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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA TRADUÇÃO
GERSON CARVALHO
A OBRA POÉTICA DE ANTONIO PORTA.
ANÁLISES DE POEMAS E TRADUÇÕES COMENTADAS
FLORIANÓPOLIS
2007
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GERSON CARVALHO
A OBRA POÉTICA DE ANTONIO PORTA.
ANÁLISES DE POEMAS E TRADUÇÕES COMENTADAS
Dissertação apresentada como requisito parcial à
obtenção do grau de Mestre no Programa de Pós-
Graduação em Estudos da Tradução, Centro de
Comunicação e Expressão, Universidade Federal de
Santa Catarina.
Orientadora: Profa. Dra. Andréia Guerini
FLORIANÓPOLIS
2007
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À minha companheira Alice, pelo apoio e pela paciência.
A Marcos Traple, que tem me ensinado a compreender o
que as palavras não são capazes de dizer.
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Professora Doutora Andréia Guerini, por ter aceitado generosamente o projeto
desta dissertação, pela orientação serena e competente, e pelo incentivo.
Ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução, aos seus professores e à sua equipe
técnica, pela oportunidade.
Aos meus colegas da Área de Italiano da Universidade Federal do Paraná, Professores Fabiano Dalla
Bona, Lucia Sgobaro Zanette, Luiz Ernani Fritoli e Raffaella Caira, pelo apoio.
Ao Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal do Paraná, na gestão das
Professoras Sandra Lopes Monteiro (Chefe) e Lucia Sgobaro Zanette (Vice-Chefe), por ter me
concedido o afastamento funcional que me permitiu realizar esta dissertação.
Mas fazer uma experiência com a linguagem é algo bem distinto de
se adquirir conhecimentos sobre a linguagem. Esses conhecimentos nos são
proporcionados e promovidos infinitamente pela ciência da linguagem, pela
lingüística e pela filologia das diferentes línguas e linguagens, pela psicologia
e pela filosofia da linguagem. Atualmente, o alvo cada vez mais mirado pela
investigação científica e filosófica das línguas é a produção do que se chama
de “metalinguagem”. Tomando como ponto de partida a produção dessa
supralinguagem, a filosofia científica compreende-se conseqüentemente
como metalingüística. Isso soa como metafísica. Na verdade, não apenas
soa como é metafísica. Metalingüística é a metafísica da contínua
tecnicização de todas as línguas, com vistas a torná-las um mero instrumento
de informação capaz de funcionar interplanetariamente, ou seja, globalmente.
Metalinguagem e esputinique, metalingüística e técnica de foguetes são o
mesmo.
Dizer isso não significa porém desvalorizar a pesquisa científica e
filosófica das línguas e da linguagem. Essa pesquisa tem todo o seu direito e
valor. A seu modo, ela está sempre ensinando coisas muito úteis. No entanto,
uma coisa são os conhecimentos científicos e filosóficos sobre a linguagem e
outra é a experiência que fazemos com a linguagem.
Martin Heidegger
(HEIDEGGER, Martin. “A essência da linguagem” (1957-1958). In: ______. A
caminho da linguagem. 2a. ed. Tradução de Marcia Cavalcante Schubak.
Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco,
2003, p. 122.)
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo principal apresentar traduções comentadas de poemas
selecionados dentre a obra do poeta italiano Antonio Porta (1935-1989). Como preparação do trabalho
prático de tradução, faz-se uma apresentação da obra poética do autor, acompanhada de comentários
críticos, com ênfase especial aos aspectos lingüísticos e estilísticos. Discutem-se também aspectos
teóricos da tradução em geral e da tradução de poesia. Neste campo, dá-se atenção especial ao tema
da “impossibilidade da tradução”, de que se apresenta uma breve digressão histórica, ao conceito de
equivalência em geral e no que tange à tradução de poesia, e também à tradução como interpretação.
A partir da fundamentação teórica mencionada, são apresentadas análises, de cunho
preponderantemente lingüístico e estilístico, de poemas selecionados dentre a obra de Antonio Porta,
acompanhadas de traduções comentadas.
Palavras-chave: tradução comentada; análise literária; poesia italiana.
RIASSUNTO
L’obbiettivo principale di questa tesi è di presentare traduzioni commentate di poemi selezionati
dall’opera poetica del poeta italiano Antonio Porta (1935-1989). Come preparazione del lavoro pratico di
traduzione viene fatto uno studio dell’opera poetica dell’autore accompagnato da commenti critici in cui
si particolare enfasi agli aspetti linguistici e stilistici. Inoltre vengono discussi aspetti teorici della
traduzione in generale e della traduzione di poesia. In questo campo l’attenzione ricade in modo
speciale sul tema dell’<<impossibilità della traduzione>>, di cui si fa una breve digressione storica, sul
concetto di equivalenza in generale e riferito particolarmente alla traduzione della poesia e anche sulla
traduzione come interpretazione. A partire dai fondamenti teorici menzionati vengono presentate analisi
di natura fondamentalmente linguistica e stilistica dei poemi selezionati accompagnate da traduzioni
commentate.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 9
CAPÍTULO 1 – A OBRA POÉTICA DE ANTONIO PORTA 15
CAPÍTULO 2 – A TRADUÇÃO DE POESIA 47
CAPÍTULO 3 – ANÁLISE E TRADUÇÃO COMENTADA DE POEMAS DE ANTONIO PORTA 65
I. POEMA VEGETALI, ANIMALI 66
II. SÉRIE CONTEMPLAZIONI 78
III. POEMA IN RE 91
IV. POEMA I DA SÉRIE SONETTO 103
V. POEMA X DA SÉRIE PASSEGGERO 108
VI. POEMA DO LIVRO PASSI PASSAGGI 111
CONSIDERAÇÕES FINAIS 118
BIBLIOGRAFIA 122
ANEXO – SELEÇÃO DE POEMAS DE ANTONIO PORTA (ORIGINAIS EM ITALIANO E
TRADUÇÕES PARA O PORTUGUÊS) 126
9
INTRODUÇÃO
O primeiro contato que tivemos com a obra do poeta e escritor italiano Antonio Porta se deu
por ocasião de um curso de graduação sobre poesia italiana do século XX ministrado alguns anos
atrás. Até então não havíamos lido nenhum poema ou texto do autor, nem nos lembrávamos de ter lido
o seu nome em algum manual de história da literatura italiana. No momento da organização do material
e da seleção dos textos e autores que seriam abordados no curso, lemos pela primeira vez, na
antologia intitulada Viaggio nel ’900, organizada pela crítica literária Maria Corti,
1
o seguinte poema:
c’è un pezzo di legno che brucia in forma di lupo
più brucia più il lupo danza nel suo centro,
è una luce che può ferire, difenditi, mi dico:
innalzare uno specchio sul prato dalla parte opposta
e guardarci dentro il lupo accecante
poi tentare di abbracciarlo, decidere di bruciare
dietro lo specchio scopro un occhio di lago
apre le labbra nere e dice: blu
come un bambino quando fa: da da da
blu l'unica parola di una canzone senza parole
un lamento di musica a bocca chiusa
una domanda, forse, un’invocazione, o niente
teatro muto, una busta chiusa
lacerata, continua a richiudersi perfetta
Logo de início, o poema nos surpreendeu pela elegância da forma e pelo seu conteúdo algo
surrealista e um tanto enigmático. Tratava-se de um texto, no mínimo, intrigante. Chamavam
especialmente a atenção as imagens que se encadeavam e se transformavam naturalmente, como se
seguissem mesmo a lógica particular do sonho, que, sabe-se, não acompanha a lógica mais linear da
vigília e mistura coisas e seres em contextos imaginários que, em princípio, a razão não permite: o
pedaço de pau que queima em forma de lobo, o lobo que dança no centro da chama, o espelho no
campo que devolve a imagem do lobo, o lobo que o poeta nos convida a abraçar. E a segunda estrofe
continuava de forma bonita com a apresentação de nova cadeia de imagens aparentemente
desconexas, ou conexas a partir de uma outra necessidade de coerência, talvez mesmo a do mundo
onírico ou por que não? da poesia considerada como uma espécie de sonho: o espelho, o olho do
lago, o lago que tem lábios e entoa uma palavra, palavra de uma canção que lembra o balbucio de uma
criança, um lamento em forma de sica ou uma pergunta que (sem resposta?) se fecha como um
envelope.
1
BERSANI, Mauro; BRASCHI, Maria; CORTI, Maria (a cura di). Viaggio nel ’900: come leggere i testi della letteratura
contemporanea. Milano: Mondadori, 1984, p. 1034-1042.
10
Dessa primeira leitura ainda superficial, ficava a forte impressão de que um poema como esse
não podia ser apenas lido ou interpretado, mas decifrado. Como depois pudemos confirmar, a
impressão tinha razão de ser: a poesia, sob rios aspectos, difícil de Antonio Porta parece realmente
exigir do leitor uma certa vontade de decifração, num sentido bem preciso que esperamos deixar claro
ao longo desta dissertação. Só bem mais tarde viemos a saber que o poema em questão fazia parte do
livro L’aria della fine (1982), sob o número 62,
2
e se tratava de um dos poemas-cartas típicos da obra
poética da maturidade do autor, e que o adjetivo surrealista, pelo menos no sentido mais corriqueiro
que se dá ao termo, não podia ser aplicado sem reservas ao tipo de poesia que ele tinha feito e
fazia.
Foi dessa maneira que nasceu a vontade de conhecer mais a obra do poeta e, um pouco mais
tarde, de traduzir alguns poemas. Começamos a ler, então, os dois livros principais que acabaram por
nortear, do começo ao fim, a elaboração desta dissertação. Um, de crítica, pelo que sabemos a
primeira apresentação panorâmica da obra poética, narrativa e teatral de Porta, de autoria do crítico e
professor de literatura Mario Moroni Essere e fare: l’itinerario poetico di Antonio Porta.
3
O outro, uma
antologia de poemas do autor Poesie: 1956-1988, organizada pela crítica e professora de literatura
italiana contemporânea da Universidade de Bolonha, Niva Lorenzini.
4
Hoje, Lorenzini, ao lado de
Moroni e do professor e crítico literário ítalo-canadense John Picchione, que também escreveu um livro
de apresentação sobre a poesia de Porta,
5
são os principais estudiosos e divulgadores da obra do
poeta na Itália e fora dela.
À medida que líamos os poemas que apareciam na antologia, dávamo-nos conta de que
estávamos diante não de uma obra difícil, mas, no sentido menos banal que a palavra possa ter,
muito interessante. A tradução nos pareceu, então, um exercício útil de leitura mais profunda e de
interpretação, um meio de entrar na selva oscura do experimentalismo poético de um autor que depois
descobrimos ser uma figura importante da poesia italiana a partir dos anos sessenta. Ao longo das
nossas leituras, foi uma surpresa também perceber que, exceto nos escritos dos três críticos
mencionados, a obra de Antonio Porta merecia uma atenção muito pequena, em alguns casos o
mais que duas ou três linhas, nos manuais de história da literatura italiana que pudemos consultar, e
mesmo numa ou noutra obra especializada de crítica literária, em que era mais citado do que realmente
estudado. O tratamento crítico mais completo que o autor recebeu aparece, por exemplo, na Storia
della letteratura italiana, em dez volumes, organizada pelo professor e crítico literário Enrico Malato, em
2
PORTA, Antonio. L’aria della fine: brevi lettere 1976, 1978, 1980, 1981. Genova: Edizioni San Marco dei Giustiniani, 2004,
p. 90.
3
MORONI, Mario. Essere e fare: l’itinerario poetico di Antonio Porta. Rimini: Luisè, 1991.
4
PORTA, Antonio. Poesie: 1956-1988. A cura di Niva Lorenzini. Milano: Mondadori, 1998.
5
PICCHIONE, John. Introduzione a A. Porta. Roma; Bari: Laterza, 1995.
11
que lhe são dedicadas não mais que duas páginas e meia.
6
Certamente uma grande quantidade de textos críticos, de comentários e de referências à
obra do poeta esparsos numa infinidade de artigos de revistas e jornais de crítica literária e cultural, na
maior parte, textos de ocasião que se referiam a um livro recém-publicado ou a algum evento literário
de que Antonio Porta era participante. Neste aspecto, é enorme o valor do levantamento bibliográfico
sobre o autor apresentado primeiro na obra de Moroni, que é de 1991, e alguns anos mais tarde
(1995), também na obra de Picchione. Apesar da existência dessas bibliografias, um problema que
enfrentamos na redação desta dissertação foi a falta ou a dificuldade de acesso a esse material crítico.
Por isso, pudemos contar praticamente com as citações e comentários que aqueles três estudiosos
fizeram desse rico material. O mesmo vale para a imensa produção crítica do próprio Porta sobre
estética, literatura, poesia e artigos de auto-reflexão literária.
As facilidades da internet também não ajudaram muito. Com raríssimas exceções, apesar da
profusão de informação que é possível encontrar, a maior parte do material de leitura de que pudemos
dispor por esse meio não acrescentava nada de mais significativo que os livros de que dispúnhamos
não tivessem dito de alguma forma. Pelo menos por enquanto, isso parece ser típico da rede
eletrônica, isto é, o predomínio absoluto da quantidade de informação em detrimento da sua qualidade
ou novidade.
Tais dificuldades, que em princípio poderiam se constituir numa desvantagem, levaram-nos a
optar por um tipo de trabalho mais pessoal que colocasse em primeiro plano uma leitura intensiva dos
poemas, registrada através de análises, cujos resultados pudessem ser cotejados depois com o que
diziam Moroni, Lorenzini ou Picchione a respeito, e também a tradução de um conjunto de textos que
fôssemos selecionando.
Com esses objetivos em vista, dividimos esta dissertação em três capítulos. O Capítulo 1 é
dedicado à apresentação da obra de Antonio Porta. Como ele não foi poeta, mas também
romancista, dramaturgo e ensaísta, restringimo-nos a discorrer tão-somente sobre a sua poesia. No
máximo, comentamos de passagem, para não romper com a linha cronológica das obras que informa a
exposição, os textos de ficção, no gênero do romance e do teatro. No panorama sucinto que
apresentamos, ao tratar das características da obra como um todo e das rias fases da trajetória
poética do autor, vamos exemplificando por meio de poemas concretos, reproduzidos na íntegra com o
intuito de colocar o eventual leitor desta dissertação em contato direto com os textos e não apenas com
comentários sobre eles. A seleção em parte foi ditada pelo gosto pessoal, ainda que tenhamos tentado
escolher poemas que também fossem exemplares em termos temáticos e formais de cada fase ou
momento de que se está tratando ao longo do capítulo. É importante advertir que não pretendemos dar
6
MALATO, Enrico (a cura di). Storia della letteratura italiana. Volume IX (Il Novecento). Roma: Salerno, 2000, p. 1219-1222.
12
um tratamento completo e repleto de referências sobre a trajetória poética do autor; ao contrário,
atemo-nos às diretrizes estéticas fundamentais, particularmente aquelas que julgamos ser as mais
relevantes para o trabalho de análise dos textos e, sobretudo, o de sua tradução. A nossa escolha é,
portanto, bastante seletiva.
O Capítulo 2 é dedicado à discussão sobre tradução e, de modo especial, sobre tradução de
poesia. Tem, então, um valor especial como fundamentação teórica e preparação do capítulo seguinte,
o terceiro, em que são apresentadas as análises e as traduções comentadas de poemas de Antonio
Porta. Assim como aconteceu com o capítulo de apresentação da obra do poeta, também nesse as
nossas escolhas foram fortemente seletivas. Atualmente, o número de publicações, livros e artigos
sobre tradução é imenso e não pára de crescer, o que mostra que este campo de estudos está
conquistando paulatinamente a sua cidadania no meio acadêmico, inclusive no Brasil. o tentamos
nem pretendemos dar conta da grandeza e da complexidade das discussões que se travaram e
estão se travando sobre o assunto, que esta dissertação não se caracteriza como um apanhado
preponderantemente teórico. Ao contrário, elegemos deliberadamente apenas aqueles conceitos e
questões sobre tradução em geral e tradução de poesia que consideramos imprescindíveis para o
tradutor, questões e conceitos esses que, além de serem válidos do ponto de vista prático, auxiliem
também na tomada de consciência e de posição de quem traduz sobre como se pode ou se quer
traduzir, ou seja, na assunção de um ponto de vista teórico. Evidentemente que as nossas escolhas,
por mais objetivas que pretendam ser, se devem também a inclinações e preferências pessoais e à
nossa própria experiência.
Dentre os conceitos que julgamos importantes para o tradutor e que foram abordados no
Capítulo 2, destaca-se o de ‘equivalência lingüística’, conceito com que todo tradutor, esteja consciente
disso ou não, tem de necessariamente lidar quando traduz e que aparece também de maneira explícita
ou implícita em toda e qualquer discussão teórica sobre tradução, seja qual for a matriz filosófica,
científica ou lingüística a que se filie. É por isso, então, que fazemos uma pequena digressão histórica,
ainda que bastante sucinta, sobre a tese do determinismo e do relativismo lingüístico, que justamente
obrigou a rever e a relativizar o conceito de equivalência. Hoje, muitos dos textos teóricos sobre
tradução, inclusive aqueles mais filosoficamente sofisticados, colhem os frutos de um longo processo
de relativização e revisão de vários conceitos lingüísticos tradicionais. Tal processo teve o seu o
nascimento, por assim dizer, na constituição do campo de estudos da gramática histórico-comparativa
ao final do século XVIII e depois vai ser desenvolvido e corroborado pela antropologia lingüística do
início do século XX, ou seja, já tem uma história de mais de duzentos anos.
Na discussão sobre tradução, o conceito de ‘transposição criativa’, uma contribuição
fundamental do lingüista russo Roman Jakobson, e o conceito afim de ‘paramorfia’, como enunciado,
13
por exemplo, pelo poeta, ensaísta e tradutor brasileiro José Paulo Paes, são derivações necessárias e
conseqüentes das abordagens lingüísticas relativistas, e estão na origem, por exemplo, da maior parte
das discussões que se fazem sobre tradução entre nós, especialmente daquelas produzidas por
Haroldo e Augusto de Campos, que, não por acaso, partiram de uma segura matriz lingüística
jakobsoniana. Além dos aspectos propriamente lingüísticos, procuramos enriquecer a discussão a partir
de conceitos extraídos da semiótica e da pragmática, que vão reforçar não só a relatividade do conceito
de equivalência, como vão permitir também ampliar a visão da tradução, especificamente a tradução de
poesia, para além das abordagens estritamente lingüístico-estruturais.
No Capítulo 2, será apresentada também, de maneira esquemática, qual o tipo de abordagem
textual utilizada para realizar as análises e as traduções dos poemas escolhidos dentre a obra de
Porta. A orientação adotada é preponderantemente lingüístico-estilística, isto é, o trabalho com os
textos tenta se valer das contribuições da lingüística nos seus vários ramos (fonética, fonologia,
gramática, semântica, pragmática, lingüística textual, sociolingüística) e da estilística lingüística e
literária. Assim, os variados tratamentos que o texto literário, particularmente o de poesia, pode receber
entram aqui na medida em que corresponderem às exigências particulares que a análise e a
tradução concreta de um determinado texto suscitem. Como resultado disso, a abordagem que
escolhemos tem uma feição mais, digamos, formalista, e estamos plenamente consciente das suas
limitações e de que, obviamente, não é a única possível. Cremos, contudo, que o tratamento proposto,
além de corresponder a preferências pessoais, combina muito bem com o trabalho de qualquer
tradutor, que, afinal de contas, lida essencialmente com textos, isto é, objetos lingüísticos que devem
ser compreendidos, primeira e preliminarmente, na sua realidade material. Por outro lado, uma
abordagem lingüístico-estilística nos pareceu bastante adequada para a compreensão da poesia de
Antonio Porta, não mas especialmente a dos anos sessenta e meados dos setenta, que se baseava
claramente numa experimentação intensiva com a língua e com o poema entendido como um construto
lingüístico.
O Capítulo 3 é o último e a parte mais substanciosa desta dissertação. Nele são apresentadas
as análises e as traduções comentadas de um número pequeno de poemas, seis ao todo, escolhidos
entre aqueles que foram comentados muito brevemente no Capítulo 1. Um dos objetivos dessa parte é,
por meio do trabalho prático de análise e tradução, ampliar, complementar e aprofundar o que antes foi
apenas acenado como elemento, traço ou dado tido como relevante na obra do poeta. Outro objetivo é
verificar se os princípios teóricos expostos no Capítulo 2 são realmente aplicáveis na prática e se de
fato permitem que o tradutor tenha maior consciência do seu trabalho e das escolhas que é obrigado a
fazer a cada instante quando traduz um texto qualquer, especialmente o literário.
Apesar do número pequeno, cremos que, por razões próprias à poesia de Antonio Porta que
14
pretendemos esclarecer, as análises e traduções apresentadas podem jogar uma luz sobre a sua obra
poética inteira e, por isso, servem também de introdução ou primeiro contato. Em nenhum outro lugar
mais do que nesse capítulo, o critério de escolha dos textos foi tão francamente pessoal, a despeito de
qualquer outra razão que pudéssemos aventar, por termos a convicção de que, pelo menos no campo
da tradução literária, só vale a pena traduzir o que realmente desejamos.
Além dos três capítulos que constituem o corpo principal desta dissertação, é apresentado ao
final o Anexo “Seleção de poemas de Antonio Porta (originais em italiano e traduções para o
português)”, que traz em ordem cronológica de publicação todos os poemas que foram comentados no
Capítulo 1 (que incluía os seis que foram depois analisados e traduzidos no Capítulo 2), mais o
poema reproduzido logo no início desta Introdução. Tem-se, portanto, o total de trinta e três poemas,
um número que, se não é exatamente grande, acreditamos que possa representar bem a obra poética
do autor.
Finalmente, diríamos que, embora não tenha sido esta a primeira motivação que nos fez propor
traduções de poemas do poeta italiano Antonio Porta, esta dissertação tem também a intenção de
divulgar a obra de um autor praticamente desconhecido entre nós, e isso por dois motivos. Primeiro,
por ser obra de poeta, que, como sabemos bem, não tem um público muito grande no Brasil; depois,
por ser obra de um poeta que passou a ser conhecido ao longo dos anos sessenta, período cuja
produção literária, particularmente no campo da poesia italiana, é, cremos, também muito pouco
conhecida aqui, quem dirá traduzida, com as exceções de costume.
15
CAPÍTULO 1
A OBRA POÉTICA DE ANTONIO PORTA
Antonio Porta, pseudônimo de Leo Paolazzi, nasce em Vicenza, na região italiana da
Lombardia, em 9 de novembro de 1935. Ainda estudante, com apenas vinte e um anos de idade,
publica o seu primeiro livro de poesia intitulado Calendario (1956), assinando-o ainda com o seu nome
de batismo. Em 1960, forma-se em Letras na Universidade Católica de Milão, com uma tese sobre a
poesia de Gabriele D`Annunzio. Neste mesmo ano, publica como plaquette o seu segundo livro, La
palpebra rovesciata (1960), assinado com o pseudônimo. A adoção de um nome d’arte não é um
acaso: combina perfeitamente com a nova identidade literária que o autor vai assumir e pela qual vai
ser reconhecido nos anos futuros. De fato, a diferença entre o primeiro e o segundo livro é gritante, e
assinala mesmo uma passagem e uma espécie de conversão. De um livro para outro, muda não o
modo de fazer poesia, mas a concepção mesma do que é e do porquê fazer poesia é radicalmente
diferente.
Em alguma medida, os poemas de Calendario refletem ainda a tradição lírica do Novecentos
italiano marcada especialmente pelo ‘hermetismo’. A denominação ‘hermetismo’, ou ainda ‘poesia
hermética’, tem sido comumente empregada, na história e na crítica da literatura italiana, para designar
a corrente literária que domina a poesia italiana do final dos anos vinte até meados dos cinqüenta e que
tem como algumas das suas personalidades exemplares Giuseppe Ungaretti e Eugenio Montale. O
termo aponta para um dos traços principais dessa corrente, que é o seu marcado subjetivismo,
expresso muitas vezes através de uma linguagem depurada. Nas palavras do crítico Giorgio Barberi
Squarotti:
Em geral, a poesia hermética faz do distanciamento e da purificação absoluta uma das suas
metas mais importantes: a palavra poética deve tornar-se um exercício tão extremo e exclusivo a ponto
de substituir a experiência, de se tornar a própria existência. Para os herméticos a realidade não tem
uma consistência firme, e é apenas a palavra livre de toda a ligação sintática e lógica demasiado
estreitas que faz a única ponte possível com a Verdade, com o Absoluto. A Verdade está além das
aparências dos fenômenos, o Absoluto está ausente, é Outro, e pode ser captado na iluminação
extra-racional da poesia. Os herméticos colocam-se assim dentro de uma comunicação religiosa com a
autenticidade.
1
De uma maneira ou de outra, as características apontadas por Squarotti como picas da
poesia hermética ainda estão presentes em Calendario. É o que mostra, por exemplo, um poema
1
SQUAROTTI, Giorgio Barberi et al. Literatura italiana: linhas, problemas, autores. Tradução de Nilson Moulin, Maria
Betânia Amoroso e Neide Luzia de Rezende. São Paulo: Nova Stella; Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro; EDUSP, 1989, p.
528.
16
presente naquela coletânea de título Ballata di primavera, que, num tom ao mesmo tempo delicado e
límpido, revela o desejo íntimo do poeta de unir contemplação da natureza e expressão pessoal:
2
BALLATA DI PRIMAVERA
Rimango davanti a un parco
dove è bello ch’io mi distenda
come nelle acque
e mi lascio andare
scivolando tra le foglie
nella tiepida stagione che ormai entra nelle case
nel primo cielo che vuole arrossarsi
nel mio primo rimanere così,
nel sole nuovo,
come veste riscaldata e indossata
di primo mattino l’inverno.
E nel parco soprattutto la sera
grappoli di uccelli cantano e si muovono
nella magnolia,
e ombre loro senza peso tra i rami
appaiono delineandosi.
È bello ch’io mi distenda e dica tutto questo,
all’apparire di un albero
fiorito
di bianche coppe pure,
al risvegliarsi del giardino:
dolcezza
dell’abbandonarmi
del camminare
tra le betulle,
del poter dire:
dolcezza.
Apenas dois anos depois da publicação de Calendario, nenhuma hipótese de doçura ou de
autocomplacência vai ser mais possível. A dicção torna-se outra, como que em litígio com a poesia
anterior e especialmente com aquele refinado jargão da tradição lírica do hermetismo a que Barberi
Squarotti se refere. A essa altura, Antonio Porta é participante de primeira hora da ‘neovanguarda’,
movimento literário que o afasta definitivamente daquela produção da sua primeira juventude. Para ter
uma medida dessa mudança, basta comparar o poema Ballata di primavera com, por exemplo, o
poema Vegetali, animali de 1958,
3
composição que guarda de forma ainda latente os elementos de
intensa ruptura que vão se manifestar o nitidamente em outros poemas compostos a partir daquele
mesmo ano:
2
Este e todos os outros poemas reproduzidos neste capítulo são extraídos de: PORTA, Antonio. Poesie: 1956-1988. A cura
di Niva Lorenzini. Milano: Mondadori, 1998.
3
Cf. também a análise e a tradução comentada deste poema apresentada no Capítulo 3, p. 66-77.
17
VEGETALI, ANIMALI
Quel cervo Ia vigile fronte penetrata nei dintorni
neI vasto prato rotondamente galoppando
s’avviò; a volo le lunghe erbe
da ogni parte afferrava finché l’erba
cicuta lo pietrificò. L’albero l’ossatura allargava
cercando spazio tra gli alberi; con il ciuffo in breve
di un palmo l’altezza superò delIa foresta:
due guardie forestali quelIo segnarono col marchio.
Che alIa scure segnala il punto delI’attacco.
L’insetto giallo sulI’albero strisciava
ad alte foglie ampie come laghi:
a ciondolare. Intervenne a schizzargli Ia schiena
il becco deI Bucorvo rosso e curvo, un ponte
d’avorio. QueI fiore foglie e petali distese
fino a inverosimili ampiezze: sostare vi potevano
colibrì e lo spesso gregge degli insetti.
Sciocco ed arruffone, recidendolo, l’esploratore
ne, con violente ditate, fece scempio.
Quel topo gli occhi aghiformi affilò
una veloce nuvola fissando che gonfiava salendo,
esplodeva sibilando nelI’aria violenti pennacchi:
alIo scoperto rimasto, topo deI deserto, dalI’attento
falco fu squarciato. L’uccelIo il folto
dei cespugli obliò, un lunghissimo verme
succhiò dalle zolIe: due amici monelli
appostati gli occhi riuscirono a forargli
sulla gola inchiodandogli Ia preda daI becco
metà dentro e metà fuori.
O poema Vegetali, animali é, em termos formais, aparentemente tradicional. Mas, se se leva
em conta outros poemas produzidos nessa mesma época, vê-se que o que aparece como uma
maneira mais tradicional de compor, na verdade, revela a utilização, embora ainda discreta, de
procedimentos lingüísticos de experimentação comuns a outros textos. Dentre eles, podemos citar a
manipulação da sintaxe como modo de desconstrução de uma linearidade de interpretação e como um
instrumento de questionamento da predicação como modo de representar a realidade extralingüística,
contraposta a uma recomposição de um sentido de unidade do poema por meio do andamento rítmico
e acentual.
No que se refere à temática, Vegetali, animali se alinha claramente com as novas diretrizes de
ideologia poética adotadas pelo autor, em que a violência, a crueldade e a agressividade, seja ela
humana, seja ela resultante de processos naturais, são elementos e motivos constantes. Essas novas
diretrizes podem ser encontradas também num poema como Contemplazioni, escrito entre 1959 e
1960:
4
4
Cf. também a análise e a tradução comentada deste poema apresentada no Capítulo 3, p. 78-90.
18
CONTEMPLAZIONI
1
Si torce Ia striscia rettilinea
in sinusoide sbavata linea
che inciampa alla prima curva
(non correre, sciocco, in curva)
batte sul petto di un uomo
un kg. di coke con un suono
sul selciato precipita balzando
di zoccolo una nuvola alzando
come un deposito di lunghe fruste:
e gli zoccoli dei cavalli robuste
sparano mazzate sulla fronte,
battono forte sul ponte,
tra le ciglia folte del pazzo
scava lento il suo strazio
l’unghia che scopre il cervello
daI fondo tenero per un secchiello
verdognolo, colmo di sabbia bagnata
da farci sopra una rabbiosa pisciata.
2
L’altro pilone, o torre, piegato sfilaccia
Ie giunture, polvere e ferro, schiaccia
gli aurei fili, un tram impedisce
il volo dei piccioni, contorta marcisce
Ia carcassa, Ie formiche sono alI’opera,
Ie mosche scavano con Ia zampa che opera
in profonda erosione, il vasellame polverizzato,
fanno cumulo, come in un mercato
i rosi dai topi oggetti rivenduti.
3
La carne si conserva in scatola,
filacciosa si mescola con una spatola
e i polipi sfaldano con il coltelIo,
ruotano con misura in un macelIo
ristretto, rigurgiti ribolIenti,
1
9
a pezzi si incagliano tra i denti,
d’olio l’indice si unge,
urta Ia Iatta si punge
e Ia carne marcisce in scatola,
vomito spalmato da una spatola
sopra uno stomaco preparato.
Nesse poema, estão presentes alguns dos elementos que caracterizam a produção do poeta
naqueles anos e que ele mesmo vai denominar, e a crítica vai logo em seguida reconhecer, como uma
“poética dos objetos” e uma “linguagem de eventos”.
5
No primeiro ensaio teórico de Antonio Porta,
publicado em 1960 na revista La fiera letteraria com o título “Dietro la poesia” e depois republicado com
algumas modificações com o novo título “Poesia e poetica” na antologia I novissimi (1960), à qual se
fará menção na página seguinte, o poeta explica o significado dos eventos e dos objetos para a sua
poesia:
Si è avvertita [...] l’importanza dell’evento esterno, da cui sentiamo colpita Ia comunità e non
più, soltanto, Ia persona del poeta isolato: eche ci si misura, noi, uomini. È utile precisare che si vuole,
appunto, definire le immagini dell’uomo o degli uomini, delle cose e dei fatti che operano all’esterno e
all’interno dell’esistenza.
In questo senso si è interpretata Ia poetica degli oggetti, Ia poesia in re, non ante rem. Gli
oggetti e gli eventi rilevati e composti in un unicum ritmico, riescono a calarci nella realtà [...]
Direttamente alla poetica degli oggetti si riallaccia il problema del vero e della verità, in simbiosi
con Ia ricerca delle immagini e il bisogno di penetrazione. Qualcosa si vuol trovare, alla fine. Le cose che
manovriamo o che ci manovrano, i fatti che determiniamo o che ci determinano, sono certamente in
relazione con Ia verità: proprio per avvicinarla ci serviamo del vero, cercandolo negli oggetti e negli
eventi.
6
Realmente, não encontramos mais no poema Contemplazioni um ‘eu poético’ que se coloca
como um ponto de vista privilegiado na interpretação da realidade que o circunda, como um filtro
solipsista ou “monológico”. Se ainda um eu poético, e de algum modo sempre haverá que é
impossível haver poesia sem sujeito, ele se transfigura e toma uma posição destacada e fria, chegando
mesmo a se emparelhar com os objetos e eventos que descreve. O que marca essa transfiguração, no
caso desse poema, é o registro de um olhar atento a processos naturais que poderíamos chamar de
entrópicos, isto é, de desagregação da matéria orgânica e inorgânica, e à presença humana que
eventualmente é vítima deles ou os rejeita.
Em 1966, Antonio Porta publica I rapporti, reunião de toda a sua produção poética de 1958 a
1964, obra que inclui, além de poemas novos, o citado La palpebra rovesciata, de 1960, e o livro
Aprire, de 1964. Na verdade, I rapporti é considerado praticamente um livro de estréia, pois os dois
5
MORONI, Mario. Essere e fare: l’itinerario poetico di Antonio Porta. Rimini: Luisè, 1991, p. 12.
6
Apud PICCHIONE, John. Introduzione a A. Porta. Roma; Bari: Laterza, 1995, p. 7. Reproduzido em parte também em:
MORONI, op. cit., p. 17.
20
anteriores haviam sido publicados em edições bastante limitadas e que, por isso mesmo, tiveram uma
repercussão também limitada. É com essa obra, portanto, que a nova fisionomia poética de Porta se
mostra para um publico maior, e a sua adesão aos princípios da neovanguarda se torna manifesta.
Não é conveniente, entretanto, falar de neovanguarda como um movimento completamente
homogêneo. Na realidade, tal movimento reúne uma série de personalidades poéticas díspares, mas
que encontram na revista de crítica literária Il Verri, dirigida pelo crítico literário e ensaísta Luciano
Anceschi, uma base comum e o veículo de divulgação de novas idéias e de uma nova poesia. Antonio
Porta se torna um colaborador dessa revista desde o final dos anos cinqüenta, ao lado de poetas como
Edoardo Sanguineti, Elio Pagliarani, Alfredo Giuliani e Nanni Balestrini. Resultado imediato dessa
colaboração e dessa convivência é a publicação da antologia I novissimi (1961), sob os cuidados de
Alfredo Giuliani, que reúne a produção poética desses autores e favorece o reconhecimento deles
como um grupo e como a grande novidade na poesia italiana do início dos anos sessenta.
Apenas dois anos depois da publicação da antologia I novissimi, o movimento da
neovanguarda vai se ampliar consideravelmente, angariando novos adeptos e debatedores com a
criação de um grupo que vai reunir, além de Anceschi, Porta e os poetas citados, mais de trinta
escritores e intelectuais de variada formação intelectual, o chamado Gruppo ’63 (nome dado por causa
do ano em que foi fundado). Apesar de não ser formalmente constituído e acabar tendo uma vida
bastante curta (vai deixar de existir em 1969, ou seja, apenas seis anos depois da sua criação), o grupo
vai marcar época pelas suas propostas de reconsideração da vida cultural e literária da Itália daqueles
anos.
7
O momento cultural e o ambiente intelectual que nascer a neovanguarda e o Gruppo ’63 é
marcado por debates culturais, estéticos e filosóficos ricos, intensos e diversificados, que certamente
influem, de modo, às vezes mais, às vezes menos direto, na obra de Antonio Porta a partir de I rapporti.
Destacamos entre eles o debate polêmico sobre o legado do existencialismo, particularmente sobre a
concepção de ‘literatura engajada’ proposta pelo filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre; uma
revisão e polêmica com o marxismo e suas propostas utópicas de transformação social, agora no
contexto do neocapitalismo do pós-guerra; um aproveitamento de outras vertentes críticas ideológicas,
não necessariamente marxistas, ao status quo; uma “redescobertada psicanálise; e, com um lugar
especial e proeminente, os debates em torno da fenomenologia e das concepções estéticas que a
tomam por base, que tem em Luciano Anceschi através de Il Verri um importante divulgador. Somada a
7
PICCHIONE, op. cit. p. 18-21. Cf. também: ECO, Umberto. “Il Gruppo ’63, lo sperimentalismo e l’avanguardia”. In: ______.
Sugli specchi e altri saggi: il segno, la rappresentazione, l’illusione, l’immagine. Bologna: Bompiani, 1985, p. 94-96; BEC,
Christian. Fundamentos de literatura italiana. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro, Zahar, 1984, cap. XXIX (“A
literatura contemporânea”), p. 383-386.
21
tudo isso, destaca-se também uma apreciação nova das manifestações lingüísticas e literárias
inspiradas pelas formulações do estruturalismo.
8
É justamente no ambiente intelectual de Il Verri e da neovanguarda que se debate
teoricamente a idéia de uma poética dos objetos, cujos resultados práticos podem ser apreciados nos
poemas presentes na antologia I novissimi. Em princípio, tal idéia parte da rediscussão do conceito de
‘correlativo objetivo’, exposto pelo poeta americano T. S. Eliot no ensaio Hamlet and His Problems,
escrito em 1919. Nas palavras de Eliot:
The only way of expressing emotion in the form of art is by finding an "objective correlative"; in other
words, a set of objects, a situation, a chain of events which shall be the formula of that particular emotion;
such that when the external facts, which must terminate in sensory experience, are given, the emotion is
evoked.
9
É Porta mesmo que comenta o conceito, para em seguida contestá-lo, ou melhor,
redimensioná-lo em função da sua nova ideologia poética, da seguinte maneira:
[...] s’intende per “correlativo oggettivo” un’immagine, una metafora, una situazione, un’intreccio, un
modo di raccontare, scelti per rappresentare un’intuizione del mondo, o meglio, una scelta ideologica,
una visione dogmatica delle cose e dell’uomo, anche una scelta morale, se vogliamo, ma “ante rem”,
cioè individuata “primae non “durante” la poesia [...]. Io credo dunque che la poesia nuova si faccia e si
debba fare mettendo da parte Eliot e con premesse che, ricavate dall’analisi delle poesie in concreto, si
possono enunciare così: la poesia si pone come struttura che nasce da e fa nascere il gioco delle
affermazioni, delle immagini, delle metafore, costruendo un contesto non metaforico ma autosufficiente,
capace nello stesso tempo, di presentare un mondo poetico che, pur mantenendo la sua autonomia
originaria, una volta raggiunta l’organicità senza la quale non esisterebbe, diventa anche conoscenza e
riflesso della storia, in senso non soltanto “rappresentativo” ma, volta a volta, prospettico, utopico,
ipotetico [...]. È opportuno ritornare sul carattere non metaforico della nuova poesia, prima soltanto
accennato; ciò vuole significare che il contesto poetico non è metafora del mondo e, in definitiva,
nemmeno il suo “correlativo”, ma mondo in sè.
10
Um poema escrito em 1960, intitulado muito apropriadamente In re (expressão latina que
significa ‘nas coisas’ ou ‘no interior das coisas’), evidencia de modo exemplar como pode ser essa nova
poesia:
11
IN RE
Lo sguardo allo specchio scruta l’inesistenza,
i peli del sopracciglio moltiplicano in labirinto,
l’occhio nel vetro riflette l’assenza, nel folto
i capelli, temporanea parrucca, sgomentano le mani:
cadono sulle guance.
8
ECO, op. cit., p. 99-104.
9
ELIOT, Thomas Stearnes. “Hamlet and His Problems”. Disponível em: http://www.bartleby.com/200/sw9.html. Cf. também:
CLARCK, Robert. “Objective Correlative (1919)”. The Literary Encyclopedia. Disponível em:
http://www.litencyc.com/php/stopics.php?rec=true&UID=783>; cf.: “Objective correlative”. Wikipedia. Disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/Objective_correlative>; cf.: “What is The Objective Correlative?”. Disponível em:
<http://web.cn.edu/kwheeler/documents/Objective_Correlative.pdf>. Acessos em: 19 jul. 2006.
10
Apud MORONI, op. cit., p. 16-17.
11
Cf. também a análise e a tradução comentada deste poema apresentada no Capítulo 3, p. 91-102.
22
L’inquietudine prolungata mette in evidenza
il mortale infinito dei pori dilatati,
estrema avventura di un oggetto che si trucca,
sceglie una direzione inconsapevole o folle.
Dietro il lavabo il corpo in oscillazione
sfugge l’abbaglio, rivoltante presenza,
indicatrice e lampante, nella camera a vuoto
tra le piume mulina, Ia soffocazione.
Dado o seu caráter descritivo, In re pode ser considerado um pequeno tratado de investigação
na linha do que o poeta Adriano Spatola, numa resenha publicada em Il Verri em que comenta a poesia
de Antonio Porta, denominou de “poética do olhar”,
12
com um pendor acentuado para o negativo, o
instável e o asfixiante. De novo, aqui, o enunciador assume deliberadamente a posição de observador,
dessa vez para questionar o valor de verdade da imagem refletida no espelho. Dissolvendo-se na
fragmentação de imagens e tornando-se também um desses fragmentos, o observador perde a
capacidade de restaurar uma visão totalizadora das coisas e de si mesmo. Escrito numa linguagem que
é evidente apenas na aparência, o poema explora de maneira sutil certas ambigüidades lexicais e
sintáticas, o que tem como resultado global um questionamento das certezas das evidências e do
modo mesmo de expressá-las.
É por isso, então, que, a propósito desse poema, como de resto dos demais presentes em I
rapporti, não se pode falar do mundo representado (afinal, é possível reconhecer uma cena que sugere
uma narrativa tênue) como de um mundo dado, externo e preexistente, e de uma visão que o apreende
ante rem, para usar os termos de Porta. É exatamente porque a própria capacidade de representação
do mundo é posta em questão que a poesia só pode se dar in re, isto é, como uma forma de
interrogação em ato do que o mundo pode ser, antes de qualquer coisa, por meio da linguagem ou na
linguagem ela mesma. Desse modo, o poema não se esgota na representação do mundo ou da
realidade humana, criando um seu correlativo objetivo, mas ele é, em si mesmo, como se diz à
maneira dos lógicos, um ‘mundo possível’.
A extrema preocupação com a linguagem como o elemento conformador fundamental da
percepção e da ideação humana sobre o mundo e a realidade, e, por extensão, o projeto intelectual de
desvendar tais mecanismos são sintetizados por uma expressão que circula, naqueles anos, quase
como um slogan: “a ideologia é a linguagem”. No artigo intitulado “La battaglia ‘politica’ dei poeti d’a-
vanguardia”, publicado mais de dez anos depois na revista Tuttolibri (abril, 1976), Antonio Porta,
relembrando aquela época, reafirma:
12
Apud MORONI, op. cit., p. 23.
23
La spinta fondamentale della poesia nuova veniva da una diffusa e approfondita intolleranza estetica
verso il modo di fare poesia in Italia, che sembrava essere passato senza soluzione di continuità
dall’anteguerra (leggi: ermetismo) al dopoguerra come se nulla di importante fosse accaduto [...]. Pareva
impossibile che nessuno si accorgesse che tutto era cambiato, coinvolgendo l’estetica, naturalmente [...].
I poeti [della neoavanguardia] volevano cambiare il mondo (Ia società) a colpi di forme nuove e ta-
glienti, ma a loro volta si sentivano modificati irrimediabilmente. Si diceva a chiare lettere che ideologia e
linguaggio erano, in ultima istanza, Ia stessa cosa.
13
A adoção de uma concepção como a expressa acima, tanto na poesia de Antonio Porta como
na dos seus companheiros de jornada, resulta num experimentalismo lingüístico ousado e muitas vezes
desconcertante. É o que podemos ver no poema Aprire, escrito entre 1960 e 1961, e que o título ao
seu terceiro livro de poemas (na verdade, o segundo assinado com o pseudônimo), incluído mais tarde
na reunião de I rapporti:
APRIRE
I
Dietro Ia porta nulla, dietro Ia tenda,
l’impronta impressa sulla parete, sotto,
l’auto, Ia finestra, si ferma, dietro Ia tenda,
un vento che Ia scuote, sul soffitto nero
una macchia più oscura, impronta della mano,
alzandosi si è appoggiato, nulla, premendo,
un fazzoletto di seta, iI lampadario oscilla,
un nodo, Ia luce, macchia d’inchiostro,
sul pavimento, sopra Ia tenda, Ia paglietta che raschia,
sul pavimento gocce di sudore, alzandosi,
Ia macchia non scompare, dietro Ia tenda,
Ia seta nera del fazzoletto, luccica sul soffitto,
Ia mano si appoggia, iI fuoco nella mano,
sulla poltrona un nodo di seta, luccica,
ferita, ora iI sangue sulla parete,
Ia seta deI fazzoletto agita una mano.
II
Le calze infila, nere, e sfila, con i denti,
Ia spaccata, iI doppio salto, in un istante, Ia calzamaglia,
all’indietro, capriola, poi Ia spaccata, i seni
premono iI pavimento, dietro i capelli, dietro Ia porta,
non c’è, c’è iI salto all’indietro, le cuciture,
l’impronta della mano, all’indietro, sul soffitto,
Ia ruota, delle gambe e delle braccia, di fianco,
dei seni, gli occhi, bianchi, contro iI soffitto,
dietro Ia porta, calze di seta appese, Ia caprioIa.
III
Perché Ia tenda scuote, si è aIzato,
il vento, nello spiraglio Ia Iuce, il buio,
13
Apud PICCHIONE, op.cit., p. 19.
24
dietro Ia tenda c’è, Ia notte, il giorno,
nei canali le barche, in gruppo, i quieti canali
navigano, cariche di sabbia, sotto i ponti,
è mattina, il ferro dei passi, remi e motori,
i passi sulla sabbia, iI vento sulla sabbia,
Ie tende sollevano i lembi, perché è notte,
giorno di vento, di pioggia sul mare,
dietro Ia porta iI mare, Ia tenda si riempie di sabbia,
di calze, di pioggia, appese, sporche di sangue.
IV
La punta, Ia finestra alta, c’era vento,
si è alzato adagio, stride, in un istante,
ovale, un foro nella parete, con Ia mano,
in frantumi, l’ovale del vetro, sulle foglie,
e notte, mattina, fitta, densa, chiara,
di sabbia, di diamante, corre sulla spiaggia,
alzato e corso, Ia mano premuta, a lungo,
fermo, contro il vetro, Ia fronte, sul,
il vetro sulla mattina, premette, oscura,
Ia mano affonda, nella terra, nel vetro, nel ventre,
Ia fronte di vetro, nubi di sabbia,
nella tenda, ventre lacerato, dietro Ia porta.
V
Ruota delle gambe, Ia tela sbatte nel vento,
quell’uomo, le gambe aderiscono alla corsa,
Ia corda si flette, verso iI molo, sulla sabbia,
sopra le reti, asciugano, le scarpe di tela,
il molo di cemento, battono Ia corsa,
non c’è che mare, sempre più oscuro, il cemento,
nella tenda, sfilava le calze con i denti,
Ia punta, ha premuto un istante, a lungo,
le calze distese sull’acqua, sul ventre.
VI
Di là, stringe la maniglia, verso,
non c’è, né certezza, né uscita, sulla parete,
l’orecchio, poi aprire, un’incerta, non si apre,
risposta, le chiavi tra le dita, il ventre aperto,
Ia mano sul ventre, trema sulle foglie,
di corsa, sulla sabbia, punta della lama,
il figlio, sotto Ia scrivania, dorme nella stanza.
VII
Il corpo sullo scoglio, l’occhio cieco, il sole,
il muro, dormiva, il capo sul libro, Ia notte sul mare,
dietro Ia finestra gli uccelli, il sole nella tenda,
l’occhio più oscuro, il taglio nel ventre, sotto l’impronta,
dietro Ia tenda, Ia fine, aprire, nel muro,
un foro, ventre disseccato, Ia porta chiusa,
Ia porta si apre, si chiude, ventre premuto,
che apre, muro, notte, porta.
25
O poema Aprire apresenta um tipo de configuração bastante freqüente em I rapporti, mas que
pode também ser encontrado ao longo de toda a obra poética de Porta. Trata-se do procedimento
formal da seriação, isto é, da apresentação de poemas em série que formam uma espécie de
constelação formal e narrativa. Muitas vezes, uma leitura completa da série é que vai permitir uma
compreensão mais global do conjunto de fragmentos enunciados em cada parte. Mas falar de
globalidade aqui não significa pensar numa compreensão totalizadora dos poemas da série e desta
como um todo, compreensão que propiciasse uma organização dos fragmentos dos eventos e das
ações representados conforme uma lógica linear, quer no tempo, quer no espaço. Ao contrário, o
recurso à fragmentação é tão extremado, que é levado à própria constituição da sintaxe e da
predicação como elaboração lingüística de proposições sobre uma realidade suposta ou imaginada. Na
aplicação desse recurso, a pontuação e a repetição obsessiva dos mesmos motivos lingüísticos
desempenham um papel importantíssimo, pois é através delas que se criam ambigüidades semânticas
insolúveis e se acentua ainda mais a configuração formal do poema como um meio de desconstrução
de qualquer representação cognitiva estável e acabada.
Ao lado de uma poética de objetos, a crítica, como assinala Mario Moroni, se refere com
insistência a uma “linguagem de eventos”, presente na poesia de Antonio Porta.
14
O que caracteriza tal
linguagem é a apresentação de eventos de natureza dramática e violenta, em que o medo, o horror e a
náusea são sentimentos predominantes, tanto no que concerne às ações e comportamentos humanos
propriamente ditos, como vimos, por exemplo, em In re ou Aprire, quanto no que concerne a
fenômenos sobre os quais os seres humanos não têm algum controle e dos quais são vítimas, como
em Contemplazioni. De acordo com que o próprio poeta diz, no artigo “Il grado zero della poesia”,
publicado no número 2 da revista Marcatrè (janeiro, 1964), essa maneira de apresentação é gerada
basicamente por um sentimento do trágico, ao modo do pensamento existencialista do filósofo alemão
Karl Jaspers, em que o trágico é concebido como uma forma de regresso a um estado de caos e de
desordem.
15
Conforme o poeta:
Il senso del tragico è alla base di ogni mia possibilità di operazione poetica. Gli oggetti, gli
eventi, gli uomini sembrano sfuggire ad ogni condizione di struttura [...] essi cercano di far funzionare Ia
ragione e quindi di strutturarsi, o, in parole povere, di dare un senso alla vita. Sembra che questo
tentativo continui a fallire, nonostante il perfetto funzionamento di tutti gli strumenti; di qui il senso del
tragico, il mito di Edipo, l’uomo sapiente che si acceca.
Anche il poeta, dunque, deve accecarsi? No. Egli si muove insieme agli altri in una condizione
paragonabile a quella di assenza di gravità [...] Cerca di avvicinare i suoi simili e pone domande
fondamentali sulla vita e sulla morte.
16
14
MORONI, op. cit., p. 12.
15
MORONI, op. cit., p. 13; PICCHIONE, op. cit., p. 14-15.
16
Apud PICCHIONE, op. cit., p. 14-15.
26
Todavia, falar de caos e desordem no que tange à poesia parece ser uma contradição nos
termos, pois a poesia, aliás, toda forma artística, é, de certa maneira, uma tentativa de ordenação do
caos, isto é, da matéria extra-semiótica e do material propriamente semiótico ainda informes ou
desestruturados que se organizam e se materializam através da criação de formas sensíveis. Com a
poesia de Antonio Porta não será diferente. Por mais acentuada que seja a utilização de procedimentos
lingüísticos fragmentadores e desagregadores de uma possível interpretação linear e acomodada do
real, seja ele externo, seja ele concebido tão-somente como um construto lingüístico, os seus poemas
apresentam também uma forma forte e definida, forma essa que vai encontrar o seu sentido de unidade
no que tem sido considerado como o característico do discurso poético, que é a exploração máxima da
função poética da linguagem.
17
Como havíamos mencionado anteriormente, é justamente nesse nível,
particularmente no nível sonoro, rítmico e métrico, que os seus poemas encontrarão aquele sentido de
todo autônomo e unitário, ainda que não isolado. Sobre esse aspecto, Porta faz a seguinte
consideração:
Gli eventi, gli oggetti, gli emblemi del vero sono poi materia da lavorare in modo quasi artigianale: quasi
perché entrando direttamente nei problemi dell’espressione, nelle ricerche di linguaggio, si vuole
sottolineare il fatto che, assumendo senza riserve la metrica accentuativa non si a questi problemi
soltanto il valore dell’ordine o della misura”. La metrica accentuativa è soprattutto un metodo di
penetrazione. Il variare del numero di accenti è il variare dello spessore e della profondità di lavoro di una
trivella, il variare del ritmo è il variare della lunghezza di onda che si sente idonea. Per questo, dunque, si
è scelta la metrica accentuativa.
18
De fato, o recurso formal à “métrica acentual”, isto é, à métrica tônico-silábica, tem como
resultado imediato a recusa de qualquer facilidade na construção dos versos, sem nenhuma concessão
ao cantabile. Ao contrário, aliado como sempre está a um rigor sintático paradoxalmente ambíguo, o
andamento rítmico e acentual dos versos, em especial dos poemas de I rapporti, tem o efeito de
intensificação do estranhamento semântico arduamente conseguido
19
e ao mesmo tempo concede
uma oscilação cadencial que livra as composições de um formalismo versificatório puramente gratuito e
mecânico.
20
Pode-se falar, se se quiser, dado o conjunto de temas e do tratamento que lhes é dado, de um
certo traço expressionista, ou em algumas seqüências até mesmo surrealista ou simplesmente onírico,
dos poemas de I rapporti, ao menos no que eles têm de imageticamente estranho, chocante ou
17
Usamos a expressão ‘função poética’ no sentido bem conhecido e divulgado pelo lingüista Roman Jakobson. Cf.:
JAKOBSON, Roman. “Lingüística e poética”. In: ______. Lingüística e comunicação. Tradução de Isidoro Blikstein e José
Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2003, p. 118-162.
18
Apud MORONI, op. cit., p. 18.
19
O termo ‘estranhamento’, uma das traduções possíveis para o termo russo ostraneniye, é usado aqui no sentido que lhe
davam os formalistas russos, particularmente Viktor Shklovsky. Uma outra tradução possível é ‘desfamiliarização’. Cf.:
FOWLER, Roger. Crítica lingüística. Tradução de Maria Luísa Falcão e Isabel Mealha. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1994, p. 67-73.
20
No Capítulo 3, às p. 80-83, será apresentada uma explicação mais detalhada sobre a métrica tônico-silábica.
27
aterrador, e que os aproximariam, por exemplo, da poesia de um Lautréamont
21
ou da pintura de um
Francis Bacon.
22
Isso não pode ser compreendido, entretanto, no sentido de um espontaneísmo ou
automatismo formal e expressivo. Pelo seu caráter deliberado de contenção formal, o esquema métrico
serve de impedimento a um fluxo puramente melódico e a um encadeamento desenfreado de imagens.
Bem ao contrário, a métrica tônico-silábica tem mesmo, como diz Porta, aquele efeito de “broca” ou
“verruma”, metáfora bastante feliz que aponta para o quanto de firmeza e ao mesmo tempo de atrito
estão implicados no trabalho do poeta com o seu material lingüístico. Tomemos como exemplo o
poema de número XIII, da série Rapporti n. 2, escrito em 1964:
XIII
Il liquido colava dai suoi occhi, mentre fuggiva,
volavano via, le gocce, stagnanti e irriguardosi,
spruzzavano, dormendo per sudare, accumulando lenzuola,
dagli occhi suoi spandeva, raccolto nelle mani,
è allora che ha parlato, Ia bocca si colmava,
con il sudore deI naso, dammi un bicchiere,
le dita nelle orecchie, avvolta nel lenzuolo, continua
a cadere, e perde sangue, ora, a colpi di becco,
che cosa vuoi da me, lì sul marciapiede, non toccare
le mie ossa, lasciami in pace, dimenticalo,
ricordati dell’inizio, che è Ia fine, con gli occhi
suoi, è ancora viva, sono biglie di marmo,
senza erezione, né gambe, né il soffio ansioso,
le unghie di lacca, Ia pelle più scura,
ma è Ia verità, morente, continui a dir sciocchezze,
oramai, questo volevi dire, questo, morendo,
per fortuna si muove, così le chiude gli occhi,
verso il basso, con l’ndice, dall’alto, e il pollice,
caduto, in ginocchio, mancano pochi giorni,
prova a toccare, così di corsa, è di cera, una gran macchia
che rimane, sul lenzuolo di carta, gli alberi stanno
entrando, gli uccelli, con le calze di seta, e i cigni
perfettamente conservati, con le finestre chiuse,
come dovesse uscire.
Esse poema apresenta todas as características que vimos apontando até aqui: a
representação de uma seqüência desordenada de objetos e eventos, de natureza estranha ou violenta,
reunidos numa estrutura sintática ambígua e descontínua que produz um fluxo verbal ritmicamente
percussivo e entrecortado de pausas. Trata-se de um conjunto de fragmentos semânticos, imagéticos e
narrativos que não chega a formar um todo coeso, como a reunião de peças de um quebra-cabeça ou
21
MORONI, op. cit., p. 13.
22
Referindo-se ao romance de Antonio Porta Il re del magazzino (1978), que será comentado mais adiante, o crítico literário
Stefano Verdino se expressa da seguinte maneira: Così, in queste pagine, si diceva, anche torturanti, si susseguono brevi
ma continue messe in scene dello sgradevole, a volte con tratti onirici o allucinanti, come di un Bacon della parola, quale
Porta fu unico e sommo nel secondo Novecento italiano; [...]. Cf.: VERDINO, Stefano. “Uno strano romanzo”. In: PORTA,
Antonio. Il re del magazzino. Genova: San Marco dei Giustiniani, 2003, p. 9. Cremos que o comentário se aplique
igualmente bem a grande parte da obra poética de Porta, particularmente à dessa fase.
28
de um mosaico em que mal se consegue descobrir ou entrever um desenho final. Todavia, a primeira
impressão global de uma desorganização (ou reorganização) de tipo onírico ou surreal é desmentida
por uma análise mais atenta da sintaxe e da pontuação. Dado o caráter sistemático das ambigüidades
sintáticas produzidas, também fruto dos blocos rítmicos em que se organizam os versos, pode-se
pensar mesmo num procedimento deliberado de desmontagem narrativa, o que afastaria o poema da
representação de uma mera seqüência automática e incontrolada de imagens psíquicas.
Esse trabalho ostensivo com a sintaxe no sentido técnico preciso de uma desconstrução da
predicação como forma de representação da realidade extralingüística é um procedimento constante
que caracteriza a experimentação poética de Antonio Porta à época de I rapporti, e que, mesmo
atenuado, nunca será abandonado de todo na sua obra poética posterior. Nessa experimentação, o
poeta, ao mesmo tempo que explora as potencialidades da língua comum, cria obstáculos
incontornáveis para uma leitura e uma interpretação fácil e acomodada dos textos. De modo geral, a
poesia de Porta exige do leitor uma atenção concentrada no quê e no como se diz, sem a qual a
experiência de leitura se frustra, ou nem chega mesmo a se consumar.
Um ano depois da publicação do livro I rapporti, Antonio Porta publica o seu primeiro romance,
intitulado Partita (1967). Alguns dos procedimentos lingüísticos e construtivos presentes na sua obra
poética até então podem ser encontrados ali, como o da fragmentação e o da desagregação semântica
e narrativa, e o livro apresenta também uma grande afinidade no que se refere a temas e motivos. Do
ponto de vista estilístico, entretanto, o texto é de leitura mais fluida, se comparado com o caráter
fragmentário da estrutura textual e sintática dos poemas. Seja como for, o autor se mantém fiel ao seu
antinaturalismo básico, e, dada a estruturação pouco sistemática da trama e dos episódios, o romance
não facilita uma interpretação linear e que o remeta a formas mais tradicionais do gênero. Realizada
essa primeira experiência narrativa, Porta voltará à forma do romance mais de dez anos depois,
com a publicação de Il re del magazzino em 1978.
Em 1969, Antonio Porta publica Cara, uma nova reunião de poemas produzidos entre 1965 e
1968. De modo geral, Porta obedece às mesmas premissas estéticas adotadas em I rapporti e continua
a se valer de muitos dos procedimentos construtivos que assinalamos, com uma diferença bastante
importante. Como dissemos, no conjunto dos poemas daquele livro, a experimentação com a sintaxe
tem um lugar de destaque e pode-se dizer que grande parte da dificuldade de leitura dos textos é uma
conseqüência direta dela. Nos poemas de Cara, a estrutura sintática, que antes era complexa e
ambígua, se simplifica e, em alguns textos, assume mesmo um aspecto de repetição mecânica e
automática. É o caso do poema seguinte:
29
DUE VARIABILI A DUE
I
mangiano le finte rose
come cancellano il fiume
nutrono il ventre dei cani
chinano Ia testa sul petto
strappano Ia pelle dalle sedie
riempiono il ventre degli uccelli
come attraversano i vetri
siedono per aspettare da bere
soffiano sulle labbra
battono sulle ginocchia
allacciano gli insetti-talpa
come si equilibrano nel vento
scendono nelle gole insensibili
sollevano le labbra sul cibo
mostrano i denti ai cani
appoggiano Ia testa sull’omero
come scendono Ia scaletta
dormono per aspettare da bere
premono lo sterno per parlare
curvano le orecchie
II
decidono di dirIo
bruciano le tele
raschiano le creme
come saltano nell’acqua
si chinano verso Ia luce
alzano sopra gli specchi
come chiedono da bere
stringono dalle due parti
liberano le mani
come stendono questo colore
come si riempiono gli angoli
dicono che c’è
schiodano le casematte
smontano le protezioni
come sbarrano i pontili
premono dietro le quinte
come salgono da una finestra
premono con il naso
come sciolgono le lacche
cancellano le dita
lo raccolgono nelle orecchie
come sfilano l’intestino
come si sente tutto
mangiano le carni
O próprio título do poema, Due variabili a due, já acusa o caráter deliberadamente mecânico do
procedimento sintático e textual adotado, aspecto esse que é enfatizado pela configuração visual
simétrica do texto. O poema se constitui numa espécie de enumeração automática de ações e eventos
que aparentemente não guardam nenhuma ligação entre si, pelo menos não à primeira vista. A única
coisa de certo é que tais ações e eventos são praticados e vividos por sujeitos sobre os quais nada se
pode saber, designados implicitamente pelo uso de verbos na terceira pessoa do plural. Mais uma vez,
o leitor se vê na situação de reunir os fragmentos para tentar encontrar um sentido global, sem
nenhuma garantia de sucesso. Nesse caráter de absurdidade das situações, ações e eventos
descritos, presentes nesse poema, como ademais nos outros poemas de Cara e antes nos de I
rapporti na realidade, traço que pertence a toda a obra de Antonio Porta , a crítica identifica uma
influência direta da obra do escritor irlandês Samuel Beckett.
23
O mesmo caráter de absurdo e de inexplicável pode ser encontrado no poema de número I da
série denominada Sonetto:
24
23
MORONI, op. cit., p. 21.
24
Cf. também a análise e a tradução comentada deste poema apresentada no Capítulo 3, p. 103-107.
30
I
come li incontra sulla finestra
non uccide domanda
subito e prima
si alza.
come scende le scale di pietra
non urla dice
allora e adesso
si volta.
come sale le scale di pietra
non stride dice
come se
come è vero.
come li stringe contro
non fugge risponde
una volta e basta
ride.
Uma parte considerável de toda a obra poética de Antonio Porta, de modo especial a produzida
nos anos sessenta, é constituída de poemas narrativos. Tal preferência é premissa básica e, ao mesmo
tempo, resultado concreto daquela poética dos objetos e daquela linguagem de eventos a que nos
referimos. Devido à recusa de um lirismo centrado no sujeito como instância privilegiada de
interpretação do mundo, o eu poético se dilui e o que normalmente se é a apresentação de um ou
mais personagens, no sentido próprio que adquirem na narrativa. É o modo de criar aquele
distanciamento e aquela impessoalidade tão típicos dos poemas do autor, características que
constituem propriamente estratégias textuais concretizadas através de reconhecíveis procedimentos
gramaticais. É certo, contudo, que, para além desse nível textual superficial, é possível reconhecer
sempre a presença de um autor implícito que, ao longo do tempo e na criação contínua do conjunto da
obra, vai revelar uma subjetividade, isto é, um sujeito ético que faz do poema e da poesia um modo de
indagação profunda do real e da realidade que o circunda.
25
25
O ‘autor implícito’, ou na designação que lhe dá Umberto Eco, o ‘autor modelo’, se distingue do autor empírico, pessoa de
carne e osso, na medida em que é uma instância lingüística projetada e implícita no próprio texto, a única a que o leitor
empírico pode ter acesso. Em termos concretos, a instauração da realidade do autor implícito ou modelo se por meio de
estratégias lingüísticas e textuais que cabe justamente à teoria da literatura e à semiótica textual reconhecer.
Evidentemente, é possível fazer conjecturas a respeito do sujeito real que produziu um determinado texto, mas tais
conjecturas fogem da alçada da análise e crítica literária, e se enquadram em outros domínios, como o da psicologia da
criação, da psicanálise da obra literária, da biografia etc. O que vale para diferençar genericamente autor empírico de autor
implícito, vale também logicamente para diferençar a pessoa do poeta do “poeta implícito”. Naturalmente, neste capítulo de
apresentação sucinta da trajetória poética de Antonio Porta, as duas instâncias se cruzam, mas frise-se muito bem, não se
confundem: fala-se então do poeta (implícito) como estratégia textual e também do poeta empírico, o autor Antonio Porta.
Claramente, a imagem que formamos do autor empírico é uma espécie de soma (de que nunca se tem um resultado
definitivo) das imagens parciais do autor implícito que a leitura dos textos permite criar e, na análise literária, aquela imagem
nos interessa na medida em que ilumina a compreensão que podemos ter dos textos. No máximo, o que pode nos
interessar é a “pessoa literária”, se assim nos é permitido expressar. Cf. verbete: “Ponto de vista”. In: MOISÉS, Massaud.
31
Falar de narratividade dos poemas, entretanto, não implica assumir um alinhamento numa
tradição qualquer do poema narrativo, seja ela italiana, seja ela pertencente à tradição mais abrangente
da poesia européia. Nesse aspecto também, os poemas de caráter narrativo de Porta vão apresentar
aqueles traços que vimos indicando, quais sejam, o da falta de linearidade expositiva, quer do ponto de
vista espacial, quer do ponto de vista temporal, somados à fragmentação imagética e à evidente
incoerência, ambigüidade e violência das situações.
É o que acontece também com o poema apresentado acima, em que a vagueza e a falta de
resolução do relato, os seus encadeamentos tênues e a descrição alusiva do espaço são contrapostos
a uma estrutura paratática definida e praticamente fixa, repetitiva e ritmicamente marcada, que cria, do
ponto de vista formal, uma unidade de intenção. Assim, uma vez que o poema rompe com a
expectativa de unidade narrativa, que, se não é totalmente desestruturada, apresenta pelo menos uma
estrutura “fraca”, o leitor é obrigado, então, a buscar uma unidade semântica para além do simples
relato. Esta unidade maior é dada justamente pela estrutura formal “forte” do poema e é nessa
configuração estrutural que se revela a presença definida daquele autor implícito que não se confunde
com o personagem ou personagens do relato.
Apesar da grande diversidade formal que é possível constatar ao longo de toda a obra de
Antonio Porta, pode-se notar também um sentido de pesquisa permanente. Assim, de uma obra para
outra, além da experimentação de novos procedimentos, também o aprofundamento ou a
radicalização de procedimentos colocados à prova em obras ou poemas anteriores. É o que vemos
acontecer com o livro Metropolis (1971), que reúne poemas produzidos entre 1969 e 1970. Nessa obra,
como havíamos mencionado em relação aos livros anteriores, a sintaxe lingüística, associada ao
encadeamento sintático textual, continua sendo um campo de exploração formal privilegiado. O poema
de número 6 da série Quello che tutti pensano, serve de exemplo:
6
che occorre ignorare i rapporti umani
che le minoranze sono sempre più intelligenti
che il dolore è utile
che la civiltà si fonda nel piacere
che la felicità è il nuovo mito consumistico
che la realtà deve avere un futuro
che è finita l’arte borghese non l’arte
che un nuovo stato rivoluzionario esprimerà una nuova arte
che la pittura deve essere multipla
che i negri son sempre i soliti che ammazzano i bianchi
che i negri sono sempre i soliti che si ammazzano tra di loro
Dicionário de termos literários. 12. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cultrix, 2004, p. 362-368. Cf. também: ECO, Umberto. “Il
Gruppo ’63, lo sperimentalismo e l’avanguardia”, p. 97-98; “Ritratto di Plinio da giovane”, p. 180-195. In: ECO, op. cit.;
RABENHORST, Eduardo R. “Sobre os limites da interpretação. O debate entre Umberto Eco e Jacques Derrida”. In: Prim@
Facie. Ano I, n. 1, jul./dez. 2002.
32
che la natura si ribella
che vedrete che i conti non torneranno
che la parola scritta deve essere politica
che insomma le parole contano moltissimo
ci sono di quelle cose che non si spiegano ma che sono vere
che l’esteticità non deve essere accantonata
che bisogna continuare continuare continuare
che le vetrine sono piene di cose bellissime
che ci si abitua a tutto
che l’erotismo è una routine
che sta accadendo qualcosa di molto diverso
è veramente difficile capire
che bisogno c’è di capire
ma allora come si giudica
che i giudici si ribellano al giudizio
che chi ci guiderà
Nesse poema, como havíamos assinalado também a respeito de Due variabili a due, o poeta
se vale do procedimento da repetição mecânica da mesma estrutura sintática dos versos, que se
constituem de fragmentos de discursos ideológicos retirados dos seus contextos de origem e
ordenados aleatoriamente um depois do outro. Dada a falta de coerência do conjunto, em que alguns
dos versos chegam mesmo a se contradizer, o procedimento formal adotado ressalta a banalização e
o empobrecimento da discussão ideológica e política, de que aqueles versos se tornam emblemas,
mais precisamente frases-feitas ou lugares-comuns. Esse caráter de perda da capacidade de reflexão
e de crítica, que lugar a formas estereotipadas e grotescas de pensamento, é, de fato, uma das
tônicas do livro Metropolis, título muito adequado pelo seu teor de ironia e decepção em relação às
ideologias de massa, que se tornam elas também produtos de consumo irrefletido.
Uma outra tônica do livro de 1971 correlacionada intimamente à mencionada é a discussão,
problematizada através dos recursos próprios da poética portiana, das formas de comunicação e da
incapacidade, por parte do sujeito, de significar e de se referir à realidade circundante e a si mesmo de
modo claro, preciso e unívoco, para além dos modos cansados e repetitivos disseminados numa
sociedade de massas. Assim, diferentemente do que acontecia com os poemas de I rapporti, em que a
relação com a realidade, marcada pelo estranhamento, pelo conflito e pela violência, é registrada por
meio de uma trama verbal complexa e labiríntica, agora esta mesma relação é comunicada por meio de
células lingüísticas elementares, numa espécie de afasia ou regressão a formas primárias de
comunicação. A série de poemas Modelli, de que reproduzimos abaixo Modello per autoritratti, é um
bom exemplo do que estamos falando:
MODELLO PER AUTORITRATTI
io non sono non c’è non chi è
non abito non credo non ho
33
cinquantanni ventuno dodici che c’è
quando bevo nell’acqua nuotare non so
con Ia penna che danza Ia poIvere che avanza
non credo non vedo se esco né tocco
mangiare se fame digerire non do
prima corpo poi mente poi dico poi niente
e un’aItra chissà se alla fine cadrà
né una vita né due né un pianeta né un aItro
Ie lingue non capisco Ie grida annichilisco
Em Modello per autoritratti uma aparente recuperação da unidade sintática da frase e da
função comunicativa da linguagem. Seria de esperar, portanto, que, pelo mesmo desta vez, o leitor se
deparasse com mensagens mais compreensíveis. Não é, porém, o que acontece, pois o poema, se
não oferece dificuldade alguma de leitura, não chega a formar um todo coerente. O que une os versos
é o paralelismo rítmico e acentual e, do ponto de vista temático, um sentido e um sentimento básico de
negação e de negatividade, como a indicar a falta ou a insuficiência de um modelo de expressão que
possibilite a definição e reflexão sobre si e sobre a própria realidade vivida pelo sujeito.
Mario Moroni aponta uma transformação importantíssima na obra poética de Antonio Porta a
partir da publicação do livro Week-end (1974), coletânea de textos produzidos entre 1972 e 1973.
26
Essa transformação se manifesta através do reaparecimento pleno, no nível temático, de um eu poético
em primeira pessoa, que se distingue daqueles personagens que aparecem em tantos poemas e que
desempenham a função de agentes das ações ou de figuras de fundo dos eventos encenados. Não
que Porta abandone o procedimento de apresentação de personagens, só que agora, como vai
acontecer muitas vezes, esses personagens ousam dizer “eu”. Como resultado, essa nova fase da
poética de Porta vai exigir do leitor um redimensionamento da compreensão e da imagem que elabora
a respeito do autor implícito e vai lhe permitir descobrir mais facilmente na obra uma dimensão
subjetiva asceticamente controlada até então. Não parece um acaso que esse reaparecimento do eu
coincida com uma franca recuperação da função comunicativa da linguagem, que veio se delineando
lentamente a partir de Cara, e que vai conferir à poesia do autor, ou pelo menos, à grande parte dos
textos, a partir de agora, uma legibilidade muito maior. Tomemos a rie Lettere, composta de sete
poemas, como exemplo:
26
MORONI, op. cit., p. 53.
34
LETTERE
1
nel luogo delle alture ruotanti
semplici farfalle alzano brevi pascoli
un lago a fondamento deI moto
tutto si produce all’intemo dei presenti
ecco quanto ho da dirvi, carissimi
2
niente più che una scura notte d’ottobre
senza lievito non si buca
niente occhi e nemmeno un ricordo
passaggio oggetto o immagine
muro prima di parlarci bisogna guarire
3
con un lungo bastone matita di lontano
potrei sono sicuro disegnare a distanza
sopra moltiplicati molti volti conosciuti
modificare in molti modi ognuno di quei volti
mentre mi accosto ai muri e alle pareti
tutto è scomparso e un altro giorno
ricomincio a scoprirli di lontano
sento che volano via e che ritornano
4
lungo le mura bave di vento strisciano farfalle
sulla città che Ia schiacciano
questi uomini sotto una nebbia asciutta
s’aprono ombrelli luminosi
è il segno che vogliono parlare, carissimi
nelIa città che scompare
5
i piedi affondano nella terra molIe
i piedi si dimenticano dentro Ia terra molIe
smemorato si alIontana con le stampelle di legno
le gambe cedono a una svolta del sottobosco
qui il suolo rifiorisce tutto a tappeto
c’è una testa appoggiata al davanzale
una lingua si sporge per sete
stracolmo di inganni
paese di Primavera
ricordate
6
isole cariche di verzura galleggianti
navigano nelI’aria isole lente
Il moto soffia nella verzura debole vento
35
uomini e donne distesi sulle pietre guardano
isole sospese di celeste verzura
uomini e donne galleggianti guardano in alto
non cadono doni né frutti
è una visione per tutti
7
per una stagione in letargo le stagioni sotto Ia terra
sotto coItri di foglie un corpo muIticolore
sogno un sonno celeste bulbi sospesi
voi tutti pronti ad accogliermi
poiché tutto deve essere deciso
appena ci si sveglia
O título da rie, Lettere, anuncia uma espécie de gênero que vai se tornar muito freqüente
na obra poética de Porta, que é o das “cartas” em forma de poesia, ou o dos “poemas-cartas”. Neste
novo gênero, aquele eu poético, como dissemos, agora expresso com muito mais freqüência em
primeira pessoa, vai instaurar um diálogo interno constante com seus possíveis interlocutores, ou vai
mesmo criá-los. Se antes a língua era de alguma forma friamente esfacelada nos seus mecanismos
sintáticos, agora a expressão se torna clara, com laços coesivos mais bem demarcados, o que permite
uma fluidez comunicativa que valoriza, não mais, ou não apenas, o nexo lingüístico, mas a constelação
de imagens, que é colocada em primeiro plano.
É preciso advertir, contudo, que o retorno se é que no caso da poesia de Porta cabe falar
assim à normalidade sintática e à limpidez expressiva, antes presentes na poesia remota de Leo
Paolazzi, não implica numa facilitação da leitura ou numa crença no estabelecimento de diálogos fáceis
com os seus interlocutores internos ou com os seus possíveis leitores. Ao contrário, o discurso é
sempre muito alusivo e indireto, o que obriga o leitor a se apegar justamente à concretude das
imagens, à fisicidade das situações e dos eventos no seu acontecer, com atenção especial ao que se
move ou está inerte, ao que de vivo ou que está morrendo, no movimento próprio de existência no
tempo que cada poema instaura e representa a seu modo. Nesse aspecto, a poesia de Porta não
apresenta jamais pretensões metafísicas e nunca se distancia das coisas e da vida em direção a uma
elaboração filosófica de uma visão de mundo ou de uma ideologia que dêem respostas positivas ou
pessimistas, reativas ou niilistas, mas afinal sempre consoladoras. Em vários momentos ao longo de
sua trajetória, Porta vai mesmo reafirmar a sua recusa à autocomplacência do “poetês” e à idolatria,
ainda que disfarçada, da imagem do poeta como um ser especial que habita a esfera etérea da
sensibilidade e da intuição, distante dos outros e dos embates travados na vida de todos.
27
27
MORONI, op. cit., p. 17.
36
No mesmo ano da publicação de Week-end, Antonio Porta publica pela primeira vez em forma
de livro o texto para teatro La presa di potere di Ivan lo sciocco (1974), uma espécie de “fábula
alternativa”, como a chama Moroni, pelo fato de amalgamar características da tradição das fábulas
populares e das representações sacras com conteúdos históricos, sociais e ideológicos
contemporâneos.
28
Mas o se trata de uma estréia no gênero: em 1966, Porta havia publicado o
texto Stark, no número 2 da revista de literatura e arte Grammatica (ao lado da importante revista Il
quindici, essa revista também foi veículo de difusão “oficial” das idéias do Gruppo ’63 e da
neovanguarda),
29
e dois anos depois, o texto Si tratta di larve (1968), no número 3 da revista literária Il
Caffè, dirigida pelo jornalista e editor Giambattista Vicari.
O próximo livro de Antonio Porta vai ser publicado em 1977 e se intitula Quanto ho da dirvi,
título que retoma o último verso do poema de número 1 da rie Lettere, que comentamos (ecco
quanto ho da dirvi, carissimi). O livro se constitui numa reunião da produção poética de 1958 até 1975,
e a respeito dele é interessante ouvir as próprias palavras do autor, extraídas de uma entrevista
concedida ao crítico literário Luigi Sasso:
Ho compiuto un’operazione con Quanto ho da dirvi: ho ristabilito l’ordine cronologico delle mie poesie,
che mancava soprattutto nella raccolta dei Rapporti. Di fatto c’è una cesura tra Ia prima e Ia seconda
parte che non è soltanto cronologica, perché si arriva al ’68. Quella è una data che rimane importante. La
distinzione in due periodi mi pare, quindi, un’osservazione corretta. Qual’è Ia differenza e quale, even-
tualmente, Ia contraddizione? In profondo non c’è contraddizione, nel senso che allora, per vivere, ave-
vamo bisogno di questa prospettiva, di questa utopia, di questo progetto, e infatti lo perseguivamo con
forza e convinzione. Poi questo progetto si è bloccato; allora ciascuno di noi si è trovato ad essere di
nuovo piuttosto solo e Ia poesia è diventata soprattutto uno strumento di resistenza, di volonassoluta
di continuare [...].
30
Como as palavras acima sugerem, o livro de 1977 é produto de uma tentativa de reorganização
e de reflexão, em chave retrospectiva, sobre a própria poesia e o modo como pode continuar existindo
depois das transformações, contradições e frustrações ideológicas, e, acrescente-se, estéticas,
resultantes dos acontecimentos políticos e culturais de 1968 na Europa, e que Porta e os seus
companheiros de geração viveram intensamente. Passada uma cada, por volta de 1977, o
movimento da neovanguarda já pode ser considerado, ainda que paradoxalmente, histórico, e as
esperanças de uma renovação constante das formas de fazer e ler poesia necessitam ser repensadas
e redirecionadas. No caso de Porta, em Quanto ho da dirvi, tulo que sugere um diálogo do poeta
com os seus possíveis leitores e que assinala uma consolidação da dimensão comunicativa da sua
poesia, está presente um sentido geral de multiplicidade de caminhos e de incerteza, que vai tomar a
28
MORONI, op. cit., p. 61.
29
Cf. verbete: “Grammatica (rivista)”. Wikipedia. Disponível em: http://it.wikipedia.org/wiki/Grammatica_%28rivista%29. Acesso
em: 19 abr. 2006.
30
Apud MORONI, op. cit., p. 65.
37
forma emblemática do personagem do “passageiro”, justamente o título Passeggero de uma série
de poemas presentes no livro, de que apresentamos abaixo o de número X:
31
X
disteso in una piccola barca
un metro al limite da una meta
alIunga un braccio Ia mano non trova
l’immagine distesa sul muro è corpo
non ci sono odori e un suono stridente
un albero immerso nell’acqua si fa vicino
ali minuscole sbattono alI’intorno
ombrelIe estive attraversano Ia luce
bocca che inghiotte le sue labbra
appoggia una mano alI’ombra si mette
seduto e dice: ancora
Como é freqüente na poesia de Porta, o poema reproduzido acima apresenta uma cena, um
esboço de narrativa, em que aparece um personagem que vive um evento, que se move e age num
espaço determinado. Como havíamos dito, o que ressalta agora, dada a limpidez da expressão
lingüística, a homogeneidade rítmica da métrica acentual e o caráter sintético e pouco explicativo do
encadeamento narrativo, é a concretude das imagens, na sua eventual estranheza. O desafio do leitor
será sempre, ainda que aligeirado do peso do deciframento lingüístico, o de dar um sentido aos
eventos descritos e às ações realizadas por aquele personagem. Como o conjunto dos versos, ainda
que claros, mais sugerem e aludem do que propriamente esclarecem, a doação de sentido não se
completa num mero automatismo do reconhecimento da cena, antes exige uma atenção plena ao que
se mostra e convida o leitor à reflexão. O personagem do poema, o passageiro (e podemos pensar em
personagens do mesmo gênero, como o do viajante ou do nômade) é uma caracterização perfeita do
que representa para o leitor o próprio sentido, móvel e erradio e mesmo assim, ou justamente por
isso, prenhe de possibilidades interpretativas – do poema como um todo.
Um ano depois da publicação de Quanto ho da dirvi, Porta publica o seu segundo romance, Il
re del magazzino (1978). Em comparação com o primeiro romance de 1967 (Partita), em termos
superficiais Il re del magazzino pode ser considerado menos ambicioso, versado que é numa prosa
narrativa mais simples e mais linear. Do ponto de vista do gênero, o romance se mostra inclassificável,
pois mescla à prosa narrativa, ao longo dos seus trinta e dois capítulos curtos, notícias extraídas de
jornais à época da composição do livro, ilustrações e – particularidade importante que religa o romance
à obra poética do autor trinta cartas em forma de poesia, que o narrador endereça aos seus filhos.
Dali a poucos anos, estes poemas-cartas vão ganhar vida autônoma no livro L’aria della fine (1982).
31
Cf. também a análise e a tradução comentada deste poema apresentada no Capítulo 3, p. 108-110.
38
Antonio Porta abre a década de oitenta com um novo livro, intitulado Passi passaggi (1980).
Segundo Mario Moroni, que reproduz uma expressão que havia sido empregada pela crítica literária
Niva Lorenzini, este livro marca uma nova virada na poesia do autor em direção a uma também nova
“fenomenologia do olhar”.
32
Se antes o olhar (e, por extensão, o sentido da visão), associado que é a
um sentimento do trágico, é elemento proeminente na poética portiana desde o início, agora este olhar
se torna menos dramático e cada vez mais atento aos apelos sensoriais e sensuais, ainda que tantas
vezes dolorosos, da matéria e do ambiente circundante. Tomemos como exemplo um dos poemas da
série que leva o mesmo título do livro:
33
se il fiume stretto
spinto dalla luce deI mattino
risale Ia montagna luccicante
uno che passa raccoglie una pietra liscia
per gioco lancia nell’aria quella pietra levigata
Ia vetrata s’incrina s’infrange polvere tagliente
sopra i tappeti erbosi sanguinanti i piedi
se il fiume stretto
spinto dalla luce del mattino
risale Ia montagna luccicante
uno che passa raccoglie una pietra liscia
per gioco lancia nell’acqua con forza
Ia vetrata s’incrina infranta in polvere tagliente
sopra i tappeti d’erba a piedi sanguinanti
discende nello specchio deI piano
i pesci boccheggiano nell’universo svuotato
A essa altura, a poesia de Antonio Porta se apresenta em plena maturidade, e é possível
reconhecer no poema reproduzido acima muitos dos traços que apontamos até aqui, reconduzidos
agora a um novo patamar de técnica poética e de valor estético. A dimensão comunicativa se mostra
totalmente consolidada e se manifesta através de uma clareza lingüística, tanto no nível sintático
quanto no textual, embora sempre pontuada por sutis ambigüidades sintáticas e lexicais; também
um reaproveitamento daquela linguagem de eventos e objetos em função de uma acentuada
valorização da presentidade das imagens e dos acontecimentos, que solicita a participação reflexiva e
interrogante do leitor.
O próximo livro de Porta tem um valor especial, pelo fato de “atravessar” a obra poética do
autor da metade dos anos setenta ao início dos oitenta. Trata-se de L’aria della fine (1982), que reúne
os poemas-cartas denominados Lettere ou Brevi lettere, escritos de 1976 a 1981. O livro se compõe de
três partes cronologicamente encadeadas: a primeira parte, intitulada 1976”, reapresenta os poemas-
cartas que haviam aparecido no romance Il re del magazzino publicado em 1978, agora
32
MORONI, op. cit., p. 79.
33
Cf. também a análise e a tradução comentada deste poema apresentada no Capítulo 3, p. 111-117.
39
independentes; a segunda parte, intitulada “1978”, reúne as Brevi lettere pertencentes ao livro Passi
passaggi de 1980; e a última – “1980-1” – apresenta novas composições.
Essa reorganização de parte da produção passada combinada com a então mais recente não é
apenas uma operação editorial indiferente às transformações por que passa a poesia de Antonio Porta.
Ao contrário, justamente por ser uma seleção que retira do conjunto da obra produzida até aquele
momento os poemas que fazem parte daquele gênero ou subgênero particular dos poemas-cartas, o
livro coloca em evidência certos traços que vêm se afirmando com cada vez mais vigor na passagem
de uma cada para outra. De certa maneira, L’aria della fine tem valor semelhante, embora mais
pontual, a Quanto ho da dirvi, no que estas obras significam como forma de auto-reflexão sobre a
própria poesia e o redimensionamento de uma prática que vai aos poucos cristalizando, sem enrijecer,
contudo, uma dicção e uma vontade de interlocução com a realidade e o ambiente circundante. Assim,
L’aria della fine, mesmo na sua variedade interna, vai aprofundar e nuançar a dimensão narrativa e
comunicativa da poesia portiana, na projeção de um sempre inconcluso e intenso diálogo do eu poético
com os seus virtuais interlocutores. Vejamos dois poemas-cartas, o de número 4,
34
que pertence à
primeira parte do livro, e o de número 63, que pertence à terceira parte:
4
non sono un poeta-ciotolo come Beckett
non interrogo i cieli di cartapesta del teatro
vi confesso che non so interpretare Ie costellazioni
né stare lì a guardarle dal buco del cortile a meraviglia
ma uso quelle delle parole a mosaico compongo e ricompongo
per parlarla insieme questa lingua questi linguaggi
solleviamola Ia lingua a vedere che c’è sotto
parliamola Ia parola svelata con Ie radici senza pudore
(questo biglietto vi consegno a futura memoria)
63
Ciò che rimane per sempre
incomprensibile è che Ia natura
(e per natura Iui intendeva: l’universo)
diventi comprensibile. Ciò che è
ogni volta incomprensibile è Ia poesia
(e per poesia s’intende: il linguaggio poetico)
quando rovescia l’ordine delle attese
diventa comprensibile.
leri aI centro deI bosco una fontana geIata
(e per fontana geIata intendo: ingabbiata
da staIattiti di ghiaccio).
Oggi daI bosco che Ia circonda goccioIante
esce l’estate piena che ti stringe con Ie sue foglie
34
Este poema, que não aparece na antologia organizada por Niva Lorenzini, foi extraído de: PORTA, Antonio. L’aria della
fine: brevi lettere 1976, 1978, 1980, 1981. Genova: Edizioni San Marco dei Giustiniani, 2004, p. 24.
40
Ia fontana di ghiaccio è un fantasma
che taglia: è Ia poesia
a dire Ia fontana invisibile
(o visibile sopra uno schermo tenuto nascosto)
anche ora rimane prigioniera deI ghiaccio
il momento che è insieme passato
e presente e futuro:
occorre prepararsi non farsi sorprendere,
vivere in anticipo,
questo dice Ia poesia.
Ao contrário do que se poderia esperar de uma produção poética que apresenta um caráter
auto-reflexivo tão acentuado, o poema estritamente metalingüístico não é muito freqüente na obra de
Porta. Isso talvez por falta de necessidade. Como temos visto, a preocupação extrema com a forma do
poema, nos seus aspectos lingüísticos, semânticos e estruturais mais estritos, no seu afastamento das
formas e dicção comuns à tradição lírica italiana e na criação de uma poesia marcada por um
ascetismo emocional rigoroso, é de alguma maneira, sem que isso precise ser expresso na letra do
texto, metalingüística. Como o próprio autor enfatiza desde o início da sua atividade de poeta, a (sua)
poesia é um fazer, e as marcas no feito do processo mesmo do fazer o suficientemente evidentes
para que seja preciso procurá-las numa dimensão obscura qualquer dos poemas e da obra como um
todo. Seja como for, não é pouco significativo que os dois poemas apresentados acima, propriamente
metalingüísticos, ou, como se queira, metapoéticos, tratem de aspectos essenciais da constituição da
poética e da obra do autor.
No poema de mero 4, a menção a Samuel Beckett, como assinalamos, escritor importante e
uma influência discernível não na obra de Porta mas também em alguns dos seus companheiros da
neovanguarda, o Beckett do absurdo e das interrogações sem resposta, da angústia metafísica que
nunca se resolve, aparece como personagem real e ao mesmo tempo imaginário, ao qual se contrapõe
uma vontade de fazer do poeta que vai encontrar a sua razão de ser não no desejo de “verticalização”
ou aprofundamento da consciência, tal como arúspice que colhe significados absconsos observando a
configuração das estrelas, como tanta poesia lírica moderna. Dessa vez, é claríssima a afirmação de
um projeto de poesia que, agora, sim, fala de si, mas não como um mundo fechado da subjetividade;
ao contrário, quer se projetar no plano “horizontal” (porque compartilhado pelos indivíduos)
característico da comunicação lingüística e social (os termos entre aspas são do próprio Porta, que vai
empregar uma expressão como “o desafio horizontal da comunicação”).
35
O poema 63 apresenta ao final do texto, como uma dedicatória ou uma reverência, o nome de
Luciano Anceschi e a data de sua composição (28.6.1981). Como se vê, a essa altura o passados
mais de vinte anos de prática poética e Antonio Porta continua a dialogar com o crítico que havia
35
LORENZINI, Niva. “Postfazione”. In: PORTA, Antonio. Poesie: 1956-1988, p. 190.
41
preparado o terreno, através da revista Il Verri, para a eclosão da neovanguarda e estimulado a
produção de toda uma nova geração de poetas. Bem ao modo da poesia mais recente do autor, o
poema apresenta sub specie aenigmatis imagens elegantes e intrigantes – completamente livres,
entretanto, de qualquer tipo de rebuscamento retórico –, do que pode ser, do que quer ser aquela
poesia.
No mesmo ano de publicação de L’aria della fine, Porta publica o livro Emilio (1982), um
poemeto para crianças acompanhado de ilustrações do cartunista italiano Francesco Tullio-Altan
(conhecido simplesmente como Altan). O título naturalmente lembra o tratado do filósofo franco-suíço
Jean-Jacques Rousseau, e a seu modo e na sua escala também vai tratar da formação e do
desenvolvimento da criança, no livro, o pequeno Emílio, e da sua descoberta do mundo através do
olhar e da observação, em contato direto com o ambiente e a natureza.
A poesia da maturidade de Antonio Porta conta com o poder da surpresa. A busca permanente
por parte do poeta de renovação formal nunca é gratuita, e a exploração de uma nova forma vai
significar sempre o reaproveitamento e a concentração em aspectos e traços que haviam aparecido
anteriormente, alguns mesmo desde o início da trajetória do poeta. Enfim, o que é duramente
conquistado nunca é descartado apenas pelo gosto da novidade, mas é sempre um aprofundamento
de conquistas anteriores. Ainda assim, há espaço também para o que ainda não havia sido tentado, e o
livro Invasioni, publicado em 1984, é uma demonstração disso. Nesse livro, Porta, além de aproveitar
os resultados de uma prática poética de quase três décadas, de alguma forma se reconcilia com a
poesia de sua juventude quando ainda assinava como Leo Paolazzi e, fato em princípio inesperado,
dialoga também com a tradição lírica da poesia italiana.
Numa série que leva o mesmo título do livro, lêem-se poemas como os que seguem:
l’ombra di un passero picchia in g
riga sul vetro della finestra
accende il quadrato d’erba
dove è sceso
pruni fioriti a cespuglio
Ia collina bruciata dai geli
ciuffi di capelli candidi
segnali di primavera
i latrati dei cani ancora
gelano l’aria di lontano
Ia terra sorda
lentissimo era il volo della notte
ora si fa veloce
Ia stagione si apre
42
da un minuto all’altro
merli luccicanti nello specchio dell’alcool
trasparenza della notte
canti deI gelo
farfalle di luce volano giù dalla montagna
gli scorpioni si acquattano
Ia bestia enorme acquattata
questa notte si è riempita di neve
Ia mattina si alza, Ia scuote via
moltitudine di ireos
sbucati sulla scarpata
alcuni celeste mattina
altri azzurro notte
o sangue
Os poemas da rie Invasioni apresentam uma configuração formal extremamente sintética e
uma linguagem concisa que lembram naturalmente o hai-kai, sem que obedeçam necessariamente às
regras métricas desse gênero tradicional da poesia japonesa. De modo geral, os temas e motivos
desses poemas resultam sempre de uma observação atenta da natureza e das suas mutações cíclicas
(mais uma afinidade com o hai-kai), como, por exemplo, o cair da noite ou a chegada da primavera.
Está sempre presente também a vida, seja a do animal que se abriga do frio do inverno, seja a do
pássaro que bate na janela, ou da exuberância de cores de uma planta. Essas composições realmente
nos remetem a alguns dos poemas juvenis de Leo Paolazzi, mas se apresentam agora numa dicção
transfigurada de um eu poético que, mais do que falar de si, se deixa invadir pelas coisas ao seu redor
e, com atenção concentrada, vai registrando o que e ouve. Pode-se falar mesmo de momentos de
epifania. É a forma serena e ao mesmo tempo intensa com que se apresenta, pelo menos no que
concerne a essa série específica, aquela poética dos objetos e aquela linguagem de eventos, agora
completamente livres de um sentimento do trágico ou de uma relação conflituosa e dramática com a
realidade.
Uma outra seção do livro Invasioni é intitulada “Andate, mie parole”, tulo que faz referência
direta à tradição da canção e da poesia lírica italiana do século XIII e XIV, em que era freqüente a
estrofe metalingüística (lembramos aqui, por exemplo, as canções Donna me prega e Perch’i’ no spero
di tornar giammai do poeta toscano Guido Cavalcanti, poeta que, junto com Dante Alighieri, foi um dos
principais mentores na criação do Dolce stil nuovo, a nova poesia lírica em língua vulgar que vai
aparecer ao final do século XIII na Itália). Outra referência explícita à tradição lírica antiga é o poema
Canzone, que aparece naquela seção, título que evoca a que foi considerada por Dante como a melhor
43
e a mais nobre forma métrica e estrófica da poesia amorosa em vulgar (a esse respeito, conferir o início
do capítulo III do tratado De vulgari eloquentia de Dante):
36
CANZONE
non riuscirò a dire mai
Ia stagione che nasce, Ia perdita
di peso, non solo intreccio
di alberi floriti e il volo
mi costringe aI silenzio
ma parlo
foglie bucano Ia luce
il bosco intero lievita in un cerchio
foglie nel buio ripetono gli inganni
(le mie parole così pesanti)
quanto mi è estraneo negare Ia gravità
quanto lo desidero
soffiarmi in un soffio
lama orizzontale nella chiarità,
quando tutto dimostra un fine preciso
allora scartare, non dire più nulla
ascoltare Ia ferita che si riapre
muove un gorgoglìo prima della sordità
a sguardo aperto scoprire
altre ferite gorgoglianti
Per fare una canzone occorre
rubare il tempo, curvare il fiume
baciare l’ansa, l’anca che scivola via.
È lieve l’incendio diffuso
pure soffia deciso alle mie spalle
spinge verso il fuori, strisciare?
Questo potrei farIo da solo, dirIo
respiro e soffocazione, soffocazione
e riscatto, nodi che si sciolgono dentro
Ia gola è il principio
un attimo fa era ancora Ia fine, basta
con i controlli, sto segando accanito
l’ultima finestra, le sbarre invulnerabili
libero e prigioniero, ossesso, ossessionato
come una donna, libera e prigione
aderisce alla nuda terra seminata,
non c’è più nulla da aspettare, ora.
36
ALIGHIERI, Dante. Tutte le opere. A cura di Luigi Blasucci. Milano: Bompiani, 1993, p. 229: Nunc autem quo modo ea
coartare debemus, que tanto sunt digna vulgari, sollicite vestigare conemur. Volentes igitur modum tradere quo ligari hec
digna existant, primo dicimus esse ad memoriam reducendum, quod vuIgariter poetantes sua poemata multimode
protulerunt, quidam per cantiones, quidam per ballatas, quidam per sonitus, quidam per alios illegitimos et irregulares
modos, ut inferius ostendetur. Horum autem modorum cantionum modum excellentissimum esse pensamus; quare si
excellentissima excellentissimis digna sunt, ut superius est probatum, illa que excellentissimo sunt digna vulgari, modo
excellentissimo digna sunt, et per consequens in cantionibus pertractanda. Trad. italiana: Ed ora affrettiamoci a ricercare in
quale forma metrica dobbiamo restringere quei soggetti che sono di sì grande volgare. Pertanto volendo insegnare Ia forma
in cui sieno degni d’essere legati, dico anzitutto doversi richiamare alla mente che chi ha poetato in volgare ha espresso le
sue poesie in molte varietà metriche: alcuni in canzoni, altri in ballate, altri in sonetti, altri in diverse forme fuori legge e di
eccezione, come più sotto sarà mostrato. E di queste giudico che Ia forma delIa canzone sia Ia più eccellente; e però se le
cose più eccellenti sono degne delle più eccellenti, come sopra s’è provato, quelle che sono degne del volgare più eccellente
sono degne della forma più eccellente e di conseguenza debbono in canzoni esser trattate.
44
Vai, canzone mia
e ripeti a chi guarda irridendo
a chi rinuncia: «te, io derido».
Vieni, canzone mia
fermati alIo specchio
e nel riflesso alIegra
ridi con il tuo autore.
Ali tese un faIco punta sul prato
sopra di lui il minuscolo luì
mima il suo gioco, Ia preda, un topolino
ha il tempo di fuggire piu in là
fin che c’è luce ripetono Ia danza.
Em 1986, sai a publicação do poema para teatro La festa del cavallo e, no ano seguinte, a do
livro Melusina. Em ambos, Antonio Porta experimenta um tipo de escritura que retoma o mito e a fábula
como modelos narrativos. De fato, o texto para teatro faz menção à “festa do cavalo”, um antigo
costume da Ásia Central em que, ao invés de se sacrificar um cavalo como tradicionalmente se fazia
em algumas cerimônias rituais, o animal designado para o sacrifício era libertado e, portanto, escapava
da morte; e a balada Melusina, que título ao livro de 1987, revoca o personagem lendário da fada
Melusina, que aparece, em tradições narrativas européias as mais diversas, retratada como um peixe
ou uma serpente, algumas vezes também como uma sereia.
Em 1988, Antonio Porta publica o seu último livro de poesia Il giardiniere contro il becchino. De
acordo com Mario Moroni, o título do livro acusa a presença dos dois últimos personagens-guias da
poesia de Porta, o do “jardineiro”, que indica as forças de vida e de vitalidade, e o do “coveiro”, que
indica as forças de morte e de autodestruição, forças em luta permanente tanto na vida social e política,
portanto, coletiva, quanto na vida do indivíduo.
37
Nesse livro, pode-se destacar como uma espécie de
testamento poético do autor a série de poemas intitulada Airone, em que a garça é simultaneamente
figura concreta e alegórica daquelas duas forças em combate, que se projetam na dimensão ao mesmo
tempo natural, humana e cósmica. Tomemos como exemplo os poemas de número 13 e 17:
13
Sei arso di grazia nel tuo cielo
di una grazia che viene dalla grazia di essere
un dono che viene da se stesso
ora bruci nella morte che viene dalla morte
come Ia nascita discende dalla nascita
sogno che è figura di un altro sogno
ferite che si allungano sopra altre ferite
e una mano d’acciaio piomba
immensa dal tuo cielo, airone nemico,
belva furente, mi acciechi,
qui ti odio, ti uccido
se posso ma non posso
37
MORONI, op. cit., p. 95.
45
e ormai morte sei solo
che nasce dalla mia morte
e un vagito violento resiste
e nessuno ci credeva, più
ma un riso subito risuona
e rimbalza su di noi
acqua scroscia dalla collina...
17
Ancora una volta non l’ultima volta
volando osservando dalI’alto i capricci
delIe acque, a mordere il più molIe,
a curvarsi su di sé, a sbocciare i ciuffi, i riccioli
in cresta di onda, sotto rimane nascosta
Ia placenta che tutto contiene,
cunicoli di dove Ia vita risale veloce
e non vi è traccia di maschio sulIa terra,
conserva gli invisibili geni per Ia madre e Ia madre
risucchia tutto e tutto restituisce
in forma di albero, di foglie, di erbe, di muschio,
di licheni, di anellidi, di bacche odorose, Ia mia bocca
si apre per accoglierla, Ia lingua delIa terra,
stringerla tutta dentro di sé.
No ano seguinte ao da publicação de Il giardiniere contro il becchino, Antonio Porta morre
prematuramente de um ataque no coração. E com a sua morte prematura se encerra também, como
afirmam os críticos que mais m se dedicado ao estudo da sua obra, citados várias vezes neste
capítulo (Moroni, Picchione, Lorenzini), uma das trajetórias literárias mais intensas e enérgicas dos
últimos quarenta anos na Itália, e mesmo na Europa. Um ano antes da sua morte, no artigo teórico “A
lezione da Antonio Porta”, publicado no número 7-8 da revista Poesia (julho/agosto,1988), artigo que
pode ser considerado ao mesmo tempo um legado e um projeto afirmativo, Antonio Porta apresenta
uma idéia de poesia sempre interrogante, que nunca se fecha em si mesma; ao contrário, está sempre
aberta a horizontes novos, à redescoberta do real e da comunicação com o outro:
La poesia è un’avventura linguistica. Fare poesia significa, prima di tutto, attraversare Ia lingua
nella sua globalità e nei suoi usi specifici, Ia lingua che è in perpetuo sommovimento, la lingua quale
mare in tempesta. Fare poesia è navigare, come Ulisse sulla nave di Omero [...].
La poesia è avventura linguistica perché si conosce il punto di partenza e non quello di arrivo.
Non si può neppure parlare, propriamente, di un punto di arrivo perché Ia «risposta» della poesia è una
domanda ulteriore, una frase che mette in crisi tutte Ie frasi che l’hanno preceduta.
38
Antes de encerrar este capítulo, cabe falar das outras atividades de Antonio Porta como
escritor. Desde o início de sua trajetória, além da sua atividade poética, Porta, trabalhador incansável,
mantém uma intensíssima atividade de ensaísta literário, tradutor e de grande debatedor, divulgador e
promotor cultural, especialmente no campo da edição e publicação literária, em que atua como agente
38
Apud PICCHIONE, op. cit., p. 4.
46
e consultor de algumas editoras italianas importantes (trabalha na editora do pai, a Rusconi e Paolazzi,
de 1957 a 1967; a partir de 1968, na editora Bompiani, como diretor administrativo; de 1977 a 1971,
como diretor da editora Feltrinelli). Além de Il Verri, colabora com as revistas Alfabeta, Malebolge, Il
quindici, Gola, Tabula, entre várias outras; em vários momentos e ocasiões diferentes, escreve para os
jornais Giorno, Corriere della sera, Panorama, Unità, Europeo. Organiza programas culturais da RAI
(Radio Televisione Italiana) e participa de seminários nas universidades de Chieti, Yale, Pavia, Bolonha
e Roma, além de visitar escolas como leitor e divulgador de poesia.
Porta traduz escritores e poetas de língua francesa (André Pieyre de Mandiargues, Paul
Léautaud, Pierre Reverdy, Jude Stéfan, Jacques Roubaud, Louise Labé); de língua ale (George
Trakl); de língua inglesa (Ted Hughes, Patti Smith, Shakespeare, Edgar Lee Masters, Maurice Sendak);
de língua espanhola (Federico Garcia Lorca); traduz também do latim os Persas de Plauto; poemas do
poeta suíço de origem grega Nanos Valaoritis; e poemas em inglês da poetisa multilíngue Amelia
Rosselli. Desde o final dos anos cinqüenta até a década de oitenta, a sua contribuição para revistas
literárias e culturais, jornais e outras publicações periódicas é imensa (contam-se mais de trezentos
artigos). Um número considerável de textos de Porta (mais de trinta), entre poesia, teatro e narrativa,
nunca foi publicado em forma de livro.
Conforme anunciamos na Introdução, depois do panorama sucinto da obra poética de Antonio
Porta que acabamos de expor neste capítulo, vamos dedicar o capítulo seguinte inteiramente à
discussão sobre tradução, com atenção especial à tradução de poesia. Como já havíamos dito
também, este capítulo e o seguinte servem de fundamento e preparação para o trabalho de análise e
tradução dos poemas selecionados dentre a obra do autor e que vamos apresentar no terceiro e último
capítulo desta dissertação.
47
CAPÍTULO 2
A TRADUÇÃO DE POESIA
Dentre os vários gêneros de tradução, o de tradução de poesia parece ser o mais controverso.
É o que disse a seu modo o escritor e tradutor francês do século XIX Marcel Schwob, num prólogo que
escreveu à sua tradução de alguns versos de Catulo, hoje perdida: “As traduções em versos têm
fama: ou conservam a forma e alteram totalmente o sentido, ou conservam o sentido e mandam a
forma às favas. Os dois métodos são igualmente defeituosos”.
1
Apesar do tom brincalhão, as palavras de Schwob resumem bem um dilema que não cessou
de atormentar tantos quantos se dedicaram ao assunto, especialmente poetas e tradutores. Na
verdade, a questão já é bastante antiga. Mesmo com as diferenças de base filosófica e de terminologia,
ela pode ser encontrada em textos escritos em épocas as mais diversas. Dante Alighieri, por exemplo,
poeta que também pensou sobre o assunto, já havia dito, no século XIV, no seu tratado do Convívio:
E però sappia ciascuno che nulla cosa per legame musaico armonizzata si può della sua loquela in altra
transmutare sanza rompere tutta sua dolcezza e armonia. E questa è la cagione per che Omero non si
mutò di greco in latino come l’altre scritture che avemo da loro. E questa è la cagione per che li versi del
Salterio sono sanza dolcezza di musica e d’armonia; ché essi furono transmutati d’ebreo in greco e di
greco in latino, e ne la prima transmutazione tutta quella dolcezza venne meno.
2
A expressão “liame musaico”, ou “liame da Musa”, adotada por Dante, se refere nada mais que
à constatação da indissolubilidade entre o conjunto de significados que o poema expressa e o conjunto
de sons e arranjos lingüísticos específicos por meio dos quais são expressos, liame esse que, no
momento da tradução do texto, inevitavelmente se desfaz e resulta na perda de “toda a sua doçura e
harmonia”. No caso do pensamento de Dante, está implícito também na expressão que o exercício da
poesia deve contar com a presença da inspiração, daí a referência à Musa, assim como de habilidade
artística e domínio retórico seguro, ou, para usar uma outra expressão sua, de “engenho e doutrina”,
3
elementos que serviriam para distinguir o verdadeiro poeta de um mero versificador.
1
SCHWOB, Marcel. “Prefácio a uma tradução de Catulo em versos marotianos (1883-1886)”. Tradução de Walter Carlos
Costa. In: FAVERI, Cláudia Borges de; TORRES, Marie-Helène Catherine (orgs.). Clássicos da teoria da tradução. v. 2
(francês-português). Florianópolis: UFSC, 2004, p. 177.
2
ALIGHIERI, Dante. Convivio. I, VI. In: ______. Tutte le opere. A cura di Luigi Blasucci. Milano: Sansoni, 1993, p. 117.
Tradução nossa: E por isso saibam todos que nada que é harmonizado por liame musaico pode transmutar-se da sua
língua em outra sem romper toda a sua doçura e harmonia. E esta é a razão por que Homero não se mudou do grego ao
latim como em outros escritos que temos deles. E esta é a razão por que os versos dos Salmos estão sem doçura de
música e harmonia; pois que esses foram transmutados do hebreu ao grego e do grego ao latim, e na primeira
transmutação toda aquela doçura foi perdida”.
3
A expressão aparece num trecho do tratado De vulgari eloquentia, II, I. In: ALIGHIERI, op. cit.,. p. 225.
48
No fundo, tanto a avaliação de Dante como a de Schwob a respeito da tradução de poesia é
negativa, e não é de admirar que a controvérsia tenha persistido durante tantos séculos e dure até
hoje. É que em poesia, como é possível entrever das palavras de um e de outro, o modo como se diz é
tão importante quanto aquilo que é dito. Foi o que afirmou de forma bastante precisa Paul Valéry, que
além de poeta foi também um refinado pensador da literatura e da estética, num ensaio escrito em
1955, em que comentava a sua tradução do latim para o francês das Bucólicas de Virgílio, realizada
cerca de dez anos antes:
Um poema, no sentido moderno (ou seja, que tenha surgido depois de uma longa evolução e
diferenciação das funções do discurso) deve criar a ilusão de uma composição indissolúvel de som e de
sentido, ainda que não exista nenhuma relação racional entre esses constituintes da linguagem,
reunidos palavra por palavra na nossa mente, ou seja, pelo acaso, para estarem à disposição da
necessidade, outro efeito do acaso.
4
Parafraseando Valéry nos termos da lingüística saussuriana, pode-se dizer que, num poema, o
liame entre o significante (som) e o significado (sentido), que constitui propriamente o signo lingüístico,
deixa de ser arbitrário, como normalmente o é na língua; pelo contrário, passa a ser necessário e
mesmo indivisível.
5
A questão da arbitrariedade do signo, tão claramente enunciada pelo lingüista genebrino
Ferdinand de Saussure e que na poesia encontraria a sua contestação –, também foi tratada de
modo muito rigoroso pelo filósofo e lógico norte-americano Charles Sanders Peirce, criador da
semiótica moderna. Na sua classificação triádica dos tipos básicos de signo, o signo lingüístico é
considerado um mbolo, mais propriamente um ‘legissigno’, que tem como característica fundamental
o fato de ser estabelecido por convenção (ou como uma lei, daí o prefixo ‘legi-‘), isto é, o de não haver
nenhuma ligação necessária entre o aspecto material do signo e o objeto que ele refere. no caso do
ícone e do índice, os outros dois tipos básicos, a ligação entre o signo e o que ele refere não é
convencional, mas se estabelece, no caso do primeiro, numa relação de semelhança (por exemplo, um
desenho de uma figura humana), e no caso do segundo, numa relação de contigüidade (por exemplo,
fumaça indicando presença de fogo).
6
4
VALÉRY, Paul. “Variações sobre as Bucólicas de Virgílio”. Tradução de Paulo Schiller. In: FAVERI et al., op. cit. p. 195.
Cf. também: VALÉRY, Paul. Oeuvres. v. I. Paris: Gallimard, 1968, p. 1709.
5
Não serão discutidos aqui todos os meandros dessa questão complexa. Ao longo do século XX, a noção da arbitrariedade
(absoluta) do signo foi rediscutida inúmeras vezes e, se não contestada de todo, pelo menos relativizada por vários
lingüistas, relativização, diga-se, que o próprio Saussure havia feito. Cf.: SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística
geral. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 14. ed. São Paulo: Cultrix, 1988, p. 81-84. Cf.
também: JAKOBSON, Roman. “À procura da essência da linguagem”. In: ______. Lingüística e comunicação. Trad. Izidoro
Blikstein e José Paulo Paes. 19. ed. São Paulo: Cultrix, 2003.
6
PEIRCE, Charles Sanders. “O ícone, o indicador e o símbolo”. In: ______. Semiótica e filosofia. Introdução, seleção e
tradução de Octanny Silveira da Mota e Leonidas Hegenberg. São Paulo: Cultrix, 1984, p. 115-120. Cf. também:
PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1987, p. 44-48; COELHO NETTO, José Teixeira.
Semiótica, informação e comunicação. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 56-62.
49
Grosso modo, do ponto de vista da semiótica, o que acontece na poesia é que os signos
lingüísticos, convencionais por definição, tendem a assumir simultaneamente a função de ícones. É por
isso, então, que, num poema, o aspecto material dos signos lingüísticos, vale dizer, as suas
características sonoras, compreendidas em toda sua amplitude (características fonéticas, rítmicas,
métricas) e os arranjos formais em que aparecem (sejam eles morfológicos, sintáticos ou textuais mais
amplos) passam a ter tanta importância quanto os significados e imagens que eles veiculam, pois entre
o conjunto formal materialmente concreto e o conjunto dos significados tomados abstratamente são
criadas relações de semelhança de certo tipo.
Para dar um exemplo do que se está falando, tomemos ao acaso os versos iniciais do poema
Vegetali, animali (1958)
7
de Antonio Porta:
Quel cervo la vigile fronte penetrata nei dintorni
nel vasto prato rotondamente galoppando
s'avviò; a volo le lunghe erbe
da ogni parte afferrava finché l'erba
cicuta lo pietrificò. [...]
Como é bastante freqüente na obra de Porta, sobretudo na dos anos sessenta, como vimos no
Capítulo 1, desde o início o leitor é convidado a assistir a uma cena narrativa, um pequeno episódio,
geralmente de forte carga dramática, que vai se desenrolando na seqüência da leitura. Nos versos
citados, trata-se da descrição de um evento: um cervo que corre pelo campo num trote ritmado e
harmonioso e, ao mesmo tempo que corre, arranca com a boca as ervas do chão. De repente, cai
petrificado. Sem se dar conta, morre envenenado pela cicuta que acabou de comer. Resumido assim,
esse pequeno episódio narrativo, apesar da sua dramaticidade, despertaria pouco interesse não fosse
exatamente o modo como é apresentado, que estabelece relações de semelhança bastante precisas
com a imagem da cena e o seu sentido global.
No primeiro verso do trecho, temos a imagem de um cervo que cuidadosamente olha para o
campo antes de partir a galope (Quel cervo la vigile fronte penetrata nei dintorni). Mas note-se que o
sentido de cuidado e de atenção do cervo não é expresso somente pelo significado do sintagma vigile
fronte, mas também pela própria construção deste verso e dos seguintes, que, do ponto de vista da
sintaxe, formam um período completo (Quel cervo... s’avviò). E aqui, como ao longo de todo o poema,
a sintaxe, de caráter um tanto rebuscado devido à inversão da ordem direta, acompanha perfeitamente
a seqüência de imagens e coopera na ordenação dos recortes visuais. Assim, temos: a imagem do
cervo tomado como um todo (o agente da ação e o sujeito sintático: Quel cervo); a focalização na
cabeça e no olhar atento ao entrar pelo campo (a oração intercalada: la vigile fronte penetrata nei
7
Esta e todas as outras citações desse poema neste capítulo foram extraídas de: PORTA, Antonio. Poesie: 1956-1988. A
cura di Niva Lorenzini. Milano: Mondadori, 1998, p. 12.
50
dintorni); novamente uma imagem panorâmica do campo e do cervo que galopa (nel vasto prato
rotondamente galoppando); o cervo que corre e ao mesmo tempo arranca as ervas (a volo le lunghe
erbe da ogni parte afferrava); e, por fim, a interrupção do galope e a queda (finché l’erba cicuta lo
pietrificò).
Mas não é somente a construção sintática que colabora com os significados expressos no
trecho; também os arranjos sonoros, no nível fônico, métrico e rítmico desempenham o seu papel.
Alguns exemplos: o sentido de galope harmônico e ritmado do cervo, expresso pelo advérbio
rotondamente, se manifesta também através de versos longos, de ritmo lento e compassado; a
imagem das ervas longas arrancadas pelo cervo é reafirmada pelas próprias características fonéticas
do sintagma le lunghe erbe, em que a laba lun- em que aparece a vogal u seguida da consoante
nasal n, por ser tônica, já é ligeiramente mais longa e somada a isso a elisão do -e final de lunghe com
o e- inicial de erbe, que também causa a sensação de alongamento; o envenenamento do cervo e a
sua queda são marcados por interrupções abruptas daquele ritmo harmonioso (finché l'erba cicuta lo
pietrificò), assinaladas pela presença das palavras oxítonas finché e pietrificò; um pouco antes, o verbo
avviò havia causado uma pequena parada, que coincide exatamente com a progressão temática do
trecho, isto é, primeiro a focalização no agente da ação e depois na ação de arrancar as ervas.
Todos os exemplos enumerados nos dois parágrafos anteriores mostram o quanto os
significados lexicais específicos e o sentido global dos versos são acompanhados de um tratamento
equivalente no nível fônico e rítmico, sintático e textual. Ou seja, a forma do poema não é indiferente
aos significados que veicula; pelo contrário, é parte constituidora dele, sem que se possa separar uma
de outro. Normalmente, a qualidade estética de um poema pode ser atestada justamente nessa
combinação única e irrepetível entre a sua matéria ou assunto e o tratamento formal que lhe é dado. É
por isso que, quando se faz a paráfrase de um poema, como, por exemplo, no próprio resumo da cena
narrativa do trecho apresentado mais atrás, se perde o essencial. É importante frisar, entretanto, que o
essencial de que se fala não é a forma em si, nem o conteúdo desvinculado dela, mas exatamente a
maneira como este se realiza naquela.
Como conseqüência lógica dessa constatação, isto é, da percepção de que o que é dito em
poesia está tão fundamentalmente ligado com o modo como se diz, chega-se a conclusão de que não é
possível isolar os significados expressos por um poema da língua que o expressa. Entende-se, então, o
dilema enunciado por Schwob e o sentimento de perda implícito nas palavras de Dante. É que, na
verdade, a constatação da unidade entre forma e conteúdo na poesia parece confirmar uma outra,
também antiga e de alcance mais geral, repetida por alguns filósofos, poetas e lingüistas quase como
um dogma, a da impossibilidade da tradução. Com base nela, a dificuldade de traduzir poesia seria
51
vista apenas como um caso específico e mais grave de algo que inevitavelmente acontece com
qualquer tipo de tradução.
O tema da impossibilidade da tradução parte da experiência prática incontornável daquilo que
foi denominado de “irracionalidade” das línguas pelo filósofo e teólogo alemão Friedrich
Schleiermacher, no ensaio Sobre os diferentes métodos de tradução (1813), hoje um clássico neste
campo de estudos.
8
Com isso ele queria dizer que o pensamento, pelo menos nas suas expressões
culturais mais elevadas, é de tal forma moldado pelo espírito da língua em que é escrito, que é
impossível dissociar um do outro e que tal ligação é possível exatamente como tal naquela ngua e
em mais nenhuma. Como conseqüência, a impressão que se tem quando se lê a tradução de uma obra
da ciência, da filosofia ou da literatura necessariamente não pode ser a mesma e deve-se mesmo
renunciar a toda a vivacidade e beleza do discurso na língua original.
9
Um conterrâneo e contemporâneo de Schleiermacher, o filósofo e lingüista Wilhelm von
Humboldt defendia tese semelhante e os seus estudos a respeito do assunto são os precursores do
relativismo antropológico e cultural que estão na base da lingüística estrutural moderna,
particularmente a norte-americana. Nas primeiras décadas do culo XX, em solo norte-americano e
com outras preocupações que não a da definição da nacionalidade, o antropólogo Franz Boas, e na
sua esteira, o lingüista e antropólogo Edward Sapir e o seu discípulo Benjamin Lee Whorf partiram
também de pressupostos parecidos. Hoje, todo esse conjunto de idéias e investigações constitui o que
se chama genericamente de tese do determinismo e do relativismo lingüístico. Entre os lingüistas, para
se referir à sua versão americana, é corrente a expressão ‘hipótese Sapir-Whorf’.
10
A tese básica do determinismo e do relativismo lingüístico é a de que o nosso pensamento é
moldado a partir de categorias que nos são dadas, em princípio, pela nossa língua materna. Tal tese
não partiu de meras especulações abstratas. Ao contrário, é fruto do crescente interesse que
estudiosos europeus passaram a demonstrar, a partir do século XVIII, por línguas extra-européias,
dentre as quais uma das mais célebres foi o sânscrito. Sinal desse interesse é a publicação da obra
Sobre a língua e a filosofia dos hindus (1808), que reunia uma série de preleções sobre a língua
sânscrita e a cultura antiga da Índia, do erudito alemão Friedrich von Schlegel. O irmão deste, August
Wilhelm, alguns anos mais tarde (1823), publicou uma tradução para o latim do clássico hindu
8
SCHLEIERMACHER, Friedrich. “Sobre os diferentes métodos de tradução”. Tradução de Margarete Von Mühlen Poll. In:
HEIDERMANN, Werner (org.). Clássicos da teoria da tradução. v. 1 (alemão-português). Florianópolis: UFSC, 2004, p. 26-
85. Em italiano, cf. também: “Sui diversi metodi del tradurre”. Traduzione di Giovanni Moretto. In: NERGAARD, Siri (a cura
di). La teoria della traduzione nella storia. Milano: Bompiani, 1993, p. 144-179.
9
Não será tratada aqui a validade e a extensão do sentido que uma expressão como “espírito da língua” pode ter no
pensamento de Schleiermacher. No ensaio citado, está presente, entre outras coisas, a clara preocupação de distinguir o
que constitui propriamente o caráter nacional de cada povo, preocupação essa típica do idealismo romântico alemão.
10
MATTOSO CÂMARA JR., Joaquim. Pequena história da lingüística. Tradução de Maria do Amparo Barbosa de Azevedo.
4. ed. Petrópolis: Vozes, 1986, cap. V.
52
Bhagavadgītā, tradução essa que mereceu um longuíssimo comentário em forma de carta escrito pelo
próprio Humboldt.
11
Do estudo e da comparação das línguas européias conhecidas e também de línguas de outros
continentes e regiões, foi-se formando o campo de estudos da gramática comparativa e criou-se
também a teoria das famílias lingüísticas e a hipótese do indo-europeu. Estava bem estabelecida,
então, a noção da diversidade lingüística e das diferenças estruturais entre as línguas. Como
conseqüência dessa noção, chegou-se à percepção da influência que cada sistema lingüístico exerce
sobre os hábitos mentais e a maneira de interpretar o mundo dos falantes de uma dada comunidade
lingüística.
12
A tese do determinismo e do relativismo lingüístico conheceu várias versões, umas mais fortes,
outras mais moderadas. Atualmente, uma versão forte dela, isto é, a hipótese de que o nosso modo de
pensar está irrevogavelmente restrito pelas categorias lógicas e gramaticais implícitas na nossa língua
materna, sem que possamos ter acesso a outros modos de interpretação e classificação do mundo,
não encontra muitos defensores. Em termos mais moderados, hoje se aceita que, mesmo em casos de
línguas muito diferentes entre si, o falante de uma, pode, em princípio e com algum esforço, se
aproximar do modo específico e particular que o falante de outra emprega para se referir e interpretar o
mundo e os seus fenômenos. Certamente, no que se refere mais especificamente à tradução, resta
sempre, no final, algo de irredutível, uma série de elementos que parece não encontrar lugar no
processo de passagem de uma língua para outra. Em termos gerais, a crença na impossibilidade da
tradução parte justamente da constatação de que algo, muito ou pouco, dependendo do caso, é
inevitavelmente perdido.
13
Seja como for, a tradução interlingual
14
é uma das atividades lingüísticas tão antigas quanto a
constatação da existência de línguas diversas, e as comunidades humanas em contato nunca puderam
dispensá-la. E se o resultado das traduções sempre pareceu imperfeito, isso não fez que os homens
desistissem definitivamente de querer entender outras que porventura empregassem categorias
culturais e lingüísticas diferentes das suas. O tradutor, então, sem que precise estar consciente disso,
11
MATTOSO MARA JR., op. cit, cap. V. Cf. também: SCHLEGEL, August Wilhelm. “Sobre a Bhagavad-Gita”. Tradução
de Maria Aparecida Barbosa. In: HEIDERMANN, op.cit, p. 107-113.
12
MATTOSO CÂMARA JR., op. cit., cap. VI-XV. Cf. também: ROBINS, R. H. Pequena história da lingüística. Tradução de
Luiz Martins Monteiro de Barros. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1938, cap. 6 e 7.
13
Numa obra como After Babel, de George Steiner, especialmente no capítulo 2 (“Language and Gnosis”), o autor faz um
apanhado histórico muito erudito e comentários críticos a respeito de todas as questões que tratamos aaqui, tais como a
da impossibilidade da tradução e a do relativismo lingüístico e suas implicações para a tradução. Cf.: STEINER, George.
After Babel. 2nd. edition. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 51-114. Cf. também: LYONS, John. Lingua(gem) e
lingüística: uma introdução. Tradução de Marilda Winkler Averbug e Clarisse Seckenius de Souza. Rio de Janeiro: Zahar,
1982. Cap. 10 (“Linguagem e Cultura”), p. 273-299.
14
A expressão é de Roman Jakobson: “A tradução interlingual ou tradução propriamente dita consiste na interpretação dos
signos verbais por meio de alguma outra língua”. Cf.: JAKOBSON, Roman. “Aspectos lingüísticos da tradução”. In: ______.
op. cit., p. 65.
53
adota necessariamente uma posição de relativismo moderado, sem o quê a sua tarefa se tornaria
mesmo impossível. Em outras palavras, o tradutor deve acreditar que seja possível, primeiro, traduzir e,
segundo, traduzir com perfeição aproximada. O que pode variar de um tradutor para outro é a atitude
básica que adota diante do enunciado ou texto a ser traduzido.
Sem que, na prática, se possa distinguir nitidamente em todos os casos qual é atitude básica
do tradutor ao traduzir, em linha de princípio pode-se distinguir duas atitudes ou concepções
principais.
15
Uma atitude é aquela que advoga que a atividade da tradução deva-se constituir numa
assimilação do texto original à língua e à cultura em que se insere o texto da tradução. Assim, traduzir
significa trazer o texto estrangeiro, com todas as suas peculiaridades, não importa de que tipo forem, a
sua singularidade e estranheza, para o interior da cultura e da língua receptoras, adaptando-o e
modificando-o naquilo que for necessário. Não se coloca, então, nesta visão, o problema das
diferenças lingüísticas e culturais que o original carrega consigo e o como torná-las visíveis ao leitor da
tradução. Não que se ignore que tais diferenças existam, mas em nome de tornar o texto legível e
compreensível para o leitor e, ao mesmo tempo, não violentar a língua nem as tradições culturais
locais, pode-se eliminá-las ou atenuá-las. A vantagem de traduzir assim é que a obra traduzida tem
uma aceitação imediata, que não é um elemento de perturbação ao patrimônio lingüístico e cultural
da comunidade e, desta forma, pode influenciar ativamente a sua produção cultural.
A outra atitude, exatamente oposta à precedente, é aquela que advoga que a atividade da
tradução deva-se constituir num movimento de aproximação à língua e à cultura do texto original.
Traduzir é, então, tomar o texto original naquilo que ele é, transpondo, da melhor forma possível, todas
as suas peculiaridades (de língua, de estilo etc.) para a língua da tradução. Nesta visão, o texto original
deve ser compreendido e interpretado na sua singularidade e estranheza, e no texto da tradução tais
características devem reaparecer, mesmo que para isso se deva recorrer a expedientes lingüísticos
incomuns ou, pelo menos, à margem do que é usualmente aceito e praticado na língua da tradução. E
muitas vantagens na adoção dessa atitude: a tradução passa a ser um modo de valorizar as
diferenças lingüísticas e culturais entre povos e, no melhor dos casos, pode ocasionar uma sua
aproximação efetiva; outra vantagem é a de que não o patrimônio cultural pode ser grandemente
enriquecido, simplesmente pelo fato de introduzir numa cultura uma nova obra, mas também o seu
patrimônio lingüístico, com a introdução de novos modos de expressão, um novo estilo etc.
15
Na formulação das considerações deste parágrafo e do seguinte, ainda que o haja citações específicas, são levadas
em conta naturalmente uma série de ensaios clássicos e modernos sobre tradução. Cf.: NERGAARD, Siri. La teoria della
traduzione nella storia: testi di Cicerone, San Gerolamo, Bruni, Lutero, Goethe, von Humboldt, Schleiermacher, Ortega y
Gasset, Croce, Benjamin. Milano: Bompiani, 1993; cf. também: SCHULTE, Rainer; BIGUENET, John. Theories of
Translation: An Anthology of Essays from Dryden to Derrida. Chicago: Chicago Press, 1990.
54
Um exemplo histórico concreto, e que pode ser tomado como protótipo da primeira atitude,
pode ser encontrado no ensaio de Cícero intitulado em latim Libellus de optimo genere oratorum, que
parece ser o texto ocidental mais antigo de que se tem notícia a tratar do assunto da tradução e que foi
escrito por volta de 46 a.C. Hoje considerado um clássico dos estudos sobre tradução, ali está
anunciada a contraposição entre o orator, o que opta pela assimilação, e o interpres, o que respeita as
idiossincrasias do texto original. Não será comentado aqui o ensaio, mas a opção de Cícero é pelo
orator, o que mostra o espírito de assimilação com que os romanos herdaram e transformaram o
legado da cultura grega.
16
A segunda atitude
teve também defensores ilustres, dentre os quais o próprio Schleiermacher,
como se pode constatar no ensaio citado, e Humboldt, como é possível perceber a partir da leitura
de um ensaio como Introdução à tradução do Agamêmnon de Ésquilo (1816).
17
De resto, essa atitude
era comum entre grande parte dos estudiosos, escritores e poetas alemães de fins do século XVIII e do
século XIX, como, por exemplo, do poeta e escritor Johann Wolfgang von Goethe e do já citado August
Schlegel.
18
Um exemplo contemporâneo da segunda posição mencionada pode ser encontrado nos
escritos de um estudioso e praticante da tradução como o norte-americano Lawrence Venuti. É
evidente que Venuti não repete exatamente as formulações do século XIX, pois a sua abordagem é
produto de um contexto intelectual em que se cruzam teorias filosóficas, históricas e culturais variadas
e complexas (algumas das quais recebem o rótulo de ‘pós-modernas’ ou ‘pós-estruturalistas’),
profundamente marcadas pelo relativismo, nesse caso não apenas lingüístico.
19
De modo geral, o que marca a abordagem da tradução proposta por Lawrence Venuti é a sua
forte preocupação política e faz lembrar as discussões que já se fizeram a respeito da literatura
engajada dos anos cinqüenta e sessenta. Para Venuti, a tradução deve ser exercida como uma ação
cultural e política que se opõe à ideologia dominante e às suas práticas de escrita, à literatura como
instituição conservadora, às imposições culturais e comerciais que pesam sobre atividade dos
tradutores e, de modo especial, ao que ele denomina de “invisibilidade” do tradutor, entre outras coisas.
Em tal abordagem, pode-se entrever uma espécie de nominalismo de combate que revela uma crença
na transformação social a partir das práticas de escrita.
16
NERGAARD, op. cit., p. 1-49 (introdução do organizador) e p. 51-62 (ensaio de Cícero, em italiano, “Qual è il miglior
oratore”); cf. também: FRIEDRICH, Hugo. “On the Art of Translation”. In: SCHULTE; BIGUENET, op. cit., p. 11-16.
17
HUMBOLDT, Wilhelm von. “Introduzione alla traduzione dell’Agamennone di Eschilo”. Traduzione di Gio Batta Bocciol. In:
NERGAARD, op, cit., p. 125-141. Em português, cf.: HUMBOLDT, Wilhelm von. “Introdução ao Agamêmnon”. Tradução de
Susana Kampff Lages. In: HEIDERMANN, Werner (org.). op. cit., p. 91-103.
18
GOETHE, Johann von. “Três trechos sobre tradução”. Tradução de Rosvitha Friesen Blume. In: HEIDERMANN, op. cit.,
p. 15-23; SCHLEGEL, August Wilhelm von. “Sobre a Bhagavad-Gita”. Tradução de Maria Aparecida Barbosa. In:
HEIDERMANN, op. cit., p. 105-113.
19
VENUTI, Lawrence. “A invisibildade do tradutor”. Tradução de Carolina Alfaro. In: PALAVRA 3 (1996), p. 111-134.
55
Para usar os termos de Lawrence Venuti, a primeira atitude referida pode ser denominada de
“domesticadora” e a segunda, que ele prefere, de “estrangeirizadora”. De qualquer maneira, adote-se a
primeira ou a segunda atitude, ambas partem da noção, seja ela intuitiva, empírica ou teórica, da
identidade, semelhança e equivalência lingüísticas (e logicamente dos correspondentes opostos da
diversidade e diferença). É preciso reconhecer de antemão, entretanto, que toda e qualquer suposição
de equivalência ou diferença, seja em que nível for (lingüístico, textual, discursivo, literário, cultural),
entre o texto original e o texto da tradução, é uma espécie de ficção teórica, elaborada para fins
particulares que cabe compreender em cada caso e em cada contexto.
No que se refere particularmente à difundida noção de equivalência lingüística, necessária e
produtiva que se a considere, é importante frisar que tal noção também não deve ser entendida em
sentido absoluto, uma vez que é resultado da aplicação de categorias analíticas e descritivas que se
baseiam em teorizações lingüísticas e textuais que não são unívocas nem homogêneas. Pelo contrário,
qualquer aparato teórico e descritivo corresponde necessariamente à elaboração, marcada ideológica e
historicamente, de um ponto de vista sobre o objeto e que, por isso mesmo, como hoje parece pacífico
no campo das teorias científicas, constrói o seu objeto à sua maneira. De modo geral, algumas teorias
lingüísticas se valem de conceitos erigidos a partir da pressuposição da existência de universais
lingüísticos que, como as investigações relativistas demonstraram, o precisam ser aceitos
mecanicamente num contexto como o dos estudos sobre tradução.
20
Do ponto de vista teórico, um conceito que colhe os ensinamentos da tese do determinismo e
do relativismo lingüístico na sua versão mais fraca e que pode nortear a atividade prática do tradutor é
o de ‘paramorfia’. O poeta, ensaísta e tradutor brasileiro JoPaulo Paes, num artigo intitulado “Sol e
formol”, em que comenta uma tradução sua de um poema do poeta grego Kóstas Karyotákis, expressa
o conceito da seguinte forma:
Verter um poema do grego, por exemplo, ou de qualquer outro idioma, é, teoricamente pelo menos,
reescrevê-lo em português como o faria seu próprio autor, se tivesse domínio operativo de nossa língua,
mas sem, no entanto, deixar de ser grego. Sublinho a última frase para destacar um ponto que reputo de
capital importância. A idéia corrente de que boa é a tradução que dá ao leitor a mesma impressão de um
texto originariamente escrito em sua língua pátria constitui a maior das falácias. Pelo menos desde
Humboldt, sabe-se que cada idioma consubstancia uma experiência diferencial do mundo; é um recorte
da realidade diverso, na sua especificidade, dos demais recortes operados pelos outros idiomas. Isto
não quer dizer sejam acessíveis apenas aos seus respectivos falantes tais visões de mundo
diferentemente expressas por cada idioma em nível tanto léxico quanto morfológico e sintático. A
tradução alcança trazê-las em parte ao entendimento de falantes de outro idioma por via de uma
operação antes de caráter transpositivo que redutor. Tendo-se bem presente o que possa haver de
diferencial na língua de partida em relação à língua de chegada, busca-se exprimi-lo através dos
recursos próprios desta. Nessa operação transpositiva, visa-se portanto menos a uma impossível
isomorfia perfeita simetria no espírito e na letra do que a uma possível paramorfia a similitude de
20
No que se refere às abstrações científicas das quais derivam as categorias analíticas e descritivas da lingüística, cf.:
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo:
Hucitec, 1988, especialmente o cap. 6 (“A interação verbal”).
56
forma e de significado que as idiossincrasias dos dois idiomas franqueados pela ponte tradutória
permita. É fácil entender seja precisamente na tradução de poesia, onde a mensagem se volta para si
mesma a fim destacar o "caráter palpável dos signos" (Jakobson), que avultam com exemplar nitidez os
problemas de paramorfia, conforme se verá no caso da transposição do pequeno poema de
Karyotákis.
21
Como se vê, a citação de Paes resume bem a discussão feita até aqui e vale a pena comentá-
la com mais detalhe. A vantagem de adotar um conceito teórico como o de paramorfia é que, se ele
não resolve de uma vez por todas o dilema apontado no início deste capítulo entre a tradução da forma
e a tradução do sentido que tal solução, no se refere ao aspecto prático, deve ser encontrada pelo
tradutor em cada caso específico –, permite, pelo menos, abandonar de vez a ilusão de uma identidade
perfeita do texto da tradução com o seu original, ou seja, a ilusão de uma isomorfia ou “perfeita simetria
no espírito e na letra”, como diz Paes. Assim, como o próprio sentido etimológico do termo ‘paramorfia’
sugere (‘para-’, no sentido de ‘semelhante’ ou ‘próximo’, e ‘-morfia’, no sentido de ‘forma’), o texto da
tradução pode ser considerado como um texto semelhante ou paralelo ao original, com o qual
estabelece relações analógicas em vários níveis. Nos seus próprios termos, é o que havia dito o
lingüista russo Roman Jakobson, numa formulação clara e rigorosa, no seu ensaio “Aspectos
lingüísticos da tradução”:
Em poesia, as equações verbais são elevadas à categoria de princípio construtivo do texto. As
categorias sintáticas e morfológicas, as raízes, os afixos, os fonemas e seus componentes (traços
distintivos) em suma, todos os constituintes do código verbal são confrontados, justapostos,
colocados em relação de contigüidade de acordo com o princípio de similaridade e de contraste, e
transmitem assim uma significação própria. A semelhança fonológica é sentida como um parentesco
semântico. O trocadilho, ou para empregar um termo mais erudito e talvez mais preciso, a paronomásia,
reina na arte poética; quer esta denominação seja absoluta ou limitada, a poesia, por definição, é
intraduzível. é possível a transposição criativa: transposição intralingual de uma forma poética a
outra –, transposição interlingual ou, finalmente, transposição inter-semiótica – de um sistema de signos
para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a pintura.
22
Como é possível inferir da citação de Paes e da de Jakobson, ‘paramorfia’ e ‘transposição
criativa’ são conceitos afins, e, como ressaltou o lingüista russo, é no sentido semiótico mais amplo, e
não somente num sentido lingüístico estrito, que eles podem mostrar toda a sua riqueza de
possibilidades. Num ensaio mais antigo, “A linguagem comum dos lingüistas e antropólogos”,
Jakobson, retomando as idéias de Peirce, explica:
Peirce uma definição incisiva do principal mecanismo estrutural da linguagem quando mostra que
todo signo pode ser traduzido por outro signo no qual está mais completamente desenvolvido. Em lugar
de um método intralingual, podemos usar um modo interlingual de interpretação [...]. O método seria
intersemiótico se recorrêssemos a um signo não-lingüístico, por exemplo a um signo pictórico.
23
21
PAES, José Paulo. “Sol e formol”. In: ______. Tradução: a ponte necessária. São Paulo, Ática, 1990, p. 69.
22
JAKOBSON, op. cit., p. 72.
23
JAKOBSON, Roman. “A linguagem comum dos lingüistas e antropólogos” (1953). ______, op. cit., p. 32.
57
Como fica patente, o próprio ato de decodificação e compreensão no interior de uma mesma
língua é um processo de tradução, a tradução intralingual, como a chamou Jakobson. O que muda,
no caso da tradução de uma língua para outra, é o código ou sistema lingüístico, mas o processo, em si
mesmo, é de natureza semelhante. Tanto compreender quanto traduzir, portanto, significam produzir
ou recorrer a signos que substituem outros signos. A esse respeito, é preciso lembrar também que a
compreensão do signo lingüístico não é linear, num ato de fala em que se partisse de um emissor que
produz um signo que refere um objeto e que chega diretamente a um receptor que o decodifica, mas é
mediada pela produção de um terceiro elemento, ele também um signo ou um conjunto de signos.
Segundo Jakobson:
Como dizia ele [Peirce], o signo e em particular o signo lingüístico para ser compreendido exige não
dois protagonistas do ato de fala, mas, além disso, de um “interpretante”. Segundo Peirce, a função
desse interpretante é realizada por outro signo ou conjunto de signos, que são dados juntamente com o
signo em questão ou que lhe poderiam ser substituídos.
24
Ou como a própria definição de signo dada por Peirce já conceituava:
Um signo, ou representamem, é algo que, sob certo aspecto ou de algum modo, representa alguma
coisa para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou
talvez um signo melhor desenvolvido. Ao signo, assim criado, denomino interpretante do primeiro signo.
O signo representa alguma coisa, seu objeto. Coloca-se no lugar desse objeto, não sob todos os
aspectos, mas com referência a um tipo de idéia que tenho, por vezes, denominado de fundamento do
representamem.
25
De acordo com a semiótica, então, o interpretante não deve ser confundido com o intérprete da
mensagem, ou seja, com o sujeito real ou suposto que participa do ato de fala.
Na realidade, ele é o
próprio conceito ou a imagem mental que se cria na mente do intérprete de modo mediato e relativo
pelo objeto do signo, ou seja, como explica Peirce, “é um signo equivalente, ou talvez um signo mais
desenvolvido”. Em outras palavras, a compreensão de um signo supõe a produção de outro signo, este
mais outro e assim por diante, numa cadeia infinita de remissões.
26
A idéia do interpretante como um signo equivalente ou mais desenvolvido tem implicações
profundas no que concerne à interpretação em si, e, de modo especial, à tradução. Assim, na
compreensão ou tradução, os signos interpretantes produzidos na cadeia infinita de decodificação da
24
JAKOBSON, op. cit., p. 31.
25
PEIRCE, Charles Sanders. “Classificação dos signos”. In: ______, op. cit., p. 94. Texto original, em inglês, apud SOWA,
John F. Signs. Processes, and Language Games: Foundations for Ontology”. Dispovel em: http://www.jfsowa.com/pubs/index.htm.
Acesso em: 20 janeiro 2006: A sign, or representamen, is something which stands to somebody for something in some
respect or capacity. It addresses somebody, that is, creates in the mind of that person an equivalent sign, or perhaps a more
developed sign. That sign which it creates I call the interpretant of the first sign. The sign stands for something, its object. It
stands for that object, not in all respects, but in reference to a sort of idea, which I have sometimes called the ground of the
representamen. (CP 2.228)
26
O conceito de ‘interpretante’ é bastante complexo e dá motivo a várias confusões. Uma explicação mais detalhada sobre
ele pode ser encontrada em: COELHO NETTO, op. cit, p. 70-71.
58
linguagem selecionam aspectos dos signos que interpretam, desenvolvendo-os de algum modo
particular. O que se pode perceber, então, é que a própria definição peirceana de signo e interpretante
é uma relativização do conceito de equivalência, que nunca é total nem se constitui numa
reprodução exata de outro signo ou de um conjunto deles.
Mas o que é conceituado teoricamente pela semiótica encontra a sua confirmação no uso
cotidiano da língua e, com mais força e clareza ainda, na prática da tradução interlingual. Foi o que
Jakobson mesmo ressaltou em outra passagem de “Aspectos lingüísticos da tradução”, quando diz que
não sinonímia completa entre os signos de uma mesma língua, nem pode haver, com mais razão,
equivalência total entre os signos de uma língua e os de outra.
27
De fato, inúmeras vezes, na procura
de uma palavra na língua para a qual estamos traduzindo, não somos capazes de encontrar um
equivalente exato que recubra todos os usos reais ou supostos que uma dada palavra pode ter na
língua original, ou pelo menos aqueles que são acionados num determinado contexto de uso. E isso
mesmo nos casos mais pacíficos de sinonímia. Para falar em termos matemáticos, raramente ou
mesmo nunca o conjunto A de usos da palavra x de uma língua recobre plenamente o conjunto B de
usos do termo sinônimo y na outra língua. No máximo, o que pode haver é uma área de intersecção,
seja ela grande ou pequena.
Se o raciocínio expresso acima vale para unidades lingüísticas isoladas como as palavras,
valerá também, por extensão lógica, para unidades lingüísticas mais complexas, o que reforça a
relativização da noção de equivalência. Conseqüentemente, qualquer gênero de tradução lida, não
com a reprodução de valores absolutos, mas com um processo de produção de novos signos que toma
o texto original como ponto de partida. E no que se refere especificamente à tradução poética, o que se
traduz, então, não são apenas os aspectos materiais e formais do poema, a sua cadeia de significantes
(que constituiria a busca de uma equivalência meramente formal), nem somente o conjunto dos
significados (a busca da equivalência semântica), mas, sim, um ato de fala que produz signos como
unidades multifacetadas, ato que se completa (mas não se conclui) como tal através da mediação
necessária dos signos interpretantes. Nesses termos, a tradução passa a ser considerada como signo
interpretante ou conjunto de signos interpretantes do original, e como a própria natureza de qualquer
signo, não se confunde com o signo ou conjunto de signos que lhe deu origem, mesmo que mantenha
uma relação estreita com ele.
Como se vê, a noção de equivalência pode ser relativizada não pelo seu caráter, digamos,
metateórico, ou seja, que se refere à formação do conceito a partir de um determinado ponto de vista
ou teoria, ao qual nos referimos mais atrás, mas também pelo seu caráter propriamente teórico e
empírico. No que concerne propriamente à prática da tradução, particularmente à da tradução poética,
27
JAKOBSON, op. cit., p. 65.
59
a noção de equivalência relativa obriga o tradutor a se valer de um procedimento concreto fundamental,
que é o da ‘compensação’. Como diz José Paulo Paes: “Compensação é a estratégia básica da
tradução de poesia e está ligada de perto ao conceito de equação verbal tal como formulado por
Jakobson no seu texto há pouco citado dos aspectos lingüísticos da tradução” (cf. citação na p. 56). Em
termos lingüísticos estritos, o procedimento da compensação consiste em o tradutor tentar obter efeitos
análogos aos presentes no texto original, análogos no sentido de que, se não podem ser exatamente
iguais, são o mais semelhante possível ou pelo menos se enquadram em tipos ou categorias similares,
e também, se o podem ser obtidos exatamente nos mesmos lugares ou trechos em que aparecem
no original, aparecem pelo menos o mais próximo possível deles ou em posições que, de alguma
maneira, criam contextos lingüísticos similares àqueles em que eles ocorrem.
A compensação não deve ser entendida, contudo, apenas no seu sentido estritamente
lingüístico, como acabamos de indicar. Como Paes também sugere, se ela está diretamente implicada
na noção de equação verbal como a proposta por Jakobson, esta, por sua vez, lembra também a
noção de equação verbal que o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein estabelece entre a tradução de
poesia e a solução de problemas matemáticos. Diz o filósofo:
Traduzir de uma língua para outra é uma tarefa matemática e a tradução de um poema lírico, por
exemplo, numa língua estrangeira, tem uma grande analogia com um problema matemático. Pode-se
muito bem formular o problema ‘Como traduzir (isto é, substituir) este jogo de palavras por um jogo de
palavras equivalente em outra língua’, problema esse que poderá ser resolvido; não existe, porém,
nenhum método sistemático de resolvê-lo.
28
É importante notar aqui que o que Wittgenstein diz a respeito do jogo de palavras não deve ser
entendido no sentido banal em que usamos essa expressão, mas no sentido que o filósofo mesmo deu
à expressão ‘jogos de linguagem’ na sua abordagem sobre a questão do uso ordinário da língua natural
como é apresentada no tratado Investigações filosóficas, que é tido pelos estudiosos como pertencente
à segunda fase do seu pensamento e que assinala uma virada fundamental na sua filosofia.
29
Nessa
obra, que se constitui num conjunto de aforismos numerados, o filósofo propõe a seguinte situação:
2 […] Pensemos numa linguagem […]: a linguagem deve servir para o entendimento de um
construtor A com um ajudante B. A executa a construção de um edifício com pedras apropriadas; estão
à mão cubos, colunas, lajotas e vigas. B passa-lhes as pedras, e na seqüência em que A precisa delas.
Para esta finalidade, servem-se de uma linguagem constituída das palavras cubos”, “colunas”, “lajotas”,
“vigas”. A grita essas palavras; B traz as pedras que aprendeu a trazer ao ouvir esse chamado.
Conceba isso como linguagem totalmente primitiva.
30
28
Apud PAES, op. cit, p. 38.
29
SHAWVER, Lois. “On Wittgenstein's concept of a language game”. Disponível em: http://www.california.com/~rathbone/
word.htm. Acesso em: 20 jan. 2006.
30
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p.
10.
60
Mais adiante, no aforismo de número 7, referindo-se ao de número 2 citado, ele apresenta pela
primeira vez a expressão ‘jogos de linguagem’:
7 […] Podemos também imaginar que todo o processo do uso das palavras em (2) é um
daqueles jogos por meio dos quais as crianças aprendem sua língua materna. Chamarei esses jogos de
“jogos de linguagem”, e falarei muitas vezes de uma linguagem primitiva como de um jogo de linguagem.
E poder-se-iam chamar também de jogos de linguagem os processos de denominação das
pedras e da repetição da palavra pronunciada. Pense os vários usos das palavras ao se brincar de roda.
Chamarei também de “jogos de linguagem” o conjunto da linguagem e das atividades com as
quais está interligada.
31
Basicamente, a noção de jogo de linguagem deriva de uma visão pragmática, isto é, que
concerne aos atos que os interlocutores realizam com a linguagem e dos efeitos desses mesmos atos
que recaem sobre eles em situações de comunicação definidas. Conseqüentemente, o significado de
uma palavra ou proposição é determinado pelo uso que os interlocutores fazem dela num contexto
específico, ou, em outras palavras, de acordo com o jogo de linguagem que está em ação numa dada
situação de comunicação. Como os contextos em que a linguagem pode ser usada são incontáveis, os
significados das palavras ou das proposições não são fixos; ao contrário, elas têm os seus significados
básicos adaptados, modificados e enriquecidos de acordo com os novos usos contextuais a que são
submetidas, vale dizer, de acordo com os novos jogos de linguagem de que participam. Como diz
Wittgenstein:
23. […] Quantas espécies de frases existem? Afirmação, pergunta e comando, talvez?
inúmeras de tais espécies: inúmeras espécies diferentes de emprego daquilo que chamamos de “signo”,
“palavras”, “frases”. E essa pluralidade não é nada fixo, um dado para sempre; mas novos tipos de
linguagem, novos jogos de linguagem, como poderíamos dizer, nascem e outros envelhecem e são
esquecidos. (Uma imagem aproximada disto pode nos dar as modificações da matemática.)
32
Mas a lembrança de Paes em relação a um paralelo possível entre a noção de equação verbal
de Jakobson e a da tradução vista como um problema matemático de Wittgenstein não é gratuita. Na
verdade, tais noções, em alguma medida, têm uma base comum. Como se sabe, Roman Jakobson foi
pioneiro no esforço que realizou para trazer para o interior da lingüística os conceitos da semiótica de
Peirce, renovando-a e colocando a discussão sobre a linguagem em patamares mais amplos.
33
E é
justamente essa assimilação por parte de Jakobson dos conceitos semióticos que pode propiciar uma
compatibilização, aparentemente inusitada, das suas idéias com as de Wittgenstein, logicamente por
via indireta, mas nem por isso menos promissora. Isso porque, como o pesquisador John F. Sowa
afirma, no seu artigo “Signos, processos e jogos de linguagem”: “Muitos filósofos, a começar por
31
WITTGENSTEIN, op. cit., p. 12.
32
WITTGENSTEIN, op. cit., p. 18
33
Uma leitura completa dos ensaios reunidos na obra Lingüística e comunicação já citada é suficiente para dar uma idéia do
valor e da extensão dessa contribuição particular por parte de Roman Jakobson.
61
Richard Rorty (1961), notaram similaridades entre a versão do pragmatismo de Peirce e a última
filosofia de Wittgenstein”.
34
Assim, tanto a visão que Peirce (e Peirce via Jakobson) propunha a
respeito do funcionamento dos signos e da linguagem, quanto o conceito de jogos de linguagem de
Wittgenstein em alguma medida, podem, juntos, colaborar na compreensão do funcionamento da
linguagem em geral, e, por extensão, na compreensão de uma modalidade particular do uso desta
como é a tradução.
Partindo dessas idéias, então, traduzir um ato de fala implica em reconhecer qual o jogo de
linguagem que está sendo proposto para cada enunciação específica, jogo esse que focaliza e
direciona a interpretação dos enunciados produzidos numa dada língua, e daí propor um jogo
equivalente na outra língua. Essa dimensão semiótica e pragmática (lembrar que também segundo
Peirce o signo é signo para alguém) desloca a questão da tradução de uma preocupação exclusiva de
decodificação e interpretação lingüística, que de qualquer modo sempre terá o seu lugar, e a recoloca
no patamar mais amplo das relações de interação entre os interlocutores, que agem por meio da
linguagem em situações de comunicação concretas no tempo e no espaço. É evidente que, na
elucidação dessa dimensão fundamental da comunicação humana, outras abordagens do campo dos
estudos pragmáticos, não necessariamente de caráter wittgensteiniano, podem ser chamadas a
colaborar.
35
Como estamos tratando aqui da tradução de textos poéticos, é preciso estabelecer de que
maneira a paramorfia pode ser conseguida, ou seja, em que níveis de linguagem, da língua e do texto,
ela pode ser estabelecida. Primeiramente, o tradutor deve ser capaz de discernir quais o os
elementos dominantes do texto e em que níveis eles ocorrem, o que significa que deve
necessariamente partir de uma interpretação do texto.
Do ponto de vista lingüístico e estilístico, o texto poético pode ser analisado em vários níveis,
quais sejam: 1) nível fônico (exploração das características fonéticas e fonológicas da língua,
possibilidades rítmicas e métricas, esquemas rímicos, melopéia, paronomásias, figuras de harmonia
etc.); 2) nível morfológico (exploração das potencialidades de formação de palavras, tanto na sua
estrutura interna quanto na utilização de afixos, etc.); 3) nível sintático (exploração das estruturas
sintáticas possíveis da língua, com atenção especial para as construções parátaticas e paralelísticas
etc.); 4) nível semântico, entendido aqui no sentido mais restrito da compreensão dos significados das
palavras e das sentenças (polissemia, ambigüidades e vaguidades lexicais e frasais etc.); 5) nível
retórico (figuras de linguagem e tropos etc.); 6) nível textual (tipos de texto, estruturação do texto em
34
Apud SOWA, op. cit.
35
Sobre as possibilidades de análise pragmática do discurso literário, cf.: MAINGUENEAU, Dominique. Pragmática para o
discurso literário. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
62
arranjos maiores que os das sentenças ou versos, arranjos estróficos, formas fixas, elementos
coesivos, progressão temática, fenômenos anafóricos etc.); 7) nível gráfico e visual (convenções
gráficas da escrita e as possibilidades de composição visual da escrita como figura ou desenho e da
página como espaço etc.); 8) nível pragmático (usos da linguagem e a relação que tais usos
estabelecem entre os interlocutores, emissores e receptores, estruturas dialogais, estruturas
argumentativas, situação de enunciação, dêixis etc.); 9) nível estilístico (traços estilísticos de um autor
ou de uma corrente literária; estilos de época; registros; desvios etc.); e, por fim, 10) vel discursivo-
literário (enquadramento nos gêneros discursivos, intertextualidade, formas paródicas etc.).
A divisão em níveis apresentada acima é evidentemente artificial e é impossível na prática
separá-los com precisão, já que muitos deles se superpõem ou se recobrem. É preciso ressaltar que tal
divisão, se é útil no trabalho analítico, não corresponde à realidade concreta do texto poético, que é um
todo uno, mesmo que diferenciado. De fato, é no nível discursivo-literário que é possível englobar todos
os outros níveis e é ele que faz do texto não apenas um objeto lingüístico estruturado, mas produto de
um contexto literário, cultural, social e histórico que lhe dá sentido e com o qual dialoga. Assim, o nível
discursivo-literário pode ser considerado como um nível macrossemântico, em que o texto passa a ser
tratado como uma unidade totalizadora relativamente autônoma que encontra o seu sentido e a sua
explicação não mais em elementos, níveis ou planos isolados que a análise é capaz de explicitar, mas
em função do ato discursivo singular e contextualizado que ele representa.
Não se pode esquecer que todos os níveis mencionados acima podem ser analisados não
somente por meio de cnicas descritivas de tipo lingüístico ou semiológico (de extração lingüística),
mas também por meio de uma análise semiótica mais ampla de tipo peirceano. Se é verdade, como foi
dito no início deste capítulo, que o que caracteriza o signo poético é o fato de ele desempenhar, além
da sua normal função de símbolo, também a função de ícone, esta intersecção de funções merece
atenção especial. Em outras palavras, o analista e o tradutor precisam estar atentos ao fenômeno de
iconização do signo poético e às configurações analógicas (icônicas, diagramáticas, figurativas,
imagéticas) que se criam entre som e sentido, tanto nos níveis mais elementares (por exemplo, nas
cadeias sonoras), quanto nos níveis mais complexos da estruturação lingüística e textual do poema
(por exemplo, configurações sintáticas, estróficas e textuais mais amplas como diagramas ou recortes
imagéticos e visuais).
36
Descobertos os elementos dominantes e esboçadas de maneira suficiente as características
gerais e peculiares do texto a ser traduzido, seja isso feito de forma puramente intuitiva ou
assistemática, seja feito de forma mais metódica, é então que o trabalho do tradutor em busca das
paramorfias pode começar. A parti daí, do ponto de vista prático, a atividade do tradutor acaba por
36
Para uma explanação teórica e exemplificação da análise semiótica do texto literário, cf.: PIGNATARI, op. cit.
63
assumir, de certo modo, um caráter experimental, tanto num sentido estritamente lingüístico quanto
num sentido literário e cultural mais amplo. Em termos lingüísticos, porque é inevitável que o tradutor,
com vistas à paramorfia, acrescente ou elimine, acentue ou atenue determinados traços formais e
semânticos, cometa estranhamentos ou deixe-se levar pelo que é mais comum e aceito na sua língua.
No sentido amplo de experimentação literária e cultural, a tradução propicia a introdução de dados e
elementos que não estão presentes na cultura que a produz, ou, se estão, não necessariamente na
mesma medida ou na mesma feição. O tradutor coloca-se, então, como um intérprete das diferenças e
um mediador entre dois mundos, duas culturas e duas línguas.
Como acontece de maneira inevitável, portanto, o tradutor, ora se afasta, ora se aproxima do
texto original, numa medida que varia a cada escolha feita. Por isso, jamais se poderá falar de escolhas
ideais, já que cada detalhe do texto, cada pormenor lingüístico, faz parte sempre de um todo maior que
é o poema, e é nesse todo que ele deve fazer sentido. Talvez o mais difícil seja, justamente, obter um
equilíbrio entre o pormenor e o conjunto, e, concluída a tradução, afastar de vez os vestígios da
atividade analítica, que, para melhor compreender, disseca o texto e acaba por destruir aquela unidade
expressiva total – fruto também de uma intuição e de um sentimento do mundo –, que o poema revela
e dispõe ao leitor. Como diz Haroldo de Campos, no artigo “Da tradução como criação e como crítica”:
A tradução de poesia (ou prosa que a ela equivalha em problematicidade) é antes de tudo uma vivência
interior do mundo e da técnica do traduzido. Como que se desmonta e se remonta a máquina da criação,
aquela fragílima beleza aparentemente intangível que nos oferece o produto acabado numa língua
estranha. E que, no entanto, se revela suscetível de uma vivissecção implacável, que lhe revolve as
entranhas, para trazê-la novamente à luz num corpo lingüístico diverso. Por isso mesmo a tradução é
crítica.
37
Se a tradução é crítica, como diz Campos seguindo a lição do poeta americano Ezra Pound,
ela é também, como foi acenado, interpretação. De fato, o texto original e o texto da tradução como
produtos acabados podem ser tomados como dois pólos de um processo complexo, simultaneamente
teórico e prático, em que o texto original, ao mesmo tempo que está na base da produção do texto da
tradução, é de alguma forma produzido por ele, no sentido de que esta revela concretamente uma
leitura e uma interpretação singulares, marcadas pelo contexto cultural, social e histórico de quem e
traduz.
Uma concepção da tradução como interpretação se afasta, por definição, de uma visão que
poderia ser chamada genericamente de tradicional, que tende a compreender de forma idealista o texto
original e a língua em que é escrito; também se afastará de uma posição de relativismo extremo que
tenda a negar a possibilidade de construir uma ponte entre o texto original e o da tradução. Numa
37
CAMPOS, Haroldo. “Da tradução como criação e como crítica (1963). In: ______. Metalinguagem e outras metas:
ensaios de teoria e crítica literária. 4a. ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 43.
64
concepção desse tipo, o próprio termo ‘original’ não precisa se referir necessariamente a uma suposta
visão metafísica das origens, ou a um idealismo da verdade intocável do texto e dos seus significados,
mas tão-somente ao fato empírico de um texto ter sido produzido antes numa língua e depois ter sido
traduzido para outra ou outras. A conseqüência disso é que o texto original não é tomado como valor
absoluto e nem a tradução apenas como um derivado secundário seu.
Tal concepção põe em evidência também o fato de que a tradução não se constitui numa mera
reescrita do texto original como se o tradutor o escrevesse pela primeira vez, como desejava, por
exemplo, o personagem de Pierre Menard, retratado com ironia finíssima no conto de Jorge Luís
Borges, “Pierre Menard, autor do Quixote”.
38
Por sua vez, o texto original, não existe como forma ideal,
a-histórica e independente da mediação das leituras e interpretações – e traduções – que o atualizam e
lhe garantem a sobrevivência em outros contextos lingüísticos e culturais que não o seu.
Uma concepção como a que foi delineada acima obriga a propor o texto da tradução, como
ademais qualquer discurso cultural, como provisoriamente válido. Nesse sentido, a tradução e a
leitura e interpretação que acompanham e motivam o ato mesmo de traduzir – pode ser revista,
aperfeiçoada, aprofundada, corrigida, até mesmo desmentida e falsificada, enfim, criticada, atos esses
também relativos e interessados. É o que o conjunto de traduções de um mesmo tempo, feitas em
momentos históricos diferentes, tem ajudado a perceber: cada época parece sentir a necessidade de
reler e retraduzir certos textos, especialmente aqueles que são capazes ainda de conservar a sua
vitalidade estética, a partir de novos conhecimentos, novos valores e novas percepções.
E se a tradução é provisória, é também parcial, pois deriva necessariamente, além de
condicionantes contextuais mais amplas, de uma interpretação pessoal do texto original. Isso quer dizer
que, por mais lidas que sejam a tradução e a leitura e interpretação que a motivaram, elas não
conseguem dar conta, evidentemente, de todos os aspectos e elementos do texto, mas somente
daqueles que, por razões menos ou mais conscientes, o tradutor, pela sua própria formação cultural,
pela sua maior ou menor experiência, pelas suas limitações e características pessoais, é levado a
selecionar. Seja como for, como resultado final do seu trabalho, o tradutor acaba propondo uma nova
abordagem do texto original, atualizando-o para o seu tempo e contexto.
Feitas todas essas considerações teóricas a respeito da tradução em geral e da tradução de
poesia, passamos ao último capítulo desta dissertação, em que, como dissemos, serão
apresentadas as análises e traduções comentadas de alguns poemas de Antonio Porta.
38
BORGES, Jorge Luis. “Pierre Menard, autor del Quijote”. In: ______. Ficciones. Buenos Aires: Emecé, 1995, p. 47-65.
65
CAPÍTULO 3
ANÁLISE E TRADUÇÃO COMENTADA
DE POEMAS DE ANTONIO PORTA
Este terceiro capítulo é dedicado à análise e à tradução comentada de uma parte dos poemas
selecionados entre a obra de Antonio Porta a que se fez menção no Capítulo 1. Entre os trinta e três
poemas que foram reproduzidos e comentados brevemente ali,
1
foram selecionados seis cuja análise e
tradução comentada será desenvolvida agora no presente capítulo. Os vinte e sete poemas restantes
não serão analisados ou comentados aqui, mas serão traduzidos e constarão no Anexo “Seleção de
poemas de Antonio Porta (originais em italiano e traduções para o português)”, apresentado no fim
desta dissertação. Dessa maneira, cremos poder propiciar a leitura de um número relativamente
pequeno mas significativo de poemas do autor.
Este capítulo tem, na verdade, uma dupla finalidade. De um lado, pretende, por intermédio da
análise e da tradução, aprofundar certos elementos que julgamos importantes para o conhecimento da
obra poética do autor. Com isso em vista, eventualmente pode reproduzir algumas das considerações
já feitas nos parágrafos que lhes correspondem no Capítulo 1, ou, no mínimo, aludem direta ou
tacitamente a eles. Serve, portanto, de complemento e aprofundamento daquele primeiro, que é a
referência básica e o ponto de partida para o que vai ser exposto daqui em diante. De outro lado, o
capítulo pretende também, no que se refere à tradução, pôr à prova as considerações teóricas
adotadas, exercitar um certo modelo de análise lingüística e estilística que se mostre adequado ao
trabalho do tradutor e, por fim, produzir traduções que sejam válidas a partir das referências teóricas e
da compreensão que pudemos ter da obra e da poética de Antonio Porta. Para levar a cabo a tarefa de
tradução, levamos logicamente em consideração tudo o que foi exposto no Capítulo 2, isto é, tanto a
discussão teórica sobre tradução em geral quanto a discussão mais específica sobre tradução de
poesia.
Com o intuito de facilitar a leitura e a visualização da análise e da tradução de cada um dos
poemas escolhidos, este capítulo é subdividido em seis partes relativamente autônomas.
1
Na realidade, este número pode variar dependendo de como são contados os poemas seriados. Em alguns casos, os
poemas de uma série se mostram completamente interdependentes, em outros são relativamente ou completamente
autônomos. Na nossa contagem, procuramos levar isso em consideração.
66
I. POEMA VEGETALI, ANIMALI (Cap. 1, p. 16-17; Cap. 2, p. 49-50)
VEGETALI, ANIMALI
1 Quel cervo Ia vigile fronte penetrata nei dintorni
2 neI vasto prato rotondamente galoppando
3 s’avviò; a volo le lunghe erbe
4 da ogni parte afferrava finché l’erba
5 cicuta lo pietrificò. L’albero l’ossatura allargava
6 cercando spazio tra gli alberi; con il ciuffo in breve
7 di un palmo l’altezza superò delIa foresta:
8 due guardie forestali quelIo segnarono col marchio.
9 Che alIa scure segnala il punto delI’attacco.
10 L’insetto giallo sulI’albero strisciava
11 ad alte foglie ampie come laghi:
12 a ciondolare. Intervenne a schizzargli Ia schiena
13 il becco deI Bucorvo rosso e curvo, un ponte
14 d’avorio. QueI fiore foglie e petali distese
15 fino a inverosimili ampiezze: sostare vi potevano
16 colibrì e lo spesso gregge degli insetti.
17 Sciocco ed arruffone, recidendolo, l’esploratore
18 ne, con violente ditate, fece scempio.
19 Quel topo gli occhi aghiformi affilò
20 una veloce nuvola fissando che gonfiava salendo,
21 esplodeva sibilando nelI’aria violenti pennacchi:
22 alIo scoperto rimasto, topo deI deserto, dalI’attento
23 falco fu squarciato. L’uccelIo il folto
24 dei cespugli obliò, un lunghissimo verme
25 succhiò dalle zolIe: due amici monelli
26 appostati gli occhi riuscirono a forargli
27 sulla gola inchiodandogli Ia preda daI becco
28 metà dentro e metà fuori.
O poema Vegetali, animali foi escrito em 1958, mas vai reaparecer mais tarde no livro I
rapporti, publicado em 1966. No entanto, ocupa ali um lugar singular. Dentre todos os poemas do livro,
é o único que, de forma manifesta, está ligado a um modo tradicional de fazer poesia, num sentido
peculiar que vamos esclarecer mais adiante. De fato, esse poema destoa dos outros, que tomados em
conjunto pouco se assemelham aos modos do fazer poético da tradição literária italiana do passado,
mesmo a do passado mais recente à época. Na verdade, Vegetali, animali pode ser considerado um
poema de transição que marca aquela ruptura entre a poesia do jovem Leo Paolazzi e a de Antonio
Porta poeta da neovanguarda, como assinalamos no início do Capítulo 1. É como se o poeta estivesse
ainda afiando os seus novos instrumentos. Mas, paradoxalmente, é esse modo peculiar de retomar
uma forma tradicional de fazer poesia, que vai permitir que o poema se enquadre tão perfeitamente no
que o livro tem de renovador como um todo: que é, entre outras coisas, por meio da ruptura e da
negação, o propósito de reformular uma tradição.
67
O poema se divide em seis partes que seguem com precisão a estruturação sintática dos
períodos (atente-se: não dos versos). Temos, assim, a primeira parte (versos 1 a 5), que inicia com
Quel cervo e termina com pietrificò; a segunda parte (versos 5 a 9), que inicia com L’albero e termina
com il punto dell’attacco; a terceira parte (versos 10 a 14), que inicia com L´insetto e termina com un
ponte d’avorio; a quarta parte (versos 14 a 18), que inicia com Quel fiore e termina com fece scempio; a
quinta parte (versos 18 a 23), que inicia com Quel topo e acaba com fu squarciato; e a sexta e última
parte (versos 23 a 28), que começa com L’uccello e acaba com o metà dentro e metà fuori do verso
final. Repare-se que a primeira (obviamente), a terceira e a quinta partes têm começo marcado pelo
início de verso e de período (respectivamente, os versos 1, 10 e 19); ao passo que a segunda, a quarta
e a sexta partes iniciam todas num verso que também conclui a parte imediatamente anterior
(respectivamente, os versos 5, 14 e 23).
Esse arranjo alternado e simétrico das partes não é indiferente aos outros níveis estruturais,
desde os puramente sonoros e métricos aos discursivos e semânticos mais amplos do poema. Pelo
contrário, é uma das realizações concretas do procedimento formal que organiza o poema como um
todo, que é o da simetria. É o que vemos também no que se refere à temática geral do poema, que
trata, grosso modo, do ciclo natural de vida e morte, e da suposta ferocidade ou crueldade na relação
entre os seres vivos, incluindo-se aí o homem. Assim, em conformidade total com a divisão em partes,
temos também seis segmentos semânticos e narrativos, que configuram seis momentos temporais e
seis espaços relativamente autônomos. Como resultado dessa configuração, não temos o relato de
uma única história, mas a apresentação sucessiva de uma cadeia de eventos singulares, simultâneos
ou não. É como se o poeta quisesse reunir breves cenas, registradas pela observação, para formar um
quadro, não necessariamente completo do mundo representado, mas que captasse ou privilegiasse ao
menos algum aspecto essencial e organicamente estruturador dele.
Como ressaltamos no Capítulo 1, o recurso à fragmentação discursiva e narrativa em que
o poema, ao invés de constituir uma unidade expressiva que se manifestaria através da presença de
um ‘eu poético’ em primeira pessoa, se configura mais como uma seqüência de fragmentos em que
aparecem um ou mais personagens – é um procedimento fundamental no artesanato poético de
Antonio Porta. No caso do poema Vegetali, animali, como vemos, esse recurso está presente também,
ainda que de forma bem menos extremada, se o comparamos à maioria dos poemas de I rapporti e de
outros futuros. Advém daí, inclusive, a sua maior facilidade de leitura, ajudada também pelo fato de que
um eixo semântico fundamental que unifica a seqüência das seis cenas. Esse eixo é a relação
presa predador, em que o primeiro elemento é a vítima passiva da ação violenta e cruel do segundo:
na primeira parte, o cervo e a cicuta; na segunda parte, a árvore e os guardas florestais; na terceira
68
parte, o inseto e o calau (Bucorvo); na quarta parte, a flor e o explorador; na quinta, o rato e o falcão; e
na última, por fim, o pássaro e os dois garotos.
Dissemos também no Capítulo 1 que um outro elemento constante que caracteriza a
experimentação poética de Porta é um trabalho, ora sutil, ora ostensivo, com a sintaxe e a semântica
da língua, entendidas aqui no seu sentido técnico preciso. Nesse aspecto também o poema Vegetali,
animali, sempre em comparação com outros do mesmo livro, é de mais fácil compreensão e é um dos
elementos que lhe confere aquela feição mais tradicional. Seja como for, também nele a sintaxe
desempenha um papel fundamental, melhor dizendo, é a sua marca mais evidente. Como a simetria é
o elemento deliberadamente estruturador de todo o texto, o constatamos no nível temático e textual
mais amplos, ela vai estar presente também no nível sintático.
Do ponto de vista sintático, as sentenças apresentam uma concatenação cerrada e um
encadeamento lógico rigoroso, e a maioria delas apresentam inversão em relação à ordem canônica do
italiano, com alta ocorrência da estrutura SOV
2
e de sentenças subordinadas encaixadas. Assim, para
usar um termo tradicional da retórica, o poema é basicamente dominado pelo ‘hipérbato’.
3
Tal
configuração das sentenças (em que os sujeitos e os objetos gramaticais estão colocados lado a lado)
espelha e enfatiza, no nível mais restrito da sintaxe, aquela relação fundamental que o encadeamento
temático, a divisão das partes e a concatenação dos períodos havia revelado, isto é, a relação entre
o predador e a sua presa. A preferência pelo hipérbato, além do aspecto semântico, contribui também
para a constituição da visualidade e da espacialidade do poema, ou seja, coopera na elaboração e na
ordenação do que mais acima chamamos de cenas, ou seja, das imagens concretas dos seres que
participam dos fragmentos narrativos e dos espaços em que agem e sofrem.
Por fim, tanto a estrutura sintática das sentenças, quanto a presença de períodos complexos,
com um grande número de orações intercaladas e de orações subordinadas (especialmente de
reduzidas de gerúndio), avizinham o texto do poema à prosa e à tradição lingüística latinizante. Tal
tradição, que basicamente consistia na imitação artificiosa da sintaxe latina, vigorou em certos
momentos da poesia européia e, no caso italiano, pode ser detectada a partir da poesia de Petrarca
e mais tarde, no Renascimento, na poesia que se inspirava ou imitava a poesia clássica latina. A nosso
ver, tal tipo de construção complexa e rebuscada tem um valor importante: além da função construtiva
que desempenha de maneira eficaz no texto do próprio poema, remete o leitor ao repertório da poesia
2
Sabe-se que, de modo geral, a ordem sintática canônica do italiano é sujeito verbo objeto (SVO), assim como a do
português, do espanhol e do francês. Cf.: RENZI, Lorenzo. Nuova introduzione alla filologia romanza. Bologna: Mulino,
1985, cap. 12 e 14.
3
Cf. verbete: “Hipérbato”. In: MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cultrix,
2004, p. 222-223.
69
européia do passado e a modos mais antigos de conceber e fazer poesia, quase como uma citação,
não de ordem estritamente textual, mas retórico, hoje diríamos discursivo.
Um outro procedimento lingüístico que colabora para que o poema Vegetali, animali funcione
também como uma forma de citação de modos retóricos da poesia do passado é o uso de um
vocabulário erudito, preciosista e ligeiramente arcaizante. Enumeramos abaixo alguns exemplos:
i) Uso de sintagmas em que um adjetivo culto se antecipa a um substantivo também culto, ou
no mínimo pouco usual – vigile fronte (verso 1), vasto prato (v. 2), inverosimili ampiezze (v. 15), spesso
gregge (v. 16). Temos também, no verso 19, occhi aghiformi, em que não a posposição do adjetivo,
claramente por uma motivação fonética, pois o adjetivo é muito longo. ii) Uso de palavras, além de
pouco freqüentes, de valor metafórico e de forte carga imagética, como ossatura (v. 5), schizzargli (v.
12), como também do mile alte foglie ampie come laghi (v. 11). iii) Uso de palavras e expressões
cultas de forte carga dramática, como recidendolo (v. 17), fece scempio (v. 18). iv) E, por fim, uso da
partícula vi (v. 15), típica do registro formal, ao invés da mais comum ci.
Todas essas escolhas são totalmente adequadas à constituição do que na retórica antiga se
chamaria de ‘estilo elevado’, e que, em termos mais atuais, poderíamos classificar de uma modalidade
discursiva marcada por um registro altamente formal e, no caso em questão, naturalmente, literário e
poético.
Ainda no que concerne ao léxico do poema, chama a atenção também o emprego do
demonstrativo quello, com clara função dêitica, que se alterna de modo mais ou menos sistemático
com o uso artigo definido: Quel cervo (v. 1), L’albero (v. 5), L’insetto (v. 10), il becco del Bucorvo (v. 13),
Quel fiore, (v. 14), Quel fiore (v. 14), l’esploratore (v. 17), Quel topo (v. 19), L’uccello (v. 23). Em apenas
dois casos, ao invés do uso do artigo definido, aparecem sintagmas nominais no plural, marcados pela
presença do numeral due, que faz justamente a vez de determinante: due guardie forestali (v. 8), due
amici monelli (v. 25).
Sabe-se que os dêiticos, ao mesmo tempo que definem a dimensão espacial e temporal do
enunciado, estabelecem a posição dos protagonistas da situação comunicativa.
4
Como conseqüência,
do ponto de vista discursivo, a utilização, no poema, do dêitico quello, reforçado, como vimos, na
contraposição com o artigo, acentua a distância do enunciador em relação ao que ele está
descrevendo e relatando. O enunciador do discurso, o poeta, instaura, portanto, uma relação de
observação da realidade representada, e o leitor, como destinatário do discurso, é convidado também a
assumir a mesma posição.
Todos os aspectos apontados até aqui se referem a características discursivas, textuais e
4
Cf. os verbetes: “Dêixis” e “Demonstrativo”. In: DUBOIS, Jean et al. Dicionário de lingüística. Vários tradutores. São Paulo:
Cultrix, 1986.
70
lingüísticas que comumente podem ser encontradas em outros tipos de textos, não necessariamente
poéticos. De modo geral, além do sentido global, das significações e das imagens presentes no texto
poético, o que lhe caracteriza essencialmente é a exploração da sonoridade e do ritmo da língua, em
configurações métricas (andamento rítmico e fônico dos versos, tipo e cadência das estrofes etc.) que
tendem à simetria e à repetição. Se deixamos tais aspectos por último na análise que estamos
apresentando, é justamente porque, no poema Vegetali, animali, eles funcionam como o elemento
unificador fundamental de todos os outros níveis mencionados antes. Mas não aqui. Também em
outros poemas de I rapporti em que o recurso à fragmentação é mais extremado, são justamente eles –
e, muitas vezes, quase somente eles que permitem ao leitor dar unidade ao conjunto de fragmentos
semânticos, narrativos e imagéticos que não formam um todo coeso.
De fato, os vinte e oito versos do poema apresentam um andamento rítmico marcado, mais ou
menos uniforme, adágio e reflexivo. Tal uniformidade, porém, não deve ser procurada numa contagem
exata e igual do mero de sílabas para cada verso, que na verdade variam de oito a dezenove
sílabas, muito menos na presença de rimas, que não há. A simetria se constitui muito mais na
exploração ideal da duração silábica, ao modo da poesia clássica, combinada habilmente com os
acentos silábicos das palavras, num número que varia de quatro a seis para cada verso. Essa relativa
uniformidade acentual e silábica de fundo contrabalança a variedade métrica dos versos e, ao mesmo
tempo, serve de contraponto ao rigor sintático das frases e, enfim, confere ao conjunto do poema um
leve toque de égloga latina.
Cremos que todas as características indicadas acima, isto é, as que conformam o aspecto
rítmico e métrico do poema, também corroboram a idéia de que Vegetali, animali é ainda um texto de
transição: em outros poemas do mesmo livro, a opção pela métrica tônico-silábica é mais decidida e
facilmente perceptível, de tal modo que é justamente ela que lhes confere a sua sonoridade e cadência
dura e entrecortada, tão típicas e bem distantes da sinuosidade rítmica e vocálica desse poema.
Acreditamos que as próximas análises dos poemas expostas neste capítulo vão deixar mais clara a
diferença.
Apresentadas as principais características formais do poema Vegetali, animali, é preciso
delinear-lhe um sentido mais amplo. Cremos que uma das grandes qualidades do poema é a sua
extrema coerência formal e semântica, numa adequação perfeita entre o tema e o tratamento que lhe é
dado. À primeira vista, o poema parece tratar do velho lugar-comum da harmonia natural e da luta pela
sobrevivência entre os seres vivos como necessárias para a manutenção do ciclo de vida e morte.
que, o que é um topos literário e que constitui um certo discurso sobre a natureza , vai adquirir, aqui,
um sentido trágico e uma feição angustiada e perplexa.
Claro, mesmo nas representações literárias da poesia bucólica grega e latina, e da poesia
71
européia que mais tarde a tomava como modelo, a poesia árcade, por exemplo, o mundo natural podia
ser representado não somente no seu aspecto benéfico, mas também, eventualmente, como um
mundo selvagem. Mas a face terrível e destruidora da natureza faria sentir toda a sua força no caso
de uma desobediência às suas leis e aos seus ciclos. Sábio seria, então, na contemplação daquelas
leis, aprender a respeitá-las e esperar resignadamente que o equilíbrio perdido fosse recuperado. Em
tal concepção, portanto, é a noção de equilíbrio que deve reger a vida dos seres naturais entre si e do
homem com a natureza. Mais tarde, no Romantismo, com a sua afeição pela natureza e desprezo pela
artificialidade da civilização, o homem bio também será o homem natural, agora bon sauvage, que
age e sente em conformidade com as leis da natureza.
5
Do ponto de vista temático, portanto, não seria de estranhar que, em Vegetali, animali, todos os
entes naturais, as plantas, os insetos e os animais, se relacionassem, como dissemos, ora como presa,
ora como predador. Isso porque a suposta ferocidade ou crueldade dos animais, ainda que possa
chocar a sensibilidade humana, é compreendida como não intencional e necessária à sobrevivência.
Tudo isso seria verdade não fosse a própria presença do homem a causa do desequilíbrio e da
distorção daquela relação de forças e, como conseqüência, do próprio ciclo natural de vida e morte. É o
que se pode ver, na descrição das ações, na segunda parte do poema, dos dois guardas florestais, na
quarta parte, do explorador e, na sexta parte, dos dois meninos, cada um a seu modo e movidos por
impulsos desconhecidos.
É interessante observar que já no próprio título do poema esse sentido de desequilíbrio es
sutilmente presente, pois não existe referência explícita ao seres humanos (não temos um Vegetais,
animais, humanos). Visto de outra forma: é como se o poeta, ou se referisse ao homem também como
animal, colocando-o no mesmo plano deste, ou, na falta de nomeação direta, apontasse para a perda
do sentido de humanidade que idealmente o diferençaria das outras espécies e o colocaria numa
posição de superioridade.
Por tudo isso que vimos, arriscamos dizer que o poema Vegetali, animali pode ser lido quase
como uma paródia, não do topos da harmonia natural, como também das formas literárias que o
veiculavam. Se a cadência lenta dos versos e a sintaxe rebuscada dos períodos fazem lembrar, em
alguma medida, formas antigas de poesia, no poema, ela é retomada em chave irônica, adquirindo
uma feição mais torturada, com enjambements sintaticamente complexos; e as inversões da ordem
sintática comum funcionam, num nível lingüístico mais estrito, como um registro da violência e da
crueldade tematizadas pelo poema. Todos esses elementos, enfim, convergem para a descrição do
fenômeno da morte não mais como fato natural, mas como distorção da imaginada ou desejada ordem
natural e da harmonia do homem com a natureza.
5
Cf. verbetes: “Arcadismo” (p. 35-38) e “Romantismo” (p. 407-410). In: MOISÉS, op.cit.
72
Para finalizar, diríamos que, do ponto de vista enunciativo, não há uma adesão automática, por
parte do poeta, ao mundo que retrata ou constrói. Ao contrário, é como se quisesse tomar distância
dele para melhor compreendê-lo. Esse distanciamento revela uma tensão cognitiva de fundo, uma
atitude de indagação, de investigação, logo, de dúvida e angústia. Dito em uma palavra, o poema,
tomado no seu sentido mais amplo, propõe, a nosso ver, um questionamento ético: por que, em
contraposição à ausência de intencionalidade e de crueldade deliberada nos seres vivos, os seres
humanos exercem a sua crueldade sem serem movidos necessariamente pelo imperativo da
sobrevivência? A pergunta se coloca como um enigma para o qual o poeta não oferece respostas e
aponta para a questão da menor ou maior consciência que cada indivíduo tem dos atos que realiza. E
realmente, em nenhum momento, o poeta emite juízos explícitos, mas é a própria organização retórica
do poema, como tentamos descrever, que pode conduzir o leitor a uma avaliação do que lhe é descrito
e narrado, e à formulação de um juízo, do seu juízo.
Apresentada a análise, passamos agora à tradução propriamente dita. Para uma melhor
visualização dos resultados, colocamos abaixo o texto traduzido ao lado do texto original; em seguida,
enumeramos, de acordo com o número de linha dos versos, as dificuldades mais significativas e as
soluções propostas para elas:
VEGETALI, ANIMALI VEGETAIS, ANIMAIS
1 Quel cervo la vigile fronte penetrata nei dintorni 1 Esse cervo a vígil testa penetrando nos arredores
2 nel vasto prato rotondamente galoppando 2 no vasto campo suavemente galopando
3 s’avviò; a volo le lunghe erbe 3 partiu; no vôo a longa relva
4 da ogni parte afferrava finché l'erba 4 de todo lado arrancava até que a erva
5 cicuta lo pietrificò. L’albero l’ossatura allargava 5 cicuta o petrificou. A árvore a ossatura alargava
6 cercando spazio tra gli alberi; con il ciuffo in breve 6 procurando espaço entre as árvores; com o cume em breve
7 di un palmo l’altezza superò della foresta: 7 de um palmo a altura ultrapassou da floresta:
8 due guardie forestali quello segnarono col marchio. 8 dois guardas florestais essa assinalaram com a marca.
9 Che alla scure segnala il punto dell'attacco. 9 Que ao machado assinala o ponto de ataque.
10 L’insetto giallo sull’albero strisciava 10 O inseto amarelo sobre a árvore rastejava
11 ad alte foglie ampie come laghi: 11 em altas folhas amplas como lagos:
12 a ciondolare. Intervenne a schizzargli la schiena 12 a oscilar. Irrompeu a riscar-lhe as costas
13 il becco del Bucorvo rosso e curvo, un ponte 13 o bico do Bucorvo, vermelho e curvo, uma ponte
14 d’avorio. Quel fiore foglie e petali distese 14 de marfim. Essa flor folhas e pétalas distendeu
15 fino a inverosimili ampiezze: sostare vi potevano 15 até inverossímeis amplitudes: pousar ali podiam
16 colibrì e lo spesso gregge degli insetti. 16 colibris e a espessa grei dos insetos.
17 Sciocco ed arruffone, recidendolo, l’esploratore 17 Tolo e estouvado, talhando-a, o explorador
18 ne, con violente ditate, fece scempio. 18 dela, com violentas dedadas, fez estrago.
19 Quel topo gli occhi aghiformi affilò 19 Esse rato os olhos agulheados aguçou,
20 una veloce nuvola fissando che gonfiava salendo, 20 uma veloz nuvem fixando que inchava subindo
21 esplodeva sibilando nell’aria violenti pennacchi: 21 explodia sibilando no ar violentos penachos:
22 allo scoperto rimasto, topo del deserto, dall’attento 22 ficando descoberto, rato do deserto, pelo atento
73
23 falco fu squarciato. L’uccello il folto 23 falcão foi esquartejado. O pássaro o basto
24 dei cespugli obliò, un lunghissimo verme 24 arbusto olvidou, um longuíssimo verme
25 succhiò dalle zolle: due amici monelli 25 sugou lá das pedras: dois meninos ladinos,
26 appostati gli occhi riuscirono a forargli 26 à espreita, os olhos conseguiram furar-lhe
27 sulla gola inchiodandogli la preda dal becco 27 pregando-lhe na garganta a presa do bico
28 metà dentro e metà fuori. 28 meio dentro e meio fora.
Como se pode observar, na tradução, mantivemos a mesma divisão em partes e a
correspondente estruturação sintática dos períodos, como foi descrito. Dessa forma, procuramos
reproduzir em português as mesmas cenas do original e o mesmo encadeamento temático e imagético.
Como dissemos, a sintaxe dos períodos é elemento fundamental e dominante do poema, e ela,
recortada como é pela estrutura métrica dos versos, impõe algumas dificuldades à tradução.
Procuramos, sempre que possível, manter as inversões sintáticas apontadas e as intercalações das
sentenças e das subordinadas, tentando obter aquela impressão global de texto culto e rebuscado,
bastante próximo da prosa. Evidentemente, em poucas passagens, as soluções não o rigidamente
iguais, para não artificializar em excesso a sintaxe do português. No que se refere ao uso de
pontuação, o poema original é muito parcimonioso. De modo geral, essa característica já está presente
na norma escrita do italiano, ao contrário do que acontece com o português, que tende a pontuar mais.
Na tradução, tentamos seguir o mais possível o texto original, a fim de não acentuar demais as pausas
sonoras na escansão natural dos versos, nem criar um número excessivo de pausas gráficas.
Verso 1:
Um elemento lingüístico que aparece no primeiro verso e suscita problemas na tradução é o
uso do demonstrativo quello, como foi assinalado. Como, no poema, o demonstrativo desempenha a
função dêitica e ocasiona aquele efeito de estranhamento e distanciamento a que nos referimos,
tentamos também em português obter efeito semelhante. Visto que em italiano o termo quello equivale,
dependendo da situação de enunciação, tanto a ‘este’ quanto a ‘esse’, optamos pelo segundo (cf.
versos 1, 14 e 19).
6
Como resultado, ‘esse’ acentua o estranhamento enunciativo presente no poema
italiano e propicia uma proximidade maior entre o poeta e o leitor como o seu interlocutor ideal, como
6
Em termos gramaticais, na norma padrão do italiano contemporâneo, temos o sistema bipartite questo quello (com as
possíveis flexões de número e gênero, e as suas variantes fonéticas do tipo quest’, quel e quell’), em que o primeiro seria
demonstrativo de primeira pessoa e o segundo, indiferentemente de segunda e terceira. Numa fase histórica anterior, o
sistema era tripartite (questo codestoquello), em que codesto era de segunda pessoa e quello de terceira. Hoje, codesto
existe na norma toscana ou no registro literário e burocrático. Cf. DARDANO, M.; TRIFONE, Pietro. Grammatica italiana:
con nozioni di linguistica. 2a. ed. Firenze: Zanichelli, 1989, p. 227-228. Em português, os demonstrativos em princípio
constituem um sistema tripartite, com ‘este’ ‘esse’ ‘aquele’, como demonstrativo de primeira, segunda e terceira pessoa,
respectivamente. Mas, como aconteceu em italiano, o português brasileiro, especialmente o falado, há bastante tempo,
está tendendo, pelo menos no que concerne à função dêitica, a um sistema bipartite, em que há assimilação entre ‘este’ e
‘esse’ em contraposição a ‘aquele’. Cf. MATTOSO CÂMARA Jr., Joaquim. 4a. ed. História e estrutura da língua portuguesa.
Rio de Janeiro: Padrão, 1985, p. 101-104.
74
se lhe falasse diretamente, e entre ambos e o próprio assunto do poema. A escolha do ‘esse’ também
foi motivada por questões fônicas e métricas. No caso do verso 1, ocasiona em português uma
aliteração com ‘cervo’, e que vai ecoar mais adiante em ‘testa’ e ‘arredores’, que, se o existe no
verso italiano, coloca-se no lugar das aliterações do som l, t e do grupo consonantal tr que ocorrem ali.
Além disso, ‘aquele’ é palavra de três sílabas, ao passo que ‘esse’, de duas, está mais próxima do quel
monossilábico do italiano, o que facilita a economia métrica dos versos em que aparece.
Ocorre também no verso 1 a oração subordinada reduzida de particípio la vigile testa penetrata
nei dinorni, que se intercala a Quel cervo... s’avviò. Tal tipo de construção não tem um equivalente
exato em português, mas pode ser substituída por construções perifrásticas funcionalmente
equivalentes ou por orações subordinadas de gerúndio. Assim, propusemos a tradução ‘a vígil testa
penetrando ao redor’, com o adjetivo culto e raro ‘vígil’ (‘vigilante’), para marcar o estilo elevado do
texto a que nos referimos na análise.
Verso 2:
No verso 2, aparece o advérbio italiano rotondamente, de uso muito raro, que significa, a rigor,
‘harmonicamente’, ‘regularmente’. Em termos fônicos, como nenhuma das duas traduções nos pareceu
interessante, substituímos por ‘suavemente’, que, se muda o sentido, cria aliterações do s e do v, e
reitera os sons e grupos nasais n, m, am, an e en. De qualquer maneira, a mudança de sentido não é
grave, pois enfatiza o contraste entre a cena harmoniosa e delicada do cervo que come a relva e a sua
morte súbita.
Verso 3:
No verso 3, procuramos compensar a perda da aliteração do som v, na tradução de s’avviò por
‘partiu’, reforçando-a e criando-a em outros lugares. Assim, temos a série, que sugere um ruído
entrecortado mas persistente (do cervo galopando pela relva?): ‘cervo’ e ‘vígil’ (v. 1); ‘vasto’ e
‘suavemente’ (v. 2); ‘vôo’ e ‘relva’ (v. 3); ‘arrancava’ e ‘erva’ (v. 4); ‘árvore’, e ‘alargava’ (v. 5).
Verso 12:
Por razões fônicas também, substituímos a expressão intervenne a schizzargli la schiena do
verso 12 por ‘irrompeu a riscar-lhe as costas’, que mantém a aliteração do som s e do ch (com valor
[k]), e ainda cria a do r, que combina bem com o significado da expressão, que é do ferimento
produzido pelo bico do pássaro sobre as costas do inseto.
75
Verso 13:
Neste verso, aparece a palavra bucorvo do italiano, que tem como tradução o termo ‘calau’,
usado para designar uma espécie de ave que vive nas florestas da Ásia e África, e que se caracteriza
pelo porte de médio a grande, plumagem preta e branca, e bico grande e curvo, geralmente com uma
protuberância de cor viva (nome científico latino bucorvus abyssinicus). Ao invés de traduzir o termo
(‘calau’ é pouco comum em português), preferimos emprestá-lo tal como é em italiano, por várias
razões: pelo estranhamento que pode causar na leitura, já que é palavra inexistente no português; pela
sua semelhança com ‘corvo’; pelas aliterações do b, do c (com valor [k]) e do r, e as reiterações fônicas
do u e do o.
Verso 16:
Neste verso, traduzimos gregge pela palavra culta e antiga ‘grei’, com o resultado também de
repetir o som i presente em ‘colibris’ e ‘insetos’.
Verso 17:
Uma tradução possível para arruffone do verso 17 é ‘trapalhão’, ‘desastrado’, ‘estabanado’.
Propusemos ‘estouvado’, palavra hoje em desuso no português brasileiro falado mas que se enquadra
bem nas aliterações e repetições fônicas criadas, inexistentes no original: do t; do grupo to e do; do
grupo es (ex); e da vogal o. Pelas mesmas razões, traduzimos recidendo-lo (gerúndio do verbo
recidere, de registro culto, acompanhado do pronome de objeto direto lo, que se refere a il fiore do
verso 9) por ‘talhando-a’, ao invés da opção mais comum ‘cortando-a’.
Verso 18:
O verso 18 (ne, con violente ditate, fece scempio) apresenta uma característica sintática
bastante interessante. Via de regra, a partícula partitiva ne, que aparece ali, se comporta como os
demais pronomes oblíquos do italiano, inclusive como elemento tipicamente anafórico. Logo, deve
sempre vir imediatamente antes (no caso das formas finitas) ou depois (no caso das formas nominais)
do verbo. No verso em questão, há a intercalação de uma expressão adverbial (con violente ditate)
entre a partícula e o verbo fece, o que foge à regra geral de posicionamento e produz um
estranhamento gramatical. Esse artifício, em nível gramatical estrito, reforça o sentido global do verso e
do verbo recidere do verso anterior, isto é, o corte da flor cometido pelo explorador, seguido da sua
destruição violenta, é enfatizado também pela ruptura da ordem sintática natural. É de notar também
que o andamento fônico e acentual do verso 17 e 18, como de resto do poema como um todo, é todo
entrecortado pelas pausas e pela reiteração das consoantes oclusivas, o que acentua ainda mais essa
76
impressão geral.
Em português, devido à inexistência de um equivalente exato da partícula ne, é preciso
recorrer a um equivalente gramatical do tipo dela que não tem a mesma força sintética do original e
não causa a mesma impressão intensa de ruptura sintática. Por uma questão métrica, substituímos
fece scempio por ‘fez estrago’, ao invés de empregar a expressão mais usual ‘fez um estrago’.
Verso 19:
Neste verso, aparece a expressão, evidentemente culta, occhi aghiformi. Aghiformi pode ser
traduzido por ‘aciculares’, ‘aciculados’, ‘acerosos’. Propusemos a forma ‘olhos agulheados’, que, se não
reproduz exatamente o mesmo jogo fonético entre as consoantes guturais chgh do italiano, recupera
o sentido da expressão e ainda cria a aliteração do lh e do s, e mais adiante do g com ‘aguçou’.
Verso 22:
No verso 22, como havia aparecido no verso 1, a presença de oração subordinada
reduzida de particípio (allo scoperto rimasto). A inversão ‘descoberto ficando’ nos pareceu forçada, e
por isso optamos pela ordem mais usual. Tal posição acentua também o eco que se cria entre
‘descoberto’ e ‘deserto’, além de reproduzir as aliterações do d e do t, do r e do s ([s] ou [z]), do verso
italiano (allo scoperto rimasto, topo del deserto dall’attento): ‘ficando descoberto, rato do deserto, pelo
atento’. A expressão allo scoperto, que significa ‘sem proteção’, tem o equivalente em português ‘a
descoberto’. Na tradução, eliminamos a preposição, sem prejuízo do sentido, para tornar o verso um
pouco mais sintético.
Versos 23 e 24:
Substituímos o sintagma il folto / dei cespugli, que ocorre no verso 23 e 24, por ‘o basto /
arbusto’, por duas razões, uma gramatical, outra fônica. Folto foi usado ali como substantivo e a
expressão poderia ser traduzida como ‘a parte densa dos arbustos’ ou ‘a parte espessa dos arbustos’,
o que não nos pareceu uma expressão muito sintética. Como o termo, sem a presença de artigo,
também tem valor de adjetivo, preferimos substituí-lo por um adjetivo pouco freqüente no português
brasileiro e que um tom mais culto à expressão. Com a tradução proposta, os dois versos ganham
a aliteração do b, a reiteração de oclusiva bilabial (p b) e ainda a repetição contínua das vogais o e u:
‘o falcão foi esquartejado. O pássaro o basto / arbusto olvidou, um longuíssimo verme’.
No caso da palavra cespugli (sing. cespuglio), outras traduções possíveis, mas preferimos
‘arbusto’ também por ecoar o grupo ar de ‘esquartejado’, além da vogal final como já indicamos.
Escolhemos ‘olvidou’ como equivalente de obliò, no lugar do mais comum ‘esqueceu’, sempre na
77
intenção de manter o registro culto e o tom arcaizante.
Verso 25:
No verso 25, criamos o eco ‘lá ladino’ (advérbio inexistente no verso italiano), que compensa
as aliterações do l do original e ainda permite retomar aproximadamente a seqüência silábica da
preposição dalle, que aparece na ordem invertida ‘lá das’.
Por uma questão fônica também, substituímos o sintagma amici monelli por meninos ladinos’,
o que nos pareceu uma solução interessante (monelli significa ‘garoto maroto, traquinas’). O que se
perde no sentido (amici), ganha-se no som.
Tentamos também criar o jogo de abertura e fechamento das vogais do verso italiano (dalle
zolle e amici – monelli), com ‘lá das pedras e meninos ladinos’, com o acréscimo do eco em ‘-inos’.
‘Pedras’ não é a tradução exata de zolle (zolla: ‘torrão’), mas a preferimos por causa da
aliteração do som s e do d que propicia: ‘sugou lá das pedras: dois meninos ladinos’.
Verso 26:
A palavra appostati que aparece aqui significa ‘emboscado’, ‘escondido’, e é particípio passado
de appostare, ‘estar à espreita’. Substituímos o verbo pela expressão adverbial ‘à espreita’, pelo eco do
grupo pre- que aparece também no verso seguinte em ‘pregando-lhe’ e ‘presa’ e o colocamos entre
vírgulas, como pausa sonora e visual que enfatiza a ação de espera para o ataque dos dois meninos.
Verso 28:
No último verso, preferimos traduzir metà (‘metade’) por ‘meio’, por uma simples questão de
métrica: além de não comprometer o sentido do verso, não o alonga demais nem faz que perca o seu
caráter sintético de fechamento abrupto do poema.
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II. SÉRIE CONTEMPLAZIONI (Cap. 1, p. 17-19)
CONTEMPLAZIONI
1
1 Si torce Ia striscia rettilinea
2 in sinusoide sbavata linea
3 che inciampa alla prima curva
4 (non correre, sciocco, in curva)
5 batte sul petto di un uomo
6 un kg. di coke con un suono
7 sul selciato precipita balzando
8 di zoccolo una nuvola alzando
9 come un deposito di lunghe fruste:
10 e gli zoccoli dei cavalli robuste
11 sparano mazzate sulla fronte,
12 battono forte sul ponte,
13 tra le ciglia folte del pazzo
14 scava lento il suo strazio
15 l’unghia che scopre il cervello
16 daI fondo tenero per un secchiello
17 verdognolo, colmo di sabbia bagnata
18 da farci sopra una rabbiosa pisciata.
2
19 L’altro pilone, o torre, piegato sfilaccia
20 Ie giunture, polvere e ferro, schiaccia
21 gli aurei fili, un tram impedisce
22 il volo dei piccioni, contorta marcisce
23 Ia carcassa, Ie formiche sono alI'opera,
24 Ie mosche scavano con Ia zampa che opera
25 in profonda erosione, il vasellame polverizzato,
26 fanno cumulo, come in un mercato
27 i rosi dai topi oggetti rivenduti.
3
28 La carne si conserva in scatola,
29 filacciosa si mescola con una spatola
30 e i polipi sfaldano con il coltelIo,
31 ruotano con misura in un macelIo
79
32 ristretto, rigurgiti ribolIenti,
33 a pezzi si incagliano tra i denti,
34 d’olio l’indice si unge,
35 urta Ia Iatta si punge
36 e Ia carne marcisce in scatola,
37 vomito spalmato da una spatola
38 sopra uno stomaco preparato.
Uma das características mais relevantes da obra poética de Antonio Porta é a sua grande
coerência estilística e temática. É como se o poeta, através da experimentação de um número finito de
procedimentos lingüísticos e textuais, fosse, a cada poema, moldando as faces de um prisma, que
depois se revelará ao leitor, ao mesmo tempo, uno e múltiplo, inteiro e multifacetado. Cremos que a
própria opção pela disposição de poemas em série, de que Contemplazioni é um exemplo, é um
procedimento concreto que aponta para aquela característica fundamental e responde pela mesma
intenção estética, qual seja, a da exploração máxima de certos elementos, seja no que concerne aos
temas e motivos, seja no que concerne a um modo de conceber e construir o poema como objeto
lingüístico.
Mas isso não acontece apenas com os poemas em série. Como as análises e as traduções
comentadas apresentadas neste capítulo o, esperamos, poder demonstrar, cada poema autônomo
retirado do conjunto do livro de que faz parte também pode ser considerado como uma das faces de
um prisma que refrata a seu modo a luz que advém de uma mesma fonte. Tal constatação pode
parecer banal, pois aponta para aquela eventual coerência de fundo que toda obra poética vista
retrospectivamente parece ter. No caso da poesia de Antonio Porta, entretanto, não se trata apenas de
uma característica reconhecida a posteriori; ao contrário, é possível perceber facilmente na sua obra
uma vontade deliberada, porque consciente e programática, de unidade formal. Claro, isso o
significa necessariamente uma homogeneidade total ou uma falta de diversificação interna, traços que
seriam desmentidos prontamente pela riqueza mesma que a obra apresenta.
Por causa disso, como o conjunto de poemas de um mesmo livro ou de uma mesma época
obedece fortemente a diretrizes formais e temáticas mais ou menos constantes, as análises que nos
propusemos a apresentar neste capítulo podem parecer, numa certa medida, redundantes ou
repetitivas. Na realidade, a análise de cada poema vista de maneira isolada serve de retomada e
complemento a afirmações e descobertas feitas, que vão se acumulando e configurando aos poucos
aquele prisma e as suas várias faces, como dissemos. É preciso frisar também que, no caso da obra
de Porta, redundância não é defeito; a nosso ver, é o que a distingue qualitativamente e demonstra o
80
elevado grau de exigência estética que o autor se impunha, bastante característico também da fase
heróica da produção literária da neovanguarda. Além da imagem do prisma, uma outra imagem que
simboliza bem o percurso estético do autor é a da espiral: como afirmamos no Capítulo 1, no seu
percurso de experimentação, o poeta nunca recusa ou abandona a experiência acumulada; ao
contrário, retoma o feito para alcançar um novo patamar e, assim, começar novas buscas e
responder a novas exigências.
A série de poemas intitulada Contemplazioni, publicada em 1960, constitui um quadro bastante
representativo daquela poética dos objetos e daquela linguagem de eventos cuja discussão e
elaboração ocorria justamente, mais ou menos naquela época, no âmbito da revista Il Verri e da
neovanguarda, de que Porta era participante ativo. Composta de três poemas relativamente
autônomos, a composição é um dos raros conjuntos de poemas rimados e, afora isso, a sua estrutura
métrica, agora sim, segue plenamente os parâmetros daquela métrica tônico-silábica, que, como
apontamos no Capítulo 1, é um dos traços formais constantes mais característicos de toda a obra do
autor. Em vista disso, é útil explicar com mais detalhe em que consiste exatamente a métrica tônico-
silábica ou ‘acentual’, como a costumava designar o poeta. A explicação vai servir depois de base para
todas as análises seguintes e naturalmente é levada em conta também na elaboração das traduções e
na apreciação dos resultados.
Como regra geral, a métrica italiana tradicional mede o tamanho dos versos com base no
número total de sílabas e os classifica conforme a distribuição destas em acentos fortes e fracos, e
acentos principais e secundários. Normalmente os acentos fortes coincidem com as sílabas tônicas das
palavras do verso, mas casos menos comuns em que o acento forte pode se deslocar para uma
sílaba átona. Segundo o estudioso de métrica Rogério Chociay, esse tipo de contagem do número de
sílabas do verso é chamado de ‘padrão grave’ e é tradicionalmente empregado, não na métrica de
língua italiana, mas também, por exemplo, na de língua espanhola. Uma outra forma de contagem
possível é o chamado ‘padrão agudo’, em que é contado até o último acento forte do verso e são
desconsideradas as sílabas átonas que porventura existam depois dele. O padrão agudo é típico, para
continuar exemplificando somente com as línguas românicas, das métricas de língua provençal,
francesa e portuguesa.
7
Ora, o que caracteriza a métrica nico-silábica pelo menos daquela empregada de modo
sistemático em praticamente toda a obra poética de Antonio Porta –, diferentemente do que acontece
com a métrica tradicional, seja a de padrão grave, seja a de padrão agudo, é a eleição do número total
7
Para ser mais preciso, na métrica de padrão grave a contagem pára na sílaba imediatamente seguinte à tônica da última
palavra do verso. No caso do verso terminar, por exemplo, com uma palavra proparoxítona, a contagem vai até a penúltima
sílaba e a última não é contada. Cf.: CHOCIAY, Rogério. Teoria do verso. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1974, p. 11-13.
8
1
de acentos tônicos das palavras como parâmetro básico de contagem e regulação do tamanho do
verso. Vejamos como ela funciona através de um exemplo concreto, na escansão gráfica do poema de
número 1 da série Contemplazioni (os meros e sílabas em negrito indicam acento forte e sílaba
tônica no interior do verso):
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
I Si tor- ce la- stri- scia ret- ti- li- nea
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
II in si- nu- soi- de sba- va- ta li- nea
1 2 3 4 5 6 7 8
III che in- ciam- pa al- la pri- ma cur- va
1 2 3 4 5 6 7 8
IV (non cor- re- re, scioc- co, in cur- va)
1 2 3 4 5 6 7 8
V bat- te sul pet- to di un uo- mo
1 2 3 4 5 6 7 8
VI un chi- lo di coc con un suo- no
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
VII sul sel- cia- to pre- ci- pi- ta bal- zan- do
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
VIII di zoc- co- lo u- na nu- vo- la al- zan- do
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
IX co- me un de- po- si- to di lun- ghe fru- ste:
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
X e gli zoc- co- li dei ca- val- li ro bu- ste
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
XI spa- ra- no maz- za- te sul- la fron- te,
1 2 3 4 5 6 7 8
XII bat- to- no for- te sul pon- te,
1 2 3 4 5 6 7 8 9
XIII tra le ci- glia fol- te del paz- zo
1 2 3 4 5 6 7
XIV sca- va len- to il suo stra- zio
1 2 3 4 5 6 7 8
XV l’un- ghia che sco- pre il cer- vel- lo
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
XVI daI fon- do te- ne- ro per un sec- chiel- lo
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
XVII ver- do- gno- lo, col- mo di sab- bia ba- gna- ta
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
XVIII da far- ci so- pra u- na rab- bio- sa pi- scia- ta.
Como se pode depreender facilmente a partir do esquema apresentado acima, a estrutura
silábica dos versos e das estrofes do poema varia enormemente e o número de sílabas de cada verso
82
oscila entre sete e doze. Tal variação é resultado automático do emprego da métrica nico-silábica
pelo fato de as palavras diferirem obviamente em tamanho. Uma maior uniformidade rítmica é obtida,
então, não pela utilização de um mesmo número de sílabas totais, entre tônicas e átonas, em todos os
versos, mas pela reiteração do mesmo mero total de sílabas tônicas em cada um. É o que acontece
no caso desse poema, em que, do total de dezoito versos, quatorze têm três sílabas tônicas e quatro
têm quatro sílabas tônicas. O quadro abaixo o confirma:
verso número de sílabas acentos tônicos
I 10 3
II 10 3
III 8 3
IV 8 3
V 8 3
VI 8 3
VII 11 3
VIII 10 3
IX 11 4
X 12 4
XI 10 3
XII 8 3
XIII 9 3
XIV 7 3
XV 8 3
XVI 11 3
XVII 12 4
XVIII 12 4
Como o demonstra a pequena variação entre o número de sílabas tônicas dos versos, o
esquema adotado nunca é totalmente rígido. Seja como for, na escansão e leitura em voz alta, a
uniformidade rítmica da métrica nico-silábica pode ser conseguida também por meio do accellerando
83
e do rubato, quer dizer, da maior ou menor velocidade que se emprega para compensar as diferenças
de contagem silábica dos versos. Dessa maneira, o poema mantém a feição silábico-acentual com
bastante nitidez, o que confere aos versos e ao texto como um todo um caráter rítmico e percussivo
bastante evidente, e uma certa marca de agressividade que se coaduna perfeitamente à sua temática e
à sua estrutura semântica.
É muito importante observar que a exploração da métrica tônico-silábica do modo como ela se
apresenta na obra poética de Porta é um elemento característico do tipo de experimentação formal
proposto. Como acontece freqüentemente, ao trabalho no nível fônico do poema (e aqui consideramos
não o metro, mas o ritmo como um todo, a ausência da rima ou a sua presença eventual, a
configuração das estrofes etc.) corresponde um trabalho em outros veis, particularmente o sintático e
o semântico. O que queremos dizer é que normalmente um contraste acentuado entre a estrutura
fônica do poema, relativamente homogênea e reiterativa, e a estrutura sintático-semântica dos versos,
geralmente mais complexa. Como resultado global, tal contraste gera uma ambigüidade de sentido que
cria várias opções de interpretação dos segmentos relativamente autônomos do texto.
No caso específico da série Contemplazioni, se comparada com outros poemas da mesma
época, a sintaxe é aparentemente mais simples. De qualquer maneira, a organização sintática não se
conforma à estrutura simétrica dos dísticos, e isso vale para os três poemas da série, de tal modo que
as seqüências de imagens, eventos e ações apresentadas não possuem fronteiras bem definidas. Na
verdade, cada poema da série parece descrever algum tipo de reação em cadeia que não obedece a
uma lógica causal compreensível. Em alguns segmentos, inclusive, fica-se na dúvida a respeito de
quais são os agentes dos estados de coisas expressos pelos verbos, visto que os sujeitos gramaticais
ocupam posições que podem gerar interpretações diferentes.
Um exemplo concreto disso é o dístico composto pelos versos 7 e 8, cuja compreensão é
particularmente difícil por causa de um certo grau de ambigüidade e indeterminação sintáticas. Qual é
exatamente o agente da ação e o sujeito sintático implicado no uso do verbo precipitare (em precipita
balzando)? Em termos puramente sintáticos, duas interpretações possíveis: podemos considerar
tanto o sintagma un kg di coke quanto una nuvola. Ainda que o leitor possa pender para uma ou outra
(talvez a segunda opção seja mais plausível), não se pode afirmar categoricamente que haja apenas
uma única correta.
Antes de qualquer coisa, tentemos compreender de que tipo de seqüências de imagens,
eventos e ações a série dos três poemas trata exatamente.
No primeiro poema da série, vemos imagens ou eventos: i) de transformação e movimento
absurdos ou inexplicáveis de objetos ou entes inanimados (Si torce Ia striscia rettilinea / in sinusoide
sbavata linea / che inciampa alla prima curva); ii) de objetos ou seres que batem e causam impacto
84
sobre o corpo de um indivíduo e no ambiente circundante (batte sul petto di un uomo / un kg. di coke
con un suono / sul selciato precipita balzando / di zoccolo una nuvola alzando / come un deposito di
lunghe fruste: / e gli zoccoli dei cavalli robuste / sparano mazzate sulla fronte, / battono forte sul ponte);
iii) de agressão contra o corpo humano (tra le ciglia folte del pazzo / scava lento il suo strazio / l’unghia
che scopre il cervello); iv) de expressão fisiológica de raiva (da farci sopra una rabbiosa pisciata).
Tomadas em conjunto, as imagens se referem a eventos ou situações caracterizados negativamente,
quer pelo seu caráter absurdo e ilógico, quer pelo seu caráter de agressão ou violência. A referência à
presença humana é indireta e mal esboçada, e o indivíduo ou indivíduos presentes antes sofrem
passivamente ou simplesmente reagem a eventos sobre os quais não têm controle algum.
No segundo poema, vemos imagens: i) de desastre (L’altro pilone, o torre, piegato sfilaccia / le
giunture); ii) de obstáculo ou impedimento ao movimento natural dos seres (un tram impedisce / il volo
dei piccioni); iii) de apodrecimento (contorta marcisce / la carcassa); iv) da ação de insetos que atuam
no solo ou nas entranhas da terra (le formiche sono all’opera), ou nos processos de apodrecimento de
animais mortos (le mosche scavano); v) e de ratos, que são animais que vivem na obscuridade das
suas tocas e que eventualmente podem viver também de assaltar alimentos guardados ou restos de
comida. Também aqui as imagens se referem a eventos ou processos caracterizados negativamente,
que agora indicam mais especificamente processos de término ou destruição da vida. A referência à
presença humana continua sendo muito indireta: o bonde que impede o vôo dos pombos, a pilastra que
um dia foi construída, talvez as louças pulverizadas e os objetos revendidos. Mais uma vez, esta
ausência, ou esta presença mal delineada, acentua aquela caracterização negativa e enfatiza o fato de
que tais eventos e processos não dependem da vontade dos seres humanos, escapam mesmo ao seu
controle, por serem resultado do acaso ou desastres naturais, e, em alguns casos, da ação desastrada
dos seres humanos.
No terceiro poema da série, é evidenciada, mais uma vez, a deterioração e o apodrecimento
como processos naturais (la carne marcisce in scatola). que agora tal processo é apresentado no
que ele tem de excessivo e, no limite, de desviante, que se sabe que os pólipos estão presentes em
processo patológicos como a formação de tumores (i polipi sfaldano con il coltello). Soma-se a esta
caracterização a náusea e o nojo humano. De novo, no processo natural de manutenção da vida e na
ação humana para mantê-la através da alimentação e da conservação dos alimentos , intervém um
elemento patológico de destruição. Aqui também a presença humana é apresentada de forma indireta,
como paciente de eventos e processos que acontecem sem o seu controle. A própria figura humana é
representada apenas por fragmentos do corpo, e nunca como uma figura inteira e reconhecível como
indivíduo (a pezzi si incagliano tra i denti; d’olio l’indice si punge; sopra uno stomaco preparato).
Representado dessa forma, o indivíduo sofre e se fere (urta la latta e si punge), e o que antes lhe devia
85
servir de alimento, portanto, de elemento positivo de conservação da vida, revela-se uma ameaça, que
causa náusea e repulsa.
O terceiro poema apresenta também uma particularidade sonora digna de nota, que é a sua
cadência fônica cíclica. Nota-se um movimento de máxima abertura vocálica no início, para o máximo
fechamento na altura do verso 32 (ristretto, rigurgiti ribollenti) e de novo um movimento gradual de
abertura para o final do poema. Interessante notar que é justamente na passagem do verso 31 para o
32 que ocorre o único enjambement de todo o poema: macello / ristretto. O verso 32, de fato, aparece
na metade do poema e por isso assume a função de núcleo formal e semântico que marca a passagem
do estado natural e de conservação do alimento ao estado de deterioração progressiva, passagem que
é marcada pela presença do nojo e da náusea. É como se houvesse um movimento interno aos
processos naturais, ressaltado naquele verso pela reiteração do fonema /r/, fonema vibrante por
natureza como a indicar um estado permanente de entropia –, que vai consumindo ocultamente a
matéria viva. Mas essa passagem é também evidenciada semanticamente pelos próprios
agrupamentos dos substantivos que marcam as rimas externas dos dísticos: scatola spatola; coltello
macello; ribollenti denti; de novo scatola spatola. Dos quatro agrupamentos, o segundo é o que
denota a maior carga de agressividade e violência, e constitui o enjambement para o verso 32. Ou seja,
depois do corte violento, as entranhas da matéria, antes ocultas, revelam uma vida vibrátil e intensa
que causa o estado de putrefação.
Como fica patente na descrição das seqüências de imagens e fragmentos que fizemos nos
parágrafos anteriores, a relação que se estabelece entre os entes, os seres e os objetos presentes no
mundo representado pelos três poemas da série é basicamente negativa. Há, sim, fragmentos do que
poderíamos reconhecer como elementos do mundo real em que todos vivemos, mas tais fragmentos
são apresentados num contexto absurdo ou quase absurdo (porque ilógico ou irracional), e certamente
expressionista (porque materializado por meio de imagens fortes de agressão ou destruição).
Acreditamos que uma das chaves de compreensão dos poemas da série Contemplazioni
está dada pelo título, que sugere que os poemas funcionam como uma representação do mundo fruto
da contemplação ou observação atenta por parte do poeta. Mas dadas a forma em que o mundo é
representado, a seleção dos entes que o habitam e a lógica interna (ou a sua falta) que dirige a relação
entre eles, somadas à estrutura formal e sintático-semântica que gera um grau significativo de
ambigüidade, conforme descrevemos, a representação oferecida pelo poema acaba por embaralhar os
hábitos interpretativos do leitor e o leva a interrogar sobre a própria representação do mundo criado
pelo poema e, por extensão, do próprio mundo exterior. Como se houvesse, necessariamente, uma
disparidade fundamental entre o que o poeta nos quer fazer ver e a expressão lingüística da atividade
de ver. Ou melhor: o que o poeta parece questionar é exatamente a capacidade de referenciar a
86
experiência perceptiva humana através da linguagem, sem que se possa evitar a estrutura e os filtros
que a linguagem humana impõe.
Se tomarmos o título numa acepção mais filosófica e intelectual, que apontaria para uma
atividade do pensar e do observar voltada a uma intuição das coisas e do mundo, na captação da
essência das coisas (um sentido que poderia ter um caráter inclusive religioso ou místico), estabelece-
se uma interrogação mais radical e mais angustiada, porque em nenhum momento é indicada uma
saída para o dilema da experiência e da existência humana. Assim como havíamos apontado na
análise do poema Vegetali, animali, também na série Contemplazioni a presença do mal num mundo
dilacerado pela agressão e pela destruição, por permanecer inexplicada, tende a absolutizar-se. A
diferença entre estes poemas e aquele é que o ser humano é representado, desta vez, não como o
agente causador do mal, mas como a sua vítima indefesa.
A tradução dos poemas de Contemplazioni oferece dificuldades grandes, tanto formais quanto
semânticas. A mais evidente delas é a reprodução das rimas interversais presentes nos três poemas
italianos, que na maior parte dos casos são rimas soantes. Do total de trinta e oito versos da série, há
apenas quatro exceções: os pares de versos 4 e 5 (uomo suono) e 13 e 14 (pazzo strazio)
compõem rimas toantes; e os versos 27 e 38 não rimam, pois são versos soltos por não fazerem parte
de um dístico.
8
Em alguns versos, desistimos da tentativa de obter a todo custo no texto da tradução as
rimas soantes completas que aparecem no texto italiano, pois isso acarretaria um desequilíbrio entre a
estrutura fônica e a estrutura semântica dos versos. Em casos como esses, preferimos nos concentrar
na criação de rimas toantes. Apresentamos a seguir a tradução, seguida dos comentários sobre as
escolhas feitas e as principais dificuldades encontradas:
CONTEMPLAZIONI CONTEMPLAZIONI
1 1
1 Si torce Ia striscia rettilinea 1 Contorce-se a faixa retilínea
2 in sinusoide sbavata linea 2 em sinusóide borrada linha
3 che inciampa alla prima curva 3 que tropeça na primeira curva
4 (non correre, sciocco, in curva) 4 (não corra, tolo, na curva)
8
De acordo com a classificação proposta por Chociay, as rimas que aparecem nos poemas da série são ao mesmo tempo:
‘emparelhadas’ (uma seguida de outra), ‘soantes’ (terminações idênticas a partir da vogal da última sílaba tônica), ‘graves’
(tratam-se de palavras paroxítonas), ‘padrão’ (porque constituem o modelo sico e mais comum) e ‘completas’ (repetem
exatamente as mesmas vogais e consoantes a partir da última vogal tônica). É o caso dos versos 1-2, 3-4, 7-8, 9-10, 11-12,
15-16, 17-18 (poema 1); dos versos 19-20, 21-22, 23-24, 25-26 (poema 2); e dos versos 28-29, 30-31, 32-33, 34-35, 36-37
(poema 3). As rimas dos versos 1-2 e versos 13-14 (poema 1) o rimas emparelhadas ‘toantes’ (que reiteram todas ou a
maior parte das vogais a partir da última sílaba tônica, mas não todas ou nenhuma das consoantes). Os versos 27 (poema
2) e 38 (poema 3) são versos ‘soltos’ (não rimam com nenhum outro verso). Cf. CHOCIAY, op, cit., 179-193.
87
5 batte sul petto di un uomo 5 bate no peito de um homem
6 un kg. di coke con un suono 6 um kg de coque com um som
7 sul selciato precipita balzando 7 na calçada precipita saltando
8 di zoccolo una nuvola alzando 8 com o casco uma nuvem alçando
9 come un deposito di lunghe fruste: 9 como um depósito de longas vergastas:
10 e gli zoccoli dei cavalli robuste 10 e os cascos dos cavalos robustas
11 sparano mazzate sulla fronte, 11 disparam porradas na fronte,
12 battono forte sul ponte, 12 batem forte na ponte,
13 tra le ciglia folte del pazzo 13 nos cílios grossos do insensato
14 scava lento il suo strazio 14 escava lento o seu tormento
15 l’unghia che scopre il cervello 15 a unha que descobre o cérebro
16 daI fondo tenero per un secchiello 16 do fundo tenro para um cântaro
17 verdognolo, colmo di sabbia bagnata 17 esverdeado, repleto de areia molhada
18 da farci sopra una rabbiosa pisciata. 18 fazendo nela uma raivosa mijada.
2 2
19 L'altro pilone, o torre, piegato sfilaccia 19 A outra pilastra, ou torre, dobrada desgrega
20 Ie giunture, polvere e ferro, schiaccia 20 as junturas, poeira e ferro, esmaga
21 gli aurei fili, un tram impedisce 21 os áureos fios, um bonde impede
22 il volo dei piccioni, contorta marcisce 22 os vôos dos pombos, contorcida apodrece
23 Ia carcassa, Ie formiche sono alI’opera, 23 a carcaça, as formigas vão à obra
24 Ie mosche scavano con Ia zampa che opera 24 as moscas escavam com a pata que obra
25 in profonda erosione, il vasellame polverizzato, 25 em profunda erosão, o vasilhame pulverizado,
26 fanno cumulo, come in un mercato 26 fazem um monte, como num mercado
27 i rosi dai topi oggetti rivenduti. 27 roídos por ratos objetos revendidos.
3 3
28 La carne si conserva in scatola, 28 A carne se conseva na lata
29 filacciosa si mescola con una spatola 29 fibrosa se mistura com uma espátula
30 e i polipi sfaldano con il coltelIo, 30 e os pólipos esfoliam com a faca
31 ruotano con misura in un macelIo 31 rodam com medida em chacina
32 ristretto, rigurgiti ribolIenti, 32 restrita, refluxos ferventes,
33 a pezzi si incagliano tra i denti, 33 em nacos encalham entre os dentes,
34 d’olio l’indice si unge, 34 de óleo o dedo se unta
35 urta Ia Iatta si punge 35 bate na lata se fura
36 e Ia carne marcisce in scatola, 36 e a carne apodrece na lata,
37 vomito spalmato da una spatola 37 vômito espalmado por uma espátula
38 sopra uno stomaco preparato. 38 sobre um estômago preparado.
88
Verso 1:
O verso italiano apresenta, como é a norma da língua, o pronome oblíquo na frente do verbo (si
torce). Na tradução para o português, ao invés de empregar, por exemplo, o verbo ‘torcer’, preferimos o
verbo ‘contorcer’ na sua forma enclítica (‘contorce-se’) basicamente por uma questão fônica: cria-se a
aliteração do fonema /s/ e ao mesmo tempo mantém-se o mesmo número de labas tônicas e sílabas
totais do verso italiano (três e dez, respectivamente).
Verso 2:
Mantemos na tradução a posição do adjetivo tal como aparece no verso italiano, isto é,
anteposto ao substantivo (‘borrada linha’). Certamente tal configuração soa menos comum, para não
dizer mesmo um pouco forçada, e isso evidentemente por uma questão fonética (o adjetivo é muito
longo). Como também em italiano seria preferível dizer linea sbavata, optamos, então, pela reprodução
do pequeno estranhamento fonético-gramatical. Note-se também que, pela posição que a palavra
sinusoide ‘sinusóide’ ocupa no verso, isto é, antes do adjetivo sbavata ‘borrada’, o substantivo
quase se confunde com o seu adjetivo correspondente sinusoidale sinusoidal, o que acentua ainda o
efeito de estranhamento.
Verso 4:
várias traduções possíveis para a palavra sciocco deste verso. Por exemplo: ‘bobo’, ‘tolo’,
‘pateta’, ‘néscio’, entre outras. Preferimos ‘tolo’ por uma razão métrica: com o seu emprego fica mantido
o mesmo número de sílabas métricas do verso italiano (oito ao todo).
Verso 5 e 6:
A reprodução da rima toante uomo suono não é perfeita (em português, temos ‘homem
som’). De qualquer maneira, procuramos reproduzir o mesmo número de sílabas métricas e tônicas dos
dois versos (respectivamente oito e três) fazendo um pequeno ajuste: traduzimos a preposição sul (na
verdade, preposição su mais artigo masculino singular il) com ‘no’, também possível em português, ao
invés de ‘sobre o’, que criaria uma sílaba métrica a mais.
Verso 7 e 8:
Para conseguir reproduzir a rima balzando – alzando, preferimos traduzir o segundo termo com
o verbo ‘alçar’. Assim temos: ‘saltando alçando’. O verbo mais comum ‘subir’, por exemplo, não
constituiria uma rima soante completa com ‘saltar’, e o verbo ‘elevar’, outra opção possível,
acrescentaria uma sílaba métrica a mais.
89
Bastante difícil é a interpretação e a tradução da expressão di zoccolo do verso 8. A palavra
zoccolo tem, entre outras, as seguintes traduções: ‘tamanco’, ‘casco’ (de animal), ‘base’, ‘pedestal’ ou
‘pé’. É difícil escolher qual delas possa se adequar melhor ao contexto semântico do verso e do dístico
a que pertence, e isso depende também de como se interpreta o contexto semântico global. Apesar de
não conseguir resolver a ambigüidade da expressão e do contexto lingüístico em que aparece,
preferimos traduzir a expressão com ‘com o casco’.
Verso 9 e 10:
A palavra fruste (plural de frusta) pode ser traduzida como ‘chicotes’, ‘açoites’, ‘chibatas’,
‘látegos, entre outras opções. Preferimos traduzi-la com ‘vergastas’, palavra que, apesar de menos
comum, tem uma sonoridade forte bastante adequada ao contexto semântico do dístico, com a
vantagem de permitir a rima com ‘robustas’ do verso 10 e ainda produzir a reiteração da sílaba ‘-gas’ na
seqüência ‘longas vergastas’.
Verso 11 e 12:
Preferimos traduzir a palavra fronte pelo seu homógrafo português ‘fronte’, evidentemente para
poder produzir a rima com ‘ponte’. Em italiano, a palavra tem um campo semântico ligeiramente mais
abrangente se comparado com o da homógrafa portuguesa.
Verso 13 e 14:
A tradução mais comum para pazzo é certamente ‘louco’. também outras opções, como
‘demente’, ‘doido’, ‘maluco’, ‘desvairado’ etc. Preferimos empregar ‘insensato’ por formar uma rima
soante incompleta com ‘tormentoe ainda enfatizar o eco das sílabas nasais na seqüência ‘insensato’,
‘lento’ e ‘tormento’.
Verso 15 e 16:
Seguramente o par cervello secchiello apresenta a rima de mais difícil reprodução de todo o
poema 1 e uma das mais difíceis de toda a série. Não é possível encontrar par em português que lhe
seja equivalente e isso tanto no nível fônico quanto no nível semântico do dístico. Optamos pela
criação da rima toante ‘cérebro – cântaro’, que, conforme a classificação proposta por Rogério Chociay,
deve ser classificada como rima toante de esquema esdrúxulo (reúne duas palavras proparoxítonas)
parcial de uma fraca (quer dizer, apresenta homofonia de apenas uma vogal fraca, no caso a última).
9
9
CHOCIAY, op. cit., p. 183.
90
Verso 19 e 20:
Uma das traduções possíveis do verbo sfilacciare é ‘desagregar’, de campo semântico mais
abrangente do que, por exemplo, o mais específico ‘desfiar’. Por razões fônicas, usamos a variante
‘desgregar’ (‘desgrega’). Assim, mantém-se aproximadamente o mesmo número de sílabas métricas do
verso 19 (dependendo da contagem, treze ou catorze) e faz-se rima soante incompleta com ‘esmaga’.
Verso 21 e 22:
Na dificuldade de obter rima soante completa para o par impedisce marcisce, mantemos o
significado básico dos termos com a produção de rima toante de esquema grave total ‘apodrece
impede’ (total porque há reiteração da vogal forte e da fraca simultaneamente).
10
Verso 28 e 29:
O par scatola spatola forma rima soante completa. Dada a dificuldade de obtê-la em
português, propomos o par ‘lata – espátula’, que constitui rima toante assimétrica do tipo grave-
esdrúxulo
11
e, pelo menos em termos semânticos, se aproxima bastante do par italiano.
Verso 30 e 31:
Equiparável à dificuldade encontrada no dístico formado pelos versos 15 e 16, também aqui a
rima soante completa coltello macello é de difícil solução na tradução. Mais uma vez optamos por
rima toante: ‘faca chacina’. Nos termos da classificação proposta por Chociay, esta rima toante deve
ser considerada rima toante de esquema grave (as duas palavras são paroxítonas) parcial fraca (só
homofonia da vogal fraca).
12
Verso 34 e 35:
Na impossibilidade de reproduzir a rima soante completa unge punge, optamos pela rima
toante de esquema grave total ‘unta – fura’.
10
CHOCIAY, op. cit., p. 183.
11
CHOCIAY, op. cit., p. 183.
12
CHOCIAY, op. cit., p. 183.
91
III. POEMA IN RE (Cap. 1, p. 21-22)
IN RE
1 Lo sguardo allo specchio scruta l’inesistenza,
2 i peli del sopracciglio moltiplicano in labirinto,
3 l’occhio nel vetro riflette l’assenza, nel folto
4 i capelli, temporanea parrucca, sgomentano le mani:
5 cadono sulle guance.
6 L’inquietudine prolungata mette in evidenza
7 il mortale infinito dei pori dilatati,
8 estrema avventura di un oggetto che si trucca,
9 sceglie una direzione inconsapevole o folle.
10 Dietro il lavabo il corpo in oscillazione
11 sfugge l’abbaglio, rivoltante presenza,
12 indicatrice e lampante, nella camera a vuoto
13 tra le piume mulina, Ia soffocazione.
O poema In re (1960) pode ser considerado sob tantos aspectos um texto exemplar de toda a
obra poética de Antonio Porta, quase como o seu manifesto filosófico e estético, especialmente
daquela produzida nos anos sessenta e parte dos setenta. De fato, ele é sinal material de todo um
esforço de elaboração de uma poética que, ao mesmo tempo que aceitava as premissas ideológico-
estéticas da neovanguarda, apresentava, do ponto de vista estilístico, elementos fundamentais que
acusavam uma apropriação pessoal daquelas premissas e identificavam inequivocamente a poesia do
autor. Como indicamos várias vezes no Capítulo 1, o procedimento formal mais importante desse
poema, assim como dos demais de I rapporti, é a exploração da estrutura sintática aliada a uma
estruturação das estrofes e das partes sempre muito hábil e coerente com o desenvolvimento temático,
procedimento esse que se constitui, dada a sua aplicação sistemática ao longo de toda a obra do autor,
num dos seus traços estilísticos mais facilmente identificáveis.
O aspecto implicitamente programático do poema a que aludimos pode ser constatado no
seu título mais ou menos solene In re, expressão latina que pode ser traduzida como ‘nas coisas’ ou
‘dentro das coisas’, ou ainda ‘no interior das coisas’. O título é evidentemente uma alusão àquela
poética dos objetos, sobre a qual falamos várias vezes. Faz lembrar também uma outra expressão bem
conhecida do jargão retórico-literário in medias res (‘no meio das coisas’), utilizada para se referir à
técnica que preconiza iniciar uma narrativa pelo meio da história ao invés de pelo seu começo,
dispensando preâmbulos ou apresentações preliminares.
13
A lembrança não parece descabida, pois,
13
A expressão aparece na Ars poetica de Horácio (v. 148-150) e se contrapõe à expressão ab ovo, que também aparece no
mesmo trecho e que se refere ao expediente de começar uma narrativa pelo início da história. Cf. verbete: “In medias res.
92
como assinalamos algumas vezes, dado o caráter narrativo normalmente vago e pouco conexo dos
poemas do autor, freqüentemente o leitor se diante de uma multiplicidade de objetos e
acontecimentos sem nenhuma preparação prévia.
O caráter filosófico ou filosofante inaugurado pelo título é depois perfeitamente confirmado pelo
texto do poema, cujo tom afirmativo resulta de um certo tipo de observação e descrição características
também daquela poética ou fenomenologia do olhar a que nos referimos no Capítulo 1. Realmente, a
disposição sintática e gramatical elementar e homogênea dos versos favorece um tipo de descrição
lógica do tipo sujeito objeto, que, num efeito cumulativo e intensificador, constrói a cena e esboça o
fundo narrativo. Como se pode constatar, os versos 1, 2, 3, 4, 5, 6-7, 9 e 10-11 apresentam a mesma
estrutural gramatical, na ordem direta SV(O),
14
com exceção do último em que o sujeito aparece na
última posição (verso 13: tra le piume mulina, la soffocazione). Os demais versos constituem sintagmas
com a função de aposto de objeto (verso 8: estrema avventura di un oggetto che si trucca; segunda
metade do verso 11 e primeira metade do 12: rivoltante presenza, / indicatrice e lampante), e de
complemento adverbial (segunda metade do verso 12 e primeira parte do verso 13: nella camera a
vuoto / tra le piume).
A repetição do mesmo tipo de configuração gramatical como a descrita é perfeitamente
coerente com o desenvolvimento temático do poema, que se constitui, como é freqüente nos outros
poemas de I rapporti, numa cena narrativa: um indivíduo se observa no espelho de um quarto de
dormir. Na primeira e na segunda estrofe, o poema apresenta imagens fragmentadas do corpo (lo
sguardo allo specchio, i peli del sopracciglio, l’occhio nel vetro, il mortale infinito dei pori dilattati), ao
passo que, na última, o corpo é visto como um todo (il corpo in oscillazione). Este movimento de
observação que vai do particular para o geral, da parte para o todo, e que poderia significar uma
recuperação de um sentido positivo de totalidade, é traído pelo sentimento de instabilidade, fuga e
reação negativa ao que se (il corpo in oscillazione / sfugge l’abbaglio, rivoltante presenza). Esta
incapacidade de reconstrução de um sentido global de si e o sentimento de desnorteamento e
desconforto são reforçados também pela imagem do quarto de dormir, o ambiente em que a cena se
desenrola, que não cumpre ali a sua função de espaço destinado ao sono e ao repouso, mas que se
torna um lugar que produz sufocação ou asfixia. Não parece um acaso o fato de o último verso realçar,
através de um expediente puramente gramatical o único em que a ordem sintática “natural” aparece
invertida), o sentido negativo que conclui o poema.
Uma série de outros detalhes lexicais e gramaticais que se acumulam e se reiteram reforça o
In: MOISÉS, op.cit., p. 240. Cf. também: “In media res”. Wikipedia. Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/In_media_res.
Acesso em: 20 jul 2006.
14
Seqüencia sujeito – verbo – (objeto), em que os parênteses indicam elemento facultativo.
93
sentido geral de negação e negatividade expresso pelo poema. Por exemplo, é interessante notar o
pequeno estranhamento gramatical presente no verso 2 (i peli del sopracciglio moltiplicano in labirinto
)
.
O verso não diz si moltiplicano in labirinto, mas apenas moltiplicano. Tal uso intransitivo do verbo, em
contraposição ao seu uso pronominal normal, sugere, do ponto de vista semântico, um sentido de
intencionalidade que um elemento natural do corpo (no caso aqui, os pelos) normalmente não pode ter,
apresentado que é, por força da construção gramatical, como agente de uma ação que não apresenta
um objeto definido. O uso desse pequeno artifício gramatical acentua o sentido de falta de controle por
parte do sujeito do que acontece consigo mesmo, sentido esse que é logo confirmado pelo
complemento adverbial in labirinto, que indica que tal ação se desenvolve num espaço de que não se
conhece a saída, ou seja, um lugar de confusão e ignorância. Mas o mesmo sentido e sentimento de
ignorância e perda de controle são reafirmados outras vezes. Por exemplo, no verso 8 da segunda
estrofe (sceglie una direzione inconsapevole o folle), que ainda aponta para o aspecto da perda da
razão e da inconsciência. Um outro exemplo é o uso da palavra abbaglio (verso 11), que, além de
significar ‘ofuscação’, também pode ser interpretada como ‘erro’, ‘engano’, ‘ilusão’.
O sentido global do poema e as significações específicas veiculadas pelos elementos
gramaticais, sintáticos e lexicais apontados nos parágrafos anteriores vão encontrar o seu apoio
material na configuração métrica e rítmica do poema como um todo. Como é muito freqüente em toda a
obra poética de Porta, o poema tem uma relativa uniformidade métrica que se apóia mais no acento
tônico das palavras (que gira em torno de quatro e cinco acentos tônicos principais por verso) do que
no número de sílabas sempre variável dos versos (o verso 4, o menor, tem sete sílabas; o verso 5, o
maior, dezoito). De certo modo, a métrica tônico-silábica é perfeitamente adequada à construção da
“máquina” do poema, na sua escansão mecanicamente dura e regular, não matematicamente exata, é
verdade, mas que revela uma frieza ou uma atitude de distanciamento emocional facilmente
discernível, traço que apontamos como sendo uma das marcas que distinguia a poesia do autor à
época de I rapporti.
Mas não é o recurso à métrica tônico-silábica que sugere um distanciamento emocional por
parte do poeta, entendido aqui como aquele autor implícito, se quisermos, o “poeta implícito” do
poema. No caso da poesia de Antonio Porta, como advertimos no Capítulo 1, a instância da
subjetividade se mostra mais complexa e menos facilmente distinguível. O recurso da criação de um
personagem, ao modo do que se faz na narrativa, em que o poeta evita fazer coincidir a sua voz com a
dos personagens de que fala, faz do ‘eu poéticoum observador, que procura antes mostrar do que
participar dos sentimentos e das emoções que as cenas representadas expressam ou eventualmente
têm o poder de fazer emergir.
94
Em termos retóricos, In re apresenta uma série de elementos que dificultam a sua interpretação
unívoca; ao contrário, através da exploração de certas ambivalências lingüísticas sutis mas eficazes, o
poema propõe um certo tipo de discussão fenomenológica que se por meio da apresentação de
paradoxos que não se resolvem e pela formulação de questões para as quais o poeta não oferece
respostas definitivas. no primeiro verso nos deparamos com um deles: Lo sguardo allo specchio
scruta l’inesistenza. Um modo de explicar esse verso seria dizer que um sujeito dado, num certo
momento e em algum lugar, olha para o espelho e a sua imagem refletida e conjectura sobre a
inexistência. Inexistência do quê, exatamente?
Ora, asseverar que uma imagem refletida pelo espelho implica supor necessariamente que
há um ente, um ser animado ou inanimado, que é o referente daquela imagem. É por isso, então, como
afirma Umberto Eco num ensaio publicado em 1985 intitulado “Sugli specchi”, que a imagem que um
espelho reflete não pode ser considerada um signo, pois o que caracteriza essencialmente o signo,
qualquer signo, é o fato de ele evocar o referente in absentia. Assim, mesmo que o espelho devolva
uma imagem deformada do seu referente (o que acontece particularmente no caso dos espelhos
deformadores), e que ela deixe de corresponder exatamente à sua realidade física concreta, a imagem
especular é sempre a garantia absoluta de que algo está ali. A imagem do espelho, portanto, nunca é
mera contrafação ilusória ou imaginária (não podemos confundir aqui a imagem que o espelho irradia
com a percepção que o sujeito eventualmente pode ter dela), pois afinal um espelho é capaz de
refletir a imagem dos entes in praesentia e que estão ou são colocados à sua frente. Nesse ponto, a
diferença entre a imagem catóptrica e o signo fica mais patente: por intermédio dos signos somos
capazes de evocar entes que deixaram de existir ou morreram, ou que não estão presentes; a imagem
refletida pelo espelho, por sua vez, nunca evoca o objeto, o mostra em plena presença física, no
tempo presente.
15
Como conseqüência lógica desse raciocínio, não é possível negar a existência do
ente – bem entendido, do ente como referente da imagem especular –, pois ele está ali como
presentidade, ou, para falar nos termos que o próprio poema sugere, o ser individual olha a sua
imagem refletida pelo espelho num certo momento e num dado lugar (só o devemos esquecer que
estamos falando de uma entidade fictícia, quer dizer, da realidade individual e concreta do personagem
que habita aquele mundo possível imaginado pelo poeta). E está posto o paradoxo: o ente referente
da imagem especular, seja ele uma pessoa, um animal ou um objeto físico qualquer, não pode existir e
não existir ao mesmo tempo. E a pergunta que fizemos continua sem resposta: o que não existe, se a
15
Como Eco diz, mesmo no caso de fenômenos limítrofes de imagens produzidas pelos mais diversos tipos de espelhos
deformadores, o universo catóptrico, isto é, aquele que tem a ver com as imagens produzidas por artefatos que refletem a
luz, nunca é da mesma natureza que o universo semiósico, aquele que tem a ver com a ação dos signos na sua evocação a
referentes reais ou imaginários. A esse respeito, cf.: ECO, Umberto. “Sugli specchi”. ______. In: Sugli specchi e altri saggi: il
segno, la rappresentazione, l’illusione, l’immagine. Bologna: Bompiani, 1985, p. 9-37.
95
única coisa que sabemos de certo é que o personagem que olha para o espelho existe naquele
mundo?
Outro paradoxo aparece logo a seguir no uso ambíguo da preposição nel no terceiro verso
l’occhio nel vetro riflette l’assenza. O que realmente refere a preposição in neste verso? É o olho do
sujeito que observa a imagem projetada pelo espelho, ou a imagem do olho que está dentro” do vidro
e que o sujeito percebe? Em que medida uma ou outra pode refletir a ausência, se tanto o referente da
imagem quanto a imagem especular estão necessariamente presentes naquele espaço e naquele
tempo, enfim, são duas “presenças”. O que está ausente afinal? Aqui arriscamos uma resposta a essas
perguntas, sem ter a pretensão de resolver por completo os paradoxos. Para isso recorremos ao que já
dissemos a respeito dos outros versos do poema.
A relação do sujeito que se observa ao espelho não se esgota verdadeiramente na relação
com a imagem especular em si mesma, que de qualquer maneira está presente na sua realidade física
perceptível de radiação de luz (que no poema é referida nos versos 11 e 12 como l’abbaglio, rivoltante
presenza, / indicatrice e lampante), mas se estende também à relação da imagem especular com a
própria imagem de natureza psíquica que o sujeito forma a respeito de si mesmo, quer dizer, a sua
auto-imagem. Como a imagem especular é uma espécie de devolução totalmente congruente ao seu
referente, quando o sujeito se olha ao espelho ele é ao mesmo tempo o observador e o observado. No
fundo, o que parece acontecer é um conflito entre o que sujeito verdadeiramente e o que a sua
consciência permite que ele elabore ou aceite, isto é, o sujeito está ali mesmo, mas não se reconhece,
ou julga estar diante de uma ilusão ou de um engano, sem conseguir dar um sentido conseqüente à
sua própria presença no mundo. Isso explica a fragmentação das imagens que naturalmente o sujeito
percebe, mas que, como dissemos, são vistas como partes separadas e autônomas, como, por
exemplo, os pelos da sobrancelha que parecem (se) multiplicar, os cabelos que apavoram as mãos, os
poros dilatados que tomam uma direção qualquer. Esta dificuldade de pensar a si mesmo e de formar
uma imagem coesa e positiva se torna então uma espécie de inconsciência diante da vida e dos
acontecimentos, e pode causar, como o poema expressa claramente, perturbação e desconforto. É
como se o sujeito, a despeito de estar no mundo como realidade concreta, se sentisse ou se pensasse
como se não existisse ou estivesse ausente de si mesmo, o que indica que um lapso entre a
existência do indivíduo e a instância que é capaz de dar um sentido a ela, que é a consciência do
próprio sujeito. Em outras palavras, a percepção que o indivíduo tem de si, do que está ao seu redor e
de sua vida como um todo é sentida como algo fugidio que não se deixa capturar, comparável ao que
se diz no verso 8: uma estrema avventura di un oggetto che si trucca.
Resumindo, podemos dizer que o poema In re contém de forma concentrada, e daí a sua
exemplaridade, vários dos elementos temáticos daquela fenomenologia do olhar que foi referida em
96
várias passagens do Capítulo 1: a incapacidade, por parte do sujeito humano, da reconstituição de um
sentido de unidade na percepção das imagens de si e da realidade ao seu redor, que se mostram
então fragmentadas e sem sentido; e a incapacidade de unificar e controlar os acontecimentos,
eventos e ações promovidas ou sofridas pelo indivíduo, numa interpretação narrativa coerente e coesa,
completa e suficiente. Evidentemente que a tomada de consciência dessas faltas, que os poemas de I
rapporti de algum modo registram, é acompanhada por um sentido global de negatividade e de
negação, manifestado através de sentimentos de horror e de repulsa que surgem como reação ao
ambiente circundante, seja ele natural, seja ele social, e às situações de conflito, violência e
agressividade, geralmente inexplicadas, entre os indivíduos. Certamente, esta dimensão inconsciente
do estar no mundo, que, aos olhos do poeta, causa necessariamente dor e angústia, e resulta num
sentimento fundamental de inautenticidade, é um dos temas caros à obra de Antonio Porta e de algum
modo aproxima o poema In re e outros de I rapporti, de alguns temas discutidos por certas vertentes do
existencialismo e da fenomenologia, e de certas formulações dos filósofos alemães Karl Jaspers e
Martin Heidegger.
16
Se comparado a grande parte dos poemas do livro I rapporti, o poema In re, dadas as suas
características formais bastante lineares e simétricas, não apresenta dificuldades particularmente
grandes para a tradução. O texto em português que propomos mantém à risca o esquema estrófico do
poema italiano. Naturalmente, é necessário fazer uma série de pequenos ajustes, especialmente no
que concerne ao número de sílabas de cada verso, que não coincidem ponto a ponto com a contagem
silábica dos versos originais. Como no poema original o número de sílabas é variável, não julgamos
que tais diferenças sejam significativas. Por outro lado, tentamos reproduzir com a máxima exatidão
possível a distribuição de sílabas tônicas no esquema métrico e rítmico dos versos, visto que o recurso
a este tipo de métrica é traço fundamental de toda a poesia de Antonio Porta, como já assinalamos.
Como se verá a seguir, os problemas maiores da tradução de In re se concentram na escolha
de itens lexicais que funcionem igualmente bem no esquema métrico e rítmico do texto em português
como funcionam no original, e que sejam válidos também do ponto de vista semântico, isto é, que se
conformem adequadamente ao sentido global do poema e aos significados específicos que
procuramos delinear na nossa análise. Dito de outro modo, a reprodução mais, ou menos, satisfatória
do esquema trico está diretamente ligada à escolha do vocabulário mais, ou menos, adequado. A
nossa meta, então, será sempre a de conseguir o máximo equilíbrio possível entre som e sentido.
Apresentamos a seguir a tradução e logo depois os comentários sobre as dificuldades e soluções
propostas:
16
MORONI, Mario. Essere e fare: l’itinerario poetico di Antonio Porta. Rimini: Luisè, 1991, p. 13-14.
97
IN RE IN RE
1 Lo sguardo allo specchio scruta l'inesistenza, 1 O olhar ao espelho escruta a inexistência,
2 i peli del sopracciglio moltiplicano in labirinto, 2 os pelos da sobrancelha multiplicam em labirinto,
3 l'occhio nel vetro riflette l'assenza, nel folto 3 o olho no vidro reflete a ausência, o denso
4 i capelli, temporanea parrucca, sgomentano le mani: 4 cabelo, temporária peruca, apavora as mãos:
5 cadono sulle guance. 5 caem sobre a cara.
6 L'inquietudine prolungata mette in evidenza 6 A inquietude prolongada coloca em evidência
7 il mortale infinito dei pori dilatati, 7 o mortal infinito dos poros dilatados,
8 estrema avventura di un oggetto che si trucca, 8 extrema aventura de um objeto que se esconde,
9 sceglie una direzione inconsapevole o folle. 9 escolhe uma direção inconsciente ou louca.
10 Dietro il lavabo il corpo in oscillazione 10 Diante da pia, o corpo em oscilação
11 sfugge l'abbaglio, rivoltante presenza, 11 foge à miragem, revoltante presença,
12 indicatrice e lampante, nella camera a vuoto 12 indicativa e cintilante, no quarto, no vácuo
13 tra le piume mulina, Ia soffocazione. 13 entre os lençóis remoinha, a asfixia.
Verso 1:
A primeira dificuldade está na escolha da tradução mais adequada para a preposição allo (mais
precisamente, a preposição a mais o artigo masculino singular il (a + il = allo)), que aparece no
sintagma-sujeito lo sguardo allo specchio. Ocorre que a preposição a, nesse sintagma, admite uma
interpretação ambígua, isto é, dependendo de como se lê, ela pode desempenhar, de acordo com a
gramática tradicional italiana, tanto a função de complemento di stato in luogo o olhar que está no
espelho), quanto a função de complemento di moto a luogo, (o olhar que se dirige ao espelho)
17
, o que,
em português, denominaríamos, respectivamente, ‘adjunto adverbial de lugar onde’ e ‘adjunto adverbial
de direção’.
18
Para resolver a ambigüidade, deve-se ter em mente também não só o valor semântico da
preposição em si, mas também o papel que exerce no conjunto do texto. Como vimos na análise, a
contraposição, ou uso ambíguo da preposição in no verso 3 que a sugere, entre um “fora” e um
“dentro” do espelho. Assim, preferimos interpretar a preposição a do verso 1 com o valor de direção,
que se contraporá, então, mais nitidamente ao valor de lugar onde da preposição in do verso 3.
19
Esta
escolha também se baseia no fato de as preposições em italiano serem em princípio menos
intercambiáveis, em comparação com o que se faz no português brasileiro padrão, especialmente o
falado.
20
17
DARDANO, M.; TRIFONE, Pietro. Grammatica italiana: con nozioni di linguistica. 2a. ed. Firenze: Zanichelli, 1989, p. 137.
18
KURY, Adriano da Gama. Novas lições de análise sintática. 3. ed. São Paulo; Ática, 1989, p. 56.
19
Naturalmente, tanto neste exemplo, como em todos os outros que vamos citar, o esperamos, nem pretendemos,
resolver todas as ambigüidades gramaticais sutis do texto, mas temos consciência de que cabe ao tradutor, conforme o que
dissemos no Capítulo 2, escolher as suas soluções, de acordo com a sua interpretação, e que cada escolha feita admite
uma série de possibilidades de leitura assim como necessariamente exclui uma série de outras.
20
Esta afirmação se baseia evidentemente no conhecimento necessariamente limitado que temos do italiano e do
português, ou seja, é mais uma impressão do que uma afirmação baseada num estudo de freqüência de uso das
preposições e dos contextos lingüísticos em que aparecem. Seja como for, é possível citar facilmente vários exemplos: Vou
a São Paulo, vou para (pra) São Paulo.
98
Conforme, então, o valor semântico e o registro escolhido (estilo menos ou mais formal),
21
a
preposição contraída com o artigo poderia ser traduzida de três maneiras diferentes: como ‘para o’ (ou
‘pro’); como ‘ao’; ou como ‘no’. Teríamos, então, os resultados seguintes: ‘o olhar para o espelho’ (ou ‘o
olhar pro espelho’); ‘o olhar ao espelho’; ou ‘o olhar no espelho’. Cada uma destas soluções apresenta
os seus inconvenientes, que é preciso reduzir ao mínimo. A nossa preferência vai para ‘O olhar ao
espelho’. Primeiro, por manter a oposição que vai acontecer em seguida no verso 3 com ‘o olho no
vidro’; depois por remeter à expressão verbal ‘olhar(-se) ao espelho’ (de que ‘o olhar ao espelho’ é uma
nominalização), que é justamente o que o personagem do poema está fazendo.
Verso 2:
Mantemos em português a intransitivização do verbo, que também causa o pequeno
estranhamento gramatical do italiano. Do mesmo modo, traduzimos à risca a expressão adverbial in
labirinto como ‘em labirinto’ (‘labirinticamente’).
Verso 3:
Pela razão apontada no parágrafo “Verso 1”, a preposição nel é traduzida pelo
correspondente exato ‘no’. no caso da expressão adverbial nel folto, propomos uma modificação
que afeta também o início do verso seguinte (nel folto / i capelli). Como o significado do conjunto é ‘na
parte densa dos cabelos’, ‘na parte em que os cabelos têm mais volume’, expressões explicativas e
longas demais, substituo-as pela mais sintética e eficaz, do ponto de vista métrico e sonoro, ‘o denso /
cabelo’. Haveria também a opção ‘os densos / cabelos’, mas preferimos a outra pelo fato de manter o
mesmo arranjo sonoro (repetição dos fonemas ‘o’ e ‘en’) e gramatical (artigo + substantivo no singular)
do início do verso ‘o olho no vidro reflete a ausência, o denso / cabelo’. Esta solução apresenta uma
desvantagem: desfaz o arranjo sintático SVO do início dos três primeiros versos, mas o reproduz ao
menos no enjambement.
Verso 4:
Traduzimos ao pé da letra o aposto temporanea parrucca (referido a i capelli). Assim, temos
‘temporária peruca’, que, por causa da posição do adjetivo, soa um pouco artificial, artificialidade
21
PRETI, Dino. Sociolingüística: os níveis da fala. São Paulo: Editora Nacional, 1982, p. 34-35: “Dá-se o nome de níveis de
fala (ou níveis de linguagem) ou registros às variações determinadas pelo uso da língua pelo falante, em situações
diferentes. [...] As variações quanto ao uso da linguagem pelo mesmo falante, em função das variações de situação, podem
ser de duas espécies: nível de fala ou registro formal, empregado em situações de formalidade, com predominância da
linguagem culta, comportamento mais tenso, mais refletido, incidência de vocabulário técnico; e nível de fala ou registro
coloquial, para situações familiares, diálogos informais onde ocorre maior intimidade entre os falantes, com predominância
de estruturas e vocabulário da linguagem popular, gíria e expressões obscenas ou de natureza afetiva”.
99
também presente no italiano, talvez não no mesmo grau.
22
Mesmo assim, preferimos adotá-la pelo eco
gramatical que vai acontecer mais adiante nos versos 7 (‘o mortal infinito’), 8 (‘extrema aventura’) e 11
(‘revoltante presença’). A inversão da posição dos adjetivos para a segunda posição no sintagma nos
pareceu menos eficaz no que se refere à sonoridade do verso, especialmente na distribuição dos
acentos e da maior ênfase que o segundo elemento, a nosso ver, deve receber (no caso deste verso, a
palavra ‘peruca’; no 7, ‘infinito’; no 8, ‘aventura’; e no 11, ‘presença’).
Verso 5:
várias traduções possíveis para a palavra guance deste verso: ‘bochechas’, a mais literal;
‘faces’, ou simplesmente ‘face’; ‘rosto’; e ‘cara’. A nossa opção foi pela sinédoque ‘cara’, por uma razão
fônica: a palavra produz o eco da sílaba ‘(-)ca-’ deste verso e do anterior (cabelo, temporária peruca,
apavoram as mãos: / caem sobre a cara). Isso também como uma forma de compensar o eco sonoro e
gramatical produzido pelos verbos sgomentano do verso 4 e cadono (ambos palavras proparoxítonas
terminadas em -no e de terceira pessoa plural), não reproduzido em português.
Verso 8:
O verbo truccarsi (si trucca) pode ter os seguintes sinônimos em português: ‘pintar-se’,
‘maquiar-se’; também ‘camuflar-se’, ‘disfarçar-se’, ‘mascarar-se’. Na família semântica de que faz parte,
em que aparecem, por exemplo, as palavras trucco, truccare, truccatura, também as conotações de
alteração da imagem, falseamento das aparências ou de dados, ou de segredo. Escolhemos o verbo
‘esconder’ (‘se esconde’), palavra que, em princípio, o se arrola entre os sinônimos listados, mas
que, de acordo com a análise que fizemos, não se distancia demasiado deles nem do contexto
semântico do poema. Como acréscimo tem-se ainda a repetição da sílaba /es/ (grafadas ‘ex-’ ou ‘es-’)
e a repetição de ‘-co-’ (ou ‘-c-’) neste verso e no seguinte (‘extrema aventura de um objeto que se
esconde / escolhe uma direção inconsciente ou louca).
Verso 10:
O verso 10 apresenta uma dificuldade de interpretação: a que posição no espaço se refere
exatamente a preposição dietro na expressão adverbial inicial Dietro il lavabo? Supondo, como
estamos fazendo, que a cena descrita no poema se passa num quarto de dormir e que nele há uma pia
e um espelho provavelmente colocado sobre a parede e acima daquela (eventualmente, mas não
obrigatoriamente, num banheiro contíguo), como imaginar uma posição “atrás” da pia que não seja a
22
Não é o caso de discutir aqui a questão do posicionamento dos adjetivos, que, a par de não funcionarem exatamente da
mesma maneira em português e italiano, é um problema semântico bastante complexo.
100
do sujeito que se coloca diante do espelho encostado próximo a ela? Na verdade, é como se o ponto
de referência estivesse invertido: o espelho e a imagem que produz estão à frente do sujeito que olha;
entre este e aquela se interpõe a pia; logo, o sujeito está atrás desta. também a hipótese mais
complicada e forçada de interpretar ‘o corpo em oscilação’ como a imagem cambiante do personagem
refletida pelo espelho. Assim, o personagem estaria na frente da pia; a imagem (do corpo em
oscilação) estaria atrás da pia; entre um e outra estaria a própria pia. Acontece que o verso seguinte
diz que é o corpo em oscilação que foge do brilho equívoco (l’abbaglio) produzido pelo espelho. Não é
logicamente possível, então, que seja a própria imagem a fugir de si mesma. Preferimos, portanto,
considerar a primeira hipótese a mais válida e, a despeito da ambigüidade no uso da preposição dietro,
na tradução simplificamos a situação descrita no texto e adotamos justamente a preposição
semanticamente inversa ‘diante’.
No que se refere à pontuação, acompanhamos à risca a divisão do texto italiano. A única
exceção é justamente a vírgula que acrescentamos depois da expressão adverbial ‘Diante da pia’. A
razão é métrica e rítmica, mas também semântica. De todas as três estrofes do poema, esta é a mais
recortada: nos três versos finais aparecem vírgulas que marcam os apostos referidos a l’abbaglio
(rivoltante presenza e indicatrice e lampante) e ao mesmo tempo coincidem com a cesura de cada um.
Quisemos seguir, então, o mesmo esquema.
Verso 11
A tradução da palavra abbaglio deste verso merece atenção especial. Na realidade, tal palavra,
além de algumas outras como, por exemplo, inesistenza e assenza, se constitui numa das chaves
para interpretação do poema como um todo. Como havíamos mencionado, abbaglio é um
substantivo derivado do verbo abbagliare, que tem o significado de ‘ofuscar a vista’, ‘cegar por intensa
luminosidade do sol ou de outra fonte luminosa’ e também, por extensão, ‘cegar os olhos da mente’ e
‘enganar’. De acordo com o que dissemos antes na análise, tanto o significado concreto quanto o
abstrato são simultaneamente válidos na interpretação da palavra no poema, que, além de existir o
brilho da imagem refletida pelo espelho, existe o fato de ela conduzir o observador a erro, ou a
enganar-se ou equivocar-se. Ambos os significados se sobrepõem e se confirmam, e são reforçados
logo a seguir pelos apostos rivoltante presenza e indicatrice e lampante. Que palavra em português
poderia captar essa dupla natureza da palavra abbaglio?
Palavras mais rentes aos significados concretos seriam, por exemplo, ‘ofuscação’ ou ‘brilho’. A
primeira guarda, em princípio, os mesmos significados da palavra italiana, inclusive o de ‘perda da
capacidade de entendimento’ (implícito no sentido de ‘enganar-se’ ou ‘equivocar-se’). ‘Brilho’, por sua
vez, o se enquadra tão facilmente na série de significados como ‘enganar os olhos da mente’,
101
‘provocar equívocos perceptivos ou mentais’ etc., a não ser por aplicação derivada, embora possa
igualmente se aplicar a significados abstratos. Descartamos logo de cara ‘ofuscação’ por uma razão
sonora e métrica: a palavra nos pareceu longa demais; e ‘brilho’ pelas razões aventadas. Recorremos,
então, a palavra ‘miragem’, que, apesar de não se referir exatamente a um tipo de brilho, pertence a
um campo semântico próximo (em termos concretos, a miragem é uma espécie de efeito óptico), além
de guardar também os significados de ‘falsa realidade’, ‘ilusão’, ‘quimera’, ‘sonho’, bem adequados ao
contexto do poema.
Por uma razão sonora e métrica também, preferimos a regência mais culta ‘foge à miragem’ do
que a mais comum ‘foge da miragem’, para evitar a criação de uma sílaba métrica a mais.
Verso 12:
Outra dificuldade é encontrar a tradução mais adequada para expressão adverbial a vuoto do
verso 12. A expressão camera a vuoto pode ser traduzida como ‘câmara a vácuo’, ou seja, um
aparelho ou instalação industrial capaz de produzir vácuo num espaço físico limitado previamente
construído para tal e utilizado para fins determinados.
23
Tal acepção evidentemente não se aplica ao
contexto semântico do poema, a não ser numa extensão metafórica bastante peculiar, isto é, a da
comparação do quarto em que se encontra o personagem do poema como um espaço fechado e
estreito em que, pela falta de ar, seja ela real, seja provocada por um estado emocional de angústia
extrema, não se consegue respirar. De fato, este uso metafórico pode ser confirmado mais adiante
pelo emprego da palavra soffocazione.
Em português, poderíamos ter também eventualmente uma ‘câmara a vácuo’ (apesar de que o
termo mais comum é ‘câmara de vácuo’)
24
, mas menos provavelmente um ‘quarto a vácuo’. Ocorre que
a vuoto, tomada isoladamente como expressão adverbial, pode ser traduzida como ‘no cuo’ ou ‘no
vazio’, caso em que se referirá ao verbo mulina, que aparece no verso seguinte, com o significado
então de ‘inultilmente’ ou ‘em o’, acepções também adequadas ao contexto semântico dos versos
em questão. Temos aqui, então, mais um exemplo de ambigüidade lingüística, ainda que não tenha
sido deliberada, de difícil reprodução em português. A solução que propomos, não absolutamente
satisfatória, coloca as duas expressões adverbiais lado a lado, separadas por vírgula (‘no quarto, no
vácuo’), que mantém pelo menos o significado da locução adverbial a vuoto e ainda enfatiza, por
acúmulo, o sentido do quarto como um lugar que produz angústia.
23
Termo técnico pertencente à área da engenharia e tecnologia industrial. Cf., por exemplo: LURIDIANA, Sebastiano.
“Impianti e tecnologie per la produzione industriale di rivestimenti sottili sotto vuoto”. Disponível em:
http://www.aiv.it/ita/pubblicazioni/articolo.php?articolo=art7. Acesso em: 25 agosto 2006. Cf. também o verbete: “Vacuo”
(fisica) In: Wikipedia. Disponível em: http://it.wikipedia.org/wiki/Vuoto_%28fisica%29. Acesso em: 25 agosto 2006.
24
Consultar, por exemplo, o verbete: “Vácuo”. In: Wikipédia. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/V%C3%A1cuo.
Acesso em: 25 agosto 2006.
102
Verso 13:
No último verso, a tradução literal da palavra piume, na expressão adverbial tra le piume, não é
é possível. Na realidade, a palavra refere-se às penas dos travesseiros ou do colchão, e por
sinédoque, ao leito ou à cama. O registro é evidentemente culto e literário. Optamos, então, por
‘lençóis’, palavra certamente diferente, mas que reproduz satisfatoriamente a sinédoque.
No caso da última palavra do verso, soffocazione, preferimos antes traduzi-la por ‘asfixia’ do
que pela mais literal sufocação. A escolha é resultado de uma preferência puramente pessoal, por
acharmos que os dois substantivos terminados em ‘-ão’, ‘oscilação’ e ‘sufocação’, criariam um tom
ligeiramente caricatural à estrofe de fechamento do poema, que por si mesmo, tem uma carga
dramática acentuada. Preferimos, pois, a outra, que reproduz aproximadamente o mesmo significado e
se adapta bem ao contexto semântico do conjunto, e ainda cria uma rima interna em ‘-ia’ (eco de ‘pia’),
que compensa a perda da rima em ‘-ão’. De todo modo, as rimas no poema são casuais.
Por fim, mantemos, no verso, a vírgula que separa sujeito de predicado, como
mencionamos, o único a apresentar ordem sintática invertida (tra le piume mulina, / la soffocazione),
que tem o efeito de enfatizar a posição do sujeito e o seu significado na conclusão do poema.
103
IV. POEMA I DA SÉRIE SONETTO (Cap. 1, p. 29-31)
I
1 come li incontra sulla finestra
2 non uccide domanda
3 subito e prima
4 si alza.
5 come scende le scale di pietra
6 non urla dice
7 allora e adesso
8 si volta.
9 come sale le scale di pietra
10 non stride dice
11 come se
12 come è vero.
13 come li stringe contro
14 non fugge risponde
15 una volta e basta
16 ride.
A seu modo, o poema I da série Sonetto também é exemplar daquela “linguagem de eventos”
referida em rias passagens do Capítulo 1 e nele encontramos muitos dos ingredientes comuns a
tantos outros textos do livro I rapporti, como já vimos na análise dos poemas anteriores. Mais uma vez,
o que temos é a apresentação de uma cena narrativa, que cabe ao leitor compreender. O caráter
narrativo do poema é marcado pela simples seqüência das ações, moduladas que são pela estrutura
gramatical e sintática repetitiva dos versos, e pela presença de expressões temporais, como a
conjunção temporal come (versos 1, 5, 9 e 13) e os advérbios de tempo que encadeiam as ações
(verso 3: subito e prima; verso 6: allora e adesso). O espaço em que tal cena ocorre não é descrito com
detalhe. Depreende-se somente, através das ações que o personagem realiza, que movimento num
espaço dado (li incontra sulla finestra, scende le scale, sale le scale etc.), talvez dentro de uma casa ou
apartamento, ou de um edifício.
Apesar do caráter narrativo apontado, o relato não se resolve, pelo menos não explicitamente.
De fato, não unidade nem marcação clara de início e fim, não clímax narrativo nem solução ou
resolução final. Na verdade, não há a apresentação de uma história completa, mas sim a alusão e a
sugestão de acontecimentos e ações realizadas por um indivíduo não-especificado e efeitos sofridos
dessas mesmas ações por outros indivíduos ou coisas presentes no mesmo espaço-tempo. Em outras
palavras, a narrativa se configura mais por acumulação de ações do que por uma seqüência
logicamente encadeada e se parece mais a um registro narrativo fragmentário da ação de um sujeito
104
que age ou reage diante de uma realidade dada e diante da presença de outros indivíduos ou coisas
com quem mantém uma relação violenta ou, no mínimo, conflituosa. Isso pode ser constatado pela
simples seqüência dos verbos, empregados todos no presente e sem sujeito explícito: na primeira
estrofe incontra, (non) uccide, domanda, si alza; na segunda estrofe scende, (non) urla, dice, si
volta; na terceira estrofe: sale, (non) stride, dice, è; e, por fim, na quarta stringe, (non) fugge,
risponde, ride.
Apesar da vagueza, é possível supor que o protagonista venha de algum lugar, encontre outros
indivíduos (ou coisas) e aja e, ao mesmo tempo, pareça hesitar diante deles e da situação. Esse
caráter de hesitação é marcado pela própria estrutura gramatical dos versos, em que duas ações o
sempre contrapostas (non uccide domanda; non urla dice; non stride dice; non fugge risponde),
coincidindo inclusive com a cesura métrica. O que se pode depreender disso é que a reação ao
encontro do protagonista com os outros indivíduos poderia ter sido violenta ou agressiva, mas é, em
alguns momentos, contida. Enfim, o leitor é capaz de compreender que o sujeito age ou é compelido a
agir, mas que o conjunto das suas ações não apresentam nenhuma intenção clara e compreensível, e
poderiam se constituir também numa reação interior nervosa do sujeito. Não é possível entender por
que o protagonista age assim. A pergunta é: o que está acontecendo afinal?
Dentre as quatro estrofes, a terceira se destaca como um momento de reflexão e, de novo,
hesitação, em que parece existir a intenção de formulação de um juízo sobre a situação, mas que é
logo suspenso e permanece vago. É o que podemos ver no verso 11 (come se) e no verso 12 (come è
vero), um pouco mais assertivo. A expectativa seria que gramatical e semanticamente os versos se
completassem, mas não é o que acontece. Seria uma tentativa de compreensão abruptamente
interrompida ou impedida?
Na quarta e última estrofe, o verso 13 sugere um ato de maior violência, por parte do
protagonista, contra aqueles personagens indefinidos, os objetos da ação do sujeito. A escolha
gramatical do pronome de objeto direto li, que ademais já havia aparecido no verso 1, é muito feliz, pois
acentua o caráter de passividade das personagens que sofrem os efeitos da ação do protagonista
(come li stringe contro). A pergunta que pode ser feita aqui é, mais uma vez, por que ele age assim? A
cena se "completa", no último verso, com um ride final. Ele ri do quê, do que há para rir? Seria de novo
uma mera reação nervosa do sujeito, que contrastaria com a aparente tranqüilidade expressa pelos
outros verbos que aparecem no poema?
Como indicamos no Capítulo 1, este poema é um exemplo bastante claro de estrutura formal
“forte”, bastante simétrica do ponto de vista textual e métrico, que se contrapõe a uma estrutura
semântica e narrativa “fraca”, vaga e esfumada. Paradoxalmente, o uso da língua é simples e preciso,
e o registro usado é o da ngua comum. O significado das palavras é usado no sentido mais concreto
105
possível, na sua plena visibilidade de ações físicas. O sentimento de estranhamento que o texto causa,
portanto, não se nesse nível estrito. É no âmbito do sentido das ações e das intenções que ele é
vago e impreciso, e é aí que é exigida a máxima cooperação interpretativa do leitor, que se
obrigado, então, a formular hipóteses que não podem ser verificadas.
De fato, o poeta opera sobre o nível sintático-semântico de modo rigoroso, como se estirasse
de tal maneira o sentido do texto que o que parece concreto e real, como resultado final de
interpretação acaba tendendo a uma abstração extrema. O esfumaçamento da narrativa, ou para
empregar um termo mais conhecido, a sua ‘rarefação’,
25
ao lado do aspecto estritamente lingüístico
que acabamos de assinalar, é outro elemento que confere ao texto o seu caráter acentuado de
abstração formal, e que nos conduz à hipótese de que a intenção do poeta,
26
mais do descrever a
realidade ou apresentar personagens humanas ou não (que, seja de que modo for, estão presentes), é
a de avaliar qualidades de relação, tanto das relações do próprio poeta com a realidade que descreve e
da história que narra, quanto, ao mesmo tempo, das relações que imagina para as personagens que
habitam, agem e se relacionam naquele mundo. O poema funcionaria, então, como um instrumento de
investigação e um modo de elaboração de um ponto de vista sobre a realidade humana e vital que, por
intenção deliberada ou até mesmo por impossibilidade de totalização, captaria ou acentuaria apenas o
descontínuo, o fragmentário, aquilo que não encontra uma unidade final e restauradora das
expectativas humanas.
Como se vê, a pesquisa formal se centra numa rigorosa exploração da semântica das ações
(aqui entendida num sentido propriamente lingüístico que cabe à semântica estudar) e num sentido
mais amplo de uma ética das ações humanas, ou seja, do sentido das ações e relações humanas em
situações concretas de existência. Claro, dado o "estiramento semântico" a que o autor submete a
língua e o texto, está implícita a recusa de uma comunicação fácil e o questionamento semântico
radical da linguagem como forma de registro da experiência humana, como referimos no Capítulo 1.
25
Já se falou bastante, por exemplo, de ‘rarefação do enredo’ do romance contemporâneo. Naturalmente, a experimentação
formal que Antonio Porta levava a cabo na poesia se alinhava ao que ele próprio vinha fazendo na narrativa e, ademais,
aos experimentos narrativos de outros autores da neovanguarda como também do seu contemporâneo nouveau roman
francês, a que aqueles, sob muitos aspectos, se aproximam. Cf. PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura. 3. ed. São
Paulo: Cultrix, 1987, p. 146.
26
Convém lembrar mais uma vez que, aqui como em qualquer outra passagem desta dissertação, quando falamos
corriqueiramente de “intenção do poeta”, não nos referimos à intenção ou intenções do autor empírico, mas tão-somente
daquela instância implícita no próprio texto e projetada por ele, a do autor implícito (cf. Cap. 1, nota 21). A esse respeito,
Umberto Eco, por exemplo, faz uma distinção muito útil entre, como ele tem designado, a intentio operis quer dizer, a
‘intenção do texto’ ou ‘intenção da obraa única a que podemos ter acesso –, e as supostas ou imaginadas intentio
auctoris (‘intenção do autor’) e intentio lectoris (‘intenção do leitor’). Cf.: ECO, Umberto. Os limites da interpretação.
Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2000. Para explicações didáticas e esclarecedoras a respeito
desses conceitos e os debates que surgiram em torno deles, cf. o artigo: RABENHORST, Eduardo R. “Sobre os limites da
interpretação. O debate entre Umberto Eco e Jacques Derrida”. In: Prim@ Facie. Ano I, n. 1, jul./dez. 2002. Cf. também:
KESKE, Humberto Ivan. “Aventuras da significação: Bakhtin e Eco à procura do signo deslizante”. In: InTexto. Disponível
em http://www.intexto.ufrgs.br/n14/a-n14a8.htm. Acesso em 12 dez. 2006.
106
Num sentido mais abrangente, acreditamos que seja justamente que resida um dos fundamentos da
experimentação poética de Antonio Porta: romper ainda que a ruptura nunca seja total com o
princípio de comunicação da língua e do poema como forma de comunicação cultural.
Dada a sua concisão e simplicidade formal, a tradução do poema I da série Sonetto é
relativamente simples. Como nas outras traduções apresentadas até aqui, o objetivo é encontrar o
vocabulário mais adequado à sonoridade, ao ritmo e ao significado de cada verso, como afinal é
sempre a questão essencial que ocupa toda tradução de poesia, e obter a mesma concisão e
elegância do texto italiano. Vamos a ela:
DA SONETTO DA SÉRIE SONETO
I
I
1 come li incontra sulla finestra
1 mal os encontra sobre a janela
2 non uccide domanda
2 não mata pergunta
3 subito e prima
3 logo e antes
4 si alza.
4 se ergue.
5 come scende le scale di pietra
5 mal desce as escadas de pedra
6 non urla dice
6 não grita diz
7 allora e adesso
7 então e agora
8 si volta.
8 se volta.
9 come sale le scale di pietra
9 mal sobe as escadas de pedra
10 non stride dice
10 não ralha diz
11 come se
11 como se
12 come è vero.
12 como é certo.
13 come li stringe contro
13 mal os aperta contra
14 non fugge risponde
14 não foge responde
15 una volta e basta
15 uma vez e basta
16 ride. 16 ri.
Nesse poema, um elemento que exige alguma atenção é a tradução da palavra come, que
aparece em todo início do primeiro verso de cada uma das quatro estrofes (versos 1, 5, 9 e 13). A sua
função sintática é a de conjunção temporal, e com esta função pode ser substituída por appena che ou
quando, conjunções que introduzem uma oração subordinada temporal com o verbo normalmente no
modo indicativo.
27
Em português, os equivalentes possíveis que mais se enquadram com o uso que se
faz da conjunção no texto italiano são ‘no momento em que’, ‘logo que’, ‘assim que’ ou ‘mal’.
Eventualmente, num registro poético e literário, porém hoje bastante raro, ‘como’ também pode exercer
27
DARDANO, M.; TRIFONE, Pietro. Grammatica italiana: con nozioni di linguistica. 2a. ed. Firenze: Zanichelli, 1989, p. 403.
107
a mesma função.
28
A nossa opção foi pela forma ‘mal’, que, a par de ser curta e se enquadrar bem no
ritmo conciso do verso, evoca indiretamente, como uma espécie de eco semântico, os significados
negativos que o advérbio e o substantivo homônimos têm em português, o que pode ajudar na criação
da atmosfera um tanto estranha e intrigante da cena que o texto apresenta.
No mais, seguimos à risca a estrutura estrófica do poema e, no quanto foi possível, o esquema
métrico e rítmico do texto. No que toca a este último aspecto, fizemos um pequeno ajuste no verso 12,
em que preferimos traduzir vero (‘verdadeiro’) por ‘certo’, que está semanticamente bastante próximo e
garante a mesma contagem de sílabas métricas no padrão italiano.
28
Cf. verbete: “Como”. In: Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1a. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 772.
108
V. POEMA X DA SÉRIE PASSEGGERO (Cap. 1, p. 36-37)
X
1 disteso in una piccola barca
2 un metro al limite da una meta
3 alIunga un braccio Ia mano non trova
4 l’immagine distesa sul muro è corpo
5 non ci sono odori e un suono stridente
6 un albero immerso nell’acqua si fa vicino
7 ali minuscole sbattono alI'intorno
8 ombrelIe estive attraversano Ia luce
9 bocca che inghiotte le sue labbra
10 appoggia una mano alI’ombra si mette
11 seduto e dice: ancora
O texto reproduzido acima faz parte de uma série de dez poemas que leva o título de
Passeggero, título que, além de dar um sentido amplo de unidade aos textos, designa a presença
constante de um personagem emblemático da poesia de Antonio Porta a partir de meados dos anos
setenta, que é o do passageiro. Como mostramos outras vezes, também aqui o poeta esboça
sucintamente uma cena, sem detalhá-la ou explicá-la melhor. Por causa dessa falta de detalhamento
ou explicação, exige-se do leitor que atenção máxima ao conteúdo descritivo de cada verso, para
que possa criar um quadro minimamente compreensível da cena e interpretá-la de alguma maneira.
depois de ler e reler o poema várias vezes, é que é possível formular hipóteses de interpretação, as
quais, dado o caráter semântico global muito sugestivo mas decisivamente vago do texto, não podem
ser confirmadas. É como se o poeta se esmerasse na construção de um texto, do ponto de vista
semântico, de máxima abertura. Na análise que vamos apresentar a seguir, vamos proceder passo a
passo e formular uma série de perguntas, com o intuito de tentar compreender não a cena em si,
mas sobretudo o procedimento construtivo que fundamenta a sua vagueza semântica e narrativa.
A primeira coisa que podemos dizer a respeito do poema é que a cena é descrita a partir do
ponto de vista do poeta que observa, isto é, de um eu poético que não participa da cena que mostra e
que não se confunde com o personagem em terceira pessoa cujas ações e movimentos nos são dados
a conhecer. Já sabemos que este tipo de procedimento narrativo é típico da poesia de Porta. A
presença do personagem é facilmente identificável pelo uso das formas verbais disteso (v. 1), allunga
(v. 2), trova (v. 3), appoggia (v. 10) e dice (v. 11). Como o título da série de que o poema faz parte
sugere e o verso 1 confirma, tal personagem é mesmo um passageiro, ou seja, alguém que viaja ou
passa ou é levado a algum lugar por um meio qualquer, no caso, um pequeno barco (disteso in una
piccola barca).
109
Pelo que diz o verso 2 (un metro al limite da una meta), é possível supor, sem que se possa,
entretanto, afirmá-lo com certeza, que o personagem esteja tentando atracar o barco, que este está
a um metro de distância de uma meta (a meta seria o seu ponto de chegada?). Em seguida, o verso 3
(alIunga un braccio Ia mano non trova) diz que o personagem alonga um dos seus braços e que a mão
não encontra. Não encontra o quê exatamente? Um ponto de apoio que lhe permita parar o barco e
atracá-lo no cais à margem do rio ou do mar em que navega? A continuação do poema permite, talvez,
imaginar que sim, mas sugere que de qualquer maneira a tentativa é frustrada. O verso 4 (l'immagine
distesa sul muro è corpo) diz que um muro e uma imagem projetada sobre ele, que supomos ser a
sombra de um corpo. Seria a sombra projetada sobre um muro próximo ao cais, sombra do
personagem que está dentro do barco e que tenta atracá-lo?
Os versos 5, 6, 7 e 8 seguintes apresentam outros elementos que enriquecem a cena, apesar
de não a explicarem: a falta de odores, um som estridente, a presença de asas de insetos ou pequenos
pássaros que batem ao redor e guarda-sóis de verão que “atravessam” a luz. Nessa descrição, pode-
se fazer uma série de perguntas para as quais, todavia, não há respostas. Por exemplo: por que não se
sentem odores? Quem ou o que produz o som estridente? No caso do verso 8, a imagem parece
invertida: normalmente poderíamos supor que é a luz que é capaz de atravessar o tecido de um
guarda-sol, e não o contrário. O verso pode significar, então, que pessoas que se movimentam e
carregam os guarda-sóis e, portanto, “atravessam a luz”? Daí poderíamos supor, talvez, que a cena se
passe, por exemplo, em uma praia em que o personagem chegue com o seu barco e onde haja outras
pessoas presentes?
De todos, certamente o verso 9 (bocca che inghiotte le sue labbra) é o mais estranho. Aqui
também a imagem e o conceito estão invertidos, ou melhor, é a imagem concreta que inverte o
conceito normal que associamos às palavras bocca (‘boca’) e inghiottire (‘engolir’), quer dizer, é a boca
que engole algo ajudada pelos lábios, e não a boca que engole os próprios lábios, imagem que na
verdade constitui um contra-senso. Supomos que o possessivo sue se refira aos lábios do
personagem.
O verso 10 e 11 finais retomam a apresentação do personagem, que agora apóia uma mão à
sombra (sobre a sombra projetada sobre o muro, como descrito no verso 4?) e se coloca sentado (que
implica imaginar, então, que ele estaria em dentro do barco). O verso 11 conclui o poema da
seguinte maneira: e dice: ancora. A última palavra desse verso e do poema ancora pode ter dupla
leitura: se pronunciada àncora, isto é, como uma proparoxítona, é equivalente ao substantivo ‘âncora’;
se pronunciada ancóra, isto é, como uma paroxítona, é equivalente ao advérbio ‘ainda’. Dado o
contexto semântico e imagético da cena como descrevemos, o primeiro significado é totalmente
aceitável: é como se o personagem quisesse sair do barco e pedisse ou simplesmente nomeasse a
110
âncora. Mas, dada a vagueza semântica global do texto e as várias perguntas sem respostas que
indicamos e vão se acumulando, o segundo significado também é aceitável e intensifica ainda mais o
sentimento de dúvida e ambigüidade que o poema, na sua aparente e paradoxal limpidez lingüística, é
capaz de criar.
O poema X de Passeggero é um bom exemplo dos tipos de procedimentos lingüísticos e
textuais adotados por Antonio Porta e que vão caracterizar o estilo da sua poesia da maturidade, que,
como apontamos no Capítulo 1 e tentamos mostrar nessa análise, se baseiam numa exploração e
ambigüização intensa dos significados das expressões lingüísticas e das proposições, aliadas a uma
simplificação da estrutura sintática dos textos (se comparados à produção anterior) e a uma evidente
simplicidade lexical e rítmica. Como dissemos também, tal configuração formal e semântica tem como
resultado uma valorização intensa do conjunto de imagens e os eventos descritos no seu acontecer,
por assim dizer, diante dos olhos do leitor.
A tradução do poema não oferece dificuldades, com exceção de uma única e fundamental, que
é justamente a tradução da palavra ancora do último verso. Não conseguimos encontrar artifício
lingüístico possível que nos permitisse transpor em português simultaneamente os dois significados
que as palavras homógrafas têm em italiano e o efeito de intensificação da ambigüidade e da vagueza
que a dupla interpretação traz na conclusão do poema. Assim, mesmo que nenhum dos equivalentes
portugueses nos satisfaça inteiramente – ‘âncora’ ou ‘ainda’ –, preferimos o valor mais abstrato e mais
vago presente no advérbio. A tradução tomou, então, a feição seguinte:
X
X
1 disteso in una piccola barca 1 estendido num pequeno barco
2 un metro al limite da una meta 2 um metro de distância de uma meta
3 alIunga un braccio Ia mano non trova 3 alonga o braço a mão não acha
4 l'immagine distesa sul muro è corpo 4 a imagem estendida sobre o muro é corpo
5 non ci sono odori e un suono stridente 5 não há cheiros e um som estridente
6 un albero immerso nell’acqua si fa vicino
6 uma árvore imersa na água se aproxima
7 ali minuscole sbattono alI'intorno 7 asas minúsculas batem ao redor
8 ombrelIe estive attraversano Ia luce 8 guarda-sóis de verão atravessam a luz
9 bocca che inghiotte le sue labbra 9 boca que engole os seus lábios
10 appoggia una mano alI'ombra si mette 10 apóia uma mão à sombra se põe
11 seduto e dice: ancora 11 sentado e diz: ainda
111
VI. POEMA DO LIVRO PASSI PASSAGGI (Cap. 1, p. 38)
1 se il fiume stretto
2 spinto dalla luce deI mattino
3 risale Ia montagna luccicante
4 uno che passa raccoglie una pietra liscia
5 per gioco lancia nell’aria quella pietra levigata
6 Ia vetrata s’incrina s’infrange polvere tagliente
7 sopra i tappeti erbosi sanguinanti i piedi
8 se il fiume stretto
9 spinto dalla luce del mattino
10 risale Ia montagna luccicante
11 uno che passa raccoglie una pietra liscia
12 per gioco lancia nell’acqua con forza
13 Ia vetrata s’incrina infranta in polvere tagliente
14 sopra i tappeti d’erba a piedi sanguinanti
15 discende nello specchio deI piano
16 i pesci boccheggiano nell’universo svuotato
Como reiteramos muitas vezes no Capítulo 1 e nas análises que estamos apresentando agora
neste capítulo, a poesia narrativa de Antonio Porta privilegia de modo especial a fragmentação e a
descontinuidade. Como é de esperar, tais elementos, que se manifestam por meio de procedimentos
textuais e lingüísticos concretos que as análises têm tentado identificar, incidem basicamente sobre a
dimensão causal dos eventos e a sua conseqüente distribuição no eixo temporal e espacial. É por isso,
então, que, para referir ao aspecto narrativo dos poemas do autor, temos preferido falar mais de cenas
do que propriamente histórias. A apresentação dessas cenas, compostas de fragmentos de supostas
ou pressupostas histórias que cabe ao leitor imaginar, dada a falta de linearidade expositiva, cria
muitas vezes uma forte impressão de simultaneidade. Cremos que é o caso de todos os poemas
analisados até aqui. No caso do poema reproduzido acima, incluído numa série não numerada de
textos que leva o mesmo título do livro – Passi passaggi, além da simultaneidade, outro aspecto que se
destaca, e que na verdade constitui uma novidade, é o da ciclicidade.
O mencionado caráter cíclico do poema é facilmente detectável, tanto em termos de forma
quanto de assunto. A sua estrutura estrófica se assemelha ao que, no campo da composição musical,
é denominado de ‘tema e variação’, isto é, uma seqüência melódica, rítmica ou harmônica determinada
(comumente todos esses elementos amalgamados) é tomada como base e é exposta na parte inicial
da composição; em seguida, ao longo da duração total da peça, tal seqüência vai sendo repetida com
modificações de algum tipo, sejam elas pequenas ou grandes. Numa escala pequena, é exatamente o
que acontece no poema curto de que estamos tratando. A primeira estrofe é composta de sete versos
e a segunda de nove. Do total de nove da segunda, os quatro primeiros (v. 8, 9 10 e 11) são uma
reprodução exata dos quatro versos iniciais da primeira estrofe (v. 1, 2, 3 e 4); os três seguintes (v. 12,
112
13 e 14) reproduzem parcialmente os versos da primeira estrofe que lhe correspondem (v. 5, 6 e 7) e
introduzem pequenas mudanças; e, por fim, os versos finais da segunda estrofe (v. 15 e 16), dois a
mais em relação à primeira, constituem informação nova.
Como característica distintiva das construções cíclicas, a elegante estrutura do poema age por
acúmulo e incita à volta ao ponto de partida, quer dizer, o leitor, no momento da leitura da segunda
estrofe, instintivamente retoma a primeira, para logo em seguida comparar as duas, num movimento
que o obriga a refazer a compreensão que conseguiu ter das duas partes tomadas isoladamente.
29
Claro, este movimento de avanços e recuos é comum à leitura de qualquer texto, particularmente os
poéticos. Freqüentemente, na leitura de um poema, passamos naturalmente das partes para o todo e
de novo do todo para as partes com o intuito de ter uma compreensão mais totalizante e orgânica. No
caso da poesia de Antonio Porta, dadas todas as características que temos apontado, não poucas
vezes o leitor é realmente obrigado a fazê-lo. No caso de agora, o tipo de procedimento construtivo
adotado torna o leitor ainda mais consciente do seu percurso de leitura e dos próprios significados que
o texto transmite.
O primeiro verso do poema começa com a conjunção condicional se e abre um período
hipotético do tipo lógico ‘se x, então y’, em que x corresponde aos versos 1, 2 e 3 (se il fiume stretto /
spinto dalla luce deI mattino / risale la montagna luccicante) e y corresponde ao verso 4 (uno che passa
raccoglie una pietra liscia). Acontece que, do ponto de vista lógico, não nexo entre as duas partes
da proposição, visto que y não é elemento necessário e suficiente que satisfaça a condição
estabelecida por x. Ou, nos termos do próprio poema, o fato de alguém que passa recolher uma pedra
do rio (para depois jogá-la ao ar, como diz o verso 5) o está condicionado ao fato de um rio subir
uma montanha reluzente. Na verdade, é difícil estabelecer qual é a relação lógica entre um fato e outro,
a não ser que ambos os eventos (ou um evento em que os dois fatos ocorram) constituem antes dois
fatos simultâneos, mas desligados entre si, do que propriamente dois fatos em que há uma relação de
subordinação de um (y) para com outro (x). Ora, é justamente a adoção desse procedimento sintático
particular e o desvio lógico que ele cria que rompem com a expectativa de interpretação normal do
período, causam um estranhamento de sentido e convidam o leitor a interrogar-se mais fortemente a
respeito da natureza da cena que o poema apresenta. O estranhamento semântico que acabamos de
indicar vai se repetir depois na segunda estrofe do poema exatamente da mesma forma.
Nos versos 5, 6 e 7 seguintes, a cena se desenrola: o personagem lança ao ar a pedra que
29
Advertência análoga à que fizemos a respeito do autor implícito (cf. nota 26) deve ser feita também agora. Quando
falamos da figura do leitor, aqui ou em qualquer outra passagem dessa dissertação, é preciso saber distinguir, conforme o
caso, a figura do ‘leitor empírico’, pessoa real que porventura leia o texto de que estamos tratando, da figura do ‘leitor
implícito’, ou, como quer Umberto Eco, do ‘leitor modelo’, instância abstrata e virtual que o próprio texto contém e projeta.
Cf.: ECO, Umberto. “Il Gruppo ’63, lo sperimentalismo e l’avanguardia”, p. 97-98; “Ritratto di Plinio da giovane”, p. 180-195.
In: ECO, op. cit. Cf. também: RABENHORST, op. cit.
113
acabou de catar (v. 5); supostamente a pedra cai e bate sobre uma janela, quebrando-lhe o vidro, que
se desfaz em cacos e poeira (v. 6); é possível supor também que o personagem machuque os pés ao
pisar nos cacos que caíram sobre a relva (v. 7).
Na segunda estrofe, vemos a reapresentação da mesma cena com pequenas modificações.
São justamente essas pequenas modificações que colocam em cheque a interpretação que o leitor mal
havia esboçado da primeira e pedem uma reinterpretação do conjunto, sem que se consiga
necessariamente chegar a resolver o problema criado particularmente pelo verso 12, que, com uma
diferença pequena mas relevante corresponde ao verso 5. O verso 5 diz que, por brincadeira, o
personagem do poema joga ao ar a pedra, pedra essa que depois vai cair e quebrar a vidraça, como
supusemos. O verso 12, contudo, diz que o personagem joga a pedra na água, mas do mesmo modo a
vidraça se quebra e se espatifa em cacos e poeira, como descreve o verso 13 seguinte. Como conciliar
até esse ponto as duas estrofes, que o verso 12 confunde a explicação causal que delineamos?
Imaginar, por exemplo, que depois de tocar a superfície da água a pedra tenha ido de qualquer
maneira bater contra a vidraça nos parece forçado. Por sua vez, imaginar que a imagem da água
possa ser tomada como uma metáfora da vidraça também não parece satisfatório, porque a superfície
da água o pode se desfazer em cacos e poeira que possam machucar os pés do personagem. a
possibilidade mais extrema de rejeitar até a própria cadeia causal que tínhamos estabelecido (o
personagem joga a pedra ao ar, a pedra bate na vidraça, a vidraça se estilhaça em cacos, os cacos
caem sobre a relva, o personagem pisa neles ao andar sobre a relva e machuca os pés) e imaginar
cada fato como desligado um de outro. Esse grau de indeterminação causal aparece como o elemento
mais instigante do poema, que aponta para uma explicação possível para a cena que constrói para
logo em seguida recusá-la ou pelo menos enfraquecê-la.
A mesma impressão de indeterminação e vagueza vai se intensificar nos versos 15 e 16, que
não tinham aparecido na primeira estrofe. O verso 15 diz que o personagem discende lo specchio del
piano, verso que, dado o contexto semântico ambíguo do poema, mais uma vez pode confundir o leitor.
Qual é exatamente a ação que o personagem desempenha e em que espaço? Pela presença do verbo
discende, podemos supor que o personagem faça o movimento contrário ao do rio que sobe a
montanha e, portanto, esteja descendo pelo plano inclinado da montanha ao longo e ao lado do rio.
Nessa interpretação, a palavra specchio ('espelho') teria a acepção realmente possível de superfície
plana e se referiria ao chão relvoso da descida da montanha. Acontece que a palavra specchio também
pode se referir à superfície brilhante da água e, então, ao invés de descer ao longo do rio, o
personagem entraria nele. Mesmo que a primeira hipótese de leitura pareça mais plausível que a
segunda, permanece um certo grau de incerteza.
O último verso (v. 16) vai intensificar ainda mais a impressão de indeterminação, vagueza e
114
incerteza que apontamos. A pergunta que o leitor pode se fazer é por que os peixes arquejam ou
agonizam num universo esvaziado? No universo em que habitam, o das águas do rio, que por uma
razão que se desconhece secam ou são abruptamente retiradas do seu leito natural? Por que isso
acontece, ou seja, qual é a causa natural ou artificial do que é apenas descrito? Como temos visto
outras vezes, também nesse poema o poeta se exime de explicar mais claramente o sentido da cena
que apresenta. O leitor se obrigado, então, a tomar os enunciados do poema no seu valor
puramente descritivo e vai, desde o início da leitura, fazendo perguntas e acumulando vidas a
respeito do que é dito.
É muito importante notar, entretanto, que os efeitos de ilogicidade ou alogicidade, ambigüidade,
vagueza e indeterminação que mencionamos são conseguidos por meio da aplicação de
procedimentos lingüísticos e textuais rigorosos e ao mesmo tempo sutis, e não através de um uso
espontaneísta, impreciso ou pouco consistente da linguagem. É preciso advertir também que este
poema mas a advertência, cremos, vale para a maior parte da obra poética de Antonio Porta não
parece autorizar interpretações alegóricas ou simbólicas, de que o laconismo narrativo e a
indeterminação semântica poderiam à primeira vista estimular. Se uma dimensão simbólica na obra
de Antonio Porta, acreditamos que ela deva ser procurada não tanto na interpretação estritamente
lingüística ou textual de poemas isolados, mas no conjunto de temas e motivos que os fundamentam e
que aparecem e reaparecem ao longo da sua obra como um todo. No que se refere ao poema que
estamos analisando, o tema que se destaca grosso modo é a presença do indivíduo na natureza e os
efeitos das suas ações, quase sempre inexplicadas e inexplicáveis, sobre o que está ao seu redor e
sobre si mesmo, e a experiência, geralmente dolorosa, que deriva dessa relação.
Do ponto de vista métrico, o poema se vale da métrica tônico-silábica tal como a temos
descrito ao longo das análises. Mas aqui aparece um elemento interessante que, a nosso ver, coopera
e acentua mais ainda a estrutura cíclica do texto, que é a progressão crescente do número de sílabas
métricas e acentuais do verso 1 ao 5, e depois a sua estabilização nos versos 6 e 7 e, logo em
seguida, diminuição drástica, que marca exatamente o reinício do ciclo no início da segunda estrofe.
Assim temos:
1 2 3 4 5 6
I se il fiu- me stret- to
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
II spin- to dal- la lu- ce deI mat- ti- no
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
III ri- sa- le Ia mon- ta- gna luc- ci- can- te
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14
IV u- no che pas- sa rac- co- glie u- na pie- tra li- scia
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
115
V per gio- co lan- cia nel- l’a- ria quel- la pie- tra le- vi- ga- ta
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
VI Ia ve- tra- ta s’in- cri- na s’in- fran- ge pol- ve- re ta- glien- te
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
VII so- pra i tap- pe- ti er- bo- si san- gui- nan- ti i pie- di
VIII reinício do ciclo
...
Conforme o esquema mostrado acima, em que o número e as sílabas em negrito indicam
acento métrico tônico-silábico, temos:
naturalmente uma série de acentos secundários que podem ou não ser contados como acentos
métricos, cuja inclusão contudo não resulta numa variação significativa do esquema crescente-
decrescente que mostramos. Como sabemos, os versos 8, 9, 10 e 11 da segunda estrofe são uma
repetição exata dos quatro primeiros da primeira estrofe, reproduzindo, portanto, o mesmo andamento
rítmico e acentual dos versos iniciais.
A estrutura do poema tal como a descrevemos facilita a tradução, ainda que não seja fácil obter
a mesma economia métrica do texto italiano e manter a sua alternância rítmica crescente-decrescente.
Vamos a ela:
1 se il fiume stretto 1 se o rio estreito
2 spinto dalla luce deI mattino 2 impelido pela luz da manhã
3 risale Ia montagna luccicante 3 escala a montanha reluzente
4 uno che passa raccoglie una pietra liscia 4 um que passa recolhe uma pedra lisa
5 per gioco lancia nell’aria quella pietra levigata 5 como um jogo lança no ar aquela pedra levigada
verso
pés métricos
acentos tônico
-
silábicos
I 6 2
II 10 3
III 11 3
IV 14 6
V 16 6
VI 16 5
VII 16 5
VIII 6 2
... ... ...
116
6 Ia vetrata s’incrina s’infrange polvere tagliente 6 a vidraça se rompe se parte poeira cortante
7 sopra i tappeti erbosi sanguinanti i piedi 7 sobre o tapete relvoso sangrando os pés
8 se il fiume stretto 8 se o rio estreito
9 spinto dalla luce del mattino 9 impelido pela luz da manhã
10 risale Ia montagna luccicante 10 escala a montanha reluzente
11 uno che passa raccoglie una pietra liscia 11 um que passa recolhe uma pedra lisa
12 per gioco lancia nell'acqua con forza 12 como um jogo lança na água com força
13 Ia vetrata s’incrina infranta in polvere tagliente 13 a vidraça se rompe partida em poeira cortante
14 sopra i tappeti d’erba a piedi sanguinanti 14 sobre o tapete de relva com pés sangrando
15 discende nello specchio deI piano 15 desce no espelho do plano
16 i pesci boccheggiano nell'universo svuotato 16 os peixes arquejam no universo esvaziado
Como vimos, apesar da sua evidente simplicidade formal e fluidez lingüística, o poema se
constitui numa espécie de enigma. A dificuldade maior começa, portanto, na tentativa de interpretá-
lo, antes mesmo de traduzi-lo. Sem que tenhamos conseguido decifrar completamente o poema,
limitamo-nos a enumerar abaixo os principais problemas encontrados na tradução.
Verso 3
A rigor o verbo risalire, que aparece conjugado na forma risale no verso 3, pode ser traduzido
como ‘subir de novo’, ‘subir de volta’, ‘ir em direção à nascente’, ‘remontar (um rio)’, dos quais os
últimos dois significados são os mais adequados. Preferimos, contudo, substituir risale com ‘escala’,
por uma razão semântica (‘escalar’ também designa movimento em subida) e fônica (aliteração do l
neste verso e no anterior: ‘impelido pela luz da manhã / escala a montanha reluzente’). A possibilidade
de empregar o verbo ‘remontar’, que produziria inclusive o eco ‘remonta a montanha’, não é uma opção
gramatical possível, já que tal verbo, com o significado específico de ‘tornar a subir’, exige um
complemento expresso por um nome concreto designativo de curso de d'água,
30
o que não é o caso.
Verso 5
A expressão italiana per gioco tem o significado de ‘por brincadeira’. Como a tradução em
português nos pareceu muito longa (em italiano temos três sílabas métricas, em português teríamos
cinco), optamos por substituí-la pela expressão ‘como um jogo’, que, se não é uma transposição exata,
é bastante próxima em termos semânticos.
30
Cf. verbete: “Remontar”. In: BORBA, Francisco Manuel (coord.). Dicionário gramatical de verbos do português
contemporâneo do Brasil. 2a. ed. São Paulo: UNESP, 1991, p. 1154.
117
Verso 7
Por uma questão puramente fônica, preferimos eliminar, na tradução, o plural do sintagma
italiano sopra i tappeti erbosi, o que, a nosso ver, não compromete o significado do verso nem o
contexto semântico global da estrofe.
Por sua vez, a tradução do sintagma sanguinanti i piedi oferece alguma dificuldade. A palavra
sanguinanti desempenha nele a função de particípio presente, elemento gramatical inexistente em
português. Normalmente, o particípio presente pode ser traduzido de três maneiras diferentes,
conforme o caso: com construção relativa com o ‘que’; com o gerúndio; ou com um adjetivo
equivalente. No primeiro caso, teríamos ‘os pés que sangram’; no segundo, ‘os pés sangrando’ ou
‘sangrando os pés’; no último caso, não adjetivo específico em português que equivalha ao
particípio presente. Dentre a duas alternativas gramaticais possíveis, escolhemos ‘sangrando os pés’,
que, a despeito de artificializar um pouco o tom do verso por causa da posição do gerúndio, de resto
traço também presente no verso original, é a única que permite o jogo de eco invertido produzido pelo
verso 14 da segunda estrofe (sanguinanti i piedi a piedi sanguinanti: ‘sangrando os pés’ ‘com os
pés sangrando’).
118
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para concluir esta dissertação, gostaríamos de fazer algumas considerações sobre o percurso
que empreendemos até aqui e particularmente sobre a nossa visão a respeito da tradução. Como
dissemos na Introdução e depois desenvolvemos no Capítulo 2, a tradução pode ser entendida como
uma forma de leitura profunda e de interpretação. Este modo de entender parece ser hoje
compartilhado por muitos dos estudiosos do assunto e, por razões práticas bem evidentes, pelos
próprios tradutores, pelos menos por aqueles mais conscientes do seu ofício. Parece assente também,
como também dissemos, que a tradução não é um trabalho de mera decodificação lingüística e de
substituição mecânica de um texto em uma língua por outro texto em outra. No Capítulo 2, limitamo-nos
a tratar de alguns conceitos importantes e certamente não abraçamos o assunto em toda a sua
complexidade. E isso também porque a tradução como prática é um tipo de atividade que nos obriga a
pensar a um número demasiadamente grande de aspectos da linguagem e da língua, e das línguas.
Pessoalmente, não adotamos nenhuma concepção prescritiva sobre a tradução, e se isso não
ficou devidamente claro ao longo dos capítulos, gostaríamos de enfatizá-lo agora. Ao contrário de
defender normas ou restrições de como se deve traduzir, preferimos pensar a prática da tradução como
um campo de possibilidades e de experimentação, como acenamos rapidamente ao final do Capítulo 2.
Desse ponto de vista, então, inúmeros modos de traduzir, desde uma tradução que pretenda ser
uma reconstrução bem fundamentada de um texto, aquela que procura captar toda a sua complexidade
e entender as condições da sua produção, no seu contexto histórico, social e cultural, até aquela que
se distancia deliberadamente do seu texto de partida a ponto de romper ou quase romper o seu elo de
ligação com ele e com as razões culturais e históricas que lhe possibilitaram a existência, para fins que
têm muito mais a ver com o presente do tradutor e do seu contexto cultural do que com o do texto
original. Aqui seria o caso de empregar uma distinção sugerida por Umberto Eco entre interpretação, o
primeiro caso que mencionamos, e uso, que seria o segundo.
1
Entre um pólo e outro haveria uma
infinidade de casos intermediários e zonas de fronteira nem sempre facilmente discerníveis. Ousamos
dizer que, na prática, tanto o tradutor que mais quer interpretar quanto aquele que mais quer usar vão
interpretar e usar simultaneamente, num grau bastante variável. Em outras palavras, no nosso
1
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de MF. S. Paulo, Martins Fontes, 1997. Cf. também: ______.
Os limites da interpretação. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2000; RABENHORST, Eduardo R.
“Sobre os limites da interpretação. O debate entre Umberto Eco e Jacques Derrida”. In: Prim@ Facie. Ano I, n. 1, jul./dez.
2002; cf. também: KESKE, Humberto Ivan. “Aventuras da significação: Bakhhtin e Eco à procura do signo deslizante”. In:
InTexto. Disponível em http://www.intexto.ufrgs.br/n14/a-n14a8.htm. Acesso em 12 dez. 2006.
119
entender, é difícil defender que haja pureza absoluta de intenções, nem, por conseqüência, de
resultados.
Por sua vez, a distinção que faz Lawrence Venuti a que também nos referimos rapidamente no
Capítulo 2 entre tradução domesticadora (aquela que quer assimilar o texto com tal ímpeto que acaba
por fazer perder ou deformar as suas feições originais) e estrangeirizadora (aquela que quer mostrar a
estranheza e singularidade de um texto produzido numa dada língua e num dado contexto cultural por
meio da criação de artifícios incomuns ou menos comuns à língua e cultura de chegada), embora seja,
num sentido prático, muito útil e interessante, também o escapa a um certo paradoxo. Por
preferências ideológicas e políticas, Venuti prefere as traduções estrangeirizadoras, sem se dar conta
talvez ou sem enfatizar o bastante, que ele “domestica” a sua leitura de traduções e as próprias
traduções que faz em nome de usos (no sentido de Eco) e de parâmetros de leitura que são também,
quase sem querer, prescritivos ou no mínimo modeladores, ainda que pretensamente libertários.
Muito do que se diz hoje a respeito de tradução é uma batalha ideológica contra as concepções
tradicionais a respeito da linguagem, da língua e do texto. Em grande medida é justo que seja assim e,
pessoalmente, aceitamos de bom grado o relativismo. Em termos mais filosóficos e científicos, um
princípio que poderia ser aplicado com proveito no campo da teoria e sobretudo no da prática da
tradução, princípio certamente insuportável para alguns, é o do tudo vale, como foi defendido pelo
filósofo da ciência austríaco Paul Feyerabend. Numa obra como Contra o método, com argumentos
aliciadores, Feyerabend sugere que uma epistemologia anarquista parece ser uma das mais produtivas
e construtivas no campo da investigação científica, como a história da ciência, segundo ele, é capaz de
mostrar com fartura de exemplos.
2
Nas próprias palavras do filósofo: “A ciência é um empreendimento
essencialmente anárquico: o anarquismo teorético é mais humanitário e mais suscetível de estimular o
progresso do que suas alternativas representadas por ordem e lei”.
3
No caso da tradução de textos literários, que é o nosso caso aqui, ou de textos cujo valor
estético seja um componente significativo o caso, para dar um exemplo, de muitos textos de
filosofia), a tradução não se esgota numa mera operação técnica, complexa que ela seja, sobre textos,
mas se constitui também numa atividade artística. o princípio do tudo vale sugerido por Feyerabend
ganha em força e sugestão, e alcança outra dimensão. Assim, gostamos de pensar que em termos de
tradução e em termos das abordagens teóricas sobre a tradução tudo possa valer também, e cada
tradução deve ser julgada certamente por aquilo que é e mostra, mas também pelo uso (no sentido
comum da palavra, não no de Eco) que se quer fazer dela, isto é, pelos seus objetivos, pelo público ao
2
FEYERABEND, Paul. Contra o método: esboço de uma teoria anárquica da teoria do conhecimento. 3a. ed. Tradução de
Octanny Silveira da Mota e Leonidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
3
FEYERABEND, op. cit., p. 18.
120
qual se dirige etc. Naturalmente isso não livra o tradutor de fazer o seu trabalho o melhor possível, com
conhecimento o mais completo possível do texto que quer traduzir, do seu contexto etc., e com
competência técnica mínima.
No caso das traduções que apresentamos aqui, tentamos nos ater aos limites da interpretação
e deixar o menos espaço possível para o uso (sempre no sentido que Umberto Eco aos dois
termos). Não por preconceito a certos usos possíveis ou parti pris que não admite desvios, mas como
um exercício. É que nos interessava, antes de qualquer coisa, interpretar a obra de Antonio Porta não
por meio da leitura dos poemas e dos comentários críticos a seu respeito, mas também e sobretudo
por meio da tradução. Cremos que a tradução também possa desempenhar esta função: a de servir de
introdução ao mundo da obra de um autor e a um conhecimento preliminar, digamos, a partir do
interior, de um universo a ser ainda descoberto. De um modo ou de outro acreditamos que isso foi feito,
quer dizer, a tradução de fato nos permitiu ter uma visão muito mais profunda e objetiva da obra do
autor do que somente a leitura da crítica nos teria propiciado. Evidentemente que isso não serve de
critério de avaliação da qualidade dos resultados conseguidos.
Por tudo isso, então, que esta dissertação tomou a feição que tem. Assim, o Capítulo 1 serviu
como registro, sumário e seletivo, da obra e da crítica à obra de Antonio Porta, com as informações
mínimas, especialmente as de caráter lingüístico e estilístico, para a uma compreensão e interpretação
válidas. Temos consciência de que haveria muitos outros aspectos a comentar e outras abordagens
analíticas que também poderiam enriquecer a nossa interpretação. O Capítulo 2 procurou delinear o
problema básico da tradução, claramente não o único, mas seguramente fundamental, que é o
problema da equivalência, e esperamos ter conseguido demonstrar o seu caráter, por definição,
relativo. Vale notar que a questão da equivalência está intrinsecamente ligada à da interpretação; em
outras palavras, asseverar que um signo, um enunciado ou um texto produzido em uma língua é
equivalente a outro produzido em outra é nada mais, nada menos que uma hipótese de interpretação,
que precisa ser verificada em cada caso específico e pode ser considerada mais ou menos válida de
acordo com certos critérios de validação que também necessitam ser explicitados. No caso do tradutor,
a equivalência é também uma hipótese de trabalho. No Capítulo 3 foi tentado, então, juntar todos os
fios, os da informação crítica e estilística mais geral, os de uma reflexão mínima sobre a tradução e a
tradução de poesia, e por fim, os de uma possível interpretação e tradução de textos significativos,
significativos evidentemente para quem os selecionou, com toda a parcialidade que qualquer escolha
pessoal acarreta num trabalho como esse.
Enfim, para concluir este percurso, apresentamos nas páginas finais desta dissertação o Anexo
“Seleção de poemas de Antonio Porta (originais em italiano e traduções para o português)” com um
121
total de trinta e três poemas do poeta italiano. Desse modo, o leitor desta dissertação pode apreciar,
com os textos diante dos olhos, os resultados dos nossos esforços.
122
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Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A1gina_principal.
126
ANEXO
SELEÇÃO DE POEMAS DE ANTONIO PORTA
(ORIGINAIS EM ITALIANO E TRADUÇÕES PARA O PORTUGUÊS)
127
1. POEMA BALLATA DI PRIMAVERA
(Cap. 1, p. 15-16)
BALLATA DI PRIMAVERA BALADA DE PRIMAVERA
Rimango davanti a un parco Estou diante de um parque
dove è bello ch’io mi distenda onde é bom que eu me estenda
come nelle acque como nas águas
e mi lascio andare e me deixo ir
scivolando tra le foglie deslizando entre as folhas
nella tiepida stagione che ormai entra nelle case na tépida estação que já entra nas casas
nel primo cielo che vuole arrossarsi no primeiro céu que quer avermelhar-se
nel mio primo rimanere così, no meu primeiro estar assim,
nel sole nuovo, no sol novo,
come veste riscaldata e indossata como roupa aquecida e vestida
di primo mattino l’inverno. de manhãzinha no inverno.
E nel parco soprattutto la sera E no parque sobretudo à noite
grappoli di uccelli cantano e si muovono cachos de pássaros cantam e se movem
nella magnolia, na magnólia,
e ombre loro senza peso tra i rami e as suas sombras sem peso entre os ramos
appaiono delineandosi. aparecem delineando-se.
È bello ch’io mi distenda e dica tutto questo, É bom que eu me estenda e diga tudo isso,
all’apparire di un albero ao aparecer de uma árvore
fiorito florida
di bianche coppe pure, de brancas copas puras,
al risvegliarsi del giardino: ao despertar do jardim:
dolcezza doçura
dell’abbandonarmi de me abandonar
del camminare de caminhar
tra le betulle, entre as bétulas,
del poter dire: de poder dizer:
dolcezza. doçura.
128
2. POEMA VEGETALI ANIMALI
(Cap. 1, p. 16-17; Cap. 2, p. 49-50; Cap. 3, p. 66-77)
VEGETALI, ANIMALI VEGETAIS, ANIMAIS
Quel cervo la vigile fronte penetrata nei dintorni Esse cervo a vígil testa penetrando nos arredores
nel vasto prato rotondamente galoppando no vasto campo suavemente galopando
s’avviò; a volo le lunghe erbe partiu; no vôo a longa relva
da ogni parte afferrava finché l’erba de todo lado arrancava até que a erva
cicuta lo pietrificò. L’albero l’ossatura allargava cicuta o petrificou. A árvore a ossatura alargava
cercando spazio tra gli alberi; con il ciuffo in breve procurando espaço entre as árvores; com o cume em breve
di un palmo l’altezza superò della foresta: de um palmo a altura ultrapassou da floresta:
due guardie forestali quello segnarono col marchio. dois guardas florestais essa assinalaram com a marca.
Che alla scure segnala il punto dell’attacco. Que ao machado assinala o ponto de ataque.
L’insetto giallo sull’albero strisciava O inseto amarelo sobre a árvore rastejava
ad alte foglie ampie come laghi: em altas folhas amplas como lagos:
a ciondolare. Intervenne a schizzargli la schiena a oscilar. Irrompeu a riscar-lhe as costas
il becco del Bucorvo rosso e curvo, un ponte o bico do Bucorvo, vermelho e curvo, uma ponte
d’avorio. Quel fiore foglie e petali distese de marfim. Essa flor folhas e pétalas distendeu
fino a inverosimili ampiezze: sostare vi potevano até inverossímeis amplitudes: pousar ali podiam
colibrì e lo spesso gregge degli insetti. colibris e a espessa grei dos insetos.
Sciocco ed arruffone, recidendolo, l’esploratore Tolo e estouvado, talhando-a, o explorador
ne, con violente ditate, fece scempio. dela, com violentas dedadas, fez estrago.
Quel topo gli occhi aghiformi affilò Esse rato os olhos agulheados aguçou,
una veloce nuvola fissando che gonfiava salendo, uma veloz nuvem fixando que inchava subindo
esplodeva sibilando nell’aria violenti pennacchi: explodia sibilando no ar violentos penachos:
allo scoperto rimasto, topo del deserto, dall’attento ficando descoberto, rato do deserto, pelo atento
falco fu squarciato. L’uccello il folto falcão foi esquartejado. O pássaro o basto
dei cespugli obliò, un lunghissimo verme arbusto olvidou, um longuíssimo verme
succhiò dalle zolle: due amici monelli sugou lá das pedras: dois meninos ladinos,
appostati gli occhi riuscirono a forargli à espreita, os olhos conseguiram furar-lhe
sulla gola inchiodandogli la preda dal becco pregando-lhe na garganta a presa do bico
metà dentro e metà fuori. meio dentro e meio fora.
129
3. SÉRIE CONTEMPLAZIONI
(Cap. 1, 17-19; Cap. 3, p. 78-90)
CONTEMPLAZIONI CONTEMPLAZIONI
1 1
Si torce Ia striscia rettilinea Contorce-se a faixa retilínea
in sinusoide sbavata linea em sinusóide borrada linha
che inciampa alla prima curva que tropeça na primeira curva
(non correre, sciocco, in curva) (não corra, tolo, na curva)
batte sul petto di un uomo bate no peito de um homem
un kg. di coke con un suono um kg de coque com um som
sul selciato precipita balzando na calçada precipita saltando
di zoccolo una nuvola alzando com o casco uma nuvem alçando
come un deposito di lunghe fruste: como um depósito de longas vergastas:
e gli zoccoli dei cavalli robuste e os cascos dos cavalos robustas
sparano mazzate sulla fronte, disparam porradas na fronte,
battono forte sul ponte, batem forte na ponte,
tra le ciglia folte del pazzo nos cílios grossos do insensato
scava lento il suo strazio escava lento o seu tormento
l’unghia che scopre il cervello a unha que descobre o cérebro
daI fondo tenero per un secchiello do fundo tenro para um cântaro
verdognolo, colmo di sabbia bagnata esverdeado, repleto de areia molhada
da farci sopra una rabbiosa pisciata. fazendo nela uma raivosa mijada.
130
2 2
L’altro pilone, o torre, piegato sfilaccia A outra pilastra, ou torre, dobrada desgrega
Ie giunture, polvere e ferro, schiaccia as junturas, poeira e ferro, esmaga
gli aurei fili, un tram impedisce os áureos fios, um bonde impede
il volo dei piccioni, contorta marcisce os vôos dos pombos, contorcida apodrece
Ia carcassa, Ie formiche sono alI’opera, a carcaça, as formigas vão à obra
Ie mosche scavano con Ia zampa che opera as moscas escavam com a pata que obra
in profonda erosione, il vasellame polverizzato, em profunda erosão, o vasilhame pulverizado,
fanno cumulo, come in un mercato fazem um monte, como num mercado
i rosi dai topi oggetti rivenduti. roídos por ratos objetos revendidos
3 3
La carne si conserva in scatola, A carne se conseva na lata
filacciosa si mescola con una spatola fibrosa se mistura com uma espátula
e i polipi sfaldano con il coltelIo, e os pólipos esfoliam com a faca
ruotano con misura in un macelIo rodam com medida em chacina
ristretto, rigurgiti ribolIenti, restrita, refluxos ferventes
a pezzi si incagliano tra i denti, em nacos encalham entre os dentes,
d’olio l’indice si unge, de óleo o dedo se unta
urta Ia Iatta si punge bate na lata se fura
e Ia carne marcisce in scatola, e a carne apodrece na lata,
vomito spalmato da una spatola vômito espalmado por uma espátula
sopra uno stomaco preparato. sobre um estômago preparado.
131
4. POEMA IN RE
(Cap. 1, 21-22; Cap. 3, p. 91-102)
IN RE IN RE
Lo sguardo allo specchio scruta l’inesistenza, O olhar ao espelho escruta a inexistência,
i peli del sopracciglio moltiplicano in labirinto, os pelos da sobrancelha multiplicam em labirinto,
l’occhio nel vetro riflette l’assenza, nel folto o olho no vidro reflete a ausência, o denso
i capelli, temporanea parrucca, sgomentano le mani: cabelo, temporária peruca, apavora as mãos:
cadono sulle guance. caem sobre a cara.
L’inquietudine prolungata mette in evidenza A inquietude prolongada coloca em evidência
il mortale infinito dei pori dilatati, o mortal infinito dos poros dilatados,
estrema avventura di un oggetto che si trucca, extrema aventura de um objeto que se esconde,
sceglie una direzione inconsapevole o folle. escolhe uma direção inconsciente ou louca.
Dietro il lavabo il corpo in oscillazione Diante da pia, o corpo em oscilação
sfugge l’abbaglio, rivoltante presenza, foge à miragem, revoltante presença,
indicatrice e lampante, nella camera a vuoto indicativa e cintilante, no quarto, no vácuo
tra le piume mulina, Ia soffocazione. entre os lençóis remoinha, a asfixia.
132
5. POEMA APRIRE
(Cap. 1, p. 23-25)
APRIRE ABRIR
I
I
Dietro Ia porta nulla, dietro Ia tenda, Atrás da porta nada, atrás da cortina,
l’impronta impressa sulla parete, sotto, a marca impressa na parede, embaixo,
l’auto, Ia finestra, si ferma, dietro Ia tenda, o carro, a janela, pára, atrás da cortina,
un vento che Ia scuote, sul soffitto nero um vento que a agita, no teto preto
una macchia più oscura, impronta della mano, uma mancha mais escura, marca da mão
alzandosi si è appoggiato, nulla, premendo, erguendo-se se apoiou, nada, apertando,
un fazzoletto di seta, iI lampadario oscilla, um lenço de seda, o lustre oscila,
un nodo, Ia luce, macchia d’inchiostro, um nó, a luz, mancha de tinta,
sul pavimento, sopra Ia tenda, Ia paglietta che raschia, no chão, na cortina, o chapéu que raspa,
sul pavimento gocce di sudore, alzandosi, no chão gotas de suor, erguendo-se,
Ia macchia non scompare, dietro Ia tenda, a mancha não desaparece, atrás da cortina,
Ia seta nera dei fazzoletto, luccica sul soffitto, a seda preta do lenço, brilha no teto,
Ia mano si appoggia, iI fuoco nella mano, a mão se apóia, o fogo na mão,
sulla poltrona un nodo di seta, luccica, na poltrona um nó de seda, brilha,
ferita, ora iI sangue sulla parete, ferida, agora o sangue na parede,
Ia seta deI fazzoletto agita una mano. a seda do lenço agita uma mão.
II
II
Le calze infila, nere, e sfila, con i denti, Enfia as meias, pretas, e tira, com os dentes,
Ia spaccata, iI doppio salto, in un istante, Ia calzamaglia, o grand écart, o double jeté, num instante, a meia-calça,
all’indietro, capriola, poi Ia spaccata, i seni en arrière, cabriole, daí o grand écart, os peitos
premono iI pavimento, dietro i capelli, dietro Ia porta, comprimem o chão, atrás dos cabelos, atrás da porta,
non c’è, c’è iI salto all’indietro, le cuciture, não há, há o glissade en arrière, as costuras
l’impronta della mano, all’indietro, sul soffitto, a marca da mão, atrás, no teto,
Ia ruota, delle gambe e delle braccia, di fianco, o rond, das pernas e dos braços, de lado,
dei seni, gli occhi, bianchi, contro iI soffitto, dos peitos, os olhos, brancos, contra o teto,
dietro Ia porta, calze di seta appese, Ia caprioIa. atrás da porta, meias de seda penduradas, a cabriole.
III
III
Perché Ia tenda scuote, si è aIzato, Porque a cortina se agita, se levantou,
il vento, nello spiraglio Ia Iuce, il buio, o vento, na fresta a luz, o escuro
dietro Ia tenda c’è, Ia notte, il giorno, atrás da cortina há, a noite, o dia,
nei canali le barche, in gruppo, i quieti canali nos canais, os barcos, em grupo, os quietos canais
navigano, cariche di sabbia, sotto i ponti, navegam, carregadas de areias, sob as pontes
è mattina, il ferro dei passi, remi e motori, é manhã, o ferro dos passos, remos e motores,
i passi sulla sabbia, iI vento sulla sabbia, os passos na areia, o vento na areia,
Ie tende sollevano i lembi, perché è notte, as cortinas levantam as barras, porque é noite,
giorno di vento, di pioggia sul mare, dia de vento, de chuva no mar,
dietro Ia porta iI mare, Ia tenda si riempie di sabbia, atrás da porta o mar, a cortina se enche de areia,
di calze, di pioggia, appese, sporche di sangue. de meias, de chuva, penduradas, sujas de sangue.
133
IV IV
La punta, Ia finestra alta, c’era vento, A ponta, a janela alta, havia vento,
si è alzato adagio, stride, in un istante, levantou-se devagar, grita, num instante,
ovale, un foro nella parete, con Ia mano, oval, um furo na parede, com a mão,
in frantumi, l’ovale dei vetro, sulle foglie, em pedaços, o oval do vidro, sobre as folhas,
e notte, mattina, fitta, densa, chiara, e noite, manhã, fechada, densa, clara,
di sabbia, di diamante, corre sulla spiaggia, de areia, de diamante, corre na praia,
alzato e corso, Ia mano premuta, a lungo, levantou e correu, a mão apertada, longamente,
fermo, contro il vetro, Ia fronte, sul, parado, contra o vento, a testa, sobre,
il vetro sulla mattina, premette, oscura, o vidro sobre a manhã, adianta, escura,
Ia mano affonda, nella terra, nel vetro, nel ventre, a mão afunda, na terra, no vidro, no ventre,
Ia fronte di vetro, nubi di sabbia, a testa de vidro, nuvens de areia,
nella tenda, ventre lacerato, dietro Ia porta. na cortina, ventre dilacerado, atrás da porta.
V
V
Ruota delle gambe, Ia tela sbatte nel vento, Roda das pernas, a tela bate no vento,
quell’uomo, le gambe aderiscono alla corsa, aquele homem, as pernas aderem à corrida
Ia corda si flette, verso iI molo, sulla sabbia, a corda se dobra, para o molhe, sobre a areia,
sopra le reti, asciugano, le scarpe di tela, sobre as redes, enxugam, os sapatos de lona,
il molo di cemento, battono Ia corsa, o molhe de cimento, batem a corrida,
non c’è che mare, sempre più oscuro, il cemento, só há o mar, sempre mais escuro, o cimento,
nella tenda, sfilava le calze con i denti, na cortina, tirava as meias com os dentes,
Ia punta, ha premuto un istante, a lungo, a ponta, apertou um instante, longamente,
le calze distese sull’acqua, sul ventre. as meias estendida sobre a água, sobre a barriga.
VI
VI
Di là, stringe la maniglia, verso, De lá, torce a maçaneta, em direção,
non c’è, né certezza, né uscita, sulla parete, não há, nem certeza, nem saída, na parede,
l’orecchio, poi aprire, un’incerta, non si apre, o ouvido, abrir então, uma incerta, não se abre,
risposta, le chiavi tra le dita, il ventre aperto, resposta, as chaves entre os dedos, o ventre aberto,
Ia mano sul ventre, trema sulle foglie, a mão sobre o ventre, treme sobre folhas
di corsa, sulla sabbia, punta della lama, rápido, sobre a areia, ponta da lâmina,
il figlio, sotto Ia scrivania, dorme nella stanza. o filho, sob a escrivaninha, dorme no quarto.
VII
VII
Il corpo sullo scoglio, l’occhio cieco, il sole, O corpo sobre o escolho, o olho cego, o sol,
il muro, dormiva, il capo sul libro, Ia notte sul mare, o muro, dormia, a cabeça sobre o livro, a noite sobre o mar,
dietro Ia finestra gli uccelli, il sole nella tenda, atrás da janela as aves, o sol na cortina
l’occhio più oscuro, il taglio nel ventre, sotto l’impronta, o olho mais escuro, o corte no ventre, embaixo da marca,
dietro Ia tenda, Ia fine, aprire, nel muro, atrás da cortina, o fim, abrir, no muro,
un foro, ventre disseccato, Ia porta chiusa, um furo, ventre ressequido, a porta fechada,
Ia porta si apre, si chiude, ventre premuto, a porta se abre, se fecha, ventre apertado,
che apre, muro, notte, porta. que abre, muro, noite, porta.
134
6. POEMA NÚMERO XIII DA SÉRIE RAPPORTI N. 2
(Cap. 1, p. 27-28)
XIII XIII
Il liquido colava dai suoi occhi, mentre fuggiva, O líquido escoava dos seus olhos, enquanto fugia,
volavano via, le gocce, stagnanti e irriguardosi, voavam fora, as gotas, estagnados e ofensivos,
spruzzavano, dormendo per sudare, accumulando lenzuola, espirravam, dormindo para suar, acumulando lençóis,
dagli occhi suoi spandeva, raccolto nelle mani, pelos seus olhos expandia, recolhido nas mãos,
è allora che ha parlato, Ia bocca si colmava, é então que falou, a boca se entupia,
con il sudore deI naso, dammi un bicchiere, com o suor do nariz, me dê um copo,
le dita nelle orecchie, avvolta nel lenzuolo, continua os dedos nas orelhas, envolvida no lençol, continua
a cadere, e perde sangue, ora, a colpi di becco, a cair, e perde sangue, agora, a golpes de bico,
che cosa vuoi da me, lì sul marciapiede, non toccare o que quer de mim, ali na calçada, não toque
le mie ossa, lasciami in pace, dimenticalo, os meus ossos, me deixe em paz, esqueça isso
ricordati dell’inizio, che è Ia fine, con gli occhi se lembre do início, que é o fim, com os seus
suoi, è ancora viva, sono biglie di marmo, olhos, está viva ainda, são bolas de mármore,
senza erezione, né gambe, né il soffio ansioso, sem ereção, sem pernas, nem respiro ansioso,
le unghie di lacca, Ia pelle più scura, as unhas de laca, a pele mais escura,
ma è Ia verità, morente, continui a dir sciocchezze, mas é a verdade, moribunda, você continua a dizer bobagens
oramai, questo volevi dire, questo, morendo, então, você queria dizer isso, isso, morrendo,
per fortuna si muove, così le chiude gli occhi, por sorte se mexe, assim lhe fecha os olhos,
verso il basso, con l’indice, dall’alto, e il pollice, para baixo, com o dedo, do alto, e o polegar,
caduto, in ginocchio, mancano pochi giorni, caído, de joelhos, faltam poucos dias,
prova a toccare, così di corsa, è di cera, una gran macchia experimente tocar, assim pido, é de cera, uma grande mancha
che rimane, sul lenzuolo di carta, gli alberi stanno que fica, sobre o lençol de papel, as árvores estão
entrando, gli uccelli, con le calze di seta, e i cigni entrando, os pássaros, com as meias de seda, e os cisnes
perfettamente conservati, con le finestre chiuse, perfeitamente conservados, com as janelas fechadas,
come dovesse uscire. como tivesse que sair.
135
7. POEMA DUE VARIABILI A DUE
(Cap. 1, p. 28-29)
DUE VARIABILI A DUE
I
mangiano le finte rose
come cancellano il fiume
nutrono il ventre dei cani
chinano Ia testa sul petto
strappano Ia pelle dalle sedie
riempiono il ventre degli uccelli
come attraversano i vetri
siedono per aspettare da bere
soffiano sulle labbra
battono sulle ginocchia
allacciano gli insetti-talpa
come si equilibrano nel vento
scendono nelle gole insensibili
sollevano le labbra sul cibo
mostrano i denti ai cani
appoggiano Ia testa sull’omero
come scendono Ia scaletta
dormono per aspettare da bere
premono lo sterno per parlare
curvano le orecchie
II
decidono di dirIo
bruciano le tele
raschiano le creme
come saltano nell’acqua
si chinano verso Ia luce
alzano sopra gli specchi
come chiedono da bere
stringono dalle due parti
liberano le mani
come stendono questo colore
come si riempiono gli angoli
dicono che c’è
schiodano le casematte
smontano le protezioni
come sbarrano i pontili
premono dietro le quinte
come salgono da una finestra
premono con il naso
come sciolgono le lacche
cancellano le dita
lo raccolgono nelle orecchie
come sfilano l’intestino
come si sente tutto
mangiano le carni
136
DUAS VARIÁVEIS A DUAS
I
comem as falsas rosas
quando cancelam o vento
nutrem o ventre dos cães
inclinam a cabeça sobre o peito
rasgam a pele das cadeiras
enchem as barrigas das aves
quando atravessam os vidros
sentam para esperar beber
assopram sobre os lábios
batem nos joelhos
amarram os insetos-toupeiras
quando se equilibram no vento
descem nas gargantas insensíveis
levantam os lábios sobre a comida
mostram os dentes aos cães
apóiam a cabeça sobre o ombro
quando descem a escadinha
dormem para esperar beber
apertam o esterno para falar
curvam as orelhas
II
decidem dizê-lo
queimam as telas
arranham os cremes
quando pulam na água
inclinam-se para a luz
erguem sobre os espelhos
quando pedem de beber
apertam pelas duas partes
liberam as mãos
quando espalham esta cor
quando se preenchem os cantos
dizem que há
despregam as casamatas
desmontam as proteções
quando bloqueiam o cais
cerram nos bastidores
quando sobem por uma janela
empurram com o nariz
quando dissolvem as lacas
cancelam os dedos
recolhem-nos nas orelhas
quando desenfiam o intestino
quando se sente tudo
comem as carnes
137
8. POEMA I DA SÉRIE SONETTO
(Cap. 1, 29-31; Cap. 3, p. 103-107)
DA SONETTO DA SÉRIE SONETO
I I
come li incontra sulla finestra mal os encontra sobre a janela
non uccide domanda não mata pergunta
subito e prima logo e antes
si alza. se ergue.
come scende le scale di pietra mal desce as escadas de pedra
non urla dice não grita diz
allora e adesso então e agora
si volta. se volta.
come sale le scale di pietra mal sobe as escadas de pedra
non stride dice não ralha diz
come se como se
come è vero. como é certo.
come li stringe contro mal os aperta contra
non fugge risponde não foge responde
una volta e basta uma vez e basta
ride. ri.
138
9. POEMA Nº 6 DA SÉRIE QUELLO CHE TUTTI DICONO
(Cap. 1, p. 31-32)
6 6
che occorre ignorare i rapporti umani que é preciso ignorar as relações humanas
che le minoranze sono sempre più intelligenti que as minorias são sempre mais inteligentes
che il dolore è utile que a dor é útil
che la civiltà si fonda nel piacere que a civilização se funda no prazer
che la felicità è il nuovo mito consumistico que a felicidade é o novo mito de consumo
che la realtà deve avere un futuro que a realidade deve ter um futuro
che è finita l’arte borghese non l’arte que acabou a arte burguesa não a arte
che un nuovo stato rivoluzionario esprimerà una nuova arte que um novo estado revolucionário expressará uma nova arte
che la pittura deve essere multipla que a pintura deve ser múltipla
che i negri son sempre i soliti che ammazzano i bianchi que são sempre os negros que matam os brancos
che i negri sono sempre i soliti che si ammazzano tra di loro que são sempre os negros que se matam entre si
che la natura si ribella que a natureza se rebela
che vedrete che i conti non tornerranno que vocês vão ver que as contas não vão fechar
che la parola scritta deve essere politica que a palavra escrita deve ser política
che insomma le parole contano moltissimo que afinal as palavras contam muitíssimo
ci sono di quelle cose che non si spiegano ma che sono vere há coisas que não têm explicação mas são verdadeiras
che l’esteticità non deve essere accantonata que a esteticidade não deve ser abandonada
che bisogna continuare continuare continuare que é necessário continuar continuar continuar
che le vetrine sono piene di cose bellissime que as vitrines estão repletas de coisas lindas
che ci si abitua a tutto que a gente se acostuma com tudo
che l’erotismo è una routine que o erotismo é uma rotina
che sta accadendo qualcosa di molto diverso que está acontecendo algo de muito diferente
è veramente difficile capire é realmente difícil de entender
che bisogno c’è di capire que necessidade há de entender
ma allora come si giudica mas então como se julga
che i giudici si ribellano al giudizio que os juízes se revoltam contra o juízo
che chi ci guiderà que quem nos guiará
139
10. POEMA MODELLO PER AUTORITRATTI
(Cap. 1, p. 32-33)
MODELLO PER AUTORITRATTI MODELO PARA AUTO-RETRATO
io non sono non c’è non chi è eu não sou não está não quem é
non abito non credo non ho não moro não creio não tenho
cinquantanni ventuno dodici che c’è cinqüenta anos vinte e um que foi
quando bevo nell’acqua nuotare non so quando bebo na água nadar não sei
con Ia penna che danza Ia poIvere che avanza com a pena que dança o pó que balança
non credo non vedo se esco né tocco não creio não vejo se saio se toco
mangiare se fame digerire non do comer se fome digerir não dou
prima corpo poi mente poi dico poi niente primeiro corpo daí mente daí digo daí nada
e un’aItra chissà se alla fine cadrà e uma outra quem sabe se no final cairá
né una vita né due né un pianeta né un aItro nem uma vida nem duas nem um planeta nem outro
Ie lingue non capisco Ie grida annichilisco as línguas não entendo os gritos aniquilo
140
11-17. SETE POEMAS DA SÉRIE LETTERE
(Cap. 1, p. 33-35)
LETTERE CARTAS
1 1
nel luogo delle alture ruotanti no lugar das alturas rotantes
semplici farfalle alzano brevi pascoli simples borboletas erguem breves pastos
un lago a fondamento deI moto um lago a fundar o movimento
tutto si produce all’intemo dei presenti tudo se produz no interior dos presentes
ecco quanto ho da dirvi, carissimi é o que tenho a dizer-lhes, caríssimos
2 2
niente più che una scura notte d’ottobre nada mais que uma escura noite de outubro
senza lievito non si buca sem fermento nada se consegue
niente occhi e nemmeno un ricordo nada de olhos e nenhuma lembrança
passaggio oggetto o immagine passagem objeto ou imagem
muro prima di parlarci bisogna guarire muro antes de nos falar é preciso sarar
3 3
con un lungo bastone matita di lontano com um longo bastão lápis da lonjura
potrei sono sicuro disegnare a distanza poderei estou certo desenhar à distância
sopra moltiplicati molti volti conosciuti sobre multiplicados rostos conhecidos
modificare in molti modi ognuno di quei volti modificar de muitos modos cada um dos rostos
mentre mi accosto ai muri e alle pareti enquanto me aproximo dos muros e das paredes
tutto è scomparso e un altro giorno tudo desapareceu e um dia desses
ricomincio a scoprirli di lontano recomeço a descobri-los de longe
sento che volano via e che ritomano sinto que voam embora e que voltam
4 4
lungo le mura bave di vento strisciano farfalle ao longo dos muros línguas de vento escorregam borboletas
sulla città che Ia schiacciano sobre a cidade que a esmagam
questi uomini sotto una nebbia asciutta estes homens sob uma névoa enxuta
s’aprono ombrelli luminosi abrem-se sombrinhas luminosas
è il segno che vogliono parlare, carissimi é o sinal de que querem falar, caríssimos
nelIa città che scompare na cidade que dasaparece
141
5 5
i piedi affondano nella terra molIe os pés afundam na terra mole
i piedi si dimenticano dentro Ia terra molIe os pés se esquecem dentro da terra mole
smemorato si alIontana con le stampelle di legno desmemoriado se afasta com as muletas de madeira
le gambe cedono a una svolta dei sottobosco as pernas cedem a uma curva do bosque
qui il suolo rifiorisce tutto a tappeto aqui o chão refloresce todo em tapete
c’è una testa appoggiata ai davanzale há uma cabeça apoiada no peitoril
una lingua si sporge per sete uma língua se estica de sede
stracolmo di inganni repleto de enganos
paese di Primavera país de Primavera
ricordate recordem
6 6
isole cariche di verzura galleggianti ilhas carregadas de vegetação flutuante
navigano nelI’aria isole lente navegam no ar ilhas lentas
II moto soffia nella verzura debole vento O movimento sopra na vegetação débil vento
uomini e donne distesi sulle pietre guardano homens e mulheres estendidos sobre pedras olham
isole sospese di celeste verzura ilhas suspensas de celeste vegetação
uomini e donne galleggianti guardano in alto homens e mulheres flutuantes olham para cima
non cadono doni né frutti não caem dons nem frutos
è una visione per tutti é uma visão para todos
7 7
per una stagione in letargo le stagioni sotto Ia terra para uma estação em letargia as estões sob a terra
sotto coItri di foglie un corpo muIticolore sob mantos de folhas um corpo multicolorido
sogno un sonno celeste bulbi sospesi sonho um sono celeste bulbos suspensos
voi tutti pronti ad accogliermi todos vocês prontos a me acolher
poiché tutto deve essere deciso porque tudo deve ser decidido
appena ci si sveglia logo ao despertar
142
18. POEMA X DA SÉRIE PASSEGGERO
(Cap. 1, 36-37; Cap. 3, p 108-110)
X X
disteso in una piccola barca estendido num pequeno barco
un metro al limite da una meta um metro de distância de uma meta
alIunga un braccio Ia mano non trova alonga o braço a mão não acha
l’immagine distesa sul muro è corpo a imagem estendida sobre o muro é corpo
non ci sono odori e un suono stridente não há cheiros e um som estridente
un albero immerso nell’acqua si fa vicino uma árvore imersa na água se aproxima
ali minuscole sbattono alI’intorno asas minúsculas batem ao redor
ombrelIe estive attraversano Ia luce guarda-sóis de verão atravessam a luz
bocca che inghiotte le sue labbra boca que engole os seus lábios
appoggia una mano alI’ombra si mette apóia uma mão à sombra se põe
seduto e dice: ancora sentado e diz: ainda
143
19. POEMA DO LIVRO PASSI PASSAGGI
(Cap. 1, 38; Cap. 3, p. 112-117)
se il fiume stretto se o rio estreito
spinto dalla luce deI mattino impelido pela luz da manhã
risale Ia montagna luccicante escala a montanha reluzente
uno che passa raccoglie una pietra liscia um que passa recolhe uma pedra lisa
per gioco lancia nell’aria quella pietra levigata como um jogo lança no ar aquela pedra levigada
Ia vetrata s’incrina s’infrange polvere tagliente a vidraça se rompe se parte poeira cortante
sopra i tappeti erbosi sanguinanti i piedi sobre o tapete relvoso sangrando os pés
se il fiume stretto se o rio estreito
spinto dalla luce del mattino impelido pela luz da manhã
risale Ia montagna luccicante escala a montanha reluzente
uno che passa raccoglie una pietra liscia um que passa recolhe uma pedra lisa
per gioco lancia nell’acqua con forza como um jogo lança na água com força
Ia vetrata s’incrina infranta in polvere tagliente a vidraça se rompe partida em poeira cortante
sopra i tappeti d’erba a piedi sanguinanti sobre o tapete de relva com pés sangrando
discende nello specchio deI piano desce no espelho do plano
i pesci boccheggiano nell’universo svuotato os peixes arquejam no universo esvaziado
144
20. POEMA Nº 4 DO LIVRO L’ARIA DELLA FINE
(Cap. 1, p. 39-40)
4 4
non sono un poeta-ciotolo come Beckett não sou um poeta-pedra como Beckett
non interrogo i cieli di cartapesta del teatro não interrogo os céus de papel do teatro
vi confesso che non so interpretare Ie costellazioni confesso que não sei interpretar as constelações
né stare lì a guardarle dal buco del cortile a meraviglia nem ficar ali olhando-as pelo vão do pátio maravilhado
ma uso quelle delle parole a mosaico compongo e ricompongo mas uso aquelas das palavras em mosaico componho e recomponho
per parlarla insieme questa lingua questi linguaggi para falar junto esta língua estas linguagens
solleviamola Ia lingua a vedere che c’è sotto levantemos a língua para ver o que está embaixo
parliamola Ia parola svelata con Ie radici senza pudore falemos a palavra desvelada com as raízes sem pudor
(questo biglietto vi consegno a futura memoria) (esta mensagem lhes confio à memória futura)
145
21. POEMA Nº 62 DO LIVRO L’ARIA DELLA FINE
(Introdução, p. 9)
c’è un pezzo di legno che brucia in forma di lupo há um pedaço de pau que queima em forma de lobo
più brucia più il lupo danza nel suo centro, mais queima mais o lobo dança no seu centro
è una luce che può ferire, difenditi, mi dico: é uma luz que pode ferir, defenda-se, me digo
innalzare uno specchio sul prato dalla parte opposta levantar um espelho sobre o campo do lado oposto
e guardarci dentro il lupo accecante e olhar dentro dele o lobo ofuscante
poi tentare di abbracciarlo, decidere di bruciare daí tentar abraçá-lo, decidir queimar
dietro lo specchio scopro un occhio di lago dentro do espelho descubro um olho de lago
apre le labbra nere e dice: blu abre os lábios negros e diz: azul
come un bambino quando fa: da da da como uma criança quando faz: da da da
blu l’unica parola di una canzone senza parole azul única palavra de uma canção sem palavras
un lamento di musica a bocca chiusa um lamento de música a bocca chiusa
una domanda, forse, un’invocazione, o niente uma pergunta, talvez, uma invocação, ou nada
teatro muto, una busta chiusa teatro mudo, um envelope fechado
lacerata, continua a richiudersi perfetta rasgado, continua a fechar-se perfeito
146
22. POEMA Nº 63 DO LIVRO L’ARIA DELLA FINE
(Cap. 1, p. 39-41)
63 63
Ciò che rimane per sempre O que permanece para sempre
incomprensibile è che Ia natura incompreensível é que a natureza
(e per natura Iui intendeva: l’universo) (e por natureza ele entendia: o universo)
diventi comprensibile. Ciò che è se torne compreensível. O que é
ogni volta incomprensibile è Ia poesia cada vez incompreensível é a poesia
(e per poesia s’intende: il linguaggio poetico) (e por poesia se entende: a linguagem poética)
quando rovescia l’ordine delle attese quando subverte a ordem das expectativas
diventa comprensibile. se torna compreensível.
leri aI centro deI bosco una fontana geIata Ontem no centro do bosque uma fonte congelada
(e per fontana geIata intendo: ingabbiata (e por fonte congelada entendo: engaiolada
da staIattiti di ghiaccio). por estalactites de gelo).
Oggi daI bosco che Ia circonda goccioIante Hoje do bosque que a circunda gotejante
esce l’estate piena che ti stringe con Ie sue foglie sai o verão pleno que te cinge com suas folhas
Ia fontana di ghiaccio è un fantasma a fonte de gelo é um fantasma
che taglia: è Ia poesia que corta: é a poesia
a dire Ia fontana invisibile a dizer a fonte invisível
(o visibile sopra uno schermo tenuto nascosto) (ou visível sobre uma tela mantida escondida)
anche ora rimane prigioniera deI ghiaccio até agora permanece prisioneira do gelo
il momento che è insieme passato o momento que é junto passado
e presente e futuro: e presente e futuro:
occorre prepararsi non farsi sorprendere, é preciso se preparar não se deixar surpreender,
vivere in anticipo, viver antecipadamente,
questo dice Ia poesia. isto diz a poesia.
147
23-30. OITO POEMAS DE INVASIONI
(Cap. 1, p. 41-42)
l’ombra di un passero picchia in giù a sombra de um pássaro que bate
riga sul vetro della finestra risca o vidro da janela
accende il quadrato d’erba ilumina o quadrado de relva
dove è sceso onde desceu
pruni fioriti a cespuglio abrunheiros floridos em arbusto
Ia collina bruciata dai geli a colina queimada pela geada
ciuffi di capelli candidi tufos de cabelos cândidos
segnali di primavera sinais de primavera
i latrati dei cani ancora os latidos dos cães ainda
gelano l’aria di lontano congelam o ar de longe
Ia terra sorda a terra surda
lentissimo era il volo della notte lentíssimo era o vôo da noite
ora si fa veloce agora se faz veloz
Ia stagione si apre a estação se abre
da un minuto all’altro de um minuto a outro
merli luccicanti nello specchio dell’alcool melros cintilantes no espelho do álcool
trasparenza della notte transparência da noite
canti deI gelo cantos do gelo
farfalle di luce volano giù dalla montagna borboletas de luz voam montanha abaixo
gli scorpioni si acquattano os escorpiões se escondem
Ia bestia enorme acquattata o bicho enorme escondido
questa notte si è riempita di neve nesta noite se encheu de neve
Ia mattina si alza, Ia scuote via de manhã se levanta, sacode-a toda
moltitudine di ireos multidão de lírios
sbucati sulla scarpata nascidos sobre a escarpa
alcuni celeste mattina alguns celeste manhã
altri azzurro notte outros azul noite
o sangue ou sangue
148
31. POEMA CANZONE
(Cap. 1, p. 42-44)
CANZONE CANÇÃO
non riuscirò a dire mai nunca conseguirei dizer
Ia stagione che nasce, Ia perdita a estação que nasce, a perda
di peso, non solo intreccio de peso, não só o emaranhado
di alberi floriti e il volo de árvores floridas e o vôo
mi costringe aI silenzio me obriga ao silêncio
ma parlo mas falo
foglie bucano Ia luce folhas atravessam a luz
il bosco intero lievita in un cerchio o bosque inteiro fermenta num círculo
foglie nel buio ripetono gli inganni folhas no escuro repetem os enganos
(le mie parole così pesanti) (as minhas palavras tão pesadas)
quanto mi è estraneo negare Ia gravità como me é estranho negar a gravidade
quanto lo desidero como eu o desejo
soffiarmi in un soffio soprar-me num sopro
lama orizzontale nella chiarità, lâmina horizontal na claridade
quando tutto dimostra un fine preciso quando tudo mostra um fim preciso
allora scartare, non dire più nulla eliminar então, não dizer mais nada
ascoltare Ia ferita che si riapre escutar a ferida que reabre
muove un gorgoglìo prima della sordità mover um gorgolejo antes da surdez
a sguardo aperto scoprire com o olhar aberto descobrir
altre ferite gorgoglianti outras feridas gorgolejantes
Per fare una canzone occorre Para fazer uma canção é preciso
rubare il tempo, curvare il fiume roubar o tempo, curvar o rio
baciare l’ansa, l’anca che scivola via. beijar a ansa, a anca que desliza
È lieve l’incendio diffuso É leve o incêndio difuso
pure soffia deciso alle mie spalle até sopra resoluto às minhas costas
spinge verso il fuori, strisciare? empurra para fora, arrastar-se?
Questo potrei farIo da solo, dirIo Isto posso fazer sozinho, dizê-lo
respiro e soffocazione, soffocazione respiro e asfixia, asfixia
e riscatto, nodi che si sciolgono dentro e redenção, nós que se desfazem por dentro
Ia gola è il principio a garganta é o princípio
un attimo fa era ancora Ia fine, basta um minuto atrás era ainda o fim, basta
con i controlli, sto segando accanito de controles, estou cerrando
l’ultima finestra, le sbarre invulnerabili a última janela, as grades invulneráveis
libero e prigioniero, ossesso, ossessionato livre e prisioneiro, obsesso, obsidiado
come una donna, libera e prigione como uma mulher, livre e prisão
aderisce alla nuda terra seminata, adere à terra nua semeada
non c’è piu nulla da aspettare, ora. não há mais nada a esperar, agora.
149
Vai, canzone mia Vá, minha canção
e ripeti a chi guarda irridendo e repete a quem olha
a chi rinuncia: «te, io derido». a quem renuncia: “zombo de ti».
Vieni, canzone mia Vem, canção minha
fermati alIo specchio pára diante do espelho
e nel riflesso alIegra e no reflexo alegra-te
ridi con il tuo autore. ri com o teu autor.
Ali tese un faIco punta sul prato Asas tesas um falcão desponta sobre o campo
sopra di lui il minuscolo luì sobre ele a minúscula felosa
mima il suo gioco, Ia preda, un topolino imita o seu jogo, a presa, um ratinho
ha il tempo di fuggire piu in là tem tempo de fugir mais para lá
fin che c’è luce ripetono Ia danza. até que haja luz repetem a dança.
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32. POEMA Nº 13 SA SÉRIE AIRONE
(Cap. 1, p. 44-45)
13 13
Sei arso di grazia nel tuo cielo Ardeste com graça no teu céu
di una grazia che viene dalla grazia di essere de uma graça que vem da graça de ser
un dono che viene da se stesso um dom que vem de si mesmo
ora bruci nella morte che viene dalla morte agora queimas na morte que vem da morte
come Ia nascita discende dalla nascita como o nascimento descende do nascimento
sogno che è figura di un altro sogno sonho que é figura de um outro sonho
ferite che si allungano sopra altre ferite feridas que se alongam sobre outras feridas
e una mano d’acciaio piomba e uma mão de aço tomba
immensa dai tuo cielo, airone nemico, imensa do teu céu, garça inimiga,
belva furente, mi acciechi, fera furiosa, tu me cegas,
qui ti odio, ti uccido aqui te odeio, te mato
se posso ma non posso se puder mas não posso
e ormai morte sei solo e já morte és só
che nasce dalla mia morte que nasce da minha morte
e un vagito violento resiste e un vagido violento resiste
e nessuno ci credeva, più e ninguém nele cria, mais
ma un riso subito risuona mas um riso súbito ressoa
e rimbalza su di noi e salta sobre nós
acqua scroscia dalla collina... água que escorre da colina...
151
33. POEMA Nº 17 DA SÉRIE AIRONE
(Cap. 1, p. 44-45)
17 17
Ancora una volta non l’ultima volta Ainda uma vez não a última vez
volando osservando dalI’alto i capricci voando observando do alto os caprichos
delIe acque, a mordere il più molIe, das águas, a morder o mais mole,
a curvarsi su di sé, a sbocciare i ciuffi, i riccioli a curvar-se sobre si, a desabrochar os tufos, os cachos
in cresta di onda, sotto rimane nascosta na crista da onda, embaixo fica escondida
Ia placenta che tutto contiene, a placenta que tudo contém,
cunicoli di dove Ia vita risale veloce cunículos de onde a vida emerge veloz
e non vi è traccia di maschio sulIa terra, e não há rastro de macho sobre a terra,
conserva gli invisibili geni per Ia madre e Ia madre conserva os invisíveis gens para a mãe e a mãe
risucchia tutto e tutto restituisce reabsorve tudo e tudo devolve
in forma di albero, di foglie, di erbe, di muschio, em forma de árvore, de folhas, de ervas, de musgo,
di licheni, di anellidi, di bacche odorose, Ia mia bocca de líquens, de anelídeos, de bagas olorosas, a minha boca
si apre per accoglierla, Ia lingua delIa terra, se abre para acolhê-la, a língua da terra,
stringerla tutta dentro di sé. cingi-la toda dentro de si.
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