali em Piedade, uma montanha farta e forte,um
berçário que era exemplo ... Eu conhecera os filhos do Padrinho Jonas, no
feitio do Flor das Águas: O Kelmir seu primeiro filho, verdadeiro guerreiro
de Juramidam, ele em sua armadura brilhava no trabalho, era um feitor
determinado; o segundo Demétrius era mais calmo e contido;e o Jonas
28
Cerimônia de produção da bebida sagrada, o daime, em que cipó (jagube), folha (rainha), água e fogo juntos
formarão o vinho das almas.
69
adotara um outro, este tornou-se o jardineiro do berçário, e ali deveria dar
amor,dali receberia amor... Apoiado neste triptico : irmãos fortes, a
comunidade e a doutrina, o reinado pode crescer.
Ray fez suas malas, pediu a seu filho Rafael que emprestasse uma barraca, e foram
para Piedade, deixando sua esposa Hiromi – também artista plástica – cuidando de seu lar:
Era meu segundo feitio no Céu de Midam. Falei com meu filho, que
nós vamos viajar; perguntou Hiromi de nosso destino, falei que era uma
montanha,onde nada se move,se não é onde quer ir (e ela queria um
Comandatuba da vida, não o frio em uma cidade de interior)e ficou ela de
guardiã de nosso castelo; eu e meu filho caimos na estrada, cantando meu
refrão:
“Só nois !
Só nóis!
Que aguenta
Nóis,
Chapado!
Vinte quatro horas
Viajando
A semana inteira
Só nóis!
Só nóis!
Que agüenta
Nóis”
Chegando no sítio onde se localiza a Igreja e a Comunidade Céu de Midam, Ray e
Rafael - após enfrentaram o gélido frio que está presente naquela localização em Piedade -
organizaram-se para pintar o feitio:
O frio nos cortava, três graus, as cinco da manhã, o gelo se formava
em meu pára-brisa,e a cada posto parávamos para derreter o gelo,e continuar
a viajem. Os campos estavam ueimados de geada, o branco neve tomou
70
conta de meu verde,mas lá chegamos,e meu filho foi montar barraca,peguei
meu material de pintura,e fui para a casa de feitio, no meio da mata,montar
tela, e pintar magia. Fazíamos ali uma transmutação. Diziam meus irmãos
que fazíamos seres divinos, portanto respeito e silêncio,era nossa disciplina.
A pintura no Santo Daime , para Ray, era uma forma de fazer magia, pois tratava-se de
retratar as divindades e os momentos divinos da Cerimônia Sagrada do Feitio. Dessa forma, o
artista se prepara para sua missão, primeiramente consagrando o Santo Daime:
O Orlandinho me serviu meu primeiro Daime. Ainda sem um café
da manhã entrei em trabalho, e ali estava quando a panela emperrou,eram
duzentos e cinqüenta quilos aproximadamente seu peso,e não havia homens
que a retirassem do lugar. Aproximei-me para ajudar, pedi que se retirassem
da proximidade desta, e, com uma alavanca de cinco metros,arranquei dali
aquela panela,para escoar o daime
E brincando contei a historia do velho grego, “Arquimedes” e voltei
aos meus afazeres, pintar um feitio é difícil por ser ele um espelho de
vaidades, nossos caciques aparecem, todos eles, e nós, os índios, rachamos
lenha, alimentamos a fornalha, e desfibramos jagube, por dias e noites
adentro; a fornalha não apaga, não se tem tempo de pousar na terra,é no ar, e
é no Daime, é na água. Respirei vapor por horas seguidas, botei minhas
mãos na fornalha para ver seu grau, mirei dentro da panela a ferver, um
vulcão a soltar fogo e vapor, simbiose de duas plantas.
Ray relata que cada Daime é único pois cada feitor imprime sua personalidade no
Daime.Ele nos fala das características do Daime que tomara no Céu de Midam, de sua leveza,
de seu sabor alquímico, que não era um sabor disponível na natureza,era algo produzido, de
maneira diferente,por cada feitor. O feitor é aquela pessoa com pleno conhecimento de como
preparar o Daime, saber este que recebeu de outro feitor experiente, dentro da hierarquia de
feitores existentes na doutrina daimista.
Ao se dirigir para os restos do material utilizado no feitio, Ray mirava e meditava:
Caminhei até os restos de jagubes, e rainhas que depois de cozidos
eram depositados em uma área a isto destinada, próximo da casa de feitio,
coloquei minhas mãos naquela massa ainda quente, soltei meu ser,
71
abandonei o cavalo e deixei-me ali a vibrar em busca de uma
sintonia,transferi-me para aquele calor,era uma coisa profunda,quente e
úmida,fui sintonizando meu ser, reduzi meu tamanho, e desci em seu
coração, em busca de arquivos. Em êxtase, busquei mais uma vez respostas,
às minhas formulações, ao destino de nossa confraria ... Que podia eu
ensinar-lhes, senão Cabala? Os secretos meios de ler as letras invisíveis, ou
ver o rastro de seu Deus, o nosso Juramidam, quantas gotas deste
conhecimento podia eu despejar, discretamente a ouvidos selecionados,
quanto podia eu?
Passados alguns dias, Ray se preparava para partir quando Alexandre, um dos filhos
de Jonas Frederico fez um último pedido ao artista do daime:
“Ray, tem um quadro que nós queremos, o da colheita das folhas da
rainha,você pode pintar?” Disse que teria até o fim do dia,como marcara
com meu filho,combinamos e foi ele convocar umas vinte princesas para
colher meio saco de folhas, chamei o Rafael (meu filho) e disse-lhe nossa
missão,eu e ele pintaríamos uma colheita de rainhas, subimos a montanha
em rumo ao berçário. De tela e lápis na mão, discorri sobre a Kundalini, dei
minha versão,e o Rafael tomou então seu segundo Daime, e ali no
berçário,disse-lhes da energia feminina necessária no feitio, enquanto ele
desenhava nosso quadro.
Ao descrever um pouco da história e dos depoimentos de Ray, procurei
exemplificar com um caso específico, como os indivíduos no Santo Daime podem construir
seus próprios entendimentos do que seja participar de um ritual sagrado. Ao negociar – de
forma às vezes pacífica mas por vezes conflituosa – seu espaço de liberdade como artista
dentro das regras ritualísticas da doutrina daimista, Ray acredita exercer seu direito ao
“ecletismo” presente na sigla de sua Instituição Religiosa – Centro Eclético – e por isso torna
evidente os caminhos e descaminhos que o Santo Daime tomou ao partir do Acre e Amazonas
para São Paulo.
72
CAPÍTULO 3 -
SÃO PAULO e o FLOR DE LUZ
Neste capítulo procuro realizar um resgate histórico da Igreja Flor de Luz assim como
da Comunidade Céu de Midam. É importante desde já destacar a liderança e carisma do casal
Jonas Frederico e Maria do Carmo Andrade Neta, personagens fundamentais que tornaram
possível a estruturação e desenvolvimento deste grupo religioso. Tudo começa a partir do
momento em que o Sr. Jonas Frederico
29
– falecido em 2001 - traz o Santo Daime de Rio
Branco para São Paulo
30
, iniciando um dos primeiros trabalhos espirituais com esta bebida
sagrada nesta grande metrópole . Inicialmente, os encontros ficavam restritos aos familiares
de Jonas, sendo que, posteriormente, este círculo de participantes foi gradativamente
aumentando : aos familiares somaram-se amigos, até que se constituiu um núcleo aberto às
novas pessoas que vinham chegando. Estarei narrando suas andanças por vários bairros da
capital paulista , até que o grupo de pessoas por ele liderado concretiza o plano de adquirir um
sítio em Piedade, interior de São Paulo, onde hoje se situa a Comunidade Céu de Midam e a
Igreja Flor de Luz.
29
Jonas Frederico - comerciante e micro-empresário - nasceu em Amparo – SP, em 14 de julho de 1936, passou
a residir em Anápolis, Goiás por volta do ano de 1955 , época em que estava acontecendo todo aquele
movimento da construção de Brasília.
30
Como veremos com mais detalhes adiante, Jonas Frederico é considerado um pioneiro do Santo Daime, pois
foi o primeiro a trazer a bebida das mãos do Padrinho Sebastião para além da região Norte, organizando rituais
com esta bebida sagrada em Goiás e, posteriormente, em São Paulo.
73
Nessa trajetória, Padrinho Jonas – como passou a ser conhecido - teve a seu lado uma
importante aliada na construção de toda esta história: Maria do Carmo Andrade Neta –
nascida em Rio Branco, que hoje comanda espiritualmente a Igreja Flor de Luz. Madrinha
Maria do Carmo – assim reconhecida pela comunidade – foi a segunda esposa de Jonas
Frederico, possui quatro hinários completos, está recebendo os hinos do quinto hinário, o que
a coloca numa posição de destaque, como portadora de um conhecimento espiritual que
transmite para os participantes dos rituais.
Procurei também analisar, neste capítulo, como se organiza o espaço sagrado – com
sua rede de símbolos religiosos – no interior da Comunidade e Igreja.
3.1 O Núcleo Flor de Luz
Antes de continuarmos, a primeira dúvida que precisamos esclarecer é “Por
que o nome Flor de Luz ?” . E, segundo as entrevistas coletadas, a inspiração surgiu
de uma miração - na luz e nas visões provocadas na consciência pela ingestão do
Daime :
74
Nós tivemos o primeiro feitio (cerimônia em que se produz o
Daime) em São Paulo e era junto com o pessoal da Igreja Flor das Águas e
depois vindo do feitio,eu saí do feitio, estava pegado ainda de Daime, nós
estávamos em Itapecerica da Serra indo para São Paulo e teve um momento
que se via a cidade toda iluminada, estávamos num local alto. E nesse
momento, fui presenteado com um miração muito forte e bela. Veio para
mim, em uma imagem muito forte, o nome do Flor de Luz que nós
deveríamos colocar no nosso núcleo. E esta Flor de Luz se apresentou na
forma de uma linda flor, com vária pétalas de luz luminescentes e, ela
expandia. Era uma visão assim, que ela, a flor, se aproximava bem perto de
mim e crescia . Foi dessa miração que veio o nome da Igreja. O nome Flor
de Luz, para poder se expandir a luz. E o que é uma Flor de Luz? É aquela
que está dando sementes de luz, vibrando na luz para que nós todos
possamos alcançar esta luz. E no decorrer da existência do Flor de Luz esta
miração se tornou assim, verdadeira, porque através de nós houve a
formação de vários núcleos que depois se tornaram igreja: reinado
(plantação de folhas rainha) de Sete Barras, que fica aqui em Registro, têm a
nossa mão, nós que demos força para começar aquele reinado, conseguimos
plantas, plantamos. A história de Camanducaia , que também desenvolvemos
reinado em Camanducaia, que tem abastecido muito a irmandade, e hoje
Camanducaia é uma Igreja , é o Céu da Mantiqueira. Com a nossa vinda para
cá (Piedade) hoje nós temos em Sorocaba a igreja do Fernando Dine (Céu do
Sagrado) e outras pessoas que conheceram o Daime através do Dine , através
de nós e expandiram. Expandir é jogar sementes. Como o jagubal (plantação
de cipó jagube) e rainhas , repletas de sementes , espalhadas pelos
passarinhos que darão origem a novas plantas.
Alexandre Frederico.
É Alexandre Santos Frederico, 43 anos - filho de Jonas Frederico e de Gracinda Santos
– que nos narra esta história logo acima, explicando de onde surgiu o nome Flor de Luz. E
também elucidando um dos mais importantes papéis da Igreja Flor de Luz que é o expandir de
sementes . Segundo a Madrinha Maria do Carmo, a Igreja foi uma “Universidade do Daime”
porque dela surgiram várias ramificações que deram origens a novas igrejas e pontos do Santo
Daime. Como é o caso do Céu do Sagrado, igreja do Santo Daime em Sorocaba – comandada
por Fernando Dini e que segue uma linha bem independente do CEFLURIS. Outra Igreja que
nasceu da Flor de Luz é a Aliança Estelar, localizada também em Sorocaba e que, como o
próprio nome diz, possui uma egrégora estelar, tal como o Flor de Luz. Para citar apenas mais
75
um exemplo, em Santana do Parnaíba – Grande São Paulo, recentemente houve a formação de
uma igreja denominada “A Casa da Boa Palavra”, fundada por Marcelo Costa – fardado da
Igreja Flor de Luz. Esta igreja também apresenta afinidades com a egrégora estelar. A
influência desta flor de luz, para utilizar a expressão de Alexandre, se fez presente para além
das fronteiras nacionais, chegando até a Índia e Alemanha
31
.
Dito isso, procuro agora apresentar os acontecimentos referentes ao momento em que
Jonas conhece o Daime:
Tudo se iniciou quando meu pai foi fazer uma viagem ao Acre, que
era uma nova fronteira, em 1972. Ele conheceu o Acre, devido ao
movimento comercial, que ele estava fazendo rumo à região Oeste. Aí nós
montamos um armazém de secos e molhados e, através das vendas das
mercadorias conhecemos alguns irmãos da irmandade do Santo Daime da
linhagem do Mestre Irineu, aonde um tio meu, que foi nessa empreitada
também, fez o primeiro contato com esse grupo de pessoas daimistas que
vieram comprar no armazém. Até meu padrinho, Dirceu Santos Frederico foi
uma das primeiras pessoas, junto com esse meu tio Romeu a conhecer e
participar de um ritual no Alto Santo. Eles falaram com meu pai e, numa
estada dele lá, ele foi conhecer. Foi quando meu pai, Jonas, chegou no Alto
Santo. O meu pai conheceu o Daime no final de 1972, quase seis meses após
o falecimento do Mestre Irineu. Ele conheceu o ritual, tudo, achou
interessante , gostou. Na época já estava acontecendo aquele movimento do
Padrinho Sebastião, aliás na época não era padrinho, era senhor Sebastião
Mota de Melo, de não se dar bem com o pessoal do Alto Santo.
Alexandre Frederico
No livro “Bença, Padrinho !”, onde o daimista Lucio Mortimer (2000) narra o dia a
dia e os caminhos percorridos pelo povo do Padrinho Sebastião, há um trecho que descreve a
presença de Jonas Frederico na Colônia Cinco Mil – local distante onze quilômetros de Rio
Branco, onde Padrinho Sebastião iniciou a construção da Comunidade Daimista conhecida
como CEFLURIS :
31
Sobre a Índia, ver mais a frente neste mesmo capítulo sobre a “ponte ocidente-oriente”. Na Alemanha houve a
formação da Igreja Céu da Capela, fundada por alemães que conheceram o Santo Daime na Igreja Flor de Luz.
Hoje esta Igreja encontra-se com suas atividades paralisadas devido à ilegalidade da ayahuasca neste país.
76
Todo ano, no tempo seco das tardes ensolaradas, aparecia o Jonas
Frederico. Parece que ele era um representante comercial de São Paulo. O
certo é que periodicamente visitava a colônia Cinco Mil e com muito gosto o
Padrinho Sebastião o recebia. Sentavam na varanda e durante horas fluía
uma conversa movida pelo bom humor. Em cada retorno ao sul, o Jonas
levava alguns litros de Daime para compartilhar com os amigos. Desta forma
foi o pioneiro, o que primeiro recebeu o sacramento da floresta, para
divulga-lo fora de seus limites . ( MORTIMER, 2000: p 174-175)
Mortimer nos fala sobre o final dos anos 1970, momento em que gente nova chegava
todos os dias na Colônia 5000, inclusive jovens intelectuais como era o caso do antropólogo
Fernando La Roque. Dessa forma, podemos perceber que Jonas Frederico foi,
provavelmente, um pioneiro – ou um dos pioneiros – no papel de expandir o Santo Daime
para além das fronteiras do Acre e, como veremos um dos primeiros a realizar trabalhos
espirituais com esta bebida em São Paulo.
77
Figura IX – Padrinho Sebastião e Padrinho Jonas .
Alexandre Frederico recorda as primeiras reuniões com o Daime – trazido por seu pai,
Jonas - em que participou , no começo de 1973, em Goiás :
Quando ele chegou, ele sempre tinha narrado para mim as
experiências dele, as visões com o chá, o que ele via, eu tinha uma
curiosidade muito grande e eu fui a primeira pessoa a quem meu pai deu o
chá, dentro de uma reunião familiar, feita com algumas pessoas apenas, eu
participei, meu pai, mais uma senhora amiga nossa que era espírita, e teve
mais umas duas pessoas apenas. Uma coisa bem elementar, assim, onde eu
tive minha primeira iniciação. Eu estava para completar treze anos, no
começo de 1973. Foi uma experiência muito rica, e o Daime sempre fez
parte da nossa busca de conhecimento. Porque quando meu pai nos
apresentou, ele apresentou apenas a bebida, não a doutrina. Durante quatorze
anos, aproximadamente, nós fazíamos esporádicas reuniões, mas em
silêncio, não tinha a ritualística, que depois nós viemos a conhecer e a por
em prática. Então aconteceu esta situação para nós.
78
Nas primeiras reuniões havia a canalização de mensagens espirituais e contato com
entidades do mundo astral. Como vemos, inicialmente ainda não havia a estruturação que hoje
se apresenta no Céu de Midam. Jonas tinha o Daime mas, não teria aderido – nesse momento
– aos rituais e linha doutrinária do CEFLURIS .
Sua mudança de Goiás para São Paulo no início dos anos 1980 foi motivada
principalmente devido a um problema de saúde em seus rins, já que aqui haveria melhores
possibilidades de tratamento médico e hospitalar. Durante alguns anos, ocorreu um hiato
nesses trabalhos de Daime que Jonas Frederico estava realizando. Porque, além de tudo,
faltava a bebida sagrada, já que estava na incumbência de Jonas viajar ao Acre e trazer o
daime, dado a ele das mão de Padrinho Sebastião.
Passado esse momento de crise, os trabalhos recomeçaram, agora em São Paulo.
Participavam pouquíssimas pessoas - entre amigos e familiares - , cerca de oito pessoas em
cada trabalho. Eles se realizavam principalmente na casa de Jonas na capital paulista, situada
na Rua Lins de Vasconcelos. Isso por volta de 1983, aproximadamente. Paralelo a tudo,
existia também o chamado “Daime Itinerante” : em uma espécie de bolsa contendo o Daime e
outros elementos mais fundamentais para um ritual (velas, incenso, taças, cristais,etc) , Jonas
levava o trabalho para casa de pessoas, geralmente amigas da família , e lá iniciava os
encontros. Isso ocorreu de forma paralela aos trabalhos em locais fixos, até 1987-1988.
Podemos afirmar que foi em 1988 que a história da Igreja Flor de Luz começou a
ganhar mais consistência. Foi o período em que o núcleo Flor de Luz se constituiu e também
recebeu o apoio de novos membros, dos quais se destaca a presença de Maria do Carmo, que
chegara de Rio Branco para viver em São Paulo.
79
Assim nasce a Igreja Flor de Luz, quando os seus fundadores e comandantes – entre
eles Jonas Frederico e Maria do Carmo - se estabeleceram na cidade de São Paulo e
iniciaram nesta metrópole um núcleo daimista. Núcleo pode ser definido segundo o
dicionário Aurélio de Língua Portuguesa como o ponto central; o centro, o ponto essencial, a
sede principal ,a melhor parte; a nata, a flor de qualquer coisa; o escol.
Hoje costuma-se denominar o início de um grupo daimista como “ponto” ,
diferenciando-se portanto dos primeiros “embriões” do Santo Daime em São Paulo, já que os
núcleos dos anos 80 que se firmaram acabaram por se tornarem “igrejas” significativas por
sua importância . Ainda hoje podem ser encontrados hinários com a inscrição “Núcleo For de
Luz” em sua capa.
Segundo os relatos de Alexandre Frederico:
Alguns anos depois, foi possível conseguir um local, onde havia
espaço para dez, doze pessoas, na casa de uma prima minha, Márcia, na
saída da Raposo Tavares, e aí abriu-se espaço para outras pessoas
conhecidas poderem participar conosco. No subsolo, no porão da casa dela.
Dava a impressão que estávamos começando a chocar um ovo, uma
sementinha, que estava ali , no porão da terra, no porão da casa, onde
começou a se originar toda a história do Flor de Luz e depois o Sítio Céu de
Midam. A madrinha Maria do Carmo chegou nesse momento.Aí , começou a
ter uma procura, e foi preciso fazer lista de presença, porque segunda-feira
quem ligava, preenchia a lista e quem não dava , ficava para a próxima
reunião.
De forma semelhante, Maria do Carmo relata os percalços esses primeiros tempos
comparando-os com a história de dificuldades vividas pelos primeiros cristãos - tempo em que
o cristianismo era uma religião proibida, considerada uma seita:
Em 1988, o Jonas trazia o Daime para São Paulo e tomava com os
familiares dele lá... de uma sobrinha dele. E eu achava até esquisito porque
era lá no porão, aí eu me lembrei que no início do cristianismo eles iam para
a sinagoga, para os porões, aquelas coisas...desciam né... Eu fui descendo
80
aquelas escadas de caracol, dá uma sensação estranha. E o pessoal tinha
muito medo, ainda não era tão aberto assim, o Daime prá cá era muito
fechado, muito restrito mesmo, e não era muito badalado, tinha gente que
morria de vergonha de dizer do Daime, que era daimista.
(...)
Porque eu tinha vindo aqui para São Paulo, tinha me aposentado em
1987 e, como o Jonas estava impossibilitado de estar sempre lá, em Rio
Branco, então eu resolvi estar mais perto dele. Então eu vim em 1988 e
participei desse trabalho com pouca gente, poucos amigos, acho que não
tinha nem dez pessoas tomando o Daime. Aí, lembrei-me da época de
Cristo, depois do que fizeram com ele... para os apóstolos era escondido que
eles pregavam, então foi assim, tudo daquele jeito assim.
De semente que começara a germinar, no porão de uma casa, o núcleo Flor de Luz
passaria por vários endereços na capital paulista, sendo um deles localizado na esquina da
Rua Henry Dunant com a Rua Tucum, bairro do Morumbi – Tucum que, coincidentemente
32
,
é também uma referência ao Hino Linha do Tucum
33
de Raimundo Irineu Serra:
Linha do Tucum
Eu canto aqui na terra
O amor que Deus me dá
Para sempre, para sempre
Para sempre, para sempre
A minha Mãe que vem comigo
Que me deu esta lição
Para sempre, para sempre
Para sempre eu ser irmão
Enxotando os malfazejos
Que não querem me ouvir
Que escurecem o pensamento
E nunca podem ser feliz
Esta é a Linha do Tucum
Que traz toda lealdade
Castigando os mentirosos
Aqui dentro desta verdade
32
Na verdade, para os daimistas do Céu de Midam, não existem coincidências, estes fatos são considerados
sinais divinos, mensagens do astral, desígnios de Deus.
33
Tucum é uma entidade do mundo espiritual, um caboclo ligado à cura espiritual, que, como o hino informa,
“enxota” os malfazejos – espíritos que tornam as pessoas sofredoras, perturbadas.
81
Todavia, o primeiro endereço de encontro dos daimistas do Flor de Luz situava-se na
Vila Raposo Tavares – próximo ao município de Cotia. Assim é descrita a “peregrinação do
Flor de Luz” segundo a Madrinha Maria do Carmo:
O movimento foi crescendo. Então em 89, lá em janeiro, lá nós
começamos a fazer as reuniões mais amiúde, e foi aumentando, foi
aumentando assim... as pessoas , aí resultado: nós tivemos que sair de lá
porque já estava aumentando, aumentou, daí que começou a peregrinação do
Flor de Luz
Como o espaço da Raposo Tavares não atendia à crescente procura das pessoas pelo
Daime, fazia-se necessário uma nova mudança. Conforme nos conta Alexandre:
Foi quando um dia chegou uma pessoa , conhecida nossa, chamada
Luís Delfino que era psicólogo, tinha um consultório, onde cabia até vinte e
cinco pessoas. Aí nós fizemos por um período ali na região do Brooklin.
Por volta de 1989, Jonas Frederico e seu filho Alexandre fizeram uma viagem ao Céu
do Mapiá – na Amazônia – onde participaram de um encontro nacional de Igrejas, o que
propiciou um contato maior com a ritualística e a doutrina organizadas pelo CEFLURIS:
Em 1989, eu fui nessa viagem com ele para o Céu de Mapiá, quando
eu conheci o Pad. Sebastião. Em maio de 1989 houve o primeiro encontro
das Igrejas do Brasil, onde nós representávamos um núcleo sem pretensão de
nome, nada. Na época tinha o pessoal do Céu do Mar, do Céu da Montanha,
o pessoal do Flor das Águas. Em 1989, após a nossa viagem ao Acre que
nós começamos a ter um contato maior com a questão da doutrina.
Alexandre Frederico
Começava a reformulação dos trabalhos dirigidos por Jonas Frederico: de trabalhos
basicamente de meditação e silêncio passou-se a incorporar os hinos e regras originárias do
Céu do Mapiá, conforme continua a nos narrar Alexandre:
82
Só que não tínhamos os recursos que temos hoje, os trabalhos eram
através de fitas, muitas vezes mal gravadas.
Todavia, novamente surgia a necessidade de transferir o núcleo para um local
mais amplo, capaz de receber um maior número de pessoas:
Começamos a fazer as reuniões no consultório desse irmão, mas
chegou um tempo que tivemos que entregar o espaço.Aí mudamos de um
lugar de 25 pessoas, para um local onde havia espaço para 60 pessoas, que é
no bairro da Liberdade.
Alexandre Frederico
A doutrina, os rituais e demais orientações vindas do CEFLURIS não foi
automaticamente acomodada ao contexto de São Paulo. A vida urbana nesta grande
metrópole, de início, exigiu algumas mudanças e adaptações, de acordo com Alexandre:
Os nossos trabalhos sempre aconteciam aos sábados, porque não
dava para seguir um calendário. Uma das coisas que eu pleiteei junto aos
dirigentes, na época, lá no Mapiá, foi que não posso pegar uma cultura
amazônica e tacar numa cidade, na quarta cidade maior do mundo, da
América Latina, em São Paulo, onde você tem os mais diversos tipos de
cultura, eu tenho que adaptar. Uma das adaptações que nós fizemos , que o
Flor de Luz fez, é a história dos trabalhos todos os sábados. E para os
iniciantes dávamos uma palestra na segunda-feira, dávamos uma ficha que
era o termo de responsabilidade de uma pessoa que estava ali para participar
de uma reunião com plantas psicoativas e, que era de livre e espontânea
vontade que estava ali participando de um trabalho ritualístico.
Depois de se fixar no bairro da Liberdade, o núcleo Flor de Luz transferiu-se
para a Rua Pedro Taques – próximo ao cemitério da Consolação – permanecendo neste local
por apenas um mês, aproximadamente. Após isso, foi para Moema. Depois para o Morumbi –
83
na Rua do Tucum, como citado logo acima. Foi o primeiro lugar alugado já com contrato
social da entidade, um ponto fixo do Flor de Luz por cerca de dois anos.
Além dessas localidades o núcleo Flor de Luz passou também pelos bairros do
Tremembé e Barra Funda. Houve também alguns trabalhos num espaço emprestado em Embu
das Artes e também em Camanducaia
34
, Minas Gerais.
As constantes andanças por São Paulo, acabaram por demonstrar que a cidade não era
o espaço mais adequado para o Santo Daime. O desfecho das Igrejas Daimistas que se
estabeleceram em centros urbanos parecem seguir sempre um mesmo destino, qual seja,
migrar para áreas rurais, em proximidade com a natureza, e isto por várias razões : a origem
do Santo Daime e sua ligação com a Floresta Amazônica, os hinos que a todo o momento
louvam a natureza, as dificuldades e desarranjos de realizar os ritos em espaço urbano. Fica
clara a necessidade de estar próximo a natureza, por exemplo, neste hino da Srª Maria do
Carmo: O Som da Cachoeira
O som da cachoeira
Faz chuá, chuá, chuá
A chuva também faz
Chuê, chuê, chuê
O Som da Natureza
Como é belo o seu cantar
O canto dos animais
O som que o vento faz
O som da cachoeira
São gotas a borbulhar
Cristais brilhantes vidas
Vem aqui para ensinar
O orvalho resplandece
Em avisos neste chão
São pingos em nossas mãos
Em formas de coração
34
Os trabalhos espirituais com o Santo Daime realizados em Camanducaia- MG contribuíram para que lá se
criasse uma nova Igreja do Santo Daime, conhecida hoje como Céu da Mantiqueira, e dirigida pelo Padrinho
Chico.
84
O som da cachoeira
Faz chuá, chuá, chuá
A chuva também faz
Chuê, chuê, chuê.
(Hino 73, Hinário Caminho de Luz)
Segundo Maria do Carmo, muitas igrejas passaram por esse processo migratório
cidade – campo :
Com a igreja Flor de Luz não foi diferente de outras igrejas irmãs,
quando começaram suas histórias seja numa sala residencial ou numa sala
comercial, tanto faz. Quando o Mestre e Deus querem que as coisas boas
aconteçam . É só ter merecimento
Ainda segundo Maria do Carmo:
Não havia dificuldades em São Paulo porque nós somos ‘teleguiados’ lá em
cima e também porque sempre chegava um irmão disposto a nos ajudar.
3.2 – A Comunidade Céu de Midam e a Igreja Flor de Luz
Quando eu coloquei os pés aqui, sinceramente, eu juro pela luz que Deus nos dá hoje, que é o Sol, . que
eu senti como se estivesse flutuando. Assim que entrei neste sítio, eu não sentia nada, como se eu estivesse na
Lua, naquele vácuo, flutuando. Uma força estava como que me puxando, e impressionou-me os bambus, nunca
tinha visto um bambu daquela grossura. (Madrinha Maria do Carmo)
85
Figura X – O templo e o sítio onde se localizam a Igreja Flor de Luz.
Segundo Maria do Carmo, por volta de 1992, a irmandade do núcleo Flor de Luz
estava procurando uma terra para sair da cidade e vir para o interior. O Padrinho Jonas havia
recebido instruções do Astral, de que o sitio deveria estar a aproximadamente 120 km de
distância da cidade de São Paulo.
86
O núcleo, então localizado em São Paulo – capital – passava por dificuldades,
principalmente de ordem financeira, pois não era fácil manter o aluguel de um salão, e dar
conta das outras despesas que oneravam a irmandade. Além disso, tornara-se incoerente
cantar hinos que falavam das forças da natureza em meio ao concreto e agitação desta
metrópole. Foi aí que surgiu o projeto de comprar terras no interior, próximas a mata e longe
do caos urbano. Tal instrução chegou para o Padrinho Jonas lá do mundo espiritual – cujo
acesso torna-se possível ao ingerirmos o Daime . Nesta mensagem vinda do Astral, havia
alguns requisitos que deveriam ser observados : a terra deveria distar 120 km da capital
paulista – como já foi dito - , além de possuir cerca de três alqueires de área:
Foi quando o Padrinho Jonas falou que a instrução do Astral era que
os irmãos se reunissem e montassem um projeto. Naquela época, havia um
irmão nosso, fardado, chamado Luciano, advogado, que recebeu do Astral a
instrução de que este projeto para adquirir as terras da Igreja Flor de Luz se
chamaria “Midam”. Um projeto de comprar um terra e fazer a igreja. Numa
hora de alegria o Luciano propôs : “Olha, vamos chamar esta idéia de
Projeto Midam.” O Padrinho Jonas concordou com o nome, e propôs a uma
comissão de irmãos que se incumbisse de procurar um sítio para constituir a
Igreja.
Geraldo (39 anos, daimista e um dos primeiros moradores da
Comunidade Céu de Midam)
A instrução chegou do Astral até o Padrinho. Jonas determinou a ação a seus soldados.
A irmandade, então, organizou uma comissão responsável pela procura e compra das terras.
Estava iniciado o projeto “Midam”, que depois, acrescido do termo “Céu” daria nome à
Comunidade Céu de Midam
35
. A comissão – constituída por seis irmãos - tinha em vista
gastar até trinta mil dólares, arrecadados entre os membros do Flor de Luz. A primeira
35
Midam, segundo as palavras do Padrinho Sebastião Mota de Melo representaria os seguidores de Deus ou de
Cristo, o povo escolhido. Por extensão, é o próprio povo do Santo Daime, que se guiam nos ensinamentos do
Mestre Irineu, considerado portador da energia crística
87
tentativa de compra não vingou. Foi em Camanducaia. Quando tudo já estava quase certo
descobriu-se que a propriedade não teria a medida anunciada pelo seu dono. O negócio,
segundo Geraldo, foi desfeito momentos antes de se concretizar. Depois deste contratempo, a
Comissão especulou até a possibilidade de devolver o dinheiro arrecado para os irmãos, mas
no final aceitaram o desafio de prosseguir na procura das terras para construir o templo Flor
de Luz. Procuraram terrenos em Mogi das Cruzes, no litoral paulista, em Parelheiros, mas
sem êxito. Foi quando tomaram conhecimento, através da Imobiliária de Piedade, da oferta de
venda de um sítio de 7,8 alqueires. O valor era de 60 mil dólares. A Comissão havia
arrecadado uma quantia muito aquém deste valor, e já estavam desistindo desta idéia. Mas
Jonas fez questão e disse que aquela seria a terra escolhida pelo Astral. A Comissão - dentre
os quais estavam Ricardo Max, Geraldo e Maria do Carmo – fez milagres para buscar mais
recursos entre os fiéis e, conseguiu-se - depois de muita perseverança – 55 mil dólares. No
entanto, o japonês que era dono da propriedade só fechava o negócio se fosse à vista
36
. Depois
de muita insistência e conversa, o proprietário aceitou os 55 mil e o restante foi dividido em
parcelas. Estava sendo gerado o sonho da Comunidade Céu de Midam e da Igreja Flor de Luz.
Faço uma pausa neste momento, para trazer ao texto uma informação importante. As
instruções recebidas por Jonas do mundo espiritual eram formadas por três níveis ou
etapas.Segundo as palavras de Geraldo :
Primeira Etapa - “Do que tem, nós ganhamos” - Era aquela que a
gente já se encontrava, alugando o salão, se encontrando apenas nas datas
dos trabalhos de Daime ,em que a gente se confraternizava, mas quando
terminava, cada um ia para a sua casa . E era meio um vazio aquela união. A
gente sentia que tinha que ficar mais juntos. “Do que tem, nós ganhamos”
este era o lema da primeira etapa. E o que é que nós ganhamos? Ganhamos a
união, aquela alegria de se reunir, aquela inocência, aquele encontro etc.
36
Neste intervalo de tempo, quando ocorriam as negociações, Jonas adoeceu, teve um derrame cerebral, tendo
como seqüelas a paralisação de parte dos movimentos de seu corpo, e, portanto ficou afastado das negociações.
88
Segunda Etapa - “Do que tem não falta nada, o que falta nós
mandamos buscar” – É a etapa que teve início quando nós concretizamos a
compra desse sítio aqui em Piedade. E por que “do que tem não falta nada?”
Porque aqui nesse sítio já tinha o salão prontinho, não precisava construir a
igreja . Já tinha a casa dos homens, a casa das mulheres e a casa das crianças.
Lá, mais acima da Igreja, a gente faz a casa de cura. Depois fizemos a casa
de feitio. Havia a terra para plantar as plantas, o cipó jagube e a folha rainha.
Então, do que tem não falta nada. E o que falta ? Falta pagar o Carrefour,
pagar a gasolina. Mas aí a gente manda buscar, vai lá cidade , trabalha,
ganha dinheiro e manda buscar (risos).... Ah, um detalhe, o Padrinho Jonas
só pisou os pés aqui, no Céu de Midam em Piedade, depois que o último
centavo pelas terras foi pago, só depois que a escritura foi assinada
Terceira Etapa – “Do que tem, nós não precisamos. Do que
precisamos nós criamos, e do que criamos nós usamos. “ - A terceira
etapa vai ser em Goiás, na Chapada dos Veadeiros a 1200 km de SP. A
segunda etapa vai ter um custo de 80 mil dólares. A terceira etapa vai ter um
custo de 800 mil dólares. Então tudo se multiplica por dez. A minha história
é a terceira etapa. Eu já adquiri a primeira terra na Chapada dos Veadeiros ,
num local chamado “Morro da Baleia”.
A escolha do Morro da Baleia - localizado na Chapada dos Veadeiros em Goiás, local
considerado sagrado e místico por muitos esotéricos – significou para Geraldo uma ligação
com a história do Padrinho Jonas, de quem demonstra muito carinho e saudades. Nas suas
palavras :
O Padrinho Jonas, ele viveu durante muito tempo, do lado do
Padrinho Sebastião . Ele foi um dos primeiros que esteve lá com o Sebastião.
Inclusive muitos irmãos que estão na doutrina hoje com Igreja chegaram
depois dele. Mas ele sempre aparece assim, como o arquétipo do Profeta
Jonas , aquele que Deus fala assim : “Você vai para Nínive salvar aquele
povo” Ele vai até o porto, mas escolhe sempre o barco que vai em sentido
contrário. Mas a baleia veio comeu ele e vomitou ele lá nas praias de Nínive.
E depois das provas evidentes da missão dele , ele viu que não tinha como
correr daquela história . E ele aceitou de coração. E eu acredito que em
determinado nível de conhecimento que a pessoa adquire, principalmente no
Daime, o “aceitar” é eterno, não há nada que ele possa fazer para desfazer-se
de sua missão.
Dessa forma, como que seguindo este destino comum a quase todos os Centros
Daimistas, em 1992 , no dia 27 de dezembro foram adquiridas as terras do Céu de Midam.
89
Foram momentos que representaram para a comunidade muito trabalho, muita força de
vontade, com muitos contratempos, conforme nos narra Maria do Carmo. O maior desses
contratempos foi a passagem
37
em 2001 do Padrinho Jonas Frederico.
A Igreja Flor de Luz se constituiu como Igreja oficial filiada e reconhecida pelo
Cefluris em 1992, no município de Piedade . O sítio acolhe a Igreja, a Casa de Cura, a Casa de
Feitio, a hospedaria dos homens e das mulheres, a casa das crianças, além da comunidade
constituída por vinte e duas moradias.
Em 18 de março de 1993 foi realizado o primeiro trabalho oficial de bailado na Igreja
Flor de Luz, já em Piedade. Nesta data presta-se homenagem a São José, considerado um
importante patriarca da chamada “Corte Celestial” - na perspectiva da Cosmologia Daimista.
Foi em 1993 também que as primeiras moradias foram construídas e habitadas pelos daimistas
de São Paulo.
Segundo entrevista com a Srª Maria do Carmo, cada Igreja do Santo Daime , de
certo modo, é única, pois possui sua própria “egrégora” , vale dizer, sua própria linha
espiritual. Em outras palavras, podemos relacionar a questão da “egrégora” de cada centro
daimista com a discussão antropológica sobre a especificidade de cada cultura, etnia, povo ou
grupo social. No caso de Midam, esta particularidade é representada pelo Comando Estelar:
Nós temos nossa materialidade . Eu sei que se cortar o braço vou
sangrar , posso morrer, mas nós somos uma energia cósmica , fazemos parte
desta energia.
Um acontecimento importante na história da comunidade e dos daimistas do Céu de
Midam está relacionada com o processo de cura pelo qual passou Padrinho Jonas Frederico,
37
Devido ao fato do Santo Daime ser uma doutrina essencialmente espírita, assim como no kardecismo costuma-
se encarar a morte como uma passagem ou um renascimento.
90
como relatado por seu filho Kelmir Jones
38
, de 33 anos. A cura a que me refiro está
relacionada à recuperação dos movimentos de Jonas, cujo corpo ficou parcialmente paralisado
devido ao derrame que sofreu. Segundo Maria do Carmo, tal cura se deveu - não só ao Daime
e os trabalhos de cura - mas também graças a toda a motivação que ela promovia junto a seu
esposo para que exercitasse seus movimentos, desafiasse sua paralisia e acreditasse em sua
recuperação.
Neste processo segundo Kelmir, houve a intervenção do Ser de Luz Comandante DAR
o ON
39
, um ser estelar, da chamada Confederação das Estrelas. A cura testemunhada no
Santo Daime, principalmente quando ocorre com um fiel de destaque na comunidade, acaba
por se tornar um agente de agregação para o grupo, tornando-se a cura um processo
identitário, que leva a fortalecer sua unidade
Após a passagem de Jonas, houve um momento de crise. A comunidade sofreu uma
cisão, pois algumas famílias não aceitaram o novo comando da igreja, que passou para as
mãos de Kelmir e, sendo assim, houve grandes dificuldades para reconstruir a direção da
igreja e comunidade. Segundo as informações de Geraldo, esta foi a fase do chamado “buraco
negro”
40
, momento em que algumas famílias sentiram-se órfãs de um líder espiritual
importante e sábio como foi o caso do Padrinho Jonas
41
. Já o comando ou norte espiritual , os
ensinamentos doutrinários, se tornaram prioritariamente responsabilidade da Srª Maria do
38
Kelmir Jones é filho de Maria do Carmo e considera Jonas Frederico como seu verdadeiro pai, pois foi ele
quem o criou e o educou, considerando-o também como seu próprio filho, embora não o seja seu pai biológico.
Sobre outros detalhes deste relato ver cap. 4 – Comando Estelar.
39
Sobre DAR o ON e a Confederação das Estrelas, ver capítulo 4 - Comando Estelar.
40
Referência ao hino “O Cruzeiro do Sul é o Cruzeiro” do Hinário Caminho de Luz, da Madrinha Maria do
Carmo : “O Buraco Negro do Mundo/Por onde devemos passar/ Romper os laços da ilusão/ É tudo que nos
convém.”
41
Para algumas famílias que entrevistei, como o casal Geraldo e Joyce, a senhora Niva de 47 anos e o casal
Fernando e Márcia Regina este vazio de espiritual, não pôde ser preenchido por ninguém. Por isso eles não
participam mais da Igreja Flor de Luz. Reúnem-se em suas casas e fazem trabalhos espirituais com o Daime,
entre eles apenas, semanalmente. Não participam mais dos trabalhos da Igreja e divergem da liderança atual de
Kelmir e Maria do Carmo.
91
Carmo. Madrinha Maria do Carmo – como é conhecida pelos fiéis - é possuidora de quatro
hinários – Caminho de Luz, Segmento, No Brilho do Sol e Flor de Maria – além de estar
recebendo os primeiros hinos de seu quarto hinário , intitulado Na Presença de Deus.
Sobre o episódio do falecimento do Sr. Jonas Frederico, vale a pena ressaltar que, em
geral, todos no Céu de Midam concordam e reconhecem que – mesmo não estando mais
presente neste mundo terreno - ele comanda do mundo astral o que se passa na comunidade,
guiando e protegendo a todos os seus membros.
3.2.1 - Espaço Sagrado
Figura XI - Placa sinalizadora na estrada .
92
Ao viajar da cidade de São Paulo para acompanhar os rituais do Santo Daime na
Igreja Flor de Luz – Céu de Midam, localizada em Piedade - região próxima à Sorocaba -,
primeiramente o indivìduo percebe que está deixando para trás toda forma de poluição
urbana, da vida agitada e conturbada da cidade, para aos poucos entrar em contanto com o
verde, a calma, o encontro com a natureza. O sítio em que se localiza a Igreja - às margens da
rodovia SP- 79, que liga Votorantim, Sorocaba e Piedade - parece ser , para quem faz este
caminho, um local sagrado, onde ao adentrá-lo se despoja de todas as energias negativas que
impregnavam sua alma. A 500 metros da comunidade, na estrada SP-79, há uma placa
sinalizadora – no formato padronizado pelo departamento de trânsito – em que se lê : Céu de
Midam – Flor de Luz (Figura XI ), tendo no centro o símbolo da Estrela do Rei Salomão –
dois triângulos equiláteros invertidos que acabam por formar uma estrelas de seis pontas.
Chegando à Comunidade Céu de Midam há um portal – denominado Portal das
Águias - que delimita o mundo profano – o exterior – e o ambiente sagrado no interior do
sítio. Ao pisar neste limiar, acredita-se que no espaço externo – lugar das coisas profanas, do
mundo da ilusão - ficarão os resquícios de nossas vidas lá fora – o caos da cidade, a rotina do
trabalho, os conflitos e tensões. Cruzando o portal, somos levados -utilizando a linguagem dos
fiéis que freqüentam a comunidade – a uma outra dimensão, a uma nova egrégora espiritual. .
O Portal das Águias representa esta área limítrofe, entre o sagrado e o profano, sendo,
portanto, na definição de Turner (1974), um símbolo liminar.
Vejamos agora uma breve interpretação sobre os significados deste portal. Logo na
entrada do Céu de Midam o visitante se depara com duas Águias, chamadas de “O Surdo” e
“O Mudo” ; elas, as águias, lhe advertem que está entrando em uma dimensão sagrada, que
a partir do passo que se dá em direção a este espaço, há regras que devem ser cumpridas, há
uma outra ordem estabelecida. Dentro desta ordem “O Surdo” e “O Mudo” são símbolos que
93
lembram que é necessário silêncio, silenciar a mente, o coração, respeitar os segredos
sagrados que serão revelados àqueles que no Midam permanecerem. As Águias, que foram
um projeto criado pelo Padrinho Jonas Frederico, então comandante da Igreja e Comunidade,
estabelecem um claro limite entre o mundo interior – sagrado – e o mundo exterior – profano.
Figura XII – O Portal das Águias.
Segundo as informações da Srª Maria do Carmo, a águia possui a visão super apurada,
ela é a única ave que pode olhar diretamente para o Sol. Traçando-se um paralelo, é como se
deve comportar a pessoa que toma a bebida sagrada, o Daime : irá realizar o vôo xamânico,
vôo da alma e, ao receber as visões em forma de miração, deve silenciar seu pensamento,
saber compreender com serenidade o que este ser divino – o Daime – está lhe comunicando.
94
Como estamos verificando, o Céu de Midam possui uma teia complexa de símbolos,
um universo de significados, oriundos das mais diversas origens – o catolicismo popular, as
religiões afro-brasileiras, o kardecismo, o esoterismo europeu, a filosofia oriental, etc - , e
torna-se necessário compreender o sentido que os fiéis conferem a toda esta rica semântica
social.
Após ultrapassarmos o Portal das Águias, estamos no espaço da Comunidade Céu de
Midam, portanto local do sagrado e das regras e ordenamento que o regem. Tais regras do
sagrado também influenciam na demarcação e delimitação dos espaços internos do Midam,
assim como regem o modo correto de se agir em cada local. Há, dessa forma, a casa dos
homens, a casa das mulheres, a casa das crianças, o Templo – onde se realizam a maioria dos
trabalhos espirituais -, a cozinha comunitária, a Casa de Cura e a Casa de Feitio – onde se
produz o Daime.
O Templo é o elemento central dentro desta territorialidade. Próximo a ele, na área
externa, encontra-se uma imensa estrela de seis pontas – estrela do Rei Salomão (Figura XIII),
formato que será encontrado também na mesa central , no interior da Igreja e no peito dos
fardados
42
- possuindo assim um valor intrínseco de sacralidade para os daimistas. Segundo
Léo Artése (2000), comandante da Igreja Céu da Lua Cheia – Itapecerica da Serra - , em seu
livro O Vôo da Águia, a “Estrela de Seis Pontas, Estrela de Salomão é a união de dois
triângulos. Representa a circulação da vida. A conexão entre o Macrocosmo e o
Microcosmo”
43
.
42
A Estrela do fardado - tendo gravada em sua face um Sol, uma meia Lua e uma Águia em pleno vôo – marca a
identidade e a personalidade de cada Igreja, pois apresenta sutis mais significativas diferenças de uma igreja para
outra.
95
Figura XIII – Estrela do Rei Salomão.
Para entrar no Templo e nas áreas externas próximas a ele, assim como na Casa de
Cura, as mulheres devem estar portando saias cumpridas, não pode haver decotes ou
transparências e os homens devem estar vestindo calça e camisa – é proibido uso de bermudas
ou mini-saias. Nos dias de feitio , não é permitido nem para mulheres ou meninas permanecer
na Casa de Feitio, pois o trabalho com o jagube e com a produção do Daime – dentro da
divisão sexual do trabalho nos centros daimistas – é exclusivo do homem. Às mulheres cabe
separar e limpar as folhas de rainha e preparar as refeições na cozinha comunitária. Nos dias
de trabalho, recomenda-se evitar o uso das cores pretas e vermelhas, pois entende-se que
representam energias negativas, que não colaboram para a harmonia dentro do ritual.
43
ARTÉSE, Léo. O Vôo da Águia, São Paulo, Roka, 1996: 207.
96
Em frente à entrada do Templo, temos uma escadaria dupla que leva até ao Santo
Cruzeiro (Figura XIV) , cruz de caravaca, com um segundo braço em comparação com a cruz
católica, que representa a segunda volta de Cristo à Terra. O Santo Cruzeiro é um símbolo
que, junto à Estrela Salomônica , ocupa um local de destaque dentro da hierarquia dos
símbolos religiosos da doutrina daimista. Ele está diretamente relacionado à figura do Mestre
Irineu, que simboliza o Império Juramidam – o mundo astral no qual reina Irineu, junto à
Virgem Maria e outros seres divinos da chamada corte celestial . Mestre Irineu seria a
representação da própria energia crística, interpretada por muitos daimistas como a segunda
volta de Jesus à Terra.
Figura XIV – O Santo Cruzeiro.
97
No caso do Templo, percebemos como o espaço – algo físico e geográfico – pode ser
radicalmente ressignificado pela comunidade que dele faz uso. Quando foram adquiridas as
terras que viriam a se tornar o Céu de Midam, a construção que hoje acolhe este Templo,
possuía uma outra função, era um depósito de cebolas – espaço com características, pode-se
assim dizer, profanas.
No interior do Templo, encontraremos a mesa central em forma de Estrela
Salomônica, elo de ligação entre o mundo espiritual – invisível – e os participantes da
cerimônia
44
. Sob a mesa o Santo Cruzeiro, quatro velas, flores, água, um recipiente de cristal
com Daime em seu interior. Há também o altar, o berçário, a sala do Daime
45
.
O espaço é dividido metade correspondente às mulheres, e a outra esfera aos homens.
Existem também subdivisões em cada parte : meninos/rapazes, homens casados ou com filhos
e os senhores /veteranos. Do outro lado: meninas/virgens, mulheres casadas ou com filhos,
senhoras/veteranas. Além disso há ordenamento por tamanho, os fardados ocupam os lugares
mais próximos da mesa central , havendo distinção de acordo com o tempo de fardamento e o
prestígio/dedicação/merecimento entre os daimistas
46
.
Nos dias de trabalho há o chamado “fiscal de porta” ou “porteiro” que possui o papel
de guardar a entrada do Templo, zelando – segundo a perspectiva dos fiéis - para que
nenhuma força espiritual das sombras nele penetre e atrapalhe a harmonia do ritual. Ele
44
À semelhança do que ocorre nos centros espíritos kardecistas, onde a mesa central – mesa branca – ampara o
trabalho dos médiuns, que buscam comunicação com o mundo dos espíritos.
45
Local onde os galões e litros de Daime ficam armazenados.
46
Em 1936 , Mestre Irineu cria uma ordem hierárquica entre os daimistas, mas que permaneceu por pouco
tempo, já que gerava muitos desentendimentos e conflitos de poder entre os fiéis. Quem possuia seis estrelas era
General, cinco estrelas Coronel, quatro estrelas Tenente, duas estrelas Cabo e uma estrela Soldado Raso .(Maia
Neto, 2003).
98
também tem a tarefa de informar o “fiscal de terreiro”
47
caso haja algum incidente , como
pessoas precisando de auxílio durante o ritual - por estarem passando por mal estar ou por
não estarem conseguindo cumprir as regras da igreja (uma delas é procurar se manter sempre
dentro do salão). O porteiro, como me informou um fardado da igreja, deve imaginar-se como
um membro da guarda real inglesa, vigiando a entrada do palácio.
Figura XV– Cortina na entrada do Salão.
Passando pelas portas de madeira do Salão, temos uma cortina azul (Figura XV), com
dois emblemas : o Sol dourado, à direita de quem entra – por onde devem passar os homens; e
47
Responsável pelo movimento e atendimento no terreiro ou área externa do Templo. Recebe as pessoas
encaminhadas pelo fiscal de salão e vice-versa, cuidando daqueles que sofrem algum tipo de mal estar , com
atenção especial aos novatos.
99
a Lua prateada à esquerda – passagem das mulheres. Acima dessa cortina, um quadro onde se
divisa dois homens – aparentemente dos primórdios dos tempos – festejando, em um campo
florido, nas margens de um rio a chegada de seres celestiais, semelhantes a anjos. Há nas
paredes quadros e imagens de origem católica tais como : Virgem Maria, Virgem da
Conceição, Anjo Gabriel, São Miguel, São João Batista. Fotos dos fundadores do Santo
Daime : Mestre Irineu, Pad. Sebastião. Fotos do Padrinho Jonas Frederico, da Madrinha Rita,
e outras. Há em todo o Salão flores, que representam simbolicamente a missão de todo
daimista em geral, e do Mestre Irineu em particular, missão esta – segundo o mito de origem
do Santo Daime – recebida pela Virgem da Conceição : doutrinar o mundo inteiro na Luz
desta bebida sagrada. Além das flores, temos também o incenso – e nos trabalhos há o “fiscal
de salão”
48
responsável, entre outras coisas, em trocá-lo sempre que chegar ao final –
representando a purificação do ambiente, afastando as energias negativas, sendo ele o
elemento “ar”.
49
O Salão, principalmente nos períodos conhecidos como Festivais
50
, são decorados por
bandeirinhas coloridas, estabelecendo um ambiente de festa e alegria, quando os fiéis vestem
a denominada “farda branca” e bailam do pôr-do-sol ao raiar do dia. Além disso, encontramos
as bandeiras do Brasil e a bandeira do Santo Daime : verde , azul e branca – cuja referência
encontramos no seguinte hino do Padrinho Alfredo Gregório:
48
Possui a função de organizar o local de cada um no salão , cuidar da chamada harmonia da corrente, verificar
se todos estão bailando corretamente, cuidado com as velas, incenso e água. Há o fiscal da ala masculina e da ala
feminina.
49
As velas são o elemento fogo e nos copos da mesa central a “água” .
50
Os Festivais ocorrem em Junho/Julho onde ocorrem os rituais de bailado (hinários) de Santo Antônio, São
João e São Pedro e em Dezembro, ocasião do Natal e Ano Novo.
100
Firmado em concentração
Firmado em concentração
Na Virgem Mãe verdadeira
Eu vou olhando e dou chance
A quem olhar para esta bandeira
Vou publicar umas palavras
Que nos traz pura lembrança
Das cores desta bandeira
Do Pai verdadeiro, verde azul e branca
Firmado no verde lindo
Sou eu represento a terra
Por isto aqui eu estou
Com a paz do Senhor, acalmando a guerra
Firmado neste azul
Esta imensidão celeste
Faz calmar o meu coração
E dos meus irmãos, os que não esquecem
Lembranças vivas de Deus
Nos traz o branco do astral
Com todos seres do alto
Que nos iluminam juntamente ao Sol
Completei esta lição
Com justiça e lealdade
Para todos se reunir
Provando aqui sua capacidade
(Hinário “O Cruzeirinho” , hino nº 86)
O verde representaria a floresta – e, em sentido mais estrito a Amazônia -, o azul a
imensidão celeste, o branco a calma e a paz do astral – o mundo espiritual e verdadeiro
conforme a Doutrina Daimista.
101
Figura XVI .a– Interior da Casa de Cura.
Figura XVI.b – Visão Externa da Casa de Cura.
102
Na Casa de Cura (Figura XVI.a e XVI.b) se realizam os trabalhos de cura
propriamente ditos, os trabalhos de caridade para os que se encontram doentes – conhecidos
pelo nome de Pronto-Socorro do Daime - , trabalhos de São Miguel e de Estrela
51
. No seu
interior há, como no Templo, uma mesa central no formato da Estrela do Rei Salomão e,sobre
esta, o Santo Cruzeiro. Como um pêndulo sob o teto, no centro do espaço , há um cristal.Os
cristais ocupam no Céu de Midam um papel central dentro da simbologia da comunidade. Há
uma ante-sala onde , nos dias de Pronto Socorro do Daime, permanecem as pessoas enfermas,
acompanhadas de um fardado da parte dos homens e uma fardada para as mulheres. Há
quadros dos arcanjos São Miguel , Uriel e Rafael. Num trabalho na casa de cura, a dinâmica
do movimento daimista ocorre no sentido anti-horário. Todos devem entrar pela direita e , ao
término do ritual, dar a volta pela mesa central e sair pela esquerda. Há todo um cuidado por
parte dos fiscais do trabalho para que essa conduta seja respeitada. Do lado de fora da Casa de
Cura, há um altar com a imagem de Nossa Senhora do Carmo com uma luz a lhe iluminar .
Há também, do lado externo, grandes cristais, todos com uma história própria e uma rica
simbologia.
No caminho para a Casa de Feitio passamos por um lago, uma trilha cercada de verde,
e em determinado momento visualizamos uma placa de madeira com a seguinte mensagem :
Silencioso eu chego no jardim... um hino do Mestre Irineu. Ao chegarmos no espaço sagrado
do feitio – como dissemos acima, específico para os homens
52
- encontramos a fornalha,
preparada para receber quatro panelas, com capacidade para aproximadamente 100 litros
cada. Há os símbolos já citados acima : o Santo Cruzeiro, a Estrela de Seis Pontas, os quadros
51
Estes rituais serão mais bem detalhados proximamente, na seção sobre os Rituais no Céu de Midam.
52
Em afinidade com os dias – mitológicos - que antecederam o encontro de Mestre Irineu com a Rainha da
Floresta (Virgem da Conceição) , quando este cumpriu a dieta alimentar - comer apenas macaxeira insossa - e a
abstinência sexual – tinha ordem da Rainha da Floresta para não chegar nem perto de um “rabo de saia” .
103
do Mestre Irineu, Pd. Sebastião, as flores. Um quadro do artista plástico Ray
53
,de Embu das
Artes, que foi elaborado no calor de um feitio, com a força do Daime agindo no pintor,
concessão rara, já que o feitio é um ritual, e, como todo ritual do Santo Daime, com regras
bem definidas. Na Casa há o local da bateção, onde há lugar para doze pessoas realizarem a
maceração do jagube. Ao ritmo dos hinos, movem-se as marretas de madeira, e todos com a
força do Daime, representando simbolicamente os doze apóstolos de Cristo.
Dessa forma procurei traçar um rápido mapeamento das teias simbólicas na
Comunidade Céu de Midam – Igreja Flor de Luz, procurando trazer luz para os sentidos que
os daimistas e freqüentadores do local atribuem para tais símbolos sagrados.
3.2.2 - Guardiões do Céu de Midam
Dentro das particularidades que a Igreja Flor de Luz e a Comunidade Céu de Midam
apresentam, iremos destacar aqui os seres espirituais que guiam os fiéis daimistas e que
protegem toda a comunidade, o próprio Daime e que estão sempre transmitindo mensagens ou
instruções sobre o andamento da vida e também da doutrina neste local.
Vejamos um pouco das histórias e das características de quatro – os principais - destes
seres espirituais :
53
Ver o capítulo sobre o Santo Daime em São Paulo.
104
Apoena Águia Dourada – Foi o Padrinho Jonas quem viu este ser espiritual indígena
pela primeira vez – em forma de miração – e o identificou como o protetor do Santo Daime e
da Comunidade Céu de Midam. Apoena seria um índio da etnia Apache, portanto um índio
norte-americano. Viveria ele no bambuzal, bem em frente ao Templo daimista, teria um poder
xamânico, como um nagual, de se transformar em águia - daí a razão de ser chamado
“Apoena Águia Dourada”.
Uma das primeiras vezes em que Apoena apareceu nas mirações que o Padrinho Jonas
vivenciou é recontada abaixo pela Madrinha Maria do Carmo:
Na miração, ele, o Jonas, era um carneirinho, que estava num cercado
e queria só saber de pular, pular e pular. E ele pulou para fora daquele
cercado, queria sair daquele cercado . Foi quando veio uma flechinha ,
certeira, e a flechinha foi atrás dele e “pá!” bateu assim na bunda dele e
trouxe ele de volta para dentro daquele cercado. E quem o flechou foi o índio
Apoena Águia Dourada, trazendo-o de volta para o seu caminho, que é o
caminho espiritual, dentro da Doutrina do Santo Daime.
Madrinha Maria do Carmo.
Ainda conforme o depoimento da Madrinha Maria do Carmo :
Ele, o Padrinho Jonas, viu em miração que o nosso guardião era este índio
norte-americano, chamado Apoena Águia Dourada. Eu cheguei a ver o
Apoena, a entidade, e é de muita luz, mas de muita luz mesmo. Era um ser
simples, como um índio é ... mas de muita luz. Em seu aspecto, não era um
índio puro como a gente vê, mas um ser todo repleto de luz...
Madrinha Maria do Carmo.
Maria Cecília Frederico, acreana de 25 anos – filha do Padrinho Jonas e da Madrinha
Maria do Carmo - narra da seguinte forma um de seus contatos mais inesquecíveis com este
ser de luz chamado Apoena :
105
Eu tive uma miração com o Guardião Apoena Águia Dourada, só que
na miração ele aparecia como meu pai. Meu pai estava num lugar, com uma
roupa toda de marinheiro, com um quepe, com as mãos para trás. Ele estava
em cima de uma pirâmide. E de repente começa a abrir uma asa das suas
costas, uma asa assim enorme , ele abre aquelas asas lindas, enormes, dentro
da igreja, e aquelas asas pareciam águas, que limpavam tudo dentro da
igreja.
Maria Cecília.
Maria Cecília é casada com Saulo Bonfim,de 31 anos, e dessa união nasceu um filho
que hoje se encontra com três anos de idade. A este filho foi dado o nome de Apoena em
homenagem ao índio apache guardião do Céu de Midam. Este caso serve de exemplo para
entendermos a importância dada pelos fiéis daimistas da Igreja Flor de Luz aos seres de luz
que os acompanham, guiam e os protegem em sua jornada espiritual e na própria vida
cotidiana.
Em tempos anteriores, Saulo teve uma miração em que o Daime lhe mostrou que teria
um filho e que, caso fosse um menino seu nome seria Apoena :
Eu tive uma miração muito forte,e muito particular. Eu tive uma
instrução do comando espiritual da casa. Eu tive uma miração que eu iria ter
dois filhos com a Maria Cecília . Se o primeiro fosse menino, eu daria o
nome de Apoena, se for menina iria se chamar Jupiara. Eu fiquei pensando
na minha miração : “Porque Apoena?” . Ele é um Apache, e eu vi, na minha
miração, aquele indião vindo de dentro do bambuzal. O Padrinho. Jonas
dizia que a Águia ficava sentada em cima do bambu. O índio se
transformava em águia. Então, continuando a falar da minha miração, eu fui
em frente à Casa de Cura, próximo ao lago, e eu continuei a mirar, mirei
mesmo, uma imagem muito linda . Mas era uma miração tão real, que era
uma pessoa mesmo que eu estava vendo ali, ela virando meio uma
adolescente, na minha frente, ela chegou, deu a volta, subiu as escadas da
Casa de Cura, parou na minha frente, e falou “eu sou Jupiara, cabocla da
mata”. E como um conto de fada, de repente, sua imagem desapareceu na
minha frente.
Saulo Bonfim
106
Saulo lembra que casou-se com a filha de um Padrinho e uma Madrinha, e que tem
que zelar pelo neto deste Padrinhos do Daime. Por isso deu o nome de Apoena para seu filho
e busca ensinar a ele o caminho da doutrina daimista, buscando também preservar esta
linhagem de ensinamentos espirituais e doutrinários que vêm dos comandantes da casa, Jonas
e Maria do Carmo. Assim caso tenham uma filha, Maria Cecília e Saulo têm o desejo de
batizá-la com o nome de uma índia chamada Jupiara, ser espiritual que detalharemos mais
adiante. E, segundo Saulo, caso venham a ter um segundo filho, pensa talvez em dar o nome
de Daron a ele, em homenagem ao Comandante Estelar da Igreja Flor de Luz.
Dessa forma, para Saulo, também é um dever dele preservar o simbolismo e
originalidade da casa, do Céu de Midam, através de seus Guardiões : Apoena, Jupiara e o
Comandante Daron, esta tríade de seres de luz.
Jupiara - É outra Guardiã Espiritual cuja presença é sentida pelos daimistas no Céu de
Midam. Trata-se de uma índia brasileira, mas que também apresenta vínculos com os Incas,
até porque a ayahuasca – palavra quéchua, o vinho ou cipó das almas – é considerada um
conhecimento originário deste povo. Nas palavras de Maria do Carmo :
Então tem a Jupiara, que é uma índia que apareceu na nossa
egrégora, se firmando, na Igreja Flor de Luz. É uma índia brasileira... Eu não
tenho conhecimento total sobre ela, mas ela apareceu para o Padrinho Jonas,
e depois também para mim . Nas minhas mirações, ela é muito bonita, muito
forte, uma mulher muito simples, tipo uma índia peruana, mas uma índia
peruana simples. Então eu vejo, que ela representa a nossa raiz inca (...)
Madrinha Maria do Carmo lembra do ecletismo presente no Santo Daime, em que as
entidades vão se apresentando, e podem assumir as mais diferentes formas, mas como no caso
107
de Jupiara representam uma origem comum : a bebida sagrada - o Daime - veio da ayahuasca
que tem ,por sua vez origem mitológica lá no Império Inca.
Comandante Daron e o Comando Estelar – Trata-se de um ser estelar que delineia
a egregóra do Céu de Midam. Nos hinos da Madrinha Maria do Carmo, nas mensagens
deixadas pelo Padrinho Jonas, nas mirações dos fiéis – em toda parte podemos perceber a
presença da Cosmologia Estelar da Igreja Flor de Luz :
Quando os cientistas afirmam a possibilildade da existência de
outros mundos habitados, como esta aí a física quântica a afirmar , quando
pensamos na relatividade do espaço e do tempo . . . Matematicamente esta
aí, comprovado a existência de outros mundos,outras dimensões. Isto está
dito pela Ciência. Agora, na religião esta verdade, da vida em outros
mundos, tem o respeito para o que ninguém vá profanar, pois Deus dá uma
benevolência para a gente, em forma de religião, para proteger este
conhecimento. Guardado, protegido na memória cássica, que é nossa
memória divina.
Madrinha Maria do Carmo .
Continuaremos esta discussão sobre o Comandante Daron e o Comando Estelar no
capítulo 4 – Comando Estelar. Por enquanto basta frisarmos a importância do Comandante
Daron e da Cosmologia Estelar como características essenciais que demarcam as
particularidades do panteão de entidades do Céu de Midam.
Água Branca – É a Mentora Espiritual da Madrinha Maria do Carmo. Aparece nas
em suas mirações, tornando-se sua guia, levando a Madrinha para cidades longínquas no
tempo e no espaço como veremos a seguir. Vejamos então as características desta Mentora
Espiritual :
Água Branca é uma Índia do Astral, é uma índia norte-americana. Eu
comecei a perceber que as egrégoras dos índios chegam a ser até uma só. No
tempo dela, no tempo de sua tribo, dos Homens Pássaros, eles tinham o
poder de – não por mero prazer ou por brincadeira - de fazer a
materialização, abrir os portais. A minha guardiã é lá desta época, e é estelar
também , dentro desse campo vibratório eu aprendi muito com ela que me
108
aparecia em miração. Aprendi muito sobre o Daime, porque o Daime é
estelar ,é eterno. Eu via esta índia no tempo, cabelos brancos lindos de índio,
tinha só uma pena branca na cabeça, os cabelos brilhantes, e mais de mil
anos, mas o ser é como se fosse de jovem. Assim é que a gente vê a
dimensionalidade de tempo, e como o espírito não morre, não envelhece, é
eterno, por isso ela era nova. Ela sempre como entidade ela é nova. Muito
lindo, muito bonito, o formato do corpo dela, não é como a gente que vai
envelhecendo. A Água Branca é minha guardiã, então ela me ensinou tudo
que eu tinha que passar nesse início de doutrina do Santo Daime, de ordem,
e eu sou muito obediente a estes comandos superiores. Muitas coisas sobre o
Santo Daime eu aprendi através desses campos da miração e graças a Água
Branca.
Madrinha Maria do Carmo.
Uma das viagens que Maria do Carmo nunca se esquece, é aquela em que Água
Branca a guiou em viagem até o reino de Atlântida, conforme notamos no relato abaixo :
Remonta a muitos anos. Em Atlântida, ela me levou para muitos
lugares. Nós estávamos em um ritual. Nesse ritual, eu vi um grande cristal na
minha frente, e muitas mulheres ao redor deste cristal. Um cristal grande,
mais ou menos um metro de altura, todo ele cheio de pontinhos. As
mulheres estavam cantando, todas ao redor do Cristal , formando um
círculo. E os homens formavam outro círculo, atrás das mulheres, mas
também tomando o cristal como centro. Porém, os homens não cantavam,
esta era uma função só das mulheres, os homens só ouviam. É como se os
homens fossem guardiões, ficavam só nessa função. Então nesse ritual as
pessoas estavam lidando com forças cósmicas. Podiam baixar seres, naves,
no momento das materializações, isso dentro desse ritual , que ocorriam
estas materializações. E todos estavam vestidos de branco, assim
imaculados. Todos de branco, e o cristal também era branco, o cristal é
florido, tal como o prisma.
Este ritual em Atlântida, segundo Maria do Carmo, era muito parecido com uma cena
que ela havia lido em um livro, sobre a época de Cristo:
Na época , dois ou três dias antes da paixão, havia uma dança que
Jesus brincou, e fizeram uma roda e a dança era mais ou menos semelhante
ao bailado do Daime. Então a gente é daquele tempo também. A gente é de
Atlântida, a gente é do tempo dos Maias, e da época de Cristo também. Dos
ciganos. Nós temos todo esse DNA , desses povos,no nosso ser espiritual .
Assim, fica clara mais uma vez a crença espírita nas encarnações passadas, o “Povo do
Daime”, já vinha se encontrando em outras eras, em outras vidas, e agora retorna novamente
109
para tentar construir o chamado Império Juramidam, seguindo os ensinamentos do Santo
Daime e os princípios éticos ensinados nos hinos da doutrina.
Voltando à Mentora Espiritual Água Branca, ela mostrou também para Madrinha
Maria do Carmo a razão da decadência de Atlântida , a prepotência de Atlântida. Nas palavras
da Madrinha :
O que aconteceu em Atlântida é o que está acontecendo agora com a
Terra. Que é o que já se falava no hinário dos finados, tem um hino lá que
fala “o mar cresce, a terra baixa”,que foi o caso do tsunami na Indonésia e do
que está acontecendo com a Terra com o aquecimento global.
Em relação à Água Branca - além de Atlântida - Maria do Carmo recorda que :
Tivemos muita conversa astral, estivemos num quadrante espacial ,
aqui perto... Bem, perto é modo de falar (risos) Mas sim, é perto, se
pensarmos que nas mirações com o Daime viajamos na velociadde dos
pensamentos e da luz...
Além de Daron, Apoena, Jupiara e Água Branca – seres de ordem superior que
povoam o mundo espiritual do Céu de Midam – específicos da Cosmologia do Flor de Luz,
apresento abaixo algumas interpretações sobre outras entidades que fazem parte do panteão de
todas as Igrejas do Santo Daime. Veremos que os pontos de vista, ou a maneira como os
daimistas do Céu de Midam enxergam tais entidades esclarece-nos sobre as especificidades e
a liberdade cosmológica conquistada por esta Igreja.
Sete Estrelas – É um ser das estrelas. Também um ser espiritual. Foi narrado, pela
primeira vez, no seguinte hino do Mestre Irineu:
110
Sete Estrelas
Eu vi no Sete-Estrelas
Um rosto superior
Eu digo é com certeza
Que a Rainha me mostrou
A Rainha me mostrou
Para mim reconhecer
O nome que tanto se fala
E ninguém sabe compreender
Ninguém sabe compreender
Com amor, com alegria
A pessoa de Jesus Cristo
Jesus filho de Maria
Jesus filho de Maria
Desde a hora que nasceu
Começou seu sofrimento
Até o dia que morreu
Ele morreu neste mundo
Para nós acreditar
Para nós também sofrer
Para poder alcançar
Este hino fala de uma entidade, o “Sete Estrelas”, e também o relaciona com Cristo, a
Virgem Maria , ou seja, personagens que Mestre Irineu, provavelmente, buscou lá do
catolicismo popular. Dentro do que o antropólogo Groisman (1999) denomina como
“ecletismo evolutivo” presente no Santo Daime. Mas voltando a falar do Sete Estrelas, nas
palavras de Maria do Carmo :
É da parte do Mestre. É um ser divino, de luz, estelar; é por isso que
a nossa egrégora teve esta afinidade com o Sete Estrelas, porque o Mestre já
deixou aberta esta afinidade. O Sete Estrelas é de Órion, é de um
conglomerado de Órion, desta constelação. O Sete Estrelas é Órion. Apesar
que eu não fiz um estudo aprofundado disso , é só uma percepção. Nós
temos a nossa moleira aberta, lá, onde vive o Sete Estrelas, a moleira deles,
do povo de lá, é uma estrela. Até dentro da minha vulgaridade, eu tentei
olhar, e esta moleira pareceu uma coroa de abacaxi. Eu senti tantas coisas
ruins, uma energia ruim, porque eu levei uma peia por ser curiosa ...
Quando você toma Daime você está contido no Universo, fazendo
parte dele. Seu corpo físico está aqui, mas seu mental , seu ser está viajando
por outras dimensões, planetas... Tem que ultrapassar a velocidade do tempo,
111
da luz, de tudo... Você tem aquelas captações, aquelas bidimensionalidades,
passado, presente e futuro está tudo ali contido .
Marachimbé – É uma entidade espiritual ligada, simbolicamente, à questão da “peia”
nos trabalhos do Santo Daime
54
. Marachimbé é um ser responsável pela “correção” daquelas
consciências que se desviaram da conduta ética pregada nos hinos daimistas. Vejamos o que a
Madrinha Maria do Carmo nos relata sobre esta entidade :
Pode ser ele ou ela. Está indefinido. Pode ser tanto o masculino
como o feminino. É uma energia, pode ser num momento de positividade,
como num momento de negatividade. É assim que eu entendo Marachimbé.
Tem dentro da nossa doutrina alguns irmãos que recebem instruções, lá de
cima, e quando recebem é para a gente mesmo. Como é coletivo, eu recebo
para mim e para todos. O Marachimbé pela própria expressão da palavra, é
raiva , é briga., é disciplina, é atuação, é chamada das grandes, é grosseria,
“vou chamar o reio do Marachimbé” e “pá!” . Mas Marachimbé que se
apresentou para mim, dentro de toda esta energia que é vertida , tem que
firmar na força dele , dela. Toda essa entidade ela tem força, seja positiva ou
negativa. Essa energia ela tem força, é um espírito, um ser. Dentro desta
turbulência você tem que se firmar nele, em Marachimbé, nele ser mais
firme, não titubear, como um soldado, como um ser divino, como um
curador, se disciplinar, como uma força que você está gerando ali. Mas o
nosso Marachimbé aqui é mais suave.
Dessa forma, dentro do ecletismo presente no Santo Daime e da relativa autonomia de
cada Centro Daimista, Maria do Carmo considera que Marachimbé não é de todo negativo, é
mais “suave”, como afirma em seu depoimento. Longe de maniqueísmos - daquelas histórias
do bem e do mal, do positivo e do negativo, de entidades da esquerda ou da direita -
Marachimbé é uma força na qual os soldados da Rainha da Floresta devem nela se firmar, se
orientar, para terem a firmeza e força necessárias para vencer as turbulências – as peias – no
decorrer dos trabalhos de Daime :
112
Dentro do próprio trabalho você passa por circunstâncias, é uma
grande viagem que você vive ali, o trabalho de Daime é uma travessia, e
você está sujeito na corrente a estes percalços, estas peias na viagem. Um
minuto ali parace que parece uma eternidade . Dentro daquele minuto é
tantas coisas, tantos rios passam pela corrente dentro daquele minuto. A
definição em si ela é muito etérica, é preciso vivenciar.
Madrinha Maria do Carmo.
Assim o Céu de Midam vai construindo sua própria cosmologia, convivendo
com entidades espirituais consideradas superiores – entre índios e seres estelares – mas , como
faz questão de ressaltar Maria do Carmo, sem deixar de lado a Linhagem Crística, sempre
presente nos hinos, orações, mirações e na crença dos fiéis daimistas.
3.3 - RITUAIS NO CÉU DE MIDAM
A ordem tem por principio a preservação da fé, a cura e a expansão da consciência, com o uso
da bebida sagrada, o Santo Daime. Também fazem parte do ritual a dança e os cantos, que são
entoados como mantras, construções simples e repetitivas das mesmas notas, e sua dança , é um girar
em volta de um centro fixo segue a idéia de um dínamo, em seu centro a estrela como eixo, criando
assim um acampo de energia.
Depoimento de Ray, artista plástico de Embu das Artes.
54
Conforme OKAMOTO DA SILVA, Leandro. Marachimbé chegou foi para apurar : Estudo sobre o castigo
113
Buscaremos agora descrever de forma sucinta os rituais - que são chamados de
“trabalhos” – realizados no Céu de Midam com o uso sacramental do Santo Daime. Por
tornarem viva a linguagem dos símbolos através da ação, os rituais possibilitam uma rica
fonte de interpretação da visão de mundo dos daimistas, daí a necessidade de se obervá-los
com atenção.
Os rituais do Santo Daime segundo Clodomiro Monteiro da Silva (1983) têm dentre
suas finalidades a constante criação e legitimação do conteúdo doutrinário desta linha
religiosa. Ele também ressalta a constante busca da ordem e da harmonia – valorizadas em
todos os trabalhos espirituais – associada às estruturas de plausibilidade do culto – que
procuram tornar mais explicável a realidade empírica aceitável. Tudo isso vai de encontro à
análise formulada pelo antropólogo Victor Turner (1974)
55
. Segundo este autor, a sociedade
vive uma constante tensão dialética entre as tendências que levam à “estrutura” - ou à ordem -
e as tendências mais ligadas à “communitas”. Conforme Turner haveria uma necessidade dos
indivíduos de participarem de ambas as tendências acima citadas, o que promove a busca de
uma delas na liminaridade do ritual. Podemos concluir que no caso dos rituais daimistas há
um deslocamento para o lado da “estrutura” , se destacarmos a exaltação da ordem e da
disciplina exigida nos trabalhos. Tudo nos rituais – o hinos, a dança, a música, as orações,
mensagens e imagens – visa reforçar o valor e a veracidade dos símbolos religiosos e, desta
forma, dar vida aos ensinamentos da doutrina daimista.
Na Igreja Flor de Luz - tal como a grande maioria das Igrejas filiadas ao CEFLURIS -
são realizados os seguintes trabalhos espirituais com o Daime: Trabalhos de Cura, Bailados,
Trabalhos de Concentração, Santa Missa, o Feitio, Oração, Trabalho de Cruzes, Trabalho dos
simbólico, ou peia, no culto do Santo Daime. São Paulo : PUC-SP, 2004.
114
homens, das mulheres e das crianças, entre outros. Além desses rituais, a Flor de Luz – em
particular - também realiza o trabalho de Osho em Daime, onde se toma a bebida sagrada no
contexto das meditações deste conhecido guru da Índia. Este trabalho é dirigido pelo italiano
Ângelo Scalvi, morador da Comunidade Céu de Midam. Além do trabalho de Osho, a Igreja
Flor de Luz também já realizou outros tipos de trabalhos espirituais que não são encontrados
em outras Igrejas, como é o caso do Trabalho de Prosperidade
56
.
Os trabalhos seguem um calendário que, em parte é direcionado pelo CEFLURIS, mas
também há espaço para os chamados “Trabalhos da Casa” , que são aqueles criados e
organizados de forma autônoma pela direção da Igreja Flor de Luz. Estes são realizados em
datas especiais como : Aniversário da Madrinha Maria do Carmo, Aniversário do Padrinho
Jonas, Passagem do Padrinho Jonas, etc.
A seguir procuro realizar uma sucinta apresentação da natureza e organização dos
principais trabalhos espirituais com o Santo Daime, começando pela descrição dos
preparativos do Salão e a preparação dos Soldados da Rainha.
3.3.1 - Preparativos do Salão
Em última análise o nosso ritual deve ser fruto de uma consagração. O cenário de nosso ritual
deve ser um espaço sagrado. Nele cantamos, meditamos, canalizamos energias, irradiamos energia e
nos curamos. (ALVERGA, 1997, p 6.)
55
Análise esta que foi discutida no Capítulo 2.
115
Por se tratar de um espaço sagrado – cenário onde se desenrola o ritual – o Salão é
cuidadosamente preparado para receber os fiéis em dia de trabalho. Num primeiro momento,
ocorre a limpeza do templo, que geralmente trata-se de uma tarefa coordenada por Eliseo
Ferreira
57
– daimista que reside na Comunidade e zela pela Igreja – e outros fardados. Este
trabalho também pode ter a participação das mulheres da Comunidade. Estas se ocupam dos
enfeites do salão, principalmente das flores que, simbolicamente, representam a missão
transmitida pela Rainha da Floresta ao Mestre Irineu. Nas datas mais importantes para a
Comunidade, realizam-se os chamados “mutirões” em que todos se unem e se organizam para
realizar a colocação de bandeirinhas coloridas no Salão, concretizar obras de manutenção e
outras tarefas necessárias – tanto no Templo como no sítio que o acolhe. Trata-se de um
momento de fortalecimento dos laços de sociabilidade dos moradores do Céu de Midam.
Algumas horas antes do início do trabalho ocorre a escolha e a separação do Daime
58
que será utilizado durante o ritual. Além disso, há o cuidado com a reserva das velas, os
incensos e cristais que serão utilizados no trabalho espiritual. Organiza-se também a
arrumação das cadeiras no salão, que são alocadas ao redor da mesa central.
Momentos antes do trabalho acende-se um vela no Santo Cruzeiro – localizado do
lado de fora, enfrente à entrada da Igreja, e outra na Tronqueira
59
. Quando um membro
fardado acende as velas – tanto no Cruzeiro como na Tronqueira – devendo rezar um Pai
Nosso e uma Ave Maria.
56
Trabalho em que canta-se repetidas vezes três hinos do Padrinho Alfredo, visando a prosperidade financeira
dos participantes do ritual.
57
Eliseo é uma espécie de “caseiro” . Ele deixou seus pais - que são evangélicos – e sua moradia no município
de Carapicuiba, Grande São Paulo, para dedicar sua vida integralmente à doutrina do Santo Daime. Recebe todo
mês uma cesta básica e um salário mínimo. Anteriormente trabalhava como mecânico de automóveis.
58
São preparados Daimes de várias graduações. Para concentrações e trabalho de cura são utilizados graus mais
concentrados da bebida, enquanto para o bailado usa-se um Daime de grau normal. São exemplos de Daime :
Daime normal, apurado, dois por um, três por um, Daime mel , etc.
59
A Tronqueira localiza-se no caminho entre a casa dos homens e a Igreja. Ela fica do lado esquerdo de quem
caminha em direção ao templo e têm a função de evitar a entrada de espíritos maléficos, como é o caso do
116
Por fim, escolhem-se os fiscais e a incumbência de cada fardado dentro do ritual.
3.3.2 - Preparação dos Soldados da Rainha
Existe algumas recomendações para que o daimista ou soldado da rainha - como é
chamado o fiel do Santo Daime - procure seguir com o objetivo de se preparar
adequadamente para um trabalho espiritual. Ele deve – por exemplo - se abster de relações
sexuais e álcool nos três dias que antecedem o ritual e nos três dias posteriores. Aconselha-se
também a manter nos três dias anteriores ao trabalho uma alimentação leve e saudável. Deve
também evitar conflitos e desavenças com outros irmãos da doutrina e com pessoas de seu
convívio. É recomendável fazer de todo o possível para chegar ao trabalho em paz consigo
próprio, com a mente calma e tranqüila para que possa aproveitar de forma mais positiva os
ensinamentos trazidos pela consagração da bebida sagrada. A própria conduta cotidiana de
cada um que participa dos rituais do Daime deve estar de acordo com a ética contida nos
hinos da doutrina. Em caso contrário, o indivíduo pode passar pela “peia” , expressão
utilizada pelos daimistas para designar o mal-estar e as passagens ruins ou negativas que se
pode sofrer durante o trabalho. Alex Polari de Alverga (1997), um dos principais dirigentes do
CEFLURIS, afirma que “espiritualidade é respeito” , e que é necessário às pessoas aceitar as
práticas, ritos e símbolos de um trabalho daimista para que possam galgar os diferentes
degraus da vida espiritual. Em outras palavras, seria recomendável que a pessoa chegasse nas
“Tranca Rua”. Há uma história que narra a derrota deste espírito pelo Padrinho Sebastião, e a Tronqueira marca
o limite que não pode ser ultrapassado por esta entidade, considerada das trevas.
117
cerimônias já predisposta e aberta ao aprendizado, ao amor, à caridade e às virtudes éticas –
todos valores ressaltados pelos hinos cantados durante o ritual.
Os adeptos do Santo Daime devem também ter um cuidado todo especial com a sua
farda, ou seja, com o seu “uniforme”. Nos trabalhos oficiais (bailados ou hinários) traja-se a
farda branca e nos dias de Concentração, Missa das Almas e Trabalhos de Cura, veste-se a
farda azul.
Quando todos os soldados da rainha se reúnem para o trabalho e se dedicam de corpo e
alma para o bem do ritual, acaba se formando o que se denomina “corrente”. Se esta estiver
bem harmônica, o coletivo se beneficia deste resultado e o trabalho irá se caracterizar pela
elevação espiritual e pela alegria. Agora quando um dos membros não está se harmonizando
com a corrente, uma carga negativa pode contaminar todo o grupo e tornar o trabalho
“pesado” , um tanto quanto sofrido. Nessa situação, o papel do comandante do trabalho é
coordenar a corrente, incentivar todos a cantarem os hinos com vigor, alegria, a prestar
atenção na batida do maracá, a bailar corretamente, etc, até que a corrente volte a se
harmonizar.
Enfim, na perspectiva da doutrina do Santo Daime, é de fundamental importância que
cada pessoa que se predisponha a participar de um ritual realmente prepare seu corpo, alma e
consciência, para realizar um trabalho a contento e com menos sofrimento, tanto para si como
para o conjunto dos participantes.
118
3.3.3 - Concentração
Nós devemos cada um examinar o seu próprio aparelho, buscando sentir em si mesmo a força
do Santo Daime, que é o nosso guia, o grande Ser Divino da Floresta e, ao mesmo tempo é o guia
geral da nossa sessão que abre os canais para os demais curadores, ensinadores e protetores –
incluindo o nosso Anjo da nossa guarda, para nessa oportunidade os aparelhos sentir firmeza,
relaxando o seu próprio aparelho no local seguro em que nós estamos, para que a nossa mente se
expanda na Luz e na Força do Santo Daime, na corrente de cura do dia da Concentração do Mestre
Irineu.
Alfredo Gregório de Melo, Presidente do CEFLURIS
(Concentração no Céu de Maria – 15/10/2002)
Todo dia 15 e 30 de cada mês acontecem as Concentrações. Estas datas foram
originalmente determinadas por Mestre Irineu, que por sua vez teria recebido tais orientações
da Virgem da Conceição. Na Concentração têm-se como objetivo – através da prática da
meditação – uma ligação mais consciente com o nosso “ eu superior”
60
, de forma que se possa
evoluir espiritualmente e mudar nossas atitudes no dia-a-dia. Através do silenciar dos
pensamentos, busca-se uma expansão da consciência na Luz - trazida pela folha rainha – e na
Força – representada pelo cipó jagube – do Santo Daime. Como se afirma no primeiro hino
cantado nos Trabalhos de Concentração, é preciso examinar a consciência direitinho
61
.
Uma das partes mais importantes deste ritual é a leitura do “Decreto do Mestre Irineu”,
como vemos abaixo:
60
O Eu Superior é a parcela divina que há em cada um de nós, segundo a doutrina do Santo Daime.
61
Trata-se do hino “Examine a consciência”, recebido por Padrinho Sebastião.
119
“DECRETO DO MESTRE IRINEU”
Centro de Irradiação Mental Luz Divina
Decreto de serviço para o ano de 1970.
O Presidente Centro de Irradiação Mental Luz Divina, Senhor
Raimundo Irineu Serra, usando as suas atribuições legais Decreta:
Estado Maior, ficam definitivamente obrigados os membros desta
Casa, a manter o acatamento e paz da mesma, normalizando assim a
sinceridade e o respeito com seu próximo.
Dentro do Estado Maior não pode haver intrigas, ódio,
desentendimento por mais insignificante que seja; todos que tomam esta
Santa Bebida não só de-vem procurar ver belezas, primores, e sim corrigir
seus defeitos, formando assim o aperfeiçoamento da sua própria
personalidade para ingressar neste batalhão e seguir nesta linha. Se assim
fizerem, poderão dizer, sou irmão.
Dentro desta igualdade todos terão o mesmo direi-to, em casos de
doenças, será expressamente designa-do uma comissão em benefício do
irmão necessitado.
Nos dias de trabalhos:
Todos que vierem à procura de recursos físicos, moral ou espiritual,
devem trazer consigo sempre, uma mente sadia, cheia de esperanças,
implorando ao Infinito Eterno Espírito do Bem e a Virgem Soberana Mãe
Criadora, que sejam concretizados os seus desejos de acordo com os seus
merecimentos.
Para iniciar a nossa meditação:
Depois da distribuição do Daime, todos irão colocando-se em seus
respectivos lugares, com exceção das senhoras que têm crianças. As mesmas
deverão primeiramente agasalhar seus filhos.
Continuando nossa meditação:
Ao chegar a hora do intervalo, ao efetuar-se a primeira chamada,
todos deverão colocar-se em forma, tanto o batalhão masculino, quanto o
feminino, pois todos têm a mesma obrigação e quem tem obrigação. A
verdade é que o centro é livre, mas quem toma conta, deve dar conta,
ninguém vive sem obrigação, e quem tem obrigação tem sempre um dever a
cumprir.
Como vemos, esta leitura - realizada durante o trabalho de Concentração – faz com
que o fiel oriente sua meditação, o exame interior de sua consciência, de acordo com alguns
princípios existentes desde os tempos do Mestre Irineu. Desde a postura que se deve ter
dentro do ritual até o que se busca, visando aprimorar-se neste caminho espiritual escolhido.
Nele não há apenas “primores” mas também há desarmonias, energias negativas,
120
imperfeições que estão dentro de cada um e que devem ser primeiro reconhecidas, para assim
serem corrigidas.
Na Concentração, usa-se a chamada farda azul, que – no caso dos homens - compõe-se
basicamente de calça e gravata azul marinho e camisa social branca . Já as mulheres vestem
um saia de pregas azul marinho, gravata borboleta azul, e uma camisa branca tendo bordada
no bolso a sigla C.R.F. – Centro Rainha da Floresta – que é também referência ao primeiro
núcleo do Santo Daime criado por Mestre Irineu.
Ao final do trabalho de Concentração, todos em pé em sinal de respeito e reverência -
canta-se o chamado “Cruzeirinho” do Mestre Irineu. São treze hinos que, segundo infomação
de Glauco Villas Boas – comandante da Igreja Céu de Maria - , resumem os ensinamentos e
princípios mais importantes da Doutrina do Santo Daime. Neles são valorizadas as figuras de
Cristo, da Virgem Maria, e de Deus; destaca-se o Daime como professor e revelador do
mundo espiritual, a importância de se fortalecer a irmandade, entre outros princípios.
3.3.4 - Bailado ou Trabalho de Hinário
O bailado é também uma vitrine do trabalho espiritual de cada um. Deve se evitar trejeitos e
movimentos exagerados que destoem do padrão apresentado pela corrente. (ALVERGA, 1997, p.13)
O trabalho de Hinário é considerado pelos daimistas como uma verdadeira festa. É um
dos mais importante dentro desta doutrina. Os fiéis da ala masculina vestem a chamada
121
“farda branca”
62
ou “farda oficial” – terno, camisa, calça e sapatos todos brancos e a gravata
azul marinho, assim como a estrela salomônica no peito. No caso das mulheres a farda branca
se compõe de saia de pregas, blusa de manga comprida, um trespassado verde formando um
“Y” , na cabeça uma coroa branca (simbolizando a Rainha da Floresta), no ombro tiras
coloridas – representando as alegrias.
Separados, homens e mulheres dançam seguindo basicamente três ritmos: a valsa, a
marcha e a mazurca. Além da divisão do Templo em duas metades – a ala masculina e a ala
feminina – cada uma dessas alas se subdivide em mais três partes. Na ala masculina, temos : o
espaço dos meninos e moços solteiros, o espaço dos homens casados e/ou com filhos, o lugar
dos chamados “veteranos” onde bailam os senhores e os fardados de maior destaque na
Doutrina. O mesmo se dá na ala feminina. Cada um baila dentro do quadrado desenhado no
piso do Templo, sempre respeitando o espaço daqueles que marcham a seu lado. O bailado se
assemelha a uma marcha militar, basicamente “dois passos para lá dois passos para cá”.
O ritual do Santo Daime, por meio de seus múltiplos agentes (música,
dança, cânticos e bebida), estabelece uma relação especial com os
participantes (pois envolve uma força eficaz), sensibilizando todos os
sentidos e levando-os a outras dimensões de significado, tempo e espaço.
(COUTO, 2002, p 339)
62
Segundo Labate (2004) ,a farda branca foi instituída por Mestre Irineu em 1957.
122
Figura XVII – Bailado no Céu de Midam : na mesa central, da direita para esquerda : Kelmir,
Madrinha Maria do Carmo e Josélia.
No caso do Céu de Midam, além dos ritmos básicos, há a chamada “relíquia” que é um
bailado em que o fiel “desenha” um oito a partir do movimento de seus passos no bailado
63
.
Esta instrução foi recebida do Astral pela Madrinha Maria do Carmo. Baila-se desta forma
apenas em um hino específico, denominado “Dou Viva a Deus”, pertencente ao Hinário
Caminho de Luz
64
.
Segundo informações de Maria Cecília Frederico – filha caçula do casal Maria do
Carmo e Jonas Frederico – neste tipo de bailado, tem que se fazer um giro como se fosse
quase de 360 graus.
63
Interessante notar que para Carl Jung, o numeral oito simboliza a totalidade, a nossa consciência coletiva. (Cf.
JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos do Inconsciente Coletivo. Petrópolis, Editora Vozes,2000).
123
Conforme o depoimento do artista plástico Ray, poderíamos imaginar o bailado como
o movimento de um dínamo, que faz gerar uma corrente de energia, dando origem às
mirações, insights e mensagens recebidas na Força e na Luz do Daime. Assim, a dança e o
canto seguem uma semântica xamânica, criando as condições necessárias para que o Daime
propicie o chamado “vôo da alma”.
3.3.5 - Trabalhos de Cura
“ A corrente de cura exige total concentração e atenção no objetivo do trabalho para que os doentes
possam se entregar com toda confiança no destrinchamento espiritual de suas visões sobre a doença, a
compreensão de suas causas kármicas e às transformações exigidas para que a cura possa ocorrer e se manter.”
(ALVERGA, Alex Polari. 1997, p.22)
Embora em todos os trabalhos do Santo Daime esteja presente o contexto da cura,
existem aqueles direcionados especificamente para este objetivo. São os chamados “Trabalhos
de Cura”, que podem se subdividir em vários tipos, sendo os mais conhecidos : o Trabalho de
Cura propriamente dito, o Trabalho de Estrela, o Trabalho de São Miguel, o Pronto-Socorro
do Daime e o Trabalho de Cruzes.
Nesses trabalhos se cantam hinos como o descrito abaixo:
QUANDO TU ESTIVER DOENTE
Quando tu estiver doente
Que o Daime for tomar
Te lembra do ser divino
Que tu tomou para te curar
Te lembrando do Ser Divino
O Universo estremeceu
A Floresta se embalou
64
Transcrevo este hino no capítulo 4 – Comando Estelar.
124
Por que tudo aqui é meu
Eu já te entreguei
Agora vou realizar
Se fizeres como eu te mando
Nunca há de fracassar
Tu já viste o meu brilho
E já sabes que eu sou
Agora eu te convido
Para ires aonde estou
O Trabalho de São Miguel é um ritual mais específico, que ocorre aproximadamente
de três em três meses no Céu de Midam, onde se exercita a mediunidade de cada fiel. Nesta
cerimônia é permitida e até estimulada a incorporação dos chamados “guias espirituais”. Lê-
se, na abertura , preces kardecistas solicitando a presença de bons espíritos e o afastamento de
entidades sem luz. Acompanhei um desses encontros no dia 17 de março de 2007, e , pude
perceber que um dos momentos de maior envolvimento dos fiéis ocorria na “Chamada de São
Miguel”, quando se canta repetidas vezes o seguinte hino :
COM O PODER DO CÉU
Com o poder do Céu
Da terra e também do mar
Ordeno a São Miguel
A força Deus é quem dá
A força Deus é quem dá
Para quem tem conhecimento
Reconhecendo os primores
E não tirar do pensamento
Só Deus, só Deus, só Deus
É quem pode nos segurar
Para nós vencer a batalha
Para adiante se alcançar
Para adiante se alcançar
O que custa grande sofrimento
Que é amar com firmeza
À Deus Pai do firmamento
125
Oh Deus do firmamento
É o sol e a lua
No firmamento está o carreiro
O cruzeiro caminhada sua
A constelação chegou
Bem juntinho da Virgem Maria
No cruzeiro está o rosário
Dos pedidos em agonia
A força que tem é o Rei
Jesus Cristo o Mestre de sempre
Tudo no coração de Maria
Na terra e em todo firmamento.
Lembro também, que neste momento, todos os participantes do trabalho posicionam as
mãos à altura dos ombros, da seguinte forma: a esquerda totalmente espalmada e a direita
com apenas os dedos polegar, indicador e médio levantados .
Durante toda a execução desse hino, o Comandante do Trabalho – na ocasião Kelmir
Jones – segura cinco velas acesas. Em seu êxtase sagrado, ele parece não se incomodar com a
cera quente das velas escorrendo em sua mão esquerda. Depois de várias repetições do
mesmo hino, o Comandante coloca as velas em formato de cruz, embaixo da mesa central da
Casa de Cura. O objetivo desta performance ritual é pedir a permissão e a proteção de São
Miguel, para a chegada dos espíritos que poderão ser recebidos pelos “aparelhos”, ou seja, os
fiéis que procuram desenvolver sua mediunidade neste trabalho.
Já o trabalho de Cruzes – uma cerimônia de exorcismo e desobsessão - é mais raro de
ocorrer
65
. Este ritual foi criado na época do Mestre Irineu, na maioria das vezes para tratar
pessoas com desequilíbrio mental.
65
Desde o início de 2003, quando passei a acompanhar o dia a dia no Céu de Midam, só houve um caso em que
se necessitou realizar o Trabalho de Cruzes, cuja paciente era uma moradora da Comunidade, que, conforme ela
mesma me narrou, estava profundamente afetada em seu sistema nervoso.
126
O Comandante da Igreja quando percebe a necessidade desta cerimônia , convoca
alguns fiéis para dela participarem, mas apenas na ocasião em que há um membro da
Comunidade que se encontre visivelmente perturbado, desviando da normalidade de seus
comportamentos e ações, e que se diagnostique este mal como um caso de espírito obsessor.
Se for este o caso, serão feitos no mínimo três e no máximo nove trabalhos em dias
consecutivos. O número de participantes pode variar de três, cinco, sete ou nove pessoas.
Quem participa do primeiro trabalho da série deve participar de todos os outros. Na
cerimônia, os fiéis seguram uma vela em sua mão direita e um pequeno cruzeiro na mão
esquerda. Além de uma seleção de hinos – com temáticas específicas para afastar os males
espirituais que o paciente passa – lê-se uma oração denominada “Oração para Conjurar os
Malefícios dos Maus Espíritos e dos Demônios Infernais”.
A concepção de doença e cura encontrada no Santo Daime envolve – como podemos
perceber até aqui - questões de cunho espiritual . Podemos ter uma visão do que seja a cura
para os daimistas a partir do depoimento de Padrinho Eduardo :
Tem Daime próprio para cura, e tem Daime para você tomar nos
hinários, na concentração, mas pra cura é diferente, né ?! Mas o melhor
Daime é o de cura ... o melhor Daime ... é o Daime que disciplina, o Daime
puro... O Daime bom, que cura mesmo ... Beleza, ele cura mesmo... Conheci
muitas (pessoas curadas pelo Daime). Eu dei Daime que curou , eu dei
Daime para ele e ele se curou , ficou bonzinho... Mas o Daime ele cura, ele
corta, ele tira ... O espírito está aqui, a matéria está lá na faca. Você vê tudo,
do mesmo jeito que tem aqui na medicina dos médicos , é do mesmo jeito lá,
aquela mesma coisa, o espiritual é mesma coisa. O Daime ele cura, ele corta
também, ele opera, faz tudo... Tem muita doença perigosa, que ...eu lembro
do Daime com o negócio de câncer... nós curamos , câncer, curamos com o
Daime. E tanto a gente cura, como amansa as coisas lá de fora, aquelas
coisas que vem atrás de luz, que vem no aparelho , é uma coisa que desce,
que precisa de luz, precisa de Daime para tomar , e vem no aparelho, o
sujeito não aguenta , cai e grita, mas a gente segura...
Padrinho Eduardo
127
Neste depoimento percebemos em primeiro lugar a particularidade do trabalho de cura
em relação a outros rituais com o Daime. Além dos hinos serem selecionados pela temática da
cura, o próprio Daime é mais concentrado que nos demais trabalhos. A pessoa, ou paciente,
se vê em suas mirações no mundo astral, e pode destrinchar para si o porquê de sua moléstia.
Existem aquelas pessoas que se vêem sendo operadas espiritualmente, ou que vomitam para
expelir todas as impurezas e males que estão em seu organismo. É um processo que pode ser
difícil para o “aparelho” , ou seja, o nosso corpo, que para os daimistas , é matéria e, portanto
instrumento guiado ou influenciado pelo mundo espiritual .
3.3.6 - Pronto-Socorro do Daime
Participei de um trabalho do Pronto Socorro do Daime em 05 de abril de 2006. O
ritual contava com a presença de treze pessoas fardadas e cinco não fardadas, que eram os
pacientes em busca de cura.
O objetivo desse encontro era que todos se concentrassem na cura dos pacientes que
lá estavam, com algum tipo de doença ou malefício, necessitando assim de tratamento.
Portanto, o “Pronto-Socorro do Daime” não é um momento para trabalhar para si, mas em
benefício de outrem. Naquele ritual, houve a leitura de trechos do Livro dos Espíritos de Allan
Kardec, mensagens do médium Francisco Xavier e foram realizados passes, próprios da
doutrina kardecista; além do benzimento – realizado pela Madrinha Maria do Carmo - com
128
folha de arruda. No momento em que se cantava um hino de cura, a Srª Maria do Carmo se
dirigia a cada participante do trabalho, este então se levantava e era benzido pelo galho de
arruda.
Ao final todos beberam a água vibratória – algo semelhante à água benta - , que estava
sobre a mesa, recebendo as canalizações positivas e de luz, durante todo o trabalho.
Este traballho de cura é peculiar, pois se trata de uma cerimônia de caridade. Tem
como modelo o mesmo trabalho realizado na Santa Casa do Céu de Mapiá, no Amazonas. É
o primeiro de uma série de três , toda primeira quarta-feira de cada mês, onde os mesmos
pacientes e fardados devem procurar estar presentes em cada um deles. Um outro detalhe a
ser destacado, é que neste ritual os pacientes tomavam mais Daime que os próprios fardados,
isto por se tratar de um trabalho de caridade, direcionado exclusivamente para os pacientes
que lá buscavam auxílio para seu mal.
3.3.7 – O Feitio
“ Todo feitio no Céu de Midam tem um nome. E este feitio ele teve o nome dele. Foi o da calma, da
paciência ... Porque todo feitio é difícil e sem calma fica mais difícil ainda.”
Kelmir – Finalização do Feitio, junho de 2005.
129
Kelmir comandante da Igreja Flor de Luz e feitor do Céu de Midam contou a história
de quando caiu dentro da panela de Daime que estava no fogo. Ao mexê-la com o “cajado”,
deixou a madeira escorregar e teve como conseqüência bolhas na parte traseira das coxas de
suas pernas , mas disse que mesmo assim assumiu o compromisso de continuar com o feitio
do Daime. Em outra ocasião, deixou, por acidente, derramar Daime fervendo em sua pele,
mas só sentiu ardências. Disse que se fosse água teria queimaduras , mas o Daime só lhe
causou ardência.
Figura XVIII – As panelas do feitio – aquecidas pela fornalha - com camadas sucessivas
de jagube e folha rainha + água.
130
O Feitio é a cerimônia em que se produz o sacramento que a Comunidade irá utilizar
durante todo o ano em seus rituais. Ele exige o esforço e participação de todos para que atinja
seus objetivos. É comparado a uma grande engrenagem – como a de um relógio – onde cada
um dos participantes cumpre seu papel, para que o resulto final seja satisfatório. E, diz-se, que
o Daime sempre protege esta grande engrenagem, pois os acidentes – possíveis -, raramente
acontecem ou são contornáveis, como no caso de Kelmir, cuja pele teve contato com o Daime
em alta temperatura.
O feitio envolve-se de um clima de sacralidade e respeito. Durante todo o tempo que
durar este ritual, os adeptos tomam a bebida – o Daime – e passam a executar suas
funções.Tudo começa com a coleta do cipó jagube plantado no sítio, tarefa exclusiva dos
homens. Às mulheres cabe a tarefa de colher as folhas de rainha, separá-las e limpá-las. O
cipó e as folhas são levados para a Casa de Feitio, onde serão os principais ingredientes para a
feitura do Daime.
A Casa de Feitio é um lugar, dentro do Espaço Sagrado da Comunidade Céu de
Midam, exclusivo dos homens. Lá cada fardado desempenha uma função : o feitor – é o
responsável principal pelos bons resultados do feitio -, o barreiro, o paneleiro, o responsável
por cortar a lenha, aquele que cuida da fornalha, etc.
O cipó é limpo de qualquer impureza, cortado em pedaços e levados para a bateção,
quando doze fardados tomam uma dose de Daime e se dirigem até o local específico para esta
função. Lavam suas mãos e tiram seus sapatos – em sinal de respeito e veneração ao cipó
sagrado - para entrar no espaço de macerar o jagube . Lá com marretas de madeira maciça
desfibram o jagube no ritmo dos hinos que estão sendo cantados.
131
Terminada a bateção, o cipó já macerado é armazenado em sacos de estopa.
Posteriormente, colocam-se camadas alternadas de cipó e de folha rainha na panela até
preenchê-la. Acrescenta-se água e leva-se ao fogo. A fornalha é composta por quatro bocas e
é mantida em alta temperatura, sendo alimentada de lenha pelo responsável por esta tarefa. O
vão entre a boca da fornalha e a panela é revestido – pela pessoa na função de barreiro - por
uma camada de barro com o objetivo de confeccionar um isolamento térmico, que garante a
temperatura e pressão necessárias para a preparação do Daime. A panela permanece durante
horas até alcançar o ponto certo de fervura. Quando isso ocorre, o líquido que é de lá retirado
chama-se cozimento
66
. Este é armazenado em outros recipientes. Posteriormente, prepara-se
uma nova panela com novas camadas de cipó e folha rainha e acrescenta-se a ela este
cozimento. Leva-se ao fogo. O resultado desta fervura é chamado de “Daime de 1º Grau”.
Utilizando este Daime em outras panelas com camadas de cipó e folha, pode-se obter Daimes
mais concentrados. O maior resultado que se pode atingir, apurando o Daime e concentrando-
o ao longo de sucessivas ferveções é o chamado “Daime Mel”. Ele é doce, denso e forte,
oferecido apenas em ocasiões especiais. Trata-se de um Daime que é servido em pequena
quantidade, e que produz efeitos fortes e em pouco tempo.
Quando o cozimento ou o Daime atingem o ponto certo de fervura, o feitor bate na
panela com seu cajado três vezes. É um sinal para os paneleiros retirarem a panela do fogo,
fazendo uso de um longo cano de metal. A panela é levada para a filtração, onde o líquido
passa pela chamada “cuba de alumínio” e em seguida é armazenado. Quando o líquido que
escorre pela cuba já é o Daime – e não apenas cozimento – o feitor enuncia os vivas : “Viva o
Santo Daime! Viva o nosso feitio!” . O Daime depois passa por um processo de resfriamento
e é engarrafado ou colocado em galões de água mineral.
66
Em alguns casos, retira-se um líquido da panela chamado de “reforço”, que será fervido outra vez com outras
132
Pedro Dário – importante feitor dentro da Doutrina Daimista - cita alguns
procedimentos importantes com relação ao Feito do Daime:
A panela onde é produzido o Daime não é a mesma coisa que panela
de arroz, de feijão, de macaxeira, não ! Tem que ter atenção com ela, tem
que ter respeito.
No feitio, é o Daime quem manda.
Deve-se ficar ligado na fervura das panelas. Eu não faço anotações
nem marco a hora. É o Astral que me avisa quando o Daime está no ponto de
fervura.
Ultimamente, como resultado das transformações que o Santo Daime vem
passando ao contato com a realidade pós-moderna e urbana, vemos a tradição da floresta
sendo substituída pelas facilidades da tecnologia. Até pouco tempo, o chamado processo de
“bateção” do cipó jagube, era algo feito manualmente: doze homens com suas marretas
pesadas de madeira maceravam o jagube, em um ritmo marcado pela canção dos hinos. Trata-
se de um processo exaustivo, que leva tempo, e exige muito esforço físico dos participantes.
Muitas vezes o adepto saia da bateção com alguns calos na mão. Como pude acompanhar na
pesquisa de campo, hoje este processo foi substituído pelo uso de uma máquina agrícola que
mói o cipó. Desta maneira ganha-se tempo, aproveita-se melhor a matéria-pima – ou seja, o
cipó jagube -, e as pessoas podem estar ajudando com seu trabalho nas outras tarefas do
feitio.Por outro lado, perde-se um pouco da originalidade e rompe-se certos vínculos com as
raízes do Santo Daime, daquela época do Mestre Irineu e do Padrinho Sebastião. Pode não ser
nem algo negativo, mas é uma mudança que a vinda para São Paulo trouxe, e, que precisa ser
aqui destacada. As transformações ocorrem e são inevitáveis.
folhas e o cipó até se tornar “cozimento”.
133
Figura XIX – Saulo Bonfim e Alexandre Frederico: o jagube sendo moído pela
máquina agrícola.
Figura XX – Bateção – a forma tradicional de se preparar o jagube.
134
3.3.8 - Osho em Daime
Um dos caminhos espirituais que me chamou a atenção nas cerimônias e rituais
sagrados realizados na Igreja Flor de Luz, foi a denominada “Linha Oriental”. Dessa linha,
destaco aqui o trabalho espiritual de OSHO em DAIME, ou , Meditações em Daime, como
também é conhecido. Este encontro é organizado por Angelo Scalvi, Eliseo Ferreira e Roberto
Caramelo, entre outros, que além de daimistas são também sannyasins – ou seja – se
tornaram seguidores dos ensinamentos do guru indiano Osho Rajneesh
67
.
Nesta cerimônia também se consagra a bebida sagrada
68
- o Daime -, inicia-se – do
mesmo modo como encerra-se - com a reza de três pai-nossos , o mesmo número da ave-
marias e todos os seguimentos da ritualística oficial do CEFLURIS – consonante com a
estrutura mais tradicional da doutrina daimista -, canta-se hinos de despacho de Daime e
encerra-se com o bailado do Cruzeirinho – últimos hinos recebidos por Mestre Irineu, cujas
mensagens resumem os ensinamentos da doutrina daimista. E, no meio de toda esta estrutura
67
Chandra Mohan Jain nasceu em 11 de dezembro de 1931, em Kuchwada na Índia, formou-se em
Filosofia pela Universidade de Sagar, foi professor deste curso por nove anos na Universidade de Jabalpur. Com
21 anos de idade, recebeu uma iluminação interior e muda seu nome para Bhagwan Shree Rajneesh, momento
em que abandona o cargo e percorre o país, realizando debates e palestras divulgando suas idéias em contraste
com as religiões, idéias e crenças tradicionalmente estabelecidas e aceitas. Em um momento anterior a sua morte,
mudou seu nome para Osho, eliminando o Bhagwan.
Osho é uma figura polêmica, não sendo um líder espiritual de consenso nem entre os daimistas, nem
mesmo entre aqueles que possuem ligações de afinidade com a religiosidade e o pensamento Oriental, como
pude claramente perceber nas conversas e na pesquisa de campo com o Santo Daime. Isso porque muitos
afirmam que ele não criou nenhuma técnica de meditação ou filosofia nova, apenas sintetizou os conhecimentos
já existentes de Buda, Krishna, e outros . Também porque pregava que :
“ Não sou pelo interior nem pelo exterior, sou por ambos, ao mesmo tempo. A pessoa precisa ser rica
por dentro e por fora também. A riqueza é bela. A riqueza externa é bela tanto quanto a interna” – OSHO
Acumulou em seu poder riquezas e 93 Rolls Royce, foi acusado de sonegação de impostos, de pregar o
amor livre ,etc. Já foi expulso da Índia, perseguido pelo governo norte-americano, por cristãos ortodoxos , e
assim por diante.
Fundou pelo mundo várias comunidades conhecidas pelo nome de ashram , o mais importante
localizado em Puna, Índia. Osho fez sua passagem em 19 de janeiro de 1990, deixando em sua lápide a seguinte
mensagem, escrita nove meses antes de seu falecimento:
“ Osho nunca nasceu, nunca morreu. Apenas visitou este Planeta Terra entre 11 de dezembro de 1931 e 19 de
janeiro de 1990”. Conforme informações da Revista Osho – Editora Escala, São Paulo, s/d; do site
www.osho.com; Revista Grandes Mestres – Editora Escala, São Paulo, s/d; LABATE (2004).
135
oficial, se realiza livremente as técnicas de meditação criadas ou organizadas pelo indiano
Osho. Citaremos como exemplo a meditação Gibberish, um exercício cuja função é
desverbalizar o pensamento, ou seja, deixar a mente livre, para se poder chegar mais perto do
coração e da espiritualidade. Consiste em que todos os participantes falem sons desconexos,
como se num idioma desconhecido, movimentando e sacudindo também os braços e as
pernas. Geralmente inicia-se o ritual com esta meditação. Outra meditação realizada no ritual
é a denominada Nadabrahma, onde os participantes – sentados, com a coluna ereta, com as
palmas da mão voltadas para cima e de olhos fechados – emitem uma vibração, um som
semelhante ao vento soprando sobre um bambu oco . Este som acaba por se tornar um mantra,
e gera-se uma energia sentida por todos dentro do Salão.
Como último exemplo, citaremos a meditação Nataraj em que as pessoas dançam
livremente pelo Salão – de olhos fechados – deixando-se levar pela música, sem determinar
seus movimentos – tudo deve ser leve e espontâneo, afirma Ângelo.
Durante o trabalho, esporadicamente podem ser lidas algumas mensagens de instrução
como a do Padrinho Jonas – o Rame-Flete-Luz.
68
Ocorrem cerca de três despachos de Daime durante o trabalho, ou seja, os participantes tomam três doses da
bebida, espaçadas durante o andamento do ritual.
136
Figura XXI – Trabalho de Osho em Daime – Igreja Flor de Luz, Piedade, SP.
3.4 – O Santo Daime e a Ponte Ocidente – Oriente
Vejamos agora como se dá a ligação ou a ponte entre o Oriente e o Ocidente e como
esta interseção de religiosidades colaboram para delinear as formas que o Santo Daime
assumirá em São Paulo. Para isso analisaremos o desenvolvimento de alguns fatos da Igreja
Flor de Luz – Comunidade Céu de Midam em Piedade – SP.
137
3.4.1 - A Trajetória de Ângelo, seu encontro com Osho e as
meditações com o Daime
Ângelo, que nasceu no norte da Itália, narra da seguinte forma seu encontro com a
filosofia de Osho:
Eu estava viajando para a Índia , mesmo como daimista viajei muitas
vezes, quatro vezes para a Índia, então eu encontrei o Osho, que no papel
sempre criticou o cristianismo, que não deveria ser compatível com o Santo
Daime, mas na realidade é muito compatível. Além das aparências, ele é um
grande personagem da história contemporânea, um grande mestre, ou pelo
menos uma grande mente para quem não acredita que ele seja um mestre
.Ele é um cara de uma grandeza tão luminosa , de tanta alegria de vida,
vontade de viver . Foi um encontro maravilhoso.Eu não encontrei ele
pessoalmente, mas eu encontrei a história dele.
Ângelo, que é terapeuta - apesar de sempre afirmar que sua profissão na verdade é ser
um viajante - , tomou o Daime pela primeira vez em 1986, em Porto Seguro, Bahia, mas fora
de um contexto ritual. Em 1991 participou de um trabalho com o Santo Daime, na Igreja Flor
de Luz, com o Padrinho Jonas, no momento que o Flor de Luz não era ainda uma Igreja, mas
um núcleo do Santo Daime (Barra Funda , São Paulo-SP) .
Em uma de suas viagens para a Índia - por solicitação do Pad. Jonas Frederico -
Ângelo , acompanhado de outros daimistas, leva alguns litros de Santo Daime e organiza um
trabalho por lá. Após iniciarem o ritual e beberem o daime, Ângelo recebe a seguinte miração,
que irá marcar o início dos trabalhos de Osho em Daime:
A gente teria cinco mestres envolvidos na história. Desde o
Padrinho Jonas, o Padrinho Alfredo, o Padrinho Sebastião, o Mestre Irineu e
o Osho, que fazem um pacto do Astral para permitir a história com a
condução do Mestre Irineu , com a intervenção do próprio Osho .
138
Os cinco mestres: Padrinho Jonas, Padrinho Alfredo, Padrinho Sebastião, Mestre
Irineu e o Osho se encontram no Astral e, em conjunto, resolvem passar para Ângelo a missão
de iniciar os trabalhos de Meditação em Daime . Interessante notar que será esta miração,
entendida como verdadeira, que fundamentará a estruturação desta nova modalidade de
trabalho no interior do Santo Daime – CEFLURIS.
Assim, Ângelo prossegue viajando pela Índia , tomando Daime com as pessoas :
Tomamos Daime com o povo de lá. Alguns, mesmo, ficando
vislumbrados com as mirações da experiência, então foi um trabalho muito
valioso.
Ao retornarem ao Brasil, Padrinho Jonas confirma a veracidade das mirações
recebidas por Ângelo, dos cinco mestres se encontrando no Astral :
Chegando ao Brasil, eu mostro a história para o Padrinho Jonas. E o
Padrinho Jonas confirma a história, confirma as mirações recebidas. Então
nós voltamos para a Índia com 30 litros de Daime, mas você nem imagina as
dificuldades para levar 30 litros daqui na Índia ... Mas foi feito graças e aí
fomos para a Índia e abrimos esse ponto de acordo com as instruções e o
Padrinho Jonas falando do Astral. Mas chegou uma hora que não se
sustentou, por que lá no Ashram tem que declarar , assinar, que você não faz
uso de expansores de consciência, numa palavra mais genérica,droga . Então
por causa da Lei Indiana, que é muito rígida, é rigorosa, sabendo que os
ocidentais usariam um chá, poderia gerar sérios problemas de
funcionamento, por isso tivemos que fechar o trabalho e voltar para o Brasil .
Por sérios problemas de funcionamento, entenda-se “problemas com as autoridades da
Índia”.
Berenice, uma senhora moradora do Céu de Midam que também contribuiu com sua
participação nos trabalhos daimistas na Índia, lembra que os rituais com o Santo Daime neste
139
país foram interrompidos devido à probabilidade das prisões. Ela refletiu em uma das
entrevistas : “Imagina como deve ser as condições de uma prisão na Índia ?!” . Eles, então,
retornam ao Brasil, relatam as dificuldades para o Padrinho Jonas, que fica feliz com a
tentativa, com o que foi desenvolvido na Índia e com o que denomina “contato ocidente-
oriente” :
E aí conto de novo a história para o Padrinho Jonas. O Padrinho
Jonas já se sentiu satisfeito da missão, desse contato ocidente-oriente , que
duas pessoas inexperientes tenham feito e pela mensagem recebida também.
Ângelo Scalvi.
Dessa forma, Ângelo inicia em São Paulo os encontros de Osho em Daime, como
parte dos trabalhos de Daime no Brasil . Havia a Concentração, o Bailado, e o trabalho de
Osho em Daime também, conforme nos afirma.
Atualmente, até entre os fardados há os que criticam o trabalho de Osho em Daime,
argumentando que, havendo o Mestre Irineu por aqui nunca precisariam “importar” um
mestre do Oriente. Outros afirmam que no trabalho de Daime com meditações do guru
indiano acabam por perder-se, pois estariam sem o “corrimão” que são os hinos e a ritualística
tradicional dos trabalhos oficiais, não sendo possível, assim, se firmarem no ritual. Por esse
mesmo motivo, pessoas novatas e as não fardadas, costumam passar pelo trabalho de Osho
em Daime com mais tranqüilidade e espontaneidade que os fiéis que estão há mais tempo no
grupo.
Do outro lado, há também críticas dos seguidores de Osho, mesmo porque este não
admitia o uso de qualquer substância expansora de consciência em suas meditações e em seus
ashrams . O estado de iluminação – segundo os sannyasins – deveria ser alcançado pelo
esforço, pelo desenvolvimento da meditação, da busca interior – sem atalhos, apenas pela
140
perseverança e dedicação individual. Consideravelmente, o daime propiciaria uma queima de
etapas, facilitando e encurtando este longo caminho da iluminação pessoal. Vale ressaltar, que
segundo os relatos de Ângelo, o trabalho de Osho em Daime foi proibido na Índia, quando as
autoridades e os líderes religiosos souberam do uso deste expansor de consciência entre as
pessoas daquele país.
Mesmo com a não continuidade dos trabalhos espirituais com o Daime na Índia, a
influência da religiosidade oriental ficava clavada na Cosmologia Daimista do Céu de Midam.
A incorporação de elementos da filosofia do líder indiano Osho ficariam evidentes.
3.4.2 - A UMBANDA E A LIGAÇÃO ORIENTE – OCIDENTE
Outro adepto do Santo Daime, Aldori Barbosa, também chama a atenção para o fato
da umbanda - segundo sua versão e convicção - ter vindo do Oriente :
Nessas regiões do Oriente já trabalhavam com essas forças da
Umbanda. O nome era AUMBANDAN. Então o que aconteceu ali na Índia,
o povo do Tibet tinha conhecimento desses poderes místicos da Umbanda. E
foi descendo, desceu até a África. Da África é que veio com os escravos,
com os caboclos para o Brasil. Só que não havia manifestação, os escravos
vieram e faziam os rituais dentro da civilização deles, que eram escravos,
faziam escondidos ...
Aldori recentemente começou a receber um hinário do Astral - no momento desta
entrevista em 2007, se encontra com cerca de sessenta hinos, que liga o Oriente, a Umbanda –
141
e portanto, também a África – e o Santo Daime . Neste caminho, que se iniciou com suas
viagem ao Céu de Mápia – Nova Jerusalém para os daimistas - , ele relata em um mito a
origem da Umbanda :
Existia um índio no Astral e esse índio chorava numa encruzilhada
em que tinha sete caminhos. Ele chorava e chorava, porque ele queria um
caminho para ele seguir. Ele tinha sete caminhos e não sabia por qual seguir.
E Jesus, do Astral, observou aquele índio chorando e, sabia dos poderes
místicos, porque já havia vivido encarnado. Chegou até o índio encarnado e
perguntou : “Por que choras ?” . E o índio disse que estava naquela
encruzilhada e não sabia que caminho tomar. E Jesus deu um caminho para
ele, falando : “ Olha, eu posso te dar um caminho ... Você vai à Terra, levar
este conhecimento de Umbanda.”
Neste perspectiva, Jesus teve o objetivo de popularizar a Umbanda através do
chamado “Caboclo das Sete Encruzilhadas” . Interessante notar como, através de elementos
do Ocidente (cristianismo), do Oriente (a espiritualidade ) e da África ( a incorporação ) a
Cosmologia do Santo Daime irá se delinear no Estado de São Paulo e marcará a personalidade
da Igreja Flor de Luz e da Comunidade Céu de Midam.
142
Capítulo 4 – Comando Estelar
“ O que é da Terra é da Terra,
O que é das Estrelas é das Estrelas”
Madrinha Maria do Carmo.
Vamos agora desvendar um dos grandes segredos das Cosmologias que compõem o
Céu de Midam, que se configura como sua egrégora específica, ou seja, a simbologia central
que dá personalidade à Igreja Flor de Luz dentre todas as igrejas que compõem o CEFLURIS
no Brasil e em outros países. Para tanto, além dos depoimentos dos fiéis e membros da Igreja,
estaremos tomando como base de nossa análise os hinos e mensagens recebidos por daimistas,
principalmente os hinários da Madrinha Maria do Carmo.
Como já foi dito anteriormente, ao chegar ao Céu de Midam, o sujeito se defronta
com um portal , observa e é “observado” por duas águias chamadas de o “Surdo” e o
“Mudo” . Este portal leva o visitante desta comunidade para um novo contexto cultural, vale
dizer, para uma nova dimensão, um novo mundo.
Para os daimistas do Céu de Midam, nós viemos das estrelas, somos energia cósmica,
temos um universo povoado por outros mundos, outras esferas, viemos da Constelação de
Orion, e um dia para lá retornaremos. Um dos principais hinos que deixa claro esta linhagem
estelar do Céu de Midam tem o título “O Santo Daime é Estelar”. Vamos a ele:
143
O SANTO DAIME É ESTELAR
O SANTO DAIME É ESTELAR
O SANTO DAIME É ESTELAR
ELE VEIO PARA A TERRA
SÓ VEIO PARA CURAR
CURA UM E CURA DOIS
E AQUELE QUE QUISER
SUAS FORÇAS CURATIVAS
VEM DAS FORÇAS ESTELARES
QUEM NÃO ESTIVER LIMPO
PARA NESTA CASA ENTRAR
POR FAVOR AGUENTE FIRME
NÃO SE PONHA A CORRER.
( HINO RECEBIDO PELA MADRINHA MARIA DO CARMO)
Esse hino é cantado nas igrejas daimistas de todo o Brasil, no momento do
“despacho” , ou seja, o momento distribuição do Santo Daime, em que as pessoas que
participam do trabalho espiritual tomam o vinho sagrado:
O Daime é estelar, assim como todas as forças do nosso planeta
possuem esta origem estelar. A própria vida é uma força estelar . Porque o
Daime é , vamos dizer assim, o maior de todos os professores, o professor
de Cristo aqui, um grande irmão. (Geraldo, morador do Céu de Midam)
Como cada igreja tem certa flexibilidade para criar sua própria cosmologia religiosa -
dentro do que denominamos como ecletismo - , neste caso destaca-se a linha ritual do Céu de
Midam, que se inspira na crença em seres estelares – guardiões que protegem os fiéis e a
comunidade Céu de Midam. Segundo esta linha de interpretação o Santo Daime teria vindo
das estrelas para a Terra, tendo como objetivo curar os seres humanos. E, tendo o Santo
144
Daime incorporado muitos elementos do espiritismo, uma das bases de explicação desta
crença, encontra-se em Allan Kardec :
A Casa de Meu Pai é o Universo; as diferentes moradas são os
mundos que circulam no espaço infinito e oferecem aos espíritos encarnados
locais apropriados ao seu adiantamento. ( KARDEC, 2003, p.101)
Ainda tendo como referência o kardecismo, podemos citar a passagem abaixo, que
explícita esta possibilidade de existência de outros mundos habitados:
Não ocupando a Terra, no Universo, nenhum lugar especial, nem
por sua posição, nem por seu volume, nada lhe poderia justificar o privilégio
exclusivo de ser habitada. Por outro lado, Deus não pode ter criado esses
milhares de globos somente para o deleite de nossos olhos, tanto mais que o
maior número deles escapa à nossa vista. ( KARDEC, 1986, p. 155)
A comunidade Céu de Midam acredita em uma Nova Era , numa Nova Era Estelar.
Em que a esperança está nas estrelas, virá das estrelas. Esta nova era estelar está assim
evidenciada neste hino da Madrinha Maria do Carmo:
PARA TRANSFORMAR
Eu cheguei, eu cheguei e vou ficar
Com a Força de Luz que o Sol me dá
Eu cheguei e vim para afirmar
As instruções da Nova Era Estelar
Eu cheguei para me conectar
Com os irmãos que mandaram para cá
Com a missão de auxiliar
Todos os seres deste Planeta Solar
Cada um que estiver presente
Na reunião para conferenciar
Os companheiros devem se apresentar
A sua conta cada um deve prestar
Estamos juntos nesse círculo de harmonia
Com muito brilho devem se apresentar
Na Disciplina da Nova Era Divina
E receber quem vem para transformar
(Hino nº 30 Hinário Luz do Sol)
145
Dentro desta cosmologia existe uma hierarquia de seres estelares que nos
acompanham, nos protegem e guiam nossas vidas. Por volta de 1988, estando o Sr. Jonas
Frederico no Céu do Mapiá, teria canalizado uma das primeiras mensagens cuja origem
atribuiu a um ser estelar. O nome deste ser era Ramefleteluz, a mensagem vem logo abaixo:
RAMEFLETELUZ
(
Ramo, Folha e Bebida = DAIME)
Esta Chave abre RAMA e com ela você penetra nos segredos de RAMA, que são
infinitos e de acordo com sua evolução você colhe os seus conhecimentos e alivia suas reencarnações
futuras, e assim sobe na escala da evolução do Ser em si com maior facilidade, pois como estamos
aqui na Terra para aprender com esta Chave que abre o mundo mental, entramos nele e aprendemos
direto do mental, sem ser preciso vivenciar no mundo material para aprendermos e evoluirmos , e
subir em nossa escalada evolutiva. Por isto, que só uma porcentagem pequena que toma contato com
esta Chave é que penetra realmente em RAMA, pois a porcentagem maior ainda não está preparada
para este conhecimento, e se distrai vendo miragens da sua própria volta e do seu dia a dia. Mas
fizeram contato e sabem que a Chave existe, só que ainda não estão a altura de pô-la na fechadura e ter
a força necessária para faze-la girar e abrir RAMA, mas sempre foi de bom proveito este contato, pois
outros tantos ficam satisfeitos só em saber que a Chave existe, e não tem a coragem de a pegar
(tomar). Assim sendo, tendo contato com esta chave, pergunte o que quiser e aprenda o que puder,
pois esta Chave que vem do mundo vegetal para o mundo animal é a herança que não pode ser perdida
da evolução.
Esta mensagem é lida com certa freqüência nos rituais do Santo Daime da
Igreja Flor de Luz. Ela revelaria os segredos do Daime – simbolizado aqui como Chave,ou
seja, Chá que faz Ver. Nesta visão o Daime é estelar, e chegou até aqui na Terra para ajudar
os homens em sua evolução espiritual, aliviando nossos carmas. O Daime, nesta mensagem é
visto como uma chave que abre portas e portais para outras dimensões e novos mundos, em
146
outras palavras, todo este universo chamado de RAMA. Todos os aprendizados vividos nestes
universos de RAMA, são percebidos pelo mental,ou seja, são vivenciados na miração, durante
o trabalho espiritual como o Daime. Daí colhemos os resultados deste aprendizado sem
precisar passar por eles no mundo material. O Daime assim é um atalho, um atalho cármico
rumo à iluminação do ser. Mas poucos são na humanidade os que conhecem esta bebida. Dos
poucos que a conhecem a grande maioria não tem a coragem necessária para tomá-la. Da
minoria que a ingere, muitos ficam perdidos nas ilusões e miragens do seu ego, não
encontram as mirações consideradas autênticas. São pouquíssimos, portanto, os indivíduos
que experimentam o Daime, que realmente o compreendem e que adentram o universo de
conhecimentos chamado “RAMA”. De toda forma o Daime é uma riqueza que a humanidade
teria herdado do mundo vegetal, que não pode se perceber, e que será fundamental na
evolução espiritual dos homens.
Contribuir com nossa evolução espiritual, seria também este o papel do chamado
Comando Estelar, do qual um importante comandante é o ser de luz DAR o ON
69
. DAR o
ON é sempre lembrado e homenageado nos trabalhos do Santo Daime em Piedade, por
exemplo, em hinos e no momento em que os homens dão os “vivas”, em alguns intervalos do
bailado, nas cerimônias espirituais realizadas nesta Igreja. Seu nome é sempre lembrado,
quando o italiano Ângelo Scalvi profere em alta e alegre voz:
“Viva a Confederação das Estrelas! Viva o Comandante DAR o ON!”
69
Em alguns hinos aparece a grafia DARON.
147
Figura XXII - Imagem de um dos Comandantes Estelares (Fixada na ante-sala do Templo no
Céu de Midam).
Iremos agora, conhecer um pouco mais sobre esta entidade espiritual e estelar. Tudo se
inicia em 1988, quando Jonas Frederico retorna a São Paulo, depois de passar uma temporada
no Céu do Mapiá – Amazonas:
Em 1988, quando meu pai veio do Mapiá , ele veio com uma
percepção muito aberta, ele estava tendo visões, estava tendo instruções,
canalizando instruções. Eu participei de um grupo de meditações no Arujá,
que fazia relaxamento, meditações mântricas na linhagem daquele J.J.
Benitez que escreveu a Chave de Enoch. Então esse grupo fazia estudos
sobre as Chaves de Enoch e fazia meditações, e tal. E tinha um rapaz, o
Maurício, que canalizava uma energia muito forte, e recebia mensagens do
Comandante Daron. Este Maurício não tinha nada a ver com o Santo Daime.
Esse era um grupo que eu conheci, porque eu tinha muito contato com as
pessoas de São Paulo. Eu conheci muitos núcleos esotéricos e, através do
meu conhecimento é que as pessoas vieram para o Daime.
Alexandre Frederico.
148
Certa vez, este grupo esotérico freqüentado por Alexandre Frederico realizou um
encontro no município de Piedade. Nessa época ainda não existia a Igreja e a Comunidade
Céu de Midam neste município, trata-se de um acontecimento bem anterior. O evento se deu
no ano de 1988, em um sítio que se localizava num dos pontos de maior altitude da cidade.
Desta vez, Alexandre resolveu convidar seu pai, que se interessou em participar da cerimônia
esotérica. Nas palavras de Alexandre :
E, nesse sítio, a gente foi, participou, houve várias canalizações e
rituais, havia a incorporação ou canalização do Comandante Daron através
desse médium chamado Maurício. E o meu pai começou a ter visões e
começou a trazer algumas informações para as pessoas e , era uma ciumeira
dos líderes do grupo, porque ele foi comigo e, até então, quem participava
com os membros do grupo era eu . Eu havia perguntado : “Eu posso levar
meu pai ?” . Eles disseram : “Há ... pode e tal”. Aí nós fomos. E o meu pai,
ele começou a canalizar e falar umas coisas assim e o grupo ficou meio
cismado, porque ele começou a roubar a cena. Aí a gente viu que eles
colocaram nós para escanteio, mas nós ficamos até o fim do ritual e viemos
embora. Mas tivemos um grande contato com o Comandante Daron aqui no
município de Piedade, isso em 1988.
E veja como são as coisas, nós fomos
voltar para esse município em 1992/ 1993, procurando um espaço para
construir a Igreja Flor de Luz e a Comunidade.
Foi este, portanto, o primeiro contato de Jonas Frederico com Daron e o Comando
Estelar. Na cerimônia descrita acima, a expansão da consciência - que se fez necessária para
entrar em contato com outras dimensões da existência e outros seres – não foi resultado da
ingestão do Santo Daime. Segundo a entrevista realizada com Alexandre, as percepções eram
alteradas através da entoação de mantras, sendo que após algum tempo, a mente já elevada,
percebia-se com muita clareza a presença da “energia estelar” .
O Comandante Daron, nas canalizações realizadas por Jonas Frederico, vinha e dava
instruções,mensagens sobre o bem da Terra e da humanidade :
149
E ele dizia vocês não estão compreendendo, mas nós estamos fazendo
um batismo em vocês com os elementos da água e da terra e sempre
canalizando muito a humanidade. Então este contato se estabeleceu, e não
ficou perdido. Nós próprios trabalhos de Daime que a gente fazia, de
silêncio, a gente sentia a presença, as influências dos seres estelares. Agora,
para que haja um contato muito forte com isto ou com qualquer vibração
superior, não somente com eles, os seres estelares, tem que haver uma
harmonia profunda entre as pessoas, tem que haver uma vibração de amor
verdadeiro. Porque onde há discórdia você não pode contar com o poder
superior para nada.
Alexandre Frederico.
A entidade do Astral, ou melhor dizendo, das estrelas, denominada Comandante DAR
o ON , dirigente da Confederação das Estrelas, teve papel fundamental no episódio conhecido
como a cura do Pad. Jonas Frederico, momento em que ele estava com o corpo parcialmente
imobilizado devido a um derrame cerebral que o afligiu. Segundo relato de seu filho, Kelmir
Jones , foi realizado um trabalho de cura, em Ubatuba - litoral de São Paulo- episódio em que
houve a mediação do ser estelar DAR o ON, que estaria lançando raios verdes, que saiam das
mãos dos participantes deste trabalho espiritual e que, na perspectiva de Kelmir, teriam estes
raios propriedades curativas frente as moléstias que atingiam seu pai :
Essa força de cura partiu do próprio som que o Padrinho Jonas pediu
para a gente emitir OM OM OM , como um mantra e, realmente, chegou
num determinado ponto desta invocação , e foi a hora que chegou esta força,
essa cura, e eu acredito que veio também desta parte do Comandante Daron
esta energia , esta força .
Kelmir Jones
Poderemos compreender um pouco mais sobre o Comandante DAR o ON, analisando
o hino que segue:
150
UM GUERREIRO DAS ESTRELAS
Sou um Guerreiro das Estrelas
Se levantem companheiros
Para a mensagem receber
Estou aqui por ordem do meu Pai
A pedido de JURAMIDAM
Eu já vim e sempre estou aqui
Mas nem todos dão importância
E nem tomam conhecimento
Vocês são os escolhidos
Neste plano material
Para irem comigo
Até os campos do ASTRAL
Nós viemos de lá
E aqui você ficou
Agora chegou a hora
De Comigo ter que voltar
Sempre estou alerta
E Ele também está
Aqui embaixo Ele é o Mestre
Lá em cima é meu General
Sempre mando as vibrações
Para todos compreender
Que o nosso Reinado
Tem Harmonia, Paz e Amor
Se levantem companheiros
Saiam desta guerra material
Eu venho de outros mundos
Que um dia você deixou para trás
O meu nome todos sabem
Agora novamente eu vou citar
Sou um Guerreiro das Estrelas
DAR o ON aonde está
Estou aqui e em todo lugar
Me busquem e vão achar
Quem são meus companheiros
Sempre vamos nos firmar
(Hino nº 27 - Hinário Caminho de Luz)
151
Primeiramente, podemos dizer que este hino expressa nossa vida por meio de uma
perspectiva dual. Há o mundo em que vivemos, repleto de ilusão e sofrimento e há o mundo
astral ou espiritual, tomado como modelo. Os seres deste mundo astral, seres estelares e
celestiais, considerados espiritualmente superiores , teriam um papel importante – conforme a
cosmologia daimista – que é despertar em nós os valores por eles cultivados : harmonia, paz e
amor . Estes seres ou guias espirituais – como também são chamados – nos alertam sobre a
“guerra material”, nossas preocupações mundanas, nossos conflitos, sentimentos inferiores
como a raiva, o ciúme, o ódio,o apego a bens materiais, etc.
DAR o ON, como está descrito no hino mais acima, vem de outros mundos, que um
dia você deixou para trás. Esta mensagem expressa de forma clara o significado da
cosmologia estelar. A existência de outros planetas, dimensões e seres neste universo. A
crença de que nós, seres da Terra, descendemos das estrelas, de outras constelações, e que um
dia poderá quem sabe, surgir uma nave e nos levar de volta para nossas origens estelares.
O Comandante Estelar DAR o ON está – conforme percebemos ao ler o hino –
subordinado ao Mestre Juramidam – ou seja, a forma que o Mestre Irineu assume no Astral ou
plano espiritual
70
. Foi por ordem de Irineu que DAR o ON veio até a Terra: A pedido de
JURAMIDAM/Eu já vim e sempre estou aqui/Mas nem todos dão importância/E nem tomam
conhecimento. Na transposição da figura do Mestre Irineu para a simbologia estelar, ele acaba
aparecendo como um General Estelar, um membro importante dentro da Hierarquia do
chamado Comando Estelar , como verificamos no trecho :Sempre estou alerta/E Ele também
está/Aqui embaixo Ele é o Mestre/Lá em cima é meu General
70
Jura , segundo as palavras de Padrinho Sebastião ,também está ligado ao Espírito Santo e a Cristo : “Quem for
Midam entra justamente com o Jura. Porque Jura é uma coisa e Midam transforma um no outro. Quem é filho é
Midam e o chefe é Jura. Daí o sobrenome é Midam. Quem toma Daime é um dos Midans. Se eu consagro o
Daime sou um filho, não posso negar em canto nenhum. Você que também está acompanhando, se negar o seu
Pai, tá lascado também.” (in ALVERGA, 1998: p. 110-111)
152
Uma das formas de desvendar esta entidade estelar, chamada de Daron - além da
interpretação dos hinos da Madrinha – é através da análise das mirações dos fiéis do Santo
Daime da Igreja Flor de Luz. E a isso nos dedicaremos agora.
Silvia Miragaia, publicitária de 46 anos, mora há seis anos na Comunidade Céu de
Midam e participa dos trabalhos com o Daime há cerca de 12 anos. Considera muito
importante a presença dos seres estelares na Igreja Flor de Luz, e diz que, apesar de ser uma
linhagem diferente, uma força cósmica e estelar “tudo está conectado, tudo está ligado”.
Vejamos uma miração por ela relatada e que retrata um contato com o Comandante Daron:
O Comando Galáctico, o comandante Daron sempre mandou
mensagens para os fardados daqui, e na Igreja de Camanducaia também.Eu
recebi uma mensagem através de outra pessoa, através da Laura, no dia do
meu fardamento. Ela, Laura era quem estava me fardando. Em determinado
momento, eu olhei para a Laura e vi uma outra pessoa. A voz era outra, era
uma voz metálica, uma coisa impressionante. Ela estava sem óculos e
quando ela colocou os óculos, percebeu que minha estrela esta colocada de
cabeça para baixo.Ela veio em minha direção, e quando se aproximou de
mim, ela se transformou, virou o Comandante Daron. Ela chegou perto de
mim para arrumar minha estrela, e , quando ela se aproximou, ela se
transfigurou no Comandante Daron. Ela chegou perto de mim e perguntou se
eu sabia quem estava virando a minha estrela. Eu respondi : “O comando
galáctico está aqui” . O corpo era todo metálico, muito próximo a uma
ilustração que tem na ante-sala da igreja. ( Silvia Miragaia )
Em outras vezes Daron pode aparecer tal qual a imagem de um anjo :
Eu já vi um guardião, que eu sabia que era o Comandante Daron,
porque ele puxava aquela imagem do anjo. Tanto que no início da miração
eu pensei que fosse um anjo, mas não era, era o comandante Daron. Em
outra ocasião, em que também senti a presença de Daron, eu vi uns pontos
luminosos em cima da igreja, que pareciam uma constelação, mas que
estavam ali pertinhos, na nossa frente. Vi muitas estrelas . . .
Maria Cecília de Andrade Frederico Bonfim.
153
Cecília Helena – que associa a imagem dos seres estelares aos caboclos, entidades
indígenas dos cultos afro-brasileiros - nos relata uma cura que recebeu de um ser das estrelas:
Em minhas mirações já apareceram Caboclos Estelares, com suas
armaduras metálicas e brilhantes.E eu já tive uma cura aqui no Céu de
Midam com os seres estelares. Niquelaram meu cérebro, tal como uma moto,
e me ajudaram a resolver meus problemas de nervosismo.
Cecília Helena.
Para Geraldo, de 39 anos – que bebe o Daime desde 1989 – não dá para definir com
exatidão uma realidade tão complexa e tão longe da nossa explicação, como é o caso do
Comando Estelar e do Comandante Daron :
É muito difícil a partir de uma inteligência tridimensional, que é a
nossa, falar de uma coisa que está completamente ligada a dimensões
superiores, num mundo muito mais amplo, muito mais complexo , em todos
os aspectos . Então falar do Comandante Daron como se fosse um ponto da
terceira dimensão , não dá. Esse Daron, ele pode ser um corpo, ele pode ser
um idéia , ele pode ser uma luz. Então tentar rotular o Comando Estelar é
inventar um conto para acreditar numa história que não pode ser apalpada.
Nem pela essa inteligência nossa , inteligência humana . Na verdade o
Comando Estelar e toda esta força estelar são acionadas diretamente com a
sua inteligência da memória divina, com a inteligência do Eu Superior ,
porque ele não está marcado por esta previsão mental , vamos dizer assim
esta matrix . Na verdade o Eu Superior é o que permeia todas as encarnações
, ele “é”, ele não mudou . O “Eu Sou”. Ele guarda todo o conhecimento de
todas as encarnações que você teve, mesmo antes de você vir para o planeta
Terra. Então, se esta é a inteligência do Comando Estelar ,como podemos
pensar que nós poderíamos aqui tentar abraçar isso ?! É isso que nos abraça,
nós não temos condição de abraçar. O Comando Estelar nos traz luz , luz é
conhecimento transmitido diretamente ao coração. Ele não pode ser escrito,
não pode ser relatado, não pode ser pregado, mas apenas entendido. O nosso
Padrinho Jonas explicava isso com muita sabedoria. Era como se um de nós
pegasse a água ali e riscasse ela com o dedo , você viu ,não viu?. Quem viu,
viu. Quem não viu não vai ver mais nada. É algo que é incomensurável .
(Geraldo, um dos primeiros moradores do Céu de
Midam.)
Nesta perspectiva, Daron tanto pode ser uma luz, como um corpo ou uma idéia. Mas
não é possível descrevê-lo, apenas senti-lo através do “Eu Superior” que é parcela divina que
154
há em cada um de nós. Esta parcela divina também é chamada pelos daimistas de memora
cássica, e traz as recordações de todas as nossas encarnações passadas.
Em uma das vezes que entrevistei a Sr.ª Maria do Carmo, indaguei sobre sua miração
mais significativa, a que mais importância ou ensinamentos lhe trouxe desde que conheceu a
bebida, o Santo Daime. Ela respondeu-me que se tratava da primeira miração que teve com
este vinho sagrado – e que será descrita a seguir . Esta miração parece expressar de forma
simbolicamente muito rica este universo cosmológico do Comando Estelar:
Eu alí, no infinito ( tão grande, tão lindo) quando eu vejo uma
imensidão tão grande no infinito, tão lindo, que eu vejo um paredão e eu não
dimensionava, não tinha dimensão do tamanho das paredes e eu vi uma
janela, assim mais ou menos... um pouco maior do que o quadro – aponta
para o quadro com a foto do Pad. Sebastião – e no meu ser , eu sabia que
tinha que entrar, passar e transpor aquilo. Mas não tinha porta, só a janela e
como que eu alcanço aquela janela no infinito? E era tudo tão lindo, tinha
frisos lindos, coisas assim... de bonecas, e aí eu senti que podia dar um
impulso no meu corpo... Puxa vida eu vou ter que dar um impulso no meu
corpo , entrar pela janela. E eu não sei como , eu dei um impulso e tchum ! ,
entrei pela janela. Entrei pela janela, ela estava aberta e quando eu entrei, ela
fechou...
Quando eu entro eu caio dentro de um campo de claridade. Numa
claridade que começou a aparecer símbolos de tudo quanto é jeito, de formas
geométricas. Se não me engano, eu vi essas fórmulas de oxigênio, da
energia... Eu nunca tinha visto , porque a minha carga de conhecimento era
de outras coisas e não para aquele tipo de miração, tudo aquilo. Eu sei que eu
fiquei observando tudo aquilo e eu passeava , comecei a passear entre os
símbolos e via que cada símbolo era um mundo, que eu podia entrar
também, mas eu não queria entrar nesses mundos. Em queria passear pelos
mundos. Aí eu fiquei passeando, entrei num formoso túnel, entrei, entrei,
entrei e fui, fui, fui... , parece coisa de filme, entrava numa
velocidade...Quando eu chego no final do túnel, outro campo novamente, aí
quando eu saio eu me vejo dentro de algo ,como se fosse uma nave. Aí eu fui
para as estrelas, fui em Órion. Eu não sabia nem o que era Órion, eu não
tinha noção...Aí eu senti que dentro da nave, com apenas o reflexo, eu
comandava a nave, eu ficava como o Peter Pan brincando nas estrelas, no sol
... Eu sei que eu chegava perto , não me queimava nem nada. E fui passando
de céus em céus.
Como vemos, aí estava o início para Maria do Carmo, da descoberta da existência de
outros mundos, da possibilidade de conhecê-los tendo como chave de acesso esta bebida – o
155
Daime - considerada sagrada. Temos nesta narração diversos elementos ou símbolos que nos
presenteiam com boas dicas do que representa a linha ou caminho do Comando Estelar : a
nave, o infinito, os mundos, o sol, as estrelas, Órion, o passear de céu em céu, etc. Há uma
janela a ser transposta, que leva ao infinito – o espaço sideral – mas falta o impulso. E o
Daime é o expansor de consciência que torna possível este impulso, na medida que produz
mudanças nas percepções e sentidos da mente e do corpo humano.
Continuemos a narrativa da miração para que possamos compreender melhor estes
elementos:
Quando eu vou chegando no parque, lá eu estou na nave, aí eu olho
para cima e vejo um outro céu. Aí eu digo:
- Agora eu vou entrar nesse.
Quando eu vou entrando nesse outro lá em cima, vou atravessando
outras dimensões. Aí quando eu vou chegando nesse outro céu , tive um
espanto... Por que eu estou acostumada a ver buracos no chão, mas no
céu?!...O céu estava cheio de buracos, e eu fiquei em êxtase...Quando eu vou
entrando nesse outro céu, aí uma voz superior falou assim para mim descer,
me recarregar de energia novamente, para poder chegar a ter o contato lá em
cima e entrar novamente ...
Esses outros mundos, também chamados de dimensões, podem ser acessados
ou decifrados – em seu conjunto de símbolos – pelas mirações que o daime oferece.
Entretanto é também necessário saber a hora de parar, com fica claro no depoimento
da Madrinha Maria do Carmo. Repor as energias, talvez signifique refletir sobre o que
aprendeu , o que descobriu, ou seja, lidar com esta fatia de conhecimento. Para depois,
com as energias reconstituídas, retomar estas descobertas, estas viagens a outras
dimensões ou mundos.
Esta miração, para Maria do Carmo, norteia seus ensinamentos dentro da
escola do Santo Daime. Porque para ela:
156
O Santo Daime é estelar, então nós viemos das estrelas. Eu vi assim
a origem nossa. Que somos de lá, que a gente vem fazer este retorno, assim
nós viemos parar aqui, esse retorno, esse grão , esse pó de areia que nós
somos, matéria condensada, porque nós trabalhamos com esses dois campos,
e que a gente não pode negar esses dois campos.
Nesta perspectiva, nós que vivemos aqui na Terra, possuímos duas essências
ou dois campos : somos matéria e – simultaneamente – energia estelar. O Santo Daime
vem para que compreendamos esta realidade, sendo este próprio Daime de natureza
estelar, pela clareza que desvela , por sua natureza mágica. Assim o mundo se revela
como dual como nos fala Maria do Carmo:
Tem filosofia que fala que o mundo não é dual. É dual sim, porque
têm dia e noite, se não você não viveria. Então nós vivenciamos isso e
vivemos nessa dualidade. Onde nós somos de origem estelar, porque nós
somos mesmo, porque há todo esse cosmos... Somos da origem do Big Bang
, como também nós temos uma origem divina. Nós temos isso dentro da
gente, crístico. Esse corpo crístico materializado. Então nós trabalhamos esta
dualidade, mas sem esquecer nenhuma, nem essa natureza divina, que é o ser
divino que fez tudo isso ou, que seja só um sopro do Big Bang ou outra
coisa, mas nós temos também essa origem estelar, somos uma poeira
cósmica, e isso com dons de inteligência. A nossa inteligência ainda um
pouco parca da humanidade, mas somos dessa ramagem, a poeira cósmica,
mais ou menos isso...
Dentro deste cosmos dual, Maria do Carmo, tenta mostrar nosso lado de
origem estelar, de poeira cósmica que somos. Somos também , nesta visão, seres
crísticos, pois carregamos a origem divina - a semelhança com Deus, com a divindade
-; ou conseqüência de uma explosão estelar, para os que não acreditam nesta ligação
divina.
Um outro personagem importante na história do Céu de Midam - para se
compreender o Comando Estelar - é Celso Vendramini, advogado em programas
populares na tv, e ex-policial militar que relatou já ter tido contato com um
extraterrestre quando viajara com a esposa para o litoral paulista.Vejamos agora, um
hino recebido por ele:
157
SOU COMANDANTE
Sou Comandante, Sou Comandante
Sou Comandante desta Nave Espacial
Sou Comandante, Sou Comandante
Sou Comandante, na Terra e no Astral
Eu vou seguindo a minha viagem
Por esse infinito sideral
Eu vou de encontro a meu Pai
Eu vou de encontro a minha Mãe Divinal
Olhe bem, olhe para o Céu
E veja tudo que é bom
Eu venho aqui, nesse salão
Novamente DAR o ON
Sou Comandante, Sou Comandante
Sou Comandante desta Nave de Luz
Sou Comandante, Sou Comandante
Sou Comandante, e o comando é de Jesus
Neste hino recebido por Celso Vendramini, novamente – como nos hinos da
Madrinha Maria do Carmo – aparecem em amálgamas os símbolos estelares – a nave
espacial, o Comandante DAR o ON, o infinito sideral – com os símbolos ligados ao
cristianismo – Jesus, Mãe e Pai Divinal . Bem de acordo com o ecletismo presente na
Cosmologia das Igrejas do Santo Daime filiadas ao CEFLURIS, símbolos religiosos
das mais distintas origens convivem harmoniosamente, formando um conjunto
consistente que serve de mapa, de direcionamento e de fonte de significados para os
fiéis da Igreja Flor de Luz – Comunidade Céu de Midam.
Celso Vendramini há alguns anos recebe hinos do Santo Daime, sendo que
muitos deles possuem uma temática estelar. Recentemente, ele vem organizando um
hinário denominado “Luz das Estrelas” em que reúne uma seleção de pouco mais de
158
cinqüenta hinos da Madrinha Maria do Carmo – todos com a temática estelar – mais a
mesagem recebida por Padrinho Jonas, o Ramefleteluz. O hinário “Luz das Estrelas” é
aberto com um dedicatória ao Sr. Jonas :
Este Hinário “Luz das Estrelas” é totalmente dedicado “in
memorian” ao querido Padrinho Jonas Frederico que foi o responsável pela
distribuição do Santo Daime no Estado de São Paulo e por ter aberto os
portais para nossos contatos com os irmãos extraterrenos.
Viva as Estrelas e os Planetas ao seu Redor!
( Celso Vendramini)
O primeiro hino do “Hinário das Estrelas” , antecedendo os hinos de Maria do Carmo,
é um hino do próprio Celso Vendramini, como verificamos abaixo:
LUZ DAS ESTRELAS
A luz é das estrelas
A benção é de Deus
Os primores dessa vida
São merecimentos seus
Eu venho das Estrelas
Consciência Universal
Estou neste Comando
Do Esquadrão Celestial
Estou nessa Missão
Com meus Soldados de Luz
Estamos sob as ordens
Do nosso Mestre Jesus
A Luz vai clareando
Tudo começa a brilhar
A força vem chegando
E o meu ser irradiar.
A Egrégora Estelar da Igreja Flor de Luz e da Comunidade Céu de Midam se
fazem presentes também no hino acima. Ao tomar o Daime, a força vai chegar, o ser
interno vai irradiar, chegará a luz e o brilho. Neste momento, o fiel daimista alcança
159
sua Consciência Universal, reconhece-se como um Soldado de Luz se guiando nesta
vida sob as ordens de Jesus Cristo e do Comando Espacial, com o objetivo de cumprir
uma missão nesta vida, e de sempre se lembrar de nossa origem estelar.
Dentro desta cultura dos que participam de comunidades que comungam a
crença em seres extra-terrestres, abro espaço para citar aqui os chamados walkings,
entrevistados por Jussara Araújo (1999) na comundiade daimista do Matutu, Aiuruoca
, sul de Minas. Os walkings, que seriam médiuns que recebem comunicação e
mensagens vindos de outros planetas e galáxias, são assim definidos pela autora:
Não são ET, não são apenas objetos não identificados. São seres
inteligentes, fortemente embasados em teorias produzidas na academia.
Procuram articular seu conhecimentos com informações que recebem via on-
line. Utilizam recursos da telemática. São plausíveis e coerentes quando
entrevistados e instigados a falar em termos de história de vida, etc.
(ARAÚJO, 1999, p.201)
Jussara cita Loriel, um walking freqüentador do Centro Daimista de Matutu, e aqui
apresentamos seus pensamentos para ficar claro o significado da consciência estelar e sua
relação com o planeta Terra e com a comunidade humana em geral :
Loriel, um walking que entrevistamos no Matutu, disse-nos que veio
de Urano. Disse que os gregos foram um bom exemplo aqui na Terra do que
eles – walkings – acreditam. ( idem, p.201)
( . . . )
Como os gregos, acreditam que Deus e os deuses podem enviar mensagens
para o bem da comunidade humana. Por isso são walking: emprestam seus
corpos: ‘emprestamos nossos corpos aos deuses e deixamos de ser o que
éramos, talvez assim salvemos a Galáxia’ , disse-nos Loriel. “ (ibidem, p.
202)
160
Como médiuns de consciência de outros planetas, os walkings – que segundo Araujo são
do Peru, Argentina, Colômbia e Brasil - vivenciam uma espécie de possessão , em que
alteram sua consciência para realizar o fenômeno de sobreposição, em que recebe a
mensagem vinda do espaço sideral.
De acordo com Loriel, a forma como o homem habita a Terra está
prejudicando toda a Galáxia, e por isso ele está na Terra. ‘Aqui está se
praticando um ecocídio e estamos aqui para ajudar aqueles que aqui tem
consciência disso’ . Loriel tem uma missão: lembrar os terráqueos o mito do
amor cortês: uma aristocracia do coração. (op. cit. , p.202)
Percebemos, portanto, que há uma cultura da qual os personagens do Céu de Midam
fazem parte, que é a crença em seres estelares. Segundo as informações que colhi no trabalho
de campo, a gênese desta crença já estava presente com o Padrinho Jonas Frederico antes
mesmo deste conhecer o Santo Daime. Estes seres seriam portadores de uma boa nova, como
se fossem anjos ou seres celestiais, com uma sabedoria e uma consciência mais desenvolvida
- ou mais ampla que a nossa. Vivendo em um plano superior e portadores de uma consciência
espiritualmente mais evoluída que nós humanos, os seres estelares são um elemento
importante na criação de uma concepção de Nova Era, na perspectiva das crenças dos que
esperam mudanças significativas na Terra durante este terceiro milênio, chamado pelo
movimento esotérico de Era de Aquário.
Os daimistas do Céu de Midam acreditam na importância de se “trabalhar”,
espiritualmente falando, para que se concretize a evolução de nossas almas, para nos
reconhecermos como seres que também viemos das estrelas :
VIEMOS DAS ESTRELAS
Viemos das Estrelas
Para te lembrar
Que o tempo está passando
Tu precisas trabalhar
Tu precisas trabalhar
161
Tu precisas trabalhar
O trabalho que fazes
Para te limpar
Teu espírito sempre cresce
Tu precisas trabalhar
Tu precisas trabalhar
Esta é nossa missão
Ensinar ao nosso irmão
Viemos das Estrelas
Proteger este salão
Tu precisas trabalhar
Tu precisas trabalhar
( Hino nº 2 , Hinário Caminho de Luz, Mad. Maria do Carmo)
Segundo esta visão, cada um de nós possui uma origem estelar. A esta concepção
associa-se geralmente a idéia do carma e da evolução espiritual – presente por exemplo no
kardecismo. Daí as palavras do hino acima fazem sentido : Tu precisas trabalhar. O Daime e
os trabalhos espirituais auxiliam no descarregar das energias negativas que o indivíduo traz
de ações desta vida e de outras encarnações. Aprendendo a se conhecer, a fazer a caridade , a
se desprender dos apegos mundanos pode-se preparar para a volta às estrelas, à nossa origem
– de acordo com a cosmologia do Comando Estelar.
Eu fiz uma viagem
Nos campos do Astral
Entrei devagarinho
Numa Nave Espacial
(estrofe do hino nº 10 – Caminho de Luz)
A nave espacial
71
é uma das imagens mais importantes na cosmologia do
Comando Estelar, aparecendo em muitos relatos dos fiéis. Muitas vezes o próprio templo ou a
Casa de Cura acabam por se tornarem naves durante a ocorrência dos trabalhos:
71
Há uma obra de Jung “Um Mito Moderno sobre Coisas Vistas no Céu” em que este interpreta os fenômenos
das visões de naves e discos voadores como uma manifestação de subestratos do inconsciente coletivo. Em
certas épocas de crise para a humanidade – tal qual esta crise pós-moderna de que falamos neste trabalho – nosso
inconsciente, segundo Jung, daria alertas de “perigo” ou advertência, em forma de sonhos, visões e outros meios.
162
Já mirei numa nave espacial , achei muito significante, num trabalho
de cura, e eu sentia rodar, tinha que me segurar na cadeira, porque a nave
rodava e eu tinha certeza que aquilo era uma nave espacial, tinha até medo
de eu levantar e cair... E eu dentro da casa de cura, não sabia se ela ia sair
andando ou sair voando. (Depoimento de Cecília Santos).
Segundo o depoimento de Aldori Barbosa, o Céu de Midam é considerada uma Igreja
de Linha Estelar e o Comandante desta Linha, que se trabalha aqui nesta Igreja, é o
Comandante Daron. Afirma também que dentro do comando dele, existem vários soldados. E
lembra de um hino da Madrinha Maria do Carmo que fala do Guerreiro das Estrelas:
Ele pode ser um espírito se simboliza no material para a gente
entender melhor. São seres mais evoluídos que nós, assim como o Guerreiro
das Ondas Verdes, um ser espiritual que vem das águas. Então o Padrinho
Jonas tinha essa informação que povo aqui do Céu de Midam, que nós
viemos de Órion. Agora, para onde cada um vai, cada um tem que
descobrir...
Em seguida, Aldori reflete alguns minutos e afirma :
Eu por exemplo tenho essa marca no corpo, próximo ao abdômen, que
é uma Constelação, um triângulo de cabeça para baixo, e foi depois que eu
comecei a tomar Daime que saiu no meu corpo. Eu estou fazendo um estudo,
mas segundo me consta eu vou viver no quadrante onde se localiza esta
constelação. O nome dela é Constelação Triângulo Austral.
E expõe em suas respostas toda uma explicação sobre os símbolos do Comando
Estelar :
Pelo que eu sei, o triângulo de ápice voltado para baixo é o símbolo da
Confederação das Estrelas, que é o regente desta casa. O triângulo de ápice
para cima é energia emitida para o céu. Então o triângulo de ápice voltado
para baixo é a energia do céu direcionada para a Terra. E isso tem haver com
a formação do Comando Estelar, que manda energia aqui para a Terra. Estes
dois triângulos juntos formam a Estrela do Daime, que representa o centro de
Estes substratos inconscientes representariam os arquétipos daquilo que ordena, resolve, cura e integra: “É
certamente uma característica do nosso tempo que o arquétipo, ao contrário de suas formações antigas, tenha
adquirido uma forma objetiva e, até mesmo, tecnológica, para esquivar-se do incômodo de uma personificação
mitológica. Aquilo que parece ser de natureza tecnológica é muito mais fácil de ser aceito pelo homem
moderno”. (JUNG, Carl Gustav. Um Mito sobre Coisas Vistas no Céu. Petrópolis-RJ, Editora Vozes, 1991,
p.15).
163
emissão e de recepção de energias envolvidas em nossos trabalhos
espirituais.
As metáforas com a temática estelar estão muito presentes nos hinos da Madrinha
Maria do Carmo. No hino de número 15 do hinário Caminho de Luz, intitulado AS
ESTRELAS DO NOSSO FIRMAMENTO, temos o seguinte trecho a destacar : O
seguimento que as Estrelas dá/ Vamos, vamos a Elas se juntar/ Vamos chegar ao nosso
interior. Nesse caso, o brilho de cada estrela representa nossas verdades interiores, nosso eu
superior – a parte divina que há em nós – que o Daime busca despertar e aprimorar. Já no hino
Chamamento, de número 21 do mesmo hinário, temos a seguinte mensagem : No silêncio do
corpo Universo/No silêncio do corpo Universo/ Encontra um brilho que está a te chamar/
Encontra um brilho que está a te chamar. Este trecho nos remete a um chamado, que é o
chamado para o despertar de uma nova consciência na humanidade, considerada nos hinos
como uma Nova Era Estelar. Existiriam guias espirituais cujo papel é garantir proteção aos
fiéis, às consciências dos homens que se afinam com esta busca transcendental. É esta a
função do Comando Estelar ou Comando Espacial. A missão dos seres estelares – dentro
desta perspectiva cosmológica pode ser expressa conforme indicada no hino abaixo:
TEMOS QUE RETORNAR
Sou o Mensageiro das Estrelas
Neste plano aqui chegou
Vim cumprir minha missão
Meu Pai, aqui estou
Esta mensagem é muito séria
Você tem que se lembrar
Vista a Força Criadora
Nós temos que retornar
Este é um Foco de Luz
Onde vamos trabalhar
Em degraus vamos subir
164
A vida do Pai vamos sentir
A ilusão que te embeleza
Em plêiades juvenis
São as brumas desta Terra
Querendo que fiques aqui
(Hino nº 43 – Caminho de Luz)
Dentro deste contexto simbólico, a nossa passagem na Terra é passageira, e uma das
principais preocupações do indivíduo é compreender a existência de outros mundos , que com
o tempo poderão se tornar sua nova moradia. Mas o que seria este retorno, ou esta promessa
de uma nova era estelar? Geraldo esclarece esta indagação, através da fala abaixo:
Por que na nossa fé, nos acreditamos de coração na idéia de
reencarnação. Era o reencontro de um povo que estava há várias eras juntos,
desde a época do Egito Antigo , de Cristo, de todo esse passado histórico,
este mesmo povo sempre se encontrou. O Padrinho Jonas sempre chamou a
gente de “Uma grande caravana” , passando pelas Eras, pelas encarnações e,
foi numa dessas encarnações que encontramos o Daime e a gente voltou a se
encontrar no Daime para a última encarnação ou para o começo da separação
do planeta. A gente seria levado a uma posição de retornar para as nossas
casas espirituais, que no Daime cada um de nós é formado por matéria
estelar . Somos seres que fomos formados por matéria estelar neste solo e
outros foram formados no solo de outras galáxias, de Órion, das Plêiades,
essa é a matéria do nosso pai que nos criou, a luz. E cada um tem a sua casa,
a sua estrela. Estamos neste laboratório, nesta experiência aqui na Terra mas
com o intuito de retornarmos a casa . Tem o hino 27, do Caminho de Luz,
que fala desta instrução : “Nós viemos para cá , agora temos que retornar”
que é o Comandante Daron dizendo para nós que temos que retornar agora.
É a última passagem, e aqueles que ficarem, ficam mais tempo, para depurar
mais. Mas agora para o nosso povo é hora do retorno.
Portanto, este retorno tem relação com a idéia da evolução espiritual presente na
cosmologia espírita. A Terra em que vivemos, e em que passamos por diversas “tribos” –
fomos egípcios, ciganos, cristãos, daimistas é apenas uma fase, um “laboratório”. Os
espíritos que alcançarem o grau de depuração poderão evoluir até planos superiores. Ou caso
165
contrário regredir a mundos inferiores, ou também continuar aqui na Terra. Segundo Geraldo,
é esse o recado do Comandante Daron. Os membros do Santo Daime estiveram juntos em
outras encarnações, fizeram parte no passado das mesmas “tribos” e hoje fazem parte da
última “tribo” – a “tribo do Daime” – e, caso tenham atingido um grau espiritual mais
refinado poderão atingir mundos de luz, planos superiores ao nosso :
O retorno é uma passagem deste laboratório em que vivemos, nesse
planeta, nesta escola imensa , nesta nave Terra. Então você veio judeu, você
veio maometano, você veio hindu, dessas escolas espirituais , encarnações .
Nenhum filho, nenhum bebê, escolhe em que barriga vai nascer. Ele pode
nascer na barriga de uma pessoa do terceiro mundo na África passando fome
ou pode nascer na barriga da mulher do Bill Gates. Ninguém escolhe,
ninguém tem este poder de determinar. Então nesta passagem cármica
ninguém escolhe em que religião ou em que lugar vai nascer e como vai ser.
O amor que é este grande poder que nos trouxe até aqui e que também vai
nos levar é o caminho da vinda, do amor . E todos aqueles que estiverem
passando pela Terra ou ficarão mais tempo na Terra ou retornarão a planos
mais inferiores do que a Terra ou ascenderá a planos mais elevados. Então o
retorno é isso, é o encontro de um povo que passou por várias eras, que
caminha junto e que agora não precisa mais estar percorrendo este caminho .
E aqueles que conseguirem, que se esforçarem muito, conseguirão ser
resgatados. Não é só falando que é o escolhido não, você tem que fazer todo
o seu esforço, todo o seu possível para alcançar esta lida.
Com base na fala acima, verificamos que aqui é o mundo da matéria e da ilusão,
mundo que obscurece a verdade mais pura e essencial – aquela que é mostrada pelo Daime
em miração. As estrelas, neste caso, representariam uma libertação do ser , a “vida viva do
Universo” .Há um hino da Madrinha Maria do Carmo que diz : Eu tenho a Luz a me guiar /
Neste caminho das Estrelas (74 – Tenho a Luz – Caminho de Luz) esta luz é o Daime, chave
que te garante a nave para viajar a outras dimensões, tanto do Universo como dentro si
próprio. O Buraco Negro traduz o mundo de ilusões em que vivemos . Em contraposição há a
Estrela que é luz do conhecimento, que traz a verdade em si, que revela :
166
99 – Dou Viva a Deus
Eu dou viva a Deus
Nas alturas aonde está
Eu dou viva a Deus
Este sonho nasci eu
Eu dou viva a Deus
Nas alturas aonde está
Criou toda matéria
Duas forças a se juntar
Eu dou viva a Deus
E a minha Virgem Mãe
A Força Feminina
Com Yang a governar
Eu dou viva aos Seres
De Luz a me ensinar
Seres de outras Galáxias
Nas Dimensões a trabalhar
Eu dou viva a Deus
Os minutos são Sagrados
Passei portais e portas
O contacto foi firmado
Eu dou viva a Deus
Viva este Mundo Real
E a este Divino Liquido
Ampliando o meu ASTRAL
Eu dou viva a Deus
Ao seu Comando Superior
Dou viva ao Nobre Guerreiro
DARON e aqui estou
Eu dou viva a Deus
E aos Mestres desta Sessão
Dou viva a toda Corte
Celeste de Juramidam
Eu dou viva a Deus
Dou viva aos meus irmãos
Dêem viva à ComuniDaime
Eu confio em Vossas Mãos.
(hino 99 – Dou Viva a Deus – Hinário Caminho de Luz)
167
O hino acima “Dou viva a Deus” faz uma louvação a vários seres divinos, inclusive o
Comandante Daron e convida os daimistas a construírem aqui na Terra a “ComuniDaime”, ou
seja, a vida comunitária em uma Nova Era Estelar. E, para chegar a esta Nova Era, são
necessários os auxílios de seres como o Rei Comandante Estelar:
Oh! Rei que comanda a todos/ Oh! Rei Comandante Estelar/ Ensina
abrir esta porta, ensine/ Esta porta adentrar. ( hino 105 do hinário
Segmento - Oh! Rei)
O conhecimento é o produto principal deste contato entre os indivíduos aqui na
Terra com os seres das estrelas, e este conhecimento chega até cada um graças ao ritual com o
Daime = jagube + folha rainha , como uma “ planta para o conhecimento” que se traduz em
toda esta riqueza de símbolos descrita neste capítulo:
Esta Ciência / Através dos Tempos/ Ela chegou para realizar/ Os
meus irmãos todos das Estrelas/ Nesta dimensão / Vieram ensinar . ( hino 33
– Através dos Tempos do Hinário Luz do Sol)
Dessa forma, podemos concluir que a Cosmologia Estelar do Céu de Midam associa :
Seres estelares;
Naves;
Mundos e Dimensões;
Portais;
A concepção de um mundo dual;
Espiritismo, evolução espiritual;
Nova Era;
Expansor de Consciência (Daime);
Vida em Comunidade;
168
Cristianismo;
Uma linguagem poética nos hinos.
Esta linhagem do Céu de Midam e da Igreja Flor de Luz, que foi iniciada
principalmente através da liderança espiritual e das histórias e pensamentos do Padrinho
Jonas, precisou ser negociada, enfrentou batalhas para ganhar o respeito devido e
legitimidade. No início, segundo algumas entrevistas que realizei, os seres espirituais eram
basicamente os do Comando Estelar. No início esta egrégora das estrelas era, por assim dizer,
mais “pura” ou mais presente. Mas depois chegou a influência doutrinária e cosmológica da
floresta, e chegou a organização ritual do Céu do Mapiá e da pessoa do Padrinho Alfredo
Gregório de Melo – hoje o principal dirigente do CEFLURIS .Então os seres estelares do
Padrinho Jonas se mesclaram com os caboclos da floresta. Mas, como afirma Silvia Miragaia,
o importante é que tudo se interligou num amálgama harmonioso :
Aqui tem uma coisa muito forte que é a Egregora Estelar. E até o
pessoal do Céu do Mapiá brinca com a gente dizendo que nós somos a
“Igreja dos Ets” . No fim do ano, antes do Padrinho Jonas morrer, a
Madrinha Maria do Carmo foi para o Amazonas, e lá aconteceu uma coisa
engraçada. “ Ah, o pessoal da Madrinha Maria do Carmo está vindo para cá,
o pessoal lá da Igreja dos Ets está chegando”... “Daqui uns três, quatro dias o
pessoal vai estar aqui, que é a Igreja dos Ets, a Madrinha Maria do Carmo”...
Um belo dia o que aconteceu? Uns dois dias antes da Madrinha chegar, os
meninos estavam lá na ponte da Vila do Céu do Mapiá. Eles viram o quê ?!
Uma nave. Aí todo mundo correu, um chamou um outro chamou outro. Daí
uns dois dias a Madrinha chegou lá, então já está até tendo um respeito
maior com relação a isso. O Padrinho Jonas falava muito para a gente juntar
os seres estelares com os seres da floresta... Às vezes dava confusão porque
o pessoal estava acostumado com o Comando Estelar e de repente descia os
caboclos da floresta, mas com tempo tudo se equilibrou e se harmonizou.
Vale lembrar que a crença em seres estelares e naves espaciais, a certeza da existência
de outros mundos não é algo abertamente explícito nos rituais e nos hinos. O quê pode passar
despercebido por quem freqüenta o Santo Daime no Céu de Midam pela primeira vez. A
169
mensagem estelar em Midam é sutil , discreta e só se faz notar nas entrelinhas dos hinos e
discursos. Há, portanto, uma grande distância de outros agrupamentos que associam uma aura
divina aos UFOs e Ets, como é o caso, por exemplo, do Vale do Amanhecer – Centro
Espiritual localizado em Planaltina, cidade-satélite de Brasília, fundado pela neo-xamã “Tia
Neiva” – em que se acredita que seres extraterrestres chegaram à Terra para colonizá-la e que,
portanto, somos todos descendentes destes seres “quase-divinos” vindos de um planeta
denominado “Capela”
72
. Lá os símbolos religiosos – entre eles a exaltação dos seres
extraterrestres - aparecem de forma bem mais explícita que no Céu de Midam :
Estrelas de Davi, elipses, estátuas de Cristo, pirâmides, setas,
cruzes, meias-luas, sóis com sete braços, triângulos e jaguares estilizados,
juntam-se aos cânticos, orações, nomes indígenas ou inventados, pinturas
que remetem às entidades da umbanda, tais como caboclos e preto-velhos, e
referências a extraterrestres – sempre retratados com olhos sinuosos e
puxados para o alto - , num verdadeiro espetáculo ritualístico e visual.
(CAVALCANTE, 2000, p. 14)
Portanto, procurei mostrar nesta análise sobre o Comando Estelar na Igreja Flor de
Luz e Comunidade Céu de Midam, as especificidades cosmológicas deste Centro Daimista. A
egrégora da Flor de Luz, isto é , sua personalidade simbólica própria, dentro do Ecletismo da
Doutrina Daimista é a ligação com os seres extraterrenos – em especial com o Comandante
Daron, portais, outros mundos, a Constelação de Órion, naves espaciais, confederações
estelares, etc. Estes símbolos estelares tornam-se vivos nos rituais, isto é, nos trabalhos em
que se bebe o Daime, e todos cantam, bailam e miram. Esta visão estelar está nos hinos da
Madrinha Maria do Carmo, na mensagens recebidas por Padrinho Jonas, nas imagens que se
formam durante as mirações e enfim, nas crenças de cada adepto, que se fortalecem a cada
novo trabalho espiritual e no dia a dia de convivência comunitária do Céu de Midam. A
72
CAVALCANTE, Carmen Luisa Chaves . Xamanismo no Vale do Amanhecer : o caso da Tia Neiva.
Annablume, São Paulo : 2000.
170
simbologia estelar parece conviver harmonicamente com outros símbolos religiosos existentes
no Santo Daime : Cristo, Daron, Virgem Maria, Krishna , Buda, Orixás, Rainha da Floresta,
Juramidam - todos formam um amalgama, um caleidoscópio que nunca está concluído, que
sempre se abre a novas contribuições cosmológicas.
Este é o retrato do Santo Daime em São Paulo, juntando indivíduos de vidas urbanas
fragmentadas com um universo religioso eclético, formado por múltiplas entidades espirituais
e divindades, porém não desordenado nem confuso.
171
Capítulo 5 –
Miração,Cura e
Transformações na Vida Cotidiana
Neste capítulo procuro mostrar como o Santo Daime pode gerar um novo sentido à
vida daquelas pessoas que ingressam nesta religião. Partindo do princípio que, segundo
Geertz, a religião é uma forma de tornar compreensível a experiência do caos, vejamos como
ocorre este processo entre alguns daimistas que foram entrevistados e sob quais parâmetros
podemos compreender as mudanças observadas em seu ethos e visão de mundo. Indivíduos
que se encontravam com sua vida fragmentada, enfrentando problemas de relacionamento,
conflitos familiares, dependência química, doenças e, através da participação nos rituais e da
consagração desta bebida sagrada - desta “planta para o conhecimento” que é o Daime -
puderam reintegrar-se à normalidade do dia a dia, renovar seus anseios, objetivos e sentidos
de se viver. Sendo assim, o Santo Daime seria uma forma de dar sentido à vida, seja através
da cura, da miração ou da religação com o sagrado.
Além disso, considero que estes três elementos básicos – a cura, a miração e a busca
do sagrado – interligados, formam núcleos que fortalecem e explicam a expansão do Santo
Daime nos grandes centros urbanos e no Estado de São Paulo. São elementos que identificam
172
esta linha religiosa em particular – o Santo Daime – pois fazem parte de sua essência, da
mesma forma que são uma memória viva para os indivíduos que se tornam adeptos desta
doutrina sagrada.
Transformações na vida cotidiana
O universo social e cultural das pessoas que freqüentam os trabalhos do Santo Daime é
tão eclético quanto o é o conjunto das “cosmologias em construção” que delineiam esta
doutrina religiosa. No entanto, estes diferentes sujeitos parecem perseguir o mesmo objetivo :
buscar sentidos para o que chamo de “fragmentação da alma”, o caos de quem vive uma
realidade pós-moderna repleta de conflitos e incertezas. Talvez haja uma atração entre o caos
pós-moderno que esses indivíduos carregam e o aparente “caos” de cosmologias que integram
a composição religiosa do Santo Daime.
Iniciaremos portanto a análise das histórias de vida significativas de alguns adeptos do
Santo Daime. Temos o exemplo do fardado Sebastião Costa de Albuquerque, paraibano,
morador de Sorocaba e militante do MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.
Ele descreve da seguinte forma sua primeira experiência com o Daime:
173
Foi uma experiência muito bonita, foi maravilhoso. Assim que eu
entrei no salão, que tomei o Daime, fiquei muito pegado, muita imagem,
muita luz. Então quando eu tomei o Daime pela primeira vez, foi um
chamado, eu vim para ficar
.
É comum ouvirmos relatos de participantes que identificam em suas primeiras
mirações nos trabalhos os “chamados” para mudarem suas condutas de vida e realmente se
integrarem ao grupo daimista, o que implica também em transformações na sua postura ética.
Dessa forma, Sebastião afirma que houve muitas transformações em seu cotidiano,
principalmente a partir do momento que resolve se fardar – vale dizer, tornar-se um soldado
da rainha, um membro efetivo do Santo Daime:
Foram muitas transformações, muitos desafios foram apresentados,
muitos deles eu não consegui responder.Tomei Daime oito anos sem me
fardar, me fardei há três anos atrás. .Mudei da água para o vinho. O
fardamento é um divisor de águas na história de um daimista.
Sebastião relata seu fardamento e o descreve como um verdadeiro renascimento. Aqui
aparece a imagem do “renascimento” – figura recorrente nos rituais xamânicos. Trata-se de
uma experiência em que o sujeito passa pela morte simbólica para depois ressurgir em uma
nova existência, sendo que esta nova vida que ganha representa toda uma reinterpretação de
sua experiência anterior, à luz de um novo ethos e resulta, muitas vezes numa alteração de
cento e oitenta graus em sua trajetória de vida.
Este relato envolve a entrada em um caminho espiritual de quem anteriormente,
enxergava prioritariamente apenas a militância e os ideais políticos. É alguém que
gradualmente vai buscando enxergar outras perspectivas em seu cotidiano, que se traduz no
174
contato com uma doutrina espiritual que faz uso em seus rituais de um expansor de
consciência – o Daime.
Situações semelhantes podem ser encontradas nos testemunhos colhidos em outras
entrevistas.
Outros chegam ao Daime porque viviam algum tipo de conflito familiar ou
desencontros espirituais – dilemas na busca de uma opção religiosa. Como o casal Roberto
Palmonari, 36 anos, e Felícia Aparecida, 40 anos, cujas profissões são, respectivamente,
massagista e bancária :
O Daime foi me apresentado por um amigo, que, aliás, é meu
vizinho, que presenciou algumas dificuldades no relacionamento meu com
minha mulher e se ofereceu para que eu conhecesse o Daime , que poderia
me ajudar. E foi assim, o apreço valeu a pena.
Roberto Palmonari.
Pode ser muito freqüente que a iniciação no Santo Daime venha acompanhada de
sonhos premonitórios – novamente, podemos visualizar paralelos com a experiência do
xamanismo, tal como verificamos do depoimento abaixo de Roberto:
A primeira vez que eu tomei o Daime, logo após uma semana eu tive
um sonho que eu estava à beira de um lago sentado na beira de um
banquinho, com um senhor de roupa branca, mas eu não conseguia ver a face
desse senhor que estava do meu lado. Aí eu cheguei para esse vizinho meu e
comentei. E aí ele falou “olha eu vou te levar para esse lugar aí que você
sonhou”. E aí quando me deparei aqui no Midam estava na beira do lago
sentado naquele banquinho, onde eu tinha sonhado que estava aquele senhor,
que era aqui no Midam, no lado da igreja, né. Foi uma experiência muito
linda, muito bacana.
175
Já a esposa tomou a atitude de participar do Santo Daime após perceber
grandes mudanças nas atitudes de Roberto:
Eu conheci o Daime depois.Aí de tanto... a mudança foi tão grande,
radical , física , visível, que eu fui obrigada a vir, não consegui não vir. Eu
freqüentava por um tempo a carismática, onde não pode isso , não pode
aquilo, tudo é proibido , de repente a minha cabeça ficou lá travada . Aí
quando eu conheci o Daime foi destravando devagarzinho, devagarzinho...
O relato acima é ressaltado pelo marido:
Até em princípio, quando eu tomava o Daime e chegava em casa ela
olhava para mim e perguntava “O que que aconteceu?” “ Você está
diferente! O que aconteceu ?” Não adianta eu tentar te explicar que, só
quando você tomar, que você vai entender o que está acontecendo...
Os daimistas costumam dar sempre a mesma resposta quando são indagados : “ O que
é o Daime?” . “ Beba o Daime, pergunte a ele , que só ele pode te mostrar quem é.” Só
passando pela experiência – que diz-se ser única para cada um - , indo ao trabalho espiritual,
consagrando este vinho considerado o próprio sangue de Cristo, é que se pode compreender
sua natureza.
Voltando ao relato do casal, Roberto comenta as transformações em sua vida cotidiana
que atribui ao Daime. Primeiro analisa, na atual luz que o Daime lhe ofereceu, como estava
cheio de imperfeições e nem se dava conta disso:
Eu era uma pessoa meio áspera, meio difícil, sabe...Aquela coisa, eu
tinha que sair correndo, me bater contra parede para ver que era parede, até
que machucava, se não eu não parava. Se vinha alguém e me alertava, se
dizia para eu ter cuidado, eu me virava contra a pessoa. Eu achava que eu
tinha que achar o que era certo para mim...
176
Segundo Felícia, o esposo se encontrava em um “desequilíbrio espiritual”. O que
resultava em brigas e discussões com as pessoas de sua convivência, no abuso das bebidas
alcoólicas, enfim ele enfrentava um complexo conflito interno, uma luta do “bem contra o
mal” – conforme afirma – porque era algo que ele queria resolver, mas, não tinha forças
suficientes para tanto.
A vivência com o Santo Daime, a participação nos rituais foi dando um novo rumo à
vida do casal. Entretanto, esta transição não foi nada fácil, sendo repleta das chamadas “peias”
em que o sofrimento estava lá presente:
Foi muito difícil, foi uma luta tremenda. Teve momentos, como o
primeiro Daime que eu tomei, eu olhei para o meu amigo e falei em
pensamento “eu vou dar na sua cara, e sair daqui...” Eu passei muito mal,
fiquei muito mal, mas depois eu agradeci muito a ele. Eu passava muito mal,
entrava em pânico, eu chorava muito, tinha muitos traumas de infância.
Então acho que o Daime conseguiu resgatar muita coisa e mostrar que a vida
não é só tristeza, não é só lágrimas. Tem um ser especial lá em cima que, se
você parar para pensar que ele está do seu lado todo o tempo, que ele não te
abandonou, que você que abandonou ele, é bem diferente.
Roberto Palmonari.
Teve um trabalho que eu lembro, não foi o primeiro trabalho dele,
foram vários trabalhos pesados, aí eu cheguei perto dele e eu comecei a
passar mal, eu sei que, eu fui fazer limpeza e nunca que essa limpeza
acabava , que era tanta coisa que...
Felícia Aparecida Palmonari
177
O casal foi assim percebendo, no seu ponto de vista, os benefícios que o Santo Daime
estava trazendo em suas vidas. Tiveram assim, a oportunidade de se libertarem do labirinto
que estavam confinados – de acordo com o relato dado. Puderam se livrar daquela sensação
de “não saber para que lado correr”. O Santo Daime, visto dessa maneira sinalizou com um
sentido de vida para Roberto e Felícia. E em um reordenamento também espiritual:
Eu tinha essa coisa, eu fui sempre muito certinha. Por exemplo,
quando eu fui aprender datilografia, eu estava digitando e a minha professora
falou “olha lá em cima”. Eu sempre freqüentei a igreja católica
esporadicamente. Fiz crisma, catecismo, essas coisas assim, mas nunca fui
muito de freqüentar igreja , essas coisas. Então como estava acontecendo
esse problema com a gente, eu tinha que me apegar a Deus, a uma religião.
A gente chegou a ir no espiritismo, onde deu mais problema ainda. Aí eu
acabei para a Carismática sozinha, porque ele não quis ir. Só que lá
começaram, tudo coisas assim, que vem assim do meu passado, da minha
criação, a minha mãe era espírita, meu pai nunca foi de igreja, aquelas coisas
assim, uma coisinha aqui, outra ali de avó, de mãe... Aquilo lá eles estavam
querendo tirar de mim, como se quisessem colocar você numa redoma de
vidro e que você é só aquilo, você não pode ver nada, o que está lá fora você
deixa quieto... Não, eu quero aprender mais. Eu quero saber mais. Hoje eu
não estou mais nessa redoma, mudou minha cabeça, eu não tenho mais
medo, antes eu tinha medo. Eu fiquei assim, no espiritismo super
complexada, porque tinha feito um monte de coisa errada. Eu sentia como se
estivesse contaminada, uma contaminação. Então quando eu conheci o
Daime, foi uma luta interior, porque eu me senti contaminada em vir para cá,
entendeu?! Aí quando eu vim, no começo fui lutando comigo, mas quando
abri, aí eu não tive mais dúvida nenhuma. O ser humano está aqui para
aprender, tem que conhecer, e eu sei que tenho muito ainda para aprender.
Felícia Aparecida Palmonari.
Vemos que há um desencontro religioso no caminho de Felícia. Ela vem de uma
família onde se valorizava ,de certa maneira, o espiritismo. Depois ao adotar a Renovação
Carismática acaba por se sentir presa, limitada e constrangida pelos valores espirituais que sua
família lhe legou. O Daime significou para Felícia uma libertação para um ser que
encontrava-se reprimido e mergulhado em uma culpa injustificável. Ao percurso religioso que
178
o casal percorreu também se soma uma passagem rápida pela Umbanda, conforme notamos
neste depoimento:
A minha formação é católica . Eu tenho um pouco de conhecimento
espírita, de Allan Kardec, freqüentamos juntos a umbanda, já assim, em
busca de socorro pela situação que a gente estava passando.
Dessa forma, a religião em alguns momentos surge como uma forma de solucionar
problemas vivenciados no cotidiano. Já a passagem pela Umbanda, embora tenha resultado
em certos aspectos positivos para o casal, acabou por trazer novos problemas, como fica
evidente na fala do casal:
Na umbanda a gente aprendeu muitas coisas legais , mas a gente não
estava preparado ainda para estar assumindo, naquele momento, entendeu ?!
A gente estava trazendo muita coisa para casa da gente. Espíritos , presenças
diferentes dentro da minha casa mesmo.Tinha que ter muita disciplina.
Felícia Aparecida Palmonari.
Eu estava na minha casa, incorporava , e de repente ia parar no
jardim zoológico, e não sabia como tinha chegado lá. Coisa terríveis, dentro
do cemitério, sabe ?! Eu ficava agressivo, quebrava tudo em casa . Até que
teve uma vez que eu bati no meu filho ... nossa, foi a pior experiência que eu
tive na minha vida! E depois quando eu vim conhecer o Daime, ele me
mostrou onde estava o erro . A gente sempre tem uma feridinha, e quando
mexe naquela feridinha...nossa!
Roberto Palmonari.
Pode-se concluir a partir dos relatos de Roberto e Felícia que o Daime propiciou uma
reorganização do seu cotidiano, assim como trouxe sentido onde antes só havia caos e
desarmonia. O Daime também propiciou para este casal uma reorganização dos seus
caminhos e escolhas espirituais ou religiosas, como ficou claro nos depoimentos.
179
Conversei também com um casal de jovens – César e Jaqueline – que passaram a
residir na Comunidade há pouco meses. Para Jaqueline o Daime a transformou e auxiliou na
harmonização das relações com seus familiares :
Antes de tomar Daime eu era muito no mundo da lua. Eu vivia
sempre “viajando” assim, parece que não tinha muito o pé no chão. Aí
depois que comecei a freqüentar os trabalhos de Daime, comecei a ficar mais
realista, ter mais noção, passei a ter mais consciência . E essa foi minha cura
mesmo . Houve bastante mudança até na minha família, que não tomaram o
Daime. Acho que só com a minha mudança já contagiou eles, assim,
positivamente. Em termos de mais tranqüilidade, mais fé, mais confiança ,
mais fé na vida . Houve bastante transformações, positivas, muito positivas.
Jaqueline Aparecida de Moraes,26 anos
César , que conheceu o Daime com 14 anos, relembra as dificuldades de conciliar a
doutrina e a ética daimistas com a vida desregrada típica de um adolescente:
Foi difícil conciliar a vida de jovem e adolescente com o Santo
Daime. Foi difícil porque o jovem tem muito impulso. A sexualidade por
exemplo é muito aflorada, é algo natural da idade. E não foi fácil conciliar
isso com uma doutrina, que tem um segmento firme.
César Eduardo Cardoso, 25 anos.
Hoje , César entende que o Daime foi muito importante em sua vida, e atribui a ele as
realizações que conquistou ao longo de sua jornada de vida :
Hoje eu acredito que sou uma pessoa realizada dentro do Daime,
porque tudo que eu quis eu tenho. Tenho uma esposa, e tenho muito amor
por ela, tenho um família, uma casa na comunidade onde convivo com a
irmandade. Sou músico do Daime também, adoro tocar.Violão é minha
paixão. E violão com o Daime . E eu tenho um serviço, sou formado, quer
dizer, dentro das realizações possíveis da minha vida, o Daime auxiliou em
todas elas. César Eduardo Cardoso.
180
Já no caso de Gabriel Santeiro Rodrigues Rego, o encontro com a doutrina do Santo
Daime foi motivado pela busca de auxílio no tratamento de dependência química. Atualmente
é vigia, tem 24 anos, possui ensino médio completo e reside em São Sebastião. A entrevista
foi realizada em 2004, no mesmo dia do Trabalho de Santo Antônio. O entrevistado casou-se
nesta mesma data na Igreja Flor de Luz. Vejamos o que ele nos diz sobre sua cura:
Eu tinha de me curar mesmo, era muito envolvido com o mundo
escuro, das drogas, nas famílias também.
Gabriel recebeu de um amigo um convite para visitar o Santo Daime, mas naquele
momento preferiu ir à praia, como ele mesmo nos relata:
A
í do nada surgiu um amigo meu, que eu conhecia, que frequentava
o Daime já e a gente não sabia. Aí ele nos chamou, falando que tem tudo a
ver com a gente, que eu sempre peguei onda , em contato com o mar... Essa
harmonia. Aí ele me chamou para ir, eu falei “ não, não vou lá não, ficam
incorporando lá...” Eu não sabia o que era , tinha uma fé em Deus, Jesus ,
já... na Trindade. Aí , rapaz, todo mundo foi para o trabalho e eu não fui, fui
para a praia .
Entretanto, na praia ouviu uma voz que, posteriormente, identificou como sendo da
Virgem Maria :
Aí fiquei pensando ... Aí uma voz me falou, uma voz espiritual, igual
a Virgem Maria. Com certeza era ela , para não ficar duvidando e falar de
uma coisa que eu não conhecia e ver se é bom ou é ruim. Aí eu fiquei
curioso, e essa voz voltou a falar comigo, depois de dois dias, eu estava em
Concentração, mandou falar para eu subir na Igreja, tomar o Daime. E não
levar nada do que está no mundo, você vai para a Igreja , você vai com
mentalidade super limpa, positiva, implorando , para implorar as coisas boas
. Deixar o mundo de ilusão aqui e lá é outra coisa. Lá é sagrado...
181
É interessante notar a mudança, relativamente rápida, que se deu na vida de Gabriel,
que acabou reconhecendo que deveria se afastar do mundo das drogas, transformação ocorrida
graças a ajuda do Daime e da religiosidade presente nos rituais – precisamente, é como se
ocorresse uma religação com o sagrado, representada pela voz da Virgem Maria. Gabriel
também passa a distinguir com nitidez a separação entre “o mundo de ilusão” – que é a vida lá
fora, as drogas, o pensamento negativo - e o “mundo sagrado” –que pode ser alcançado
através das mirações propiciadas pela ingestão do Santo Daime.
E a cura se deu – embora não sem dificuldades – e, neste percurso pôde conhecer sua
futura esposa :
Aí foi assim... Eu fui me curando, fui apurando, tomando umas
peias . Cocaína , cola que cheirava , vivia umas peias fortes. Fui curado
graças a Deus e ao Santo Daime. E hoje em dia tenho tudo graças a doutrina
, estou com minha mulher , conheci ela , mostrei um hino para ela, ela
gostou . Cantei um simples hino para ela, ela falou “quero ir lá” ...
Aldori Benedito Barbosa, 42 anos, paisagista, conheceu o Daime em 1999 na Igreja
Céu do Sagrado em Sorocaba. Quando tomou este vinho sagrado, pela primeira vez, pode
observar em sua miração uma grande águia de luz, viva e colorida. Segundo seu depoimento o
Santo Daime:
Mudou minha vida completamente. É uma vida nova que a gente
tem para receber da Mãe mesmo. É uma outra vida. O conhecimento
espiritual , a paz, tudo. Da espiritualidade, do espiritual, do espírito, dos
espíritos, dos encarnados e dos desencarnados. O Daime é uma escola
espiritual.
As transformações radicais que Aldori observa em sua vida desde que ingressou no
Santo Daime são melhor compreendidas neste depoimento :
182
Antes de conhecer o Daime, eu vivia no mundão lá fora, da ilusão,
das diversões, bar, discoteca, barulho, baile, bebidas, drogas . Eu sei que é
uma busca inconsciente talvez, mas eu vivia num aperreio lá fora, durante
vinte anos, dos treze aos trinta e três. Mas daí, depois que eu cheguei no
Daime, passei por vários processos, de limpeza, mostrou as coisas que se
passavam, como eu estava, os espíritos que interagiam comigo, que me
influenciavam, as minhas falhas, as minhas chagas que estavam no meu
aparelho. Foi dando entendimento. Como diz num hino “Foi mostrando
meus defeitos comecei a me corrigir.”
Como no relato de Gabriel, verificamos também no testemunho de Aldori uma
transformação profunda em muitos aspectos da vida após o encontro deste com o Santo
Daime. Aldori estava envolvido por dez anos nos descaminhos das drogas, das bebidas
alcoólicas, e por tudo o que ele denomina de “mundão lá fora, de ilusão”. O Santo Daime
preencheu uma lacuna de sentido para Aldori, na medida em que mostrou o porquê de suas
falhas, assim como revelou os possíveis caminhos para ele se corrigir. As chagas foram
entendidas como sofrimentos do “aparelho” - ou seja, nossa matéria, nosso corpo – que
acabava sendo influenciado por espíritos que não eram de luz. Aqui também fica claro um dos
principais aspectos da doutrina daimista, que é sua essência espírita, em certa medida
kardecista, onde se acredita na evolução espiritual, e que há espíritos em diversos graus de
evolução influenciando nossas vidas aqui na Terra, podendo nos levar para o caminho das
trevas – se forem entidades maléficas ou os chamados “encostos” – ou para caminhos de luz –
no caso de se tratar de espíritos mais evoluídos.
Agora daremos continuidade ao relato de Aldori, com o objetivo de compreender um
pouco mais seu ingresso ao Santo Daime :
183
Aí é gradual. Eu tomava Daime pedia força e proteção. Depois de
um tempo, força e proteção eu já tinha no trabalho e eu precisava de mais
coisas . Então eu pedi a compreensão. A hora que vinha a compreensão eu
percebia que precisava de muitas coisas mais. Quanto mais você aprende,
mais você vê que precisa aprender mais. Então é uma coisa que parece que
não para. Minha vida mudou completamente, não tenho hábito noturno mais,
nem de sair de casa, não tenho vontade, não é que eu me prenda, não, que
fiquem me segurando, sou livre. Ando mais viajando, lendo, tomando
Daime, participando das reuniões, procurando conhecer outras linhas
também. Mas minha vida mudou completamente, realmente é uma cura. Pelo
menos eu acordei. E outra coisa, quem sai do mundo onde eu andei só tem
que agradecer. Do jeito que tiver agora é lucro.
A mudança de cento e oitenta graus é entendida por Aldori como um cura , momento
em que consegue acordar – sair do mundo de ilusões para dar-se conta que existe um mundo
verdadeiro, o mundo espiritual. No percurso dessa mudança em sua existência, Aldori foi
pedindo gradualmente ao Daime primeiro força , depois proteção e viu que só isso não
bastava, que precisava também de compreensão . E se deu conta que há sempre muito mais
para se aprender, que cada trabalho de Daime que participa envolvia um novo aprendizado,
um novo conhecimento, útil para que possa compreender e levar a bom termo sua nova vida.
Há portanto degraus a serem galgados rumo ao que se denomina “evolução espiritual”. E,
dessa forma, é ao Daime, este vinho sagrado, que Aldori atribui estas bem-vindas mudanças .
E também à doutrina, todo este conhecimento espiritual que está presente no Santo Daime.
Analisemos agora os relatos da professora de artes Maria Cecília Santos, que conheceu
o Santo Daime , quando a Igreja Flor de Luz se localizava no bairro do Tremembé, na cidade
de São Paulo. Para Cecília, a maior de suas curas no Daime pode ser descrita da seguinte
forma:
Logo de cara, quando tomei o Daime, eu fui lá no submundo, foi
aquela coisa ... logo eu percebi que tinha que sair de lá. Então eu enxerguei
onde que minha alma estava, assim localizada ninguém podia me tirar de lá,
então sai de lá correndo. O Daime me deu essa esperança.
184
O submundo de Cecília eram as drogas, os vícios, as noitadas e baladas , como afirma
em suas narrativas. Mas a maior das curas foi em relação ao que chama de “vícios sociais”,
conforme sua fala logo a seguir:
A cura mais significativa pra mim. Ah! Deixe-me pensar. Bom a
minha libertação assim de drogas foi muito importante, mas eu acredito que
a minha libertação social foi maior. Você entendeu ?! Quando eu consegui
pegar meus filhos... Tenho uma outra visão de vida , me libertei dos vícios
da sociedade, não foi nem dos vícios das drogas mas os vícios e os hábitos
da sociedade. Eu consegui sair daquela forma de vida e transformar minha
vida. Então eu acho que essa foi a maior cura que eu posso ter.
O que Cecília chama de “ vícios sociais” era se ater mais ao lado dito profano da
sociedade – mundo de ilusão na visão daimista - e se esquecer , por exemplo, dos filhos , de
família :
Então, acho que a partir do momento que eu comecei a tomar o
Daime eu enxerguei a minha família de uma forma diferente, com mais
responsabilidade, (o crime era terrível viu?!), enquanto ser humano, né?! Eu
tinha uma tarefa que é com o crime e não estava cuidando de mim, o quê se
dirá dos filhos?!
Cecília Santos possui um casal de filhos : Cícero e Lúcia Santos. Ela se tornou
um exemplo na Comunidade Céu de Midam de como educar os filhos na doutrina daimista :
Olha, a princípio assim ... foi difícil, porque como eu tinha essa
forma da saída da cidade e morar numa comunidade, todos aqueles hábitos
... ou vamos dizer assim?! Os sucos e os iogurtes, vamos dizer. Aquela
forma de consumo do supermercado, né?! Então eu tive que abandonar essas
coisas e tive que ter uma vida mais saudável, o que o sítio proporcionava e
isso aliado à história de ser um sítio onde envolvia o povo do Daime, de
uma religião, então os meus meninos poderiam participar daquilo. Se aquilo
era bom para mim, era bom para minha família, então a minha
transformação também dependia de como transformava a minha família.
Então os meus filhos foram criados nesse prisma, tomando Daime num outro
ritmo de vida, sem ter muito contato assim com a cidade. Isso não quer dizer
que também não sabiam das coisas da cidade, não que hoje são alienados,
não. Eles participam, estudaram, estudam e tal . E isso tem que ser fora
185
daqui, fora da comunidade, mas já dentro dessa visão de estar vinda para a
doutrina. Eu não deixei como na maioria das famílias os filhos simplesmente
optarem não quero, não vou, não vou. Não. Sabe?! Eles iriam comigo até
que eles pudessem estar tomando essa decisão. Então eu não afrouxei para
depois eles decidirem se queriam. Primeiro eu trouxe eles , eu decidi, agora
eles são do Daime. Os irmãos que deixaram pra depois ... por isso que hoje
nenhum está no Daime. E inclusive há irmãos saindo porque os filhos não
acompanham os pais. Então hoje eu tenho essa alegria, por mais que eles
briguem comigo muitas vezes aquelas baladas que não foram, aquelas
festinhas que às vezes eles não acompanharam. É, mais hoje eles têm um
outro ritmo de vida então quando eles saem hoje, já é com uma outra visão
uma outra perspectiva. Eles já sabem mais ou menos entre o que é o certo e o
que é errado, onde que eles podem se aventurar ou não.
Outro aspecto da vida de Cecília sofreu algumas mudanças após o seu encontro com o
Santo Daime: ela, que era militante de um partido de esquerda - chegando a se eleger como
suplente de vereadora no município de Carapicuiba – percebeu que era salutar mudar sua
consciência de mundo e procurar trilhar o que chama de “trabalhar no fio”, sem extremismos,
como verificamos em seu depoimento:
Olha, quando eu cheguei no Daime eu não queria ser nenhum “ista”
mais. Nenhum marxista, nem esquerdista, nem petista , nem ista nenhuma.
Bem... daimista também termina com “ista” (risos). Então eu passei por um
processo que era de eliminar ... vamos dizer não era a garra mas era aquela
coisa raivosa dentro da gente, porque eu não discordo de forma alguma do
marxismo, muito pelo contrário, porque quem é uma militante a gente têm
isso no sangue .
Parece que essa luta popular se apresenta à medida que a gente tem
essa consciência de mundo. Então a gente não consegue deixar de ser. O que
muda são as formas da gente caminhar, então por exemplo quando eu
cheguei no Daime eu não queria mais aquela briga de subir no caminhão, e
lá fazer discurso. Não que eu achasse que estivesse errado, mas eu tinha que
relaxar, eu tinha que aprender a respirar. Tudo isso não queria dizer que eu
iria caminhar pela direita, nem pela esquerda mais trabalhar no fio. Eu
descobri no Daime, o Daime é isso a gente segue no fio,nem a direita, nem a
esquerda mas trabalhar no fio. Para entrar no ápice, no palácio do reino ,
então você segue no fio. Então eu levei um tempo me trabalhando tudo isso,
porque eu não perdi meu ideal, mas eu não trabalho mais dessa mesma
forma enquanto marxista, porque hoje eu trabalho muito mais essa coisa da
calma, da tolerância, da harmonia, da paz , do amor. Talvez eu volte muito
mais para a filosofia do tempo que eu fui hippie , porque tem esse detalhe!
Antes de ser político, aquelas coisas, eu participava nos anos 70 do
movimento hippie , do movimento paz e amor, que daí o próprio movimento
186
de esquerda faz a gente avaliar, e bota a gente como consciente, porque a
gente tem que deixar de ser alienado, etc e tal, aí depois a gente descobre que
a gente tinha muito de feliz nessa parte de alienado. A gente busca resgatar
isso também, sem perder a consciência do movimento da esquerda, então
hoje eu vejo de uma outra forma isso , o reivindicar , a nossa vida assim ...
De ser igual, mas dentro de um padrão já dentro do Daime, não de esquerda
nem de direita ou centro. E quando eu voltei a dar aula, eu volto a ser
representante de escola, representante sindical, já é com uma outra
consciência, vendo o que é melhor, porque esses padrões já se tornaram
antigos agora para a gente.
O Processo da Cura no Santo Daime
A cura aparece como uma forma de reverter a doença, o mal, a dor, o desequilíbrio –
todos sinais da falta de sentido em determinado momento na vida do daimista. A doença
representa o caos, a impossibilidade de se compreender os dilemas da existência. Como
afirma PASKOALI (2002) a questão é compreender o processo de cura a partir da perspectiva
do fiel que acredita tê-la recebido. Se os tratamentos médicos alternativos ou não oficiais nem
sempre são efetivos, tão pouco a medicina ocidental é plenamente eficaz em seus resultados.
Portanto – ainda segundo Paskoali - é fundamental que pensemos as categorias e processos
relacionados à cura e à doença, do ponto de vista de quem vive a ação, de quem é protagonista
desta dinâmica. Caso contrário em nome de uma pretensa objetividade não abarcaremos o
essencial deste universo cultural e simbólico presentes nos rituais de cura do Santo Daime.
187
Sem dúvida , observando os rituais no trabalho de campo, conversando – seja
informalmente , seja em entrevistas dirigidas – com os participantes dos trabalhos espirituais
pode-se constatar que um dos motivos que os levam ao Daime é a busca da cura. Ou então,
mesmo quando este propósito não é pensando logo de início , a cura acaba advindo
espontaneamente e a pessoa se descobre, de repente, livre de um mal que se quer suspeitava
que tinha:
A saúde depende do perfeito equilíbrio do corpo, dos sentidos, da
mente e do espírito. A cura com o Daime, leva a um confrontamento pessoal
interno, no qual o indivíduo passa por um processo de purificação, de
“limpeza” para encontrar o equilíbrio e a harmonia necessários ao seu bem
estar, apontando para uma prática de vida que busca a reestruturação da
ordem interna da comunidade, da sociedade (PASKOALI, 2002, p153)
Iniciaremos neste momento uma análise da cura em uma concepção daimista, a partir
das entrevistas de alguns fiéis do Santo Daime. Estas curas podem ser de várias naturezas :
orgânicas, psicológicas, espirituais, a cura de um vício, etc.
Como veremos, o Santo Daime em São Paulo, como religião e sistema xamânico,
possibilita - se não a cura- , o ordenamento que os fiéis tanto procuram para as mais diversas
formas de desequilíbrio.
Vamos iniciar agora os relatos de cura dos adeptos da Igreja Flor Luz e moradores da
Comunidade Céu de Midam. Madrinha Maria do Carmo nos conta que quando entrou na
história do Santo Daime não estava buscando uma cura para si :
Quando eu conheci o Santo Daime eu estava, assim, no Nirvana, eu
estava em paz, eu não estava buscando cura. Eu me sentia com Deus dentro
de mim. A minha fé permaneceu intacta neste ser divino, que é o Daime. Eu
acreditava em outras coisas, eu era professora e participava do sindicato,
estava em outro movimento. Hoje a gente percebe quantas coisinhas são
colocadas na cabeça da gente, desde quando somos criancinhas, que nos
distanciam da verdade, da verdade que sabemos hoje, é cósmica. Então nesse
período eu estava, vamos dizer assim, completa.
188
Ao mesmo tempo em que descreve seu início no Santo Daime, não como um momento
de cura para si, mas de revelações e transformações em seus valores e modos de ver o mundo
– anteriormente dominado pela racionalidade da luta sindical -, Maria do Carmo lembra-se da
cura que seu marido, Jonas Frederico, alcançou junto ao Santo Daime:
Mas o Jonas teve uma cura. Em 1980 ele teve uma crise nos rins.
Jonas morava em Goiás, quando se apercebeu disso, foi ao hospital, fez os
exames e estava com uma doença degenerativa nos rins . Então ele só tinha
40% dos rins funcionando e se continuasse diminuindo teria que fazer
hemodiálise ou então transplante. Nessa época ele estava tomando Daime, e
teve uma miração que não seria cortado ali naquele momento, nem seria
preciso hemodiálise. E de fato foi o que ocorreu, tanto que ele ficou a vida
inteira, de dois em dois meses, indo ao Hospital das Clínicas para fazer os
exames, e a doença dele se estabilizou nos 40%, e não precisou fazer
hemodiálise. Os rins não têm possibilidade de se recuperar os 60%, mas a
doença estabilizou, estacionou, e aquilo ali para nós foi uma cura. Foi cura
porque a doença era degenerativa e os médicos ficaram sem entender porque
é que parou né ?! Porque a tendência era prosseguir. Então veio essa cura.
A cura aparece aqui como um merecimento proporcionado pelo Daime e também pela
fé de Jonas em sua melhora e contrasta com as possibilidades dadas pela medicina de padrões
ocidentais.
De acordo com antropóloga Vanessa Paskoali ( 2002), não há um modelo único para
se compreender a questão da doença, saúde e cura:
Acreditamos que não existe um modelo único para esta
compreensão, pois que seguem atuando paralelamente o sistema médico-
científico de saúde e o sistema mágico-religioso . A questão não está em
qualificar ou desqualificar nenhuma das duas lógicas. As classificações não
podem ser vistas como estáticas, porque os limites entre as práticas são
flexíveis e são permeáveis. Neste sentido, quando a doença e o sofrimento
que ela comporta se apresentam como algo inexplicável, todas as alternativas
são buscadas, antes que se morra física ou socialmente. Quando se trata de
saúde convencionou-se que a ciência médica possui as respostas, as soluções
para os problemas. Mas, não obstante este fato, isso que as pessoas buscam
189
pode ser encontrado nas crenças religiosas, pois estas fornecem uma
perspectiva que se move para além das realidades da vida cotidiana,
envolvendo o poder dos recursos simbólicos para formular idéias analíticas,
que estabelecem explicações convincentes , capazes de transformar tal
realidade : corrigindo-a e contemplando-a. (idem, pp. 146-147)
Voltemos pois para a entrevista. Após alguns instantes de conversa, Maria do Carmo
lembra-se de uma pequena cura que teve, após um trabalho de Cura do Santo Daime,
conforme relata logo abaixo:
Da minha parte, lembro uma vez de uma cura simples, que ocorreu
depois de muito tempo que eu já estava morando aqui no Céu de Midam, em
Piedade. Eu estava com um problema no dente, estava sangrando e eu não
sabia o que era aquilo, eu tinha que ir ao dentista. E nessa vez ia acontecer
um trabalho de cura. Eu fui no trabalho e eu estava na presidência do
trabalho. Estava na cabeceira, onde o homem geralmente fica, eu estava lá
sentada. E eu fui nesse trabalho do jeito que estava, com o dente sangrando,
dolorido, estava doendo, mas eu fui mesmo assim, pois eu havia recebido
algumas instruções, e eu tive que executar estas instruções, por isso eu tive
que ficar na presidência. E eu estou no trabalho, quando eu vejo assim, lá em
cima, no astral, uma parte do meu maxilar. Mas na hora eu nem me lembrei
de nada, do meu dente doendo e sangrando. Eu só vi uma parte do dente lá
em cima e eu vi alguém mexendo, tiraram e mexeram lá em cima. Aquilo era
uma miração, mas eu estava aqui cantando, naquele estado que você fica, de
êxtase. Então você tem que cantar, você mira, mas não pode perder o prumo
da sua responsabilidade ali naquele momento. E é uma responsabilidade
muito grande o trabalho do Santo Daime, pois mexe com todos os seus
interiores, tanto físicos como extra-físicos. E nisso, quando terminou o
trabalho eu nem me dava conta do que tinha ocorrido. No dia seguinte, de
manhã, quando me levantei para escovar o dente é que eu vim sacar que
tinha sido curada, não estava sagrando, não estava doendo. Aí eu dei um
sorriso e disse “ Valha-me Deus!”
Vamos agora, ao relato de outro daimista. Ao ser perguntado se havia passado por
algum tipo de cura que atribuísse sua causa ao Santo Daime, Sebastião de Albuquerque nos dá
o seguinte testemunho:
190
Eu tive uma cura, uma cura que ninguém gosta muito de falar não.
Eu estava com um problema de hemorróidas. E sem vergonha de dizer, eu
fui para o trabalho usando absorvente. No meio do trabalho que eu fiz, eu
não senti mais dor e aí voltei para casa daquele jeito, tirei os apetrechos, e
caiu uma bolha no chão, eu fiquei assustado com aquilo, guardei, levei ao
médico, e depois disso não tive mais esse problema, acabou. O médico
comentou que foi um coágulo, que estava causando tudo aquilo.
A Argentina Gisela Daniela Guerrero, de 28 anos de idade, mora desde 1992 no Brasil
e é casada com Demétrius Augustus de Andrade Frederico – filho do Padrinho Jonas e
Madrinha Maria do Carmo – com quem tem um filho de dois anos e nove meses, chamado
Nicolas. Ela relata a cura de seu sobrinho, há cinco anos atrás. Na época ele tinha apenas seis
meses de idade e estava desenganado pelos médicos, teve uma parada respiratória, estava na
U.T.I. :
Ele já estava doente, os médicos já diziam que não havia muitas
esperanças. Ele estava com seis meses.Era um nenenzinho, teve parada
respiratória. Minha irmã estava desesperada. Fui pedir para o Léo Artése –
comandante da Igreja Céu da Lua Cheia - um Daime, eu dei uma colher de
Daime para ele . E ele se curou, hoje está com cinco anos de idade.
Gisela Daniela Guerrero
Além dessa cura, Gisela lembra que o Daime a ajudou a curar seus ciúmes, que
segundo ela era muito excessivo. Mas ressalta que a cura não é do dia para a noite, que o
Daime não traz curas mágicas, a cura é fruto de um processo, resultado dos trabalhos
espirituais que o indivíduo participa , onde vai aos poucos se aprimorando, mundando sua
vida. Sua mãe, uma simpática e carismática argentina de 59 anos - a dona Selva - que nos
intervalos dos trabalhos da Igreja Flor de Luz, vende seus lanches e tortas na cantina da
Comunidade, fala que também ela passou por uma cura muito importante atribuída à esta
191
bebida sagrada, ao Daime. Ela tinha um tumor, um problema do estômago, que foi curado,
segundo seu depoimento, graças a uma colherzinha de Daime, que foi tomando todos os dias.
O tumor teria desaparecido. Além disso, dona Selva fala que hoje aprendeu a ouvir mais as
pessoas, a ser mais calma, antes ela relata que não parava para ouvir as pessoas, hoje ela já
compreende, já convive melhor com todos que fazem parte de seu círculo de relação.
O Daime também é utilizado para ajudar as mulheres na hora do parto.
Há uma tradição, vinda do Céu do Mapiá – Amazonas, de se fazer os partos, de forma natural,
com a condução de uma parteira e com o auxílio da bebida sagrada o Daime. Uma das
principais parteiras do Daime, foi a Madrinha Cristina
73
, que já fez a sua passagem – ou
falecimento – há pouco tempo atrás, em 26 de janeiro de 2005, aos 67 anos de idade. O Daime
, ingerido pela parteira e pela futura mãe, pode auxiliar bastante no acalmar das dores do
parto, assim como ajuda facilitando a saída do bebê. A placenta que se demora a sair, com o
Daime sai mais fácil, segundo a Madrinha Cristina.
Quando o bebê está finalmente nascendo, Madrinha Cristina cantava o seguinte hino do
Mestre Irineu :
SOL, LUA, ESTRELA
Sol, Lua, Estrela
A Terra, o vento e o mar
É a luz no firmamento
É só quem eu devo amar
É só quem eu devo amar
Trago sempre na lembrança
É Deus que está no céu
Aonde está minha esperança
73
Conforme entrevista realizada pela ONG Amigas do Parto – no endereço eletrônico
http://www.amigasdoparto.org.br.
192
A Virgem Mãe mandou
Para mim esta lição
Me lembrar de Jesus Cristo
E esquecer da ilusão
Trilhar este caminho
Toda hora e todo dia
O Divino está no céu
Jesus, Filho de Maria
Poderíamos traçar um paralelo com a descrição de uma cura xamanística citada por
Lévi-Strauss (1991) no capítulo “X – A Eficácia Simbólica” da obra Antropologia Estrutural.
Ao analisar o ritual de cura dos índios Cuna, habitantes da região do Panamá, pôde perceber a
importância do canto do xamã :
O objeto do canto é ajudar um parto difícil.
(...)
O canto se inicia por um quadro de perplexidade desta última
(da parteira) , descreve sua visita ao xamã, a partida deste para a choça da
parturiente, sua chegada, seus preparativos, que consistem em fumigações de
favas de cacau queimadas, invocações, e confecção das imagens sagradas ou
muchu. Essas imagens esculpidas nas essências prescritas que lhes dão a
eficácia, representam os espíritos protetores, que o xamã faz seus assistentes,
e dos quais toma a direção para conduzi-los à morada de Muu, potência
responsável pela formação do feto. ( LEVI-STRAUSS, 1991: p 216)
Neste relato Levi-Strauss descreve a viagem do xamã ao mundo sobrenatural , visando
recuperar o “duplo” da parturiente que fora capturado por Muu e suas filhas. Segundo este
autor, o “caminho de Muu” e a “morada de Muu” – espaços visitados pelo xamã em seu vôo
da alma e expressos em seu canto – não são para os indígenas um itinerário e morada míticos ,
mas a própria vagina e o útero da mulher. O canto assim, talvez não elimine a dor da mulher
em seu parto difícil, mas ordena o caos, faz com que ela compreenda os caminhos e os
193
porquês de seu sofrimento, de suas dores. Algo semelhante realizava Madrinha Cristina lá no
Céu do Mapiá, cantando os hinos, realizando rezas, administrando o Daime, pedindo ajuda
espiritual de Deus, do Padrinho Sebastião, do seu anjo da guarda – tal qual o xamã da etnia
Cuna solicitava auxílio de seus espíritos protetores. Agindo desta maneira, acalmava e trazia
confiança às parturientes, dando sentido às suas dores e tranqüilidade em seus corações.
No processo em que o Daime perpassa ao migrar da região Norte, do centro da
Floresta Amazônica para o Estado de São Paulo, muitas transformações ocorrem. No caso do
parto, grande parte das mulheres acaba preferindo a comodidade de ter seu filho no hospital,
por meio de uma operação de cesariana. Mas abro espaço para citar aqui, o depoimento de
Maria Cecília Frederico Bonfim, que teve seu filho Apoena com o auxílio do Daime, mas
num contexto da medicina ocidental, num hospital. Algo como uma situação intermediária,
que assume as comodidades da medicina tradicional mas sem deixar totalmente de lado a
tradição da floresta, de se utilizar o Daime na hora de se dar a luz:
Eu tomei Daime no meu parto. Eu passei 20 horas de dor até eu
ter o Apoena . Antes de eu ir para o hospital o Saulo, meu marido, me serviu
uma dose de Daime e foi o que me ajudou a segurar minha dor no hospital.
Porque o hospital é aquele ambiente de doença e tudo mais. E no momento
que a mulher vai ter filho, ela fica muito aberta, muito sensível. A gente
percebe tudo, pega tudo, e a mulher fica com depressão. E o que eu lembrei
mesmo foi o hino do Padrinho Sebastião. Eu falei o que eu vou lembrar
agora? “ Sou luz/ Dou luz/ Faço tudo iluminar” E sentia o Padrinho
Sebastião do meu lado.
Maria Cecília Frederico Bonfim.
César nos fala de uma cura que obteve, atribuída ao Santo Daime, isso quando tinha
15 anos, portanto no início de sua vida de daimista :
194
Eu tinha um problema sério na minha mão, por causa do ácido úrico.
E rachava minha mão, às vezes vertia sangue. E teve um trabalho de Daime
que a gente fez em Sorocaba, que eu estava perto de uma piscina . Eu passei
muito mal nesse trabalho. E de repente eu senti minha mão formigar muito,
parecia que dormindo, assim... E aí veio uma voz na minha cabeça, e era
algo muito diferente, porque esta voz falava em castelhano, falava em outra
língua e disse para mim por a mão na piscina, aí quando eu pus a mão na
piscina, parou o formigamento. E também teve imagens de uma miração,
nesta minha cura. Eu vi um cruzeiro gigante e um livro aberto no pé do
cruzeiro e um monte de gente da espiritualidade ao redor do cruzeiro, que
eram as entidades do Daime, o Padrinho Sebastião, o Mestre Irineu. Eu até
recebi um hino que estava escrito neste livro. O hino falava de uma casa
dourada: “Olha a casa dourada/ Com o seu jardim dourado / O Padrinho e a
Madrinha com a sua Rainha/ Com os seres celestiais/ E com Deus da
criação”. Fala disso tudo que eu vislumbrei nesta miração. Eu tinha 15 anos.
E depois disso, melhorou muito e nunca mais tive este problema na mão.
César Eduardo Cardoso.
Neste caso, a cura de um problema físico, veio acompanhada de uma miração num
contexto espiritual ou religioso, onde estavam presentes os principais símbolos da
Cosmologia Daimista – o Padrinho Sebastião, o Mestre Irineu, o Santo Cruzeiro – e tudo
culminou com o recebimento de um hino. A cura no Santo Daime, geralmente está
contextualizada na religião, nos símbolos e entidades sagradas desta doutrina. E envolve
claro, o grau de fé e religiosidade de cada fiel. Ressalto também, que César lembrou do
episódio da cura de sua mãe – hoje com 55 anos - com o Santo Daime. Ela teria sofrido uma
cura muito profunda e teve neste trabalho uma limpeza muito excessiva, ou seja, vomitou
muito; foi para ela um ritual pesado, difícil :
A minha mãe tinha um problema com os ovários e o útero. Tinha a
barriga toda inchada. Depois deste trabalho de Daime que ela fez, que foi o
primeiro e o único, foi surgindo na sua barriga, na parte lateral, uma
inflamação, como se fosse um grande “furúnculo” , feito uma “montanha”
que foi crescendo, crescendo... Chegou um dia, que ela espremeu aquele
“furúnculo” e saiu pus e, junto com essa pus, um cordão cirúrgico, que foi,
segundo ela, do último parto que ela fez, cordão que ficou em sua barriga
195
todo esse tempo. Desde então ela não toma mais Daime, pois acredita que já
alcançou sua cura necessária. E é muito agradecida ao Daime por esta cura.
César Eduardo Cardoso .
Às vezes a cura propriamente dita pode não ocorrer, como pude compreender através
da entrevista com Alexandre Frederico. Ele narrou-me a história de uma senhora, portadora de
um câncer que provavelmente a levaria a morte, mas que desejava beber o Daime para ao
menos entender o que estava acontecendo com ela. Alexandre, então, deu o Daime para ela
tomar. Esta senhora não se curou do câncer, todavia pôde compreender o porquê de sua
passagem, pôde entender o que estava acontecendo com ela naquele momento. A
compreensão, trouxe o ordenamento interno, o fim do caos. Compreendendo seu sofrimento,
ela encontrou as condições necessárias para vencer sua angústia interna. O Daime ofereceu a
ela uma passagem - um final de vida – de forma mais serena e tranqüila.
Agora, vejamos o caso de Anaílton, que chegou há pouco tempo do Céu do Mapiá, lá
da Amazônia, onde foi criado. Em sua fala, considera o Daime fundamental na sua vida,
principalmente pelo fato de ter curado sua mãe, que hoje está com 45 anos de idade, e por tê-lo tirado da
“rebeldia”:
O Daime é muito importante. Rapaz, ele é muito útil na minha vida.
Ele trouxe a cura da minha mãe, trouxe a minha família que é uma escola
espiritual . A minha mãe tinha um câncer no ombro. E eu tenho também
lembranças muito boas, positivas, do Céu do Mapiá , onde nos reuníamos
todo os dias as seis horas da tarde, mesmo quando não tinha os trabalhos
oficiais, a gente fazia a oração. E a vida em Comunidade é muito legal, é
tudo calmo , tranqüilo, porque é uma comunidade só religiosa mesmo, foi
criada só com esse objetivo. E eu lembro de uma miração que eu tive, que
foi muito importante para mim mesmo, foi minha cura. Porque eu era muito
rebelde, queria saber só de brincar, não levava os trabalhos a sério, não
queria saber realmente o que eram os trabalhos. Aí um dia que eu tomei o
Daime, ele me chamou e disse assim : “ A coisa aqui é assim, a coisa aqui é
séria. Isso aqui não é para brincadeira não.”
196
Anailton veio para o Céu de Midam – em Piedade – junto com uma comitiva do
Padrinho Alfredo Gregório de Melo. Por algum acaso, a comitiva acabou indo embora e
“esqueceu” Anailton por lá. Para encurtar a história, Anaílton gostou tanto da comunidade ,
que passou a morar lá, casou-se no dia quatro de março de 2007 com Lúcia Santos de
Almeida, com quem teve recentemente dois filhos gêmeos. Ele se adaptou a nova vida no
Estado de São Paulo, e hoje trabalha com manutenção de computadores.
Falaremos agora de Kelmir, atual comandante da Igreja Flor de Luz, que relata sua
cura ao passar pelo Santo Daime :
A cura que eu passei no Daime é a cura de quem se entrega, de quem
quer se curar mesmo, porque o Daime, como em qualquer religião, você só
obtém a cura quando você quer . Não adianta as pessoas tentarem te ajudar e
você por conta própria não quer... Então a minha aconteceu , quando eu
passando por problemas, dificuldades, com drogas, então quando eu cheguei
no Daime não tinha nem confiança na minha própria pessoa, não tinha
credibilidade comigo mesmo. Então eu cheguei no Daime, e meu pai
sempre me acompanhando, sempre dando orientação que tinha que agüentar
a peia, porque aquela era uma lapidação que eu estava tendo. Para alcançar a
cura mesmo, a cura da matéria, da carne que já estava ali toda contaminada
com tanta coisa deste mundão aí fora .
E comigo aconteceu que depois de três anos que eu já estava
fardado, já aqui no Céu de Midam, já sabia alguma noção de Daime, já tinha
algumas responsabilidades da doutrina, depois de algum tempo, e aí teve um
trabalho, um trabalho da casa e, naquele trabalho eu fui tomar meu Daime e
o Padrinho me chamou ali no altar , que ele gostava de ficar sentado ali do
lado dos homens , no altar, aí falou que eu podia tomar quanto Daime
quisesse naquele dia , porque ele tinha visto que minha cura tinha vindo, e
era naquele dia . Aí eu fui tomando Daime, segundo ele calculou, eu tomei
um litro de Daime naquele trabalho. Então eu obtive realmente a minha cura
ali . Eu tive um acerto final, um ajuste final, com a história, com o passado, o
que era que eu queria mesmo. Porque lá dentro, lá no fundo,ainda tinha algo
escondido , que nem eu sabia . Mas o Daime sabia. Então o Daime foi lá
buscar, mostrou, e perguntou para minha própria pessoa. E eu caí no chão,
mas em nenhum momento eu fiquei inconsciente, em nenhum momento eu
deixei de compreender o que estava acontecendo . Eu só não tinha força para
pedir ajuda, para chamar alguém, porque aquilo era uma coisa minha com
meu eu superior lá dentro de mim e que estava pedindo uma resposta final .
Porque a qualquer momento aquela coisa escondida dentro de mim poderia
197
de novo tomar conta do meu aparelho, da gente, e fazer voltar ao passado, a
praticar coisas erradas E assim eu fiz essa viagem lá nas trevas, fiquei
deitado no chão e aí do meu lado acompanhava uma luzinha bem
pequenininha . E aquela luzinha me mostrando aquele mundão que eu tinha
andado, que eu pensava que estava sanado , mas estava ali guardado,
esperando uma brecha para predominar de novo, e aí eu teria que escolher
se eu queria aquele vazio, onde não havia nada, nada ... ou se eu iria
acompanhar aquela luzinha ali que era o Daime . Foi o meu aceitamento , ou
se era só conversa fiada ali.
Como podemos notar, a cura de Kelmir representou seu compromisso em prosseguir
com firmeza nos caminhos doutrinários do Santo Daime, em abandonar o chamado “mundo
de ilusão”, abandonar as drogas e as incertezas.
Já a daimista Maria Cecília, 25 anos – filha de Maria do Carmo e Jonas Frederico –
considera a cura no Santo Daime como uma mudança nas atitudes e nos pensamentos do fiel,
conforme podemos perceber na fala a seguir :
A cura para mim é na minha forma de pensar e agir. Saber perdoar
as pessoas, saber relevar as coisas, porque amar é perdoar. Eu não gosto de
ter nenhum desentendimento com ninguém, eu gosto de deixar tudo
esclarecido. Eu quando eu sei que eu errei, eu não tenho vergonha de pedir
desculpas para o irmão e reconhecer que eu errei. Esse é meu lado da cura,
de ter compreensão de não ter mágoa com ninguém. Se não se grava no
espírito.
As curas costumam se manifestar como limpezas necessárias, na maioria das vezes
ocorrendo o vômito e outras formas de externar o mal que se carrega dentro de si. Muitas
vezes esta limpeza necessária vem acompanhada de certo sofrimento, ou seja, a denominada
peia.
A senhora Berenice, de 66 anos, professora de Biologia aposentada, narra da seguinte
forma sua cura:
198
Olha, a minha história foi com o Alexandre. Eu conheci o Daime
porque eu quebrei a minha perna, e aí eu estava tratando com os dois
melhores especialistas do Estado, com o professor de ortopedia da USP e o
professor de ortopedia da Universidade Paulista. Aí um falou ‘”você precisa
quebrar de novo a perna e eu vou tirar um pedaço do osso de seu quadril”.
Porque já fazia seis meses que estava quebrada. Aí o outro falou que eu teria
que usar aquela “gaiola” externa e teria que quebrar a perna de novo... Então
veio uma luz. Eu conhecia um amigo que fazia Tai Chi e que tomava Daime.
Daí ele me deu o telefone , eu falei com o Alexandre. E aí, a partir daí,
durante um mês , que os médicos me deram para decidir o que eu iria fazer.
Aí eu falei para o Alexandre, que ele teria vinte dias para curar minha perna.
E o Alexandre três, quatro vezes por semana me dava Daime, fez curativo,
acupuntura, fez tudo o que ele sabia da vida dele de daimista. E
conseqüência, daí a vinte dias eu voltei ao médico e aí eu não precisei
quebrar ela de novo.
Este caso é ilustrativo de que o Santo Daime acaba se configurando como uma forma
de terapia alternativa à medicina tradicional. Além disso há uma associação do Santo Daime
com outras práticas alternativas de tratamento como é o caso da acupuntura ministrada por
Alexandre Frederico a Berenice.
Aldori Barbosa – que ocupa a função de fiscal na maioria dos trabalhos realizados na
Igreja Flor de Luz - também relata sua cura :
Sempre está acontecendo cura, a gente não sabe o que está
acontecendo por dentro das pessoas, mas sempre as manifestações estão
presentes. Eu trabalho na fiscalização e sempre vejo que as coisas estão
acontecendo, tem que saber lidar, e sempre ter amor, paciência, até que a
pessoa se transmute pelo Daime mesmo. Como a gente também se
transmutou. Eu usei droga, bebia, brigava, estava no mundo lá fora, digamos.
Agora eu tenho um segmento espiritual, trabalho do mesmo jeito, mas eu
tenho um caminho espiritual para seguir. Estou recebendo hinário de terreiro
(60 hinos) Conhecendo a mim mesmo. Estou numa escola de auto-
conhecimento. Você conhece o macrocosmos e a si próprio, porque está tudo
contido numa coisa só.
199
O Daime tem assim este papel de transmutar o indivíduo, livrá-lo das ilusões do
mundo material – das drogas, dos vícios, dos conflitos – e oferecer uma nova opção de vida,
do caminho espiritual e do auto-conhecimento. O daimista passa a se perceber como parte
integrante do universo, do macrocosmos e tem a possibilidade de compreender melhor o seu
próprio ser interior, seus caminhos e descaminhos. Fazendo isso, compreende o porquê de
seus males e doenças e pode visualizar se não a cura, ao menos a compreensão do porquê
sofre.
Vale lembrar que já foram realizados estudos farmacológicos que, segundo o
antropólogo LUNA ( 1986), levantam a hipótese desta bebida possuir propriedades emética,
antimicrobiana e anti-helmíntica. Alguns daimistas, como é o caso de Celso Vendramini,
conforme seus relatos dados a mim, utilizam o Daime como remédio : como colírio, como
cicatrizante e anti-bacteriano nos machucados da pele, e até administra Daime para seus cães,
caso estejam doentes. É claro que estas concepções de uso do Daime, envolve também a fé de
Celso Vendramini nesta bebida como um ser divino, e sua própria crença e fidelidade a
Doutrina do Mestre Irineu, pessoa de que ele faz sempre questão de falar com muita emoção.
Segundo Labate as curas relatadas mereceriam um diálogo entre a medicina e a
antropologia . Lembrando de Lévi-Strauss ela afirma que as curas atribuídas ao Daime:
(...) mereceriam uma abordagem colaborativa entre antropólogos e
médicos, que talvez chegassem à conclusão que substâncias como o chá
possuem não apenas ‘eficácia simbólica’ (...) mas também ‘eficácia
farmacológica’.” (LABATE, 2004, p. 319)
200
Miração
As mirações podem ser definidas como o estado de êxtase provocado pela ingestão do
Daime, representado por visões, percepções, insights e outros sinais de caráter psíquico ou
religioso. Elas são compreendidas pelos fiéis como a revelação de uma verdade, como uma
mensagem que vem do mundo astral – a dimensão espiritual e verdadeira da existência. Por
isso aqueles que recebem uma miração em um trabalho do Santo Daime atribuem valor
significativo ao seu conteúdo e, não raro, sentem-se profundamente motivados a aplicar os
ensinamentos recebidos no seu dia a dia, podendo levar a transformações em sua vida.
Segundo Clodomir Monteiro da Silva (1983) a miração pode ser considerada um processo
de transcendência e despoluição. Ela segue três etapas, assim divididas:
1- Estase – Momento que há a fusão entre corpo, mente e arte. É um passo para a limpeza e
para a ordem. Ocorre uma desorganização das atividades orgânicas do corpo (circulação
do sangue, pressão sanguínea, humores do corpo) e a uma modificação rítmica da
dimensão psíquica do indivíduo;
2- Êxtase - Uma estranha força começa a se manifestar no corpo, como um “balanço” , o
sujeito pode entrar em transe e conversar com outros seres. O controle nervoso pode ser
201
fragilizado, há pessoas neste estágio que podem vivenciar a própria morte. As palavras
dos hinos e a segurança e conforto do grupo são fundamentais para trazer calma ao
indivíduo.
3 -A Miração propriamente dita, que pode apresentar visões agradáveis, primores, viagens a
lugares conhecidos ou desconhecidos, igrejas, ambientes celestiais, visão de jardins, flores,
palácios, etc.
Iremos agora ilustrar estes fatos através da apresentação de algumas mirações
significativas para os daimistas que foram entrevistados nesta pesquisa.
Muitas vezes, a miração aparece como imagens de figuras bíblicas como Jesus
Cristo, a Virgem Maria, São José, etc, tal como podemos notar nesta fala de Léo Artése,
comandante da Igreja Céu da Lua Cheia, em Itapecerica da Serra.
Em 25 de dezembro de 1992, tive minha miração mais significativa,
com Jesus. Nesse momento recebi um hino chamado “Divina Miração” :
“Aconteceu numa noite de Natal
Envolto na presença da Divina Luz
Que recebi o maior de todos os presentes
Eu vi o Santo Rosto de Jesus”
Algumas vezes pode acontecer da miração vir acompanhada do recebimento de um
hino, como foi o caso, e isto marca de forma mais sublime e sagrada este momento. Outra
miração semelhante, ou seja, com a mesma temática, ocorreu com Roberto Palmonari durante
um trabalho de feitio, conforme podemos observar a seguir:
Foi no Feitio, que eu tive, né ?! Eu estava ali ajudando, e tal, e me
deram acho que é a cuba, quando desce o latão de Daime, para correr e
filtrar o Daime ... me deram um bombril, eu queria limpar aquilo, mas limpar
assim com uma ansiedade tão grande, com uma vontade tão grande de
limpar, que eu comecei a limpar, a limpar, eu passava aquele pano, e daqui a
pouco comecei ver o corpo de Cristo ali em cima ... Me emocionou muito,
que é muito forte. Eu sai chorando. Aí eu conversei com o Nelsinho , o
Celso Vendramini, eles disseram: olha toma o Daime, e agradece, porque
202
você é um privilegiado, isso não é para qualquer um. Foi uma visão muito
linda, eu vou lembrar para o resto da minha vida. Mexeu muito fundo,
naquele momento acho que curou todas as feridas, todos os traumas que eu
tive.
Ao limpar a “cuba” – utensílio de alumínio utilizado para a filtração e para transferir o
Daime da panela para outros vasilhames – Roberto percebeu a presença do corpo de Cristo
frente a seus olhos. A emoção que lhe acometeu foi incomensurável, conforme seu relato, e
mexeu com seus traumas e feridas, conforme afirma. Parece que ao limpar a cuba,
simultaneamente limpava a si próprio, livrando-se de malefícios, conflitos e traumas não
resolvidos. A miração teve na figura de Cristo a sinalização da cura de Roberto. Importante
destacar que o próprio Daime na perspectiva dos daimistas é representado como o sangue de
Cristo, e, precisamente por isso, um instrumento de cura.
Juliana Santos descreve uma miração que teve em um trabalho com o Daime na Ilha
do Cardoso, em Cananéia :
O Sol estava nascendo, eu tomei o Daime à noite, passei a noite
fazendo o trabalho e vi o nascer do Sol. E eu me senti totalmente interada
com o Sol , eu entrava no Sol, era os raios do Sol. E eu estava num momento
de miração do trabalho em que ele tem várias fases, a fase em que você faz
limpeza, que você chora, que coisas do seu subconsciente vai à tona , que
passa mal, e eu estava nesse momento passando mal, quando o Sol nasceu ,
daí quando ele nasceu ele me acalmou totalmente, senti o calor e me via no
Sol, e aí eu vi que estava curando aquela mágoa , que era um problema de
relacionamento, e curou assim com o Sol.
É comum também que as mirações assumam um caráter de integração com elementos
da natureza. Na narração de Juliana temos a presença do Sol, que ao nascer vai trazendo
esperança e com seu calor cura as suas mágoas e seus problemas de relacionamento. Mais
203
uma vez notamos que as imagens, sons e outras percepções que se expressam na miração são
sentidas profundamente pelos daimistas e muitas vezes motivam transformações e curas.
Jaqueline Aparecida, já na primera vez que conheceu o Santo Daime, vislumbrou uma
miração muito significativa, porque reconheceu – isto posteriormente – neste trabalho
espiritual o desvendar de sua própria essência. Foi um ritual realizado na mata, no ano de
2002:
Olha, algo que foi muito forte, foi a primeira miração que eu tive. Foi
com as velas de guarda . Eu olhei para a vela acesa e eu vi uns símbolos
indianos. E depois eu fui entender o que eu vi. Era assim, um elefante, e
havia também um ser lá com a flauta e aquelas várias mãos . E na época eu
estava lendo um pouco sobre coisas indianas, então talvez tenha influenciado
um pouco. Mas foi uma miração muito real. Aí eu passei mal, porque entrou
aquela coisa da razão não aceitar . Porque, nossa, como assim?! Como é que
eu estou vendo isso ?! E eu na hora fiquei sem entender, mas foi uma
sensação muito forte, muito real. Mais real que o sonho, porque geralmente
os sonhos são muito reais para nós. Mas depois eu fui entender porque eu
tive esta miração. Eu acho que tem a ver com a minha essência, porque
depois eu fui descobrir que o Daime vai bem na essência da pessoa. Porque
ele trabalha o conhecimento, então eu tinha que conhecer um pouquinho
daquela história porque tinha a ver com a minha história .
Jaqueline Aparecida Branco de Moraes.
Assim, para Jaqueline, o Daime representou uma bebida de auto-conhecimento, é o
vinho sagrado que tem como objetivo mostrar para cada um que o procura, sua própria
essência, ou seja, qual é seu sentido na vida, sua história nesta Terra. O Daime traz mirações
que te dizem quem você é, é assim uma “planta professora” ou uma “planta de
conhecimento”.
Lúcia Santos de Almeida, 20 anos, tomou Daime pela primeira vez em 1994 no Céu
de Midam, e na segunda vez na extinta Igreja Flor das Águas, que se localizava em Embu das
Artes, vejamos portanto seu testemunho:
204
A primeira vez que eu tomei o Daime, eu tinha 6 aninhos , foi aqui ,
me sujei toda de barro , eu brincava de escorregador aqui nesse morrinho.
Era a maior farra... A primeira vez eu vim aqui, na segunda vez eu fui no
Flor das Águas, já com o Padrinho Alfredo, já com um monte de gente, e eu
não era nem fardada e eu fui lá. E voltei prá cá e comecei a só vir aqui. O
Flor das Águas era em Embu das Artes, a antiga igreja que era do Glauco,
era do Léo, era de todo mundo numa só. Falando da minha experiência,
posso dizer que criança não tem peia, apuro, essas coisas. A criança não
passa mal, essas coisas a gente só começa a sentir depois que cresce :
encosto, cansaço... criança não tem isso. Mas criança também não faz uma
cara tão boa, com o gosto, que não era tão bom... O gosto é amargo, a
criança faz aquela cara , assim... Eu lembro que nas miraçãoes eu não via
metade das pernas . Eu lembro até hoje, eu via todo mundo só da cintura
para cima. Eu pensava: “Meu Deus , o que que é isso?!” .E Eu me
assustava. Até você ir se acostumando com a força. As pessoas que chegam
no Daime elas já são mais velhas, maduras . Então tem uma dificuldade para
se adaptar . Criança também tem uma dificuldade, mas ela vai se
acostumando com a força. Aí eu fui crescendo, fui sentindo mais força,
segurando mais força, e você vai levando, aprendendo a segurar e ficar
firme.
As crianças que também participam dos bailados com o Santo Daime, percebem de
uma forma distinta os efeitos da bebida sagrada em relação aos adultos. Para elas tudo se
torna uma grande festa, como pode ser facilmente observado nos rituais : elas têm liberdade
para correr, brincar, circular livremente pelo salão durante o ritual . Enfim, não sofrem -
segundo as observações realizadas nos rituais e segundo o depoimento de Lúcia. A miração
para elas, representa a surpresa, a descoberta de um mundo novo, cheio de cores , alegrias e
brincadeiras. Não parece haver espaço para sofrimento, e o trabalho nunca é pesado para as
crianças, ou seja, elas não são atingidas pelas chamadas “peias”. A criança aparece para os
daimistas como símbolo da inocência, da ausência de culpas e pecados :
205
A primeira vez que eu tomei o Daime, eu era criança, eu tinha oito anos. Eu
mirei muito, mirava muitos desenhos, conhecimento de doutrina eu ainda
não entendia nada. Mirava muitos desenhos que saiam da parede, muitos
peixes, mar...Mirei tanto que, como era um trabalho de crianças eu nem
pude aproveitar a festinha, estavam lá as crianças brincando e eu lá no colo
da minha mãe. A minha mãe me disse, eu não lembrava, que na primeira
miração que eu tive e contei para ela eu vi que as pessoas não morriam, que
não tinha a morte, que as pessoas nasciam do outro lado, que a gente ainda
tinha uma outra vida para viver.
Maria Cecília, 25 anos
A mãe de Lúcia, Cecília Santos descreve da seguinte forma uma de suas mirações
mais significativas em toda sua experiência como daimista:
A primeira miração que me marcou foi numa Concentração . Eu mirei
com Nossa Senhora, foi tão lindo aquilo, muito lindo aquela miração, assim
o cosmos... E eu não sabia se ela era de cristal, o que que era... Era uma
coisa, era um alento muito lindo e me fazia derramar lágrimas , aquela
miração era o amor dela , aquela luz era como se ela estivesse me
resgatando, não que eu tenha visto muita coisa, não vi além dela, mas era
como se você estivesse sendo acarinhado , eu nunca me esqueci disso.
A figura de Nossa Senhora é um imagem que aparece freqüentemente nas mirações
descritas pelos daimistas. No relato acima fica evidente os sentimentos emoção, as lágrimas, o
amor e o carinho, ou seja, a miração não envolve apenas a visão mas interfere com toda a
sensibilidade da pessoa, o que acaba por torná-la algo inesquecível e de muito valor para a
206
vida do fiel. Roberto Palmonari também relatou uma miração que teve com a Virgem Maria, e
ressalta a mesma emoção vivida por Cecília:
Ao ouvir o hino : “Quem procurar essa casa / Quem aqui nela chegar
/ Encontra com a Virgem Maria / Sua saúde ela dá” do Mestre Irineu, eu tive
uma miração com a Virgem Maria. Parece que não era a virgem que estava
naquele quadro, era minha mãe, numa luz amarela que envolvia tudo. Cada
vez que olhava para ela, assumia um face diferente. Até coloquei nas capas
do hinário e em casa a imagem dela.
Já a esposa de Roberto, Felícia, relata uma miração em que o Daime dava-lhe
conselhos – através das imagens – sobre seu corpo e sua saúde:
Só tem uma assim , que eu nunca vou esquecer . Eu estava muito
gulosa, comendo demais . Eu tive uma miração com um porco, que foi
crescendo , foi crescendo , crescendo... Eu começava a me lembrar, comecei
a me sentir mal. Porque eu sento assim e não consigo comer um pão só,
tenho que comer dois , três...
O Daime – a bebida sagrada – como elemento curador do corpo, da mente e do
espírito contribui para a evolução espiritual , segundo os fiéis, iluminando os caminhos –
passado, presente e futuro – que se fundem nas mirações vivenciadas pelos indíviduos em
êxtase. Sua luz ilumina, traz conhecimento, amplia a consciência – instrui na busca do
equilíbrio entre o eu inferior e o eu superior. Dissipa as ilusões do mundo terreno e ordinário,
mostra a vida verdadeira, que é a vida espiritual , a realização plena do ser divino que há em
cada um de nós – segundo a perspectiva do adepto do Santo Daime. Esta busca acaba se
207
manifestando em mudanças bem visíveis no dia a dia e cotidiano dos fiéis, quanto estes
buscam orientar sua nova vida e conduta de acordo com os preceitos éticos indicados pela sua
doutrina.
208
Considerações Finais
No decorrer deste trabalho, pretendi trazer para a luz do debate, qual o papel das
Igrejas do C.E.F.L.U.R.I.S. (Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu
Serra) , também conhecidas pela denominação Santo Daime, no quebra–cabeça desta
modernidade e como o indivíduo urbano daimista pode ser compreendido , ou seja, que
respostas esta linha religiosa oferece para este sujeito em crise, que saídas para as
ambivalências de nossa época podem ser encontradas nos rituais sagrados em que se consagra
uma bebida enteógena – a ayahuasca, rebatizada por Irineu Serra pelo nome de Daime – onde
se cultua toda uma “ Corte Celestial” ao som da música, dos cânticos e à luz da miração
provocada pela ingestão do “ vinho das almas” .
Na pesquisa participante que realizei, deparei-me com indivíduos , que
anteriormente se viam perdidos ante às ambivalências da Modernidade e que hoje, apoiados
pela religião e pela bebida de mesmo nome – o Santo Daime – acreditam ter encontrado um
conforto para suas angústias e para o sentimento de impotência que vivenciavam. Arrisco-me
a dizer que - na multiplicidade de caminhos religiosos e mágicos, dos diversos símbolos
sagrados abundantemente encontrados na rica religiosidade brasileira – estas pessoas foram
atraídas pelo Santo Daime devido ao seu “ecletismo evolutivo”, nas palavras do antropólogo
Groisman (1999). Esta expressão teórica - como ficou claro no decorrer desta análise
antropológica - representa a convivência harmônica entre diversos sistemas cosmológicos : a
209
umbanda, o esoterismo, o espiritismo kardecista, assinalando, desta forma a especificidade da
concepção daimista do mundo espiritual. Ou dito de outra forma , estes indivíduos urbanos se
viram atraídos pelas “Cosmologias em Construção” , conceito criado por Vladimyr Sena
Araújo (1999) - quando este pesquisador realizava uma análise da Barquinha, uma das
principais religiões ayahuasqueiras do Brasil, localizada em Rio Branco- AC . Apesar de Sena
Araújo utilizar-se desta construção teórica especificamente para a Barquinha, considero tratar-
se de um conceito que também se adequa perfeitamente ao universo simbólico e cosmológico
do Santo Daime (CEFLURIS) , que sempre se abre a novas contribuições religiosas e místicas
de diversas origens – principalmente nas Igrejas Daimistas de São Paulo, como se pode
perceber através da leitura desta dissertação. Este é um fato que considero positivo na
Doutrina Daimista, de se abrir democraticamente a novas perspectivas de religiosidade,
abarcando a própria riqueza de símbolos sagrados que se fizeram presentes em toda formação
da fé e da religiosidade brasileira.
Vislumbro assim, que a existência e dinâmica sagrada das igrejas daimistas no Estado
de São Paulo fazem parte deste contexto, desta própria crise do paradigma da modernidade.
Ao peregrinar nos caminhos destas teias simbólicas, pude observar a densidade de
significados religiosos e existenciais em três igrejas de São Paulo , quais sejam: Céu de
Maria – localizada em Osasco - , Céu da Lua Cheia – em Itapecerica da Serra – e Céu de
Midam – em Piedade . Nelas observei, realizei anotações, fotografei e, principalmente -
participei ao lado do conjunto de fiéis, de rituais em que se fazia uso de uma substância
enteógena - expansora da consciência – da família daquelas “plantas para o conhecimento” –
nas palavras de Ênio Staub, secretário nacional do CEFLURIS e comandante da Igreja Céu do
Patriarca em Florianópolis :
210
Essas plantas não podem ser chamadas de plantas de poder. Elas
devem ser plantas para o conhecimento. Não devem ultrapassar o humano,
não devem servir para alimentar nosso ego, nosso orgulho, nosso poder .
Não devemos fazer um uso inadequado ou abusivo destas plantas, devemos
utilizá-las de forma humilde, alegre. Devemos abrir os olhos para que elas
possam nos fazer enxergar as profundezas da nossa alma. Pois, no final das
contas, todos nós estamos começando , pois o caminho é longo. Não importa
se você toma Daime há dez anos ou há um mês, o percurso espiritual e de
auto-conhecimento é tão longo que, na verdade todos estamos no mesmo
patamar. Devemos ter sinceridade para estender as mãos, para tomar a
medicina, saber dos limites. Estas plantas existem para o nosso
conhecimento. O conhecimento que nos traz uma alegria e preenche tudo o
que nos falta, por esta razão, é necessário sempre respeitá-las e a elas
agradecer.
Nestas Igrejas representativas do Santo Daime no Estado de São Paulo, pude perceber
justamente isso – um esforço para fazer deste vinho das almas um uso racional, respeitoso,
identificando em primeiro lugar o humano que nós somos – e a união fraternal que os fiéis
construíram entre si - e qual o papel, os objetivos legítimos e os limites das “plantas para o
conhecimento” . Por isso concordo com as palavras de Enio, o Daime não é uma planta de
poder, mas sim fruto da união de duas “plantas para o conhecimento” – o cipó jagube e a
folha rainha.
Considero importante acrescentar- nessas considerações finais –que uma das
principais justificativas desta empreitada etnográfica rumo ao conhecimento do Santo
Daime em São Paulo, era contribuir para a convivência e diálogo mais harmônico
entre a sociedade como um todo, entre outras religiões, e até entre outras linhas – além
do CEFLURIS – que fazem uso da ayahuasca. Este diálogo, creio, se edifica através
do conhecimento produzido por trabalhos acadêmicos como este. Segundo o
antropólogo Walter Dias Júnior, as religiões que fazem uso de uma substância
211
enteógena - ou uma droga alucinógena, na limitada visão de muitos sujeitos e até da
própria imprensa
74
, suscita veementes críticas da sociedade cristã tradicional :
Esse fato paira no imaginário nacional como verdadeira ameaça aos
pilares da cultura cristã ocidental; como catalisador do medo ao
desconhecido, ao estranho, ao exótico, por sua suposta possibilidade de
ameaçar a ordem e corromper os bons costumes.
(DIAS Jr., 1994, P.37)
No intuito de contribuir para romper esta “ameaça imaginária” que muitos
indevidamente vêem no Santo Daime, é que escrevo estas linhas. Pois como lembra Ênio
Staub :
É necessário assim, respeito pelas diversas maneiras de rezar, pelos
diversos desenhos, que são rios que deságuam no mesmo oceano.
Reconhecer que o coração do universo é o coração da Terra. Mas, de certa
forma, é até bom que a humanidade não se dê conta da importância dessas
medicinas, dessas “plantas para o conhecimento” , pois nos deixa em paz
para realizarmos nossas cerimônias religiosas à vontade.
Espero também que este pesquisa possa ter preenchido as lacunas existentes sobre o
conhecimento teórico do Santo Daime no Estado de São Paulo . Busquei, neste trabalho,
traçar os caminhos e descaminhos desta linha religiosa na vida urbana dos indíviduos de São
Paulo. Procurei interpretar seus discursos, seus símbolos, o sentido existente na
intersubjetividade destes sujeitos. Almejei, de forma mais detalhada , compreender as
singularidades da experiência religiosa dos daimistas da Comunidade Céu de Midam e da
Igreja Flor de Luz. Creio que tive algum êxito, ao descobrir as principais particularidades e
densidades próprias desta comunidade religiosa.
74
Vide, por exemplo reportagens da Revista Veja – como a edição nº 1666 – na matéria intitulada “Barato
Legal” . De autoria de Ricardo Galhardo vemos por exemplo o preconceito abertamente escancarado:
“ Essa gente diz que a ayahuasca, amarga como o diabo, permite que se tenha contato com uma dimensão divina
e lorotas do gênero. Seria uma bizarrice sem importância não fosse um indicativo de como as coisas funcionam
no Brasil.”
212
Vou concluindo estas considerações finais ressaltando que, na perspectiva de Geertz :
A religião pode ser uma pedra lançada na terra; mas deve ser uma
pedra palpável, e alguém deve lançá-la.
( GEERTZ, 2004, p. 17)
A religiosidade que presenciei no convívio entre os daimistas de Piedade, fez-me
entender a importância deste fenômeno social, da solidez deste fato – dos resultados
palpáveis que o Daime e os trabalhos espirituais trouxeram - na vida, no dia a dia, nas
transformações e processos de cura – enfim, do reencontro com sua essência e na busca
incansável de sanar a “fragmentação da alma” própria de nosso tempo.
Neste estudo que fiz sobre esta linha religiosa e suas cosmologias , compreendi a razão
das palavras de Geertz :
Quaisquer que sejam as fontes últimas da fé de um homem ou grupo
de homens, é indiscutível que ela é sustentada neste mundo por formas
simbólicas e arranjos sociais. O que uma religião dada é – seu conteúdo
específico – está incorporado nas imagens e metáforas que seus seguidores
usam para caracterizar a realidade (...) Mas a carreira de uma tal religião –
seu curso histórico – repousa, por sua vez, sobre as instituições que colocam
essas imagens e metáforas à disposição daqueles que as empregam. (idem,
p 16-17 )
No trecho acima, Geertz reafirma a importância e o papel dos símbolos no campo
religioso, deixando claro o processo dialógico que existe entre a Religião – como instituição e
detentora das imagens e metáforas para a compreensão do mundo – e os seus membros –
atores que nas suas interações sociais utilizam e criam os símbolos sagrados, forjando um
ethos e uma visão de mundo particular. No decorrer da etnografia por mim realizada no Céu
213
de Midam, nas entrevistas e conversas com daimistas de outras Igrejas, pude constatar as
tranformações inevitáveis que o Santo Daime sofreu ao se transportar do centro da floresta
amazônica para o centro da vida urbana e econômica do país. Nas falas dos entrevistados, na
descrição dos rituais do Daime em São Paulo e em minha análise antropológica , busquei
retratar estas mudanças, seu alcance, as situações conflituosas para que elas se efetivassem ou
perecessem.
Guiados simbolicamente pela consagração do Daime – este vinho sagrado tão
especial e misterioso – foi possível adentrar em todos estes mundos, universos e dimensões –
que metaforicamente representam as cosmologias vivas no imaginário da irmandade daimista.
Entendemos que esta chave – chá que faz ver, nos ensinamentos do Padrinho Jonas Frederico
– pode nos conectar com diversas egrégoras. Conhecemos com ele os significados da
chamada “Egrégora do Comando Estelar”, do “Comandante Daron” . Averiguamos o
conteúdo das meditações na linha do gurú indiano Osho, e assim aprendemos que existe uma
ponte entre o Ocidente e o Oriente , construída pelos daimistas de Midam. E que esta ponte
foi estendida até a Alemanha, também como resultado da dedicação deste “povo do Padrinho
Jonas” àquilo que acreditam . E de sua fé fazem a matéria-prima na construção de um
cotidiano que transcenda as fragilidades desta caótica realidade pós-moderna em que
vivemos.
214
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Espirita Brasileira, 1958.
______________. O Livro dos Médiuns :Guia dos médiuns e dos doutrinadores. . São
Paulo : Lake, 1973.
LABATE , Beatriz. Caiuby e ARAÚJO, Wladimyr Sena (orgs.). O uso ritual da
ayahuasca. Campinas, Editora Mercado das Letras, 2002.
LABATE , Beatriz. Caiuby . A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos.
Campinas, Editora Mercado das Letras, 2004.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O Feiticeiro e sua magia.In: Antropologia Estrutural. Rio de
Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975.
_____________________ – A Eficácia Simbólica. Idem.
219
LUNA, Luis Eduardo. Vegetalismo : shamanism among the mestizo population of the
Peruvian Amazon. Estocolmo., Almquist and Wiksell Internacional, 1986.
MACRAE, Edward. Guiado pela Lua: Xamanismo e uso ritual da ayahuasca no culto do
Santo Daime. São Paulo, Edtora Brasiliense, 1992.
MAUSS, Marcel . Ensaio sobre a Dádiva.Introdução de Claude Levi-Strauss.Perspectivas
do Homem. Edições 70. Lisboa.2001.
MORTIMER, Lúcio. Bença Padrinho. São Paulo, Céu de Maria, 2000.
OKAMOTO DA SILVA, Leandro . Marachimbé chegou foi para apurar : Estudo sobre o
castigo simbólico, ou peia, no culto do Santo Daime. Dissertação de Mestrado, PUC, São
Paulo, 2004.
PAKOALI, Vanessa Paulo. A cura enquanto processo identitário na Barquinha. PUC-
São Paulo. 2002.
PRANDI, Reginaldo. Os candomblés de São Paulo : a velha magia na metrópole nova.
Série Ciências Sociais nº 29. São Paulo, Hucitec, 1991.
220
________________. Mitologia dos Orixás. São Paulo, Cia das Letras, 2001.
RIBEIRO, Flavia Maiomi. Para integrar o divino: a adaptação das experiências vividas
no ritual do Santo Daime. Trabalho de Conclusão de Curso. São Paulo, PUC, 2002.
SHEPARD JR. , Glenn H. , “ Venenos Divinos: plantas psicoativas dos Machiguenga no
Peru. Unicamp, sem data.
SOARES, Luiz Eduardo “O Santo Daime no contexto da nova consciência religiosa” , in :
O rigor da Indisciplina. Ensaios de Antropologia Interpretativa. Rio de Janeiro,
Iser/Relume-Dumará, 1994.
TAUSSIG, Michel . Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem : um estudo sobre o
terror e a cura. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993.
TURNER, Victor. O Processo Ritual.Petrópolis, Vozes, 1974.
WEBER, Max. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia
Compreensiva.Brasília, Editora da Universidade de Brasília : 2004.
WRIGHT, Robin M. “Profetas do Pariká e Caapi”. Unicamp, sem data.
221
Outras Fontes:
Hinários :
- Segmento – Madrinha Maria do Carmo .
- Caminho de Luz – Mad. Maria do Carmo
- Luz do Sol- Mad. Maria do Carmo
- Na Presença de Deus - Mad. Maria do Carmo
- Flor de Maria – Mad. Maria do Carmo
- Lua Cheia – Léo Artése.
- Chaveirinho – Glauco Villas Boas
- O Cruzeirinho e Nova Era – Padrinho Alfredo.
- Hinário do Padrinho Sebastião.
- Hinário do Mestre Irineu.
- Outros hinários do CEFLURIS.
COMUNIDAIME – Boletim do CEFLURIS – CENTENÁRIO DO MESTRE IRINEU –
ABRIL DE 1993.
Revista OSHO – Editora Escala, São Paulo-SP, s/d.
Site: www.osho.com.
CEFLURIS – Normas do Ritual.
Sites ligados ao CEFLURIS:
- http://www.ceudemidam.com.br
- http://www.xamanismo.com.br
- http://www.santodaime.org
- http://www.ceudemaria.org
222
ANEXOS
223
Resultado da Pesquisa Quantitativa realizada
entre os moradores do Céu de Midam – Piedade
1
No universo de moradores da Comunidade Céu de Midam, temos o seguinte quadro:
19 homens – correspondendo a 35% do total.
21 mulheres - 39%.
14 crianças - 26%.
35%
39%
26%
Gráfico 1 – Composição dos moradores.
Com relação ao estado civil dos residentes na Comunidade, temos a seguinte situação:
1234
Gráfico 2 – Estado Civil
1- Solteiros – 4 moradores.
2- Casados - 26 moradores.
3- Separados ou divorciados – 4 moradores.
4- Viúvos – 1 morador.
1
Pesquisa apoiada na metologia criada por LABATE ( 2004).
224
Vejamos agora os dados em relação à escolaridade, no Céu de Midam :
12345
Gráfico 3 – Grau de Escolaridade.
1 – Ensino Primário ou Fundamental incompleto – 2 moradores.
2- Ensino Fundamental completo – 4 moradores.
3- Ensino Médio completo – 12 moradores.
4- Superior incompleto – 5 moradores.
5- Superior completo – 11 moradores.
Vamos agora ao Gráfico 4 – Profissão :
Profissão
123456789
225
1 – Educação...................................................23%
2 - Administração / área de negócios...............20%
3 – Terapia/ Área da Saúde..............................15%
4 – Trabalhos do Lar ....................................... 15%
5 - Funcionalismo Público .............................12%
6 – Engenharia Civil.........................................6%
7 – Mídia...........................................................6%
8 – Artes ..........................................................3%
O Gráfico a seguir, mostra os dados em relação a origem (Estado e Cidade em que
nasceu) :
12345678
Gráfico 5 – Origem.
1 – Região da Grande São Paulo........................................................ 8 moradores
2 – Interior de São Paulo................................................................... 8 moradores.
3 – Região Norte do País – Rio Branco- AC e Boca do Acre – AM..6 moradors.
4 – Região de Sorocaba............................................................... 4 moradores.
5 – Origem Estrangeira................................................................ 3 moradores.
6 – Paraná..................................................................................... 1 morador
7 – Paraíba.................................................................................... 1 morador
226
Como você definiria o Santo Daime?
1
35%
2
22%
3
22%
4
6%
5
6%
6
6%
7
3%
1 2 3 4 5 6 7
1 - Escola Espiritual
2 – Santa Doutrina
3 – Religião
4 – Escola de Magia
5 – Escola de Auto-Conhecimento
6 – Todas as definições acima
7 – Universidade Espiritual
227
Religião da mãe
1
2
3
4
1 – Católica...................................................................................68%
2 - Santo Daime............................................................................19%
3 – Evangélica .............................................................................10%
4 – Espírita ................................................................................... 3 %
Religo do Pai
123456
1 – Católica ............................................................................62%
2 – Santo Daime .....................................................................20%
3 – Evangélica ........................................................................6%
4 – Círculo Esotérico...............................................................6%
5 – Espírita...............................................................................3%
6 – Outras ................................................................................3%
228
Religião Anterior ao Santo Daime
1234567
1 – Católica...................................................................................29%
2 - Espírita ....................................................................................20%
3 – Religiões, Filosofias ou Práticas Orientais..............................18%
4 – Religiões Afro-brasileiras....................................................... 15%
5 - Círculo Esotérico ....................................................................10%
6 – Evangélicos..............................................................................3%
7 – nenhuma religião......................................................................5%
229
Filiados do CEFLURIS ( Centro da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra) e
do
CEFLUZ ( Centro Eclético Flor de Luz ou Igreja Flor de Luz)
Nas páginas seguintes apresento as planilhas com os filiados ( são os membros
fardados da Igreja Flor de Luz) e o valor das mensalidades, que são direcionadas para o
custeio dos gastos da Igreja e também com os custos da produção do Daime e o cultivo da
folha rainha e do cipó jagube. A contribuição ao CEFLURIS se direciona à sede mundial do
Santo Daime que é o Céu do Mapiá, recurso que além de ser utilizado na produção da
bebida sagrada, também se destina à assistência às populações ribeirinhas e carentes desta
região, no interior da floresta amazônica. Destaco também que as pessoas idosas e as
crianças e adolescentes não contribuem com a mensalidade.
Por meio destas listas podemos também ter uma noção dos membros que
participam com mais freqüência dos trabalhos do Santo Daime na Igreja Flor de Luz ,
localizada em Piedade -São Paulo. Além destes participam também dos trabalhos os
visitantes de outras igrejas, os novatos e aqueles fardados da Igreja Flor de Luz que
contribuem de forma avulsa em cada ritual em que participam – sem oficializar sua
inscrição na mensalidade.
230
Filiados ao Cefluz 2007
Nº Nome Janeiro Fevereiro
1
André Fernandes de Oliveira R$18,00 R$
2
Cecília santos R$18,00 R$
3
Celso Vendramini R$18,00 R$18,00
4
Eliane Melnic R$20,00 R$20,00
5
Fábio Barbosa R$18,00 R$18,00
6
Josélia Maria de A. Cardoso R$ R$
7
Maria Cristina Vilhena R$20,00 R$20,00
8
Mateus Nunes R$20,00 R$20,00
9
Mauro Domingues Padilha R$18,00 R$18,00
10
Renata Isaac R$20,00 R$20,00
11
Ricardo Benavides R$20,00 R$20,00
12
Sebastião Albuquerque R$18,00 R$18,00
Isentos
Nº Nome
1
Maria do Carmo de Andrade Neta
2
Berenice de Poli
3
Joel A Santos
4
Natalino Bonfim
231
Filiados ao Cefluris 2007
Nº Nome Janeiro fevereiro Março
1 Adriana Mara Rabelo R$24,00 R$24,00 R$
2 André F. de Oliveira R$24,00 R$24,00 R$24,00
3 Antonio Fábio R$25,00 R$25,00 R$25,00
4 Cecília Santos R$25,00 R$ R$
5 Celso vendramini R$24,00 R$24,00 R$
6 Cinésio jorge Paez R$25,00 R$25,00 R$
7 Cícero Santas de Almeida R$ R$ R$
8 Elaine A. Melnic R$30,00 R$30,00 R$30,00
9 Eduardo Gomes R$ R$20,00 R$
10 Fabio Barbosa R$24,00 R$24,00 R$24,00
11 Francine Maria de Alves R$30,00 R$30,00 R$30,00
12 Francisco Carlos Olveira R$30,00 R$30,00 R$30,00
13 Josélia Maria de A. Cardoso R$20,00 R$ R$
14 Mauro Domingues Padilha R$22,00 R$22,00 R$22,00
15 Maria Cristina Vilhena R$30,00 R$30,00 R$30,00
16 Mariana Bianchini da Paixão R$25,00 R$25,00 R$25,00
17 Marcia Firmino de Mello R$40,00 R$40,00 R$40,00
18 Maria Leonor F. Oliveira R$30,00 R$30,00 R$30,00
19 Marcos Mello R$20,00 R$20,00
20 Marcio Mello R$20,00 R$20,00
21 Renata Isaac R$30,00 R$30,00
22 Ricardo Benavides R$30,00 R$30,00
23 Sebastião Albuqueruqe R$ R$24,00
232
233
234
235
236
237
238
239
240
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