Download PDF
ads:
Giselle Faria Guimarães
A CLÍNICA DO DESENRAIZAMENTO:
atendimento a crianças em situação de risco
Mestrado em Psicologia Clínica
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Giselle Faria Guimarães
A CLÍNICA DO DESENRAIZAMENTO:
atendimento a crianças em situação de risco
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Psicologia Clínica, sob orientação do
Prof. Dr. Gilberto Safra.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo
2007
ads:
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
__________________________________________
___________________________________________
RESUMO
Nesta dissertação procuro refletir sobre as possibilidades de intervenção no atendimento a
crianças em situação de risco, considerando a importância do ambiente e da relação com o
outro para que elas possam vir a estabelecer uma relação criativa com o mundo em que vivem.
Meu interesse surgiu a partir da minha experiência no Projeto Quixote, que apresento no início
desta dissertação. Trago também histórias de crianças atendidas no Projeto, procurando
compreender os sofrimentos que nos apresentam. Estes sofrimentos, que surgem em muitos
casos sob a forma de comportamentos violentos, problemas de aprendizagem, abuso de
drogas, entre outros, não podem ser reduzidos a seu aspecto psíquico ou social, mas devem
ser compreendidos em seu aspecto ontológico, porque são experiências que fraturam o ethos
humano. São crianças que sofrem por viverem em um mundo cada vez mais inóspito, no qual
não encontram as condições que permitem o acontecer humano. As crianças que encontramos
são marcadas, em diferentes graus, pelo desencanto e a desesperança. Sofremos as
conseqüências de um processo de desenraizamento cada vez mais intenso.
Neste caminho, utilizei as contribuições de D.W. Winnicott, que ressalta a importância da
relação com o outro e das condições necessárias que o ambiente deve ofertar para que o ser
humano possa vir a se constituir, e as elaborações de Simone Weil sobre a noção de
enraizamento e desenraizamento. Foram fundamentais, também, as reflexões de Safra sobre
os sofrimentos decorrentes das fraturas éticas.
As intervenções devem ser norteadas pela questão do lugar, pela necessidade da oferta de um
lugar no mundo humano dada pela relação que se estabelece entre a criança e o profissional, a
equipe e a própria instituição que a atende. É a partir da experiência de ter um lugar aparentado
com o si mesmo que a criança poderá viver ou reviver a experiência de encanto.
ABSTRACT
In this work I reflect about the possibilities of intervention on the care with children in risk
situation, considering the importance of the environment and the relationship with the other in
order for them to establish a creative relationship with the world in which they live.
My interest came from my experience at Project Quixote, presented at the beginning of this text.
I also present stories of children that passed through the Project, seeking to understand the
suffering they show us. This suffering, that many times comes as violent behaviors, learning
problems, drug abuse among other, cannot be reduced to its psychic or social aspect, but must
be understood on its ontological aspect since it is about experiences that fracture the human
ethos. They are children who suffer because they live in a world more inhospitable at each day,
in which they can’t find the conditions that allow their humanity to happen. The children we meet
are marked, in different degrees, by the disenchantment and lack of hope. We suffer the
consequences of a rootlessness process more intense at each day.
In this way, I used the contributions of D.W. Winnicott, who highlights the importance of the
relationship with the other and the necessary conditions the environment must offer so that the
human being can constitute itself, and the elaborations of Simone Weil about the notion of
rooting and rootlessness. Also fundamental were Safra’s reflections on the suffering as a
consequence of ethical fractures.
The interventions must be guided by the place issue, by the need to offer a place in the human
world given by the relationship that establishes between the children and the professional, the
team and the institution that take care of her. It is from the experience of having a place related
to self that the child will be able to live or relive the enchantment experience.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO............................................................................................
01
2 O PROJETO QUIXOTE..............................................................................
07
2.1 O Projeto Quixote - Vila Mariana......................................................
09
2.1.1 A equipe.............................................................................
11
2.1.2 A população atendida.........................................................
11
2.1.3 O atendimento inicial..........................................................
13
2.1.4 As oficinas.......................................................................... 13
2.2 O Projeto Quixote – Moinho da Luz.................................................
15
3 CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS...................................................................
22
3.1 A importância do ambiente na constituição da subjetividade..........
22
3.2 Enraizamento e Desenraizamento...................................................
30
3.3
O placement.....................................................................................
39
4 AS CRIANÇAS............................................................................................
46
4.1 A questão da circulação e da acolhida da rua.................................
48
4.1.1 Marcos: a necessidade de quietude...................................
49
4.2 A questão da circulação na família estendida..................................
54
4.2.1 Amanda, douglas e andré: o anseio por um lugar seu.......
54
4.3 A questão do abrigamento...............................................................
55
4.3.1 Eduardo: o anseio pela volta ao lar....................................
56
4.4 A questão da migração....................................................................
57
4.5 A questão do trabalho......................................................................
58
4.5.1 João e Pedro: frustração e esperança ...............................
58
4.6 A questão da frustração...................................................................
63
4.6.1 Jonas: idas e vindas...........................................................
63
4.7 A questão do encanto......................................................................
66
4.8 A questão da escola.........................................................................
67
4.8.1 Alex e Luana: aprender com o outro.................................. 67
4.9 A questão da violência.....................................................................
70
4.9.1 Eduardo: a necessidade do lar...........................................
72
4.10 A questão do encontro.....................................................................
78
4.10.1 Encontros intensos ............................................................
78
4.10.2 José: um encontro possível ...............................................
79
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................
85
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................
89
1
1 INTRODUÇÃO
Após alguns anos de trabalho com crianças em situação de risco, e outras, em situação
de rua, testemunhei o quanto suas vidas são invadidas pela violência que se faz
presente das mais diversas formas. A impossibilidade de ocuparem um lugar no mundo
de um modo pessoal, singular, é uma experiência comum e devastadora. No trabalho
que tenho desenvolvido com estas crianças, percebo que lhes oferecer um lugar no
mundo, um olhar capaz de reconhecê-las em suas singularidades, dando-lhes esta
possibilidade de inserção, pode ser algo transformador em suas vidas. Daí a
necessidade de pensarmos numa clínica do desenraizamento, considerando o
sofrimento decorrente da impossibilidade de uma constituição ética, ou seja, o
sofrimento decorrente da impossibilidade de habitar o mundo humano de forma
singular.
Em 2000 comecei um estágio no Projeto Quixote. Foram dois meses participando de
várias das atividades desenvolvidas. Nesse período estava sendo iniciada uma oficina
lúdica para crianças de 07 a 12 anos, com a qual tive um envolvimento muito grande. A
oficina era coordenada por uma artista plástica e uma pedagoga. Ao final do estágio fui
convidada a integrar a equipe do Projeto, trabalhando junto com a artista plástica nessa
oficina.
Minha relação com as crianças sempre foi muito intensa. A demanda delas por atenção
e cuidado era imensa. Eram bastante exigentes. Felizmente, a coordenadora do núcleo
pedagógico, responsável por essa oficina, tinha uma disposição incansável para
oferecer um lugar para essas crianças dentro do Projeto. Havia alguma resistência,
afinal o atendimento, que detalharei mais adiante, era mais voltado aos adolescentes, e
o trabalho com eles tinha uma dinâmica bem diferente da que as crianças nos
impunham.
2
Sempre foi uma preocupação minha e da equipe com a qual eu trabalhava
compreender o que se passava na nossa relação com as crianças. Dada a intensidade
desta, sentíamos necessidade de nos afastarmos para pensar sobre o que se passava
com as crianças e o que se passava entre elas e nós. Supervisões, discussões de
casos e estudos teóricos eram importantes para a sustentação do trabalho.
A partir da preocupação em compreender essas crianças, todo o universo que elas nos
trazem, e refletir continuamente sobre as nossas relações e possibilidades de
intervenção, surgiu este projeto de pesquisa.
No Brasil, crianças e adolescentes em situação de risco passaram a ser estudados de
forma mais sistemática e intensa nas últimas décadas, bem como crianças e
adolescentes em situação de rua ou em conflito com a lei. A partir da década de 1970
ampliou-se também a organização de movimentos e entidades em defesa de crianças e
adolescentes em situação de rua, como a criação da Pastoral do Menor e do
Movimento de Defesa do Menor (GREGORI e SILVA, 2000).
Em 1990 deu-se a aprovação e publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente
(OLIVEIRA, 2002). A partir de então, uma série de políticas públicas voltadas para esta
população, bem como a disseminação de rios dispositivos assistenciais
governamentais e o governamentais foram criados com a intenção de acolher e
reintegrar as crianças em circulação pelas ruas (LESCHER e BEDOIAN, 1998).
Nessa época, surge um número grande e crescente de trabalhos sobre crianças e
adolescentes em situação de risco, e, especialmente, em situação de rua, isto é,
crianças e adolescentes que moram ou trabalham na rua.
Podemos identificar alguns trabalhos que procuram caracterizar essas crianças e seu
modo de vida, especialmente as que vivem nas ruas, entre outros, os de: Nunes (1995),
Zomer (1996); Santos (1997); Carreira (1997); Alves (1998); Campos, Del Prette e Del
3
Prette (2000); Karling (2001); Silva (2002); Hutz e Silva(2002); Oliveira et al (2004);
Santos (2004); Paludo (2004).
Alguns trabalhos analisam a relação das crianças com o brinquedo e brincadeiras,
enfatizando a preservação de aspectos lúdicos, como, por exemplo, Alves et al. (2001),
que salienta a importância da identificação dos aspectos saudáveis que crianças em
situação de rua podem apresentar nesse ambiente.
Coelho Júnior, L. L.; Gontiès, B (2001) analisam as representações sociais dos
membros do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua em João Pessoa,
enfatizando a mobilização destes na tentativa de prevenir a marginalização de crianças
e adolescentes em situação de rua, através de atividades ocupacionais e educacionais.
Ribeiro (1999 e 2003) aponta que a violência que permeia a vida dessas crianças
restringe seu pleno desenvolvimento. Assinala que a rua é vista como um refúgio para
aquelas que procedem de famílias muito carentes de recursos e as que têm história
de maus tratos por algum membro da família.
Guareschi et al. (2003) enfatizam que a violência é tratada com certa naturalidade,
apesar de alguma preocupação, por crianças e adolescentes de uma comunidade
carente pesquisada por eles.
Outros trabalhos enfatizam a relação dessas crianças com suas famílias ou a
representação que têm das mesmas, como: Sarti (1995); Carpena (1999); Oliveira
(2002).
Tfouni e Moraes (2003) apontam que, através da brincadeira, as crianças em situação
de rua deixam emergir um jogo de representação entre suas famílias reais, geralmente
muito desestruturadas, com figuras parentais ausentes, negligentes ou violentas, e as
idealizadas, que surgem como famílias felizes e unidas. Yunes et al. (2001) enfatizam a
ambigüidade vivida por estas crianças em relação a suas famílias, alternando
4
sentimentos de afeto e aceitação com indicações de maus tratos e rejeição dos
familiares.
Alguns autores assinalam o processo de desvinculação, ruptura familiar e comunitária
vivida por essas crianças, associando a ida para as ruas ao fracasso da família como
provedora de proteção e afeto, como: Ribeiro (2001); Mazzei (2002).
Temos ainda uma série de trabalhos que procuram pensar sobre o atendimento a essas
crianças, assim como possibilidades de abordagem e intervenção como: Lutfi (1992);
Graciani (1994); Medeiros e Ferriani (1995); Lilienthal (1997); Cunha (1998); Miranda e
Schwyter (1998); Santana et al. (2004); Conceição e Sudbrack (2004); Bellenzani e
Malfitano (2006).
Alguns autores chamam a atenção para a complexidade desta população e para as
dificuldades em focar e definir estratégias para intervenções, como: Costa et al. (1999).
Outros trabalhos descrevem o atendimento realizado por serviços de atendimento a
essa população, atentando para a importância de se oferecer alternativas em direção a
inclusão social de crianças e adolescentes em situação de risco social e pessoal, além
da salientar a necessidade de trabalhar em rede com outros serviços, como: Santos et
al. (2002); Santana et al. (2005); Oliveira e Medeiros (2006).
Nesta dissertação pretendo refletir sobre as possibilidades de intervenção no
atendimento a crianças em situação de risco, considerando a importância do ambiente
e da relação com o outro para que elas possam vir a estabelecer uma relação criativa
com o mundo em que vivem. O que me parece fundamental em um momento em que o
que vejo, especialmente nos atendimentos, são crianças e adolescentes que sofrem
porque vivem em um mundo cada vez mais inóspito, no qual não encontram as
condições que permitem o acontecer humano. O sofrimento, que surge em muitos
destes casos sob a forma de comportamentos violentos, problemas de aprendizagem,
abuso de drogas, entre outros, não pode ser reduzido a seu aspecto psíquico ou social,
5
deve ser compreendido em seu aspecto ontológico, porque são experiências que
fraturam o ethos humano, que "rompem a possibilidade de o ser humano habitar
eticamente o mundo humano" (SAFRA, 2004, p. 138). Presenciamos o intenso
esfacelamento do ethos humano e sofremos as conseqüências do desenraizamento
cada vez mais intenso. Refletir sobre este tema pode contribuir para os inúmeros
trabalhos voltados a esta população.
Neste caminho, utilizarei as contribuições de D.W. Winnicott que ressalta a importância
da relação com o outro e das condições necessárias que o ambiente deve ofertar para
que o ser humano possa vir a se constituir. Nessa perspectiva, a clínica para Winnicott
é compreendida inicialmente como um campo de acontecimento, de experiência e, mais
tarde, essencialmente, como a oferta de um lugar (SAFRA, 2006d). As elaborações de
Simone Weil sobre a importância do enraizamento, como sendo "talvez a necessidade
mais importante e mais desconhecida da alma humana" (WEIL, 1943, p.411),
enriqueceram minha compreensão a respeito da necessidade fundamental que o ser
humano tem de estabelecer uma relação viva e criativa com o lugar em que vive e dos
sofrimentos decorrentes do desenraizamento.
Portanto, irei me basear na minha experiência nas atividades desenvolvidas com as
crianças no Projeto Quixote, bem como em relatos de atendimentos realizados por
outros profissionais que participam do trabalho. Para tanto, utilizarei as anotações dos
prontuários das crianças, minha participação nas discussões desses casos, além de
minhas vivências nos atendimentos. Os nomes e quaisquer outras informações que
possam identificar as crianças e adolescentes citados neste trabalho serão alterados, a
fim de garantir a privacidade dos mesmos.
No primeiro capítulo desta dissertação irei apresentar o Projeto Quixote: seu
surgimento, seus princípios e métodos, a equipe de trabalho e a população atendida.
No segundo capítulo pretendo apresentar e discutir as contribuições de Winnicott sobre
a importância do ambiente na constituição da subjetividade, incluindo o conceito de
6
placement. Utilizarei, também, os trabalhos de Simone Weil sobre a necessidade de
raiz, de enraizamento, procurando compreender a importância da qualidade da relação
do homem com o mundo em que vive. Apresentarei, ainda, as reflexões de Safra sobre
as necessidades para o acontecer humano e as decorrências das fraturas éticas no
mundo contemporâneo.
No terceiro capítulo detalharei o surgimento e o desenvolvimento do atendimento às
crianças de 07 a 12 anos, os objetivos do trabalho, a equipe envolvida e as atividades
desenvolvidas. Apresentarei situações vividas com as crianças nas atividades
realizadas no Projeto Quixote, além de relatos de experiências trazidos por elas, para
refletir sobre os temas apresentados anteriormente. Nesse momento pretendo pensar
sobre a relação que se estabelece entre a criança e o que é oferecido a ela através
dos atendimentos propostos, especialmente no que concerne à relação que se
estabelece entre os profissionais e as crianças.
No quarto capítulo farei uma discussão sobre as possibilidades e limites do atendimento
apresentado, bem como sugestões de reformulações e futuras pesquisas.
7
2 O PROJETO QUIXOTE
O Projeto Quixote foi criado em 1996, por iniciativa de alguns técnicos do PROAD
(Programa de Atendimento a Dependentes), da Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP). Está vinculado à disciplina de Psiquiatria Social e Psicologia Médica do
Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Atualmente é, também, uma organização
não governamental. Surgiu a partir da identificação de demandas de crianças e
adolescentes em situação de rua, percebidas em supervisões de educadores de rua,
que solicitaram ajuda para lidar com as questões relacionadas ao uso abusivo de
drogas por esta população.
Ao longo dessas supervisões, os profissionais perceberam uma grande diferença entre
o padrão de uso de drogas pela população atendida no PROAD usuários de drogas
que geralmente vivem com suas famílias e o das crianças e adolescentes que vivem
em situação de rua. Perceberam que o uso de drogas ocupava um lugar muito
específico em suas vidas. Em primeiro lugar, porque esse uso tem sido considerado
muito elevado comparado a estudantes na mesma faixa etária, segundo dados do
CEDRID (Centro Brasileiro de Informações sobre uso de Drogas Psicotrópicas -
UNIFESP). Em segundo lugar, porque esse uso, na maior parte dos casos, adquire um
caráter circunstancial, relacionado às vivências específicas da sociabilidade da rua. O
contexto social da rua favorece o consumo de drogas, além dos fatores individuais e
familiares relacionados. O uso de drogas entre as crianças e adolescentes em situação
de rua faz parte do estilo de vida de muitos grupos. Esse uso envolve inúmeros fatores:
a vivência temporal, onde impera o imediatismo; o caráter lúdico, com a vivência de
momentos mágicos, sensações de poder e euforia; alívio para o enfrentamento da
realidade, podendo significar uma forma paradoxal de preservação mental. Além disso,
não existem motivos que possam inibir o uso, tais como: vínculos familiares, religião,
projetos de vidas. (CEBRID, 2003).
Constatou-se, então, a inexistência de instituições que atendessem essa população
considerando suas especificidades. O Projeto Quixote foi criado na tentativa de atender
8
às necessidades dessas crianças e adolescentes, necessidades essas identificadas
pelos profissionais do PROAD envolvidos no processo de supervisão dos educadores
que lidavam com essas demandas no seu dia-a-dia. A intenção era criar um lugar que
pudesse oferecer-se como alternativo ao circuito de sociabilidade de rua vivido por
essas crianças e adolescentes, com o propósito de preencher uma lacuna no
atendimento a essa população. Bedoian
(pg. 13, 2007)
assinala que
o caráter circunstancial do uso de drogas é percebido na escuta destes jovens. Muitos,
apesar de um uso importante, chegam ao Quixote buscando atividades, ou vêm por
curiosidade, ou nem sabem porque vieram. Não dizem ‘venho aqui para parar de usar
drogas’. À medida que freqüentam oficinas lúdicas baseadas na noção de acolhimento e
escuta que gera pertencimento e possibilita que novas demandas comecem a surgir, o
uso de drogas ganha outro sentido ou perde o sentido, sem que tenha sido feito um
trabalho psicoterápico ou uma terapia medicamentosa.
Considerando este aspecto circunstancial, o Quixote procurou criar estratégias que
pudessem interferir nesta realidade, “[...]onde novas relações, vínculos e possibilidades
de ser e estar no mundo pudessem ser vislumbrados.Trata-se de oferecer outras
referências, que possibilitem o reconhecimento e a escuta deste jovem em seus
apelos." (BEDOIAN, pg 14, 2007)
O Projeto Quixote iniciou suas atividades em 1996 numa casa alugada pela UNIFESP,
no bairro da Vila Mariana. eram realizadas oficinas, atendimento psicológico,
médico, psiquiátrico. Posteriormente explicarei de forma mais detalhada esta dinâmica.
Hoje, o Projeto Quixote funciona em duas casas situadas na Vila Mariana e, a partir do
início de 2007, começou suas atividades numa casa no bairro do Bixiga, onde, além
das atividades de oficinas e atendimentos clínicos e pedagógicos, funciona, também,
um abrigo provisório para crianças e adolescentes - o Moinho do Bixiga. Esse abrigo
surgiu após uma experiência de trabalho de aproximadamente dois anos no bairro da
Luz, na região conhecida como ‘cracolândia’, num espaço chamado Moinho da Luz,
que foi desativado assim que começaram as atividades no Moinho do Bixiga.
O Quixote teve o seu crescimento estimulado e direcionado pelas demandas das
crianças e adolescentes. As oficinas, o modo de conduzir as atividades e o fluxo de
9
atendimentos foram se modificando, dependendo do que as crianças gostariam de
fazer, aprender e experimentar. Os novos projetos surgiram, na maioria das vezes, a
partir do interesse dos freqüentadores. A proposta de atividades que pudessem ampliar
seus horizontes, seus interesses, gerou sempre um dinamismo e uma busca constante
de novas estratégias de atuação. Algumas atividades, entretanto, tiveram início devido
a possibilidades de financiamentos que surgiram, mas sempre foi considerada sua
relevância para a população atendida. Assim foi, por exemplo, a criação do Moinho da
Luz, que, num segundo momento, passou a ter uma equipe para atuar diretamente na
rua. Recentemente, ampliou-se com a inauguração do abrigo provisório no bairro do
Bixiga. Um novo desafio. O trabalho amplia-se sempre por desdobramentos das ações
anteriores.
Além do atendimento, o Projeto Quixote sempre teve uma preocupação com o
desenvolvimento de pesquisa e ensino, com o objetivo de pensar, formar e propor
políticas públicas de atendimento a essa população, através da capacitação e
supervisão de outras instituições que atuam junto à mesma.
A seguir, apresentarei um pouco o funcionamento do Projeto Quixote na Vila Mariana:
os núcleos de atendimento, a equipe e a população atendida. Posteriormente,
descreverei a experiência vivida na implantação do Moinho da Luz e do Moinho do
Bixiga.
2.1 PROJETO QUIXOTE - VILA MARIANA
O Projeto Quixote está organizado em núcleos de atendimento, que atuam de forma
integrada. As crianças, os adolescentes e suas famílias são atendidos, na maior parte
dos casos, por mais de um núcleo. As discussões de casos sempre envolvem todos
que participam do atendimento. O atendimento clínico, por exemplo, é sempre paralelo
à participação dos garotos em outras atividades. Raramente alguém é atendido apenas
por um clínico. Em alguns momentos existem projetos conjuntos entre os núcleos. Os
núcleos são:
10
- Núcleo de Atenção à Família – atende os familiares ou responsáveis pelas crianças e
adolescentes. Realiza atendimentos individuais e em grupo. Desenvolve uma oficina de
geração de renda, na qual as mães aprendem técnicas de costura. Esta definição partiu
das próprias mães que participavam do grupo, após experiência com atividades
diversas. Atualmente, participam mais ativamente dos processos de produção,
planejamento e venda dos produtos que o grupo produz;
- Núcleo Pedagógico responsável pelas oficinas oferecidas no Projeto Quixote e pelo
atendimento psicopedagógico;
- Núcleo Clínico composto por psicólogos, psiquiatras e pediatras. Responsável pelo
atendimento individual e acompanhamento de algumas oficinas;
- Núcleo de Educação para o Trabalho responsável pelo desenvolvimento de
atividades voltadas para a inserção no mercado de trabalho, tais como oficina de
cidadania, informática, graffiti, acompanhamento psicopedagógico. Os adolescentes
que participam do núcleo também são acompanhados em suas primeiras experiências
profissionais.
Existem alguns outros programas no Projeto Quixote que vale mencionar:
- Vivendo e Aprendendo - espaço para alfabetização de crianças e adolescentes que
estão fora da rede oficial de ensino e não conseguem retornar ou permanecer nele. O
objetivo é trabalhar a partir dos conhecimentos dos próprios adolescentes, procurando
estimular seu retorno ao sistema regular ou supletivo de ensino. Esse projeto, no
momento, não está em funcionamento;
- Agência Quixote Spray Arte - criada em 2000, com recursos do Prêmio Empreendedor
Social Ashoka, tem o objetivo de transformar os produtos da cultura hip-hop,
11
especialmente o graffiti, em atividade que possa ser rentável para os adolescentes
participantes e graffiteiros
- Programa Cuidar Sentinela programa do governo federal que atende crianças e
adolescentes vítimas de abuso ou exploração sexual.
2.1.1 A equipe
O Projeto Quixote conta com uma equipe multidisciplinar. São cerca de 40 profissionais
entre oficineiros, educadores, pedagogos, psicólogos, psiquiatras, pediatras,
assistentes sociais, pessoal administrativo e de apoio. Temos ainda a colaboração de
voluntários como dentista, ginecologista, advogado e captação de recursos.
2.1.2 A população atendida
Aproximadamente 70% das crianças e adolescentes atendidos no Projeto Quixote
chegam encaminhados por algum outro serviço por onde passaram, como abrigos,
albergues, centros de juventude, escolas, conselhos tutelares, fóruns; além destas, de
instituições que fazem abordagem de rua. Em relatório de atendimento do Projeto
Quixote relativo ao ano de 2002, por exemplo, vemos que 62,5% dos encaminhamentos
foram realizados devido ao uso de drogas e 73,1%, para avaliação ou atendimento
psicológico.
Ao longo do tempo, o Projeto Quixote tornou-se referência para atendimento a crianças
e adolescentes em situação de risco ou rua, especialmente quando associado ao uso
de drogas. Um número significativo de crianças e adolescentes refere que procurou o
Quixote por curiosidade e pelo desejo de participar das atividades. Nesses casos,
geralmente são encaminhadas por amigos ou parentes que já freqüentam ou
freqüentaram o projeto.
12
Se, por um lado, há uma demanda grande por atendimento por parte de outros serviços
que atendem às crianças e adolescentes que chegam ao Quixote, especialmente nos
momentos em que estas estão causando muitos problemas, por outro, percebemos
pouco envolvimento ou acompanhamento ao longo do período em que elas estão em
atendimento.
Minha experiência no Projeto Quixote tem sido maior no trabalho com as crianças entre
7 e 12 anos. algumas especificidades em relação ao perfil das crianças atendidas
que difere do perfil dos adolescentes. Entre estas, as queixas mais freqüentes são de
comportamento violento, especialmente na escola, uso de drogas e fugas de casa. Em
2005, cerca de 50% das crianças encaminhadas ao Quixote nesta faixa etária estava
vivendo em abrigos, algumas devido a maus tratos e abusos físicos, outras devido à
impossibilidade da família mantê-las sob seus cuidados, dada a morte ou abandono de
um ou dos dois pais, situação agravada por problemas de comportamento, fugas de
casa e uso de drogas. Uma outra grande parcela de crianças vem acompanhada por
um familiar, geralmente a mãe, encaminhada por conselhos tutelares, fóruns ou escola,
quase sempre com queixas relacionadas a dificuldades escolares e comportamento
violento. Em alguns casos, as crianças estavam iniciando um processo de fugas de
casa. Outras crianças procuraram o Quixote para participar de atividades,
encaminhadas por amigos ou familiares que já freqüentavam o Projeto.
As situações de encaminhamento são variadas. Por exemplo, William, um garoto de 11
anos, veio ao Quixote encaminhado pelo Fórum porque havia uma queixa formalizada
contra ele por agressão física à professora. Segundo a mãe, desde os quatro anos de
idade ele é acusado de agredir fisicamente as professoras desta mesma escola.
Eduardo está em um abrigo provisório três semanas. Tem nove anos, mas diz que
tem quatorze. Está vivendo nas ruas e em abrigos desde os cinco anos de idade, após
a morte de sua mãe. A queixa é que ele é muito impulsivo e violento. Tem um longo
histórico de uso abusivo de drogas.
13
2.1.3 O atendimento inicial
Quando as crianças chegam para atendimento no Quixote, o recebidas inicialmente
por um educador ou por um técnico (assistente social ou psicólogo). Quando o
encaminhamento não é feito por outra instituição, é realizada uma entrevista inicial
como o objetivo de conhecer os motivos do encaminhamento ou a demanda da criança
ou familiar. Após esse contato inicial, a criança passa a freqüentar a Oficina de
acolhimento (cuja dinâmica e objetivos apresentarei posteriormente), Se a equipe, após
discussão do caso, considerar necessário, são realizados outros encaminhamentos,
como atendimento médico, psiquiátrico, pedagógico. A família, sempre que possível, é
atendida pelo Núcleo de Atenção à Família em grupo de acolhimento do qual participam
familiares de outras crianças atendidas e/ou em atendimento individual ou familiar.
Após um período de aproximação entre os profissionais e as crianças, quando é
possível identificar seus interesses e necessidades, são realizados encaminhamentos
para outras oficinas e atendimentos. Isto acontece após discussões com os demais
profissionais do projeto e com a criança. Se necessário, pode haver encaminhamento
também para outros serviços, outras instituições. O percurso da criança no Quixote é
permanentemente discutido e reavaliado.
É importante salientar que o número de vezes que uma criança vi ao Quixote é
sempre incerto. Algumas participam das atividades durante anos, outras procuram o
atendimento em momentos de crise, participando por um tempo restrito, outras vêm e
vão inúmeras vezes, outras ainda vêm uma única vez, o que é mais freqüente no
atendimento aos adolescentes. É preciso salientar a importância desta questão
temporal, afinal o trabalho, em alguns casos, acontecerá em apenas um encontro.
2.1.4 As oficinas
As atividades de todos os núcleos do Projeto Quixote se organizam em torno das
oficinas, exceto os atendimentos do Programa Cuidar. Estas são atividades em grupo
14
propostas a partir do interesse das crianças e adolescentes. As oficinas são concebidas
como espaços de acolhimento, no qual a criança pode se expressar, construir vínculos,
descobrir interesses e talentos.
As oficinas oferecidas podem variar, dependendo dos interesses que o surgindo. As
que existem há mais tempo são as oficinas de capoeira, graffiti, break, informática, artes
plásticas. Outras aconteceram em alguns períodos e, às vezes, voltam a ser oferecidas,
como vídeo, máscaras, bijuteria, teatro, culinária, futebol, sexualidade, bordado, entre
outras.
As oficinas de acolhimento giram em torno das oficinas de artes plásticas ou graffiti,
para os adolescentes, e lúdicas, para as crianças. As crianças e adolescentes que
chegam ao Quixote participam inicialmente destas oficinas, que têm o objetivo de
facilitar o estabelecimento de uma relação entre eles, a equipe de profissionais e as
outras crianças e adolescentes atendidos. Após um período no qual é possível
identificar interesses e necessidades da criança ou adolescente, é feito o
encaminhamento para outras oficinas ou atendimentos.
As atividades devem ser um instrumento para alcançar a criança e possibilitar a ela
uma inserção, um lugar que tenha relação com ela. Devem ter o objetivo de apresentar-
lhes um mundo que faça sentido e do qual possam fazer parte ativamente, a partir de
onde possam, também, vislumbrar um futuro.
No início, o Projeto Quixote não oferecia atividades específicas para as crianças. O
atendimento era prioritariamente voltado aos adolescentes. A partir de 2000, as
crianças que moram na região começaram a freqüentar o Projeto cada vez mais
assiduamente. Eram crianças que moravam em uma comunidade carente próxima e
trabalhavam ou iam pedir esmola na feira que acontecia em uma rua ao lado do projeto.
Foram chegando, primeiro casualmente. Depois, foram descobrindo o graffiti, as
máscaras de papel, os desenhos e começaram a vir para brincar. Foram trazendo
amigos, irmãos, e o grupo foi crescendo. Iniciou-se, então, um trabalho voltado
15
especialmente para elas. Foi criada uma oficina lúdica, com jogos, brincadeiras e artes
plásticas. A demanda foi aumentando, tanto das crianças, que iam trazendo mais
amigos e irmãos, quanto de outros serviços, como abrigos, conselhos tutelares, fóruns,
escolas, entre outros. Hoje, são várias as oficinas oferecidas para as crianças de 7 a 12
anos. E o número de crianças atendidas tem aumentado a cada ano.
As oficinas são conduzidas por profissionais da área específica na qual se desenvolvem
e por educadores. Sempre após as atividades das oficinas, no período da manhã e da
tarde, é realizada uma reunião com toda a equipe que trabalhou naquele período em
qualquer uma das atividades oferecidas, para a discussão de casos e situações que
aconteceram no Projeto.
2.2 O PROJETO QUIXOTE - MOINHO DA LUZ
Em 2005 iniciaram-se as atividades do Moinho da Luz, localizado em um terreno cedido
pela prefeitura do município, no bairro da Luz, centro da cidade, na região conhecida
como “cracolândia”, onde vive um grande número de crianças e adolescentes em
situação de rua.
No princípio havia apenas uma psicóloga, que coordenava o projeto, uma assistente
social e um graffiteiro. Eram oferecidas oficinas de graffiti para crianças e adolescentes
que viviam nas ruas próximas. Eles chegavam, inicialmente encaminhados por
educadores de rua de outras instituições que atuam na região central, por abrigos
próximos e agentes de proteção da prefeitura, que fazem abordagem de rua.
No terreno cedido pela prefeitura havia uma casa que estava invadida por usuários de
crack. Era um "mocó de nóias", como eles próprios nomeiam esses lugares. viviam
regularmente duas famílias, uma delas era constituída pela mãe com sua filha e neta
recém-nascida; a outra, por um casal e sete filhos com idades entre um e dezesseis
anos, um homem e mais duas mulheres. Mas muitos usuários de crack freqüentavam a
casa, especialmente no período da noite.
16
Lembro do primeiro dia em que fui visitar o local. Era difícil acreditar que pessoas viviam
ali. O lugar era imundo. Exalava um cheiro insuportável. Pelo chão, haviam espalhados
restos de comida, camisinhas, agulhas, todo o tipo de lixo. E no meio de tudo isso, uns
sapatinhos de bebê. Foi então que um dos moradores explicou que haviam crianças ali,
mas os bebês ficavam "protegidos" em um lugar para eles, no forro. Este cobria
parte de uma sala e era alcançado por uma escada. Não havia água, nem luz. Não
havia banheiro funcionando.
A prefeitura prometeu que a casa seria desocupada e reformada. Mas o Quixote pediu
que a desocupação fosse feita por nós, afinal estávamos ali para atender pessoas
como aquelas. Não atenderíamos adultos, com exceção dos familiares de crianças e
adolescentes. No entanto, havia a preocupação em poder encaminhar aquelas
pessoas, sem expulsá-las, e sabíamos que isso demoraria um pouco. Assim, por algum
tempo, convivemos ali, nós e os “nóias”. As duas famílias foram acompanhadas pela
equipe do Quixote, em uma longa trajetória, que, infelizmente, não caberá neste relato.
Uma delas, a que tinha cinco crianças e dois adolescentes, é acompanhada até hoje.
Um dos moradores da casa ficou trabalhando conosco até o enceramento das
atividades naquele local, no início de 2007. Trabalhou e deu muito trabalho.
A equipe que começou o trabalho realizava a oficina no pátio ao lado da casa. Os
"nóias" entravam e saiam da casa enquanto aconteciam as oficinas. Às vezes, um deles
parava para olhar o graffiti que estava sendo feito, puxava uma conversa com alguém
da equipe. Algumas histórias começaram a surgir para nós. Mas tudo muito efêmero.
Aos poucos, eles passaram a ficar na casa mais no período da noite e, à medida que
ficávamos mais presentes e numerosos, a presença deles ia diminuindo. Ocupamos a
casa. Mas a reforma não veio.
Ficamos naquela casa, sem água, nem luz. Com o tempo, perdemos também portas,
janelas e o forro do telhado. Ganhamos algumas cores e muitos graffitis nas paredes.
Estávamos ali quase como os garotos que viviam por aquelas ruas. Talvez isso até os
17
deixasse mais à vontade, apesar de se disporem inúmeras vezes a fazer um "gato" e
"puxar a água" (ligações clandestinas de energia elétrica e água).
As crianças e adolescentes estavam chegando em número cada vez maior. Em um dia,
um garoto estava passando, ficava olhando e o convidávamos a entrar. Ele ficava,
desenhava, grafitava, conversava um pouco. Daí a alguns dias, trazia um amigo.
Depois, sumiam. Mas havia muitos encontros na rua entre as pessoas da equipe e os
garotos, afinal ficavam nas ruas, por ali. Muitas crianças que moravam em ocupações,
cortiços e pensões da região vinham para as atividades.
Após alguns meses de trabalho, houve uma proposta da prefeitura para assumirmos
um trabalho de abordagem de rua, o que, na medida do possível, já estávamos
fazendo. Mas, a partir da experiência que estávamos vivendo, fizemos uma proposta de
abordagem diferente. Pensamos em algo parecido com o modelo do acompanhamento
terapêutico. Consideramos que seria necessária uma aproximação, o estabelecimento
de vínculos, e à medida que as demandas dos garotos fossem surgindo, estaríamos ali
para acompanhá-los nos percursos que fossem se desenhando.
Nesse período de seis meses, em contato direto com estas crianças e jovens em
situação de risco - algumas morando, outras trabalhando ou passando grande parte do
dia nas ruas do centro, muitos expostos a drogas e a todo tipo de violência -
observamos que algumas intervenções, como demanda por abrigamento, cuidados
médicos e mesmo o desejo de retomar o contato com a família, exigiam um
acompanhamento intenso e muito próximo.
Encontramos grandes dificuldades para garantir o sucesso de muitas intervenções por
não existir uma figura de referência que pudesse acompanhar a criança ou adolescente
em todo o processo do encaminhamento, fazendo as mediações necessárias.
Esse acompanhamento deveria contemplar tanto as questões objetivas quanto as
subjetivas da demanda que, na maioria das vezes, acontecia numa atmosfera de
18
urgência, descaracterizando-se no dia seguinte. Para isso contribuíam fatores
pertinentes à dinâmica psíquica da criança ou adolescente em situação de risco, além
das limitações de alguns serviços de saúde e abrigamento, por exemplo. Esta
mediação, no âmbito da subjetividade, pode facilitar a construção de vínculos com um
profissional capaz de oferecer continência às ambivalências, muitas vezes presentes
numa experiência de maior cuidado e no amadurecimento de novas alternativas que
possam contribuir para modificar sua atual condição.
Para esse modelo de atendimento é necessário alguém atento à subjetividade da
criança ou adolescente, com disponibilidade para estar próximo, compartilhando a
realização das tarefas significativas que fazem parte de seu cotidiano e podem levar a
um movimento de mudança mais consistente. A prioridade é a construção e o
restabelecimento de relações interrompidas ou impedidas, capazes de sustentar uma
existência mais plena e digna em uma realidade comunitária da qual esteve excluído.
As intervenções precisam acontecer no cotidiano da criança ou adolescente, tanto na
dimensão de sua vida social quanto familiar, considerando suas necessidades, sua
história e a cultura na qual está inserido. A intervenção deve acontecer na relação deles
com o mundo, procurando facilitá-la ou redesenhá-la. Aproximar mundos distantes,
muitas vezes, hostis.
O trabalho compreendia três fases:
- abordagem realizada por uma dupla de educadores, para a aproximação das crianças
e adolescentes que se encontravam na rua, favorecendo a formação de vínculo entre
eles;
- a realização do trabalho individualizado, no qual o educador acompanhava a criança
ou adolescente em suas andanças: idas a serviços de saúde, um encontro com um
familiar ou amigo, para providenciar uma documentação, uma vaga na escola, um lugar
para morar, um trabalho, entre tantas outras coisas;
19
- e a capacitação continuada do educador, através de grupos de estudo e discussão de
casos, supervisão e registro das experiências. Etapa fundamental, visto que estávamos
desenvolvendo um trabalho inovador, que podia e devia ser multiplicado.
Para dar início a esse trabalho, visando a atuação em vários pontos do centro da
cidade, começamos o trabalho com uma equipe de doze profissionais que atuariam na
abordagem de rua e nos acompanhamentos. Eram os educadores terapêuticos
(carinhosamente apelidados de ETs), além da ampliação da equipe que permanecia no
Moinho da Luz. Passamos a ser trinta e seis pessoas, entre educadores terapêuticos,
psicólogas, assistentes sociais, médicos, oficineiros, aprendizes, educadores, vigias e
pessoal administrativo.
As crianças e adolescentes eram acolhidos nas diversas oficinas realizadas no espaço
do Moinho da Luz e, na medida em que os jovens se vinculavam ao Projeto e
apresentavam demandas específicas, eram encaminhados para os atendimentos
individuais, grupais, ou a outros serviços.
As oficinas de break e capoeira, além do graffiti, consistiam de atividades artísticas e
culturais, com o objetivo de facilitar a construção de nculo entre educadores e
atendidos, o que permitia o surgimento espontâneo de demandas. Eram oferecidas
oficinas diárias (a feira), pela manhã e à tarde, com duração de duas horas cada,
realizadas por um oficineiro e por um educador, e acompanhada por outros técnicos
que estivessem disponíveis.
As demandas identificadas eram trabalhadas pela equipe multidisciplinar (educadores,
psicólogos, assistentes sociais), através de atendimentos individuais, grupais, visitas
domiciliares e a equipamentos da rede. Compreendiam encaminhamentos para
situações de moradia, abrigo, saúde, família, em parceria com outras instituições da
rede e com o Projeto Quixote - Vila Mariana.
20
Um trabalho importante foi a reinserção na escola e posterior acompanhamento,
incluindo atendimentos individuais, visitas a escolas, abrigos e família de várias
crianças que moravam na região e estavam fora da escola. Além disso, o
encaminhamento de várias crianças para projetos de complementação escolar, o que
os tirava da rua, onde passavam a maior parte do tempo.
Era realizado também o atendimento às famílias. Algumas vezes, elas vinham ao
Moinho por iniciativa própria ou convidadas por nós; em outras, íamos até elas. Não
entrarei em detalhes sobre o atendimento familiar, mas este tem se mostrado
fundamental para que alguma mudança possa ser efetivada na vida dessas crianças.
São famílias com muitas dificuldades, que vivem em situações de extrema pobreza,
desemprego, moradias precárias. Não é incomum ouvirmos histórias de violência,
abusos, problemas psiquiátricos ou abuso de álcool e outras drogas, Estas dificuldades
são acentuadas pela ausência de um dos pais. Grande parte dessas famílias é
composta pela mãe e irmãos. São famílias que necessitam de muita atenção e cuidado
para que possam cuidar de seus membros. A relação dos meninos e meninas que
encontramos com suas famílias é permeada por histórias muito difíceis, os vínculos são
frágeis e a ambigüidade, intensa.
Diariamente, ao final das atividades da manhã e da tarde, era realizada uma reunião
com toda a equipe presente no dia, para discussão de casos. Semanalmente, era
realizada uma reunião com toda a equipe para programação e acompanhamento das
atividades. Nesses encontros, era discutida a situação das crianças participantes e
pensados os encaminhamentos possíveis conforme as demandas.
A nossa presença na região era bastante significativa. Os educadores terapêuticos
atuavam em duplas em regiões definidas pela equipe. Em pouco tempo conheciam e
eram conhecidos pelas crianças e adolescentes nas regiões em que atuavam. Devido
às demandas dos garotos, rapidamente entrávamos em contato com escolas, UBS
(Unidade Básica de Saúde), postos de saúde, hospitais, dentistas, conselhos tutelares,
abrigos, fóruns, outras ONGs que atuavam no centro da cidade, serviços de assistência
21
social da prefeitura. Uma rede de atendimento foi efetivamente sendo formada, tecida
por nós, pelos outros serviços, mas especialmente pelos garotos, que definiam sua
direção.
O trabalho foi muito intenso desde o primeiro instante. A possibilidade de interlocução e
discussão entre a equipe era fundamental, assim como os momentos de reflexão e
elaboração pessoal de tudo que era vivido. A construção da equipe foi um processo
dinâmico, que exigiu muito de todos nós, como conta um dos E.Ts
Paralelo a essas descobertas (o centro da cidade e suas pessoas), as propostas de
possíveis atuações também começavam a brotar. Nossas saídas às ruas, as conversas
sobre o nada e o tudo, as oficinas, os encontros com as drogas específicas de cada
espaço, as reuniões e mais reuniões, passaram a fazer sentido. Juntos, em equipe
rimos, choramos, cada um do seu jeito, saímos para brindar, discutimos nossas
diferenças e concordâncias, duplas se estabeleciam conforme a vontade do dia, por
vezes resolvíamos que iríamos sair todos juntos, enfim, fomos nos experimentando, nos
tateando sentindo o cheiro, o calor e o jeito de cada um. Uma verdadeira equipe de
trabalho estava em construção e as necessidades dessas parcerias e trocas ficavam
cada vez mais explícitas. (Relatório Moinho da Luz, jul/2006 )
Atualmente, as atividades do Moinho da Luz foram transferidas para o Moinho do
Bixiga, onde iniciamos o funcionamento do abrigo provisório. As oficinas e
atendimentos são realizados aí. Os ETs continuam atuando nas ruas do centro. Mas só
começamos a viver essa nova experiência.
22
3 CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS
3.1 A IMPORTÂNCIA DO AMBIENTE NA CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE
Winnicott nos traz contribuições sobre a importância do ambiente na constituição da
subjetividade. Enfatiza a necessidade que temos do outro para podermos nos
desenvolver. Faz-nos compreender que o ser humano precisa de outros significativos
para poder se constituir, ao mesmo tempo em que transforma o mundo ao habitá-lo e
usá-lo, ao interagir com ele de forma singular.
Em um texto de 1952, Winnicott (1952, p.208) retoma uma afirmação que fizera dez
anos antes em uma reunião da Sociedade Britânica de Psicanálise: "bebê é uma coisa
que não existe", justificando que sempre que vemos um bebê, vemos alguém cuidando
dele. Em seguida, assinala que no início da vida, antes das relações objetais,
a unidade não é o indivíduo, a unidade é uma organização meio ambiente - indivíduo. O
centro da gravidade do ser não começa no indivíduo. Está na organização total. Através
de um cuidado suficientemente bom da criança, da técnica, do holding e do manejo
geral, a casca é gradualmente deixada de lado e o cerne (que o tempo todo nos pareceu
ser um bebê humano) pode começar a ser um indivíduo.
Winnicott enfatiza a absoluta dependência que o bebê tem dos cuidados maternos e a
importância do meio ambiente na constituição da subjetividade humana. Sua teoria do
desenvolvimento emocional primitivo procura compreender a constituição do self,
acompanhando o caminho que vai da dependência absoluta rumo à independência.
No prefácio do livro "Da pediatria à psicanálise", Khan (1993, p. 43) ressalta que "para
Winnicott, o paradoxo da relação mãe-filho reside no fato de que o ambiente (mãe)
torna possível o self em formação do bebê”. O bebê nasce com um potencial herdado
(self central) que só pode se realizar num ambiente facilitador. É a partir da experiência
de um cuidado suficientemente bom, no qual as invasões ao bebê se dão dentro do que
é tolerável, que um senso de continuidade pode ser vivido e o bebê pode ir adquirindo
uma realidade psíquica própria.
23
Phillips (1988, p. 29) afirma que para Winnicott, “o homem pode encontrar a si
mesmo em sua relação com os outros, e na independência conseguida através do
reconhecimento da dependência”.
Para Winnicott (1947, p. 62), "sem alguém especificamente orientado a suas
necessidades, o bebê não pode encontrar uma relação operacional com a realidade
externa". Esse alguém, no início da vida do bebê, é a mãe. O primeiro ambiente do
bebê é o corpo de sua mãe, que estando em estado de preocupação materna primária,
é capaz de adaptar-se às suas necessidades iniciais, oferecendo as condições para
que ele possa vir a se desenvolver. Precisamos, entretanto, ressaltar que a mãe traz
para esta relação o só seu corpo e sua história, mas traz em si seus ancestrais, suas
histórias, sua cultura.
Safra (1999, p.46) esclarece que
o corpo materno, nesta etapa, é o próprio corpo do bebê, em que ele pode
paradoxalmente, criar todo o mundo humano já ali presente. A corporeidade materna
traz maneiras de se colocar no tempo, no espaço, no mundo, para que sejam
descobertas pelo bebê: trata-se de organizações étnico-culturais que permitem que a
mãe possa cuidar de um bebê humano.
O ambiente facilitador, de que Winnicott nos fala, refere-se às condições físicas e
psicológicas que favorecem o desenvolvimento do bebê. O be não é determinado
pelo ambiente, mas apenas um ambiente suficientemente bom será capaz de oferecer
as condições necessárias para o desenvolvimento do self, para que o bebê possa vir a
ser ele mesmo.
Winnicott (1990, p. 153) assinala que o indivíduo nasce com uma tendência ao
amadurecimento, que implica na capacidade de vir a sentir-se real, com o sentimento
de existir em um mundo também real, o que não é garantido apenas com seu
nascimento. Para que esta tendência venha a se realizar, o bebê depende de um
ambiente facilitador que lhe ofereça cuidados suficientemente bons. Para ele,
24
Ao olharmos, vemos uma mãe e um bebê desenvolvendo-se em seu útero, ou seguro
em seus braços, ou sendo cuidado de outra forma. Mas se olharmos através dos olhos
do bebê, veremos que ainda não um lugar a partir do qual olhar. No entanto, a
semente de todo o desenvolvimento futuro está ali e a continuidade da experiência de
ser é essencial para a saúde futura do bebê que virá a ser um indivíduo.
É a mãe, em estado de devoção materna primária, atenta às necessidades de seu
bebê, que poderá lhe oferecer os cuidados necessários para que a experiência de
continuidade de ser possa acontecer. Safra (2002, p.34) enfatiza que
O ser humano, a fim de que possa acontecer e emergir como si mesmo, precisa iniciar
seu processo de constituição a partir de uma posição, de um lugar. Esse lugar não é um
lugar físico, é um lugar na subjetividade de outro. [...] a necessidade, para o
acontecer humano, que a criança seja recebida e encontrada por um outro humano, que
lhe dê esse olhar, que lhe proporcione o início de si mesma
.
Para Winnicott (1990, p. 153), "no início a não-integração, não vínculo algum
entre corpo e psique, e não há lugar para a realidade não-eu". E, logo a seguir,
acrescenta que "nos estágios iniciais a dependência do ambiente é tão absoluta que
não há utilidade alguma em pensarmos no novo indivíduo como sendo ele a unidade".
No início de seu processo de desenvolvimento, na fase de dependência absoluta,
partindo do estado de não-integração, o bebê precisa realizar três tarefas fundamentais:
a integração no espaço e no tempo; a personalização, isto é, o alojamento da psique no
corpo, o início das relações objetais e o estabelecimento das relações com a realidade
externa.
Essas realizações dependem de determinados cuidados ambientais para serem
alcançadas, cuidados esses proporcionados pela mãe suficientemente boa, capaz de
se identificar com seu bebê, e que Winnicott define como: holding; manejo (handling) e
apresentação de objetos.
O holding diz respeito não apenas ao cuidado físico, mas também à provisão ambiental
total, possibilitando o processo de integração do bebê. Winnicott (1960, p.48) afirma
que
25
Neste estágio o lactente necessita, e na realidade consegue, uma provisão ambiental
que tem certas características:
Satisfaz as necessidades fisiológicas. Aqui a fisiologia e a psicologia ainda não se
tornaram separadas, ou estão ainda no processo de fazê-lo; e
É consistente. Mas a provisão ambiental não é mecanicamente consistente. Ela é
consistente de um modo que implica a empatia materna.
Holding:
Protege da agressão fisiológica.
Leva em conta a sensibilidade cutânea do lactente - tato, temperatura, sensibilidade
auditiva, sensibilidade visual, sensibilidade à queda (ação da gravidade) e a falta de
conhecimento do lactente da existência de qualquer outra coisa que não seja ele
mesmo.
Inclui a rotina de cuidados dia e noite, e não é o mesmo com dois lactentes, porque é
parte do lactente, e dois lactentes nunca são iguais.
Segue também as mudanças instantâneas do dia-a-dia que faz parte do crescimento e
desenvolvimento do lactente, tanto físico como psicológico.
Uma das principais funções do holding é reduzir ao mínimo as invasões a que o bebê
deve reagir, minimizando assim a experiência de aniquilamento vivida nesses
momentos. Através de um cuidado materno adequado, o bebê vai experimentando uma
continuidade de ser, na medida em que não precisa reagir às invasões ambientais, às
rupturas. Essa adaptação da mãe ao bebê não é perfeita, mas uma mãe devotada
comum é capaz de perceber as falhas e procurar corrigi-las o mais breve possível. Esse
cuidado e atenção da mãe são percebidos pelo bebê como uma comunicação de amor
e propiciando um sentimento de confiança no ambiente. Nesta fase inicial, é através do
holding que a mãe expressa seu amor ao bebê.
Com um holding adequado, tem início, também, a personalização, quando começa o
processo de integração entre soma e psique. Winnicott (1949, p. 411) esclarece que a
psique é "a elaboração imaginativa de partes, sentimentos e funções somáticas, isto é,
da vivência sica”. É a partir do processo de personalização que o bebê começa a
habitar o próprio corpo e sua pele passa a ser uma membrana que limita o eu e o não-
eu, interno e externo. Winnicott afirma ainda que
gradualmente, os aspectos da psique e do soma que a pessoa em crescimento possui
envolvem-se em um processo de inter-relação mútua. Esta inter-relação entre a psique e
o soma constitui uma fase inicial do desenvolvimento do indivíduo. Em um estágio
26
posterior, o corpo vivo, com seus limites, e com um interior e um exterior, é sentido pelo
indivíduo como formando o cerne do self imaginativo.
Para que esse processo ocorra, a mãe precisa ser capaz cuidar do corpo bebê,
satisfazendo suas necessidades de movimento e expressão, facilitando também suas
satisfações cutâneas e musculares. Ela deve oferecer experiências afetivas e físicas,
envolvendo-se emocionalmente e aceitando o bebê e seu corpo sem restrições,
deixando-se afetar em sua corporeidade. Winnicott define esta função como manejo
(handling).
Safra (1999, p.74) acrescenta que o bebê tem "um corpo, que paradoxalmente é a
presença de um outro. Não é um corpo coisa, mas torna-se um corpo humano: é o
soma com pegadas de alguém devotado”.
Se tudo correr bem, as funções mentais do bebê o se desenvolvendo, capacitando-o
aos poucos a lidar com as falhas do cuidado materno, sem precisar reagir
excessivamente a elas. Estas falhas, na medida em que possam ser elaboradas pelo
bebê através de sua crescente atividade mental, possibilitam o processo de desilusão
gradual e facilitam o envolvimento total do bebê com sua realidade interna e com a
realidade compartilhada. O relativo fracasso de adaptação é transformado, pela
atividade mental do bebê, em um sucesso adaptativo. Isto é possível se as falhas
ambientais não excederem a capacidade do bebê de entendê-las.
Segundo Safra (2006b), a integração psique-soma traz uma experiência de vitalidade
ao bebê, que sente que tem um centro, um si mesmo. A alegria e a esperança o os
sentimentos que expressam esta vitalidade. O bebê sente que habita um corpo vivo e
repleto de significados.
Safra (2006b) atenta para a importância do espaço e da materialidade no espaço clínico
para que as facetas da corporeidade do outro possam ser alcançadas. O corpo revela a
biografia e o lugar que a pessoa ocupa no mundo. "O mundo só é visto pela criança
como um campo a ser explorado porque ela sente que tem lugar e morada em seu
27
corpo e no interior do corpo do materno" (SAFRA,1999, p.79). O corpo pode evidenciar
humilhações e preconceitos, que precisam de legitimação e pode revelar, também, o
desenraizamento vivido, assinalando a necessidade de legitimação e pertencimento.
No início do processo de amadurecimento, o betransita entre estados excitados e
estados tranqüilos. Nos estados excitados, o bebê experimenta uma tensão instintiva e
a expectativa de encontrar algo em algum lugar. Se houve um holding adequado e o
bebê pôde experimentar a quietude e o acolhimento, então, no momento de excitação,
ele pode realizar um movimento em busca desse algo. Winnicott afirma que, nesse
momento, o bebê está pronto para ser criativo. Mas isso dependerá da capacidade da
mãe identificar-se com seu bebê, ir ao encontro do momento criativo específico e poder
se oferecer para ser criada por ele. Winnicott explica que essa possibilidade do bebê
encontrar o objeto criado por ele traz a importante experiência de ilusão de onipotência,
o que pode acontecer com a adaptação do ambiente às suas necessidades, levando
em consideração a sua singularidade. Winnicott (1990, p.122) assinala que nesse
momento "o ser humano se encontra na posição de estar criando o mundo. O motivo é
a necessidade pessoal; testemunhamos então a gradual transformação da necessidade
em desejo".
Nesta fase, o bebê relaciona-se com objetos subjetivos que são os objetos encontrados
no ambiente, no momento em que o bebê estava pronto para concebê-los, o que traz a
ilusão de que ele os criou. Posteriormente, esses objetos subjetivos poderão vir a ser
percebidos como externos a partir do momento em que forem destruídos pelo bebê e
sobreviverem a essa destruição. então poderão ser usados por ele. Para Winnicott
(1975, p.130), é esse
impulso destrutivo que cria a qualidade de externalidade. [...] Não há raiva na destruição
do objeto a que me refiro, embora se possa dizer que existe alegria pela sobrevivência
do objeto. A partir desse momento, ou surgindo dessa fase, o objeto, na fantasia, está
sempre sendo destruído. Essa qualidade de 'estar sempre sendo destruído’, torna a
realidade do objeto sobrevivente sentida como tal, fortalece o tom de sentimento e
contribui para a constância objetal. O objeto agora pode ser usado.
28
Esse uso do objeto implica em considerar sua realidade externa, ao contrário da
capacidade de relacionar-se com os objetos, que pode se dar com objetos subjetivos.
Essa destrutividade e a sobrevivência do objeto coloca-o fora do controle onipotente do
bebê. Winnicott (1975, p.131) afirma que "dessa maneira, cria-se um mundo de
realidade compartilhada que o sujeito pode usar e que pode retroalimentar a substância
diferente-de-mim dentro do sujeito".
Esta experiência faz o bebê ter a sensação de que o mundo pode conter o que ele
precisa e de que ele é potente e capaz de criar os objetos de que necessita, o que o
leva à possibilidade de confiar e ter esperança. Experimenta o viver criativo e torna-se
capaz de tomar um objeto da realidade compartilhada e transformá-lo em algo próprio.
Para Winnicott (1990, p. 130), "o mundo é criado de novo por cada ser humano"; caso a
criança não se torne capaz de criar o mundo, este não terá nenhum significado para
ela.
Barretto (1998, p.94) assinala que "as falhas nesta função (apresentação de objeto)
levariam o sujeito a uma dificuldade e/ou incapacidade de operar nessas dimensões (de
espaço e tempo), podendo acarretar também um sentimento de irrealidade, no qual o
sujeito não sente que está no mundo", pois é através da função de apresentação de
objeto que o bedesenvolve sua capacidade de realização, relacionada à noção de
processo.
Algumas das modalidades de cuidado relacionadas à apresentação de objeto na clínica
vão da cotidianidade, da rotina, do respeito ao ritmo do paciente, do contexto e tema da
sessão analítica, até a busca do idioma pessoal. (SAFRA, 2006c)
Safra (1999, p. 95) nos fala da importância do gesto do bebê na criação do mundo e de
si mesmo ao afirmar que
em condições favoráveis, o bebê cria o mundo, através de seu gesto, ao mesmo tempo
em que cria a si mesmo, possibilitando o processo de personalização. O gesto cria o
objeto, mas cria concomitantemente o braço ou qualquer outra parte do corpo implicada
na ação criativa. Abre-se também a própria capacidade de vir a conhecer o outro e o
29
mundo. Um único gesto se desdobra em desvelamentos de diferentes registros do self e
do mundo. O gesto inaugura o criar, o conhecer e o amar.
É através do gesto espontâneo, criativo, que a criança pode vir a reconhecer-se e
sentir-se real. É apenas desta forma que ela pode entrar no mundo de forma pessoal e
singular. Esse gesto surge no espaço potencial que vai se constituindo entre a mãe e o
bebê. Winnicott (1975, p.142) afirma que "o espaço potencial entre o be e a mãe,
entre o indivíduo e a sociedade ou o mundo, depende da experiência que conduz à
confiança. Pode ser visto como sagrado para o indivíduo, porque é que este
experimenta o viver criativo”.
Segundo ele, através da percepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o
indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida" (WINNICOTT,1975, p. 95). Nesse
sentido, Safra (1999, p.44) afirma que "só conhecemos de maneira significativa a
porção do mundo que conseguimos criar."
A criança precisa poder se apresentar ao mundo e reconhecer-se através do olhar do
outro, que por sua vez precisa reconhecê-la em sua singularidade. A criança pode
então ir estabelecendo um espaço de pertencimento, que se estende ao mundo. Ela
sente-se real, vivendo experiências reais num mundo real. É o reconhecimento do outro
que possibilitará sua própria existência enquanto ser humano. Segundo Safra (1999,
p.38), "o reflexo especular fornecido pelo outro abre a possibilidade de o paciente (ou
bebê) encontrar a si mesmo e, ao mesmo tempo, ao outro. Este fenômeno
freqüentemente vem acompanhado da vivência de encanto". E logo adiante ressalta
que "as coisas banham-se de sentidos e significados outorgados por uma relação de
criação pessoal do mundo. A experiência de encanto anuncia o emolduramento de
aspectos fundamentais do self". (1999, p.38)
O desenvolvimento do ser humano além de ser um processo contínuo, não é linear.
Winnicott mostra-nos a extrema importância dos fatores ambientais nos estágios iniciais
do desenvolvimento, na constituição do self e todo o adoecimento decorrente das falhas
30
ambientais na primeira infância. Entretanto, Safra nos alerta para as rupturas que
podem ocorrer também ao longo da vida, provocando o adoecimento humano.
Simone Weil traz importantes contribuições para a compreensão da necessidade vital
que temos de estabelecer uma relação ativa e criativa com o lugar em que vivemos.
Uma relação construída baseando-se em lembranças vivas do passado e do sonho do
futuro.
3.2 ENRAIZAMENTO E DESENRAIZAMENTO
O ser humano precisa encontrar raízes e reconhecimento no mundo que lhe é
apresentado. A experiência de encanto surge desse reconhecer-se no mundo, sentir-se
pertencendo ao mundo humano, participando dele.
O enraizamento, para Simone Weil (1943, p 347), é
talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. E uma das
mais difíceis de definir. Um ser humano possui uma raiz por sua participação real, ativa
e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do
passado e certos pressentimentos do futuro.
Essas heranças do passado podem vir a nós através das histórias de nossos
antepassados, de hábitos cotidianos, crenças, valores morais, de uma receita de família
e, também, através dos lugares e paisagens habitados por nossos ancestrais, que
deixaram suas marcas neles, nos objetos que atravessam gerações e vêm carregados
de significados. Em tudo o que, de alguma forma, presentifica os que nos precederam.
Para Safra (2004, p.43), precisamos "compreender o ser humano como a
singularização da vida de muitos" e isto “implica em dizer que cada ser humano é a
singularização da vida de seus ancestrais e é o pressentimento daqueles que virão".
Defende que a vida em comunidade, a convivência com os outros depende da
hospitalidade, do acolhimento com que somos recebidos por alguém no mundo
humano. A nossa condição originária é a comunidade. Quando isso não é possível "a
31
condição originária aparece como sofrimento infinito, agonia do anseio pelo Outro".
(SAFRA, 2004, p.73) Esse Outro é definido por ele como sendo "o contemporâneo, os
ascendentes, a coisa, a Natureza, o mistério. Aspectos fundamentais na constituição da
morada humana" (SAFRA, 2004, p. 43)
Quando esta experiência de enraizamento não é permitida, Simone Weil alerta para as
decorrências do desenraizamento, que pode se dar por desemprego, más condições de
trabalho, imigração, falta de instrução, entre outros. O desenraizamento é disseminado
especialmente quando estão prejudicadas a comunicação com o passado e a
possibilidade de criar e de se projetar para o futuro. Ele nos traz a vivência de ruptura e
desagregação, em graus variados. Segundo ela, os desenraizados têm dois
comportamentos possíveis: ou caem numa "inércia da alma quase equivalente à morte"
ou se lançam em atividades que perpetuam o desenraizamento por métodos
violentíssimos.
Gonçalves Filho (1995, p. 140) aponta alguns sentimentos experimentados pelo homem
desenraizado:
afetos vertiginosos, 'despencadores', afetos sem nome - como qualificá-los? um susto? o
medo? o pavor? tristeza? ódio? culpa? solidão? As formas deste desencadeamento
podem variar: são lágrimas, o emudecimento, o endurecimento, o protesto confuso, a
ação violenta e até o crime.
Um educador terapêutico do Moinho da Luz conta uma experiência vivida no trajeto do
Vale do Anhangabaú até o Moinho, uma caminhada de aproximadamente vinte
minutos, realizada na companhia de garotos que vivem no Vale, quando um dos
garotos reage a uma agressão, passando do choro a um ataque descontrolado:
Enquanto nos distraíamos com as manobras de José para retirar uma cama da
caçamba, um valentão de roupa camuflada saltou de dentro de um dos botecos da
região e arrancou o saco de cola do nosso menor e mais indefeso cavaleiro, que
desaguou num choro seguido de um ataque de ria. Sabe aquele velho clichê que diz
que violência só gera mais violência? João retaliou o ataque da forma que podia.
Armado de pedras pôs o valentão novamente para dentro do boteco, defendendo-se das
pedradas. A esta altura as pedras não tinham mais direção. Que acertassem a todos!
Não havia nada que eu dissesse que fizesse com que ele resolvesse sair dali, onde mais
pessoas já o xingavam e ameaçavam.
32
No Brasil, o processo de migração, no qual o homem se afasta de seu lugar de origem,
deixando para traz um modo de viver, associado ao desemprego ou péssimas
condições de trabalho e moradia, joga o migrante num vazio, desmoralizando-o, na
medida em que ele não encontra, no lugar onde chega, possibilidade de inserção. Na
nova cidade não há lugar para o que ele sabe ou era capaz de realizar. Todo o
conhecimento de sua vida e de seus antepassados é desqualificado. Ecléa Bosi (2006,
p.17) fala sobre esta condição:
o migrante perde a paisagem natal, a roça, as águas, as matas, a caça, a lenha, os
animais, os vizinhos, as festas, a sua maneira de se vestir, o entoado nativo de falar, de
viver, de louvar a seu Deus. Suas múltiplas raízes se partem. Na cidade, a sua fala é
chamada de 'código restrito', pelos lingüistas; seu jeito de viver, 'carência cultural'; sua
religião, crendice ou folclore.
Duas educadoras terapêuticas nos trazem as impressões de suas visitas a algumas
famílias que vivem em uma ocupação próxima ao Moinho da Luz:
Rua Barão de Piracicaba com Helvetia, vira à direita. Botecos, hotéis, esquinas
povoadas de "nóias", próximo à porta de entrada da ocupação, senhores abordam os
transeuntes “é reclamação trabalhista?” “INSS?”, "não, obrigada". Portinha baixa, aberta,
batente de um azul forte, é aqui. Entramos, logo na entrada, que possuía um recuo com
um tanque, algumas pessoas nos observam desconfiadas. Cumprimentamos, avisamos
que vamos à ocupação. Subimos alguns degraus irregulares e seguimos por um
corredor apertado, escuro, de cheiros estranhos e úmidos. O pouco de luz que iluminava
o caminho vinha de dentro dos quartos com portas abertas ao longo deste corredor. Fim
do corredor, temos que seguir à direita, onde um banheiro coletivo, luz acesa, chão
molhado, com pegadas do último que havia tomado banho. Um desnível, outro, mais um
degrau, desce, luz no fim do túnel, ar! Damos para uma área aberta, com muito entulho
(ripas e mais ripas de madeira, grandes), amontoado em três grandes montes. No
centro, talvez o que restou de um galpão: quatro pilares pelados e o telhado alto,
formando um cobertinho. Ao redor, fazendo parede com os muros que delimitavam a
área, entre 10 e 15 barracos de madeira, em sua maioria. Algumas pessoas fora de suas
casas, como se estivessem em um quintal comum: adultos conversando, entre eles um
homem e uma mulher de cadeira de rodas, crianças brincando em uma rede
improvisada ou com pedaços de pau, mulher lavando a roupa, adolescentes fumando
maconha sentados em um canto...
Essas famílias foram morar ali para fugir do aluguel, algo realmente além das suas
capacidades financeiras, e formaram uma comunidade à parte, onde todos se
conhecem e convivem juntos diariamente, compartilhando dificuldades e poucas
alegrias, dividindo o mesmo banheiro, o mesmo quintal, histórias parecidas, alimentos,
33
dinheiro e o que mais for preciso. E as crianças e adolescentes? Todos fora da escola,
ajudando em casa ou trabalhando como camelôs pelas redondezas.
Nós chegamos ali para visitar Dona Elvira, mãe de três meninos que freqüentaram o
Moinho da Luz e de uma adolescente de 14 anos. Com dificuldade para pagar a pensão
onde morava, mudou-se para a ocupação residindo ali poucas semanas. Hoje estão
instalados num apartamento à Rua Barão de Limeira, que foi cedido por um conhecido.
A filha mais velha, Carla, levou o namorado de 25 anos que conheceu na ocupação para
morar com a família e engravidou na primeira semana. Esta gravidez, entre outras
coisas, irá adiar ainda mais a volta de Carla para escola, da qual está longe há bastante
tempo. Dona Elvira, que toma medicação psiquiátrica e necessita de cuidados
constantes, está em vias de conseguir o “LOAS”, um benefício por invalidez. Analfabeta,
aprendeu a escrever o nome para assinar os documentos. Para os três meninos,
estamos tentando vagas na escola mais próxima, pois a última que estudaram e
abandonaram 2 meses, era muito longe de casa. Enquanto isso, fazemos visitas
constantes à família, planejamos atendimento psicológico para Carla, e também a
reaproximação dos meninos ao Moinho da Luz (de vez em quando, um ou outro
aparece, quando não estão trabalhando com a mãe ou a irmã). O mais novo, referindo-
se a um machucado que notamos em sua perna, lembra da ocupação e nos conta: “Foi
lá onde tem madeiras”.
A partir das visitas, passamos a acompanhar outras famílias moradoras do espaço, o
que tem sido nossa maior ocupação atualmente: Denis tem nove anos e nunca
freqüentou a escola. Sua principal atividade é trabalhar com o pai como camelô
principalmente à noite, e nas horas vagas fica a maior parte do tempo na rua. Sua mãe
sofreu um derrame recentemente e por conta disso vive numa cadeira de rodas. Há
alguns dias está desaparecida e o que se sabe é que uma noite, após beber muito, teve
uma crise nervosa e saiu de casa, dizendo estar cansada dos maus tratos do marido.
Este, também bebe bastante e sofre de um sério problema de varizes nas pernas,
correndo o risco de amputá-las. Em meio a tudo isso, Denis recebe um amiguinho que
vai à sua casa pela primeira vez. O amiguinho é do Moinho da Luz, onde Denis tem
marcado presença nas últimas semanas. Juntamente com a assistente social do projeto
e também com o Conselho Tutelar, estamos buscando uma vaga na escola para que
inicie os estudos no ano que vem.
Jeferson é um garoto de 15 anos. Também sem estudar, trabalha diariamente vendendo
sombrinhas e dvd`s para sustentar a família sozinho. O pai veio de Pernambuco com a
mulher e os filhos dois meses para fazer um tratamento na coluna. Depois que foi
baleado na região lombar, está numa cadeira de rodas (quebrada há poucos dias) com
as pernas atrofiadas e sentindo muita dor. Logo que chegaram, a mulher sofreu uma
queimadura grave cozinhando com álcool e está hospitalizada até hoje. O irmão mais
novo tem seis anos e fica sempre junto do pai. Como no caso anterior, estamos atrás de
vagas na escola para os dois meninos e também firmando uma parceria com o Centro
de Saúde Barra Funda, para acompanhamento e tratamento de saúde dos moradores
da ocupação.
E seguimos nos ocupando da ocupação... com pré-ocupação..." (Relatório do Moinho da
Luz, nov/2006)
34
Essas ocupações são moradias muito comuns no centro da cidade. Geralmente são
galpões invadidos e divididos em barracos, com algumas áreas comuns, como
banheiro, por exemplo. Também são comuns as invasões, como chamam os prédios
abandonados, sem nenhuma infraestrutura, que o ocupados por famílias. Em
algumas dessas moradias, a convivência é grande entre os moradores. Às vezes, é
marcada por gestos de solidariedade, em outras por indiferença. Existem alguns grupos
comunitários que lutam pelo direito à moradia. Nas ocupações que conhecemos,
quando eram ameaçados de desalojamento, havia uma movimentação para garantir
suas casas, mas não encontramos uma vivência comunitária que buscasse melhoria
nas condições de vida. As mudanças de moradia também são freqüentes. Essas
famílias vão vivendo do modo que é possível, reduzidas muitas vezes a questões de
sobrevivência. No exemplo trazido pelos educadores terapêuticos, vemos famílias que
vivem em condições degradantes. O abandono é a tônica. A maioria das pessoas está
fora do mercado de trabalho, as crianças, além de trabalharem, estão fora da escola. O
acesso a serviços de saúde e assistência social é precário. Qual a possibilidade de uma
projeção para o futuro quando o presente está impedido?
Lembro das primeiras vezes em que fui às casas das crianças que freqüentavam o
Projeto Quixote, na Vila Mariana, convidada e acompanhada por elas. Moravam numa
favela próxima. Elas, orgulhosas, queriam que eu conhecesse suas casas, mas
alertaram para a sujeira, o odor desagradável, a falta de janelas nas casas. Apesar de
estarem acostumadas, sabiam que aquelas condições não eram dignas.
Falando sobre o trabalho operário, por exemplo, Simone Weil (1943, p.421) aponta o
fato de que, quando uma pessoa ingressa numa fábrica e, repentinamente, passa a ser
tratada como o suplemento de uma máquina, um pouco menos que uma coisa", de
quem se espera apenas obediência, há o sofrimento proveniente de uma "impressão de
não existir, acompanhada de uma espécie de vertigem interior.[...] Esse primeiro
choque, recebido o cedo, muitas vezes imprime uma marca inapagável. Ela pode
tornar o amor pelo trabalho definitivamente impossível.” Isto acontece, por exemplo, no
caso trabalho infantil, infelizmente, tão comum em nosso país. As marcas deixadas nas
35
crianças que vivem essa experiência de ruptura o cedo fazem com que o trabalho
dificilmente seja vivido como algo que possa trazer satisfações e realizações pessoais.
O trabalho e, muitas vezes, a própria vida ficam reduzidos a uma questão de
sobrevivência. Ficam esvaziados de significação humana.
É muito comum o trabalho infantil entre as crianças que freqüentam o Quixote. O
trabalho doméstico, o cuidado dos irmãos, mas, também, o trabalho nas ruas da cidade,
inclusive à noite: vender balas nos faróis e bares, fazer malabarismos, guardar carros,
tráfico de drogas, exploração sexual. Em algumas situações, são grupos de amigos, é
quase uma brincadeira, mas na maior parte das vezes elas são responsáveis por levar
o dinheiro que mantém a família, como nos exemplos anteriores, e vivem situações de
exploração de seu trabalho por outros adultos. Geralmente, quando essas crianças
não estão fora da escola, estão em processo de abandono. Essas são as formas de
trabalho mais comuns nas grandes cidades. Não há um gesto da criança em direção ao
mundo, não há o cuidado e acolhimento, tão fundamentais. Ela é apenas jogada no
mundo.
Simone Weil (1943, p.421) viveu a experiência da rotina da vida operária na década de
1940. A partir desta experiência, identificou situações que produzem o
desenraizamento. Observou, por exemplo, que é exigido do operário um grande volume
de produção e rapidez, a qualquer custo. Apontou
a natureza da obediência, a quantidade demasiado fraca de iniciativa, de habilidade e de
reflexão exigida dos operários, a impossibilidade em que estão de tomarem parte pelo
pensamento e pelo sentimento no conjunto do trabalho da empresa, a ignorância, às
vezes completa, do valor, da utilidade social, do destino das coisas que fabricam, a
separação completa entre a vida do trabalho e a vida familiar.
Esses são apenas alguns dos fatores que levam ao desenraizamento, quando o
trabalho está reduzido à quantidade de dinheiro que se recebe por ele, como podemos
perceber em muitas situações na atualidade.
36
Para ela, um outro fator importante de desenraizamento é a falta de instrução ou aquela
instrução que é orientada para a informação voltada para a técnica, para a competição,
para a submissão. Ela nos fala de uma
[...]cultura que se desenvolveu num meio muito restrito, separada do mundo, numa
atmosfera confinada, uma cultura consideravelmente orientada para a técnica e
influenciada por ela, muito tingida de pragmatismo, extremamente fragmentada pela
especialização, completamente desprovida ao mesmo tempo de contato com este nosso
universo e de abertura para outro mundo. (WEIL, 1943, p. 414)
Simone Weil (1943, p. 418) chama a atenção para a necessidade de termos raízes no
passado, sobre a necessidade de nos alimentarmos do passado para nos projetarmos
no futuro:
Seria vão voltar as costas ao passado para pensar no futuro. É uma ilusão perigosa
acreditar que haja aÍ uma possibilidade. A oposição entre o futuro e o passado é
absurda. O futuro não nos traz nada, não nos nada; nós é que, para construí-lo,
devemos dar-lhe tudo, dar-lhe nossa própria vida. Mas para dar é preciso ter, e não
temos outra vida, outra seiva a não ser os tesouros herdados do passado e digeridos,
assimilados, recriados por nós. De todas as necessidades da alma humana não há outra
mais vital que o passado.
Essa relação com o passado é dinâmica e não uma atitude passiva ou contemplativa. É
um passado que é refletido e elaborado, que inspira e sustenta nossas realizações,
sendo assim ressignificado.
Winnicott (1975, p.138) assinala a importância da tradição para o estabelecimento do
viver criativo afirmando que "em nenhum campo cultural é possível ser original, exceto
numa base de tradição”. Para ele, a criatividade está relacionada ao sentir-se vivo e
real, à capacidade de relacionar-se com a realidade compartilhada de modo não
submisso, o que possibilita à pessoa tornar-se ativa e participante da vida em
comunidade.
Considera que os processos criativos podem ser sufocados, mas a criatividade nunca é
completamente destruída. Entretanto atenta para situações em que o ambiente pode
provocar grandes rupturas, mesmo em momentos tardios do desenvolvimento.
37
Se tomamos conhecimento de indivíduos dominados no lar, prisioneiros, ou mortos em
campos de concentração, ou vítimas da perseguição de regime político cruel, supomos
antes de mais nada que somente algumas dessas vítimas permaneceram criativas.
Estas naturalmente são aquelas que sofrem. Parece, a princípio, que todos os outros
que existem (não vivem) nessas comunidades patológicas abandonaram a esperança,
deixaram de sofrer e perderam a característica que os torna humanos, de modo a não
mais perceberem o mundo de maneira criativa. Estas circunstâncias representam o lado
negativo da civilização. Referimo-nos à destruição da criatividade em indivíduos pela
ação de fatores ambientais numa data tardia do crescimento pessoal.
(WINNICOTT,1975, p.99).
Mas, mesmo nestas situações, ele acredita que o que é real, pessoal e criativo
permanece oculto, sem nenhuma manifestação. Nesses casos, ao indivíduo é
indiferente viver ou morrer.
O enraizamento é um processo contínuo que deve estar presente nas diversas etapas
do amadurecimento. A criança que tem um lugar em sua família, com uma participação
ativa e enriquecedora, precisa poder ampliar os limites de sua participação no mundo à
medida que cresce. Safra (2004, p. 137), entretanto, nos mostra que "às vezes, ocorre
que uma pessoa, que teve uma recepção razoavelmente favorável em seu percurso
pela vida, depara-se com uma experiência que fratura o ethos humano”. Estas
experiências podem levar a agonias semelhantes àquelas decorrentes de fraturas
éticas acontecidas nas situações constitutivas do início do processo de
desenvolvimento, mas devem ser compreendidas como diferentes destas. Essas
agonias, que aparecem ao longo da vida, são decorrentes de situações de exclusão e
desenraizamento. Tornam-se mais graves quando atravessam gerações, pois a pessoa
afasta-se da memória do que originou seu sofrimento, afastando-se também da
possibilidade de dar-lhe um sentido e destino.
Safra (2004, p.138), trazendo a importância da compreensão destes fenômenos para a
clínica, enfatiza que devemos
ter claro que a exclusão e o desenraizamento não são só fenômenos sociais, mas
também acontecimentos ontológicos. Fenômenos que rompem a possibilidade de o ser
humano habitar eticamente o mundo humano. Existem fenômenos que têm origem no
38
campo social e que atingem o registro ético: aspecto decorrente da interação constante
entre os acontecimentos do mundo (ôntico) e o registro ontológico.
Esses fenômenos podem se apresentar de diferentes formas e podem estar
associados. Algumas dessas formas são: a humilhação social; o desenraizamento, que
pode ser étnico, estético ou ético, e a invisibilidade. (SAFRA, 2004)
A humilhação está relacionada ao não reconhecimento do ser humano pelos outros e à
desigualdade entre as classes sociais, o que traz a experiência de desprezo e
inferiorização, e impede a participação social efetiva. Muitas vezes, a exclusão
internaliza-se como um sentimento de vergonha de si e impede o movimento que
poderia levar o homem a enfrentá-la e transformar sua realidade. Nesses casos, a
possibilidade de intervenção se dá pelo reconhecimento do gesto que busca instaurar a
dignidade.
O desenraizamento pode ocorrer em três registros diferentes:
- o desenraizamento étnico se pela ruptura com os elementos culturais e sensoriais
de origem. É vivido como uma impossibilidade de pertencer e de se relacionar com
seus iguais, sendo preciso restabelecer o contato com os elementos que possam
restaurar a etnia fragmentada;
- o desenraizamento estético relaciona-se com a impossibilidade da psique alojar-se no
corpo devido às organizações estéticas que não respeitam as necessidades corporais
humanas, ou à imposição de estéticas que não consideram a singularidade de cada
um. É necessário que a pessoa encontre um lugar de descanso, não invasivo, a partir
do qual possa apropriar-se do próprio corpo;
- o desenraizamento ético relaciona-se à falta de respeito e responsabilidade com o ser
humano.
A condição humana informa à criança, antes de qualquer aquisição intelectual, sobre o
ethos humano. Tudo o que não estiver alinhado nessa perspectiva é vivido por ela como
uma situação traumática e violenta, mas pode não ser representada, devido a sua
imaturidade. Essas crianças desenvolvem uma perspectiva de vida desesperançada."
(SAFRA, 2004, p. 142)
39
Em muitos casos, a criança procura provocar no outro o sofrimento vivido por ela. A
intervenção necessária diz respeito ao reconhecimento pelo outro de que o que foi
vivido não era ético.
A invisibilidade diz respeito à experiência de não ser visto pelo outro no campo social,
especialmente no caso de pessoas que ocupam posições de pouco prestígio social. O
sentimento predominante é de desesperança e amargura, mas também pode gerar
comportamentos violentos na busca por alguma visibilidade. Exige um reconhecimento
de seu sofrimento em sua origem.
A desagregação psíquica provocada por estas experiências pode levar à apatia e a um
processo de alienação, que impede o homem de compreender sua situação,
impossibilitando que um gesto que possa provocar alguma mudança em sua condição
social. Em outras situações, pode ocorrer um comportamento violento provocado pela
própria impossibilidade de agir no sentido de uma mudança, pela impossibilidade de um
gesto criativo, de uma inserção singular no mundo. Pode ocorrer, ainda, a necessidade
de infringir ao outro o seu sofrimento.
A intervenção, nesses casos, exige um cuidado, uma atenção capaz de oferecer as
condições ao acontecer humano. Precisamos testemunhar, reconhecer o sofrimento do
outro no registro de seu aparecimento, sem deturpá-lo ou reduzi-lo. Safra (2004, p.73)
explicita que "na situação clínica, estamos em comunidade de destino com alguém
quando nos posicionamos solidariamente com nosso paciente frente às grandes
questões existenciais peculiares ao destino humano”.
Para lidarmos com o sofrimento decorrente do desenraizamento no mundo
contemporâneo, o placement, modalidade de intervenção clínica apresentada por
Winnicott, tem-se mostrado de extrema importância. No placement, a questão do lugar
está colocada como fundamental para o acontecer humano, não necessariamente um
lugar físico ou psíquico, mas um lugar no mundo humano.
40
3.3 O PLACEMENT
Winnicott nos apresentou diferentes maneiras de trabalhar na clínica. Propôs, além da
psicanálise clássica, as consultas terapêuticas, a psicanálise segundo a demanda, e o
placement, uma das modalidades mais inovadoras de atendimento proposta por ele. O
placement implica, inicialmente, em uma alteração ou mudança de ambiente da criança,
na oferta de um outro lugar para ela. A intervenção se essencialmente pela ação,
pela convivência em determinado ambiente.
Essa modalidade de intervenção aparece claramente no trabalho que realizou durante a
segunda guerra mundial, quando acompanhou o processo de evacuação das crianças
de Londres. Ele enfatiza a preocupação em oferecer às crianças um ambiente capaz de
protegê-las durante essa situação. Fica evidente a importância desse tipo de
intervenção, especialmente com as crianças que apresentavam um comportamento
difícil. Ele apresenta o placement como um lugar de cuidado e manejo no qual são
fundamentais a continuidade e estabilidade ambiental, enfatizando a importância dada
ao ambiente na constituição do self.
Anos mais tarde, em um artigo de 1954, sobre a tendência anti-social, referindo-se à
delinqüência, ele afirma categoricamente que, para o delinqüente, o tratamento é o
placement e não a psicanálise, assinalando que “é o provimento de cuidados à criança,
que podem ser redescobertos pela própria criança e nos quais ela pode experimentar
de novo os impulsos do id, com possibilidade de testá-los. É a estabilidade do novo
suprimento ambiental que a terapêutica” (WINNICOTT, 1956, p. 137). Afinal, para
ele uma das características fundamentais da tendência anti-social é o “elemento nela
que compele o meio ambiente a ser importante”. (WINNICOTT, 1956, p. 130)
O placement está inicialmente relacionado ao manejo. Safra atenta para o fato de que o
placement vai além da experiência do manejo, porque este último está relacionado à
regressão e ao uso do setting. o placement extrapola o conceito de setting. O
41
placement é o manejo colocado na vida, nas situações cotidianas da vida (SAFRA,
2001, anotação de aula).
Winnicott, em um texto de 1947, Tratamento em regime residencial para crianças
difíceis”, apresenta as características desse trabalho de forma detalhada, enfocando os
cuidados tanto com a criança, quanto com a equipe responsável pelo trabalho nos
alojamentos.
As crianças que ele definia como difíceis eram aquelas que haviam tido uma
experiência de lares insatisfatórios, instáveis, ou viveram a desintegração familiar. Por
isso, considerava que elas precisavam viver a experiência de um lar primário
satisfatório, e não de substitutos de seus próprios lares. Winnicott compreende lar
primário como sendo o ambiente adaptado às necessidades da criança, com alguém
especialmente orientado para ela. Nesse artigo, assinala algumas dessas necessidades
que precisam ser atendidas para que a criança possa vir a ter uma relação criativa com
a realidade externa: encontrar alguém que lhe proporcione satisfações instintivas para
que possa descobrir seu corpo e integrar psique e soma; encontrar alguém que possa
amar e odiar, porque é a experiência de amar e odiar a mesma pessoa que lhe
permitirá sentir culpa e o desejo de restituir, podendo experimentar o sentimento de
preocupação; a experiência de viver num ambiente humano e físico indestrutível, no
qual possa descobrir sua capacidade de destruir, o que lhe permitirá distinguir entre
fantasia e fato; encontrar no lar primário pai e mãe que se responsabilizem por ela, para
que possa encontrar e expressar o desejo de separá-los e sentir alívio por não
conseguir. São características do ambiente necessárias para a constituição de si.
Winnicott (1947, p. 71) aponta que "a idéia central do plano era proporcionar
estabilidade, que as crianças pudessem conhecer, testar, em que aos poucos
pudessem confiar e em função da qual pudessem viver". Phillips (2006, p. 107) ressalta
que para Winnicott, ao testar o ambiente, a criança "está em busca da realidade e não
tentando fugir dela".
42
Quanto às equipes desses alojamentos, Winnicott defende que devem ter a experiência
de estabilidade, sobretudo emocional, para que possam realizar o trabalho. Além disso,
precisam encontrar nele alguma satisfação. Para Winnicott, os profissionais envolvidos
no placement devem ter a capacidade de se relacionar e lidar com as situações de
modo autêntico e espontâneo, o que é mais importante do que treinamento ou
experiência anteriores. A singularidade de cada um deve ser colocada na situação. É
preciso que haja profissionais de ambos os sexos e que estes ajam com naturalidade e
coerência. Winnicott (1947, p.73) enfatiza que a natureza permanente do lar que o
torna valioso, mais do que o fato de o trabalho ser realizado com inteligência”.
Para realizar o placement é essencial o reconhecimento das necessidades
fundamentais da criança e a possibilidade de oferecer a ela um lugar no qual seu
idioma pessoal encontre ressonância, e a partir do qual aspectos do seu self, que não
puderam se desenvolver durante o processo maturacional, possam vir a se constituir.
Em 1948, Winnicott (1948, p.78) publica um texto no qual afirma que, a partir das
experiências de placement nos tempos da guerra, pôde perceber a importância desta
modalidade de intervenção em qualquer tempo para crianças em algumas situações
específicas como: "crianças cujos lares não existem ou cujos pais não conseguem
estabelecer uma base para o desenvolvimento delas, e crianças que têm um lar, mas
nele, um pai ou uma mãe mentalmente doentes”. Em seguida, define as necessidades
das crianças que poderiam se beneficiar do placement como sendo aquelas que
“precisam de estabilidade ambiental, cuidados individuais e continuidade desses
cuidados” (WINNICOTT, 1948, p. 78).
Em um artigo de 1970, Winnicott enfatiza a importância do placement nos casos de
crianças que viveram em um ambiente caótico, quer de modo geral, quer numa fase da
vida, sendo a confiabilidade do ambiente um aspecto essencial da terapia. "O ambiente
caótico significa, para a criança, imprevisibilidade" (grifo do autor - 1970, p.229). Nesses
casos, a criança sempre espera viver um trauma e, assim, o self central deve
permanecer escondido e inacessível, para que nada possa atingi-lo, nem o bem, nem o
43
mal. Esta experiência produz confusão mental e a criança poderá permanecer confusa,
desorganizada e desorientada. Ela é considerada turbulenta, irrequieta, que não
persevera no que faz, com problemas de concentração e incapaz de pensar no futuro.
"A queixa, se é dada à criança a oportunidade de queixar-se, é de que nada é sentido
nem vivenciado como real ou essencialmente importante, ou verdadeiramente
manifestação do eu" (WINNICOTT, 1970, p.229). Winnicott afirma que uma das
soluções encontradas pela criança pode ser a complacência, a submissão, com a
violência sempre latente, podendo manifestar-se eventualmente. Considera que nesses
casos, o placement, como a possibilidade de oferecer uma experiência de
"confiabilidade de um tipo humano pode, com o decorrer do tempo, desfazer um
sentimento agudo de imprevisibilidade”.(WINNICOTT, 1970, p.230)
Safra (2001, anotação de aula) assinala quatro pontos fundamentais na clínica do
placement:
- o analista deve trabalhar na transferência, isto é, tomar o lugar que lhe foi dado no
movimento transferencial;
- o trabalho deve se realizar segundo a própria singularidade do analista. Ele trabalha
com seu repertório psíquico-cultural, sendo a sua vida, sua experiência e sua
subjetividade colocadas na transferência;
- o trabalho não é mediado pela interpretação, mas sim pela intervenção. A ênfase é
dada à ação como elemento de trabalho;
- as intervenções se dão nas situações cotidianas da vida, rompendo a idéia de
separação entre o consultório e o mundo fora dele.
O placement seria, então, uma intervenção clínica que se propõe a oferecer um lugar
no qual o idioma pessoal encontre ressonância. Onde, a partir do reconhecimento da
singularidade do outro, seja possível oferecer as condições necessárias para atender
as suas necessidades fundamentais, onde o self possa se realizar. Segundo Safra
(2006, p. 13), o placement é uma modalidade de intervenção em que a noção de lugar
é fundamental, pois nela o ser humano precisa encontrar um lugar que tenha sido oferta
de um outro para que se inicie o processo de constituição do self”.
44
Nos casos em que o lar originário foi insatisfatório, o placement pode, ao oferecer um
outro lugar, possibilitar que a criança perceba objetivamente as características e a
problemática do lar em que viveu, o que permite a ela ressignificar a experiência vivida
e posicionar-se de uma forma diferente frente a esta questão, podendo assim
vislumbrar um outro caminho para si.
Safra (2006d) enfatiza que a possibilidade de ofertar um lugar é o aspecto mais
importante do placement. O ser humano acontece a partir de um lugar. O holding, a
personalização e a apresentação de objeto, por exemplo, podem vir a se constituir a
partir de um lugar que é ofertado pela hospitalidade de um outro. É a partir de um lugar
que o ser humano pode vir a ser. Safra relembra uma passagem no atendimento a
Piggle, quando ela encena seu nascimento a partir da cabeça de seu pai, e assinala
que o lugar originário é na alma do outro e então pode habitar o corpo materno e o
mundo.
O ser humano precisa de um lugar de descanso, que nasce da experiência de
confiabilidade. Confiança que está relacionada à experiência de autenticidade do
ambiente no holding, de continuidade no manejo e estabilidade nas relações
interpessoais. Esse é o lugar a partir do qual se abre a possibilidade de trânsito, um
lugar de onde partir e para onde voltar. Essa experiência dá ordem ao caos, na medida
em que permite que direções se desenhem.
Safra (2006d) aponta que esse lugar possibilita o sonho, a aspiração do porvir, de
utopia, de futuro. Assinala ainda que ele é marcado pelo sonho do futuro e pela
presença dos ascendentes. É a experiência de habitar, de ter um lugar que dá a
possibilidade do enraizamento.
Safra (2006d) afirma que Winnicott concebeu a clínica primeiro como um campo de
acontecimento e, posteriormente, como oferta de um lugar que possibilite experiências
45
constitutivas, que contemple as necessidades originais do ser humano. Mas, antes de
tudo, é necessário que se tenha um lugar.
Na clínica concebida como oferta de lugar, o modo como o analista está presente funda
ou não um lugar. A posição do analista precisa ser de estar junto, com autenticidade,
ajudando o analisando a fundar um lugar aparentado com seu idioma pessoal, no qual
ele se reconheça.
Safra, ao falar sobre o placement, refere-se à posição do analista. Mas o que ele
apresenta relaciona-se também a outras situações clínicas, não exclusivamente à
relação entre analista e analisando. As intervenções realizadas no Quixote, por
exemplo, podem ser compreendidas como sendo norteadas pela questão do lugar,
fundadas na noção do placement. Os profissionais que atuam junto às crianças e
adolescentes ocupam o mesmo lugar que o analista, na análise compreendida pelo
vértice do placement.
Para Safra (2006d), o desenraizamento, "relacionado à ausência de um lugar, como
possibilidade de habitar o mundo segundo as necessidades fundamentais da condição
humana", é um dos problemas fundamentais no mundo contemporâneo. É esse tipo de
sofrimento que muitas das crianças e adolescentes que encontramos no Projeto
Quixote ou nas ruas denunciam.
46
4. AS CRIANÇAS
No Projeto Quixote, trabalhamos com crianças que sofreram grandes privações, vivem
em condições precárias, muitas vezes estão em processo de abandono escolar; outras,
ainda, estão em situação de rua ou em abrigos, afastadas da família. Vivem em
situação de exclusão, muitas vezes sem acesso a cuidados básicos e proteção,
privadas de seus direitos.
Em seu Relatório sobre a Situação Mundial da Infância 2006, o UNICEF chama a
atenção para a condição em que se encontram milhões de crianças no mundo, como
aponta o titulo do relatório: Excluídas e Invisíveis.
O relatório assinala que “é amplamente reconhecido que a exclusão é multidimensional,
e que inclui privações de direitos econômicos, sociais, de gênero, culturais e
políticos.”(UNICEF, 2006, p.7). O conceito de exclusão é, portanto, muito mais amplo
que o de pobreza material.
Sawaia (1999, p.9) compreende a exclusão como um
[...] processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais,
políticas, relacionais e subjetivas. É um processo sutil e dialético, pois existe em
relação à inclusão como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou um estado, é um
processo que envolve o homem por inteiro e suas relações com os outros.
Defende que todos estão, de alguma forma, inseridos nas atividades econômicas, mas
de modo nem sempre decente e digno, alertando para o fato de que a grande maioria
da humanidade está inserida através da insuficiência e das privações.
O UNICEF (2006, p.7) considera como excluídas aquelas crianças expostas a um
ambiente que não as protege contra violência, abuso e exploração, ou aquelas que não
têm acesso a serviços e bens essenciais, "sendo ameaçadas quanto a sua
possibilidade de participar plenamente na sociedade no futuro." Essa exclusão pode ser
47
exercida por suas famílias, pela comunidade, pelo governo, pela sociedade civil, pelos
meios de comunicação e pelo setor privado.
Em casos extremos, as crianças podem tornar-se invisíveis, efetivamente
desaparecendo dentro de suas famílias, de suas comunidades e de suas sociedades,
assim como desaparecem para os governos, para doadores, para a sociedade civil,
meios de comunicação e até mesmo para outras crianças. Para milhões de crianças, a
principal causa de sua invisibilidade são as violações de seu direito a proteção.
(UNICEF, 2006, p.7).
O relatório aponta que entre as crianças afetadas por esses fatores estão aquelas que
não possuem registros de nascimento, crianças refugiadas ou deslocadas, órfãs,
crianças de rua, crianças em prisões, crianças em casamentos precoces, em trabalho
perigoso ou em conflitos armados, crianças vitimas do tráfico, e crianças presas a
contratos. As crianças que vivem ou trabalham nas ruas são as mais visíveis
fisicamente e, paradoxalmente, as mais invisíveis. Portanto, o as mais difíceis de
proteger e de serem alcançadas por serviços como educação e saúde.
Gonçalves Filho (1995, p.7) nos faz refletir sobre a situação de exclusão e invisibilidade
em seu trabalho sobre a humilhação social, afirmando que esta está implicada na
exclusão do homem para fora do âmbito intersubjetivo da iniciativa e da palavra
públicas, está implicada na expulsão para fora da dialética social do reconhecimento.
Representa o impedimento do ‘rosto’ dos pobres, pela espoliação de seus meios
culturais e pela reificação das aparências.”
Sawaia (1999, pg. 08) assinala que a exclusão deve ser entendida também como "[...]
descompromisso político com o sofrimento do outro", na medida em que seu aspecto
fundamental é a injustiça social.
Essas crianças em situação de extrema vulnerabilidade convivem com a violência,
abuso e exploração, tanto físicos quanto psicológicos. A violência é um aspecto sempre
presente em suas vidas. Evidencia-se tanto nas queixas que as trazem ao Quixote,
quanto nos relatos feitos por elas mesmas do seu cotidiano, além do que é vivido no
próprio atendimento. Safra (2001, anotação em aula) entende que a maior parte das
48
crianças que apresentam comportamentos anti-sociais atualmente tem um tipo de
organização que é decorrente de uma impossibilidade de ter encontrado experiências
constitutivas na primeira infância. Freqüentemente, o que temos com nossas crianças é
um tipo de problemática em que elas, em função de um meio ambiente marcado por
humilhações e opressões, herdam da família uma impossibilidade de constituição ética.
Apresentam comportamentos disruptivos e violentos pela falta de uma linguagem
humana". Ele compreende a exclusão social como situações em que "fraturas da
cidadania, estilhaçamentos da ética" (SAFRA, 2004, p.140)
As crianças que encontramos nas ruas estão expostas a inúmeros fatores de risco
associados às vivências e vínculos próprios da sociabilidade da rua. Mas essa situação
de vulnerabilidade já vem de muito antes, de fatores que as levaram até ali. Elas, assim
como as crianças que chegam ao Projeto Quixote trazidas por outros serviços ou pela
família, nos trazem histórias de vínculos esgarçados, rompidos ou interrompidos com a
família. São freqüentes os relatos de violência dentro de casa, violência física,
emocional, sexual, ou negligência e abandono.
4.1 A questão da circulação e da acolhida da rua
Gregori (2000) assinala alguns fatores que não determinam, nem explicam o fato de
uma criança deixar sua casa e passar a viver nas ruas, mas são encontrados com
freqüência nas histórias de vida das crianças em situação de rua que pesquisou. Um
desses fatores é o que ela denomina de "experiência circulante", caracterizada pela
circulação das crianças pela família estendida; pela circulação da família por estados,
cidades e bairros, levando a rupturas ou dificuldades de estabelecimento de nculos
comunitários ou de vizinhança; além da instabilidade econômica que muitas vezes leva
ao trabalho que é realizado nas ruas.
Percebemos, ainda, inúmeros fatores que levam também ao processo de
desenraizamento, como aponta Simone Weil (1943). Entre eles estão: a impossibilidade
de permanecer em seu lugar de origem, a necessidade de migrar, relacionada a
49
situações de extrema pobreza, a ruptura com os hábitos, os costumes e a cultura dos
locais onde nasceram; a dificuldade em estabelecer relações significativas com a
comunidade, especialmente quando as mudanças são freqüentes, o que dificulta uma
participação mais ativa na vida comunitária. A relação com o trabalho baseado apenas
na questão da sobrevivência imediata, também impede que este possa ser um fator de
enraizamento.
Essa experiência circulante torna os limites entre a rua e a casa mais flexíveis.
(SARTI,1995; FONSECA,1995). Gregori (2000, p. 219) considera que “a existência
desse padrão, por si só, não explica a transformação de um filho dessas famílias em
menino de rua”. Entretanto, ela atenta para o fato de que a rua oferece ainda um
conjunto de ações individuais e institucionais, governamentais e não governamentais,
que permitem a conquista de bens materiais e, também, simbólicos e identitários, que
podem enredar as crianças e adolescentes. um certo modo de “acolhida” nas ruas.
São pessoas que ajudam os garotos, oferecendo alimentos, roupas, cuidados.
Instituições governamentais ou não oferecem, além disso, cuidados com a higiene
pessoal, abrigo, médicos e dentistas, entre outros serviços. As crianças e adolescentes
aprendem a circular também por essas instituições, utilizando-as a seu modo. A
utilização desses recursos garante que sobrevivam e se protejam minimamente nas
ruas, mas não faz com que se projetem para fora deste circuito.
4.1.1 Marcos: a necessidade de quietude
O relato de um educador terapêutico sobre passeio realizado com dois garotos que
viviam no centro da cidade ilustra bem as diferentes relações que eles estabeleciam
com cada um dos moradores e trabalhadores da região. Sandro e Marcos tinham,
respectivamente, 11 e 12 anos. Estavam nas ruas há aproximadamente três anos,
vivendo na mesma região.
50
“Uma visita ao mundo dos meninos na rua
Marcos é um menino de 12 anos que fuma crack e fica pelas esquinas da Av. Duque de
Caxias, no centro de São Paulo. Normalmente encontro-o na esquina com a Av. Rio
Branco, fingindo-se de aleijado para conseguir dinheiro dos carros no farol, ou dormindo
na esquina da Duque com a Av. São João. Eu já o conhecia algumas semanas.
Algumas vezes, ele estava disponível para conversar e, em outras, ignorava-me,
falando ou mostrando-se ocupado pedindo dinheiro. Em outras ainda, apenas me
cumprimentava e dizia que não ia conversar, pois estava “na nóia”. Ele havia
participado algumas vezes de atividades no Moinho da Luz. Nos momentos em que
estava disponível e conversávamos, sugeria-nos ir para o projeto.
Nesse dia, uma sexta-feira, estávamos em dupla andando por uma outra parte da região
quando outro educador ligou, avisando que o havia encontrado na esquina da Av. Rio
Branco com a Duque. Marcos apenas o tinha cumprimentado, mas como tenho um
vínculo melhor com o garoto, achamos que seria bom que nossa dupla fosse até lá.
Quando chegamos, três meninos estavam brincando de se bater. Cumprimentamos os
três, mas apenas Marcos respondeu. Um dos meninos continuou deitado no chão, meio
dormindo, e ele e mais um, que ainda não conhecíamos, andavam em direção oposta à
nossa. Enquanto andávamos, disse-nos que estava indo para a mesma direção que nós
e queria que andássemos juntos. O outro menino andava rápido e parecia não querer
nossa presença por perto.
Perguntamos a ele o seu nome; disse “Sandro” meio baixo, sem vontade de responder.
Conversavam bastante entre si, brincando de se bater e rindo. Na próxima esquina,
Marcos disse estar com fome e pediu uma melancia na banca de frutas. O vendedor
logo deu três pedaços, e Marcos nos ofereceu um. Fomos comendo e eles pararam para
brincar com o cachorro de uma das oficinas de carro. Ao chegar no meio da próxima
quadra, Marcos disse estar com calor e que iria tomar banho. Pararam em frente a uma
agência bancária e abriram a torneira ao lado do registro. Molharam as mãos, os pés, a
cara, enquanto o guarda do banco saia para abordá-los; e nós os esperávamos do lado
de fora do portão. Achávamos que o guarda iria expulsá-los dali, mas este ficou apenas
ao lado, impedindo que fizessem muita bagunça. Marcos tirou a camiseta e disse que
iria lavá-la. Molhou-a e esfregou-a em cima do relógio de luz, que estava tão sujo quanto
ela. Depois, sacudiu-a, jogando água nas pessoas ao redor. O guarda do banco ficou
bravo, mas já estávamos andando novamente. Os dois meninos conversavam entre si e
decidiram ir até o “seu Pinto”, e riram. Iam gritando e correndo pela rua, enquanto
Marcos sacudia a camiseta e molhava as pessoas em volta.
Apesar de termos sido convidados por eles para acompanhá-los, estávamos ficando
inquietos com a desordem que faziam e em como provocavam as pessoas na rua.
Chegamos a nos perguntar se não deveríamos parar de acompanhá-los, pois parecia
que estavam fazendo mais barulho por estarmos juntos. Eles nos chamaram novamente
e acabamos prosseguindo no “passeio”. Enquanto isso, eles corriam entre os carros que
passavam rápido pela avenida e agarravam-se, brincando de se bater e de brigar.
Cumprimentaram os funcionários de duas lojas de acessórios automotivos. Em uma
dessas lojas, entraram e pegaram um copo d’água, oferecendo-nos e dizendo que
aquela era uma boa água, geladinha. Nesse momento, o amigo de Marcos, Sandro,
estava mais simpático conosco, e apesar de distante e de não conversar muito, nos
chamava, também, para acompanhá-los.
51
Viramos a esquina e chegamos a uma padaria, onde eles entraram rindo e gritando o
nome de Seu Pinto. Pediram quatro pães, dois para nós e dois para eles. Acabaram
ganhando três pães, dando-nos um. Era perturbador ficar ali, ao lado deles, sempre
correndo entre os carros, se batendo e gritando o tempo todo. Marcos deixou algumas
vezes seu pão cair no asfalto, mas, rapidamente, colocava-o novamente na boca.
Voltando até a esquina da Duque de Caxias pediram, então, para o vendedor de
amendoim que estava com seu carrinho parado na esquina, um pouco de amendoim. O
vendedor reclamou, mais de brincadeira e por costume, e deu-lhes um pouco de
amendoim na mão de cada um, preta de sujeira. Vendo isso, acabei por perguntar-lhes
se nunca tinham diarréia por comer tudo sujo e com as mãos. Sandro riu e disse que
não, que eram fortes.
Quiseram então jogar algum jogo. Sentamo-nos em uma pequena praça à esquina da
Av. São João com a Duque de Caxias e tiramos as peças de dominó da mochila.
Jogamos apenas um pouco, e começamos a brincar de enfileirar as peças de dominó
para, depois, derrubá-las. Porém, cada um deles queria fazer sua própria fileira de
peças, comparando-as, cada um dizendo que a sua era melhor ou maior. Fomos aos
poucos estimulando-os a fazer as fileiras juntas. Acabaram por fazer duas fileiras que se
encontravam no final. Depois tentamos todos fazer uma grande fileira. Nesse momento,
Sandro viu um outro amigo que passava do outro lado da rua e correu atrás dele. O
menino não quis brincar conosco, mas quando Sandro voltou, chegou gritando que
estava passando na televisão Yu-Gi-Oh, um desenho animado. Perguntei-lhes onde
assistiam TV. Marcos riu e disse que ali, na oficina do outro lado da rua, podiam ver
televisão.
Apresentaram-nos, então, à última parte da rede formada por eles. Entramos na loja de
acessórios para carros e sentamos. Ali estava passando o desenho. Um dos
funcionários se apresentou a nós e disse que aqueles meninos estavam nas redondezas
já fazia algum tempo. Conversou então com eles, dizendo-lhes que bebessem água para
se sustentar antes de voltar a se drogar. Eles riram e disseram que haviam comido
várias coisas e, agora, queriam um café. Pegaram café e nos ofereceram. Ficamos
pouco tempo na frente da televisão vendo o desenho, pois, como sempre, estavam
extremamente inquietos.
Enquanto Sandro ficou vendo desenho, Marcos nos chamou para nos mostrar o Vô, que
ficava na mesma rua. Atravessamos a rua e ele parou em uma loja de frutas, pedindo
mexerica e carambolas. Chamou-nos a atenção como o velho, assim como os outros
conhecidos dos meninos, brincava, ameaçando bater-lhe e expulsá-lo da loja. Isso
acontecia também entre eles, que ficavam o tempo todo brincando de se bater e se
xingar, sendo que em alguns momentos essa brincadeira tomava ares de verdade.
Depois da brincadeira, o “Vô” deu-lhe as frutas, e Marcos nos deu as carambolas.
Passamos então na loja ao lado, pois ele queria pedir “pão duro”. O dono da lanchonete,
chamado “Gordo”, foi até o garoto e fingiu que iria bater-lhe. Ao mesmo tempo, levava
na mão um saco cheio de pães. “Gordo”, com o punho fechado e os pães na outra mão,
ameaçou bater em Marcos, perguntando quem tinha invadido a loja da vizinha e
quebrado várias coisas. O garoto, com a mão estendida para pegar a sacola de pão,
dizia-se inocente e afirmava que tinha sido outro menino o culpado pela invasão.
Perguntei ao dono da loja o que tinha acontecido. Disse-me que um dos meninos tinha
entrado pela janela na loja da vizinha, desarrumado tudo e roubado os cigarros
.
52
Conversamos também com o dono da loja ao lado. Marcos o abraçava e este afastava
suas mãos, dizendo que estavam sujas. Marcos, surpreso, colocava novamente a o,
mostrando-a e dizendo que estavam limpas, apesar de ainda estarem pretas de sujeira.
Esse dono de loja, idoso, contou-nos como queria muito ajudar aqueles meninos,
mas, infelizmente, não podia, pois os meninos estavam acostumados com a rua.
Diante disso, Marcos riu e disse “Acostumei mesmo!”.
Depois dessa conversa, de repente, dando nosso passeio por encerrado, Marcos falou
que precisava ir em outra direção, despedindo-se de s.”(Relatório do Moinho da Luz,
nov/2006)
Gostaria de chamar a atenção para o fato de que o que vemos nesse convite dos
garotos para que os educadores os acompanhassem às ruas e lugares pelos quais
circulavam, era, também, um convite para experimentar a vertigem em que vivem. Essa
circulação vertiginosa é exaustiva. Eles se relacionam com os lugares e pessoas de um
modo sempre apressado, sempre de passagem. Apesar de entrarem e saírem de vários
lugares, não tinham de fato um lugar. Experimentavam a circulação, a aparente
liberdade de irem a qualquer lugar, mas, na verdade, essa circulação os mantinha
aprisionados nesse circuito, confinados à condição de "meninos de rua" com a qual
estavam identificados.
A celebração do movimento que vivemos no mundo contemporâneo, e que vemos
nesse exemplo de modo extremado, “conspira contra o lugar” (SAFRA, 2006d). O que
está presente é uma inquietude enlouquecedora, e a possibilidade de quietude e
descanso estão impedidas. Em alguns momentos, parece que é essa experiência que
procuram no uso abusivo que fazem das drogas. As crianças se referem ao estado em
que ficam quando estão sob o efeito das drogas como brisa”, o que traz a idéia de
relaxamento. A impossibilidade de quietude está associada à impossibilidade de
confiar. O relaxamento, o estado de não integração é possível quando confiança
no ambiente, quando sabemos que estamos sendo cuidados e não precisamos nos
preocupar. E a partir deste estado de o integração é que pode surgir um gesto
espontâneo da criança em direção ao mundo, quando ela pode estabelecer uma
relação criativa, viva com o mundo. Essa possibilidade fica suspensa se o mundo não
oferece à criança este lugar de segurança e tranqüilidade.
53
A relação entre esse educador e Marcos foi se estreitando, especialmente a partir de
experiências que viveram juntos. Em um dia era um passeio, depois, um jogo numa
praça, na região onde ele dormia, um convite do educador para ele conhecer o Moinho,
participar de uma oficina de graffiti ou capoeira, um banho, um almoço. O educador era
uma referência para Marcos, um ponto de estabilidade em meio ao caos em que vivia.
Todas as experiências associadas ao cuidado de Marcos faziam com que lembrasse de
sua mãe. Após um dia em que o acompanhava a um banho, já que o último havia sido
tomado mais de um mês, Marcos referiu-se pela primeira vez a sua família, falando
da saudade que sentia da mãe e de um sobrinho. No dia seguinte, soubemos que havia
voltado para casa. Dias depois, estava de volta ao centro da cidade. Mas, a partir daí,
sua história começou a aparecer em vários momentos. Três pessoas da equipe foram
com ele à sua casa, para conhecer sua mãe. Iniciou-se então um trabalho junto à
família de Marcos. Viviam em uma situação de muita dificuldade econômica. Na casa
moravam seus pais, separados, uma irmã, com 29 anos, e 3 sobrinhos. Ele tinha outros
irmãos mais velhos que não moravam com a família. Soubemos que ele começou a
vir para o centro da cidade há três anos, acompanhando amigos do bairro onde
morava, no período em que seus pais se separaram, apesar de continuarem vivendo na
mesma casa. É inegável que o centro da cidade é muito atraente se comparado às
periferias, geralmente feias e mal acabadas. A ida para o centro é uma aventura.
(BEDOIAN, 2007) As idas para o centro se tornaram cada vez mais freqüentes. Ele
começou a dormir por lá, o retorno para casa foi se espaçando e a relação com a
família ficou muito comprometida. A mãe considerava-se incapaz de contê-lo. Nas ruas
tinha dois amigos, Sandro e Beto, com os quais passava a maior parte do tempo. O uso
de drogas, principalmente o crack, intensificou-se. Havia indícios de exploração sexual,
sobre o que ele o falava. A casa ficava cada vez mais distante. Na companhia dos
educadores, voltou a aproximar-se da família. Demonstrava muita satisfação ao ver
nossa preocupação e interesse, não só com ele, mas também com sua família.
Começou a voltar para casa com mais freqüência e a permanecer por períodos mais
longos. Em um momento de transição, chegou a ficar em um abrigo provisório. Agora,
54
um ano depois, voltou a morar com sua família e faz planos de voltar a estudar. O
contato com ele continua, mas há muito a se caminhar.
4.2 A questão da circulação na família estendida
Gregori (2000) considera que a experiência de perambulação pelas ruas, a circulação
da criança entre casa, ruas e abrigos está relacionada à experiência de circulação
vivida na família de origem, comum em muitas famílias pobres, especialmente naquelas
que não conseguem manter o espaço de sua reprodução apenas na esfera privada (a
casa, bairro, comunidade, trabalho fixo) e buscam melhores oportunidades na esfera
pública (nas ruas e instituições). As crianças circulam entre membros da família
estendida, sendo a responsabilidade por elas coletivizada (SARTI, 1995;
FONSECA,1995). É comum que crianças morem com tios ou avós, de forma provisória
ou definitiva. Seguem três histórias, parecidas com tantas outras que ouvimos no
Quixote, que exemplificam essa circulação pela família estendida:
4.2.1 Amanda, Douglas e André: o anseio por um lugar seu
Amanda, de sete anos, foi morar um tempo com a avó materna porque esta precisava
de ajuda nas tarefas domésticas, mas morava num bairro muito afastado da casa de
sua família. A decisão de que Amanda deveria sair de sua casa, e não sua irmã, dois
anos mais velha, não foi aleatória. A mãe claramente tinha dificuldades de
relacionamento com ela e preferia a filha mais velha, com a qual se identificava.
Amanda percebia isso. Apesar de gostar da avó, ressentiu-se com a decisão da e.
Afastou-se de outros familiares e amigos, mudou de escola. Houve, claro, um impacto
na sua relação com a família.
A mãe de Douglas, após uma segunda união, deixou-o com o pai aos três anos de
idade, pois o novo companheiro não o queria vivendo com eles. O pai era alcoólatra e
Douglas sofreu muito com a negligência por parte deste. Aos oito anos, sofria com a
enurese, que nem era percebida pelo pai. Estava sempre muito sujo. Freqüentava a
55
escola sem nenhuma regularidade. No barraco onde moravam, havia apenas colchões.
Outros parentes moravam na mesma favela. Mais tarde, uma tia materna procurou
cuidar um pouco dele, especialmente da alimentação e cuidados de higiene, mas ele
permaneceu morando com o pai. O sofrimento com a rejeição, o abandono e a
negligência eram imensos. Associado a isso, ele era vítima de muita discriminação na
escola e na vizinhança, tanto pelo alcoolismo do pai quanto pelo modo como se
apresentava, sempre sujo e cheirando mal. Não se sentia parte dos grupos na escola
ou na vizinhança. Era sempre muito agressivo com todos. Sentia-se excluído e
humilhado nesses lugares.
André era o terceiro de seis irmãos. Com dez anos começou a causar muitos problemas
em casa e na escola, devido a seu comportamento agressivo. A mãe, na tentativa de
protegê-lo de amigos que considerava perigosos, por não se achar capaz de dispensar
a ele os cuidados necessários e evitar que perturbasse demais a família, enviava-o
para passar temporadas com a avó materna, na sua cidade de origem. Nesse processo,
ele abandonava a escola, onde já tinha muitas dificuldades.
Estes são fatos muito comuns que encontramos entre as crianças que atendemos. São
afastamentos devido a dificuldades financeiras, problemas de comportamento das
crianças, mas relacionam-se com mais freqüência a crises nas relações conjugais,
como separação, morte, novas uniões. Em algumas situações, como no caso de
Douglas, os vínculos conjugais prevalecem sobre a relação entre mãe e filho.
4. 3 A questão do abrigamento
Em outros casos, na ausência de familiares que possam assumir a criança nesses
momentos de dificuldades ou conflitos, as crianças podem ser encaminhadas pela
própria mãe ou responsável a abrigos. Segundo dados de uma pesquisa realizada pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2003, 87% das crianças e
adolescentes que estavam em abrigos no Brasil tinham família. A pesquisa indica ainda
que 24,1% das crianças estavam nos abrigos devido à falta de recursos materiais da
56
família para cuidar delas. As questões relacionadas à pobreza eram responsáveis por
51,7% dos abrigamentos. Não podemos desconsiderar que fatores subjetivos podem
estar associados às dificuldades financeiras.
4.3.1 Eduardo: o anseio pela volta ao lar
Na maioria dos casos, vários fatores estão associados em uma situação de
abrigamento. São dificuldades materiais, conflitos familiares, questões pessoais que se
presentificam na situação, como no caso de Eduardo, por exemplo, que após a morte
da mãe, quando ele tinha cinco anos, ficou sob a guarda da bisavó, enquanto seu
irmão, dois anos mais velho, foi viver com sua avó. Os problemas de comportamento
começaram a aparecer, ele iniciou um processo de fugas junto com o irmão, quando os
dois passavam períodos vivendo nas ruas. O uso de drogas, as fugas e o
comportamento cada vez mais agressivo agravou as dificuldades de convivência com a
bisavó, que não se sentia capaz e nem disposta a cuidar dele. Quando estava nas ruas,
era muitas vezes encaminhado a abrigos, nos quais permanecia por pouco tempo. Ele
pedia sempre para voltar para a casa da bisavó, mas esta se recusava a recebê-lo
novamente. Ela via nessa possibilidade a reedição do sofrimento que vivera com a mãe
de Eduardo, que vivia nas ruas e era usuária de drogas, o que a levou à morte ainda
jovem. Infelizmente, como Eduardo permanecia pouco tempo nos abrigos, estes
também não faziam qualquer trabalho efetivo com sua família, que nesse caso deveria
considerar, além de sua bisavó, seu irmão e sua avó, que o vínculo com o irmão era
intenso.
Nessa circulação quase sempre um distanciamento da família. Em qualquer uma
dessas situações, seja no abrigamento, seja na circulação pela família estendida, o
afastamento do convívio cotidiano com a família implica em uma alteração e, às vezes,
perda do lugar da criança na mesma. Apesar do vínculo, especialmente com a mãe, ser
valorizado e, em muitos casos, idealizado por elas, uma fragilização do vínculo com
a família de origem, podendo chegar até à ruptura de fato. Quando o morar com
outros parentes, o vínculo com a família com a qual vão viver também é frágil e
57
ambíguo, afinal não são “filhos de sangue”, e ocupam quase sempre um lugar instável,
na medida em que se considera que têm suas mães verdadeiras. Perdem seu lugar na
família de origem e não o conquistam no lar que as abrigam. uma experiência
permanente de instabilidade e provisoriedade que impossibilita a criança de encontrar
um lugar. o sentimento de não pertencer a lugar algum, que um lugar pode
existir enquanto oferta de um outro.
4.4 A questão da migração
O processo de migração também é muito freqüente nas histórias dessas crianças.
Grande parte delas são filhas ou netas de migrantes. Em alguns casos, os laços com a
terra natal são preservados, mesmo que minimamente. A família mantém contato com
parentes que ficaram por lá, e alimentam um desejo de um dia poder voltar. Alessandra,
por exemplo, falava com orgulho que a mãe preparava um delicioso prato típico de sua
terra natal, tinha vontade de conhecer os parentes que ainda viviam lá, sobre os quais a
mãe contava várias histórias, mas ainda não tinham recursos para fazer a tão sonhada
viagem. Mas, em outras situações, esses laços vão-se perdendo. Muitos não sabem
sequer o nome da cidade de onde os pais vieram, sabem apenas que é no "norte". A
história familiar é não apenas perdida, mas desvalorizada, desqualificada. (BOSI, 2006)
O sentimento de não pertencimento, de instabilidade também está, muitas vezes,
presente nos migrantes. Não se sentem parte da cidade onde vivem e experimentam o
estranhamento ao retornarem à terra natal, da qual estiveram por muito tempo
afastados.
É freqüente encontrarmos muitas pessoas da mesma família ou da mesma cidade de
origem morando próximas. Na favela próxima ao Quixote da Vila Mariana, por exemplo,
existem muitas pessoas da mesma família, várias crianças que freqüentam o Quixote
são primas. Isso traz um sentimento de companhia, mas não necessariamente de
pertencimento a uma comunidade. É como se estivessem acompanhados num mundo
do qual não fazem parte, mas apenas essa companhia já pode ser suficiente para fazê-
58
los não esquecer quem são, e, de alguma forma, um ajuda o outro a preservar a
memória de quem são, de onde vieram.
4.5 A questão do trabalho
A relação com o trabalho nas famílias pobres é outro importante fator de
desenraizamento. Ele está quase sempre reduzido à questão da sobrevivência
imediata, destituído de qualquer sentido maior. O trabalho como possibilidade de uma
pessoa vir a se relacionar de modo significativo com o mundo, participar ativa e
criativamente, contribuindo para sua construção ou transformação é impedido. Na
grande maioria das famílias que chegam ao Quixote, o trabalho é informal e
extremamente instável.
É comum que as crianças realizem alguma atividade para ajudar na renda familiar,
ingressando precocemente no universo do trabalho. Assim, no futuro, este dificilmente
será uma fonte de prazer e realização pessoal. Muitas delas são responsáveis pelas
tarefas domésticas, pelo cuidado dos irmãos, outras trabalham nas ruas, sozinhas ou
acompanhando os pais. Devido ao trabalho, a relação com a escola, que em muitos
casos já é bastante difícil, é muito prejudicada. Simone Weil (1943) alerta para o risco
do amor pelo trabalho nunca se desenvolver, quando, ainda muito cedo, a criança é
submetida a ele em uma situação que fere a condição humana. Não é incomum que as
crianças identifiquem o sentimento de humilhação e desvalorização relacionado ao
trabalho.
4.5.1 João e Pedro: frustração e esperança
João e Pedro tinham, respectivamente, 13 e 12 anos. Eram irmãos. Moravam com os
pais em uma cidade próxima a São Paulo. Tinham mais oito irmãos, com idades entre
três e vinte anos. Desde muito pequenos, iam com os irmãos fazer malabarismos nos
faróis da cidade para ajudar no sustento da família. Os irmãos ficavam juntos nos faróis
e retornavam a sua casa. Os irmãos mais velhos faziam isso bastante tempo.
59
Após uma mudança nas políticas públicas da cidade, procurando tirar as crianças das
ruas, o governo adotou a prática de encaminhar para abrigos as que insistiam em
permanecer nas ruas. João e Pedro foram encaminhados para um desses abrigos,
onde conheceram outras crianças que costumavam vir para São Paulo, ficar nas ruas
do centro. E assim iniciaram um processo de fugas e o conseqüente afastamento da
família.
A seguir, o relato de dois educadores terapêuticos falando sobre a aproximação e a
relação que foram estabelecendo com estes dois garotos que viviam, na época, no Vale
do Anhangabaú.
“Conhecemos João e Pedro em um plantão de domingo. Foi uma abordagem
bastante interessante, na medida em que, na realidade, fomos abordados por
eles. Andávamos um tanto distraídos, quando um deles nos interpelou,
solicitando ajuda para levar o irmão ao pronto socorro, em função de certo
quadro de bronquite.
Acolhemos a solicitação, porém abrindo espaço para que se apresentassem também de
outras formas, o que fez com que a necessidade “médica” logo perdesse o lugar e
sentido (para eles mesmos). Foi então uma tarde de jogos e desenhos, e também assim
foram coloridos os dias subseqüentes de contato.
Observamos que os irmãos interessam-se por diferentes atividades nos momentos de
contato conosco: enquanto João passa significativa parte do tempo desenhando e
pintando, Pedro prefere se ocupar de jogos competitivos variados, que exigem grande
concentração, elaboração de estratégias e raciocínio.
Na rua, Pedro é o principal responsável, na dupla, pelo sustento de ambos e
organização das “finanças”. Pelo que pudemos acompanhar, parece que, mesmo na
desorganização da rua, os irmãos conseguiram estabelecer um cotidiano mais ou menos
estruturado: a manhã é marcada pelo trabalho (momento em que vivem o papel de
pedintes e ficam diante do banco Itaú, pedindo um “trocado” para quem deixa o caixa
eletrônico); à tarde ficam na companhia de colegas e Pedro joga videogame (R$ 1,00
por meia hora); e é só no cair da tarde que a cola ganha maior contexto.
Pedro, ao contrário de João, sempre se dispôs pouco a falar a respeito de sua história
familiar. Em certo período, restringia-se apenas a falar sobre a insatisfação que
caracterizava seus vínculos familiares (pais), argumentando que não eram raras as
vezes em que seus pais lhe delegavam a tarefa de olhar os irmãos mais novos para que
pudessem sair, passear e resolver questões diversas. Em algumas oportunidades,
fizeram menção ao fato de terem ficado abrigados e de ainda terem alguns irmãos
nesta condição.
60
Em certa ocasião de conflito entre os irmãos (que ficaram “de mau” por mais de um dia),
separadamente, cada um com um ET (educador terapêutico), em momentos distintos do
dia, falaram bastante sobre a família, ficando um pouco mais clara a dinâmica, número
de irmãos, relação com pais, etc.
Após um final de semana, numa segunda-feira logo pela manhã, ao reencontrarmos os
irmãos, Pedro parece estar mais “agressivo” e evitando o contato conosco, tendo como
parâmetro como nos recepcionava até então. Apresenta-se mais “onipotente”, falando
sobre a intenção de passar a roubar; mostra-nos uma faquinha; diz que neste final de
semana matou o Marcola (um traficante que era notícia na mídia na época); cheirou R$
10,00 de cola, etc., numa fala em que realidade e fantasia transitavam num limiar muito
tênue. Pouco tempo depois, chega João que, diferente do habitual também, encontrava-
se dormindo junto a um grupo de pessoas mais velhas homens usuários de álcool e
crack.
.
João nos pergunta se conhecemos determinada substância, que, pela sua descrição,
logo identificamos como sendo crack e que, aentão, ele parecia não conhecer. Relata
que Pedro teve vontade de experimentar o produto no final de semana e, algum tempo
depois, enquanto desenhava, comunica-nos a respeito de seu desejo de falar com sua
mãe.
O encontro seguinte é marcado pela explícita evitação de Pedro. Não quer conversar
conosco e pede que nos afastemos, diante de qualquer movimento nosso de
aproximação. Quando tentamos ficar mais perto de João, que se encontrava dormindo,
Pedro logo trata de acordá-lo para que imediatamente se afastasse de nós. João, ainda
embriagado pelo sono, acata a orientação do irmão.
Novas dificuldades também marcam o encontro seguinte. Contudo, quando Pedro nos
conversando com outros garotos, permite uma tímida aproximação e não verbaliza
recusa quando dizemos que voltaremos para vê-los no dia seguinte. Despede-se
inclusive!
Após esse dia, reencontramos os irmãos em uma manhã, ainda enquanto despertavam.
João, em meio a sua característica atitude tímida, nos entrega o telefone de sua mãe
(escrito em uma pequena folha de papel), deixando, sem qualquer palavra, explícita a
sua necessidade. Em pouco tempo então estava falando ao telefone com a mãe, que
brevemente ordenou que voltassem para casa, amparados por uma ONG que
acompanha a problemática familiar na região. Pediu para falar com Pedro, que
prontamente também se pôs ao telefone.
As reações subseqüentes a este contato com a mãe foram quase que opostas nos
irmãos. João expressava notória felicidade pela perspectiva de retorno ao lar. Pedro
se viu tomado por uma série de conflitos, na medida em que, quase imediatamente,
recordou a qualidade de vida que o aguardava, caso escolhesse retornar para casa
como, por exemplo, ficar preso dentro de casa olhando os irmãos mais novos, ser
reinserido no abrigo onde já sofrera, segundo ele, agressões físicas.
O acompanhamento a Pedro, neste momento, foi quase que totalmente silencioso.
Evitava falar e impediu qualquer tentativa nossa de buscar compartilhar o que se
passava com ele. Certa tarde, os irmãos não corresponderam ao nosso convite para ir
61
para o Moinho, onde imaginávamos que pudessem ter um espaço mais acolhedor para
pensar no impasse que se instaurava.
O contato seguinte aconteceu em um plantão de domingo. Entre amigos, Pedro
evidenciava bastante agitação. Trazendo no rosto um grande sorriso, que, no entanto,
gradativamente pôde nos informar também a respeito de certa ansiedade. Dispunha de
bola, a qual chutava longe, contra paredes, em nossa direção e em breve jogo
compartilhado com um educador.
Sentimos falta de João e diante nossa indagação, enquanto permanecia brincando,
contou-nos que a mãe fora buscá-los no sábado último. Contou-nos então sobre sua
decisão de não regressar e da empreitada de fuga para não ser alcançado por ela e
alguns policiais (GCMs). Não quis (ou pôde) aprofundar a conversa, privilegiando
realmente o agitado contato que se estabelecia.
Na segunda e terça consecutivas, não conseguimos encontrar Pedro em meio às nossas
andanças. E em uma tarde de discussão de caso agendada com a equipe de outra ONG
que também acompanhava o caso, obtivemos a notícia de que Pedro havia resolvido
voltar para casa.
Passaram-se duas semanas sem que obtivéssemos mais qualquer notícia de Pedro e
João. Até que em uma segunda-feira, qual não foi nossa surpresa, ao encontrarmos
João e Pedro novamente nas ruas, no mesmo lugar onde ganham o dinheirinho do dia a
dia. Ainda era cedo e, desta vez, porém, encontravam-se cheirando seus saquinhos de
cola, em estado de “brisa total”. Foi possível apenas apreender que acabavam de
chegar de sua cidade.
O encontro do dia seguinte também foi marcado pela impossibilidade de diálogo, já que
novamente encontravam-se entorpecidos e colados a seus saquinhos. Depois de então,
tornou-se difícil encontrá-los nos locais habituais de contato. Empreendemos buscas
sem sucesso e, só em certa ocasião, outros educadores do Moinho da Luz conseguiram
algum contato com Pedro, através de uma acirrada partida de xadrez, próxima à porta
de outro banco, este já mais próximo à região da República, mais característica por ser a
morada de adolescentes mais velhos e usuários de outras substâncias, como o crack,
por exemplo.
Conseguimos, depois, mais um contato com a dupla, em um final de manhã, quando
se preparavam para uma partida de futebol que ocorreria no Vale de Anhangabaú, para
a qual aceitamos prontamente ao convite para assistir. Foi um encontro vivo, no qual
pudemos sentir alguma importância pela nossa presença, que foi finalizado com a
comemoração pelo desempenho de ambos durante a partida: Pedro mostrou ser um
grande goleiro, enquanto João alegrava-se por ter sido o artilheiro do jogo, fazendo três
gols.
Tínhamos um encontro marcado para o dia seguinte. No horário marcado, contudo, os
meninos não estavam lá. Após alguma procura, os encontramos em uma rua transversal
à Barão de Itapetininga, num local mais escuro e sujo, embaixo de um cobertor.
Inalavam grande quantidade de cola e estavam com certa dificuldade para conversar.
João, na realidade, não conseguia construir uma frase e Pedro fazia esforço para
manter um diálogo coerente conosco. haviam perdido a noção do tempo e
62
impressionaram-se ao saber que era final da tarde. Explicaram-nos que era o
aniversário de João.
Diante do estado em que se encontravam e pelo fato de não termos tido esta informação
anteriormente, combinamos uma comemoração para o dia seguinte. Pudemos então
preparar uma comemoração com um bolinho, como tanto queria João.
Nos dias seguintes (sexta e sábado últimos), no entanto, não conseguimos mais
encontrar João e Pedro, apesar da procura realizada. O cotidiano deles na rua está
nitidamente alterado se comparado ao que pudemos conhecer na primeira fase de rua
que acompanhamos. Seus colegas, inclusive, não têm mais informações tão precisas
de paradeiro, como podiam nos oferecer anteriormente.
É este o momento que vivemos na relação com Pedro e João. Amanhã é uma nova
segunda feira...” (Relatório Moinho da Luz, set/2006)
Podemos perceber como a vivência das ruas foi se intensificando, ganhando contornos
mais intensos na vida desses garotos. O que no inicio era uma experiência mais
isolada, os dois irmãos sempre juntos e apenas alguns amigos da cidade de origem, vai
ganhando tonicidade. estabelecem relações com outros personagens da rua, com a
sociabilidade que a rua impõe. Há o contato com outras drogas e grupos diferentes.
Mas a vivência deles não é livre de conflitos, de ambigüidades. A possibilidade de voltar
para casa traz uma alegria, talvez uma esperança de que o lar possa vir a ser
acolhedor, como eles gostariam. Mas Pedro, mais atravessado pela dura realidade,
tinha menos ilusões de que a casa que conhecia pudesse vir a oferecer o que ele
precisava, todavia guardava um profundo desejo de que isso não pudesse ser verdade.
Não queria voltar para casa e ter que ficar cuidando dos irmãos menores, enquanto, na
sua percepção, os pais saíam para se divertir. Queria ser cuidado pelos pais. A
perspectiva de retornar ao abrigo no qual, segundo ele, sofrera maus tratos fazia com
que temesse mais ainda retornar a sua cidade. Apesar disso, decidiu voltar para casa,
mas pouco depois, os dois garotos estavam de volta ao centro, mais machucados, mais
desencantados. E parece que, à medida que a esperança
se esvaía, o uso de droga
se
intensificava visivelmente.
Os educadores terapêuticos, ao mesmo tempo em que os acompanhavam pelas ruas,
seguindo o ritmo que eles impunham, respeitando seus movimentos de aproximação e
afastamentos, foram também mantendo contato com a família e com outras instituições
63
que tinham contato com eles. Procuraram parcerias para que a família pudesse ser
cuidada em sua cidade, ao mesmo tempo em que os garotos seriam acompanhados
em São Paulo, enquanto permanecessem aqui. Os educadores procuravam, tentando
integrar os atendimentos aos garotos e à família, ao mesmo tempo em que os
mantinham a par de tudo o que se passava, proporcionar-lhes alguma experiência de
integração, já que o caos e a desintegração pareciam intensificar-se cada vez mais com
as constantes rupturas, desencontros e abandonos. Os educadores foram se tornando
figuras de referência que organizavam minimamente suas experiências, como que
desenhando com eles um caminho possível. Na situação em que se encontravam,
apenas reagiam a rupturas e violências que sofriam, e estavam sendo enredados
rapidamente pela dinâmica das ruas. Estavam perdendo a esperança e sentiam-se
incapazes de buscar um outro destino, no qual estivesse presente o cuidado que
gostariam de receber. Mas as dificuldades nesse trabalho eram imensas, já que havia a
necessidade de trabalhar com os garotos, sua família e envolver outras instituições.
Enquanto isso, o tempo continuava correndo. No momento atual, também um irmão
mais novo começou a acompanhá-los nas vindas a São Paulo. As necessidades são
muito intensas e urgentes e, muitas vezes, não é possível dar conta delas no ritmo que
gostaríamos.
4.6 A questão da frustração
Tolerar a frustração e a necessidade de aguardar o movimento do outro é muito difícil
neste trabalho, especialmente porque, além de todo o sofrimento que presenciamos,
em muitas situações convivemos com o risco de morte. Precisamos nos defrontar todo
o tempo com a nossa impotência.
4.6.1 Jonas: idas e vindas
Jonas, por exemplo, era um garoto de 13 anos que vivia sozinho no centro de São
Paulo. Ficava numa praça mais afastada dos lugares onde os garotos costumavam ficar
em grupos. Guardava carros em uma região de teatros e casas de shows. Era muito
64
fechado e pouco falava sobre sua vida, sua família ou sua história. Com o passar do
tempo envolveu-se mais com o crack, o tráfico de drogas e a exploração sexual.
Presenciávamos sua degradação vertiginosa. Ele tinha um vínculo intenso com um dos
educadores terapêuticos em especial. Estava com vários problemas de saúde e
iniciaram, após alguma resistência dele, uma maratona de exames médicos e
tratamento dentário. Em alguns períodos, Jonas estava muito próximo. Ia ao Moinho da
Luz todos os dias, dormia ali por perto, aceitava a aproximação de outros educadores e
crianças, participava das atividades. Em outros momentos, desaparecia, era
encontrado dormindo, pois havia trabalhado durante toda a noite. Após um período em
que estava muito próximo, numa época em que estava fazendo uma série de exames,
devido a uma suspeita de tuberculose, a dupla de educadores que o acompanhava
falou da angústia que viveu diante de uma recaída:
Quarta-feira, às 7h, Amaral. Jonas estava fumando crack. Primeira vez que vimos. Nos
aproximamos depois de um tempo, quando ele ficou sozinho. Olhão arregalado.
Falamos “oi” e perguntamos se ele queria escarrar no potinho, que tinha ficado comigo,
para levarmos a última amostra, pelo menos do escarro. Ele topou e se esforçou para
soltar algo ali. Antes de irmos, nos pediu desculpas e chorou. “Não agüentei, tio”. Foi
muito duro aquele contato. Saímos bastante marcados e percebemos que ele também.
Foi a recaída. Queda grande após tanta conquista. Triste. Mas sabemos e dissemos a
ele o quanto seria difícil manter a força que ele tinha arranjado para tanto tempo sem
pedra, vivendo na rua.
Voltou ao Moinho nesse dia. Agitado, parecia querer peitar quem não o aceitasse mais
ali, certo de que não o aceitaríamos. Nós o aceitávamos e todos ali o aceitavam. Tem
sido difícil enfrentar isso. Para nós e para ele, que parece ainda mais na fissura. Voltou a
trabalhar na boca (ponto de tráfico de drogas). “Os patrão aceitaram.” Dorme de dia, se
dorme. Voltou a emagrecer e a nos preocupar em relação a sua saúde.
Sábado: “Não sabia que era dia de vocês.” controla nossos momentos de
aproximação? Estava com cara de ter fumado sim, mas aceitou dar uma volta com a
gente e disse que estava com vontade de sorvete. Logo perguntou do xadrez e queria
jogar. Fomos à praça do metrô Santa Cecília e sentamos para papear e jogar. No meio
do jogo dizia que não estava com paciência de pensar, mas não aceitava parar. Um
educador achou-o com a cara triste, mas ele negava. Falamos de seus cachorros, de
seus parentes, de seu irmão e de sua mãe. Ele desistiu de ligar para ela como tentara
com outro educador certa vez. Disse que não queria mais. Parece que o vício da pedra o
assusta cada vez mais.
Disse que quer voltar ao médico para saber os resultados dos exames e nos mostrou
que consegue marmitex para se alimentar. Ainda se cuida! Mas não podemos deixá-lo
65
muito longe. Mesmo que na rua, a nossa presença marca a presença dele. Nos
manter próximos agora? É isso? Esperar?
Junta-se a o outro educador para tirar sarro de mim, o que o faz sentir bem, sentir
grande, sentir homem. Mas sinto que isso também o aproxima do lugar de menino, que
lembra de suas peripécias, de seu mundo de criança que ele tanto quer resguardar. Um
dia disse-me que não queria crescer, que queria continuar podendo não ter
responsabilidades. Ao mesmo tempo, ele quer se cuidar sozinho na rua. Também gosta
de ouvir que queremos cuidar dele. Mas nos mostra que, nesse momento, é a pedra que
o toma toda noite.
É muito duro suportar pacientemente esse movimento próprio de muitos garotos na rua,
essas idas e vindas. Acreditamos, e não queremos perder essa crença, que esse
movimento se dá em espiral, que não é um círculo vicioso sem movimentação outra. O
Jonas se recupera e se degrada na mesma velocidade e intensidade. Menino esperto e
forte que nos intriga pelos mistérios de sua história, por ter a capacidade de sempre,
sempre, provocar surpresa e desconcertos a cada encontro. Nunca podemos ir ao seu
encontro com pré-concepções e, quando isso acontece, o baque é inevitável, seja este
choque surpreendentemente bom, como encontrá-lo com o pote (para colher o material
para exame) depois do feriadão, ou péssimo, como vê-lo no dia seguinte fumando
pedra”.(relatório Moinho da Luz, dez/2006)
Para que um trabalho como este possa acontecer, é fundamental que a equipe possa
ser acolhida e ter um lugar para falar sobre suas angústias, expectativas, frustrações.
Precisamos ter um lugar que acolha os profissionais para que possamos, então,
transitar com esses garotos que nos afetam de modo tão intenso. Esta é uma condição
necessária para que o contato possa acontecer, isto é, precisamos nos deixar afetar
para que uma relação possa existir. Ao mesmo tempo, precisamos de um lugar de
descanso para o qual possamos retornar. Para ser possível que um relacionamento
entre o profissional e a criança aconteça, é necessário que este seja capaz de estar na
relação de modo espontâneo e autêntico, sendo ele mesmo, porque assim poderá
acolher a criança em sua singularidade e suportar a intensidade de um contato tão
exigente. Para isso, é preciso que ele também tenha um ambiente que o sustente. Este
ambiente é tanto a equipe com a qual trabalha, quanto o conhecimento, experiências e
universo cultural que traz em si.
No momento, Jonas estava desaparecido. Não tínhamos notícias suas. Vinha o medo
de que estivesse morto, mas havia sempre a esperança de reencontrá-lo, enquanto não
tínhamos conhecimento do seu paradeiro. Lembro-me que uma de suas características
66
que me chamava a atenção era o fato de que, para ele, todas as relações estavam
definitivamente rompidas após uma frustração ou decepção que ele acreditava ter
infligido ao outro. Era assim que falava sobre sua fuga definitiva de casa, após ter
roubado dinheiro de sua mãe. Acreditava que não era possível retornar, pois ela nunca
o perdoaria. Assim também quando deixou a praça onde ficava no centro, após ter
roubado um amigo. Falava do desejo de tentar reparar o erro cometido, mas não
conseguia acreditar que pudesse ser perdoado. E nesse processo, a cada vez, ia-se
colocando em situações de mais risco, em situações mais degradantes.
4.7 A questão do encanto
Essas crianças e adolescentes não têm a experiência de pertencer verdadeiramente a
um grupo, não sentem que têm um lugar ao qual pertencem. Não se sentem acolhidos.
Vivem em ambientes onde a desagregação é a tônica. Sem ter vivido a experiência de
pertencer a um grupo, é muito difícil ter qualquer tipo de atividade ou ação no mundo.
Sem uma referência, sem um lugar, não é possível dar uma direção à vida, pois os
acontecimentos do mundo parecem absolutamente sem sentido. O mundo se apresenta
como algo sem raízes, sem sentido ou significação, simplesmente fruto do acaso ou
vontade de outro, onde as coisas não se relacionam. O mundo não faz sentido algum
para a criança. É apenas caos. Segundo Winnicott (1970), a imprevisibilidade do
ambiente impede que a criança possa experimentar a confiança associada à
autenticidade do ambiente no holding, à continuidade no manejo e à estabilidade nas
relações interpessoais.
São crianças desencantadas por não terem sido acolhidas e respeitadas em suas
necessidades fundamentais, constitutivas. O encanto é o que nos a possibilidade de
nos projetarmos para o futuro, de nos sentirmos responsáveis e ativos no mundo.
O ser humano tem necessidade de encontrar ou reencontrar o encanto, porque, sem
este, o mundo é simplesmente caos. Acontece à revelia do homem, sem um destino ou
projeto de futuro. A criança precisa criar o mundo, reconhecer-se nele e ser
67
reconhecida pelo outro em sua singularidade para viver a experiência de encanto. Todo
esse processo pode acontecer quando é possível confiar no ambiente e desenhar
seu gesto espontâneo e singular em direção ao mundo.
Para uma criança desencantada, o mundo não tem sentido e tudo pode acontecer
independente dela, de suas necessidades ou desejos. A violência que nos apresentam
- e podemos pensar também na ida para as ruas - está relacionada a uma fratura ética.
Quando a possibilidade de habitar eticamente o mundo humano foi rompida e os
princípios fundamentais da condição humana não foram contemplados, não há lugar de
pertencimento, de acolhimento para sua singularidade, o mundo é vivido como caótico.
Quando a imprevisibilidade do ambiente prevalece, a criança não tem um lugar de
descanso e a possibilidade de constituir um gesto criativo em direção ao mundo fica
comprometida.
4.8 A questão da escola
A escola, por exemplo, além de ser um lugar de passagem para um futuro, precisa ser
um elemento organizador do tempo, do espaço para a criança. Mas, para uma criança
desencantada, a escola pode parecer simplesmente um lugar de desencontros, porque
vai exigir dela coisas que nada tem a ver com o seu mundo, com suas experiências,
além de, muitas vezes, desqualificá-la. Pode ser apenas mais um elemento
desorganizador de si e de seu mundo.
4.8.1 Alex e Luana: aprender com o outro
Lembro-me, por exemplo, de Alex, um garoto de 10 anos que freqüentava as oficinas
no Quixote. Ele era bastante discriminado na escola por morar numa favela próxima.
Era agitado e estava sempre envolvido em brigas. Não poderíamos dizer que era um
aluno fácil, dedicado e que demonstrava interesse pelos estudos. Mas quando estava
na 3a série do ensino fundamental a professora de matemática disse que não lhe daria
o livro naquele ano, porque ele não sabia nada. Alex falou sobre o fato procurando
68
demonstrar desinteresse, mas era visível o sentimento de raiva, devido à discriminação
e à humilhação. Vale ressaltar que na casa de Alex ninguém soube deste fato. O pai
era alcoólatra e bastante ausente; a mãe, deprimida, não acompanhava a vida escolar
dos filhos, nem demonstrava interesse pelo desempenho deles. A escola e a
aprendizagem não eram valorizadas. Não havia um olhar dirigido a ele.
Nas oficinas, sempre que era oferecida qualquer atividade que envolvia números, como
em alguns jogos, Alex ficava impaciente, agitado, evitando a atividade e, geralmente,
partia para a provocação e brigas com os colegas. Passou a freqüentar, também, uma
oficina que tinha um cunho mais pedagógico e, através de brincadeiras, começou a se
aproximar dos números. Começou a aprender as operações aritméticas com facilidade
e a trazer seu caderno para ajudarmos nas lições e nas dúvidas. Uma de suas
brincadeiras favoritas passou a ser o "campeonato de continhas". Pedia listas de contas
e chamava os colegas para participarem. Demonstrava muito orgulho por conseguir
entender aquele novo mundo. A partir desse momento, estava sempre disposto a
ajudar um colega com dificuldade nas contas. Por sorte, houve a substituição da
professora de matemática e a nova professora, além do livro, deu atenção a Alex. As
provocações e brigas diminuíram de forma considerável, especialmente perto dos
números.
Luana, do mesmo grupo de Alex, vivia algo semelhante, mas suas dificuldades estavam
mais relacionadas à leitura e à escrita. Bastava pegarmos um livro - e muitas vezes
líamos em grupo -, ou propormos alguma atividade que envolvesse a escrita para que
Luana ficasse agitada e impaciente, assim como Alex diante dos números. Ela dizia que
sabia ler e escrever, mas que não gostava. Passava a responder agressivamente a
tudo e a todos. Na escola a situação era delicada. Eram freqüentes as suspensões e
faltas. A professora reclamava de sua falta de atenção e interesse, além do
comportamento agressivo em relação a ela e aos colegas.
Aos poucos, fomos conversando e brincando com jogos de construir palavras. Ela lia e
escrevia com muita dificuldade, deixando evidente uma incapacidade que a fazia sentir-
69
se exposta, vulnerável. Ficava bastante desconfortável em relação aos outros. À
medida que conseguia algum progresso com as palavras, ia ficando cada vez mais
animada. Em pouco tempo, deixou de ficar tão nervosa e agressiva ao propormos uma
leitura. Ao contrário, oferecia-se para ler as histórias, e após alguma resistência
deixava um colega seguir a leitura. O olhar dos colegas da turma que reconheciam nela
um valor trazia-lhe muita satisfação.
Havia um cuidado nas oficinas para que a criança nunca se sentisse exposta ou
constrangida. Ela era convidada a se aproximar das coisas e das pessoas em seu
próprio ritmo, tanto que em muitos casos eram disponibilizadas atividades que poderiam
ser realizadas em grupos, em duplas ou individualmente, por exemplo. As atividades, e
mesmo a relação com as pessoas, eram cuidadosamente apresentadas, ofertadas à
criança, para que ela, no seu tempo, e com nossa ajuda, pudesse se aproximar e
realizar um gesto em direção ao que era proposto.
Diante das dificuldades, esses meninos e meninas sentem-se vulneráveis e defendem-
se demonstrando indiferença, com comentários como: "não me importo" ou "isto é para
otários", e, irritados e impacientes, é comum agredirem quem estiver por perto. Muitas
vezes acabam se afastando do que provavelmente gostariam, isto é, de participar
daquele grupo de forma satisfatória, de uma forma que lhes desse orgulho e prazer.
Fica evidente que muitos deles não sentem que o ambiente é capaz de oferecer
atenção e cuidado quando surge uma dificuldade. Ao contrário, esperam ser expostos e
humilhados.
Freller, em seu livro sobre a questão da indisciplina escolar, aponta que os alunos
pesquisados comunicavam mais freqüentemente vivências traumáticas, de privação,
desrespeito e humilhação ocorridas na escola. Afirma ainda que muitos
comportamentos, taxados como "indisciplina" e repreendidos, eram apenas tentativas
dos alunos de aprender e participar do mundo escolar. Ela compreende que, muitas
vezes, "com os atos de 'indisciplina', alunos tentam se apropriar e participar de um
universo do qual se sentem excluídos" (FRELLER, 2001, p. 243)
70
4.9 A questão da violência
Em alguns casos, quando o ambiente é extremamente desagregador, o comportamento
violento pode ser compreendido como uma tentativa de manter alguma integração. A
violência, nesse contexto, pode ser compreendida como uma tentativa de defesa, uma
forma da criança evitar sentir-se ainda mais dispersa. É, também, como um pedido de
ajuda, uma forma de reclamar atenção e cuidado, demandando algum reconhecimento
de sua singularidade ou da ausência de sentido em que ela vive.
Muitas formas de sofrimento que podemos perceber no mundo contemporâneo são
decorrentes da impossibilidade do acontecer humano. Quando as condições
necessárias para que o ser humano possa se constituir e habitar o mundo humano de
forma singular não estão presentes, temos um tipo de sofrimento que tem um registro
ontológico, apesar de se apresentar também no registro psíquico ou social. Essas
formas de sofrimento devem ser compreendidas nesse registro ontológico, para que
não sejam reduzidas apenas a um de seus aspectos ou modos de apresentação,
roubando assim a possibilidade de compreensão e intervenção.
As crianças que atendemos no Quixote não encontram raízes ou reconhecimento no
mundo que lhes é apresentado. E a experiência de encanto surge desse reconhecer-se
no mundo, de sentir-se pertencendo ao mundo humano, participando de forma ativa e
criativa, um viver enraizado.
A vida dessas crianças e adolescentes é marcada pela violência e, muitas vezes, a
questão que nos colocam com seu comportamento violento aponta para essa vivência.
uma necessidade de infligir ao outro o sofrimento vivido. A violência, a saída para a
rua, revela-nos, ao mesmo tempo, a denúncia de uma vida desumana e traz em si a
esperança do encontro com condições diferentes daquelas vividas ou a recuperação de
uma experiência que, em algum momento, foi boa. Como nos fala André, num rap feito
com um dos educadores da equipe: “voltar para casa / sair da rua / ficar perto da coroa /
71
podendo estudar / e ficar numa boa / junto com os amigos / jogando futebol / na rua de
cima/ na quadra / em pleno sol”. E logo depois nos lembra da sua situação atual:
“minha vida está acabando / eu não sei o que fazer / o meu pulmão está sentindo / eu
não quero mais sofrer / estou aqui parado / olhando pro mundão”.
Safra (2004, p.140) assinala que a “cidadania, nesta perspectiva, instaura-se pela
possibilidade que tem o ser humano de inserir sua singularidade por meio de seu
gesto”, sendo a arte e a cultura campos bastante fecundos para resgatar a memória do
ethos humano e sua ética, buscando instaurar a dignidade. A cultura, ao reafirmar a
memória do que é fundamental na condição humana, pode oferecer um lugar ao ser
humano, que não pôde ser ofertado em seu lar originário.
Nossos encontros com essas crianças, seja em uma oficina, em uma brincadeira na rua
ou em uma ida ao médico, devem ser norteados pela intenção de acolhê-las em suas
singularidades e oferecer-lhes uma inserção, um lugar que tenha relação com elas.
Devem ter o objetivo de apresentar-lhes um mundo que faça sentido e do qual possam
fazer parte ativamente, a partir de onde possam também vislumbrar um futuro.
Assim, o trabalho com esses meninos e meninas é norteado pela ética e pela estética.
Por exemplo, as oficinas de graffiti, break, rap, capoeira, e outras que vão sendo
construídas a partir do interesse que apresentam, trazem a possibilidade de expressão
e, também, de novas experiências, descoberta de interesses, talentos e de novos
modos de relação com o outro e com o mundo. A diversificação das atividades
possibilita contemplar a singularidade de cada criança ou adolescente e acolher a
variedade dos seus interesses. A atenção a cada um deles atravessa todos os
momentos. Atenção à singularidade e às necessidades de cada criança.
72
4.9.1 Eduardo: a necessidade do lar
Relatarei, a seguir, o encontro que vivi com Eduardo em diferentes momentos: primeiro,
na oficina de acolhimento de crianças, no Quixote da Vila Mariana; e, depois, no
Moinho da Luz.
Era a semana anterior ao dia das mães. A oficina de acolhimento estava especialmente
cheia. Em geral temos, em média, de 8 a 10 crianças. Naquele dia, eram 17. Não
teríamos a oficina de vídeo, que acontece paralelamente ao acolhimento, porque a
responsável estava doente. Havia três crianças que vinham pela primeira vez. Crianças
que não vinham algum tempo, retornaram. Entre estas, quatro estavam retornando
após passarem um período nas ruas. Voltaram agitadas, agressivas, brigando por
qualquer motivo, arredias. E o dia foi cheio.
Quinze minutos após entrarmos na sala, a educadora que também participava da
oficina chegou com um garoto novo. Ele não queria entrar. Estava esperando desde as
dez horas da manhã, e agora eram duas da tarde. O educador que o acompanhava
havia errado o horário e preferiu aguardar a voltar outro dia. Mas o garoto não gostou
nada da espera. Disse que só entraria se a educadora o ajudasse a escrever uma carta
para sua bisavó, para o dia das mães.
Ele tinha nove anos, mas era um garoto grande e forte para sua idade. Dizia que tinha
quatorze anos e ai de quem o contradissesse. Estava em um abrigo provisório havia 3
semanas. Antes disso estava na rua. O abrigo resolveu trazê-lo para atendimento
psicológico e psiquiátrico devido a seu comportamento impulsivo e extremamente
violento, segundo o educador. Na última semana, ele quebrou um box com um soco.
Ameaçava crianças e educadores todo o tempo.
Em meio de toda a agitação daquele dia, Eduardo entrou, mas não quis sentar-se na
mesa maior onde os outros já estavam desenhando. Sentou-se numa mesa no canto da
sala. Aproximei-me e ele insistiu para que escrevesse a carta para sua bisavó. Falava
73
sempre num tom de ameaça, sem olhar para mim. Sentei-me ao seu lado e ele ditou a
carta. Dizia que gostava muito da bisavó e estava com saudades. Agora queria se
tratar, parar de usar drogas porque queria voltar a morar com ela. Enquanto ia
escrevendo, eu perguntava sobre sua bisavó e ele falava dela com afeto. Sua
expressão ficou diferente, desarmou-se um pouco. Sorriu.
Um outro garoto viu o que estávamos fazendo e veio pedir que eu escrevesse uma
carta para sua e também. Ele, assim como o Eduardo, não sabia escrever. Assim
que acabei a carta do Eduardo, virei-me para escrever a outra carta. Eduardo ficou
impaciente. Queria agora que eu fizesse um envelope. Expliquei-lhe que faria uma carta
para a mãe do outro garoto, que gostou de sua idéia. Sugeri que, enquanto isso, fizesse
um desenho na carta. Animou-se com a idéia, mas não conseguiu fazer nenhum
desenho e foi ficando cada vez mais irritado. Enquanto eu escrevia a carta que o Valter
ditava animadamente, Eduardo começou a tentar fazer o envelope com uma folha de
sulfite. Tentou uma vez e, diante da primeira dificuldade, rasgou a folha com muita raiva
e a jogou longe, com força. Em pouquíssimo tempo a cena repetiu-se umas cinco
vezes. Achei que ele iria explodir a qualquer momento. Tentei manter a calma.
Enquanto terminava a carta do Valter, procurava falar com ele de forma pausada e
tranqüila. Deu tempo.Terminamos a carta e fui ajudá-lo a fazer o envelope. Fiz um e ele
tentou fazer outro. ia rasgando novamente, quando intervim e ajudei-o a terminar o
que estava fazendo. Ficou bastante satisfeito por conseguir terminar. Disse que
colocaria a carta no Correio. Expliquei-lhe que precisaria de um outro envelope, mas
antes que pudesse terminar a explicação, ele estava impaciente, quase rasgando a
carta. Disse-lhe como poderia fazer e que conversaríamos com a educadora que o
acompanhava para que enviasse a carta. Ele ficou animado.
Quando estávamos finalizando sua carta, uma pessoa da equipe parou em frente à
janela onde estávamos, com dois maços de cigarros na mão e fumando outro. Eduardo
ficou transtornado. Disse-lhe que saísse dali ou não responderia por si. Com a voz
ameaçadora novamente, dizia que estava se segurando, mas que se ela não saísse
dali naquele momento, pegaria o cigarro dela. Começou de novo. Agora ele explodiria
74
mesmo. Foi ficando muito agitado e falava com voz de "bandido em ação". Ela não
ajudou, e querendo mostrar que não se sentia ameaçada por ele, respondeu à altura.
Ele foi crescendo. Eu estava sentada ao seu lado e por um momento os olhos dele
baixaram, olhou para o lado e vi outra expressão em seu rosto. Era o outro Eduardo.
Arrisquei uma brincadeira, falando bem baixinho, para só ele ouvir e disse-lhe,
brincando e fazendo cócegas, para ele parar de fazer cara de mau e voltarmos a cuidar
de nossa carta. Ele riu uma risada gostosa e eu senti alivio. Voltamos para nossa carta.
Depois explicou que estava três semanas sem fumar e sentindo muita vontade, que
a moça não deveria ter ficado com tanto cigarro na sua frente, porque estava sendo
difícil.
Terminada a carta, voltou a ficar impaciente. Estava com fome. estava provocando
os outros garotos, que, aliás, eram também bons de briga. Pedi que fosse comigo
buscar o lanche que estava sendo preparado na casa ao lado. Fomos junto com mais
um garoto. Ele foi abraçado comigo, carinhoso, contando histórias e perguntando sobre
várias coisas.
Na volta à oficina, chegando na casa, ele perguntou se eu tinha visto um beija-flor
com a barriga amarela. Eu não tinha visto nada. Disse, com uma expressão de
encantamento, que eu precisava ver, porque era a coisa mais linda. Era um garoto
muito diferente daquele ameaçador de minutos atrás. Começou a descrever o
passarinho e onde o tinha visto. Parecia que não ia caber em si. Então exclamou: "eu
queria tanto ser um...um...um gato!" Não pude deixar de ficar surpresa com a afirmação
e também com sua expressão, tão diferente no início do nosso encontro.
Eduardo demonstrava uma enorme necessidade de atenção e entregou-se ao sentir
que estava sendo olhado, cuidado. Mas diante de um mínimo de frustração, armava-se
novamente e se mostrava capaz de destruir tudo que estava sendo construído. Ele
cobrava de nós, do ambiente, uma dedicação total. Exigia o que sentia que lhe era
devido.
75
Na semana seguinte, voltou para participar da oficina. Desta vez sentou-se com as
outras crianças, jogou com elas. Um outro garoto, que voltava ao Quixote após um
período nas ruas, estava muito agitado e arrumando briga com todos. Qualquer coisa
era motivo para irritar-se e várias vezes jogou os brinquedos no chão. Os outros
agüentaram pacientemente, mas também já estavam no limite. Ele e Eduardo
acabaram brigando. Uma educadora que estava na casa,querendo terminar com a
briga, falou mais alto com os meninos. Eduardo não aceitou a bronca. Ele tinha razão,
do seu ponto de vista, não poderia receber o mesmo tratamento que o outro. Além
disso, ela não deveria falar com ele daquele jeito. Foi o que ele disse, aos berros, e
com seu velho tom ameaçador. Ela, querendo demonstrar que não se intimidaria, gritou
de volta, exigindo respeito. Quando percebi, ele estava encostado na parede e ela
gritando com ele. Tive certeza de que ele iria avançar sobre ela. Pedi que ele saísse
comigo e ele foi. Xingava a educadora e fazia ameaças a ela de todas as formas
possíveis. Todos que estavam lá fora ficaram assustados. Uma outra pessoa da equipe
conseguiu brincar com a situação. Ele aceitou a brincadeira, ficando mais calmo.
Pudemos, então, conversar sobre o que aconteceu. Ele estava ressentido, mas
conseguiu conter-se. Ficou furioso, sobretudo pelo sentimento de injustiça. Reconheci
que ele tinha razão.
A sua reação foi muito intensa e clara. Exigia respeito. Sentiu-se injustiçado e,
realmente, a atitude da educadora foi injusta e violenta. Ela não foi capaz de reagir à
situação de forma firme, mas sem violência. Ao procurar demonstrar que não se
intimidava com o garoto, deixou evidente o contrário.
Esses foram apenas nossos dois primeiros encontros. Soube um pouco de sua história
pelo educador que havia conversado com um outro profissional da equipe. Sua mãe
faleceu quando ele tinha cinco anos. Não tinha qualquer contato com o pai. Com o
falecimento da mãe, sua avó ficou com a guarda de seu irmão mais velho e sua bisavó
ficou com a sua. Pouco depois do falecimento da mãe, ele começou a fugir de casa e
passar períodos na rua e em abrigos. Apesar de sua preocupação, a bisavó sentia-se
sem condições de cuidar dele, não sabia o que fazer. Soubemos depois, pela equipe
76
que trabalha nas ruas do centro da cidade, que seu irmão, Sandro, também vive nas
ruas muito tempo, sendo muito mais resistente à idéia de voltar para casa ou ficar
em um abrigo. Eduardo gosta muito do irmão, e um fator importante que o faz querer
permanecer nas ruas é o fato de querer ficar com o irmão.
Percebemos em Eduardo um esforço para manter vínculos que são significativos com o
irmão e com a bisavó. Eles são tudo o que ele tem. Mas percebemos também que o
esforço o é recíproco. Não um investimento por parte deles para ficarem perto de
Eduardo. A bisavó diz-se cansada e incapaz de cuidar dele, mesmo quando ele insiste
que quer voltar para casa e se dispõe a se cuidar "para ficar menos nervoso e não usar
drogas" (sic), condições impostas pela bisavó. O irmão, por outro lado, diz que quer
ficar com ele, mas recusa-se a ir para o abrigo quando Eduardo pede. É inevitável
pensarmos no sofrimento decorrente da indiferença e do sentimento de não ter um
lugar onde se é desejado incondicionalmente.
Eduardo busca desesperadamente a experiência de pertencer verdadeiramente a sua
família, mas sofre com a impossibilidade, com o impedimento. Aquando irá resistir
nele a esperança de vir a ter um lugar? Ele parece buscar ainda uma referência, um
lugar a partir do qual possa dar uma direção a sua vida. Precisa encontrar um lugar na
vida, na subjetividade de alguém significativo para ele, que, no momento, parecem ser
a bisavó e o irmão. Mas os acontecimentos do mundo têm se apresentado a ele de
forma caótica, sem sentido, simplesmente ao acaso ou vontade de outro. As relações
são interrompidas, ele é jogado de um lugar para outro, independente de suas
necessidades, as promessas não são cumpridas, e ninguém busca por ele.
Após poucos encontros, Eduardo deixou de vir à oficina. Não recebemos nenhum
contato do abrigo onde estava. Ligamos e só então soubemos que ele havia sido
transferido para um outro abrigo. Entramos em contato com o novo abrigo, mas
alegando falta de pessoal, disseram que não poderiam dar continuidade ao
atendimento, porque não poderiam disponibilizar um profissional apenas para levá-lo ao
Quixote.
77
Esta é apenas uma das dificuldades que temos nos atendimentos a essas crianças.
Não é incomum a falta de cuidado em manter os vínculos que as crianças estabelecem.
Muitas vezes, os serviços colocam a situação de forma bem clara para elas: estão
sendo generosos, "fazendo-lhes um favor" e eles devem ser gratos e obedientes.
Percebemos com freqüência a desesperança dos educadores em relação às crianças -
"não tem mais jeito, não" - e elas percebem todos estes sinais, mesmo os mais sutis. E
respondem a eles, procurando marcar intensamente que não precisam mesmo de
ninguém e a reação vem muitas vezes acompanhada de violência. De certa forma, uma
resposta contra a violência sentida, vivida.
Pouco tempo depois, encontrei Eduardo no Moinho da Luz. Foi até lá acompanhado de
outras crianças. Num evento em comemoração ao dia das crianças, encontrou-se com
seu irmão que estava em outro abrigo e resolveram fugir. Como os abrigos em que
estavam recusaram-se a abrigar os dois irmãos juntos, resolveram permanecer nas
ruas. Estavam no Vale do Anhangabaú. Ao me ver, Eduardo reconheceu-me
imediatamente. Estava exalando um forte cheiro de cola, mas esforçava-se para não
parecer alterado pela droga. Foi logo conversando, como se tivéssemos nos
encontrado na semana anterior. Exausto, deitou a cabeça no meu colo, enquanto
conversávamos. Falou do desejo de voltar para a casa da bisavó e de ficar perto do
irmão. Apresentei-o a uma dupla de educadores que ia sempre ao Vale e eles
combinaram um encontro para o dia seguinte.
Ao ir ao Vale no dia seguinte, os educadores terapêuticos não o encontraram. Tiveram
a notícia de que naquela noite ele pediu para ser levado para a casa da bisavó, e, com
a promessa de fazê-lo, agentes da prefeitura o encaminharam a um abrigo. Onde está
neste momento. Infelizmente, não foi possível acompanharmos o caso, pois o abrigo
em que estava mostrou-se refratário ao nosso contato.
Não é difícil identificar em Eduardo os sinais do desencanto, que citamos
anteriormente. Desencanto por não ter sido acolhido e respeitado em suas
78
necessidades fundamentais, constitutivas, em sua singularidade. Não um lugar de
pertencimento. Eduardo necessita reencontrar o encanto em sua vida, um sentido
maior, um destino. Mas parece que ele ainda preserva uma boa dose de esperança.
4.10 A questão do encontro
Nesse trabalho, muitas vezes, tudo o que temos a oferecer ao outro somos nós
mesmos. A intervenção é, fundamentalmente, acompanhar, estar junto da criança com
a qual nos encontramos naquele momento. Devemos estar junto de maneira que
possamos ressoar o que o outro nos traz, as questões fundamentais que ele nos
coloca. Para isso precisamos nos deixar afetar por ele.
4.10.1 Encontros intensos
A convivência com estes garotos e garotas, tanto nas ruas quanto nas oficinas,
mobilizam sentimentos intensos. É impossível não sermos afetados pelo que vivemos
com eles ou pelas histórias que nos trazem. A possibilidade de realizar alguma
intervenção acontece apenas nesse encontro intenso, no qual estamos presentes de
forma pessoal, com nossa singularidade.
Um dos educadores terapêuticos traz imagens que lhe surgiram no encontro com
alguns garotos nas ruas da cidade e do espanto que o tomou. No primeiro relato, falou
do início do trabalho e da aproximação entre ele e as crianças e adolescentes. No
segundo relato, traz o espanto causado pela situação em que vivem os garotos.
"Começou, então, o trabalho, e os encontros foram acontecendo. Cada vez mais fui
deixando de ser totalmente estrangeiro e me tornando um visitante das ruas. Fui
conhecendo rostos, nomes, histórias. Aqueles meninos, que antes tinham a mesma
feição e o mesmo sexo, foram se tornando figuras únicas. Aquele indivíduo deitado no
chão, coberto de poeira e fuligem, deixou de ser apenas mais um sujeito em situação de
rua, revelando-se Andrés, Paulos, Alessandras, Joices... em situação de rua. Suas
cicatrizes visíveis e invisíveis deixaram de ser apenas marcas, traduzindo-se em
histórias, experiências, sofrimentos, travessuras. [...] As histórias contadas pelos garotos
79
movimentavam meus valores, idéias e ideais. Fui e estou em constante metamorfose,
cada conversa me toca e me transforma."(Relatório Moinho da Luz - ago/2006)
"O absurdo do mundo kafkaniano tornou-se muito real e próximo. Atravesso a passarela
das noivas e, na base, está nosso menino-rato, dormindo num buraco aberto nas
manhãs quentes e fechado por uma madeira, nas frias. Ando mais um pouco e olha
na Mauá o menino-barata cinza e rastejante como as mesmas, posso até ver, antenas,
mas essa está ligada à boca do nosso menino-inseto. Subo até a Amaral Gurgel, e o
que eu vejo? O menino- morcego, dormindo suspenso a uns três metros de altura na
base entre o minhocão e o chão.
Quem dera Gregor Samsa fosse apenas mais um personagem satírico, mas fictício,
contudo agora não o é mais... Tenho que lidar com isso e sempre, ao acordar, constatar
quem eu sou e onde minha metamorfose está me levando..." (Relatório Moinho da Luz,
out/2006)
4.10.2 José: um encontro possível
um relato de um belo encontro entre um grupo de ETs que estavam caminhando
juntos pelas ruas do centro e um garoto, que apenas um deles conhecia
superficialmente.
"Na primeira vez em que vimos Jonas, ele estava deitado de bruços na calçada, em
plena esquina das ruas do Triunfo com Gel. Osório (esquina do samba). Comia um
marmitex com as pernas levantadas e cruzadas, como um garoto qualquer que come
deitado em sua cama, enquanto ouve música ou assiste televisão.
A educadora que já o conhecia conversou rapidamente com ele enquanto ficávamos um
pouco mais distantes, que estávamos em um número relativamente grande de
educadores. Éramos cinco, voltando do almoço, a caminho do café da Universidade
Livre de Música. Após o café, enquanto ela dirigiu-se para o Moinho, nós (quatro ETs)
tomamos a direção oposta, a caminho do Vale do Anhangabaú.
Ao atravessarmos a rua logo após a ULM, ouvimos o choro e os gritos de um menino.
Era José que estava encostado ao muro da escola de música, chorava e se contorcia
todo, com muita aflição. Nos aproximamos dele que, apavorado, murmurava: “Meu olho!
Meu olho!!!”. Aceitou nossa ajuda sem, contudo, nos ver. Falou que o policial acabara de
espirrar spray de pimenta em seus olhos, que ardiam muito. Estavam vermelhos e
inchados e o menino os esfregava sem parar com a manga da blusa imunda. Dois ETs
tentaram acalmá-lo um pouco, marcando a presença ao seu lado, em um momento em
que claramente precisava de apoio. Enquanto isso, eu e outro ET corremos até uma
farmácia comprar soro e gaze para limpar seus olhos. Aos poucos, o efeito do spray foi
diminuindo, a compressa de soro aliviando a irritação e ele, bem mais calmo,
conseguia nos olhar. Nós, também um pouco mais calmos, pudemos nos olhar e iniciar
uma conversa.
80
Ele tinha um olhar baixo e envergonhado, que, com a conversa em tom de brincadeira,
foi aos poucos se mostrando. Falamos sobre a situação vivenciada por ele, sobre o
spray, o policial, os olhos, o soro (que é como uma grima, segundo ele), a gaze (o
pano mais limpo do mundo) e por aí afora. Sua expressão já era outra, a partir daí fomos
para outros assuntos aproveitando a espontaneidade da rua, com seus personagens,
acontecimentos e sons.
Como estávamos encostados ao muro da ULM, ouvimos uma pessoa praticar um
instrumento, tentamos adivinhar que som era aquele e cada um teve uma idéia diferente.
A partir daí, nosso assunto com o José foi a música. Perguntamos se gostava de música
e ele respondeu que não. Lembramos que naquela rua em que estávamos acontece
uma vez por mês a Rua do Samba” e perguntamos se conhecia. Ele respondeu: “É
claro que conheço, venho sempre”. Perguntamos que ritmos ele gostava, e deixou
escapar: Ah...vários” corrigindo logo em seguida: “Quer dizer, nenhum”. Demos muita
risada com sua “gafe” e ele, percebendo o que acabara de falar, sorria com os olhos.
José nos olhava sorrindo e depois se encolhia novamente, forçando-se a voltar à sua
postura protegida. Isto se repetia com freqüência durante a conversa. Ficávamos felizes
quando nos olhava e participava com mais propriedade daquela conversa: momentos
rápidos, pequenas conquistas.
Falamos sobre o trabalho do Projeto Quixote e de suas oficinas de Hip Hop.
Começamos a fazer sons com o corpo (palmas, sons com a boca, etc.). Foi divertido por
estarmos brincando na calçada em meio a outras pessoas que transitavam pelo local.
Já estávamos nos despedindo quando ele pediu para que o acompanhássemos à
Contemporânea, loja de instrumentos musicais. Nessa loja fomos recepcionados pelo
gerente que conhecia José e demonstrou ter uma relação afetiva com ele. Perguntou
como estava e o menino, tímido, deu um sorriso de cabeça baixa e não falou nada. O
gerente insistiu para que José nos contasse sobre sua família. Ele com os olhos
molhados falou: “Minha mãe morreu e meu pai bebe.” Rapidamente engoliu o choro
preso e saiu a procura do piano. Subimos para o segundo andar e estava o piano.
Pedimos para um dos Ets tocar. Começou com a música “Bolinho de Manteiga”.
Ficamos todos encantados, e José nem piscava! Ele pediu para tocar a “música do gás”
(Pour Elise) e quis gravar em nosso gravador.
Enquanto o educador tocava, José parecia estar em estado de encantamento. Os olhos
fixos no pianista pareciam deixar o momento eterno.
Saímos da loja, pois era tarde e o educador prometeu estudar melhor a música para
tocá-la novamente. José se despediu de cada um de nós e já do outro lado da rua disse:
'Fiquem com Deus'" (Relatório Moinho da Luz - set/2006)
No trabalho cotidiano com esses garotos e garotas, tanto os que encontramos no
Quixote, quanto os que encontramos nas ruas, percebemos que é fundamental que
possam encontrar um lugar no mundo humano que os acolha em suas singularidades,
possibilitando que tenham uma relação criativa com o mundo. As situações que
encontramos são muito diferentes, particulares. Cada criança tem uma história. as
81
que vivem com as suas famílias, nas condições mais diversas. Há as que estão vivendo
na rua, umas pouco tempo, outras anos. Umas trabalham nas ruas, outras vivem
com suas famílias nas ruas. São histórias diferentes, mas, a maioria delas, marcadas
por rupturas, abandonos, instabilidade. As crianças que encontramos são marcadas,
em graus diferentes, pelo desencanto e a desesperança. Vivem a impossibilidade de
habitar o mundo segundo as necessidades fundamentais para o acontecer humano.
Eduardo, por exemplo, vivia em uma situação caótica. Ansiava desesperadamente por
sua família, por seu lar, mas vivia circulando entre a rua e vários abrigos. A bisavó
recusava-se a recebê-lo. Embora tivesse apenas nove anos, estava nesta condição
havia quatro anos. No encontro com ele, foi importante, inicialmente, atender seu
pedido de atenção sem retaliação, apesar de seu comportamento bastante agressivo e
ameaçador. Poder acolher e sustentar um encontro tão tenso, manejar o tempo e a
atividade, possibilitou a realização da tão desejada carta à bisavó, o que foi uma
experiência significativa no nosso encontro. Nesse momento, cada gesto meu, a
entonação e intensidade da minha voz, por exemplo, eram extremamente importantes.
Winnicott assinala a importância do corpo da mãe ser afetado pelo bebê para poder
atender ao que ele necessita, procurando evitar rupturas e sobressaltos que possam
desorganizá-lo excessivamente. A qualidade da presença corporal é fundamental para
o manejo, que vai poder trazer a experiência de continuidade de ser. Era assim que me
sentia com Eduardo. Parecia que um gesto mais brusco, uma fala ríspida poderia
provocar uma desorganização, desencadear um ataque de fúria. Infelizmente nossos
encontros foram interrompidos, assim como tantos outros em sua vida.
João e Pedro também ansiavam pelo retorno ao lar. Permanecerem juntos era o que os
protegia minimamente nas ruas, mantendo viva a memória da família. O retorno ao lar
era marcado por desencontros e ameaças constantes de ruptura, retorno ao abrigo. O
trabalho infantil (fazer malabarismos nas ruas), que era inicialmente encarado com uma
atividade em família, aproximou as crianças da dinâmica das ruas e, diante das
dificuldades na família, estas passaram a ser consideradas como um lugar possível
para se viver. A vida nas ruas expõe as crianças a vários riscos. Elas vão se
82
aventurando e sendo envolvidas rapidamente pela dinâmica das mesmas. O tempo
passa rápido na rua e a degradação das crianças é intensa. O encontro entre os
educadores e João e Pedro foi modulado pelos últimos. Eram eles que permitiam ou
não a aproximação, definiam o que queriam fazer. A presença constante, mas não
invasiva, dos educadores foi o que os fez com que se tornassem uma referência de
cuidados para eles, em meio ao caos do Vale do Anhangabaú. O cuidado que os
educadores demonstraram com sua família foi fundamental no cuidado com os garotos.
Havia um desejo de voltar para casa, mas havia, também, a percepção de que esta
casa não era capaz de cuidar deles. O cuidado com a família abriu uma possibilidade
de que o lar pudesse ser, algum dia, um lugar para onde voltar e onde pudessem viver.
Mas as questões envolvidas são extremamente complexas, e, como disse pouco, o
tempo passa muito rápido e nem sempre temos tempo, equipe ou possibilidade de
articulação com outros serviços para intervir e atender às necessidades das famílias e
das crianças antes que a situação delas se agrave. Vale lembrar que Winnicott afirma
que, no início, o bebê só existe na relação com a mãe. É a partir da relação com a mãe
suficientemente boa que o bebê vai se desenvolver e vir a ser alguém. Mas Winnicott
enfatiza que na mãe está presentificada, também, a sua família, a sua cultura, o mundo
em que vive e, além disso, para poder cuidar de seu bebê, a mãe precisa ser cuidada.
Uma mãe não se faz sozinha. A possibilidade de ser mãe e oferecer os cuidados que o
bebê necessita é condicionada ao cuidado que a mãe recebe de sua família, de sua
comunidade, das condições que o mundo dá para que possa exercer a função materna.
Em muitos casos, precisamos cuidar de uma família para que esta possa vir a cuidar de
seu filho, porque também estão abandonadas e em situação de extrema
vulnerabilidade. Essa intervenção junto à família é bastante complexa.
No caso de Marcos a possibilidade de cuidar de sua família, especialmente de sua
mãe, trouxe a esperança de que a casa pudesse ser um lar para ele. A relação
próxima, as rias experiências vividas com o educador, a presença constante e firme
deste nas idas e vindas de Marcos, a espera sem retaliação nas recaídas foi fazendo
com que ele também se tornasse um ponto de referência na vertigem das ruas. Esse
ponto de referência que o educador passa a ser para a criança, é também um ponto de
83
partida, um lugar a partir do qual a criança pode desenhar um caminho alternativo à
circularidade da rua. É um lugar de sonho com o futuro, no qual novas possibilidades
podem ser vislumbradas. É um lugar de esperança.
Ter um lugar no mundo ordem e direção à vida da criança. Abre a possibilidade de
transitar, porque ela tem lugar de onde partir e para onde voltar. A partir de um lugar
que ressoe a singularidade da criança, ela pode olhar para o passado, ressignificar as
experiências que viveu e sonhar com o futuro. Como nos casos de Luana e Alex, que a
partir do momento em que foram olhados e cuidados em suas necessidades em relação
à questão escolar, puderam posicionar-se de modo diferente em relação à escola e à
própria aprendizagem. Puderam perceber o quanto a falha era da escola e não deles. A
humilhação, nos momentos em que acontecia, não provocava a desagregação e a
violência, mas a indignação e a exigência de um tratamento mais digno.
A intervenção, neste trabalho, demanda essencialmente que possamos estar com a
criança. O modo como nos colocamos na relação com ela pode fundar ou não um lugar,
pode ser ou não oferta de um lugar. Ter um lugar na relação com o outro abre o espaço
para o sonho. Precisamos estar presentes de forma autêntica e acolher a criança em
sua singularidade. Olhar, escutar, deixar-se afetar pelo que ela apresenta e ser capaz
de refletir isso a ela. Este é um modo de estar com o outro, em diferentes situações.
Este é o ponto inicial e fundamental de todo o trabalho com as crianças.
A oferta de um lugar na nossa relação com elas é possível quando oferecemos
também as condições necessárias para que possam confiar nessa relação e a partir daí
ter um gesto, uma ação criativa em direção ao mundo, que coloque sua existência em
trânsito. É apenas o começo de um caminho.
O lugar surge da experiência de confiança vivida em uma relação. Essa confiança
emerge de experiências de continuidade, de autenticidade e estabilidade vividas na
relação com o outro. Precisamos ser autênticos na relação com a criança, estarmos
presentes com nossa singularidade, com nossa história, nos deixarmos afetar pelo que
84
ela nos traz e assim podermos ressoar sua singularidade. E é a partir da experiência de
ter um lugar aparentado com o si mesmo da criança que ela poderá viver a experiência
de encanto.
85
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos últimos anos trabalhei com crianças em situação de risco, algumas delas em
situação de rua, no Projeto Quixote, vinculado à Universidade Federal de São Paulo.
Inicialmente acompanhava oficinas para crianças no Projeto Quixote da Vila Mariana.
Em 2005, o Quixote iniciou também um trabalho no centro de São Paulo, na região
conhecida como "cracolândia", no Moinho da Luz, onde trabalhei com crianças e
adolescentes, na sua maioria em situação de rua.
A experiência vivida com essas crianças sempre foi muito intensa e pensar sobre este
trabalho, sobre o sentido do que acontecia na minha relação com elas, foi uma
necessidade que me acompanhou desde seu início. Isso era buscado através de
supervisões, discussão de casos, grupos de estudo, análise pessoal e, agora, através
desta dissertação.
Procurei refletir sobre aspectos fundamentais das intervenções junto a essas crianças,
considerando a importância do ambiente e da relação com o outro para que a criança
possa vir a estabelecer uma relação criativa com o mundo em que vive. Foram
essenciais para este trabalho as contribuições de Winnicott, Safra e Simone Weil.
As crianças atendidas tanto no Projeto Quixote da Vila Mariana, quanto no Moinho Luz,
vivem situações diferentes, cada uma tem sua história, mas a maioria delas vive em
situações complexas de risco, adversidades e de extrema vulnerabilidade, assim como
suas famílias (FENDER, 2007). São histórias marcadas por violências, abandonos,
instabilidades, rupturas, perdas abruptas, abuso de álcool ou outras drogas, mudanças
de cidade. Há, quase sempre, dificuldades de acesso a serviços de saúde, educação,
moradia. O desemprego ou trabalho informal é a realidade para grande parte delas. As
crianças e, na maioria dos casos, suas famílias, vivem em condições que impedem que
habitem eticamente o mundo humano. São situações diversas que levam à experiência
do desenraizamento, como nos alerta Simone Weil. Essas crianças vivem várias delas:
a migração, o desemprego na família, o trabalho infantil, a violência, abuso ou
86
negligência, entre outras. Ao me referir à situação das famílias não pretendo, de forma
alguma, culpabilizá-las, apenas ressaltar que, em muitos casos, estão tão fragilizadas,
vulneráveis e sofrem tanto quanto suas crianças. Também precisam de cuidados.
Foi fundamental compreender que nenhuma intervenção deveria reduzir as questões
apresentadas por essas crianças a seu aspecto psíquico ou social, mas deveria
considerar seu aspecto ontológico, constitutivo. Mais do que sintomas psíquicos ou
problemas sociais, o que estas crianças nos trazem o sinais de desencanto, porque
não encontram no mundo um lugar que as respeite e as acolha em suas necessidades
fundamentais e em suas singularidades. São sofrimentos decorrentes do
desenraizamento, relacionados à ausência de um lugar, da impossibilidade de "habitar
o mundo segundo as necessidades fundamentais da condição humana" (SAFRA,
2006d). É importante ressaltar que os sofrimentos decorrentes do desenraizamento
estão presentes, de formas diversas, em todas as classes sociais e não se restringem
apenas à parcela mais pobre da população.
Daí a necessidade de que a intervenção seja norteada pela questão do lugar. A clínica
precisa ser oferta de lugar para o outro. A relação do profissional, seja numa oficina,
num atendimento individual ou num grupo, deve ser oferta de um lugar que ressoe a
singularidade do outro e o modo como estamos presentes nesta relação pode fundar ou
não um lugar. Precisamos estar presentes de forma autêntica, sendo nós mesmos,
mas capazes de ressoar o que o outro nos traz. Winnicott (1975, p.150) assinala que
"um bebê pode ser alimentado sem amor, mas um manejo desamoroso, ou impessoal,
fracassa em fazer do indivíduo uma criança humana nova e autônoma" (grifos do
autor). Neste processo, a confiança é essencial, porque o lugar emerge da confiança, e
para tanto será necessário percorrer um caminho complexo e, muitas vezes longo, até
podermos chegar lá, porque, como apresentei anteriormente, a confiança vem da
experiência vivida de autenticidade, de continuidade e estabilidade.
A experiência de encanto vem da possibilidade da criança criar o mundo, reconhecer-se
nele e ser reconhecida pelo outro em sua singularidade. Para isso é preciso que ela
87
possa confiar no ambiente e desenhar seu gesto espontâneo e singular em direção ao
mundo. O enraizamento é essa possibilidade de habitar o mundo humano de forma
criativa, participativa. A criança precisa deixar sua marca no mundo, e, às vezes, é o
que procura fazer através da violência, por exemplo, queixa tão comum nos dias de
hoje. O comportamento violento está entre as principais queixas que trazem as crianças
ao Quixote, quando encaminhadas por escolas, conselhos tutelares, Fóruns, serviços
de saúde. Outras queixas comuns são: problemas de aprendizagem, uso de drogas e
fugas de casa. Estas queixas, muitas vezes, estão relacionadas à tentativa da criança
de proteger-se do caos em que vive; em outras, pode relacionar-se à necessidade de
impor ao outro a experiência, o sofrimento que vive: caos, violência, humilhação,
desprezo, abandono. A intervenção necessária é a legitimação do sofrimento vivido e o
reconhecimento de que o que foi vivido não foi ético. A criança pode, então, se tornar
capaz de perceber objetivamente o que viveu, ressignificar suas experiências e
posicionar-se de uma outra forma no mundo, vislumbrando um outro caminho para si.
As fraturas éticas vividas por essas crianças são imensas. Simone Weil alerta para o
fato de que à medida que o desenraizamento se prolonga, aumenta suas devastações.
Sendo assim, fácil compreender que de um dia para o outro o mal pode tornar-se
irreparável" (WEIL, 1943, p. 416) . Este é um fator que dificulta e, às vezes, impossibilita
o trabalho. situações em que as organizações defensivas das crianças ganham
tonicidade, devido a ganhos secundários, e a aproximação, a relação torna-se difícil.
Por outro lado, é freqüente, que procurem ajuda nos momentos de grande fragilidade,
como em situações de ameaça de morte ou doença. Mas, às vezes, a morte devido a
uma tuberculose, uma overdose ou uma dívida paga com a vida chega antes que
possamos intervir. Em outros casos, as fraturas são o profundas e as necessidades
tão grandes e urgentes, que não somos capazes de oferecer a tempo os cuidados de
que necessitam.
Diante da intensidade deste trabalho, o cuidado com a equipe é essencial.
Compreender as dinâmicas dessas equipes e suas necessidades poderia melhorar
muito a qualidade do atendimento a essas crianças e adolescentes.
88
Importante, também, é a articulação com os outros serviços necessários para o cuidado
com essa população, como serviços de saúde, de assistência social, escola, abrigos,
entre outros. São possibilidades de importantes pesquisas futuras a análise da relação
desses serviços entre si e com as crianças e suas famílias, buscando a compreensão
das dinâmicas envolvidas e possibilidades de intervenção. Investigar os modelos de
abrigamento, considerando a questão da importância do lugar no estabelecimento do
sentido de si, poderia trazer contribuições significativas para pensarmos sobre este
dispositivo, seus alcances e limitações.
89
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, P. B. O brinquedo e as atividades cotidianas de crianças em situação de rua.
1998. 89 p. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Psicologia, PUC – RS, 1998.
______. et al. Brinquedo, trabalho, espaço e companhia de atividades lúdicas no relato
de crianças em situação de rua. Psico (Porto Alegre), vol. 32, no.2, p. 74-71, jul.-dez.
2001.
BARRETTO, K. D. Ética e técnica no acompanhamento terapêutico: andanças com
Dom Quixote e Sancho Pança. São Paulo: Unimarco Editora, 1998
BEDOIAN, G. Quixotinhos Urbanos: a rua, a droga e a rede. In: LESCHER, A.;
BEDOIAN, G. (org). Conceitos e estratégias para o atendimento de crianças e jovens
em situação de risco. São Paulo: Secretaria Municipal de Assistência e
Desenvolvimento Social, Projeto Quixote, Unifesp, 2007.
BELLENZANI, R.; MALFITANO, A. P. S. Juventude, vulnerabilidade social e exploração
sexual: um olhar a partir da articulação entre saúde e direitos humanos. Saúde e
Sociedade, vol. 15, no.3, p. 115-130, set.-dez. 2006.
BOSI, E. Cultura e Desenraizamento. In: BOSI, A. (org). Cultura Brasileira: Temas e
Situações. 6a ed. São Paulo: Ed. Ática, 2006.
CAMPOS, T. N.; DEL PRETTE, Z.A.P.; DEL PRETTE, A. (Sobre)vivendo nas ruas:
habilidades sociais e valores de crianças e adolescentes. Psicologia - Reflexão Crítica,
vol. 13, no.3, p. 517-527, 2000.
CARPENA, M. E. F. Famílias de meninos em situação de rua na cidade de Caxias do
Sul: locus de controle, situação atual de vida e expectativas para o futuro.1999. 95 p.
Dissertação de Mestrado, Faculdade de Psicologia, PUC – RS, 1999.
CARREIRA, A.F. Era uma vez três sereias: análise de narrativas de crianças de rua.
1997. 141 p. Dissertação de Mestrado. Departamento de Psicologia e Educação.
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, USP, Ribeirão Preto, 1997.
CENTRO BRASILEIRO DE INFORMAÇÕES SOBRE DROGAS PSICOTRÓPICAS.
Levantamento nacional sobre uso de drogas entre crianças e adolescentes em situação
de rua nas 27 capitais brasileiras. Universidade Federal de São Paulo, São Paulo,
2003.
COELHO JÚNIOR, L. L.; GONTIÈS, B. Representações sociais de adolescentes do
movimento nacional dos meninos e meninas de rua da cidade de João Pessoa - PB.
Psicologia argumento, vol. 19, no.28, p. 47-54, abr. 2001.
90
CONCEIÇÃO, M. I. G.; SUDBRACK, M. F. O. Estudo sociométrico de uma instituição
alternativa para crianças e adolescentes em situação de rua: construindo uma proposta
pedagógica. Psicologia - Reflexão Crítica, vol. 17, no.2, p. 277-286, 2004.
COSTA, B. L.D. et al. Programas para crianças e adolescentes em situação de risco: a
complexidade do objeto e a dimensão institucional. Cadernos Gestão Pública e
Cidadania - EAESP/FGV - SP, vol. 13, jun.1999.
CUNHA, J. R. A situação da política de atendimento à criança e ao adolescente no
Estado do Rio de Janeiro. In: DINIZ, A.; LOBO, A. P. A criança e o adolescente em
situação de risco em debate. Rio de Janeiro. Ed. Litteris-KroArt, 1998.
CURY, M.; GARRIDO, P. A.; MARÇURA, J. N. Estatuto da Criança e do
Adolescente Anotado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991.
DAVIS, M.; WALLBRIDGE, D. Limite e espaço – uma introdução à obra de D. W.
Winnicott. Trad. Eva Nick. Rio de Janeiro: Imago, 1982.
DIAS, E. A Teoria das Psicoses. 1998. 367 p. Tese de Doutorado, PUC-SP, 1998.
FENDER, S. A. Famílias: riscos e desafios. In: LESCHER, A.; BEDOIAN, G. (org).
Conceitos e estratégias para o atendimento de crianças e jovens em situação de risco.
São Paulo: Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, Projeto
Quixote, Unifesp, 2007.
FERREIRA, R. M. F. Meninos da Rua: valores e expectativas de menores
marginalizados em São Paulo. São Paulo, Comissão de Justiça e Paz/CEDEC.
1979.
FRELLER, C. C. Histórias de indisciplina escolar: o trabalho de um psicólogo
numa perspectiva winnicottiana. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001
GONÇALVES FILHO, J. M. Passagem para a Vila Joanisa - uma introdução ao
problema da humilhação social. 1995. 171 p. Dissertação de Mestrado, Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.
GRACIANI, M. S. S. Processo de abordagem das crianças e adolescentes "de e na"
rua: desafios e perspectivas. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento
Humano; vol. 1, no.4, p. 49-58 jan./jun. 1994.
91
GREGORI, M. F. Viração: experiências de meninos de rua. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
________. ;SILVA, C. A. Meninos de rua e instituições: tramas, disputas e
desmanche. São Paulo. Unesco/Instituto Airton Senna/Contexto, 2000.
GUARESCHI, N. M.F. et al. Pobreza, violência e trabalho: a produção de sentidos
de meninos e meninas de uma favela. Estudos de Psicologia (Natal); vol. 8, no.1,
p. 45-53, jan.-abr. 2003.
HUTZ, C.S.; SILVA, D.F.M. Avaliação psicológica com crianças e adolescentes em
situação de risco. Avaliação Psicológica, vol.1, no.1, p. 73-79, 2002.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (Ipea). Levantamento nacional
dos abrigos para crianças e adolescentes da rede de serviços de ão continuada.
2003.
KARLING, J. C. A representação social do espaço público em meninos em situação de
rua. 2001. 201 p. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Psicologia, PUC – RS, 2001.
KHAN, M. Prefácio. In: WINNICOTT, D. W. Textos selecionados: da pediatria à
psicanálise. Trad. Jane Russo. 4a ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
LESCHER, A.D.; SARTI, C.; BEDOIAN, G.; ADORNO, R.C.F.; SILVA, S.L.
Cartografia de uma Rede: reflexões sobre um mapeamento da circulação de
crianças e adolescentes em situação de rua na cidade de São Paulo. Ministério da
Saúde, COSAM, UNDCP, Projeto Quixote/UNIFESP, São Paulo. 1998.
______ .; GRAJCER, B.; BEDOIAN, G.; AZEVEDO, L.M.; SILVA, L.N.;
PERNAMBUCO, M.,.A.; CARNEIRO, N. Crianças em situação de risco social:
limites e necessidades da atuação do profissional de saúde. Faculdade de
Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Secretaria Municipal da Saúde da
Prefeitura do Município de São Paulo, Projeto Quixote, São Paulo. 2004.
LILIENTHAL, L. A. A Gestaltpedagogia sai às ruas para trabalhar com crianças e
educadores de rua.1997. 208 p. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, USP,
São Paulo, 1997.
92
LUTFI, M. E. Curitiba, comunidade e meninos(as) de ruas. Uma proposta de educação
sexual. Revista Brasileira de Sexualidade Humana, vol. 2, no.3, p. 159-169, jul./dez.
1992.
MAZZEI, A. M. D. A integração possível: analise das variáveis da
vinculação/desvinculação de crianças e adolescentes em suas comunidades de origem.
2002. 130 p. Dissertação de Mestrado. Escola Nacional de Saúde Pública. Rio de
Janeiro. 2002.
MEDEIROS, M.; FERRIANI, M. G. C. Programas de atenção às crianças e aos
adolescentes em situação de rua: percepções de seus coordenadores. Revista
Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano; vol. 1/2, no.5, p. 48-59 jan./dez.
1995.
MIRANDA, M. A.; SCHWYTER, F. S. Reintegrando crianças de rua na sociedade e na
família: a experiência da Casa da Criança Renascer. Re-criação; vol.3, no.2, p. 34-39,
1998.
NEWMAN, A. As Idéias de D.W. Winnicott: Um Guia. - trad. Davi Bogomoletz, Rio de
Janeiro: Ed. Imago, 2003
NUNES, M. Características psicossociais dos meninos e meninas na rua de Passo
Fundo. 1995. 108 p. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Psicologia, PUC RS,
1995.
OLIVEIRA, L. A. O significado da família para meninos em situação de rua de Porto
Alegre. 2002. 66 p. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Psicologia, PUC RS,
2002.
OLIVEIRA, S. D. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8.069/90. Rio de
Janeiro, DP&A Editora, 4a ed. 2002.
OLIVEIRA, N. S. et al. Aspectos da auto-estima de crianças e adolescentes em
situação de rua: reflexões para o cuidado em enfermagem. Ciência, cuidado e
saúde, vol. 3, no. 3, p. 233-242, set-dez. 2004
______. ;MEDEIROS, M. Histórias de vida de meninas com experiência
pregressa nas ruas: perspectivas do processo de inclusão social. Revista
eletrônica de enfermagem, vol. 8, no.1, p. 119-127, 2006.
PALUDO, S.S. A expressão das emoções morais de crianças em situação de rua. 2004.
124 p. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Psicologia, PUC – RS, 2004.
93
PHILLIPS, A. Winnicott. Trad. Alessandra Siedschlag. Aparecida, SP: Idéias&Letras,
2006.
PROJETO QUIXOTE. Relatório 2002.
PROJETO QUIXOTE. Relatório do Moinho da Luz. jul.-dez./2006.
RIBEIRO. M. O. A criança de/na rua em idade escolar: um olhar sobre sua história de
vida. 1999. 140 p. Tese de Doutorado. Escola de Enfermagem. Universidade de São
Paulo. São Paulo. 1999
______. A criança de/na rua tem família: uma família em crise. Revista Brasileira de
Crescimento e Desenvolvimento Humano; vol.11, no.1, p. 35-47, jan.-jul. 2001.
_______. A rua: um acolhimento falaz às crianças que nela vivem. Revista
Latinoamericana de Enfermagem; vol.11, no. 5, p. 622-629, set.-out. 2003
SAFRA, G. A face estética do self. São Paulo: Unimarco Editora, 1999.
______. Winnicott, Khan e o Islamismo. Curso: "A clínica do self: influências teológicas
da teoria psicanalítica", 2001. Pós-graduação, PUC-SP. 2001.
______. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida, São Paulo: Idéias & Letras,
2004.
______. Placement: modelo clínico para o acompanhamento terapêutico. Psychê:
Revista de Psicanálise, vol. 10, no.18, set/2006. São Paulo: Unimarco editora, 2006.
______. Apresentação de objeto e/ou reconhecimento do idioma pessoal. Programa de
Formação Continuada (PROFOCO). São Paulo. Jun/2006b.
______. Do handling ao corpo no setting. Programa de Formação Continuada
(PROFOCO). São Paulo. Ago/2006c.
______. Placement: a importância do Lugar. Programa de Formação Continuada
(PROFOCO). São Paulo. Out/2006d.
SANTANA, J. P. et al.. Instituições de atendimento a crianças e adolescentes em
situação de rua. Psicologia e Sociedade, vol.16., no. 2, p. 59-70, maio-ago. 2004.
______. et al. É fácil tirar a criança da rua, o difícil é tirar a rua da criança. Psicologia
em estudo; vol.10, no.2, p. 165-174, maio-ago. 2005.
SANTOS, E.C. Um estudo sobre a brincadeira entre crianças em situação de rua. 2004.
125 p. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Psicologia, PUC – RS, 2004.
94
SANTOS, M. L. Expressão simbólica x ruptura do funcionamento psíquico - em meninos
de rua. 1997. 184 p. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Psicologia, PUC RS,
1997.
SANTOS, D. N. et al. Ação a crianças e adolescentes em situação de risco:
Características sociodemográficas dos participantes de um programa de acolhimento da
prefeitura de Salvador e considerações gerais sobre o modelo de atenção. Jornal
Brasileiro de Psiquiatria; vol. 51, no.4, p. 209-216, jul.-ago. 2002.
SARTI, C. A. A continuidade entre casa e rua no mundo da criança pobre. Revista
Brasileira. de Crescimento e Desenvolvimento Humano; vol.1/2, no.5, p. 39-47, jan./dez.
1995.
______. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. São Paulo: Ed.
Cortez, 4a edição, 2007.
SAWAIA, B. (org) As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da
desigualdade social. 6
a
ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2006.
SILVA, P. R. M. A meninice (em casa) na rua: no limite da intimidade e da exposição da
subjetividade no discurso. 2002. 291 p. Tese de Doutorado. Universidade de São
Paulo. São Paulo. 2002.
TFOUNI, L.V.; MORAES, J. A família narrada por crianças e adolescentes de rua: a
ficção como suporte do desejo. Revista de Psicologia da USP, 14 (1):65-84, 2003.
UNICEF. Excluídas e invisíveis: Relatório sobre a Situação Mundial da Infância, 2006.
YUNES, M. A. M. et al. Família vivida e pensada na percepção de crianças em situação
de rua. Paidéia, vol.11, no.21, p. 47-56, 2001.
WEIL, S. (1943) O enraizamento. In: BOSI,E. (org.). Simone Weil. A condição operária e
outros estudos sobre a opressão. Trad. Therezinha Gomes Garcia Langlada. 2a ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
WINNICOTT, D. W. 1947. Tratamento em regime residencial para crianças difíceis. IN:
Privação e Delinqüência. Trad. Álvaro Cabral. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
______. 1948. Alojamentos para crianças em tempo de guerra e em tempo de paz. IN:
Privação e Delinqüência. Trad. Álvaro Cabral. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
______.1949. A mente e sua relação com o psique-soma. IN: Textos
Selecionados: da pediatria à psicanálise. Trad. Jane Russo. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1993.
95
______.1952. Ansiedade associada à insegurança. Textos Selecionados: da pediatria
à psicanálise. Trad. Jane Russo. 4ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
______.1956. A tendência anti-social. IN: Privação e Delinqüência. Trad. Álvaro Cabral.
2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
______.1960. Teoria do relacionamento paterno-infantil. IN: O Ambiente e os
Processos de Maturação: Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Trad.
Irineo Constantino Schuch Ortiz. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
______.1970. Assistência residencial como terapia. IN: Privação e Delinqüência. Trad.
Álvaro Cabral. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
______ .O brincar e a realidade. Trad. José O.A. Abreu e Vanede Nobre. Rio de
Janeiro: Imago, 1975.
______. Natureza Humana. Trad. Davi L. Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
ZOMER, A. A vivência de rua nas relações de amizade. 1996. 88 p. Dissertação de
Mestrado. Faculdade de Psicologia, PUC – RS, 1996.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo