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Delicadas coreografias:
instantâneos de uma
terapia ocupacional
Flavia Liberman
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1
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Flavia Liberman
Delicadas coreografias:
instantâneos de uma
terapia ocupacional
Programa de Estudos Pós - Graduados em Psicologia Clínica
Núcleo de estudos e Pesquisas da Subjetividade
Tese apresentada a Banca examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de Doutor em Psicologia clínica, Estudos da Subjetividade,
sob a orientação da Profa. Dra. Suely Belinha Rolnik.
São Paulo- 2007
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Banca examinadora
5
Agradeço à minha orientadora Suely Rolnik, que com poucas palavras me abre
mundos e me ajuda a sustentar desejos e realizações.
Ao João. Sem o seu talento fotográfico esta tese não sairia tão linda. Também agradeço
por este e por outros tantos projetos meus e nossos!!!
Aos meus filhos Tali e Matias, que mesmo muito jovens compreendem e apóiam meus
projetos, gostos e necessidades. A eles dedico este e todos os trabalhos que virão.
Aos meus pais, que mesmo de longe entenderam, apoiaram e me ajudaram com meus
filhotes quando eu precisava “sair do ar” para me dedicar a este trabalho.
A perseverança por eles ensinada, me guiou para seguir sempre adiante por um
propósito importante.
Ao Orlandi, por suas aulas que tanto me ajudaram a compreender e direcionar este
trabalho, pelas orientações, pela amizade e generosidade sem fim.
À Regina Favre, pelo privilégio de conhecê-la e partilhar de tantos momentos
desafiadores nos estudos do “corpar” e por me ajudar a dar e ter corpo para sustentar
tanta intensidade neste e em outros processos vitais.
Ao grupo dos seminários coordenados por Regina Favre, pela paciência e
compreensão durante a escrita desta tese e pelo acolhimento das várias
inquietações que escapavam em nossos encontros. Em especial ao Jorge,
que foi como um irmão me apoiando, participando e sendo extremamente
amoroso em todas as ocasiões.
Agradecimentos
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
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À Fanny, colega especial do grupo, pelos toques e sugestões para esta tese e para
outros assuntos; à Fabiana Deus, companheira no compartilhar de inquietações,
trabalhos e principalmente entusiasmo no viver e conhecer.
Ao Marcelo Andrade, pelas gravações de alguns de meus trabalhos, pela delicadeza
no trato, pela competência profissional.
Ao Paulo e a Ná, queridos amigos de tantas ocasiões e que me ofertaram Mauá, um
lugar especial em nossa convivência e, em particular, “paraíso” fértil em tempos
de escritura da tese. À Ná em particular, por uma amizade sem fronteiras.
Agradeço ao Zé Ailtom, meu anjo da guarda neste tempo de solidão e concentração
em Visconde de Mauá e ao seu menino Erlon, pela companhia sorridente e curiosa
em algumas etapas da escrita.
Aos meus alunos e a todos os participantes dos grupos, workshops e cursos,
pela oportunidade de aprender com eles, escutar suas idéias e assistir a tantos
momentos belos e intrigantes.
Às mulheres de Sorocaba, minhas companheiras de experimentações, pela beleza
de suas histórias, pelo privilégio de conhecê-las.
Aos participantes dos grupos de estudos que compartilharam comigo as elaborações
e produções durante a escrita desta tese, através de seu estímulo e inquietações que
me incitavam ao exercício do pensar.
Aos colegas do Núcleo de Subjetividade, pelas contribuições, pela atenção,
pela possibilidade de fazer parte de um grupo tão especial, suporte para vivermos
nossos sonhos, projetos e realizações. Em particular à Kekei, Ana Paula, Juliana,
Lucimar, Breno, Patrícia e Valéria.
Em especial, à amiga e terapeuta ocupacional Andréa Amparo, pela companhia nas
inquietações, troca de impressões sobre os assuntos de nosso campo e,
principalmente, pela amizade que transcende limites.
Agradecimentos
7
Ao Luis Aragon, pela ajuda nas etapas finais e, principalmente, pela oportunidade de
conhecê-lo para partilhar conversas, trabalhos e acontecimentos.É um prazer estar em
sua gentil e firme companhia.
Ao curso de Terapia Ocupacional e às colegas docentes do Centro Universitário
São Camilo, que de diferentes modos escutaram e apoiaram esta empreitada.
À Marisa Samea, pela parceria nas aulas da faculdade, pelo apoio nesta
minha empreitada , pela amizade nesta vida.
À Solange Tedesco, pela escuta, pelas trocas valiosas de conhecimentos, pelos
trabalhos conjuntos e, principalmente, pela convivência tão especial e humorada.
À Renata Mecca, também minha parceira nas aulas, pelas suas preciosas
contribuições e valiosa companhia.
À Ethel Akerman, pela amizade, pela escuta das idéias da tese e por todas
as conversas sobre as mais variadas situações e assuntos.
À Deborah de Paula Souza, pelo entusiasmo em me ouvir e por suas delicadas e
valiosas sugestões.
À Claudia Mello, Naira, Cida e Sylvia, minhas companheiras de grupo de estudos,
pausa necessária e maravilhosa em meio a tantos desafios.
À Annita, por suas contribuições, pela força e pela delicadeza e refinamento com que
olhou o meu trabalho.
À Neide Aparecida de Almeida, minha revisora e grande interlocutora. Nossas
conversas foram uma mescla de trabalho e vida, que não pode ser computada.
À Carmem, pela beleza do projeto gráfico e cuidado na finalização da tese em suas
palavras e fotografias.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
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Ao Caio e à Inês, pelo lindo trabalho com as imagens produzidas na qualificação e para
outros “ eventos” e pelo estímulo, pela amizade, pela força ao longo do meu processo
de produção.
À Mara Caffé, ao Beto, à Graça e Marinho, à Vera Delascio, que de diferentes modos
cuidam de mim.
À PUC-SP, através do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade,
pela possibilidade de convívio com um coletivo que me fez seguir um caminho
desejante e singular.
À CAPES, pelo apoio financeiro.
9
Para o João
Para a Tali e o Matias
Para a Suely
11
T
omando a cartografia como percurso metodológico, esta tese procura descrever,
discutir e, sobretudo, articular uma série de experiências realizadas em diferentes
contextos – clínica da terapia ocupacional, docência em cursos de graduação e gru-
pos de estudo – em que se utiliza abordagens corporais para promover o encontro entre
corpos/sujeitos.
Os registros aqui delineados não têm como objetivo apenas apresentar os proce-
dimentos que pautam a clínica, mas identificar e problematizar algumas de suas linhas
através da análise de cenas, falas e depoimentos. Tal registro se faz por meio de uma
composição entre texto e fotos, nas quais se procura captar instantâneos de expressivi-
dade. Estudos teóricos em torno do corpo e da subjetividade – não só no campo da tera-
pia ocupacional, mas também na filosofia, arte e educação – contribuem para conceituar
aquilo que se efetuou nos corpos como efeito dos encontros entre os participantes e as
proposições sugeridas.
Ao longo de sete séries de procedimentos – aquecer, fotografar, olhar, tocar,
moverepausar,improvisar,conversaresilenciar– alguns conceitos são discutidos a par-
tir do vivido e transitam por aspectos objetivos e subjetivos, visíveis e invisíveis, indivi-
duais e coletivos. Os verbos no infinitivo utilizados durante toda a tese, tanto na
nomeação das séries de procedimentos quanto nos contornos que finalizam este traba-
lho, procuram expressar o dinamismo dos processos.
Inspirada por Espinosa, Stern, G. Deleuze e F. Guattari, entre outros, a discussão
aqui realizada está pautada pela idéia de que a capacidade de afetar e ser afetado
constitui um motor para o sujeito “aproximar-se” do próprio corpo, do corpo do outro,
dos/nos ambientes. Em tais aproximações criam-se por vezes acontecimentos, em di-
ferentes modulações de intensidade, capazes de mobilizar afetos, pensamentos, ima-
gens, memórias que podem ser reconhecidas e compartilhadas pelo grupo.
Resumo
12
Neste trabalho adoto como referência a concepção de corpo proposta por S. Ke-
leman, construída por vários vetores. É a noção de corpo como pulso, aberto e conecti-
vo, que dá sustentação a esta clínica que desenvolvo, pois é nos encontros que
aproximações se fazem, turbulências acontecem, produções de outros repertórios exis-
tenciais se solidificam e podem ser expressos. Pequenos eventos podem reverberar em
outros modos de funcionar, viver e se apresentar frente ao outro, criando realidades.
Assim, este trabalho diz respeito a uma possível produção de sensibillidades:
mais atentas ao próprio pulso vital, aos contatos com o outro e com os mundos, permi-
tindo leituras aprofundadas do vivo, do corpo e das possibilidades de construção de ou-
tros modos de existir, mais singulares, resistentes aos ataques e modelos sociais que
restringem as potências e a produção de realidades criativas e pulsantes de vida.
Palavras-chave:procedimentos em terapia ocupacional, corpo, dança, subjetividade, grupo.
13
T
aking cartography as its methodological trajectory, this paper aims at describing,
discussing and, above all, articulating a series of experiences carried through in
different clinic contexts – occupational therapy clinic, graduation teaching and
groups of study – using body approaches to promote the meeting between bodies/
individuals.
The records outlined here are meant not only to present the procedures that guide
the clinic, but also to identify and question some of their conducts through the analysis
of scenes, lines and statements. The referred records were reached through the
assemblage of text and photographs that seek to catch snapshots of body expression.
Theoretical studies on body and subjectivity – not only related to occupational therapy but
also to philosophy, art and education – contribute to reach the concept on what was
effected in the bodies as a result of the meetings between the participants and the
suggested proposals.
Throughout seven series of procedures – warmingup,photographing,looking,
touching,movingand pausing,improvising,talkingandstop talking – some concepts
are discussed from the experiences and wander around objective and subjective,
visible and invisible, individual and collective aspects. The verbs in the infinitive
used throughout the thesis, on both the naming of the series of procedures and the
contours that close this paper, aim to express the dynamism of the processes.
Inspired by Espinosa, Stern, G. Deleuze and F. Guattari among others, the
investigations carried through here are guided by the idea that the capacity to affect and
to be affected constitutes an engine for the individual “to get closer to” their own and
other’s body, to/in environments. When “getting closer” takes place, it sometimes creates
events in different modulations of intensity, capable of mobilizing affection, thoughts,
images and memories likely to be recognized and shared by the group.
Abstract
14
In this thesis I adopt as reference S. Kelemans conception of the body
constructed by several vectors. It is the notion of body as pulse, open and connective,
one that supports my practice, because it is in such meetings that getting closer takes
place, turbulences occur, production of other existential repertoires solidify and can
beexpressed. Small events may resonate in other ways of functioning, living and
presenting before the other, creating realities.
Thus, this paper concerns a possible production of sensitivities: more closely
related to the vital pulse itself, to the contacts with the individual and with other worlds,
enabling deeper readings of the living, of the body and of the possibilities to construct
other ways to exist, particular ones, resistant to the attacks and to the social models that
restrict the power and the production of creative and vibrant realities of life.
Key words: procedures in occupational therapy; body; dancing; subjectivity; group.
15
19 Introdução
31 O corpo como pulso
57 Aberturas aos procedimentos
73 Série Aquecer: modulações do aproximar
103 Série Fotografar
131 Série Olhar
175 Série Tocar
207 Série Mover e Pausar: ondas e calmarias
231 Série Improvisar: exercícios de criação de si e de mundos
255 Série Conversar e Silenciar
285 Contornos
301 Bibliografia
Sumário
17
Se você possui um albúm de fotos e examina
suas imagens ao longo de trinta ou quarenta anos,
vai captar a noção de ter tido muitos
corpos em sua vida (...) E ter muitas vidas
ao longo de uma vida.
Stanley Keleman
19
Tudo é caso de sangue. Não é fácil ser um homem
livre: fugir da peste, organizar encontros,
aumentar a potência de agir, afetar-se pela alegria,
multiplicar os afetos que exprimem e envolvem
o máximo de afirmação”.
Deleuze e Parnet
1
Introdução: aproximações
1
DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998,
p.75.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
20
Introdução
21
A
cada vez que entro em um espaço, encontro atmosferas singulares. Não conhe-
ço os participantes, tampouco as respostas que cada um e cada grupo dará às
proposições. Chego com o que chamo de “um menu de possibilidades” que, a
cada instante, pode ser criado e remodelado a partir e nas experimentações.
A idéia é propor oportunidades para aproximações/afastamentos e múltiplas relações
que se estabelecem com os diferentes modos de contato.
Dada à inexistência de certezas, inauguro o trabalho lentamente, propondo um reco-
nhecimento do próprio corpo – músculos, ossos, respirações, imagens, pensamentos,
dores e um mundo que atravessa a cada instante a existência corporal
2
.
É preciso ressaltar que, nesse contexto, as inaugurações são permanentes: um
pensamento se formata, uma palavra se materializa em um gesto ou movimento, acon-
tece certo grau de abertura ou fechamento para o contato e para as propostas. Não é
apenas o primeiro dia que marca o início de um processo.
Não se pode dizer também que há uma finalização, pois o que se vive e compar-
tilha nos laboratórios reverbera para outros contextos que incidem em movimentos de
subjetivação, em mutações da sensibilidade.
3
Trata-se de intensidades daquilo que nos afeta, move, tranqüiliza e perturba pelo
fato de estarmos vivos.
Como se vive com os corpos? Que corpos foram delineados até o momento em ques-
tão? Quais aparecerão no contato? Que outros poderão ser (re)construídos a partir das
experimentações?
Aos poucos ficam evidentes a diversidade e a singularidade dos corpos, efeito
das experiências, dos encontros, vínculos, afetos, ambientes que constroem cada corpo
em particular.
2
A “capacidade de estar no mundo é um ato corporal”, comentário proferido por
Stanley Keleman em workshop (2003). Algumas de suas idéias serão
apresentadas no capítulo Corpo como pulso.
3
Tratando da prática do cartógrafo, Suely Rolnik menciona a atenção que o
cartógrafo deve ter em relação às estratégias das formações do desejo no campo
social “(...), desde os movimentos sociais, formalizados ou não, as mutações da
sensibilidade coletiva, a violência, a delinqüência até os fantasmas
inconscientes e os quadros clínicos de indivíduos, grupos e massas
institucionalizados ou não”In: ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental:
transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da
UFRGS, 2006, p. 65.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
22
A cada instante é possível captar as atmosferas do processo em curso, ao riscar e
arriscar propostas realizadas em diferentes posturas corporais, configurações do grupo,
ritmos e velocidades das proposições.
São variações múltiplas e prenhes de possibilidades criadas e sugeridas pelo pró-
prio desenrolar dos processos: contatos vivenciados em infinitas modulações e intensida-
des que, quando expressos, criam sentidos através de pontes de linguagem (Rolnik).
4
Basta olhar as fotos, escutar as palavras, olhar atentamente para os refinamentos
que exalam dos corpos. A esse emaranhado de acontecimentos, ora visíveis ora em ple-
no engendramento, convido o leitor a me acompanhar para testemunhar momentos de
introspecção, experimentações em duos, trios, em grupos pequenos ou num coletivo em
que os participantes se engajam de acordo com seus desejos e disposições.
É importante observar também a diversidade de respostas e comentários que
emergem de cada cena, às vezes paradoxais, entre confortos e desconfortos, incômodos
e satisfações, encontros e fugas.
De qualquer modo, na maioria das vezes as vivências constituem oportunidades
para saber mais de si, dos modos de funcionamento que são acessados na complexida-
de dos contatos e num mundo de tentativas e ensaios para adentrar e fugir dos mapas e
trilhas habituais.
Assim, as propostas sugerem mudanças de lugar, observações sobre como os
encontros acontecem e, principalmente, permitem momentos de surpresa frente ao (re)
conhecimento de aspectos, tonalidades e tendências que dão contornos metaestáveis
aos corpos.
São as formas emocionais que se apresentam e que integrarão nossas discus-
sões ao longo de todo o trabalho.
A opção por não utilizar procedimentos fechados e/ou protocolares mas guias
5
,
que fazem realizar a direção já em curso, deixa claro que as propostas criadas a cada
momento pelo grupo são sugeridas e desdobradas: rostos são pintados; atividades ar-
tesanais compõem com as técnicas de abordagem corporal; danças e reflexões são rea-
lizadas; desenhos criados; corpos chacoalhados; emoções ativadas. Ou ainda, de mãos
dadas ou não, forma-se um círculo, apenas para olhar e dizer algumas palavras ou pro-
duzir alguns gestos.
Há confrontos nos contatos, restrições no acontecer, momentos de durezas e
levezas. Um simples tocar, uma breve aproximação corporal, uma sugestão mais “avan-
çada” pode se transformar em um empurrão e machucar.
4
Para Rolnik (2006), a linguagem favorece a passagem das intensidades que
percorrem o corpo no encontro com outros corpos. Segundo ela, o “que há em
cima, embaixo e por todos os lados são intensidades buscando expressão
(p. 66).
5
Optei por utilizar o conceito de guia em vez de direção, tomando como
referência o texto Passos e Benevides, Método na experiência clínico- política:
reversão e desmontagem (Mimeo). Segundo os autores, falamos “de guia e não
de direção, como se diz de um guia de cego que não define para onde ele vai, que
não dá o sentido que é sempre do cego, mas faz realizar a direção já em curso às
cegas...” (p.2).
Introdução
23
Segundo Aragon
6
, ser delicado com o outro implica não chegar de sopetão
com uma verdade já pronta. Implica uma certa lentidão no trato com o tempo, para que
seja possível observar, interagir e encontrar a medida certa”.
É com esta atitude, de delicadeza, que convido cada participante a um investi-
mento afetivo, corporal, vincular para mergulhar no desconhecido e se fazer mais presen-
te para viver e produzir acontecimentos margeados pelo encontro entre corpos e pela
infinidade de afetos, contatos e sutilezas que podem se efetuar.
Costumo dizer que proponho encontros nas mais diversas modulações de inten-
sidade, presenças e afetações. Para tanto, é preciso experimentar modos de criar, comu-
nicar-se, expressar, pesquisar e construir corpos.
Assim, seja como protagonista ou como espectador dos acontecimentos, penso
que acompanhar algumas das cenas que serão aqui apresentadas possibilitará fazer
parte das experimentações. Renovo assim o convite para que o leitor entre em territórios
que deixam de ser de um ou de outro participante, para constituir uma “rede de singula-
ridades” (Favre, 2007).
Um outro convite
“É muito melhor procurar não no terreno que fica
entre escritor e sua obra, mas justamente no terreno
que fica entre o texto e o leitor, tentando
experimentar se colocar no lugar dos personagens,
para desse modo sentir na própria pele os mundos
que ali se configuram, são revelados e apresentados
através dos relatos e das palavras”.
Amós Oz
7
6
ARAGON, Luis, E., P. A espessura do encontro. Rev.Interface Fund.UNI/UNESP
(Botucatu), v.7, n.12 , p. 18, 2003.
7
OZ, Amós. De amor e trevas. São Paulo: Companhia das Letras, São Paulo,
2002, p.45.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
24
Na obra De amor e trevas,Oz
8
escreve sobre dois tipos de leitor: o primeiro é aquele que
procura na obra a veracidade dos fatos relatados e que questiona constantemente se suas
histórias são autobiográficas ou imaginadas. O que realmente aconteceu? Qual a moral
da história? Será que o autor viveu tudo aquilo que escreveu? Este tipo é considerado co-
mo “mau leitor”, preocupado em esmiuçar a relação entre o autor e seu texto.
Em contraposição, Oz menciona um outro perfil de leitor, ocupado em conhe-
cer, viver e participar do que acontece no texto. Inspirada por essas afirmações, apre-
sento esta tese com o desejo de mobilizar postura semelhante à do segundo tipo
mencionado por Oz.
Para isto, sugiro que ao iniciar o texto, o leitor se aproxime também das sensações
produzidas em seu corpo pelo contato com as palavras e com as imagens aqui apresen-
tadas, experimentando uma sensibilidade como aquela que procuro exercitar em meu tra-
balho como terapeuta ocupacional (T.O.)
9
na clínica e na docência.
Esse exercício poderá conduzir a uma gradativa aproximação com o próprio cor-
po e com os corpos presentes nesta tese, à experimentação de um modo diverso daque-
le que caracteriza certos textos científicos que visam, prioritariamente, a busca de
soluções, provas, protocolos e, principalmente, uma verdade única.
Dito isto, é preciso ressaltar desde já que optei pela escrita em primeira pessoa por
ser, ao mesmo tempo, autora desta investigação e da ação que é objeto de minha análi-
se. Todas as cenas, falas e reflexões aqui registradas são orientadas pelas teorias mobi-
lizadas neste trabalho e observadas em minha prática na clínica e na docência.
Devo enfatizar também que a singularidade das reflexões que articulo, transcen-
de um movimento particular, pois o confronto com as cenas aqui apresentadas revela a
recorrência de movimentos observados neste trabalho em diversos contextos, pois são
qualidades do vivo.
Outro aspecto que merece anteção especial é que a produção científica, especí-
fica do campo da T. O. tem se ampliado significativamente nos últimos anos. Observa-se
também que a diversidade e as composições teórico-práticas vêm se articulando a ou-
tros campos do conhecimento e criando interfaces bastante férteis e potentes. Entretan-
to, muitos profissionais atuam na clínica, mas não tomam para si a tarefa de sistematizar
seus conhecimentos, o que impede o estabelecimento de uma troca mais efetiva de
experiências e observações.
Por tudo isso, pretendo sugerir caminhos ou territórios para o exercício do pensar
de acordo com as necessidades ou repertórios dos interlocutores, indicando um estilo que
8
Idem, ibid.
9
A partir daqui refiro-me a Terapia Ocupacional como T.O.
Este é um convite ao investimento do outro.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
26
pode atender a uma demanda de muitos profissionais e estudantes em relação à reflexão
sobre os modos de atuar e os respectivos efeitos produzidos pelas práticas propostas.
Finalmente, ressalto que esta tese foi produzida a partir das problematizações aci-
ma mencionadas e do desejo de compartilhar esses estudos não somente com outros te-
rapeutas ocupacionais, mas com todos que têm interesse em refletir sobre a clínica em
suas mais diversas modulações.
A cartografia como percurso metodológico
O cartógrafo “deixa o seu corpo vibrar em todas
as freqüências possíveis e fica inventando posições
a partir das quais essas vibrações encontrem sons,
canais de passagem, carona para a existencialização”.
Suely Rolnik
10
O método cartográfico refere-se à abordagem utilizada não somente na prática clínica,
mas também na própria escritura, coleta de dados e análise dos procedimentos.
Tomando como referência a discussão realizada por Kastrup (2007),
11
podemos di-
zer que o método cartográfico visa acompanhar e não apenas representar um processo.
Segundo a autora, o uso do método cartográfico no estudo da subjetividade se
afasta do objetivo de definir um conjunto de regras abstratas; não se busca estabelecer um
caminho linear para atingir um fim. A cartografia é sempre um método ad hoc”. Para tan-
to, a atenção se volta à detecção de signos e forças circulantes, ou seja, de pontas do pro-
cesso e não de atos ligados a focalizações que visam representar as formas dos objetos.
Procuro, portanto, estabelecer pistas para descrever, discutir e, sobretudo,
coletivizar a experiência do cartógrafo-pesquisador-terapeuta, cuja tarefa não é uma
produção individual, mas matéria viva para ressoar no coletivo.
Outra característica do método cartográfico consiste em produzir os dados duran-
te o processo de efetuação, o que resulta em uma produção real.
10
ROLNIK, Suely., op. cit, p. 66.
11
KASTRUP, Virginia. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo.
Rev. Assoc. Brasil. Psicol. Soc. – ABRAPSO. (Porto Alegre), v. 19, p. 15-22, 2007.
Introdução
27
Isto quer dizer também que a escrita desta tese é, por si só, um acontecimento,
uma construção de caminhos (Passos e Benevides, 2006)
12
, não apenas um exercício de
representação, descrição e indicação de algo que já passou, a partir dos códigos já conhe-
cidos e codificados.
Minha presença nas cenas, na produção e análise dos dados testemunha essa con-
dição. Procuro sempre que possível, tanto na clínica quanto na escritura da tese, “me co-
locar à espreita
13
dos acontecimentos que emergem, realizar um pouso no movimento
incessante de imagens, memórias e pensamentos tecidos nos processos.
Pode-se dizer que a entrada do cartógrafo no campo da pesquisa o coloca imedia-
tamente frente a questões permanentes em seu trabalho:
onde e como pousar a atenção em meio aos fluxos que atravessam os processos? Como aco-
lher as cenas e falas que insistem em atualizar-se em busca de expressão? Como construir
e acompanhar a urgência de compor cenas, pensamentos e alianças teóricas de tal modo
que se potencializem através da escrita, daquilo que busca elaboração e linguagem?
Tomando, então, como eixo a identificação de linhas que percorrem a clínica e
analisando alguns de seus cruzamentos, a atenção nesta tese se volta para a captação,
no território dos procedimentos clínicos em diferentes contextos, daquilo que aconteceu
nos corpos como efeito dos encontros entre os participantes e as proposições sugeridas.
Durante todo o percurso, uma questão sempre me acompanhou: como descrever os
acontecimentos vividos nas mais diversas experimentações, tanto na clínica quanto na for-
mação dos alunos, no que diz respeito aos métodos e procedimentos por mim utilizados?
Por isso, iniciei a busca de uma afinação com as teorias que fundamentam minha
prática clínica. Nesse sentido, minha participação nos seminários coordenados por
Regina Favre
14
foi importante para entrar em contato com as idéias de Keleman (1992).
O autor apresenta uma concepção de corpo intrigante, aberta, construída por vários
vetores – da biologia, da neurociência, da subjetividade, do social –, que passam por
micro e macro dimensões.
É preciso explicitar também que esta tese é marcada por dois modos de olhar
que se articulam: o meu, como alguém que coordenou, participou e acompanhou to-
das as experiências aqui mencionadas e o do fotógrafo João Caldas que, sensível às
intensidades dos acontecimentos, captou imagens que revelam a intensa expressivi-
dade dos corpos.
12
BENEVIDES, Regina; PASSOS, Eduardo. Por uma política da narratividade.
Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2007. n.p. ( Mimeo).
13
Referência ao abecedário de G. Deleuze, quando o autor aproxima o escritor e
o filósofo do animal . Diz Deleuze: “Se me perguntassem o que é um animal, eu
responderia: é o ser à espreita, um ser, fundamentalmente, à espreita. ( ...) “O
animal... observe as orelhas de um animal, ele não faz nada sem estar à espreita,
nunca está tranqüilo. Ele come, deve vigiar se não há alguém atrás dele, se
acontece algo atrás dele, a seu lado. É terrível essa existência à espreita. Você
faz a aproximação entre o escritor e o animal”. In: Pierre-André Boutang (Real.).
L’abécédaire de Gilles Deleuze avec Claire Parnet. Paris: Éditions
Montparnasse/Liberation, s/d. Verbete “A de Animal”.
14
Algumas das idéias de Regina Favre serão expostas e discutidas ao longo da
tese. Estas idéias redimensionam a concepção proposta por Keleman.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
28
Assim, a seleção fotográfica foi orientada pela mobilização de afetos e pela pos-
sibilidade de diálogo com aquilo que se delineava em meu texto, sem a preocupação de
ilustrar uma cena ou procedimento em particular.
15
A composição entre esses dois olhares e as referências teóricas, tanto na clínica
como na escritura da tese, produz três efeitos principais:
• contribui para nomear e compreender aquilo que eu observava e realizava em minha
atuação como T.O.;
• inspira a invenção de procedimentos, como o caso das arquiteturas rizomáticas
16
ou as
experimentações do olhar nos duos
17
, tranformando pensamentos em atos e experiên-
cias corporificadas;
• a partir das vivências dos corpos, produz outras teorias, conceitos e principalmente
questões que me inquietaram, perturbaram e me ocuparam em qualquer hora ou lugar,
inclusive em muitos dos meus sonhos.
Nesses trajetos foram fundamentais os cadernos de registros de momentos clíni-
cos, escritos, sonhos que se manifestaram no decorrer do trabalho, imagens de cenas vi-
vidas em diferentes momentos e contextos, em um esforço de ativação de uma memória
intensiva que guarda e produz aquilo que reverbera e busca sentido.
Para Rolnik (2006), o que define o cartógrafo é exclusivamente um tipo de sensi-
bilidade que ele prioriza em seu trabalho
18
, um “composto híbrido” que envolve seu
olho e simultaneamente as vibrações de seu corpo, procurando inventar procedimentos
adequados ao contexto em que se encontra.
A autora afirma ainda que “é muito simples o que o cartógrafo leva no bolso: um
critério, um princípio, uma regra e um breve roteiro de preocupações – este, cada car-
tógrafo vai definindo e redefinindo para si, constantemente.”
19
Este princípio é extramoral e a expansão da vida é o seu parâmetro.
20
Assim, o que importa para realizar a sua tarefa é absorver matérias de qualquer
procedência, utilizar estratégias que possam servir para cunhar matéria de expressão e
criação de sentidos, recorrendo às mais variadas fontes, não apenas escritas e teóricas.
“Seus operadores podem surgir tanto de um filme quanto de uma conversa ou de um tra-
tado de filosofia”.
21
Outro ponto a ser assinalado em relação ao processo observado, é a importância
dos elementos-surpresa que estão longe das expectativas ou inclinações do pesquisa-
dor e, por isso, assombram e permitem o acolhimento e criação de conceitos, idéias que
não estavam previstas ao acessar as cenas ou analisar seus possíveis “efeitos”.
15
No capítulo Aberturas aos procedimentos farei indicações mais precisas a
respeito do trabalho com as imagens que compõem esta tese. Além disto, um
capítulo específico é dedicado ao tema da fotografia e alguns de seus sentidos
na clínica.
16
Os rizomas arquitetados por meio de fios, palavras, papéis, conexões e
intervenções realizadas pelos participantes serão apresentados na série
Conversar e silenciar.
17
A idéia do dueto de olhares tratada por Daniel Stern e apresentada na série
Olharserviu como referência a muitas experimentações relacionadas ao
encontro entre olhares em diversos exercícios de contato entre corpos/sujeitos.
18
ROLNIK, Suely. op. cit., p. 66.
19
Ibid., p. 67
20
Ibid., p.68
21
Idem.
Introdução
29
Sempre que possível, esse elemento-surpresa percorre o cartógrafo-terapeuta
ocupacional e o cartógrafo-pesquisador, pois é do inusitado que podem emergir os vôos
mais desafiadores e instigantes.
O modelo da antena parabólica, também apontado por Kastrup, parece ser apro-
priado para descrever a posição potente para o cartógrafo em suas imersões nas cama-
das de acontecimentos, com as quais se depara a todo o momento em seu percurso
clínico-acadêmico.
Na plasticidade do olhar do cartógrafo, que experimenta diferentes tipos de pou-
sos e vôos no processo em curso, é que as cartografias são organizadas e se colocam em
estado de abertura. Essas cartografias são sustentadas pelos verbos no infinitivo que –
utilizados durante toda a tese tanto na nomeação das séries de procedimentos, quanto
nos contornos que finalizam este trabalho – expressam algumas das linhas metodológi-
cas captadas ao longo de todo o percurso, mostrando o dinamismo presente na clínica
e na escrita em seus infinitos desdobramentos e sentidos.
Outro elemento de sustentação pode ser observado nas perguntas que, em alguns
momentos da intervenção, provocam o reconhecimento e a reflexão a respeito de um te-
ma. Segundo Deleuze (1998, p.5), a “arte de construir um problema é muito importante:
inventa-se um problema, uma posição de problema, antes de se encontar uma solução”.
Apesar dos estados inerentes à prática desse método considerados como efeitos
do encontro com a matéria viva que serve como “coleta de dados” – deixar-se dispersar,
transbordar, paralisar, apressar, reduzir, desqualificar determinado ponto, esquecer, de-
ter-se em demasia etc. –, trata-se de sustentar as afetações produzidas sem perder o ri-
gor com o problema que move a pesquisa.
Deleuze e Guattari (apud Kastrup, 1995) sublinham que a cartografia é uma per-
formance que comporta elasticidade e ritmos num processo de produção do conhecimen-
to. Nem objetivismo nem subjetivismo, mas um método de auto-produção.
Afinal, como nos diz Nietzsche, o homem acaba por interpretar o seu mundo, uma
vez que não existe uma essência a ser descoberta, mas pontos de vista, olhares, obser-
vações possíveis. É nesta perspectiva que me movimento nesta tese, com o cuidado pa-
ra tratar o que acontece na clínica com todo o refinamento e delicadeza que cada
acontecimento pode evocar.
“E você, não pergunte: O que é isso? São fatos reais? De verdade? É isso que se pas-
sa com este autor? Pergunte a si mesmo. Sobre você. E a resposta, pode guardar para si.”
22
22
OZ, Amós. op. cit., p.45.
31
O corpo como pulso
“O homem é um organismo em autoconstrução
Keleman
1
1
KELEMAN, Stanley. Anatomia Emocional. São Paulo: Summus Editora,1992.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
32
O corpo como pulso
33
Batimentos
O
corpo se encolhe, se curva e se fecha pela frente, produzindo uma dor, às vezes insupor-
tável, nas costas. Acompanhando essa posição de um certo “esmagamento de si”, as
mãos espalmadas apertam o rosto e os joelhos, que se aproximam um do outro como
se quisessem ocultar algo da ordem da intimidade. Além de todo esse movimento, vemos um
braço, como que socando, procurando apertar as vísceras da barriga, num traço de agressivi-
dade contra o corpo, contra avida que quer se expressar, falar de si, tornar-se presença.
Através do corpo, é possível (re) experimentar
2
uma emoção muito intensa de
vergonha que faz emergir lembranças, memórias intensas de cenas familiares em que foi
caçoada, pouco valorizada, numa dinâmica em que os homens pensam e agem como se
soubessem de tudo e as mulheres (ainda meninas) tivessem pouco a dizer.
“Experimente inibir um pouco estas mãos que apertam”; “experimente inibir
este estado, gradativamente”, sugere Favre.
3
Procurando sentir as ondas de emoções que transitam pelo corpo, a participante
pode reconhecer camadas de raiva, de braveza e – nas vísceras, nas profundezas – uma
grande mágoa, muita tristeza
4
.
A proposta é aproximar-se das camadas mais profundas, daquilo que afeta, cor-
rói e constrói nessa existência particular. “Perceba que você contrai tanto a barriga
que seu pulso diminui”, acrescenta Favre.
Não sobra espaço. O movimento se reduz, produz uma sensação de vazio, de des-
potencialização que reverbera em diferentes situações.
Compreende-se também porque tanta braveza reativa e necessidade de se fazer
reconhecer, de perseverar, por meio de suas escolhas mais diversas; às vezes as mais
2
Através da intensificação, lentificação e gradações do tônus muscular é
possível acessar a forma e intervir voluntariamente na produção de outras
experiências como no momento aqui narrado.
3
Regina Favre é filósofa e terapeuta, da primeira geração no campo das
psicoterapias corporais no Brasil e introdutora do pensamento filosófico,
biológico e clínico de Stanley Keleman no país. Atualmente prossegue
independente, seu trabalho clínico e de ensino, junto a grupos de profissionais
e investe no aprofundamento da abrangência do conceito Kelemaniano de
formatividade.
4
O reconhecimento desses estados apresentados acontece, muitas vezes, no
mesmo instante em que se experimenta a cena. Ao entrar em contato com o
corpo presentificado, os acontecimentos vão permitindo o conhecimento e,
portanto, a possibilidade de intervir nas situações vivenciadas.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
34
desafiadoras e difíceis de suportar para tentar dizer para si – e isto é o que realmente im-
porta – que se quer respeitada.
Todo o grupo
5
assiste atentamente àquele acontecimento que provoca a emergên-
cia de outras cenas:
Felícia, por exemplo, conta que quando criança era uma menina magrinha, estrangei-
ra; lembrou de momentos em que estava no recreio da escola e os colegas caçoavam de seu no-
me estranho, suas características de “estrangeira”. Essa situação é relacionada a um sonho,
surgido em um dos encontros anteriores, sobre o medo de cachorros do tipo rotweiller, metá-
fora de uma vivência ligada à violência e a agressividade.
A partir desse relato, a participante fala sobre seu medo de se aproximar, de se mis-
turar, de se relacionar com os outros, produzindo, às vezes, um corpo distante que se es-
vai, porque tem medo de desmanchar-se, de cair num vazio, de “ser comida pelos
cachorros”.
São duas entre tantas cenas que acontecem nos chamados seminários vivencia-
dos, dos quais tenho participado
6
e que possibilitam, por meio do acompanhamento
de experiências dos diferentes sujeitos do grupo, pensar, viver e refletir sobre como as
pessoas se relacionam e expressam, através de seus corpos, os encontros com outros cor-
pos, com outros mundos.
Como a clínica pode propiciar às pessoas que acompanhamos experiências que
possibilitam ampliar os encontros, a expandir as conectividades com o mundo e a vi-
vência de outros modos de funcionamento nos mundos?
Na busca de ampliar e problematizar essas e outras questões, encontro na obra
e na perspectiva kelemaniana
7
uma concepção de corpo abrangente e complexa que
contribui para a leitura dos corpos descritos, observados e acompanhados em minha clí-
nica. Essa teoria mobiliza as abordagens corporais e a dança como estratégias de apro-
ximação entre as pessoas e como elemento essencial para o processo de formação de
profissionais de T.O. e de outras áreas.
8
Considerando o emocional como elemento relacional ou vincular, a teoria de Ke-
leman torna-se bastante potente para explicá-lo, uma vez que podemos compreender –
tal como exemplificado nas cenas apresentadas no início do texto – que a construção de
uma anatomia acontece a partir dos tipos de vínculos, dos graus de azeitamento das re-
lações, que produzem os mais variados corpos.
5
Os seminários aqui referidos são coordenados por Regina Favre e realizados em
grupos compostos por profissionais das mais diversas áreas ligadas à saúde e às
artes e também por pessoas interessadas em vivenciar a perspectiva proposta
por Keleman. Os seminários semanais duram em média quatro semestres e têm
como eixo central a leitura do livro Anatomia Emocional (op. cit.).
6
A minha entrada nos assim chamados seminários vivenciados foi sugestão de
minha orientadora Suely Rolnik que intuía que eu poderia encontrar ali uma
nomeação para aquilo que há muitos anos eu já observava em minha prática
clínica nas abordagens corporais e com a dança em terapia ocupacional.
7
KELEMAN, Stanley., op. cit.
8
Muitos workshops e cursos que realizo são voltados para estudantes e
profissionais de T. O., mas também realizo muitas intervenções abertas
a profissionais de outras áreas, preocupados em exercitar e pensar
as tonalidades do encontro com o outro.
O corpo como pulso
35
Os modos de funcionamento desses corpos são produzidos por vários fato-
res, dentre eles cultura; genética – com seus aspectos ligados à hereditariedade; os
acontecimentos vividos; os tipos de vínculos estabelecidos ao longo da existência; a
subjetividade que acompanha, molda e orienta os corpos e a vida em determinado
tempo/espaço.
Safra, por exemplo, em seu livro A po-ética na cíinica contemporânea, tem como
um de seus temas centrais as questões que fundam o humano como a vida e a morte, a
solidão essencial, a sexualidade, entre outras. O autor aponta a complexidade da exis-
tência e afirma que:
o nascimento do bebê ocorre no mundo humano que é constituído ao longo das gera-
ções, sendo um campo de encontro da herança dos ancestrais e do pressentimento do
futuro. Assim sendo, nascer como ser humano implica não só nascimento biológico, mas
também um acontecimento nesse mundo. A criança nasce afetada pela história dos
seus ancestrais, pelo encontro com os contemporâneos, impulsionada em direção
àqueles que virão.
9
Favre também ressalta a necessidade de apreender o mundo como uma ecologia
relacional, pautada pelos vínculos e pela afetividade, inaugurada, segundo a autora,
pelos animais de sangue quente. Para ela, inicialmente os animais estabeleciam uma re-
lação com o ambiente apenas para comer, procriar e sobreviver. É com as aves, através
do sentido do olfato, que os animais iniciam as relações entre si, condição que permane-
ce nos recém-nascidos que conseguem, por exemplo – segundo estudos realizados com
bebês, mencionados por Daniel Stern (1992)
10
–, reconhecer o leite de suas mães a par-
tir do cheiro, o que reafirma a importância do olfato no estabelecimento do vínculo. É ne-
cessário lembrar que o vínculo está relacionado à capacidade conectiva do sujeito que
se estende em várias direções, caminhos e modos e produz corpos que são expressões
vivas de um contínuo desses processos.
9
SAFRA, Gilberto. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida, São Paulo:
Idéias e Letras, 2004, p. 103.
10
STERN, Daniel. O mundo interpessoal do bebê: uma visão a partir da psicanálise
e da psicologia do desenvolvimento. Artes Médicas: Porto Alegre, 1992, p. 35.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
36
Aprendizagem experimental
11
Na tela da televisão observo minha imagem, falo para uma platéia sobre algumas ela-
borações que venho realizando nos últimos tempos. Assisto às imagens
12
, mas não me
reconheço nelas, tal como acontece em outros momentos ao ler um texto que escrevi ou
quando falo em determinado contexto.
“É como se eu estivesse em um transe”. Não consigo reconhecer uma dimensão mais pró-
xima ao tamanho do meu corpo no espaço: às vezes me sinto maior do que realmente sou
e às vezes me sinto menor.
Percebo como é difícil habitar, fazer-se presente em um corpo, no aqui e agora.
Como não apequenar-se ao ser contido no enfrentamento de algumas situações
da vida? Como potencializar o corpo em encontros que possibilitem maior apropriação
de si, como alguém que vai em direção aos mundos para construí-los e desmanchá-los
11
O conceito de aprendizagem experimental foi levantado pelo professor
Benedito Lacerda Orlandi em uma de suas aulas ministradas no Núcleo
de Estudos da Subjetividade no Programa de Psicologia Clínica da PUC-SP.
12
Nesses seminários a leitura é articulada ao uso de recursos tecnológicos:
gravações simultâneas, projeção ampliada de desenhos extraídos de obras;
eventualmente são mobilizados também vídeos com temáticas próximas ao
material discutido – a vida e a criação do universo e do homem, diferentes
momentos do bebê e suas relações com o mundo, por exemplo –, além da
exibição de vídeos gravados em encontros anteriores. Os comentários acima
citados referem-se a um momento em que apresento uma reflexão sobre como a
obra me mobilizava, texto embrião do presente capítulo.
O corpo como pulso
37
permanentemente na busca de mais potência? Como desmanchar modos tão rigidamen-
te estruturados, como aquele construído em determinado contexto: resposta a um pai
que parecia sempre maior, fazendo-me sentir frequentemente menor, tamanhas eram
as idealizações?
Como suportar e não paralisar os processos formativos e inerentes ao vivo, que
permanentemente constroem e (re)constroem corpos ao longo da vida, no encontro com
outros corpos?
Um sonho narrado por um participante do grupo pode exemplificar o que seria to-
car e procurar desmanchar certos modos de funcionamento:
Trata-se de uma cena de infância, na qual Ivan aparece como uma criança muito peque-
na; ele está em sua cama chorando e sentindo muito medo. Ivan conta que ao acordar sentiu-
se muito inseguro e que pediu um afago, um carinho para a sua esposa de tantos anos.
Uma cena extremamente delicada e tocante, vinda de um “homem feito” que ao se revelar pa-
ra o grupo e para si como alguém sensível, amolece um corpo que se endurece para dar con-
ta de ser “provedor”, macho, extremamente eficiente e, às vezes, dominador, como ele
mesmo conta.
A análise de relatos como esse explicita a importante contribuição da perspecti-
va kelemaniana para o acesso a formas solidamente construídas, na tentativa de minima-
mente desmanchá-las e, a partir daí, criar corpos que possam sustentar as intensidades
vividas, que permitam principalmente a aproximação com o outro.
Safra
13
também nos oferece um belo contorno do que ele denomina destino
humano e das questões que nos afetam e com as quais devemos lidar ao longo da
existência. Segundo o autor, o
ser humano é, continuamente, afetado pelos acontecimentos no mundo. As transforma-
ções socioculturais e seus efeitos na estética, na ética, nas relações entre os homens
acarretam novos modos de subjetivação e novas formas de sofrimento.
14
Para Safra, compreender o homem como ser criativo é vê-lo não como fruto de de-
terminações naturais ou sociais, mas como acontecimento, como aparição. Ou seja, pa-
ra ele, a dimensão histórica é necessária para o acontecer humano, mas o autor acredita
que, dentro dessa modalidade de temporalidade, todo o evento traz algo de inédito, co-
locando o homem em um tempo simultaneamente conservador e revolucionário – no
devir. Portanto, temos a capacidade de intervir voluntariamente sobre os processos, tal
13
SAFRA, Gilberto, op. cit. Esta obra traz aspectos relacionados a questões da
existência, dos sofrimentos no contemporâneo, apresentando ainda modos
de intervir em uma clínica na atualidade. Assim sendo, várias idéias do autor
permearão esta tese.
14
Ibid., p. 21.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
38
como acontece nos seminários e, principalmente, nas proposições que crio e elaboro em
minha prática clínica.
Nesses espaços de trabalho e reflexão, de diferentes maneiras e intensidades,
entramos em terrenos/camadas muito profundas do corpo/vida que sustentados pelo
sujeito, pelo grupo e pelo trabalho que ali se constrói, podem produzir mudanças sig-
nificativas nos modos de funcionamento.
Na abordagem de Winicott (1971), esse movimento corresponde à idéia de um vi-
ver suficientemente criativo, no qual o sujeito “sente que a vida é digna de ser vivida”
15
.
Essa atitude se contrapõe a uma relação de submissão à realidade, na qual nada pode
ser alterado. Ao sujeito resta ajustar-se ou simplesmente adaptar-se.
É necessário dizer ainda que o trabalho grupal, tanto o aqui narrado quanto aque-
le que realizo na clínica, representa caminhos efetivos de intervenção bastante potentes.
Afinal, pequenas ações, gestos, aproximações, palavras e, principalmente, o comparti-
lhar com um grupo podem reverberar, às vezes com grande intensidade, numa espécie
de contágio, transformando todo o grupo em uma caixa de ressonância, conforme nos
diz a terapeuta ocupacional Viviane Maximino
16
.
Assim, esses encontros podem funcionar como um dispositivo, tal como analisa
Benevides
17
. Quando produzem um efeito de caráter ativo disparam algo em cada par-
ticipante, dão ensejo a produções individuais e coletivas de textos, questionamentos,
imagens, sonhos, vontade de (re) experimentar os territórios corporais, engajar-se em al-
gum projeto; provocam mudanças em relação à leitura das pessoas, do mundo e expe-
rimentações sobre aos modos de relacionamento nas mais diferentes esferas da
existência, entre outros.
Segundo Baremblitt
18
, o dispositivo é um artifício de inovações que gera aconteci-
mentos. Essa abordagem reafirma o caráter especialmente potente de algumas interven-
ções grupais resistentes aos efeitos de certas imposições vividas no contemporâneo que
anestesiam corpos, roubam a criatividade e, principalmente, nos distanciam uns dos
outros, produzem solidão e diminuem a potência de presentificar-se no mundo.
Composições
Nas experimentações que venho realizando – em laboratórios, cursos e oficinas – não me
satisfaz uma leitura dos acontecimentos que atravessam os corpos a partir de um para-
15
WINICOTT, D.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, [1971],
1975. p. 95.
16
MAXIMINO, Viviane Santalúcia. Grupos de atividade com pacientes psicóticos.
São José dos Campos: Editora da UNIVAP, 2001.
17
BENEVIDES, Regina. Dispositivos em ação: o grupo. Cadernos de
Subjetividade, Núcleo de Estudos da Subjetividade em Psicologia Clínica
da PUC-SP, São Paulo, especial. jun. 1996, p.97.
18
BAREMBLITT, Gregório. Compêndio de análise institucional. Rio de Janeiro:
Editora Rosa dos Ventos, 1992.
O corpo como pulso
39
digma que concebe o corpo apenas em seu aspecto sensório-motor, nem a concepção do
corpo prioritariamente como dimensão psicológica.
As histórias que emergem a partir de determinados exercícios e que permitem
maior aproximação do sujeito consigo mesmo – por exemplo, o tocar-se ou o lentificar
o próprio gesto para poder encarná-lo como ato que expressa um corpo – mostram co-
mo, em algumas situações de certa abertura é possível acessar camadas muito pro-
fundas do sujeito.
Em muitos momentos do trabalho de formação dos alunos e mesmo em momen-
tos da clínica com diferentes populações, os participantes reanimam sensações intensas
que fazem “lembrar no corpo” acontecimentos muito fortes de outros momentos da vi-
da. Ou ainda retomam experiências em que se sentiam afetados e envolvidos pelo clima
grupal, pela proposta e pela possibilidade de entrar em terrenos menos racionais. O cor-
po se revela surpreendente, produz respostas inéditas evidenciadas por falas, assombros
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
40
e contatos com um emaranhado de emoções que permitem ao sujeito reconhecer-se
como vivo e em permanente transformação.
Sara, por exemplo, conta que pôde reviver um estado-feto, quando se sentiu acolhida
pelo toque do corpo de uma outra pessoa. Sandra sente-se uma criança quando consegue cri-
ar um gesto inusitado; ou ainda o grupo se emociona quando Catia fala das ligações corporais
com sua irmã gêmea, mesmo estando à distância.
Para analisar esses casos, me aproximo novamente de Keleman que, em sua prá-
tica clínica, observa a relação entre conflito emocional e distorção de postura corporal,
posturas estas construídas a partir das experiências e contatos que se estabelecem ao
longo de uma vida
19
.
Em Anatomia emocional, Keleman oferece outro paradigma: “o corpo sede de to-
da a experiência e a (trans) formação do organismo como uma estratégia da pulsação vi-
tal em face à existência”.
20
Para Favre, o autor compreende o organismo não a partir dos
órgãos – o que seria restringir a compreensão sobre os processos por meio dos quais
acontece uma existência em particular –, mas como uma forma que constrói forma per-
manentemente na manutenção de um pulso vital. O que significa também que construí-
mos e perdemos corpo ao longo de toda a vida.
Essa visão privilegia “o diálogo entre diferentes registros de experiências: o pul-
sátil, o gravitacional, o aéreo, o emocional, o afetivo, o mental, que geram infinitas mo-
dulações e tonalidades do sentimento de estar vivo”.
21
Ainda segundo a autora,
Keleman pensa o corpo como uma arquitetura tissular, geneticamente programada, fini-
ta, em permanente construção e desconstrução, pulsando segundo afetos, com suas câ-
maras e válvulas, sempre em busca de mais vida, inflando, adensando ou enrijecendo de
acordo com o grau de tolerância aos ritmos da excitação gerada pelas experiências de
amor e decepção, medo ou agressão, agonia ou prazer.
22
Por tudo isso, estou convencida de que se faz necessário um olhar que investigue
o visível e o invisível, o perceptível e aquilo que ainda não despontou como expressão,
ou seja, o corpo como um atravessamento de histórias, intensidades, afetos, formas
que se desmancham e se configuram permanentemente, sempre no devir, sempre em pe-
regrinação.
19
Seu pensamento foi norteado pela observação e análise do que seria a força de
vontade e o papel da sociedade no desenvolvimento da personalidade, estudo
de padrões, entendidos como modos de funcionamento, de movimento,
sentimento e excitação e da forma somática, componentes importantes e
determinantes para a leitura dos corpos. Membro do Instituto de análise
Bioenergética de Alexander Lowen (1957), estudou no Instituto Alfred Adler e
realizou treinamento em neurociências com Nina Bull, no Hospital da
Universidade de Columbia, além de receber influência da filosofia social de Adler
que dá as coordenadas para o seu modelo somático neurológico.
20
Apresentação de Regina Favre do livro Anatomia Emocional de Stanley
Keleman (op. cit., p. 10).
21
KELEMAN, Stanley., op. cit. p. 10.
22
FAVRE, Regina. Apresentação do livro Anatomia emocional, op. cit. p. 10.
O corpo como pulso
41
Para Rolnik, o sujeito apreende o mundo em diferentes dimensões a partir dos
órgãos dos sentidos e da cognição: através da sensorialidade e das afetações, campos
de forças, intensidades, processos interligados de trocas, de relações do sujeito e seus
mundos.
A partir dessas considerações, podemos compreender o mundo como um lugar
plural, palco de acontecimentos no próprio corpo, a partir das relações que se engendram
no contexto espaço/tempo, permeado pelas afetações e modos de relação produzidos
nos encontros. Vislumbra-se ainda o corpo como um ambiente dentro de outro que por
sua vez, encontra-se dentro de um outro ambiente; camadas infinitamente entrelaçadas
em redes de comunicação.
Nesse contexto, é necessário concordar com Keleman, quando ele afirma que os
estudos anatômicos tendem a utilizar imagens bidimensionais, perdendo o vivido. Em
contrapartida, é comum faltar à psicologia comprometida com os estudos das emoções,
a compreensão anatômica. Sem anatomia, não há afetos. Os acontecimentos têm uma
arquitetura somática. Portanto, pensar o corpo significa tentar tocá-lo em suas mais di-
ferentes dimensões, entendê-lo como processos que procuram dar forma (sempre tran-
sitórias) e corpo às intensidades e experiências.
Podemos dizer ainda que Keleman alia o estudo da biologia, do corpo-matéria às
questões da vida. Do unicelular ao multicelular, um organismo compreendido como vi-
vo, afetado continuamente pelo outro (humano ou não), que obriga continuamente a al-
terar os mapas que orientam as formas do viver, fazer coisas, relacionar-se, criar outros
modos e repertórios que, por sua vez, constituem outros mapas novamente afetados,
desmanchados, reconfigurados.
Singularidades
É um primeiro dia de trabalho na disciplina Estudos do corpo, ministrada no Centro Uni-
versitário São Camilo. Estão presentes alunos de vários cursos e a diversidade na forma-
ção do grupo é sempre bem-vinda, pois ajuda a desmanchar certo “espírito
corporativista” freqüente em nossa vida profissional.
Pergunto aos alunos como sentem que o corpo entra em contato pela primeira vez com
um grupo ou frente a um novo conhecimento. As respostas, sensações e observações
de cada participante são diferentes e particularmente originais, compõem com aspectos
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
42
antes não percebidos, observados e, conseqüentemente, pouco assimilados pelo pró-
prio sujeito.
Uma aluna sente que se retrai, seu corpo se fecha e sente que quer “desaparecer”; ou-
tra, ao sentir meu olhar, vira o rosto, enrubesce e tampa o rosto com os cabelos: sente ver-
gonha. Outras alunas sentem-se abertas, olham para o grupo atentas e curiosas; outras
ainda me dizem: “eu não sei o que significa isto”; “nunca parei para pensar”; “não con-
sigo me identificar”. E assim se seguem refinadas e diversas narrativas frente a uma
mesma situação.
A pergunta provocativa produz certo incômodo em algumas pessoas: a surpresa aconte-
ce quando deparam com seus modos de funcionamento e percebem que o corpo, mesmo
O corpo como pulso
43
contra a nossa vontade e a despeito da consciência, age e reage, ora se contorce, ora se
enrijece, se protege com os braços ou se abre às experimentações, por meio de certa ati-
tude, expressa pela voz ou pela postura corporal, pelo olhar, entre tantos e inumeráveis
estados e composições.
Considerando a força com que a subjetividade impõe certos modos de funciona-
mento que envolvem, entre vários aspectos, a relação do sujeito consigo, com seu cor-
po frente ao outro, no âmbito individual e coletivo, o sujeito se vê muitas vezes a
responder a certas demandas em relação a sua imagem no mundo. No entanto, diz Ke-
leman, não há sujeito “normal” ou ideal, mas experiências singulares; e cada sujeito, en-
tremeado por todas as dimensões acima mencionadas e com a tendência genética de
autoformatar-se e criar corpo, realiza a sua própria existência.
Essa proposição parece teoricamente muito evidente, mas na clínica, nos grupos
que acompanho, no contato com os alunos de graduação – e poderia afirmar em quase
todos os lugares – parece muito distante. É como se o primeiro ou o maior passo a ser inau-
gurado nas intervenções fosse a necessidade de perceber o outro, de reconhecer a mul-
tiplicidade e a singularidade de corpos/vidas e modos de existência que se contrapõem
às noções homogeneizantes de normatização que produzem idealizações a respeito
dos modos de ser, pensar e agir no mundo, gerando às vezes um mal-estar ou sintomas
diversos, quando se vive na diferença, na turbulência e, particularmente, quando nos dei-
xamos afetar por tudo aquilo que nos toca na produção de vidas mais interessantes, po-
tentes, mais próximas aos nossos desejos.
Assim, as formas que os corpos assumem a cada momento e em cada situação, as
diferentes maneiras de participação do sujeito em uma ou outra proposta, as palavras que
acompanham suas experiências constituem elementos reveladores e, ao mesmo tempo,
produtores da diversidade, de realidades e de singularidades
23
A vida como formas
Era um pequeno grupo reunido em Sorocaba. Eu solicitava que as pessoas experimen-
tassem um estado bem fechado, intensificando cada vez mais e gradativamente a con-
dição de fechamento, de pouca porosidade em relação ao externo.
Foi observado, por exemplo, que a primeira parte do corpo que se fechou em Laura foram
23
Não se trata de idealizar o corpo como expressão e “revelação” do sujeito, mas
do homem reconhecer-se como um corpo vivo – entre outros seres vivos – que
conta e produz a sua existência.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
44
as mãos e, ao inibir gradativamente o fechamento, foi também pelas mãos que a aber-
tura se fez, deixando a impressão de que era por elas que o mundo escoava.
Outra participante diz que conforme ia se fechando, observou como era difícil se desli-
gar do ambiente, dizendo que queria manter o olhar e a atenção sobre os outros partici-
pantes, querendo saber e controlar o que estava acontecendo. Em certo momento do
“fechamento”, sentiu um desconforto muito intenso na garganta, uma sensação de su-
foco, difícil de sustentar.
Outra ainda, relata que foi bom sentir o fechamento, que estava precisando disso por vá-
rias questões vividas naquele momento. Disse sentir-se segura naquele lugar. Em outro
momento, menciona ainda que “sentir-se só” permitiu entrar em contato com sua respira-
ção e seus estados emocionais. Observamos , no entanto, que esta “forma de isolamento
também provocava e chamava a atenção de todo o grupo que, ao contrário dessa participan-
te, dançava animadamente pelo espaço, compondo parcerias, risos e várias coreografias.
Em meio às diferentes vivências, quero enfatizar dois aspectos importantes pa-
ra a análise de estratégias clínicas de intervenção: a) as impressões e registros dos pro-
cessos são os mais variados e singulares para cada participante; b) ao mudar a forma do
corpo, modificamos toda a experiência, conforme pode ser observado nos depoimentos
a cada momento do exercício.
A experimentação e a assimilação dessa proposição são fundamentais tanto pa-
ra repensar e refazer as ações cotidianas, quanto para a percepção do sujeito como for-
mas que determinam certas presenças no mundo.
Inspirada por essas reflexões, procuro possibilitar em minha clínica diferentes vi-
vências de estados, posturas corporais e posicionamentos nos espaços e nas relações
entre os participantes, o que produz um campo fértil para vivenciar situações as mais va-
riadas e aprender na “prática” como acontecem os processos de estar no mundo e o
efeito dos diferentes modos do corpo afetar e ser afetado pelo mundo.
A vida produz formas”
24
, afirma Keleman. Para ele, forma é “parte de um proces-
so de organização que dá corpo às emoções, pensamentos e experiências, fornecendo-
lhes estrutura
25
.
As formas, portanto, evidenciam um processo que acontece do unicelular ao
multicelular e que caminha para uma forma humana que vai da concepção ao de-
senvolvimento embriológico e depois para estruturas na infância, adolescência e
vida adulta.
24
KELEMAN, Stanley., op. cit. p. 10.
25
Ibid., p. 11.
O corpo como pulso
45
Keleman afirma que
moléculas, células, organismos, grupos e colônias são as formas iniciais do movimento da
vida. Mais tarde a forma pessoa será moldada pelas experiências internas e externas de
nascimento, crescimento, diferenciação, relacionamentos, acasalamento, reprodução,
resolução de problemas e morte
26
.
Ao longo de todo esse processo, a forma é impressa pelos desafios e tensões da
existência. “A forma humana é marcada pelo amor e pelas decepções”.
27
Nesse sentido, podemos dizer ainda que a forma para Keleman não está ligada à
idéia que parte principalmente de um senso comum, como imagem, mas como afirma Fa-
vre, da “borda dos acontecimentos”, ou seja, de territórios em permanente reconfigura-
ção, a cada encontro, a cada afetação de um corpo (humano ou não). O que identificamos
a “olho nu”, nesse breve relato, é uma das camadas que compõem um processo de “cor-
porificar a experiência”.
Ao observarmos a cena de um corpo de uma das participantes do grupo em um dos
vídeos gravados durante os seminários, é possível captar a passagem de fluxos/mundos
a cada momento. Isso evidencia que a postura e as formas expressam processos,conec-
tividades com o ambiente e sofrem alterações permanentemente.
No chão, da posição fetal que se abre gradativamente rumo a um corpo numa
posição mais aberta, observamos variações em torno das intensidades/excitações que
produzem em cada momento um outro estado de ser.
28
Uma outra cena observada durante uma atividade da disciplina Estudos do corpo
pode contribuir para ampliar essa discussão:
Sugiro aos participantes que caminhem em diferentes ritmos pela sala com a cabeça
voltada para o chão, para a linha dos olhos, de olhos fechados e com o olhar voltado para o teto.
Outro exercício: todos em roda, solicito que conversem sobre as suas impressões, a
respeito da experiência; de costas uns para os outros, deitados de olhos abertos, depois de
olhos fechados e, por fim, na posição de quatro.
Os depoimentos, gerados pelas variações sugeridas, são também os mais diver-
sos. Transitam por desajeitos, medos, desconfortos, risos, lembranças, produções de
imagens, estranhamentos, disposições, descobertas, inquietações entre muitos outros.
As mudanças do olhar provocaram diferentes experiências. Por exemplo, uma
participante conta que foi muito difícil caminhar olhando para cima; seu corpo, com os
26
Idem , ibid.
27
Idem, ibid.
28
Quando mencionamos um outro estado de ser, estamos tratando do devir que
corresponde à idéia do corpo/sujeito em um estado de metaequilíbrio, ou seja,
um equilíbrio instável. Nesse contexto, podemos dizer que o vivo possui uma
ordem não estável de organização, mas ainda assim uma ordem.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
46
braços para frente, tomou uma posição de alerta. Outra preferiu o olho no olho apesar de
sentir, muitas vezes, que algumas pessoas se desviavam do seu olhar; outra ainda fala
sobre a solidão que sentiu ao ficar olhando para baixo. Alguém nomeia uma imagem a par-
tir da experiência de circular de vários modos pelo espaço como uma “movimentação de
átomos”, o que reafirma que cada pequena variação produzia um certo tipo de efeito tan-
to na dimensão individual quanto na coletiva.
Vemos assim que, desde os primeiros momentos de vida, criar corpos, experi-
mentar diferentes formas é um desafio e uma necessidade. Podemos observar esses
processos de um contínuo devir no mundo, por exemplo, ao acompanhar bebês e crian-
ças muito pequenas em suas brincadeiras e desafios: deitada, sentada, engatinhando ou
na posição ereta, a criança pode vivenciar e produzir mundos diversos durante o desen-
volvimento, a maturação e a assimilação de suas empreitadas. A cada momento, a par-
tir da construção de seus corpos, os bebês e crianças têm condições de ampliar seus
mundos e produzir outros territórios existenciais.
29
Do ponto de vista do processo, a vi-
da seria então uma sucessão de formas, que se movem mais ou menos como num filme.
Ao desacelerar as imagens gravadas nos encontros, fica nítida a sucessão de
formas expressas nos corpos que evidencia um movimento contínuo, diferenciado a
cada transformação e revela modos de ser, olhar, captar, relacionar-se e produzir
acontecimentos.
Para Keleman, “se pudéssemos fotografar nossa vida quadro por quadro, perce-
beríamos que somos seqüências móveis de formas emocionais variadas”
30
; e a partir das
formas podemos conhecer as histórias pessoais, sociais e genéticas.
Essa posição coincide com a de Favre, para quem a clínica estaria voltada na dire-
ção da retomada da potência que possibilita o continuumdos processos formativos ou
a capacidade do corpo – e, portanto, da vida – para maturar formas a partir das experiên-
cias, da circulação dos afetos, da vontade de viver.
Tanto os estudos de Keleman como a compreensão da clínica/vida, nomea-
da por Favre como uma ecologia relacional, tocam nas concepções sobre “encontro”,
tema central da clínica das abordagens corporais e da dança, que venho experi-
mentando. Penso que é por meio dos encontros que se fazem aproximações; turbu-
lências acontecem; produções de outros repertórios existenciais se solidificam e
podem ser expressos em diferentes graus de intensidade; pequenos eventos podem
reverberar em outros jeitos de funcionar, viver e apresentar-se frente ao outro,
criando realidades.
29
Trata-se nesses casos de um processo em desenvolvimento, não patológico,
que pressupõe condições mínimas de afetividade e vínculo com o adulto para
que o processo aconteça de maneira suficientemente satisfatória.
Estas etapas sensório-motoras revelam um mecanismo de absorção,
assimilação e expressão para o mundo e não apenas uma interpretação
do corpo “motor”, mas sim como revelador de acontecimentos ao longo de uma
existência em particular.
30
KELEMAN, Stanley., op. cit. p. 11.
O corpo como pulso
47
O corpo como bomba pulsátil
Observo na tela o movimento pulsante de uma medusa. Depois dessa cena, aparece
uma participante de um grupo de Favre procurando se comunicar: abre os braços, move
a cabeça de lá para cá, solta as palavras, pulsa seu corpo para dentro e para fora, mos-
trando que tem um ritmo e quer vingar.
Na cíinica observo corpos contidos, respirações presas, aflições e ansiedades para
comunicar. A excitação se expressa em diferentes graus de intensidades.
Após assistir a uma aula sobre violência, sinto meus braços vibrando, tamanha a afeta-
ção dos conteúdos trazidos pelas funcionárias da Febem.
Para compreender a densidade das idéias de Keleman é necessária a vivência do
método ou minimamente exercitar o que ele denomina de ato de corpar, que significa pre-
sentificar-se em uma experiência. No entanto, não se trata de ter consciência de atos ou
estados vividos no corpo como algo que acontece separado de mim – um objeto a ser as-
sistido pelo sujeito/espectador – mas viver e encarnar o aqui como forma intensa, fruto
dos processos excitatórios que acontecem nesse corpo.
Durante as leituras, realizávamos várias vivências na tentativa de corporificar
diferentes estados e ações tais como experimentar o caminhar como se estivéssemos
nadando na posição ereta (tal como Keleman propõe), rastejar, sentir o movimento da
boca e dos lábios sugando o espaço para facilitar o movimento do corpo no chão ou ain-
da deixar-se levar pelo movimento em espiral do corpo sentado em direção à posição
ereta e muitos outros movimentos breves, às vezes estranhos, que davam o tom para a
assimilação dos conteúdos estudados.
Para Keleman o corpo funciona como uma bomba pulsátil
31
,eopulso
32
éoprin-
cípio fundamental para a organização do organismo e para a manutenção da vida. Pa-
ra ele existe no vivo, e no corpo humano, um padrão pulsátil que articula os tecidos
como bombas.
Um dos elementos fundamentais, perceptível em matérias vivas, é sua capacida-
de de expandir e retrair, de se alongar e encurtar, inchar e recolher. Ora, ao observarmos
um organismo unicelular, já podemos verificar um pulso, que deu origem ao multicelular
e que irá manter o mesmo padrão ao derivar em um organismo mais complexo (o homem)
que segue na sustentação de uma pulsação vital. “Esta é a nossa metamorfose: de célu-
las ritmicamente pulsantes para um organismo multirritmicamente pulsante”.
33
31
Relaciono o que Keleman chama de bomba pulsátil ao que Guattari denomina
de “maquínica da existência”: um mundo constituído por cartografias, construí-
do em redes abertas a conexões e interligações entendidas como um campo de
forças (LIBERMAN, 1998, p. 16). No corpo acontece o mesmo processo, ou seja,
um tecido ligado a outro criando tubos, bolsas e espaços que se comunicam
através de membranas e camadas também abertas a conexões, pois construídas
em uma arquitetura rizomática.
32
Grifo meu, pela relevância do conceito.
33
KELEMAN, Stanley., op. cit. p. 19.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
48
Segundo Keleman, o padrão pulsátil acontece em vários tipos de tecidos organi-
zando-os como bombas que produzem diferentes modos: um padrão unicelular (divisão
de uma célula-mãe e duas células-filhas) no tecido cardíaco através de um fluxo rítmico
ininterrupto em um ciclo de expansão-contração dos músculos lisos ou mesmo na mus-
culatura esquelética, através do alongamento-encurtamento, entre outros.
Para que os seres se organizem nesse pulso, o corpo se faz ao redor de uma série
de espaços que permitem a passagem de líquidos, onde acontece a circulação de nutrien-
tes e substâncias que serão processadas, transformadas pelo metabolismo, retidas ou
expelidas, se inúteis ou perigosas ao organismo.
Essas trocas, no corpo e na relação com o ambiente, referem-se a elementos quí-
micos, mas também a afetos, a tudo aquilo que se forma, por meio das experiências,
dos encontros – idéia fundamental na clínica que venho construindo e atuando.
Segundo Keleman,
nos banhamos em um oceano de líquidos para realizar a troca de elementos químicos nu-
tricionais e devolver ao mundo o que foi transformado. Do mesmo modo, absorvemos nu-
trição emocional do mundo que nos rodeia para nos nutrir e trocar com o outro aquilo que
formamos. Trocamos células germinais e experiências, assim como dióxido de carbono e
oxigênio.
34
Para realizar essas trocas com o mundo, o corpo possui ainda passagens e túneis
móveis que geram um interior e um exterior. Essas passagens comportam espaços
para atividades específicas como a boca para a mastigação ou decomposição. Há tam-
bém espaços e bolsas que têm outras funções – com um tipo diverso de motilidade ou
peristalse que transforma o que passa por eles – tal como o pulmão-respiração por on-
de circulam os gases e o estômago-digestão, responsável pelos nutrientes ou ainda o cé-
rebro que rege as informações.
O corpo é constituído, de fato, por uma série de tubos e camadas: a vascular, a ár-
vore neural, o trato digestivo, entre outros. Para evitar o colapso e a ejeção de nossos con-
teúdos internos, a expansão e a contração precisam ainda de um apoio que é realizado
através de câmaras e válvulas que mantêm os ritmos peristálticos contra a gravidade e,
assim, permitem as trocas com o ambiente. Somos excitação, tentativas de lidar com a
força da gravidade (pressão atmosférica) e com os afetos de todos os corpos, diz Favre.
A partir da compreensão de Keleman sobre a construção de um corpo, podemos
dizer que a excitação nomeada pelo autor e exemplificada por mim ao longo deste tra-
balho, pode ser vista ainda como a capacidade do sujeito/corpo de afetar e ser afetado
34
Ibid., p.16.
O corpo como pulso
49
pelo mundo, pelos encontros, nos ambientes, na criação do que Rolnik nomeia como a
criação de um corpo vibrátil, poroso e suficientemente aberto às afecções.
Tratando, então, de camadas, processos de trocas, membranas, circulações, pas-
sagens, ritmos e intercomunicações que constituem o corpo entendido em suas dife-
rentes dimensões e registros.
Segundo Keleman (1992), a partir da visão da embriogênese, o corpo é com-
posto por três tipos de camadas: uma interna, uma externa e uma intermediária. À ex-
terna, de pele e nervos – o ectoderma –, cabe a comunicação. A camada intermediária,
formada por músculos e vasos sanguíneos – o mesoderma –, fornece suporte, possi-
bilita a locomoção e principalmente molda as formas herdadas e vividas; já a camada
interna, de órgãos e vísceras – o endoderma –, é responsável pela nutrição e energia bá-
sica. Essas camadas em contato permitem uma ligação entre o interior e o exterior e re-
velam claramente a interligação dos tecidos. Para o autor, “somos como lâmina de
células, torcida, dobrada, curvada, enrolada em sistemas de órgãos e tubos e, depois
em um organismo.”
35
A partir da idéia da existência das camadas e da necessidade do corpo de criar in-
terligações que permitam passagens entre o mundo interno e externo e entre as redes que
35
Ibid., p. 25.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
50
acontecem dentro das paredes do corpo, uma experiência vivida por mim na eclusa de
Barra Bonita pode servir como metáfora desses processos e permitir a compreensão de
que as trocas se fazem sem um intenso “vazamento”, o que acarretaria um “acidente de
percurso” extremamente prejudicial ao corpo: um corte profundo, um derrame, ou mes-
mo a produção de sintomas psíquicos
36
ocasionados por modalidades várias na relação
do sujeito com o mundo.
37
Na imagem aqui proposta, um barco navega pelo Rio Tietê em direção à eclusa, que pos-
sui duas comportas. A primeira se abre, o barco entra e a porta se fecha; estamos em uma
espécie de câmara e ali recebemos água, o que nos faz subir a um outro nível do rio. A se-
gunda porta se abre e o barco sai em outro território de navegação.
A eclusa pode ser pensada como pele, membrana, camada que possui uma poro-
sidade aberta à afetação, seja de nutrientes vários ou de afetos, capaz de abrir e fechar,
afinar e adensar em diferentes ritmos e modos a partir das experiências provocadoras de
vários estados como o medo, a frustração, o amor, o prazer, a dor, entre tantas outras que
vivemos diariamente.
Uma outra imagem desses processos de trocas está em um vídeo a que assistimos
em um dos encontros do seminário e que tematiza a vida na terra e os caminhos percor-
ridos na evolução do ser unicelular ao homem. Uma das cenas marcantes desse docu-
mentário mostra um sapo que realiza gestos e com a pata retira do corpo uma camada de
pele/membrana, construindo para si um outro corpo.
Essa imagem reforça – ainda que a perspectiva que tenho adotado não aponte a
falta como questão (a perda da pele, por exemplo) –, o processo de vir a ser sempre. O mo-
vimento entendido como fluxo, o presentificar-se a cada novo encontro, o trocar de pe-
le, ter sempre a possibilidade de encarnar novos modos.
Eis uma outra perspectiva, pois sou movida por aquilo que me falta numa idéia de
chegar lá, alcançar uma plenitude banhada por um ideal de completude, mas embarco
nesse movimento do devir, no qual sou sempre outra. A cena envolvendo o sapo é um
exemplo/imagem desse outrar-se.
Em relação aos processos de subjetivação, trata-se do encontro com o outro em
sua alteridade e as perturbações provocadas por esse outro como presença viva em
mim, a partir da permeabilidade, disponibilidade, das condições as mais variadas e,
principalmente, a possibilidade de suportar as turbulências produzidas nesses proces-
36
Os sintomas psíquicos são acompanhados por alterações somáticas. Não é
possível compartimentalizar o corpo a partir da abordagem kelemaniana.
37
Algumas destas psicopatologias são analisadas por Rolnik, principalmente
aquelas referentes à síndrome do pânico, depressão e stress. A autora analisa
esses sintomas produzidos na vida contemporânea a partir da relação do sujeito
com a alteridade, tomando como base as políticas da sensibilidade e apreensão
do mundo dominantes neste contexto, entendido no sentido amplo de sua
complexidade social, econômica, política, cultural etc.
O corpo como pulso
51
sos para engendrar novos modos que pedem passagem, expressão e invenção.
Para Favre, o corpo funcionaria então como um processador de ambiente. Cabe
ainda salientar que esses processos são, muitas vezes, bastante lentos em sua tempo-
ralidade, o que torna complexa a sua efetuação na subjetividade contemporânea,
que exige do sujeito cada vez mais rapidez e criação do novo a qualquer custo provocan-
do toda uma sintomatologia própria de nosso tempo.
38
Movimentos da maré
Tenho atendido Luiz, um rapaz de 27 anos. Ele menciona sua dificuldade de expressar-
se. Mostra-se com um corpo que tem uma tendência a recuar e curvar-se em introspec-
ção. Fala de um pulso que se expressa contidamente, uma vontade de expandir, de ir ao
encontro, de colocar no mundo seus talentos, de transbordar um pouco mais as suas
emoções, de criar mais corpo.
Keleman tem me auxiliado a olhar para esse rapaz e para outras pessoas que
acompanho a partir de perspectivas orientadas pelo pulso, ritmo, afetos, referências
novas e inspiradoras para atuar e viver a clínica, a partir de uma observação sutil dos
corpos e de como eles são construídos, de como criam posturas, jeitos, densidades, re-
lações muito singulares nos ambientes e na relação com o outro.
Para Keleman, pode acontecer o que ele denomina de conflito nos processos de
aproximação e distanciamento em relação ao mundo. Por exemplo: a pessoa pode se ex-
pandir a ponto de perder a capacidade de recuar, ou se encolher e perder a capacidade
de expandir. Nessas condições a amplitude da pulsação celular começa a decair e afe-
tar o que ele chama de sentimentos, pensamentos, ações e, portanto, determina nos-
sos modos de funcionamento no mundo, na relação com as pessoas, na produção da
subjetividade.
O trabalho com Luiz implica, num primeiro momento, a abordagem de fotografias
tiradas em diversos contextos, pois seu gosto por fotografar se mostrava como um lugar
possível para expressar, criar e presentificar-se em um mundo sentido, muitas vezes,
como difícil e ameaçador.
Nos encontros iniciais, Luiz lavava fotos de pessoas e paisagens captadas em
muitos momentos de sua vida, revelando alguns de seus modos de focalizar, de aproxi-
38
Serão abordados, em capítulo específico, os sintomas produzidos na
subjetividade contemporânea com o objetivo de situar o leitor acerca
de que corpos são acompanhados nesta pesquisa.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
52
mar-se e recuar dos protagonistas. Depois, quando começou a trazer fotos suas, pôde
contar e lembrar histórias, falar e se dar conta de suas relações, afetos; olhar para si em
situações diversas, nas quais percebeu, por exemplo, que sempre estava atrás de to-
dos os amigos nas fotografias da “turma”, meio oculto, querendo, segundo ele, apare-
cer e desaparecer ao mesmo tempo.
Seu trabalho a partir daí era observar como formatava seu corpo, como reagia
corporalmente em diferentes situações cotidianas, experimentar outros jeitos de estar
e se colocar no mundo para, quem sabe, instaurar “uma diferença que muda tudo”.
Assim, sugeri que ele experimentasse o seu corpo em posições de avanço e recuo
e sentisse os efeitos desses exercícios em si e em seu entorno.
Segundo Keleman, saímos “em direção ao mundo e voltamos num ciclo inter-
minável”
39
.(...). O autor afirma ainda que
as várias passagens de energia e as correntes de pulsação são as primeiras formas de
asserção em direção ao mundo e de afastamento do mundo. Nós nos movemos em
direção a ele para projetar e nos recolhemos para introjetar.
40
De modo bastante poético, Safra reitera que “é preciso encontrar o outro, mas
é fundamental o retorno à solidão. É preciso chegar e ir-se, alcançar e recolher. Viver pa-
ra morrer”.
42
Uma outra idéia inspirada pelos estudos a partir da reflexão sobre o pulso refere-
se ao fato de que as tonalidades e, portanto, os graus de potência
42
de um corpo depen-
dem dos sentimentos, dos estados, das ações que se efetuam nos encontros, da
capacidade de realizar conexões; de, a partir, das experiências, criar corpos, sustentan-
do as intensidades, redesenhar-se e roteirizar-se continuamente, conforme nos diz Favre.
Mais do que percepção, esses processos estão vinculados à produção de aconte-
cimentos, de si e de corpos.
Um corpo cristalizado numa determinada forma, enrijecido ou desmanchado
demais, fixado em certo “lugar”, impede a porosidade necessária às afetações que po-
dem instaurar formas mais ricas para responder e co-criar os acontecimentos vivi-
dos ao longo de uma existência. Inversamente, os corpos podem ser tão excessivos
e continuamente porosos que são varridos pelos acontecimentos sem que tenham
possibilidade de assimilar e sustentar a experiência. Os efeitos dos encontros, das tro-
cas realizadas é que possibilitam que os corpos se formatem em consonância com os
processos de singularização.
39
KELEMAN, Stanley., op. cit. p. 19.
40
Ibid., p. 29.
41
GILBERTO, Safra., op. cit., p. 25.
42
Suely Rolnik aponta – em seu Comentário sobre o vídeo da pulsão,
apresentado no Simpósio sobre pulsão (1992) – que para Guattari não existe o
dualismo morte/vida (pulsão de morte como destruição versus pulsão de vida
como construção): pulsão é sempre vontade de potência. Mas essa vontade
pode vingar em diferentes graus, podendo mesmo chegar ao grau zero
(morte).Pode acontecer, assim, uma fraca potência de atualização em território
existencial, fraca potência de agenciamento e conexão entre fluxos.
(Ver. LIBERMAN, 1998).
O corpo como pulso
53
Entrecorpos ou presenças
Na creche a estagiária atendia um bebê que permanecia “largadão” no canto do berçário.
Mariana, a estagiária, olhava a criança procurando um lugar para estar. O bebê respondia
rapidamente à aproximação e, aos poucos, a partir da construção de um vínculo, mostrava
desejo de sentar, de olhar, de entrar no mundo, de se fazer mais presente.
Afirmo que se trata de um empurrão afetivo que significa estar com, criar uma ambien-
tação para que a experiência possa acontecer, participar junto com a criança e seu am-
biente na construção de um acontecimento.
Seria também sair do lugar de espectadores – no caso da criança, da mãe e da própria es-
tagiária – para um lugar ativo, processador, autorizado a se desenvolver e maturar.
A nossa proposta na creche, quando possível, não se restringe a uma atuação junto à
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
54
criança, mas na relação entre a mãe e seu bebê. Os encontros com Graça, a mãe da crian-
ça aqui descrita, foram realizados em uma sala da creche e em sua casa.
A primeira observação da estagiária
43
, é que Graça não parou de falar, de contar sobre
a vida, seus problemas, sua história, sua vontade de estabelecer uma relação de ami-
zade ter a estagiária como amiga. A mãe sentia-se só, dizia que queria ter abortado a
criança, que não tinha companheiro, que não sabia cuidar, que apenas tocava a vida.
Depois de cuidar da mãe e colocá-la também como foco de atenção, Mariana conta que
viu Graça amamentar a criança e que o bebê encontrava-se largado para trás, caído e, re-
correndo à perspectiva kelemaniana, poderíamos dizer, desmanchado demais.
A mãe conta que às vezes dorme enquanto amamenta, o que revela uma atitude pouco
conectada e envolvida com o filho.
O seio materno estava ali, mas assim como o bebê, funcionava como um objeto. A mãe
tinha o olhar meio vago, distraído, como se a criança não estivesse ali.
Por sua vez, o bebê já acordando para a vida, procurava o olhar da mãe – um olhar pers-
crutador – e nossa intervenção consistia em provocar esse encontro, cada um consigo
e com o outro na tentativa de criar performances e coreografias mais potentes e vitali-
zadas de afeto.
Analisando esse caso, é possível perceber o corpo largado desse bebê como
efeito de uma relação que não o chama para a vida. Num movimento automático,
toca-se a vida. Dar corpo, dar pele, dar “com tato” a essa relação azeitar é o pano
de fundo das intervenções.
Sabemos que uma pequena alteração pode modificar aquela relação – tal como
chamar a atenção da mãe para o olhar do bebê que a procura: a mãe acha que o filho não
gosta dela. Mudar a posição da criança, sentando-a um pouco mais e experenciando
formas de “enrolamento
45
, por meio de mudanças posturais.
Podemos dizer, a partir do acompanhamento das cenas apresentadas, que tudo
que vivemos é atividade somática. Essa atitude amplia a visão restrita e cindida de que
trabalhar o corpo é somente realizar uma atividade física, como ginástica ou algum es-
porte, para uma compreensão de que o tempo todo tratamos de corpos em formação,
construídos e reconstruídos detalhada, sutilmente e de modo bastante refinado em ca-
da vivência.
As idéias de Keleman sobre anatomia emocional exigem que façamos uma leitu-
ra do corpo como multimídia, multifacetado, implicado fortemente em uma concepção
43
Atuo como supervisora de estágios curriculares, acompanhando alunos
do 7º e 8º semestre do Curso de Terapia Ocupacional do Centro Universitário
São Camilo.
44
Nesse trabalho tomamos como base os exercícios do livro A coordenação
psicomotora do bebê, que abordam o posicionamento no sentido do
enrolamento nas diferentes tarefas do cotidiano do bebê como fundamentais
para suas relações com o mundo.
O corpo como pulso
55
contemporânea sobre a vida. Mas o mais importante dessa perspectiva é o rompimen-
to de qualquer dualismo que já tenhamos herdado: mente/corpo; corpo/palavras; em-
pírico/intensivo; orgânico/campo de forças, entre outros. Talvez seja justamente por
essas provocações que tantas vezes sentimos estranhamento, inquietação e certo desas-
sossego frente a algumas de suas concepções.
A teoria kelemaniana é uma prática existencial; caso contrário, não teria senti-
do adotá-la como referência para a reflexão da prática que realizo e que tem em seu cer-
ne a importância do grupo, do outro, dos encontros como prática prioritariamente
relacional. Seria como teorizar sobre a vida, sem de fato vivê-la. Portanto, a potência
desse autor e de Favre está justamente nessa condição de pensar, dar ao sujeito pos-
sibilidades de criar outras realidades a partir de suas relações, de sua capacidade de
estabelecer conexões.
Assim, todo este trabalho – e particularmente a escolha do conceito de corpo
aqui discutido como referência para a compreensão da prática clínica – diz respeito a
uma possível abertura para a produção de outras sensibilidades: mais atentas ao próprio
pulso vital, aos contatos com o outro e com os mundos, permitindo leituras aprofunda-
das a respeito do vivo, do corpo e das possibilidades de construção de outros modos de
existir, mais singulares, resistentes aos ataques e modelos sociais, que restringem as po-
tências e a produção de realidades criativas e pulsantes de vida.
57
Aberturas aos procedimentos
Afora motivos e problemas que se acantonam
distintamente em cada uma dessas dicções,
algo parece pulsar na vizinhança de uma com a outra”.
Luiz B. L. Orlandi
1
1
ORLANDI, Luiz B. L. Anotar e nomadizar. In: Lins, Daniel (Org.). Razão nômade.
Rio de Janeiro : Editora Forense, 2005, (v. 1) p. 33-75.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
58
Aberturas aos procedimentos
59
O
rientada pela perspectiva kelemaniana do corpo como pulso, tomarei suas prin-
cipais vertentes de discussão como ponto de partida para a análise dos proce-
dimentos que constituem o presente trabalho.
Para o autor, a idéia de uma “saúde” do corpo estaria ligada à capacidade de
manter-se em estado pulsante, ou seja, ora contrair-se ora expandir-se, ora ir em dire-
ção ao mundo, ora recuar para assimilar as experiências, manter-se num continuum
de desmanchar e reconstruir. Essa possibilidade de formar corpos tem a ver com a ca-
pacidade do sujeito de conectar-se, ser atravessado pelos mundos, afetar e ser afe-
tado por eles.
Outra vertente presente nessa teoria e que nos ajuda a compreender, pensar e ar-
ticular procedimentos na clínica é a idéia de que as experiências moldam os corpos.O
corpo é efeito permanente do encontro em diversas realidades: da natureza, do social,
das histórias etc. Assim, pensar em procedimentos na clínica tem sentido quando con-
sideramos as experiências como acessos a modos de subjetivação, a partir de variações
provocadas pelos procedimentos.
O conceito de forma também tem lugar central nesta discussão. A forma pensada
não em sua superficialidade, mas em camadas como bordas dos acontecimentos que o
corpo, em sua “concretude”, permite configurar e reconfigurar permanentemente.
Ao permitir o acesso ao corpo, por meio de procedimentos diversos, a clínica po-
de incidir nesse lugar, já que se trata de um corpo aberto, conectivo, que responde às
afetações, que se transforma e cria realidades. Corpo implicado no presente, atraves-
sado, portanto, por modos de subjetivação em composição com as suas capacidades
como vivo.
2
No entanto, o que importa aqui é pensar o corpo como vincular, emocional, em
suas diferentes dimensões e camadas, que podem ser acessadas no trabalho corporal.
Os exercícios propostos incidirão onde podemos tocar, acessar, ressoar.
2
Favre em seus seminários freqüentemente se remete ao vivo e, portanto,
ao homem como parte de algo maior que é a biosfera.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
60
A abordagem kelemaniana, mais do que um manual sobre os sentidos do corpo,
permite ancorar uma reflexão sobre a clínica dos laboratórios ou sobre as oficinas de ex-
perimentações, num lugar amplo, no interjogo entre múltiplos fluxos: pensamento, ima-
gem, sensação, palavra, possibilidades e potencialidades. A abordagem do autor
permite também ressonâncias importantes, pois o ambiente do qual fala Keleman é
aberto aos mundos sociais, políticos, genéticos, subjetivos.
O corpo está no entrecruzamento de todas essas forças que atuam e constituem
os sujeitos que acompanhamos na clínica a todo momento: pessoas com histórias, ex-
periências, com capacidades inatas, desejos, a procura de elaborar singularidades em di-
ferentes situações.
É a partir desse modo de aproximação que elege essa abordagem do corpo co-
mo intervenção clínica que apresento minhas propostas, registros de observações e
ressonâncias do trabalho realizado.
Os capítulos que constituem esta parte do trabalho estão norteados por alguns as-
pectos fundamentais.
Primeiramente, é preciso entender a noção de serialidade adotada na apresenta-
ção e categorização dos procedimentos desta clínica eminentemente corporal, não co-
mo uma linearidade de “padrões” que o profissional deve seguir como um “manual”. Por
isso, não é necessário que o leitor siga rigorosamente o percurso realizado para se apro-
ximar da clínica aqui proposta e discutida. Trata-se, na verdade, de séries norteadoras que
pretendem permitir ao leitor incorporar traços e tendências de uma clínica que se cons-
trói por porosidades e aberturas, tal como ocorre na concepção de corpo aqui adotada,
em consonância com a filosofia da diferença proposta por Guattari, Deleuze, Rolnik, Or-
landi, entre outros.
A formulação das séries implicou a reunião de diferentes sentidos
3
.Paraexpres-
sar o dinamismo exigido pelos procedimentos – que possibilitam os encontros, entendi-
dos sempre como produtores de diferença e dão ensejo a processos de singularização –,
optei por nomear as séries recorrendo sempre a um verbo no infinitivo: aquecer, fotogra-
far, olhar, improvisar, entre outros. Pretendo com isso reiterar que o foco de minha abor-
dagem na clínica, e por conseguinte nesta discussão, está na ação efetivamente
realizada pelo sujeito, imerso em uma proposta aberta ao devir, à diferença, à surpresa
e à singularidade de cada instantâneo aqui captado.
Na tentativa de romper uma estrutura rígida de compreensão dos exercícios e di-
nâmicas utilizadas apresento cenas de clínicas em diferentes contextos profissionais e
3
Inspirados em L. Orlandi, a partir de aula ministrada no Programa de Pós-
graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP, podemos mencionar sentidos
diversos que emergem em cada composição, ou seja, a leitura de sentidos dos
procedimentos está implicada em composições singulares e linhas de força que
compõem cada instante das experimentações, portanto, são múltiplos também
os sentidos de suas análises.
Aberturas aos procedimentos
61
em momentos diversos. Além disso, é preciso ressaltar que, por vezes, um mesmo pro-
cedimento é abordado em séries diferentes, de acordo com a predominância do aspec-
to que pretendo analisar.
Mas como iniciar os procedimentos? De onde partir? Existiria um lugar de origem
e um ponto de chegada?
Minha experiência clínica me ensina que não. Os acontecimentos se misturam
nas séries: cada experimentação se configura como processo único, tomado por campos
de forças singulares e que podem, a partir da reflexão e de uma necessidade de organi-
zação e análise, reunir-se em certos agrupamentos, com objetivo de enfatizar este ou
aquele aspecto que pode predominar ou, no mínimo, permitir ao leitor certa compreen-
são de processos vividos muitas vezes impossíveis de apreender pela consciência. Não
é tudo que se pode dizer através das palavras. Em alguns procedimentos, pouco se fala.
Assim, a utilização do registro fotográfico nesta tese pode favorecer maior visua-
lização de instantâneos de uma clínica centrada no corpo. Ora ampliadas, ora reduzidas
a algum detalhe, as fotografias particularizam certo tom ou aspecto presente na vivên-
cia para sensibilizar um tipo de olhar mutante que explora o macro e o micro.
Por isso, foi dedicada atenção especial à escolha das fotografias e a detalhes das
imagens que, ao compor com os escritos, constituem camadas de elaborações e provo-
cações à sensibilidade.
É importante ressaltar aqui características do material fotográfico que compõe
com os textos
4
:
• a capacidade de afetação, dos registros de instantâneos intensos vividos na clínica.
• a possibilidade de documentar alguns procedimentos que podem auxiliar o leitor na
compreensão ou captação dos mesmos.
• o trabalho a-paralelo
5
aos textos que percorrem a elaboração dos procedimentos ago-
ra através de imagens.
• o detalhamento de certos tons na fotografia para deixar acontecer um punctum
6
,como
diz Barthes, um ponto ou mancha na foto que salta do registro fotográfico e passa a exis-
tir por sua força, para aquele que olha.
Espero que a leitura desta tese seja iniciada da forma que o leitor julgar mais con-
veniente, que os procedimentos sejam escolhidos a partir de suas vontades e atrações.
Entretanto, devo ressaltar que tal atitude pode levar o leitor a abrir mão de compreender
o passo a passo, cada procedimento, de entender tudo como aconteceu e todos os aspec-
tos que motivaram a escolha deste ou daquele exercício, desta ou daquela frase. Não se
4
Uma discussão aprofundada sobre estas questões será realizada na série
Fotografar.
5
Aqui o conceito de a-paralelo refere-se à descrição de encontro no livro
Diálogos, de Deleuze e Parnet (1998, p.15). Os autores escrevem sobre o
conceito de encontro entre dois, que não acontece nem em um nem outro, mas
no entre ou fora. No caso da composição entre textos e fotografias, a idéia não é
criar fotos legendadas, mas dois movimentos de apresentação e registro que
aparecem como linguagens diferentes que procuram, de alguma forma,
corporificar os processos assinalados neste trabalho.
6
Considerações sobre o punctum serão realizados na série de procedimentos do
Fotografar. Aqui basta dizer que existem dois tipos de fotografia: aquelas que
nada dizem, não tocam a sensibilidade daquele que as vê e aquelas que,
colocadas diante dos olhos, criam existência. Neste último caso, o olhar se fixa e
pode viver o acontecimento que ali se opera.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
62
trata de aprender a fazer igual, pois o desafio é deixar-se afetar pelas cenas, pelos modos
como cada exercício se efetuou nos corpos dos participantes na tentativa de captar, tal-
vez até sentir no próprio corpo, possíveis ressonâncias das propostas e embarcar nos flu-
xos metodológicos aqui apresentados.
Ao organizar as séries de procedimentos surgiu uma inquietação relacionada à or-
denação a seguir: iniciar pela série Aquecer, que envolve preparações/acontecimentos
inaugurais na proposta clínica centrada no corpo? Ou partir do Fotografar, uma vez que
o recurso da imagem é muito presente em meu trabalho, inspira discussões conceituais,
exercícios nos laboratórios e na apresentação das matérias vivas presentes nesta tese?
Ou ainda pela série Improvisar, ação fundamental que atravessa toda a clínica e demar-
ca fortemente o seu caráter político, porque trabalhamos com limites impostos e/ou
construídos na busca da resistência ao habitual.
Frente a esses embates optei por redigir as séries pela ordem em que se formata-
vam e pediam passagem, procurei acolher e compreender esta “vontade de materializar-
se” em pensamento e palavra.
No entanto, apesar desta escolha que partia de meu corpo, podemos considerar
que as séries de procedimentos funcionam como camadas (tal como Keleman entende
os corpos), com interligações não hierarquizadas
7
. Um exercício colocado numa série po-
deria ser deslocado para outra de acordo com os efeitos produzidos ou a partir dos ob-
jetivos do terapeuta, ou ainda pela necessidade de ênfases, pois como veremos um
mesmo exercício evoca diferentes linhas metodológicas.
As camadas na perspectiva kelemaniana, relembrando algumas idéias expostas
no capítulo anterior, afirmam que nos corpos nada funciona isoladamente (não podemos
tratar de um corpo através de seus órgãos e/ou sistemas), que existem articulações
possíveis e que os processos acontecem todos simultaneamente: excitações cerebrais,
produções de gestos, pensamentos, imagens, sensações, linguagem, toda uma maquí-
nica
8
pulsante, própria do vivo. A proposta é, portanto, realizar a leitura dos procedimen-
tos procurando sempre vazar, deixar uma brecha para que outra série entre em
composição.
Uma de minhas hipóteses é que, dependendo do campo de forças no qual o exer-
cício é criado, pode-se observar a eminência ou predominância de um aspecto/tonalida-
de da clínica como linha metodológica. Este ponto ficará mais claro na análise de
procedimentos e em suas afetações nos diferentes contextos.
Assim, adotei o caminho que me pareceu mais próximo ao que vivencio ao
7
Aqui esta hierarquização acontece, pois o pensamento que voa e se expande
para todos os lados exige também uma organização possível para tornar-se
linguagem. Além disso, exige-se um rigor acadêmico comunicável e necessário
para a elaboração do pensado e vivido.
8
O termo maquínica foi criado por Felix Guattari e foi apontado em minha
dissertação de mestrado, publicada sob o Danças em Terapia Ocupacional, 1995.
Não é objetivo discutir e aprofundar o conceito aqui, mas afirmá-lo como
construção da existência.. “É vontade de perseverança no ser (conatus), vontade
de efetuação da vida, vontade de afetar e ser afetado” (Ver. Comentário sobre o
vídeo da pulsão, op. cit.).
Aberturas aos procedimentos
63
“iniciar” uma tarefa: parti do Aquecer. Depois discuto e apresento a série Fotografar,de-
pois, Olhar, Tocar, Mover e pausar, Improvisare, finalmente, Conversar esilenciar.
Em todas as séries abordo exercícios propostos por diferentes técnicas (impro-
visação, contact improvisation inspirado em Steve Paxton, danceability, de Naiza de
França, exercícios criados por mim, entre outros), que não se esgotam, mas sugerem
oportunidades de aproximação com os corpos em sua complexidade e riqueza, privi-
legiando ainda a capacidade de afetação.
OAquecerestá ligado à capacidade do corpo afetar e ser afetado. Nos procedimen-
tos do Fotografar abordarei a utilização do recurso fotográfico na clínica e na formação
profissional: a imagem como documento e rastreadora das sutilezas dos acontecimen-
tos, como um zoomque merece destaque para ajudar a falar do indizível.
No Olharabordarei temas que envolvem a diferenciação entre o ver e olhar; na sé-
rieTocar percorrerei modos de aproximação que vão além da concretude do gesto pro-
priamente dito.
Na série Moverepausaraponto vários sentidos dos deslocamentos e pausas, além
de articulações com outros modos de experimentar os mundos, como o olhar,omover,o
tocar, entre outros que ora compõem entre si, ora vagueiam por caminhos diversos.
A série Improvisar é mais densa e complexa e está numa camada intermediária,
vazando por todos os lados (o que também acontece com as outras que nunca estão to-
talmente encapsuladas), pois é fundante, norteadora para todos os procedimentos.
No Improvisar procuro reunir cenas e exercícios que enfatizam a improvisação
como modo de instaurar um corpo pesquisador e inventor, foco central que funciona co-
mo resistência aos processos de subjetivação presentes no contemporâneo e que podem
nos afastar daquilo que Espinosa
9
considerou uma tarefa ética: aproximar-nos “do que
podemos”.
Tomando o corpo como modelo, “o que pode” é o seu poder de ser afetado, que
é necessariamente preenchido pela relação desse ser com os outros. Estão, portanto,
demarcadas nos exercícios e propostas em cada uma das séries, oportunidades de
encontros consigo e com os outros.
Finalmente, na série Conversar esilenciar, discuto as gradações e sentidos das
conversas e silêncios presentes na clínica, abordo ainda alguns aspectos sobre o escre-
ver eofazer– lugares onde se materializam conteúdos expressivos das vivências corpo-
rais que inspiram conversas e silêncios ao longo dos processos.
9
Aqui me inspiro em algumas questões formuladas por Espinosa sobre a ética,
tratadas em aula ministrada por Orlandi em disciplina do Núcleo de Estudos de
Subjetividade do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP:
“Produção de Sentido, Produção de Si. Procedimentos expressivos”, segundo
semestre de 2005.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
64
Mapeamentos e sujeitos
A partir das cenas clínicas escolhidas e das falas aqui apresentadas, procuro delinear algu-
mas experiências importantes e pontuais que me serviram como matéria-prima. São elas:
Experiência com um grupo de mulheres no Instituto de Psiquiatria do Hospital
das Clínicas na ala feminina, 1982 a 1984.
O trabalho com o grupo composto por cerca de oito mulheres com transtornos
mentais era realizado a portas fechadas e foi um momento inaugural das propostas de
abordagem do corpo. Nesta experiência pude observar como modos de subjetivação
dominantes se inscrevem e determinam modos de fazer com os corpos.
Mais do que a análise dos procedimentos utilizados, esse grupo foi fonte trans-
parente para observar e testemunhar os efeitos de uma subjetividade capitalística
dominante nos corpos. As respostas a qualquer proposta mais criativa e livre eram de
automatismo e repetição das coreografias observadas na televisão. Era como se os cor-
pos obedecessem a todo o tipo de investida do social. O corpo-academia, o corpo-
obediente, o corpo-impregnado, o corpo-domesticado.
Grupo de dança e abordagens corporais no Centro de Convivência Parque do
Carmo – Zona Leste (PMSP), durante gestão de Luiza Erundina na Prefeitura do Municí-
pio de São Paulo, 1989 a 1990.
O trabalho durou um ano e seis meses e envolveu portadores de deficiência físi-
ca, na maioria homens adultos que já haviam passado por vários tratamentos e acompa-
nhamentos (fisioterapia, fonoaudiologia e T. O., entre outros).
Nesse grupo a proposta era pautada pela criação do gesto, pela possibilidade de
conhecer o corpo em suas potencialidades inventivas e em sua capacidade de experimen-
tar o gesto, o lúdico, as mudanças posturais nas coreografias e pelo exercício de compar-
tilhar as ressonâncias das descobertas, ansiedades e dúvidas acerca do território
corporal.
No grupo havia cadeirantes, amputados, participantes com problemas ligados
a dificuldades de comunicação verbal, dentre outras. No entanto, o trabalho funcionou
como uma alternativa aos tratamentos tradicionais voltados à reabilitação, que enfa-
Aberturas aos procedimentos
65
tizam a funcionalidade e a realização das tarefas da vida diária como vestir-se, comer,
realizar mudanças posturais e higiene do modo mais autônomo possível. Em nossa pro-
posta esses objetivos eram indiretamente contemplados na realização de experimen-
tações corporais e de dança.
Grupo de dança realizado no Centro de Convivência Bacuri, durante a gestão de
Luíza Erundina, na Prefeitura do Município de São Paulo, 1990 a 1992.
O trabalho aconteceu durante este período, interrompido com a entrada de Pau-
lo Maluf na Prefeitura de São Paulo, por ocasião da implantação do PAS (1995/1996). O
grupo era formado por portadores de deficiência física e/ou mental, pessoas com sofri-
mentos psíquicos e população em geral (crianças, adolescentes e adultos). As propos-
tas eram variadas, mas basicamente foi enfatizada a produção de diferenças e a
diversidade.
As vivências de diferentes danças do mundo – balinesas, africanas, brasileiras, en-
tre outras – e a aproximação com diferentes culturas, por meio de depoimentos de pes-
soas que viajaram, permitiam experimentar gestualidades e expressões corporais
diversas. Abordamos também os conhecimentos dos participantes no campo da dança
e do corpo. As oficinas organizadas e ministradas pelos próprios participantes, com tra-
balhos de diferentes linguagens como desenhar, contar histórias e diversos exercícios de
improvisação vinculados ao tema em pauta, propiciaram trocas importantes.
Além disso, foram convidados profissionais que propunham vivências em diferen-
tes técnicas: Eutonia, Laban, entre outras. Realizávamos estudos teóricos sobre modos
de conceber o corpo e a dança em diversas concepções e culturas.
É importante ressaltar ainda que o grupo funcionava numa dinâmica aberta; qual-
quer pessoa poderia participar, caso manifestasse interesse pela proposta daquele dia.
Grupo de dança e abordagens corporais realizado com mães e acompanhantes
de crianças e adolescentes da Estação Especial da Lapa (E.E.L.)
10
, instituição que per-
tence ao Fundo Social de Solidariedade.
Essa experiência durou cerca de dois anos, entre 1999 e 2000, foi realizada quan-
do estive comissionada no Curso de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo
e contou com a participação de estagiárias da T. O. Muitas fotografias utilizadas neste tra-
10
A EEL, segundo documentos institucionais, é um Centro de Convivência e
Desenvolvimento Humano que atende prioritariamente pessoas portadoras
de deficiência, maiores de 14 anos. A instituição é mantida pelo Fundo Social
de Solidariedade do Estado de São Paulo, através de contribuições da iniciativa
privada.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
66
balho registram momentos dessa experiência.
11
O grupo era composto por cerca de 25 mulheres, formado a partir de uma procu-
ra espontânea e tinha como objetivo oferecer escuta e atenção, por meio de um trabalho
com abordagens corporais, relaxamento e dança em T. O. A partir das respostas a um
questionário entregue no início da proposta, pudemos traçar um perfil das participantes:
• Faixa etária entre 42 e 72 anos; em sua maioria donas de casa – mães, duas eram avós
e uma irmã. Todas tinham na família portadores de deficiência.
• Quanto à classe social, registrou-se heterogeneidade: havia desde uma catadora de pa-
pelão até uma moradora de um condomínio de classe alta de São Paulo. A maioria des-
sas mulheres não tinha qualquer experiência anterior com trabalho corporal ou dança e
muitas trabalhavam como voluntárias na EEL.
Workshop realizado no Curso de Terapia Ocupacional da Universidade de São
Paulo sobre o danceability, coordenado por mim, pela terapeuta ocupacional Marisa Sa-
mea e a arte-educadora alemã Bárbara Von Trote
12
, 1995.
Essa experiência contou com 50 participantes, portadores e não portadores de de-
ficiência física e/ou sensorial, estudantes e profissionais de T. O., áreas afins e interes-
sados no tema do corpo e da dança.
13
Experimentações realizadas nas Disciplinas Atividades e Recursos terapêuticos
ministradas por mim, no Curso de Terapia Ocupacional da Universidade de São Pau-
loe como docente na Universidade de Sorocaba entre 2001 e 2004, na disciplina Corpo,
abordagens corporais e dança no Curso de Terapia Ocupacional do Centro Universitário
São Camilo, nos últimos seis anos.
Nessas disciplinas são realizados laboratórios, seminários teórico-práticos,
estudos, vivências, propostas que tematizam o corpo, abordagens corporais e dan-
ça em campo.
São enfatizadas as dinâmicas grupais e sua potencialidade, por meio dos recur-
sos corporais que permitem alinhavar, a partir das experiências, a implicação desses re-
cursos na clínica e os sentidos do corpo na observação e atuação do terapeuta
ocupacional.
Esses laboratórios têm se mostrado um espaço privilegiado para a elaboração, dis-
cussão e utilização desses recursos nos efeitos e nas ressonâncias de propostas centra-
das no corpo. Os aportes teóricos em composição com o compartilhar, registrar e pensar
11
LIBERMAN, Flavia e VOGEL, Beatriz. Trabalho corporal e dança em terapia
ocupacional grupo de mães e familiares/Bodywork and dance in occupational
therapy group mothers and relatives. Rev. Ter. Ocup. (Revista Terapia
Ocupacional USP), 11(2/3) 2000, p. 63-67.
12
Bárbara é cadeirante. Realizou também o treino em danceability no Oregon.
13
O artigo Uma pesquisa do corpo em Terapia Ocupacional: o método de
danceability, por LIBERMAN, Flavia e SAMEA. Marisa, publicado na Rev. de Ter.
Ocup. da Universidade de São Paulo, v. 9, n. 3, p. 125-32, set/dez, 1998. Neste
artigo apresentamos e analisamos especificamente a experiência do Workshop
realizado em 1997, no Curso de Terapia Ocupacional da Universidade de São
Paulo.
13
O foco desta disciplina é o vínculo terapêutico e a análise de procedimentos
em T. O.
Aberturas aos procedimentos
67
sobre o vivido potencializam ainda mais as observações realizadas por mim nos dife-
rentes contextos e intervenções até agora realizados e em andamento.
Diversos cursos e workshops realizados em São Paulo e em outros Estados,com
variação de locais, número de participantes, tipos de propostas, ritmos e durações.
Vale mencionar oficinas e cursos para estudantes e profissionais de T. O., áreas da
saúde, bailarinos e interessados no tema do corpo, abordagem corporal e dança.
Trata-se de propostas realizadas em períodos variáveis – 4,8,12 ou mais encontros,
ou durante toda uma semana –, em sua maioria vivenciais com espaço para reflexão e tro-
ca. Os grupos são compostos por participantes bastante heterogêneos em relação à
idade, formação ou experiências no campo da dança ou trabalho corporal. Essa diversi-
dade, longe de ser impeditiva para a realização das propostas, é desejável, pois permi-
te a troca entre diferentes graus de afetação, conhecimentos prévios, disponibilidades
e/ou formação
14
.
Grupo de Estudos de corpo e prática clínicarealizado há três anos com estudan-
tes e profissionais interessados no tema corpo/clínica.
Neste contexto são discutidos textos teóricos e realizadas vivências para possibi-
litar a experimentação, elaboração e discussão teórico-práticas. Os grupos têm de 8 a 12
participantes. Algumas fotografias selecionadas para este trabalho foram realizadas
nesse espaço de estudo e pesquisa.
Uma característica importante na configuração do grupo foi a heterogeneidade
dos participantes em relação à sua formação universitária, momentos e escolhas rela-
cionadas à atuação profissional, mas principalmente à presença de um desejo de expe-
rimentação e troca no campo do corpo, da dança e das abordagens corporais na clínica.
Durante o trabalho, muitas de minhas idéias são compartilhadas, articulações
são produzidas pelos participantes e os efeitos dos procedimentos pensados e analisa-
dos. Ao longo do período de escritura da tese foi possível observar ressonâncias dessa
ação. Os grupos funcionaram (e funcionam) como suporte e espaço de interlocução a res-
peito de muitas problemáticas abordadas neste trabalho.
Cenas do treino em Danceability realizado no Oregon (USA), sob a coordenação
do bailarino Alito Alessi, durante três semanas.
Foram registrados vários momentos do trabalho que explorou a linguagem corpo-
14
Este aspecto ficará mais claro quando apresentarmos as dinâmicas e os
exercícios que se fundamentam no interjogo entre o coletivo, o singular,
momentos individuais e/ou em grupo. A variação permite o enriquecimento das
propostas e de seus efeitos.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
68
ral entre portadores e não portadores de deficiência física e/ou sensorial. Esse método
foi bastante inspirador para a criação de procedimentos que utilizo. Muitos dos funda-
mentos do danceabilityestão em consonância com idéias e propostas de minha clínica
e serão explicitados ao longo da apresentação e análise das séries de procedimentos.
Workshop Composição, improvisação e o poder da imaginação, realizado com
a bailarina e performer Lisa Nelson
15
em São Paulo, no Estúdio Nova Dança, com a pre-
sença de bailarinos, terapeutas e interessados em dança, janeiro de 2000.
As idéias centrais propostas por Lisa Nelson – tais como a importância do olhar nas
improvisações e o poder da imaginação na criação – serviram como referência para a
compreensão e elaboração de exercícios que utilizo na clínica.
Experiência com um grupo de mulheres da periferia de Sorocaba (Bairro dos
Morros), quando docente de uma disciplina prática ministrada para alunos do terceiro e
quarto semestre do Curso de Terapia Ocupacional da Universidade de Sorocaba.
A proposta era realizar uma intervenção em campo utilizando as abordagens cor-
porais e a dança. O trabalho durou cerca de um ano e originou monografias e artigos so-
bre o processo, durante o qual foram realizados ensaios fotográficos que também
compõem o presente trabalho.
Seminários sobre a obra Anatomia Emocional, de Stanley Keleman, sob coorde-
nação de Regina Favre, iniciado em janeiro de 2005.
O eixo desses seminários é a leitura da obra aliada a intervenções clínicas e vivên-
cias dos participantes.
16
Intervenções em T. O. realizadas na Creche Nossa Senhora do Rosário (em an-
damento), pertencente ao Centro Social Nossa Senhora do Rosário, Pompéia, São
Paulo.
O CEI (Centro de Educação Infantil) é conveniado à Prefeitura do Município de São
Paulo e conta com 160 crianças. Nesse espaço acontece também a supervisão de está-
gios de alunos do sétimo e oitavo semestres do Curso de Terapia Ocupacional do Centro
Universitário São Camilo.
Atualmente supervisiono um grupo de 4 a 6 estagiários que realizam ações em es-
paço socioeducativo com o objetivo de detectar problemáticas em sala de aula e realizar
encaminhamentos e intervenções.
15
Lisa Nelson nasceu em Nova York. Estudou na Julliard School na década de 60 e
na década seguinte passou a integrar o Workgroup, companhia de Daniel Nagrin.
É coreógrafa, improvisadora e professora. Realiza trabalhos em parceria com
Steve Paxton, criador do contact improvisation, uma técnica de improvisação na
dança que implica a comunicação entre dois ou mais corpos pelo toque e pelo
peso do corpo, considerando a relação com a gravidade.
16
Este grupo será mencionado com mais detalhes ao longo da apresentação e
discussão de cenas vivenciadas durante os seminários.
Aberturas aos procedimentos
69
Particularmente no berçário, enfatizamos o corpo e as relações afetivas entre be-
bês, crianças e os ambientes. A partir dos estudos da obra Os gestos cotidianos, de Ma-
dame Beziéres, os estagiários orientam os educadores, as mães e cuidadores. As
imagens do livro são utilizadas como disparadores para as vivências e reflexões.
A observação e convivência com as crianças e bebês potencializaram nossas pes-
quisas sobre o corpo e suas afetações.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
70
Ambientação
Antes de iniciar a apresentação, os relatos e elaborações construídas nesta tese, pare-
ce-me fundamental delinear alguns alicerces presentes na clínica aqui discutida.
Em primeiro lugar, é preciso considerar a construção de uma ambientação para que
as experiências nos laboratórios, independentemente dos contextos, variações e tona-
lidades possam acontecer. Consideremos, então, algumas de suas dimensões.
A primeira delas está relacionada ao aspecto espaço-temporal que abrange mo-
dalidades extensivas da clínica, uma vez que as vivências exigem espaço para a experi-
mentação dos exercícios e uma temporalidade variável, necessária para a efetuação das
propostas nos corpos.
As convivências entre corpos, mais ou menos intensas, interferem nas proble-
matizações grupais. Isso não quer dizer que um grupo que trabalhe mais tempo, ne-
cessariamente tenha maior elaboração, assimilação ou compreensão do vivido;
apenas aponta variações possíveis que, junto a outros aspectos, interferem nas for-
matações e configurações registradas e vividas pelo participante em cada configura-
ção grupal.
Em relação aos espaços, tratamos da fisicalidade do ambiente, e/ou de uma
atmosfera
17
que vai além das paredes, portas, janelas e permite estabelecer aproxima-
ções com a fisicalidade dos corpos.
18
Uma segunda dimensão dessa questão está relacionada ao tempo para formar o
que quer que seja (um gesto, uma imagem, um pensamento, linguagem), a partir das pro-
postas clínicas.
Os efeitos detectados ou as sensações experimentadas podem nos afetar/provo-
car/tomar forma de imediato ou exigir um tempo de aquecimentos, ebulições, caos e/ou
silêncios antes de virem à tona na formatação dos corpos e de camadas detectáveis.
Para Keleman e Favre, esse aspecto, fundamental para a compreensão dos proces-
sos de “desmanchar e fazer corpo” ao longo de uma vida em particular, exige o que de-
nominam de um tempo formativo.
Numa outra dimensão do problema, podemos falar da construção de um ambien-
te confiável e suficientemente “seguro” para que as experiências possam acontecer. Is-
so depende dos trabalhos realizados nos grupos, ao facilitar contatos, ações e
observações permanentes daquilo que pode emperrar ou paralisar os processos enten-
didos como metaequilíbrio, sempre em risco de sucumbir, derivar e vingar em múltiplas
17
As atmosferas serão abordadas na série Olhar.
18
Em alguns exercícios do Aquecer o encontro entre a fisicalidade dos corpos e
dos ambientes será problematizado.
Aberturas aos procedimentos
71
direções. Os acompanhamentos – próximos, sensíveis e delicados – constituem fatores
essenciais para a produção singular de acontecimentos.
É importante assinalar também os sentidos e lugares do coordenador/terapeuta,
de estudos e experiências em manejo e dinâmicas grupais.
Nessa direção, os estudos, vivências em/de grupos presentes em todas as inter-
venções balizam estratégias e a escolha das propostas.
Cabe ainda ressaltar a necessidade de um olhar articulador, voltado para o singu-
lar e para o coletivo em permanente ação, que garanta um pulso possível para o desdo-
bramento das propostas e invenções.
Dados os primeiros passos, abertas as lentes e focos para os procedimentos, con-
vidamos o leitor a entrar e deixar-se afetar pelo emaranhado de questões que aqui se
apresentam.
73
Série Aquecer:
modulações do aproximar
“Encontrar é achar, é capturar, é roubar,
mas não há método para achar,
nada além de uma longa preparação”.
Deleuze e Parnet
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1
DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998, p. 15.
Série Aquecer: modulações do aproximar
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I
nicialmente me vi tentada a iniciar esta série de procedimentos apenas pelo aquecer.
Habituada a entrar em contato com teorias e técnicas pertencentes a diversos cam-
pos – pedagogia, teatro, dança e psicologia, entre outros –, que utilizam frequente-
mente em suas ações os chamados aquecimentos, constato a importância desse
momento como etapa inicial tanto no campo pedagógico quanto na clínica e nas expe-
riências artísticas.
Os aquecimentos – efetuados através de dinâmicas de grupo, atividades prelimi-
nares, exercícios corporais que antecedem uma produção coreográfica, teatral etc. –
influenciaram significativamente minha clínica e constituem ferramentas importantes que
compõem com outros procedimentos.
No entanto, a partir do momento em que comecei a delinear alguns desses exer-
cícios
2
, percebi que o conceito aquecimento ou aquecernão somente designava essas
dinâmicas inaugurais, mas expressava uma tonalidade que permanecia em todo e qual-
quer procedimento. O caráter iniciático presente em cada proposta remetia à possibili-
dade do sujeito sustentar em si uma abertura ao devir.
3
As aproximações possíveis com
o seu corpo, com outros corpos, com as propostas e com os seus efeitos.
Assim, é na vizinhança entre o aquecer com o aproximar que se expressam, ao
mesmo tempo, a nomeação de procedimentos e de linhas metodológicas desta clínica.
Ao estabelecer a série Aquecer como modulação do aproximar crio um vínculo com um
conceito tratado também nas outras séries: o encontro, que envolve a aproximação com
o próprio corpo e entre corpos.
Ao delinear a estratégia de provocar encontros entre procedimentos, como modos
de pensar e construir uma clínica, foi possível explicitar a multiplicidade de modulações,
sentidos, possibilidades e paradoxos
4
do aquecere ampliar o campo problemático em
que se materializam determinadas propostas.
Considerei, então, tais ações como aquecimentos ou modulações do aproximar,
2
Alguns exercícios de aquecimento serão explicitados ao longo desse capítulo.
A idéia, no entanto, é desconstruir e ampliar tal conceito, processo similar
acontecerá em relação a outros procedimentos.
3
Devir (Devenir) – “Devir é nunca imitar, nem fazer como,nemse conformar a um
modelo, seja de justiça ou de verdade. Não há um termo ao qual se porta, nem
um ao qual se chegue ou a qual se deva chegar (…) Pois a medida que alguém se
transforma muda tanto quanto ele próprio”. in Deleuze G, Parnet, Claire.
Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998, p.10.
4
Trata-se também de romper a dicotomia existente entre teoria e prática através
do conceito de encontro inspirada em Deleuze (com Parnet, 1998) que sugere
neste conceito, processos de delineamentos a-paralelos, com intersecções
possíveis , afastamentos, aberturas ao devir e à invenção.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
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uma vez que envolvem diferentes exercícios de aproximação em relação ao próprio cor-
po, ao grupo, às propostas e, principalmente, a modos de funcionamento pautados pe-
la observação e criação de si, por meio de abordagens corporais que envolvem graus de
conectividades, sensações e invenções produzidas pelos encontros entre corpos.
Adentramos, assim, no terreno das sensibilidades produzidas por processos de
subjetivação que definem modos de olhar, viver e relacionar-se, com a intenção de fazer
vibrar, deslocar, problematizar ou, no mínimo, criar pequenas e potentes possibilida-
des de aproximação com o problemático campo da corporeidade.
Em minha prática profissional, a observação de si pelo e a partir do corpo, ou se-
ja, atentar, produzir experimentações corporais, refletir e fazer escolhas a partir desse fo-
co não é lugar comum. Tampouco podemos dizer que, ao tratar o corpo como digno de
atenção
5
, não estaríamos entrando em um campo problemático, permeado por para-
doxos, questões em aberto e possíveis capturas, uma vez que nos últimos anos o corpo
tem sido abordado como “nova mercadoria” da subjetividade capitalística.
Procurando escapar da armadilha mercadológica do corpo como “o novo lugar da
moda” e na tentativa de procurar romper, criar vivências e exercitar um olhar crítico
sobre essas questões, os aquecimentos ou modos de aproximações, nos impõem urgen-
temente a elaboração sobre suas implicações, propostas, procedimentos e ressonâncias.
Primeiramente podemos dizer que a observação de si não está pautada por
um olhar sobre o corpo restrito a seus órgãos, sistemas e funcionalidades. Por isso, mui-
tos participantes das oficinas, cursos e workshops estranham, desconfiam ou até discor-
dam deste paradigma, que propõe um olhar permeado pelos encontros, norteado por
fluxos de desejos, criações, afetações e produções de outras sensibilidades. Entretanto,
o que torna tal clínica tão complexa e provocativa é que observamos um enorme inves-
timento que constrói e define relações que reafirmam a questão do corpo, presente des-
de sempre e particularmente em pauta no contemporâneo
6
.
É certo que tocamos, assim, em um campo muito delicado. Existe um modismo,
uma infinidade de técnicas e propostas relacionadas ao corpo e um dos desafios está em,
justamente, não se deixar capturar, resistir à tentação de um novo adestramento
7
, ago-
ra efetuado pelas chamadas intervenções clínicas na construção de um corpo hiper cria-
tivo, “super expressivo”, que responda muito rapidamente às velocidades impostas
pelos modos de subjetivação contemporâneos.
Procurando romper com essa tendência, na tentativa de encontrar outros percur-
sos para a elaboração e ação nesse campo, parece-me que a pergunta de Espinosa, “o que
5
Esta idéia será abordada mais à frente.
6
No texto “Corpo e história” de Denise Sant ‘Anna é possível acompanhar
diferentes relações estabelecidas com o corpo ao longo da história. O corpo
sempre esteve presente ora como território intocável, sagrado, imaculado,
ora como amplo lugar de nossa atenção e ação, sofrendo todo o tipo de
investimento.
7
Um dos riscos possíveis é criar uma nova clínica adaptacionista, utilitária e
ortopédica, tal como aponta Eduardo Passos em prefácio do livro: Corpo e arte
em Terapia Ocupacional, de Marcus Vinicius Machado de Almeida. Enelivros : Rio
de Janeiro, 2004.
Série Aquecer: modulações do aproximar
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podeo corpo, em resistência aquilo que o corpo deve” ébastante inspiradora e profun-
da. Esse filósofo vai problematizar justamente a posição de devedores e obedientes
(além de consumidores, eu acrescentaria) presente nos modos de existir construídos
por uma subjetividade que se quer modelizadora, padronizante, instauradora e produ-
tora de hábitos e ofertas. Ao sermos capturados por esse movimento, acabamos por
funcionar num regime de baixa potência, o que enfraquece a vida em suas possibilidades.
Ao refletir sobre aquilo que o corpo pode e tomá-lo como modelo, Espinosa abre
mundos em que o desejo e a potência podem circular, mesmo e principalmente porque
a pergunta não nos permite chegar a uma resposta, mas a terrenos onde é mais possível
respirar. “Um indivíduo é antes de mais nada uma essência singular, isto é, um grau de
potência”, diz Deleuze. Esse grau de potência corresponde a certo poder de ser afetado.
Com as considerações de Orlandi
8
, podemos nos acercar um pouco mais de Espi-
nosa, não para abordar profundamente a obra do filósofo, mas o suficiente para com-
preender suas críticas e discursos sobre o corpo.
No entanto, estudando Espinosa é possível dizer que são os encontros que produ-
zem e delimitam as potências dos corpos. “Quando um corpo ‘encontra’ outro, uma
idéia, tanto os dois se compõem para formar um todo mais potente, quanto um decom-
põe o outro e destrói a coesão das suas partes”.
9
Para o autor, a ordem dos efeitos
está pautada por leis complexas de composição e decomposição entre os corpos que
se encontram.
Particularmente no texto O corpo como digno de atenção, Orlandi nos diz co-
nhecer “a estrutura de um corpo, seu funcionamento, é conhecer suas relações, a com-
posição de sua relação”. Mais adiante, o autor ressalta que, para Espinosa, a potência
de agir é a única expressão da nossa essência, a única afirmação do nosso poder de ser
afetado e sugere que quanto mais um corpo está apto, em relação aos outros, para agir
e para sofrer, mais potente está para estabelecer relações e ir mais longe, considerando
a tarefa propriamente ética.
Aproximar-se do corpo, começar a colocar seus estados como referências
cotidianas para o enfrentamento de situações, pensar e viver a partir de suas conec-
tividades com os ambientes, exige então uma instauração do corpo como modo de
aprendizagem
10
, ação e “monitoramento de si”, abrindo espaço paraproblemati-
zações e ações.
Considerando esse quadro teórico como pano de fundo, retornemos então aos
exercícios de aquecimento e aproximações.
8
Este foi discutido nos seminários sobre procedimentos expressivos
ministrados por Benêdito Lacerda Orlandi no Núcleo de Subjetividades do
Programa de Psicologia Clínica da PUC-SP, segundo semestre de 2005
9
DELUZE, Gilles. Sobre a diferença da ética em relação à moral. In: Espinosa uma
filosofia prática. São Paulo : Editora Escuta, 2002, p. 25.
10
Aprender no sentido de ampliar repertórios possíveis de respostas e ações no
enfrentamento das mais diversas situações da vida.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
78
Não existe uma fórmula para a “preparação”, mas alguns fins norteiam essa
etapa do trabalho contemplada em todo exercício a ser realizado, pois a cada nova pro-
posta o devir opera. Parte-se assim da idéia de que, para a realização ou vivência de
qualquer tarefa, o corpo entra num estado de concentração, de prontidão para viver
suas potências, o que o torna suficientemente aberto e poroso para que a experi-
mentação aconteça.
11
Os aquecimentos e os exercícios de aproximar são vários e podem ser realizados
pelo grupo ou individualmente. Tudo depende daquilo que se vai propor. Também os
jeitos e tipos de aquecimentos/aproximações e como cada um vai processar esses mo-
mentos são singulares.
Em suma, podemos dizer que a série aquecerse compõe de diferentes propostas
e dinâmicas que aproximam o sujeito do que se pode chamar de um “conhecimento fo-
cado no corpo”. Tomando o corpo como centro das vivências, os aquecimentos permitem
múltiplas aproximações com:
• o próprio corpo.
• outros corpos, a partir de diferentes oportunidades de encontros.
• as intensidades produzidas em diferentes graus, permitindo a produção de singulari-
dades em meio a um território coletivo, pois as propostas acontecem prioritariamente em
grupos.
• uma leitura, não apenas verbal, dos acontecimentos vivenciados individualmente e/ou
em grupo.
• as ressonâncias e implicações de uma clínica pautada pelos encontros.
• a vivência permeada pelo conceito de corpo amplo, alargado e complexo tal como dis-
cutem Keleman, Regina Favre, Liberman, entre outros.
Aquecer na clínica tem, então, o sentido de preparar para as experimentações;
ao mesmo tempo, os exercícios são acontecimentos permeados por diferentes modos
e qualidades de aproximações.
Algumas dinâmicas funcionam como inaugurações dos territórios da corpo-
reidade, dos efeitos produzidos e criados por este tipo de clínica, mas também encer-
ram em si uma abertura para o conhecimento – frequentemente provocativo e
perturbador – que procura adentrar em territórios pouco familiares ou habituais.
Isto não quer dizer que esse tipo de vivência ou conhecimento sejam inacessíveis,
possíveis apenas para poucos privilegiados. Ao contrário, está inscrito no cotidiano, nas
11
Aqui podemos dizer que a experiência está relacionada ao conceito
de acontecimento, (Deleuze, 2002), que envolve o corpo como um campo
de intensidades, aberto ao devir.
Série Aquecer: modulações do aproximar
79
possibilidades reais de cada sujeito, conhecimento encarnado do vivo, atravessado
por suas capacidades inatas, genéticas, condições de vida, histórias, ambientes atra-
vessados pela cultura, pelos modos de subjetivação, por questões sociais, econômi-
cas, políticas e toda a ordem de experiências vinculares que constroem corpos ao longo
de uma vida (Keleman, 1992).
A seguir trataremos de algumas cenas referentes às dinâmicas de aquecimen-
tos, a momentos iniciais do trabalho com mulheres de Sorocaba (Bairro dos Morros) e ou-
tros exercícios que expressam diferentes modulações no aproximar.
Thaisa se aquece para depois entrar na “brincadeira”. Num primeiro momento apenas
olha o grupo. Seu olhar, que vagueia pelos corpos, permite um certo tipo de aproximação; vai
se acalmando para estar ali e depois entrar na proposta. Thaisa diz não ter muita experiência
de trabalhar o seu corpo da maneira proposta: mover-se pelo espaço do jeito que o corpo tem
vontade.
Carla veio ao grupo com um olhar bastante desconfiado, nos primeiros encontros. No
início fica parada num canto da sala averiguando os acontecimentos. Fala pouco, não gosta
muito de conversar.
Dona Lourdes permanece sentada de braços cruzados, vez ou outra esboça um sorriso
ao ver as colegas dançarem. Quando lhe pergunto se não gostaria de entrar no jogo (estávamos
brincando de fazer um movimento “ridículo”), ela diz que prefere ficar sentada olhando, que
sente muita dor nas costas. É permitido sim, que a pessoa esteja ali na forma possível; é
preciso respeitar o tempo de cada um para experimentar algumas propostas que envolvem
o corpo, de modo diferente daquele a que estão “acostumadas” a fazer.
Em vez de ler as atitudes dessas três mulheres como indicação de ausência/
distância ou não “participação”, vejo os processos vividos que se efetuam nos corpos
de modo particular.
A forma, ou o que podemos acessar através do olhar, é efetuação da reação de
cada um em relação à proposta: ficar longe do grupo, adotar determinada postura, silen-
ciar, falar muito, ficar à espreita, mover os olhos, desviar o olhar são expressões que o cor-
po oferece, sempre mutáveis e provisórias.
Assim, observar a permanência de Thaisa ao longe, como alguém distante e ausen-
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
80
te do grupo, pouco diz sobre a experiência vivida, pois define previamente um lugar de
não presença, porque diferente das expectativas e modelos para determinada situação
e/ou contexto.
A atitude de Carla, que para num canto da sala observando o encadeamento das
propostas, ou a de Dona Lourdes, que permanece sentada quando todas já estão em
pé dançando, exigem olhar e sensibilidade que ultrapassem o visível e compreen-
dam as formas atualizadas nos corpos como “bordas dos acontecimentos”. Tendo
como referência a perspectiva kelemaniana e um olhar mais atento e ampliado para
o corpo e suas relações, o que se vê são camadas do vivido que não podem ser esgo-
tadas por meio de interpretações simplistas ou restritas a um único foco ou dimen-
são.
12
O que se sabe, por meio da leitura de Keleman e seu projeto do corpo, é que nos
aproximamos de um corpo/sujeito que frente ao novo age e reage de modo particu-
lar, o que não pode ser traduzido como não presentificação. Esses diferentes modos
de aproximação são transformados em objeto de reflexão no diálogo com as partici-
pantes dos eventos.
Como meu corpo reage, responde a uma nova afetação?
As entradas nas dinâmicas são as mais variadas e no corpo é possível ler alguns
traços e trajetos.
Ao mesmo tempo, percebo que muitas sensações permeiam e atravessam aque-
les corpos e trabalham na invisibilidade, nos bastidores, funcionando muito além de
possíveis interpretações ou certezas. O que é possível enxergar é apenas uma dimensão
dos fluxos que ali se engendram, expressos nas formas e nas moldagens provocadas
pelos encontros.
Assim, podemos dizer com Deleuze e Parnet (1998)
13
que há devires que operam
em silêncio, que são quase imperceptíveis e afirmam a invisibilidade imanente aos pro-
cessos de criação no encontro entre os corpos.
Atenta a esta questão, constato depois que as três mulheres criaram trajetórias
de aproximação bastante singulares em relação ao corpo, às propostas, ao grupo e em
relação a mim.
Tomemos, então, algumas dessas formatações que se engendraram para mar-
gearmos alguns de seus efeitos:
12
No caso aqui descrito, avaliamos e julgamos se um participante está ou não
participando da proposta/atividade. Em T.O. é comum considerarmos
a participação do sujeito, apenas quando ele está realizando fisicamente
a dinâmica sugerida ou alguma atividade que pode ser vista, tocada e avaliada.
O nosso trabalho é procurar desorganizar esse modo de olhar para o outro
apenas na dimensão daquilo que pode ser acessado por nossos órgãos dos
sentidos, procurando incluir em nossa sensibilidade o campo das intensidades
e afetações presentes em todo o acontecer.
13
DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998, p. 10.
Série Aquecer: modulações do aproximar
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Um corpo que se fecha pela frente com os braços, olhos que se movem ansiosamen-
te pelo espaço, palavras que falam dos acontecimentos, sensações difusas no ar, atenções
que flutuam em diferentes direções e intensidades.
Os olhos se movimentam pela sala, de repente se voltam e se fixam na ação grupal.
Só então Thaisa entra na proposta com seu jeito muito singular de mover-se pelo espaço e
encontrar-se com as outras mulheres.
A aproximação de Thaisa acontece, no primeiro momento, através de seu olhar;
algum tempo depois seu corpo todo entra em ação. Mas de algum modo, desde o iní-
cio da experimentação ela está presente: ondas de excitação circulam pelo ambien-
te. Ao final do encontro, Thaisa diz que, num primeiro momento, achou muito
engraçado o que viu; sua primeira reação foi uma enorme vontade de rir. Só depois,
apesar de sentir muita vergonha, tomou coragem para participar.
Carla permaneceu no grupo mais alguns dias e depois não apareceu mais.
Dona Lourdes foi entrando e participando devagar de cada proposta, mesmo nos dias
que mencionava dores nas costas. Encontrava um jeito de se fazer presente e lidar com sua li-
mitação. A cada encontro seu corpo ocupava mais a sala, revela seus gestos, seus jeitos, seus
comentários e as aproximações com as outras participantes.
As aproximações com o trabalho corporal são assim as mais variadas. Cada
participante com suas histórias pessoais, com seus corpos construídos ao longo de
uma vida, responde às propostas de maneira singular, se desdobra e ressoa em graus
de afetação, intensidades os mais variados, como se pode observar numa outra cena:
Peço para que as pessoas escolham um lugar na sala e se coloquem da forma mais
conveniente: sentadas, deitadas ou em pé. A partir destas escolhas os participantes, tal
como propõe Naiza de França
14
, procuram realizar o que o corpo solicita. “Pede para dobrar
e/ou esticar as pernas? Mexer a cabeça? Adotar determinada postura? Torcer? Virar? De que
jeitos o corpo quer ficar? Iniciem uma conversa com o próprio corpo.”
Sugiro que as pessoas fechem os olhos, assinalo que isso pode proporcionar
maior introspecção, ao retirar momentaneamente a atenção do ambiente externo,
14
A metodologia e concepção de Naiza de França é abordada no livro Danças em
Terapia Ocupacional, Summus Editora, 1995, resultado de minha tese de
mestrado defendida no Programa de Psicologia Social, PUC-SP.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
82
na tentativa de criar para si um território de experimentação, pesquisa e criação.
Em vários grupos algumas pessoas assinalam que mesmo quando é sugerido
entrar em contato com o corpo, com os olhos fechados, os pensamentos e imagens
tomam a mente, o que dificulta atenção maior àquilo que o corpo “pede”.
Juliana menciona que não consegue se concentrar, seu pensamento voa, está muito
ocupada com os problemas que está vivendo.
Elizabeth diz que conseguiu saber o que seu corpo pedia, ficou muito concentrada em
suas manifestações.
Fabiana diz que nunca pára a fim de prestar atenção ao próprio corpo, está sempre cor-
rendo, não tem tempo para nada.
Elisangela fala da satisfação que sentiu ao poder parar, prestar atenção ao seu corpo e
observa sua necessidade de ficar sozinha por algum tempo.
15
Algumas participantes consideram que as imagens e idéias que atravessam a
mente devem ser “expurgadas”, como se não fizessem parte da produção corporal;
outras ficam incomodadas com a proposta de parar, pausar e silenciosamente iniciar
uma conversa com o próprio corpo. Outras ainda se incomodam com o silêncio que
acompanha estas experimentações.
Como mencionado anteriormente, Keleman considera o corpo como multimídia,
em que processos acontecem simultaneamente
16
, ou seja, o corpo vive excitações, que
produzem gestos, tipos de encontros, linguagem, imagens, sonhos, pensamentos
contemporâneos ao vivido, num processo permanente de vir a ser ou devir.
Tomando ainda como inspiração o conceito de maquínica da existência em
Guattari, podemos pensar o corpo como uma usina das mais variadas produções que,
de acordo com a proposta e o grau de afetação, procura assimilar a experiência e sus-
tentar as excitações produzidas pelos encontros.
Essas excitações, de acordo com os graus, intensidades, vínculos, afetos, his-
tórias, modos de subjetivação e toda uma rede de conexões, constroem corpos e rela-
ções diversas e variáveis.
Na proposição aqui analisada é possível observar que cada sujeito produz uma ex-
15
Falas retiradas de depoimentos de participantes do Grupo de Estudos do
corpo, abordagens corporais e dança na prática profissional, no qual são
realizadas vivências e reflexões a partir dos acontecimentos. A título de exemplo,
foram selecionadas falas que expressam singularidades nas experimentações.
São verificadas inúmeras variações nas respostas e trajetos vivenciados pelos
sujeitos e grupos.
16
Tal como visto no capítulo O corpo como pulso, rompemos à dicotomia
mente-corpo ou qualquer tipo de hierarquização frente aos diferentes modos
de funcionamento corporal.
Série Aquecer: modulações do aproximar
83
periência a partir de uma mesma consigna e que os comentários expressam a sutileza de
respostas, sensações e problemas para a aproximação com o próprio corpo e com o
ambiente.
Esse trabalho, apesar de parecer bastante simples, é difícil para muitos participan-
tes. É uma novidade atentar ao corpo na observação daquilo que se deseja fazer no aqui
agora, no pequeno, no cotidiano. Quando menos percebemos, entramos num estado au-
tomático, na repetição, no sem sentido, no reflexo. Muitos estranham a proposta.
“Por que pensar nisto?” (Joana)
“Está bom assim”. (Clara)
“Sempre fui assim.”(Marília)
“Sempre fiz deste jeito e funcionou”.(Eliane)
Keleman, em Anatomia emocional, privilegia os estudos do corpo para abordar
modos de comportamento, relações pautadas pelas experiências que moldam os corpos.
Para ele, a preocupação principal para o indivíduo seria como usar a si mesmo para
funcionar.
17
Para Favre, a essência do vivo desde a célula seria a sua capacidade de conectar,
ou seja, o que se busca na clínica é aumentar a capacidade de conectar com os ambien-
tes, sustentar e assimilar as experiências de tal modo que o pulso possa se realizar na
contramão do stress, sintomas de depressão, despotencialização e tantos outros
presentes no contemporâneo.
Podemos ainda identificar outros efeitos produzidos por estes acontecimentos:
Alguns olhos não se fecham, permanecem abertos, às vezes arregalados, controlam o
que os outros estão fazendo.
Como Débora, Manuela fala da vergonha e do medo de ser observada quando está em
contato com o seu corpo.
Luciana diz que sente muita vergonha quando presta atenção ao seu corpo. Sente como
se tivesse um grande olhar julgador sobre ela, dificultando sua concentração.
17
Compreender funcionar como vincular, presentificar-se nas experiências,
ampliar o repertório de respostas as diferentes situações.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
84
A cada exercício proposto nos grupos, os corpos sofrem e provocam afetações, res-
pondem e produzem realidades. Ao longo dos processos, observo que as vivências se pre-
sentificam, criam consistência. Como nos diz Favre, quanto mais próximo de si, mais
conectado com o ambiente.”
Observo também que a cada trabalho realizado os participantes se aproximam
de seus modos de funcionamento, seus jeitos de fazer, de seus estados
18
, tornando-
se ora mais ora menos permeáveis às experimentações, de acordo com suas disponi-
bilidades, acolhimento grupal, graus de assimilação do vivido e de confiabilidade
construídos pelos desdobramentos produzidos a cada nova experimentação.
No entanto, o tipo de coordenação realizada nos laboratórios – não somente
nos momentos iniciáticos, mas ao longo de todo o processo – exige prudência, deli-
cadeza e um olhar sensível ao pequeno acontecimento, pois os afetos, as intensida-
des nos corpos se efetuam de modos sutis, em breves e pequenas performances .
Para transitar ou minimamente tocar em camadas mais profundas nas experimen-
tações é preciso considerar a análise de cada procedimento e como eles se efetuam
nos corpos a partir de diferentes focos e dimensões: extensivas (visualizáveis ou aqui-
lo que os órgãos do sentido conseguem apreender), em composição com fluxos inten-
sivos que falam do corpo/acontecimento como campo de forças/fluxos, excitações e
intensidades. Ou seja, aquilo que me afeta e que produz em mim sensações, percepções,
ações e agenciamentos.
O fundamental quando se toca os corpos é fazê-lo gradativamente, sem pres-
sa, procurando lentificare elaborar as vivências, instaurar pouco a pouco em cada su-
jeito uma atitude de pesquisador, de curiosidade. Aquecer devagar, lentificar os
gestos e os trajetos para sentir, elaborar, experimentar na própria pele, acompanhar
e viver o corpo em ação, o que hoje particularmente se mostra, tal como expresso em
algumas falas, uma difícil tarefa, uma vez que a pressa e a competitividade bloqueiam
processos, agridem excessivamente os corpos, distanciam os sujeitos.
18
No trabalho acessamos e entramos em contato com muitos desses estados,
modos, reações e afetações quando no encontro com outrem. Os laboratórios e
vivências são lugares privilegiados para experimentar e tocar nessas questões.
Série Aquecer: modulações do aproximar
85
Outras modulações de aquecimentos
Nesta série privilegio a pesquisa do corpo a partir dos músculos, pele e articulações.
Trata-se de propostas baseadas em vários referenciais: uma vivência em um workshop
coordenado por Lisa Nelson, que inspirou muitos outros exercícios propostos nos labo-
ratórios, além de experiências com diferentes abordagens no campo da dança: exercícios
corporais, improvisação, danças contemporâneas, circulares e outras técnicas que per-
mitiram assimilar e construir conhecimentos em relação ao meu corpo em suas potencia-
lidades e limitações
19
Encontro-me deitada no chão. O piso de madeira é quente, pois o calor do sol passa por
aquele canto da sala.
20
A proposta é, de olhos fechados, explorar os movimentos do tronco, as possibilidades
da coluna vertebral. Meu corpo é aquecido pelo sol e a partir de pequenos e lentos mo-
vimentos. As sensações do corpo se deslocando no espaço: músculos, articulações,
19
No livro Danças em Terapia Ocupacional, editado pela Summus Editora, 1995,
resultado de minha tese de mestrado, há um capítulo que trata de minha história
com a dança e outras influências importantes para a construção de minha clínica
atual. Deve-se, considerar ainda que desde a escritura daquele trabalho, venho
me aproximando de muitos estudos teóricos e práticos que têm ampliado
permanentemente meu olhar e a clínica do corpo.
20
Este foi um aquecimento proposto pela bailarina Lisa Nelson em workshop
realizado no Brasil em 2000.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
86
21
Trato aqui de corpos humanos ou não. No caso, o chão é corpo, além do ar,
o calor, a luminosidade que atravessa a sala e meu corpo.
22
Aqui poderíamos dizer que presentificar-se tem a ver com presença somática.
22
Essa discussão é realizada de forma mais profunda na série Tocar.
relações entre as várias partes vão me abrindo o apetite da curiosidade sobre meu
corpo. Lisa Nelson chama a atenção para a fisicalidade do ambiente e da pele como um
limite do corpo físico. O raspar, rastrear a pele pelo chão, sentir os ossos no contato com
a maior firmeza deste outro ambiente, me permitem criar diferentes formas com o meu
corpo e entrar em contato com diferentes sensações.
No interjogo entre o ambiente/corpo e o ambiente/espaço, se estabelece a expe-
rimentação. O momento é de introspecção intensa e a ausência do sentido da visão me
transporta para regiões em que prevalece uma sensorialidade tátil que não se restringe
ao toque de superfícies de qualidades diversas (chão/pele/ossos/calor), mas envolve
contatos que se efetuam em meu corpo produzindo diferentes sensações.
Nesse caso, o deslocamento da atenção para as fronteiras da fisicalidade, tal
como nomeia Lisa Nelson, atravessa várias camadas: algumas superficiais, quando um
corpo toca outro
21
e outras mais profundas, pois a excitação produzida nessa expe-
rimentação me torna mais presente
22
em meu próprio corpo.
Várias propostas que tocam as fronteiras dos corpos são realizadas, nos labora-
tórios, por meio dos exercícios de aquecimento. São consignas que parecem num primei-
ro momento bastante simples, tais como sentir o corpo na cadeira, sentir a água tocando
o corpo na hora do banho, sentir os toques na relação com as pessoas: abraços, tocar as
mãos com as próprias mãos, tocar outras mãos.
23
A pele e os ossos permitem em muitas vivências entrar em contato com uma di-
mensão da materialidade corporal, que pode acontecer de forma intensa, composta pe-
lo que podemos chamar de uma “concretude” imposta pelo corpo, mas atravessada por
fluxos de intensidade que permanentemente produzem corpos.
É possível em alguns contextos/experiências sentir e contaminar-se por uma
vibração dos corpos quando pés batem no chão em algumas danças circulares ou em
propostas de improvisação, quando um grupo consegue se conectar e entrar numa sin-
tonia mais fina. Ou ainda nos exercícios em que, de olhos fechados, num duo, ao tocar
o outro com as mãos, produz-se uma excitabilidade que faz circular mínimos e quase
silenciosos aconteceres.
É possível perceber, então, que tanto nos exercícios propostos por Lisa Nelson,
quanto em vários outros que aciono em minha clínica deslizam pelas camadas que
Keleman define como ectoderma (pele) e mesoderma (músculos), territórios nos quais
podemos provocar sensações importantes, pois são camadas possíveis de acessar
Série Aquecer: modulações do aproximar
87
pela infinidade de nervos presentes e pelas ressonâncias que produzem.
Assim, as camadas de pele, músculos, nervos são particularmente importantes na
produção de sensações e possibilidades de experimentações.
24
Depois de tocar o corpo com as mãos, paro em alguma parte e ofereço resistência para
produzir uma sensação muscular. Presença de corpo, que vivifica meu imaginário. Tenho
a sensação de dor em alguns lugares, de prazer em outros; noutros o que chamaria de
presença de corpo. Depois desse momento mais solitário, Lisa Nelson propõe uma pes-
quisa em duplas quando a resistência entre as partes será feita por outra pessoa.
Nessa dinâmica observo que é difícil perceber quem inicia o toque e quem colo-
ca resistência. É um encontro que produz as mais diversas sensações, por meio dos flu-
xos de forças, tensões entre as diferentes materialidades da pele, toques fortes, leves,
mais rápidos ou que chegam mais lentamente e estabilizam o corpo do outro em varia-
das temporalidades.
O corpo do outro me ajuda a sentir o meu e vice-versa.
Por fim, a proposta é sair da posição deitada para a posição ereta de modo bastante len-
to, entrando em contato com as sensações produzidas pelos músculos, articulações,
ossos e movimentos no espaço, refazendo todo o trajeto novamente, agora da posição
ereta até a posição deitada.
Depois da série de vivências realizadas nesse workshop, tive a sensação de um cor-
po mais vivificado pelos contatos e mais conectado com os ambientes.
Essa constatação, recorrente após muitos trabalhos que realizo em vários grupos
e workshops, sugere aproximações do sujeito com seu próprio corpo, seja por meio de
propostas mais individuais ou dinâmicas grupais.
Veremos agora, por meio da observação de outras cenas clínicas, como esses
trabalhos reverberam, provocam e se efetuam em diferentes contextos.
Antes do início dos exercícios, muitos participantes dizem não “sentir o corpo presen-
te no aqui, agora” e falam frases do tipo:
“Sinto-me bastante distante do meu corpo” ou “Nunca presto atenção ao meu corpo” ou
ainda “acordo correndo, pulo da cama e logo vou trabalhar, nem penso nisso”.
24
Veremos nas diferentes séries de procedimentos como são privilegiadas as
dinâmicas que envolvem estas camadas referidas por Keleman acerca de um
possível “projeto do corpo”. Será dada singular atenção aos procedimentos
que envolvem o tocareoolhar.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
88
Depois de um tempo de vivências, variáveis em tempo/propostas e graus de
aprofundamentos, muitos participantes falam, dos mais diversos modos, das mudan-
ças de sensações ao longo dos processos.
Alguns falam de como as vivências têm ressoado em espaços fora dos laboratórios:
“Presto mais atenção em mim.”(Arlene)
“Sinto-me mais conectada, mais viva, mais animada.” (Bete)
“Sinto uma vibração em meu corpo.” (Cecília)
“Sinto-me mais acordada. Parece que algo aconteceu em mim.” (Monica)
Tais comentários tratam de mudanças e deslocamentos da sensibilidade – pro-
vocados pelas experiências corporais –, dão ensejo a processos de singularização ou
mudanças nos modos de subjetivação.
“Sinto-me presente e assim aproveito tudo que está se passando”.(Cecília)
“Depois das vivências, consigo enxergar mais as pessoas. Às vezes sinto que
não sei onde estou”.(Arlene)
“Não consegui me envolver, acho que minha cabeça estava em outro lugar”.
(Viviane)
“Estava com muitos problemas lá fora e não consegui me envolver”.(Ana)
Acho que percebo mais as coisas, consigo observar mais o que está a minha
volta”. (Monica)
“Às vezes tinha medo de entrar em contato comigo mesma”.(Amarilda)
É possível observar, então, que as modulações de aproximação em relação às
propostas, ao corpo, a si e ao outro, mais uma vez, falam sobre diferentes graus de afe-
Série Aquecer: modulações do aproximar
89
tação e de intensidade no acolhimento, interesse e vivência das propostas.
Os processos nem sempre fluem harmonicamente. De fato, constato a complexi-
dade e o campo de forças num trabalho que sugere um acompanhamento de si em tor-
no das subjetividades. Afinal, inexistem processos sem paradoxos e dificuldades em
inúmeros caminhos e atalhos.
Assim, essas propostas funcionam sempre de modo provocativo, pois colocam os
corpos num estado de tal vizinhança com os outros e com o espaço que, de algum modo,
produzem problematizações acerca dos afetos, dos contatos, dos modos de estar
com o outro, de sentir a sua presença, tocar e ser tocado, vincular-se ao outro (huma-
no ou não).
O corpo às vezes se fecha no contato; às vezes, pouco a pouco, permite ser toca-
do pelo outro. Ora os contatos com os ambientes são agradáveis e assimiláveis; ora uma
multiplicidade de sensações atravessa a experiência tornando difícil a assimilação ou a
elaboração através das linguagens. A tentativa, então, é de sustentar e dar contorno
permanentemente a essas aproximações não somente nos momentos inaugurais do
trabalho, mas ao longo de todo o processamento.
25
Esses procedimentos têm como objetivo oferecer oportunidades para o sujeito en-
trar em contato com seu corpo, atentar, se concentrar, aproximar-se de si a partir de uma
escuta do corpo.
É preciso considerar que em cada exercício individual o sujeito estaria de fato
solitário; o foco no grupo funciona como criação da rede de sustentação e suporte para
uma série de experimentações que ressoam na singularidade de cada corpo, mas
principalmente na dimensão coletiva.
No aquecer entre corpos, que acontece em vários momentos da clínica, pode-
mos ressaltar dinâmicas que funcionam como apresentações e criações de si e do outro,
de improvisações, gestos, movimentações pelo espaço, encontro de olhares e produção
de narrativas corporais.
25
Veremos em outras séries os modos de acolher, trabalhar e acompanhar os
processos, dando formatação sustentada às experiências e produzindo
artefatos que permitem a elaboração e expressões possíveis nesses processos
que envolvem o real e o devir permanentemente.
90
Série Aquecer: modulações do aproximar
91
Apresentações de si:
ou narrativas corporais
Em um dos grupos de estudo que coordeno, convido uma colega para dirigir uma vivên-
cia. Lucia
26
é bailarina, não conhece o grupo e se arrisca numa proposta inicial bastan-
te desafiadora. O grupo é pequeno. Naquele dia estávamos em seis participantes. O
grupo já vinha trabalhando há algum tempo; havíamos realizado algumas dinâmicas
de aproximação.
27
Lucia propõe uma apresentação. Em círculo, pede para que cada um se apresente atra-
vés de gestos. Não delimita um modo específico para a realização da proposta, pede apenas
para que as apresentações sejam individuais e sem o uso da palavra. Ela começa coreogra-
fando suavemente aspectos de sua pessoa. Deixa o gesto acontecer, improvisa dançando por
um tempo. A palavra não é dita. Apenas o corpo expressa. Ela volta ao seu lugar e uma a uma
as pessoas se dirigem ao centro.
Mariana, que já possui um conhecimento anterior em dança contemporânea e usa seu
corpo de modo bastante expressivo, inicia a sua composição numa postura de fechamento
sobre si mesma, com o olhar voltado para dentro; começa a realizar pequenas torções em seu
corpo. As torções se intensificam pouco a pouco e seus olhos azuis começam a vaguear por
todos os outros olhos que a observam atentamente.
Mariana realiza gestos que tocam o grupo. Em outras ocasiões, nos conta sobre
a sua convivência profissional diária com pacientes psicóticos. A partir da observação do
corpo de Mariana é possível entrar também em contato com outros corpos – das pacien-
tes que de certa forma se presentificam em Mariana, corpos que ora se fecham, ora se
abrem para o mundo –, mas principalmente ser contaminado por sua expressividade.
A cada entrada de uma nova pessoa coreografando a “sua apresentação”, as ou-
tras são afetadas pelo que assistem, aquecendo em si a possibilidade de um fazer artís-
tico, de construir um corpo-criação.
Para Keleman, como já apontado, o vivo vai em direção ao mundo e retorna. A
vida é um pulsar com movimentos de expansão e retraimento.
A coreografia de Mariana e a de todas as outras que se seguiram revelavam essa
condição do vivo, expressavam também a singularidade com que um corpo se molda
26
Lucia Navarro é psicanalista e bailarina, tem atuado nos últimos anos como
professora colaboradora no grupo de estudos Corpo, abordagens corporais e
Terapia Ocupacional.
27
Este grupo de estudos sobre corpo e abordagens corporais e dança na prática
profissional é um grupo aberto a vivenciar propostas corporais, diferente de uma
situação acadêmica, em que cabe ao aluno salientar que o grupo aqui referido
tem em sua maioria um conhecimento prévio em diferentes técnicas e
abordagens corporais.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
92
para contar um pouco de si. Nessa dinâmica foi perceptível a dificuldade que é entrar num
terreno distante da imitação do gesto do outro, o que exige do sujeito abertura sufi-
ciente para embarcar na proposta e deixar-se tomar pelo gesto.
Essa primeira dinâmica de apresentações se desdobrou em várias outras e ensaiou
em nós (nesse grupo em particular) estados de prontidão e abertura para outras compo-
sições que foram criadas a seguir, em duplas, trios, pelo grupo todo. Ou seja, a dinâmi-
ca irrompeu (em composição com todas as outras “preparações”) em uma série de
outras possibilidades.
Isso evidencia como um corpo pode inspirar outro, como uma proposta pode
afetar um grupo e como as pessoas ficam excitadas frente a um desconhecido, pois sem
orientação prévia sobre o que será coreografado
28
e sem demarcação daquilo que se vai
dançar”, é possível se surpreender numa abertura ao devir.
Nesse contexto alguns elementos ainda merecem destaque:
• Os trabalhos são únicos. Ainda que se realize a mesma proposta, os corpos respondem
de forma singular.
• Nem todos os aquecimentos sugerem dinâmicas complexas e desafiadoras. Às vezes
a criação do gesto fica restrita a uma pequena parte do corpo, um simples e quase imper-
ceptível movimento. Para muitos, essa proposição já é muito intensa.
• As afetações são variantes. Uma composição pode produzir uma sensação muito inten-
sa em um participante como também irão provocar nada ou quase nada.
• Na dinâmica aqui apresentada não se priorizou a palavra. No entanto, sempre é possí-
vel compor com a linguagem verbal, uma vez que a palavra também pode engendrar-se
com e no acontecimento, pois também é secreção do corpo, conforme discutiremos na
série Conversar e silenciar.
A seguir uma cena revela outro contorno possível do aquecer:
Com um grupo de alunos que iniciaria a disciplina de atividades corporais, nossa opção
foi trabalhar no campo verbal com dinâmicas que pudessem despertar para as temáticas do cor-
po. Narrar cenas de suas histórias com o corpo ou com as atividades corporais, conversar sobre
narrativas que envolvem o corpo ou ainda utilizando fotografias sobre histórias do corpo.
29
São exercícios que exigem atenção ao outro, que não se restringem apenas a
escutar as palavras, mas implicam ser afetado por aquilo que se escuta, pelas sensa-
28
Não existia uma orientação precisa e única para a apresentação de
participante, apenas a possibilidade do uso do corpo, da produção de gestos
nas transformações corporais.
29
Na série Fotografarestes procedimentos serão abordados mais
profundamente.
Série Aquecer: modulações do aproximar
93
ções e afetos que circulam.
Esta série já configurava um dueto que pode funcionar como um aquecimento na
abordagem das primeiras resistências
30
aos encontros que permitem maior intimidade,
mesmo quando se considera que o ato de conversar com o outro pode ser bastante ín-
timo e muito perturbador.
Nesse ponto é necessário ressaltar que existem múltiplas formas e procedi-
mentos que envolvem aproximações. Ao evocar (ou não) marcas de acontecimentos
intensos ou produzir aproximações entre corpos, tocamos sempre em alteridades e
diferenciações que se efetuam permanentemente.
Muitos participantes mencionam que sentem vergonha e dificuldade ao se
expor para outras pessoas a partir de temas e vivências ligadas ao corpo, como se tu-
do que fazemos ou vivemos não tratasse de corporeidades. Observo, também, em vá-
rios depoimentos que, ao acessar esse território, imediatamente é acionada uma
memória acompanhada de forte intensidade emocional, expressa em choro, dificul-
dades em articular um discurso organizado sobre as histórias que emergem, sensa-
ções que não encontram linguagem, excitações, alegrias, angústias e ansiedades,
entre outras manifestações.
Em outros momentos são expressas enormes barreiras: os participantes se
esquecem, por exemplo, de levar fotografias
31
; levam um material fotográfico que apa-
renta não ter muita importância ou simplesmente não conseguem participar das ex-
perimentações.
Os processos são únicos e muito variáveis, mas pouco a pouco a maioria dos par-
ticipantes, de alguma forma, se presentifica nos encontros de acordo com a sua capaci-
dade de assimilar e vivenciar as propostas.
Vejamos alguns comentários flagrados em momentos iniciais de oficinas e
workshops:
“Eu não gosto de falar de mim.”(Marli)
“Minha primeira lembrança quando penso no corpo é no banho que minha
mãe me deu quando eu era bebê.”(Cintia)
A cena que me vem é a minha mãe cuidando dos machucados que ela mesma
me fazia ao me bater.” (Vera)
30
A palavra resistência é aqui utilizada como um movimento do sujeito ao viver
algo diverso do estabelecido ou previamente dado. Compreendemos que muitas
propostas não agradam aos participantes. Há uma abertura para que o sujeito
não participe independente dos motivos que o levaram a tomar a decisão.
Muitas vezes, no entanto, observo um desejo em fazer parte, mas uma
dificuldade em “dar um passo” nesta direção. Quando possível, facilitamos esta
entrada.
31
Estamos interessados em criar a partir daquilo que nos afeta e pede
passagem, diferente de fazer uma narração de uma história de vida. É nessa
direção que os procedimentos do fotografar se inscrevem na clínica. Esta
discussão será mais aprofundada na série Fotografar.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
94
O tema configura, mais do que revela, algo que já está lá e não vemos; na maioria
das vezes, é um disparador intenso para a atualização ou acesso a realidades somáticas.
O corpo, com suas marcas, ao ser acionado através da palavra, das dinâmicas, do acolher,
de um breve sussurrar sobre a questão, abre inúmeras possibilidades de escuta às
“roupagens corporais” em suas refinadas nuances e em possíveis trocas que deslo-
cam ordenamentos há muito estabelecidos. Num contínuo e permanente desmanchar e
reconfigurar dos corpos, tal como diz Keleman.
A clínica procura, então, reinstaurar o continuumdesses processos que ora são
desprezados, ora banalizados, ora simplesmente anestesiados pelas experiências
vividas.
Tratando ainda das dificuldades e dos processos de aquecerpara esta clínica fo-
cada no corpo, foi realizada uma dinâmica com alunos do curso de Terapia Ocupacional
para tentar romper minimamente a impossibilidade de tocar em algumas questões, uti-
lizando procedimentos que, entre vários aspectos, acessam um fluxobrincalhão para que
a aproximação e a experiência possam acontecer:
Brincamos de passar por uma porta. A porta abre mundos às vezes desconhecidos.
A idéia era imaginá-la
32
e tentar passar por ela, acessando no corpo diferentes
sensações. Encarna-se um medo, um passo lento na passagem, um susto: fica-se à espreita
por um tempo, para depois passar.
A imaginação funciona para facilitar a brincadeira. Algumas pessoas entram na
proposta. Concentram-se minimamente em si mesmas para saber o que vai acontecer em
seus corpos.
O corpo se fecha numa posição muito curvada e Elaine passa pela porta: toda contraí-
da, reduzindo o seu corpo ao menor volume possível.
Renata puxa pelas mãos outras colegas que estão no círculo. Literalmente as empurra
para que passem pela porta.
Alguns resistem, dizem não; não se levantam de seus lugares, outras passam juntas e
as portas se alargam; vários passam de uma só vez. Surgem risadas. Alguns alunos assistem,
outros gradativamente fazem a passagem.
O corpo precisa, às vezes, de oportunidades para brincar, experimentar-se e
criar, para entrar em contato com regiões subjetivas, mais delicadas ou talvez também
mais ameaçadoras.
32
Criamos um espaço com duas cadeiras para facilitar a imaginação. Em outra
situação trabalhamos com perguntas sobre o corpo, cada participante respondia
aquela que quisesse. Ao final, alguns participantes sentiram que abriram um
pouco as suas janelas. Referências a aberturas de portas e janelas são
freqüentes nesse tipo de trabalho corporal.
Série Aquecer: modulações do aproximar
95
Assim, podemos dizer que os aquecimentos podem funcionar como procedi-
mentos que instauram e acionam a capacidade de brincar na construção de corpos cu-
riosos, pesquisadores e abertos ao inusitado. Vale dizer também que os
aquecimentos podem virar uma grande brincadeira grupal, sem qualquer necessi-
dade de outros desdobramentos para a continuidade do processo e se desmancha-
rem logo após sua efetuação.
Seguindo uma tendência rizomática dos procedimentos, um exercício pode se co-
nectar a outro, mas pode também se perder, ser finalizado no meio do caminho ou derivar
para um lugar completamente inusitado. Assim também ocorre com os aquecimentos.
Além das estratégias que lançam mão do fluxo brincalhão para iniciar as propos-
tas, utilizo ainda os jogos cooperativos
33
, que têm como principal característica o traba-
lho com o coletivo em resistência à competitividade. São jogos que rapidamente
devolvem aos participantes a constatação de que seus corpos são impregnados pelo
ato de competir, mostrando muito claramente a dificuldade para desmanchar modos de
funcionamento “naturalizados” pelo sujeito e seu entorno.
Pensando a clínica como lugar de problematizações, sugiro e pratico com os gru-
pos um mesmo jogo, realizado de modos diferentes, crio um descompasso, embaralha-
mentos que, ao produzir um desconforto ou barulho nas referências, pode fazer pensar.
Nessas variações, proponho vivências com graus diversos de competitividades e colabo-
rações fazendo prevalecer um ou outro aspecto.
A brincadeira infantil da dança das cadeiras, tão utilizada há vários anos, é uma das
inúmeras propostas que permitem várias elaborações.
Primeiro brincamos do modo usual, colocando o grupo para movimentar-se em tor-
no das cadeiras, quando a música cessa todos devem encontrar um lugar; a regra é que
a cada nova rodada um participante saia. Depois, em vez dos participantes saírem, as ca-
deiras são retiradas e os participantes devem, de alguma forma, manter-se conectados
com as cadeiras disponíveis, até que sobre apenas uma cadeira para todos. O grupo de-
ve solucionar o problema.
Sara continua correndo mesmo sabendo que a regra foi alterada. Ela bate, empurra e ten-
ta trapacear seus colegas.
Suely caminha devagar, na contramão do fluxo. As pessoas olham, acham engraçado e
estranho a participante não rodar ao redor das cadeiras na mesma direção que todos os outros.
Silmara diz sentir muita dificuldade em parar de competir, diz não saber fazer de outro
33
Os jogos cooperativos são amplamente discutidos em várias obras. Fabio
Brotto é uma das principais referências na área. Para saber mais ler: BROTTO,
F.O. Jogos cooperativos. in: O jogo e o esporte como exercício de convivência.
Santos: Ed. Projeto Cooperação,2001; FAUSTO, E. R. Se a criança aprende a
competir, porque não ensiná-la a cooperar. Editora Santos, 2001 (monografia
para especialização). Uninove, Centro Universitário Monte Serrat.; BROWN, G.
Jogos cooperativos: Teoria e prática. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2001.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
96
jeito. Seu corpo expressa a dificuldade, pois por mais que tente prestar atenção, seu corpo
parece não responder, está habituado a sempre correr e passar na frente.
Encontrar o outro, não para competir, mas para criar junto, para ajudar a refletir,
para inspirar composições, para auxiliar nas percepções. Encontrar o outro, como mui-
tos participantes já comentaram, é sempre muito complexo e por mais que se esperem
receitas, elas são sempre insatisfatórias e polêmicas.
Essa mesma orientação acontece em relação às danças circulares
34
, que mobi-
lizam o grupo e cada participante de modo particular, mas paralelo àquilo que venho
demarcando como fundante na clínica do encontro entre corpos.
Lili se surpreende quando observa que balança muito o quadril numa determinada dan-
ça, enquanto outras pessoas movem mais facilmente os ombros e os braços; Solange observa
sua dificuldade em acompanhar os passos da coreografia junto com o grupo, mas mesmo inco-
modada, segue adiante; Kátia que já teve a oportunidade de aprender várias danças e freqüen-
tar muitos cursos, desfruta daquele momento com o grupo olhando para todos os lados e
sorrindo quando encontra outro sorriso.
Lara permanece com a cabeça baixa tentando controlar as suas pernas e pés na execu-
ção dos passos. Somente bem mais tarde, está solta o suficiente para perceber-se em grupo
e dançar. Cinthia diz que acertar os passos é um desafio, não se importa de errar, sente-se
apoiada pelo grupo.
Nessas situações não estou preocupada em ensinar exatamente os passos de
uma dança, nem tampouco direcionar os caminhos que o corpo deverá seguir, mas tra-
zer o clima das músicas, pertencentes a povos e culturas muito diferentes, a fim de colo-
car o corpo em estado de dança, junto com outras pessoas, independente de sua
condição, situação de vida, problemáticas e histórias individuais. Quando isso aconte-
ce é possível, de acordo com a sensibilidade de cada um, do envolvimento e dos graus de
afetação, sentir a potência de um grupo.
Fomos convidados – eu e os alunos de graduação de Terapia Ocupacional – a participar
de um grupo de danças circulares coordenado por Vaneri
35
numa das unidades de internação
de meninas da Febem. O clima do local era extremamente controlador: dificuldade para entrar,
documentações, silêncio nos corredores; os olhares das meninas, dos monitores se desman-
34
Em relação às danças circulares, sugiro a obra Danças circulares sagradas:
Uma proposta de educação e cura, organizada por Renata Carvalho Lima Ramos,
São Paulo : Triom Editora, 1998.
35
Vaneri de Oliveira é focalizadora de danças circulares. Realizamos alguns
treinos juntas, o que permitiu nossa aproximação. Há alguns anos temos
trabalhado em parceria através da visita de grupos de alunos a unidades da
Febem, onde Vaneri atua profissionalmente. Essas experiências têm sido muito
importantes para a formação dos alunos, para desmistificar o enorme
preconceito em relação à população atendida pela instituição e como espaço de
encontro entre realidades tão diversas.
Série Aquecer: modulações do aproximar
97
charam quando entramos na sala onde aconteceria a vivência.
Imediatamente nos colocamos em círculo para uma breve apresentação. A tendência por
parte de muitas participantes foi buscar um lugar ao lado de suas colegas, tanto as meninas da
Febem quanto às da São Camilo.
Vaneri escolheu algumas danças circulares. Aos poucos os olhares se encontraram,
pois a maioria das danças sugeria a formação de duplas que rodavam pelo círculo, permitindo
a troca de parceiros.
Não sabíamos o nome de ninguém, nem as histórias ou porque estavam ali. Todas as
meninas se envolveram na dança e os corpos foram atravessados por múltiplas sensações,
que deram densidade à experiência: desajeitos; fuga e encontros de olhares; risos; uma exci-
tação tal que muitas pediam, principalmente numa dança israelense, que se dançasse mais.
Atentei ainda para um outro acontecimento subliminar: o barulho das havaianasbaten-
do no chão criava um batimento, uma pulsação singular naquela coreografia.
Uma experiência marcante pode expressar quando uma dança circular vira um acon-
tecimento.
Obviamente as respostas a uma determinada dança seguem um caminho parti-
cular, mas é possível dizer que sua utilização na clínica que venho estudando e na qual
atuo, envolve aspectos muito específicos. Tratarei de alguns procurando articulá-los ao
momento inicial das intervenções.
As danças circulares, como outras pequenas coreografias, são em sua maioria
acessíveis a todos, independente de condições físicas e/ou psicológicas.
36
Assim, as danças circulares são escolhidas e utilizadas como procedimentos
apenas e quando apresentam um caráter de acessibilidade, ou seja, quando favorecem
a experimentação e os encontros.
Apesar de desconfortos observados e explicitados em vários grupos, procuro fa-
vorecer os contatos e oferecer oportunidades para que o sujeito saiba um pouco mais de
si, por exemplo, ao processar e viver uma coreografia em determinado contexto grupal.
Também o fluxo brincalhão é ativado nessas dinâmicas: o erro passa a ser con-
siderado como “algo engraçado e possível” e o acolhimento da autorização para ex-
perimentar dependerá de inúmeros fatores individuais, do grupo, da coordenação, da
dança e de todos os possíveis atravessamentos que percorrem qualquer procedi-
mento em ação.
Observo que, na maioria das vezes, o riso prevalece, pois a intenção explicitada lo-
36
Usualmente proponho uma dança circular em momentos do processo: ao
início de um grupo, para compor com outros procedimentos ou finalizar um
trabalho.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
98
go no início das vivências não é que os participantes acertem logo os passos, mas que se
permitam viver os desafios.
Na experiência vivida na unidade da Febem, por exemplo, as meninas que nos re-
cebiam tinham a nítida intenção de desafiar as alunas; sugeriam danças que exigiam
muita habilidade corporal e contato
37
, os olhares se cruzavam, os corpos ora se aproxi-
mavam ora se distanciavam e mesmo uma experimentação pontual, um único encontro
produziu muitas reverberações: conversas, sensações, desconfortos e, nitidamente,
uma perturbação.
Na escolha de uma dança circular o que importa é o dançar junto e as possibi-
lidades individuais de realizar a coreografia. Observações possíveis apenas quando
os participantes conseguem se apropriar dos passos, atentar, olhar para os outros e
sentir o “clima grupal” ou quando conseguem abrir mão da imposição de acertar a co-
reografia.
Muito rapidamente é possível observar nesse trabalho as diferenças entre os
corpos, jeitos e estratégias como cada um aprende um novo conhecimento. Nesse con-
texto as danças circulares servem também como campo de observação e produção de
diferenças, ao longo de todo o processo.
37
Obviamente esta leitura é restrita, pois não pudemos nos aproximar o
suficiente para aprofundar a convivência, mas ficou claro o desejo de encontro
do grupo e nessa discussão esse é o aspecto central a ser nomeado.
Série Aquecer: modulações do aproximar
99
38
Dois artistas que realizavam vivências e utilizavam o conceito de impregnar
para falar sobre o que acontece no encontro entre as subjetividades dos artistas
e dos sujeitos que participam das proposições. Suely Rolnik abordou, durante
um semestre, as obras, procedimentos e estratégias utilizados por estes
artistas. Muitos de seus trabalhos podem ser relacionados a procedimentos
clínicos, pelo modo de realizar as aproximações.
A impregnação como modo de aproximação
Para finalizar esta série esboçarei um conceito central na clínica, o impregnar.Usualmen-
te ouvimos falar de impregnação como a ação (normalmente nociva e exagerada) de
algum medicamento sobre o corpo, principalmente no campo da psiquiatria. Neste
trabalho, entretanto, a opção pelo termo é devida à possibilidade de avizinhá-lo à
idéia de “tomar corpo”, incorpar, corpar, tal como Keleman aborda ao discutir a expe-
riência somática.
A impregnação aqui remete ao deixar-se afetar: pela subjetividade de um grupo
de pessoas de determinado contexto, pelas narrativas e acontecimentos na clínica; ficar
impregnado pelas propostas, pelos conceitos, pelos desejos.
Dias e Redwig
38
, antes de iniciarem propriamente as suas “vivências comparti-
lhadas”, deixavam-se impregnar pela subjetividade da população com a qual iriam tra-
balhar: conversavam, conviviam, experimentavam o lugar do outro. Consideraremos,
assim, o deixar-se afetar, o deixar-se impregnar como procedimentos.
Uma experiência realizada durante a formação de um grupo de mulheres de uma
comunidade no Bairro dos Morros, na periferia de Sorocaba, pode ilustrar a conjunção
do impregnar com o aproximar.
Caminhar pelas ruas do Bairro dos Morros, em Sorocaba, observar as casas, a venda, o
pequeno supermercado, conversar com as pessoas, simplesmente olhar são estratégias de
aproximação com o outro, de torná-lo presença viva em mim, em nós. Por outro lado, a nossa pre-
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
100
sença também contamina e determina certo ambiente.
Nossas caminhadas pelas ruas, acompanhadas pelas mulheres do bairro, produziram
muitos efeitos e atraíram muitos olhares-desconfiados, curiosos, interrogativos, ariscos,
entre tantos outros.
Tudo remete a relações e impregnações múltiplas. A cada novo grupo ou en-
contro, as impregnações são outras, com suas permanências e volatilidades abertas
ao devir, à variação. Este aspecto será abordado nas cenas clínicas ao longo de todos
os procedimentos.
A capacidade de impregnar-se do outro (seja uma pessoa, um ambiente, um es-
tado ou uma condição), impregnar-se por seu próprio inferno ou paraíso, por exemplo,
é condição essencial e que necessita de atualização ao longo de todo o processo.
As porosidades determinam graus de afetação e o corpo tenta, de todas as formas,
lidar com a oscilação de intensidades.
Assim, na clínica aquecertem a ver também com contaminar, afetar e ser afetado,
impregnar-se pelas subjetividades, pelas alteridades, pelos fluxos que atravessam
qualquer experiência de encontro.
101
103
Série Fotografar
“Colecionar fotografias é colecionar o mundo
Susan Sontag
Nas fotografias captar o pequeno, o mínimo, o quase invisível,
detalhamentos, toques, breves conectividades.
Série Fotografar
105
E
m uma sala de aula as fotos eram passadas de mão em mão, percorriam uma roda que
exalava silêncios, palavras, agitações e leves turbulências. Vez ou outra a turbulência
dava lugar a um turbilhão; algumas pessoas não se continham e começavam a conver-
sar com quem estava ao seu lado, contavam histórias, faziam comentários sobre as fotografias,
mostravam, através de seu corpo, que a proposta causou um motim interno.
Roland Barthes (1980), em A câmara clara, nos remete à existência de dois tipos
de fotografias. Segundo o autor, tal
fotografia que destaco e de que gosto não tem nada do ponto brilhante que balança dian-
te dos olhos e que faz a cabeça oscilar; o que ela produz em mim é exatamente o contrário
do estupor; antes uma agitação interior, uma festa, um trabalho também, a pressão do in-
dizível que quer se dizer.
1
Algumas alunas querem se esconder, hesitam antes de mostrar ao grupo as fotografias
que trouxeram, aguardam silenciosamente a sua vez e, então, falam da vergonha, da dificulda-
de de olhar para as fotografias: pessoas com as quais perderam o contato, pessoas queridas que
morreram, corpos que já não existem mais, delas mesmas e de outras pessoas.
Marcela mostra uma foto de quando estava magra. Diz que hoje está obesa, sente que
deixou a vida “rolar” de qualquer jeito e que parou de fazer muitas coisas, principalmente de
se cuidar.
Outras fotos falam de amizades, abraços, sorrisos, viagens; há muitas imagens demo-
mentos da infância.
Cilene diz: “Eu era feliz e não sabia”.
Ana Lucia mostra uma fotografia vestida de cowboy, numa paisagem campestre. Diz
que a foto não expressa “aquilo” que estava sentindo no momento. Ao contrário, ela oculta
os fatos.
1
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1980. p. 35.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
106
As fotografias narram acontecimentos, mas apenas aquele que foi fotografado po-
de contar como estava no momento do click.
Quando sugiro trabalhar com fotos, imediatamente algumas pessoas declaram
acessar, muito rapidamente dentro de si, uma série de imagens de seu “álbum de fo-
tografias”. Algumas dizem ficar angustiadas, pois não sabem como começar a pesqui-
sa, onde procurar, o que vão encontrar, o que trazer e o que vai acontecer.
Ao utilizar a fotografia e o ato de fotografar procuro observar as ressonâncias da
sugestão e alinhavar diferentes propostas: selecionar, olhar e compartilhar fotografias;
fotografar o outro, a si mesmo no espaço cotidiano; captar corpos anônimos.
Keleman nos ajuda a compreender que essas fotografias falam sobre o vivido,
permitem uma conversa sobre vínculos, acontecimentos, sensações, afetações e afirmam
que as experiências moldam os corpos. Fotos de uma barriga grávida, de um grupo de
amigos encostados uns nos outros, de um bebê puxando ansiosamente uma saia, um bei-
jo, uma menina sorrindo.
Procuro guiar a pesquisa fotográfica com frases como: “tragam o registro de vocês
fazendo alguma coisa”. A palavra “coisa” gera, muitas vezes, incômodos, questionamen-
tos, indecisões mas abre também um leque de possibilidades. Outras vezes, orientada pe-
lo tema dos corpos e das abordagens corporais em dança, peço aos participantes fotos que
registrem uma atividade corporal (dança, algum tipo de ginástica ou atividade física, en-
tre outras). Ou ainda, solicito apenas fotografias de momentos da vida.
Independente do modo como trabalho esses procedimentos, sou orientada
por trabalhos como o de Keleman acerca do que ele chamou de projeto de corpo, e pe-
la abordagem de Favre, especialmente a partir da pergunta: Como faço o que eu faço?
Meu interesse é captar como os participantes realizam suas tarefas cotidia-
nas, as companhias presentes em cada ato mostrado. Afinal, é na diversidade ex-
pressa nos diferentes cenários, nos mais variados roteiros, na investigação íntima
dos territórios existenciais que é possível, mais uma vez, singularizar qualquer expe-
riência em contraposição à padronização rotineira e ser acolhido na expressão de
sua singularidade.
“Vejam, eu gosto de escovar meus dentes andando pela casa”. (Lara)
“Estou sempre comendo em companhia de outras pessoas, não gosto de comer
sozinha”.(Taís)
Série Fotografar
107
Aqui estou comendo num clima campestre e me visto de cowboy, já noutra
foto, minhas roupas são outras, pois estou fazendo outra coisa, não estou num chur-
rasco como na primeira foto”. (Melina)
“Falo enquanto realizo as atividades da faculdade, faço tudo de uma vez”. (Agda)
A partir das fotos, chamo a atenção do grupo para a singularidade dos modos de
cada um e observo, muitas vezes, a surpresa com que os participantes notam essa di-
versidade no território coletivo. É nesse interjogo entre o singular e o coletivo que os
procedimentos se apresentam, são experimentados e analisados no espaço grupal.
Assim, no início de um processo voltado à discussão e a experimentações
sobre temáticas ligadas ao corpo, trabalho com fotografias para exercitar a sensi-
bilidade, ampliar os sentidos sobre o corpo, mas principalmente para promover apro-
ximações, por meio de um bailado de fotos, histórias, sensações e afetações
provocadas pelas imagens.
Em outras ocasiões, a pesquisa fotográfica acontece ao longo do processo ou ao
final dos encontros, como elaboração do vivido
2
, tomando como referência o recurso
do “olhar para si”, orientado por algo que afeta o sujeito. Trata-se, portanto, de um olhar
que não se reduz ou se satisfaz com uma aproximação superficial, mas que numa aten-
ção prolongada efetua nos corpos algum tipo de sensação.
3
O trabalho com fotografias envolve um olhar sobre a imagem que produz, em
quem olha, múltiplas sensações.
“O que sinto ao olhar para uma fotografia? Como ela me afeta? O que me apro-
xima e o que me afasta da imagem?”
Em suma, podemos dizer que a fotografia funciona com objetivos, modos e graus
de aprofundamento diversos.
2
Em várias ocasiões, as oficinas são fotografadas para que, ao final do processo,
o grupo tenha oportunidade de realizar um rastreamento do vivido por meio das
imagens. Na experiência com mulheres da Zona Leste, cujo resultado pode ser
observado em minha dissertação de mestrado, (op.cit.), a fotografia foi utilizada
como forma de retorno para as participantes. Ao final da pesquisa presenteei
cada uma com um texto e uma fotografia que captava algum traço ou
acontecimento importante de toda a experiência. No livro, resultado deste
estudo, é possível saber mais sobre esse procedimento.
3
Hubert Godard, bailarino, fala de dois tipos de olhar que acontecem
simultaneamente: um olhar objetivo (cortical) que absorve a forma de uma
modo mais global e um olhar subjetivo (subcortical) que se inscreve no campo
das afetações.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
108
Focalizações
“Para onde é preciso viajar. A observação imediata de si está longe
de ser suficiente para aprender a se conhecer: precisamos de história,
pois o passado continua a correr em nós em cem ondas; nós próprios nada
somos senão aquilo que sentimos dessa correnteza a cada instante”.
Nietzsche
4
O trabalho com as fotografias em contextos clínicos funciona como provocação,
captação e produção de sensações que se efetuam nos corpos podendo ou não se con-
figurar em palavras, reflexões, pensamentos, produções de outras cenas, imagens, fan-
tasias e nos mais diversos estados corporais como angústia, vergonha, tristeza e alegria
como observaremos nos relatos.
Em Proust e a fotografia
5
, de Brassaï, ao discutir a importância da fotografia na vi-
da e na obra do escritor, o fotógrafo oferece algumas pistas para a reflexão sobre a mis-
tura entre passado, presente e futuro inscrita nas relações entre as fotografias e os
corpos/sujeitos.
4
NIETZSCHE, Friedrich. Humano demasiado humano: um livro para espíritos
livres In: Os pensadores. 3ª ed. São Paulo : Abril Cultural, v.2, p. 138.
5
BRASSAÏ, Gilberte. Proust e a fotografia. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor,
2005.
Série Fotografar
109
A discussão realizada por Brassaï se aproxima da abordagem de Susan Sontag;
ambos consideram que a foto, ao mesmo tempo, retém o que já passou e permite um con-
tato prolongadocom uma cena já vivida ou observada. Com isso, oferece a oportunida-
de de estudar mais demoradamente acontecimentos já vividos e de conhecer outros
atuais e captados pela imagem. Segundo o autor, a “fotografia adquire um pouco mais
da dignidade que lhe falta quando deixa de ser uma reprodução do real e nos mostra
coisas que não existem mais”.
6
Ao discutir as relações entre passado e presente a partir dos registros que, de al-
guma forma, ficam nas fotografias, existe a possibilidade então de (re)ativar as marcas
também inscritas nos corpos pelo contato com as imagens, permitindo em alguns casos
experimentar sensações semelhantes ao vivido no passado: apresentações de dan-
ças, brincadeiras na água, festas juninas.
Tais considerações nos levam ainda a pensar que as marcas fotográficas permitem
um deixar-se afetar novamente pela intensidade do que se viveu no corpo. O contato
com a imagem permite reviver sensações que poderiam ser perdidas.
Segundo Brassaï, Proust abordou essa relação de múltiplas maneiras. A fotogra-
fia inspirava personagens que o escritor incluía em suas obras e, com isso, criava uma in-
tensa ligação entre literatura e fotografia. Nas considerações de Brassaï e de Espinosa fica
evidente a potencialidade das imagens para o trabalho clínico aqui analisado.
Segundo Keleman, em um álbum de fotografias encontraremos muitos corpos
numa vida e muitas vidas no curso de uma vida. Para ele, alguém que examine a própria
imagem ao longo de trinta ou quarenta anos vai captar a noção de ter tido muitos corpos.
De fato, os estudos fotográficos na clínica permitem observar passagens vividas pelos
participantes e a reafirmação de que as experiências moldam os corpos, tal como afirma
o autor.
Nesta série de procedimentos, veremos como o trabalho com fotos mostra, por
meio de seus efeitos nos corpos, as realidades somáticas registradas em instantâneos
que reverberam sensações que vão além de um contato rápido e superficial com o papel
fotográfico, entrando em outras dimensões do que ali ficou registrado.
7
Alguns exercícios iniciam com as fotos e permitem desdobramentos. Outras vezes,
o trabalho fotográfico se concentra em uma única proposta.
Denise voltou à sua cidade natal para procurar sua “caixa de fotografias”. Percebeu
que havia deixado todas na casa do ex-marido; naquele instante percebe que na separação não
6
Ibid., p.40.
7
Um estudo mais detalhado sobre a vida como formas e realidades somáticas é
realizado no capitulo O corpo como pulso, que aborda mais detalhadamente a
perspectiva de Stanley Keleman, referência importante para este trabalho.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
110
deixara de lado apenas as fotos. Luciana conta que se aproximou da mãe ao conversar sobre
as fotos de família e Raquel percebe que é sempre atraída pela mesma foto: “sempre trago
esta fotografia de infância, quando me sentia mais livre, sorrindo. Hoje sou fechada e todo mun-
do reclama. Acho que sou assim”.
Letícia segue na mesma direção: fala do hoje como momento problemático, cheio de in-
certezas, principalmente em relação ao mercado de trabalho. Expressa certa idealização do
tempo de criança como se não tivesse vivido vários desafios: apresentações de dança, brinca-
deiras na água, festas juninas.
Ao observar sua foto, Lucia percebe a passagem do tempo; como as coisas se modifica-
ram: antes conseguia fazer uma “ponte”, hoje percebe que seu corpo faz outras coisas, outros
tipos de “malabarismos”. Tempo passado e presente que se interconectam e mostram os cor-
pos como passagens.
Essas cenas revelam como “o contato mais prolongado”, a busca e o debruçar-se
sobre o material fotográfico provocam reflexões sobre a vida. Ou seja, são cenas que
mostram as reverberações e problematizações, por vezes muito intensas, que acontecem
na clínica, ao inaugurar perguntas e permitir trocas entre os participantes do grupo.
Essas reverberações, no entanto, são muito singulares para cada grupo e cada parti-
cipante: alguns não lembram de nada ou não conseguem verbalizar suas sensações,
outros não encontram na atividade um sentido que os mobilize o suficiente para envol-
ver-se no trabalho.
Ao longo de minha prática na clínica, constato a impossibilidade de padronizar ou
nivelar qualquer ação ou resposta às afetações fotográficas. Mas, a partir de algumas
cenas é possível abordar outras ressonâncias.
Luciana conta que gostou de realizar a pesquisa e, ao mesmo tempo, não gostou de
olhar para situações já vividas. Deisy não sabia qual fotografia selecionar para o encontro.
Diz que “tudo parecia muito importante, marcante”.
Os participantes também falavam sobre as diferentes formas como lidavam com a
organização das fotos: um quadro na parede em que as fotografias eram trocadas sempre que
algo novo surgia; a dificuldade de tirar ou colocar fotos como expressão da necessidade de ten-
tar reter o vivido.
Série Fotografar
111
Em alguns casos, após as vivências as relações estabelecidas com esse tipo de regis-
tro foram alteradas: Sandra diz que vai mudar todas as fotos de seu painel, uma vez que as
que lá estão não expressam os seus estados atuais, principalmente as “fotos posadas”.
Paula disse que iria compor uma foto sua quando grávida com uma fotografia de sua
mãe, na época em que também estava grávida. Esta composição remete a complexidade das re-
lações entre mãe e filha.
No caso de Paula pode-se supor que as fotografias atuaram na problematiza-
ção do momento vivido – gravidez não programada, complexa, pois o companheiro não
se dispôs a acompanhá-la, o desafio da faculdade etc. –, contribuindo para a reflexão e
assimilação da experiência vivida.
Muitas fotografias também começaram a fazer parte do diário de bordo, instru-
mento utilizado na clínica e que permite reunir imagens, textos, escritos e outras pos-
sibilidades expressivas. Esses diários, produzidos pelos alunos desde o início da
formação, constituíam para muitos um espaço para registros e questionamentos du-
rante os trabalhos realizados em classe pelo grupo ou mesmo como instrumento para
uma reflexão individual.
8
Nos laboratórios e nos diários as fotografias vagavam, saíam de lugar, insistiam
em aparecer, circulavam ou se fixavam em algum ponto criando várias cartografias. Ál-
buns eram abertos e muitos participantes, após as dinâmicas, continuavam a falar sobre
as fotografias em suas casas, com os amigos, nos sonhos.
Foi possível observar também que a proposta de (re)mexer nas fotos afeta a
maioria dos participantes, em diferentes graus de intensidades: alguns se expõem,
outros se escondem por trás das imagens.
Susan Sontag afirma que, nos últimos tempos, a fotografia transformou-se num
divertimento praticado quase tão amplamente como o ato sexual ou a dança. Com isso,
a autora sugere que, como toda manifestação de massa, a fotografia pode ser utilizada
apenas como um rito social ou como defesa contra a ansiedade. Essa constatação pode
ser reiterada por situações observadas na clínica. Em exercícios que mobilizam fotos ou
o ato de fotografar como objeto de leitura, é comum perceber o estabelecimento de uma
relação automática do participante com a experiência, o que se pode observar em atitu-
des como “fazer pose” ou banalizar a proposta, ao selecionar para as atividades fotogra-
fias que aparentemente não têm sentido ou que não produzem nenhum tipo de
excitação.
8
A utilização do diário e alguns dos seus sentidos e dificuldades na sua
elaboração serão retomados na série Conversar e silenciar.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
112
Nesses casos, as fotos ocupam um lugar pouco potente nos processos, diferen-
te de situações mais produtivas, como discutido por Susan Sontag:
Abarrotando o mundo, a fotografia convida ao acúmulo. Pregam-na em álbuns, é emoldu-
rada e colocada sobre as mesas, presa a paredes, projetada na forma de slides. Jornais e
revistas a exibem; a polícia a codifica; museus a expõem; editores a compilam.
9
Isso significa que trabalhamos na clínica com diversos problemas relacionados ao
ato de fotografar, olhar para as fotografias, decidir o que fazer com o material, permitin-
do diferentes abordagens e criação de procedimentos.
Outras questões precisam ser consideradas nas dinâmicas de grupo nesta e
em outras propostas que falam das intimidades expressas. É possível verificar, por ve-
zes, uma sensação de falta de confiança naquilo que é dito para o grupo. A dificulda-
de de escutar o outro, o medo de falar de si, as poucas oportunidades para conversar
ou ouvir as histórias criam campos mais ou menos propícios à investigação das subje-
tividades.
Há momentos em que é possível detectar manifestações de empatia, de prazer
mesmo ao ouvir as narrativas. Entretanto, registram-se também manifestações que
revelam, por exemplo, vontade de sair da sala tamanho o grau de afetação e a presen-
ça de um emaranhado de emoções, muitas vezes contraditórias, que contaminam os
ambientes.
Nesses processos, os participantes ora se aproximam, ora se distanciam e produ-
zem uma série de conectividades com os materiais, com as conversas, com o passado, o
presente e o devir que a proposta instaura e provoca em cada um e no coletivo.
Observo também que muitas pessoas se emocionam quando falam sobre as
fotos
10
. Fica evidente nesses trabalhos, tal como afirma Keleman, que os corpos são
construídos, se desmancham e se configuram permanentemente num continuumaté a
morte. Este é um ponto central na clínica: a construção de corpos, pois rompe com a
idéia da identidade fixa, da impossibilidade de interferir nos processos, da condenação
a uma única existência. Essa compreensão revela que estamos determinados a viver
construídos e influenciados por conjunções mutantes de toda a ordem: genética, cultu-
ral, política, social, familiar e vivencial.
Barthes e Sontag são importantes aliados na compreensão paradoxal dos recur-
sos da imagem, particularmente da fotografia. No contato com as teorias desses autores
9
Segundo Sontag (op. cit., p. 4), acrescentaríamos hoje a tecnologia digital que
construiu novos modos de relação com a imagem e com o ato de fotografar.
10
Cada participante tem um tempo para contar como foi a sua busca, suas
sensações, o que foi observado e como este tipo de trabalho produz
ressonâncias.
Série Fotografar
113
pude compreender melhor a complexidade da utilização desses elementos na clínica,
bem como suas implicações e ressonâncias.
Guiado por seu enorme interesse pela fotografia, Barthes afirma que o
que a fotografia reproduz ao infinito só ocorre uma vez: ela repete mecanicamente o que
nunca mais poderá repetir-se ‘existencialmente’, ou seja, a fotografia, tal como o corpo, não
pode jamais voltar ou permanecer na “estaca zero.
11
E ele continua dizendo que
queria, em suma, que minha imagem, móbil, sacudida entre mil fotos variáveis, ao sabor
das situações, das idades, coincidisse, sempre com meu ‘eu’; mas ao contrário que é pre-
ciso dizer: sou ‘euque não coincido jamais com minha imagem: pois é a imagem que é pe-
sada, imóvel, obstinada (por isso a sociedade se apóia nela), e sou ‘euque sou leve, não
fico no lugar, agitando-me em meu frasco.
Ao aproximar o corpo da fotografia, o autor afirma a impermanência dos proces-
sos e as tentativas de captação e retenção dos acontecimentos, por meio da imagem
que sempre foge, que sempre escapa, tal como vivemos em nossos corpos o desenrolar
de uma vida.Essas reflexões dão pistas para entender a potencialidade e as intensidades
vividas nos procedimentos que envolvem a fotografia: mexem, emocionam, ampliam
discussões, inspiram e provocam a realização de exercícios.
Ao mostrar aquilo que não é mais, a fotografia permite uma aproximação de pro-
cessos paradoxais: de um lado, me aproprio de mim mesmo, de minha existência, dos
sentidos dos vínculos, dos meus modos de fazer, viver, assimilar as experiências. De ou-
tro lado, a imagem possibilita o acesso a um continuumdos acontecimentos, mostra a
fluidez em dissonância com aquilo que tentamos fixar.
12
Em muitas fotografias conseguimos captar um traço, um jeito, um olhar que per-
manece. Ao mesmo tempo, nos deparamos, tal como colocado por muitos participantes,
com a passagem do tempo, as modificações, os processos incontroláveis, muitas vezes
surpreendentes.
Neste sentido, os trabalhos oferecem a materialização das ambigüidades, das
dissonâncias e simultaneamente das possibilidades de mundos, do devir.
Embora a fotografia “posada” também expresse um modo de relação com o mun-
do, meu interesse é pelo registro que produz afetação, que causa turbulência e permite
a problematização e a invenção.
Novamente encontramos em Barthes uma referência importante para essa discus-
são: “Decidi então tomar como guia de minha análise a atração que sentia por certas fo-
11
Barthes quando diz que o corpo jamais encontra seu grau zero, trata de
evidenciar o dinamismo dos processos em que as fotos apenas registram alguns
de seus instantâneos. (p. 24).
12
Para Susan Sontag a materialidade do papel fotográfico (pensemos hoje na
fotografia digital e os inumeráveis recursos do fotoshop) nos permite ter um
certo controle sobre o que foi fotografado. Podemos ampliar, diminuir, detalhar,
recortar, deletar.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
114
tos.”
13
(...) Como ‘spectador’, eu só me interessava pela fotografia por “sentimento”.
14
Ao ocupar o lugar daquele que olha, o autor faz uma diferenciação entre as fo-
tos que permanecem inertes diante dos olhos e provocam apenas um interesse geral,
polido, daquelas que podem emanar o punctum, segundo elemento que contraria o
studium.
15
O conceito de punctum norteou o trabalho fotográfico, a pesquisa, a análise e a
leitura das imagens apresentadas neste trabalho.
De origem latina, segundo Barthes, o termo é utilizado para designar uma flecha
que transpassa a fotografia como uma ferida, uma picada, uma marca feita por um ins-
trumento pontudo. A palavra nos remete à idéia de que as fotos de que agora fala Barthes
são, de fato, como que pontuadas, às vezes até mosqueadas por esses pontos sensíveis.
O que importa nesse tipo de fotografia é o acaso que nela punge, provocando gozo ou dor.
Nessa mesma perspectiva, o trabalho fotográfico pode também funcionar como
mais uma oportunidade de romper o que está no automático, esvaziado de sentidos. Co-
mo já dito anteriormente, é com muita facilidade que caímos no terreno dos automatismos
e em estratégias pouco potentes que não abrem possibilidades para a criação de sentidos.
A fotografia permite, se levarmos a idéia de punctumadiante, guiar nossa busca
fotográfica não pelas imagens que não nos dizem nada mas, ao contrário, por aquelas que
nos atraem que são como uma aventura, tal como poeticamente menciona Barthes.
Nesse deserto lúgubre, me surge, de repente, tal foto; ela me anima e eu a animo. Portan-
to, é assim que devo nomear a atração que a faz existir: uma animação. A própria foto não
é em nada animada (não acredito nas fotos “vivas”), mas ela me anima: é o que toda aven-
tura produz.
16
O trabalho fotográfico é, então, orientado sempre na direção daquilo que pode afe-
tar o seu protagonista e o grupo, ou seja, para produzir um tipo de afetação/animação que
transita entre as singularidades e o espaço coletivo.
A tentativa da proposta aqui discutida é ativar a curiosidade para esse tipo de
pesquisa, pois observamos a potencialidade desses recursos nos mais diversos grupos
e contextos. Outro aspecto importante a ser realçado é o trânsito entre a dimensão in-
dividual e a coletiva presente nessa clínica, ou seja, a produção a partir das experiên-
cias, afetações ligadas aos processos de cada participante, mas também na dimensão
grupal, possibilitando trocas e ressonâncias da pesquisa individual no coletivo.
13
BARTHES, op. cit., p. 35
14
Ibid., p. 39
15
Termo utilizado pelo autor para falar sobre as fotos que não provocam uma
afetação e que para ele constituem o campo vasto do desejo indolente.
16
BARTHES, op. cit. ,p. 37
Série Fotografar
115
Fotografias e afetações
A fotografia é muito mais que um documento inerte. É um catalisador,
um condensador de sentidos latentes. Não é um fim, é um meio,
um processo aberto”.
Paulo Venâncio Filho
17
17
Comentário do livro Proust e a fotografia, de Brassaï, op. cit.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
116
Solicitei às mulheres do Bairro dos Morros que trouxessem fotografias das mulheres de
suas vidas. Foi interessante observar os efeitos. Surgiram fotos de parentes, de amigas e de pes-
soas que, de algum modo, estiveram presentes em suas vidas.
Lucia traz fotos das mulheres da casa; escolhe as mais próximas, as mais queridas.
Fernanda traz somente uma fotografia dela mesma e diz que é assim que tem sentido a
sua relação com familiares: distante.
Mariana mostra uma imagem com amigas, fala das confidências, da importância des-
sas pessoas em sua vida; Margareth traz uma foto com toda a família – homens e mulheres e
Marlinda apresenta uma fotografia que tocou para o grupo: “tirei no dia de meu aniversário,
tiveram que me levantar da cama, pois eu não conseguia” e nos mostra uma imagem dela
muito magra, com uma aparência que impressionou a todas.
Em contraposição, Marlinda mostra outra foto tirada em nosso grupo de mulheres: ela
sorrindo, estava comigo e com as outras alunas, todas abraçadas. Marlinda compara os dois mo-
mentos e abre mais espaço para pensar e olhar sua vida.
É possível notar nesses breves relatos como as respostas derivam para lugares di-
versos e como as afetações variam em intensidade, tanto no que se refere à pessoa que
realiza a proposta, quanto na reverberação do material.
O trabalho de Marlinda e seus comentários expressam um processo em anda-
mento, explicita o lugar do grupo em sua vida naquele momento. Os acontecimentos
vividos criam outras possibilidades e dinâmicas grupais.
No mesmo dia tiramos ainda muitas fotos do grupo e de cada participante na ten-
tativa de captar outro momento intenso do trabalho que será visto e revisto em outras
ocasiões.
As fotografias mostram novamente as passagens, acontecimentos vividos, que
permanecem muitas vezes em nossos arquivos corporais e podem ser acessados, além
de instaurar novos arquivos, novos repertórios, construindo outras camadas nos cor-
pos, a cada experimentação que foi assimilada e produz sentido.
Para possibilitar os atravessamentos entre as dimensões individuais e coletivas,
procuro pontuar e chamar a atenção do grupo para algumas proposições. As respostas,
dificuldades ou linhas de fuga, fundamentais em toda a estratégia, trazem uma série de
problematizações.
Eventualmente, oriento esta pesquisa lançando perguntas que possam impreg-
nar os participantes, lembrando que muitas vezes pouco digo.
Série Fotografar
117
Que fotos eu poderia trazer e que fazem algum sentido?
Como estas fotos me afetam? Como me sinto ao olhar para elas?
O que acontece em mim?
Como esta fotografia poderia contribuir para as conversas do grupo? O que gostaria de
trazer para o grupo através deste material?
Assim, o trabalho irá compor com outras propostas, outras reflexões possíveis sus-
tentadas pelos participantes e pelo grupo.
Suely não consegue escolher uma única foto para trazer para o grupo. Chega ao encon-
tro com álbuns de fotografias, quer falar de todas e observo que, aos poucos, a maioria dos in-
tegrantes do grupo não prestam mais atenção às narrativas de Suely. Observo ainda que depois
de um tempo, sua atenção está completamente voltada em minha direção.
Algumas fotografias tomam completamente a atenção do grupo. Em outros mo-
mentos, o participante está tão absorto em sua pesquisa que não consegue escutar. Ou-
tras vezes, observa-se que as pessoas se presentificam de tal modo na proposta que
desta derivam-se muitas outras: fotografar na rua; fotografar detalhes do corpo do ou-
tro; registrar momentos do cotidiano; ir a exposições; comprar uma máquina fotográ-
fica ou estudar fotografia.
Em algumas oficinas, quando observo um clima confiável e envolvimento da
maioria dos participantes ou quando “salta” uma cena intensa no grupo, sugiro que a pes-
soa refaça, reviva, (re) avive, aquela cena novamente em seu corpo”. Em outras pa-
lavras, sugiro que o participante atualize aquele estado de corpo em si para encarnar,
observar o que lhe acontece, na tentativa de que, ao corpar novamente a experiência
vivida, possa acessar sensações ou elaborações que “pedem passagem”.
Algo semelhante ocorre nos seminários orientados por Regina Favre, como já
mencionado no capítulo Corpo como pulso. Ela também solicita aos participantes que fa-
çam com seus corpos um determinado estado, sugere corpar uma cena narrada, uma ima-
gem observada ou que se forme naquele momento. A consigna dada permite, muitas
vezes, o acesso a camadas muito profundas do sujeito/corpo que produz, por sua vez,
emoções várias, elaborações de experiências vividas e contatos com questões pouco
olhadas no cotidiano.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
118
Em um dos grupos Regina pede para que eu olhe por um bom tempo para a minha ima-
gem “congelada” no vídeo. Minutos antes, comento que muitas vezes não consigo me
reconhecer na tela: “parece uma outra pessoa”.
Depois de um tempo, Regina me pede que faça com o meu corpo aquela imagem. Cruzo
as pernas, seguro as mãos uma na outra, alongo meu pescoço. Olho com certa descon-
fiança a criação daquele corpo em mim.
Neste dia, minhas costas doem e percebo que, diferente da outra imagem, estou “ape-
quenada”, meu pescoço está encurtado, meus ombros mais elevados, meu corpo mais
contraído em relação à minha altura. Observo que este modo acaba por me machucar.
Surpreendo-me com as possibilidades do corpo se colocar de modos tão diversos. Re-
conheço-me mais na contração do que no alongamento. Não compartilho com o grupo
os pensamentos que agora me povoam. Apenas sorrio, mostrando que havia me recupe-
rado, sabia do que estávamos falando.
“Como conseguiu fazer um pescoço tão alongado, não é? E depois, que sensações deri-
varam daquele estado? Hoje, como está?”, termina Regina.
Impressiona-me, mais uma vez, como as experiências moldam o que fazemos com os cor-
pos a partir daquilo que vivemos.
O corpo, marcado pelas experiências de uma vida, acaba por se reorganizar, ati-
var, produzir outros corpos como camadas que se sobrepõem, se conectam, constroem
novas configurações corporal-existenciais.
Dependendo das condições, disponibilidades e graus de afetação, ao se depara-
rem com a imagem na tela o participante se emociona, descobr outros aspectos dos
acontecimentos expressos nas fotos. Ou seja, trava com essa matéria-prima relações
diversas: estranhamentos, novas percepções, gosto e, na maioria das vezes, fala sobre
a variedade de sensações experimentadas.
Série Fotografar
119
A fotografia como inspiração
Denomino tempo de fotografia uma série de exercícios que envolvem as formas do cor-
po. Essas propostas têm em comum o fato de sugerirem o não deslocar-se pelo espaço,
entendendo a forma como borda do acontecimento
18
em um corpo vivo, pulsante e em
metaequilíbrio, de acordo com a perspectiva kelemaniana.
São propostas em que os participantes experimentam jogar com o prórpio corpo,
interagir com outros corpos e com o ambiente. Essas dinâmicas podem acontecer em mo-
mentos iniciais do trabalho, mas também permeiam outras séries de procedimentos
que serão apresentados ao longo desta tese.
Observo que em momentos iniciais, esses exercícios produzem o aquecer dos
corpos, pois colocam imediatamente como questão a capacidade de brincar, lançar-se
num jogo criativo que permeia este e todos os procedimentos.
Vejamos como estas dinâmicas acontecem:
Sugiro aos participantes que façam com o corpo uma forma que pareça interessante;
qualquer forma, não como quem espera no ponto de ônibus (se bem que este pode ser
um momento bastante criativo e lúdico).
A intenção é que se faça algo de que se goste. Depois, é preciso observar se é pos-
sível sustentar minimamente a forma escolhida para que desdobramentos possam acon-
tecer seja nos trabalhos individuais, nas duplas, pequenos grupos ou no grupo todo.
Por vezes, faço apenas as primeiras orientações e observo.
Em uma das oficinas, com a intenção de clarificar ainda mais a consigna, procuro mos-
trar com meu corpo alguns instantâneos do processo, experimento gestos e movimen-
tos até chegar a determinada forma. Ao longo da composição penso alto: “Será que é
assim… assim… ah… assim eu gosto de ficar e faço uma pausa procurando sustentar es-
ta configuração. E termino: “Vou ficar assim, pois acho interessante deste jeito”.
Os participantes às vezes olham para mim num misto de riso e surpresa. A propos-
ta é, além de brincar, provocar a produção de uma forma que fuja do automático e do mais
familiar ou habitual.
Neste, e na maior parte dos exercícios, solicito ainda a participação de um dos in-
18
A idéia de forma como borda do acontecimento foi formulada por Regina Favre
e já apresentada na concepção do corpo como pulso e na série Aquecer.
Adotando a perspectiva de Keleman do corpo como pulso, que se desmancha e
se constrói permanentemente em camadas, as formas do corpo expressam
séries de acontecimentos de toda a ordem: orgânicas, vinculares, sociais,
conectivas, culturais. As formas do corpo, que são emocionais, constituem a
borda destas séries de acontecimentos que atravessam os corpos.
Retomamos este conceito em muitos momentos da tese, explicitando seu
alargamento e complexidade.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
120
tegrantes para ensaiar em seu corpo a sugestão. É possível observar, através desses
procedimentos, que os corpos servem de elos de contato na efetuação da proposta e no
modo de transmitir os exercícios aos participantes.
Os corpos, assim, pretendem inspirar os outros e disparar composições. Como
coordenadora, também procuro me deixar afetar pela atmosfera grupal e produzir formas
criadas pelo grupo. Isso acontece sempre que estou em um novo contexto, pois ao mos-
trar o que pretendo, sou guiada por aquilo que se produz em mim naquele contato.
Às vezes mostro formas mais abertas, às vezes formas mais contidas, mas princi-
palmente jogo com um corpo brincalhão que autoriza a cada um e ao grupo brincar e ex-
perimentar um devir-criança.
19
Ao inaugurarmos esse tipo de proposta que coloca a criação em destaque, pude
testemunhar infinitas afetações, como se pode perceber em algumas falas e observações
de participantes:
Cilene fica muita desconcertada, suas bochechas ficam vermelhas.
Clara diz que não sabe o que fazer, mas faz, procura mover os braços e tronco até chegar
num lugar interessante para si, mesmo frente aos olhares do grupo.
Berta concentra-se em seus movimentos. Desvia o olhar e inicia uma composição mui-
to lenta até chegar numa forma e aí permanece.
Carlos cai na risada.
Leonardo constrói uma forma e rapidamente a desmancha.
A partir da solicitação – fazer uma forma com o seu corpo – imediatamente aces-
samos problematizações que habitam esta e outras propostas. Procuraremos abordar al-
gumas delas a partir das falas de participantes:
“Eu não sei fazer”(Ana)
“O que faço é ridículo(Marcos)
“Não sei o que fazer com meu corpo. Fico paralisada com este tipo de propos-
ta que exige alguma criação”. (Fernanda)
Fazer o que o corpo pode e quer, sem um outro ditar ou determinar a forma a ser
19
A idéia de um devir-criança aparece na série Improvisar, mas também em
outros estudos que balizam a clínica.
Série Fotografar
121
alcançada, pode ser bastante assustador. Para Keleman, o reflexo do susto
20
épresen-
te em nós, constitui uma capacidade inata do vivo. Quando acontece uma carga exces-
siva de afetação/intensidade o corpo de algum modo responde àquilo que o autor chama
de excitação
21
. Podemos “ler” a vermelhidão de um rosto como um efeito produzido no
corpo do participante, bem como a paralisia como um estado de alerta frente a um acon-
tecimento que aumenta a excitação que atravessa o corpo.
Outro aspecto assinalado por muitos participantes é o contato entre olhares que
acontece ao longo das dinâmicas e/ou o olhar do outro como algo perturbador.
22
Os olhares aqui configuram afetações que transcendem o exercício do ver pauta-
do apenas pela apreensão, por meio dos órgãos dos sentidos, e trafegam pela intensida-
de vivida nos contatos que remetem a memórias e modos de lidar com o olhar sobre si.
Muitas falas expressam desajeitos, desconfortos, vergonhas e hesitações presentes
nos processos de criação.
Um corpo vulnerável que não sabe exatamente o que fazer, criar, o que sentir e ex-
perimentar vive, em muitos momentos, incômodos que ultrapassados ressoam em aco-
lhimento do devir e daquilo que está se engendrando e tomando forma.
Nas falas aqui apresentadas é possível observar sutilezas de um trabalho que a um
primeiro olhar pode parecer bastante simples.
Fragilizar-se frente ao outro, ou diante de si mesmo, fazer passar a vulnerabilida-
de dos estados pouco configurados, habituais ou mais familiares exige um corpo que pos-
sa sustentar a ação e suas reverberações.
O sentir-se ridículo é recorrente em quase todas as séries e, por isso mesmo, tra-
balhamos muito com essa potência.
Experimentar uma forma ridícula, fazer algo que somente faria se estivesse
sozinha (o) num quarto, fechar os olhos e afastar-se do olhar do outro para poder ex-
perimentar.
Lidar com olhares por vezes tiranos – seja do outro, seja um olhar interno – provo-
ca dificuldades para colocar o corpo a serviço do brincar, na tentativa de ampliar reper-
tórios e ser atravessado por fluxos brincalhões e inéditos nessa e em outras propostas.
“O que os outros vão pensar de mim?”
Ao que acrescento: “O que eu vou pensar de mim quando fizer esta ou outra
forma pouco usual?”
20
Para saber sobre o reflexo do susto, ler o livro Anatomia Emocional (op. cit.).
Não nos deteremos profundamente nesta questão, mas nos interessa explicitar
a dificuldade e as respostas a um trabalho com o criar.
21
Para Regina Favre a excitação é o correspondente somático da intensidade.
22
Na série Olharaprofundo esta discussão.
Série Fotografar
123
Produção de fotos – produção de olhares
Uma pessoa faz a forma e a outra observa
24
: de frente, de trás, de cima, de baixo, à dis-
tância, de perto, focando em detalhes ou observando o panorama da cena, mas sem-
pre atenta às afetações produzidas a cada nova focalização, a cada “fotografia
tirada”. Quando a dupla decide os lugares de quem faz a forma e quem olha de vários
modos, é uma troca.
25
É importante pontuar que aquele que fez a forma pode desmanchá-la assim que
quiser por diferentes razões: cansaço; incômodo provocado pelo olhar do outro; dor em
uma parte do corpo; desejo de experimentar o lugar daquele que pode se mover pelo es-
paço para olhar; perda de interesse pelo que fez e inúmeros outros argumentos explici-
tados ou não. A questão não está em compreender exatamente o que aconteceu, mas dar
oportunidades para viver, provocar e conhecer modos de conectividade.
A intenção é justamente observar o desejo de estar ali, de alterar, de tomar de-
cisões, de observar limites, de arriscar-se quando for conveniente, além de tornar-se
sensível para a relação com o outro, por meio das atmosferas presentes nos encon-
tros, naquilo que o corpo produz sem passar necessariamente pela consciência ou
pela palavra.
Os participantes, tal como acontece em outros exercícios, pouco ou nada falam.
O silêncio e a pausa são incorporados no tempo da fotografia para sustentar uma criação,
para sustentar um olhar sobre a cena produzida pelo parceiro, para criar uma plenitude
de intensidades nos encontros, para conhecer e entrar em contato com sensibilidades que
não sejam guiadas pela pressa, pelo fazer logo, pela mudança brusca que não cria sen-
tido, que não produz algo diferente.
Observo na clínica a rapidez como uma foto/forma é construída e desmanchada,
a dificuldade de sustentar um olhar mútuo que afete e seja afetado pelo encontro, de
deixar emergir uma emoção dos corpos seja quando se experimenta determinada fo-
to/forma, seja quando os parceiros estabelecem algum tipo de aproximação corporal.
“Me senti muito mal ao ser olhada, fiquei extremamente constrangida com a
proximidade do contato”.(Eva)
“Não interessa o que eu faça com o meu corpo. Parece que a pessoa só está
olhando para os meus defeitos”. (Lya)
24
Esta mesma dinâmica será retomada na série Olhar, com maior ênfase
para o exercício de olhar e ser olhado.
25
Este mesmo procedimento será apresentado na série Olhar com enfoque para
outros aspectos.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
124
“Fazer uma forma diferente com o meu corpo e a outra pessoa ficar me olhan-
do foi quase insuportável.” (Márcia)
“Eu gostei de experimentar formas com o meu corpo. Senti alegria e nem me im-
portei que o meu parceiro me olhava.”(Luana)
“Eu fiquei sem graça e logo fiz uma pose para acabar logo com esta proposta.”
(Pedro)
Esse jogo entre duos irá repetir-se de acordo com a composição e o encontro pos-
sível a cada dupla. A criação e a experimentação das formas também serão estabelecidas
pelas possibilidades, repertórios já presentes, atmosferas produzidas, inspirações e
inúmeros outros elementos que compõem o trabalho entre corpos/sujeitos.
O eixo da proposta é experimentar lentes e focos através do sentido da visão pa-
ra exercitar um olhar que, no encontro com o outro, é afetado por intensidades, sensa-
ções, produções de imagens, reverberações através dos instantâneos criados pelos
corpos dos participantes.
Aproximações fotográficas
Em uma outra proposição um dos participantes faz uma forma com o seu corpo. O outro,
como no ato de fotografar, pára e procura observar de que modo gostaria de “entrar na
foto”, criando uma composição. A dupla permanece, por algum tempo, contaminada
pelos fluxos que atravessam os corpos, não necessitando de qualquer nomeação. Nes-
ses exercícios a orientação é não tocar literalmente o corpo do outro.
“Procure fechar os olhos e estabelecer contato com o outro. Como ele o afeta? Como os
corpos respondem às aproximações?”
“Dá vontade de fugir? De ficar mais um pouco? Traz uma sensação de conforto, ou não,
ou tudo de uma vez só?”
O silêncio ocupa esses momentos e, apesar de muitas solicitações, não coloco mú-
sica. Os elementos e intensidades ali presentes são, na maioria dos casos, suficientes.
“Senti um enorme desejo de ficar aqui, de tocar, de abraçar, não queria ir em-
Série Fotografar
125
bora”. (Juliana)
Achei engraçado, estranhei muito a proposta”.(Renata)
Automaticamente as mulheres se aproximam, fazem pose e sorriem, como se
fossem tirar uma fotografia. Percebo como é difícil desmanchar esse modo de “ser
olhado”. (grupo de mulheres da E.E. Lapa).
Num outro momento, ao entrar na foto, é possível tocar o outro com qualquer
parte do corpo, do modo que for conveniente, como a pessoa desejar.
26
Mais uma vez é possível que o fotografar funcione como parâmetro, inspiração e
indicação para o trabalho com as formas/corpos/sujeitos.
A fotografia, considerada como linguagem balizada por normas (sorrir, fazer uma
pose, mostrar-se de determinado modo), faz parte e atua nesse universo da imagem
que utilizamos na clínica. O esforço, então, é resistir a esses padrões e suscitar outras ex-
periências voltadas às afetações dos contatos e não uma busca de determinada forma
de contato seja dentro ou fora da fotografia.
Fotografias e intensidades
Em uma aula da disciplina Recursos Terapêuticos Alternativos, solicito que os partici-
pantes tirem fotografias uns dos outros, mas não qualquer fotografia. A pessoa fotogra-
fada vai acessar em si algum acontecimento, trazer para as superfícies sensações
provocadas pela imagem. O outro, que acompanha o processo, procura registrar um ins-
tantâneo do que ali se passa.
Vanessa conseguiu entrar na proposta. Concentrou-se de tal modo, que seu corpo fez
reavivar sensações muito delicadas. Odila, que estava à sua frente acompanhando o processo,
conta da dificuldade para fotografar aquele instante. Sentiu vontade de abraçá-la. Sentiu-se
constrangida por testemunhar tamanha intimidade.
Kátia conta que não conseguiu se concentrar, sentia-se muito exposta.
Mariângela diz que teve muita dificuldade para acessar uma imagem de um aconteci-
mento desconfortável. Deteve-se em um fato que lhe trouxesse conforto, alegria e assim pôde
26
Estes procedimentos serão aprofundados na série Tocar.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
126
experimentar em seu corpo aquela memória.
Suely não conseguiu, fez diferentes poses para ser fotografada por sua parceira.
Faz-se necessário ressaltar alguns aspectos que, tal como nos diz Barthes, saltam
ao nosso olhar. Ao re(atualizar) cenas intensas, o corpo consegue acessar também sen-
sações provocadas por outros momentos, através das marcas que se fizeram no corpo e
permitiram uma aproximação com uma matéria viva em estado de latência.
Relembrando Espinosa, podemos dizer que as imagens e suas afetações perma-
necem nos corpos construindo passados que reverberam no presente como ferida. Nas
palavras do próprio autor:
Denomino aqui uma coisa passada ou futura enquanto fomos ou seremos afetados por ela.
Por exemplo, enquanto vimos ou a veremos: enquanto nos alimentou ou nos alimentará;
enquanto nos feriu ou nos ferirá. Com efeito, enquanto imaginamos, isto é, o corpo não ex-
perimenta nenhuma afecção que exclua a existência da coisa, e, por conseqüência, o cor-
po é afetado pela imagem dessa coisa da mesma maneira se ela estivesse presente.
27
Acompanhar a intensidade vivida por Vanessa reitera essa afirmação.
28
Por outro lado, é possível também observar a dificuldade para acessar imagens e
sensações produzidas pela aproximação, principalmente quando evocamos algum
acontecimento desconfortável.
Os sujeitos/corpos bloqueiam ou impedem a experimentação do vivido, principal-
mente quando não se constrói um ambiente confiável para que as proposições possam
acontecer, ou quando os participantes não conseguem se sustentar em uma sugestão
que produz uma intensidade além dos seus limites e possibilidades.
Outra questão freqüente nos trabalhos com fotografia refere-se às respostas au-
tomáticas, determinadas por certos modos considerados mais “adequados” para se-
rem vistos, tal como mencionado anteriormente, afastando o sujeito da experiência e do
acesso à própria intimidade. No entanto, é importante pontuar que esses, entre tantos
outros trajetos, são possíveis e têm lugar na clínica aqui proposta.
Fotografamos ainda em uma das classes da graduação, umas às outras, observando
aquilo que no corpo do outro inspira, e afeta, permitindo o contato com a tecnologia fo-
tográfica a serviço do desejo, de aproximação, do punctum que atrai.
Muitos alunos falavam da timidez frente ao outro, da vergonha de se mostrar, do
desconforto de sentir-se “fotografado”. Observei não somente neste grupo, mas em vá-
27
DELEUZE, Gilles. Espinosa filosofia prática. Trad. Daniel Lins e Fabien Pascal
Lins. São Paulo : Editora Escuta, 2002.
28
Em outro procedimento que acontece em um trabalho entre olhares que será
apresentado na série Olhar, podemos testemunhar novamente as marcas das
afetações nos corpos.
Série Fotografar
127
rios outros, que as dinâmicas de fotografar e ser fotografado colocavam em estado de
proximidade pessoas que quase não se relacionavam ou que o faziam sem um contato
corporal mais direto. Além disso, o afastamento do ato de fotografar tão comum, mas tam-
bém tão banalizado e repleto de clichês, criava embaralhamentos e desconfortos difíceis
de assimilação e escuta.
Últimos flashes de um trabalho
Sensibilizados pela relação corpo/imagem, alguns alunos e profissionais puderam agu-
çar seu olhar, fotografar mais, observar cenas, utilizar a imagem com ou sem a posse de
uma máquina fotográfica, não como algo a ser alcançado – tal como ocorre na “venda das
imagens” de mundos-ideais, sem paradoxos, principalmente veiculados na mídia. Criou-
se a possibilidade de olhar para a imagem como registro – criação e ato que expressa o
vivido em tonalidades, formas e amplitudes várias – e viver, através das fotografias e do
ato de fotografar, condições que favorecem os encontros entre os participantes.
Como pudemos observar, o trabalho fotográfico, tal como o utilizo na clínica, é nor-
teado por um exercício permanente de resistência ao dado, àquilo que está na superfí-
cie e procura entrar em outras camadas mais profundas na tentativa de dar mais
densidade às experimentações.
A utilização da imagem – seja ela a fotográfica, centrada neste trabalho, seja a
captação em vídeo que será abordada em outro momento – funciona de forma ativa pa-
ra a produção de outras sensibilidades nos processos de subjetivação, pois permite dar
lugar ao inédito em contraposição à submissão a certos tipos de imagem que procuram
vender modelos de ser e estar no mundo.
Para finalizar é importante reunir e iluminar alguns traçados
29
construídos ao lon-
go desta série. Em primeiro lugar, vale ressaltar que adotei como foco central a tentativa
de desmanchar certo olhar em relação a um trabalho que envolve uma pesquisa fotográ-
fica pautada pelo tema dos corpos, exercitando um olhar que afetou os participantes, ou
seja, mobilizou questões, ativou memórias de momentos importantes da vida, produziu
problematizações, provocou um pensar sobre a vida, um aproximar-se das marcas regis-
tradas nos corpos como resultado de experiências consideradas significativas.
A abordagem do material fotográfico, mencionado anteriormente, foi orientada pe-
lo conceito de punctum,formulado por Barthes, numa busca por fotografias que funcio-
29
Me inspiro aqui na etimologia da palavra fotografia: photos = luz, graphein =
traçar, encontrada em Proust e a fotografia (op. cit. p. 96).
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
128
nam como uma flecha que atravessa o sujeito impingindo uma intensidade que causa um
motim dentro de si”
30
.
Em contraposição a este tipo de fotografia, nota-se a tentativa de resistir a todo o
momento, ao estabelecer uma busca de imagens que nada dizem e pouco mobilizam na-
quele que a elas tem acesso.
Neste caso, as fotos escorregam pelas mãos e não exercem qualquer influência
mais profunda nos sujeitos.
30
BARTHES, Roland, op.cit.
Série Fotografar
129
Ancoradas em registros estéticos determinados por valores predominantes como:
sou feio ou bonito, gordo ou magro, ou mesmo quando o participante conta apenas o que
está fazendo na foto, estamos diante de um modo de ver bidimensional, pouco profun-
do, que não se aproxima dos acontecimentos do instante fotografado, das ressonân-
cias da imagem nos sujeitos, não provoca um olhar mais profundo que vai ao encontro das
marcas das experiências que se expressam a partir do “ click” fotográfico.
Ressaltamos, no entanto, que o grau de afetação em relação ao sujeito e este ma-
terial não está vinculado apenas às qualidades da fotografia (que funciona como studium
ou punctum), mas ao encontro possível entre o sujeito e as fotografias que dependem de
vários aspectos:
• Do ambiente presente durante a proposta, ou seja, se existe um grau mínimo de con-
fiança para abordar questões íntimas que emanam das fotografias.
• Da maturidade emocional para o participante se aproximar de questões de sua vida.
• Da maturidade vincular construída no grupo.
• Da confiança que o grupo transfere para os coordenadores que orientam as discussões.
• Da possibilidade de estar atento àquilo que os outros participantes trazem e deixar-se
afetar pelas narrativas do outro.
• Da possibilidade de escapar de um registro apenas superficial ou bidimensional propos-
to pelas imagens e exercitar um olhar sobre os acontecimentosexpressos pelas imagens.
• Da possibilidade de abrir-se para um trabalho intenso através da fotografia, de seu in-
teresse ou despertar para as potencialidades de uma proposta que se utiliza das fotogra-
fias e de muitos outros elementos que favorecem e/ou dificultam esse tipo de trabalho.
As influências desses diferentes aspectos na produção singular dos encontros
de cada participante, com as suas fotografias e com as fotografias dos outros, ficam cla-
ras em algumas falas reproduzidas na série Fotografar, mas mostram também a nossa
busca, neste e em outros trabalhos que seguem, por um exercício do olhar que apro-
xime o sujeito de seu corpo, de seus vínculos, de como vive a sua vida, as questões que
realmente lhe importam.
Terminamos assim esta série atravessados por um aspecto fundamental em todo
o trabalho clínico: o olhar.
131
Série Olhar
“O seu olhar melhora o meu
Arnaldo Antunes
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
132
Série Olhar
133
N
asérie Fotografar, o foco da discussão estava nas relações que se estabeleciam
a partir do encontro entre os participantes das oficinas com as fotografias, com
o ato de fotografar e ser fotografado.
Ao terminar aquela série e entrar na questão do olhar, comecei a me questionar se aque-
les trabalhos, não tratavam de exercitar um tipo particular de olhar.
Assim, tomando como conceito fundamental a idéia de punctum, de Barthes, que
diferencia um tipo de fotografia que não me diz nada, de outro que entra como uma fle-
chae causa um motim dentro de mim, eu também estabeleço uma diferenciação entre um
tipo de olhar que não permite que o corpo seja afetado por aquilo que vê e um outro que
mobiliza, faz pensar, vitaliza a experiência tornando-a repleta de sentidos.
A partir desta constatação, não me parece possível falar somente da qualidade das
fotografias em si, mas das relações estabelecidas a partir do olhar do sujeito.
Foi possível perceber, nos diversos relatos, que alguns participantes olhavam as
fotografias de modos diversos e que os graus de afetação nesses encontros também
eram variáveis. Essa constatação me levou a buscar entendimentos sobre o que aconte-
cia nesses processos e, mais que isto, explicitar aquilo que buscava, não somente naque-
les procedimentos, mas em todos que envolvessem a visão e o olhar.
Além disto, observei um amplo repertório de exercícios em minha clínica que
abrangia o sentido da visão, impondo uma discussão mais aprofundada sobre o tema.
Partirei, primeiramente, da distinção entre o ver e o olhar, afirmando a opção por
uma busca do olhar nas propostas vivenciais e na análise das cenas e falas aqui apre-
sentadas.
Utilizarei como referência teórica algumas idéias de Hubert Godard a respeito do
corpo e, particularmente, sobre o olhar e o conceito de pequenas percepções retomadas
por José Gil(1996 e 2002), em sua metafenomenologia, sugerida a partir de Leibniz , em
que clarifica a diferença entre visão e olhar.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
134
A partir dessas distinções, farei uma análise mais detalhada a respeito do olhar,
procurando alargar e ampliar este conceito, em vez de substituí-lo por outro.
Nesta empreitada, mobilizarei também estudos já realizados neste campo pela
psicanalista Reis (2004) e por José Gil, que concentra suas análises na dança e em ou-
tras produções artísticas. Além disso, recorrerei, principalmente, à abordagem propos-
ta por Stern (1987, 1990), psiquiatra, psicanalista e etnólogo, que aborda os conceitos
de afetos de vitalidade esintonia de afetos e discute os níveis de organização construí-
dos pelos bebês.
Discutirei também algumas idéias a respeito do olhar e do corpo, a partir da pers-
pectiva de Keleman e Favre. Penso que as tensões e problematizações vindas de territó-
rios diversos que ora convergem ora se afastam, embora permitam apenas uma
aproximação inicial, são úteis para a análise de alguns dos procedimentos que envolvem
o olhar.
Sobre o ver e o olhar
José Gil
1
(1996) nos coloca frente a duas dimensões da visão: a primeira, ligada a uma ca-
pacidade inata do corpo, está relacionada ao sentido da visão, à capacidade de ver e
aos olhos, propriamente. Neste modo de contato com o mundo, estaria ativa uma visão
objetivadora que se limita a apreender o mundo como uma superfície rasa visível.
2
Em concordância com Reis, penso que este modo de ver está pautado por um cer-
to esquadrinhamento do mundo referendado em repertórios culturais, subjetivos, orgâ-
nicos e emocionais. O cineasta Win Wenders no documentário Janela da alma
3
atenta ao
fato de que o olho humano é diferente do olho de um animal como a águia, por exemplo;
de uma pessoa com olhos de águia, veríamos a pele com um nível de detalhamento ao
qual não estamos acostumados.
De qualquer modo, o que nos interessa pontuar é que este modo de apreender o
mundo está presente em qualquer encontro. Localizados na dimensão espaço-temporal
esquadrinhamos o mundo, conseguimos nomear e decifrar aquilo que vemos. E é pela
percepção que guiamos nosso encontro com o mundo.
Godard
4
nos diz que este tipo de percepção está relacionado a um olhar objetivo,
que trabalha no interior do órgão do sentido. Por meio de pesquisas atuais em neurofi-
siologia, Godard ressalta o fato de que se trata de um olhar analisado pelo cérebro cor-
1
GIL, José. A imagem nua e as pequenas percepções: estética e
metafenomenologia. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1996, p. 47.
2
Ibid., p. 47.
3
JANELA da Alma (documentário). Direção de João Jardim e Walter Carvalho. Rio
de Janeiro : Copacabana Filmes, 2001. 73 min, son.
4
GODARD, Hubert, Olhar Cego – Entrevista publicada em catálogo por ocasião
da exposição Lygia Clark: da obra ao acontecimento. Somos o molde a você cabe
o sopro organizado pelo Musée de Beaux – Arts de Nantes, França (08 de
Outubro a 31 de Dezembro de 2005) e Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil
(25 de Janeiro a 26 de Março de 2006) com a colaboração da Associação Cultural
“O mundo de Lygia Clark. Curadoria de Suely Rolnik e Corinne Diserens.
Série Olhar
135
tical, associado à linguagem. Que funciona apenas como recepção do mundo.
Segundo Gil, se fôssemos corpos visíveis simples (que não olhassem, mas apenas
vissem), não haveria reflexão, mas apenas duas visões em sentido contrário, paralelas,
sem contato: eu o vejo, ele me vê.
Em oposição ao olhar que estamos nomeando como exercício do ver ou da visão,
com funcionamento simultâneo a este, apresenta-se um outro registro de apreensão do
mundo, que para Godard está relacionado a uma outra área do cérebro – a subcortical.
A este tipo, o autor nomeia de olhar subjetivo, no qual há uma sensorialidade
que circula sem que seja necessariamente consciente e interpretada.
Para esclarecer ainda mais esta distinção, Godard assinala pessoas que em decor-
rência de um acidente perderam uma parte do olhar objetivo, cortical e que, colocadas
diante de uma cadeira, não conseguiam nomeá-la, mas podiam evitar a cadeira. Isso de-
monstra a presença de um olhar que não é ligado ao tempo, ou à história do sujeito, não
funciona a partir de uma interpretação, nem tampouco de um confronto entre o passa-
do e uma atualização do olhar; algo que seria relacionado a um olhar geográfico.
Para Gil, o olhar implica uma atitude que “não se limita a ver, mas interroga e es-
pera respostas, escruta, penetra e desposa as coisas e seus movimentos”
5
. Assim, quan-
do olhamos o mundo, algo é incluído em nós, em nossa subjetividade,somos afetados
por aquilo que vemos ao mesmo tempo em que emitimos algo de nós.
“Olhar um olhar é receber dele uma impressão, acolhê-lo de certa maneira e
mostrá-lo ao mesmo tempo, reagir através de um outro olhar ao olhar que recebemos”.
6
Essa consideração aproxima-se da reflexão de Godard para quem esse modo de olhar o
sujeito se projeta no espaço, não apenas “recebe” o mundo, mas exercita a capacidade
de fazer corpo com.
Outro aspecto fundamental para essa discussão é, como diz Gil, a sua capacida-
de de captar pequenas percepções
7
que seriam estados afetivos não categóricos, ou se-
ja, não nomeados pela palavra, nem tampouco apreendidos por uma visão objetivante.
Sobre as pequenas percepções, podemos dizer que existem como campo de sen-
sações, ações, expressão de afetos e criação e afetam-nos sem nos darmos conta
8
.
Por isso, temos um interesse particular na questão, pois nos encontros não estamos
apenas interessados naquilo que podemos apreender como uma experiência visualizá-
vel, mas em dimensões invisíveis, pouco demarcadas, que atravessam e estão presen-
tes no encontro entre corpos.
9
5
GIL, José, op. cit., p. 48.
6
Ibid., p. 51.
7
Grifo meu.
8
GIL. José, op. cit., p.113. (Grifo meu.)
9
Lembrar que estamos sempre tratando de corpos humanos ou não.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
136
Sobre as pequenas percepções
e suas implicações no olhar
As pequenas percepções apresentam uma qualidade intensiva que é pura vibra-
ção: “nela não vemos formas figurais, mas recebemos como um jogo de forças que se
apresentam como uma atmosfera, invisíveis à visão, mas apreensíveis à sensibilidade in-
tensiva do olhar”
10
.
Para Reis
11
, que discute a questão das relações entre analisando e analista nos pro-
cessos psicanalíticos, trabalhar no plano das pequenas percepções significa evidenciar
um “olhar” que apreende o que é invisível para a visão objetivadora: tensões, aberturas
e quebras de espaço, movimentos orientados de forças, suas cargas e suas potências. Pa-
ra ela, é nesta dimensão que emana uma superfície de contato entre os corpos, por on-
de cada um de nós se liga aos outros e ao mundo.
12
Outro aspecto presente nos encontros e que se relaciona ao exercício do olhar é
a capacidade, neste tipo de apreensão do mundo, de captar atmosferas presentes no en-
contro entre os corpos. A este olhar denominarei olhar atmosférico.
13
Tanto nas obras de José Gil quanto de Reis, fica clara a necessidade de pensar as
pequenas percepçõesque criam as atmosferas e podem ser apreendidas.
Para Gil, a produção de uma atmosfera num determinado encontro tem a proprie-
dade de transformar os corpos submetendo-os a um regime de forças que, por sua qua-
lidade intensiva, não estaria limitado à consciência.
Para ele, o corpo é um primeiro elemento visível que se rodeia de uma atmosfera
14
e, por exalar dos corpos, existe quase de modo autônomo e envolvente, fazendo-nos, por
exemplo, dizer: “está no ar” ou “a atmosfera que reinava na sala era do tipo
15
, eviden-
ciando uma dimensão para além dos limites da visibilidade dos corpos.
Podemos dizer ainda que seria um não sei o quê”
16
que captura, apazigua, dá
confiança, cria repulsa e que, como diz Reis, funda as relações de amor, transferência e
de influência.
17
No encontro entre olhares, diz Gil, tende-se a formar uma atmosfera única que
corresponde aos movimentos microscópicos de cada um. Essa atmosfera seria a for-
ma das forças presentes nos encontros, a partir da poeira das pequenas percepções
que ganham forma como atmosfera que pré-anuncia, faz pré-sentir a forma que se de-
senhará: a atmosfera muda, então, torna-se clima, assumindo somente ali determi-
10
GIL. José, op. cit., p. 34.
11
REIS, Eliana Schueler. De corpos e afetos transferência e clínica psicanalítica.
Rio de Janeiro : Editora Contra Capa, 2004.
12
Ibid., p.18.
13
Grifo meu.
14
GIL, José, op. cit., p. 223.
15
GIL, José. Movimento total: o corpo e a dança. São Paulo: Editora Iluminuras,
2004. p.119.
16
Grifo meu. Este termo será utilizado em muitos textos como referência ao con-
ceito de atmosfera.
17
REIS, Eliana Schueler, op. cit., p.18.
137
O outro que perturba
Regina Favre
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
138
nações e formas visíveis.
18
Não podemos esquecer que a atmosfera terá uma densidade,uma texturaeuma
viscosidade próprias, contendo nela mesma um número incalculável de diferentes at-
mosferas que compõem uma dinâmica complexa. Neste estudo, procuramos apenas
pontuar essa questão. Não se trata, portanto, de pensar as atmosferas como um conjun-
to de objetos ou uma estrutura espacial tal como a visão consegue apreender ou onde o
corpo se insira, pois não se compõem de signos, mas de forças que atravessam os corpos.
A este respeito Stern, em seus estudos sobre bebês, contribui para pensarmos nos
contatos entre olhares estabelecidos desde muito cedo nas interações entre mães e be-
bês, ao evidenciar a intensidade presente nesse tipo de aproximação e a sua permanên-
cia como capacidade ao longo da vida.
Acompanhemos mais de perto, a seguir, este território de contato.
Dueto olhares
OlivroDiário de um bebê: o que seu filho vê, sente e vivencia
19
foi escrito como um diá-
rio em resposta a indagações sobre a vida interior de um bebê: o que se passa em sua
mente quando ele fixa o olhar em um rosto e quando olha algo simples como um reflexo
de sol na parede ou as grades do seu berço. O autor analisa ainda o que acontece quan-
do um bebê brinca face a face com um adulto e discorre acerca de uma série de pergun-
tas que nos fazemos ao observar um bebê.
20
As descrições e reflexões realizadas pelo autor acerca do dueto de rostos e sobre
os sentidos do olhar que acontece nas interações entre a mãe e seu bebê servirão como
inspiração para muitas reflexões desenvolvidas nesta e em outras séries.
Esta aproximação se justifica pelo fato de, ao trabalhar na clínica, evocarmos
experiências muito precoces que marcam os corpos em suas relações com o outro. Uti-
lizamos exercícios que envolvem ver, abrir e fechar os olhos, aproximar e afastar os cor-
pos através dos fios de olhares.
Para Stern, o estudo dos rostos se dá desde que nascemos; segundo ele, o rosto
é especial por duas razões: porque o rosto dos pais é vivo, responsivo e também proque
promove desde muito cedo uma conexão especial com o outro.
21
O autor afirma também que, após cerca de dois a três meses de vida, o rosto hu-
mano tem poderes especiais. O rosto do bebê, desde sua sétima e oitava semanas de vi-
18
GIL, José, 1996, op. cit., p.52.
19
STERN, Daniel. Diário de um bebê: O que seu filho vê, sente e vivencia. Porto
Alegre: Editora Artes Médicas, 1991.
Partindo da observação dos próprios filhos, particularmente de seu filho Joey
e de outras fontes – pesquisas científicas principalmente referentes aos dois
primeiros anos de vida, informações e convivência com pais e bebês com os
quais pode colaborar como terapeuta.
20
STERN, 1991, op. cit.,p.13.
21
Ibid., p.50.
Série Olhar
139
da, age como um gatilho para desencadear sorrisos sociais e vocalizações.
Segundo Stern, em torno do olhar o bebê pode iniciar um encontro, afirmar a
sua potência e sua importância não somente nesta fase, mas sua capacidade conec-
tiva ao longo da vida. Essa capacidade é atualizada em muitas das dinâmicas que
acontecem na clínica.
Tal como num bebê, observo que os olhares esperam a resposta de um outro
olhar num jogo muito particular, vivido de modo singular e mutante a cada contexto
e configuração vivencial, evidenciando o caráter ativo, conectivo e provocador no
exercício do olhar.
Podemos dizer que o que está em pauta é este entre-jogo que acontece entre os
sujeitos, sabendo, que o olhar mútuo é sempre uma experiência intensa
22
, como tes-
temunharemos em muitas falas e cenas apresentadas, afirmando o olhar como ação e não
apenas recepção do mundo.
“O olhar mútuo é ainda bastante excitante e muitas vezes pode ser quase into-
lerável”.
23
Para Stern, em animais como os cães, lobos e grandes macacos o olhar mútuo
provoca agressão. Como veremos na clínica, surgem algumas tonalidades no encontro
entre olhares que, de tão intensos, fazem renascer vivências que se aproximam de res-
postas dadas por animais como um olho que se arregala após um susto; um desviar e “fa-
zer-se de morto” quando um contato se intensifica excessivamente. O mesmo se dá
quando 0 corpo se fecha na tentativa de escapar de um olhar penetrante, ou ainda, mo-
mentos em que se observam nos olhos os rastros de agressividade diante de uma pro-
posta invasiva que transborda e se densifica no ambiente captável apenas se os corpos
se abrem para pequenas percepções.
Curioso pensar que na prática clínica qualquer exercício que envolva em algum mo-
mento, mesmo que rapidamente, o encontro dos olhares, pode provocar uma imensidão
de respostas do corpo que podem ir do desconforto à alegria.
À luz dessas reflexões, descreverei a seguir dinâmicas que permitem maior
aproximação com as intensidades produzidas em algumas proposições que envol-
vem o olhar presente nas interações sociais mais intensas e imediatas, limitadas ao
contato face a face e ao “aqui e agora, entre nós”. Essas experiências se atualizam,
são (re) ativadas por alguns procedimentos que envolvem o olhar.
22
STERN, Daniel, op. cit., p.51.
23
Idem., ibid.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
140
Não olhe para mim agora
Série Olhar
141
Jogos entre olhares
Aproposta
24
é realizada primeiramente em duplas escolhidas ao acaso a partir de con-
tato corporal estabelecido durante um andar de olhos fechados pela sala e do encontro
com os outros participantes.
25
Os duetos iniciariam a experiência por meio do contato visual, deixando o corpo res-
ponder, afetar, acolher as sensações, acompanhar os movimentos.
Os olhos podem vagar, pausar, fixar, fugir, enfim, criar a sua coreografia a partir do que
acontece nos encontros. Esta é a consigna inicial que se desdobrará em outras vivências
não planejadas previamente.
As duplas se formam e criam diversos jogos de olhares. As propostas são orienta-
das pelo respeito aos próprios desejos e pela observação dos limites. Assim, quando um
dos componentes deseja, basta sair e quando alguém quer entrar, isso pode ser feito sem
a utilização da palavra,lembrando que iniciamos a dinâmica com pares e alguns partici-
pantes escolhem olhar de “fora” a experimentação.
Nos comentários, é possível identificar algumas atmosferas:
Silvana diz:
“Entrei num jogo de desviar meu olhar. A cada nova investida do meu parcei-
ro, eu fugia” (...) o olhar dele era tão forte que eu não conseguia me fixar”.
A participante que realizou a dinâmica com Silvana comenta que teve uma sensa-
ção estranha e que se sentiu muito “invasiva”. Queria dizer que tudo estava bem, que sua
parceira também podia olhar para ela, que não precisava fugir, mas observou que a ca-
da olhar seu, a parceira se desviava.
“Quando comecei a olhar para a minha parceira, senti vontade de abraçá-la,
mas não podia; assim resolvi mostrar, fazer com os meus olhos um abraço”.
Permaneceram próximas durante toda a experimentação e, ao final, foi observado
como os corpos das duas se colocaram quase na mesma posição, como em um espelho.
24
Esta dinâmica foi realizada em um dos encontros do grupo de estudos de
corpo e clínica.
25
Este é um desdobramento da dinâmica apresentada no início desta série, após
uma captação dos climas que acontecem simultaneamente ao sentido da visão
no encontro entre os corpos. Os participantes, em sua maioria, estavam
aquecidos o suficiente para viver e resistir a uma limitada aproximação com o
outro, com o grupo e a proposta.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
142
“Eu ouvia as duplas trocando, mas não queríamos sair dali”, comentou uma
delas.
Em outra dupla, a narrativa do encontro teve trajetória diversa. Juliana faz o seguin-
te comentário após a experimentação: “Quando te olhei, lembrei através de meu cor-
po, de outros olhares em diferentes ocasiões da minha vida. Um olhar acolhedor”.
Em resposta a este comentário, Fanny, a outra integrante da dupla, disse: Ao te
olhar te vi mais madura, diferente de outras vezes que te olhei como uma mãe que
olha para o seu filho”.
Como vimos na concepção de Keleman e Favre o corpo é construído a partir do que
os autores denominaram de formas emocionais. Temos assim as estruturas inatas, as for-
mas construídas a partir das experiências, vínculos, encontros e contextos (ligadas às his-
tórias que aquele corpo/sujeito vive e viveu bem como aquelas ligadas ao social, ao
cultural) que interferem e influenciam a construção dos corpos.
É na complexidade desses processos metaestáveis que os encontros entre os
corpos acontecem, ativam, acessam e produzem respostas singulares e variadas.
Ao analisar os relatos, inspirada em Keleman, observo que as experiências mar-
cam os corpos.Aoolharou tocar, entre outros tipos de aproximações e contatos corpo-
rais efetuados nestes e em outros procedimentos, é possível atualizar sensações, (re)
ativar memórias intensas, presentificando-as naquele instante, tal como ocorreu no en-
contro de Fanny com Juliana.
Em outras ocasiões, as marcas lembradas não necessariamente estavam rela-
cionadas a experiências anteriores gratificantes. Muitos relatos são de desconforto ou
Série Olhar
143
lembranças repletas de sofrimento. No entanto, o encontro com outra pessoa, em um con-
texto diverso, também pode permitir uma nova experiência, uma outra marca que vai
habitar aquele corpo.
Essa consideração é importante, pois os laboratórios realizados em T. O. não são
preparações ou ensaios para uma “vida lá fora”, mas um momento que pode certamen-
te afetar, produzir outros modos de se conhecer e se relacionar com o outro.
Fica muito claro nas observações clínicas e nas falas dos participantes como o
contato olho a olho pode ser intenso, centralizar e disparar muitas respostas: de um la-
do, vê-se um corpo que capta um olhar acolhedor e se abre para o encontro; de outro,
vê-se um corpo que se retrai frente a um olhar sentido como “invasor”, provocando o
enrijecimento muscular e tornando aquele corpo pouco poroso, pouco propenso à
aproximação.
É importante ainda pontuar que nessas interações não estamos representando al-
go da ordem do acontecido, como uma volta ao passado, mas (re) atualizando marcas que
se inflamam no encontro com o outro.
“Quando eu olhei para você, para seus olhos, eu vi os olhos de minha tia, de
uma amiga que tive, me emocionei, chorei. Foi muito intenso para mim”. (Juliana)
Após este comentário direcionado à participante que provocou estas memórias,
Diana diz:
“Vi um olhar de menina e senti vontade de dançar com você”. Esse comentário
inaugura uma outra questão:
O que o seu olhar provoca em meu corpo?
Transbordamentos do olhar
A partir da observação clínica, das falas dos participantes e dos estudos em torno do
olhar e da produção de atmosferas, pareceu-me central destinar um momento para tra-
tar do contato olho a olho e refletir sobre os efeitos provocados no corpo.
Considerei também que os olhares acompanhavam uma gestualidade – um tônus
corporal, um comportamento, signos não-verbais, todos impregnados de afetos –, que
provocava respostas muito refinadas que iam além da expressividade dos olhos.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
144
Para Keleman, o olhar acompanha e é parte de uma forma somática que organi-
za, estrutura e configura um comportamento motor/emocional metaestável.
Assim, quando analisamos propostas que envolvem o encontro entre olhares,
tratamos de encontros entre corpos que se olham, reagem, respondem e, ao mesmo
tempo, afetam a forma emocional.
Pode-se dizer que nos contatos corporais acontece uma conversa entre formas
emocionais, vinculares, que pulsam segundo afetos de acordo com as intensidades pre-
sentes no encontro.
Um olhar agressivo, por exemplo, é parte de uma estrutura somática que se ex-
pressa em determinado momento, contexto e ambiente em relação a uma determinada
situação ou acontecimento.
Da mesma forma, um olhar triste modula e é modulado por um corpo que constrói
uma arquitetura somática pouco conectiva ao ambiente, tal como verificamos em mui-
tos casos de depressão profunda.
Quando Silvana diz que se sentiu invadida pelo olhar de sua parceira, parece-me
que não estava invadida pelos olhos do outro, ou mesmo por seu olhar, mas por toda uma
atmosfera, um ambiente de contato que se configurava naquela relação.
Penso portanto, e esta é uma das minhas hipóteses, que o olhar acompanha um
estado de presença, que pode ser ameaçador, agressivo, perturbador, desafiador, amá-
vel, de acordo com as forças que se engendram no encontro.
Como vimos, esses estados de presença produzem atmosferas que criam um
ambiente entre as pessoas, presenças formatadas nas pequenas percepções que ema-
nam dos corpos, tal como vimos anteriormente.
Outra idéia bastante perturbadora, e que nos faz pensar que há um transborda-
mento necessário para a idéia de um olhar do corpo, está numa frase de José Gil:
“Não devemos esquecer, na sedução do olhar, o seu poder de irradiar sobre o corpo todo
(...) “É o corpo todo do outro que nos olha: a superfície da pele povoa-se de olhos, já não
é preciso olhar-se um olhar, basta olhar um corpo para ser captado ou seduzido por ele, pa-
ra receber a sua atmosfera ou a sua aura”.
26
Solicito que todos fechem os olhos e iniciem uma caminhada pela sala e que, ao encon-
trar outro participante ou “alguma coisa” (parede, obstáculo etc.), realizem uma pausa,
procurando captar a atmosfera produzida por aquele encontro.
26
GIL. José, 1996, op. cit., p.57.
Série Olhar
145
Ao se encontrarem, alguns participantes estabelecem uma aproximação corporal, tocam
uma parte do corpo do outro, permanecem no contato por alguns instantes.
Os arranjos são construídos e desmanchados várias vezes, com o mesmo parceiro ou no
encontro com outros componentes do grupo.
Depois de um tempo, e neste caso
27
para finalizar a proposta, solicito uma pausa em de-
terminada configuração.
“Como sentem as atmosferas nos encontros?
“Muda alguma coisa em cada novo encontro/configuração?”.
Orientados por estas perguntas, os olhos se abrem, observam a composição grupal.
Em seguida, como num susto, Bárbara, uma das participantes, pega sua máquina foto-
gráfica, tira uma foto; passa a máquina para outra participante que realiza o mesmo
gesto. Com isso, cria-se uma rede que envolve todo o grupo no gesto de fotografar uma
cena a partir de um olhar-lugar.
28
Depois, as pessoas fecham novamente os olhos e encontram um parceiro com o qual irão
trabalhar na próxima seqüência de exercícios.
Neste trabalho, como em outros, reforço a importância da concentração para cap-
tar as sensações das atmosferas que se anunciam no encontro entre corpos. Observo
que muitos participantes têm dificuldades de concentração, por isso sugiro que fechem
os olhos, como recurso para distanciá-los da visão que pode restringir o exercício do olhar.
Luciana se afasta um pouco de Claudia, permanece de olhos abertos como se
quisesse distanciar-se do contato, sai rapidamente do que chamo de seu corpo ambien-
te, dirigindo-se para um contato que possa produzir outras sensações. Durante a conver-
sa, realizada posteriormente, fica nítido o seu desconforto.
“Me senti muito incomodada ao olhar algumas pessoas. Busquei um lugar que
me permitisse olhar todo mundo à distância e acabei me sentindo fora do grupo”.
Bárbara circula por entre os corpos.Conta que foi tranqüilo se aproximar e se dis-
tanciar e que foi tomada por uma alegria quando pôde se aproximar das outras pessoas.
Diz ainda que não sentiu nenhuma vontade de abrir os olhos, deixando-se tocar pelo cli-
ma amoroso que sentia no grupo.
Para realizar esta dinâmica levo o grupo a um silenciar de palavras que, pouco a
pouco, permite aos corpos se abrirem para captar as pequenas percepções
29
que ema-
27
Em algumas oficinas o próprio grupo define o tempo de finalização da
proposta. Como este grupo tem como objetivo também refletir sobre os
procedimentos na clínica, sugiro experimentações que propiciem a vivência
corporal , mas que não se aprofundem necessariamente como o faria em um
grupo terapêutico.
28
Como já dissemos anteriormente, a fotografia permite o acesso a outros
aspectos impossíveis de captar quando se está implicado na experiência.
Através de algum distanciamento, é possível saber mais sobre os
acontecimentos. Cabe ressaltar que não estamos privilegiando uma distância,
mas experimentando lentes.
29
Como já discutido, o termo pequenas percepções é utilizado por José Gil (1996)
para tratar das percepções sutis que não podem ser nomeadas. “São unidades
infinitesimais de articulação (...), sinais ínfimos e invisíveis que povoam a
claridade do espaço em busca de linguagem”, p. 52 .
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
146
nam daquele acontecimento, reforçam na vivência a não necessidade da palavra como
conexão, pois, muitas vezes, estas habitam excessivamente uma proposta e, por isso, im-
pedem outros caminhos sensíveis.
Manuela rapidamente ficou silenciosa. O grupo, composto por oito participan-
tes, permitiu que o silêncio de palavras acontecesse.
As pessoas estabeleceram momentos para compartilhar intimidades, o que favo-
recia a dinâmica; porém, ficou claro naquele e em outros contextos que os contatos cor-
porais exigiam dos participantes outras disposições, tocavam a cada um de um modo,
mobilizavam e ativavam memórias, sensações e respostas às vezes muito delicadas e
quase imperceptíveis a “olho nu”.
Quando surgiam após a vivência, na maioria das vezes, as palavras não substi-
tuíam alguma angústia ou ansiedade do contato, mas expressavam aquilo que aconte-
cia nos encontros.
Além disso, nesta proposta as aproximações e os afastamentos dos corpos estão
sempre sinalizados por atmosferas e um olhar mais sensível permite captar e guiar-se por
aquilo que afeta.
Aninha, ao referir-se à dinâmica, fala da intensidade vivida naquelas aproximações.
“Mesmo diferente a cada contato ou configuração, estar muito próximo das outras fez
seu coração bater, um calor subir, uma vontade de permanecer ali por muito tempo.”
Este comentário revela que o exercício do olhar produz respostas variadas e sin-
gulares nos corpos que participam e expressam essas “com-posições”. Dores de barri-
ga, de cabeça, taquicardia, enrijecimento dos músculos são algumas manifestações
observadas e mencionadas pelos participantes como fruto dos contatos intensivos que
acontecem em algumas dinâmicas.
Não se pode separar então um corpo orgânico de um corpo “subjetivo”, pois são
dimensões de um mesmo corpo que formatam um ambiente metaestável
30
em cone-
xão e produzido por outros ambientes. Tal como Keleman propõe: um corpo que é par-
te da biosfera, produzido e produzindo realidades físicas, culturais, subjetivas, sociais,
históricas.
Outro ponto importante nessa dinâmica é a efetuação de linhas de fuga
31
que
compõem esta e todas as dinâmicas que produzem respostas, que se desviam do à
priori, tal como a máquina fotográfica que se presentifica na composição ou um gesto,
um andar, ou olhar que se formatam instantaneamente, às vezes de modo fugidio e
quase inapreensível à nossa sensibilidade.
30
Grifo meu
31
“A linha de fuga é uma desterritorialização (...). Esse conceito define a
orientação prática da filosofia de Deleuze. Observa-se, em primeiro lugar, uma
dupla igualdade: linha = fuga, fugir= fazer fugir. O que define uma situação é
uma certa distribuição de possíveis, o recorte espaço-temporal da existência
(papéis, funções, atividades, desejos, gostos, tipos de alegrias e dores etc). Não
se trata tanto de ritual de repetição morna, de alternância demasiado regulada,
de exigüidade excessiva do campo das opções–, mas da forma dicotômica, da
possibilidade disto ou daquilo, de disjunções de toda a ordem (masculino/
feminino, branco/preto etc) que estriam a percepção, a afetividade, encerrando
as experiências”.
Série Olhar
147
O que está em jogo não é o encontro entre os sentidos da visão, que procura cap-
tar uma perna, um braço, as costas, uma parede, esquadrinhando e revelando um es-
paço-temporal, que, implicado e produzindo espaços-tempo, acaba por impregnar-se
pelas intensidades que circulam e são produzidas pelos encontros.
Carolina afirma: “parece que consegui de fato estar próxima de algumas pes-
soas. Às vezes a gente está fisicamente junto de alguém e não sente”.
“Estou tão tocada por esta proposta, tem tanta intensidade aí, que minhas
pernas estão trêmulas”.
Podemos ainda notar que as respostas do corpo às afetações transitam pelas in-
tensidades que criam trilhas de excitação nervosa pelo corpo, constroem uma determi-
nada forma corporificada que permanentemente se constrói e se desmancha.
As pernas trêmulas, o coração que acelera, a respiração que bloqueia, o enrijeci-
mento muscular, o pulso que aumenta, as emoções produzidas pelo encontro, os pensa-
mentos que se multiplicam são algumas das possíveis respostas do corpo àquele
encontro, em um contexto em particular, o que mostra que fazemos corpo a cada instan-
te num processo infinito que age e reage nos e aos ambientes.
Sintonia de afetos
Entra em cena agora um outro conceito cunhado por Stern (1992) que facilitará a nossa
compreensão do que acontece não somente nas interações olho a olho, mas no encon-
tro entre corpos: a sintonia de afetos.
A principal hipótese formulada e desenvolvida por Reis é que a sintonia afetiva
32
se funda na dimensão das pequenas percepções, de onde emana, como já dissemos, uma
superfície de contato entre os corpos.
Para ela, algumas propostas – e eu diria em alguns procedimentos utilizados na
clínica que mobilizam os corpos para o contato – nos remetem a experiências muito
precoces.
Em consonância, para Stern só é verdade histórica aquilo que faz parte da lingua-
gem verbal; para ele, os bebês são psiquicamente ativos desde o início da vida, com
uma relativa autonomia mental, afetiva e cognitiva que os leva a participar da construção
de seu mundo ambiente.
33
O desenvolvimento dessas capacidades inatas e sociais implica uma elaboração
32
Grifo meu.
33
Termo cunhado pelo etólogo Jacob Von Uexküll que corresponde “ao mundo
experimentado, com suas cores e formas, seus sons e aromas, as suas dores e
seus prazeres” (Uexküll, 1933: 9).
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
148
subjetiva constante, relacionada a organizações de diferentes domínios do relacionar-
se, denominados pelo autor sensos do eu e do outro.
34
Esses sensos do eu são maneiras de estar no mundo compostas por sensações
de um corpo único, experienciador dos sentimentos, realizador de intenções, tradutor do
vivido em linguagem, comunicador e compartilhador do conhecimento pessoal.
O que nos interessa é que essas organizações são domínios de sensos do eu que
se sucedem em categorias cada vez mais complexas, que permitem ao bebê relacionar-
se e criar seu mundo ambiente em possibilidades cada vez mais refinadas e que perma-
necem ao longo de toda a vida.
Para Stern são quatro os sensos do eu: emergente, nuclear, subjetivo e verbal.
Quando trabalhamos com o não-verbal e buscamos experienciar um olhar que capta at-
mosferas, ativamos capacidades que correspondem essencialmente aos dois primeiros
sensos, às primeiras formas de experiência subjetiva não-verbal e, como diz Eliana Schue-
ler, envolvem a dimensão corpórea e sensória.
35
Tomando a discussão anterior sobre as pequenas percepções que emanam dos
corpos, podemos aproximá-la do conceito de afetos de vitalidade proposto por Stern. Se-
gundo o autor, o domínio do senso do eu emergente é regido principalmente por afetos
de vitalidade que, tal como nas pequenas percepções, não são regidos por qualidades
definíveis que implicariam uma categorização formal e conceitual dos estados afetivos.
Por meio de suas narrativas a respeito de experiências vividas por bebês muito no-
vos, Stern nos coloca imediatamente frente à potência dos recém-nascidos que, segundo
ele, permanece em nós ao longo da vida como capacidade importante e ativa, os afetos de
vitalidadeque exprimem a potência de vida de um afeto, uma “força de afirmação”.
Para Stern, estas sensações podem ser apreendidas, no limite, apenas como afe-
tos categoriais, macroscópicos como alegria, medo, surpresa, mas modulados pelo que
o autor denomina de potência vital, que está no campo da virtualidade, inapreensível à
nossa capacidade perceptiva.
Com isso, o autor afirma uma outra qualidade de experiência que pode surgir dire-
tamente no encontro com pessoas: afetos de vitalidade, qualidades de sensações que não
se ajustam ao léxico ou à taxionomia de afetos existentes. Para Stern, essas qualidades
indefiníveis são mais bem capturadas por termos dinâmicos, cinéticos, tais como “surgin-
do”, “desaparecendo”, “passando rapidamente”, “prolongando” e assim por diante.
São essas sensações, tão presentes nos bebês, que procuramos acessar em al-
guns procedimentos, pois são “formas de sensações envolvidas com todos os processos
34
STERN, Daniel. O mundo interpessoal do bebê. Porto Alegre: Editora Artes
Médicas, 1992.
35
REIS, Eliana Schueler, op. cit., p.95.
Série Olhar
149
vitais da vida, tais como respirar, ficar com fome, eliminar, adormecer e acordar, ou sen-
tir o ir e vir das emoções e pensamentos.”
36
.
Em muitas vivências que possibilitam os contatos corporais e prescindem das
palavras, fica claro que estamos ativando modos do relacionar-se muito precoces, refi-
nados e bastante potentes nas interações entre os sujeitos/corpos.
Cabe ainda pontuar que os afetos de vitalidade ocorrem tanto na presença quan-
to na ausência dos afetos categóricos como alegria, tristeza e assim por diante. O que os
diferencia é a sua qualidade ou, podemos dizer, a intensidade do que Stern denominou
de “sobrecarga”. Como exemplo, o autor sugere imagens: uma inundação de luz perce-
bida; uma seqüência acelerada de pensamentos; uma imensurável onda despertada
por uma música, entre outras.
Observo que em alguns momentos na clínica, os afetos de vitalidade funcionam
como um rompante de determinação, expressos num determinado encontro com uma
música, com uma proposta, no encontro de um corpo com outro, com uma dança, com
uma fala, sem recorrer à trama ou aos sinais categóricos dos quais os afetos de vitalida-
de podem ser derivados.
36
STERN, Daniel, 1992, op. cit., p.48.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
150
Stern explica ainda que os afetos de vitalidade estão presentes antes da consuma-
ção de certo padrão, como é o caso do bebê que inicia as suas tentativas de colocar o po-
legar na boca e é acompanhado por uma grande excitação até que o ato consumado
diminua a excitação e torne-se assimilável. Este hiato, intervalo, ensaio ou preparação não
deve ser desconsiderado nas vivências, mesmo que seja extremamente difícil dar um con-
torno a esses processos presentes em cada experimentação, em cada exercício.
Para Gil, os afetos de vitalidade referidos por Stern, não são nem discretos nem ma-
croscópicos, mas microscópicos e contínuos, ou seja, estão numa dimensão da invisibi-
lidade, relacionados a campos de forças que atravessam os corpos
37
. O outro olhar aqui
estudado e impossível de apreensão parece estar banhado por estes afetos de vitalida-
de que fogem de qualquer categorização.
A partir dessas considerações, o olhar que nos interessa é fecundado por movi-
mentos objetivos, ou seja, por aquilo que é possível ver e codificar pela consciência e si-
multaneamente por esse outro olhar atmosférico que comporta uma potência vital e
prescinde dos olhos abertos, atentos para sua efetuação nos corpos. Para Stern, os pro-
cessos afetivos e cognitivos não podem ser separados. A aprendizagem, ela própria, é mo-
tivada e carregada de afetos. Da mesma forma, em um momento intensamente afetivo,
a percepção e a cognição continuam.
38
Assim, nesta concepção do olhar navegamos novamente por regiões de fluxos
intensivos, campos de força ou excitações expressas por estados de presença que se
atualizam nas formas dos corpos apenas provisoriamente estabilizadas.
Em concordância com Reis, parece-me possível associar as pequenas percep-
ções aos afetos de vitalidade, pois ambos seguem registros muito próximos, definidos
por forças intensivas fora do registro da visibilidade ou da linguagem. Essa correlação nos
permite ainda dizer que a sintonia afetiva se funda na dimensão das pequenas percep-
ções, das quais emana uma atmosferaque permite o contato entre os corpos na sutile-
za que buscamos viver e explicitar.
É nesta modalidade que pensamos quando sugerimos, nas oficinas, contatos
muito próximos e delicados entre os participantes.
37
Ibid., p. 87.
38
Ibid., p. 37.
Série Olhar
151
Formas do olhar ou os olhares da forma
Para dar prosseguimento à análise de outros procedimentos, partirei de exercícios já
apresentados em outras séries e que são desencadeados pelo sentido da visão, brin-
cando com propostas de abrir e fechar os olhos, afirmando mais uma vez a amplitude
do nosso conceito sobre o olhar.
Como vimos, não é possível purificar as experiências, mesmo aquelas impulsio-
nadas ou desencadeadas pelo sentido do ver (no contato com uma imagem, com o ou-
tro, com uma cena clínica), pois os olhos estão em ação num corpo complexo, aberto,
envolvendo o que chamei de ambientes corporais
39
, onde aquele que vê com os seus
olhos, vê com o seu corpo inteiro.
Nessa discussão abordei o mesmo procedimento apresentado na série Fotogra-
far no qual em duplas um dos pares faz uma forma com o seu corpo e o outro olha es-
ta forma de diferentes modos.
Quando sugiro esse exercício está em jogo a produção de formas/fotografias iné-
ditas que procurem romper trilhas habituais de construção para exercitar leves e quase
invisíveis variações.
Um outro aspecto daquele procedimento, e que agora nos interessa, é quando
o parceiro é chamado aolhar a forma construída de diferentes modos
40
; para tanto,
o participante, ora se afasta, ora se aproxima, olha de diferentes ângulos, detalha,
exercita um olhar mais panorâmico, entre tantos outros criados e experimentados
pelas duplas.
Novamente proponho a questão:
Como aquela forma me afeta? Como meu corpo, responde a esta afetação? Como a mi-
nha forma afeta o outro ao olhá-lo de diferentes modos?
Margeando tais procedimentos, podemos dizer que entramos no que chamarei de
jogos entre corpos que se olham
41
experimentando diferentes focos e lentes, conecti-
vidades e sensações a cada novo “enquadramento”.
As aproximações e afastamentos do olhar/formas geram comentários que mere-
cem atenção, pois delimitam campos diversos para a nossa análise.
“Me senti muito mal ao ser olhada, fiquei extremamente constrangida com a
39
Paradoxalmente não é possível dizer sobre procedimentos do olhar com os
olhos, mas é o corpo todo que olha, por isso é possível falar de um “olhar com um
corpo”. Eu não olho só com os olhos. É aí que reside toda a questão. É todo o
corpo que se põe em ação: produção de gestos, emoções, pensamentos,
imagens, posturas etc.
40
Compreender sempre olhar como afetação.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
152
proximidade do contato”. (Sueli)
“Lembrei que na rua todos me olham e parece que a primeira coisa que vêem é
o meu defeito”. (Jorge)
“Estou acostumada, sou olhada o tempo inteiro, desde pequena: pelas pessoas
da rua, pelos meus pais, pelos terapeutas”.(Madalena)
“Quando as pessoas olham para mim no ônibus eu logo desvio o meu olhar,
acho chato”. (Cinthia)
“Não estamos acostumadas com este jeito de ficar olhando uns para os ou-
tros. É cultural”. (Silvana)
Nesses comentários podemos observar as dificuldades e ressonâncias de uma
proposta que proporciona e oferece uma aproximação corporal.
No caso de Jorge o foco estava na sua deficiência, como algo que ele sente que cap-
tura o olhar do outro. De fato, no workshop que Jorge realizou junto a participantes não
portadores de deficiência, às vezes ficava nítida a predominância de um olhar do outro
que ora focava, ora desviava seus olhos da parte deficiente do corpo.
A tentativa naquele trabalho foi proporcionar outros olhares para o gesto criado
por Jorge: viver a interação entre dois corpos que dançam, que ora se aproximam e se afas-
tam, problematizando, por exemplo, o olhar envolto e referendado por padrões de bele-
za/feiúra; familiaridade/estranhamento que constroem um modo não somente de olhar,
mas de ser olhado na relação com o outro.
A partir da fala de Madalena, também portadora de uma deficiência, surge também
a percepção sobre os olhares para o seu corpo. Ela dizia não se incomodar com esta aten-
ção “maciça” que sempre recebeu desde pequena.
Paradoxalmente, outros participantes que não eram portadores de deficiência
expressavam incômodo e desconforto intenso ao serem olhados, o que mostra a impor-
tância das experiências vividas na produção de modos de olhar e ser olhado.
Na fala de Cinthia e Silvana surge o aspecto referente às influências das formas cul-
turaisque constroem os corpos: lugares onde não cabe um olhar mais diretivo, olhares
que procuram outro olhar em determinado ambiente social trazem à tona uma discussão
sobre os modos de olhar e se comportar predominantes em cada época, em cada
Série Olhar
153
contexto que constrói e faz parte do repertório comportamental. A esses comportamen-
tos, observamos as mais singulares respostas: olhar mesmo que não seja permitido;
adequar o corpo e o olhar às normas vigentes; sentir vergonha de olhar; olhar justamen-
te para se opor à norma, entre outras respostas que cada corpo pode produzir em dife-
rentes situações, momentos, contextos, ambientes.
Ao contrário, eu fico olhando para todo mundo e percebo como algumas pes-
soas se incomodam e tentam desviar o olhar”.(Leila)
“Me incomoda o tanto que você me olha.”(Ismael)
“Quando olho de muito perto meu parceiro, sinto-me muito invasiva. Sinto
que estou invadindo meu parceiro e sinto certo desconforto.” (Karen).
“Eu levei a proposta como uma brincadeira. Me diverti afastando e me aproxi-
mando do meu parceiro.” (Marcos)
“Eu fiquei tão longe que perdi o contato com o meu parceiro.”(Talita)
“Eu fiquei olhando cada detalhe, cada lugarzinho do corpo.”(Suzana)
“Eu presto mais atenção aos olhos do meu parceiro. Ao jeito dele me olhar.”
(Márcia)
Observo que não é possível padronizar uma única resposta para quem olha e tam-
pouco para aquele que está sendo olhado.
Noto ainda que cada contexto produz um tipo de conversa corporal, determinada
pelas forças presentes no encontro.
Carlos, Márcia, Suzana, por exemplo, poderiam viver uma sensação diferente se
experimentassem o trabalho com outra pessoa. Podemos dizer que as trajetórias e
narrativas são muito específicas e que nas falas captamos algumas sutilezas e possi-
bilidades.
Em muitas oficinas observo também as diferentes velocidades com que os olha-
res acontecem. Às vezes as “lentes” são trocadas muito rapidamente, outras vezes
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
154
permanecem no mesmo foco por mais tempo; alguns se deslocam mais, outros perma-
necem próximos ao corpo do parceiro, alguns ainda preferem ficar no lugar de quem
olha, outros no lugar de quem é olhado.
Observo também que essas variações têm a ver com muitos elementos: histó-
rias e experiências singulares, graus de intensidades presentes nos contatos, momen-
tos do processo grupal, questões que habitam cada participante e o grupo, vínculos,
maturidade dos corpos, coordenação do trabalho e inúmeros outros aspectos que serão
nomeados nas cenas e nas narrativasapresentadas.
Para Lima (2004), a
construção do olhar não se dá em isolamento, pois é atravessada por um campo simbóli-
co no qual cada um de nós está imerso e que nos oferece ferramentas para realizá-los. Is-
to faz com que a percepção visual não seja somente uma ação fisiológica, mas seja
também cultural e subjetiva
42
.
Por outro lado, também somos afetados por “visões” e experiências que não
necessariamente fazem parte de nosso repertório, perturbam de tal modo nossos
contornos que podem tornar-se inassimiláveis, produzir um corpo que reage àquilo
que lhe é excessivo.
Assim, não podemos, a partir da perspectiva apontada por Keleman, trabalhar
com um conceito de visão sempre controlado pelo nosso campo de visibilidade, pois, co-
mo vimos, os acontecimentos são efetuados no campo das invisibilidades.
Aqui se insinua novamente, na observação clínica, a diferença entre certa idéia de
visão e uma outra que vai se construindo em relação ao olhar. A despeito desse olhar, afir-
ma Gil (1996) que a “linguagem não-verbal do olhar não usa signos ou, se o emprega, é
para acto contínuo os dessemiotizar: visa constituir atmosferas para melhor lançar e
captar forças”.
43
Hiatos e aproximações: encontro
e criação de formas
Um participante faz uma forma, o outro olha. Sendo afetado pela composição e aproximando-
se do parceiro faz uma outra forma que componha com a “forma experimentada no corpo”, cria
uma escultura viva; o desmanchar é acionado por um dos participantes.
42
LIMA, Elizabeth M. F. Araújo. A Análise de atividade e a construção do olhar do
terapeuta ocupacional. Rev. de Terapia Ocupacional da Universidade de São
Paulo, n. 2, 2004, V.15, p.43.
43
GIL, José, 1996, op. cit., p.50.
Série Olhar
155
O trajeto de ir, vir, formar, compor, pausar, sair é realizado algumas vezes pela du-
pla até que a partitura seja finalizada pelo duo ou pelo coordenador que, ao captar o cli-
ma grupal em suas possibilidades de sustentar e criar algo fértil, sinaliza uma pausa
para os jogos que ali se articulam.
No início ou durante o trabalho, proponho que os participantes procurem sus-
tentar um hiato, uma pausa, uma hesitação entre um movimento e outro para que algo
possa acontecer na contramão da velocidade e da codificação rápida de determinado pa-
drão de funcionamento em resposta às intensidades dos encontros. Observo que as res-
postas também acontecem porque existe uma qualidade intensiva nos encontros que
deve ser considerada, pois modulam os corpos, distâncias, tensões, formas do corpo.
Observo ainda que muitos participantes se obrigam a interagir, com o outro, inva-
dir e ser invadido sem qualquer ação.
Muitas vezes sou surpreendida pela necessidade de pontuar aspectos ligados
ao permitir-se, autorizar-se a não ir, esperar, deixar-se afetar, estabelecendo fronteiras
móveis próximas aos desejos.
Nesse sentido, é importante acentuar a importância de uma coordenação sensí-
vel, delicada, firme e prudente, durante a realização destas propostas, pois no jogo de
aproximações e afastamentos entre os corpos são ativadas emoções, memórias, sensa-
ções muito delicadas que exigem um olhar clínico bastante refinado e cuidadoso.
Assim, autorizar cada participante e o grupo a dar atenção aos seus limites e pos-
sibilidades, aos seus desejos, à realização de escolhas nas proposições, auxilia para
que a experiência aconteça de modo suficientemente seguro, constrói o que já chama-
mos de um ambiente confiável.
Algumas indicações exprimem a qualidade intensiva desse trabalho:
“Não precisa necessariamente tocar no corpo do parceiro. Uma leve e delicada
aproximação já é suficiente para produzir momentos de forte intensidade”.
“Só olhar para o parceiro e ser olhado por ele já produz um turbilhão dentro de
cada um.”
As diferentes modalidades de encontros são possíveis; não existe uma única re-
gra a ser seguida, apenas indicações.
Observo muitas vezes que as duplas funcionam de um modo bastante rápido,
criam e desmancham formas sem um intervalo entre olhar e compor. O tempo de afeta-
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
156
ção fica comprimido e a dupla pode muito facilmente entrar num movimento automáti-
co e perder a consistência do contato.
“É muito difícil ficar olhando e só depois pensar no que tenho vontade de fazer.”
(Manuela)
“Não fico pensando, vou fazendo, vou me colocando.”(Sandra)
“Não sei o que aquela forma produziu em mim, tanto faz.”(Flavio)
“Cada nova forma eu curti, deixei as sensações me tomarem e só aí eu me apro-
ximava de meu parceiro.”(Alexandre)
“Olhar para mim já foi suficiente.”(Marisa)
“Eu preferi fazer do que olhar.” (Leo)
As formas dos corpos, dos duetos, constituem uma das camadas
44
do processo
que envolve a visão e produz sensações, inspirações, desejos e diferentes modos de
contatos.
As falas aqui apresentadas mostram trajetórias singulares que procuram dar cor-
po para a afetação vivida.
Keleman diz que existem duas direções possíveis para as afetações (intensidades)
ou excitações.
Elas podem ser assimiláveis, ou seja, um corpo consegue a partir de suas formas,
camadas, maturidade vivencial, história, experiências, vínculos sustentar e dar lugar
para a afetação/encontro. Quando isso acontece, os corpos estabelecem uma relação vin-
cular/emocional e iniciam uma conversa. É importante notar que ao ser afetado, o cor-
po conversa dentro de si e não na direção da fonte de excitação.
Esse ponto é fundamental, pois desconstrói a idéia de que respondemos somen-
te ao outro. Primeiro a resposta deve acontecer e ser possível “para si”, para o corpo afe-
tado; é a partir disso que o corpo age em direção à fonte. Uma mesma fonte de
intensidade pode ser suportável para certa organização somática e insuportável para ou-
tro corpo. Tudo dependerá do encontro engendrado.
44
Lembrar do conceito de forma como borda do acontecimento.
Série Olhar
157
Outra possibilidade é quando acontece uma excitação excessiva e inassimilável,
em determinado momento, em uma organização contemporânea ao acontecimento.
Nesse caso, diz Keleman, a excitação volta para o próprio corpo e acontece o que ele de-
nominou de um reflexo do susto, em que o corpo tenta usar um mecanismo para lidar com
o alto grau de excitação a fim de “barrar” a afetação.
O reflexo do susto envolve uma série de posturas que alteram a pulsação das ca-
madas, do diafragma, da respiração, das bolsas e tubos do corpo, podendo provocar
sentimentos temporários de irritação, medo, depressão, raiva, mas que voltam ao nor-
mal quando a agressão ao corpo é inibida em um grau de suportabilidade daquela forma
emocional.
Quando não há ativação do reflexo do susto, o corpo pode vincular-se e produzir
um acontecimento relacional, tal como nomeado pelos participantes, mesmo que as
emoções presentes sejam da ordem da vergonha, alegria ou desconforto nos contatos
corporais. No entanto, em alguns momentos presenciei paralisias, ou mesmo “fugas da
sala”, resultado da intensidade de contatos e aproximações corporais, que mostravam
a delicadeza das propostas.
Após essas estas considerações, deixemo-nos afetar por impressões dos partici-
pantes de várias oficinas:
“Fiquei muito envergonhado com este olhar.”(Samuel)
“Sinto que meu olhar é desconfiado, que não consigo olhar de frente para o meu
parceiro.” (Patrícia)
“Um olho olha para um lado e o outro parece que olha noutra direção.”(Carla)
Tenho muita dificuldade de olhar para quem quer que seja.”(Vanessa)
“Meu olho caminha por todos os lados, sou extremamente curiosa.”(Cristina)
“Quando fico cansada, o primeiro lugar em que observo este cansaço é nos
meus olhos”. (Flavia)
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
158
Composições e olhares: introdução
aos trabalhos de improvisação
Muitos dos exercícios do danceabilityou mesmo os exercícios de improvisação propos-
tos por Lisa Nelson caminham nestas direções: do contato olho a olho, entre os corpos
com e sem utilização do sentido da visão, aproximação face a face, distanciamentos e
aproximações a partir de movimentos no espaço, exercícios em duplas, trios, grupos em
diferentes configurações.
Fica expressa nestes trabalhos a complexidade que é encontrar um outro seja
com o start dado a partir de um jogo de olhares, ou no tocar partes de corpos de um
ou de outro, chegar corporalmente mais próximo, realizar alguma experimentação em
parceria. Pode acontecer do participante ficar perturbado, gostar, sentir-se confortá-
vel, com vergonha, desconfortável, tudo isso ao mesmo tempo, ou passar de um es-
tado a outro.
Lembrando os estudos de Stern, podemos dizer que as interações relatadas pe-
lo autor acerca dos bebês permanecem por toda a vida: o jogo das expressões e olhares,
a tentativa de, através das interações, manter a experiência.
Tais momentos não acontecem sempre ou o tempo todo: são pequenos e breves
acontecimentos, que marcam a convivência da dupla, trio ou o grupo quando estão in-
tensamente envolvidos no desenrolar dos desdobramentos das propostas. Mesmo não
sabendo exatamente o próximo passo, inventam à medida que se envolvem, tal como
descreve Stern a respeito de cenas de interação entre seu filho Joey e sua mãe.
45
Olhares e trajetos
As propostas de improvisação e criação de Lisa Nelson utilizam muito o caminhar e abor-
dam principalmente a relação entre olhos abertos e olhos fechados.
Diversas dinâmicas que envolvem o andar como deslocamento no espaço inter-
ligam-se a exercícios que também podem envolver o olhar, centralizar os exercícios no
sentido da visão com o objetivo de romper automatismos e hábitos construídos por um
certo “olhar viciado”.
45
STERN, Daniel, 1992, op. cit., p.52.
Série Olhar
159
Logo no início de um workshop que participei, Lisa propõe que a escutemos de
olhos fechados. O corpo rapidamente se coloca em determinada postura para ouvir
e Lisa sugere então que procuremos desmanchar essa postura, fato que dificulta a es-
cuta, produz estranhamento.
Essa proposta revela mais uma vez o quanto o corpo é domesticado e se constrói
na funcionalidade modos que, cristalizados, podem empobrecer nossa capacidade de en-
frentar e criar situações.
Na seqüência dessa primeira e rápida constatação da força da padronização de
comportamentos, Lisa propõe uma série de exercícios que me inspiraram depois em
muitos outros que criei a partir dos sentidos do olhar.
46
Apontarei alguns desses aspectos concentrando a atenção em suas repercus-
sões no encontro entre corpos e paisagens.
Andar pela sala de olhos abertos, experimentando fechá-los; abri-los quando achar ne-
cessário e sentir-se seguro; trabalhar para que isso aconteça, sem determinar de ante-
mão um tempo único para os olhos fechados ou abertos.
O tempo de cada um é singular. É importante perceber a vontade ou necessidade
de abrir ou fechar os olhos, guiar-se da maneira mais conveniente e possível, experi-
mentar-se nas duas situações.
“Quando fecho os olhos me sinto muito insegura, minha vontade é abrir logo
os meus olhos.” (Cristina)
“Coloco as mãos na minha frente, elas me dão segurança.”(Lilian)
Tenho medo de bater nos outros.”(Glaucea)
“Não gosto deste tipo de trabalho, prefiro ficar de olhos bem abertos”. (Lourdes)
As experiências revelam pessoas, seus modos de funcionamento; ao mesmo tem-
po, permitem novas possibilidades do corpo se movimentar.Muitos exercícios são rea-
lizados com os olhos fechados: embaralham modos, permitem o contato com outros
46
As falas aqui apresentadas foram retiradas das oficinas que ministrei, pois no
workshop coordenado por Lisa não havia a proposta de conversar sobre os
efeitos dos exercícios.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
160
sentidos e recursos do corpo, trabalha-se com outras sensibilidades.
A proposta de Lisa Nelson tem como base essa relação entre olhar e fechar os
olhos. Muitos exercícios trabalham essas mudanças de estado e chamam a atenção
para a primazia do uso do olhar em detrimento dos outros órgãos dos sentidos e so-
bre o maior número de músculos nessa região. De fato, estamos acostumados a nos
guiar principalmente pela visão.
Tratarei a seguir de alguns outros exercícios que circulam por esta mesma região:
Andar pela sala de olhos abertos e, ao encontrarmos outro corpo, nos mantermos por um
tempo no que Lisa chama de ‘stillnes’; então, os olhos se abrem e ficam “parados”. Ou,
ao contrário, caminhamos de olhos abertos e, quando encontramos alguém, ficamos em
stilness’e os olhos se fecham.
Experimentamos assim as relações fazendo “pausas” no sentido da visão, nave-
gamos pelo espaço guiados por outros referencias. Embaralhamos os enquadramen-
tos habituais com que o corpo está adaptado a funcionar.
O que vai primeiro puxando o movimento pelo espaço? São os olhos, os pensamentos,
os movimentos do corpo?
Os corpos às vezes se batem. Alguns de olhos fechados caminham muito rapi-
damente, acidentes e pequenos gritos acontecem neste workshop que realizei com
Lisa Nelson, mas também em muitos que ministrei. Outros se movem muito lenta-
mente: cada passo é uma conquista cautelosa e quando encontram um outro corpo,
sentem alívio.
Instantes em que os corpos querem se aproximar, outros em que se distanciam ou
mesmo situações em que regiões diferentes do corpo tendem para posições diversas e
mutantes de contato. São esboçadas, assim, aproximações e/ou afastamentos em rela-
ção ao outro, ao grupo ou mesmo à proposta.
Às vezes parte do corpo quer andar para frente e outra parte, talvez mais cautelo-
sa, quer se manter um pouco mais atrás, tal como notou uma aluna em um dos laborató-
rios na graduação. Ela experimentou a sensação de mover-se com a cabeça projetada para
a frente, tronco e quadril voltados para trás como se não quisessem andar. Ao final da ex-
periência, ela fala sobre seu medo dos encontros e das estratégias que tem utilizado na
Série Olhar
161
vida em relação ao estar com os outros.
47
Na prática clínica e nas aulas de laboratório com os alunos, observo ainda o “des-
concerto” que o corpo às vezes vive ao fechar o contato visual de comunicação com o
mundo.
Composições no escuro
Para finalizar esta série serão contemplados vários exercícios de criação em duplas, trios
e grupos nos quais o tema do olhar está presente.
Esses exercícios poderiam também, tal como acontece com outros, ser apresen-
tados na série Improvisar, pois também são atravessados por fluxos de criação presen-
tes em todo o trabalho clínico; ou ainda na série Mover e pausar, pois tratam de
circulações pelo espaço. Porém, por estabelecer uma posição “cega” em alguns traba-
lhos, considerei pertinente analisar esse material nesta série, que procura desconstruir
o olhar como sentido do ver, para tatear outros caminhos da sensibilidade. São dinâmi-
cas nas quais os encontros produzem coreografias, inspiradas na troca de olhares, com-
preendidas como presença e ato.
Trabalhamos neste e em outros momentos com o conceito de tradutor
48
como
aquele que dá um retorno sobre o que viu, sentiu, olhou e pôde criar na relação com
este outro. Poderíamos ainda pontuar que o lugar do tradutor não está vinculado a um
lugar-espelho, mas é afetado pelo que pode olhar, captar das atmosferas, intervir na
criação do outro; devolve suas impressões pelo corpo e, ao mesmo tempo, re(ativa)
outra composição, outro olhar, cria uma conversa corporal sem fim.
Os trabalhos se iniciam com um dos participantes que, de olhos fechados, é levado pe-
la sala por lugares que não pode controlar. A direção da circulação pressupõe um grau de con-
fiança que ora é construído, ora não, produzindo efeitos vários a partir do tipo de encontro que
se estabelece.
Observei Sandra e Joana em um desses momentos. Sandra é levada pelo espaço. Além
de se soltar nas mãos da parceira, ela consegue realizar suas danças, utilizar várias par-
tes do corpo. Era como se Joana fosse seu guia. Uma experiência que, de acordo com a
dupla, promoveu muito prazer e diversão.
47
Como em outras situações, estes comentários sugerem interpretações sobre o
acontecimento. Independente da “veracidade” tomamos esta fala como um
fluxo de sensação nomeado e que exprime um território para o nosso pensar.
48
A figura do tradutor também esta presente em outras séries.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
162
Suely e Fátima vivem outra história. Após a vivência contam que, ao ser guiada pela par-
ceira, o medo de Fátima era tão grande que ela quase não conseguia sair do lugar. Que-
ria parar, sentia-se literalmente puxada. Algumas duplas conversam, procuram outra
seqüência, alteram as ações, fazem de outros modos, procuram outros facilitadores pa-
ra que a experiência seja mais prazerosa e permita que o corpo seja conduzido mais
fluentemente.
Estar junto com o outro é mais um aprendizado. Às vezes as alterações são pos-
síveis, outras não: o corpo se encolhe cada vez mais e algumas pessoas relatam ter
vontade de sair correndo daquela situação. Essa sensação faz parte do trabalho e é do-
sada a cada nova experimentação. Por outro lado, Joana menciona que percebeu as-
pectos muito interessantes de seu corpo, tal como a sensação de se mover sem o
sentido da visão com o outro como suporte.
Série Olhar
163
Na clínica, mais do que alterar, o corpo permite ao sujeito observar e conhecer
modos de funcionamento, jeitos de relacionar-se com o outro e com determinado
grupo.
Acompanhemos outras dinâmicas que envolvem o tradutor:
Uma das pessoas da dupla se movimenta como quer (o movedor) e a outra toma a fun-
ção de tradutor. O “leitor/tradutor”, de olhos fechados e tateando o corpo do movente com as
mãos, fará posteriormente em seu corpo aquilo que pode captar da composição do parceiro.
O outro assiste a leitura realizada.
Este exercício é realizado algumas vezes e o movente experimenta seu gesto ora de
olhos abertos, ora de olhos fechados.
São inúmeros os trabalhos em que o abrir e fechar os olhos se alternam numa
tentativa, tal como apontado em outros exercícios, de criar variações em relação às sen-
sações, afetações e climas nos corpos e nos contatos.
Aparecem inseguranças, os corpos assumem formas muito diferentes da habitual,
acontece uma desorganização que mostra que, freqüentemente, o corpo “se assusta”.
Por outro lado, são expressos modos diversos de contato, de interações.
“Fiquei muito surpreso quando vi a composição que meu par fez de minha dan-
ça, eu não tinha noção de que o meu corpo estava fazendo aqueles gestos”.
Tive muita dificuldade para captar o clima que meu parceiro queria produzir
com aqueles gestos.”
Tive dificuldade para tocar o corpo, dar conta do que o meu parceiro estava fa-
zendo, tive que pedir para ele repetir muitas vezes.”
Tanto neste trabalho como em outros, o objetivo não é imitar ou fazer igual ao
par, mas compor a partir dos contatos, das trocas mútuas, das intensidades presen-
tes. O tradutor caminha, assim, mais como captador, que dará um feedback
49
, do que
como alguém preocupado em fazer igual ou representar aquilo que foi feito.
49
O tradutor seria um re (alimentador) da produção. Muitos trabalhos se
desdobram em outras composições realizadas após o retorno do olhar do
tradutor.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
164
O olhar que afeta o corpo todo:
experimentações em torno das imagens
Fomos colocados diante de um desafio
50
: escolher uma série de imagens nas quais nos-
sos corpos aparecem em diferentes momentos da vida.
51
Ao criar narrativas sobre as formas somáticas, acontecimentos e produções de corpos,
iniciamos um olhar
52
muito distante daquilo que consideramos trabalhar na dimen-
são do ver.
Jogando com sobreposições de imagens e exercitando um pensar muito refinado, cada
participante problematizou um aspecto que considerou relevante na série de fotografias
apresentadas.
Uma participante, mostrando várias imagens, conta que algo lhe chamou a atenção
em sua pesquisa: em muitas fotografias parecia que seu olhar “fugia” do contato, que se des-
viava e ia para um outro lugar.
Menciona uma mãe muito bonita, um pai muito ausente, múltiplas solicitações de sua
família para tornar-se outra, mais contida, mais reservada, talvez menos bela frente aos padrões
de beleza predominantes.
53
Longe de interpretar aspectos de sua vida, Favre procurava a todo o momen-
to colocar-se em contato com as imagens para que pudesse ser afetada por seus
contornos, invisibilidades, emoções e intensidades presentificadas e atualizadas
nas fotografias.
Procurávamos resistir a interpretações ou conclusões apressadas, produzidas
num primeiro contato com as imagens – estou gorda ou magra, sou feia ou bonita –; ou
ainda evitar comentários simplificados como: isto aconteceu por causa disto ou daqui-
lo, numa tentativa de estabelecer correlações baseadas no paradigma simplista de
causa-efeito.
Procurávamos abertura suficiente para captar as intensidades presentes, deixar-
nos afetar e ser afetados pelas imagens ampliadas na tela, atentos aos efeitos que se
produziam nos corpos, nos contatos climatizados entre os participantes do grupo e na re-
lação com o corpo do narrador que era “perturbado” pelas próprias palavras, memórias,
pensamentos e ações no ato mesmo de sua apresentação.
54
50
Workshop realizado pelo grupo que participa dos laboratórios de
Formatividade, coordenado por Regina Favre, em julho de 2006.
51
Estas imagens eram apresentadas em transparência durante as
apresentações.
52
Este procedimento poderia ser analisado também na série Fotografar.No
entanto, aqui daremos enfoque a questão do olhar afetado pelas imagens.
53
Volto a reforçar que estas falas foram impressões colocadas pelos
participantes acerca de seu trabalho. Este material, como todos outros são fonte
de conversas, trocas de impressões, exercícios do olhar.
54
Não é intenção analisar estes procedimentos, mas apontar um uso da imagem
que vai além de um olhar que se restringe ao sentido da visão ou como
apreensão do mundo como cognição, mesmo que tal processamento aconteça e
constitua numa dimensão fundamental dos corpos. Cabe ainda ressaltar que tais
dimensões estão sempre presentes sem qualquer hierarquização.
Série Olhar
165
“Observo como no cotidiano me relaciono de modo tão superficial com as pessoas
e os ambientes”, disse uma das participantes ao término de um de nossos encontros.
São camadas e camadas de acontecimentos e fluxos que transitam pelas imagens
e pelos corpos; nosso olhar se exercitou num passeio entre aspectos objetivos e subje-
tivos daquela experiência
55
. Neste exercício foi possível estimular um olhar atmosféri-
co que captava traços, pequenos gestos, posturas, expressões, deixando-nos invadir
por memórias, pensamentos, articulações entre os diferentes momentos do corpo sele-
cionados nesta proposta, na criação de uma intimidade maior e com o levantamento de
questões importantes referentes à formatividade dos corpos.
Não se tratava, pois, na perspectiva de Favre e Keleman, de apreender as formas
do corpo distanciadas de sentidos do sujeito, mas captar as pequenas percepções por
meio de traços, gestos, expressões, posturas e olhares que davam contorno a uma série
de acontecimentos.
Operando a partir das afetações produzidas pelas formas emocionais expressas
em imagens e contaminadas pelas atmosferas que rodeavam e eram produzidas ao lon-
go daquele processo, procurava-se viver e captar os movimentos fecundados nos corpos
pela potência vital, conforme propõe Stern.
São exemplos de efetuação da potência nos corpos nas imagens fotográficas
apresentadas: em um corpo mais conectivo em determinado momento da vida, um olhar
mais presente, um corpo mais retraído, uma alegria transbordante de uma criança em seu
triciclo e muitas outras imagens que povoaram nossas conversas em torno de potên-
cias, momentos de despotencialização, memórias intensivas, marcas que se tatuaram
nos corpos balizando caminhos e processos de vida.
Nossos olhares se voltavam para as formas emocionais que transpareciam e
atravessavam as transparências carregadas e produtoras de intensidades que reverbe-
ravam em cada um de nós e no grupo, num compartilhar de intimidades que fez com que
o grupo se tornasse outro. Essas experiências me parecem muito próximas ao que Stern
nomeou como rompantes de determinação, pois de difícil nomeação através de palavras
ou categorias próprias da linguagem.
Era nítido como os corpos respondiam às afetações produzidas em cada momen-
to do trabalho, ressoando em outros territórios existenciais, produzindo outros corpos.
“Depois de nosso encontro, sonhei muito, produzi sonhos muito interessantes”.
55
Não pretendo me debruçar sobre este trabalho em particular, mas apontar
uma proposta do exercício do olhar como produção de acontecimento.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
166
“Lembrei-me de outras tantas cenas de minha vida que agora gostaria de mostrar”.
“Meus pensamentos entraram numa ebulição e numa velocidade”.
“Este trabalho é infinito, dá para olhar estas fotos infinitamente”.
“Minha barriga está doendo de tanta intensidade”.
“Durante os dois dias de encontro a minha cabeça ficou doendo”.
A partir destes comentários, com a possibilidade de participar e acompanhar mui-
tos destes instantâneos captados e diversos processos de participantes, podemos rea-
firmar a potência de uma clínica que ao produzir mínimos deslocamentos, dá ensejo a
movimentos de singularização que produzem e instauram outras configurações exis-
tenciais.
Partindo dos estudos de Keleman, Favre entende que algumas experiências mar-
cam de tal modo o sujeito, que ele poderá criar um corpo e seguir seu processo de forma-
tividade a partir desse acontecer. Como já dissemos, as experiências moldam os corpos
e dão oportunidades para que, não somente se compreenda e se atualizem corpos do
passado, mas também a presença viva no aqui agora produza desejos e pensamentos
imantados pelo devir.
Nos registros que se conversam e se conectam é possível perceber que os corpos
se modificam pouco a pouco. A partir de algumas vivências um outro corpo se cria.
Parece, em muitas situações, que alguns problemas começam a se impor como um
campo territorial a ser explorado, vivido e, em alguns momentos, nomeados e compar-
tilhados.
O modo de olhar sofre uma alteração, às vezes muito sutil. Veremos na discussão
sobre o olhar clínico como tais deslocamentos modificam e constroem um corpo de um
profissional na leitura e ação junto a outras pessoas e grupos na clínica.
Olhares contemporâneos
e suas implicações na clínica
O que acontece é que estamos o tempo todo trabalhando em duas dimensões, porém no
mundo contemporâneo constatamos o que Godard chamou de uma “neurose do olhar”,
que acaba por ver o mundo sempre do mesmo jeito, sem deixar-se afetar. Ou seja, há uma
Série Olhar
167
predominância do ver em detrimento do olhar.
Segundo Godard, operamos sempre com os dois tipos de olhar; porém, há o ris-
co de que, no contato com um outro ou com o mundo, pouco a pouco não se possa mais
reinventar os objetos ou a própria realidade.
Observo na clínica que um dos efeitos da predominância do modo objetivante
de olhar o mundo, seria o distanciamento do próprio corpo.
Além disso, testemunhamos um sentimento de vazio explicitado por muitos par-
ticipantes das oficinas, que mostram em diferentes propostas – ao se aproximarem de
seus corpos, no jogo de encontrar a si e ao outro – um anseio de buscar sentido para
aquilo que fazem, que vivem, para olhar seus modos, seus afetos e deixar-se tocar e sur-
preender pelas narrativas próprias e dos outros.
Em consonância com esta questão, Lima (2004)
56
constata, através de uma aná-
lise interessante sobre o contemporâneo, a influência de um excesso de imagens veicu-
ladas pela televisão, revistas, outdoors. Destituídas de sentido e desconectadas de
nossa existência cotidiana, essas imagens produzem um olhar referendado em valores,
modelos, modos idealizados e empobrecidos de vitalidade e provocam, tal como teste-
munho na clínica, sensações que se expressam nos corpos em retraimentos, tensões, dis-
tanciamentos e dificuldades de estabelecer contatos que vão além de um encontro
formal, automático e mecânico.
Assim que entramos no laboratório de abordagens corporais encontramos um enorme
espelho que eu havia solicitado. A intenção era manter esse espelho coberto até o mo-
mento em que pudéssemos observá-lo como um aliado nas experimentações e não um
“lugar” para (re) afirmar um distanciamento de ideais de corpo freqüentemente provo-
cado quando o corpo é formado como objeto de trabalho. Entretanto, o espelho veio
descoberto. Como professora deveria direcionar o olhar dos meus alunos, porém eu sa-
bia que os olhos se voltam de tal modo para lugares demarcados e fortes, que a presen-
ça de um espelho apenas reforçaria e dificultaria a atenção a si e às questões singulares
que poderiam emergir a partir de uma abordagem corporal.
Atenta a esta problemática, observo Sabrina se olhando no espelho, sem conseguir
desviar o olhar de sua imagem. Pára, arruma os cabelos, torce o corpo, fixa seus olhos
por alguns segundos nesta posição”.
Este é um brevíssimo flash de modos de comportamento que o tempo todo per-
56
LIMA, Elizabeth M. F. Araújo. A análise de atividade e a construção do olhar
do terapeuta ocupacional. Rev. de Terapia Ocupacional da Universidade de São
Paulo, n. 2, 2004, v.15, p.43.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
168
meiam nossas ações: olhos voltados para buscar uma imagem de si minimamente satis-
fatória e o mais próximo possível de um ideal de beleza, de felicidade, de bem-estar.
“O que eu quero nestas aulas é me sentir bem. Quero aprender relaxamentos,
quero me sentir feliz”.
Logo no início do trabalho buscamos sensibilizar o olhar para direções menos
objetivas. Sentir o corpo, as sensações, os estados, fechar os olhos, respirar.
Imediatamente algumas pessoas percebem que estão com dores, a respiração es-
tá travada, mal-estar.
“Eu não havia percebido que estava assim”.
“Estou sentindo uma angústia...”.
Que olhar é este, permeado por sensações às vezes difíceis de nomear, do qual tentamos
nos aproximar?
Essas falas reafirmam que trabalhamos o tempo todo com desconstruções.
Desconstrução de uma idéia de que um relaxamento ou uma proposta centralizada no
corpo vai sempre produzir um “bem-estar” ou que, em vez de conectar-nos com o cor-
po, nos afastaria dele. Por isso, muitos participantes se surpreendem com a observa-
ção de dores e sensações que não haviam percebido.
Além disso, vale observar que, ao dar-se conta dessas sensações que , às vezes já
estavam ali ou foram produzidas numa determinada dinâmica, um olhar julgador se es-
tabelece por meio da sensação de que a proposta “não deu certo”, tanto por parte daque-
le que orienta a proposição, quanto daquele que a vive.
No entanto, em muitas situações, ao se surpreenderem com a expressão de
seus corpos, os participantes caminham numa sintonia muito fina com suas sensa-
ções, constroem um olhar que resiste a julgamentos ou valores impostos pela subje-
tividade dominante:
“Começo a olhar para mim de um outro modo, como uma pessoa que vai se
acompanhando e tomando posse de si”.
Série Olhar
169
Nesta perspectiva, o que nos interessa na clínica são os efeitos observados nos
corpos em resposta a todo o tipo de demanda referendada em valores e leis que conta-
minam os corpos: seja bonito, simpático, gostoso, magro, agradável, extrovertido, ale-
gre, desinibido, sorridente, poroso, aberto etc. O que testemunhamos são corpos
tentando lidar e se fazer neste campo de forças, criando diversas moldagens.
Costas que se curvam, dores que se acentuam, olhares que se desviam, se disper-
sam, parecem às vezes esvaziados.
As falas e a observação de muitas cenas revelam um emaranhado de sensações,
sentimentos, instantâneos do trabalho que mesclam tonalidades múltiplas do problema.
Articular experiências corporais, (re) ativar memórias que marcaram os corpos
são efeitos do olhar que buscamos exercitar para atravessar algumas de suas sutilezas.
Numa dinâmica – colocar os braços à frente dos corpos que estão em pé, numa posição
em que cada participante se sinta suficientemente confortável e que expresse “um lugar” que
conte um pouco sobre como cada um se sente em relação ao início do trabalho – a proposta é que
os olhos se fechem para facilitar a introspecção, para que cada um se dê conta corporalmente
daquilo que está experimentando.
Lucila coloca seus braços tão próximo ao corpo que “sente que vai sufocar, que não con-
segue respirar”.
Leo abre bem os braços, olha de um lado para o outro, procura “olhar para todo mundo”.
Carla move os braços, ora mais próximo ao corpo, ora mais distante. Depois, conta que
“não sabia muito bem como estava, não se sentia confortável em nenhuma das posições”.
Olhar aqueles corpos não estava relacionado a encontrar uma beleza coreográ-
fica do gesto, mas àquilo que o corpo pode passar para o mundo e para si como forma
de expressão de alguma sensação que se presentifica nos corpos e de um campo de for-
ças, de relações entre os ambientes corporais singulareseoambiente grupal.
Também podemos dizer que as formas que corporificam na vivência, criam outros
ambientes que contaminam e produzem determinada atmosfera.
Vêm à tona outros olhares que emanam dos corpos, gestos, posturas, modos de
olhar, falar ou se aproximar dos outros e da proposta:
“Quando se fala em vivência corporal, sinto que meu corpo quer fugir, quer
sair por aquela porta”.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
170
“Quando se fala de fazer algo com o corpo, sinto meu corpo se fechando, fican-
do duro”.
Estas falas revelam um pouco do desafio que nos espreita no trabalho com os
corpos: desmistificar alguns de seus efeitos, resistir à busca do bem-estar pleno, veicu-
lado principalmente pela mídia portadora de um receituário para quem cuida de seu cor-
po e muitas outras influências que, como dissemos, constroem o nosso olhar.
Observo que a coloração mais forte da questão do olhar nesta tese se deve justa-
mente às observações e acompanhamento das ressonâncias não apenas na dinâmica,
mas em todos os procedimentos da clínica, pois constato, tal como nos diz Lima, que
Podemos continuar vendo, mas perdemos a capacidade de olhar para cada coisa e nos en-
cantar com as pequenas percepções; aquelas que se dando nos limiares e nas fronteiras
do campo de visibilidades têm a capacidade de intuir o invisível de cada configuração
57
.
Mais do que isto, veremos em muitos procedimentos a produção de outras sen-
sibilidades mais captadoras e produtoras de atmosferas intensas que contaminam os cor-
pos e incidem, de fato, nos processos de subjetivação.
“Depois deste trabalho, comecei a olhar o mundo de outro modo”.
“Sinto que mudou a minha sensibilidade, novos pensamentos surgiram em
mim e vivo as coisas de outro modo”.
“Vejo as coisas para além daquilo que me parecem à primeira vista”.
“Quando estou com um paciente consigo olhar para ele de outros jeitos e não
ficar com idéias estereotipadas e redutoras”.
“Sinto que meu olhar se ampliou”.
“Sinto que as palavras não dão conta de falar o que está se passando em mim”.
Alguns desses comentários delimitam repercussões observadas no exercício do
olhar, tratando não somente de uma sensação de que “algo” mudou, que o modo de
olhar se alterou, mas portam a corporificação de processos vividos, através de dores, ace-
lerações do pensamento, produção de sonhos, ativação de desejos, mudanças no
57
Ibid., p.44.
Série Olhar
171
modo de agir e/ou pensar o mundo. Reafrima-se, assim, o caráter somático dos aconte-
cimentos e da sua impossibilidade e insuficiência na representação da complexidade des-
ses processos somente através da palavra.
Com isso, podemos reafirmar também a potência de uma clínica que, através dos
corpos, produz mínimos deslocamentos, dá ensejo a processos de singularização que ge-
ram e instauram outras configurações existenciais.
Olhar clínico
“Olhar é entrar numa atmosfera de pequenas percepções;
porque olhamos um olhar, oferecendo, portanto,
a outrem o nosso próprio olhar atmosférico.”
José Gil
Ao transitar por apresentações de vários procedimentos, ou de um mesmo procedimen-
to, focando diferentes aspectos a partir da série delineada, podemos dizer que este tam-
bém é um modo de olhar e proceder na clínica.
Durante as vivências, percorro os corpos que procuram aqui e ali captar atmosfe-
ras que servem como guia dinâmico e flexível para encaminhar as experimentações de
cada grupo em ambientes diversos.
A partir da metáfora da fotografia, tal como na série anterior, podemos pontuar ain-
da que o coordenador exercita a cada momento um olhar que não se satisfaz com uma
apreensão objetiva dos acontecimentos, mas procura impregnar-se pelas atmosferas pre-
sentes.
O olhar clínico aqui referido está vinculado então a este proceder, colocando o
coordenador e o grupo sempre na borda de uma possível linha de fuga que pode mudar
a direção por aquiloque pede passagem e expressão.
Ao captar uma cena inusitada no grupo, o coordenador dá um “zoom” e continua
o trabalho a partir deste acontecimento que transpassa o grupo.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
172
Dona Caçula afirma que faz muito bem seus fuxicos e dali se desdobram muitas ativi-
dades que têm como foco principal potencializar o estado latente de criação de Dona Gertru-
des que, pouco a pouco, contamina o grupo com suas inúmeras possibilidades e
ressonâncias.
Dona Dalva, com sua perna inchada, ao cantar um forró, “esquece a perna” e entra num
devir-forró que muda tudo. O seu clima queixoso em relação à perna e todas as impossibilida-
des da vida dão lugar a um riso dançante que suaviza seu corpo e seu estado, contamina o gru-
po e cria uma outra atmosfera.
Trata-se, assim, de exercitar um olhar sensível para dar vez e acompanhar as apa-
rições, quase sempre da ordem do inusitado, que se fazem presentes nos trabalhos.
Observo que muitos participantes que permanecem nas dinâmicas, às vezes num
estado mais silencioso e a nosso ver até deslocados, de repente “liberam uma potência
vital” com tal determinação que alteram as linhas de ação do percurso, derivam para lu-
gares, às vezes surpreendentes.
Série Olhar
173
Natália parecia freqüentemente estar meio apática em aulas teóricas . Independente das
causas” de seu distanciamento, o fato que nos chamou a atenção foi quando ao iniciar a dis-
ciplina sobre corpo, abordagens corporais, dança, teatro e música, seu corpo tornou-se outro,
mais conectado, participativo e principalmente alegre, tal como ela mesma colocou.
Dizia que seu pensar estava mais ativado, que gostava de vir às aulas, sentia vontade
de colocar-se e aproveitar cada momento do trabalho.
Esse comentário e um olhar mais atento na clínica faz lembrar novamente Espino-
sa
58
acerca dos bons encontros, que aumentam a nossa potência de agir e pensar.
A partir desta observação visível a olho nu e ao olhar para as inúmeras fotografias
do meu trabalho, observo que em muitas delas estou presente articulando com todo o meu
corpo, com a boca, com as mãos, repetindo e brincando com a proposta ou sugestão.
Sinto-me profundamente implicada em cada experimentação, em cada processo,
mesmo que nuances, desvios, paralisias, afastamentos também se configurem como
fluxos presentes.
São, portanto, inúmeras as questões presentes, seja na efetuação dos aconteci-
mentos em campo, seja na tentativa de acionar um olhar suficientemente potente na
descrição e análise de processos que, tal como ocorre no olhar, não se tornam linguagem
codificável.
Assim, termino esta série chamando a atenção do leitor para as cenas aqui anali-
sadas que são, em parte, visíveis e permitem aos que olham estes escritos, derivar.
Sustentar devires. Assim é um olhar.
58
Sobre a ética que busca os bons encontros em Espinosa, sugiro a leitura
Deleuze, 2002, po. cit., capítulo II – Sobre a diferença entre a ética e a Moral.
175
Série Tocar
A idéia é mesmo esta; romper cristalizações,
anestesiamentos, paralisias no sentido
amplo destas palavras, procurando de alguma
forma “ tocar” , produzir alguma turbulência
entendida em sua positividade.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
176
Série Tocar
177
A
pós as séries aquecer,fotografareolharfui impulsionada à série tocar.Parecia
ser este o caminho de continuidade, uma vez que um corpo afetado ou afetando
o outro nos encontros resvala, em algum momento, para o contato corporal.
Tal como nas outras séries, abordarei aqui a fisicalidade do tocar, em busca de alargar o
conceito, a fim de nos aproximarmos daquilo que observamos na clínica: basta uma bre-
ve aproximação, mesmo que o encontro não seja atravessado pelo toque
1
corporal, pa-
ra que o corpo seja afetado, responda e aja de diferentes modos.
Quando retomo momentos circunscritos às aproximações, observo o quanto al-
guns participantes ficavam mobilizados com a proximidade corporal nas experimenta-
ções, ainda que a uma “longa” distância.
Vários relatos revelam também que um leve toque ou um simples esboço de apro-
ximação concreta provocam um borbulhar de emoções, memórias, questões que nos
fazem pensar que o tocar não pode ser restrito à “concretude” do gesto.
Lembremos, de acordo com a série Olhar
2
, como os corpos são atravessados e
criam atmosferas entre si na esfera da invisibilidade, e podem ser apreendidos através
da captação das pequenas percepções.
3
Na tentativa de não banalizar ou simplificar demasiadamente aquilo que aconte-
ce, fica clara a necessidade de discriminar e apontar diferentes dimensões do tocar que
acontece na clínica.
Para articular essa discussão, tomarei como referência estudos sobre a dança, par-
ticularmente do método contact improvisation (Steve Paxton
4
e Lisa Nelson
5
), que ins-
pira a criação de vários procedimentos utilizados por mim na clínica.
Farei, então, uma primeira discussão acerca de três dimensões do tocar – o so-
cial, o técnico e o tocar como afetação –, a partir da análise das sutilezas deste último
quando consegue vingar, mesmo que por alguns instantes, modificando seus protago-
nistas e seu entorno.
1
Utilizaremos neste texto o verbo tocar para o toque corporal e o conceito de
afetar para o toque que provoca algo, mobiliza os protagonistas e incide sobre o
ambiente. Essa diferenciação ficará mais clara no decorrer do texto, quando
abordaremos as diferentes dimensões desse ato.
2
Tal como o olhar, o tocar está “envolto” em atmosferas que não se referem ao
olho em si, ou às mãos, ou à parte do corpo que toca, mas um corpo que exala,
produz e é poroso às aproximações.
3
Este conceito utilizado por Gil, a partir de sua leitura de Leibniz, é apresentado
na Série Olharmais detalhadamente. O que importa aqui é tratar dos corpos que
emanam atmosferas, “ um não sei o que” que pode ser captado a uma certa
distância independente do toque corporal.
4
Steve Paxton é criador da técnica de contact improvisation que implica, como já
dissemos em outras séries, a comunicação entre dois corpos através do toque e
outros elementos. Nesta série nos deteremos particularmente nas questões do
tocar.
5
Lisa Nelson, como já dissemos, trabalha freqüentemente em parceria com
Steve Paxton; e sua pesquisa e atuação também têm como base a técnica e
princípios do contact improvisation.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
178
O tocar social está relacionado às aproximações codificadas, ritualizadas que
prevalecem no cotidiano, nas ações corriqueiras: um aperto de mão, um beijo de cumpri-
mento ou qualquer toque corporal formalizado por determinada cultura, contexto e por
contornos delimitados pelos modos predominantes da subjetividade.
6
Em nossa análise, evidenciamos que esses contatos surgem em ocasiões mui-
to particulares. Trabalhamos na contramão do tocar demasiadamente enrijecido, de-
marcado, codificado, que impede a emergência do inusitado daquilo que escapa da
padronização.
No entanto, podemos entender também alguns destes ritos, que dependem de
vários elementos que compõem determinado encontro, como um desejo de aproxima-
ção ou de afastamento, explicitado pelos corpos e sua expressividade, impondo um
sentido didático apenas para demarcar possíveis tonalidades que se apresentam nos
contatos.
Encontramos ainda situações que não podem ser categorizadas, mas afirmam o
quanto um contato corporal permite e potencializa as possibilidades de experimentação
e descobertas do outro.
Um estudo realizado em uma creche pode esclarecer a questão. Trata-se de obser-
vações realizadas com crianças muito pequenas, ainda em processo intenso de matura-
ção cognitiva e, em especial, de maturação na organização espaço-temporal. Tal estado
mostra como justamente esta “não-organização” faz com que as crianças se esbarrem,
resvalem e caiam umas sobre as outras produzindo diferentes modos de contato pouco
codificados, inusitados em relação ao que é normalmente produzido naquele tipo de
encontro.
7
Isto quer dizer que existem diferentes modos de tocar em processamento,
“pouco formatados”, que podem produzir experiências muito singulares e reafirmar no-
vamente a potência daquilo que ainda não se fez em contornos mais precisos.
Farah (1995), a partir de estudos sobre massagem, realiza uma distinção entre o
tocar automatizado, que ocorre em situações cotidianas, de outro tocar que tem um
efeito mobilizador nas pessoas que estão em contato.
A autora afirma que, no primeiro caso, há certa banalização dos contatos sociais
que tendem para codificações padronizadas e que, muitas vezes, se transformam em
meras ações automatizadas.
8
Para ela, esses toques sociais vividos apenas superfi-
cialmente, implicam, em muitas ocasiões, o embotamento das sensações potencial-
mente presentes no ato de tocar e ser tocado.
Através da massagem, Farah introduz um outro aspecto que nos interessa: o
6
Para Guattari e Rolnik, em Micropolítica: cartografias do desejo (1986), a
subjetividade dominante da ordem capitalística produz os modos de relações
humanas até em suas representações inconscientes: os modos como se é
ensinado, como se trabalha, se trepa, como se ama, se fala. Incluímos nesta
relação os modos como se toca e como se vivencia o tocar nos corpos. In:
LIBERMAN, Flávia. Danças em Terapia Ocupacional, São Paulo: Editora Summus,
1995, p.17.
7
VASCONCELOS, Cleido R. F., AMORIM, Katia S., ANJOS, Adriana M. et al.
A incompletude como virtude: Interação de bebês na creche. Psicol. Reflex. Crit.
Porto Alegre : p. 485, vol. 16, 2003.
8
FARAH, R.M. Integração psicofísica – O trabalho corporal e a psicologia de
C.G.Jung. São Paulo : Companhia ilimitada/Robe Editorial, 1995, p.486.
Série Tocar
179
tocar técnico vivenciado principalmente em procedimentos realizados nos contextos
ligados à saúde que utilizam o toque corporal e, a meu ver, já estão marcados por codi-
ficações definidas nos manuais do “bem tocar” que propõem modos de aproximação.
Ao referir-se ao “cliente” a ser tocado, a autora nos surpreende ao assinalar que
o simples fato de ser tocado atenta e cuidadosamente durante um trabalho terapêuti-
co pode ser, em si, uma novidade sentida como uma descoberta agradável ou assusta-
dora e ameaçadora
9
, como se o leitor estivesse distante dos possíveis efeitos do tocar
ou das repercussões que um tocar “técnico pode suscitar nos pacientes/clientes.
Sem me deter particularmente no artigo aqui referido, parece-me que a contribui-
ção deste estudo está na constatação das reações e automatismos observados no con-
tato físico e na busca de pensar um outro tipo de tocar que se aproxima das idéias
discutidas nesta tese.
Mesmo diferenciando o tocar socialdo tocar técnico, o problema que queremos
discutir está na presença, tanto num caso quanto no outro, de uma sobrecodificação de
comportamentos que delimitam modos de relação submetidos a uma série de normati-
zações que empobrecem o pulsar dos afetos e restringem, em muitas situações, a potên-
cia dos encontros por meio de aproximações corporais.
Muito freqüentemente, a proximidade física mobiliza ainda fantasias relacionadas
à sexualidade. Para Farah, podemos fazer um paralelismo entre a “dificuldade coletiva em
lidar com o toque e nossa vivência ainda constrangida de manifestações afetivas, visto
real ou supostamente atuarem de forma a mobilizar conotações sexuais” (p.487).
Como notaremos nas falas de participantes das oficinas, as constatações a respei-
to das conotações sexuais nos trabalhos de toque, ou mesmo a perseverança de um
modo automatizado de se relacionar, são pertinentes e bastante freqüentes em várias di-
nâmicas. A tentativa nas experimentações é promover pequenos deslocamentos em
modos cristalizados ou empobrecidos de contato ou, no mínimo, colocar os protagonis-
tas como observadores de seus modos de viver e explorar os encontros através do tocar.
Outro aspecto mencionado com freqüência na formação dos alunos de graduação
em T.O. é a importância do tema do tocar, uma vez que os alunos aprendem, em muitas
disciplinas, que existe e deve ser treinado o denominado toque técnico. Essa prática
cria uma cultura de fragmentação em relação ao contato físico proposto em ações do pro-
fissional da saúde ao construir relações “ilusoriamente” desprovidas de afeto.
Não creio que seja possível neutralidade no contato. O distanciamento, o en-
rijecimento do corpo, a dureza ou delicadeza pressupõem e assinalam modos de in-
9
Ibid., p.488.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
180
teração, conexões, respostas possíveis; é isso que procuramos cartografar e mini-
mamente mover.
Também não consideramos uma “pureza” que define os contatos através dessa
breve sistematização, pois essas dimensões conversam e estão presentes em diferentes
graduações no contato entre as pessoas de acordo com as possibilidades, com o que ca-
da um pode e necessita fazer em determinado momento e em cada contexto relacional.
Podemos encontrar situações que exigem um contato mais distanciado. No en-
tanto, é importante destacar que nos laboratórios propomos experiências, pequenas
trocas, que problematizam o tocar na busca de maior refinamento e, por que não, em
possíveis e às vezes inimagináveis experimentações de si no encontro entre corpos.
Após essas distinções sutis em relação aos toques, apresentarei alguns procedi-
mentos centralizados no tocar, analisando ressonâncias observadas em diferentes con-
textos de atuação profissional.
Convém lembrar, tal como nos diz Espinosa
10
(apud Deleuze, 2002), que exis-
tem os “bons e maus” encontros, ou seja, encontros que compõem e aumentam a nos-
sa potência e encontros que decompõem, diminuem a força do pensar, agir e sentir.
As cenas apresentadas, bem como as nomeações, procuram elucidar que na clí-
nica não estamos interessados em perpetuar a despotencialização do toque corporal,
mas afirmar a potencialidade dos contatos corporais.
Assim, quando se estabelece na clínica o toque corporal queremos oferecer opor-
tunidades de contatos para produzir afetações, problematizações; cartografar e experi-
10
DELEUZE, G. Espinosa. Filosofia prática. Tradução: Daniel Lins e Fabien Pascal
Lins. São Paulo : Editora Escuta, 2002.
Série Tocar
181
mentar modos de relações entre os corpos e ambientes, através do tocar, em contra-
posição à idéia de produzir apenas sentimento de felicidade, bem-estar e ausência de
conflitos.
A questão central desta série é, então, discutir sobre a possibilidade de, nos con-
tatos que acontecem na clínica, predominar o tocar como busca de um encontro.
Tocando em corpos
Quais são as experiências de cada um com o tocar?
Como uns se aproximam dos outros pelo toque?
Na clínica pude testemunhar todo o tipo de comentários em resposta a essas
questões:
“Não gosto que ninguém toque em mim”. (Roberta)
Tenho receio de ser tocada”. (Alessandra)
Freqüentemente observo – principalmente nas disciplinas sobre corpo que minis-
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
182
tro na graduação – que alguns “avisos” são dados imediatamente ao grupo quando o
aluno é, de certo modo, obrigado a assistir a essas aulas. Em alguns casos, eles se fe-
cham corporalmente, procurando “disfarçar” o incômodo causado pelas propostas.
Outros vezes, como aconteceu com Alessandra e Roberta, o participante literal-
mente assinala a sua dificuldade: vergonha ou contrangimento frente à aproximação do
outro; hesitação em relação ao contato proposto em muitos exercícios; recusa em expe-
rimentar o tocar de modo diverso do habitual ou, ainda, uma explicitação das dúvidas ou
desconhecimento em relação aos trabalhos que envolvem o toque corporal.
11
Muitos dizem que estão acostumados a manter contato por meio da palavra e
que nem mesmo prestam atenção aos corpos quando conversam. Surge também, em al-
guns grupos, a familiaridade com o tocar social presente no cotidiano, pouco percebido
como contato corporal.
“Eu chego, beijo todo mundo e nem percebo que estou beijando”. (Diana)
“Eu simplesmente abraço as pessoas porque estou acostumada. É o meu jeito”.
(Silvia)
Ao observar seus modos de funcionamento, muito rapidamente os participantes
se reconhecem nos estados de automatismo, alienação e distanciamento de si como se
percebessem aspectos importantes sobre seus jeitos, traços, dificuldades principal-
mente nos exercícios que envolvem o tocar o outro.
Esses modos de funcionamento, que denominamos como mais automatizados,
também presentes no trabalho, têm lugar e se efetuam em várias dinâmicas. Observo, po-
rém, que se colocam em situações e proposições mais intensas, como quando lenta e gra-
dativamente dois corpos esboçam e se aproximam para um abraço ou em outras
vivências quando se busca um contato mais “encarnado”. Dificuldades, estranhamen-
tos, questões que se vestem de respostas já codificadas abarrotam qualquer tipo de tur-
bulência ou incômodos próprios dos contatos.
No entanto, levando em consideração que cada corpo responde à intensidade vi-
vida de modo singular, os trabalhos não se esgotam num exercício social de contato: es-
capam certas ações, pequenos gestos, sustos de afetação, pois se procura
desmanchar passo a passo e, com cuidado, tipos de aproximação mais premeditados
para entrar em experiências que possam criar e construir corpos mais sensíveis, conec-
11
Inicio de modo bastante diverso as propostas que envolvem o tocar. Às vezes
utilizo textos que abordam a questão, como Alguns toques sobre o tocar, de
Farah (1995), que aborda justamente o automatismo presente nos contatos
corporais a partir da discussão sobre os chamados
toques sociais.
Série Tocar
183
tivos e permeáveis às afetações.
Em muitas conversas sobre o tocar surge a importância do aspecto cultural na
construção de certos modos de aproximação corporal que delimitam e dão contornos par-
ticulares aos efeitos e ações que atravessam os exercícios.
Raquel, descendente de japoneses, diz que em sua família e em sua cultura as pessoas
não se tocam muito; então, aqueles trabalhos eram muito estranhos para ela.
Beatriz conta que todo mundo “se pega” em sua casa, que é comum, faz parte do jeito da
família.
Silmara diz que é muito tímida e que sente dificuldade para se aproximar e tocar as pes-
soas. Em sua família essa timidez é presente em outras pessoas.
A partir desses comentários, seguem algumas questões para ampliar a nossa re-
flexão:
Como se constroem modos de tocar e ser tocado?
Podemos falar de um único modo de tocar e ser tocado?
Dadas as singularidades das propostas em cada contexto que pude sugerir esses
trabalhos, posso afirmar que o tema mobiliza várias problematizações e proporciona
muitas experimentações e conversas.
Ao tocar os corpos marcas do passado também podem ser acordadas e (re) cria-
das, produzindo a percepção de que permanecem em nós muitos padrões de compor-
tamento
12
que se atualizam em diferentes momentos da vida. Em um trabalho corporal,
de acordo com a porosidade e possibilidades do sujeito, é possível acessar diferentes
camadas de acontecimentos.
“Lembro-me do toque de minha mãe em meu corpo, quando era muito pe-
quena, na hora do banho.” (Mariana)
“Lembro do toque de meu pai em meu rosto na hora de dormir, quando era
12
Não esquecer que em Keleman e Favre os padrões são vinculares e emocionais
sempre compreendidos em sua metaestabilidade. Rever o capítulo O corpo co-
mo pulso.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
184
criança. Agora que sou mãe, faço o mesmo gesto com os meus filhos.”(Flora)
“Lembro do meu pai dando as mãos para mim ao entrarmos no mar.” (Fanny)
Algumas proposições geram uma ativação intensa da memória do corpo. Por is-
so, caminho lentamente, com muita delicadeza neste tipo de aproximação, resistindo a
todo o movimento de banalização ou simplificação destas experiências e dos comentá-
rios realizados pelos participantes.
Como já discutimos anteriormente, tangenciamos também as margens do que
podemos denominar de um toque social demarcado, distanciado de qualquer afetação
mais mobilizadora, o que muitas vezes torna o trabalho instigante ao singularizar, refinar
e produzir cada pequena experimentação.
Não se trata, no entanto, de produzir uma modelagem ou um manual sobre o “to-
car” com “sentido”, “ emoção”, conforme dita a moda, mas de produzir reflexões sobre
os modos como cada um se aproxima e vai ao encontro do outro através do tocar. E, ca-
so assim o corpo/sujeito deseje, experimentar diferentes graus de aproximação e afas-
tamento na ampliação de repertórios de contato e encontro.
Thaís, uma de minhas alunas, menciona que depois desses trabalhos começou a “cur-
tir” mais as suas danças de forró. Conta que experimenta vários pares, observa os modos de con-
tato que se estabelecem com os diferentes parceiros, aproveita e inventa diferentes modos de
aproximação/afastamento corporal, constrói e pode narrar diferentes histórias e aconteci-
Série Tocar
185
mentos produzidos nesse jogo que agora se estabelece em suas danças.
“Ir ao forró já era bom, mas agora ficou mais divertido ainda”.
Nas oficinas trabalhamos com todo o tipo de pessoas, algumas se conhecem,
mas nunca puderam vivenciar um contato corporal mais próximo; outras, nunca se viram
antes e têm os propósitos mais variados.
Ressalto a preocupação com a possibilidade de um corpo presente para que a
experiência possa acontecer, considerando que o acontecimento também produz presen-
ça, pois noto que atuamos em situações em que o corpo pode estar ali fisicamente,
porém distante do contato, do desejo ou da possibilidade de criar qualquer tipo de inti-
midade com o outro.
O conceito de intimidade aqui utilizado tem sentido a partir do momento em que
considero a delicadeza e o refinamento do gesto como forte disparador de respostas, que
exigem criação de intimidade suficiente para tocar e ser tocado pelo outro.
Vejamos um exemplo que mostra como um breve comentário abre um mundo de
experiências no qual as palavras não podem conter a história vivida e as marcas tatua-
das
13
no corpo.
Depois de algum tempo de trabalho, com varias vivências que envolviam tocar as
mãos, massagear partes do corpo, proximidade com outras participantes, Rosana
14
afir-
ma que não conhecia este tipo de toque, pois segundo ela
“Seu marido só se aproximava dela para bater.” (Rosana)
“Estou podendo experimentar aqui uma coisa muito diferente, um toque cari-
nhoso em mim.” (Rosana)
É deste ponto que partimos no trabalho, ou seja, das memórias marcadas nos
corpos que criam uma possível permeabilidade para experimentar outras aproxima-
ções, principalmente aquelas ligadas ao cuidado, ao acolhimento.
Assim, os diferentes caminhos traçados na abordagem e experimentação do to-
car não se esgotam, tampouco se reduzem a estes, mas apontam trilhas.
13
Ao utilizar a expressão tatuado não quero dizer ou me reportar a algo que está
impresso em um determinado lugar, mas sim a uma marca que se inscreve em
uma forma emocional com intensidade.
14
Participante do grupo de mulheres do Bairro dos Morros, em Sorocaba.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
186
Os silêncios do tocar
Durante algum tempo abordamos os tipos de toque, as diferenças e articulações en-
tre um tocar técnico e um tocar afetivo, discutimos sentidos da questão na prática da
T.O. e foi possível perceber que o ‘tocar técnicoestava envolto em aspectos ligados à
afetividade e que, de acordo com o toque, o corpo respondia de diferentes formas à
aproximação.
Com isso, ficava claro que apenas o sentir na pele, o experimentar em si, poderia alargar
a capacidade de reflexão sobre o tema. Já se percebia a potencialidade e o quanto era cen-
tral para os profissionais da saúde deter-se no tema, uma vez que todas as ações e inter-
venções em TO envolviam uma aproximação corporal, principalmente nos casos de
ortopedia e neurologia.
Com o desenrolar das discussões foi ficando claro que cada mão, cada toque per-
tencia a um corpo histórico, vivencial, vincular, familiar, social e que a questão mais uma
vez tinha de ser tratada em sua complexidade.
Série Tocar
187
“Não é porque o terapeuta ocupacional trabalha com mãos que ele não vai
perceber que está trabalhando com um sujeito.”(Luciana)
A idéia nos parece, num primeiro momento quase banal, porém no terreno das te-
rapias esta obviedade não acontece.
A este respeito, o terapeuta ocupacional Marcus Vinicius Machado e Almeida
dedica a introdução de seu livro Corpo e arte em terapia ocupacional (2004) ao que ele
chama de terapia de corpo inteiro. Nessa obra, o autor pontua e questiona a idéia hege-
mônica de que terapia ocupacional está ligada exclusivamente às mãos.
Toques cegos
Em um dos encontros sugiro que as pessoas criem dois círculos: um dentro e outro fora,
de tal modo que as participantes do círculo interno estejam frente a frente com os do gru-
po de fora, criando entre eles uma possibilidade de contato que se inicia pelas mãos.
Proponho que as pessoas se acomodem naquele território atentando para criar um es-
paço confortável. Peço para que fechem os olhos e dêem as mãos para a pessoa à sua
frente.
Depois solicito que retirem as mãos e reiniciem a aproximação do modo mais lento pos-
sível, desde o momento em que se esboça no corpo a ação de ir ao encontro das mãos do
outro.
Em seguida, inicia-se uma pesquisa com diferentes jeitos de tocar, explorar as mãos do
parceiro, observando as emoções produzidas pelos contatos. Cada dupla de seu jeito,
de acordo com o seu ritmo, pautada apenas pela indicação do contato.
Após um tempo, as mãos devem se separar e novamente lentificamos o processo de
separar das mãos do outro”. Ainda de olhos fechados, os participantes do círculo in-
terno, deveriam buscar outra pessoa à sua frente, porém levando o corpo um pouco à
esquerda para que o círculo pudesse rodar.
A cada novo encontro, chamo a atenção para as possíveis narrativas que podiam ser ar-
ticuladas naquela história de mãos e solicito a cada final de encontro que a dupla es-
colha uma forma para expressar um pouco do que aconteceu ali ou apenas finalize
com um contato.
O processo novamente é repetido e os alunos podem vivenciar um terceiro encontro que
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
188
provocará outras questões, ressonâncias, sensações e contatos.
Finalmente, peço que as pessoas abram os olhos lentamente e um turbilhão de conver-
sas entre os participantes começa a se desenrolar.
Acompanho a intensidade que a dinâmica provocou no grupo e, por alguns momen-
tos, sinto que poderia ir embora, que minha presença era quase dispensável, tama-
nho o envolvimento e repercussão do trabalho que se iniciou através das mãos.
“Me surpreendi ao ver que o jeito de uma era diferente do jeito da outra.”(Dyane)
“Com algumas pessoas foi mais fácil tocar. Parecia que o corpo do outro me cha-
mava para o toque.” (Mirella)
“Em certos momentos eu não sabia quem tocava quem.”(Débora)
“Eu não consegui ficar de olhos fechados.”(Juliana)
Como acontece em muitos exercícios, o fato de todos estarem de olhos fechados
facilita dar vez à possibilidade de encontrar, às vezes muito difícil quando os olhos se
abrem e todo um campo de julgamentos e controles é acionado.
Por outro lado, como aconteceu com Juliana, pode ser impossível permanecer
sem o contato visual.
Farah afirma que a visão dirige e controla muitas de nossas ações, o que torna
necessário, principalmente nos exercícios com o tato, o “fechamento” do canal visual pa-
ra permitir outras aproximações entre as pessoas.
Nesse encontro, como em vários outros, a partir do momento que a proposta foi
sugerida alguns participantes começaram a rir, mostrando desconforto, excitação, hesi-
tação e uma série de estados pouco representáveis, de impossível denominação.
Em alguns momentos, eu solicitava que os participantes “voltassem o filme” e re-
fizessem a trajetória do encontro com as mãos com o parceiro muito lentamente, quadro
a quadro.
Essa sugestão foi recebida por alguns participantes, segundo eles, com “ago-
nia”, pois sentiam dificuldade para lentificar, fazer devagar, não ter pressa em chegar a
algum lugar.
Alguns corpos se deixavam tocar, tornavam-se porosos, enquanto outros se con-
Série Tocar
189
traíam, bocas se fechavam. Uma parte do corpo ia em direção ao encontro, outras perma-
neciam fincadas no lugar; mãos suavam, esfriavam, aqueciam, tocavam dura ou mais de-
licadamente, criavam uma pequena coreografia mais ou menos agitada ou silenciavam
num certo lugar.
Ao observar a dinâmica, eu presenciava um emaranhado de diferentes contatos,
impossível de apreensão pela linguagem.
Mais uma vez é possível dizer que a riqueza dessa proposta está na diversidade
de acontecimentos a cada mudança de configuração, a cada “repetição” do caminho no
encontro do tocar. Mais uma vez tornou-se possível criar uma narrativa de pequenas
percepções e atmosferas presentes em cada micro contexto/mundo.
“Parecia que o movimento se fazia de dentro de mim”, disse Rosie ao referir-se
ao momento de lentificação proposto no trabalho.
“Eu percebia cada músculo, cada passagem, cada mudança da forma que
acontecia em meu corpo”. (Marina)
Nestes trabalhos fazemos uma série de experimentações entorno dos graus das
formas, tal como concebido por Keleman e Favre. Ou seja, a cada pequena mudança ou
deslocamento produzido pelo tocar e ser tocado nas formas dos corpos, entendidas se-
gundo Keleman e Favre como resultantes metaestáveis de processos permanentes de for-
matações e desmanchamento, acabamos por produzir outros corpos com camadas
tissulares/emocionais que definem novos modos de relação.
Mas atentemos ao fato de que isto só será possível caso aquela vivência se cons-
titua de fato em uma experiência, ou seja, que possa ser assimilada pelo sujeito/corpo
e expressa, a partir desta nova forma (reafirmo – sempre metaestável), em novos compor-
tamentos, modos de ser, sentir, agir.
“Experimentei tocar meu filho deficiente de um outro jeito. Aprendi um outro jei-
to de tocar a partir daquilo que vivi aqui.( ...) eu só batia no meu filho... perdia a paciên-
cia. Às vezes eu brinco de rolar com ele no chão.”(Rosa)
“Eu nunca tinha tocado meu corpo antes. Agora na hora do banho, costumo
passar as mãos em meu corpo e sentir a sensação da pele.” (Lívia)
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
190
Observamos como o cotidiano, uma relação pode ser alterada, mesmo que por
instantes, quando nos deixamos afetar por uma proposta que de fato fez sentido e corpo.
Quando acontecem, as experiências de encontros inéditos marcam os corpos,
começam a fazer parte e criar novos modos de relação e contato, reverberando em outros
lugares, criando um certo hiato nos mantras existenciais.
No caso de Rosa, podemos entender como a possibilidade de ruptura de um ti-
po de contato que, segundo ela, era pouco percebido pode afetar toda uma estrutu-
ra, desconstruindo, demolindo ou, no mínimo, abalando sorrateiramente algo há
muito estabilizado.
São pequenos, mas intensos toques de afetação que criam outras possibilida-
des de contato.
Mãos
Estávamos na sala de aula, quando foram propostas muitas dinâmicas envolvendo o
tocar. Quando nos demos conta, todo o grupo estava ligado através das mãos, criando
uma rede entre os participantes. O grupo permaneceu assim por um tempo.
Em muitos momentos na clínica, inicio a aproximação física entre os corpos/sujei-
tos pelas mãos: tocar o corpo do outro, tocar as próprias mãos ou simplesmente olhar e
perceber que se tem mãos e que estas, na maioria do tempo, tocam e se conectam com
algo ou alguém.
Essa escolha metodológica é pertinente, pois ainda é pelas mãos que se esta-
belecem os contatos mais simples entre as pessoas, mesmo que voltados a um toque
social.
Tomando como referência as nomeações usuais acerca do corpo, podemos dizer
que as mãos estão nas “extremidades”, distantes da parte mais central do corpo, longe
das vísceras, do peito, da parte anterior do corpo mais exposta aos contatos e relações
com o mundo e com o outro.
15
As mãos funcionaram, como se pode observar a experiência vivida pelo grupo
acima citado, como um elo de contato entre os participantes. Ao verificarmos as fotos ti-
radas neste trabalho
16
em particular, a maior parte das composições entre os partici-
pantes estava centralizada na ligação entre mãos ou das mãos com outras partes do
15
Lembrar que na concepção de Keleman e Favre não podemos falar de partes do
corpo ou órgãos, uma vez que tratamos de formas emocionais compostas de di-
ferentes camadas e pulsos.
16
Várias cenas foram fotografadas neste dia e, ao olhar para as fotografias, são
vários os momentos em que se percebe a presença das mãos seja nas improvisa-
ções, nos exercícios em duplas ou nos momentos coletivos.
Série Tocar
191
corpo de outro participante.
Mas esta não é uma regra: às vezes um trabalho que envolve o tocar de mãos é
tão intenso que nos indica a necessidade de iniciar o trabalho de aproximação corporal
com exercícios de costas com costas.
Cabe ressaltar que trabalhamos com um campo de forças que delineará efeitos di-
versos em cada proposição, contexto, em cada participante e grupo. Assim, a condição
básica nestes trabalhos é experimentar o tocar em diferentes combinações.
“Eu não senti nada de especial. Apenas dei as mãos porque todos estavam fa-
zendo isto.” (Daniela)
“Para mim, estar de mãos dadas foi uma experiência muito forte. Me senti em
estado de comunhão.”(Márcia)
“Posso ver nas fotografias, o quanto as mãos tiveram um lugar importante
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
192
nesta dinâmica.” (Bernadete)
“Parecia que formávamos um único corpo e que não se conseguia discriminar
muito bem o corpo de cada um, foi um momento intenso.” (Vivian)
“Percebo uma beleza estética neste trabalho. Quando me afastei e pude obser-
var o grupo, achei a imagem muito bonita.”(Danielle)
Como vimos mais uma vez, não é possível padronizar as respostas apenas pontuar
tendências.
Também não existe uma regra, mas uma intuição que norteia o tipo e a intensida-
de de propostas que envolvem o tocar e que podem permitir alguma experiência, em
contraposição a trabalhos que pouco tocam e que rapidamente remetem ao circuito do
automático, do habitual.
Tocar: abertura de mundos
Nas reuniões de formação de educadores, técnicos e auxiliares de uma creche na Pom-
péia, há algum tempo a equipe discutia e apontava a dificuldade de interação, colabora-
ção e comunicação entre seus integrantes.
Algumas funcionárias mencionavam a falta de cuidado no tratamento e na aten-
ção ao colega e a pouca disponibilidade de compreender e escutar o que se vive no coti-
diano do trabalho e da vida.
Foi proposta uma vivência em que o grupo era dividido em duplas. Realizamos uma ati-
vidade bastante simples: escolher uma das mãos do parceiro e, pouco a pouco, de olhos
fechados, estabelecer um contato corporal através do tocar, respeitando desejos, forma
de aproximar e vínculo.
Depois de um tempo as mãos se afastaram e o participante que recebeu o toque sentiu
apenas a sensação e as ressonâncias da proposta. Em seguida, com a troca de lugares
os participantes ficaram com uma das mãos liberada do contato com o outro, o que per-
mitiu perceber que um trabalho, aparentemente muito simples, provoca respostas e
problematizações diversas relacionadas aos efeitos observados nos corpos.
Série Tocar
193
Após o toque, eu senti que todo o meu corpo foi massageado. É como se crias-
se uma rede entre meu corpo e o corpo do parceiro.”(Penha)
“Eu senti que as sensações do toque em minhas mãos se espalhavam pelos bra-
ços, pelos ombros chegando até o outro lado do corpo.” (Bia)
Observamos, em alguns casos, que o toque num determinado local do corpo pro-
voca ressonâncias não somente na parte tocada, mas pode se espalhar para outras re-
giões. Estes trajetos singulares são respostas do corpo a um contato estabelecido em
determinada relação.
Para Keleman, os membros superiores e inferiores são como apêndices, repercu-
tem e acompanham a bomba pulsátil que é o corpo.
Se um corpo está pulsando, ou seja, expandindo e contraindo, mantendo uma
conectividade potente com os ambientes, os estímulos táteis podem reverberar pelo
corpo para além da parte tocada.
Os registros exteroceptivos, que comportam os órgãos dos sentidos, são canais
abertos para que o corpo viva uma excitação que se desdobrará em respostas corporais
vinculares, comportamentais, emocionais, motoras e sociais.
Cada corpo responderá de acordo com seu estado pulsátil com os ambientes e com
o grau de permeabilidade ao encontro.
Noto que, apesar dos participantes muitas vezes não estabeleceram uma proxi-
midade entre si, a descoberta da possibilidade de “conversar” através do tocar pode es-
tabelecer um outro tipo de comunicação e aproximação.
Pessoas que dizem ser muito íntimas podem estranhar o contato corporal, en-
quanto outras se surpreendem com o que sentem quando tocadas por pessoas com as
quais não têm uma convivência mais íntima. Muitas dizem que conhecem o parceiro
através da palavra, mas que nunca tiveram a chance de vivenciar uma aproximação com
tamanha intensidade. Para outras, o tocar é mais tranqüilo ou mesmo momento de apro-
ximação lúdica e familiar.
Tudo dependerá, como em outras dinâmicas, da vida do corpo social, cultural,
experencial e vincular que constrói o encontro.
O trabalho pode ser muito assustador e difícil para um, bastante familiar e lúdico
para outro, ou provocar, como freqüentemente acontece, um turbilhão de emoções ao
mesmo tempo.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
194
O tato funciona, assim, como uma porta de entrada para as intensidades, mas
absolutamente não se esgota ali; outros tipos de comunicação, até inconscientes, são
mobilizadas numa aproximação corporal. Um toque, por exemplo, pode acelerar o cora-
ção, enrubescer um rosto, provocar repulsa, produzir receio ou engatilhar um traço amo-
roso na relação.
É surpreendente também como, ao realizar o trabalho em uma das mãos, se pro-
duz uma diferença entre um lado e outro, entre a parte que foi tocada e outra.
“Eu percebi muito a diferença entre um lado e outro. A minha outra mão também
pedia para ser tocada. Pena que isto não aconteceu.” (Ivanice)
As respostas não dependem apenas da fonte, mas da conversa estabelecida pelo
corpo com ele mesmo, contemporâneo à sua forma emocional na relação com o parceiro.
Tal como no olhar, existe uma intensidade mútua no contato corporal, proposta di-
fícil e delicada para muitos participantes. Por esta razão, em um grupo cujos vínculos es-
tão sob questionamento ou no qual não existe uma intimidade construída, escolho as
mãos para um momento iniciático dos contatos.
Observa-se ainda a palavra cuidarpara definir o tipo de sensação vivida na maio-
ria das aproximações:
“Eu senti que minha parceira cuidou de mim e na realidade ela apenas tocou em
minhas mãos.” (Carmen)
Diferente disto, algumas participantes mostravam dificuldade na realização da
proposta: riam e não conseguiam estabelecer conexão com a parceira. Foi necessário al-
gum tempo para criar uma atmosfera que permitisse concentração e silêncio suficientes
para que a experiência pudesse acontecer. Esse tempo também é variável: há grupos que
rapidamente se envolvem e ficam presentes para o encontro, enquanto em outras oca-
siões a aproximação é contida, receosa e pouco desejada.
Cabe dizer que existe legitimidade em cada configuração, mas a idéia é abrir ter-
ritórios onde a experiência possa acontecer a fim de problematizar e ampliar repertórios
para o tocar a si e ao outro, descobrir modos de contato e, principalmente, cuidar das re-
lações por meio de dinâmicas corporais.
Como em outras oficinas, apareceu ainda um questionamento e certo preconcei-
Série Tocar
195
to em relação ao trabalho:
“Preferia estar tocando em um homem.”(Elza)
Acho muito estranho tocar numa outra mulher.” (Maria) – Todas riam...
Essas idéias são freqüentes em vários grupos, principalmente quando não existe
familiaridade com esse tipo de propostas e o tocar é visto apenas em sua dimensão sexual.
É importante dizer que o contato corporal nos remete a essas questões, mas não se reduz
a elas, pois o corpo é conectivo e processador do mundo em várias direções e modos.
A partir dessa lógica, optei por priorizar discussões que partem do campo das ar-
tes, particularmente da dança nas abordagens do contact improvisation, através de es-
tudos e conversas com bailarinos e autores que nos colocam frente ao corpo criativo,
conectivo, expressivo, evidenciando as experiências da criação e as mudanças efetuadas
nos corpos:
“Depois deste trabalho, meu humor mudou, como pode isto acontecer ape-
nas com um toque?” (Elza)
“Estava com dor de cabeça e agora passou.” (Natalia)
“Cheguei com cólica e durante o trabalho esqueci dela.”(Nadia)
Não há nesses comentários qualquer sugestão de uma espécie de milagre pro-
duzido pelas propostas. Mas quando trabalhamos com o corpo em intervenções di-
retas, observamos respostas imediatas de alternâncias emocionais/corporais: um
ombro que relaxa em resposta a um toque de um parceiro; um relaxamento do corpo
todo diante da aproximação de um outro corpo movido por um vínculo afetuoso, co-
mo também o contrário: repulsa quando o encontro não produz uma atmosfera sufi-
cientemente confortável.
A sutileza que se efetua nessas dinâmicas se contrapõe à idéia de que ao tocar o
outro nada acontece. Esses trabalhos remetem a um exercício do que chamei de toque
social perpetuado no convívio ou nos toques técnicos utilizados em vários campos da
saúde que exigem o toque corporal.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
196
“Small dances”: tocar de corpo inteiro
17
Steve Paxton, americano, coreógrafo e bailarino, foi o criador da técnica de contact im-
provisation (CI). Esta técnica serve como fundamento para o danceability e é tam-
bém um “método” de dança utilizado na clínica, basicamente construído no contato
entre os corpos.
O sentido háptico, fortemente solicitado aqui, dá ensejo a reflexões políticas so-
bre a ordem do mundo onde impera a interdição do toque. O contactcoloca-se como re-
flexão sobre a ideologia que codificou as distâncias entre as pessoas.
Trabalhar na proximidade, pele contra pele, como no contact, é, pois, criar um es-
paço não-conforme. “O Contato é uma Revolução pelo Tato. É uma revolução contra a ti-
rania do não-tocar. É uma política de movimento do interior para o exterior organizando
a ruptura dos códigos espaciais e da distância entre as pessoas”.
O dispositivo-contato permite, além disso, esfregar-se em desconhecidos, co-
nhecê-los corporalmente, sem ter de trocar palavras.
“Engajar-se numa dança e agarrar a oportunidade de despertar os sentidos, de amenizar
a pele em todos os cantos e recantos de uma pessoa de quem se conhece ou não o nome,
sentir suas roupas, compartilhar seus suores...”(NELSON apud Louppe). 18
A improvisação é a base dessa comunicação e o tato, o tocar o corpo de um e de
outro, é o canal por onde se desenrolam e são criadas as composições.
Nos deteremos, nestas técnicas, a apreciar alguns de seus componentes que for-
necem, através de seus métodos e objetivos, matéria-prima para criação e análise de pro-
cedimentos expressivos na clínica.
Um primeiro aspecto é que não existe na técnica de contact improvisationapenas
um trabalho que acontece nos corpos físicos. José Gil aponta uma osmose de inconscien-
tes e menciona que muitos dos movimentos que acontecem não passam, por sua velo-
cidade e características, pela consciência, apesar de se estar o tempo todo consciente das
afetações de um corpo sobre outro, sempre considerando a mutualidade.
Lembremos que o CI é uma forma de dança assentada no contato entre dois cor-
pos: se estabelece entre eles uma comunicação tal que inicia uma espécie de diálogo em
que o movimento de um dos pares é improvisado a partir das “perguntas” que surgem
do contato com o outro. “Resposta” improvisada que engendra uma outra pergunta pa-
ra o parceiro, sucessivamente e sempre em contato, fazendo os corpos deslizarem, lan-
çarem-se, ficarem de costas etc.
17
A idéia de corpo inteiro foi inspirada no capítulo Terapia ocupacional de corpo
inteiro: uma introdução do livro Corpo e Arte em Terapia Ocupacional de Marcus
Vinicius Machado de Almeida, Rio de Janeiro : Enelivros, 2004. Neste texto o
autor ironiza uma idéia predominante, principalmente em trabalhos que
envolvem algumas terapias de mão. Segundo ele, essa “ insistência na mão
como figura “sacralizada” em nossa profissão nos leva a perguntar: Não
estaríamos recaindo na visão de um corpo partido, reduzido, especializado que
tão arduamente criticamos?”, p. 2.
18
IN: LOUPPE, Laurence. Lygia Clark não para de atravessar nossos corpos.
Publicado em catálogo da exposição Lygia Clark: da obra ao acontecimento.
Somos o molde, a você cabe o sopro. Curadoria de Suely Rodnik e Corinne
Diserens, pelo Musseé de Beuax-Arts de Nantes, França (2005) e Pinacoteca do
Estado de São Paulo, Brasil (25 de janeiro a 26 de março de 2006).
Série Tocar
197
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
198
No CI importam o peso, o equilíbrio dos corpos e o que Paxton denomina de uma
energia que convém melhor àquela composição.
O danceability envolve corpos de pessoas deficientes com corpos de pessoas
não portadoras de nenhuma deficiência física e/ou sensorial e que não são necessaria-
mente bailarinos. Essas relações implicam outra dimensão da comunicação: o contato
corporal permite a aproximação, a quebra de barreiras entre as pessoas a partir do con-
tato e da expressão.
Meu trabalho clínico tem como uma de suas inspirações estas técnicas, pois con-
vém lembrar que tanto no CI, quanto no danceabilityo tocar é central e, portanto, funda-
mental para as nossas análises.
Pode-se afirmar que o contato corporal, além de acontecer através de uma co-
municação inconsciente, é também resultante da small dances presentes e atuantes
nos corpos tal, como indicou Steve Paxton.
Essas pequenas danças seriam como movimentos permanentes, não necessaria-
mente dirigidos, mas conscientemente observados e que se efetuam no próprio ato de
estar em pé. É o movimento microscópico que descobrimos no interior do nosso corpo e
que o mantém em pé.
19
Segundo Gil, para Steve Paxton a small danceé a fonte primeira de todo o movi-
mento humano. Trata-se de um movimento estático fundamental mascarado por outras
atividades, mas que continuam sempre lá como sustentação do corpo.
A experiência de se manter em pé e gradativamente relaxar permite sentir as pe-
quenas forças que sustentam o corpo, antes de se deixar cair.
Para Gil este seria um modo de consciência do corpo, diferente da consciência re-
flexiva que intervém sempre que o corpo entra em ação: na dança, no esporte, no relaxa-
mento, nas artes marciais, no processo de criação artística, no simples fato de nos
tocarmos ou de nos vermos.
20
Esta idéia se aproxima da concepção de corpo proposta por Keleman, pois reve-
la um dinamismo que favorece pensar o corpo como condição viva, pulsante, em trans-
formação contínua.
A small dances explicita este estado dançante do corpo tornando claro que os
exercícios do tocar não agem apenas nas superfícies de contato: é a introdução e o mo-
delo do tato agindo no corpo inteiro, tal como nos diz Paxton (apud Louppe).
21
Retomando a idéia proposta por Gil e apresentada na série Olhar, podemos dizer
que no tocar, o corpo também está envolvido pelas atmosferasde cada um, resultando
19
GIL, José. A comunicação dos corpos. In: Steve Paxton. Movimento total:
o corpo e a dança. São Paulo: Editora Iluminuras, 2004, p.109.
20
Ibid.. p.110.
21
IN: LOUPPE, Laurence. Lygia Clark não para de atravessar nossos corpos.
Publicado em catálogo da exposição Lygia Clark: da obra ao acontecimento.
Somos o molde, a você cabe o sopro. Curadoria de Suely Rodnik e Corinne
Diserens, pelo Musseé de Beuax-Arts de Nantes, França (2005) e Pinacoteca do
Estado de São Paulo, Brasil (25 de janeiro a 26 de março de 2006).
Série Tocar
199
em uma produção de novas atmosferas no decorrer do trabalho de aproximação. Isto
quer dizer, por exemplo, que quando toco um corpo enrijecido, estou tocando tam-
bém uma atmosfera rígida; sou tocado (impregnado) por ela e é a partir destas forças que
se engendram que o trabalho irá se desenrolar.
Como eu toco? Como sou tocado pelo outro? O que meu toque produz? Como respondo
ao toque do outro?
Quando dois corpos se afetam e são afetados (agora por contato corporal), tal
como nos propõe Espinosa, acontece um encontro que pode ou não compor, aumentar
ou não a potência de vida de cada corpo/sujeito. A mutualidade nestes processos se dá
quando um acolhe a experiência do outro, ou seja, quando os envolvidos estão presen-
tes, se comunicam e buscam o encontro.
Os modos de tocar e ser tocado dependerão das muitas forças presentes em de-
terminado encontro: quem tocou, como, aonde, de que modo, quanto tempo perma-
neceu em contato, qual o vínculo existente e possível naquela relação e muitos outros
aspectos que ficarão mais claros na voz dos participantes das diferentes oficinas.
O tocar no tempo da fotografia
Inicialmente o tocar está relacionado ao olhar para o outro e ser olhado. Depois de um tempo,
ao trabalharmos com a fotografia em que uma pessoa faz a forma e a outra compõe com ela, exis-
te uma indicação para que o toque corporal propriamente dito ainda não se realize. Somente
mais tarde é que um corpo irá tocar o outro, devagar, observando o contato, a afetação provo-
cada naquele encontro e aonde e como gostaria de tocar o meu parceiro.
Leonardo rapidamente “agarra” a sua parceira que se enrijece. Não é fácil contro-
lar o impulso.
Pergunto: como se aproximar do outro? De que modos? De que jeitos?
Observem como a outra pessoa responde ao seu contato. Observe a si e ao
outro na relação.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
200
Procuro ainda manter em pauta a questão fundante de todo o trabalho clínico:
Como cada um afeta e é afetado pelo outro através do toque?
Como desejo tocar?
O que se esboça em mim na aproximação entre meu corpo e o do parceiro?
A aproximação entre os corpos não está necessariamente ligada a colocar a “mão”
no outro. Muitas sensações estão presentes somente na possibilidade de aproximação
e no esboço de um gesto. Trata-se das intensidades, das exalações, das sensações. É nes-
te território que estamos navegando.
O tocar o outro significa compor com ele, ficar, degustar, desmanchar e criar outra
composição. Cada dupla determina os caminhos e as produções.
Observo, muitas vezes, a pressa na aproximação corporal. Muitos participantes
não escutam, não aceitam minha orientação. Eu apenas acompanho o movimento de
cada dupla e do grupo, procurando lentificar o trabalho ao máximo, pois entendo que a
lentificação possibilita captar e viver os trajetos, repeti-los e recriá-los a cada nova inves-
tida de contato.
Toda uma filosofia coreográfica do tato se desenvolveu no decorrer do século XX. Nos ate-
liês de Lisa Nelson explora-se tactilmente o corpo do outro. Demoradamente. Grande e
profunda viagem aos confins de um continente corporal. A atenção é voltada para os
pormenores anatômicos, portadores de singularidades. Ainda que nos reconheçamos
paralelamente nesse corpo-espelho. Quando tocamos uma pele, somos também toca-
dos pelo outro. Meditação sobre o corpo tocante-tocado.
22
A introdução do toque é realizada de forma bastante delicada. Lembremos de Ro-
sana, do grupo de mulheres de Sorocaba, que durante o nosso trabalho explicita o estra-
nhamento e a surpresa nas vivências que envolviam o tocar.
Freqüentemente pontuo a necessidade de observar as respostas produzidas no
corpo. Na maioria das vezes, este tipo de escuta pode ser exercitada.
Assim, as aproximações entre os corpos iniciam sempre tendo como referência as
múltiplas possibilidades que podemos ter quando chegamos perto do outro. Tanto a
22
IN: LOUPPE, Laurence. Lygia Clark não para de atravessar nossos corpos.
Publicado em catálogo da exposição Lygia Clark: da obra ao acontecimento.
Somos o molde, a você cabe o sopro. Curadoria de Suely Rodnik e Corinne
Diserens, pelo Musseé de Beuax-Arts de Nantes, França (2005) e Pinacoteca do
Estado de São Paulo, Brasil (25 de janeiro a 26 de março de 2006).
Série Tocar
201
pessoa que recebe o toque quanto aquela que toma a iniciativa afetam e são afetados no
encontro. O corpo sempre responde ao estímulo ao mesmo tempo em que estimula. To-
car levemente, usar a ponta de um dedo se assim quiser, ficar olhando, tocar com outras
partes do corpo são orientações para que se ampliem as possibilidades de exploração.
Cabeça com cabeça, a ponta de um dedo em um nariz, um leve abraço, um corpo que to-
ca o outro suavemente. As vezes isto não acontece – os toques são mais fortes, utiliza-se
apenas a mesma parte do corpo, as mãos seguem tendo primazia no início da experimen-
tação e isto não significa uma falha, mas acontecimentos possíveis. Às vezes a dupla se en-
tende, às vezes não. Por vezes as duplas conversam, outras o silêncio se impõe.
Quando observo que uma situação se mostra demasiadamente agressiva, procu-
ro chamar a atenção para a questão:
Observem como se dá o contato. Será que a outra pessoa está gostando do que você es-
tá fazendo? Será possível encontrar outros modos de tocar?
“Tocar é uma coisa aprendida”, diz uma participante em um dos workshops do
danceability.
O quanto às pessoas foram tocadas? De que modos? Será que prestamos atenção a es-
ta questão? Será que fomos tocados por ela? Quais as sensações quando sou tocada por
esta ou aquela pessoa? Que toques me agradam? Quais me afastam? Como esta ques-
tão afeta meu cotidiano?
“Em casa não estamos acostumados a nos tocar, mas eu gosto, sinto falta.”
(Fernanda)
Tenho medo de tocar outra pessoa; e se ela não gostar?”(Dilma)
“Fico com vontade de perguntar como aquela pessoa gostaria de ser tocada,
mas tenho vergonha.” (Suzana)
“Depois que comecei a fazer este trabalho, minha relação com os meus filhos
mudou, toco mais, sinto-me mais carinhosa.”(Liara)
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
202
Dando continuidade ao trabalho com o tempo de fotografar (criar formas), sugi-
ro que o parceiro modifique a forma do outro, lembrando sempre que a qualquer descon-
forto, de um ou de outro, basta desmanchar a forma que o exercício é (re) começado.
Essas alterações da forma do outro podem se dar através de uma mudança na
posição dos braços, das pernas, da cabeça, postura etc. Ou seja, a pessoa vai em direção
ao corpo do outro, observa o que gostaria de alterar e o faz passo a passo, sempre pro-
curando dar um hiato entre um ato e outro para que realize o que tem vontade e não so-
mente fazer por fazer.
Nesta hora, manifestam-se diversos jogos entre os participantes. Algumas du-
plas se divertem “aprontando” com o parceiro, colocando o outro em posições difíceis de
sustentar; as duplas riem. Em outros momentos as modificações são tímidas, quase não
acontecem tamanho o receio de mexer na forma do outro. Assim, são criadas muitas es-
culturas vivas.
Em um dos grupos foi proposto que um dos membros da dupla circulasse pelo es-
paço para observar outros trabalhos e naquele momento pareceu que estávamos todos
numa exposição de esculturas humanas. Foram momentos intensos, criativos e esteti-
camente muito atraentes para muitos participantes. Em alguns grupos, quando obser-
vo a intensidade presente, realizo algumas pausas para que as pessoas saiam de suas
duplas para terem um olhar sobre o conjunto da produção. Por vezes, observo fluxos de
prazer e alegria diante do que o grupo pôde criar.
“O que as pessoas conseguem fazer com seus corpos!”,ressalta uma das parti-
cipantes; nesta cena e em muitos momentos do trabalho, reflito sobre a mesma questão.
Trajetórias que tocam: o trabalho
de massagem no danceability
Mayara, Manuela, Sandra, Cinthia vão massagear Denise. A escolha de Denise para ser a pri-
meira foi realizada sem muitas conversas. O grupo se olha e alguém toma a iniciativa de deitar-
se no colchonete. As outras participantes se colocam ao redor e cada uma vive a expectativa de
tocar a parceira a seu modo.
Vocês podem tocar a pessoa da forma que acharem mais interessante, cada uma no seu
Série Tocar
203
tempo; não é necessário fazer o que a outra pessoa está fazendo, tampouco seguir um
protocolo.
Existe uma variedade nos exercícios que envolvem o tocar. Há momentos em que
ele não é previamente demarcado, mas acontece a partir de algumas “sugestões”.
As experimentações versam em torno de três “camadas” exploratórias do corpo:
a pele, o nível da musculatura estriada e os ossos.
O tocar pode ser realizado com as mãos ou outras partes do corpo, no ritmo pro-
posto pelo participante que decidirá pelas pausas, pelos momentos em que o próprio cor-
po se instala sobre o corpo do massageado, pelas alterações de lugar e modos de
aproximação.
Aviso ao grupo que “pode parar quando quiser; se achar melhor iniciar apenas
olhando e depois tocar....”.
O trabalho dura de dez a quinze minutos para cada pessoa massageada; as coreo-
grafias são as mais variadas. Não há como um grupo fazer exatamente o que o outro faz,
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
204
pois não existe uma demarcação. Cada um encontra o seu modo singular.
Sigam o seu desejo e respeitem o seu jeito de fazer.
Sugiro ainda que, além das mãos, o corpo todo participa da aproximação. Há to-
do o tipo de trabalho grupal. Alguns mais ousados, mais soltos, experimentando modos
e posições surpreendentes; outros realizadas com timidez, toques nos pés, carinhos
nos cabelos, brincadeiras.
Assinalo ainda que tocar o outro não significa esquecer do próprio corpo; que é ne-
cessário se posicionar de uma forma confortável também para quem faz a massagem. Al-
gumas participantes centram atenção no que fazem, outras dispersam, saem, retornam
e estas modulações compõem as propostas.
O participante experimenta modos de tocar o outro e este é um aspecto interes-
sante, pois propõe a pesquisa. Mesmo delimitando um certo campo “exploratório”, pro-
curo sempre manter, como em outros trabalhos, uma abertura, uma brecha por onde
circular, pois às vezes a inexistência de orientação provoca tamanho susto que o corpo
se desorganiza e chega a paralisar, impedindo a possibilidade de criar ou mesmo reco-
nhecer como e o que se faz.
Transitar por estes desequilíbrios é um dos desafios que experimento a cada no-
va situação grupal.
Tocar como modo de vivificar os corpos
Tocar o corpo de outra pessoa ou o próprio corpo remete à idéia de vivificarparaexperi-
mentar, corporificar e viver este corpo em sua capacidade de afetar e ser afetado pelos
encontros.
Trata-se, então, de entender o tocar não como uma busca desenfreada por mudan-
ças, mas como possibilidade de aumentar repertório para que o corpo possa acessar
formas e viver experiências assimiláveis. A questão é construir outros corpos pesquisa-
dores, sensíveis, atentos que, ao tocar, possam encontrar outro corpo/sujeito que aju-
de a saber mais de si e provar outros jeitos de ser/fazer/pensar/agir importantes para o
enfrentamento das mais diversas situações.
Não se trata de estabelecer modelos de aproximação ou de tocar o outro, mas de
Série Tocar
205
exercitar diferentes modos de tocar o próprio corpo e o corpo do outro, numa resistência
aos automatismos e anestesiamentos tão próprios da atualidade.
Observo na clínica que o corpo de certa forma constrói estratégias para sobrevi-
ver, o que conforme afirma Deleuze exige prudência. Nesse quadro, cabe ao terapeuta,
então, instaurar permanentemente um estado sensível que permita entrar, propor cuidar
e garantir ao grupo um espaço de confiabilidade para abordar tantas questões delicadas
que envolvem o corpo e o tocar.
Série Mover e pausar:
ondas e calmarias
207
É possível fazer da multidão uma coletividade
de homens livres, em vez de um ajuntamento
de escravos?
Deleuze
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
208
Série Mover e pausar: ondas e calmarias
209
R
uth dá pequenos passos pelo espaço. Todo o seu gesto é contido. A voz quase não sai.
Quando pedimos para expressar com o corpo uma chuva que caía lá fora, Ruth fez um
movimento com braços e mãos para o alto e para baixo. Pareciam chuviscos, um
gesto de pouca amplitude articular, mas muito intenso, retrato daquilo que podia viver naque-
le momento.
1
Nesta série abordarei os exercícios que envolvem o mover eopausar que per-
meiam alguns procedimentos.
2
Conforme mencionei anteriormente não estou interessada em pensar o corpo
apenas em seu aspecto sensório motor. Tratar do moverepausarna clínica constitui ta-
refa bastante desafiadora, pois em muitos estudos o movimento ainda está restrito à sua
esfera muscular-esquelética.
Para clarificar os sentidos do mover em minha clínica e pensar nos procedimentos
longe de qualquer redução, optei por distinguir movimento e motilidade a partir da pers-
pectiva de Keleman.
A necessidade de discutir o movereopausarse justifica pelo fato de que nos vá-
rios exercícios tanto o mover-se pelo espaço como o pausar o corpo num determinado lu-
gar provocam diversas ressonâncias e experiências múltiplas e muito sutis.
Um pequeno movimento do corpo no espaço muda toda a experiência, conforme
discutido em todas as séries. Nos arranjos aqui delineados estão contemplados movi-
mentos caóticos – circulares, espiralados, em linhas e outros desenhos realizados
em diferentes velocidades que permeiam vários procedimentos.
Como concepção de movimento tomaremos novamente a perspectiva de Kele-
man (1992)
3
que diferencia padrões de motilidade e padrões de ação e movimento.
O movimento descreve como as criaturas se deslocam de um lugar para outro.
Nessa ótica, o movimento é mecânico: articulações e ossos flexionam, dobram, giram,
1
Cena de uma Oficina de corpo e abordagens corporais realizada no Centro de
Convivência Bacuri, da Prefeitura de São Paulo.
2
Alguns destes procedimentos apresentados em outras séries com ênfase em
outros aspectos são retomados com foco para o movereopausar.
3
KELEMAN, Stanley, op. cit.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
210
deslizam; músculos levantam, empurram, puxam, apertam, alongam e contraem.
4
A motilidade, por outro lado, brota dos processos metabólicos como a excitabili-
dade das células, os acessos emocionais, a circulação de nutrientes, entre outros.
O ser humano tem várias camadas: pele, fáscia, ossos, órgãos, líquidos. A pele
estica e contrai num padrão contínuo; a forma dos músculos do esqueleto muda num
ajustamento da postura ereta; os ossos encolhem e esticam sob pressões variadas e os
órgãos são uma onda de peristalse crescendo e diminuindo. Motilidade é isso: expansão
e contração. Alongamento e encolhimento, distensão e recolhimento
5
. É um fluxoin-
terno diferente do movimento.
6
Assim, define Keleman, “o movimento reporta aos músculos esqueléticos, a
uma ação destinada às funções de parar e avançar. O estriamento do músculo esque-
lético permite pausa e movimento, ele pode fixar e trocar de tônus e direção.
7
Segundo o autor, as marés de motilidade dão origem a movimentos cinéticos e
nesta transição há um diálogo entre motilidade e movimento, pois não existe movimen-
to sem interação com os fluxos que nos atravessam. O que nos interessa é estainterli-
gação, pois as ações voluntárias são acompanhadas da peristalse pulsátil do
corpo/sujeito com seus fluxos internos, os mais variados e mutáveis. Esses processos
reforçam a idéia das formas do corpo como borda de uma série de acontecimentos.
Tendo como referência esse contexto, a partir de agora problematizarei premissas
desta série, acompanhando em cada moverepausaralguns dos processos que resultam
das ações analisadas.
A primeira se refere às interligações entre movimento e o continuum da motilida-
de, ou seja, não podemos pensar os movimentos sem perder de vista o concerto pulsátil
de um organismo como um todo (Favre). Para Keleman e Favre esta organização resulta no
caráter pulsátil do vivo
8
(presente em cada célula) que permite realizar permanentemen-
te trocas entre ambientes internos e externos
9
num permanente (re) configurar-se.
Nesses processos os pensamentos e sentimentos são fundamentais na ação de
bombeamento do corpo. Como exemplo, Keleman nos diz que a motilidade pode ser au-
mentada na hiperatividade ou reduzida na hipoatividade, por medo, raiva ou choque.
“Podemos nos mobilizar até o frenesi ou nos desmobilizar até a apatia”.
10
Ao tratar então do mover, não quero me restringir ao movimento (pautado na ação
da musculatura esquelética, ou seja, de caráter puramente mecânico), pois estaria redu-
zindo e empobrecendo os processos em jogo nos procedimentos. Pretendo assim não
perder de vista, em cada discussão sobre o moverepausar, a idéia de um corpo dinâmi-
4
Ibid., p.32.
5
A motilidade e a pulsação estão intimamente ligados ao estado dos tubos,
camadas, bolsas e diafragmas. Quando estes têm um bom tônus, isto é, uma
motilidade ininterrupta, isso se reflete na vitalidade física e emocional”
(Keleman, p. 90)
6
Ibid, p.34.
7
Idem, ibid.
8
Grifo meu.
9
Lembrar da discussão realizada no primeiro capítulo, que aborda o corpo como
parte da biosfera, como um ambiente em redes de comunicação.
10
A respeito dos pensamentos e sentimentos, ver Keleman, op.cit., p.70.
Série Mover e pausar: ondas e calmarias
211
co e complexo que funciona como uma bomba pulsátil.
11
A outra premissa discutida por Deleuze (2002) acerca de Espinosa, se refere a
duas maneiras simultâneas de definir o corpo:
De um lado, um corpo por menor que seja, sempre comporta uma infinidade de partículas.
São as relações de repouso e movimento, de velocidades e de lentidões entre partículas
que definem um corpo, a individualidade de um corpo. De outro lado, um corpo afeta ou-
tros corpos, ou é afetado por outros corpos: é também este poder de afetar e ser afetado
que define um corpo na sua individualidade.
12
Tomemos como referência a primeira definição espinosista, que atribui um cará-
ter microscópico, invisível e imperceptível aos acontecimentos que envolvem os corpos.
Esta visão minimalista nos sugere captar os procedimentos para além de nosso olhar se-
letivo e codificado, tal como discutido na série Olhar.
Ali uma das dimensões discutidas tratava de apresentar e suscitar o exercício de
um olhar para o pequeno, para o ínfimo, para o quase-invisível presente nas atmosferas
que rodeiam e constroem os corpos em seus processos microscópicos.
Além disto, me parece que Espinosa se aproxima da perspectiva de Keleman e
Favre, pois estes dois autores também concebem as formas como resultantes das rela-
ções complexas entre partículas (no caso de Keleman, podemos dizer células, pulsos),
o que definiria maneiras de viver (Espinosa), modos de funcionamento (Favre, Rolnik).
Deleuze (2002) afirma, a partir da perspectiva de Espinosa, que o importante
é conceber a vida, cada individualidade de vida como uma forma ou um desenvolvi-
mento de forma
13
que depende das relações de velocidade e lentidões tal como pos-
ta pelo filósofo.
A exemplo disso, Deleuze toma a música para dizer que
uma forma musical depende de uma relação complexa entre velocidades e lentidões de par-
tículas sonoras. Não é apenas uma questão de música, mas de maneiras de viver; é pela
velocidade e lentidão que a gente desliza entre as coisas, que se conjuga com outra coisa;
a gente nunca começa, nunca se recomeça tudo novamente, a gente desliza entre, se in-
troduz no meio, abraça-se ou se impõe ritmos.
14
Como contraponto inerente ao mover, discutirei momentos em que se propõe a
pausa como disparadora de outras problematizações:
O que acontece quando um corpo se movimenta ou faz uma pausa no espaço?
11
Para saber mais, rever a concepção de corpo como pulso;
esta idéia é discutida no capítulo 1 do livro Anatomia Emocional, de
Keleman, op. cit., p. 16.
12
DELEUZE, G. Espinosa - Filosofia Prática .São Paulo : Editora Escuta, 2002,
p.128.
13
Grifo meu
14
DELEUZE, Gilles.op. cit., p.128.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
212
Destacarei alguns momentos que explicitam a variedade e os desdobramentos ob-
servados enfocando o movereopausarcomo possibilidades de desmanchar, descons-
truir trajetos, atentar a uma determinada posição/lugar, traçar linhas, caminhos, novas
configurações que implicam modos de pulsar experimentados pelos participantes como
solistas ou nas propostas em duplas, trios, quartetos, grupos pequenos ou ainda com to-
dos os participantes do grupo.
Assim, o movereopausarcompreendem uma análise da dimensão espaço-tem-
poral; porém não acontece por si só como ação de um corpo que se pensa apenas na sua
funcionalidade, mas envolve toda uma coreografia pulsátil de um corpo composto em ca-
madas, tal como se discutiu na perspectiva de Keleman e Favre.
Essas sutilezas que ampliam nossa discussão ficarão mais acessíveis quando
narrarmos algumas cenas de nosso trabalho.
Quando nos movemos o que acontece na relação entre os corpos e os ambientes?
Andar – trajetos e velocidades
Todo corpo se move, ora mais lentamente,
ora mais rapidamente”.
Espinosa
15
Em minha dissertação de mestrado
16
, orientada pelo trabalho proposto por Naiza de
França, eu já aproximava o mover ao andar atento, crítico que propõe ao participante
observar, pensar, alinhavar questões, escavar caminhos que podem ressoar em encami-
nhamentos que derivam para a própria vida.
“Fico muito ansiosa ao perceber que as coisas não permanecem no mesmo lu-
gar” (Érika)
15
ESPINOSA, B. Ética III: Da origem e da natureza das afecções Axioma II, parte II.
Espinosa. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural,1983. p.144 (Os Pensadores).
16
Para saber mais ler o livro Danças em Terapia Ocupacional, op.cit. No capítulo
sobre o método proposto por Naiza de França apresento a característica mutante
daquela proposta: na sala os objetos estão sempre mudando de lugar, como na
vida onde os processos não param, apenas entram em gradações diversas.
Série Mover e pausar: ondas e calmarias
213
Ao andar, focalizo a minha atenção em diferentes lugares e, dependendo do
jeito que ando e olho, consigo observar e sentir coisas diferentes.”(Fernanda)
Freqüentemente realizo esta proposta quando o local não é conhecido pelos par-
ticipantes. Além de fazê-los voltar a atenção ao próprio corpo, as sensações permitem,
pouco a pouco (e não apenas nesse exercício), que se apropriem do lugar, que o sujeito
seja impregnado pelas possibilidades oferecidas pelo espaço, pelo contato dos corpos
no ambiente humano e não humano: objetos presentes, imagens, ruídos, acústica, luz,
mobiliário, tipo de piso, dentre tantos outros elementos.
É importante dizer também que atuo, muitas vezes, com pessoas que pouco se
perguntam sobre o que pensam sobre as situações, sobre o que vivem. Às vezes nem per-
cebem onde estão concretamente e, de fato, presentificar-se num ambiente é um proces-
so bastante complexo.
Atuar em uma cidade muito quente, numa sala pequena com muitas pessoas,
trabalhar com roupas desconfortáveis, trabalhar de pés no chão ou com meias são peque-
nos e mínimos detalhes da ambientação que influenciam e abalam as velocidades, os
ritmos, o pulsar, ou seja, os modos de transitar e produzir experiências.
Podemos notar ainda, tal como Fernanda nos diz, que uma alteração na forma –
olhar para diferentes lugares, posicionar o corpo de modo diverso no espaço – modela a
superfície e o pulso de um corpo configurando experiências singulares, caso este corpo
saiba” assimilar o vivido.
17
Simplificando a variabilidade e a multiplicidade de corpos que acompanhamos na
clínica, podemos dizer que propor uma vivência para um corpo/sujeito com uma muscu-
latura excessivamente enrijecida é diferente de propor a mesma vivência para um sujei-
to/corpo que está deprimido ou distanciado do mundo, ou para uma criança ou idoso e
assim por diante, de acordo com a singularidade de cada corpo.
Há uma série de procedimentos que caminham nessa direção e compõem os
exercícios do andar com o olhar voltado para a relação dos sujeitos com os ambientes
18
.
Vejamos algumas delas:
No início das propostas, sempre peço para as pessoas procurarem um lugar confortável
para permanecer.
Este exercício de buscar um canto e criar um pequeno território é fundamental, pois fre-
qüentemente as pessoas estão ansiosas, por desconhecer o trabalho. Sabem apenas
17
Lembrar que somente se configura uma experiência quando o corpo pode assi-
milar a afetação produzida no encontro, responder de modo vincular ao aconteci-
mento, de modo diverso ao reflexo do susto, ocnforme Keleman, ao tratar das
respostas reflexas e automáticas que não criam repertório. Para saber mais so-
bre o reflexo do susto consultar Keleman, Stanley, op. cit., capítulo III : Agressões
à forma.
18
Quando trato do ambiente, refiro-me a todos os elementos que constroem os
ambientes humanos ou não.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
214
que as vivências envolvem o corpo.
Márcia é uma participante muito silenciosa. Entra no grupo e realiza as propostas com
reserva, com olhar baixo, sem conversar muito.
A busca por espaço é desafiadora. Ela deve sair de seu “canteiro” e desbravar outros
territórios.
Ao participar de um exercício que propõe circular pela sala a procura de um lugar que
possibilite uma posição confortável para iniciar os exercícios, faz algumas pausas mostrando
certa hesitação, até o momento em que identifica um canto e se integra ao trabalho. Ao final,
Márcia fala da vergonha que sentiu para sair de seu lugar.
“Estou acostumada a ficar num canto e tenho medo de sair do meu lugarzinho que é tão
confortável.”
O acolhimento é ponto importante na clínica. Ao participante cabe buscar um es-
paço, fazer suas escolhas. Ele não deve necessariamente mover-se, pois pode girar pe-
lo espaço sem que esteja implicado na proposta, apenas obedecendo ao comando do
coordenador.
19
Observo que o corpo fala de modos de subjetivação; assim a caminhada explora-
tória naquele grupo, naquele momento faz sentido no processo de Márcia. Entendo que
ao sair de seu “canteiro”, talvez ela pudesse mudar seus horizontes subjetivos,que di-
zem respeito ao ambiente concreto (luminosidade, posição do corpo no espaço, as rela-
ções de proximidade ou afastamento entre os corpos etc), e principalmente troca de
afetos a partir das diferentes conexões que poderia estabelecer naquele ambiente.
Esses trânsitos não significam que haverá uma ampliação de repertórios existên-
cias, mas que, se assimiladas, as experiências de contato/contágio, acontecimentos
podem vingar e promover a descoberta de outras possibilidades de encontro e afetos.
Além da pergunta de Espinosa sobre aquilo que o corpo pode – que permeia todas
as séries –, podemos retomar uma outra questão também formulada pelo filósofo:
“De que afetos você é capaz?”
20
Nessas dinâmicas, tal como mencionado na série Tocar – a respeito da potência
da imaturidade motora de crianças que se esbarram num berçário e acabam por susci-
tar acontecimentos inusitados –, podemos dizer que o mover (e também o pausar)po-
19
Esta atitude é bastante presente principalmente nas disciplinas que ministro
na faculdade onde é “obrigatória” a participação nas aulas. No entanto, no de-
senrolar dos trabalhos muitos alunos ficam de tal modo implicados que seu inte-
resse é despertado ou inventado a cada vivência e discussão.
20
ESPINOSA, 1983, op. cit., p. 75.
Série Mover e pausar: ondas e calmarias
215
dem produzir experiências de encontro através de coreografias movediçasnão demar-
cadas por passos certeiros, rigidamente elaborados que podem aprisionar ou obstruir o
desencadear de gestos e afetos.
Sabemos, conforme discutido em vários momentos deste trabalho, que um míni-
mo deslocamento ou mudança de corpo abre mundos de relações, de afetos, portanto,
de experiências.
Nesta dinâmica, como em outras que serão apresentadas, ficam claros os vetores
de forças que atuam nos corpos, moldando comportamentos relacionados aos modos
de mover e pausar.
Os estranhamentos expressos pelos participantes em relação a algumas dinâ-
micas balizam os desdobramentos das propostas e os graus de envolvimento, permea-
bilidades, disposições e a assimilação da experiência vivida.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
216
Mover e pausar no encontro entre corpos
As pessoas caminham pela sala. Solicito que procurem lugares onde não estejam outras pes-
soas, caminhem pelos vazios e digo “se encontrarem alguém, se afastem, expressem pelos
corpos repulsas, afastamentos, vontade de resistir à aproximação”.
Depois de algum tempo, que varia em cada contexto, sugiro outro movimento: ir em
direção a outra pessoa, deixar-se afetar, buscar o encontro, observar o que acontece nos cor-
pos/sujeitos em cada movimentação.”
Em muitos workshops a proposta é aceita com certa excitação – afastar, gritar
quando encontrar o outro, olhar para o outro com assombro, assustar-se, fugir, ou seja,
distanciar-se de vários modos e depois caminhar procurando o contato, ir onde estão ou-
tras pessoas, juntar-se ao máximo, deixar o corpo responder ao contato do outro. Tanto
um movimento quanto o outro produz efeitos visíveis e invisíveis, por vezes de difícil
captação e/ou nomeação.
Série Mover e pausar: ondas e calmarias
217
Em um dos grupos, uma participante comentou que se sentiu muito sufocada pela pro-
ximidade com as outras pessoas; outra mencionou satisfação, ao observar as respirações
em outros corpos; outra ainda falou da preferência pela proximidade e da angústia pro-
vocada pelo vazio.
Por vezes quando acelero algumas experimentações, a excitação dos encontros
(escapar, bater, tocar, sair correndo) provoca um riso contagiante pela sala. O grupo de
modo geral se agita. Alguns participantes consideram o jogo uma “brincadeira”.
Na mesma oficina são tecidas outras linhas de funcionamento dos corpos/su-
jeitos: alguns participantes não entram na proposta, permanecem olhando, outros se
colocam à espreita do acontecimento, entram nos fluxos em momentos diversos; ou-
tros ainda não acompanham o ritmo grupal seguindo uma velocidade diferente.
Tudo isso é possível e, como reafirmo em vários momentos da tese, a riqueza de
respostas, a diversidade de acontecimentos em um mesmo território demonstram, co-
mo dizem Keleman e Favre, que na clínica como na vida temos de falar de um corpo em
particular, construído e em construção permanente.
Cada participante responderá à intensidade que lhe atravessa mediado por suas
experiências, por aspectos herdados, pelos vínculos, pela cultura, pela predominância
de modos de subjetivação que criam uma anatomia emocional e sustentam aquela vida,
pulsando segundo afetos, com suas camadas, válvulas, bolsas e toda uma arquitetura
tissular que envolve ritmos de excitação gerados pelas experiências.
Por isso, a exemplo de outras séries cada movere cada pausar deve ser olhado e
cartografado como um instante único e particular.
Em um curso realizado dentro de um Hospital Geral, trabalhamos nos corredores que,
naquele dia, não estavam abertos ao público, o que permitia a utilização do local. A
experimentação foi favorecida também pelo fato do corredor terminar numa sala desco-
nhecida para os participantes.
“Senti-me inibida para me aproximar das outras pessoas. Parece que o am-
biente hospitalar contaminou e inibiu as aproximações.” (Solange)
“Minha atenção foi toda para os corredores escuros deste hospital. Estar próxima
aos outros foi muito melhor do que estar afastada. Estar junto me deu segurança.” (Ruth).
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
218
“O frio dos corredores, somado à frieza que pude ativar em mim para afastar-
me dos outros, fez com que a experiência fosse muito intensa.”(Silmara)
Num outro contexto, em que o grupo estava acostumado a experiências que mobilizam
ocorpo
21
, foi sugerida a movimentação pelo espaço. Ao encontrar um outro, o participan-
te deveria realizar uma pausa e deixar-se impregnar pelas sensações daquele contato.
A proposta era experimentar uma “repulsa” ou “vontade de se afastar” do outro e, no mo-
mento posterior, o desafio envolvia o encontro, a “vontade de aproximar-se”.
O tempo de pausa e movimento era variável, de acordo com o desejo de cada
participante.
Acessei camadas de repulsas e afastamentos que estão formatadas em
meu corpo, que acho que têm a ver com outras experiências da minha vida. Foi
muito profundo.” (Johannes)
“Eu passeei pelos contatos sentindo as reverberações de cada encontro.”
(Denise)
“Observei como um traço no outro me aproxima ou, ao contrário, me afasta: um
cheiro; um jeito; um olhar.” (Silvia)
Johannes pôde acessar em si camadas de experiências que marcaram o seu cor-
po. Isto quer dizer, tal como afirma Favre, que as experiências que vivemos constroem cor-
pos, através de uma arquitetura tissular que se está em permanente mutação a cada
encontro e a cada experiência.
Notamos também que cada participante realiza um trajeto na mesma proposta,
pautado pelos encontros, pelas reverberações, pelas respostas que o corpo produz a ca-
da contato.
Denise viveu várias configurações diferentes no grupo, enquanto outros partici-
pantes permaneciam caminhando sozinhos pelo espaço e de repente encontravam al-
guém e, então, criavam uma conversa corporal. Outros ainda, faziam contatos com vários
participantes fixando-se por pouco tempo em cada aproximação/afastamento.
Se observarmos à distância os engendramentos dos contatos entre corpos, cons-
tatamos vários modos de aproximar/afastar, em velocidades e tempos diversos.
21
A proposta foi realizada com vários grupos que vivenciam e estudam o livro
Anatomia Emocional com Regina Favre. Os grupos eram compostos por profis-
sionais de várias áreas, a maioria com experiências ligadas ao corpo, não somen-
te a partir dos laboratórios de formatividade, mas na atuação profissional. Por
estas condições foi possível um tipo de aprofundamento particular proposto a
partir da consigna de aproximar e afastar.
Série Mover e pausar: ondas e calmarias
219
Os comentários ao final desse trabalho expressavam apenas algumas das pontas
dos processos que se delineavam nos encontros entre corpos. Considerando as singu-
laridades dos depoimentos, é possível demarcar alguns pontos abordados pelo grupo.
As configurações e trajetórias em cada processo são definidas por diversos ele-
mentos: o ambiente físico, o número, os graus de intimidade entre os participantes, as
experiências e imersões do grupo em trabalhos corporais, as disposições, interesses,
graus de abertura para viver as propostas, dentre tantos outros aspectos.
Omoverentre os espaços foi o desencadeador nas três cenas de aproximações e
afastamentos entre os corpos/sujeitos. Já o pausarem determinados “lugares” possibi-
litou a apreensão de sensações e, quando foi possível, foram delineados insights, elabo-
rações e/ou observações de si sobre os modos de funcionamento na relação com o
entorno.
As pausas, em contraponto ao mover, possibilitavam um pouso
22
ou uma parada
no movimento: deixar-se afetar de modo diferente da dinâmica cinética e entrar no cam-
po das intensidades, sentindo pulsações, forças atuantes, ambientes corporais que se
conectam dos mais variados modos.
Em muitos exercícios procuro evocar a pausa no mover ou mover menos, mais
lentamente a fim de propiciar a emergência de outros acontecimentos: ativação do pen-
samento ou de memórias intensivas, suspensão de pensamentos, circulação de afetos,
trocas e contaminações possíveis no encontro entre corpos.
Nos seminários realizados sob coordenação de Regina Favre, realizamos muitas
experimentações para evitar determinada forma de corpo. A intenção é que, deslizando
em mínimos e diferentes graus, possamos acessar outras camadas que constroem o
corpo e que possibilitam descobrir um pouco mais de nós mesmos a partir das expe-
riências com e no próprio corpo.
23
Outro aspecto importante é que, tal como comenta Favre, não atuo nessas dinâ-
micas apenas com corpos que se movem pelo espaço, mas com formas emocionais que
se interligam entre si, que conversam nos encontros e atualizam experiências media-
das pelos contatos.
22
A idéia de pouso vem do texto Do aprendizado da atenção na formação do
cartógrafo de Virgínia Kastrup (Comunicação oral realizada em disciplina do
Núcleo de subjetividade, 2006), ao tratar do funcionamento da atenção no
trabalho de campo. É preciso mencionar também a afirmação de W. James sobre
o conceito de fluxo do pensamento; o pouso da atenção não seria concebido
como uma parada do movimento, mas como uma parada no movimento. Nessa
direção, penso a pausa também como um pouso no movimento.
23
Sugiro relembrar alguns dos chamados momentos clínicos que acontecem nos
seminários coordenados por Regina Favre e brevemente mencionados na
concepção de corpo como pulso no presente trabalho.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
220
Mover a partir de diferentes inspirações
Para abordar a esfera das inspiraçõesnos procedimentos, utilizarei relatos sobre vivên-
cias pessoais, em workshop coordenado pela bailarina Lisa Nelson, e a respeito de pro-
postas orientadas por mim a partir de elementos assimilados daquela e de outras
experiências que compõem meu repertório na clínica.
As propostas de improvisação e criação de Lisa Nelson utilizam muito o andar,
principalmente abordando a relação entre olhos abertos e olhos fechados, tal como
tratado na série Olhar; porém, aqui enfatizarei os sentidos do mover e pausar.
Retomemos uma vivência tratada na série Olhar, um momento em que solicito
que, ao encontrar um outro participante, se faça uma pausa no movimento a fim de
captar as sensações daquele encontro. Trata-se da capacidade do corpo de captar as pe-
quenas percepções, “um não sei o que” nas atmosferas que se constroem nos contatos.
A pausa ou pouso aqui tem um sentido muito particular, pois indica que eu inibo
voluntariamente o impulso do movimento e posso acessar em meu corpo outras sensi-
bilidades.
Como exemplos, podemos tomar as oscilações do pulso do coração quando alte-
ramos velocidades e ritmos no mover e pausar do corpo; ou a percepção de dores ao
pausar o movimento e prestar atenção às sensações do corpo, entre outros.
Nessas proposições é possível, tal como afirma Paxton quando fala do trabalho
do contact improvisation, transitar por linhas diferentes que compõem a presença
naquele instante e se conectar por diferentes camadas através de diferentes fluxos
dos ambientes.
Obviamente, e lembrando o que Paxton chamou de small dances
24
, não é possí-
vel estancar os ajustes finos que o corpo faz, principalmente para manter-se em uma
postura ereta, mas é possível acessar nas pausas outras camadas que sinalizam as afe-
tações quando um corpo se avizinha de outro.
Observo que às vezes estes trabalhos são realizados com muitas dificuldades, de-
vido às experiências, histórias e modos de cada participante, mas também porque em
nossas ações somos pautados principalmente pela utilização intensa da musculatura
esquelética que delineia as formas do corpo.
Os exercícios que envolvem as pausas e os silêncios podem ser muito intensos.
“Eu tinha vontade de sair do lugar”. Era muito difícil estar parada muito próxi-
ma a alguém.”(Vânia)
24
Rever a noção de Small dance na série Tocar.
Série Mover e pausar: ondas e calmarias
221
“Senti coisas muito pequenas e toda a minha musculatura estava pulsando, de-
pois da movimentação que tinha realizado antes da parada.” (Carolina)
Ao caminhar de olhos fechados ou mesmo no encontro entre corpos muito próxi-
mos podemos observar como é impossível falar de um corpo somente a partir de suas
partes ou órgãos.
Mesmo observando que regiões ora se afastam ora se aproximam nos contatos
corporais devemos pensar, como propõem Keleman e Favre, num corpo como formas
emocionais que expressam permanentemente um tipo de excitação, de vida, vínculos que
constroem aquele corpo em particular, sua profundidade e superfície visível.
Quando encontra outro corpo ainda de olhos fechados, Raquel percebe que ao abri-
los, seu corpo assume uma forma inusitada. Seu quadril está para frente, mas seu peito escor-
rega para trás como se não quisesse o contato corporal.
Diz que “ficou muito reticente no encontro com alguém que absolutamente não sabia
quem era”.
No momento em que olha para si, coloca ainda a sua “dificuldade inicial em relacionar
aquilo que via com o que sentia no contato com a sua parceira”.
Esta cena novamente remete à idéia de que o corpo se formata para e em respos-
ta a cada encontro, modulando-se por cascatas de forças que atravessam os corpos num
movimento de co-corpar
25
a experiência vivida.
Assim, a cada encontro a multiplicidade das experiências e afetos atravessa os cor-
pos, marcas são inscritas e formas emocionais permanentemente delineadas.
Como vimos a partir da apresentação das cenas, o Workshop de Lisa Nelson e
suas várias propostas trouxeram vários elementos para pensar e criar a clínica do encon-
tro, reafirmando o quanto de vida se expressa pelos corpos, pelos seus modos de funcio-
nar e como através dos corpos respondemos às diferentes situações.
Por comodidade e para facilitar o conhecimento e entendimento destas propos-
tas serão delineadas algumas delas:
• caminhar pelo espaço, parar e depois tocar outros corpos para depois se afastar e en-
contrar outros corpos;
• tocar e ser tocado pelos outros;
• afastar-se, circular e explorar um território em diferentes andares, de modos diversos ;
25
Lembrar da idéia de mutualidade nos encontros que remete ao afetar e ser afe-
tado. São os dois (ou mais) corpos que sofrem e produzem os acontecimentos e
(se) reconfiguram nos contatos. Corpos são entendidos aqui como elementos hu-
manos ou não humanos, tal como assinalado em outros momentos deste trabalho.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
222
• mudar de direção, andar de forma ridícula ou simplesmente andar sentindo os pés no
chão, a própria respiração;
• mover para trocar de lugar;
• criar uma composição com os parceiros através de um diálogo cinético;
• mover para explorar o espaço e observar o corpo no espaço;
• mover para chegar a algum lugar ou a alguém;
• mover e simplesmente sentir as ressonâncias deste ato ou, ao contrário disto, pausar;
não sair do lugar, observar as repercussões do pouso.
Essas explorações acontecem de diferentes maneiras e de acordo com os objeti-
vos que pretendo instaurar em nossas vivências, considerando que há vários aspectos
atuando simultaneamente nas propostas.
O que importa é produzir, criar experiências a partir de mudanças nas formas do
corpo e as repercussões disto no encontro entre corpos.
Demarcaremos agora uma outra modalidade de proposta em duplas que envol-
ve conversas corporais entre parceiros, resultando nas mais diversas improvisações:
A proposta é escolher uma parte do corpo (olhos, braços, pernas, quadris etc) que, ao
se mover, servirá de aceno para que o parceiro crie um movimento.
Mara brinca com os olhos rodando para lá e para cá, provocando em sua parceira um
esforço para “acompanhar as ordens”, fazendo seu corpo saltitar de um lado para o outro, de
frente para trás criando uma coreografia rápida e movimentada.
Ela desafia a desenvoltura da parceira e a coloca muitas vezes num lugar, como ela
mesma disse, cansativo e que exigiu muito de “seu corpo”.
Os papéis se invertem. Agora é Mônica quem orienta a coreografia da parceira, utilizan-
do a mesma estratégia, a partir do movimento dos braços e mãos solicitando que Mara viva em
seu corpo aquela brincadeira desafiadora.
Em outro lugar da sala (ou poderia mesmo se tratar de outro contexto) acontece uma
outra história.
Laura escolhe o dedo indicador para guiar a sua parceira. Move este dedo pelo espaço,
lentamente possibilitando um diálogo de corpos gradual e mais lento, como se houvesse tem-
po para cada “pergunta” e “resposta” dos corpos.
Laura sorri e diz ter se divertido bastante com a brincadeira.
Série Mover e pausar: ondas e calmarias
223
Tudo é possível: a escolha e a alternância das velocidades, respostas variadas ao
comando”, momentos mais sérios e outros mais engraçados, sugerindo um trabalho di-
nâmico e singular de cada dupla.
Como um corpo delineia seu trajeto entre outros corpos/sujeitos?
Existem vários exercícios que trabalham com a atração entre os corpos e os con-
tatos inspiram a criação de gestos, movimentos, alteram pulsos, estados, imagens, pen-
samentos e sensações.
Nessas propostas uma das idéias que baliza a pesquisa dos corpos é o outro
que te faz sair do lugar”. Propõe-se então que cada participante, ao ser atraído por al-
guém ou por uma ação de outro participante, saía de seu lugar, vá em direção ao outro
para possibilitar que alguma experiência aconteça.
Andando pela sala, Lisa nos propõe caminhar de olhos fechados e ir em direção a algum
lugar que chame a nossa atenção.
O dia estava quente, claro e havia luz do sol. Guiei-me pela sensação de calor, pela luz da
janela e encontrei um canto onde explorei minhas costas num chão quente de madeira.
Ali fiquei por um bom tempo, explorando a minha coluna vertebral, porosa ao calor e à
luminosidade.
Um outro trabalho trata de ir em direção àquilo que chama a atenção no outro.
Esses movimentos acontecem em muitos exercícios: ir em direção a um gesto interessan-
te ou na direção de alguém que, mesmo sem se saber, provoca atração.
No encontro é possível realizar uma série de composições: permanecer na proximidade
dos corpos realizando um trabalho coreográfico conjunto, prolongar a pausa deixando
ressoar os contágios daquele encontro, ficar por algum tempo até que um dos parceiros
resolva sair na direção de outra atração.
A idéia é tentar mover-se do lugar ou permanecer num lugar da sala apreciando os mo-
vimentos do próprio corpo e respondendo à afetação provocada pelo contato.
Observo um estalar de acontecimentos, os mais diversos e surpreendentes num
mesmo espaço/tempo. Alguém movimetando-se aqui e acolá desenfreadamente, inte-
ressando-se por tudo, fazendo seu corpo pipocar entre as pessoas; uns pousando o cor-
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
224
po ao lado de outro participante, tocando suavemente a pele; outros tentando timida e
lentamente aproximar-se de alguém; outros ainda soltos pela sala coreografando seus
solos, duos, trios procurando uma vizinhança corporal e infinitas manifestações.
Diferentes atmosferas flutuam no ar através de pequenos e ínfimos movimentos
em paralelo às performances mais expandidas.
Cabe (re)afirmar que nem sempre é assim, pois em cada oficina, curso ouworkshop
que coordeno pode-se fazer outras narrativas a respeito do vivido. No entato, o que im-
porta é afirmar que os encontros entre os corpos, em suas várias modulações, transmi-
tem uma intensidade tal que um grupo ou participante vive uma mudança em sua forma
emocional através das conexões com outros corpos.
Repetição do mesmo ou
caminhando em círculos”
Solicito que os participantes caminhem pela sala. O grupo tende a caminhar em círculos.
Quando me dou conta, a imagem que me vem à mente é a cena de um filme de prisionei-
ros que só podem mover-se naquela demarcação.
Vez ou outra uma pessoa se desgarra do circuito e inventa velocidades e coreografias
fora daquela moldura.
Vez ou outra o grupo desmancha esta formatação e tende a reorganizá-la em outras
situações.
A proposta de mover-se pelo espaço tão comumente utilizada em várias técnicas
e trabalhos em dança não é simples, tampouco deve ser banalizada e considerada como
um momento rápido ou iniciático para trabalhos mais complexos ou que exigem maior
performance corporal.
Primeiro, porque na clínica acompanhamos todo o tipo de corpos com as mais di-
ferentes problemáticas, visíveis ou não, que exigem de muitos participantes um grande
esforço para a realização de qualquer movimento.
Em segundo lugar, por mais que pareçam simples estas dinâmicas, tal como diz
Guattari, expressam muito rapidamente uma série de modos de funcionamento que se
inscrevem nos corpos em suas representações conscientes e inconscientes: nos modos
Série Mover e pausar: ondas e calmarias
225
como se aprende, como se trabalha, como se fala, como se alimenta etc, fabricando re-
lações com a natureza, com os fatos, com o corpo, com o movimento
26
, com o presente,
passado e futuro.
Tal como mencionado anteriormente, pude visualizar em vários contextos a faci-
lidade com que os corpos/sujeitos entram naquilo que comumente chamamos de “pilo-
to automático”, justificados nestes e em outros momentos, entre outros aspectos, pela
dificuldade de romper trilhas habituais e/ou afastar-se dos movimentos impostos pela
maioria, ou ainda pela dificuldade de sustentar e suportar as turbulências do acaso, do
inusitado, do surpreendente que pode nos afetar.
Nesse contexto, é preciso ressalvar que as empreitadas exploratórias não de-
vem ser compreendidas como um novo paradigma a ser almejado pelo terapeuta – saia
do lugar, mexa-se, experimente algo novo –, pois sabemos que isso não é suficiente pa-
ra que “algo” aconteça.
Porém, o que chama nossa atenção nas cenas aqui mencionadas são as forças que
atuam e constroem determinado corpo e a dificuldade de criar variações, face às coreo-
grafias dominantes no ambiente.
Lembrando a perspectiva de Keleman, o vivo quer vingar e para que isto aconte-
ça, cada um fará, agirá ou construirá seu corpo na tentativa de manter a vida do modo pos-
sível, de acordo com a intensidade que seu corpo consegue sustentar.
Assim, nestas proposições procuramos minimamente a possibilidade de construir
uma intimidade com o próprio corpo ou mesmo o reconhecimento de modos encarnados
nos corpos, para que uma fenda se faça criando outros sentidos para movimentos e ges-
tos vividos e pensados para além de seu aspecto mecânico.
Para finalizar esta série farei algumas reflexões a respeito do mover-se em círcu-
los, pois este desenho é presente em vários momentos do trabalho.
26
Grifo meu.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
226
Série Mover e pausar: ondas e calmarias
227
Finalizando em círculos
As danças circulares
27
são coreografias com passos demarcados que têm origem em
danças sagradas criadas há muito tempo pela humanidade. Eventualmente me utilizo
destas danças para juntar as pessoas, no início ou na finalização de um trabalho.
Apesar de portar uma cadência formal de passos, as coreografias das danças
circulares podem promover a singularidade do mover e do gesto sem que haja um des-
conforto intenso, pois o grupo freqüentemente consegue suportar e sustentar as dificul-
dades para “pegar o passo” ou seguir o ritmo imposto pela música.
A disposição em círculo permite contatos que procuro refinar a cada nova execução
da dança: olhar os olhos, desprender-se da tarefa pedagógica de “acertar” o movimento
para poder ecoar as sensações que emergem quando um grupo se dispõe a dançar junto.
Um grupo de alunos de Ribeirão Preto falava sobre a intensidade do término de um
workshop com todos os participantes corporalmente muito próximos num círculo bem fechado.
Diziam que se sentiam bastante diferentes do momento inicial da proposta e que os mo-
vimentos ritmados, embalados pela música, criaram um esforço do grupo para mover-se mais
harmonicamente. Esta harmonia, diferente da busca de uma padronização das manifestações
dos corpos, fazia ecoar estados de conforto e satisfação pelos encontros entoados naquele dia.
No Bairro dos Morros, ao finalizar um encontro com as mulheres da periferia de Soroca-
ba
28
, crianças, adultos e senhoras se aproximaram para uma última dança. Era interessante per-
ceber os diferentes ritmos que regulavam os corpos criando uma cadência possível de ser
saboreada. A diversidade novamente se inscreve no trabalho e demarca mais uma vez que a pro-
dução da diferença visível nos movimentos dos corpos potencializava cada participante e o
coletivo que ali se instaurava.
Depois de muitas experimentações, aproximações e sensações, os dois grupos fi-
nalizam o trabalho com um círculo no meio do espaço com os corpos muito próximos e
os braços entrelaçados pelas costas, criando uma espécie de berço, barco, balanceio
de lá para cá, no silêncio ou com uma música melódica.
Os corpos procuram entrar em uma sintonia para que o movimento do grupo se tor-
ne, aos poucos, mais suave e harmônico, procurando também encontrar um ritmo mais
comum a todos.
A tarefa é bastante difícil, pois criar ressonância entre corpos em toda a sua com-
27
As danças circulares fazem parte de meu “menu” de possibilidades, porém
não serão aprofundadas no presente trabalho. Para saber mais ler: RAMOS,
Renata (org.). Danças circulares sagradas: proposta de educação e cura. São
Paulo : Editora Triom, 1998.
28
Como vimos na Abertura aos procedimentos, esta intervenção com mulheres
da periferia de Sorocaba aconteceu no ano em que fui docente da Universidade
de Sorocaba. Realizamos ali uma disciplina prática com alunos de graduação do
curso de Terapia Ocupacional utilizando abordagens corporais e dança como
procedimentos expressivos.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
228
plexidade exige escuta, aberturas, disponibilidade para transitar entre o que acontece em
cada corpo e sua composição com o coletivo.
Aos trancos os grupos procuram encontrar um ritmo em seu balançar. Então, pro-
curo chamar a atenção de todos para as respirações, para os pulsos que, entre tantos pre-
sentes, irão predominar na determinação do ritmo comum.
Algumas vezes, um corpo minimamente esbarra, empurra o outro cria um descom-
passo, nem sempre percebido, originando certo desconforto. Quando isto acontece, o
grupo permanece sem que os corpos se separem e se tornem novamente mais individua-
lizados. O grupo consegue sustentar a tensão sem se desmanchar.
Outras vezes temos a sensação, mesmo que por alguns instantes, de que criamos
um único corpo dançante; a sensação é tão intensa que se perdem os contornos individuais
dos corpos, que deslizam por entre as ondas da roda, criando todo o tipo de marés.
As duas rodas falam de acontecimentos, de experiências vividas, de mudanças
atmosféricas que acontecem ao longo de um processo grupal. Noto que, ao final, a pro-
ximidade corporal sugerida por estas danças permite, na maioria das vezes, uma legiti-
mação, uma confirmação de que experiências foram realizadas e criou-se um outro tipo
de intimidade diferente daquela que existia antes das vivências.
Dada a singularidade de cada contexto e as diferentes intensidades que com-
põem todo e qualquer trabalho, o que posso afirmar é que quando um grupo consegue
sustentar e suportar as tensões, as problematizações e as possibilidades que emergem
nos trabalhos, os momentos em que corpos estão muito próximos conferem uma sensa-
ção quase inominável.
São rodas que se formam sem imposição ou sugestão. É como se o grupo “pedis-
se” maior intimidade corporal e a dança tornasse possível esse desejo.
As sensações, como em todos os procedimentos, também são várias. As afetações
do encontro ressoam em cada um de forma diversa.
“Senti-me num berço, me trouxe a lembrança de um ninar.” (Ângela)
“Não consegui me concentrar. Era difícil perceber as respirações dos outros.” (Nadia)
“Minha emoção foi muito grande por estar todo mundo junto aqui.” (Vera)
“Senti-me acolhida, protegida, não queria mais ir embora.”(Lucia)
Série Mover e pausar: ondas e calmarias
229
Na maioria das vezes solicito, que os participantes fechem os olhos para facilitar
a percepção das respirações, das pulsações dos corpos, do ritmo, comum a todos, que
quer se instaurar naquele momento.
Os olhos fechados permitem ainda uma introspecção necessária para poder sen-
tir e deixar-se afetar pelo grupo. Todos estão muito próximos e as reverberações extrava-
sam a fisicalidade dos corpos.
Nem sempre, quando proponho essa dinâmica, o grupo consegue entrar numa sin-
tonia fina. No balançar de corpos acontecem pequenos e mínimos cortes abruptos que,
somados, provocam em muitos a sensação de “algo” da ordem do descompassado. Es-
se descompasso, no entanto, muitas vezes é assimilado pelo grupo como algo presen-
te em toda e qualquer dinâmica: o efeito paradoxal de harmonias e desarmonias que
acometem os corpos e as relações.
Alguns olhos ficam abertos, alertas àquilo que pode derivar dos contatos; outros
participantes se deixam levar pelas marés e ondulações requebrando-se na proximida-
de com outros corpos. Tais graduações de afetos e contatos criam uma atmosfera que per-
corre e atravessa cada grupo em particular.
Percebo também que os ritmos das marés variam em cada situação/contexto, o
que torna, como em todos os outros procedimentos, uma impropriedade catalogar ou
roteirizar os efeitos e processamentos que se expressam nas dinâmicas. E é justamen-
te na impossibilidade destas demarcações que as intensidades podem atravessar uma
dança, um balanço e/ou um requebrar.
231
Série Improvisar:
exercícios de criação
de si e de mundos
“O problema não é mais fazer com que as pessoas
se exprimam, mas arranjar-lhes vacúolos de solidão
a partir da qual elas teriam enfim algo a dizer”.
Deleuze
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
232
Série Improvisar: exercícios de criação de si e de mundos
233
N
este capítulo abordarei procedimentos relacionados à improvisação. Entretan-
to, desde já quero ressaltar que a escolha desse termo envolve uma profunda
complexidade. Ocorre que ao longo de todo o trabalho que realizo a improvisa-
ção está presente como uma improvável-ação; é preciso dizer que em todos os exercí-
cios eventualmente acontece algo que não estava previsto. Nestas ocasiões, pode
aparecer um gesto inusitado, um deslocamento inimaginável, momentos de criação e de
surpresa.
Assim, a improvisação atravessa todos os procedimentos, pois, acima de tudo,
penso no sujeito sempre em processo de construção e (des)construção; numa palavra,
como um ser “criador”. O conceito kelemaniano de corpo aponta na direção de um cor-
po vivo, pulsante, em permanente transformação.
Na improvisação, nas composições criadas em solos, duplas, trios ou em grupo,
a criação acontece e afeta os protagonistas e os “espectadores”.
1
Para Suely Rolnik,
a criação é este impulso que responde à necessidade de inventar uma forma de expressão
para aquilo que o corpo escuta da realidade enquanto campo de forças. Incorporando-se
ao corpo como sensações, tais forças acabam por pressioná-lo para que as exteriorize. As
formas assim criadas - sejam elas verbais, gestuais, plásticas, musicais ou quaisquer ou-
tras - são secreções deste corpo (...), elas interferem no entorno. É nestas circunstâncias
que elas se fazem acontecimentos.
2
É importante enfatizar desde já que este estudo privilegia o contact improvisation,
odanceability e as propostas da bailarina Lisa Nelson que têm como guias o improvisar
e a criação a partir dos contatos entre os corpos.
Para aprofundar a discussão a respeito do improvisar retomarei o conceito de
forma, entendida não como uma moldura imutável ou que se refere apenas a uma “ca-
1
Em muitos exercícios sugiro para um grupo assistir ao que vai se desdobrando
nos processos. Tal como no contact o que interessa são os processos e não o
produto.
2
ROLNIK, Suely. Uma terapêutica para tempos desprovidos de poesia. IN: Lygia
Clark não para de atravessar nossos corpos. Publicado em catálogo da exposição
Lygia Clark: da obra ao acontecimento. Somos o molde, a você cabe o sopro.
Curadoria de Suely Rodnik e Corinne Diserens, pelo Musseé de Beuax-Arts de
Nantes, França (2005) e Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil (25 de janeiro
a 26 de março de 2006).
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
234
mada superficial dos corpos”, mas como passagem atravessada pelos fluxos de vida a
partir de suas potencialidades.
Este conceito é importante, pois, durante todos os procedimentos, estamos
atuando nos corpos, em suas formas: fazer um movimento, pausar, tocar o corpo, criar
uma coreografia, olhar uns para os outros, além de outras propostas.
É possível dizer que a forma, que podemos acessar através do olhar, é sempre
uma atualização contínua das intensidades que atravessam os corpos. Os contatos
criam possíveis partituras que se encontram em metaestabilidade, que, a cada desesta-
bilização, produzem novas moldagens.
Segundo Farina (2006), algumas técnicas provocam, como no contact, a perda do
eixo de equilíbrio que orienta as relações, o que pode significar pequenas ou grandes al-
terações em nossa sensibilidade e nos levar ou não à reformulção, à improvisação.”
3
3
FARINA, C. Arte, corpo e subjetividade: experiência Estética e Pedagogia,
disponível em http:// www.revista.art.br/site-numero-05/trabalhos/05.htm,
acesso em 01 nov. 2006.
Série Improvisar: exercícios de criação de si e de mundos
235
O corpo tende sempre a estabilizar-se, pois é muito complicado mover-se pela vi-
da com a sensibilidade constantemente à flor-da-pele e sem um eixo que proporcione
algum equilíbrio. Assim, voltamos a compor, mais ou menos ativamente, uma “coreogra-
fia” para enfrentar os acontecimentos. Quer dizer, voltamos a exercitar um ponto de vis-
ta sensível que nos permita atuar e, ao mesmo tempo, tomar distância da nossa ação.
Lima (2005)
4
realiza uma discussão bastante pertinente que nos ajuda a com-
preender o lugar de certas palavras como dados espontâneos, impulsos presentes em
muitas propostas e trabalhos com improvisação.
5
Sempre na tentativa de evitar os estereótipos relacionados a estes conceitos, se-
guiremos mais um pouco nesta discussão sobre as relações entre corpo/forma e criação
apresentadas às vezes como antagônicas. Mais do que isso, a compreensão do corpo co-
mo impeditivo à produção criativa, torna infértil a análise de uma clínica pautada em
ações e experiências evocadas nos e a partir dos corpos e de suas potencialidades.
Por isso, buscarei margear outras camadas desta questão com a intenção de acei-
tar o território paradoxal em que o corpo se formata. O corpo se estrutura simultaneamen-
te aos fluxos de vida que o atravessam e exige outra configuração que se desfaz e
demanda novas composições.
É neste paradoxo que caminhamos e propomos procedimentos que permitam os
fluxos de vida e morte presentes nos corpos e no vivo entendendo, tal como nos diz Fa-
rina a respeito da pedagogia, que
atender ao acontecimento que desestabiliza nossas formas de ser implica um cuidado
com os modos pelos quais nos reconfiguramos. Talvez o difícil e o complexo tenham que
ver com essa simplicidade, com assumir e atuar conscientemente tanto com o poder do que
irrompe na forma, como com o poder da vontade de forma nos processos de formação.
6
É possível notar nos exercícios aqui apresentados como os movimentos de ruptu-
ra, estabilização, contato e desmanche estão presentes durante todo o tempo provo-
cando desafios, inquietações, buscas e desassossegos.
Vejamos como este interjogo acontece na prática:
Os participantes são chamados a experimentar formas com seus corpos; ao sentirem al-
guma familiaridade com aquilo que o corpo produziu procuram desviar, realizar algo in-
teressante, diferente, criar um pequeno deslocamento, mesmo que pareça algo
“ridículo”.
7
Quando sugerida, esta dinâmica apresenta respostas e constatações que, por
4
LIMA,T.M. Conter o incontível: apontamentos sobre os conceitos de ‘estrutura’ e
espontaneidade’em Grotowski. Rev. Depto. de Art. Cên. São Paulo: Escola de
Educação e Artes- USP, 2005, n.5.
5
Não é nosso objetivo analisar a obra de Grotowski, mas utilizar alguns de seus
conceitos utilizados em trabalhos de improvisação como acontece na clínica.
6
FARINA, C., op. cit.
7
Esta proposta pertence ao tempo da fotografia, conforme discutido nas séries
Fotografare Olhar. Aqui o foco está na capacidade de “criar” uma forma pouco
habitual e nas dificuldades e potencialidades desta dinâmica.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
236
vezes, revelam a complexidade de se viver, no corpo, o paradoxo do “estar aqui ao mes-
mo tempo em que não se está mais.”
“É muito difícil realizar esta proposta. Em cada lugar que chegava, parecia que
eu já conhecia.” (Rodrigo)
“Cada vez que chegava num lugar diferente com o meu corpo, me vinha uma
sensação de grande estranhamento.”(Juliana)
“Senti que se fizesse pequenos deslocamentos, eu poderia me surpreender
com aquilo que podia criar.” (Aninha)
“Não consegui fugir do “lugar comum”, dos mesmos gestos que estou habitua-
da a fazer.” (Andréa)
O maior desafio de propor este tipo de dinâmica na clínica é a dificuldade, explici-
tada por muitos participantes de aventurar-se por terrenos mais desconhecidos do corpo:
fugir das trilhas habituais para inventar gestos ou posições pouco ou nada usuais.
8
Como comentam Galli e Moehleke, no artigo Da dança e do devir:o corpo no re-
gime do sutil, é muito difícil sair dos clichês.
Referindo-se aos bailarinos, as autoras afirmam que o interessante é que eles
possam se desprender da tendência de mover-se sempre orientados por um modelo a ser
seguido, como se já houvesse um caminho traçado a ser percorrido pelo corpo que se põe
a dançar. Deste modo, os bailarinos dançariam como se existisse um ideal a ser busca-
do. Nesta concepção, nomeada como molar, são evocadas “a moral, posturas certas ou
erradas, que seguem o modelo ou que se desviam deste.”
9
Dada a diversidade do grupo – pessoas que, em sua maioria, não são bailarinos
e tampouco almejam esta condição – podemos notar a força com que as moldagens ins-
crevem nos corpos gestos codificados, mecânicos e, às vezes, desprovidos de sentido.
Com isso as composições tornam-se restritas, impedem a aquisição de maior plasticida-
de para compor novas configurações do corpo.
Na contramão desta tendência, procuramos instaurar, conforme é possível acom-
panhar na explicitação de vários procedimentos, um outro aspecto discutido pelas auto-
ras: a dimensão molecularque se encontra na própria entidade molar, mas aposta numa
8
Na série Tocar também abordamos este tema quando fizemos uma distinção
entre um tocar automatizado, mecanizado em contraposição a um tocar
produzido e atravessado por uma afetação. Parece-me que aqui estamos
margeando o mesmo tema, mas a partir do improvisar um gesto ou de colocar o
corpo num estado de prontidão para a invenção.
9
MOEHLECKE, V. FONSECA, T.M.G. Da dança e do devir: o corpo no regime do
sutil. Rev. do Depto. de Psic. Niterói : UFF, Jan/Jun. 2005, v.17, nº1.
Série Improvisar: exercícios de criação de si e de mundos
237
outra lógica. Quando nos referimos à dimensão molecular, queremos tratar dos movi-
mentos das moléculas para produzir o desmanche de sua configuração atual, o que impli-
ca microtransformações e revela a sutileza das pequenas coisas, no quase imperceptível.
Quando o corpo pode operar também a partir dessa força, outros corpos e confi-
gurações são criados, uma vez que o corpo pode ser, tal como nos diz Espinosa, da ordem
de velocidades e lentidões entre partículas.
10
Enfatizamos, assim, os exercícios do improvisar não apenas ao fazer “coisas di-
ferentes com partes do corpo”, mas ao sentir que algo diferente se instaura e implica to-
do o corpo e as relações com o entorno.
Para Safra (2004), a “criatividade na perspectiva que estamos trabalhando não es-
tá necessariamente relacionada ao fazer artístico, mas sim à ação que possibilita o acon-
tecer e o aparecimento do singular de si mesmo
11
.
Isto não quer dizer absolutamente que se trata de grandes performances, mas do
simples que se faz de outro modo no mundo.
Outro aspecto que considero fundamental é explorar a potência do ridículo nas
experimentações. Vez ou outra ocupo este lugar, ao produzir formas apenas imagináveis
e deixando-me tomar por um jeito brincalhão que atravessa meu corpo quando coorde-
no as oficinas.
Em muitos momentos os participantes se surpreendem, “baixam as guardas”, cons-
troem para si um corpo brincalhão
12
que explora o mundo como as crianças bem pequenas
quando estão num ambiente confiável e suficientemente permissivo às descobertas.
Podemos, então, pensar uma faceta do que se torna habitual e busca conservar-
se com medo de ousar, de experimentar o desconhecido, o estranho, o esquisito em nós:
as recusas, as vergonhas observadas aparecem fortemente como traço que, pouco a
pouco, é trabalhado, acolhido, expandido, tornado potência ao longo dos processos.
Como fazer uma forma diferente daquela a que estou acostumada?
As formas construídas nas oficinas muitas vezes se instalam de modo excessiva-
mente técnico, produzindo um corpo estereotipado, sem muitas surpresas e afetações;
um corpo que vive na inércia, entendida como um ajustamento.
Voltamos, assim, a uma questão que ecoa o tempo todo na clínica:
O que o corpo pode?
10
ESPINOSA,B. 1983, op. cit., p.144. (Ver. axioma I, axioma II e Lema I, parte II,).
11
SAFRA, G. A pó-ética na clínica contemporânea. Aparecida : Idéias e Letras,
2004, p. 61.
12
Grifo meu.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
238
Série Improvisar: exercícios de criação de si e de mundos
239
Exercícios com a imaginação
Inspirada no danceability, inicio muitos workshops com exercícios que envolvem a ima-
ginação e o gesto para que o participante possa conectar-se com o seu corpo para, a
partir dele, poder criar.
Estes exercícios, que freqüentemente se iniciam no chão, propõem primeiramente
que se imagine um movimento
13
– “só imaginem, não realizem” – que só será realiza-
do num segundo momento. A princípio eu direciono a parte do corpo a ser destacada;
em seguida, são os participantes que fazem as escolhas ou recebem as imagens que
impulsionam o gesto.
Brinco de imaginar uma parte e movimentar outra, na tentativa de embaralhar os
códigos; jogo com diferentes ritmos e velocidades.
“Imaginem um movimento bem lento” e depois “realizem bem devagar”.
“Imaginem o seu corpo mudando de postura e... rapidamente mudem de posição.”
A imaginação nesta série se apresenta como foco de nossa análise, uma vez que
pode funcionar como facilitadora e/ou impulso em momentos de criação individual ou
do grupo. Imaginar-se fazendo um gesto, dançando no espaço, imaginar-se em outros
lugares.
Observo que, ao direcionar a atenção para a tarefa proposta, estes exercícios
permitem que os participantes se aproximem de seus corpos.
Embaralhando as consignas provoco também a manifestação do inusitado sem
que ele necessariamente passe pelo “crivo” da produção imaginativa, ou seja, o corpo res-
ponde predominantemente embalado pela surpresa do gesto.
“Eu fiquei chateada imaginando toda uma movimentação em meu corpo e de
repente você muda... achei estranho.”(Giovana)
“Foi interessante. Fiz coisas que não estava imaginando.” (Leo).
O “embaralhamento” dos códigos é recebido de diferentes modos. Com o desen-
rolar dos exercícios os participantes se deixam levar por outros elementos na produção
do criar: se abrem para aquilo que acontece; deixam o corpo levar-se pelas velocidades
ora mais lentas ora mais rápidas ou, então, bloqueiam o gesto. Tudo pode acontecer.
13
Nas técnicas do danceability mantenho a tradução exata do conceito utilizado:
moviment movimento
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
240
A criação de um movimento que não seja a imitação do gesto de um outro é fre-
qüentemente considerada uma ação muito complexa.
Somos ensinados através da imitação. Por isso, a criação de um gesto mais singu-
lar é território arriscado e perigoso, pois nasce quase sem referência e é submetido, em
geral, ao “olhar-julgador” de outrem.
Obviamente que o campo da criação está submetido às experiências já vividas;
entretanto, na tentativa de alargar respostas e recursos é possível ampliar nossos re-
pertórios.
As pessoas se surpreendem com aquilo que criam. Conforme Winicott
(1971, apud Mamede), “o momento significativo é aquele que a criança se sur-
preende a si mesma
14
No momento de improvisar, observo braços e pernas pelo ar, cabeças se movimen-
tando pelo chão; quando as pessoas se sentem mais à vontade, seus gestos se alargam
e envolvem várias partes do corpo, criando composições únicas.
Do alto, assisto a um espetáculo de corpos dançantes no chão.
Com o tempo, vou sugerindo que os participantes se exercitem em outras posturas –
sentados, de joelhos, em pé. Da imaginação para o gesto; passo a consigna de primei-
ro imaginar e depois fazer. Inicia-se muitas vezes um jogo de gestos muitos pequenos e
contidos para deslocamentos maiores no espaço.
Em sua heterogeneidade, os grupos concretizam nos corpos as diferenças de flu-
xo de cada um, riscam no espaço vários desenhos coreográficos: círculos, pulos, tremo-
res, pequenos gestos, um dedo que se movimenta, alguém se arrasta pelo chão e muitas
outras manifestações inenarráveis.
Em cada grupo é possível observar a criação de novas coreografias individuais
e grupais.
14
MAMEDE, M. C. Cartas e retratos: uma clínica em direção à ética. São Paulo,
2002. 108p. ( Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade
de São Paulo.
Série Improvisar: exercícios de criação de si e de mundos
241
Sensações de movimento
As experimentações corporais são norteadas também pelo conceito de sensação de
movimento
15
.
Os efeitos provocados pelo alongamento, facilmente observáveis num espre-
guiçar, ou as dores experimentadas quando se desloca os ombros para trás após um
tempo de escrituras no computador, por exemplo, nos remetem às sensações físicas
do corpo.
Em momentos de pesquisa corporal bastante silenciosa de palavras ou de impro-
visações acompanhadas por músicas cuidadosamente selecionadas, quando sugiro
atenção especial às sensações muitos participantes enfatizam o prazer do movimento.
Quando isto acontece e quando a atmosfera grupal assim o permite, é possível vi-
sualizar, e mais do que isto, ficar contagiado pelos gestos, pelos climas, pelas sensa-
ções, principalmente quando o trabalho é realizado sem pressa, sem sustos, num ritmo
suficientemente confortável para todos.
Mas há outros efeitos que podem ser pontuados nessas propostas e que revelam
a delicadeza necessária para lidar com as questões que daí emergem.
Em um dos grupos, os participantes falam sobre a dificuldade de sentir o pró-
prio corpo:
“Sinto que meu corpo está aqui, mas minha cabeça está em um monte de coi-
sas que tenho que fazer.” (Silvana)
“Consegui me concentrar um pouco, mas tinha muita vergonha de fazer os mo-
vimentos, parecia que todo mundo estava me olhando.”(Nilda)
Nestas dinâmicas, já entramos no terreno da improvisação. Para tanto, procu-
ro criar um ambiente propício para a concentração em si e nas afetações. Refiro-me
particularmente às pequenas percepções, tais como o batimento cardíaco, as altera-
ções musculares, a respiração, o efeito produzido pelas músicas e/ou os silêncios,
pois encarnar estas sensações pode permitir uma multiplicidade de metamorfoses
corporais dançantes.
Em vários momentos noto que para alguns esta é uma experiência atraente, en-
quanto para outros é muito difícil desprender-se de um olhar mais voltado para fora.
15
Este conceito é utilizado no danceability e diz respeito às sensações
provocadas pelos músculos, articulações e ossos quando efetuamos qualquer
gesto corporal. Vale ressaltar que optei por manter os conceitos utilizados nas
técnicas mencionadas.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
242
“Se cada um estiver ocupado com o seu corpo, ninguém estará ´fuxicandosobre o que
o outro está fazendo.”
“Eu não consegui me controlar. Queria saber o que as pessoas estavam fazen-
do.”(Juli)
“Me deu muita ansiedade mover-me e fazer alguma coisa com o meu corpo.”
(Silvana)
Ao final da proposta alguns participantes não dizem nada; apenas observam,
olhos bem arregalados”, tal como aconteceu em um dos laboratórios da graduação e
também com um grupo composto por participantes com sofrimento psíquico.
É necessário mais uma vez apontar que as propostas são realizadas com prudên-
cia, pois sabemos que uma desestruturação brusca pode ser prejudicial ao interromper
o processo que queremos exercitar.
O olhar acusador e julgador do outro entra em cena nesta e em várias outras ho-
ras. Naiza de França aborda, em sua clínica, o que ela chama dos “tiranos em nós” que são
como vozes que, às vezes, nos assolam e assombram com mitos da perfeição, de idéias
de beleza, de olhares recriminadores do desejo, que acabam por obstruir, dificultar ou
mesmo impedir as experimentações e descobertas.
16
Se o terapeuta se apressa ao sugerir e encadear as propostas, o processo pode ser
abortado precocemente, pois criar, como já dissemos, depende de disponibilidades, ex-
periências do participante, graus de envolvimento, aberturas possíveis, desejos e uma
gama infinita de elementos que podem produzir um acontecimento.
Imitação e interpretação
17
Como dissemos, trabalhar com a improvisação pressupõe a criação. Quando proponho
dinâmicas que envolvem o gesto mais “livre”
18
, alguns participantes sentem dificuldade
para desvincular essa possibilidade dos chamados jogos de imitação ou daquilo que
estão acostumados a fazer como “suas” trilhas habituais.
Penso que os jogos imitativos são fundamentais, mas entendo que há uma dife-
rença entre um conhecimento que comporta a imitação como possibilidade de encontro
16
No livro Danças em terapia ocupacional (op. cit.) apresento o método de Naiza
de França. Neste capítulo narro as minhas vivências com esta profissional e
especificamente abordo a questão da tirania presente nos trabalhos de criação.
17
Optei por manter o conceito interpretation(interpretação) utilizado nesta
técnica e explicitar, ao longo do texto, alguns de seus sentidos.
18
O termo “livre” empregado aqui é um modo de falar de um gesto mais solto,
que não siga tantas ordens já estabelecidas pelo externo, sabendo-se que as
ordenações fazem parte de qualquer gesto, ou expressão, pois veiculadas por
processos de subjetivação que instauram modos de pensar, agir, sentir, dançar,
transar, tal como dito por Guattari. Abordo este tema em minha dissertação
de mestrado Danças em terapia ocupacional (op. cit.)
Série Improvisar: exercícios de criação de si e de mundos
243
afetivo e conectivo com o outro, de uma imitação, à qual procuramos resistir, que esta-
ria ligada apenas à repetição daquilo que o outro faz predominantemente orientado pe-
lo comando e “obediência”, sem implicações que ultrapassem a camada superficial
muscular-esquelética.
19
O imitar neste trabalho acontece então mais com o sentido de inspirar-se pelo
outrodo que realizar um gesto ou movimento “igual” ou “parecido”.
Para experimentar estes processos, sugiro a vivência de diferentes versões do
mesmo movimento, gesto ou ação, procurando através do lentificarede diferentes velo-
cidades acessar outras camadas do corpo que permitam a presentificação no aqui ago-
ra e permeabilizem o corpo diante das afetações, incidindo sobre a sensibilidade.
É possível notar quando um gesto ou movimento é vivenciado através da pulsa-
ção de diferentes camadas e regiões do corpo, deslizando por diversas formas que o
compõem. Há também momentos em que o corpo executa o gesto ou o movimento de
modo mecanizado, automatizado e, por isso, pouco implicado afetivamente.
Para Paxton
20
, referindo-se à técnica do contact improvisation, você sempre po-
de repetir coisas, o que não é tão contraditório, pois a improvisação é baseada numa
idéia e em todas as possibilidades que dela surgem. O autor não identifica nem contra-
dições nem similaridades entre as formas fixas de dança e a improvisação inicial. Trata-
se de uma gama de possibilidades
21
, como um espectro de cores.
No entanto, o que observo freqüentemente em várias oficinas é a tendência dos
participantes a “fazer o mesmo”, o já conhecido, o que o outro faz, num jogo de espelhos
que pode, principalmente nos adultos, tornar-se empobrecido e pouco interessante,
pois aprisionado pelas molduras mais “aceitáveis”.
Como afirma Paxton,
a improvisação tem essa imagem de ser realmente livre. Na verdade, todo mundo está
improvisando o tempo todo, fazem isso num piquenique ou no trabalho – ou numa conver-
sa, como agora. Certas improvisações são mais restritas que outras, mas não deixam de
ser improvisação
22
.
Considerando as refinadas diferenças e facetas que envolvem o tema imitar/im-
provisar, podemos dizer que a clínica percorre e é atravessada por diferentes caminhos
e potências. Cabe ao coordenador e aos integrantes do grupo o acompanhamento do per-
curso das improvisações com seus percalços, deslizes e estruturas acionadas no encon-
tro entre corpos/sujeitos, propondo e sugerindo pequenas variações que podem alterar
e produzir caminhos singulares a cada nova experimentação individual e grupal.
19
A imitação está aqui circunscrita aos exercícios que acontecem nos trabalhos
corporais e na dança que sugere vivências que envolvem o “ fazer junto” com o
outro ou inventar uma conversa coreográfica entre os corpos/sujeitos. Em vários
momentos observo a dificuldade de não idealizar ou “tentar fazer igual” ao
outro, impedindo canais mais ricos e potentes no campo da gestualidade e
expressão.
20
REBOUÇAS, A. M. e XAVIER, R. F. Entrevista contact-improvisationcom Steve
Paxton e Lisa Nelson, diponível sampa3.sp.br/ccsp/linha/dart/revista8/
entrevista.htm, acesso em 09 de nov. 2006.
21
Mantemos o conceito proposto por Paxton, mas seria mais apropriado falar de
potencialidades uma vez que os acontecimentos expressam, em algumas
situações, o inédito, aquilo que não estava previsto na gama de combinações
possíveis.
22
REBOUÇAS, A. M. e XAVIER, R. F., op. cit.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
244
Entretanto, fica muito nítido, neste e em outros trabalhos, o quanto se está distan-
te do próprio corpo e de sua expressividade, tanto na percepção cotidiana como nas ca-
pacidades inventivas de criar coreografias nunca antes dançadas.
Em um dos grupos de estudos trabalhamos com a seguinte proposta: movimentar par-
tes do corpo e a cada sensação de chegada a um lugar conhecido ou já automatizado,
fugir, realizar um pequeno deslocamento, procurar escapar.
A sensação de uma proposta sutil, mas extremamente difícil, foi explicitada por
Julia, uma das participantes:
“Eu senti muita dificuldade de realizar algo novo e quando eu tentava fugir,
parecia que meu corpo me puxava para o mesmo lugar.”
“Eu percebi que tinha que trabalhar com gestos muito pequenos e sutis, aí eu
senti um estranhamento em relação aquilo que estava fazendo”.
O estranhamento provocado pela chegada a um lugar diferente do conhecido é ou-
tro componente importante a ser trabalhado na clínica. Estranharé entendido aqui em
sua positividade, pois perturba, cria algo diverso, causa um certo barulho
23
em um
modo, às vezes, muito demarcado, enrijecido, delimitado demais.
Interpretação do movimento
24
Uma outra dinâmica proposta no danceability envolve a seguinte sugestão:
Uma pessoa faz um movimento no espaço, o outro procura interpretar esse movimento.
Existe aí uma diferenciação entre fazer exatamente o que o outro faz e fazer em meu
corpo aquilo que pude captar da produção do outro.
Propus este exercício em vários grupos, principalmente em oficinas em que par-
ticipavam pessoas portadoras e não portadoras de deficiências físicas e/ou sensoriais.
A questão que se impõe neste trabalho é a possibilidade de que qualquer pessoa parti-
23
Barulho foi uma palavra dita em uma das aulas de Benedetto Lacerda Orlandi,
no Núcleo de Estudos de Subjetividade do Programa de Psicologia Clínica – PUC-
SP, em referência às linhas de fuga, conforme Deleuze. Algo que escapa, que
resiste à subjetividade dominante, modelizadora. Não pretendo aqui me
aprofundar no conceito de linhas de fuga, mas demarcar a importância da
resistência às capturas impostas pela subjetividade que se quer padronizante e,
portanto, empobrecida enquanto possibilidade.
24
Conforme já foi dito, optei por manter o conceito de movimento proposto pela
técnica do danceability. Entretanto, na discussão realizo uma ampliação tanto
do conceito quanto da utilização deste elemento na clínica. Ver, a série Movere
pausar.
Série Improvisar: exercícios de criação de si e de mundos
245
cipe, independente de sua condição, a menos que não queira.
Trabalha-se, assim, com o que no danceability chamaria de denominador co-
mum; ou seja, se uma pessoa do grupo só pode movimentar os olhos, então todo o tra-
balho será pautado por esta condição, todos os exercícios serão acessíveis.
Este tipo de proposta implica a improvisaçãoda pessoa que faz o movimento e da
outra que vai interpretá-lo, gerando uma gama de dificuldades e potencialidades.
Vez ou outra sinto a necessidade de me antecipar e propor algo da ordem da imi-
tação, como a brincadeira do espelho quando uma pessoa em frente a outra procura
realizar os mesmos gestos de quem está à sua frente, porém invertidos.
Uma dupla é composta por Ana, uma pessoa sem deficiência física, e Alberto, portador
de uma paralisia cerebral e cadeirante. Ana realiza uma pequena coreografia, pula, gira, abre
os braços; as pernas realizam muitos movimentos para que a dança aconteça.
Num primeiro momento Alberto se assusta. Depois conta que o seu primeiro pensa-
mento foi que não conseguiria realizar “aquilo tudo”.
De fato Alberto não conseguiria realizar o mesmo que Ana. A interpretação sugere que
o participante utilize seus recursos, suas formações, suas possibilidades.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
246
Alberto se lança num rodopio com a cadeira de rodas, eleva o tronco, movimenta os
braços com rapidez, do jeito possível. De fora, o espectador consegue captar o encontro que ali
se estabelece, pela dança, entre os protagonistas.
Tempo de filmagem nas propostas
de improvisação
Os arranjos por mim denominados de tempos de filmagens, usualmente são trabalhados
em composição com os tempos de fotografiatratados na série Fotografar.
A inserção de uma análise particular destes procedimentos também nesta série
se justifica pela possibilidade de oferecer oportunidade aos participantes para que exer-
citem sua capacidade de criar, mediados pelos contatos produzidos nos diferentes en-
contros em propostas eminentemente grupais.
Depois de orientar a exploração da sensação do movimento, que possibilita um
contato mais próximo consigo mesmo e com o outro, proponho um jogo de perguntas e
respostas entre duplas e que deve realizar-se estritamente por meio da expressividade
dos corpos.
Uma pessoa faz o movimento e a outra, tocada por aquilo que vê e sente, ao
responder à afetação produz novamente algo no parceiro e assim sucessivamen-
te. Não é demarcação de ritmo, de lugar para a experimentação, ou do tom para a
composição.
Para Steve Paxton
25
, no contato improvisação
26
o jogo afina os sentidos e atua na
qualidade de presença dos corpos ao criar fluxos de movimentos, padrões que emergem
a partir da interação dos improvisadores. O treino de observar e ser observado, de sen-
tir e equilibrar quietude e movimento, de passar da percepção para a ação possibilita o
diálogo e a comunicação de idéias, emoções e sentimentos.
Para Fonseca e Moehlecke (2005)
27
, se o corpo/sujeito se abre nos contatos pa-
ra captar as pequenas percepções, ele pode tornar-se uma espécie de órgão de capta-
ção de finas vibrações, ativando a sensibilidade para atrair a energia do mundo de forma
tão sutil e leve que o transporte para novas passagens.
Para facilitar o acesso a estas percepções, muitas vezes trabalhamos em silêncio,
para evitanr que a música imponha um ritmo externo à produção coreográfica.
28
25
REBOUÇAS, A. M. e XAVIER, R. F., op. cit.
26
Como já foi dito, não pratico o contact improvisation, mas me inspiro e absorvo
elementos típicos desta técnica.
27
MOEHLECKE, V; FONSECA, T.M.G., op. cit.
28
Na série Conversar e Silenciar abordaremos mais profundamente os sentidos
do silêncio no trabalho clínico.
Série Improvisar: exercícios de criação de si e de mundos
247
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
248
Num segundo momento, introduzo as músicas com a intenção de incorporar aos
jogos outros elementos. Em propostas que permitem maior disponibilidade de tempo,
pode-se trabalhar também com o gosto musical do grupo, das duplas e mesmo de cada
participante.
Muitos procedimentos provocam mudanças. Um participante propõe uma dinâ-
mica, depois troca de lugar. Não interessa a alteração referida na relação espaço-tempo,
mas a possibilidade do corpo sofrer diferentes afetações e efeitos.
Peço para que os participantes escolham uma parte do corpo que dirigirá a impro-
visação.
29
Silvio escolhe um dedo da mão para guiar Dona Gina pelo espaço. Se Silvio levantar o
dedo para o alto, Dona Gina realiza um movimento nesta direção; se o dedo apontar o lado di-
reito, Dona Gina cria uma pequena frase coreográfica conforme a indicação. Silvio apenas
norteia as frases.
Dona Gina foge da indicação. Não consegue acompanhar, cria o que dá vontade, se di-
verte nesta conversa de estímulo-resposta.
Carlos é portador de tetraplegia. Consegue apenas mover os olhos. Na dinâmica ele
utiliza este recurso que possui. É possível estar ali. Arnaldo, seu parceiro, procura entender os
“pedidos” de Carlos. Suas tentativas lhe permitem depois falar das dificuldades de entender
e responder rapidamente a Carlos, mas percebe que neste esforço aprendeu a “traduzir” aque-
la linguagem a que está pouco habituado, ao mesmo tempo em que tem de expressar-se a par-
tir de seus recursos corporais.
Troca-se de lugar e abrem-se novos desafios para as duplas.
Noutra ocasião, estou ministrando um workshop com alunos que têm em sua maioria al-
gum contato com a dança contemporânea. Sabem que no contact os corpos se tocam, res-
valam uns nos outros, se afetam.
Muito rapidamente o grupo vai compondo diferentes “paux-de-deux,” permanecem
em conexão por um tempo e depois desmancham os pares, formam outros duetos e, vez ou
outra, dançam em trios ou outras configurações.
Seria possível, como em todas as outras dinâmicas, criar narrativas singulares sobre
cada encontro.
29
Esta dinâmica foi tratada na série Mover e Pausar com foco na movimentação
a partir de um “comando” do parceiro. Aqui o foco está na conversa corporal
criada pelo duo.
Série Improvisar: exercícios de criação de si e de mundos
249
Cada dupla realiza suas danças utilizando diferentes elementos de contato/contágio: ex-
pressões faciais, toques com partes do corpo, velocidades que se alternam em combi-
nações diversas, sons, corpos que permanecem grudados ou que se afetam a “longa
distância”. São encontros impossíveis de esquadrinhar. Mais uma vez aprecio os acon-
tecimentos.
O tempo todo pratico os encontros entre corpos pautados pela idéia de Espinosa
do que caracteriza um corpo; segundo o autor trata-se do poder de afetar e ser afetado
por outros corpos. Diz Deleuze (2002) que “é este poder de afetar e ser afetado que tam-
bém define um corpo na sua individualidade”.
30
Ainda na ambientação teórica de Espinosa, o que define um corpo são modos
que revelam uma relação complexa de velocidades e de lentidões, como vimos na
série Mover e pausar. Segundo Deleuze, ainda a respeito do pensamento de Espinosa
sobre o o tema,
se definirmos os corpos e os pensamentos como poderes de afetar e ser afetado, muitas
coisas mudam. Definiremos um animal, ou homem, não por sua forma ou por seus órgãos
e suas funções (...) Nós o definiremos pelos afetos de que ele é capaz.
31
Nesta e em grande parte das dinâmicas discutidas neste trabalho, podemos pen-
sar então que o que acontece são conversas entre mundos.
Paxton, ao referir-se a seu trabalho em parceria com Lisa Nelson diz que, quando
estão contracenando, ambos estão envolvidos com suas próprias estórias criadas atra-
vés da improvisação, mas no contato conseguem também captar o que se passa com o
outro. E comenta: “você tem dois mundos completamente diferentes.( ...) Nós temos
um ao outro e temos a nós mesmos”.
32
Sobre os elementos que envolvem o duo, o autor afirma que existem muitas linhas
no tempo que caminham juntas, mas são paralelas; ao improvisar é possível deslocar a
atenção de uma linha para outra: escutar a música ou o silêncio, atentar para as sensa-
ções do corpo, voltar-se para o parceiro ou ficar no próprio movimento, sentir as lumino-
sidades, deter-se ao olhar de quem assiste, entre outras combinações.
É uma dramaturgia invisível, cambiante, flexível que se transforma a cada perfor-
mance, permitindo várias combinações.
30
DELEUZE, G., op. cit., p.128.
31
Ibid., p.129
32
REBOUÇAS, A. M. e XAVIER, R. F., op. cit.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
250
De volta aos tradutores e à improvisação
Jorge faz um movimento com os olhos fechados e a idéia é que Mauricio, próximo, mas sem to-
car o parceiro, sentindo o “reflexo” da movimentação, realize o que conseguiu captar em seu
próprio corpo.
Jorge assiste.
Num segundo momento, Jorge realiza novamente o movimento e Mauricio, ainda de
olhos fechados, toca o corpo no momento da execução e realiza novamente em seu corpo aqui-
lo que foi captado.
Numa última etapa, Jorge direciona a exploração de Mauricio apontando durante a sua
execução os pontos que Maurício deverá tocar.
Depois de tudo, assiste. Então, a dupla troca de lugar.
Mais do que adivinhar ou “acertar” o movimento do outro, trabalha-se a sintonia,
o que se passa entre os dois participantes. A coreografia interpretadapor Maurício é re-
tomada por Jorge e já não é uma criação nem de um nem do outro. A proposta não é com-
por algo exatamente igual àquilo que foi visto, mas deixar-se afetar pelo outro para
poder criar.
Algumas pessoas que participaram dessas dinâmicas sentiram muita dificuldade
para escapar da consigna: “faça igual.”
Compor em parceria, criar a partir do vivido, deixar-se afetar pelo outro e só a par-
tir daí criar uma outra composição exige descolamento e segurança para utilizar seus pró-
prios recursos, fazer as passagens entre a imitação e a improvisação e viver a tensão
que marca este paradoxo.
Para finalizar esta série, trarei à tona algumas considerações a respeito da singu-
laridade e da produção da diferença no âmbito grupal. Trata-se de exercícios de criação
em trios, quartetos, grupos pequenos e dinâmicas que envolvem todos os participantes.
São jogos nos quais um corpo resvala no outro, uma forma criada por um partici-
pante inspira a aproximação de outro numa afetação mútua.
Não existem procedimentos específicos que facilitem esses contágios: eles acon-
tecem em vários momentos do processo como desdobramentos dos exercícios realiza-
dos, ora com mais ora com menos intensidade e com múltiplas tonalidades.
Vez ou outra, quando trabalhamos em configurações que não envolvem o grupo
todo, chamo a atenção para uma “olhada de esguelha”, para as improvisações em anda-
Série Improvisar: exercícios de criação de si e de mundos
251
mento ou para a apreciação do que os outros estão fazendo com o objetivo de sustentar,
sempre que possível, uma ligação com o coletivo.
Essas conexões independem do número de pessoas, local ou tempo em que as ofi-
cinas acontecem: são atmosferas compartilhadas no criar junto, nas trocas, nas afeta-
ções, nas captações e percepções de atmosferas grupais.
Há também momentos em que tudo vira uma “grande festa”, permeada por li-
nhas diversas que portam estados emocionais cambiantes e díspares, em que o sujeito
se liga a outros e incorpora a criatividade do todo na invenção coletiva.
Depois de algum tempo, proponho o exercício do quebra-cabeça
33
em que a ca-
da vez um participante se coloca no meio da roda e cria uma forma interessante com
o seu corpo.
De vários modos, um a um, ou ainda da maneira escolhida pelo grupo, outros par-
ticipantes são incorporados em uma escultura viva.
Cada vez que oriento este exercício, vivencio uma experiência diferente: quebra-
cabeças com peças mais apertadas, mais distantes, com muita aproximação corporal,
com ou sem toques, com mais ou menos desenvoltura dos corpos.
Os modos de entrar no centro do círculo também variam: saltos, pulos, caminha-
das, olhares, passos, vergonhas, ousadias diversas.
Não há uma receita, é um estalar de modos que não podem ser captados, tampou-
co nomeados. São encontros e desenhos que se formatam em um coletivo vivo: aproxi-
mações mais intensas entre duplas, pequenos grupos que se sentem conectados. Há
também aqueles que ficam “desgarrados” da turma.
Freqüentemente nesta hora, os participantes e eu mesma, temos vontade de regis-
trar esses momentos em vários fotogramas, em uma tentativa, sempre frustrada, de ab-
sorver e reter os acontecimentos. Há alguns registros e eles estão neste trabalho; outros
estão na memória, outros ainda se perderam na intensidade do momento vivido.
Neste e em vários momentos dos processos, observo que o trabalho com os cor-
pos deve ser cauteloso e atento, que a capacidade criativa de transmutar, fazer outros
corpos, aproveitar os recursos que se tem, de repente fazem uma aparição. Então, um cor-
po escondido cria uma presentificação que nada tem a ver com uma grande performan-
ce, que aparece no pequeno, no mínimo gesto que se quer criar.
Toda invenção do outro se torna nossa. É uma certa “morte do autor”, conduzida
não por uma apropriação exterior ou um deslocamento artificial, mas pelo próprio pro-
cesso de improvisação.
33
Baseado em uma proposta do danceability.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
252
Série Improvisar: exercícios de criação de si e de mundos
253
255
Série Conversar
e Silenciar
“Eu acho que o silêncio não existe. Eu acho que não
há nada mais tonitruante do que o chamado silêncio
Fernanda Montenegro
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
256
1
PEDERNEIRAS Rodrigo. Uma coisa cheia. In: PERDIGÃO, A.B.
Sobreo silêncio (Entrevistas). São Paulo: Pulso Editorial 2005, p.77.
A vida é uma mistura de barulhos e silêncios”
Rodrigo Pederneiras
1
Série Conversar e Silenciar
257
A
roda estava formada. Uma das alunas suspirou e disse que estava trêmula e que trans-
bordava de emoções. A certa altura foi dito algo tão forte que as pessoas pararam e fi-
caram a pensar. Alguns participantes procuravam entender o que se passava e que,
embora ainda não formatado, atravessava os corpos criando uma atmosfera. As expressões de
muitas das participantes era de suspensão.
Terminamos o encontro num silenciar de palavras. Aos poucos, as pessoas se levanta-
vam e iam embora.
Esta é a última série de procedimentos cartografados neste trabalho.
Ao entrar em contato com o conceito de silêncio ou silenciar, deparei imediatamen-
te com a pluralidade na compreensão e na abordagem do tema e, portanto, com a impos-
sibilidade de reduzir a multiplicidade das experiências.
Tomarei, então, como base a afirmação de Montenegro: a vida não é silenciosa.
Mesmo que haja um silêncio de palavras, “interiormente existe muito mais barulho do
que o pseudo, possível ou imaginável silêncio que você tenha dentro de si quando resol-
ve não falar”
2
. A pulsação da vida é sonora, portanto, ainda que haja silêncios de palavras,
existem ruídos, pensamentos e pulsos que nunca cessam.
A partir dessa referência analisarei acontecimentos que emergem nos intervalos
dos silêncios de palavras próprios de alguns exercícios, considerando que há uma pro-
dução interna que se engendra na invisibilidade da forma e da linguagem. Na clínica es-
ses intervalos favorecem os procedimentos expressivos que propiciam a produção
interna e permitem, vez ou outra, sua materialização. Trabalho particularmente com o
escreverecom produções plásticas em diferentes materiais.
Nas séries anteriores foram apresentados alguns procedimentos expressivos
ligados à escrita (diário de bordo, produção de “rizomas” etc.) que constituem produ-
ções, envolvem as palavras.
2
Tonitruante. In: PERDIGÃO, A.B. Sobre o silêncio. (Entrevistas) São Paulo:
Pulso Editorial 2005, p. 203.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
258
Embora o fazer
3
,escreverou mesmo o conversar pudessem constituir séries au-
tônomas, preferi abordá-los em conjunto. Ocorre que, em minha prática, essas ações
alinhavam momentos potentes de produção interna que propiciam a elaboração, assi-
milação, produção de pensamentos e expressão das matérias vivas das experimenta-
ções relacionadas ao silenciar. Esse movimento pode ser observado principalmente na
realização de pausas, como na série Mover e pausar, e em todas as dinâmicas que pres-
cindem das palavras.
Indicadas as direções que orientam esta série, é importante dizer que os interva-
los dos exercícios do silêncio são preenchidos por palavras, conversas e escritos, pintu-
ra, desenho, produção de peças de argila, peças artesanais, confecção de origami,
colagens, dentre outras expressões, em uma experimentação híbrida na qual convivem
e interagem várias possibilidades mais ou menos barulhentas e/ou silenciosas.
Fazer
Nos primeiros anos de trabalho introduzimos, como ponto de partida para iniciar as vi-
vências, a confecção de uma árvore em uma das paredes do espaço. Em folhas recorta-
das em papel, os participantes, escreviam palavras que pudessem nomear sensações,
sentimentos, expectativas em relação ao trabalho a ser realizado.
Os momentos que antecediam esta proposta eram muitas vezes de um silêncio pleno
de atmosferas: ansiedade, temores, dúvidas, desconfortos, excitações que se difun-
diam pelo ar.
Acostumada às hesitações, eu esperava e, pouco a pouco, os participantes expressavam
algo de si através de suas escrituras.
Vez ou outra, ao término das dinâmicas, construía-se uma outra árvore que pudesse
expressar os estados a partir do vivido.
Com o tempo fui modificando essa proposta.
As pessoas passaram a produzir suas folhas nos formatos que escolhessem e não mais
utilizando os modelos apresentados.
Essas pequenas alterações, somadas à redução gradual de minhas intervenções no
direcionamento dos trajetos permitiam que a experiência acontecesse de modo mais
arejado e de acordo com o que era inventado pelos participantes, mas eu ainda man-
tinha a árvore como imagem nesta elaboração.
3
Muitos terapeutas ocupacionais têm pensado os sentidos, ressonâncias e
repercussões do fazer e das atividades na prática clínica. Deixo a eles a tarefa
deste aprofundamento, afirmando apenas que as práticas e as linguagens
podem compor e que não é necessário especializar-se em um ou outro modo de
expressão e atuação clínica, pois tudo é matéria viva a pulsar.
Série Conversar e Silenciar
259
O contato com os estudos da subjetividade me fez perceber que a imagem da
árvore não mais sustentava os acontecimentos experimentados nas oficinas.
Se a proposta era promover os encontros entre corpos, as “expressões” precisavam
de um outro tipo de configuração, que pudesse conter mas também deixar em aberto as
palavras e as formas criadas para fazê-las “conversar” entre si, se fosse o caso.
Depois de algum tempo, considerando a riqueza e complexidade de elementos e
forças que atravessavam os corpos e as experimentações, percebi a inadequação de
uma abordagem linear sugerida pela forma em apenas duas dimensões permitida pelo
recurso de colar o material de base na parede.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
260
Então, fios eram cortados, linhas de fuga provocavam a mudança de curso dos pro-
cessos, idéias se perdiam ou eram esquecidas durante o trabalho, silêncios plenos de
atmosferas podiam até ser tocados tamanha a sua densidade intensiva. A improvisa-
ção, como sempre acontecia, demarcava um lugar, uma atitude no fazer e pensar os
procedimentos.
Surgem assim as produções dos rizomas
4
.
Papéis e fios de lã ocuparam lugar em algumas oficinas em que os participantes pode-
riam fazer ou não conexões entre palavras, sensações, materializações, juntando palavras ou
simplesmente “fazendo sobrar fios” que não se encaixavam em parte alguma.
4
A imagem da árvore serve para pensar a sucessão, a hierarquia, os sistemas
organizados com centro definido: tempo da representação e da unidade. O
rizoma não se remete ao Uno, nem dele deriva; não há início nem fim, mas um
entre”, configurando-se numa rede complexa e sem centro.Em vez de um rio
correndo, o rizoma assemelha-se a uma terra com seus estratos em constante
movimento em direções movediças. In: MOEHLECKE, V; FONSECA, T.M.G., op. cit.
Série Conversar e Silenciar
261
Nesta experiência em particular, a parede inicialmente utilizada como pano de fundo,
depois de certo tempo, foi substituída por lugares mais inusitados: janelas, portas, chão,
meio da sala. Assim, os participantes precisaram realizar outras dinâmicas considerando
as novas estruturações espaciais. Passava-se por cima e por baixo dos fios, as pessoas se
enroscavam, mudavam esses fios de lugar e a todo o momento era necessário lidar com es-
se material em meio às vivências, modificando-o, acrescentando novas palavras, inventando
modos de se deslocar e compor.
Na árvore víamos que os caminhos sempre eram duais e previsíveis, enquanto em
uma arquitetura do tipo rizomática era possível derivar para várias linhas e redes como
uma planta rasteira de praia, cujo percurso é imprevisível. Essa imagem me parecia
mais próxima da abordagem metodológica adotada na clínica, não somente nos momen-
tos destinados à conversa, mas também como base para todas as experimentações
corporais.
Notei também que as alterações constantes naquela metaestrutura trouxeram
problemas. Algumas pessoas tinham que esbarrar nos fios, atravessar, passar por cima
e por baixo para realizar as propostas, criando uma outra variável no trabalho, além de
todas que já existiam.
Solange, uma das participantes disse que sentiu muita dificuldade, pois além de
ter que dar conta de sua inibição, passar por aqueles fios era demais”; Carmem já
achou muito interessante aquela estrutura que se modificava a cada novo passo, “pode-
ria ir e voltar a mexer naquela estrutura durante muito tempo.
Assim, a proposta se desdobrou em outras que mobilizavam diferentes possibi-
lidades de expressão e experimentação: olhares, movimentos, afetos em ativação, li-
nhas e papéis, palavras, esbarrões, sons e silêncios que surgiam numa convivência
bastante singular para o grupo e para cada participante.
Este aspecto também aparece nos rizomas “formatados” naquela experiência,
pois parece que as palavras, como secreções dos corpos (Fedida)
5
, apenas resvalam e ex-
plicitam linhas que atravessam o trabalho e fazem eco no observador/participante e,
freqüentemente, em outros integrantes das oficinas que se vêem “representados”, se
identificam ou se interessam por aquilo que os outros trazem por meio das palavras,
ainda que essas conexões estejam distantes da consciência e que não transbordem
para o território das linguagens.
5
FEDIDA, R. Não estar em repouso com as palavras. IN: Lygia Clark não para de
atravessar nossos corpos. Publicado em catálogo da exposição Lygia Clark: da
obra ao acontecimento. Somos o molde, a você cabe o sopro. Curadoria de Suely
Rodnik e Corinne Diserens, pelo Musseé de Beuax-Arts de Nantes, França (2005)
e Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil (25 de janeiro a 26 de março de
2006).
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
262
Produções rizomáticas
Celso fez uma dobradura com o papel; Luciano desenhou; Silvia escreveu palavras e poemas;
Suzy trabalhou com os fios fixando-os em lugares surpreendentes: juntou fios, pedaços de
cartolina, em que as palavras escritas lhe pareciam expressar as várias sensações experimen-
tadas ao longo da oficina.
A partir da questão Como eu faço o que eu faço? proposta por Favre e pontuada
em muitos momentos clínicos, entendo cada movimento – o fazer,oconversar e silen-
ciar – como ação plural que compõe as partituras dos procedimentos expressivos.
Recortar, escrever, desenhar, criar uma colcha de retalhos, produzir um bordado,
tecer um ponto, moldar um gesso, fazer uma dobradura, pintar camisetas, costurar fuxi-
cos, entre tantos fazeres, se desenham na clínica e acompanham as mais variadas expe-
rimentações corporais.
Em relação ao fazer, consideremos ainda duas dimensões: um fazer barulhento,
como alguns momentos da confecção de fuxicos pelas mulheres do Bairro dos Morros,
regado de conversas e sons; e um fazer mais silencioso como quando, após uma vivên-
cia corporal, alunos da faculdade, de olhos fechados, esculpem os corpos em barro.
Vejamos cenas exemplares destes dois momentos:
Cena 1
No Bairro dos Morros, Dona Caçula surpreende a todos ao contar que sabe fazer fuxicos.
O grupo fica alvoroçado com a idéia de criar camisetas decoradas.
Depois de muitos exercícios de aproximação e afastamento, entramos numa etapa em
que exercitamos as artesãs que existem em nós. Foram semanas de trabalho, durante as quais
os corpos que antes se moviam pelo espaço, ocupavam lugares fixos.
Era um barulho intenso que envolvia a mesa em que as mulheres faziam os seus fuxicos.
Dona Caçula orientava e explicava o trabalho. Durante a execução, algumas mulheres fala-
vam de suas vidas, trocavam conselhos e desabafos. Lucia dizia que aquele grupo era bom
porque havia também um “conversamento”: faziam coisas, mexiam com o corpo e conversavam.
Lembro-me de uma mesa enorme, as participantes lado a lado com um ritmo de circu-
lação que dependia das necessidades: pegar uma linha ou pano, travar um bate-papo, per-
guntar algo ou simplesmente permanecer no lugar em que estavam. Nestes momentos, o
Série Conversar e Silenciar
263
silêncio também era regado por gargalhadas, risos, “contação” de histórias, fuxicos.
Foram momentos importantes no processo, pois davam outra tonalidade ao trabalho
corporal realizado até então.
Ao final das oficinas, o grupo todo se reuniu na casa de uma delas para trocar presentes
e realizar um desfile de modas com as camisetas produzidas com os mais variados tipos, cores
e tamanhos de fuxicos.
Cena 2
Algumas alunas da disciplina Atividades e recursos terapêuticos tinham dificuldade pa-
ra silenciar e entrar em contato com as suas sensações corporais, mas de modo geral a atmos-
fera grupal era de intensa concentração. Após as vivências corporais foi solicitada uma
produção em argila: com os olhos fechados as alunas deveriam esculpir seus corpos.
Ao abrir os olhos muitas alunas ficaram surpresas com o que haviam produzido. Algu-
mas falavam da dificuldade de modelar o barro de olhos fechados e em silêncio. Outras ma-
nifestaram curiosidade para visualizar suas produções.
Além de fazer sentido para muitas alunas, esta atividade se desdobrou em outras dinâ-
micas e conversas inclusive em outras disciplinas.
Por tudo isso, é importante ressaltar a impossibilidade de protocolar os modos co-
mo acontece o silenciar, pois existem diferentes gradações de barulhos e silêncios e
uma infinidade de combinações destes estados no fazer, no escrever ou mesmo entre
uma palavra e outra no conversar.
Tsurus
6
: o vôo dos pássaros
Em um encontro do grupo de estudos Corpos, danças e clínica realizamos uma vivência que con-
sistia em criar coreograficamente um vôo de pássaros com os participantes do grupo.
O grupo organizado em forma triangular realizava deslocamentos a partir do comando
do participante que ficava à frente. A cada movimento do grupo, o triângulo também mudava de
direção e o comando passava para outro participante.
O comando era dado pelo movimento de cabeça que indicava uma direção. Os deslocamen-
tos espaciais eram realizados com movimentos dos braços e do corpo simulando um vôo, crian-
6
Para saber mais sobre tsurus e a utilização do origami em T. O. sugiro a leitura
de WON, Miriam Jae. Origami um recurso para Terapia Ocupacional, São Paulo,
2006, 1-35 (Monografia) Curso de Terapia Ocupacional, Centro Universitário
São Camilo.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
264
do um refinado bailado de corpos, com pequenos gestos, alterados a cada nova configuração.
No encontro seguinte, foi convidada uma aluna de T.O. para ensinar o grupo a fazer os
tsurus.
Depois que todas as participantes confeccionaram seus pássaros, começamos a (re)
montar as etapas vivenciadas pelo grupo, conversando, (re) fazendo todo o processo com a
ajuda dos pequenos pássaros de papel. A maquete móvel criada nesse exercício possibilitou
resgatar, assimilar e compartilhar com os participantes ausentes no encontro anterior um pou-
co da experiência vivida.
Fazer os tsurus, (re) montar o vivido e coreografar de outro modo o vôo dos pássaros foi
um exercício marcante para cada uma e para o grupo.
Para Leal (2005)
8
, quando se realiza uma atividade o que importa não é unicamen-
te o material expressivo, mas a construção de complexos de subjetivação
9
pessoa-gru-
po-material expressivo-trocas múltiplas – que oferecem possibilidades de recompor
uma corporeidade existencial, de sair de impasses repetitivos e de se (re) singularizar.
Considerando as relações mencionadas por Leal, podemos dizer que um outro as-
pecto a ser assinalado no território do fazer é o inusitado de uma proposta de um fazer
individual que se desdobra e se desmancha em um fazer coletivo.
Segundo Quarentei (2001)
10
,ofazer é marcado também por um caráter plural,
uma vez que podemos fazer muitas coisas ao mesmo tempo.
Estar tomando café e pensar no almoço; gritar com o filho sentindo uma apreensão-alegre
pelo que acontecera no trabalho; cortando o pão com vontade de sentir o gosto da man-
teiga derretida quando chega de não sei onde; o turquesa do mar das últimas férias. Ah,
aquele vidro de remédio ali em cima... Estamos o tempo todo, em atividade, mas efetiva-
mente em múltiplas atividades.
Assim eu digo: as atividades são matérias de vida, não únicas... mas matérias de vida.
Esta consideração nos remete novamente à idéia de um corpo plural, conforme
proposto por Keleman e Favre. Esse conceito pode ser observado também na clínica e nas
cartografias: a propriedade de atuar, refletir e propor procedimentos expressivos que po-
dem conversar, ressoar e incidir uns nos outros e nos vários ambientes.
11
Para Quarentei ( 2001), as
atividades humanas, como qualquer atividade do vivo, não são de modo algum apenas
realizações de tarefas, produções de produtos, aquisições. São acontecimentos de vi-
da, com dupla vinculação. Estão ligados às necessidades... isto é, ao que é necessário
8
LEAL, L.G.P. Terapia Ocupacional: Guardados de gavetas e outros guardados.
Recife: Editora do Autor, p. 24.
9
Grifo meu
10
QUARENTEI, Mariângela. Terapia ocupacional e produção de vida.
Apresentação oral.Conferência no VII Congresso Brasileiro de Terapia
Ocupacional,Porto Alegre,2001.
11
Lembrar a idéia de ambiente, dentro de ambiente, dentro de um outro
ambiente proposta por Keleman em sua concepção de corpo. (Ver o capítulo
Corpo como pulso no presente trabalho).
Série Conversar e Silenciar
265
à continuidade seja do ponto de vista da sobrevivência do crescimento, da sociedade,
da cultura etc…
12
Podemos considerar ainda as produções, tal como nos inspira Aragon (2005)
13
,
como expressões que emergem dos encontros e que são apenas breves exemplos
da capacidade de criar e materializar acontecimentos no mundo e nas realidades, em gra-
dações de silêncios e barulhos, em infinitas combinações que podem ser inventadas.
Escrever
Sugerimos aos alunos que iniciam a disciplina na graduação que construam um “diário
de bordo”, no qual podem registrar, da forma que quiserem, suas impressões a partir das
experiências: poemas, colagens, palavras, frases, histórias, narrativas. Este diário po-
deria ser lido em algum momento.
A escrita sugere muitas questões que não serão aqui aprofundadas, mas ocu-
pam espaço importante nesta tese, pois tratam de momentos em que o silenciarde pa-
lavras dá lugar a outra forma de expressão.
As propostas do escreverprovocaram inquietações, desconfortos e turbulências
no grupo.
Em muitos momentos pude observar, por meio de comentários de participantes, o im-
pacto negativo provocado pela forma como a escrita é ensinada e tratada desde cedo no cam-
po pedagógico: orientada por padrões de avaliação extremamente reguladores e a quase
inexistência de estímulos (escola, família, padrões sociais) para uma produção criativa.
Naiza de França atua em sua clínica com toda a forma de expressão, interferindo
no que denomina de um “tirano em nós”, que representa de algum modo a impossibili-
dade e a despotencialização da capacidade inventiva.
Em seus procedimentos esta profissional enfatiza os momentos de pausa e reco-
lhimento, propõe a escrita solitária como um recurso de elaboração e assimilação do vi-
vido. Este modo de atuar está em consonância com a idéia de Keleman sobre o vivo que
vai em direção ao mundo e retorna, num expandir e recuar permanente.
Este tipo de pulso proposto na clínica é fundante em meu trabalho: momentos de
introspecção, mais solitários, e outros em que a produção coletiva é intensificada.
Oescreverparticularmente permite que momentos de introspecção e recolhimento ex-
12
QUARENTEI, Mariângela, op. cit.
13
ARAGON, L. E. P. O impensável na clínica. São Paulo, 2005, 1-158.Tese
(Doutorado em Psicologia Clínica) – Instituto de Psicologia, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
266
14
LEAL, L.G.P., op. cit., p. 60.
15
Idem, ibid.
16
Idem, ibid.
pressem mais uma vez as singularidades: o diário de bordo, os escritos ao final de uma
vivência, a leitura ao iniciar uma proposta ou um encontro grupal são algumas modalida-
des sugeridas nos trabalhos.
Assim, a escrita pode funcionar como dispositivo para conter, sustentar, dar con-
torno e corporificar experiências ou ainda como um modo de ancorar em um porto segu-
ro frente ao desassossego
14
.
Ainda sobre o tema da escrita e de seus vários sentidos, em Terapia Ocupacional
Guardados de gavetas e outros guardados
15
, Leal reúne juntamente com artigos cientí-
ficos uma série de fragmentos de cartas, bilhetes, epígrafes e frases de livros, frases de sua
autoria, acenos, escritos de seus pacientes. Esse material torna poética uma clínica que se
deixa atravessar, ao mesmo tempo, pelo não dito e pelas palavras, acentuando o caráter de
passagem entre o campo das invisibilidades e do tornar-se visível.
A escrita na clínica de Leal sempre se faz presente, ora como gesto espontâneo, ora
como necessidade do próprio encontro, como um modo de presentificar o afeto
16
.
Em minha clínica observo a potência da escrita para instaurar estados criativos e
propiciar a elaboração de conteúdos que pedem passagem (Rolnik). Frases elaboradas
ou impulsivamente construídas determinam diferentes moldagens às escrituras, resul-
tando daí uma fonte de saberes que precisam de tempo para jorrar, conforme se po-
de observar nos comentários de participantes de várias oficinas que ministrei.
“Escrevo sempre em meu diário, mas não mostro para ninguém.”(Sandra)
“Eu tenho muita dificuldade para escrever. Isto me lembra a época da escola em
que éramos sempre avaliados.”(Nancy)
“Eu tenho vários cadernos de vários lugares da minha vida. Praticamente es-
crevo todos os dias.”(Luana)
Carolina fala pouco nos momentos em que o grupo compartilha suas impressões. Atra-
vés da escrita sente que pode aparecer mais, enquanto Maura prefere as dinâmicas cor-
porais mais amplas como se movimentar nos espaços; para ela escrever lembra prova de
escola, avaliação e aí “trava”.
Segundo Rolnik (1993), escreve
é um modo de exercer a escrita, em que ela nos transporta para o invisível, e as palavras que
Série Conversar e Silenciar
267
se encontram através deste exercício tornam o mais palpável possível, a diferença que só
existia na ordem do impalpável. Nesta aventura encarna-se um sujeito, sempre outros: es-
crever é traçar um devir”
17
Conversar
“Há apenas palavras inexatas para designar
alguma coisa exatamente.”
Deleuze e Parnet
18
Nem sempre as pessoas escrevem, nem sempre elas compartilham seus escritos, às ve-
zes preferem silenciare deixar que os processos aconteçam em suas intimidades. Outras
vezes permitem que a palavra acompanhe seus gestos e secretem através de suas for-
mas que dão passagem àquilo que “pede” expressão.
Há, no entanto, diferentes situações na clínica que mostram o quanto as pala-
vras ocupam lugares diversos nos processos de cada participante e de cada grupo em
particular.
Para Safra (2005)
19
, a palavra brota e revela aquilo que emerge da experiência. Nes-
tes momentos a palavra acompanha o gesto, cria atmosferas, potencializa o acontecimen-
to vivido.
Agora, há o silêncio incômodo também, que é a palavra calada, a incapacidade
de dizer” (Antunes, 2005)
20
, ou ainda o silêncio vivido como matéria-prima para que se
possa falar.
Às vezes acontece um silêncio que não se transformou em palavras ou diferente
disto, palavras que produzem uma atmosfera silenciosa no ambiente que permanecem
por algum tempo, efeito dos afetos que ali se engendraram.
Em alguns momentos, a afetação provocada por um gesto, proposta, silêncio
e/ou palavra é tão intensa que o participante pode querer (mesmo sem se dar conta)
preencher os espaços com palavras esvaziadas, tamanha a dificuldade de suportar a
tensão do instante vivido.Tudo vai depender das forças presentes: os graus de maturi-
dade, experiências, vínculos, relações, processos, entre muitos outros aspectos coloca-
17
ROLNIK, S. Pensamento, corpo e devir. Uma proposta ético/estético/política
no trabalho acadêmico. Cadernos de subjetividade do Núcleo de Estudos da
Subjetividade. Programa de Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP,
v. 1, n.2, set/fev.1993, p. 246.
18
DELEUZE, G. e PARNET, C. Diálogos. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo:
Editora Escuta, 1998, p.11.
19
SAFRA, Gilberto. A experiência de lugar In: PERDIGÃO, A.B. op. cit., p.115.
20
ANTUNES, Arnaldo. Contraponto. In: PERDIGÃO, A.B.. op. cit., p.130.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
268
dos em jogo pelo participante e pelo grupo. Outras vezes, as palavras saem em jorros.
Acompanhemos algumas cenas vividas em diferentes contextos para observar o
paradoxo e as sutilezas que caracterizam estas problematizações:
Era um segundo encontro de trabalho com as fotografias. O grupo, de modo geral, pa-
recia bastante aquecido e envolvido na proposta, aguardando as fotos e as narrativas do par-
ticipante seguinte. Havia um misto de expectativas e curiosidade escutar uns aos outros.
“Sinto-me trêmula ao ouvir o que as pessoas têm a dizer e percebo que muitas
destas coisas me tocam intensamente. Me dei conta de muitos acontecimentos em mi-
nha vida que nunca tinha percebido.” (Mônica)
“Estou tomada por estas conversas a partir das fotos. Achava que ver fotogra-
fia era somente olhar para elas, mas quando comecei a contar aquilo que me levou a es-
colher estas e não outras, me surpreendi com as minhas próprias palavras.”(Débora)
Vera conta que o trabalho corporal lhe fez lembrar de uma cena muito forte de sua vida:
a mãe cuidando das feridas em suas costas; feridas provocadas pela própria mãe.
O grupo silenciou totalmente por alguns instantes. Ao escutar o relato de Vera, os par-
ticipantes entraram num estado de apreensão intensa, até que uma das alunas iniciou uma
fala a respeito de sua própria história, contando algo que pretendia ser muito engraçado.
Samantha permanece calada durante vários encontros, até que em certa dinâmica faz
como que uma aparição inusitada, cria presença corporal e conta aspectos muitos interessan-
tes sobre a sua vida, sua história e suas sensações a respeito do nosso trabalho.
Como vimos, não se pode estabelecer regras; tampouco encontrar definições,
conceitos e efeitos únicos que se desdobram a partir das gradações dos silêncios e das
palavras. Na primeira cena é possível verificar a impossibilidade de separar em catego-
rias as intensidades, as manifestações dos corpos, as palavras; entretanto todas elas são
parte do acontecimento. Na segunda cena fica explícita a impossibilidade de sustentar
um estado de alta excitação/intensidade, quando a palavra vem desviar e criar uma ou-
tra atmosfera escapando daquilo que afeta excessivamente os corpos/ambientes.
Por último, é possível perceber o inusitado se fazendo presente através da ex-
pressividade de um corpo articulada às palavras.
Série Conversar e Silenciar
269
Essas cenas, entre várias outras, mostram como exercitamos os gestos e as pala-
vras em composição. Exploramos diferentes potencialidades, permanecemos mais ou
menos tempo no silêncio ou conversando, ou ainda utilizamos o som e os barulhos co-
mo se o corpo pedisse que também a voz ocupasse espaço.
Criticando os modos como as entrevistas e as conversas acontecem, Deleuze e Par-
net (2005)
21
tecem comentários interessantes para pensarmos sobre os tipos de conver-
sa que emergem também na clínica.
Segundo esse autores, o objetivo de uma entrevista ou de uma pergunta não é res-
ponder questões, mas sim fugir delas. Para eles, muitos consideram que somente repi-
sando as questões é que se pode sair delas. Entretanto, os autores afirmam que a arte de
inventar e construir um problema é mais importante do que responder às questões: in-
venta-se um problema, uma posição de problema, antes de se encontrar uma solução.
Inspirada nestas afirmações, e com base na escuta em diferentes momentos clí-
nicos, penso que as conversas potentes são aquelas que geram algum tipo de provoca-
ção e/ou problematização, ativam o pensamento, a capacidade de sentir e agir
(Espinosa)
22.
Para que isto aconteça o grupo com suas forças diversas, antagônicas e múlti-
plas, deve resistir à busca de um consenso apaziguador que procura fazer com que todos
pensem e falem do mesmo modo a respeito do vivido.
Como já disse em outros momentos desta tese, um dos desafios da clínica é pro-
duzir diferença e dar expressão às singularidades.
Nos grupos é freqüente ocorrer uma discussão a respeito do medo de falar o que
se sente, o receio de ser julgado pelo outro a respeito do que se diz, pensa e/ou faz. Os
silêncios
23
são criados como barreiras.
Observo na clínica que as conversas são atravessadas por atmosferas angustian-
tes e de apreensão. Na maioria dos grupos que coordenei havia alguém que queria con-
cluir rapidamente ou universalizar, generalizar uma experiência.
Todas gostaram muito desta dinâmica. A dinâmica foi angustiante para a
classe, todos nós temos dificuldade disto ou daquilo, todos pensam e sentem des-
te modo, dentre outras frases que se repetem em muitos grupos.
A tentativa é, então, singularizar toda e qualquer experiência procurando traçar
um devir e não um tratado como muitos pretendem.
21
DELEUZE, G. e PARNET, C. op. cit., p. 10.
22
No livro Danças em Terapia Ocupacional (op. cit.), uso como epígrafe
uma afirmação de Marilena Chauí a respeito da alegria e tristeza em
Espinosa. Na alegria está um aumento da potência de pensar, agir e sentir,
própria de um bom encontro.
23
Aqui estou tratando do desejo de conversar com o outro na sua
impossibilidade e não como potência própria dos momentos silenciosos
que serão tratados adiante.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
270
Por fim, podemos pensar que a palavra pode acompanhar os gestos, surgir em
meio a coreografias, interromper um silêncio, vazar por todos os lados desestabilizando
ou (re) criando uma atmosfera, pois não há garantia do que de fato vai acontecer em um
processo que comporta modos diversos de expressividade.
Um olhar, um tremular de corpos, um choro que vaza, uma mudança no tom da voz,
um sussurrar, entre outras manifestações muito sutis e por vezes imperceptíveis, também
podem ser considerados tentativas de conversar.
Observo que são diversos os modos que cada um escolhe para dizer, para fazer cir-
cular o que se engendra em seu infinito particular.
24
Segundo Piragino (2003), há freqüentemente uma cisão entre o trabalho corpo-
ral e as intervenções psicológicas pautadas na comunicação verbal. O autor critica a
idéia de que nos trabalhos que usam a palavra não caberiam dinâmicas que envolvem
uma proposição com e no corpo, como se estas dimensões não constituíssem modos de
igual potência nas relações e conexões com os mundos.
Assim, em muitos momentos aparecem oportunidades de conversar, saber das
preferências, falar daquilo que se quer ou não, daquilo que se gosta ou não, de trocar im-
pressões, deixar as palavras dançarem e acompanharem os acontecimentos.
Nas massagens
25
inspiradas no danceability, descritas na série Tocar, quando um
grupo vai massagear uma única pessoa, o exercício é iniciado por uma primeira conversa;
24
Este termo foi inspirado na música de Marisa Monte, CD Infinito particular
(Arnaldo Antunes, Marisa Monte, Carlinhos Brown), 2006.
25
Freqüentemente o trabalho consiste em uma pessoa ser tocada por 3, 4, 5 ou
6 participantes ao mesmo tempo. Não se segue um protocolo e cada um irá tocar
segundo suas disposições, conhecimentos, desejos relacionados àquilo que o
afeta naquele encontro composto por tantas pessoas. Este trabalho
discutido na série Tocar mostra a complexidade das relações mediadas pelo
toque e aproximação corporal. Há um revezamento entre os membros do grupo.
Série Conversar e Silenciar
271
em seguida, faz-se um silêncio de palavras. Nesses momentos iniciais, o participante po-
de indicar suas preferências, lugares em que quer ser tocado, tipos de toque que prefere:
“Não toque aqui porque sinto cócegas.”(Renata)
“Se puderem tocar meu pescoço, eu agradeceria muito, pois estou com mui-
ta dor.” (Natalia)
Há ainda outras questões que se apresentam freqüentemente na clínica que gos-
taria de pontuar através das falas dos participantes:
A parte mais sofrida é falar para o outro. Desde criança você é ensinado a
disfarçar.” (Sandro)
As conversas acontecem nos mais diferentes momentos, procurando sempre que
possível romper o automatismo presente no ato de dizer.
Algumas vezes avalio que seria importante a troca de impressões entre os parcei-
ros, principalmente quando os exercícios envolvem um grau de intensidade, que o cor-
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
272
po parece procurar compartilhar a intimidade de vários modos: olhares, silêncios, abra-
ços, pausas na “proximidade corporal”, ou ainda no desejo de trocar palavras e escutar
aquilo que se passa com o outro.
A avaliação sobre a orientação a ser seguida acontece a partir da captação de at-
mosferas presentes e, de modo algum, deve virar um protocolo a ser sempre seguido, tal
como viver e depois conversar sobre o vivido ou, ao contrário, conversar e depois partir
para a experimentação corporal.
Estes momentos se alternam a cada novo instante no decorrer dos processos. Às
vezes noto que se fala demais como resposta à própria intensidade vivida nos contatos;
outras vezes, o silêncio é possível e os corpos respondem às afetações criando outros
vocabulários.
Assim, quando acontecem, as palavras encarnam o ritmo do processo: conversas
baixinhas; barulhos intensos; sons de risadas; gritarias; palavras que não cessam, mas
acompanham e criam um gesto em diferentes gradações de sons e silêncios.
Freqüentemente, quando proponho momentos para compartilhar, algumas du-
plas
26
levam certo tempo para conversar; outras rapidamente direcionam a atenção pa-
ra mim ou para outros participantes, indicando que naquele momento as palavras
podiam silenciar.
Algumas conversas são ainda marcadas por entusiasmos, pulos, estados emocio-
nais transbordantes. Outras são mais contidas: silêncios se interpõem entre um som e ou-
tro. Em outros casos, minha intervenção não é necessária para “abrir as conversas”.
Na dinâmica das mãos, também explicitada na série Tocar – quando em dois círculos
um dentro e outra fora, os participantes tocam suas mãos de olhos fechados e circulan-
do as duplas – o grupo todo iniciou uma conversa tão intensa que minha presença não
foi notada por longos instantes.
Nestas conversas criaram-se pequenos mundos que também se tocavam por palavras,
depois se espalhavam pelos participantes até que, num determinado momento, come-
çaram a olhar para mim novamente para que pudéssemos seguir adiante.
Por fim, cabe apenas pontuar que nem sempre o entusiasmo ou aumento de potên-
cia se extravasa e transborda em palavras. Em um mesmo grupo existem diferentes graus
de intensidade que atravessam os corpos, produzindo todo o tipo de conversas. Algumas
delas, sem dúvida, têm a função de tamponar ou mesmo “distrair” os corpos/sujeitos da
26
Este aceno para a finalização da conversa de palavras também acontece
no grupo como uma atmosfera que, aos poucos, é tomada por um silêncio de
palavras. Cabe ao coordenador, ou mesmo a algum participante, acolher o sinal
e deixar morrer este tipo de contato.
Série Conversar e Silenciar
273
intensidade vivida; mas como vimos, os corpos respondem de acordo com sua história, sua
maturidade, sua singularidade. Por isso, tentamos “controlar” a tentação de cair no este-
reótipo do “quem não fala está fora de circuito”.
Nos encontros sempre há participantes que preferem o silenciar durante os exer-
cícios e outros que não agüentam se calar e acessar a “intimidade mais visceral” nas re-
lações com os corpos e com tudo aquilo que lhes afeta.
Também importam aqui as dosagens do silenciareconversarpropostos na clíni-
ca para fazer passar, e não obstruir ainda mais processos em formatação.
A conversa, em algumas situações, funciona como possibilidade de troca; às ve-
zes como alívio ao saber que o sofrer acontece também com outras pessoas.
Vez ou outra testemunhei instantes de aproximação entre os participantes pe-
la possibilidade de escutar, ser tocado por narrativas ou questões explicitadas no es-
paço coletivo.
Observemos agora algumas destas nuances para captar a sutileza dos sons e dos
silêncios:
Zé tem paralisia cerebral, seu corpo deixa escapar gestos involuntários. Ele já sabe
muito sobre si, particularmente sobre esta condição de seu corpo. Em um de nossos workshops
Zé faz o seguinte comentário:
“Bem, eu tenho medo que a pessoa fique do meu lado direito, pois sou capaz de dar um
tapa nela”. Zé tem propriedade sobre seu lugar no espaço, consegue comunicar seu receio e
todos sabem que para trabalhar com ele é melhor fica à sua esquerda.
“Eu preciso sair para ir ao banheiro, pois tomei uma medicação.” (Carla)
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
274
Tenho vergonha, não se aproximem demais.” (Alexandre)
E relembrando Bárbara: “Não se apóiem muito em meus ossos, pois tenho uma
fragilidade tal que posso sofrer alguma fratura se o apoio for muito forte.”
Estas falas foram tiradas de momentos iniciais de um trabalho centrado principal-
mente no danceability, que pressupõe aproximações e toques entre os corpos.
Zé está bastante habituado a lidar com situações, tal como diz ele, constrangedo-
ras, pois “seu corpo, às vezes não lhe obedece”; ele usa a palavra como um aviso para fa-
cilitar a aproximação.
Bárbara sabe de suas limitações, dos efeitos de sua condição, da força ou da fra-
gilidade de seus ossos. Quer entrar em contato, mas não quer se machucar. As palavras
defendem este seu desejo. Ela menciona suas limitações, mas não usa as palavras para
se afastar ou mesmo justificar seu receio. Apenas fala.
Assim, as palavras rompem o silêncio e preenchem pouco a pouco o ambiente
com ritmos, modos e intensidades variáveis que exigem do coordenador uma atenção pa-
ra que estas, tal como diz Gismonti, não atrapalhem algo que é tão precioso: o silenciar
pleno de acontecimentos.
Existem situações em que as conversas em duplas ou pequenos grupos são mais
potentes do que quando todos estão reunidos, pois é comum participantes que falam
muito e outros que preferem o silêncio ou não conseguem falar.
Conforme dissemos, acontecem palavras esvaziadas, ou ao contrário, palavras-
enxurrada,que alagam as conexões, ou ainda palavras que vagam pelo espaço e, como
Série Conversar e Silenciar
275
nos fios rizomáticos, conectam com vazios e silêncios.
Declarar ao grupo todo algo da ordem da intimidade é resultado de muitos traba-
lhos. Há pessoas que se comunicam com muita facilidade, outras se sentem mais se-
guras em grupos pequenos, outras ainda trabalham melhor em duetos silenciosos,
preferem o trabalho individual a compartilhar o gesto ou a conversa.
Criando uma adjacência com o ato de dançar, bailar ou estar junto, o ato de con-
versarnos remete ainda a pensar em outros aspectos.
Em Vertigens do corpo e da clínica, Sant’Anna (2004)
27
faz uma aproximação
entre o ato de conversar e comer, apontando que os dois acontecimentos essenciais e
ordinários implicam intensas vertigens sutis, ou ainda, envolvem mutações de estado,
intensos deslocamentos da percepção, mesmo quando não são extensivos, nem neces-
sariamente espetaculares.
Para tratar desta questão, que parece ir na contramão daquilo que podemos pen-
sar como algo vertiginoso, a autora cita o filme “Intervenção divina”, do diretor palesti-
no Elia Suleiman, que mostra com poucas palavras o cotidiano atual dos palestinos.
Quase não há diálogo.
De acordo com Sant’Anna, num certo momento do filme, um homem lança um
saco de lixo no quintal do seu vizinho. A cena se repete duas vezes, sugerindo ser esta uma
prática habitual daquele homem.
Num certo dia, a vizinha aparece e relança todos os sacos acumulados em seu
quintal de volta para o vizinho que, ao ouvir o barulho, abre a porta e pergunta por que
ela agira assim e se não tinha vergonha do que fizera.
A mulher explica que o fez porque ele havia jogado os sacos em seu quintal. O
homem não satisfeito com a explicação diz que mesmo assim a ação dele era vergonho-
sa, pois Deus não lhe havia dado a língua para falar, ou seja, o problema não estava no ar-
remesso dos sacos, mas no arremesso da palavra.
A partir desta breve cena, a autora aborda a dificuldade de narrar, “partilhar com”,
de certo modo habitar em parte o mundo do outro e deixá-lo penetrar em nossos quin-
tais, não necessariamente para uma comunhão, mas sobretudo para uma conversa.
A autora diz ainda que, em momentos de chacina ou terror, em situações de guer-
ra ou e em certos climas, fica a impressão de que bate-papo é risco de vida. “Toda parti-
lha parece uma armadilha ou um logro”.
28
No filme mencionado, o costume é quebrado e os vizinhos precisam falar para
elaborar a ruptura. O problema era o ter de “com-frontar-se” com o outro, produzir ou dei-
27
SANT’ANNA, D. Vertigens do corpo e da clínica. In: FONSECA, Galli,
ENGELMAN, Tânia e ENGELMAN, Selda (Org.). Corpo, arte e clínica.
Porto Alegre : UFRGS, 2004.
28
Ibid., p.30.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
276
xar acontecer alguma turbulência pelo dito e pelo não dito, pela presença do outro em
meu” quintal.
Mas Sant’Anna ressalta que não se trata de transformar a conversa em um exem-
plo ético ou na solução para os problemas, tampouco pensar essa experiência como um
dever, pois desconversar em alguns casos pode ser bastante estratégico, como bem o fa-
zem as crianças, lembra a autora, que se recusam a conversar quando não querem ou
quando não lhes interessa.
O estar frente a frente, ou melhor corpo-a-corpo,não necessariamente quer dizer
que se invade o quintal do outro. Sem dúvida falar, narrar, ouvir ou mesmo calar são ver-
bos que já foram muito discutidos na clínica, mas que ainda dão muito trabalho: temas
que tocam profundamente alguém, palavras que não conseguem sair pela garganta e,
quando saem, são acompanhadas de choros e soluços, silêncios plenos de sentidos,
busca de idéias consensuais que só atrapalham a produção de singularidades dentro de
um grupo, o confronto de idéias, múltiplas variações em torno das palavras e das possi-
bilidades de se construir uma conversa.
Essa reflexão nos remete à questão do grupo, dos ritmos, da velocidade das nos-
sas intervenções como terapeutas, do que o grupo e cada pessoa pode suportar para não
saturar, para ter a experiência de uma boa dosagem.
Em algumas finalizações de exercícios, solicito apenas que cada um fale uma
palavra e esta basta para, naquele momento, dar um contorno à experiência. Em outras
ocasiões, deitados de olhos fechados, conversamos sobre algum tema que nos tocou;
ouvir as vozes é uma proposta pouco habitual e bem recebida por muitos grupos com
os quais trabalho. Outras vezes ainda, criam-se textos, narrativas, poesias e dramatiza-
ções ou os participantes se afastam num absoluto silêncio de palavras, atmosfera su-
portável por muito tempo ou interrompida assim que o tempo de estar juntos se esgota.
Observo ainda que quanto menos se apressa os processos, algo emerge do silên-
cio completamente inusitado: um som, um canto, uma palavra, um gesto ou tudo isto num
piscar de olhos, como quando Elza, em meio a uma dinâmica, cria um andar pela sala
acompanhado de um cumprimento (oi...oi...oi) que ninguém espera.
Parece-me que é justamente nestes vacúolos de silêncio, tal como coloca Deleu-
ze, que as pessoas têm algo a dizer. Basta suportar e habitar este paradoxo.
Série Conversar e Silenciar
277
Ouvir
Nossa discussão envolve ainda a necessidade de algumas palavras sobre o ouvir arti-
culado permanentemente ao conversar e silenciar. Beatriz Novaes (2005)
29
diz que o
silêncio, no diálogo, significa que é a vez do outro e este dar lugar é ato complexo pa-
ra muitos de nós”.
Ouvir não é sinônimo de passividade – restringir-se a entender o que entra pelos
ouvidos, procurar identificar o significado do som. Na audição importa tanto ou mais o
como do que o que se ouve.
Se soa bem, se ouve, se aprecia. Apreciação que é encontro, comunhão do que vibra soan-
do com o que vibra ouvindo. E, desse encontro, resulta como sobra, como algo a mais,
desnecessário do ponto de vista da economia da audição, mas fruto dela, o sentido. Por is-
so, ouvir implica abandono, silêncio interior, entrega, disponibilidade para o outro. Condi-
ções imprescindíveis, mas raras, pois não se ouve quando é servo, sobretudo servo do
narcisismo.
30
A partir do acompanhamento de diferentes grupos, pude observar a dificuldade
de alguns participantes em silenciar para escutar o outro, ou ainda para suportar a nar-
rativa do outro. Entretanto, é nítido quando o grupo se coloca em estado de prontidão e
presença, quando algum tema contagia e atravessa os participantes.
29
NOVAES, Beatriz. A vez do outro, In: PERDIGÃO, A.B., op. cit., p.166.
30
SPINELLI, M. A.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
278
31
Exercício de fé. In: PERDIGÃO, A.B., op. cit. p.177.
Nestes instantes pode-se captar uma atmosfera intensa, mesmo que os graus de
presenças entoem diferentes melodias. Alguns participantes ora se dispersam ora fo-
cam as atenções num jogo infinito de respostas ao vivido ou à conversa que se constrói.
Cabe ao coordenador, atento a essas modulações, balizar os fluxos para que a
experiência seja assimilada sem cair num esvaziamento ou diminuição da potência do
processo em andamento.
Entradas musicais
“Para mim, trabalho corporal e dança
têm de vir acompanhados de música”.
Roberta
Inspirada em Gismonti (2005)
31
, que considera a música como interrupção do silêncio,
considerei pernitente nesta série fazer algumas considerações sobre as entradas musi-
cais em algumas propostas, problematizando a presença ou não desse elemento em
trabalhos corporais e de dança.
Série Conversar e Silenciar
279
Segundo o artista, “a música é a expressão artística mais relacionada com o silên-
cio, porque ela interfere nisso que é tão precioso. (...) Ela faz com que ele deixe de exis-
tir”.
32
A partir deste fato, Gismonti diz ainda que se deve ter muita cautela ao musicar.
E como “atrapalha” o silêncio, que é o fundamento da reflexão, qualquer que se-
ja a música, ela tem por obrigação fazer vibrar certas cordas esticadas ou centros de
equilíbrio que cada um de nós tem, para que a interferência se transforme num entu-
siasmo à reflexão, e, por conseqüência, alimente a vida.
33
Na ausência do som musical, o corpo pode absorver outros estímulos, outras
informações, tal como se mover pelo chão sentindo a coluna, como apresentado na sé-
rie Aquecer ou mover-se de olhos fechados, sentindo o calor que entra pela sala e per-
mitir outras “quenturas”, outras vibrações, por onde se desenrolam processos mais
silenciosos.
Nestas e em muitas outras dinâmicas opto por manter a sala em um estado mais
silencioso em relação às entradas musicais.
No entanto, em vários trabalhos algumas pessoas reclamam da ausência da mú-
sica e associam automaticamente a dança à música, fazendo-se necessária uma sensi-
bilização a respeito do silenciar, tanto de estímulos musicais quanto das palavras e
outros sons que dispersam ou movem a experimentação para o ambiente externo.
34
Ao participar e acompanhar alguns processos, posso dizer que entre inúmeros as-
pectos, prevalece a dificuldade de suportar o que está para acontecer, o vazio, e conse-
guir viver o “silêncio como presença, como lugar” (Safra)
35
, porque há uma produção
silenciosa que a gente não quer ou não consegue ouvir; alguma coisa latente
36
.
Existem fases do trabalho em que não é utilizada nenhuma fonte musical exter-
na para dar espaço à escuta do silêncio e dos sons produzidos pelo corpo, mas há si-
tuações em que a música tem lugar importante e acompanha com tamanha
proximidade as coreografias corporais, que ela sai da posição de “pano de fundo”, co-
mo acontece em alguns trabalhos ou mesmo na vida cotidiana, para compor, de fato,
com outros elementos na produção de acontecimentos.
Quando isto acontece, a música é utilizada como estímulo ao movimento, o que
permite a utilização de gêneros musicais completamente diferentes e, conseqüente-
mente, permite a diversificação e a ampliação das explorações que, como outros sons
que compõem o trabalho, preparam, inspiram e permitem assimilar e criar outras ex-
perimentações.
32
Ibid., p.31
33
Idem, ibid.
34
No entanto, deve ficar claro que também atuo com as músicas selecionadas
por mim e por participantes do grupo quando me detenho na experimentação
de outras potencialidades corporais.
35
SAFRA, Gilberto. In: PERDIGÃO, A.B., op. cit., p.114.
36
CONCEIÇÃO, Pascoal. O silêncio junto. In: PERDIGÃO, A.B., op. cit., p.23.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
280
37
ANTUNES, Arnaldo. Contraponto In: PERDIGÃO, A.B., op. cit., p.127.
38
Idem, ibid.
Silenciar
Arnaldo Antunes
37
entende o silêncio como algo plural. Para ele não
existe um único, existem vários. Você pode pensar desde o silêncio carregado de signifi-
cado, em que, numa dada situação, calar faz o mesmo sentido que um discurso, até o si-
lêncio vazio de sentido, que é a ausência de som, o nada, uma página em branco.
Você pode pensá-lo como intervalo, o silêncio entre os sons, entre uma palavra e outra. Vo-
cê pode pensar o silêncio como gradações de silêncio: você vai ouvindo os sons mais per-
to, de repente você anda e tem um som mais longe. Você nunca tem o silêncio absoluto;
então tem também o silêncio da impossibilidade do silêncio absoluto.
38
Quando tratamos do pausar, demos particular atenção àquilo que acontecia
com os participantes quando faziam uma pausa (ou pouso) no movimento, acessando
outras camadas da sensibilidade corporal. Neste caso, a pausa ou o silêncio do movi-
mentosugeria a emergência de contatos com sensações, pulsos, produção imagética,
exercício do pensar, entre outros que, tal como afirmam Antunes e Montenegro, não
cessam de produzir barulhos e sons. Podemos ainda correlacionar esta infinidade de pe-
Série Conversar e Silenciar
281
quenas e invisíveis manifestações com as pequenas percepções mencionadas por Gil
(1996)
39
que dão a todos os processos um colorido infinito e potente sobre o qual nos
debruçamos na clínica.
Como vimos em outras séries, é evidente que o silêncio de palavras nos exercícios
pode produzir “conversa” que prescinde das palavras, evocando nos corpos um tipo de
contato diferente da comunicação verbal a que estamos acostumados e que privilegia-
mos em muitas de nossas relações.
Tem um silêncio no ar e apenas se ouve alguns rangidos das cadeiras de rodas, passa-
rinhos cantando lá fora e o barulho dos pés se arrastando pelo chão. As pessoas se mo-
vimentam vagarosamente e o silêncio facilita para que isto aconteça.
A idéia é aquecer o corpo aos pouquinhos, curtindo cada pequeno gesto, deslocamen-
to e expressão antes de iniciarmos os exercícios que colocam os corpos em contato.
O silêncio de palavras permite ainda que cada participante entre em um estado de
introspecção muito singular, afastando-se pouco a pouco dos burburinhos da vida agi-
39
GIL, José, op. cit.
tada para uma aproximação com os pulsos, sons e silêncios que atravessam os corpos.
A idéia é aprender a expressar-se pelo corpo e a acompanhar os acontecimentos
que se produzem num contato mais íntimo consigo e com os outros, exercitando uma
sensibilidade que pode prescindir da palavra para conhecer, comunicar ou trocar algo
com outro.
“Então, quando a gente começava com essa coisa de tocar, eu me lembro disto perfeita-
mente, as pessoas, depois de um certo tempo, começavam a não falar também, e, não fa-
lando, a gente de repente se via naquela coisa gostosa de “puxa”, algumas coisas não
precisam ser ditas”.
40
Na dinâmica apresentada como momento inaugural de uma proposta, os silêncios
permitem que a singularidade de cada gesto, de cada jeito, de cada um se configure em
uma ação e não como resposta a um comando que não deixa lugar para que se engen-
drem narrativas corporais.
Observo, em vários momentos clínicos, que os silêncios podem facilitar os proces-
sos, gerar nos participantes um “desassustar” com o próprio corpo que, muitas vezes, é
vivido como algo desconhecido.
41
Por outro lado, acompanho também situações em que o pedido por uma música,
um som, ou mesmo o rompimento de estados mais silenciosos serve como estratégia pa-
ra afastar-se muito rapidamente das sensações do corpo.
Não é raro, no silêncio que atravessa alguns dos exercícios que envolvem o dire-
cionamento da atenção ao próprio corpo, a (re) descoberta de uma dor ou a emergência
282
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
40
CONCEIÇÃO, Pascoal, op. cit., p.21.
41
FEITOSA, Maria Thereza. Qualidade de contato In: PERDIGÃO, A.B.,
op. cit., p.21.
Série Conversar e Silenciar
283
de sensações, lembranças e registros corporais (não conscientes) causam um turbilhão
que precisa ser estancado por algum elemento externo – uma outra música, um barulho
que (re) transporte o corpo/sujeito para um estado de maior conforto.
Como observo em minha clínica, o voltar-se para si, tal como aponta Feitosa,
exige uma pausa, principalmente quando estamos capturados pela demanda de
ações, tarefas, barulhos que nos colocam permanentemente em situações de excessi-
va expansão em direção ao mundo, conforme menciona Keleman.
Trata-se de viver os silêncios, como afirma Gismonti, também como entusiasmo
e reflexão e não como algo que atravanca o desenrolar da vida ou nos coloca em um lu-
gar de menos valia, por estar na contramão da pressa ou daquilo que é aceitável como rit-
mo predominante em nossos tempos atuais.
“Eu não suporto o silêncio.” (Juliana)
“Estar em silêncio é muito difícil para mim. Prefiro a agitação, os barulhos, pois
não sei o que fazer quando faltam as palavras.” (Gabriela)
Assim “fazer” uma pausa, esperar, deixar algo engendrar ainda no campo da in-
visibilidade e/ou do disforme pode, em seu tempo formativo e ambiente confiável
(Keleman e Favre), produzir momentos potentes de produção e expressão de si e de
mundos, seja em momentos e estados mais ou menos barulhentos, nas conversas e
nos silêncios.
285
Para “pessoas cultivadoras de quintais de diferenças”
Regina Favre
Contornos:
Contornos
287
T
erminar esta tese é uma tarefa bastante complexa, pois implica inquietações e afe-
tos que me acompanharam ao longo de todo o percurso de investigação.
A cada retomada, escolha de cena ou mesmo ao debruçar-me sobre as fotografias,
que registraram a intensidade de alguns instantes, foram mobilizados pensamentos e
imaginação. Ao mesmo tempo, habitava em mim uma sensação de ter tocado e me apro-
fundado em muitas questões. Por isso, a opção por encerrar a última série com um si-
lenciar cheio de barulhos, relacionados às idéias não capturadas ou delineadas pela
linguagem ou pelas problematizações que ressoam por entre as palavras e inspiram fu-
turos estudos e investigações.
Este encerramento é marcado pelo desejo de “ lançar ao mundo” estes escritos
para dialogar com estudantes e profissionais da T.O. e com todos que se interessam pe-
lo corpo, pelos procedimentos da clínica e, principalmente, pelas intervenções em âm-
bito coletivo.
Por tudo isso, decidi finalizar esta tese com a costura de alguns contornos do vas-
to território da clínica que desenvolvo, apontando algumas linhas que atravessaram to-
dos os procedimentos.
Ao longo desta finalização várias imagens me acompanharam. Dentre elas, a de
uma célula viva, pulsante, atravessada por cores, fluxos por todos os lados, produzindo
a idéia de um ambiente poroso, aberto, conectivo ao mundo, delimitado apenas por
uma membrana imperceptível.
Ao conceber as células em seu caráter pulsátil, podemos dizer que os procedi-
mentos e a clínica mostram um movimento vivo de contração e expansão (pulsos)
1
.
Pudemos acompanhar cenas de trabalhos individuais que se desdobraram em
propostas grupais, momentos de introspecção que deslizam por exercícios de aberturas
em relação ao outro eao grupo; procedimentos pautados pelo pequeno e mínimo ges-
to, resultando, às vezes, em pulos, saltos, pausas, corridas em diferentes velocidades e
1
KELEMAN, Stanley., op. cit. , p. 16.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
288
ritmos. Cenas que expressam nos corpos a idéia de um fluxo permanente de “ir em dire-
ção ao mundo e retornar”
2
, como condição inerente ao vivo.
A estratégia para realizar este último momento do estudo foi uma leitura atenta e
contínua de cada série de procedimentos.
3
É preciso dizer que ao amarrar algumas das linhas presentes nas séries de proce-
dimentos e, levando em consideração os diferentes sentidos produzidos em cada con-
texto, dada a diversidade e singularidade de cada momento, foram destacados alguns
verbos presentes em todo o trabalho.
Considero que podemos aproximar os conceitos de linhas metodológicas e os
verbos aqui assinalados para abordar aquilo que atravessa todas as séries, com maior
ou menor intensidade a partir das forças que se engendram em cada contexto clínico.
Convém assinalar ainda que os verbos que mais se sobressaíram neste estudo es-
tarão demarcados, nesta finalização, em itálico para favorecer a construção e o acompa-
nhamento de uma rede que se compõe de acordo com as articulações construídas pelo
leitor/pesquisador.
2
Ibid. p. 29.
3
Gostaria de destacar que a busca das vizinhanças e de sentidos nessa clínica
orientou a escritura desta tese e revelou que os exercícios, propostas
e experiências nada mais eram do que a expressão daquilo que me inquietava,
animava e pedia maior aprofundamento e elaboração.
Contornos
289
Mesmo assumindo a existência de nuances e de variações, é possível delimitar al-
guns territórios clínicos em seus aspectos singulares, no que diz respeito aos modos de
olhar, ler, acompanhar e tecer procedimentos a partir do vivido e tendo como tema cen-
tral os corpos.
Em um dos momentos de imersão para a escritura da tese, deparei com uma ce-
na de dois insetos que se aproximavam e se afastavam no ar, num jogo de vai e vem que,
ao mesmo tempo, se repetia e singularizava.
Após algum tempo, um terceiro inseto se incorporou à brincadeira, indo e vindo.
Um saiu (já não se sabe ao certoqual deles), restaram dois; depois de um tempo, nova saí-
da, permanecendo apenas um dos insetos, ziguezagueando pelo ar para depois desapa-
recer. Observo que tudo são encontros: a água que corre nas pedras, a planta que esbarra
no rio, a toalha que toca meu corpo, os movimentos das borboletas pelo ar, os pensamen-
tos que ora se juntam, ora escapam para um outro lugar.
Assim, posso dizer, que a clínica aqui proposta é afirmativa e está fundamental-
mente pautada pela potência dos encontros. Por isso, afirmar é um verbo que atraves-
sa a clínica quando faço referência à potência de cada participante e/ou grupo para
conhecer, inventar e principalmente potencializaros encontros.
Ao configurar as séries, observo que todos os procedimentos sugerem, de algum
modo e de formas diferentes, um aproximareafastarde corpos humanos ou não. Tocaro
outro, olhar de modos diversos, aproximar-se de um álbum de fotografias, fotografar,
permanecer em silêncio ao lado de alguém, dançar junto ou sozinho, experimentar o cor-
po no contato com o chão, mover-sepelo espaço, conversarou aproximar-se de si e do pró-
prio corpo em múltiplas cenas. Todos esses movimentos estão pautados pelo encontrar.
A idéia de cartografar os encontros entre corpos expressa a pluralidade e a origi-
nalidade de cada instante, desliza por aspectos objetivos e subjetivos, físicos e psíqui-
cos, materiais e imateriais.
Neste trabalho pretendi cartografar cenas a partir das quais se possa refletir so-
bre uma clínica em criação permanente, que oferece oportunidades para as aproxima-
ções, para se saber um pouco mais de si, abrir e ampliar repertórios e conectividades com
o mundo e para experimentar o que o corpo pode.
Construí, assim, uma “pequena” amostragem de acontecimentos que vivi e obser-
vei: um corpo que resvala no outro sem que aparentemente algo aconteça; um leve to-
que na ponta dos dedos que produz um momento de forte intensidade; um corpo que se
afasta e se retrai do contato; uma pessoa que se emociona na presença de outra e tan-
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
290
tos aspectos apresentados ao longo das séries.
Em nenhum momento das dinâmicas ressaltei a necessidade de “chegar lá”, num
lugar idealizado, pois este inexiste. E manter a ilusão de sua existência tende a impedir
o encontro.
Sempre que possível, assinalei que não interessavam grandes performances, sal-
tos ou “supercoreografias”. Entretanto, nas experiências com os grupos, muitas vezes re-
corri a uma “representação” de posturas que envolvia realizar “grandes lances” em meu
corpo, ao brincar de uma forma exagerada e patética com o “desejo de uma superperfor-
mance” corporal e/ou na vida, o que provocava o riso dos participantes.
Essa preocupação está relacionada ao fato de que meu interesse está no que é pe-
queno, mínimo, naquilo que quase não aparece: um gesto, uma troca de olhares, um
temeroso arriscar-se, uma certa hesitação antes que se possa inventar “algo”. Daí o no-
me “delicadas coreografias” para falar deste universo de refinadas expressões que po-
voam nossas ações, nossos encontros, nossos contatos com os mundos.
Segundo Deleuze, em As gargalhadas de Nietzsche, o filósofo dizia que sob os
grandes acontecimentos ruidosos há pequenos acontecimentos silenciosos, que são
como a formação de novos mundos: é a presença do poético sob o histórico.
4
Testemunhei, em muitos momentos, a poesia que pode emergir de um gesto qua-
se banal, que transforma o pequeno, ou “quase invisível”, em algo artístico e singular em
contraposição à adesão a um receituário qualquer de vida, pois tolhe, abafa, a possibi-
lidade de encontro (Aragon, 2005).
5
Assim, falar de procedimentos expressivos nada mais é do que tentar escapar de
protocolos e dos vários manuais ofertados a todo o momento, principalmente para aque-
les que estão implicados na clínica, para deixar claro que a expressão se dá contempo-
rânea ao acontecimento, formatada e desmanchada ao ritmo e pulsação das
experiências.
Muitos dos efeitos e das respostas aos procedimentos e encontros entre corpos
não estão presentes nas cenas, pois sua invisibilidade, como destaquei várias vezes
ao longo da tese, não nos permite acessá-los, mas é fundamental suportar o desconhe-
cido e aquilo que ainda não se formatou, não virou gesto, nem palavra, nem partituras
das existências
6
.
Seguindo a idéia de uma clínica das sutilezas, Favre tem como uma de suas frases
principais, a partir da perspectiva de Keleman, uma outra posição que também ecoa em mi-
nha clínica: less is more. Perspectiva minimalista que delineia olhares refinados, delicade-
4
As gargalhadas de Nietszche. Entrevista com Gilles Deleuze, realizada por Guy
Dumur, Le Nouvel Observateur, 5 de abril de 1967, pp. 40-41.
5
ARAGON, E.P. op. cit., p. 149.
6
Crio o conceito de partituras das existências, pois estamos tratando de corpos
que produzem coreografias que não são apenas composições na dimensão
espaço-tempo, mas sujeitos em suas relações com os mundos. As partituras
produzidas nos/pelos corpos são expressões de modos de funcionamento e de
existência.
Contornos
291
zas nos modos de acompanhar, interagir ou apenas seguir o curso dos acontecimentos.
Assim, pode-se pensar que os bons encontros (Espinosa) puderam vingar quan-
do a experiência teve lugar como algo assimilável, que permitiu romper automatismos,
trilhas habituais, ampliar repertórios de formas somático-existenciais, mesmo que não
pudessem ser nomeadas ou compartilhadas, como devires que operam em silêncio, tal
como nos diz Deleuze.
Essas e muitas outras problematizações, resultantes de minhas experiências co-
mo T.O., estiveram presentes em vários momentos do trabalho, como guias para reflexão
e criação de procedimentos diferentes daqueles que eu criticava e questionava dentro do
meu próprio campo de atuação, ainda que não estivessem claramente nomeadas.
Arejaros corpos, brincar,criardanças, aprofundaro contato com as sensações, to-
mar o corpo como um lugar de experimentação, de pesquisa e criação, constituem prin-
cípios para alinhavar e sugerir as propostas, criando aberturas
7
parao experimentar.
Ao reler as séries observei também um trabalho de compor e decompor o encon-
tro entre teorias, corpos e vivências e a exigência de repensar essas articulações para dar
conta daquilo que era impossível conter ou engendrar.
Em relação às teorias, minha opção foi manter alguns conceitos na tentativa de
alargarsuas fronteiras, noutros casos abandoná-los, ou ainda, inventar conceitos mais
próximos de minhas observações e vivências.
É importante dizer que, embora alguns conceitos tenham permanecido ativos e
atuantes em diferentes séries, não é possível padronizar essa trajetória, pois muitos de-
les fizeram apenas uma aparição e habitaram uma série em particular. Outros, no en-
tanto, foram retomados de outros modos, com outras flagrâncias a cada nova entrada de
participantes e bailados/encontros coreográficos.
Perturbar,estranhar,provocartambém foram verbos que atravessaram toda a clí-
nica e a escritura da tese, por meio de perguntas que interferiam e pautavam algumas pro-
posições ou tornavam os participantes mais sensíveis em seus modos de funcionamento
e possibilidades de deslocamentos.
Essas turbulências foram potentes em muitas situações, pois criavam um descom-
passo entre o estabelecido e o devir, entre as propostas, os receios e dificuldades de fazer
de outro jeito e toda uma série de repercussões quando entramos no terreno da invenção.
Uma clínica, a meu ver, sempre é portadora de alguma esquisitice ou estranhamen-
to, pois vai na contramão de forças que impõem e determinam modos predominantes de
subjetivação e/ou enquadramentos e adequações sociais.
7
A expressão aberturas dos corpos remete à idéia da porosidade às afetações
de modo a assimilar as experiências, conforme dissemos em outros momentos
deste trabalho.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
292
Foram muitos os momentos em que os participantes diziam sentir-se estranhos
quando assumiam novos “hábitos”, como tomar banho cantando, conversar ou sentir
o gosto de uma comida de olhos fechados, lavar roupas dançando ou escovar os den-
tes movimentando o corpo todo. Alguns comentaram o estranhamento provocado em
seus familiares e/ou pessoas de sua convivência – no grupo de mulheres do Bairro dos
Morros foram relatadas situações em que participantes dos grupos foram consideradas
como “loucas”.
No entanto, mais do que essas mudanças nos modos de realizar algumas ativida-
des, o que estava em questão era a possibilidade de experimentar outras sensações e cri-
ar variações nos modos de funcionar, de estar no mundo.
Essas sensações se explicitavam principalmente quando rompiam o esquema de
“viver no automático” ou distante do próprio corpo mesmo que a aproximação não fos-
se prazerosa ou alegre. O que estava em jogo era a possibilidade de acompanhar os pró-
prios processos e deixar-se afetar pelas relações com outras pessoas e com os
ambientes, humanos ou não.
Assim, um aspecto que acompanhou todas as proposições foi o sensibilizar os
participantes a viverem e perceberem que pelos/nos corpos adentrávamos em uma pes-
quisa delicada e, às vezes, muito intensa de processos de subjetivação.
Através dos corpos podia-se saber mais sobre modos de tocar, olhar o mundo,
aproximar-se de outras pessoas, sentir os efeitos dos contatos, acessar camadas de me-
mórias que provocavam excitação, intensidades, entrar em territórios que eram a ex-
pressão de processos de subjetivação, sempre dinâmica, viva e pulsante.
Muitas problematizações que emergiam nesses trabalhos tornavam-se surpreen-
dentes à medida que os participantes percebiam como negligenciavam alguns aspectos
sobre si mesmos e, principalmente, quando se davam conta da potência de uma aproxi-
mação com o próprio corpo no encontro com outros corpos.
Experimentar outros modos, aumentar repertórios vividos e assimilados pelo
corpo, permitindo enfrentamentos diversos em relação às problemáticas enfrentadas
cotidianamente ou imersões em territórios subjetivos, em diferentes graus de envol-
vimento e intensidade, foram movimentos presentes nas mais diversas situações e
contextos clínicos.
Assim, podemos dizer que surpreenderfoi outro verbo presente, tanto na realiza-
ção das propostas e sugestões das vivências, quanto nos insights que aconteceram em
muitos momentos do trabalho, efetuando nos corpos outras sensibilidades, outras pos-
Contornos
293
sibilidades de leitura dos acontecimentos, outros modos de relação com o entorno.
Podemos abordar, então, a questão do deslocar próxima ainda ao estranhar,per-
turbar,diferenciaratravés de um certo deslocamento nos modos de olhar, tocar, se apro-
ximar, afastar, passar de uma conversa esvaziada de sentido para um lugar de afetação
coletiva; enfim, transitar por diferentes territórios e pausar para aprofundar, viver ou dei-
xar-se afetar por algum aspecto que parece importante assinalar.
Todos os procedimentos relatados e discutidos em um momento ou outro também
tocaram neste plano, pois os encontros que se engendravam na clínica tinham a ver com
os efeitos produzidos nas afetações entre corpos, nos contatos entre alteridades, seja pe-
lo toque, pelo olhar, pelo contato corporal propriamente dito, pelo criar algo junto, pelas
danças de palavras, pelos momentos grupais de compartilhamento.
Intensidades rodopiaram em todos os sentidos e direções em graus de intensida-
des singulares em cada procedimento, grupo, contexto, instante.
Como sou afetado pelas imagens? Como sou afetado pelo toque corporal? Como seu olhar
afeta o meu? Como os ambientes me afetam? Como eu afeto o outro? E assim por diante,
numa conversa também pautada pela ética que se orienta por aquilo que produz afetação.
Não basta apenas pensarmos na dimensão espaço-temporal, na fisicalidade dos
corpos e dos ambientes.
Assim, nas coreografias, nas propostas, nas reflexões eram os ossos, os músculos,
as vísceras, peles, pensamentos, imaginações, palavras que secretavam dos corpos, sus-
tentando a cada momento o conceito/experiência de um corpo complexo, aberto, multi-
mídia (Keleman e Favre)
8
. Uma anatomia afetiva, afetos que têm anatomias, uma
arquitetura tissular com suas bordas móveis (Louppe)
9
e flutuações de fronteiras.
Assim, podemos dizer que a clínica também é atravessada pela idéia paradoxal
que se compõe de um corpo orgânico, com a capacidade de excitar, de viver intensidades
variadas, de criar corpo a cada afetação (corpos intensidades).
Ao observar as séries, é possível entrar em contato com diferentes corpos que fa-
zem aparições de acordo com aquilo que se vive: corpos rígidos que se soltam, regiões
que se endurecem quando uma proposta não pode ser assimilada; movimentações inu-
sitadas de participantes que estavam parados e silenciosos, corpos que se fecham em
determinado encontro e todas as tonalidades e gradações de contato e intensidade que
povoam este trabalho.
8
Referência a várias idéias e conceitos abordados por Keleman e Favre no livro
Anatomia Emocional (op. cit.) e nos escritos realizados a partir de vivências e
reflexões nos seminários do Laboratório de Processos Formativos coordenados
por Regina Favre. Corpar: “Capacidade de estar no mundo é um ato corporal.
Para entender uma pessoa é preciso saber como ela está presente, como ela
perpetua o estar presente e como ela antecipa um futuro” (Keleman em
Workshop, 2001).
9
LOUPPE, Laurence. Lygia Clark não para de atravessar nossos corpos. Catálogo
da exposição Lygia Clark: da obra ao acontecimento. Somos o molde a você cabe
o sopro. Curadoria de Suely Rolnik e Corinne Diserens, org. pelo Musée de Beaux
– Arts de Nantes, França (08 de Outubro a 31 de Dezembro de 2005) e Pinacoteca
do Estado de São Paulo, Brasil (25 de Janeiro a 26 de Março de 2006).
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
294
Nos diferentes contextos encontramos todo tipo de corpo e, baseada em Kele-
man, posso dizer que há vários corpos num mesmo corpo, efeito das marcas que o cons-
truíram e que são acessadas ou inventadas a cada contato/vínculo/afetação.
Também são inumeráveis os lugares do corpo que fizeram as suas aparições, ora
escondidos ora exibidos (Louppe)
10
: um braço que sobe, uma perna que dobra, uma bo-
ca que sorri, um quadril que rebola, uma mão que se aproxima de outra expressando
um tipo de conversa de que aquele corpo/sujeito é capaz, a intenção de um gesto, olhos
marejados, um esboço de contato, uma palavra dita em meio a uma gagueira.
Acompanhei vários momentos em que um participante do grupo sente um vigor
ou uma porosidade para se abrir a novas problematizações sobre si e suas relações. Es-
cutei diversos comentários sobre a possibilidade de atentar a algum aspecto antes não
(re) conhecido ou sobre as mudanças sentidas nas leituras sobre os corpos, sobre o fa-
zer, sobre os pensamentos e sonhos que se engendravam ao longo do trabalho, sobre as
ressonâncias provocadas por aqueles encontros ou, no mínimo, as mudanças na quali-
dade de presença em um determinado instante do trabalho.
10
LOUPPE, Laurence. op. cit.,p. 36.
Contornos
295
Nesses momentos, as atmosferas sofrem um tipo de mutação desorganizadora e
dão ensejo a acontecimentos não lineares que emergem de outras realidades e misturam
tonalidades de passados, de presentes e de devires.
Para falar desses breves e fugazes acontecimentos, a tentativa foi, no trânsito en-
tre cenas de um contexto a outro, explicitar as pulsações que transitam em todos os con-
textos por trajetórias individuais e coletivas. Estar junto, mas voltado para si; conectado
com o próprio corpo e em contato com outros corpos; fazer uma proposição em parceria
ou procurar esquecer os limites físicos do corpo na criação de uma dança coletiva, sem
preocupação de esmiuçar ou reportar histórias ou um “caso” individual, tampouco par-
ticularizar determinada experiência.
Posso dizer ainda que as circulações que acontecem correspondem a uma mis-
tura de expressão de singularidades em meio a um espaço coletivo, seja em momen-
tos mais solitários de pesquisa, seja em um contexto grupal que envolve um número
maior de participantes.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
296
Contornos
297
Para Favre, as diferentes configurações e sentidos dão a impressão de que se es-
tá diante de um corpo de baile, que ora atua em solos ora em grupos maiores e menores,
criando diferentes desenhos.
Na vizinhança dessas configurações presentes nos procedimentos, a idéia de
espaços mais individuais e outros em que o coletivo tem destaque, ora no compartilhar
ora nas proposições em grupos, se assinala o verbo coletivizar como uma referência
presente mesmo em momentos de pesquisas mais intimistas.
No entanto, como a palavra sofreu um desgaste intenso nos últimos anos, cabe
ressaltar que o coletivo não se inscreve como um agrupamento ou um amontoado de cor-
pos mas, como diz Louppe
11
, implica um ajuntamento de indivíduos propondo-se a par-
tilhar uma experiência comum. A autora diz ainda que este coletivo não é um conceito
neutro, que trataria daquilo que chamou de um batalhão de zumbis privados de intenções
ou de projetos. Mas, ao contrário, funciona como justaposição de diferentes corpos/al-
teridades em proximidade de afetações que produzem outros corpos nos encontros.
Referindo-se aos ateliês de Lygia Clark, Louppe coloca que neles “o indivíduo integra
seu corpo ao corpo grupal com a sensação de partilhar uma pele comum”, o que permi-
te o estabelecimento de verdadeiros laços, um encordoamento dos corpos.”
12
A clínica aqui proposta possibilita captar também momentos de intensificação
desse corpo grupal, no qual as autorias individuais dão ensejo a uma assinatura coleti-
va, tal como acontece nos caleidoscópios de esculturas vivas, nos exercícios de compo-
sições coreográficas, nas danças circulares, nas vivências de trocas de lugar, nos
exercícios de inspirar-se nos outros para construir um bailado, efeito e resultado de vá-
rios elementos, dentre eles, os corpos, os passos e os modos de funcionar de cada par-
ticipante e/ou grupo.
Ainda de acordo com Louppe, o
corpo coletivo ajuda a restabelecer a confiança no outro, a pacificar, a amenizar as feridas
narcísicas, a dar coragem e, através disso, a intensificar a presença de cada um no mundo,
a reatar diálogos. Pois o corpo coletivo é eloqüente: sua palavra singular emana de um es-
tado de corpo em proximidade com a pele do outro.
13
Tais estados mutantes de formas e afetos se desdobram na idéia de alterarfron-
teiras, dissolver, (re) configurar formas e modos presentes em vários procedimentos uti-
lizados nesta clínica.
Aliados a esses aspectos, os procedimentos em duos e/ou coletivos colocam em
confronto corpos muito diversos que, no encontro, se fazem e se percebem não mais
11
Ibid., p. 39.
12
Ibid., p. 35.
13
Idem, ibid.
Delicadas coreografias: instantâneos de uma terapia ocupacional
298
como de um ou do outro, mas como um terceiro resultado daquela composição.
Tudo sem estardalhaço, na intimidade que aproxima corpos, subjetividades e al-
teridades numa linha tênue, arriscada e potente de contatos.
As fronteiras dos corpos se misturam às fronteiras dos modos de funciona-
mento, criam frestas, arejamentos ou, ao contrário, enrijecimentos, repulsas, afasta-
mentos.
Em todas as cenas as fronteiras flutuam, pois não há como fugir das afetações e
do permanente desmanchare construir formas.
Os jogos entre corpos, afetos, deslocamentos e experimentações variadas po-
demos retomar ainda os conceitos/verbos pulsar,expandir e contrair.
Nesses verbos, os ritmos estão presentes em todas as suas modalidades, mas
principalmente evocam o lentificarde um gesto, de uma coreografia, de uma proposição
(trabalhando sempre em graus de experimentações). A partir de algumas lentificações,
é possível acessar camadas dos acontecimentos que provocam afetações, identifica-
ções e sensações que a pressa muitas vezes não permite.
Trata-se de uma clínica que pulsa em seus procedimentos expressivos, nos corpos,
nas cenas ora mais ora menos longas, momentos mais ou menos acelerados, regiões com
pulsos diversos, momentos de lentificação voluntária, outros de descontrole.
Nas orientações e nos cuidados, ao oferecer modos de trabalhar, investigar e pes-
quisar os encontros, observo uma preocupação constante com o lugar do terapeuta co-
mo alguém que atua com um olhar referendado por modos de observar, coordenar,
participar eacompanharos processos de cada participante e do grupo para instaurar e
exercitar sua capacidade de conectar-se. Também aí se inscreve um olhar atento aos
tempos, às dosagens e intensidades produzidas pelas propostas.
O desafio de conectaresteve sempre presente seja na relação com outros corpos,
com e nos ambientes, num abrir e fechar de olhos, nas trajetórias pelo espaço, no roçar
de corpos em paredes, chão, ou outro corpo.
Atrelado à idéia de afetar e ser afetado pelos mundos, o conectarapresentou-se
permanentemente nas intervenções uma vez que as ligações, desligamentos, compo-
sições, decomposições eram configurações/estados em pauta a todo o momento,
tanto na relação do sujeito com seus corpos, como nas interações com os mundos. Po-
demos dizer ainda que a questão vincular, emocional, permeou cada procedimento
proposto nas vivências corporais bem como as conversas e compartilhamentos realiza-
dos ao longo dos processos.
Contornos
299
14
Referência aos estudos sobre bebês realizados por Stern.
15
Referência à presença de conceitos ligados à criança em vários textos.
Podemos destacar particularmente: ARAGON, L. E. P. Crian-ça: ensaio sobre a
subjetivação. Boletim Formação em Psicanálise. Instituto Sedes Sapientiae, São
Paulo v. 9, n. 2, jul/dez 2000; KATZ, S. Crianceria. Cadernos de subjetividade.
Dossiê: Gilles Deleuze. Núcleo de Estudos da Subjetividade do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, São Paulo, v. 1, n. 1.
16
Referência à idéia de corpar, proposta por Keleman (op. cit.), e às vivências e
reflexões realizadas nos seminários dos Laboratórios de Processos Formativos
coordenados por Regina Favre. A importância está em pensar o vivo como
processo encarnado, como sujeito somático (Favre em um dos seminários),
como acontecimento que tem uma anatomia emocional, vincular, somática.
Assim, cuidar é um outro traço fundamental que atravessou todo o trabalho,
incorporando muitas vezes deslizes, descompassos e desconhecimento acerca de co-
mo prosseguir ou saber exatamente quais os desdobramentos e expressões dos pro-
cessos. Em muitos momentos da clínica experimentei a sensação de ser atravessada
por fluxos brincalhões quando sugeria algumas propostas: brincadeiras com o ridí-
culo, gradações de risos, gargalhadas ou discretos sorrisos, choros, lágrimas discre-
tas ou não, fazendo emergir as mais variadas emoções quando os participantes eram
tocados por palavras, lembranças e conexões que acontecem ao longo das vivências.
Em meio a vários acontecimentos observo que nas oficinas é possível rir, brincar,
e inventar. Por isso, os modos bebê (Stern)
14
edevir-criança
15
foram evocados em várias
dinâmicas para sugerir a idéia de pesquisar, investigareexplorarpresentes nas diferen-
tes séries de procedimentos.
Ao focalizar a atenção nesses aspectos, posso dizer que acontecimentos engra-
çados foram freqüentes tanto quanto momentos de conteúdos de difícil absorção.
Muitas vezes observei que apenas fazer parte de uma experimentação causava
uma vibração – leve, forte, contínua ou fugaz, não importa. Mexer com o corpo, tocá-lo,
conversar de vários jeitos eram acontecimentos que criavam sentidos e, portanto, pro-
duziam vida.
No território corporal, como vimos, ficam muitas vezes transparentes as dificulda-
des para a expressão dos afetos, dos fluxos de desejo corporificados pelos atos, pelofa-
zer, pensar, mover, pausar, conversar e silenciar, entre tantos outros modos de se
presentificar nos mundos, conforme delineado ao longo deste trabalho.
É possível dizer, então, que nesta clínica encarnada, corpar (Keleman)
16
ésinôni-
mo de fazer-se presente nos encontros frente à alteridade que se constrói a partir da pro-
dução das diferenças e daquilo que nos une: a vontade do encontro, de talvez dançar
junto, do desejo de criação.
Assim, para encerrar, me remeto a uma cena mencionada no início deste capítulo:
ao final do percurso,
“...quando olho novamente para o lado, os três insetos se juntam novamente
e o bailado continua....”
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