Download PDF
ads:
ENTRE GANGUES E GALERAS:
juventude, violência e sociabilidade
na periferia do Distrito Federal
TESE DE DOUTORADO
Aluna
Carla Coelho de Andrade
Orientador
Prof. Dr. Wilson Trajano Filho
Universidade de Brasília - UnB
Instituto de Ciências Sociais - ICS
Departamento de Antropologia – DAN
Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social - PPGAS
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Universidade de Brasília – UnB
Instituto de Ciências Sociais – ICS
Departamento de Antropologia – DAN
Programa de Pós-Gradução em Antropologia Social – PPGAS
ENTRE GANGUES E GALERAS:
juventude, violência e sociabilidade na periferia do Distrito Federal
Carla Coelho de Andrade
Tese apresentada ao Curso de Doutorado em
Antropologia Social, do Departamento de Antropologia,
do Instituto de Ciências Sócias, como requisito parcial
para obtenção do título de Doutor em Antropologia
Social.
Orientador: Prof. Dr. Wilson Trajano Filho
Brasília – DF
Agosto de 2007
ads:
À minha família, sem a qual não sou gente:
meu querido pai, Wilson, sempre vivo entre
nós, minha mãe, Fabíola, minhas irmãs Paula,
Fernanda e Andréa, meus irmãos Kim e Toni,
minha afilhada Helena, meus sobrinhos Tiago,
Bruno, Renata, Laura e Pedro, minha
sobrinha neta Maria Clara e agregados, por
ordem de chegada: Roberto, Arthur, Ana, Li,
Rebeca e Carol.
Registro aqui o meu amor e o meu infinito
agradecimento.
AGRADECIMENTOS
Muitas foram as pessoas que colaboraram, direta e indiretamente, para a
realização deste trabalho. Nem todas serão aqui nominalmente lembradas, mas
estarão sempre no meu coração, inclusive as que passaram para o outro mundo sem
que eu tivesse a chance de a elas me dirigir para verbalizar a minha gratidão.
Meu orientador, professor Wilson Trajano Filho, por quem nutro profunda
admiração, foi, como sempre, muito intrépido e assumiu com determinação o seu
papel de orientador num tema que até então estava longe de seus horizontes
acadêmicos. Ao Trajano sou infinitamente grata por seu ouvido atento, sua
preocupação em me apontar novas bibliografias, sua paciência – diga-se, comigo foi
testada ao limite – e pela enorme dedicação na leitura de meus escritos. Seus
preciosismos nos comentários escritos, muitas vezes permeados de um humor
contagiante nos nossos encontros pessoais para discuti-los, foram fundamentais no
enriquecimento de minha trajetória de vida. Claro, o meu orientador não é responsável
pelos meus equívocos neste trabalho. No máximo é responsável por alguns momentos
de agonia e desespero pelos quais passei. Agradeço!
As professoras Ana Luísa F. Sallas e Léa Perez são grandes personagens da
minha história. Há muitos anos conto com o estímulo dessas grandes e queridas
amigas, sempre muito afetuosas e amorosas. Ajudando-me nesta empreitada, elas
nunca deixaram de me enviar prontamente um artigo solicitado, uma referência, uma
nova indicação bibliográfica... Agradeço!
Minhas velhas companheiras de “catacumba” e de outras façanhas, Inês
Gonzaga Zatz e Leila Chalub Martins, são pessoas que não encontro palavras para
expressar a minha admiração e gratidão. Desde que as conheci, temos caminhado
juntas pela vida enroscadas num forte laço de irmandade. As duas me ajudaram a
concretizar este trabalho de várias maneiras, seja me substituindo em aulas e lendo os
meus escritos, seja participando ativamente das minhas alegrias e tristezas. Inês,
sempre com muita dedicação ao que faz e extremamente atenciosa comigo, cuidou da
revisão final do texto que ora apresento. Agradeço!
As “inhas” também marcaram forte presença no curso da elaboração deste
trabalho. Sandrinha (Sandra Mello), Marcinha (Márcia Barreto), Luizinha (Luísa Villa
Verde) e Dadazinha (Oswalda Margarida), meu clube de mulheres, fizeram parte do
meu suporte emocional. Sem isso ninguém chega a canto nenhum. Sandra Mello, que
conheci nos tempos de minha graduação em arquitetura, é minha grande amiga desde
então. Já comemos mais de um saco de sal juntas e ainda estamos aí, firmes e
determinadas a continuar juntas descobrindo a vida como ela é. Como boa irmã,
Sandrinha cuidou na última hora – por culpa minha! – da formatação final do texto e de
uma capa linda que só ela poderia ter a idéia de fazer meio a tanta correria. Agradeço!
O companheirismo e apoio que a professora Carla Costa Teixeira me deu nos
últimos anos foram fundamentais para a concretização deste trabalho. A união em
torno do nosso “carlismo abanense” – ao qual também se juntou o querido professor
Antônio Carlos Souza Lima – é algo que jamais poderei esquecer. Também são
inesquecíveis as nossas aventuras em torno do saneamento. Agradeço!
Meu adorado compadre João Etienne A. Pimentel me recebeu num momento
difícil da minha vida em Dallas, onde comecei a esboçar a redação deste trabalho.
Seus comentários naquela época foram e continuam sendo inestimáveis. Agradeço!
Finalmente, quero agradecer a boa convivência no Departamento de
Antropologia da UnB. Aline Sapiezinskas, Juliana Melo e Mônica Nogueira foram
grandes companheiras de doutorado. Não há como não deixar aqui registrado o meu
apreço por estas meninas. Sinto-me particularmente privilegiada por ter podido, nos
últimos anos, manter algumas boas conversas com professores do DAN, como as que
tive com Roque Laraia, Klass Woortman, Júlio César Melatti, Gustavo Lins Ribeiro,
“meu presidente”, Luís Roberto Cardoso de Oliveira, Henyo Trindade Barretto, “meu
secretário”, Lia Zanotta, Eurípedes Dias, Paul Litlle. Deste “pequeno-grande mundo”,
não há como esquecer da Rosa, parte dos velhos tempos, da Adriana, do Paulo e da
Branca, sempre extremamente gentis, solícitos e eficientes no dia-a-dia da secretaria.
Agradeço!
Muito obrigada a todos vocês!!!
ABSTRACT
Understanding the fields of sense that make dynamic the experiences of
young integrant of “galeras” or groups generically defined as “gangs” involved in
illicit activities and acts of violence, was the motivation of the present study. In a
more specific way, I centered my interest in the ways of interaction, actions and
values of these youngsters, instigated by the following question: what place the
violence occupies as a propeller field of experiences in their lives? As an
observation location, I took the periphery of Brasilia, where youth of popular
layers lives.
The guiding axis of my study was not understanding the causes of
violence. In a distinct way, I attempted to delineate cultural contents that are in
the base of its practice and to place this violence inside the social reception
system of the young. My concern was to try to perceive the relationship of the
young with the world, its values, its representations of itself and the other, in a
social-anthropologic perspective that considers the global way of life and that
searches the meanings understanding they, themselves, give to their acts and
beliefs. In this manner, despite interested in the violence of the “gangs”, I did
not focused myself only in the behavior of the young inside these groups, but I
tried to explore a variety of dimensions that cross and make dynamic the
experience of participation of the young in the “gangs”, locating them in different
plans of understanding and relationships.
RESUMO
Compreender os campos de sentido que dinamizam as experiências de
jovens integrantes de galeras ou grupos genericamente definidos como
“gangues”, enleados em atividades ilícitas e atos de violência, foi a motivação
impulsionadora do presente estudo. De modo mais específico, centrei meu
interesse nos modos de interação, práticas e valores desses jovens, instigada
pela seguinte questão: que lugar a violência ocupa como campo propulsor de
experiências nas suas vidas? Como terreno de observação, tomei a periferia de
Brasília, onde moram jovens de camadas populares.
O eixo norteador de meu estudo não foi o entendimento de causas da
violência. Procurei, de modo distinto, delinear conteúdos culturais que estão na
base do seu exercício e situar essa violência dentro do sistema de relações
sociais dos jovens. Preocupei-me em tentar perceber a relação dos jovens com
o mundo, seus valores, suas representações de si e do outro, numa
perspectiva sócio-antropológica que considera a globalidade de seu modo de
vida e que procura a compreensão dos significados que eles próprios dão às
suas práticas e crenças. Desse modo, ainda que interessada na violência das
gangues, não me detive unicamente no comportamento dos jovens no interior
desses grupos, mas tentei explorar uma variedade de dimensões que
atravessam e dinamizam a experiência de participação dos jovens nas
gangues, localizando-as em diferentes planos de entendimento e relações.
SUMÁRIO
Introdução
9
1. Percursos da pesquisa 25
2. Ordenamento do material empírico
39
Capítulo 1. Viver na Periferia: o cotidiano e o olhar dos jovens
47
1.1. Viver na Ceilândia 49
1.2. Viver em Samambaia 59
1.3. Viver em Planaltina 66
1.4. Viver na periferia: unidade de referência
72
Capítulo 2. Estigma, Discriminação e Desigualdade Social: o Plano
Piloto como espelho
75
2.1. Comparando-se aos jovens do Plano Piloto 76
2.2. Da pobreza e da riqueza 93
2.3. “O Diabo é o outro”
101
Capítulo 3. Outras Dimensões da Sociabilidade: família e trabalho
102
3.1. “Família é tudo”: a percepção dos jovens da instituição familiar 102
3.2. Em nome da mãe 107
3.3. O trabalho e o trabalhador: ambivalências 108
3.4. Crescer, para quê? Inseguranças e incertezas agravadas
118
Capítulo 4. Gangues e Galeras: a violência faz a diferença
121
4.1. O novo referencial da violência 129
4.2. Os jovens e o imaginário da violência 133
4.3. Breve balanço
137
Capítulo 5. Anatomia e Performance das Gangues
140
5.1. Do lúdico à bandidagem 140
5.2. A Dinâmica da formação das gangues: quando os “ratos” tornam-
se uma família
144
5.3. Entrar, permanecer e sair da gangue: norma e obediência 148
5.4. Ser líder de uma gangue: “comandando as amizades”
155
5.5. O que fazem as gangues 159
5.6. Rivalidades e embates entre os grupos: a lógica da guerra não
tem sutilezas
165
5.7. A lei do mais valente, ou a lei do mais armado
171
5.8. Um “avião” está sempre à mão: o convívio com as drogas 172
5.9. As Jovens e as gangues: preconceito e discriminação em relação
à condição feminina
176
5.10. Gangue: rito de passagem?
178
Capítulo 6. Trajetórias Reversíveis: alternativas ao “mundo do crime”
182
6.1. Da gangue para o Hip Hop: a história de Jadson Jones 183
6.2. De integrante de gangue à homem de Deus: a história de
Jeferson, Eduardo e Carliomar
193
6.3. Passagem de um mundo a outro
203
Capítulo 7. O Jovem e a polícia: olhares cruzados
207
7.1. Falando sobre a polícia: um primeiro retrato feito pelos jovens 209
7.2. Falando sobre os jovens: um primeiro retrato feito pela polícia 213
7.3. Baculejo: a revista policial 216
7.4. A percepção do baculejo pelos jovens 220
7.5. A percepção do baculejo pelos policiais 225
7.6. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): mais um motivo
de tensão entre jovens e policiais
230
7.7. Jovens e polícia: quem é o bandido? 237
7.8. Espaços de contradição 239
7.9. Sobre as diferentes interpretações de uma mesma situação
social: de volta ao “baculejo”
240
Considerações Finais
243
Bibliografia
250
Anexo
261 (i)
9
INTRODUÇÃO
Os jovens do Distrito Federal vêm se notabilizando pelos confrontos
violentos envolvendo turmas. A rivalidade mantida entre as chamadas
“gangues” provoca enfrentamentos físicos que causam ferimentos graves e não
raramente a morte de jovens. Soma-se a esses embates entre turmas de
jovens, qualificados por eles próprios como “guerras”, uma outra manifestação
da violência que entrecorta suas ações: a prática de atos ilícitos e ilegais, como
roubos, assaltos, furtos e depredações de patrimônios públicos e privados.
A mídia local dá espaço significativo aos comportamentos agressivos e
violentos da juventude, tornando o tema “gangue” numa das preocupações
mais urgentes das autoridades políticas. Neste contexto de alarmismo
mediático, atos delinqüentes e de violência envolvendo as chamadas gangues
juvenis são capazes de render reportagens que atravessam vários dias,
sempre alimentadas por testemunhas dos episódios e pela opinião de
especialistas, que se convertem em espécies de epidemiólogos de última hora,
premidos pela missão de diagnosticar o alcance do problema e apontar
possíveis soluções. Contudo, o tratamento “emergencial” dado ao tema tende a
empobrecer sua análise, apontando para a necessidade de maior
conhecimento desses grupos e da experiência concreta de vida dos jovens que
os integram, o que o presente estudo espera trazer como contribuição.
Compreender a dinâmica desses agrupamentos juvenis foi a motivação
inicial da pesquisa que originou este trabalho. Como terreno de observação,
tomei três cidades da periferia do Distrito Federal, onde moram jovens de
camadas populares. Vale dizer que ser jovem na periferia do Distrito Federal é
uma condição particular, mas não homogênea. No cotidiano das cidades dos
arredores do Plano Piloto de Brasília existem várias juventudes vivendo essa
experiência etária que se relaciona com diferentes formas de sociabilidade.
Neste trabalho, tomei como norte de investigação um tipo de sociabilidade
juvenil que se dá no contexto da cultura de rua e que se desenvolve no quadro
de grupos genericamente denominados “gangues”, cujo uso da violência e de
outras práticas ilícitas constituem características essenciais. Centrei meu
10
interesse nos modos de interação, práticas e valores desses jovens, suas
relações com o mundo, suas representações de si e do outro, instigada pela
seguinte questão: que lugar a violência ocupa como campo propulsor de
experiências nas suas vidas? Mas, longe de tentar encontrar as causas da
violência praticada por e entre esses jovens, procurei delinear conteúdos
culturais que estão na base do exercício dessa violência e situá-la dentro do
seu sistema de relações sociais, buscando a compreensão dos significados
que os próprios jovens dão às suas práticas e crenças.
Note-se que a violência é um fenômeno corriqueiro no cotidiano da
população residente nas áreas urbanas pobres do Distrito Federal. Grande
parte dos jovens desses locais já vivenciou situações ligadas a homicídios,
assaltos, roubos, furtos, estupros, agressões físicas. Nos últimos anos, têm se
registrado taxas elevadas e ascendentes de homicídios entre os jovens, a
maioria do sexo masculino
1
. A amplitude dos problemas de violência e
criminalidade relacionados à juventude do Distrito Federal, o crescente
encaminhamento de jovens para instituições correcionais chamam a atenção,
assim como também o chama os agrupamentos do tipo gangue, que envolvem
às vezes dezenas de jovens cúmplices em atos ilícitos dos mais variados tipo.
Verifica-se que o Distrito Federal não está na contramão do Brasil: hoje
no país, as altas taxas de mortes violentas atingem principalmente jovens em
idade produtiva, sendo que a primeira causa de mortalidade entre os que estão
na faixa de 15 a 24 anos é o homicídio. Segundo a Polícia Militar, o número de
jovens que morrem assassinados – a maioria por outros jovens da mesma
idade – é quase sete vezes maior do que o número de vítimas na população
total do país
2
. A violência praticada contra, por e entre jovens traz a juventude
1
Dados fornecidos pela Promotoria de Justiça e Defesa da Infância e da Juventude revelam
que entre 2003 e 2006 foram registrados 1.657 homicídios, 6.608 roubos e 2.040 portes ilegais
de armas envolvendo crianças e adolescentes.
2
A situação no Brasil agravou-se da década de 80 em diante. No início de 2002, o cientista
político e antropólogo, Luiz Eduardo Soares, ex-coordenador de segurança do estado do Rio
de Janeiro, declarou que “a sociedade brasileira já apresenta um déficit de jovens do sexo
masculino comparável ao que se verifica em países que estão em guerra. Nessa dinâmica
fratricida, jovens pobres das periferias e favelas matam jovens pobres das periferias e favelas.
A fonte gravitacional que os recruta para o varejo do tráfico de drogas lança-os em direção a
outras práticas marginais, cujos desfechos são crimes contra o patrimônio e contra a vida – uns
e outros tendendo a confundir-se, em razão da intensidade crescente da violência, derivada
sobretudo da disponibilidade de armas” (Revista ISTOÉ, 9/01/2002).
11
para o centro dos debates: por que eles passaram a formar galeras ou gangues
para brigar entre si? Por que a criminalidade juvenil aumenta
espetacularmente? As respostas a estas questões vêm tomando várias
direções, passando pela problematização de temas como pobreza, exclusão
social, revolta de classe, ethos adolescente, cultura viril, hedonismo,
banalização do mal, mudanças nas formas de organização familiar, crime
organizado, mecanismos e dinâmicas do atual mundo globalizado e de
consumo, entre outros.
O fato é que a adesão de muitos dos nossos jovens aos “valores da
violência” (Zaluar, 2004a) não tem explicação unívoca. Pertence a uma cadeia
de causas e efeitos que se entrecruzam, mas que parece não estar claramente
delineada, apesar dos muitos esforços nesse sentido e de a desagregação
provocada pela violência ser considerada preocupante no cenário nacional,
trazendo sofrimento a toda a população, notadamente a dos grandes centros
urbanos do país. Frise-se que os próprios jovens têm a violência e a
criminalidade como suas principais preocupações, sentindo-se por elas
constantemente ameaçados, independente da classe social a qual pertencem.
Pesquisas realizadas com jovens de 15 a 24 anos, de sexo masculino e
feminino, de diferentes estratos econômicos e em diversas Regiões
Metropolitanas (Belém, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro,
Salvador e São Paulo) e no Distrito Federal constatam que hoje no Brasil,
[...] o tempo juvenil, antes de se constituir um período livre de
preocupações de ordem prática, encontra-se profundamente
comprometido com questões relativas à própria preservação da vida
(Silva, Souto & Soares, 2005:19).
Neste estudo, ao relacionar juventude e violência tomando como cenário
um ambiente no qual predomina a pobreza – a periferia de Brasília –, não
pretendo alimentar um imaginário social, particularmente os das classes
médias e altas, que interliga causalmente a pobreza a um maior potencial para
condutas anômicas, especialmente para a criminalidade, correlação que as
ciências sociais já há algum tempo contestam ferozmente
3
. Mas, ao mesmo
3
Michel Misse (2006) tece um panorama das relações entre crime e pobreza no imaginário
social e na literatura sociológica brasileira. Segundo o autor, na nossa literatura dos anos 1980,
a esmagadora maioria dos trabalhos produzidos sobre a questão da violência urbana e da
12
tempo, não deixo de concordar com Michel Misse (2006a) quando afirma que o
discurso sociológico, ainda que contribua para nos desviar de alguns
preconceitos, tem sido incapaz de diluir o “fantasma” que essa correlação
reproduz no cotidiano dos moradores das grandes cidades brasileiras. Além
disso, haveria nesse discurso certa visão paternalista em relação aos pobres,
que se traduz numa profunda miopia quanto ao que o autor chama de
“criminalidade pobre”, que seria
[...] também aquela a que se aplica a maior reação moral e social, a
maior visibilidade, o maior interesse da mídia e dos políticos, por ser em
geral uma criminalidade que se desenvolve por meios violentos (Misse,
op. cit.: 21)
4
.
Também não perco de vista que a eleição de um tema de pesquisa que
vincula juventude e violência pode ser interpretada como mais uma
colaboração das ciências sociais no sentido de situar a juventude sob o prisma
do negativismo e de dar continuidade a uma perspectiva, estabelecida pela
sociologia funcionalista norte-americana nos anos 1920-30, que a associa a
comportamentos disfuncionais. Contudo, não creio que seja prudente as
ciências sociais colocarem de lado o entendimento de questões relevantes
criminalidade, mesmo quando não diretamente interessados no problema, criticam duramente
a associação entre pobreza e criminalidade. Haveria três tipos principais de crítica: o primeiro,
que Misse chama de “brechtiano”, ou “estrutural”, posiciona a pobreza como uma mediação
entre causas da pobreza e o crime: “uma associação que perde, de per si, qualquer poder
explicativo, pois a associação passa a ser entre ‘as margens do rio que aprisionam suas águas’
(a estrutura social que produz a exploração, a pobreza e a revolta) e suas ‘águas revoltas’
(entre as quais o crime)” (Misse, op. cit.: 10); o segundo, que ele chama de relativista, tenta
mostrar que a criminalidade se espalha de igual maneira por todas as classes sociais, sendo
apenas mais perseguida nas classes subalternas que nas dominantes e, ainda, que os pobres
se distinguem a si mesmos dos vagabundos e bandidos; o terceiro, de base estatística, procura
demonstrar o caráter espúrio da correlação por meio do cruzamento de dados e a crítica de
como foram produzidos. Embora concorde com os três tipos de críticas, tendo-as defendidos
em diferentes ocasiões, Misse acredita que as mesmas não esgotam o assunto, ao contrário,
levantam novos problemas que são por ele tratados de maneira bastante pertinente no
decorrer de seu trabalho.
4
O autor também sustenta que o fato de as penitenciárias e cadeias do Brasil possuírem uma
população carcerária quase totalmente constituída de pobres não significa que a maioria dos
criminosos do país seja de pobres e que a pobreza seja a principal causa da criminalidade em
geral. Contudo, também não significa que a privação relativa não seja uma causa importante
da criminalidade, que a relação pobreza-crime seja apenas um estereótipo social e que a
reprodução desse estereótipo seja a principal causa da associação pobreza-crime. Pode
significar, entre outras coisas, “que os agentes ‘pobres’ (ou com poucos recursos alternativos)
que operam diretamente a ação criminal, por limitação social na escala de seleção de meios e
de preferências criminais, mas também por outras razões, tendem a estar mais sujeitos ao
emprego da violência como meio criminal” (Misse, op. cit: 23).
13
para a sociedade, como a violência, delinqüência e criminalidade juvenis, e
encapsulá-las num eixo disciplinar rígido e datado. Penso que, se o léxico de
temas associados à juventude ganhou amplitude, essas questões, como
também as de rebeldia e revolta – ou seja, os clássicos problemas que lhes
deu visibilidade ao longo de quase todo o século XX (Abramo, 1994) – não
deixam de continuar sendo fundamentais na construção da problematização da
“juventude”. O desafio é, por exemplo, no caso da delinqüência e violência
juvenis, tentar compreendê-las ultrapassando modelos interpretativos que
partem do pressuposto de que os jovens são responsáveis por boa parte das
mazelas sociais e desordem urbana e, a partir daí, propor medidas de
regulação social, de disciplinarização, controle e correção de seus vícios, como
foi o caso dos funcionalistas da escola de Chicago. Não se trata, portanto, de
ficar cego diante de um tema de grande importância no nosso país de hoje,
mas sim o de tentar explorá-lo buscando novos ângulos, situá-lo frente às
novas vivências e dinâmicas sociais. Velhos temas podem e devem ser
revisitados para um melhor entendimento dos dilemas da condição juvenil
atual.
No Brasil, em pouco mais de duas décadas, a variedade de estudos e de
pesquisas consagrados à juventude efetivamente se ampliou, produzindo um
alargamento dos limites conceituais dessa categoria. Após vários anos de
relativa ausência do tema nos trabalhos acadêmicos, passamos a assistir à
divulgação de uma massa de escritos e pesquisas consagrados às mais
variadas dimensões da vivência juvenil. Ora, se até os anos 80 o interesse
acadêmico esteve orientado, com raras exceções, pela visão do jovem como
ator político
5
, concentrando-se num segmento restrito – a classe média urbana
e universitária –, a retomada do tema “juventude” pauta-se pela preocupação
5
A reflexão sociológica sobre juventude no Brasil tem nos anos 1960 um marco fundamental
que permaneceu por muito tempo como referência de análise. As manifestações juvenis são
vistas como questionadoras da ordem social, revolucionárias de usos e costumes, e
estruturadoras de utopias sociais e políticas. A geração dessa década tipificou a “juventude
engajada”, sendo o movimento estudantil, visto como expressão de uma certa politização que
apontava ideais de construção de uma nova sociedade, uma de suas formas mais
características. O estudo de Octavio Ianni (1968) e as pesquisas de Marialice Foracchi (1972)
são pioneiros nessa linha investigativa. Cabe salientar essa visão sobre a juventude, sendo
tomada como paradigma para muitas reflexões posteriores, levou a uma desqualificação dos
movimentos culturais juvenis surgidos nos anos subseqüentes, que são vistos como expressão
de alienação.
14
em situá-la frente a outras dimensões da vida em sociedade, como o lazer,
estilos e movimentos culturais, trabalho, escola, família, religião, padrões de
consumo, sexualidade, entre outras. A diversidade que caracteriza a juventude
ganha, então, nesse contexto, relevância no pensamento social.
Atualmente a expressão “juventudes” – no plural – passou a ser
empregada com bastante freqüência como forma de enfatizar que, se tratando
de jovens, é preciso ter em mente que esses constituem realidade plural e
multifacetada (Rezende, 1989; Novaes, 1998; Carrano, 2000; Abramo, 2005).
Ou seja, é necessário não perder de vista o fato de não existir um modo único
de vivência do tempo de juventude. Na verdade, há diferentes maneiras de ser
jovem na heterogeneidade econômica, social e cultural contemporânea, onde
transitam identidades em fluxo, bem como possibilidades e códigos culturais
múltiplos e diferenciados (Margulis, 2001; Groppo, 2000). Desse modo, a
noção de “juventudes” remete a um complexo processo sócio-cultural e
econômico que se expressa simultaneamente em diversidades e
desigualdades objetivas e subjetivas. Toda e qualquer inferência possível
acerca da “juventude” – no singular – ganha plausibilidade somente se
matizada pela transversalidade que caracteriza a diversidade das experiências
juvenis.
A tendência a colocar em relevo a pluralidade e especificidade das
experiências juvenis – fato amplamente aceito e incorporado pelos estudiosos
do tema – contrasta-se com uma outra que também se configura como um dos
principais eixos analíticos pelo qual se desenvolveu a chamada sociologia da
juventude, qual seja, aquela que se inclina para uma idéia genérica de
juventude, procurando definir e entender os elementos cristalizados que
estabelecem seus traços comuns. Como observam Cardoso e Sampaio (1995)
ao levantarem a Bibliografia sobre Juventude, na ampla gama de estudos
realizados, distintos em temáticas e tipos de abordagem, é possível identificar
genericamente duas grandes tendências que se opõem e que, ao mesmo
tempo, se superpõem ou se alternam de tempos em tempos: de um lado, uma
tendência teórica que, associando os jovens a contextos de grandes
transformações, entende a juventude como uma identidade homogênea,
15
genérica. A ênfase da maioria dos primeiros estudos que trabalharam com a
idéia genérica de juventude recaia sobre a dinâmica geracional, nela vendo um
elemento quase natural
6
; de outro lado, uma tendência, inicialmente vinculada
aos estudos da Escola de Chicago, que coloca em relevo a heterogeneidade
das experiências juvenis. A noção de subculturas juvenis se destaca nesse
segundo modo de abordar e conceituar a identidade juvenil. As abordagens
mais recentes vêm procurando articular esses dois enfoques, orientando-se em
torno do reconhecimento da juventude no “plural”, isto é, esquadrinhando a sua
diversidade interna, mas sem abrir mão do reconhecimento de uma experiência
geracional que permeia o campo, imprimindo-lhe uma tonalidade própria
(Tavares & Camurça, 2005).
O contexto brasileiro expressa, portanto, a possibilidade de múltiplas
vivências juvenis no mundo contemporâneo e sua correlação com experiências
localizadas em sistemas de valores específicos. Ao lado das inúmeras formas
de associação juvenil e do crime organizado que arregimenta “batalhões de
jovens” nos grandes centros urbanos, emerge um elemento novo na cultura de
rua a partir do surgimento do fenômeno das “galeras”: turmas de jovens com
estrutura relativamente territorializada reunidas em torno de interesses
geralmente alheios à violência, mas que, além de não estarem livres de praticar
atividades ilícitas e atos violentos, costumam manter rivalidades com outros
grupos para marcarem a posse de seu “pedaço” (Magnani, 1998), produzindo
embates que podem terminar na tragédia de agressões extremamente graves e
homicídios.
Essas turmas registram sua presença nos distintos cenários urbanos
nacionais e são tomadas, pela mídia e pelo imaginário social por ela
profundamente influenciado, como um dos principais agentes da violência,
6
Trata-se de estudos vinculados aos períodos marcados por acontecimentos de ampla
repercussão, como, por exemplo, a ascensão do nazismo nos anos 1930, a consolidação dos
regimes socialistas nos países do Leste europeu e a difusão e fortalecimento dos movimentos
de esquerda na década de 1950. Tais fenômenos trazem para o debate o caráter
intrinsecamente inquieto e inconformista das novas gerações e a defesa de uma sociologia da
juventude como uma área fecunda para a compreensão das profundas mudanças sociais e
políticas que estavam ocorrendo na primeira metade do século XX. Em estudos posteriores,
que também consideram o problema sociológico das gerações, a noção de geração se
modifica, passando a ser vista como uma construção histórica e cultural. Ver, por exemplo, os
estudos de Karl Mannheim (1968; 1978, 1982).
16
desordem e caos. De fato, o cotidiano das crônicas jornalísticas alimenta o
medo desses grupos, focalizando insistentemente a violência e condutas de
risco de seus integrantes e aproximando-as, não sem sensacionalismo, ao
modelo de gangue existente nas cidades estadunidenses: Brigas entre
gangues rivais mata mais um jovem na Ceilândia; Gangues de adolescentes
provocam tumultuo em boate da zona sul do Rio; Gangues criam baderna e
assustam curitibanos; Gangues de menores barbarizam e são uma ameaça
crescente em Fortaleza. Tanto barulho em torno das chamadas “gangues”,
tornou-as questão de segurança pública nacional
7
e vem motivando a
realização de diferentes estudos em várias cidades.
Assinalo que “gangues” e “galeras” passaram a fazer parte do
vocabulário corrente para definir um tipo inédito de experiência juvenil no Brasil
e, particularmente, no Distrito Federal, onde centrei minhas observações de
campo. Essas mesmas expressões comparecem também – e há muito mais
tempo – nos contextos estadunidense (gangs) e francês (galère) associadas do
mesmo modo a uma forma específica de presença juvenil no espaço público
urbano. Contudo, se, a princípio, o significado das gangues e galeras no
contexto urbano do Distrito Federal e de muitas cidades brasileiras parece
designar um fenômeno social assemelhado ao verificado nos Estados Unidos e
na França, podemos assinalar inúmeros pontos de descontinuidade entre a
vivência concreta desses grupos.
Verdadeiras ou falsas gangues? Mito folclórico americano transplantado
para o cenário urbano brasileiro e, particularmente, para o Distrito Federal? De
fato, alguns grupos de jovens de Brasília incorporam a estética, adotam rituais,
denominações, estrutura e equipamentos simbólicos que muito se assemelham
aos das gangues norte-americanas, mas quando buscamos compreendê-los a
partir de seus próprios referentes culturais, a primeira constatação é a de que
esse mimetismo está repleto de recriações locais e interpretações inéditas do
7
Em julho de 2000, o governo brasileiro anunciou uma nova versão do Plano Nacional de
Segurança Pública, traduzido num conjunto de 124 medidas estratégicas visando a conter o
avanço da criminalidade no país. Em meio a itens como a ampliação do número de vagas em
penitenciárias, o aumento e treinamento do quadro policial, melhoria das condições de tráfego
e das condições de uso noturno dos espaços públicos em periferias e favelas, comparece
como medida o “combate às gangues juvenis” (Presidência da República, 2000).
17
modelo de origem. O que não causa espanto, pois os processos culturais estão
repletos de casos de mimetismo, imitação e colagem, também chamados de
difusão cultural, que nunca, entretanto, alcançam a reprodução exata da versão
original (Zaluar, 1997; Ortiz, 1994). Observa-se ainda que, num mundo a cada
dia menor e mais denso, em pleno processo de compressão do tempo e do
espaço, objetos e símbolos são compartilhados em larga escala, indo além das
fronteiras nacionais. Nesse movimento de “encolhimento do mundo”,
referências culturais locais passam a ser reconhecidas mundialmente,
integrando uma cultura global desvinculada de uma territoriedade específica.
As gangues dos Estados Unidos, que ganharam interpretações locais
pelo mundo afora, possuem décadas de história e desempenham um papel de
grande importância na organização da vida coletiva das cidades. Configuram-
se como um elemento característico à divisão do espaço urbano naquele país,
sendo que historicamente essa divisão suscita conflitos violentos de caráter
notadamente étnico. Como lembra Zaluar (1997), nos Estados Unidos sempre
houve uma confusão entre “etnia e bairro”, “raça e bairro”, que faz parte da
forma peculiar de segregação étnica, ainda hoje muito marcante, das cidades
estadunidenses. Já no Brasil, o modo de divisão das cidades e os conflitos dela
derivados assumem outra configuração histórica, expressando-se, por
exemplo, por meio de grupos e associações que, apesar da rivalidade, às
vezes traduzida em embates violentos, produzem modos de sociabilidade
impregnados de “antídotos da violência”
8
.
Além de portadoras de uma longa história, as gangues nos Estados
Unidos protagonizam uma vasta e variada literatura da qual fazem parte não
8
Segundo Zaluar (1997), enquanto nos Estados Unidos as gangues juvenis surgiram como
uma das formas de organização dos bairros pobres, representando-os e expressando a
rivalidade entre os mesmos, no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro e ulteriormente em
outras cidades, observa-se o surgimento nas favelas e bairros populares das escolas de
samba, dos blocos carnavalescos e dos times de futebol para representá-los e exprimir os
conflitos, rixas e competição entre eles. Essas rivalidades, nem sempre isentas de conflitos
violentos, eram claramente manifestas na apoteose dos desfiles e concursos carnavalescos,
nas competições esportivas, “atestando a importância da festa como forma de conflito e
sociabilidade que prega a união, a comensalidade, a mistura, o festejar como antídotos da
violência sempre presente, mas contida ou transcendida pela festa”. Zaluar ainda chama a
atenção para o fato de hoje, no Brasil, se assistir ao esfacelamento dessas formas tradicionais
de organizações vicinais por estarmos diante de “um novo tipo de guerra em que já pereceram,
somente no Rio de Janeiro durante a década de 80, mais jovens homens do que os
americanos mortos na Guerra do Vietnã” (Zaluar, op. cit.: 21-22)
18
somente trabalhos acadêmicos, como também matérias jornalísticas, obras
literárias, cinematográficas, relatórios governamentais, manuais práticos, guias
educativos e um conjunto de relatos autobiográficos
9
. O tema começa a
adquirir destaque nas ciências sociais nos anos 1920, no âmbito da renovação
dos estudos urbanos realizados pela Escola de Chicago.
A chamada primeira Escola de Chicago, inquieta com a “crise” e a
“desorganização social”
10
produzida pelo crescimento urbano acelerado e pela
falta de integração no espaço social e cultural urbano dos migrantes e
imigrantes que passam a ocupar as zonas pobres e decadentes daquela
cidade, consagrou às gangues muitos dos seus estudos clássicos
11
. A
segregação espacial, social e cultural, a crise motivada pelo enfraquecimento
dos valores, da moral e dos costumes tradicionais da população pobre
imigrada, enfim, o gradual declínio das formas tradicionais de regular normas e
comportamentos, seriam responsáveis pela formação e multiplicação de
gangues, que surgem como uma resposta dos jovens provenientes de meios
desfavorecidos e de famílias com dificuldades de integração à sociedade ampla
à essa desorganização ambiente. Além disso, as gangues expressariam a
busca de uma identidade social, sendo que suas formas de funcionamento, de
pertencimento e posicionamento dos jovens a elas, bem como os jogos de
rivalidade, constituir-se-iam em vetores de uma identidade de substituição,
criadora de uma cultura que poderia favorecer a delinqüência (Lagrée, 1996).
A Escola de Chicago fornece os primeiros postulados de uma “sociologia
da delinqüência juvenil”, referindo-se a problemas de integração social de
microcomunidades, distanciadas das normas dominantes na sociedade. Após
os anos 1930 e afastando-se do modelo da “desorganização social”,
9
Wacquant (1994) tece uma crítica a esse conjunto de escritos, assinalando que, em sua
maioria, os mesmos contribuem bem mais para a (re)produção de um mito nacional do que
para o seu desaparecimento, além de figurarem como um obstáculo epistemológico à “ciência
das gangues” na medida em que pouco contribuem ao conhecimento empírico de suas formas
e funcionamentos. Além disso, parte dessa literatura revela bastante sobre o medo e o pânico
que as gangues inspiram às classes médias e superiores da sociedade americana, que vivem
a angústia de ver as gangues invadirem o espaço reservado dos subúrbios abastados.
10
As idéias de “crise” e de “desorganização social” foram bastante criticadas pelo evidente
compromisso com o arcabouço teórico funcionalista e, conseqüentemente com uma noção
consensual de ordem e uma forma homogênea de organização.
11
Dentre os clássicos que se enquadram na primeira teoria da Escola de Chicago, podemos
citar o célebre estudo de Thrasher “The Gang”, publicado pela primeira vez em 1927.
19
numerosos trabalhos tratando do tema continuam a surgir em todos os
períodos da sociologia americana, dando margem à confrontação de
tendências e perspectivas teóricas. O lugar privilegiado do objeto “gangue” no
desenvolvimento da sociologia da delinqüência juvenil aparece claramente nos
modelos culturalista, funcionalista e interacionista
12
. Zaluar (1997) salienta que
todas essas perspectivas teóricas foram, em maior ou menor grau, criticadas
pelo seu compromisso com o positivismo “que transformava as pessoas em
objeto, e seu comportamento, em fatalidade ou determinação”, dificultando o
entendimento delas “enquanto sujeitos que participam de forma ativa nas suas
escolhas e ações, apesar das constrições e pressões de forças de várias
ordens” (Zaluar, op. cit: 20).
Atualmente nos Estados Unidos a problemática da gangue congrega
várias linhas de pesquisa, além de movimentos de opinião, impondo-se como
um objeto incontornável para quem almeja compreender as transformações
contemporâneas da sociedade e da cultura urbanas americanas. Para alguns
pesquisadores, as gangues constituem a “vanguarda” dessa categoria de
população de excluídos reunida sob a denominação estigmatizadora de
underclass. Há ainda os que focalizam principalmente a questão da formação
de uma identidade masculina dominante, fortemente delineada por forças
ecológicas locais, tais como a segregação, a imigração e a exclusão da escola
e do mercado de trabalho. As gangues constituem também objeto de interesse
primordial na análise da nova criminalidade subproletária e da violência de rua,
responsável pelas altas taxas de mortalidade e pelo enorme número de
encarceramento de jovens de origem afro-americana e hispânica
13
.
Soma-se a essas linhas de pesquisas, uma outra encabeçada pelo
antropólogo Sánchez-Jankowiski, que tem dado suporte analítico às
12
Na Escola de Chicago surgem outras obras, posteriores ao trabalho de Thrasher, que
constituem referências obrigatórias nos estudos sobre delinqüência juvenil: “Juvenile
Delinquency in Urban Areas”, de Clifford Shaw & Henry McKay (1942); “Street Corner Society”,
de William Foote Whyte (1943). Como exemplo de autores e obras paradigmáticos da
sociologia da delinqüência juvenil podemos citar Albert Cohen (1955), representando a vertente
culturalista, com “Delinquent Boys: The Culture of the Gang”;Richard A. Cloward & Lloyd B.
Ohlin (1960), representando os funcionalistas, com “Delinquency and Opportunity: A Theory of
Delinquent Gangs”; David Matza (1964), representando os interacionistas, com “Delinquent and
Drif”.
13
Wacquant (1994) faz um breve painel dessas linhas de pesquisa, situando-nos em relação
às principais publicações a partir dos anos 80.
20
investigações sobre juventude e crime no Brasil. Autor de um dos estudos
contemporâneos mais originais e inovadores consagrados às gangues norte
americanas
14
, Sánchez-Jankowiski (1991) defende a idéia de que, em se
tratando da principal engrenagem na enorme máquina do comércio das drogas,
as gangues merecem ser pensadas na qualidade de “empreendimento
informal”, característico aos bairros pobres e segregados das cidades
americanas. De acordo com o antropólogo, agrupamentos juvenis pouco
estruturados, por praticarem atos ilícitos e terem comportamentos
territorialistas, têm sido rotulados como “gangues” em razão do preconceito
social e também porque existe uma enorme deficiência conceitual entre os
pesquisadores do tema. Ao redimensionar o lugar que os atos ilegais ocupam
neste tipo de organização social, Sánchez-Jankowiski chama a atenção para a
racionalidade instrumental própria das gangues, que implica em inúmeras
estratégias que objetivam a acumulação de recursos, independentemente da
legalidade ou ilegalidade das atividades associadas a essas estratégias. Na
sua visão, as gangues são “organizações” que conduzem “negócios com
características empresariais”. Melhor dizendo, são empresas que administram
seus negócios com competência e exatamente por isso precisam ser bastante
organizadas e sólidas, pois quanto mais o forem, melhor sucedido será o
negócio.
Na França, outro contexto que vem sido usado como referência nas
análises realizadas no Brasil sobre violência e juventude, o fenômeno dos
“bandos” (bandes) de jovens não é novo e a literatura sociológica costuma
remontar sua história desde o início do século XX. “Apaches” na Belle Époque,
“blousons noirs” nos anos 1960, passando pelos “loubards”, “skinheads” e
chegando aos “cailleras” e “zoulous” dos anos 1980, cada época tem seus
bandos que refletem os estilos e as mentalidades do tempo. Alguns autores
assinalam períodos históricos em que os bandos desapareceram, mas
atualmente há uma tendência a reconhecer o retorno do fenômeno. Embora
14
O estudo de Martin Sanchez-Jankowski consagrado às gangues urbanas nos Estados
Unidos destaca-se das massas dos escritos e rompe com a literatura anterior. Um dos
aspectos que chama a atenção no plano teórico é o fato do autor retirar a gangue do
paradigma da criminologia e do desvio, colocando-a na esfera da sociologia das organizações
e dos modos de estruturação dos meios proletários.
21
não se saiba muito sobre sua amplitude e sobre sua realidade concreta,
tornam-se cada vez mais visíveis agrupamentos juvenis que se associam tendo
como fonte de inspiração os modelos cinematográficos e midiáticos das
gangues americanas. Mas, a rigor, estudiosos tendem a afirmar que não se
tratam de gangs ( Mauger, 1993; Esterle-Hedibel, 1997).
Ao lado de inúmeros trabalhos que tentam compreender a multiplicidade
de formas da juventude francesa marcar sua presença no espaço público,
principalmente urbano, há hoje um grande interesse de pesquisadores por um
modo particular de sociabilidade juvenil e uma maneira de viver a juventude no
meio popular na França contemporânea. Trata-se da experiência da galère,
noção introduzida por Dubet (1987) e que colabora na compreensão dos
modos de interação, práticas e valores dos jovens dos meios populares
daquele país.
A galère, segundo Dubet, corresponde a um tipo de vivência juvenil que
emergiu em um contexto não mais estruturado em torno do mundo operário e
do trabalho, que organizavam a vida social das classes trabalhadoras e seus
bairros de residência, onde predominavam mecanismos de integração,
sentimentos de pertencimento e acordos normativos comunitários. Em razão
das transformações no mundo do trabalho e enfraquecimento do movimento
operário e de uma consciência de classe, esses mecanismos, sentimentos e
acordos foram paulatinamente desarticulados. Esses bairros, antes “bairros
operários”, passaram a condição de “periferias de pobres” relegadas e
estigmatizadas, ocupadas por uma população heterogênea, desempregada ou
subempregada, diferenciada social e culturalmente, marcada por conflitos e
tensões decorrentes da imigração e pela realidade da exclusão. São tais
condições que formam as bases estruturadoras da galère.
A galère para Dubet é, antes de tudo, uma “experiência de vida”. Trata-se
de um modo de deixar a existência “à deriva”, de sociabilidade solta, plena de
niilismo, autodestrutividade e raiva (rage), sociabilidade esta marcada por
atividades criminais intermitentes, transitórias e de pequena gravidade –
“pequenas incivilidades”, nos temos de Dubet –, por uma marginalidade difusa
e violência sem objeto. Galérer é largar-se ao à-toa a espera do tempo passar,
22
não apenas porque não se tem uma ocupação, um trabalho, mas também
porque não há motivação para encontrar um; é ficar circulando, para matar o
tempo, entre pontos onde se concentram jovens – bares, clubes e esquinas –,
na espera que algo aconteça; é praticar pequenos delitos, como jogar pedras
em vitrines, roubar e furtar os “ricos” na cidade, vender quantidades pequenas
de drogas; é às vezes brigar, ferir ou matar em conflitos normalmente
individualizados, pois os jovens não travam batalhas entre si, embora tenham
uma vaga ligação com os bairros onde moram. A delinqüência da galère é
associada ao seu modo de vida, não sendo organizada e nem profissional. Os
jovens são mobilizados para praticarem atividades ilícitas e ilegais ou se
deixarem conduzir pelo excesso, pelo vazio e pela raiva decorrentes da
privação de consciência de classe, da diluição dos laços sociais nos bairros
operários e da própria ausência de conflito social. Os que galérent não se
agrupam em redes estáveis que propiciam a formação de uma identidade
comum. De modo distinto, não existe qualquer forma relativamente organizada
de pertencimento a um grupo e uma identidade que não seja essa diluída e
incerta de ser da galère e não de uma determinada galère. Dubet acredita que
a galère impede a formação de bandos (bandes) e gangs, ou seja, de grupos
estáveis, exatamente pela sua heterogeneidade e ausência de regulação e
controle também nas relações dos jovens entre si.
Do diálogo de Dubet com modelos clássicos para buscar o entendimento
da experiência da galère, resta-lhe a certeza de que sua leitura sociológica não
pode resultar de uma colagem dessas teorias na medida em que a experiência
da galère as ultrapassa. Segundo o autor, é precisamente a “raiva”, resultante
da privação de consciência de classe, e seus efeitos sobre todas as outras
dimensões da experiência, o elemento chave desestabilizador “que impede
reduzir a galère a um problema de integração e a um excesso de frustação, e
que impulsiona os atores para além das etiquetas que lhes são atribuídas”
(Dubet, op. cit: 152).
Nem gangs estadunidenses, nem galères francesas. No Brasil, o que tem
sido chamado de gangue está longe da realidade de uma gang americana,
23
apesar de alguns elementos morfológicos darem margem a tal aproximação
15
.
As gangues que marcam sua presença o nosso cenário urbano, ao contrário
das gangs estadunidenses, não conduzem negócios com características
empresariais. Geralmente têm, como as gangs, uma demarcação territorial,
liderança definida, interação recorrente e engajamento em comportamento
violento como práticas fundamentais de estruturação distintiva, mas não
objetivam exatamente assegurarem aos seus integrantes um meio de vida
permanente, com possibilidade de mobilidade social pelos ganhos advindos de
práticas delinqüentes e ilícitas. Tanto que os jovens integrantes das nossas
chamadas gangues – como o presente estudo de caso sobre o Distrito Federal
pretende mostrar –, se têm comportamentos transgressores e engajam-se em
atividades ilegais, o fazem de forma passageira e não acumulam recursos,
costumando abandonar essas práticas na idade adulta.
O significado imputado por Dubet à dimensão de “classe” e de “revolta” –
mas sem consciência de classe – é uma das características que tem levado
antropólogos e sociólogos a aproximar o caso da galère francesa do das
galeras em diferentes partes do Brasil, muito mais do que as suas
semelhanças morfológicas (Misse, 2006b). Isto porque a noção de classe
social que Dubet traz de volta ao debate para examinar o comportamento
juvenil remete a uma série de questões afeitas ao universo dos jovens pobres
moradores das áreas rotuladas como críticas, inseguras e perigosas. No caso
dos jovens do Distrito Federal, suas turmas, ora denominadas gangues ou
galeras – é cada vez mais difícil diferenciá-las –, possuem estrutura
relativamente territorializada, criam códigos e linguagens particulares, brigam
entre si, muitas vezes com graves ferimentos e mortes, e seus integrantes
podem participar do pequeno tráfico de drogas, de assaltos e roubos. Embora
se distanciem do modelo difuso de sociabilidade da galére descrito por Dubet,
há na “experiência de vida” desses jovens algo que os aproxima: a
15
Os critérios gerais tradicionalmente definidores de uma gangue em pesquisas americanas
são: estrutura formal de organização, hierarquia, liderança definida, identificação com um
território, interação recorrente, longevidade e engajamento em comportamento violento. Nota-
se que cada estado e jurisdição local nos EUA tende a adotar sua própria definição de gangue,
não existindo uma definição standard.
24
desmotivação com a escola, a perda de sentido do trabalho, o sentimento de
serem estigmatizados por serem pobres e viverem em locais relegados, uma
certa revolta diante das desigualdades sociais e a transformação do ócio – a
“falta do que fazer”, retomando os seus próprios termos – em uma violência
tornada corriqueira e banal. Como os atores que personificam a experiência da
galère, os jovens objeto deste estudo, procuram, por meio de atividades ilícitas
e ilegais, se inserir na cultura de massa e do consumo e participarem do
mundo dos outros (material e simbólico), “quaisquer que sejam as definições
que tenham desses Outros” (Misse, 2006b). Contudo, seria um erro aproximar
demais as galeras de Brasília das galères francesas e desconsiderar as
descontinuidades entre essas experiências. Até porque, como mencionado,
nas galères da periferia das cidades francesas não há qualquer articulação de
grupo – líderes, regras de comportamento, rituais iniciáticos – ou uma revolta
focalizada contra um inimigo claro, mas sim uma sociabilidade absolutamente
solta.
Encontrei em Brasília “gangues” e “galeras”, com feições próprias. Jovens
entre 15 e 24 anos, a maioria nascida no Distrito Federal, vivendo dilemas
específicos do início deste milênio, estruturando-se em grupos praticantes de
transgressões e delitos, interiorizando os valores da virilidade, o que os levam
a responder desafios sempre através da agressão física, e protagonizando, ao
lado de outros jovens de nossas grandes cidades, a violência urbana do país.
Cabe assinalar que violência foi uma categoria que, discutida com os
jovens, se mostrou capaz de fazer emergir um conjunto de idéias, anseios e
inquietações e que permitiu reunir componentes importantes da sua realidade,
tais como a sua consciência de classe, a sua posição na sociedade, suas
interações sociais na rua, na escola e na família, seus confrontos com o
desafio do mercado de trabalho, suas experiências enquanto grupo etário,
entre outros. O conceito de violência serviu, portanto, como mote que
possibilitou a apreensão das maneiras como os jovens dão significado ao seu
cotidiano e das formas como o constroem. Desse modo, o leitor não encontrará
neste estudo o entendimento da relação entre juventude e violência a partir da
investigação da “violência como acontecimento, como observação direta de
25
uma prática concreta” (Diógenes, 1998) e, sim, representações que os jovens
têm do mundo que o cerca expressas e assinaladas tendo por referência este
tema. Dizendo de outro modo, a perspectiva adotada não estabelece como
eixo básico e limite da pesquisa a identificação do porquê a violência acontece,
mas focaliza uma “rede de significados culturais” (Geertz, 1973) produzida
pelos jovens da periferia quando elaboram suas percepções sobre a mesma.
1. Percursos da pesquisa
A pesquisa de campo foi realizada em três cidades periféricas do Distrito
Federal: Ceilândia, Samambaia e Planaltina. Seu início, em 1998, esteve
vinculada ao meu trabalho como pesquisadora da UNESCO, onde fui
introduzida ao tema “juventude”. Em se tratando, em principio, de uma proposta
de trabalho tipo “survey”, utilizando abordagens metodológicas
complementares – abordagem compreensiva e extensiva (amostragem de 900
questionários) –, o tempo desempenhava um papel fundamental
16
. Nos anos
seguintes, já desvinculada da instituição promotora da investigação, continuei
realizando visitas esporádicas a esses lugares e desenvolvi, de forma mais ou
menos sistemática, uma pesquisa complementar.
A eleição de Ceilândia, Samambaia e Planaltina foi feita a partir de um
levantamento das zonas do Distrito Federal nas quais o fenômeno das
“gangues” juvenis – agrupamentos que cada vez mais chamavam a atenção
por suas práticas transgressoras e violentas – ganhava maior expressão. Esse
mapeamento foi realizado a partir de pesquisas em arquivos de jornais,
registros e estatísticas policiais de ocorrências envolvendo jovens, conversas
com delegados e agentes da Polícia Civil.
16
Apresentei à UNESCO o relatório da pesquisa qualitativa, com sistematização e análise da
investigação de campo, em fevereiro de 1999. Coube à UNESCO fazer o cruzamento entre os
dados qualitativos e quantitativos. A pesquisa foi publicada ainda no ano de 1999, com o título
“Gangues, Galeras, Chegados e Rappers: juventude, violência e cidadania nas cidades da
periferia de Brasília”, sob a coordenação da socióloga Miriam Abramovay e participações do
também sociólogo Julio Waiselfisz e da cientista política Maria das Graças Rua. O trabalho que
ora proponho difere do relatório da UNESCO tanto no que diz respeito ao conteúdo e
profundidade da reflexão, quanto na forma de organização, muito embora a primeira
sistematização que fiz para a UNESCO dos dados por mim colhidos em campo me tenha sido
de grande utilidade.
26
Os jovens informantes pertencem à faixa etária entre 15 a 24 anos,
demarcação utilizada na maioria das análises demográficas que necessitam de
um parâmetro de definição da adolescência e juventude
17
. A utilização dessas
idades como referência certamente pode ser questionada, sobretudo quando
se considera juventude não apenas como uma categoria etária ou biológica.
Ainda que o elemento biológico participe de modo crucial nas nossas
percepções do que seja juventude, existe, retomando um tema de grandes
discussões travadas nas ciências sociais, uma clara demarcação entre o
processo biológico e o social
18
. Van Gennep (1977), no seu clássico Ritos de
Passagem, mostra que a existência de uma puberdade social não é
coincidente com a puberdade biológica
19
. Áries (1981) sublinha que as noções
e percepções da infância e da juventude são sócio-historicamente construídas,
isto é, variam no tempo, de uma cultura para outra e também até mesmo no
interior de uma mesma sociedade
20
.
Pierre Bourdieu (1981), abordando o problema da categorização etária,
coloca-o de outra maneira:
17
Observa-se que os limites de idade para se definirem adolescência e juventude são
extremamente variados, pois estão sujeitos a padrões sócio-culturais diferenciados e a
tratamento estatísticos diversos, conforme as instituições que refletem ou atuam junto a esse
segmento da população. A Organização Internacional da Juventude define esses parâmetros
entre 15 e 24 anos. A Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde -
OPS/OMS define diferenciadamente adolescência e juventude por suas especificidades
fisiológicas, psicológicas e sociológicas. Segundo a OPS/OMS, a adolescência constitui um
processo fundamentalmente biológico, durante o qual se aceleram o desenvolvimento cognitivo
e a estruturação da personalidade. Abrange as idades de 10 a 19 anos e é dividida em etapas
de pré-adolescência (de 10 a 14 anos) e adolescência propriamente dita (de 15 a 19 anos). Já
o conceito de juventude, por sua vez, resume uma categoria essencialmente social, que indica
o processo de preparação dos indivíduos para assumirem o papel de adulto na sociedade,
tanto no plano familiar quanto no profissional, abarcando a faixa etária dos 15 aos 24 anos.
18
Nas clássicas discussões levadas a cabo por sociólogos e antropólogos, fica demonstrada a
determinação sócio-cultural de comportamentos que antes eram atribuídos a uma natureza
biológica. Lévi-Strauss (1982), por sua vez, afirma que “a cultura não pode ser considerada
nem simplesmente justaposta nem simplesmente sobreposta à vida. Em certo sentido substitui-
se à vida, e em outro a utiliza e a transforma para realizar uma síntese de nova ordem” (Lévi-
Strauss, op. cit: 42).
19
Ver também os trabalhos de Mead (1968) e Galland (1991).
20
Existe uma massa de estudos etnográficos que demonstram as variações das categorias de
idade em sociedades não ocidentais, mas há também estudos realizados no interior do mundo
ocidental que demonstram estas variações, como o feito por Varagnac (1968) entre
camponeses franceses, meio aos quais o autor detectou um sistema de categorização de idade
dividido em oito etapas: primeira infância (fim do aleitamento); crianças; os jovens e as jovens;
os recém-casados; os pais e mães de família; os viúvos e as viúvas, os velhos e, finalmente, os
falecidos.
27
[...] as divisões entre idades são arbitrárias [e] a fronteira entre
juventude e velhice em todas as sociedades é objeto de luta [...].
Juventude e velhice não são dadas, mas são construídas socialmente,
numa luta entre jovens e velhos (Bourdieu, op. cit.: 144-45).
Ou seja, o significado de ser jovem é relacional a outras categorias de
idade. No entanto, dependendo do que se defina como sendo o jovem e a
juventude pode-se estabelecer o que seria próprio e “natural” a este grupo.
Ao analisar as discussões no âmbito das ciências sociais acerca da
noção de juventude, Luís Groppo (2000) conclui que, no aspecto da definição e
conceituação, há, por parte dos cientistas sociais, uma fraca colaboração: “as
definições de juventude passeiam por dois critérios principais, que nunca se
conciliam realmente: o critério etário (herdeiro das primeiras definições
fisiopsicológicas) e o critério sócio-cultural”
(Groppo, op. cit: 9). Groppo também
mostra que a sociologia e a antropologia, mesmo negando ou enfatizando a
relatividade do critério etário, acabam recriando o mito da juventude como
classe social definida por este critério. No entanto, explica o sociólogo, embora
realmente não exista uma “classe social” formada por todos os indivíduos de
uma mesma faixa etária,
a categoria social juventude – assim como outras baseadas nas faixas
etárias – tem uma importância crucial para o entendimento de diversas
características das sociedades modernas, o funcionamento delas e
suas transformações. Por exemplo, acompanhar as metamorfoses dos
significados e vivências sociais da juventude é um recurso iluminador
para o entendimento das metamorfoses da própria modernidade em
diversos aspectos, como a arte-cultura, o lazer, o mercado de consumo,
as relações cotidianas, a política não-institucional, etc. Por outro lado,
deve-se reconhecer que a sociedade moderna é constituída não
apenas sobre as estruturas de classe que lhe são próprias, mas
também sobre as faixas etárias e a cronologização do curso da vida. A
criação das instituições modernas do século XIX e XX – como a escola,
o Estado, o direito, o mundo do trabalho industrial, etc – também se
baseou no reconhecimento das faixas etárias e na institucionalização
do curso da vida (Groppo, op. cit: 12)
Como o antropólogo aproxima-se de jovens que têm como um dos
traços de comportamento o envolvimento rotineiro com práticas transgressoras
e violentas? Quais as estratégias utilizadas para mover-se em ambientes
qualificados como antro de bandidos e marginais sem correr riscos de perder a
integridade física ou mesmo a vida?
28
Acredito que, para um antropólogo, a entrada em não importa qual o
universo investigado é sempre movida por uma dose significativa de acasos e
experimentos do tipo “ensaio e erro”. Funcionamos, de certa forma, à maneira
de detetives, sempre dispostos a descobrir novas pistas, persistindo em trilhas,
abandonando outras já longamente percorridas. Creio ainda, como outros
cientistas sociais, que não existe método universal e que a escolha de um
método depende tanto da natureza do objeto quanto também da natureza das
questões colocadas pelo pesquisador (Dubet, 1987).
Alba Zaluar (1996), relembrando a época em que deu início aos seus
estudos sobre a violência urbana na cidade do Rio de Janeiro, no começo dos
anos 1980, chama a atenção para os limites das possibilidades de interação
entre o antropólogo e seus informantes, impostos pela própria temática.
Este tema não implicava o risco permanente do fazer etnográfico de
virar ‘nativo’, permitindo transformações radicais e poéticas na persona
do antropólogo. No caso em questão, este vir-a-ser teria como
resultado certo um processo penal, uma ficha policial suja e a
impossibilidade de obter atestado de bons antecedentes, talvez para o
resto da vida. Os outros atrativos e riscos românticos da etnografia
heróica, qual seja, o de morrer em pleno trabalho de campo uma morte
digna pelo golpe certeiro de um bordume, uma flechada de bravo,
indomável, desconhecido indígena em algum recanto natural do
planeta, equivalente do paraíso, também não tem equivalente entre os
riscos advindos de trabalhar com a transgressão metropolitana. Virar
“presunto”, “arquivo morto”, “queima de arquivo” não tem,
convenhamos, o mesmo apelo ou dignidade (Zaluar, op. cit.: 50).
Na continuidade de sua pesquisa no mesmo bairro popular do Rio de
Janeiro, já no final daquela década, as limitações são tantas que Zaluar
(2004a) não segue mais a praxe da etnografia – “estive lá” –, admitindo que
[...] as barreiras eram tão mãos fortes que os fatos não puderam ser
relativizados na versão e me deparei com a mentira. Voltei para cá e
deixei lá assistentes de pesquisa que não estiveram lá porque eram de
lá. Driblei a mentira, mas a passagem do cá para o lá ficou restrita ao
ouvido que ouvia a gravação das entrevistas feitas por outrem ou ao
olho que lia o texto delas (Zaluar, op. cit: 11).
No caso da minha pesquisa – realizada em locais onde as estatísticas
revelavam alto índice de violência interpessoal homicídios e vítimas de balas
perdidas e com jovens envolvidos em transgressões e delitos – a insegurança
que envolvia o trabalho de campo obrigava a pensar em algumas estratégias
29
para a sua viabilização, procurando minimizar os riscos à minha segurança
pessoal, assim como a dos meus informantes, sempre na mira da polícia.
Embora estivesse acostumada à periferia de Brasília e aos pobres
urbanos, que de modo algum me assustavam, ao contrário do que acontece
com boa parte das classes altas e médias brasileiras, fui tomada de
insegurança e medo: uma coisa é estudar padrões de moradia, estratégias de
invasão de terras, mercado informal de trabalho, renda mínima
21
, outra é ter
como objeto de estudo grupos envolvidos com a criminalidade violenta. Na
verdade, a leitura direcionada de jornais, o contato com a polícia e com jovens
condenados pela lei, os insistentes pedidos de atenção e cuidado por parte de
familiares e amigos nos suscita uma certa paranóia. Ficamos esperando o
assalto, o roubo, as balas perdidas, a agressão dos drogados. Explicando essa
sensação de medo que subitamente nos assola nas primeiras tentativas de
aproximações das gangues juvenis, Diógenes (1998) ressalta que
o medo instala-se em cada um de nós porque somos partícipes de uma
ampliada e estratégica engrenagem cuja sustentação é o terror.
Fechamo-nos na redoma do individualismo, na crença do salve-se
quem puder, tentando eliminar qualquer ameaça de perigo à nossa
suposta estabilidade (Diógenes, op. cit: 16).
Mas não cabe relativizar demais. Uma coisa me parece certa: além de
implicar realmente em alguns riscos, é quase impossível chegar até as turmas
de jovens enleadas em atividades ilícitas por contato direto, nos locais onde
atuam e se concentram. Mesmo podendo conseguir uma aproximação
amistosa, o desconhecimento e desconfiança da minha identidade poderia
produzir uma grande limitação ao nosso diálogo. Desse modo, como estratégia
para iniciar o trabalho de campo, procurei identificar alguns mediadores de
confiança dos participantes de gangues para abrir um primeiro canal de
comunicação com os jovens. Essa identificação foi-me facilitada por pessoas
que desenvolvem trabalhos sociais com ex-integrantes de gangues e que me
apresentaram a jovens adeptos do movimento Hip Hop na sua vertente
musical, o rap.
21
Refiro-me a alguns dos trabalhos que desenvolvi na periferia de Brasília.
30
A relação estabelecida com essas pessoas foi de extrema importância
no sentido de aberturas de portas, de facilitação de contatos e de formação de
uma primeira rede de informantes. Por meio delas, não somente travei relações
com rappers, conheci pichadores e jovens dados a outras formas de
transgressões, como também pude ganhar a confiança de alguns dentre eles.
Revendo minhas notas de campo, constato que o período em que essas
pessoas participaram da minha rotina como “mediadoras” não foi de fato muito
extenso, teve a duração de aproximadamente um mês. Embora tenhamos
mantido comunicações ao longo da pesquisa, nossas posturas e objetivos em
relação aos jovens divergiam. Era necessário, portanto, continuar o meu
caminho sozinha. Além disso, na medida em que comecei a aproximar-me dos
jovens que elas haviam me apresentado, algumas de suas informações
tornaram-se bastante suspeitas: jovens que nunca tinham passado pelo CAJE
(Centro de Atendimento Juvenil Especializado), órgão vinculado à Secretaria
de Segurança Pública, me foram introduzidos como sendo “perigosos”
homicidas condenados pela lei, traficantes, assaltantes, jurados de morte, etc.
Outros que me foram apresentados como “regenerados” continuavam
engajadíssimos em práticas delinqüentes.
Vários membros de grupos de rap têm uma trajetória de vida marcada
por um passado no qual o envolvimento direto com gangues e práticas de
violência esteve presente. O convívio com esses rappers foi um grande
facilitador da aproximação de jovens que ainda participam do “mundo do
crime”. Também permitiu ajudar na compreensão de um conjunto de idéias e
valores difundido entre esses jovens, funcionando como “intérpretes de mapas
e códigos socioculturais” (Velho, 2004). Assinala-se que os grupos de rap, além
de atuarem em territoriedades contíguas ou superpostas às das gangues,
partilham com essas turmas uma mesma identidade sócio-econômica e cultural
e, sendo a “voz da periferia”, tal como se auto-definem, procuram expressar,
por meio da música, as principais dificuldades que os jovens enfrentam em seu
cotidiano, fazendo do preconceito, da marginalidade e da violência que cercam
suas vidas temas constantes e inspiradores de seus versos. Portanto,
incorporar os participantes do movimento Hip Hop como informantes inseriu-se
31
numa perspectiva de continuum, isto é, gangues, galeras e grupos de rap,
ainda que guardem especificidades, foram tratados como partes entrelaçadas
de um imaginário sobre a vida e vivência dos jovens da periferia urbana da
capital.
Uma outra estratégia de pesquisa foi utilizar a escola como canal de
acesso aos jovens. Pelos dados obtidos por meio de entrevistas e conversas
informais, integrar uma gangue, em Brasília, não era sinônimo de estar
necessariamente fora da escola. Entrando em contato com as Delegacias
Regionais de Ensino de Ceilândia, Samambaia e Planaltina, foram-me
apontados estabelecimentos escolares onde a ocorrência de incidentes
envolvendo disputas e rivalidades entre gangues faziam parte da rotina. Nas
escolas, a partir das falas colhidas em grupos de discussões formados
artificialmente com jovens que levantavam suspeitas, entre profissionais de
ensino, de envolvimento com gangues e galeras, e tomando como eixo
norteador das conversas as temáticas violência e juventude, tentei formar um
panorama das preocupações, visões de mundo e formas de sociabilidade dos
jovens da periferia de Brasília, assim como apreender suas percepções sobre
os modos de participação da juventude em grupos identitários e territoriais. A
utilização da técnica de Grupo Focal
22
, ou grupo de discussão, é um recurso
22
A técnica de Grupo Focal ganhou força nas ciências sociais por propiciar a coleta, em pouco
tempo e em profundidade, de um volume importante de informação sobre os valores, atitudes,
crenças e percepções do grupo ou população investigados. Trata-se, segundo David Morgan
(1988), de uma ferramenta que viabiliza o acesso, por meio da interação grupal, às visões e
aos dados que dificilmente seriam obtidos sem a situação peculiar de troca e debate. Desde
sua origem, nos anos 40, a técnica busca incorporar o processo de influência mútua das
opiniões e atitudes entre membros de grupos. O trabalho com a técnica de Grupo Focal faz
emergir tanto os aspectos cognitivos - opiniões, influências, idéias - quanto os interacionais -
conflitos, lideranças, alianças – e as vivências singulares dos indivíduos e do grupo de
referência. Para conhecer detalhes sobre o método e técnica de Grupo Focal ver também
Krueger (1988), Stewart (1990) e Simard (1989). Vejo muitos pontos de convergência entre o
método do “Focus Groups”, ou grupo de discussão, com o “método de intervenção sociológica”,
do qual o trabalho Dubet, La Galère : jeunes en survie, comentado na seção precedente, é um
dos melhores exemplos de sua aplicação. Mas, se por um lado, os dois métodos em muito se
aproximam em termos de operacionalização, no fundamento de suas concepções ganham
larga distância: no “método de intervenção sociológica” há o compromisso militante do
pesquisador, que deve intencionalmente conduzir o grupo a um distanciamento de seu
discurso, fazendo com que se interrogue e lance um olhar crítico sobre suas práticas. Tendo
esse objetivo como um dos centrais da pesquisa, o pesquisador não somente registra e
observa a conduta do grupo, mas intervém, submetendo constantemente suas análises ao
grupo concernente. Para uma apresentação completa desse tipo de abordagem ver Touraine
(1974). Para uma crítica ao método ver Amiot (1980).
32
que possibilita a interpretação e reinterpretação de diversas realidades vividas
e sentidas pelos atores. Partindo de uma estruturação dialógica, cabe ao
pesquisador assumir uma atitude de escuta, de abertura, habilitando-o a
recolher de forma o mais neutra possível as crenças, atitudes, valores e
diferenças de percepções do grupo investigado. A validade deste método é que
ele permite recolher as percepções dos atores sociais, livre de idéias
preconcebidas e de hipóteses preestabelecidas. As categorias e os conceitos
analíticos são construídos a partir dos discursos, na compreensão e explicação
de determinados comportamentos sociais, na análise de suas causas e efeitos,
em que cada ator é incitado a participar com sua história, expressando o
entendimento de cada situação colocada em seus próprios termos.
A um antropólogo, pode causar estranheza essa idéia de compor grupos
de discussões em escolas. Será que essa técnica convém para o tipo de
realidade estudada? Como colocar certo número de jovens numa espécie de
“laboratório” e querer, a partir daí, compreender a estrutura das gangues?
Afinal, onde fica o contexto cultural? Como saber se o discurso é ou não
endereçado a alguém de fora? Questões pertinentes que podem ser
formuladas para uma pesquisadora que tinha como propósito realizar uma
leitura das gangues com aporte teórico antropológico e que sempre
reconheceu, como Katz (1986), que nenhuma técnica de coleta de dados é
neutra, ao contrário, possui uma leitura que se faz da ciência e de seus
modelos teóricos.
Nos primeiros contatos travados nas escolas, procurava explicar muito
bem e em detalhe a temática que vinha desenvolvendo. Dizia que procurava
reunir jovens que os professores suspeitavam que “aprontassem” fora dos
muros da escola, que não estava interessada em violência na escola, em
problemas de conduta e de rendimento escolar, que gostaria de formar grupos
homogêneos em termos de idade, que não necessitava necessariamente de
homogeneidade em termo de sexo, que as entrevistas durariam no mínimo
duas horas e que gostaria de conversar somente com quem tivesse vontade.
Aos poucos minhas explicações foram deliberadamente tornado-se mais
sumárias, resumindo-se quase tão somente às exigências do perfil e
33
constituição dos grupos, o que era uma estratégia para evitar introduções
totalmente equivocadas aos jovens, como não deixou de acontecer. Exemplo
disso é que fui apresentada para alguns grupos como palestrante do tema
“juventude e violência”, como alguém que vinha conversar sobre seus
problemas na escola, na família, sobre drogas. Mal ou bem introduzida, não
raro fui confundida com psicóloga, assistente social, jornalista, polícia,
professora, o que virou uma marca do trabalho de campo. Com o tempo
acostumei-me, sabia que no final das contas eles, os jovens, ou ao menos a
maioria deles, ficavam em dúvida se eu realmente me enquadrava em alguma
dessas categorias. Os que absolutamente duvidavam de minha identidade,
sempre tiveram a liberdade de abandonar a entrevista. E não é fácil para um
pesquisador assistir a batida em retirada de um grupo inteiro, como duas vezes
me aconteceu.
Descobri, a partir de relatos contundentes acerca da violência policial,
que um dos maiores problemas dos jovens era a polícia. Eu dizia que
escreveria um livro sobre eles, que garantiria o anonimato para protegê-los e
que eles podiam inventar um nome, que registraria a conversa em gravador,
autorizada é claro, porque era humana e minha memória não poderia reter
todas as suas falas. Vale dizer que tal atitude funcionava como uma faca de
dois gumes: se, por um lado, era uma forma de deixar claro que eles podiam
confiar em mim e que eles não corriam o risco de serem denunciados à polícia,
por outro, constituía numa forma de diminuí-los em importância, ao menos,
assim, muitos jovens me fizeram crer. Afinal, se escreveria um livro sobre eles,
porque não revelaria suas identidades? Quanto mais novos eram os
integrantes do grupo, mais a questão se colocava, independente ou não do
engajamento dos jovens em atividades delinqüentes.
Algumas vezes, minhas perguntas pareciam aos jovens tão estúpidas e
óbvias que, em meio às entrevistas, alguns declaravam que dificilmente eu
poderia fazer parte da polícia. Caso se tratasse de polícia feminina, conheceria
melhor as gírias, estaria melhor inteirada das situações narradas, da “língua”
local e não os interromperia tanto para perguntar “O que você quer dizer
quando fala ... “?, “Me explica, como é essa história ... “?. No entanto, essas
34
indagações, aparentemente óbvias, normalmente desencadeavam uma série
de narrativas que me permitiam conhecer detalhes das experiências dos
jovens. H. Becker (1985), em seu estudo sobre os outsiders, ao falar do uso de
gírias entre seus informantes, chama a atenção para a necessidade do
pesquisador, mesmo conhecendo o significado de certas expressões, insistir
nas explicações para perceber a lógica desenvolvida por diferentes atores
sociais. Em outra obra, onde trata mais precisamente de questões relativas a
métodos, Becker (1994) também afirma o quão relevante é procurar saber
sobre o como.
As perguntas que sondam detalhes concretos de eventos e sua
seqüência produzem respostas que serão menos ideológicas e
mitológicas e mais úteis para a reconstrução de vivência e eventos
passados. Nesse sentido, perguntar “como” é sempre mais rico do que
perguntar “por que”, até porque “por que”? transfere para o entrevistado
um trabalho analítico que o próprio pesquisador devia estar fazendo
(Becker, op. cit:: 146).
Para meu espanto, na primeira entrevista em escolas, além do prazer
em falar – uma das características de comportamento com o qual venho me
deparando depois que iniciei minhas pesquisas sobre juventude –, os jovens
revelaram bastante familiaridade com o tema “gangue”. Contavam da
existência de muitas em sua cidade e de seus envolvimentos pessoais com
práticas delinqüentes. Falavam da violência em seu cotidiano, da relação que
tinham com a polícia, do que significava ser jovem de periferia. O roteiro
previsto, elaborado a partir das primeiras entrevistas realizadas, era seguido
sem praticamente minha interferência, fluía nas falas e discussões
apaixonadas travadas entre eles. Friso que esse roteiro, embora mantendo
uma estrutura de idéias básicas, foi várias vezes modificado no curso da
pesquisa de campo em função da lógica e linguagem com as quais os jovens
organizavam seus discursos, como também em função de novos temas que
paulatinamente iam sendo introduzidos.
Assim como com os rappers e muitos outros jovens entrevistados fora
do âmbito escolar, observei que um número significativo dos jovens
entrevistados nas escolas narrava suas experiências em tempo pretérito. Esses
depoimentos no passado, somados aos daqueles jovens que continuavam
35
engajados em práticas criminais, me ajudaram a ampliar o panorama da
realidade dos grupos juvenis denominados “gangues”.
Ao final de cada encontro sempre perguntava aos jovens sobre o que
eles achavam do rap. Eles se desmanchavam em sorrisos: “o rap fala a
verdade”, “nada é fantasiado”, “é a voz da periferia”. E passavam a cantar no
maior entusiasmo. Em seguida, pediam-me para escutar a gravação da
entrevista. Muitos estavam tendo a oportunidade de ouvir pela primeira vez o
registro de suas vozes e não escondiam a fascinação com que viviam esta
experiência.
Ao término do trabalho de campo nas escolas, meus dois gravadores
estavam inteiramente destruídos. A presença de um gravador nas entrevistas,
embora não constrangesse as falas, também nunca passou despercebida, pois
o colocava no centro das rodas de discussão. Terminado um lado da fita, não
raro a pessoa com a palavra voltava a repetir as últimas palavras, esperando
que eu ajustasse o gravador de modo a garantir o registro de sua fala. Alguns
jovens, mais inquietos, de vez em quando o chutavam longe, simulando uma
situação de não intencionalidade e de profundo lamento pelo ocorrido, o que
sempre encarei com muito bom humor e como parte do ethos adolescente.
Descobri que minhas entrevistas, sem que isso tivesse sido proposto
como um dos objetivos de pesquisa, diferentemente do que intencionalmente
propõem Dubet (1987) em seu estudo sobre as galères francesas, revelaram-
se como um momento de reflexão para os jovens sobre suas condutas, seu
dia-a-dia na periferia, suas condições de pobreza e de “ser jovem”, por
exemplo.
Sempre dizia, ao término desses encontros, estar disposta a continuar a
ouvi-los, que esperava que isso pudesse se realizar em breve. E, de fato, dei
prosseguimento, individual ou coletivamente, a várias entrevistas, iniciadas
com vinte e quatro grupos formados nas escolas, com uma média aproximada
de oito participantes em cada um. Esse número de grupos entrevistados
correspondeu ao critério de “saturação”. Quando percebi que as entrevistas
começaram a ficar repetitivas e que havia uma densidade nas narrativas, decidi
que era o momento de parar de formar esses grupos de discussões. Os
36
“pontos invariantes de abordagem”, retomando os termos de Geertz (1973),
podiam ser melhor aprofundados na observação direta dos jovens fora do
âmbito escolar.
Assim, ciente de que a inteligibilidade dos significados culturais das
experiências, práticas e comportamentos dos jovens dificilmente poderia ser
alcançada somente a partir das formulações discursivas produzidas em grupos
constituídos nas escolas e diante da dificuldade de chegar até as gangues por
contato direto, propus, então, como estratégia, apoiar-me em alguns
informantes identificados nos grupos de discussão para me inserir em espaços
não institucionalizados e potencializar a riqueza da observação direta. Portanto,
uma das vantagens que a formação dos grupos de discussões trouxe, além da
possibilidade de coletar um volume considerável de informação sobre os
valores, atitudes, crenças e percepções dos jovens, foi o contato com
informantes chaves com quem estabeleci uma relação fora do ambiente
escolar. Estes, assim como os rappers, tornaram-se importantes mediadores
de confiança dos participantes das gangues.
Os jovens que expressaram o desejo de estender suas falas sempre
preferiram fazê-lo na rua, longe de colegas de escola e, principalmente, dos
profissionais de ensino. Além disso, na rua podiam apresentar-me os
companheiros de “aprontação”, mostrar-me melhor parte de seu cotidiano, os
lugares que costumavam freqüentar, as pichações, as armas, enfim, o lado que
consideravam positivo e o lado adverso do mundo da periferia. O convívio com
esses jovens na rua e em outros espaços naturais de sociabilidade revelou
aspectos de extrema importância em termos da dimensão cultural dos fatos
narrados, de códigos de relação e dos valores que fundamentam suas idéias e
condutas
23
.
Imediatamente ocorre-me o exemplo da relação que mantêm com a
polícia. Objeto de um discurso pleno de raiva e revolta, a polícia, diziam os
23
Lepoutre (1997), em estudo realizado no contexto da periferia parisiense, explora com
bastante perspicácia o tema da integração do jovem, particularmente do adolescente, ao
sistema de valores da cultura das ruas. Em diferentes pontos de seu trabalho, o antropólogo
procura assinalar que, em se tratando de pesquisas sobre jovens, é de extrema importância
situar os discursos com referência ao universo da rua, local privilegiado de sociabilidade
juvenil.
37
jovens nos grupos de discussões, era parte de sua rotina, sendo que as
abordagens policiais não tinham hora nem lugar e aconteciam cercadas de
brutalidade e maus tratos. Tive a oportunidade de presenciar algumas dessas
abordagens e discuti-las, logo em seguida, com os jovens concernidos. Um dos
problemas fundamentais para os jovens, articulado imediatamente após a
retirada da polícia, não era exatamente a brutalidade da “revista”, que não
deixava de ser comentada, mas a situação de exposição pública a que eram
sujeitados, entendida como uma enorme humilhação. Não que essa
humilhação não estivesse revelada nas falas colhidas nos grupos constituídos
nas escolas, mas a vivência in situ possibilitou-me compreender melhor qual a
dimensão da mesma no drama que constitui a relação entre os jovens e a
polícia.
No convívio num espaço não institucionalizado, como a rua, tive
oportunidade de conhecer jovens que há muito haviam deixado a escola, que
passavam o dia pulando de esquina em esquina, de praça em praça,
conversando um pouco ali e aqui, fumando maconha com amigos daqui e de
lá. Tive também a chance de perceber que dificilmente os jovens deixam-se
entrevistar sozinhos, que, freqüentemente, buscam formar um grupo, dando a
entender que “o conjunto”, “a voz coletiva”, é uma maneira usual de colocarem-
se no mundo. Presenciei ainda o tráfico de drogas, feito na minha vista, mas
sempre negado com tal.
O que quero deixar claro é o fato de que na rua e em outros espaços
naturais de sociabilidade, além de minha imaginação e intuição estarem
sempre sendo colocadas a prova, obrigando-me a constantes improvisações, o
discurso dos jovens era posto em prática, era atualizado em situações bastante
concretas que ora o afirmava, ora o contradizia, e, não restam dúvidas, sempre
o enriquecia.
Assim, o material etnográfico da pesquisa foi colhido a partir de um
procedimento metodológico que combina a observação direta com a recolha de
falas no seio de grupos constituídos. Cabe assinalar que a pesquisa incluiu
também um mergulho no universo da mídia – reportagens de revistas, jornais e
televisão –, importante para a ampliação da compreensão dos campos de
38
sentido que dinamizam as experiências dos jovens participantes de gangues na
periferia de Brasília.
Creio que a utilização de técnicas distintas abriu a possibilidade de
adequar a metodologia às múltiplas cenas da vida cotidiana dos jovens e de
recolher, em diferentes contextos enunciativos, um material empírico
consistente e sólido, além de permitir incluir na pesquisa, de forma
complementar, depoimentos de outros atores cujas opiniões e experiências se
mostraram relevantes para a investigação.
Este é o caso dos policiais. A polícia era um tema recorrente no discurso
dos jovens que, a partir das experiências vividas, se mostravam extremamente
críticos e incisivos sobre a sua atuação. Apontada por eles como um dos
principais agentes da violência na periferia, a mesma era retratada com falas
carregadas de hostilidades e relatos que configuravam verdadeiras denúncias.
Em razão da gravidade e da grande carga emocional que acompanhava a
narrativa das situações expostas, fez-se importante, no quadro deste estudo,
confrontar as visões dos jovens sobre a polícia com a percepção da atuação
dos próprios policiais. Para tal, foi necessário, evidentemente, entrevistá-los.
Realizei entrevistas em grupo com policiais militares na Ceilândia e em
Planaltina, totalizando vinte e nove entrevistados. Dada as condições da
pesquisa, diferentemente do que ocorreu com os jovens, em nenhum momento
tive contato com os policiais entrevistados fora dos Batalhões de Polícia, ou
seja, não fiz sucessivas aproximação aos policiais, localizando-o em diferentes
esferas de relações, como seria desejável numa abordagem de caráter
etnográfico. Tenho absoluta consciência de que os entrevistei numa situação
de interação totalmente artificial, agravada pelo controle dos seus superiores, a
quem ficou a cargo a escolha dos informantes, o que pode certas vezes ter
dado às suas falas um conteúdo típico de um “discurso endereçado”. Contudo,
acredito que a narrativa policial foi fundamental na compreensão do sentido
que os jovens dão à atuação da polícia.
39
2. Ordenamento do material empírico
O presente estudo está estruturado em sete capítulos. No primeiro
procuro explorar as categorias de percepção e apreciação dos jovens sobre a
realidade que vivem, trazendo aspectos da sociabilidade, formas de lazer,
organização do tempo e espaço. Mais precisamente, trato das maneiras como
os jovens representam e se situam em suas cidades – Ceilândia, Samambaia e
Planaltina –, de seus modos de interação, de como ocupam e dão significado
ao seu dia-a-dia.
A ambivalência de palavras e sentimentos em relação às suas cidade é
um aspecto que sobressai das percepções manifestas pelos jovens. Ao mesmo
tempo em que expõem os problemas e dificuldades experimentadas por
viverem em locais que afirmam ser violentos, perigosos, onde existem muitos
bandidos, delinqüentes e marginais, há um profundo apego aos seus espaços
de moradia, onde sempre viveram ou passaram uma boa parte de suas
existências. Para os jovens suas cidades são “lugares antropológicos” por
excelência, são concebidas como unidade de vida e de pertencimento,
constituindo-se, talvez, no suporte maior de sua identidade.
Embora insistam na falta do que fazer em matéria de entretenimento e
lazer, os jovens nos revelam uma vida social bastante cheia, marcada por uma
sociabilidade que se desenvolve principalmente na rua, da qual se apropriam
plenamente. Eles se movimentam na procura por atividades com fim em si
mesmo – nada de importante se passa ou nada que seja absolutamente
imprevisível –, mas também circulam na busca de “ação”. Bater e apanhar na
rua é uma ação significativa que pode fazer parte de suas rotinas.
O sentimento de serem portadores de um estigma pelo fato de morarem
em lugares onde se concentra a pobreza, a violência e problemas de toda a
ordem levam-nos a lançar mão de diferentes estratégias com a finalidade de
gerirem este estigma espacial: há, por exemplo, a recusa ou negação da
imagem negativa da sua cidade, por meio da desqualificação de outras
periferias do Distrito Federal; há também o caso da exacerbação do sentimento
de enraizamento local e uma grande valorização das bases na qual se
40
estabelecem as relações interpessoais nas cidades da periferia. Mas,
independente das estratégias adotadas para neutralizar a imagem negativa dos
lugares, os jovens experimentam o sentimento de revolta por sofrerem uma
discriminação em função de imagens negativas construídas por agentes
externos. Seriam, sobretudo, as pessoas do Plano Piloto responsáveis pela
produção da má imagem de seus locais de moradia.
No segundo capítulo continuo a explorar as categorias de percepção e
apreciação dos jovens de sua realidade, mas desta feita tendo como horizonte
as que são criadas a partir das oposições sociais objetivadas na organização
do espaço físico da área metropolitana de Brasília. As idéias que os jovens têm
de si, do seu cotidiano, de suas condições de vida, da sociedade e das
relações sociais são em larga medida construídas em torno do contraste e
comparação que estabelecem entre a imagem que fazem do Plano Piloto e a
realidade da periferia, entre o ser “jovem do Plano Piloto” e o ser “jovem de
periferia”. Morar na periferia, em oposição ao centro, sintetiza em seus
imaginários, um eixo de diferenciação e, ao mesmo tempo, de identificação
social básico.
Procuro mostrar que da assimetria entre Plano Piloto e cidades-satélites,
emergem múltiplas facetas do modo como os jovens se sentem, vivem e se
pensam no mundo, particularmente de como se percebem como parte de um
mundo de estigmatizados, discriminados e excluídos socialmente. Em relação
aos jovens do Plano Piloto, os das cidades-satélites se sentem discriminados
por várias razões: pelo fato de morarem na periferia, pela sua aparência física,
pelo vestuário e estilo musical que adotam. O seu discurso, nesse paralelo,
funda-se num sentimento de ser o “outro”, o diferente, de ocupar uma posição
secundária na sociedade, de possuir menos oportunidades de trabalho e
estudo, menos acesso ao consumo. Por serem pobres, se sentem
desrespeitados e vistos como inferiores.
A necessidade de marcarem a sua identidade e a reação à
discriminação que vivenciam se manifestam na retórica agressiva e hostil que
eles adotam quando se referem aos jovens do Plano Piloto. “Bodinho” é como
são qualificados os jovens de classe média e alta. É exatamente no bodinho,
41
que comparece nos discursos como uma espécie de encarnação simbólica do
mal, onde focalizam toda uma revolta.
O ódio generalizado aos jovens de classe média e alta, expresso
verbalmente, se encontra objetivado numa prática comum, qual seja, eles são o
principal alvo de roubos e assaltos dos jovens da periferia que cometem esses
delitos. Os jovens se sentem constantemente provocados, desafiados pelos
bodinhos que, na sua percepção, ostentam signos de riqueza de maneira
ostensiva e ofensiva. Acham que por eles são desprezados e maltratados todo
o tempo. De modo geral, o discurso dos jovens de periferia pode ser lido como
um discurso de auto-valorização defensiva, auto-compensatório e invertido
quando se refere a valores e critérios morais. Eles relevam que fazem um
ordenamento moral deste mundo no qual o “desigual” – o jovem do Plano
Piloto, o “rico” – é colocado em posição de inferioridade. Em contrapartida, o
jovem da periferia, o “pobre”, possuiria uma “essência boa” (generosidade,
solidariedade, companheirismo e humildade), assegurando sua superioridade
no plano moral. Assim, dentro de uma escala de valores que não tem relação
com o gozo da riqueza, do prestígio e do poder, ou seja, com as posições de
dominação e subordinação que as pessoas ocupam na sociedade, os jovens
relativizam seu lugar na ordem social.
No terceiro capítulo apresento e analiso duas outras dimensões da
sociabilidade juvenil: a família e o trabalho. Embora, na prática, a experiência
de muitos jovens com a família fuja inteiramente ao arranjo familiar ideal da
sociedade brasileira, suas visões permanecem dentro de um quadro de valores
tradicionais e revelam um extremo conservadorismo. Todos,
independentemente de experimentarem esse modelo em suas famílias de
origem, consideram a família mais importante do que qualquer outra instituição
social e com maior peso sobre qualquer relação estabelecida fora do contexto
doméstico.
Assim, a família aparece como um valor fundamental e o papel que
exerce em suas vidas acaba sendo mistificado. O seu significado passa por
representações em que prevalecem o ajustamento e a harmonia familiares
como elementos dominantes. De modo secundário, emergem críticas,
42
acusações e culpabilizações, mas dificilmente dirigidas às suas próprias
famílias. Os jovens reproduzem o pensamento dominante sobre as famílias
consideradas “desajustadas” ou “desestruturadas”, exigindo comportamentos e
valores tradicionais e idealizados. “Chefes” ou não de família, a figura da mãe
tem uma centralidade incontestável nas suas vidas, o que fica claro ao longo
do capítulo.
O terceiro capítulo também mostra que, em relação à vivência do
trabalho, as representações dos jovens são marcadas pela ambivalência: se,
por um lado, duvidam do seu sentido, sinalizando uma transformação de
valores bastante significativa na sociedade urbana brasileira, por outro,
reproduzem o discurso dominante que insiste na questão da falta de
oportunidades oferecidas ao trabalhador. O dilema da escolha entre ser
trabalhador ou não é um dos dramas experimentado por muitos jovens.
Navegando no mesmo barco, estão, de um lado, os jovens que,
buscando atribuir significados às suas vidas, fazem um enorme esforço para
pautarem suas condutas pelo valor positivo do trabalho honrado, mesmo
acreditando fazerem parte de uma sociedade extremamente injusta. Roubos e
furtos eventuais, justificados por eles pelas dificuldades de inserção no
mercado de trabalho ou pelos padrões de consumo da classe média, não
significam uma ruptura definitiva com o mundo da ordem. Do outro lado estão
os que romperam as fronteiras, caindo no mundo da desordem. São os
descrentes de um sentido numa sociedade pensada como irremediavelmente
desigual e, como lesados, optam pela vida de bandido, pelo “dinheiro fácil”,
negando inteiramente o valor positivo do trabalho e aderindo à extensa
corrente de jovens brasileiros que duvidam de uma ética de trabalho que
simplesmente os condena a uma vida de privações e de “escravidão”.
No quarto capítulo tento elucidar alguns aspectos que possibilitam
melhor compreender a dinâmica que separa e, ao mesmo tempo, aproxima as
experiências das gangues e galeras da periferia de Brasília. Violência e não
violência constitui um dos principais binômios utilizados pelos jovens para
diferenciar gangues e galeras, sendo que a auto-instituição da galera como
43
gangue visa a intensificar e dar visibilidade, entre si e para os outros, ao caráter
violento das práticas por eles ensejadas.
Busco, além disso, trazer uma reflexão mais geral sobre o campo social
da violência. As transformações na natureza do social, na percepção dos
direitos humanos e de cidadania levam a uma conceitualização de violência
não tendo mais como única referência a idéia do uso legítimo da força, mas
trazem a dimensão simbólica/moral do problema.
Neste capítulo também procuro refletir sobre um conjunto de idéias
elaboradas pelos jovens acerca da violência.
A noção de violência por eles
construída, verbalizada de forma fragmentada, é em parte retirada do que
realmente acontece, da sua consciência de classe, da sua posição na
sociedade, das suas interações sociais na escola, na família, na rua e com as
mensagens da mídia, mas também da sua experiência com esse fenômeno a
partir de um imaginário coletivo e de como sua subjetividade processa e reage
a esse conjunto de estímulo. A noção por eles elaborada expressa, desse
modo, uma visão abrangente, mostrando que vários atores sociais intervêm na
construção do fenômeno e que o mesmo não se reduz à sua visibilidade, mas
sim ocorre nas relações interpessoais e se manifesta em atos físicos, verbais,
emocionais e morais de uns sobre os outros.
Consagro o quinto capítulo às relações dos jovens com as gangues e à
anatomia e performance desses grupos. Procuro entender como estes grupos
são formados, como os jovens neles ingressam, como permanecem e como
deles se afastam. Examino suas atividades, suas rivalidades, a relação com as
drogas e as armas de fogo e também exploro aspectos relativos a escolha,
substituição e atribuições das lideranças desses grupos.
As gangues são sempre caracterizadas pelos jovens pelo forte elo que
une seus integrantes. A solidariedade entre os pares – construída em torno das
noções de fraternidade, lealdade e fidelidade, da motivação de responder pelo
coletivo –, como elemento de coesão, é uma das referências centrais no
processo de construção da identidade do grupo e de sua instituição diante dos
demais.
44
Permanentemente dispostos a “brigar uns pelos outros”, os jovens se
dizem parte de uma família, utilizando uma categoria típica do domínio privado
para definir um espaço de segurança e confiabilidade, assegurado num
ambiente imprevisível e hostil, como a rua. Esta “família da rua” é percebida
como uma comunidade emocional que ampara, apóia e dá proteção em
situações nas quais a “família de casa” não pode intervir.
A honra é um valor fundamental na decisão dos jovens de aderir a uma
gangue. A mesma comparece em seus discursos por meio da noção de
reputação, fortemente presente em suas consciências. A busca de reputação e
prestígio explica numerosas de suas condutas e participa, fundamentalmente,
da construção da identidade viril. Nessa perspectiva, a virilidade é o horizonte
de sentido que se encarrega de desenvolver a capacidade de administrar o
risco e a fatalidade, o que é considerado inevitável e para os quais uma das
respostas seria a demonstração de coragem, valentia e força. A hombridade
estaria também plasmada na capacidade de eliminar o “outro”, o inimigo, pela
morte.
Matar, ou afirmar tê-lo feito, outorga prestígio e reconhecimento social
no interior do mundo das gangues.
No sexto capítulo detenho-me na trajetória de quatro jovens ex-
integrantes de gangues cujas histórias colocam em xeque a idéia de
irreversibilidade do destino de quem se envolve no mundo do crime. Eles
encontraram, tal como um número expressivo de jovens das camadas
populares da periferia da capital que um dia estiveram enleados na
delinqüência, um caminho alternativo a um destino trágico que lhes parecia
incontornável.
Jadsin, Jeferson, Eduardo e Carliomar iniciaram as suas atividades
delinqüentes no princípio da adolescência a partir da adesão a gangues de
pichadores, formadas motivadas pela procura de ação, de “animação”, de
“adrenalina”. Aos poucos, a prática da pichação, inicialmente considerada
como uma atividade lúdica, foi sendo substituída pelas do furto, roubo, assalto,
tráfico de armas e drogas. Já na “bandidagem” os jovens envolveram-se na
“guerra” violenta e homicida entre gangues rivais da Ceilândia.
45
A aproximação do Hip Hop, no caso de Jadsin, e a conversão religiosa,
nos de Jeferson, Eduardo e Carliomar, desempenharam um papel fundamental
no afastamento do mundo do crime. Por essas vias os quatro jovens passaram
por uma espécie de reforma moral, restaurando valores banalizados durante a
passagem pela bandidagem, como o respeito à vida, e resgatando a
perspectiva de futuro, perdida num tipo de vivência que privilegia o imediatismo
das experiências do presente.
O sétimo capítulo é dedicado à relação dos jovens com a polícia, tema
cuja importância foi evidenciada ao longo de toda a pesquisa de campo. Seus
relatos sobre situações de desrespeito, humilhação, ameaças, agressões,
extorsões e de abuso de poder por parte dos policias são contrastados com a
percepção dos próprios policiais sobre esses fatos e sua atuação na esfera da
segurança pública.
O eixo central da análise que desenvolvo focaliza os diferentes ângulos
de visão a respeito das revistas policiais e os conflitos daí decorrentes. Os
“baculejos” – normalmente chamados de “bacu” – e arrastões realizados pela
polícia suscitam revolta e indignação nos jovens. Essas abordagens são
bastante freqüentes, tendo uma natureza corriqueira e banal, sendo por eles
percebidas como desrespeitosas, humilhantes, como um insulto e uma
violência intoleráveis. Para os jovens os baculejos não passam de ações
totalmente arbitrárias, sem racionalidade aparente. Eles o inserem numa
perspectiva sobretudo emocional.
Já os policiais não consideram essas abordagens como insulto, e menos
ainda como uma violência, pois faria parte da rotina de defesa da população
contra bandidos e marginais. De suas perspectivas, trata-se de uma ação
técnica-racional, amparada em treinamento específico e contendo inúmeros
detalhes, que tem por objetivo combater o crime, chegando a esse resultado de
maneira mecânica e eficaz.
O significado do baculejo transmitido aos jovens não corresponde ao
significado pretendido pelos policiais. A linguagem técnica-racional utilizada por
estes, embora desencadeie respostas mecânicas nos jovens quando essa
situação está em curso, não lhes é totalmente familiar. Pelo contrário, a ação é
46
experimentada afetivamente e, desse modo, interpretada dentro de um sistema
de sentido alheio ao do próprio acontecimento. Talvez daí resulte a mútua
incompreensão dos sujeitos envolvidos nesse tipo bem particular de interação.
O polêmico instrumento legal conhecido como Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) foi também um tema submetido a minha proposta do sétimo
capítulo de cruzar olhares. O ECA que, a princípio, é considerado um avanço
em termos de democratização da sociedade brasileira, é também gerador de
polêmicas que, mais uma vez, colocam a polícia em confronto com os jovens.
Muitas vezes, a avaliação do ECA por parte desses dois atores é coincidente,
mas há um conjunto de acusações mútuas que revela facetas significativas do
que a lei vem representando na prática.
Apresento, em anexo, um texto no qual procuro trazer a leitura que os
jovens envolvidos com o movimento Hip Hop fazem da realidade social dos
moradores da periferia do Plano Piloto de Brasília. Os rappers orgulham-se de
compor e cantar músicas que registram o cotidiano de quem, como eles, ali
vive e de terem uma perspectiva crítica da sociedade. Por meio da expressão
musical, de um “espírito” e de um estilo de vida a ela agregados, acreditam
poder denunciar e subverter uma ordem social que condena os pobres a uma
vida precária, a violência, a exclusão, a opressão e a marginalidade. Assim, o
cotidiano da periferia marcado pela violência – crimes, assaltos, roubos,
batidas policiais –, o ambiente hostil e a carência econômica os impulsiona a
lutar em favor de uma justiça social, idealizada como um mundo de diferentes,
mas pautado numa única lei, numa única categoria de cidadão.
47
CAPÍTULO 1
VIVER NA PERIFERIA: O COTIDIANO E O OLHAR DOS JOVENS
Na periferia tem o lado humano que rico não vê
[...]. As pessoas são humildes e ajudam quem
precisa de ajuda. A burguesia não tá nem aí
pra pessoa humilde, falta sensibilidade pra ver
a pobreza, a miséria. É a consciência do cara:
“eu tô com a minha vida boa aqui, não quero
nem saber”
.
(Rapper do grupo V.V.)
Neste capítulo procuro explorar as categorias de percepção e apreciação
dos jovens sobre a realidade que vivem, trazendo aspectos da sociabilidade,
formas de lazer, organização do tempo e espaço. Mais precisamente, trato das
maneiras como os jovens representam e se situam em suas cidades, de seus
modos de interação, de como ocupam e dão significado ao seu dia-a-dia.
As cidades-satélites onde realizei a pesquisa, assim como a maior parte
das outras existentes em Brasília
1
, são freqüentemente aludidas nos estudos
acadêmicos como “cidades-dormitórios”, “espaços cuja função é apenas
residencial de população pobre segregada” (Ferreira & Penna, 1996). Isto pela
falta de dinamismo econômico interno e pela dependência de outras áreas
produtivas do Distrito Federal, sobretudo do Plano Piloto. A idéia de cidade-
dormitório se confunde com a imagem de lugares onde as pessoas estão
sempre de passagem por suas residências, delas fazendo uso apenas para
pernoitar, e nas quais as relações sociais praticamente não ultrapassam a
esfera privada intrafamiliar. Ausentes de seus locais de residência durante o
dia na maior parte da semana e deslocando-se para outras localidades em
busca do “ganha-pão”, os moradores das ditas “cidades-dormitórios” teriam
dificuldade de gerar um tipo de sociabilidade que se dá na vivência e
1
Atualmente o território do Distrito Federal está dividido em vinte e nove Regiões
Administrativas, onde se situam núcleos urbanos conhecidos tradicionalmente como “cidades-
satélites”. Para maiores detalhes sobre a formação do Distrito Federal e sua organização
administrativa, consultar o site:
http://www.geocities.com/TheTropics/3416/regioes.htm
48
convivência no espaço público. Nesse sentido, as cidades-satélites são tidas
como espécie de “não-lugares”, na acepção que lhe confere Augé
2
(1992).
Contudo, os jovens com os quais convivi não vivem em “cidades-
dormitórios”. Essa noção parece absolutamente imprópria, na medida em que
eles conseguem manter importantes e permanentes relações nos espaços
públicos de suas cidades. Sua vida é marcada por uma sociabilidade que se
desenvolve principalmente na rua, da qual se apropriam plenamente. Fora da
família, da escola e de diferentes instituições locais, existe todo um universo
específico de práticas, caracteristicamente juvenis, que participam ativamente
de suas vidas. Tais práticas, que escapam ao controle das instituições, mesmo
que não sejam totalmente ignoradas, ainda são bastante desconhecidas pelos
cientistas sociais que trabalham sobre a periferia de Brasília.
Como veremos, os jovens cercam-se de atitudes, sentimentos e palavras
ambivalentes em relação ao seu principal lugar de ancoragem, as cidades da
periferia onde moram. Colocam em foco os problemas de infra-estrutura, da
violência, das graves limitações de atividades de lazer. No entanto, é com a
periferia que se identificam, pois nela estão enraizados e é onde estabelecem
suas principais redes de relações sociais. O local de moradia é o espaço
privilegiado, ou até mesmo exclusivo de sua vida, quase não havendo redes de
trocas mais extensas do que a vivência em nível local. A maioria praticamente
não sai desse território que é, à semelhança dos “quartiers deserdados”
franceses,
[...] espaço de sociabilidade, de afrontamentos, de reconhecimento e,
para os mais marginais, um lugar protegido e controlado pela pequena
delinqüência e pelo tráfico de drogas (Oberti, 1996: 242).
As entrevistas que realizei com jovens da Ceilândia e de Samambaia
foram marcadas por um processo comum: as falas normalmente iniciavam-se
pela grande ênfase ao que percebiam como aspectos negativos. Referiam-se
ao problema da violência, do tráfico de drogas, da falta de infra-estrutura e a
uma rotina com poucas alternativas, em que se encontrar nas praças e
2
Marc Augé desenvolveu a noção de “não-lugares” – espaços que seriam característicos da
modernidade contemporânea – como a negação da noção de lugar “antropológico”, que é,
essencialmente, um lugar identitário e relacional.
49
esquinas para beber e utilizar drogas constituía no único divertimento. Em
seguida, havia uma tentativa de, senão destruir, ao menos neutralizar essa
primeira imagem que construíam por meio da defesa elaborada em torno da
denúncia da formação de estereótipos por quem está fora, da falta de
conhecimento e, sobretudo, da valorização de um estilo de vida onde as
relações interpessoais eram tidas como amigáveis e solidárias.
Já em Planaltina, como veremos, os jovens, em geral, não se armavam
em defesa da cidade. Apresentavam-na como um verdadeiro campo de guerra
do qual alguns só desejavam um dia poder se livrar. Falavam de uma rotina
sem opções de lazer, dos sobressaltos e medo de serem atingidos por balas
perdidas ou mesmo a eles direcionadas. Na guerra entre jovens, alimentada
sobretudo pelo tráfico de drogas, havia pouco lugar para relações interpessoais
amigáveis e solidárias: é salvar-se, cada um por si, quem puder.
1.1. Viver na Ceilândia
Malandragem de Brasília, cidades entorno,
caldeirão do demônio, Ceilândia é o forno.
Cansei de ver velório, tristeza eu não concordo.
[...] Aqui é Cei, DF, seja bem vindo. Jaquetão
de couro, burro preto na esquina, maconha,
merla e cocaína.
(Rap de autoria do grupo Cirurgia Moral)
A Ceilândia, distante trinta quilômetros do Plano Piloto, é a maior, a mais
populosa cidade-satélite do Distrito Federal, com 344.039 habitantes (IBGE,
Censo Demográfico 2000)
3
. O setor tradicional (QNM), inicialmente
denominado de “Barril” em razão do seu traçado urbanístico, foi criado em
1971 para receber 80 mil migrantes instalados em diferentes invasões nas
redondezas do Plano Piloto
4
. Ainda na década de 1970, a política
governamental de erradicação de invasões e de assentamento das camadas
3
O Distrito Federal tem uma população de 2.051.146 habitantes (IBGE, Censo Demográfico
2000).
4
As “invasões” de terras fazem parte da história do Distrito Federal. Na maioria dos casos,
seus ocupantes são migrantes nordestinos que procuram a Capital em busca do sonho de ter
uma vida melhor. De acordo com dados da CODEPLAN (1999), mais de 60% da população da
periferia do Distrito Federal é formada de migrantes nordestinos.
50
populares levou à implantação de novos setores na Ceilândia, surgindo, então,
o Setor O (QNO), em 1976, o Núcleo Guariroba (QNN), em 1977, e os setores
P-sul e P-norte (QNP), em 1979. Dando prosseguimento a mesma política, nas
décadas seguintes foram criados pelo governo do Distrito Federal a Expansão
do Setor O, a Nova Ceilândia, a Nova Guariroba, o Setor QNP e o Setor QNR.
Atualmente a população da Ceilândia vive em 11 setores, distribuídos
em 91 quadras residenciais. Estas são intercaladas por áreas destinadas ao
comércio local, igrejas e escolas, além de áreas especiais ocupadas por
centros comunitários, terminais rodoviários, feiras locais, postos de gasolina,
delegacias de polícia, Batalhões Militares, centros de saúde e outros serviços.
Ceilândia carrega, há muito, uma péssima imagem perante a opinião
pública. A cidade é freqüentemente associada ao tráfico de drogas, a crimes
violentos, a insegurança, a marginalidade. Na polícia, é visada como “área
crítica”, mobilizando um esquema especial de segurança pública. É tida ainda
como uma espécie de periferia da periferia pela contigüidade com Taguatinga,
uma das mais antigas cidades-satélites de Brasília que, ao contrário de outras,
abriga uma expressiva população de classe média
5
.
Ao andar pela Ceilândia, chama imediatamente a atenção o grande
número de antenas de TV, a constante presença de jovens nas ruas, a enorme
quantidade de igrejas evangélicas e de bicicletas em circulação, conduzidas
também por jovens, principalmente do sexo masculino.
Os setores mais antigos contam com urbanização, tendo serviços
regulares de água, luz e esgoto. As ruas são asfaltadas e as casas, de um a
três andares, são construídas em alvenaria. Já nos setores mais novos, como
as chamadas expansões, predominam os barracos de madeira e as ruas sem
asfalto. Os serviços de água, luz e esgoto são precários, sendo marcante o
emaranhado de fios na rede elétrica, testemunho das práticas do “gato” e da
“gambiarra”
6
, muito difundidas nas áreas mais pobres das cidades brasileiras.
A maioria dos jovens com quem tive contato na Ceilândia nasceu, ou vive
há muito tempo, na cidade. Ceilândia, como mencionado anteriormente, tem
5
Com a valorização dos terrenos e o aumento de renda da população de Taguatinga, uma boa
parte da população da Ceilândia daí provém.
6
“Gato” e “gambiarra” são formas de obter energia elétrica de graça ou sem ter que efetuar
contrato com a prestadora de serviço.
51
uma péssima imagem e os jovens tentam neutralizá-la por meio de discursos e
práticas a partir dos quais é possível constatar o quanto investem afetivamente
no local de origem. A gestão que fazem da má imagem do local apóia-se,
principalmente, na experiência comunitária no seio do grupo de pares.
Na Ceilândia observa-se a forte presença de grupinhos de jovens nas
ruas. Os espaços públicos são, para eles, locais de sociabilidade privilegiados.
O encontro com amigos nas ruas, esquinas e praças, às vezes nos becos
7
, é
uma prática habitual, dos que estudam e dos que não estudam.
A rua, da qual amplamente se apropriam, é fundamentalmente um
espaço masculino e uma área cuja delimitação é importante para que os jovens
sejam reconhecidos e legitimados entre seus iguais. Além disso, transitar no
mundo da rua faz parte do processo de tornarem-se homens, de uma etapa da
vida na qual se aprende e adquire-se o código masculino de sociabilidade.
A freqüentação de bares é parte desse aprendizado e os mesmos são
importante ponto de encontro para os jovens de sexo masculino. Nos bares
vendem-se bebidas alcoólicas e tira-gostos e, não raro, neles são encontradas
mesas para jogo de baralho ou sinuca
8
. Ainda que mulheres não sejam vistas
com bons olhos nesses ambientes, isso não significa que as meninas não os
freqüentem. É o caso de Patrícia
9
, 23 anos, que, como outras jovens, costuma
ir à bares e fazer uso de bebidas alcoólicas:
7
Na época da pesquisa de campo, havia muitos becos na Ceilândia. Em alguns deles se
notava a existência de aparelhos de ginástica. Estes becos acabaram sendo ocupados por
casas construídas irregularmente por policias militares e bombeiros. Em 2004, tais casas foram
demolidas pelo GDF, gerando polêmica entre a população. Alguns moradores eram a favor da
permanência dos policiais e bombeiros, alegando razões de segurança; outros consideravam a
ocupação irregular, um abuso de poder, pois a um civil não seria permitido essa invasão de
área pública. Observa-se que os becos, antes de serem invadidos por policiais militares e
bombeiros, não apenas eram apropriados pelos jovens nos aparelhos de ginástica, como
também muito utilizados para consumirem drogas. Segundo alguns informantes, a polícia
costumava revistar os jovens nos becos, procedimento quase sempre acompanhado de
violência física (ver capítulo 7).
8
Muito comum nas periferias são também os botequins, bem menos freqüentados pelos
jovens, principalmente os menores de idade. Os bares e botequins se configuram em
diferentes gêneros de “casa de bebidas” e cada um desempenha uma função específica. No
entanto, como espaço social, têm em comum o fato de corresponderem simbolicamente ao
mundo da “desordem”/rua, que pode ser contraposto ao mundo da “ordem”/casa. Para um
maior entendimento do que esses espaços representam na sociedade urbana brasileira ver
especialmente Silva (1978).
9
Os nomes das pessoas citadas neste trabalho foram modificados com o objetivo de preservar
o anonimato e evitar que, por qualquer razão, alguém acabe sendo prejudicado. Mantive
apelidos para os jovens, quando estes por eles eram chamados, porque esse é um aspecto
52
Eu saio todos os dias. Ando na dezesseis, ali é um centro, o centro do P-Sul,
com certeza. As minhas amigas andam só na dezesseis [...]. Não vamos em
nenhum lugar especial, ficamos no barzinho mesmo, as vezes nas
esquinas[...]. Prefiro ficar num barzinho, beber.
Muitas vezes essas saídas terminam em afrontamentos entre as
meninas. Patrícia se descreve como uma “desaforada” que sempre enfrentou as
meninas “folgadas” e “que querem mandar no pedaço”. Por isso em inúmeras
ocasiões se envolveu em brigas de rua:
Pra mulher é feio brigar na rua, pra homem é comum. Mas eu brigava e já tirei
muitas meninas de brigas. Sozinha, já enfrentei vários e vários grupinhos [...].
Quando eu via uma menina folgada acabava provocando e tinha que agir. Eu
podia levar um pau, mas eu não podia sair fora. Se fosse pra eu apanhar, tinha
que apanhar mesmo, porque era eu que estava provocando.
Patrícia pertence a uma categoria de menina que os meninos classificam
como “quase homens”, “de rocha” (forte), exatamente porque domina e se comporta
de acordo com o código masculino de sociabilidade nas ruas. A Ceilândia
estaria repleta de jovens do sexo feminino que fazem coisas até piores das que
os homens fazem.
Na rua, Patrícia diz ter aprendido tudo o que considera de negativo,
assim como também suas colegas teriam aprendido, como, por exemplo,
beber, fumar, consumir drogas e
“aprontar”:
Todas as minhas colegas têm a mesma história, não do mesmo jeito, mas
parecidas. A base que a gente teve foi horrível. Cara, igual eu tava falando, as
coisas que eu aprendi foi na rua, as coisas erradas do mundo. Só ganhei coisa
ruim [...]. Aprendi a ser alcoólatra, a arrumar briga, a me drogar. Eu só aprendi
coisa errada.
As ruas da Ceilândia, durante o dia, raramente são vistas inteiramente
desertas. Elas comportam a dinâmica do movimento, própria dos modos de
interagir do jovem do local. Os jovens circulam pelas quadras, conjuntos e
praças diferenciados, dificilmente permanecendo muito tempo, como mais de
uma hora, no mesmo lugar, a não ser quando estão, por exemplo, nos bares,
bebendo. Esses constantes deslocamentos fizeram-me, inclusive, passar horas
relevante da forma como se inscrevem em seu mundo. O apelido, o “vulgo” ou “nome de rua” é,
entre outras coisas, considerado uma proteção contra a polícia.
53
transitando de quadra em quadra na busca de informantes com quem marcara
encontro. André, 24 anos, assaltante de banco declarado, fala de como os
jovens da Ceilândia costumam se movimentar:
A gente se encontra só para rir um pouco. Ta acostumado a ir ali, a ver uns ali,
conversar uma coisinha e outra só pra se divertir. Aí já muda dali e vai pra
outro grupinho, ai chega lá e ri um pouco, dali já vai pra outro.
O trânsito entre os diferentes quadras e setores da Ceilândia é mais
comum durante o dia. À noite, os limites do território por onde circulam são
redimensionados e os jovens procuram restringir sua permanência às suas
respectivas quadras ou ruas, evitando o perigo de encontros indesejáveis com
desconhecidos armados ou situações de conflito provocadas pela invasão do
“pedaço”
10
alheio. Quando saem de sua área de pertencimento, o fazem
cientes dos riscos de exposição à violência, potencializada pelo uso difundido
das armas de fogo (ver capítulo 5).
A bicicleta aparece como importante, na medida em que facilita a
mobilidade. São consideradas “aviões”
11
e, por darem mobilidade rápida,
constituem num bem bastante valorizado – “Bicicleta na mão vale ouro”, enfatiza
Isac, 19 anos, líder de uma gangue de pichadores. E prossegue: “Bicicleta aqui é
nosso transporte. Quando boto a bicicleta na mão, ‘êta’, rola demais. E rola pra mais de hora”.
São freqüentemente roubadas, trocadas por roupas, relógios, aparelhos de
som e outros bens, vendidas e emprestadas. Costuma-se também
“fumar
bicicletas”
, isto é, transformá-las em maconha numa barganha. Trocar uma
bicicleta alheia por droga aparentemente não é motivo de conflito,
evidentemente se é um
“chegado” (amigo próximo) que o faz. As contas são
acertadas nas ocasiões certas, tudo funcionando na base da troca. A bicicleta é
também, na percepção da polícia, um dos signos distintivos do “jovem
marginal”, sempre em sua mira.
10
A noção de “pedaço” foi elaborada por Magnani (1998) para se referir a um território que
funciona como um ponto de referência na vida de um bairro onde se desenvolve uma
sociabilidade básica, com relações sociais mais amplas que as fundadas nos laços familiares e
menos formais e individualizadas que as impostas pela sociedade. Em outras palavras, o
“pedaço” seria um espaço intermediário entre o privado (casa) e o público.
11
Chamo a atenção para o duplo sentido do termo. “Avião” tanto se refere à rapidez quanto à
pessoa que transporta e passa droga.
54
Circular, de bicicleta ou não, faz parte da “caça do que fazer”, expressão
bastante corrente entre os jovens
12
. De modo geral dizem que, na falta de
opção de lazer
13
, divertimento ou trabalho, “caçam”, “inventam”, deixando a rotina
fluir por conta dos acasos: “Saio com os amigos que aparecem”; “Fico rodando pra ver o
que rola”.
Os jovens se movimentam na procura por atividades com fim em si
mesmo, aquelas que, como assinala Goffman (1974a) não têm conseqüências
e não são problemáticas – nada de importante se passa ou nada que seja
absolutamente imprevisível
14
–, mas também circulam na busca da “ação”. E
onde a “ação” se encontra existe risco a correr
15
. Brigar, pichar, “fazer uma fita”,
“um ganho”
, ou seja, assaltar e roubar, consumir álcool em excesso e drogas são
práticas que configuram tipos de ação que exercem forte atração sobre alguns.
Nessas atividades, os jovens geralmente experimentam grande excitação –
“sobe a adrenalina”, como dizem – produzida pela exposição ao risco e pela
incerteza quanto ao que pode ocorrer nos instantes seguintes. Nelas também
sempre colocam a integridade do corpo em perigo
16
(ver capítulo 5).
Ir à escola, para alguns, encontrar a turminha, os “chegados”, sair com
amigos para se divertir, beber, dar uma voltinha de bicicleta, namorar, jogar
futebol, tomar “uma cervejinha” na feira, ir às festas na vizinhança ou na casa de
parentes, “curtir um som”, ir à bailes e shows, quando se tem dinheiro ou quando
são gratuitos, à alguma quermesse, ao trio elétrico, quando há
17
, fazem parte
12
“Caçar” é um verbo utilizado principalmente no nordeste brasileiro como substituto do verbo
“procurar”. Observa-se que, por influência dos pais, a maior parte migrantes do nordeste do
País, os jovens incorporam muitas palavras e expressões típicas daquela região.
13
Chamo a atenção para o fato de alguns informantes terem se referido ao “lazer” como
atividades culturais, sobretudo ligadas à música, e a eventos poli-esportivos, como torneios de
futebol e vôlei que, na década de 1980, eram realizados com freqüência na cidade,
principalmente nos finais de semana.
14
Essas atividades se assemelham àquelas que empreendemos quando queremos “matar o
tempo” livre. Mas, diferentemente do tempo livre que um trabalhador “mata”, justificado como
um descanso merecido das obrigações passadas ou de outras iminentes, o tempo livre do
jovem não se opõe ao tempo ocupado e seu mundo sério de trabalho.
15
Nas palavras de Goffman, “a ação se encontra onde quer que o indivíduo aceite com
conhecimento de causa riscos importantes e aparentemente evitáveis” (Goffman, op.cit: 158).
16
Na realidade, o indivíduo sempre coloca o corpo em as suas atividades e, por mais
cuidadoso que seja, a integridade dele, em certa medida, está sempre em perigo. Contudo, os
riscos de danos são maiores em determinadas atividades que em outras. Ver Goffman, op.cit.
17
Os trios elétricos são contratados pelo governo quando se quer dar destaque a uma data ou
a um evento especial. Em tempos de campanha eleitoral, os candidatos costumam utilizá-los
nos seus “showmícios”, promovidos quase que diariamente.
55
da rotina. Alguns jovens costumam freqüentar, principalmente no final de
semana, as boates e bares de Taguatinga, cidade que, segundo eles, oferece
mais opções de “diversão” e “animação” que a Ceilândia. Sair para bagunçar”, “fazer
barulho”,
é também prática habitual de alguns. Em certos casos, fumar maconha
é uma rotina importante na convivência diária com outros jovens:
Tem a rotina que é fumar maconha o dia inteiro; o dia inteiro; não sei como nós
consegue. [...] Fumar maconha o dia inteiro, curtir. Ficar na esquina se
intoxicando, várias pessoas. Ficar lá se fazendo a mente, ir para casa comer e
dormir e ficar na manha. Porque baile funk
18
ninguém mais está curtindo.
Também não tem dinheiro, ninguém está trabalhando.
Isac, autor dessa fala, líder de uma famosa gangue de pichadores da
Ceilândia, parou de estudar aos 18 anos, quando estava na 6
a
série e morava
com a família próxima à praça onde costumamos marcar nossos encontros.
Sempre dizia que era da rua, que parecia que não tinha casa. Ali, naquela
praça da (quadra) 26 do Setor P-Sul
19
, fazia seu principal ponto de referência.
Não somente ele o fazia, como também outros jovens. Observei, em várias
ocasiões, que era na praça onde se tinha notícia de tudo e todos. O passante
de bicicleta parava, cumprimentava, ficava ali um pouquinho. O passante de
carro parava, perguntava por ‘fulano’, ficava um pouquinho.
As praças, com as quadras esportivas a elas incorporadas, reproduzem-
se no tecido urbano do Setor P-Sul, marcado por uma extrema homogeneidade
que também caracteriza os outros setores da cidade
20
. As praças são locais
18
Atualmente em Brasília, “baile funk” é usado como sinônimo de baile Rap. Antes do Rap se
instaurar como estilo musical preferido dos jovens da periferia da cidade, houve uma onda
Funk e, por isso, os termos são usados correlatamente, muito embora a presença Funk não
tenha mais expressão no meio jovem de Brasília, ao contrário do que ocorre, por exemplo, no
Rio de Janeiro.
19
O P-Sul, Setor onde concentrei grande parte do trabalho de campo realizado na rua, é uma
das áreas urbanizadas da cidade e, à exceção de suas quadras de expansão, as ruas são
todas asfaltadas. Algumas casas chegam a ter três andares, mas a maioria mantém o padrão
original de apenas um pavimento. Em muitas de suas garagens há carros estacionados. É
comum montar estabelecimentos comerciais nas próprias residências, onde funcionam salões
de beleza, barbearias, bares, sorveterias, butiques de roupas, oficinas, por exemplo.
20
As concepções urbanística e arquitetônica da cidade, bastante polemizadas por planejadores
urbanos, nunca chegaram a ser mencionadas pelos jovens. A extrema homogeneidade do
tecido urbano, que no meio especializado é tido até mesmo como uma “anomia”, transformou-
se para os nativos em paisagem natural, como ilustra a fala de Patrícia, quando lhe perguntei
onde ficava um determinado barzinho numa outra quadra: “Fica aqui em cima. Lá é como aqui,
entende? Aqui tem a padaria, aqui tem um bar. É como se fosse aqui, porque todos esses
lados aqui são iguais. Tipo assim: lá também tem o colégio, do lado tem a quadra”.
56
comunitários e, no caso da “praça da 26”, onde encontrava Isac, existiam até
mesmo hortas cultivadas por moradores da vizinhança. Na sua visão, a sua
praça era um espaço largado, bastante degradado. Os equipamentos
esportivos, de fato, estavam todos em péssimo estado. Ambientes como esse,
segundo ele, estimula o jovem a não fazer nada e a falta do que fazer leva-o a
fumar maconha o dia inteiro, a ficar pensando bobagens. Esta seria a razão
para a existência de tanta violência envolvendo jovens na cidade: “mente parada,
oficina do Diabo”
, diz Isac, evocando um ditado por várias vezes repetido por
diferentes informantes durante o trabalho de campo.
Cabe chamar a atenção para a natureza ambígua e, em certa medida,
conservadora, com a qual muitos jovens, como Isac, operam a idéia de
sociabilidade: esta é percebida como uma constante procura pela ação, pelo
risco, pela adrenalina, uma busca que, ao mesmo tempo, também pode ser
vista como uma expressão de anti-sociabilidade, como um impulso acionado
pelo poder anti-social do mal, encarnado na figura comumente citada do Diabo.
A percepção que Isac tem da Ceilândia é compartilhada pela maioria dos
jovens que entrevistei. Trata-se de uma visão extremamente ambivalente. Ao
mesmo tempo em que a cidade é qualificada como violenta, perigosa, cheia de
malandros, bandidos, assassinos, traficantes, drogados e marginais, alguns
setores, como o seu, como “caldeirão do Diabo”
21
, essa má imagem é
manifestamente recusada ou negada:
Falam que Ceilândia é um lugar perigoso, que tem muito malandro. Não tem
nada a ver.
A gente está vivendo no mundo, não é só Ceilândia, a gente vive num mundo
onde existe violência por toda a parte.
Profundamente enraizados no lugar onde passaram o essencial de sua
existência, no curso de nossas conversas sempre acabavam refutando sua
imagem negativa. Apoiados na exacerbação do sentimento de enraizamento
21
Interessa notar que o modo como os jovens referem-se ao Setor P-Sul e à Ceilândia traduz
vínculos identitários distintos. Todos se dizem moradores da Ceilândia, mas costumam também
falar do Setor P-Sul como se não fizesse parte da Ceilândia. Quando dizem “vou à Ceilândia”
ou “lá na Ceilândia” estão se referindo ao centro da cidade. Paralelos podem ser feitos com
outras situações encontradas no Brasil afora. Um morador de Vitória da Conquista, no Estado
da Bahia, por exemplo, quando vai à capital, Salvador, costuma dizer que está indo à Bahia.
57
local – “Eu tenho orgulho de morar na Ceilândia. E tem mais. Mesmo se tivesse condições eu
não sairia daqui”
– e na valorização das bases na qual se estabelecem as
relações interpessoais, diz André
22
:
O pessoal aqui é humilde, o pessoal trata bem. Se você for pedir lá no Plano
um copo d’água, ninguém vai te dar. Aqui tem companheirismo e todo mundo
se conhece [...]. Os vizinhos são tudo quase irmão.
Em seu estudo sobre a moral dos pobres, realizado num bairro da
periferia de São Paulo, Sarti (1996) revela a importância das relações de
vizinhança no universo das classes populares no Brasil. Ela mostra que há uma
tendência ao estreitamento de laços com a rede de vizinhança e, mais que
alguém que mora ao lado, o vizinho é presente como “sucursal da casa”, sendo
mais importante que os parentes de sangue, exceto se estes também morarem
na mesma localidade, compartilhando a vida cotidiana. A confiança, conclui a
autora, é o que faz que um vizinho seja mais importante que um parente.
Mas não deixa de haver também entre os jovens uma outra visão da
vizinhança que ressalta menos a valorização das relações interpessoais e os
laços de solidariedade do que os aspectos por eles considerados negativos,
como a constante vigilância de suas condutas. É o que diz Ronaldo:
Ô negocinho enjoado é vizim, que não sabe de nada da minha vida e fica
cagüetando. Vizim, vizim pensa que sabe mais da minha vida que eu mesmo.
São as piores pessoas, sabia? Vizim fica te espiando pra dedurá. E os vizim
que falam mais da gente é aqueles que andam mais na sua casa.
A vivência na Ceilândia, mesmo com toda a imagem negativa imposta
pela mídia, os prepara para a vida, enfatiza André, numa tentativa de
neutralizar o estigma espacial
23
. A vantagem de morar naquela cidade seria o
22
Assinalo que este discurso, positivo e refutador da imagem negativa do lugar, tem, como
interlocutor, a pesquisadora — uma pessoa que os jovens reconhecem como sendo de fora,
precisamente do Plano Piloto. É provável que entre eles, na conversa entre pares, longe de um
contexto de entrevista, não produzam esse mesmo tipo de discurso. De todo o modo, quando
perguntados sobre como é viver na Ceilândia, os jovens apresentam sua imagem negativa, que
é tida principalmente como uma construção de agentes externos, para, em seguida, refuta-la.
23
Refiro-me a “estigma” como um atributo identificatório depreciativo. Como observa Goffman
(1982), em si mesmo um atributo que estigmatiza não possui qualidades que desacreditam um
indivíduo. O estigma envolve relações, é um processo social de dois papéis – o indivíduo
“normal” e o indivíduo “estigmatizado” – profundamente imbricados, no qual cada indivíduo
participa de ambos. No “estigma espacial”, assim como em outras modalidades de estigma,
podem ser encontradas as seguintes características sociológicas: “um indivíduo que poderia ter
58
“aprendizado”, a “experiência”, que os possibilita viver em qualquer outro
grande centro, safando-se das dificuldades normalmente enfrentadas pelas
pessoas criadas no ambiente das classes abastadas:
[...] nem toda pessoa vai te dar um bolão [enganar], porque você teve uma
formação bem vivida aqui. [...] Aqui, com sete anos a criança já sabe o que é
uma arma, já sabe o que é um preto
24
.
Não é sempre que a gestão do estigma espacial é possível.
Independente das estratégias adotadas para neutralizar a imagem negativa do
lugar, os jovens da Ceilândia experimentam o sentimento de revolta por
sofrerem, na prática, as conseqüências de serem portadores desse estigma.
Para eles, morar na Ceilândia significa ser pobre: “O rico pensa que pobre é tudo
malandro”
. Morar na Ceilândia significa ser alvo constante de revistas policiais,
estar sempre na mira da polícia: “A polícia não respeita nem trabalhador, todo mundo
aqui pra eles é bandido”
. Morar na Ceilândia significa ser recusado aos postos de
trabalho: “Quando você diz que mora na Ceilândia, você já sente a expressão na cara dele”.
Significa conviver com a constante rejeição: “Você é a escória pra eles”. Morar na
Ceilândia significa ser confundido com traficante, com assaltante, com ladrão:
Quando a pessoa pergunta onde você mora e quando eu falo que é na
Ceilândia: “Vige! Aquele lugar é muito violento”. Ou então chega outro e diz:
“você tava conversando com bandido”.
sido facilmente recebido na relação social quotidiana possui um traço que se pode impor à
atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros
atributos seus” (Goffman, 1982: 14).
24
“Preto” é uma referência ao cigarro de maconha.
59
1.2. Viver em Samambaia
Realidade atual – Samambaia Norte – não
brinque com a sorte. Samambaia, o futuro
começa aqui. Mas como começa se não
podemos nem dormir? Tiro, porrada, paulada
[...] A número um em violência, sempre a mal
falada, a sua vida aqui não vale nada. [...] A
vida é um inferno em Samambaia, uma cidade
onde não existe sorte. Vivemos o dia-a-dia ao
lado da morte.
(Rap cantado por um integrante de gangue de
pichadores)
Samambaia é vizinha à Ceilândia, sendo que uma parte de sua
população daí é procedente
25
. A cidade, sendo ainda jovem, não está toda
ocupada: restam grandes áreas a preencher, principalmente as destinadas ao
comércio, lazer, escolas e postos de saúde. É conhecida como o “exemplo
maior” de uma política demagógica e populista de distribuição de terras
públicas
26
e também pela insegurança, embora essa última imagem não se
equipare à que Ceilândia possui.
A implantação de Samambaia, em 1989, seguiu o padrão de quase
todas as demais cidades-satélites de Brasília. Localizada a cerca de trinta e
cinco quilômetros do Plano Piloto, a cidade foi implementada sem as mínimas
condições de infra-estrutura urbana, ou seja, sem ruas asfaltadas, redes de
distribuição de água, de coleta de esgoto
27
.
25
Para Samambaia foram transferidos inquilinos de fundo de lote que moravam em Taguatinga
e na Ceilândia, assim como moradores de invasões próximas ou situadas no Plano Piloto,
como a invasão do CEUB, na Asa Norte, próxima à instituição de ensino que tem esse nome.
26
A distribuição de lotes para camadas populares é uma prática que se tornou característica
das administrações do Distrito Federal levadas a cabo por Joaquim Roriz. Eleito três vezes
governador, o nome de Roriz comparece de inúmeros escândalos envolvendo transações de
terras públicas em Brasília. Seus críticos e opositores o acusam de utilizar os programas
habitacionais como instrumento para conquistar a simpatia popular e, principalmente, angariar
votos em períodos eleitorais. Ver Gouvêa (1996) e Doyle (1996).
27
Segundo Gouvêa (1996), em menos de dois anos mais de 120 mil pessoas foram
transferidas para o local. Durante esse período, a população permaneceu praticamente
acampada. Em outubro de 1989, ano do início da transferência, uma única chuva destruiu
inteiramente cerca de 100 casas recém-construídas, deixando centenas de pessoas feridas,
além das perdas materiais.
60
Samambaia conta com 164.319 habitantes (IBGE - Censo Demográfico
2000). A Avenida Central, a “pista”, por onde passa uma rede de alta tensão de
12 km de extensão, atravessa toda a cidade, dividindo-a claramente em duas
metades. Nela circula o Veículo Leve sobre Trilho – VLT, o transporte coletivo
que substituiu o ônibus nesta área da cidade, e situa-se em três estações do
metrô, apenas uma delas em funcionamento. A população costuma se dirigir à
Avenida Central, a chamada “pista”, somente no caso da necessidade de
utilização de transporte de massa. As edificações do Centro Urbano, planejado
para abrigar a principal área comercial da cidade, não estando inteiramente
construída, torna o suposto “coração da cidade” bastante monótono.
Uma certa aridez imediatamente chama a atenção quando se anda por
Samambaia, além de dificuldade de orientação. As pequenas casas térreas,
geralmente muradas, a enorme quantidade de antenas de TV e a ausência de
vegetação reproduzem-se na paisagem urbana. A aridez desse cenário é
reforçada pela baixa circulação de pessoas nas ruas. Ainda que grupinhos de
jovens possam ser freqüentemente encontrados nos espaços públicos, sua
presença não é tão marcante como na Ceilândia. Eles ganham maior
visibilidade nas portas das escolas, nos horários que antecedem o início das
aulas, ou posteriores, ao final dos turnos letivos.
Também, diferentemente da Ceilândia, em Samambaia, por se tratar de
um assentamento relativamente recente, os jovens informantes não nasceram
no local. Todavia, a maioria está na cidade desde sua inauguração, vinda de
outras áreas do Distrito Federal. No início, dizem eles, Samambaia era calma e
pacata, quando comparada aos dias atuais. Ao longo dos anos, a cidade
acumulou muitos aspectos negativos e hoje existe muita violência,
malandragem, galeras, brigas de gangues, muitas mortes, principalmente de
adolescentes, assaltos, muita “cachaça” e tráfico de drogas: “as pessoas sentem
medo”
. A precariedade da infra-estrutura da cidade – grande parte das ruas e
calçadas ainda estão por construir –, faz com que nuvens de poeira vermelha
espalhem-se pelo ar, dando margem a certo humor e ironia entre adolescentes
de um grupo que entrevistei, entre 15 e 16 anos: “pobre não pode viver sem uma
poeirinha”; “eu gosto da poeira”; “poeira gostosa”; “tem um cheirinho saudável”.
61
Uma vez construída de modo quase catártico a imagem de uma cidade
relegada ao abandono, onde tudo falta e a violência é generalizada, opera-se
sua neutralização: o perigo e o medo seriam relativos, existiriam mais para as
pessoas de fora que não conhecem as divisões territoriais, os códigos locais e
a geografia da violência – “Pra pessoa que mora aqui não é tão perigoso. Mas pra quem
chega aqui, tem que ser humilde”
– diz Pedro, de 17 anos, ex-integrante de uma
gangue de pichadores. Apontam ainda para uma estratificação do espaço, na
qual algumas quadras são consideradas mais pobres, mais violentas e
perigosas
28
: “Na Samambaia sul, nas quinhentos, lá é perigoso. Aqui não, aqui a gente
conhece todo mundo”
, complementa Sérgio, de 16 anos, também ex-integrante de
uma gangue de pichadores. Nessa lógica de contrastes e diferenciações,
comparam Samambaia à vizinha Ceilândia, como o faz Caio:
Se brincar tem lugar mais violento aqui que na Ceilândia, mas só que a
Ceilândia ganha ainda. Aqui é equilibrado, sabe? Tem alguns lugares
violentos, têm outros que você não vê ninguém, tem menos violência
.
O discurso em defesa da cidade é tão enfático quanto o de sua
condenação. A mídia e a polícia seriam os principais responsáveis pela
construção da imagem negativa de Samambaia. Afinal, o local, na visão dos
jovens, não é mais violento e nem pior que muitos outros do Distrito Federal:
Só é retratado pelos jornalistas como o pior lugar, não tem nada a ver.
A polícia fala mal e os jornalistas discrimina muito. Em vez de mostrarem o
lado bom, eles só mostram o lado ruim.
A Samambaia que a mídia fala não é aqui. Quem convive aqui sabe que é
diferente.
Ana Paula, de 16 anos, tenta recuperar o que há de positivo em
Samambaia, lembrando o companheirismo, a solidariedade, o entrosamento
das pessoas dali. Fala de um lado calmo da cidade, do fato de todos se
28
Embora dados da CODEPLAN apontem para uma homogeneidade em termos de situação
sócio-econômica das famílias de Samambaia, o fato é que logo no início da distribuição dos
lotes já se foi definindo uma estratificação do espaço segundo a posse de capital social e
econômico. As pessoas “apadrinhadas” puderam escolher os lotes melhor localizados (mais
próximos do comércio, na divisa com Taguatinga, frente a uma praça, nas quadras que
primeiro receberiam a infra-estrutura, etc.). Os lotes do Setor de Mansões, os mais apartados
do restante da cidade, foram entregues a famílias de camadas médias e de empresários, que
hoje reivindicam que o Setor seja incorporado à Administração Regional de Taguatinga.
62
conhecerem, das muitas amizades feitas no local e não esconde a revolta de
se sentir discriminada em função de imagens negativas construídas por
agentes externos. Esses estereótipos, afirma a adolescente, não cairiam nunca
sobre um morador do Plano Piloto, onde nada de ruim é revelado pela mídia:
Aqui pode ter mais violência que a mídia expõe. Agora, tem mais violência que
no Plano não. Com certeza aqui não tem mais violência do que lá. Por ser o
Plano Piloto, a mídia não expõe tanta violência que tem lá, as coisas horríveis.
Porque aqui, por ser Samambaia, por ser Taguatinga, por ser Ceilândia, por
eles considerarem a periferia, eles expõem a violência. Agora, no Plano, eles
não expõem.
Viver em Samambaia, na percepção dos jovens, significa carregar
estigmas que limitam suas oportunidades de emprego, já que a cidade é vista
como um lugar violento, antro de marginais, de desocupados e criminosos.
Espiga, de 18 anos, ex-líder de uma gangue de pichadores, explica:
A maioria dos empregos são no Plano e, às vezes, só pelo lugar que vo
mora, eles acham logo que você é ladrão. Às vezes, você chega no serviço:
“aonde você mora”? “Moro na Samambaia”. Já inibe, já pensa que você é um
malandro. [...] Quando eu falei “Samambaia” o cara ficou com o olho
arregalado: ‘‘volta depois”.
Quando se convive com pessoas do Plano Piloto o peso do estigma
aumenta. O nome da cidade pode ser utilizado, com deboche, para qualificar
negativamente o jovem vindo dessa periferia. Guga, de 17 anos, integrante de
uma gangue de pichadores, conta de sua experiência quando freqüentava um
curso profissionalizante oferecido pelo governo no Plano Piloto: “aonde você
mora?” “Na Samambaia”. “Ihh!!! Na Samambaia, oh!!! ... O Cara é da Samambaia, olha gente!
Samambaia, Samambainha [...]”.
Mancha, de 16 anos, integrante de outra gangue
de pichadores, reforça a fala do colega: “Você fala que é de Samambaia, eles só olham
assim ..., nem ligam”.
Viver em Samambaia, além de estigmas, impõe à existência dos jovens,
segundo eles, uma rotina marcada por grandes limitações às atividades de
lazer, seja pelas precárias condições de infra-estrutura da cidade, seja em
virtude da falta de dinheiro. Como práticas de lazer, jogam futebol, basquete na
escola, andam de bicicleta, freqüentam os fliperamas espalhados em vários
pontos do comércio da cidade, escutam música, participam ou assistem a
apresentações de conjuntos de rap, vão a festas, namoram e paqueram: “coisa
63
da periferia”
, resume um dos informantes. Alguns costumam ir a shoppings,
bares e boates em Taguatinga, onde dizem haver mais “animação” e “diversão”: “lá
rola sempre um frevo pra ir”.
A cidade vizinha tem também, como atrativos, vários
pontos considerados pelos jovens como ótimos alvos para pichação, um dos
tipos de “ação” que, como mencionado, exerce forte atração sobre os jovens,
principalmente adolescentes (ver capítulo 5).
Os “baculejos” (revistas policiais) também fazem parte da rotina dos
jovens de Samambaia, como dos das demais cidades da periferia do Distrito
Federal. Nas palavras de Ana Paula:
Diversão, lazer não tem praticamente. A vida aqui é mesmo ficar na galerinha,
conversando na galerinha. Se a polícia passa, manda parar todo mundo, dá
baculejo e sai fora, vê que não tem nada. É assim a vida do jovem aqui em
Samambaia, porque diversão aqui não tem não
.
De maneira geral, eles afirmam não ter o que fazer, não ter muitas
opções de lazer. A rotina é pontuada pela ida à escola, quando nela estão
inscritos, e encontros com suas galeras nas ruas: “Sai da escola, toma cana, passa o
dia feliz. Mesma rotina: bebida, casa, comida. Sai da escola, seis horas, compra uma cachaça,
bebe ali no Skate...”
, diz Godinho, de 16 anos, ex-integrante de uma gangue de
pichadores. Fábio, de 16 anos, também fala de como ele e sua galera
costumam se divertir:
A gente tem uma galera dentro do colégio, o grupo do Presi. Todo mundo traz
um real na Sexta-feira, né? Aí junta todo mundo e compra o Presidente
29
e a
Coca-cola. Compra Cortezano, cerveja, até Fanta, juro, a gente bebe.
Começou com quatro. Agora no colégio já tem é muita gente. Reuniu os mais
animados. [...] Pois é, a gente bebe só pra animação, só pra ficar alegre.
Animação só pra paquerar.
Há os que evitam os bares, preferindo as reuniões nas casas de amigos
e na rua onde moram, para fugir dos encontros indesejáveis com gangues. É o
caso de Marcelo, de 16 anos:
A gente, sei lá, tem nada pra fazer assim... Mas a gente procura fugir da galera
de gangue, não vai pra bar pra fugir de gangue. A gente compra a cerveja e
leva pra casa pra beber. [...] Às vezes a gente fica na esquina da rua. Na rua
onde eu moro tem uma árvore lá que é bem em frente da casa do Júlio. A
gente compra cerveja e toma lá, debaixo da árvore. Quando quer fazer
29
Refere-se à bebida Conhaque Presidente.
64
churrasco, leva a churrasqueira e a gente faz. A gente mesmo compra a carne,
o carvão, a cerveja [grifo meu].
As brigas entre gangues, as trocas de tiros, os roubos e o consumo de
drogas fazem parte do cotidiano de alguns. Para esses, a prática de atos
ilícitos pode até mesmo representar uma forma de diversão, enquanto para
outros, são constitutivos de um ambiente de violência que coloca novas
restrições às possibilidades de lazer.
O lúdico, o violento e as fantasias muitas vezes se misturam, podendo
dar às trocas de violência uma dimensão ritual. Foi o que constatei pela
primeira vez numa tarde quando encontrei Godinho sentado na porta da
escola. Ele estava com o braço engessado e, como sempre, tinha os olhos
bem avermelhados. Godinho é um usuário de merla
30
, dos que dizem sofrer
com a “gugu” (angústia). Sentei ao seu lado e perguntei-lhe sobre os motivos
daquele gesso no braço. Ele ria, dizendo que aquilo fazia parte de uma
brincadeira entre amigos. Enquanto me contava sobre a brincadeira, um outro
adolescente fazia-lhe sinal na esquina, ao que ele respondia com outro discreto
sinal codificado, indicando que eu era “sujeira”
31
, que não daria para receber a
droga naquele exato momento. Seu relato prosseguiu sob o olhar distante e
atento do amigo. Fazia uma semana que duas galeras amigas se juntavam
para
“brincar de bater” numa das pracinhas da quadra onde morava. Começavam
a brigar por volta das sete da noite e encerravam o encontro por volta das dez.
Aquele era um dia de trégua, pois todos já estavam bem machucados:
São todos amigos, a gente se junta pra brincar. É ver quem agüenta bater e
apanhar mais. Levei uma ‘voadora’, mas dei também. E só brincadeira... Só
pra brincar, não tem nada pra fazer. É melhor que ficar aprontando.
30
A merla é um derivado da cocaína, mais precisamente, uma pasta feita de cocaína refinada
misturada com soluções químicas utilizadas em baterias de automóveis. Trata-se de uma
droga relativamente barata e bastante consumida entre os jovens da periferia do Distrito
Federal. Existe uma versão que corre entre os meus informantes de que a merla foi uma
invenção criada nos quintais de Sobradinho, cidade-satélite de Brasília. Não pude confirmar tal
afirmação, mas, comparando com outros estados brasileiros, observa-se a popularidade da
droga no Distrito Federal, o que não ocorre em outros grandes centros do país, onde, de modo
geral, o crack, outro derivado “podre” da cocaína, tem uso bastante difundido. Abordo a relação
entre os jovens e as drogas no capítulo 5.
31
Alguém ruim. No caso, alguém que pode denunciar para a polícia, informante da polícia.
65
No “brincar de bater” descrito por Godinho, a briga – bater e apanhar –
poderia ser lida, nos termos de Goffman (1986), como o enquadramento ou
moldura (frame) primária dessa situação de interação enquanto que a sua
transformação em brincadeira como uma espécie de modulação (keying)
32
.
Vale notar que embora todos concordem em promover a pancadaria apenas
como brincadeira, é possível ocorrer que, no auge do entusiasmo do bate lá e
apanha cá, os excessos de violência física degenerem em brigas de fato,
significando o retorno ao enquadramento original que organiza esse tipo de
evento.
Bater e apanhar na rua é parte da rotina de muitos informantes. As
brigas acontecem por “diversão”, “brincadeira”, mas também por motivo de
rivalidade entre galeras e gangues. Como na Ceilândia, também em
Samambaia existem “guerras” entre diferentes quadras que impõe aos jovens
restrições de trânsito em determinados territórios:
Eu não fico andando por quadra dos outros, cê é doido é? Tipo assim, desde
que a gente mudou pra cá sempre teve uma guerra entre a 408 e a minha
quadra. Se passar por lá tá caçando briga, o pau come mesmo.
Das cidades nas quais pesquisei, foi em Samambaia que tive contato
com o maior número de adolescentes. A maioria estava ou esteve envolvida
com gangues de pichação que se distinguem de outras gangues, na medida
em que o componente lúdico tem um peso de muita importância (ver capítulo
32
Frame(work) e keying são conceitos formulados por Goffman no seu persistente esforço de
compreender a estrutura que organiza a experiência das pessoas. Sigo a sugestão do
professor Wilson Trajano Filho para traduzi-los em língua portuguesa como enquadramento ou
moldura e modulação, respectivamente. Tais conceitos referem-se aos esquemas de
interpretação que as pessoas utilizam para definir e dar sentido às situações em que estão
envolvidas no próprio ato de nelas estar. Uma moldura (frame) é constituída de “princípios de
organização que governam os eventos – ao menos aqueles a que chamamos de sociais – e
nosso envolvimento subjetivo com eles” (Goffman, 1986:10-1). As várias molduras básicas de
uma sociedade funcionam como modelos que, transformados, conferem sentido e organizam a
experiência dos sujeitos em outras situações sociais, produzindo novos enquadramentos.
Goffman distingue dois tipos de transformação, por ele nomeadas de modulação (keying) e
farsa ou falsificação (fabrication). A primeira é definida como “um conjunto de convenções pelo
qual uma determinada atividade, em si já significativa em termos de enquadramento primário, é
transformada em algo nela modelado, mas vistos pelos participantes como uma atividade
diferente” (Goffman, op. cit.: 43-4); a segunda como “o esforço intencional de um ou mais
indivíduos para gerenciar uma atividade de modo que os outros sejam induzidos a ter uma
falsa crença acerca do que realmente está acontecendo” (Goffman, op.cit: 83). Para um
criativo, interessante e valioso exemplo de aplicação dessas ferramentas de análise
desenvolvidas por Goffman ver Trajano Filho (a sair).
66
5). As brigas entre essas gangues são freqüentes e migram das ruas para o
interior dos estabelecimentos de ensino, podendo ainda ultrapassar os limites
da cidade, indo parar nos shoppings e boates de Taguatinga.
1.3. Viver em Planaltina
A noite não se dorme aqui. Se escuta os tiros e
quando passa o final de semana eu ouço os
comentários: morreu fulano, beltrano e ciclano.
O pessoal da classe nobre de Planaltina vive
desprezando quem mora na parte de cima,
quem mora no Pombal, no Garrancho, no
Buraco Fundo e no Agreste. Vivem falando da
violência que aqui acontece. Porque na alta
sociedade o que manda é o dinheiro e o que
manda na comunidade pobre é o medo da
morte, é o medo da bala, é o “ferro” em punho.
(Rap de autoria do grupo Código Penal)
Planaltina, situada a quarenta e cinco quilômetros do Plano Piloto, se
opõe, em termos geográficos, à Ceilândia e Samambaia, estando fora do
principal eixo da metrópole em formação. Sua imagem está vinculada à história
da construção de Brasília, pois nas suas proximidades foi implantada, em 1922,
a “Pedra fundamental” da futura capital. A cidade, fundada nos tempos do
Império, mantém parte de seu traçado e edificações originais, onde residem
fazendeiros e famílias tradicionalmente enraizadas no local. Os novos
assentamentos
33
ou setores, construídos na extensão do núcleo histórico,
abriga uma população cuja socialização e sociabilidade passam ao largo das
da comunidade tradicional. A face nova de Planaltina, composta por bairros
com infra-estrutura precária e cujos moradores foram em grande parte
removidos de invasões nas cercanias do Plano Piloto
34
, está praticamente
ausente das imagens correntes acerca da cidade, que por muito tempo esteve
33
Os termos “assentamento” e “assentado” são utilizados por órgãos dos governos Federal e
do Distrito Federal.
34
Também foram transferidos para os novos assentamentos inquilinos de fundo de lote
vivendo na própria Planaltina ou em outras cidades-satélites de Brasília. Além disso, muitas
famílias que viviam na área rural da cidade receberam lotes do governo nesses novos setores.
67
centrada no pacato estilo de vida de uma comunidade de interior
35
, com pouco
mais de 2.000 moradores.
Atualmente, a cidade, com 147.114 habitantes (IBGE, Censo
Demográfico 2000), chama a atenção pelo grande número de casos de
violência envolvendo tráfico de drogas e jovens. Planaltina foi a única cidade
em que muitos dos jovens entrevistados afirmaram ter vontade de se mudar,
sair, viajar. A maioria é nascida em Planaltina fora do núcleo antigo ou na área
rural do entorno, enquanto outra parte veio de outras localidades do Distrito
Federal. Também a maioria dos informantes não mora no setor tradicional da
cidade: vive nos novos assentamentos, lugares sombrios, onde praticamente
não existe iluminação pública e as casas e barracos escondem-se detrás da
proteção de altos muros frontais
36
.
Nesses locais, o esgoto escorre pelas ruas de terra vermelha do
cerrado, misturando-se ao lixo e a toda a sorte de imundice que é jogada
displicentemente nos espaços públicos, uma prática que poderia ser
compreendida, nos termos de Goffman (1973), como uma situação extrema de
“ofensa territorial”. Todavia, neste caso, a “ofensa” é mais ou menos dirigida
contra si mesmo. Não posso deixar de sublinhar que a sujeira vista nas ruas
não impede que os moradores mantenham seu espaço privado dentro de um
padrão de limpeza impecável, o que muitas vezes pude observar.
Planaltina é sempre qualificada pelos jovens como “muito violenta” e “muito
perigosa
. Viver na cidade pode ser “bom”, “legal”; mas nem sempre; somente de
35
Na verdade, a vida tradicional da cidade de Planaltina, pautada num forte senso de
comunidade, vem sofrendo significativas transformações desde a construção de Brasília. Como
diz Max Weber, uma relação social é chamada comunidade “quando a atitude na ação social –
no caso particular, em termo médio ou no tipo puro – inspira-se no sentimento subjetivo-afetivo
ou tradicional – dos partícipes da constituição de um todo” (Weber, 1973: 1). Exatamente este
“sentimento do todo” de que fala Weber é que foi sendo minado ao longo dos anos. Nos dias
atuais, não existe a “comunidade de Planaltina”, mas sim indivíduos e grupos com diferentes
interesses residindo no mesmo local e que não compartilham, com as antigas famílias, valores
e práticas da comunidade tradicional, mencionadas em estudo de Zatz (1986) sobre a Festa do
Divino e outras manifestações populares naquela cidade.
36
Nas localidades mais pobres do Distrito Federal, nas quais a infra-estrutura é extremamente
precária, chama a atenção a grande dimensão da altura dos muros. De modo geral, a sua
construção é colocada como prioridade pelas famílias, antes mesmo da construção da casa em
alvenaria, sob a alegação da falta de segurança e da ocorrência de freqüentes roubos e furtos.
Decorre daí uma paisagem urbana desoladora: as ruas transformam-se em verdadeiros
corredores fechados por paredões (muros) quase sempre sem acabamentos, faltando reboco,
impregnados da poeira vermelha do solo sem asfalto ou qualquer tipo de calçamento.
68
vez em quando, pois existem, segundo os jovens, muitos malandros,
assassinos, assaltos, muitas brigas, mortes, drogas e tráfico:
A violência aqui é demais. A morte anda lado a lado com a gente.
Aqui é o seguinte: é a lei da vida; ou você dá ou você morre; você fica ou você
corre.
Aqui menino de seis anos agora é malandro.
Aqui não tem o que presta.
Aqui está cheio de mala.
Aqui só tem bagunça e poeira.
É uma cidade badalada, cheia de violência.
Aqui é muito paia
37
, cheia de violência. Lá onde eu moro mesmo, se você
passar, o quê, as dez da noite, é tiroteio, você mal pode ir na esquina. Você
não pode ir numa farmácia comprar um remédio, por quê? Maior tiroteio
sempre. Você não pode sair na esquina porque você não sabe se vai voltar, se
vai continuar vivo, se você vai voltar a ver as pessoas. Você sai, quando volta,
olha: “é, eu tô bem”. Você sempre tem que tomar muito cuidado.
É esse o primeiro retrato, semelhante ao de um campo de batalha, que
os jovens pintam de sua cidade: Isso aqui é Sarajevo, é tiro assim pra mais de hora,
você fica até cego de tanto tiro”
(grifo meu), resumiu Júlio, 20 anos, traficante de
drogas envolvido no crime organizado, mencionando o conflito da Bósnia que
na época estava no auge
38
. Alguns atribuem esse quadro ao desemprego que
deixaria como opção roubar, assaltar e matar. Outros dizem serem as drogas e
o tráfico, principalmente a disputa pelos pontos de distribuição de drogas, o
fator predominante gerador da violência. E há, ainda, os que apontam o grande
número de novos assentamentos como razão da violência que impera. A
cidade, antes da existência dessas novas áreas, não convivia com esses
problemas:
“Planaltina era mais tranqüila... Essas invasão tudinho, o povo que vem de fora.
37
Ruim, “não tem nada a ver”.
38
Note-se que é comum apropriar-se de locais distantes e conjunturalmente marcados por
conflitos de guerra e violência para simbolizar, nominar e caracterizar outros espaços, onde
ocorrem violências ou estão em condições degradadas. Como me narrou o professor Wilson
Trajano Filho, na pacata ilha de Santiago, em Cabo Verde, um bairro da cidade da Praia
passou a ser conhecido como Tchetchênia, depois da ocorrência de algumas situações de
violência. A quadra 410 da Asa Sul, no Plano Piloto de Brasília, foi por muito tempo designada
de Coréia, em referência às suas condições de degradação e à utilização de apartamentos por
garotas de programa.
69
Por aqui não tinha esses loteamentos, nem aquele, nenhum. Aí o governo deu a terra...”,
tenta
explicar Paulo, de 17 anos, quando reflete sobre minha pergunta sobre o
porquê de toda aquela violência que ele estava me narrando. Seu discurso,
pela idade que tem, leva a crer que está fazendo uma reflexão baseado na fala
de pessoas mais velhas portadores de uma memória do lugar. Esses adultos
que viveram as grandes transformações pelas quais Planaltina passou podem
ser encarados tanto como produtores quanto transformadores de um discurso
sobre o passado da cidade – os tempos felizes, calmos, tranqüilos... –, discurso
aos quais os jovens são sensíveis, pois faz eco em suas falas.
O cotidiano marcado pela violência aparece nos discursos sempre de
modo enfático e, ao contrário do que ocorre entre os jovens de Samambaia e
Ceilândia, não existem muitas tentativas de desfazer, nem mesmo de
neutralizar ou matizar essa primeira imagem construída acerca da cidade. A
maioria dos informantes de Planaltina, quando fala da violência ali reinante,
não defende sua cidade, não critica as construções de estereótipos vindos do
exterior. A mídia, longe de ser acusada de produzir uma imagem ruim do local,
pode, para alguns, legitimar e dar credibilidade às suas falas, como no caso de
José: “Planaltina está em primeiro lugar na violência, no roubo, no assalto, em tudo [...]. Estou
falando porque a gente vive e vê no jornal tudo que se passa. Aqui morre é cinco por semana”.
Como nas outras cidades, os jovens dizem que não há muito o que
fazer, falta
“animação”, “diversão” e lazer. Ir à escola, sair para dançar em forrós,
boates, bailes e festas, beber, consumir drogas, ficar em casa jogando baralho
ou assistindo à televisão, “curtir um som”, conversar com amigos nas esquinas,
andar de skate e bicicleta fazem parte das diversões. Criticam o fato de apenas
haver opções de lazer na cidade no tempo da política, quando os candidatos
levam trios-elétricos, promovem campeonatos de futebol, gincanas e outras
atividades:
“Dia de lazer pra gente é isso: é dia em que vem a politicalha aí. Só acontece
quando tem política. Acabou, pronto. Esvaziam a cidade”.
Na falta de dinheiro para gastar com “curtição”, alguns vendem drogas
para “tirar um trocadinho”. Outros assaltam, como Gilvan, de 17 anos:
Não tem dinheiro, a gente parte direto pros ganhos. A galera racha ali mesmo,
o que der pra cada um tá massa. Aí tipo assim, se eu tiver dinheiro que eu
ganhei, eu chamo todo mundo pra ir curtir. Aí sai todo mundo, vai pra uma
lanchonete, vai pro bar. Aí eu pago pra todo mundo. A gente quer curtir de
70
qualquer maneira, um quer curtir com droga e tal, vai lá, compra. Cada um
curte diferente e eu chamo todo mundo pra ir curtir comigo.
Como parte de suas rotinas mencionam, tal como os jovens de Ceilândia
e Samambaia, as revistas policiais:
Quase todo dia tem bacu. Eles [os policiais] não tão nem aí, eles são
totalmente uns animal. Eles manda você passar por baixo da viatura sem
encostar a barriga no chão. E eles já fazem isso, já pra bater. Eles bate e fala:
“vai embora”. Manda embora pra casa, só que ninguém vai.
As brigas, as disputas entre gangues e galeras são apontadas não
somente como exemplo de violência, mas também como uma forma de
diversão, de agitação, de “ação”, característica da sociabilidade dos jovens da
cidade: “Tem uma diversãozinha assim, não de bom gosto, mas sempre tem. [...] a galera vai
se divertir, passa do limite, sempre rola briga”.
Alguns jovens dizem que quando realmente querem se divertir sem
preocupação, de modo tranqüilo, saem de Planaltina. Cidades da periferia de
Brasília, como a vizinha Sobradinho, e de Goiás, como Formosa, pela
proximidade do limite do Distrito Federal, são procuradas com esse intuito:
Aqui é sujeira, curtindo fora fica despreocupado. Ninguém te conhece, mexe
.
Em Formosa (GO) tem altas boates, massa, só que lá, quase a gente não
apronta não. Só vai pra curtir, pelo menos minha galera quando vai pra lá, só
vai pra curtir.
O sentimento de serem portadores de um estigma pelo fato de morarem
na periferia é partilhado com os jovens de Samambaia e Ceilândia:
A gente aqui da periferia sofre. Lá no Plano a vida deles é de alta classe, só
tem lugar bem sucedido. Eles têm condições psicológicas melhor que a nossa,
nunca passa por assassinato, não passa por roubo, não passa por briga, não
passa por nada. Se eles passa aqui, passa de dia e escondido, entendeu? Eles
têm medo, acha que na periferia é tudo bandido.
As diferenciações sociais se dão não somente em termos do contraste
entre Periferia e Plano Piloto, mas também localmente, entre si. A geografia
local corresponde a uma hierarquia social e os jovens moradores das áreas
mais pobres de Planaltina internalizam os estigmas que lhes são atribuídos
71
num jogo de distinção bastante sutil entre os que, a princípio, colocam-se como
iguais, como exemplifica o extrato de uma mesma entrevista:
Planaltina é uma cidade fundamental, mas esse povo do Plano discrimina
muito. Ceilândia é mais perigoso que aqui. Ceilândia é que fabrica a merla, a
droga vem de lá pra cá.[...] Aqui tem uns local perigoso, cheio de mala
[malandro]. Tu quer sair aqui, sabe que o Pombal é perigoso. Eu já passei no
Pombal e não confio mais (Túlio, 15 anos).
Aqui, quando fala que mora no Pombal, os caras fala que é ladrão, não é mais
teu amigo. Fica olhando pra você e já acha que vai roubar. [...] Mas tô feliz no
Pombal mesmo. Vou morrer aqui. Não tem saída pra lugar nenhum (Tadeu, 15
anos).
A lógica, para a qual chamo a atenção, do contraste com o “real
imediato”, com o “igual”, dentro do jogo de espelhos que caracteriza a dinâmica
da elaboração das identidades sociais, foi também estudada por Sarti (1996)
no contexto da periferia urbana de São Paulo. A autora mostra que as
fronteiras simbólicas de diferenciação dos moradores entre si são marcadas
por uma ambivalência em relação a seus pares. Todos são pobres, mas
insistem nas diferenciações. A favela, que se expandiu ao redor do bairro,
corporifica os desvios temidos, o próprio mundo da desordem. No bairro ouve-
se: “Somos pobres, mas não somos favelados”. O discurso do morador da favela se
estrutura dentro da mesma lógica: “Sou favelado, mas pelo menos não moro debaixo da
ponte”
. Cyntia Sarti acaba por concluir:
Não entrevistei alguém que morasse debaixo da ponte, mas
seguramente encontraria algum referencial negativo, na medida em que
esta é a lógica social de identificação e diferenciação, característica
deste processo de construção de identidades sociais por contraste e
referências negativas (Sarti, 1996: 95).
72
1.4. Viver na periferia: unidade de referência
A ambivalência de palavras e sentimentos dos jovens em relação à sua
cidade é um aspecto que sobressai das percepções manifestas sobre a
Ceilândia, Samambaia e Planaltina. Ao mesmo tempo em que expõem os
problemas e dificuldades experimentadas por viverem em locais que afirmam
ser violentos, perigosos, onde há muitos bandidos, delinqüentes e marginais, e
onde não há muito o que fazer em matéria de entretenimento e lazer, há um
profundo apego aos seus espaços de moradia, em que sempre viveram ou
passaram uma boa parte de suas existências. Mesmo os jovens de Planaltina,
que se distinguem dos das demais cidades pesquisadas pelo fato de boa parte
dos informantes não insistir em desfazer a imagem negativa do lugar,
identificam-se com seu local de residência, nele estabelecendo suas principais
redes de relações sociais. Para esses jovens da Ceilândia, Samambaia e
Planaltina, suas cidades são “lugares antropológicos” (Augé, 1992) por
excelência, são concebidas como unidade de vida e como unidade de
pertencimento, são locais de lembrança e objeto do imaginário, são
apropriadas, investidas e socialmente valorizadas, constituindo-se, talvez, no
suporte maior de sua identidade.
Embora insistam na “falta do que fazer”, os jovens nos revelam uma vida
bastante cheia. Existe uma busca constante de “diversão” e “animação”,
manifestas por meio de inúmeras maneiras, até mesmo na bizarra prática de
“brincar de bater”, encontrada entre os jovens de Samambaia. Diferentemente
de seus pais, para a maioria dos quais, diga-se de passagem, o atual lugar de
moradia faz parte de uma etapa importante na trajetória residencial – de
invasores a moradores legais –, não existe uma clivagem entre um espaço
residencial e um espaço profissional. Eles estão presentes em suas cidades a
maior parte do tempo, ocupando sistematicamente o espaço público.
Na Ceilândia esse espaço é permanentemente apropriado pelos jovens,
sendo intensa a circulação pelos diversos conjuntos, quadras e setores. A
mobilidade é facilitada pelo uso disseminado da bicicleta, não tão visível nas
73
outras cidades. Os jovens se movimentam tanto na procura de atividades com
fim em si mesmo, deixando-se à deriva, como também na busca da “ação”.
Costumam freqüentar os shoppings, bares e boates de Taguatinga, cidade que,
nas suas percepções, oferece mais divertimentos.
Já em Samambaia os jovens concentram-se principalmente na porta das
escolas, normalmente próximas de suas casas. A vivência coletiva, sobretudo a
dos adolescentes, com quem mais estabeleci relação naquela cidade, ocorre
geralmente nas proximidades de locais familiares ou domésticos. Bater e
apanhar na rua faz parte de suas rotinas. Na falta de animação em
Samambaia, buscam divertimento e “ação” nas ruas e shoppings de
Taguatinga.
No caso de Planaltina, os jovens, na condição de assentados nas
adjacências de um núcleo urbano tradicional, não circulam e se apropriam
livremente de todos os espaços da cidade. São constrangidos, até mesmo
pelas distâncias, a permanecer grande parte do tempo nos seus setores
residenciais. Os encontros com amigos ou “chegados” dão-se, quando estudam,
nas escolas ou, quando não estudam, em bares, botecos e lanchonetes de sua
vizinhança. A presença jovem nas ruas de Planaltina é bastante marcada pelos
tons do medo e da hostilidade. Para ficarem longe das agressões, do “campo
de guerra”, procuram atividades lúdicas em Formosa ou em Sobradinho,
cidades que não apresentariam riscos às suas integridades físicas.
O sentimento de serem portadores de um estigma pelo fato de morarem
em lugares onde se concentra a pobreza, a violência e problemas de toda a
ordem é um peso difícil de carregar. Torna-se imperativo, então, a gestão do
estigma espacial. Os jovens o fazem utilizando-se de diferentes estratégias.
Há, por exemplo, a recusa ou negação da imagem negativa da sua cidade, por
meio da desqualificação de outras periferias do Distrito Federal que seriam, em
suas visões, bem piores. Numa outra situação, o estigma é neutralizado pela
galhofaria, humor e ironia, como no caso de Samambaia, onde alguns
adolescentes ironizavam as condições precárias de infra-estrutura urbana e a
sua convivência com o excesso de poeira. Há também o caso da exacerbação
74
do sentimento de enraizamento local e uma grande valorização das bases na
qual se estabelecem as relações interpessoais nas cidades da periferia.
O peso do estigma aumenta principalmente quando os jovens
contrapõem as suas cidades ao Plano Piloto. Seriam sobretudo as pessoas daí
responsáveis pela produção da má imagem de seus locais de moradia. Partiria
delas não apenas a construção de estereótipos como também seriam elas que
os transformaria em alvo de discriminação. (ver capítulo 2).
No interior de múltiplas referências identitárias, o contraste com o Plano
Piloto leva os jovens a se pensarem para além de membros de uma
comunidade local. Eles passam a também se perceberem como pessoas que
partilham de uma outra comunidade, qual seja, a “comunidade da periferia”,
com idéias, valores e visões de mundo particulares. E, para eles, ninguém
melhor para falar do “imaginário” da periferia que os rappers (ver anexo I).
75
CAPÍTULO 2
ESTIGMA, DISCRIMINAÇÃO E DESIGUALDADE SOCIAL:
O PLANO PILOTO COMO ESPELHO
Bodinho(s) soltos nos shoppings da cidade,
não andam sozinhos.Com seus chamados
brotinhos de lado, roupas passadas a goma,
cabelos repuxados. [...] Nunca trabalham, mas
usam roupas de novela, de marca e de
propaganda de televisão. Pra mim não passam
de um bando de cuzão.
(Rap de autoria do grupo Álibi).
Como observado no capítulo 1, as cidades focalizadas neste estudo —
Ceilândia, Samambaia e Planaltina — sofrem com a falta de infra-estrutura e
equipamentos coletivos, diferentemente do Plano Piloto. Trata-se de pólos
opostos, carregados de propriedades positivas e negativas: de um lado, a
cidade de Brasília, onde se acumulam os benefícios, os bens socialmente
raros, o capital, que, entre outras coisas, permite colocar à distância as
pessoas e as coisas indesejáveis; de outro, as cidades da periferia, onde estão
os desprovidos de capital, os condenados a “ladear”, “bordejar” (Bourdieu,
1993), os que ressentem a ausência do Estado e de tudo que a ele se liga –
instituições de saúde, escolares, segurança pública, etc. Essas oposições
sociais objetivadas na organização do espaço físico da área metropolitana de
Brasília – Plano Piloto versus cidades-satélites – reproduzem-se nos espíritos e
na linguagem dos jovens como categorias de percepção e apreciação.
Sintetizam um eixo de diferenciação social básico e afirmam a importância do
espaço físico como mediador na conversão de estruturas sociais em estruturas
mentais, idéia sugerida por Pierre Bourdieu da seguinte forma:
As grandes oposições sociais objetivadas no espaço físico tendem a se
reproduzir nos espíritos e na linguagem sob a forma de oposições
constitutivas de princípio de visão ou divisão, isto é, como categorias
de percepção e de apreciação ou de estruturas mentais (Bourdieu,
1993: 254).
76
As idéias que os jovens têm de si, do seu cotidiano, de suas condições
de vida, da sociedade e das relações sociais são, em larga medida,
construídas em torno do contraste e da comparação que estabelecem entre a
imagem que fazem do Plano Piloto e a realidade da periferia, entre o ser
“jovem do Plano Piloto” e o ser “jovem de periferia”. Morar na periferia, em
oposição ao centro, sintetiza, portanto, em seus imaginários, um eixo de
diferenciação e, ao mesmo tempo, de identificação social básico
1
.
Este capítulo procura explorar as categorias de percepção e apreciação
dos jovens da realidade que vivem, criadas a partir das oposições sociais
objetivadas na organização do espaço físico da área metropolitana de Brasília.
Como procurarei mostrar, da assimetria entre Plano Piloto e cidades-satélites
emergem múltiplas facetas do modo como os jovens sentem-se, vivem e
pensam-se no mundo, particularmente de como se percebem como parte de
um mundo de estigmatizados, discriminados e excluídos socialmente.
2.1. Comparando-se aos jovens do Plano Piloto
Em relação aos jovens do Plano Piloto, os das cidades-satélites sentem-
se discriminados por várias razões: pelo fato de morarem na periferia, pela sua
aparência física, pelo vestuário e estilo musical que adotam. O seu discurso,
nesse paralelo, funda-se num sentimento de ser o “outro”, o diferente, de
ocupar uma posição secundária na sociedade, de possuir menos
oportunidades de trabalho e estudo, menos acesso ao consumo. Por serem
pobres, sentem-se desrespeitados e vistos como inferiores.
1
Os estudos sobre identidades sociais revelam o quão importante é o contraste na
demarcação de fronteiras sociais. A noção de “identidade contrastiva” tornou-se básica,
especialmente para se pensar identidades étnicas, apresentando-se em contraposição à
primazia que se dava aos traços culturais como marcas de identidade. Para além de sua
especificidade, as reflexões sobre identidades étnicas revelam que o caráter “contrastivo” e
relacional na definição do “nós”, por oposição aos “outros”, está na base da própria construção
e preservação de identidades sociais; mostram ainda o caráter dinâmico das identidades
sociais, definidas e redefinidas em função das relações a que os indivíduos estão expostos.
Assim, por definição, identidades sociais são identidades em movimento, definidas e
redefinidas por contrastes. Sobre este tema, ver particularmente: Oliveira (1976), Cunha (1986)
e DaMatta (1993)
77
Existe uma concordância de que, em suas cidades, eles vivem de forma
mais precária do que os jovens que moram no Plano. Suas cidades são piores,
pois têm menos infra-estrutura, mais pobreza e violência. Ter menos dinheiro e
oportunidades, viver em ambientes relegados, pelo Estado, a um segundo
plano, em “bairros de desterro” (Wacquant, 1997), ser discriminado, engendra
um sentimento de revolta, mesmo de ódio, em relação aos jovens de classe
média: “Ninguém gosta desse pessoal do Plano Piloto. A gente odeia aquele pessoalzinho de
classe média ali que tem um dinheirinho e quer mandar”.
Comparando-se com os jovens do Plano, acreditam ter menos chances
de mobilidade social. Diferentemente do que ocorre com os jovens de classe
média, não contam com a escola como canal de ascensão social, percebendo-
se com poucas condições de avançar nos estudos, principalmente de ingressar
numa universidade, cujas portas a eles estariam fechadas: “Todo mundo aqui
gostaria de estudar, mas o ensino que a gente tem... Você acha que a gente vai ter ensino bom
como eles?”; “Faculdade é só para filhinho de papai lá do Plano”.
Paralelamente aos
obstáculos que se deparam para prosseguir os estudos, existem as
dificuldades para encontrar trabalho. A falta de perspectiva ocupacional os
leva, conseqüentemente, segundo eles próprios, a entrar para a vida criminosa.
Perspectivas
“Meu sonho era ser psicóloga, ter uma vida melhor. Mas como, como é que eu posso?
Se você tentar arrumar uma profissão, você só pode entrar se você tiver experiência, se você
tiver bom estudo. A gente procura o emprego, chega lá não tem. Você vai na sua casa, vê a
miséria. Então você vai atrás das drogas. Tá dando dinheiro? Então você vai entrar na droga,
em assalto, em roubo”.
“Vive num lugar que não tem perspectiva de vida nenhuma, porque não estuda, não
trabalha. O jovem sem perspectiva nenhuma de vida ele não vê nada pra ele que ele possa
fazer, que ele não possa ficar na bandidagem. Aí ele cai na malandragem porque ele acha que
é assim que ele vai se dar bem”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Planaltina e
Ceilândia)
A família também não tem possibilidade de introduzi-los numa trajetória
ascendente, pois os pais lutam com dificuldades financeiras e, além disso,
78
contam com um grau muito baixo de instrução: “O jovem é herdeiro de um
antepassado, de uma família que nunca teve nada”.
A face do jovem da periferia “sem herança”, sem oportunidades e sem
perspectiva é contraposta à do jovem do Plano e, percebida como sendo
extremamente diferente. Os do Plano não trabalham, andam de carro, não são
incomodados pela polícia, têm dinheiro, vestem-se bem, estudam em escolas
particulares, os pais garantem a sobrevivência, pagam os estudos e dão
mesada.
A vida fácil dos jovens do Plano Piloto
“Eles coça o tempo todo. O pai tem dinheiro, eles não precisa trabalhar. É todo mundo
barão, só anda de carro”.
“Lá papai dá o que quer. Lá eles andam de carro e aqui na periferia não. É difícil a
polícia parar um carro. Vem aqui e batem em todo mundo, fica por isso mesmo. Vê se no
Gilberto Salomão
2
acontece isso... Nem chega perto”.
“Lá o cara, o pai dele, paga pra ele estudar, a gente aqui não. Lá o pai garante o cara.
O pai dele: ‘Oh! Meu filho, se você passar no final do ano o seu carro tá garantido, todo mês
sua mesada tá no banco’”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Ceilândia,
Samambaia e Planaltina)
Distintamente, os jovens da periferia não possuem essas facilidades.
Porém, consideram-se mais solidários, mais companheiros e menos
individualistas dos que os do Plano:
“Aqui um tá precisando do outro, o outro vai lá e
ajuda. Todo mundo quer compartilhar. Lá não, solidariedade entre eles não existe, não existe
companheirismo”
. Além disso, acreditam conhecer melhor a realidade e, por isso,
vêem-se como mais preparados para enfrentar o mundo.
Na mesma perspectiva comparativa, aparece uma outra forma de
discriminação que não atingiria o jovem de classe média: a aparência denuncia
a falta de poder aquisitivo. Os jovens da periferia, quando deixam seu meio
social e dirigem-se ao Plano Piloto, geralmente ao coração da cidade na região
2
Gilberto Salomão é o nome de um antigo centro comercial de Brasília localizado num bairro
nobre, o Lago Sul, onde além de lojas, existem boates, bares, lanchonetes e restaurantes
freqüentados especialmente por jovens de classe média alta.
79
da rodoviária e do setor comercial, são comumente encarados com
desconfiança, sendo considerados quase sempre sob suspeita. Dizem que são
mal atendidos nos estabelecimentos comerciais, principalmente nas lojas de
grife, as mais caras, atribuindo essa atitude a uma estética que, nas suas
visões, é própria ao jovem da periferia.
Fortemente inspirado no “estilo Hip Hop”, o traje composto por bermuda
e camiseta folgadas, boné e/ou gorro, sandália e/ou tênis de marcas famosas,
como Adidas e Nike, ou imitação das mesmas, caracteriza o visual dos jovens
informantes.
A discriminação em locais públicos do Plano Piloto
“Quando você entra numa loja só por causa da roupa eles já andam atrás de você”.
“De olho em você pela roupa. Ele já diz: ‘Esse aí é malandro, véi
3
’”.
“’Esse aí ô, já quer alguma coisa, já veio bater carteira’. Isso só faz crescer mais a
nossa revolta”.
“Um dia eu tava no Shopping com dois colegas e uma mulher, ela me olhou e eu disse:
‘tu tá vendo eu roubar alguma coisa aqui ? Ninguém viu eu roubando nada’. Eu joguei uma
praga. Quase teve morte”.
“Essa preta aí ! Só porque a menina é de Samambaia, tá lá no shopping mal vestida”.
“Se a gente vai no Plano, a gente já tem vontade de chegar batendo naquelas pessoas
porque elas passa voando pela gente. A gente passa a roupa, pega a roupinha mais bonitinha
que a gente tem, quando chega lá é rebaixado”.
“Uma vez eu fui numa lanchonete no Plano. E meu estilo é assim sempre, eu ando
largado mesmo. Aí eu pedi para ir no banheiro. Aí a dona não queria deixar eu ir no banheiro
porque eu ia passar pelo caixa, né? Aí a dona foi me seguindo até a porta do banheiro, quase
entrou junto. Aí isso aumenta a revolta, dá vontade de dar um pau nessa gente mesmo”.
“Eu fui no shopping comprar uma bermuda pra mim, entrei na loja, atendiam todo
mundo e ninguém me atendia. Eu fiquei assim, aí fui lá, escolhi a bermuda, aí fiquei esperando
e perguntei se alguém ia me atender, e ela falou: ‘espera aí um pouco’. Eu disse: ‘ pô, que
sacanagem, não vou esperar nada não’. Joguei a bermuda lá e fui embora. Sacanagem,
porque eu acho que no shopping todo mundo se produz, põe aquelas roupas. Pra mim não
precisa disso”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Ceilândia,
Samambaia e Planaltina)
3
“Véi” = Velho. Tratamento comum entre os jovens equivalente a “cara”, “meu”, “sangue bom”.
80
Nas suas percepções, essa estética é a razão de serem sujeitos a um
tratamento diferenciado em shoppings – locais onde se sentem mais
discriminados –, lojas, lanchonetes e em outros lugares públicos, onde são
suspeitos de serem malandros, ladrões, assaltantes e/ou batedores de carteira.
As histórias de discriminação em locais públicos, longe do seu meio social, são
constantemente repetidas e contadas pelos jovens.
Assim, o “visual” do jovem da periferia, diferente do Plano Piloto, é
apresentado como razão de discriminação. Curiosamente, esses jovens
compactuam um modo de vestir semelhante às outras pessoas da mesma
idade. Quando transitam em locais tais como shoppings, confundem-se com
um “estilo global” que parece ultrapassar as barreiras das diferenciações de
classe. De onde, então, viriam exatamente os motivos da discriminação?
Dizem possuir o “jeito” da periferia, quase um estigma, uma marca. Dela
participam não apenas o modo de se vestirem, mas o gingado do andar, a
gestualidade, a maneira de falar, a cor da pele, a forma de interação com o
grupo de pares. Seriam esses os principais fatores de identificação e de
discriminação desses jovens.
Ao mesmo tempo em que insistem em pontuar essas diferenças,
também acreditam que, no fundo, não há como distingui-los. Afinal, a mesmice
das vestimentas, das roupas de marca, cria no universo juvenil uma
padronização de preferências estéticas que torna difícil diferenciá-los dos
jovens de classe média.
Distinção
“Pra mim é tudo a mesma coisa. Se eu ficasse lá parada eu não ia saber diferenciar
(...) porque o jovem pra mim hoje usa sempre a mesma moda. Cabelo curto, tá todo mundo de
cabelo curto. Batom preto, todo mundo de batom preto”.
“Dependendo do lugar que você estiver, não dá pra saber se você é rica. Numa boate
hoje, você não sabe quem é rico ou não. O carro está lá fora. Mas todo mundo tá arrumado,
não tem roupa pra rico e pra pobre”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Planaltina e
Ceilândia)
81
Deparamo-nos com um paradoxo. Se, por um lado, os jovens afirmam
que são extremamente malvistos pela maneira de vestirem-se, da qual se
orgulham pelo fato de a compreenderem como sendo própria da periferia, por
outro, procuram fugir da identificação do “jovem pobre da periferia” por meio da
valorização excessiva das “roupas de marca”, que, na medida em que são
correntemente utilizadas por um universo amplo de jovens da classe média,
lhes daria a chance de parecerem iguais ou semelhante ao “outro”.
Diria que
muitos desses jovens representam uma espécie de versão brasileira do
sappeur, figura emblemática da cultura dos imigrantes africanos em Paris que
chama a atenção pelo culto ao modo de se vestir na moda
4
.
Como assinala Alba Zaluar em seu estudo sobre o modo de vida das
classes populares urbanas no conjunto habitacional chamado Cidade de Deus,
no Rio de Janeiro:
A roupa, para os jovens, torna-se o item principal na sua hierarquia de
consumo [... e] parece ser o objeto de consumo que, do ponto de vista
individual, oferece a oportunidade mais clara e acessível de fugir à
identificação de pobre, ou pelo menos a ilusão de fugir a essa
identificação. [...] Daí a existência de um setor da indústria têxtil
especializado em reproduzir rapidamente e, a preços mais acessíveis,
os itens de vestuário em moda nas classes superiores. Daí também a
rapidez com que esses itens vão sempre sendo substituídos no
consumo mais sofisticado das classes superiores de modo a evitar essa
insuportável confusão social e ter meios simbólicos de continuar a
marcar as diferenças de classe
5
(Zaluar, 1985: 103-4).
4
“Sappeur” significa na gíria da língua francesa aquela pessoa que “se sape”, que se veste
bem, com elegância e na última moda. “Sape” (vestimenta) quer dizer também “Societé des
Ambienceurs et Personnes Elégantes” – SAPE. Vestir-se bem ou “se saper” é uma das
principais atividades de uma parte da juventude do Congo pertencente ao meio urbano popular
do país. Para esses jovens, a “sape” é o símbolo do Ocidente veiculado por uma classe social
congolesa para a qual o sucesso de uma pessoa deve se mostrar no nível das aparências,
mesmo que ela não detenha objetivamente os instrumentos desse sucesso. De todo o modo,
vestir-se bem é tido como um atalho para se chegar ao topo da escala social em Brazzaville.
Paris, considerada o centro do mundo moderno, é também o centro mundial da “sape” e os
“sappeurs” congoleses sempre se inspiram na moda em voga na capital francesa. Sobre os
“sappeurs”, ver Gandoulou (1989a; 1989b).
5
. Zaluar, neste estudo na Cidade de Deus, também observou que é no item vestuário que
surgem os conflitos mais claros entre o consumo coletivo da família e o consumo individual dos
filhos. Tanto no caso das moças quanto no caso dos rapazes que têm trabalho regular, o
conflito aparece devido às exigências de ajuda à família e o interesse dos jovens de adquirir
roupas bonitas. Mas não é apenas no Brasil que os jovens das camadas populares buscam o
prestígio fundado na aquisição do vestuário. No mundo colonial africano, por exemplo, os
jovens dessas camadas procuram uma identificação com os membros dos grupos
economicamente dominantes por meio da ostentação de vestimentas. Os grupos dominantes
buscam, por sua vez, uma identificação com os antigos colonizadores – “o Branco”, os
europeus, considerados incrivelmente ricos e poderosos e por isso merecedor de um status
82
As “roupas de marca” igualam, ou ilusoriamente igualam, os jovens
pobres aos jovens de classe média, mas em seu próprio ambiente, ou seja, o
das classes populares. As roupas tornam-se um meio importante de
diferenciação social, de “ter destaque”. A importância dada ao vestuário, ligada a
uma forte preocupação de distinção social, revela-se claramente no quotidiano,
no qual os jovens costumam sempre comentar sobre suas vestimentas e
adereços, se observam nos detalhes, usam roupas cuja marca aparece bem
visível. O estilo de vestir, como tema recorrente nas falas de meus informantes,
indica que o domínio das aparências e da imagem de si fazem parte do
processo geral de socialização.
A cultura da aparência não se resume apenas ao modo de se vestir.
Também é importante possuir o domínio das atitudes corporais e de toda uma
gestualidade que, assim como as roupas, é notadamente inspirada no “estilo
Hip Hop”. Existem muitas maneiras físicas exageradas de exprimir o orgulho, a
arrogância, a agressividade ou mesmo a indolência e a desenvoltura, assim
como posturas na forma de andar. Há ainda as mímicas e todo um conjunto de
gestos expressivos que acompanham sistematicamente as palavras, sem
esquecer as maneiras de olhar, de fixar, de mirar, de “matar” os outros (ver
capítulo 5).
Cabe observar que todos esses gestuais e atitudes corporais são
levados ao paroxismo nos clips de rap americanos e brasileiros, nos quais os
cantores, filmados em grandes planos e sempre posicionados diante da
câmera, dançam e se contorcem de forma caricatural, giram e ondulam seus
ombros ou até mesmo o corpo inteiro, movimentam suas mãos de forma
expressiva e exagerada, ao ritmo da música, fixando a objetiva
permanentemente, apontando o dedo com ar ameaçador, se aproximando até
a câmera cobrir inteiramente o campo de seu rosto e seus olhos. O narcisismo
machista puro e duro se exprime de uma maneira desenfreada, espetacular e
bastante burlesca.
privilegiado – por meio de signos puramente exteriores, entre os quais as roupas européias
ocupam lugar de destaque (Gandoulou, 1989b).
83
Se, por um lado, “ter destaque” pelas roupas e pelo domínio de uma
expressão corporal e gestual coloca os jovens numa posição de superioridade
na interação com seus pares, por outro lado, isso os coloca também na posição
de suspeitos. Na periferia o bermudão, o boné, a camisa larga e o
tênis/sandália “de marca” também são vistos na escola e na comunidade como
roupa de malandro – “deve robá, usar droga”.
Tal confusão, segundo meus informantes, não aconteceria no Plano
Piloto, onde os jovens vestem-se de modo semelhante e não são “tachados como
bandidos, como a gente”
. A polícia, sobretudo, desconfia dos jovens trajados dessa
maneira, porque a roupa indica o suspeito de assalto ou roubo – “onde o cara
arrumou dinheiro pra comprar isso?”
– e de outras malandragens, como a ocultação
de armas e drogas. Muitos dos informantes confirmam que, de fato, o vestuário
facilita esconderem armas e drogas, principalmente os bermudões que, mesmo
sem o uso da camisa, permitem ocultar armas sem deixar transparecer
nenhum sinal.
Ora, nesta situação podemos falar que ocorre um deslocamento
semântico com a mudança de contexto, ou seja, o mesmo signo – “vestuário” –
ganha diferentes significados quando deixa o seu contexto original de uso.
Contudo, é preciso sublinhar que essa mudança de significado é produzida
pela percepção de um terceiro – a polícia. Isso remete à questão da própria
estrutura de constituição de significados que, no caso das roupas de marca,
aparecem claramente associados a posições de classe. Estas, por sua vez,
relacionam-se com uma determinada inscrição territorial. Na periferia, as
“roupas de marca” indicam para a polícia que há algo “desacreditável”
(Goffman, 1974b) na vida dos jovens que as usam. Desse modo, o vestuário,
acoplado a marca de “pobre morador da periferia”, apenas reforça o estigma do
“pobre delinqüente”. Já no Plano Piloto, as mesmas “roupas de marca”
utilizadas por jovens de classe média os colocam acima de suspeita diante da
polícia no que diz respeito a roubos e furtos. Diferentemente do que ocorre na
periferia, denotam uma situação socioeconômica privilegiada, o que faz os
policiais procurarem ser mais cautelosos nas suas abordagens (ver capítulo 7).
Assim, o vestuário, em cada lugar e dentro do jogo das aparências, permite um
84
determinado “reconhecimento cognitivo” que é, segundo Goffman, um ato de
percepção que independe de qualquer tipo de comunicação.
O exagero e a dramaticidade das falas foram aspectos que me
chamaram bastante a atenção no discurso dos jovens sobre a discriminação
que sofrem no Plano Piloto. Além disso, em suas formulações discursivas
também fica evidenciado o fato de eles se auto-estigmatizarem, sentindo-se
agredidos, algumas vezes até gratuitamente, reinterpretando, de forma sofrida
e imaginada, o fenômeno da discriminação.
Reinterpretando a discriminação: a auto-estigmatização
“Eles sabem humilhar no olho, eles sabem humilhar. Eles olham pra roupa da gente,
todo mundo fica olhando, todo mundo te olha”.
“Tipo assim, eu vou no Plano Piloto, eu vou lá. Eu tô andando toda desarrumada, com
essa calça, com essa camiseta, com esse tênis. Tem menina que passa que só quer ser
‘Patricinha’
6
, certo ? Liga o celular. Aí eu vejo ela lá, ela tá traficando. Imagina. Eu passo, né ?
Aí vem o policial. Me prende eu e ela, certo? Aí ela chega e fala: ‘te dou 200 conto pra tu não
me levar presa e levar ela no meu lugar’. Ela que teve tudo a ver e eu que vou ficar no
prejuízo”.
“Igual no Plano, se vai nós aqui. Nós temos a roupa que temos, procuramos a melhor
roupa e ninguém considera a gente. Até a galera deles e a nossa, eles olham a gente por cima.
Se você baixar a cabeça, ele até cospe na sua cara. Tantas vezes eu já vi isso... Aí você vai e
bate num filha da puta desses. Aí a mãe dele vai te meter é juiz, é não sei o que, é filho de
advogado, então ele vai te meter na cadeia. Você vai viver ali”.
“Eu vou no Pátio Brasil, eu desço do ônibus da Samambaia e já fica todo mundo
olhando. Aí a gente chega, anda no Pátio Brasil, aí todo mundo já olha. Eu acho que eles
sabem diferenciar o pessoal da Samambaia com o pessoal do Plano. Acho que pelo jeito do
modo de vestir, o modo de andar, alguma coisa. Eles sabem que a gente tá vindo de um lugar
diferente, que a gente tá vindo da periferia”.
“Eu trabalhava lá no aeroporto, aí eu sentei naquelas mesas do Gilberto Salomão e
fiquei meio sem graça: ô, bicho, o pessoal desconfia que a gente não é dai, as pessoas já
viram que eu era de outro lugar, ficam olhando pra gente”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Ceilândia,
Samambaia e Planaltina)
6
“Patricinha” e “Mauricinho” são denominações que, entre os jovens brasileiros, identificam um
tipo de jovem mais conservador, menos rebelde, menos alternativo. As “Patricinhas” e
“Mauricinhos” adotam um estilo chic, vestem-se de modo a estar sempre em dia com a moda
das principais passarelas do mundo.
85
Mencionei anteriormente o paradoxo da valorização excessiva das
“roupas de marca”, que lhes dá a chance de assemelharem-se ao outro e, ao
mesmo tempo, a insistência em marcarem, pelo vestuário, uma identidade
própria ao jovem de periferia. A tentativa de distinção é reforçada na expressão
do sentimento de que são imitados pelos jovens das classes abastadas.
Imitados não só na roupa, mas também na maneira de andar e no gosto
musical: “Eles estão querendo se envolver, porque o Rap era só nosso aqui. Agora a
burguesia tá curtindo Rap”; “O Rap é nosso, é da periferia. Agora tem vários playboys
querendo se meter no meio do Rap”.
Até mesmo a forma como os jovens do Plano
Piloto organizam suas galeras, em gangues, não passaria de mimetismo, de
uma usurpação de uma cultura que, antes de mais nada, pertence ao jovem da
periferia: “As gangues do Plano são tudo ‘xerox’ daqui”.
A necessidade de marcarem a sua identidade e a reação à
discriminação que vivenciam pode, ainda claramente, ser percebidas na
retórica agressiva e hostil que os jovens da periferia adotam quando se referem
aos jovens do Plano Piloto. “Bodinho” é como são qualificados os jovens de
classe média e alta. O bode é um animal malcheiroso, barulhento,
desagradável e feio. É exatamente no “bodinho”, esse ser desprezível, onde
focalizam toda uma revolta de classe. Ele comparece nos discurso como uma
espécie de encarnação simbólica do mal:
“Tenho ódio de bodinho, matar tudinho”.
O ódio generalizado aos jovens de classe média e alta, expresso
verbalmente, se encontra objetivado numa prática comum, qual seja, eles são o
principal alvo de roubos e assaltos dos jovens da periferia que cometem esses
delitos. Isso seria uma forma de vingança contra a desigualdade e injustiça
sociais, quase um manifesto:
Não vou assaltar aqui em Samambaia, vou assaltar nesses lugares que só têm
“bodinho”.
A maioria dessas gangues vai pro Plano pra roubar, eles não gostam de
‘bodinho’. Se reagir morre lá mesmo.
86
O “bodinho” é também qualificado de “Mané”
7
, “otário”, “safado”, “folgado” e
“esnobe”
. É visto como o medroso e como aquele a quem falta assunto, que só
conversa bobagens: “Você entra numa rodinha, dá até nojo conversar”. É reconhecido
pela postura arrogante, pelo andar, pela maneira como se veste,
principalmente pelas “roupas de marca”:
Pelo rosto dele já dá pra perceber que é bodinho. Se veste diferente, cabelo de
lado, cabelo grande, brinco na orelha [...]. A gente aqui também usa brinco,
mas é diferente.
Se eu vejo um bodinho, eu já sei se é ou não é. O jeito é tal, você já sabe. O
jeito de falar, de vestir, tudo que você pode imaginar.
Os jovens sentem-se constantemente provocados, desafiados pelos
“bodinhos” que, na sua percepção, ostentam signos de riqueza de maneira
ostensiva e ofensiva, como roupas, tênis, bonés, carros, motos, mobiletes,
vespas. Acham que por eles são desprezados e maltratados todo o tempo.
Humilhação
“Eles gostam de falar: ‘eu tenho mais do que você’, aí fica assim se amostrando: ‘eu
tenho mais do que você, eu posso, você não pode’. Ele vai com roupas, tênis, bonés, altas
coisas, mobilete, vespa, altas coisas, ele passa por você, quando chega perto, acelera”.
“Eu me sinto humilhada, humilhada. Eu me sinto humilhada, rebaixada, como se eu
não fosse ninguém, entende? A única coisa que o pobre tem menos que eles é dinheiro, só
dinheiro. Que eu saiba ele é feito igual a mim: ele tem coro, tem osso, tem cabelo, tem dente,
tem tudo que eu tenho. A única coisa que a gente não tem e que ele tem é dinheiro. Isso é uma
coisa incomparável. Eu não sei como dizer, sabe? Eu me sinto rebaixada, humilhada. Eu não
tenho ódio de ser pobre. Eu tenho ódio é desses ricos que rebaixa o pobre”.
“Eu fui ao Plano comprar uma sandalhinha Redley no meu aniversário. Passou uma
‘Patricinha’ com um celular, olhou pra mim bem assim, tipo assim, me humilhando: ‘uma
sandalhinha só que você comprou?’. Eu, tando drogada ou não, se eu vê que ela ta assim me
humilhando, só de maldade, eu acho que seria capaz de matar ela [...]. Pra ela você é
cachorro”.
“Você mata porque ele te humilha. Pra eles nós somos vermes. Eles olha a gente por
cima... Isso aí é o que dói [...] O pessoal do Plano vê você como favelado, desprezado, como
um ladrão [...]. Então você tem a ânsia de matar ele. Por que? Porque ele se desfaz de você
por dinheiro”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Ceilândia,
Samambaia e Planaltina)
7
“Mané”, “Manezão”, “Zé Mané” significam uma pessoa boba, facilmente enganável.
87
O sentimento de humilhação, de perseguição, faz com que, ao menos no
discurso, os jovens estejam sempre prontos a revidar, o que sofrem, por meio
de roubos, assaltos, violências físicas e agressões verbais.
O desejo de revidar
“Olha: se eu chegar no Plano desse jeito, eu sou mendigo. Aí eu vou lá, vou lá no
Plano, aí passa aqueles bodinho, eu tô com ferro, ô! Chega nele, tomo a roupa dele e tudo
mais, eu deixo ele pelado lá”.
“Dá vontade de pegar e quebrar aqueles ‘bodinho’ lá do Plano. Olha pra o pessoal da
Ceilândia com aquela cara. E eles tudinho usa a mesma coisa que a gente usa. (...) Dá
vontade de ‘meter’ de dúzia. Só de olhar pra cara dele, dá vontade de você chegar, beijar e
abraçar, daquele jeito assim, sabe? A gente fala assim: beijar e abraçar. Vou lá dá um beijo no
bodinho”.
“Eu vou ao Plano algum dia com o ferro na cintura, se eu ver uma bodinha passando,
eu acho que eu pego a roupa dela só por maldade, só porque ela tá passando, humilhando,
porque elas gostam muito de humilhar”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Ceilândia,
Samambaia e Planaltina)
Silvana, durante o nosso primeiro encontro, esbravejou e blasfemou
contra os jovens do Plano Piloto. O mesmo fizeram seus colegas, repetindo um
clima que eu, em outras ocasiões, já havia presenciado. Uma espécie de ira
misturada com a desvalorização do próprio sujeito que odeia. A baixa auto-
estima, transparente nessas falas raivosas, não tinha como referência os traços
físicos – tanto que os jovens da periferia nunca se colocam como mais feios
que os jovens do Plano Piloto –, mas principalmente a representação que eles
acreditam que os ricos fazem deles.
Foi exatamente o grupo de Silvana, cujo ódio aos “bodinhos”
desencadeou um conjunto de falas pleno de promessas de vinganças, que
insistiu em marcar encontro comigo num dos shoppings do coração do Plano
Piloto de Brasília. Os adolescentes, entre 14 e 16 anos de idade, dizendo-se
“jurados de morte” e alegando os perigos para a pesquisadora em andar
acompanhada por eles no seu ambiente social, Planaltina, propuseram-me
continuar a entrevista no Plano, pois sentir-se-iam mais à vontade para
conversar.
88
A vinda desses jovens ao Plano fez-me compreender que não era
exatamente o fato de serem “jurados” que os motivara a fazer-me a proposta
de vir ao Plano e sim, principalmente, a chance de um passeio acompanhada
por um nativo, protegidos das formas comuns de discriminação encontrada
quando se aventuram nesse espaço, sozinhos.
A experiência com esses jovens, somada a outras, mostrou ainda que
há uma falta de conhecimento do Plano Piloto e que sofrem da mesma
dificuldade de qualquer pessoa de fora de interagir com o espaço físico e social
da cidade, cujo código não é de fácil entendimento e penetração. Quando se
dirigem ao coração de Brasília, quase sempre se limitam à região da
Rodoviária, do Conjunto Nacional e, às vezes, vão à Torre de Televisão ou a
outro shopping popular. As incursões episódicas e circunscritas à área central
não são suficientes para perceberem e apropriarem dos vastos espaços
urbanos, anônimos e arquitetonicamente diferentes dos de suas cidades.
Nesse sentido, podemos mesmo afirmar que, no Plano Piloto, esses jovens
sentem-se inteiramente deslocados, como intrusos, pois não preenchem as
condições exigidas de seus ocupantes e implicitamente necessárias para
penetrarem nesse espaço. Nos termos de Pierre Bourdieu:
Sob pena de nele sentirem-se deslocados, aqueles que penetram num
espaço devem preencher as condições que o mesmo exige tacitamente
de seus ocupantes. Isso pode ser a posse de certo capital cultural, cuja
ausência pode interditar a apropriação real de bens ditos públicos ou a
própria intenção de deles se apropriar. [...] certos espaços, e em
particular os mais fechados, os mais “seletos”, exigem não apenas
capital econômico e cultural, mas também capital social
(Bourdieu,
1993: 260).
Os raros jovens que interagem com o espaço físico e social do Plano
Piloto, fazem-no a partir de redes que se formam no contato com as classes
médias e altas à qual, principalmente os pais, têm acesso como trabalhadores,
ou seja, como empregados dessa classe.
89
Desconhecimento do espaço do outro: duas visões contrapostas
Jovens da Periferia
“Lá no Plano, eu costumo ir perto da rodoviária, da torre de televisão. Acontece um
imprevisto, sei lá, uma coisa de doença, aí a gente tem que ir, hospital, alguma coisa assim”.
“Lá eles são ricos, é bem diferente daqui. Aqui é periferia, é bairro.[...] Eu conheci um
menino um tempo atrás, ele morava na L2 [Plano], ele não sabe onde ficava o P-Sul
[Ceilândia], nem Taguatinga, desse jeito”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Ceilândia,
Samambaia e Planaltina)
Jovens do Plano Piloto
“A gente fica mais pelo Plano mesmo. Aqui a gente conhece como é o esquema. Fora
daqui, nas Cidades Satélites, já é diferente: menos segurança, o pessoal te olha diferente, o
modo de vestir, tudo é diferente”.
“Eu já fui [numa cidade-satélite], mas não gostei do pessoal. Eu passava ... não sei,
parecia que eu era diferente dali, eu não era dali”.
“As Cidades Satélites são cidades normais, o Rio é favela, tudo misturado com as
cidades. Aqui não, aqui já tem uma separação, pessoal pobre mora lá e a gente aqui. Você
perde um pouco da vivência porque você só convive com gente de classe mais alta. [...] Aqui
tem essa falta de convivência com as pessoas mais humildes, mais pobres. Você cresce vendo
pessoas iguais a você, vive numa redoma”.
(Trecho de entrevistas realizadas com jovens moradores do Plano Piloto de Brasília)
8
No conjunto da percepção sobre os jovens do Plano Piloto, comparece
também a acusação de que são os maiores consumidores de drogas de
Brasília, inclusive indo buscá-las na periferia. São traficantes, com conivência
da polícia e da sociedade que os protege de caírem nas “garras da lei”, roubam
e matam. A polícia não pára os carros, não pede documentos e não chega
perto do Gilberto Salomão, “apóia os bodinhos, alivia os caras”. Os “bodinhos”
também são acusados de assaltarem “por diversão, por aventura, não por
necessidade”.
A impunidade faz com que eles tenham a certeza de que não vão
ser presos, com que se sintam
“imortais”.
8
Estes depoimentos foram colhidos em entrevistas para uma pesquisa da UNESCO sobre os
jovens do Plano Piloto de Brasília, da qual participei. Ver Waiselfisz (coord.,1998). A pesquisa
mostra que os jovens do Plano Piloto não têm nenhum tipo de relação com as Cidades
Satélites, inclusive não as conhece.
90
O caso do índio pataxó Hã-há-hãe, Galdino Jesus dos Santos, que foi
incendiado em 20 de abril de 1997, enquanto dormia numa parada de ônibus
do Plano Piloto, por cinco jovens de classe média
9
, é sempre lembrado como
um exemplo de tratamento diferenciado que ocorre nas camadas privilegiadas
da sociedade, em que existem duas leis: uma para os pobres e outra para os
ricos e, conseqüentemente, uma para os jovens pobres e outra para os jovens
ricos. Se o episódio tivesse acontecido com jovens da periferia, certamente
estariam recolhidos no CAJE (Centro de Atendimento Juvenil Especializado) ou
na Papuda (penitenciária do Distrito Federal).
Se tivesse sido na periferia...
“Quando os ‘bodinhos’ queimaram o índio [...] se fosse um cara pobre que tivesse feito
não estava na Papuda em cela separada, banho de sol em horário separado
10
”.
“Se for na periferia, o cara não vai nem ser julgado, porque a polícia vai pegar, bater e
matar”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Samambaia e
Planaltina)
É interessante notar que, entre as dezenas de jovens que entrevistei,
raramente o caso deixava de ser lembrado. O episódio ficou na memória dos
jovens como um “crime bárbaro”, um “ato de covardia”, de extrema violência:
“Nenhum ato que eu presenciei foi tão violento igual que foi a queima do índio lá na W3. Não
só eu, acho que todos nós acha”.
Ainda com base no caso Galdino, os jovens
ressaltam que a eles são impostos limites que os jovens das classes médias e
altas não conhecem. Foi exatamente pela falta de limites que o índio Galdino
foi morto e também pela certeza que tinham que não seriam de modo algum
punidos: “Você acha que filhinho de papai vai preso? Eles sabem disso”. Os entrevistados
9
O caso foi analisado na pesquisa mencionada (nota anterior) da UNESCO sobre os jovens do
Plano Piloto de Brasília.
10
Referência à proteção e tratamento especiais recebidos pelos implicados no episódio, que,
segundo a imprensa, foram ameaçados de morte nas instituições carcerárias. Essas ameaças
foram-me confirmadas pela direção do CAJE, que, à época da detenção do menor envolvido no
caso, mantinha-o na ala feminina, para evitar possíveis represálias. Tive a oportunidade de
conversar com menores detentos que afirmavam que, no tribunal deles, o rapaz já havia sido
condenado à morte.
91
consideram que os jovens pobres, como eles, são de melhor índole do que os
jovens ricos e, portanto, jamais teriam coragem de praticar a violência de matar
um “índio, pobre, mendigo”, como os jovens do Plano Piloto fizeram.
O caso Galdino:
visões do jovem da periferia e do jovem do Plano Piloto.
Periferia
“Nunca na periferia vai acontecer um episódio desse. Eu tenho consciência disso”.
“Um cara da Ceilândia não teria coragem de fazer isso”.
“Eles tinham precisão de fazer isso? Não tinha. Disse que era só uma brincadeira e
pegou e matou o cara que não tem nada a ver com isso [...]. Só sei que essa história aí me
encabulou, esse filho de papai, só porque tem dinheiro ...”.
“Quando mataram o índio, eles falaram o quê? ‘Não pensaram que era índio’. A gente
não pega um homem assim no meio da rua, não pega um mendigo dormindo na rua. Foi
covardia demais o que eles fizeram”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Ceilândia, Samambaia e
Planaltina)
Plano Piloto
“Eu tentei entender a razão para tanta agressão. O que eu queria saber é por que
pegaram gasolina para tacar num homem e botar fogo? Falaram que foi coisa de momento.
Tiveram muito tempo para pensar, eu acho”.
“São pessoas que não têm nada na cabeça, nenhuma idéia. Não têm ideologia”.
“O negócio é que, assim como existem outras brincadeiras, para mim aquela foi uma
brincadeira impensada”.
“Eu acho que eles não foram com o objetivo de matar. Eles foram para brincar [...]
pregar um susto”.
“A gente não pode crucificá-los como cruéis, porque o limite entre a linha do bem e do
mau é muito tênue”.
“Eu acho que eles não tiveram a intenção de matar a pessoa. Apesar deles terem
jogado um litro de álcool em cima dele [...] a intenção deles não foi de matar o índio,
entendeu ?”.
(Trecho de entrevistas realizadas com jovens moradores do Plano Piloto de Brasília)
11
11
Depoimentos colhidos em entrevistas realizadas para a pesquisa da UNESCO sobre os
jovens do Plano Piloto de Brasília. Ver Waiselfisz (coord., 1998).
92
Nota-se, mais uma vez, a profunda ambigüidade no discurso dos jovens
informantes da periferia. Se, por um lado, buscam recuperar as suas próprias
qualidades como, por exemplo, o fato de possuírem limites e melhor índole que
os jovens do Plano Piloto, por outro, acham inteiramente legítimo roubar e
assaltar os que têm mais posses. Nesse sentido, podemos afirmar que não há
uma maneira tão rígida de atribuírem significados a seus atos na medida em
que o que é negativo pode — dependendo do lugar de onde se fala — tornar-
se positivo e vice-versa.
De modo geral, o discurso dos jovens de periferia pode ser lido como um
discurso de auto-valorização defensiva, auto-compensatório e invertido quando
se refere a valores e critérios morais. Caldeira (1984), ao analisar o discurso de
habitantes da periferia de São Paulo sobre suas percepções do que é ser rico e
o que é ser pobre, chama a atenção para essa inversão. A autora constata que
uma das formas básicas de operar as compensações sobre a riqueza e a
pobreza é atribuir características positivas à pobreza, tais como bons
sentimentos, solidariedade, honestidade e, principalmente, o caráter. Desse
modo, no plano moral, a riqueza é dos pobres, enquanto os ricos são
considerados pobres.
Cabe assinalar que esse discurso invertido não passa por um sentido
religioso, comum no catolicismo popular: a pobreza não é encarada como um
projeto de vida exemplar que garante o ganho da salvação eterna pelo
sofrimento nela implicado, ao que se denominou o “poder dos fracos”
12
. Não há
sanções espirituais aos ricos que não compartilham de suas riquezas, que não
12
O “poder ou poderes do fraco” é uma idéia elaborada por Lewis (1963) quando examina o
dualismo contido nas noções de poder na Somália. É também utilizada por Turner (1974) em
sua análise das formas de manifestação da liminaridade e da communitas. O “poder dos
fracos” contrapõe-se às formas de poder que emanam da estrutura social e que são
sancionadas pelas esferas seculares da política e economia. Trata-se, diferentemente, de um
poder que normalmente se manifesta por meio de atributos vinculados à esfera mística e moral.
Seus detentores são os desprovidos de poder secular e ocupantes das posições inferiores em
uma determinada ordem social, obtendo por isso uma espécie de compensação imbuída de
propriedades que a moral e a cosmologia imputa aos puros, santos, renunciantes e outros
sujeitos que são de modo privilegiado abençoados e protegidos por Deus. Como bem escreve
Wilson Trajano Filho, que trata do poder dos fracos ao analisar o olhar fragilizado português no
processo histórico de colonização de territórios africanos, tanto a cosmologia cristã como a
islâmica, tal como mostrada por Lewis, vão “selecionar para esses fracos estruturais a pobreza,
a abstenção ascética, a capacidade de suportar ultrajes e martírios, a fraqueza, a humildade e
a pureza d’alma e sentimentos como predicados de seu poder” (Trajano Filho, 2004:52).
93
são generosos, que não são honestos, que não têm caráter, ainda que
percebidos como moralmente inferiores. Vale a pena, sobre este ponto,
retomar as palavras de Alba Zaluar sobre os pobres da Cidade de Deus:
Não mais guiados por uma definição de pobreza na qual os pobres
aparecem como possibilidade de redenção dos ricos através da
caridade, nem os pobres detentores dos valores morais e espirituais do
universo, tal como existiu no Brasil rural até algumas décadas atrás,
aos pobres [eu diria aos jovens pobres da periferia de Brasília] resta
pensar a privação sem os disfarces e as belas vestimentas espirituais
de então (Zaluar, 1985: 119).
2.2. Da pobreza e da riqueza
É uma gente mal-educada, fica falando grosseria
pra gente, é uma gente suja, é uma gente que
você olha para as caras das pessoas e tem
vontade de fugir, entendeu? Um horror, não são
brasileiros não, cara, é uma sub-raça ...
Refrão (MC): Sub-raça é a puta que o pariu!
(Rap do grupo Câmbio Negro)
13
Tomando as falas dos jovens até aqui apresentadas, sobressai uma
realidade na qual o sentimento de discriminação se sobrepõe a uma
desigualdade entre ricos e pobres. Essa realidade é melhor compreendida
quando nos fixamos na classificação que os próprios jovens fazem da riqueza e
da pobreza.
Não perco de vista o fato de a pobreza ser uma categoria relativa e que,
confiná-la a um único registro, ou a um único eixo de classificação, empobrece
seu significado social e simbólico. Oscar Lewis (1975), ainda que muito
criticado pelas implicações do componente reificador embutido na noção de
“cultura da pobreza”, da qual faz uso em suas etnografias sobre famílias pobres
de Porto Rico, enfatiza o equívoco de se pensar a pobreza exclusivamente no
eixo das privações econômicas, desorganização e carência de algo. A pobreza,
insiste o antropólogo, carrega positividades sem as quais dificilmente os pobres
sobreviveriam. Dissociando-a da carência material, critério com o qual é
13
A letra dessa música foi inspirada numa entrevista veiculada pela televisão, na qual certa
mulher afirmou que considerava o pobre uma sub-raça.
94
costume delimitá-la, é possível enxergá-la dentro de registros distintos, como
os jovens nos mostram.
Quando perguntados sobre como pensam o que é ser rico e o que é ser
pobre, meus informantes imediatamente acionaram os mecanismos de
autocompensação anteriormente mencionados, atribuindo características
positivas à pobreza. Faziam questão de dizer que eram pobres, mas
moralmente superiores aos ricos, numa atitude correspondente a uma forma de
autovalorização defensiva diante de bens, como a riqueza e a educação formal,
aos quais não têm acesso. A generosidade, a solidariedade e a humildade são
qualidades morais superiores a qualquer posse material, qualidades estas
dificilmente encontradas nos ricos.
Pobre é humilde e sempre ajuda
“Acho que a pobreza não é por falta de dinheiro, porque todos nós aqui temos
condições de viver. A pobreza é que em nossa sociedade nós somos mais humildes”.
“Pode ver esse negócio que teve aí no Nordeste, pessoas passando fome. Todo o
mundo que mandou foi pobre. Pobre quer ajudar”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Samambaia e
Ceilândia)
A falta de humildade, a exibição, o sentimento de superioridade
atribuídos aos jovens do Plano fazem com que alguns jovens da periferia, ao
se colocarem no papel de pessoas com dinheiro, afirmem que jamais a riqueza
poderia tirar-lhes a humildade, o sentimento do próximo, a solidariedade.
Romper com as regras de reciprocidade, fundamento da ordem social para os
pobres no Brasil
14
, significaria excluir-se do mundo dos pobres. Seria perder as
referências do ponto de vista moral, uma vez que riqueza sem generosidade
não é moralmente legítima, envolvendo a perda dos pressupostos básicos das
virtudes morais do grupo de origem:
14
No caso brasileiro, a reciprocidade como fundamento da ordem social para os pobres é
assinalada por vários autores. Este princípio é fundamental naqueles que compõem o conjunto
de sua percepção de mundo. É um princípio “sócio-lógico”, como diz DaMatta (1979).
95
Se eu chegar a ser rico um dia, eu não vou ficar me exibindo pros outros não.
Se eu tivesse bastante dinheiro como um jogador de futebol desse tem, essas
pessoas importantes, esses artista, eu ia ajudar aquelas pessoas que ta lá
embaixo duma ponte e não se exibir pra as pessoas pobres.
O pobre é também considerado um lutador, que “tem que ralar”, “tem que
batalhar”, “tem que correr atrás”
. Ao lado da negatividade contida na noção de ser
pobre, a noção do “lutador”, daquele que tem disposição para vencer, dá ao
pobre uma dimensão positiva. O valor moral atribuído à disposição do pobre de
superar obstáculos, de saber sobreviver diante de todas as adversidades,
compensa as desigualdades sociais vividas, exatamente porque é construído
dentro de um referencial simbólico bem distinto daquele que o desqualifica
socialmente.
O rico, afirmam os jovens, ao contrário de tudo isso, desconhece as
dificuldades do pobre, não ajuda o próximo, não é solidário e é muito
orgulhoso. Só gosta de divertir-se e ter muitos privilégios. O rico tem dinheiro,
pode consumir, viajar, mas isso não os torna imunes às doenças, pode trazer
problemas, fazer com que esquentem a cabeça e fiquem mais nervosos. A
doença, como a morte, iguala os homens. Mesmo num mundo
irremediavelmente desigual, a ordem “natural” faz justiça, garante que todos
sejam iguais.
Pobre de vez em quando falta muitas coisas pra ele, mas também rico é a
mesma coisa, o dinheiro mesmo não pode acabar com a doença. Por exemplo,
o pobre tem uma doença e tem doenças do pobre que cura, mas as do rico,
tem umas que nem cura, nem por dinheiro
.
Independente da posição social, todos morrerão, todos estão sujeitos a
tragédias pessoais. E o rico, sem as bases morais do pobre – solidariedade,
humildade, companheirismo – estão muito mais sujeitos a essas tragédias.
A pobreza, portanto, não diz somente respeito às desigualdades
econômicas, mas é sempre relativizada pelo prisma moral. O jovem que se
percebe como pobre no mundo social, nem sempre se considera “pobre de
espírito”, como expressa Dundum, 17 anos, integrante de uma gangue de
pichadores de Samambaia: “Eu acho que uma pessoa quando ela é pobre, é porque ela é
pobre numa situação, que ela é pobre de espírito. A pobreza existe só no espírito da pessoa”.
96
Além disso, o rico adquire tudo facilmente, mas acaba não tendo a
liberdade, os sonhos e as alegrias do pobre.
Pobre tem sonho
“Pobre tem sonho, mas tem muitos que não podem ser realizados. Rico não, (...) quero
isso, vai lá compra e tem. Quem tem fácil não fica com aquela alegria”.
“Rico não tem a liberdade de pobre não, nem ele é mais feliz que pobre não. O rico
esquenta mais a cabeça que pobre. O pobre não tá nem aí, véi, o pobre é fudido mesmo. Olha
como a vida de pobre é mais divertida: tu vai ficar nervoso correndo atrás de dinheiro? Não.
Não tem coisa mais divertida que isso”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Planaltina e
Ceilândia)
A pobreza, para eles, é dividida em vários estratos: há os mais e os
menos pobres. Existem, nas suas classificações, o “pobre miserável”, o “pobre de
classe baixa”
e o “pobre de classe média”. O pobre miserável é o que é privado de
comida, vestuário e outros bens, não tem de modo algum acesso à educação e
a saúde: “Se sustenta muito mal”. Os outros têm possibilidade de se vestir e comer,
de ter um teto para morar, de poder estudar, ao menos de passar pela
educação básica, de aceder a bens de consumo, como rádio, televisão e
aparelho de som.
CFZ se apresenta como um jovem “pobre de classe média”, que não tem
acesso a tudo que desejaria, mas que está bem longe da miséria. E de fato, a
julgar pela minha experiência com pobres da periferia de Brasília, as condições
materiais que o cercam são bem acima dos padrões encontrados no cinturão
metropolitano da cidade. Mora num sobrado, com o terceiro andar em
construção, junto com pai, mãe e outros quatro irmãos, dois dos quais casados
e com família residindo nessa mesma casa. A família encontrou uma maneira
de dividir o espaço pela qual garante-se a cada indivíduo ou núcleo familiar um
espaço semi-privado. Desse modo, CFZ tem um quarto próprio, onde recebe
seus amigos e ensaia com seu grupo de rap longe dos olhares dos outros
familiares. No quarto, onde também costumava receber a pesquisadora, havia
televisão, vídeo cassete e aparelhagem de som. Esse padrão, em certa
medida, não diferenciava muito do de outros rappers que tive oportunidade de
conhecer as casas. Embora nem todos morassem em residência espaçosa,
97
havendo até mesmo casas de chão batido, em comum havia, de uso coletivo
ou não, a aparelhagem de som, a TV e o vídeo cassete. Além disso, a relativa
facilidade de acesso a computadores fazia parte da realidade dos rappers.
De modo geral, não somente CFZ e os outros rappers que entrevistei,
meus informantes não se consideravam pobres miseráveis. Não exatamente
porque não passavam por privações características da pobreza, mas porque
pensam que, dentro de seu meio, há sempre uma situação de vida pior que a
deles: “Pobre é assim, se ele é pobre, tem sempre um mais pobre do que ele”.
As privações destes jovens evidenciam-se pelas inúmeras referências à
comida, um dos meios importantes pelo qual a condição de pobre é pensada
(Zaluar, 1985). O pobre tem restrição de consumo de alimentos, enquanto o
rico tem mesa farta, come “do bom e do melhor”, como diz José, 16 anos:
Tem vez que falta coisa pra gente comê em casa, come todo o dia, mas não
come como rico, que come do bom e melhor [...] vai lá na casa de um pobre e
abre a geladeira, só tem garrafa d’água. Rico é maçã, pizza, queijo,
refrigerante.
As privações também se evidenciam pelas inúmeras referências à luta
da família, às dificuldades de comprarem roupas, de terem dinheiro para gastar
com lazer, com transporte para outras áreas do Distrito Federal, entre outras.
A identificação com a pobreza, na comparação entre o rico e o pobre,
não esconde, no entanto, um sentimento de revolta com as diferenças
econômicas e sociais. É por isso que Patrícia, ouvindo os colegas discursarem
sobre as “virtudes da pobreza”, subitamente os interrompe, dizendo viver numa
sociedade profundamente injusta, pois,
[...] ser pobre é ser humilhado. Eu odeio ser pobre, odeio. Sabe por que?
Porque pobre sofre demais. Ser pobre é querer ter as coisas e não poder, é ser
excluído socialmente, é não ter chance na vida.
98
Injustiça do Mundo
“O rico é protegido pela sociedade, por todo o mundo”.
“Pobre e rico, duas coisas que é muito difícil misturar. O rico tem mais direito pra tudo,
tem poder de comando também, que ele tem dinheiro”.
“É com isso que nos revoltamos, é com a injustiça do mundo. Aqui, se você tem
dinheiro, você não vai preso, você faz o que você quiser. Agora, se você é pobre, é lascado,
não tem onde morar, não tem como trabalhar (...) Esse Brasil é tão injusto que o rico mata o
pobre e é capaz do pobre ser preso”.
“Pessoa rica tem tudo fácil, é fácil as coisas. Tem lugar que a gente chega e é
desprezado, ninguém considera a gente. Agora, rico não. Rico cai na cadeia e tem condição de
sair. Se ele pegar dez anos, pode diminuir para cinco. Agora o pobre cai na cadeia, pega vinte
anos, vai cumprir. Aí vai morrer. É até esquecido lá”.
“Riquinho ali quando tá precisando de transplante, rapidão pega um avião e vai nos
EUA, nesses lugares. O pobre tá morrendo esperando essa ficha que nunca chega. Você
espera nessa fila, três volta assim, igual no inferno”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Ceilândia,
Samambaia e Planaltina)
A injustiça é percebida sob vários aspectos: pela falta de oportunidade
de trabalho; pela precariedade dos locais de moradia; pelas dificuldades de ter
uma casa; de ter acesso e às precárias instituições de saúde e educação; pelo
sistema de justiça que trata os pobres como cidadãos de segunda classe em
relação aos ricos, na medida em que esses últimos podem pagar por tudo,
inclusive pela liberdade quando cometem algum crime.
Uma outra revolta, que faz parte da fala de muitos jovens, relaciona-se
com a imagem discriminatória que os ricos têm dos pobres. Os ricos sempre os
desqualificam, acreditando que ao pobre falta cultura, que são violentos,
vagabundos, drogados, criminosos; que do pobre emana todo o mal social:
O rico pensa que a gente é sem cultura, sem nada, que através do pobre que
vem a violência, a malandragem, que é dele que surge tudo de ruim [...].
Sendo pobre e negro, é ainda pior, porque geralmente tudo o que acontece
falam que é o negro, o preto. Tudo o que acontece de ruim jogam nas costas
de alguém preto.
Como foi dito no capítulo anterior, os jovens muitas vezes se sentem
discriminados em seu próprio ambiente social pela sua aparência,
principalmente pela adoção de um determinado vestuário. Mas chama a
99
atenção que, em nenhum momento, afirmam serem racialmente discriminados
em seu meio:
Racismo não existe não, pelo menos na nossa roda.
Todo mundo se considera, não tem esse negócio de preto, porque é branco,
porque é azul.
A temática da discriminação racial sempre os toma de surpresa. Como a
maioria dos brasileiros, negam todo o tipo de racismo em seu meio,
reproduzindo e subordinando-se ao “mito da democracia racial” (DaMatta,
1981). Ao mesmo tempo, assumem um posicionamento crítico e realístico ao
apontarem situações de discriminação de variados tipos que ocorrem quando
já não se encontram entre iguais, ou seja, entre indivíduos de mesmo estrato
sócio-econômico.
Num grupo de oito jovens entre 16 a 18 anos, perguntei a Marcelo, 17
anos, um mulato, se ele se sentia discriminado racialmente:
Marcelo: Pela raça? Não, eu nunca, de jeito nenhum.
Pesquisadora: Você se considera preto?
Marcelo: Eu me considero negro. Eu posso não ser, mas eu me considero. Em vista dele
[aponta para um colega], eu sou um negro.
Colega: Eu dava tudo para ter a cor dele.
Marcelo: Tem essa, eu quando passo por umas ruas ali embaixo: “lá vai aquele preto, já vai, já
vai, já vai pra macumba” – porque eu vou todo de branco – “já vai pra macumba aquele negro”.
Eu passo. Uma vez o pai da minha namorada me colocou pra correr de lá.
Pesquisadora: Ele te colocou para correr porque você é preto?
Marcelo: Eu sou moreno! Preto é o que eles consideram. Não foi por isso não, foi por causa da
galera que eu ando. A maioria dos meus amigos é tudo preto, moreno assim.
As ambigüidades contidas nesse diálogo, que consistem exatamente
nas afirmações simultâneas de “considerar-se negro” e de “não ser negro, ser
mulato”, de “não ser discriminado” e de ser confundido com “macumbeiro”, pelo
contraste das vestimentas brancas com a cor escura da pele, somadas ao
espanto causado pela introdução do tema, só reforça a minha tese de que a
temática da discriminação racial passa ao largo do cotidiano desses jovens. É
100
como se vivessem num espaço territorial que dissimula o preconceito, o que
impede, a princípio, o processo de tomada de consciência da “raça”. Assinala-
se que num espaço territorial onde o preconceito é dissimulado, não raro
ocorre que ele seja interiorizado, reforçando a construção de uma identidade
pautada na baixa auto-estima, que abriga a visão de que lugares inferiores ou
de segunda classe são “normais” para o “cidadão de cor”.
Em outro grupo, formado por integrantes de gangues de pichadores,
Marco Aurélio, 18 anos, líder de uma, responde à pergunta que fiz a Marcelo:
Marco Aurélio: Não entendi.
Pesquisadora: Você é escuro, não é? Você se sente discriminado por isso?
Marco Aurélio: Eu sou de duas cores, preto e branco. Pra mim racismo não existe. A gente fala:
“Aí negão ! Aí neguinho !”. Mas pô, tipo afeto. Na consideração pelo cara [...]. Já peguei foi
negona. A bicha era muito feia [...]. Pé preto, pegar na minha mão?
Pesquisadora: Você não andava de mão dada?
Marco Aurélio: Não, porque a nega era feia demais. Negona, parecia um macho, enfrentava até
macho.
Foi também com espanto que os colegas de Fábio, de 18 anos,
entrevistado num outro grupo, o escutaram discursar sobre a sua condição
negra: “Eu tenho que me preocupar entre ser pobre e ser negro, tenho que me preocupar
duplamente (...) Eu sou discriminado duplamente: ‘mora na Ceilândia, então é pobre e ainda
por cima é preto’”.
Fábio diz que a discriminação racial revela-se claramente
quando os negros estão em busca de trabalho, quando o empregador tem que
optar entre um negro e um branco:
“Um cara branquinho, bonitinho, quem ele vai
escolher? Eu ou o outro? Com certeza o outro, o branquinho, o bonitinho, vai deixar o preto pra
lá”.
O relato de Fábio, entremeado de histórias narradas sobre situações que
vivera nas quais o fenômeno da discriminação racial esteve presente, acaba
sendo interrompido pelo comentário de um colega: “Eu estou chocado. Não sabia
que você se considerava negro”.
É, portanto, quando interagem em ambientes sociais diferentes que
aparece o sentimento de serem discriminados pela cor, fator percebido como
diferenciador de entre o rico e o pobre. O rico tem a pele cuidada, branca,
nunca se expõe aos raios solares, está sempre dentro de casa ou
enclausurado no trabalho: “A pele é branca de quem não pega muito sol. A gente não,
101
pobre, não. Mesmo se a gente chega no Plano arrumado, não dá para esconder”.
O pobre,
diferentemente, possui pele escura, estragada, não cuida do corpo e “está todo
dia na rua pegando sol e poeira”.
2.3. “O Diabo é o outro”
A partir do contraste e comparação entre as condições de vida no Plano
Piloto de Brasília e a realidade da periferia, os jovens trazem à tona um
conjunto de percepções acerca do lugar que ocupam no mundo social e como
se colocam frente a ele. Suas falas relevam que fazem um ordenamento moral
deste mundo no qual o “desigual” – o jovem do Plano Piloto, o “rico” – é
colocado em posição de inferioridade. Em contrapartida, o jovem da periferia, o
“pobre”, possuiria uma “essência boa” (generosidade, solidariedade,
companheirismo e humildade), capacidade de sonhar, de ser livre,
assegurando sua superioridade no plano moral.
A desqualificação moral do jovem do Plano, do “rico”, corresponde a
uma forma de autovalorização defensiva diante da falta de capital econômico,
social e cultural, como também a uma auto-afirmação dos jovens da periferia
em face da crença discriminatória dos ricos de que o “pobre” é “ignorante”,
“vagabundo”, “bandido”, “drogado”. Assim, dentro de uma escala de valores
que não tem relação com o gozo da riqueza, do prestígio e do poder, ou seja,
com as posições de dominação e subordinação que as pessoas ocupam na
sociedade, os jovens relativizam seu lugar na ordem social.
Contudo, ainda que busquem relativizar as desigualdades entre “ricos” e
“pobres”, os jovens não deixam de manifestar um sentimento de revolta diante
de uma sociedade marcada por diferenças econômicas, de oportunidades e de
forma de inserção na sociedade. E esta revolta irrompe acompanhada de um
profundo ódio ao “outro” e, ao mesmo tempo, uma forte autocomiseração.
Dizendo de outro modo, quando o olhar se desloca do plano moral, os jovens
revelam uma baixa auto-estima e uma grande fragilidade frente a ordem social.
102
CAPÍTULO 3
OUTRAS DIMENSÕES DA SOCIABILIDADE: FAMÍLIA E TRABALHO
Pensa que é fácil? Fazer é fácil, agora criar,
manter os filhos vivos, isso é muito difícil.
(Jovem da Ceilândia)
3.1. “Família é tudo”: a percepção dos jovens da instituição familiar
À medida que os jovens narravam o seu cotidiano, as percepções,
relações e significados da família compareciam naturalmente em suas falas,
mostrando que a mesma constitui um de seus maiores pontos de referência,
independente das relações amistosas ou não com ela mantidas. A maioria
mora com a família – pai e/ou mãe, irmãos, parentes – e, os raros jovens
casados, amigados, com filhos continuavam a viver na casa do pai e/ou mãe
ou de um parente próximo.
Chama a atenção o número expressivo de jovens vivendo somente em
companhia da mãe e irmãos, confirmando os dados sobre o crescimento no
Brasil do número de mulheres chefes de família, principais responsáveis pelo
sustento econômico e pela unidade familiar nuclear
1
. Nos novos arranjos
familiares, que indicam uma alteração radical dos tradicionais papéis de mãe e
de pai na sociedade brasileira, a mãe figura como o elemento central na família
e assume o papel da autoridade masculina, enquanto o pai tende a perder
espaço à medida que deixa de ser o provedor da mulher e filhos, o que abala
de modo considerável a base de respeito perante seus familiares
2
.
1
Como assinala Alba Zaluar, “o que se nota, como padrão geral, é a diminuição da importância
da figura masculina em favor da expansão do papel feminino. Longe de ser uma característica
apenas no proletariado urbano brasileiro, a chamada família matrifocal é, sem dúvida, uma
realidade na organização social dos trabalhadores pobres” (Zaluar, 1985:97).
2
A literatura sobre famílias pobres no Brasil confirma que quando a mulher assume a
responsabilidade econômica da família ocorrem transformações importantes no jogo de relação
de autoridade dentro da unidade doméstica. Contudo, como salienta Cyntia Sarti (1996), “a
desmoralização ocorrida pela perda da autoridade que o papel de provedor atribui ao homem
(...) significa uma perda para a família como totalidade, que tenderá a buscar compensação
pela substituição da figura masculina de autoridade por outros homens” (Sarti, op. cit.:46). Grifo
103
A mãe, então, torna-se “uma figura poderosa, uma espécie de ‘mulher
maravilha’, faz-tudo, enquanto o pai passa a perder espaço tornando-se
vulnerável” (Sallas, 1999:125). A chamada “fome de pai” (Barker, 1998) decorre
da situação de ausência de pai entre os adolescentes e está associada a um
tipo de “transferência”: criados sem pai ou uma figura masculina que exerça
este papel, os jovens acabam por adotar os companheiros de rua como seu
substituto. Principalmente líderes de gangues e do narcotráfico tendem a
fornecer o modelo de masculinidade, que é normalmente expresso em padrões
machistas nos quais a força, a violência e o direito sobre as mulheres são
extremamente valorizados
3
.
Embora o modelo de família conjugal monogâmica – marido-mulher-
filhos legalmente unidos e formando um lar – não fizesse parte da realidade de
número significativo de informantes, o mesmo dominava as expectativas e os
discursos. Um dia encontrar uma “boa mulher” ou um “bom marido” e ter filhos era
aspiração comum aos jovens. Para os de sexo masculino, constituir uma
família e assegurar condições econômicas para dela cuidar surgem como
possibilidades ligadas a uma nova etapa de vida, a idade adulta, quando se
tem mais “responsabilidades” e, também, uma maior preocupação sobre como
ganhar mais dinheiro: “Ter a minha dona, conseguir uma casa pra mim, ficar com a minha
mulher, ter meu filho e tocar a vida pra frente”.
O modelo tradicional da família nuclear, tendo o homem como provedor,
é de tal forma enraizado que faz com que, em muitos momentos, os jovens do
sexo masculino se confessem inquietos com o seu futuro papel de chefe de
família, com a responsabilidade pela manutenção da casa, ao contrário das
mulheres que não teriam essas preocupações em seus horizontes:
“As mulheres
pensam: ‘Ah eu vou casar, ele que se vire em comprar os móveis, a casa...’ A gente que é
da autora). Esta autoridade é normalmente transferida para homens pertencentes à própria
rede familiar, sobretudo para o “irmão da mãe”, que pode assegurar a dimensão de respeito
conferida pela presença masculina. Sobre este ponto ver também o estudo Woortmann (1987)
sobre a organização familiar e de parentesco entre pobres de Salvador.
3
Ana Sallas (1999) chama a atenção para a recente massa de estudos produzidos relativos ao
tema “ausência do pai”. Ela nos alerta sobre o perigo das relações de causalidade absoluta que
têm sido feitas entre a ausência de pai e o aumento da delinqüência juvenil, o que só corrobora
na construção de uma imagem satanizada do jovem e do adolescente. Agradeço a autora
pelas boas discussões levadas a cabo durante a realização da pesquisa por ela coordenada
sobre os jovens de Curitiba, da qual tive a grata oportunidade de participar.
104
homem fica preocupado”
. Mas, divergindo do que diziam os homens, as jovens
externavam desejo de trabalhar para ajudar os seus futuros maridos
4
.
Como mencionado, embora, na prática, a experiência de muitos jovens
com a família fuja inteiramente ao arranjo familiar ideal da sociedade brasileira,
suas visões permanecem dentro de um quadro de valores tradicionais e
revelam um extremo conservadorismo. Todos, independentemente de
experimentarem esse modelo em suas famílias de origem, afirmam que a
família é mais importante do que qualquer outra instituição social e tem mais
peso que qualquer relação estabelecida fora do contexto doméstico.
Consideram-na também como a “base de tudo”, sendo a principal responsável
pela formação de valores, por ensinar o certo, o errado, “o lado do bem e o lado do
mal
, pela imposição de limites.
A grande confiança depositada nas suas famílias é sempre ressaltada
pelos jovens, que se sentem por ela apoiados em situações difíceis, tais como
brigas e perseguições. Além disso, sempre que narravam passagens por
delegacias policiais, juizado de menores, CAJE (Centro de Atendimento Juvenil
Especializado), emergiam inúmeras referências ao pai e/ou mãe, tia/o, irmã/ão
como atores participantes do drama.
O caso de Isac é um desses dramas do qual participam todos os
membros da família. Líder de uma gangue de pichadores, Isac tem inúmeras
passagens por delegacias, apanhado por pichação e por porte de drogas. O
juizado decidiu aplicar-lhe a pena de serviço comunitário mas, até que desse
início, ficava como obrigação de apresentar-se a cada seis meses diante do
juiz. No dia anterior a um de nossos encontros, ele tinha ido com o pai a uma
dessas visitas ao juizado. Segundo o rapaz, ele detestava aquelas
apresentações ao juiz, mas sempre comparecera por pressão familiar. O pai é
quem cuidava de tudo, registrava os dias das audiências e o acompanhava a
cada visita. Era o pai quem sabia exatamente de sua situação diante da justiça.
Casos, como o de Isac, não são incomuns. No entanto, quando
envolvidos em práticas delinqüentes, os jovens procuram a princípio ocultá-las
4
É recorrente ouvir no meio rural e nos meios populares urbanos que as mulheres trabalham
para “ajudar” o marido. Ao menos no imaginário, fica mantida a função do homem de provedor
econômico da família.
105
da família, para evitar serem repreendidos e também desmascarados como
traidores daqueles a quem, como dizem, devem uma enorme “gratidão”. Muitos
relatos revelam inclusive que carregam grande culpa pelo fato de terem feito a
família passar por constrangimentos em delegacias policiais, diante de juizes e
delegados. Principalmente a figura da mãe aparece como aquela que deveria
ter sido poupada: “Coitada, como ela sofreu, ela não merecia...”.
A família aparece como um valor fundamental e o papel que exerce em
suas vidas é mistificado. O seu significado passa por representações em que
prevalecem o ajustamento e a harmonia familiares como elementos
dominantes. De modo secundário, emergem críticas, acusações e
culpabilizações, mas dificilmente dirigidas às suas próprias famílias.
Comumente os jovens falam da família genericamente quando constroem os
discursos negativos sobre esse espaço social.
A fala de CFZ, de 18 anos, exemplifica bem essa visão culpabilizadora
da família. Nela também nota-se um conjunto de percepções referenciadas em
valores da sociedade brasileira tradicional. Segundo CFZ, comparada com a
família do passado, a família atual não se envolve suficientemente com a vida
dos filhos, que terminam revoltados e por fazer o que querem de seus destinos.
Os pais não procuram estabelecer limites, deixando-os livres para serem
educados na rua, que serve como uma escola, um lugar de aprendizagem em
todos os sentidos. É na rua que o jovem vai se envolvendo com a
marginalidade, aprendendo a traficar, a roubar, a assaltar. Os pais de hoje
desconhecem o “mundo lá fora” e por isso não têm condições de instruir e apoiar
os filhos:
Se os pais tiverem a visão do mundão aqui fora, dessa janela pra fora, ele vai
procurar alertar o filho [...] tem hora que os pais não querem saber de nada não
[...]. Se quiser você vai lá fora que você aprende lá na rua
.
As omissões dos pais são, portanto, apontadas por CFZ como uma das
causas da revolta do jovem e da busca da rua como refúgio, uma espécie de
substituto da própria família: “Ele começa a dar mais dez pros caras da rua do que pros
pais dele”.
Os pais, na sua visão, têm medo da realidade e deveriam impor
limites, dar exemplo para poder cobrarem de seus filhos, olhar com atenção a
106
realidade ao invés de constantemente negá-la, fingindo que desconhecem o
envolvimento dos filhos com práticas ilícitas como a venda e o uso de drogas,
assaltos e roubos: “ela não questiona muito porque tem medo”.
Patrícia também fala sobre essas omissões e da rua que, no seu caso,
desempenhou o papel formador e educador que caberia à família. Como ela,
segundo seu relato, muitos jovens são criados soltos, sem orientação, não há
diálogo, ninguém para conversar. Por isso saem procurando drogas e se
envolvem em situações de assaltos, roubos e mortes. A família, nessa
perspectiva, exerceria enorme influência sobre a possibilidade que os jovens
têm de ingressar no universo infracional:
As coisas que eu aprendi foi na rua e hoje em dia se eu não sou pior agradeço
a mim mesma. Eu nunca tive ninguém pra conversar, pra falar dos meus
problemas, então eu me fechei e comecei a aprontar na rua.
Mas se, por um lado, os pais são criticados porque voltam as costas
para a realidade, pelas ausências e omissões, por outro, os filhos, mesmo em
se tratando dos que têm pais presentes, teriam a capacidade de driblá-los e
enganá-los. Segundo Kroak, líder de uma gangue de pichadores, “pai que fala
que sabe o que o filho está fazendo, ta totalmente enganado [...]. Você pensa que o seu filho ta
num lugar bom, ele ta aprontando [...]. Pai nunca sabe onde o filho tá”.
As separações e os vários casamentos dos pais são também apontados
como uma das razões que levaria os jovens a buscarem a rua e a se
envolverem com a marginalidade. O jovem filho de “pais separados” sentir-se-
ia desamparado, desprotegido, e compensaria esse vazio afetivo nas relações
estabelecidas fora do ambiente doméstico. A gangue, por exemplo, para esse
jovem, funcionaria como um tipo de comunidade de acolhida, de
reconhecimento e aceitação, um espaço de escuta e compreensão.
Tephon é um desses jovens que enfrentou o problema da separação dos
pais e que a ela atribui seu envolvimento, ao longo de muitos anos, com
gangues e inúmeras práticas delinqüentes. Os novos arranjos ou modelos
familiares são por ele criticados e, ao mesmo tempo, são mantidas as
representações e expectativas de um modelo tradicional de família nuclear:
107
O meu exemplo de família é o que a gente mais vê por aí. Os pais se casam,
colocam os filhos no mundo, se separam e aí um vai um pra um lado, o outro
pra outro, divide os filhos. Os filhos ficam muito loucos, aprontam mesmo.
Chamo a atenção para o fato de os jovens reproduzirem o pensamento
dominante sobre as famílias consideradas “desajustadas” ou “desestruturadas”,
e exigirem, em seus discursos, comportamentos e valores tradicionais e
idealizados. Assim, não espanta que critiquem a excessiva liberdade dada aos
jovens, a falta de limites e de cobranças, o papel formador negativo da rua, as
omissões por parte dos pais, e que vejam a família como principal locus de
estruturação psíquica dos indivíduos, apontando como elementos fundamentais
dessa estruturação a proteção, a domesticidade, a assistência materna e
paterna, a autoridade e o conforto emocional.
Poderíamos especular sobre a sinceridade desses relatos, se realmente
os meus informantes com todo esse discurso sobre a família queriam apenas
impressionar a pesquisadora. Mas o fato é que, sendo sinceros ou não, eles
conhecem bem o pensamento dominante, o bastante para reproduzi-lo.
3.2. Em nome da Mãe
“Chefes” ou não de família, a figura da mãe é fortemente presente nos
relatos dos meus informantes. Quando ingressam na vida do crime, todo o
cuidado é pouco para protegê-la. A mãe deve ser poupada de qualquer tipo de
aborrecimento, de todo sofrimento, e por isso mesmo não pode nem sonhar
com o envolvimento do filho nas “
paradas”.
Devido a essa centralidade da mãe na vida dos jovens, quando
acionados os mecanismos de vingança contra uma pessoa ou grupo
antagônico, eles freqüentemente ameaçam agredir a mãe do rival ou levar a
cabo alguma outra ação capaz de produzir um abalo na relação de confiança
entre mãe e filho. Além disso, os insultos verbais entre os jovens comumente
são povoados de referências à mãe e, especialmente, abordam o tema de seu
comportamento sexual, o que produz reações imediatas. Ao nível simbólico, o
jovem que reage a insultos tais como “filho da puta”, “vá foder sua mãe”, “a piranha da
108
sua mãe
”, se conduz de maneira a garantir a honra da principal figura feminina
de seu grupo doméstico, pela qual se sentem responsáveis
5
.
A defesa da honra da figura materna, a confiança, respeito e
consideração por ela são proporcionais à ausência de franco diálogo entre mãe
e filhos. Embora sempre afirmem que a relação com a mãe é “ótima” e bem
melhor do que a com o pai ou padrasto, quando estes fazem parte da família,
os jovens também dizem evitar conversas abertas com a mãe, pois se sentem
pouco à vontade para falar de seus problemas. Preferem compartilha-los com
os amigos que vivem a mesma experiência.
Todavia, “em nome da mãe” os jovens são capazes de tudo: por ela
discutem, brigam, dão tiros, matam e também saem da vida criminosa. Na
verdade, não apenas a mãe, mas a “mulher”, em geral, quando não é tida
como “vadia”, seria capaz, na percepção de meus informantes, de influir nos
seus destinos. Uma “boa dona”, tal como a mãe, indicaria os bons caminhos da
vida e os obrigaria a curvar-se à responsabilidade, considerada como atributo
de um homem adulto de bem.
3.3. O trabalho e o trabalhador: ambivalências
As representações dos jovens acerca da vivência do trabalho são
marcadas pela ambivalência: se, por um lado, duvidam do seu sentido,
sinalizando uma transformação de valores bastante significativa na sociedade
urbana brasileira, por outro, reproduzem o discurso dominante que insiste na
questão da falta de oportunidades oferecidas ao trabalhador. O dilema da
escolha entre ser trabalhador ou não é um dos dramas experimentado por
muitos jovens da periferia de Brasília.
No Brasil contemporâneo, o trabalho consolidou-se como o referente
central de cidadania. Ainda que não seja exatamente uma ética do trabalho,
5
Meus informantes pautam-se por um modelo de masculinidade que considera a honra
feminina sua responsabilidade. Por isso procuram exercer um controle social da reputação não
apenas da mãe, como também das irmãs e namoradas. Curioso é que, ao menos no discurso,
a exigência de honradez, de boa conduta dessas mulheres é tanto maior quanto mais o jovem
se afasta das normas dominantes. Dizendo de outro modo, os mais delinqüentes foram os que
mais manifestaram ter atenção à respeitabilidade das condutas de suas irmãs e namoradas.
109
mas uma ética de provedor que leva o pobre a aceitar a disciplina do trabalho
(Zaluar, 1985), não há duvida de que ele representa, para a enorme população
pobre do país, um valor moral. Por meio dele, o trabalhador pobre alcança a
dignidade pessoal e adquire
[...] um salvo-conduto moral, um suposto passaporte que alinha dois
mundos que se entrelaçam através de um profundo abismo: o mundo
dos “proscritos” e daqueles que se incluem na trama da cidade oficial
(Diógenes, 1998).
Ora, é exatamente essa crença no poder de “redenção moral” do
trabalho que vai perdendo sentido e força entre muitos jovens da periferia,
espaço tradicional de exaltação do “cidadão trabalhador”. As dificuldades
encontradas para entrarem no mercado de trabalho e na vida ativa contribuem
para que eles experimentem um ponto de indefinição nos limites entre a
premissa de que “o trabalho dignifica o homem” e a de que “o trabalho não
compensa”, entre o mundo da ordem e o mundo da desordem. Além disso,
essas dificuldades acabam constituindo em obstáculos para a passagem para
a vida adulta que, como se sabe, tem como um dos pilares a autonomia
proporcionada pela emancipação econômica.
Se antes o adiamento desta passagem — da vida do jovem para o
universo do adulto — ocorria em proporção modesta entre os jovens das
classes populares, sendo até mesmo uma prerrogativa de jovens das camadas
sociais mais altas, hoje a situação vem se alterando. A “moratória” social
6
não
6
Na sociologia da juventude, a idéia de “moratória” social associa-se às transformações
ocorridas desde o início do século XX no modelo de socialização dominante na Europa
ocidental, sobretudo entre as famílias burguesas. Antes os jovens eram socializados em meio a
outras gerações, ao universo adulto, passando em seguida a serem afastados da vida social e
segregados em escolas com o objetivo de aprenderem as normas e regras da vida em
sociedade. Cabe dizer que no primeiro contexto, os jovens, diluídos entre várias faixas etárias,
não formavam uma categoria sociologicamente diferenciada. Quando deixam de ser treinados
para a vida adulta com os adultos, com outras gerações, e passam a sê-lo por institutos,
escolas e universidades, começam a se estruturar enquanto uma categoria social específica e
se articular em torno de grupos etários (Gottlied & Reeves, 1968; Galland, 1997). Mantidos fora
do sistema produtivo e da ordem de interesses constituídos, os jovens são colocados nas
situações de marginalidade, visto que ficam alijados dos processos de decisão e criação do
social, e de “moratória”, ou seja, suspensos da vida social. Ocorre que nos dias de hoje nada
parece contribuir para que o jovem, sobretudo o de meios abastados, tenha pressa de sair do
período de moratória, que é também um tempo para o ensaio e erro, para experimentações,
durante o qual ele “constrói progressivamente sua identidade social e profissional e tenta a
fazer coincidir com um status acreditável” (Galland,1996: 74). Passamos de uma norma da
“precocidade”, em matéria de incorporação dos papéis adultos, a uma norma de
110
é mais apenas uma síndrome de jovens que podem se permitir esperar
terminar os estudos permanecendo na casa dos pais e sendo por eles
sustentados. Ela se transformou num traço cultural específico de uma geração,
até mesmo um elemento de estilo de vida, que se estende e se generaliza
entre parte considerável de jovens das classes médias e populares. Contudo,
cabe assinalar que nos dois casos existe uma significação diferente na relação
de escolha: enquanto para os jovens das classes populares a mesma
corresponde à dificuldade de entrada no mercado de trabalho, para os jovens
abastados essa relação manifesta o privilégio de poder esperar sem ter que
assumir responsabilidades, desfrutando os prazeres da sociabilidade juvenil.
Geralmente, segundo Galland (1993), neste último caso, o adiamento do
ingresso para a vida adulta é conscientemente escolhido
7
.
Durante a pesquisa, encontrei muitos informantes à procura de ofertas
de emprego. Principalmente aqueles que já alcançaram a maioridade,
geralmente dizem estar em busca de um trabalho, porém “encontrar serviço”,
“arrumar emprego, está muito difícil”, mas se tivessem chance estariam trabalhando:
“a escolha certa é trabalhar, mas nem sempre, as pessoas têm a mesma escolha”. Insistem
na falta de oportunidades dada aos jovens, principalmente porque são pessoas
inexperientes e com pouca qualificação – “qualquer lugar que você vai, pedem
experiência”
– e se mostram revoltados com a incoerência do mercado que cobra
a prática profissional de quem está justamente demandando a sua primeira
oportunidade de emprego.
“retardamento”, recuperando os termos de Galland. Se, não faz muito tempo, a norma era a de
se estabelecer logo que as condições econômicas permitissem, o que correspondia ao desejo
dos próprios jovens de ter uma independência diante de uma família ainda regida por um
modelo educativo autoritário, hoje se trata de permanecer jovem o mais que se possa. As
relações intergeracionais foram profundamente modificadas, passando da marca da autoridade
à do neoliberalismo. Hoje, o conforto e a tolerância do meio familiar, a incerteza de entrada na
vida profissional, a corrida para a obtenção de um diploma, a agregação da vida de estudante,
o prazer da sociabilidade juvenil, contribuem para essa norma de retardamento na
incorporação de papéis adultos. No entanto, é preciso dizer que tal norma não atinge a todos
os domínios que contribuem para definir o status adulto. Se ela é patente no domínio
profissional e também no familiar, no domínio da sexualidade existe uma tendência totalmente
inversa (Galland, 1996).
7
Analisando o “alongamento da juventude” no caso italiano, Cavalli (1993) introduz a dimensão
da personalidade, que ele traduz no binômio “autodeterminação/fatalismo”, no intuito de tentar
compreender a significação dessas escolhas. A partir daí o autor constrói uma tipologia das
modalidades de passagem da fase da juventude para a vida adulta e relaciona cada um dos
tipos encontrados à idade dos sujeitos e ao nível sócio-cultural das famílias.
111
Quando surgem empregos, em um local como Brasília — onde são
restritas as atividades industriais, é elevado o peso do setor público e exigentes
os requisitos de qualificação profissional do setor de serviços — os postos para
os jovens são quase sempre temporários e de curta duração. Além disso, os
jovens sentem-se enganados pelos empregadores, que remuneram mal e
descumprem a legislação trabalhista, fazendo contratos informais, sem
segurança e sem direitos: “eles são malandros pra caramba”.
Alguns acreditam que só se consegue trabalho por meio de uma pessoa
influente, de um “peixe”, de um “pistolão”, normalmente conhecido por alguém da
rede familiar
8
. No caso dos rappers, que aproveitaram o período eleitoral para
trabalhar, jogam com a sua própria influência na periferia, negociando com os
políticos a sua participação nas campanhas
9
. CFZ, desempregado há vários
meses, explica-me:
Esse ano de eleições fica mais fácil arrumar emprego, fica mais fácil ganhar
dinheiro. Eles sugam da gente aqui três, quando chega o quarto ano, que é o
ano de mudar, é a vez da gente sugar deles [...] A gente tem grupo, a gente
pode falar, a gente é a voz da periferia [...] aí eles se interessam porque a
gente tem o domínio aqui, tipo assim, se eles chegarem aqui, falarem no
palanque ali ninguém vai dá muito ouvido pra eles, mas se for nós pelo fato da
gente ser rapper, o povo vai dar mais ouvido na gente que neles, entendeu?
[...] Já veio um monte de partido correr atrás da gente pra isso, só que também
não dá pra gente se vender [...]. A gente suga eles, mas com consciência
10
.
8
A pesquisa nacional “Juventude Brasileira e Democracia: participação, esferas e políticas
públicas” (Abramo & Branco, 2005) assinala que, de fato, com referência aos jovens dos
segmentos populares, as relações de conhecimento pessoal constitui-se numa das importantes
características que estruturam as relações de trabalho.
9
A pesquisa de campo, na primeira fase, englobou o período da campanha política dos
candidatos ao Governo do Distrito Federal e à Câmara Distrital, eleitos em novembro de 1999.
10
Foge aos objetivos deste trabalho abordar o tema da representação que os jovens têm dos
políticos e da política. No entanto, porque parte da pesquisa de campo foi realizada em ano
eleitoral, tive a oportunidade de registrar muitos depoimentos sobre as campanhas em curso. A
política é vista como uma farsa, “é só papo, a maioria tudo é mentira”, e é detestada pelos
jovens. Além disso, resume-se ao tempo de eleição, ao voto e não é percebida como um direito
de participação e cidadania. Muitos dos jovens, apesar de terem mais de dezesseis anos,
idade que autoriza o voto, não possuem título de eleitor e não se interessam pelo processo
eleitoral: “Eu sou neutro, nem título eu tenho, nem pretendo tirar”; “Eu não voto, não me vendo
por nada”; “Eu votei nulo. Vale a pena não votar. Tudo é a mesma coisa, todo mundo é pipoca
mastigada, não vale nada”. Os políticos são considerados desonestos, ladrões, fazem parte da
máfia da corrupção, são sem palavra – “Fazem campanha, prometem mundos e fundos e cadê
que fazem? Prometem, prometem e nada” –, oportunistas e interessam-se pelo pobre somente
em época de eleição. São também percebidos como egocêntricos – “giram em torno deles
mesmos” –, “safados”, fazendo uso indevido do poder público para o auto-enriquecimento. O
governo não se interessa pelos jovens, não apóia projetos culturais, não “dá lazer”, trazendo
shows e diversões para a periferia somente na época de eleições.
112
Como observado, muitos jovens diziam estar procurando emprego,
reproduzindo o discurso dominante cuja tônica é a falta de oportunidade dada
ao jovem trabalhador pobre, sem experiência e qualificação. No entanto,
quando perguntados sobre que tipo de atitude concreta tiveram no sentido de
conseguir trabalho, raramente respondiam que efetivamente haviam feito
algum tipo de demanda formal. É como se emprego surgisse e desaparecesse
por acaso, como se o alto índice de desemprego no país entre os
trabalhadores já os tivesse contaminado com uma inércia e imobilismo. A
“moratória” (o prolongamento da fase juvenil), como anteriormente assinalada,
vem se propagando nos meios populares da nossa sociedade, mesmo com
todos os apelos e pressões da família e do contexto social para que o jovem
atinja depressa a maturidade
11
.
Encontrei, também, jovens inseridos temporariamente no mercado de
trabalho. Apesar de os adolescentes afirmarem não trabalhar “porque nós ainda
somos de menor”
, alguns costumavam fazer biscates, vendendo picolé, fazendo
frete com carroça, vendendo produtos e carregando compras nas feiras.
Trabalhavam ainda em negócios da família, como empregados informais –
ajudantes em bares, biroscas, comércios ambulantes, descarregamento de
caminhões, obras de construção civil. Como era ano eleitoral, muitos dos
adolescentes trabalharam nas diversas campanhas, distribuindo folders,
propaganda em geral, colando cartazes, segurando bandeiras de candidatos.
Os maiores de idade e desligados da escola assinalavam que, quando tinham
alguma ocupação, realizavam-na esporadicamente, sem vínculo empregatício.
Nesses casos, costumavam trabalhar como “orelha seca”
12
, fazer bicos como
balconistas, vendedores, lavadores de carro, ajudantes de cozinha,
empacotadores. Muitos também chegaram a trabalhar nas campanhas
políticas. Os maiores que estavam na escola, quando empregados, dividiam o
estudo com “empregos nunca fichados por carteira”. Em geral, trabalhavam como
11
Cabe lembrar que estou tratando de jovens socializados em ambiente urbano. No Brasil, no
meio camponês, por exemplo, a passagem para a vida adulta é extremamente desejada pelos
jovens, pois é ela que confere autonomia, respeito e autoridade ao sujeito.
12
Na linguagem local, “orelha seca” designa o trabalhador braçal sem qualificação, que
trabalha fundamentalmente em construção civil.
113
office-boys, entregadores de panfleto, motoboys, vendedores, jardineiros,
mecânicos, lavadores de carro, frentistas de posto de gasolina.
Em geral, os jovens contam com o apoio da família para suprir as
necessidades básicas como comer e dormir, além de terem algum dinheiro de
bolso por ela garantido. Mas nem sempre, dizem, o que é dado pelas famílias
cobre as suas demandas e desejos de consumo: “A gente fica meio chateado de
pedir dinheiro para a mãe. Aí quando você vai pedir dá uma mixaria. Te dá mixaria que não
pra nada e faz um interrogatório [...]”.
Roupas, festas, shows, drogas, constituem bens de consumo almejados
e para alcançá-los é preciso recursos. Nessa perspectiva, a preocupação com
dinheiro é um fator importante no cotidiano dos jovens: “Pra nós dinheiro é muita
coisa. Dinheiro é importante demais. Dinheiro é igual a sangue: se não tiver não vive”.
O
dinheiro e o respeito – “ser considerado por todo mundo” – são, em suas visões,
indissociáveis e aparecem como uma garantia de inserção na sociedade:
Eu sonho o que todo mundo da periferia sonha: ser rico, ter dinheiro, ser
respeitado. Quando você quiser aquilo, você ter pra comprar, se você quiser
uma roupa de marca, você ter dinheiro pra comprar.
O dinheiro, quando vindo do trabalho, depende de uma boa formação
profissional, de uma alta qualificação, o que eles não possuem, limitando as
suas oportunidades de conseguirem um emprego com boa remuneração. Ter
dinheiro também depende bastante da sorte. Os jogadores de futebol são
citados como exemplo de pessoas de sorte, pois mesmo contando com um
nível de escolaridade baixa conseguem fazer fortuna.
Para muitos dos jovens que se dizem sem qualificação e sem
perspectiva de um emprego com uma boa remuneração, o trabalho não fica
colocado como uma alternativa para conseguirem meios de adquirir os bens de
consumo desejados. Os baixos salários advindos de um árduo esforço, da
condição de “escravidão”, não lhes permitem acessar o mundo do consumo e,
consequentemente, torna o trabalho um campo de possibilidade minado.
Alba Zaluar alerta para a disseminação, entre os jovens pobres dos
morros cariocas, dessa visão escravista do trabalho com sinal negativo,
considerado como “coisa de otário”, diferente do trabalho como valor moral:
114
Com modelos ambíguos ou negativos – escravos, otários –, produtos
da observação do comportamento efetivo de seus pais e não um ideal a
atingir, esses jovens correm o perigo de perder completamente o
sentido do trabalho (Zaluar, 1985:121).
Como alternativa ao trabalho escravizante, os jovens se envolvem no
mundo marginal, traficando drogas, roubando e assaltando:
Ah, rala, rala, e nunca tem nada. É melhor roubar, sabia?
Porque, tipo assim, você trabalha lá. Você trabalha o mês todinho pra pegar
cento e vinte reais. Você não faz nada com cento e vinte reais. Quando você
vai e assalta uma padaria, chega quinhentos contos, só de uma vez. É cinco
minutos dentro da padaria.
Não propiciando um salário digno, o trabalho não assegura um presente
e um futuro confortáveis e sem preocupações, como seria o esperado para
aqueles que vão trabalhar a vida inteira.
Morre trabalhando e devendo...
“Tem gente que trabalha, trabalha, e acaba morrendo, não deixa nada. Como milhões
de brasileiros que trabalham, trabalham e quando chega a velhice, que devia ter uma vida
de curtição, aproveitar os últimos dias de vida, ele não tem nada. Morre trabalhando e
devendo”.
“Neguinho fica revoltado também porque, tipo assim, um pai de família tem altos
moleque pra assumir, aí tipo, vai arrumar um trampo [trabalho], ganha cento e vinte reais. Aí o
cara fica indignado. Aí neguinho pensa em roubar mesmo”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Ceilândia e
Planaltina)
Nessa mesma linha, encontramos no discurso dos jovens uma série de
representações acerca da malandragem e da bandidagem, que emergem como
construções paradigmáticas e como alternativas futuras à condição de
trabalhador. O malandro e o bandido teriam vida mais fácil e menos sacrificada
que os homens que se entregam ao cotidiano da labuta, do trabalho
incessante, sem lazer e sem descanso, para manter um padrão de vida
próximo da miséria. Contrapostas a essas imagens, a do trabalhador assume
115
contornos extremamente negativos, rompendo com a visão tradicional do
trabalho como valor moral
13
.
Malandros e bandidos comungam na recusa ao trabalho. Mas são
modelos construídos de maneira distinta pelos jovens. Ser malandro é ser
esperto”, “safo”, é conseguir sobreviver, principalmente chegar à velhice num
ambiente ríspido, contaminado pelas drogas, pela violência, pelo crime –
“malandro é aquele que vive mais”. É também saber correr da polícia, nunca ser
preso, ganhar dinheiro sem trabalhar e sem se “sujar”, ser bem recebido em
todos os lugares, ter muitos amigos, ser querido, “andar de carrão, celular”. Ser
bandido é, ao contrário do malandro, estar envolvido em situações violentas,
com o tráfico de drogas e armas, com o crime, “é ser sacana e pilantra”. O bandido
está sempre colocando a vida em risco, ultrapassando todos os limites, sem
temer a cadeia ou a morte. Ao se entrar no mundo do crime, rompendo com o
valor positivo do trabalho, toma-se um caminho “sem volta” e, atravessada a
fronteira, os resultados tornam-se mais ou menos previsíveis: cadeia e/ou vida
curta e/ou invalidez.
As representações que os jovens fazem do bandido e do malandro não
diferem das observadas por Zaluar entre os moradores da Cidade de Deus. A
autora chama a atenção para o uso de armas de fogo como fator importante na
definição do bandido, também chamado de marginal:
Bandidos e malandros têm em comum o horror ao trabalho. Mas se o
modelo paradigmático do malandro construiu-se na consciência popular
como o horror ao “batente”, à disciplina do trabalho e às obrigações
familiares, a imagem do bandido constrói-se como posse de arma e a
opção pelo tráfico, ou como assalto como meio de vida. A introdução da
arma de fogo entre eles marca uma descontinuidade na historia da
criminalidade (Zaluar, 1985: 149).
Se as representações da malandragem são apresentadas como mais
positivas do que as da bandidagem, isso não significa que o bandido só possua
atributos negativos. Nem sempre ele é visto como gente ruim”, mas como o que
defende e protege os que vivem na mesma área. Existe “o bandido bom”, “o
assassino bom”, “o traficante bom”
, que ampara a sua comunidade, ajudando
13
A importante dimensão simbólica da oposição entre trabalhador e bandido foi acentuada por
Zaluar (1985). A construção da identidade do “trabalhador” com base em referências negativas
aparece também nos trabalhos de Cardoso (1978), Caldeira (1992) e Telles (1992).
116
desempregados e famílias em dificuldades a comprarem, por exemplo, comida,
remédios, gás de cozinha e a pagar o aluguel da casa.
Existem, segundo o relato de Barão — que passou sua adolescência
envolvida no mundo do crime até sair do CAJE e começar a se dedicar ao rap,
— muitos bandidos admirados e queridos, sobretudo nas áreas mais pobres
das cidades satélites. Nesses locais, costumam ser bastante populares entre
os jovens, pois suprem suas necessidades, seja comprando-lhes roupas, tênis,
ingressos para shows e festas ou drogas
14
.
O esquema da periferia de Brasília é, explica Barão, o mesmo do morro
carioca: os traficantes são solidários com a pobreza, dão de tudo para a
comunidade e, quando vem a polícia, todo mundo se cala. Nessa perspectiva,
no plano das relações sociais, não há como estabelecer uma rígida e absoluta
oposição entre trabalhadores e bandidos. O fato é que ambos são parte
integrante de uma sociabilidade local, não existindo uma segregação
claramente demarcada, que os separa completamente:
Ao contrário, as relações entre bandidos e trabalhadores mostram-se
muito mais complexas e ambíguas, tanto no plano das representações
que as atividades criminosas têm para os trabalhadores, como no plano
das práticas efetivamente desenvolvidas entre eles (Zaluar, 1985:132).
O trabalho, como já afirmei, significa para muitos dos jovens da periferia
um ponto vazio de definição em relação ao futuro, que apresenta a vida
marginal como a única alternativa possível. O roubo, o assalto e o tráfico são
opções certas para os que sabem de suas limitações de ascensão social e
desejam consumir, que se vêm sem oportunidades e sem saída.
14
Observa-se que são tênues os limites entre a imagem que os jovens fazem do modelo de pai
de família e a descrição do bandido. Dizendo de outro modo, a figura masculina idealizada do
“pai provedor de casa” se confunde com a do “pai provedor da rua”.
117
Vida do crime: a única saída
“Continuar traficando, vendendo merla: isso dá dinheiro demais”.
“Meu futuro vai ser fora da lei, vai ser o caminho do cemitério ou da delegacia”.
“O que a gente tem chance de ser? O máximo que chega é ser traficante. É o máximo
de sonho que a gente tem. O futuro da gente aqui é ser traficante [...]. Eu penso em ter uma
casa, um carro, uma família, mas não dá, se a gente quiser ter futuro vamos ser traficantes”.
“Sem trabalho, com certeza não saio dessa vida, pode-se dizer da vida do crime”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Ceilândia,
Samambaia e Planaltina)
O destino, longe da “comunidade impossível” (Wacquant, 1997) do
trabalho, seguindo as trilhas do mundo do crime, implica numa opção por uma
morte prematura, da qual falam os jovens ora indiferentes, ora expressando
uma enorme emoção. A entrada na vida criminosa ganha, nessa perspectiva,
feições dramáticas:
O futuro de quem escolhe a vida do crime
“Dos 35 anos não passa. Ele que vai te matar [o traficante] ou alguém vai chegar e
fazer o extermínio em você [...]. A maioria é assim, a maioria da gente que tem a cabeça
estourada não passa disso não”.
“O futuro, se ele existe – não vou ter futuro não – é negro, fora-da-lei e perto da morte.
Esperar a morte... quem ta jurado vai esperar a vida? Mas é uma coisa que pra mim já perdeu
as esperanças que é viver. Eu já tô jurado. Eu não vou mais correr, se quiserem matar vão vir
atrás e vão me matar, porque eu não vou correr mais”.
“O futuro é a morte mesmo. A gente espera coisa melhor, mas não vem. Eu acho que
não chego aos 20 anos”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Planaltina,
Ceilândia e Samabaia)
Navegando no mesmo barco, estão, de um lado, os jovens que,
buscando atribuir significados às suas vidas, fazem enorme esforço para
pautarem suas condutas pelo valor positivo do trabalho honrado, mesmo
acreditando fazerem parte de uma sociedade extremamente injusta. Roubos e
furtos eventuais, justificados por eles pelas dificuldades de inserção no
118
mercado de trabalho ou pelos padrões de consumo da classe média, não
significam uma ruptura definitiva com o mundo da ordem. Do outro lado, estão
os que romperam as fronteiras, caindo no mundo da desordem. São os
descrentes de um sentido numa sociedade pensada como irremediavelmente
desigual. Como lesados, optam pela vida de bandido, pelo “dinheiro fácil”,
negando inteiramente o valor positivo do trabalho e aderindo à extensa
corrente de jovens brasileiros que duvidam de uma ética de trabalho que
simplesmente os condena a uma vida de privações.
3.4. Crescer, para quê? Inseguranças e incertezas agravadas
O processo por meio do qual o jovem opta pela vida de trabalhador ou
pela vida do crime ainda não possui um claro retrato na história das famílias de
trabalhadores pobres no Brasil. O certo é que não se pode atribuir
exclusivamente à falta de oportunidades de emprego a adesão crescente dos
jovens das classes populares aos valores da subcultura criminosa. Contudo, é
preciso chamar a atenção para o fato de que as reais dificuldades de inserção
no mercado de trabalho somadas aos apelos da sociedade de consumo, ao
desmantelamento das redes pessoais de controle e de socialização, à
ineficiência das atuais agências nessas funções – notadamente a escola –, à
crise de valores mesclada a essa situação criam um cenário favorável a
entrada no mundo da delinqüência.
O que não significa que todos os jovens das classes populares,
submetidos às mesmas condições sociais, se enveredam para o mundo do
crime ou o vêem como única saída. Ao contrário, uma grande parcela mantém
um discurso de oposição aos que o fazem e insiste que o “certo” é buscar uma
normalidade de vida pautada no binômio escola-trabalho, acreditando que daí
advém a chance de melhoria de suas condições. Mas, os que conseguem
freqüentar a escola e até mesmo cursos profissionalizantes acabam por, mais
tarde, enfrentar a inadequação de sua formação à realidade do mercado de
trabalho. Além disso, no caso dos rapazes, quando ainda menores, deparam-
se com a legislação trabalhista que proíbe, nestes casos, despedir aquele que
119
vai servir as forças armadas, o que leva os possíveis empregadores a não
contratar jovens menores de 18 anos. Também, é preciso lembrar que, até
hoje, no Brasil não existe um consenso sobre a necessidade de se criar uma
legislação específica que garanta e regule o trabalho juvenil
15
. Ajunta-se a esse
quadro de dificuldades, o preconceito e as barreiras sociais enfrentados junto
aos potenciais patrões, por estes associarem os jovens a imagens negativas,
como a do local onde moram e a da pobreza
16
.
Desse modo, não se estranha que na percepção de muitos dos jovens
entrevistados a vida adulta pareça não oferecer uma perspectiva atraente, na
medida em que não poderia assegurar possibilidades de auto-realização, de
criatividade e expressividade, possibilidades estas que, mal ou bem, eles
aproveitam no curso de sua juventude. A “moratória” adquire assim menos um
sentido de “suspensão” e “espera” para poder realizar melhor as coisas no
futuro, quando forem adultos, e mais o sentido de uma possibilidade de
vivência e experimentações diferenciadas no presente.
Mas não deixa de pairar no ar certa apreensão quanto ao futuro, fruto da
incerteza quanto às chances de inserção nas estruturas sociais e produtivas e
devido ao agravamento da situação de dificuldade de vida para a população
jovem brasileira, em geral – em especial os jovens pertencentes aos setores
populares. Isto incide diretamente no aumento dessa sensação de insegurança
e de incertezas quanto ao futuro
17
.
15
Já que as noções de juventude e adolescência ainda estão bastante imbricadas, a
reivindicação juvenil do direito ao trabalho e de uma legislação específica que o regule acaba
esbarrando no que afirma o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), contradizendo-o, pois
o mesmo proíbe o trabalho para quem tem menos de 14 anos e regulamenta, de forma severa,
o trabalho para quem tem menos de 18 anos (Tommasi, 2006).
16
Como diz Alba Zaluar, “os membros das classes populares [...] deixam de tornarem-se
trabalhadores porque sua própria condição de pobre ameaça e amedronta os que lhes
poderiam fornecer emprego. Em outras palavras, eles são perigosos antes de efetivamente o
serem, ao optar pela vida criminosa. E a própria consciência que têm dessa barreira torna-se
um fator a mais na sua inclinação para o crime. É um círculo vicioso que opera como um
obstáculo efetivo à obtenção de emprego e como um mecanismo psicológico poderoso na
construção de sua identidade” (Zaluar, 1994: 17).
17
Pesquisas nacionais mostram que atualmente a questão do trabalho é uma das maiores
preocupações dos jovens brasileiros e que, de fato, entre eles, o desemprego é três vezes
superior ao do conjunto da população. Na pesquisa “Perfil da Juventude Brasileira”, realizada
no âmbito do Projeto Juventude do Instituto Cidadania, o trabalho é também indicado em
primeiro lugar entre os direitos mais importantes de cidadania, assim como entre os direitos
que os jovens deveriam ter (Abramo & Branco, 2005). Ainda que tenha ocorrido, ao longo dos
anos, aumento das médias de escolarização dos jovens, não houve aumento proporcional na
120
Por último, cabe assinalar que, em um contexto nacional que tende a
reproduzir a desigualdade social, os jovens das camadas populares têm pouca
chance de acesso a experiências e situações que possibilitem a ampliação do
universo sociocultural de origem. Sem dinheiro, que poderia ser fruto do seu
próprio trabalho ou dos ganhos de outros integrantes da família, boa parte
desses jovens se vê impedidos de ocupar o tempo livre com o mínimo de
qualidade e regularidade, freqüentando festas, shows, cinemas e outros
eventos culturais. Até mesmo sair do próprio local de moradia para ter acesso
ao que a cidade pode oferecer demanda um mínimo de condições financeiras.
Os que enveredam para a “vida do crime”, de onde conseguem alguma renda,
também encontram inúmeras barreiras para saírem do universo social de
origem. São facilmente reconhecidos nos meios mais abastados como um
“outro”, pelos traços evidentes de seu meio de socialização, o qual não os
facilita acessar aos capitais simbólicos, culturais e sociais imprescindíveis aos
que aspiram se aproximar daqueles que ocupam posições superiores na
hierarquia social.
oferta de empregos. Postos de trabalho que tradicionalmente eram ocupados por jovens sem
experiência profissional são hoje ocupados por adultos com experiência prévia. A busca, quase
sempre frustrada, por trabalho e os obstáculos a serem transpostos pelos jovens –
conseqüências do chamado “desemprego estrutural” gerado no interior dos processos de
transformação produtiva e de mudança social, pelos quais passam as sociedades
contemporâneas –, por mais que sejam uma “marca geracional”, estão concentrados em
determinados segmentos da população: os mais pobres, os negros, os moradores de favelas e
periferias urbanas, entre outros. Este fato se revela também na pesquisa “Juventude Brasileira
e Democracia – participação, esferas e políticas públicas”, realizada por uma rede de parcerias
institucionais coordenadas pelo Ibase e Pólis (Souto & Soares, coords., 2005).
121
CAPÍTULO 4
GANGUES E GALERAS: A VIOLÊNCIA FAZ A DIFERENÇA
Tem vários tipos de gangue. Tem umas que é
só galerinha de amigos que sai pra se divertir
[...]. Até rola umas brigas, umas coisa que não
é muito certinha, mas não tem ladrão não. Não
é pra ter esse lance de violência [...]. Quem fala
que isso é gangue são os repórter porque pra
eles tudo é gangue. Os policiais também fala
que é gangue e até os vizinho tem hora que
fala [...]. Agora, tem outro tipo de galera que é
mais pesada, os caras tão metidos nesse lance
de roubo, assalto, tiro, altas paradas cabulosas.
(Jovem da Ceilândia)
A expressão “gangue” tem sido cada vez mais popularizada no Brasil para
qualificar turmas de jovens. De modo geral, os meios de comunicação de
massa, a polícia e o imaginário social tomam gangue e turma de jovens
envolvidas em ações delituosas como termos correlatos, não fazendo distinção
entre: as consideradas “formas legítimas” de agregação juvenil, que levam os
jovens a estarem juntos por interesses bem alheios à violência, mas que não
os impedem de cometer transgressões e delitos; e as “formas delinqüentes” de
agregação, nas quais a transgressão e violência são norma (Esterle-Hedibel,
1997)
1
.
A observação de turmas de jovens na periferia de Brasília colocou-me
diante de uma realidade que revela tênues diferenças que marcam
1
Esterle-Hedibel retoma a classificação de Robert e Lascoumes (1974) que distinguem quatro
formas de agrupamentos juvenis: (1) os grupos com suporte institucional (grupos escolares,
esportivos, os movimentos de jovens, etc.), que sublinhariam o papel primordial das inter-
relações individuais no interior dos pequenos grupos de base; (2) os grupos espontâneos, não
organizados, que reúnem informalmente jovens vizinhos ou freqüentadores da mesma escola,
cujas motivações para estarem juntos são de ordem afetiva, lúdica e de busca de contato; (4)
os “quase-grupos” ou “horda”, que é uma aglomeração numerosa, sem estrutura nem coesão,
mas com um sentimento e uma consciência comum de pertencimento, independentemente de
um recrutamento organizado. As hordas se formariam ao acaso das oportunidades,
normalmente não fariam nada de ilegal, e seu funcionamento seria marcado pelo frágil volume
de interações e inter-relações. Uma outra forma de agrupamento é o “bando” (bande), que
seria um sub-grupo da horda, embora com um número mais reduzido de integrantes. Os
bandos poderiam ser definidos como grupos informais compostos por um número restrito de
jovens, cuja atitude apareceria para o conjunto da sociedade como marginal, desviante. As
suas atividades e as vezes sua delinqüência dariam a essa apreciação um suporte objetivo.
122
experiências da constituição e vivência desses grupos. Tomando como eixo a
dinâmica da violência, posso afirmar que nem sempre a mesma é praticada por
eles como norma e, nesse sentido, os jovens elaboram distinções entre
“gangues” e “galeras”. Ao mesmo tempo, existe um conjunto de vivências e
representações acerca da violência que permite entrelaçá-los e percebê-los
como um continuum.
Este capítulo procura elucidar alguns aspectos que possibilitam melhor
compreender a dinâmica que separa, e ao mesmo tempo aproxima, as
experiências das gangues e galeras da periferia de Brasília. O capítulo também
explora as percepções dos jovens sobre o fenômeno da violência, sempre
apontado como parte importante integrante de seu cotidiano e como um dos
principais fatores diferenciadores entre gangues e galeras.
Ainda que os jovens compreendessem exatamente a que tipo de grupo eu
me referia quando lhes perguntava sobre a existência de gangues em sua
cidade, ou sobre a sua participação em alguma delas, o efeito produzido na
expressão era tal que, em muitos casos, jovens que diziam, num primeiro
momento, fazer parte de uma gangue a recusavam, pela impregnação do
aspecto pejorativo do conceito.
A mídia em Brasília, como no Brasil, desempenha um papel de extrema
importância na vulgarização do termo gangue, dando ênfase contínua à
agressividade e à violência dos seus integrantes. Além disso, na difusão das
percepções a elas relacionadas, é cada vez mais comum que crimes, assaltos,
roubos, brigas, enfim, delitos e agressões envolvendo jovens sejam atribuídos
à ações de gangues, pouco importando se o delito tenha sido ou não cometido
a título individual. Uma turma de jovens reunida se transforma numa gangue, o
jovem de boné e bermudas largas passa a ser membro de uma gangue, a troca
de insultos entre adolescentes na porta da escola se transmuta em desafio
entre gangues rivais. A violência das gangues é sempre apresentada com
relatos exagerados, apimentados, tingidos de bastante sangue. A violência
123
passa a ser a própria imagem estereotipada da gangue e gangue a metáfora
da violência
2
.
A forma abusiva de a mídia falar em “ações de gangues” também é
encontrada na polícia e, o mais importante, vem contaminando a sociedade
brasiliense em geral. Devemos, talvez, começar a indagar-nos sobre as
possíveis conseqüências da progressiva banalização do termo: “a própria
difusão do termo gangue acaba por criar a instituição gangue; de modo
simplificado, pode-se afirmar que o nome cria a coisa”
3
(Diógenes, 1998).
É verdade que o termo “gangue” não constitui uma novidade dos anos 90
na linguagem jornalística local e nacional, até porque a temática das “gangues”
sempre teve lugar privilegiado nas teorias da “delinqüência e desvio”
elaboradas pela Escola de Chicago e que foram bastante discutidas no Brasil
durante as décadas de 1960 e 1970
4
. O que, na verdade, constitui fato novo é
2
Ouvi dezenas de relatos e vivi situações que me levam a crer nessa idéia. Parte desses
depoimentos poderia compor um acervo anedotário. Lembro-me, por exemplo, da história
bastante divulgada pela mídia, que ganhou forte repercussão ao nível nacional, de um
adolescente de quinze anos, neto de um senador da república, que teve parte da orelha
amputada em conseqüência de uma mordida recebida de um dos seus agressores, em briga
durante uma festa em bairro nobre de Brasília. O incidente foi um prato cheio para a imprensa,
que não hesitou em qualificá-lo como resultado da violência gerada pelas “gangues” da cidade.
O acaso colocou-me diante do advogado do rapaz agredido. Trocamos algumas impressões
sobre o episódio que, tal como se apresentava na narrativa objetiva dos fatos, deixava patente
que se tratava de uma disputa corriqueira entre adolescentes que tinham se excedido no
consumo de álcool. Não teria havido premeditação e nem mesmo “gangues” envolvidas, tal
como fazia questão de sustentar o advogado. Ao despedir-se de mim, agradeceu a conversa e
disse que conhecer uma antropóloga naquele momento lhe fora de extrema valia, pois eu teria
lhe inspirado uma nova interpretação para o caso: tratava-se da “violência antropofágica das
gangues de Brasília”.
3
A história do funk e de seu processo de estigmatização social no Rio de Janeiro, bem
estudada por Hermano Viana (1996), ilustra a maneira como associações juvenis chegam a ser
nomeadas “gangues” e se tornam símbolos de violência. Um “grupo virtual, ignorado” começa
ser objeto de insistente atenção da mídia e recebe a classificação de “violento”. Daí por diante,
ocorre o processo de estigmatização, que implica na construção de adjetivos, como “gangue”,
correspondentes ao que o imaginário social espera de um julgamento moral desse grupo.
4
Como afirmei na introdução deste trabalho, o tema “gangue” começa a adquirir destaque nas
ciências sociais nos anos 20, no âmbito da renovação dos estudos urbanos realizados pela
Escola de Chicago. Havia uma inquietação com a “crise” e a “desorganização social” produzida
pelo crescimento urbano acelerado e pela falta de integração no espaço social e cultural dos
migrantes e imigrantes, que passam a ocupar as zonas pobres e decadentes daquela cidade.
Em um estudo pioneiro, e hoje clássico, “The Gang”, publicado em 1927, Thasher (1963)
defende a idéia de que as gangues participam de um processo de reorganização e de
integração sociais, em ambiente que se desfaz. Insistindo no caráter funcional desses grupos,
o autor deixa claro que neles a delinqüência pode estar presente, mas não constitui a razão de
sua existência. O estudo de Thrasher parte do fenômeno da localização geográfica da
delinqüência juvenil. O que explica o fato de algumas zonas da cidade serem mais tocadas
pela delinqüência que outras? A cidade industrial desenvolveu-se de modo a criar espaços
124
sua maior visibilidade que está intimamente associada ao aumento da violência
juvenil na sociedade brasileira. Em conseqüência disso, os jovens têm sido
apontados como sujeitos sem referentes éticos e morais, sem limites.
Principalmente sobre os jovens de classe populares recai toda a pecha
acusatória. E embora a atuação de gangues de classe média mobilize bastante
a imprensa, provocando sempre “barulho”, é o jovem de periferia que, no dia-a-
dia, sofre as conseqüências de quase sempre ser identificado como membro
de gangue e, conseqüentemente, de ser constantemente encarado como
“desviante” e “marginal”.
Nos meios de comunicação de massa, na visão da polícia, na fala do
senso comum o termo gangue, portanto, encarna a face violenta dos
agrupamentos juvenis. As galeras de jovens, que também marcam sua
presença no cenário urbano nacional, diferentemente, são vistas como turmas
de amigos que se reúnem com fins lúdicos. No entanto, torna-se cada vez mais
difícil diferenciar gangues de galeras.
Meus informantes apontavam para um tênue limite que poderia significar
pertencer a uma gangue e/ou à uma galera: uma galera é uma turma unida de
amigos que costumam sair juntos para se divertir, para “curtir”, ir à festas,
shows, que se reúnem para ouvir musica, conversar, consumir drogas, estando
sempre prontos para defender e proteger uns aos outros: “O que rola para um, rola
para todos
”. As galeras, descritas desse modo, possuem elementos que são
característicos das gangues, que também são formadas por grupos de amigos
que se unem com esses mesmos propósitos, que se auto-protegerem, mas que
acrescentam à razão de estarem juntos: as brigas e rivalidades com outros
grupos, a defesa de um território, o objetivo explícito de roubar, assaltar ou
cometer algum delito. A violência e a transgressão são apontadas pelos jovens
intermediários entre o centro e os bairros residenciais. Nesses espaços “intersticiais”
aglomeraram-se e enraizaram-se os imigrantes recém chegados em solo americano e os
negros em fuga do sul do país. Em se tratando de uma área particularmente ingrata, a
adaptação não é feita sem problemas, sendo a delinqüência juvenil um fenômeno característico
dessa difícil aclimatação sócio-geográfica. Thrasher organiza sua obra principalmente em torno
da idéia de que o caráter “intersticial” encontra-se em toda a parte na organização social,
inclusive na própria vida das gangues, que devem ser vistas como um elemento intersticial no
quadro da sociedade, sendo o território da gangue uma região intersticial no traçado da cidade.
Afastando-se desse modelo de “desorganização social”, numerosos trabalhos que tratam do
tema continuam surgir na sociologia americana.
125
como elementos diferenciadores entre gangue e galera, mas o que chama a
atenção é um fato, já assinalado por Diógenes (1998) em sua pesquisa sobre
gangues e galeras na cidade de Fortaleza: “toda gangue é uma galera, mas
nem toda galera é gangue”. Como observa a socióloga, as gangues assumem
existência oportunamente:
Tal qual anti-heróis, transmutados em cidadãos “comuns” nos finais de
semana, nas “caladas” da noite, fora dos espaços normatizados da vida
cotidiana, a galera pode “tornar-se” gangue. [...] existe entre os
integrantes das gangues fronteiras delimitadoras entre o lugar da
violência e o da não-violência, quais sejam, não é em todos os
momentos que uma galera se assume como gangue e, desse modo,
não é em todas as ocasiões que se dinamizam as práticas de violência.
Assim sendo, deve-se evitar a correlação linear e simplificadora entre
gangues e violência [...] (Diógenes, 1998: 109).
Violência e não-violência tornam-se, como disse, um dos binômios
utilizados pelos jovens quando pretendiam diferenciar gangues e galeras. Esse
foi um dos aspectos que compareceu no discurso dos integrantes de
gangues/galeras quando estiveram confrontados com minhas indagações
sobre o como eles próprios se autodenominavam. Tal como os jovens de
Fortaleza, deixavam entrever que as gangues assumiam existência
circunstancial, fora dos espaços normatizados da vida cotidiana, e que
transmutar de galera para gangue fazia parte da dinâmica na qual se inscrevia
suas práticas de violência. Ou seja, um jovem podia sair para dançar com a
galera e, em seguida, na calada da noite, juntar-se a companheiros para
enfrentar outra galera ou “fazer uma fita
5
, transformando-se em integrante de
uma gangue. No dia seguinte iria à escola, sairia com a galera para se divertir e
voltaria para casa onde desfrutaria do convívio familiar
6
.
5
Expressão utilizada normalmente como sinônimo de roubar.
6
Chamo a atenção para o potencial de “metamorfose” desses jovens. Como salienta Gilberto
Velho, a noção de “metamorfose” é bastante própria quando se lida com questões relativas a
construção de identidades em sociedades complexas, exatamente porque “existe uma
tendência de constituição de identidades a partir de um jogo intenso de papéis, que associam-
se a experiências e a níveis de realidades diversificados, quando não conflituosos” (Velho,
1994: 8). Segundo o autor, a multiplicidade de referências e opções, as vezes contraditórias,
dificulta a avaliação da relevância e do grau de adesão dos indivíduos a uma referência na
demarcação de fronteiras e na elaboração de identidades sociais. Este tipo de situação
dificulta, ainda, o mapeamento social, problema que confrontei nos momentos iniciais de minha
pesquisa: o jovem que fazia parte de minha rotina de trabalho de campo podia ser estudante e
membro de uma gangue; podia ser trabalhador e fazer parte de uma gangue; podia escapar ao
controle da vizinhança, tornar-se assaltante no meio da madrugada e voltar na manhã seguinte
126
No entanto, outros aspectos chamam a atenção no conjunto de
representações que faziam das gangues. Entre algumas turmas de jovens
praticantes declarados de transgressões e delitos, o termo “gangue” era tido
como pesado, era entendido como uma forma de discriminação, como um
rótulo” que os ligava necessariamente à “coisa ruim”. Por isso, muitas vezes os
jovens afirmavam que não consideravam sua turma uma gangue, e sim uma
galera, pois não eram “matadores de aluguel”, não constituíam uma “máfia”. Mas
se, por um lado, criticavam o uso do termo “gangue” por seu caráter pejorativo
e estigmatizante, por outro, afirmavam que – com todos os estereótipos, clichês
e caricaturas – era até interessante que suas turmas fossem chamadas de
gangues, pois desse modo impunham mais respeito e tornavam mais temidos
7
.
Um aspecto era claro e consensual em seus discursos, qual seja: “gangue” era,
antes de tudo, uma criação da mídia e da polícia
8
.
A propósito desta discussão, é interessante mencionar o estudo de
Michelle Perrot sobre os Apaches, bandos de “jovens malandros do subúrbio
de Paris” que, no início do século XX, tomavam de assalto as ruas da cidade,
por onde perambulavam. Indagando sobre as origens da denominação, Perrot
afirma ser controversa, alguns a considerando “invenção de jornalistas”, outros
“xingamento de policial”. A historiadora é levada a concluir que, jornalistas ou
policiais tivessem ou não sido os inventores, fato é que “os jovens se
reconheceram nessa imagem índia, reivindicaram-na para si e adotaram-na
como símbolo de sua mobilidade crítica e seu espírito desordeiro” (Perrot,
1988: 316).
para casa como integrante de uma comunidade de honestos trabalhadores; podia gostar de
rap, fazer parte de um grupo que dizia não à violência e ser preso por assalto a mão armada. A
forma diversificada de composição de papéis assumidos pelos jovens, o fato de estarem em
permanente “metamorfose”, de operarem a partir de uma pluralidade de referências, revelava
um processo complexo de construção de identidades.
7
Cabe salientar que exerce fascínio nos jovens essas caricaturas das gangues e que eles
gostam, independente de participação em uma, de narrar o “grande espetáculo” de seus feitos.
8
A responsabilidade da imprensa na construção da gangue, instituição demonizada e
produtora de muitos medos, ocorre também em outros locais. Como diz Sánchez-Jankowski
(1994), “gangue é, por natureza, um produto midiático”. Para o tratamento midiático das
gangues e “bandas” juvenis ver também Cerbino (2006) e Esterle-Hedibel (1997).
127
As gangues como invenção
“Gangue quem fala é só os repórteres mesmo, tudo pra eles é gangue”.
“É:a galera, são os chegados. Esse negócio de gangue não existe pra gente não, é só
galera e chegado. Gangue é televisão, jornais. Gangue é o Comando Vermelho”.
“A polícia pega um ou dois armados e dizem que é gangue”.
“Grupinho se reúne ali, a pessoa acha que aquilo é uma gangue. As pessoas que não
convivem com aquilo acham que é uma gangue. Se juntar um monte de amigo, aí o pessoal
olha assim, só tem gente mal encarada, vai pensar que é uma gangue. Vai ver é tudo colega,
tudo amigo”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Ceilândia,
Samambaia e Planaltina)
Embora fizessem distinção entre “gangues” e “galeras” e atribuíssem à
polícia e à mídia a invenção e vulgarização do termo gangue, as duas
expressões eram freqüentemente usadas indiscriminadamente pelos jovens.
Durante a pesquisa de campo, antes de perguntar-lhes sobre como
costumavam qualificar suas turmas, porque me interessava certificar-me das
categorias nativas utilizadas, sempre lhes indaguei sobre a existência de
gangues em suas cidades e sobre a participação que tinham nelas. Essas
perguntas eram respondidas de imediato, os jovens tinham exata compreensão
do tipo de grupo a que me referia e narravam suas experiências como
participante ou não deles. Somente no momento em que lançava questões
relativas à autodenominação de suas turmas é que recorriam à distinção entre
gangues e galeras e, curiosamente, toda a reflexão gerada em torno do tema
produzia um efeito tal que, como já foi dito, em muitos casos, jovens que diziam
num primeiro momento fazer parte de uma gangue passavam a recusar a
expressão, salientando o aspecto estigmatizador do termo. Mas em seguida
voltavam a retomá-lo em suas falas, usando gangue e galera como termos
sinônimos, sem preocupação a menor preocupação em diferenciá-los.
Assumir a galera como gangue normalmente implicava no
reconhecimento do envolvimento nas “paradas
9
, na admissão do caráter
violento em que se inscreviam algumas das ações do grupo que integravam.
9
A expressão refere-se principalmente a roubos e assaltos.
128
Implicava também na aceitação conveniente de uma marca que, embora lhes
rotulasse com o estigma de desviante, dava-lhes, por outro lado, “moral” entre
os outros jovens. A realidade mais próxima do modelo “mítico”
10
de gangue
com a qual me deparei na periferia de Brasília foi a das chamadas “gangues de
pichadores”: normalmente possuem uma hierarquia, uma liderança definida,
interação recorrente, identificação com território e procuram marcar a
identidade do grupo por meio de signos distintivos. Além da pichação, praticam
outras ações ilícitas tais como furtos, roubos e assaltos. A violência pode ser
usada pelos jovens para dar suporte às suas atividades criminais, assim como
também para mostrar poder e influência – “atitude”, “respeito”, “consideração” – nos
territórios demarcados ou diante de outras “gangues” rivais (ver capítulo 5).
Tais grupos são bem conhecidos no cenário urbano de Brasília, sendo que
alguns dentre eles existem há mais de dez anos, enquanto outros, embora não
existam mais, tornaram-se quase lendários, fazendo parte de um passado
idílico narrado por muitos dos jovens.
O que talvez mais chame a atenção nas “gangues de pichadores” não são
as características enumeradas por uma leitura apressada, as quais induziriam
a aproximá-las de um “tipo ideal” de gangue. Em primeiro lugar, cabe dizer que
a violência praticada em nome de ganhos materiais não se faz em grupo,
comumente se faz em parceria. Esses ganhos não são, na maioria das vezes,
revertidos para o grupo ou almejados em nome de um grupo ou de uma
10
Como “modelo mítico” refiro-me às gangues americanas. Na verdade, nos termos de Ortiz
(1994), à “imagem da gangue”, a uma “realidade mítica” transformada e operacionalizada fora
dos EUA. Analisando esse movimento de mundialização, Ortiz chama a atenção para a
categoria de espaço com o objetivo de esclarecer parte de sua dinâmica. O movimento de
mundialização “desterritorializa”, gerando um tipo de espaço abstrato, racional, des-localizado.
Mas a categoria espaço, argumenta o autor, sendo por excelência social, não pode existir
como uma pura abstração. Para que o mundo, na sua abstração, torne-se reconhecível, o
espaço deve se “localizar”, preencher o vazio de sua existência com a presença de objetos
mundializados. Como conseqüência desse processo de “desterritorialização”, Ortiz fala da
formação de uma cultura “internacional-popular”, cuja base de sustentação seria o mercado
consumidor e para a qual a nacionalidade e a territorialidade não teriam significado, podendo,
diferentemente, ser pensada em termos de uma “comunidade global”, vinculada pelos meios de
comunicação de massa num mundo desterritorializado. Referindo-se, como exemplo, ao
western enquanto gênero cinematográfico propagado mundialmente, Ortiz chama a atenção
para a transformação do oeste norte-americano de “realidade mítica” inicial em “imagem” e, por
conseqüência, em signo que carrega uma identidade própria. Nesse sentido, o western se
descola do oeste norte-americano para tornar-se uma “imagem do oeste” que pode ser
operacionalizada pelo domínio comum, além dos Estados Unidos, sendo por isso
mundialmente inteligível.
129
comunidade, mas, sim, são utilizados em proveito individual, isto é, por aquele
que o conseguiu. O líder, como veremos, é quem basicamente assume o papel
de “provedor” e em troca do respeito e fidelidade de seus seguidores garante
as armas – bem maior – e outras necessidades materiais, tais como roupas,
bebida, etc. Em seguida, chama a atenção o aspecto lúdico de muitas práticas
transgressoras encontradas no interior desses grupos: o violento e o lúdico
muitas vezes se confundem. E é na mistura entre o violento, o lúdico, a busca
de prestígio e reputação, as condições materiais e ideológicas de existência
que os jovens da periferia de Brasília relatam a sua experiência com as
gangues e galeras (ver capítulo 5).
4.1. O novo referencial da violência
Percebida como estando em todos os espaços e setores sociais, como
estando difusa (Adorno, 1994), a violência é um fenômeno de conceituação
complexa, polissêmica e controversa. Segundo Santos (1995), as dificuldades
na definição de violência advêm exatamente da ausência de uma construção
conceitual capaz de inseri-la nas relações sociais difusas e esparsas do espaço
social. Minayo (1997) compara a violência a um complicado quebra-cabeça que
somente pode ser entendido pela junção do conjunto de suas peças. Observa,
porém que, diferentemente de um quebra-cabeça que uma vez decifrado exibe
um retrato compreensível, a violência sempre se apresenta como realidade
fugidia, complexa e controversa. Mais que isso, em relação a ela, a soma das
verdades individuais não reproduz a verdade social e histórica, e os mitos e
crenças costumam distorcer a realidade, como em espelho invertido.
De origem latina, o vocábulo violência (violentia) originalmente designava
“força que se usa contra o direito e a lei”. Aos poucos, o termo passou a
significar qualquer ruptura de ordem ou qualquer emprego de força para impor
uma ordem. Estudos clássicos nas ciências sociais trazem à tona a discussão
sobre as dimensões de legitimidade e poder enleadas no uso da violência
(Weber, 1974; Arendt, 1994), que passa a significar o emprego da força sem
qualquer legitimidade. Assim, essa força torna-se violenta quando perturba
130
acordos tácitos e regras que ordenam relações ou ultrapassa um limite. E é
exatamente “a percepção do limite e da perturbação (e do sofrimento) que vai
caracterizar um ato como violento, percepção que varia cultural e
historicamente” (Zaluar, 2004b: 229)
11
.
Em um sentido estrito, a violência costuma ser entendida como o uso da
força física por um indivíduo ou grupo contra a integridade de outro indivíduo
ou grupo
12
. Isto é, para que haja violência é preciso que existam no mínimo
dois agentes envolvidos e que a intervenção física seja voluntária (Testoni,
1993). Em que pese sua importância operacional, esta definição, ao frisar o
elemento físico, tem sido bastante questionada por se mostrar limitada ao
deixar de lado outros aspectos do fenômeno, como os simbólicos e morais.
Nos últimos tempos, têm-se desenvolvido “novos paradigmas da
violência” (Wieviorka, 1997), em razão dos novos significados que assume,
ampliando-se o conceito “de modo a incluir e a nomear como violência
acontecimentos que passavam por práticas costumeiras de regulamentação
das relações sociais” (Porto, 1997). Existe uma maior sensibilidade coletiva de
percepção da violência nas várias esferas da sociedade, perpassando o
público e o privado, em relação a atos que passam a ser identificados como
violentos e inaceitáveis devido ao reconhecimento de direitos sociais e de
cidadania. As transformações na natureza do social, na percepção dos direitos
humanos, levam, portanto, a uma conceitualização de violência não mais tendo
como única referência a idéia do uso ilegítimo da força, mas trazendo a
dimensão simbólica/moral do problema, ainda “pouco elaborada e mal
compreendida, mesmo quando esta constitui o cerne do ponto de vista dos
atores que a sofrem” (Cardoso de Oliveira, 2005: 01)
13
.
O novo referencial da violência nomeia como “atos violentos” uma série
de manifestações que atravessam todos os níveis da vida cotidiana: relações
11
Curioso é que nós, antropólogos ocidentais, estamos mais confortáveis quando buscamos a
significação da violência para povos mais distantes e não na nossa própria cultural.
12
No Brasil, como em outros países, oficialmente a violência é definida como “as
conseqüências de golpes, feridas, traumatismos, resultantes de intervenções exteriores e
brutais” (Chesnais, 1976, apud Zaluar, 1998).
13
Cardoso de Oliveira, com base em farto material etnográfico colhido com o propósito de
apoiar sua discussão sobre a relação entre direitos, insulto e cidadania, argumenta que é até
mesmo inadequado falar em violência sem considerar o seu componente simbólico/moral. Sem
este, segundo o antropólogo, a “violência física” não passaria de uma mera abstração.
131
familiares, relações de gênero, relações raciais, entre outros. A violência
apresenta-se difundida em situações de humilhação, exclusão, ameaças,
desrespeito, desconsideração, indiferença, omissão em relação ao outro,
negação do direito do outro de ser diferente, não reconhecimento da
diversidade na vida social. Assim, a violência deixa de estar relacionada
apenas a intervenção física, a criminalidade e a ação da polícia – um dos
agentes da violência estatal legítima –, passando a ser também alvo de
preocupações ligadas à miséria e ao desamparo político, ao problema de
exclusão social, com a presença de um novo público que se encontra em
situação de “não integração” com a sociedade.
Independentemente de sua natureza, depreende-se dessas visões uma
idéia-chave sobre a violência: ela é percebida como uma prática
essencialmente destruidora, como um fator social negativo. Há, contudo,
estudiosos que procuram destacar a “positividade” do fenômeno:
De fato, o nosso problema inicial será o de descrever positivamente as
situações de violência, procurando identificar como elas são
vivenciadas segundo os diversos agentes envolvidos. Assim, livrando-
nos dos fantasmas que a linguagem suscita em nós, podemos voltar-
nos para os atos e as percepções dos sujeitos, evitando o caminho das
grandes noções, como “a violência”, “a liberdade”’ que banalizam e
tornam anacrônica a percepção dos sujeitos. Em outros termos, com
relação à violência, o nosso objetivo não está na definição de limites da
temática, mas aquilo que Paul Veyne chamou de “operadores de
individualização (Rifiots, 1997: 5).
Ao reportar-se à positividade da violência, Theophilos Rifiots pretende
destacar que a mesma evidenciaria demandas sociais de reconhecimento de
diferenças. A violência, mesmo sendo, por princípio, o campo de negação das
diferenças, poderia, em certas circunstâncias, atuar como força propulsora e
necessária para a afirmação das diferenças:
A violência pode atuar como uma espécie de força dispersiva, voltada
para a manutenção das diferenças, em contraponto à homogeneização
que as centralidades dos poderes procura instaurar (Rifiots, 1997: 5).
Glória Diógenes chama a atenção para o fato de que o destaque dado a
“positividade” da violência não implica deixar de levar em conta seus efeitos
destrutivos:
132
Pretende-se, de outro modo, se insistir na necessidade, cada vez mais
premente, de perceber uma teia de acontecimentos que se constroem
no campo “desconhecido” e “maldito” da violência e qual a “eficácia”
nas redes de sociabilidade dos atores que a praticam. A tendência é a
de que, ao banir determinados temas para o campo da “irracionalidade”,
eles, certamente, acabam dando a idéia do inusitado, do que vem “de
fora” e toma a ordem “de assalto” (Diógenes, 1998: 90).
Encarar a violência nesse eixo da “positividade”, como uma necessária
afirmação das pequenas diferenças locais e grupais, é algo que não deixa de
ser perigoso. Como salienta Alba Zaluar (2004c), referindo-se ao caso
brasileiro, a exacerbação dos localismos – de estados, cidades, bairros, ou de
divisões étnicas fechadas – pode estar ajudando a criar as condições para o
retrocesso da civilidade no país. Por exemplo, diferenças locais e grupais vêm
se tornando uma justificativa usual para o aumento da violência entre homens
jovens, o que pode fazer com que se perca a dimensão do que é um processo
macrossocial.
O trabalho de Diógenes sobre as gangues de Fortaleza ilustra essa
perspectiva, quando destaca que a violência fornece novas formas de
expressão para os chamados excluídos que, desse modo, romperiam as
barreiras delimitadoras da cidade partida e afirmariam, pela desordem, a sua
presença na cidade. A violência dos jovens moradores dos bairros pobres de
Fortaleza e envolvidos com gangues, mesmo deixando rastros de sangue,
seria algo positivo, pois serviria à afirmação da diferença, demandando o seu
reconhecimento e instituindo novas redes de sociabilidade, de micropoderes ou
solidariedades fechadas. Alba Zaluar, muito crítica à perspectiva adotada por
Diógenes em seu estudo, comenta:
No meu entender, trata-se de mais um exemplo etnográfico que
mergulha no mundo do outro, identifica-se com ele e repete suas
justificativas para ações predadoras e condenadas como se isso fosse
a ‘cultura’ do grupo (Zaluar, op. cit.: 386).
Importa sublinhar que a contemporaneidade parece estar procurando um
caminho de leitura menos “moral”, menos normativo da violência. Isso fica
bastante evidenciado no crescente número de estudiosos que acreditam que a
explicitação da violência seria o único desfecho possível para as mais distintas
situações de tensões, as que vão desde as formas mais simples e diretas de
133
manifestações de desejos até os grandes conflitos envolvendo, por exemplo,
interesses comerciais ou a rivalidade entre grupos raciais, políticos ou
religiosos. Nas palavras de Pereira, Rondelli, Schollhameer e Herschmann
(2000),
como fenômeno social, a violência abriria a possibilidade de
negociação, de redefinição do entendimento da realidade, permitindo,
em última instância, construir um novo conceito sobre uma dada
realidade. É, em certo sentido, um modo de trazer à cena a alteridade
ou de apontar para novos sentidos, interferindo diretamente no
cotidiano dos agentes sociais. Entretanto, para que se possa falar de
violência com alguma conseqüência ou relevância, é importante que os
atos ou práticas referidos sejam reconhecidos, por parte de certos
conjuntos de atores sociais, como violentos. [...] Neste momento de
crise, talvez seja possível colocar em evidência uma das facetas menos
visíveis (mas não menos importante) da violência: a de construir-se
como ato fundador, um tipo de ação política não necessariamente
organizada e programada, mas que alicerçam novas práticas e
discursos (Pereira, Rondelli, Schollhameer e Herschmann, op. cit: 20-1).
4.2. Os jovens e o imaginário da violência
A violência não é estranha aos jovens moradores da periferia de Brasília:
ela está presente no seu cotidiano, sem subterfúgios. Esta proximidade
banaliza o comportamento violento, tornando-o, por vezes, trivial. Os jovens
relatam inúmeros casos por eles presenciados ou vividos por um amigo, um
vizinho, um parente. Contam de assaltos, roubos, estupros, brigas, homicídios,
pancadarias, sendo que alguns estiveram envolvidos como atores
protagonistas dessas histórias:
Aí quando fui descer pra amarrar o meu cadarço, no que levantei, o cara
estava com a faca aqui: “Não corre não! Tira a jaqueta”. Tirei a jaqueta e dei
pra ele. [...] Aí na hora que eu fui assim ele ia me dá uma facada aqui assim, aí
fui e botei o braço, pegou aqui.
A violência, entendida em seu sentido mais estrito – intervenção física de
um indivíduo ou grupo contra outro indivíduo ou grupo –, tornou-se uma
dimensão rotineira de suas existências. Dizem estar acostumados a ela, que a
mesma relaciona-se com a vida e com a morte e que está presente em todos
os lugares: em casa, na rua, na escola, enfim, ela está em toda a parte.
134
Para alguns, violência “é uma coisa muito ruim que uma pessoa faz pra outra”.
Para outros, ela é necessária e até mesmo “legal”, “muito massa”: “Quando uso
violência, eu fico feliz”
, diz Alain, que já teve passagem pelo CAJE. Outro
informante declara: “Violência mesmo a gente tem que espancar legal, tem que deixar ruim.
Tem que pisar legal mesmo, pra que saiba que não vai te conhecer mais e não vai nem
lembrar”
.
O imaginário juvenil comporta, portanto, uma visão positiva da violência
física. Isto porque a força física figura, tradicionalmente, como um dos valores
cardinais da cultura de rua, principalmente a masculina, constituindo-se numa
dimensão fundamental da virilidade. A valorização da potência física é
expressa sobretudo nos gestos e palavras dos adolescentes para os quais, nas
relações interpessoais, “a utilização da força física constitui um meio
perfeitamente legítimo do exercício do poder, ao mesmo tempo que uma forma
privilegiada de gerir e resolver seus conflitos” (Lepoutre, 1997: 217)
14
.
A violência é, muitas vezes, entendida como parte da natureza humana: o
ser humano é violento. Ela, normalmente, acontece “sem querer”, quase por
instinto, pelo fato da pessoa “estar nervosa”, “de cabeça quente”.
Violência: acontece sem querer
“Pessoal vai e briga, não sei o quê [...] vai enchendo meu saco, enchendo tua cabeça, o
outro fica nervoso, fuma um baseado, você sai de casa, você atira nele e já começa”.
“É uma ação que às vezes você tem que exercer sem querer, e as pessoas que estão do
outro lado às vezes não aceita. Acho que é do ser humano mesmo. Vai da pessoa [...]”.
“A pessoa já nasce com isso: tem pavio curto, fica nervoso”.
“Tem hora que eu tenho a cabeça quente, eu tenho sangue de nordestino, como se
fosse o demônio”.
“Hoje em dia não existe mais paciência. Rolou um frevo errado, o cara já rola todo
mundo, tá de cabeça quente”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Ceilândia,
Samambaia e Planaltina)
14
Voltarei ao tema no capítulo V, onde discuto o significado da introdução das armas de fogo
na cultura jovem/adolescente de rua.
135
A tendência entre os jovens é de, em um primeiro momento, quando
indagados sobre o que entendem por violência, defini-la, exclusivamente, como
toda forma de confronto corporal ou armado. A violência é, portanto, física:
brigar, bater, apanhar, matar, suicidar, estuprar, espancar. Violência é
“pancadaria”, é ver “neguinho sangrando”, é “tudo que acontece a respeito de briga, o que
gera a morte”
, é “matar, estuprar, assaltar, roubar”. As ações das gangues, mesmo
para os que nela estão envolvidos, também representam uma faceta da
violência: andar armado, trocar tiros, roubar, assaltar, são percebidas como
formas de violência.
À medida que as falas se desenvolvem, a definição de violência tende a
adquirir um significado mais amplo. Além da violência física, a noção passa a
incluir o abandono e problemas familiares, a falta de amor, a falta de respeito
pelo outro e pelo ser humano. A discriminação social é também percebida
como uma forma de violência, na qual, conforme foi assinalado, os jovens
sentem-se diferenciados. Ainda, o consumo de drogas, o vício, a dependência,
inscrevem-se na percepção do que seja violência – “Violência é a droga” –, assim
como a polícia: “Violência é a polícia”.
A violência física e a violência moral vão, aos poucos, sendo colocadas
num mesmo patamar, sem que haja uma explicitação dos contornos que as
separam. De todos os jovens que entrevistei, os únicos que classificam
claramente a violência como física e moral foram os integrantes de grupos de
rappers. Para eles, violência moral é deixar uma criança se drogar e não fazer
nada, é não ter o que comer em casa, é a fome do nordeste, é a miséria, é ser
enganado pelos políticos e pelo governo, é a discriminação racial, é a
superlotação dos presídios, é enfrentar longas filas de espera e não ser
atendido nos hospitais, é não ter emprego, é a corrupção e a impunidade que
reinam no país. Violência são as condições de vida da maior parte da
população brasileira, é o sensacionalismo da televisão, é a negligência com a
população da periferia. A polícia é citada como exemplo de violência tanto
física como moral.
136
Violência é...
“Violência é o que o sistema impõe às pessoas, como viver amontoadas ali no meio do
esgoto. Violência é tu pegar o ônibus às cinco da manhã. Pega dois ônibus pra ir, dois para
voltar, sendo que ganha um salário mínimo pra sustentar quatro ou mais filhos. Só de
passagem vai a metade do dinheiro. Isso é violência. Violência é a mídia também que não quer
ver a gente aqui. Quantos caras como esse Galdino já morreram [...] quantos já morreram
queimados que não deu destaque [...]. Violência é a polícia na rua, quebrando o pessoal,
espancando. Todo dia você é agredido pela polícia verbalmente: ‘vagabundo’ e tudo mais. Isso
é violência. Violência é pobre ser rotulado de bandido. Eu tenho a violência como ofensa, a
pessoa fala uma coisa pra mim forte, eu acho que isso já é uma forma de violência moral”.
(Trecho de entrevista com CFZ, rapper do grupo “FC”)
De maneira geral, os jovens acreditam que há sempre um motivo, uma
justificativa, para que a pessoa exerça a violência. A violência é considerada
legítima em casos de extrema pobreza, necessidade e desemprego:
“Primeiro a
gente trabalhava, agora não tem emprego, tem uns que vai vender droga, matar roubar, um
bocado de coisas”
. Quando um pai se desespera por não poder sustentar sua
família, quando um jovem não tem como pagar suas roupas, seu lazer, a sua
droga, a violência pode ser explicada e aceita. Vale observar que alguns
informantes sublinham a diferença entre necessidade e ambição. Essa última
não justificaria, mas explicaria a violência: “Aí tem parte da ambição, uns são violentos
por necessidade, outros querem mais e também são violentos. É tipo assim, cada caso é um
caso”.
A defesa da família, dos amigos, de um “chegado” (amigo próximo) são
situações que na visão dos jovens podem legitimar o uso da violência. Também
o sentimento de raiva justificaria, para alguns, a violência:
O filho de repente aparece morto, estrangulado. A cabeça sobe. O cara pega a
arma e chega lá: pá! Justifica um ato violento”.
[...] matou um colega meu, eu passei a procurar ele, até um dia ele passar do
meu lado [...].
A raiva, é isso mesmo, quando neguinho fica enchendo, acaba mesmo em
violência.
Percebida de várias maneiras, a autodefesa é também apontada como
uma das razões que podem justificar a violência. Ela é vista como resposta a
uma provocação, a uma humilhação, a uma ofensa que deve ser vingada: “Se
137
eu me sentir ofendido assim: se tiver uma pessoa que está querendo me esfumaçar
15
,
querendo ser mais do que eu, eu vou acabar com ele na hora”
. As provocações são de
vários tipos – “encarar”, “triscar a mão”, ouvir deboches, gozações e desaforos,
“tirar onda”, “fazer hora com o cara” – e levam a reações envolvendo desde
confrontos corporais até o uso de armas de fogo: “Violência gera violência. Se uma
pessoa mexe com você, você não vai deixar de graça”
. Admite-se que a autodefesa seja
uma reação natural de violência: quando se é enganado por parceiros de
roubos e assaltos; ou na situação em que é vítima de um assalto ou de uma
agressão reage; explicada também dentro da lógica do “matar pra não morrer”:
“Aqui é o seguinte, é a lei da vida: ou você dá (o tiro) ou você morre”.
Estar drogado ou bêbado é visto, ora como estado que explica
comportamentos violentos, porque levaria as pessoas a agirem
involuntariamente –
“você tá fumando, não vê nada, até esquece” –, e ora como estado
que não justifica a violência, sendo criticado: “Tava doidão! Não tem nada a ver pôr a
culpa na droga”
.
4.3. Breve balanço
Como procurei mostrar, os jovens moradores da periferia de Brasília
integrantes de gangues e galeras elaboram um conjunto de idéias acerca da
violência. Para melhor entendimento das suas percepções sobre o fenômeno, é
preciso levar em conta que se trabalha com um ponto de vista peculiar e não
com a realidade total, embora suas falas estejam carregadas de dados sobre
ela. Olhando numa perspectiva analítica, se, de um lado, essa realidade não
existe como cada um imagina, de outro, essa imaginação é um dos
componentes da realidade. Em outras palavras, a noção de violência
construída pelos jovens é, em parte, retirada do que realmente acontece, da
sua consciência de classe, da sua posição na sociedade, das suas interações
sociais na escola, na família, na rua, bem como das mensagens da mídia, da
sua experiência com esse fenômeno, do imaginário coletivo e de como sua
15
“Esfumaçar”
refere-se a agressão com arma de fogo.
138
subjetividade processa e reage a esse conjunto de estímulo. Portanto, é fácil
concordar com a idéia de que
[...] a consciência dos jovens sobre o fenômeno tem o peso das idéias
hegemônicas que criam as estruturas imaginárias de relevância, do
desenvolvimento de suas experiências enquanto grupo etário, estrato
social, gênero e etnia, e também dos fatos concretos que acontecem
com eles ou que presenciam (Minayo, 1999).
Analisando o conjunto das falas dos entrevistados, observa-se que a
conceituação da violência engloba grande elenco de idéias, como por exemplo:
idéias totalizantes – “violência é coisa muito ruim que uma pessoa faz pra outra”; idéias
que reduzem o fenômeno às suas formas mais visíveis, igualando-a à noção de
crime –
“violência é pancadaria”, “é matar, estuprar, assaltar, roubar”; idéias que
distinguem os aspectos físicos, verbais e morais – “
eu tenho a violência como
ofensa, a pessoa fala uma coisa pra mim forte, eu acho que isso já é uma forma de violência
moral”
; idéias das desigualdades, das injustiças e da exclusão como fontes da
violência – “violência é não ter o que comer em casa, é a fome do nordeste, é a miséria”;
“uns são violentos por necessidade”
; idéia da violência como resultante das omissões
do poder público, do governo em geral – “violência é o que o sistema impõe às
pessoas, como viver amontoadas ali no meio do esgoto”; “primeiro a gente trabalhava, agora
não tem emprego”
; idéia da violência como resultante do poder arbitrário da
polícia – “violência é a polícia na rua, quebrando o pessoal, espancando”.
As noções e representações dos jovens sobre a violência se elaboram de
forma fragmentada, mas compõem um imaginário coletivo. Expressam uma
visão abrangente, mostrando que vários atores sociais intervêm na construção
do fenômeno e que o mesmo não se reduz à sua visibilidade, ocorre nas
relações interpessoais e se manifesta em atos físicos, verbais, emocionais e
morais de uns sobre os outros, com prejuízo para os mais frágeis.
Por último, cabe ressaltar que nas entrevistas, quando quis conhecer as
percepções dos jovens sobre a violência, busquei não abordar o tema de um
ponto de vista moral, mas não deixei de deter o meu ouvido para essa
moralidade, pois ela é parte integrante do fenômeno. Por outro lado, fica
evidente que meus informantes reproduzem os discursos dominantes na nossa
sociedade sobre a violência, mesmo que temporariamente. Essa subordinação
a uma visão dominante talvez seja resultado das próprias condições de
139
produção de suas falas, muitas vezes intencionalmente “endereçadas” a uma
pesquisadora que integra o mundo dos “estabelecidos”. Mas isso é um
problema incontornável, levando-se em conta a natureza da minha
investigação, como procurei deixar claro na introdução deste trabalho.
140
CAPÍTULO 5
ANATOMIA E PERFORMANCE DAS GANGUES
Às vezes a gente faz coisa que nem a gente
acredita, mas não dá pra perder a moral com a
galera. Tem que mostrar que se garante. E que
quando um precisa de ajuda a gente ta lá
pronto pra ajudar.
(Jovem de Planaltina)
5.1 – Do lúdico à bandidagem
As gangues juvenis fazem parte de uma realidade que adentra o cotidiano
dos núcleos urbanos do Distrito Federal
1
. Os jovens entrevistados chamavam a
atenção para o fato da existência de inúmeras gangues em suas cidades e
afirmavam que a cada dia novas eram formadas. Embora muitas das que já
haviam sido famosas no Distrito Federal tivessem desaparecido, principalmente
as de pichadores, elas continuavam fazendo parte do imaginário juvenil, como
uma lenda.
A história das gangues em Brasília confunde-se com a das turmas de
jovens que se formavam para praticar pichações. Tal como narrada por alguns
de meus informantes, o fenômeno teve origem na Ceilândia e em Taguatinga,
no início dos anos 80, coincidindo com a primeira onda do movimento Hip Hop
no Distrito Federal, mas rapidamente se espalhou para outras cidades-satélites
e para o Plano Piloto. No começo, tratavam-se de pequenos grupos – “turmas de
chegados
” – que se reuniam exclusivamente com o intuito de pichar, o que era
considerado uma brincadeira, uma diversão. Paulatinamente, esses grupos
foram crescendo, seus integrantes abandonando a prática da pichação e
1
O fenômeno não deve ser circunscrito às áreas periféricas do Distrito Federal. A pesquisa da
UNESCO sobre os jovens do Plano Piloto de Brasília, do qual participei, focalizou as gangues
do coração da metrópole, mostrando que são bastante conhecidas pela juventude local e que
parecem representar um modo de contraposição ao vazio de referentes que recorta seu
cotidiano. Esses grupos desenvolvem uma cumplicidade em torno de atos ilícitos dos mais
variados tipos, são temidos e conhecidos no espaço público como desestabilizadores e vistos
como uma ameaça. Ver Wailselfisz (coord.,1998).
141
envolvendo-se cada vez mais com o consumo e tráfico de drogas, com armas,
roubos, assaltos e crimes.
A diversão lúdica transformou-se em bandidagem:
Da brincadeira à bandidagem
“Era uma gangue que era só de pichação, mas com o passar do tempo foi se tornando
gangue de assalto, de andar armado. Aí começaram a usar drogas, essas coisas assim.
Começou tudo como uma brincadeira, pichando muro, pichando prédio. Com o passar do
tempo foi se tornando um grupo mais perigoso, roubando carro, tendo muita arma. Foi
começando a ser procurado pela polícia”.
(Barão, rapper da Ceilândia, ex-integrante de uma gangue de pichadores da Ceilândia)
“Aqui tinha muita gangue de pichador, agora eles estão se separando, ou então estão
juntos, mas formando uma máfia mesmo. Agora eleso quer mais saber de pichar, pichar pra
eles é fichinha. O lance agora é roubar, matar. É isso ai, eles estão mesmo no crime”.
(André, 19 anos, ex-integrante de uma gangue de pichadores da Ceilândia)
“Os pichadores viraram quase tudo bandido. Eles modificaram bastante o jeito deles.
Antigamente o lance era só pichar, mas eles foram conhecendo as drogas desse mundo, né?
Aí, geralmente eles não têm dinheiro, e o que eles fazem? Partem pra o roubo, do roubo
compram uma arma, aí começa a meter assalto, aí atira num, aí vai indo, vai criando como se
fosse uma bola de neve, só vai aumentando. Alguns morrem, outros vão preso”.
(Tiago, 19 anos, grafiteiro, ex-integrante de uma gangue de pichadores da Ceilândia).
Em seu estudo sobre as gangues de Fortaleza, Glória Diógenes alerta
para o fato de tudo indicar que o fenômeno das gangues juvenis obedece, a
nível nacional, uma mesma lógica e cronologia. Trazendo o exemplo de um
levantamento realizado sobre as gangues em Belém, a socióloga observa que
também naquela cidade a motivação mais evidente para as sua formações é a
pichação. As atividades delinqüentes, como roubo e assalto, iniciam-se em
razão da necessidade de aquisição dos sprays usados para as pichações e,
em seguida, se intensificam pela possibilidade de, por meio delas, os jovens
terem acesso ao mundo do consumo, “podendo realizar sua inscrição em
registros dos quais foram proscritos, adornarem-se com elementos estéticos
dos quais foram expropriados, ‘ficar nos panos para fazer estilo nos bailes
funk” (Diógenes, 1998: 152).
Assim, a pichação pode ser entendida como “forma inaugural de
linguagem das gangues” (Diógenes, 1998), que aos poucos vai sendo
entrecortada pela dimensão da violência, daí emergindo uma nova
142
configuração desses grupos, que, mesmo abandonando a pichação, continuam
fazendo da rua o palco principal de sua atuação.
Ao falar da existência de gangues em suas cidades, os jovens da
Ceilândia, Samambaia e Planaltina referiam-se não somente às gangues de
pichadores, mas também às de delinqüentes – caracterizadas pelo consumo de
drogas e pequenos roubos; às de bandidos – tipicamente compostas por
traficantes, assaltantes, ladrões; e às quadrilhas de ladrões de carro, de
estelionatários, de assaltantes profissionais: “Tem gangue de tudo”. As gangues,
além de serem de variados tipos, são representadas nas diferentes cidades-
satélites – “Se espalha pra todo lugar. Tem a ‘x’ da Ceilândia, da Samambaia, de
Taguatinga”
– e possuem, em alguns casos, suas vertentes femininas
2
. Os
grupos mencionados pelos informantes muitas vezes são chamados
indiscriminadamente de gangues ou galeras. Podem ser, ainda, identificados
apenas pelo nome – são “galeras de nome”; seus nomes são comumente ligados
à rebeldia, ou remetem ao demoníaco, à coragem “Destemidos Contra Atacam”,
“Anjos Satânicos da Terra”, “Unidos do Inferno”, “Grafiteiros Sem Lei”
–, ou aos signos
materiais e visuais que os distinguem – “Boné Branco”, “Adidas”, “Nike” –, ou à área
onde residem – “Vale do Amanhecer”, “Pombal”, “Caveiral”.
As características delimitadoras e diferenciadoras desses grupos são
bastante difusas e misturadas. A própria complexidade da dinâmica e da
conformação dessas associações torna fútil qualquer tentativa de tipificação
estrita. Até porque, como já foi dito, as gangues assumem existência
oportunamente e seus membros podem transitar de uma identidade à outra, ou
seja, pertencem, ao mesmo tempo, a uma galera, a um grupo de quadra ou de
amigos da escola e a uma gangue. Em geral, integrar uma gangue de
pichadores pode significar estar envolvido com tráfico de drogas amanhã, como
também se tornar um rapper, e construir uma nova identidade. Assim, existe
uma superposição de atividades, que gera uma multiplicidade de papéis e
comportamentos. Dizendo de outro modo, o membro de uma gangue de
pichadores pode ser, simultaneamente, consumidor de drogas, assaltante,
2
O envolvimento das mulheres nas gangues será um tema abordado mais adiante. Observa-
se, porém, que o mesmo não tem a mesma magnitude e intensidade que o dos homens. Estes
grupos têm um perfil essencialmente masculino, muito embora neles as jovens cumpram um
importante papel funcional.
143
ladrão, cantor de rap, estudante e trabalhador
3
. Por isso, embora os jovens
identifiquem vários tipos de gangues/galeras, os seus contornos são sempre
fluidos e bastante sutis.
Chama a atenção o fato de nas formulações discursivas dos jovens as
gangues sempre serem caracterizadas pelo forte elo que une seus integrantes,
que se protegem, se ajudam e brigam uns pelos outros: “É tipo uma família”; “O que
rola pra um, rola pra todos”; “Todo mundo considera o outro”.
A idéia de solidariedade,
construída em torno das noções de fraternidade, lealdade e fidelidade, da
motivação de responder pelo coletivo, encontra-se ressaltada em frases que se
repetem e que indicam que a mesma é condição essencial para a existência
das gangues. Ou seja, a solidariedade entre os pares, como elemento de
coesão, é uma das referências centrais no processo de construção da
identidade do grupo e de sua instituição diante dos demais.
As gangues não necessariamente dedicam-se exclusivamente a uma
atividade. Além disso, nem todas as práticas são amplamente compartilhadas
pelos afiliados: um integrante de uma gangue de pichadores, ao mesmo tempo
em que é pichador pode ser assaltante e ladrão, embora nem todos os
membros da gangue assaltem e roubem.
Existem grupos que se dedicam apenas à pichação. Na maioria dos
casos, são formados por adolescentes que picham pelo aspecto lúdico da
atividade, para se divertir, “pra curtir” e compram o spray com o pouco dinheiro
que conseguem obter da família. Porém, optar unicamente pela pichação pode
ser motivo de discriminação por parte de grupos ou indivíduos que assumem a
vida criminosa, pois deixa margem para ser visto como uma pessoa medrosa,
sem malandragem e sem “atitude”. Para os que transpõem o limite da legalidade,
os apenas pichadores não merecem respeito, são considerados “comédia”
(bobos, otários) e contam somente com a admiração de seus companheiros:
“Os caras só têm fama entre as gangues deles ali”.
3
Vale ressaltar que a inserção escolar e no trabalho podem ser considerados fatores
significativos de proteção contra o envolvimento de jovens com gangues, mas não são
suficientes para impedir que desenvolvam tais filiações. Relembro ao leitor que a escola foi um
dos espaços importantes para o contado com estes grupos, encontrados entre alunos
regulares.
144
Assim, paulatinamente, a pichação, isoladamente, foi se tornando, entre
as gangues e as galeras do Distrito Federal, uma atividade “paia” (“não está
com nada!”). Para “ganhar destaque”, já não vale somente deixar marcas na
cidade com a ousadia de alcançar os pontos mais altos, aparentemente,
intransponíveis. É necessário sinalizar a coragem, mostrar que “tem atitude”, por
ações entrecortadas pela dimensão da violência.
5.2. A Dinâmica da formação das gangues: quando os “ratos” tornam-se
uma família
As gangues atraem adeptos que constituem fortes laços de solidariedade,
pautada principalmente nos sentimentos de fraternidade, lealdade e fidelidade,
na motivação de responder pelo coletivo. Permanentemente dispostos a “brigar
uns pelos outros”
, os jovens se dizem parte de uma “família”, utilizando uma
categoria típica do domínio privado para definir um espaço de segurança e
confiabilidade, assegurado num ambiente imprevisível e hostil, como a rua.
Esta “família da rua” é percebida como uma comunidade emocional que
ampara, apóia e dá proteção em situações nas quais a “família de casa” não
pode intervir, mesmo porque quase sempre desconhece as inquietações dos
jovens, que são abertamente discutidas nesse outro cenário de socialização.
Na gangue, ou “família da rua”, abre-se um espaço de escuta, fala-se sobre
problemas similares, o que aflige e alegra, cria-se um ambiente propício para
conversar sobre temas que no seio da “família de casa” seriam menosprezados
ou incompreendidos. Na “família da rua” o jovem pode construir uma outra
posição no espaço social, distinta da que é pautada pela relação vertical e
assimétrica existente na “família de casa”, pois encontra interlocutor
semelhante com o qual estabelece uma relação horizontal, de compreensão
plena, circunscrita a uma comunidade lingüística comum: “as formas de ser e
estar confluem em um espaço compartilhado de idéias, práticas, pensamentos,
saberes, éticas e estéticas” (Cerbino, 2006).
145
As gangues, usualmente, surgem de modo quase espontâneo, não
deliberado. São formadas por grupos de amigos nas quadras – “Junta um grupo
de galera tipo assim da mesma área, da mesma rua. Tu fala que ta a fim de formar uma galera,
já inventa uma sigla, neguinho já se interessa”
– e também nas escolas, onde os que
se consideram mais espertos, mais malandros, mais “ratos” aproximam-se.
Existe um certo acaso na montagem desses grupos. Os jovens se juntam, por
exemplo, para defender um amigo ameaçado ou agredido por outro jovem,
que, por sua vez, reúne outros amigos para se vingar. Momentaneamente
todos desenvolvem o mesmo sentimento e compartilham o mesmo objetivo e,
nesse jogo, a cumplicidade e os elos de amizade vão se tornando mais sólidos,
dando origem a uma relação quase fraterna, e o grupo termina por se
consolidar, assumindo alguns aspectos de uma organização.
É o caso das gangues de pichadores. Uma de suas características é
terem cadastros do nome, apelido, endereço, telefone de cada integrante. Em
alguns casos, são cadastrados também o grafite de cada um, e os jovens se
vestem da mesma maneira, com as mesmas marcas de roupa, com a mesma
cor de boné e de camisas, criam uma linguagem própria, com gírias e
cumprimentos diferenciados.
Esses grupos podem ter até mais de cinqüenta integrantes, sendo que
Isac, líder de um deles, afirmou possuir uma lista de mais de trezentas pessoas
que fariam parte da sua gangue. Segundo ele, tudo começou com apenas
cinco pessoas, das quais três estão mortas. Há um cadastro feito em
computador ao qual somente os líderes a ele têm acesso, por receio da
listagem acabar parando nas mãos da polícia
4
. Nesta lista constam inclusive
nomes de pessoas mais velhas, mães de família dispostas a ajudá-los em
momentos difíceis, sobretudo quando precisam encontrar refúgio em casos de
perseguições policiais. Nestas situações, podem passar vários dias escondidos
4
A polícia, em algumas cidades satélites, possui a listagem dos integrantes das gangues,
conseguida por meio de sua própria investigação. Em Planaltina, tive acesso a uma dessas
listagens elaboradas pela polícia. Dela constavam os nomes dos jovens, as alcunhas, os
endereços e os nomes dos pais. Segundo o agente investigador, essa listagem havia sido
solicitada pelo alto comando da Polícia Civil. Na Ceilândia, a Polícia Militar possuía mapeadas
as áreas mais violentas da cidade, com indicação dos lugares onde os jovens costumavam se
concentrar. Em relatórios confidenciais, aos quais não tive acesso, são detalhados o modo de
funcionamento das gangues, lideranças e ocorrências. Todos esses registros permitem à
polícia informar os pontos de atuação de cada gangue e apontar seus integrantes.
146
em casas de vizinhos ou mesmo de pessoas que vivem em outras quadras ou
em outras cidades do Distrito Federal.
Vários estudiosos salientam que os jovens, tanto homens quanto
mulheres, aderem às gangues buscando encontrar resposta para as suas
necessidades básicas, como o sentimento de pertencimento, de identidade,
auto-estima e proteção, e a gangue parece ser uma solução para os seus
problemas em curto prazo
5
. De fato, os jovens entrevistados reforçam essas
idéias e esclarecem um pouco mais sobre o que os levam a aderir às gangues.
As razões de entrada são explicadas e justificadas pela falta de alternativas,
pelo fato de não se ter nada para fazer, pelo sentimento de exclusão e pela
falta de dinheiro. Como membro de uma gangue, o jovem tem em seu
imaginário o poder de conseguir dinheiro facilmente, bem como a possibilidade
de tornar-se conhecido e famoso.
Há também os que aderem às gangues para “tirar onda, crescer em cima dos
outros”
e para se sentirem protegidos: “Muitas pessoas entram porque se sentem
inseguras. Ele tá passando aqui, aí um moleque vai, limpa ele e toma as coisas toda. Aí ele vai
lá chama a gangue dele e vai atrás”.
A alternativa de se integrar a uma gangue
insere-se, desse modo, “dentro de uma rede de ‘proteção paralela’, em que a
‘circularidade da violência’ condensa proteção e agressão, em que atacar
torna-se a regra básica de segurança” (Diógenes, 1998:118)
Segundo os jovens, são inúmeras as vantagens de aderir a uma gangue.
De suas formulações discursivas fica registrado o desejo de “ser respeitado”,
acima de tudo. O benefício da proteção, de ganhos financeiros, de possuir uma
arma, de ter acesso mais facilmente a drogas, de ganhos de sociabilidade – ter
amigos, ser popular e ter mulheres –, de sentir liberdade para fazer o que
querem, de gozar do lúdico da vida, tudo isso vem mesclado ao enorme
desafio e necessidade de “ser considerado”.
Esse desafio não poderia ser explicado tão somente pela exclusão social
que sofrem e pela precariedade das suas condições de vida. Se fosse assim,
não teríamos tantos jovens “bens nascidos” envolvidos com gangues no Distrito
5
Cohen (1955) fala de uma subcultura adolescente por meio da qual o indivíduo busca a
satisfação de suas “necessidades sócio-emocionais” que, não satisfeitas pelo primeiro grupo
de referência, podem ser supridas pelo grupo de pertencimento.
147
Federal e em outras partes do Brasil
6
. Há toda uma outra questão que envolve
a noção de honra numa etapa da vida que chamamos de juventude e que não
deve ser esquecida num estudo que contempla exatamente grupos de idade
inseridos nesta fase.
Lepoutre (1997) faz questão de enfatizar o quanto a noção de honra
conserva, ainda em nossos dias, um enorme poder explicativo. Ao contrário de
Berger (1970), que defendeu a idéia de que tal noção tornou-se obsoleta na
medida em que foi substituída por outra, qual seja, a de dignidade humana, o
antropólogo francês, a partir de sua experiência com jovens adolescentes da
banlieue parisiense, defende a idéia de que a honra é “determinante na análise
da conduta dos indivíduos e também dos grupos” (Lepoutre, op. cit: 270)
7
.
Principalmente entre os jovens de sexo masculino, a honra é um valor
fundamental na decisão de aderir a uma gangue, seja uma palavra
praticamente inexistente em seus discursos. “Honra” comparece nos discursos
por meio da noção de “reputação”, fortemente presente em suas consciências.
A busca de reputação e prestígio explica numerosas condutas dos jovens e
participa, fundamentalmente, da construção da identidade viril, que, retomando
os termos de David Lepoutre, “passa pela demonstração espetacular das
capacidades físicas e mentais e pela espetaculosidade muito elaborada de si
mesmo” (Lepoutre, op. cit: 272).
6
Infelizmente, a juventude de classe média brasileira não tem sido objeto de interesse de
investigação. Existem estudos pontuais, como lembra o antropólogo Heitor Frúgoli, ao
comentar nossa pesquisa sobre os jovens de classe média de Brasília (publicado no jornal
Folha de São Paulo, 1999). Evidentemente, nesta hora o nome de Gilberto Velho precisa ser
citado. O antropólogo carioca dedicou grande parte de sua carreira como pesquisador à
estudos urbanos que tiveram a classe média como alvo de interesse. Contudo, a visão da
juventude da classe média brasileira e a dinâmica de seus modos de sociabilidade ainda se
fazem conhecidas por meio da mídia. Nos últimos anos, é ela quem alardeia a presença de
uma forma inusitada de agregação juvenil entre estes jovens “bens nascidos”, que fazem das
cidades o palco de suas práticas de violência: queimam mendigos, matam homossexuais,
assaltam entregadores de pizza, empregadas domésticas, roubam bancos, picham e
incendeiam o patrimônio artístico nacional. Que espécie de exclusão é essa, na qual existe a
garantia do dinheiro fácil no bolso?
7
O texto de Berger tem quase quarenta anos, o que não diminui o valor de suas
argumentações. Para mim, formada com A Construção Social da Realidade, causou, num
primeiro momento, estranheza as críticas de Lepoutre. Mas, em seguida, voltei à Berger, e
comecei, como o mestre ensina, a ver no conceito de “dignidade humana” uma “construção
social”, bem datada, o que não me impede de considerar Lepoutre um grande leitor dos
clássicos da antropologia. Devo, inclusive, à Lepoutre, algumas inspirações e pistas abertas
para este trabalho.
148
Os jovens dão grande importância para os juízos formulados acerca
deles, sobretudo para os julgamentos tecidos por seus pares. O valor da
pessoa é medido no interior do seu grupo, para o qual devem provar coragem
física e seus corolários – bravura, audácia, intrepidez – e demonstrar que
aderiram aos valores e ideais partilhados por todos os seus membros. É por
isso que para ser honrado e reconhecido como membro de uma gangue faz-se
necessário passar por ritos de iniciação.
5.3. Entrar, permanecer e sair da gangue: norma e obediência
O ingresso e a permanência numa gangue são regidos por códigos de
honra, traduzidos na demonstração “espetacular” de coragem, força,
temeridade e astúcia, predicados considerados de uma “pessoa de atitude”.
Lealdade ao grupo, impiedade para com os outsiders e adversários, obediência
às regras fundamentais, como a lei do silêncio, participam do mesmo código.
Trata-se de valores essenciais na constituição de certo tipo de ordem destinada
a tornarem previsíveis e confiáveis os comportamentos.
Assim, para tornar-se membro de uma gangue, um indivíduo tem que
cumprir certas obrigações e pode ser submetido a várias provas, a fim de
mostrar seu comprometimento com um determinado código de valores. Os
jovens pagam
“pedágios”, isto é, dão dinheiro para o grupo, mesmo que para
isso tenham que roubá-lo. Ou têm que dar bebidas, sprays, bicicletas, roupas
de marca – bermuda da “Ciclone”, blusa da “Píer”, sandália da “Kenner”, tênis
“Adidas”, etc. Ou fazem roleta-russa. Normalmente são
“batizados”, apanhando e
passando por um corredor polonês.
149
Entrar na gangue: o “batizado”
“O batizado era o corredor polonês, aí levava porrada de 38, bicudão, murro na cara se
tu desse mole, se tu caisse no chão os caras te bicavam [...]. Tinha outro esquema: os caras
falavam do ‘cu na quina’, o cara pegava você pelo braço, pela perna, pegava uma quina e
lascava você lá”.
“Pra entrar tive que levar uma surra de todo mundo junto. Jogava no meio assim e só
largava quando nós cansava. Não podia reclamar, e se chorar apanha mais ainda e sai do ar.
[...] Surra, pau, pior que a polícia. Pau mesmo, de deixar no chão gemendo, sem dó”.
“Tem o batismo, você entra num corredor e a galera te quebra todo pra ver se você é
forte mesmo pra entrar na gangue. [...] Só acontece uma vez, depois desse dia não quebra
mais não”.
(Trecho de entrevistas com integrantes e ex-integrantes de gangues. Ceilândia,
Samambaia e Planaltina)
Segundo Tephon, que fez parte de uma gangue da Ceilândia, um dos
intuitos da realização dessas provações físicas é o de verificar se o candidato a
membro do grupo conseguirá suportar apanhar sem denunciar nenhum dos
pares em caso de ser apanhado pela polícia. Mas vale observar que, além do
motivo exposto pelo informante, a resistência física é um elemento de extrema
importância em meio a busca de prestígio e de reputação individual entre os
jovens. Como comenta David Lepoutre,
[...] nesta idade da vida na qual os indivíduos são em grande parte
dependentes de seus pais e, propriamente falando, não têm lugar na
hierarquia social global ou mesmo local, a reputação individual não
pode depender nem do capital econômico, nem do status profissional,
nem mesmo do status familiar. Ela então reside inteiramente na pessoa
física e nas condutas pessoais em acordo com os valores e ideais
partilhados pelos membros do grupo (Lepoutre, 1997: 271-272).
Ocorrem casos em que os chamados pactos de sangue são feitos como
prova de lealdade ao grupo. Os jovens autoflagelam, riscam-se, cortam-se,
tatuam-se e queimam-se com cigarros, adquirindo uma marca identificatória
como sinal de reconhecimento. Assim, o corpo passa a abrigar memórias que
nele são cravadas, transforma-se numa espécie de “corpo-texto”, a partir do
qual os jovens narram muitas das histórias de suas vidas
8
. Cicatrizes,
8
O corpo enuncia não apenas narrativas individuais, como também condensa e expressa
amplas dimensões culturais: “viver consiste em reduzir continuamente o mundo ao corpo,
através do simbólico que este representa” (Le Breton, 2002:.7). Como diz Canevacci, “o corpo
150
hematomas e marcas de agressões corporais sofridas adquiridas ao longo da
vida representam, no fundo, uma espécie de emblema usado para demonstrar
o ethos da virilidade, a capacidade de se firmar como homem, a “força jovem”,
ou mesmo a crença na invencibilidade diante da morte
9
.
Matar, brigar, desafiar e aceitar desafios, dar um tiro numa pessoa, roubar
e beber sem limites podem também fazer parte dos ritos de entrada numa
gangue. Todos esses atos revelam coragem e força, necessárias a aquisição
de prestígio e reconhecimento entre os pares. Aqueles que se situam fora
dessa ideologia da coragem não podem ser aceitos no grupo. É por isso que os
chamados “Mané”, “Manezão”, “Zé Mané”, “Cuzão”, “Laranja”, não têm sequer direito de
passar por essas provas: “A gente não vai querer Zé Mané no nosso meio”.
10
. Eles são
desprezados pelos membros das gangues, que revelam persegui-los,
roubando-lhes relógios, bicicletas, tênis, além de, sempre que têm chance, lhes
agredir fisicamente.
Na percepção dos integrantes de gangues, aqueles que não as aderem
são, de modo geral, considerados “Manés”, “mongóis”, “mongolzões”. Há, contudo,
é um mapa cultural” (Canevacci, 1990:23). Nesse sentido, vale lembrar o clássico ensaio de
Pierre Clastres Da Tortura nas Sociedades Primitivas. O antropólogo assinala a importância do
corpo como uma “superfície de escrita”, como superfície capaz de recebe o texto legível da lei.
As cicatrizes das feridas, que durante o rito de iniciação provocam dor e sofrimento nos corpos
dos jovens iniciados, são obstáculos ao esquecimento do pertencimento ao grupo. O corpo
passa a desempenhar o papel de memória: “Sois um dos nossos. Cada um de vós é
semelhante a nós, cada um de vós é semelhante aos outros. [...]. Nenhum de vós é inferior,
nem superior. E não podereis esquecer disso. As mesmas marcas que deixamos sobre vosso
corpo vos servirão sempre como uma lembrança disso” (Clastres: 1990: 129). A sociedade “dita
a sua lei”, inscreve-a sobre a superfície dos corpos, e ninguém esquece da lei que serve de
fundamento à vida social do grupo: “A marca sobre o corpo, igual todos os corpos, enuncia: tu
não terás o desejo do poder, nem desejarás ser submisso. E essa lei só pode ser inscrita num
espaço não-separado: o próprio corpo. [...]. A lei escrita sobre o corpo é uma lembrança
inesquecível” (Clastres, op. cit: 131). Grifo do autor.
9
O corpo é, sem dúvida, fundamental para o entendimento da construção social da
masculinidade. Fátima Cecchetto (1998; 2004) focaliza este tema ao analisar três modalidades
de lazer no Rio de Janeiro: o baile “de corredor”, uma vertente do baile funk, o jiu-jítsu, uma
luta marcial, e o baile charme. O baile de “corredor” integra o confronto violento entre turmas de
jovens do sexo masculino, que não temem os danos físicos que sofrem ou que provocam, ao
contrário, os percebem como uma medalha. No caso do Jiu-jítsu, além do corpo atlético, forte,
e o pleno domínio de técnicas de golpes de ataque e defesa, a capacidade de resistência à dor
constitui um dos principais atributos do lutador. Este, tal como os jovens freqüentadores do
baile de “corredor”, também costuma exibir as marcas no corpo, adquiridas nas lutas, como
verdadeiros troféus. Já no baile charme, o estilo de masculinidade adotado pelos homens é
não-confrontativo. A elegância – o “vestir bem” –, a sensualidade, a “educação”, a cortesia, o
comportamento pacífico, consubstanciados no “corpo suave” dos charmeiros, se opõem
contrastivamente ao ethos da virilidade, configurado a partir da força e da violência.
10
Mané, Manezão, Zé Mané, Cuzão e Laranja são palavras usadas como sinônimo de bobo,
otário.
151
lugar para exceções, no qual se enquadram jovens que já deram alguma prova
de valentia, força e coragem. Para estes, inclusive, não são colocadas
restrições à entrada numa gangue. Afinal, já são “famosos”, ou são “muito doidões”,
“de rocha”, “têm atitude”.
Assim como para ingressar numa gangue, também existem regras para o
indivíduo permanecer fazendo parte de uma. O jovem deve manter-se fiel ao
pacto inicial de não denunciar companheiros e seguir a lei do silêncio. Como
disse um dos informantes, “tem que seguir a lei da favela”, aludindo à “cultura do
silêncio” institucionalizada nos morros cariocas, onde a população defende e
protege os moradores, sejam trabalhadores ou bandidos, das agressões vindas
do exterior, principalmente das perseguições policiais.
Impõem-se, ainda, como condição de permanência no grupo, não viver
provocando e misturado a confusões, não correr de situações difíceis, não ter
medo, “não dar mole para ninguém”. “Ter atitude” é uma expressão com a qual os
informantes freqüentemente sintetizam os atributos daqueles que são aptos a
integrarem uma gangue. E na periferia, segundo os jovens, para alguém
mostrar que é uma pessoa de “atitude” é preciso aceitar os desafios, vingar-se,
impor moral, não ser otário e nem bonzinho – “Neguinho que dá mole, todo mundo
quer botar a mão”
–, ter malandragem, “manha”, para solucionar os conflitos.
A “atitude”, principalmente no código masculino, é medida que estabelece o
grau de reputação e respeitabilidade de uma pessoa. E alguém respeitado é
alguém “considerado”, outra expressão usualmente evocada pelos jovens para se
referir às qualidades dos que não permitem qualquer mácula ou desafio à sua
reputação:
Pra ser considerado na periferia, você precisa roubar, matar, ser um cara grosso,
tem que arranjar o que os outros tá querendo, não deixar ninguém te chamar de comédia, não
deixar ninguém te tirar nada”
, verbaliza Guga, 16 anos, integrante de uma gangue
de pichadores
11
.
11
Como observa Goffman (1974b), um membro de qualquer grupo deve dar prova de que
merece a consideração de seus pares e, para assegurar esta consideração, ele precisa agir em
conformidade com a “linha de ação” que os outros supõem que ele adotou, caso contrário corre
o risco de “perder a face”, caindo assim em descrédito. Diria que a “atitude” constitui-se
exatamente numa “linha de ação” ou de conduta a qual os jovens procuram se conformar para
garantir o seu valor social dentro do grupo de pares. A busca de “consideração” como elemento
caracteristicamente masculino é um dos temas abordados por Lins & Silva (1990) no ensaio
sobre Bandidos e Evangélicos: extremos que se tocam. O tema também vem à tona no estudo
de Cecchetto (2004) sobre Violência e Estilos de Masculinidade no Rio de Janeiro, no qual a
152
Andar armado, carregar o “ferro” (arma de fogo), é apontado como outro
elemento de linha de frente que assegura a reputação localmente, entre os
pares, diante de outras gangues/galeras e também entre as meninas, que,
segundo os jovens, sentem-se protegidas e “gostam de meninos que têm arma”.
Desse modo, possuir uma arma passa a ser uma necessidade dentro da lógica
da busca de “consideração” e o “ferro”, símbolo visível de poder e prestígio, torna-
se “fetiche” entre os jovens
12
.
A busca de “consideração” é uma batalha cotidiana em que a
respeitabilidade deve ser alcançada a qualquer preço. Ser preso pode
representar uma forma de mostrar valentia, “impor moral” e alcançar status. Uma
outra maneira de se fazer respeitado, e também temido, é a disposição para
matar: “Pra te respeitar você tem que chegar assim, derrubar e matar uma pessoa.
ninguém te critica”
13
. Quanto maior o número de homicídios cometidos, maior é a
reputação da pessoa, que ganha fama, prestígio e dá prova de grande
virilidade. Esta, desse modo, se expressa como uma lógica de “ação” no
sentido dado por Goffman (1974a), segundo o qual uma ação significa
participar de situações fatídicas parecidas com os jogos de azar. Nessa
perspectiva, a virilidade é o horizonte de sentido que se encarrega de
desenvolver a capacidade de administrar a fatalidade, considerada inevitável e
para a qual uma das respostas seria a demonstração da hombridade plasmada
na capacidade de eliminar o “outro”, o inimigo, pela morte.
autora revela que, por exemplo, no circuito masculino das galeras funks, a aquisição de
prestígio e consideração entre os pares depende da “disposição” permanentemente
demonstrada para a luta. Nesse grupo, “ter disposição” é uma expressão que sintetiza uma
espécie de norma local de masculinidade que privilegia a força física e uma moralidade da
ação. O mesmo tema comparece ainda no estudo de Marcos Alvito sobre a favela carioca de
Acari. Naquele contexto, “ser considerado é uma expressão que sintetiza a qualidade daquele
que sabe ser amigo, companheiro e igual, que não busca elevar-se acima dos outros, mas
tampouco permite qualquer arranhão ou desafio à sua reputação, que não ‘baixa a cabeça’ por
nada”. (Alvito, 1998:195).
12
O papel das armas de fogo na vida dos jovens é um tema que será um pouco mais
aprofundado ainda nesta parte. Vale a pena, desde já, lembrar das palavras de Alba Zaluar
sobre o trágico quadro com a qual se deparou meio à população pobre do Rio de Janeiro.
Comentando sobre a participação dos jovens no crime organizado, a antropóloga fala do
prestígio das armas entre eles: “estas armas tornaram-se fetiches na cintura de adolescentes
franzinos e gatilhos mortífero nos seus dedos. ‘Revolver na cintura impõe respeito’, eu
aprendo” (Zaluar, 1994a: 10).
13
No Rio de Janeiro, Alba Zaluar encontrou uma situação idêntica: “‘Ser um matador’, ‘ter
disposição para matar’, faz um garoto ‘criar fama’” (Zaluar, 1994a: 10). As noções de honra e
respeito, presentes entre os jovens da periferia de Brasília, coincidem com as observadas pela
antropóloga entre os jovens pobres da cidade do Rio. Ver também Zaluar (1985).
153
Tephon, que hoje integra um grupo de Rap e está distante de seus ex-
companheiros de gangue, reproduz, no entanto, ao nível do discurso, a
valorização do homicídio como dimensão fundamental da virilidade e da honra.
A história de seu pai, assassinado num bar da Ceilândia, dá a medida exata de
como essa valorização pode ser internalizada e desempenhar um papel
fundamental na personalidade e atitudes do indivíduo. Tephon conta que o
assassino de seu pai o fez por vingança, como um acerto de contas antigo.
Tratava-se de um homem muito respeitado e temido na cidade, ele próprio o
respeitava, pois ao longo dos anos acumulara para si, em número, além dos
assassinatos que cometera com as próprias mãos, os assassinatos cometidos
por aqueles a quem matara, inclusive os cometidos pelo pai de Tephon.
Fantasia do rapaz? O que importa não é tanto a veracidade de sua história,
mas sim a insistência do jovem em repeti-la, numa valorização excessiva do
homicídio como medida de respeitabilidade e honra do indivíduo. Além disso,
acredito que Tephon, com essa e outras de suas histórias semelhantes, no
fundo queria transmitir à pesquisadora a certeza de que, embora tivesse
deixado a gangue, continuava sendo “homem” e, como tal, não perdera a sua
disposição para matar.
Nem todos os jovens com quem conversei estiveram presos ou chegaram
a matar alguém. Interessa, porém, chamar a atenção para o fato de haver uma
avaliação moral positiva dessas situações, o que pode ser um passo
importante na adesão à vida criminosa. Além disso, revelam ter em mente um
modelo de honra que em nada contribui para conter a avalanche de violência e
brutalidade que permeia a sociedade brasileira, sendo a maior prova disso a
facilidade com que “bandidos formados” (Zaluar, 1985) jogam com a morte
alheia – e a sua própria – para assegurar sua reputação e prestígio.
Para entrar e permanecer numa gangue é necessário, como disse, “ter
atitude”
, dela decorrendo a “consideração pelo grupo. A saída, no entanto, depois
de partilhadas experiências e vivências, de assumido o compromisso com
pactos preestabelecidos, normalmente, torna-se difícil, pois pode redundar em
quebra dos princípios de fidelidade e honra acordados pelo grupo. Quem
154
deseja sair é mal visto, pode apanhar e sofrer agravos provocados pelos
companheiros.
Há casos em que os jovens, ao desligarem-se de sua gangue, são
obrigados a desaparecer, a mudar de endereço e de cidade satélite:
“Pro cara
sair assim tem que passar mais de dez anos sem aparecer aqui, ele tá marcado, nem virando
crente ele escapa”
, diz o integrante de uma delas. Um ex-membro de gangue,
explica as dificuldades, as perseguições e ameaças que enfrenta por deixá-la,
após entrar para a Igreja Universal: “eles ainda estão atrás de mim. Eu tenho que viver
fugindo. É de Planaltina pra Ceilândia, pra Samambaia. Onde eu vou parece que eu enchamo”.
Os obstáculos impostos para um integrante sair de uma gangue não são
os mesmos em todas as situações, podendo variar em função do tipo de
gangue ou da imagem do indivíduo, de sua reputação. Afastar-se, por exemplo,
das gangues que se dedicam apenas à pichação, em que os membros não têm
envolvimento com as “paradas” – roubos, assaltos, tráfico de drogas... –, é mais
fácil do que de outras gangues: “Não vão bater, não vão jurar de morte. Isso não existe
em pichação”.
No caso dos indivíduos que são muito respeitados e “considerados”,
basta explicar a razão e comunicar a saída. Eles continuam transitando no
território do grupo na medida em que seus comportamentos ainda são
confiáveis.
Há também casos de jovens que, quando são presos, imediatamente
deixam a gangue para proteger o grupo da polícia, pelo risco sempre presente
de terem que revelar os nomes dos companheiros. Essas saídas não têm, de
fato, efeito de verdade, sobretudo porque os jovens continuam, nos espaços
carcerários e/ou correcionais, a responder pelo coletivo e a respeitar o princípio
de fidelidade ao grupo diante de outros grupos. Uma vez colocados em
liberdade, adquirem um status maior entre os pares.
As motivações que levam os jovens a abandonarem as gangues são
diversas: estar no alvo de outras gangues; estar “jurado”, ameaçado de morte;
tornar-se maior de idade; aderir a uma religião; pressão familiar; fugir das
drogas. Alguns jovens afirmam ter deixado o grupo porque não viam futuro,
tinham muitos gastos com o jet (spray usado nas pichações); outros falam que
não queriam correr o risco de serem presos, de levarem tiros, de morrer; ou
155
que temiam tornarem-se ambiciosos e verdadeiros bandidos, como narra um
ex-integrante de uma gangue da Samambaia:
Você começa a roubar coisinha pouca. Aí você quer uma coisa mais alta.
Nisso o lucro está aumentando só que você está caindo mais. Você vai ter
mais dinheiro pra comprar uma bermuda, uma camisa, drogas e você está só
se acabando. Uma hora você vai cai e aí os policiais vão estar mais perto de
você
Observa-se que, diferentemente da entrada, não há nenhum sinal
simbólico ritual da saída das gangues. Os jovens não elaboram ritos que
marcam uma ruptura, simplesmente as abandonam paulatinamente, alguns
enfrentando mais, e outros menos, obstáculos impostos pelo grupo. Acontece,
de modo não raro, deixarem as gangues e encontrarem noutras atividades
signos de outros sentidos relativos a “ser jovem”, como no caso daqueles que
aderem ao Hip Hop, a grupos jovens de igrejas ou a alguma modalidade
esportiva (ver capítulo 6).
Do que registrei de conversas e de entrevistas com jovens integrantes ou
não de gangues, procurei repetir pedaços de entendimento recolhidos deles
próprios sobre as motivações que levam jovens a formarem, integrarem e
abandonarem uma gangue. Embora esse entendimento se mostre muitas
vezes contraditório, é certo que a maneira como descrevem tais situações
revela valores culturais importantes, como honra masculina, solidariedade
grupal e determinadas condutas morais. Isso fica ainda mais claro quando
mergulhamos um pouco mais fundo na tentativa de compreensão das
dinâmicas das gangues.
5.4. Ser líder de uma gangue: “comandando as amizades”
As gangues, desde o momento da sua formação, expressam um
fenômeno de liderança: baseiam-se na capacidade de comando de um líder.
Desse modo, uma das condições para ingressar numa gangue é exatamente
possuir a qualidade de líder ou ser capaz de obedecer a um. Para tornar-se
líder de uma gangue, é necessário que o jovem se notabilize pela “atitude” e
coragem – “Bateu ou atirou em alguém” –, pela malandragem, e também que já
156
tenha demonstrado sua virilidade, dado provas de ser uma pessoa solidária,
capaz de identificar, nas situações mais imprevisíveis, aquilo que representa
ameaça ao grupo e garantir sua proteção, assumindo a linha de frente em
situações de risco. A maioria dos informantes tende a definir o líder como uma
pessoa com grande habilidade para particularmente administrar situações de
brigas e discussões ou ações de assaltos e roubo.
O líder sempre procura colocar em relevo sua capacidade de ser
agressivo, de não temer a morte, e é escolhido entre os que demonstram ter
um histórico delitivo importante, entre os que se destacam pelas “aprontações”: “O
que estiver agindo mais, é ele. Igual a jogador de seleção: se tiver igual ao Dunga, se for
esforçado. O cara tem que ser muito doido, ele vai à luta”.
Kroak, líder de uma gangue de Samambaia, explica que seu papel é o de
comandar o grupo, “as amizades”, organizando a participação de todos,
marcando as reuniões, conseguindo armas, recolhendo fundos para a compra
de spray, bebidas, drogas e outras necessidades dos membros. Convocar o
grupo para brigas em situação de conflitos com grupos rivais, estar presente
em todas as brigas, proteger o grupo, “levantar a moral da galera”, “não deixar a galera
cair”
, são também, segundo seu relato, atribuições do líder.
Na visão dos jovens integrantes de gangues, o líder é considerado um
“pai” que não deixa acontecer nada de mau e de errado com seu grupo. No
caso das gangues de pichadores, por exemplo, é o líder quem escolhe e
decide quais os locais viáveis e possíveis de serem pichados com segurança.
O líder de uma gangue é sempre respeitado e admirado. Ele está
freqüentemente acompanhado de amigos –
“tu vai prum lado vai neguinho atrás” –,
vive cercado de mulheres –
“rola altas donas” –, como também de bajuladores, os
chamados “paga-pau”.
Observa-se que o papel de liderança não é imposto: ele é obtido na rua e
se inscreve num processo de reconhecimento e delegação de autoridade a
quem demonstra características tradicionais de carisma
14
. Por outro lado, essa
14
Como afirma Mauro Cerbino em seu estudo sobre as pandilhas (bandos juvenis) nas cidades
de Quito, Guayaquil e Cuenca no Equador, “trata-se de algo parecido com a assunção de uma
posição hegemônica que no sentido gramsciano se baseia no consenso e não na imposição.
Nesse sentido, as pandillas ou as naciones diferem das formações militares nas quais a
autoridade está dada pela carreira, pela automática ascensão” (Cerbino, 2006: 53).
157
liderança não poderia existir se de alguma forma não fosse legitimada pelos
que estão fora do grupo. As demais gangues reconhecem um líder por meio da
identificação dos atributos exigidos ao líder de seu próprio grupo. A
experiência, a popularidade na área, a capacidade de mediação, a autonomia
para escolher e tomar decisões, o poder de mobilização e aglutinação, a
coragem de se expor e a disposição para a luta em defesa de interesses
coletivos fazem parte desses atributos.
Contudo, possuir um alto grau de reconhecimento e de conhecimento
públicos carrega implicações. A necessidade de “ter destaque”, de mobilizar
olhares para si, inerente a este papel, revela duas facetas importantes e, ao
mesmo tempo, paradoxais da liderança: se, por um lado, o prestígio e a fama
são fundamentais e indispensáveis para o líder gozar de reputação entre os
seus pares, por outro, um líder, não importa de que tipo de gangue, é sempre
muito visado pelos de fora do grupo e, quanto mais famoso se torna, mais corre
risco de vida porque “tão marcados”. Tephon conta que foi exatamente por esta
razão que recusou a assumir a liderança de sua gangue no tempo em que
ainda não era cantor de rap e participava desse tipo de agrupamento juvenil:
Quando o cara está com muito destaque a morte dele está chegando. Por isso
eu não cheguei a assumir a .... É o Campo da Esperança, a cadeira de rodas
ou o Papudão
15
.
O preço da fama
“Eu estou sofrendo agora. Quando a gente vira líder, parece que é bom, mas não é não.
[Porque] fica famoso demais. Todo mundo conhece. Se um de minha gangue mexe com uma
pessoa lá do outro lado, só caem em cima de mim. Não acontece nada com ele. Um dia
desses uns colegas meus lá da vinte e quatro deram uns tiros, aí viram os colegas correndo e
‘Ah! Colega do Isac, vamos atrás dele’. Aí me pegaram. Só que os colegas meus ajudaram
também, botamos eles pra sair do ar, aí não fizeram nada comigo. É ruim pra caramba, tá
marcado, é ruim. [...] Ainda mais que eu já fiz muita coisa, todo mundo sabe. Todo mundo
conhece, qualquer rua que eu passar todo mundo sabe. Se pagar um ‘mijão’ ali, todo mundo
fala: ‘Isac mijou bem ali’. Se eu chegar e coçar a cabeça todo mundo fala. Já está espalhado
na cidade todinha. Não pode fazer nada, nem um movimento. Vai pro baile, vai pro trio-elétrico:
‘é, ele estava lá’”.
(Trecho de entrevista com um líder de gangue da Ceilândia,19 anos ).
15
Campo da Esperança é o cemitério do Plano Piloto de Brasília e a Papuda é a penitenciária
do Distrito Federal.
158
A escolha do líder é normalmente feita de modo consensual pelo grupo,
mas, na indicação de um substituto, a palavra do líder atual tem grande peso.
Dificilmente ela é questionada por outro aspirante, a não ser que este possa
desafiá-lo medindo-se no mesmo plano de qualidades do indicado. Neste caso,
o que ocorre é um enfrentamento ritual entre os aspirantes durante certo
período, até que o grupo possa decidir quem é o novo líder.
As mudanças de liderança se dão por diversas razões, mas o fato de
completar 18 anos é determinante na decisão de abandonar a liderança. O
indivíduo, ultrapassando esta idade, não pode contar mais com a proteção do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A partir dos 18 anos, se for
denunciado e apanhado pela polícia, corre o risco de ser obrigado a responder
por formação de quadrilha: “[...] aí esse que ficou de maior já não quis mais, aí foi
passando até chegar em mim”; “Tem um certo tempo para ser líder, não pode ser de maior”
16
.
Assumindo e deixando a liderança
“O cara que fez ela [a gangue] saiu e botou outro líder no seu lugar. Aí esse outro líder,
que era da gente, um dia que a gente foi curtir lá no Chaparral, os caras da [outra gangue] [...]
pegou e deu um tiro nele – um centímetro da coluna. Aí, pegou e saiu, né? Aí ele falou: ‘aí,
Kroak, tu vai ficar sendo líder. Toma de conta da galera que eu vou dar um tempo, eu não vou
ficar aqui mais não’. Aí fez a reunião e o líder de antes foi e me elegeu. Aí eu fiquei sendo o
líder. Eu era o cara que ele confiava mais. Mas é o tipo da coisa: você não pode dar de mole
pra ninguém. Neguinho pega e entra numas com bicho de tua galera, tu não vai pegar e deixa
o cara sozinho, tem que ir atrás do cara deles também. Rola altas ondas aí. Já tomei o quê?
Tomei foi cabeçada, tapas, murros... É o tipo da coisa, tá nós aqui no frevo, há um pepino pra
um, a gente não vai deixar o cara sozinho. Se for pra morrer, morre os dois de uma vez. [...] Se
rola uma parada, tipo um cara da galera fala: ‘aí, tal neguinho entrou numa’, então o líder tem
que ver o lado do cara, ele vai atrás. E quando uma gangue não combina com outra rola de
tudo [...] O líder é assim, tipo teu pai. E um pai não vai deixar acontecer nada de errado
contigo. Se acontece alguma coisa, ele vai atrás também.
[...] Agora que eu estou de maior tenho que escolher um substituto. Tenho que passar
pra outro porque se você, se algum integrante da sua gangue for preso e a polícia forçar até
ele te entregar, aí se você for de maior você vai preso, ele fica solto. Aí é formação de
quadrilha. [...] Eu que escolho. Eu vou fazer a reunião e na hora lá eu vou decidir quem é que
vai ser o líder. [...] Eu não vou sair da gangue, eu vou ficar nela, mas eu não vou pichar mais.
Porque você sair da liderança pra ficar só pichando é paia, não tem como mandar em alguém.
Você vai ser mandado por outro líder, você não vai gostar. Você fica como se fosse só entre
amigos mesmo, tipo colega. Não é aquele negócio: saí não vou mais aparecer, não é assim.
Fica sendo amigo ainda”.
(Trecho de entrevista com o líder de uma gangue de Samambaia)
16
A proteção aos menores de 18 anos garantida pelo ECA e suas implicações será tema
abordado no capítulo VII.
159
Quando se abandona a liderança – seja pela maioridade, pelo casamento,
ou porque “quietou” – a pessoa permanece próxima dos antigos companheiros.
Mesmo os mais velhos, casados, com filhos, continuam visitando os amigos da
gangue: “curte ainda com nós”. Contudo, como menciona um líder, a aproximação
com o grupo é diferente para os que um dia chegaram a assumir sua liderança,
pois dificilmente o indivíduo admite a mudança de status dentro de uma ordem
hierárquica, ou seja, passar de comandante a comandado.
5.5. O que fazem as Gangues
Participar de uma gangue significa integrar um grupo que partilha de uma
sociabilidade específica. Os jovens das gangues costumam reunir-se para
discutir, para comprar spray, armas e outras necessidades, para pichar e para
brigar com outras galeras. Os integrantes também se encontram para roubar
carros, peças e acessórios de automóveis, postos de gasolina, padarias,
ônibus, caminhões de bebidas, loterias, farmácias, mercadinhos, sorveterias,
bares, lanchonetes, residências (“fazer caxanga”) e escolas. Numa gangue, diz o
integrante de uma, “rola de tudo, tem uns do lado do bem, tem uns do lado do mal, uns em
cima do muro: tem skeitista, pichador, ladrões, traficantes, assassinos e drogados”.
A pichação atrai e fascina principalmente os adolescentes mais novos,
que insistem em deixar registradas suas marcas nas paredes e muros da
cidade. Ela é vista por esses jovens como uma alternativa ao não se ter nada
para fazer, é considerada uma diversão, uma aventura cheia de emoções
porque implica em correr perigo, seja fugindo da polícia, seja escapando do
proprietário do imóvel no qual se pichou, seja arriscando a se deparar com
gangues de pichadores rivais. Como explica um adolescente:
O negócio é o perigo. O negócio é ver só o farol de carro assim de longe, você
só jogar a lata longe, assim dentro de uma casa, e correr. Aí você sai do lado
dela e espera os homi [polícia], aí você tem que pular o muro da casa da
mulher pra pegar a lata. Aí quando tem um cachorro lá dentro, aí tem que
pegar a lata e ainda sair correndo do cachorro. Aí a adrenalina é maior ainda.
Pichar é percebido como um ato de coragem e ousadia, no qual se
desprende uma dose elevada de adrenalina. Isac, explicando-me os motivos
160
que o levam a pichar, fala das sensações que experimenta, comparando-as
com as provocadas pelas drogas:
Eu picho, por um lado, porque sou viciado, e também porque gosto de pichar.
Acho muito doido. É massa demais. É igual droga: depois que experimenta, se
você gosta, você não quer parar mais. Para soltar é ruim. A adrenalina, na hora
que você está pichando, a adrenalina é muito alta. [...] Os lugares mais difícil a
adrenalina é maior, por isso os monumentos são os lugares mais cobiçados
pra pichar. Eu ainda vou pichar aquela Catedral e o Templo da Boa Vontade.
Ser conhecido e famoso – “ganhar destaque” – pela pichação é motivo de
orgulho. É precisamente a vivência do risco nela implicado que dá aos
pichadores a oportunidade de alcançar respeito e reconhecimento. O risco
atrai, pois permite aos jovens medirem-se, experimentarem seus próprios
limites e os de seu entorno: “correr risco [...] dá também ao adolescente a
ocasião de verificar seu poder sobre o seu corpo e sobre as coisas” (Turz,
Courtecuisse, Jeanneret & Sand,1986: 85). Quando menos esta verificação é
organizada e canalizada pelos adultos, mais os jovens têm a tendência a
adotar condutas de risco exageradas e extravagantes
17
.
17
Vale dizer que o conceito de risco varia segundo a cultura do meio no qual está inscrito,
ponto para o qual chama a atenção Pierre Lascoumes: “não existe risco em si, o que existe são
maneiras sempre específicas histórica e culturalmente de apreender as situações de incerteza”
(Lascoumes, 1993: 23). A avaliação do risco pelos indivíduos varia segundo o sexo, idade,
categoria social, referências culturais. Além disso, ainda segundo Lascoumes, o “risco” se
distingue do “perigo” ou da “ameaça”. O perigo está presente, o mesmo precede por muito
pouco a catástrofe, enquanto que o risco é uma eventualidade que podemos prevenir e que
também podemos ignorar. Mas, ao mesmo tempo, o risco é motor e permite o mundo avançar,
pois toda a experiência nova implica em correr riscos, seja a experiência de uma criança que
começa a andar ou a da humanidade que experimenta maneiras novas de viver. O risco,
portanto, possui duas conotações divergentes: ora positiva, quando é motor da vida e do
progresso; ora negativa, quando está ligado à demanda geral de segurança e ao consenso
sobre os perigos reconhecidos numa sociedade em dado momento. O corpo social oscila entre
a glorificação do risco, própria aos valores adolescentes, e a sua erradicação dentro da ótica
de segurança. Para a problemática geral do risco, ver também Le Breton (1991;1993). O autor
argumenta que a busca voluntária do risco é uma importante característica da atual sociedade
de consumo. O autor fala de uma “mitologia” nascente da aventura que é simultânea à
crescente busca da segurança. Por trás do risco de perder a vida, existe uma tentativa de
legitimar ou simplesmente experimentar a existência. O risco, ao aproximar e depois desviar o
indivíduo da morte, torna-se uma fonte de valor e significação na sociedade ocidental
individualista, que parece disso precisar. Confrontar simbolicamente a morte produz uma
referência de existência e uma sensação de potência, propicia a sensação de subjugar a
morte, o limite. Os esportes radicais, as aventuras, as explorações de ambientes selvagens,
essas “conquistas do inútil”, seriam exemplos da busca de limites envolvida na exposição ao
risco. Para especificamente a problemática do risco e sua relação com a juventude ver os
trabalhos de Esterle-Hedibel (1997) e Assailly (1992).
161
Na opinião de alguns jovens, a imprensa acaba por estimular a formação
de gangues de pichadores, exatamente por reservar ao tema demasiado
espaço nos jornais. Ter o nome ou o local pichado publicado na imprensa
alimenta ainda mais o orgulho e a vaidade dos pichadores: “Pega aquela
reportagem e põe numa pasta pra mostrar pros amigos”.
A pichacão é percebida como um grande desafio, uma disputa na qual um
pichador tem que mostrar ser melhor do que o outro. Aquele que picha em
lugares difíceis, altos, praticamente inacessíveis e nunca antes pichados “desfila
que nem modelo, todo mundo fala, todo mundo cumprimenta, pega na mão. A pessoa é mais
respeitada se ela consegue fazer uma pichação dessa. É uma prova de sua atitude, de sua
coragem”.
A necessidade de “ter destaque” aos poucos deu às pichações um novo
componente. Os vestígios deixados na cidade tornaram-se cada vez mais
emblemáticos, sendo que sua autoria só pode ser identificada pelos
enturmados. O “pichar embolado” constitui-se exatamente nessa nova forma
de registro, decodificável somente pelas gangues de pichadores:
Se eu for pichar lá no Palácio do Buriti, eu vou fazer com o meu nome
embolada, só quem pratica mesmo entende. Quem nunca viu, não vai
entender nada. [...] a maioria das vezes a pessoa dá mais valor na embolada
porque a pessoa que sabe pichar embolada é porque já tem tempo que picha e
é esperto, difícil ser preso.
Procurando o “destaque”
“É massa, porque tipo você picha em Taguatinga, aí um colega passa lá e fica sabendo
que tu é o nome que pichou lá e fica ‘pô aquele moleque alí é muito doido não sei o que’, pega
fama. Aí todo mundo me conhece aqui assim”.
“Tem que pichar alto. É assim: uma época, quando eu pichei o Riachuelo, em
Taguatinga, perto da 12° DP, eu escrevi: ‘acima do X só Deus’. Aí o cara subiu lá e colocou:
‘Eu sou Deus’, assinado: tal. O cara foi melhor do que eu”.
(Trecho de entrevistas com integrantes de gangues de pichadores. Ceilândia e
Samambaia)
Não somente para pichar reúnem-se as gangues. Os encontros têm
também outras finalidades e assaltar e roubar aparecem em meio a elas. Os
roubos e assaltos são praticados em pequenos grupos, no máximo três ou
quatro, mas o mais corrente é haver uma parceria fixa. Principalmente nos
162
assaltos nos quais sabem que não vão arrecadar muito dinheiro, preferem não
sair em grandes grupos: “Os roubos são feitos até três senão o dinheiro não dá. Rouba,
vem trinta e cinco reais, dividir pra cinco?”
. Há também situações em que a iniciativa é
individual, quando, por exemplo, os jovens estão “quebrados” (sem dinheiro
nenhum) ou quando necessitam de suprir alguma de sua necessidades:
A gente está quebrado, quer ir para um baile, a gente assalta uma padaria,
‘ganha’ uma bicicleta.
Tá acabando a chinela, tá velha, aí quando acabou vamos lá de novo. Vai
buscar é de quem tem, de quem pode comprar outra. Nós não pode, aí tem
que buscar outra [...] chega lá pede: “deixa eu ver a sua Kenner [sandália
fabricada pela Redley]”
Os roubos podem ainda ser feitos a título de encomendas: “Falo pros
malandros lá da quadra: ‘arruma lá pra mim’. Se eu pedir, eles me dão”.
Alguns jovens
dizem que somente roubam pequenos objetos tais como relógios, bonés,
carteiras, bicicletas em ocasiões como shows, aglomerações como a
Micarecandanga
18
favorecem estes furtos, que normalmente não tem hora nem
lugar. Zed, integrante de um grupo de rap, compara a Micarecandanga à um
shopping, onde os jovens vão com o objetivo explícito de roubar:
A maior diversão é quando tem Micarecandanga. Pra eles é um shopping. Eles
vão e quando eles voltam, tem cara com oito relógios, tem uns que vão
descalços e voltam com tênis zerado, com bermuda, blusa, dinheiro. Vai só pra
rupiá [roubar] mesmo.
Entretanto, entre os informantes, há aqueles que, depois de uma trajetória
de vida marcada por inúmeros crimes e delitos, acreditam não valer a pena
correr o risco de serem presos por cometerem pequenos furtos. O melhor, nas
suas visões, é partir para “coisas maiores” porque, se forem apanhados, serão
castigados da mesma maneira. Além disso, como diz Kroak, acostumado a
roubar carros para desmonte, quem rouba pouco é mal vistos entre os
companheiros de prisão:
18
Carnaval fora de época inventado por baianos que reúne uma grande aglomeração de
pessoas, principalmente jovens.
163
Não vale a pena fazer fita por causa de dez contos. Se eu for roubar eu roubo
logo um carro, se eu não rodar aí com o dinheiro do carro eu pego um revólver
muito melhor. Bicicleta é melhor não pegar. Se eu rodar também eu não vou
cair por qualquer besteira. Se você está dentro de uma cela por qualquer
besteira, você apanha mais lá dentro do que dos policiais.
Dentro das gangues, há uma especialização quanto aos roubos e
assaltos. Uns roubam mais carros, casas, outros assaltam mais
supermercados, outros padarias, caminhões de bebida, ônibus, bancos
19
. O
dinheiro arrecadado em roubos e assaltos é, de modo geral, usado na compra
de roupas, tênis, bebidas, drogas, armas, para pagar algum lazer, como idas a
shows. Vale ressaltar que esse dinheiro é sempre revertido em favor do
indivíduo ou do grupo que praticou a ação e não é obrigatoriamente entregue à
gangue. Algumas vezes, quando os lucros dos roubos e assaltos são elevados,
o dinheiro é usado na compra de um volume maior de drogas, o que possibilita
a abertura de uma “boca”
20
.
A violência pode ou não ser usada contra as vítimas dos roubos e
assaltos. Alguns jovens dizem que somente praticam assaltos em grupo, pois
“um segura e os outros batem. Bate mesmo pra caramba, aí se o cara for muito duro, não
querer dá, tira à força, bate legal, sem dó”.
Outros dizem que, a princípio, quando se
sai para assaltar, não há a intenção de fazer uso da força ou de matar. Uma
arma ou uma ameaça bastaria para imobilizar a vítima. Quando esta reage, no
entanto, a situação inverte-se e alguns jovens confessam serem “obrigados” a
usar de violência:
Se você falar alguma coisa, começar a espernear, a primeira coisa que você
vai levar vai ser uma cabada [pancada com o cabo da arma] na sua cara pra
você ficar caladinho. Em último caso é sentar o dedo em você [...] . Tem gente
que é escandalosa, não consegue controlar os seus sentimentos e acaba ela
mesma, levando a morte dela mesma.
Os roubos e assaltos são, em geral, pautados por determinadas regras,
como não estuprar, não roubar velhos, não roubar pai de família, trabalhador,
parentes próximos. Assaltar e roubar dentro da própria área é também
19
A descrição feita pelos jovens dos crimes e delitos mais comumente por eles praticados
coincide com a da polícia.
20
Ponto de venda de drogas.
164
considerada uma falta bastante grave: “Assaltar aqui em Samambaia não, vou assaltar
em Taguatinga, nesses lugares que só tem bodinho, não vou roubar gente daqui”.
O sentimento de classe e de identificação com o pobre acaba sinalizando
as zonas que se devem preservar intactas das práticas transgressoras e
delinqüentes dos integrantes das gangues. Como diz Glória Diógenes, “é como
se fosse possível designar um termo relativo a uma prática ‘consentida’ de
violência e os limites que não podem ser transpostos no campo dessas
práticas, construindo assim referenciais compactuados entre seus
participantes” (Diógenes, 1998: 173). Quebrar esses princípios significa romper
com um determinado código de honra e constitui uma ameaça à credibilidade
em relação ao grupo.
Principalmente entre os adolescentes existe uma lógica pautada por uma
ética um pouco “robinwoodiana”, tirar dos ricos para dar e distribuir entre os
pobres. Deve-se, portanto, roubar de preferência “bodinho” ou pessoas que
têm dinheiro.
Código básico de conduta
“O que adianta roubar um pai de família, a gente pensa também nos pais. Como vai
chegar em casa e ver que o pai foi assaltado? Aquele dinheiro que meu pai recebe não dá pra
nada, nós vai assaltar um pai de família ainda”?
“Bodinho tem dinheiro, ganha mesada. Nós não tem mesada porra nenhuma”.
“Roubar de quem tem. A gente tem que roubar de quem tem, quem tem condições pra
comprar outro, substituir”.
(Trecho de entrevistas com integrantes de gangues. Ceilândia, Samambaia e Planaltina)
Embora haja toda uma série de regras, as mesmas são as vezes
transgredidas, ocorrendo furtos de bonés, sandálias, bicicletas e outros
pequenos objetos na porta das escolas onde os jovens estudam e na área em
que moram. Para não serem reconhecidos,
“a gente baixa o boné”, fala
debochadamente um adolescente.
Em Planaltina, também fugindo às normas básicas de conduta, entrevistei
um grupo de jovens no qual todos os informantes afirmaram estarem
165
habituados a assaltar na própria área. Suas vítimas são principalmente
trabalhadores assalariados, pois conhecem o dia do pagamento e nem os que
recebem bolsa-escola
21
são poupados: “Aí a gente sabe que naquele dia eles vai ter
dinheiro”.
5.6. Rivalidades e embates entre os grupos: a lógica da guerra não tem
sutilezas
Alguns jovens, fazendo ou não parte de gangues, dizem temê-las em
razão, principalmente, da violência por elas gerada e das rivalidades existentes
entre esses grupos. Utilizam-se de várias estratégias para se protegerem: uns
ficam em casa, outros evitam reunir-se com amigos em lugares públicos, e há
aqueles que andam armados. Os que não se privam de sair de casa preferem
andar sempre acompanhados. O número ideal de pessoas que compõem
esses grupos de saídas é de três ou quatro. Ultrapassar esse número significa
chamar a atenção da polícia: “De muito é ruim por causa da polícia, porque quando eles
vêem muitos, você pode estar se divertindo, eles já querem te bater”.
O perigo de andar
sozinho são as provocações e os assaltos e, portanto, sair em galera é sempre
mais seguro:
Você sozinho tem mais medo, você sempre leva alguém com você, você com
outra pessoa se garante.
Sozinho você não tem atitude, não tem coragem. Agora, você com os outros,
parece que você encarna um trem do capeta que pode com qualquer um. Mas
você sozinho não tem coragem de fazer [...]. Quando tô sozinho, pra mim é
como se eu fosse um só. Não mexo com ninguém. Não olho pra ninguém, não
faço nada.
O conflito entre grupos, como foi anteriormente mencionado, é um dos
motivos que levam os integrantes das gangues a se reunirem. Quando o
conflito manifesta-se, procuram se munir com um maior número de armas,
comprando-as ou roubando-as, e escolhem aqueles que participarão da briga.
21
Programa de renda mínima do Governo que atende a população mais pobre do Distrito
Federal.
166
Os confrontos armados normalmente têm lugar na rua, nos bares, na porta das
escolas:
Os menino tá lá na esquina, aí passa o cara na maior velocidade, começa a
trocar tiro, aí o menino da minha rua começa a trocar tiro com eles. Aí eles já
passam correndo pra atirar, aí os meninos já correm, pegam os ferros deles e
começa a troca de tiro.
Os enfrentamentos corporais também acontecem na rua, mas com mais
freqüência ocorrem em ambientes fechados, tais como boates, shows, festas e
shoppings, onde pode haver controle do porte de armas.
As razões para os embates entre gangues/galeras, segundo os
informantes, são inúmeras: pode ser por um simples “olhar que o outro não gosta”,
um esbarrão, uma rivalidade entre as turmas, atritos antigos, uma vingança, um
desafio, uma provocação, um deboche, não gostar da outra galera, não gostar
de “noiado” (viciado em merla), não gostar de pichador, de pessoas que “se
amostram”
, que querem “botar banca”, por invasão de território e mulheres. As
brigas se dão também por causa de um boné, de uma chinela, de armas,
drogas e “bocas de fumo”. Pichar em cima de outra pichação ou a defesa de
uma assinatura pode levar a conflitos extremos: “Mesmo nome não pode ter. Aí os
dois têm que rachar, pra ver quem fica com o nome. Quem for mais doido, quem ganhar a
briga, fica com o nome”
. A revolta, o gostar de buscar encrenca e de trocar tiros, o
querer ser “machão” e “valentão” são também razões apontadas para a existência
da eterna briga entre gangue/galeras.
As gangues possuem áreas de atuação e ascendência e delimitam seu
espaço territorial. A defesa do seu território, da sua área, da sua quadra, é um
dos maiores motivos do conflito entre as gangues – “É briga entre quadras. Eles vem
aqui mete bala, nós vai lá e mete bala”; “cada uma quer ser a melhor, a mais forte e a mais
falada entre as quadras”
– e existem regras claras que limitam o acesso de
membros de gangues em determinados locais. A lógica da divisão territorial
estabelecida nem sempre é de fácil compreensão para quem olha de fora, mas
os jovens conhecem exatamente onde podem, ou não, circular:
Pode-se dizer que é demarcado. Vamos colocar 114 e 314, vamos supor que a
114 tem rixa com a 314, sendo que a 114 é de um lado da pista e a 314 de
outro. Isso não pode ultrapassar. Por que? Porque senão dá briga.
167
Quando os territórios são invadidos, o grupo invasor compõe-se
inicialmente de cinco ou seis elementos. O restante da gangue se junta na “hora
que está metendo bala”
. A tática é pegar o inimigo de surpresa e a ordem de atirar
é dada pelo líder que dá o primeiro tiro para o alto. Depois disso, todos
começam a atirar – “Pega no braço, perna, barriga”. O invadido, por sua vez,
costuma responder à invasão também com bala:
Vem de lá de outra quadra pra folgar na nossa quadra, nós vai deixar quieto?
Nós vai deixar mandar na nossa quadra? Isso é um desaforo. Eles nem moram
na quadra, sai lá da quadra deles pra ir na da gente, pra querer mandar [...].
Para atravessar ou passar por uma área “inimiga” é importante ter
conhecimento de um código fundamental de convívio entre os jovens, qual
seja, não se pode olhar demais ou “encarar”: “Encarar tá pedindo. Cara que tu nem
conhece!”
. Um olhar enviesado, o “encarar”, convocando do olho seu “potencial
vibrátil” (Rolnik, 1997), toca o rosto de maneira metonímica e alcança o sujeito
em sua totalidade (Le Breton, 2002), exigindo a defesa porque uma pessoa
para ser respeitada e se impor tem que mostrar coragem, “atitude”, e aceitar o
desafio. O jogo de olhar, ou não olhar, confirma o pertencimento a um grupo ou
o reconhecimento obtido nele. “Encara-se” exatamente quem se quer desafiar
ou que merece ser olhado, porque é considerado inferior ou inferiorizável.
Desse modo, olhar configura-se numa das mais expressivas formas de
hostilidade juvenil. Freqüentemente parece ser ele que se encarrega de
desencadear as disputas e os atos violentos: o simples encarar pode terminar
numa
“guerra”, onde funciona o “efeito dominó”, isto é, “uns matando aos outros”
22
.
22
Mauro Cerbino, refletindo sobre os sentidos e valorações do olhar entre jovens e entre
pandilleros, escreve: “O olhar faz intervir uma suspensão do sentido como interrogação do
sujeito, uma desorientação: é como se de repente os sujeitos, objetos de ‘certos’ olhares, se
descobrissem vulneráveis e passassem a viver uma situação insuportável porque não logram
subsumir esse vazio de sentido com um entendimento ou uma compreensão que não seja a de
uma sanção ou juízo negativo (a imagem da inferiorização ou a depreciação, por exemplo) que
se desprende desse olhar em direção a eles. Frente à ‘incompreensão’ produzida por esse
vazio se passa ao ato, ao ato violento que tenta compensar essa falta. [...]. O ato violento não é
apenas conseqüência de uma incompreensão, mas se produz pela impossibilidade de construir
uma mediação simbólica: a possibilidade de apalavrar esse olhar, de classificá-lo ou atribuir-lhe
um sentido suportável ou conveniente. Ao contrário, o que se gera é que ‘esse’ olhar produz
uma paralisia na capacidade subjetiva de apalavramento, se trata de um olhar que produz
ressentimento. Além disso, isso se dá na medida em que cada olhar fenomênico (na rua, entre
jovens e entre pandilleros) faz ‘recordar’ ou estabelece uma conexão imaginária complexa com
esse outro olhar que a sociedade dirige constantemente em direção a certos sujeitos e entre
168
O “encarar”: um olhar que pode matar
“Você vai passando na rua, cabeça baixa, tem alguma pessoa te encarando, você olha,
a pessoa já vem com ignorância pra você. Um amigo meu subindo pra escola olhou, o moleque
já foi perguntando ‘tô cagado’?”.
“Se você estiver de cabeça baixa eles vão te achar comédia. Encara até ele desviar o
olhar dele”.
“Se olhar ‘paga sapo’: ‘perdeu alguém parecido? Tem algum colar de pinto aqui
pendurado? Tá rindo de que? Tu é filho de paraquedista pra tá se abrindo?’. Se eu olhasse pra
você dez segundos, meu irmão, você já estava tipo assim como se eu estivesse atirando em
você: ‘tá me encarando por quê?’”.
(Trecho de entrevistas com integrantes de gangues. Ceilândia, Samambaia e Planaltina)
Nas situações de desafio e confronto, alguns informantes afirmam que a
diferença entre o Plano Piloto e as Cidades Satélites é que, como resposta às
situações de conflito, os jovens do Plano usam a força física, enquanto os da
periferia fazem também uso de armas de fogo, substituindo muitas vezes as
brigas de braço pelo dedo no gatilho.
Com o dedo no gatilho
“Aqui você olha de cara feia pra um cara, ele vem e te queima mesmo, não tá nem aí. No
Plano não existe isso, lá é porrada”.
“Não tem dessa de você trocar porrada com ninguém não. É sentar o dedo mesmo. O
cara não perde mais tempo não, o pessoal não tem porte físico, até mesmo pelo consumo de
drogas”.
“Hoje a porrada só existe assim: bum...bum...O músculo só tá no dedo, só na arma”.
eles, aos juvenis: o olhar do grande outro, que julga, desaprova, estigmatiza e faz sentir
inferior. Um olhar que parece se apresenta como sancionador de posições sociais frente às
quais, às vezes, não se pode responder ou se responde transgressiva ou violentamente. O
olhar do discurso dominante, os olhares inquisidores, os olhares ‘normais’, o olhar do Outro e a
do igual a mim é o que provoca no jovem ou na jovem a reprodução desse jogo de olhares, um
jogo que se torna impotente simbolicamente e que gera conflitos que, ainda que expressos às
vezes através de fórmulas lingüísticas ou palavras rituais, não logram cumprir com a
ritualização da violência e apontam diretamente para a agressão física”. (Cerbino, 2006: 39-
40).
169
“Aqui nesse lugar não existe briga, só existe tiro. Neguinho pode ser do mesmo corpo,
isso não interessa, pode ser da mesma altura. Só dele se estranhar já dá tiro. É como se fosse
um duelo quando eles se encontram. É um duelo”.
(Trecho de entrevistas com integrantes de gangues. Ceilândia, Samambaia e Planaltina)
Os jovens referem-se às brigas e conflitos entre gangues como um círculo
vicioso, uma “guerra sem fim”, na qual muitos “chegados” já morreram e da qual só
escapam os mais espertos: “
Eles vêm pra cá e estoura a gente tudo, aí nós vai tudo lá, e
aí só vê a morte. Só morto, só vê falando nisso”; “Eles vem aqui caçar encrenca. Aí outros
daqui vai lá, mete bala e volta, aí os de lá mete tiro aqui” .
Nem mesmo no caso da prisão de membros de gangues que têm
rivalidades com outras gangues o combate é interrompido: “sempre tem um irmão,
tem um amigo do cara que fica”
. Os “saidões”
23
do CAJE constituem-se muitas
vezes em uma oportunidade para se retomar o velho conflito e vingar-se: “Quem
apanha não esquece, e quem bate esquece”
. Nessa guerra os familiares devem ser
poupados, muito embora isso nem sempre ocorra.
Os tiroteios que acontecem a “quase toda hora”, as guerras, os atritos, as
brigas entre os vários grupos fazem com que seja “fácil morrer sem mais nem
menos”
e chama a atenção para a relação que os jovens têm com a morte.
Muitos deles dizem não temê-la, encarando-a como um acaso, uma fatalidade
que pode ocorrer a qualquer momento, não importando em que idade e como
um risco sempre presente que eles não controlam, a única certeza é a
incerteza. Alguns relatos evidenciam uma sensação de vazio, da perda de
sentido da vida:
“Vou ter que morrer um dia, então esse cara só veio adiantar a minha
morte, então a minha morte chegou, ele veio prá representar ela”
.
Num grupo de oito jovens entrevistados em Planaltina, seis dentre eles,
na faixa etária entre 14 e 16 anos, diziam-se jurados de morte. Explicaram-me
que a morte é algo inevitável, que tem hora certa e chega para todos.
Afirmaram que já tinham vivido muito e intensamente a vida –
“Se for pra gente
morrer, morre, já passou tanta coisa”
– e que, na verdade, só temiam morrer com
sofrimento, de maneira dolorosa, como, por exemplo, levando uma facada.
23
Saídas do CAJE nos finais de semana autorizadas pela direção da instituição.
170
A morte violenta é um fato na atividade das gangues, o que faz com que,
além de conviver com ela, dá-se à mesma uma valoração significativa.
Para
alguns jovens não apenas morrer, mas também matar é visto como natural,
como um ato de defesa, ligado à sobrevivência, e para o qual a pessoa tem
que ter coragem. O Ato de matar uma pessoa não é julgado a priori como um
crime, segundo a concepção do Estado brasileiro de justiça
24
. Matar, ou afirmar
tê-lo feito, outorga prestígio e reconhecimento social no interior do mundo das
gangues. Para ser acreditado é necessário mostrar que se é capaz de matar,
ou seja, deve-se traduzir o discurso da coragem e valentia numa prática
violenta. Em certas ocasiões é preciso matar para não morrer e o ato de matar
pode trazer fama,
dar moral” aos jovens.
O ato de matar
“Não existe esse negócio de atirar só pra assustar não. Porque você faz um negócio com
o cara e deixe ele bonzinho: te pega e te arrebenta sozinho. Tem um lema: sozinho ninguém
tem dó de mim, porque eu vou ter dó de alguém”?
“É ruim só o primeiro, o primeiro você não sabe como vai fazer, como vai ficar. Depois
do primeiro você já está matando”.
“Aqui é fácil demais pra morrer. E pra matar também. Eu não acho que matei nunca não.
Sei lá. Nunca vi. [...] eu já acertei, mas não sei se morreu. Acertei mesmo sem dó. Não caiu.
Pra mim não morreu, só morre se cai na hora.
“É matar ou morrer, tipo assim, a gente tem que se virar de qualquer jeito. Ou você é o
caçador ou você é a caça. Um dia você caça, um dia ele te caça. É a lei do caçador, [...] a
gente não pode fazer nada. O mais forte fica”.
“Você tá olhando. O ordinário tá olhando numa boa, e eu tô todo drogado com o ferro na
mão. Pois é, se mata sem mais nem menos”.
(Trecho de entrevistas com integrantes de gangues. Ceilândia, Samambaia e Planaltina)
24
Nesse ponto, retomo novamente a pesquisa de Alba Zaluar (1985) na Cidade de Deus. O ato
de matar entre os jovens dali também não é julgado a priori como crime, e a avaliação moral do
ato depende, como em Brasília, de quem foi morto e das circunstâncias em que o fato ocorreu.
171
5.7. A lei do mais valente, ou a lei do mais armado
A proteção da gente é Deus, mas entre aspas,
a arma é o instrumento.
(Jovem de Planaltina)
O uso da arma de fogo, do “ferro”, é comum entre os jovens, como já foi
assinalado. As armas são facilmente adquiridas e circulam naturalmente nas
casas, nas ruas e nas escolas: “É mais fácil conseguir arma que um emprego”; “Arma é
que nem pão, você encontra em qualquer esquina”; “Arma é mais fácil que achar um remédio.
Com a arma você consegue um remédio, sem ela não”.
Quem não possui uma arma atualmente, já possuiu uma
25
, ou pede
emprestado para um “chegado”: “É muito fácil conseguir uma arma aqui. Seu amigo tem
uma arma: ‘me empresta que eu quero matar um bicho ali. Me chamou de comédia’. Pega aí e
vai lá ”.
São utilizadas em assaltos, roubos e consideradas como “o ganha pão” de
alguns dos informantes.
Além disso, andar armado é percebido como a única maneira de os
jovens conseguirem protegerem-se das brigas, dos assaltos, da violência e das
guerras que fazem parte do seu cotidiano: “Do jeito que anda a violência, neguinho
não pode andar desarmado [...] de repente chega um lava-bunda aí, querendo calar a gente.
Sem mais nem menos, começa a atirar”
. É um meio de defesa, de afastar o inimigo,
de manter uma pessoa à distância, uma garantia para quem anda sozinho:
“Não
precisa de andar com um monte de galera”
. Alguns jovens costumam ir armados para
a escola – “Quando você tem atrito com alguém, eles vêm te procurar até na escola–, e
gostam de exibir o patrimônio para os amigos, “dizer que têm moral”.
As falas registradas não deixam dúvida de que a arma é um bem
extremamente valorizado entre os jovens, dá confiança,
“dá moral”, respeito e é
uma fonte indiscutível de poder:
“Chega num lugar assim você tá armado, é outra
pessoa. O cara te respeita. É um símbolo de poder. E outra, dependendo da arma que você
usa, o cara sabe que você tem atitude pra uma coisa ou outra”.
A arma é também, sem
dúvida, um signo da virilidade. Como observa Fátima Cecchetto, “os próprios
25
Na época da pesquisa de campo, um delegado de Samambaia relatou-me que recentemente
havia sido feita uma operação de desarmamento nas Satélites e talvez por isso muitos dos
entrevistados declararam que já haviam tido armas e não as possuíam mais.
172
termos utilizados pelos homens para designá-la – a arma é ferro – contêm toda
uma simbologia viril que revela como isso tem a ver com a identidade
masculina tal como se está constituindo agora” (Ceccheto, 2004: 38)
Infelizmente, não pude verificar se a facilidade de aquisição de armas
pelos jovens chegou a alterar as relações de poder nas populações das
cidades onde realizei a pesquisa de campo. No entanto, o estudo de Zaluar
(1985) na Cidade de Deus revela que a posse de armas entre os adolescentes
abalou as relações de poder naquela comunidade, antes regidas por uma
rígida hierarquia entre gerações. Por meio da aquisição de armas os
adolescentes passaram a impor sua vontade aos demais homens adultos do
local, que tiveram, desse modo, sua autoridade duramente golpeada. Talvez o
mesmo tenha acontecido nas comunidades da periferia de Brasília.
A arma impõe respeito, porém também traz inquietações, sobretudo pelo
receio dos jovens de serem apanhados pela polícia. Assim, as escondem nas
casas das namoradas, de amigos não suspeitos e com menores de idade em
quem confiam. Kroak justifica a necessidade de ter que guardar a arma com
amigos: “Os homi entra pra te pegar lá, revista a tua casa. Se acha o revólver tu tá enrolado.
Por isso que quem apronta não pode ter nenhum flagrante em casa. Um flagrante custa caro”.
A mais popular das armas é o “oitão”, o revólver de calibre trinta e oito, que
custa em média, de um e meio a dois salários mínimos. No entanto, as armas
encontradas com os jovens vêm se sofisticando, passando de simples
revólveres à armas utilizadas no exército
26
. Quanto mais poderosa, mais
confiável ela é:
“Numa guerra você nunca pode ter uma arma de seis tiros. Tem que ser
uma pistola. Quanto mais tiro melhor”
.
5.8. Um “avião” está sempre à mão: o convívio com as drogas
Apesar da existência de uma política repressiva de combate às drogas e
dos fortes preconceitos apontados contra seus usuários, no Brasil o consumo
delas continua se alastrando rapidamente, em especial entre a população
26
Informação dos jovens, que foi confirmada pela polícia.
173
jovem e entre as camadas mais pobres. A questão das drogas no país
apresenta uma dimensão extremamente complexa, pois envolve a violência
gerada pelo crime organizado em torno do narcotráfico que se intensificou nos
grandes centros urbanos a partir da década de 1980. O crime organizado, que
constitui uma verdadeira indústria da marginalidade, vem levando de roldão a
juventude pobre, que se tornou força de trabalho preferencial para o tráfico.
As falas dos jovens moradores da periferia de Brasília sobre esse tema
são carregadas de experiências vividas. As drogas, como as armas, circulam
livremente em Ceilândia, Samambaia e Planaltina: “A coisa mais fácil é alcançar um
avião”; “É mais fácil do que pão”
. A maioria dos jovens informantes, se não consome
drogas regularmente, já experimentou alguma e muitos dentre eles são
viciados.
As drogas ilegais mais utilizadas são a maconha e a merla
27
, mas há
também consumo de cocaína, remédios (medicamentos psicotrópicos) cola e
“loló” (inalantes ou solventes), essas duas últimas, facilmente adquiridas, a
baixo custo. O álcool
28
, uma droga legal, apesar de seu caráter destrutivo, é de
longe a droga mais consumida, presente como um importante elemento no
processo de socialização da juventude.
Os jovens dizem consumir drogas por prazer, por hábito, por revolta. Seu
consumo é também considerado uma experiência de “aventura”, pela
ilegalidade, pelo risco da transgressão e afrontamento da lei. Além disso, o
consumo de drogas assume um importante significado de compartilhamento e
de identificação grupal: muitos jovens o fazem porque outros os levaram,
porque todos fumam, porque convivem com pessoas que fumam – “você vai ser
considerado de nada se não fumar”
. A droga é tida ainda, entre alguns, como a única
forma de fugir das tristezas e da realidade do mundo.
27
A merla é um derivado da cocaína, uma pasta feita da mistura do resto da cocaína refinada
com soluções de bateria. O preço da lata varia entre 45 e 60 reais, rendendo em média, para
os viciados, um dia e meio.
28
Os dados epidemiológicos disponíveis no Brasil mostram que no conjunto das drogas lícitas
e ilícitas, o álcool se destaca como a mais consumida nos diversos segmentos da população,
inclusive entre os jovens, em todas as regiões do país. Ver Bucher (1992).
174
Relação com as drogas
“É você querer sair das tristezas e da realidade do mundo. Do inferno que é o mundo.
Aquela hora você é feliz. Aquela hora não sei o que acontece que você tem amigos. Mas
quando acabou tudo é só tristeza. Aí você quer sentir aquele prazer de novo, pra você se
aprofundar. Quanto mais forte é melhor. De tanta tristeza que você já passou na vida, e do que
você olha que acontece em sua casa e fora e você é um adolescente e sabe o que você
poderia estar fazendo e do mundo como poderia ser, do que ele é e pelo que esta sendo, você
vai querer fugir e é nela que vai se afundar, é na droga”.
“Ficava na roda, todos fumando, bebendo. Eu fumava cigarro, uma vez alguém disse:
‘Vai besta, vai, é a mesma coisa que cigarro’. Eu fui, sabe?”.
“Cheguei na Rodoviária, não conhecia ninguém [...] Viu eu fumando aí ofereceram: ‘Não
é igualzinho. Um ou dois disso aqui, você fica disposto, conversa com todo o mundo, você não
conhece ninguém ainda’. Aí eu experimentei, aí eu comecei”.
(Trecho de entrevistas com integrantes e ex-integrantes de gangues. Ceilândia,
Samambaia e Planaltina)
Entre os jovens, a maconha é considerada uma droga leve, inofensiva, “é
da natureza”
, não causa danos, abre o apetite, é tranqüilizante, social, não é
depressiva, deixa as pessoas mais soltas, alegres e divertidas – “O cara que fuma
bagulho é aquele cara que fica numa boa”
. A merla, por sua vez, é uma droga
discriminada pelos jovens, inclusive pelos próprios viciados, que a acham a pior
das drogas: “neguinho que fuma merla é desconsiderado”. É uma droga barata e dá
muita “estiga” (vontade de consumir sempre mais). O viciado em merla,
chamado “noiado” — palavra que vem de paranóia — não têm limites, rouba a
família, vizinhos e amigos para comprar a droga. São agressivos e capazes de
atos muito violentos. A merla vicia rápido, deixa os dedos amarelados, tira a
fome, apodrece os dentes e leva ao desespero. Para alguns
“a merla é a merda”
29
.
29
O maconheiro e o noiado são considerados categorias diferentes de dependentes de drogas
também pelos policiais. Para os jovens, enquanto muitos dos maconheiros trabalham e fumam
para curtir e “zuar”, o noiado é um doente que rouba a família e outros pobres, se prostitui,
passa a noite inteira acordado atrás da droga. O noidado seria muito mais dependente da
merla do que o maconheiro o seria da maconha e, além disso, a merla seria muito mais
prejudicial à saúde. O poder aquisitivo do jovem da periferia não o permitiria consumir cocaína.
Se começa a consumi-la, rapidamente a troca pela merla, uma droga mais barata e acessível.
175
O “Noiado”
“Noiado é foda, é bicho do capeta, é filho do capeta. Pode ser a hora que for da manhã
ele está batendo na sua casa”.
“Quando eu tô noiado, fico grilado, olhando o tempo todo pra trás”.
“Dá até raiva esse negócio de noiado, esses caboclos noiados sujam o nome da gente,
só anda mendigando. Rouba a mãe, vende as roupas tudinho. Em casa some tudo [...]. Esses
moleques não tem valor não, roubam até salário de pai de família”.
(Trecho de entrevistas com integrantes de gangues e galeras. Ceilândia, Samambaia e
Planaltina)
Entre os jovens informantes, poucos são usuários ocasionais de cocaína.
Esta é considerada por eles uma droga excitante, que pode deixar a pessoa
com sentimento de perseguição. A bebida alcóolica é consumida pela maioria
deles, inclusive durante o dia, mas não é percebida como sendo uma droga.
Traficar, ser um avião”, é uma forma de garantir a droga para o próprio
consumo. Os jovens dizem desconhecer os grandes traficantes e recebem o
produto” através de “mediadores”. Pedro e Paulo são jovens mediadores de um
grande traficante e afirmam que esse é um trabalho como outro qualquer e que
vender droga é muito mais fácil do que assaltar uma pessoa. Esses jovens
estão no tráfico organizado, têm um chefe, obedecem a uma hierarquia,
traficam somente maconha e, curiosamente, têm, como regra, não consumir
drogas.
Vender droga também facilita o acesso a bens ambicionados e, de outra
forma, inacessíveis: “Dois dias dá pra compra o que eu quero”, diz Isac, que não se
considera traficante. Para alguns, no entanto, a droga é um submundo que os
escraviza, os leva a roubar, a vender seus próprios bens – “Quanto mais você
consome mais você rouba, vai lá e vende, tipo bicicleta”
– que condena a pessoa à
cadeia ou à morte.
176
5.9. As Jovens e as gangues: preconceito e discriminação em relação à
condição feminina
Embora gangues femininas tenham sido mencionadas pelos informantes,
não tive acesso a nenhuma exclusivamente feminina. Por outro lado, ficou
evidente que o perfil desses agrupamentos juvenis é essencialmente
masculino, o que não significa que não existam mulheres no seu interior.
Contudo, o envolvimento das mulheres nas gangues não tem a mesma
magnitude que o dos homens. Elas situam-se em posições periféricas nesses
grupos: são as namoradas, amigas ou vizinhas dos integrantes e não são
cooptadas de maneira obrigatória, coerciva. Alguns jovens atribuem o
envolvimento de meninas em gangues à influência dos namorados bandidos e
malandros, ao abandono familiar e à falta do que fazer.
Nas falas registradas, tornou-se claro que as jovens cumprem um
importante papel funcional nas gangues. Elas escondem as armas e as drogas
nas saídas com os jovens, aproveitando-se do fato de serem menos revistadas
pelos policiais – “seguram o ferro”, “escondem o jet”, “escondem a droga” – e acobertam
o tráfico de drogas – “Só pra você ver, vou ganhar 50 contos só pra mim ir no ... encher
três mochila de merla e levar”
. As jovens, quando necessário, também conseguem,
para os jovens, dinheiro através da “manha”, ou seja, atraem homens e roubam
como qualquer elemento masculino.
Para os jovens, as jovens são causa de brigas, desavenças e ciúmes
entre eles: causam confusão – “sempre tem uma que quer ser mais que a outra”.
Quando envolvidas com gangues, são consideradas tão violentas quanto os
meninos, fazem uso de armas, correntes, canivetes, brigam, picham, usam
drogas e bebem – “tem menina de rocha aí que anda armada com uns neguinho. Tem
homem que não tem coragem de fazer o que elas fazem”.
Alguns informantes
consideram essas jovens “quase homens”, dizem que são destemidas e quando
decidem assaltar são piores que os jovens: “Assalto cabuloso que as mulheres fazem.
Entram na loja, trocam de roupa, roubam carro”
. No entanto, mesmo que sejam “de
rocha”, os jovens não ousam agredi-las fisicamente.
177
Algumas jovens entrevistadas afirmam que, tal como os jovens, batem e
apanham na rua, não importando o fato de serem mulheres. O “encarar”
também é corrente entre as meninas, que dizem que o segredo é revidar,
responder à altura e não intimidar-se: “Se eu não encarar quem vai sair perdendo vai
ser eu”.
A percepção dos jovens sobre as relações sociais entre os sexos
expressa visões correntes sobre homem e mulher encontradas na sociedade,
mostrando diferenças que não são naturais, senão socialmente produzidas. De
maneira geral, as mulheres são apresentadas pelos jovens como mais fracas,
como de natureza menos violenta – “não tem peso de chegar e se impor” – são
menos experientes em roubos e podem usar de “manha’ para conseguirem o
que querem, inclusive a aproximação com membros das gangues para
tornarem-se conhecidas. Ana Paula afirma que as mulheres são mais nervosas
e compulsivas do que os homens, explicando esse fato pela “natureza”, pela
“própria química” feminina. As jovens aparecem ainda como poderosas, capazes
de manipular as relações pessoais e, quando querem, de tirar o namorado da
bandidagem. Os jovens acreditam que as meninas gostam de “malandro”,
sentem-se mais protegidas por eles e não gostam de “bodinho”.
A visão dos integrantes de gangue sobre o universo feminino não deixa
de ser cercada de contradições. Observa-se ainda um discurso entre os jovens
marcado por estereótipos e preconceitos em relação à condição feminina. Além
disso, muitas vezes seus comportamentos e atitudes expressam uma forma
tradicional de abordar e julgar as mulheres. Assim, por exemplo, é comum
referirem-se a algumas jovens como “vadias”, a quem não se pode namorar
sério. A liberdade sexual feminina é malvista e sujeita a este tipo de
designação enquadrada em padrões machistas.
178
5.10. Gangue: rito de passagem?
Neste capítulo detive-me nas características e dinâmica de ação das
agregações juvenis chamadas “gangues” dentro do contexto brasiliense, tal
como percebidas e descritas por meus informantes. Creio importante destacar
o caráter flutuante e efêmero desses grupos, o que parcialmente explica o fato
de muitos jovens terem narrado suas experiências em tempo pretérito: “Quando
eu era da ‘X’...”; “No meu tempo de ‘y’...”
. Ouvi de Tita, um informante, 19 anos:
Esse lance de gangue é o seguinte: é um círculo vicioso. Os jovens de idade
mais avançada vão ficando pra trás e eles vão servindo como espelho para a
rapaziada nova, tipo assim, ‘vamos fazer como eles fazia’. Daí surge outra
gangue que uma hora ela também vai servir como espelho para os mais novos.
É esse lance de círculo vicioso, ta ligada?.
Por um lado, Tita revela com suas palavras uma percepção das classes
de idade característica dessa fase da vida designada “juventude”. Isso se
traduz por sua maneira simples de classificar os jovens como “de idade mais
avançada” e “os mais novos”. Cabe dizer que as diferenças de idade nesse
período da vida não constituem uma barreira relacional, ao contrário, no interior
de um grupo as relações entre diferentes classes de idade são freqüentes e
multiformes. Os “mais novos” nunca ignoram os “de idade mais avançada”, a
quem admiram, respeitam e, em algumas ocasiões, desafiam. De sua parte, os
“de idade mais avançada” não necessariamente desprezam os “mais novos”, a
quem protegem, dominam e, principalmente, iniciam.
Por outro lado, as palavras de Tita mostram ainda uma percepção de
que na história de vida dos jovens de sexo masculino da periferia que
participam da cultura das ruas – e, em alguns casos, de sexo feminino –, o
tempo da gangue faz parte de uma trajetória “natural”, de um momento de
passagem bem definido no seu processo de socialização. Podemos indagar:
em que medida é possível pensar a gangue como um rito de passagem?
Lembremo-nos que o rito de passagem é um período particular na vida
de um grupo que marca a passagem de um estado a outro. Em sociedades
tribais o rito de passagem da infância para a idade adulta caracteriza-se por um
período de separação, durante o qual a criança é apartada da vida cotidiana.
179
Passa-se depois a um período de margem, um estágio liminar de transição, no
qual os futuros iniciados são submetidos a diversas provas infligidas pelos
homens mais velhos que, ao mesmo tempo, ensinam-lhes certos segredos.
Finalmente, como parte da última fase do ritual, há um período de agregação
que marca o retorno do iniciado à comunidade, agora tendo garantido o seu
novo status de adulto (Van Gennep, 1978).
Bloch e Niederhoffer (1974), considerando esses ritos tribais e
comparando-os com as práticas usuais das gangues juvenis novayorquinas,
arquitetaram toda uma teoria sobre a delinqüência dos jovens reunidos nesse
tipo de agregação. Para os autores, a gangue seria um rito de passagem que
substituiria eficazmente os ritos coletivos em decomposição nas sociedades
industriais.
“Do momento em que as cerimônias de puberdade perdem sua
significação funcional, para não serem mais do que ‘sobrevivências’, os
adolescentes buscaram outras vias na direção do estado adulto” (Bloch
& Niederhoffer, op. cit: 174).
Tais agrupamentos estariam fundados na necessidade de afirmação da
virilidade, aspiração universal de todos os adolescentes, não importando a
cultura a qual pertenceriam. Essa necessidade impulsionaria os jovens de sexo
masculino a se reagruparem em gangues sobre quem seria possível fazer
estudos comparativos.
Bloch e Nielderhoffer reúnem uma série de elementos, como as
tatuagens, as cicatrizes adquiridas em brigas de rua, a aquisição de um nome e
de uma linguagem novos para comparar as práticas da iniciação nas
sociedades tribais com as das gangues juvenis nas sociedades industriais e
vêem uma extrema similaridade entre elas. Subjacente a esses ritos, existiria
uma situação psicológica universal: o desejo de o adolescente se tornar um
adulto.
Contestando os autores, Jean Monod (1968) argumenta que nenhuma
das práticas por eles apontadas serviriam para caracterizar a iniciação como
tal, nem tampouco a adolescência. As tatuagens, por exemplo, não são usadas
apenas por adolescentes, mas também por adultos. Entre marinheiros e
prisioneiros estas seriam recorrentes e quase obrigatórias.
180
“Trata-se de características de grupos enquanto tais – onde cada
indivíduo deve vestir as insígnias de seu grupo e se conformar aos usos
especiais – mais do que características da iniciação” (Monod, op. cit::
28).
Além disso, ainda conforme Monod, a perspectiva “transcultural” de
Bloch e Nielderhoffer que pretende nos esclarecer sobre o simbolismo desses
ritos de passagem, sobre o acesso simbólico à condição de adulto, está
baseada num princípio inaceitável em antropologia: “o de equivalência da
significação de certos temas que encontramos em todas as culturas”.
De fato, a comparação de Bloch e Nielderhoffer não nos leva muito
longe. Tomemos, por exemplo, o fato de nas sociedades tribais, durante os
ritos de iniciação, os jovens se entregarem a atos totalmente proibidos em
tempo normal (Van Gennep, 1978). Se, numa primeira aproximação, estas
atitudes podem se aparentar aos atos delinqüentes cometidos pelas gangues
juvenis na nossa sociedade, nas sociedades tribais as mesmas fazem parte
dos rituais aceitos como parte dos períodos de margem. Estes períodos, além
disso, são bem mais curtos que a vida de uma gangue, que pode durar muitos
anos. De outro lado, ainda que a gangue conheça alguns ritos de entrada,
quando estes ocorrem os jovens não se separam de suas condições sociais
prévias: geralmente eles continuam a viver em suas casas e a manter relações
com a família e vizinhos exteriores ao grupo de adolescentes.
Um ponto a que devemos prestar atenção é que, ao contrário dos ritos
de passagem nas sociedades tribais, as gangues são organizadas pelos
próprios jovens: “tudo se passa como se os adolescentes declarassem: ‘Vocês
não querem nos submeter a provas? Está bem, nós mesmos nos
encarregaremos disso!’” (Monod, op. cit: 27). A verdade é que não podemos
dizer que os adultos da nossa sociedade as consideram necessárias à
passagem da adolescência à idade adulta. Longe disso. As gangues, esses
grupos de idade que “não têm nenhum status institucional na nossa sociedade”
(Monod, op. cit: 18), fundam sua legitimidade sob os conflitos que mantêm com
a mesma. Elas são o objeto de uma hostilidade manifesta, tanto nas
representações das quais são objeto, quanto na ação das forças de ordem,
181
com a aprovação da maioria da população. Portanto, é a ruptura com a
sociedade global e não o acesso a essa sociedade que é colocado em relevo.
A iniciação muda inteiramente de caráter quando não é controlada pelos
adultos e sim livremente inventada. Neste último caso, trata-se de iniciação à
adolescência e não à idade adulta. Bloch e Nielderhoffer parecem admiti-lo no
momento em que afirmam que
[...] as cerimônias e usos das gangues não têm como efeito sua
aceitação por toda a sociedade [...], mas visam realmente à integração
ao estado seguinte de desenvolvimento que é o próprio mundo da
gangue de adolescente (Bloch e Nielderhoffer, op. cit.:137).
Sendo assim, o problema é bastante distinto daquele implicado nos
rituais de puberdade ou iniciação. Como observa Monod, estes tomam o
adolescente como uma idade de passagem para o estado adulto, e é este
estado que se encontra expresso no ritual. De forma inversa, uma iniciação à
adolescência toma a mesma como um estado.
A puberdade é uma passagem para a adolescência que pode se
prolongar (e, conseqüentemente, retardar a idade adulta) por meio de
um grande número de práticas [...]. É preciso a partir daí pesquisar por
quais meios os adolescentes fabricam seu mundo próprio e em que
medida esse converge ou não com o mundo dos adultos (Monod, op.
cit: 29).
Se a gangue não é um rito de passagem para a idade adulta, uma fase
de preparação para a entrada no mundo adulto, ela é um meio especificamente
juvenil de exprimir um sistema de valores que pauta certas atitudes. A adesão
a esse mundo de valores é fortemente ritualizada, com ritos codificados e
executados pelos próprios jovens. Contudo, se a entrada para a gangue é
elaborada, com marcadores claros que indicam a incorporação a uma nova
condição, a saída é bastante difusa e não necessariamente acompanhada por
uma passagem a uma classe de idade superior.
O abondono da gangue e das práticas delinqüentes encontra diferentes
motivações. Como veremos a seguir, o afastamento às vezes é acompanhado
pela passagem por novos ritos. Mas o tempo da gangue, mesmo quando se
torna passado, não é negado pelos jovens. Ele faz parte de suas historias,
ainda que o desejo atual seja o de simplesmente dormirem tranqüilos.
182
CAPÍTULO 6
TRAJETÓRIAS REVERSÍVEIS: ALTERNATIVAS AO “MUNDO DO CRIME”
Entre a vontade de viver e o medo de morrer
as pessoas se desesperam... Agora faça as
suas preces e comece a rezar, acenda uma
vela e peça para o seu santo protetor te ajudar
a sair dessa vida maldita
.
(Rap cantado por um ex-
integrante de gangue da Ceilândia)
A entrada no “mundo do crime” e o final trágico que ele delineia são
realidades que muitos jovens envolvidos com gangues na periferia de Brasília
acabam conhecendo. Em seus relatos, meus informantes não raro falavam
sobre o destino incontornável de quem “cai na bandidagem”, qual seja, a
prisão, a invalidez ou a morte violenta. Mas se trata mesmo de um destino
incontornável? Esta faz parte de uma das indagações que, como bem aponta
Regina Novaes, desafiam a nossa compreensão: “para um mesmo indivíduo, o
destino, as vocações ou escolhas são irreversíveis?”; apenas a morte se
apresenta como saída do mundo do crime; “não tem volta para quem ‘pega o
caminho errado’?”; “trata-se mesmo de ‘vocação’, destino irreversível? Ou é
possível reconverter trajetórias?”; “quando e em quais circunstâncias? Neste
caso quais são os ‘atalhos’ que podem servir para desviar certos caminhos?”
(Novaes, 1997: 125-126).
Para refletir sobre tais questões, proponho deter-me na trajetória de
quatro jovens ex-integrantes de gangues, cujas histórias colocam em xeque a
idéia de irreversibilidade do destino de quem se envolve no mundo do crime.
Eles encontraram — tal como um número expressivo de jovens das camadas
populares da periferia da capital que um dia esteve enleado na delinqüência —
caminho alternativo a um destino trágico que lhes parecia incontornável. Suas
183
histórias – uma de adesão ao movimento Hip Hop e três de conversão religiosa
– contadas por eles mesmos, pode ajudar-nos a entendê-los
1
.
6.1. Da gangue para o Hip Hop: a história de Jadson Jones
Quando começou a passar mais tempo fora de casa, Jadson Jones, 20
anos, foi alcunhado de “Jadsin” por seus companheiros de rua: “a gente
costumava ter dois nomes, o de casa e o de rua, pra se proteger e também pra proteger a
família. Meu nome de casa ficou parecido com o de rua, mas em geral não é assim não”
.
Naquela época, por volta de seus 13 anos, Jadsin morava no setor P-sul da
Ceilândia, onde permaneceu até os 16, quando sua família – mãe, padastro,
duas irmãs e um irmão – se mudou para o Riacho Fundo, outra cidade da
periferia de Brasília.
O jovem conta que seu pai foi assassinado na Ceilândia, quando ele
tinha 12 anos e que ainda se recorda de sua imagem na UTI. Contudo, antes
de ter sido morto a tiros por um bandido de nome “Ligeirinho”, conhecido na
cidade, o pai já havia levado algumas facadas na rua porque bebia muito e
sempre que se embriagava brigava. Na ocasião do assassinato do pai, a mãe
de Jadsin já estava separada do marido:
O meu tipo de família é o comum de hoje: pais que se casam e se separam
depois de terem tido os filhos. Racha tudo, entende? Cada um vai pra um lado.
Os filhos ficam perdidos. [...] Teve um tempo que meu pai chegou a me raptar e
ao meu irmão. Colocou a gente preso num barraco na Ceilândia. Ele saia e
deixava sardinha em lata e farinha pra gente comer. Chegava e batia na cara
mesmo. Ele era muito rígido, daqueles cara bem antigão. Você tinha que ir na
linha senão apanhava ou ficava de castigo: “fica no canto e só sai quando eu
mandar”. Passei por tanta coisa ...
1
O método da história oral apresenta uma série de problemas que não permitem
generalizações e comparações. Contudo, como chama a atenção Alba Zaluar, “na história da
criminologia, a história oral teve uma importância muito grande na definição de novas teorias e,
sobretudo, no aparecimento de uma nova postura – histórica, humanista, não-determinista –
com relação à criminalidade. Mesmo criticada por não permitir generalizações ao longo do
tempo quando cada entrevistado fala do que quer, a história oral teve impacto decisivo ao
abalar a crença de que os delinqüentes são maus por natureza ou que a punição severa é o
fator dissuasório efetivo último, ou ainda que haja uma solução simples e única para o
problema. [...] A história oral abalou as idéias preconcebidas sobre as causas da criminalidade
e as soluções para combatê-la” (Zaluar, 1994b: 100). No contato com os jovens, para as
histórias narradas, deixei-os livres para falar do que queriam, mas, ao mesmo tempo, tive a
preocupação de conduzir, em momentos que julguei apropriados, entrevistas dirigidas. Isso
possibilitou cruzar as trajetórias dos informantes e encontrar algumas regularidades.
184
O assassinato do pai no início de sua adolescência é um fato que Jadsin
considera dos mais marcantes de sua vida. Neste tempo começou se afastar
de casa, pois a rua começou a lhe parecer bem mais atrativa. A mãe se casara
de novo, tivera uma outra filha e, embora considerasse o padrasto uma boa
pessoa
2
, se sentia muito preso e controlado, porque tinha que ajudar nas
tarefas domésticas, cuidar da casa, dos irmãos. A rua, para Jadsin, passou a
ser sinônimo de liberdade, desobrigação, e as surras da mãe já não o
intimidavam para que a se evitasse. As horas despendidas na rua foram se
intensificando até chegar o momento em que, somadas as passadas na escola,
ultrapassavam as que permanecia em casa:
Não queria saber de nada, só de ficar nas esquinas com as galeras. Às vezes
matava aula pra ficar na rua fazendo nada, de bobeira mesmo, conversando
com a molecada, tipo assim uma coisa sadia. Chegava tarde em casa, minha
mãe ficava louca, sempre tinha discussão. Levei foi muita surra. [...] Aí com os
moleques que eu andava a gente formou a Galera Adidas, coisa de moleque. A
gente curtia esse lance de pichação, da adrenalina que rola. [...] Com o tempo
fui aprendendo umas malandragens porque na rua, tu sabe como é, na rua
você aprende tudo que é malandragem. Tipo assim, no meu tempo eu não
tinha acesso aos melhores brinquedos. O meu sonho era ter videogame. Eu
ficava assim, todo o mundo tinha, os caras tirava onda com os brinquedos
melhor e eu falava assim: “vou ter”. Minha mãe não podia me dar. Eu não tinha
pai. E as coisa que eu tinha, com dificuldade, eu não sabia dar valor. Então
pegava emprestado, entre aspas. Não tinha acesso à bike, bicicleta, aí
roubava. Roubava umas bicicletas caras porque impunha respeito. Não ficava
nem dois dias na minha mão: eu vendia, trocava. As vezes pegava bike dos
moleques só por desafio. Os caras diziam: “vamos ver quantas bicicletas você
pode trazer”. Sabe quantas bicicletas eu roubei em um dia? Seis. Tinha esse
desafio. Eu batia record no meio da rapaziada [...]. A gente conhecia os Irmãos
Metralha. Eles eram famosos porque roubavam direto o Carrefour. Teve uma
vez que eles saíram com duas bicicletas no carrinho, saíram na cara dura,
passaram pela segurança e tudo. Lá ainda não tinha a tecnologia de hoje. Aí a
gente colocou esse desafio de roubar o Carrefour. A gente chegava com as
coisa, com aquele monte de spray, e ficava tirando onda no meio da rapaziada.
Esse era o barato do desafio.
Os integrantes da “Galera Adidas”, uma gangue de pichadores, vestiam-
se, dos pés à cabeça, com a marca, que era um dos alvos dos roubos
praticados: “o visual de periferia é só roupa de marca. Os caras não dão conta de pagar,
mas querem vestir. Aí vai ripar”
. Jadsin guarda até hoje um tênis Adidas da época,
um modelo fora de fabricação tratado como uma relíquia: “os moleques de hoje
2
O padrasto de Jadsin morreu subitamente, de ataque no coração, durante a minha pesquisa
de campo. O rapaz foi quem tomou todas as providências para o enterro e se mostrou muito
abalado pelo acontecimento.
185
quando me vêm calçado com esse tênis aqui falam: ‘o cara é das antigas’. Os moleques de
hoje conhecem, têm respeito por você. Na minha época dava moral, só usava neguinho que
‘arrepiava’
”.
Contudo, foi na escola que Jadsin se aproximou dos companheiros da
UDI (Unidos do Inferno):
A UDI começou no colégio, lá na Ceilândia. Eu tinha uns 15 anos. Eu não
conhecia muita gente, mas sempre via os caras e os caras sempre me viam: “e
aí”?. Aí rolou o primeiro contato. Aí os caras viram que eu tinha uma certa
esperteza. Aí, como eu tinha esperteza pra eles, era rato, os caras me
consideravam nesse meio. [...] Rato é um cara safo, assim, pra sair de polícia,
de briga, pra roubar alguma coisa na padaria, no mercado, numa casa, pra dar
porrada num cara [...]. Aí naquele tempo aquele grupo de pessoal se
destacava, se impunha onde ele queria. A gente se achava superior a uma
cidade. A gente tinha o destaque. No tempo eu fiz altas loucuras! A gente
fumava maconha dentro da sala de aula, bebia – no tempo a bebida era
Montila –, dava porrada nos moleques folgados, esperava o intervalo pra gente
levar as mochilas dos colegas, os cadernos, o que a gente quisesse. Era tanta
viagem [...]. Então o primeiro lugar que a gente comandava era dentro da sala
de aula. Até professor se falasse alguma coisa demais, sobrava pra ele ou pra
o carro dele. Ou então a gente dava o canal pra o cara ir lá e meter os ferro
nele e depois rachava o troco que dava. É como se fosse um grupo de
opressão, tipo assim: “quem manda aqui é a gente, você tem que acatar”. Tipo
assim, pra se autopromover, pra se achar o fodão.
As transgressões e delitos praticados pelos integrantes da UDI não
ficavam restritas ao ambiente escolar. Ao contrário, fora da escola uma série de
práticas delinqüentes era perpetrada:
Fora do colégio já era uma barra bem mais pesada. A gente conseguia dinheiro
ripando os caras na rua: “me passa o relógio, calça, tudo. Não fala nada! Fica
caladinho!”. Se falasse alguma coisa levava cabada na cara e, em último caso,
sentava o dedo mesmo [...]. Tinha tipo aquele lance de adrenalina mesmo,
aquele lance emocionante, ter alguma coisa pra fazer todo o dia, alguma coisa
na cabeça [...]. O Plano era o nosso alvo, principalmente. Carro era em
Taguatinga, no Bandeirante. Nem que fosse pra você só dar couro e no final
levar os pneus: “aí pó, arruma umas rodas desse pra mim”. Já era
encomendado. A gente: “beleza”! No outro dia tirava e já ganhava o troco. Por
aí já circulava o dinheiro pra que eu comprasse o meu bagulho de consumo.
[...] Pra mim virar boca, eu tinha que ter um capital maior, no caso, ia ter que
fazer um banco. Tinha um neguinho no meio que fazia banco, eu nunca fiz. Eu
e o P., que era o meu parceiro de ripá, a gente fazia mais padoca, padaria, no
caso, posto de gasolina, mas a gente era meio assim, tudo que viesse era
festa. A gente pegava os dias de pagode e roubava mesmo, assalto. [...] O P.
hoje ele está na Papuda e eu podia ter caído junto com ele. No caso, o cara se
afastou, começou a andar com o M. que fazia mercado. O M. um dia chegou
pra mim, pra mim e pra o P., pra gente fazer todos os mercados da Ceilândia.
A gente fazendo isso, a gente ganhava moral no meio dos Naza
3
, mostrava que
3
“Naza” (Nazarenos) é uma gangue que foi muito famosa no Distrito Federal. Hoje parte de
seus integrantes fazem parte de uma quadrilha, parcialmente desmantelada pela polícia em
2006.
186
a nossa gangue era fodida mesmo, a gente ia ficar com nome. Porque a gente
metia as paradas e a gangue ia junto, a UDI ia junto. [...] Eu não gostava dessa
área (mercado). Minha área já era uma área mais rua, padaria, posto de
gasolina. Aí, tu vê, o P. entrou nesses esquemas de meter os mercado. Eu
mesmo saí fora. Na vez que eu fui os caras revidaram. Os bichos ficaram atrás
da gente, teve troca de tiro e eu: “caralho meu irmão”!. O ódio dos cara era tão
grande que não deu nem pra gente responder na altura. Se vacilasse, morria.
Nesse dia decidi ficar longe das paradas de mercado. O P. que continuou e
entrou noutras paradas cabulosas acabou se dando mal, ta na Papuda e não
vai sair de lá tão cedo, se sair
.
Segundo Jadsin, a UDI tinha aproximadamente cinqüenta integrantes.
No início da gangue havia um interesse pela pichação, mas esta não teria sido
a principal motivação para a sua formação, o que de certo modo foge da lógica
de constituição dessas agregações juvenis mencionada no capítulo anterior. A
idéia era buscar consolidar um “grupo forte”, “de destaque”, com “pessoal de atitude”.
Os primeiros membros da UDI, antes de instituírem a gangue, já tinham
envolvimento com atividades delinqüentes.
Naquele tempo neguinho pichava muito na área e a gente pichava só pra
marcar. Mas os caras não dominava esse lance de pichação não. A gente fazia
o nome UDI bruto, sem muito bolado. Pra gente esse negócio de pichação era
mais coisa de vacilão, Zé Mané. Os caras da UDI não via vantagem de ficar
ripando ou comprando tubão de spray, ficar se expondo e gastando não sei
quantos contos pra ficar sujando parede dos outros e chegar lá e levar tiro. O
nosso lance era outro. Era todo mundo rato. A gente tinha a maior moral,
impunha, não era igual essas gangues de comédia de pichador. A gente
ganhava muita moral dos populares porque a gente não aprontava lá e nem
deixava os caras aprontarem: “o território é nosso”! [...]. Esses caras
(pichadores) não tinha a organização que a gente tinha. Tipo assim, tinha um
armamento dentro da UDI, todo mundo tinha. Quando não tinha, vamos dizer,
se tivesse quatro, cinco, esses armamento ficava rodando, girando na gente,
tal semana fica com fulano de tal. Se precisasse, tinha que botar na mão de
quem tava precisando na hora. [...] Tinha cara que queria entrar no nosso meio
lá porque achava bonito, mas só entrava os cara foda, rato mesmo. Quantas
regras a gente criou pra um laranja, um bostinha qualquer chegar e querer
entrar?
Jadsin assinala o forte laço que unia os integrantes da UDI. A fidelidade,
a lealdade e a disposição de estar sempre pronto para responder pelos pares
eram regras básicas do grupo:
A nossa união era mais forte do que família, ta entendendo? Uma coisa muito
forte até mesmo pra testar. A gente fazia muitos pactos de sangue, tipo assim,
jurar a sua lealdade: “então dá prova da sua lealdade”. Aí dizia: “eu dou o meu
sangue”. A gente se cortava na hora. Tinha cara com o corpo todo riscado. Eu
apaguei vários cigarros pra provar. Aqui tem uma lembrança, ô, aqui é cigarro.
187
Aqui é outra lembrança, ô, aqui foi faca. Era muito escroto, mas em cima disso
eu até consegui um controle da mente pra aliviar um pouco a dor. Tinha coisa
que eu fazia pra testar a minha mente que os caras falava: “pô, o cara é
louco”!.
O jovem conta que teve várias passagens por delegacias de polícia, mas
nunca chegou a ser preso. Considera que sua “esperteza” no tempo em que era
integrante da UDI o livrou de ter o mesmo destino de vários de seus
companheiros.
Quando caía, a gente achava o máximo. O perdigueiro lá chegava com um
gravador desse aqui, gravava e botava lá ao vivo. O que a gente fazia? Falava
assim: “aí fulano de tal, queria mandar um abraço pra o meu irmãozinho”, tipo
fazia onda da cara dos cara. Aí ficava aquele comentário no meio da rapaziada:
“o cara é fodão”!. Quando eu saia de lá, era só neguinho me abraçando,
fazendo o que eu queria. Então quando caía era status. Era uma maneira de
levantar o meu grupo porque a gente ficava mais temido, impunha mais
respeito. [...] Caí várias vezes, mas sempre saia logo. Por isso os caras
falavam que eu era rato. Eu era muito moita mesmo. [...] Os caras só iam atrás
quando a gente aprontava em tal local. Eu só caía quando a gente levava um
carro do Bandeirante porque as DP têm contato, fazem um intercâmbio de
trocar informações. Quando os policiais vinham pra pegar, quando a gente
caía, eu ia pra DP e ficava uma noite e no outro dia eu tava fora. Nunca
cheguei a descer pra geladinha. A geladinha era a cela. Os caras falavam:
“como é que tu sai”? Porque a maioria dos caras que tinha três passagens já
tava cumprindo pena e comigo era: “libera o cara”!. Não fazia nem ficha, nem
nada. [...] Eu preservava a minha mãe o máximo. Só não preservava no tempo
que a polícia ia na minha casa atrás de bicicleta, não sei o quê. Tipo assim, no
tempo da UDI minha mãe achava que eu não tinha envolvimento com a coisa
.
Quando se mudou para o Riacho Fundo, Jadsin continuou mantendo
vínculos estreitos com os outros integrantes da UDI. No início, as idas à
Ceilândia para encontrar os colegas eram diárias e se sentia desambientado no
novo local de moradia. Ao mesmo tempo se considerava poderoso em relação
aos outros jovens moradores do lugar:
Quando eu vim da Ceilândia pra cá, aqui tinha duas gangues de comédia. Era
uns grupinhos de laranjão. Os caras demarcaram toda a área, pichação, não
sei mais o quê. Mas também tinha uns caras que eu via e tinha um pouco de
receio. Eu tinha que me impor, eu não conhecia ninguém, mas eu tinha que me
fazer no local que eu me mudei. Quando eu chegava perto os caras falavam:
“cara da Ceilândia”!. Da Ceilândia era moral: “o cara é da Ceilândia, não mexe
não que é ruim”. Se alguém olhasse pra mim, pagava sapo: “perdeu alguém
parecido? Tem algum colar de pinto aqui pendurado”?. Se o cara ria: “tu é filho
de pára-quedista? Ta se abrindo por que”?. [...] Aí eu vim pra cá com a
estrutura que eu já tinha toda, com moral. Os caras da Ceilândia falavam: “se
pegar o nosso irmão lá do Riacho Fundo, a gente vai lá só pra ver a queda
desse otário”
.
188
Aos poucos Jadsin foi se enturmando com outros jovens do Riacho
Fundo, encontrando novos parceiros nas suas práticas delinqüentes. Estes
também passaram a ser membros da UDI, que continuava existindo apesar da
prisão e da morte de alguns de seus integrantes considerados pelo jovem, os
mais importantes. Contudo, a gangue acabou se desintegrando após o líder ter
sido gravemente ferido.
O T., que era líder, ficou um tempão na UTI. Ele levou uns tiro de um cara lá. Aí
a gente ficou naquela loucura de ter que matar o cara, a mãe dele, a família
toda. Até mesmo os outros caras que não tinham nada a ver com a UDI
ficavam testando: “e aí, vai ficar de graça mesmo?”. A gente não chegou a
matar o cara, mas a gente tava decidido, tanto que a gente passou na casa
dele e deu um alerta. Chegamos e pipocamos a casa dele todinha de tiro. Os
canas ficaram todos ouriçados pra pegar a gente, na captura, antes de rolar o
mal. Eles sabiam que a gente ia matar o cara ou os parente dele. A gente
pegou o cara e deu acho que cinco tiros nele. Ele perdeu o braço, ficou todo
defeituoso, não morreu porque acho que o bicho era ruim. A gente só não
chegou a matar a família desse cara lá porque o T. pediu. O irmão dele, o M.,
que fazia parte da UDI disse: “o T. disse que quer resolver a parada, é coisa do
cara, é a honra dele”. [...] O T. saiu da UTI. Perdeu o movimento do braço.
Depois que ele saiu, ele falou: “vamos derrubar o cara”. Aí o cara sumiu. Tinha
que dar uma gelada na coisa. Mas a gente sabia que o cara ia voltar. E o T.
sem movimento, com aquela revolta na cabeça. Aí um belo dia o cara aparece
lá na frente do colégio de carro, tirando onda com as meninas. Quando o cara
apareceu, os moleques que sabiam que tinha rolado o esquema deram o
alerta: “Oh, fulano de tal tá lá”. O T. falou: “o cara é meu, ninguém vai fazer
nada”. Nisso o cara tava com uma doze aqui, cano cerrado. Quanto maior o
cano, mais reto vai. Se o cano é cerrado, o chumbo espalha. Aí eu só sei que
quando o cara pegou uma distância o T. foi atrás. Não sei porque o T. não
matou o cara, deu só nas pernas nele. Aí o cara caiu no chão. Aí os populares
ficaram assim com medo e começaram a chamar a polícia. O T. até correu pra
ir em cima dele pra dar uns confere, mas aí não deu. Os populares compraram
a briga do cara. Aí tudo bem, o T. disse: “depois a gente resolve”. Depois disso
o cara pinou, sumiu de vez. [...] A UDI se desfez basicamente depois desse
episódio aí. O T. tava um cara mudado depois desse episódio, não queria
saber de mais nada. Aí os caras colocaram muito o lance de eu ter que
substituir o T. pra levantar a UDI. Os caras insistiam: “você vai ter que
substituir o T.”. Mas eu tinha mudado pra cá, não tava exatamente na base. O
foda de ser líder é que você é popular no meio das gangues, mas tem o tal
falado filme queimado. Ta sempre na mira dos policiais. Então o vacilo é esse:
ter muito destaque no meio. Como eu digo: quando o cara ta com muito
destaque, a morte dele ta pertíssimo, circulando ele assim. Por que eu não
cheguei assumir a UDI? Porque eu sabia disso. É Campo da Esperança ou
cadeira de rodas ou o Papudão. É o mais comum. É por isso que eu falo:
quando a coisa fica muito pesada, ou você morre na coisa ou então sai fora
enquanto dá tempo. Tu sabe quem foi que se salvou na UDI, que não tinha
nem um sapeco, nem uma marca de tiro no corpo? Era eu! O resto, todo o
mundo tinha marcas nas pernas, no pescoço, tinha bala no corpo, no osso. E
os finados? Os primeiros caras da UDI são tudo finado, eu sobrevivi. Eu podia
ser um cara lá do cemitério. Minha mãe acendendo velas pra mim lá.
189
Na época em que integrava a UDI, Jadsin já tinha familiaridade com o
rap. O jovem costumava freqüentar bailes nos quais diferentes grupos de rap
da periferia se apresentavam. Mas esse contato ainda era superficial:
No início eu ouvia rap só de curtição mesmo, não tava nem aí pras idéias dos
caras. Ia pelo embalo, não tava nem aí com nada. No meio das gangues rola
rap, é o som que mais rola
.
O momento da desintegração da UDI coincide com aquele em que o
interesse de Jadsin pelo rap começou a ganhar uma dimensão mais expressiva
em sua vida. As constantes idas à Ceilândia já não faziam mais parte da rotina
do jovem e, ao mesmo tempo, movido por curiosidade, procurava saber mais
sobre o Hip Hop, especialmente sobre sua vertente musical.
Então era o tempo que eu tava entrando no Hip Hop. Tava interessado
principalmente na música. Aí fui conversando, ouvindo, ia pra os bailes e curtia
as letras das músicas. O cara vai amadurecendo. Aí eu comecei a viajar nas
idéias dos caras de tanto ouvir os caras falarem isso e aquilo outro. Aí falei:
“caralho, véi, realmente é isso mesmo”! Aí comecei a decorar as letras dos
caras, aí foi criando aquele lance espiritual. Aí foi criando aquela coisa, é uma
coisa que ta no sangue. Aí eu fui me identificando. Já criava umas rimas no
nosso meio mesmo. Aí foi crescendo aquela coisa e foi crescendo também a
parte de amadurecer os toques musicais, os tons. Aí falei: “não preciso de mais
nada”. Descobri isso aqui. Hoje eu digo que a música, o esporte, a arte, é o que
recupera o ser humano de qualquer estágio que ele esteja. Não sei porque eu
usava droga naquele tempo. Pra quê droga mais louca que essa aqui? Viaja
nos tons. Hoje mesmo eu viajo mais do que eu viajava antes com lance de
droga. Eu chego em casa e pego uns bolachão, apago a luz, fecho os olhos e
viajo nos tons. Isso é uma viagem. É uma loucura. Resumindo tudo isso aí, o
que me fez sair de tudo isso aí foi a música, o rap. Eu me encontrei no rap e
botei na cabeça que ia ser rapper, que era isso que eu tinha que ser. Aí a gente
decidiu formar o grupo pra tipo mandar idéia pra rapaziada, pra quem ta sem
direção, entendeu? E também, sei lá, caçar um estilo de vida diferente pra mim,
porque na bandidagem não sobrevive, a vida é curta, ta entendo?
.
Jadsin se tornou letrista e vocalista do seu grupo de rap. Estuda a noite,
cursando o segundo ano do ensino médio. Fala que vive da pequena pensão
que o pai lhe deixou e de “
esquemas”, “intercâmbios”, isto é, trocas de objetos e
favores que faz principalmente com outros jovens do local. É um colecionador
de discos de vinil, de CD e vídeos de rap. Diz também que não liga para
dinheiro, que sua meta é ajudar as pessoas e que por isso não se empenha em
procurar trabalho. Além disso, na sua percepção, o trabalho seria parte do
“sistema” (ver anexo I) com o qual se nega a colaborar:
190
Eu não vou empregar a minha mão-de-obra para fortalecer o sistema. Não
trabalho! Milhões de brasileiros trabalham, trabalham e quando chega na
velhice não têm nada. Isso é foda! Eu não vou empregar a minha mão
assalariada, patrão exigindo de mim e eu ganhando só aquele picado todo o
mês. Não é isso que eu quero pra mim. Aí tem que criar um outro sistema
diferente do que está rolando assim nesse mundo que a gente vive. O rap é
anti-sistema, bate contra o sistema, apesar de que a gente sabe que é difícil
mudar o sistema que vem de 500 anos atrás. É uma coisa que a sociedade já
vem trazendo até hoje. Mas a nossa parte a gente ta fazendo. Meu grupo de
rap é totalmente contra o sistema. É isso que a gente quer tentar mudar. É tipo
assim, o sistema em si não é fácil, então a gente tem que mudar o quê? A
cabeça das pessoas, entendeu? [...] A gente tem que lutar mesmo! A gente não
pode fracassar, mas eu sei que a batalha não é fácil
.
Jadsin e seu grupo de rap estão à frente de um outro grupo que reúne
quinze jovens dispostos a combater o uso das drogas e a delinqüência juvenil.
A entidade que temos é contra o sistema, é o B.I.C.T., a Base de Informação
Contra o Tóxico. O sistema não faz nada contra isso aí. Para ele, quanto mais
drogado, quanto mais marginal, melhor para ele, apesar de que é ruim pra
quem está no meio do sistema. [...] A gente tenta levar a consciência pra os
caras, coloca o que a gente já viveu, a real. Eu tive a experiência, eu não tenho
vergonha de falar não. Eu coloco isso pra os caras: quem se envolve com
droga é um pulo pra o crime e a bandidagem, esse negócio de fazer tráfico, dar
tiro, andar armado, arrumar dinheiro fácil às custas dos outros é vacilo. É ta
caçado direto pela polícia, ser alvo de pancada, ser mal visto onde mora. Outra
coisa: de repente leva um tiro, fica paraplégico, tetraplégico, morre. Ou vai
preso e vai ser mais um aborto da sociedade. Tem que parar pra pensar. Então
o que a gente quer é mudar a cabeça dos cara, passar informação pra aqueles
que não têm, entendeu? Porque a juventude hoje, realmente, eu não digo toda,
mas a maioria, ta alienada e sem direção. Ela é muito fácil de ser conduzida
.
Suas composições de rap visariam o mesmo fim: levar aos jovens da
periferia informações sobre os fatos sociais. A “
falta de consciência” da realidade é
o que impulsionaria o jovem a seguir na direção da marginalidade – brigas,
drogas, roubos, assaltos e homicídios –, obscurecendo sua percepção de
futuro e de seu potencial para mudar a ordem social. Jadsin se intitula “
reporte
da periferia
” e afirma que mantêm a sua moral entre os “jovens bandidos” porque
conhece a sua realidade e representa a sua “voz”. Nas letras procura mostrar o
que viveu e presenciou, mas sua experiência é revestida de positividade
quando transformada em palavras:
Tenho algum tempo pela frente, já não posso dizer o mesmo pra quem se
encontra presente, sempre, sempre, na mira de vários canos, na mão da
bandidagem, dos dois lados. É foda, ah! Eu sei, eu tô ligado. É por isso que
muitas vezes a única garantia aqui é andar armado, pra derrubar primeiro – é
claro! – o otário que se impõe como adversário. Pá, pá, pá, caralho! Por que
191
temos viver assim desse lado maldito, matando pra não morrer? Pô! Quase
não consigo entender. Deve ser assim? Vai começar um dia de revanche, de
sofrimento e agonia, chegar atirando foi dito e feito uma roubada, resolveu
fazer a façanha e um aliado, considerado, na área no momento foi
surpreendido com três a quatro disparos bem sucedidos... [...] E por aí vai.
Em todas as ocasiões que me encontrei com Jadsin em companhia dos
outros três integrantes de seu grupo de rap, o jovem manteve o rosto
semicoberto por um lenço. Explicou que a razão de sua utilização era que,
quando entravam no palco, não eram apenas quatro, mas cinco pessoas que
se apresentavam: havia a pessoa por trás do lenço e o desconhecido que o
usava. O lenço fazia parte do estilo do rapper, dava “moral”, mostrava “atitude”.
Acompanhando-me em incursões pelas ruas do Riacho Fundo e do Setor P-sul
da Ceilândia, o jovem sempre segurava um livro na mão. Explicou que ter um
livro na mão dava “moral”, “impunha respeito”, principalmente quando se tratava de
encontros com policiais.
Jadsin falava compulsivamente, fazia longos desvios dos temas
inicialmente abordados e não raro se mostrava confuso. A preocupação em
estar constantemente reafirmando a sua “moral”, que é um dos aspectos que
mais sobressai de sua personalidade, dava às suas nada lineares narrativas
acerca dos acontecimentos de sua vida um tom ambíguo: se, por um lado,
afirmava ter descoberto no rap o caminho para a regeneração, deixando para
trás o seu envolvimento com drogas, práticas delinqüentes, rixas e brigas de
rua, por outro, narrava os seus feitos do passado como grandes façanhas.
Além disso, dizia estar permanentemente diante de desafios, sempre
respondidos com uma postura que teria adquirido ora com o rap, ora com o
judô, que pratica, ora com os seus companheiros de UDI, como exemplificam
os fragmentos de entrevistas:
Hoje mesmo eu fui desafiado, eu posso até contar a experiência. Hoje eu tava
andando aqui junto com um colega meu e a gente foi pegar uma fita de vídeo.
A gente passa numa avicultura e aí eu faço simplesmente um comentário sobre
o cachorro, que tem dois cachorros lá e eu tô comprando um cachorro. Só que
ele não tava presente, a mulher dele é que tava presente. Aí eu coloco a minha
opinião: “eu não acho esse cachorro bonito, pra mim esse cachorro eu acho
que tem que ter a boca grande pra provar que a raça dele é pura”. Aí eu fiz
essa observação e saí, fui embora pegar a fita. Quando eu tô descendo, aí o
cara chega, ele não tava lá, e aí a esposa dele chega e fala: “ô, fulano de tal ali
falou que o cachorro não é raça pura, que ele é mestiço”. Aí o cara me viu e
chamou só o meu colega. Eu continuei descendo normal e aí o cara pára no
192
meio da pista e fica me chamando. Eu: “o quê que foi?”. Aí o cara já dá uma
olhada pra mim assim, fica me chamando, insiste em me chamar. Eu: “o quê
será que ta pegando? Tem alguma coisa pegando, acho que vou ter que voltar
lá”. Aí a gente se encontra no meio do caminho, o meu colega que tava me
chamando, aí ele falou: “não vem aqui não. O cara lá tava falando que tu tava
tirando sarro do cachorro dele, não sei o quê”. Eu: “pô, quem é esse cara, eu
nem conheço ele”. Aí meu colega falou que eu ia ter que tomar satisfação
porque a minha moral tava em jogo. Aí eu disse: “não cara, não perder tempo
com isso não, eu tenho a minha cabeça fria e que eu sei onde vai parar essa
merda aí”. Aí meu colega: “cara, mas tu vai ter que ir lá senão o cara vai pegar
no seu pé”, botando pilha. Eu digo não, mas aí eu vi que eu tinha que cortar
logo o mal pela raiz senão podia se agravar. Eu chego lá e o cara ta no balcão.
Eu já chego intimidando ele: “o quê ta pegando aí?”. Ele falou: “ah, não sei o
quê”. Já chegou todo aloprado, nevorsinho: “tu falou que o meu cachorro é
mestiço”. Eu não falei que o cachorro dele era mestiço não. Eu simplesmente
cheguei e falei que pra mim essa raça tem que ter mandíbula. Eu fiz uma
colocação. Eu só me expus a caracterizar uma raça. Aí ele: “não, tu falou que
era mestiço não sei o quê”. Aí a mulher dele veio do lado e falou: “é, tu falou
mesmo, não sei o quê”. Eu falei: “e o quê que tem a ver de ter falado”? Aí eu já
comprei a briga logo. Aí ele ficou falando lá: “ah, então vamos colocar os
cachorros pra brigar”. Aí eu falei que não tava a fim de colocar cachorro pra
brigar não. E o cara ficou falando que era melhor eu tomar cuidado antes de
falar do cachorro dos outros na rua, não sei o quê. Eu falei: “cara, em primeiro
lugar, tu nem me conhece, ta bom? Não sabe nem quem eu sou”. Aí ele ficou
falando assim: “vamos colocar os cachorros pra brigar, não sei o quê,
quinhentos reais, quinhentos reais”. Eu falei o seguinte: “aí, tu quer colocar os
cachorros pra brigar? A gente coloca aí, mas se o meu perder, tu fica com ele
pra tu, se tu ganhar leva o meu. Aí o cara lá ficou colocando desafio e eu vi
que a briga o cara não queria com os cachorros, queria comigo. E tava lá,
limpando uma faca. E os moleque do meu lado falando que queriam quebrar o
cara. Eu tava falando alto com o ele um moleque lá: “eu só queria que o cara
mandasse tu falar baixo que eu já caía cobrindo ele”. Aí nisso eu fico falando
com a esposa dele e ele vai lá dentro e pega uma tesoura e coloca atrás assim.
E eu só olhando os movimentos. Aí eu falei: “aí, se seu cachorro é mestiço ou
deixa de ser é problema seu. Eu não desvalorizei o seu cachorro não”. Aí eu
saí fora. Não virei as costas não. Saí fora e fui embora. E os moleques atrás de
mim continuando a botar pilha [...] Aí você vê que aqui a gente sempre está em
vários desafio, esses confrontos do dia-a-dia mesmo que se você não tiver
cabeça pra sair é numa dessas que você vai, você não passa. O negócio é que
tem que saber se manter. Neguinho valoriza muito a malandragem aqui no
meio, mas malandragem hoje é sobreviver. [...].
Eu faço judô pra trabalhar a minha parte mental e não pra brigar com os outros
na rua. Eu não perco mais tempo com briga de rua. O trabalho mental que eu
faço me dá controle, eu fico limitado àquele sentimento de raiva. A última vez
que briguei com um cara foi uma briga, pode-se dizer assim, sadia, entre
aspas. E esse cara não veio depois pra me matar. Ele podia ter vindo, mas não
veio porque sabia que eu podia correr atrás dele bem antes que ele desse um
pio falando que ia me derrubar. Eu também tinha poder de fogo. [...] A arma
que eu ia usar é o rap mesmo. [...].
Eu aprendi muito com os caras lá (da UDI) a me impor. Até hoje eu sei me
impor. As vezes o pessoal acha que eu sou um pouco rude, um pouco
ignorante porque eu desenvolvi no meio lá uma espécie de sobrevivência. A
gente não pode se sentir inferior, ficar pagando sapo. Tipo assim, se o cara ta
te olhando, você tem que olhar pra ele também, você tem que demonstrar que
não tem medo dele: “ta olhando o quê? Perdeu alguma coisa?”. Digamos que
você carrega aquilo, é um estilo de vida que você passa a ter. Você tem que
193
mostrar que não é inferior, que você não está dando mole. Você dá mole pra
um hoje, o cara monta em você. Agora hoje em dia a minha visão também é
outra, não é igual daquele tempo que rolava esquema: eu não vou atingir uma
pessoa usando a mesma coisa que a sociedade podre que a gente vive. Não
vou tirar o bem do cara, dar um soco na cara do cara, dar um tiro no cara, dar
tiro na casa dele, espancar alguém da família dele, dar um chega pra lá no cara
e me expor como eu me expus antes. Eu posso atingir uma pessoa sem
precisar tocar nela, hoje eu tenho essa consciência. Hoje eu tenho essa visão,
naquela época não. Naquela época sapecava mesmo.
Jadsin deixou a bandidagem, mas não perdeu a “atitude”. Incorporou
uma das idéias chaves difundidas no movimento Hip Hop, qual seja, a de que a
violência deve ser direcionada. Ao invés da força física, não haveria nada mais
impactante do que a força da palavra. E é com ela que segue a sua missão de
“atingir a consciência da juventude” e reconverter trajetórias que levariam à
destinos trágicos: “Cara, não podemos continuar nos matando uns aos outros. Vamos parar
pra pensar
”.
6.2. De integrante de gangue à homem de Deus: a história de Jeferson,
Eduardo e Carliomar
“Suborno”, “Mandraque”, e “Sapão” eram os “vulgos”, ou seja, as
alcunhas de Jeferson (23 anos), Eduardo (22 anos) e Carliomar (22 anos)
quando estavam na “bandidagem”. Não nasceram, mas vivem desde criança
na Ceilândia – os dois primeiros no Setor P-sul e o último na Guariroba, áreas
vizinhas e das mais antigas da cidade. As trajetórias de Suborno, Mandraque e
Sapão se parecem em muitos aspectos. Os três fazem referência a uma fase
decisiva da vida, por volta dos 14 anos, como um marco inicial no envolvimento
com a delinqüência. Nesta fase começaram a participar de gangues de
pichadores, o que era considerado uma brincadeira, uma “curtição”, na falta de
opção de lazer e divertimento. A pichação fazia parte da busca de “animação”,
sendo uma atividade na qual os jovens experimentavam grande excitação
produzida pela exposição ao risco e pela incerteza quanto ao que poderia
ocorrer nos instantes seguintes.
Paulatinamente, eles e os outros integrantes dessas gangues foram
abandonando a pichação e envolvendo-se cada vez com práticas delinqüentes.
194
A diversão lúdica passou a ser considerada “paia”, cedendo lugar ao consumo
e tráfico de drogas, furtos, assaltos e roubos, como relatam.
Eu era da GDF (Grafiteiros do Distrito Federal), os primeiros pichadores de
Brasília. [...] Então era uma gangue que começou com uma gangue de
pichadores. [...] Começou com dez, aí depois foi aumentando. Quando a GDF
fez um ano de gangue já tinha trinta componentes [...]. Era um grupo bem
organizado, tinha um líder que era o M. O M. está fugido porque ele tinha uns
três homicídios e um latrocínio. Depois teve um outro líder que era o O, que era
o parceiro dele na época. Ele também matou um cara e teve que ir embora [...].
Isso tudo era uma gangue que no começo era só de pichação e que acabou
virando gangue de roubo, assalto, ladrões de carro, viciados em drogas, tendo
armas [...]. Então com o tempo, o que começou como uma brincadeira de
moleque, virou um grupo que só tinha bandido, que só tinha cara ruim, do mal
– cara que tinha um homicídio, dois homicídios, três homicídios [...] Começou
tudo numa brincadeira, pichação. Quando foi ver já tava todo mundo se
envolvendo em coisa errada, tava todo mundo perdido, perdido mesmo [...] na
vida de cachorro louco. Com o tempo foi morrendo a maioria dos componentes
do grupo. Uma metade a polícia matou, outros foram outros bandidos que
mataram [...]. Hoje em dia, muitos dos caras que pichavam estão com a idade
mais avançada e são traficantes com armamento pesado. Eles comandam todo
o tráfico da parte de baixo da Ceilândia Norte, são eles que comandam a
rapaziada nova [...].
(Suborno
).
Eu comecei a pichar com a galera do colégio. Nos colégios, você sabe, têm
sempre uns grupos que querem se destacar dos outros. Aí a gente formou a
AUM (Anjos Unidos do Mal). No começo era só curtição mesmo, era o desafio
de pichar os lugares mais difíceis [...]. A gente achava o máximo aquela
adrenalina. Aí a AUM foi crescendo [...]. E aí foi aquele lance de fumar cigarro,
depois baseado, depois dava porrada nas outras galeras pra se impor. Aí o que
aconteceu com o tempo é que aquele pessoal da AUM começou a se destacar
[...]. Os comerciantes daqui nos odiavam, porque a gente roubava os
mercados, padarias, postos de gasolina [...]. Os caras iam até em centro de
macumba pra conseguir armamento. E chegava lá faziam oferendas, riscavam
o corpo, faziam altas paradas. Já tinha a ver com o início do inferno. Era muito
estranho [...]. O D., que hoje está na Papuda, era o meu companheiro de ‘ripá’.
A gente falava: tal dia é renda. Então a gente ia trabalhar. Era esse o nosso
trabalho [...]. As vezes não precisava nem de arma: estava passando uma
pessoa na rua, “me dá o dinheiro”, só fazia pressão em cima e o cara já tinha
que dar [...]. Os primeiros da AUM, o finado M., o finado N., o finado B., o
finado S., pode ver, já é tudo finado. Já morreram.
(Mandraque).
A DCA (Destemidos Contra Atacam) começou com cinco pessoas. Desses
cinco, tem três mortos [...]. No começo era gangue só de pichação, depois virou
gangue de bandidos [...]. Aqui tem uma pá de moleque que era da DCA e que
acabaram morrendo em conflito com outras gangues porque cada uma queria
ser maior que a outra [...]. Eu entrei de bobeira, coisa de moleque, porque
achava gostoso pichar com a galera [...]. Aquele lance de pichar era pra se
divertir, era animação, o lance era o perigo, a adrenalina. Aí a gente começou a
se envolver em outras paradas [...]. Tipo assim, tava sem dinheiro, queria ir pra
um baile, queria comprar uma roupa, queria comprar droga, queria beber, metia
um posto de gasolina, assaltava uma padaria, os comerciantes locais, tanto
195
faz, onde tivesse [...]. Saia para o Plano pra roubar carro, pra Taguatinga [...].
Depenava os carros pra vender as partes [...].
(Sapão)
Assim, a adesão a grupos de pichadores é considerada por Suborno,
Mandraque e Sapão como o ponto de partida de uma trajetória que será cada
vez mais marcada por atividades delinqüentes. Roubos e assaltos passam a
ser feitos para a aquisição de bens valorizados socialmente, como “roupas de
marca”, item principal na hierarquia de consumo na medida em que se
configurava para eles como um meio importante de “ter destaque” entre outros
jovens e as jovens.
Minha mãe não tinha condição de me dar aquelas roupas que eu queria: Nike,
Adidas... A maioria dos pais aqui na periferia não podem fazer essas coisas
pelos filhos [...] Aí eu chegava em casa: “mãe, eu quero um tênis Nike”. E
minha mãe: “eu não tenho condições de comprar”. Quando você é moleque
você fica revoltado [...], você não quer sair com tênis barato, ralé, como o povo
fala [...], fica com vergonha dos amigos. Aí parte pra ripa.
(Suborno)
Tem menina que só gosta do cara vestido de roupa de shopping, dá status. A
gente começa a ter aquela necessidade de andar com aquela roupa cara, com
roupa nova pras meninas ver [...]. Se acha todo gostosão. Como não tem
dinheiro, não trabalha, a mãe não pode dar aquilo, a única maneira que acha é
roubar.
(Mandraque)
Os meninos encarnam quando a pessoa não anda de marca. Ficam zoando. Aí
a gente fica com aquilo na cabeça: “tenho que arrumar um dinheiro, tenho que
ter aquele tênis Nike, aquele boné tal” [...]. Os pais não têm dinheiro pra
comprar e aí começa aquela coisa de ripa.
(Sapão)
Outro bem extremamente valorizado era a arma de fogo que, aos
poucos, foi tomando lugar crucial em suas vidas, pois lhes assegurava
proteção e, principalmente, “respeito” e “moral”.
Tendo arma o cara acha que é mais respeitado, que ele é mais considerado. O
cara se sente o maioral quando tem poder de fogo [...]. Mulher gosta de
meninos que tem arma. As meninas influem muito [...]. Eu também andava
armado por causa dos atritos, eu tinha muitas rivalidades.
(Suborno)
Quanto mais andava armado, mais se sentia considerado, mais se sentia
respeitado. Com armas melhores, se sentia mais respeitado ainda [...]. A gente
botava a arma na cintura pra se defender das guerras, pra fazer assalto, se
196
sentia forte [...]. Você tendo arma você acha que vai amedrontar mais as
pessoas. A arma facilita tudo, o cara vê que você tem atitude. É diabólico [...].
(Mandraque)
Eu me achava superior com uma arma. O cara acha que com a arma tem mais
moral, tem mais poder [...]. Numa discussão, não precisa nem de um tapa, já
tem tiro [...]. Com a arma, o dedo coça, uma bala leva apenas alguns segundos
pra atingir.
(Sapão).
As ruas da Ceilândia eram o palco principal de atuação de Suborno,
Mandraque e Sapão. Passavam o dia transitando, de um local para outro, em
busca de “animação”, “emoção”, “adrenalina”. Roubavam, assaltavam,
consumiam drogas e envolveram-se na “guerra” de gangues da Ceilândia: uma
guerra sem sentido”, afirmam incisivamente. As “guerras” entre diferentes
quadras e setores impunham – e ainda impõem, enfatizam –, principalmente
aos jovens, restrições ao trânsito livre pela cidade. Geralmente têm como
causa desavenças pessoais ou coletivas decorrentes do empréstimo de armas,
do tráfico de drogas e da “pressão”
4
. Nas “guerras”, dizem, não morre ninguém
que é totalmente inocente: geralmente as vítimas são jovens envolvidos com a
“bandidagem”.
Na visão de Suborno, Mandraque e Sapão, “não ter cabeça” é uma das
explicações para a entrada na “bandidagem”.
O cara tá ali na esquina aí passa um chegado e fala: “aí, vamo fumar um ali
embaixo”? O cara vai, o cara não tem cabeça pra dizer eu não vou. Se ele
tivesse cabeça, ele falava assim: “não meu irmão, eu não mexo com essa
parada”. Ele vai pelos embalos, ele não tem cabeça pra dizer não. O pior é a
falta informação. Ninguém fala pra ele que não tem que usar droga, que não
tem que fazer isso ou aquilo. A televisão faz o quê? Bota propaganda ali,
mostra como usa [...]. Então acaba sendo fácil entrar na malandragem porque
tá tudo aí, né, a droga, a violência, e o cara não tem cabeça pra dizer não, vai
convivendo com aquilo, vai entrando sem querer naquele buraco. Aí vai roubar,
vai assaltar, vai vender droga. Vira um marginal.
(Suborno).
Eu achava que eu tinha esperteza porque eu tinha uma certa malícia, que hoje
pra mim, eu digo que é vacilo. Eu não tinha era cabeça, não raciocinava [...].
Me achava o mais rato no meio, o mais safo. Me achava um fodão, como os
caras falam lá no meio, porque conseguia roubar mercado ou cair pra dentro de
4
“Pressão” é uma categoria muito usada pelos jovens do sexo masculino moradores da
periferia de Brasília. Diz respeito à vaidade, virilidade e ethos guerreiro e relaciona-se com a
exacerbação da violência. Por motivo de “pressão” – mulheres, encontros em lugares
badalados ou até mesmo um olhar – cria-se um conflito em potencial.
197
uma casa pra levar uma coisa e sair da polícia, ser rápido. Isso dava status no
meio [...]. O cara não pensa no que é uma cadeia de verdade. Enquanto tá de
menor, passa pela DCA e fica tirando sarro: “aí! Tô guardado aqui” e os cara:
“tu viu, Mandraque caiu, o cara é muito doido”. Isso é ignorância. O cara não
pensa que o inferno dele pode tá começando.
(Mandraque).
O cara não raciocina, tem vento na cabeça, quer dizer, não tem cabeça [...]. O
pai tenta abrir o olho, a mãe tenta abrir o olho e o cara não para pra pensar
naquilo. É um Maria-vai-com-as-outras porque os colegas se envolve, ele acha
que também tem que se envolver. O cara não pensa que pode morrer, que
pode cair numa Papuda, não pensa no sofrimento da família.
(Sapão).
Os três jovens tiveram a experiência de várias passagens pela
Delegacia da Criança e do Adolescente – DCA. Os motivos foram: porte de
arma, assalto, roubo e briga. Somente Suborno esteve internado no CAJE
(Centro de Atendimento Juvenil Especializado), uma instituição vinculada à
Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal.
Tava no auge mesmo da fama e aí fui preso no CAGE. Quando eu caí pela
primeira vez fui pra DCA, aí na DCA eu passei uma noite só. Da outra vez
foram dez, da outra quinze (dias) [...]. Era uma época que eu tava tão perdido...
Os caras vinham na minha cola, foram na trilha e perguntando pra um,
perguntando pra outro, conseguiram me pegar [...]. Tiveram confirmação pelas
vítimas [...].Passei só 45 dias no CAGE, graças a Deus. Aquilo ali não recupera
ninguém, os caras sai pior do que entra. É uma escola do crime. Acham que a
pessoa vai mudar, mas quando sai faz muito pior, ela volta a aprontar.
(Suborno).
O sentimento de encurralamento era partilhado pelos três jovens. Dizem
que sonhavam com um futuro melhor, mas a cadeia, a invalidez ou a morte
eram tomadas como destino certo, único horizonte nos seus “campos de
possibilidades” (Velho, 1994). Para eles o mundo da bandidagem é uma
espécie de prisão, uma vez nele entrando, não é fácil deixá-lo.
Eu pensava: a minha vida já é assim, não tem jeito de mudar. Quanto mais
pensava em regenerar, mais envolvido ficava. Parecia que não tinha saída, que
eu só podia viver de malandragem. O pior é que quanto mais parece que vo
tá se dando bem, mais você tá se dando é mal.
(Suborno).
Quando o cara é viciado, tá com arma direto assaltando, aprontando por aí, o
cara não quer largar aquela vida pra ficar dentro de casa bebendo suco. Ele
não quer se regenerar, pra quê? Pros caras chamar ele de prego? “Esse cara
era bandido, hoje é ele prego!”. Ele quer manter a personalidade dele. Sempre
ser melhor que todos. Ele quer que os outros olhem assim: “vigi, não mexe com
198
esse cara não que esse bicho te mata”. Quer dizer, ele quer ser superior a
todos, o melhor, o famoso. Ele nunca quer perder aquela força dele. O homem
é muito cabeça dura, muito ignorante, ele quer tá acima de tudo, sendo que
quem está acima de tudo é Deus.
(Mandraque).
Sair dessa vida é difícil. Entra, começa a roubá e fica viciado naquilo [...]. O
cara fica viciado porque acha mais fácil roubá que trabalhar. Fica passando
pela mente: “que que eu sei fazer? Onde eu vou arrumá trabalho? Trabalhar
pra quê, pra ganhá uma mixaria”? [...]. Então você entra e pra voltar é difícil,
fica sentindo que é quase impossível [...]. A tentação é mais forte que você.
(Sapão).
O medo da morte, de cair na mão de rivais, é apontado por Suborno,
Mandraque e Sapão como a principal razão que os levaram a desejar
fortemente abandonar o mundo do crime. Os três foram “jurados” de morte e
experimentaram grandes angústias diante da possibilidade de perderem a vida.
Comecei a ser ameaçado de morte. Tava jurado de morte pela gangue do F.
Era uma guerra que tinha entre duas quadras aqui no P-Sul. Um dia os caras
ficaram me esperando na esquina. Quase morri, graças a Deus não fui
acertado. Os caras chegaram sapecando, dando tiro, e eu corri tanto, tanto que
cheguei em casa cuspindo sangue. Correndo, correndo, correndo assim, sabe?
[...]. Eu tinha muito atrito, tinha muitos inimigos por causa das parada errada
que eu tava metido. Aí eu falei: “não vou sair mais de casa não, vou dá um
tempo. Não quero morrer não”. Aí comecei a pensar naquela vida que eu tava
levando, que eu tinha que parar com aquilo.
(Suborno).
Os caras passaram de carro dando logo uma esbarrada. Era pra começar a
detonar. Era uma noite gelada, não senti nada, só o soco comendo. Fui
surpreendido, coisa premeditada mesmo. Não dá pra esquecer porque foi coisa
pesada. Eu sabia que o lance ia acontecer uma hora ou outra porque eu tava
jurado [...]. Teve um dia também que a gente foi assaltar um mercado e os
caras revidaram. Os caras sacaram que a gente já tava passando por lá e
entraram rasgando. Saímos correndo por trás dos postes. Aí eu tive que me
afastar um pouco [...]. Já tinha um certo receio desse dia e aí eu fiquei sabendo
que os comerciantes iam fazer um grupo de extermínio. Tava subindo pra
cabeça a raiva dos caras. Eles tavam tendo que fechar o comércio porque foi
juntando cada vez mais gente no nosso meio achando interessante o estilo de
fazer a coisa. Fiquei com muito medo. Comecei a me sentir na mira de vários
canos. Comecei a pensar: “por que que eu tenho que viver assim nessa
agonia”? Como se você vivesse no inferno.Tinha também a droga que tava
comendo o meu cérebro.
(Mandraque).
Na bandidagem o cara acha que tem um destaque maior, todo mundo fala
dele, que o cara é isso e aquilo outro. Ele fica se achando o máximo. O cara
tem fama, mas ele não passa de um marginal [...]. Quando você vê isso, o
fulano de tal é o mais fodão da área, quando você vê isso, você pode ficar
sabendo que a morte dele está próxima. Porque ele ta criando um ódio tão
grande no meio, tem um destaque tão grande que ganha um monte de inimigos
e uma hora vai aparecer alguém pra matar ele [...]. Eu comecei a ficar famoso,
199
pensava que era forte, mas eu tava metido num buraco, sabe por que? Porque,
sem saber, eu tava criando inveja, os outros bandidos tavam de olho em mim,
tavam querendo me matar, eu tava jurado de morte [...]. Então eu pensava que
era forte, mas eu era um idiota. [...] Uma vez fui com um chegado roubá um bar
lá em cima e de repente apareceu outros bandidos que tentaram acertar a
gente. Os caras tavam com umas armas muito doidas, de dar medo.
Começaram a atirar pra matar e a gente só conseguiu sair dessa porque a
polícia passou na hora e a gente escapou. Eu cheguei em casa apavorado,
tremendo assim, com lágrimas de medo nos olhos. [...] Depois desse dia minha
vida nunca mais foi a mesma, comecei a pensar no rumo que eu devia ir. Uma
coisa eu sabia: que eu não queria morrer.
(Sapão).
As freqüentes ameaças de morte por parte de “inimigos” levaram os três
jovens a “dar um tempo” da rua. Passaram a evitar as saídas para além dos
arredores de casa e a exposição pública em companhia dos companheiros de
“bandidagem”. Continuaram freqüentando a escola, mas não se sentiam em
segurança no interior do recinto escolar. As súbitas entradas nesse recinto, por
motivo de rixa ou vingança, de gangues e galeras era uma constante ameaça.
A violência das ruas invadia a escola
5
.
Este período de reclusão voluntária é descrito como uma fase em que
sofreram forte pressão por parte da galera para retomarem suas atividades: “a
gente sai da rua, mas ela continua te tentando [...]. Os colegas ficam no seu pé cobrando,
fazendo tudo pra você voltar pra ativa. Fica parecendo que ficam o tempo todo vigiando a
gente
”, diz Suborno. Contam que muitos “chegados” começaram a se afastar e,
assim como os seus inimigos, também a ameaçá-los e persegui-los. O
afastamento das atividades delinqüentes teria diminuído a confiabilidade por
parte dos companheiros de “bandidagem”, que interpretaram suas decisões de
distanciarem-se da rua como covardia ou falta de “atitude”.
5
A escola, não apenas em Brasília, mas também pelo Brasil afora e em outras partes do
mundo, configura-se num dos lugares mais marcados pela subcultura das ruas (Guimarães:
1998; Lepoutre: 1997).
No interior dos estabelecimentos escolares existe uma gama de
práticas e de relações sociais, bem distintas e à margem das atividades propriamente
educativas dirigidas pelos profissionais de ensino, que ocupa uma parte não negligenciável da
vida escolar. Essas práticas e relações sociais, autônomas e independentes da instituição de
ensino — em geral desviantes em relação às normas estabelecidas e até mesmo delinqüentes
e clandestinas — não diferem em nada das práticas observáveis no contexto da rua. A
sociabilidade que quase sempre escapa ao olhar e ao controle da instituição de ensino
encontra seu lugar nos espaços e tempos “intersticiais” e recreativos, como pátios, corredores,
escadas, banheiros, proximidade dos muros, entradas e saídas da escola. Nesses espaços, os
jovens traficam e consomem drogas, compram e vendem armas, desafiam gangues e galeras
rivais, brigam e exibem todos os signos que revelam da “atitude” e da “moral” que buscam
manter diante de seus pares.
200
Ao mesmo tempo foi neste mesmo período que fizeram suas primeiras
aproximações da Igreja Universal do Reino de Deus.
Eu achava que nunca ia ter paz, que pra mim não tinha saída. Aí um dia minha
mãe me chamou pra ir com ela na Igreja. Eu vivia falando mal da Igreja, falava
mal dos pastores, dizia que eles só queria tirar dinheiro do povo [...]. Quando
eu passava na frente (da Igreja) e ouvia aquela gritaria, achava aquilo maluco
demais. Aí, não sei porque, naquele dia eu fui com ela e senti uma coisa firme,
uma coisa boa [...]. Antes da gente ir embora o pastor veio falar comigo e com
a minha mãe e me chamou pra ir na reunião dos jovens. No começo eu não ia
nas reuniões dos jovens não, mas eu senti que a Igreja era o caminho que eu
devia tomar.
(Suborno).
Foi uma hora que eu tava no fundo do poço e pela primeira vez quis ir com
minha irmã na igreja. Ela é ‘obreira’, ajuda os pastores no culto. Ela sempre me
falava que só o Senhor Jesus podia me salvar, que ela sonhava com o
momento que Jesus ia tocar meu coração [...]. Eu quis ir com ela porque eu
tava mesmo no fundo do poço e eu queria encontrar uma saída pra aquele meu
sofrimento, pra aquela vida de destruição, quer dizer, pra aquela vida que não
é de jeito nenhum vida, sabe por que? Porque o cara viciado não tem vida não,
ele é um nada no meio do inferno.
(Mandraque).
Foi num tempo que eu tava muito perdido. A irmã F., que é minha amiga,
vizinha desde pequeno, ela faz tempo é missionária na rua. Sempre ouvia ela
falar da força demoníaca que queria destruir o homem, que o demônio sabia
muito bem onde ele agia [...]. Eu que nunca tinha ligado pra Deus e nem pra o
diabo. Parei pra pensar e tive certeza que o diabo tava na minha vida, que eu
tava endemoniado, que eu precisava me libertar. Aí eu quis ir com ela na
Igreja. Comecei a freqüentar a Igreja, a buscar muito a minha libertação [...].
Não há demônio que resista à presença de Deus.
(Sapão).
Assim, os três jovens falam de uma fase “crítica” em suas vidas na qual
o medo da morte, de um destino trágico, impulsionou-os rumo à Igreja. Hoje
estão “sossegados”, “firmes na rocha” e consideram como pecado um conjunto
de comportamentos que faziam parte de suas vidas e, nesse sentido,
assinalam a radicalidade de suas mudanças.
Jeferson, Eduardo e Carliomar foram aos poucos se desfazendo das
respectivas alcunhas de Suborno, Mandraque e Sapão e assumiram após a
conversão ao pentecostalismo a identidade de “irmãos”. “Homens de Deus”,
gostam de dar “testemunhos” de como Jesus “salvou” suas vidas e de falar dos
benefícios advindos da aproximação com a Igreja.
Jeferson se converteu há aproximadamente três anos, enquanto
Eduardo e Carliomar, há dois. São freqüentadores assíduos da Igreja,
201
participando dos cultos no mínimo duas vezes por semana. Em seus relatos, os
três jovens destacam a grande reforma moral que sofreram após terem
“aceitado Jesus”.
Hoje minha vida mudou muito. Deus me deu sabedoria pra desenvolver um
sentido melhor de vida, pra ser uma pessoa humilde [...]. Toda aquela revolta
que eu tinha, contra a minha própria vida, contra minha própria família, contra
minha mãe era falta de reconhecimento. O problema tava em mim, não na
minha família, não na minha mãe [...]. Antes eu achava que pra o cara ter moral
tinha que ser ignorante. Hoje em dia minha visão é outra. Hoje eu tenho
consciência de que eu posso atingir uma pessoa sem tocar nela. Pregando a
palavra de Deus você atinge sem precisar dar tiro, soco, espancar [...]. Eu
prego a palavra de Deus, procuro dar apoio pra rapaziada. Eu falo pra os caras
pensar melhor na vida deles, que se eles continuar a fazer coisa errada eles
vão morrer. Se continuar na malandragem vai morrer. Falo pra eles dar uma
chance pra vida, pra abrir o coração pra Jesus. Porque a juventude não para
pra pensar nisso. Eles não pára pra pensar: “eu começo com isso hoje,
amanhã tô assim, depois vou cair na cadeia, vai acontecer isso comigo”. Se ele
pensar bem, se agarrar em Jesus, ele não faz [...]. Sempre digo: é mais fácil
fazer o mal que o bem. O ser humano é metade bem e metade mal. Cabe às
pessoas saber o que é bom e o que é ruim porque a gente vive no meio de
tudo isso. Se tem uma coisa ruim, você tem que saber o que é aquela coisa
ruim pra que você não chegue àquele ponto ruim. Você tem que fazer uma
triagem e procurar colher o que é bom.
(Jeferson)
Eu bebia, ficava bêbado, fumava, vivia doidão. Parecia mais um morto-vivo
porque a merla tava comendo o meu cérebro. O Diabo tava com sede de me
destruir [...]. Hoje minha vida mudou muito. Deus tocou o meu coração e eu
consegui me libertar [...]. Eu acredito que eu posso estar com o demônio hoje e
ter Deus ali, amanhã, hoje mesmo [...]. Hoje eu fico vendo esses mortos-vivos,
como o M.. O cara não tem cérebro, a merla comeu. O M. era aquele cara que
eu saia da minha casa e era o primeiro cara que eu tinha que ver. Eu dava
mais dez nele do que nos meus próprios irmãos que tava do meu lado ou na
minha própria mãe. Por aí se tira como a droga destrói. Graças a Deus
consegui sair dessa vida de destruição na hora certa. Hoje em dia, até o meu
visual ta diferente. Com o tempo fui melhorando a minha cabeça, comecei a
fazer esporte pra ajudar a largar as drogas [...]. Hoje eu procuro ajudar a
juventude pra ela se envolver no que é bom porque a droga e a bandidagem só
leva pra um caminho: cadeia ou caixão, um destino só.
(Eduardo)
Antes eu era muito material, muito materalista, não tinha vida espiritual. Tinha
aquela ganância, ganância de dinheiro mesmo. Eu gostava de ficar só na
manha sem fazer esforço, achava mais fácil roubar que trabalhar. Tipo assim, o
mal é sempre mais fácil de ser atingido, o lado do mal tem sempre mais
convite. Pensava: ‘trabalhar pra ganhar mixaria?’. Preferia ficar tocando os
rolos, ficar na rua aprontando, roubando. Ganância. Eu não esquentava em
trabalhar [...]. Não adianta nada ter uma roupa cara no corpo, ter roupa bacana
e não ter caráter, personalidade [...]. Hoje eu não tenho muito dinheiro, mas
posso olhar na cara dos vizinhos e dizer que as roupas que eu tô usando eu
comprei com o dinheiro do meu trabalho, ralando. Posso andar com a cabeça
erguida, na moral [...]. Botei muita gente na perdição, era só andar comigo e
tava perdido. Influenciava os outros pra o caminho do mal. Hoje eu tenho uma
missão porque eu sei que eu posso ajudar a resgatar vários irmãos que
202
acabaram se perdendo no caminho da vida fácil. Falo de como Jesus mudou a
minha vida, falo pra a rapaziada: dinheiro é bom, mas tem que trabalhar.
(Carliomar).
Atualmente os três jovens trabalham: Jeferson é atendente de uma
lanchonete no Plano Piloto, Eduardo é ajudante de cozinha de um restaurante
em Taguatinga e Carliomar trabalha na oficina mecânica de um tio na própria
Ceilândia. Os dois primeiros concluíram o Ensino Fundamental, mas apenas
Carliomar prosseguiu os estudos e cursa a segunda série do ensino médio.
Afirmam que hoje levam uma vida pacata e, no que concerne ao lazer,
costumam jogar futebol, freqüentar reuniões familiares assim como as que
acontecem nas casas de “irmãos” da Igreja e evitam as diversões da bebida,
dos bares, boates, bailes e shows profanos. Concebem o lazer como um tipo
de concessão divina, permanentemente vigiada por Deus, sendo as diversões
apenas permitidas após cumprirem suas obrigações religiosas, dentre elas orar
e sair para “ganhar almas”, atividades realizadas individualmente e em grupo.
A presença da religião nas suas vidas interferiu também nos seus
comportamentos domésticos e intensificou os laços de união com a família.
Após a conversão, houve uma transformação radical em relação ao ambiente
anterior de conflito e violência.
Minha mãe, ela passou muita dificuldade comigo. Eu aprontei muito, fiz muita
coisa errada. E assim foi por muito tempo. Ela brigava comigo, eu xingava, eu
gritava, eu não tinha respeito. Eu fazia minha mãe chorar muito [...]. Minha mãe
já foi pra delegacia achando que eu tinha levado um tiro na cabeça, quer dizer,
uma mãe que já tinha perdido a esperança toda, entendeu? Uma mãe que tem
um filho que leva um tiro na cabeça porque seu filho fica roubando, assaltando,
se drogando. Minha mãe sofreu muito [...]. Passou pela humilhação de ser
revistada pra me ver atrás das grades [...]. Depois que eu aceitei Jesus mudou
tudo, mudou completamente. Hoje a casa tá transformada, não tem mais briga,
discussão, a gente conversa, a gente ora junto.
(Jeferson)
Quando eu chegava em casa bem doidão, minha mãe ficava naquela assim,
mas nunca falava nada, ela ficava com medo de mim. Eu entrava em casa,
bagunçava tudo, avançava nas panelas, jogava a roupa em qualquer lugar [...].
Eu só entrava em casa pra comer e dormir. Dormia de manhã, de tarde, não
tinha hora pra nada [...]. As vezes eu chegava em casa com dinheiro e ela me
perguntava: “onde tu arrumou esse dinheiro?”. Aí inventava, falava que tinha
vendido uma coisa minha, mas tinha é roubado. Minha mãe, minha irmã,
qualquer um quando queria falar comigo, que tentava me alertar, eu ia logo
partindo pra ignorância [...]. Hoje eu ajudo a arrumar a casa, lavo louça, faço
203
feira [...]. Minha mãe sofreu muito por minha causa e eu me arrependo muito
das coisas que eu fiz.
(Eduardo)
Lá em casa sempre tinha briga. Eu não ouvia ninguém, brigava era com todo
mundo. Minha mãe queria saber como eu conseguia as coisas que eu aparecia
e isso dava sempre briga [...]. Meu pai brigava comigo de dar paulada, falava
que ia me mandar pra longe [...]. A polícia ia atrás dos ganhos lá em casa e
minha mãe ficava com aquela cara de choro, sentindo aquela dor no coração.
Às vezes eu ficava com aquele nó, mas continuava aprontado [...]. Em casa eu
me sentia sozinho, não tinha ninguém pra conversar. Eu era muito fechado,
não queria saber o que acontecia dentro de casa [...]. Depois que eu deixei pra
atrás aquela vida que eu levava eu tenho uma outra mentalidade: dou valor à
família que eu tenho, vejo todo o esforço do meu pai e da minha mãe pra criar
os filhos no caminho do bem [...]. Agora a gente vive em paz e meu desejo é
fazer alguma coisa boa pra vida deles.
(Carliomar).
6.3. Passagem de um mundo a outro
Detive-me na trajetória de quatro jovens socializados em ambiente de
pobreza da periferia de Brasília cujas histórias colocam em xeque a idéia de
irreversibilidade do destino de quem se envolve no mundo do crime. Eles
encontraram, tal como um número expressivo de jovens das camadas
populares moradores da periferia da capital que um dia estiveram enleados na
delinqüência, um caminho alternativo a um destino que lhes parecia
incontornável, qual seja, a prisão, a invalidez ou a morte violenta.
A aproximação do Hip Hop, no caso de Jadsin, e a conversão religiosa,
nos de Jeferson, Eduardo e Carliomar, desempenharam um papel fundamental
no afastamento do mundo do crime. Todavia, assim como a adesão e a saída
de adolescentes e jovens da delinqüência têm causalidade complexa, também
não existe nem uma única porta de entrada nem uma única de saída. Nesse
sentido, vale lembrar os inúmeros projetos voltados para a juventude visando à
expansão da cidadania social, de iniciativas, governamental e não
governamental, que têm contribuído para ampliar os canais de integração e
operar uma transformação de valores “por dentro”, alterando os destinos de
uma parcela de jovens envolvidos em atividades criminosas.
Ou seja, o Hip Hop e a conversão religiosa são apenas alguns entre
outros “atalhos” possíveis para que os jovens encontrem uma saída para o
204
mundo do crime e para o destino trágico que ele delineia. Foi por uma dessas
vias que Jadsin, Jeferson, Eduardo e Carliomar passaram por uma espécie de
reforma moral, restaurando valores banalizados durante a passagem pela
bandidagem, como o respeito à vida, a convivência da família, a paz em casa.
Puderam resgatar a perspectiva de futuro, perdida num tipo de vivência que
privilegia o imediatismo das experiências do presente, conseqüências do
passado construído por eles.
Conquanto existam diferenças entre as quatro trajetórias, ao cruzá-las
encontrei algumas regularidades que imediatamente chamaram a atenção.
Dentre elas, o próprio início de suas atividades delinqüentes no princípio da
adolescência a partir da adesão a gangues de pichadores, formadas motivadas
pela procura de ação, de “animação”, de “adrenalina”, segundo os informantes.
Contudo, podemos acrescentar que por trás desta busca há algo próprio do
ethos da adolescência: na concepção adolescente de existência, o valor de
uma pessoa se mede essencialmente pelo olhar e julgamento feitos por seus
pares. A pichação, neste processo de construção de um self reconhecido pelo
grupo de interconhecimento, representaria a chance de alcançar prestígio e
reputação. Outro ponto comum nas quatro trajetórias é o fato de que, aos
poucos, a prática da pichação, inicialmente considerada como uma atividade
lúdica, foi sendo substituída pelas do furto, roubo, assalto, tráfico de armas e
drogas. Já na bandidagem, Jadsin, Jeferson, Eduardo e Carliomar envolveram-
se na “guerra” violenta e homicida entre gangues rivais da Ceilândia, uma
“guerra”, devo assinalar, que ainda hoje vitima anualmente dezenas de jovens
do local.
Certamente nem tudo na trajetória dos quatro jovens converge. No caso
de Jadsin, a saída do mundo do crime parece-nos menos impactante, embora
tenha implicado numa transformação radical. Deu-se, ao que seu relato indica,
paulatinamente, sem que um evento crítico ocorresse para influenciá-lo em sua
decisão. O desmantelamento da UDI em razão da perda de seu líder, a
mudança de cidade e ausência de contato diário com os companheiros de
gangue são concomitante ao interesse do jovem pelo rap e às suas reflexões
sobre as suas chances de sobrevivência. Jadsin também pôde, ao se
205
aproximar do Hip Hop, traçar um caminho de vida superposto na medida em
que a linguagem do rap o obriga a manter o seu passado vivo: as temáticas
ensejadas pelo mundo do crime, pela violência, pela atuação das gangues e
pela delinqüência juvenil nas periferias urbanas são revestidas nesse
movimento de outros significados, ganhando interpretações invertidas.
Já nos casos de Jeferson, Eduardo e Carliomar, o móvel imediato para a
saída do mundo do crime teria sido, como eles próprios relataram, a
intensificação das perseguições por parte de inimigos e a reação da sociedade,
com contínuas ameaças de morte. Diante da possibilidade concreta de
perderam a vida, os jovens viram na religião um caminho socialmente aceito
para abandonar práticas delinqüentes.
A partir do momento que se converteram, a moral da Igreja Universal
rígida se transformou, para os três jovens, numa espécie de cinturão de
segurança para uma vida saudável e de blindagem contra a moral e valores do
mundo do crime. Deixaram de consumir drogas, cigarros e bebidas alcoólicas,
circunscreveram as relações de amizades basicamente dentro do limite da
comunidade religiosa e da família e passaram a evitar toda e qualquer situação
que os expusessem aos riscos de sofrer ou cometer violência. A conversão
religiosa
6
significou para eles a chance de reinterpretar, reorganizar e dar
6
A conversão religiosa é um tema controverso nas ciências sociais e bastante caro aos
estudos sobre religião, havendo uma dificuldade de conceituá-la claramente. Snow e Machalek
(1984), depois de realizarem uma síntese de todos os trabalhos ligados a esse fenômeno,
colocando as suas múltiplas definições e nuances num continuum de mudanças pessoais
sobre uma escala na qual, segundo suas análises, é difícil de determinar onde começa e onde
termina a conversão, acabam concluindo “que ainda falta construir uma conceitualização da
conversão religiosa... a maior parte das concepções – adotadas – [...] são ambíguas e mal
definidas” (Snow & Machalek, op. cit: 185). De fato, quando tentei fazer um paralelo entre as
trajetórias dos quatro jovens, interpretando o caso de Jadsin como uma espécie de conversão
semelhante à conversão religiosa, deparei-me com uma literatura que não poderia levar muito
longe, tamanha falta de acordo sobre uma definição do fenômeno. Glock & Stark (cit. em
Allievi, 1999), por exemplo, definem a conversão como “o processo pelo qual uma pessoa vem
a adotar uma total visão-de-mundo penetrante (pervasive) ou muda de uma determinada
perspectiva para outra”. Já Travisiano (cit. em Allievi, idem) a define como “uma radical
reorganização da identidade, significação e vida”. Heirich (cit. em Allievi, op. cit.) fala em
mudanças no “sentido da suprema motivação”. Rambo (1993), renunciando a toda tentativa de
definição “objetiva”, contenta-se em dizer que “conversão é o que um grupo ou pessoa diz que
isso é” (Rambo, op. cit.: 7). Snow & Machalek (1984) não chegam a defini-la, mas dão grande
ênfase na mudança do universo de discurso. Eu, que não sou estudiosa do tema, tendo a
entender a conversão como uma estratégia/mecanismo para o indivíduo reorganizar a vida,
dando-lhes possibilidade de assumir uma nova identidade. Pensei no paralelo. Adoto, então,
uma perspectiva relativizadora em relação ao conceito, menos totalizante, como a proposta por
Hefner (1993) que entende a conversão como “a aceitação de um novo locus de identificação,
206
continuidade as suas biografias – a vida de bandidagem passa a ser associada
à influência do demônio e do mal, o que dá sentido a uma situação que, de
outra maneira, os tornaria desacreditados nas suas pertenças sociais atuais.
Também significou a possibilidade de encontrar alegria e prazer noutras
experiências, geralmente de cunho religioso e familiar, e a chance, como
afirmam, de estabelecer um elo privilegiado com Deus, permanentemente
fortalecido pela prática da oração e pelo compromisso de levar uma vida sem
pecados, identificada como uma vida pautada pela humildade e generosidade,
sem lugar para o orgulho, a arrogância e o uso da violência.
Transpor o mundo do crime, portanto, implicou num processo de
“mudança radical” dos sujeitos e de seus universos discursivos, elementos
característicos da conversão religiosa, mas que também podem caracterizar
outras “trocas de mundos” (Berger & Luckmann: 1973). Jadsin, por exemplo, ao
aderir ao rap, passou por uma transformação radical – mudou de
comportamento, adotou um novo modo de pensar, deixou um grupo para
integrar um outro – e deu sentido a sua vida pretérita, marcada pela violência,
transgressões e delitos, reinterpretando a sua biografia dentro do aparelho
legitimador da nova realidade proposta pelo discurso do movimento Hip Hop. A
conversão religiosa de Jeferson, Eduardo e Carliomar também lhes permitiu
realizar uma reinterpretação biográfica, fundamental para se livrarem do
estigma de um dia terem assumido a condição e identidade de “bandido”. Nos
quatro casos, as novas pertenças mudaram as cores do passado dos jovens,
restaurando a ordem e o sentido de suas vidas presente e futura.
um novo, porém, não exclusivo ponto de referência” (Hefner, op. cit:17) a partir do qual o
indivíduo reorganiza e subsidia sua identidade social.
207
CAPÍTULO 7
O JOVEM E A POLÍCIA: OLHARES CRUZADOS
Todo mundo sabe que existe uma birra entre o
povo da periferia e a polícia. O povo tem que
aprender que nem todo o polícia é mau e a polícia
tem que aprender que nem todo jovem de bermuda
larga é bandido. Eles são povo como nóis. E nóis
contra nóis não vai levar a nada.
(Rapper da Ceilândia)
As relações entre os jovens e as instituições policiais são fortemente
marcadas por uma mútua desconfiança e, principalmente, pela violência. Os
policiais realizam suas atividades de vigilância e controle sob a lógica da
dominação territorial do Estado (Barreira, 1999). Geralmente, é exatamente neste
ponto onde jovens e policiais entram em conflito. Os jovens costumam estar
sempre circulando pelo espaço urbano, seja em sua rua, sua quadra, sua cidade
ou mesmo, eventualmente, em outras localidades que compõem a região
metropolitana de Brasília. E quando estão em circulação, normalmente se
deparam com patrulhas da Polícia Militar e da Polícia Civil, ou melhor, são
achados pelos policiais.
Os policiais são agentes de combate à criminalidade, mas a polícia possui e
exerce funções bem mais amplas de controle social. No cotidiano põem em
exercício práticas punitivas e disciplinares, quase sempre extrajurídicas, e se
dirigem aos jovens que encontram nas ruas, durante o policiamento ostensivo –
função específica da polícia militar–, fazendo uso de categorias estigmatizantes,
como, por exemplo, as de “malandro”, “vagabundo” e “folgado”. O uso dessas
categorias não serve apenas para designar os jovens que circulam pelas ruas,
mas “serve também para agirem violentamente sobre seus corpos e mentes”
(Barreira, op. cit: 151).
208
A polícia é um tema recorrente no discurso dos jovens moradores da
periferia de Brasília que, a partir das experiências vividas, se mostram críticos e
incisivos sobre a sua atuação. Apontada pelos informantes como um dos
principais agentes da violência na periferia, a polícia é retratada com falas
carregadas de hostilidades e relatos que configuram verdadeiras denúncias.
Em razão da gravidade e da grande carga emocional que acompanha o
relato das situações expostas, fez-se importante, no quadro deste estudo,
confrontar as visões dos jovens sobre a polícia com a percepção da atuação dos
próprios policiais. Além disso, é sabido que as interações na esfera da segurança
pública, que abrange uma ampla rede institucional, têm envolvido cada vez mais
jovens, adolescentes e crianças
1
.
Desse modo, este capítulo centra interesse na relação dos jovens com a
polícia. Quais as suas representações sobre esta instituição e o sistema de
segurança pública? Como experimentam e percebem as revistas policiais? Como
encaram os dispositivos legais que os atingem, como menores ou maiores de
idade? A ótica dos jovens será aqui contraposta à perspectiva dos agentes de
segurança pública. Um papel privilegiado foi dado aos policiais, que foram
chamados a expressar suas posições acerca das mesmas temáticas discutidas
com os jovens, assim como a expor as suas percepções sobre o próprio papel na
sua relação com esses sujeitos.
O conjunto dos discursos indica a existência de um confronto, de um
conflito, de uma tensão permanente entre as visões dos jovens e policiais.
Contudo, como veremos, essa relação comporta ambigüidades: a polícia é odiada,
objeto de raiva, revolta, desconfiança e medo e, ao mesmo tempo, julgada
1
Embora se trate de um conceito amplo, “segurança pública” é aqui entendida na sua dimensão
mais claramente apreendida pelos cidadãos no cotidiano: refere-se às ações levadas a cabo pelo
Estado no que se refere ao combate ao crime, a prevenção, repressão e punição de práticas
delituosas e contravenção de todo o tipo. A segurança pública, tomada nessa perspectiva, envolve
uma extensa rede institucional, que abrange o aparato policial, penitenciário, judicial e a
organização jurídico-legal, que fixa os imperativos e interdições formais que ordenam a
coexistência social e estabelece limites, restrições e obrigações às próprias instituições
responsáveis por prover a segurança. Entre os diversos sujeitos encarregados dessas atividades
209
necessária pelos jovens; o policial ora encarna a lei, a justiça que corre atrás de
criminosos, ora o cúmplice, o protetor dos jovens pobres.
7.1. Falando sobre a polícia: um primeiro retrato feito pelos jovens
A polícia é um tema recorrente no discurso dos jovens. Se estão em grupo,
criam freqüentemente tumulto ao abordá-lo e, sozinhos ou em grupo, enchem-se
de pejorativos para falar daqueles que, a princípio, consideram um de seus
maiores inimigos
2
. Tratam o assunto com familiaridade, indicando que a polícia faz
parte da rotina de suas vidas. Dizem que por ela não se sentem protegidos, que a
relação entre eles é
“péssima”, que eles a “odeiam”, e acusam os policiais de serem
grosseiros, agressivos, violentos e deles receberem maus-tratos.
As abordagens policiais são bastante freqüentes, tendo uma natureza
corriqueira e banal. Estar na rua depois das dez da noite, andar em grupos, vestir-
se com bermudões folgados, jaquetona e bonés –
“Kit malandro”, “marginal padrão”, na
linguagem dos policiais
– indicam atitudes suspeitas que acabam sujeitando-os ao
“baculejo”, isto é, à revista policial. Andar apressado, correr e até brincar também
são atos que se constituiriam em atitudes suspeitas, como observam os jovens:
Você não pode nem brincar de ficar correndo na rua. Porque se você brincar de
ficar correndo, se eles passam e você está correndo na quadra, pensam logo:
“tudo mala”. E a gente tava só correndo, só brincando.
estão os policiais e os delegados de polícia, os agentes penitenciários, os juízes e os membros de
suas cortes. Para maiores detalhes ver Rua (1996).
2
Vale dizer essa percepção da polícia como o “maior inimigo” também faz parte do imaginário de
jovens de outras grandes cidades brasileiras, principalmente pertencentes às camadas populares,
moradoras de favelas e de periferias. Ver, por exemplo, os estudos de Minayo (1999) e Silva
(1997) para o caso do Rio de Janeiro, Shirley (1997) para o de Porto Alegre, Sallas (1997) para o
de Curitiba, Cardia (1997) para o de São Paulo, Barreira (1999) e Diógenes (1998) para o de
Fortaleza. Mauro Cerbino identifica essa mesma percepção entre jovens pandilleros do Equador:
“a polícia é vista com ‘ódio’, como o ‘pior’ ou como o ‘pior inimigo’. O rol da autoridade da família
ou da polícia se desgastou, segundo os jovens, por suas próprias práticas” (Cerbino, 2006: 80).
Tudo leva a crer que, pelo convívio com comportamentos violentos e arbitrários da polícia, há uma
tendência entre os jovens da América Latina (será que não do mundo?) a odiá-la e considerá-la
como uma instituição sem legitimidade, corrupta e perigosa.
210
Nós tava na rua brincando, nós tava jogando, aí os cara chegaram, começaram a
dar chute nos maior.
Nem mesmo os jovens trabalhadores seriam poupados das revistas:
“a gente
trabalhando, o cara chama a gente de vagabundo, de marginal, de safado, de pilantra”
, diz
Sérgio, 17 anos, contando que, quando trabalhava no Plano Piloto, saía muito
cedo de casa, ainda de madrugada, e que muitas vezes foi abordado por policiais
no trajeto de casa à parada de ônibus. Como ele, existiriam muitos outros jovens
submetidos à mesma situação de revista, o que é percebido como desrespeitoso e
procedimento intolerável, principalmente em se tratando de um trabalhador.
Os jovens são abordados próximos ou mesmo na porta de suas casas, na
frente da vizinhança, sentindo-se envergonhados e bastante humilhados, tomando
o gesto como um grande “insulto moral”
3
: “Tá apanhando da polícia, eles vão dizer que é
santo”?
. Indignado, Pedro, 16 anos, narra como escapou de uma revista na porta
de casa. Sua atitude teria despertado irritação num policial que mais tarde o
interpelou, ainda na porta de casa, prometendo vingança:
Esses dias tava eu e mais dois chegados no show do Liberdade Condicional, um
grupo de Rap. Nós curtimos lá e tal. Aí eles vieram de cavalo e tudo e nós: ‘vai
ficar?’ que nada! Vamos lá pra casa. Nós fomos levantando e aí um chegou lá na
rua de casa direto pra dá o bote. Eu corri, fui pra dentro de casa. Ele pegou o outro
lá e começou a dar bacu e dar porrada nele, lá na frente da minha casa. Isso era
de noite, umas oito e meia. Aí todo mundo vem, né? Aí eu saí e ele virou pra mim:
“porque aquele bicho correu?”. Aí eu: “sei não. Ninguém sabe não”! E começou a
bater. Aí eu: “mãe, mãe, vem cá! O polícia quer entrar numas”. Minha mãe veio e
eu corri pra dentro de casa. Na hora que eu saí, ele me arrastou e começou a dar
bacu e falou: “Oh, bicho, tu deu sorte porque tu correu pra dentro da tua casa. Mas
3
A Noção de “insulto moral” foi formulada por Cardoso de Oliveira (2002) no intuito de tentar
compreender atos ou eventos de desrespeito à cidadania, que não possuem uma materialidade
evidente e por isso normalmente não são captados de modo adequado pelo judiciário ou pela
linguagem dos direitos. Uma das características principais do fenômeno é a desvalorização ou
negação da identidade do outro. Outra característica relevante é o fato de se tratar de uma
agressão objetiva a direitos e que não pode ser adequadamente traduzida em evidências
materiais. Creio que o aspecto da “desvalorização” do outro é o que mais me permite falar aqui em
“insulto moral” e, nem tanto, do aspecto material da agressão. Isto porque a violência a que
geralmente os jovens são submetidos, nas abordagens policiais, não possui apenas um caráter
simbólico, ou seja, não é somente um ato de desconsideração, mas tem uma materialidade
incontestável, na medida em que seus corpos são tocados e, em determinadas ocasiões,
maltratados, o que um simples exame de corpo-delito poderia comprovar. Contudo, creio que a
dimensão moral, imaterial, da agressão é a que mais se apresenta como problemática do ponto de
vista dos jovens.
211
o dia que eu te pegar na rua, tu pode ter certeza que eu vou te arrebentar todinho”.
Falei: “Aí mãe, tá ouvindo, né”?
Geralmente, verbalizam os jovens, a polícia não obedece ao procedimento
de identificação do indivíduo. Não há diálogo. Simplesmente o policial os
surpreende aos gritos, tomando-os como vagabundos e marginais
: “Não têm nenhum
respeito com a gente, nenhum mesmo. Nem pede documento da gente. Eles nem te conhecem e
falam que você é vagabundo, é marginal, é não sei o quê”.
A polícia parte sempre do
princípio que todo jovem é delinqüente e, de modo geral, os jovens sentem-se
tratados por ela como bandidos e malandros e, mais uma vez, apontam para o
estigma espacial:
“Acho que com a polícia que trabalha na periferia não existe jovem, sempre é
aquele jovem malandro, vagabundo. Qualquer jovem da periferia é malandro, é vagabundo”
.
Estar em grupo, como observado, já indica para a polícia uma atitude
suspeita –
“eles logo pensam: coisa boa não tá fazendo”. Nestas ocasiões, os jovens são
abordados e obrigados a se dispersar
. Muitas vezes, a ordem policial de dispersar
ou ir para casa é por eles ignorada: recusam-se a sair do lugar, mesmo diante da
ameaça de apanhar, e respondem a ordem com desafio. É o que conta Didinho,
de 17 anos:
“Na maioria das vezes eles mandam a gente dar uma volta, ‘vai embora’, ‘vou não,
vou ficar bem aqui’. Ele fala: ‘eu vou bem ali, se eu voltar e tu tiver aqui, tu vai levar uma surra’.
Falo: ‘levo’”.
Silvana refere-se ao permanente conflito que trava com a polícia e afirma
que nunca obedece a suas ordens. A moça acumula muitas histórias sobre esses
confrontos e, tal como reage em relação aos “bodinhos”, há sempre em sua fala
uma promessa de vingança:
“pode bater, pode bater. Eu só falando ... . Não fiquei calada
não, pode bater, você ainda vai ter seu troco”.
Ainda que insista no fato de viver em
choque com a polícia, reitera a opinião da maioria dos informantes, que sustenta
por vezes existir uma atitude de certa deferência em relação às meninas e serem
as jovens bem menos revistadas que os jovens. Explica que a razão disso está
exatamente na situação de ser mais difícil haver um policial feminino
acompanhando um grupo de policiais masculinos que, por lei, não podem colocar
as mãos em mulheres. Quando muito, diz, os policiais passam o detector de
armas nas meninas. No entanto, faz questão de salientar que, a partir de certo
212
horário, as moças são tratadas pelos policiais masculinos e/ou femininos da
mesma maneira que os rapazes, sendo xingadas, revistadas, ameaçadas e
levando tapas:
“‘Cala a boca sua piranha, sua prostituta, sua vadia, vagabunda, safada, sua
puta, sua rapariga’. Pegou assim deu na nuca [...] elas batem, batem mesmo. Não tem dó não,
batem xingando”.
Alguns jovens diferenciam e comparam o tratamento por eles recebido das
Polícias Civil e Militar. A Policia Civil é considerada como melhor e tida como mais
respeitosa, mais educada, só abordando quando há evidência de atividade ilegal:
“A Civil não dá bote, quando quer dá o bote certeiro”. Já a Polícia Militar “faz do modo dela”,
sem motivos concretos,
“não quer saber de nada”, “não se enquadra nas formas dos direitos
humanos”,
partindo sempre de acusações, procurando encontrar elementos
incriminadores e muitas vezes forjando o flagrante para justificar a sua ação:
“Quer
que a gente dê conta de arma que não tem”; “Bota coisa que não tem nada a ver com você”.
O
PATAMO (Patrulhamento Tático Móvel) é o mais temido pelos jovens, pois é
considerado o grupo mais violento da Polícia Militar.
Embora nessa comparação a Polícia Militar seja apresentada como mais
violenta que a Polícia Civil, nas entrevistas surgiram muitos depoimentos sobre
maltratos e torturas nas delegacias, cometidos pela Polícia Civil, o que não
aconteceria nas ruas:
“A Polícia Civil só é educada quando está te abordando na rua ou
quando está na delegacia na frente de testemunha. Quando eles te levam pra um quartinho, te
botam na dura”.
Não foi propriamente uma atitude “educada” da Polícia Civil que tive
oportunidade de presenciar na rua. Apesar de os jovens afirmarem que raramente
são abordados pela Polícia Civil e que ela, ao menos na rua, os respeita mais que
a Polícia Militar, durante o trabalho de campo fui surpreendida por uma operação
relâmpago, que considerei inteiramente desrespeitosa, levada a cabo por agentes
da Polícia Civil.
Era um sábado, por volta das quinze horas. Numa praça no setor P-sul da
Ceilândia, estava entrevistando Isac, líder de uma gangue de pichadores, virada
de costas para a rua e sentada num pedaço de meio-fio solto. A Polícia Civil
chegou em “camburão”. Quatro policiais, aos berros, mandaram o rapaz
213
“encostar”, colocar a mão na cabeça e avançaram sobre ele para revistá-lo.
Ressalto que os policiais já desceram do carro com a arma apontada para Isac.
Foi tudo muito rápido. Tentei intervir, falar com os policiais, mas não cheguei a ser
ouvida. Os policiais desapareceram do mesmo modo que chegaram: como um
relâmpago. Depois que se retiraram, Isac disse estar acostumado a esse tipo de
revista e que somente não teria apanhado devido a minha presença. Continuamos
a entrevista e ele se manteve em absoluta calma, ao contrário de mim, que
demorei a me refazer do susto levado. Era o primeiro de uma série de outros
baculejos que eu iria, ao longo do trabalho de campo, presenciar.
Voltarei ao tema baculejo ponto que considero central na medida em que é
um dos maiores motivos de atrito entre os jovens e a polícia. Antes, porém,
sobrevoarei o universo policial, construindo um primeiro plano de “olhares
cruzados”. Sublinho que, do mesmo modo que ocorre com os jovens vis-à-vis aos
policiais, esses últimos também desenvolvem representações sobre os primeiros.
7.2. Falando sobre os jovens: um primeiro retrato feito pela polícia
A réplica que ora apresento é parte dos discursos de policias militares. Vale
salientar que a maioria dos entrevistados, praças
4
, atua nas ruas e nas escolas e
confessa não ter uma formação específica para tratar com jovens. Recebem, na
verdade, um treinamento que os habilita a lidar com a sociedade em geral
5
. Desse
modo, a visão que têm do jovem é construída a partir de comparações com suas
4
Conforme os informantes policiais, soldados com a patente de até subtenente são designados
“Praças”, mas, na verdade, consultando a literatura especializada, constatei que desse modo são
nomeados os policiais que trabalham nas ruas e fazem o policiamento ostensivo. A maioria dos
entrevistados estava na faixa etária entre 23 a 35 anos e contava com tempo de carreira não
inferior a quatro anos.
5
Em entrevista com um grupo do Batalhão Escolar da Ceilândia um dos policiais mencionou
existirem integrantes do Batalhão que passaram por cursos de sensibilização no sentido de
aproximarem-se mais dos adolescentes, facilitando o convívio cotidiano. Detalhes sobre esses
cursos eram ignorados não somente pelo próprio informante, como também pelo restante do
grupo.
214
próprias experiências de vida, enquanto jovens, e das relações cotidianas que
mantêm com jovens dentro e fora do trabalho policial.
Alguns policiais afirmam que a juventude de hoje
“perdeu o valor próprio, vive em
função da desordem”, “o negócio dela é se relacionar com drogas”, “não quer saber de nada”, “é
ambiciosa”, “só quer ganhar dinheiro fácil”.
Ainda, segundo os informantes, faltam limites
aos jovens, responsabilidade, noções de respeito ao outro e educação.
Os jovens da periferia, principalmente os que entram para a marginalidade,
são percebidos como revoltados. Os policiais dizem que o ambiente de
socialização favorece essa revolta, pois esses jovens são criados cercados de
violência, não somente presenciando-a desde muito cedo na rua, mas
principalmente na esfera familiar. São jovens
“traumatizados, “criados em casa sem
amor”, “sem orientação”
, com “famílias desestruturadas”. Acusam os pais de não
acompanhar o desenvolvimento dos filhos:
“Não tem nenhum tipo de assistência, nenhum
tipo de orientação, vão pra rua e o que tem na rua? Roubo, droga, tudo o que não presta”.
Ao
mesmo tempo, afirmam que os jovens têm muita energia, que não sabem para
onde canalizar e por isso caem na criminalidade.
Nota-se que a polícia, diante da pesquisadora, incorpora o discurso genérico
que culpabiliza a “desestruturação familiar” pelo comportamento violento dos
jovens
6
.
6
Vale ressaltar que as entrevistas com os policiais foram realizadas dentro dos Batalhões de
Polícia e com informantes escolhidos pelos comandantes, o que pode, certas vezes, ter dado às
suas falas um conteúdo típico de um discurso pronto e esperado. Dada as condições da pesquisa,
em nenhum momento tive contato com os policiais entrevistados fora de seu ambiente de trabalho,
ou seja, não fiz sucessivas aproximação do grupo, localizando-o em diferentes esferas de
relações, como seria desejável numa abordagem de caráter etnográfico. Tenho absoluta
consciência de que entrevistei os policiais numa situação de interação totalmente artificial,
agravada pelo controle dos seus superiores. Contudo, estou convicta de que os entrevistados
acreditam sinceramente no que dizem, nas idéias sustentadas, mas realmente não é possível
afirmar que suas práticas profissionais cotidianas são por elas orientadas, até porque a cultura
militarista centralizadora, a rígida hierarquia linear, a disciplina draconiana e o ethos autoritário que
domina o ambiente institucional acabam se interiorizando nos soldados. Acredito que estiveram
sempre temerosos de sofrerem punições ou repressões caso se aventurassem a atuar de modo
“não convencional”, colocando em risco a integridade da corporação, baseada na plena
solidariedade entre pares e respeito incondicional às normas por ela ditada, a despeito de sua
razoabilidade (Muniz, Larvie, Musumeci & Freire, 1997; Katz, 1990). Dizendo de outro modo, nada
leva a crer que a sensibilidade, a compaixão, o “sentimento do outro” aflorados durante as
entrevistas têm peso na relação rotineira que mantêm com os jovens. Ao contrário, de acordo com
o que dizem os próprios jovens, há um esquecimento de qualquer emoção e sensibilidade. Na
215
Por outro lado, a falta de cuidado e atenção dos pais em sua convivência
com os jovens obrigaria os policiais a incorporarem a função de educadores.
Dessa maneira, dizem, a polícia estaria substituindo uma função que, a princípio,
seria da família, qual seja, a de mostrar limites aos jovens, a de ensinar o certo e o
errado:
Só duas pessoas podem botar limite neles: os pais e a polícia. Muitos pais não
conseguem e aí a gente tem a obrigação de botar o limite neles, o que é certo, o
que é errado. [...] Se a família ensinasse o jovem desde o início, a polícia não
precisaria se meter na vida do jovem. Mas quando falta os pais em casa, quem vai
ter que impor o limite na rua? A polícia. Ela substitui um pouco a família, ensina o
que deve e o que não deve.
(Policiais Militares do Batalhão Escolar, Ceilândia).
A escola é criticada, pois não auxiliaria as famílias na formação dos jovens.
Segundo os policiais, os profissionais do ensino necessitariam passar por uma
“reeducação” para apreenderem a educar os jovens e para poder ajudá-los a lidar
com os “traumas” acumulados em função de uma rotina repleta de violência:
O professor hoje em dia é um profissional da educação, não um educador. Ele está
ali para cumprir o horário dele e ganhar dinheiro e daí não quer nem saber,
principalmente não quer nem se preocupar com a vida do jovem em casa.
(Entrevista com Policiais Militares, Ceilândia)
Tal como fazem em relação à família, os policiais colocam-se também como
uma alternativa aos profissionais da educação:
“A Polícia Militar atual é como uma mãe.
Aqui você tem que fazer de tudo, tem que ser professor, tem que ser educador, tem que ser
psicólogo”.
Os policiais representam a si mesmos como defensores dos interesses e
valores da sociedade, com possibilidade de colocar limites, para manter a
tranqüilidade e ordem e para obrigar o cidadão a cumprir leis. O principal papel da
polícia seria garantir a segurança pública, hoje, segundo os informantes, centrada
verdade, estas entram em conflito com os valores, disposições e atitudes que guiam a conduta
exigida de um militar.
216
no policiamento ostensivo. É nesse contexto que, para eles, a abordagem policial
e o baculejo se inscrevem.
7.3. Baculejo: a revista policial
A imagem selecionada (Figura 1), apresentada na primeira página do
caderno Cidades do jornal Correio Brasiliense em 21 de novembro de 1999, é de
autoria de Jefferson Rudy e ilustra uma matéria sobre a violência em Sobradinho,
outrora considerada uma das mais pacatas cidades-satélites da periferia de
Brasília. A escolha desta fotografia deve-se ao seu impacto visual e pela sua
capacidade de sintetizar e, ao mesmo tempo, traduzir o sentido de uma das
situações principais que pretendemos expor ao longo deste capítulo.
Fig. 1. Baculejo em Sobradinho. Fonte: Correio Brasiliense, 21/11/1999; foto:
Jefferson Rudy
O texto associado à fotografia fala sobre o aumento dos índices de violência
na cidade e refere-se a uma operação especial montada pela Polícia Militar para
conter a onda de criminalidade. A legenda diz: A Polícia Militar montou
acampamento em Sobradinho II para tentar reduzir a criminalidade e combater as
guerras entre gangues de jovens que fez vítimas na última semana. A reportagem
esclarece o contexto da operação, narrando sete recentes histórias de vítimas de
217
assalto, roubos, ameaças e perseguições por bandidos. Em nenhum dos sete
casos, os agressores chegaram a ser identificados e nos episódios envolvendo
invasões de escolas, os assaltantes estavam encapuzados. Na introdução a essas
histórias, a jornalista alude às “brigas entre grupos rivais”, aos “comuns tiroteios
em festas juvenis” e reproduz depoimentos colhidos entre moradores: “as ruas
estão cheias de meninos desocupados. O dia inteiro. A população sabe até onde
eles usam drogas, mas não fala porque tem medo. Acho que não confia na
polícia”. Finalmente, no extremo abaixo da página, uma curta reportagem fala
sobre a guerra de gangues na cidade. Naquela semana, durante uma festa,
confrontos entre grupos de jovens rivais teriam provocado duas mortes e feito seis
feridos.
Um exame cuidadoso dessa página de jornal revela o quão, nós leitores,
podemos ser induzidos a operar uma associação simbólica entre jovens e
marginalidade. Embora a maior parte do conteúdo do texto apresentado trate de
histórias criminais e de dados estatísticos do crime em Sobradinho, não
explicitamente envolvendo jovens, a imagem os transforma, necessariamente, em
agentes principais produtores de violência: são o alvo da repressão policial por
participarem de gangues, é isso que a legenda sugere ao apresentá-los. A mesma
idéia encontra-se reforçada no modo como a repórter procura dar sentido à sua
matéria, introduzindo-a e finalizando-a fazendo referência ao comportamento
violento dos jovens do local.
Ora, dissociada do texto que a acompanha conta uma história por si só e
torna-se passível de interpretação com outra construção social de seu significado,
em nenhum momento aludido na reportagem. No exercício de olhá-la, busquei
captar o que a imagem enuncia ou, como diria Becker (1986), procurei ir além do
que ela mostra e perceber o clima, a avaliação moral e as conexões causais que
sugere.
A familiaridade com a cena, somada aos depoimentos dos jovens e dos
policias, permitem-me fazer uma nova leitura da foto apresentada. Acredito que
aquele que me segue, ao finalizar a leitura deste capítulo também encontrará
218
novos sentidos para a imagem captada pelo fotógrafo, sobre a qual antecipo
algumas explicações.
Trata-se de um baculejo, ou seja, uma revista policial, passada durante o dia,
numa rua residencial. Cinco jovens do sexo masculino estão sendo examinados
por um dos três policiais militares que os abordou. Sua expressão é dura,
revelando seriedade e tensão no que faz. Os outros dois policiais encontram-se
em posição que os permite acompanhar a revista. Os rapazes estão voltados para
a parede exterior de uma casa, pernas abertas, mãos para o alto e na parede, e
cabeça baixa. Pela proximidade das cadeiras, que inclusive se misturam às pernas
dos jovens, parece que, antes da chegada dos policiais, eles encontravam-se
sentados, tendo sido apanhados de surpresa.
Uma mulher e um homem, parados, observam de perto a cena. A posição
dos braços da mulher, com olhar voltado para os rapazes, não indica que está
tendo alguma reação ao que se passa. O segundo observador, também atento
aos jovens, tampouco parece dialogar com os outros policiais. A revista
aparentemente está apenas começando e o tempo transcorrido ainda não é
suficiente para permitir a aproximação dos espectadores mais distantes, que
vemos no canto superior esquerdo da foto, ao lado de uma árvore. Se forem
jovens, minha hipótese é a de que se manterão onde estão.
Particularmente expressivas são as posturas dos jovens e do policial que faz
a revista. Os primeiros, ao prepararem-se para serem examinados, não esboçam
qualquer reação e mantêm a cabeça bem curvada, indicando claramente ao
policial sua submissão. O segundo, pela dureza ou tensão contida em sua
expressão, reproduz as normas de condutas militares para situações de perigo.
Uma das características mais marcantes dessas condutas é exatamente o esforço
para objetificar as emoções: elas devem ser tomadas como algo externo, e não
como expressões interiores do eu. Ou seja, há um gigantesco esforço para a
219
supressão das expressões emotivas, substituídas por metáforas da ação e do
corpo
7
.
Do conjunto da cena, cabe destacar a passividade dos jovens e adultos, o
que reforça minha crença numa espécie de banalização da violência de que são
objeto no cotidiano. Por outro lado, a cena também revela a trivialidade da
violência por parte do opressor, demonstrando que existe ali uma situação
absolutamente “natural”, da perspectiva de todos os atores envolvidos.
A mesma cena de revista policial, o baculejo, se repete como rotina na
periferia de Brasília, o que bem ilustra uma mais recente fotografia, publicada no
mesmo jornal, que acompanha uma reportagem sobre a violência dos jovens nas
escolas do Distrito Federal (Figura 2).
Jovens e policiais vêm tais revistas segundo óticas diferentes. Essa
experiência diferenciada será contraposta a seguir.
7
Katz (1990) dá o exemplo de sargentos instrutores do exército americano que fazem uso dessas
metáforas acompanhadas de certas “armas” discursivas, tais como a substituição do pronome da
primeira pessoa do singular – “eu” – por formas impessoais ou por pronomes da segunda e
terceira pessoas, com objetivo de evitar a expressão dos sentimentos. Esta substituição ou
camuflagem acabam fazendo que as ações e estados corporais ocupem quase inteiramente o
lugar dos sentimentos. Nessa tentativa, perpassa o entendimento tácito de que as emoções são
perigosas e de que lhes dar vazão equivale a ser aprisionado por elas e perder o controle de si. Os
sentimentos fragilizam e enfraquecem os soldados, daí o interesse em assumir e comunicar uma
atitude anti-sentimental. Acresce-se, e complementa esse padrão de atitudes, a utilização de um
código lingüístico restrito, a predileção pelo modo imperativo, a quase supressão de respostas
verbais aos comandos, uma prosódia marcada pelo tom elevado e ríspido das vozes, a postura
rígida do corpo, a face ereta e vazia de expressões emocionais, a contração dos membros, além
das passadas mecânicas treinadas à exaustão na rotina da instrução militar e executadas com
precisão, garbo e exagero durante as paradas e desfiles militares. Finalmente, uma atitude
consciente de distanciamento de si, produto de uma teatralidade exagerada que impregna as
interações na caserna e, na condição de representação pública de um papel social, proporciona
uma recompensa aos atores envolvidos, sob forma de sentimentos de enorme gratificação.
220
Fig. 2. Baculejo na porta de escola na Ceilândia. Fonte: Correio Braziliense, 28/07/2007.
7.4 A percepção do baculejo pelos jovens
Os baculejos – normalmente chamados de “bacu” – e arrastões realizados
pela polícia suscitam revolta e indignação nos jovens. Segundo os informantes,
durante essas revistas policiais, várias possibilidades de agressão se desenham,
desde a humilhação, a violência física, até a extorsão. Contudo, se por um lado os
jovens afirmam que as abordagens são acompanhadas de um alto grau de
violência, por outro não deixam de falar sobre a existência de policiais que atuam
de acordo com os regulamentos de sua corporação:
“Alguns agem normalmente, outros
já vêm com a violência porque pensa que está fardado, pensa que é tudo”
.
Ser ou não baculejado depende da sorte, do encontro com algum policial
mais ou menos camarada, dizem os jovens. Mas também falam que, na maioria
das vezes, são xingados, levam chutes, cuspe na cara, tapas no rosto, na orelha,
221
na boca, na cabeça, “botinada” e “cabada”. A impunidade policial e o abuso de poder,
segundo esses jovens, são uma constante.
Descrevendo o bacu
“O bacu das PM é bem assim: eles colocam a gente de perna aberta, eles manda a gente
escorar na parede, a gente fica assim ó, eles chegam assim ó, pega assim pra abrir. [...] Os homi
ficam metendo farolzão, ‘que vocês estão fazendo aqui, moram onde?’ Leva uma bordoada na
lenha”.
“Eles não chega pra dá bacu legal, manda você passar debaixo da viatura, sem encostar a
barriga no chão. E eles já fazem isso já pra bater”.
“Tava todo mundo de bermuda sem camisa, os caras já chegou dizendo que tava vendendo
droga e já veio dando bacu na gente, batendo e empurrando, ‘encosta aí’, com a pistola dando o
golpe, apontada pra gente. A gente falou, ‘a gente não é marginal não’. ‘Não te perguntei nada,
cala a sua boca e encosta aí’ [...]. Aí ele foi lá, deu uns tapa e depois subiram rindo da cara da
gente, como se fosse tudo bandido”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Ceilândia, Samambaia
e Planaltina)
Os policiais militares são motivo de deboche entre os jovens e são
constantemente chamados de
“Manés”, “babacas”, “bichas”, “cuzões”. Essa
desqualificação manifesta-se como um desabafo, uma revolta, uma raiva pela
violência e, sobretudo, pela humilhação a que são submetidos.
Nas abordagens que presenciei, os jovens foram baculejados obedecendo a
todas as ordens policiais em silêncio. Somente após a retirada da polícia,
começavam os xingamentos, os risos, as ironias, como se quisessem recuperar
um pouco da dignidade perdida pela situação de uma humilhante exposição
pública. O maltrato, as humilhações, a violência policial geram, como observado,
um sentimento de revolta. Se muitos dos jovens se calam, outros tendem a
revidar, mas não somente com ironias, deboches e desafios, e sim procurando
oportunidades de vingança:
“Aí a gente fica cansado e depois o jeito é atirar mesmo na
polícia”.
222
Presenciando mais um baculejo
(Notas de campo)
A polícia inclui as praças da cidade em sua lista de batidas. São os jovens os escolhidos para se
submeterem às revistas. Outro dia a Polícia Militar chegou num carro com doze policiais armados para dar um
baculejo. O tenente já desceu com a arma apontada para o grupo, mandou todos encostarem na cerca da
quadra de esporte e a revista foi geral. [...].
O tenente disse que aquilo era rotina, que os meninos estavam acostumados e me aconselhou que
tivesse cuidado, pois “são todos bandidos”. A reação dos jovens à presença policial parece confirmar a rotina
de serem submetidos a esse tipo de revista. Ninguém reagiu, todos foram para a cerca em silêncio e
assumiram a postura corporal exigida pelos policiais: virar as costas, mãos acima da cabeça, pernas abertas,
tronco curvado. A vizinhança assistiu a cena como quem vê um filme que se repete a cada dia. Ninguém
interferiu, todos observaram e limitaram os comentários a poucas palavras.
Depois da partida da polícia a revolta foi geral: os jovens denunciaram os maus-tratos, externaram o
ódio que sentem de policiais, falaram que se tivessem armas melhores acabariam com eles. Curiosamente,
após o episódio, conversando na sede do Batalhão com o tenente S., comandante da operação, e com outros
policiais que estiveram presentes nessa ação de baculejo, eles comentaram que os jovens possuíam armas
bem melhores que a deles: “Esses meninos possuem armas bem mais poderosas que as nossas”.
Comentaram também que, no decorrer do ano, trinta policiais haviam sido mortos por menores: “Quando um
policial morre é menor que mata”. [...]
Retornando ao baculejo da praça, como disse, os meninos ficaram furiosos com a revista. Falavam
todos ao mesmo tempo, xingavam os policiais, prometiam vingança. A indignação era tamanha que conseguiu
diluir um conflito entre os jovens, a respeito do consumo de merla, que se esboçava antes da chegada dos
policiais. [...]
Esses jovens participam do tráfico como aviões, praticam assaltos, furtos, andam armados, alguns
mataram. Não formam exatamente uma gangue, embora alguns diziam pertencer a uma ou outra gangue.
Agem em parceria para terem mais lucros com o fruto dos assaltos. O dinheiro é usado principalmente na
compra de roupas, de “fumo”, no lazer, na bebida. Moram com a família e a ela atribuem a responsabilidade
do sustento da casa. Portanto, gastam o dinheiro com eles próprios.
Nesse grupo de quinze jovens baculejados, praticamente a metade estava calçada com um chinelo
de griffe famosa. Todos vestiam bermudas largas, uns estavam sem camisa, outros não. O boné também
fazia parte do look de alguns. Orgulhavam-se do estilo “largadão”, mas diziam que era exatamente esse estilo
que os tornavam mais visados pela polícia: “é jovem, anda vestido assim, a polícia vai logo em cima”.
Vale observar que a situação de serem pegos em flagrante, cometendo
algum delito tem, como conseqüência, o encaminhamento à delegacia. Porém,
conforme os informantes, antes desse procedimento policial são submetidos a
uma série de castigos. É o caso dos pichadores que, quando surpreendidos, são
obrigados a limpar a rua, eles próprios são pichados e freqüentemente apanham:
“Apanhei das onze da noite até as duas da manhã, pior que um condenado”. Não somente
uma situação de flagrante os sujeitaria a apanhar da polícia. Como relatam,
também a falta de documentos e a simples desconfiança de que estejam
223
traficando fazem com que sejam considerados suspeitos e, portanto, submetidos a
brutalidades e violência física.
Apanhando da polícia
“Uma vez apanhei do Patamo. Tava eu e dois moleques, eles pediram documento, nós não
tinha, só a única coisa que eles fizeram desceram do carro, colocaram nós assim e encheram de
porrada”.
“Aí os homi chega se tiver nas esquinas, já chega perguntando: ‘o que vocês estão
fazendo?’. A gente já fala: ‘nada’. ‘Nada por quê? Tão traficando? Onde é a casa do mais
pobre?’[...]. Isso acontece todo dia. Eles não perguntam nada, se perguntasse era bom. Se demora
pra falar seu nome apanha, se falar demais apanha mais ainda. Se ficar calado apanha, se você
olhar pra cara deles você apanha, se você pisca ele te dá uma banda. Teve um dia que eu olhei
pra cara do polícia e ele falou: ‘tá olhando por quê?’ Já me ferrei, me fez fazer a abertura todinha
das pernas”.
“A gente tava descendo a rua e chegou os homi. A gente com as mãos tudo amarela assim
de trabalhar. Meu amigo trabalha de serralheiro e a mão dele fica cheia de coisa. O cara pensou
que ele fumava maconha. Aí ele falou assim: ‘Você fuma maconha?’ Aí ele falou bem assim: ‘não’.
‘Você fuma sim pode falar’. E foi e deu um tapa nele. Ele falou: ‘não cara, eu trabalho de segunda
a sexta. Aí só porque ele falou eles começaram a bater nele assim, dar bicudo”.
“[...] levou um amigo nosso uma vez pro mato, de tanto espancar, quebrar garrafa,
cassetete, ele só conseguiu sair no outro dia. Quebrou garrafa, atirou os pés na cabeça dele, falou
que ia matar ele. Eles faz isso. Se levar pra o mato pode saber na mesma hora, você não volta”.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Ceilândia, Samambaia
e Planaltina)
Os jovens sentem-se humilhados, lesados, agredidos, violentados, mas
dizem que são impotentes para reclamar ou denunciar:
“se reclamar, apanha”. Seria,
falam, a palavra deles contra a dos policiais, e temem represálias:
“Se reclamar, dá
bacu de novo
, diz Fábio, de 16 anos, que aproveita para contar a história de um
amigo próximo que teria desaparecido e nunca mais retornado após ter tomado a
iniciativa de denunciar maus-tratos policiais. Band, de 17 anos, já cansado das
brutalidades policiais, responde a minha indagação sobre as possibilidades de
denúncia e conclui a conversa resumindo:
“Quer saber, se eles te pegam aqui, eles te
quebram no pau. Se eles te pegam na delegacia, te quebram no pau e ainda dizem: ‘Se você falar
pra o juiz, quando você voltar eu te quebro no pau’”.
224
Quando perguntados sobre o nível de conhecimento que suas famílias têm
dos maus-tratos que sofrem nas mãos dos policiais, alguns jovens revelam o
receio de contar para os pais o que lhes acontece na rua com a polícia:
“Eu não
conto não, se contar ele vai falar: ‘é claro, você é vagabundo, fica na rua caçando ir para a
cadeia’”.
Outros dizem que são instruídos pela família para guardar o nome do
policial. No entanto, não cheguei a conhecer um só jovem que tivesse formalizado
uma denúncia de policiais às autoridades competentes
8
.
Nas formulações discursivas apresentadas até o momento, o aspecto que
mais sobressai é o de uma interação extremamente conflituosa entre jovens e
policiais, na qual a violência policial é a grande tônica. Tenho, a esse propósito,
alguns pontos importantes a acrescentar, que podem dar margem a uma série de
outras pistas e caminhos para uma reflexão sobre a relação entre esses dois
atores sociais.
De posse das entrevistas registradas e de minhas notas de campo, para a
minha grande surpresa, os casos mais cruéis de violência policial são narrativas
quase sempre com relação a uma terceira pessoa, um amigo, um parente, um
“chegado” e raramente são histórias vividas pelo próprio narrador. Com isso não
quero afirmar que o que foi narrado até agora não constituam situações de
extrema violência. Mas o curioso é que os jovens contam detalhes de episódios
trágicos e bárbaros que não presenciaram e que, devido ao próprio desfecho,
estariam longe de poder reconstituí-los:
A polícia pegou o cara de madrugada, levou pra bem longe, torturou, espancou
sem dó e atirou no cara pensando que era um bandido que ela tava procurando. O
cara sofreu foi muito, gemeu, pediu pra deixar ele viver que ele tinha família.
Espancaram ele demais antes de atirar e matar. Aí jogou ele lá embaixo, no
matagal, e fugiram.
Perguntei a Binho, de 17 anos, se ele tinha visto os policiais levarem o “cara”,
ou se alguém nas redondezas teria presenciado o acontecido, ao menos a
8
Pesquisas nacionais mostram que existe no Brasil uma falta generalizada de credibilidade da
polícia, motivo principal que levaria, não apenas os jovens, mas a população em geral, a não
registrar queixas, seja em relação às arbitrariedades policiais, seja em relação a casos de roubos,
furtos, agressões físicas, etc. Consultar Cardia (1997).
225
abordagem policial. O rapaz respondeu-me que não, mas que tinha certeza de
que aquilo era obra da polícia, pois
“eles matam sem ter a certeza até que o cara é bandido.
Só porque o cara tava de boné e jaqueta”.
Um segundo ponto que não deve passar em branco diz respeito às
expectativas de futuro de alguns jovens entrevistados. O desejo de um dia
tornarem-se policiais não pode ser desconsiderado. Embora tenha escutado de
muitos informantes que
“pé de bota, nunca serei” e outras coisas similares, também
ouvi algumas vezes, principalmente de jovens adolescentes envolvidos em
práticas delinqüentes, que seu maior desejo é tornarem-se policiais. Como meu
espanto sempre foi enorme ao ouvir esse tipo de afirmação, sobretudo porque,
freqüentemente, vinha de jovens assumidamente ingressos no “mundo do crime”
ou que estavam em permanente conflito com a polícia, nunca deixei de lhes
indagar o porquê, ou melhor, como assim?
Para esses jovens, um dia vir a ser policial seria uma forma de “reparo”. Não
se trata exatamente de uma reparação social, no sentido de uma justiça coletiva,
mas, principalmente, individual. Dizem querer sentir o gosto do poder, o gosto de
estar do outro lado. O gosto de poder humilhar, maltratar, matar, enfim, o gosto da
impunidade. É com uma espécie de inversão de papéis que sonham e, nesse
sonho, os jovens de amanhã não teriam chances diferentes das suas: seriam
igualmente pisados por um par de botas, semelhantes ou pior ao que lhes pisou.
Seriam os seus, afirmam.
7.5. A percepção do baculejo pela polícia
A proposta, desde o início, é a de cruzar olhares. Não pretendo com isso
relativizar a violência característica da atuação da polícia. Pode até mesmo ter
ocorrido que os policiais indicados pelo alto comando para serem entrevistados e
que se dispuseram a conversar comigo sejam “bons policiais”. Mas,
independentemente disso, não há como considerar os episódios, atitudes e
comportamentos relatados pelos jovens apenas como um “desvio
226
comportamental” de maus policiais. Ao contrário, é preciso considerar sua forma
de agir como parte de uma “cultura institucional” que se reproduz pelo Brasil
afora
9
. Além disso, como já foi notado a propósito da polícia do Rio de Janeiro, a
percepção da atuação dos policiais carrega um forte sentido de corporativismo no
qual não é admitido o reconhecimento de abuso de autoridade ou truculência
(Minayo, 1999).
No Distrito Federal, a abordagem é vista pelos policiais como uma técnica,
não como uma violência, como a consideram os jovens
10
. Trata-se, nas suas
visões, de uma ação racional, não arbitrária, de um procedimento condizente com
o treinamento recebido dentro da corporação e que visaria a proteger a
integridade tanto dos policiais quanto dos “suspeitos”. Como toda a ação racional,
a abordagem deve prescindir de motivação e conteúdo afetivo, devendo ser
produtiva e ter eficácia. Contudo, os jovens, diferentemente, a percebem não
como uma ação técnica, ou seja, como uma ação desprovida de motivação e de
conteúdo afetivo, pois para eles a abordagem é necessariamente humilhante.
Além disso, não consideram que exista qualquer racionalidade no comportamento
dos policiais. Ao contrário, a identificação por estes de um possível meliante
mediante alguns signos (maneira de vestir, cor da pele, local de trânsito, de
moradia, etc.) é tomada como uma perseguição ou ofensa pessoal. Os mesmos
signos ganham então diferentes interpretações: para os policiais seriam signos
“técnicos”, que conformariam o marginal, enquanto que para os jovens esses
signos falariam mais da sua condição de existência, de sua condição de
juventude, sendo errônea e arbitrariamente interpretados pelos primeiros.
Segundo os policiais, a abordagem deve ser realizada quando há
“suspeição” e sua função é a de garantir a segurança, principalmente das áreas
consideradas críticas. E não somente os jovens são abordados, pois
9
Veja, por exemplo, os depoimentos coincidentes dos jovens e policiais de Curitiba e do Rio de
Janeiro sobre atuação policial naquelas cidades em Sallas (1999) e Minayo (1999).
10
Tive oportunidade de entrevistar policiais em Curitiba, onde a percepção da abordagem policial
como uma técnica também estava presente no discursos dos informantes. Volto a chamar a
atenção para o fato de estarmos diante de uma “cultura institucional” que mereceria uma análise
comparativa mais aprofundada.
227
Em área crítica todo mundo é suspeito até que se prove o contrário, estudante ou
não, trabalhador, todo mundo é suspeito.
(Entrevista com Policiais Militares, Ceilândia).
A gente tem que abordar, a gente não vê escrito na testa assim: ‘eu sou de bem,
sou de paz’. Ninguém gosta de ser policiado, mas assim que o policial suspeita
tem que fazer revista pessoal.
(Entrevista com Policiais Militares do Batalhão Escolar, Ceilândia).
Porém, como denunciam os jovens, os policiais confirmam que as turmas de
jovens paradas nas esquinas são imediatamente tomadas como suspeitas e
sujeitadas a revistas:
“Montinho assim na esquina, rodinha, a gente vai abordar pra ver o que
eles estão fazendo ali. [...] A nossa função é abordar antes que eles venham cometer qualquer
erro”.
O “Kit Peba” – bermuda “ciclone”, calça caindo, cabelos soltos, boné, tênis de
marca, correntes e anéis –, a bicicleta, que é considerada o veículo de locomoção
mais comum entre os que comentem delitos, a forma dos jovens caminharem,
falarem e olharem para os policiais são associados a certo “biotipo” de malandro
ou bandido. Por isso o jovem deve ser abordado.
Antigamente a gente perguntava pro pessoal as características dos meliantes.
Hoje a gente não precisa mais perguntar, a gente já sabe: é boné, camisa toda
colorida, bermudão.
(Entrevista com Policiais Militares, Ceilândia)
[...] sempre que a gente vê os trajes parece que bate.
(Entrevista com Policiais Militares, Ceilândia)
O caráter preventivo das abordagens policiais é bastante enfatizado. Dizem
que, como resultados desse trabalho, conseguem apreender armas, drogas e,
principalmente, evitar que crimes e delitos ocorram. As rondas e abordagens,
realizadas várias vezes ao dia, nos mesmos lugares, e visando as mesmas
pessoas, seriam fatores inibidores do crime.
Se você está sempre em determinado local, sempre que passa uma viatura e te
aborda, então você vai evitar permanecer armado, cometer algum delito naquele
local. [...] É igual campo de futebol, um time fica tentando atacar o outro, toda hora
228
ali tentando, uma hora faz o gol. É a gente abordando, abordando, abordando,
uma hora a gente faz o gol, a gente pega o meliante.
(Entrevista com Policiais Militares, Ceilândia).
Assim, a abordagem policial não é considerada, pelos próprios policiais,
como insulto, e menos ainda como uma violência, pois faz parte da rotina de
defesa da população contra bandidos e marginais.
A abordagem policial
(Entrevistas com Policiais Militares)
“Aqui a gente vê a maioria desses jovens que ta na esquina aglomerado como suspeito
porque normalmente os assaltos e roubos que acontecem são dois ou três de bicicleta, boné,
então a formas deles se vestirem já os torna suspeitos”.
“Muitas vezes as pessoas não gostam de serem abordadas. Os jovens não gostam e eles
acham essa abordagem um insulto e uma violência, mas não há. Há casos que há violência, mas
há maus policiais, acontece muitas vezes, mas não é sempre. 99% dos policiais abordam de uma
forma tranqüila. Nós abordamos uma área crítica igual a nossa visando também a nossa
segurança. É uma rotina: chega, manda encostar na parede e faz revista pessoal”.
“Não é nem inteligente de nossa parte ficar abordando adolescente e ficar agindo de forma
militar. A gente aborda da forma mais rápida possível, sabe por quê? Porque a abordagem acaba
mais rápido, não tem confusão para levar para a delegacia, porque o nosso objetivo é prender o
meliante que ta armado, que ta com droga e etc. e tal. Então a gente já aborda de forma mais
educada possível e mais rápida possível”.
“Os jovens confundem violência com energia. A polícia tem que ser enérgica. Para a sua
própria segurança, você tem que chegar: ‘mão na cabeça, abre as pernas ...’. Tem que deixar o
sujeito em posição que não reaja. Aí confundem isso aí com violência. Busca pessoal é segurança,
quer dizer, se a gente chega lá de qualquer jeito, o policial pode até ser baleado, como já
aconteceu”.
Dentro das escolas, em seus corredores, entradas e saídas, as abordagens
do tipo baculejo são mais raras, afirmam os policiais, mas as revistas não deixam
de ser efetuadas. A identificação do “suspeito” segue o princípio do “kit peba” –
“aquelas calças fundão, aquelas blusonas grandes, o boné daquele jeito” – acrescido da
maneira de se comportar, da “educação” do aluno:
“Os rebeldes passam e mexem com
229
a polícia, a gente fica observando, talvez esteja com droga, talvez esteja armado, dá pra
desconfiar porque esse tipo de elemento é que anda armado”.
Os policiais do Batalhão Escolar fazem questão de sublinhar que a prática
policial dentro das escolas é bastante distinta da que se realiza na rua. As revistas
pessoais nesse recinto devem evitar qualquer tipo de constrangimento para o
aluno e que quando não contam com a absoluta certeza de “flagrante” necessitam
de autorização dos diretores para realizá-las. No entanto, após descrição
detalhada de um tipo ideal de procedimento nas escolas, acabam confessando
que ele raramente ocorre:
“A gente tem que pedir autorização do diretor, avisar ao diretor se
não tiver certeza, mas, no meu caso, nunca precisei perguntar ao diretor, depois que tenho certeza
vou lá e pego”
11
.
Cabe sublinhar que a polícia, na percepção dos policiais entrevistados, é
feita de boas ações e ressentem-se do baixo reconhecimento social do seu
trabalho, dos maus-tratos e olhares estigmatizadores da sociedade que recaem
sobre eles. Consideram-se vítimas das injustiças dos juízos negativos feitos pela
sociedade, pois a presença policial é constantemente solicitada pela população
que, paradoxalmente, se sente perturbada pelo fato dela constranger e reprimir, o
que estaria totalmente em conforme com as atribuições da polícia
12
.
11
O procedimento que deveria ser adotado nos casos de constatação de delitos nas escolas, tais
como porte de armas ou drogas, seria o de solicitar reforço policial e encaminhar o menor à
Delegacia da Criança e do Adolescente – DCA.
12
Durante as entrevistas, a insatisfação dos policiais com o tratamento desigual que dizem
receber, e o que consideram discriminação contra a polícia, ficou ainda mais patente quando
procurei abordar o tema dos Direitos Humanos. Numa atitude provocativa, com todos os que
encontrei perguntei o que achavam das palavras que já ouvira de policiais não somente em
Brasília como também em outras cidades do país: “Direitos Humanos são direitos de bandidos”. A
partir daí passam a criticar severamente os Direitos Humanos, que são tratados não como um
conjunto de idéias, mas de modo personalizado, como se fossem as próprias pessoas que os
defendem ou os representam – jornalistas, advogados, comissões da OAB. Os Direitos Humanos,
segundo os entrevistados, são sempre invocados erroneamente, estão sempre em local errado,
protegem bandidos, traficantes e criminosos. Defensores e representantes dos Direitos Humanos
são ainda acusados de se portarem de modo excessivamente injusto com a polícia, instigando a
revolta e o ódio da sociedade contra a mesma, além de nunca assumirem uma posição a seu
favor: “Eles nunca estão quando realmente precisam deles, só aparece para proteger bandido, o
bandido em geral, o de menor ou de maior, seja lá qual for. A gente e o cidadão comum
geralmente não têm o direitos humanos para falar por eles, para atender eles, atende só o
bandido. Ele nunca está para atender a gente, nunca está. Ele está só nos presídios, nas
delegacias, nos hospitais. Eles estão com os bandidos”. Mais uma vez eles expressaram o
sentimento de serem obrigados a cumprir as suas responsabilidades em uma situação de
230
A injustiça pelo baixo reconhecimento das ações dos “bons policiais” e pelo
estigma a que são sujeitos leva os policiais a discursarem sobre o seu dia a dia
desgastante e arriscado, sobre a falta de apoio recebida por aqueles que
trabalham em área crítica e são freqüentemente obrigados a enfrentar situações
de risco. Falam que são mal aparelhados e que, por razão de uma rígida
hierarquia na corporação, os cursos de “
relações humanas e públicas” são destinados
aos seus superiores e aos que trabalham no Plano Piloto –
“Quem trabalha no plano é
cheio de cursos, nós aqui só temos curso de rádio patrulha”
–, evidenciando uma atitude, ao
mesmo tempo, fortemente defensiva e carente de atenção do Estado. Postura
tanto mais defensiva quanto mais a pesquisadora aproxima-se do tema
“juventude”.
7.6. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): mais um motivo de
tensão entre jovens e policiais
Confrontados com a visão negativa que os jovens fazem deles, os policiais
reagem com uma série de acusações no sentido desfazerem essa imagem,
responsabilizando a juventude pela ampliação das manifestações de violência no
Distrito Federal e confessando impotência diante desse quadro
13
. Essa impotência
é atribuída fundamentalmente a dois fatores: os jovens de classes média e alta
não são punidos por gozarem de influência social e, por isso, desautorizam a ação
desvantagem, por terem que lidar com a violência, coibir a criminalidade, expondo-se a riscos
diversos, ao mesmo tempo que têm sua liberdade de trabalho restrita pelas instituições e demais
representantes dos direitos humanos.
13
Segundo os policiais, os problemas mais graves envolvendo os jovens do Distrito Federal são as
brigas entre gangues e o tráfico de drogas. A maioria dos homicídios ocorridos nas áreas
pesquisadas e o alto índice de criminalidade na periferia de Brasília são atribuídos às brigas entre
gangues rivais. Muitos desses conflitos, por sua vez, têm como principais razões o tráfico de
drogas e a disputa por “bocas de fumo”. Os policiais dizem que as drogas mais utilizadas e
comercializadas pelos jovens são a maconha e a merla, mas o tráfico envolve também uma grande
circulação de cocaína: “Parece uma feira durante o dia”. Reclamam que são freqüentemente
driblados por “aviões” que se utilizam de uma linguagem codificada para acobertarem uns aos
outros, e afirmam que os traficantes são protegidos pela impunidade.
231
policial
14
; o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei 8.069 de 1990 –
que protegeria os jovens infratores, impedindo meninos e meninas menores de
idade de serem presos, sendo usado estrategicamente por bandidos e marginais.
O Estatuto da Criança e do Adolescente marca um importante ponto de
partida no Brasil para a delimitação de uma política voltada para a criança e o
adolescente. A promulgação do ECA foi fruto de uma intensa atuação dos
movimentos sociais, envolvendo grupos e instituições ligados ao Fórum Nacional
de Crianças e Adolescentes e contando com o apoio de vários segmentos da
sociedade civil. A nova lei ratificou conteúdos significativos da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, assim como tratou de reconhecer e consagrar a
criança e o adolescente como indivíduos sujeitos de direitos, ou seja, como
cidadãos.
Como decorrência da promulgação do ECA, por exemplo, iniciou-se uma
mudança na terminologia empregada para tipificar jovens infratores. Termos
considerados estigmatizadores anteriormente utilizados – menor, delinqüente,
criminoso, entre outros – foram revistos pela nova lei. Passou-se a empregar o
conceito de “ato infracional” para se referir a delitos cometidos por adolescentes e
o termo “infrator”, para identificar a situação legal do mesmo. Nesse campo, a
infração é entendida como uma situação transitória na vida do jovem, que passa a
14
Interessante é comparar o discurso sobre o tratamento desigual de que se julgam vítimas com
suas falas de reconhecimento da desigualdade entre o tratamento que conferem aos jovens
pobres moradores da periferia e aos jovens de classe média e alta moradores do Plano Piloto.
Confessam que são mais severos com os primeiros, que não têm família com poder para protegê-
los, e admitem que são transigentes com os últimos, pois se sentem ameaçados por eles, já que
muitos gozam de influência social, ficando imunes ao exercício da lei, e contam com recursos
capazes de impor assimetrias de poder aos próprios policiais: “Realmente tem essa diferença de
tratamento. Essa diferença não é a gente que cria, é a sociedade. O filho de rico a primeira coisa
que fala é : ‘eu sou filho de fulano’. Eu não vou poder aumentar o rigor com esse caboclo. E se ele
for realmente filho de fulano? Vai vim um processo pra mim. [...] A classe média, a classe rica, a
gente tem mais medo de querer agir além. Mesmo se a gente está certo, a gente fica receoso de ir
mais além um pouco daquele serviço normal porque pode sobrar pra você”. Uma pesquisa
realizada pelo Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP em São Paulo também mostra que os
policiais entrevistados confirmam que há um tratamento diferenciado e que os ricos sofrem menos
que os pobres de violência e abuso por parte da polícia: “Na percepção desses entrevistados, a
desigualdade econômica justifica a desigualdade no trato pessoal e nos direitos. Os grupos mais
‘pobres’ não teriam direito a um atendimento igual àquele dispensado aos grupos mais ‘ricos’. O
232
ser julgado pelas transgressões tipificadas no Código Penal, mas sendo a pena
passível de se constituir em medidas sócio-educativas, estabelecidas de acordo
com a gravidade do ato e de suas condições para cumpri-la.
O ECA que, a princípio, é considerado um avanço em termos de
democratização da sociedade brasileira, é também gerador de polêmicas que,
mais uma vez, colocam a polícia em confronto com os jovens
15
. Muitas vezes, a
avaliação do ECA por parte desses dois atores é coincidente, mas há um conjunto
de acusações mútuas que revela facetas significativas do que a lei vem
representando na prática.
De modo geral, os jovens, se não conhecem o ECA, ao menos já ouviram
falar de uma lei que protege os jovens menores de 18 anos. Entre os que estão
envolvidos com gangues ou que, mesmo estando fora delas, costumam praticar
algum tipo de transgressão ou delito, todos sabem das prerrogativas de que
gozam se não atingiram ainda essa idade, como, por exemplo, a de que a pena
não pode ultrapassar três anos, não importando que tipo de delito foi cometido.
Segundo a opinião de muitos dos jovens entrevistados, há uma espécie de
oportunismo da parte dos menores, pois conhecendo a lei se aproveitam de sua
condição para cometer delitos. Como diz Ana Paula, falando dos rapazes da
vizinhança com quem costuma se relacionar:
“Ah, eles pensam assim: ‘se eu fizer isso, se
eu atirar em alguém, eu só vou pra delegacia, fico uns dois meses no CAJE, depois saio’”
. Daí o
fato de os 18 anos serem um limiar de extrema importância, que demarcaria e
demandaria atitudes, visões e comportamentos diferenciados:
“Quando você fica de
maior, aí é que você tem que ser o verdadeiro malandro mesmo, mais esperto do que a polícia”
,
mau tratamento deixa de ser resultado de mau treinamento e passa a ser uma adaptação do
policial a uma exigência do meio” (Cardia, 1997: 257).
15
Diga-se de passagem, não apenas a polícia, mas também a sociedade. O caso do menino de
quatro anos, João Hélio, morto este ano de 2007 no Rio de Janeiro após ter sido arrastado por
centenas de metros em sua cadeira que ficou fora do carro e presa ao cinto de segurança durante
uma situação de assalto cometida por dois menores de idade, comoveu o Brasil e reacendeu a
polêmica sobre a possibilidade de rebaixamento da idade penal, que esbarra no instrumento legal
do ECA. O Estatuto, para os que defendem o rebaixamento da idade penal de 18 para 16 anos,
carrega um paradoxo indiscutível: como um jovem que tem o direito de votar aos 16 anos não
pode ser incriminado nessa mesma idade?
233
fala Kroak, completando sua idéia sobre as razões que o levaram, assim que
completou 18 anos, a querer deixar a liderança de sua gangue.
Outro aspecto salientado por Kroak e inúmeros outros jovens entrevistados
é o fato de existir uma manipulação do menor pelo maior de idade. As vantagens
do ECA seriam até mesmo exploradas em caso de homicídios. Os menores
seriam utilizados como homicidas em nome dos maiores, visto que permanecem
pouco tempo detidos
16
. Mas, normalmente, os menores serviriam como “escudo”
principalmente em assaltos, roubos e seqüestros, guardando armas e ajudando os
maiores a fugirem, assumindo a culpa perante a polícia.
Ele (o maior) é esperto porque põe de menor, porque as penas de menor não é
muito grande.
Na rua os caras colocam menino de nove anos pra andar armado. Geralmente
menor não fica preso. Quando o cara precisa, a criança dá pra ele a arma, a droga,
tudo. Eles colocam o menor pra segurar tudo.
Os próprios jovens acabam criticando os direitos conquistados pelo ECA e,
algumas vezes, reproduzindo uma idéia mais ou menos difundida, de que o
endurecimento da ação punitiva do Estado resolveria, ao menos em parte, a
violência juvenil:
“Tem condição de matar uma pessoa, tem que cumprir pena igual a de um
maior”
, dizem o mesmo, com pequenas diferenças de palavras, muitos dos jovens
entrevistados. Mas há também os que de forma alguma compartilham dessa
posição por considerá-la imprópria na medida em que submeteria os jovens a um
sistema carcerário inteiramente falido e que, nas suas visões, somente fomenta a
criminalidade
17
.
16
Chamo a atenção para essa noção de “pouco tempo”. Três anos na vida de um adolescente é
uma proporção significativa em termos de tempo vivido.
17
O universo dos espaços carcerários e/ou correcionais é uma realidade sobre a qual os meus
informantes tiveram muito a dizer, alguns tendo vivido de perto a experiência da privação da
liberdade no CAJE (Centro de Atendimento Juvenil Especializado). Há um conjunto de percepções
que coloca em suspeita a eficiência do sistema de reabilitação de jovens levado a cabo pela
Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, principalmente pela existência de estruturas
organizacionais paralelas que estabelecem suas próprias normas de condutas, valores e
hierarquias. Existe um consenso entre os jovens de que o CAJE é uma grande “escola do crime:
longe de recuperar, os períodos de internação constituíram uma oportunidade de aprimoramento
da vida criminosa. Isto porque a convivência entre jovens condenados por homicídios, roubos,
234
Uma outra face da moeda é apresentada por informantes menores de 18
anos e que viveram situações nas quais os preceitos do ECA foram inteiramente
feridos. Tratam-se de situações de apreensão e encaminhamento desses
adolescentes à justiça. Os jovens relatam que são maltratados e torturados nas
delegacias:
Bateram muito; ficamos de corró na cela; na delegacia é dormir no chão, mais de
quinhentos numa celas.
Na DCA deixam você de cueca, botam embaixo do chuveiro; levaram pro banheiro,
enfiaram a gente na caixa d’água e seguraram, enquanto a gente não falasse.
Torturavam.
Nas entrevistas com os policiais militares, por sua vez, o ECA aparece como
motivo de polêmicas, revoltas e de muitas críticas. Segundo eles, representa um
empecilho à ação policial porque dá excessivos direitos aos jovens menores de
idade, sem cobrar-lhes deveres, tornando-os irresponsáveis; favorece a
impunidade e inibe, por meio de uma série de interdições, práticas policiais
julgadas necessárias no combate à criminalidade.
O Estatuto deu muitos direitos aos jovens, porque hoje em dia se a gente prende
um meliante, uma criança ou um adolescente, um menor infrator – não pode falar
meliante não, tem que ser menor infrator –, pega esse cidadão ai, que é cidadão
porque tem 16 anos então tem direito a voto e é cidadão, um cidadão desse não
pode ser punido, não pode responder judicialmente
(Entrevista com Policiais Militares, Ceilândia)
Além disso, os policiais acusam os adolescentes de manipularem o Estatuto,
aproveitando-se das suas condições de menores para praticar crimes e delitos
que não podem ser devidamente punidos, que são apagados dos arquivos
policiais, e para acobertar bandidos adultos, que utilizam os menores em roubos,
assaltos, venda de armas e principalmente, em venda de drogas, pois os
traficantes estariam fazendo uma economia de recursos que teriam que gastar
com advogados, caso um adulto fosse preso.
furtos, estupro, tráfico de drogas, inviabilizaria qualquer tentativa de regeneração, além do que,
potencializaria a violência, a raiva, a revolta e a “loucura” dos infratores.
235
Tirando proveito do Estatuto
(Entrevistas com Policiais Militares)
“O maior sempre vai colocar que o menor era o dono da droga, que o menor era o dono da
arma [...]. O maior sai, ele não vai nem responder por corrupção de menor porque é o menor que
diz: ‘eu é que chamei ele’”.
“Esse Estatuto é falho. Existem as crianças carentes, as crianças que são exploradas, isso
existe, não é mentira. Mas existem as crianças e adolescentes que estão se aproveitando do
Estatuto para cometerem crimes e adultos que usam essas crianças e adolescentes. Não são
todos, mas tem crianças e adolescentes que não estão nem ai, não esquenta a cabeça não, ele vai
lá, rouba, mata e sabe que o máximo que ele vai pegar são três anos”.
“Os patrões chefes das drogas geralmente manda um carro na casa do pai e da mãe e fala
lá: ‘fulano foi preso, vim aqui levar a senhora na delegacia’. Ele vai, leva e traz de volta a mãe e o
menor que, alegre e satisfeito, volta a trabalhar. E os pais agradecem ao traficante – ‘obrigado, o
senhor é uma pessoa maravilhosa’ –, às vezes sem saber”.
“É isso que a gente não entende, ele sai de lá maior de 18 e zera a ficha dele. Se a gente
depois prende ele pelo artigo 12 que é trafico e ele não disser que já matou um há uns anos atrás,
puxa a ficha dele e não consta nada, pra ele é uma criança, mas uma criança perigosa”.
Nota-se ainda que uma reclamação unânime dos policiais é a de que eles
são alvo constante de deboches, ironias, insultos e desafios por parte dos jovens,
pois é muito comum encaminhá-los à Delegacia da Criança e do Adolescente -
DCA e vê-los liberados antes mesmo que consigam preencher o boletim de
ocorrência obrigatório em caso de apreensão:
A gente passa na frente, eles ficam zombando da gente: “Ah, eu sou de menor. Se
triscar em mim, eu falo pro juiz”. Menor entre aspas, porque fisicamente eles são
maiores que a gente. [...] Enquanto tiverem esse Estatuto eles vão continuar
fazerem o que bem entenderem.
(Entrevista com Policiais Militares – Ceilândia)
Peguei um menor esses dias furtando um veículo e ele confessou pra mim: “furtei
mesmo”, dizendo que era pra dar umas voltas, um rolé. Levei ele pra DCA, mas
antes de ir pra DCA tem que passar na casa do pai e da mãe e avisar pro pai e pra
mãe que ta levando a criança pra DCA. Aí levamos pra DCA, logo depois o pai e a
mãe assinaram lá os papéis e levaram o menor. O menor saiu da sala me
sacaneando, olhou pra minha cara e ficou zombando. [...] Quer dizer, é um
absurdo, o cara confessou que realmente cometeu o crime, chega na delegacia,
chega o pai e a mãe e pega o cabra na nossa frente, o cara vai embora e ainda
fica gozando da nossa cara e ta fazendo a mesma coisa, continua furtando carro
do mesmo jeito. [...] É desmotivante ficar levando pra delegacia, a gente leva mas
sabe que não vai dar em nada e o jovem tem consciência que vai chegar lá e vai
embora. (Entrevista com Policiais Militares - Planaltina)
236
Segundo os policiais, a rápida liberação dos menores infratores incentiva a
permanência deles na delinqüência, até porque os adolescentes não recebem
nenhum tipo de acompanhamento social e/ou psicológico posterior. As medidas
sócio-educativas estão reservadas aos reincidentes, aos que já possuem “
ficha
grande
”, não aos delinqüentes iniciantes.
Entre as medidas apontadas no sentido de combater a violência os policiais
apontam a necessidade de mudança no ECA:
“Se ficar mais severo, vai intimidar mais” ;
“deveria ser menos brando, mais rígido”.
Sugerem ainda a instituição de penas que
envolvam trabalhos comunitários, de cunho sócioeducativos, ao invés do
recolhimento de delinqüentes e criminosos em sistemas carcerários fechados.
Finalmente, vale observar que o ECA é também entendido como um
instrumento usado pelos Policiais Civis para se vingarem dos Policiais Militares
que trabalham na rua
18
. Os últimos reclamam de que são tratados pelos primeiros
com descaso e de forma discriminatória porque, além de não terem hora de
chegar, levam muitos “flagrantes” para as delegacias:
“É como se fosse uma vingança
pelo trabalho que estamos fazendo. Eles não querem que a gente leve serviço pra eles poderem
dormir”.
7.7. Jovens e polícia: quem é o bandido?
Não apenas a violência policial é motivo de revolta dos jovens, mas há ainda
outras razões que os fazem olhar com desconfiança, medo e ódio para os
policiais. A polícia, segundo suas narrativas, extorque dinheiro, relógios e outros
objetos, não somente deles como também de qualquer outro cidadão comum.
A corrupção policial é insistentemente denunciada. Os jovens sustentam que
na polícia existem muitos policiais
“malandros”, “desonestos”, “corruptos”, “pilantras”,
18
A existência de uma séria rivalidade entre a Polícia Militar e a Polícia Civil de Brasília ficou
patente nas entrevistas realizadas. Há todo um conjunto de acusações mútuas que não cabe aqui
reproduzir devido aos limites dos objetivos propostos neste trabalho. No entanto, vale a pena
237
“safados”
. Os policiais são acusados de serem protegidos pela corporação,
permanecendo impunes, sem serem submetidos a julgamentos e sem jamais
cumprirem pena de prisão:
“Se for policial que matar um, pode saber, está garantido, vai ter
sempre um pra acobertar”.
Também denunciam os policiais pelo envolvimento com o
tráfico de drogas na periferia, por acobertarem os “grandes bandidos” e
traficantes, porque temem por suas vidas:
O bandido é que manda parece, os policiais têm medo deles. Com bandido grande
eles não mexem não. Tem uma firma forte, tem muita arma, os que tem só uma tão
no ferro. Os PM também têm medo de morrer, eles não é bobo.
No conjunto de denúncias é dito, ainda, que a polícia utiliza a sua situação de
poder para recolher e comercializar as armas apreendidas, trocando-as pela
liberdade imediata dos jovens. A polícia é vista como uma gangue, paga pelo
Estado, através de impostos do cidadão, como verbaliza Biel, 19 anos, integrante
de um grupo de Rap e ex-integrante de uma gangue de pichadores:
Não tem gangue mais fodida que a polícia não. Sai do bolso da minha mãe, de
todo mundo. Você está pagando o cara, coloca munição na mão dele,
metralhadora, uma doze, pra chegar no seu filho e dar uma cabada ou atirar nele.
Algemar o cara.
Como disse, os policias são acusados de extorquir, durante as revistas,
dinheiro e uma série de objetos dos jovens. Esta situação está articulada, em
alguns casos, à “forja de flagrante” de drogas. Em outros casos, os policiais são
chamados de ladrões e drogados, exatamente porque tomam as drogas dos
jovens para consumo próprio. De maneira geral, são considerados um
“mau
exemplo”
e “sem educação”: “o pior bandido é eles , não é a gente não”.
ressaltar que essa rivalidade reflete-se no discurso que sustentam sobre o problema da
delinqüência juvenil e nas atitudes tomadas em relação a ela.
238
Quem é o bandido?
“[...] começou a dar tapa e depois levou lá para o depósito, aí começaram a me assaltar,
pegaram a bicicleta e os documentos, como é que eu vou correr atrás, eu fiquei calado. Queriam
levar as três bicicleta e não levaram porque tinha um irmão de um colega nosso que estava vendo
tudo”.
“Tem cana que prende droga de alguém só pra usar. Tenho um chegado que pegaram
cinqüenta gramas dele e só levaram a droga. Aí chega num balão desses e fuma e aí volta e aí
quando vai dar bacu mata, bate. É por isso que esses policiais batem em nós. E então se ele tiver
com dinheiro no bolso e dá bacu, fala que você tava vendendo droga e pega o seu dinheiro e leva
e não leva você. Se tiver um sargento dentro do carro, eles falam que é produto de roubo”.
“Você não sabe em quem confiar, eles mesmo vende e arruma pra você, ele não prende: ‘eu
te dou 50 reais e você não me prende’. Você não sabe em quem confiar ou você confia na polícia
ou no ladrão”.
“Eu já presenciei da polícia chegar aqui, tomar duas latas de merla do cara, toma o dinheiro
e manda os caras cair fora. O quê que eles fez com aquilo? Vai passar pra outro malandro que
paga”.
“Se eles pegam a gente com alguma droga, eles pegam a droga pra eles transá. Já
aconteceu com muita gente. Há três dias atrás a gente tava fumando ali, a polícia chegou e levou.
Aí depois estava tendo festa ali, eles beberam cerveja com a gente e já estavam doido. Se eles te
pegam com uma lata de merla, eles nem te bate: ‘vai embora garoto, beleza’. Eles pegam a lata
pra eles. Agora se eles te pegam com um baseado eles te arrebentam no pau, porque um baseado
não vai dá pros quatro”.
Tem arma que polícia, PM pega pra eles. Eles chega aqui que nem no dia que me pegaram
uma vez. Sabe o que eles fizeram? Me levaram pra giro: ‘vai embora que esse oitão aqui não vale
nem duzentos contos’. Então porque me dispensou, porque não me levou pra cadeia e registrou a
queixa? Ficou com o revólver e me liberou. Isso é máfia.
(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Ceilândia,
Samambaia, Planaltina)
7.8. Espaços de contradição
A visão negativa sobre os policiais não impede que os jovens manifestem a
necessidade de maior segurança e de uma polícia mais eficiente, dotada de outros
valores e outras atitudes. De acordo com os jovens, mesmos os fortemente
envolvidos com práticas delinqüentes, a polícia nunca está nos lugares certos e na
hora certa: “Ao invés de dar segurança, eles faz é te espancar”; “A gente fica revoltado assim,
239
porque falam que a polícia é pra defender”.
Alguns julgam que a polícia faz um trabalho
correto ao abordá-los –
“tão fazendo o serviço deles” –, mas o modo como se
aproximam e a linguagem desrespeitosa que utilizam são os maiores objetos de
crítica:
“Eles humilham os outros”.
Apesar de todas as denúncias e da percepção extremamente negativa da
polícia, é preciso notar que há uma espécie de cumplicidade entre o jovem da
periferia e a polícia. Não raro, os policiais residem na mesma cidade que os
jovens, têm com eles relações de vizinhança ou os conhecem das ruas há muito
tempo:
“Eles conhecem a gente, eles mesmo falam que é rotina da gente”; “Tem muito policial
que é gente boa, aqueles que conhece a gente, que mora na nossa quebrada”
. Abordando o
tema com grupo de jovens da Ceilândia, José, 18 anos, afirma categoricamente
que essa cumplicidade passa a não existir mais durante a madrugada, quando as
relações com os policiais tornam-se impessoais. O restante do grupo de colegas
entrevistados discorda de José, retrucando que nenhum dos presentes havia
passado pela experiência de ter sido abordado por policiais conhecidos na calada
da noite. Daniel, 19 anos, diz até mesmo ser freqüentemente advertido por
policiais dos prováveis arrastões:
“Aí bicho, hoje o bicho vai pegar”.
A cumplicidade entre jovens e policiais deixa-se transparecer também no
discurso desses últimos. Principalmente quando é possível estabelecer uma
comparação entre os jovens da periferia e os do Plano Piloto, os policiais
constroem um conjunto de argumentos em favor dos jovens da periferia revelador
de uma simpatia e de identidade compartilhada: foram socializados no mesmo
ambiente de pobreza, de insegurança e de falta de oportunidades, vivenciando as
mesmas desigualdades sociais. Daí é que, mesmo contradizendo as percepções
negativas dos jovens e a idéia do rigor como os tratam, os policiais não deixam de
se colocarem como iguais a eles e de olhá-los dentro de uma perspectiva
relativizadora:
“No Plano, os jovens se reúnem para brigar só para se auto-afirmarem, já as
gangues daqui brigam para sobreviver, porque os jovens praticamente não têm oportunidades”.
240
Ambos os atores vivem, portanto, o drama da experiência de uma realidade
marcada por uma enorme desigualdade social, refletida nos próprios enclaves
característicos da segregação sócio-espacial do Distrito Federal. A inoperância
institucional nesses “lugares de abondono” se traduz na própria contradição que
existe nas posturas de inteira rejeição e completa afinidade entre jovens e polícia.
Embora na contraposição de suas falas possamos perceber alguns pontos
consensuais, o que fica mais evidente é o jogo de sérias acusações mútuas
travado entre jovens e policiais. Os jovens denunciam os mecanismos de coerção
e violência que sofrem em seu cotidiano. A responsabilidade e a punição da
infração são deveres da polícia, porém como os jovens descrevem que são
tratados demanda uma série de mudanças numa cultura institucional arraigada,
que não expressa os interesses da sociedade em assegurar um contrato social, no
qual os direitos do cidadão sejam defendidos sem apelo à violência.
7.9. Sobre as diferentes interpretações de uma mesma situação social: de
volta ao baculejo
Finalizando este capítulo, retomo brevemente um dos maiores pontos de
atrito entre os jovens e a polícia – o baculejo –, sobre o qual as descrições e
relatos precedentes mostram haver distintas percepções. Da perspectiva policial,
trata-se de uma ação técnica-racional, amparada em treinamento específico e
contendo inúmeros detalhes, que tem por objetivo combater o crime, chegando a
esse resultado de maneira mecânica e eficaz
19
. Para os jovens, no entanto, o
19
Para fundamentar o que estou chamando de ação “técnica-racional”, pauto-me pelas definições
de Leach (1978) dos aspectos de comportamento humano envolvidos no ritual da comunicação.
Um desses tipos de comportamento seria justamente o “técnico-racional”, voltado para fins
específicos que, julgados por nossos padrões de verificação, produzem resultado de maneira
mecânica (cozinhar um ovo ou cortar uma árvore, por exemplo).
241
baculejo é uma ação arbitrária, sem racionalidade aparente. Eles o inserem numa
perspectiva sobretudo emocional e o tomam como sinônimo de humilhação e
insulto moral. Haveria formas menos ultrajantes de os policiais cumprirem o dever.
Sabemos que o sentido dado a uma situação ou evento sempre vai
depender do ponto de referência do sujeito que o observa ou dele participa. Se os
atores não partilham os mesmos códigos referentes, dificilmente suas
interpretações vão estar de acordo. No caso do baculejo, quando estão frente a
frente, jovens e policiais são protagonistas de um mesmo evento: uma ação de
repressão ao crime. Nessa relação de interação, todos os atores guiam as suas
atitudes pelo código militar, submetendo-se e reproduzindo as “técnicas” de
conduta por ele estipuladas.
Mas, se por um lado, são as convenções militares que regem o ato de
“baculejar”, por outro, o envolvimento afetivo dos jovens com este acontecimento
transforma completamente o seu significado. De modo contrário, os policiais entre
si compartilham de um acordo tácito que pressupõe a eliminação de todo
conteúdo emocional que possa abalar a racionalidade das regras e a mecânica
que garantem a eficácia do baculejo, mantendo-o, assim, no seu sentido original.
O significado do baculejo transmitido aos jovens não corresponde, portanto,
ao significado pretendido pelos policiais. A linguagem técnica-racional utilizada
pelos policiais, embora desencadeie respostas mecânicas nos jovens quando
essa situação está em curso – tanto que eles assumem de imediato a postura
corporal exigida pela circunstância, nem sempre aguardando as instruções verbais
para fazê-lo –, não lhes é totalmente familiar. Pelo contrário, a ação é
experimentada afetivamente, despertando emoções
20
e, desse modo, interpretada
dentro de um sistema de sentido alheio ao do próprio acontecimento. Talvez daí
20
Como diz Leach, “a emoção é despertada não por qualquer apelo às faculdades racionais, mas
por um tipo de ação deflagradora nos elementos subconscientes da personalidade humana”
(Leach, 1983:141).
242
resulte a mútua incompreensão dos sujeitos envolvidos nesse tipo bem particular
de interação.
243
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As gangues juvenis fazem hoje parte de uma cultura de rua que se
reproduz no dia-a-dia das muitas cidades que compõem o Distrito Federal. Há
um conjunto de práticas violentas que fazem parte do comportamento desses
grupos e que tem um lugar importante no processo de socialização dos jovens
que deles participam. Quando iniciei este estudo, minha proposta era de certa
forma investigar as regras subjacentes, o sentido oculto de uma violência que
se apresentava aos meus olhos como totalmente anômica. Os caminhos me
levaram a encontrar, de modo oposto a isso, uma forma de violência
significante e codificada.
Como afirmei na introdução deste trabalho, abandonei totalmente como
eixo norteador de meu estudo o entendimento das causas da violência juvenil,
sobre as quais há uma extensa literatura sociológica, mas procurei delinear
conteúdos culturais que estão na base do seu exercício e situar essa violência
dentro do sistema de relações sociais dos jovens. Dizendo de outro modo,
busquei não perder de vista a relação dos jovens com o mundo, seus valores,
suas representações de si e do outro, numa perspectiva sócio-antropológica
que considera a globalidade de seu modo de vida e que procura a
compreensão dos significados que eles próprios dão às suas práticas e
crenças. Assim, ainda que interessada na violência das gangues, não me
detive nas suas causas, deixando de lado uma visão seqüencial de causa e
efeito, e nem mesmo unicamente no comportamento dos jovens no interior
desses grupos, mas tentei explorar uma variedade de dimensões que
atravessam e dinamizam a experiência de participação dos jovens nas
gangues, localizando-as em diferentes planos de entendimento e relações. As
condutas e valores desses jovens não podem ser compreendidos, por exemplo,
sem que se considere o contexto ecológico e social de seu meio ambiente
urbano, a periferia pobre do Plano Piloto de Brasília, suporte maior de suas
identidades e onde passaram a maior parte de suas existências.
Uma das dimensões altamente carregada de significado constitutiva da
experiência e visão de mundo dos jovens por mim investigados, e que acredito
244
ser importante resgatar nestas considerações finais, relaciona-se com as
noções de honra e reputação, que dão uma visão sintética do conjunto de
comportamentos e das interações sociais que pude observador. O processo de
estruturação do imaginário que está por trás da dinâmica de formação e
identificação dos jovens com as gangues é acompanhado da adoção de um
estilo de masculinidade, expresso através da afirmação e demonstração de
coragem, valentia, força e virilidade. Pautando-se por esse ideal de
masculinidade, os jovens procuram a distinção e prestígio necessários para
adquirem o reconhecimento e aceitação do grupo de pares nas suas
reivindicação de respeito e consideração.
Cabe dizer que esse estilo incorporado pelos jovens de nenhuma
maneira é prerrogativa exclusiva daqueles que integram as gangues juvenis.
Mesmo não sendo hegemônico no país e no Distrito Federal, ele é posto em
prática em todos os segmentos sociais, além de integrar o atual sistema de
valores da cultura de rua no qual o ethos da masculinidade é muito forte e
impõe aos homens a necessidade de responder às provocações, desafios,
insultos e humilhações com o máximo de hostilidade.
Os jovens por mim estudados procuram dar constante demonstração de
virilidade adotando discursos e atitudes agressivos e violentos, já que a
violência lhes garante adquirir respeito, status, reconhecimento social e sentido
de pertencimento a um grupo. Como mostrei, os próprios ritos de iniciação e
provas que definem a vinculação e permanência numa gangue requerem
freqüentemente demonstração de valentia e coragem, de atitude varonil,
capacidade de desafiar ou aceitar desafios e destemor para participar de lutas
e confrontos violentos como verdadeiros guerreiros, apaixonados pelo
combate, pelos atos de bravura e heróicos. Elementos para sustentar o
discurso e a prática da valentia e coragem estão representados pelo consumo
de drogas ou de álcool, pelo porte de armas de fogo, pelas cicatrizes no corpo,
pela valorização de tudo o que é proibido, do perigo e do próprio risco.
Algumas jovens com quem tive contato no meu trabalho de campo
também não escapam a esse ideal de masculinidade, gostando de homens que
o demonstre. Por outro lado, certas jovens eram tidas pelos jovens como “de
245
rocha”, “quase homens”, precisamente porque dominavam e agiam de acordo com
o código masculino de sociabilidade na rua, “encarando”, desafiando, se
envolvendo constantemente em afrontamentos físicos, se mostrando
agressivas, cruéis e “sem piedade” com os outros. Mas, longe desse
comportamento dar-lhes prestígio entre os jovens, essas jovens eram por eles
desqualificadas e referidas como “vadias” e “putas”. O critério de reputação
feminina pelo qual os jovens se pautam expressa uma forma tradicional de
julgar as mulheres. Nesse padrão, separa-se as “vagabundas” e as “sérias”, as
que só servem para “pegar” e as que são para casar. A mulher a qual admiram
é aquela “sensível” e “compreensiva”, como a mãe, que deve ter a honra
permanentemente por eles vigiada e cuja centralidade na suas vida é um fato
incontestável.
Integrar a cultura de rua fazendo parte de uma gangue significa para os
jovens encontrar um sentido de vida no fato de poder se converter em homens
de “moral”, de “atitude”, retomando os seus próprios termos. Quem não
demonstra “atitude” cedo ou tarde será marginalizado pelo grupo: “Pra ser
considerado na periferia, você precisa roubar, matar e ser um cara grosso
”; “não deixar
ninguém te chamar de Mané
”; “não dar mole pra ninguém”. Então isso deve ser
constantemente mostrado, inclusive pela manifestação da insensibilidade ao
sofrimento alheio, especialmente o do “inimigo” a quem se deseja destruir, e da
perda do medo de morrer e de matar. Gabar-se que matou ou feriu gravemente
alguém (não importa se é verdade ou não) confere ao jovem um significado de
superioridade sobre outros jovens. Esta superioridade às vezes é construída ou
percebida através da crença de que se pode decidir sobre a vida e a morte de
outros sujeitos, o que outorga reconhecimento e prestígio.
A participação em gangues tem um tempo limitado na existência dos
jovens. A permanência no grupo, que implica na demonstração de força,
coragem e valentia e destemor para praticar atividades ilícitas e ilegais e atos
violentos, passa a suscitar uma série de interrogações sobre as normas e
regras de comportamentos que os colocam cotidianamente perto da morte, da
cadeia ou da cadeira de rodas. Ao mesmo tempo, há uma projeção num futuro
que começa a parecer mais próximo e mais concreto, trazendo preocupações
246
em termos de projetos pessoais – “ter uma dona”, “uma família”,uma casa”, “um
trabalho
” – e, por conseqüência, a perspectiva de aceitação de novas
obrigações, mais próximas da vida adulta e de valores dominantes na
sociedade brasileira, como a obrigação do homem de ser o provedor da família.
Nesse processo de amadurecimento, no qual as dúvidas e incertezas sobre o
futuro pairam, os jovens tendem a refletir inclusive sobre suas falhas na relação
com a própria família – mãe, pai, irmãos – e a manifestar a vontade de voltar a
se aproximar do ambiente doméstico, preterido em favor da “família de rua”.
Também começam a compreender que ao querer fazer o mundo girar em torno
de si, curvar-se aos seus desejos, esse mundo volta-se contra eles mesmos,
não lhes oferecendo a chance de poderem dormir tranqüilos e em paz.
Claro que os itinerários são múltiplos e diversos. Não existe experiência
humana em que o indivíduo se acomoda a uma única visão de mundo, pois o
que por ele pode ser vivido tem possibilidades ilimitadas, nunca se esgota.
Nesse sentido, é preciso evitar a crença na existência de um “modelo tipo”,
válido para todos os jovens, de distanciamento da gangue e de atividades
marginais e delinqüentes, assim como também de entrada na vida adulta.
O saber acumulado, isto é, os comportamentos e práticas aprendidos
com a experiência de participação em gangues podem persistir, entrando pela
idade adulta, não sendo descartada completamente a possibilidade de o jovem
se associar a grupos de bandidos e criminosos profissionais, optando pelo risco
de ter uma vida singularmente curta, de ser preso e passar o resto de seus dias
na prisão, ou de ficar completamente inválido em conseqüência de um tiro
vindo da arma de um inimigo, da polícia ou mesmo de algum de seus
parceiros. Neste caso, a violência passa a ser um modo de vida submetida a
regras estabelecidas ditadas pelo mundo profissional do crime. Mas, de
maneira geral, não é isso o que acontece: a maioria dos jovens não adere
decisivamente à carreira criminosa, aquela que na nossa sociedade é
reconhecida no judiciário como tal.
Também não ocorre que o afastamento da gangue se traduza por um
distanciamento dos jovens do universo social e espacial da periferia. Ao
contrário, a periferia continua sendo para eles a casa onde é possível realizar o
247
espírito comunitário, o local de moradia onde se desenvolvem relações sociais
que formam a base de uma identidade coletiva. Contudo, as condutas e
comportamentos não ficam mais subordinados à construção quase obstinada –
e um tanto arriscada – da defesa da reputação individual ou coletiva. A
sensibilidade às ofensas verbais, aos olhares “enviesados”, às provocações de
vários tipos dá lugar a certo desprendimento estabelecido voluntariamente, a
certa “civilidade”. Diria que se eleva o nível de sensibilidade em relação à
violência e se incorpora um maior controle emocional da agressividade.
Cabe sublinhar, no entanto, que o distanciamento da gangue não implica
no espírito dos jovens que vivem essa mudança uma rejeição absolutamente
radical de todos os esquemas mentais que constituem os fundamentos de seus
comportamentos e suas práticas anteriores, embora haja a tendência a colocar
no esquecimento uma parte do que se passou, sobretudo detalhes sobre as
passagens por delegacias de polícia e principalmente pelo CAJE. A gangue faz
parte de suas histórias e apesar do abandono das práticas delinqüentes,
desviantes e transgressoras, certos valores e normas da cultura de rua
permanecem fortemente arraigados nos seus espíritos. Esses valores, todavia,
são adaptados, re-significados. Por exemplo, saber guardar a honra e a
reputação é um valor mantido, mas sem precisar ter sempre que dar provas de
coragem e valentia, brigar por qualquer motivo fútil, assaltar e roubar, ostentar
vestimentas obtidas como fruto dessas ações, andar armado ou matar (ou dizer
que matou), estar sempre diante do fio da navalha. Estas passam a não ser
mais as medidas que servem como parâmetro para que o sujeito alcance a
consideração. Ter domínio sobre a agressividade, comprar os bens de
consumo desejados com dinheiro honesto, poder comer, morar e criar os filhos
com dignidade constituem atributos que dariam respeito a um homem.
O caráter passageiro do envolvimento com as gangues e com as
paradas” implica também numa renovação rápida da população que participa
dessa cultura de rua, sendo as “partidas” e “chegadas” numerosas e
permanentes. Tita mostrou ter clareza dessa situação quando me disse: “
esse
negócio de gangue é um círculo vicioso
”.
248
Entre o momento que iniciei meu trabalho de campo até o atual – já se
vão pouco menos de nove anos que comecei a minha aproximação com o
objeto de minha investigação – certamente ocorreram mudanças em relação à
cultura de rua da qual os jovens participam, como as verificadas em alguns
novos acessórios ligados as vestimentas e ao comportamento verbal.
Entretanto, apesar de algumas transformações, as gangues juvenis continuam
marcando a sua presença no cenário do Distrito Federal e ocupando
regularmente os noticiários veiculados pela mídia em geral. Baseadas nas
minhas mais recentes incursões em campo, quando o meu interesse estava
focado na problemática da “reversão de trajetórias” e no acompanhamento de
outras pesquisas acadêmicas sobre esses agrupamentos juvenis, sou levada a
acreditar que seus modos de interação e códigos de relação ora em vigor
permanecem fundamentalmente os mesmos.
Um tema pouco explorado analiticamente neste estudo, mas que
sobressai do material etnográfico, diz respeito ao que chamarei por enquanto
de “conservadorismo dos jovens”. A sua revolta e rebeldia não é aquela que
expressa um desejo de profunda “revolução”, de ruptura e total reversão de
uma ordem social. Eles não aspiram destruir o “mundo burguês”, ao contrário,
querem acessá-lo, calçando tênis “Adidas”, vestindo bermudas e bonés da
“Nike”, incorporando-se plenamente o mundo do consumo. Também projetam o
desejo da família tradicional burguesa, “estruturada”, com os papéis masculino
e feminino absolutamente definidos – a mulher, neste caso, subjugada. Nesse
sentido, a privação de que falam, se ressentem e pela qual sofrem, é
totalmente subordinada aos valores do status quo.
Por último, gostaria de destacar que o comportamento e as percepções
da realidade dos jovens que pude estudar não devem ser tomados como
exclusivos de indivíduos que integram agrupamentos juvenis enleados em
ações ilícitas e violentas. Grande parte dos traços identificados e das vozes
registradas na pesquisa de campo revela aspectos gerais da vivência dos
jovens do meio urbano pobre da periferia da capital da república. Trata-se de
jovens que sofrem com a dificuldade de estruturarem perspectivas positivas
249
para a construção de projetos de vida e com o sentimento de exclusão material
e simbólica. Como me disse um dos meus informantes,
[...] antes eu era bandido, marginal, e agora sou um pobre. Esse lance de
futuro, de sonho, que chance de futuro você acha que tem um jovem pobre que
nunca saiu das ‘satélites’? Com o que você acha que eu posso sonhar?
Difícil responder, mas isso é uma outra história...
250
BIBLIOGRAFIA
ABRAMO, Helena. Cenas Juvenis: Punks e Darks no espetáculo urbano. São
Paulo: ANPOCS/ Scritta, 1994.
ABRAMO, Helena & BRANCO, Pedro (orgs.). Retratos da Juventude Brasileira:
análise de uma pesquisa nacional. São Paulo: Perseu Abramo, 2005.
ABRAMOVAY, M., WAISELFIZ, J., ANDRADE, C., & RUA, M.G.. Gangues,
Galeras, Chegados e Rappers: juventude, violência e cidadania nas
cidades da periferia de Brasília. Rio de Janeiro: Garamond, 1999.
ADORNO, Sérgio. “Crime, Justiça Penal e Desigualdade Jurídica: as mortes
que se contam no Tribunal do Júri”. Revista USP, Dossiê Judiciário,
21, 1994.
ALLIEVI, Stefano. “Pour une Sociologie des Conversions: lorsque des
européens deviennent musulmans”. Social Compass, 46 (3), 1999.
ALVITO, Marcos. “Um Bicho-de-Sete-Cabeças”, in ZALUAR, Alba & ALVITO,
Marcos (orgs.), Um Século de Favelas. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1998.
AMORIM, Lara Santos. Cenas de uma Revolta Urbana: movimento hip hop na
periferia de Brasília. Dissertação de Mestrado. Departamento de
Antropologia, Brasília, UnB, 1997.
AMIOT, Michel, “L’intervention sociologique, la science et la prophétie”.
Sociologie du Travail, 4(80), 1980.
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
ARIÈS, Phillipe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro:
Guanabara,1981.
ASSAILLY, Jean Pierre. Les Jeunes et le Risque. Paris: Vigot, 1992.
AUGÉ, Marc. Non-Lieux: introduction à une anthropologie de la surmodernité.
Paris: Le Seuil, 1992.
BARKER, Gary. “Fome de Pai...”. Caderno Cotidiano, Folha de São Paulo,
10.11.98.
BARREIRA, César (coord.). Ligado na Galera. Brasília: Edições UNESCO.
1999.
BAZIN, Hugues. La culture hip-hop. Paris: Desclée de Brouwer, 1995.
251
BECKER, Howard.. Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo:
Hucitec, 1994.
________ Doing Things Together: Selected Papers. Illinois: Northwestern
University Press, 1986.
________ Outsiders. Paris : Métailié, 1985.
BERGER, Peter L. “On the Obsolescence of the Concept of Honor”. Archives
européenes de sociologie, 11, 1970, p.339-347.
BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade.
Rio de Janeiro: Vozes, 1973.
BLOCH, Herbert & NIEDERHOFFER, Arthur. Les Bandes d’Adolescents. Paris:
Payot, 1974.
BOURDIEU, Pierre. “Le Jeunesse n’est qu’un mot”, in Questions de Sociologie.
Paris: Minuit, 1981.
________ “Effets de Lieu”, in La Misère du Monde. Paris: Seuil,1993.
BUCHER, Richard. Drogas e Drogadição no Brasil. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1992.
CALDEIRA, Teresa. A Política dos Outros : o cotidiano dos moradores da
periferia e o que pensam do poder e dos poderosos. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
________ City of Walls: crime, segregation, and citzenship in São Paulo. Tese
de Doutorado. University of California at Berkeley, 1992.
CANEVACCI, Mássimo. A Antropologia da Comunicação Visual. São Paulo:
Brasiliense, 1990.
CARDIA, Nancy. “O Medo da Polícia e as Graves Violações dos Direitos
Humanos”. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, v.9, n. 1,
1997.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís. Direito Legal e Insulto Moral. Dilemas da
Cidadania no Brasil, Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2002.
________ Direitos, Insulto e Cidadania: existe violência sem agressão moral?”.
Trabalho apresentado nas jornadas interdisciplinares: Estado,
Violência e Cidadania na América Latina. Berlim, junho, 2005.
252
CARDOSO, Ruth & SAMPAIO, Helena. Bibliografia sobre a Juventude. São
Paulo: EDUSP, 1995.
CARDOSO, Ruth. Sociedade e Poder: representações dos favelados de São
Paulo. Ensaios de Opinião, Rio de Janeiro, Inúbia n. 6, 1977.
CARRANO, Paulo. “Juventudes: as identidades são múltiplas”. Movimento,
Revista da Faculdade de Educação da UFF. Rio de Janeiro: DP&A,
2000.
CAVALLI, Alessandro. “La Prolongation de la Jeunesse em Italie: ‘ne pas brûler
les étapes’”, in Cavalli, Alessandro & Galland, Olivier (orgs.),
L’Allongement de la Jeunesse. Paris: Actes Sud, 1993.
CECCHETTO, Fátima Regina. “Galeras Funk Carioca: os bailes e a
constituição do ethos guerreiro”, in ZALUAR, Alba & ALVITO, Marcos
(orgs.), Um Século de Favela. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.
________ Violência e Estilos de Masculinidade. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2004.
CERBINO, Mauro. Jovens em la Calle: cultura y conflito. Barcelona: Anthropos
Editorial, 2006.
CLASTRES, Pierre. “Da Tortura nas Sociedades Primitivas”, in A Sociedade
Contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.
CLOWARD, Richard A. & OHLIN, Lloyd B. Delinquency and Opportunity: a
theory of delinquent gangs. New York, Free Press, 1960.
CODEPLAN. Jornal da Codeplan, Ano I, n.1, 1999.
COHEN, Albert. Delinquent Boys: the culture of gang. New York: Free Press,
1955.
CUNHA, Manuela C. da. Antropologia do Brasil: mito, história e etnicidade. São
Paulo: Brasiliense/EDUSP, 1986.
DAMATTA, Roberto. Carnavais , Malandros e Heróis : para uma sociologia do
dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
________ Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis:
Vozes, 1981.
________ A Casa e a Rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. São
Paulo: Brasiliense, 1985.
253
________ Conta de Mentiroso: sete ensaios de antropologia brasileira. Rio de
Janeiro: Rocco, 1993.
DIÓGENES, Glória. Cartografias da Violência: gangues, galeras e o movimento
hip hop. São Paulo: ANNABLUME, 1998.
DOYLE, Patrícia. “Comercialização de Habitações Populares em Brasília”, in
PAVIANI, Aldo (org.), Brasília: moradia e exclusão. Brasília: Editora
da UnB, 1996.
DUBET, François. La Galère: jeunes en survie . Paris: Fayard, 1987.
ESTERLE-HEDIBEL, Maryse. La Bande, le Risque et l’Accident. Paris:
L’Harmattan, 1997.
FERREIRA, Ignez & PENNA, Nelba. “Brasília: novos rumos para a periferia”, in
PAVIANI, Aldo (org.), Brasília: moradia e exclusão. Brasília: Editora
da UnB, 1996.
FORACCHI, Marialice. A Juventude na Sociedade Moderna. São Paulo:
Pioneira, 1972.
GOTTLIEB, David & REEVES, J.. “A Questão das Subculturas Juvenis”, in
BRITO, Sulamita de (org.), Sociologia da Juventude. Rio de Janeiro:
Zahar, v. II, 1968.
GALLAND, Olivier “La Jeunesse en France, un Nouvel Age de la Vie”, in
Cavalli, Alessandro & Galland, Olivier (orgs.), L’Allongement de la
Jeunesse. Paris: Actes Sud, 1993.
________ Les Jeunes. Paris: La Découverte, 1996.
________ Sociologie de la Jeunesse. Paris; Armand Colin, 1997.
GANDOULOU, Justin-Daniel. Au Coeur de La Sape. Moeurs et Aventures de
Congolais à Paris. Paris: L’Harmattan, 1989a.
________ Dandies a Bacongo. Le Culte de l’Elégance dans la Société
Congolaise Contemporaine. Paris: L’Harmattan, 1989b.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
GOFFMAN, Erving. La Mise en Scène de la Vie Quotidienne. Tomo II: Les
Relations en Public. Paris: Minuit, 1973.
________ “Les Lieux de L’Action”, in Les Rites d’Interaction. Paris: Minuit,
1974a.
254
________ “Perdre la Face ou Faire Bonne Figure?”, in Les Rites d’Interaction.
Paris: Minuit, 1974b.
________ Estigma. Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio
de Janeiro: Zahar, 1982.
________ Frame Analysis. An Essay of the Organization of Experience.
Harmondsworth: Penguin, 1986.
GOUVÊA, Luiz Alberto. “Habitação e emprego: uma política habitacional de
interesse social”, in PAVIANI, Aldo (org.), Brasília: moradia e
exclusão. Brasília: Editora da UnB, 1996.
GROPPO, Luís Antonio. Juventude: ensaios sobre sociologia e história das
juventudes modernas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000.
GUIMARÃES, Eloisa. Escola, Galeras e Narcotráfico. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 1998.
HEFNER, Robert (ed.). Conversion to Christianity: historical and
anthropological perspectives on a great transformation. Los Angeles:
University of California Press, 1993.
IANNI, Octavio. “O Jovem Radical”, in BRITO, Sulamita de (org.). Sociologia da
Juventude. Rio de Janeiro: Zahar, v. I, 1968.
KATZ, E. “El instrumento es una teoria en acto”, in BOURDIEU, Pierre (org.), El
Oficio del Sociologo. Madrid: Siglo Veintiuno, 1986.
KATZ, Pearl. Emotional Metaphors, Socialization, and Roles of Drill
Sergeantes. Ethos 18 (4), 1990.
KRUEGER, Richard A. Focus Groups: a pratical guide for applied reasearch.
California: Sage Publications, 1988.
LE BRETON, David. Passion du Risque. Paris: Métailé, 1991.
________ “Myhologies Contemporaines du Risque et de la l’Aventure”.
Prévenir, n. 24, 1993.
________ Antropología del Cuerpo y Modernidad. Buenos Aires: Nueva Visión,
2002.
LAGRÉE, Jean-Charles. “Marginalités Juvéniles”, in: PAUGAM, Serge (org.),
L’Exclusion l’État des Savoirs. Paris: La Découverte, 1996.
LASCOUMES, Pierre. Construction Social des Risques et Contrôle du Vivant.
Prévenir, n. 24, 1993.
255
LEACH, Edmund. Cultura e Comunicação. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
________ “Cabelo Mágico”, in DAMATTA, Roberto (org.) Edmund Leach, Col.
Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1983.
LEPOUTRE, David. Cœur de Banlieue: codes, rites e langages. Paris: Odile
Jacob. 1997.
LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrópolis:
Vozes, 1982.
LEWIS, Oscar. La Vida. Una família puertorriquenha en la cultura de la
pobreza: San Juan y Nueva York. Mexico: Joaquin Mortiz, 1975.
LEWIS, Joan M. Dualism in Somali Notions of Power. Journal of the Royal
Anthropological Institute, 92 (1), 1963.
LINS, Paulo & SILVA Maria de Lourdes. “Bandidos e Evangélicos: extremos
que se tocam”. Religião e Sociedade.15 (1), 1990.
MAGNANI, José G. C.. Festa no Pedaço. Cultura popular e lazer na cidade.
São Paulo: Hucitec/UNESP, 1998.
MANNHEIM, Karl. “O Problema da Juventude na Sociedade Moderna”. In
BRITO, Sulamita de (org.). Sociologia da Juventude. Rio de Janeiro:
Zahar, v. I, 1968.
________ “Função das Novas Gerações Novas”, in PEREIRA, Luiz &
FORACCHI, Marialice (orgs.), Educação e Sociedade. Leituras de
Sociologia da Educação, 1978.
________ “O Problema Sociológico das Gerações”, in FORACCHI, Marialice
(org.), Mannheim, Col. Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática,
1982
MARGULIS, Mário. “Juventud: uma aproximatión conceptual”, in BURAK, S.
(org.), Adolescencia y Juventude en América Latina. Costa Rica:
LUR, 2001.
MATZA, David. Delinquent and Drif. New York: Wiley,1964.
MAUGER, Gérard. “Les Usages Poplitique du Monde des Bandes”, in
L´Engagement Politique: déclin ou mutation. Colóquio. Sénat, Palais
du Luxembourg, março, 1993.
256
MEAD, Margareth. “A Jovem de Samoa e seu Grupo de Idade”, in BRITO,
Sulamita de (org.). Sociologia da Juventude. Rio de Janeiro: Zahar, v.
III, 1968.
MINAYO, Maria Cecília. “Violência, Direitos Humanos e Saúde”, in CANESQUI,
A. M. (org.), Ciências Sociais e Saúde. São Paulo/Rio de Janeiro:
Hucitec/ABRASCO, 1997.
________ (coord.). Fala Galera: juventude, violência e cidadania na cidade do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond, 1999.
MISSE, Michel. “Crime e Pobreza: velhos enfoques, novos problemas”, in
Crime e Violência no Brasil Contemporâneo. Estudos de sociologia
do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006a.
________ “Gangs, Galère, Galeras: entre o Rio e Paris”. in Crime e Violência
no Brasil Contemporâneo. Estudos de sociologia do crime e da
violência urbana. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006b.
MONOD, Jean. Les Barjots: essai d’ethnologie sur les bandes de jeune. Paris:
Julliard, 1968.
MORGAN, David L. Focus Groups as Qualitative Reasearch. California: Sage
Publications, 1988.
Muniz, J., Larvie, S., Musumeci, L. & Freire,B.. “Resistências e Dificuldades de
um Programa de Policiamento Comunitário”. Tempo Social: Revista
de Sociologia da USP, v.9, n. 1, 1997.
NOVAES, Regina. “Junventudes Cariocas: mediações e conflitos”, in VIANNA,
Hermano (org.), Galeras Cariocas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
1997.
________ Juventude: conflito e solidariedade. ISER. Comunicações do Iser 50,
1998.
OBERTI, Marco. “La Relégation Urbaine, Regards Européens”, in PAUGAM,
Serge (org.), L’exclusion. l’étad des savoirs. Paris: La Découverte,
1996.
OLIVEIRA, Roberto C. de. Identidade, Etnia e Estrutura Social. São Paulo:
Pioneira, 1976.
ORTIZ, Renato. A Mundialização da Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
PEREIRA, C., RONDELLI, E., SCHOLLHAMEER, K. & HERSCHMANN, M.
(orgs.). Linguagens da Violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
257
PERROT, Michelle. “Na França da Belle Époque, os ‘Apaches’, primeiros
bandos de jovens”, in Os Excluídos da História. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1988.
PORTO, Maria Stella. “A Violência entre a Inclusão e a Exclusão Social”. VII
Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia. Brasília, agosto,
1997.
RAMBO, Lewis. Understanding Religious Conversion. New Haven and London:
Yale University Press, 1993.
REZENDE, Cláudia. “Identidade: o que é ser jovem?. Revista Tempo e
Presença, n. 240, 1989.
RIFIOTS, Theophilos. Nos Campos da Violência: diferença e positividade.
Florianópolis: mimeo, 1997.
ROBERT, Philipe & LASCOUMES, Pierre. Les Bandes d’Adolescentes. Paris:
Editions ouvrière, 1974.
ROLNIK, Suely. “Uma Insólita Viagem à Subjetividade”, in LINS, Daniel, Cultura
e Subjetividade. Campinas: Papirus, 1997.
RUA, M. das Graças. “Segurança Pública e Crime Organizado”. O Tempo,
18/12, 1996, Belo Horizonte.
SALLAS, Ana Luísa (coord.). Os Jovens de Curitiba: esperanças e
desencantos. Brasília: UNESCO, 1999.
SÁNCHEZ-JANKOWISKI, Martín. Islands in the Street: gangs in urban
american society. Berkeley e Los Angeles: University of California
Press, 1991.
________ “Les Gangs et la Presse, la Production d’un Mythe Nacional”. Acts de
la Recherche en Sciences Sociales, 101-102,1994.
________ “As gangues e a estrutura da sociedade norte-americana”. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo: ANPOCS, v.12, n. 34, jun.
1997.
SANTOS, José. “A Violência como Dispositivo de Excesso de Poder”.
Sociedade & Estado. Departamento de Sociologia UnB, vol. 10, n.2,
jul.-dez., 1995.
SARTI, Cyntia A. A Família como Espelho: um estudo sobre a moral dos
pobres. Campinas: Autores Associados,1996.
SHAW, Clifford & MCKAY, Henry. Juvenile Delinquency in Urban Areas.
Chicago: The University of Chicago Press, 1942.
258
SILVA, L. Antônio Machado. “O Significado do Botequim”, in Cidades: usos e
abusos. São Paulo: Brasiliense, 1978.
SILVA, Jorge da. “Representação e Ação dos Operadores do Sistema Penal do
Rio de Janeiro”. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, v.9, n.
1, 1997.
SILVA, Itamar, SOUTO, Ana & SOARES, Sebastião (coords.). Juventude
Brasileira e Democracia: participação, esferas e políticas públicas.
Pesquisa Nacional. IBASE/PÓLIS, 2005.
SIMARD, Gisèle. La Méthode du Focus Group. Laval: Mondia Éditeurs, 1989.
SNOW, David & MACHALEK, Richard. “The Sociology of Conversion”. Annual
Review of Sociology, n. 10, 1984.
SOARES, Luiz Eduardo. Riscos e Promessas na Segurança, in Revista ISTOÉ,
9/01/2002.
STEWART, David W. & SHAMDASANI, Prem N. Focus Groups: theory and
practice. California: Sage Publications, 1990.
TAVARES, Fátima & CAMURÇA, Marcelo. “’Juventudes’ e Religião no Brasil:
uma revisão bibliográfica”. Numen: revista de estudos e pesquisa da
religião, v.7, n. 1, 2005.
TELLES, Vera da Silva. Cidadania inexistente: incivilidade e pobreza. Um
estudo sobre trabalho e família na Grande São Paulo. Tese de
Doutorado. Departamento de Sociologia, FFLCH/USP, 1992.
TESTONI, Saffo. “Violência”, in BOBBIO, Noberto (et al). Dicionário de Política.
Brasília: Editora da Universidade de Brasília, v II, 1993.
THRASHER, Frederick M.. The Gang. Chicago: The University of Chicago
Press, 1963.
TOMMASI, Lívia. “Preocupações e Polêmicas marcam o direito ao Trabalho”.
IBASE, Democracia Viva, n. 30, 2006.
TOURAINE, Alain. Pour la Sociologie. Paris: Le Seuil, 1974.
TRAJANO FILHO, Wilson. “O Cortejo das Tabancas: dois modelos de Ordem”,
in CAVALCANTI, Maria Laura & GONÇALVES, José Reginaldo
(orgs.), As Festas e os Dias: ritual, etnografia e análise cultural. Rio
de Janeiro: Contra Capa, (a sair).
259
TRAJANO FILHO, Wilson. “A Persistência da História. Passado e
contemporaneidade em África”, in CARVALHO, Clara & CABRAL, J.
de Pina, Vulnerabilidade Imperial. Lisboa: Imprensa de Ciências
Sociais, 2004.
TURNER, Victor. O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Rio de Janeiro:
Vozes, 1974.
TURZ, A., COURTECUISSE,V., JEANNERET, O & SAND, A.. “Comportements
de Prise de Risque et d’Accidents à l’Adolescence dans lês Pays
Dévélopées”. Revue Epidémiologique et de Santé Publique, n. 34,
1986.
VAN GENNEP, Arnold. Os Ritos de Passagem. Petrópolis: Vozes, 1977.
VARAGNAC, André. “As Categorias de Idade numa Sociedade Tradicional”, in
BRITO, Sulamita de. Sociologia da Juventude. Rio de Janeiro: Zahar,
v. III, 1968.
VELHO, Gilberto. Projeto e Metamorfose: antropologia das sociedades
complexas. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
VIANNA, Hermano. “O Funk como Símbolo da Violência Carioca”, in VELHO,
Gilberto & ALVITO, Marcos, Cidadania e Violência. Rio de Janeiro:
UFRJ/FGV, 1996.
________ O Mundo Funk Carioca. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
WACQUANT, Loïc J.D. “Le gang comme prédateur collectif” . Actes de la
Recherche en sciences Sociales, 101-102, 1994.
________ “Proscritos da Cidade”. Novos Estudos n. 43, São Paulo, novembro,
1997.
WAISELFISZ, Julio (coord.). Juventude, Violência e Cidadania: os jovens de
Brasília. São Paulo: Cortez, 1998.
WEBER, Max. “Comunidade e Sociedade como Estruturas de Socialização”, in
FERNANDES, Florestan. Comunidade e Sociedade: leituras sobre
problemas conceituais, metodológicos e da aplicação. São Paulo:
Editora Nacional/USP, 1973.
________ Economia y Sociedad. México: Fondo de Cultura Económica,
1974.
WHYTE, William Foote. Street Corner Society: the social structure of na italina
slum. Chicago: The University of Chicago Press, 1943.
WIEVIORKA, Michel. “O Novo Paradigma da Violência”. Tempo Social: Revista
de Sociologia da USP, v.9, n. 1, 1997.
260
WOORTMANN, Klass. A Família das Mulheres. Rio de Janeiro:Tempo
Brasileiro/CNPq, 1987.
ZALUAR, Alba. A Máquina e a Revolta: as organizações populares e o
significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense,1985.
________ “Condomínio do Diabo”, in Condomínio do Diabo. Rio de Janeiro:
Revan/UFRJ, 1994a.
________ “Teleguiados e Chefes: juventude e crime”, in Condomínio do Diabo.
Rio de Janeiro: Revan/UFRJ, 1994b.
________ “Gangues, Galeras e Quadrilhas: globalização, juventude e
violência”, in VIANNA, Hermano (org.), Galeras Cariocas. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
________ “A Globalização do Crime e os Limites da Explicação Local”, in
VELHO, Gilberto & ALVITO, Marcos, Cidadania e Violência. Rio de
Janeiro: UFRJ/FGV, 1996.
________ “Violência, dinheiro fácil e Justiça no Brasil”. Estudos Afro-Asiáticos,
n. 34, set. 1998.
________ “Crime e Castigo vistos por uma Antropóloga”, in Integração
Perversa: pobreza e Tráfico de Drogas. Rio de Janeiro: editora FGV,
2004a.
________ “Violência e Crime: saídas para os excluídos ou desafios para uma
democracia?”, in Integração Perversa: pobreza e Tráfico de Drogas.
Rio de Janeiro: editora FGV, 2004b.
________ “Masculinidades, Crises e Violências”, in Integração Perversa:
pobreza e Tráfico de Drogas. Rio de Janeiro: editora FGV, 2004c.
ZATZ, Inês. Catireiros e Candangos. Dissertação de Mestrado. Departamento
de Antropologia. Universidade de Brasília, 1986.
i
ANEXO I
VIVER NA PERIFERIA: O OLHAR DOS RAPPERS
Nós temos uma verdade: a realidade da
periferia.
(Rapper do Paranoá).
Aí meu irmão, pense na sua vida, periferia,
seus irmãos. Pense no sonho que você
sempre foi louco pra realizar, que sonhe alto
mesmo, mas não faça sua mãe chorar. [...] Um
minuto de atenção:declaro eu conhecendo a
vida bandida, pode crer, vendo retrato de
violência, pobres e fotogênicos sanguinários,
marginalizados, armados até os dentes, eles
são brancos e negros. São a minha gente. Eu
sei que aqui é foda, meu irmão. Assisti tudo de
perto: mortes, sangue, tiros, moleques
drogados. Periferia sem lei.
(Rap de autoria do grupo “V.V.”).
Neste texto procuro trazer a leitura que os jovens envolvidos com o
movimento Hip Hop no Distrito Federal fazem da realidade social dos
moradores da periferia do Plano Piloto. Os rappers orgulham-se de compor e
cantar músicas que registram o cotidiano de quem ali vive e de terem uma
perspectiva crítica da sociedade. Por meio da expressão musical, de um
“espírito” e de um estilo de vida a ela agregados, acreditam poder denunciar e
subverter uma ordem social que condena os pobres a uma vida precária, a
violência, a exclusão, a opressão e a marginalidade.
O convívio com rappers foi um grande facilitador do entendimento de um
conjunto de idéias e valores difundido entre os jovens e por isso suas falas,
como um pedaço de um quebra cabeça, naturalmente somam-se a dos
entrevistados na Ceilândia, Samambaia e Planaltina. Trata-se de falas que,
mesmo guardando suas especificidades, aqui serão tratadas numa perspectiva
de continuum, isto é, como parte entrelaçada de um imaginário sobre a vida e
vivência dos jovens da periferia urbana da capital.
ii
O movimento Hip Hop: dos EUA para o Brasil
1
O rap (rhitym and poetry, espécie de “repente-eletrônico”
2
) é a
expressão musical do Hip Hop, movimento cultural surgido nos Estados Unidos
em meados dos anos 70, que reúne, junto com a música, mais duas
modalidades de arte: a dança (break, um tipo de dança acrobática) e a arte
plástica (grafite). Indissociável do contexto urbano, o Hip Hop emerge como
uma reação às condições de vida impostas pelo ambiente hostil dos guetos
negros americanos, marcados pela violência, enfrentamentos étnicos e
degradação: “Neste ‘terreno’ de decomposição social (enclave geográfico,
destruição da célula familiar, violências urbanas e mercado da droga,
instituição cultural da segregação social...) nasce o Hip Hop” (Bazin, 1995: 24).
Desde a última década, muito se tem escrito sobre o Hip Hop. Na massa
de escritos, há inúmeras versões da história do início do movimento
3
. A versão
mais difundida entre os rappers que conheci
4
diz que o Hip Hop surgiu nos
guetos de Nova York, tendo sido criado pelas equipes de bailes com o objetivo
de apaziguar as brigas dos jovens negros e hispânicos agrupados em gangues.
As equipes organizavam festas nas ruas, ginásios e colégios, incentivando os
jovens a dançarem ao invés de brigarem entre si.
A mais famosa dessas equipes foi a Zulu Nation, cujo líder, Afrika
Bambaataa, morador do Bronx, gueto negro/caribenho localizado na parte
norte de Nova York, costuma ser apontado como o pai fundador do movimento
Hip Hop. Reconhecido como um grande mestre na arte de mixar as músicas
1
Foge ao meu propósito aprofundar o diálogo com a ampla literatura existente sobe o Hip Hop
no Brasil e no mundo. Este tópico apenas serve como uma pequena introdução, dirigida aos
que pouco sabem sobre esse movimento cultural.
2
Trata-se de poemas falados acompanhados por uma música que mixa todos os estilos da
black music norte-americana, ao que Vianna (1997) chamou de “repente-eletrônico” de modo
bem apropriado.
3
Toda história sobre as origens de um movimento pode dar lugar a narrativas míticas. Se
mítica, a origem evidentemente é negociada, posto que é sempre mutável. No caso do Hip
Hop, as histórias que ouvi e li sobre o início do movimento sempre variavam em função da
maior ligação do sujeito/ator com uma das expressões artísticas do movimento.
4
Meus informantes costumavam me passar material impresso para leitura – basicamente
recortes de jornais e revistas – e me indicar sites na internet. Quando procurei ampliar o meu
conhecimento sobre a história do Hip Hop, lendo alguns trabalhos acadêmicos e revistas
especializadas, descobri que havia uma enorme variedade de relatos históricos. A partir desta
constatação, decidi privilegiar os relatos mais difundidos entre os rappers que conheci.
iii
com os beat (tempo, ritmo, batida), o DJ (disc jokey)
5
Afrika Bambaataa
procurou estabelecer códigos morais e de conduta que apoiassem as relações
não-violentas baseadas na criatividade. Ao seu movimento deu o nome de Zulu
Nation
6
.
Afrika Bambaataa foi um nome emprestado de um chefe Zulu que se
opunha à colonização inglesa na África do Sul, mas que principalmente lutava
pela a unificação do seu país. Inspirado na história desse chefe, Afrika
Bambaataa encontrou símbolos para uma nova forma de combater os conflitos
étnicos existentes no contexto urbano. A Zulu Nation preconizava a recusa de
toda discriminação de cor, de religião ou política e buscava estimular a
identificação dos jovens envolvidos em gangues com atitudes positivas
7
. Os
jovens dos guetos podiam reforçar o sentimento de pertencimento, afastando a
violência através de “desafios” artísticos
8
.
Entre os anos 1977 e 1979, Afrika Bambaataa, outros DJ, breakers e os
primeiros rappers afinam suas artes e as ligam ao grafite
9
. As expressões
artísticas, musicais, gráficas, corporais e a trajetória desse caminho constituem
o ponto de referência e reunião. Juntas, vão estabelecer um quadro de
referência cultural que toma o nome de Hip Hop.
No Brasil, as primeiras manifestações do Hip Hop surgiram no início dos
anos 80, quando uma onda de break invadiu o cenário das grandes cidades,
sendo que, com maior força, o de São Paulo. Jovens da periferia da capital
paulista, hoje considerados precursores do Hip Hop no país na versão mais
aceita, descobriram na dança break uma nova forma de acerto de contas entre
5
Quem faz os efeitos sonoros da música.
6
A Zulu Nation tornou-se Universal Zulu Nation, chegando a reunir cerca de 10.000 membros
em todo o mundo. Ela se articula ao redor de um código moral e de conduta, composto de 15
itens – “As crenças da Universal Nation Zulu” –, facilmente acessível na internet.
7
A noção de “atitude positiva” se articula em torno de vários aspectos: engloba um conjunto de
comportamentos, uma maneira de ser e de pensar, além de uma forma de se cumprimentar, de
se comportar em grupo, de falar dos outros, etc.
8
O “desafio” é considerado uma maneira positiva e construtiva de contornar os embates
violentos. Trata-se de se revelar o melhor no rap, no break ou no grafite, de mostrar o domínio
da expressão. A agressividade é canalizada para a busca de perfeição. Desse modo, o espírito
do desafio no Hip Hop difere do espírito de competição ligado a um status social e econômico.
Está ligado a criatividade.
9
Nota-se que estas três artes de rua são acompanhadas de uma forma de se vestir identificada
com o estilo b-boy/b-girl, de um modo de vida, de uma linguagem e de um estado de espírito,
temas que tratarei sob a ótica dos rappers.
iv
gangues rivais. Eles transformaram a violência dos conflitos entre estas turmas
em desafios entre grupos de dançarinos de break, criando uma verdadeira
vaga de “brekemania” na cidade, que atinge seu ápice em 1985.
Com o break passaram a desembarcar no país revistas, vídeos e filmes
portadores de idéias e valores preconizados pelo movimento, despertando a
atenção de centenas de jovens em razão da identificação imediata com um
determinado ethos e uma visão de mundo
10
. Esse foi o tempo da descoberta de
que o Hip Hop não se restringia apenas a uma dança prazerosa, mas que
também englobava o rap e o grafite que, juntas, as três expressões artísticas
expressavam um estilo de vida e falavam a partir de um lugar com contornos
muito bem definidos, qual seja, a periferia pobre das cidades. A partir de
meados dos anos 80, outras manifestações da cultura Hip Hop começaram a
se tornar visíveis, na medida em que passam a se constituir em canais de
aglutinação e atuação dos jovens de classes populares.
São Paulo é representada até hoje como o farol, como o ponto de
referência do movimento no Brasil. Na cidade, como em outros grandes centros
mundiais, existem programas de rádio especializados em rap, espaços
específicos para shows, vários selos fonográficos, revistas especializadas em
Hip Hop e lojas que se dedicam exclusivamente à venda de “roupas da rua”.
Foi em São Paulo que, em 1989, os pioneiros do movimento fundaram o
Movimento Hip Hop Organizado, o MH
2
O. Mas não se pode ignorar a
importância do movimento também em outros contextos urbanos brasileiros,
como em Brasília, Belo Horizonte e Fortaleza, por exemplo. O Rio de Janeiro é
sempre apontado como um caso particular: é a cidade do funk, onde
predomina o “estilo Miami”, percebido como uma oposição ao rap (e ao Hip
Hop em geral) na medida em que se esquivaria de uma consciência política
11
.
10
Seguindo Geertz, refiro-me a ethos como os valores morais e os elementos valorativos de
uma determinada cultura e a “visão de mundo” como os seus aspectos cognitivos. Retomando
as palavras do autor, “o ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu
estilo moral e estético e sua disposição, é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao
seu mundo que a vida reflete. A visão de mundo que esse povo tem é o quadro que elabora
das coisas como elas são na simples realidade, da sociedade. Esse quadro contém suas idéias
mais abrangentes sobre a ordem” (Geertz, 1978: 143-44).
11
O “estilo Miami” é bastante hostilizado pelos mais antigos integrantes do movimento Hip Hop
no Brasil e no Distrito Federal. Meus informantes costumavam ser mais tolerantes, afirmando
que até gostavam do estilo, embora não o seguisse. Um dos seus ídolos, GOG, “das antigas”,
v
Chama a atenção o modo diferenciado como a questão racial é
abordada em vários centos urbanos onde o rap ganhou prestígio no nosso
país. Em São Paulo, o Hip Hop mantém ligações estreitas com o movimento
negro e seus integrantes polemizam fortemente as relações raciais no Brasil
12
.
Já em Fortaleza e no Distrito Federal, por exemplo, a questão da desigualdade
é central, mas não aparece necessariamente dentro do registro da “consciência
negra”. Os rappers procuram adentrar a lógica excludente que perpassa a vida
dos pobres da periferia das cidades, enfatizando a oposição entre ricos e
pobres, sem insistirem em colocar o negro como o principal sujeito do discurso
(“negro pobre”). O que não significa que a questão racial seja deixada
inteiramente de lado, mas ela é diluída meio a uma argumentação geral que
gira em torno da exclusão social
13
.
O Hip Hop no Distrito Federal: a voz da periferia
A chegada do Hip Hop no Distrito Federal não foi diferente que em
outras capitais do país: no início dos anos 80, o break começou a fazer
sucesso entre jovens moradores da periferia e os primeiros grupos que se
formaram em torno dessa dança passaram a executar suas performances
tomando o rap como música de base (Nascimento, 1994; Amorim, 1997;
Magalhães, 2003). A breakdance, que alcançou seu auge em meados dos
chegou a compor uma música cujo refrão dizia: “Não ao Miami”. Mas, se, por um lado, o “estilo
Miami” não chegava a incomodar os meus informantes, por outro, o que chamavam de
“massificação” do rap era motivo de incômodo. Gabriel o Pensador, que fazia grande sucesso
na mídia, era freqüentemente atacado pelo fato de que, nas suas percepções, o cantor
banalizava e se apropriava ilegitimamente dessa expressão musical: “o cara não sabe o que é
uma periferia, não vive numa periferia; ele canta pra bodinhos”.
12
Os trabalhos acadêmicos sobre o Hip Hop em São Paulo dão grande ênfase à questão
racial. O antropólogo Marco Aurélio Paz Tella, na sua dissertação de mestrado argumenta: “o
rap se transformou num veículo da construção da identidade, tendo consciência da violência
praticada contra a população negra em toda a história [...]. Através da denúncia da condição
social dessa parcela da juventude negra de baixa renda e do preconceito racial de nossa
sociedade, o rap rompe com a reprodução do imaginário social baseado na democracia racial e
do racismo cordial, mitos de suma importância para a estabilidade da ordem” (Caros Amigos,
set/1998).
13
Tomo como referência para falar sobre o movimento Hip Hop em Fortaleza o trabalho de
Diógenes (1998). No caso do Distrito Federal, minha pesquisa de campo evidenciou que a
questão racial não era central no imaginário dos integrantes de grupos de rap que foram meus
informantes, dentre os quais muitos eram negros.
vi
anos 80, aos poucos foi perdendo sua força, enquanto o rap caminhou em
sentido ascendente, ganhando cada vez mais prestígio entre o público jovem
das cidades satélites, sobretudo após vários lançamentos de CDs gravados por
grupos do Distrito Federal, a exemplo do Câmbio Negro, GOG, Baseado nas
Ruas, Álibi e Cirurgia Moral. Em 1997, Brasília encerrava, depois de São Paulo,
o segundo maior foco do rap nos centros urbanos brasileiros, com mais de
cinqüenta grupos distribuídos pelas cidades-satélites (Amorim, 1997). Hoje
continuam a existir dezenas de grupos de rap em Brasília. Nem todos estão
nos palcos dos salões de baile nos finais de semana, mas fazem seus ensaios,
discutem suas novas letras, acompanham o movimento do Hip Hop na cidade,
no país e no mundo. Conhecem as dissidências, tomam partido, elegem seus
ídolos. Comungam com outros rappers espalhados pelo Brasil uma
característica de suas trajetórias de vida: terem sido criados na periferia.
Esse prestígio do rap entre jovens moradores das cidades-satélites foi
uma das constatações que fiz logo após iniciada a minha pesquisa de campo.
Todos os informantes com quem ia travando contato demonstravam cultivar
certo fascínio pelo estilo musical, estivessem ou não envolvidos no cotidiano
com práticas delinqüentes. E esse é um ponto que é preciso deixar claro: nem
todos os simpatizantes do rap, que se dedicam inclusive a compor letras,
integram o movimento Hip Hop
14
. Mas acreditam que “o rap fala apenas a verdade
e é uma expressão de uma voz coletiva: “é a voz da periferia”. Trata-se de um
“falar coletivo” que denuncia e tenta explicar a vida do jovem de periferia,
narrando seus embates rotineiros, existenciais e sociais, contando sobre o
submundo das drogas, da delinqüência e marginalidade, relatando as
humilhações sofridas no Brasil por aqueles que nascem numa classe social
economicamente desfavorecida. É um grito de revolta compartilhado, uma
linguagem entendida por todos.
Os jovens aproximam-se desta linguagem por diferentes motivações.
Podem incorporá-la como um estilo musical como outro qualquer, mas com o
qual se identificam mais e por isso o adotam: cantam e dançam rap nos
14
Segundo os meus informantes engajados no movimento, para uma pessoa integrá-lo é
fundamental que ela conheça sua história e ideologia. Também é necessário que a pessoa
passe por um processo de socialização no qual aprende códigos morais e de conduta.
vii
momentos de lazer, vão à shows, trocam CDs, decoram letras de grupos,
adquirem preferências, enfim, o rap participa da dinâmica de sociabilidade de
uma forma lateral: fala sobre a vida, relaxa, diverte, mas não é a razão de ser
de um indivíduo. Há casos, porém, em que o rap pode significar a própria razão
de existência. Quem troca a gangue, a vida bandida, pelo movimento Hip Hop
o enxerga assim, como sentido e esperança novos de vida.
Em razão da extrema popularidade do rap entre os jovens da periferia de
Brasília, nunca perdi de vista os rappers que conheci no momento inicial da
pesquisa. De simples “mediadores” com jovens envolvidos coletivamente em
atividades ilícitas, passaram a fazer parte da minha rotina de campo, que
também implicou em andar em suas companhias por outras periferias do Plano
Piloto, além de Ceilândia, Samambaia e Planaltina
15
.
A formação de grupos de rap não seguia necessariamente uma lógica
de afinidade por local de moradia, ao contrário, o recrutamento dos membros
podia ser plurilocal, sem um suporte territorial específico. Sublinha-se que os
rappers têm grande mobilidade geográfica. Costumam freqüentar periferias
diferentes das que moram, onde assistem ou realizam shows, vão a festas e
bailes, encontram outros integrantes do movimento Hip Hop, ensaiam,
assistem a vídeos de outros grupos, vão ao Conic
16
, por exemplo. Também
costumam ir à Papuda
17
e ao Centro de Atendimento Juvenil Especializado
CAJE, onde visitam amigos e realizam apresentações. Pela influência musical,
partilham de uma espécie de “comunidade periférica”, conhecendo, por meio
de canais mediáticos, desde os bairros pobres de São Paulo aos guetos
americanos de Los Angeles e Nova York.
O modo de ocupação e de utilização da rua é um dos aspectos
diferenciadores dos rappers e demais membros do Hip Hop (breaks e
grafiteiros) de outras formas de agregação juvenis existentes na periferia do
Distrito Federal. A separação não é exatamente de ordem social – geralmente
15
Precisamente, Paranoá, Riacho Fundo, Sobradinho e Santa Maria foram as outras cidades-
satélites que freqüentei em função do contato com os rappers.
16
No Conic, centro comercial situado no coração do Plano Piloto (Setor de Diversões Sul),
existe a discoteca Discovery, que é um importante ponto de encontro de pessoas ligadas ao
hip hop. A loja é especializada na produção e distribuição de discos de rap e também
comercializa revistas, roupas e bonés.
17
Papuda é o nome pelo qual é conhecida a penitenciária de Brasília.
viii
partilham das mesmas condições de vida –, mas de ordem espacial. Os jovens
integrantes de galeras e gangues têm uma posição mais estática, deslocando-
se principalmente em territórios conhecidos (sua cidade-satélite, quadra,
comércio local), raramente vão mais longe, adquirindo assim uma grande
visibilidade. Essas duas características – mobilidade restrita e visibilidade –
poderiam ser interpretadas, como sugere Dubet (1987), como imagens de um
désoeuvrement (ociosidade/desocupação), de uma espera ou de chamado, as
quais o controle social responde com a retórica da “insegurança”.
A grande mobilidade dos rappers talvez seja possível porque geralmente
é individual, ainda que atravesse trajetórias coletivas. Já no caso das galeras e
das gangues, o grupo é praticamente indispensável para o deslocamento. Os
rappers mais “antigos” no movimento, sempre lembram que o primeiro desafio
do Hip Hop é “ser autor da própria vida”, insistindo nessa responsabilidade pessoal.
Trata-se de uma mobilidade que tem o sentido formador na medida em que
responde as exigências do mundo: capacidade de adaptação, de “sobreviver” em
ambientes adversos, de “colocar a imaginação para funcionar”.
Foi no Paranoá, na casa de Marcão, jovem de 24 anos, DJ do grupo
“D.O.”, que me aproximei pela primeira vez dos engenhosos detalhes da
produção de um rap. Além de se caracterizar pelo enfoque político dado nas
letras, um rap é construído com um número reduzido de batidas por minuto
(BPM). Ele começa por palavras que são lançadas num papel e permite a
construção de uma mensagem livre: na articulação das palavras um
pensamento é elaborado. Não é preciso estudar música, freqüentar uma escola
com essa finalidade ou possuir um instrumento musical para fazer um rap. Um
toca-disco, os discos de vinil e um grupo de interessados, de início, são
suficientes.
Os grupos de rap sempre envolvem a figura de um DJ e de um MC
(mestre de cerimônia)
18
. O scratch (arranhar) é a técnica mais importante do
DJ: trata-se de um movimento feito pela mão no disco de vinil para frente e
para trás, provocando o atrito entre a agulha e o disco, tirando o som da
18
Quem canta em cima das batidas da música.
ix
“arranhada”. Os efeitos sonoros são produzidos a partir de várias músicas,
tornando o DJ uma espécie de músico.
Além de Marcão, estavam também neste encontro Rodrigo, de 18 anos,
e Gilberto, de 17 anos, ambos vocalistas do grupo. Eles costumavam ensaiar
nos sábados à tarde num cômodo de alvenaria aparente construído no quintal
da casa dos pais de Marcão para esta finalidade. Gilberto, que morava em
Sobradinho, costumava ir para o Paranoá ao encontro de seus parceiros de
“baú” (ônibus), numa viagem que, a depender da sorte, podia durar até duas
horas.
Segundo Marcão, o “DO” fazia o “rap consciente”.
A composição do grupo é super consciente, é realista. Mas não é porque aqui
tem bandido, tem malandro, que a gente vai fica citando só a violência que
acontece: “aqui é assim, malandro mata mesmo, rouba, xinga a polícia”. Não!
A gente tem que mostrar outra coisa. A gente se espelha muito no GOG e no
Câmbio Negro pra fazer as letras. Não fazemos uma coisa pesada como o
Cirurgia Moral porque incentiva a violência. É o que eu tava te falando aquele
dia: se o cara tá num baile, com raiva de outra pessoa, com intriga, ele ouve
aquela música, aquela música bate na consciência dele, ele: “pô, o cara tá
falando que fez isso. Eu vou fazer também”. Aí, as vezes, ele vai lá e dá um
tiro no cara, vai embora, a polícia pega, ninguém sabe o que aconteceu. Agora,
se ele tá num baile e ouve aquela coisa consciente, certamente ele vai pensar:
“pô, acho que o caminho não é esse não. Vou parar por aqui”. É isso. O estilo
da música da gente até agora tá sendo consciente. Não sei o que vai
acontecer pra frente, como é que vai ficar o movimento. Mas a tendência é
essa mesma, música consciente.
Os termos “consciência”, “conscientizar”, “consciente” eram
insistentemente utilizados por meus informantes. Um rapper deveria ter
consciência do preconceito, da discriminação, da violência e da miséria para
poder combatê-los e denunciá-los. A “
falta de consciência” é o que impediria
muitos jovens da periferia de sair da marginalidade – brigas, drogas, roubos,
assaltos e homicídios – e “
é isso que o sistema quer”. O “sistema”, categoria
também freqüentemente utilizada pelos informantes de modo nunca bem
definido, seria o responsável pela marginalização social dos jovens, não tendo
interesse em mudar essa condição.
O rap consagra a arte da palavra e, segundo meus informantes, traz
uma mensagem que informa sobre os fatos sociais, sempre endereçada ao
público da periferia. As palavras têm um peso, uma consistência, uma função,
x
ou seja, não são simples palavras, mas palavras engajadas. A força de
persuasão da mensagem depende do caráter autêntico e “verdadeiro” da
palavra. Enquanto rappers e adeptos do movimento Hip Hop, meus informantes
diziam que deviam assumir a responsabilidade de passar conhecimento e
arbitrar: “um rapper é tipo um juiz, ele demonstra as coisas: isso aconteceu, então acho isso
e aquilo
”. Eles não poderiam divulgar uma mensagem moral contra a violência, a
droga e a discriminação se eles mesmos não aplicam esses preceitos
19
.
Desse modo, a legitimidade do engajamento de um rapper no
movimento Hip Hop seria condicionada pela coerência entre seus atos e seu
discurso. Ele olha para o futuro, lembrando o papel das gerações futuras e
chamando a atenção dos jovens para a sua responsabilidade com esse futuro.
Também denuncia tudo que contribui para obscurecer a percepção da
realidade e a compreensão do sujeito enquanto ator com potencial para mudar
uma determinada ordem social.
Ficha Técnica do grupo de rap “FC”
FC teve início no ano de 1994 surgindo como uma das fortes revelações do rap de
BSB. Nesse ano, surge a oportunidade de se apresentar na própria cidade de onde surgiu já
considerado por fazer vários shows ao lado de grandes nomes de destaque do rap nacional:
Câmbio Negro, GOG, Morte Cerebral, Consciência Humana, Baseado nas Ruas, Paradoxo,
Sentença de Morte, etc.
Já bem conhecido, FC tem se apresentado em diversos lugares principalmente nas
periferias e em lugares dos mais disputados de BSB. Exemplo: Tropical (Taguatinga), Fábrica
(SIA), etc.
Como um dos poucos do DF, FC é polêmico e tem como finalidade conscientizar os
paga-paus, policiais, racistas e outros otários desinformados.
FC usa 100% de coerência e dispara inteligência visando o principal alvo: a periferia. É
de lá que vem a idéia com letras não muito comerciais e algumas polêmicas. [...].
FC vem desenvolvendo um projeto de âmbito social que é uma base de informação
contra tudo e todos que querem destruir nosso povo, lutando com as nossas armas. FC vem
ganhando destaque e segue na luta da descriminalização de nossas ideais. [...].
Formação Atual:
Atenção! Procurados!
Estes elementos abaixo são extremamente perigosos por serem ameaça constante a
qualquer tipo de sistema que venha destruir a população menos favorecida.
19
Segundo meus informantes, o uso de drogas e a prática da violência são motivos de
expulsão do movimento porque o indivíduo revela que perdeu o controle sobre sua
“consciência”. Observa-se que o álcool, por poder ser legalmente consumido, não fere o código
de conduta do Hip Hop, mas não se pode cometer excessos.
xi
CFZ (vocal/letra) = Um elemento extremamente agressivo a qualquer órgão que venha
oprimir a classe menos favorecida e tal agressividade não é usada com violência e sim com
palavras e argumentos.
Tephon (vocal/letra) = Um elemento perigoso por ser altamente objetivo nas suas
idéias e por não ficar calado nem aceitar caprichos de uma minoria dominante.
NAS (DJ) = Braço direito de Tephon e CFZ por ser a base de sustentação de seus
crimes verbais contra os que querem destruir a grande massa pobre.
FC = Arma poderosa que dispara inteligência, sugerindo idéias a todos que querem ter
uma mente forte e sem limites.
(Material de divulgação do FC, cedido pelo grupo à pesquisadora sob forma de
fotocópia)
Na época da pesquisa havia uma disputa entre os grupos tidos como
“conscientizados” e os que exaltavam o mundo do crime, estes últimos
inspirados na onda estadunidense do gangsta rap
20
. Meus informantes faziam
uma distinção entre agressividade e violência, que correspondiam a dois estilos
diferenciados de mostrar a realidade através do rap, com implicações também
distintas: no primeiro, “consciente”, os atos violentos seriam descritos como
expressão de um desabafo, de uma revolta, sem incitar a violência, “para que as
pessoas saibam como o mundo do crime é ruim e não entrem nele
”; no segundo, esses
mesmos atos seriam evocados para incitar a violência. A exaltação do mundo
do crime por alguns grupos de rap do Distrito Federal teria sido o motivo da
ocorrência de episódios violentos em shows, chamando a atenção da polícia,
que passou a proibi-los. Os grupos “conscientizados” se sentiam perseguidos e
expressavam o sentimento de terem sido ilegitimamente calados, como
comentam Júlio, DJ do “VV.”, e Marcão, respectivamente.
A gente que prega uma mensagem, que tem um monte de letra bacana, a
gente não vai gostar de chegar num festival de rap e ver outro grupo pregando
aquelas apologia, instigando os cara a fazer. Então, a gente não vai gostar dos
caras: “pô, os cara tão queimando a gente, bicho!”. Em Santa Maria, sem citar
o nome do grupo nem nada, o cara subiu no palco incentivou o público a
apedrejar o policiamento que tava lá. O cara lá, se amostrando lá, bem assim,
com a mão assim... Colocaram lá o ‘terrorista do rap’, aterrorizando a periferia
e incentivando o público a apedrejar o policiamento que estava fazendo a
proteção. Tudo bem, o cara quer cantar, ele pode cantar, mas ele não pode
fazer esse tipo de coisa não. [...] Então ele estava ali como um otário. Um
20
Esse estilo de rap é povoado de imagens do submundo do crime e das drogas. Traz uma
mensagem bastante apimentada de raiva e ódio.
xii
babaca fazendo uma apologia que não tem nada a ver. Aí a polícia e a
sociedade pensa que todo rapper é bandido, que o Hip Hop é coisa de
marginal e mete o pau na gente, quer acabar com o movimento
.
A polícia fala que o rap é sinônimo de violência. Não é isso não, é a minoria
que faz isso. As pessoas que estão no poder, estão contra a gente. A gente
fala o que eles não querem ouvir [...]. Estar contra é se você falar de um garoto
que fica com fome, rua cheia de lixo, pobres sem ter o que comer, enquanto
eles esbanjam dinheiro. Exemplo aí é a Micarecandanga: tem gente que paga
55 reais na mortalha. Aqui na periferia as pessoas mal têm dinheiro pra comer,
recebe salário mínimo
.
Para os meus informantes, um rapper tem obrigação de pintar quadros
realistas, restaurando as cores da vida cotidiana. A periferia é sua grande fonte
de inspiração, além de ser seu lugar de vida e de sociabilidade privilegiada. O
cotidiano marcado pela violência - crimes, assaltos, roubos, batidas policiais -,
o ambiente hostil e a carência econômica os impulsiona a lutar em favor de
uma justiça social, idealizada como um mundo de diferentes, mas pautado
numa única lei, numa única categoria de cidadão. Eles constroem um discurso
sobre a vida na periferia em geral, cuja ironia e a crítica à sociedade são a
tônica.
Viver na periferia, nas suas percepções, é conviver com a “miséria”, com
a “fome”, com pobres que “não têm o que comer”, que “não têm estudo”, com “ruas
cheias de lixo
”, com “poeirão e a terra”, com a polícia que “chega batendo, espancando”,
com o mundo do crime e das drogas. É ver jovens “
ociosos”, “desempregados”, o
tempo todo “
atirando e matando para não morrer”, virando “bandidos”, “mortos nas ruas
estraçalhados
”, “caindo na cadeia”, expondo-se à “mira de vários canos (arma de fogo)”,
acabando-se na maldita droga”. A periferia é uma “espécie de inferno”, é “lugar de
guerra
”, é “coisa de louco”. Esse ambiente hostil é atribuído a uma ordem social
injusta, segregatória e discriminatória.
Os rappers diziam falar em nome dos sem voz, se percebiam no papel
de porta-vozes , como mediadores dos jovens pobres da periferia.
xiii
A voz da periferia
A gente é a voz da periferia. Aquela voz que eles não têm, nós somos essa voz, a
gente fala por eles. A gente tem o domínio daqui e nosso som pega porque passa uma
mensagem, tipo, ‘se eu não souber escolher o caminho certo, vou me dá mal’. [...] Caminho
não certo? Quem mora na periferia sabe muito bem qual é. É a droga, a vida do crime, que só
leva a um destino: cadeia ou caixão. [...]. Música de periferia é o rap, entendeu? A gente fala
sobre o que acontece com a gente, passa a vida do pessoal daqui pra nossas letras. A gente
não pode dizer ‘vai trabalhar’ porque, tipo assim, a maioria dos jovens de periferia tem
problema com isso de falta de perspectiva, falta de emprego. O jovem daqui é muito
desocupado, não tem emprego, não tem diversão. A diversão pra maioria é sentar num boteco
e encher a cara. Ou ficar nas esquinas fumando. Essa é a diversão. Então o que oferecem pra
ele, ele aceita. Aí vai vender droga, vai roubar, vai matar. Você pode ver, a maioria não
trabalha, vive na esquina o dia todo. [...]. Ele cresce vendo o esgoto cavado na beira das
casas, estuda nas piores escolas, não têm apoio financeiro da família. Isso tudo revolta! [...].
Aqui o P. Sul é um lugar ruim, só que porque é uma cidade mais velha você viu que é tudo
asfaltado. Agora tem lugares muito piores. A expansão do Setor O, você pode ir lá que você vai
ver, é uma bomba-relógio. Parece que qualquer hora vai explodir. Lá ainda tem um monte de
barracos de madeira, rua de terra e muito armamento pesado. Mulequinho novo de sete anos
de idade com três oitão (revolver calibre 38) na cintura. Dez anos com a pistola na cintura
fumando maconha, merla. Tudo que tem de ruim, tudo tem ali. É tudo precário, muito precário.
É um lugar que nem existe no mapa do governo. É só dando uma volta com a gente pra você
ver. A revolta lá, claro, é muito maior. [...]. Muitos que se revoltam viram malandros, bandidos
mesmo. A gente faz diferente, expressa essa revolta no papel, nas letras, e aí quando a gente
canta a rapaziada sente na pele. A gente manda idéia pra rapaziada – ‘aí meu irmão, pense na
sua vida, periferia, seus irmãos –, pra quem tá sem rumo, fala do sistema, informa. Uma coisa
é certa: nós podemos mudar o mundo”.
(Entrevista com rapper morador da Ceilândia)
Para eles, as lutas verbais podem resolver os conflitos de modo mais
eficaz que a violência, preservando a força, o respeito e a dignidade, como
afirma NAS, 19 anos, integrante do grupo FC:
[...] a letra do meu rap é a minha arma. O rap é bem isso: a gente canaliza todo
o nosso ódio, toda a nossa revolta, para algo positivo. O rap tem uma postura
forte, entendeu? Aquele lance de um sentido melhor de vida, aquele lado da
paz... Toda a nossa revolta a gente trás nas letras, mas a gente quer a paz. Eu
sou a favor da revolução, mas a revolução deve ser feita primeiro na mente
.
Um dos motivos dessa atitude vem da constatação de que a violência
acaba sempre se voltando contra os mais pobres, mesmo quando inserida num
movimento legítimo contra a injustiça. As revoltas dos jovens, por exemplo, não
raro se dirigem contra os equipamentos urbanos da proximidade que servem
ao interesse da comunidade. O mesmo ocorre em relação a atos delinqüentes
dirigidos contra indivíduos do mesmo meio e às violências interindividuais ou
xiv
intergrupais, cometidas em razão de disputas pela posse de territórios e
rivalidades pessoais.
Assim, os rappers se opõem vigorosamente a um modo de vida baseado
na violência e enfatizam seu caráter destrutivo. O alto consumo de drogas e os
estragos causados pela toxicomania entre os jovens da periferia apontam para
essa direção. Segundo os meus informantes, a música que desenvolvem, rica
em prazer e emoções, oferece uma alternativa ao universo fictício das drogas,
ao falso sonho que ela proporciona e a um modo de vida entrecortado por
práticas de violência. O rap propõe aos jovens recobrarem a esperança no
futuro e levarem a violência para a dimensão da “consciência”. É o que nos fala
Zécadas, 19 anos, integrante do grupo “LC”:
[...] a gente não tem como parar a violência, a gente sabe disso. Mas não dá
pra ficar olhando os jovens matando uns aos outros e se enterrando nas
drogas. Tem que direcionar a violência pra uma coisa que tem conseqüência
positiva. É isso que a gente indica pra todos os jovens: se esforçar pra chegar
a algum lugar. Se ficar na ociosidade, se não tiver consciência, é um pulo para
se envolver com droga. Com droga, com o crime, e vira alvo da pancada da
polícia também. A gente sabe que não é fácil mudar o sistema em si, acabar
com a violência, então a gente tem que mudar a cabeça das pessoas,
entendeu? O comportamento. O cara tem que procurar o que fazer, tem que
ficar informado. Porque também não adianta você morar na periferia e viver
trancado em casa o dia todo porque é arriscado sair e se envolver com coisa
ruim. Tem que andar, se informar, saber o que é melhor pra você, aprender a
sobreviver no meio que você vive. É vivendo e aprendendo cada dia alguma
coisa.
Os rappers retratam a periferia por meio de descrições duras e
distópicas
21
para chamar atenção dos traços negativos da sociedade. Contudo,
não deixam de recuperar a positividade do meio em que vivem. Eles se
orgulham da periferia, principalmente porque consideram as relações humanas
nesses ambientes como calorosas, sinceras e solidárias. Segundo CFZ,
integrante do grupo FC,
[...] na periferia tem o lado humano que rico não vê [...]. As pessoas são
humildes e ajudam quem precisa de ajuda. A burguesia não tá nem aí pra
pessoa humilde, falta sensibilidade pra ver a pobreza, a miséria. É a
consciência do cara: ‘eu tô com a minha vida boa aqui, não quero nem saber’
.
21
O contrário de utópico (Abramo, 1994).
xv
Meus informantes sempre procuraram mostrar-me que na periferia
também há lugar para o lazer, para o prazer, enfim, para uma sociabilidadade
lúdica. O futebol, a capoeira, os almoços partilhados com a vizinhança, os bate-
papos nas esquinas, a “azaração” (paquera), os campeonatos, as festas da
comunidade, os bailes jovens, constituem outra face da identidade da periferia.
Normalmente, esta face é desconhecida pelos “ricos e poderosos”, que querem
mais é que “danem-se os pobres”.
Tefhon, rapper de 19 anos, vocalista do grupo FC e ex-líder de uma
gangue, aponta para a dualidade com a qual o mundo da periferia pode ser
pensado: “Tem violência demais na periferia [...] Você quer conhecer bandido? Eu te
apresento, é andar pela rua e é fácil encontrar um [...]”
. E prossegue: “Aqui tem mais é
trabalhador, gente boa que dá uma luta danada, que se ferra pra ir trabalhar pra criar os filhos.
Tem a parte boa e a parte má da periferia”
.
Destaca-se, por último, que os rappers introduzem uma nova dimensão
da identidade do jovem de periferia, elaborando sua condição de “jovem e
habitante da periferia” por meio da constituição de grupos que integram um
circuito de sociabilidade particular, no qual há ensaios de bandas, promoção de
concursos de dança, música e desenhos, mobilizações contra o consumo de
drogas e pela paz, que exercem forte atração de jovens. Tentam, desse modo,
reverter o estigma da periferia, criando uma sociabilidade na qual existe espaço
para o jovem valorizar a si e a seu meio.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo