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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Uma ‘Tradição de Glória’:
O papel da experiência para capuchinhos e leigos úmbrios na
Amazônia
Claudia Mura
Rio de Janeiro
2007
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Uma ‘Tradição de Glória’:
O papel da experiência para capuchinhos e leigos úmbrios na
Amazônia
Claudia Mura
Orientador: Dr. João Pacheco de Oliveira
Rio de Janeiro
Fevereiro 2007
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional,
da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de
Mestre em Antropologia Social
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Uma ‘Tradição de Glória’:
O papel da experiência para capuchinhos e leigos úmbrios na
Amazônia
Claudia Mura
Orientador: Dr. João Pacheco de Oliveira
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.
Aprovada por:
______________________________
Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira (orientador)
______________________________
Prof.a Dr.a Adriana de Resende B. Vianna (PPGAS/MN/UFRJ)
______________________________
Prof.a Dr.a Maria Cristina Pompa (USP)
Suplentes
______________________________
Prof. Dr. Antonio Carlos de Souza Lima (PPGAS/MN/UFRJ)
______________________________
Prof. Dr. Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto (UFF)
Rio de Janeiro
Fevereiro 2007
4
Mura, Claudia
“Uma ‘Tradição de Glória’: o papel da experiência para capuchinhos e leigos
úmbrios na Amazônia” / Claudia Mura / Rio de Janeiro, UFRJ, 2007
Orientador: Dr. João Pacheco de Oliveira
180 p.: Dissertação (mestrado) UFRJ / Museu Nacional / Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social 2007.
1. Capuchinhos 2. Leigos missionários 3. Tradição missionária. 4. Museu
missionário 5. Indígenas Ticuna. I. Oliveira, João Pacheco de. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social. III. Título.
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“Uma ‘Tradição de Glória’: o papel da experiência para capuchinhos e leigos úmbrios na
Amazônia”
Claudia Mura
Orientador: Dr. João Pacheco de Oliveira
Resumo da Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.
Esta dissertação se concentra sobre a análise dos discursos e práticas atuais dos
capuchinhos e leigos úmbrios (Itália) empenhados na divulgação e promoção da missão na
região do Alto Solimões (Estado do Amazonas, Brasil), outorgada à Ordem desde 1910. O
objetivo principal é analisar os elementos que possibilitam a construção e a manutenção da
‘tradição missionária’ que os capuchinhos reivindicam e a penetração que esta logra ter na
configuração social da Úmbria. Para tal propósito, optou-se por inicialmente apresentar a
história da missão promovida pelos capuchinhos, destacando-se as bases normativas sobre
as quais esta se apóia. Procedeu-se em seguida ao mapeamento das redes de contatos
tecidas pelos capuchinhos, analisando-se as relações que nestas se inscrevem e destacando-
se os incentivos e obrigações que as caracterizam. Particular importância é atribuída às
transações de conhecimento que se realizam em tais relações, delineando-se o modelo de
processo que contribui para a manutenção da ‘tradição’ aqui a ‘experiência’ na missão
jogando um papel determinante, tendo-se em vista a construção do diferencial de status. A
atenção foi igualmente dirigida às diferentes técnicas de comunicação da realidade
amazonense’ em particular ao Museu dos índios do Amazonas e aos conteúdos que
destas fluem, refletindo-se acerca da multivocalidade dos símbolos e a repetição dos
estereótipos que os atores sociais manipulam, assim veiculando valores, construindo
imaginários e deflagrando o desejo de participação no circuito Úmbria/Amazonas.
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“Uma ‘Tradição de Glória’: o papel da experiência para capuchinhos e leigos úmbrios na
Amazônia”
Claudia Mura
Orientador: Dr. João Pacheco de Oliveira.
Abstract. This dissertation focuses on the analysis of the discourse and current
practices of the Cappuccinos Order and Umbrian lay people (Italy) committed to divulge
and promote their mission in the Upper Solimoes River region (Brazilian Amazon State),
legally established by the Order since 1910. The main objective is the analysis of the
elements which allow the construction and maintenance of the ‘missionary tradition’,
vindicated by the Cappuccinos, and the penetration which aims to focus on Umbria’s social
configuration.
The history of the mission promoted by the Cappuccinos is initially presented,
emphasizing the normative framework which supports it. The contacts network woven by
the Cappuccinos was mapped, analyzing its internal relationships and pinpointing its
characteristic incentives and obligations. Specific importance is attached to the transaction
of knowledge developed in such relationships. The ‘experience’ gained at the mission
plays a determinant role for the construction of the status differential within the
maintenance of the ‘tradition’, delineating the model of the process which contributes to
this very maintenance. Thus efforts were concentrated on the different communication
techniques of theAmazonian reality’ – specifically on the Indian Museum of Amazonas
and to the contents flowing within them. Reflecting here the multi-vocal quality of the
symbols and the repetition of the stereotypes of the social actors. Stereotypes these which
the actors, inserted in the arena under study, manipulate, exposing and transmitting values,
constructing their imaginary system and evoking in the listeners the desire to participate in
the Umbria-Amazonas circuit.
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Agradecimentos
Este trabalho não teria sido realizado sem o apoio e o suporte de várias pessoas às
quais quero dirigir meus agradecimentos.
Agradeço a todas as pessoas que me ofereceram sua disponibilidade em campo, não
apenas oferecendo-me informações, mas também dialogando comigo. Em especial, quero
dirigir meus agradecimentos a frei Luciano Matarazzi, que demonstrou paciência e
dedicação para satisfazer minhas curiosidades. Meus mais sentidos agradecimentos se
dirigem a frei Paolo Braghini, cuja ajuda foi indispensável para a coleta de material, para
os contatos com os jovens missionários (Ra.Mi.) e para a participação em reuniões.
Agradeço ainda pelas conversas que me ofereceu.
Queria agradecer aos funcionários da secretaria e da biblioteca do PPGAS-MN,
pela seriedade e gentileza oferecida.
Ao CNPq, pela bolsa recebida, sem a qual não teria podido dedicar-me
integralmente ao mestrado.
A meu orientador João Pacheco de Oliveira, que me deu a possibilidade de
encaminhar e concretizar o presente trabalho, oferecendo-me generosamente estímulos
para reflexão, informações preciosas, revisões pontuais e criticas iluminadoras.
A meus professores do PPGAS-MN e seus colaboradores: Antonadia Borges,
Federico Neiburg, Luiz Fernando Dias Duarte, Ana Maria Lima Daou, Jaime Aranha,
Moacir Palmeira, John Comerford. Por terem oferecido generosamente seus
conhecimentos, podendo eu usufruir assim de uma pluralidade de pontos de vista e
experiências. Em particular, gostaria de agradecer o apoio de Adriana Vianna, cuja
sensibilidade intelectual foi uma fonte generosa de estímulos em suas considerações
durante nossos diálogos, ricos instrumentos para avançar. Desse mesmo modo, meus
agradecimentos especiais se dirigem a Antonio Carlos Souza Lima que me ofereceu seus
preciosos conhecimentos, com seriedade e sensibilidade humana que em conjunto tem um
valor inestimável.
A meu irmão Fabio Mura, que contribui para minha formação desde os anos da
universidade italiana oferecendo-me seus conhecimentos, suas experiências e suas críticas
com grande generosidade. Além disso, por seu apoio afetivo que necessitei na mudança de
vida. Meus agradecimentos se dirigem também a minha cunhada Alexandra Barbosa da
Silva por oferecer-me sua sensibilidade peculiar e carinho.
8
A minha amiga e co-inquilina Carla Susana Abrantes que compartilhou comigo
cada passo da dissertação, oferecendo-me com afeto todo seu apoio, valiosos estímulos de
reflexão nas intermináveis conversas sobre nossas pesquisas - em nossos ‘dias de
marmota!’.
A Silvina Argañaraz pelos esclarecimentos sobre seu trabalho, contribuindo para a
reorganização das idéias e oferecendo-me seu apoio e sua força.
Às amigas que me acompanharam e ajudaram nos anos de mestrado, em especial
Andrea Roca, Laura Zapata, Andrea Lacombe e Caroline Ausserer .
A meus pais, pelo afeto inestimável, pela compreensão profunda e vivida da
substância da distância.
A meus mais queridos amigos Roberta Antonacci e Gianluca Martini, que me
acompanharam e apoiaram cotidianamente, apesar da distância, com o afeto mais sincero e
profundo que precisava.
A minha desde sempre amiga Nicoletta Ricciardi, pela proximidade e afeto na
distância física renovadora.
A Marcello, pela amizade paciente de escutar minha ‘única temática do ano’,
demonstrando interesse e presenteando-me com constante afeto.
A Monica, pelo bom humor oferecido cotidianamente na tela de meu computador.
A Diego pela felicidade suscitada aparecendo novamente em minha vida.
A Riccardo Pieroni, que apoiou e continua apoiando meus caminhos.
9
A meus pais,
que aprenderam a viver nas fronteiras
10
Glossário
AG- Ad Gentes
LG- Lumen Gentium
GS- Gaudium et Spes
RM- Redemptoris Missio
CPO- Conselho Plenário da Ordem
CELAM- Conferência Episcopal Latino-Americana
CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CONCAM- Conferência dos Capuchinhos da América Central
CCA- Conferência Capuchinha Andina
CCB- Conferência dos Capuchinhos do Brasil
VIPROCAM- Vice-Província dos Capuchinhos do Amazonas
Ceb- Comunidade Eclesiástica de Base
Ra.Mi.- Ragazzi Missionari (Jovens Missionários)
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Sumário
Introdução.......................................................................................................................... 13
Capítulo 1. Uma visão ‘heróica’: a construção da história da missão no Alto Solimões
pelos capuchinhos úmbrios............................................................................................... 22
Introdução ....................................................................................................................... 22
1.0. Os Frades Menores .................................................................................................. 25
1.1 O ‘governo’ dos capuchinhos e o empenho missionário........................................... 32
1.2 A presença dos capuchinhos úmbrios no Amazonas: o período anterior ao Concílio
Vaticano II....................................................................................................................... 35
1.3 Missão e evangelização: o Concílio Vaticano II....................................................... 38
1.4 O Implantatio Ordinis no Amazonas e a situação atual ........................................... 42
Capítulo 2. Configuração social, atores e transações ..................................................... 54
2.0 A Úmbria e Assis ....................................................................................................... 54
2.1 O centro missionário ................................................................................................. 57
2.2 Associações, paróquias e voluntariado..................................................................... 59
2.4 Os atores sociais: papéis, atividades e aspirações ................................................... 62
2.5 A arena ...................................................................................................................... 73
2.6 A relação entre capuchinhos e leigos: moralidade e transações.............................. 80
2.6.1 Os guias espirituais............................................................................................. 81
2.6.3 O acúmulo de experiência: a progressiva autonomia e a elevação de status ..... 90
2.7 A experiência ‘mística’ no Amazonas ....................................................................... 93
2.8 Conhecimento experiência e performance: o encontro no liceu “Sexto Properzio” de
Assis............................................................................................................................... 102
Capítulo 3. O Museu dos Índios do Amazonas: técnicas expositivas e práticas
discursivas ........................................................................................................................ 109
3.0 Uma etnografia do museu........................................................................................ 109
3.1 A exposição permanente: o museu do museu.......................................................... 116
3.2 A ‘obra’ de frei Luciano e suas narrativas ............................................................. 119
3.2.1 A arte dos Ticuna: humanidade compartilhada, homens diferentes................. 126
3.3 Objetos, fotos e legendas: símbolos ambíguos e ambivalentes............................... 129
Capítulo 4. A representação da ‘realidade amazonense’: a exaltação da experiência e a
reiteração da distância .................................................................................................... 143
4.0 Relatos e informes ................................................................................................... 144
4.1 Imagens e imaginários ............................................................................................ 151
4.2 A contribuição dos leigos na representação da ‘alteridade distante’..................... 156
12
Conclusões........................................................................................................................ 161
Referências bibliográficas............................................................................................... 173
13
Introdução
O presente trabalho tem como foco central os discursos e as práticas atuais dos
Frades Menores Capuchinhos da região italiana da Úmbria e dos leigos a eles vinculados,
cujos esforços estão dirigidos tanto à propaganda como ao apoio à missão na região do
Alto Solimões (Estado do Amazonas, Brasil), outorgada à Ordem desde 1910.
1
Pretende-se, de certa forma, dar continuidade ao trabalho de Argañaraz (2004), cuja
análise teve como objetivo destacar o “processo de territorialização pastoral”
2
empreendido
pelos capuchinhos na área do Alto Solimões, revelando as interações e interdependências
existentes nos anos anteriores ao Concílio Vaticano II. Argañaz inscreve tal processo
dentro das práticas mais amplas da Igreja Católica de criação e ampliação da comunidade
católica, trazendo à luz as classificações dos territórios de missão, bem como das
populações que as habitavam, que conferiam legitimidade à presença e à atuação
missionária.
O Concílio Vaticano II inaugurou o caminho na direção de novas “práticas
discursivas” (Foucault; 2000) relativas à tarefa missionária da Igreja Católica, abrindo
espaço para uma participação mais proeminente do laicato; da mesma forma, tratou de
reformular as relações entre as Ordens e as missões a elas outorgadas. Tomar
conhecimento das etapas da missão no Alto Solimões e da nova configuração das agências
nela empenhada me levou a perguntar qual seriam os fundamentos justificadores para a
continuação da presença dos capuchinhos úmbrios nesse território, estando a Igreja local já
instituída e a estrutura da Ordem já implantada.
A partir da constatação da existência de um fluxo de missionários capuchinhos e
leigos da Madre Provincia’
3
úmbria que viajam constantemente para a missão da atual
Viceprovincia do Amazonas, criando um circuito que une os territórios mencionados,
postulava-se desde o início da pesquisa os questionamentos que acompanharam a trajetória
do presente trabalho: como e por que se mantém tal circuito? Quem são as pessoas que
1
Esta data se refere à criação da Prefeitura Apostólica do Alto Solimões pela Santa Sé. Foi, no entanto, em
junho de 1909 que os quatro primeiros capuchinhos úmbrios viajaram para o Amazonas (Collarini, 1985; 41).
Ao longo do presente trabalho, serão mencionadas ambas as datas, citadas pelos capuchinhos nos diferentes
documentos, entrevistas e vídeos.
2
A noção de “processo de territorializaçãoelaborada por Oliveira (2004) é utilizada pela autora como “um
processo social de criação de unidades básicas de ocupação territorial, denominadas na linguagem
eclesiástica de ‘territórios de missão’”. (2004;1).
3
Expressão nativa.
14
participam dessa rede de relações? Como se criam tais vínculos e como eles se mantêm?
Qual é a representação da ‘realidade outra’ e que papel tem no recrutamento de tais
pessoas?
Minha atenção dirigiu-se de modo particular às transações de conhecimento que se
inscrevem nas relações aqui focalizadas, cuja peculiaridade nos ajuda a entender o modelo
de processo que consegue manter a tradição da Ordem Capuchinha e, de maneira mais
geral, a “tradição missionária”
4
(Souza Lima, 2002).
Este trabalho tem a intenção de inserir-se entre os estudos dos colonialismos
contemporâneos. Considero inapropriado falar de ‘pós-colonialismo’, na medida em que o
termo em si carrega ambigüidades a serem esclarecidas. Levando em consideração as
elaborações de Foucault (2000) relativas às “práticas discursivas” – práticas que se inserem
numa trama de relações de poder, que dependem dele assim como o geram, revelando
assim que cada objeto do qual falamos se forma de modo diferente segundo os enunciados
que os nominam, explicam e delimitam penso que a classificação da atualidade como
‘pós-colonial’ traz em si mesma questionamentos. Em outras palavras, o que chamamos de
‘pós-colonial’ sustentaria a idéia de que nos encontramos numa fase histórica cujos
pressupostos e práticas coloniais teriam desaparecido. Não obstante, podemos observar nos
discursos e práticas atuais as mudanças ocorridas desde o período denominado de
‘colonial’, evidenciando que as relações de dominação que o caracterizavam não chegaram
ao seu fim.
De acordo com as considerações de Thomas (1991; 1992; 1994) sobre a
impossibilidade de abordar o ‘colonialismo’ como uma ‘totalidade’, e sobre a necessidade
de dedicar particular atenção à pluralidade de agências - cujos discursos sustentam
diferentes projetos, muitas vezes, em competição entre si
5
- penso que o presente trabalho,
através de um estudo de caso, pode contribuir nessa direção.
4
Por tradição missionária”, Sousa Lima entende “o conjunto de saberes que m na Igreja Católica seu
ponto de dispersão, e no Cristianismo em geral sua referência básica, sobretudo através do dispositivo da
‘conversão’ e das técnicas do pastorado. (2002: 157)
5
Comaroff (1997) postula a mesma argumentação enfatizando que: “It is that the terms of domination were
never straightforward, never overdeterminated. They seldom are, of course. In most places, at most times,
colonialism did (and does) not exist in singular, but in plurality of forms and force –its particular character
being shaped as much by political, social, and ideological contests among the colonizers as by the encounter
with the colonized” (idem;193). Complementarmente, Oliveira (1988) ressalta que a dominação em uma
situação colonial deve ser entendida como um processo social, e destaca a necessidade de evidenciar as
interconexões entre as instituições nativas e coloniais que estão em sua base. Tal enfoque se distancia das
15
Para cumprir tal tarefa, evitando cair na ‘tentação’ de uma análise formalista que
reduziria novamente o fenômeno colonial a um ‘pensamento unívoco’, a opção
metodológica baseou-se principalmente na observação participante apoiada por entrevistas
e, em segundo lugar, na análise de documentos, revistas e vídeos produzidos pelos
capuchinhos e leigos.
A redução da escala de observação, proposta pelos micro-historiadores como Levi e
Ginzburg, entendida como “procedimento analítico” (Levi, 1992; 137) permitiu trazer à luz
as contradições inseridas nos sistemas normativos e as escolhas que os atores sociais fazem
em suas estratégias cotidianas, revelando assim as ‘variações’ entre eles e, portanto, a
complexidade da vida social.
Não se pode, no entanto, deixar de mencionar Simmel (1983) como antecessor de
tal escolha metodológica. Ele propunha dedicar atenção às inúmeras relações recíprocas
particulares que costumam ser ignoradas (por serem aparentemente insignificantes)
deixando claro que a “forma de socialização” é o resultado de um processo. Isto é, para o
autor é necessário investigar os elementos ‘microscópicos’ que, ao se combinarem,
formam o ‘macroscópico’.
Como enfatiza Rosental (1998), outro inspirador da microanálise foi Fredrik Barth,
cuja preocupação consistiu em destacar as “variantes comportamentais”, examinando as
escolhas dos atores sociais e, conseqüentemente, relacionando-as às configurações nas
quais estão implicadas.
A proposta de Barth (2000) de entender os sistemas sociais como sistemas
desordenados e a cultura como sendo distribuída e não compartilhada ajudaram-me na
tentativa de perceber como as pessoas que participam da configuração em questão o
recrutadas, quais são as obrigações e incentivos que desatam o desejo de vivenciar a
experiência no Amazonas e de se tornarem missionários.
Barth observa que “Reconhecer os posicionamentos sociais e as múltiplas vozes
simplesmente invalida qualquer apresentação da sociedade como um conjunto de idéias
compartilhadas, postas em ação por uma dada população. Percebendo que as idéias,
considerações e intenções diferem entre as pessoas que participam das interações,
precisamos adotar uma perspectiva que nos permita estabelecer um modelo dos processos
análises da dominação que a tomam unicamente como uma imposição externa, levando em consideração, ao
contrário, a participação ativa dos dominados (idem; 10).
16
resultantes das propriedades sistêmicas desordenadas que são geradas e do fluxo
generalizado que daí decorre” (2000; 186).
A partir dessas considerações, concentrei-me no mapeamento das redes de relações
tecidas pelos capuchinhos na Úmbria, encontrando as associações laicas vinculadas às suas
atividades. Dediquei atenção particular a alguns atores sociais que participam de tal rede de
relações, descrevendo suas posições, atividades e aspirações, destacando as diferenças
entre eles, bem como, as interações e transações que se consumam cotidianamente.
Valendo-me das elaborações preciosas de Foucault (1995) pude chegar a algumas
considerações relativas ao tipo de relação instaurada entre os capuchinhos e leigos, que se
configura como uma relação pastor-discípulo, vislumbrando assim as dinâmicas de poder
que nela se inscrevem. Para abordar tal relação, foram de grande valia também as
considerações de Bailey (1970) relativas às relações de interdependência entre líderes e
seguidores e às pressões morais e incentivos que fluem em tal processo.
Conferi particular importância às transações de conhecimento e às técnicas
empregadas, o que me permitiu refletir sobre a distribuição de valores entre os atores
sociais, vislumbrando como o diferencial entre eles consegue ser mantido e organizado.
Com a contribuição fundamental das teorias de Turner (1974; 1974 [1969])
relativas à estrutura social e communitas, nas quais explica as peregrinações como fases
liminares, pude analisar as ‘viagens-experiências’ à missão, tanto nas narrativas dos atores
sociais entrevistados, quanto nas performances públicas que, enquanto ritos de passagem,
possibilitam o acesso a diferentes status.
Sem esquecer que as práticas dos capuchinhos e leigos se inserem num contexto
maior e dele dependem, faço referência à teoria configuracional de Elias (2000). Ao
centrar sua atenção na interdependência entre os grupos e nas determinantes processuais
dos fenômenos sociais, Elias nos permite conceber a ‘sociedade’ e o ‘poder’ como
fenômenos ligados a relações que se constituem historicamente. Portanto, segundo suas
considerações, seria inadequado e equivocado explicar os fenômenos de interação a partir
de modelos ditados por regras fixas. O autor evidencia o perigo de atribuir a estes
conceitos um valor de substância, correndo o risco de explicar os fenômenos de dominação
como se fossem determinados por capacidades que indivíduos e grupos possuem por
natureza. Conseqüentemente, o problema da distinção entre grupos não pode ser reduzido
às características internas que possuem, é preciso descobrir a configuração particular que
eles formam, isto é, a natureza da sua interdependência, em que o elemento central é o
desequilíbrio de poder e as tensões ao seu interior. Tal enfoque me ajudou a perceber as
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dinâmicas entre as Ordens franciscanas de Assis, entre as Províncias capuchinhas, entre os
capuchinhos e os leigos, e destes com a Viceprovincia do Amazonas, todos envolvidos no
esforço de ganhar visibilidade, disputando os recursos de poder que ali se inscrevem.
Na arena focalizada, pretendi destacar as diferentes técnicas de comunicação das
quais os atores sociais – capuchinhos e leigos de diferentes gerações e grupos que
participam da propaganda da missão se valiam para a construção ou renovação do
imaginário sobre a ‘realidade amazonense’. A busca das técnicas de persuasão mais
eficazes para atingir o público úmbrio se insere nas disputas para alcançar maior
visibilidade e recrutar pessoas que participem de tal configuração, alcançando assim maior
prestígio.
O Museu dos Índios do Amazonas é enfocado no presente trabalho como uma das
técnicas acionadas pela Ordem. Para a analisar a exposição recorri às elaborações de
Thomas (1991, 1992) relativas ao processo de apropriação dos objetos por parte dos
europeus e, em particular, dos missionários, tornando-se fetiches funcionais à construção
de sua própria identidade. O autor destaca que os objetos, ao tornarem-se ‘propriedade’
daqueles que os coletaram, “are converted artifacts which express the distance of the
people from their former uses” (1991; 163), sendo utilizados nos museus coloniais para
uma apreciação puramente estética. Levei em consideração, também, a análise de Oliveira
(2005) com relação à necessidade de enfocar os museus não simplesmente como depósitos
de mensagens, mas como lugar de “accumulation of symbols, meanings and emotions
referring to a variety of social actors” (idem: 106). assim é possível alcançar a
compreensão histórica das diferentes pressões que se encontram por trás das práticas de
classificação dos objetos étnicos e recuperar histórias sepultadas, devolvendo-lhes sua
legitimidade.
As elaborações de Boltanski (1993) sobre a figura do espectador e do mediador,
segundo as quais este último seria o informante de eventos relativos a sujeitos distantes,
ajudaram-me a perceber as técnicas de persuasão utilizadas por alguns atores sociais da
geração mais nova que, no momento atual, conseguem maior sucesso. O autor destaca o
papel da responsabilidade moral e política que seria capitalizada em função de um estímulo
à ação. A escolha do enunciado que privilegiaria o tópico do sentimento, da comoção e da
compaixão, se inscreveria no processo de construção de ‘si’ a partir da relação com o
sofrimento do ‘outro’. A retórica empregada, baseada na manifestação do sentimento,
permitiria a demonstração de um ‘sentir’ e a identificação da ‘autenticidade’ das
motivações.
18
* * *
Recorrer o caminho da pesquisa, por um lado, ajuda a pesquisadora a retomar seus
questionamentos, permitindo, por outro, que o leitor se aproxime das escolhas que foram
realizadas, bem como das posições tomadas.
O projeto de pesquisa apresentado antes da minha partida à Itália se concentrava
principalmente na organização do conhecimento produzido pelos capuchinhos úmbrios
acerca das comunidades indígenas Ticuna, dentro do Museu dos Índios do Amazonas.
Pretendia, no campo, me ater à recolha de dados relativos ao museu: sua constituição, a
trajetória dos objetos, assistir às visitas guiadas e dedicar especial atenção às narrativas que
nelas fluíam. Em outras palavras, o foco da pesquisa estava nas técnicas expositivas e nas
“práticas discursivas” (Foucault, 2000) que se inscreviam em tal espaço. Em segundo lugar,
minha intenção era mapear as redes de relações e interações que os capuchinhos haviam
tecido na região da Úmbria. Tal projeto se baseava em alguns dados que havia levantado
anteriormente entre os meses de novembro-dezembro de 2004 e janeiro de 2005 em Assis e,
sobretudo, a partir da leitura da dissertação de Argañaraz (2004), cujo trabalho abriu-me tal
caminho, oferecendo-me informações históricas preciosas para avançar e análises pontuais
acerca de seu tema principal.
A segunda etapa da pesquisa foi realizada entre os meses de março e maio de 2006
principalmente em Assis, Spoleto e Cittá di Castello, seguindo as atividades desenvolvidas
pelos capuchinhos e leigos, protagonistas do presente trabalho.
Se o projeto se concentrava na análise do Museu dos Índios do Amazonas,
entendendo-o como a ponta predominante de um iceberg, o campo me levou a descobrir
que existiam outros icebergs que aos meus olhos se apresentavam ainda mais
pontiagudos.
Como será evidenciado no terceiro capítulo do presente trabalho, o museu é
dirigido por frei Luciano Materazzi, presença única dentro de tal instituição.
Com a aproximação do centenário da missão (2009), os capuchinhos juntamente
com os leigos encontram-se empenhados em uma grande variedade de atividades para a
divulgação de tal evento. O Museu dos Índios do Amazonas constituía um pequeno
fragmento em comparação às forças mobilizadas pela capacidade de outros atores sociais
19
de conquistar visibilidade. O Museu, para além de estar freqüentemente fechado, vem
sendo raramente visitado, inclusive pelos próprios capuchinhos.
No entanto, as várias conversas mantidas com frei Luciano, a quem dirijo mais uma
vez meus agradecimentos pela disponibilidade oferecida, deram-me a possibilidade de
acessar a informações múltiplas que ultrapassam os limites do museu.
Ao direcionar minha atenção às mobilizações em torno ao centenário e, sobretudo,
ao recrutamento de pessoas para participar da missão, deparei-me com vários atores sociais
com os quais compartilhei momentos e lugares diferentes, instaurando um fluxo de
comunicação.
Se por um lado, eu me preocupava com a construção do meu olhar sobre eles, por
outro, era inevitável o me perguntar sobre como eles me viam. Durante a pesquisa,
surgiram questionamentos relativos ao significado que minha participação nos encontros
poderia ter para eles. Frei Paolo Braghini, oferecendo-me a possibilidade de travar contato
com pessoas ativas na rede de relações que eu buscava mapear, costumava me apresentar,
exclamando enfaticamente: ‘A antropóloga que está fazendo uma pesquisa sobre nós!’
‘Pela primeira vez, pesquisadora na sua pátria como estrangeira’ - expressão
irônica e feliz do meu orientador à qual acrescento ‘em formação’. Os questionamentos
nesse sentido se acumularam: para os capuchinhos em busca de maior visibilidade, que
papel poderia desempenhar uma pesquisadora italiana ainda neófita que vem de uma
instituição brasileira? Na interação, cada um tem uma posição e desempenha um papel.
Numa “situação etnográfica”, como aponta Oliveira (2004), os atores interagem
com finalidades múltiplas e complexas, partilhando (com visões e interações distintas) de
um mesmo tempo histórico” (idem; 8).
A participação nos encontros públicos e reuniões me permitiu uma aproximação
não somente aos discursos proferidos pelos diferentes atores, mas também aos silêncios,
gestos, afetos e emoções. As entrevistas dirigidas a alguns deles me ajudaram a focalizar
determinadas argumentações que os une, mas também que os distancia.
Parte da documentação escrita e dos vídeos foi levantada em Assis, precisamente
no Arquivo da Cúria dos Capuchinhos e no centro missionário. A parte restante da
documentação foi coletada na biblioteca dos capuchinhos no Colegio San Lorenzo da
Brindisi, em Roma, onde o frei Paolo Braghini finalizava sua tese de licenciatura da qual
falarei mais adiante.
Portanto, os dados levantados –que não apresento como auto-explicáveis, mas
como circunstanciais organizados em função de um objeto construído em virtude das
20
preocupações de quem escreve são aqui apresentados como um exercício de elaboração
desses inúmeros encontros, comunicações e emoções.
Descartando qualquer possibilidade de existência de uma ‘neutralidade absoluta’
que os pesquisadores deveriam assumir, penso contrariamente que a objetividade seja de
difícil alcance - e se ela realmente existisse duvidaria de sua utilidade. A pesquisa
conduzida tinha a preocupação latente fundada na convicção de que a atividade missionária,
ainda que ‘renovada’, é essencialmente um dispositivo de transformação social e moral que
afeta inevitavelmente as populações indígenas atingidas.
Portanto, a opção foi analisar quais são os pressupostos para que tal dispositivo se
mantenha.
* * *
A presente dissertação está dividida em quatro capítulos.
No primeiro capítulo considerei necessário destacar alguns aspectos organizativos e
normativos da Ordem dos Capuchinhos, como também sua origem e carisma. Tais aspectos
me ajudaram a decifrar as bases ideológicas, os valores e a filigrana das obrigações morais
às quais os capuchinhos aderem, identificando-se enquanto grupo. Manipuladas e
reformuladas constantemente segundo as circunstâncias históricas e políticas, elas nos
oferecem a possibilidade de entender sua peculiaridade em transformação. Procedeu-se à
apresentação da história da missão produzida pelos capuchinhos, tentando revelar as bases
sobre as quais tais narrativas conseguem alimentar uma ‘visão heróica’ da missão,
apresentando seu triunfo até os dias atuais. Será levado em consideração o paradigma
discursivo promovido pelo Concílio Vaticano II, o período histórico no qual se desenvolve,
e a adaptação dos discursos dos capuchinhos em virtude de tais mudanças na construção
das narrativas sobre a missão. Serão destacados também, outros pontos de vistas sobre as
práticas dos capuchinhos nessa área, que trazem à luz discordâncias cruciais em relação à
auto-representação dos capuchinhos. Em seguida, chegaremos à situação atual na qual
emerge um circuito de relações que mantém o vínculo entre a Madre Provincia’ da
Úmbria e a ‘Viceprovincia’ do Amazonas.
No segundo capítulo, optei por começar com uma breve descrição da Úmbria e de
Assis, trazendo alguns detalhes geográficos e históricos que caracterizam a região,
destacando a peculiaridade do lugar e explicando a importância da cidade que acolhe
milhares de peregrinos. Num segundo momento, procedi ao mapeamento das redes de
21
relações tecidas pelos capuchinhos, destacando as associações laicas a eles vinculados e as
atividades que desempenham, descrevendo os papéis e aspirações de alguns atores que
participam de tal configuração social. Posteriormente, me detive em descrever a arena na
qual os atores sociais competem estrategicamente, construindo sua própria reputação.
Dediquei particular atenção às relações entre capuchinhos e leigos, enfatizando
como se criam e se mantêm tais vínculos, as transações de conhecimento que se inscrevem
nessas relações, bem como, entre os próprios capuchinhos. Concedi também especial
atenção às narrativas de alguns atores sociais sobre a experiência na missão, descrevendo e
analisando sua peculiaridade.
O terceiro capítulo, dedicado ao Museu dos Índios do Amazonas, destaca o período
de sua constituição e os critérios com os quais foi organizado. Apresento uma etnografia da
exposição, juntamente com as narrativas de seu diretor, analisando a representação dos
indígenas Ticuna ali proposta, como também os símbolos que circulam e sua manipulação.
As representações da realidade amazonense’ nos documentos, revistas e vídeos,
que atravessam as diferentes gerações de capuchinhos e também de leigos, vem descritas
no quarto e último capítulo. Além de destacar as classificações empregadas para descrever
os indígenas e a população amazonense em geral e, portanto, a construção de um
imaginário sobre tais terras distantes, a análise pretende ressaltar as diferentes técnicas de
persuasão e, sobretudo, o uso de diferentes instrumentos que servem para a exaltação da
experiência missionária.
* * *
Uma advertência ao leitor acerca de alguns empregos tipográficos: as aspas duplas
em tipologia normal se referem a citações de textos, vídeos e legendas. As aspas simples
em itálico são empregadas nas expressões nativas e nas entrevistas, diferentemente
daquelas usadas em tipologia normal, que se referem às expressões do autor. O negrito
responde à ênfase que o autor quer conferir.
22
Capítulo 1. Uma visão ‘heróica’: a construção da história da
missão no Alto Solimões pelos capuchinhos úmbrios.
Introdução
O presente capítulo se detém sobre alguns aspectos normativos, organizativos e
históricos que merecem alguns esclarecimentos prévios a fim de revelar os objetivos que se
pretende alcançar.
A opção por apresentar uma breve reconstrução histórica da Ordem dos Menores -
desde a sua origem até a constituição da Ordem dos Capuchinhos - revelando os aspectos
normativos que a caracterizam, responde à intenção de ressaltar a expansão capilar da
Ordem no mundo e, em particular, no Brasil, entendendo-a como resultado da expansão
mais geral da Igreja Católica. Como argumenta Argañaraz (2004), trata-se de um processo
ativado mediante “atividades de fixação dos missionários no espaço, seja por meio da
construção de igrejas e capelas, seja por meio da circulação por esse espaço através da
prática das ‘desobrigas’, que visam incorporar territórios e populações no espaço simbólico
definido pela ‘comunidade católica’” (idem; 1-2)
Em seguida, o conteúdo do presente capítulo analisa a história da atuação
missionária produzida e promovida pelos capuchinhos úmbrios. Tal opção reflete a
preocupação deste trabalho com a necessidade de enfatizar que tal ‘história’ deveria e deve
atingir um determinado público italiano e, especialmente, úmbrio. O que se quer destacar é
‘como’ se constrói tal historicidade. Como se poderá observar, ela se baseia em aspectos
normativos e coloca em evidencia o ‘triunfo’ dos mesmos; isto é, mediante tal história,
exalta-se o triunfo da Igreja.
Como veremos nos próximos capítulos, o objetivo principal desse trabalho é
analisar como a história da missão, contada pelos capuchinhos, conseguiu e continua
conseguindo uma penetração na Itália e, especificamente, na Úmbria; isto é, como um
grupo de missionários se serve de uma base de informações para construir narrativas sobre
a obra missionária que conseguem se manter críveis e eficazes.
Serão chamados outros pontos de vistas acerca da atuação missionária dos
capuchinhos na área do Alto Solimões oferecidos por alguns autores que demonstram
discordâncias em relação à auto-representação dos capuchinhos Nimuendaju (1982),
Oliveira (1988), Argañaraz (2004). Tais autores que serão retomados em alguns pontos
23
do capítulo propõem uma versão de fracasso da missão, segundo a qual ela não teria
alcançado penetração entre as comunidades indígenas Ticuna. Além disso, chamam a
atenção para a pouca influência da missão sobre essas comunidades, para os vínculos
políticos com outras agências presentes na área e, finalmente, para a visão negativa que os
capuchinhos tinham sobre tais indígenas.
Lamenta-se não ter tido acesso direto aos indígenas, oferecendo-lhes a
possibilidade de dar voz às suas próprias experiências e conhecimentos - experiências e
conhecimentos que devem necessariamente ser recuperados, divulgados e legitimados.
As fontes consultadas que relatam a história da missão pelos capuchinhos são as
seguintes.
Um número especial (3-4-5 maio-dezembro 1985) do periódico bimestral
capuchinho úmbrio “Voce Seráfica di Assisi”
6
é publicado em 1985 por conta da
comemoração dos 75 anos de presença dos capuchinhos no Amazonas. Nele, é possível
encontrar escritos de vários capuchinhos que, em virtude das transformações propostas
pelo Concílio Vaticano II, enfatizam as mudanças na atuação missionária, reelaborando o
passado em função das condições normativas do momento no qual escreviam. Deste
suplemento, considerei dois textos: a reconstrução da história da missão apresentada pelo
frei Mario Collarini, diretor responsável dessa mesma revista, e as elaborações de frei
Benigno Falchi, missionário no Amazonas desde 1961.
Missionário no Amazonas por aproximadamente dez anos e atual diretor do centro
missionário de Assis, Frei Valerio di Carlo, de quem falaremos no segundo capítulo,
publica o texto “Assisi risponde all’Amazzonia”
7
(2002). Trata-se de um texto expositivo
das agências úmbrias que apóiam a obra missionária no Amazonas, inclusive as laicas,
onde é possível apreciar as contribuições escritas das mesmas. Aqui também o argumento
central do texto demarca as diferenças na atuação missionária que antecede ao Concílio II,
assinalando quais seriam as ‘novas’ propostas de evangelização. Cabe destacar que tal
texto responde à vontade de construir um imaginário
8
sobre os vínculos que uniriam as
agências mapeadas na Úmbria, os missionários no Amazonas e as populações amazonenses,
6
“Voz Seráfica de Assis”
7
“Assis responde ao Amazonas”
8
Como veremos no último capítulo do presente trabalho, técnicas diferentes são empregadas na construção
de um imaginário sobre a existência de tal ‘comunidade’, que se configura como uma “comunidade
imaginada” (Anderson, 1992).
24
sustentando a idéia da existência de uma ‘comunidade católica’. De tal texto, no presente
capítulo, serão consideradas unicamente as elaborações de frei Valerio di Carlo.
No texto Le Meraviglie di Dio in Amazzonia: verso il centenario 1909-2009”
9
,
publicado em 2004, frei Ennio Tiacci - atual Ministro Provincial da Úmbria - apresenta um
informe da visita pastoral’ à Vice-Província do Amazonas por ocasião do XI Capítulo
Vice-Provincial, que oferece diferentes informações relativas às etapas da missão e à
situação atual.
Outro texto ao qual recorri é “Frati Minori Cappuccini Umbri e Indios Ticuna in
Amazzonia. In cammino verso il centenario della presenza missionaria”
10
, dissertação de
licenciatura do frei Paolo Braghini, defendida em 2006 na faculdade de Missiologia na
Pontificia Universitá Gregoriana de Roma. A reconstrução da ‘história da missão’ se
inspira em diferentes fontes capuchinhas. Também Braghini se detém em sublinhar as
‘mudanças’ promovidas pelo Concílio II e afirma o seu desejo, enquanto ‘futuro
missionário no Amazonas’, de submeter-se a tais ditames.
Considerei, ainda, os arquivos do site da Província e da Vice-província, sobretudo
os anúncios das ‘próximas etapas’ dos capuchinhos úmbrios no Amazonas por frei Egidio
Picucci, atual diretor da revista “Continenti”, periódico capuchinho sobre a ação
missionária da Ordem no mundo.
Gostaria também de assinalar que algumas informações relativas ao período do
Concílio Vaticano II foram levantadas na enciclopédia “Storia del Cristianesimo 1875-
2005: il rinnovamento della Chiesa cattolica”
11
(2005), com especial referência a Luigi
Mezzadri, docente de ‘História da Igreja’ na Universidad Pontificia de Roma, e Giorgio
Vecchio, docente de ‘História Contemporânea’ na Universidad de Parma.
9
“As maravilhas de Deus no Amazonas: em direção ao centenário 1909-2009”
10
“Frades Menores Capuchinhos Úmbrios e índios Ticunas no Amazonas. O caminho em direção ao
centenário da presença missionária”.
11
“História do Cristianismo 1875-2005: a renovação da vida católica”.
25
1.0. Os Frades Menores
A Ordem religiosa mendicante, fundada por São Francisco de Assis
12
(1181-1226),
levava o nome de frades Menores, em função da vontade deste santo de exaltar o princípio
da humildade como a característica principal que deveria distinguir seus discípulos. A
Ordem posteriormente chamada franciscana obtém sua primeira aprovação oral em
1210 por Inocencio III e uma aprovação oficial por Honório III, em 1223. No ‘projeto’ de
Francisco
13
, os frades deveriam viver em completa pobreza sem possuir nada individual ou
coletivamente, vivendo sem moradia fixa entre os deserdados.
Os frades não deveriam pedir nenhum tipo de privilégio à Igreja (Le Goff, 1999;
83); seu papel consistia em oferecer um exemplo de sua própria conduta de vida,
compartilhando a vida sofrida dos marginalizados, entre os quais os leprosos, exortando-os
a seguir os preceitos do Evangelho e guiando os infiéis à conversão. Em caso de fracasso,
eles deveriam estar dispostos ao martírio.
Alguns aspectos da doutrina de São Francisco nos ajudarão posteriormente a
decifrar as características do carisma’, ao qual os capuchinhos fazem constantemente
referência e que, como mencionei, consiste na conformação a uma “forma de ser”, um
“dever ser” alcançado mediante um trabalho constante sobre si mesmos (Foucault, 2001)
14
.
De acordo com Weber (2004), a doutrina ética da religião é menos importante do que as
formas de conduta às quais são atribuídas recompensas.
Os princípios fundamentais divulgados por São Francisco podem ser resumidos em
três: o amor entre os frades da Ordem, o respeito à “Santa Dama Pobrezaa pobreza no
sentido concreto, já que os frades deveriam ser mendicantes e a obediência à “Santa Mãe
Igreja” (Le Goff, 1999; 84).
A sociedade franciscana, como postulava Francisco, deveria basear-se em um
modelo de “família”, por essa razão ele propunha uma forma de vida fraternal a
confraternidade referindo-se não somente aos religiosos, mas prevendo a participação de
12
Filho de um rico comerciante da cidade mencionada, Francisco decidiu se despojar de suas riquezas e se
dedicar à vida entre os pobres, predicando o Evangelho.
13
Seu conteúdo é explicitado na Regra e no Testamento.
14
É o que Foucault define como a “arte da existência” entendida como “... práticas refletidas e voluntárias
através das quais os homens não somente fixam regras de conduta, como também procuram se transformar,
modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e
que responda a certos critérios de estilo” (2001; 15).
26
leigos. Postulava um processo de ascese espiritual de toda a sociedade, no qual os
participantes deveriam tornar-se servos e submissos, e cuja conquista permitiria a
desaparição das hierarquias e desigualdades de classe
15
(Le Goff, idem; 123-128).
Le Goff nos oferece a possibilidade de aproximar-nos ao projeto de Francisco,
revelando as categorias por ele empregadas para explicar quem poderia fazer parte de tal
“família”. O termo “Ordem” vinha sendo utilizado por Francisco apenas tecnicamente,
denotando uma distinção entre os clérigos e leigos, mas a família franciscana, como ele
mesmo propunha, era tripartida: os Menores, as Clarissas e a Terceira Ordem
16
. A
participação dos leigos ao lado dos clérigos – definida na primeira Bula aprovada – mudou
depois da morte do santo, restabelecendo-se as fronteiras entre eles e preparando o
processo de clericalização da Ordem.
No século XIII assiste-se a uma multiplicação das técnicas de memorização (Le
Goff, ibidem), é quando a memória adquire uma grande importância. A memória de Cristo
torna-se, portanto, necessária à vida cristã e espiritual. Francisco exortava seus discípulos a
lembrarem o que tinha sido escrito, como no caso da Regra, sem fazer variações ou
interpretações. Também as práticas de predicação e confissão se concretizavam em exames
de consciência feitos mediante a lembrança. (Le Goff, ibidem; 171)
A caridade baseada no amor
17
vem a ser o fundamento da obra franciscana.
Exortavam-se os ricos comerciantes do período em questão a realizarem obras de
beneficência e misericórdia. Os franciscanos direcionaram suas obras, sobretudo, aos
pobres e doentes (os leprosos).
Em relação à obediência aos superiores, São Francisco oferece aos seus discípulos
algumas prescrições que deixam margens de autonomia. Isto é, a interpretação dos
preceitos deixa espaço a manipulações estratégicas. Os prelados não podiam ordenar aos
frades nada que ameaçasse sua ‘alma’, em tal caso, os frades tinham o direito de ignorá-los.
A exaltação de São Francisco em relação aos menores, deserdados, servos e
submissos vinha acompanhada de sua hostilidade contra tudo o que pudesse significar uma
15
Cabe ressaltar que as classes dirigentes do período em questão eram formadas por clérigos e nobres.
16
Ao primeiro correspondiam os homens religiosos, ao segundo as mulheres religiosas, e ao terceiro os
leigos.
17
Segundo as elaborações de Boltanski (2005) sobre o ‘ágape’ cristão proposto por São Francisco, a vida
social se desenvolveria na alternância de diferentes regimes. Assim, o regime da justiça – baseado no cálculo
e na resolução de conflitos – se intercalaria com o regime do ágape, fundado na negação do cálculo.
27
diferenciação que obstaculizasse a construção da fraternidade, entendida como igualdade
18
.
Nesse sentido, Francisco se manifestou contrário à ciência ou qualquer forma de
intelectualismo que marcasse uma diferenciação com os inumeráveis iletrados da época; a
dedicação à ciência demandava, segundo ele, formas de comportamento que ameaçavam o
estilo de vida que ele promulgava: a posse de livros contradizia seu desejo de pobreza
absoluta; o saber como forma de dominação contrariava a humildade.
A pobreza para São Francisco deveria ser vivida com alegria: Paupertas cum
laetitia”. A felicidade alcançada por uma experiência transcendental era sinal de graça,
descoberta mediante o Evangelho e a pobreza. O comportamento dos frades como dos
leigos tinha que ser alegre, manifestando a felicidade da graça de estar no mundo (Le Goff,
idem; 199).
São Francisco se dedicou freqüentemente a retiros contemplativos, formas de
experiências espirituais. No último período de sua vida, doente, escreveu o “Cântico das
Criaturas”, fruto da contemplação da “natureza divina” no desejo de harmonização com o
cosmos.
As elaborações de Turner (1974 [1969]) sobre o movimento franciscano e o
processo de institucionalização histórica da Ordem revelam uma passagem progressiva de
uma comunitas existencial” inicial caracterizada pela falta de hierarquias para uma
estrutura social marcada por um forte legalismo e organização hierárquica.
O autor revela o pensamento simbólico que caracterizaria a communitas e aqueles
símbolos empregados por São Francisco, destacando o caráter concreto e imediato de suas
expressões e a ausência de abstrações e generalizações que a instituição eclesiástica
requeria. Tal opção de São Francisco vem atribuída à vontade de privilegiar o espontâneo e
18
Cabe destacar que tal argumentação se encontra atualmente nos diferentes documentos da Ordem, como no
último Conselho Plenário VII (CPO, 2004). “A pobreza, a minoridade e a itinerância, mais do que elementos
próprios do seguimento de Cristo, são liberdade franciscana. São meios que apontam para o nosso fim, ou
seja, a construção do Reino de Deus, ou, falando em linguagem franciscana, a construção de uma irmandade
onde quer que estejamos, e sempre. A pobreza, a minoridade e a itinerância, fraternamente estruturadas
segundo a situação de cada lugar, ajudam os capuchinhos a libertarem-se dos efeitos do pecado estrutural, das
forças interiores incoerentes, das manipulações de outros interesses de poder, da incapacidade de superar
fronteiras e de tradições anacrônicas que nos escravizam, a fim de construir uma irmandade visível no século
XXI.(CPO, 4).
No informe para o VII CPO do atual ministro geral da Ordem dos capuchinhos (Corriveau) se explicita a
função que tais encontros desempenham. Os Concílios Plenários da Ordem foram introduzidos depois do
Concílio Vaticano II, a partir de 1968, e deveriam indicar a “estrutura de governo da Ordem”. No entanto,
com o passar dos anos, tal objetivo veio a ser desempenhado pelas Constituições e Capítulos, reservando ao
CPO a função de “instrumento de animação”. Ao contrário dos Capítulos, que tratam de problemáticas
diversas, o CPO deve escolher apenas uma temática e aprofundá-la.
28
o imediato, em contraposição às limitações exigidas por conceitos unívocos. Sua continua
referência a sonhos, metáforas e parábolas demonstrariam tal escolha. (Turner idem; 173).
A nuditas era um símbolo extremamente importante para o Santo, representando a
pobreza de Cristo e a ausência da propriedade. Tais símbolos – pobreza e nuditas
equivaleriam à vontade de extirpação de qualquer bem terreno, promovendo assim a
transcendência, um desapego total ao mundo material, um retorno à ‘natureza’.
Em outra obra de Turner (1974) explicita-se a capacidade das instituições religiosas
de incorporar e nutrir-se das constantes aparições de movimentos que fundam communitas,
nos quais os atores sociais desejam viver suas próprias vidas fora das estruturas
hierárquicas que caracterizam as instituições. Em sua reconstrução do movimento criado
por São Francisco, o autor deixa implícito que a communitas costuma ser marcada pela
ausência de hierarquias, como o próprio Francisco desejava, e os participantes vivem tal
experiência reunidos em pequenas fraternidades, compartilhando um sentimento e um
entusiasmo na busca por uma transformação existencial. Mas tal experiência não estaria
isolada do mundo social, ao contrário, ela comportaria um diálogo contínuo com a
estrutura social. O autor, no entanto, parece dividir temporal e espacialmente a experiência
da communitas e da estrutura, vendo a primeira como uma fase que inevitavelmente e
processualmente levaria à segunda. Tratarei de tal assunto mais profundamente no próximo
capítulo, mas gostaria de propor, por enquanto, que tal divisão de tempo e espaço poderia
constituir um obstáculo para a análise das dinâmicas sociais que se inserem em tais
movimentos. Poderíamos pensar contrariamente que como tentarei demonstrar – também
na experiência de communitas, como fase liminar, inscrevem-se relações hierárquicas.
Segundo Turner, São Francisco chamava seus discípulos a viver nas margens da
vida social, confinando-os a um estado permanente de liminaridade
19
, porque somente
naqueles espaços era possível realizar a communitas. No entanto, São Francisco, enquanto
membro da Igreja Católica, foi obrigado a escrever uma Regra, e tal documento não se
19
Temos que recorrer novamente às argumentações atuais explicitadas no CPO VII para ressaltar a fonte de
inspiração: O ser itinerantes, peregrinos e forasteiros neste mundo, encontra a sua força na em Cristo,
Senhor da história, que se manifestará plenamente no fim dos tempos para julgar a todos segundo a lei do
amor (cf. Mt 25,31-46). Essa tensão rumo ao cumprimento último, além de não nos afastar da história,
orienta concretamente a nossa vida, nos liberta da idolatria da possessão imediata, da tentação narcisista do
aparecer e do sucesso e do apego às posições alcançadas, empurrando-nos, ao contrário, a reconhecer e servir
humildemente Cristo nos nossos irmãos e especialmente nos necessitados. A exemplo de Francisco, que não
queria que coisa alguma pudesse ser dita ‘sua’ neste mundo, cresçamos na disponibilidade cordial à
imprevisibilidade de Deus, maior que todos os nossos projetos, e testemunhemos a todos a alegria de colocar
nEle a nossa esperança, mostrando-nos atentos às necessidades de todos.” (CPO VII,5)
29
traduziu num conjunto de prescrições e obrigações, mas na expressão de um modelo.
(Turner, 1974 [1969]; 175).
A Regra de São Francisco sofreu várias interpretações e retoques. A questão da
pobreza absoluta opôs os frades mais moderados, que consideravam compatível a posse de
bens por parte da Ordem, aos rigorosos, que pediam a observância estrita do voto de
pobreza. Foi inútil a tentativa de Nicoló III de defender os mendicantes dos ataques do
clero secular, através da Bula Exiit qui Seminat de 1279 que recorria ao usus pauper: era
permitido aos frades o uso e não a posse dos bens dos quais a Igreja reivindicava a
propriedade. Os frades que compartilhavam tal interpretação da Regra de São Francisco
foram chamados de Conventuais, os outros que eram contrários a tal forma de posse
indireta se denominaram de Espirituais (Turner 1974 [1969]: 179). A partir da metade do
século XIV, depois da repressão a grupos extremistas dos Espirituais, chamados de
Fraticelli’
20
, aqueles que continuaram a seguir a interpretação rigorosa da Regra passaram
a se chamar de Observantes. Os capuchinhos da região atual de Marche (naquela época
chamada Marca de Ancona) se distanciaram dos Observantes, desejando ainda maior rigor
e fidelidade à Regra originária. Portanto, desta franja mais extremista surgiram os
capuchinhos, cujo primeiro reconhecimento foi obtido em 1528 e o definitivo em 1619.
Dá-se um rápido desenvolvimento numérico: cinqüenta anos depois de seu reconhecimento,
a Ordem contava com 3500 frades. Os séculos XVII e XVIII foram caracterizados pelo
apogeu de sua extensão, distribuídos em toda a Europa, América, Índia e África do Norte.
Em função das discordâncias internas em relação à interpretação da Regra de São
Francisco que surgem durante os séculos posteriores à fundação da Ordem, os franciscanos
hoje se dividem em três Ordens: Menores, Menores Conventuais e Menores Capuchinhos
21
.
20
Diminutivo que literalmente significa “pequenos frades”. É atualmente empregado pelos capuchinhos
como auto-denominação, junto à expressão mais difundida “frades do povo”.
21
O uso de diferentes hábitos responde à exigência de um reconhecimento visível dos participantes das
distintas Ordens Franciscanas. O frei Menor usa um hábito marrom, não usa barba, permitida unicamente aos
missionários. Uma bata despregada do hábito recai nos ombros. Na altura das costelas, o hábito tem dois
bolsos verticais e do cordão branco pende o rosário franciscano (70 conta para as Ave Marias, 20 a mais do
que o normal). Nos pés, sempre descalços, sandálias de couro. O frei Conventual não usa barba e o hábito
negro se distingue também por um pequeno manto que cobre os ombros, o peito e as costas. À diferença das
outras Ordens, usa um chapéu e um colar branco parecido com os do clero secular. Outra característica que
os distingue é que o conventual usa meias e sapatos. O nome ‘capuchinho’ se refere à forma particular do seu
largo e pequeno gorro. O hábito marrom leva uma pequena bata, bolsos que se abrem lateralmente e outros
dois internamente nas mangas; obrigatoriamente usam sandálias. Cabe destacar que atualmente existe uma
grande flexibilidade no uso do hábito. Alguns decidem por não vesti-lo, outros usam-no apenas dentro do
espaço do convento, outros vestem o hábito constantemente. Os capuchinhos entrevistados deram várias
explicações sobre o assunto; comodidade, vontade de ser reconhecido, não querer ser reconhecido etc.
30
A Ordem dos Menores (Ordo fratrum minorum, OFM) conta atualmente com
18.557 religiosos (dos quais 12.382 são sacerdotes), residentes em 2.832 casas difundidas
pelo mundo.
Fazem parte, atualmente, da Ordem dos Frades Menores Conventuais (Ordo
fratrum minorum conventualium, OFM Conv.) 4.514 religiosos, dos quais 2.808 sacerdotes,
residindo em 675 casas.
Os Menores Capuchinhos (Ordo fratrum minorum cappuccinorum, OFM Cap) são
a terceira maior Ordem Franciscana. São atualmente 10.793 frades professos e 434 noviços
presentes em 101 nações, vivendo em 1800 casas (relatório do Ministro Geral dos
Capuchinhos, John Corriveau).
1° janeiro
1994
1° janeiro
2000
1° janeiro
2006
Diferença
1994-2000
Diferença
2000-2006
Professos perpétuos 9,789 9,289 8,961 (-500) (-328)
Professos temporários 1,411 1,613 1,832 202 219
Total de Professos 11,200 10,902 10,793 (-298) (-109)
Noviços 419 400 434 (-19) 34
Presentes em 101 nações, a Ordem está estruturada em 13 Conferências, 82
Províncias, 10 Vice-Províncias Gerais, 21 Vice-Províncias Provinciais, 16 Custódias e 20
Delegações/ presencias.
Número Total
2000
Suprimidas
2000-2006
Constituídas
2000-2006
Total
2006
Diferen
ça
Nações 93 0 08 101 08
Conferências 16 04 01 13 (-03)
Províncias 85 07 04 82 (-03)
Vice-Províncias Gerais 09 01 02 10 01
Vice-Províncias
Provinciais
22 04 03 21 (-01)
31
Custódias 12 03 07 16 04
Delegações
Presencias
19 06 07 20 01
Superiores Maiores 128 129 01
A Ordem está presente em 17 nações da América Latina
22
. Os 1.817 frades
professos e os 104 noviços estão subdivididos em três Conferências (CONCAM, CCA,
CCB). As estatísticas de de janeiro de 2006 (com dados comparados de 1994 e 2000)
são essas:
AMÉRICA LATINA 1° janeiro
1994
1° janeiro
2000
1° janeiro
2006
Diferença
1994-2000
Diferença
2000-2006
Professos perpétuos 1,508 1,446 1,409 (-62) (-37)
Professos temporários 223 283 408 60 125
Total Professos 1,731 1,729 1,817 (-02) 88
Noviços
63 90 104 27 14
A CCB compreende 10 Províncias
23
e 2 Vice-Províncias Provinciais
24
. As
estatísticas de de janeiro de 2006 (com dados comparados de 1994 e 2000) são as
seguintes:
CCB
1° janeiro
1994
1° janeiro
2000
1° janeiro
2006
Diferença
1994-2000
Diferença
2000-2006
Professos perpétuos 904 897 895 (-07) (-02)
22
Cuba, República Dominicana, Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá,
Colômbia, Equador, Venezuela, Peru, Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil.
23
Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, Brasil Central,
Minas Gerais, Bahia-Sergipe, Nordeste do Brasil, Ceará-Piauí, Maranhão-Pará-Amapá.
24
Amazonas e Brasil Oeste.
32
Professos temporários 122 153 216 31 63
Total Professos 1,026 1,050 1,111 24 61
Noviços 35 41 58 06 17
A essas três Ordens mencionadas soma-se a Ordem Franciscana Secular, formada
por leigos, cuja organização é independente, mas assistida espiritualmente pelas primeiras.
Existem também, coadjuvando a Ordem dos capuchinhos, alguns monastérios
contemplativos de freiras capuchinhas e congregações religiosas de mulheres que se
inspiram no carisma’ capuchinho, fundadas freqüentemente com a assistência de um frei.
Completando a família franciscana’, está a Ordem das Clarissas, fundada por São
Francisco e Santa Clara
25
, formada por freiras de clausura cujas características carismáticas
são a contemplação e a penitência.
Atualmente na Itália, a Ordem dos Capuchinhos se divide em 22
26
províncias,
cobrindo todo o território nacional (Ver mapa 1 ao final do capítulo). A algumas destas são
outorgadas vice-províncias ou custódias em diferentes lugares dos cinco continentes. No
Brasil atualmente existem 10 províncias e 2 vice-províncias capuchinhas que cobrem
grande parte do território nacional. (Ver mapa 2 ao final do capítulo)
1.1 O ‘governo’ dos capuchinhos e o empenho missionário
Desde o princípio, a Ordem Franciscana começou a desenvolver um aparato
organizativo que compreendia a divisão hierárquica das tarefas, bem como uma divisão
territorial em províncias (Turner, 1974 [1969]). Para entrar na Ordem era necessário
como o é atualmente – submeter-se aos três votos: pobreza, castidade e obediência.
Cada Ordem, tornando-se independente uma da outra, desenvolveu peculiaridades
relativas ao seu ‘carisma’, como também ao seu tipo de organização.
25
Assim como Francisco, também Clara era uma nobre de Assis que renunciou suas riquezas, dedicando-se a
viver entre os pobres.
26
Sardegna, Trento, Piemonte, Alessandria, Vêneta, Lombardia, Génova, Emilia-Romania, Toscana, Umbría,
Marche, Romana, Abruzzo, Nápoles, Salerno, Foggia, Bari, Cosenza, Reggio Calábria, Siracusa, Palermo,
Messina.
33
As Constituições
27
dos capuchinhos, constantemente reformuladas, respondem a tal
exigência, exortando seus membros a prestarem obediência às hierarquias da Ordem e aos
ditames e preceitos da Igreja, seguindo sua peculiaridade carismática. Elas são definidas
como um código de vida’ que deve ser encarnado individual e coletivamente, seguindo a
Regra e o Testamento de São Francisco. (Braghini, 2006; 146)
As contínuas reformulações, que denotam a adaptação às contingências, poderiam
ser entendidas como contínuos “processos de regularização” ou “processos de ajustamento
situacional” (Moore, 1978; 50) inscritos nas transações entre os grupos que participam da
Ordem e da Igreja de maneira mais geral revelando a constante luta entre as vontades
de dominação e autonomia. Moore nos oferece a possibilidade de entender os diversos
campos internos da Igreja como uma arena na qual os indivíduos circulam, se associam e
manipulam as normas que eles mesmos criam e redefinem.
A interpretação da Regra de São Francisco está reservada à Santa (Cost. 183.3),
que reconhece nos Capítulos Gerais a faculdade de adequar oportunamente a Regra às
novas circunstâncias, desde que tais adequações adquiram força de lei mediante sua
aprovação (184.1). É designada também à Santa a interpretação autêntica das
Constituições.
Na Ordem, sob a suprema autoridade do pontífice, são superiores com potestade
ordinária: o ministro geral em toda a Ordem, o ministro provincial em sua província, e o
superior local em sua fraternidade. Seguindo a divisão hierárquica das posições, estão os
superiores com potestade ordinária vicária: o vigário geral, o vigário provincial, o vice-
provincial, o superior regular e o vigário local (114,1; 114,2).
Atualmente, a Ordem se divide territorialmente em províncias, vice-províncias,
custódias e casas (fraternidades locais) (110,1)
28
.
A província é constituída por um grupo de frades ou de casas com seu próprio
território, submetidos ao controle de um ministro provincial (110,2).
27
As Constituições permitem tomar conhecimento dos aspectos normativos da Ordem dos Capuchinhos.
Foram sucessivamente ratificadas no Concílio Vaticano II nos anos de 1986 e 1990, modificadas
posteriormente nos anos de 1994 e 2000 com os Capítulos Gerais (Braghini, 2006; 146). Nos concentraremos
apenas naqueles aspectos que ajudam a entender as pressões a que os atores sociais em questão estão
submetidos. Divididas em capítulos, as Constituições apresentam as seguintes temáticas: I. Vida dos frades
menores capuchinhos; II. A admissão a nossa vida e a formação dos frades; III. A vida de oração dos frades;
IV. Nossa vida em pobreza; V. A forma de trabalhar; VI. Nossa vida em fraternidade; VII. A vida de
penitência dos frades; VIII. O governo da Ordem ou da fraternidade; IX. Nossa vida apostólica; X. Nossa
vida em obediência; XI. Nossa vida na castidade consagrada; XII. A difusão da fé e a vida de fé.
28
Solicita-se que na cúria geral e provincial, na casa do vice-provincial e do superior regular, e em cada casa,
exista um arquivo, onde se conservem, sob segredo, todos os documentos (143,1).
34
A vice-província seria uma parte da Ordem, constituída em um determinado
território, outorgada a uma província ou sujeita diretamente ao ministro geral. Em tal
território, o vice-provincial atua na qualidade de vigário do ministro provincial ou geral
(110,3).
Nos preceitos da Constituição relativos ao governo das vice-províncias, postula-se
que a meta principal seria a Implantatio Ordinis para testemunhar o carisma’ franciscano.
Portanto, torna-se necessário dedicar particular atenção às vocações locais e a sua
formação (132,1) e, para tal propósito, a província tem a obrigação de enviar os religiosos
necessários ao cumprimento de tal tarefa (132,3).
O vice-provincial se vale do apoio de dois conselheiros que são nomeados a cada
três anos (133,1; 133,3).
No capítulo XII das Constituições dedicado ao empenho missionário da Ordem
são enfatizados alguns aspectos relativos à colaboração entre as províncias e as vice-
províncias. Depois de ressaltar que a Ordem participa da tarefa de evangelização, assim
como toda a Igreja e todos aqueles que foram batizados
29
, destacando que a obra
missionária é um dos principais empenhos apostólicos (174,4), declara-se que os frades
que decidam participar da atividade missionária devem reportar-se ao ministro provincial,
e este levará em conta a preparação teórica e prática em missiologia e em ecumenismo do
candidato. Uma vez estabelecida sua idoneidade, o ministro provincial o apresentará ao
ministro geral, a quem se reserva a decisão última (176,1; 176,2). Os ministros provinciais
não devem se recusar a enviar os frades que tenham os requisitos necessários, por conta da
falta que eles possam fazer na província (176,3). Ao contrário, os frades devem ser
incitados a participar, mesmo que temporariamente, da atividade missionária. Acentua-se
ainda que os frades devem trabalhar em acordo com os missionários laicos, especialmente
se estes forem catequistas, e juntos devem promover a animação pastoral (176,6).
O ministro geral, junto aos ministros provinciais, institui o secretariado para a
animação e a cooperação missionária, determinando suas tarefas (178,3). Chama os frades
a colaborar com os institutos religiosos no território onde desenvolvem a atividade
missionária da Igreja particular, ou em sua pátria, a dedicar-se à animação missionária
(178,4)
29
Com tal afirmação, ressalta-se que todos os homens e mulheres que foram batizados e que, portanto,
participam do povo de Deus, tem o dever de tornar-se missionário.
35
Consideram-se missionários os frades que levam a qualquer continente ou região a
mensagem da salvação a todos os que não crêem em Cristo, (174,5). Mas cabe acentuar
que é atribuído um status diferente àqueles que desenvolvem a atividade missionária a
serviço das novas Igrejas, definindo sua condição “especial” (174,6).
As formas de conduta dos missionários - definidas como “espirituais”- com os não
cristãos são expressas tomando como referência as prescrições de São Francisco: os
“...submetidos a toda humana criatura por Deus, dêem testemunho da vida evangélica com
grande confiança por meio da caridade, e que quando virem que agrada a Deus, anunciem
abertamente a palavra de salvação aos não crentes para que se batizem e se façam
cristãos.” (175.1)
Os frades que desempenham atividades missionárias em diferentes regiões devem
dialogar com aqueles das novas Igrejas locais, colocando-se a seu serviço, sendo o fim
último o desenvolvimento da Igreja particular. A importância atribuída à implantação da
Ordem vem argumentada da seguinte maneira: “A forma de nossa vida e o patrimônio
espiritual de nossa Ordem, que é universal e compreende todos os ritos da Igreja católica,
devem ser transmitidos e expressos segundo as condições da região, a índole de cada povo
e as características da Igreja particular; e os usos particulares de uma região não podem ser
transplantados a outra.”(177,3)
1.2 A presença dos capuchinhos úmbrios no Amazonas: o período
anterior ao Concílio Vaticano II
Em 1910 a Santa cria a Prefeitura Apostólica do Alto Solimões, outorgando-a
aos capuchinhos da província da Úmbria.
Ainda que a área outorgada fosse o Alto Solimões, os primeiros capuchinhos que
viajaram para a missão se detinham em Manaus, onde naquele momento estavam os
capuchinhos lombardos, que lhes ofereciam hospedagem (Collarini, 1980). Estes se
estabeleceram posteriormente no Maranhão e sua presença se perpetua até os dias atuais.
Tal área de missão, diferentemente do Alto Solimões, foi elevada a Província em 1999.
Os anos que precederam o Concílio foram dedicados à instalação de estações
missionárias principais e secundárias (Argañaraz, 2004; 66), com a construção de Igrejas,
escolas e hospitais distribuídos nos principais centros da região: Tonantins, Santo Antônio
36
do Iça, Amaturá, São Paulo de Olivença, Belém do Solimões, Remate de Males, Benjamin
Constant.
Este período é caracterizado, sobretudo, pelas atividades de “sacramentalização”
30
(Braghini, 2006; 27) que os missionários realizavam através das desobrigas no Rio
Solimões, que consistiam em batizar e regulamentar os casamentos entre os habitantes das
diferentes comunidades indígenas e ribeirinhas. Tal atividade lhes permitia conhecer a área
e também demarcar os territórios e as almas que iam ‘cristianizando’, respondendo assim
às demandas da Santa de Roma por estatísticas que dessem a possibilidade de
contabilizar a ampliação da comunidade católica (Falchi, 1985; 145, Argañaraz, 2004).
A ação evangelizadora na área focalizada resulta resultou ter sido extremamente
frágil e inconstante, contrariamente às imagens oferecidas pelos capuchinhos da Província
Úmbria. No entanto, cabe destacar que nos anos sucessivos ao Concílio Vaticano II, as
argumentações
31
dos capuchinhos em relação à pastoral indígena foram marcadas por uma
espécie de autocrítica à atuação missionária dos primeiros frades que trabalharam no Alto
Solimões. Aponta-se a falta de preparação e a necessidade de avançar na formação de uma
‘pastoral indígena diferente’. (Falchi, 1985; 160). A sacramentalização é, no entanto,
legitimada, em virtude das condições desfavoráveis que os primeiros capuchinhos tiveram
de enfrentar: dificuldades relativas ao desconhecimento da área, a impossibilidade de
permanecer por causa das doenças, etc. A ‘auto-crítica’ que pretende ser um sinal da
passagem a uma ‘etapa renovada’ da missão aborda também a visão negativa que os
missionários tinham em relação aos indígenas, que os fez desistir de qualquer propósito de
evangelização.
Os capuchinhos da Província exaltam principalmente a figura do frei Fedele de
Alviano definido como o primeiro apóstolodos Ticuna, cuja atividade missionária teria
se distinguido por sua dedicação a eles, contribuindo para o conhecimento dos indígenas,
assim como para o ‘processo de evangelização e civilização’. Sua atuação é valorizada
30
Tal forma de evangelização respondia aos ditames do Concílio de Trento, outorgando ao missionário o
papel de predicador e reduzindo a evangelização à prática dos sacramentos. Essa atividade era cumprida
mediante as desobrigas’, viagens de barco ao Rio Solimões para visitar e batizar os habitantes das
comunidades presentes na área (Argañaraz, 2004, Braghini, 2006; 28).
31
Refiro-me aos artigos das diferentes revistas levantadas, cujos conteúdos demarcam a diferença das ações
missionárias atuais e fazem referência às diferentes formas de se orientar a uma nova evangelização. As
temáticas são relativas às práticas marcadamente “europeizantes” dos missionários, enfatizando uma intensão
de proceder em direção à “civilizaçãodas populações indígenas, cuja realização não previa a valorização da
cultura local. Trataremos tal argumento mais profundamente nos próximos capítulos.
37
como um exemplo de evangelização inculturada”, antecipando de tal maneira os ditames
do Concílio Vaticano II (Braghini, 2006).
Contrariamente a tais afirmações sobre a figura de Alviano, Argañaraz (2004)
oferece a trajetória do frei para além de analisar os conteúdos de suas produções
32
revelando a função peculiar que desempenhou na divulgação de um ‘conhecimento’ acerca
dos indígenas Ticuna, tornando-se “o especialista em índios”. Ressalta que apesar da
maioria dos escritos dos capuchinhos conferir ênfase à catequese do frei entre os Ticuna -
como se ela tivesse sido bem sucedida - Alviano nunca residiu permanentemente com tais
indígenas (idem; 158)
Cabe destacar também, como chama a atenção Oliveira (1988), que a configuração
de tal período assistia a mudança da interdependência de diferentes agentes – seringalistas,
agentes do SPI e os capuchinhos italianos – em função das diversas “situações históricas”
33
(idem; 1988) que atravessavam. Os capuchinhos estiveram por muito tempo sob a
dependência dos seringalistas para cumprir suas tarefas, dado que estes controlavam os
fluxos de pessoas que circulavam na área.
Outra figura relevante, ainda que de menor destaque que Alviano, é frei Arsenio
Sampalmieri
34
, cuja permanência entre os Ticuna na comunidade de Belém de Solimões,
perdurou quase vinte anos.
O território de missão, desde o início da presença dos capuchinhos úmbrios, sofreu
diferentes modificações em sua denominação que revelam o processo de mudança no que
diz respeito aos vínculos com a ‘Madre Provincia’.
Em 1910, como já mencionei, nascia a Prefeitura do Alto Solimões; em 1950 torna-
se Prelatura Nullius
35
; em 1952 se constitui a Custódia do Amazonas, transformando-se
em Viceprovincia’ em 1970 (Braghini, 2006; 33). Somente em 1992 é que a Prelatura do
32
Fedele de Alviano deixou dois manuscritos: “Notas etnográficas sobre os Ticunas do Alto Solimões” e
“Gramática, dicionário, verbos e frases e vocabulário prático da língua dos índios Ticunas” publicados,
respectivamente, em 1943 e 1944.
33
O autor explicita a expressão “situação histórica” como uma “noção que não se refere a eventos isolados,
mas a modelos ou esquemas de distribuição de poder entre diversos atores sociais.” (1988; 57 itálico
original)
34
Atualmente, frei Arsenio reside no convento de Spoleto. No próximo capítulo, me deterei sobre tal figura
missionária que, contrariando minhas expectativas, não participa das inúmeras iniciativas a favor da missão.
35
Esta denominação significava que os religiosos presentes respondiam diretamente à Santa de Roma,
estando ausente a Diocese (Argañaraz, 2004)
38
Alto Solimões se torna Diocese, sob a direção do Bispo Magalhaes
36
- presente até os dias
atuais - quem dá inicio a novas relações entre a diocese e a ‘Viceprovincia’.
Observa-se que existe uma tentativa de demonstrar a existência de uma ampliação
da área de atuação dos capuchinhos, sublinhando que, a partir do nascimento da Custódia,
as atividades não estariam reduzidas ao Alto Solimões, mas se difundiriam na região
amazônica.
Segundo a elaboração da história da missão proposta por Falchi (1985), ainda que
os anos anteriores ao Concílio Vaticano II já estivessem marcados por uma intensificação
na construção de igrejas, é somente a partir dos anos sessenta que começa o período
denominado Implantatio Ecclesiae. Nessa etapa, os missionários se empenham na
construção de paróquias, igrejas e capelas com a intenção de concentrar as populações à
sua volta (idem; 146). Essa mudança de atuação testemunha a passagem de uma missão
sob o controle direto da Santa Sé, enviando missionários italianos que ocupavam
lentamente as áreas a eles outorgadas, para a implantação da Igreja local no território. Tal
mudança vem a ser justificada e legitimada recorrendo aos ditames do Concílio Vaticano II,
cujas intenções respondiam por sua vez às transformações políticas e sociais que ocorriam
em tal período.
1.3 Missão e evangelização: o Concílio Vaticano II
O Concílio Vaticano II (1963-1965) abriu as portas para uma mudança na gestão
dos territórios de missão (Argañaraz, 2004), determinando o avanço de novas estratégias
em sua organização e na circulação dos agentes que participam de tal empresa.
Em 1967 Paolo VI, ocupando-se da reorganização da Cúria Romana, muda o nome
do organismo proposto às missões, tratando de redefinir suas tarefas (Mezzadri, 2005). A
até então Congregação de Propaganda Fide passa a se chamar Congregação para a
Evangelização dos Povos. A nova denominação surgia em virtude do decreto conciliar Ad
Gentes (07-12-1965) sobre a atividade missionária, cujo conteúdo reafirmava a principal
tarefa da Igreja:
36
Antes da nomeação do atual Bispo, foram prelados nullíus no Alto Solimões: Frei Venceslao Ponti da
Spoleto, Monseñor Cesario Minali da Colognola e, por último, Monseñor Adalberto Marzi da Spello,
consagrado em 1961 Bispo de Sesina (Úmbria) no aniversário de cinqüenta anos da missão. (I Cappuccini
Umbri nel 50˚ della Missione; 15)
39
“A Igreja peregrina é, por sua natureza, missionária, visto que
tem a sua origem, segundo o desígnio de Deus Pai, na «missão» do Filho
e do Espírito Santo (AG, 2) O fim próprio desta actividade missionária é
a evangelização e a implantação da Igreja nos povos ou grupos em que
ainda o está radicada (34). Assim, a partir da semente da palavra
37
de
Deus, é necessário que se desenvolvam por toda a parte igrejas
autóctones particulares, dotadas de forças próprias e maturidade, com
hierarquia própria unida ao povo fiel, suficientemente providas de meios
proporcionados a uma vida cristã plena, contribuindo para o bem da
Igreja universal. ” (AG,6)
No decreto, os missionários são chamados a conhecer profundamente os
‘culturalmente diferentes’, a integrar-se a eles e a valorizar as tradições locais, operando
uma espécie de purificação:
“Assim como o próprio Cristo perscrutou o coração dos homens e
por meio da sua conversação verdadeiramente humana os conduziu à luz
divina, assim os seus discípulos, profundamente imbuídos do Espírito de
Cristo, tomem conhecimento dos homens no meio dos quais vivem, e
conversem com eles, para que, através dum diálogo sincero e paciente,
eles aprendam as riquezas que Deus liberalmente outorgou aos povos;
mas esforcem-se também por iluminar estas riquezas com a luz
evangélica, por libertá-las e restituí-las ao domínio de Deus Salvador.”
(AG, 11)
Na fase de aplicação do Concílio é revogado o jus commissionis (1969), segundo o
qual um determinado território de missão era outorgado a um Instituto Misssionário que
detinha o monopólio de sua gestão. Assim, a jurisdição do território de missão passa aos
Bispos locais, que deveriam conferir o mandato aos institutos que trabalhassem em seus
territórios. (Mezzadri, 2005).
Segundo Mezzadri, a redefinição das tarefas na relação entre os institutos religiosos
e os territórios de missão levou a uma profunda crise nos anos seguintes ao Concílio,
devido ao contínuo questionamento sobre a necessidade de continuar enviando
missionários a tais destinações. A reação ao colonialismo naqueles anos colocava em
37
O significado da expressão “Semente da Palavra” se torna explícito nas seguintes afirmações: “A
actividade missionária não é outra coisa, nem mais nem menos, que a manifestação ou epifania dos desígnios
de Deus e a sua realização no mundo e na sua história, na qual Deus, pela missão, manifestamente vai
tecendo a história da salvação. Pela palavra da pregação e pela celebração dos sacramentos de que a
Eucaristia é o centro e a máxima expressão, torna presente a Cristo, autor da salvação. Por outro lado, tudo o
que de verdade e de graça se encontrava entre os gentios como uma secreta presença de Deus, expurga-o
de contaminações malignas e restitui-o ao seu autor, Cristo, que destrói o império do demónio e afasta toda a
malícia dos pecadores. O que de bom no coração e no espírito dos homens ou nos ritos e culturas
próprias dos povos, não não se perde, mas é purificado, elevado e consumado para glória de Deus,
confusão do demónio e felicidade do homem” (AG, 9, Ênfase da autora).
40
questão o poder tutelar dos missionários europeus e as relações que estes mantinham com
os estados colonizadores.
Os anos do Concílio Vaticano II coincidem com o surgimento da teologia da
libertação que colocava em evidencia os valores da emancipação social e política presentes
na mensagem cristã. O nascimento do movimento remonta à Conferência Episcopal
Latino-americana (CELAM), que ocorre em 1968 em Medellín, na Colômbia, na qual os
representantes da hierarquia eclesiástica se posicionam a favor dos grupos mais
desfavorecidos da sociedade latino-americana e de sua luta, pronunciando-se por uma
Igreja popular e socialmente ativa. Durante os anos setenta, a difusão em quase todo o
continente das ditaduras militares ou regimes pesadamente repressivos causou
freqüentemente atritos entre os setores da Igreja Católica, e incentivou o empenho dos
teólogos da libertação em elaborar propostas frente ao agravamento da crise política e
social latino-americana. Difundiram-se em tal período as comunidades eclesiásticas de
base (Ceb), núcleos ecumênicos empenhados em viver uma de participação nos
problemas da sociedade, que emergiram em quase todos os países, sobretudo no Brasil e
Nicarágua (Boff, 1982). As lutas intestinas da Igreja católica, juntamente aos
entrecruzamentos políticos dos quais participava, revelam a heterogeneidade de tendências
internas. Cabe destacar também, que no Brasil o golpe militar (1964) aconteceu às
vésperas do Concílio II. Marcando as diferentes franjas internas também na CNBB, Souza
(2004) afirma que “Vários cristãos seriam presos, se asilariam em embaixadas ou partiriam
para o exílio, enquanto outros fariam parte do primeiro governo militar ou dos órgãos de
repressão.”(http://www.scielo.br/scielo.php?S0103-0142004000300007&lng=pt&nrm=iso).
Nos anos oitenta, a oposição a tal movimento por parte dos setores mais
conservadores da Igreja foi apoiada pelo pontífice Juan Paolo II, na tentativa de limitar os
setores mais extremistas e marxistas do movimento da teologia da libertação. De fato,
alguns teólogos viram diminuir seu próprio campo de ação, chegando alguns a serem
expulsos da instituição – como foi o caso de Leonardo Boff, ex-franciscano.
Em dezembro de 1965, ganha grande importância a Constituição Pastoral Gaudium
et Spes
38
que aportava os aspectos práticos da linha pastoral, complementando a anterior
38
Nessa Constituição Pastoral de 1965 se explicita o significado atribuído ao termo ‘cultura’: “Com a palavra
cultura se indica, em sentido geral, tudo aquilo com o que o homem afina e desenvolve suas inúmeras
qualidades espirituais e corporais; procura submeter o orbe terrestre com seu conhecimento e trabalho; faz
mais humana a vida social, tanto na família como em toda a sociedade civil, mediante o progresso dos
costumes e instituições; finalmente, através do tempo expressa, comunica e conserva em suas obras grandes
experiências espirituais e aspirações para que sirvam de proveito a muitos, e inclusive a todo o gênero
41
encíclica Lumen Gentium, concentrada nos aspectos teológicos e dogmáticos. Ressalta-se
ainda a importância dada à Constituição no decreto Ad Gentes, oferecendo as bases para o
desenvolvimento do conceito de “inculturação”, que Juan Paolo II retomará, enfatizando
seu significado enquanto modalidade de atuação missionária.
Este último pontífice, no 25º ano do decreto Ad Gentes, publicou a encíclica
missionária Redemtoris Missio (1990), em que reafirma a missão como tarefa essencial da
Igreja (RM, 2). Enfatiza que ela não pode ser substituída pelo diálogo inter-religioso ou por
um empenho reduzido na promoção humana. A encíclica propõe entender a missão como
testemunho de vida e caridade:
“O homem contemporâneo acredita mais nas testemunhas do que
nos mestres, 69 mais na experiência do que na doutrina, mais na vida e
nos factos do que nas teorias. O testemunho da vida cristã é a primeira e
insubstituível forma de missão” (RM, 42)
Enfatiza-se que a tarefa da missão está nas mãos do povo de Deus (bispos,
sacerdotes, institutos missionários, leigos), chamando a uma maior espiritualidade que se
concretizaria em testemunhar Cristo espelhando sua própria imagem.
“Membros da Igreja em virtude do batismo, todos os cristãos são
co-responsáveis pela atividade missionária. A participação das
comunidades e de cada fiel neste direito-dever se chama « cooperação
missionária»” (RM, 77)
“A universal vocação à santidade está estritamente ligada à
universal vocação à missão: todo o fiel é chamado à santidade e à missão.
Este foi o voto ardente do Concílio ao desejar, ‘com a luz de Cristo
reflectida no rosto da Igreja, iluminar todos os homens, anunciando o
Evangelho a toda a criatura’. A espiritualidade missionária da Igreja é um
caminho orientado para a santidade. O renovado impulso para a missão
ad gentes exige missionários santos. Não basta explorar com maior
perspicácia as bases teológicas e bíblicas da fé, nem renovar os métodos
pastorais, nem ainda organizar e coordenar melhor as forças eclesiais: é
preciso suscitar um novo ‘ardor de santidade’ entre os missionários e em
toda a comunidade cristã, especialmente entre aqueles que são os
colaboradores mais íntimos dos missionários. ” (RM,90).
humano. Disso se segue que a cultura humana apresenta necessariamente um aspecto histórico e social e que
a palavra cultura assume com freqüência um sentido sociológico e etnológico. Neste sentido, fala-se da
pluralidade de culturas. Estilos de vida diversos e escalas de valores diferentes encontram sua origem nas
distintas maneiras de servir-se das coisas, de trabalhar, de se expressar, de praticar a religião, de comportar-
se, de estabelecer leis e instituições jurídicas, de desenvolver as ciências, as artes e de cultivar a beleza.
Assim, os costumes recebidos formam o patrimônio próprio de cada comunidade humana. Assim também é
como se constitui um meio histórico determinado, no qual se insere o homem de cada nação ou tempo e do
qual recebe os valores para promover a civilização humana.” (GS,53)
42
É necessário levar em consideração que o Concílio Vaticano II, na tentativa de
deixar de lado as contestações surgidas também entre os leigos, em relação a sua
participação e ao seu papel dentro das competências na hierarquia eclesiástica,
institucionaliza inúmeras organizações seculares (Vecchio, 2005).
As divergências internas da Igreja católica, assim como entre os leigos, se
inscreviam nas mais amplas contestações do momento, recusando as hierarquias
eclesiásticas e uma Igreja distante das problemáticas políticas e sociais. O renovado papel
dos leigos oferecia um campo de ação mais amplo na colaboração com os institutos
religiosos, que apesar de continuarem reproduzindo formas hierarquias de interações,
determinaram, sobretudo a partir dos anos oitenta, um incremento da participação (Vecchio,
2005).
Ao tratar especificamente o tema da inculturação’, como prática necessária que
deve ser assumida por todos os missionários, Juan Paolo II retoma os conteúdos do decreto
Ad Gentes, sobretudo, em relação às Sementes da Palavra’, que deveriam estar presentes
nas diferentes culturas. Explicita que:
“O Deus que vem revelar, está presente nas suas vidas: de
facto, foi Ele Quem os criou, e é Ele que misteriosamente conduz os
povos e a história; no entanto, para reconhecerem o verdadeiro Deus, é
necessário que abandonem os falsos deuses que eles próprios
fabricaram, e se abram Àquele que Deus enviou para iluminar a sua
ignorância e satisfazer os anseios dos seus corações. São discursos que
oferecem exemplos de inculturação do Evangelho. (RM, 25. Ênfase da
autora).
As disposições emanadas pelo Concílio em relação às práticas missionárias, assim
como também as reelaborações de Juan Paolo II que reiteram a ênfase a tal mandato, vêm
acompanhadas da necessidade de mudanças na pastoral indígena, cujo caminho deveria ser
recorrido respeitando e valorizando as culturas e tradições locais.
1.4 O Implantatio Ordinis no Amazonas e a situação atual
Se os primeiros anos que se seguiram ao Concílio foram dedicados à Implantatio
Ecclesiae, a partir de 1970 ano em que a Custódia passa a ser Viceprovincia começa a
delinear-se o projeto de Implantatio Ordinis. No Amazonas, as preocupações se traduziam
em solicitar vocações autóctones e desenvolver infra-estruturas que permitissem a
formação de capuchinhos amazonenses. A Nova Constituição de 68 e o Capítulo Geral da
43
Ordem de 1970 expõem as novas diretivas para regulamentar as relações entre as
províncias e as circunscrições a elas outorgadas. A circunscrição capuchinha do Amazonas,
sendo Viceprovincia’, segue os novos estatutos, portanto as votações para eleger os
superiores não deverão ser enviadas a Assis, mas a Manaus, onde reside o ministro vice-
provincial, atuando como vicário do ministro provincial residente na Úmbria (Collarini;
1985, 102).
Segundo Braghini (2006), em 1972 funda-se o primeiro seminário em Manaus com
a proposta de formar o clero local e, especificamente, os sacerdotes diocesanos. O autor
argumenta que tal iniciativa devia seu vigor às intenções do Prelado Dom Adalberto Marzi
de implantar uma Igreja local na Prelatura do Solimões, que ainda não tinha alcançado um
número suficiente de sacerdotes (Braghini, 2006; 36).
No Capítulo de 1983, destaca-se que os religiosos que trabalham na Vice-
província’ deverão dedicar sua atenção, principalmente, à formação dos capuchinhos. Cabe
ressaltar, no entanto, que até tal data os aspirantes locais eram enviados à Itália para sua
formação, como foi o caso do atual Bispo Magalhaes
39
.
Teria-se iniciado a construção das casas de formação: o seminário de Manaus, o
seminário em Amaturá, o estudantado filosófico e teológico em Manaus e o s
estudantado de Tabatinga, posteriormente transformado em Noviciado (Braghini, 2006;37).
Os regulamentos internos para a programação e coordenação da formação inicial e
permanente dos capuchinhos foram expressos na Guia da Formação Inicial na
VIPROCAM
40
, apresentada no Capítulo da Viceprovincia’ em 1989. Nessa guia está
apresentado o Estatuto da Formação, aprovado em 1992, cujo conteúdo é confirmado no
Capítulo de 2001, com a presença do atual ministro provincial Ennio Tiacci (Braghini,
2006; 38). É importante destacar que, ainda que Braghini afirme que as estruturas para a
formação na Viceprovincia’ tenham fortalecido sua autonomia, em 2005 dois frades
amazonenses participam dos cursos para formadores na Universidad Salesiana de Roma
(Tiacci, 2004). Tal possibilidade é oferecida pela Madre Provincia’, que dirige o circuito
de pessoas que vinculam a Úmbria com o Amazonas e vice-versa.
39
Magalhães havia começado a formação entre os capuchinhos milaneses do Maranhão e do Ceará,
terminando seus estudos em Perugia e, finalmente, em Roma, onde se licenciou em Teologia na Pontificia
Universidad Lateranense. Voltará ao Alto Solimões em 1968, onde em 1990 sucede a Don Adalberto Marzi.
40
Vice-província capuchinha do Amazonas.
44
Em 1992, ano da instalação da Diocese do Alto Solimões, o novo Bispo Alcimar de
Magalhães (anteriormente Bispo de Caroline), juntamente ao Vice-provincial frei
Tommaso Ottavini e ao Ministro Provincial frei Celestino Di Nardo, firmam uma
Convenção entre as duas entidades religiosas, cujo conteúdo indicava a responsabilidade
da colaboração em relação às atividades pastorais, sociais e organizativas da Diocese,
mantendo sua própria autonomia (Braghini, 2006;36).
Segundo a reconstrução de Braghini das etapas que caracterizaram as atividades
dos capuchinhos úmbrios na região focalizada desde os anos oitenta até os dias atuais, as
energias teriam se concentrado na Implantatio Ordinis. Tal situação determinou, segundo o
autor, o descuido da pastoral indígena, cuja importância, seguindo sua argumentação, é
enfatizada atualmente pelo Bispo Magalhaes.
Observando que desde os anos oitenta a pastoral indígena teria sofrido uma
diminuição em sua ‘intensidade’, Braghini postula sua existência antes de tal período,
argumentando essa existência através da exaltação da obra de alguns frades sobretudo
Fedele de Alviano que teriam se dedicado a tal prática entre os Ticuna. Já mencionei a
crítica a tal visão elaborada por Argañaraz (2004) no que concerne frei Alviano, mas já
desde 1929 Nimuendaju expressava sua opinião em relação a ação dos capuchinhos na área,
afirmando que:
“… limitam-se de ir de tempo em tempo aos estabelecimentos
acima referidos onde os pobres ‘bichos’41 que tem pelos religiosos uma
profunda veneração se reúnem promptamente á noticia da cegada delles,
para bautizar e cazar todos que pelo bestunto do patrão se acham em
condições para tal, correndo despezas por conta dos donos dos barracões
que vêem nisto um meio seguro para o seu predominio sobre os indios.
Nenhum Ticuna recebe o mais ligeiro ensino religioso([1929] 1982;
205 apud. Oliveira, 1988; 86. Ênfase da autora)
As fraternidades da Viceprovincia’ se distribuem,no Capítulo Viceprovincial de
1983, em quatro zonas: Fraternidade de São Sebastião em Manaus, onde está a Cúria Vice-
provincial, um Convento e a paróquia, pós Noviciado Frey Francisco Arce
42
, Aspirantado
seráfico; Fraternidade de São Giuseppe da Leonessa em Benjamin Constant, com convento,
noviciado e paróquia; Fraternidade de Santa Verónica Giuliani em São Antônio do Içá com
41
Nimuendajú afirma que alguns capuchinhos apostrofavam os indígenas dessa forma.
42
Primeiro capuchinho amazonense.
45
convento, Postulantado e paróquia em Amaturá com convento e paróquia; Fraternidade de
São Leopoldo Mandic em Humaitá, com convento e paróquia (Braghini,2006; 27).
Ainda que o processo de implantação da Ordem continue aparentemente sendo um
dos principais objetivos, cabe destacar as novas disposições que emergem no último
Capítulo da Viceprovincia’ (2004), que revelam a vinculação com a Madre Provincia’,
determinando a manutenção do circuito Amazonas-Úmbria.
O novo ministro vice-provincial
43
Paulo Xavier Ribeiro
44
, amazonense, se valia da
ajuda de seu primeiro conselheiro Mario Monacelli, missionário úmbrio desde 1974. Antes
da nomeação de Paulo Xavier, os conselheiros eram frei Bernardo Vignarelli e frei Bianco
Epis, ambos úmbrios.
Por tal razão, o informe vice-provincial abre com os agradecimentos aos
missionários úmbrios e, sobretudo a Ennio Tiacci (Ministro Provincial presente no
Capítulo). Os agradecimentos revelam a disponibilidade oferecida pela Madre Provincia’
para financiar os projetos relativos à melhoria das estruturas para a formação inicial e
permanente dos frades. Além disso, se solicita continuar e alimentar o ‘intercambio de
experiências’ entre Assis e Amazonas, o que possibilitou a alguns frades amazonenses
viajarem à Itália, como também a presença na Viceprovincia’ dos frades Paolo Braghini e
Carlo Chistolini, ambos italianos. No relatório do Capítulo, os agradecimentos à Província
se ampliam às associações laicas da Úmbria Aifi
45
, paróquia de Sanfatucchio, Secretaria
das missões, cujos benfeitores financiaram numerosos projetos.
alguns anos, os capuchinhos da Provincia’ e da Viceprovincia’ estão
empenhados na preparação do centenário da missão, prevendo a mobilização de várias
agências: uma equipe formada por italianos e brasileiros para a realização de vídeos,
pesquisadores da Universidad de Perugia contribuirão para a reconstrução histórica da
missão etc. Tais preparativos são divulgados nos encontros e nas revistas, ressaltando a
colaboração e vínculo existente entre a Viceprovincia e a Provincia.
43
Lembrando que se trata da autoridade máxima presente na Vice-província e que atua como vigário do
ministro Provincial, segundo as Constituições da Ordem.
44
Frei Paulo Xavier se formou em 2000 em Ciências das Comunicações, na Pontificia Universidad Salesiana
de Roma.(Tiacci, 2004:70)
45
Aifi (Asociazione Insieme ai Fratelli Indios). Nos ocuparemos de tais agências no próximo capítulo.
46
Dos 37 frades que trabalham na Viceprovincia’ atualmente, se observa a presença
de 7 capuchinhos úmbrios
46
aos quais se agregou frei Paolo Braghini a partir de setembro
2006 (www.viprocam.com.br).
Na circular 7 (02-08-2006) emanada pela Viceprovincia comunica-se que:
“Discutimos sobre a carta de D. Alcimar que pede uma presença
permanente em Belém do Solimões e nas comunidades ribeirinhas...
Depois de alguns esclarecimentos e avaliações estamos de acordo que
com a chegada de frei Paolo Braghini em setembro, que vem
definitivamente para a VP, será possível a presença de uma fraternidade
(frei Gino, frei Paolo Braghini, frei Paulo Silva) em Belém. Será uma
resposta capuchinha ao povo Ticuna e ao povo ribeirinho que pede
constantemente nossa presença entre eles.”
Vários artigos apontam o novo empenho e desafio a que os capuchinhos úmbrios se
propõem: o início de uma intensa pastoral no Vale do Javarí, ampliando as fronteiras do
território de missão. A área do Alto Solimões deveria ser outorgada aos religiosos locais,
assim que os italianos pudessem se concentrar no Javarí. (Continenti, 2005; 1/2:33)
No aniversário de noventa anos de missão, Egidio Picucci
47
anuncia tal propósito:
“...para além de continuar o apostolado nos rios, onde a Igreja é
o ponto de referência natural para a inata religiosidade dos ribeirinhos, os
religiosos descobriram necessidades mais próximas e mais distantes.
Aquelas próximas são as imensas favelas de Manaus, nas quais vive um
formigueiro de gente que parece emergida das profundezas dos rios e na
qual, em dez anos, eles criaram 25 comunidades, divididas em três áreas
missionárias, dotadas de tudo o que é necessário à assistência, à
promoção e ao desenvolvimento.
Aquelas distantes são “os chamados do oeste”, isto é, o desejo de
aproximar e de começar uma possível evangelização entre as onze tribos
de índios que vivem na diocese, à distâncias impensáveis (um mês ou
mais de navegação) e, freqüentemente, envoltas numa áurea carregada de
mistério. Os poucos contatos que tiveram com alguns deles na ‘casa dos
índios’, construída para acolhê-los quando chegam entre os ‘civilizados’
de Atalaya do Norte, não são mais suficientes. É necessário ir ao seu
encontro; ficar com eles; defendê-los; conhecê-los; entendê-los ... Depois
de 90 anos, devemos voltar ao seio da floresta mãe e recomeçar de onde
partimos. Ninguém diz que é fácil, mas todos sustentam que é
necessário.”
(http://www.fraticappuccini.it/pubblicazioni/archivio/amazzonica.shtml)
Às vésperas do centenário, ele confirma tais intenções:
46
Benigno Falchi, Bernardino Vignarelli, Fulgencio Monacelli, Gino Alberati, Enrico Sampalmieri, Mario
Monacelli, Pietro Bianco Epis.
47
Atual diretor da revista “Continenti”, periódico mensal sobre as missões dos capuchinhos.
47
“Hoje, a Igreja do Alto Solimões não é mais uma entidade
desconhecida, mas uma linda realidade, inserida com pleno direito na
dinâmica da Igreja brasileira, com seu próprio Bispo, seu próprio clero,
seus próprios religiosos (os capuchinhos constituíram uma vice-
província), levando as vozes dos últimos. Civilmente, a zona (72 mil
Km2) é uma meso-região que caminha para tornar-se um novo Estado da
Federação nacional. Os missionários esperam com ansiedade, porque este
seria um reconhecimento implícito da contribuição que eles aportaram
para seu nascimento. Do novo Estado (sim nascerá) farão parte também
as doze tribos do Rio Javari, as mais esquecidas do Brasil, para as quais
os missionários estão se dirigindo. Consolidada a Igreja entre os Ticuna
(a tribo mais numerosa da federação brasileira), sobretudo graças à
atividade de P. Fedele de Alviano, de P. Geremía de Nardo
48
e de P.
Arsenio Sampalmieri, que estudaram sua língua, suas lendas e costumes,
os capuchinhos italianos e locais se deslocam em direção ao oeste, onde
se abre um imenso campo de trabalho.”
(http://www.fraticappuccini.it/pubblicazioni/archivio/amazzonia.shtml)
Os capuchinhos úmbrios, que até os dias atuais estão presentes na Viceprovincia’,
para além de deter posições de destaque, mantêm uma intensa colaboração com as
associações laicas da Madre Provincia’. Sobretudo, revelam-se extremamente ativos na
divulgação e promoção das ‘atividades’ desempenhadas na área de missão. Frei Bianco
Epis, assim como Benigno Falchi, que trabalham mais especificamente no Alto Solimões,
mantém um canal direto com os benfeitores da Úmbria.
Na premissa do texto “Assisi risponde all’Amazzonia” (2002), organizado por frei
Valerio di Carlo, de quem falaremos no próximo capítulo, se explicitam suas intenções: “...
tornar conhecido o fluxo alternativo e complementar existente entre Amazonas e Assis: no
passado e mais ainda no presente. ¡Com o desejo de que estas “sinergias” cresçam e se
consolidem sempre mais, em beneficio de todos!” (idem; 5). As “sinergias” citadas e a
vontade de alimentá-las são o tema principal do texto, legitimando sua importância
baseando-se na argumentação de uma mudança na relação entre tais lugares. Explicita-se
que depois do Concílio Vaticano II a relação com os territórios de missão mudou; se
anteriormente tratava-se de uma ajuda unilateral, atualmente, essa relação estaria baseada
numa troca, denominada de “reverse misión” (ibidem; 37)
48
Entre os diferentes capuchinhos missionários no Amazonas mencionados no texto de frei Valerio de Carlo
“Asís responde a la Amazonas” (2002), aparece frei Geremia di Nardo como missionário no Amazonas por
trinta anos e “chamados pelos indígenas Tikunas ‘Papai Jeremias’” (idem;159). Faleceu em fevereiro de
2002.
48
Trataria-se de uma possível ‘fonte’ para a evangelização que prevê a participação
intensa de leigos que acumulam experiência nas missões – com a presença de guias
religiosos com a finalidade de, uma vez retornados a seu próprio país, colaborarem com
associações vinculados aos religiosos.
É necessário destacar que foi estipulado um acordo entre quatro regiões italianas
(Úmbria, Marche, Emilia Romagna, Toscana) e a República Federativa do Brasil que daria
continuidade ao acordo de base da Cooperação Técnica - estipulado em 30 de outubro de
1972. O último acordo firmado em 2004 entre Úmbria e Brasil prevê “o desenvolvimento
local para o crescimento ocupacional e para a coesão social, com o objetivo de garantir a
competitividade dos sistemas produtivos que compreenda a difusão das oportunidades para
os territórios, a valorização de seus recursos e vocações, a compatibilidade com os direitos
sociais e os vínculos ambientais.” (Ver documento ao final do capítulo). Como
mencionaremos no próximo capítulo, os capuchinhos úmbrios juntamente com o Bispo
Magalhaes e alguns leigos, estão inseridos nos projetos de desenvolvimento sustentável
favorecidos em tal acordo para o Estado do Amazonas. Para tal propósito, ocupam-se em
guiar equipes de consultores que visitam o Amazonas com o objetivo de avaliar a
possibilidade de investimento de capital no estado brasileiro.
No processo de mapeamento das redes de relações tecidas na região da Úmbria
pelos capuchinhos, deparei-me com inúmeros atores sociais que participam de tal
configuração. Nas pequenas províncias
49
onde se localizam os conventos dos capuchinhos
(ver ilustração 3 ao final do capítulo) e nas quais nasceram os missionários da Ordem,
desenvolvem-se constantemente iniciativas em que são apresentados projetos a serem
realizados para coletar fundos. Em tais ocasiões participam diversos atores sociais que
apresentam a ‘realidade amazonense’.
49
Perugia, Asís, Cittá di Castello, Todi, Gualdo Tadino, Spoleto, Foligno, Spello, Visso, Terni, Amelia,
Montemalbe, Vasto Marina.
49
1) Úmbria
2) Marche
3) Toscana
4) Emilia-Romagna
5) Roma
6) Abbruzzo
7) Foggia
8) Puglia
9) Napoli
10) Salerno
11) Cosenza
12) Reggio Calabria
13) Messina
14) Palermo
15) Siracusa
16) Sardegna
17) Genova
18) Piemonte
19) Alessandria
20) Lombardia
21) Bressanone
22) Trento
23) Veneto
Mapa 1. PROVÍNCIAS CAPUCHINHAS NA ÍTALIA
1) Vice-província Amazonas
2) Vice-província do Oeste do Brasil
3) Maranhão- Pará- Amapá
4) Brasil Central
5) Bahia e Sergipe
6) Ceará e Piauí
7) Nordeste do Brasil
8) Minas Gerais
9) Rio de Janeiro e Espírito Santo
10) Paraná-Santa Catarina
11) São Paulo
12) Rio Grande do Sul
Mapa 2. PROVÍNCIAS E VICE-PROVÍNCIAS CAPUCHINHAS NO BRASIL
18
19 20
21
23
22
3 2
4
17
1
5
6
9
10
7
8
11
13
14
15
12
16
1
3
2 5
4
8
9
6
7
11
12
10
50
Ilustração 4. Conventos capuchinhos no Amazonas.
Ilustração 3. Conventos capuchinhos na Úmbria.
51
52
53
54
Capítulo 2. Configuração social, atores e transações
2.0 A Úmbria e Assis
Única região do centro da península a não ser tocada pelo Mediterrâneo, a Úmbria
apresenta um território caracterizado por uma sucessão de colinas, submergido nas
montanhas do Apenino Umbro-Marchigiano. A zona é formada por amplos vales
irregulares que compõem um panorama verde: por tal motivo é chamada de ‘coração verde
da Itália’. A relação habitante por território está abaixo da média nacional e não existem
grandes aglomerados urbanos, os quais não ultrapassam os 160.000 habitantes.
As amplas áreas verdes, os numerosos parques e áreas protegidas, e o território
montanhoso, fazem dela uma região principalmente rural, com tradições
50
peculiares,
defendidas e promovidas pelos habitantes dos numerosos centros medievais.
Às belezas naturais se somam as riquezas do patrimônio artístico que atraem
numerosos turistas: igrejas, catedrais, conventos, ermitas, monastérios e santuários
principalmente medievais. Cabe destacar que a abundância de arquiteturas religiosas se
deve ao fato de que a Úmbria esteve sob o controle do papado desde a metade do culo
XVI até a unificação da Itália (1861), com um breve intervalo (1805-1815) durante a
ocupação de Napoleão Bonaparte, período seguido por um incremento nas construções de
estruturas imponentes por parte da Igreja.
Dentre todas as províncias, Assis é a meta privilegiada por turistas e peregrinos.
Situada no coração da Úmbria próxima do Monte Subasio, ocupa um terraço na colina
dominante de um amplo vale onde a seus pés se encontra o povoado de Santa Maria degli
Angeli
51
– parte do comune de Assis – de onde partem os ônibus que recorrem as curvas da
subida à cidade santa.
Assentamento de origem pré-romana, Assis conserva ainda vestígios arqueológicos
e monumentais da idade clássica, mas sua maior fonte de atração são os vários santuários
medievais. Entre eles está a imponente Basílica de San Francisco, construída nas primeiras
50
Refiro-me à participação ativa dos habitantes na organização de festas que evocam o passado medieval.
Durante o período da pesquisa, exatamente nos primeiros dias de maio, Assis se converte num teatro. É
quando acontece o famoso “Calen di Maggio” e os habitantes da cidade são os protagonistas do cenário. A
festa representa as disputas entre a parte de cima e aquela de baixo da cidade e os concorrentes disputam o
pálio, exibindo-se em diferentes habilidades: canto, lutas, reconstruções dos ambientes, instrumentos e
hábitos medievais.
51
Aqui fica a Porziuncola, lugar privilegiado por São Francisco para congregar seus discípulos.
55
décadas do século XIII, período marcado pela criação e difusão do franciscanismo como
mencionado no primeiro capítulo desse trabalho.
Pela grande quantidade de peregrinos e turistas que recorrem todos os anos as ruas
da cidade, Assis desenvolveu inúmeras estruturas para acolhê-los; hotéis, hospedaria,
restaurantes e bares abundam nas ruas estreitas, intercalados por inúmeras lojas que
vendem todo tipo de objetos com imagens e símbolos de São Francisco. O comércio é o
motor econômico dos moradores de Assis, que convivem com o complexo das estruturas
eclesiásticas formado pelos conventos, confraternitas e santuários dirigidos pelas Ordens
franciscanas.
Assis conta com aproximadamente 25.000 habitantes. Não me dediquei a
aprofundar a relação entre os religiosos e os habitantes de Assis em geral, mas nas
conversas mantidas com alguns destes últimos
52
surgiram diferentes temáticas que
revelavam as tensões produzidas por tal convivência. Discutia-se, sobretudo, acerca das
propriedades eclesiásticas e seu monopólio, sublinhando os privilégios que o Estado
italiano concedeu nos últimos tempos à Igreja católica, e em particular, a isenção do
imposto anual sobre as propriedades. Diferentemente, alguns proprietários de negócios
nas conversas informais sobre minha presença e minha pesquisa em Assis – se apressavam
em me contar da sua participação nas obras beneficentes promovidas pelos franciscanos,
lamentando a impossibilidade de continuar a contribuir por causa da entrada do euro que
teria determinado a crise econômica.
A essas temáticas se somavam as conversas relativas às advertências do novo Papa
Bento XVI às Ordens dos frades Menores e Menores Conventuais, ordens às quais estão
outorgadas, respectivamente, as custódias da Basílica de Santa Maria degli Angeli e da
Basílica di San Francisco. No dia nove de novembro de 2005, Bento XVI emanou novas
disposições para estas duas Basílicas: os dois maiores templos franciscanos passam a estar
sujeitos diretamente à jurisdição da Santa Sé, e se solicita uma condução diferente de tais
patrimônios, contemplando a colaboração entre as duas Ordens. Da mesma forma, por
iniciativa do Papa, se esclarece no “Motu Próprioque a partir daquele momento, o Bispo
de Assis terá a jurisdição prevista no direito sobre as Igrejas e casas religiosas em todo os
assuntos ligados às atividades pastorais promovidas pelas Ordens mencionadas.
52
A permanência em Assis me deu a possibilidade de conversar com várias pessoas da pequena cidade,
principalmente com os donos de bares e lojas próximas à cúria dos capuchinhos e, sobretudo, com a dona da
hospedaria onde fiquei e sua família.
56
(http://www.fraticappuccini.it/attualita/rassegna/view.php?id=5805). Coloca-se, portanto, a
diminuição da autonomia especial – outorgada por Paolo VI em 1969 que tornava a cidade
úmbria em capital mundial de uma espiritualidade ecumênica – usufruída até aquele
momento pelas Ordens, submetendo-as à Diocese local
53
.
Perguntei aos capuchinhos sobre tais disposições, mas parecia um assunto
totalmente alheio a suas atividades. As conversas com frei Luciano Materazzi (diretor do
museu) sobre esse assunto revelaram alguns aspectos ligados às distinções demarcadas
entre as Ordens: sua argumentação consistia em demonstrar que as advertências do Papa
recaiam unicamente nos freis menores e nos menores conventuais, pela simples razão que
são eles quem detém a custódia dos santuários. Os menores capuchinhos, ao contrário, não
seriam ‘donos’ ou proprietários de nenhum bem material; eles se distinguiriam, e
enfatizam tais distinções, justamente pela escolha de não ter moradia fixa seguindo a
Regra de São Francisco – levando uma vida itinerante.
Diferentemente dos capuchinhos, cuja tarefa fundamental seria a dedicação aos
pobres e a evangelização nas missões, os menores e menores conventuais tem como
obrigação primeira cuidar dos santuários a eles outorgados pela Santa Sé.
No entanto, ainda que os capuchinhos não detenham diretamente a posse dos bens
materiais, eles usufruem espaços: o convento, o museu, o centro missionário etc.
Os peregrinos que visitam Assis concentram sua atenção nos santuários. Os que os
capuchinhos teriam a oferecer para tal público?
O único lugar visível e com possibilidade de ser visitado é o Museu dos Índios do
Amazonas. Como veremos no próximo capítulo, no qual me concentrarei na descrição do
museu, trata-se de um espaço cuja manutenção é confiada inteiramente a um frei, Luciano
Materazzi. Surge, portanto, a questão: se a Regra de São Francisco ordena a libertação em
relação aos bens materiais e os capuchinhos sublinham constantemente sua submissão a ela,
distinguindo-se das outras Ordens franciscanas, por que instituir um museu que por
definição é um lugar de posse e conservação de objetos?
A outra questão que se coloca se refere à tipologia e às técnicas de instalação do
museu, realizadas com meios datados. Se os frades menores e menores conventuais têm
53
O jornal italiano Il Manifesto, cujo acesso está disponível na Internet, e um artigo do jornal O Globo (22-
11-2005), ofereceram-me algumas informações sobre esse assunto. Os artigos enfatizam que as questões
levantadas pelo Papa não estariam ligadas apenas à gestão das duas Basílicas, mas que tais disposições eram
uma advertência às condutas dos franciscanos, consideradas ‘excessivas’ em relação às alianças políticas com
a esquerda italiana. Pode-se dizer que a medida do novo Papa em relação aos franciscanos se inscreve no
projeto mais amplo de restauração de uma Igreja conservadora, da qual Bendito XVI se fez promotor.
57
como primeira tarefa a custódia dos santuários, utilizando técnicas de ultima geração, por
que os capuchinhos não outorgam a manutenção do museu a tais frades?
Desde o início da pesquisa, percebe-se uma espécie de delimitação das áreas de
atuação por parte das três Ordens. De fato, as distinções entre elas costumam ser marcadas
e todas através de iniciativas, manifestações, eventos etc. buscam maior visibilidade no
cenário de Assis.
É necessário destacar que Assis, para além de ser a meta preferida de peregrinos
católicos, é também um lugar que atrai pessoas de qualquer orientação religiosa, assim
como agnósticos e ateus. É reconhecida a popularidade da cidade santa (como vários
preferem chamá-la), lugar de nascimento de São Francisco – patrono da Itália cuja figura
goza de estima e simpatia entre diferentes correntes religiosas e seculares.
Como lugar de fortes conotações simbólicas, Assis se torna sede de várias
manifestações. Não é por acaso que o primeiro encontro inter-religioso mundial para a paz,
promovido pelo Papa Wojtyla em 1986, acontece nessa cidade, com a participação de
inúmeros chefes de outras religiões. Tal evento foi novamente promovido pela
comunidade de Sant’Egidio, juntamente com a Conferência Episcopal Úmbria, em
setembro de 2006, comemorando os vinte anos da iniciativa de Wojtyla.
Outro evento que concentrou a atenção mundial sobre Assis, foi a marcha Perugia-
Assis para a paz no Oriente Médio, realizada em 11 de setembro de 2005.
Com tais eventos, Assis se torna um centro de atenção mundial, alimentando sua
fama e aumentando o prestígio das Ordens franciscanas, cujas manifestações são olhadas
com desconfiança pelos setores mais conservadores da Igreja.
54
2.1 O centro missionário
A poucas dezenas de metros da Basílica de San Francisco, encaminhando-se pela
rua estreita de mesmo nome, nos deparamos com o convento e a cúria provincial da Ordem
dos capuchinhos e ao seu lado esquerdo, separado por uma pequena capela, está a entrada
54
Refiro-me às críticas que lhes foram dirigidas acusando-os de sincretismo religioso e de pacifismo
esquerdista.
58
do Museu dos Índios do Amazonas. Continuando na mesma rua, a poucos metros de
distância, chegamos ao centro missionário da Ordem
55
.
O centro – conhecido como “Gruppo Terzo Mondo-Papa Giovanni” – foi aberto em
1959. Naquele momento, sua direção foi encarregada pelo Ministro Provincial ao frei
Marcello Falini, que havia sido missionário no Amazonas por um breve período. Ao
falecer, frei Falini deixa a direção do centro ao frei Valerio di Carlo, cuja colaboração
era intensa. Por causa do terremoto de 1997, que causou inúmeros desastres na cidade, o
centro missionário fora transferido para a parte alta da cidade, até recentemente voltar para
a rua São Francisco.
O centro desenvolve distintas atividades. Trata principalmente de recrutar leigos,
sensibilizando-os para as temáticas da missão e outorgando-lhes cargos na preparação das
atividades para a animação missionária’. Parte-se do pressuposto que como destaquei
no capítulo precedente cada leigo, religioso ou sacerdote deveria sentir-se e declarar-se
‘missionário’. O centro deveria se concentrar em “....oferecer aos leigos as propostas da
Missio Ad Gentes’. Os leigos são chamados a cooperar na obra de evangelização,
desenvolvendo em si mesmos o conhecimento e o amor para as missões: nas terras de
missão, são chamados a empenhar-se seja nas instituições missionárias seja na cooperação
econômico-social ou cultural com os povos em processo de desenvolvimento”. (Benedetti,
2002; 54).
O centro provê a distribuição das revistas missionárias -“Voce Seráfica di Assisi”,
“Continenti”, “Amazzonia Fratelli Indios”. A revista “Continenti” tem seu arquivo e
escritório no andar inferior do centro, em cujo espaço encontra-se também uma pequena
biblioteca que contém livros sobre as missões e o franciscanismo, sobre populações e
culturas da África e América Latina e outros textos de geografia e história.
O centro mantém um contato constante com os benfeitores da missão mediante
correspondência, enviando livros, revistas e notícias que os informam sobre os diferentes
projetos ou atividades a serem realizados.
Desde sua inauguração, seus principais atores sociais Frei Marcello Falini, e depois
frei Valerio di Carlo, começaram a tecer as redes de relações com diferentes províncias da
55
A entrada do centro leva a uma ampla sala atualmente vazia (normalmente designada às exposições), à
esquerda encontramos uma pequena porta que leva diretamente aos escritórios. Uma pequena sala de espera
com uma mesinha baixa no centro e dois sofás; nas paredes um quadro que retrata o rosto de uma indígena e
outro com a imagem de frei Valerio di Carlo. À direita, em uma ampla sala iluminada por uma grande janela
trabalham pontualmente duas secretárias; à esquerda, uma sala menor com dois escritórios e uma mesa
redonda cheia de revistas, ao fundo várias estantes com livros e vídeos. Esta última sala é ocupada por frei de
Valerio di Carlo e Lamberto Pasqualoni dos quais falarei mais adiante.
59
Úmbria, incrementando os vínculos com o laicato, e buscando envolvê-los na propaganda e
financiamento da missão. O sucesso da missão em termos presenciais, e a implantação de
infra-estruturas dependem da ‘Madre Provincia’.
Nasceram, dessa forma, associações e grupos de voluntários que até os dias atuais
são ativos colaboradores dos capuchinhos.
2.2 Associações, paróquias e voluntariado
Entre os grupos de leigos, teve particular importância desde o primeiro período da
missão, a organização “Amiche dei lebbrosi” de Perugia, que se ocupou de financiar a
realização do hospital S. Elisabetta em S. Paulo de Olivença.
A AIFI
56
(Asociação Insieme ai Fratelli Indios) é uma ONLUS (organização sem
fins lucrativos) com sede em Perugia. Foi formada em 1984 como um movimento cristão-
social cujos atores tinham relações anteriores com os capuchinhos. Naquele momento, a
associação se chamava “Insieme Ticuna”
57
e garantia apoio econômico aos missionários
capuchinhos no Amazonas. O grupo, cujo presidente é Umberto Bartolucci, outorga
particular reconhecimento ao Bispo Adalberto Marzi que, como expliquei anteriormente,
foi prelado do Alto Solimões e era o presidente honorário do grupo e seu guia espiritual
(Braghini, 2006: 100)
Desde 1989, essa associação edita e distribui a mencionada revista “Amazzonia
fratelli Indios”, cujo conteúdo será analisado no último capítulo.
Apoiaram em 1987, na Itália, a “Campanha Javari”, promovida pela Prelazia do
Alto Solimões e pelo CIMI, que tinha como meta angariar fundos e sensibilizar as pessoas
sobre a questão dos indígenas ameaçados de genocídio.
Para sustentar economicamente o trabalho dos missionários no Amazonas, a
associação realizou e continua realizando diferentes atividades em várias províncias da
56
Em artigo assinado por Bartolucci, no texto “Assisi responde all’Amazzonia”, explicita-se a posição da
associação. Defendendo-se das críticas que receberam (que atingiram também outras associações
humanitárias) por ocuparem-se de realidades distantes em vez de se concentrarem nas misérias italianas,
respondem que a ‘caridade’ não tem limites geográficos, afirmando que existem agências que se ocupam em
salvar uma espécie de planta ou de animal em processo de extinção, portanto, eles se ocupam de salvar
populações ameaçadas de destruição.
57
“Junto aos Ticuna”
60
Úmbria, como também fora dela: dias missionários, mostras-mercado, ceias beneficentes,
espetáculos e mostras fotográficas.
Desde 1999, lança na Itália o programa “Adoções à distância”
58
, cujo responsável
no Amazonas é frei Bianco Epis, com quem a associação mantém intenso contato e cujos
artigos são trimestralmente publicados na revista “Amazzonia”.
A associação se valia da ajuda de um setor emergente de jovens colaboradores que
formam a Ra.Mi. (Ragazzi Missionari)
59
. Nascido em 2003, o grupo teve como núcleo
principal alguns jovens de Assis recrutados pelos frades capuchinhos Paolo Maria Braghini
e frei Carlo Maria Chistolini, cujo objetivo inicial era aproximar os jovens da Igreja. Desde
2003, o grupo Ra.Mi, atualmente formado por cerca de 100 jovens de várias regiões da
Itália, viaja periodicamente à missão, guiados pelos frades mencionados.
Durante o ano, o grupo desenvolve diversas atividades em distintas províncias da
Úmbria, como também em outras regiões italianas: encontros missionários, mostras
fotográficas, mercados de artesanato, festas etc., com a finalidade de angariar fundos para a
realização de alguns projetos que eles mesmos sempre sob a orientação dos capuchinhos
se encarregam de promover. Até 2005, eles se encarregaram da realização de um centro
polivalente na periferia de Manaus. Atualmente, os projetos se ampliaram na área do Alto
Solimões, com o estímulo, assistência e supervisão direta do Bispo Magalhaes, que os
acompanha nas comunidades Ticuna, onde permanecem durante breves períodos que
variam de uma semana até três meses, dependendo da disponibilidade dos voluntários
Ra.Mi.
Outra agência empenhada, juntamente com os capuchinhos, no que se chama de
animação missionária’ é a Caritas paroquial de Sanfatucchio
60
.
Remo Serafino
61
, sacerdote diocesano, vice-diretor da Caritas de Perugia, ex-
diretor espiritual do seminário de Assis e pároco da Igreja do povoado acima mencionado,
mantinha relações constantes com os capuchinhos. Em 1990, o centro missionário
58
Trata-se de um projeto através do qual os ‘benfeitores’ italianos, ou especificamente úmbrios, enviam
dinheiro aos capuchinhos com a finalidade de garantir a subsistência de crianças em famílias ‘necessitadas’.
59
Rapazes Missionários.
60
É um povoado próximo ao lago Trasimeno na província de Perugia. As informações relativas às atividades,
projetos, realizações e pessoas envolvidas na paróquia, me foram oferecidas por Lamberto Pasqualoni
durante entrevista (12-04-06).
61
Lamberto Paqualoni, que mantém assíduos contatos com o pároco, me informa que este era amigo de
Marcello Falini desde a época em que estudava para tornar-se pároco. Tinha pedido para ser enviado como
missionário ao Amazonas sem obter uma resposta positiva. Segundo as explicações de Lamberto, a
destinação à terra de missão, naquele então, era reservada aos capuchinhos.
61
convidou os benfeitores da Caritas a visitarem a missão como forma de reconhecimento
pelo apoio oferecido aos missionários no Amazonas durante vários anos. Desde aquela
época, quando os voluntários começaram a viajar para o Amazonas, a relação entre os
capuchinhos e a paróquia de Sanfatucchio se intensificou, dando lugar a diversas
colaborações para a realização de projetos.
A paróquia, que conta com aproximadamente 1600 pessoas, é extremamente ativa
em suas manifestações, organizando peças de teatro, jantares, mostras, bingos etc., com a
finalidade de angariar fundos. No entanto, a maior parte dos fundos vem de grandes erários,
sobretudo da sociedade ENEL
62
, de onde foram realizadas coletas entre os funcionários. A
ENEL doou um pré-fabricado de 800 metros quadrados que, desmontado e remontado no
Amazonas, foi destinado à construção de uma escola. Desde 1991, sempre sob a orientação
dos missionários, a Caritas de Sanfatucchio financia projetos destinados principalmente à
periferia de Manaus: Igrejas, centros comunitários, escolas de alfabetização, ambulatórios
médicos, escolas profissionalizantes, entrega de aparelho de ultra-sonografia, entrega de
roupa, materiais didáticos e medicinais. Assim como a associação Aifi, ela lançou a
campanha “Adoção à distância”.
Sobretudo a partir de 1997, os projetos financiados pela Caritas com a colaboração
do “Comitê de Conexão de Católicos para uma Civilização do Amor”, teriam se localizado
na área do Alto Solimões, entre as comunidades Ticuna.
Entre os anos 2000 e 2001, em colaboração com o Bispo da Diocese de Tabatinga
Alcimar Magalhães, foi realizado o projeto “TIKUNA”
63
, previamente apresentado a CEI
(Conferência Episcopal Italiana), de quem a contribuição financeira foi determinante
64
. A
paróquia de Sanfatucchio recebe regularmente as visitas dos missionários
65
capuchinhos no
Amazonas e estes últimos acolhem os voluntários em terra de missão. Até os dias atuais,
cerca de 250 voluntários já viajaram ao Amazonas.
62
ENEL: Ente Nacional Energía Eléctrica.
63
O projeto tinha como contexto de referência 10 aldeias Ticuna nos municípios de Tabatinga e de São Paulo
de Olivença, prevendo a instalação de um aparelho receptor de sinais satelitais; a implantação de uma casa
pré-fabricada de madeira destinada à sala didática; a realização de um poço de água com bomba e
potabilizador, alimentados eletricamente com painéis solares; e a instalação de uma central elétrica
fotovoltaica para a iluminação de alguns lugares considerados importantes como a Igreja, a escola e o
ambulatório médico.
64
Os italianos católicos destinam o "8 por mil" do salário à Igreja católica e essa parte é distribuída a projetos
para o terceiro mundo. Esse valor é distribuído entre todas as Ordens e Dioceses.
65
Seriam: Don Adalberto Marzi, Mario Monacelli, Tommaso Ottaviani, Fulgenzio Monacelli, Benigno
Falchi, Paulo Xavier (o vice-provincial) e o Bispo Magalhaes.
62
2.4 Os atores sociais: papéis, atividades e aspirações
Frei Luciano Materazzi
66
, nativo de Gualdo Tadino, tem 83 anos. Costuma ser
simpático, hospitaleiro, sempre sorridente, disposto a responder qualquer pergunta. Tais
características são por ele enfatizadas, afirmando pertencerem ao verdadeiro carisma’
capuchinho.
Em 1969, é designado para organizar o museu missionário (cuja abertura
aconteceria em 1972) pelo superior Ministro Provincial dos frades capuchinhos úmbrios
que, naquele então, era o Frei Evangelista Frasconi da Foligno.
Por seu talento artístico (dedicava-se principalmente à pintura e à restauração de
quadros antigos) e tendo cursado nos anos cinqüenta a Academia de Bellas Artes de
Perugia, Frei Luciano foi eleito entre os capuchinhos como a pessoa mais competente para
organizar o museu, tornando-se assim seu diretor. Costuma ser extremamente orgulhoso de
‘sua obra’.
Repetidas vezes me disse que quando lhe foi encomendado o trabalho, pediu aos
superiores a possibilidade de ter uma experiência’ no Amazonas para obter um
conhecimento suficiente da cultura local e tornar-se assim mais preparado para a tarefa.
Antes dessa ocasião, frei Luciano já tinha pedido para participar da missão, sem ter
conseguido uma resposta positiva por parte dos superiores.
Sua permanência no Amazonas durou alguns meses (aproximadamente seis),
transcorridos em sua maioria em Belém do Solimões, onde estava o frei Arsenio
Sanpalmieri.
Desde 1972 data em que o museu foi aberto frei Luciano se dedicou
exclusivamente a essa tarefa. Tal empenho é comentado por ele de várias maneiras, em
alguns momentos com grande orgulho e, em outros, com uma espécie de amargura.
Saudoso dos elogios recebidos nos primeiros tempos da abertura do museu, afirma que tal
66
As muitas conversas informais que mantivemos, como as entrevistas que ele me ofereceu, me permitiram
uma aproximação à sua trajetória, cujos aspectos mereceriam capítulos de outra tese. Me refiro ao interesse
suscitado pelas narrativas acerca de sua própria vida, percebendo a importância de um possível estudo sobre
as biografias dos capuchinhos que poderia revelar as escolhas e motivações que se inscreveram num contexto
histórico, político e econômico específico. Nascido em 1924, frei Luciano foi levado pelo pai, aos 10 anos,
para um convento. Vale destacar que estamos em pleno período fascista (1922-1943). Recusado por ser
extremamente vivaz e por não demonstrar a “vocação” como o pai queria, voltou para casa, até a chegada da
nova oportunidade de enviá-lo a um convento, agora sob orientação de um frei capuchinho. Frei Luciano,
conta sua história com auto-ironia, afirmando que eram tempos difíceis, em que a rigidez nas condutas era
obrigatória.
63
espaço se tornou uma espécie prisão: Aqui me colocaram e aqui me deixaram’ costuma
exclamar – sempre com muita ironia.
Domenico Sampalmieri (Arsenio)
67
nasceu em Piedicolle di Rivodutri, província de
Rieti (região Lazio), no dia 16 de outubro de 1936. Com 10 anos de idade, em 1946, entra
no seminário seráfico de Todi, onde começa sua formação religiosa. De 1947 a 1952,
freqüenta os estudos nos conventos de Gualdo Tadino e Foligno, e começa a profissão na
Ordem dos capuchinhos em 1952 em Montemalbe. De 1953 a 1960, freqüenta o liceu em
Spoleto e cursa teologia em Perugia, onde é ordenado sacerdote. Continua com os estudos
superiores em filosofia na Universidad Gregoriana de Roma, mas no ano seguinte, 1961,
renuncia para partir como missionário.
Desde 1962, coopera com a paróquia de Benjamin Constant e em 1965 se torna
responsável pela catequese dos Ticuna, criando, em 1971, uma residência estável em
Belém de Solimões. Ficará na missão até 1991, data em que voltará para a Itália.
Frei Arsenio vive atualmente no convento de Spoleto. Não participa das inúmeras
atividades para a promoção da missão. Os capuchinhos interrogados sobre o assunto
comentam as motivações pelas quais ele teria saído da missão e o por quê de não participar
da sua propaganda. Afirmam que uma facção dos Ticuna o teria ameaçado de morte e que,
portanto, ele teria sido obrigado a deixar Belém do Solimões. Tal situação teria provocado
no frei um grande sofrimento e uma conseqüente recusa à missão.
Na conversa informal
68
(22-05-06) que mantivemos, Arsenio conta tal episódio,
mas acrescenta que quis voltar para a Itália também porque estava cansado e doente,
afirmando também que não tinha mais paciência com os indígenas’. Com tom irônico,
explica a motivação de sua distância das atividades pró-missão, fazendo referência a sua
volta a Itália: queixa-se de não ter recebido uma boa acolhida depois de tantos anos na
missão, e que seus pedidos eram recusados por não ser mais um ‘missionário’
69
.
67
Informações encontradas no texto extraído de uma entrevista com frei Arsenio, em 1978.
68
Frei Arsenio não permitiu a gravação da nossa conversa, mas deixou que eu fizesse anotações.
69
Arsenio optou por abandonar a missão na qual sua vida estava em perigo. Tal escolha poderia ser
entendida como um ato de covardia por parte de um missionário cuja tarefa principal é testemunhar a palavra
de Deus até sacrificar a própria vida. O martírio, que deve ser voluntário, seria a maior manifestação de
sacrifício que liberta de qualquer pecado. Os capuchinhos contam numerosos mártires na história da Ordem,
cuja veneração lhes confere prestígio.
64
Frei Valerio nasceu em 1932 em Intermesoli (região Abbruzzo contígua à Úmbria).
Demonstra ter uma grande energia, é extremamente dinâmico, gosta muito de falar e,
sobretudo, de contar piadas.
70
Partiu para a missão em 1974 e permaneceu por aproximadamente dez anos no
Amazonas, sobretudo em Manaus, onde trabalhou na paróquia de São Sebastião. Com
orgulho, detém o título de “pai dos pobres” e um reconhecimento como “homem do ano”
que lhe foi conferido pelas autoridades civis de Manaus em 1978.
Atualmente, é o responsável pelo centro missionário e, segundo os escritos sobre
sua dedicação à atividade de divulgação da missão
71
, Frei Valerio se distinguiu desde
sempre por sua particular energia e capacidade performática, impulsionando as atividades
para fora do centro missionário, empreendendo a animação missionária’ em paróquias e
escolas.
Participou de diversos simpósios, encontros e congressos em universidades,
entidades, sindicatos, indústrias, espetáculos e ambientes esportivos – assistindo a jogos de
futebol junto com outros frades – coletando fundos para a missão
72
.
Frei Valério costuma dizer e também escrever: “Se algo dei nos meus dez anos de
missão, é muito maior o que recebi. Meus pés estão na Itália, mas meu coração está no
Amazonas” (2002, 149). Voltou à Itália para ficar ao lado da mãe doente, que um ano
depois veio a falecer. Imediatamente, apresentou mais um pedido oficial para voltar à
missão, mas por cinco vezes não obteve resposta positiva dos superiores. Se por um lado,
causava-lhe angústia ficar longe, por outro, confessa que seu trabalho em Manaus tinha se
tornado extremamente pesado e que precisava tomar distância pelo menos por um tempo.
Quis continuar a atividade missionária em sua pátria, dedicando-se com toda energia a
promover a missão. Afirma com orgulho que os Secretariados Missionários reconheceram
o centro missionário de Assis, por ele dirigido, como o mais eficiente das províncias
70
Frei Valerio costumava interromper nossas conversas para contar piadas, tornando a interação
extremamente divertida. Entregou-me uma de suas últimas obras “Frei Valerio pouco serio”, um livro de
aproximadamente 400 páginas inteiramente dedicado a piadas, cuja arrecadação com a venda é revertida à
missão. Ao explicar-lhe as intenções de minha pesquisa e pedir-lhe para consultar o material documental da
missão, ele ofereceu total disponibilidade, entregando-me os vídeos no mesmo dia. Ele me informa, ainda,
que esse material não é mais usado nos encontros nas paróquias e escolas, porque preferem usar slides e
comentá-los.
71
Umberto Bartolucci e Lamberto Pasqualoni sublinham o talento do frei em seus respectivos artigos que
integram o texto já mencionado “Asís responde a la Amazonas”.
72
Parte dessas informações foram levantadas durante as conversas com frei Valerio, outra parte me foi
oferecida por Lamberto Pasqualoni - que é seu colaborador e do qual falaremos mais adiante - e o restante foi
obtido no livro “Assisi responde all’Amazzonia”, por ele editado.
65
capuchinhas italianas e agradece às associações laicas que lhe ofereceram grande apoio
para alcançar tal objetivo.
Em suas piadas, em seus escritos, como também nas conversas, enfatiza o
carisma’ capuchinho, distinguindo-o das outras Ordens. Seriam os mais queridos’, os
verdadeiros frades do povo’, os mais próximos à Regra de São Francisco, manifestando a
humildade em sua profissão, mais que os ‘outros’.
Seu ‘sentir-se’ e ‘manifestar-se’ capuchinho leva-o a delinear comparações com as
outras Ordens. Comentando que São Francisco tinha uma espécie de desconfiança pelas
ciências e letras, compara-o a São Domenico, fundador da Ordem dos predicadores
(dominicanos), que deveria se tornar a mente da Igreja, os defensores do patrimônio
teológico. Afirma que São Domenico não deixou nenhum escrito de destaque, ao contrário
de São Francisco, que teria deixado inúmeros documentos
73
que conjuntamente formam a
“Bíblia Franciscana”, reunidos no texto “Fontes Franciscanas”.
A hilaridade não poderia escapar dos seus comentários: característica que num
primeiro contato o passa desapercebida, prerrogativa da sabedoria franciscana e, mais
especificamente, do “gênio” capuchinho
74
!
Lamberto Pasqualoni
75
, ex-responsável pela Caritas de Sanfatucchio e ex-
empregado da ENEL, é atualmente assíduo colaborador de frei Valerio di Carlo. Podemos
dizer que é o leigo que oferece mais tempo e dedicação à promoção da missão e que detém
um papel crucial nessa atividade.
Partiu por primeira vez para a missão em 1991 com o pároco de Sanfatucchio - com
quem tinha uma relação próxima - e outros treze voluntários. Desde aquele momento até os
dias atuais, Lamberto conta com ênfase que fez um total de 26 viagens ao Amazonas. No
seu relato das viagens demarca que cada voluntário paga pessoalmente, tanto a viagem
quanto a permanência na missão, além de dar os dias de férias anuais para tal destinação.
73
Está se referindo à Regra, ao Testamento, às cartas, poesias, rezas etc.
74
Frei Valerio recebeu diversos elogios por seu livro de piadas. As primeiras páginas do livro trazem cartas
de distintas autoridades, principalmente eclesiásticas, que sublinham tal característica.
75
Tive a oportunidade de me encontrar com Lamberto várias vezes no centro missionário. Quando o frei
Valerio estava presente, ele ficava em seu escritório trabalhando, até que algum sinal do frei abria espaço
para que ele contribuísse na conversa. Frei Valerio, a quem eu havia pedido uma entrevista, indicando
Lamberto e empurrando-o a participar da conversa, propôs uma entrevista também com ele, motivando tal
iniciativa por suas numerosas experiências no Amazonas e sua ativa colaboração com o centro. O dia da
entrevista (12-04-2006), Lamberto me ofereceu muito do seu tempo, tendo assim a possibilidade de
conseguir informações mais aprofundadas em relação às atividades do centro e ao seu envolvimento.
66
Pertencendo à paróquia de Sanfatucchio e sendo um dos mais comprometidos com
os capuchinhos, goza o privilégio de ter como hóspedes os missionários que voltam
temporariamente da missão, com quem organiza encontros na paróquia e nas escolas do
povoado, quando os missionários relatam suas experiências.
Seu empenho cotidiano no centro missionário se concretiza na gestão dos projetos e
na sua realização. Graças a seus contatos dentro da ENEL - tendo trabalhado nessa
empresa - foi possível organizar os dias das coletas entre os funcionários.
Dentre as 26 viagens realizadas, uma delas foi destinada a participar de um grupo
de especialistas e consultores encarregados de avaliar as possibilidades de inversão de
capital em nove municípios do Amazonas
76
.
Empenhado no projeto de levar energia elétrica às comunidades indígenas do Alto
Solimões desde 1997, Lamberto passa a se relacionar com o Bispo Magalhães, vínculo que
perdura até os dias de hoje, tornando-se uma assídua colaboração
77
.
Tendo acumulado experiências de várias viagens à missão, chegou a uma posição
que lhe permitia ‘filtrar’ os aspirantes voluntários dispostos a partir
78
. No entanto,
demonstra orgulho de poder afirmar que muitos dos que viajaram, encontraram na missão
sua alma gêmea e se casaram, outros se consagraram, outros se tornaram capuchinhos
79
e
outros, quando voltaram, se dedicaram a obras de beneficência.
Afirma enfaticamente que a experiência da missão muda profundamente a forma de
ver e pensar, o ‘conhecimento’ da ‘realidade’ do ‘terceiro mundo’ coloca as pessoas frente
a uma comparação com a ‘nossa’ e tal choque determinaria a formação de ‘consciências’.
Sente-se particularmente afortunado por ter uma família que o apoiou e, em parte, o
seguiu em suas numerosas viagens, tendo a oportunidade de, uma vez aposentado, dedicar-
76
Entre os nove municípios estavam Tabatinga, Benjamin Constant, Atalaya do Norte. Tal mobilização
ocorre a partir do acordo estipulado entre as quatro regiões italianas e o Amazonas já mencionado no
primeiro capítulo.
77
Lamberto tinha me avisado que o Bispo chegaria na Itália para participar de vários encontros relativos a
projetos de desenvolvimento sustentável no Amazonas. Estava ocupando-se de sua viagem como de sua
estadia, demonstrando-me assim a proximidade instaurada com Magalhaes, até me prometer fazer de tudo
para encontrar na agenda repleta de tarefas do Bispo, pelo menos meia hora para que eu pudesse entrevistá-
lo. Elogiava seus conhecimentos e marcava que eles se deviam a sua experiência de vida na missão, sendo
nativo do Amazonas e, portanto, segundo sua visão, ninguém poderia entender melhor que ele as
problemáticas do lugar e as possíveis soluções.
78
Durante a entrevista, explicando-me quem eram geralmente as pessoas que viajavam para a missão,
comenta que entre tantos haviam também ateus. Sendo organizador e responsável pelos grupos, manifestou
suas dúvidas em relação a deixá-los participar da missão. Ainda assim, afirma tê-los incorporados.
79
Entre eles, está Carlo Maria Chistolini, do qual falaremos mais adiante.
67
se quase em tempo integral à promoção da missão. Tal situação marca uma diferença com
os demais voluntários que puderam viajar somente uma ou duas vezes; a razão consistiria,
segundo sua visão, na dificuldade de encontrar famílias dispostas a sacrificarem suas férias
todos os anos, como ele e sua família generosamente demonstraram, encaminhando-se ao
que ele define de ‘uma grande aventura’.
Elogia o trabalho dos capuchinhos e os define como os verdadeiros frades do
povo’, ‘os que sabem adaptar-se a qualquer situação, fazem sacrifícios enormes, dormem
poucas horas por noite e dedicam todo seu tempo a ajudar as pessoas necessitadas’ (12-
04-06). Tal argumentação pretendia demonstrar que todos os que dão aportes financeiros à
missão, podem se sentir seguros, pois estes serão realmente utilizados em obras
humanitárias.
Em seu artigo, Lamberto cita as palavras proferidas por frei Mario Monicelli no
aeroporto de Manaus ao se despedir dos voluntários, quando os exorta a continuar: “nesta
estupenda competição de caridade e solidariedade” (2002; 75). Essa seria também a sua
vontade.
Frei Carlo Maria Chistolini
80
tem 36 anos, é atualmente diretor e responsável pelos
estudantes do convento de Assis. De atitude tímida, reverencial e fala extremamente baixa,
oferece sempre um sorriso em qualquer ocasião que eu o tenha encontrado. Poderia dizer
que se trata de uma figura de baixo perfil, que evita expor-se publicamente. No entanto,
goza de uma forte admiração entre os jovens da Ra.Mi. e por parte de seu companheiro de
missão frei Paolo Braghini, que o define como um ‘verdadeiro santo’.
80
Depois de várias tentativas de estabelecer contato, encontrei-o por acaso na porta do convento enquanto
perguntava por ele. Entramos no convento e nos acomodamos na pequena sala da entrada que costuma ser
usada para as conversas com os visitantes. Por seus muitos afazeres (estávamos na quaresma e, portanto, as
atividades dos capuchinhos estavam alteradas em função dos trabalhos com as paróquias e da benção das
casas), ele se desculpa por não poder me dedicar muito tempo. Aproveito para explicar qual seria o objeto da
minha pesquisa e o informo das minhas conversas com Padre Luciano, que me levaram a ele e a frei Paolo
como promotores do grupo Ra.Mi e como novos missionários no Amazonas. Frei Carlo demonstra timidez e
interesse frente a minha pesquisa, informando-me que quem se ocupa diretamente do grupo e da animação
missionária é frei Valerio di Carlo e frei Paolo. Oferece ajuda para fazer o contato com este último. Ao pedir-
lhe uma entrevista sobre sua experiência no Amazonas, responde cuidadosamente que, por uma questão
pessoal, não dá entrevistas, mas que me ajudará a abrir o caminho para conhecer e entrevistar os rapazes
missionários e que todas as respostas às minhas perguntas serão encontradas com frei Paolo. Explica com
tom irônico que normalmente tudo o que se refere à missão é de competência do frei Valerio di Carlo, o qual,
segundo ele, não tem nenhum problema em falar e dar entrevistas: - Ao contrário, ele adora! Acompanhando-
me em direção à saída do convento, ele se detém para me dar um aviso em relação às expectativas que
deveria ter ao conhecer os rapazes: diz que encontrarei uma grande heterogeneidade, sendo alguns deles
profundamente ativos e conscientes do valor da missão e outros que tomaram a experiência no Amazonas
como umas “férias diferentes” (tom irônico). Apesar de sua introversão, ele me convida a participar das
reuniões com os rapazes em Assis.
68
Viajou pela primeira vez para a missão em 1993 com um grupo de voluntários,
permanecendo por três semanas. Naquele momento era ainda um leigo. Voltou a viajar
como missionário capuchinho em 1999 juntamente com frei Paolo Braghini,
permanecendo desta vez por três meses. Uma vez em Assis, ambos se dedicaram a recrutar
os jovens da pequena cidade até conseguir formar o grupo Ra.Mi. e, desde 2003, passaram
a acompanhá-los à missão, convertendo-se em seus ‘guias espirituais’
81
.
Quase todas as semanas ele se reúne com os rapazes do grupo de Assis e de outros
povoados próximos na sala do andar inferior do centro missionário. Dessas reuniões
participa há pouco tempo frei Emiliano, do qual falarei mais adiante, coadjuvando Carlo na
gestão do encontro. Nessas reuniões são discutidos diferentes assuntos, são lidos artigos,
são levantados problemas etc. Intercalam-se com momentos de reza e se oferecem
explicações às temáticas levantadas a partir da leitura do evangelho.
Frei Emiliano Antenucci, nascido na região de Abbruzzo, tem 26 anos. Entusiasta
de seu caminho como capuchinho, faria os votos perpétuos em outubro de 2006. Amante
da conversação, costuma expressar-se com metáforas e citações. Assim como frei Valerio,
gosta da ironia que flui em suas inúmeras piadas.
Nunca partiu em missão e recentemente entrou no grupo Ra.Mi., participando
das reuniões das quais falei anteriormente.
Sustenta que a missão hoje em dia significa presença, comparando-a com as
práticas anteriores baseadas na predicação e na imposição da palavra de Deus. Presença
como exemplo’ de uma determinada forma de vida, que deve ser vivida e manifestada
entre as pessoas, cumprindo boas ações para elas, sem nunca julgá-las. Agrega a tal
argumentação a metáfora do sol e da lua: fazer o bem e depois se esquecer para deixar
brilhar a luz de Deus’ (11-04-06).
Afirma que a Igreja é si mesmo’: um processo de transformação de si. Essa
transformação consistiria segundo ele, na libertação do pecado do orgulho que não deixaria
resplandecer o Sol. Considera o amor uma ‘arte’ que deve ser aprendida.
Manifesta sua preocupação em relação à ‘crise de identidade’ que os jovens
sofreriam e atribui parte da culpa ao excesso de racionalização que caracterizaria a vida
contemporânea. Afirma que a separação entre emoção e racionalidade seria um engano,
81
Expressão nativa.
69
argumentando que a psicologia é uma ciência que pretende explicar o impossível: o
Mistério do homem’
82
(04-05-06).
Nascido em 1975 em Somma Lombardo, um pequeno povoado próximo a Varese
(norte Itália), frei Paolo Maria Braghini
83
entrou no convento dos capuchinhos de Assis
doze anos atrás. Além da viagem empreendida com frei Carlo, Paolo permaneceu um ano
na missão em 2002. De volta a Assis, depois de sua permanência no Amazonas, com
vontade de voltar à missão, frei Paolo comenta que os superiores me mandaram estudar
(21-04-06)
84
.
Como mencionei no primeiro capítulo, durante o período da pesquisa, frei Paolo
estava em Roma fazendo cursos na faculdade de missiologia da Pontificia Universidad
Gregoriana, escrevendo a tese “Frades Menores Capuchinhos Úmbrios e Índios Ticunas no
Amazonas: a caminho do centenário da presença missionária. Evangelho segundo
Giovanni, ‘eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância’ ”
85
.
Ao contrário do frei Carlo, Paolo demonstra ser extremamente sociável,
companheiro, incansavelmente alegre, extrovertido e exuberante. Suas atividades não se
limitavam a seguir os estudos, mas desempenhava diferentes tarefas, sobretudo com os
jovens da Ra.Mi.. Podemos dizer que Paolo é uma figura crucial na promoção da missão:
organiza e dirige os encontros para a preparação dos novos rapazes missionários, conduz as
reuniões semanais com os Ra.Mi. em Cittá di Castello e em Roma, mantém contatos com
as associações promovendo junto com elas eventos para a coleta de fundos, escreve nas
82
Tal argumentação parecia deslegitimar o papel do psicólogo. De fato, o papel dos pastores com a prática
da confissão – sofre diminuição gradual com a emergência das outras práticas educativas, médicas e
psicológicas (Foucault, 2001; 15).
83
Quando finalmente consegui um contato telefônico com ele, combinamos de viajar juntos de Roma a Assis
e investir esse tempo (aproximadamente três horas) em nos conhecermos. Nessa primeira viagem, estávamos
na presença de Laura (uma Ra.Mi) da qual falarei mais adiante. Designado para o convento de Cittá di
Castello (pequena província da Úmbria a aproximadamente setenta km de Assis), viajava constantemente
para as cidades mencionadas. Sua permanência no convento de Roma, “Colegio San Lorenzo da Brindisi” (o
maior do mundo, concentrando aproximadamente 200 capuchinhos provenientes de todos os continentes) nos
dois anos em que cursou a faculdade, não foi de seu agrado. Lamenta principalmente a impossibilidade de
viver a verdadeira irmandadeque se constrói nos conventos úmbrios, com poucos frades.
84
Como destacamos no primeiro capítulo do presente trabalho, a partir do Concílio Vaticano II, os
missionários devem se preparar para viver a missão. Os cursos na faculdade de missiologia contém
avaliações em antropologia e comunicação. Frei Paolo sustenta que, em um primeiro momento, aceitou o
mandato por obediência e o por vontade própria. Sua vontade era partir imediatamente para a missão.
Além disso, pela falta de capuchinhos jovens na Província, frei Paolo se preocupava com a possibilidade de
que seu superior, una vez terminada a faculdade, o designasse como professor na Universidad de Asís, que
significaria a renúncia a sua vocação missionária.
85
A tese foi defendida em junho de 2006.
70
revistas, prepara e participa dos eventos nas escolas, e acompanha como guia espiritual’
os grupos de jovens ao Amazonas.
Como mencionado no capítulo anterior, frei Paolo realizou seu sonho
86
: foi-lhe
entregue oficialmente o ‘Mandato missionário’ no Amazonas.
A partida de frei Paolo em setembro não foi solitária. Uma vez mais, ele
acompanhou um novo grupo de voluntários da Ra.Mi, com os quais ficará por três semanas.
Gin-Tonj tem 30 anos, vive em Civitavecchia (próximo a Roma) e trabalha como
empregado do ENEL (como Lamberto, mas não se conhecem diretamente). Reservado,
tímido, não gosta de aparecer e preserva uma imagem humilde. Viajou para a missão pela
primeira vez com frei Carlo e Paolo e voltou uma segunda vez ficando um mês no Alto
Solimões. Na sua volta, intensificou as relações com os rapazes de Assis e se tornou ainda
mais ativo na preparação e promoção dos eventos para angariar fundos.
Declara que a missão se tornou parte de sua vida, e que como no futuro ele não
poderá mais viajar, sente a necessidade de dar a outros a possibilidade de provar as
mesmas emoções para depois avançar em um caminho comum; isto é, trabalhar juntos
como grupo, compartilhando tal sensibilidade que solitariamente considera difícil realizar.
Gin Tonj se casará em breve com Laura
87
, a quem conheceu na missão, e a viagem de lua-
de-mel será no Amazonas, levando um novo grupo de voluntários pelos quais serão
responsáveis.
Segundo suas considerações, a importância da missão consiste na realização de uma
obra humanitária, fazer as pessoas de entenderem que existe alguém que pensa neles’
(06-05-06). Escutar, descobrir, entender, dar afeto às crianças, falar com as mulheres são as
tarefas a que se propõe. Sua aspiração é que os jovens da Ra.Mi. trabalhem juntos com os
capuchinhos para restituir-lhes (aos indígenas) a dignidade e ensiná-los a dar valor à vida,
que afirma estar ausente.
Jessica
88
tem 23 anos e cursa a faculdade de veterinária em Perugia. Mantém os
contatos entre os rapazes e a organização AIFI para preparar os projetos e angariar fundos.
86
Desde a minha volta ao Brasil, mantive contato com ele, tendo a possibilidade de conseguir tais
informações.
87
Laura é siciliana (região do sul da Itália) e tem 28 anos. Conheceu frei Paolo em Assis durante uma viagem
com seu ex-namorado e desde então começou a freqüentar o grupo.
O casamento acontecerá no convento de Cittá di Castello e é um dos vários casamentos entre os Ra.Mi que se
realizarão na mesma data.
88
Na reunião em Cittá di Castello (21-04-2006), discutia-se como organizar várias atividades. Frei Paolo se
referia freqüentemente a Jéssica, cujo empenho era explicitamente reconhecido e elogiado. Sabendo que ela
71
Distante e misteriosa, afirma sentir-se próxima a frei Carlo em tal atitude, preferindo não
se expor. Encarrega-se de organizar os eventos nas paróquias e nas escolas e também de
escolher aqueles que poderiam substituí-la quando estivesse ocupada
89
. Participa das
reuniões semanais em Assis com frei Carlo e Emiliano.
Valentina, 25 anos, recém formada em arquitetura na Espanha, afirma ser Ra.Mi
porque se aproximou do grupo através da irmã (Jessica) e participando da missão
envolveu-se emocionalmente por ter vivido uma experiência tão forte de irmandade’.
Intensamente enfática, exuberante, alegre, gostava de falar e contar. Em sua narrativa
explicita que o que sente ter dado na missão é muito pouco em comparação ao que
recebeu
90
, e comenta: O sorriso dos necessitados me tornou feliz’ (22-04-06). Afirma ter
se sentido perdida durante o período que esteve na área indígena, quando não entendia a
utilidade de tal viagem e percebia uma grande distância por causa do idioma, como
também pela sensação de estar em outro mundo’. Compara-o à sua experiência em
Manaus, onde pelo menos podia trabalhar fisicamente na construção do chapéu’ (o centro
polivalente David e Gildo), tarefa que lhe dava a sensação de utilidade. Além disso, não se
sentia preparada para enfrentar tal realidade. Sua narrativa resulta extremamente comovida
ao falar do ‘contato direto’ com o ‘sofrimento’ das pessoas.
Massimo Manni tem 40 anos, é o responsável e o treinador numa escola de futebol
americano em Civitavecchia. É amigo de Gin Tonj, que o incentivou a ter uma
experiência missionária’, alegando que conhecendo sua sensibilidade, sabia que ele
gozaria de tal benefício. Conta com entusiasmo sua primeira viagem à missão e sua
narrativa em relação às comunidades indígenas se torna marcadamente emotiva.
Massimo diz que infelizmente não pode dedicar muito tempo aos encontros da
Ra.Mi por causa da distância e pelas tarefas de trabalho que o absorvem totalmente. Diz
perguntar-se constantemente qual seriam as necessidades das pessoas no Amazonas e que
para responder a essas perguntas quer aprofundar o conhecimento do lugar e de sua
estava próxima ao momento de escrita da sua tese, ofereceu-lhe que se mudasse para o convento, onde teria a
possibilidade de encontrar a tranqüilidade necessária para tal esforço. Ela aceitou a oferta. Em outra ocasião -
em cerimônia organizada para a inauguração da restauração do convento - Jéssica, à maneira de confissão e
informação, falando com os outros rapazes, disse que já que Paolo viajava para a missão, ela se ‘demitiria’ do
cargo que lhe foi outorgado pela AIFI para continuar seus esforços universitários.
89
No encontro organizado na escola de Assis, do qual nos ocuparemos, Jessica decidiu escolher Sara como
substituta, argumentando que não tinha nenhuma dúvida em relação às suas capacidades comunicativas para
o sucesso do evento.
90
Tal expressão é recorrente nas argumentações dos rapazes e capuchinhos entrevistados que viajaram para a
missão.
72
população. Tem em mente para a próxima viagem, desenvolver um projeto que consiste
em oferecer um só tema de desenho para crianças de Manaus, das comunidades indígenas e,
posteriormente, italianas, para depois comparar os desenhos e analisar suas diferenças. Em
sua próxima viagem, partirá como responsável por um novo grupo, juntamente a Gin-Tonj
e Laura.
Sara Panzino vive em Assis, tem 23 anos e estuda restauração em Perugia. É
educadora e catequista da Ação Católica. Ressalta ser profundamente crente e ativa em
obras de caridade. Sente-se apoiada e estimada por sua família
91
com a qual afirma ter
empreendido um caminho de fé’ que a levou a escolher tal forma de vida. Comunica sua
experiência com grande entusiasmo, com um tom que a distingue por sua doçura. Essas
qualidades, somadas a seus dotes reflexivos, são apreciadas pelos outros jovens da
Ra.Mi.
92
. Junto a Andrea, Jessica e Gin-Tonj, ela se encarrega de organizar e participar dos
encontros nas paróquias e escolas. Freqüenta constantemente as reuniões com frei Carlo e
Emiliano, acompanhada por seu namorado.
Tendo participado em diferentes grupos de voluntários, Sara afirma ter encontrado
na Ra.Mi. a possibilidade de se sentir mais livre e, em conseqüência, poder contribuir
ativamente no progresso do grupo. Conta ter levantado algumas problemáticas e que, se
por um lado, se sentiu culpada por ter tomado tal iniciativa, por outro se sentiu feliz de ter
encontrado respostas positivas as suas dúvidas e questionamentos. Tal fato a leva a uma
identificação crescente com o grupo e deseja continuar empenhando-se para que a Ra.Mi.
cresçam e se tornem sempre mais ativos nas decisões sobre os projetos a serem realizados
no Amazonas.
Entre os rapazes entrevistados, Andrea Lombardi parece ter uma certa importância.
Seus escritos estão na revista “Amazzonia”, no site da Ra.Mi. e em um blog
93
que ele criou.
Participa ativamente dos encontros e da organização de iniciativas para angariar fundos.
Todos os rapazes e os capuchinhos o definem como uma pessoa extremamente particular e
dotada de uma sensibilidade fora do comum. Filho de comerciantes de Assis, Andrea tem
91
O pai de Sara é proprietário de um negócio em Assis e trabalha esporadicamente num atelier de artesanato
nessa cidade.
92
Refiro-me aos comentários que surgiam na sua ausência por parte de Jessica, Valentina, Andrea e frei
Paolo.
93
Seja no site ou no blog, Andrea comenta suas experiências na missão através de contos ou poesias
acompanhados por fotos tiradas por ele. Os outros rapazes costumam deixar comentários sobre os escritos,
agradecendo-o pela possibilidade de poder usufruir sua sensibilidade e de lembrar-lhes sempre da intensidade
das emoções compartilhadas, e da necessidade de continuar trabalhando para a causa comum.
73
26 anos e dirige um negócio de vinhos que o pai lhe confiou. Queixa-se de tal vida e
comenta resumidamente os conflitos com a família. Considera os habitantes de Assis gente
unicamente concentrada no dinheiro, fechados em seus interesses econômicos. Seu
empenho no social o resgata da insatisfação que manifesta e exclama ironicamente quando
afirma que deseja tornar-se o rei dos simples’ (02-05-06). Define-se como cristão católico
não-praticante. Afirma não ter grandes capacidades discursivas, mais diz gostar de escrever.
Participou da primeira viagem da Ra.Mi., juntamente com Jessica e Gin-Tonj; voltou or
mais duas vezes ao Amazonas, permanecendo numa delas por três meses. Atualmente, está
de novo no Alto Solimões, onde ficará por três meses.
2.5 A arena
As elaborações de Elias (2000) em relação às “fantasias coletivas” que os grupos
produzem e que conseguem ser mantidas dependendo de sua posição de poder em uma
determinada configuração parecem cruciais para a análise do contexto focalizado.
Pode-se observar que na maioria dos comentários dos capuchinhos entrevistados,
são enfatizadas as características do carisma’ capuchinho: humildade, sentido de
sacrifício, conduta de vida em pobreza e alegria. Fazem-no através da exaltação dos que
detém os títulos de santos, heróis ou mártires, que outorgam peso e prestígio à Ordem e
que lhes oferece a possibilidade de se expressar enquanto grupo: Nós somos os frades do
povo’. Esse ‘nós’ prevê a presença de ‘outros-eles’ que, na minha hipótese, poderiam ser as
outras Ordens franciscanas com as quais os capuchinhos compartilham o espaço de Assis,
que como já adiantei, é um lugar de forte visibilidade.
No entanto, esse ‘nós’ pode ter um espectro ainda mais amplo, abarcando todas as
Ordens franciscanas, ressaltando sua inspiração comum em São Francisco. Em tal caso, a
distinção, que flui principalmente nas piadas, é referida às outras Ordens: dominicana,
jesuíta, salesiana.
Ao mesmo tempo, esse ‘nós’ no contexto de Assis-Úmbria pode estar referido às
outras províncias capuchinhas italianas. A eficiência reconhecida por parte do Secretariado
74
das Missões ao centro missionário úmbrio, comparado com aqueles das outras províncias,
se torna motivo de prestígio e orgulho
94
.
Para finalizar, o ‘nós’ marca a distinção com os leigos, os quais, ainda que
colaborando para a mesma causa e tendo peso nas relações, reconhecem e reiteram o
diferencial de status interno a tal relação.
A identificação coletiva e o ter normas e valores em comum, manifestam-se entre
os capuchinhos com grande euforia e orgulho. Participantes da Ordem compartilham a
possibilidade de concorrer aos recursos de poder que nela se inscrevem. Claramente, cada
membro está mais preocupado com as opiniões internas ao grupo, do que com as externas,
“...daqueles que têm acesso aos instrumentos de poder cujo controle monopolista ele
participa ou procura participar e com quem compartilha, no grupo um mesmo orgulho, um
carisma coletivo comum” (Elias, 2000; 40).
A construção da reputação dentro do contexto focalizado joga um papel crucial na
manutenção ou na subida de posições sociais. Em tais dinâmicas, os atores sociais
precisam mostrar publicamente sua conformidade às normas e valores comuns, cuja
ausência poderia detonar as armas da fofoca.
Nas várias conversas com frei Luciano Materazzi, emergia freqüentemente o tema –
para ele particularmente sensível da escassez de visitantes ao museu. Costumava
exclamar: ‘Nem os jovens capuchinhos vem visitá-lo!’ (16-03-06). Lembrando-se dos
‘velhos tempos’, quando o museu estava recém aberto, contava das inúmeras visitas que
recebia e que costumava acompanhar as crianças dos colégios no recorrido pelo museu,
respondendo às suas curiosidades. Atualmente, a situação mudou e ao lhe perguntar pela
razão da mudança e desde quando o museu não recebe mais visitas, ele responde
95
:
‘Bom, agora falo mal dos frades, e tu tens que acreditar! Porque
a inveja não está somente no mundo, mas também em um ambiente
fechado como o nosso. Eu fiz muitas coisas por espontânea vontade,
criando, tentando mostrar como é o Amazonas, como é a cultura, a
evolução. Bom, aconteceu que um destes padres, e para mim foi inveja,
94
Lamberto afirma com orgulho que a CEI elogiou o trabalho realizado no Amazonas por ela financiado e,
sobretudo, destacou-se que pela primeira vez se levavam provas visuais de tais realizações.
95
Ao pedir-lhe para visionar o material de vídeo e assistir aos encontros nas paróquias, ele me convida a
dirigir-me ao centro missionário e falar diretamente com frei Valerio di Carlo, no seu dizer, (irônico), aquele
que hoje em dia se ocupa de qualquer coisa relativa à missão; frase também empregada por frei Carlo
Chistolini.
75
eu tinha muitas escolas, vinham, reservavam, telefonavam,e eu dizia que
era melhor porque se viessem quando outra escola estava aqui criava
muita confusão. Portanto, eram muitas as escolas. Depois se meteu um, e
sabes o que ele fez? Se organizou com filmes, foi nas escolas e então as
escolas não vieram mais. E lá ele explicava tudo, e aqui não vieram mais
por muito tempo, mas agora estão voltando. nas escolas se projetava
mas não funcionava, aqui podemos parar, explicar, falar. Tu sabes que
eles vem aqui, deixa eles virem! Por que os levas para longe? Tu
trabalhas em outra coisa, também sobre a missão, da maneira que tu
achas melhor, mas não roubes o meu trabalho!... .o problema é que entre
nós, deveríamos ter mais colaboração. Missão: então tu pensa nisto, tu
naquilo, e tu em outra coisa.’
Claudia: ‘Atualmente, como é a situação? Alguém se ocupa de ir
às escolas? ‘
Luciano: ‘Sim, o Padre Valerio, mas não o faz mais como o fazia
no começo! (pausa) O fato é que ele também (pausa), não sei, talvez
tenha que mudar o sistema, isso também não funciona
Em relação à escassez das visitas por parte dos jovens capuchinhos, frei Luciano
comenta:
‘Hoje não tem mais por parte do missionário, que vai, gira com o
barco ou com (pausa) sim o barco, mas não tem mais essa coisa que tu
um dia podes recolher e transmitir. Acabou-se o que era a curiosidade.
Eu me lembro que quando era rapaz, chegavam os missionários e nós
tínhamos fome dos seus contos, de que nos contassem, e eles sabiam
transmitir como o índio era, enfim, se conseguiam capturá-los. Como o
último Bispo, como se chama (pausa) Magalhaes!, Sabes que ele ficou 4
dias sem comer porque não sabia usar garfo e faca? Ele tem a floresta
no sangue, ele conhece os índios, os Ticunas. E como é inteligente,
estudou muito, e foi eleito porque é um dos que melhor compreende os
habitantes de lá, os índios.’
(Mostrando-me as fotos dos missionários) Vês quantos tivemos!’
(21-04-06)
Sua elaboração do passado, enunciada com tons nostálgicos, leva-o a tomar uma
posição de distância em relação às práticas atuais, considerando-as menos valiosas que as
anteriores. Sua ‘idéia’ do passado se constrói mediante a ênfase a duas figuras de destaque
na missão, frei Fedele e Arsenio, com quem mantinha, no caso do primeiro, e mantém, no
segundo, uma relação de amizade.
Frei Arsênio, como mencionei, não participa das inúmeras atividades de
promoção da missão, no entanto, é quem permaneceu mais anos no Amazonas. Na
conversa mantida no convento de Spoleto, onde mora, ele me informa que estaria disposto
76
a transmitir os conhecimentos adquiridos durante a permanência de 20 anos com os Ticuna
aos jovens capuchinhos, mas não se sente estimulado a realizar tal tarefa. Opina que os
jovens não estariam interessados e faz alusão a uma espécie de presunção que os
caracterizaria.
Frei Carlo, Paolo, Gustavo
96
como também Lamberto expressavam suas dúvidas
(em tom de advertência) em relação à possibilidade de encontrar as portas abertas para
conversar com Arsenio sobre a missão. Frei Paolo afirma ter feito uma tentativa, mas
diante de sua resistência acabou desistindo.
É interessante, no entanto, que frei Gustavo tenha me aconselhado a me apresentar
no convento de Spoleto sem intermediários, isto é, eu não deveria deixar que Arsenio
percebesse que eu tinha contatos com os outros frades de Assis. A recomendação destes
teria fechado a possibilidade de entrevistá-lo.
Delineia-se assim a hipótese de que frei Arsenio não participa das atividades do
centro missionário por alguma razão que ultrapassa sua suposta recusa da missão.
Na realidade, sabemos que ele colaborou com frei Luciano na realização do texto
“Guia do museu missionário” e este último era o único capuchinho que me pedia para falar
com ele. Luciano também está, de certa forma, fora do circuito das intensas atividades.
Elogia constantemente Arsenio, por sua capacidade de viver junto aos indígenas ‘como um
indígena’, marcando seu enorme ‘sentido de sacrifício’. Compara com as comodidades que
atualmente os missionários usufruem, marcando de tal forma a diferença que os
distanciariam dos pioneiros: anteriormente, segundo ele, a vida missionária era marcada
por renúncias’ e sacrifícios’ e as capacidades de enfrentá-las faziam deles verdadeiros
heróis’.
Apesar da exaltação da Ordem que se pode encontrar nas argumentações de sua
tese, frei Paolo expressa suas preocupações em relação à gestão da missão. Toma posição
frente a sua história, distanciando-se dos missionários do período pré-conciliar, cujos
influxos chegariam até a atualidade
97
. Seu ideal, afirma, seria a implantação da
fraternidade capuchinha que se diferenciaria da estrutura da Ordem, sendo esta última
vinculada aos valores da Igreja universal.
96
Arquivista na cúria de Assis.
97
Refiro-me aos comentários relativos ao museu. Como veremos no terceiro capítulo, durante nossa visita,
frei Paolo fez questão de marcar a distância entre as diferentes visões.
77
Cabe destacar que frei Paolo expressa sua grande estima ao Bispo Magalhaes com
quem instaurou uma relação de amizade
98
durante sua permanência no Amazonas. Foi este
último que o nomeou sacerdote em 2004 em Cittá di Castello. A intensificação dessa
relação se deve também aos projetos lançados no Alto Solimões sob a supervisão do
Bispo cuja realização depende dos financiamentos que frei Paolo, juntamente com a
Ra.Mi, se encarregam de angariar mediante diferentes iniciativas.
Frei Paolo destaca a enorme experiência do Bispo entre os indígenas e seu
nascimento nas terras do Amazonas: tais peculiaridades seriam a garantia de um profundo
conhecimento e respeito das culturas indígenas e, portanto, um exemplo a ser seguido.
Trata de defender o Bispo de algumas críticas que o teriam atingido, relativas ao suposto
descuido da pastoral e da catequese para dedicar-se exclusivamente à promoção social.
Afirma, ao contrário, que o Bispo goza do mérito de ter recebido em Tabatinga em 2003 a
“equipe itinerante” do CIMI que, sob sua supervisão, teria se concentrado na pastoral
indígena (Braghini, 2006; 104)
Os jovens da Ra.Mi entrevistados parecem ter o mesmo respeito ao Bispo.
Reconhecem nele e na sua diocese um modelo diferente de Igreja em relação à ocidental, a
qual dirigem críticas.
Sara conta que durante uma reunião da Ra.Mi. manifestou sua indignação em
relação à coleta de fundos destinados à construção de uma enorme Igreja no Alto Solimões
projeto promovido pelos capuchinhos da Província Úmbria. Seu incômodo se baseou na
constatação da inexistência de uma grande comunidade católica na área, esse dado levou-a
a considerar inútil a continuação das construções de Igrejas, alegando que atualmente as
necessidades da população seriam de natureza diferente. Apoiando-se nas argumentações
de Magalhaes, Sara defende sua posição, desejando que a Ra.Mi. se fortaleça e adquira
maior autonomia na promoção dos projetos.
Andrea dirige suas críticas à Igreja ocidental, invocando São Francisco como o
verdadeiro príncipe dos últimos’, distante da pompa e da riqueza que caracterizam as
celebrações nas Igrejas de Assis. Compara-as às missas no Amazonas, onde a resultaria
mais pura frente a seus olhos.
A colaboração com os capuchinhos não flui harmoniosamente.
98
Quando terminou a tese, informou-me que a daria de presente ao Bispo como forma de reconhecimento,
entregando-a pessoalmente e aproveitando sua presença nesses dias na Itália.
78
Ao encontro no liceu de Assis, do qual falarei com detalhes mais adiante, estavam
presentes Andrea e Sara como representantes da Ra.Mi. e frei Valerio di Carlo com Carla
Vitali
99
. Frei Valerio em sua longa exposição deixou pouco tempo para a apresentação de
Andrea. Além disso, durante seu discurso, Valério interrompeu-o por várias vezes. A
situação incômoda de Andrea se tornou pública, acusando frei Valerio de impedi-lo de
continuar o discurso. Ao mesmo tempo, a sutil ironia e ambigüidade com as quais o frei
Valerio havia-lhe interrompido, aludindo às pulseiras indígenas que o jovem usava e que
indicariam uma espécie de inculturação a qual teria se submetido durante sua
permanência no Amazonas, revelavam a vontade de marcar posições e status diferenciados
os quais, apesar da reação de Andrea na tentativa de ganhar espaço, deveriam ser
respeitada.
Andrea afirma, em outra situação, que a forma de comunicação do frei Valerio era
ineficaz para obter a atenção dos rapazes presentes ao encontro. Ao contrário, os jovens
Ra.Mi, sendo jovens e dominando uma linguagem mais próxima ao público em tal
circunstância, deveriam ter mais espaço.
O dia seguinte ao evento, por ocasião de um encontro no centro missionário, frei
Valerio afirmou (com tom de desculpas), que se tivesse sabido que Sara tinha tais dotes
comunicativos teria deixado mais espaço para sua intervenção. Nenhum comentário foi
feito em relação a Andrea.
Ao comentar-lhe o encontro, do qual não tinha podido participar, Jessica ficou
surpresa com a participação de frei Valério, ela afirmou que normalmente nos encontros
realizados nas paróquias o frei dava plena liberdade aos Ra.Mi., sem sequer aparecer.
As críticas dirigidas à ‘Igreja ocidental’ presentes nas argumentações dos jovens da
Ra.Mi. e aquelas do frei Paolo, que deixam entrever os desencontros nas relações entre os
jovens laicos e alguns anciãos capuchinhos, estão totalmente ausentes nas argumentações
de frei Emiliano. Este sustenta afirmativamente a necessidade de prestar total obediência à
Mãe Igreja’ à qual, apesar de cometer erros, é preciso submeter-se
100
: A Igreja é mãe e,
embora prostituta, continua sendo sempre mãe’, exclamou durante nossa conversa (04-05-
06). Para conferir ênfase à sua afirmação, toma como exemplo a atitude de São Francisco
99
Leiga colaboradora do centro missionário e secretária administrativa da revista ‘Continenti’.
100
Tal argumentação, enfrentada durante uma conversa informal, estava inserida na temática mais ampla
sobre a teologia da libertação na América latina, com relação a qual expressava suas diferenças.
79
que, segundo ele, foi mal interpretada. Contrariamente ao que foi afirmado, Francisco
sempre teria demonstrado fidelidade à hierarquia eclesiástica.
Como mencionei, próximo a sua consagração à profissão perpétua, frei Emiliano
expressa todo o entusiasmo e segurança em suas argumentações, ressaltando a alegria de
ter ‘renunciado’ a sua vida anterior para entrar na Ordem.
Emiliano e Paolo têm o mesmo entusiasmo, mas com diferentes visões e fins, que
poderiam ser observados a partir do ângulo das posições que tais atores ocupam; isto é,
penso ser oportuno levar em consideração a antiguidade de frei Paolo na Ordem em relação
a Emiliano; o primeiro começou sua ‘carreira’ com votos perpétuos seis anos atrás, foi
missionário temporário em 1999 e 2002, ordenado sacerdote em 2004 e acaba de receber o
Mandato Missionário’ definitivo. Nos últimos anos, criou amizades, juntou e mobilizou
adeptos e firmou alianças com quem poderia ajudá-lo, caso se apresentassem obstáculos
em seu caminho
101
.
O voto de obediência não elimina as possibilidades de escolha, como tampouco
reduz o espaço para a ação política.
A formação dos frades, até chegar a data da ordenação perpetua, é acompanhada
por uma atenta observação e avaliação da idoneidade do candidato
102
.
Suponho, portanto, que a posição de frei Emiliano seja mais frágil em relação à de
Paolo. O que quero afirmar não é que as diferentes opiniões se devam a diferentes posições,
mas que as diferentes posições oferecem maior ou menor possibilidade de expressar
prováveis divergências internas, como também, utilizar recursos políticos para adquirir
prestígio.
Frei Luciano Materazzi, cuja carreira está chegando ao fim e não tem a ambição
de adquirir novo status, parece não ter nenhuma reserva em declarar suas posições, suas
dúvidas e suas críticas. Tal atitude é encontrada na narrativa de frei Arsenio, que assim
como Luciano se sente livre do cuidado de proteger sua reputação.
Diferente é a posição do Bispo Magalhaes que, seguro do seu lugar, comenta com
ironia algumas atitudes dos capuchinhos italianos frente à missão
103
.
101
Ordenado sacerdote diocesano pelo Bispo Magalhaes e tendo relações favoráveis com o mesmo, podia
escolher deixar a Ordem. No caso, tinha sido rejeitado o seu pedido para tornar-se missionário e exercer
como sacerdote na diocese do Alto Solimões.
102
As Constituições dedicam um capítulo às regras que dizem respeito à admissão e formação dos frades. Os
superiores são solicitados a indagar atentamente sobre a vida do candidato e a reputação que goza.
103
Em conversa informal (22/05/06) no centro missionário, o Bispo ofereceu-me algumas informações em
relação aos projetos que desejaria realizar na região do Alto Solimões. Sublinhou sua hostilidade com relação
80
O breve tempo da pesquisa não me permitiu entrar mais profundamente nas
divergências, apenas percebidas, que acabo de mencionar. No entanto, me ajudaram a
decifrar as diferentes posições dos atores sociais, como elas podem ser alcançadas e sobre
que base se sustentam; temáticas que me proponho enfrentar nos próximos parágrafos.
2.6 A relação entre capuchinhos e leigos: moralidade e transações
Existe uma grande heterogeneidade nas formas de aproximação dos jovens ao
grupo Ra.Mi.: alguns o amigos de amigos, outros tiveram contato diretamente com frei
Paolo ou Carlo, outros conheciam a AIFI etc. Assim também são diferentes as motivações
e expectativas enunciadas que os estimulam a empreender a viagem para a missão: alguns
querem enriquecer suas vidas, outros pretendem levar benefícios aos ‘necessitados’, outros
compartilhar a emoção da viagem
104
.
No entanto, penso que o estímulo para empreender a viagem repouse, geralmente,
no desejo de ‘vivenciar a experiência’, uma experiência carregada de inestimável valor,
necessária para dar início a um caminho de aperfeiçoamento de si próprio e, portanto,
fundamental para uma elevação espiritual e de status.
A importância atribuída à experiência não caracteriza unicamente o grupo Ra.Mi.,
ela é fundamental enquanto diferencial também entre os capuchinhos e entre os leigos da
geração anterior aos Ra.Mi.
À continuação, tratarei de analisar a relação entre capuchinhos e leigos, cuja
peculiaridade das interações e transações revelam as dinâmicas que permitem sua
manutenção, as obrigações morais e os incentivos nelas contidos, a importância dos
aspectos afetivos e prazenteiros que caracterizam esse pertencimento.
aos antropólogos em geral, os quais no seu entender não teriam nenhuma vontade de oferecer ajuda aos
indígenas. Os únicos ‘benfeitores’ seriam eles: os capuchinhos. No entanto, o Bispo marca sua diferença
também em relação a estes últimos, ressaltando os métodos datados que empregariam na divulgação da
missão, fazendo referência ao Museu. Além disso, destaca a inutilidade de continuar construindo igrejas na
missão, fazendo alusão aos projetos da ‘Madre Provincia’.
104
Refiro-me às respostas obtidas com os rapazes entrevistados.
81
2.6.1 Os guias espirituais
Laura conta que a primeira vez que encontrou frei Paolo ficou totalmente fascinada
com sua figura porque lhe evocava Jesus. Ao conhecer os outros jovens da Ra.Mi., por
estímulo de Paolo, afirma ter ficado impressionada com a alegria, a acolhida e a aparente
despreocupação que caracterizava o grupo. Segundo ela, a Ra.Mi. nasceu da capacidade de
Paolo e Carlo em congregar pessoas, capacidade demonstrada na falta de preconceitos.
Dessa forma, diz Laura, o grupo estaria aberto a qualquer um que quisesse entrar e tentar
uma experiência na missão, permitindo a liberdade de ‘ser’ como se deseja.
Gin Tonj, futuro esposo de Laura, tem uma relação afetiva muito forte com frei
Carlo, a quem encontrou casualmente por primeira vez no grande parque de Torvergata,
em Roma, por ocasião do encontro com o Papa; e depois de um longo tempo, de novo por
acaso, encontrou-o num funeral. Nessa ocasião, Carlo se lembrava perfeitamente dele (Gin
afirma que ficou feliz com a lembrança) e lhe propõe imediatamente partir para a missão.
Na entrevista em Cittá di Castello (06/05/2006), Gin relata sua primeira viagem
como uma experiência extraordinária, apontando a importância de ter um guia espiritual’.
Abro espaço para que sua voz tome o lugar da minha, convencida de que tal opção pode
ajudar a perceber o tom emotivo que marcou o relato.
‘A primeira vez que viajei não sabia o que queria fazer, a única
coisa que sabia com certeza era que eu não estava indo para ajudar, mas
para conhecer um mundo novo, uma cultura diferente que certamente te
oferece algo, te toca emotivamente... viajei como se fosse umas férias
diferentes. Mas estando lá, você começa a moldar muitas coisas...
sobretudo, com o apoio deles
105
, você molda muito tua vida. Um grupo
onde pessoas como eles, um frei, um guia espiritual é diferente de um
grupo que parte sem guia espiritual. Porque tem sempre um momento no
qual você se faz perguntas, não somente em relação à civilização de lá,
mas é que lá você se confronta consigo mesmo. Para mim é muito
importante a parte espiritual. E se eles estão lá, eles podem te responder
o que acham e com seus exemplos te dão um primeiro impacto. Você
começa a se questionar sobre sua vida porque vê como as pessoas vivem
ali e como acreditam em Deus.
Quando voltei, passei a ficar mais próximo dos frades e do grupo
com o qual viajei. Minha vida mudou. Desde essa experiência, ela
mudou’.
105
Refere-se a Paolo e Carlo.
82
A tal afirmação se seguiu uma pausa e um sorriso tímido. Pergunto-lhe se o
gravador estava incomodando:
‘Agora então vou te fazer um discurso um pouco religioso porque foi
isso que me transformou. Talvez tenha sido a viagem, a viagem é um
instrumento. Mas é o fato de estar sempre se confrontando com eles, com
Carlo e Paolo. Sei lá, na vida aconteceram tantas coisas, uma depois da
outra, que podem até ser coisas normais, mas vejo as coisas de outra
forma. Levo mais a sério a missão. A missão não é lá, é aqui
também.... Antes eu não tinha a coragem de enfrentar algumas coisas,
agora sim. Redescobri a importância da religião. Antes eu era crente,
mas nunca levei uma vida assim, como estou levando hoje. Acreditava
como todos acreditam, acreditava em um Deus e com Ele sempre tive um
contato, mas é que comecei a querer ter um tipo de vida, isto é, se es
religioso deves começar a ter um tipo de vida. Não podes ser indiferente,
nem te comportar mal com as pessoas, nem falar mal das pessoas. Tens
que começar a mudar alguns aspectos. Minha vida está mudada ... não
sei... começei a moldar diferente os pensamentos e a vida que tinha antes.
Não sei, acho que não pra explicar, não consigo explicar. Posso te
dizer que senti que o Senhor estava me oferecendo enormes dons e
pensei que deveria continuar tendo o tipo de vida que escolhi conduzir.
Porque quero, não porque sou obrigado. Rezar, respeitar os outros,
ajudar os outros são todas coisas que no mundo de hoje começam a
decair. Devemos tentar trazer de volta esses valores e para trazê-los à
luz basta vivê-los e dar o exemplo aos outros, como eu tomei o exemplo
de Carlo e Paolo. Com seus exemplos, do seu modo de viver, aprendi
essas coisas. Seu modo de vida é seguir ao da letra o Evangelho,
ajudar as pessoas. Eles te dizem como pensam, mas você é livre para
aceitar ou julgar seu modo de ser. Eu quero ter essa vida porque
qualquer um pode, não é preciso capacidades especiais para ter esse tipo
de vida. Só é preciso muita fé e amor, e eles tem muita fé, são iluminados,
iluminados por excelência. Tem uma força! E essa força vem da vida que
levam. Porque amam a Deus. É uma vida mais sã, mais próxima a Deus.
Seria maravilhoso poder continuar a seguir esse caminho.’
No CD feito por Valentina com as fotos da experiência na missão e os seus
comentários, Paolo e Carlo, como também os outros frades e freiras que trabalham na
missão, são chamados de os verdadeiros’. Sara expressa sua estima por eles de forma
parecida:
‘Carlo é o oposto de Paolo no sentido que deixa muito mais
espaço, mas também ele tem suas certezas e seguranças. É uma figura de
referência para nós fundamental. É realmente a sabedoria. Cada vez que
você fala com ele, muitas portas são abertas. Carlo é uma figura mais
paternal. Paolo é o nosso Hitler, querendo você ou não, a decisão dele é
imposta de qualquer forma. Faz isso com muita diplomacia, mas
consegue transmitir e impor com muita simpatia. Tem muito entusiasmo.
Carlo é mais sério, mais velho, mais maduro, reflete um pouco mais
sobre as coisas. Paolo é mais instintivo. Dois caracteres diferentes, mas
83
complementares, portanto, ter a ambos foi a fortuna máxima. No
Amazonas foram os guias em tudo. Óbvio, eles tinham a experiência
da missão. Na realidade, eles estiveram juntos um ano, sobretudo entre
os Ticunas. Portanto, tiveram uma experiência dura que não para
acreditar, de pobreza absoluta! Próprio para saber se a missão podia ser
sua vida.... Os frades no Amazonas conseguem ser os últimos dos
últimos em nome do bem estar de todos e nos ensinaram a nos
abraçarmos uns aos outros.’ (Assis 02-05-06)
Gostaria de ressaltar que a organização de viagens que contam com a presença de
guias espirituais’ não se restringe ao novo grupo Ra.Mi. Lamberto me informa sobre as
atividades cotidianas dos missionários laicos no Amazonas, deixando clara a presença
constante dos guias.
‘Cada grupo que parte, viaja sempre com um guia espiritual. No
nosso grupo em particular ou 90 por cento das viagens era meu pároco,
de nossa paróquia de Sanfatucchio e Gioiella, don Remo Serafín... Ele fez
17 viagens e eu 26 viagens. Nas outras viagens fomos acompanhados por
frades capuchinhos... O dia do grupo é composto por alguns momentos
de reza e outros de trabalho. Para uma pessoa que como eu se viu por
primeira vez rezando 4 ou 5 vezes ao dia, os primeiros dias são pesados.
E eu disse ao sacerdote que era muito e ele respondeu que depois de 5 ou
6 dias isso se torna normal. E realmente é necessário, aos poucos você se
dá conta. Então, como eu te dizia, viajam com a gente também ateus, mas
antes de viajar eu peço para encontrar com estas pessoas para informá-
los sobre como se desenvolve a experiência na missão e também sobre os
momentos de reza. Não é obrigado a rezar, mas devem, por favor, ficar
em seus lugares sem interromper...
... os capuchinhos foram escolhidos porque são os frades do povo,
são capazes de estar com ricos e com os pobres. Refletem realmente o
que São Francisco predicava. Eles têm algo de particular para nossa
comunidade e isso foi confirmado nas viagens ao Amazonas. Eu posso
testemunhar, tenho muitos exemplos para trazer isso à luz: dormem
pouco, 4 horas por noite, dedicam todo o tempo às pessoas... para todos
algo... Digo isto porque tudo o que destinamos às missões podemos
estar certos que tudo tem um bom fim. Eles e nós comemos arroz e feijão,
não temos privilégios. Vivem como eles. O missionário capuchinho vive
como eles, se coloca no mesmo nível.’ (Assis 12-04-06)
Em tais narrativas podemos perceber qual seria a forma de vida ‘correta’ ou ‘justa’
ou ‘sã’, a qual se quer aderir. Isto é, ficam evidentes as ações e os comportamentos ‘ideais’
que ‘estariam se perdendo’ e que os frades pretendem trazer novamente à luz. Claramente,
esse ‘correta forma de ser’ e/ou de viver se opõe à que é julgada imperativamente como
‘incorreta’. A primeira, no entanto, deve ser tomada com alegria, está referida a uma
84
‘renúncia’, um ‘sacrifício’; renúncia ao ‘incorreto’, que nas palavras de Gin-Tonj seria a
indiferença’ e o ‘individualismo’ e, conseqüentemente, a distância de Deus.
Seguindo a narrativa de Gin-Tonj, tal ‘forma de ser’ não é alcançada solitariamente.
A viagem para a missão é ‘um instrumento’ para empreender tal caminho, que necessita de
um ‘guia espiritual’ para ter o efeito desejado; isto é, os guias espirituais’ detém a
legitimidade de interpretar a realidade que os rodeia como também de aconselhar os jovens
em relação ao ‘caminho justo’ que deve ser escolhido. Portanto, os guias detêm o poder de
avaliar moralmente as ações e os conhecimentos adquiridos na missão pelos rapazes, e
estes últimos adquirem legitimidade a partir de um contato mais próximo com os guias em
relação às novas levas.
Gin Tonj afirma que sua vida mudou e sente que tal mudança começou com a
viagem, e atribui a mudança à ajuda de Carlo e Paolo. Seu comportamento começou a
mudar, preocupar-se com determinados aspectos, procura avançar em sua transformação.
Com a expressão Se es religioso deves começar a fazer um tipo de vida’, Gin Tonj está
respondendo a um código moral compartilhado na rede de relações da qual participa, e
sente o desejo de ‘moldar-se’, de ‘mudar de aspecto’ e aperfeiçoar-se.
Afirma que tal caminho lhe trouxe recompensas e como veremos nos próximos sub-
capítulos, sua participação no grupo Ra.Mi. se torna fundamental em sua renovada
existência.
106
2.6.2 Transação de conhecimento
Observei que existe a tendência em distinguir os frades missionários dos frades
simples. Aqueles que partem para terras distantes demonstrariam um maior sentido de
sacrifício, renunciando às comodidades que a vida na pátria lhes reserva. Os capuchinhos
que estiveram na missão e que voltaram para a Úmbria, explicam com detalhes as
106
Como afirma Elias: “Todos os que ‘estão inseridos’ neles participam desse carisma. Porém têm que pagar
um preço. A participação na superioridade de um grupo e em seu carisma grupal singular é, por assim dizer, a
recompensa pela submissão às normas específicas do grupo. Esse preço tem que ser individualmente pago
por cada um de seus membros, através da sujeição de sua conduta a padrões específicos de controle dos
afetos.” (2000; 26)
85
motivações que os obrigaram a deixar o mandato, relatando com tristeza a impossibilidade
de continuar realizando tal tarefa
107
.
Frei Paolo, esperando ardentemente o Mandato Definitivo’ para a missão,
compartilhava o entusiasmo e as preocupações de tal espera com os rapazes. Os diferentes
comentários destes demonstravam a estima que tinham por ele por ser um exemplo do
modelo de vida ideal: é aquele que renuncia a tudo para cumprir com a vocação que sente
ter recebido diretamente de Deus; sentir-se missionário é um dom de Deus, é um chamado.
Para tornar-se definitivamente missionário é preciso enfrentar um determinado
caminho. Sabemos também que para a formação inicial dos frades recomenda-se pelo
menos uma experiência missionária
108
, como de fato ocorreu tanto com frei Paolo quanto
com frei Carlo. Além disso, as experiências missionárias precisam ser renovadas durante a
formação permanente dos frades.
Frei Paolo comenta com grande entusiasmo sua paixão pelos indígenas, marcando
sua vocação missionária e declarando ‘sentir-se em casa’ vivendo com eles. Afirma sentir-
se totalmente identificado com o tipo de vida da comunidade indígena, cujas características
– segundo suas considerações – se pareceriam com a irmandade vivida pelos frades
capuchinhos. A narrativa
109
sobre seu envolvimento com os indígenas flui entre metáforas
e poesia. Sua capacidade de expressar e transmitir as emoções deixa fascinados os rapazes
e também um público de meninos pequenos da escola primária
110
.
Seu ‘encantamento’ por eles - sempre segundo seus relatos - seria o resultado do
processo de inculturação durante o ano transcorrido no Amazonas, desobrigando no rio
Solimões. Isto é, a ‘experiência’ levou-o a tomar a decisão de dedicar sua vida à missão.
107
mencionamos tal aspecto no parágrafo dedicado à descrição dos atores sociais: tanto frei Valerio ou frei
Luciano, como também Arsenio e Paolo, enfatizam as dificuldades encontradas para voltar à missão, seja por
situações pessoais, seja por resistência dos superiores.
108
A formação dos frades contempla a necessidade de passar por uma experiência missionária. “Como São
Francisco cresceu no conhecimento do Senhor Jesus através do encontro com o leproso, assim a formação
inicial preveja experiências de contato concreto com os ‘leprosos’ do nosso tempo: os doentes, os pobres e os
marginalizados de todo tipo, segundo os lugares onde estamos presentes. Quanto possível, será útil alguma
experiência temporária de trabalho como fonte de sustento para poder compreender a gente comum junto à
qual vivemos. Para completar a formação inicial, são igualmente úteis períodos de experiência missionária.
Tempos de estudo e de serviço numa circunscrição diferente daquela à qual pertence, especialmente nas
circunscrições pobres, ajudam o frade na formação inicial a desenvolver a itinerância e a consciência global
de pertença à Ordem. É necessário que, desde o início da formação inicial, sejam apresentadas as duas
possibilidades de frade e de frade sacerdote como expressões, ambas necessárias, de igual dignidade do único
carisma franciscano-capuchinho.” (CPO VII: 29).
109
Refiro-me aos relatos durante as conversas comigo e também com os rapazes.
110
Nos ocuparemos de tal evento mais adiante.
86
O que é socializado na volta da viagem ao Amazonas - com a intenção de
convencer a aproximar-se do grupo de missionários laicos e viajar para a missão - são as
‘emoções da experiência’, as ‘coisas que tocam’; aquelas emoções que permitiriam
entender ‘algo’, cujo alcance será recompensado, como Gin Tonj afirma na entrevista.
Portanto, para os discípulos seja religioso ou leigo – a ‘experiência’ em si mesma
é fonte de conhecimento e etapa fundamental de inserção e elevação de status.
A natureza do que é conhecido em tal experiência é rodeada de mistério. Isto é, as
pessoas que não a vivenciaram percebem, a partir dos relatos e também da relação especial
entre os rapazes e seus guias, algo ‘secreto’ ou ‘misterioso’ que fascina.
A recompensa expressada como uma sensação, sentir um beneficio, resulta de
difícil comunicação, como Gin Tonj sublinha em seu relato que ofereço a seguir.
A socialização de tal experiência por parte dos rapazes que estiveram mais tempo
na missão e que participam ativamente da preparação dos novos grupos é uma espécie de
demonstração dessas emoções que vêm carregadas de fascínio e mistério
111
. Da mesma
forma, é demandado um imaginário sobre a ‘realidade’ que ‘precisa ser tocada com a mão’,
desatando o desejo de vivenciar tais emoções. Gin-Tonj afirma ter ficado surpreendido
com a reação das pessoas frente a sua experiência.
‘Eu sinceramente pensava sensibilizar um pouco, mas não me
sinto muito à altura de fazê-lo, mas me dei conta que também
simplesmente falando do que fiz, entendi que uma boa resposta das
pessoas. Você faz ruído na vida das outras pessoas, se percebe. Me dei
conta porque as pessoas com as quais você fala te dão retorno. Portanto,
se expande muito este tipo de experiência. Você consegue fazer as
pessoas pensarem. Eu não esperava e foi uma grande surpresa.’’
Como já mencionei, Gin Tonj é responsável pelos novos grupos que viajarão para a
missão e participa nas reuniões para sua preparação. Me explica como comunica sua
experiência aos novos rapazes.
111
De acordo com as elaborações clássicas de Simmel “The application of secrecy as a sociological
technique, as a form of commerce without which, in view of our social environment, certain purpose could
not be attained, is evident without further discussion. Not so evident are the charms and the values which it
possesses over and above its significance as a means, the peculiar attraction of the relation which is
mysterious in form, regardless of its accidental content. In the first place, the strongly accentuated exclusion
of all not within the circle of secrecy results in a correspondingly accentuated feeling of personal possession.
For many natures possession acquires its proper significance, not from the mere fact of having, but besides
that there must be the consciousness that others must forego the possession. Evidently this fact has its roots in
our stimulability by contrast….Secrecy gives the person enshrouded it an exceptional position; it works as a
stimulus of purely social derivation, which is in principle quite independent of its casual content, but is
naturally heightened in the degree in which the exclusively possessed secret is significant and
comprehensive.” (1906; 464-465)
87
‘Eu digo sempre assim, quando as pessoas me perguntam: onde
vamos? O que faremos? Que tipo de experiência teremos? Eu digo
sempre assim: no primeiro ano são tantas experiências diferentes:
favelas, indígenas etc., são tantas. No primeiro ano você conhece tantos
tipos de culturas diferentes, mas são unidas pela mesma pobreza. Todas
te tocam indistintamente... você coisas absurdas que te tocam... em
experiências diferentes é a mesma pobreza que te toca. E você se
conta que lá, pela pobreza que existe, a vida é diferente. Você se dá conta
de que as pessoas necessitam de carinho porque a vida da família não é
baseada no afeto. Dado que eles têm que trabalhar para viver é difícil
ver os cuidados de uma mãe com seus filhos como aqui. Não há tempo ou
não há cultura de se estar com as crianças’.
Assim, Gin Tonj relata também a impossibilidade de ‘entender’ sem a viagem:
‘Estando aqui é difícil que as pessoas que vivem na Itália
busquem um apoio em algo, isto é, em Deus. Parece que aqui não se
precisa de nada e não é assim. Este raciocínio eu o fiz no primeiro ano,
fizemos um recorrido de emoções novas, começamos a tocar a
experiência das favelas e outras. Com os frades do lugar, a vida que eles
conduzem, como entram nas favelas, a experiência nas tribos indígenas.’
Ao perguntar-lhe se acha que é indispensável viajar para a missão, responde:
‘Se você está de fora, o pra entendê-las, se você não as
enfrenta, nunca vai entender, se não vê diretamente, se não se deixa
tocar emotivamente. É difícil, você pode imaginar como é, mas nunca vai
entender profundamente’.
É enfatizada a impossibilidade de ‘entender realmente’ sem a experiência direta.
Tal argumentação é a base das considerações também de Lamberto, que nos oferece sua
explicação do valor positivo da experiência na missão.
‘Os voluntários quando voltam, sobretudo os jovens, criam
famílias, formam sua própria vida. Mas o que constatamos é que é uma
coisa positiva o conhecimento de algumas realidades do terceiro mundo,
comparando-as com a nossa, isto é, assim se formam consciências. Os
jovens apreciam mais o que tem no primeiro mundo, que antes não
podiam apreciar porque não conheciam.
Lamberto afirma que a viagem para a missão marca indistintamente a todos e
inicio a uma mudança. Trataria-se de uma ‘tomada de consciência’ através da comparação
entre a forma de vida na Itália e a de lá, e de se deixar surpreender pela forte crença dos
mais pobres’ em Deus.
88
Tal ‘tomada de consciência’ aportaria benefícios a aqueles que conseguiram
alcançá-la, como Gin Tonj explicita:
‘Esta experiência faz parte da minha vida, mas uma coisa é
seguir adiante na vida sozinho, é diferente quando você tem um grupo
que vive as mesmas coisas que você quer. Você não quer deixá-los.
Agora já fazem parte da minha vida, não importa se eu partir novamente
ou não, isto é parte integral do que quero na minha vida. É muito lindo
dar a possibilidade a outras pessoas de provar as mesmas emoções que
você provou. Isso ajudou muitas pessoas, aconteceram muitas coisas,
como te disse, a Providência. O Senhor trabalha através de nós e por que
não colocar-nos a seu serviço?’
Sua tarefa - agora que acumulou três viagens à missão e está próximo de viajar
novamente como responsável de um novo grupo - é alimentar o motor de tais relações e,
conseqüentemente, mobilizar mais recursos humanos e econômicos.
Afirma que existe muita gente que quer passar pela experiência da missão, que
sente fortemente tal necessidade. Valentina também, ao contar-me o caminho que a
conduziu à partida, dizia que ‘desejava a todo custo ter essa experiência!’
Na reunião em Cittá di Castello (23-04-06), na qual frei Paolo preparava duas
jovens da Ra.Mi para a próxima partida a uma ‘experiência pessoal’, estava Carla
112
, uma
professora da escola primária “San Francisco di Sales” das freiras salesianas da mesma
província. Carla expressa a frustração relativa a sua falta de coragem’ para partir como
missionária, devido ao medo de contrair alguma doença
113
. Em outra situação, confessa ter
se sentido incômoda com os outros rapazes na reunião a que assistimos juntas, afirmando
que não se atreveria a falar. Demonstra grande estima à figura de Paolo e aos rapazes que
enfrentam tais medos. Define-os como pessoas ‘sãs’ e ‘necessárias’ que ajudariam a
valorizar a simplicidade’ da vida. Acrescentou que se conforma pensando que ela também,
ficando em casa, pode contribuir com a missão preparando os encontros com os alunos do
seu colégio e favorecendo as adoções à distância
114
.
112
Carla, 38 anos, tem uma atitude doce e atenta, gosta do seu trabalho. Visita freqüentemente o convento e
tem ótimas relações com frei Antonio (o superior). O mesmo convento é freqüentado por outra professora,
Alberta, que mantém também boas relações com os frades. Com eles e, sobretudo, com Paolo organizam
eventos para coletar fundos para a missão.
113
Quando soube das vacinas preventivas desistiu da viagem.
114
Durante o período do Natal, ela tinha organizado com Paolo um encontro com os alunos e insistia para
que ele retornasse à escola para renovar o estímulo a continuar com as adoções à distância que tinham se
encaminhado no primeiro encontro. Ressalta a grande capacidade de Paolo de criar uma atmosfera de
comoção que deixou seus alunos fascinados.
89
Porque Carla se sentia frustrada? Por que demonstra uma espécie de submissão
frente aos rapazes e a Paolo? Não ter viajado à missão parece criar uma distância, a
distância, suponho, do desejável que nem todos podem alcançar e que é o que cria um
diferencial: a experiência.
Observamos que os rapazes que retornam de suas experiências pessoais comunicam
os conhecimentos adquiridos a seus guias espirituais, com os quais incrementaram suas
relações e estabeleceram certo grau de afetividade e vínculo emotivo como entre frei
Carlo e Gin Tonj, o frei Paolo e Andrea. Da mesma forma, mencionei que a tese de frei
Paolo foi entregue por ele mesmo nas mãos do Bispo Magalhaes às vésperas da outorga de
seu Mandato Missionário Definitivo’; ou seja, o conhecimento adquirido é transacionado
“para cima”
115
. O Bispo Magalhães, sendo aquele que detém a ‘máxima experiência’ no
Amazonas, é o guia espiritual’ de Paolo e aquele que poderia lhe abrir o caminho para
uma maior autonomia entre os outros frades, em relação aos quais, atualmente, se encontra
em posição subordinada.
Diferentemente, o que é transacionado com os que se aproximam por primeira vez
ao grupo e que ainda não empreenderam a viagem – isto é, ainda não foram iniciados – são
as emoções vivenciadas durante a ‘experiência’ que demandam o imaginário do público e
desatam o desejo de viajar.
Não quero afirmar que o conhecimento é ocultado “para baixo”, mas considero que
joga um papel secundário em relação à performance emotiva para o objetivo que quer ser
alcançado: convencer novos discípulos a empreender a viagem para que sucessivamente
participem da rede de relações ampliando a comunidade católica e mais importante para
o tema do presente trabalho alimentar o circuito de pessoas vinculadas à missão,
aportando assim nova ‘mão de obra voluntária’
116
para a coleta de fundos econômicos.
Muito mais eficaz, portanto, é a comunicação performática da experiência na
missão, lugar onde é possível alcançar essa tomada de consciência’, empreender um
caminho de fé’ e ‘alcançar a Graça’.
115
As expressões “para cima” e “para baixo” se referem às elaborações de Barth (2000), desenvolvidas nas
conclusões.
116
Ao destacar as características eufemísticas da linguagem, Bourdieu (2003) nos oferece algumas
considerações relativas à terminologia empregada no campo eclesiástico, revelando o esforço constante na
manutenção de uma crença de ações sagradas que tentam encobrir as dimensões econômicas que as
sustentam. (idem; 190-191)
90
A experiência na missão se torna um pré-requisito para alcançar tais ‘iluminações’
que determinam a diferença de posições na escala hierárquica.
2.6.3 O acúmulo de experiência: a progressiva autonomia e a elevação
de status
Como destaquei anteriormente, aqueles que tiveram mais experiência na missão
detém posições diferentes e se encontram mais próximos a frei Paolo e Carlo. Nesse
sentido, é necessário voltar ao relato de Gin-Tonj que nos ajuda a entrar no que se pode
definir de ‘etapas da formação’ dos missionários laicos.
Gin Tonj: ‘Nós ainda não temos divisões marcadas no grupo,
digamos que somos ainda um pouco ciganos. Obviamente o fato de que
Paolo e Carlo ainda estão nos guiando é importantíssimo e são eles que
nos tornam ativos (acrescenta com tom irônico), não pense que sozinhos
conseguiríamos ser ativos. Mas o verdadeiro núcleo é aqui em Assis e
outro que se formou em Roma. Tudo parte de Assis, mas não tem pessoas
específicas até agora, não somente duas ou três pessoas que decidem.
Mas agora estamos pensando seriamente nisto, porque Paolo deve partir
e Carlo tem sempre muitas tarefas e não podem mais nos seguir tanto
como antes. Provavelmente, como você deve ter visto, tem um núcleo que
sente mais esta responsabilidade, porque foi o primeiro a partir, somos
os mais antigos e sentimos mais que os outros.’
Claudia: ‘E Rafaela
117
partiu com vocês?’
Gin Tonj: ‘Sim ela esteve seis meses no Amazonas depois voltou
e não viajou mais. Quando voltou pra cá procurou dar um sentido a sua
vida. Encontrou seu caminho.’
Claudia: ‘Você comentava que existem diferenças entre a
primeira viagem e as outras. Você pode me explicar melhor?’
Gin Tonj: ‘A primeira viagem é toda maravilhosa. Você tem uma
experiência emocionante com o grupo e tudo te parece fascinante. Mas
se realmente queres voltar para a missão não podes repetir as mesmas
coisas. Sim, é sempre emocionante, mas é necessário ter uma experiência
pessoal. A segunda viagem é um pouco uma exigência tua e uma
proposta. Dado que colaboramos muito com os frades de lá, que sabem
mais das necessidades das pessoas, decidimos em base ao que eles nos
117
Rafaela partiu para o Amazonas com o primeiro grupo de jovens da Ra.Mi. Em maio de 2006 se
consagrou como freira laica e partiu para uma missão na África.
91
dizem e ao que nós propomos. Buscamos a melhor coisa para fazer. Por
exemplo se eu na primeira viagem tive uma experiência maior entre os
leprosos, na segunda viagem procuro algo para fazer lá com os leprosos.
Portanto com base nas próprias exigências e nas deles se busca a melhor
coisa a fazer. Por exemplo, com Paolo tínhamos sentido a necessidade de
nos fazer mais conhecidos no Rio Solimões nas comunidades indígenas.
Tínhamos esse desejo e então fomos com Andrea e decidimos fazer a
experiência juntos. Vimos como é a cultura lá, em Amaturá, tínhamos um
frei que conhecíamos lá, frei Silvio. Fomos para entender as
necessidades principais do lugar, portanto vivemos com eles.’
Laura (sua noiva) entra e se comenta com ironia que Gin Tonj tinha demonstrado
resistência à entrevista e contrariamente às expectativas aconteceu uma longa conversa.
Tomando de novo a palavra, ele explica:
‘Dizia que o fato de estar uma semana em um lugar é uma coisa,
ou seja, as pessoas do lugar são atraídas e, portanto se comportam de
um certo modo. Contrariamente, vivendo um pouco mais com eles é
diferente. Se retoma a normalidade e ali você percebe as coisas lindas e
as coisas feias e as dificuldades que realmente existem. E você não
como a primeira vez, tudo lindo.
Andrea e eu estivemos com eles e muito com o frei do lugar,
porque os frades do lugar tem essa tarefa de entender qual são os
problemas e de formar uma comunidade o mais educada possível a um
tipo de vida, não somente religiosa mas também humana. Porque falta o
aspecto da humanidade, do respeito entre as pessoas, não se conhecem,
não existem. Digamos que íamos nas aldeias indígenas... é como uma
paróquia porque das aldeias indígenas se ocupa este frei. Nós
observávamos como era a vida ali porque cada fim de semana
visitávamos uma aldeia, ficando três ou quatro dias, tendo contato com o
cacique... digamos que é como se tivessem diferentes bairros e cada
bairro tem um cacique como responsável, que vai a Amaturá cada tanto
para informar das coisas que acontecem na aldeia.
E nós estando ali mais de um mês
118
adquirimos um pouco de
experiência, e assim decidimos fazer uma pequena escola para as
crianças pequenas para moldá-las antes de chegarem à escola normal. E
para fazer isso devíamos fazer um projeto, angariar fundos aqui na Itália,
para construir materialmente a escola, os materiais etc. Tínhamos que
comprar um terreno que graças a Deus os frades nos ajudaram, foi
pago pela cúria. Por isso te digo que não terminas nunca porque aqui
tens que trabalhar para organizar as iniciativas para coletar fundos.
Então, por exemplo, eu estive e me dei conta que se
precisavam disso, outro viaja e se conta de outra coisa... Em outro
trabalho que fizemos íamos com uma jovem de lá ver as necessidades das
famílias. Ela o faz por trabalho mas também como voluntária da
paróquia. Dado que ela o faz por trabalho, digamos para o estado, ela
118
Andrea permaneceu três meses.
92
conhece todas as famílias sabe quais são as famílias mais pobres, se os
pais trabalham ou não, se são delinqüentes ou não e nós temos confiança
nela. Mas obviamente s também vamos ver como é a situação... Eu
senti muito a diferença entre a viagem com o grupo e a viagem sozinho
com Andrea. Depois senti mais ainda a diferença quando nos dividimos e
fiquei só. É importante estar com o grupo, mas depois é muito importante
estar só, te dá a possibilidade de entrar em simbiose com as pessoas e se
sente mais a verdadeira realidade do lugar. Você sente muito a
proximidade com Deus quando está só, porque é com ele que você fala, é
teu companheiro de viagem’
Dessa forma, seguindo sempre o relato de Gin-Tonj, observamos que depois da
primeira experiência, alguns decidem enfrentar outra. Se a primeira é em grupo, a segunda
deve ser individual, ‘pessoal’. A partir da sua narrativa, percebe-se que esta segunda etapa
deveria conferir-lhe mais autonomia em relação aos guias espirituais’, cuja presença e
interpretação da realidade circundante era dominante na primeira viagem.
Roberta e Sara
119
viajaram pela segunda vez para a missão acompanhando um novo
grupo como responsáveis, e posteriormente ficaram um mês numa comunidade Ticuna. A
permanência na comunidade Ticuna foi proposta pelo Bispo Alcimar, cuja motivação se
baseou na importância de estudar o papel das mulheres nas aldeias
120
. As jovens
manifestaram durante a reunião com frei Paolo (22-04-2006) as preocupações relativas à
permanência solitária e aos perigos existentes. Mais recentemente, exclamaram: ‘Com
certeza será uma experiência mais verdadeira! Mais nossa!
A possibilidade de crescer pessoalmente e comunicá-lo publicamente antes da
partida, nos ajuda a entender mais claramente o valor atribuído à ‘experiência pessoal’,
etapa considerada necessária para alcançar maior ‘autonomia’ em relação aos frades,
responsabilidades e prestígio na gestão do grupo.
Lamberto pode ser tomado como exemplo de tal caminho e dos possíveis
privilégios que são alcançados com o acúmulo de experiência na missão.
119
Moças da Ra.Mi de Cittá di Castello. Durante a reunião no convento da cidade mencionada, Paolo dava
indicações acerca do que tinham que fazer estando com os novos jovens: entender quais eram suas
motivações, como explicar-lhes o que iam enfrentar etc. Roberta e Sara demonstravam inquietação em
relação a tal papel, diziam não se sentir a altura para convencer aos demais, capacidade demonstrada
brilhantemente por Paolo. Este, no entanto, estimulava a desempenhar tal tarefa que ele não poderá mais
ajudá-las. .
120
O interesse para as mulheres indígenas estaria na possibilidade de usufruir os projetos sustentados pelos
ICTs (Instituições Científicas Tecnológicas) dirigidos a mulheres para apoiar sua participação nos processos
de decision-making (Braghini, 2006; 102).
93
‘... para continuar essa aventura no Amazonas é preciso ter
algumas coisas favoráveis. 80 por cento faz somente uma viagem. Para
poder ser ligar de forma particular com os missionários e as pessoas do
terceiro mundo é preciso que toda a família compartilhe a obra do
marido e da mulher.
Para além da diferença entre aqueles que viajam uma só vez e os
outros, é sempre um resultado positivo, mesmo se não voltam ao
Amazonas conosco, podem angariar fundos aqui, para continuar a
ajudar os missionários e as pessoas no Amazonas.
Eu tenho a sorte de que minha família também participa. Minha
mulher viajou 11 vezes e meu filho 4 ou 5. Em nossa paróquia eu sou o
responsável pela, digamos, mobilização para a missão... Os missionários
quando voltam aqui, vem à paróquia e são hospedes em algumas famílias
como a minha.’ (Assis 12-04-06)
Seu acúmulo de experiência o coloca numa posição extremamente privilegiada em
relação aos outros missionários laicos, gozando de prestígio dentro da paróquia de
Sanfatucchio da qual é o responsável no que se refere à missão e nas redes de relações
tecidas na Úmbria. É tomado como exemplar de missionário laico durante os eventos
organizados em favor da missão por frei Valerio di Carlo com o qual mantém uma intensa
colaboração. Além disso, pelo empenho demonstrado na preparação dos projetos e na
coleta de fundos econômicos para realizá-los, adquiriu com suas freqüentes viagens
relações próximas com os missionários úmbrios residentes na missão e, mais importante
ainda segundo ele, com o Bispo Magalhaes.
2.7 A experiência ‘mística’ no Amazonas
Turner (1974) afirma que as peregrinações são processos sociais que envolvem
grupos de pessoas que irão compartilhar uma experiência coletiva fora da cotidianidade
espaço-temporal, vivenciando a communitas ou antiestrutura, contraposta à vida normal
cotidiana em suas respectivas residências, caracterizadas por relações hierárquicas
estruturais. Considero de crucial importância a ênfase dedicada aos processos entre estes
as peregrinações através dos quais os paradigmas religiosos se alimentam e “are also
maintained by periodic emergent of counterparadigms which under certain conditions
become reabsorbed in the initial and central paradigm.” (1974: 15).
A peregrinação tem o caráter do ritual de iniciação e, mais em geral, de um rito de
passagem. Assim explicita:
94
“I tend to see pilgrimage as that form of institutionalized or
symbolic anti-structure (or perhaps meta-structure) which succeeds the
major initiation rites of puberty in tribal societies as the dominant
historical form…It is infused with voluntariness though by no means
independent of structural obligatoriness.” (ibidem; 182)
A condição de liminaridade na qual as pessoas estariam envoltas em tal experiência
“represents at once a negation of many, though not all, of the feature of preliminar social
structure and an affirmation of another order of things and relations. Social structure is not
eliminated, rather it is radically simplified: generic rather then particularistic relationships
are stressed.” (idem; 196)
As peregrinações seriam momentos nos quais são vivenciadas as communitas,
entendidas como recursos de renovação ou de cura.
Em tais ocasiões toma particular importância o compartilhar relações de
‘irmandade’ e a destruição de qualquer tipo de hierarquia, deixando prevalecer o ‘amor’ e a
‘humildade’. No entanto o autor ressalta que:
“However, until now communitas lives within structure, and
structure within communitas. Total or global brotherhood or communitas
has hardly yet overlapped the cultural boundaries of institutionalized
religious structures. Communitas itself in time becomes structure-bound
and comes to be regarded as a symbol or remote possibility rather than as
a concrete realization of universal relatedness.” (ibidem 206)
Parece sugerir por um lado que a communitas e a estrutura são parte de um mesmo
processo e, por outro, a entender que pertencem a tempos e espaços diferentes e que
inevitavelmente a primeira levará à segunda e vice-versa. Tal concepção cíclica do “drama
social”, que levaria a retornar a ‘equilíbrios’
121
, não permite na minha opinião vislumbrar a
complexidade das dinâmicas sociais. Entendo que a communitas é parte integrante da
estrutura, e concordando com a tese de Turner, a própria estrutura se alimenta dos
contínuos impulsos para a formação de communitas, favorecendo a renovação constante
dos paradigmas religiosos, que parecem sofrer contradições dentro da estrutura da Ordem
caracterizada por definição por relações hierárquicas. A crise, ou nas palavras do autor, o
“drama social”, determinado pela desconfiança no mundo ou pelas desilusões dos aspectos
institucionais, favorece a reflexão que leva os atores a desejar vivenciar a communitas, mas
121
Enfoque que caracterizava diversos autores da escola de Manchester em particular seu principal expoente
Gluckman.
95
não quer dizer que as peregrinações ou tais momentos se caracterizem pela falta de
hierarquias.
Como evidenciado por Bailey (1970), ainda que exista uma subordinação comum a
algo transcendente como Deus ou a humanidade e seja estabelecido um certo grau de
equivalência entre líderes e seguidores, acompanhados por linguagens de amor e
irmandade, isto não quer dizer que sejam totalmente ausentes formas hierárquicas de
relação, também em ocasiões como as peregrinações.
Os discursos que fluíam entre os jovens da Ra.Mi e frei Paolo, referindo-se à
conduta que deveriam manter internamente ao grupo como também com os ‘externos’,
marcavam a necessidade de caracterizar-se como um grupo aberto demonstrando
simplicidade e sobretudo falta de hierarquias internas. Destacava-se a peculiar liberdade
que o grupo vivia, cujos membros demonstram o prazer de compartilhar um caminho de fé,
a alegria e a emoção de seguir um ideal comum.
Os rapazes comunicam sua imensa alegria por ter tido a possibilidade de vivenciar
o ‘verdadeiro sentido de irmandade e comunidade’ na missão. As viagens e a permanência
no Amazonas se tornam os indicadores de um começo, uma espécie de ponto zero desde o
qual se pode avançar diversamente em suas próprias vidas.
No convento de Cittá di Castello (06/05/2006) depois do jantar na presença de
alguns jovens da Ra.Mi., frei Paolo, o superior do convento frei Antonio e as duas moças
que sob sua orientação estão cumprindo um caminho de fé’, se encaminhou uma discussão
sobre a terminologia empregada para denominar os frades: Paolo sustentava que não
deveriam ser chamados padres’, afirmando que a relação entre frades e entre frades e
leigos se caracterizaria por ser igualitária e, portanto, o termo mais apropriado seria
irmão’. Não é por acaso que em tal argumentação é acionada a terminologia empregada
por São Francisco que, como explicitei no primeiro capítulo, se valia de termos que
evocavam as relações igualitárias, seja entre os seres humanos, seja entre estes últimos e a
natureza
122
. A relação vertical caracterizaria unicamente aquela entre fiéis e Deus, unindo e
submetendo qualquer um frente a sua magnificência. No entanto, uma das moças que
debatia, se opunha a ele afirmando que os frades são também pais e como tais deveriam se
comportar
123
.
122
Nos referimos ao Cântico das Criaturas, no qual São Francisco expressava a harmonia da convivência com
a natureza e a importância de sua contemplação.
123
Ao analisar a ‘empresa religiosa’, Bourdieu afirma que: o que é valido no nível dos leigos é valido em
enésimo grau no nível dos clérigos, que sempre estão na lógica da self-deception. Mas falar de self-deception
96
Ser missionário significa demonstrar a capacidade de saber se distanciar de
qualquer forma de poder: entre elas também está a ambição às posições hierárquicas
internas à Igreja e, no caso particular dos capuchinhos, dentro da Ordem.
Frei Luciano elogiava as capacidades de frei Arsenio de adaptar-se à vida dos
indígenas, afirmando que traduziam grande espírito de sacrifício e grande capacidade de
aproximar-se deles. Além disso, segundo sua opinião, quando os indígenas viam frei
Arsenio viver como eles, o processo de evangelização era facilitado. Diferentemente, frei
Paolo enfatiza que se sente totalmente inclinado a viver como os indígenas, afirmando ser
livre de sacrifícios, sentindo-se totalmente identificado com tal ‘estilo de vida’ que a seu
parecer, refletiria a irmandade original capuchinha. No entanto, em sua tese estão
sublinhadas as qualidades necessárias para conduzir a vida missionária: espírito de
sacrifício e humildade, qualidades que caracterizaram “heróicos e sofridos exemplos de
vida dos frades” (Braghini, 2006; 10) na história da Ordem.
Frei Paolo nas diferentes conversas mantidas comigo, como também com os jovens
da Ra.Mi., especificava que o que tem valor é o carisma capuchinho’ e não a estrutura da
Ordem. Em seus enunciados, tomava distância da estrutura da Igreja ocidental, que
considerava afastada das problemáticas do viver social. Tal posição lhe conferia certa
credibilidade e estima entre os jovens; enunciando sua vontade de tornar-se missionário
definitivamente, demonstrava sua renúncia às formas de poder e um verdadeiro desejo
desinteressado de seguir sua vocação.
Estando o carisma capuchinho’ que deveria se inspirar diretamente nas palavras
de São Francisco em constante perigo de degeneração pelas tentações humanas de poder
dentro da estrutura da Ordem, parece ser recomendado pela própria instituição que os
frades façam experiências como missionários e que conduzam vidas itinerantes.
No primeiro capítulo fiz referência à importância dedicada, nas Constituições dos
capuchinhos, às experiências dos frades nas missões, outorgando-lhes especial prestígio.
Assim também destaquei a importância da vida itinerante dos frades, enunciada no CPO
pode levar a crer que cada agente é o único responsável por sua mentira a si mesmo. De fato, o trabalho de
self-deception é um trabalho coletivo, mantido por todo um conjunto de instituições sociais de assistência,
das quais a primeira e mais poderosa é a linguagem, que não é apenas meio de expressão, mas também
princípio de estruturação, funcionando com o apoio de um grupo que se reconhece: a má-fé coletiva está
inscrita na objetividade da linguagem (especialmente nos eufemismos, nas fórmulas rituais, nos termos de
chamamento - ‘pai’, ‘irmã’ etc.- e de referência), da liturgia, da tecnologia social da gestão católica das trocas
e das relações sociais (por exemplo, todas as tradições organizacionais), e também nos corpos, nos habitus,
nas maneiras de ser, de falar etc. (2003; 191-192)
97
VII. Cabe acrescentar nesse momento que no próprio CPO se alerta contra possíveis
‘formas de imobilismo’, propondo a itinerância como “abandono de poder e de lugar”
124
. A
‘humildade’ é uma arte que deve ser aprendida.
A necessidade de vivenciar formas de communitas é contemplada dentro da própria
estrutura social: o controle sobre si mesmo deve ser constantemente aprendido e
concordando com as elaborações de Foucault (2004), responde à exigência de alimentar a
submissão dos sujeitos.
Frei Paolo considera necessário um retorno ao carisma capuchinho’, cuja essência
estaria se perdendo. Isto permitiria encaminhar-se para a ‘renovação da Ordem’
125
.
De que maneira seria possível retornar ao ‘carisma’?
Seguindo a argumentação da tese de frei Paolo, parece prevalecer a idéia de deixar
aos indígenas a possibilidade de revelar a Semente da Palavra’; isto é, enfatiza a
importância de construir uma Igreja que tenha as características amazonenses e mais
particularmente Ticuna. As características às quais faz referência seriam os valores que os
Ticuna demonstrariam ter e que, segundo sua argumentação, o ocidente estaria perdendo.
Portanto, os indígenas cuidariam de um depósito de fé, do puro carisma capuchinho’ e de
valores ‘antigos’ que o ocidente, com seu ‘progresso’ teria lentamente abandonado.
As viagens e a permanência na missão parecem ter as características das
peregrinações descritas por Turner, na medida em que dariam a possibilidade aos
missionários capuchinhos, como também aos laicos, de surtir uma espécie de purificação
das dinâmicas estruturais, uma espécie de ‘limpeza do sentimento de culpa’ e, portanto,
124
“Francisco deixou-se inspirar pela vida itinerante de Jesus e dos apóstolos e seguiu-lhes o exemplo. Na
fidelidade a Francisco, expressamos a nossa itinerância através da opção de abandonar os postos de poder
corroborados e garantidos para escolher os mais acessíveis à gente comum e aos mais pobres. Deveríamos
ainda discernir e decidir em fraternidade o abandono daqueles ministérios que podem tornar-se objeto de
apropriação, de exaltação e de autopromoção. Tal opção favoreceria a nossa vida em fraternidade e ofereceria
aos frades individualmente a possibilidade de um crescimento pessoal pois lhes permitiria travar novos
contatos e assumir novas responsabilidades. Desse modo partilharíamos o caráter que Cristo deu à Igreja
como povo a caminho. Seguindo a tradição dos primeiros capuchinhos, sempre próximos dos indigentes e
abandonados pelos outros, nutridos pela e abertos à esperança, propomo-nos, como compromisso de nova
evangelização, viver ao seu lado, mesmo se isso comportar o abandono de estruturas não conformes ao nosso
ideal” (CPO VII; 25)
125
“A minoridade e a itinerância são elementos da vocação franciscana que acompanham sempre a nossa
vida fraterna. Portanto, a formação permanente deve constantemente aprofundar esses valores e favorecer,
além das oportunidades de atualização cultural, também experiências concretas de aproximação do povo e
dos pobres. É conveniente, por isso, que cada frade se disponha a uma sadia renovação da sua identidade de
consagrado e do seu ministério através de modalidades de serviço aos sofredores, de partilha de vida com os
marginalizados e de compromisso pastoral em campo diverso do habitual. Tais experiências podem ser
realizadas em outras circunscrições ou na missão.”(CPO; 30)
98
uma transformação que deveria ser percebida a sua volta. Cada missionário, gozando de tal
condição extraordinária, conseguiria incorporar poder pelo seu ser liminar e,
sucessivamente, se tornaria ativo na volta à pátria, tendo transformado seu status social.
A experiência na missão vivida pelos missionários laicos junto a seus guias
espirituais’, não é caracterizada pelo abandono de formas hierárquicas de interação. Pelo
contrário, a relação pastor/discípulo é ali iniciada e ritualizada.
Andrea, como já mencionei ao apresentá-lo com os outros atores sociais, sublinha
sua discordância em relação a uma forma de vida imposta que conotaria aquela dos
habitantes de Assis, como também a opulência da Igreja ocidental, contrastando-as com a
simplicidade’ da vida no Amazonas. Tendo acumulado experiência em várias viagens à
missão, afirma ‘legitimamente’ que é necessário “nutrir-se do sofrimento dos pobres
marginalizados e dos frágeis, para aprender a não ser indiferentes e conseguir enfrentar a
multidão de problemas com a simplicidade da alegria de viver”
(http://lombandre.leonardo.it/blog)
Nessa afirmação, não podemos deixar de considerar novamente as análises de
Turner (1974) relativas aos símbolos e signos de indigência utilizados por diferentes
líderes religiosos como Gandhi, ou mais próximo a nosso contexto, o próprio São
Francisco. É interessante observar o poder atribuído aos pobres e marginais a tal ponto de
imitar seu comportamento e vestuário.
A idéia da viagem a terras distantes estimula o imaginário a ponto de ser acionado
durante os eventos organizados pelos capuchinhos com as crianças das escolas primárias.
Frei Paolo e a professora Carla me explicaram (23-04-06) como organizaram tal encontro e
a técnica empregada. Predispunha-se as crianças a imaginarem uma viagem para descobrir
como as crianças indígenas vivenciam o Natal. Paolo representava os guias. Através de
uma série de contrastes para ressaltar a pobreza que caracterizaria a vida dos indígenas
carro/canoa, casa/cabana estimulavam as crianças a entender o significado verdadeiro do
Natal que estaria mais ‘puro’ naquelas terras. As imagens de um entardecer eram
comentadas por Paolo, explicando a presença de famílias inteiras contemplando as estrelas,
ressaltando a importante figura do ancião, oferecendo assim uma comparação com o pouco
respeito que se lhes conferiam na Itália.
Ressalta-se a simplicidade’ da vida dos indígenas, um valor que estaria se
perdendo.
As fotos onde aparecem os rapazes ticuna são comentadas como se eles mesmos
falassem pedindo a Jesus para satisfazer seus desejos: “que o missionário e os rapazes que
99
vem com ele voltem logo”. Em seguida, é mostrada a foto de uma criança ticuna da
comunidade de Veracruz, que havia tatuado sua mão com o nome de Julia, uma jovem da
Ra.Mi que no ano anterior tinha criado um forte laço emocional com ela. Dessa forma,
comentam Paolo e Carla, as crianças percebem que os indígenas precisam deles.
O contato direto com os pobres’, deficientesou marginalizadosos iluminaria
no seu caminho de fé. Ao destacar que em tal experiência são tratados como heróis pelas
populações locais
126
, afirmam que a possibilidade de tornarem-se heróis lhes é concedida
justamente por serem iluminados pelos pobres; isto é, a possibilidade de manifestar sua
solidariedade, seu sacrifício, sua renúncia e nutrir-se dos sorrisos dos mais pobrese,
portanto atingir o poder que lhes é outorgado, lhes permite elevar-se espiritualmente.
Frei Paolo abre o capítulo da tese dedicado à história da presença dos capuchinhos entre os
Ticuna, retomando uma frase de Monsenhor Evangelista de Cefalonia de 1927 “...os índios
que nos dão o glorioso título de Missão Apostólica” (Braghini, 2006; 66).
Argañaraz (2004) analisa a trajetória de frei Fedele de Alviano como uma “síntese
da experiência de construção de um ‘território de missão’” (idem; 167) e delineia a
construção e circulação de imagens da própria e alheia identidade, afirmando que “são as
‘trevas da floresta’ que iluminam o missionário e a ‘civilização cristã’” (idem; 167).
Concordando com a autora, observamos que a forma de classificar os indígenas,
apesar de constantemente reformulada, continua oferecendo a mesma possibilidade: a obra
de caridade é o caminho para a salvação; a possibilidade de salvar os pobres daria a
possibilidade de salvar a si mesmo.
Que tipo de ‘infeliz’ deveria ser salvo? Quais são os valores que deveriam ser
respeitados e salvaguardados nas comunidades indígenas?
Encontramos na tese de frei Paolo vários argumentos que costumam ser afirmados
também pelos outros capuchinhos e leigos entrevistados, como também em alguns artigos
das revistas levantadas.
A irmandade: seria testemunhada por um forte ‘sentido comunitário’, considerado
como uma característica ‘típica’ das culturas indígenas em geral, que não deixaria espaço a
manifestações individualistas.
126
Argumentação presente no vídeo “Desfolhando o Amazonas” realizado pelos Ra.Mi., do qual nos
ocuparemos no último capitulo.
100
O respeito à natureza: é comparado ao espírito ecológico de São Francisco que
marcaria o carisma capuchinho’ e que deveria demandar uma reconciliação com a
natureza. Em tal argumentação são enfatizados os riscos de desastres ambientais dos
projetos de desenvolvimento que exploram a natureza com fins unicamente utilitaristas.
Sara define a comunidade indígena Ticuna da seguinte forma:
É minha idéia de aldeia natural, digamos primitiva. Eles são
primitivos em relação a nós, ou seja, seguem o ritmo da natureza, disso que a
natureza lhes dá, a pesca e a caça. Dentro dessa realidade tão idílica entre
aspas, não entendo porque possa existir também alguém que não esteja bem.
Uma pessoa que se embebeda tem talvez a necessidade de esquecer algo, talvez
de distanciar-se da sua realidade. Eu não entendo porque numa realidade tão
linda com os ritmos que eles conhecem, porque têm essa necessidade de sair
de sua própria realidade e dirigir-se às grandes cidades.’ (Assis 02/05/2006)
Pureza e simplicidade: os indígenas expressariam uma ‘etapa primordial’ na qual
viriam custodiadas tais qualidades
127
.
Máximo define os indígenas como gente pura’ que não deve ser tocada. Amplia
sua argumentação afirmando que são respeituosos da natureza e rejeita a idéia de levar nas
comunidades qualquer tipo de bem ocidental que poderia afetar sua pureza. Ao manifestar
sus dúvidas em relação ao que poderia ser fato para ajudar os indígenas, propõe avançar
para uma proteção da amenazante ‘contaminação do ocidente’.
Lamberto descreve os Ticuna da seguinte maneira:
‘...visitamos 36, 37 comunidades. Viajávamos com um barco que
virava uma casa para nós. Digamos que era uma aventura pioneira....
Caminhamos no meio da floresta para levar as coisas. encontramos
uma imensa surpresa, uma coisa que ninguém teria imaginado. Uma
aldeia de somente 10 cabanas e ali nunca nenhum homem branco tinha
entrado e lá vivia o capitão de todos os Ticunas, que desde 1980
representa todos os Ticunas. Ele tinha visitado muitas capitais dos
estados europeus. Pedro, o capitão, nos ofereceu comida e depois nos
mostrou uma coisa toda envolta com papel jornal italiano e dentro estava
a estátua da Loba com Rômulo e Remo e nos disse que quando tinha
visitado Roma o prefeito de Roma lhe havia presenteado. Para nós foi
uma coisa extraordinária.
Desde 1997, trabalhamos em contato com os indígenas. Digamos
que roubamos com os olhos qual são seus costumes e hábitos. Com
certeza eu não estou qualificado para falar precisamente dos índios
127
Dedicando particular atenção aos movimentos religiosos, como também àqueles de contracultura que
propõem ou propunham uma vida no regime de communitas, Turner (1974) sublinha que em algumas
ocasiones o ‘natural’ é contraposto ao ‘cultural’, identificando e valorizando o primeiro como o estado de
communitas.
101
Ticunas, mas com aquilo que vi posso dizer que nunca vi entre os
indígenas alguém bater numa criança, nunca escutei gritos entre marido
e mulher. As mulheres trabalham muito, ao contrário dos homens. O
índio come tudo e quando caçam, por exemplo, o jacaré, eles decidem
qual vão matar. Portanto, matam os bichos que vão comer.... A coisa
mais importante é que o índio tem uma mulher, desde o começo até o
final de sua vida. Portanto, a família é importante como princípio moral
sério. Não são polígamos não tem essa mistura de quatro ou cinco
mulheres. Os missionários nos contavam que se o homem chega a saber
que está sendo traído por sua mulher, ele se mata por honra. Alguns
homens se suicidavam porque tinham sido traídos.
...O ano seguinte voltamos para uma visita de cortesia com 18
pessoas e nessa ocasião assistimos a um ritual que se transmite a
milênios, a Moça Nova. Fomos envolvidos em toda essa atmosfera.
Também fomos pintados como eles, com as penas coladas. O missionário
nos explicava que tal costume tem algo que une a nossa civilização
católica. Sobretudo, quando depilam a moça e, segundo eles, tiram o que
é maligno e no batismo, que tira o pecado original.’
As comunidades indígenas se tornariam, portanto os lugares onde foi depositada a
Semente da Palavrae onde se encontraria em seu estado de pureza, diferentemente da
vivida nos centros religiosos prestigiados, onde os desvios ou degenerações seriam
evidentes.
Dedicando sua atenção às formas contemporâneas de colonialismo, Thomas (1994)
traz à luz as agências implicadas, entre as quais, segundo sua opinião, não estão imunes as
esquerdistas. Alerta que ainda que possamos perceber uma espécie de continuidade entre
os projetos coloniais, eles podem ser melhor entendidos como reformulações e
reavaliações de discursos anteriores.
Nos informa que, ao contrário do que aconteceu historicamente com o oriente
médio (a construção de uma imagem extremamente negativa), a imagem produzida do
aborígene é idealizada positivamente: a ‘espiritualidade primitiva’ seria uma essência
homogênea compartilhada pelos nativos africanos, americanos e australianos.
Tal representação levaria, por um lado, à atribuição de essências imutáveis e, por
outro, à imputação de inautenticidade, que informa subjacentemente o que seria a ‘correta
forma de ser aborígene. O primitivismo contemporâneo –definido pelo autor como “new
age primitivism”– mais do que ser entendido como uma herança de discursos passados
sobre a simplicidade das formas de vida dos indígenas, responde às políticas de identidade
no presente e se difunde mediante agências de turismo cultural e outras agências ligadas a
outros interesses.
102
Como pudemos observar nos diversos discursos mencionados, a vida comunitária
indígena e, especificamente, Ticuna é proposta em contraste com as sociedades ocidentais.
Concordando com Thomas, tais argumentações servem para adquirir força retórica na
denúncia da modernidade, vislumbrando que “Primitivism has always inverted rather than
subverted the hierarchies of civility and modernity” (1994; 30)
2.8 Conhecimento experiência e performance: o encontro no liceu
“Sexto Properzio” de Assis
O encontro
128
que apresento era parte de uma série de seminários realizados no
liceu “Sexto Properzio” de Assis, com base em um projeto sobre o multiculturalismo. Os
capuchinhos do centro missionário de Assis foram chamados a intervir para oferecer sua
contribuição enquanto ‘expertos’ da área amazônica.
Nos encontramos às 8.00 da manhã: frei Valerio, Andrea, Sara e eu.
Enquanto procurávamos a sala do encontro, os funcionários do liceu nos ajudaram a
levar as coisas que frei Valerio havia trazido (mapas, cópias de seu livro “Frei Valerio
pouco serio”, slides, calendários e propaganda do projeto “Adoção à distância”, com suas
respectivas contas correntes).
Frei Valerio me apresenta aos rapazes enquanto eles tentam conseguir emprestado
da escola um projetor de slides. Nesse momento, chega Carla
129
. Começam os preparativos
para a apresentação e tudo é organizado em cima da hora: quem falará primeiro, o que será
projetado antes e depois etc.
O evento era dividido em duas partes, cada uma com duração de uma hora. Na
primeira hora, o público era uma turma do primeiro ano. Na segunda, a sala ficou cheia de
rapazes de uma outra turma do primeiro ano, acompanhada por outra do quinto. As idades
por tanto variavam de 14 aos 19 anos. Entre os rapazes do primeiro ano estava uma freira a
quem frei Valerio dedica publicamente um cumprimento especial, declarando sentir-se
mais cômodo com a sua presença.
128
Fui avisada de tal evento por Jessica, que se ocupou de sua organização, mas não pode estar presente por
causa das suas atividades universitárias.
129
Mencionada anteriormente, lembro que Carla é a responsável e a secretária administrativa da revista
“Continenti”.
103
Aproximadamente às 9.30 da manhã frei Valerio começa a cumprimentar e a
apresentar sua equipe. Apresenta principalmente a si mesmo, como frei capuchinho de
Assis e como missionário no Amazonas com permanência de 10 anos em tal área. Essa
declaração lhe serve como introdução para explicitar a motivação de sua presença naquela
situação: ‘falar da realidade amazonense’.
A seguir, apresenta Carla como uma leiga com várias experiências no Amazonas’,
Andréa, como Ra.Mi., com três viagens ao Amazonas e Sara com apenas uma experiência.
Os atores recém apresentados, na mesma ordem, começaram a falar. Junto a eles, na mesa
dos convidados a tal evento, havia outro jovem da Ra.Mi que ainda não viajara para a
missão. Ele não fez uso da palavra.
Valerio informa que os frades capuchinhos em nome de toda a Úmbria ocupam
uma parte do Amazonas quase cem anos’ e acrescenta que cinco anos estão
preparando o centenário com manifestações extremamente chamativas. Depois de ter
enumerado todas as manifestações em curso de preparação e ter enfatizado que tal
enumeração não tinha o objetivo de alcançar nenhum tipo de glória ou triunfo, mas se
dirigia a divulgação do conhecimento da realidade do Amazonas’, começa seu relato
apoiado nos slides que são projetados num painel colocado no fundo da sala para a ocasião.
Desenvolve uma detalhada apresentação geográfica do Amazonas oferecendo dados
sobre suas dimensões e comparando-a com as do continente europeu. O Alto Solimões
corresponderia à metade Itália
130
.
Detém-se em explicar a história da missão, enfatizando os aspectos heróicos dos
primeiros capuchinhos ao enfrentar as dificuldades de um ambiente hostil.
Busca evidenciar os conhecimentos adquiridos durante os anos da missão;
conhecimentos que os primeiros missionários não tinham
131
. A apresentação da flora e da
fauna ocupa um grande espaço, com comentários sobre a grande variedade nas dimensões
e cores. Ressalta, ainda, que os animais perigosos que ameaçam a população não seriam
aqueles que comumente se costuma imaginar como, por exemplo, o jaguar, mas sim os
pequenos insetos.
130
Cabe destacar que tal tipologia de apresentação se encontra em diferentes relatos dos missionários, dos
quais falaremos mais tarde.
131
Observamos que o Amazonas continua sendo descrito como um “grande mistério” como no vídeo
“Conosco no Amazonas” ou no texto “Missionários no Inferno”, que analisarei no último capítulo e é
destacado o processo de descoberta que os missionários empreenderam, através do qual alcançaram
profundos conhecimentos.
104
O relato de frei Valerio é constantemente apoiado pelas intervenções de Carla, que
também dedica muito espaço às características do clima amazonenses e das doenças às
quais os missionários se arriscavam.
Tentando articular uma espécie de resumo, Frei Valerio define o Amazonas como
um território onde reina a monotonia’ da paisagem, do clima, no vestir e na alimentação -
especificando que se trata de uma carência alimentar mais qualitativa do que quantitativa
132
.
Ao explicar a foto de frei Arsenio batizando um indígena ticuna, enfatiza que o
missionário não reduz sua atividade a administrar os sacramentos, mas que se ocupa,
sobretudo de desenvolver a promoção humana’ sem abandonar a evangelização. Explica
que a promoção humana consistiria em fazer o homem crescer integralmente, como
cultura, como inteligência, como vida social, construindo hospitais, escolas, centros de
assistência. Mostrando com fotos as realizações que empreenderam durante a missão
Igrejas, escolas, hospitais apóia sua argumentação sobre as ‘melhorias’ aportadas pelos
missionários. Carla o interrompe para dizer que a vontade de crescer’ seria um desejo de
todos os seres humanos e que o progresso está chegando também para as populações
amazonenses.
Mostra-se a foto de Felicita
133
explicando que a missão é aberta a qualquer um que
deseje trabalhar como missionário e, dirigindo o olhar aos jovens da Ra.Mi. presentes na
ocasião, toma-os como exemplo de tal vocação. Mostra-se também a foto de Lamberto
Pasqualoni, elogiando seu empenho, tendo realizado 26 viajes no Amazonas e o empenho
da comunidade católica em sustentar os projetos.
Levantando o tom da voz assumindo uma postura de reprovação, explica que os
indígenas são os verdadeiros habitantes do Amazonas, contrariamente a ‘nós’ que
seríamos invasores.
Parte da apresentação é dedicada à explicação da lepra, oferecendo detalhes sobre
suas causas: falta de higiene e de uma alimentação adequada.
132
Tal discurso é desenvolvido amplamente em seu livro “Assisi risponde all’Amazzonia”, várias vezes
citado no presente trabalho.
133
Leiga missionária no Amazonas desde aproximadamente vinte anos. É protagonista do vídeo “Conosco no
Amazonas” do qual nos ocuparemos no último capitulo.
105
Parte substancial vem também dedicada aos meninos de rua de Manaus, dando
explicações sobre suas condutas e as relativas causas: uso de drogas, violência,
promiscuidade na vida social
134
, famílias degradadas.
Tal discurso se inseria na apresentação de Manaus como sendo o centro de atração
do bem-estar, para onde emigra grande parte da população do interior, determinando o
crescimento da pobreza nas periferias, áreas definidas como abandonadas’ e desérticas’.
Continua-se a argumentação sempre com o aporte de Carla acentuando os perigos da
vida na promiscuidade, que seria um veículo para a transmissão de doenças e sinal da
degradação da vida das crianças.
É apresentada a falta de ordem social e a incapacidade de autocontrole que
geraria um absoluto degrado físico e psicológico.
Ao constatar um aumento da confusão os rapazes começam a se desconcentrar
consideravelmente - Carla e frei Valerio cedem a palavra a Andrea.
Andrea começa com um relato sobre o nascimento do grupo Ra.Mi para depois
enumerar os projetos que conseguiram realizar junto aos capuchinhos. Concentra-se
principalmente no “centro polivalente” na periferia de Manaus, explicando que tal
construção tem o objetivo de formar um lugar de agregação para todos, criando assim uma
comunidade solidária’. Procura sublinhar que a presença dos Ra.Mi entre as comunidades
serve para demonstrar às pessoas do lugar que elas não estão sósno enfrentamento das
dificuldades, mas que existe um grupo que pensa neles. Argumenta enfaticamente a
crueldade da indiferença das pessoas, despertando interesse no público que gradualmente
parece se acalmar depois da inquietação surgida com o longo relato de frei Valerio.
Andréa ilustra a viagem dos grupos de rapazes que decidem fazer tal experiência,
comentando os lugares que visitam (leprosário, comunidade David e Gildo em Manaus e as
comunidades indígenas) e as emoções alcançadas. Detém-se principalmente na explicação
da lepra. Tal explicação cria atenção e comoção no público.
Frei Valerio o interrompe para aportar mais explicações sobre o assunto - como
comentei precedentemente - despertando uma espécie de irritação em Andréa.
Havendo retomado a palavra, Frei Valerio muda o argumento afirmando que o
povo brasileiro e amazonense é um povo resignado’, franciscano paciente’ cristão’
rico de esperança’ e chamado de continente da esperança’. Citando as palavras de Juan
134
A promiscuidade que caracterizaria as relações sociais foi notada em diferentes ocasiões durante o
encontro e se afirmava a falta de uma comunidade social.
106
Paolo II em visita a Manaus, que convidava a população a entender a situação no
Amazonas, afirma que tal situação não era fruto da vontade de Deus, mas que os que
necessitavam por direito tinham que reclamar aos políticos.
O tom da voz aumenta uma vez mais ao comentar que tal atitude de resignação
favoreceria aos políticos e aos ricos do país e lança uma espécie de acusação aos
missionários protestantes, que incentivariam tal atitude, contrariamente aos missionários
católicos que seriam uma presença profética’ já que denunciariam as injustiças e tratariam
de mobilizar a população solicitando uma certa rebelião. Detém-se em dar uma imagem do
missionário católico e dos riscos aos quais é submetido, afirmando que nas últimas décadas
a Igreja sofreu pelo incremento de seus mártires.
Ao perceber que a hora chegava ao fim, frei Valerio se apressa em fechar o evento.
No começo da apresentação avisou ao público que ao final dirigiria algumas
perguntas para testar se os rapazes tinham prestado atenção. Aqueles que respondessem
corretamente ganhariam diferentes presentes. Assim, entre a confusão e os gritos que
acompanham uma turma de rapazes de quatorze anos, começou o jogo.
Andrea, havendo acabado o tempo, toma a palavra simplesmente para informar aos
rapazes presentes que se aproxima a data na qual partirão os próximos grupos que dirigirão
seu empenho na realização de alguns projetos nas comunidades indígenas. Nesse ponto,
Sara intervém para informar da existência do site dos Ra.Mi. no qual poderão obter todas
as informações relativas às atividades, as próximas partidas, encontros etc.
Na porta de saída serão distribuídos pequenos calendários e contas correntes para as
doações em favor da missão.
A segunda hora começa também com a intervenção de frei Valerio, mas desta vez
ele deixa espaço a Sara para apresentar e comentar o vídeo dos Ra.Mi. e dar indicações
sobre as possibilidades de participação na missão.
Na realidade, a segunda etapa do encontro foi quase inteiramente dedicada ao vídeo
do qual falaremos no último capítulo com algumas breves interrupções de Sara para a
explicação de pequenos detalhes. No entanto, não se pode desconsiderar as capacidades
comunicativas de Sara, posteriormente elogiadas por frei Valerio; com uma linguagem
próxima aos rapazes presentes na sala, e uma performance que demonstrava seu
envolvimento emotivo, conseguiu chamar a atenção, despertando a curiosidade de alguns,
que ao final da projeção vieram lhe perguntar como fazer contatos com o grupo Ra.Mi.
107
Como antecipei, o evento se tornou uma arena na qual os atores sociais
disputavam espaço, reconhecimento e reputação, adotando estratégias discursivas que
conseguissem atrair a atenção do público.
Dedicando particular atenção à esfera da micro-política e dando ênfase à construção
da reputação e estratégias performáticas que os atores sociais adotam na perseguição de
seus fins, Bailey (1970;1971;1993) oferece alguns instrumentos para pensar as técnicas de
persuasão adotadas em nosso contexto.
Destacando a competitividade que caracteriza a sociabilidade em comunidades
morais
135
Bailey sugere que “you are one up on rival if you can convince other people that
you have acted in the interests of the community, while he was selfish. Ideas of egoism and
altruism become part of the public justification of conduct: they become political
resources” (1971; 22). A demonstração de emoções e sentimentos se torna uma forma de
manifestar a própria fé, a ausência de dúvidas, a demonstração do sacrifício e, sobretudo,
uma “...peremptory assertion of an ‘indisputable’ truth” (Bailey; 1993; 40).
A demonstração de paixões pode ser vinculada à definição do próprio grupo onde
os valores morais se tornam fins em si mesmos e adquirem o status de “fatos verdadeiros
indiscutíveis”. Andrea assinalou várias vezes a indiferença que caracterizaria a maioria da
população ocidental frente às misérias do ‘terceiro mundo’ e em particular do Amazonas.
O empenho demonstrado por ter realizado várias viagens à missão juntamente com seu
grupo Ra.Mi. e os capuchinhos, assinala a diferença de atitude, a sensibilidade para tais
problemáticas e a capacidade de se sacrificar.
De tal modo, os que participam se tornam os ‘verdadeiros’ crentes distinguindo-se
dos outros considerados infiéis. A construção de ‘si’ ou do ‘nós’ passa então através de tais
construções morais que assumem uma verdade incomensurável. A retórica moral é
entendida como “…a rhetoric of belonging, of including in the congregation those who
chose to believe and excluding the rest either by ignoring them, ridiculing them, or making
them the objects of anger and contempt” (idem; 135). Assim, ao enunciar as diferenças
entre os missionários católicos e protestantes, frei Valerio tornava os últimos objeto de
insultos, por ser um obstáculo no caminho dos capuchinhos
136
.
135
Segundo o autor, numa comunidade moral, os indivíduos “share an allusive, laconic and economical
system of signaling and they conceive of themselves as an unity, ruled by low and regularities and standard
of morality, and ranged against a non-moral world outside.” (1971,14)
136
Bailey (1993) destaca principalmente o papel determinante da retórica para a persuasão a tomar
determinadas decisões, que se apoiariam sobre os sentimentos e emoções compartilhadas. Para pertencer, o
108
Os capuchinhos enunciando sua distinção enquanto ‘frades do povo’ e, sobretudo, a
possibilidade de alimentar e renovar seu carisma’ mediante as experiências ‘místicas’ na
missão, constroem sua própria identidade e autenticidade frente a um ‘outro’ eventual
missionário ou agente que manifestasse pretensões em terras amazonenses.
A continuidade da missão no Alto Solimões e, sobretudo, o retorno – ou o começo–
da pastoral entre os Ticuna com o carisma’ renovado mediante o processo de inculturação
permitiria, segundo as conclusões de frei Paolo, “... seguir escrevendo novas e gloriosas
páginas de história missionária e de santidade, Ticuna e capuchinha!”(2006; 12)
sujeito necessitaria compartilhar, mas também necessitaria ver a si mesmo, ganhar confiança, construir seu
próprio self.
109
Capítulo 3. O Museu dos Índios do Amazonas: técnicas
expositivas e práticas discursivas
3.0 Uma etnografia do museu
O museu acaba ficando pouco visível em sua localização por causa de sua pequena
entrada de arco baixo, de sua calçada estreita em frente a qual estão estacionados carros e
caminhões de trabalhadores dos inúmeros negócios, bares, restaurantes e albergues da rua,
e ainda pela impossibilidade de colocar uma placa na parede devido à lei que
proíbe qualquer sinalização pública e privada que descaracterizariam o pequeno povoado.
Afim de torná-lo mais visível, duas bandeiras brasileiras foram recém colocadas na
parede frontal do edifício, como me comunicou com alegria o diretor do museu. (Foto 1)
Nas laterais da pequena entrada, observam-se duas vitrines, ambas contendo
máscaras, colares e diferentes instrumentos sem referências ao seu lugar de proveniência,
pertença ou data de sua produção. Sabemos, no entanto, que estamos no Amazonas pelas
letras brancas da placa de madeira pendurada na entrada: “Museo degli Índios
dell’Amazzonia”.
Sendo a construção do século XVII, com paredes internas e externas feitas de tijolo
rosa
137
de tamanho irregular, e tendo uma iluminação fraca, o interior do museu é escuro,
produzindo a sensação de estar entrando numa gruta.
Descendo as escadas logo na entrada, o pequeno corredor que conduz à primeira
sala tem nas suas laterais duas vitrines e no final uma outra entrada com a placa: "A visita
ao museu é a sua oferta". Ao seu lado esquerdo está pendurada uma epígrafe de cerâmica
em forma de um pergaminho enrolado com flechas atravessadas nas suas extremidades,
onde se lê “Museu Missionário”
138
.
A vitrine da esquerda contém dois mapas pendurados na parede, um mapa físico do
Brasil e um do Amazonas. Do primeiro sai uma seta branca que chega até o segundo, com
137
Pedras extraídas do Monte Subasio bastante apreciadas na região.
138
Dentro do museu encontraremos alguns objetos que evocam o período medieval -escudos, lanças e
pergaminhos - que se alternam com os objetos Ticuna e de outros grupos étnicos amazonenses.
110
a seguinte frase: “São Francisco no mundo missionário e os frades capuchinhos da Úmbria
no Alto Solimões”, área assinalada pela seta.
Precisamente no meio da vitrine se encontra uma escultura de pedra com a imagem
de São Francisco de braços erguidos ao céu com uma arara embalsamada apoiada em
cuja base podemos ler:
“Qualquer um dos frades que por divina inspiração queira estar
entre os Sarracenos e outros infiéis, peçam licença a seus Ministros
Provinciais” (Regra de São Francisco Cap. II.)
Aos seus pés uma Bíblia aberta apoiada sobre um pedaço de madeira rústica mostra
o texto:
"E Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: ‘Foi-me dada
toda a autoridade no céu e na terra. Ide, portanto, e fazei discípulos de
pessoas de todas as nações, batizando-as em o nome do Pai, e do Filho, e
do espírito santo, ensinando-as a observar todas as coisas que vos
ordenei."
A escultura está cercada por animais embalsamados provenientes do Amazonas:
pássaros, preguiças, serpentes etc. Na sua extremidade esquerda estão algumas máscaras e
a imagem em preto e branco de uma indígena levando uma criança nos braços
acompanhada por um missionário capuchinho.
Na vitrine à direita chama particularmente a atenção a máscara pendurada na coluna
que sustenta dois arcos, por seu tamanho e por estar cercada de plantas tropicais, um jaguar
embalsamado, um morcego e uma aranha em primeiro plano. Sob a máscara, a foto de Juan
Paolo II beijando uma criança indígena durante sua visita a Manaus em 1980.
Entramos na primeira sala onde encontraremos ao diretor do museu, frei Luciano
Materazzi que, ressaltamos novamente, é a única pessoa em tal espaço.
A sala compreende: à esquerda, um banco de madeira apoiando dezenas de livros,
vídeos e postais à venda; ao centro, outro banco com vitrines cheias de brincos, colares,
crucifixos de madeira. Tudo está à venda. Aproximando-se das vitrines, observamos que as
jóias recém mencionadas são de proveniência indiana, confirmada pelo diretor que explica
sua presença ali por ajudar a um imigrante indiano que lhes vende tais objetos.
À direita, encontramos uma marimba com a informação de que foi produzida pelos
indígenas cayapas. A imagem de uma jovem mulher cayapa traz a seguinte legenda:
“Índios cayapas- Vivem na parte ocidental da floresta amazônica
equatoriana. São pequenos de medida. Desconfiados e silenciosos,
111
necessitam muito tempo para se abrirem à amizade e à confiança,
preferem ficar fechados em seu mundo de água e plantas, lutando
desesperadamente contra a nutrição e a tuberculose que aos 40 anos
leva-os inexoravelmente à morte. Os homens começam a se vestir à
européia. As mulheres ficaram com o tear retangular fixo nas cadeiras e o
peito completamente nu, coberto somente pelos longos cabelos negros
que descem com graça naturalmente elegante. Reservadíssimas,
dificilmente saúdam um estranho, ao qual dão até as costas, que um
ditado tribal lembra que uma mulher disponível a saudar a todos é uma
mulher pouco séria e moralmente discutível.”
Ao lado esquerdo, um mapa do Amazonas sobreposto ao da Europa para destacar
suas dimensões territoriais, cobrindo grande parte do continente, traz como legenda “O
maior pulmão do mundo”.
Nos surpreende a foto de uma indígena Yanomami, tendo ao lado o seguinte texto:
“Quando branco chegou em nossa terra, índio pensava que
branco estava do lado de Deus, índio pensava que Deus tinha chegado
para visitá-lo. De fato, branco tinha tudo e índio não tem nada; branco
tem linha e anzol, nós não temos; branco tem livro, nós não temos;
branco tem machado, nós não temos; branco tem carro, nós não temos;
branco tem avião, nós não temos.
Mas branco veio e roubou nossas terras. Depois trouxe as
doenças. Depois assediou nossas mulheres! E o índio se rebelou. Então o
branco matou nossos ancestrais, massacrou muito e o índio escapava tão
veloz como a coisa mais veloz. E então, índio entendeu: o Deus dos
brancos era mau!"
139
No centro do teto observa-se um lustre com remos de diferentes medidas a formar
um jogo simétrico circular. (Frei Luciano costuma dizer orgulhosamente que com os remos
se podem fazer lindos lustres).
À direita do banco central está a entrada ao “pequeno museu no museu”; uma sala
com objetos provenientes, principalmente, da África
140
.
Seguindo nosso percurso, encontramos à nossaesquerda –em frente ao banco
central– a escada que nos conduz ao segundo andar. Na mesma escada, pendurado na
parede, vemos um conjunto de flechas disposta em forma de leque, em cujo centro está a
foto de um indígena em sua canoa enquanto usa o arco. Acompanhando o movimento do
139
O texto é assinado por Gabriel Tuxana (Macuxi). Frei Luciano entregou-me uma cópia do texto graças a
qual foi possível descobrir quem o havia publicado: o Centro de Animación Misiones Consolada de Turín,
durante a Campanha Índios Roraima. Nossa tradução procurou preservar a forma gramatical incorreta do
italiano original.
140
Frei Luciano nos informa que tal sala foi dedicada aos objetos que vários missionários capuchinhos
coletaram nas missões na África e ofereceram ao museu.
112
leque, simetricamente de um lado e do outro, recipientes redondos fecham o quadro, em
cuja extremidade inferior nos surpreende uma pequena foto colorida com crianças ticuna
com a legenda: “até logo”.
No segundo andar a ambientação é diferente, sendo as paredes rebocadas e pintadas
de branco. A iluminação artificial continua sendo frágil, apoiada por uma única janela
lateral. Terminada a escada, estamos na sala central. A parede da frente é inteiramente
ocupada por um mural assinado pelo diretor, representando um ‘resumo’ do ritual da Moça
Nova
141
; as várias etapas podem ser apreciadas na mesma pintura como se elas se
desenvolvessem no mesmo laço temporal (Foto 2). Frei Luciano afirma ter se inspirado nas
fotos que os missionários traziam.
À esquerda da escada outra parede é dedicada às fotos do mesmo ritual. A maioria
delas ilustra detalhadamente a depilação das moças e as outras mostram as diferentes fases
do ritual. Outras fotos estão penduradas na mesma parede –separadas por uma vitrine com
objetos para a casa, cestos, vassouras, colheres de madeira e recipientes– entre as quais o
retrato de um indígena levando em seus braços uma criança branca, cuja legenda oferece a
explicação: “diferentes raças, mesmos sentimentos”.
Ainda na mesma parede, aprecia-se uma foto da entrada na floresta. Sua legenda:
“No meio do caminho de nossa vida, encontrei-me em uma selva escura, porque o caminho
reto havia desaparecido”
142
Levantando o olhar, observamos um quadro pendurado no teto que contém sete
fotos retratando mulheres indígenas, cuja extremidade superior oferece a legenda
Expressivos e Característicos Rostos de Indígenas Ticuna”. (Foto 3)
Frente às fotos, encontramos a reconstrução de uma habitação indígena.
Na extremidade direita do mural mencionado observam-se mais fotos do ritual da
Moça Nova e a categoria que se lhes atribui é marcada pela legenda em caracteres garrafais:
Costumes”.
Ainda tomando como ponto de referência a escada, e deixando-a para trás,
observamos à nossadireita a vitrine “Artesanatona qual se apreciam uma série de objetos:
141
Ritual que marca a passagem da puberdade à idade marital das mulheres.
142
A referência ao inferno dantesco se encontra em diversos escritos dos capuchinhos missionários no
Amazonas. Frei Luciano comentando o livro de frei Egidio Picucci “Missionari all’Infernosublinha que
não lhe agrada pensar que os brasileiros poderiam sentir-se ofendidos com tal denominação. A tal propósito
nos parecem cruciais as elaborações de Said (2001; 81) relativamente à intencionalidade de Dante,
comparando-a a outros escritos recentes, de construir o “Oriente” como o “estranho”, o “alheio”,
intercalando-o com algo familiar.
113
uma enorme máscara ticuna ocupa o canto; na parte de cima da parede avistam-se leques
pendurados de diferentes formas e materiais; nas estantes da parte central da parede,
figuram recipientes alinhados e de cabeça para baixo, dando a possibilidade de apreciar as
decorações em suas bases; a parte de baixo é dedicada a vasos e bolsas; na extremidade
direita, observamos penduradas de maneira irregular –diria ‘amontoadas’ – várias máscaras
ticuna. Os objetos da vitrine se alternam com fotos que mostram os indígenas concentrados
na sua produção. Cabe destacar que os objetos presentes em tal vitrine –exceto as máscaras
– estão dispostos ordenada e simetricamente
143
. (Foto 4-5-6-7)
Nos dirigimos à entrada da sala A no mesmo andar. Diferentemente da sala Central,
a sala A tem uma janela grande que ilumina de forma difusa todas as vitrines.
Na parede da entrada, um grupo de fotos dispostas de maneira piramidal chama
imediatamente a atenção. Retratos de indígenas trazem a legenda: Da tatuagem aos
penteados mais estranhas”; o retrato de um indígena que ocupa a extremidade da
pirâmide tem como legenda: “Sou simpático”.
Três vitrines são inteiramente dedicadas a diferentes ornamentos: colares, anéis,
brincos e pulseiras de diferentes materiais: madeira, conchas ou côco.
A vitrine “Ornamentos para a dançacontém: máscaras, colares e diademas. Nas
fotos, os indígenas posam utilizando tais objetos. (Foto 8)
A vitrine Armascontém principalmente flechas, facas e seus estojos. As fotos
presentes retratam indígenas usando o arco, ou preparando o veneno curare.
A Pescaé a vitrine dedicada aos objetos para tal atividade (Foto 9). Sua parede é
inteiramente ocupada por uma outra pintura de frei Luciano que retrata os indígenas com
suas canoas no Rio Solimões. No meio da vitrine, ocupando-a quase totalmente,
observamos uma canoa com vários remos e fotos que retratam os indígenas pescando. Para
completar o quadro, uma árvore na extremidade direita e plantas ao redor da canoa. Na
extremidade superior da vitrine se aprecia um quadro com a legenda “sinais no rio”: sinais
com as mãos para indicar a navegação.
O teto da sala em questão é ocupado pelas máscaras “Mãe do Vento” que
representam, segundo as explicações de frei Luciano, os chefes dos espíritos. Nas
143
Tal disposição das máscaras pode ser explicada de duas maneiras: frei Luciano se inspirou nas diversas
fotos que retratam os indígenas vestindo as máscaras durante o ritual da moça nova, nas quais aparecem em
grupo, resultando assim uma disposição irregular; mas a confusão ou desordem das máscaras poderia ser
também intencional: Frei Luciano em uma conversa informal, me explicava a função assustadora das
máscaras afirmando que os indígenas representam com elas os “espíritos maus” e, portanto, não poderiam
ser lindas nem poderiam ser ordenadas.
114
extremidades superiores das paredes estão penduradas peles de sucuri de todos os
tamanhos.
A sala B fica na outra extremidade da sala central. No pequeno corredor da entrada,
um quadro de fotos chama a atenção: retratos de um homem, de uma aldeia, de crianças
brincando, levam a legenda “Costumes Curiosos” e logo abaixo a explicação:
“Os índios Ticunas quando se encontram depois de um longo
tempo, costumam saudar-se de forma curiosa e original: um se joga nos
braços do outro e assim ficam por aproximadamente dez minutos, rindo
com prazer e trocando poucas palavras, incompreensíveis ao
missionário.”
Na parede da frente, o retrato de um homem sentado traz o texto:
“O caboclo é a pessoa nascida no Amazonas, às margens do rio,
de indivíduos originários da mesma região. Às vezes o nome pode
parecer depreciativo; às vezes pode parecer exibicionismo. Geralmente,
se utiliza para indicar descendentes de índios semi-civilizados, que em
sua maioria vivem fora da cidade e falam um português elementar.”
Uma vitrine é dedicada às bolsas e no seu centro se encontra pendurada uma rede.
Na parede dessa vitrine o texto informa: “Com os meios mais rudimentares, os trabalhos
mais lindos
A vitrine Instrumentos Musicais e Pinturas (Foto 10) traz no seu interior: à
esquerda, violinos, maracas, awai e tambores; ao centro, uma máscara de tururí pintada,
cuja base é coberta por fotos que retratam mulheres preparando a pintura; uma mulher com
uma criança nos braços depois do ritual da Moça Nova, outras durante o mesmo ritual e
nas quais se podem apreciar as pinturas nos tecidos das máscaras que cobrem todo o corpo;
uma criança chorando durante a perfuração da orelha; desenhos de crianças.
Na vitrine O pão do amazonas(Foto 11), encontramos outro mural do diretor
que retrata mulheres ticuna nas margens do rio e homens que voltam da pesca no
entardecer. Apoiado diagonalmente está o “Tipiti (prensa cilíndrica feita de fibras
vegetais) e, no chão, diferentes recipientes com farinha de mandioca. É oferecida a
explicação das diferentes etapas de sua preparação.
Duas vitrines intituladas Produtos (Foto 12) explicam a extração de várias
plantas para a coloração das máscaras (tururí branco e tururí vermelho), como também o
uso das cascas de árvore e palmeiras para a produção de bolsas, redes, chapéus etc.
Próxima a estas, fica a pequena vitrine dedicada ao “Cauchú”. (Foto 13)
115
Na mesma sala encontramos a vitrine Esculturaque leva a legenda interna de
Amazonas Mestre da Arte (Foto 14) e contém diferentes esculturas de madeira
representando homens, mulheres e diferentes animais. No centro, uma peça de madeira
entalhada representa uma cabana em meio a árvores e flores. Ao seu lado, a vitrine Arte
Sagrada(Foto 15) exibe esculturas representando imagens de São Francisco e Jesus. Ao
lado da escultura de São Francisco, a foto de frei Fedele de Alviano com o crucifixo feito
pelos indígenas.
Cabe destacar que nas duas últimas vitrines mencionadas não se vêem fotos de
indígenas produzindo os objetos.
O terceiro andar é inteiramente dedicado à flora e fauna amazonense. Exibe
exemplares embalsamados: pássaros, borboletas, macacos, tamanduás, jaguares, tartarugas,
piranhas e jacarés se alternam com flores de todas as medidas e cores.
O quarto andar é reservado às obras da missão: fotos de todos os missionários com
as respectivas datas de nascimento e falecimento aparecem ordenadamente nas paredes da
única e enorme sala.
Uma vitrine é dedicada inteiramente a frei Fedele de Alviano, onde se pode apreciar
a gramática ticuna por ele elaborada (Foto 16).
As imagens das Igrejas, hospitais, escolas e outras obras se alternam com as
imagens dos capuchinhos. Dedica-se uma vitrine às imagens dos momentos litúrgicos no
Amazonas, outra às realizações das alunas do colégio de Benjamin Constant; destaca-se
um tecido bordado representando um dragão.
Cabe destacar que este último andar é o mais iluminado, aproveitando a luz que
entra de duas enormes janelas.
Um painel pendente do teto, dividido em duas partes, chama a atenção: a parte
esquerda traz imagens de indígenas nus na selva e um missionário empenhado na
cerimônia da missa; a legenda explica “Como Eram”. Na parte direita, rapazes vestidos de
branco na Igreja participam da missa; sua legenda informa “Como São” (Foto 17).
Karp afirma que “When cultural ‘others’ are implicated, exhibitions tell us who we
are and, perhaps most significant, who we are not. Exhibitions are privileged arenas for
presenting images of self and ‘other’.” (1991; 15)
116
O Museu dos índios do Amazonas, ao construir a realidade amazonense, constrói
também a ‘história da missão’ e a ‘identidade capuchinha’, legitimando sua presença nas
terras ‘gloriosamente’ conquistadas por seus corajosos ou mártires ‘salvadores de almas’,
lembrados e venerados em tal espaço.
O triunfo da missão é, assim, cenograficamente resumido, deixando resplandecer a
‘tradição de glória’ construída mediante o sacrifício oferecido pelos missionários úmbrios,
honrados em tal espaço, frente a um público atualmente ausente.
3.1 A exposição permanente: o museu do museu
É necessário nos determos sobre alguns aspectos relativos à instalação do museu,
tanto no que se refere ao período no qual foi instituído, como também quanto às possíveis
funções que devia desenvolver. Mas antes de me ocupar com a representação de uma
‘alteridade distante em processo de transformação’, inserida no projeto do museu e que
deveria atingir um determinado público, penso ser crucial analisar principalmente os
critérios com os quais o museu foi constituído.
Ainda que a exposição possa parecer uma coleção organizada à maneira de cabinets
de curiosité, seu objetivo era bem diferente, respondendo às exigências dos capuchinhos no
período de sua constituição, como também à particularidade da figura de seu diretor: frei
Luciano Materazzi.
As informações que conseguimos coletar acerca da instalação do museu são o
resultado específica e unicamente das conversas informais e entrevistas com o seu diretor,
o qual, como já destaquei, é a única presença dentro de tal ‘instituição’.
O acesso ao arquivo do museu não me foi nunca verbalmente negado nem
concedido; frei Luciano se limitou a me dizer que eu não encontraria nada além do que
poderia ser visto na exposição. Sustenta que não existe um verdadeiro arquivo, como
tampouco uma documentação relativa às datas e aos autores dos materiais coletados.
Limita-se a me informar que a maioria do material foi trazido pelo frei Fedele de Alviano
para as duas maiores exposições no Vaticano, em 1925 e 1950. Acrescenta que o resto do
material foi coletado, a seu pedido, durante os primeiros anos da abertura do museu e que
ele mesmo, quando conseguiu viajar para a missão, trouxe vários objetos. Ressaltou várias
vezes a facilidade,no seu tempo
, de sair do Brasil com tais objetos, queixando-se das
dificuldades que surgiram nos últimos anos. Sabemos que antes da instalação do museu em
117
Assis, os objetos ficavam expostos em uma ampla sala no convento de Todi (Am. 2004;
n.5; 6-7). Estando esse convento localizado em uma posição desfavorável para visitas, não
apresentando particular atenção turística, haviam decidido levar a o museu a Assis, lugar
de grande visibilidade e de passagem de milhares de peregrinos. Foi possível realizar essa
mudança de lugar uma vez disponível o edifício que atualmente aloja a exposição. Quando
pedia informações sobre o museu a outros capuchinhos, era convidada a dirigir tais
perguntas a frei Luciano, somente ele poderia me responder, enquanto única pessoa a se
ocupar atualmente, como anteriormente, de tal espaço.
O museu abriu suas portas ao público em 1972. Três anos antes, o Ministro
Provincial havia encomendado a frei Luciano a tarefa de se ocupar de sua instalação.
Estamos nos primeiros anos sucessivos ao Concílio Vaticano II, cujos ditames, como
destaquei no primeiro capítulo, procuravam reformular as relações entre os institutos
religiosos e os territórios de missão. O ano de 1969 - data da encomenda do museu -
coincide com a revogação do jus commissionis, cuja intervenção recordo aqui,
deslegitimava os institutos religiosos a manterem o monopólio da gestão dos territórios de
missão e passava sua jurisdição aos Bispos locais. Tal período de mudança trouxe diversos
problemas às Ordens: acusações de estarem implicadas nas práticas coloniais, como
também os auto-questionamentos sobre a possibilidade ou a necessidade de continuar
mandando missionários em tais territórios.
No caso focalizado, os missionários úmbrios continuaram partindo com destino ao
Amazonas. No entanto, penso que o museu desempenhou principalmente a tarefa de
‘documentar a história’ da missão até o período de sua instalação e de tornar visível tal
empenho na cidade de Assis, cujo espaço é uma arena onde se dão as disputas de prestígio
entre as Ordens franciscanas.
Começava, nesse momento, a ‘nova etapa oficial da missão’, na qual deveria se
consolidar a Igreja local e, sucessivamente, a implantação da Ordem capuchinha. A
pastoral indígena que nunca ocupou um lugar privilegiado deixou entre os Ticuna a
presença única de frei Arsenio, como presença necessária para testemunhar o trabalho
capuchinho em tais terras.
Desde os anos setenta, as atividades relatadas dizem respeito, sobretudo, às zonas
periféricas de Manaus, para as quais frei Valerio di Carlo dedicou suas atividades,
ganhando por isso proeminente prestígio quando retornou à sua pátria.
118
Como foi observado, no último andar do museu se encontra um painel que deveria
demonstrar o sucesso da missão: a sucessão de fotos com as legendas “Como Eram” e
“Como São”. O painel pareceria anunciar não somente o sucesso da missão, mas que ela
havia chegado ao seu fim. Ao pedir a frei Luciano uma explicação das afirmações contidas
nas legendas, comunicando-lhe a sensação suscitada pelas fotos, frei Luciano respondeu
que os indígenas não tinham se convertido, porque tal processo necessitaria de muito mais
tempo. No entanto, acrescentou que de alguma maneira a missão tinha conseguido algumas
conversões e isso deveria ser documentado, honrando os missionários pioneiros.
Apesar da impossibilidade de recorrer ao passado do museu, às suas inumeráveis
visitas guiadas como frei Luciano nostalgicamente comenta ou ainda, aos comentários
do público, que não havia um livro de assinaturas no museu, suponho que tal ‘história’
deveria atingir um determinado público que participava ativamente da missão, para além
de desempenhar o papel de atrair eventuais candidatos missionários ou benfeitores;
existiam associações laicas
144
que desde antes do Concílio II colaboravam, assistiam e
financiavam os missionários na ‘obra de civilização e evangelização’, mas na ausência de
mais dados não foi possível saber sobre a freqüência de público que o museu mantinha.
Não obstante, concordo com Thomas (1992) em relação à necessidade dos
missionários de documentar as transformações que alcançavam em terra de missão para dar
provas de seu trabalho a aqueles que os financiavam e sustentavam e outorgavam prestígio
(ibid; 373), penso que os sinais de tais transformações, como incentivo para que os leigos
continuassem a financiar a missão, não parecem ter suficiente peso em relação às supostas
competições entre os benfeitores para alcançar maior visibilidade e prestígio na
comunidade católica úmbria.
Constatei que o museu se encontra freqüentemente fechado e é pouco visitado.
Durante o período da pesquisa não se apresentou a possibilidade de assistir as visitas
guiadas com as escolas. Frei Luciano me informou que antes acompanhava as crianças dos
colégios a recorrer o museu. Nos últimos anos dada sua idade avançada espera os
alunos na sala de baixo para responder às suas curiosidades. Os turistas que o visitam,
dificilmente lhe dirigem perguntas e quando tal raridade acontece, se deparam com a
dificuldade do idioma: frei Luciano fala unicamente italiano.
destaquei no capítulo anterior que as novas levas capuchinhas visitam raramente
o museu. Dentre os jovens da Ra.Mi. entrevistados, poucos o haviam visitado. Jessica o
144
Lembramos que a associação “Amiche dei Lebbrosi” havia se formado antes do Concílio II.
119
considera extremamente confuso e Laura comenta que teve a impressão de estar num
lugar estranho’, acrescentando que parecia organizado unicamente para atrair
macabramente’. Ao contrário, Gin Tonj demonstrou-se entusiasta ao comentar sua visita
ao museu, afirmando ser um amante da natureza. Voltaria a visitá-lo convencido de que as
emoções –agora que conhecia o Amazonas– se manifestariam com mais forças. Acrescenta
–sem eu ter perguntado– que visitou o museu quando havia decidido viajar à missão. A
última afirmação foi dita por Gin Tonj, para sublinhar que o museu deveria desempenhar o
papel de estimular os jovens a partir para o Amazonas.
Durante a visita ao museu com frei Paolo (05-05-2006), havendo pedido
previamente a frei Luciano a autorização e a abertura do museu, emergiram questões que
revelam as distâncias entre gerações. No começo da visita, frei Paolo se deteve em me
mostrar aquilo que, segundo ele, indicava a valorização da cultura indígena
145
. Manifestou
também suas dúvidas em relação à proveniência de alguns objetos, sobretudo na vitrine
“Arte Sagrada”, afirmando que, quase seguramente, não eram produzidos pelos Ticuna.
Chegando ao último andar do museu, demonstrou uma espécie de indignação quando lhe
mostrei o quadro com as fotos que testemunhariam a suposta passagem dos indígenas de
um estado de ‘selvagens’ a ‘civilizados católicos’ e que demonstraria, portanto, o êxito da
missão. Sua indignação, explica, surge por sua convicção de que os indígenas não devem
ser civilizados’; ao contrário, deveriam ser eles (os capuchinhos) a seguir o caminho da
inculturação, voltando ao carisma’ originário e alimentando o crescimento de uma Igreja
com características ticuna, deixando de impor um estilo de Igreja universal que contrastaria
com os ditames do Concílio II.
Na saída do museu, expressa a idéia de que, uma vez frei Luciano ‘aposentado’,
propor aos superiores a reorganização de tal espaço, deixando-o aos jovens da Ra.Mi a sua
direção, tornando-o um museu interativo onde se coloque a participação dos indígenas.
3.2 A ‘obra’ de frei Luciano e suas narrativas
Como destaquei anteriormente, frei Luciano foi eleito por suas capacidades
artísticas, reconhecidas até os dias atuais pelos outros frades entrevistados, que costumam
elogiar suas pinturas. Não aparecem outros atores sociais envolvidos na organização e
145
Por exemplo, a foto de uma moça com o cabelo comprido, depois da depilação do ritual da moça nova,
com a legenda “crescem mais fortes e lindos”, traduziria o empenho por demonstrar que, tal prática não seria
uma barbárie.
120
realização da exposição no material coletado e, segundo as informações oferecidas por frei
Luciano e pelos outros capuchinhos entrevistados, se trataria de uma realização
inteiramente pessoal. Além disso, desde o seu nascimento a obra’ de frei Luciano não
contou com o aporte de funcionários.
O fato de ter sido eleito por suas capacidades artísticas e artesanais me deixa
margem para supor que o museu deveria constituir-se em base a um critério estético; isto é,
o museu deveria ser a reconstrução ambiental do Amazonas e, em tal atmosfera florestal,
‘documentar’ o processo de civilização e evangelização dos indígenas Ticuna. A instalação
deveria e de alguma forma deve atrair os visitantes e suscitar um imaginário sobre o
‘desconhecido’ e o ‘arcaico-primitivo’.
Ao perguntar-lhe sobre o critério com o qual organizou e classificou os objetos, frei
Luciano responde:
‘Organizei a exposição segundo o que sabia e conhecia.
Digamos a cultura, como nos formamos e assim tentei traduzi-la ao
público. Eu fiz o museu com um critério compreensível, sobretudo para
as escolas, os meninos mais ou menos grandes.’(21-04-06)
No texto “Guia ao Museu”, realizado por frei Luciano com a supervisão de frei
Arsenio, é explicitado que o museu pretende oferecer os aspectos “sugestivos” do
Amazonas. O guia “não tem pretensões científicas, mas quer apenas acompanhar o
visitante e recordar-lhe o que viu” (1994; 6).
Assim é comentada a visita ao museu pelos entrevistadores da revista Amazonas
(AIFI) que estiveram com frei Luciano e convidam os leitores a conhecê-lo:
“Visitar este Museu Missionário sob a guia atenta e consciente do
Diretor é um pouco como fazer uma viagem ao distante Brasil, no
misterioso Amazonas. Abre-se frente a nós um mundo fascinante,
selvagem, primitivo, mas não privado de humanidade. Subimos
escadas e escadinhas, as perguntas se sucedem. O tempo passa
rapidamente. O espaço parece ampliar-se... parece que estamos no
inferno verde amazonense... parece que escutamos o tam-tam ou o grito
do jaguar. É realmente um mundo que fascina, que faz sonhar.” (2004
n.5; 6)
Os objetos exóticos acompanhados pelos relatos dos missionários nas exposições
do Vaticano de 1925 e 1950, cujo contexto social foi analisado por Argañaraz (2004),
alimentavam um imaginário acerca de lugares virgens e misteriosos que fascinavam os
seminaristas, incentivando-os a partir para tais metas. Frei Luciano se encontrava entre
estes últimos.
121
Deixo espaço para sua voz na entrevista (Assis, 21-04-2006), em que nos explica
como e porque o museu se constituiu e nos oferece suas considerações sobre a missão.
Luciano: ‘São quase trinta anos que existe este museu. Eu fiz o
museu não porque foi uma coisa que eu pensei, mas porque me foi
encarregado e eu num primeiro momento perguntei: como posso fazer o
museu se nunca estive no Amazonas? Então isso serviu para ir. Pude
fazer o museu depois de ter conhecido o Amazonas. Não assim, mas
também os missionários que voltavam, como o padre Arsenio, que esteve
com os Ticunas talvez mais que os outros. Também esteve o padre
Fedele, mas já morreu. Eu falei com ele várias vezes, fui com ele quando
fazia as conferências e ele era muito bom não no contar mas também
com a mímica. Com o físico, digamos que ele pulava como realmente
pulam os índios. Fazia mímica e era capaz. Ele contava da missão,
falava dos índios Ticunas como se comportavam, como comiam como se
nutriam, quais eram suas atividades, caça, pesca, agricultura. Se bem
que não cultivam muito porque o solo não é fértil....
Bom, o museu: é que queríamos fazer a história começando de
1909 até hoje. Portanto, o que os mission
á
rios encontraram o que eles
fizeram, seja de um ponto de vista científico, seja o aspecto material. N
ó
s
queríamos que o se perdesse o que foi feito. E temos muitos objetos
que são preciosos porque l
á
já não se encontram mais.’
Claudia: ‘Quais?
Luciano: ‘Os remos não fazem mais, tamb
é
m o artesanato.
Todas essas bolsas, essas coisas estão desaparecendo, porque o avião
leva todas as nossas coisas e eles se dedicam a outras coisas que lhes
convém mais do que trabalhar nos cestos.
Digamos que os mission
á
rios fizeram muitas coisas. Digamos
que se levou um pouco de cultura europ
é
ia. A forma de cozinhar, a
forma de se comportar. Os primeiros mission
á
rios pensaram bem, dado
que eles não sabiam nem ler nem escrever, fizeram as escolas e hoje
quase cem anos depois são eles mesmos os professores. Claro que ao
mesmo tempo tentavam evangelizá-los predicando o evangelho. Os
métodos agora mudaram. Não é preciso destruir tudo! Também a
religião deve ser ensinada, fazendo-os entender que algo mais além
do que eles fazem, mas sempre tentando não irritá-los. Dizendo-lhe: o
que vocês fazem está bem, mas podemos acrescentar isto e isto e depois
entrar com o fator religioso.
Porque quando você se comporta bem, de um modo ou de outro a
pessoa se aproxima, a gente isso também. Não é? Mas aqui é mais
difícil a missão.’
Claudia: ‘Em que sentido?’
Luciano: (Levanta a voz) ‘Claro! aqui é muito mais difícil
porque aqui existe a cultura, tantas culturas tantas religiões. Por
exemplo, antes estava falando com o padre da paróquia e ele tem três
famílias muçulmanas! Aqui as coisas são difíceis! E não podes impor a
religião, ou eles aceitam ou não!
122
Claudia: ‘E por que seria mais fácil entre os indígenas?’
Luciano: ‘Porque é uma terra virgem. Um pouco porque eles
têm um conceito muito alto de nós. Porque eles vivem na floresta, em
cabanas. Portanto quando nós vamos e levamos os meios, não somente a
televisão, o rádio e os meios para trabalhar, então nós somos superiores
a eles. Não é que ele se humilhem, mas te honram e te seguem. Claro,
naquilo que lhes convém! (tom irônico)
Não é fácil tirar-lhes seus costumes. Por exemplo, essa coisa de
arrancar os cabelos das meninas no ritual da Moça Nova, os primeiros
missionários tentaram tirar porque era uma brutalidade, de fato não é
uma coisa simpática, arrancar em vez de cortar os cabelos, mas eles
deram para trás, porque sendo sua cultura, em vez de tirar, tentaram
abrandar esse costume e lhes deram as tesouras. Mas eles ainda
continuam arrancando! Porque é sua cultura.
Como tamb
é
m as máscaras, ainda continuam a fazê-las porque
na floresta ainda fazem estas coisas. At
é
agora responde às exigências e
aos costumes. É como para nós o cuernito
146
, sabemos que não serve
para nada e, no entanto, nós usamos! Ainda sucumbimos. Imagina! Nós
ainda usamos e deveríamos tê-lo abondonado, não hoje, mas 50 anos
atrás ou talvez mais!’
Em uma conversa informal (04-05-2006), ressalta que com o passar do tempo os
missionários teriam entendido que desarraigar os rituais e costumes era contraproducente,
que favoreceria o afastamento dos indígenas. Pelo contrário, afirma que para ‘apoderar-
se deles não se deve tocar nos pontos frágeis’. A única forma para ‘apoderar-se’ deles
estaria no “dom do amor”. Comparando o indígena a uma criança cuja família não lhe
ofereceria suficiente amor o missionário se encarregaria de sua proteção. Seguindo sua
argumentação, ‘o verdadeiro amor desinteressado’ conseguiria aproximar os indígenas dos
missionários e, conseqüentemente, da fé cristã.
Concordando com as elaborações de Todorov (1983), falar dos outros é diferente de
falar com os outros:
“... se a compreensão não for acompanhada de um
reconhecimento pleno do outro como sujeito, então essa compreensão
corre o risco de ser utilizada com vistas à exploração, ao “tomar”; o saber
será subordinado ao poder.” (idem; 128)
146
Refere-se ao uso do “chifre”, amuleto contra o mau olhado, inveja, etc. que, segundo sua argumentação,
testemunharia a sobrevivência de crenças pagãs.
123
Frei Luciano se expressa de forma extremamente clara em relação aos dotes de frei
Fedele, demonstrando sua obstinação em querer conhecer os indígenas; o conhecimento
teria facilitado a evangelização, na medida em que favorecia o ‘apoderamento’.
O relato de frei Luciano nos oferece a possibilidade de observar –como ele mesmo
afirma – as mudanças que sucederam o Concílio Vaticano II, no tocante ao tratamento que
deveria ser dado às populações indígenas. No entanto, em tal narrativa não são encontrados
os ‘aspectos positivos’ valorizados nos princípios enunciados nas encíclicas do Concílio,
que aparecem firmemente nas argumentações de frei Paolo.
O que podemos encontrar é a negação da existência de ‘cultura’ ao definir a terra
amazonense como ‘virgem’, contrastando-a com a situação italiana ou, de maneira mais
geral, com o ocidente; mas ao mesmo tempo, se reconhece a presença de ‘costumes’
associados às práticas pagãs, ‘superstições’, que persistiriam apesar da ‘prova’ de sua
ineficácia e falsidade. Os critérios de ‘verdade’ e ‘falsidade’ sustentam a argumentação da
‘infalibilidade’ do credo cristão.
Considerando as análises de Todorov (1983), é interessante marcar um paralelismo
entre a aproximação de Colombo às populações indígenas e aquela dos primeiros
missionários no Alto Solimões, revelada nas palavras de frei Luciano apesar das
aparentes contradições: têm ou não têm cultura. O que me interessa destacar é a
aproximação a uma ‘descoberta’. Para Colombo, os indígenas eram ‘culturalmente virgens’,
assimilando-os totalmente à natureza, tornando-se parte da paisagem. Sendo o seu projeto
baseado na construção de uma ordem cristã nas terras conquistadas para a coroa espanhola,
Colombo construiu uma visão de igualdade-identidade consigo mesmo frente a Deus. No
entanto, passou a substituí-la pela demarcação da diferença entre eles: os indígenas como
inferiores. Ambas visões se apoiavam na negação do outro: “... o postulado da diferença
leva facilmente ao sentimento de superioridade, e o postulado da igualdade ao de in-
diferença, e é sempre difícil resistir a esse duplo movimento...” (idem; 61).
Sem dúvida, a realização da exposição não se apoiou simplesmente nas capacidades
artísticas do ‘diretor’, mas este último precisou como ele mesmo afirma acessar os
conhecimentos produzidos por aqueles que tiveram mais experiência na missão entre os
Ticuna: frei Fedele de Alviano e Arsenio Sampalmieri.
A formação de frei Luciano foi anterior ao Concílio Vaticano II, como também a de
frei Fedele e de Arsenio e a instalação do museu foi realizada em um momento de delicada
passagem para um novo ‘paradigma discursivo’ sobre o significado de missão. A
124
exposição e as narrativas de frei Luciano trazem à luz os diferentes paradigmas e a
aparente ‘contradição’ que o museu apresenta. Sendo uma exposição permanente, o museu
parece sofrer a impossibilidade de uma renovação e adaptação aos novos paradigmas
baseados no conceito de inculturação’, como também de fazer emergir a importância
atribuída à “Semente da Palavraque seria o repositório da verdadeira nas populações
indígenas. Prevalece na exposição, apoiada pelas narrativas de frei Luciano, a idéia de um
‘primitivismo bárbaro’ ou ‘semi-bárbaro’, o qual, em nossa opinião, domina
indistintamente as concepções das velhas e das novas gerações de capuchinhos, como
também dos leigos entrevistados
147
.
No entanto, no período pré-conciliar, tal primitivismo, vestido da cor ‘bárbaro’, era
apresentado negativamente como testemunho de um atraso ou, na pior das hipóteses, como
manifestação do diabo
148
. Posteriormente ao Concílio II, o primitivismo se veste de um
valor positivo, identificando-se com a pureza da fé’, uma espécie de ‘estado natural
incorrupto’, deixando novamente emergir a idéia nunca desaparecida, mas sempre
adaptada – do bom selvagem.
O ‘primitivo’ se torna um mbolo que perdura no tempo, apesar da sua
manipulação e reformulação. Associado ao símbolo de pobreza, sua manipulação
contextual e o valor positivo ou negativo que lhe é outorgado resultam ainda mais
evidentes.
No texto “Missionários ao Inferno” fonte de inspiração para frei Luciano, que
elogia sua forma de escrever e seu conteúdo Picucci descreve o processo de
amadurecimento da Igreja no Amazonas, enfatizando a particular ‘pobreza’ que
caracterizaria sua população:
“A Igreja se constrói assim, lentamente, com estes testemunhos
de periferia que poderiam parecer incapazes porque pertencem a uma
existência diferente, mas são, contrariamente, os melhores porque são
realmente pobres de espírito. A realidade sobrenatural é por ela, como
para todos os simples, um mundo no qual se habita, um ar que se
respira continuamente. São pequenas luzes que brilham no escuro de um
“continente” ainda inexplorado pela maioria, e iluminam os contrastes de
um país que nós gostamos e desgostamos; mas também se desgostamos, a
melhor coisa é ficar: o que hoje não agrada amanhã fascinará.” (1982; 78)
147
Nos ocuparemos de tal aspecto no próximo capítulo, ao analisar as produções escritas e os vídeos
realizados pelos jovens da Ra.Mi.
148
Alguns escritos precedentes ao Concílio II, destacam algumas práticas como o infanticídio, que
denotariam a presença do demônio ou, no mínimo, de um estado de barbárie.
125
A atribuição às populações amazonenses da “pobreza de espírito”, que evoca os
princípios de São Francisco, exortando seus discípulos a viver uma vida em completa
pobreza material e espiritual, tendo assim acesso à salvação, viabiliza a proposta do
‘melhor tutor’: o capuchinho.
Tal virtude enfatizada torna-se, em outros escritos, obstáculo para o avançar de um
estado considerado arcaico’ a outro mais ‘avançado’. Isto é, em cada argumentação
encontrada nos diferentes escritos, prevalece a idéia de uma ‘melhora’ ou
‘aperfeiçoamento’ necessário e possível de realizar somente com a obra missionária
capuchinha. Se por um lado, domina um critério evolucionista que sustenta os discursos
legitimadores dos ‘superiores’ para alcançar o mencionado aperfeiçoamento dos indígenas,
cabe destacar que tipo de evolução os missionários capuchinhos propõem. Thomas (1992),
dialogando com as elaborações de Fabian
149
relativas às diferenças nas concepções de
tempo e espaço na época pré-moderna e moderna que afetam a aproximação à ‘alteridade’,
propõe pensar que apesar da ‘base comum’ que as agências coloniais seculares e religiosas
compartilhavam, a propaganda missionária revelaria em seus discursos um enfoque pré-
moderno da alteridade. Se a partir do iluminismo, assistiríamos a uma concepção do tempo
marcada pela história natural, os missionários contrariamente persistiriam em propor a
história da salvação. No entanto, tal proposta, presente nos escritos dos capuchinhos com
formação pré-conciliar e inserida nas práticas discursivas de frei Luciano no museu,
deixará lugar a outra preocupação ‘enunciada’: a salvação da ‘identidade indígena’.
Chama a atenção na exposição a falta de distinção entre os diferentes grupos
étnicos presentes nas fotos. Concordando com as elaborações de Thomas (1992), não
existe no museu a vontade de uma catalogação de tais grupos - como poderia ser a
preocupação principal de um museu organizado em base ao conhecimento com critérios
etnológicos. As fotos que aparecem retratam indígenas de diferentes grupos étnicos
brasileiros, a maioria sem informações sobre seus nomes e localização.
Podemos também observar que se afirma a hierarquia na relação entre os
missionários e os indígenas e, mais em geral, entre os ‘ocidentais’ e os indígenas, sendo
estes classificados como ‘inferiores’. Tal ‘inferioridade’ seria testemunhada por sua
simplicidade’, pobreza de espírito’, falta de cultura’, falta de religião’ falta de
149
Toma como referência o texto “Time and the Other: How Anthopology Makes its Objects. (Ed. Columbia
University Press, 1983, New York) e o artigo “Religious and Secular Colonization: Common Ground”,
History and Anthropology, 4:2 (1990), 339-55.
126
educação’ etc. A representação dos indígenas como ‘infantes’ é acompanhada e se torna
instrumento para a representação de seus guias e protetores: os capuchinhos.
A imagem dos indígenas como infantes e a tendência a enfatizar suas ‘deficiências’,
cercada de histórias relativas às difíceis condições nas quais os primeiros missionários
capuchinhos tiveram que trabalhar, contribuíram substancialmente para a imagem de uma
“tradição de glória”
150
capuchinha úmbria que o museu propõe.
É apresentada uma “indianidade” (Oliveira, 1988- 2005) genérica e estética que
apóia a reificação dos estereótipos que alimentam os preconceitos, legitimando
perigosamente as práticas colonialistas.
3.2.1 A arte dos Ticuna: humanidade compartilhada, homens
diferentes
Creio ser necessário destacar a importância de que a organização e a direção do
museu estejam nas mãos, unicamente, de frei Luciano. Ainda que a sua realização seja o
resultado de conhecimentos produzidos pelos missionários, aos quais frei Luciano teve
acesso, não se pode desconsiderar a personalidade peculiar do diretor, autor das pinturas e
legendas e textos presentes no museu e, mais importante, em minha opinião, autor das
narrativas que as acompanham.
Ao pedir-lhe uma explicação sobre os objetos contidos nas vitrines “Arte sagrada” e
“Amazonas Mestre da Arte”, frei Luciano responde:
‘Bom, não olhes se o índio reproduziu o crucifixo ou a Virgem ou
Jesus. Eles reproduzem suas divindades porque as têm! Não tendo um
Deus, eles o procuram, são animistas. Portanto, procuram-no e
geralmente escolhem seres, que podem ser animais como uma serpente,
um jaguar. E então respeitam eles, porque está em nossa alma, quando
um ser é temível deve ser respeitado.
A arte é algo que parte do coração. Uma pessoa que ama a arte,
que sabe criar é diferente daquela que só sabe trabalhar a terra. O
artista tem a delicadeza, tem a alma de conceber e ver as coisas
diferentes de um camponês. Não porque o camponês seja mais estúpido
ou que não tenha qualidades, mas porque o artista é levado a ver coisas
que os demais não conseguem ver. Também o índio, isto é, voviu a
vitrine onde escrevi: “Amazonas mestre da arte”? Bom, eu queria dizer
que também o índio que não vai ao colégio, reproduz coisas que tem na
alma. Se ele uma pessoa linda, tem a tendência a copiá-la, pinta-a se
150
Tal expressão se encontra no texto de frei Egidio Picucci (1982; 7), mais de uma vez citado em nosso
trabalho.
127
sabe pintar ou esculpe-a se sabe esculpir. Mas nem todos o fazem,
somente aqueles que sentem!
Frei Luciano dedica particular importância aos objetos que, segundo ele,
demonstram ser realizados com grande gosto estético. Deteve-se em enfatizar as
capacidades dos Ticuna na realização das pequenas esculturas. No guia por ele realizado,
comenta: “as figuras, por eles esculpidas, apesar de elementares na forma, têm plasticidade
e uma carga dinâmica surpreendente... Menos desenvolvida é a pintura” (idem; 55-56).
151
Podemos perceber claramente na narrativa de frei Luciano, para além da exposição
dos objetos, o contraste entre suas considerações sobre o ritual da Moça Nova que ele
considera uma brutalidade e uma espécie de resíduo de paganismo, associando-o ao
‘cuernito’– e os elogios às capacidades artísticas dos Ticuna. No entanto, creio que as
argumentações de frei Luciano sobre a ‘arte dos Ticuna’ não respondem somente às
exigências de mostrar os aspectos ‘humanos’ que caracterizariam os indígenas. Frei
Luciano é considerado e se sente um artista. Ao ressaltar a diferença dos indígenas, que
‘sentem’, está destacando também sua diferença.
Além disso, se na exposição prevalece a imagem de homogeneidade entre os
indígenas, expressada na ‘tipificação’ de aspectos que caracterizariam ‘o índio’, apoiada
nas afirmações de frei Luciano em relação ao ‘caráter ticuna’ – “respeitosos, leais e
submissos” (1994; 34) – nos discursos sobre a arte, parece estar em jogo uma diferenciação:
ser ou não ser artista aqui ou ali para Luciano, é fundamental enquanto signo de
diferença entre os homens.
Da mesma forma, não se pode relevar que o próprio museu é considerado “sua obra
de arte”, ‘mi criatura’, em suas palavras.
Outro fator: a arte dos Ticuna seria ‘elementar’ e realizada com “meios
rudimentares”
152
. Postula-se uma forma de arte subdesenvolvida, mas valiosa para ser
proposta como tal.
151
Ao analisar as exposições dos missionários cristãos que atuavam na Polinésia e na Melanésia, Nicholas
Thomas (1991) aponta a tendência a atribuir um valor estético aos objetos, mais que a sua função. Tal
tendência, segundo sua análise, respondia à exigência de contrabalançar os aspectos ‘repugnantes’ que
deveriam ser transmitidos ao público e que testemunhavam um estado de barbárie, com outros aspectos
necessários para revelar a humanidade’ que os caracterizava, a fim de confirmar a possibilidade de um
processo de transformação, que coincidia com uma gradual conversão.
152
Nos referimos à vitrine com o texto “Com meios rudimentares, os trabalhos mais lindos”.
128
Abordando as exposições dos missionários da Santa Cruz, organizadas com objetos
dos indígenas Asmat, Astrid de Hontheim (2005) destaca que a consideração de tais
objetos como ‘artísticos conferia dignidade a seus produtores e, ao mesmo tempo,
outorgava a tais objetos significados alheios aos Asmat. Segundo sua análise, criou-se um
processo de mercantilização de tais objetos, no qual os missionários tiveram grande peso
em seu incentivo. Tal processo teria seu início a partir do Concílio II, quando se começa a
valorizar as ‘culturas’ e ‘tradições’ indígenas, incentivando estes a respeitá-las e ‘conservá-
las’. A produção das esculturas Asmat se tornou monopólio dos missionários, os quais
apresentavam as obras em lugar de seus autores. A inserção das esculturas Asmat no
mercado de arte teve ainda para a autora, conseqüências inesperadas.
“En quelque sorte, acquerir un objet fair participer
l’acheteur á la domestication de la societé asmat par la culture
occidental; par la même ocasión, l’insertion de l’art asmat dans le
marché de l’art équivaut á insérer la société asmat dans la société
mondiale.” (idem; 102)
O que parece ser de crucial importância no contexto focalizado, é que os
missionários se substituem aos produtores de tais objetos. Como afirma Argañaraz (2004)
ao analisar a foto de frei Fedele ao lado de um crucifixo realizado pelos Ticuna, o
missionário toma o lugar de seu artífice. Nas duas vitrines do museu “Arte sagrada” e
“Amazonas Mestre da Arte”- não aparecem imagens fotográficas que retratam os indígenas
produzindo tais objetos. Contrariamente, nas outras vitrines a abundância de fotografias
testemunharia a ‘autenticidade’ de sua produção. O problema é que os indígenas são
representados mais do que como ‘sujeitos’, como ‘produtores de objetos’, ‘artistas’ e
‘artesãos’. As últimas duas categorias carregam em si problemáticas a serem destacadas.
Os objetos, assim classificados, são ressaltados por suas características estéticas; isto é, a
‘diferença’ é aqui também representada mediante a apreciação estética.
No andar dedicado à cultura ticuna’, que seria testemunhada ou - como diz o frei
Luciano - ‘resumida’ no ritual da Moça Nova, predomina um espaço sem tempo’. Ao
contrário, no quarto andar, dedicado à memória dos diversos missionários que participaram
da missão, é possível apreciar datas de nascimento e de falecimento como também os
aportes individuais ao desenvolvimento da missão
153
.
153
Longe de ser uma constatação objetiva, quero ressaltar que se trata de uma impressão pessoal sem a
pretensão de atribuir ao autor da exposição a vontade de tal efeito.
129
Uma vez mais, devemos voltar à sucessão de fotos que testemunharia a passagem
do estado ‘selvagem-natural’ para aquele de ‘cristãos-civilizados’ – “como eram/como
são” que se encontra no quarto andar. Os dois grupos de fotos, com as respectivas
legendas, parecem eliminar qualquer tipo de processo temporal que teria levado a tal
transformação. A interação entre os capuchinhos e os indígenas nos primeiros 60 anos de
missão (até a abertura do museu) seria testemunhada unicamente por fotos que, em sua
maioria, retratam os protagonistas numa mesma posição: os indígenas olham diretamente
para a câmera, enquanto os capuchinhos olham para eles, benzendo-os ou falando com eles
(Fotos 18-19).
Inevitavelmente, a mensagem comunicada através de tais imagens acaba
produzindo uma espécie de passividade dos indígenas submetidos à ‘magia’ dos
missionários.
3.3 Objetos, fotos e legendas: símbolos ambíguos e ambivalentes
Gostaria de chamar a atenção para alguns aspectos particulares presentes no museu
que indicariam a presença dos indígenas, como se eles mesmos estivessem se apresentando,
narrando sua própria história, seus costumes
154
e – não de menor importância – suas
opiniões sobre a colonização ocidental.
Observemos novamente o texto que encontramos na primeira sala do museu e que
aqui voltamos a apresentar:
“Quando branco chegou em nossa terra, índio pensava que
branco estava do lado de Deus, índio pensava que Deus tinha chegado
para visitá-lo. De fato, branco tinha tudo e índio não tem nada; branco
tem linha e anzol, nós não temos; branco tem livro, nós não temos;
branco tem machado, nós não temos; branco tem carro, s não temos;
branco tem avião, nós não temos.
Mas branco veio e roubou nossas terras. Depois trouxe as
doenças. Depois assediou nossas mulheres! E o índio se rebelou. Então o
branco matou nossos ancestrais, massacrou muito e o índio escapava tão
veloz como a coisa mais veloz. E então, índio entendeu: o Deus dos
brancos era mau!"
154
Nos referimos às legendas “sou simpático” e “até logo”.
130
Perguntei-me sobre a motivação do seu lugar no “Museu dos índios do Amazonas”,
dirigido por um frei capuchinho e que apresenta a história e a epopéia da missão no Alto
Solimões. Ao perguntar ao diretor sobre a inserção desse texto no museu, ele me respondeu
que alguns frades lhe haviam entregado e pensou que poderia ter um grande efeito sobre o
público. Suas considerações sobre o conteúdo do texto se baseavam nas possibilidades de
mal entendidos’ que podem levar um povo a recusar a cristã e marcava a inocência dos
missionários por tal recusa, atribuindo a causa de tal hostilidade aos males da civilização e
aos homens que quiseram e querem impô-la.
Com tal comentário frei Luciano parece se posicionar ao lado do indígena autor do
texto, formando assim um único coro contra a violência à qual foram submetidas as
populações ameríndias.
Por que foi escolhido tal texto? Por que se optou por manter os erros gramaticais?
Deveríamos pensar que a voz dos indígenas toma o lugar daquele que pendurou o
texto no museu? Qual seria a necessidade do museu – de frei Luciano – de expor tal texto?
Não quero questionar se o texto foi escrito pelo autor que o assina, nem me
dediquei a pesquisar quem é e quais são as relações que mantém com os missionários.
Interessa-me entender o papel que tal texto desempenha no museu dos capuchinhos
dirigido por frei Luciano e por que este ator o utilizaria nas narrativas que –se supõe–
deveriam atingir o público que o visita. O texto poderia ter a mesma função das inúmeras
fotos presentes no museu que retratam os indígenas concentrados em seus trabalhos,
olhando a câmara fotográfica imóveis ou simplesmente retratados: suportes ou
‘testemunhos’ – algo que possa ‘provar’– das histórias contadas em tal espaço.
A análise de Ginzburg (2001) sobre uma página encontrada no livro de Le Gobien,
um missionário jesuíta do século XVIII, me ajudou a pensar sobre este assunto. Levei em
consideração o capítulo “As vozes do outro”, por ter encontrado nele uma surpreendente
semelhança; surpreendente porque apesar de se tratar do culo XVIII, podemos
vislumbrar discursos e técnicas retóricas, na minha avaliação, semelhantes. Segundo o
autor, ao ler a página de Le Gobien poderíamos ter a impressão de estar frente a um texto
recente de denúncia contra o imperialismo europeu (2001; 91). A página considerada pelo
autor seria de um nobre nativo que havia incitado os indígenas das ilhas Marianne nas
Filipinas a se rebelarem contra os europeus invasores. Perguntando-se sobre as motivações
que levaram Le Gobien a inserir tal página no texto “Histoire des Isles Marianes,
nouvellement converties á la Religion chrestienne; et de la mort glorieuse des premiers
Missionarries qui e ont prêché la Foy” (1700), Ginzburg mergulha nas correntes históricas
131
e literárias de tal época, destacando que “Le Gobien atribuiu a Hurao as idéias sobre a
liberdade e simplicidade originárias que havia encontrado em Montaigne porque lhe
permitia escrever uma página retoricamente eficaz...” (idem; 104 - Tradução da autora)
155
.
O autor revela que a intenção do missionário francês era comunicar suas
considerações ambíguas em relação à civilização européia, através do apoio de um
discurso proferido por um indígena, usando uma técnica narrativa que desse a sensação de
revelar o ‘ponto de vista do nativo’. Tal procedimento inseriria “uma dimensão dialógica
em uma narração substancialmente monológica” (ibidem; 97 - Tradução da autora). A
linguagem e o conteúdo do discurso do nativo Hurao, analisado por Ginzburg, mostram a
retórica de Le Gobien, revelando que em vez de um diálogo, o texto era um monólogo. A
nota que Le Gobien coloca no texto serviria para demonstrar tal diálogo, mas se trataria de
uma estratégia narrativa para demonstrar uma distância entre o autor do discurso que
seria Le Gobien – e ele mesmo.
No museu dos índios do Amazonas, ‘as vozes do outro’ são as inúmeras vozes que
frei Luciano consegue performar. Levando em conta a sua narrativa, foi possível observar
aparentes ‘contradições’ em seu discurso: em alguns momentos parece se posicionar a
favor de uma defesa da cultura indígena, em outros, parece sugerir que os indígenas não
têm cultura; os indígenas seriam ingênuos, mas astutos; bárbaros, mas civilizados etc. Na
minha opinião, não se pode considerá-las contradições, mas elaborações diferentes em
contextos diferentes, percebendo assim a ambigüidade e ambivalência dos conceitos e
símbolos empregados nos discursos classificatórios que os capuchinhos adotam
156
. Assim
também –explica Ginzburg– para Le Gobien e para os jesuítas em geral, a palavra
‘bárbaro’ tinha conotações ambivalentes: por um lado manifestava costumes incivilizados,
e ao mesmo tempo, estariam ‘muito mais próximos à verdadeira filosofia’.
Turner explicita que “Symbols are multivocal, manipulável, and ambiguous
precisely because they are initially located in systems, classified or arranged in a regular,
155
Segundo as elaborações de White (1994), a idéia de “Nobre Selvagem” no século XVIII “é utilizada, não
para dignificar o nativo, mas antes para minar a idéia da nobreza em si” (ibidem; 212), a qual negava a visão
de uma “humanidade compartilhada”, sustentando de tal forma a organização hierárquica. Se esta autora se
concentra em destacar o papel fetichista que o “Nobre Selvagem” assumiu na disputa entre nobres e
burgueses, para nós, pensá-los em tais termos, em relação aos missionários da época, poderia ser interessante
na medida em que a necessidade de proclamar a humanidade comum viabilizava a possibilidade de uma ação
transformadora na conversão dos infiéis em terras distantes, sua assimilação à comunidade católica e,
conseqüentemente, alcançar a “glória da Ordem ” (Thomas; 1994) e - no caso específico tomado por
Ginzburg - da Ordem jesuíta de Gobien.
156
Nos deteremos sobre tal assunto mais profundamente no próximo capítulo.
132
orderly form” (1975; 146) e citando Cohen
157
, acrescenta ‘A symbol will not do its work
if it does not have (this) ambiguity and complexity’ (p. 37), in situations of conflict and
change”.(ibidem; 158)
Concordando com o autor, os símbolos presentes no museu são constantemente
manipulados, respondendo às mudanças paradigmáticas e históricas, revelando o esforço
do seu diretor em ordená-los. Portanto, as capacidades performáticas não podem ser
desconsideradas.
É preciso enfatizar que apesar do museu ser preponderantemente marcado pela mão
de seu pintor, este último inevitavelmente sofreu as pressões da Ordem na organização de
tal espaço. O museu representa o ‘triunfo da missão’, e acrescentaria que o museu ‘é a
missão’, enquanto simulação cenográfica da Ordem para sua manutenção.
Atualmente, o museu constitui um meio marginal na promoção da missão e as
habilidades de frei Luciano estão comprometidas, comparadas aos instrumentos e ‘saber
fazer’ de outros atores sociais.
157
Cohen, A. 1974 Two Dimensional Man: Na Essay on the Anthropology of Power and Simbolism in
Complex Society.” Routledge & Kegan Paul, London.
133
Foto 1. Entrada do Museu dos Índios do Amazonas.
Foto 2. Segundo andar, sala central. Pintura do frade Luciano Matarazzi
Foto 3. Segundo andar, sala central.
Foto 4. Segundo andar, sala central.
136
Foto 5. Foto 6.
Foto 7.
137
Foto 8. Segundo andar, sala A.
Foto 9. Segundo andar, sala A.
138
Foto 10. Segundo andar, sala B.
Foto 11. Segundo andar, sala B.
139
Foto 12. Segundo andar, sala B.
Foto 13. Segundo andar, sala B.
140
Foto 14. Segundo andar, sala B.
Foto 15. Segundo andar, sala B.
141
Foto 16. Quarto andar.
Foto 17. Quarto andar.
142
Foto 18. Segundo andar, sala A.
Foto 19. Primeiro andar.
143
Capítulo 4. A representação da realidade amazonense’: a
exaltação da experiência e a reiteração da distância
No capítulo anterior concentrei-me em destacar o papel de frei Luciano na
apresentação da alteridade indígena no contexto do museu, dando particular ênfase à sua
formação, ao seu gosto estético, como também, ao seu imaginário.
De fato, penso que seja de crucial importância nos determos sobre as fontes que frei
Luciano tomou como referência para a organização do museu, como também sobre os
conteúdos dos vídeos que ele próprio utilizava como suporte nas jornadas missionárias
organizadas para os seminaristas como também para os leigos.
Não me deterei nos escritos de frei Fedele de Alviano, considerado o apóstolo dos
Ticuna, cuja biografia e conteúdos de seus produtos foram exaustivamente analisados por
Argañaraz (2004), mas me ocuparei de algumas fontes produzidas nos anos próximos ao
Concílio Vaticano II e outras sucessivas ao mesmo evento.
Penso os produtos –revistas, documentos e deos– como síntese das experiências
individuais filtradas e purificadas; isto é, as diferentes opiniões comunicadas ao longo da
pesquisa pelos atores sociais que tinham viajado à missão as dúvidas, perplexidades,
contrastes de opiniões
158
desaparecem nas sínteses propostas ao público. A reelaboração
das experiências individuais é o resultado da interação dentro da rede de relações que
analisei no segundo capítulo do presente trabalho e se apóiam em discursos anteriores.
O objetivo deste último capítulo é individuar as mudanças e continuidades das
representações da alteridade nas produções das diferentes gerações capuchinhas e refletir
acerca das possibilidades de repetição dos estereótipos que nelas se encontram e que
demonstram a impermeabilidade das práticas colonialistas dos capuchinhos e a sua
transmissão.
158
Os jovens da Ra.Mi., assim como frei Paolo, deram diferentes explicações em relação a vários eventos
ocorridos durante a permanência na missão. Por exemplo: na comunidade de Belém do Solimões, alguns
Ticuna pediram para serem batizados por frei Paolo. Tal pedido foi socializado pelo frei com todos os Ra.Mi
do grupo e cada um deu uma interpretação e motivação diferente com a conseqüente aprovação ou
desaprovação. Máximo afirma que os indígenas pediam para serem batizados simplesmente para obter uma
‘papeleta’ que lhes permitiria acessar a determinados recursos. Sara, ao contrário, está convencida de que os
Ticuna pedem aos capuchinhos para serem batizados porque estes são para eles as únicas figuras positivas na
área. Ela mesma, na entrevista, afirma não ter presenciado tal situação e que Valentina tinha comentado com
ela que esse evento produziu vários questionamentos por parte dos jovens: alguns eram a favor da cerimônia
de batismo e outros recusavam tal possibilidade.
144
É preciso destacar também que os discursos proferidos são reconduzidos a atores
que se inserem na configuração social focalizada, que se valiam de diferentes técnicas de
comunicação para veicular valores e que, na arena na qual estão inseridos, buscam
diferenciar-se e tentar recrutar mais seguidores.
4.0 Relatos e informes
No distante ano de 1916, é publicado o informe do frei Evangelista da Cefalonia,
naquele então, Prefeito Apostólico da missão do Alto Solimões. Tal publicação
159
era
declaradamente oferecida aos benfeitores da missão, acompanhada por uma benção
especial do Papa Bendito XV, sob pedido do Ministro Provincial da Província Úmbria.
São apresentadas as enormes dificuldades enfrentadas pelos missionários: falta de
infra-estruturas, perigos devidos aos animais ferozes presentes na floresta, doenças etc. É
enfatizada a incômoda presença dos missionários protestantes na área, os quais “circulam
naquelas áreas para destruir a obra do Missionário católico e, abusando da pouca ou
nenhuma instrução daquela gente simples, se tomam o maligno prazer de insinuar e ensiná-
los as suas próprias errôneas e perversas doutrinas” (1916; 28). Me surpreende, na página
30 de tal publicação que, lembremos, é de 1916 no parágrafo “Curiosos Costumes
Indígenas”, onde encontramos a mesma frase que havíamos encontrado no museu em uma
das legendas relativas ao encontro entre indígenas depois de um longo tempo, acostumados
a se abraçarem e “pronunciando palavras incompreensíveis ao missionário”.
Observa-se um parágrafo dedicado às “gravíssimas dificuldades” que os
missionários enfrentariam em tais terras: a) a “ignorância religiosa” devida ao fato de que
os missionários não conseguem transmitir os ensinamentos cristãos, limitando-se aos
sacramentos (ibidem; 74); b) a “imoralidade mas sem pudor, o concubinato generalizado
de forma espantosa” (idem; 75); c) a Maçonaria, que se esconderia atrás de vestes de uma
“sociedade filantrópica”.
No texto estão as cifras relativas à administração de sacramentos por parte dos
missionários divididos nas diferentes instâncias: batismos, casamentos, catequeses etc.
Uma vez oferecida a descrição detalhada das contribuições dos missionários para a
159
Trata-se de uma das várias publicações extraídas da Anacleta O.M. cap. A presente se encontra no vol.
XXXI, n. II, III, IV, V.
145
salvação das almas no Alto Solimões, se convidam os benfeitores a continuar com os
donativos.
“Vocês, folheando e lendo estas páginas, apesar de sua
simplicidade talvez desinteressante, uma vez mais se deram conta do que
nossos compatriotas
160
sabem fazer para a exaltação da religião, para a
propagação da civilização, e para o bom nome e glória de nossa
querida pátria. Rogo-lhes, portanto, continuar a obra de misericórdia do
vosso caridoso óbolo, mediante o qual podem de alguma forma tornar
úteis os esforços de vontade e os grandes sacrifícios dos bons Padres
Capuchinhos Missionários do Alto Solimões. (ibidem; 132. Ênfase da
autora).”
161
A tal convite se segue uma lista infindável de missas nas diferentes províncias
úmbrias, como também em várias cidades italianas, nas quais se havia coletado os
donativos e a soma final destinada à missão.
Cabe destacar que a revista “Il Massaia” atualmente “Continenti” que publicou
tais relatos e informes, acompanhando os passos da missão, torna-se o depositário da
construção da imagem do Amazonas, como também do Brasil em geral.
Por ocasião do cinqüentenário da missão e da consagração do novo Bispo do Alto
Solimões Don Adalberto Domenico Marzi (1961), os capuchinhos prepararam uma
recopilação de diferentes escritos sobre a obra missionária, destacando algumas figuras
relevantes, a vida dos missionários, seus afetos na terra de origem, as angústias com a
distância dos parentes, a difícil e heróica tarefa que enfrentam e a glória da missão.
Entre os vários escritos está um artigo que concentra sua atenção na definição do
“elemento humano” presente na floresta amazônica. Apresentando-o como uma pequena
minoria”, destacam os detalhes das características físicas (cor da pele, cabelos, crânio,
cara, nariz). Definem sua forma de vida primitiva e sua negação a viver uma vida
regular” e “organizada”, sendo “indolentes”preguiçosos” e “suspeitos”.
Em contraste à figura do indígena é apresentada a imagem do caboclo, definido
como um camponês mestiço, corajoso e desconfiado, que representaria a parte mais
160
Traduzimos o termo “connazionale” como compatriotas.
161
As elaborações de Herzfeld (1993) nos ajudam a pensar tal conjugação de propostas –aquela por nós
destacada na frase recém mencionada– para convencer os benfeitores a continuar oferecendo dinheiro à
missão. Valendo-se das elaborações de Weber relativas à theodicy e sua necessidade de transcendência, o
autor explicita que “...the idea that a moral principle, or a deity, could transcend the specifics of time and
place. In some religious systems, notable Christianity, this might take the form of salvation. The secular
equivalent of salvation is the idea of a patriotic and democratic community, one that tolerates neither graft
nor oppression….European nationalism resembles religion in that both claim transcendent status.” (ibidem;
6)
146
atrasada da população brasileira. O que determinaria sua falta de integração à vida
moderna seria sua “característica de passividade”.
No suplemento da revista “Voce Serafica” de 1985 intitulada “Os capuchinhos
Úmbrios no Amazonas: 75 anos de presença”, é possível encontrar diferentes autores
relatando a história da missão, destacando diferentes temáticas. No entanto, o que sobressai
em todas as argumentações é a ênfase dedicada à construção de uma ‘tradição’ mediante o
sacrifício e o martírio dos primeiros missionários.
Chama a atenção em todos os escritos uma espécie de auto-crítica relativa às
limitações que a missão teve no projeto de evangelização e nos métodos empregados até
esse momento. Cabe lembrar que estamos falando dos anos oitenta e a fase de aplicação do
Concílio Vaticano II, com seu novo paradigma, se torna o pressuposto básico para
qualquer argumentação. A pastoral indígena é um tema de grande importância, destacando
a figura de frei Fedele de Alviano – considerado o apóstolo dos Ticuna – e de seu
substituto frei Arsenio Sampalmieri. Cuidadosamente, se ressalta que frei Fedele não teria
‘aculturado’ os indígenas, mas ao contrário, os teria tratado com todo respeito.
É possível perceber as problemáticas que afetam tal período e as agências em
competição que atuam na área da missão.
A proposta que distanciaria os capuchinhos das outras agências empenhadas em
projetos de desenvolvimento para conseguir uma melhoria nas condições da população
amazonense e indígena, particularmente, se concentra nos meios para seu alcance. Para os
missionários tal resultado é possível unicamente através da palavra de Deus. A promoção
humana não é suficiente para levar o progresso’, considerado como uma “condição do
espírito”.
Além de enfatizar os perigos produzido pela presença de missionários protestantes
e pelo surgimento constante de movimentos religiosos –como a Santa Cruz, que causou um
afastamento quase em massa dos indígenas em relação aos missionários católicos–
percebem-se os conflitos internos à própria Igreja católica brasileira com suas diferentes
tendências. A questão da inutilidade de uma missão que se dedica unicamente à promoção
humana entendida como ajuda à melhoria das condições econômicas, políticas e sociais–
é um aspecto digno de ser destacado.
Tal tarefa deveria acontecer, necessariamente, em conjunto com a evangelização. A
declaração do Arcebispo de Brasília Don Freire Falcão enfatiza em suas palavras que a
libertação dos povos de suas misérias se concretiza unicamente através da promoção de:
“valores espirituais e eternos, formar a comunidade daqueles que crêem em Jesus Cristo,
147
celebrar sua Páscoa, proclamar e realizar a Salvação mediante os sinais sacramentais e o
anúncio da palavra” (idem; 141). Tal declaração é uma critica direta à corrente da teologia
da libertação, que estaria fazendo uma leitura política da palavra de Deus, baseando-se na
análise marxista, distante dos propósitos da Igreja católica.
“Conosco na Amazônia” poderia ser definido como o ‘manual do bom missionário’.
Trata-se de uma pequena revista publicada em 1975 para a divulgação da ação missionária
no Alto Solimões. Frei Luciano costuma entregá-la aos visitantes do museu. Relata
“aventuras, costumes e lendas” na floresta amazônica; o ambiente físico da selva é descrito
com riquezas de detalhes e é dedicado um grande espaço à descrição da fauna. Predomina
em tais relatos a dimensão de aventura quase fantástica. As ‘aventuras’ dos missionários
são enriquecidas com as descrições dos rituais indígenas, apoiadas pela grande quantidade
de fotos oferecidas. Ao comentar o ritual da Moça Nova se afirma que “os espíritos do mal
gritam tanto, que se Dante estivesse presente teria feito outra edição do Inferno” (1975; 47)
São oferecidos diálogos entre os missionários e os indígenas, demonstrando com
isso o trabalho e a paciência dos pastores para enfrentar as dificuldades que tal tarefa
comportava. De fato, os diálogos destacam o ‘atraso’ no qual estariam os indígenas,
chegando a apresentar uma imagem negativa, apostrofando-os com termos como:
primitivos, bestas, cabeça dura etc.
Gostaria de abordar alguns escritos publicados na revista Il Massaia entre 1978 e
1980, assinados pelo, já mencionado, frei Arsenio Sampalmieri
162
que, lembremos aqui,
esteve quase vinte anos entre os Ticuna. Trata-se de pequenos artigos, todos intitulados
“Tikunas, Índios Amáveis” e abordam as seguintes temáticas: características físicas e
psíquicas, material usados nas habitações, infância, doenças, língua, rituais matrimoniais,
papel do pajé, caça e pesca, alimentação, morte e suicídio, aborto. Pode-se observar que
em tais escritos, frei Arsenio parece querer demonstrar uma falta de preconceitos em
relação aos indígenas, tentando descrevê-los com ‘objetividade distanciada’ e criticando
algumas imagens do senso comum que os estigmatizariam
163
.
162
Ao perguntar-lhe se havia escrito outros artigos além daqueles que eu havia encontrado, Frei Arsenio me
diz que não se dedicou a escrever e que não tem nenhuma intenção de começar agora, ainda que tenham lhe
pedido várias vezes.
163
Refere-se ao apelativo “preguiçosos” ou, de maneira mais geral, à atribuição da falta de vontade de
trabalhar. Arsenio se explica os valores na comunidade Ticuna, comparando-os com aqueles da sociedade
ocidental, marcando as “diferentes filosofias” que as caracterizam. (1979; 232).
148
Não se pode desconsiderar que tal ‘objetividade’ parece ser requerida
164
, devendo-
se demonstrar a falta de juízos ou de posição. Em sua tese, Frei Braghini ressalta as
contribuições “científicas” de frei Fedele de Alviano e do próprio Arsênio, apresentados
como “lingüistas” ou “antropólogos”.
Apesar de descrever os indígenas como “fatalistas” “iludidos” ou “primitivos”,
todos apelativos que reiteram os estereótipos encontrados até agora, Frei Arsênio trata,
constantemente, de oferecer detalhes da cosmologia ticuna com a intenção de
contextualizar suas práticas, que contrariamente seriam consideradas “ilógicas”.
Observei que as argumentações de frei Arsênio amparadas em detalhes etnográficos,
não são levadas em consideração nos outros escritos relativos aos indígenas. Predominam
os aspectos ‘característicos’ ou ‘estéticos’ que estimulam um determinado imaginário
sobre um mundo distante fantástico, primitivo, inquietante ou fascinante
165
.
Contrariamente, frei Arsenio parece restituir aos Ticuna os aspectos de uma cotidianidade,
na qual ele mesmo tem o seu lugar, sentindo-se próximo e contemporâneo, revelando a
interação entre eles.
É preciso levar em consideração a tese de frei Paolo Braghini, varias vezes
citadas no presente trabalho.
Antes de começar é necessário ressaltar que a formação de Paolo se desenvolveu
nos últimos doze anos e, portanto, o paradigma discursivo pós-Concílio e as medidas para
a preparação dos missionários estão evidentes.
Em sua reconstrução histórica da missão e, sobretudo, da relação entre capuchinhos
e Ticuna
166
, frei Paolo toma como referência, especialmente, frei Fedele de Alviano e, em
seguida, frei Arsenio Sampalmieri, elogiando seus dotes, descrevendo-os como
missionários exemplares que souberam respeitar os indígenas empreendendo uma
“catequese inculturada”. Os elogios apontam, ainda, para os conhecimentos científicos que
164
Frei Paolo Braghini comentou que frei Arsenio o havia aconselhado a não julgar os indígenas, pelo menos
nos primeiros dois anos de permanência entre eles. A “inculturação” seria o processo necessário para
entender os indígenas e perder os preconceitos. Arsenio me informou que durante sua permanência em Belém
do Solimões participava das iniciativas do CIMI e destacou seu incômodo ao perceber que missionários que
realmente permaneciam nas comunidades indígenas, conhecendo-as profundamente’ deveriam continuar
respondendo às ordenes que vinham de fora e de cima.
165
Encontramos tais aspectos no Museu dos Índios do Amazonas, cuja técnica de exposição consiste em
enfatizá-los.
166
O capítulo se intitula “Frades capuchinhos e Ticunas: os índios que nos dão o glorioso título de Missão
Apostólica” (ibidem; 66)
149
tais missionários ofereceram através dos estudos antropológicos e lingüísticos de tal
população. Sua descrição começa da seguinte maneira:
“Estes dois missionários merecem um destaque particular em
nosso trabalho, não somente pelo longo tempo transcorrido em contato
direto com os Ticunas mas, sobretudo, pelo fato de representarem uma
real voz fora do coro entre os seus contemporâneos.” (2006; 66)
Ao explicitar o valor da contribuição científica dos escritos deixados por Alviano,
frei Paolo afirma que:
“Outro aspecto que pode testemunhar seu ser definido científico
na maneira de proceder, é a objetividade. O amor para com seus índios,
como gostava de defini-los, é evidente, mas não o impedia de descrevê-
los com verdade, sem esconder o mal. Um exemplo é quando, depois de
ter citado e refutado as teorias extremistas de Rousseau, Chateaubriand e
Cooper, descreve com riquezas de detalhes quatro gêneros de homicídios
freqüentes, no capítulo Bondade e maldade dos índios Ticunas,
sublinhando que também eles são filhos de Adão e, portanto capazes de
atrocidades.” (ibidem; 77)
Cabe destacar que em sua argumentação não emergem considerações a partir da
própria experiência na missão. Isto é, suas considerações podem ser deduzidas pelas
avaliações relativas às afirmações dos missionários que cita. De fato, se insere unicamente
ao enfrentar os novos desafios da missão e precisamente ao comentar os projetos
encaminhados pelo novo Bispo Alcimar com o qual, como mencionei, frei Paolo
colabora. Destaca em sua argumentação a necessidade de levar em conta a voz dos
indígenas para, ‘juntos’, construírem um futuro melhor.
No entanto, ao enfatizar a necessidade de uma visão ‘objetiva’ que Alviano teria
demonstrado ao destacar as “atrocidades” das quais seriam capazes os indígenas propõe
uma ação transformadora: a ação evangelizadora como premissa essencial do
missionário
167
.
O quinto capítulo da tese se concentra em oferecer as “novas perspectivas para o
centenário” da missão, destacando as linhas pastorais emergentes às quais pretende aderir e
que tocam os seguintes temas: o homem, a fraternidade, a ecologia e a teologia. O capítulo
se concentra, sobretudo em destacar as ‘afinidades’ que teriam os capuchinhos e os Ticuna:
“forte sentido de comunidade, típico das comunidades indígenas, entendidas como uma
167
A tal propósito, nos parece curioso ler em sua tese uma clara tomada de posição em defesa do Bispo
Magalhaes, em relação às acusações sobre o pouco empenho demonstrado em tal direção.
150
grande família na qual não espaço para o individualismo” (idem; 170); uma harmonia
particular com a natureza que é lembrada mediante a inspiração a São Francisco
(ibidem;174).
Explica a visão holística e harmônica que regeria a relação da pessoa com a
natureza entre os Ticuna, baseando-se nos estudos de antropologia do clima, citando a
pesquisadora titular do museu Goeldi, Priscila Faulhaber
168
. Tal apresentação lhe serve de
apoio para afirmar que:
“Graças a esta visão holística da pessoa, gosto de desejar que
sejam eles próprios a nos ajudar a superar a visão mecanicista do homem-
ainda presente na Igreja - que nos leva a separar a dimensão física da
espiritual, a saúde da salvação, para conseguir encontrar e exprimir o
pleno bem estar humano também na liturgia.” (; 166)
Tal argumentação se insere no projeto de “promoção humana” que deveria ser
desenvolvido, segundo o autor, “não mais de forma civilizadora ou europeizante, mas que,
escutando as exigências indígenas, favoreça suas categorias culturais...” (ibidem; 167).
A reflexão sobre a teologia começa com a citação do hino zapatista, surgido
durante o V Encontro e Laboratório Continental de Teologia Indígena proposto pelo CIMI,
e conclui afirmando que
“Refletir acerca dos sujeitos da teologia evidencia, portanto, qual
deverá ser nosso papel ao lado dos Ticunas: deveremos continuar
anunciando o Evangelho para aqueles que ainda não o receberam e, ao
mesmo tempo, acompanhar os outros a aprofundar e fortalecer a fé,
caminhando juntos em direção a uma teologia própria graças à qual:
1- acontecerá uma melhor evangelização inculturada que os
ajudará a descobrir como Deus desde sempre caminha com eles;
2- conseguirão viver mais plenamente, conscientemente,
livremente e responsavelmente a nova vida em Cristo;
3- se tornarão, enfim, também eles missionários, compartilhando
sua com as outras culturas que compõem o rico e lindo rosto
pluriforme da Igreja.
...assim, nós deveríamos começar a fazer frutificar aquele
genético parentesco com os Ticunas e, finalmente, fazer florescer seu
rosto mais genuinamente cristão e, se Deus quiser, franciscano.” (idem;
181, 182)
168
Faz referência ao texto As estrelas eram terrenas: antropologia do clima, da iconografia e das
constelações Ticuna.” Em Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2004, vol. 47.
151
Os indígenas não teriam ‘consciência’ e o papel dos missionários seria ajudá-los a
despertá-la. Os propósitos da ação missionária aparecem claramente nas palavras de frei
Paolo, como também suas esperanças: a assimilação dos indígenas à comunidade católica e
mais particularmente, como explicita na introdução de sua tese, abrir caminhos para que
surjam vocações capuchinhas entre eles.
4.1 Imagens e imaginários
O vídeo “Conosco no Amazonas. Os capuchinhos de Assis no Rio Amazônico
(1909-1980) 70 anos de atividade” se utiliza os textos de frei Egidio Picucci, mesmo autor
do livro “Missionari all’inferno”, já citado anteriormente.
Depois de uma apresentação geográfica da área amazônica, com suas dimensões e a
descrição detalhada da flora e fauna
169
, faz-se um recorrido pela história da missão,
enfatizando a coragem dos primeiros missionários que enfrentaram as dificuldades de um
ambiente físico hostil que causou entre eles doenças e mortes. Tal empresa é definida
como a “epopéia missionária”, ressaltando as conquistas alcançadas em 70 anos de
atividade, afirmando que a vida social é ligada à figura do missionário enquanto ‘criador
de aldeias’ e ‘educador’ dos habitantes da floresta. Ao construir as primeiras igrejas, os
missionários teriam tentado reunir os habitantes ao redor destas. Isto é, parecem negar a
existência de qualquer tipo de vida social anterior à sua chegada e destacam a imensa
gratidão das pessoas pela ajuda oferecida.
Ao mencionar as viagens heróicas que os missionários empreendiam (ressaltando as
enormes distâncias que recorriam) e que ainda empreendem para evangelizar os habitantes
nas margens do rio Solimões, informam acerca da presença de indígenas que estariam
lentamente se “modernizando” ao aceitar as vantagens do progresso. Conferem maior
destaque aos Ticuna, sendo o grupo numericamente maior.
“O mundo amazônico é dominado pela água que imprime
proporções extraordinárias na geografia física e uma grande determinação
naquela humanidade”
169
A descrição detalhada da flora e da fauna (animais perigosos e estranhos, insetos perigosos) destaca a
variabilidade e a riqueza de exemplares. Durante o vídeo, tal descrição se torna assustadora ao enfatizar que o
Amazonas é “uma esponja sem forma onde vivem milhões de vidas que se devoram incessantemente”.
152
Sublinha-se, assim, um condicionamento determinante do clima sobre os
‘caracteres’ humanos.
Evangelização e progresso social são as tarefas que os missionários desempenham
na missão. Como testemunha de tal obra, é entrevistada uma moça (da qual não se oferece
o nome nem a posição) sentada em uma canoa, falando da obra missionária, afirmando que
os missionários foram os que deram mais impulso para a civilização.
“Partiram simplesmente para catequizar, ensinaram aos
indígenas os princípios rudimentares da agricultura, a agrupação
em aldeias, onde foi possível organizar a vida em coletividade com
bases econômicas e políticas”.
As pragas que atormentariam os indígenas seriam principalmente o analfabetismo e
a higiene. Por tal razão, os missionários junto a alguns leigos (sobretudo Felicita,
missionária do Instituto da Caridade de Verona, a quem dedicaram outro vídeo que destaca
seu particular empenho) começaram através de pequenos cursos, um processo de
libertação da escravidão da alfabetização’. Ao mesmo tempo, afirmam que nas suas raras
visitas, os missionários se limitam a entregar os sacramentos e a celebrar da missa.
As imagens e a música que acompanham a narração se pintam de melancolia
romântica, alimentando a imagem poética de: “a evangelização avança com embarcações
feitas com meios rudimentares”. Chama a atenção a imagem do missionário nas margens
do rio, onde está armado um altar para facilitar a possibilidade de reviver o evangelho.
“Assim também os menos preparados deveriam aprender mais
facilmente que coisa é o reino de Deus, comparando-o a pescadores que
jogam a rede na água ou a um tesouro escondido que é preciso procurar,
um reino que se constrói com o sacrifício e o trabalho paciente e sofrido.”
O vídeo “Alfabetização e Evangelização” que pretendo agora analisar é do mesmo
período do anterior. Estamos, portanto, nos anos oitenta. Ele aborda principalmente os
problemas mais contingentes que afetariam a vida dos indígenas, destacando a degradação
na qual se encontravam: desordem e falta de higiene. O analfabetismo seria uma dentre as
outras pragas que afligiriam os indígenas. Afirma-se que os Ticuna não são indiferentes ao
problema da instrução e que bastou a chegada de uma missionária laica (Felicita) para
persuadi-los a freqüentar os cursos.
A instrução seria a base para por os homens em condição de viver como
verdadeiros homens”. A tal propósito é destacada a figura de São Francisco, como o autor
153
da primeira gula missionária, que recomendava a seus frades não predicar o evangelho
antes de ter preparado as “inteligências” e os “ânimos” para receber a “verdade”. Levar o
evangelho seria, portanto, uma ação não somente religiosa, mas também civilizadora e
cultural. Afirmam que as tradições locais positivas (expressadas nas festas e danças) são
valorizadas, buscando purificar os “elementos negativos”. Tomam como exemplo de tais
aspectos a prática da adivinhação, e seguem tal argumentação apoiados por imagens de
máscaras, amuletos, colares que usam os operadores rituais. Concluem que somente os:
“iludidos podem pensar que encontrarão uma melhoria com tais
práticas. Os feiticeiros o charlatães que se permitem usar as imagens
dos santos e da Virgem Maria, misturando-os com aquelas do demônios
para atrair os ingênuos”.
O vídeo segue apresentando imagens de ‘lugares de perdição’, como os boliches,
mostrando pessoas dançando abraçadas, fumando e bebendo. Sublinha-se, de tal maneira,
uma população dominada por paixões irracionais.
Em contraste, se ressalta o surgimento das comunidades de base” na área: “leigos
que tratam de entender os problemas mediante a leitura do evangelho e assim tomar
consciência dos direitos, de seu papel na vida social e eclesial... uma proposta moral
alternativa que liberta a alma das paixões”.
Tal proposta é destacada como positiva e seria uma reprovação àquela Igreja
fechada sobre si mesma, marcando assim a passagem a uma Igreja mais próxima aos
problemas da vida cotidiana. Outro aspecto positivo enfatizado é o crescimento das
vocações locais que garantiriam a consecução do trabalho “silencioso e sofrido” dos
capuchinhos úmbrios.
Apresentando Belém do Solimões como o centro espiritual dos Ticunas’, afirmam
que tal grupo indígena, apesar de ter se aproximado mais que outros à ‘civilização’, não
renunciara a alguns ‘usos tribais’ como a língua, a divisão em nações e algumas ‘festas
características’. O ritual da Moça Nova, definido como a festa mais característica entre os
Ticuna, não é acompanhado por imagens em movimento, mas pelas fotos e pelos murais de
frei Luciano, que podem ser encontrados no museu.
Marcando uma certa ‘passividade’ que os caracterizaria, o vídeo enfatiza que eles
se deixaram levar pela predicação de um fanático (irmão José), distanciando-se quase em
154
massa da Igreja
170
. Ressaltam que aqueles que seguiram o Movimento da Cruz tiveram que
renunciar não somente às tradições da tribo, mas também às diversões da vida.
Afirma-se que os Ticuna são:
“vagabundos da caça e da pesca e não gostam muito do trabalho,
preferindo passar as horas à sombra ou adormecendo em uma canoa,
deixando os pequenos e os grandes trabalhos às mulheres submissas”.
O retrato do indígena prossegue afirmando que um “bom ticuna aceita tudo
estoicamente”, explicando tal atitude pelo fato de ainda se sentir humilhado pelas antigas
opressões.
Os indígenas são retratados como profundamente melancólicos’. Tal melancolia
estaria arraigada em suas almas, tornando-se “mais do que uma linha de seu próprio caráter,
uma linha do seu rosto”. A causa de tal melancolia é atribuída ao abandono que sofreram
por parte das agências estatais. Definindo-os como “homens esquecidos”, a Igreja
assumiria a tarefa de assisti-los para ‘a libertação de suas misérias físicas e espirituais’.
Pode-se observar que se confere grande ênfase à escolarização, como também à
sanidade. Sabemos que não se trata de uma peculiaridade dos capuchinhos úmbrios, mas
de um projeto particular de mudança social. De fato, o que é implantado no território de
missão é um dispositivo que trata de reorganizar a vida social das populações atingidas.
Se os vídeos analisados até agora se concentravam na descrição da ‘realidade
indígena’ e, mais em geral, da realidade amazonense’, o último vídeo que apresento “Em
missão no Rio. 90 Anos de presença dos capuchinhos no Amazonas”, destaca a ponte e os
laços criado entre Úmbria e Amazonas nos últimos anos. Foi realizado em 2001.
Os atores entrevistados
171
deixam claramente revelar a rede de relações que os
capuchinhos teceram e seguem tecendo para manter e, em suas próximas intenções,
ampliar o circuito de pessoas que participam da missão.
170
No texto “Missionários ao inferno”, Picucci afirma que “Surpreende que os tikunas, bastante inteligentes,
como demonstra o fato de ter conseguido manter viva sua língua e uma organização interna particular,
tenham acabado caindo nas redes do falso profeta, distanciando-se do sacerdote que os estava conduzindo a
um progresso cheio de promessas.” (op.cit; 90) O movimento da Santa Cruz, guiado por irmão José, é um
tema extremamente sensível e ocupa grande parte dos textos e dos vídeos.
171
O Ministro Provincial Ennio Tiacci; frei Valério di Carlo que, naquele momento, era o Vice-Secretário
Provincial; frei Marcello Falini, ex-Secretário Provincial das Missões; frei Mariangelo da Cerqueto, mais
conhecido como “frei adivinho”, apoiador da missão; Alberto Michelini, jornalista e deputado parlamentar da
coalisão “centro-direita”; Leonardo Benedetti, leigo colaborador da Missão; Mons. Giuseppe Chiaretti,
Arcebispo de Perugia; Mons. Francesco Gioia, secretário pontifício do Conselho “Emigrantes”; Mons. Csaba
155
À maneira de introdução, o vídeo começa com a habitual apresentação da floresta
amazônica e, em seguida, entram os comentários relativos à história da missão e os elogios
aos primeiros missionários aventureiros que demonstraram heroísmo e grande sentido de
sacrifício. O Ministro Provincial Ennio Tiacci, comentando sua visita à Vice-província, faz
um paralelismo com São Francisco indo visitar ‘seus frades no distante Amazonas’,
ressaltando a alegria dos frades missionários ao sentirem a presença do padre provincial,
representando a Madre Provincia’. Comenta-se a vida dos frades e se aconselha a
concebê-los como irmãos, na medida em que dedicam suas vidas a testemunhar a e a
aportar ajuda à solução dos problemas cotidianos.
São destacadas as mudanças no método de evangelização aportados sucessivamente
pelo Concílio Vaticano II e a presença dos leigos das comunidades de base para a
catequese.
O Arcebispo Cardeal Ángelo Geraldo Majilla de São Salvador da Bahia acusa os
agentes que chegaram ao Brasil para explorar o ambiente, declarando enfaticamente a
necessidade da presença de missionários para testemunhar o Evangelho.
Com tal convite, Tiacci enumera as iniciativas e as diferentes agências empenhadas
em ajudar a missão
172
, apresentando a terra de Francisco’ como ainda muito generosa’,
doando seus missionários.
Para testemunhar tal generosidade, frei Bianco Epis no Amazonas explicita as
dificuldades dos missionários e a necessidade de ajuda por parte da ‘Madre Provincia’.
Frei Valerio di Carlo, ex-missionário no Amazonas, tem o papel de lembrar as
possibilidades de aportar benefícios a terras amazonenses, enumerando suas obras nos dez
anos de missão e sua incansável vontade de continuar ajudando de longe na Úmbria
juntamente com os leigos, cujo número e empenho continua crescendo.
A ‘comunidade’ segundo o sentido que lhe outorga Anderson (1992) da qual
fariam parte os capuchinhos e leigos é alimentada mediante tais instrumentos de
divulgação. Através desses meios é oferecida uma dimensão – no sentido espacial e
temporal da comunidade, na qual os atores sociais, apesar de não se conhecerem, vivem
emotivamente a participação.
Ternyák, Secretário da Congregação para o Clero; Cardeal Angelo Geraldo Majilla, Arcebispo de São
Salvador da Bahia; frei Pietro Bianco Epis, mestre dos noviços na Vice-província do Amazonas e atual
responsável pelas adoções à distância.
172
São as associações de leigos que apresentamos no segundo capítulo.
156
Da mesma forma, observamos que no site dos jovens da Ra.Mi. pode-se apreciar
uma janela intitulada “Amigos no Mundo”, na qual aparecem: o Bispo Magalhaes, frei
Bianco Epis e frei Benigno Falchi, dois capuchinhos amazonenses, uma leiga missionária
no Amazonas e frei Valerio di Carlo.
4.2 A contribuição dos leigos na representação da ‘alteridade distante’
Levamos em consideração a contribuição dos leigos na construção da representação
da realidade amazonense’, analisando os produtos realizados por eles nos últimos anos,
juntamente aos capuchinhos da nova geração
173
.
A revista “Amazzonia Fratelli Índios” é um periódico trimestral, mantido através da
contribuição livre dos seus leitores. Conta aproximadamente com vinte páginas, dedicadas
a várias questões enfrentadas pelos diferentes atores sociais que participam da rede de
relações que mantém sólida a ponte entre o campo católico da Úmbria e as atividades
desempenhadas pelos capuchinhos no Amazonas.
As temáticas enfrentadas podem ser resumidas de tal forma: 1) atualização dos
projetos avançados para os benfeitores que deram seu aporte econômico; 2)
correspondência da missão que geralmente se concretiza em narrativas sobre os
acontecimentos relativos à ação dos capuchinhos; 3) destaque para a figura do
‘missionário’ que costuma ser representado através de narrativas da vida daqueles que
dedicaram muitos anos à missão; 4) um espaço é inteiramente dedicado aos Ra.Mi que
contam sua própria experiência e comunicam suas reflexões; 5) outro espaço é dedicado à
temáticas como a solidariedade, a irmandade, a santidade; 6) comemoração da morte dos
capuchinhos missionários; 7) cada número da revista dedica uma parte às “lendas” e “usos
e costumes” indígenas; 8) um destaque particular é dado a informações relativas à situação
ecológica e a eventuais projetos a favor do reflorestamento do Amazonas; 9) atividades nas
paróquias e nas escolas a elas vinculadas em apoio aos indígenas; 10) as últimas páginas
são dedicadas normalmente às novidades no Amazonas, coletadas através de diferentes
fontes (Portal Amazonas, Radiobras, CIMI etc), aos projetos a serem financiados - cifras
enviadas e detalhes para envio de dinheiro.
173
Refiro-me, sobretudo, a frei Paolo Braghini.
157
Padre Bianco Epis, missionário no Amazonas e responsável pelas adoções à
distância- projeto que está dando resultados mais efetivos no que se refere aos recursos
econômicos - escreve constantemente para a revista. Sem entrar nos detalhes de seus
artigos, as recorrências e ênfases recaem nos seguintes aspectos: má nutrição, problemas
relativos às mães grávidas e às crianças em perigo de vida e como tais pessoas recorrem a
ele para melhorar suas situações, convidando os benfeitores a apoiá-las.
Frei Benigno Falchi é também uma figura relevante presente entre os artigos da
revista. Concentra-se em denunciar os diferentes interesses que estariam por trás das
agências que se ocupam da Amazônia, afirmando que a maioria têm “motivações
antropológicas” quando não econômicas diferentemente dos capuchinhos que se
movem em função da “caridade desinteressada”.
A acusação costuma estar sempre referida à “indiferença” que caracterizaria nossa
sociedade ocidental, comparando-a com a cotidianidade de uma família indígena ou
cabocla, as quais, em seu relato seriam ‘sem futuro nem passado”.
Por ocasião dos 20 anos da associação AIFI (2004), Bartolucci seu presidente
publica um suplemento “Amazzonia: la Foresta, il suo Popolo” no qual são enumerados
todos os perigos que ameaçam a floresta como também a sobrevivência dos indígenas,
imputando tais riscos aos interesses das multinacionais e à inércia do Estado brasileiro.
Enumeram os habitantes da selva (indígenas, caboclos, ribeirinhos, garimpeiros etc.),
definindo cada grupo mediante algumas características que os distinguiriam. Uma parte da
publicação é dedicada à ação dos missionários capuchinhos, definidos como os únicos que
não têm interesses escondidos e trabalham em nome da caridade humana. Portanto, para os
habitantes da selva, indistintamente, estes representariam os únicos “amigos e irmãos”.
Ao descrever os indígenas Ticuna são destacadas algumas características: “são de
raça puríssima”, “adoram desenhar”, “o ticuna tem um grande sentido da família”, “tem
diversos instrumentos musicais com os quais acompanham as danças. As melodias são
pouco desenvolvidas....”
Se expressa a preocupação de uma gradual ‘perda da identidade étnica’ e se elogia
o trabalho dos capuchinhos –sobretudo Fedele de Alviano e Arsenio Sampalmieri para
preservar sua cultura.
Um dos dados mais importantes talvez seja o espaço atribuído aos atuais projetos
de desenvolvimento sustentável no Alto Solimões que, como destaquei anteriormente,
prevê a participação das quatro regiões italianas e a diocese dirigida pelo Bispo Magalhaes.
158
Mencionei anteriormente a inclinação de Andrea Lombardi – Ra.Mi. – para a
escrita. Seus artigos podem ser lidos nessa revista, assim como também no blog que ele
mesmo constituiu. Lembramos que Andrea permaneceu três meses no Alto Solimões e
visitou várias comunidades Ticuna.
Ao descrever a comunidade de Porto Caldas, Andréa demonstra sua indignação
quando constata que tal comunidade conta somente com 27 almas, “duas famílias
abandonadas pela civilização”. Afirma ter conhecido duas moças que, naquele então,
estavam grávidas e presume que não se sabia quem eram os pais, além de constatar que as
jovens eram menores de idade. Explica, com tom irônico, que em tais circunstâncias
decide-se acreditar nas lendas milenares dos indígenas sobre o boto-cor-de-rosa, que seria
segundo ele uma espécie de justificativa para esconder a vergonha.
Ao constatar que entre as crianças da comunidade havia um que não participava dos
jogos que ele mesmo havia proposto, aproximou-se para perguntar-lhe o motivo. Para sua
surpresa, se conta que a criança tinha uma queimadura nas costas que não lhe permitia
mover os braços. Atribui a responsabilidade de tal situação à ausência de estruturas
médicas e à negligencia dos pais, que não teriam levado o menino a um hospital para
medicá-lo.
Em um dos relatos, descreve uma situação parecida, mas dedica ênfase em explicar
em que consistiria a “diversidade”. Trata-se do encontro com uma criança doente de
distrofia muscular. A família o consideraria “um erro da natureza” e seria incapaz de saber
a motivação da doença, enfatizando que “nem sequer são capazes de perguntar”,
retratando-os como vítimas de sua ignorância. A criança seria um “diverso entre os
diversos”, chegando assim à conclusão de que todos seríamos “diferentemente iguais”.
Ao descrever a língua ticuna, ressalta que é parecida ao som emitido pelos macacos,
fazendo alusões relativas também ao aspecto físico e a sua postura, como se fosse a prova
de um estado evolutivo passado.
O vídeo “Desfolhando o Amazonas” (2005) dos jovens da Ra.Mi. apresenta
algumas características que denotam diferenças e continuidades com a representação da
‘realidade’ do Amazonas dos vídeos capuchinhos.
Evidentemente, o estilo de narração se afasta enormemente daqueles dos
capuchinhos, e se concentra mais na expressão da própria experiência do que na descrição
do que os rodeia. Sem se deter em enumerar as características da população, ou da floresta,
159
tentam comunicar a ‘experiência’, transmitida através da história das emoções e
sentimentos que os acompanharam na viagem e que confiaram a um diário comum.
São fotos acompanhadas pelos comentários dos rapazes e de frei Paolo, com um
fundo musical que varia em função do estado emotivo que se quer propor.
Cabe destacar que as fotos oferecem imagens dos rapazes com pessoas dos
diferentes lugares que visitaram, brincando, abraçando-se etc.
Começa com a tela preta e uma voz em off que aparecerá em intervalos durante
todo o vídeo. Seria o diário falado, uma espécie de companheiro de viagem impaciente
para receber as riquezas das experiências dos rapazes. A voz que narra se intercala com as
vozes dos rapazes comentando a emoção da partida: os medos, as perguntas, as esperanças,
considerações sobre a opção por tal “aventura”, ressaltando a necessidade de ter coragem.
Passa-se à acolhida da comunidade em Manaus enfatizando o calor humano
demonstrado pelas pessoas que nem sequer conheciam. Manaus é descrita como uma
cidade contraditória edifícios enormes e tanta pobreza. Tal constatação –que denotaria a
indiferença das pessoas do lugar – os leva a manifestar a própria indignação.
É enfatizado o sacrifício de trabalhar na construção de um centro polivalente na
favela de Manaus, tal sacrifício, no entanto, os encheria de felicidade.
Afirmam serem tratados como heróis e a possibilidade de se tornarem tais é
devida à luz que os pobres projetam sobre eles.
Contrariamente, os ‘homens sem esperança’ seriam iluminados por pessoas que
dedicam sua vida à missão, como a presença das Missionárias da Caridade testemunhariam
com “a coragem e a honra de seguir os passos de Madre Teresa”.
As condições de vida seriam determinadas, entre outras causas, pela falta de
educação e é enfatizada uma espécie de ‘prisão cultural’ que os incapacitaria de se
libertarem da miséria na qual vivem.
A ‘experiência’ nas margens do rio Solimões é definida como diferente das outras,
sendo possível em tal etapa da viagem perceber o sabor da liberdade’. É enfatizada a
experiência comunitária, a socialização entre eles, a solidariedade, os espaços
compartilhados, a irmandade. Enunciam a felicidade de encontrarem os Ticuna “tentando
entender sua cultura e tradições sem criticá-los, observando-os respeitosamente para
trabalhar juntos no projeto
174
”.
174
Construção da “casa de farinha”.
160
Expressam a sensação de se sentirem catapultados atrás no tempo na natureza
ainda não contaminada e pessoas puras’. Ressaltam que “não importa a condição social, a
língua ou aspecto físico ou a religião, o que conta é o coração.”
Ilustram o ritual da Moça Nova a partir de sua participação, aparecendo nas fotos
com os corpos pintados. Os comentários sublinham a ‘experiência inesquecível’.
Os rapazes no deo como no site expressam a impossibilidade de provar a
‘felicidade’ em seu país de origem, contrariamente, tal estado de ânimo se concretizaria em
um lugar onde percebem uma vida social próxima à natureza, onde não há nada que pode
nos distrair da simplicidade’.
Cabe destacar que tipo de imagens são oferecidas no vídeo, nas revistas e no site. A
maioria são retratos de crianças seguidas por mulheres. Uma grande parte é dedicada aos
leprosos. Mas o que mais chama a atenção é a quantidade de fotos deles com os ‘infelizes’,
os momentos de felicidade na interação.
Os rapazes se limitam a denunciar um sistema genérico que causaria a situação da
infelicidade do ‘outro’. Os atores sociais protagonistas das fotos são apresentados
abstraindo-os de seus próprios contextos sociais, políticos e econômicos e convertidos em
‘vitimas passivas’, incapazes de atuar solitariamente.
161
Conclusões
Como nos esclarece Bourdieu (1982), a linguagem é uma poderosa instituição
social e não um simples meio de expressão. Antes deste autor, Malinowski (1935) tinha
nos oferecido suas considerações com relação à linguagem, enfatizando a necessidade de
uma análise contextualizada de como as palavras adquirem significado. Isto é, para que os
atos verbais se tornem eficazes é necessário que as pessoas que participam de uma
comunicação os reconheçam e isto é alcançado a partir de um treinamento regular. Deste
modo, para entender qualquer tipo de expressão (e que efeito deveria produzir), é
necessário conhecer tais doutrinas, crenças e interesses circulam no contexto.
A repetição dos estereótipos que encontramos nas várias sínteses consideradas ao
longo deste trabalho está apoiada na ambigüidade e na ambivalência das categorias
empregadas, impossíveis de serem consideradas de maneira fixa. Observamos que os
indígenas são classificados como “fatalistas”, “primitivos”, “simples”, “puros”, “pobres”,
“pobres de espírito”, “submissos”, “deficientes” e a terra amazonense seria povoada por
indivíduos que estariam esperando por ajudas providenciais. Tais argumentos são
encontrados seja nos escritos dos capuchinhos da velha geração, seja também nas gerações
mais novas, além de constatar sua presença nas nteses produzidas pelos leigos. Podemos
observar que tais categorias adquirem valor positivo ou negativo, segundo os paradigmas
discursivos que prevalecem em um determinado período histórico; quer dizer, se o
‘primitivismo’ aparecia como uma ‘qualidade’ negativa nos escritos precedentes ao
Concílio II como sinônimo da presença do demônio -, observamos que posteriormente a
tal evento, a mesma conotação se transforma em um elemento que “dignifica” os indígenas,
sendo postulada a presença da pureza da fé depositada em suas comunidades.
Bhabha (2005) nos oferece uma reflexão sobre a produção e repetição do
estereótipo colonial, indicando-nos sua qualidade:
“...é a força da ambivalência que ao estereótipo colonial sua
validade: ela garante sua repetibilidade em conjunturas históricas e
discursivas mutantes; embasa suas estratégias de individuação e
marginalização; produz aquele efeito de verdade probabilística e de
predictabilidade que, para o estereótipo, deve sempre estar em excesso do
que pode ser provado empiricamente ou explicado logicamente. Todavia,
a função da ambivalência como uma das estratégias discursivas e
psíquicas mais significativas do poder discriminatório –seja racista ou
sexista, periférico ou metropolitano - está ainda por ser mapeada.” (2005;
105-106)
162
Ainda que concorde com o autor em relação à construção de tal “separação” e a
contínua reiteração da “diferença” construída mediante tipificações e apresentando
“culturas homogêneas” – como também em relação à ambivalência dos estereótipos usados
como estratégias discursivas, não se pode, no entanto, considerar tais estratégias de um
ponto de vista “psíquico”, como o autor deixa entender. As diferentes classificações dos
indígenas, como também da população amazonense em geral, poderiam ser entendidas
como diferentes pré-julgamentos cristalizados na mente de tais indivíduos que participam
da mesma configuração. Contrariamente, concordo com as críticas de Thomas (1994)
dirigidas as análises de Bhabha, nas quais enfatiza a fragilidade das análises baseadas em
“universalizados termos psico-analíticos” que explicariam as representações dos ‘outros’
como “estratégias de desejos em discursos”. Tal redução das análises, comenta Thomas,
não nos oferece a possibilidade de entender que vantagem se obtém com uma determinada
classificação e, ainda, “if colonial discourse is described through the psychic dynamics of
self-other relations, or in a logic of camouflage or mimicry, it cannot be accorded this
historic peculiarity.” (ibidem; 49)
A partir de um enfoque histórico, Thomas argumenta sobre a necessidade de
concentrar a atenção nas expressões localizadas que produzem representações e teorias
peculiares. Em suas palavras:
“A project is neither a strictly discursive entity nor a exclusively
practical one: because it is a willed creation of historically situated actors
it cannot be dissociated from their interests and objectives, even if it also
has roots and ramifications which were not or are not apparent to those
involved. And a project is not narrowly instrumental: the actors no doubt
have intentions, aims and aspirations, but presuppose a particular
imagination of the social situation, with its history and projected future,
and a diagnosis of what is lacking, that can be rectified by intervention,
by conservation, by bullet or by welfare.” (:106)
Concordando com o autor, destaquei a peculiaridade da representação da alteridade
inserida nos produtos dos capuchinhos, como também dos leigos a eles vinculados. Ainda
que os discursos possam ter mudado, passando de uma desvalorização ou negação da
cultura indígena à sua valorização e conseqüente vontade de conservação, o projeto
assimilacionista que sustenta os diferentes discursos não mudou. De fato, como
salientado por Argañaraz (2004), as práticas dos capuchinhos no Alto Solimões fazem
parte de uma prática mais ampla da Igreja com vistas à ampliação da comunidade católica.
A ‘distância’ e a ‘diferença’, apesar de reiteradas nos discursos dos capuchinhos e
leigos, não parecem irredutíveis, como podemos constatar nos discursos raciais
163
segregacionistas analisados por Thomas, ou como poderíamos encontrar nas análises
antropológicas que sustentam a idéia de um absoluto relativismo. A possibilidade de
‘aperfeiçoamento’ dos indígenas, definidos como ‘imperfeitos’ ou ‘deficientes’, sustenta a
idéia de sua capacidade de transformação e, ao mesmo tempo, de avançar com suas
propostas de tutela em tal caminho, diferenciando-se de outras agências com as quais
disputam tal objetivo. A Amazônia é um território que atualmente concentra a atenção de
inúmeras agências internacionais. Os discursos dos capuchinhos se concentram em
destacar as ‘más intenções’ que as moveriam e os projetos exploradores que esconderiam.
Tais ‘perseguidores’ sustentam estratégias discursivas para avançar na construção do ‘bom
tutor’ dos indígenas ameaçados.
Pudemos observar que apesar das diferenças nas representações da alteridade
indígena e amazonense que atravessaram gerações capuchinhas, a distância entre ‘nós’ e
‘eles’ é constantemente reiterada. A comparação entre a realidade amazonense’ e a
suposta realidade ocidental’ - e, neste caso específico, com a ‘realidade italiana’ que
destaquei nas argumentações dos atores sociais entrevistados desempenha esse papel,
contribuindo para reiterar, como afirma Oliveira “the idea of Western supremacy and the
notion of a civilizing mission” (2005;105)
A constituição e reprodução de uma “geografia imaginária” – como Said (2001; 82)
nos elucidou brilhantemente – tem um papel crucial na perpetuação da legitimação da ação
colonial. Ainda que não se possa desconsiderar a força das bases ideológicas legitimadoras,
creio que as dinâmicas que acabam mantendo e talvez ampliando o circuito de pessoas que
viajam para a missão, como no caso focalizado, sejam sustentadas por forças que vão mais
além da adesão a uma ideologia.
Para contrabalançar a teoria foucaultiana sobre o poder do discurso, Thomas (1994)
propõe a teoria prática de Bourdieu, procurando estabelecer uma tensão analítica entre os
regimes de verdade e os momentos de uso na prática, quer dizer, a expressão prática do
discurso. Tal paradigma teórico facilitaria a possibilidade de dar maior importância às
ações e estratégias dos atores sociais e, no caso por ele tomado em consideração, tanto dos
colonizadores quanto dos colonizados, afirmando que “Neither colonial social relations,
nor their representational codes can be seen as structures that are simply reproduced; rather,
their persistence depends upon performance, upon practical mastery.” (1994; 60).
Se a proposta de Thomas se baseia na análise da pluralidade de agências,
destacando os projetos por trás dos discursos, as análises de Herzfeld sugerem uma
164
aproximação ainda maior das dinâmicas sociais. A escala se torna mais micro: a análise de
Thomas destaca as agências, a de Herzfeld (1992-2004), os agentes.
Este último autor também se inspirando no trabalho de Bourdieu se propõe a
evidenciar os usos sociais dos discursos, destacando sua manipulação contextual. A análise
não pode ser reduzida aos discursos oficiais voltados para a construção de verdades
incomensuráveis e descontextualizadas, que sustentam lógicas de inclusão e exclusão, mas
ao uso prático destes, explicitando assim o caráter multivocal e transnacional dos símbolos,
conceitos e palavras.
Observamos ainda que apesar dos discursos que atravessam as diferentes gerações
carregarem consigo continuidades, é possível apreciar diferencias. São essas diferenças que
me interessam enfatizar como produto do esforço dos diferentes atores que as produzem e
que estão inseridos na arena descrita no segundo capítulo do presente trabalho. As
diferentes técnicas de que se valiam para veicular tais discursos e os valores que nestes se
inscrevem, respondem à demanda de um público mais extenso, atingindo mais seguidores,
entendendo estes últimos como recursos de poder. No entanto, as inovações nos discursos
não podem ser radicais já que coloca em risco a exclusão daquele que as produzem. Deste
modo, se por um lado os esforços dos atores sociais buscam se diferenciar, construindo
discursos inovadores, por outro lado, tais esforços são dirigidos a medi-los. É nessa
oscilação que se percebe as continuidades, a perpetuação de relações de interdependências
e, junto com elas, a ‘tradição’ que as acompanha.
As técnicas de persuasão se concentram em destacar a própria experiência e ali é
possível ver a capacidade dos atores sociais, como também dos grupos, em manipular os
símbolos, construindo um imaginário ou renovando-o. Vimos as diferenças em tais
construções nos esforços, de um lado, de frei Luciano no Museu dos Índios do Amazonas,
onde se pode perceber a imagem negativa atribuída aos Ticuna, ficando evidente a
continuidade com as produções anteriores ao Concílio Vaticano II; e de outro, nas re-
elaborações posteriores ao Concílio promovidas por frei Paolo e o grupo Ra.Mi.,
enfatizando as características positivas dos mesmos indígenas. Atualmente, o grupo Ra.Mi.,
guiado pelos freis Paolo e Carlo, se vale de técnicas de persuasão mais eficazes,
conseguindo recrutar mais pessoas.
As elaborações de Boltanski (1993) nos oferecem vários estímulos de reflexão
sobre a comunicação do ‘sofrimento à distância’, destacando-se o papel dos sentimentos.
165
Tal temática é enfocada pelo autor ressaltando que os atores sociais realizam escolhas, seja
politicamente, seja moralmente ou emocionalmente.
O autor explica que a “política da piedade” nasce com a modernidade. Com o
processo de globalização, veríamos a relação entre piedade e política determinada pelo
aumento da distância entre espectador e infeliz, no meio da qual a figura do mediador
assume grande importância. A tensão entre “universalismo abstrato” e “comunitarismo
estrito” resultaria fortalecida, no momento em que o conhecimento do sofrimento a uma
distância fora do alcance de nossa intervenção direta desataria uma contradição
insustentável entre o aparato moral e sua aplicabilidade em contextos ‘distantes’ e
‘diferentes’.
Frei Paolo e os jovens da Ra.Mi., com a ajuda do vídeo por eles realizado, tratam de
mediar a elaboração moral do espectador, e o que estaria em jogo é a exaltação de um
‘compromisso emocional’.
No encontro do liceu de Assis, descrito no segundo capítulo, observamos o esforço
de diferentes atores sociais na tentativa de produzir um envolvimento emotivo do
espectador, mediante a descrição da miséria do infeliz; quer dizer, assistir o sofrimento do
‘outro’ não implica uma passividade por parte do espectador, senão uma progressiva
constituição de si como experiência reflexiva.
Entra em jogo também a faculdade de uma imaginação, como função de
coordenação de imagens e sensações universalmente comunicáveis, porque antecipadas por
um sentir comum. Tal mecanismo funcionaria apenas se a imaginação é alimentada por
fontes comuns que geram sensibilidades comuns.
Cabe destacar que tais sensibilidades são socializadas. Neste ponto, são cruciais as
análises de Barth (2000) sobre a “estrutura da ação social”. O autor nos oferece as
seguintes observações:
“O precipitado da interpretação dos atos na pessoa é a sua
experiência e, sinteticamente, em um plano mais distanciado, seus
conhecimentos e valores, que por sua vez podem retroagir sobre planos e
objetivos futuros, bem como sobre futuras interpretações de atos.
Devemos notar que as interpretações e reinterpretações podem
ser feitas ao mesmo tempo, nas interações, conversas e rememorações
junto a terceiros. Em tais ocasiões, pode haver transmissão de
conhecimento e de esquemas culturais, e também de informações
adicionais, inclusive avaliações referidas às reações ao ato e outras
conseqüências do mesmo. Esses processos de reflexão discursiva
promovem, entre os participantes, uma convergência de compreensão,
conhecimento e valores, levando também a um aprimoramento da
orientação do ator ante a realidade.” (2000; 174)
166
Os contínuos encontros entre os jovens da Ra.Mi. e os capuchinhos, as discussões
sobre as temáticas encontradas nas revistas, tornam-se fundamentais na determinação da
ação. De fato, sabemos que, uma vez que um indivíduo se aproxima do grupo Ra.Mi., a
viagem é precedida por uma série de encontros – a preparação espiritual, corporal e
cultural
175
nos quais, para além de informar sobre a missão, são performadas as
experiências daqueles que viajaram que, como destaquei no segundo capítulo, chegam a
ser o incentivo propulsor da ação participar do circuito Úmbria-Amazonas. Nos
encontros, os jovens rememoram a experiência comum no Amazonas, cantam juntos o hino
da Ra.Mi., voltam a assistir o vídeo, contam anedotas; são momentos nos quais os
discursos são elaborados e sucessivamente se transformam em slogan, que ao se
propagarem em coro adquirem força; a força das emoções compartilhadas que, aos olhos
de quem assiste sem ter ainda viajado, provoca o desejo - que se transforma em urgente
necessidade - de partir ou a frustração com a impossibilidade de realizá-lo.
Como vimos no vídeo da Ra.Mi., enfatiza-se o vínculo criado com os ‘infelizes’.
Seguindo as argumentações de Boltanski, a figura do mediador se mostra benévola e
voluntária, de forma que “la sympathie du spectateur se trouve donc nettement orientée,
dans ce cas, en direction de la bienfaitrice, de l’action bienfaisante qu’elle accompli en
faveur de la malheureuse peut lui témoigner en retour.” (idem;119)
A ‘compaixão’ e a ‘piedade’ são socialmente valorizadas na configuração social e
moral focalizada.
Vianna (2002), de forma complementar, afirma que:
“O reconhecimento do sofrimento do outro como algo capaz de
motivar ou justificar uma ação inscreve-se tanto na esfera da produção de
uma leitura de si mesmo, necessariamente colocada em termos morais,
quanto condiciona as formas pelas quais esse ato deve ser lido por outros,
externos à cena inicial, mas chamados a dela participar em um momento
posterior e profundamente decisivo, como o da homologação dessa
memória de relações estabelecidas pela compaixão. (idem; 213)
As representações da alteridade’ não têm a intenção de informar o público, mas de
criar uma experiência emocional. A ineficácia do Museu reside na impossibilidade de frei
Luciano de criar uma interação comunicativa como aquela que é alcançada pelo grupo
175
Tal definição da preparação se encontra no site dos Ra.Mi e se realizaria com a participação mínima de 3
fins de semana com o grupo.
167
Ra.Mi. guiado pelo frei Paolo, cujos esforços performáticos conseguem também superar os
de frei Valério, com suas frágeis técnicas de persuasão.
No entanto, a exaltação da experiência que une todos os atores sociais capuchinhos
e leigos, com suas diferentes técnicas, permite perceber mais um elemento de crucial
importância. Diferentemente do conhecimento ao qual todos podem acessar, a experiência
direta com os ‘necessitados’, sendo individual e interior, se transforma em uma
prerrogativa indispensável para alcançar uma maior aproximação a Deus e a Graça.
Enfoquei as viagens dos leigos ao Amazonas –com os guias espirituais como
‘experiências místicas’; isto é, o Amazonas se transforma num lugar onde alcançar uma
‘purificação’ ou ‘transformação pessoal’, uma aproximação a Deus e à Graça Divina
mediante o contato com populações consideradas ‘puras’, ‘pobres’ e depositárias da
original. A ‘experiência’ da communitas, com sua característica de liminaridade
(Turner:1974 [1969]), se transforma em um ritual de iniciação que modifica o status social
do indivíduo ao retornar à sua pátria, garantindo a inserção no grupo e a participação nas
oportunidades de prestígio em que circula. Além disso, como se ressaltou no segundo
capítulo, o acúmulo de tal experiência permite subir o degrau do status diferenciado,
revelando assim a construção do poder.
A ‘experiência’ é o elemento organizador que vem a ser formalizado, modelado e
institucionalizado.
Bourdieu esclarece que “A Igreja é também uma empresa de dimensões
econômicas, capaz de assegurar sua própria continuidade, apoiando-se em vários tipos de
recursos” (2003; 195). Entre estes, como o próprio autor sugere, a capacidade de manter o
controle sobre os cargos existentes. No contexto focalizado, os cargos são mantidos pelas
dinâmicas de interdependência entre os atores sociais e os incentivos que os mobilizam,
amplamente descritos no segundo capitulo.
Destaquei a peculiar relação que se instaura entre os capuchinhos e os leigos,
configurando-se como uma relação pastor-discípulo (Foucault, 1995). Segundo Foucault,
“En el Cristianismo el lazo con el pastor es un lazo individual, un lazo de sumisión
personal. Su voluntad se cumple no por ser conforme a la ley, ni tampoco en la medida en
que se ajuste a ella, sino principalmente por ser su voluntad” (1995; 113). A obediência em
tal relação, segundo o autor, seria considerada uma virtude em si mesma.
Mas a ‘obediência’, junto às outras regras normativas fundamentais para a entrada e
participação na Ordem capuchinha, como também na relação entre capuchinhos e leigos,
168
“are very general guides to conduct: they are used to judge particular actions ethically right
or wrong (Bailey, 1970; 5).
Como sugerem vários autores
176
, as regras normativas, mais do que prescreverem
ações, têm a tarefa de limitá-las, na medida em que os mesmos conceitos que as veiculam
são vagos, deixando amplo espaço para diferentes manipulações.
De acordo com tais considerações, e sem negar a força dos imperativos morais,
como também as crenças peculiares que se inscrevem nesta determinada configuração
social, foi preciso entender também quais são os possíveis incentivos que fazem com que
as pessoas nas interações focalizadas escolham aderir a uma determinada conduta. Isto é,
como Weber (1983) explicitou, a adesão ou submissão a uma dominação
177
repousa em
“Un determinado mínimo de voluntad de obediencia, o sea de interés (externo o interno)
en obedecer...” (idem; 170 - itálico original).
Em nosso contexto particular, as análises de Weber (1983; 2004) são ainda mais
importantes. O autor (2004) considera tanto as forças mágicas e religiosas, quanto os ideais
éticos do dever que decorrem delas, como os elementos formadores mais importantes da
conduta dos indivíduos. A adesão à conduta moral por parte dos capuchinhos e leigos é
voluntária
178
e a aquisição de prestígio social dentro de tais grupos se transforma em um
incentivo, contribuindo para a reprodução de uma organização social hierárquica.
Tomando em consideração as elaborações de Bailey (1970) sobre a relação entre
leaders e discípulos, os jovens da Ra.Mi. não apenas em em frei Carlo e Paolo o ‘ideal’
de um tipo de comportamento moral, mas também esperam deles uma contínua
demonstração. Como sugere este autor, “The ‘faithful’ (those who follow out of a sense of
righteousness) make their gift to the cause and so impose upon the leader the obligation not
merely to serve the cause, but also to shine forth as an exemplar of its ideals” (idem;37). Se
a humildade, o sacrifício e o desinteresse
179
são as atitudes valorizadas e se constituem
176
Refiro-me neste contexto particular a Barth (2000), Bailey (1970), Moore (1978) e Levi (1992).
177
A dominação no sentido que o mesmo autor lhe confere, isto é “...la probabilidad de encontrar obediencia
dentro de un grupo determinado para mandatos específicos (o para toda clase de mandato).” (1983; 17).
178
Concordando com as elaborações de Abu-Lughod (1988), uma determinada organização social não pode
se reproduzir sem as ações dos indivíduos e estes são motivados pelos desejos de ganhar respeitabilidade e
prestígio nas relações das quais participa.
179
Bourdieu (2003) explicita a necessidade de adquirir, mediante um processo de socialização, um habitus
desinteressado que responda à valorização de tal atitude em determinados campos. Para esclarecer sua teoria,
toma como exemplo as elaborações precedentes de Elias relativas à obrigação dos aristocratas de demonstrar
generosidade, sintetizada no dito noblesse oblige. Portanto, o autor sublinha que o desinteresse é
sociologicamente possível “por meio do encontro entre habitus predispostos ao desinteresse e universos nos
quais o desinteresse é recompensado.” (idem; 153)
169
como regras morais nesta configuração, os freis devem demonstrar constantemente suas
capacidades em respeitá-las, não apenas dentro da Ordem capuchinha, mas também em sua
relação com os leigos. Tal reputação vem a ser alcançada demonstrando publicamente seu
empenho desinteressado. Também os leigos que pretendem participar ativamente de tal
configuração social devem se submeter inevitavelmente à opinião pública. De acordo com
as considerações de Elias:
“Nenhum ser humano normalmente constituído aceita a opinião
que tem de si próprio e dos valores que preza se não a confirmada na
forma como é tratado pelos outros.
Esta interdependência constitutiva dos juízos de valor feitos por
indivíduos agrupados numa sociedade torna difícil, se não impossível,
que cada um em particular procure a realização das suas ambições através
de ações que não tenham qualquer hipótese de lhe dar, no presente ou no
futuro, uma recompensa, sob a forma de estima, de gratidão, de afeito, de
admiração, em suma, a confirmação e o aumento da consideração que
merece por parte dos outros. Esta interdependência de valores torna
improvável o desenvolvimento de um individuo que não assimile os
valores da sociedade onde nasceu e cresceu. È altamente improvável que
um individuo se possa manter isolado, sem tomar parte, de uma forma ou
outra, na luta por oportunidades que sente ou sabe que os outros também
desejam, sem querer realizar-se de uma forma que lhe traga também a
confirmação do seu mérito pela opinião que os outros tem de si “(Elias,
1987; 50)
O enfoque eliasiano se concentra principalmente em destacar a dimensão temporal
dos fenômenos sociais, como também os aspectos relacionais do poder e a distribuição de
seus recursos. Complementar às considerações de Elias, Barth afirma que:
“..transactions are of particular analytical importance because: (a)
where systems of evaluation (values) are maintained, transactions must
be a predominant form of interaction; (b) in them the relative evaluations
in a culture are revealed; and (c) they are a basic social process by means
of which we can explain how a variety of social forms are generated from
a much simpler set and distribution of basic values….Transactional
behavior takes place with reference to a set of value which serve as
generalized incentives and constraints on choice; it also takes place with
reference to a pre-established matrix of statuses, seen as a distribution of
values on positions in the form of minimal clusters of jurally binding
rights.” (1969; 5)
Este último autor, dedicando particular atenção às transações envolvidas no
conhecimento - cujo estudo permitiria uma aproximação à geração de concepções como
também das instituições - destaca a importância de descobrir as diferentes “economias
informacionais” através de “uma ‘antropologia do conhecimento’ que seja capaz de lidar
com materiais culturais heteróclitos e com uma ampla gama de organizações sociais, para
170
poder retratar as condições da criatividade dos que cultivam o conhecimento, bem como as
formas que daí decorrem.” (Barth, 2000; 143)
Tendo em mente as elaborações de Barth relativas às diferentes economias
informacionais reveladas na Nova Guiné e em Bali, onde os papéis de iniciador e guru
contribuem para a manutenção de diferentes organizações sociais, tratei de delinear as
transações de conhecimento que se inscrevem nas interações entre os capuchinhos e entre
estes e os leigos tentando extrapolar o modelo de processo que possibilita a reprodução da
diferenciação de status e posições entre os atores sociais da configuração social focalizada.
Destaquei que o conhecimento produzido por aqueles que vivenciaram a experiência na
missão, é transacionado “para cima”, quer dizer, em direção às pessoas que detém uma
posição de maior prestígio. Contrariamente, a ‘experiência’ costuma ser transacionada
“para baixo”. O sucesso de tais performances e, portanto, o esforço de tais intelectuais,
permite que a ‘clientela’ dos capuchinhos seja constantemente mantida e o circuito
Úmbria/Amazonas reforçado.
As performances sobre a experiência no Amazonas permitem suscitar um
imaginário sobre um mundo exótico-misterioso-arcaico carregado de fascínio. Sobretudo,
permite aos atores sociais manifestar seus valores morais, demonstrando suas capacidades
de escolher um caminho baseado no ‘espírito de sacrifício’, na “renúncia de si”,
parafraseando Foucault (1995).
Se os valores morais que circulam na configuração úmbria em questão – entendidos
como cânones de juízos que as pessoas impõem sobre coisas e ações (Barth, 1969)
conseguem ser mantidos, é porque as transações se apóiam nessa matriz de status pré-
estabelecida, uma distribuição de valores sobre as posições.
Da mesma forma, e antes de Barth, Elias (2000) destacou a importância de um
estudo configuracional que ressalte a interdependência entre grupos e atores sociais,
propondo dirigir a atenção às fontes dos diferenciais de poder que ali se inscrevem, para
não cair na tentação de explicar os fenômenos sociais a partir de qualidades intrínsecas aos
grupos ou indivíduos. Considerando essa sugestão como crucial, concentrei-me em
descobrir tal ‘fonte’ e como esta permite uma determinada distribuição de chances de
poder.
Supus que a ‘experiência’ cria o diferencial e o organiza. A possibilidade de
sustentá-lo mediante as relações de interdependência com os esforços dos atores sociais
que implicados, permite a manutenção da ‘tradição de glória’ que os capuchinhos
construíram.
171
A possibilidade de que tal tradição consiga se reproduzir merece considerações com
relação às suas conseqüências, preocupação do presente trabalho; isto é, a possibilidade de
continuar legitimando práticas colonialistas no presente assim como no futuro.
A produção de um imaginário sobre os grupos indígenas Ticuna que vimos emergir
no Museu dos Índios do Amazonas, como também através dos outros instrumentos de
divulgação da missão, alimenta a reprodução de estereótipos que acabam sustentando uma
estrutura de dominação tutelar
180
.
A representação dos indígenas Ticuna que flui nas narrativas de frei Luciano,
classificando suas práticas religiosas como ‘supersticiosas’ e, por isso, associando-as aos
cultos pagãos, merece uma atenção posterior.
O universalismo da Igreja católica, sustentado por um critério de verdade e
infalibilidade que se inscreve na tradição cristã, levou e ainda leva a considerar as
outras práticas religiosas como ‘demoníacas’ ou ‘falsas’, reiterando uma distância que
acaba por negar um diálogo com as populações que pretende tutelar. Além disso, foi
possível observar que a valorização das culturas indígenas enquanto depositárias de uma
originária e pura - promovida pelo Concílio Vaticano II - traz os ‘outros’ a ‘eles’: isto é, os
outros são explicados a partir de uma visão etnocêntrica, reforçando os preconceitos nela
existentes.
Que acontecerá com o Museu dos Índios do Amazonas quando frei Luciano se
aposentar? Quem será que entrará em seu lugar para construir a representação dos Ticuna e
de que maneira esta se sustentará?
O patrimônio salvaguardado em tal museu pela Ordem, é um patrimônio que detém
uma importância crucial para ela, para a humanidade e, sobretudo para os indígenas Ticuna,
que tem todo direito de poder atingir os conhecimentos que os objetos hospedados em tal
espaço podem oferecer.
180
Como aponta Oliveira: “À diferença de outras formas mais explícitas e utilitárias de dominação, a relação
de tutela se funda no reconhecimento de uma superioridade inquestionável de um dos elementos e na
obrigação correlata, que esse contrai (para com o tutelado e com a própria sociedade envolvente) de assistir
(acompanhando, auxiliando e corrigindo) a conduta do tutelado de modo que o comportamento deste seja
julgado adequado - isso é, resguarde os seus próprios interesses e não ofenda as normas sociais vigentes.
(1988; 224-225 itálico original). A “ideologia protecionista” da qual Oliveira revela os paradoxos para além
das conseqüências que gera, pode ser pensada como inscrita nas mais abarcadoras práticas de sujeição da
tradição cristã (Foucault, 1995) como na relação pastor-discípulo, que se supôs existir entre os capuchinhos e
leigos missionários e que pela vontade assimilacionista que incorpora- pretenderia instaurar-se na relação
entre capuchinhos e Ticuna e, em termos gerais, com a população amazonense. Por uma análise da relação de
dominação tutelar, veja-se também Oliveira (2005), Souza Lima (1995) e Vianna (2002).
172
Será necessário, portanto, que as portas do museu e de seus arquivos se abram a
diferentes leituras, às análises científicas - históricas e antropológicas - dos objetos ali
depositados, para viabilizar a reconstrução dos contextos sociais nos quais foram
produzidos, cujo resultado pode ajudar a não reproduzir, novamente, as práticas
colonialistas neles inseridas
Mais e, sobretudo, dando a possibilidade aos próprios Ticunas de
participarem ativamente na construção da sua própria história e na definição de seu
próprio grupo, inaugurando o início de uma relação mais simétrica com quem até agora os
excluiu.
173
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Ed. Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa.
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sobre a Crítica da Cultura. Ed. USP, São Paulo.
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Documentos Pontifícios
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• Decreto Ad Gentes. A atividade missionária da Igreja (07-12-1965)
Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Sobre a Igreja no mundo contemporâneo
(07-12-1965)
Encíclica Redemptoris Missio. Sobre a validade permanente do Mandato
Missionário (07-12-1990)
Documentos OFM Capuchinhos
• Constituição dos Frades Menores Capuchinhos
• CPO VII Conselho Plenário da Ordem (2004)
Relatório Capítulo XI Vice-Provincial. Menores e itinerantes para a Missão no
Amazonas (2/7-02-2004)
• Guia da Formação Inicial na VIPROCAM (1989)
Fontes Bibliográficas Capuchinhas
1916- Missione di Alto Solimões affidata ai Minori Cappucini Umbri. Cooperativa
tipográfica Manuzio. Roma
1961- I Cappuccini Umbri. Mons. Adalberto Domenico Marzi O. Cap. Consacrato
Vescovo dell’Alto Solimões nel 50 della Missione. Foligno
1975- Missionari Cappuccini. Con noi in Amazzonia. Avventure costumi e leggende.
Tipografía Tiberina, Perugia
1978- Centro Missionari Cappuccini in Amazzonia. Indios e “civiltà”, testo tratto
dall’intervista a P. Arsenio Sampalmieri, Missionario Cappuccino, alla radio libera
“Gente umbra” di Foligno, Ufficio Missionario, Assisi, Perugia
Revistas
Il Massaia
1978- n. 12
1979- n. 1- 4-5-6-7-8-9-10-12
1980- n. 1
Continenti
2003- n. 7
2004- n. 1-10
180
2005- n.1-2-10
Voce Seráfica di Assisi
1967- n. 3-4-5-6
1980- n. 21
1981- n. 10
1985- n. 3-4-5
Amazzonia Fratelli Indios
2004- n. 4-5
2005- n. 1-2-3-4-5-6
Vídeos
1980- Con Noi in Amazzonia. I Cappuccini di Assisi nel Fiume Amazzonico (1910-
1980) 70 anni di attivitá.
1982- Alfabetizzazione ed Evangelizzazione
2001- In Missione sul Fiume. 90 anni di Presenza dei Cappuccini in Amazzonia
2005- Sfogliando l’Amazzonia
Sites
www.viprocam.com.br (site da Vice-Província dos Capuchinhos do Amazonas)
www.ofmcappuccini.umbria.it (site da Província da Úmbria)
www.ragazzimissionari.it (site dos jovens missionários Ra.Mi.)
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
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