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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social
Decompondo Registros:
Conflitos de Terra em Pernambuco
Mónica Fernanda Figurelli
Rio de Janeiro
2007
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Mónica Fernanda Figurelli
Decompondo Registros:
Conflitos de Terra em Pernambuco
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em Antropologia Social.
Orientador: Moacir Gracindo Soares Palmeira
Rio de Janeiro
2007
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FIGURELLI, Mónica Fernanda
Decompondo Registros. Conflitos de Terra em Pernambuco / Mónica Fernanda
Figurelli. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2007.
126 p. 21 X 29,7 cm.
Dissertação (Mestrado) UFRJ/Museu Nacional/Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social, 2007.
Orientador: Moacir Gracindo Soares Palmeira.
1. Conflitos de terra. 2. Pernambuco. 3. Acampamentos. 4. Comissão Pastoral da
Terra. 5. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. I. Palmeira, Moacir Gracindo
Soares. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-
graduação em Antropologia Social. III. Título.
Mónica Fernanda Figurelli
Decompondo Registros:
Conflitos de Terra em Pernambuco
Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do grau de mestre. Aprovada por:
_________________________________________________
Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira (Orientador)
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ
_________________________________________________
Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ
_________________________________________________
Prof. Dr. John Cunha Comerford
CPDA/UFRRJ
_________________________________________________
Profª. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna (Suplente)
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ
_________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Otávio Bezerra (Suplente)
UFF
Rio de Janeiro
2007
AGRADECIMENTOS
Localizados no início, escritos ao final do trabalho, ou durante, ou no começo, mas
sempre com alguma coisa nova para dizer no fechamento, modificando-se, deparando-nos
com a surpresa do transcorrer, eis aqui um espaço cuja possibilidade de ser escrito me enche
de satisfação. Aos meus acompanhantes nesse processo, minha gratidão:
Como orientador e professor, Moacir Palmeira ampliou o caminho de minha
curiosidade, quebrando certezas, criando novos estímulos. Não lhe agradeço por sua
criatividade e reflexão sem limites, sua capacidade de me surpreender com seu jeito
intelectual tão alheio à inércia acadêmica, mas também por sua delicadeza e generosa
dedicação ao meu trabalho. Agradeço profundamente o assombro e a motivação despertados,
tanto intelectual como pessoalmente.
O calor da hospitalidade do casal que me albergou em Recife transformou a sua casa
em um dos lugares mais gratificantes de minha estada em Pernambuco. A eles, cujos nomes
não poderei deixar no papel, um permanente agradecimento.
Aos acampados e acampadas do engenho onde realizei meu trabalho de campo, por me
receberem, por me acolherem, por me comoverem, por me transportarem àqueles espaços
emocionais e racionais que conseguem arrepiar a pele. A quem gostaria de ter mencionado
além das palavras genéricas ou das denominações fictícias: a família que ali me hospedou, por
me abrigarem em sua casa, pelo bem-estar e aconchego que me fizeram sentir.
À FETAPE e ao MST, às pessoas do assentamento e do acampamento que chamei
respectivamente de “Santa Margarida” e de “Palmeira Grande”, pelo apoio dado ao meu
trabalho, pelos espaços abertos, pela amplitude de sua recepção. Um agradecimento especial à
CPT, pela companhia constante, pela ajuda etnográfica e pessoal. A Rua Esperanto ofereceu-
me um espaço de descanso e proporcionou-me uma amabilidade sem limites. Desejaria
também poder dizer alguns nomes nesta evocação.
Aos funcionários do INCRA, por suportarem e socorrerem este ser confuso circulando
por seus escritórios. E a quem, para além de seus locais de trabalho, acalmaram o desconcerto,
tentando, entre passeios e cuidados, fazer da cidade um lugar por mim conhecido. Obrigada
especialmente a estes últimos.
Aos que em minha primeira viagem ao Nordeste colaboraram no momento confuso de
definição do objeto. Ao Pólo Sindical da Petrolândia. À Universidade Federal de Campina
Grande, na Paraíba. Ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Paudalho. Ao IICA (Instituto
Interamericano de Cooperação para a Agricultura). Agradeço de forma marcante a Sebastião
Menezes e a Paulo e Helena; sua cortesia ultrapassou amplamente minhas expectativas.
A Elisa Guaraná de Castro e Juvenal Boller, por sua gentileza em me facilitarem
documentos. A Renata Menezes e Fernando Rabossi, por suas colaborações para esta
dissertação.
O trabalho de campo em Pernambuco não teria sido possível sem o apoio econômico
dado pelo NEAD (Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural). Mais ainda, a
estadia no Brasil para a realização do mestrado tornou-se viável através da bolsa outorgada
pelo Programa de Estudantes–Convênio de s-graduão (PEC-PG).
Quero destacar a amabilidade de Carla e a dos demais funcionários da biblioteca do
PPGAS e do setor de xérox, e também a cooperação dada por Marcelo e Tania, da secretaria,
nos momentos desesperadores de trâmites burocráticos durante minha chegada ao Brasil.
A meus professores, pela motivação gerada. A Universidad Nacional de Misiones e o
Museu Nacional foram os espaços que me ofereceram a possibilidade de aproveitar suas
aulas. A Universidade Pública me permitiu participar daqueles momentos.
José Sérgio Leite Lopes, John Comerford, Marcos Otávio Bezerra e Adriana Vianna
tiveram a disposição de ler e de comentar meu trabalho, a eles um agradecimento.
A Leopoldo Bartolomé, pelo imprescindível impulso, por sua generosidade, pela
excelência, por colocar aquele tijolo significativo em minha decisão de começar antropologia.
A amabilidade de Gilberto Velho foi uma feliz acolhida nestas terras cariocas; a ele o
meu reconhecimento.
A meus companheiros da UNAM. Em particular agradeço a Tony, meu co-piloto
naqueles longos anos de licenciatura.
Enorme é a minha gratidão pelos amigos e colegas que conheci no Rio de Janeiro. Eles
deram a esta cidade o que de maravilhoso, arrancando de mim seguidas repetições de
“lindo” que logo me converteram em uma feliz vítima que sucumbia ao gume afiado de suas
piadas. Quero agradecer especialmente ao Martiniano. Também a Mundim, Marta e Ricardo.
E à minha cálida turma: Claudia, Liane, Felipe, Isabel, Pedro, Zoí, Suiá, Susana, Helena e
Lívia.
Com a Julia e a Leticia compartilhei um cotidiano indelével, nossos deslizares me
surpreenderam vivendo uma amizade das mais significativas. A elas, com quem descobri a
magia de criar raiz no desarraigamento, um profundo agradecimento.
A Sergio.
A minha tia Lucía. A Norma, minha mãe. A Pedro, meu pai. A meu irmão Pablo. Por
estarem sempre comigo e pelo apoio incondicional, embora essa expressão não complete a
intensidade de meu agradecimento. A proclamada ausência de palavras se faz aqui presente. A
eles dedico este trabalho.
E agradeço a quem quero agradecer e que talvez não o haja feito pelo malogro que a
memória pode me trazer; com ela nunca se sabe.
RESUMO
FIGURELLI, Mónica Fernanda. Decompondo Registros: Conflitos de Terra em Pernambuco.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) Museu Nacional, Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2007.
No presente trabalho, são analisadas as diversas leituras em torno de conflitos de terra
associados às ocupações. Para este fim, realizou-se uma etnografia multissituada que pretende
abordar as visões construídas por grupos que interatuam em um caso: uma ocupação
localizada na Mata Norte do estado de Pernambuco, em terras de uma fábrica de açúcar cujo
funcionamento encontra-se parado, lugar onde foi montado um acampamento. Ao se
trabalharem etnograficamente perspectivas variadas, procurou-se uma aproximação dos
conflitos a partir da dinâmica de sua configuração, pretendendo-se apartar-se das definições
prévias. A etnografia ofereceu ferramentas para uma discussão a respeito da delimitação,
recurso de construção conceitual que tende a reduzir “o conflito” a uma entidade demarcada,
com essência própria. A aparição de processos de luta na constituição das diversas
perspectivas foi outro dos resultados etnográficos em que houve a intenção de enfatizar.
ABSTRACT
This work contains an analysis of different perspectives on land conflicts related to
land occupations. To achieve this purpose, an ethnography covering multiple locations is
carried out to include the visions/optics of different groups that interact around one case: the
settlement/occupation of a sugar mill whose operations are suspended in the area known as
“Mata Norte” of Pernambuco state. The ethnography attempts to make an approach to the
conflicts from the dynamics of its configuration, eschewing all previous definitions. It offers
tools for discussing on the delimitation: a conceptual category that tends to reduce “the
conflict” to a determined entity, with an essence of its own. The presence of strife processes
in the construction the different perspectives was another key finding of the ethnography.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO …………………………………………………………………………... 1
A Região ……………………………………………………………………............ 2
Relatos de experiências etnográficas .......................................................................... 5
Mapa I ……………………………………………………………………………... 29
Mapa II …………………………………………………………………………….. 30
CAPÍTULO I: A profissionalização do conflito ……………………………………...... 31
CAPÍTULO II: O conflito vivido ……………………………………………………….. 54
CAPÍTULO III: O conflito em disputa. A denúncia ………………………………….. 96
CONSIDERAÇÕES FINAIS: A problematização do conflito ……………................ 113
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ………………………………………………… 119
ANEXOS ………………………………………………………………………………… 123
I. Organograma da Superintendência Regional de Pernambuco (SR-03) ………... 124
II. Curso do processo de desapropriação ………………………………………... 125
Introdução
Eu vinha de um interesse pela ideologia,
1
particularmente pela concepção da vida
social que promoviam os programas de relocalização compulsiva levados a cabo pela represa
de Yacyretá. A oportunidade que se abriu para desenvolver meu trabalho em um novo mundo,
em um Brasil desconhecido e distante, mudou meu espaço etnográfico. Entusiasmava-me
agora com as ocupações de terra realizadas nesse mundo para mim inédito. Entretanto, meu
foco de análise mantinha-se: continuava interessada pela visão que se criava nos espaços de
poder. Antes, os discursos gerados em uma “Entidade Binacional”; agora, era o âmbito da
justiça o locus privilegiado: a decodificação judicial dos conflitos por terras, os processos
sociais implicados naquela decodificação e a influência desta construção de significados no
desenvolvimento dos conflitos.
O lugar escolhido seria Pernambuco. Isto devido à grande concentração de ocupações
naquela região, além de alguns contatos prévios que ali tinha realizado em uma viagem
anterior
2
ao início de meu trabalho de campo propriamente dito. Entretanto, não me centraria
na justiça. Âmbito de difícil acesso, o tempo disponível para a realização do trabalho não
estaria de acordo com o tempo requerido para a entrada nele. Assim, mudei a pesquisa para a
administração, para a burocracia, particularmente para uma instituição estatal estreitamente
associada à desapropriação das terras ocupadas, como é o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA).
Deveria recortar: analisaria um conflito, uma ocupação. O interesse na instituição
levou-me a procurar um conflito que no processo de desapropriação empreendido no INCRA
havia atravessado caminhos administrativos consideráveis, labirintos e complicações,
procurando com isto um material empírico interessante para a análise. Por outro lado, a
comparação entre a decodificação do INCRA e os protagonistas do acampamento parecia-me
fundamental, o contraste esclareceria as visões. A esta questão somava-se o fato de que tudo
me era desconhecido; necessitava primeiro centrar-me em uma ocupação para me aproximar
do registro burocrático sobre ela. Um novo ator aderiu logo ao estudo: a Comissão Pastoral da
1
A questão não faz com que eu me detenha no debate teórico em torno do conceito. Limito-me a assinalar que
em sua utilização estou aludindo à discussão empreendida na tradição marxista do termo.
2
Aquela viagem estendeu-se por 20 dias, nos meses de março e abril. Constituiu-se em meu primeiro contato
com o “Nordeste”. Seu objetivo foi a participação no seminário “Memória Camponesa”, realizado em João
Pessoa nos dias 28 e 29 de abril. Além disso, a viagem foi uma exploração inicial do lugar visando à delimitação
de meu objeto de estudo para a dissertação de mestrado. Nessa experiência, tive a oportunidade de conhecer os
estados de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.
Terra (CPT); seu olhar sobre o conflito “completaria” a análise. Deste modo, na presente
dissertação analiso diferentes registros elaborados em torno dos conflitos de terra associados
às ocupações. Pretendo trabalhar a partir de diversas perspectivas de grupos que interatuam
em um mesmo evento, evento este que articula linguagens e realidades dissímeis. Tenciono,
assim, visualizar as perspectivas em sua dinâmica de interação. Parto de um caso.
Nas páginas que se seguem desta Introdução faço um relato de algumas experiências
vividas durante o trabalho de campo, principalmente aquelas de inserção nos múltiplos
campos etnográficos. Cheguei a Pernambuco no dia 19 de julho de 2006 para partir em 13 de
setembro do mesmo ano. Grande parte da experiência efetivou-se em Recife, região de minha
localização central, enquanto que outra parte importante foi desenvolvida no município de
Açude
3
particularmente no acampamento Cachoeira da CPT – localizado na região da mata
pernambucana. Antes de começar o relato, considero pertinente introduzir algumas palavras a
respeito da região e localizar o tema que aqui nos ocupa.
A região
Ao fazer menção das dificuldades que se introduzem na hora de delimitar o nordeste
do Brasil e, com isto, da arbitrariedade das classificações espaciais, Andrade (1998) nos
introduz nesse espaço que abarca os estados de Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte,
Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia. A Zona da Mata, o Agreste, o Sertão, o
litoral setentrional, o meio-norte e a Guiana maranhense são as sub-regiões que dividem o
nordeste do país.
4
(Ver mapa I).
Foi a Zona da Mata o lugar em que centrei a minha pesquisa. Como o demonstra o
mapa I, ela se estende ao longo da costa atlântica, do Rio Grande do Norte até o sul da
Bahia. Zona de clima quente e úmido, com o ano dividido em uma estação seca e outra
chuvosa, sua denominação corresponde à selva que cobria uma elevada percentagem de seu
solo em época anterior ao desenvolvimento que na região teve a exploração de cana-de-
açúcar, fato que se iniciou no século XVI com a chegada dos portugueses. A produção de
cana é o eixo que estrutura a economia da Zona da Mata e é caracterizada pela monocultura e
pelo latifúndio. Grandes proprietários concentram a maior parte das terras.
3
Na presente dissertação todos os nomes de pessoas e empresas foram mudados. Assim também são fictícias a
maioria das denominações de lugares (como engenhos, assentamentos, acampamentos e municípios).
4
É esta a classificação feita por Andrade (1998), que realiza uma descrição das quatro regiões. Ver também
Furtado (1964) e Freyre (1961).
Ao penetrar um pouco mais na referida zona, como assinalei acima, a região
pernambucana transformou-se no centro do meu interesse. A ocupação considerada nesta
dissertação localiza-se na Mata Norte do estado, lugar que apresenta usinas (fábricas de
açúcar que concentram grandes extensões de terra) menores do que as instaladas ao sul e onde
as transformações operadas na exploração da cana repercutiram de maneira mais lenta do que
na Mata Sul (Andrade, 1998). Os municípios que correspondem à Mata Norte equivalem
aproximadamente ao que na classificação do IBGE
5
denomina-se Mata Seca, a qual se
diferencia da Mata Úmida que teria seu correspondente na Mata Sul (Sigaud, 1979).
6
(O mapa
II mostra as usinas instaladas em Pernambuco).
A partir de meados dos anos 40, ocorreu um processo de expulsão da força de trabalho
instalada nas propriedades de cana, a qual se dirigiu para as cidades das regiões próximas,
provocando ali um forte crescimento urbano.
7
Essas transformações encontram-se associadas,
segundo Andrade (1998), a um crescimento da produção de açúcar, crescimento este
vinculado às condições favoráveis de exportação advindas do fim da Segunda Guerra
Mundial.
8
A necessidade de terras que detinham os usineiros
9
e os antigos senhores-de-
engenho
10
que se tinham retirado do campo logo depois da implantação das usinas e viviam
do arrendamento de suas terras, dos foros provocou a saída dos moradores
11
em direção às
cidades, onde passaram a vender a sua força de trabalho. Aqueles que continuaram habitando
nos engenhos foram submetidos a uma forte pressão. O morador, que possuía parcelas para o
cultivo de subsistência familiar, viu cada vez mais diminuída a área para a produção de
autoconsumo e sua força de trabalho passou a ser cada vez mais requisitada pelo proprietário
para ser utilizada nas plantações de cana. Este fato não foi acompanhado por uma elevação de
salários que permitisse recompensar a perda da terra que o morador destinava à sua própria
subsistência e a de sua família. Da sua parte, os foreiros
12
viram-se diante do intento dos
proprietários de aumentarem o foro. Foi nesta situação que os trabalhadores organizaram as
Ligas Camponesas em meados dos anos 50. Um impulso decisivo à aprovação do Estatuto do
5 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
6
Para uma diferenciação entre a Mata Norte e Sul de Pernambuco, além dos trabalhos já citados, ver Sigaud
(1971).
7
Em relação a este processo, baseei-me em Palmeira, 1971; Garcia Jr. e Palmeira, 2001; Sigaud, 1971, 1979;
Andrade, 1998; Furtado, 1964.
8
Além das condições favoráveis no mercado mundial, Furtado (1964) assinala o incremento do consumo
provocado pela industrialização do país, o que trouxe um aumento da renda per capita e da urbanização.
9
Foi a incorporação de novas terras e não as inovações tecnológicas o caminho utilizado pelos donos das usinas
para elevar a produtividade (Furtado, 1964).
10
Ver capítulo II.
11
Idem nota anterior.
12
“O foreiro seria uma variante do morador, que dele se distinguiria fundamentalmente por pagar uma
determinada quantia anual ao proprietário, sob a forma de foro” (Sigaud, 1979:47).
Trabalhador Rural, de 1963, e do Estatuto da Terra, de 1964, foi produzido a partir dessas
lutas.
Com o golpe militar de 1964 acentuou-se a saída dos trabalhadores dos engenhos,
momento em que a ação de expulsão encetada pelos proprietários encontrou força a partir da
repressão empreendida contra as Ligas (e outros agrupamentos políticos de trabalhadores), as
quais foram posteriormente desarticuladas. Os sindicatos que resistiram se propuseram a
manter nas propriedades os moradores que ali permaneciam, tentando aplicar as novas leis de
trabalho, embora os padrões sobre os quais se baseava o sistema de moradia estivessem
arruinados em função desse processo de transformação (Palmeira, 1971; Sigaud, 1979). “É
extremamente interessante observar que ali onde o sindicalismo de trabalhadores rurais foi
mais combativo e impôs em maior escala o respeito às leis trabalhistas (…), a expulsão dos
antigos moradores (…) ocorreu em menor escala” (Garcia Jr.; Palmeira, 2001:64-65). Com a
repressão às Ligas, aos sindicalistas comunistas e a alguns sindicalistas católicos de esquerda,
o papel dos sindicatos de trabalhadores rurais e da Igreja católica foi central na mobilização
política posterior a 1964 (Garcia Jr.; Palmeira, 2001). A Igreja católica “teve um peso
decisivo para o crescimento do movimento camponês e para a legitimação do tema da reforma
agrária durante os três últimos decênios do século XX” (Garcia Jr.; Palmeira, 2001:71).
Interessa-me assinalar neste ponto a criação, em 1975, da Comissão Pastoral da Terra.
Em um contexto em que o acionar político da Igreja se mostrava fundamental, a criação da
CPT “tornou sistemático o trabalho de mobilização junto ao campesinato desenvolvido pelos
padres, bispos, agentes religiosos e catequistas” (Garcia Jr.; Palmeira, 2001:70). “A CPT
atuou como fonte autônoma de mobilizações camponesas"; sua ação destacou-se nas
desapropriações de terras, no auxílio oferecido ao sindicalismo combativo em atos como
ocupações de terras e greves de trabalhadores rurais, nas intervenções realizadas contra os
despejos de trabalhadores. Proporcionou, além disso, um espaço que acompanhou a formação
de líderes sindicais, assim como líderes do atual Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) (Garcia Jr.; Palmeira, 2001:70).
Embora, por um lado, tenha ocorrido uma expulsão de enormes proporções dos
moradores do campo, os quais se transformaram em vendedores de força de trabalho, em
proletários rurais, por outro lado, um dos cursos desse processo estimulou a pequena
produção. Esta surgia às margens da expansão da agricultura de cana e proporcionaria bens de
consumo aos ex-moradores que viviam agora na rua, sem poderem produzir para o seu
sustento (Palmeira, 1971).
13
A expansão experimentada pelo cultivo de cana, particularmente entre 1975 e 1985
com a crise do petróleo e a aparição do Proálcool,
14
acentuou a expulsão dos pequenos
produtores das propriedades rurais. Os créditos que naquela época se abriram à atividade
açucareira experimentaram uma forte redução na segunda metade dos anos 80, acontecendo
uma nova crise de acumulação e uma queda da produtividade. O fato provocou a quebra e o
posterior fechamento de várias usinas, gerando um forte desemprego (Leite; Heredia;
Medeiros; Palmeira; Cintrão, 2004). Foi no final dessa década que o MST se instalou na zona
canavieira de Pernambuco,
15
retomando e criando métodos de ação que passaram a ser
adotados pelos outros agentes na luta pela terra: “com isso, na década de 90, a luta pela terra
deixou de ser uma resistência contra a expulsão, e a organização de acampamentos e a
realização de ocupações em propriedades não-produtivas passou também a ser apoiada pelo
movimento sindical e pela Igreja na região” (Leite; Heredia; Medeiros; Palmeira; Cintrão,
2004:53).
A Reforma Agrária, proclamada na luta dos trabalhadores, e o Estatuto da Terra
ligado a ela passam a ter nas ocupações de terras uma nova reivindicação: “O Estado
brasileiro tem conferido legitimidade à pretensão dos movimentos (como se denominam e são
denominadas essas organizações) ao desapropriar as fazendas ocupadas e redistribuir as terras
entre os que se encontram nos acampamentos” (Sigaud, 2005:255).
Relatos de experiências etnográficas
Os primeiros dias de campo foram aqueles de aterrissagem. Era um mundo novo que
se abria. Embora minha viagem anterior me tivesse equipado com um pára-quedas, agora
era o momento de entrar na selva. O Brasil pernambucano, enorme, estendia uma ponte para a
minha chegada à sua terra onde tudo era novo, desde minha vivência em seu cotidiano mais
intersticial, até meu pequeno mergulho em algumas de suas estruturas institucionais. Aquilo
13
O autor discute a interpretação do processo de expulsão de moradores dos engenhos como uma simples
proletarização de trabalhadores rurais. Ver Palmeira, 1971.
14
Programa Nacional do Álcool. Criado em 1975, a partir da crise do petróleo, o programa outorga incentivos à
produção de cana com fins de extração de álcool.
15
A respeito deste processo, ver Sigaud, 2000 e Chamorro Smircic, 2000.
foi central na maneira de ser realizado o trabalho de campo; tudo devia ser explicado, o óbvio
devia ser descoberto.
Além de terem sido os dias mais “românticos” do campo, os primeiros foram os mais
intensos em ansiedade. Tinha pouco tempo e devia descobrir um novo mundo. A primeira
coisa que se impunha era achar "o conflito”, aquele conflito arbitrariamente recortado no Rio
de Janeiro durante o momento de definição do objeto de pesquisa. Um recorte que me
permitisse restringir o tema a ser trabalhado, e por sua vez me abrisse as portas à
complexidade desse mundo. Restringir para fazer o estudo plausível plausível, segundo os
parâmetros do pesquisador individual que deve cumprir os prazos institucionais da academia,
urgências pragmáticas cuja influência na investigação não pode deixar de ser mencionada.
Fui então em busca de “meu conflito”, tentando com esse “meu” dar a mim a mínima
segurança naquele caos, enganar-me com a sensação de poder que proporciona a posse do
objeto de estudo. Não só procurava “meu conflito”, a delimitação do objeto – que iria
acontecendo em função de critérios previamente fixados, como também de experiências
pessoais que aconteceriam no campo mas também “minha hospedagem”. Em Recife, tive a
sorte de ser calorosa e gentilmente acolhida por Fátima e José Benedito,
16
a quem conheci
através de meu orientador da dissertação na viagem anterior a Pernambuco. Entretanto, minha
estadia ali iria ser longa, o queria incomodar. Assim, visitei Olinda mais de uma vez,
encantada com sua paisagem, tentando achar minha nova pousada. Embora se abrissem
espaços agradáveis, depois de passado um tempo, minha relação com meus hospedeiros e com
o local em que me alojava convenceu-me a permanecer onde estava, que o lugar me
proporcionava companhia e conversas que um quarto em uma pousada não iria me dar.
Cheguei ao INCRA de Pernambuco procurando, como já mencionado, estudar os
registros burocráticos dos conflitos por terras. Além daquele registro queria apreender as
vivências dos próprios acampados. O estudo de um processo de desapropriação (no INCRA e
no acampamento) que não estivesse ainda finalizado (que não tivesse chegado à fase de
assentamento) era o recorte dado à pesquisa. Procurava um processo que fosse de larga
duração e que estivesse imbuído de complicações burocrático-judiciais, visando a que me
oferecesse uma matéria-prima suficientemente rica para a análise.
16
A relação de meus hospedeiros com o movimento sindical merece ser mencionada. Assim, por exemplo,
Fátima desempenhou o papel de assessora educacional da FETAPE e da Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). Atualmente, atua no setor de educação do INCRA. Da sua parte, José
Benedito foi presidente do Sindicato de Vicência (Pernambuco), secretário geral da FETAPE e presidente da
CONTAG.
Apesar da assistência que a apresentação de Fátima me proporcionou no momento da
minha entrada no INCRA, cada vez que chegava a este lugar surgia uma sensação de não
saber exatamente para onde olhar, com quem falar. Esse mal-estar aumentava com a exigência
que sentia haver na instituição de eu estar mais estruturada, com perguntas e atividades
previamente resolvidas, o que não estava de acordo com a pesquisa etnográfica que pretendia
levar a cabo. Senti que etnografia e instituição eram dificilmente compatíveis. Era necessário
que eu me estruturasse com a forma desses espaços estruturados.
No INCRA, cada um ou alguns têm seu escritório onde realizam o próprio trabalho.
Quando chegava devia ir direto para esses escritórios, à exceção do segundo andar, onde fica
uma secretária com quem temos que nos identificar antes de passarmos às diferentes salas.
Precisava identificar-me também diante dos policiais que se encontram nas portas de entrada
(na entrada principal e nos dois edifícios de maior funcionamento). Além disso, apresentei-me
voluntariamente à superintendente, entregando-lhe a credencial de “minha instituição”, com o
objetivo de esclarecer minha presença naquele espaço. Entretanto, não achei, como pessoa de
fora da instituição, uma sala de recepção, de acolhida, de orientação e informação.
O espaço físico do INCRA é composto por três edifícios, um na frente, antigo, que
estava sendo esvaziado na época em que comecei o trabalho de campo (ali funcionava a
Ouvidoria, setor que naquele tempo se encontrava ainda em processo de mudança); outro dos
edifícios situava-se no meio (Fátima trabalha naquele local, como também algumas pessoas
com quem estabeleci uma relação mais pessoal); e o terceiro, meu espaço de pesquisa, é o
lugar onde, entre outras coisas, têm andamento os processos de desapropriação; para ali me
dirigia cada vez que entrava no INCRA.
Na porta de entrada desse terceiro edifício sempre um policial instalado em uma
mesa. Da planta baixa desse mesmo edifício também faz parte um outro espaço, onde uma
cozinha, setor no qual se reúne o pessoal de limpeza. Quando se atravessa o “setor policial”,
sobe-se a escada e chega-se ao primeiro andar, onde se encontram a administração e a
contabilidade (não tenho certeza dos setores e das funções exercidos nesse nível, que ali
não foi para mim mais do que a passagem ao segundo andar). No segundo andar, a primeira
pessoa que se é a secretária. Além dela, neste nível do espaço vertical, encontram-se os
empregados que trabalham no Gabinete: superintendente, superintendente adjunto, e os
demais; também um advogado do INCRA (ala esquerda, subindo a escada). Para o outro lado
(ala direita) encontra-se a Ouvidoria, precedida por uma sala de espera (na qual me sentei
algumas vezes junto com assentados e acampados que se mostravam cansados de esperar, os
quais, mais de uma vez, me contaram suas histórias, problemas e indignações). São esses os
setores com os quais mantive contato naquele andar.
Com menos fôlego (não funcionava o elevador), sobe-se outro andar e chega-se à área
dos agrônomos, peça central do processo desapropriatório, como me foi revelado através de
comentários dos funcionários do INCRA. Devo dizer que a idéia dos agrônomos como peça
central do processo desapropriatório muito me chamou a atenção. Ignorante dos
procedimentos institucionais, pensei: O que têm os agrônomos que ver com a reforma
agrária? Com a desapropriação de terras? Depois fui me dando conta de que no INCRA o
processo desapropriatório resume-se a uma questão de análise técnica da produtividade, caso
não apareçam as “complicações” judiciais, que são consideradas obstáculos externos ao
processo.
sem a inércia da propulsão, chegamos ao quarto andar, área dos procuradores, a
elite do INCRA nas palavras de alguns de seus funcionários. Espaço além de tudo, afastado da
realidade cotidiana e institucional (não dependem administrativamente do INCRA). O mito da
Procuradoria já havia chegado aos meus ouvidos antes de eu aparecer ali. Alguns funcionários
falavam da Procuradoria como um espaço distante, meio inacessível e elitista. Aquilo também
me chamou a atenção. Por que os procuradores são vistos pelos funcionários do INCRA como
uma elite que se encontra fora da instituição?
Quando cheguei ao INCRA, no dia seguinte de minha chegada a Recife, não tive
dificuldades em saber para onde me dirigir, que fui com Fátima, minha hospedeira naquela
cidade e porteira” etnográfica, que trabalha no setor de educação do INCRA. Através dela,
fui apresentada de forma passageira a uma grande quantidade de pessoas da instituição. Em
cada uma dessas rápidas apresentações, Fátima perguntava sobre algum conflito para que eu o
investigasse. Aqueles que eram questionados respondiam ligeiramente, assinalando um ou
outro acampamento, ou mencionando certa pessoa que pudesse me ajudar. Eles eram
interceptados em meio ao seu caminho esta logo se tornou a resposta à qual deveria me
acostumar no INCRA pois iam fazer alguma coisa, estavam ocupados queriam, enfim,
deixar de lado a situação.
A recepção foi cordial, sorrisos, perguntas, algumas piadas de permeio. Entretanto, o
INCRA constituiu-se para mim em uma situação de “yira yira”.
17
A etnografia me parecia
irrealizável naquele espaço. O mais plausível era a entrevista, não encontrava outro modo de
acessar esse mundo. Além de resultar muito difícil uma etnografia através de observação e
17
Adotei a expressão de um tango de 1929: “Yira… Yira…”. A letra e a música da canção são de Enrique
Santos Discépolo.
vivência cotidiana, o dever de pensar previamente em uma pessoa específica a quem
entrevistar obstaculizou ainda mais o trabalho. Devia chegar com um objetivo claro e, no
início, isso me parecia impossível. Isto aconteceu somente ao final da experiência de campo,
quando comecei a distinguir as pessoas com quem mais me interessava conversar sobre
questões pontuais. Entretanto, sentia que essa predefinição de objetivos concretos empobrecia
a busca. Meu trânsito no INCRA foi limitado.
Uma sensação de desconforto aflorava cada vez que entrava naquela instituição.
Percebia-me pedindo favores constantemente, e devendo agradecer a cada passo que dava.
Meu trabalho não se enquadrava naquele mundo, minha circulação (transitar pelo INCRA,
perguntar às pessoas sobre o seu trabalho) não seguia os cânones estabelecidos pela
instituição, o que exigia uma justificação constante do meu proceder. Sentia que minhas
andanças de setor a setor incomodavam. Assim, muitas perguntas dos funcionários do INCRA
tinham o intento de atender à minha localização; precisavam colocar-me em algum setor.
Mais de uma vez me perguntaram em qual espaço da instituição estava trabalhando, se estava
com Bianca (Bianca, ouvidora=conflitos), se estava com os agrônomos (agrônomos, divisão
de obtenção=desapropriação).
Não era a investigação em si, mas o tipo de pesquisa que eu realizava que se mostrava
incompatível com a instituição. Desse modo, no final do período da minha etnografia, o
INCRA recebeu um jovem da Europa que, segundo me disseram, ficaria ali durante três
meses para fazer um estágio. Embora houvesse intenção de sermos apresentados, a
oportunidade não se deu. Esse jovem realizava seu trabalho em um setor, foi localizado na
Ouvidoria e acompanhou as atividades que ali se realizavam. Levando em conta os
comentários que fizeram comigo sobre a sua presença, parece que esta não trouxe incômodo
ou perturbação.
Por outro lado, eu me vi na necessidade imperiosa de ter cuidado em não ser associada
a nenhum dos funcionários do lugar. As tensões existentes nas relações entre os empregados
se fizeram notar desde o primeiro dia. Algumas pessoas deixaram isto transparecer em
comentários do tipo: “aqui muita gente que o trabalha”. Sentia que a estratégia
etnográfica do “informante-chave” seria inadequada ali.
O primeiro dia no INCRA foi o Súmmun do “yira yira”. Depois que me separei de
Fátima fiquei junto de Leonor, uma funcionária que trabalha no setor relacionado ao meio
ambiente (localizado no mesmo edifício em que está Fátima, embora durante o meu trabalho
de campo ele tenha se mudado para o “setor dos agrônomos”). Esta nova figura que aparecia
continuou o percurso começado por Fátima, levando-me a vários setores do INCRA e
apresentando-me mais pessoas, que davam suas sugestões a respeito de minha busca.
Entretanto, a funcionária cobiçada no momento era Bianca, a ouvidora do INCRA, cujo
trabalho está associado aos “conflitos” existentes.
No primeiro dia encontrei assim muitas pessoas diferentes, a quem conheci de forma
superficial. Entre essas pessoas é pertinente destacar um agrônomo no qual tropecei ao final
do dia. O agrônomo sentia curiosidade por minha nacionalidade, pela pesquisa que eu estava
realizando e expressava seu desejo de me explicar sobre a reforma agrária. Que eles não
trabalham com conflitos” era uma idéia enfatizada por esta figura naquele encontro
havia comentado com ele a respeito de minha busca de um “conflito”. Opinava que era
necessário que eu conversasse com eles para entender como eram as coisas e o permanecer
com a imagem distorcida a seu ver que poderiam me proporcionar a CPT e os outros
movimentos sociais sobre os processos de desapropriação. Os movimentos, sim, me falariam
de conflitos, opinava o agrônomo. Entretanto, segundo ele, os processos de desapropriação
não consistem em conflitos, mas sim em procedimentos legalizados, normatizados, que se
seguem ordenadamente. O agrônomo havia se instalado em um escritório do INCRA, no qual
eu me encontrava naquele momento, e repetia o discurso sem me permitir ler os documentos
que tinha em mão (havia conseguido os processos de três assentamentos da Usina Açude e me
dispunha a lê-los). A figura em questão considerava que eu perderia tempo estudando esses
apontamentos, pois eles o me serviriam, que possuíam uma linguagem técnica e,
portanto, confundiam em lugar de esclarecer. Desperdiçaria trabalho naqueles tecnicismos (a
mesma idéia me havia sido expressa por Joaquim, um dos procuradores com quem estabeleci
um bate-papo), de modo que, segundo seu critério, o melhor para mim seria conversar com
eles.
O que procurava para investigar, naquele primeiro dia no INCRA, era um conflito por
propriedade de terra, que fosse de larga duração e com complicações burocrático-judiciais, de
modo que aquilo me oferecesse uma considerável matéria-prima para a pesquisa.
mencionei isto. O certo é que naquele dia, numa jornada etnográfica na instituição que
começou às 10h e se prolongou até as 18h aproximadamente, não consegui o que procurava.
Embora tenha encontrado Bianca, ela estava mudando de edifício e, nesse dia, ia viajar, razão
pela qual marcou para a próxima semana o meu ansiado encontro com ela.
Além do conflito a ser estudado, minha busca inicial (não exatamente a do primeiro
dia) consistia também no conhecimento do processo de desapropriação. Não um
conhecimento vivo, do processo atualizado em seu cotidiano, mas sim um conhecimento
exato; precisava saber as normas formais daquilo. Dessa maneira, interessava-me encontrar
algum papel, algum manual que o especificasse. Entretanto, a busca foi frustrada. Só consegui
acessar a menção da legislação geral existente sobre desapropriação e algumas Normas de
Execução. Os dados mais específicos foram obtidos unicamente através de conversas com os
funcionários, o que não preenchia minhas expectativas, que estas procuravam exatidão.
Paradoxalmente, resultou muito difícil o acesso a textos que me facilitassem o caminho aos
dados formais que procurava (organogramas, manuais de procedimento etc.). Digo
paradoxalmente porque o processo de desapropriação é considerado no INCRA como uma
ação estruturada em função de regras formais, consagradas pela instituição.
Em um primeiro momento estava interessada no aspecto escrito, não das normas,
mas também do processo administrativo de desapropriação do conflito que estudaria. Queria
trabalhar com o processo institucional de desapropriação em sua forma papel; meu objetivo
não era uma etnografia do INCRA em si, embora soubesse que a investigação me levaria a
“etnografar” as relações sociais constituintes das formas materiais. Assim foi; as conversas
com as pessoas ocuparam um tempo maior de trabalho de campo na instituição do que a
leitura do processo propriamente dito.
Em relação a essas conversas, cabe abrir aqui um parêntese e dizer umas palavras a
respeito de certos parâmetros sobre o “Saber” dentro da instituição. Assim, ocorria que
quando comentava no INCRA sobre o meu interesse em falar com os funcionários a respeito
de suas experiências com os processos de desapropriação, as pessoas indicadas eram as mais
antigas na profissão. Os anos de trabalho no INCRA constituíam um parâmetro de valorização
do conhecimento. O “saber muito” sobre os processos, sobre a instituição, era proporcional à
experiência, experiência esta medida quantitativamente pelo tempo de trabalho no lugar.
Acontece, por outro lado, que várias pessoas de idade avançada compõem o setor de
agrônomos dedicado à desapropriação, embora entre eles se encontrem uns poucos jovens
ingressados na instituição poucos meses e outras pessoas de meia-idade. A Procuradoria,
ao contrário dos outros setores, é em grande parte composta e dirigida por pessoas muito
jovens. De maneira geral, pelo que pude ver, os poucos indivíduos de baixa idade que se
encontram na instituição nela ingressaram recentemente, passando a fazer parte do INCRA a
partir do concurso que teve lugar pouco tempo atrás, na primeira metade do ano.
Retornando ao meu interesse inicial pelos documentos, uma vez achado o conflito a
ser estudado, comecei então uma aproximação ao processo-papel, meu interesse principal em
função dos parâmetros de pesquisa previamente fixados. Fui à sua procura logo depois da
segunda visita ao acampamento no qual centraria minha investigação, em uma etapa germinal
do trabalho de campo. Não foi difícil consegui-lo, tampouco foi um achado direto. Cabe
mencionar aqui que cheguei em um momento particular da desapropriação de Cachoeira (o
acampamento da Usina Açude que estudaria). Em janeiro de 2001, o acampamento Cachoeira
tinha sido excluído do processo de desapropriação pelo “Comitê de Decisão Regional” do
INCRA de Pernambuco. Foi em julho de 2006, coincidindo com os dias iniciais de meu
trabalho etnográfico, que o processo começou a ser retomado por “pressão dos acampados”.
Por ocasião da imissão de posse do acampamento Goitá, os acampados inteiraram-se, em uma
visita que realizaram à instituição, da “exclusão-morte” o primeiro termo utilizado pelos
funcionários do INCRA para se referirem ao assunto, o segundo, pelos acampados
administrativa de Cachoeira. A partir desse momento, começaram suas visitas ao INCRA para
exigir uma resposta e o imediato reviver do processo desapropriatório do acampamento em
questão. Por que havia escolhido um processo tão complicado para estudar e não um mais
simples? Esta foi uma pergunta que ouvi repetidamente de vários funcionários do INCRA.
Antes da minha solicitação do processo de Cachoeira um funcionário havia
conversado com Mário – um agrônomo que ocupava uma posição de destaque na instituição -
falando-lhe a respeito de meu interesse por aquele acampamento. Segundo aquele funcionário,
o agrônomo mostrou-se aberto a me ceder o que precisasse, inclusive tinha nomeado Lúcio,
outro agrônomo, encarregado dos processos relacionados com a Usina Açude. Entretanto,
quando me dirigi ao seu escritório para me apresentar e lhe pedir o documento, Mário
mostrou nada saber sobre Cachoeira, confundindo-o com outro acampamento que estava em
fases iniciais. Ao mencionar para ele que era um acampamento da Usina Açude, assinalou que
quem sabia sobre aquilo era Lúcio, mas não se encontrava naquele dia, pedindo-me, então,
que voltasse no dia seguinte. Ao voltar, tive que lhe recordar novamente sobre o
acampamento em questão, momento em que Mário mostrou-se imbuído na mesma confusão
do dia anterior.
Foi a menção da figura de Lúcio que ocasionou um avanço na aquisição do processo, a
situação de me delegar a outro, de me fazer circular por várias mãos, de desembaraçar-se, de
certo modo, de uma responsabilidade. Fato recorrente em minha experiência etnográfica no
INCRA: meu trânsito circular por várias pessoas, figura longínqua em relação a uma linha
reta com ponto final. Também as situações de “esquecimentos” e as reiterações de meus
pedidos foram moeda corrente durante o trabalho de campo na instituição.
O INCRA escondia-se de mim, a instituição escorregava pelas minhas mãos como
sabão. Tudo fugia de mim e eu rodava de pessoa em pessoa sem conseguir encontrar o espaço
que acolhesse minha etnografia. O INCRA era um trânsito, ali eu devia transitar, rodar,
passar. O INCRA oferecia-se para mim como “petisco”, não se entregava, não havia nesse
lugar pecho fraterno para morir abrazao.
18
Tudo passava de mão em mão, todos eram
responsáveis uma vez que ninguém o era. A administração deslizava, e deslizar é uma
maneira de esconder-se. Não existe um espaço fixo e certo na burocracia; a burocracia flui por
si mesma, não se detém, passa por todos os escritórios, por todos os funcionários, e esse fluir
só consegue proporcionar imagens fora de foco.
No episódio de aquisição do processo, Lúcio foi então a estação seguinte.
Inicialmente, ele comentou comigo de maneira sintética sobre a situação da Usina e os
processos de desapropriação das terras que pertenciam a ela, negando-se a que eu gravasse
aquela conversa. Logo depois de me introduzir na situação do processo, Lúcio acompanhou-
me à Procuradoria, lugar onde se achava o documento em questão. Ali perguntou às
secretárias por Joaquim, um advogado relacionado ao caso, que estava em uma reunião.
Depois de avisar às secretárias a meu respeito e sobre o meu interesse em falar com o
procurador naquele dia, Lúcio desceu as escadas para voltar ao seu escritório.
Permaneci então na sala de espera até ser recebida e atendida no escritório do
advogado solicitado, momento em que comentei com ele sobre meu trabalho e minha
necessidade de ter acesso ao processo. Ele explicou sobre sua situação passada, que dizia
respeito ao seu antigo cargo de chefe, e apresentou-me a uma advogada que exercia uma
função próxima à de chefe (ela casualmente havia entrado no lugar em que nós estávamos
conversando), com o objetivo de que ela me abrisse as portas ao processo. Uma vez em suas
mãos, essa advogada me pôs em contato com David, um procurador também do alto escalão,
que finalmente colocou o processo à minha disposição. À minha disposição de certa maneira,
já que, segundo as palavras dos procuradores, o processo era “secreto”, passível de ser
consultado pelas partes interessadas, unicamente estas podendo fotocopiá-lo. A
superintendente da instituição me havia advertido sobre esta situação: somente poderia
fotocopiar algumas partes do processo, outras deveriam ser copiadas à mão.
Ao me oferecerem o processo, os procuradores estavam lutando com uma situação
nova: eu não era movimento social, nem “usineiro”, nem advogado, no entanto queria estudar
o processo. Dessa forma, não tinham uma maneira exata de responder aos meus pedidos,
devendo decidir na ocasião como proceder com as novidades que introduzia com minha
pesquisa.
Concretamente, li o processo durante cinco dias no escritório de David. A situação
incomodava tanto a ele como a mim; eu sabia que minha atitude era estranha na instituição e
18
Voltamos aqui às expressões do tango de Discépolo.
ele sentia-se mal com a atipicidade da minha presença ali naqueles dias. Tive acesso ao
processo quanto à leitura e me ofereceram a possibilidade de copiá-lo à mão. Foi o que eu fiz
naquelas idas. No entanto, depois de dois dias, e na ausência de David, a advogada
mencionada anteriormente respondeu positivamente ao meu pedido de fotocopiar algumas
partes (neste caso, as “certidões”), explicitando a sua atitude como uma exceção, um favor
informal com o qual me estava presenteando. O mesmo favor não me foi outorgado por David
quando, mais adiante, solicitei a ele fotocopiar a parte final do processo que restava ler.
No que diz respeito à minha busca inicial do conflito, logo depois da frustração que
havia experimentado no primeiro dia no INCRA em relação a este objetivo, ansiosa e
preocupada pensei novas alternativas. O conflito tinha que ser escolhido imediatamente, não
podia dedicar muito tempo a essa tarefa. Resolvi então ir à CPT e cheguei no dia seguinte.
A CPT foi a escolhida porque tinha referências sobre seu trabalho de documentação, o que me
levou a pensar na possibilidade de que pudessem me proporcionar algum resumo escrito dos
conflitos.
Tive ali uma recepção cordial. Além de me permitirem ver alguns de seus trabalhos de
documentação, conversei a respeito de certos acampamentos que estavam acontecendo. Nessa
conversa, as pessoas da CPT enfatizaram sobre o caso da Usina Açude, o qual se arrastava
quase dez anos, e mostrava muitas complicações burocrático-judiciais. Aquele caso gerou
várias ocupações pertencentes ao MST e à CPT, muitas delas convertidas em
assentamentos. Ao perguntar-lhes sobre um acampamento específico, sugeriram-me
Cachoeira, o único acampamento da CPT na Usina Açude naquele momento (outros ou eram
assentamentos, ou eram do MST). Chamou-me a atenção que terem acontecido assassinatos
no acampamento era um critério destacado pelas pessoas do Movimento nessa conversa, sem
que eu tivesse mencionado a questão.
Nesse dia, ofereceram-me ainda certas possibilidades de investigar aquele lugar, como
a entrada ao acampamento, o acesso às documentações disponíveis etc. A Comissão acolheu-
me naquele Pernambuco enorme, acolheu minha etnografia e me abriu caminhos para o
ingresso em “meu” lugar de pesquisa. Sua recepção proporcionou-me satisfação, tanto no
sentido pessoal, como no de trabalho.
Realizar meu estudo em um de seus acampamentos foi uma idéia bem recebida na
CPT. O mesmo aconteceu na Federação dos Trabalhadores da Agricultura de Pernambuco
(FETAPE) e no MST, os outros dois Movimentos que visitei no momento da escolha do
conflito. Senti que em ambos os lugares mostraram-se dispostos à realização de meu trabalho
em seus espaços de ocupação. E não unicamente dispostos a que ali pesquisasse, mas também
ofereceram-me facilidades como apoio ao desenvolvimento de minha etnografia.
Em relação ao MST, meu contato com aquele Movimento começou casualmente no
INCRA, naquela aventura interminável do primeiro dia de campo na instituição. José Miguel,
integrante do Movimento, estava conversando com uma das pessoas do INCRA que me havia
sido apresentada por Leonor. Ao escutar a respeito de minha problemática, sugeriu-me
estudar o caso de Usina Açude (coincidindo com as sugestões da CPT, que mencionou Açude
quando falei de meu interesse por um conflito com problemas burocráticos). O celular deste
integrante do Movimento foi meu canal de entrada no MST (pelo que pude constatar os
celulares são uma ferramenta importante dos Movimentos). Chamei para ele no dia seguinte,
logo depois de minha visita à CPT.
Naquele telefonema, José Miguel, depois de me perguntar sobre a minha visita à CPT
e sobre o que eu havia achado deste Movimento, deu-me o celular de Josias, um importante
coordenador do MST, que se encontrava em Caruaru. Por sua vez, esta última pessoa me
passou o celular de Joel que, segundo as suas palavras, encarregava-se de conflitos (meu
pedido era ter uma conversa para que me contassem sobre os conflitos de terra que estavam
acontecendo). Ao falar com Joel, ele marcou para mim um encontro dentro de pouco tempo.
Nesse encontro, também fui atendida cordialmente. Diferente da CPT e de José
Miguel, Joel enfatizou sobre o acampamento do Engenho Palmeira Grande, pertencente à
Usina Alvorada, localizada no município de Sapucaia. Um conflito que também se desdobra
há vários anos e apresenta problemas burocráticos consideráveis.
Logo depois da conversa com Joel e com as pessoas da CPT, tinha duas
possibilidades de viagem: Sapucaia (Mata Sul) e Açude (Mata Norte) um daqueles lugares
iria transformar-se no “meu lugar”. faltava dar os telefonemas para ver se as viagens
aconteceriam e tudo começaria a encaminhar-se. Fui mais tarde ao telefone público, serviço
ruim de comunicação – chamadas que são cortadas ou não são ouvidas com clareza
entretanto, era o meio mais acessível de contato. Ao terminar os telefonemas tinha duas
viagens combinadas: na quarta-feira, iria para Sapucaia e me encontraria com as pessoas do
MST para conhecer o acampamento do Engenho Palmeira Grande; na quinta-feira, meu
trajeto me levaria para o norte, Açude seria o destino e a CPT, neste caso Gustavo (a quem
ainda não conhecia), o meu transportador. Aquele dia era uma segunda-feira; de manhã havia
conversado com Joel; na sexta-feira anterior tinha entrado em contato com a CPT. À tarde
desse mesmo dia eu tinha ido à FETAPE.
Ali fui gentilmente recebida, da mesma maneira que nos outros dois Movimentos. Foi
marcada uma conversa para o dia seguinte com Vlanio, a pessoa que me recebeu, o que de
fato aconteceu; entretanto, não visitei nenhum acampamento da FETAPE por questões de
tempo. Eu havia me dirigido previamente à CPT e ao MST, e em ambos tinha combinado uma
visita aos acampamentos sugeridos. Logo depois de conhecê-los, o conflito tinha sido
escolhido. Sentia que continuar visitando acampamentos alimentaria minha indecisão.
Na quarta-feira dessa semana fui, então, para Sapucaia. Por telefone, havia entrado em
contato com Inácio, um integrante do MST que se encontraria nesse dia no município, por
ocasião de uma reunião do Movimento. Nessa reunião, estariam os coordenadores do
acampamento Palmeira Grande. Foi uma viagem complicada. Chovia muito. Em Recife,
tomei um ônibus até a estação de metrô Joana Bezerra, de onde me dirigi para o Terminal de
Ônibus. Ali subi no micro que ia para Sapucaia. Uma vez lá, desci na entrada da cidade para
tomar a kombi que me levaria ao centro.
chegando telefonei para Inácio, como combinado. Seu celular estava desligado, de
forma que deixei uma mensagem dizendo que estava no Terminal de Ônibus da Sapucaia.
Preocupada, liguei para Joel do telefone público. Joel registrou o número daquele telefone.
Ele disse que aguardasse ali a sua chamada. Em pouco tempo, estava falando comigo Marina,
uma integrante do MST que se encontrava em Caruaru, sugerindo-me que tomasse um táxi até
o assentamento Santa Margarida (do MST), onde me encontraria com as pessoas. Entendi que
ali estava acontecendo a reunião em que estava Inácio, de maneira que cheguei ao
assentamento e de táxi perguntando por aquela reunião. Entretanto, as mulheres às
quais fiz aquela pergunta responderam-me que ali não havia reunião.
Confusa, fui rapidamente até um telefone público que havia em uma rua do
assentamento e chamei Marina (tinha pedido seu número de telefone). Ela me disse que
permanecesse no lugar onde me encontrava, pois iriam me buscar; sugeriu que eu aguardasse
na casa de algum dos assentados. Telefonei novamente para Inácio e consegui falar com ele.
Inácio confirmou que escutara a mensagem em seu celular e mandara uma pessoa para me
buscar no Terminal da Sapucaia, mas não me encontraram. Enquanto isso, eu estava no
assentamento Santa Margarida, não sei muito bem por que, esperando que alguém viesse me
buscar.
Durante aquele tempo de espera acompanharam-me as mulheres do assentamento.
Uma senhora chamada Marisa sugeriu que alguém me mostrasse a horta. Pelo que pude
perceber, para os assentados este era um espaço digno de ser revelado às visitas, um espaço de
trabalho coletivo. Foi um dos homens encarregados daquela horta (eram quatro homens os
que nela trabalhavam) que assumiu a tarefa de me apresentar aquele mundo em que eram
preparadas mudas para vender (mudas de diversas espécies de plantas, as quais, segundo me
lembro, eram em sua maioria de árvores frutíferas). Ali estivemos quase uma hora. Logo
depois de me apresentar à horta, o mesmo homem mostrou-me a casa de farinha, que
pertencia a Horácio, o marido de Marisa. Quando acabou o passeio, meu guia turístico do
assentamento levou-me à casa de Lucineide, uma assentada. Permaneci conversando com ela
até que apareceu uma pessoa do Movimento (sua aparição foi alheia à minha presença ali).
Comentamos a respeito de minha situação com essa pessoa, que logo telefonou para um
participante da reunião em Sapucaia para dizer que viessem procurar-me no assentamento,
que eu estava ali esperando e que ele não podia me levar porque não tinha capacete
(Lucineide ofereceu-lhe seu celular para realizar a chamada). Felizmente, em meia hora
chegou uma pessoa de moto para me levar à reunião. A essa altura, eram aproximadamente
2 ou 3 horas da tarde.
Quando cheguei, a reunião estava acontecendo. Ninguém saiu para receber-me, de
maneira que fiquei sentada esperando. Já quase no final da reunião, consegui falar com Inácio.
Seu plano era me levar ao acampamento no dia seguinte, o que não poderia ser realizado,
que para aquele dia eu havia marcado com a CTP a visita à Açude. Entretanto, consegui
conhecer os coordenadores do acampamento no qual estava interessada e que se encontravam
na reunião. Enquanto falava com eles, Horácio aderiu à conversa e me propôs o assentamento
Santa Margarida como um espaço de alojamento no meu trajeto em direção a Palmeira
Grande. Horácio era o dono da casa de farinha, coordenador do assentamento Santa
Margarida e marido da Marisa, a senhora do assentamento a quem me referi anteriormente.
Dessa forma, Horácio, Vera e Josué (estes dois últimos eram os coordenadores do
assentamento) foram os co-organizadores de minha posterior visita a Sapucaia: no domingo
iria a Santa Margarida, dormiria ali e, na segunda-feira, às 6 da manhã, partiria para o
acampamento Palmeira Grande com Dico, uma pessoa do assentamento que se dedicava a
transportar as professoras de Sapucaia para os diversos assentamentos e acampamentos da
região. Em Palmeira Grande, estaria me esperando Vera. Cabe esclarecer que o assentamento
Santa Margarida tinha recebido pesquisadores vindos de outros países, de maneira que
Horácio não desconhecia a tarefa que eu estava realizando.
Minha segunda visita a Sapucaia aconteceu como planejado, mas não foi Vera quem
me recebeu, e sim sua irmã de 15 anos, que tinha sido avisada. Depois de passar parte do
domingo em Santa Margarida – lugar onde me senti confortável – na casa do Horácio, Marisa
e seu filho adolescente,
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e de dormir ali, dirigi-me com Dico, na segunda-feira, ao
acampamento. Conversei com algumas pessoas que ali viviam e que falaram ligeiramente de
sua situação. Entretanto, a maior parte do tempo estive na casa de Vera, com sua irmã menor.
Decidi não escolher aquele acampamento como campo etnográfico. Basicamente,
porque já tinha realizado uma visita ao acampamento de Açude. Tinha conhecido a ocupação
de Sapucaia logo depois dessa visita. O interesse que me cativou em relação ao primeiro lugar
fez com que embora não de todo consciente eu fosse até Sapucaia já decidida a realizar a
pesquisa em Açude. Por outro lado, o transporte em direção a Sapucaia seria mais
complicado; para chegar ao acampamento, deveria usar como espaço de intermediação o
assentamento Santa Margarida, partindo dali para Palmeira Grande com Dico, e isto abarcaria
um tempo considerável de viagem.
Decidi-me então pelo conflito da Mata Norte do estado de Pernambuco, por uma
ocupação realizada em terras da Usina Açude, localizada no município homônimo. O
funcionamento da Usina encontra-se paralisado desde a sua quebra, ocorrida em 1996. A
Usina contraiu importantes dívidas. Entre elas, figuram as que foram adquiridas com os
trabalhadores, vidas que não foram saldadas. Propriedade do Grupo Cunha Silva S/A, são
21 os engenhos que integram esta propriedade, os quais se encontram em processo de
desapropriação ou foram desapropriados a partir das ocupações empreendidas pelos
Movimentos. Entre os engenhos, o de Cachoeira, que possui um território de 350 hectares
e cuja ocupação por parte de integrantes da CPT data de agosto de 1999.
A visita à Açude, minha primeira entrada no acampamento Cachoeira, foi realizada
com Gustavo, um integrante da CPT que, entre outras questões, dedicava-se a visitar os
acampamentos e os assentamentos durante a semana (em geral, terça-feira, quarta-feira e
quinta-feira), e ao fim desta escrevia um relatório a partir do material recolhido durante as
visitas ao campo. Encontrei-me com ele em Recife, na sede da CPT, às 7 horas e partimos em
seguida. Era quinta-feira.
Viajamos durante uma hora e meia, aproximadamente. Logo depois de passar pela
cidade de Açude, um curto trecho deve ser transposto até chegar a um caminho de terra que
conduz ao acampamento. A indicação que posso dar sobre a extensão desse caminho de terra
apóia-se no tempo de seu percurso: cerca de 50 minutos de caminhada. As margens do
caminho apresentam terras plantadas com cana pertencentes ao Engenho Mata Seca, da
Usina Ubaúna e umas pequenas áreas de mata. Aquela paisagem de cana termina quando
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A neta de Horácio e Marisa – de sua filha maior que vivia em outro município próximo – de aproximadamente
6 anos, encontrava-se em visita naqueles dias.
começa a área dos sem-terra”, e aparecem pastos, cultivos e as primeiras casas do antigo
Engenho.
Ao chegarmos ao acampamento, as pessoas estavam esperando, sentadas sobre uns
troncos localizados em frente à Casa Grande do Engenho. Esses troncos, colocados sob a
sombra de umas árvores, funcionam como um espaço informal de confraternização e também
como um lugar de espera antes das reuniões. O encontro dos acampados com o integrante da
CPT ia ser, como de costume, na parte da frente da Casa Grande do Engenho. Chegamos de
automóvel. Gustavo e eu descemos; foram trocados alguns cumprimentos e, sem mais
palavras, todos nós nos dirigimos à Casa Grande.
A maioria dos presentes era composta por homens. Eles se sentaram no chão,
formando uma roda; outros como eu e uma senhora chamada Jacinta acomodamo-nos em
cadeiras; por último, as janelas foram o ponto de apoio das mulheres, que participaram do
lado de fora da sala basicamente só através da escuta do evento. Logo depois de acomodados,
o integrante da CPT deu início à reunião. Além de conversas a respeito da situação do
acampamento no INCRA (muito poucos dias antes os acampados tinham visitado a instituição
e descoberto que o processo administrativo de desapropriação tinha “morrido” anos atrás), a
reunião fez referência à minha presença ali. Logo depois de ser apresentada, comentei sobre o
trabalho que estava realizando, esclarecendo que aquela era uma fase de reconhecimento e
que não sabia ainda onde instalaria minha barraca. Foi positiva a resposta dada pelos
acampados à possibilidade de me instalar em Cachoeira para a pesquisa etnográfica.
Uma vez terminada a reunião, e enquanto éramos convidados a comer milho assado
por uma das mulheres do acampamento, Seu Almeida, um acampado, mostrou-nos seu roçado
e Gustavo fez logo algumas indicações para a construção de um sistema de rega. Um pouco
depois, partimos dali; o automóvel transportava agora presentes dos acampados (produtos do
roçado e das árvores frutíferas) e um novo acompanhante, Geraldo, que ia visitar sua família
em Ibiaçu. Geraldo desceu na estrada; ali pegaria a kombi que o levaria para a sua casa na
cidade, onde vivem sua esposa e filhos enquanto esperam que “saia” a terra em Cachoeira.
Já na segunda vez em que me dirigi à Açude, uma semana depois, foi com a decisão de
que aquele espaço seria o “meu” espaço etnográfico, um “meu” que depositava em Cachoeira
as expectativas de uma potencial identificação, e que convertia esse lugar em "o lugar”,
matizando-o com uma tonalidade especial que surge das próprias sensações do pesquisador,
tonalidade apoiada na relação que ele estabelecerá com aquele espaço.
Na visita posterior, cheguei não ao “acampamento Cachoeira”, mas sim ao “meu
campo”. A viagem foi realizada com o mesmo integrante da CPT e com outros dois ex-
acampados, atualmente assentados: Zezé e Bené. Este último hospedara-se na CPT de Recife
por uns dias, conforme comentou comigo, por questões de segurança, já que tinha sido
ameaçado no assentamento onde vivia, de modo que as pessoas da CPT acharam mais
conveniente sua estadia temporária em Recife. Zezé somou presença na viagem já muito perto
de Açude, porque sua casa encontra-se em um assentamento próximo dali. Zezé foi acampado
em Cachoeira durante muito tempo e, de tanto em tanto, visita a região em atitude de apoio.
Chegaria com eles ao acampamento, voltaria em outro dia com um mototaxista
recomendado por Bené (que chamou o taxista durante a viagem de ida e me passou logo o
telefone para minhas futuras idas). O mototaxista me deixaria em Chã do Martinho, ali me
encontraria com Bené para tomar o micro e empreender a viagem de volta a Recife. As
“voltas” posteriores não seriam semelhantes: de modo geral, o taxista me apanharia no
acampamento e me deixaria na cidade de Açude, de onde iria direto para Recife. Antigo
habitante do lugar, evangelista, conhecedor de alguns acampados, ex-trabalhador de Usina
Açude indenizado” com uma casa no Engenho Laurentino sua atual moradia as
conversas que teria com o taxista o converteriam em uma figura de significação etnográfica.
Ao chegar a Cachoeira pela segunda vez, encontraríamos os acampados já reunidos na
Casa Grande do Engenho, em função de um integrante da FETAPE (ex-integrante da CPT)
estar realizando campanha para o cargo de deputado de outro membro desta federação. Este
último era também advogado da CPT no caso da Usina Açude (meu campo foi nos meses
anteriores às eleições políticas no Brasil). A reunião estava em sua etapa final. Antes de
partir, o integrante da FETAPE cumprimentou cordialmente as pessoas que me
acompanhavam (mais tarde, eu o encontraria na sede da CPT por ocasião da organização de
um evento conjunto em Recife, o “Grito dos excluídos”, manifestação realizada em 7 de
setembro por várias organizações sociais; seu nome ainda seria referido a mim por pessoas da
CPT em algumas ocasiões mais informais, referências estas que davam a entender certo laço
de amizade entre ele e os integrantes da CPT).
Deu-se, então, início à reunião em Cachoeira, na qual, entre outras coisas, Gustavo
voltou a perguntar sobre a possibilidade de me hospedar ali aquele dia, obtendo novamente
uma resposta positiva. Assim, meus acompanhantes de viagem se foram e começou meu
primeiro dia de estadia no acampamento, dia atípico, de instalação, de chegada, de inserção,
de primeiros encontros, dia que ofereceu situações interessantes de serem destacadas.
A resolução dos acampados a respeito de meu lugar de alojamento foi uma dessas
situações. Foram dois os critérios que entraram em jogo naquela seleção. Por um lado, a
amplitude do espaço, sua localização, sua centralidade levou-os a considerar a Casa Grande
do Engenho como um lugar adequado para minha instalação (especificamente a “casa” do
Mário, que ali vivem três unidades familiares diferentes). Aquela foi a primeira decisão,
rapidamente tomada. Assim, imediatamente após a saída de meus acompanhantes de viagem,
Estela e sua filha Marcelinha duas mulheres acampadas que viviam ao lado do lugar onde
me instalaria segundo esse primeiro critério organizaram e limparam o lugar (trocaram os
lençóis e varreram). Eu dormiria no quarto de Mário e este se mudaria para o quarto contíguo.
Entretanto, passadas umas horas e logo depois de terem reconsiderado sua primeira
decisão, alguns acampados me deram sua opinião a respeito da casa da Luísa como um local
mais indicado para minha hospedagem. Entrava em jogo um segundo critério. Em suas
palavras, ali compartilharia o espaço com uma mulher, com uma família. Luísa vivia com
Tuca, seu marido, e seus quatro filhos: Sheila, Guilherminho, Ronaldo e Susana. Esta última
estaria ausente por um longo tempo, até começos de setembro, e eu poderia ocupar sua cama
(que se encontrava no mesmo quarto em que dormia Sheila). Simplesmente segui esta
indicação e foi ali que me alojei naquele dia e nas visitas posteriores. Devo confessar que a
idéia de ficar ali foi da minha preferência naquele momento.
Foi bela a minha experiência naquela casa e a minha relação com meus hospedeiros. A
recepção cordial, as conversas, as visitas de outros acampados àquela casa, os momentos de
risadas, enfim, as situações que ali aconteciam influíram em grande parte para a sensação
agradável que me proporcionou a experiência etnográfica no acampamento. A recepção não
somente foi cálida naquela casa, mas também no acampamento em sua amplitude. Minha
estratégia de campo teve o intento de abranger conversas com o maior número de pessoas, de
maneira que devia circular pelo espaço. Nessa circulação, a acolhida que recebi tornou o
acampamento um lugar extremamente agradável, não unicamente de pesquisa, mas também
de estadia, revelando tais sensações aquele tom ambíguo da pesquisa etnográfica, tom em que
a complexidade das experiências mostra a arbitrariedade da separação entre os interesses de
estudo e a emoção pessoal, a ficção daquele ideal de pureza objetiva.
Outra experiência daquele primeiro dia no acampamento, interessante de ser
destacada, diz respeito à figura de Jacinta (“Maracatu”), de mais de 60 anos. No momento em
que comecei meu trabalho, Jacinta estava acampada no lugar um mês, não tinha roçado e
vivia sozinha. Segundo seus comentários, foi procurada pela CPT para participar de
Cachoeira com o fim de organizar “maracatu” nos assentamentos e nos acampamentos
daquela região. Meu interesse em destacá-la baseia-se em sua atipicidade em relação aos
parâmetros que regem a vida do acampamento.
Jacinta não se separou de mim durante o primeiro dia de minha estadia em Cachoeira,
seu argumento era o de cuidar de mim, de não me deixar sozinha. Ela esteve comigo no
acampamento durante a parte da manhã e também me acompanhou, à tarde, a Goitá, outro dos
engenhos da Usina Açude, distante aproximadamente 20 minutos a pé. Diante do meu
comentário sobre o interesse em falar com o filho de Amaro, um dos assassinados no
acampamento, que vivia em Goitá, Jacinta mostrou grande entusiasmo e dispôs-se a me levar
(Gustavo havia me falado durante a viagem sobre a existência desse filho). Entendi logo
depois daquele dia que Jacinta encontrara um espaço confortável em Goitá. O mesmo não
acontecia em Cachoeira.
Por um lado, Jacinta estava em Cachoeira de forma extremamente transitória, com um
no assentamento Trindade também da CPT onde vivia uma pessoa com quem estava
pensando em se casar (o que foi logo consumado conforme comentaram depois comigo as
pessoas de Cachoeira; assim, em minha visita posterior ao acampamento, Jacinta tinha ido
para Trindade). Por outro lado, ela não se enquadrava nos espaços reservados à mulher. Ela
não permanecia em Cachoeira, circulava diariamente entre engenhos, e a pé. Tampouco
dava grande atenção aos espaços implicitamente masculinos. Dessa forma, Jacinta entrava na
sala da Casa Grande nos momentos em que aconteciam as reuniões, enquanto a maioria das
mulheres se colocava na parte externa à sala, aparecendo na reunião através das janelas.
Finalmente, ela estava em estreita relação com o “maracatu”, uma “brincadeira” e, segundo
algumas pessoas no acampamento, um espaço de “não-trabalho”, já que o trabalho com a terra
e com o gado era um dos valores explicitamente reconhecidos como centrais na organização
social do acampamento. Todos esses fatores colocavam Jacinta em uma relação de distância
com os parâmetros convencionais da mulher no acampamento. Sua figura é, por esta razão,
interessante de ser destacada.
A CPT levou-me até Cachoeira em minhas primeiras idas, e posteriormente também.
As viagens iniciais foram realizadas com o propósito básico de me introduzir no lugar. Nas
outras, eu aproveitaria a carona”. Quase todas as semanas os integrantes da CPT tinham o
hábito de se dirigirem para algum dos acampamentos daquela área da Mata Norte. Nas
ocasiões em que isto não ocorria, tomava o ônibus por minha conta. Foram duas as pessoas
que me transportaram naquelas viagens, Gustavo e o Padre Teodoro, que iam mais
freqüentemente para os acampamentos e os assentamentos da região, e que eram as figuras da
CPT mais mencionadas pelos habitantes de Cachoeira.
Nas viagens posteriores, logo depois das duas primeiras visitas que acabo de relatar, as
pessoas da CPT me deixaram em lugares próximos a Cachoeira. Cheguei em uma dessas
últimas ocasiões à cidade de Açude, onde por acaso me encontrei com alguns habitantes do
acampamento no Sindicato do Trabalhadores Rurais (eu tinha chegado ali com a CPT). Logo
depois desse encontro, os acampados e eu nos dirigimos juntos para Cachoeira. Tomamos
uma kombi até a entrada do acampamento na estrada de onde continuamos a pé. Em outra
ocasião, participei de uma reunião realizada em Montes Claros, um assentamento da CPT em
terras da Usina Açude (fui com o Padre Teodoro e com pessoas relacionadas à FIAN).
20
. Dali
parti a pé, com os habitantes de Cachoeira, para o acampamento.
A viagem em que aconteceria o encontro com os acampados em Açude seria a mais
longa. Aproveitaria a ida a essa cidade e também teria a oportunidade de conhecer a região e
outros sindicatos, isto segundo um comentário de pessoas da CPT. Dessa forma, além de me
levarem ao âmbito de minha pesquisa particularizada em Cachoeira, eles me mostrariam a
região. Fomos a alguns sindicatos, com o principal fim de convidar as referidas entidades a
participarem de uma reunião. Em cada parada, os integrantes da CPT perguntavam aos
sindicatos sobre a situação vivida e anotavam as respostas. As conversas eram parte de um
texto, que logo seria utilizado pelo setor de documentação da CPT para a elaboração de
informes sobre a situação no campo. Não me lembro bem dos lugares onde fomos, acredito
que tenha sido Ibiaçu, Uaiana, Açude e mais um do qual me esqueci, que não coloquei no
papel nenhum deles, nem detalhei sobre aquele encontro que a Comissão pretendia realizar.
Considero que isto é pertinente de ser assinalado porque diz respeito à minha atitude
etnográfica com a CPT. Por não pretender estudá-la, minha postura tendia à naturalização, eu
não apontava o que acontecia. Daquela viagem, eu me lembro de que me levaram à sede da
Usina Açude, com o fim exclusivo de que pudesse vê-la.
Os convites que me eram feitos pelas pessoas da CPT foram um episódio recorrente.
Opinavam que seria interessante para mim conhecer aqueles espaços que se abriam nos
convites e sugeriam que minha etnografia transcendesse o acampamento Cachoeira,
considerado parte de um grande conflito. Meu campo expandia-se em seus comentários. Os
convites foram vários: a viagem assinalada no parágrafo anterior, o Grito dos Excluídos, a
Romaria da Terra, uma reunião que aconteceria em Cachoeira relacionada à discussão da
Bíblia, uma conferência na Universidade da qual iria participar o Padre Teodoro. Em uma
20
Foodfirst Information and Action Network (Rede de Informação e Ação pelo Direito a se Alimentar). Em um
folheto da FIAN-Brasil se destaca: “A FIAN é uma rede internacional (…) É composta por membros, seções e
coordenações em mais de 60 países e possui status consultivo diante da Organização das Nações Unidas. Foi
criada em 1986, e tem como objetivo contribuir, em todo o mundo, na vigência e na observância dos direitos
reconhecidos nos Pactos Internacionais de Direitos Humanos, trabalhando para proteger o direito humano à
alimentação adequada de pessoas e grupos ameaçados pela fome e pela desnutrição, em particular camponeses,
indígenas, quilombolas, trabalhadores agrícolas, os sem-terra e outros, cujos direitos à terra são ameaçados ou
violados…”. Na questão que aqui nos ocupa, a FIAN intervém nos casos relacionados à Usina Açude.
ocasião, acompanhei-o e uma integrante da FIAN ao Ministério Público para apresentar um
apontamento. Tinha marcado uma conversa com o padre na CPT; o seu atraso deu lugar à
proposta de acompanhá-los. Embora tenha sido por acaso, o convite não se fazia necessário.
Era, deste modo, convidada a participar de cada evento que acontecia, o por uma, mas
por diversas pessoas da CPT.
Em minhas idas à CPT tive a oportunidade de me encontrar mais de uma vez com
membros da FIAN. O primeiro encontro se deu em uma de minhas viagens a Açude. A
presença de uma integrante da FIAN-Alemanha, coordinator for UN Affairs, que se
encontrava em Pernambuco naquele momento, suscitou a realização da reunião em Montes
Claros, mencionada mais acima. Nessa reunião, estavam presentes os assentados do
mencionado lugar e alguns integrantes dos acampamentos e dos assentamentos de outros
engenhos ocupados pela CPT em Açude. Na ida para o acampamento, viajei com o Padre
Teodoro e esta integrante, que estava acompanhada de outra pessoa também vinculada ao
tema. O padre comentava o conflito de Açude em função das perguntas que eu lhe fazia,
acentuando a vergonha da fraude e as irregularidades cometidas em relação ao caso (nos
capítulos seguintes, eu farei referência a esta questão). Quanto ao fato, a integrante da FIAN
indagava se seria producente enviar uma nota denunciando o estado de imobilidade
relacionado aos processos de desapropriação do acampamento Cachoeira (acredito ter sido a
ONU o organismo mencionado como destinatário). Preocupava-lhe que aquilo pudesse passar
por cima, impor-se, e assim ofuscar a luta estabelecida pelos trabalhadores. Uma ênfase
aqui na autonomia destes últimos em relação ao desenvolvimento da luta ocasionada pelo
acampar. O segundo encontro foi na sede da CPT-Recife e culminou com a ida ao Ministério
Público, mencionada no parágrafo anterior, para apresentar uma nota de denúncia (em relação
a outro caso). Este desenvolvimento da luta se dava através das ferramentas à disposição da
FIAN, ferramentas estas que não estavam em mãos dos trabalhadores. Era outra integrante, da
FIAN-Brasil, que ali se apresentava.
Assim como me convidavam para diferentes eventos, também me ofereceram diversos
dados: a sinalização do advogado que se ocupava do caso e com o qual poderia falar; da
promotora de Justiça de Açude que poderia me oferecer informações importantes; dos
acampados e moradores mais antigos que tinham acompanhado a história durante um longo
tempo (foram estas sugestões que mais adiante me levaram a perguntar sobre a história do
acampamento às pessoas mais antigas); a possibilidade de consultar os arquivos de que
dispunham; a indicação de documentações digitalizadas etc. Os integrantes da CPT
ofereceram-me uma grande variabilidade de informações.
Para finalizar, cabem algumas reflexões a respeito de minha estratégia etnográfica de
registro do material recolhido. Curiosamente, uma grande parte das situações e das sensações
resgatadas nesta introdução não foi incluída nas notas de campo. Estas notas, escritas em
cadernos pequenos, diziam respeito aos conteúdos, aos argumentos, e excluíam as formas e as
situações de conteúdo não-verbal. Ao finalizar a jornada etnográfica, transcrevia as notas no
computador, tarefa que preferia realizar no mesmo dia da coleta de dados para perder a
menor quantidade possível de informação.
Como mencionei, os primeiros dias foram de busca, o momento mais intenso de
ansiedade. Naqueles dias, seguia uma ordem cronológica em meus cadernos de campo. Ali
anotava as datas, os nomes das pessoas com as quais me encontrava e o conteúdo das
conversas que tivéramos. À medida que avançava no trabalho de campo, fui perdendo a
explicitação cronológica da experiência etnográfica. A atenção foi sendo dirigida mais para o
desenho que se anunciava através da informação que recolhia, desviando-se do meu
permanecer dia a dia, de minha figura em sua atividade etnográfica. O fazer etnográfico
apagava-se nas notas e acendia a história que começava a ser desenhada através dos dados.
Era uma história que começava a tomar forma e um trabalho de campo que dia a dia ia
perdendo sua novidade. Minha atenção antropológica (não pessoal) ia se afastando da situação
de “estar em Pernambuco”.
No INCRA, como assinalei no começo deste texto, minha busca dirigiu-se
inicialmente à captação da informação “exata”, pautada, normatizada. As primeiras semanas
foram dedicadas àquilo e a sensação que me deixou tal procura foi de frustração. Não adquiri
um conhecimento exato dos processos “exatos”. Não conseguia papéis escritos do processo
técnico-jurídico de desapropriação, além da indicação das leis gerais que regulam tal processo
e algumas Normas de Execução isoladas. Procurava uma informação exata dos processos de
desapropriação tal como aconteciam na prática, mas aquilo apenas foi adquirido através da
informação verbal proporcionada pelos funcionários do INCRA com quem conversava.
Aquilo não me satisfazia, não era nem um registro escrito, nem um registro exato. Ao pensar
que poderia ser vão e perigoso seguir com aquela tarefa, que poderia converter-se em uma
obsessão, produto de uma reflexão dogmática, decidi flexibilizar-me e seguir a corrente.
Abandonei a busca do formalismo abstratamente considerado e me encaminhei para a
aquisição do processo de desapropriação de Cachoeira (esperava com isso obter as
formalidades a partir da análise de um caso concreto, além de imbuir-me do estudo de “meu”
conflito). Sua leitura conduziu-me a outorgar continuidade à busca da exatidão formal
(precisava saber siglas, funções administrativas dos diferentes setores etc. que foram
aparecendo no processo), assim como iniciar a seguinte etapa, da qual constariam as
entrevistas com os funcionários da instituição envolvidos com os processos de
desapropriação, não para obter um conhecimento das normas, mas sim as experiências
cotidianas e as opiniões daquelas pessoas. Esta tarefa resultou mais satisfatória; não procurava
insistentemente um dado, porém os dados apareciam livremente, mostrando-me um mundo
desconhecido.
No acampamento, as primeiras visitas foram mais abertas, deixei-me impactar,
precisava ver o que era tudo aquilo que nunca havia visto. A experiência de estar naquele
lugar ao qual chegava pela primeira vez, de dormir e comer ali, colocava em um primeiro
plano minhas experiências pessoais, as sensações que tudo aquilo provocava em mim. À
medida que transcorriam os dias, a preocupação com o tempo etnográfico que fluía conduziu-
me a adotar um critério de sistematização do “vivido”. Destaquei, então, alguns temas de
interesse para, em alguma medida, padronizar as conversas com os acampados visando
estabelecer uma linha que ligasse a variabilidade de entrevistas, entrevistas estas que me
dariam mais rapidamente os dados que o viriam a partir do fato de estar no lugar (já que o
tempo de permanência não seria longo). Em uma linguagem antropológica esquemática, na
estratégia de “observação-participante” comecei outorgando prioridade à participação, para
inclinar depois a balança para a observação. Isto não fazia menos intensa a minha
participação, pelo contrário, com o correr do tempo, a confiança e a comodidade que sentia no
lugar iam sendo acrescidas. No entanto, o registro tinha como objetivo materializar outro tipo
de dados.
A CPT foi um lugar ao qual dediquei várias visitas em meu trabalho de campo; porém,
em minhas pretensões, ele foi tratado principalmente como um espaço de intermediação.
Minha atenção não se voltou ao registro de informação que me servisse para pensar o
movimento em si. Ao não considerá-la parte de meu objeto, converti a CPT em um espaço
meramente informativo e de intermediação com o acampamento; não me esforcei em
desnaturalizar aquele mundo, o tomei notas a respeito daquele espaço. Este esclarecimento
se faz necessário neste texto para tentar evitar o risco de naturalizar os dados que ali me foram
oferecidos.
Algumas palavras acerca da sensação de arbitrariedade no recorte do objeto de estudo
proporcionada pela experiência em campo. Por um lado, aquela arbitrariedade aliviava,
restringia a torrente de informações que de repente cai sobre os ombros do investigador; por
outro lado, a complexidade e a inseparabilidade dos processos empíricos conduziam
constantemente à sensação de lacunas e de vazios intermináveis a serem preenchidos na
pesquisa, instalavam dúvidas acerca de onde colocar aquela linha fictícia de separação que o
investigador insere na realidade, linha que é inventada dia a dia no trabalho de campo. Eu
tentava aliviar o mal-estar que tudo aquilo me trazia colocando em primeiro plano os critérios
pragmáticos, a minha situação na vida cotidiana e a necessidade de fechar “um tema” no
papel; de escrever sobre aquilo que eu mesma criei a partir de uma matéria-prima tomada da
realidade, instalando, assim, um espaço ambíguo de negociação entre a criação racional, o
pensamento teórico e a experiência empírica cotidiana.
Os dois espaços de “campo” propriamente ditos, os locus etnográficos, foram o
INCRA e o acampamento. Embora não deliberadamente, a CTP também acabou se tornando
parte daquele campo. Vale dedicar algumas linhas para comentar acerca da estratégia de
distribuição do tempo nas primeiras duas inserções etnográficas (e não na CTP, que as
visitas feitas ali não foram sistemáticas). O padrão adotado foi o de alternância entre um e
outro. Embora a princípio tenha considerado mais “prático” dedicar um tempo contínuo a um
lugar, para logo a seguir trabalhar no outro, os primeiros contatos me sugeriam que seria
melhor intercalar: uns dias da semana no INCRA, alguns dias no acampamento e outros (ou
outro) no departamento de Recife para registrar as notas de campo no computador
(basicamente as do acampamento, que as do INCRA eu as transcrevia ao final de cada
jornada). Esse padrão obedeceu a dois critérios. Por um lado, o critério foi pessoal alternar
parecia-me mais vantajoso como experiência, pois quando estivesse em um lugar,
“descansaria” do outro. Cada espaço trazia para mim desafios pessoais diferentes que
requeriam um importante gasto de energia. Por outro lado, já na visita que se seguiu à
chegada inicial com Gustavo, a nova situação em que me colocara a experiência em
Cachoeira me fez perceber a grande quantidade de informação que teria que registrar por
escrito, e a impossibilidade de realizá-la no âmbito do acampamento. Perderia muita
informação se o tempo de estadia ali tivesse continuidade, e o prazo curto de que dispunha no
campo não me permitia ter essa perda. A internalização dos códigos do outro, a vivência
altamente crítica do mundo alheio não seriam a estratégia de apreensão da informação; esta
deveria ser rápida, registrada basicamente de maneira racional.
Finalizo assim este relato em que pretendi fazer o registro de algumas experiências e
sensações por mim vividas durante o trabalho de campo. Explicitar o campo. Fazê-lo como
um exercício de reflexão epistemológica e sinceridade metodológica, colocar a cena e
colocar-me na cena. Ligar o conhecimento com o contexto de sua produção. As diferentes
entradas pelas quais devia passar para ter acesso à informação, os caminhos que se foram
abrindo, os acessos negados constituíam uma experiência que ia configurando determinadas
estratégias etnográficas e influenciava a delimitação do meu objeto de estudo, um objeto que,
dessa maneira, não se construía meramente por uma lógica racional guiada em função de
critérios “objetivos”. Os azares do cotidiano e os interesses pessoais tornaram-se
fundamentais em tal construção. Explicitar-me no campo como um sujeito, um sujeito
inserido em um contexto político/social/acadêmico, que vivencia emoções, não distanciado de
seu tema de estudo no sentido de suas motivações políticas, e experimentando um campo
repleto de contingências que influenciaram esse mesmo estudo parece-me um âmbito de
reflexão central no trabalho antropológico.
Explicitar o campo. Fazê-lo também como um momento de construção de dados. O
material empírico é bruto, o dado se constrói. As informações que, na hora de realizar esta
Introdução, proporcionaram a organização e a apresentação da experiência em campo foram
as construtoras de várias reflexões que irão se colocando ao longo deste trabalho.
Nas ginas que se seguem, analiso os registros de diferentes grupos que interatuam
em uma ocupação de terra. O propósito é decompor diversos olhares que são elaborados em
torno desse conflito, procurando entender as dinâmicas de interação que estão em jogo em
cada registro, alguns processos sociais que se revelam em sua configuração. O trabalho
estrutura-se em três capítulos. Brevemente, no primeiro capítulo, exploro o conflito em uma
instituição do Estado, como é o INCRA. Interessa-me aqui analisar a(s) decodificação(ões)
administrativa(s) do processo estudado, o tratamento dado por alguns setores da instituição
aos conflitos de terra. O segundo capítulo diz respeito ao código dos acampados de Cachoeira,
ao desenho do conflito pela propriedade da terra que vai tomando forma a partir desse código.
A definição que adota o conflito através do registro elaborado pela CPT é o tema que organiza
o terceiro capítulo. A dissertação “encerra-se” com as considerações “finais”, espaço que
pretende se constituir em ponto de partida para o encaminhamento de algumas reflexões a
partir das análises realizadas.
MAPA Nº. I
REGIÕES GEOGRÁFICAS
E PRINCIPAIS CIDADES DO NORDESTE
Fonte: Andrade, Manuel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste. 6. ed. Recife: Editora Universitária da
UFPE. 1998
MAPA Nº. II
USINAS DE PERNAMBUCO
Fonte: Mapa Polivisual do Estado de Pernambuco. Editora Trieste. São Paulo. Sem data de edição.
Capítulo I
A PROFISSIONALIZAÇÃO DO CONFLITO
Resultado de “um longo processo de lutas sociais e políticas” (Camargo; citado em
Palmeira, 1989:94) aparecia, nos primeiros anos da década de 60, uma legislação
protagonizada pelo Estatuto do Trabalhador Rural (1963) e pelo Estatuto da Terra (1964).
Essa legislação abriu espaço à intervenção direta do Estado no campo, intervenção esta que
não se daria exclusivamente através da mediação dos chefes locais. Uma transformação nas
relações entre o Estado, os camponeses e os proprietários era gerada a partir disto (Palmeira,
1989). Enquanto o Estatuto de 1963 “reconheceu a existência do trabalhador rural como
categoria profissional, vale dizer, como parte do mundo do trabalho” (Palmeira, 1989:101),
21
o Estatuto da Terra reconheceu a existência de grupos em conflito,
22
abrindo a possibilidade
“de uma intervenção direta do Estado sobre os grupos reconhecidos como compondo o setor
agrícola ou a agricultura” (Palmeira, 1989:101). Deste modo “o camponês ou trabalhador
rural tornou-se objeto de políticas, o que até então era impensável, criando-se condições
para o esvaziamento das funções de mediação entre camponeses e o Estado, até então
exercida pelos grandes proprietários ou por suas organizações” (Palmeira, 1989:101).
Foi o Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964), proposto como a
lei que “regula os direitos e as obrigações concernentes aos bens imóveis rurais, para os fins
de execução da Reforma Agrária e promoção da Política Agrícola”,
23
o elemento jurídico que
criou instituições como o INDA
24
e o IBRA (que em 1970 se conjugariam no INCRA). O
21
Com tal reconhecimento, estendia-se “ao assalariado do campo uma série de direitos que haviam sido
concedidos ao assalariado urbano, desde o Estado Novo” (Andrade, in Azevedo, 1982:13). Salário mínimo,
férias, repouso semanal remunerado e décimo terceiro salário foram os direitos garantidos pelo Estatuto. Em
1971, a lei Complementar 11 acrescentou o direito do trabalhador à aposentadoria por velhice e invalidez, e o
direito da família de receber pensão e auxílio funeral (Andrade, 1998).
22
"
O estatuto da terra reconheceu a existência de uma questão agrária, de interesses conflitantes dentro daquilo
que, até então, era tratado como um todo indivisível, a agricultura ou, convertida ao jargão corporativista, a
classe rural” (Palmeira, 1989:101).
23
Estatuto da Terra. Título I. Art. 1.
24
No Estatuto da Terra. Título III. Capítulo III. Art. 74, destaca-se “É criado, para atender às atividades
atribuídas por esta Lei ao Ministério da Agricultura, o Instituto Nacional do Desenvolvimento Agrário, entidade
autárquica vinculada ao mesmo Ministério, com personalidade jurídica e autonomia financeira”. Sua finalidade
centrava-se em “promover o desenvolvimento rural nos setores da colonização, da extensão rural e do
cooperativismo”.
Grupo Executivo da Reforma Agrária (GERA) foi criado posteriormente, através do Decreto-
lei nº 582, de 15 de maio de 1969.
25
"Diretamente subordinado à Presidência da República”, o IBRA foi estabelecido como
o “órgão competente para promover e coordenar a execução” da Reforma Agrária.
26
Esta
definiu-se como:
O conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra,
mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos
princípios de justiça social e ao aumento da produtividade.
27
Criado pelo Decreto-lei 1.110, de 9 de julho de 1970, O Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária surgia para assumir
Todos os direitos, competência, atribuições e responsabilidades do Instituto
Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA), do Instituto Nacional de
Desenvolvimento Agrário (INDA) e do Grupo Executivo da Reforma
Agrária (GERA), que ficam extintos a partir posse do Presidente do novo
Instituto.
28
Definido oficialmente como uma “Autarquia federal, vinculada ao Ministério do
Desenvolvimento Agrário (…), com sede e foro em Brasília, Distrito Federal, e jurisdição em
todo o território nacional”, o Instituto tem como finalidade:
Promover e executar a reforma agrária visando à melhor distribuição da
terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender
aos princípios de justiça social; promover, coordenar, controlar e executar a
colonização; promover as medidas necessárias à administração e à
arrecadação das terras devolutas federais e à sua destinação, visando
incorporá-las ao sistema produtivo; e gerenciar a estrutura fundiária do
país.
29
Assim como foram se criando e desaparecendo instituições, ao mesmo tempo em que
se transformavam as disposições legais, também a estrutura organizacional do INCRA e os
modos de proceder em suas funções foram mudando. Não é minha intenção deter-me nessas
mudanças, entretanto, considero necessário reafirmar a sua existência com a finalidade de não
essencializar a menção que farei nas linhas seguintes sobre a estrutura e os objetivos da
25
“Fica criado o Grupo Executivo da Reforma Agrária (GERA), órgão colegiado, vinculado ao Ministério da
Agricultura, com o encargo de orientar, coordenar, supervisionar e promover a execução da Reforma Agrária”.
Decreto-lei nº 582, Art. 5.
26
Estatuto da Terra. Título II. Capítulo 1. Art. 16. Parágrafo único.
27
Estatuto da Terra. Título I. Art. 1º. 1º parágrafo.
28
Decreto-lei nº 1.110 , de 09/07/1970. Art. 2º.
29
Regimento Interno do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INCRA. Capítulo I. Art. 1º.
Publicado no Diário Oficial da União em 20 de outubro de 2006.
instituição em questão. O regime que atualmente organiza o Instituto é então produto de uma
modificação recente, aprovada pelo Decreto nº. 5.735, de 27 de março de 2006.
30
Entre os setores que conformam a estrutura do INCRA encontram-se as
Superintendências Regionais, “órgãos descentralizados” do Instituto, aos quais:
Compete coordenar e executar, na sua área de atuação, as atividades
homólogas às dos órgãos seccionais e específicos relacionadas a
planejamento, programação, orçamento, tecnologia da informação,
modernização administrativa e garantir a manutenção, fidedignidade,
atualização e disseminação de dados do cadastro de imóveis rurais e sistemas
de informações do INCRA.
31
Foi para um desses espaços “descentralizados” que me dirigi para empreender a
etnografia do conflito em sua leitura administrativa, particularmente para a Superintendência
Regional de Pernambuco, com sede em Recife (SR-03).
32
O anexo I reproduz o organograma
da instituição.
Um lugar significativo do trabalho efetuado dentro da Superintendência de Recife foi a
Divisão de Obtenção de Terras e Implantação de Projetos de Assentamento. O novo
Regimento Interno do INCRA classifica as funções dessa divisão entre as atividades de
obtenção, as de implantação de assentamentos e as relacionadas ao meio ambiente e aos
recursos naturais.
33
O setor de Obtenção de Terras se ocupa das primeiras destas funções. Este
setor é composto em sua maioria por engenheiros agrônomos e tem a finalidade de:
Proceder [à] vistoria e [à] avaliação de imóveis rurais, para fins de
desapropriação, aquisição, arrecadação e outras formas de obtenção de
terras, destinadas à implantação de projetos de assentamento de reforma
agrária; participar em perícias judiciais e em audiências de conciliação, nas
ações de desapropriação de terras; atualizar semestralmente a planilha de
Preços Referenciais de Terras; coletar e manter atualizados os dados
referentes aos negócios realizados no mercado de imóveis rurais;
acompanhar a evolução do mercado regional de terras e analisar sua
dinâmica; promover discussões da mara Técnica e dos Grupos Técnicos
de Vistoria e Avaliação; e outras atividades decorrentes e compatíveis com
suas competências.
34
30
Com alterações realizadas através do Decreto nº. 5.928, de 13 de outubro de 2006, aprovadas pela Portaria nº.
69, de 19 de outubro de 2006, publicadas no Diário Oficial da União em 20 de outubro de 2006.
31
Regimento Interno do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INCRA. Capítulo III. Seção V.
Art. 101. DOU 20/10/06.
32
Em Pernambuco existe, além da mencionada Superintendência, a Superintendência Regional do Médio São
Francisco (SR-29), cuja sede se encontra em Petrolina.
33
Regimento Interno do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INCRA. Capítulo III. Seção V.
Art. 107. DOU 20/10/06.
34
Idem nota 33.
Também a Procuradoria Regional e a Ouvidoria Agrária foram espaços destacados
durante minha etnografia do conflito na instituição. Junto com a Sala da Cidadania,
Planejamento e Controle e Comunicação Social, a Ouvidoria Agrária é uma função vinculada
ao Gabinete da Superintendência Regional. Ela se ocupa de
Prevenir e mediar conflitos agrários; articular com os órgãos governamentais
federais, estaduais, municipais e não-governamentais para [a] garantia dos
direitos humanos e sociais das pessoas envolvidas em conflitos agrários;
receber, processar e oferecer encaminhamento às denúncias sobre violência
no campo, irregularidades no processo de reforma agrária, desrespeito aos
direitos humanos e sociais das partes envolvidas nos conflitos agrários; e
outras atividades compatíveis com suas atribuições.
35
Da sua parte, a Procuradoria Regional assume como função:
Promover a representação judicial e extrajudicial e realizar as atividades de
consultoria e assessoramento jurídicos cometidos à Procuradoria Federal
Especializada e suas Coordenações-Gerais, bem como assistir [ao]
Superintendente Regional e [aos] demais dirigentes das unidades no controle
interno da legalidade dos atos a serem por estes praticados ou já efetivados.
36
Em minha busca para estudar conflitos de terra, havia uma maneira para a sua
aquisição institucional que se destacava (embora a associação de tal aquisição com o conflito
não estar explícita na instituição): era a desapropriação por interesse social. Ela aparece no
Estatuto da Terra como uma das medidas destinadas a promoverem o acesso à “propriedade
rural”,
37
e tem como fim:
Condicionar o uso da terra à sua função social; promover a justa e adequada
distribuição da propriedade; obrigar a exploração racional da terra; permitir a
recuperação social e econômica de regiões; estimular pesquisas pioneiras,
experimentação, demonstração e assistência técnica; efetuar obra de
renovação, melhoria e valorização dos recursos naturais; incrementar a
eletrificação e a industrialização no meio rural; facultar a criação de áreas de
proteção à fauna, à flora ou a outros recursos naturais, a fim de preservá-los
de atividades predatórias.
38
35
Regimento Interno do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Capítulo III. Seção V.
Art. 103. DOU 20/10/06.
36
Regimento Interno do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Capítulo III. Seção V.
Art. 104. DOU 20/10/06.
37
Estatuto da Terra. Título II. Capítulo I. Art. 17.
38
Estatuto da Terra. Título II. Capítulo I. Art. 18.
É passível de desapropriação a “propriedade rural” que não cumpra sua “função
social”.
39
O “aproveitamento racional e adequado”;
40
a “utilização adequada dos recursos
naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente”; a “observância das disposições que
regulam as relações de trabalho”; e, por último, a “exploração que favoreça o bem-estar dos
proprietários e dos trabalhadores” são os requisitos que deve possuir uma propriedade para
cumprir com tal função.
41
A pequena e a média propriedades rurais ficam excluídas da
possibilidade de desapropriação para fins de Reforma Agrária, a não ser que o proprietário
possua outro imóvel rural.
42
A respeito disso, destacava-se no Estatuto da Terra a “gradual
extinção do minifúndio e do latifúndio” como um objetivo a ser alcançado através da Reforma
Agrária.
43
A referida Divisão de Obtenção é o espaço pertencente às Superintendências
Regionais que adquire maior protagonismo no curso dos processos de desapropriação, além
das Procuradorias Regionais, que também têm um papel destacado a este respeito. É por isso
que a Divisão foi um lugar de relevo em minha pesquisa etnográfica do processo/conflito.
Não me dirigi para por conta própria, que aquilo que eu procurava em um primeiro
momento eram os processos arquivados; foram os funcionários que me encaminharam para
esse lugar. Sua participação pode ser observada em várias etapas ao longo do processo
desapropriatório (ver anexo II). Assim, por exemplo, a etapa rotulada de “análise técnica e
jurídica” contempla a presença tanto da Procuradoria Regional como da Divisão de Obtenção,
setores que elaboram seus respectivos “pareceres” em relação ao processo, e realizam uma
análise técnica e jurídica da documentação dos imóveis selecionados. Nesta primeira
etapa, encontram-se, além disso, a realização da “vistoria preliminar” e a emissão do parecer
sobre a viabilidade do assentamento,
44
ambas as tarefas dependentes da Divisão de Obtenção.
39
Estatuto da Terra. Título I. Art. e Lei 8.629 de 25 de fevereiro de 1993. Art. 2º. Esta lei tem atualmente
um papel central na regulamentação da Reforma Agrária.
40
Este ponto refere-se à produtividade da terra, critério que tem um papel central nos processos de
desapropriação. O artigo da Lei nº. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, estabelece: “Considera-se propriedade
produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da
terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente”. As percentagens
estabelecidas assinalam 80% para o primeiro (GUT) e 100% para o segundo (GEE) (artigo 6º, incisos 1º e 2º).
41
Lei nº 8.629 de 25 de fevereiro de 1993. Art. 9º.
42
Lei nº 8.629 de 25 de fevereiro de 1993. Art. 4.
43
Estatuto da Terra. Título II. Capítulo I. Art. 16.
44
A vistoria é um “levantamento preliminar de dados e informações”, cujo objetivo, entre outros, está voltado
para verificar a produtividade do imóvel e o cumprimento da “função social” da propriedade rural em questão,
“segundo os parâmetros estabelecidos por lei e em normas internas”. A vistoria deve fundamentar o parecer
sobre a viabilidade do assentamento, quer dizer, deve pronunciar-se a respeito da inclusão da propriedade no
programa de reforma agrária. Além de serem observados os aspectos que dizem respeito à “função social” (art.
9, lei 8.629/93) do imóvel, tal parecer “deverá conter, obrigatoriamente, manifestação sobre os aspectos
relacionados ao enquadramento da condição do imóvel segundo os valores de Grau de Utilização da Terra
GUT e Grau de Eficiência na Exploração GEE (…), bem como sua classificação quanto à dimensão”. In:
A realização dos procedimentos para a “avaliação”
45
dos imóveis rurais e o “laudo” que dali
resulta também ficam a cargo dos engenheiros agrônomos.
Outros vários setores institucionais estão imbricados no desenvolvimento dos
processos de desapropriação, entretanto, sua participação se realiza de um modo mais
indireto, adquirindo dessa forma um papel menos protagonizador nesse procedimento.
Cadastro,
46
Cartografia
47
e Ouvidoria, assim como a Superintendência,
48
foram setores cuja
referência foi mais reiterada em relação a essa participação.
Darei agora um passo além das normas formais de funcionamento para entrar nos
dados nascidos da experiência etnográfica. Ao chegar ao INCRA pela primeira vez, não sabia
qual seria o espaço no qual me centraria. Pretendia, em primeiro lugar, acessar os processos
que materializavam administrativamente os conflitos que iria estudar. Imaginava deparar-me
com um arquivo, cujo acesso me seria permitido diante da apresentação da credencial que me
tinha outorgado a Instituição Universitária à qual pertencia. Assim, pensava escolher meu
conflito através da leitura dos processos.
Quando cheguei, encontrei outra realidade. A busca personalizava-se e não existiam
arquivos abertos. Não existia um arquivo. Em seu lugar, apareciam as mesas dos funcionários,
o fluxo do processo. Ecoavam os comentários que me ofereciam explicações sobre o mundo
técnico que me proporcionariam os papéis, o estudo de uma desapropriação, mundo que eu
queria alcançar sem ser nem advogada, nem “parte interessada”. Dessa maneira, mais que ter
acesso direto a um processo, parecia mais oportuno para alguns funcionários que eu
conversasse com eles sobre aquelas questões.
Também as documentações exatas que revelassem a estrutura formal da instituição e o
percurso dos processos de desapropriação, documentações que foram parte da minha busca
inicial naquele espaço, desabrochavam geralmente através das palavras dos funcionários. Foi
difícil encontrar na instituição documentos que materializassem os seus percursos, em várias
Manual de Obtenção de Terras e Perícia Judicial. Manual de Procedimentos Técnicos para Elaboração de
Diagnósticos do Quadro Fundiário Regional, de Levantamento de dados e Informações de Imóveis Rurais sua
Avaliação e Perícia Judicial (MDA – INCRA). Módulo II.
45
Necessária aos fins de indenização do desapropriado, “A avaliação de imóveis rurais consiste na determinação
técnica do preço atual de mercado do imóvel como um todo…”. In: Manual de Procedimentos Técnicos para
Elaboração de Diagnósticos de Quadro Fundiário Regional, de Levantamento de dados e Informações de
Imóveis Rurais, sua Avaliação e Perícia Judicial (MDA – INCRA). Módulo III.
46
Pertencente à Divisão de Ordenamento e Estrutura Fundiária, o setor do Cadastro relaciona-se ao registro de
imóveis rurais. Entre outras coisas, oferece um banco de dados a respeito de tais propriedades.
47
Tarefas relacionadas ao “georreferenciamento de imóveis rurais, medição e demarcação de projetos de reforma
agrária e de certificação de imóveis rurais”; “produzir dados padronizados de natureza cartográfica de interesse
do INCRA” estes são exemplos de funções associadas ao setor de cartografia, que também pertence à Divisão
de Ordenamento e Estrutura Fundiária. Regimento Interno do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária – INCRA. Capítulo III. Seção V. Art. 106. DOU 20/10/06.
48
Referindo-se aqui ao cargo de Superintendente Regional.
ocasiões, os funcionários preferiam explicá-los oralmente. Etnografar no lugar aproximava-
me de um saber prático, vivido, experimentado. Assim como existia uma referência às leis, às
normas e aos manuais, por exemplo, também se fazia uma referência às pessoas mais antigas
da entidade, depositários de um saber não apenas adquirido pela leitura das regulamentações.
Aparecia diante mim uma norma atualizada na experiência, uma administração local.
Experiências concretas, problemas, desordens, suspeitas e aspectos cotidianos eram emitidos
de forma mais insistente do que a ordenação abstrato-legal. Emissão que se realizava em um
tom baixo, por meio da corrente da informalidade de uma conversa sem gravadores. Deste
modo, junto às explicações legais e técnicas com que os funcionários me presenteavam, eram
recorrentes as sinalizações a respeito das realidades vividas na instituição. Com isso,
delineava-se a assunção implícita da importância das práticas cotidianas e do saber sobre
essas práticas institucionais, paralelamente aos dados exatos que a administração podia me
proporcionar (embora os comentários mumificados em lei, sem referências a questões
cotidianas, também se fizessem muitas vezes presentes).
Os funcionários mencionaram os agrônomos, a Ouvidoria e a Procuradoria Jurídica;
estes foram os espaços destacados quando assinalei que queria acessar um processo para
escolher um conflito de terra com objetivo de pesquisa, um processo ainda não fechado,
que me interessava estudar um acampamento. As funções institucionais referidas aos
assentamentos construídos em terra desapropriada estavam claramente delimitadas como
um espaço diferente em relação às atividades relacionadas com os acampamentos, atividades
estas principalmente identificadas com os processos de obtenção de terras. Aquilo facilitou
inclusive ajudou a delimitação de meu objeto de estudo naquela instituição. Tudo o que
dizia respeito a assentamentos permanecia fora. Várias áreas de trabalho e funcionários da
Superintendência ficaram assim excluídos do meu interesse etnográfico. A linha demarcatória
estava bastante clara: o que me interessava era o processo administrativo de obtenção de
terras.
No primeiro dia no INCRA de Recife, soube que o conflito de terras, assim definido
como objeto de estudo no Rio de Janeiro, um conflito em sua fase de acampamento,
desmembrava-se em dois qualificativos naquela instituição: conflitos e processo de
desapropriação. A etnografia deu estes nomes ao meu interesse de pesquisa na administração.
O último rótulo conduziu-me prioritariamente ao setor de Obtenção de Terras, espaço dos
agrônomos, cuja função formalmente expressa foi referida mais acima. Da sua parte, a
palavra conflito me conduziu à Ouvidoria. Estes dois foram os locais por excelência com os
quais minha pesquisa era identificada. Ia de um processo de desapropriação a um conflito, e
estes termos não se encontravam unidos em uma mesma área de trabalho, fragmentavam-se.
A Ouvidoria trabalha com pessoas. Entrevistados deste e de outros setores da
Superintendência assim o assinalaram. “Ouvir denúncia dos trabalhadores sem-terra”, atuar
como elo entre o INCRA e os Movimentos Sociais”, “encaminhar as denúncias”, “é o setor
do INCRA que se relaciona com os trabalhadores” – estas foram frases que fizeram referência
ao trabalho que ali se realizava. A idéia de uma ponte entre a administração e aqueles que
disputam a terra se fazia presente nesses comentários (a isso farei referência mais adiante). A
idéia de uma ponte, de um laço, de um elo. Por outro lado, situações como a presença
constante de pessoas na sala de espera que antecedia este setor da instituição (que não
desejavam ser atendidos apenas pela Ouvidora, mas sim, em vários casos, centravam sua
espera na direção da superintendente); a chegada de uma pessoa de um Movimento Social à
Ouvidoria em uma ocasião em que eu estava realizando uma entrevista com os funcionários
daquele lugar; o apelo por telefone que os acampados fizeram na Ouvidora para obterem
informação sobre o processo de desapropriação em um dia em que eu me encontrava em
Cachoeira, todos estes eram fatores que falavam daquele mencionado trabalho com pessoas.
A Ouvidoria trabalha também com conflitos: intermedeiam os conflitos, seja entre
movimentos, seja entre movimentos e proprietários”; “tratam problemas de toda ordem”; “é
como um trabalho assistencialista que tenta resolver os problemas dos trabalhadores
encaminhando-os aos diferentes setores do INCRA”, assinalavam os funcionários daquele
setor. Os conflitos chegam à instituição através da Ouvidoria. Problemas que se identificam
com questões como as diversas estratégias de ataque dos proprietários a trabalhadores: os
pedidos de despejo diante da justiça, logo depois de uma ocupação de terras, por exemplo
(que se agravado pela Medida Provisória decretada no governo de Fernando Henrique
Cardoso,
49
e pelos posicionamentos personalizados dos juízes a favor dos proprietários – estas
foram opiniões expressas por vários funcionários), ou as ofensivas por vias não-institucionais.
Problemas como os que acontecem com os arrendatários das terras em desapropriação em
função da indenização outorgada pelo INCRA (a indenização por terras destina-se ao
proprietário; o arrendatário detém participação no correspondente às benfeitorias)
49
Ao introduzir a categoria de “invasor”, no inciso 6, art. 4 da Medida Provisória nº. 2183-56 24/08/2001, fica
estabelecido: “O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão
motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos
dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a
responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie
o descumprimento dessas vedações”. Embora as opiniões expressas, em grande maioria, pelos funcionários
reconheçam e acentuem os obstáculos que esta medida gera à desapropriação, eles assinalam ao mesmo tempo o
inconveniente de se colocarem contra a medida.
transformam-se em uma situação que habitualmente gera dificuldades. Problemas como as
disputas entre os Movimentos, entre as dissidências, os “rachas”. Todos estes foram
assinalados como assuntos de que se ocupa a Ouvidoria, eles eram conflitos. Questões que
surgem das desapropriações de terras, mas que se colocam em um espaço de resolução
institucional alheio ao processo formal de desapropriação, que é assunto dos agrônomos.
No INCRA, meu interesse se dividia, assim, entre os processos de desapropriação e os
conflitos. Separados institucionalmente, o meu trabalho foi difícil de ser localizado. Ao falar
de minha curiosidade pelos processos de desapropriação, a referência aos agrônomos foi um
ponto colocado. Ao falar de conflitos, ou mencionar as pessoas acampadas, vários
funcionários me perguntaram se havia tido uma conversa com a ouvidora, pois ela tinha
mais contato com aquelas questões e poderia me informar melhor.
O setor de Obtenção era identificado como o encarregado por excelência do processo
de desapropriação formal. Os agrônomos descreveram sua atividade como uma tarefa técnica,
guiada pelo Manual de Obtenção de Terras. Seu trabalho referia-se a um processo formal de
desapropriação que não implica o contato com pessoas vivas. A vistoria e a avaliação eram
destacadas nas apresentações que os funcionários faziam de seu trabalho. As fórmulas que
estes procedimentos envolvem, como o cálculo do “valor da terra nua”,
50
da produtividade – a
qual era sublinhada como um ponto central em sua ocupação, como o item por excelência da
desapropriação foram reiteradamente mencionadas naquelas apresentações, que se
revestiam de procedimentos previamente estabelecidos. Técnico foi uma palavra que definiu o
seu trabalho. Instrumentos técnicos, procedimentos técnicos, critérios técnicos. Não entram
nem pessoas, nem conflitos no ângulo que sua atividade ilumina; eles correspondem a outro
setor.
Assim descrito pelos agrônomos, o processo de desapropriação tornava-se um assunto
técnico e legal. Os critérios sociais, as pessoas, os conflitos eram reconhecidos como parte do
processo apenas no início, como um fator motivador da desapropriação. Entretanto, uma vez
superada aquela fase de motivação, o conflito social se concebia subsumido ao processo de
desapropriação, guiado por padrões técnicos de avaliação. E contribuir para aquela avaliação
técnica é papel dos agrônomos, aí localizavam o seu trabalho. Analisar a produtividade de um
50
Refere-se a um cálculo que o Setor de Obtenção realiza no momento da “avaliação” do imóvel. Com fins de
seu pagamento, o “Valor da Terra Nua” e o “valor das Benfeitorias” (em largas margens, estas últimas dizem
respeito ao construído sobre a terra – sobre a “terra nua”) devem ser discriminados. Isto é devido às indenizações
diferentes que uma e outra supõem; enquanto as benfeitorias são pagas em dinheiro, a terra é paga em Títulos da
Dívida Agrária (TDA). Ver Estatuto da Terra.tulo IV. Art. 105 e Lei nº. 8.629/93. Art. 5.
imóvel, calcular o GEE e o GUT,
51
considerar a viabilidade do assentamento (solo, água,
acesso, relevo etc.), considerar os valores imobiliários, calcular o valor das benfeitorias” e
aplicar fórmulas matemáticas para deduzir a indenização em TDA e em dinheiro que se
pagará ao proprietário da terra desapropriada, elaborar os laudos técnicos agronômicos etc.
todas estas, entre muitas outras, foram tarefas que permitiram aos entrevistados compor o
discurso sobre seu trabalho. Tarefas estabelecidas no Manual de Obtenção, no regime interno
da instituição e em outros dispositivos formais.
52
Entretanto, além daquela ênfase na qualificação técnica de seu trabalho, os
comentários sobre as inexatidões que aconteciam no cotidiano também adquiriam um lugar no
discurso dos agrônomos.
Os conflitos das leis e os números. Apareciam no relato dos entrevistados sinalizações
sobre as disputas em torno das percentagens utilizadas no cálculo da produtividade, como a
fixação das proporções a serem consideradas nesse cálculo (GUT 80% e GEE 100%). Com
isto, revelavam-se aspectos não-técnicos das normas, que afastavam a neutralidade das
percentagens e enfatizavam a dimensão de disputa social por trás dos números. Além disso,
mencionavam-se conflitos surgidos em torno das diversas interpretações dadas pelos técnicos
da entidade, que levavam a cabo o procedimento de vistoria, em relação às formalidades que
regem tal procedimento,
53
interpretações variadas que têm lugar em função das ambigüidades
existentes na legislação.
A “pressão dos movimentos sociais”. Atualmente, os Movimentos detêm um papel
ativo nos processos de expropriação, tanto no fato de abrir um processo (a partir da ocupação
de terras), como nos traslados executados para a instituição com o objetivo de manter o seu
andamento.
54
Tudo isto, assinalavam alguns agrônomos e outros funcionários, implica que seu
51
“O grau de utilização da terra (…) deverá ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela
relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel”. “O Grau de
eficiência na exploração da terra deverá ser igual ou superior a 100% (cem por cento)”. A obtenção deste último
percentual considera, por um lado, a quantidade coletada de cada produto vegetal dividida pelos respectivos
índices de rendimento estabelecidos. Por outro lado, o total de "Unidades Animais" do rebanho é dividido pelo
"índice de lotação" determinado. A soma destes resultados é então dividida pela área efetivamente utilizada e,
depois, multiplicada por 100. O número obtido dará o grau de eficiência na exploração (Lei nº 8.629, Art. 6º).
52
Neste ponto, é interessante ter em conta o que foi assinalado por A. W. B. Almeida e J. Pacheco de Oliveira
(1998) a respeito da demarcação, em uma etnografia da FUNAI. Os autores colocam em análise a representação
da demarcação como um ato técnico e objetivo, o qual atua em detrimento da participação dos índios. “Vivida
como neutra, semelhante intervenção governamental intenta colocar-se acima dos conflitos, sugerindo uma
imagem de equilíbrio e de conciliação de interesses” (:107).
53
Uma discussão que alguns entrevistados destacaram refere-se, por exemplo, à consideração das áreas a serem
levadas em conta em uma vistoria. Acontece a situação em que um mesmo proprietário dispõe de vários imóveis
localizados em áreas contíguas. Considerar ou não aqueles imóveis como uma propriedade é um assunto
sujeito a discussões que são decididas de forma diferente segundo cada caso.
54
“Como mais de 90% das desapropriações feitas pelo INCRA contemplam as ditas áreas de conflito, ocupar
engenhos e neles montar acampamentos (…) tornou-se um recurso incontornável” (Sigaud, 2005:268).
trabalho seja “só pressão”. Os Movimentos “pressionam” para que se realizem
desapropriações. A desapropriação por pressão significa que ela não se faz através de um
planejamento das áreas prioritárias para desapropriação,
55
planejamento este realizado com
critérios técnicos, mas sim a partir de um outro tipo de critério trazido por um grupo alheio à
instituição.
Essa “pressão” pressupõe, assim, uma mistura de códigos: o dos Movimentos sociais
operando na linguagem do Processo de Desapropriação. Apesar dessa mistura, os agrônomos
estabeleciam uma classificação: o código dos processos qualificava-se operando a partir de
critérios técnicos, enquanto o código dos Movimentos era percebido operando com critérios
não-técnicos. Os critérios cnicos envolvem um saber profissional, uma legislação que deve
ser cumprida e procedimentos rotinizados em manuais, normas, notas técnicas etc.. Os
parâmetros não-técnicos dos Movimentos não ficavam claramente definidos, dizia-se que
neles não havia atenção voltada para as características do solo, à sua produtividade e a outras
questões afins, além de se mostrarem indiferentes à legislação.
Que o trabalho por “pressão”, submetido às regras do Movimento, gera dificuldades
foi um ponto assinalado pelos agrônomos (e outros funcionários). Nessas sinalizações, os
procedimentos de desapropriação tornam-se inexatos, que os Movimentos, dizia-se,
realizam ações como ocupar terras improdutivas e inviáveis para o assentamento; entrar em
confronto com a Medida Provisória 2183-56 de 24 de agosto de 2001; e outra série de
ações que os agrônomos identificaram com o desdém dos Movimentos (por desconhecimento
ou pelo predomínio de “interesses políticos”) para os procedimentos “técnicos” e legais que
subjazem no decurso administrativo da expropriação. Desdém que para uma grande maioria
dos funcionários consegue obstaculizar a agilidade do procedimento desapropriatório, que
não pode evitar os parâmetros legais e técnicos que o regem.
Se a “pressão” não existisse, a desapropriação não funcionaria, assinalavam.
Aparecem nos relatos dos entrevistados referências às inexatidões ligadas aos problemas
institucionais de falta de funcionários e de verba ou a não-liberação da verba, ou a sua não-
utilização questão apontada repetidas vezes pelos trabalhadores da instituição (agrônomos e
não-agrônomos). Em mais de uma entrevista com os agrônomos, a escassez de recursos foi
detectada como um fator que impede o INCRA de alcançar o objetivo de estabelecer um mapa
de áreas prioritárias de desapropriação. Com esse panorama, opinavam, não resta outra
solução além de “submeter-se” à pauta dos Movimentos, entregando um trabalho técnico à
55
A formulação de planos de Reforma Agrária que delimitem áreas prioritárias de desapropriação é um objetivo
estabelecido no Estatuto da Terra. Ver Título II. Capítulo IV. Seção 1.
“pressão” que é exercida sobre o INCRA pelos Movimentos, os quais não atuam com critérios
técnicos.
Reconhece-se, assim, que o processo de desapropriação começa por “pressão”. E que
tal “pressão” é a que gera as desapropriações, que sem os Movimentos nada funcionaria.
Assume-se que a desapropriação funciona através da “pressão”, através de critérios não-
técnicos introduzidos pelos Movimentos; paralelamente, afirma-se que são esses critérios não-
técnicos os que criam obstáculos para a desapropriação, definida como um assunto técnico.
Reafirma-se com a última colocação feita a necessidade de depositar no INCRA a totalidade
da ação desapropriatória, diminuindo (ou acabando) com a participação dos Movimentos
Sociais; a necessidade de excluir os aspectos não-técnicos que obstaculizam (e fazem
funcionar) o processo desapropriatório.
Admite-se que as coisas funcionam (e não funcionam) pela “pressão externa”. Tudo
isso mostra um cotidiano institucional imbricado por fatores que superam amplamente o
esquema de trabalho técnico. Entretanto, o que foi dito antes não debilita tal modelo de
trabalho. Assim como funcionam, as coisas não funcionam pela pressão externa. A oposição
exacerba a necessidade de exatidão da tarefa. No discurso que descreve a atividade cotidiana,
opera-se uma combinação contraditória, na qual se apela para uma exatidão profissional, ao
mesmo tempo em que se reconhece um funcionamento que excede tal exatidão.
A precariedade em que realizam seu trabalho. Como foi dito mais acima, a falta de
pessoal, de verba, os problemas na liberação do dinheiro e a “burocracia” foram outros pontos
assinalados pelos entrevistados, em relação ao cotidiano do trabalho, que não conseguiam
estabelecer identificação com o rigor técnico. A ausência de motivação para fazer a reforma
agrária, a falta de compromisso de alguns funcionários (como foi colocado por um dos
trabalhadores recém-admitido na instituição), também foram questões expostas.
Os empecilhos colocados pelos proprietários. Este foi um comentário que não se
restringiu ao âmbito dos agrônomos. O proprietário que “reage” à desapropriação abrindo
janelas que obstaculizam o curso do procedimento. Um proprietário que geralmente se
“esconde” da notificação prévia à vistoria;
56
que divide o imóvel para que ele não possa ser
56
A vistoria preliminar supõe a prévia notificação do proprietário. Sem ela, a equipe técnica do INCRA não se
encontra autorizada legalmente a entrar na propriedade. Estipula-se que a notificação deve ser pessoal. Em caso
contrário, ela se dará por “edital” (em que se publica um aviso em um jornal de “grande circulação na capital do
estado de localização do imóvel”. Ver Lei 8.629/93. Art. 2º). Conforme os entrevistados, os custos e as demoras
que a notificação por edital traz fazem com que a ausência do proprietário na notificação pessoal constitua
importante obstáculo.
vistoriado;
57
que reage diante do laudo de avaliação (o qual determina o valor da
indenização); que impugna o processo na justiça (justiça cujo tempo de deliberação com
freqüência ocasiona uma demora considerável ao processo administrativo de desapropriação),
ou que apresenta defesa administrativa; um proprietário que coloca espias na instituição. Estas
foram questões referidas pelos entrevistados. Nesta apresentação, o proprietário é visto como
uma figura poderosa no contexto dos procedimentos desapropriatórios, capaz de alongar de
forma substancial ou deter o curso do processo.
Essas dificuldades evidenciam a disputa que impregna o processo de desapropriação,
que o constitui. Entretanto, para alguns técnicos que se encarregam institucionalmente do
processo, não existem conflitos. É o Movimento quem introduz tal categoria. Estas foram as
palavras de um agrônomo. De forma menos categórica, foi destacado que os conflitos são uma
questão da qual se ocupa a Ouvidoria (indicação esta que não se restringia ao âmbito do setor
de Obtenção). No setor de Obtenção, mencionaram os entrevistados, trabalha-se com um
processo de desapropriação; na Ouvidoria, trabalha-se com conflitos. Os agrônomos
trabalham com procedimentos. Passos estipulados a serem cumpridos, análises técnicas a
serem realizadas. Junto a isto, as referências ao seu trabalho cotidiano encontram-se marcadas
pelas disputas entre proprietários e Movimentos, entre dois grupos em confronto pela
propriedade da terra, disputas estas que se apresentam nos procedimentos e que não são
reconhecidas de forma explícita como parte constituinte dos mesmos. Isso acontece, mas em
voz baixa e longe do gravador, ou é um assunto do qual se encarrega a Ouvidoria. Um
conflito pela propriedade da terra é a base que estrutura seu trabalho técnico, e assim é
reconhecido. Mas não é dito, e isto me parece pertinente de destacar: os funcionários do setor
de Obtenção não falam que a disputa pela terra subjaz ao trabalho de desapropriação.
Reconhecem sua existência, ao mesmo tempo em que negam seu papel como parte
constituinte do processo institucional. No marco do processo de desapropriação, o conflito é
negado. Neutraliza-se, profissionaliza-se. O conflito torna-se uma negação.
ênfase na qualificação técnica de seu trabalho, paralela a um discurso sobre uma
prática complexamente imbuída de disputas e complicações que escapam às fórmulas
matemáticas. Opera-se uma combinação contraditória no relato em que se fala de uma
atividade técnica enquanto se reconhece que as coisas não funcionam tecnicamente. Admitir e
assumir, mas não dizê-lo. A negação passa pelo tom informal que adquire a sinalização das
dificuldades, do cotidiano, da prática. Quando me falavam de seu trabalho, alguns
57
Como foi destacado mais acima, a pequena e a média propriedades rurais ficam excluídas da desapropriação (à
exceção de o proprietário possuir outro imóvel).
funcionários do setor de Obtenção esperavam minhas anotações, esperavam que transportasse
para o caderno as fórmulas matemáticas ou os procedimentos pautados que eles expressavam.
Isto era explicitamente assumido e mais cômodo de ser conversado. O resto trazia
desconfortos.
Não aconteceu unicamente com os agrônomos. Os relatos dos funcionários mostravam
um discurso com duas melodias. Por um lado, era o processo exato de desapropriação os
procedimentos formais – por outro, era a experiência vivida. E os dois precisavam ser
explicados, os dois encontravam-se codificados. Uma coisa se contava explicitamente, a
outra, como um favor com o qual os funcionários me presenteavam (informalmente).
A Procuradoria é outro dos espaços centrais nos processos de desapropriação. Como
foi assinalado acima, desempenha-se na etapa de “análise técnica e jurídica”, elabora
pareceres; no transcurso final, deposita os valores da terra em desapropriação (TDA e
dinheiro) destinados à indenização do proprietário. A Procuradoria “é consultiva, oferece um
apoio jurídico, controla a legalidade dos atos no processo de desapropriação” (examina as
notificações, as certidões, entre outras revisões) etc. Estas foram algumas das ações
mencionadas pelos procuradores a respeito de sua atividade.
A localização do processo do acampamento estudado foi o critério principal que me
conduziu àquele setor. A existência administrativa de Cachoeira desenvolve-se no conjunto de
processos de desapropriação que configura o caso da Usina Açude. Considero pertinente fazer
aqui um parêntese para mencionar brevemente esse conjunto de processos, com o fim de
situar administrativamente o engenho etnografado na presente dissertação.
Usina Açude. Quadro de engenhos e processos. Este é um documento obtido nos
arquivos da CPT. Conforme comentou comigo uma trabalhadora da Comissão, ele foi
adquirido no INCRA. Ali são enumerados os engenhos da Usina, a área ocupada por cada um,
os números de seus respectivos “processos administrativos” de desapropriação e algumas
“informações”. São seis grupos de “processos administrativos”. No Grupo I”, encontram-se
Goitá e Cachoeira. No “Grupo II”, Cana Crioula/Floresta, Taborda e Cavalo do Cão. No
“Grupo III”, Rio Claro, Açucareiro . No “Grupo IV”, Trindade, Montes Claros. Em seguida, o
engenho Ponte é localizado sem nenhuma “informação” sobre seu respectivo processo. No
“Grupo V”, Brejo Açude, Privilegio, Laurentino, Carcará, Terra Verde, Mata Seca. E no
“Grupo VI”, Baixa do Rio e Esperança. Detendo-me em Cachoeira, eu me certifico que
naquilo que se refere ao processo administrativo “houve a exclusão do engenho Cachoeira sob
a justificativa de haver adjudicações e a formação de um condomínio”.
Em outro texto, “Demonstrativo de imóveis rurais cadastrados/ vistoriados nos
períodos de 30/11 a 04/12, 07/12 a 11/12, 21/12 a 24/12/98, 23/3 a 26/03/99 e 14/04 a
16/04/9”, datado de 26/05/99 (o agrupamento assinalado no parágrafo anterior pertence a um
documento mais recente), também proveniente do INCRA,
58
são adicionados engenhos e o
seu agrupamento difere daquele que se apresenta no texto anterior. Temos, em primeiro lugar,
os que pertencem à Empresa Cunha Silva Ind. e Com. S/A, os quais se dividem em sete
grupos: I. Imóvel “Engenho Brejo Açude e Outros”, onde se incluem os engenhos Brejo
Açude, Laurentino, Carcará, Terra Verde, Privilegio e parte de Mata Seca. II “Engenho Mata
Seca e outros”, composto por parte de Mata Seca, Esperança, Baixa do Rio. III “Engenho
Taborda e outros”, do qual participam os engenhos Taborda, Goitá e Cachoeira. IV “Engenho
Cavalo do Cão e outros”, aqui aparecendo Cavalo do Cão, Floresta e Cana Crioula. V
“Engenho Trindade e Montes Claros”, integrado pelos dois engenhos do mesmo nome. VI
“Engenho Rio Claro e Açucareiro”, também formado pelos dois engenhos do mesmo nome.
VII “Engenho São João”. Em segundo lugar, aparecem os imóveis que pertencem à Empresa
Agropecuária Com. de Açude Ltda., havendo aqui o Engenho Remanso do Capibaribe e o
Engenho Ponte.
Este é o conjunto administrativo no qual se inclui Cachoeira. São esses os engenhos
ocupados pela CPT e pelo MST com fins de desapropriação. Ocorre uma variabilidade entre
uma e outra informação no que diz respeito ao agrupamento de alguns engenhos. No que
concerne à Cachoeira, visto que em um primeiro momento se agrupa com Taborda e Goitá,
logo se separa do primeiro, configurando um conjunto com Goitá.
O processo administrativo de desapropriação de Cachoeira estava na Procuradoria,
devendo ser imediatamente trabalhado por causa da “pressão” que há poucos dias tinham feito
os trabalhadores no instituto, palavras estas do procurador responsável pelo processo naquele
momento. O Engenho Cachoeira havia sido “excluído”, por um Comitê de Decisão Regional
do INCRA, em janeiro de 2001, do processo administrativo de desapropriação do qual fazia
parte, ficando no processo um dos dois engenhos (Goitá) que compunham o imóvel em
desapropriação.
59
Alguns dos acampados descreveram este fato mencionando que o processo
58
Adquiri este documento através dos arquivos da CPT; também me foi facilitado por um agrônomo do INCRA.
59
Ao quebrar em 1996, a Usina Açude tratou as dívidas trabalhistas que contraiu com os trabalhadores
(operários e moradores) através de “Cartas de Adjudicação”. Tais cartas outorgavam terras que, em sua grande
maioria, não respeitavam a “Fração Mínima de parcelamento” legalmente estabelecida. Esta fração é a "área
mínima que a lei permite desmembrar um imóvel rural, para constituição ou anexação de outro" (dado obtido de
uma Declaração emitida pelo INCRA); no caso do Município de Açude, a FMP corresponde a dois hectares. Foi
um acordo estabelecido entre a Usina e a direção daquela época do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Açude, registrado na Junta de Conciliação e Julgamento de Nossa Senhora da Mata. Além do tamanho das terras,
que impossibilitava seu registro como propriedade, a adjudicação não respeitou a organização espacial existente
estava “morto” na mesa dos procuradores, ou que tinha “sumido”. Eles comentaram que
tinham tomado conhecimento do fato recentemente, em 2006, no momento da imissão de
posse
60
do engenho que não tinha sido “excluído”/que não estava “morto-sumido”. A situação
coincidiu com a data de meu trabalho de campo, de maneira que poucos dias antes de meu
acesso ao processo havia acontecido no INCRA uma manifestação dos acampados e
assentados daquelas áreas.
Que a “pressão” dos trabalhadores colocou o processo novamente em circulação foi
fato assinalado por mais de um funcionário do INCRA que conversou comigo sobre o caso,
entre estes, os procuradores. O processo precisava ser submetido a uma leitura jurídica, uma
leitura cuja realização se encontrava sujeita ao momento disponível do funcionário que iria
analisá-lo (ele comentou ter a seu cargo grande quantidade de outros processos, e um tempo
curto para todo o trabalho que deveria realizar), e se encontrava sujeita também aos seus
critérios profissionais, que o fariam escolher uma entre as opções possíveis que a situação
apresentava. Realizar-se-ia ou não uma nova vistoria depois de passado tanto tempo? Isso,
que fora uma das discussões abordadas comigo pelos entrevistados, ficava submetido às
decisões dos funcionários: o que aconteceria e como se trabalharia o processo seria um
assunto a ser discutido entre funcionários de diversos setores da instituição, como a
Procuradoria, a Superintendência, a chefia da Divisão de Obtenção (não poderia completar a
lista por desconhecimento).
Ao perguntar se poderia participar da reunião (consulta feita a mais de um
funcionário),
61
uma das respostas assinalou que não seria nada novo o que ali encontraria: um
no momento. Acontecia então que os moradores de um engenho recebiam as terras cujo tamanho as tornavam
incapazes de sustentação não no lugar onde viviam, mas sim em outros engenhos. E essas terras que assim
recebiam não estavam delimitadas. Dessa maneira, na prática, as pessoas em geral analfabetas e confiando no
Sindicato assinaram as “Cartas de Adjudicação”, mas nunca receberam a parcela. A confusão e a mudança de
vida advindas de receber aquelas terras fizeram com que elas fossem “vendidas” – em troca de elementos, como
artigos elétricos para pessoas que se ofereciam para “comprar”; eram os “laranjas” (testas-de-ferro) da Usina,
segundo os informantes que me narraram a história. As “Cartas de Adjudicação” compradas eram logo
“irregularmente” registradas no cartório de Açude, e desmembradas do Engenho Cachoeira em nome de
particulares. Aconteceu, além disso, a superfaturação das terras adjudicadas nas Cartas; o valor que lhes era
outorgado para fins de indenização dos trabalhadores era maior que seu preço de mercado. As “irregularidades”
cometidas nesses contratos de trabalho foram excluídas do processo administrativo de desapropriação. O exame
dirigiu-se para a “complicação” que tais irregularidades traziam, complicação esta (“o grande número de co-
proprietários do imóvel Cachoeira) que se constituiu no argumento para excluir o Engenho Cachoeira do
processo. Apesar de determinar o curso da desapropriação, era o Ministério Público do Trabalho, conforme
indicado por alguns entrevistados, e não o INCRA, a entidade encarregada dos acordos de trabalho e das
anomalias que estes traziam com eles.
60
Quando o INCRA adquiriu o imóvel desapropriado.
61
Nunca participei de tal reunião, que iria realizar-se em uma data ainda não determinada, mas tampouco me
disseram de maneira direta que não poderia fazê-lo. Pelo contrário, todas as pessoas às quais pedi autorização
para “etnografar” aquela ocasião indicavam-me outra pessoa para que lhe perguntasse sobre o assunto. Assim,
rodei de pessoa em pessoa, quase ciclicamente, sem obter resposta clara de alguém que se fizesse responsável.
grupo querendo guiar-se por parâmetros legais, tentando seguir o curso “correto” do processo,
e outro seguindo critérios “sociais”, que conseguiam estorvar o procedimento. Essa
resposta foi dada por um procurador. O que os funcionários acreditam, o que os funcionários
opinam e o encontro dessas opiniões diversas tornam-se parte fundamental das decisões a
serem tomadas nos processos de desapropriação.
Na Procuradoria “se trabalha com papéis" e com critérios legais que controlam o curso
dos processos; os critérios “sociais” atrapalham o decorrer do procedimento estes foram
comentários dos procuradores com quem conversei. Isso era assinalado junto ao dado que
foram os trabalhadores que começaram a fazer “pressão” para retomar o processo, a par com
as discussões conduzidas pelas diversas opiniões institucionais que resolveriam a situação,
paralelamente às reuniões com outras pessoas, das quais os procuradores deviam participar,
junto à declaração da opinião pessoal a respeito de um assunto legalmente ambíguo.
Novamente um apelo a um procedimento formal-legal realizado em função de um saber
profissional, a par com o reconhecimento de um funcionamento institucional que excedia à
formalidade; novamente a admissão de um funcionamento que o é dito (porém é dito em
um tom informal, em um tom informal que supõe uma exceção, um favor oferecido);
novamente um discurso que funciona a partir de uma combinação contraditória.
Os procuradores e outros funcionários assinalaram o tom secreto que adquiriam os
processos. Segredo que aparecia de maneira ambígua: as conversas indicavam às vezes que
sua consulta era acessível para advogados, partes interessadas (como Movimentos e
proprietários), ou funcionários da instituição; outras vezes se dizia que eles podiam ser
consultados publicamente e eram as cópias que estavam proibidas. A norma a respeito não era
expressa claramente. Entretanto, a excepcionalidade de minha consulta fez com que eu
sentisse que o acesso ao processo era um favor. A idéia de favor ficou mais explícita com a
realização de cópias. Também a proibição era ambígua: indicaram-me que não era possível
fotocopiar algumas partes, partes estas que poderiam ser reproduzidas à mão; também me
disseram que não era possível fotocopiar nada (isso variou segundo os funcionários que
Meu pedido se fez “público” e ninguém se responsabilizou pela questão; como ficou a cargo de todos, caiu na
“burocracia”. Durante minha etnografia no INCRA fui ouvinte de várias manifestações de desacordo em relação
à “burocracia” que imperava na instituição. Entretanto, pareceu-me que a circulação burocrática não é uma
conseqüência não desejada, mas sim uma peça central na construção daquele mundo institucional, como o sugere
o exemplo anterior. Através da “burocracia”, a resposta a meu pedido alcançou duas metas: socializou-se, fez-se
de todos, ao mesmo tempo em que não se fez de ninguém. O fluir esconde, a circulação resguarda os
funcionários da instituição, elimina as responsabilidades pessoais, cria anônimos. Deste modo, a “burocracia”,
entendida neste sentido de uma circulação sem fim, colabora no “público” da instituição. E o público da
instituição é sua impessoalidade, seu ser de todos, enquanto não é de ninguém. No deixar correr, a instituição se
esconde, os funcionários se protegem.
comentavam sobre o fato comigo). Apesar da ambigüidade, as cópias que consegui fazer do
processo foram explicitamente cedidas como um favor.
Os funcionários de Obtenção, Procuradoria e outros setores me falavam de questões
secretas, codificadas. Tanto no vivido como no trabalho institucional. Os processos eram
“secretos”, os procedimentos eram “técnicos” (acessíveis à compreensão a partir da detenção
de certo saber a respeito); o saber sobre a instituição se aprendia na prática, aprendizagem
prática que não se encontrava formalizada (como o exemplificam as situações nas quais se
destacavam os mais velhos para conversar, ou a grande quantidade de funcionários que
desejava explicar-me o funcionamento da instituição) e que nem sempre podia ser gravada. A
vivência e o funcionamento cotidiano o se mostravam de forma explícita, sua aclaração
funcionava como um oferecimento com o qual os funcionários me presenteavam. Se a
desapropriação é “técnica” (e legal), e o saber sobre ela diz respeito aos “técnicos” (e aos
advogados), a desapropriação pertence também a certo funcionamento institucional, e o saber
sobre tal funcionamento corresponde aos funcionários da instituição. o monopólio do
saber e a exclusão de quem não detém aquele saber. Um limite se abre. O conhecimento dos
“códigos” legais, técnicos e administrativos torna-se altamente valorizado.
Ao perguntar sobre formalidades e exatidões dos processos, embora existissem
referências a leis, a arquivos de Internet, entre outras documentações, apresentava-se, como já
assinalado, uma tendência a quererem me explicar aquelas formalidades. Vários funcionários
consideravam que eu perderia tempo lendo as normas ou consultando os processos, repletos
de linguagens técnicas, codificados, secretos. “Está entendendo o processo?”; “Está cheio de
questões técnicas, não acredito que te sirva muito”; “Por que escolheu um processo tão
complicado?”. Estas eram frases repetidas que opinavam sobre a minha atitude de tentar
entender sobre leis e processos de desapropriação, ou de ler o processo sem ser nem “parte
interessada”, nem advogada. Era necessário aprender uma linguagem para compreendê-los e
existia uma disposição dos funcionários em me explicarem isso. A atitude que preponderava
era a de explicação. Nela, valorizava-se uma linguagem informal para falar de um trabalho
técnico, formal. A imposição da informalidade negava o acesso à formalidade, e a
formalidade era a linguagem decisiva, uma linguagem monopolizada do saber profissional,
uma linguagem codificada, uma linguagem que servia para excluir quem não o detivesse.
A linguagem que se deveria aprender não correspondia unicamente à
profissionalização dos processos, à ênfase em seu caráter técnico, acessível apenas a quem o
entende, mas também ao saber alcançado pelo trabalho na instituição, ao saber institucional
(não profissional). Como foi assinalado acima, a norma atualizava-se na experiência, os
funcionários da instituição valorizavam um saber que excedia às leituras das regras
institucionais. Surgia uma instituição vívida, uma administração local. Foi difícil para mim
acessar as normas exatas e escritas porque, mais que me indicar a sua localização (que
geralmente se ignorava), os funcionários se ofereciam para explicá-las para mim. Eles
achavam mais conveniente me expor o funcionamento da instituição quanto à sua vivência
cotidiana, aos seus problemas diários, aos anos de trabalho transcorridos do que em relação às
normas acessíveis pela Internet. Eles detinham um saber que ia mais além, assim como
detinham a decisão de expressá-lo. O fato de que vários funcionários distinguissem os mais
antigos para que me contarem a respeito de sua experiência diz bastante sobre esta questão.
Se, por um lado, a ênfase na qualificação técnica dos processos de desapropriação
nega o conflito, por outro, permite reafirmar o monopólio do conhecimento. Opera uma
estratégia de poder dentro da instituição que possibilita estabelecer um limite entre quem sabe
o código do setor e quem não e, mais além da instituição, entre quem sabe o código da
instituição e quem não.
O saber codificado permite introduzir um limite entre a instituição e o exterior. Abre-
se uma linha demarcatória e esta linha supõe linguagens, códigos, mundos diferentes. A esse
respeito, a instituição alimenta-se de rituais. Assim, por exemplo, a presença policial nas
portas de entrada para a Superintendência do INCRA (assim como em outras entidades
oficiais), tanto no acesso principal como na entrada dos diversos edifícios, e a necessidade de
identificação que tal presença gera nas pessoas que ali ingressam é um ritual que fala sobre os
limites colocados pela instituição, um limite que demarca claramente o dentro e o fora. A
entrada para aquele espaço requer uma apresentação que respeite o código institucional (a
identificação deve ter certas características, precisa de certas formalidades que se ajustem às
normas da instituição). Outro exemplo pode ser observado quanto à minha entrada
etnográfica, embora meu caso tenha sido excepcional, que meu ingresso foi realizado junto
a uma funcionária da instituição, não evitou, entretanto, a necessidade de que esta pessoa me
apresentasse aos policiais, indicando minhas futuras visitas ao lugar, além de ter precisado eu
mesma identificar-me posteriormente nos primeiros dias de campo. Também me foi sugerida
uma apresentação formal à Superintendente da instituição, ocasião em que aproveitei para
deixar ali minha credencial de pós-graduanda em situação de pesquisa de campo, credencial
de outra instituição à qual eu estava ligada. A Superintendência era um espaço por onde eu
deveria passar, onde deveria me apresentar formalmente, era um centro. Era também indicado
como um lugar onde se estabelecia uma relação com o “mundo externo”.
O limite não opera unicamente em relação ao que é externo à instituição, mas também
demarca hierarquias entre setores. O monopólio do saber institucional, e/ou profissional,
permite a delimitação de um exterior, assim como uma demarcação intra-institucional. O
trabalho de desapropriação é baseado em papéis (Procuradoria) ou em procedimentos técnicos
(setor de Obtenção), em experiências obtidas nos anos de trabalho etc. O saber profissional e
o ofício adquirido geram disputas e uma defesa constante dos funcionários dos diversos
setores a respeito de sua atividade.
A comunicação defeituosa entre as seções da instituição, a indicação de que, para ser
realizada, a tarefa de um setor não leva em conta a tarefa dos outros foi um ponto repetido nas
conversas com os funcionários. “Já foi pior”, “aborrece” foram palavras usadas para
descrever a relação entre os diversos espaços. Um procurador comentou que outros
funcionários não os consultam, o que apenas conseguia obstaculizar os procedimentos: cedo
ou tarde se precisaria da assessoria legal, o seu saber era imprescindível. A necessidade
institucional de seu saber colocava-os em uma posição de poder; talvez por isso outros
funcionários, ao se referirem aos procuradores, assinalassem criticamente seu papel
institucional de “elite”. Alguns não-procuradores indicaram a demora da Procuradoria em dar
resposta à sua consulta, e a necessidade de obterem informação por outros meios ou
procurarem caminhos alternativos de solução. A exigência do saber profissional dos
procuradores incomodava. A ausência de respostas foi uma crítica estendida também ao setor
de Obtenção, ao seu conhecimento fundamental que se escondia.
Destacaram também aqueles funcionários que sublinhavam sua posição mencionando
a amplitude de suas tarefas, as quais, diziam, abrangiam as dos vários setores
compartimentados. Eles se mostravam depositários de um saber que lhes permitia realizar a
tarefa de qualquer funcionário, sem precisarem de uma formação profissional específica. Sem
precisarem, por exemplo, do conhecimento legal dos advogados, que a experiência no
cargo os tinha dotado das ferramentas necessárias para cumprirem o seu trabalho.
No caso da Ouvidoria, este era o lugar por excelência que me era indicado quando eu
perguntava sobre acampados, conflitos, pessoas, situações no “espaço exterior”, como foi
demarcado. São as pessoas da Ouvidoria aquelas que se encarregam de “conflitos”, as que
conhecem os acampados, as que entram em relação com “o social”. Entretanto, em referência
aos processos desapropriatórios, ela não é vista como uma peça importante pelos agrônomos e
pelos procuradores, os quais manifestaram o seu desconhecimento a respeito das funções
realizadas neste setor. Um desconhecimento que marcava uma hierarquia. A Ouvidoria foi
considerada um espaço “à parte”, não importava o que ali se realizava.
Uma Procuradoria trabalhando com “papéis” e um setor de Obtenção trabalhando com
“procedimentos técnicos”, além disso, funcionários possuindo um saber administrativo
altamente valorizado. Trabalhos codificados, saberes profissionais. E a Ouvidoria propondo
uma idéia de ponte, de elo entre a instituição e os trabalhadores. O conflito de terras é negado
no processo de desapropriação e assumido na Ouvidoria. Esta assunção supõe o encontro da
instituição com o conflito, um conflito que se encontra externo à entidade, espaço onde se
trabalha com um processo de desapropriação sujeito a saberes profissionais e administrativos.
A assunção do conflito, que implica a presença da Ouvidoria, gera um encontro entre lógicas
diferentes de pensá-lo, de demarcá-lo, de tratá-lo encontro que se torna parte do mesmo
conflito de terras.
Com a chegada dos Movimentos, chegam os conflitos, que devem ser resolvidos a
partir do saber institucional. Nos ideais organizacionais, setores como a Ouvidoria (e outros,
como a Sala do Cidadão,
62
por exemplo) são os espaços encarregados da aproximação com as
pessoas que não trabalham na instituição.
Entretanto, na etnografia, revelaram-se contatos de funcionários associados à Divisão
de Obtenção ou de procuradores cujo trabalho formal não contempla tais aproximações
com os acampados e os assentados (e os integrantes dos Movimentos) que iam à instituição. O
fato, em certas ocasiões, ficava associado à queixa dos funcionários a esse respeito,
assinalando que “não tempo” para tais situações, que não é isto o que seu trabalho
contempla. Isto mostra uma indiferença de “os de fora” para com as regras da instituição;
regras que têm sentido unicamente naquele espaço, instituição que se encarrega de uma
questão central para a vida não-institucional dos “externos” (refiro-me aqui aos acampados).
Os Movimentos dirigiam-se ao INCRA para falar com quem sabia, com quem podia lhes dar
uma resposta em relação ao processo de desapropriação, tentavam a exposição, a socialização
do processo administrativo que a instituição pública pretendia restringir a linguagens próprias.
Os acampados e outros integrantes do Movimento dirigiam-se aos setores responsáveis pelo
processo pelo qual estavam interessados, aos setores nos quais encontrariam alguma resposta;
desafiavam a apropriação institucional-profissional do processo, tentavam expandi-lo, colocá-
lo como a expressão administrativa de um conflito de terra que excedia os marcos
institucionais.
62
“Gerenciar as atividades de atendimento ao cidadão” encontra-se entre as funções dos que se ocupam deste
setor. Regimento Interno do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Capítulo III. Seção
V. Art. 103. DOU 20/10/06.
O conflito é disputado. Uns o desvalorizam, outros o reafirmam. Acontece uma
dinâmica de encontro de linguagens, visões e modos de ação diversos. Combate-se o acesso
ao processo de desapropriação. Em torno dele a instituição gera um discurso que nega o
conflito e realça um saber profissional e institucional. O processo apresenta-se como técnico e
acessível para quem sabe seus segredos. A instituição coloca um muro, outorga-se poder. A
entrada que os Movimentos podem ter em relação ao processo limita-se à ação de informar-se
sobre seu andamento, de fazer pressão. Isto gera conflitos; os limites não são respeitados
pelos Movimentos, que criticam o monopólio do conhecimento. Visualiza-se uma indiferença
de “os de fora” para com as normas da instituição. Acontece também um desconhecimento da
instituição em relação a eles.
Neste último sentido, observou-se ao longo deste capítulo que os funcionários falam
de um processo institucional, de um saber e de um ofício que excluem aqueles que não o
possuem. A esse respeito, o acampado, os conflitos por terra, a oposição em relação aos
proprietários perdem importância. Acontece uma neutralização institucional da
desapropriação de terras. O acampado é colocado como um terceiro incapaz de decidir sobre o
curso do procedimento técnico-legal. Inventa-se um sujeito passivo, ignorante de um saber-
fazer institucionalizado. Embora se reconheça que esta figura é quem, na maioria dos casos,
inicia os processos, sua capacidade de modificação e decisão limitam-se àquele movimento de
partida e à ação de “pressão”, alheia ao processo administrativo decisório. A pressão é
visualizada não no movimento constante que eles realizam no acampamento, mas sim na sua
ida à instituição. É a ação de exposição na instituição. “Mover-se”, não ser passivo, aos olhos
institucionais é deslocar-se até a entidade, é o movimento que exige uma resposta de acordo
com os parâmetros administrativos, que exige o andamento do processo técnico-legal de
desapropriação, este último a cargo dos funcionários. Deste modo, para fazer-se ver (ou “fazer
pressão”), os acampados devem transportar-se espacialmente a esse mundo relacionado à
tomada de decisões administrativas, que se encontra em um espaço da capital do estado (ou
manifestar-se na forma de cortes de estrada, “caminhadas”, etc.). O acampamento, a
mobilidade diária em um espaço que não é o institucional, apresenta uma ausência de registro
por parte dos funcionários encarregados da desapropriação (agrônomos e procuradores). A
mobilidade que os funcionários reconhecem como pressão é a que se formaliza segundo os
seus parâmetros, a que se translada para a sua sede, a que se faz na instituição, a que pede
explicações e reclama a circulação do processo. Em poucas palavras, a que reafirma a
importância da instituição.
O percurso por alguns espaços da Superintendência de Recife mostrou-me um conflito
de terras que se profissionaliza e se institucionaliza. A institucionalização o nega e o torna
dependente da administração, do saber profissional/administrativo. Reafirma-se um saber-
fazer que é o da instituição, diminuindo a importância do que fica “fora”. A partir da
potenciação do conhecimento e da sinalização de seu monopólio, opera-se uma estratégia de
apropriação do conflito, uma estratégia de poder. Na instituição, o que se trata é de levar
adiante processos de desapropriação não acessíveis ao público, “só para entendidos”, um
processo monopolizado através do saber administrativo/profissional, dependente mais de tal
saber do que dos conflitos sociais que excedem a ele. A linguagem por excelência é a da
instituição. É a partir daqui que se desenvolvem as comunicações com os externos (como
Movimentos sociais, acampados, assentados). Isto gera uma disputa. O conflito não se
encontra definido da mesma maneira para uns e para outros (questão que irá sendo vista ao
longo da dissertação). A necessidade de acomodar as linguagens às finalidades de obtenção
das propriedades abre uma disputa pela definição do conflito de terras que se torna parte deste
último. O conflito de terras incorpora, assim, a luta pela imposição de linguagens, visões e
práticas.
Capítulo II
O CONFLITO VIVIDO
O acampamento Cachoeira é um dos 21 engenhos
63
pertencentes ao conjunto de
imóveis da Usina Açude, os quais têm existência jurídico-administrativa nos processos de
desapropriação de terras. Não me referirei a essa existência burocrática nesta parte do
trabalho. Pretendo aqui realizar um acesso ao acampamento a partir das pessoas que ali vivem
ou viveram.
São moradores
64
e sem-terra que convivem em Cachoeira. Nas relações cotidianas,
esta classificação não tem grande importância; não existe um padrão de organização social
que estabeleça uma diferenciação entre uns e outros. Entretanto, tal categorização encontra-se
presente nos discursos. Assim, são os moradores os personagens antigos do lugar, os mais
autorizados para me narrarem sua história, os depositários de um saber vivido em relação
àquele espaço que os outros habitantes do acampamento não detêm. Não apenas para mim
foram contadas as suas histórias sobre Cachoeira, mas também para os sem-terra, os
habitantes recentes da região. Por outro lado, a classificação em questão adquire na burocracia
uma importância pragmática: os moradores têm preferência na hora de receber as terras do
63
O impulso inicial das Usinas em Pernambuco aconteceu nas duas últimas décadas do século XIX (Andrade,
1998). “O açúcar bruto, de inferior qualidade, produzido pelos engenhos bangüês, não podia competir no
mercado internacional e muitos proprietários vinham procurando, desde 1870, aperfeiçoar as suas instalações
industriais a fim de produzir um açúcar de melhor qualidade. Daí surgiu a usina, que consistia na instalação da
moderna fábrica de açúcar em terras do antigo bangüê e às custas do seu proprietário; quase sempre de
proprietário mais rico, às vezes possuidor de vários engenhos […]” (Andrade, 1998:101). Começavam assim a
ser instaladas as Usinas e a desaparecer os engenhos bangüês, nos quais a cana era plantada e moída. Uma
descrição desse processo de transformação pode ser vista em José Lins do Rego, em Bangüê. As relações
familiares que se constroem nas novelas deste autor e as mudanças que elas sinalizam em associação às
transformações experimentadas na produção da cana são analisadas por J.S.L. Lopes (1977). A respeito da
categoria de engenho, Palmeira assinala a continuidade que teve o termo, na Zona da Mata pernambucana “para
designar as propriedades plantadoras de cana, mesmo após o desaparecimento dos bangüês. No presente, este
termo diz respeito então às propriedades dos fornecedores e das usinas (Palmeira, 1971:21).
64
Os moradores constituíam a principal força de trabalho utilizada na produção de cana nos Engenhos da Zona
da Mata de Pernambuco – onde recebiam casa e uma porção de terra para cultivar produtos de subsistência, além
de criarem animais no período que se estende da Abolição da escravidão até meados de 1950, momento em
que começa a sua expulsão dos engenhos (Sigaud, 1979). "Morar significa ligar-se a um engenho e ligar-se de
uma maneira muito particular" (Palmeira, 1976:104). O autor analisa com detalhe as formas que adquiria tal
ligação já desaparecida. Apesar do que foi dito antes, a categoria de morador continua vigente entre os
trabalhadores rurais e outros “personagens de seu mundo social” (Palmeira, 1976). As condições de produção
que implicava o sistema de morada “significam uma forma de dominação especifica, sofrida e interiorizada pelos
trabalhadores, em nome da qual mas não necessariamente pela qual denunciam a ilegitimidade das formas
novas mas não necessariamente mais suaves de submissão aos patrões que, em muitos casos, são os de
sempre” (:13). A vigência da categoria expressa mais que um mero “resíduo” de relações passadas (Palmeira,
1976).
“assentamento”,
65
tal ordem de prefencia é conhecida pelos acampados e me foi assinalada
mais de uma vez.
A classificação entre moradores e sem-terra não é permanente, existe em certas
situações, delimita ambiguamente. Ela surge quando se recorda o passado; a história a
configura. Surge também em relação ao âmbito jurídico, que categoriza as pessoas em uma
ordem de preferência para que as terras (geralmente escassas em proporção à quantidade de
pessoas interessadas) sejam distribuídas. A vida cotidiana, as relações do dia-a-dia
prescindem dela. Não existe atualmente um padrão de organização no acampamento que
estabeleça uma linha divisória entre moradores e sem-terra. Entretanto, tal linha foi delineada
na fase inicial do acampamento. Dessa forma, considero pertinente mergulhar aqui em uma
retrospectiva para “diacronizar” o relato.
O acampamento começou com a chegada dos sem-terra.
66
Em geral, sem clareza a
respeito das datas estabelecidas no calendário exceção do relato de um dos ex-acampados
que me narrou a história da “ocupação”) o que contrasta com a exatidão que se apresenta
nas documentações
67
algumas pessoas que viveram a história (moradores e acampados)
contaram-me sobre esse episódio-chave para a história do lugar. Tinha chovido, era uma
madrugada de barro e caminhada. Um novo começo. A terra, o futuro lar, devia ser
conquistada.
Chegamos lá, fomos acampar, logo na chegada o caminhão não queria
subir, o caminhão que levava as coisas da gente; tinha uma parte que não
dava mais para o ônibus ir, aí tinha que ir, deixar o ônibus e pegar o
caminhão e seguir em frente; tinha chovido e tinha um lugar (com ladeira),
68
o caminho ficou deslizando, não dava para subir a ladeira, a gente empurrou
o caminhão para lá, para o lugar de fazer o acampamento, e a gente fez o
acampamento (Zezé).
69
65
Assim estabelece o Estatuto da Terra (Título II. Capítulo II. Art. 25) e a Lei 8.629/93 (Art. 19). Embora sua
situação se encontre contemplada, morador não é uma categoria oficial, de maneira que esta palavra não é a que
figura nos mencionados escritos.
66
Sobre acampamentos de sem-terra em Pernambuco minha investigação abrangeu os trabalhos de Sigaud, 2000,
2005; Chamorro Smircic, 2000 e Sigaud e L’Estoile (orgs.) 2006.
67
Em um comunicado à imprensa, por exemplo, a CPT expressa: “Hoje, 31.08.99, 65 famílias de sem-terra e
sem emprego ocuparam os engenhos Cachoeira (350ha) e o Engenho Goitá (500ha.)”. Em geral, nos relatos dos
acampados e dos moradores, os dados cronológicos não ocupam um importante lugar, nem tampouco se
encontram claramente definidos.
68
As palavras que, nas entrevistas, aparecem entre parênteses são aquelas que não ficaram suficientemente claras
na audição e na transcrição da entrevista. As que figuram entre colchetes são elucidações próprias.
69
Zezé é um ex-acampado de Cachoeira que participou da ocupação e permaneceu no acampamento por alguns
anos. Conforme me contou, teve que ir embora do acampamento na época posterior ao despejo, por causa das
ameaças feitas a ele. Atualmente está vivendo em um assentamento próximo à cidade de Açude.
Foi através do contato com a Comissão Pastoral da Terra que aquelas pessoas
realizaram a ocupação. Conforme o narrado por Zezé, uma freira da Paróquia de Itaperuna foi
o elo entre o Movimento e as pessoas que iriam acampar. Estas últimas trabalhavam nas terras
da Usina São Joaquim. O pequeno tamanho daquelas terras impediria sua desapropriação: a
proposta da CPT foi então o engenho da Usina Açude. Zezé compartilhou da idéia, não queria
mais “ser mandado”. Deste modo, ao lhe perguntar sobre sua decisão de acampar, ele
comentou:
A gente plantava numa área em Itaperuna que era da Usina São Joaquim,
foi o pessoal da Usina São Joaquim e botou herbicida no roçado da gente,
o veneno que mata as plantas. Daí a gente começou querer brigar por aquele
terreno; foi quando a gente conheceu a CPT. A CPT foi olhar a área, viu que
era pequena (...) e disseram: olha, tem outra área, se vocês quiserem ir... Eu
trabalhava de vigilante em Itaperuna (…) morava na cidade mesmo, (...)
daí eu comecei pensar melhor: se eu for me acampar, vou trabalhar para
mim, não vou ser mandado, nem vou mandar em ninguém. (...) Eu vou
embora, (...) vou me acampar, vou ser sem-terra, que eu sou sem-terra, eu
não tenho nada, (...) eu quero ir para um lugar meu.
(...).
MFF
*
: E como conheceu a CPT?
Zezé: Foi através da Irmã Margarete, era freira de lá, tomava conta da
paróquia de Itaperuna. (…) Aí chamou a CPT para uma palestra com a
gente. (...) Eu estava decidido a trabalhar na terra, porque meus avós
todinhos foram do campo, a minha avó morava em Goitá, ali perto de
Cachoeira.
Aproximadamente 60 pessoas chegaram ao lugar, uma parte vinda de Itaperuna
ponto de partida da ocupação e outra, de Ibiaçu. Além de alguns trabalhadores da CPT, o
resto das 60 pessoas provinha de outras regiões de acampamentos, como os engenhos
Esperança, Baixa do Rio, Paisagem, Montes Claros; elas seriam o “apoio” para os futuros
acampados na ocupação e durante os primeiros dias de sua realização. Desde o seu começo o
acampamento manteve relações recíprocas com outros acampamentos.
Quando a gente saiu da Igreja, foi para o ônibus para ir embora, de a
gente foi para Ibiaçu para pegar outro pessoal, (...) aí viemos pegar as
pessoas que davam apoio, porque a gente nunca tinha participado de
acampamento, né? (...) Porque toda ocupação que a gente vai a gente leva
uma pessoa que sabe, que participou de acampamentos. (...) a gente
passa dez dias ensinando aquelas pessoas; (...) depois de dez dias a gente
começa a sair devagarzinho: (...) saem dois, vão embora, (...) depois vão
mais dois. (...) Aí pegamos apoio, (...) o pessoal que já era acampado vizinho
foi nos dar apoio, (...) porque a gente trabalha assim, (...) um com outro,
né? Porque se for isolado, ninguém tem nada (Zezé).
*
A sigla refere-se às iniciais de meu nome.
O “apoio” foi indo embora e também a maioria das pessoas que acamparia de maneira
mais permanente. Zezé me contou que ficaram unicamente três acampados naqueles tempos
iniciais, os outros tinham “desistido”. Logo se somaram pessoas da Paraíba que chegaram
através de um integrante da CPT que já havia conversado com elas.
Zezé: Com todos dava umas 60 pessoas lá, por causa do apoio (...). a
gente começou a se organizar e foi embora uma parte dos nossos que foi
com a gente para ficar acampado. (...) Alguns dias depois, (...) ficaram
três pessoas.
MFF: E por que os outros foram embora?
Zezé: Desistiram da terra, (...) aí começamos convidar os moradores (...) e os
moradores começaram nos ajudar também. Chegou o Jurandir e começou
conversar com o pessoal da Paraíba, (...) chegou uma equipe de gente de
lá para acampar também.
Uma força na luta estabelecida pelos moradores, um apoio nas situações adversas que
estavam atravessando: esta foi a opinião geral entre as pessoas com as quais falei a respeito da
chegada dos sem-terra ao engenho, embora houvesse também comentários referentes ao
“medo” e à desconfiança que alguns moradores experimentaram diante dessa chegada. Os
indícios indicam uma cifra aproximada de 20 moradores vivendo no engenho naquela época.
Alguns episódios, como a derrubada da cerca e as cestas básicas entregues pelo INCRA,
70
além da realização de reuniões, contribuíram para uma aproximação entre os dois grupos.
quando a Usina faliu, os sem-terra vieram para aqui; os moradores todos
se ajuntaram com sem-terra. Isso aqui estava tudo cercado, a gente se
reuniu e botou abaixo (Osvaldo).
71
Porque ele [um fazendeiro vizinho que cercava as terras onde viviam os
moradores] queria expulsar a gente assim, né? Eu comprei tanto aqui! (...) E
os trabalhadores sofrendo, sofrendo, era uma crise, triste (...) foi muita
pressão. (...) Teve uma força da CPT, foi uma força desse povo que vem de
fora. (...) Ele dá uma força pra gente; a gente fica mais animado, porque todo
mundo faz muita força, mas a gente tem que ter outra força (Dionísio).
72
Quando eles chegaram tava [refere-se à cerca colocada pelo fazendeiro].
se juntou com os moradores e (...) "torou" todinho o arame, derrubou
cerca, estaca, tudo, foi. Porque, quando eles chegaram, estava tudo
70
O INCRA enviava mensalmente Cestas Básicas aos acampamentos; elas eram compostas de mantimentos.
71
Osvaldo, de 21 anos, neto de Dorival e Amaro, é/foi um morador de Cachoeira. Nasceu em um Engenho
vizinho e mudou-se para o lugar em questão nos primeiros anos de sua vida.
72
Dionísio é um ex-morador de Cachoeira. Foram 35 anos de moradia no Engenho, ao qual chegou em 1963.
Atualmente é “assentado” em Goitá.
cercado; o morador não podia fazer nada e o que fosse fazer, botava a polícia
e matava (Dorival).
73
Muitos ficaram com medo da gente, mas a gente sempre fazia reunião, (...)
dizia o nosso objetivo e dizia como é que a gente ia lutar, porque a gente
chega numa terra e tem morador. pronto, (...) quando for dividir quem
primeiro vai ganhar as parcelas são os moradores. (...) A gente dizia isso
sempre para eles, para poderem confiar na gente, né? (...) A gente que estava
lá não era para tomar nada deles, era para ajudar; (...) eu ia nas portas
conversar com eles, pegava os nomes deles para fazer o cadastramento no
INCRA, até para ganhar a cesta básica. (...) Chegou a cesta básica e (saímos)
dividindo, dividindo nas portas: aqui é a sua, aqui é a sua (Zezé).
Situações adversas: a falência da Usina, a derrubada do engenho, sua divisão em
Cartas de Adjudicação.
74
As cercas e o fazendeiro vizinho que as colocava eram uma
materialização daqueles processos, uma das situações mais destacadas nos discursos dos
protagonistas da história, sobretudo dos moradores. “Eu comprei estas terras” era o argumento
do fazendeiro, que assim justificava a sua ação de alambrar, ameaçando com a perda de seus
espaços as pessoas que ali viveram longos anos de sua vida. O enfrentamento em relação ao
arame e às estacas que começaram a invadir suas casas, seus roçados e cacimbas foi, para os
antigos habitantes, central na constituição da história de Cachoeira. Uma guerra que requereu
várias batalhas. A vitória foi conjunta, sem-terra (não apenas de Cachoeira) e moradores
conseguiram que “o vento levasse as cercas” – foi necessário mais de um sopro.
Dionísio: Esse terreno passava aqui, ele comprou esse; esse daqui ele não
comprou. (...) Ali na frente tinha outro, aquele da frente vendia (...) e assim
ele queria tomar tudo, né? Aqui as crianças não iam mais para a escola, tava
tudo cercado.
(...)
Zé Manuel:
75
Ele fechou o caminho.
(...)
Dionísio: Se passasse por debaixo da cerca, se ele pegasse, ele levava; (...) a
lavagem de roupa ninguém podia nem lavar. (...) Fui para a delegacia, (...)
dei parte dele, a CPT de lado foi nessa confusão. Foi quando ele falou que eu
ia comer esse metro de arame. (…) Aí que o vento carregou a cerca dele.
(...)
MFF: E como foi que a cerca se acabou?
Dionísio: O vento levou [risadas]. (...) A gente precisava trabalhar a terra, e
outros de fora (...) queriam ficar com o terreno. (...) Se o vento não levava, a
gente não tinha (roçado) para trabalhar. (...) A cerca (...) acabou, as estacas
73
Dorival é/foi um morador de Cachoeira; faz 18 anos que vive ali. Tem 59 anos.
74
As Cartas de Adjudicação significavam uma outorga de terras destinada ao pagamento das dívidas trabalhistas
que a Usina Açude tinha com seus trabalhadores. Os acordos foram realizados na Junta de Conciliação e
Julgamento de Nossa Senhora da Mata entre os dirigentes do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Açude
daquela época e a Usina. Os moradores e os trabalhadores não participaram do acordo.
75
Manuel foi morador de Cachoeira e atualmente é assentado em Goitá. Sua saída de Cachoeira aconteceu
quando mataram Amaro, seu pai.
foram queimadas, cozinhávamos feijão com estacas, (...) a gente (ficou) com
o terreno, que era da gente.
(...).
Zé Manuel: Ele desistiu, ele não agüentou a pressão da gente, não.
Sem indenização, sem trabalho, no meio de uma “confusão” de terras a serem
recebidas em outros engenhos, com oferta de “compras” das terras adjudicadas e com um
arame atravessando suas casas, estas eram as circunstâncias. As Cartas de Adjudicação
falavam de terras de certo modo inexistentes, já que, em geral, estavam distantes de Cachoeira
– em um engenho da Usina Açude que não era o habitado – e não se encontravam delimitadas
(esta situação não era privativa de Cachoeira, ocorreu também nos outros engenhos da Usina).
Eram, além disso, de um tamanho menor do que o espaço que tinham em seu local de
“moradia”, dimensão insuficiente para o sustento das famílias. nimas e longínquas porções
de terra unicamente materializadas no papel. Ninguém sabia muito bem do que se tratava essa
adjudicação. Foi assim que alguns moradores venderam as Cartas recebidas a pessoas que
chegavam desejando “comprar” (conforme me contaram Zezé e alguns trabalhadores da CPT,
as “compras” eram permutas das terras por elementos como liquidificadores, buas de passar
roupa, camas etc.). Essas “compras” (como também as adjudicações) agiam em detrimento
dos antigos sítios dos moradores (já que aqueles sítios haviam sido fragmentados em virtude
das novas “adjudicações” de terra, de modo que, ao vender uma Carta, vendiam-se as porções
do sítio ou dos sítios que correspondiam a essa Carta, dividindo-o(s); ocorria, além disso,
que o possuidor do sítio e o possuidor da Carta que correspondia às frações desse sítio não
eram a mesma pessoa, que as terras adjudicadas pertenciam a uma propriedade diferente da
propriedade onde se “morava”). Esta era a situação vivida. Os acordos na Junta de
Conciliação e Julgamento de Nossa Senhora da Mata geravam aquele caos entre os antigos
moradores do engenho. Sua vida desmoronava.
O engenho que a gente morava era Cachoeira. Ele [referindo-se ao
fazendeiro que colocava as cercas] partiu Cachoeira (...), cabra de
Cachoeira tinha terra em São João, cabra de Cachoeira tinha terra em
Esperança, cabra de Cachoeira tinha sítio, tinha terra em Cavalo do Cão.
ninguém sabia onde era sua terra (...), não tinha terra para a gente. (...) A
gente foi muitas vezes para a Usina (...), quis ajeitar a terra para ficar todo
num canto só. (...) [A Usina devia] a indenização, salário, férias, feriado. Aí,
pronto, (ela dava somente) duas quadras,
76
três, quatro, a maior era cinco,
seis, pronto (Dionísio).
76
“Hoje, os trabalhos são feitos por empreitada, e pagos nas limpas à base da ‘quadra’ ou da ‘tarefa’, que variam
um pouco de uma área para outra. Na Paraíba e no norte de Pernambuco, uma quadra oscila entre um quadro,
com cerca de dez até treze metros de cada lado, conforme o mato esteja maior ou menor” (Andrade, 1998:122).
Sabendo que o cara tinha ganhado as terras, ele [o fazendeiro] começou
comprando muito. O morador não tinha serviço para trabalhar, passava
fome, aí ele comprava as quadras a 500 reais (...) e muitos moradores
vendiam; meu irmão ganhou sete quadras naquele (canto) ali, mas não
vendeu (Dorival).
Teve morador [em Cachoeira] que teve que abrir a janela para a medição
passar por dentro da casa dele; a casa ficava no meio da medição para outra
pessoa (Zezé).
E ele morando em Cachoeira e deram terra aqui; (...) até dificuldades para
ele (vir olhar) as terras ele tinha (...). Não recebeu nada; (...) fizeram um
papel do sindicato e disseram que ele tinha recebido, mas nada de receber.
Ele nem sabe onde é o pedaço de terra dele (Antoniete).
77
Os entrevistados comentaram comigo sobre o valor acrescentado que foi outorgado às
terras entregues através dos acordos. As terras não correspondiam ao que a Usina devia, não
valiam o que os Termos de Conciliação diziam valer, os tamanhos eram ínfimos.
O sogro de Zezé (...) era feitor. (...) Com esse negócio da Usina pagar as
dívidas com terra, ele ganhou três quadras e meia ele sendo empregado;
não dá nem meio hectare. Ele mesmo disse: eu sendo empregado, tudo o que
eu fiz pela Usina e a Usina agora vem me pagar com três quadras e meia os
meus direitos! (...) Cada um ganhou seu pedaço, sabe? Um ganhava um
pedaço, outro ganhava outro, outro ganhava outro e assim foi sendo dividido
para cada um. (...) Mas deixa lá que não dava para pagar nem a metade, nem
um quarto do que a Usina devia ao cara. (...) Quanto em dinheiro, se for
somando direitinho, dá muito dinheiro (Dorival).
Por outro lado, não houve participação dos moradores nos acordos. Certamente,
deveriam assinar.
pronto, a Usina se juntou com o Sindicato e fez (...) tudinho sem o
morador saber. Eles se juntaram e fizeram isso. Quando ia para a justiça,
dizia não; aqui a Usina não nada a ninguém não; a Usina pagou todos
os direitos, tudo foi feito pelo Sindicato mais a Usina (Dorival).
E chegaram com o documento que era para o morador assinar e quase todos
os moradores eram analfabetos, assinavam assim no dedo, e outros que
assinavam, (...) mas ler não liam nada. pronto, não pedia para ninguém
ler, e tinha a confiança do trabalhador com o Sindicato, porque (...) o
Sindicato trabalhava para ajudar o trabalhador. Mas que o Sindicato
trabalhava para desmantelar o trabalhador (Zezé).
77
Antoniete é a esposa de Zezé. Nasceu e viveu grande parte de sua vida em Cachoeira. Atualmente vive em um
assentamento próximo à cidade de Açude, junto com Zezé. Seu pai foi o feitor do “senhor de engenho” de
Cachoeira e, conforme o relatado pela entrevistada, morou no lugar durante 60 anos. É a ele que Antoniete se
refere na entrevista.
Assim, palavras como “falso” e “fraude” foram utilizadas para descrever os acordos
realizados em Nossa Senhora da Mata. É possível que aqueles rótulos para adjetivar o
sucedido tenham sido introduzidos a partir da denúncia da CPT no Ministério Público.
78
Os
moradores não receberam indenização; em lugar disso, viram-se no enfrentamento contínuo
com os agentes “compradores” (“laranjas”
79
da Usina, segundo muitos dos entrevistados), que
se diziam donos das terras em que os primeiros habitavam. Os entrevistados assim falaram a
respeito dos acordos:
Era falso. Aqui, quando a Usina foi em falência, ela pagava ao morador com
terras: eram quatro contas
80
para um, três contas para outro, duas para outro,
o que queria pagar em terras. Mas o que a justiça diz é que não se paga
dívida com terras não; (...) se paga dívida com dinheiro, direito do morador
era para pagar com dinheiro (Dorival).
Porque para quem era credor da Usina, (...) dava uma carta de adjudicação
que vinha da Junta de Nossa Senhora da Mata. (...) Era uma fraude, junto
com o Ministério do Trabalho, o Sindicato e a Usina. pronto, a Usina
fazia isso, depois a terra voltava todinha para ela novamente, porque vinha
um laranja (e apanhava) a terra em troca de um liquidificador. (...) Aí pronto,
trocava por um ferro elétrico (...) e depois a Usina estava com a terra todinha
novamente (Zezé).
O relato dos habitantes de Cachoeira, acampados ou moradores, em relação à história
do lugar, não menciona como único episódio conflitivo o que diz respeito ao cerco das terras
78
Alguns documentos encontrados nos arquivos da CPT narram o desenvolvimento que a denúncia da CPT, da
FETAPE e do MST (ver capítulo seguinte) foi adquirindo nesse Ministério. A denúncia, enviada ao “Exmo. Sr.
Dr. Procurador-Chefe do Ministério Público do Trabalho”, data de 12 de junho de 2000. Um termo de denúncia
emitido pelo Ministério Público do Trabalho, Região-Recife/PE nos relata a chegada do documento: "Ás
16h46min do dia 12 de junho de 2000, compareceram à presença dos Exmo. Sr. Procurador-Chefe (…) e Exmo.
Sr. Procurador-Chefe Substituto (…) uma comissão de trabalhadores da Usina Açude, acompanhados dos
advogados da Pastoral da Terra (…) e ainda, da advogada da FETAPE (…). Disse o Procurador-Chefe que
recebia a denúncia e que determinava de imediato o seu envio ao setor competente, ou seja, a Coordenadoria da
Defesa dos Interesses Difusos e coletivos CODIN […]". Posteriormente ao recebimento da denúncia,
aconteceram as “Audiências” realizadas no Ministério Público do Trabalho, na sala da CODIN. Audiências
realizadas por motivo da denúncia. Esses eventos são relatados através de “Termos de Audiência”, atas
elaboradas por funcionários do mencionado Ministério (particularmente pelo Secretário da Audiência). Os
componentes dessas Audiências variam. Por exemplo, em uma delas, realizada em 20 de junho de 2000,
estiveram presentes dois Procuradores do Trabalho (o Coordenador e um membro da CODIN), o diretor da
Usina Açude e seu advogado, um representante da FETAPE, o Presidente da CPT e o advogado destas duas
últimas entidades (a mesma pessoa), um representante do MST, um representante do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Açude e seu advogado. Outra das Audiências (26 de julho de 2000) contou com os
membros acima assinalados à exceção do Sindicato aos quais se somaram o Procurador da República, o
Promotor de Justiça de Pernambuco, a Promotora de Justiça de Açude e um representante da SACI-Salvador
Agricultura Comércio e Indústria S/A (sobre esta última ver nota 92).
79
Testas-de-ferro.
80
A conta fala de uma forma de remuneração que corresponde a uma área de aproximadamente 10 metros
quadrados. “Tanto a 'tarefa' quanto a 'conta' são modalidades de pagamento por produção. (…) A 'conta',
generalizada a partir da implementação do Estatuto do Trabalhador Rural, consiste numa área de
aproximadamente 10 braças por 10 que, teoricamente, equivale ao salário mínimo diário de um trabalhador”
(Palmeira, 1971:21-22).
por parte do fazendeiro vizinho, embora aquele tenha sido um episódio destacado, sobretudo
pelos moradores do engenho. Ao contrário, a narração está atravessada de cenas conflitivas.
Assim, foram mencionados outros acontecimentos posteriores de confrontação com aquele
fazendeiro: situações, por exemplo, que diziam respeito ao gado deste personagem invadindo
os espaços dos moradores e dos acampados e danificando seus roçados; que falavam sobre
seu reiterado intento de adquirir as terras, fosse através da força, da ameaça, da implantação
do medo, fosse através da “sedução”, pretendendo “comprá-los” a partir de favores. Desse
modo, um anedotário de confrontações repetidas transformou o fazendeiro em uma figura
central no imaginário dos habitantes de Cachoeira, convertendo-o na encarnação cotidiana e
visível do inimigo, do “latifúndio”, do “usineiro”.
Os “tiroteios” que tiveram lugar depois da chegada dos sem-terra constituem outra das
situações destacadas no discurso dos entrevistados. Um novo incidente difícil, conflitivo; um
outro desafio que matizou a história do acampamento com a tonalidade de uma guerra de
múltiplas batalhas. Dois foram os “tiroteios” que aconteceram, um deles imediatamente
depois da chegada do primeiro grupo de sem-terra. Entretanto, antes do primeiro deles, os
habitantes de Cachoeira se encontravam em contato com o mundo policial. Idas à
delegacia
81
e chegadas dos policiais são partes integrantes da história. Esses primeiros
encontros, que não seriam os únicos, estiveram relacionados ao episódio da cerca e a um
enfrentamento com a Usina Ubaúna: a presença desta última prejudicou os roçados dos
acampados. Estes retiveram, então, uma maquinaria da Usina. Chegou a polícia. E lá se foram
prendendo os sem-terra em suas cadeias. Ze nos conta sobre a chegada da polícia em
relação ao episódio do cercado:
O gado dele [do fazendeiro vizinho] todo solto no mundo, e a cerca cortada.
(...) a polícia foi para (...), muita polícia por querendo pegar alguém.
(...) Ele paga os policiais para vir atrás. (...) Quando a gente terminou de
cortar a cerca, a gente foi almoçar, né? (...) Aí, quando a gente estava
almoçando, chegou a polícia.
O mesmo entrevistado comentou também sobre o encontro com a Usina Ubaúna:
82
81
Entre as idas à polícia, por exemplo, encontra-se a realizada por Dionísio, que apresentou uma denúncia na
Delegacia de Polícia Civil de Açude. O documento da denúncia estava nos arquivos da CPT. Aparecia ali uma
queixa que preenchia espaços, linhas vazias que se localizavam logo depois de rótulos ou frases existentes em
tinta. Um relato escrito que se adaptava ao modelo policial.
82
O enfrentamento com a Usina Ubaúna é um evento que também aparece nos arquivos da CPT, relatado a partir
do seu lado oposto. A Usina Ubaúna apresenta
aqui uma linguagem. Através de um “croqui” que localiza a “área
do Feijão” no Engenho Cachoeira (assinado na parte inferior por um topógrafo e um engenheiro agrônomo), de
um “registro fotográfico do Engenho Cachoeira no local onde ocorreu o incidente”, de uma queixa apresentada
na Delegacia de Polícia e de uma nota enviada ao Superintendente Regional do INCRA/PE, configura-se um
Uma máquina da Usina Ubaúna a gente prendeu lá, porque eles tinham
botado fogo em nosso roçado (...) para (fazer medo) para a gente sair de lá.
a gente foi reivindicar nossos direitos, (...) prendeu a máquina como um
meio de pressionar, né? Levamos para acampamento a máquina; aí a
polícia militar foi buscar a máquina. (...) A gente foi telefonar para CPT e na
frente encontramos dois seguranças da Ubaúna. ele botou a moto por
cima de mim, mas derrubamos ele da moto. Ele chamou a polícia militar; a
polícia não queria nem saber, prendeu a gente e levou.
Voltando aos “tiroteios” (que não foram tiroteios no sentido estrito da palavra já que
se deram em uma direção), não foram os moradores os protagonistas desses
acontecimentos. Os “tiroteios” se dirigiam aos acampados, que se encontravam em “lonas”, a
certa distância dos moradores que estavam nas casas do Engenho. Dois “tiroteios”, um após o
outro, separados por um curto tempo. As datas são simbólicas: uma festa religiosa e o dia do
trabalhador. Duas fugas, dois retornos ao mesmo lugar. Era necessário fugir das balas que
procuravam seus corpos. Naquelas fugas, os acampados se refugiavam por um tempo no
mato. A volta foi imediata. Muitos “desistiram” no caminho.
Foi de noite, estava comemorando a noite de aleluia (...), fizemos a fogueira
(...). eles começaram a dar o tiroteio, atirando baixinho, até um
companheiro foi baleado lá; (...) não chegou a morrer não, (...) ele foi
baleado nas costas. (...) A gente tinha corrido; quando acalmou tudo, a gente
voltou para lá. Aí começamos refazer novamente o acampamento. Aí pronto,
desistiu um bocado de gente por causa disso. (...) Reconstruímos
novamente, com lona, e ficamos no mesmo lugar. (...) No dia do trabalhador
voltaram novamente, fizeram a mesma coisa; (...) a gente correu
novamente e voltamos para lá, a gente voltou para lá alguns meses (Zezé).
Então, veio o “despejo”. Era inverno, mês de julho. Um despejo no inverno. As
entidades que participaram desse episódio variavam de acordo com cada relato. Entre as
reconstruções dos entrevistados foram mencionados: a Usina, uma ambulância, o Sindicato, a
Polícia Militar, uma promotora, trabalhadores do fazendeiro vizinho.
83
Um caminhão levou os
relato de acusação aos “elementos que se encontram assentados no Engenho Cachoeira”, os quais “tomaram de
nosso funcionário uma carregadeira de cana, marca Implanor Bell, de propriedade desta Empresa”
(nota enviada
pelo Diretor-presidente da Usina Ubaúna ao Superintendente Regional do INCRA de Pernambuco, em 7/2/00),
episódio denunciado na polícia pela Usina em 7 de fevereiro de 2000. Embora seja mencionada a queima dos
produtos cultivados pelos acampados, isto se faz em tom de rumor, permanece ambíguo e impessoal,
desenvolve-se nas verbalizações do tipo teria acontecido, e sua importância aparece minimizada: “segundo
chegou oficiosamente ao nosso conhecimento, tal atitude fundou-se no fato de que, tendo havido queima de cana
em canavial vizinho à área onde os mesmos estão assentados, o fogo teria queimado parcos pés de feijão por eles
cultivados […]” (nota ao Superintendente do INCRA, em 7/2/00).
83
Ao consultar os arquivos da CPT, encontrei uma série de documentações: “Notas de culpa” da Polícia Civil de
Pernambuco Delegacia de Açude datadas de 11 de julho de 2000; uma nota enviada pelo Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Açude ao Juiz de Direito da Comarca de Açude-PE, em 25/10/99; certidões emitidas em
pertences dos acampados. Não ficou nada naquele lugar de lonas. Também não ficou
ninguém; a maior parte dos sem-terra foi levada para um matadouro velho”, um antigo
matadouro de gado. Outros foram parar nas cadeias policiais de Açude, saindo mediante o
pagamento, feito pela CPT, de uma fiança. Entretanto, a volta foi um fato. Menos pessoas
voltaram para Cachoeira em caminhão um caminhão alugado pelos acampados. Agora, seu
espaço de acampamento mudaria, iriam para a sede do Engenho, onde se encontrava a Casa
Grande, mais perto dos moradores.
Fazia um bocado de tempo, uns cinco, seis meses que os sem-terra estavam
aí. Chegou um dia de quinta-feira, chegou um ônibus na época do inverno,
um caminhão veio logo da Usina, uma ambulância e o carro do sindicato.
(...) E ainda levou esse Zezé e um tal de (Beto), (...) ele era coordenador.
Levaram eles presos. (...) Essa promotora desceu do carro, mandou botar a
(cadeia) neles (...) e o caminhão da Usina foi e levou os (troços) dos sem-
terra para a (UEPA)
84
de Açude. (...) Levou tudinho, (...) quebrava tudo,
(...) furava, e levava tudo para a (UEPA). Passaram um dia e uma noite
(...). ligaram para o Padre mais Gustavo e eles foram bater lá, em Açude.
(...) Aí não foram mais para lá, vieram para aqui (Dorival).
A gente reconstruiu [referindo-se à etapa depois do segundo tiroteio].
veio a polícia militar (...) alguns meses depois; veio dar o despejo na gente,
(...) me prenderam (...) e me trouxeram para Açude. (...) O Padre Teodoro
pagou a fiança e a gente se soltou de noite. (...) pronto, eu e Beto fomos
daqui de Açude a para lá, para Cachoeira. A gente não conhecia quase
nada por aqui, fomos de pista, é longe pela pista. pronto, quando
chegamos lá, a gente foi (olhar) as lavouras, que é para ninguém levar,
porque o pessoal estava todo acampado aqui perto da (UEPA). (...) No
despejo, a polícia trouxe o pessoal para aqui, porque quando é um despejo
tem que sair todo mundo da área; (...) enquanto não completar 24 horas não
pode reocupar. pronto, o pessoal tava lá, perto da (UEPA), num
matadouro velho. (...) a gente (ficou vendo) os roçados. com três dias
2/9/99 pelo Serviço Notarial e Registral - Cartório Único de Açude, no qual consta a “adjudicação” de uma área
de 26,423 ha. do Engenho Cachoeira a favor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Açude; certidões
emitidas pela Delegacia de Polícia de Açude, em 20/10/99, entre outras documentações. As mesmas provinham
de uma reclamação realizada pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Açude. Sinteticamente, relata-se ali o
confronto ocorrido em 2 de setembro de 1999 entre uma pessoa que tinha adquirido a propriedade de uma área
em Cachoeira através das Cartas de Adjudicação (pessoa representada pelo mencionado Sindicato na disputa
judicial em torno do episódio) e integrantes da CPT (habitantes e não-habitantes do lugar), confronto este que se
converteu no objeto de uma reclamação judicial gerada pelo Sindicato. A sentença dada pelo juiz de direito da
Comarca de Açude foi a favor deste último. Isto foi o que deu lugar ao despejo, ação referida aqui como um
“cumprimento a Mandado de Imissão de Posse”, a qual colocava “uma área de terras com 26,423 hectares,
encravada no engenho Cachoeira […] em favor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Açude” (ofício
enviado pela Juíza de Direito da Comarca de Açude-Pernambuco ao Ilmo Sr. Comandante do BPM (Batalhão
da Polícia Militar) de Nossa Senhora da Mata, em 15 de maio de 2000). Aconteceu também a prisão de dois
sem-terra, ocorrida em função do episódio, relatada neste caso a partir dos documentos elaborados na Polícia
Civil de Pernambuco, 6º Departamento Regional da Polícia – Delegacia de Polícia de Açude/PE. Encontra-se ali
um exemplo dos episódios que os habitantes de Cachoeira mencionaram a respeito dos problemas advindos das
Cartas de Adjudicação: o despejo, que é relatado aqui a partir de uma narrativa administrativo-judicial, uma
narrativa gerada pela reclamação apresentada pelo Sindicato, uma narrativa proposta pela figura rival.
84
Conforme me contaram os entrevistados, a sigla UEPA sigla da qual não estou segura refere-se a um
colégio localizado em Açude.
a gente alugou um caminhão, levamos o pessoal para novamente (...) e,
dessa vez, a gente foi direto para a sede do engenho, onde o pessoal está hoje
(Zezé).
Começou naquele tempo uma série de ameaças ininterruptas, de roubos e de
assassinatos que derivaram na desertificação de Cachoeira. As pessoas foram embora do lugar
à medida que aconteciam os eventos relatados. Entretanto, a morte de Amaro foi um marco
crucial. Ninguém ficou ali, nem moradores, nem acampados. Gente armada que chegava
procurando determinadas pessoas, rumores que falavam de pistoleiros procurando os
coordenadores do acampamento: estas foram ameaças reiteradas depois do despejo. As
denúncias desses acontecimentos à polícia eram concluídas por ela com uma indicação de
ausência de provas.
Era roubo. Chegava batendo na porta, mandava sair para fora pra matar,
roubavam algum animal que o morador tinha; roubaram ali em cima um
morador, roubaram uma, três vezes, levaram (...) da feira que ele tinha
acabado de fazer. De noite vieram buscar. Sempre foi assim: roubo, ameaça,
aterrorizando os moradores (tinham medo e iam embora). (...) Ameaças,
roubo, morte, matava mesmo (Osvaldo).
Depois do despejo, o pessoal voltou para lá. pronto, começou a
perseguição. O pessoal chegava procurando, (...) chegava gente de moto
sem a gente conhecer, procurando a gente, armado (Zezé).
Todas essas ameaças a gente chamava a polícia e ela dizia que não tinha
prova contra. (...) Era tudo comprado por Zeca Alberton,
85
daí a gente
começou a se desviar, eu e (Beto), porque a gente era quem mais era
perseguido (Zezé).
Entretanto, as ameaças deixaram de acontecer e a morte passou a ocupar o seu lugar.
Houve o primeiro assassinato em fins de 2002. Três tiros em Ivo. Não foi em Cachoeira, mas
sim em um caminho que ia dar no engenho. Pouco tempo depois, Osvaldo, neto de Amaro,
recebeu um disparo na perna. Também no caminho; ia visitar uma tia em Ponta das Pedras.
Após três dias, assassinaram Amaro, antigo morador do engenho.
E pagava bandido para vir aqui para bagunçar. (...) Depois que assassinaram
o Ivo, um mês depois, me balearam ainda, me balearam, dois tiros. (...) Ia eu
e meu primo de manhã para a praia, que minha tia mora lá, em Ponta de
Pedra, e quando a gente chegou numa certa distância, ele avistou um
(homem); aí a gente seguiu em frente. Quando a gente passou pelo (homem),
o cara mandou eu e meu primo parar. Eu (não) parei, ele (meteu bala em
85
O nome mencionado é o do fazendeiro vizinho.
mim) procurando um acampado que tinha aqui. (...) Três dias depois, vieram
e assassinaram o meu avô (Osvaldo).
Aquele foi um fato crítico para todos os que se encontravam vivendo em Cachoeira. O
assassinato foi em sua casa. Amaro era o tesoureiro da Associação que foi organizada no
acampamento. Roubaram seu dinheiro e o mataram. Não conseguiram reconhecer quem assim
o fez, que estavam mascarados. Os processos judiciais tampouco contribuíram com
informações a respeito de qualquer um dos dois assassinatos.
Faz quatro anos que aconteceu esse negócio com o meu irmão, e até aqui a
polícia não resolveu nada ainda não, (...) nem vem nem nada aqui; (...) a
polícia é assim (Dorival).
Apesar da nebulosidade burocrática, as pessoas que viveram aquele episódio o
recordam com detalhes; sua presença se faz essencial nos relatos. Foi uma noite em que um
grupo de pessoas chegou a Cachoeira. Quando se foram, levaram pertences de Dorival,
dinheiro de Amaro e o dinheiro da Associação, o qual Amaro guardava. Foram-se, levaram,
também deixaram: o corpo de Amaro ficou com balas; Dorival, sem irmão; Osvaldo, sem avô;
Zé Manuel, sem pai; Dionísio, com menos um “companheiro de luta”.
Foi que (chegarem até essa) caixinha de dinheiro e mataram o
companheiro de luta, morador de lá, e levaram dinheiro. Nove e meia da
noite eu me acordei, (...) numa distância mais ou menos de 100 metros. (...)
apaguei a luz de dentro de casa; quando acendi a de fora, foi que olhei
pela janela: (...) tinha três cabras ainda correndo (...). fomos para lá, (...)
entrei pela porta, a porta quebrada, ele assim caído, mais a mulher dele, (...)
uma menina na cama, outro menino menor debaixo da cama, outro tinha
corrido e escapou. (...) Aí eu falei para ele (para Zé Manuel): (...) teu pai está
derramando muito sangue; (...) (pegaram a ambulância), (...) mas ele tinha
morrido (Dionísio).
Eu perdi meu irmão que era com quem eu contava. Quando caía no fracasso,
ele me ajudava. E ele morreu, pronto. (...) Imaginei sair, mas eu digo
agora: tem que ficar aqui mesmo, porque o que tinha que perder perdi; era
ele, era mais velho que eu, era pai, mãe e muito, né? Era meu socorro, era ele
(Dorival).
Depois da morte de Amaro, Cachoeira ficou deserta. O “medo” que tudo aquilo causou
para os que ali viviam foi a explicação dada para o abandono do lugar. Cada uma das pessoas
se foi. Passou-se um tempo antes de o espaço ser novamente habitado possível que tenham
sido três meses). Aquela nova habitação foi contemplada com uma participação muito escassa
de moradores, a maioria de seus participantes seria sem-terra.
Foi muito sufoco, os outros ficaram todos com medo, os outros morador
que ainda tinha. (...) Eu ainda passei três semanas, a minha família correndo
para ir para a rua (...) e eu (...) disse: eu não vou não, eu vou ficar aqui.
Tinha uma família arranjando as coisas, quando cheguei lá, a família já
estava chorando. Por que vocês estão chorando? Você saia dali que vovai
morrer também! Eu disse não, eu não vou sair agora não, porque mataram
um companheiro e se a gente sair, vai ser pior. (...) Muito nervosa a família
pediu, a mulher aqui pediu que eu saísse. Saí, né? (Dionísio).
Aí, quando mataram o meu avô, foi-se embora tudo de uma vez mesmo.
Depois com o tempo, retornou de novo, mas morador mais não,
acampado, sem-terra mesmo, porque os moradores foi tudo embora
(Osvaldo).
Entretanto, aquele tempo se encontrava impregnado de novos conflitos acontecidos no
lugar e de batalhas a serem vencidas. Assim, destaca-se nas narrativas o episódio com “uma
tal de Maristela”, agente imobiliário que dizia estar comprando as terras, uma “laranja”
segundo alguns entrevistados. Várias pessoas chegaram a Cachoeira em seu nome. Em seu
nome também se tentou baixar a bandeira da CPT que se encontrava no acampamento. A luta
contra este agente foi protagonizada pelos moradores que visitavam a região freqüentemente,
como Dorival e Dionísio. Eles mencionam, além disso, a presença de alguns trabalhadores da
CPT.
Isso aqui criou mato, o povo arrancava as portas daqui, (...) mas todo dia eu
e seu Dionísio vínhamos aqui, vínhamos olhar. O Padre Teodoro mandava
(...) que ninguém arriasse a bandeira. (...) Maristela (...) disse que tinha
comprado as terras aqui também da Usina; teve um dia que (...) ela foi e
tirou o bambu com a bandeira (...) e pegou o pano e botou ali debaixo de um
bocado de tijolos. (...) o menino de Seu Dionísio viu. (...) Eu cheguei
mais seu Dionísio; (...) eu fui e tirei outro bambu, botei de novo. No outro
dia, ela chegou de novo e disse: Que povo desaforado, eu tirei esse bambu
aqui, cortei todinho e estão botando de novo! Tirou de novo. Quando foi na
quinta-feira eu cheguei mais seu Dionísio e fiquei sentado naquela cocheira
(...). daqui a pouco veio um cara na moto: (...) Ehhhh!!! Está fazendo o
que aí?!! (...) Maristela mandou ele aqui. (...) O cara disse: Vim comprar
cavalos. (...) seu Dionísio vai e manda o filho dele avisar ao Padre e ao
Gustavo que tinha gente aqui correndo no engenho para comprar terra. (...) O
Padre juntou a turma de Goitá, a turma de Montes Claros e veio para aqui.
(...). A Maristela também não veio mais (Dorival).
Foi logo depois disso que chegou uma nova “turma”
86
de acampados. A CPT
considerou conveniente retomar o lugar.
86
É a palavra utilizada pelos informantes para aludir aos grupos de sem-terra que foram chegando.
A CPT começou a trabalhar para colocar gente novamente, que é pra não
arriar bandeira, porque ia ser desapropriado; aí se não tem ninguém, vai ficar
ruim, né? Começamos a andar atrás de gente para colocar novamente; eu
não podia voltar para lá, porque já estou assentado (Zezé).
Três meses eu passei na rua. (...) Vim embora porque eles foram buscar eu
lá, (...) que eu era o mais velho para indicar os novatos que fossem chegando
(Dorival).
Chegou assim uma segunda turma de acampados. Hoje em dia, poucas pessoas
restaram daquele grupo. Foi feita uma reunião em Goitá com aquele que seria o coordenador e
Cachoeira foi novamente habitada. Segundo Dorival, o grupo instalou-se na sede do engenho,
nas antigas casas de material. Eles foram embora progressivamente, logo que Nestor, o
coordenador, se retirou. É por isso que muitos entrevistados consideraram que a atual é a
terceira turma de acampados, constituída em grande parte por pessoas que se encontram em
Cachoeira há pouco tempo.
Mas com essa turma agora, tem três turmas com essa; duas foi-se embora
e com essa já faz três. (...) Da primeira turma tem Zezé (...) que sempre
aparece por aqui, ainda vem dar uma força aqui pra gente tudinho; tem
ele. Eram todos de Ibiaçu, Itaperuna, era todo mundo de lá (Dorival).
Depois da morte do Amaro, veio seu Nestor com os filhos dele e outras
pessoas. Depois, Seu Nestor desistiu com o pessoal e veio agora esse
pessoal novato. A gente está tendo o maior cuidado com o pessoal lá, para
ver se não vai ninguém mais embora, se continuam na terra (Zezé).
Houve acontecimentos que marcaram mais abruptamente os movimentos de entrada e
saída dos acampados, conforme me contaram os entrevistados. Desse modo, à medida que
aconteciam os fatos relatados, as pessoas foram se retirando. Eram menos após o primeiro
tiroteio, menos ainda depois do segundo, e ainda menos em seguida ao despejo, e assim a
que ocorreu a morte de Amaro, momento em que o acampamento ficou deserto. Aquele foi o
fim da “primeira turma”. Depois foi retomada a ocupação do espaço com outro grupo de
pessoas, que formariam a “segunda turma”. Entretanto, além dessas saídas mais numerosas,
Cachoeira experimentou também uma renovação progressiva de seus habitantes: pouco a
pouco, as “famílias” chegavam e iam embora por diferentes motivos.
Foram embora, não voltaram mais, veio outra turma. (...) Vinha aquele
povo aqui, chegava... (...) oito dias ia em casa e, quando vinha, vinha com
dois, três, e assim... (...) Todo esse povo que está aqui já vinha com os outros
atrás, né? (Dorival).
Assim passou muita gente, vai embora um companheiro, depois vem outro.
(...) Teve alguns que desistiram e alguns ficaram. Aqueles desistiam e
(vinha) outro trabalhador (Mário).
87
O relato dos moradores com os quais conversei aborda os tempos do arrendatário e da
Usina, antes da chegada dos sem-terra. Dessa maneira, a narração dos moradores é contínua.
A chegada dos sem-terra é um evento dentro da história de Cachoeira, um evento importante
que deu base à sua permanência no lugar. Uma história de luta ininterrupta.
Assim, os moradores me contaram a respeito de seu trabalho para o arrendatário do
Engenho antes que ele morresse. Isso nos tempos que antecederam à quebra da Usina Açude,
em 1996. Ele era um “fornecedor”, disseram-me, abastecia a Usina com cana-de-açúcar, a
qual era moída ali. Os moradores trabalhavam com a cana e cuidavam o gado do “rendeiro”
(do arrendatário),
88
mantinham além disso seus “sítios (os dos próprios trabalhadores).
89
Antoniete, cujo pai foi administrador desse arrendatário, também chamado de senhor-de-
engenho”,
90
denominou de “foro do terreiro” o trabalho que realizavam para este último os
moradores, com a finalidade de pagar o espaço que habitavam. Por sua vez, Dorival falou de
trabalho “fichado”.
91
Meu pai saía de madrugada para tirar leite das vacas dele, chegava em
casa noitinha, chegava ao meio-dia para almoçar às carreiras. (...) Às vezes
ele pagava a um pessoal lá, mas tinha sete irmãos homem, dava para
cobrir o roçado (Antoniete).
87
Mário é atual acampado de Cachoeira.
88
“A contrapartida da casa, ou do direito de plantar ou trabalhar, é o dever que tem o morador de trabalhar para o
estabelecimento” (Palmeira, 1976:107).
89
“A casa com área para a cultura em torno é chamada geralmente ‘sítio’” (Andrade, 1998:115). O sítio não é o
mesmo que o terreiro, o qual consiste em um espaço no fundo da casa onde o morador planta o essencial para o
consumo familiar semanal (Palmeira, 1976). O sítio não é um elemento inerente ao contrato de moradia, como o
são a casa e o terreiro, pelo contrário “representa o mais importante dos ‘prêmios’ que o senhor de engenho
atribui ao morador […]”. Ele atua como “um mecanismo central de diferenciação interna dos moradores”
(Palmeira, 1976:106).
90
Os fornecedores e os usineiros são figuras que obtiveram primazia em relação à produção de cana com o
processo de substituição dos engenhos bangüês pelas usinas. “Enquanto os primeiros [os fornecedores] se
ocupam apenas com a produção agrícola propriamente dita, os segundos [os usineiros] também controlam o
processo de transformação de cana em açúcar, sendo proprietários de unidades fabris” (Sigaud, 1979:29). Sigaud
estabelece uma distinção dentro da categoria de fornecedor: “Entre os fornecedores se poderia estabelecer uma
distinção entre os proprietários de terra e os que a exploram por arrendamento (conhecidos como rendeiros).
Enquanto os fornecedores são geralmente ex-senhores de engenho ou descendentes seus, os rendeiros muitas
vezes têm origem distinta, procedendo do comércio, de profissões liberais ou da burocracia […], embora haja
tantos rendeiros que foram senhores-de-engenho ou que acumulam a exploração de terras próprias e
arrendadas, quanto proprietários sem qualquer vinculo com o passado bangüê. Os trabalhadores vão distinguir o
senhor-de-engenho, termo que reservam aos fornecedores proprietários, do rendeiro e do usineiro” (Sigaud,
1979:29). É interessante observar aqui a conjugação das categorias de senhor-de-engenho e rendeiro em relação
ao assinalado pela autora.
91
Para uma análise da categoria de fichado, ver Sigaud, 1979.
MFF: Seu Dorival, quando você chegou aqui há 18 anos, o senhor-de-
engenho ainda estava?
Dorival: Tava, tava vivo ainda, eu trabalhei fichado com ele. (...) Tinha 70
moradores, todos fichados; ele pagava todos os direitos. (...) Eu fui trabalhar
(...) como (cultivador) de cana (...), botava os bois na frente e o (cultivador)
atrás para gradear aquelas (carreiras) de cana: o boi puxando, a pessoa atrás,
e o boi puxando... (...). Ele moía pra lá, (...) a cana dele era moída na
Usina.
Segundo as idades que tinham alguns entrevistados quando o senhor-de-engenho
morreu, este fato aconteceu aproximadamente em 1991, 1992. Conta um morador que quando
isso aconteceu, a esposa do arrendatário se foi do Engenho e colocou um advogado contra a
Usina para que esta pagasse as dívidas que tinha contraído com eles; a viúva dizia que seu
marido tinha morrido de tensão nervosa por essa razão. Ela saiu do lugar e a cada vez que
voltava via seu marido caminhar pela Casa Grande, seu marido já morto. O senhor-de-
engenho tinha vendido as “benfeitorias” ao dono da Usina antes de morrer, mas não o gado.
Entretanto, a Usina não havia pagado.
Esse rendeiro, (...) vamos supor assim, o cara arrenda um engenho desses por
10 anos. Aí, quando chega naqueles dez anos, se ele não quiser mais fazer
outro contrato, (...) a Usina compra aquelas benfeitorias que ele fez e ele
entrega o terreno. (...) Ele tinha vendido esse aqui à Usina (...) mas [a
Usina] não pagou. Quando ele morreu, a viúva pegou tudinho: (...) esse
negócio de burro, cavalo, (...) e negociou para outro canto, porque ela [a
Usina] comprou as benfeitorias do engenho. (...) A viúva foi embora para
Ponta das Pedras e (sem) a Usina pagar. (...) botou o advogado para a
Usina pagar. (...) Disse que a morte dele foi por (causa disso) (...), porque ele
sofria de nervos, sofria de coração. (...) a Usina disse que não tinha
dinheiro para pagar não, que ela voltasse para o engenho. Ela disse que não
voltava porque tinha chegado os sem-terra, (...) e mesmo assim ela vinha
até aqui porque tinha uns conhecidos, uns moradores. Mas foi o tempo em
que os moradores foram embora, ela não apareceu mais. (...) Mas ela
deixou de vir também porque ela disse que toda vez que chegava aqui, que
ela olhava, via ele no terraço, estava andando para e para
(Dorival).
Os relatos dos moradores assinalam as dificuldades daquele tempo, quando o
arrendatário morreu e a Usina “tomou conta” do Engenho. Não havia responsáveis pelos
trabalhadores. Nem o senhor-de-engenho, nem a Usina. “Pronto”. Tudo havia acabado. Seria
o começo da partida dos moradores:
Com o tempo, alguns morreram, outros, quando a Usina faliu, foram
embora; ficou pouco morador mesmo aqui, porque (isso aqui em cima)
era tudo cheio de casas. (...) Quando os sem-terra chegaram, o pouco que
tinha se reuniu com eles (Osvaldo).
As dívidas trabalhistas não haviam sido pagas. Tampouco havia trabalho suficiente
para conseguir sustentar-se materialmente. Segundo um entrevistado, o acordo entre o senhor-
de-engenho e a Usina outorgava responsabilidade pelos trabalhadores a esta última. Não
tinham roçados naquela época, precisavam de emprego. O trabalho para um senhor-de-
engenho vizinho foi uma saída encontrada pelos moradores para esta situação.
Quando ele fez negócio com a Usina, (...) a Usina ficava responsável pelo
morador; o negócio foi feito assim, mas a Usina não pagou nada a
ninguém, e acabou-se, pronto. O morador foi embora e ela ficou devendo
férias... tudo. (...) Depois que a Usina tomou conta, aí acabou-se... morreu de
fome. Teve um tempo em que ela passou a pagar 5 reais por semana; o cabra
trabalhava 6 dias, ela pagava 5 reais. Quem segurou o povo daqui, esse
morador todinho, foi o senhor-de-engenho, um tal doutor Zuza do engenho
Sapé; (...) até o domingo o doutor [Zuza] pagava; era a (sorte) dos moradores
daqui. (...) Os daqui iam pra lá, mas porque aqui não tinha mais (nada), né?
ganhava os 5 reais mesmo, não tinha mais serviço. E foi dando, foi
dando, foi dando até (cortar) de uma vez. Aí não tinha mais nada, pronto, foi
o tempo em que os sem-terra chegaram (Dorival).
Ficou quase sem trabalho, né? E os dias que trabalhava, trabalhava três dias
e passava mais de meses sem pagar, e às vezes nem adiantava trabalhar,
porque você ia trabalhar a fim do dinheiro, né? Trabalhava e não vinha
dinheiro para nada. (...) No pouco tempo em que entrou a Usina e ela deu
voz de falência, (ninguém sabia) se ela tinha falido mesmo ou se estava
mentindo. meu pai desesperou: ia morrer de fome com os filhos, não
tinha emprego, não tinha nada. O caso é que ele era acostumado a trabalhar
com cartão, trabalhava direto, noite e dia (Antoniete).
Outra figura aparece no relato daquele tempo de falência acentuada da Usina, um
“doutor”, um “Usineiro da Paraíba”, que arrendou as terras “enchendo” o lugar de cana
durante três anos. Depois se foi. Conta um morador que a Usina não queria vender o que ele
desejava comprar: “a usineira, ela disse que vendia os engenhos, mas a (...) Usina não vendia,
e ele queria trabalhar se ele comprasse a Usina, com tudo”. Três engenhos foram dados
para esta pessoa como pagamento das raízes de cana que havia deixado no lugar (Cachoeira
não foi um desses engenhos): “aí a Usina não teve dinheiro para pagar e deu três engenhos
pela soca da cana ao doutor Lineimar; deu três engenhos, ele tem três engenhos dela, devido a
essas canas que ele encheu”. Não havia roçados naquela época, tudo era cana: “com três anos,
ele deixou aqui tudo isso de cana”.
92
Esse foi “o tempo em que os sem-terra chegaram”.
93
92
A empresa SACI-Salvador Agricultura Comércio e Indústria S/A foi uma arrendatária da Usina Açude depois
da falência desta última. Nas atas de audiência, emitidas pelo Ministério Público do Trabalho, o representante da
SACI assinala “que a SACI veio assumir a usina e o campo depois da safra de 1996 e 1997, em face do
Contrato de Cessão de direitos de Arrendamento”. O diretor da Usina Açude indica na mesma Audiência que tal
Queria trabalhar para a gente mesmo, e foi o tempo em que os sem-terra
chegaram, se juntaram, pronto, aí deu certo. (...) Aí ninguém foi plantar mais
cana, e acabou-se, o mato aumentou e isso era limpado para botar o roçado
(Dorival).
Antes que chegassem os sem-terra à Cachoeira, os moradores do Engenho e os
trabalhadores da Usina realizaram uma manifestação em sua sede. Uma manifestação apoiada
pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Açude. 42 dias acampando naquele lugar. Nesse
permanecer de resistência “o sindicato trazia café bem cedo, pão com mortadela, dois
tambores de café; ao meio-dia, feijão com carne de charque; de noite, macaxeira”. O
acampamento
94
acabou com a chegada da polícia: três caminhões e 12 soldados dentro de
cada caminhão. Depois daquilo, o Sindicato já não era dos trabalhadores “Aí, pronto, o
sindicato ficou do lado da Usina”. Era uma direção diferente daquela de hoje em dia; os
entrevistados esclareceram tal mudança. “O sindicato (...) (aguou) todinho o morador em cima
da Usina, mas não é esse que tem agora, era outro”.
95
Não apenas foram difíceis os tempos da quebra da Usina Açude. Contavam os
moradores que nas épocas de trabalho a cana impunha um ritmo de espinhosa transição. Além
do desgaste que exigia a cana, os direitos dos trabalhadores eram negados. Houve pessoas que
desapareceram. Elas nunca foram achadas. Foram encontrados na Usina alguns processos
judiciais relacionados aos desaparecimentos (tais processos foram achados em uma
manifestação contra a empresa).
96
Zezé, por exemplo, contava a respeito de seus avós:
cessão de contrato de arrendamento foi realizada pela empresa Santa Elvira Agroindústria Ltda., logo depois de
rescindir, em 1996, o contrato de arrendamento por 15 anos realizado a partir de 1994. O papel da SACI como
testa-de-ferro do grupo Cunha Silva (proprietário da Usina Açude) me foi apontado pelas pessoas da CPT. Em
relação ao tempo de arrendamento mencionado nas citações do parágrafo relativo à presente nota, talvez a
Empresa Santa Elvira Agroindústria Ltda. seja o arrendatário a quem se alude.
93
As citações são expressões de Dorival.
94
Esses acampamentos realizavam-se “diante da sede das usinas ou de prédios da administração pública, para
reclamar do descumprimento de acordos coletivos ou protestar contra o governo” (Sigaud, Fajolles, Gautié,
Gómez, Chamorro, 2006:32). Os autores assinalam que os Sindicatos de trabalhadores rurais da região de cana
desdobraram esta forma de ação na década de 80 e em inícios dos anos 90, ação que difere do acampamento
analisado no presente capítulo. As ocupações instaladas em propriedades privadas para reivindicar
desapropriações constituem um episódio recente, que começa a se expandir a partir dos anos 90. A respeito das
características particulares desta nova forma de ocupação em relação às anteriores, ver Sigaud, 2000.
95
Idem nota 93.
96
A Marcha dos sem-terra e moradores, no ano de 2001 a caminhada que começou em Açude, logo depois da
ocupação da Casa Grande da Usina, passando por Nazaré da Mata, Tracunhaém, Carpina, Paudalho, São
Lourenço da Mata, Camaragibe, até chegar a Recife para passar ali o Dia Internacional da Luta Camponesa
(17/04) é um evento relatado nos arquivos da CPT através de recortes da imprensa. Desta manifestação
dados relacionados aos desaparecimentos de trabalhadores da Usina: “MST encontrou fotografias de
trabalhadores mortos” registra o Jornal do Commércio de 10/04/01. No recorte, o destaque sobre um
trabalhador desaparecido em maio de 1964, reconhecido na foto por sua irmã.
Era morador, trabalhou na Usina, meu avô morreu e a Usina nem enterro
deu; foi enterrado ali no Recife como indigente, o meu avô. A minha tia,
quando veio de São Paulo, (...) arrancou exumação do corpo e enterrou ele
aqui. (...) A Usina não deu direito nenhum a ela [à avó], botou lá para fora do
sítio e derrubou a casa. (...) Essa foi uma das causas de eu mais me interessar
em brigar pelas terras lá, porque meu avô morreu, minha avó morreu e
ninguém deu nada, nem enterro eles pagaram, que era direito deles de ter o
enterro, né?
Chegaram então os sem-terra e começou o acampamento. É a terceira turma a que
habita atualmente Cachoeira, além de dois moradores e outras pessoas que foram também
parte constituinte das turmas anteriores. O tempo dos acampados no lugar varia, vai de três
anos até um mês atrás. Assim, uns poucos me disseram que estão ali desde que se retomou o
acampamento, logo depois da morte de Amaro. Foi a partir daí que ocorreu a chegada de
outros. Além dos habitantes mais antigos, o tempo mencionado pelas pessoas em relação à
sua chegada a Cachoeira se estende desde os dois anos anteriores ao mês passado (tendo como
referência aproximada agosto de 2006). A maioria se encontra na faixa aproximada de um
ano.
Embora provenham de diversos lugares Feira dos Moradores, Ibiaçu, Guararema
(Centro Regional), Guararema (acampamento São Francisco, do MST), Recife, Jaboatão dos
Guararapes, entre outros (todas essas regiões pertencentes ao estado de Pernambuco)
alguns que aparecem com maior freqüência. Dessa maneira, Ibiaçu e Guararema
(acampamento São Francisco) são os mais nomeados na passagem de pessoas para Cachoeira
como pontos prévios de estadia. À exceção dos acampados que anteriormente se encontravam
no acampamento de Guararema, o resto provém da rua. A rua é uma palavra utilizada para
referir-se à cidade, isto é, à região que não é campo, onde a vida não se estrutura em função
da “terra”.
O papel exercido pelo boca a boca para a chegada dos acampados a Cachoeira foi
reiteradamente assinalado. Avisou-me um vizinho que estava em Cachoeira” esta é uma
frase que resume a maneira mais generalizada de entrada no acampamento dos que ali
habitam. Muitas pessoas que se encontram atualmente no lugar se conheciam antes; alguns
eram próximos, outros não.
Em relação a esta questão, cabe mencionar que no caso das mulheres seus discursos se
estruturam de uma maneira diferente daquela dos homens. Embora a menção à pessoa que
introduziu a família no acampamento se encontre presente em alguns relatos, a figura do
marido, entretanto, é o ponto de referência principal a este respeito. Seu parceiro é um ator
inevitável na narrativa referente à chegada. Não acontece dessa forma no caso dos homens.
Por um lado, a entrada das mulheres é posterior a de seus maridos eles sempre são os
pioneiros da experiência. Por outro lado, em muitos relatos femininos, o homem foi colocado
como o sujeito ativo na decisão de acampar. O mesmo se deu no caso dos homens, em função
da ausência de referência à sua esposa ao falarem sobre a questão.
A chegada ao acampamento passa por um ritual de aceitação. Ter sido avisado é um
requisito essencial; a pessoa que chega deve fazê-lo sempre a partir de um intermediário.
Entretanto, não basta simplesmente o ato de ter sido avisado para fazer parte do
acampamento: é preciso que se realize a reunião de aceitação. Ali as pessoas avaliam se o
sujeito que deseja entrar cumpre ou não as condições requeridas para ser parte do
acampamento. O adjetivo “trabalhador” é uma qualidade prioritária na conformação dos
parâmetros morais consagrados nessa avaliação.
Vários foram os argumentos que as pessoas me expuseram para se referirem à sua
presença em Cachoeira, sobre a sua decisão de se transformarem em um sem-terra. Em
primeiro lugar, a totalidade das histórias pessoais fala de uma origem no campo. Nascer, criar-
se ali foram experiências fundamentais. No campo, aprenderam a trabalhar, junto a seus pais e
irmãos, numa aprendizagem de vários anos obtida através da experiência cotidiana. Esse é um
passado constituinte, um ponto central a ser evocado ao se referirem às suas presenças no
acampamento. Assim, muitos acampados me falaram enfaticamente sobre sua ligação com a
terra, seu gosto por aquele mundo: “sou doido pela terra”; “é tão bonito”; “venho de coração”.
Escutei reiteradas vezes expressões nesse tom ao perguntar como chegaram ali. O trabalho
com a terra representa uma experiência e um saber constituintes da pessoa. O sonho de ter
minha terra” justifica a “luta”, a “agonia” que, muitas vezes, a permanência no acampamento
significa.
Ser dono de sua terra, “não ser mandado por ninguém”; o desejo de não ter “patrão”,
nem ser patrão um desejo de longos anos: este é outro ponto mencionado pelos
entrevistados ao se referirem ao seu movimento em direção ao acampamento. Diferentes
aspirações se fazem presentes em tal traslado, tentando através dele chegar a uma condição
que permita realizar certos projetos de vida, como a educação universitária para os filhos, por
exemplo: "quero que meu filho seja arquiteto", dizia Luísa. Deste modo, que a sua presença
no lugar implica a busca de algo “melhor” foi um comentário reiterado.
Tal movimento evoca também questões trabalhistas. Foi assim que muitas pessoas
falaram da situação que estavam atravessando na rua, antes de se tornarem parte dos sem-
terra: uma situação de escassez de trabalho, de difícil sustento material. Na cidade “não tem
futuro”, o trabalho é instável, os sem-terra “são uma bênção” para quem se encontra sem
emprego na cidade. A esse respeito, as pessoas vivenciam uma estreita margem de decisão,
uma situação coercitiva que os coloca diante da possibilidade de acampar.
Aproximadamente 30 “famílias” habitam o acampamento. Embora ser “pai de família”
seja uma condição que mereça grande consideração para ser acampado, em Cachoeira existem
pessoas que não formaram uma família de procriação, outros são viúvos e seus filhos vivem
por conta própria, como também uma grande percentagem de homens cuja família nuclear
não se mudou para o acampamento, de maneira que vivem sozinhos ali (com exceção de
Jacinta, não existem mulheres vivendo sozinhas). Esta última situação é considerada uma
circunstância transitória. As famílias vivem na “cidade” de forma temporária, até que “saiam”
as terras, até terminarem os estudos, até o término do ano para que possa ser feita a
transferência dos filhos na escola, ou outros motivos. Acontece que essas famílias mantêm a
casa na “rua”, mantêm um espaço de segurança enquanto o homem permanece no
acampamento, que é considerado um lugar de difícil estadia. Outro caso é aquele em que a
família nuclear se encontra incompleta, ou aquele em que o tempo de permanência das
mulheres é dividido entre o acampamento (onde está o marido) e a “rua” (onde estão os
filhos).
Em algumas ocasiões, as visitas entre os acampados e suas famílias são mais
freqüentes; em outras, transcorrem vários meses entre cada encontro, pela impossibilidade de
se pagar a passagem. Acontece, por outro lado, um duplo movimento nas visitas; embora seja
mais freqüente a saída do acampado, no entanto, o caminho inverso não fica ausente. A
distância da família é um difícil desafio para os acampados. Em minhas visitas a Cachoeira,
experimentava com freqüência a ausência temporária de algumas pessoas que saíam para
visitar suas famílias (em geral, nos fins de semana), ausências nas quais a colaboração dos
acampados vizinhos com tal situação ao cuidarem, por exemplo, dos animais de quem
viajava – se fazia presente.
Nos casos em que a família habita no acampamento e mantém a casa na cidade, a
vigilância desta última é realizada por outro membro da família, por um parente, ou um
vizinho. De modo geral, os acampados mantêm laços com suas famílias de orientação, em
especial as mulheres. Pais e irmãos são figuras reiteradas em seus discursos, e acontecem
comumente visitas mútuas. Várias situações deste tipo ocorreram durante o tempo em que
realizei meu trabalho de campo. Para citar um exemplo, apontarei Ana Maria, mãe de dois
acampados que encontrei com freqüência no acampamento. Entretanto, ela vivia em Feira dos
Moradores. Ali tinha sua casa, seu roçado e seus animais. Contou-me que a cada 15 dias,
aproximadamente, dirigia-se a Cachoeira para visitar seus filhos e ajudá-los: lavando suas
roupas, provendo-lhes coisas etc. Durante o tempo em que Ana Maria permanecia no
acampamento, um tio cuidava de sua casa em Feira dos Moradores.
Deste modo, tanto no caso das pessoas que acampam com suas famílias, como no das
que não o fazem, é central no acampamento o círculo de relações mais amplo que se expande,
não apenas para membros mais próximos da família, mas também para outros parentes ou
vizinhos. Eles são um importante elemento de apoio para a permanência no acampamento,
que não se restringe a quem o habita. O parentesco e a amizade estendem o âmbito de sua
influência, formando uma rede de familiares e amigos que excedem o espaço físico de
Cachoeira e se envolvem no conflito, criando um espaço de segurança e apoio que se torna
fundamental.
Os acampados vivem nas casas do antigo engenho, velhas casas de material que no
passado pertenceram aos moradores. Novas relações sociais ocupam o velho espaço, que flui
assim com a corrente do tempo. Cada “família” em Cachoeira possui uma parcela de terra, na
qual cultivam os mantimentos necessários para o próprio consumo. Alguns dos produtos são
também vendidos nas feiras. A divisão em parcelas foi realizada, conforme me contaram os
acampados, aproximadamente uns dois ou três anos atrás. Foram eles mesmos, junto com
integrantes dos outros assentamentos e acampamentos de Açude, pertencentes à CPT, que o
fizeram. As pessoas se reuniram e com uma corda delimitaram seus espaços de trabalho: “Não
tinha nada dividido, nada tinha ainda (...) aí pronto, se ajuntou aqui um rapaz que tinha mais
entendimento, outro tinha metro (...) e medindo com corda, vai, e botaram número (...)
pronto, aí ficou, cada um que trabalha sabe para onde vai”.
97
Contou-me um acampado que a
outorga das parcelas divididas foi mediante sorteio.
Esse parcelamento não está oficializado, espera sua confirmação: “mas agora quando
receber a imissão de posse, quem vem bater os piquetes é o exército, falta o exército vir,
bater os piquetes, pronto, acabou”.
98
Vários acampados assinalaram a característica provisória
dessa divisão. Apesar desse fato, ao definir seus locais de trabalho, o parcelamento adquiriu
grande importância na organização do acampamento. Significou um passo para a apropriação
de um espaço, para a permanência, para a fuga de uma situação de transitoriedade. Antes da
divisão, as zonas de cultivo encontravam-se indefinidas. As pessoas enfatizaram este fator.
Cada família possui então uma parcela delimitada. Macaxeira, mandioca, batata,
batata-doce, jerimum, milho, melancia, feijão-verde, quiabo, maxixe, fava, inhame,
bananeiras, cajueiros, graviola, acerola etc. contam-se entre os produtos cultivados pelos
97
Dorival.
98
Dorival.
acampados, todos eles utilizados na alimentação cotidiana (alguns deles, como as árvores
frutíferas, já se encontravam antes no local).
O roçado emprega a força de trabalho familiar. No caso das pessoas que vivem
sozinhas, o trabalho é individual, embora existam também intercâmbios entre os vizinhos (por
exemplo, alguns acampados me contaram que trabalham às vezes nas parcelas de outros e
estes outros em suas parcelas). A atividade agrícola é o centro da organização cotidiana, o
ritmo diário estrutura-se em função do trabalho no roçado, que é o principal meio de
subsistência e ocupa uma ampla faixa horária do dia.
Os roçados são espaços de grande importância para os acampados. Ocupam um lugar
central, tanto em seu cotidiano empírico, como em seu discurso. Grande parte de sua conversa
é destinada a eles. As pessoas assinalam constantemente o fato positivo de terem um roçado,
apesar de não serem ainda donos das terras. Poder plantar e a independência que isso lhes
proporciona (trabalhar para eles mesmos) adjetiva a apreciação da vida no acampamento,
onde o roçado se constitui como elemento positivo fundamental. Em meus encontros com os
acampados, o roçado assumiu um significativo papel na constituição de sua apresentação, na
manifestação de sua vida, assim como na recepção que me proporcionaram. Assim, o desejo
de me mostrarem as suas parcelas, de me oferecerem presentes e de me fazerem experimentar
os produtos de seu trabalho foram formas generalizadas de acolhida entre as pessoas do
acampamento.
Entretanto, os acampados enfatizaram a precariedade com que vêm desenvolvendo
esse trabalho. Entre outras coisas, a água é escassa (em várias parcelas, não em todas), as
pragas assolam, não possuem nenhum tipo de maquinaria, a mão-de-obra é insuficiente e o
dinheiro se encontra ausente. A insuficiência material leva os acampados a inventarem
alternativas para o melhor cultivo. A reciclagem e a criatividade são elementos de destaque
nos roçados, assim como o cultivo orgânico. Por outro lado, as plantações são diversificadas e
contam com uma assessoria técnica da CPT.
As pessoas plantam a mínima parte de sua parcela. Não é unicamente o que foi
destacado no parágrafo anterior que conduz a essa situação, mas também, e de modo muito
importante, o “medo” de perder seu trabalho se as terras não chegarem a sair”. O medo de
que um “despejo” leve embora a sua obra.
A distância percorrida para chegar ao roçado varia de família para família, mas em
geral requer um tempo extenso de caminhada. Embora existam casos em que a parcela se
encontra próxima à “casa”, uma grande parte dos acampados se na situação de percorrer
cotidianamente um longo trecho. Este é um dos fatores enfatizados pelas pessoas ao
assinalarem as dificuldades de se viver em Cachoeira.
99
Atravessar a distância entre a casa e o
roçado implica uma grande perda de tempo e energia. A situação significa para muitos uma
das contrariedades que devem ser enfrentadas em face da transitoriedade que envolve o
acampamento: as “casas” onde se encontram vivendo atualmente são um espaço de acolhida
temporária. Acontece que as pessoas estão habitando a sede do antigo engenho, isto é, o
conjunto de moradias próximas à Casa Grande (incluída esta última). Isto teve como razão
uma questão de segurança: pouco tempo antes de eu ter chegado a Cachoeira havia ocorrido
ali uma série de roubos, de maneira que se considerou conveniente agrupar as moradias em
uma distância mais próxima da sede do engenho.
100
Assim, aqueles que se encontrassem
vivendo longe da sede deveriam trasladar-se para esse local. Algumas das casas antigas foram
divididas para agrupar mais de uma família. Isso significou para muitos um afastamento do
roçado. O desejo de construir a casa perto dele, que isso facilitaria seu ritmo de trabalho
cotidiano, foi mencionado por uma quantidade expressiva de acampados.
De modo geral, a maioria dos homens se dirige ao seu roçado de manhã cedo e eles
voltam para acampamento quando o calor do sol aumenta (no final da manhã). É nesse
momento que almoçam, dando a si mesmos, então, um tempo pequeno de descanso até que o
sol desista da sua intensidade. Voltam depois para roçado e permanecem ali até a tarde
começar a cair. Nem todos os dias são iguais e existe variabilidade entre os acampados quanto
a isto. A distância anteriormente mencionada entre as casas e o roçado influi na organização
cotidiana do trabalho e nessa variabilidade. Assim, o trecho que devem percorrer faz muitas
vezes com que desistam de voltar para o roçado; em outros casos, as pessoas não retornam ao
acampamento para almoçar, levando com elas uma marmita, trabalhando de modo contínuo
para poderem voltar um pouco mais cedo. Para as pessoas que dispõem do roçado perto de
casa, o tempo percorrido no trajeto não constitui uma preocupação.
O ano se estabelece em duas estações verão e inverno as quais impõem uma
reorganização do trabalho. O inverno estende-se aproximadamente dos meses de abril e maio
até setembro e se caracteriza principalmente por ser uma temporada de chuvas. O verão
99
É interessante neste sentido levar em conta o mencionado por Heredia (1979) a respeito de uma população de
camponeses localizada em um município da Mata Norte, próximo de Açude: “A casa e o roçado correspondente
constituem geralmente uma única unidade espacial, não existindo normalmente nenhuma separação evidente
entre eles” (:37).
100
Não foram unicamente roubos os eventos associados às medidas de segurança tomadas no acampamento.
Observou-se mais acima que o despejo também motivou uma estratégia de agrupamento, pois logo depois desse
incidente os acampados se instalaram perto dos moradores, na sede do Engenho.
abrange os meses restantes. Minha estadia no acampamento foi justamente em uma época de
mudança (julho a setembro); estava chegando o verão.
101
Além do trabalho no roçado, muitos acampados dedicam-se à criação de animais.
Existem espaços comuns onde alguns animais são guardados; outros são colocados perto das
casas de seus donos. Vacas, bois, cabras, burros, galinhas e cavalos estão entre os animais
criados. Alguns deles, como as galinhas e as cabras, oferecem produtos para a alimentação.
Outros, como os burros e os cavalos, são meios de transporte. As vacas e os bois são, em
geral, criados e depois vendidos (quando alcançam um tamanho considerável). O cuidado dos
animais também é de grande importância para os acampados. Faz parte do que significa o
trabalho na terra, constitui seu saber-fazer.
A pesca é outra tarefa que se encontra presente entre as atividades de subsistência de
algumas pessoas. Uma tarde, por exemplo, conversando com Estela, vimos seu marido passar
com outro acampado. Iam pescar. Ao retornarem, era noite. Eu estava na casa de Luísa
(onde me hospedava); os dois homens passaram por ali e a ocasião foi propícia para me
mostrarem alguns espécimes que tinham pescado. Entretanto, a pesca não se apresenta de
forma tão importante como o cultivo e a roça. Tampouco é um elemento organizador do ritmo
diário.
Como assinalei anteriormente, os acampados participam de algumas feiras com a
finalidade de vender os produtos de seus roçados. Esse é um meio comum de obterem
dinheiro para comprar as mercadorias de que precisam para o seu consumo. Entretanto, tal
obtenção é extremamente difícil, e a ausência de dinheiro é uma problemática central. Foram
duas as feiras mencionadas pelas pessoas: a de Açude e a de Uaiana.
102
A primeira é “muito ruim”, segundo os acampados. Realiza-se aos sábados pela manhã
na cidade homônima. Não significa uma alternativa considerável que a venda, quando
acontece, corresponde a um preço extremamente baixo. Eles me diziam que isso ocorria pela
grande quantidade de produção que ali é vendida, o que é acentuado pela divisão entre a feira
“normal” e a feira “dos sem-terra”, divisão esta estabelecida pelo prefeito de Açude que “não
gosta dos sem-terra, não”. Dessa forma, quem vende no evento são os que se instalam na feira
normal, aqueles que dispõem de mais mercadorias. Para obter alguma vantagem com aquela
101
Heredia (1979) realiza uma análise minuciosa dos processos de trabalho atravessados por cada cultivo e a
disposição do calendário agrícola. Em referência às duas estações que organizam o ano, a autora assinala o
plantio como uma atividade normalmente associada ao inverno, temporada de chuvas, e a colheita como um
momento predominante do verão, estação seca.
102
O crescimento experimentado pelas feiras da Zona da Mata pernambucana a partir do “processo de expulsão
dos moradores dos engenhos […] desencadeado a partir de meados da década de 40 e acelerado nos últimos anos
[…]” (:1) é assinalado por Palmeira (1971).
venda, os sem-terra que têm uma produção “muito fraca”, conforme comentaram comigo
precisam colocar os produtos a preço mais baixo, chegando a tal ponto que não conseguem ter
nenhum lucro, que o dinheiro obtido é gasto com os custos que implica o fato de participar
da feira: trasladar-se, pagar à prefeitura pelo “banco” onde colocam os produtos destinados à
venda etc. Em relação ao transporte, embora se encontre à disposição deles um caminhão da
prefeitura de Açude que se dirige ao acampamento às sextas-feiras para procurar as
mercadorias a serem vendidas, ele é, entretanto, tão pouco utilizado que passou a não ir mais
até lá. Além disso, o retorno fica por conta dos acampados. A volta ao acampamento implica
tomar um transporte em Açude até a estrada e atravessar um caminho que demora mais de
meia hora a pé. Os acampados acabam desperdiçando a produção que não conseguiram
vender.
Desse modo, não existe uma grande participação nesse mercado. Dizia-me um
acampado que a configuração de uma imagem é uma das razões por que participam:
vendendo na feira de Açude, mostram sua produção, a constituição de um roçado, seu
trabalho, e tentam rebater assim as idéias negativas que são formadas pela opinião pública
sobre os sem-terra.
Do outro lado encontra-se a feira de Uaiana (município próximo de Açude). De novo,
o transporte é uma das complicações enfrentadas na realização desta atividade.
103
Entretanto,
no presente caso, a dificuldade é maior, já que a locomoção é mais cara. A venda nesta feira é
mais proveitosa do que na de Açude, razão pela qual os acampados apresentam uma
freqüência maior no mercado de Uaiana, apesar do problema principal do transporte.
As feiras trazem com elas uma importante socialização entre os acampados. Participei
algumas vezes de reuniões na casa de Luísa, naquelas em que vários homens (além da
proprietária da casa e sua filha) uniam-se para “debulhar fava” (que seria destinada à venda na
feira). As risadas e as conversas acompanhavam aquele trabalho, que acontecia habitualmente
às quintas-feiras. Começava de noite, logo do jantar, e se estendia até altas horas. Em geral, eu
me retirava antes e dormia com o som de suas conversas (essa atividade foi posteriormente
suspensa, porque acharam mais conveniente “debulhar a fava” na feira, a fim de que ela não
endurecesse). Depois dessas noites, Tuca, o marido de Luísa, e outros homens
104
despertavam
103
A dificuldade que os trabalhadores mencionam sobre os custos do transporte em relação ao traslado para as
feiras é um dado indicado também em Palmeira (1971).
104
No acampamento, são os homens que participam da feira. É pertinente relacionar este dado ao que é
especificado por Palmeira quando analisa duas feiras da Zona da Mata pernambucana (localizada uma no norte e
a outra no sul): “Tanto feirar (vender na feira) como fazer feira (comprar na feira) são definidos socialmente
como atividades masculinas” (1971:8). O autor assinala os matizes que tal afirmação adquire em relação aos
em torno das 4h da manhã e se dirigiam até a estrada. Os produtos a serem vendidos eram
transportados no burro que pertencia a Tuca, que logo voltava para o acampamento, enquanto
os outros se dirigiam à feira em um transporte que tinha de ser pago. Algumas vezes o
alguns deles, outras vezes o outros e, nessas idas, habituam-se a transportar os produtos
quando não uma grande quantidade dos que naquele momento o estão indo. Este foi
um comentário expresso pelas pessoas a respeito das idas às feiras, enfatizando assim os
intercâmbios que são realizados entre os “companheiros” por ocasião de sua participação
nesses mercados.
Outros meios auxiliam a subsistência material. Entre eles estão as cestas básicas”
distribuídas pelo INCRA. Quando chegavam, elas significavam uma ajuda na manutenção
(que em outros tempos foi combinada com estratégias coletivas de obtenção de dinheiro).
Contava Dorival a respeito das cestas e dos “mutirões” trabalhos comunitários destinados a
fins coletivos – que se realizavam no passado:
Porque quando dava feira [aludindo com esta palavra às cestas básicas] no
INCRA cadê agora, que passaram uns três meses sem vir feira a gente
tinha dinheiro junto, ninguém sofria não. pegava 200, 150, 300 contos e
(...) fazia uma feira. Quando chegava aqui, botava ali, repartia um tanto para
cada um. Antes daquele dinheiro se acabar, chegava a [cesta] do INCRA,
pronto, era uma ajuda. Agora não. A gente trabalhava, pegava dinheiro
dentro dessa Casa Grande para guardar, quando dava febre, [tinha dineiro].
(...) O resto o povo carregava tudinho. pronto, agora ninguém mais quer
fazer um mutirão, não tem mais mutirão.
Entretanto, fazia uns meses que a entrega das cestas não acontecia, "pela greve”
(que teve lugar no INCRA em um período anterior à minha chegada a Pernambuco),
declararam algumas pessoas. Supunha-se que essa fosse uma situação temporária, mas havia a
promessa de seu retorno. Além das cestas outras receitas se fazem presentes, como a “bolsa
família” que recebem alguns acampados (Luísa, por exemplo, recebe do governo uma
pequena quantia mensal por dois filhos em idade escolar) e outros poucos que contam com
recursos da aposentadoria. Finalmente, quanto à sua situação material, os acampados
desenvolvem o trabalho em condições de grande precariedade; o dinheiro encontra-se
virtualmente ausente, somando-se a isso a insegurança de sua estadia na terra.
Preparar as comidas (café da manhã, almoço e jantar), limpar a casa, procurar água e
lavar a roupa são trabalhos geralmente destinados às mulheres. Em rias ocasiões me
encontrei com as mulheres do acampamento levando um balde à cabeça com água de cacimba
diversos setores da feira (os quais se destinam à venda de diferentes produtos). A masculinização se torna efetiva
basicamente nos setores centrais, como o de farinha (:17).
(cuja distância demanda certa energia na caminhada), ou dirigindo-se ao rio para lavar a
roupa. Eram elas que preparavam as comidas e se encarregavam da limpeza. Entretanto, por
existir uma considerável quantidade de homens vivendo sozinhos, eles costumam realizar
essas tarefas por sua conta, quebrando as habituais divisões sexuais do trabalho. Assim,
muitos homens lavam sua roupa, cozinham, cuidam da casa, entre outras atividades. Por outro
lado, existem desempenhos compartilhados; dessa forma, muitas mulheres trabalham nos
roçados, buscam lenha, ordenham e cuidam de alguns animais (embora animais cujo cuidado
demanda um emprego maior de força, como vacas e bois, estejam reservados exclusivamente
aos homens). O exercício do roçado envolve geralmente a participação de ambos os sexos.
Todos os acampados começam o dia muito cedo. Os horários diferem um pouco mas,
em geral, às 5 horas da manhã iniciam a sua atividade. Uma das primeiras tarefas dos
acampados – dos homens em geral – é levar seus animais para pastar nos lugares que lhes são
correspondentes. Tive a oportunidade de observar também, de manhã cedo, a ordenha de uma
vaca e das cabras. Joaquim, que vivia em frente à casa da Luísa, dedicava-se cotidianamente a
tal atividade (quando os animais se encontravam em condições de oferecer o alimento). Os
filhos da Luísa o ajudavam e o leite era compartilhado. Também observei Benedita
ordenhando uma cabra.
Quando chega o final da tarde e o sol indícios de sua partida, os acampados
começam a guardar seus animais. Esta é uma tarefa realizada principalmente por homens
pais e filhos a desempenham.
O cada manhã é uma refeição importante, já que sustenta grande parte do trabalho
da manhã. Uma combinação de alimentos tais como cuscuz, batata-doce, macaxeira, batata,
ovos, carne de charque e salsichas, sempre acompanhados por café, consistem da composição
do café da manhã (também esses produtos são usados no almoço e no jantar, sendo os
diferentes tipos de feijão elementos importantes nestas duas últimas refeições, e que não são
servidos no café da manhã). Na casa de Luísa e Tuca, na qual me hospedei, era Luísa quem se
dedicava ao preparo das comidas, o que tomava grande parte de seu tempo. Seu despertar era
seguido do trabalho doméstico. Os filhos a ajudavam, tanto como ao pai, nas tarefas por eles
realizadas. Quem vive sozinho faz os trabalhos individualmente, entretanto, mantém intensas
relações com os seus vizinhos, ajudando-se em algumas tarefas e compartilhando produtos
necessários para a subsistência cotidiana. Essa interação se também em grande parte de
seus momentos livres.
Os banhos acontecem, geralmente, logo ao final da jornada de trabalho. Algumas
pessoas lavam-se nos rios (existe um espaço feminino e outro masculino para a realização
desta atividade); outras o fazem no banheiro, se a casa onde acampam possui esse tipo de
infra-estrutura (alguns preferem banhar-se no rio, inclusive neste caso). Os rios oferecem água
para o cuidado pessoal, para a lavagem das roupas, entre outros usos, sendo as cacimbas
aquelas que provêem água para o consumo. Dois rios atravessam Cachoeira: um que fica atrás
do acampamento, e um riacho que cruza a frente das casas. No caso das cacimbas, as pessoas
mencionaram que existem três, todas localizadas a uma distância considerável da sede do
engenho, de maneira que elas requerem um investimento em caminhada.
É depois do banho, quando a noite começa dar os seus primeiros passos, que tem lugar
o jantar, em geral, a atividade final do dia. É a hora do descanso, que na casa da Luísa
costumava vir acompanhada dos programas de televisão (existe luz elétrica no acampamento),
os quais alguns acampados assistiam juntos em algumas ocasiões. A casa de Luísa, como
dissemos, era um espaço de reunião. Desconheço se minha presença ali teve influência
considerável em relação a este tema.
105
Retornando à questão de gênero, as circulações pelo espaço denotam trajetos
masculinos e femininos diferenciados. O trânsito das mulheres pelas áreas “públicas” do
acampamento responde a uma locomoção de trabalho. Fora dessa circunstância, sua
circulação em Cachoeira não tem razão de ser. É melhor ficar em casa, evitar os falatórios. A
circulação dos homens não provoca tais falações; eles podem deslocar-se pelo local sem
necessidade de um objetivo de trabalho. Espaços comuns, como os bancos de troncos diante
da Casa Grande, costumam agrupá-los para compartilhar alguns momentos livres. A casa de
Luísa e Tuca, por exemplo, constituía um centro de reuniões de alguns acampados, que
freqüentemente passavam por ali para conversar (conversas das quais Luísa participava de
forma ativa, já que se davam em um espaço que lhe pertencia). Nos casos que pude observar,
eram os homens que iam às feiras para vender os produtos e eram eles que iam ao INCRA na
hora de saber sobre o processo de desapropriação. Também eram eles que se dirigiam para as
reuniões com a CPT que não aconteciam em Cachoeira e a quem encontrei em uma ocasião
no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Açude (tinham ido ao lugar para se informarem
sobre um projeto de criação de gado). Da mesma forma, são eles que participam ativamente
das assembléias e tomam ali decisões (embora algumas mulheres se façam presentes, elas
105
No que diz respeito à organização cotidiana (organização horária, atividades, alimentação, entre outros
fatores), observam-se importantes similitudes com o mencionado por Heredia (1979) que, como mencionei,
estuda uma população rural situada na Mata Norte de Pernambuco, próxima ao lugar onde localizei minha
etnografia. Este me parece um dado importante de ser destacado, que diz respeito a certas generalidades
apresentadas pelos camponeses da região e ilumina alguns aspectos do acampamento quanto ao caráter
camponês de quem acampa.
ficam em geral nas janelas, limitando-se a escutar). O “mutirão”, ao qual me referirei mais
adiante, é outra atividade exercida pelos homens.
O deslocamento das mulheres para além do acampamento é mais freqüente do que
dentro dele, embora, por causa da falta de dinheiro, isso não ocorra seguidamente. Assim,
visitam sua família de orientação (em geral, de forma mais constante que os homens), e
também se dirigem às urbanizações próximas (como Tupirama ou Açude) para fazer compras,
freqüentar a Igreja etc. Com essas viagens, os espaços “públicos”, que na Zona da Mata Norte
de Pernambuco estão associados normalmente aos homens (ver Heredia, 1979), convertem-se
também em local de circulação feminina. Ali, o espaço próximo torna-se mais perigoso que o
longínquo; o “fora”, o “público” nem sempre estão identificados com os lugares distantes, os
quais são, em muitos casos, mais íntimos que o espaço habitado. Esta situação é interessante
para repensar as fronteiras traçadas em função de critérios espaciais, para repensar os limites
do acampamento e, em conseqüência, o conflito. Se levarmos em conta a rede familiar que
atua no acampamento sem estar ali localizada e a circulação das mulheres por lugares
distantes, os limites espaciais se tornam confusos. O acampamento o é uma comunidade
estabelecida e delimitada, atravessada por relações de parentesco que se caracterizam por uma
“reciprocidade generalizada”, a qual se transmuda em “equilibrada”, à medida que nos
afastamos do setor residencial, até se tornar “negativa”.
106
O acampamento nos obriga a
repensar “fronteiras”.
107
Existe um obstáculo à circulação livre no acampamento e nas áreas próximas que
oprime tanto homens como mulheres. Ele tem a ver com a vigilância constante implicada na
vida no acampamento. Por questões de segurança, as pessoas procuram andar acompanhadas
e não sair à noite. Não são unicamente medidas que restringem a circulação as que são
adotadas visando à cautela. Todas as noites, quatro acampados homens permanecem em
vigília para cuidar do lugar. As vigilâncias são rotativas, uma vez por semana cada homem
tem seu turno. Isso não impede que no outro dia se dirijam ao roçado para trabalhar.
Como foi dito anteriormente, a concentração na sede do engenho também obedece a
questões de segurança. Por causa de roubos que aconteceram na casa de alguns acampados
que se encontravam vivendo a uma distância considerável da sede do engenho, foi feito um
agrupamento pouco tempo antes de eu começar meu trabalho de campo. Quando eu estava
106
Ver Sahlins (1969); o modelo que elabora o autor não é aqui aplicável.
107
Ao analisar diversas questões, autores como Sayad (1991) que chama a atenção sobre a aldeia rural de
origem ao pensar a situação do migrante na cidade Williams (2001), Tepicht (1975), entre outros, apontam
para os limites variáveis entre o campo e a cidade e oferecem ferramentas interessantes para se pensarem as
fronteiras, o próximo e o distante, os espaços de dentro e os espaços de fora.
finalizando a etnografia, aconteceu uma nova concentração, fazendo-se ainda mais estreita a
distância entre as instalações dos acampados. Isso foi devido a um novo episódio de “tiroteio”
em Cachoeira. Em poucas palavras, deu-se o seguinte: uma noite chegou um grupo de homens
com armas (querendo roubar gado, segundo alguns comentários). Dirigiram-se para as casas
mais distantes e dispararam contra um jovem acampado que saiu de casa para ver o que estava
acontecendo. A bala roçou sua cabeça. Oito pontos. Logo, os tiros foram dados na direção da
sede do Engenho. Ninguém conseguiu ver quem era; chegaram quando já estavam escapando.
Uma semana depois, entraram na casa do jovem em questão e queimaram várias roupas
(inclusive aquelas em que se encontravam os seus documentos), mas tampouco viram quem
fez isso. As denúncias à polícia não geraram um movimento recíproco. Levantaram-se
algumas hipóteses a respeito da identidade do responsável. O acontecido deixou muito
nervosos os habitantes de Cachoeira, que intensificaram as medidas de segurança (entre elas,
as mudanças das pessoas que se encontravam mais distantes). A idéia de partir foi colocada
diversas vezes naqueles dias por alguns acampados.
Outras medidas preventivas são adotadas no acampamento. Não as descreverei aqui
para preservar os informantes. O importante é assinalar que no cotidiano de Cachoeira o
estado de alerta é uma questão permanente; estar “de tocaia” estrutura a vida no
acampamento, e não apenas diante da possível chegada de “bandidos”, mas também em face
da possível chegada da polícia. A vigilância, a sensação de ameaça fazem parte do dia-a-dia.
Ajudar
108
seus pais e ir à escola são as atividades principais dos “filhos”, os jovens de
pouca idade que vivem no acampamento. Tupirama é uma pequena concentração urbana
próxima a Cachoeira, o lugar mais concorrido para ir à escola. Aquele é o ponto mais
próximo. Entretanto, alguns jovens se dirigem para Açude, que em Tupirama a escola vai
apenas até a série e certas pessoas desejam continuar os estudos. A escola é um dos
motivos mencionados de forma mais constante para explicar a ausência das famílias de
Cachoeira; a distância e o caminho a para dirigir-se cotidianamente até a instituição são
dificuldades assinaladas pelos entrevistados. Torna-se mais difícil ainda para quem se dirige
para Açude. Assim, os filhos de Luísa, por exemplo, que freqüentavam a escola à tarde, iam
caminhando todas as manhãs para Tupirama e dali tomavam um transporte que chegava até a
estrada, lugar onde deviam pegar outro veículo com destino a Açude. Retornavam somente ao
final da tarde. Por segurança, os acampados cuidam para que os trajetos não sejam feitos
individualmente.
108
Uma análise das categorias de “ajuda” e “trabalho” se encontra em Heredia (1979).
Também o que está relacionado aos cuidados médicos constitui uma dificuldade
primordial que, em alguns casos, justifica a ausência das famílias do acampamento. O ponto
mais próximo de atendimento médico é Tupirama, entretanto, conforme o comentado, ele é
muito deficiente. Existe escassez de pessoal médico. As pessoas podem dirigir-se a um posto
de saúde, por exemplo, para tomar a pressão, mas a entrevista com o médico se torna
complexa. Isto se acentuou no período da minha pesquisa etnográfica já que, em função do
que me disseram alguns informantes, o médico era um candidato às eleições políticas que
iriam se realizar em setembro, o que ocupava o tempo destinado ao atendimento médico. Por
outro lado, é problemática a compra de medicamentos, devido à dificuldade de se obter
dinheiro no acampamento.
As pessoas não têm nenhum tipo de amparo se acontecer alguma emergência. As
distâncias entre os postos de atendimento médico e o acampamento são indiferentes às
dificuldades do corpo, e devem ser transpostas a cavalo ou a pé, a fim de se pedir uma
ambulância. Assim, quem fica doente em Cachoeira “morre” este foi um comentário
repetido várias vezes por Luísa durante nossas conversas.
As compras devem ser realizadas em Tupirama ou em Açude. Tupirama é mais perto,
Açude é mais barato. Entretanto, o primeiro lugar demanda um tempo considerável de
caminho, enquanto o último inclui o preço do transporte. Existem algumas sociabilidades que
facilitam a ação de comprar. Dessa forma, por exemplo, um acampado realiza freqüentemente
compras em Tupirama para os vizinhos que assim o desejem. Isso é um prazer para ele, dizia-
me esse acampado, sendo gratificante a confiança que as pessoas depositam nele.
O transporte, as distâncias constituem complicações enfatizadas pelos acampados. O
acampamento localiza-se longe da estrada, configurando um trecho que, na maioria dos casos,
é atravessado a (a moto é outro meio de transporte, mas quase não é utilizada por causa de
seu custo). As longas distâncias implicam um tempo importante de caminhadas. Por outro
lado, os custos dos transportes, que constitui outro dos obstáculos ao movimento espacial
das pessoas. O tempo de traslado, como dissemos, traz dificuldades às dinâmicas
cotidianas: dirigir-se aos roçados, à escola, ao médico, à igreja, realizar as compras, entre
outras atividades, ficam agravadas pelas distâncias a percorrer. O adiamento das visitas às
famílias é uma das questões mais sentidas pelos acampados em relação aos transportes.
Todas as terças-feiras pela manhã os homens realizam um mutirão (como o reparo de
um caminho, de uma cacimba etc.). Essa tarefa é decidida nas “assembléias” que têm lugar no
mesmo dia, logo depois de terminado o mutirão. Alguns acampados adjetivaram esses dias
como “sagrados”, enfatizando que simbolizam um compromisso comum. Aproximadamente
às 7 horas da manhã, os homens se reúnem na sede do engenho de onde se dirigem ao local da
realização do mutirão. É de cerca de duas horas o tempo destinado a essa atividade, logo
depois da qual tem lugar a assembléia. Esta é uma reunião entre os próprios acampados que
acontece em um espaço público, reservado para fins coletivos: a sala da frente da Casa
Grande do Engenho,
109
sala esta em que na maior parede está o chapéu de Amaro,
acompanhado logo abaixo da inscrição: “Amaro vive”.
Tive a oportunidade de participar de uma dessas reuniões. Estavam presentes os
homens e também algumas mulheres que participavam da janela, escutando o que se
conversava dentro da sala. As temáticas que ali se discutiam giravam em torno da organização
cotidiana do acampamento, da viagem que seria realizada a Recife (especificamente ao
INCRA) nos próximos dias em razão do processo de desapropriação de Cachoeira, assim
como foram esclarecidos alguns desentendimentos acontecidos entre os acampados em função
de questões coletivas. Na assembléia existia um moderador, que anotava os nomes das
pessoas que pediam a palavra e cedia o tempo para tal pedido na ordem correspondente ao
que havia sido realizado (as opiniões dessa pessoa tinham grande acolhida pelos ali
presentes). Cada um respeitava o tempo de exposição dos outros, dando as suas opiniões ou
respostas no momento indicado pelo moderador. Embora as discordâncias façam parte da
sociabilidade, elas não ocasionam, entretanto, a ruptura dos laços sociais criados no
acampamento, à exceção de alguns casos extremos em que tem lugar a expulsão de certa
pessoa ou ela se retira do acampamento por vontade própria. O primeiro caso não é freqüente;
em geral, existem certas regras implícitas e explícitas de convivência às quais os acampados
procuram se adequar. Embora não desapareçam as tensões, estas são aplacadas. A intervenção
da CPT é central no modo com que é organizado o acampamento; a Pastoral dispõe as pautas
básicas a serem seguidas na estruturação de Cachoeira.
Antes de serem realizadas as assembléias, os participantes são avisados através de uma
sineta, cujo toque gera um som utilizado não apenas para os avisos das reuniões, mas também
em face de qualquer dificuldade acontecida no acampamento, convertendo-se, assim, em um
instrumento de alarme que colabora no esforço de se ficar constantemente “de tocaia”.
Atualmente, não existem coordenadores no acampamento, embora apareçam figuras
que se destacam por sua participação mais ativa em assuntos coletivos (o que costuma ser um
fator gerador de tensão que, ao colocar em jogo as disputas pelo poder, ameaça derrubar o
109
A frente da Casa Grande é um espaço de encontro coletivo; ali as reuniões têm lugar. Este foi também o
primeiro sítio sugerido tendo como finalidade a minha hospedagem. Além disso, as pessoas me receberam e me
ofereceram gentilmente uma despedida na Casa Grande. Todos esses eventos falam sobre a importância deste
espaço.
objetivo de que ninguém mande em ninguém”). O mecanismo organizativo baseia-se em
propostas discutidas em assembléias e decididas por meio de votação; o voto majoritário
finaliza o processo. Para ser tomada uma decisão, a assembléia em que isso ocorre deve
contar com a participação mínima da metade das famílias existentes no acampamento
(representadas por um de seus membros que, em geral, é um homem adulto). A organização
atual não é a mesma do passado, na qual a formação de associações e a figura dos
coordenadores fizeram parte das experiências organizacionais vivenciadas em Cachoeira.
Além das assembléias realizadas pelos acampados anteriormente descritas, as
assembléias constituídas pela CPT, cujo procedimento é coordenado por um ou mais
trabalhadores da Comissão. Embora apresentem um ritmo contínuo, elas não têm uma
freqüência temporal precisa e acontecem tanto em Cachoeira como em outros engenhos de
Açude ligados à CPT. Em certas ocasiões, as reuniões acontecem com as pessoas de um
engenho em particular; em outros casos, absorvem os vários engenhos (Trindade-Santos,
Goitá, Montes Claros) ocupados pelo mesmo Movimento, gerando-se assim um contato entre
eles. Não esse contato entre Cachoeira e os engenhos da Usina Açude ligados ao MST.
Essas assembléias adotam diversas formas, que vão desde reuniões relacionadas a questões
concretas do acampamento, até derivações mais abstratas, como “leituras bíblicas”. Participei,
por exemplo, de uma reunião no assentamento Montes Claros, realizada com o objetivo do
encontro entre os acampados e os assentados da CPT nos engenhos da Usina Açude com
um membro da FIAN que naquele tempo se encontrava no Brasil (por questões que não
diziam respeito ao assunto). Além de acampados e assentados dos vários engenhos e pessoas
relacionadas à mencionada organização internacional, ali estava o Padre Teodoro.
As outras reuniões coordenadas pela CPT às quais assisti foram as duas que deram
início à minha entrada no acampamento. Embora aquelas ocasiões tenham sido marcadas pela
minha apresentação, esta forma de agrupamento costuma ser realizada periodicamente em
Cachoeira. Nessas reuniões, conversa-se sobre a situação do acampamento, atualizam-se as
novidades, emitem-se algumas opiniões, fala-se de possíveis atitudes a serem tomadas, entre
outras questões. Foi a mesma pessoa da CPT que esteve presente nos dois eventos. A
disposição espacial era semelhante àquela das assembléias das terças-feiras: os homens dentro
da sala, sentados em círculo, as mulheres geralmente apoiadas nas janelas. Antes de ter lugar
uma reunião, os acampados são previamente avisados pela pessoa da CPT encarregada do
evento e as atividades cotidianas são abandonadas em função da assistência ao mesmo.
Os acampados também participam de eventos organizados pela CPT que não
apresentam relação imediata com sua situação específica e têm lugar em áreas distantes.
Certas manifestações como a “Romaria da terra” e o Grito dos excluídos”, que tiveram lugar
em começos do mês de setembro, contaram com a presença de alguns acampados de
Cachoeira.
Para finalizar, considero importante agrupar as diferentes ramificações que foram se
abrindo através do anterior percurso pelo acampamento, expondo algumas reflexões em
relação ao tema que me ocupa no presente trabalho e que diz respeito aos diferentes registros
dos conflitos de terra. Vários pontos despertaram a minha atenção quanto ao modo com que o
conflito se delineia a partir da perspectivas das pessoas que vivem ou viveram em Cachoeira.
Certos elementos discursivos tornam-se centrais para a reflexão em questão. Em
primeiro lugar, cabe assinalar a personalização dos relatos. O conflito estrutura a vida das
pessoas que se encontram no acampamento; não é surpresa, portanto, que ele seja muitas
vezes inseparável da narração de suas experiências pessoais. Apresentações feitas em primeira
pessoa refletem o conflito, humanizando-o. Ele se imbrica, assim, entre os interstícios sutis do
cotidiano, tornando-se ele mesmo um aspecto do cotidiano. O conflito retorna vivido,
enriquece-se de emoções, funde-se com manifestações de sensações e histórias pessoais, de
sonhos e desejos, de pesares. Os limites arbitrariamente criados entre “o social” e “o
individual” apagam-se nessa personalização do conflito. O relato “social” estrutura-se tendo
como base a primazia da pessoa.
O conflito por terra reconcilia-se com a história pessoal, adquirindo desse modo uma
profundidade no tempo. Ele se torna contínuo, atravessa uma história de vida na qual a
pobreza material e a experiência de trabalho agrícola costumam ocupar um importante lugar.
O conflito contempla em geral um passado camponês que teve que ser abandonado, um luto
em muitas ocasiões difícil de ser superado. O campo constitui os habitantes de Cachoeira, é
parte de sua história. Tal constituição faz da busca da terra um retorno, uma aproximação com
o passado sempre presente. Acampar não é então uma questão conjuntural. Ao tornar-se parte
de uma vida, o conflito não apenas se personaliza, mas também adquire uma história,
atravessando uma linha de metamorfose que hoje tem a forma de acampamento.
A idéia de luta é central na estruturação do relato, no registro do conflito. Os
acampados estão “na luta”, cuja faceta positiva está impressa na busca: o desejo de viver da
terra, a concretização do enraizamento, o gosto pela vida no campo, a realização de certos
projetos. Viver em Cachoeira representa um ponto de satisfação a este respeito. A imagem
negativa da luta é mais extensa, mais pronunciada. As palavras que descrevem situações de
difícil trânsito tornam-se centrais na composição dos discursos sobre o cotidiano no
acampamento, tanto passado como presente. O conflito se faz vivido e a vivência é de
“sufoco”, de “agonia”, de “sofrimento”, de “medo”. É uma vivência de incerteza e esperas, de
“saudades” da família, de um passado que deixou mortos, de choques, de enfrentamentos com
outros. Existe um “usineiro” por trás de tudo isto, um “latifúndio” que mata. A lembrança de
tal figura se torna freqüente no acampamento. Certos detalhes espaciais a materializam de
forma explícita: uma cruz diante da casa de um ex-morador, que simboliza os mortos na luta,
um chapéu de Amaro na sala de reuniões da Casa Grande, que tem o seu lugar na parede junto
à inscrição “Amaro vive”.
É importante esclarecer que, embora de maneira recorrente, nem sempre o inimigo tem
a forma do “usineiro” para as pessoas que vivem em Cachoeira. Algumas vezes essa figura
não foi identificada pelos acampados com as pessoas que invadiram o espaço, ou com quem
havia algum desentendimento. Os inimigos são vividos como múltiplos, nem sempre
conseguem fundir-se com o “usineiro”. Esta fusão realiza-se nos discursos mais explícitos da
CPT, nos quais a variabilidade de pessoas que entram em confronto com os acampados
encontra uma figura que os unifica de maneira imutável: aqui o “latifúndio” é o inimigo
unificado, o “aleph”
110
que conjuga a variabilidade.
Assim como o apelo em relação ao “usineiro”, a sinalização dos “companheiros” é
outra figura retórica utilizada em alguns discursos. Como destacamos mais acima, na narração
dos acampados e dos moradores o conflito se personaliza, adquire a profundidade histórica de
uma história vivida, derrubando limites entre o social e o individual. A “luta” narrada pelos
habitantes de Cachoeira tampouco respeita tais limites; em seus discursos, a luta diz respeito
tanto a um esforço comunitário como pessoal. A “luta pela terra” mistura-se com a “luta da
vida” e, neste sentido, acontece a “hibridização” (Comerford, 1999).
111
Separar-se de suas pessoas mais queridas, adotando a “saudade” como dado de vida;
viver com medo: medo do “despejo”, medo dos “bandidos”, medo da perda do que foi
construído, medo do envenenamento das cacimbas, medo da consumação da ameaça do
triunfo do inimigo, utilizando o estado de alerta e a vigilância constante como uma atitude de
vida; sentir-se em terra “emprestada”, em “casas” que não o são, à espera da burocracia, à
espera da possibilidade de melhorar sua precária situação material, de poder desenvolver seu
trabalho sem os obstáculos da transição, transição esta que se torna um modo de vida todas
110
A expressão é tirada de um conto de Jorge Luis Borges: “El Aleph” (El lugar donde están, sin confundirse,
todos los lugares del orbe, vistos desde todos los ángulos (Borges, 2006:188)).
111
No capítulo I do livro, Comerford estabelece analiticamente uma distinção entre três usos da palavra luta em
relação a diversos contextos e discursos. Um dos critérios de diferenciação entre os dois usos mencionados aqui
se refere ao pessoal/comunitário da luta. Enquanto “o discurso da 'luta pela terra' enfatiza o caráter 'comunitário'
do enfrentamento das dificuldades e a importância da união, […] nas narrativas da luta cotidiana, os pobres
enfatizam sobretudo seu próprio esforço pessoal […]” (Comerford, 1999:32).
estas são situações que compõem o cotidiano do acampamento; situações evocadas nos
discursos dos habitantes de Cachoeira e que descrevem o conflito a partir do ângulo que seu
registro permite iluminar, ou seja, a partir do ângulo da experiência pessoal.
O acampamento implica, assim, um estado de resistência constante. Uma resistência
que se torna intersticial, uma luta que se impregna dos detalhes cotidianos. Significa
“agüentar”. As pessoas constroem vida, laços, roçados e, por um ou por outro motivo, elas os
abandonam. Não é fácil permanecer acampado, as entradas e as saídas são freqüentes, a vida
errante se abre neste transitar. O conflito transcende o espaço.
O acampamento é um espaço móvel. Um espaço de resistência. Demanda para as
pessoas uma luta que traz com ela o selo da transição, uma luta que imprime no espaço a
conotação de processo. Os acampados plantam apenas uma mínima parte da parcela que ainda
não é sua, habitam casas temporárias, intercambiáveis, atravessam um processo de
desapropriação, muitos se separam “momentaneamente” de suas famílias. A vida no
acampamento se constrói a partir da transição, edifica-se em meio à correnteza, sua força
impede a estabilidade. A fluidez é uma marca da vida em Cachoeira, como também o futuro,
razão de ser do presente. O acampamento se sustenta por um projeto, e esse projeto, esse
sonho, adquire uma forte presença no imaginário que ali circula. O espaço do acampamento é
transcendido e o tempo ali vivido é explicitamente sentido como uma transição.
É importante assinalar uma diferença entre os acampados e os moradores no que diz
respeito à vivência da transição. Além de ter sido estabelecida uma clara delimitação entre
moradores e sem-terra nos começos do acampamento embora atualmente não haja uma
diferenciação social entre uns e outros existe de fato um traço marcante nos moradores que
não se encontra em todos os sem-terra (embora alguns destes últimos apresentem esse traço)
que considero importante destacar. Ele diz a respeito à permanência no lugar. São dois os
moradores, antigos habitantes do lugar, que se encontram vivendo em Cachoeira. Além dessas
duas figuras, conheci outros ex-moradores que não habitam mais ali. Seus discursos
enfatizavam um elemento comum a todos eles, inexistente em grande parte dos sem-terra: o
vínculo com Cachoeira, vínculo este que fala de uma história de vida, que expressa a idéia de
enraizamento. Embora isto não retire o estado de transição que implica a situação de viver em
um espaço “em processo de”, tampouco elimina a diversidade de situações: para os moradores
de Cachoeira que atualmente vivem ali (como também para uma parte dos acampados), a casa
em que habitam é a “sua” casa. Cachoeira é a sua casa.
Os habitantes do lugar experimentam múltiplas existências. O conflito não termina nos
limites do acampamento, transcende a ele. Transcende para a sua casa “na rua”, para aqueles
que têm família longe, para os que lidam com a situação de estar em um espaço e viver no
outro. Transcende para outros acampamentos e assentamentos, para os Movimentos Sociais e
também para o mundo da administração, do poder burocrático. O papel definidor do processo
de desapropriação na hora de determinar a estadia, a terra onde plantar e onde transcorrer o
cotidiano, faz das instituições encarregadas do processo, particularmente do INCRA, um
agente presente. A burocracia impõe a dependência. É um agente longínquo que decide, um
mundo com gica própria e poder de definir as situações. A burocracia significa espera.
Significa também lentidão. É a lentidão decisória da situação. A burocracia ofusca o
movimento, a luta dos acampados, impõe um mundo de papéis cuja lógica se torna
dificilmente explicável. O registro institucional do conflito expande-se, seus conceitos
pulverizam-se, as linguagens técnica, judicial e administrativa circulam no acampamento
deixando entrever palavras como “vistoria”, “benfeitorias”, “desapropriação”, “processo” nos
relatos de seus habitantes. Entretanto, nessa difusão não funciona apenas uma imposição, pelo
contrário, a desapropriação de Cachoeira iniciou-se a partir de sua ocupação, a expansão da
narrativa burocrática é o resultado de uma luta.
Ao falarem sobre o processo administrativo, os acampados enfatizaram diversas
questões. O mal-estar a respeito do ocorrido com a desapropriação de Cachoeira era uma
delas. O processo tinha “sumido”, estava “morto”, “enterrado no fundo do poço” anos e
eles não sabiam a respeito (tampouco tinham clareza sobre quando o processo de Cachoeira
parara). Fazia pouco tempo, aproximadamente um mês ao sair a imissão de posse” de
Goitá que as pessoas se inteiraram daquela situação, apesar de suas idas constantes ao
INCRA durante todo esse tempo. Alguns acampados adjetivaram aquele evento de “uma
enrolação”, “uma fraude”. Fez-se menção a proprietários de terras que “compram”
funcionários, apesar de entre estes haver também muitas pessoas boas, embora o resto “não
conte”, falaram. Os subornos impedem os excluídos de terem acesso à justiça, opinou um
acampado. O processo os deixava assim “à deriva”: “Ninguém sabia de nada (...) e o
trabalhador rural ficava (igual) navio, ficava à deriva”.
112
A espera era outra questão. Esperar que saiam as terras” era uma frase generalizada.
Às vezes se falava de esperar a terra sem nomear a instituição (o que freqüentemente
acontecia com as mulheres). A lentidão que implicava a espera foi também uma opinião
visitada de maneira recorrente. Ter paciência e aguardar as terras: este, diziam, era um
objetivo a ser alcançado, apesar do medo que lhes provocava depender de algo do qual pouco
112
A última citação corresponde às palavras de Seu Almeida, atual acampado de Cachoeira.
sabiam, algo que se encontrava fora de seu controle. Esperar que no INCRA se resolvam as
coisas, que ali se tenha a “vontade” de fazê-lo. Esperar serem tocados pela “sorte”. Esperar e
agüentar; só se conseguem as coisas lutando, dizia-se. Nesses casos, não era a relação
estabelecida com o INCRA o aspecto que se destacava ao falarem da luta; tal relação se
perdia em meio à resistência cotidiana no acampamento (e não apenas no acampamento).
A incerteza que esta situação de espera gerava costumava ser acompanhada de
conjecturas a respeito do futuro. Conjecturas, nada certo, nada claro. Dessa maneira, as
decisões de permanecer ou não no acampamento não contavam com o dado administrativo
sobre o estado das terras. Por exemplo, Túlio, um acampado, expressou seu desejo de ir
embora; fazia mais de dois anos que estava no acampamento e nada acontecia quanto à
situação legal das terras. Isto tornava as circunstâncias muito difíceis devido ao fato de as
plantações serem escassas e a venda dos produtos do roçado ser inexistente, salvavam-no os
bois. Aqui, o tempo e a experiência em Cachoeira são os indicadores a serem levados em
conta na hora de decidir sobre a permanência. Os acampados não contam com um
conhecimento claro sobre a situação do processo administrativo; o que acontece na burocracia
se revela apenas em retalhos, de forma que a possibilidade de decidir com base nisso torna-se
vã.
Estas questões falam sobre o modo com que a existência administrativa do processo
de desapropriação é vivida por parte dos habitantes de Cachoeira, protagonistas da história.
Um mundo poderoso, fechado à sua intervenção, abre-se. Uma intervenção que não possui
maior espaço de ação do que o de informar-se de forma rudimentar (que nunca se sabe o
que se passa na realidade). Este é um mundo que tem um pouco de invisível, um pouco de
fictício. Não é muito o que se sabe dele.
Entretanto, se por um lado essa vivência enfatizava a sensação de estarem “avulsos”,
“sem direitos, nem segurança”, de estarem “à deriva”, na espera, por outro, a desapropriação
era vivida pelos acampados como um objetivo a ser obtido por meio de sua própria ação.
Tinha sido a ocupação que havia conseguido que Cachoeira entrasse em um processo, e era
necessário seguir lutando para ganhar a terra, lutando além do acampamento, no INCRA.
“Vamos seguir indo”: os comentários das pessoas enfatizavam assim a necessidade de ir ao
INCRA para escapar da calma e da lentidão burocrática, para que o processo não
permanecesse “esquecido” (apesar de lhes ser difícil o transporte). Fazia-se necessário ir, para
que a sua situação administrativa não ficasse parada, diziam. E isto não se percebia apenas em
comentários, pelo contrário, as idas à instituição foram um fato durante o tempo em que estive
em Pernambuco. Idas que traziam novidades administrativas, as quais falavam, em geral, do
encaminhamento do processo para a efetiva desapropriação. Mas ao constatarem a demora do
encaminhamento em relação ao que fora informado, quando os acampados, logo depois de
transcorrido o dia marcado, inteiravam-se de que o processo não tinha fluído da mesma forma
que o tempo, as datas pronunciadas não haviam se cumprido e as informações ficavam presas
ao “ainda não”, o desconcerto se fazia de novo presente. Assim ocorreu, por exemplo, com o
envio do processo a Brasília, que sempre era adiado. Entre outras sensações e apesar do
transtorno, a situação produzia firmeza na atitude dos acampados; as idas ao INCRA deviam
continuar. As palavras ditas por Seu Almeida são exemplificativas:
Seu Almeida: Agora nós vamos ter conhecimento, porque nós agora vamos
ter que debater e ficar acima do INCRA. (...) E nós vamos lutar por essa
causa; de 15 em 15 dias, de mês em mês, vamos estar lá, perto, (...), por
nossa conta, porque se não fizer assim, o processo não anda. Quem se cala
consente, né? Se não está andando e o povo está calado, então está satisfeito,
deixa lá.
MFF: Você foi na quarta passada?
Seu Almeida: Fui, lá no Incra.
MFF: E agora vão de novo?
Seu Almeida: Vamos de novo, na quinta-feira está indo mais uma equipe
para lá, para ver como está a situação. Vamos deixar primeiro ir para
Brasília, vamos dar três dias para o INCRA, depois que for para Brasília, e aí
nós vamos saber se o processo seguiu ou não, ou se está parado aqui. Se
estiver parado, a gente vai novamente, um grupo de pessoas daqui, um
ônibus, dois ônibus, vamos lá. (...) Vamos de Cachoeira, de Goitá, de
Trindade, de Montes Claros, (...) então junta todos e a gente faz um
movimento bem reforçado e ocupa o INCRA, para reivindicar nossos
direitos, nossas causas, porque se a gente ficar parado, os fatos não
acontecem, o final da história é essa. (...) A gente quer ter uma resposta
concreta se o documento entrou em processo na brigada em Brasília; nós
vamos na próxima quinta-feira; depois a gente vai dar mais 15 dias. Depois
de 15 dias, nós vamos de novo, para ver se o processo continua andando
ou se parou lá, se chegou e estacionou. Se estacionou, a gente vai ter que
arengar (...) para o andamento do processo.
Desse modo, os acampados visualizam sua luta como um fator central no processo de
desapropriação. É esta luta que move o processo, que o faz existir e o acorda de sua
catalepsia. A burocracia é vivenciada como um mundo poderoso, incontrolável e secreto, do
qual se depende, mas também como um mundo cujo hermetismo é capaz de ser alterado se
aquilo de que se trata é lutar. Os acampados se percebem potencialmente transformadores; sua
ação se torna central na hora da desapropriação. E esta ação é experimentada como a pequena
parte de uma luta mais ampla.
Umas últimas palavras quanto ao duplo registro que os acampados apresentam em
relação ao Movimento, à CPT, no caso que nos ocupa. Ela é tanto um grupo de referência,
como um dado externo. Desse modo, as pessoas experimentam uma relação ambígua a
respeito: em certas ocasiões, são parte do Movimento, mas não em outras. Existe um discurso
explícito que apela para a definição de ser um acampado da CPT. Entretanto, existe também
um discurso vivido, espontâneo, que tende à separação entre os acampados e as pessoas do
Movimento. Neste último discurso, a CPT é constituída por seus trabalhadores, pelas pessoas
que chegam a Cachoeira vindas de Recife, pessoas diferentes, que vivem em um mundo
diferente, que levam uma vida diferente e que, junto aos acampados, participam de maneira
importante no que diz respeito às questões do acampamento.
Capítulo III
O CONFLITO EM DISPUTA: A DENÚNCIA
A ambigüidade existente no que diz respeito ao pertencimento à CPT por parte das
pessoas que vivem em Cachoeira ambigüidade que os une, ao mesmo tempo em que os
separa da organização – torna pertinente a consideração do registro que a CPT elabora sobre o
conflito. Partirei das documentações escritas que a Comissão possui em relação aos casos da
Usina Açude. O discurso oral que os trabalhadores
113
deste agrupamento elaboravam em torno
do conflito identificava-se em seus traços mais gerais com o explicitado nos papéis. Ao
explorar pontos de cruzamento e diferenças entre esses documentos e o relato dos acampados,
pretendo trazer alguma luz ao registro dos agricultores habitantes de Cachoeira que analisei
no capítulo anterior, tentando clarear certos trechos surgidos da vivência cotidiana e alguns
pontos de reflexão provenientes de um olhar mais externo, um olhar estruturado no
Movimento. Farei desta forma algumas menções à documentação que recolhi em Recife, na
sede da CPT Nordeste.
A documentação consultada, que não esgota os arquivos da CPT, está organizada em
um conjunto de três pastas dedicadas à “Usina Açude” e separadas em ordem cronológica.
Minhas considerações não abrangem a totalidade dos papéis, que não consegui fotocopiar
tal quantidade
114
e se limitam, quanto ao tempo, aos finais do ano de 2001. Fevereiro de 1998
é o ponto de partida, o início da história.
Nas mencionadas pastas percebe-se um movimento de fusão. O caso é o da Usina
Açude. As várias ocupações realizadas dentro de sua propriedade fazem parte do conjunto. As
informações que ali se encontram referem-se tanto aos engenhos particulares, como a dados
generalizados que sublinham a idéia de unicidade, idéia esta que se define com o nome da
Usina.
Na Introdução referi-me aos convites feitos pelas pessoas da CPT para que conhecesse
aquele mundo pernambucano. Havia, por um lado, os seus convites para que eu me
113
Utilizo esse termo na ausência de outras categorias. O que tento através dele é diferenciar os sem-terra que se
encontram acampados das pessoas que trabalham na CPT e não são acampados nem assentados (desconheço se a
totalidade desses trabalhadores recebe remuneração).
114
No momento da pesquisa de campo não considerei tais documentações, nem tampouco a CPT como um
objeto de análise. Minha consulta ao material tinha fins meramente informativos sobre o acontecido em Açude,
razão pela qual não me preocupou a realização de cópias exaustivas. Tampouco fui sistemática a respeito da
seleção do fotocopiado. Apropriava-me do que me parecia de utilidade para esclarecer a história.
familiarizasse com a região: com eles eu visitei alguns sindicatos da Mata Norte, participei de
reuniões realizadas em outros engenhos da Usina Açude, fui à sede da Usina e ao Ministério
Público, além de ter sido convidada para participar do Grito dos Excluídos, da Romaria da
Terra e de uma conferência que o Padre Teodoro daria na Universidade. Por outro lado, a
CPT sugeria um grande leque de pessoas com quem conversar e fontes às quais consultar: os
advogados que trabalhavam com o caso que estava pesquisando, a Promotora de Justiça de
Açude, os arquivos disponíveis na sede da CPT. Um enorme leque abria-se através de suas
sugestões, expandindo meu campo etnográfico. Assim como o conjunto de documentos sob o
nome de “Usina Açude”, esses convites e essas indicações falavam de um registro do conflito:
um conflito que se expandia, e se expandia de um modo diferente de como acontecia nos
relatos dos habitantes de Cachoeira em que se fundia com as histórias pessoais,
transcendendo, com os sem-terra e os moradores, as datas de início do acampamento e os
espaços concretos (o último principalmente com os sem-terra). O conflito é agora o da Usina,
e Cachoeira é uma parte dele. Mais estritamente, também a Usina é um fragmento, o conflito
é o latifúndio.
Dessa maneira, o conflito que estudava não podia restringir-se na CPT ao espaço de
Cachoeira nem ao espaço do INCRA. Cachoeira era apenas uma fração daquele mundo mais
amplo de conflitos. Esse mundo encontrava-se agora repleto de referências, de âmbitos
diversos que faziam parte do campo de luta em que a CPT se desdobrava e em relação aos
quais essa entidade contornava a sua apresentação do conflito. Este ponto será explorado ao
longo do capítulo.
É no meio de outras experiências, então, que a história de Cachoeira se reconstrói nas
pastas consultadas. Ali figuram alguns episódios contados pelos acampados. A reconstrução
adquire formas diversas, colore-se com notícias da imprensa, de documentos burocráticos, de
folhetos de denúncia, de notas, cartas e comunicados, entre outros tons. Além de adquirir
formas diversas, os papéis provêm de variados espaços: INCRA, usinas, jornais, advogados,
polícia, CPT etc. E conservam uma precisão na cronologia do calendário. Entre estes escritos
provenientes de outras entidades e que se incorporam aos arquivos da CPT, encontram-se, por
exemplo, documentos produzidos pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Açude (junto
aos quais estão documentos da Polícia Civil, uma nota enviada por esse mesmo Sindicato ao
Juiz de Direito da Comarca de Açude, certidões do cartório de Açude, entre outros papéis);
documentos da Delegacia de Polícia Civil de Açude nos quais figuram denúncias feitas pelos
acampados; documentos elaborados pela Usina Ubaúna denunciando os sem-terra (“croqui da
área de feijão localizado no engenho Cachoeira” assinado por um topógrafo e um agrônomo,
queixas na Delegacia de Polícia de Açude e uma nota enviada ao Superintendente Regional
do INCRA); documentos provenientes do Ministério Público do Trabalho que dão conta do
desenvolvimento da denúncia da CPT em tal Ministério (atas elaboradas pelos funcionários
desse Ministério: termos de denúncia, termos de audiência); documentos originados no
INCRA, os quais dão informações sobre os processos de desapropriação;
115
e fragmentos de
jornais, que enfatizam episódios relacionados às manifestações dos sem-terra. Neste capítulo
serão analisados os documentos produzidos pela Comissão, objetivando iluminar a visão que
a CPT tem do conflito, como assinalei anteriormente.
Não é qualquer episódio que ali figura. Não é a fluidez cotidiana o que é contado. Pelo
contrário, são os eventos mais ruidosos aqueles que ganham lugar. Dessa maneira, e no que
diz respeito especificamente à Cachoeira, deparei-me em minhas leituras das documentações
com os “tiroteios”, o “despejo”, a derrubada da cerca, as ameaças do “fazendeiro vizinho”
(esses acontecimentos não eram contados da mesma forma que os habitantes de Cachoeira o
faziam, como se verá mais adiante). Tropecei em vários nomes próprios mencionados nos
relatos dos acampados. E tropecei em mim mesma, “traduzindo”, em função desses papéis, as
histórias ouvidas em Cachoeira – tentando entender a partir do meu registro, tentando colocar-
lhe uma ordem cronológica que permitisse me situar, tentando localizar as pessoas
mencionadas dentro de meu esquema: quem são os sujeitos mencionados pelos sem-terra?
Usineiros? Vizinhos? Comerciantes? Imobiliárias? Deputados? À medida que conseguia
realizar esse movimento, eu era invadida de certa satisfação. Parecia que entendia mais, que
me aproximava de uma exatidão em relação à história. Decodificava assim as histórias vividas
que os acampados contavam para mim, e o fazia a partir de uma linguagem que não era a dos
acampados.
Queria reconstruir a história do acampamento. E acreditava que aquela história poderia
se fazer de uma única maneira: misturando as informações legais, formais, das
documentações oferecidas pela CPT com as narrativas dos acampados. Acreditava que
poderia chegar a uma história absoluta do acampamento quando, de forma paradoxal, era o
registro diverso de um conflito o objetivo de minha tese, registro que trazia com ele a
exposição de vários mundos. Uma contradição interna com minha busca que me perseguiu
durante todo o campo.
Nos papéis da CPT encontrei de certo modo uma explicação que se enquadrava nos
meus códigos. Nas conversas com os trabalhadores da Comissão eu me deparava com a
115
É de se destacar a aquisição de documentos do INCRA nos arquivos da CPT e não no primeiro espaço.
mesma coisa. Queria entender a história a partir de um registro mais consagrado, isto é, um
registro exato, explícito em datas, em localização de pessoas, de instituições, de responsáveis,
explícito em informações legais. E me dei conta disso: eu consagrava uma maneira de narrar a
história, precisava de sua “tradução formal” para entendê-la. Sem me dar conta, queria chegar
a uma “verdade” estabelecida em papéis. Essa foi uma inquietação implícita em minha
experiência etnográfica, uma limitação que me parece importante assinalar, entre outras
coisas, porque registra a força que ganham certas narrativas na hora de se contar uma história.
As narrativas hierarquizam-se. Certas maneiras de contar impõem-se, ganham mais
credibilidade do que outras. O mundo que descrevem se faz aceitar junto a elas. E sem me dar
conta, minha preocupação com uma história “formal”, que proporcionasse “exatidão” à
narrativa dos acampados, fez-me cair na adoção daquela hierarquia.
Foi essa preocupação que me levou a indagar nas documentações da CPT. Seus
arquivos me ofereceram um pouco dessa história pretensamente exata. Deparei-me ali com
dados precisos em datas, com informações administrativas oriundas de diversas entidades,
como as mencionadas anteriormente. Ofereceram-me, além disso, um discurso explícito de
denúncia. Nos dados e nas notas “provenientes de e dirigidas a”, visualizavam-se também
alguns interlocutores em relação aos quais se construía um mundo, um outro mundo do
conflito. Assim, foi-me revelado através dos documentos um novo registro, uma nova
história. Sem pretender ser exaustiva nem manter uma ordem quanto à localização dos papéis
nas pastas, tentarei descrever alguns dos elementos que compõem esta nova visão.
As denúncias explicitamente formuladas pela CPT (a qual se faz acompanhar, em
algumas ocasiões, de outros co-autores, como o MST e a FETAPE) têm uma presença
reiterada entre os papéis. Embora a redação de cada uma delas varie (algumas são redigidas
tendo como objetivo a denúncia formal no Ministério Público do Trabalho, outras são
comunicados à imprensa, entre outras formas), os argumentos se mantêm. As “graves lesões a
direitos individuais e trabalhistas” que “estão ocorrendo relativamente a centenas de
trabalhadores rurais demitidos pela Usina Açude nos últimos anos, nos municípios de Açude,
Nossa Senhora da Mata, Ubaúna e Ibaté”,
116
desenvolvem-se em vários pontos. As dívidas da
Usina com os trabalhadores despedidos (e outros organismos) estão entre elas:
Com as atividades industriais paralisadas desde 1996, a Usina Açude
demitiu, sem indenizar, mais de mil trabalhadores. Possui um dos maiores
116
Denúncia apresentada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), Federação dos Trabalhadores na Agricultura
do Estado de Pernambuco (FETAPE) e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) no Ministério
Público do Trabalho. Recife, 12 de junho de 2000.
endividamentos do Estado, totalizando, a valores de janeiro de 1998, R$ 250
milhões de dívidas trabalhistas e públicas. Possui um patrimônio com apenas
7 mil hectares de terras improdutivas e instalações deterioradas, os seus bens
não chegam a valer R$ 10 milhões.
117
Outro dos pontos enfatiza a “fraude” cometida pela Usina e outras entidades:
Para evitar a desapropriação e para lesar os seus credores, a Usina Açude
tem cometido diversas fraudes e violências, no que tem contado com a
omissão ou com a colaboração de autoridades públicas. Na Justiça do
Trabalho homologou acordos trabalhistas ilegais, com terras
supervalorizadas e direitos dos trabalhadores subdimensionados, gerando
minifúndios e aprofundando a miséria. Ou seja, recebendo lotes inferiores,
muitas vezes a 0,5 hectare, os trabalhadores ficam sem perspectivas de uso
até para a subsistência. Além do mais, esses acordos consideraram, sempre,
cada hectare de terra em valor pelo menos três vezes superior ao seu valor de
mercado, ou seja, tomando-se cada hectare por uma média de R$ 2.000,00 e
no tamanho inferior ao permitido para escrituração em cartório.
118
As agressões praticadas pela Usina com os moradores e os acampados e com as
famílias que se encontram na zona em conflito é outro aspecto da violação aos direitos
humanos denunciada pelos Movimentos.
As famílias vivem sofrendo ameaças por parte de homens armados a mando
da usina, despejos são efetuados, inclusive dos moradores, com posterior
destruição dos roçados e envenenamento das terras e da água.
119
Deste modo, conta-se nos documentos que prosseguiu “a operação fraudulenta levada
a cabo pela Usina Açude",
120
apesar das denúncias:
Tendo em vista a etapa subseqüente da fraude: gerar minifúndio, miséria e
depois reunir os imóveis forçando a venda por parte dos trabalhadores
famintos e sem perspectivas […]. Passando fome e desesperados, são
compelidos por “laranjas” da Usina Açude a “vender” os lotes adjudicados,
trocando-os por eletrodomésticos em lojas comerciais da Região e por outros
bens de valor inferior.
121
A menção às dívidas da Usina, à “fraude” cometida na Justiça do Trabalho e às
agressões que estão sofrendo os trabalhadores constituem argumentos centrais da denúncia
realizada pela CPT e pelos Movimentos em relação ao conflito da Usina Açude. Entretanto, as
117
Resumo informal da denúncia anterior, assinado pela CPT e pelo MST. Intitula-se “MST e CPT denunciam
ao Ministério Público Fraudes da Usina Açude”. Recife 12 de junho de 2000.
118
Idem nota anterior.
119
Nota à imprensa. 10 de maio de 1999.
120
Idem nota 116.
121
Idem nota 116.
denúncias são várias e redigidas em datas diversas. Nessas tantas denúncias visualizam-se
outros pontos. Podemos mencionar, assim, a crítica às “autoridades policiais” que “não atuam
com agilidade e firmeza”
122
diante da denúncia das agressões sofridas pelos trabalhadores; à
Justiça do Trabalho pelo fato de “ter admitido ser instrumentalizada nessa operação e […] ter
renunciado totalmente aos deveres constitucionais, que lhe são inerentes, como instância
protetora dos trabalhadores e dos seus direitos”;
123
ao Cartório de Açude por sua “lentidão”
para entregar ao INCRA os documentos necessários ao processo de desapropriação.
124
As “lesões a direitos individuais e trabalhistas” encontram-se estreitamente associadas
neste discurso à ocupação das terras da Usina:
Cansados de esperar pelo pagamento dos seus direitos, os moradores
juntaram-se a outros sem-terra da região e ocuparam os engenhos da Usina
(Remanso do Capibaribe, Carcará, Rio Claro, Montes Claros, Trindade,
Goitá, Ponte, Esperança, Baixa do Rio, Terra Verde, Cavalo do Cão,
Açucareiro , Laurentino, São João e Privilegio), e iniciaram o plantio de
lavouras […]. As famílias sem-terra de Açude convocam a população a
apoiar a luta por terra das famílias que dedicaram 50, 40, 30, 20 anos de suas
vidas trabalhando no plantio e no corte da cana, pegando sempre no pesado
para o patrão e, no final das contas, tiveram seus direitos desmerecidos.
125
O trecho anterior e outros papéis que encontrei nas pastas, além de mostrarem um dos
pontos centrais do discurso explícito elaborado pela CPT em relação ao caso da Usina Açude,
oferecem um traço desse discurso que também se fez presente em minhas conversas com os
trabalhadores da Comissão. Este traço destaca a autonomia dos sem-terra e dos moradores na
ocupação e na organização do acampamento e mostra algumas ambigüidades a respeito da
relação entre a CPT e este último espaço. Aqui, a CPT apresenta-se como uma entidade
externa que apóia os trabalhadores, seu protagonismo desaparece. Não obstante, em outras
ocasiões, como nos episódios narrados pelos moradores e pelos sem-terra no capítulo anterior,
ao lado do papel protagonista dos acampados, a CTP também foi apresentada, de maneira
geral, como um ator central na organização do acampamento. A esse respeito, observa-se uma
ambivalência quanto à referência que fazem os acampados sobre a Pastoral, ocorrendo que ela
é vista às vezes como uma entidade externa que apóia a sua ação, ao passo que em outros
momentos os acampados se consideram parte da CTP, a qual se torna então indissociável da
luta que levam a cabo. Realizarei um pequeno parêntese para me referir a esta questão.
122
Idem nota 117.
123
Idem nota 116.
124
Idem nota 119.
125
Idem nota 119.
Nas comunicações de ocupação enviadas à imprensa, por exemplo, são as “famílias de
trabalhadores sem-terra” que se “juntaram aos moradores”, como se destaca às vezes
aquelas que ocupam a área. Nesse processo, a CPT aparece como um ente externo que se
limita ao “pedido de solicitação de vistoria”.
No caso da ocupação narrada por um sem-terra, exposta no capítulo anterior, a CTP
foi vista como um espaço fundamental de sua organização, tanto na proposta de acampar em
terras da Usina Açude – e junto a isto a proposta de assumir a identidade de sem-terra – como
na maneira de ser estabelecida a ocupação. A presença de alguns trabalhadores da CPT, a
presença de um “apoio” proveniente de outros acampamentos e assentamentos da mesma CTP
e do MST que ficaria de forma temporária para ensinar” às pessoas novas neste tipo de
experiência, são traços indicativos a respeito.
E não apenas na ocupação os acampados avaliaram um desempenho central da CPT
que ia além de sua constituição como um espaço de apoio. Alberto, um sem-terra que se
encontra desde o tempo da segunda “turma” em Cachoeira, contou-me sobre a sua
proximidade com a bebida alcoólica, a respeito da qual os trabalhadores da CPT chamaram a
sua atenção. No comentário de Alberto, a Comissão se fazia indissociável do estabelecimento
de certos padrões morais necessários de serem adotados para a permanência no acampamento.
No capítulo anterior, Dorival contava que logo depois da morte de Amaro seu retorno
ao acampamento foi o resultado de um pedido da CPT ao “mais velho, para indicar os novatos
que fossem chegando”. A discussão mencionada por este entrevistado sobre a instalação da
segunda “turma” de acampados é indicativa desta visão de inseparabilidade da Pastoral e da
luta levada a cabo. Discutia-se ali se a implantação do acampamento se realizaria com a
utilização das casas do engenho, ou se seriam montadas barracas. Era a CPT que discutia o
assunto.
Dorival: É porque quem queria botar na lona é Sílvia [uma funcionária da
CPT], [...] porque ela disse que esse aqui não estava parecendo com
acampamento, porque esse aqui está se parecendo com uma moradia de
engenho, porque sem-terra prestava na lona. Ela mandou fazer uma vila
aqui, de casa, tudo barraco de lona. ela disse: de dia ficava tudo aqui
dentro da lona, embora de noite se passasse para dentro do barraco, para
dormir dentro do barraco de telha. Mas de dia estivesse aqui, porque se
passasse qualquer um, via tudo na lona, é sem-terra. Mas aqui, disse ela,
que não estava se mostrando como sem-terra, e sem-terra não pode antes de
ser assentado, antes de fazer a casa dele, não pode morar em casa de telha.
MFF: Por quê?
Dorival: Não sei, sei que ela falou, né? podia morar em lona, que sem-
terra é assim. [...] Ela disse que aqui é a mesma coisa que morador, que está
morando em casa de telha sem estar acampado, sem nada, mas o Movimento
disse não.
Não pretendo ser exaustiva com os exemplos; procuro citar alguns para dar uma idéia
a respeito de certas ambigüidades que surgem em relação à participação da CPT na
organização do acampamento, as quais podem relacionar-se, por sua vez, com as
ambigüidades visualizadas no discurso dos acampados a respeito de seu pertencimento à
Comissão – a CPT como uma entidade externa ou como um grupo de pertença. Nesse
discurso, por um lado os acampados são a CPT, entretanto, em outras ocasiões, a CPT é
aquele grupo de Recife que apóia o protagonismo dos sem-terra no desenvolvimento do
acampamento, mas que além disso tem em geral uma grande participação na organização
desse espaço.
Voltando ao argumento central, o discurso explícito da CPT em relação ao conflito da
Usina Açude constitui-se em tom de denúncia, em um tom de hacer saber públicamente la
situación irregular de una cosa (Dicionário Kapelusz, 1980: 167).
Como exposto anteriormente, encontrei nos documentos denúncias escritas que
reproduziam o discurso falado dos trabalhadores da CPT quando me contavam sobre o
conflito da Usina Açude. A não-indenização dos trabalhadores da Usina, a fraude cometida na
Justiça do Trabalho e as agressões, os assassinatos e os roubos acontecidos em Cachoeira (em
Cachoeira, porque em geral minhas perguntas se referiam a este engenho) eram pontos
centrais ao se falar do caso. Somava-se às conversas a crítica à lentidão do INCRA e
comentava-se sobre a sua postura injustificada a respeito da exclusão-desaparecimento, nos
processos de desapropriação, do acampamento em questão.
As “violências” acontecidas em Cachoeira como em outros engenhos (nos quais não
me deterei) constituíram-se parte fundamental do relato de denúncia. Como mencionado, o
fato de terem existido assassinatos, por exemplo, foi uma das primeiras coisas que se
destacaram quando me sugeriram Cachoeira para essa pesquisa. As violências sofridas em
particular pelos habitantes do engenho estudado figuram em alguns dos textos de denúncia
geral sobre o caso da Usina Açude:
Após diversas violências e ameaças ocorridas no ano de 1999, recentemente,
no mês de maio de 2000, vários pistoleiros, com armas de grosso calibre,
invadiram o Engenho Cachoeira, durante a noite, disparando tiros contra os
trabalhadores sem-terra e suas famílias, tendo sido atingido um dos
trabalhadores com um tiro de espingarda 12.
126
126
Idem nota 117.
Dessa maneira, nas documentações da CPT, Cachoeira apresenta-se englobada aos
outros engenhos, e ali adquire uma presença particularizada. Cachoeira é um dos engenhos da
Usina Açude, é um dos engenhos ocupados pela CPT, é um dos engenhos onde acontecem as
agressões cometidas pela Usina. Este último ponto provoca uma narrativa mais especializada
em relação a Cachoeira (como também existem outras a respeito de outros engenhos), a qual
está centrada nas violências ali cometidas. Como assinalei anteriormente, tropecei nas
documentações da CPT em episódios já narrados por pessoas que habitam ou habitaram
Cachoeira, e eles são os episódios violentos, os mais ruidosos, os “eventos”, os “conflitos”
necessário recordar que minha observação dos arquivos chega até o ano 2001, em razão do
que certos acontecimentos conflitivos assinalados no capítulo anterior não aparecem aqui).
A “ocupação”. Ela é parte dos eventos que compõem o discurso da CPT sobre o
conflito de Cachoeira. Uma ocupação que aqui se configura em relação à imprensa. O
importante é comunicá-la, difundi-la, justificá-la. Em 31 de agosto de 1999, na madrugada,
“65 famílias de sem-terra e sem emprego ocuparam os engenhos de Cachoeira (350ha.) e o
engenho Goitá (500ha.)”. Relata-se nesta comunicação a localização dos engenhos na Mata
Norte do estado de Pernambuco e que os mesmos “pertencem à Usina Açude que está fechada
mais de dois anos e já foram vistoriados pelo INCRA e considerados improdutivos”.
Também se oferece uma justificativa da ocupação: “As famílias ocuparam porque estão sem
emprego, passam fome e necessitam preparar a terra para o plantio de alimentos”. E são
colocadas outras informações a respeito da questão:
O clima é tenso, por se tratar de imóveis da Usina Açude, palco de conflitos
entre seguranças e sem-terra ligados ao MST e à CPT; do ano passado para
forma ocupados 11 engenhos. O grupo Cunha Silva, proprietário da
Usina Açude, é apontado como o maior devedor do setor sucroalcooleiro,
tendo inclusive um pedido de falência contra si. A Usina deve cerca de R$
251,5 milhões e seu patrimônio não chega a R$ 15 milhões. As famílias
reivindicam do INCRA a agilidade do processo de desapropriação.
127
Os “conflitos”. Um “Registro de conflitos”, no qual há o resumo dos dois tiroteios e do
episódio que os acampados haviam denominado de “despejo” (expostos no capítulo anterior),
incorpora-se também ao relato que nos apresentam as documentações da CPT sobre
Cachoeira. Não é apenas Cachoeira o engenho que ali aparece: Baixa do Rio, Goitá, Montes
Claros, Cavalo do Cão e Esperança são engenhos que acompanham o primeiro. O “registro”
127
“Comunicado à imprensa” enviado pela CPT em 31 de agosto de 1999.
constitui-se de uma ficha” preenchida pelas pessoas que protagonizaram os conflitos: “Esta
ficha é um instrumento para registro dos conflitos no campo. Ela faz parte do trabalho de
documentação da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Visa ampliar e dar maior consistência à
coleta de dados”.
128
A experiência vivida é a que outorga consistência à documentação, a que
fundamenta a elaboração da história do conflito, conflito este cujo significado se encontra
determinado. A narração da história vivida mistura-se assim a uma definição prévia de
conflito, acomoda-se a seus moldes. Um saber local, legislativo (embora a legislação também
diga respeito a um saber local) e teórico relaciona-se àquela definição de conflito.
O conceito classifica-se em vários âmbitos: os “conflitos de terra, aqueles que
envolvem a luta pelos meios de trabalho ou produção”; os “conflitos trabalhistas, aqueles que
dizem respeito à relação de trabalho patrão x empregado: desrespeito trabalhista,
superexploração e trabalho escravo”; os conflitos que aludem às “Secas”, que se caracterizam
“pelos saques, ou tentativas de saques e pelas reivindicações nas frentes de emergência”; à
“política agrícola”, que se referem às “lutas por melhores preços para os produtos agrícolas,
condições de financiamento dos agricultores familiares”; e, por último, os conflitos
relacionados ao “Sindicalismo”, os quais ocorrem “nas intervenções em sindicatos […].
Perseguições, ameaças e outras ocorrências ligadas aos sindicatos ou aos seus dirigentes e
filiados”. Este não é um texto de denúncia, é um instrumento que será utilizado pela CPT para
a produção de suas documentações.
Nos moldes daquela ficha, aparecem os episódios relatados pelos trabalhadores. Aqui
as datas são exatas e predizem os relatos:
22/04/2000: Tiroteio no acampamento de Cachoeira; no dia seguinte, às
11h40, tivemos que correr na chuva para não morrer, até que um
companheiro foi ferido nas costas e as seis bicicletas foram queimadas e
Celso da Bolacha atirando […] dizia vou pegar de unha. 01/05/2000:
Segundo tiroteio. 12/07/2000: O tenente Clarêncio me ameaçou dizendo que
eu estava na mira do revólver dele e faltava ele puxar o gatilho.
12/07/2000: O Sindicato dos Trabalhadores chegou no acampamento com a
Polícia Militar e a promotora derrubando o acampamento.
A ameaça do arame. Aquele que Dionísio iria "comer”, segundo a intimidação do
fazendeiro vizinho. O conflito é narrado nas documentações através de uma nota enviada pelo
Coordenador de Direitos Humanos da Comissão Pastoral da Terra e o advogado dessa
entidade ao Delegado Especial para Apuração das Violências sofridas pelos trabalhadores no
Engenho Cachoeira. Conta-se ali que:
128
Comissão Pastoral da Terra. Ficha para Registro de Conflitos.
Trabalhadores denunciaram perante a Delegacia Municipal de Açude, diante
da qual prestaram queixa no último dia 29/05/00, ameaças recebidas por
parte do senhor José Alberton. Essa pessoa está levantando cercas de arame
farpado na aludida propriedade e disse aos trabalhadores Denunciantes que
faria com que eles “engolissem um metro de arame farpado”, caso as cercas
fossem removidas. [Junto com o relato pede-se que o caso seja investigado]
para fins de apuração de autoria quanto aos tiros e às violências ocorridos
recentemente na citada propriedade.
Como assinalei anteriormente, as narrativas particularizadas de Cachoeira conjugam-
se a uma narrativa que fala sobre a Usina. Às vezes explicitados em forma de exemplo, às
vezes não, os episódios de conflito que no acampamento se configuram tornam-se parte, no
discurso da CPT, das “violências cometidas pela Usina Açude”. Isto não evita que em
algumas ocasiões também atuem como um caso particularizado. Tanto de uma como de outra
forma, o registro dos conflitos” acontecidos em Cachoeira e em outros engenhos não se
limita a cumprir uma função informativa. Como pôde ser observado anteriormente, os
conflitos enunciam-se, explicitam-se, e os enunciados adquirem formas diversas, adaptando-
se a quem os expressa, à forma dos interlocutores a quem se dirigem, aos espaços com os
quais se relacionam. Essa moldagem revela assim um âmbito relacional, no qual se conjugam
diversas narrativas e personagens em função dos quais se delimita o conflito.
É uma “denúncia” o que conforma o discurso mais explícito da CPT em relação à
Usina Açude. Como tal, precisa ter eficácia. O interlocutor ou a referência do discurso torna-
se então central na sua configuração, que a narração do conflito adota a forma de uma
estratégia. São vários os interlocutores ou as referências que nas documentações da CPT
aparecem e que ajudam na delimitação desse conflito. Estes interlocutores/referências revelam
espaços (instituições, entidades, atores etc.) que são parte constituinte da disputa pela terra,
espaços que trazem com eles uma linguagem com a qual é preciso dialogar.
Ao finalizarem uma das denúncias escritas, por exemplo, a CPT, o MST e a FETAPE
solicitam “o acompanhamento deste caso e as cobranças a todas essas autoridades para que
cumpram com os seus deveres”, junto ao qual são enumerados os “órgãos envolvidos”. Estes
são: INCRA Brasília; INCRA Pernambuco; Secretário da Defesa Social de Pernambuco,
Secretário da Polícia Civil; Delegado Especial; Secretaria Estadual de Produção Rural e
Reforma Agrária; Ministério Público do Trabalho; Ministério Público Federal; Ministério
Público do Estado de Pernambuco; Tribunal Regional do Trabalho. Estes órgãos constituem
algumas das referências a se levar em conta na apresentação do conflito, que detêm um
poder de intervenção no seu desenvolvimento (assim, por exemplo, o INCRA associa-se ao
processo de desapropriação das terras; o Ministério Público do Trabalho ao tratamento da
violação às leis trabalhistas cometida pela Usina; a Polícia e a Defesa Social intervêm no que
diz respeito às agressões e às ameaças sofridas pelos acampados etc.).
Os discursos explícitos de denúncia elaborados pela CPT que se encontram nas
documentações, os conflitos descritos naquelas denúncias adotam assim formas diversas,
fundem-se com documentos legais, com comunicados, com notas formais que os remetem a
um amplo leque de interlocutores e atores.
Nesse leque temos o Ministério Público do Trabalho. Existe uma denúncia
explicitamente formulada pela CPT, pelo MST e pela FETAPE com a finalidade de seu
desenvolvimento em tal Ministério. A denúncia tenta demonstrar o “conflito” em relação às
“lesões” causadas aos “direitos individuais e trabalhistas” dos trabalhadores rurais despedidos
pela Usina Açude. Os pontos centrais dessa denúncia já foram expostos antes. O importante é
assinalar aqui que a apresentação que tal denúncia passa a ter faz com que se torne plausível
de tratamento naquele órgão. Nesta apresentação, certo tipo de redação é acompanhado de
documentos que se supõe serem significativos em relação às normas conduzidas pelo
interlocutor em jogo. Certidões emitidas por Juntas de Conciliação e Julgamento, Certidões
emitidas pelo Cartório, comunicações do INCRA ao Desembargador Corregedor do Tribunal
de Justiça e aos Cartórios de Registro Geral de Imóveis indicando as “ilegalidades” dos
Acordos de Trabalho realizados pela Usina Açude e, finalmente, acusações enviadas à Polícia
Civil e à opinião pública aparecem como documentos “anexos” à denúncia, tentado confirmá-
la.
Também deputados entre os atores a quem se relata(m) o(s) conflito(s). Vários
deputados federais e estaduais estão entre os destinatários do envio de um conjunto de
documentos, tais como “cartas-denúncias” em vários registros: elaboradas exclusivamente
pela CPT ou realizadas pela CPT e o MST; enviadas e não enviadas. Somam-se a estes outros
papéis: a denúncia apresentada no Ministério Público do Trabalho pela CPT, pela FETAPE e
pelo MST; um Termo de Denúncia de 12/06/2000 que relata a chegada da denúncia ao
Ministério; a notificação do Ministério Público para a realização da audiência, entre outros.
As “cartas-denúncias” enviadas (antes de serem mandadas aos deputados) abrem
novos interlocutores/referências. A denúncia centra-se aqui nas “violências” acontecidas em
Cachoeira, episódio relatado à maneira de uma informação (na qual se pede a tomada de
medidas, como a prisão preventiva dos agressores e o cuidado com a “integridade dos
cidadãos e a ordem pública”), que foi enviada em 10 de maio de 2000 à Polícia Civil do
Estado de Pernambuco (encarnada na pessoa de seu diretor) e à Secretaria Estadual de
Produção Rural e Reforma Agrária (ao secretário e ao secretário-adjunto). Relata-se à polícia
uma “nova e inadmissível violência cometida por pistoleiros, a serviço da Usina Açude,
contra trabalhadores do Engenho Cachoeira”. Por sua vez, o envio da denúncia à Secretaria
mencionada gera um novo encaminhamento. Dali dirige-se a outra Secretaria, ao Secretário
de Defesa Social, movimento este que logo é informado à CPT por parte de quem o realizou.
O INCRA é uma referência central que surge repetidas vezes. A denúncia elaborada
em relação à Usina Açude dirige-se aqui à desapropriação das terras e tenta garantir “o
assentamento de todas as famílias de moradores e de sem-terra que hoje estão acampadas nas
terras da Usina Açude”.
129
O conflito delineia-se em relação a este interlocutor com os traços
centrais de um “conflito de terra”. As notas enviadas ao INCRA pela CPT, as documentações
expedidas por este órgão mostram o desenvolvimento do conflito em relação a tal espaço.
Discutem-se nesses papéis assuntos que se referem à “vistoria” a ser realizada nos engenhos
da Usina (solicitações de “Vistoria para fins de Reforma Agrária”, a notificação desta ao
proprietário, a indicação dos trabalhadores que acompanhariam os trabalhos etc.), pede-se
informação em relação ao andamento do processo, entre outras questões. Além das
comunicações explícitas, vários documentos do INCRA se fazem presentes nos arquivos da
CPT.
Os comunicados à imprensa conformam outra apresentação do conflito, outro
desenvolvimento, e trazem uma nova interação. Em 10 de maio de 1999, a CPT comunicou à
imprensa um “ato de protesto” na cidade de Açude por parte dos “trabalhadores e
trabalhadoras rurais”. Isto foi acompanhado de uma denúncia da CPT sobre o caso da Usina
Açude (mencionando sua falência, suas dívidas, o “acordo espúrio”, as ameaças às “famílias”
que ocuparam as terras etc.). Os outros comunicados com os quais me deparei informam
sobre as ocupações. A CPT diz ali que são as famílias de sem-terra “que se juntaram aos
moradores” que ocuparam determinado engenho com a finalidade de sua desapropriação.
Entre outros dados, a improdutividade da área ocupada e a falência da Usina são informações
que acompanham esses comunicados. Eventos precisos, um protesto e uma ocupação
conjugam-se ali com justificativas mais amplas. A imprensa revela assim outro espaço de
desenvolvimento do conflito, constituindo uma nova referência na hora de narrar a história.
São determinados episódios os que se contam em relação à imprensa. Manifestação, difusão,
opinião pública abrem outra frente de luta, outra frente de destino da denúncia.
129
Nota enviada pela CPT ao Superintendente do INCRA de Pernambuco. 12/01/1999.
Entre outros interlocutores presentes podem ser citados o MST e a FETAPE. Estes
movimentos, além de aparecerem como co-autores na configuração do conflito na forma de
um discurso de denúncia, apresentam-se como “companheiros” no desenvolvimento da luta a
ser desenvolvida para levar adiante essa denúncia. Isso se nas documentações. Embora nas
conversas que mantive com os militantes da CPT eles costumassem ser cuidadosos a respeito
dos outros Movimentos, e reiterassem que estes assumem a faceta de “companheiros” ou de
setores a serem “apoiados” pela CPT os desencontros não ficaram ofuscados. Fizeram-se
presentes dados, como os acampamentos e os assentamentos em Açude vinculados à CPT não
interatuam freqüentemente com os acampamentos e os assentamentos em Açude vinculados
ao MST; comentários que enfatizaram a diferença na forma de trabalhar; a união dos
movimentos basicamente em relação a um terceiro (ao estilo dos processos de fusão e divisão,
do “princípio segmentário” que Evans-Pritchard observava nas tribos Nuer).
A FIAN (referida na Introdução deste trabalho) é outro espaço de relação que se abre,
outro ator no conflito. Com esta “Rede Internacional” o conflito expande-se
internacionalmente, e o faz também em um tom de denúncia. O lugar da FIAN ao lado da
CPT, seja como um apoio ou como uma aliada na luta de Açude, é o argumento que justifica a
inclusão no presente capítulo dos documentos produzidos por tal Organização Internacional.
Desse modo, encontrei nos arquivos da CPT notas da FIAN enviadas ao Governador do
Estado de Pernambuco, ao Procurador-Chefe do Ministério Público do Trabalho, ao
Presidente do INCRA, ao Superintendente do INCRA de Pernambuco e à Promotoria de
Justiça da Comarca de Açude. As notas datam de 10/07/2000 e de 17/07/2000, e foram
remetidas de Heildelberg. Os pontos denunciados coincidem com os da CPT: a demissão sem
indenização dos trabalhadores da Usina Açude, os acordos de trabalho ilegais, as “ameaças e
as violências aos trabalhadores rurais sem-terra que reivindicam a Reforma Agrária” na
região. Denuncia-se também o que aconteceu com os processos de desapropriação: “Estamos
informados que o INCRA, após constatar através de vistorias a improdutividade das terras da
Usina, praticamente paralisou o andamento do processo desapropriatório, em virtude das
pressões políticas dos proprietários da Usina”. Pede-se aos interlocutores que tomem medidas
objetivando a agilização do processo de desapropriação e a proteção dos trabalhadores em
relação às “ameaças e [às] violências praticadas por pistoleiros prepostos da Usina Açude”.
Os direitos amparam tais pedidos: o “direito ao trabalho e à alimentação”, o “Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”, pacto este do qual o Brasil faz
parte, sendo portanto o Estado “obrigado a garantir esses direitos à sua população”.
Tudo o que se acima o esgota os envios, os documentos, os interlocutores e as
referências em questão, mas oferece um panorama das frentes de desenvolvimento do(s)
conflito(s). Este é narrado pela CPT na forma de uma denúncia que se desdobra em rios
âmbitos. Considerações sociais e políticas conjugam-se com documentos legais, dados
administrativos, notícias de imprensa, relatos escritos dos acampados etc. Uma mistura de
relatos se faz presente ao se observarem os arquivos da CPT. É central a articulação, a
transformação de algumas histórias vividas por acampados e moradores em uma denúncia
que, para fundamentar-se, incorpora leis, dados “objetivos”, documentos administrativos,
entre outras linguagens, os quais passam desta forma a atuar como ferramentas de luta.
As documentações materializam assim um processo de luta, um processo de
desdobramento da denúncia em determinados espaços (INCRA, Ministério Público, Polícia,
imprensa, opinião pública etc.). Interessa alcançar o desenvolvimento bem-sucedido da
denúncia naqueles âmbitos, razão pela qual a narrativa do conflito que se observa nas
documentações produzidas pela CPT (a narrativa da denúncia) configura-se em relação a
esses lugares de referência onde tenta ganhar presença. Desse modo, os interlocutores, as
referências, os atores relevantes na canalização da denúncia tornam-se centrais na
configuração do conflito, conformam-se como espaços de luta, espaços que propõem uma
linguagem a partir da qual a CPT elaborará um modo de disputa. A documentação analisada
permite ver uma predominância, embora não uma exclusividade,
130
de funcionários
provenientes de diversas instituições estatais entre esses interlocutores/referências, os quais
detêm um poder de intervenção sobre o conflito. Conjugam-se nas pastas da CPT instituições
como o INCRA, o Ministério Público do Trabalho, os cartórios, a polícia, a Secretaria de
Defesa Social, entre outros mencionados anteriormente. O conflito envolve todos aqueles
âmbitos separados em nível estatal que desempenham, dessa forma, um papel central na
definição dos códigos a serem empregados no desenvolvimento da disputa.
Por sua vez, a introdução do discurso da CPT da denúncia que a Comissão elabora –
nas diversas instâncias estatais mostra-nos que, embora marcadas pelo predomínio de certas
linguagens, de certas maneiras de narrar a realidade, de certos procedimentos consagrados, as
instituições estatais são constituídas por processos de luta e articulam narrativas diversas que
não são fechadas e essenciais, mas se refazem constantemente no desenvolvimento dos
130
A opinião pública e os Movimentos Sociais também são atores relevantes no desenvolvimento do conflito e,
por isso, referências que participam da elaboração da denúncia.
processos que as vão conformando.
131
Ocorre desta forma, por exemplo, com as ocupações de
terra realizadas pela CPT (e pelos Movimentos Sociais). Através da luta dos Movimentos as
ocupações passam a ser reconhecidas pelo Estado e convertem-se em um fator gerador um
fator fundamental dos “processos de desapropriação”. A linguagem dos Movimentos
incorpora-se, reconhece-se e legitima-se no âmbito estatal (não sem oposição, como na
medida provisória nº 2183-56 de 2001 – ver capítulo I – que penaliza as ocupações), passando
a operar nos processos que se realizam em instituições do governo, neste caso, nos processos
de desapropriação de terras (processos estes que também são o resultado de uma luta política
que conseguiu conquistar um espaço em instituições do Estado). Desse modo, os Movimentos
utilizam as instituições administrativas e judiciais para dar curso às ocupações, para dar curso
à sua luta contra o latifúndio. A estatização do conflito é o resultado de uma luta. É a luta que
torna estatal a Reforma Agrária.
A imposição da linguagem administrativa, da linguagem legal que se consagra nas
instituições que intervêm no conflito, abre lugar para a sua apropriação e, com isto, para a sua
possível transformação, o que nos mostra que por trás dessa linguagem existe uma luta e, a
partir dessa luta, uma articulação de narrativas diversas que desfazem a idéia de uma
linguagem estatal homogênea. Dessa maneira, a CPT se vale dos instrumentos do Estado para
desenvolver sua denúncia, utiliza e apropria-se da linguagem consagrada nas instituições
convertendo-a em uma ferramenta para o desdobramento de sua luta. A CPT utiliza uma
narrativa administrativa e judicial para aplicar a sua própria narrativa; através dos códigos
consagrados pelo Estado abre um espaço para situar seu registro, sua denúncia, a história
vivida dos sem-terra, o conflito do latifúndio. É nesse processo de luta que a linguagem
proposta pela CPT se incorpora às diversas instâncias estatais, às suas narrativas.
A maior parte da luta observada nas documentações utiliza códigos administrativo-
legais que o Estado consagra. Como assinalei anteriormente, as instituições do governo são
âmbitos centrais no desenvolvimento da denúncia elaborada pela CPT, na tomada de decisões
sobre o conflito. Dessa maneira, as ferramentas que se empregam na disputa devem saber
operar com a linguagem que impera nesse mundo; sua apreensão torna-se necessária no
processo de luta pela terra.
131
É necessário aqui apontar as reflexões teóricas de Antonio Gramsci, o fértil espaço de pensamento que o autor
nos abre com o conceito de hegemonia e com a distinção entre Sociedade Política e Sociedade Civil, como dois
planos superestruturais (ou sobreestruturais). A hegemonia distingue-se do domínio direto que se expressa na
Sociedade Política, esta tenta um consentimento que deve conformar-se a partir de um processo de luta
constante, de um processo que acontece na sociedade civil.
Uma linguagem que é alheia ao mundo dos moradores e dos acampados. Na CPT o
conflito é elaborado em função dos diversos espaços de interlocução, a articulação das
narrativas torna-se fundamental. A vivência dos moradores e dos acampados se produz em
modo de denúncia e se expressa em uma narrativa consagrada, em uma narrativa
administrativo-legal. Narrativa esta que, assim, passa a penetrar o mundo dos acampados. Ao
ler uma parte das documentações da CPT reconheci trechos relatados pelas pessoas de
Cachoeira. O fato me levou a pensar que no registro feito por elas se opera uma negociação
entre a sua história, a história vivida do conflito e a história contada pela CPT (não apenas
pela CPT, mas também pelo INCRA), a história que se informa esta uma história que sabe
operar com dados consagrados, com dados que podem se traduzir em papéis e se incorporar
ao mundo estatal. Uma mistura de códigos, de informações de mundos diversos.
Os registros sobre o conflito de terra analisados na presente dissertação são diversos,
desencontram-se uns dos outros. Tal conflito é entrevisto de maneira heterogênea, segundo as
diferentes narrativas. Entretanto, a questão não se detém aqui. Embora a análise tenha tentado
decompor e separar registros, na prática, um registro faz parte do outro, eles interatuam,
misturam-se. Como vimos antes, o Estado incorpora elementos provenientes da narrativa da
CPT e junto com esta as dos acampados; a CPT elabora uma denúncia que combina narrativas
estatais e narrativas dos acampados; e estes últimos introduzem à sua vivência o relato
elaborado pela CPT e, a partir dele, elementos da linguagem estatal. Essa mistura não
representa um desenvolvimento harmônico, pelo contrário, ela é o resultado de uma luta. Uma
luta que parte de narrativas hierarquizadas, em que os códigos por excelência da discussão são
códigos consagrados pelo Estado. É necessário apreendê-los para conseguir resultados, para
influir nas tomadas de decisões que se realizam em instituições estatais. E aqui a CPT adquire
um papel central, tentando articular, expressar a vivência da ocupação nos termos da narrativa
que se impõe e levá-la não só ela, mas também a própria narrativa da CPT à vivência da
ocupação, aos acampados. Elabora assim estratégias, ferramentas de luta dentro dos
parâmetros impostos, tentando, através da mistura de narrativas, transportar sua visão do
conflito aos diversos espaços, não aos estatais, mas também aos do acampamento e da
opinião pública. A utilização da narrativa estatal não mostra apenas uma imposição, mas
também uma estratégia de luta.
Considerações finais
A PROBLEMATIZAÇÃO DO CONFLITO
Joaquim é de Feira dos Moradores. Sua família encontra-se ali, na cidade, e Joaquim
viaja às vezes para visitá-los. Viaja porque vive (a esta altura é melhor dizer vivia) no
acampamento Cachoeira alguns anos. Chegou ao acampamento através de uma reunião
de acampados em Recife. Achavam-se ali o MST, a CTP... e Nestor (o coordenador da
“segunda turma”), e outras pessoas de Cachoeira com quem conversou. O diálogo, o encontro,
o fluir: Joaquim decidiu desde aquele momento acampar em Cachoeira.
Antes, tinha transitado por uma ocupação do MST. Era onde vivia quando chegou à
reunião e, por isso, Joaquim estava presente naquele evento. Não era este seu primeiro
acampamento. Sua experiência germinal ocorreu em algum lugar perto de Limoeiro (cujo
nome não consegui achar no mapa, talvez porque tenha entendido mal a pronúncia), em um
acampamento também do MST, embora ao dizer que ele não entende muito desse assunto
Joaquim não tenha dado importância à minha pergunta sobre o Movimento que se relacionava
com a ocupação, abrindo com isto meus olhos para o lugar diverso que determinadas questões
ocupam em nossos esquemas de pensamento, em nossos interesses. Foi por dois anos que
esteve neste último lugar onde, conforme me disse, todos estão hoje assentados. Mas ele teve
que ir embora antes, sua mãe vivia na cidade de Feira dos Moradores e adoecera. Pediu a
Joaquim que voltasse. As terras do acampamento “saíram” imediatamente depois da partida
de Joaquim para Feira dos Moradores. Ele não pôde atender ao recado que seus companheiros
do acampamento lhe deixaram contando-lhe sobre o assunto, não podia voltar por causa da
enfermidade de sua e.
No segundo acampamento Joaquim permaneceu por nove meses. Desconho o lugar
onde esta ocupação se desenvolvia (meu registro costuma perder-se nos espaços geográficos
com nomes em portugs, ou nos espaços geográficos em geral). Foi quando estava aqui que
Joaquim se dirigiu a essa reunião de acampados e decidiu mudar sua localização. Gostou do que
as pessoas de Cachoeira lhe contaram sobre o lugar.
Antes, Joaquim vivia na “rua”, em Feira dos Moradores, uns dez anos. Aos
acampamentos chegou antes de seu trânsito por ali. Pergunto-lhe o porquê de acampar. Ele me
diz, com muita motivação, que gosta muito da terra, de suas cabras, da luta, e expõe mais coisas
sobre a sua vida no campo e com as quais se entusiasma. Acrescenta que ainda na rua nunca
deixaram de criar. O pátio de sua casa era cheio de cabras, comenta. Foi quando vivia na rua
que um vizinho o avisou de uma reuno de sem-terra, assunto do qual Joaquim nunca tinha
ouvido falar. Ele foi, foi com seu pai. "Que beleza", disse Joaquim, essa foi sua impressão da
reunião. Então, seu pai ficou na casa e Joaquim partiu para o acampamento. Entrou para os sem-
terra porque sempre gostou do tio e nunca havia podido comprar um sítio para ele, disse-me.
Mas tudo é uma “agonia”, assinala.
Antes, Joaquim vivia no campo. Joaquim nasceu e se criou no campo, em um sítio em
Feira dos Moradores, desde os sete meses de gestação, que seu nascimento ocorreu antes do
tempo. Seu pai não quis deixá-lo muito na incubadora, razão pela qual atribui sua “doea”
doea que deu seus primeiros sinais quando tinha 8 anos de idade. No campo criavam animais,
primeiro em um tio que era do avô e no qual vivia com ele, com o pai e os irmãos do pai.
Quando o avô morreu, a terra foi dividida em função da herança adquirida por seus filhos: o pai
e os tios de Joaquim. A terra ficou reduzida ao ser dividida em tantas partes, os irmãos eram
muitos. O pai de Joaquim continuou na terra, e Joaquim com ele. Vários anos viveram ali,
depois que seu avô morreu. Joaquim era pequeno quando isso aconteceu. Foi crescendo na
propriedade do pai, trabalhavam a terra e criavam animais. Também trabalhavam fora, na cana.
Enquanto isso, algumas porções de terra recebidas pelos irmãos de seu pai foram vendidas. Um
“fazendeiro” comprou-as e a cerca colocada por ele foi rodeando-os, deixando assim Joaquim e
sua família no meio das propriedades do fazendeiro, sem saída. Sem saída e ameaçados por
pistoleiros enviados pelo fazendeiro, que desejava adquirir as terras onde viviam. Seu pai
negava-se a vender. Finalmente foram para a rua, onde continuaram com a crião de animais.
Agora Joaquim vive em Cachoeira. Quando chegou, poucas pessoas ali viviam. Seu
Dorival, Zé Manuel e Osvaldo não se encontravam totalmente instalados no lugar, iam e
vinham. Joaquim chegou ali alguns meses depois da morte de Amaro. Sua chegada foi à noite
dizia-me com chuva; os caminhos se encontravam repletos de lama e “foi a pior agonia”. Foi
muito difícil permanecer durante a constrão do roçado, mas uma vez tudo montado, as coisas
melhoraram. O acampamento viu chegar Joaquim, sua esposa e filhos, um menino de 4 anos e
uma neném de 6 meses. Há poucos anos Joaquim e sua mulher se casaram. Estiveram juntos em
Cachoeira até que nasceu o menor, que agora tem 11 meses. Depois do nascimento, a esposa e
os filhos de Joaquim foram embora para a rua, para a casa que tinham na cidade de Feira dos
Moradores. A volta foi por precaução, tinham medo que acontecesse alguma coisa com a saúde
do bebê em um lugar longínquo e sem assistência médica. Sua família se foi e Joaquim ficou.
cerca de dois anos vive longe deles, que uma vez retornaram ao acampamento, logo
depois de sua partida.
Entretanto, ele vai visi-los. Isto não ocorre freqüentemente. Às vezes consegue fazê-lo
a cada 15 dias, outras vezes passa meses sem vê-los por falta de dinheiro. Além disso, não pode
abandonar seu trabalho, seus animais e seu roçado por muitos dias. Para chegar à Feira dos
Moradores, Joaquim começa o caminho a pé, até a "pista" (a estrada); dali toma um transporte
para Açude, de onde se dirige a Chã do Martinho (ou Nossa Senhora da Mata) em outro
transporte. Quando chega ali, empreende caminho para Limoeiro e de Limoeiro para Feira dos
Moradores. A viagem dura aproximadamente duas ou três horas, comentava Joaquim. Nas
ocasiões em que consegue visitar sua família, quem cuida de seus animais são seus vizinhos do
acampamento, principalmente a família de Luísa.
Joaquim tem animais, cabras e muitas galinhas. Todas as manhãs ordenha suas cabras.
Conta para mim que gosta de Cachoeira e das pessoas que ali vivem. Comenta a respeito de sua
tranqüilidade ao deixar sua casa quando se dirige ao roçado. Até se esquece às vezes de fechar a
porta. Joaquim fala de seu agradecimento pelas pessoas do Movimento que, fora, também
correm risco de vida enfrentando o pessoal com dinheiro que quer tomar as terras.
E é muito difícil continuar. O acampamento é muito “sufoco”. É muito sufoco estar
longe de sua falia e cada coisa implica uma “agonia” para ser conseguida. Joaquim se sente
muito doente e contou que um tempo, em Feira dos Moradores, pensavam que ele havia
morrido entre os sem-terra. Está “ficando doente”. Foi ao médico, que o mandou para Recife,
mas Joaquim não tem como ser atendido lá. E no acampamento tudo piora, cuidar de sua saúde
é ainda mais difícil nesse lugar, longe do médico, longe da família. Em Feira dos Moradores as
disncias se reduziriam. E em Feira dos Moradores estaria com sua família, ponto ao qual
retorna constantemente no relato. o teria agüentado a lonjura sem a ajuda da família de Seu
Tuca e de Lsa, que são como pais, como irmãos para ele, dizia-me Joaquim.
Foram anos de luta em que suportaram tudo. Anos de luta que deixa para trás, mas
muitos adiante para viver. Em Feira dos Moradores vai tentar outras alternativas – dizia – talvez
leve seus animais para criá-los lá, embora o espaço seja menor. Outra opção que pensou foi a
venda de alguns pertences. Antes de partir Joaquim venderia o roçado para um de seus vizinhos
de Cachoeira. Ir embora lhe causa muita pena. Gosta das pessoas de Cachoeira, e gosta que o
Movimento não seja violento. Mas vai embora. E confia que tudo ficará bem. Apesar de ser
difícil, algum dia vai conseguir o que deseja, algum dia vai conseguir sua terra, dizia.
Agora vai partir. Partiu de Cachoeira. E nas suas palavras desejava o melhor a seus
companheiros.
Como é possível recortar “o conflito” nesta narrativa? Como reduzir o conflito a uma
essência previamente definida?
No relato de Joaquim o conflito se funde com a história de vida, sua apresentão como
uma entidade se desfaz na dinâmica do transcorrer. Não existe "um conflito". Seu relato o
consegue se reduzir a essa essência. Através das narrativas ouvidas no acampamento o fato do
conflito se desconsti, não é um fato, é um acontecer em vivências e em histórias pessoais que
se cruzam circunstancialmente em um mesmo espaço. O conflito não se separa aqui do
cotidiano, não se separa das hisrias de vida, não tem começo, não tem fim, não tem espaço
definido. Transcende os limites do acampamento. Não é o enfrentamento entre a Usina e os
acampados expresso na ocupação de Cachoeira, aquilo é parte do vivido e se dissemina entre
outras experiências que o decomem em sua apresentão como um fato separado, como
entidade própria.
As narrativas com que eu me deparei no acampamento desarmaram a minha idéia
prévia, aquela idéia que me levou a privilegiar a história de Cachoeira, em lugar das hisrias
em Cachoeira. Aquela idéia que me levou a construir uma narrativa de onde parti de um espaço
previamente demarcado em lugar da dinâmica vivida e das várias histórias que transcendiam o
espo, de onde parti de um fato construído em função de um recorte, um conflito reduzido a
uma entidade, em lugar das relações que edificam esta idéia. As narrativas que ouvi no
acampamento me mostraram uma multiplicidade de histórias pessoais, mostraram-me um
cotidiano vivido, que vai além do acontecido em Cachoeira a respeito da ocupação. As histórias
superam o espaço e superam o momento de início do acampamento, e o vivido supera o
enfrentamento com o usineiro. E supera o processo de desapropriação.
As narrativas do acampamento trouxeram dinâmica às minhas idéias prévias, e as
desarmaram. Fiquei sem meu conflito-essência. Ele se foi por entre meus dedos, não havia
mais nada que pudesse controlar. Deparei-me ali com um conflito fundido em hisrias pessoais
e não com um conceito previamente definido existindo. As histórias vividas, a dinâmica,
ocuparam o lugar dos conceitos e me ajudaram a dar um passo no intento de escapar da
"neurose escolástica". Além disso, partir dos rios registros de um conflito, que se revelavam
tão diferentes ao transitar de um para outro espaço etnografado, ajudou-me a privilegiar as
relações que se colocam por trás de uma definão, mais que privilegiar uma definição prévia. A
intenção seria evitar cair em artifícios acadêmicos que essencializam a realidade, tirando-lhe a
dinâmica.
Ao ir de um a outro espaço etnografado o conflito se desfigurava, mostrava-se de
maneira diversa segundo as diferentes narrativas. E a diversidade de registros revelava que o
conflito por terras tamm se nutria desta diversidade: as diferentes perspectivas eram as de
grupos que interatuavam em torno de uma questão, os registros se desencontravam. Eles se
desencontravam, mas também se misturavam, e esta mistura a articulação de linguagens
dissímeis mostrava o desenvolvimento de uma luta, abria-se uma disputa por trás desta
articulação.
Ao procurar o conflito de terras na Superintenncia do INCRA, em Recife, eu
encontrei um processo de desapropriação, separado institucionalmente dos conflitos
propriamente ditos que eram função da Ouvidoria. Percebia-se em alguns setores da instituição
um discurso que tendia à profissionalização-institucionalização do conflito, neste caso, a
profissionalizão-institucionalização do processo de desapropriação. Com isto se consagravam
linguagens, valorizavam-se códigos: os administrativos, os técnicos e os jurídicos. O(s)
conflito(s) eram negados como parte desse processo, explicitavam-se implicitamente. Abria-se
assim uma disputa pelo saber. A ênfase nas características técnicas, jurídicas e administrativas
dos processos de desapropriação afirmava o monopólio do conhecimento, o segredo.
Reafirmava um saber profissional e institucional, consagrava o lugar dos diferentes
funcionários. A entrada dos acampados e dos Movimentos em uma função definida como
técnica, jurídica e administrativa ameaçava, portanto, a predominância das linguagens que se
pretendia consagrar, a apropriação do saber que marcava um limite tanto entre a instituão e o
exterior (fazendo dos não-funcionários um Joseph K.),
132
como entre os diferentes setores
institucionais, limite este último que desarmava a instituição como um bloco compacto.
Apesar do que foi exposto acima, nos mesmos discursos dos funcionários o processo de
desapropriação revelou-se operando não com os parâmetros técnicos, jurídicos e
administrativos, mas também com os parâmetros incorporados pelos Movimentos Sociais e
pelos acampados, mistura esta chamada nativamente de pressão. A luta dos acampados e dos
Movimentos constituía este processo técnico, era parte do mesmo. Deste modo, o processo de
desapropriação não se separava da luta social que o configurava, apesar dos esfoos
discursivos para deixá-la de lado, apesar da negação da mistura.
Esta é uma luta que se desenvolve cotidianamente no acampamento, na ocupação que os
trabalhadores realizam na propriedade de uma Usina, nas manifestações realizadas por
acampados, assentados e Movimentos fora daqui. Uma luta em cuja narrativa se deixa entrever
132
Franz Kafka. O processo.
a denúncia da CTP e o processo "administrativo" de desapropriação, do qual em geral pouco se
sabe, pouco é informado pelas instituições encarregadas de seu encaminhamento. O INCRA
torna-se assim um dado no cotidiano dos acampados. Novamente as narrativas se misturam, e o
fazem a partir da luta, é ela que mantém presente o processo de desapropriação no cotidiano
vivido. E mais além do acampamento e do cotidiano, entre os habitantes e os ex-habitantes de
Cachoeira, a luta não se fragmenta, a luta transcende o momento e o lugar e se funde com uma
hisria pessoal que se matiza com a presea do Grande Proprietário: uma história de vida de
quem foi trabalhador na cana, do morador que se negou a sair de sua morada, de quem foi
expulso da parcela que tinha no campo, de quem na cidade se converteu em vendedor de força
de trabalho sem trabalho na maior parte do tempo. Uma história de vida que, embora matizada,
não se reduz a essa presença. A história é a de vida, a história é a pessoal, a que desarticula os
conceitos de indivíduo e sociedade como essências fragmentadas, a que desarticula a idéia de
conflito como um ente abstrato.
A luta passa também pela denúncia da CTP. Entre outros objetivos, este discurso de
denúncia tenta a desapropriação das terras ocupadas e se constrói em função do mesmo (e não
só em função dele, mas também dos outros objetivos, como o cumprimento dos direitos
trabalhistas, por exemplo). E é nessa dinâmica que vai sendo constituída a apresentação do
conflito: uma denúncia que articula narrativas. Uma denúncia que mistura alguns aspectos da
hisria vivida dos acampados com outras narrativas e, a partir daí, elabora um relato sobre o
conflito. Uma denúncia que para tornar-se efetiva nas instituições do Estado, como o INCRA,
incorpora códigos legais e administrativos, códigos consagrados nessas instituições. Com tal
denúncia esses códigos tornam-se uma ferramenta de luta e o apenas um instrumento de
imposição estatal. A denúncia da CTP (e dos Movimentos) torna-se parte da linguagem com a
qual se trabalha no INCRA e passa a constituir os processos de desapropriação.
Os registros são diversos e, por sua vez, misturam-se. E são processos de luta os que
se revelam por trás dessas misturas.
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Anexos
ANEXO I:
ORGANOGRAMA DA SUPERINTENDÊNCIA REGIONAL DE PERNAMBUCO
(SR-03)
Fonte: Superintendência Regional de Pernambuco SR-03. 2006.
ANEXO II
CURSO DO PROCESSO DE DESAPROPRIAÇÃO
Fonte: Instrução Normativa/INCRA/Nº. 33, de 23 de Maio de 2006.