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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE SAÚDE PÚBLICA
De pacientes a cidadãos: a trajetória da Associação
Loucos pela Vida” no município de Mogi das Cruzes -
SP.
Letícia de Souza Lucas
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Saúde Pública para obtenção do
título de Mestre em Saúde Pública.
Área de Concentração: Saúde Materno Infantil.
Linha de Pesquisa: Sociedade Contemporânea,
Ciências Sociais e Saúde Pública
Orientadora: Profa. Dra. Maria da Penha Costa
Vasconcellos
o Paulo
2007
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1
De pacientes a cidadãos: a trajetória da
Associação “Loucos pela Vida” no município de
Mogi das Cruzes -SP.
Letícia de Souza Lucas
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Saúde Pública da Faculdade de
Saúde Pública da Universidade de São Paulo
para obtenção do título de Mestre em Saúde
Pública.
Área de Concentração: Saúde Materno Infantil.
Linha de Pesquisa: Sociedade Contemporânea,
Ciências Sociais e Saúde Pública
Orientadora: Profa. Dra. Maria da Penha Costa
Vasconcellos
o Paulo
2007
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É expressamente proibida a comercialização deste documento, tanto na sua
forma impressa como eletrônica. Sua reprodução total ou parcial é
permitida exclusivamente
para fins acadêmicos e científicos, desde que na
reprodução figure a identificação do autor,tulo, instituição e ano da tese /
dissertação.
3
AGRADECIMENTOS
Aos participantes da Associação “Loucos pela Vida” por sua determinação em
trabalhar pela ressignificação da loucura em nossa sociedade.
À Profª Drª Maria da Penha Costa Vasconcelos, orientadora, pela efetiva
orientação e por sua disponibilidade em acreditar em meu potencial e me acompanhar na
elaboração deste trabalho.
Aos meus queridos pais, Adão e Isabel, por terem se dedicado à garantia de meus
estudos e, também, pelo apoio e incentivos constantes.
À Profª Drª Ianni Régia Scarcelli por sua inestimável contribuão na
Qualificação do Projeto de Pesquisa e também na Pré Banca.
Aos professores do Departamento de Saúde Materno Infantil, Rubens Adorno e
Augusta Alvarenga e também à Magali que, ao longo do processo de pesquisa,
trouxeram contribuições fundamentais para a concretização desta dissertação.
Aos meus queridos sobrinhos, Bruno e Murilo, por sua alegre existência em
minha vida.
Às minhas irmãs, Etiane e Denise e aos meus cunhados, Ronaldo e André, por
terem me apoiado e compreendido minha ausência.
Às amigas-irmãsnia, Ana, Angélica, Rosana, Débora, Vivian, Sandra e Stella
pelo incondicional apoio.
4
Às eternas amigas Lara e Patrícia.
Às amigas Sueli Benante, Denise, Rita e Cláudia pelo estímulo e por
compartilharem as anstias que me afligiram ao longo do processo de gestação da
dissertação.
À Wilma Henriques pelo essencial apoio emocional.
À Diva Moreno, pela sua disponibilidade em acreditar e me orientar antes mesmo
do ingresso na pós-graduação.
À minha família e a todos que, de alguma forma, me incentivaram e apoiaram.
5
RESUMO
LUCAS, L. S. De pacientes a cidadãos: a trajetória da associação “Loucos pela
Vida” no município de Mogi das Cruzes-SP. [Dissertação – Mestrado].o Paulo:
Faculdade de Saúde Pública da USP; 2007.
A atual legislação brasileira em saúde mental é fruto de uma longa luta que teve
inicio com os trabalhadores da área, que fundaram o Movimento da Reforma
Psiquiátrica no final dos anos de 1970. É somente com a participação dos usuários e de
seus familiares, organizados em associações civis, que este movimento aproxima-se da
sociedade civil e inaugura uma nova etapa: o Movimento da Luta Antimanicomial. As
associões civis em sde mental constituem um movimento social recente e têm por
meta promover o exercício da cidadania das pessoas com sofrimento psíquico por meio
de atividades sociais, econômicas, políticas e culturais.
Escolhemos para análise, no município de Mogi das Cruzes - SP, a Associação
“Loucos pela Vida”, entidade de composição mista que funciona em um espaço cedido
pelo Ambulatório de Saúde Mental da cidade, com o objetivo de compreender a
trajetória da Associação, abordando sua constituição, configuração das relações
existentes entre os diferentes participantes e diversidade de ações nos espaços das
políticas públicas de saúde no município de Mogi das Cruzes/SP, com o objetivo de
compreender a contribuição das associações civis em saúde mental no processo de
modificação do lugar social historicamente atribuído às pessoas com sofrimento
psíquico, tendo em vista o exercício da cidadania.
Para alcançarmos tal objetivo, recorremos a fontes documentais e relatos orais, entre
associados-usuários e associado-trabalhadores, da referida associação.
Descritores: Associão civil. Saúde mental. Cidadania. Relatos orais
6
ABSTRACT
LUCAS, L.S. De pacientes a cidadãos: a trajetória da associação “Loucos pela Vida” no
município de Mogi das Cruzes – SP / From patients to citizens: the route of the
association “Loucos pela Vida”(Crazy for life) in the city of Mogi das Cruzes – SP.
[Dissertation]. São Paulo (BR): Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São
Paulo; 2007.
The current Brazilian legislation in mental health is the fruit of a long fight that
started with the workers of the area, who founded the Psychiatric Reform Movement at
the end of the 1970’s. It is only with the participation of the users and their families,
organized in civil associations, that this movement approaches the civil society and
inaugurates a new phase: the Movement of the Anti Mental Institution Fight. The civil
associations in mental health comprise a recent social movement and have the goal of
promoting the citizenship exercise of the people with psychic suffering by means of
social, economic, political and cultural activities.
We chose the Associação Loucos pela Vida” (Crazy for Life Association) in the
city of Mogi das Cruzes – SP; a mixed-composition institution that operates in a space
granted by the Mental Health Ambulatory of the city, with the objective of
understanding the route of the Association, covering its constitution, configuration of the
relations existing among the different participants and diversity of actions in the spaces
of the health public policies in the city of Mogi das Cruzes/SP, with the objective of
understanding the civil associations contributions in mental health in the changing
process of the social place historically attributed to the people with psychic suffering,
aiming at the citizenship exercise.
To achieve such objective, we resorted to documental sources and oral reports,
among the associates-users and associate-workers, of the referred association.
Key words: Civil association. Mental Health. Citizenship. Oral reports
7
ÍNDICE
1. APRESENTAÇÃO 6
2. INTRODUÇÃO 8
2.1 A psiquiatria basagliana e a desconstrução de um saber/fazer em psiquiatria. 12
CAPÍTULO I 18
A Reforma Psiquiátrica brasileira e o surgimento das associações de usuários e
familiares em saúde mental.
CAPÍTULO II 24
As transformações nas poticas públicas de assistência às pessoas com sofrimento
psíquico.
1) Contraposição ao modelo hegemônico: “por uma sociedade sem manimios”. 27
2) Em busca de um novo olhar sobre o sofrimento psíquico: os serviços substitutivos. 29
3) As modificações na legislação e a atual potica nacional de saúde mental 33
CAPÍTULO III 38
Associações civis em saúde mental: lutando pela cidadania das pessoas com
sofrimento pquico.
Que cidadania queremos? 43
CAPÍTULO IV 46
A AssociaçãoLoucos pela Vida” de Mogi das Cruzes – SP
1) A cidade de Mogi das Cruzes e a atenção em saúde mental 47
2) A Associação “Loucos pela Vida”: constituição, objetivos e trajetória 51
3) Representando os interesses dos usuários: “radiografia” de sua ação potica 57
CAPÍTULO V 61
Construindo os caminhos da pesquisa
Hipótese 62
Objetivo 62
Caminho metodológico: 63
Natureza da pesquisa e levantamento de dados 65
8
Seleção dos sujeitos da pesquisa 68
Desenvolvimento da pesquisa 69
Categorias empíricas:
Trabalho e sentimento de utilidade; 73
Amizade e solidariedade; 77
Loucura X sanidade; 82
A instituição e suas diferentes significações; 85
Percepção sobre os direitos de cidadania e comportamento político. 89
CAPÍTULO VI 95
Análise e discuso dos dados empíricos
O trabalho: fonte de vida e de dignidade 96
O encontro de novas possibilidades através da amizade e da solidariedade. 102
As limitações são decorrentes do sofrimento psíquico ou do preconceito? 105
Espaço físico, espaço terapêutico, espaço de sociabilidade... espaço de vida! 107
“Loucos ou não somos todos cidadãos”. 109
CAPÍTULO VII 112
Considerações finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 116
FONTES DOCUMENTAIS 124
ANEXOS 126
1- Consentimento livre e esclarecido 127
9
1. APRESENTAÇÃO
O presente trabalho começou a ser pensado a partir de minha experiência como
psicóloga do Ambulatório de Saúde Mental no município de Mogi das Cruzes – SP.
Nesta unidade, a cerca de seis anos foi criada uma associação de usuários, familiares e
trabalhadores em saúde mental – a Associação “Loucos Pela Vida”. Desde que tomei
contato com a associação, venho participando de suas atividades e, cada vez mais, sendo
partidária de seus objetivos e ideais.
Na prática, lida-se cotidianamente com os avanços e as dificuldades provenientes
da relação entre a unidade estadual de saúde e a organização não governamental (ONG)
que ali surgiu, com o objetivo de realizar ações que concretizem o avanço da Reforma
Psiquiátrica brasileira.
As associações civis em saúde mental constituem um movimento social recente,
que tem por meta lutar em defesa dos direitos das pessoas com sofrimento psíquico
1
.
Suas demandas e ações sinalizam déficits na saúde pública, apontando o que está
funcionando ou não no modelo assistencial. Mais do que isso, estas associações atuam
em favor do avanço do processo democrático, exigindo espaço para as solicitações e
igualdade em direitos e deveres a uma população historicamente excluída social e
economicamente.
Neste mesmo caminho, a Associação “Loucos pela Vida” de Mogi das Cruzes -
SP vem ganhando importância no cenário das políticas municipais de saúde,
conquistando respeito da sociedade civil através de ações de inclusão social dos
portadores de transtornos mentais na comunidade e de efetiva participação nas
discussões das poticas de saúde no município.
Além disso, observando mais atentamente, captamos mudanças significativas em
relação à conscientização sobre a doença mental e sobre a organização da área da saúde
1
Utilizamos a conceituação pessoas com sofrimento psíquico causado por diversos fatores neurológicos,
fisiológicos, econômicos, culturais, sociais etc em distinção à definição psiquiátrica de “doença mental”.
10
entre as pessoas que dela participam, principalmente dos usuários. Deste modo,
avaliamos ser importante desvelar e compreender seu funcionamento.
Assim, iniciamos a presente dissertação considerando as contribuições de Franco
Basaglia para a desconstrução de um saber/fazer em psiquiatria e a possibilidade de uma
nova relação com a loucura. Ao invés do manicômio, o tratamento na comunidade.
No primeiro capítulo abordamos o Movimento da Reforma Psiquiátrica
Brasileira, sua origem, seus alcances e limitações. É partindo deste movimento que
surgem as primeiras associações de usuários e familiares em saúde mental no país.
No segundo capítulo consideramos as transformações nas poticas públicas de
assistência às pessoas com sofrimento psíquico, com especial atenção ao surgimento dos
serviços substitutivos e às modificações na legislação sobre o tema. Tais modificações
consistem na atual potica nacional de saúde mental.
No terceiro capítulo voltamos nossa atenção para as associações civis em saúde
mental e seu movimento em pró da cidadania das pessoas com sofrimento psíquico.
Preocupamo-nos, também, em definir mais especificamente de que cidadania esse
movimento se refere.
No quarto capítulo tratamos pormenorizadamente da Associação “Loucos pela
Vida” de Mogi das Cruzes.
No quinto catulo apresentamos nosso referencial metodológico, apontando os
caminhos percorridos para se construir o presente estudo e as categorias empíricas
apontadas nos relatos orais. É no sexto catulo que analisamos e discutimos as
categorias empíricas abordadas.
Para finalizar, tecemos uma análise de todo o processo de construção da presente
dissertação de mestrado, bem como da trajetória que a Associação “Loucos pela Vida
vem construindo.
11
2. INTRODUÇÃO
Desde os primórdios até a atualidade a loucura foi vista e assistida de diferentes
formas na civilização ocidental. Houve época em que aparecia diluída entre os homens,
convivendo-se com ela naturalmente; em outras, era considerada possessão” e
compreendida como tendo causas místicas e religiosas.
É a partir de 1793, com a primeira revolução psiquiátrica iniciada por Pinel, que
a loucura passa a ter o estatuto de doença mental, requerendo um saber médico e o
desenvolvimento de técnicas específicas para seu tratamento. A prática social adotada
foi a reclusão dos incapazes, com a conseqüente separação dos loucos dos demais,
visando estudá-los e, assim, tentar obter a cura. O espaço destinado para tal, habitado
apenas pela loucura, é o asilo. Como cita AMARANTE et al (1995) a transformação na
percepção social da loucura revela a passagem de uma visão trágica para uma visão
crítica. “A primeira permite que a loucura, inscrita no universo de diferença simbólica,
se permita um local social reconhecido no universo da verdade; ao passo que a visão
crítica organiza um lugar de encarceramento, morte e exclusão para o louco(p.23).
Este modelo de assistência foi tão amplamente difundido, que influencia a prática
psiquiátrica até os dias atuais. CINTRA JUNIOR (2001) afirma que “os manicômios
continuam sendo a ponta mais aguda do processo de exclusão. É uma estrutura de
completo desrespeito aos direitos fundamentais da pessoa humana” (p. 79). O autor
reforça que a exclusão terapêutica, implantada através dos hospitais psiquiátricos é
apenas uma das formas de exclusão social a que os portadores de transtornos mentais
estão sujeitos. Tal processo manifesta-se de diferentes formas, tais como: a exclusão
jurídica (pela interdição); a exclusão nos assuntos dorculo familiar (os segredos, os
pactos de depenncia, a vergonha, a construção permanente de fracassos); a exclusão
no trabalho (a aposentadoria por doença incapacitante, a noção de emprego “de favor”);
a exclusão no processo educacional (o estigma das classes especiais ou do apontamento
pelos colegas da situação de diferença).
12
No Brasil, o primeiro hospital psiqutrico, o Hospício D. Pedro II, foi criado em
1852, na cidade do Rio de Janeiro, então capital federal. RESENDE (2001) defende,
dentre outras importantes considerações, que a criação das primeiras instituições
psiquiátricas brasileiras respondem a uma exigência sócio-urbana para que os loucos
fossem retirados das ruas, e acrescenta:
Remover, excluir, abrigar, alimentar, vestir, tratar. O peso
relativo de cada um desses verbos na ideologia da nascente
instituição psiquiátrica brasileira pendeu francamente para
os dois primeiros da lista, os demais não entrando nem
mesmo para legitimá-los. A função exclusivamente
segregadora do hospital psiquiátrico nos seus primeiros
quarenta anos de existência aparece, pois, na prática, sem
véus ou disfarces de qualquer natureza (p. 39).
Examinando a composição da clientela do Hospício Pedro II em seus primeiros
tempos, observamos que esta era composta, em sua grande maioria, por brancos e
mestiços; ou seja, homens livres, que constituíam a população errante dos
marginalizados das cidades, dos vadios, dos arruaceiros, dos sem-trabalho. Tal
constatação reflete a função assumida pelo asilo: a de excluir da cidade os focos de
desordem preservando, assim, a ordem e a paz social.
No entanto, devido à função moralizadora assumida pela psiquiatria, a população
de internados não pára de crescer. Frente a este fato, faz-se necessária a adoção de novas
estratégias terapêuticas. Neste momento, em todo o Brasil, vigora uma nova proposta
terapêutica: a organização de colônias agrícolas em que o trabalho agrícola ou em
pequenas oficinas seja adotado, de modo que o paciente seja recuperado através do
trabalho e possa ser devolvido à comunidade como um cidadão útil (RESENDE, 2001).
Em São Paulo, Franco da Rocha, em 1898, fez construir o Hospício Colônia do
Juqueri, baseando-se na idéia da colônia agrícola como solução global para o problema
do louco. No entanto, esta proposta rapidamente cai em desuso, por apresentar poucos
resultados, restando às colônias agrícolas partilhar da mesma função social que coube
aos hospitais psiquiátricos; ou seja, separar os loucos dos considerados normais, como
cita RESENDE (2001):
13
Malogradas as intenções de recuperação do doente
contidas nas propostas de seus criadores (mesmo porque
esta demanda talvez jamais lhes tenha sido feita pela
sociedade), restava ao hospital agrícola ater-se à única
função que já caracterizava a assistência ao alienado no
país, desde a sua criação; a de excluir o doente de seu
convívio social e, a propósito de lhe proporcionar espaço e
liberdade, escondê-lo dos olhos da sociedade (p. 52).
Com o passar do tempo a situação foi se tornando caótica: o hospital do Juqueri,
em São Paulo, por exemplo, abrigava de quatorze a quinze mil doentes na década de
1950. Esta situação de superlotação, deficiência de pessoal e maus-tratos se repetia por
todo o Brasil (RESENDE, 2001).
Neste momento histórico surgem as primeiras propostas e tentativas buscando
diversificar o cuidado às pessoas com sofrimento psíquico, que até então esteve restrito
aos asilos.
RIBEIRO (1999) aponta que somente a partir da década de 1960, com o
surgimento da psiquiatria preventiva, cujo maior expoente é Gerald Caplan, é que se
inicia um processo de questionamento dos manicômios e da internação psiquiátrica. A
partir deste momento, a ênfase recai sobre o atendimento ambulatorial e a adoção de
ações preventivas e multidisciplinares.
No Brasil, nos anos de 1940 são criados os primeiros ambulatórios psiquiátricos,
com o objetivo de acompanhar o egresso da internação em hospital psiquiátrico e, além
disso, disseminar aconselhamento genético almejando a prevenção dos distúrbios
mentais. No entanto, tal iniciativa caminha timidamente, sendo que em 1961 contavam-
se apenas 17 ambulatórios em todo o país (RESENDE, 2001).
É neste contexto que se passa a adotar o termo Saúde Mental, como cita
AMARANTE et al. (1995): “a psiquiatria preventiva representa a demarcação de um
novo terririo para a psiquiatria, no qual a terapêutica das doenças mentais dá lugar ao
novo objeto: a saúde mental”. (p. 36)
RIBEIRO (1999) apresenta a seguinte conceituação de Saúde Mental:
A Saúde Mental é vista como um grande campo de
conhecimento e uma grande área de atuação que congrega
14
várias ciências e categorias profissionais visando estudar,
pesquisar e entender o homem num enfoque bio-psico-
social e sua relação com o normal e o patológico; prevenir
as manifestações psicopatológicas que poderiam advir-lhe;
utilizar técnicas e métodos de diagnóstico e tratamento das
doenças mentais, dos distúrbios de comportamento e das
diversas formas de anormalidade da vida psíquica (p.12).
AMARANTE (1996) chama-nos a atenção para o ‘efeito rebote’ da psiquiatria
preventiva que ao criar numerosos serviços e especialidades de atendimento, visando à
prevenção e a promoção da saúde mental, também aumenta o número de pessoas
assistidas, tendo por referencial a idéia utópica de uma sociedade sem doenças ou mal-
estar, o que, na prática, impede transformações substanciais na assistência, como cita: o
preventivismo tem sido importante referencial teórico para uma inédita estratégia de
patologização e normalização do social, fornecendo novas tecnologias e referências para
a inscrição do sofrimento psíquico e do mal-estar social no rol das patologias” (p.17).
Em outra direção, podemos encontrar Franco Basaglia que, também na década de
sessenta do século XX, rompeu com os padrões pinelianos, iniciando a ruptura da
segregação engendrada com a utilização da estrutura manicomial pela psiquiatria,
trazendo a humanização e inaugurando os prinpios da desinstitucionalização nas
relações com as pessoas com sofrimento psíquico.
Sob a ótica basagliana, desinstitucionalizar não se restringe a desospitalizar; ou
seja, a extinguir os manicômios. Mas, de modo mais abrangente, significa “entender
instituição no sentido dinâmico e necessariamente complexo das práticas e saberes que
produzem determinadas formas de perceber, entender e relacionar-se com femenos
sociais e históricos” (AMARANTE et al, 1995, p. 49).
Assim, ao engendrar um movimento de reforma do atendimento psiquiátrico em
Gorizia, e depois em Trieste na Itália, Franco Basaglia demonstra que existem
alternativas ao hospital psiquiátrico. Os resultados de seu trabalho são largamente
divulgados em todo o mundo e influenciaram sobremaneira o Movimento da Reforma
Psiquiátrica no Brasil.
15
2.1. A psiquiatria basagliana e a desconstrução de um saber/fazer em
psiquiatria.
Franco Basaglia (1924-1980) liderou um importante momento histórico: o
processo de reforma psiquiátrica na Itália. Sua contribuição é de grande importância,
sendo reconhecida cientificamente e considerada referência internacional.
Tal processo tem como propulsor o questionamento da lógica produtiva a que
está submetido o trabalho dos psiquiatras e, deste modo, a atenção dada aos pacientes:
uma atenção centrada no manicômio, que na intenção de preservar o paciente tem, acima
de tudo, a função social de proteger a sociedade, como defende AMARANTE (1996): “a
doença mental, objeto construído pela psiquiatria, tem sido a justificativa que sustenta a
exclusão daqueles que são considerados enfermos. A realidade manicomial, contudo,
vem demonstrar que o que se exercita sobre a doença objetivada é mais um ato de
violência que um ato de cura ou libertação” (p. 77).
Em sua experiência de trabalho no manicômio de Gorizia, iniciada em 1961,
Basaglia encontrou um triste cenário de violência e opressão: internos fechados a chaves
em pavilhões e em celas de isolamento (AMARANTE, 1996). Tal situação motiva-o a
engendrar um processo de transformação do hospital. Para tanto, Basaglia buscou
referências em Tosquelles (psicoterapia institucional) e Maxwell Jones (comunidade
terapêutica). Além disso, ele mesmo, advindo do meio acadêmico, tinha contato com o
pensamento fenomenogico existencial.
Seu projeto inicial era a reforma do manicômio, o que se revelou impossível,
que tal medida teria apenas um caráter superficial, pois a instituição psiquiátrica
mostrou-se impenetrável a qualquer tipo de intervenção que objetivasse tirar o interno de
sua condição de passividade e objetivação, Basaglia reconhece que:
de fato, só agora o psiquiatra parece redescobrir que o
primeiro passo para o tratamento do doente é o retorno à
liberdade, da qual até hoje ele mesmo o privara (...) Se a
doença mental, em sua própria origem, é a perda da
individualidade e da liberdade, no manimio o doente não
16
encontra outra coisa senão o espaço onde se verá
definitivamente perdido, transformado em objeto pela
doença e pelo ritmo do internamento (BASAGLIA, 2005 p.
24)
2
.
Somando-se a isso, Basaglia toma contato com as obras de Michel Foucault
(História da loucura) e de Erving Goffman (Manimios, prisões e conventos) que o
levam a uma perspectiva crítica e ao projeto de negação da psiquiatria enquanto
ideologia e de desconstrução da instituição psiquiátrica (AMARANTE, 1996).
Um dos princípios fundamentais de Basaglia é de que a psiquiatria pôs a pessoa
entre panteses; ou seja, o sujeito vem sendo negligenciado, deixado de lado e a ênfase
é dada à sua doença, como cita: “De fato, a psiquiatria clássica limitou-se à definição das
síndromes em que o doente arrancado de sua realidade e apartado do contexto social em
que vive, vê-se etiquetado,constrangido’ a aderir a uma doença abstrata, simbólica e,
enquanto tal, ideológica” (BASAGLIA, 2005 p. 35)
3
.
Para que esta relação seja modificada, o autor defende uma inversão nesta
relação: que se coloque a doença entre parênteses e que, deste modo, possa emergir o
sujeito.
Tal princípio, muitas vezes, recebeu críticas por ser entendido como negação da
doença mental, o que revela uma distorção da inversão proposta por Basaglia, como
explica AMARANTE (1996):
A operação ‘colocar entre parênteses’ é, muitas vezes,
entendida como negação da existência da doença, o que em
momento algum é cogitado. Significa, tão-somente, que a
psiquiatria construiu conceitos de sintomas e doenças sobre
femenos que, em última instância, lheso
absolutamente incompreensíveis e que, portanto, cumprem
papel meramente ideológico. Assim, a necessidade de
colocar a doença entre parênteses significa a negação, isto
2
A destruição do hospital psiquiátrico como lugar de institucionalização. Mortificação e liberdade do
“espaço fechado”: considerações sobre o sistema “open door”. Texto originalmente apresentado no I
Congresso Internacional de Psiquiatria Social em Londres, 1964.
3
Um problema de psiquiatria institucional: a exclusão como categoria sociopsiquiátrica. Texto escrito em
colaboração com Franca Ongaro Basaglia, em 1966.
17
sim, da aceitação da elaboração teórica da psiquiatria em
dar conta do fenômeno da loucura e da experiência do
sofrimento... (p. 79-80).
Outro princípio fundamental proposto por Basaglia é o duplo da doença mental.
Tal conceito diz respeito a algo que se sobrepõe à doença, algo que é próprio do
processo de institucionalização, como bem define AMARANTE (1996) ao afirmar que o
duplo da doença mental:
é a face institucional da doença mental, construída
tomando-se por base a negação da subjetividade do louco,
da negação das identidades, a partir da objetivação extrema
da pessoa como objeto do saber. São formas institucionais
de lidar com o objeto, e não mais com o sujeito, sobre o
qual edificam-se uma série de ‘pré-conceitos’ ‘científicos’,
fundados em noções tais como a de periculosidade,
irrecuperabilidade, incompreensibilidade da doença mental
(p.81).
Assim, Basaglia busca enfatizar que ao entrar na instituição psiquiátrica, pessoas
diferentes, com histórias de vida e sofrimentos diferentes, são submetidas a um processo
de homogeneização através da institucionalização, tendo sua existência complexa
totalmente desconsiderada, para adequar-se a um conjunto de saberes/fazeres que,
supostamente, construiu-se sobre ele.
Institucionalização configura, para o autor:
o complexo de ‘danos’ derivados de uma longa
permanência coagida no hospital psiquiátrico, quando o
instituto se baseia sobre os prinpios do autoritarismo e
coerção. Tais princípios, donde surgem as regras sob as
quais o doente deve submeter-se incondicionalmente, são
expressão, e determinam nele uma progressiva perda de
interesse que, através de um processo de regressão e de
restrição do Eu, o induz a um vazio emocional (Basaglia,
citado por AMARANTE, [s.d.]).
Nesta trajetória, Basaglia promove, também, uma profunda reflexão sobre o
papel dos trabalhadores da saúde mental e da função política e social que realizam. Estes
18
são entendidos como executores da ideologia psiquiátrica, como os operadores da
vioncia cotidiana da instituição, exercida sob o véu da necessidade de tratamento.
Para AMARANTE (1996), a experiência desenvolvida em Gorizia é: ao mesmo
tempo, um processo de renúncia do mandatoterapêutico’ do técnico, de recusa da
delegação de controle social exercida pela instituição, e de questionamento do saber
psiquiátrico” (p. 74).
As novas propostas de tratamento, chamadas por Basaglia de ‘nova psiquiatria’,
tendo como exemplos os hospitais abertos e as comunidades terapêuticas, também são
vistas com ressalvas, já que não constituem uma modificação na forma de lidar com a
loucura, mas sim um ‘deslocamento’ de uma atitude de violência para uma estratégia de
tolerância e complacência que, no fundo, perpetuam a exclusão social das pessoas com
sofrimento psíquico (AMARANTE, 1996, [s.d.]).
Assim, a desinstitucionalização deve operar em dois veis simultâneos, sendo
um científico (referente à problemática psicopatológica) e outro político (referente à
problemática da exclusão e da estigmatização social):
A desinstitucionalização torna-se, portanto, um processo a
um tempo, de desconstrução dos saberes e práticas
psiquiátricas – expressas, sobretudo nos princípios do
colocar entre parênteses a doença mental, o que permite a
identificação e a desmontagem do duplo da doença mental,
e no trabalho com o sujeito concreto, encortinado pelo
conceito de doença -, a de invenção prático-teórica de
novas formas de lidar, não mais com a doença, mas com o
sujeito doente (AMARANTE, 1996 p. 95).
Para Basaglia a pessoa com sofrimento psíquico, sendo historicamente objeto de
violência e exclusão, constitui um problema social e, como tal, é na sociedade que deve
ser vivido. Assim, o único caminho para a busca de soluções para a questão é sair do
território exclusivamente psiquiátrico e incluir a sociedade nesse debate. E é propondo
um novo tipo de relação – de cunho contratual – que se busca desenvolver esse novo
fazer em psiquiatria. Este novo tipo de relação assume a forma de um contrato “entre
internos, técnicos e sociedade, no qual a função da psiquiatria e a situação dos enfermos
sejam questões de responsabilidade comum” (AMARANTE, 1996, p. 94).
19
Neste processo, os espaços da cidade constituem os reais espaços de reabilitação.
Todo este trabalho, posteriormente também desenvolvido e aprofundado em
Trieste, onde foi possível a desmontagem do aparelho institucional, culmina na
construção de uma rede de serviços territoriais substitutiva ao hospital psiquiátrico e na
aprovação, pelo parlamento italiano, da Lei nº 180, a Lei da Reforma Psiquiátrica
Italiana, mais conhecida como Lei Basaglia. Esta lei, constituída a partir do Movimento
da Psiquiatria Democrática, proíbe a construção de novos hospitais e de novas
internações psiquiátricas, determinando o esvaziamento gradual dos hospitais
psiquiátricos existentes e estendendo o movimento de reforma ocorrido em Trieste a
todo o território italiano (GONDIM, 2001).
Outro ponto fundamental da lei italiana é a reformulação do estatuto jurídico da
pessoa com sofrimento psíquico, abolindo a noção de periculosidade da mesma. Desta
forma propicia significativas modificações no sistema jurídico do país.
Concordamos com DALMOLIN (2004, 2006) que a psiquiatria basagliana
possibilitou o encontro de outros lugares para a pessoa em sofrimento psíquico,
devolvendo-lhe a possibilidade de viver sua humanidade, sendo considerada nas mais
sofisticadas dimensões de sua existência.
O trabalho de Basaglia possibilita pensar em profundas modificações no
saber/fazer em psiquiatria. Tal movimento só foi posvel a partir de uma auto-reflexão e
de um olhar crítico sobre a própria prática que, sem isso, constitui-se em mera
reprodução, onde os profissionais de saúde atuam como “meros empreiteiros da
violência”, como afirma BASAGLIA (2005)
4
. Mais do que isso, a disponibilidade em
aceitar que uma questão tão complexa - como é a loucura - não pode ser competência de
uma única área ou disciplina. Foi preciso ousar, e buscar referências em outras áreas do
conhecimento, como a abordagem antropológica das instituições, a sociologia e a
filosofia das ciências.
4
Texto: As instituições da vioncia, capítulo do livro “A instituição negada”, publicado pela primeira vez
em 1968.
20
Uma última consideração diz respeito à idéia de que o pensamento e a prática de
Basaglia constitui um “modelo a ser seguido”. Tal importação de iias, realizada de
maneira acrítica, foi chamada de “ideologia de recâmbio” pelo mesmo. Assim, como
concebido por ROTELLI e AMARANTE (1992), o real objetivo desta experiência é que
possa “fornecer alguns pontos de reflexão para o trabalho de superação da instituição
psiquiátrica tradicional, com a concomitante construção de uma nova práxis” (p. 51).
Em nosso país, o pensamento de Basaglia representa forte referência, amparando
as ações do Movimento da Reforma Psiquiátrica que surgiu, no final dos anos de 1970,
como crítica ao modelo de atenção em saúde mental então vigente.
21
CAPÍTULO I
A Reforma Psiquiátrica brasileira e o surgimento das
associações de usuários e familiares em saúde mental.
22
Movimento da Reforma Psiquiátrica, segundo AMARANTE et al. (1995) é
consideradoum processo histórico de formulação crítica e prática, que tem como
objetivos e estratégias o questionamento e elaboração de propostas de transformação do
modelo clássico e do paradigma da psiquiatria” (p.87). O paradigma da psiquiatria diz
respeito à intervenção pautada no binômio doença-cura. Uma transformação nesse
modelo implica na adoção do paradigma existência-sofrimento; ou seja, olhar o sujeito
para além dos seus sintomas. Deste modo, configurando-se em “instrumento de
reconstrução da complexidade do fenômeno [psíquico], a existência-sofrimento reorienta
o objetivo da psiquiatria, passando da ‘cura’ para a produção de vida, de sociabilidade,
de subjetividades” (ROTELLI e AMARANTE, 1992 p. 52).
TENÓRIO (2002) defende que a reforma psiquiátrica brasileira tem como marca
distintiva, para além da crítica ao asilo e da condenação dos efeitos controladores e
normatizadores da psiquiatria, a reivindicação da cidadania das pessoas com sofrimento
psíquico, como cita:
Nascido do reclame da cidadania do louco, o movimento
atual da reforma psiquiátrica brasileira desdobrou-se em
um amplo e diversificado escopo de práticas e saberes. A
importância analítica de se localizar a cidadania como
valor fundante e organizador deste processo está em que a
reforma é, sobretudo um campo heterogêneo, que abarca a
clínica, a potica, o social, o cultural e as relações com o
jurídico, e é obra de atores muito diferentes entre si (p. 28).
O início deste movimento data do final dos anos setenta do século passado,
período em que a maior parte dos serviços de saúde estava concentrada no setor privado,
com ênfase no tratamento médico hospitalar e na centralização em nível federal dos
repasses das verbas aos prestadores de serviços. Na assistência psiquiátrica o quadro era
exatamente o mesmo, gerando o que foi denominado “indústria da loucura”, como cita
RIBEIRO (2003): “os donos dos hospitais privados obtinham lucros vantajosos com
internações, em sua grande maioria, financiadas pelo Estado, havendo então, um
incentivo à cronificação dos pacientes desde que era lucrativo mantê-los nos hospitais”
(p.30).
23
O estopim de toda a movimentação dá-se em 1978, com o epidio que ficou
conhecido como a “Crise da Dinsam” (Divisão Nacional de Saúde Mental, órgão do
Ministério da Saúde responsável pela formulação das poticas de saúde do subsetor
saúde mental), deflagrada por denúncias de irregularidades e de condições precárias de
trabalho nas unidades da Dinsam do Rio de Janeiro. Este ato acaba mobilizando
profissionais de outras unidades e fundando o Movimento dos Trabalhadores em Saúde
Mental (MTSM).
AMARANTE et al. (1995) considera que o MTSM é o principal ator no projeto
da reforma psiquiátrica brasileira. É a partir do MTSM que emergem as propostas de
reformulação do sistema assistencial e um movimento crítico ao saber psiquiátrico
dominante.
Assim, a Reforma Psiquiátrica desenvolve-se por meio de várias ações de
trabalhadores de serviços de saúde mental e dos movimentos sociais, efetivando-se na
realização de congressos e conferências que denunciam a ineficiência do modelo asilar e
reivindicam a reorientação da assistência psiquiátrica (NASCIMENTO et al, 2002).
Dentre os eventos importantes para a mobilização dos atores envolvidos e a
definição das diretrizes de luta no início do movimento estão: a realização do V
Congresso Brasileiro de Psiquiatria (1978); I Congresso Brasileiro de Psicanálise de
Grupos e Instituições (1978); I Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental
(1979); III Congresso Mineiro de Psiquiatria (1979); I Encontro Regional dos
Trabalhadores em Saúde Mental do Rio de Janeiro (1980); II Encontro Nacional dos
Trabalhadores em Saúde Mental (1980) e o VI Congresso Brasileiro de Psiquiatria
(1980) (AMARANTE, 1995).
A partir da década de 1980, há o acontecimento de eventos marcantes para a
criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e para um melhor direcionamento do
Movimento da Reforma Psiquiátrica, tais como: a VIII Conferência Nacional de Saúde
em 1986; a I Conferência Nacional de Saúde Mental em 1987; a Conferência de Caracas
em 1990; a IX Conferência Nacional de Saúde em 1992; a II Conferência Nacional de
Saúde Mental também em 1992, o I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial em
24
1993; II Encontro Nacional da Luta Antimanicomial em 1995; XI Conferência Nacional
de Saúde em 2000 e a III Confencia Nacional de Saúde Mental, em 2001
(AMARANTE, 1995; CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA, 1997; RIBEIRO
2003).
Outras instituições juntam-se ao MTSM com o objetivo de debater a formulação
das políticas de saúde mental no Brasil. Nesse sentido, merecem destaque: os Núcleos
Estaduais de Saúde Mental do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES); as
Comissões de Saúde Mental dos Sindicatos dos Médicos; Movimento de Renovação
Médica (REME); Rede de Alternativas à Psiquiatria (Sociedade de Psicossíntese);
Associão Brasileira de Psiquiatria (ABP); a Federação Brasileira de Hospitais (FBH);
a indústria farmacêutica e as universidades. Um importante ator, que somente surgirá em
momento posterior do processo de mobilização social, mas que será de fundamental
importância, são as entidades da sociedade civil, com destaque para as associações de
usuários e familiares.
Entretanto, apesar do Movimento da Reforma Psiquiátrica ter nascido do
questionamento ao modelo de assistência psiquiátrica vigente, sua configuração não é
homogênea, existindo fortes diferenças de interesses entre as instituições que o
comem. É o caso da Federação Brasileira de Hospitais (FBH) e da indústria
farmacêutica que, claramente, aproximam-se do movimento com a intenção de buscar
estratégias de manutenção de poder. Devido à forte movimentação social da época
ocorre a necessidade de darnova roupagem’ ao velho interesse essencialmente lucrativo
do setor privado e do setor industrial. Ambas as instituições possuem interesses
financeiros relacionados à questão e pautam sua ação, de maneira mais ou menos clara e
direta, na manutenção da forma hegemônica de lidar com a loucura, criando tensão
dentro do movimento.
AMARANTE et al. (1995) considera que a trajetória da reforma psiquiátrica
brasileira se caracteriza pela existência de três momentos. O primeiro, no início da
mobilização, é considerado a trajetória alternativa e recebe esta denominação devido à
emergência de movimentos sociais que, insatisfeitos com as políticas sociais e
25
econômicas vigentes, adotam uma postura de oposição à ditadura militar. É neste
contexto que surge o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM).
No início dos anos oitenta doculo XX, inicia-se o segundo momento, em que a
principal característica é a incorporação pelo Estado de parte considerável dos
profissionais ligados à reforma sanitária e à reforma psiquiátrica. Este momento foi
denominado trajetória sanitarista. O resultado deste processo é, por um lado, a
renovação das lideranças dos aparelhos estatais, mas por outro, a absorção pelo Estado
destes profissionais dá lugar a uma postura menos crítica, caracterizando um momento
de vigorosa institucionalização, como cita AMARANTE et al. (1995):
Os marcos conceituais que estavam na base da origem do
pensamento crítico em saúde – como a reflexão sobre a
medicina como aparelho ideológico, o questionamento da
cientificidade do saber médico ou da neutralidade das
ciências, as incursões sobre uma determinação social das
doenças, o reconhecimento da validade das práticas de
saúde não-oficiais – dão lugar a uma postura menos crítica
onde, aparentemente, parte-se do princípio que a ciência
médica e a administração podem e devem resolver o
problema das coletividades. (p. 91)
A terceira etapa, a da trajetória da desinstitucionalização ou da
desconstrução/invenção é marcada pela realização da I Conferência Nacional de Saúde
Mental, em 1987. Este evento firma o afastamento do Movimento pela Reforma
Psiquiátrica do Movimento pela Reforma Sanitária e o retorno do primeiro às suas
origens – neste momento é construído o lema “por uma sociedade sem manimios” e
passa-se a edificar um novo projeto de saúde mental para o país.
É, também, neste momento que surgem novos atores neste cenário: as
associações de usuários e familiares, como a Associão Loucos pela Vida! em Franco
da Rocha,o Paulo; a Sociedade de Serviços Gerais para a Integração pelo Trabalho –
SOSINTRA no Rio de Janeiro e a Associação Franco Basaglia em São Paulo – SP. A
participação dessas entidades incorpora ao Movimento da Reforma Psiquiátrica aqueles
que experimentam e vivenciam a situação de sofrimento psíquico. Deste modo, a
questão da loucura deixa de ser uma questão dos profissionais e das poticas de saúde e
26
passa a alcançar o espaço da vida cotidiana dos cidadãos, delineando um novo momento
no cenário da saúde mental brasileira, como cita AMARANTE et al. (1995):
[as associações de usuários e familiares] passaram a
merecer papel significativo no quadro do Movimento por
uma sociedade sem Manicômios quando o pprio MTSM
passava a perder sua marca, de trabalhadores de saúde
mental, na medida em que esses novos atores, o
trabalhadores de saúde mental, se incorporaram à luta pela
transformação das poticas e práticas psiquiátricas. Com o
processo de reforma psiquiátrica saindo do âmbito
exclusivo dos técnicos e das técnicas, e chegando até a
sociedade civil, surgiram novas estratégias de ação
cultural, com a organização de festas e eventos sociais e
políticos nas comunidades, na construção de possibilidades
até então impossíveis (p.82).
Na visão de VIANNA (2002) o surgimento/reconhecimento desses novos atores
sociais inaugura uma nova etapa no Movimento da Reforma Psiquiátrica: deixa de ser
um movimento dos trabalhadores em sde mental para transformar-se no Movimento
da Luta Antimanicomial.
27
CAPÍTULO II
As transformações nas políticas públicas de
assistência às pessoas com sofrimento psíquico.
28
“ainda mais importante do que os planos nacionais e as leis, que têm sua importância e
a sua eficácia, são os trabalhos práticos de implantação de novas experiências que
demonstrem e comprovem ser possível prestar atenção psiquiátrica diferente, sob novos
modelos de cuidado, sem necessidade do asilo, do hospital, da violência, da
discriminação, da segregação; que demonstrem ser possível uma prática psiquiátrica
que crie novas dimensões, novas subjetividades, que produza vida e não morte”
(Rotelli e Amarante, 1992 p. 50)
Em consonância com a afirmação acima, cremos que indubitavelmente, todo este
processo de efervescência e mobilização social, vivido no dia-a-dia dos serviços de
saúde mental, tanto por quem ali trabalha, quanto por quem recebe os cuidados e por
quem acompanha essa ação, é que propiciou transformações nas políticas públicas de
assistência às pessoas com sofrimento psíquico, possibilitando inovações no campo da
assistência, como cita MATIAS (2006): “atualmente, os instrumentos, equipamentos,
modelos, projetos, pensados, criados e implementados, através das grandes discussões e
debates e principalmente da luta gerada por esses movimentos sociais, são a potica
nacional para a saúde mental” (p. 83).
E nessa trajetória levantamos como hitese que o poder público tem focado suas
ações na questão da modificação da assistência aos portadores de transtornos mentais;
porém, parte das associações civis em saúde mental, por outro lado, têm centrado forças
no processo de modificação do lugar social historicamente atribuído a esses sujeitos,
através de inserções na sociedade, via ações políticas e culturais, tendo sempre como
parâmetro o exercício da cidadania.
Para que esse processo de transformação se desenvolvesse, consideramos a
ocorrência de dois momentos distintos. No primeiro se firma a contraposição ao modelo
hegemônico, tendo por guia nesta empreitada o lema “por uma sociedade sem
manicômios”. É importante ter em consideração que, a partir do ‘Congresso de Bauru’
(1987), os manicômios assumem teor emblemático, representando para além do concreto
das construções, as relações institucionalizadas e excludentes; ou seja, ‘manicomiais
reproduzidas na sociedade. Assim, o lema “por uma sociedade sem manicômios”
representa o objetivo maior da superação da cultura manicomial, como cita LOPES
29
(2003): “a cultura manicomial está presente na estrutura e na filosofia de muitas escolas,
unidades de saúde, creches, asilos ou mesmo em fábricas, prisões e até em famílias.
Entretanto, tem no hospital psiquiátrico a sua representação mais emblemática, expressa
nas relações de desigualdade e vioncia que fomentam a exclusão social” (p. 30).
Um segundo momento representa a busca de um novo olhar sobre o sofrimento
psíquico através de transformações no modelo de assistência. Neste momento entram em
cena os serviços substitutivos.
Consideraremos, com maior riqueza de informações e detalhes, estes distintos
momentos. Também consideraremos as modificações na legislação em saúde mental que
culminaram na atual política nacional de saúde mental.
30
1) Contraposição ao modelo hegemônico: “por uma sociedade sem
manimios”.
O Movimento da Reforma Psiquiátrica ganha novas forças ao se afastar do
aparelho estatal e ao aproximar-se da sociedade civil, no final dos anos de 1980. É neste
momento que o movimento se posiciona claramente contra o modelo hegemônico de
assistência psiquiátrica e adota como lema o slogan “por uma sociedade sem
manicômios”.
Existem críticas quanto à adoção de tal slogan, já que ele expressa um sentido de
negatividade: propõe a extinção dos manimios, porém não dá indícios de novos
caminhos ou alternativas para a questão. AMARANTE et al. (1995) defende que este
lema foi estrategicamente utilizado com o intuito de expor a questão da violência da
instituição psiquiátrica e de atingir a opinião pública, como propõe O MTSM em
documento de 1987 em que apresenta sua estratégia de atuação:
Por uma sociedade sem manicômios – significa um rumo
para o movimento discutir a questão da loucura para além
do limite assistencial. Concretiza a criação de uma utopia
que pode demarcar um campo para a crítica das propostas
assistenciais em voga. Coloca-nos diante das questões
teóricas e poticas suscitadas pela loucura (MTSM, 1987,
citado por AMARANTE et al, 1995, p. 80).
Essa nova etapa do Movimento da Reforma Psiquiátrica teve fortes repercussões
no âmbito do modelo assistencial. TENÓRIO (2002) defende que a década de 1980 foi
um período de amadurecimento da crítica ao modelo manicomial “privatista/asilar-
segregador” vigente. Neste período emergem três importantes processos para a
consolidação das características atuais do movimento da reforma psiquiátrica. São eles:
a ampliação dos atores sociais envolvidos no processo, a iniciativa de reformulação
legislativa e o surgimento de experncias institucionais bem-sucedidas na construção de
um novo tipo de cuidado em saúde mental. Este último configurando a concretização das
ações do movimento, como cita o autor: “substituir uma psiquiatria centrada no hospital
31
por uma psiquiatria sustentada em dispositivos diversificados, abertos e de natureza
comunitária ou ‘territorial’, esta é a tarefa da reforma psiquiátrica” (p. 35).
Voltamos nossa atenção especificamente para o estado de São Paulo, onde foram
criados dispositivos técnico-operacionais na área de saúde mental que constituem
experiências extremamente relevantes para os avanços da reforma psiquiátrica brasileira.
Como exemplo temos as cidades de São Paulo (capital), Santos e Campinas que, nessa
época, contaram com prefeitos do Partido dos Trabalhadores e com gestores municipais
comprometidos com o movimento da reforma sanitária e com a efetivação do Sistema
Único de Saúde (LUZIO e L’ABBATE, 2006).
32
2) Em busca de um novo olhar sobre o sofrimento psíquico: os
serviços substitutivos.
Dentre as novas experiências de assistência à saúde mental que começaram a ser
delineadas, está o surgimento do primeiro CAPS do país, inaugurado em São Paulo em
1987, o Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cerqueira, conhecido
como CAPS Itapeva. Conforme definição de GOLDBERG (1994), este projeto público,
de atendimento a pacientes psicóticos e neuróticos graves, procura conjugar “num
mesmo espaço o tratamento e a reabilitação e busca uma atuação mais globalizada frente
às questões da saúde mental, com a implantação de setores de ensino e pesquisa” (p. 22).
COSTA (1994) aponta a existência de três características que marcam a
singularidade do CAPS. A primeira diz respeito ao fato de nenhuma doutrina ser
privilegiada; assim, são irrelevantes as distinções entre sociogênese, psicogênese e
organogênese das psicoses. Deste modo, a atuação do CAPS passa longe da defesa do
teor de “verdade” dos saberes psiquiátricos. Uma segunda característica refere-se a
pouca importância dada à questão da causalidade das doenças mentais. “A causalidade
preferível, no ato da interação assistencial, será aquela capaz de produzir melhores
respostas, na direção dos efeitos de subjetivação desejados” (p. 12). Assim, as diferentes
abordagens teóricas são consideradas, sem qualquer ênfase especial a nenhuma delas,
mas com o objetivo de servirem como instrumentos para novas redescrições da
subjetividade das pessoas assistidas.
A terceira característica diz respeito à adoção da moral da solidariedade, ao invés
da objetividade ao tratar com a psicose. Em vez de um trabalho voltado para a cura, a
atenção volta-se para o acompanhamento da trajetória de vida das pessoas na instituição,
buscando-se verificar até que ponto pode-se ajudá-las a restabelecerem o poder
normativo sobre suas condutas. “Partindo destas premissas, liberam-se mais facilmente
assistentes e assistidos do ‘mito’ da objetividade científica da psiquiatria, assegurando,
ao mesmo tempo, qualidade de cuidados e interesse por um conhecimento aberto a
33
transformações” (COSTA, 1994, p. 16). Na opinião do autor, a atuação do CAPS aponta
para a possibilidade do exercício de uma psiquiatria voltada para o respeito do homem.
Essa nova proposta de atenção em saúde mental se dá em um momento de
importantes e significativas mudanças no cenário brasileiro. Com o fim da ditadura
militar, inicia-se o movimento para redemocratização do país e é convocada a
Assembléia Nacional Constituinte, eleita em 1986. Neste mesmo ano acontece a VIII
Conferência Nacional de Saúde, um evento marcante por seu caráter democrático, em
que o resultado central “constituiu o estabelecimento de um consenso político que
permitiu a formatação do projeto da Reforma Sanitária, caracterizado por três aspectos
principais: o conceito abrangente de saúde; saúde como direito de cidadania e dever do
Estado [e] a instituição de um Sistema Único de Saúde” (ALMEIDA et al, 2001, p.31).
Em 1988 ocorre a promulgação da atual Constituição Brasileira, chamada de
‘Constituição Cidadã’, que concretizou mudanças na organização da área da saúde
muito almejadas. Em seu artigo 196, estabelece que “a saúde é direito de todos e dever
do Estado, garantindo a todos os brasileiros o acesso às ações de prevenção, promoção
e recuperação da saúde.
Em 1990 é promulgada a Lei nº 8.080 que regulamenta o Sistema Único de
Saúde (SUS), que tem como diretrizes: universalidade de acesso; integralidade na
assistência; preservação da autonomia e da integridade física e moral; igualdade da
assistência; direito à informação e participação da comunidade. A organização do SUS
baseia-se nos princípios da regionalização, hierarquização e descentralização (BRASIL,
1990).
Em saúde mental é marcante a ocorrência, em maio de 1989, da intervenção da
Secretaria de Saúde do Município de Santos-SP, na Casa de Saúde Anchieta, após
denúncias de maus tratos, da ocorrência de mortes violentas e da constatação de
questões graves como superlotação, falta de pessoal e os pacientes em condições
desumanas de vida. Com o posterior fechamento deste hospital, ocorre a criação de um
sistema psiquiátrico substitutivo, composto pelos Núcleos de Atenção Psicossocial
(NAPS).
34
KINOSHITA (1996) defende que o objetivo da intervenção era “não apenas a
melhora das condições técnicas, ou a adequação a padrões abstratos, mas a recuperação
e a afirmação da cidadania daqueles pacientes, mirando além dos muros do hospital,
buscando interferir e modificar a própria sociedade” (p.40).
Trata-se de um marco histórico, pois em Santos foi constrda uma rede de
servos amplamente substitutivos ao manicômio, abrindo o hospital para a cidade e
buscando romper (ou ao menos diminuir) a separação dentro/fora do hospital.
LUZIO e L’ABBATE (2006) consideram que a experiência santista contém
grande ousadia e radicalidade, pois iniciando um projeto de saúde mental à partir do
interior de um hospital sob intervenção municipal “produziu um rompimento mais
efetivo com a lógica manicomial; garantiu a descentralização e intersetorialidade das
ações na perspectiva de uma rede de cuidado com recursos do território” (p. 295).
Em vários outros munipios brasileiros ocorrem iniciativas pautadas nos
prinpios e diretrizes do Movimento da Reforma Psiquiátrica, como na cidade de São
Paulo que, no período de 1989 a 1992, sob o governo democrático e popular municipal
pode contar com uma rede de atenção integral a saúde mental substitutiva ao
manicômio. Tal iniciativa teve como alicerce um tripé de ações para superação da
prática manicomial que consistiu segundo LOPES (2003) em:
1) desmontar o aparato jurídico-institucional que legitima a instituição
manicomial, criando um novo estatuto do doente mental;
2) enfrentar a cultura manicomial imposta à sociedade, ressignificando a
loucura, o sofrimento e a doença mental;
3) substituir progressivamente o Hospital Psiquiátrico por um Modelo de
Atenção Integral à Saúde Mental Antimanicomial.
Esta rede se efetivou através da implantação de 129 equipes multidisciplinares
em saúde mental em Unidades Básicas de Saúde; 14 Hospitais-Dia ou Unidades de
Convivência e Terapêutica Intensiva, sendo 11 unidades para adultos e 03 para crianças;
18 Centros de Convincia e Cooperativas (Ceccos); 14 Emergências de Saúde Mental
em Prontos Socorros Gerais; 03 Enfermarias de Saúde Mental em Hospitais Gerais; 06
35
Centros de Referência de Saúde do Trabalhador e a existência de 70 Equipes de Saúde
Mental em Hospitais Gerais Públicos, culminando na contratação de 1600 trabalhadores
de saúde mental. Neste período, o parque asilar de São Paulo foi reduzido em 43,37%,
com o fechamento de oito hospitais psiquiátricos (LOPES, 2003).
Este processo foi interrompido com a mudança do governo municipal no período
de 1993 a 1996 e a implantação do Plano de Atenção à Saúde (PAS) que desmantelou as
equipes que realizavam esse trabalho, pois:
o PAS era um sistema atravessado por uma certa ‘onda
moderna’ que privilegia os padrões privados e
normatizantes de pensar a vida. Tachou de anti-moderna,
arcaica ou incompetente qualquer proposta que aposte nas
políticas coletivas, na construção de utopias ou nos padrões
democráticos de conviver. Onda de neo-conservadorismo
político que desterritorializou o ‘público’ e transforma as
políticas sociais em defesa corporativa de interesses
privados (FERNANDES et al, 2003, p. 10).
Sendo o PAS comprometido com a lógica de mercantilização da saúde, os
pressupostos antimanicomiais a ele não se enquadraram. Assim, o período de vincia
do PAS representou forte retrocesso na atenção em saúde mental em São Paulo.
Em Campinas, diferentemente, vem sendo construído, desde a década de 1980,
um sistema integrado de saúde que, de modo progressivo e nos vários níveis de
complexidade, integra a assistência em saúde mental ao sistema geral de saúde, como
cita LUZIO e L’ABBATE (2006):
Essa experiência, associada às parcerias de duas
universidades [PUCCAMP e UNICAMP] e do movimento
popular por saúde, permitiu a construção de um modelo
assistencial “em defesa da vida”, voltado para a
reorganização e ampliação da atenção em saúde, norteada
pelos princípios e diretrizes do SUS e de um sistema de co-
gestão formado por espaços coletivos em que se viabilizam
as diretrizes do governo, fortalecem os sujeitos (gestores,
trabalhadores e usuários), bem como permite a
transformação das relações de dominação, criação de
novos contratos, composição de consensos, aliaas e
implantação de projetos (p. 296).
36
3) As modificações na legislação e a atual política nacional de saúde
mental.
Apesar do surgimento de iniciativas inovadoras, fundamentadas na luta
antimanicomial, a legislação brasileira que trata sobre a questão da assistência às pessoas
com sofrimento psíquico continua inalterada por muito tempo, principalmente no âmbito
federal. No entanto vários estados brasileiros adiantam-se em aprovar leis que
determinam a substituição do modelo manicomial por modelos de assistência integral à
saúde mental. É o caso dos estados do Rio Grande do Sul, Pernambuco e Minas Gerais
(BRASIL, 1998).
É importante considerar que a primeira lei brasileira de assistência aos alienados,
data de 1903, sob forte influência higienista, personificada na figura do psiquiatra
Juliano Moreira, que é considerado o fundador da psiquiatria brasileira (SILVA, 1997;
PORTOCARRERO 2002).
Neste momento histórico, a psiquiatria brasileira segue os prinpios teóricos de
Kraepelin, baseando-se na idéia de que todas as respostas para os distúrbios da mente
encontram-se no organismo, alterando radicalmente o conhecimento e a prática
psiquiátrica. Assim, segundo PORTOCARRERO (2002):
A partir de Juliano Moreira, a psiquiatria ime-se como
saber necessário à sociedade porque se mostra cada vez
mais científica, à medida que tenta derivar seu saber da
medicina. A partir do século XIX, a cientificidade do saber
médico é exigida e oferecida como uma das bases da
política dirigida à conservação da saúde da população
concebida como um todo. O médico, devido a seu
conhecimento das causas sociais da doença, afirma sua
função de auxiliar na manutenção do equilíbrio da
sociedade. Da mesma forma, a medicina mental atua
cientificamente’ sobre as causas da doença mental e da
anormalidade mental e moral como a delinqüência, o
alcoolismo etc., lutando contra a ameaça que os doentes e
deficientes mentais constituem para o desenvolvimento
moral e econômico da sociedade brasileira (p. 34-5).
37
Juliano Moreira é também o criador do primeiro Manicômio Judicrio,
inaugurado em 1921, na cidade do Rio de Janeiro, então capital federal.
Em 1934 foi promulgada a Lei Federal de Assistência aos Doentes Mentais”,
que dispõe sobre a Assistência e a Proteção à Pessoa e aos Bens dos Psicopatas,
atrelando doença mental à questão da incapacidade para os atos da vida civil e
revigorando, assim, a relação entre justiça e psiquiatria (BRASIL, 1998).
SILVA (1997) defende que a legislação psiquiátrica de 1934 “foi promulgada
num momento particularmente delicado no cenário político-ideogico mundial e cuja
finalidade é o seqüestro do sujeito do meio social e a sua exclusão dos centros urbanos”
(p. 4). Para a autora esta legislação ratifica a potica asilar de assistência, e acrescenta:
Desta forma, o usuário de serviço de saúde mental, no
Brasil, vem sendo duplamente excluído do jogo dos
direitos civis: pela legislação psiquiátrica que o aprisiona
ao código moral e ético do início do século XX e do
processo de produção material, que se efetiva pelo trabalho
contextualizado no modo de produção capitalista, num país
com características econômicas e culturais periféricas
(SILVA, 1997, p. 5).
Esta legislação permanece inalterada por mais de sessenta e cinco anos. No
entanto, sob fortes influências do Movimento da Reforma Psiquiátrica, o projeto de Lei
3.657/89, de autoria do deputado Paulo Delgado, que ficou conhecido como Lei Paulo
Delgado” estimulou o debate sobre a loucura em todo o país.
Este projeto de Lei “dispõe sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua
substituição por outros recursos assistenciais e regulamenta a internação psiquiátrica
compulria”. Foram doze anos de tramitação na Câmara dos Deputados, até a
aprovação do substitutivo ao projeto. Assim, a promulgação da Lei nº 10.216 de
06/04/2001, representou grande avanço na assistência às pessoas com sofrimento
psíquico no Brasil. Ao redirecionar o modelo assistencial em saúde mental, e ao dispor
sobre os direitos das pessoas com sofrimento psíquico defende que a assistência no
Brasil não se baseie mais no modelo manicomial, mas que se busquem outras estruturas
38
“não-manicomiais” (os chamados serviços substitutivos), tendo como objetivo a
inserção social da pessoa em seu meio.
Assim, busca-se uma maior aceitação desses sujeitos e, conseqüentemente,
reversão do preconceito em relação às pessoas com sofrimento psíquico, através de um
modelo assistencial que invista no desenvolvimento da saúde, e não na doença.
Os CAPS e outros serviços substitutivos que m sendo implantados no país o
os serviços de saúde que possibilitam a operacionalização das disposições da Lei 10.216,
constituindo a proposta oficial da potica nacional de saúde mental. Os CAPS são
regulamentados pela Portaria nº 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002:
Essa portaria reconheceu e ampliou o funcionamento e a
complexidade dos CAPS, que têm a missão de dar um
atendimento diuturno às pessoas que sofrem com
transtornos mentais severos e persistentes, num dado
território, oferecendo cuidados cnicos e de reabilitação
psicossocial, com o objetivo de substituir o modelo
hospitalocêntrico, evitando internações e favorecendo o
exercício da cidadania e da inclusão social dos usuários e
de suas famílias (BRASIL, 2004).
Hoje, temos em todo o Brasil 1011
5
CAPS cadastrados pelo SUS, que são
diferenciados conforme o atendimento prestado (BRASIL, 2004):
- CAPS I e CAPSII: são CAPS para atendimento diário de adultos, em sua
população de abrangência, com transtornos mentais severos e persistentes;
- CAPS III: são CAPS para o atendimento diário e noturno de adultos, durante sete
dias da semana, atendendo à população de referência com transtornos mentais
severos e persistentes;
- CAPSi: são CAPS para infância e adolescência, para atendimento diário a
crianças e adolescentes com transtornos mentais;
- CAPSad: CAPS para usuários de álcool e drogas, para atendimento diário à
população com transtornos decorrentes do uso e dependência de substâncias
5
FONTE: Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Saúde Mental no SUS: acesso ao
tratamento e mudança ao modelo de atenção. Relatório da Gestão 2003-2006. Janeiro/2007.
39
psicoativas. Esse tipo de CAPS possui leitos de repouso com a finalidade
exclusiva de tratamento de desintoxicação.
Da totalidade de CAPS existentes atualmente no Brasil, 430 constituem CAPS I, 320
CAPS II, 37 CAPS III, 75 CAPSi e 138 CAPSad (BRASIL, 2007).
Outras modalidades de serviço são as Resincias Terapêuticas, que são
regulamentadas pela Portaria 106 de 11/02/2000. Trata-se de serviços destinados a
receber egressos de internações psiquiátricas de longa duração. A rede de Residências
Terapêuticas conta hoje, em todo o Brasil, com 475 serviços e, aproximadamente, 2.500
moradores (BRASIL, 2007).
Em 2003 tivemos a apresentação do Programa De Volta pra Casa”, criado pela lei
federal 10.708/2003. Trata-se de um estímulo, através de ajuda financeira, às famílias
para que recebam seus familiares que passaram por longos períodos de internação,
chegando a serem considerados “pacientes-moradores” dos hospitais psiquiátricos. O
auxílio reabilitação decorrente deste programa realiza uma intervenção significativa no
poder de contratualidade social dos beneficiários, potencializando sua emancipação e
autonomia” (BRASIL, 2007, p.37).
AMARANTE e TORRE (2001) fazem uma importante reflexão ao chamar atenção
para o fato de que, embora as portarias do Ministério da Saúde tenham viabilizado a
construção de novos serviços de saúde mental, baseados, principalmente, nas
experiências bem sucedidas do CAPS Professor Luis da Rocha Cerqueira emo Paulo
e do Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS) em Santos, estas portarias acabam por
produzir “uma homogeneização das experiências originais”, uma vez que se trata de
experiências pioneiras, porém muito distintas entre si. Os autores alertam para o fato de
que mais importante do que os termos usados são seus significados e que, se não houver
ruptura com os velhos princípios, não ocorrerá a constrão do novo, poisserem
denominados de ‘novos’ não garante que os serviços de saúde mental criados sejam
mediadores e operadores de novas formas de intervenção no trato com a loucura ou que
sejam substitutivos do modelo manicomial” (p. 32).
40
Enfim, podemos observar muitas conquistas na área de saúde mental, através das
leis, portarias, programas, etc. No entanto, o desafio ainda é grande, pois os manicômios
mantêm-se presentes e fortes. O significativo aumento do número de CAPS em todo
Brasil é, certamente, um resultado positivo. Porém, não basta romper com as
edificações, fechar os hospitais e criar novos serviços, é preciso romper, principalmente,
com a forma institucionalizada da cultura dos manicômios.
Nesse cenário de lutas, conquistas e perdas, chama a atenção o crescimento e
fortalecimento dos movimentos de organização de usuários e de seus familiares.
Participando de uma associação os usuários e familiares deixam de ser meros
expectadores e passam a protagonistas na área de saúde mental, representando
iniciativas sociais de mobilização e organização que colocam, no cenário social,
alternativas de ação potica em defesa de interesses dessa classe, como cita
AMARANTE et al. (1995):
Com este novo protagonismo, o do próprio louco, ou
usuário, delineia-se, efetivamente, um novo momento no
cenário da saúde mental brasileira. O louco/doente mental
deixa de ser simples objeto da interveão psiquiátrica,
para tornar-se, de fato, agente de transformação da
realidade, construtor de outras possibilidades até então
imprevistas (...) Seja nos espaços dessas associações, seja
em trabalhos culturais, atua-se no surgimento de novas
formas de expressão política, ideológica, social, de lazer e
participação, que passam a edificar um sentido de
cidadania que jamais lhe fora permitido (p. 121).
41
CAPÍTULO III
Associações civis em saúde mental: lutando pela
cidadania das pessoas com sofrimento psíquico.
42
As associações, em sua maioria, despontam a partir da década de oitenta do
século XX no Brasil, pela participação nos encontros, congressos e conferências da
saúde mental objetivando promover o exercício da cidadania das pessoas com
sofrimento psíquico por meio de atividades sociais, econômicas, políticas e culturais. O
surgimento, crescimento e participação de tais associações no debate, com posições a
favor ou contra, sobre as transformações no modelo de assistência em saúde mental
propostas pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica, foi de crucial importância para a
atual potica de saúde mental (AMARANTE et al, 1995).
LOUGON e ANDRADE (1995) apontam diferenças marcantes na atuação de
movimentos de usuários e de familiares em Saúde Mental em estudo comparativo das
experiências em nível internacional. Enquanto os movimentos de familiares tendem a
pautar-se nas teorias biológicas de causação das doenças mentais, adotando como
método mais eficiente de tratamento a medicalizão do problema; os movimentos de
usuários tendem a assumir posições mais radicais, combatendo as internações
compulrias, denunciando as práticas violentas nas instituições psiquiátricas e
defendendo uma causaçãoo-biológica das doenças.
Diferentemente do cenário internacional, no Brasil, o movimento de
transformação do modelo assistencial nasce dentro das categorias dos profissionais da
área; ou seja, os movimentos sociais compostos por familiares e usuários de saúde
mental, comam a dar os primeiros passos amparados no movimento dos profissionais
engajados na luta por uma reforma da assistência psiquiátrica.
Os primeiros movimentos de usuários e familiares que se tem registro são de uma
associação de familiares e usuários em Barbacena, Minas Gerais, criada a partir de uma
visita de Franco Basaglia aos manicômios da cidade e a Sociedade de Serviços Gerais
para a Integração pelo Trabalho – SOSINTRA, fundada no Rio de Janeiro em 1979
(AMARANTE et al., 1995).
Atualmente, em nosso país existem cerca de 150 associações e grupos que
cumprem um importante papel para o campo da saúde mental atuando, muitas vezes, de
43
maneira crítica e contestadora frente aos fracassos e aos descaminhos do Estado
(RIBEIRO, 2003).
Observa-se que, em uma grande parte, as associações civis em saúde mental
nasceram a partir do trabalho dos serviços substitutivos e revelam uma necessidade de
ampliação das possibilidades de intervenção na esfera do trabalho, da moradia, do lazer,
das poticasblicas. MELMAN (2001) afirma que “este fenômeno reflete um desejo
da sociedade civil de se organizar para ter mais influência nos rumos da assistência
psiquiátrica” (p. 104).
VASCONCELOS [s.d.] considera que as associações de usuários, familiares e
trabalhadores no campo da saúde mental revelam o surgimento de uma estratégia de
empoderamento (empowerment) destes atores, através do fortalecimento do poder,
autonomia e auto-organização dos mesmos.
O autor distingue dois níveis de indução de empoderamento de usuários e
familiares no campo da saúde mental: o primeiro nível ocorre nos dispositivos
cotidianos dos novos serviços de saúde mental, através dos grupos operativos,
assembias, eventos, projetos comuns, etc. o segundo nível diz respeito a iniciativas,
projetos e formas organizativas lideradas ou assumidas de forma mais autônoma e
independente pelos usuários e seus familiares mesmo que conte com o suporte de
trabalhadores de saúde mental (VASCONCELOS, [s.d.]).
Neste segundo nível de indução de empoderamento é que se registram as
associações civis em saúde mental que comem, na atualidade, a grande maioria dos
dispositivos associativos em saúde mental do país (VASCONCELOS, [s.d.]).
No geral, observa-se no campo da saúde, o surgimento de associações civis
ligadas a determinadas patologias, compostas por pacientes ou de seus familiares. No
entanto, há uma característica diferencial no campo da saúde mental: nesta área
encontram-se associações de composição variada. A maioria possui composição mista,
tendo entre seus membros usuários, familiares e trabalhadores da área (técnicos).
Este diferencial representa uma tentativa de superar as barreiras do preconceito e
driblar o estigma produzido pela sociedade em face da loucura, pois:
44
Diferentemente das representações de usuários existentes
no campo da saúde, na saúde mental tais representações
trazem consigo uma peculiaridade e, até, uma inovação de
ação política: uma associação constitui-se no esforço de
representar aqueles que legalmente não poderiam se
representar, pois segundo o Código Civil, estariam
absolutamente incapazes de exercer os atos de vida civil
(SOUZA, 2001a, p. 934).
Por outro lado, não podemos deixar de reconhecer que, apesar de representar uma
riqueza de ação, a composição mista das associações civis em saúde mental é, também,
fonte de contradições internas, já que os diferentes atores que as comem, apesar de
perseguirem um grande objetivo comum (o Movimento da Luta Antimanicomial),
apresentam motivações e interesses marcadamente diferenciados.
Assim, os trabalhadores unem-se a esse movimento motivados por queses
profissionais e éticas; os usuários buscando ampliar os espaços de vida e sociabilidade,
como nos conta MATIAS (2006) ao narrar as circunstâncias que levaram à criação da
Associação Franco Basaglia, em 1989:
surgiram impasses no tratamento dos usuários que
produziram outro campo de pensamento no sentido de
oferecer ações e intervenções para a melhora na qualidade
de vida das pessoas, ampliando o tratamento para aspectos
mais práticos da vida dos usuários, ou seja, ações voltadas
para as condições de moradia e trabalho, aspectos que um
serviço de saúde não consegue abranger (MATIAS, 2006,
p. 54).
Já os familiares acompanham e participam do sofrimento de seus entes e, deste
modo, padecem com a sobrecarga econômica, social e emocional decorrentes da
convivência com portadores de transtornos mentais.
SCARCELLI (1998) nos lembra que:
os movimentos sociais no geral não são monolíticos, mas
processos abertos, sujeitos a contradições internas e
pautados por uma composição heterogênea. Se por um
lado, os movimentos articulam-se em fuão de
reivindicações coletivas e apresentam uma homogeneidade
relacionada às carências comuns de seus membros, por
45
outro, essa igualdade encobre a heterogeneidade dos bens,
das capacidades, do tipo de trabalho ou dos recursos
culturais que estes possuem” (p. 129)
Assim, para compreender o funcionamento dessas associações, é imprescindível
que consideremos a relação entre os diferentes atores que delas participam.
46
Que cidadania queremos?
Através do exercício de pressão política em favor de novos olhares sobre a
loucura, as associações civis em saúde mental são fundamentais na luta pela garantia dos
direitos de cidadania das pessoas com sofrimento psíquico.
Entendemos cidadania como o conjunto de direitos e deveres atribuídos a uma
pessoa. A Constituição Brasileira, em seu artigo quinto, trata sobre os direitos
individuais e coletivos e cita que: “todoso iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...”
(BRASIL, 2004, p. 15).
CRUANHES (2000) define que “a cidadania é o direito de todos a ter todos os
direitos iguais” (p. 83). Assim, além dos direitos civis, a cidadania constitui-se, também,
do exercício de direitos políticos e sociais. Os direitos políticos constituem a
possibilidade de participar no exercício do poder político, seja como eleitor ou investido
de autoridade política.
Já os direitos sociais são garantidos pelo artigo sexto da Constituição Brasileira
que cita: “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 2004, p. 20).
Apesar de todos os brasileiros terem seus direitos garantidos constitucionalmente
sabemos, no entanto, que nem todas as pessoas têm acesso de maneira igualitária a esses
direitos. Para que isso ocorra é preciso que alcancemos a eqüidade, proporcionando mais
mecanismos de acesso a seus direitos a quem mais precisa, como afirma PITTA e
DALLARI (1992): “a cidadania não é mais um atributo dos iguais, dos normais, dos que
podem decidir de forma convencional. Os diferentes, os bizarros, os estranhos devem ter
seus direitos fundamentais garantidos. A eqüidade, ou seja, a disposição de atender
igualmente aos direitos de cada um, passa a ser a utopia perseguida” (p. 21).
47
SARACENO (2001), diversamente da citação anterior, traz à baila uma definição
pautada na iia de Reabilitação Psicossocial, em que cidadania não é compreendida
como algo abstrato ou um ideal a ser perseguido. A cidadania constitui a “banalidade do
cotidiano”, sendo construída nas pequenas ações e nas relações afetivas e sociais do dia-
a-dia, como cita o autor: “a cidadania do paciente psiquiátrico não é a simples restituição
de seus direitos substanciais, e é dentro de tal construção (afetiva, relacional, material,
habitacional, produtiva) que se encontra a única Reabilitação possível” (p. 18).
Assim, o empenho de toda a sociedade (usuários
6
, familiares, trabalhadores,
governo, etc.) é um dos caminhos possíveis para a construção da cidadania das pessoas
com sofrimento psíquico. Desta forma, reabilitação “não é a substituição da
desabilitação pela habilitação, mas um conjunto de estratégias orientadas a aumentar as
oportunidades de troca de recursos e de afetos: é somente no interior de tal dinâmica das
trocas que se cria um efeito ‘habilitador’” (SARACENO, 2001, p. 112).
Para tanto, é preciso a abertura de espaços de negociação, de trocas, de
relacionamento para os usuários, seus familiares e a comunidade circundante,
aumentando a capacidade contratual dos usuários. Os eixos para esse processo são o que
SARACENO (1996) chama de ‘cenários’, que constituem o espaço social das relações,
onde é possível aos seres humanos exercer sua habilidade de efetuar trocas (afetivas e
materiais) e, assim, exercitar a contratualidade. Estes ‘cenários’ são a casa (morar), a
rede social (conviver) e o trabalho (produzir).
Assim, um desafio se coloca: é preciso construir novas possibilidades de relação
com a loucura, para que efetivamente possa-se superar a cultura manicomial. Para tanto,
é preciso a construção de práticas e de políticas que considerem a complexidade da
experiência da loucura. E na busca de alternativas para esta questão, desponta o
crescimento dos movimentos sociais. Deste modo, através de maior organização social é
possível engendrar um processo de mudança cultural em que as pessoas com sofrimento
psíquico possam ter maior acesso aos direitos de cidadania.
6
Na intenção de evitar termos que apresentam uma conotação negativa, indicando passividade ou
incapacidade, optamos por utilizar o termo usuário no sentido de expressar positivamente a identidade
social das pessoas que vivenciam a experncia da loucura.
48
Seguindo nesta direção encontramos a Associação “Loucos Pela Vida” de Mogi
das Cruzes - SP, que é formada por usuários, seus familiares e trabalhadores do
Ambulatório de Saúde Mental de Mogi das Cruzes. Suas ações vêm ganhando
importância no cenário das poticas municipais de saúde, conquistando respeito e
admiração da sociedade civil.
49
CAPÍTULO IV
A Associação “Loucos pela Vida” de Mogi das
Cruzes – SP.
50
1) A cidade de Mogi das Cruzes e a atenção em saúde mental.
A cidade de Mogi das Cruzes foi fundada em de setembro de 1611 e fica
localizada na região leste da Grande São Paulo / Alto Tietê, a sessenta e três quilômetros
da cidade de São Paulo, fazendo divisa com os municípios de Suzano, Itaquaquecetuba,
Arujá, Santa Isabel, Guararema, Santos, Biritiba-Mirim e Santo André (MOGI DAS
CRUZES, 2003). O município possui área de setecentos e vinte e um quilômetros
quadrados (721 km²) e apresenta uma população, segundo a estimativa realizada pelo
IBGE em julho de 2006, de 372.419 habitantes.
7
No que tange à área de saúde, o município conta com três hospitais particulares,
dois hospitais estaduais (hospital Dr Arnaldo Pezzuti Cavalcanti e Hospital das Clínicas
Luzia de Pinho Melo, atualmente administrado por uma organização social), uma Santa
Casa, vinte e duas Unidades Básicas de Saúde Municipais, seis Unidades do Programa
de Saúde da Família, um programa específico de atendimento à saúde da mulher,
composto de três unidades (Pró-Mulher, Pró-Mulher II e Pró-Parto) e um Ambulatório
de Saúde Mental.
O primeiro serviço de atenção aos portadores de transtornos mentais do
munipio foi o Ambulatório de Saúde Mental de Mogi das Cruzes (ASM-MC),
implantado em 1984 pela Secretaria Estadual da Saúde, em extensão da verba AIS –
ões Integradas de Saúde. As fundamentações para as ações desenvolvidas por este
serviço basearam-se na “Proposta de Trabalho para Equipes Multiprofissionais em
Unidades Básicas de Saúde e em Ambulatórios de Saúde Mental”, publicada pela
Coordenadoria de Saúde Mental da Secretaria Estadual da Saúde em 1983
(NASCIMENTO et al, 2002; RODRIGUES, 2000).
É importante ter em consideração que esta unidade foi implantada durante o
governo Franco Montoro (1983-1987), que constituiu o primeiro governo eleito
7
Informações obtidas na página da internet da Prefeitura Municipal de Mogi das Cruzes: < URL
http://www.pmmc.com.br/ccs/conteudo%20menu/conheca_mogi/conheca-mogi.htm>. Acesso em
21/03/2007
51
democraticamente após o golpe militar de 1964. Nesta época, já por influência do
Movimento da Reforma Psiquiátrica, estruturava-se uma potica de desospitalização das
pessoas com sofrimento psíquico, através da extensão das ações em saúde mental às
Unidades Básicas de Saúde e dos Ambulatórios de Saúde Mental que consistiam em
serviços de atenção especializada (MATIAS, 2006). No entanto, no município em
questão, a atenção em saúde mental sempre foi marcada pela dificuldade e pela falta de
integração com outros serviços de saúde, pois:
em Mogi das Cruzes, a atenção dada à Saúde Mental foi
precária, criaram-se equipes mínimas em Unidades Básicas
de Saúde, logo após a implantação do ASM-MC, sendo
logo extintas, em 1991. Em 1993, desativou-se o Hospital
Psiquiátrico IMIL – Instituto Modelo de Itaquaquecetuba
Ltda., trazendo ambiidades para o conjunto da
população e dos trabalhadores da região, pois alguns
acreditavam e defendiam a institucionalização, outros
concebiam novas formas de tratamento, sem a exclusão do
usuário na comunidade (NASCIMENTO et al., 2002, p.
15).
Assim, a assistência psiquiátrica na cidade ficou restrita ao atendimento
ambulatorial no ASM-MC e à existência de alguns leitos de emergência no Hospital
Regional de Ferraz de Vasconcelos e, mais recentemente, à existência de enfermaria
psiquiátrica no Hospital Santa Marcelina de Itaquaquecetuba, destinados a cobrir toda a
região do Alto Tietê (NASCIMENTO et al., 2002).
No período de 1984 a 1999, conforme depoimentos de profissionais colhidos por
RODRIGUES (2000), o ASM-MC atendia toda a demanda em saúde mental da região
do Alto Tietê, sem definição do perfil do usuário e, também, sem um projeto de atuação
definido. Tal situação começa a tomar outros contornos a partir do processo de
descentralização e municipalização
8
da atenção em saúde mental na região. Assim, os
8
Conforme as diretrizes do SUS, cada esfera de governo tem funções e atribuições distintas, assim o
Minisrio da Saúde tem como atribuições o desenvolvimento das atividades estratégicas no âmbito
nacional, de planejamento, controle, avaliação e promoção da descentralização, além da regulação do setor
privado. Às Secretarias
Estaduais de Saúde compete o planejamento, organização e programação da rede
hierarquizada do SUS. Finalmente, fica sob a responsabilidade das Secretarias Municipais de Saúde o
52
outros municípios da região do Alto Tietê foram, gradativamente, assumindo o
atendimento de seus munícipes.
No entanto, MATIAS (2006) aponta a ocorrência, como efeito do processo de
municipalização dos serviços de saúde mental, de um decréscimo na ação política da
Secretaria Estadual da Saúde em São Paulo (SES-SP): “a ação potica da SES-SP, no
campo da saúde mental concentrou-se nas reformas dos hospitais psiquiátricos próprios
e na execução das portarias ministeriais. Houve assim retração nas ações que, ligadas a
Reforma Psiquiátrica Brasileira, foram pioneiras e inspiradoras do modelo atual de
saúde mental” (p. 22).
Esta situação teve fortes efeitos sobre o ASM-MC, pois a unidade não passou
pelo processo de municipalização sendo, até os dias atuais, administrada pela Secretaria
Estadual da Saúde através do Departamento Regional de Saúde I (DRS I)
9
. Este
processo teve como conseqüências uma situação de falta de investimentos e de grande
descaso para com o ASM-MC, uma vez que a SES-SP já não tinha dentre as suas
atribuições a responsabilidade de gerenciamento de serviços, a busca de recursos para
manutenção do trabalho ou para expansão do quadro de funcionários, por exemplo, era
sempre muito complicada.
Desde 2003 vem sendo estruturado na cidade um “Programa de Atenção em
Saúde Mental”. Neste mesmo ano, a Secretaria Municipal de Saúde realizou a
contratação de psicólogos, médicos psiquiatras, assistentes sociais e enfermeiros com o
objetivo de estruturar equipes mínimas de saúde mental em seis Unidades Básicas de
Saúde que funcionariam como unidades de referência para atendimento em saúde mental
para os demais serviços da rede (MOGI DAS CRUZES, 2003).
planejamento, organização, controle e avaliação das ações e serviços de saúde e, também, por ser o nível
mais próximo ao cidadão, a responsabilidade pelo gerenciamento dos serviçosblicos de saúde
(BRASIL, 1990).
9
Durante a execução desta dissertação, estavam avançadas as discussões para a municipalização do ASM-
MC, impulsionadas pela extinção da Dirão Regional de Saúde III (DIR III) de Mogi das Cruzes,
seguindo a nova organização da Secretaria Estadual de Saúde, proposta pelo governo de José Serra.
53
No Centro de Saúde I (CSI) ficaria concentrado o atendimento em psiquiatria
para todo o município. Assim, esta unidade seria a referência para o tratamento
medicamentoso de transtornos psiquiátricos considerados leves ou moderados.
Dentro desta nova perspectiva, o ASM-MC constitui-se em referência para
tratamento de adultos, portadores de transtornos mentais graves. No município,
contamos, ainda, com uma enfermaria psiquiátrica de curta permancia inaugurada no
Hospital das Cnicas “Luzia de Pinho Melo” em 2005. Centrando suas ações no
atendimento a pessoas com sofrimento psíquico, o ASM-MC assume como missão:
tratar da saúde mental dos portadores de transtornos
psíquicos graves e tem como objetivo estabilizar o quadro
clínico e psicossocial, reabilitando o paciente para um
convívio saudável na família e na comunidade, prevenindo
sintomas e internações e integrando o paciente consigo
mesmo e com os outros, através de um trabalho
transdisciplinar (NASCIMENTO et al., 2002, p. 17).
Assim, atualmente, o ASM-MC passa por um processo de mudanças, de
remodelação, já que, apesar de tratar-se de uma proposta de assistência em saúde mental
baseada em preceitos dos anos de 1980, há uma tentativa desse serviço em “modernizar-
se” assumindo no seu cotidiano alguns “procedimentos de CAPS”, como a realização de
oficinas terapêuticas, a ênfase no trabalho em equipe multidisciplinar e a atenção
organizada em ações intensivas, semi-intensivas e não-intensivas, conforme a gravidade
do caso.
E foi dentro do ASM-MC, a partir de solicitações dos trabalhadores e usuários da
unidade, que surgiu a vontade de montar uma associão: a associação “Loucos pela
Vida”.
54
2) A Associação “Loucos pela Vida”: constituição, objetivos e
trajetória.
Concebemos que a mobilização para criação da associação iniciou-se em 1995,
momento em que a maioria dos usuários do ASM-MC estava atrelada unicamente ao
tratamento medicamentoso. A atenção estava centrada no controle dos sintomas, através
da prescrição de medicamentos e no atendimento individualizado pela equipe técnica,
quando necessário. O quadro de pessoal era formado por poucos técnicos (profissionais
com formação superior: psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros ou terapeutas
ocupacionais) e não havia integração entre os membros da equipe.
No entanto, a situação vivida no ASM-MC incomodava parte da equipe técnica,
levando a vários questionamentos. SARACENO et al. (2001) defende que a equipe de
saúde mental deve adotar, como estratégia de intervenção, algumas atitudes básicas
(atitude solidária e afetiva; atitude psicoterapêutica; atitude psicofarmacológica e atitude
reabilitatória) para com a pessoa com sofrimento psíquico. Assim:
A reabilitação é uma atitude não somente necessária para
os pacientes institucionalizados, como também para todos
os pacientes com enfermidades crônicas ou que tendam à
cronicidade. Para tanto, devem ser realizados programas
específicos de reabilitação para os enfermos crônicos
institucionalizados, assim como para os que se servem
continuamente dos serviços de atenção psiquiátrica
ambulatorial. Não existe intervenção correta se existe
exclusivamente terapia farmacológica e psicológica e não
existe ao mesmo tempo reabilitação (SARACENO et al.,
2001, p. 32).
Sob a perspectiva da atitude reabilitatória, os membros da equipe de saúde devem
ajudar as pessoas com sofrimento psíquico a “restabelecer suas relações afetivas e
sociais; reconquistar seus direitos na comunidade e a reconquistar seu poder social”
(SARACENO et al., 2001, p. 31).
55
No entanto, a realidade do ASM-MC estava muito aquém das perspectivas da
reabilitação, o que impulsionou a realização de algumas ações que estimulassem a
socialização e o contato com os usuários. Assim, inicia-se um “grupo de passeio” com o
objetivo de estimular o lazer e ampliar a circulação e o acesso das pessoas a diferentes
lugares, através de visitas a parques, exposições, cinema, shopping, etc. Além disso,
passaram a ser organizadas festas em datas comemorativas com participação efetiva dos
usuários e ocorre a abertura de um Bazar da Pechincha.
Em 1998, com a entrada de uma nova direção no ASM-MC, contratação de
novos técnicos e a ocorrência de uma supervisão institucional, estruturou-se um
Programa de Reabilitação”, com a organização de reuniões que, a principio, eram
freqüentadas somente pelos profissionais técnicos, mas, em seguida, com participação
ampliada aos usuários, sendo que o Bazar da Pechincha passou a funcionar diariamente.
Neste momento, iniciou-se a discussão para criação de uma associação (BENANTE,
2002).
RODRIGUES (2000) considera que o “Programa de Reabilitação” iniciado no
ASM-MC:
teve como primeiro objetivo aglutinar pacientes, familiares
e profissionais e discutir projetos de trabalho, mas tamm
abrir possibilidades concretas de geração de rendas e
trabalho, contribuindo desta forma para emancipação dos
sujeitos. Assim, entre falas e desejos, usuários, familiares e
profissionais foram aglutinando-se em torno do projeto,
possibilitando seu desmembramento em duas frentes:
Projeto Trabalho, composto pelo Bazar e Culinária,
respectivamente uma loja de roupas e confecção e venda de
doces e salgados; e a Comissão Pró-associação de
Pacientes, Familiares e Trabalhadores da Saúde Mental
(p. 84).
Este processo de mobilização causou grande inmodo aos funcionários do
ASM-MC que, acostumados com uma situação em que as relações eram frias e distantes,
viram-se ameaçados com a maior proximidade dos usuários e o aumento do interesse
destes por questões relacionadas ao serviço de saúde.
56
Enfim, a Associação “Loucos Pela Vida” é resultado do trabalho realizado por
usuários, familiares e trabalhadores ligados à Saúde Mental de Mogi das Cruzes.
Fundada em 02 de fevereiro de 2001, tem como finalidades colocadas em seu estatuto
social:
I- Promover o exercício da cidadania por meio e atividades sociais, ecomicas,
políticas e culturais de seus associados e das pessoas com sofrimento
psíquico;
II- Estimular ações e práticas alternativas às do atual modelo hospitalocêntrico
da assistência psiquiátrica no Brasil;
III- Financiar ações e projetos que ofereçam respostas mais efetivas às
necessidades de moradia, estudo, lazer e cultura. No que se refere à
necessidade ecomica, é objetivo da entidade financiar projetos com caráter
sócio-reabilitativo, inserido no mercado. A intenção destes projetos é
promover a capacitação profissional e estimular a capacidade produtiva de
seus beneficiados;
IV- Financiar projetos de estudo e pesquisa científica que contribuam para a
ampliação do corpo técnico que fundamenta novas práticas em saúde mental;
V- Contribuir para a formação dos trabalhadores em saúde mental, através de
cursos, debates, simpósios, conferências, fóruns;
VI- Contribuir para a transformação da cultura que tende a estigmatizar, excluir e
marginalizar o chamado “doente mental;
VII- Incentivar a descoberta, criação e produção de modos diversos de relação
entre sujeitos, que possibilitem maior autonomia e reconhecimento social;
VIII- Contribuir ativamente para que a legislação psiquiátrica garanta os direitos
civis das pessoas com sofrimento pquico.
Atualmente a Associação “Loucos Pela Vida” conta com setenta e sete
associados
10
, sendo sessenta e quatro usuários, três familiares e sete trabalhadores da
10
Dado proveniente do levantamento das fichas de inscrição.
57
Saúde Mental, além da presença de três voluntários (pessoas que se interessam pela
instituição e passam a participar de suas atividades sem, no entanto, ter qualquer ligação
com a área de saúde mental). Percebemos que do total de associados, cerca de cinqüenta
a cinqüenta e cinco pessoas participam regularmente das atividades da Associação
“Loucos Pela Vida”, enquanto que o restante tem participação esporádica ou, em alguns
casos, afastou-se das atividades da mesma.
A Associação “Loucos Pela Vida” conta com o funcionamento de três Projetos
de trabalho: Bazar da Pechincha, Culinária e Biblioteca. Além disso, foi estruturado um
Grupo de Compras, que é composto por cinco usuários que se responsabilizam pela
manutenção material dos projetos de trabalho, através de levantamentos e solicitações
feitas pelos associados, efetuando pesquisa de preços e compra de materiais e utensílios
para o funcionamento das atividades. No final do 2006 foi deliberado que este grupo
também passaria a ser remunerado.
O Projeto Bazar da Pechincha acontece diariamente, de segunda à sexta-feira, das
8h00 às 12h00 e das 13h00 às 17h00. Em cada período permanecem no local dois
associados-usuários, que são responveis pela limpeza e organização do local, pela
realização de vendas e pelo controle do caixa. Este projeto tem por objetivo “vivenciar
situações de um ambiente de trabalho comercial, através da escolha de mercadorias
doadas para venda, fixação de preços e administração do lucro” (NASCIMENTO et al,
2002, p.22).
Há uma comissão de usuários responsável por receber e colocar preços nos
objetos doados (roupas, calçados e, eventualmente, objetos de decoração e
eletrodomésticos). Há, também, no mesmo espaço físico, uma geladeira, um freezer e
uma estufa que são utilizados pelo Projeto Culinária. Assim, no Bazar da Pechincha
tamm são comercializados sorvetes, balas, doces, salgados e refrigerantes.
O Projeto Culinária funciona quatro vezes por semana (às segundas, quintas e
sextas-feiras no período da manhã e às terças-feiras no período da tarde) sendo composta
por equipes de quatro ou cinco usuários e contando com um “responsável” (um
profissional do ASM-MC). Este projeto de trabalho tem como objetivo “vivenciar
58
situações de ambiente de trabalho, através da elaboração de receitas da culinária e
transferindo as habilidades desenvolvidas no grupo para situações do cotidiano e vice-
versa” (NASCIMENTO et al, 2002, p. 22-3).
Os participantes do Projeto Culinária têm como responsabilidade: efetuar um
cardápio das receitas (pratos doces e salgados) que serão realizadas; encaminhar ao
Grupo de Compras as solicitações de ingredientes e materiais necessários; executar o
prato definido; seguir normas de higiene e limpeza relacionadas a apresentação pessoal
(corte das unhas, utilização de roupas limpas, higiene das mãos, utilização de avental e
touca fornecidas pela associação) e a cozinha (executar a limpeza do local e dos
utensílios utilizados durante e após a realização do grupo); efetuar a venda do produto e
o controle do caixa.
O Projeto Biblioteca funciona diariamente, nos mesmos horários do Bazar da
Pechincha. Trata-se de uma sala que conta com estantes de revistas e de livros, um
aparelho de televisão e dois sofás. Este espaço tornou-se uma sala de convincia, em
que os participantes da associação e os usuários do ASM-MC se encontram para
conversar, assistir televisão ou se distrair enquanto aguardam as consultas.
No Projeto Biblioteca os usuários são responsáveis pela organização das estantes,
catalogação dos livros e de fitas de deo e o controle dos empréstimos. Semanalmente é
realizada uma reunião para acompanhamento das atividades do projeto e de discussão
das eventuais dificuldades e/ou intercorrências, com a participação de um associado-
trabalhador.
A remuneração dos associados ocorre bimestralmente da seguinte forma: são
somadas todas as entradas de dinheiro, dos diferentes projetos. Deste total, setenta por
cento permanece com a associação para manutenção dos projetos e investimentos em
móveis e equipamentos; os trinta por cento restantes, são destinados aos usrios. Do
valor destinado aos usrios é feito o seguinte calculo:
30% do faturamento do bimestre.
___________________________= valor da remuneração por dia trabalhado
Total de dias trabalhados no período.
59
Assim a remuneração do usuário é proporcional ao número de dias que este
trabalhou nos projetos.
Estes projetos de trabalho acontecem em espaços cedidos pelo ASM-MC ou em
espaços que são compartilhados em determinados horários e dias da semana, como é o
caso da cozinha da unidade, para realização do projeto Culinária. Isto se dá porque a
entidade utiliza-se do mesmo espo físico do ASM-MC, que funciona em um prédio
residencial alugado, contendo dezoito cômodos, localizado na região central de Mogi
das Cruzes.
A relação entre a Associação “Loucos pela Vida” e o ASM-MC é de grande
proximidade, chegando, algumas vezes, a existir dificuldade de diferenciação entre uma
e outra instituição. Tomamos como exemplo, o fato de que, normalmente, para se tornar
membro da Associação “Loucos pela Vida”, um usuário deve ser ‘encaminhado’ por um
dos profissionais do ASM-MC. Assim, é preciso que a pessoa tenha um histórico de
participação em grupos e atividades dentro do ASM-MC e, deste modo, possa contar
com a ‘recomendação’ de um dos profissionais para que possa participar da associação.
Outro fato importante é que os projetos de trabalho – principalmente a Culinária
– têm que obrigatoriamente contar com a presença de um profissional responsável.
Trata-se de uma condição da direção do ASM-MC para que os usuários possam usar a
cozinha da unidade.
Estas ocorncias m criando um mal-estar entre os membros da associação
que, em muitos momentos, incomodam-se com as restrições e as limitações decorrentes
desta ‘relação de dependência’ com o ASM-MC. Assim, tem sido forte a movimentação
para a busca de uma sede própria.
60
3) Representando os interesses dos usuários: “radiografia” de sua ação
política.
11
A partir de 2003, as atividades da Associação “Loucos pela Vida” foram voltadas
para a defesa de direitos dos associados
12
. Dentre as metas propostas estavam: participar
mais ativamente do Conselho Municipal de Saúde de Mogi das Cruzes (COMUS) e
conseguir que o Hospital Luzia de Pinho Mello, então em reforma, incluísse uma
enfermaria psiquiátrica em seu quadro de atendimento.
Quanto ao COMUS, todos os meses três associados assistiam as reuniões, sendo
um fixo e dois em forma de rodízio. O associado “fixo” era responsável por fazer uma
ata da reunião e apresentar na assembléia semanal. A participação dos outros dois
associados era importante para que todos tivessem a oportunidade de entender o que é o
COMUS, como funciona e para que serve. Esta equipe era, então, constituída por um
trabalhador da saúde (o participante “fixo”) e por dois usuários.
Em 2005 houve a eleição para os integrantes do COMUS, a Associação “Loucos
pela Vida” inscreveu-se e conseguiu ser eleita para a vaga de representante dos usuários
de serviços de saúde. Hoje a associação vem, sistematicamente, participando das
reuniões e das comissões internas do COMUS e pode, através de seu direito a voto,
participar das negociações sobre as propostas de políticas públicas do município. É
importante esclarecer que a representação da AssociãoLoucos pela Vida” no
COMUS é composta por dois associados-usuários e que, freqüentemente, outros
associados acompanham as reuniões para apoiar seus representantes. Além disso, as atas
11
As informações para este tópico foram extraídas de material intitulado “Apresentação da Associação
“Loucos pela Vida” – mimeografado.
12
Seguindo os preceitos constitucionais que criaram o SUS, o novo modelo assistencial em sde mental
prevê o controle social, uma diretriz desse sistema. O relatório final da III Conferência Nacional de Saúde
Mental (2002) ressalta a importância da participação da comunidade como forma de garantir o avanço da
Reforma Psiquiátrica e defende que o controle social deve constituir-se com a representação de três
segmentos: usuários, familiares e profissionais de saúde
.
61
e as pautas das reuniões são, posteriormente, apresentadas e debatidas nas assembléias
semanais da associação para que todos os participantes da entidade acompanhem o
andamento das atividades do órgão.
Quanto à enfermaria psiquiátrica, houve intensa mobilização para conseguir que
ela fosse aberta no maior hospital geral público da cidade, contando com doze leitos.
Para chegar a esse resultado foi necessário atingir a opinião pública através da mídia,
palestras em escolas públicas e universidades, panfletagens nas ruas, etc. Foram
recolhidas três mil assinaturas em um abaixo assinado, que foi enviado ao Ministro da
Saúde, ao Secretário Estadual da Saúde, à Câmara dos Vereadores de Mogi das Cruzes,
ao Prefeito Municipal, ao Secretário Municipal da Saúde, ao diretor da, então, Direção
Regional de Saúde - DIR III de Mogi das Cruzes e ao diretor clínico do Hospital Luzia
de Pinho Mello.
A Associação Loucos pela Vida participa, também, do Fórum Paulista da Luta
Antimanicomial – entidade que congrega usuários, profissionais e as mais diferentes
instituições com o intuito de acompanhar o avanço da Reforma Psiquiátrica no estado de
São Paulo. Também, ao longo de 2004 e 2005, a Associão “Loucos pela Vida” vinha
participando da Comissão Estadual da Reforma em Saúde Mental, órgão concebido para
efetuar assessoramento ao Conselho Estadual da Saúde, através de dois associados-
usuários inscritos como representantes dos usuários. Infelizmente, este órgão foi extinto,
devido dificuldades de organização interna.
Em 2004 a associação foi convidada, pelo Ministério da Saúde, para participar da
“Oficina de experiência e geração de renda e trabalho de usuários de serviço de saúde
mental”, bem como do grupo de trabalho e geração de renda que funciona na internet,
apesar da dificuldade de acesso, pois a entidade não possui microcomputador. Um fato
surpreendente foi que a Associação “Loucos pela Vida” foi a única instituição a ser
representada por usuários neste evento em Brasília, pois todas as outras instituições eram
representadas por trabalhadores da saúde.
Além disso, a Associação “Loucos pela Vida” participou do Fórum de Saúde
Mental em Mogi das Cruzes em 2001 e 2004, nas Conferências Estadual e Nacional de
62
Saúde Mental (2001); desenvolvimento do tema Saúde Mental, em palestra na Semana
de Saúde, na Universidade Brás Cubas (2002); participação na plenária e uma comissão
representante na tribuna da Câmara Municipal de Mogi das Cruzes (2000), que culminou
na mudança da Lei Municipal para isenção tarifária no transporte público da cidade;
também prestou auxílio na elaboração de Projeto de Lei incluindo a Semana da Luta
Antimanicomial no calendário oficial da cidade. Nestes eventos, a representação da
associação sempre contou com a presença dos associados-trabalhadores; porém, os
associados-usuários sempre, e em maior número, foram os protagonistas desta
representação.
Em 2005 as atividades da Associação “Loucos pela Vida” de Mogi das Cruzes
ganharam evidência, pois esta foi contemplada com o segundo lugar no Prêmio Nacional
de Inclusão Social, na categoria defesa de direitos. Esta premiação ocorre anualmente às
instituições que atuam em Saúde Mental e tem como mantenedores a Associação
Brasileira de Psiquiatria e o Laborario Eli-Lilly.
No ano de 2006 a entidade concorreu novamente, na mesma categoria, e foi a
vencedora. Esta premiação é significativa, pois deu visibilidade ao trabalho da
associação, uma espécie de “certificado de qualidade” aos olhos da comunidade, além,
do prêmio de R$20.000,00 que representa a possibilidade de concretizar o objetivo de
adquirir uma sede.
A Associão “Loucos pela Vida” de Mogi das Cruzes vem ocupando importante
espaço na defesa dos direitos dos portadores de transtornos mentais. Este é um exemplo,
dentre as mais de 150 associações com estas características existentes atualmente no
país.
Enfim, coma a colher frutos semeados pelo Movimento da Luta
Antimanicomial. No entanto, esta vem sendo uma luta árdua, ainda muito longe de seu
objetivo. Ainda hoje, o Brasil possui um imenso parque asilar, composto de 226
hospitais psiquiátricos, com um total de 39.567 leitos credenciados pelos SUS, o que
representa, apesar dos importantes avanços, o gasto de quase cinqüenta por cento dos
recursos destinados à saúde mental (BRASIL 2007). Em pleno século XXI ainda são
63
freqüentes as denúncias de maus tratos em instituições psiquiátricas, repetindo um
secular modo de lidar com a loucura: a exclusão. Urge a busca de alternativas para a
questão, de um ‘outro’ lugar social para a loucura. E neste momento um
questionamento surge e nos remete ao objetivo da pesquisa: qual a contribuição das
associações civis em saúde mental no processo de modificação do lugar social
historicamente atribuído aos sujeitos em sofrimento mental, tendo em vista o exercício
da cidadania?
Na tentativa de procurar responder a esta questão, observamos que a Associão
“Loucos pela Vida” coloca-se como importante objeto de estudo.
64
CAPÍTULO V
Construindo os caminhos da pesquisa.
65
HIPÓTESE
É possível atribuir as associões civis em saúde mental protagonismo no
processo de modificação do lugar social historicamente atribuído aos sujeitos em
sofrimento mental, tendo em vista o exercício da cidadania.
OBJETIVO
Escolhemos para análise, no município de Mogi das Cruzes - SP, a Associação
“Loucos pela Vida”, entidade composta por usuários, familiares e trabalhadores do
Ambulatório de Saúde Mental da cidade e que funciona em um espaço cedido pelo
mesmo, visando compreender a trajetória da Associão, abordando sua constituição,
configuração das relações existentes entre os diferentes participantes e diversidade de
ações nos espaços das poticas públicas de saúde no município de Mogi das Cruzes/SP,
com o objetivo de compreender a contribuição das associações civis em saúde mental no
processo de modificação do lugar social historicamente atribuído aos sujeitos em
sofrimento mental, tendo em vista o exercício da cidadania.
Para alcançarmos tal objetivo, recorremos a fontes documentais e relatos orais, entre
associados-usuários e associado-trabalhadores, da referida associação.
66
Caminho Metodológico
Em um serviço público de saúde, como o Ambulatório de Saúde Mental de Mogi
das Cruzes, cotidianamente defronta-se com as mais diferentes histórias pessoais. As
pessoas que lá chegam procurando atendimento, ou que até lá são levadas por um
familiar ou um amigo, trazem consigo histórias de vida que registram perdas, sofrimento
e dor. São pessoas que perderam o emprego, perderam a família e a sanidade. São
histórias repletas de desencontros, desrespeito, incompreensão e, quase sempre, de
isolamento social, já que seu comportamento diferenciado assusta e afasta as outras
pessoas.
Por este motivo, chama a atenção dos funcionários e dos outros usuários do
serviço de saúde o fato de alguém que chegou ao serviço em condições sicas e mentais
lamentáveis, revelar sinais de recuperação. Chama a atenção o fato de determinada
pessoa conseguir voltar a dedicar-se a uma atividade laborativa, resgatar a convivência
com a família e com os amigos, de não mais apresentar comportamentos estranhos e de
participar de atividades de lazer e cultura.
o inúmeros os usuários que têm uma história deste tipo para contar. Muitas e
muitas vezes ouvimos relatos que se reportavam ao estado em que a pessoa chegou ao
serviço e a como ela se encontra atualmente.o é incomum ouvirmos a expressão: -
Você não me reconheceria se me visse quando comecei o tratamento! Antes de
participar da associação, eu não era assim...
Para a equipe técnica a recuperação dos usuários é sempre encarada de maneira
gratificante, pois representa o êxito alcançado na realização do trabalho de atendimento
às pessoas com sofrimento psíquico. Para tanto, é preciso ir além das prescrições de
medicamentos e das consultas.
A prática profissional em saúde tende a buscar, no contato com o doente”, não a
sua história de vida, mas a história da sua patologia e os nexos traumáticos que definirão
o seu diagnóstico. Através de perguntas e de roteiros p-concebidos, busca-se maiores
informações sobre a razão daquela pessoa estar ali, considerando-se, com maior ênfase,
67
a dimensão biológica neste contato inicial. Desta forma, observamos que a pessoa passa
a ser indagada apenas sobre um aspecto: os sintomas de sua doença. Pouco se sabe sobre
seu histórico, suas preferências, suas relações familiares e sociais, etc.
No entanto, percebemos que é preciso trabalhar no sentido de superar as
limitações impostas pelo estigma da loucura, propiciando que estas pessoas voltem a ter
prazer em viver, que se sintam motivadas a realizar algo, que voltem a conviver com as
pessoas e, acima de tudo, que se reconheçam e sejam reconhecidas como cidadãos,
plenos de direitos e de deveres.
Dentre os participantes da Associação “Loucos pela Vida” também não é
diferente. Tanto os usuários quanto os trabalhadores que a integram têm uma trajetória,
uma história de vida dentro das instituições de saúde, principalmente no Ambulatório de
Saúde Mental de Mogi das Cruzes. Vivências de sucessos e de fracassos; histórias de
luta e determinação; momentos de alegria e de tristeza; situações dignas de serem
lembradas ou aquelas que se prefere esquecer. Assim, se dentro do serviço de saúde há a
preocupação em tratar da doença; no espaço da associação há o incentivo à vida,
considerada em sua amplitude e complexidade.
Assim, surgiu-nos o interesse em testemunhar as mudanças ocorridas com estas
pessoas e, ao mesmo tempo, desvelar o movimento da associação. Para tanto, optamos
por não contar somente com os documentos e as versões históricas oficiais. Uma
instituição é feita de e por pessoas e, deste modo, torna-se importante dar voz aos
protagonistas destas histórias; ou seja, ouvir, registrar e refletir sobre as narrativas por
eles apresentadas. Ao mesmo tempo, interessamo-nos por cotejar os relatos dos
protagonistas com a versão oficial dos acontecimentos, registrada em documentos,
reportagens, fotos, etc., pois, como cita BOSI (2003): “mais do que o documento
unilinear, a narrativa mostra a complexidade do acontecimento. É a via privilegiada para
chegar até o ponto de articulação da História com a vida quotidiana. Colhe pontos de
vista diversos, às vezes opostos, é uma recomposição constante de dados” (p. 19-20).
68
Natureza da pesquisa e levantamento de dados
Com o intuito de captar as sutilezas e os aspectos subjetivos presentes nas
vivências das pessoas que participam da Associação “Loucos pela Vida”, elegemos a
pesquisa qualitativa como meio privilegiado para a abordagem deste tema.
MINAYO (2000) define que as metodologias de pesquisa qualitativa são
entendidas comoaquelas capazes de incorporar a questão do significado e da
intencionalidade como inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais, sendo
essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação, como
construções humanas significativas” (p.10).
TURATO (2005) considerando as especificidades da área da saúde define que:
No contexto da metodologia qualitativa aplicada à saúde,
emprega-se a concepção trazida das Ciências Humanas,
segundo as quais não se busca estudar o femeno em si,
mas entender seu significado individual ou coletivo para a
vida das pessoas. Torna-se indispensável assim saber o que
os femenos da doença e da vida em geral representam
para elas. O significado tem função estruturante: em torno
do que as coisas significam, as pessoas organizarão de
certo modo suas vidas, incluindo seus próprios cuidados
com a saúde (p. 509).
Assim, para o autor, os métodos qualitativos de pesquisa apresentam cinco
características essenciais. A primeira característica trata sobre o interesse do
pesquisador: a busca do significado dos fenômenos, das manifestões, das idéias,
sentimentos, etc. Uma segunda característica é que o campo de observação e pesquisa é,
essencialmente, o ambiente natural do sujeito, não existindo um controle de variáveis.
Como terceira característica temos que o observador é o próprio instrumento da
pesquisa; ou seja, é através da utilização de seus órgãos do sentido que o pesquisador
busca apreender o objeto em estudo. A quarta característica refere-se à força do método,
atribuída à qualidade da alta validade dos dados colhidos. Finalizando, a quinta
característica diz respeito à generalização que se torna possível através da geração de
69
novos conhecimentos ou da revisão de pressupostos, podendo este conhecimento ser
aplicado para compreender outras pessoas ou “settings” constituídos pelas mesmas
vivências. Para tanto, caberá ao leitor e consumidor da pesquisa sua verificação e
validação em casos novos (TURATO, 2005).
Deste modo, nossa intenção é aproximar-nos do universo de significações, de
crenças e valores que compõem a vida dos participantes da Associação “Loucos pela
Vida”. Para alcançarmos tal objetivo, adotamos a metodologia de relatos orais, na forma
de depoimentos
13
para a coleta de dados.
QUEIROZ (1988) defende que o relato oral sempre fora a maior fonte humana de
conservação e difusão do saber, procurando traduzir em vocábulos a experiência
indizível; ou seja, através das narrativas é possível efetuar uma transposição daquilo que
está obscuro (ações e emoções) para a nitidez da palavra.
FERRAZ (1998) ao buscar conhecer o “louco de rua” de uma comunidade em
Minas Gerais, fundamentou-se em valores como memória e narrativa como veículos de
conhecimento e utilizou em sua pesquisa os relatos orais, que considera ser a técnica que
por excelência, poderia significar uma contraposição às técnicas quantitativas” (p.109).
Diferentemente do campo jurídico, em que o termo depoimento tem o significado
de interrogatório e busca da verdade dos fatos, nas ciências sociais depoimento é
entendido comoo relato de algo que o informante efetivamente presenciou,
experimentou, ou de alguma forma conheceu, podendo assim certificar (...) Desta forma,
nas ciências sociais, o depoimento perde seu sentido de ‘estabelecimento da verdade
para manifestar somente o que o informante presenciou e conheceu” (QUEIROZ, 1988,
p.21).
13
Inicialmente, imaginamos utilizar como instrumento para a coleta de dados a história oral de vida que,
segundo DENZIN (1970) “apresenta as experiências e definões vividas por uma pessoa, um grupo, uma
organização, como esta pessoa, esta organização ou este grupo interpretam sua experncia” (p.220). No
entanto, durante o trabalho de campo não foi possível que nos apropriássemos deste recurso trico-
metodológico, pois a maior dificuldade encontrada refere-se ao fato do colóquio ter sido, em grande parte,
dirigido pela pesquisadora. Assim, optamos por trabalhar com relatos orais.
70
Para a autora o crédito em relação ao relato apresentado advém do confronto
deste com outras fontes documentais.
No momento dos depoimentos adotamos a seguinte pergunta como disparadora
do diálogo: Conte-me sobre sua experiência de participação na Associação “Loucos
pela Vida” de Mogi das Cruzes.
Tal recorte se faz necessário frente ao objetivo da pesquisa e, dessa forma,
direciona o depoimento focando o objetivo proposto.
Assim, além da coleta de depoimentos, também realizamos consultas a
documentos relativos à criação e organização da Associação “Loucos pela Vida” de
Mogi das Cruzes e realização de observação participante nas assembléias semanais da
associação.
Schwartz & Schwartz (citado por MINAYO, 2000) apresentam a seguinte
definição sobre observação participante:
Definimos observão participante como um processo
pelo qual se mantém a presença do observador numa
situação social, com a finalidade de realizar uma
investigação científica. O observador está em relação face
a face com os observados e, ao participar da vida deles, no
seu cenário cultural, colhem dados. Assim o observador é
parte do contexto sob observação, ao mesmo tempo
modificando e sendo modificado por este contexto” (p.
135).
Desde 2002, participamos sistematicamente das assembléias gerais da
Associação “Loucos pela Vida”, que são realizadas às sextas-feiras a partir das 14h00.
Também participamos das reuniões da diretoria, bem como de atividades culturais e
sociais, como festas, bingos e confraternizações.
Sentimos ser importante relatar que, nessas ocasiões, nossa participação sempre
foi muito ativa, exercendo mais fortemente o papel de associada, do que de uma mera
observadora. No entanto, avaliamos que tal ligação não nos impede de efetuar um olhar
crítico sobre os acontecimentos vividos.
71
Seleção dos sujeitos da pesquisa
Adoção de “amostra qualificada” como proposto por THIOLLENT (2000), que
consiste em: “um pequeno número de pessoas que são escolhidas intencionalmente em
função da relevância que elas apresentam em relação a um determinado assunto. (...)
Pessoas e grupos são escolhidos em função de sua representatividade social dentro da
situação considerada” (p. 62).
Deste modo, procuramos por pessoas que apresentam um tempo maior de
participação na associação, sendo que todos os narradores ouvidos estiveram presentes
desde a movimentação para fundação da AssociaçãoLoucos pela Vida”, até o momento
presente.
Em seu estatuto, a Associação “Loucos pela Vida” prevê a participação de
usuários da saúde mental, seus familiares e de trabalhadores da área. No entanto,
percebemos que apesar da participação de familiares estar prevista em estatuto, isto não
se concretiza no cotidiano da instituição.
Nas assembléias conhecemos apenas um membro que é pai de um usuário, no
entanto, ele mesmo também é usrio do ambulatório de sde mental. Infelizmente este
cessou sua participação em meados de 2005 e, assim, não nos foi possível ouvi-lo.
Percebemos que existem alguns familiares cadastrados como membros
participantes da associação, no entanto, estas pessoas não freqüentam as assembléias ou
os projetos de trabalho. Apenas – e eventualmente - comparecem aos eventos sociais.
Assim, recebemos os depoimentos de cinco membros da Associão Loucos pela
Vida, sendo que três narradores são usuários do Ambulatório de Saúde Mental e dois são
trabalhadores (um continua na unidade de saúde e outro foi transferido para o interior).
72
Desenvolvimento da pesquisa
A coleta dos relatos orais foi iniciada após o projeto de pesquisa ter sido
submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública. Também
pudemos contar com a autorização da diretoria da Associação “Loucos pela Vida”, bem
como com a da direção do Ambulatório de Saúde Mental de Mogi das Cruzes.
Contamos, também, com a anuência dos depoentes através do consentimento
livre e esclarecido, conforme preconiza o Conselho Nacional de Saúde, através da
Resolução CNS/196 de 10/10/1996. Neste documento, também solicitamos autorização
para a gravação dos depoimentos em fitas cassete.
Devido à longa convivência com os membros da associação, a aproximação e o
convite para participação na pesquisa ocorreram de forma natural. Todos demonstraram
muito interesse e disponibilidade para relatar sua experiência de participação na
associação.
No entanto, percebemos entre os usuários grande insegurança. Todos
demonstraram grande disponibilidade em colaborar com o estudo, no entanto não
sabiam como fazer isso. Apresentaram-se, inicialmente, muito inseguros, sem saber se
poderiam verdadeiramente colaborar. Preocupavam-se muito com estar falando certo”.
Apesar da pesquisadora ter colocado-se à disposição para realizar a entrevista no
local que o depoente achasse mais adequado, somente um solicitou-nos que o
entrevistasse em sua casa. Os outros depoentes preferiram ser ouvidos ali mesmo, no
espaço da Associação “Loucos pela Vida”. Neste sentido, tomamos o cuidado de
agendar estes encontros em horários que não coincidissem com nosso horário de
trabalho no ASM-MC; além de buscarmos salas e horários mais tranqüilos no cotidiano
da unidade de saúde, no intuito de proporcionar-lhes maior tranqüilidade.
Estes encontros tiveram, em média, entre trinta a quarenta minutos de duração.
Os depoimentos foram colhidos entre julho e outubro de 2006.
73
Assim, se deu nosso contato com Aurora, Miguel, Lia, Ana e Sofia
14
.
Aurora, 50 anos, é usuária do Ambulatório de Saúde Mental de Mogi das Cruzes
desde 1996. Entre 1993 e 1994 teve uma passagem pela instituição, mas refere ter
recebido alta. Já na época em que reiniciou o tratamento, após uma forte crise, iniciou a
participação no projeto de trabalho Bazar da Pechincha e nas movimentações para a
fundação da associação. Desde então, Aurora tem papel de destaque na Associação
“Loucos pela Vida”, estando presente no quadro da diretoria da instituição e atuando nos
eventos beneficentes e confraternizações.
Além disso, Aurora é a representante titular da associação no Conselho
Municipal de Saúde, como representante dos usuários. Assim, sua presença em eventos
municipais relacionados à saúde é constante. Como participante da Associação “Loucos
pela Vida”, participou da III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em
Brasília, em 2001, evento que a marcou muito.
Em sua biografia, chama a atenção o fato de Aurora ter enfrentado desafios após
seu adoecimento. Aurora, que sempre fora dona de casa, passou a trabalhar fora, como
balconista em uma loja a convite de uma vizinha. Também é responsável pelos cuidados
com o filho da proprietária desta loja, sendo que iniciou esta atividade quando ela ainda
estava grávida e hoje esta criança tem seis anos de idade.
Apesar de tantos compromissos, percebemos que Aurora faz questão de deixar
um espaço em sua rotina para participação na associação, pois no seu contrato de
trabalho, colocou como condição a liberação de um dia da semana (sextas-feiras) para
participação na assembléia geral da associação e no projeto bazar da pechincha.
Miguel, 36 anos é usuário do ambulatório de Saúde Mental de Mogi das Cruzes
desde 1997. Como no caso de Aurora, Miguel teve uma passagem pelo Ambulatório de
Saúde Mental em 1992, porém não deu continuidade ao tratamento e foi residir no
exterior. Lá permaneceu por quase cinco anos, quando apresentou uma forte crise.
14
Nomes fictícios a fim de preservar a identidade dos depoentes.
74
Chegou a iniciar o tratamento no exterior, porém os familiares preferiram que Miguel
retornasse ao Brasil.
Já em 1998 começou a participar da movimentação para fundação da associação.
No entanto, apesar de sua grande participação, Miguel demonstra grande insegurança em
ter que falar emblico, principalmente por medo de ser criticado. Através da
associação vem enfrentando esta insegurança e, freqüentemente, consegue explicitar
suas opiniões e idéias.
Demonstra um espírito muito combativo, sempre participando das comissões que
fazem reivindicações aos poderes públicos, como cita:
“E gosto duma briguinha também (risos). Igual que eu falei de ir em
passeata, e... ir em prefeitura, ir no fórum... brigar pelos... pelos nossos
direitos. Apesar que de eu não falar em público, mas eu acho que eu tô ali...
eu tô fazendo alguma coisa”.
Apreciador da leitura, hoje está envolvido com o projeto biblioteca.
Sofia, 36 anos é usuária do Ambulatório de Saúde Mental de Mogi das Cruzes
desde, aproximadamente, 1998, sendo que sua primeira crise foi em 1995. Sofia
apresentou-nos o relato mais emocionado. Foram freqüentes os momentos em que ela
chorou ao recordar-se de sua história.
Sua participação na associão iniciou-se já no final do processo para fundação
da mesma. Apesar de sua participação no corpo de direção da instituição, Sofia mostra-
se pouco à vontade, sente que não tem capacidade, “que tem a mente fechada” e que
pouco colabora para a associação.
Em seu relato, Sofia freqüentemente expressa sentimentos de gratidão,
principalmente ao relatar o fato de ter sido aceita e acolhida, apesar de suas dificuldades
e limitações. Em seus planos e desejos, sempre é mencionada a vontade de voltar a
trabalhar, de ter o próprio dinheiro e independência.
Lia e Ana, ambas terapeutas ocupacionais, são trabalhadoras da saúde. Lia
iniciou sua atividade no ASM-MC em 1998, onde permaneceu por dois anos, tendo que
se afastar devido o fim do contrato de trabalho, porém continuou participando da
75
Associão “Loucos pela Vida”. Retomou sua atividade profissional no Ambulatório de
Saúde Mental em 2002.
Já Ana trabalhou no ASM-MC por mais de dez anos, sendo que em 2004, por
razões pessoais, foi transferida para o interior. Hoje, apesar de residir em outra cidade,
freqüenta as assembléias gerais da associação.
A partir de agora, apresentaremos as análises das categorias mais importantes
apresentadas nos depoimentos de usuários e trabalhadores. QUEIROZ (1988) considera
a análise o processo primordial de uma pesquisa:análise, em seu sentido essencial,
significa decompor um texto, fragmentá-lo em seus elementos fundamentais, isto é,
separar claramente os diversos componentes, recortá-los, a fim de utilizar somente o que
é compatível com a síntese que se busca” (p.19).
Após a cuidadosa análise dos depoimentos, chegamos às seguintes categorias
empíricas:
o Trabalho e sentimento de utilidade;
o Amizade e solidariedade;
o Loucura X sanidade;
o A instituição e suas diferentes significações;
o Percepção sobre os direitos de cidadania e comportamento potico.
76
Trabalho e sentimento de utilidade.
Esta categoria foi a mais importante em nosso estudo, tendo como referência a
freqüente menção a ela, seja por parte dos associados-usuários ou dos associados-
trabalhadores. Tal nível de importância é justificável se levarmos em consideração que a
Associão “Loucos pela Vida” nasce tendo como principal alicerce o trabalho como
produtor de reconhecimento social e cidadania.
Para RODRIGUES (2000) o trabalho representa uma possibilidade emancipadora
da doença, configurando-se em uma importante ponte para a inserção social dos
portadores de transtornos mentais:
a constituição de grupos de pacientes, familiares e
trabalhadores potencializam o fazer de forma criativa,
estabelecendo estrategicamente a possibilidade da criação
de uma nova cultura, na qual a desinstitucionalização do
doente mental ime repensar, também, a questão do
trabalho (...) Discutir trabalho e sde mental é para nós
discutirmos a vida e suas possibilidades” (p.81-2).
Dentre os associados-trabalhadores ouvidos, é presente a idéia de que lidar com a
questão do trabalho e da renda, possibilitando a ampliação das relações sociais foi o
principal estímulo para a fundação da associação:
E fomos conversando, conversando, é, técnicos a princípio é... porque a
gente queria fazer um trabalho fora, porque a gente só ficava dentro do,
do, do serviço é, não conseguíamos mexer com a questão do trabalho,
principalmente com a questão da renda, então era uma coisa que
incomodava bastante, porque a maioria dos usuários não tinha renda e, e
era uma queixa, deles, também, uma queixa deles e a questão também
das relações sociais, porque as relações ficavam só aqui dentro – quando
tinham. E, e aí, a gente conversando, a princípio como eu falei, com
trabalhadores, alguns trabalhadores – na verdade eram três técnicos.
Três técnicos e depois alguns usuários. E dessa conversa nasce a idéia de
como é que a gente ia ganhar dinheiro. É, porque priorizou, essa fala aí,
priorizou a questão do dinheiro mesmo.
Uma que faltava alguns materiais, também, pra se trabalhar. A gente
queria muito um rádio e um violão e não tinha grana pra comprar, não
77
sei o quê, como é que a gente vai juntar grana pra comprar tudo aí. Aí
veio a idéia do bazar da pechincha. E, aí o bazar da pechincha, a gente...
tinha uma sala que era pouquíssimo utilizada na, na época. A gente
juntou algumas roupas, alguns utensílios e fizemos lá um bazar uma vez
por mês. E fez muito sucesso. Eu lembro que a gente logo comprou um
violão. (Ana)
Dentre os usuários, é forte a percepção de que os projetos de trabalho são o que
há de mais importante dentro da Associação “Loucos pela Vida”:
Acho que a importância maior da associação são os projetos que ela tem.
(Pausa) (...) E faz as pessoas se sentirem bem trabalhando. Se sentirem
útil. E ela faz a gente se sentir importante (Aurora)
Tal grau de importância está relacionado com a idéia de ocupação e de
sentimento de utilidade.
Pra minha vida... tem me ajudado bastante, eu não fico em casa, só em
casa, eu venho pra cá. Só não venho pra cá na terça-feira. O resto da
semana eu venho. Então eu acho que ajuda bastante... Ficar em casa
não dá. (Miguel)
E a associação me mantém ocupado. Então acho que isso ajuda. Porque
o que mais eu ouço falar é... que tem que se ocupar. Eu acho que isso
ajuda... e as amizades que a gente faz também... na associação. (Miguel)
Pra minha vida está sendo ótimo. Que eu saio daqui na sexta-feira e
passo o dia todo lá. Ta sendo ótimo. Porque se ficar dentro de casa, eu
não faço nada. Lá eu faço. eu sou útil... Isso é bom.
Acho que é pra vida de todos, não só a minha. Todos têm a devida
importância estando ali. (Aurora)
Esta associação entre trabalho e sentimento de utilidade também foi vivenciada,
por uma das depoentes, em outra instituição: a igreja. Neste local, ao buscar um conforto
para seu sofrimento, sentiu-se acolhida através da realização do trabalho:
Eu só vou na minha igreja, porque lá, nessa igreja, tinha dedicação da
igreja, e eu gostava. Dedicação é... tipo assim, trabalhar normal dentro
de casa, e eu gostava porque eu ia lá, nessa igreja, e eu fazia essas coisa,
eu me sentia útil, porque sem eu fazer nada, eu me sentia inútil, uma
pessoa inútil, que eu não fazia nada. E antes eu ficava em casa dias
deitada, não, não queria trabalhar. (Sofia)
78
Tanto para Aurora, quanto para Miguel, o trabalho realizado no ambiente da
associação foi tratado sem diferenciação do trabalho formal. No entanto, para Sofia os
projetos de trabalho são, em verdade, uma espécie de incentivo para o trabalho
“normal; ou seja, o trabalho longe do ambiente protegido.
Já basta a minha melhora, e esse dinheirinho que eu recebo, eu, eu tenho
muita gratidão por ele, já serviu muito. Num, num tem que querer,
crescer o olho, e querer mais. Já ta bom. Que tem gente que acha, que
tem que, que aumentar mais. Eu falo: - Mas não é um serviço, normal.
Quem quiser um serviço normal, só melhorar e trabalhar. Que esse aqui
num, num é. É só um incentivo... (Sofia)
Para Sofia “estar doente” ou “estar louca” é representado como a impossibilidade
de realizar o trabalho:
Eu trabalhava em casa de família (...) Mas teve quase um ano que eu
trabalhei numa casa de repouso. Aí, dessa casa de repouso, eu fui pra
outra casa de família que eu fiquei quase um ano. Aí lá eu tive a crise, a
segunda crise, que eu perdi a memória... eu o lembro (chora)... tem
muita coisa que eu não lembro, Letícia. (...) Aí eu perdi a memória, a
minha patroa ligou pra minha irmã e pediu... que ela fosse me buscar...
que eu tava louca (chora) que eu falei coisa que eu não via, eu não sabia.
(Sofia)
Para ela, a melhora de seu quadro é representada pela possibilidade de voltar a
trabalhar na mesma função que realizava antes da primeira crise:
Porque eu sempre trabalhei em casa de família, e o me... e eu acho que o
dom que Deus me deu foi esse e eu sinto d’eu não trabalhar, hoje (chora).
Pergunta: Você sente falta de trabalhar?
Resposta:... (chorando) A minha irmã quer que eu trabalhe em outras
coisa, ela falou – eu não sei mexer muito com dinheiro... se eu for mexer
com dinheiro, eu vou me atrapalhar toda, eu vou dar troco errado... as
pessoa também vai, fazer errado comigo, aí eu num quero... fazer na... eu
to es... eu to esperando eu voltar a trabalhar de novo.(Sofia)
Esta situação pode se justificar, também, pelo fato de os outros depoentes
contarem com benecios da Previdência Social (um deles está aposentado por invalidez
e o outro recebe o benefício do auxílio-doença), o que lhes confere certo poder de
79
negociação no espaço social e no espaço familiar. Sofia depende financeiramente de sua
família e esta situação causa grande insatisfação e, por vezes, conflitos:
Agora eu ajudo a minha irmã em casa. Eu faço as coisa em casa, mas,
mas é, a minha irmã não gosta muito que faço as coisa dela, é ela que
quer fazer. É por isso que eu sinto falta do meu serviço, assim, fora.
Porque... depender dos outros, é...não vou dizer que é, assim, tão ruim,
mas também não é tão, tão bom. Que eu já tive muitas coisas que eu não
tinha quando eu trabalhava porque... eu gostava muito de passear, e hoje
minha irmã me dá as coisas... eu não reclamo muito, assim, eu reclamo,
que você sente falta de ter a sua pri..., privacidade, suas coisas que você
tem vontade, de ter.
(...)
É. Eu, eu briguei com a minha irmã esses dias – briguei, não, eu falei pra
ela, que quando eu trabalhava eu tinha a minha privacidade, e na casa
dela eu não tenho, porque ela pega muito no meu(risos). ela ficou
chateada comigo, mas depois a gente volta ao normal, de novo. A gente...
discute, assim, às vezes, mas é, é coisa, bobeira, que passa, rápida. Não
guarda raiva uma da outra, não.(Sofia)
Mas, para além do valor econômico percebemos, nos depoimentos colhidos, que
o trabalho foi abordado em seu valor social, representando o fator percebido como de
maior importância dentro da atuação na Associão “Loucos pela Vida”. Assim,
tomando esta categoria como central, consideramos que é a partir dela que se desdobram
os outros temas.
80
Amizade e solidariedade.
A ampliação dos laços de amizade e solidariedade propiciados pela participação
nas atividades da Associação “Loucos pela Vida” foi freqüentemente mencionada pelos
associados-usuários:
Hoje eu venho porque, eu venho porque eu gosto de ta aqui, conversar
com os meus amigos e fazer as coisa. Porque eu gosto. E, e às vezes, eu
não saio muito pra passear, quando eu... eu venho aqui, eu gosto de vim
pra... pra passear também, conversar com os amigos. (Sofia)
o, é que... a gente vem pra, está meio triste, e tal. Aí o ... aí o amigo
começa a conversar. E aí outro, aí surge assuntos... (risos) de... de
brincadeira, assim, a gente brinca, tudo. Eu acho que isso anima a gente
um pouco. (Miguel)
Ah, o principal foi que todo mundo se tornou mais amigo. Porque tem
reunião que junta todo mundo ali, então um é amigo do outro. Isso é a
melhor coisa. (Aurora)
A importância desta rede de amizade e solidariedade repercute no tratamento e
na evolução da doença, segundo a percepção dos associados-usuários.
É porque eu melhorei com os meus amigos (chora) psiquiatra, médico,
nenhuma igreja melhorava eu. Eu, eu falo que foi uma coisa de Deus. Eu
num, eu num, eu num culpo ninguém, eu num... foi coisa que Deus quis
que acontecesse e eu melhorei com o tempo, com os remédios e com os
meus colegas e meus amigos. Porque eu não conseguia conversar com
psicólogo e nem ninguém. Eu, eu voltei a conversar com as atividade
aqui, e com os amigo aqui. Que eu perdi todos os meus amigos, que eu
tinha, e reconquistei agora aqui no ambulatório (chora) Quando eu digo
que eu morri e vivi de novo (chora). (Sofia)
Pergunta:E depois que você começou a se envolver com a associação...
assim... pra você, pra sua vida, pro seu tratamento... o que você
percebeu?
Resposta: Acho que ficou melhor. Que a gente tem mais com quem
conversar. Tem mais amizade e isso é bom pra gente, que faz tratamento
e que toma os remédios. Melhorou bastante... porque a gente vê também
81
que não é só a gente que tem problema. Tem mais pessoas que têm. Tem
que buscar ajuda. (Aurora)
Sofia relata sua iia de que as relações de amizade foram fundamentais para sua
melhora, principalmente pela proximidade e identificação com os colegas, sendo que,
esta vivência não ocorre na relação com os profissionais de sde:
Pergunta: E o que você acha que tem de melhor na associação?
Resposta: É de ter conseguido melhorar, ali, conversando com os meus
amigo, que eu gosto. Mesmo que eu não sou – eu gosto de vir só no dia
que tem as terapia – mas eu gosto de ta ali conversando, com eles, eu
sinto bem com eles. Porque muitas coisas que eles fala, aquilo já passou
comigo, e eu não contei pra ninguém, não foi psicólogo, nem médico, eu
guardei dentro de mim, muitas coisa que passou, às vezes, passa com eles
e eles comenta, fala: - Ah, mas isso já aconteceu comigo, mas eu não
falei pra ninguém. Ta... dentro de mim.
(...)
Pergunta: E de planos pro futuro, Sofia? Você tem planos pro futuro,
assim, pra associação, pra você?
Resposta: Eu, eu penso assim, em... em melhorar aqui, fazendo as
atividades... e depois, um dia, eu trabalhar. E aí, associação, não sei o
que acontece.
Pergunta: Por que?
Resposta: Quando eu sair, eu não sei, como que vai continuar, o que que
vai acontecer. Porque eu queria, que as pessoas, todas as pessoas
melhorasse, também. Que eu, como eu melhoro um dia, eu também
quero... melhorasse também. Que, igual eu vi o, o colega nosso, o T., não
sei se você conheceu, que é da P.M. (Polícia Militar). Eu vi ele no serviço
dele, que ele... ele tinha saído e voltou de novo, na profissão dele. Eu
falei: - Se ele conseguiu, acho que a gente também consegue.
Para os associados-trabalhadores a intenção de ampliar as relações sociais, de
romper com o isolamento social, característico dos portadores de transtornos mentais
graves sempre norteou a ação da Associação “Loucos pela Vida”:
E aí, esse, esse, esse, esse bazar, é, começou a acontecer, de quinze... a
princípio uma vez por mês como eu falei, depois de quinze em quinze
dias. Aí, uma pressão dos usuários: -“Não, olha... ta... ta tendo grana”. E
a gente percebendo, que não era só a grana. Que as pessoas tavam se
encontrando, que as pessoas tavam ficando é... mais à vontade, é...
conquistando aquele espaço, tomando aquele espaço, se apropriando
daquele espaço. (Ana)
82
Percebemos a extensão desses laços de amizade, quando realizamos a observação
das assembléias gerais, das reuniões e eventos da Associação “Loucos pela Vida”. Ou
mesmo durante a execução dos projetos de trabalho, onde há grande interação entre os
participantes. Nestes momentos, não há qualquer menção a doença, remédios ou loucura.
Trata-se de um momento para compartilhamento de vida, de distração, de tratar sobre
aspectos prazerosos como namoro, passeios, etc.
... hoje nós já não conversa só sobre remédio, porque antes, quando a
gente ta ruim, a gente fica falando só sobre a doença... e remédio. E hoje,
não, nós conversa outras coisa, diferente, fala dos passeio, de amigo,
dessas coisa, de namorada, essas coisa assim, que é normal. Não fica
falando coisa de doença, de remédio. A gente conversa outras coisas.
(Sofia)
Ocorreram modificações na relação entre “pacientes
15
e trabalhadores”, na
percepção dos usuários, pois a participação na associação propicia maior proximidade,
apesar de mantidas as diferenças, pois o trabalhador será sempre trabalhador; ou seja,
será sempre a parte sã, e o usuário será sempre o doente:
Eu tô... tô estabilizado. E faz um bom tempo. Então, acho que... contribui
bastante [a participação na associação para o seu tratamento]. E tamm,
na associação quando eu, eu não tô bem, eu chamo uma de vocês
[profissionais de saúde] pra conversar, tudo. Acho que isso ajuda
também.(Miguel)
É presente, tamm, a idéia de que os trabalhadores ali estão por benevolência,
fator que reforça uma postura de passividade e dependência:
Nossa, eu tenho muita gratidão por vocês, nossa. Vocês, nossa. Não tem
nem... só, só Deus que paga vocês, nenhum de nós pode pagar o que
vocês faz por nós. Só Deus. (...) Eu vejo... que vocês vê a gente como...
ser humano. Trata a gente... bem, como deve de tratar. (Sofia).
Se para os associados-usuários a estruturação de laços de amizade entre seus
pares é de fundamental importância para a melhora de seu quadro clínico e de sua
qualidade de vida; a relação com os associados-trabalhadores, mesmo dentro do espaço
15
Termo utilizado propositalmente, para enfatizar a idéia de passividade atribuída às pessoas em
sofrimento mental.
83
da associação, é sempre pautada por essa diferença hierárquica, não havendo uma
proximidade maior.
Para os associados-trabalhadores, da mesma forma, essa relação hierárquica
permanece. O que ocorre, em realidade, é uma diluição desse poder de autoridade, o que
abre a possibilidade do estabelecimento de um “vínculo terapêutico diferenciado” em
que, apesar de mantida a relação hierárquica profissional X paciente, há uma maior
participação na vida desses usuários. Essa relação ultrapassa as limitações terapêuticas
do tratamento formal, trazendo ao profissional forte sentimento de gratificação pessoal e
profissional:
Então, a... minha, minha, minha participação ta desde o começo, na
verdade. E, muito gratificante porque a gente via vários usuários,
estacionados, é... no, no, no seu trabalho no ambulatório; ou em
psicoterapia ou na terapia ocupacional ou mesmo usuários que só
passavam por consulta médica. Aí vai pra associação, e deslancha, é,
assim... alguns casos é impressionante mesmo, porque você vê vida
naquele usuário. É muito gratificante. E a associação, também, sendo
comentada pra fora. Isso que eu acho muito legal. E você sair com a
camiseta na rua e as pessoas perguntarem, de você ta na mídia. De, de ta
falando sobre a doença mental, sobre o que que é o louco, justificar,
enfim, esse trabalho aí (risos) que eu acredito que é, é... o único caminho
pra... pra reabilitação psicossocial mesmo (Ana).
Nossa! Acho que foi um crescimento muito grande na vida profissional.
Acho que a minha... é... pessoalmente eu me sinto uma pessoa melhor.
(risos) Acho que a gente conhece gente aqui, histórias de vida, e tal, e a
gente vê uma... mudança nas pessoas que é muito gratificante. É muito
legal. Você vê um paciente que mal conversava, que não conseguia fazer
nada, e que, de repente, ele ta... trabalhando. Ta fazendo as coisas – do
jeito dele – mas tem... ta trabalhando. É muito legal isso. Muito legal. Ou
ta participando dum COMUS, ou ta indo nas plenárias lá – a gente teve
plano diretor agora, participamos de todas as reuniões, pessoal se
organizou, foi, e era, assim, gente que tava fechada dentro de si mesma,
assim, que não tinha contato com... mal falava. Mal falava. Então... isso é
muito gratificante, é muito legal perceber que você participou desse
processo na vida dessa pessoa e que se não tivesse a associação - não
falo do tratamento, não, falo da associação especificamente - acho que se
não tivessem as oficinas de trabalho da associação, então não, não tinha,
essas coisas não tinham acontecido. E profissionalmente, olha,
sinceramente, eu acho que é um status participar de uma associação.
84
Uma associação que já ta antiga, que se consolidou, que não depende de
dinheiro público nenhum, que anda com as próprias pernas. É... que
passou por muita dificuldade, conseguiu... passar por esses obstáculos.
Eu acho que isso dá um status, assim, profissionalmente mesmo. É... eu,
eu percebo que o meu trabalho hoje em dia é muito mais norteado pelas...
pelas idéias da reabilitação psicossocial, do que era antes d’eu... d’eu
começar a trabalhar aqui, antes d’eu começar com esse projeto da
associação. Acho que eu cresci junto com ele. E junto com os pacientes.
Acho que é isso (Lia).
Deste modo, seja pela ótica dos usuários ou dos trabalhadores, a estruturação de
laços de amizade e de solidariedade propiciou-lhes ampliação das possibilidades de
relacionamento e convivência social, o que vem permitindo o desabrochar de uma nova
forma de ver e de lidar com a questão do sofrimento psíquico.
85
Loucura X sanidade.
Por vários momentos, são apontadas queses referentes ao preconceito, a
discriminação, e também às dificuldades que uma pessoa com sofrimento psíquico tem
para realizar as tarefas cotidianas. Esta dificuldade é relacionada às limitações da própria
doença, mas é sentida, principalmente, quando colocada aos olhos dos outros:
Pergunta: Então, você acha que participar da associação, é... te ajudou a
melhorar?
Resposta: Ajudou. Ajudou. Porque... tem muita gente que tem vergonha
da doença, de, mostrar, falar, com outras pessoas, que diz que tem
pessoas que tem preconceito. Mas... eu não tenho, porque... eu não sei
porquê eu não tenho. Eu não tenho. Não sei porquê eu não tenho,
vergonha. Eu não sei porquê. Eles tinha vergonha de usar camiseta, com
o nome da associação “Loucos pela Vida”. Eu não, eu não tenho.(...)
Que... eu não uso só assim, no, nos evento, nas, nas festinha que tem. Eu
uso normal no dia-a-dia. E, às vezes, eu cubro, assim, (faz um gesto em
que cobre o logotipo da camiseta com a mão) porque, eu falo: - Vai que
tem gente que tem preconceito, acha que a gente ta, querendo, corrigir
eles. Mas não é. A gente... ta usando porque... gosta e, às vezes, é bom
pro conhecimento... de quem não conhece. Pra saber... (Sofia).
Por vezes, esta questão está, verdadeiramente, mais relacionada com o estigma
da doença mental e, deste modo, com a construção de um lugar social determinado para
estas pessoas. Neste lugar, a principal característica é a impossibilidade; deste modo,
estas pessoas têm fortemente edificada a iia de que precisam de uma direção dada
pelos sãos, como cita Miguel ao relatar sua insegurança em expressar suas idéias nas
assembias da entidade:
E agora, na reunião já fico com um pouco o pé atrás porque eu... fico
pensando assim: Será que... vão me dar bronca? Será que eu fiz alguma
coisa errada? Tem dia que eu penso assim... Eu não fiz coisa errada,
mas eu penso que eu fiz, entendeu, ou que eu deixei de fazer alguma
coisa. Mas isso é uma coisa minha. Ninguém dá bronca... É coisa
minha... Acho que é isso.
Pergunta: Mas quando você tem vontade, assim, muita vontade de... falar
alguma coisa, de trazer um assunto, pra reunião, você se sente à
vontade?
86
Resposta: Eu falo...eu falo, mas sempre... com medo de me questionarem,
acho que eu sou um pouco... tipo ditador (risos) eu falo as coisa e não
quero ser questionado, tenho medo. Tenho medo de ser questionado...
Quando é pra ter uma idéia, também, eu fico... tipo uma responsabilidade
de ter alguma idéia legal, só que aí não vem a idéia, entendeu, fico
travado.Também tem isso... Mas eu acho a associação legal (Miguel).
Ou no caso de Sofia, ao relatar sua dificuldade em participar do Projeto Culinária
acompanhada somente de usuários, sem a presença de um funcionário do ASM-MC:
Era, tinha que ter uma pessoa que tava normal pra, dirigir nós mesmo,
porque a cabeça num... num, num dava – pelo menos a minha. Eu ficava
muito preocupada e eu ficava, me dava dor de cabeça.(...)
Pergunta: Você fica mais tranqüila, quando tem alguém?
Resposta: É. Eu fico. Porque agora, nesse ano eu senti que você e a D.
chegou mais, junto aqui no bazar pra, ver as coisas, eu senti, que era
melhor, foi melhor, pros paciente. Porque às vezes a gente faz coisas, que
num ta certo e a gente pensa que ta certo. E vocês tando, como pessoal,
normal, vocês já corrige a gente (Sofia).
Percebemos na atuação da Associação “Loucos pela Vida” um esforço na
desconstrução dessa imagem, através de pequenos atos cotidianos de compreensão e
solidariedade, como o citado por Sofia, em que conta a vincia de sua aceitão na
Associação “Loucos pela Vida” apesar de sua limitação em lidar com dinheiro e em
efetuar cálculos:
Aí eu entrei na, na reunião, aí eles perguntaram o que, que eu ia fazer,
mas eu falei, já entrei, que eu não sabia mexer com dinheiro no bazar –
queria me colocar no bazar. Aí eu falei: - Eu não sei mexer com dinheiro.
Eu não sei fazer conta, não sei... contar dinheiro. Aí a C. falou assim: -
Ela, ela pode dobrar as roupa. Aí a C. deu um jeitinho, falou ela pode
dobrar as roupa, eu lembro até hoje. Aí, nisso eu entrei, eu nunca quis ter
responsabilidade de, de assinar ali no, no caderno, assim, que tava...
fazendo as coisa ali, eu nunca quis, com medo de, de sumir as coisa, não
sei, não sei se era de sumir, não sei, eu não queria, ter aquela
responsabilidade. Com o tempo, muitos anos, que surgiu, que eu tive, que
eu entendi as coisa e eu tive vontade de assinar, ali, no caderno. Aí eu
assinei, hoje, hoje eu já venho, assino, e, e, já, já to começando, já to
começando a fazer continha de cabeça. Só, que eu não sei, é conta de, de
calculadora. Mas de cabeça eu to entendendo um pouco, já, já tô
contando, e tô aprendendo, aos poucos. (Sofia)
87
Esta situação de vincia de aspectos positivos (como assumir responsabilidades,
fazer amizades, trabalhar, etc) levou-a a uma gradativa mudança de comportamento em
que começa a aumentar sua participação, a questionar, a expressar sua vontade:
Mas agora eu já... na associação eu já falo alguma coisa, quando eu
sinto, eu já falo, antes eu não falava, agora eu já falo. Antes eu não, não
tinha coragem de falar, de medo de falar errado e também porque eu não
entendo muito, eu não tenho muita criatividade, assim, pras coisa.
(Sofia).
Esta modificação no comportamento, no caso de Sofia, foi ampliada para o
espaço da residência, onde ela busca ser mais ativa, interagir mais com os parentes:
Me colocaram na culinária, aí eu comecei a fazer as coisa – eu gosto de
fazer, só que eu não aprendo porque eu não pratico em casa, a minha
irmã não deixa porque ela acha que eu vou estragar as coisa. Às vezes eu
faço errado. Mas, e outro dia, a minha irmã foi pescar, com o marido
dela, aí eu, cheguei, falei: - Vou fazer um bolo, de chocolate. E tentei, e
consegui. Eu fiz o bolo pensando na D., que ela faz as coisa aí, aí eu
consegui fazer um bolo de chocolate, Letícia.
A tentativa de desconstrução do estigma relacionado à doença mental ocorre,
tamm, na realização de festas e confraternizações. Nestes eventos há uma diluição dos
papéis sociais e, a ampliação das trocas afetivas e sociais:
As festas! Legal. As festas são muito legal (...) É diversão mesmo. É
diversão. É uma coisa que sai da rotina. Isso que é legal. Sai da rotina
(Miguel).
Tem as festas também, que são legal, não é. Festa junina é legal (risos).
Passa o dia todo lá, cansa! Mas a gente nem percebe que tá cansando.
Fica o dia todo lá. É gostoso! Diverte! Acho que é uma das principais
festa nossas. É uma das que se distrai mais. Público de vários lugares. É
bom isso.Gosto de bingo, também. Bingo também é gostoso (Aurora).
Assim, na Associação “Loucos pela Vida” a questão autonomia X dependência é
vivida contraditoriamente, por vezes reforçando o lugar da loucura e, por outras,
estimulando novas possibilidades.
88
A instituição e suas diferentes significações.
Constatamos, através dos depoimentos, variadas possibilidades de relação com a
instituição Associação ‘Loucos pela Vida. Esta é abordada, por vezes, em sua condição
de espaço sico (local onde acontecem as assembléias e os projetos de trabalho); às
vezes como espaço terapêutico (local de acolhimento, de cuidado e de tratamento);
outras vezes como espaço de sociabilidade. Mas, permeando estas condições, estão
aspectos simbólicos desta instituição.
Adotamos o conceito de instituição definido por BLEGER (1998), consistindo no
conjunto de normas e padrões e atividades agrupadas em torno de valores e funções
sociais”. Sob este prisma, os grupos de pessoas constituem instituições. Já o termo
organização” é utilizado pelo autor para definira distribuição hierárquica de funções
que se realizam geralmente dentro de um edifício, área ou espaço delimitado” (p. 114).
Assim sendo, a instituição – da mesma forma que as pessoas que a formam -
abarca a existência de conflitos em sua dinâmica. Estes conflitos podem ser expcitos
(manifestos) ou não (latentes). LAPLANCHE e PONTALIS (1992) definem que de
modo geral, o termo simbólico designa a relação que une o conteúdo manifesto de um
comportamento, de um pensamento, de uma palavra, ao seu sentido latente; ausente”
(p.627). Assim, entendemos que estão presentes aspectos simbólicos quando da
ocorrência de situações em que, de modo indireto, mascarado ou conflituoso, se dão as
relações sociais no interior da instituição Associação “Loucos pela Vida”.
Como exemplo de situação conflituosa, observamos o relato de Ana, ao tratar
sobre o início do Projeto Culinária e apontar a dificuldade dos funcionários do ASM-MC
em compartilhar o espaço físico da cozinha da unidade com os usuários:
A culinária era só, esse ambulatório conta só com uma cozinha, que é
usada pelos funcionários. E os, os usuários foram, como eu falei, se
apropriando do espaço e aí a gente, técnico, foi na reunião geral é... pede
um horário pra cozinha. E foi muito difícil porque teve muita resistência!
“Como que o usuário vai entrar?” “Esse espaço é meu!” Alguns... a
gente ouve, de alguns profissionais é... falarem isso. E aí foi essa
89
discussão que seria um espaço, que é um espaço deles também e dividir,
e não sei o quê, a questão da convivência e mostrando, porque na
verdade o usuário também queria a questão da culinária. Claro que tinha
uma questão técnica também, mas tinha um pedido, de... trabalhar a
questão da comida, porque é uma coisa da vida diária mesmo e, de
ganhar dinheiro e... o ... num faço em casa, enfim. (Ana)
A relação com o ASM-MC também é sentida como conflituosa – ao mesmo
tempo em que propicia cuidado e proteção, ime limitações e impede o crescimento da
Associão “Loucos pela Vida”:
Pergunta: E fazendo, assim, uma avaliação, o que você acha que tem de
melhor e o de pior na associação?
Resposta: De pior é ta aqui no ambulatório. É o que tem de pior.
Pergunta: Por que?
Resposta: Porque já tivemo conflito já, com o ambulatório, com a
direção do ambulatório e... até com o diretor da DIR a gente ficou meio...
meio assim... de tá funcionando a associação... foi uma época que foi
falado isso... (pausa) E de melhor acho que é me ocupar, vê meus amigos,
conversar com os meus amigos... quando tem problema, poder conversar
com vocês, psicólogas. Isso é o de melhor (Miguel).
A ambigüidade na relação com o ASM-MC é vivenciada cotidianamente e
expressa-se no desejo em romper com esta ligação – por vezes limitante – através da
conquista de uma sede própria:
Eu penso... em ter a sede. Se a gente tivesse uma sede. E... ficar
independente do ambulatório. Eu acho que ta meio... até minha mãe
confunde um pouco isso: ambulatório- associação. Eu explico pra ela
que a associação não tem a ver com o ambulatório. E fica... E até pra
gente... pra gente... fica um pouco confuso.
Pergunta: O que melhoraria, na sua opinião, tendo uma sede?
Resposta: Ah, acho que... quando eu penso em sede eu penso em mais
espaço físico. Ter mais projetos. Ter mais gente também, crescer mais a
associação. Eu acho que é isso (Miguel).
Esta busca por autonomia do ASM-MC é demonstrada mais enfaticamente pelos
associados-trabalhadores:
A associação ainda acontece dentro de um serviço, que é o ambulatório
de saúde mental, é... facilita, mas também, por questões – não só a
questão gerencial que é complicada no ambulatório, mas é... fica aquele
90
reduto, fica, é, uma situação muito protegida ainda. Então eu acho que
pra fora vai ter muito mais possibilidade. Eu não acho que vai ser fácil,
acho que vai ser difícil. Mas eu acho que dá pra ampliar a questão do,
além da ampliação dos projetos, porque sempre se falou, principalmente
da, do projeto da culinária, se falou em uma lanchonete. E eu acho que
dá mesmo, é, pra fazer, ou uma rotisserie, pra fazer congelados, aí eu
acho que teria que ver como é que... que caminha, é... esse, esse projeto,
como é que vai ser de fato, enfim. É... mas ta aí fora, desse muro aí, que
é um lugar de... que é um lugar ainda de tratamento, num, eu não
consigo, na minha cabeça não vem, uma associação, não é um lugar de
tratamento. É diferente. Então, acho que o... a... seria muito... muito
gratificante a questão da sede própria, é... e também parcerias, que eu
acho que ainda ta... falha, parcerias, a gente não tem parcerias na
verdade. A gente faz pontualmente algumas parcerias. Mas aí acabou
aquilo, acabou o evento, acaba. (Ana)
Mas, acho que a gente tem um monte de planos. Um dos planos acho que
é sair do ambulatório, pra conseguir realmente ser... ser um projeto que
não é um projeto de atendimento clínico. Acho que fica difícil de
diferenciar pra todo mundo, é difícil diferenciar pros pacientes – ó, ó eu
chamando eles de pacientes – é difícil diferenciar pra gente, que acaba
chamando eles de pacientes, às vezes acaba... cobrindo demais, igual
galinha cobre pintinho, com medo que não dê certo, que, enfim... e que
normalmente você não tem numa associação qualquer, que não tem
técnico envolvido, que não é de saúde... é... acho que, o plano pro futuro,
acho que o principal é esse: conseguir sair do ambulatório de saúde
mental, da... do espaço físico daqui, acho que isso ia ser um avanço pra
gente (...) na minha opinião, acho que ia dar um, um passo de cem anos-
luz avante pra gente: era sair da, da tutela mesmo desse ambulatório,
conseguir ter espaço pra você trabalhar, fazer as coisas que a gente
realmente acredita, que a gente se vê cerceado, muitas vezes aqui pelo,
pelo espaço. Pela diretoria, enfim, pela linha de trabalho atual no
ambulatório, o serviço de saúde mental do estado de São Paulo em geral,
então acho que se a gente conseguisse separar essa coisa direta de
paciente, de atendimento e de associado, acho que ia ser muito legal,
muito bom (Lia).
Percebemos, assim, que asltiplas significações assumidas pela instituição são
perpassadas por aspectos simlicos que, em última instância, têm a função de proteção
frente às mudanças, para pontuar a loucura e a sanidade.
91
PICHON-RIVIÈRE (2005) aponta que toda situação de mudança gera, nos
sujeitos, duas ansiedades básicas: “ a) medo da perda do equilíbrio obtido na situação
anterior, e b) medo do ataque na nova situação, na qual o sujeitoo se sente
adequadamente instrumentado. Os dois medos, que coexistem e cooperam, configuram –
quando aumenta seu montante – a ansiedade diante da mudança, geradora de resistência
à mudança” (p. 243).
Deste modo, a resistência à mudança expressa-se nas dificuldades de
comunicação e de aprendizagem, sendo que aprendizagem é conceituada como “todo
processo de interação, a todo tipo de manipulação ou apropriação do real, a toda
tentativa de resposta coerente e significativa às demandas da realidade (adaptação)”
(PICHON-RIVIÈRE, 2005, p. 243).
Assim, o processo de interação entre o ASM-MC e a associação “Loucos pela
Vida” é repleto de idas e vindas, sendo composto por momentos de parceria e ação
conjunta (entre a Associação “Loucos pela Vida” e o ASM-MC; entre os trabalhadores e
os usuários; ou dentro da categoria dos trabalhadores) e, em outros, de marcada oposição
e de grande resistência às mudanças em curso, revelando uma dimica institucional em
processo de maturação, através da busca de outros espaços, de possibilidades outras...
Assim, os depoimentos apontam no sentido de que a construção de um novo
lugar social para a loucura necessita ser perpassada pela possibilidade de trânsito livre
entre os diferentes espaços assumidos pela instituição – espaço sico, terapêutico e de
sociabilidade. E é nesse transitar que se concretiza a liberdade, um dos direitos
fundamentais da pessoa.
92
Percepção sobre os direitos de cidadania e comportamento
político.
Alguns usuários participantes da Associação “Loucos pela Vida” sofreram
limitões no que se refere aos seus direitos civis através do instrumento de interdição. É
o caso de Sofia, que vive o fato da interdição de maneira ambígua: como um cuidado,
mas, também, como impossibilidade de responder por sua vida:
É que a minha irmã foi me ajudar, ela fez interditação (interdição) pra
mim. Aí nessa de interditação, diz que é... tudo que eu fizesse num, num
valia nada mais. E a minha irmã que ia assinar por mim... que, que nessa
época eu tinha um dinheirinho que eu tava guardando do, do meu
trabalho, aí diz que eu não podia mexer, foi ela que mexeu.
Teve uma vez que eu me joguei debaixo do carro por causa desse
dinheiro, que eu não queria que ela gastasse esse dinheiro, mas depois eu
superei tudo isso, eu num culpo ela de nada, porque é, ela não sabia, que
eu ia fazer isso, por, por causa disso, porque eu não entendia, e ela
também não sabia que eu ia fazer isso. E... é muita coisa, Letícia (ri)...
(Sofia)
O instrumento de interdição civil é largamente utilizado, no Brasil,
caracterizando uma medida de proteção ao incapaz e tendo como instrumento central o
laudo psiquiátrico, como afirma DELGADO (1997): “o estatuto jurídico do louco
interditado é o da incapacidade absoluta” (p. 106). Assim, vemos dentro da associação
uma árdua tarefa: lutar pela garantia dos direitos a uma população tolhida (cultural e
juridicamente) em seus direitos civis.
Durante a preparação para a coleta dos depoimentos, partimos do pressuposto
que a participação no Conselho Municipal de Saúde é, neste momento, o local que
faculta aos associados maior possibilidade de exercício de seus direitos de cidadania. Tal
idéia é corroborada, em parte, pelos depoimentos dos associados-usuários:
Pergunta: E aí, é, a associação tá participando atualmente, do Conselho
Municipal de Saúde. Como é que você vê essa participação?
93
Resposta: Eu vejo que... que é uma pedrinha no calcanhar do...
secretário municipal de saúde a associação ta participando ali. Eu senti
isso muitas vezes. Porque... porque se deixar por eles, pelo secretário de
saúde, pela... por eles acho que a gente não ia ter vez, não. No município.
Como não tem. Como não tem. A saúde mental não tem. Então eu acho
que a participação é importante.
Pergunta: E o que falta pra saúde mental no município?
Resposta: Acho que falta... falta muita coisa. Falta... muita coisa. Falta
CAPS – Mogi não tem CAPS. Não tem... nada. Não tem nada. Nem
hospital-dia... A gente tem o ambulatório de saúde mental e ... e algum
posto por aí. E o posto de saúde. E enfermaria psiquiátrica no Luzia
(Hospital Luzia de Pinho Melo)... acho que falta muita coisa (pausa).
Pergunta: E como que se poderia conseguir isso?
Resposta: Acho que... participando do conselho, brigando – e briga
mesmo... pegar o prefeito e esfregar o título de eleitor na cara dele. Ta
faltando briga.
Pergunta: Mas você acha que a associação não tem brigado?
Resposta:Tem. Tem brigado. (Miguel)
Pensamos que nosso pressuposto inicial, referente ao Conselho Municipal de
Saúde, é confirmado apenas em parte, porque percebemos que os participantes da
associação compreendem e defendem a importância dessa instância de reivindicações,
negociações e debates. No entanto, parece tratar-se de um local muito longe da realidade
das pessoas. Temos como exemplo a declaração de Aurora, que é uma das
representantes da associação no Conselho Municipal de Saúde. Para ela as reuniões são
consideradas aborrecidas, longas, cansativas:
Pergunta: E o que você pensa, ali, do conselho municipal? Por que é
meio “puxado”, como você disse?
Resposta: É “puxado”também, porque, às vezes, o assunto é muito longo.
E, às vezes, não tem necessidade de ser tão longo. E aí vai puxando.
Muita gente fica até tarde lá. É cansativo. Depende de ônibus ainda. Se
saísse e já entrasse no carro, não. Mas sai de lá e fica no ônibus, fica
pior ainda. Chega em casa às dez da noite, pra uma reunião que
começou às seis. Chega muito tarde... muito tarde!
94
Também os associados-trabalhadores apresentam uma reflexão bastante crítica
quanto a atuação da Associação “Loucos pela Vida”, no que tange à iia de defesa dos
direitos das pessoas com sofrimento psíquico e a participação no COMUS:
Pergunta: Como é que você vê que a associação tá participando, ta
presente nesse conselho?
Resposta: Eu acho que ainda é tímida a participação, a gente ainda
precisa fazer mais um exercício (risos). É... é um exercício novo, acho
que essa participação popular aí, esse controle social, e lá por alguns
anos o controle social mas, essa participação ainda... eu acho que pra
qualquer cidadão brasileiro, na verdade, eu acho que a gente ainda ta
aprendendo, que a gente, é esse... se apropriar desse espaço – a
associação acho que não se apropriou desse espaço ainda, (...) Mas eu
acho que falta, ainda, a associação participar mais da asso, da, do
Conselho Municipal, se apropriar... e, e se apropriar é ta lá... é
participar mais indo e... mas mesmo nos conselhos... eu não sei como é
que tá sendo esse treinamento dos conselhos, eu acho que falta mais
capacitação (Ana).
Eu acho que na questão do trabalho, acho que a gente tem conseguido ir
bem. Na de defesa de direitos eu acho que não. Eu não vejo a gente fazer
defesa de direitos, assim... de fato. Acho que até a questão, quando a
gente teve uma movimentação, aqui, da carteirinha de passe-livre, teve
uns pacientes que perderam a carteira de passe-livre em Mogi, por causa
da... do lobby aí da empresa de ônibus... mas, e a gente ta numa briga
com isso até hoje, mas... então tem algumas coisas que conseguem ir, ir
pra frente, nessa questão de defesa de direitos. Mas... acho que é uma
coisa que acaba... a gente meio engolido pela prática, vamos dizer assim.
A impressão que eu tenho é essa. Então as coisas que você precisa...
fazer a longo prazo, como todas as que são ligadas a defesa de direito,
vo precisa... ser muito firme nisso, é difícil de, de ir pra frente. (Lia)
E acrescenta:
Aí é uma coisa que a gente brigou muito pra conseguir, levou muito
tempo pra gente conseguir ser conselheira do, do conselho municipal de
saúde e eu acho que não tá dando fruto, infelizmente eu tenho uma
avaliação que acho que não é boa. Porque é essa questão mesmo da
iniciativa, da pessoa achar que ela pode falar. A impressão que eu tenho
é que as pessoas que fazem o tratamento e que fazem parte da
associação, que essas pessoas, elas acham... que elas não têm direito a
voto. A impressão que eu tenho é essa. Então elas vão na reunião, por
exemplo, do COMUS, e elas até, até conseguem formar uma opinião, do
95
que tá sendo discutido ali, mas elas jamais vão levantar a mão delas pra
falar alguma coisa daquilo. Então elas votam. Elas só votam. Votam a
favor ou votam contra. Se tem um técnico junto, que consiga ir lá todo
mês na reunião, que consiga pegar essas pautas antes e discutir com eles
antes. É... eu acho que a coisa, talvez, andaria melhor. Mas, no momento,
tá sendo praticamente impossível ter alguém acompanhando a reunião. A
reunião tem terminado muito tarde... e tem sido impossível alguém
acompanhar, além das pessoas que se comprometeram que são duas
associadas, a E. e a C. (Lia)
Essa dificuldade é percebida como decorrente da “falta de iniciativa” que
caracteriza uma limitação não somente relacionada à doença mental, mas uma questão
cultural, algo incrustado na sociedade brasileira:
Pergunta: Mas o que dificulta essa atuação na defesa dos direitos?
Resposta: Direitos? Eu acho que é ter um funcionário da associação que
consiga se dedicar pra isso. Então... é... os próprios pacientes, eles
conseguem fazer muita coisa, os próprios associados, que... que têm um
transtorno mental, eles conseguem fazer um monte de coisa... orientados.
Agora... a questão da iniciativa é complicada. É muito complicada. Não
se tem. Não se tem, é... aliás, não é só, eu acho que não é só dentro de
um... de uma associão de, de pacientes com transtorno mental. Não se
tem no geral, na população em geral. Então, pra você ir atrás de um
direito seu, você não vai. (risos) Então, se... se tem alguém que vai cuidar
só disso, quer dizer, a pessoa tá ali pra fazer isso, ah..., eu acho que a
coisa andava. Mas... culturalmente a gente não tem esse hábito. Esse
hábito de ir atrás das coisas, de brigar por um direito nosso. A gente vai
sendo é... vai perdendo as coisas devagar e devagar você vai se
acostumando a lidar com as dificuldades e viver sem aquilo (Lia)
No entanto, são vislumbradas estratégias na busca de maior poder de negociação
e participação política:
Pergunta: E em relação, assim, a conhecer como funciona a Saúde...
essas coisas de políticas de saúde. Você acha que aprendeu alguma
coisa? Você teve mais informação participando da associação?
Resposta: Tive. Tive um pouco mais de informação. Ainda acho que... que
devia saber mais. Mas eu tive mais informação.
Pergunta: E o que falta, você acha... fala: eu acho que... o que seria?
Resposta: Então, acho que falta um pouco mais de formação... tipo um
partido, ele tem a formação dos seus afiliados. Alguns partidos. Tem a
formação política. Acho que a nossa devia ser mais ou menos isso. Tipo
96
uma formação política... pra mim mesmo, pra gente poder ta mais
convicto de lutar mais pelas... pelos nossos direitos (Miguel).
A nosso ver, a proposta de “formação potica” colocada por Miguel aproxima-se
da noção de didática postulada por PICHON-RIVIÈRE (2005), em que para operar no
campo da aprendizagem uma estratégia não deve se destinar somente a comunicar
conhecimentos (tarefa informativa), mas, deve desenvolver e modificar atitudes (tarefa
formativa).
Outra possibilidade de propiciar maior alcance em suas ações seria a Associação
“Loucos pela Vida”, através de seus associados-trabalhadores, investir na organização e
divulgação de um programa ligado à área de educação e capacitação de pessoas. Assim,
a educação em saúde é vista como estratégia para colocar em debate a questão da saúde
mental:
E a gente sempre brigou... é, é, pensou, desculpa, é a questão do, da, da
associação ter um... também ter um braço na educão. De... a gente tem
técnicos... mas também de... é, quando eu falo educação mesmo pra, pra
rede, pra atenção básica principalmente... de montar curso, de ta junto
com as universidades e a gen, lembra, a gente já falou sobre isso e a, e a
gente não parou ainda pra é, trabalhar, sistematizar em cima disso –
porque é trabalhoso. De montar curso mesmo, é de... eu penso muito pra
rede básica, pra atenção básica. Eu penso muito pra atenção básica. A
questão da saúde mental que a gente tem e que... e o pessoal, e eu acho
que a associação é... é o caminho pra, não pra nossa só, não acho que é
só a nossa associação, pras associações, a questão do ensino. Eu acho
que é... a gente sempre tem uma fala, desde o como da associão.
Desde o começo da associação a gente falou nesse braço aí, pra, pra
educação, que a gente acabou, nas tarefas, no ganhar dinheiro, acaba
não fazendo. E... e aí, quando você, quando eu falei da capacitação dos,
dos conselheiros, quando eu falei da capacitação dos conselheiros, mas
sim das associações que estão envolvidas, no conselho, eu acho que sim,
acho que talvez uma capacitação pra... capacitação, treinamento, enfim...
a gente tem que ver direito como é que seria é... pra gente. (Ana)
Seja no espaço do COMUS, seja enfrentando o preconceito, através da
participação em eventos ou aparecendo na dia, a Associação “Loucos pela Vida”
busca chamar atenção para a questão da saúde/doença mental. Deste modo, sua atuação
é pautada em um objetivo sempre presente: a defesa de direitos dessa população. Assim
97
a questão de direitos e comportamento político ocorre - contrariando parte de nosso
pressuposto inicial - em vários locais e de diferentes formas, não somente nas instâncias
determinadas para tal. E é no cotidiano de trabalho em que a questão da cidadania se
revela com maior consistência.
98
CAPÍTULO VI
Análise e discussão dos dados empíricos.
99
O trabalho: fonte de vida e de dignidade.
Por meio dos relatos orais dos associados-usuários, pudemos conhecer um pouco
mais de suas histórias pessoais, suas opiniões e idéias, além de suas expectativas. Estes
relatos, tendo como recorte a participação na Associão “Loucos pela Vida”, nos levam
a constatar a importância do trabalho para as pessoas que são marcadas pelo estigma da
loucura.
Adotamos a definição indicada por SILVA (1997), em que trabalho é
considerado um bem social coletivo, um dispositivo de acesso ao mundo das
contratualidades sociais, criador de valor de uso e valor de troca” (p. 11). Neste sentido,
o trabalho emergiu como categoria central em nossa pesquisa, representando não
somente a garantia de renda, de acesso a bens de consumo; mas, e principalmente,
referindo-se a um importante instrumento de socialização e reconhecimento social.
Através do trabalho estes indivíduos têm acesso a uma possibilidade de
identidade social. Assim, o louco”, “o doente” ou o que não bate bem das idéias” dá
lugar ao “vendedor do bazar”; ao cozinheiro”, ao “vendedor de salgados e doces” ou ao
responsável pela biblioteca”, alcançando, assim, o patamar de homens comuns. Assim,
não por acaso, os projetos de trabalho da Associação “Loucos pela Vida” foram
mencionados como o que há de mais importante na instituição. Tal importância adm
da idéia de que a ocupação é terapêutica e da experiência de, novamente, sentir-se útil,
produtivo, importante.
DALMOLIN (2006) lembra-nos que o sujeito que adoece psiquicamente é
afetado em quase todos os aspectos de sua vida (pessoal, profissional, familiar,
intelectual e afetivo) e cita: “a melhora dos sintomas, a saída da crise, não lhe garante
uma melhora nesses aspectos, mesmo que a ‘incapacidade ou limitações’ seja mínima,
porque existe uma construção social do/sobre o ‘doente mental’ (compactuada por boa
parte dos próprios profissionais de saúde) que o coloca no lugar de excluído do mundo
da cidadania, à margem da sociedade” (p. 39).
100
A autora propõe a discussão da questão do lugar social do sujeito em sofrimento
psíquico e a construção de práticas em diferentes níveis, fundamentadas em uma
permanente negociação com os diferentes atores sociais, como possibilidade de
produção de possibilidades de vida mais inclusivas e dignas da condição humana
(DALMOLIN, 2006).
Seguindo esta linha de reflexão, tomamos, como exemplo, o desejo de autonomia
de Sofia, sua busca por independência e por retomar a vida que tivera antes da instalação
do transtorno mental (expressos no desejo de se curar para poder trabalhar), como
expressão da busca de construção de um outro lugar social para si.
Assim, despindo-se da condição de “incapazes” ou de “pacientes”, as pessoas
com sofrimento psíquico têm a possibilidade de assumir um outro lugar: o de
trabalhadores, colaboradores, responsáveis por aquele projeto de trabalho. Esta mudança
dos papéis sociais possibilita que estes indivíduos abandonem sua condição de
invisibilidade (aquilo que a sociedade, para não ter que se deparar, exclui, esconde) e
adquiram reconhecimento social.
É a partir deste reconhecimento social que se torna possível a diminuição da
distância entre loucura e sanidade, culminando na possibilidade de vivenciar a
experiência de ser cidadão.
FERNANDES (1999), ampliando a análise do tema, aponta a importância do
trabalho na realização de parte das funções psíquicas do indivíduo. Deste modo, o
trabalho ocupa um lugar especial na vida mental humana, representando um eixo
psíquico organizador:
Nesta perspectiva, entendemos que o trabalho se converte
em instituição. Enquanto instituição e, pelo seu papel
conjunto nas relações sociais, instala, psiquicamente, um
elemento organizador e estruturante do sujeito em sua
relação com o mundo. É o trabalho, portanto, mais do que
um regulador das relações entre os indivíduos de uma
sociedade, uma condição fundamental para a sua
estruturação psíquica (p. 41)
101
Assim, a perda do trabalho – em conseqüência da situação de desemprego, por
exemplo - além da alteração das relações de troca advindas da deterioração das
condições financeiras, representa, tamm a perda de parte daquilo que sustenta a
constituição da subjetividade.
A autora reflete acerca da violência implícita neste processo, pois aqueles que
não trabalham constituem os fracassados, os excluídos. A vincia da falta de êxito no
trabalho é experimentada como um fracasso pessoal, levando ao empobrecimento da
vida psíquica e transformando a subjetividade num processo de individuação, em
conseqüência da subordinação da vida às “exigências de uma razão tecnológica que
converte na realidade o sujeito em objeto de si mesmo” (FERNANDES, 1999, p. 46).
Constatamos, também, que na trajetória de vida dos associados-usuários, a
possibilidade de inserir-se nos projetos de trabalho da Associão “Loucos pela Vida”
ocorre quando da melhora do quadro clínico. Deste modo, a atuação da associação
ocorre em um importante momento da história pessoal dos indivíduos: a oportunidade de
buscar uma outra chance na vida, pois com o controle dos sintomas do “transtorno
mental” (conforme definição do CID 10), abre-se a possibilidade de resgatar aspectos há
muito subtrdos de seu cotidiano como trabalho, relações afetivas e sociais, direitos,
deveres, etc.
Neste mesmo sentido, SILVA (1997) nos aponta que “o exercício de uma
atividade produtiva, associada a um tratamento amplia seu potencial [do usuário] de
relação intersubjetiva, altera o rigor com que julga sua auto-imagem, interfere e
modifica a trama da rede familiar nuclear, além de alterar a qualidade da convivência no
seu meio social mais próximo, com parentes e vizinhos” (p. 13).
RODRIGUES (2000) considera que os Projetos de Trabalho desenvolvidos pela
Associão “Loucos pela Vida” têm, como aspecto positivo, a possibilidade de propiciar
uma mediação, construindo uma ponte para o retorno à comunidade, e cita: “o domínio
do espaço público pode ser o início do acesso da multidimensionalidade humana, isto é,
também se sai às ruas para lazer, para participar da vida comunitária” (p. 97).
102
BOSI (1994) em seu livro, Memória e Sociedade, apresenta-nos exemplos muito
interessantes ao ouvir relatos de uma outra categoria de pessoas que também vivenciam
o preconceito e a exclusão: os idosos. Também neste estudo a categoria trabalho
apresentou-se como central, pois a relação entre memória e trabalho foi responsável por
trazer à tona a justificativa de toda uma existência; trata-se do núcleo das biografias
apresentadas.
CHAUÍ (1994) considera que é preciso refletir sobre a velhice, este período da
vida que, na sociedade capitalista, sofre com a opressão e a desvalorização que se faz
presente e constante através da espoliação do direito à memória e da prematura
senilidade engendrada pela cotidiana degradação do trabalho, pois: “a degradação senil
começa prematuramente com a degradação da pessoa que trabalha. Esta sociedade
pragmática não desvaloriza somente o operário, mas todo trabalhador: o médico, o
professor, o esportista, o ator, o jornalista (p. 19-20).
Para a autora, em nossa sociedade, guiada pela competição e pelo lucro, ser velho
é lutar para continuar sendo homem
16
(CHAUÍ, 1994, p.18). A mesma opressão social é
vivenciada pelas pessoas com sofrimento psíquico, que são apartados do valor social do
trabalho.
Neste mesmo sentido, RODRIGUES (2000) considera que “ao Projeto Trabalho
compete ainda, elucidar junto aos seus sujeitos, o entendimento de que os usuários de
saúde mental pertencem ao conjunto da população subalternizada, que através das
relações sociais mistificadas, tem o seu processo de exclusão promovido através da
‘inclusão’ pelo recorte da deficiência, nos serviços e programas estatais e privados” (p.
98).
Assim, se por um lado, a Associação “Loucos pela Vida” propicia o contato com
o mundo do trabalho através de seus projetos aos usuários da saúde mental, por outro, é
Sofia que em seu relato, lembra-nos que não tratamos de um trabalho qualquer, mas de
uma especificidade: o trabalho em ambiente protegido. Eis aí uma contradição: se este
16
Grifo nosso.
103
trabalho, que tem como objetivo propiciar inclusão social, acaba por ser marcado pela
condição de diferença, de limitação, ele acaba, então, também, sendo um instrumento de
reprodução da exclusão.
Eis uma situação bastante delicada e que exige a construção de novas
abordagens.
Do ponto de vista dos associados-trabalhadores, que iniciaram a mobilização em
busca de ações que efetivamente possibilitassem a Reabilitação Psicossocial, houve a
escuta, a sensibilidade para uma demanda vinda dos usuários: a questão do trabalho e
renda. Mas, também, havia a percepção da necessidade de romper com velhos modos de
agir, personificados na insatisfação, no marasmo, no pouco avanço do trabalho no ASM-
MC.
Eis aí, uma inovação terapêutica: a possibilidade de efetivamente escutar ao
outro (não somente no que concerne aos sintomas de sua doença, mas suas necessidades
e desejos humanos) que trouxe, como conseqüência, a vontade de arquitetar novas
construções. Construções estas que exigiram o rompimento com as velhas diretrizes e,
até mesmo, com a instituição ASM-MC, para dar lugar ao novo, concretizado na
fundação da Associação “Loucos pela Vida”.
Assim, através da Associação “Loucos pela Vida”, os trabalhadores da saúde
mental, tanto ou até mais que os usuários, têm a oportunidade de experimentar a
tentativa de ruptura com o trabalho alienado, precário, para dar lugar à experiência do
trabalho criativo, libertador, pois, também os trabalhadores, estão submetidos à lógica
capitalista, como cita BEZERRA JR. (2001), ao analisar a questão da crescente demanda
por unidades ambulatoriais de atendimento psiquiátrico e psicológico:
Enquanto não se puder superar a desigualdade, a opressão
e a alienação inerentes à sociedade capitalista, os
terapeutas nada mais farão do que cumprir a triste sina de
reprodutores do sistema social do qual são ao final das
contas representantes: despolitizar os conflitos, tutelar os
desviantes, psiquiatrizar demandas sociais, etc. O
tratamento, que acaba se traduzindo numa readaptação do
indivíduo à engrenagem doente, precisaria ser subvertido
104
pela base, transformando-se num instrumento de
desalienação potica e liberdade social (p. 139).
Podemos verificar, deste modo, que a experiência de participação na Associação
“Loucos pela Vida” vem se mostrando rica para os diferentes atores sociais que dela
participam, possibilitando a vivência de um trabalho gerador de vida e de dignidade
humana.
105
O encontro de novas possibilidades através da amizade e da
solidariedade.
Ao ouvirmos os relatos dos participantes da Associação Loucos pela Vida”
pudemos observar o crescimento de um valor que, na sociedade em geral,
principalmente nas grandes cidades, vem sendo esquecido: a estruturação de laços de
amizade e de solidariedade. A experiência de sentir-se amparado, de possuir laços de
confiança e de afeto, representa uma importante arma no enfrentamento de um dos
aspectos mais desumanos do sofrimento psíquico: o isolamento social.
Sob este prisma, compreendemos os relatos de Aurora, Sofia e Miguel, que nos
apontam a importância de se ter amigos, de dividir as tristezas e os problemas, de
conversar sobre a vida cotidiana, de rir, de fazer piadas, etc. Trata-se de ações
corriqueiras, banais, porém de extrema importância, pois rompem com o isolamento
criado pela barreira de uma realidade que gira em torno da doença, dos remédios, da
consulta médica, etc, para propiciar acesso ao mundo social, em que é possível o
compartilhamento de vida, não somente da doença.
Parte importante deste processo é a identificação dos associados-usuários com
seus pares, o que propicia um natural processo de empatia, pois em outros tempos, em
maior ou menor grau, já se viveu tal situação, já se passou por essa fase do tratamento ou
já se experimentou o que é a “crise”.
Tal processo de identificação não é passível de ser vivenciado com os
profissionais, mesmo com os associados-trabalhadores, com quem, apesar das diferenças
sociais, há uma maior proximidade, pois estes não possuem tal experiência, não
conhecem “por dentroo que é o sofrimento mental. Assim, em nossa trajetória
profissional, não foram raras as vezes em que associados-usuários nos procuraram por
perceber que o colega estava sofrendo e que havia chegado a hora de procurar ajuda
específica.
106
Deste modo, apesar de não existir uma norma escrita; ou mesmo uma orientação
mais técnica, os participantes da associação sabem, em seu íntimo, que ali a
preocupação em cuidar e em apoiar uns aos outros, fator que nos leva a crer que a
participação na Associação “Loucos pela Vida” tem repercussões positivas na vida da
pessoa.
Para os associados-trabalhadores a possibilidade de romper com o isolamento
social dos usuários através da ampliação da rede afetiva e social, desde o início do
movimento para fundação de uma associação, foi um dos itens que pesou positivamente
para que se empenhassem nessa aventura.
Portanto, se há laços de amizade e de solidariedade entre os associados-usuários,
percebemos que através da participação na Associação “Loucos pela Vida” há uma
diluição da hierarquia social e, deste modo, é possível maior proximidade entre os
associados-usuários e os associados-trabalhadores, apesar de mantidas as diferenças.
BEZERRA JR. (2001) defende que, nas instituições públicas, a relação
terapêutica é pautada, não somente pela autoridade decorrente da detenção de um saber,
mas, e acima de tudo, há a marca de um poder de classe; ou seja, “o que o paciente tem
diante de si é não só o representante da ciência, mas também o membro de uma classe
hierarquicamente superior. Não há uma relação de cunho liberal entre pares sociais, mas
uma relação onde a distância entre os atores do tratamento é lembrada a cada detalhe,
sublinhada a cada instante” (p. 165-6).
Cercada por resquícios do serviço público do qual se originou, do mesmo modo,
no interior da Associação “Loucos pela Vida”, há uma marcada diferenciação entre
usuários e trabalhadores, sendo que os primeiros, freqüentemente, estão em uma posição
de passividade e dependência.BASAGLIA (2005) já nos alertara sobre a armadilha do
que denominara “institucionalização branda”, pois:
Qualquer tipo de organização que não leve em conta o
doente em seu livre e pessoal situar-se no mundo falhará
em sua tarefa, porque agisobre ele como uma força
negativa, ainda que, aparentemente, voltada para sua cura
(...) Todo poder que tende a eliminar as resistências, as
oposições e as reações de quem lhe foi confiado é
107
arbitrário e destrutivo, quer se apresente sob a efígie da
força, quer sob a do paternalismo e da beneficência (p. 56).
Dentre os associados-trabalhadores há uma crítica quanto a esta questão e a
busca por promover um ambiente que propicie maior autonomia para os associados-
usuários. Mas há, por parte dos associados-usuários, uma certa acomodação, fator este
que tem dificultado que a Associação “Loucos pela Vida” amplie seu trabalho.
Assim, a arena para debates e para questionamentos está sempre aberta o que
proporciona, como já falamos anteriormente, uma diluição do poder de autoridade do
profissional e possibilita maior proximidade com o associado-usuário, sendo esta
aproximação referida como fonte de grande satisfão pessoal e profissional para os
associados-trabalhadores.
108
As limitações são decorrentes do sofrimento psíquico ou do
preconceito?
“Há sempre alguma loucura no amor, mas há
sempre, também, alguma razão na loucura”.
(Nietzche)
A citação escolhida para iniciar este tópico, que trata sobre a categoria empírica
Loucura X Sanidade de nosso estudo, tem como propósito estimular a reflexão acerca
deste tema. Até que ponto é possível distinguir as limitações decorrentes do sofrimento
psíquico, da construção social sobre a loucura?
O binômio loucura/sanidade esteve sempre presente nos relatos orais,
principalmente, nas palavras dos associados-usuários, o que nos leva a crer que, uma vez
marcado pela experiência da loucura, o sujeito sempre trará essa cicatriz, que pautará
suasões, o seu existir no mundo. Mesmo em momentos em que agem adequadamente
ou em situações e áreas que têm conhecimento e experiência há, por parte dos
associados-usuários, a marca da desvalorização e do estigma, o que leva a forte
insegurança pessoal.
Sendo marcados pela impossibilidade, pelo fracasso, pela diferença, aos
associados-usuários é sempre muito mais difícil e penoso tomar atitudes, agir seguindo
sua vontade ou sua consciência, o que ime a necessidade de um direcionamento dado
pelos sãos. Na associação Loucos pela Vida” os sãos são representados pelos
associados-trabalhadores. Assim, há uma nova e importante variável a ser considerada
na questão autonomia X dependência: o estigma social.
No cotidiano da Associação “Loucos pela Vida” percebemos um esforço em
romper com o estigma da loucura, seja através de atos de compreensão e solidariedade;
ou seja na realização de festas e confraternizações (situações em que há maior
proximidade com a comunidade e uma diluão dos papéis sociais). No entanto, a
relação entre os associados-usuários e os associados-trabalhadores é vivida
109
contraditoriamente, por vezes reforçando a dependência e a passividade e, por outras,
estimulando novas possibilidades, como uma atitude mais ativa ou maior interação
social, iniciando na família, na comunidade próxima e chegando até os gestores locais.
Observamos que na associação “Loucos pela Vida”, para expressar suas
demandas e necessidades, os associados-usuários precisam da ajuda dos associados-
trabalhadores, pois este segundo grupo é mais organizado social e politicamente. Este
tipo de organização se repete nas diversas associações de usuários, familiares e
trabalhadores da saúde mental espalhadas pelo país. Esta relação de dependência acaba
por repetir a mesma organização dos serviços de saúde mental, e neste sentido, enfatiza
as concepções e atitudes dos associados-trabalhadores no direcionamento da associação.
Tal processo tem sido de fundamental importância, como estratégia de
empoderamento (VASCONCELOS, [s.d.]) das entidades civis no campo da saúde
mental. No entanto, este processo é bastante contraditório, pois há interesses
marcadamente diferenciados no interior das instituições. Neste sentido, avaliamos que
ainda há um longo caminho a trilhar, pois a questão exige reflexão.
110
Espaço físico, espaço terapêutico, espaço de sociabilidade... Espaço
de vida!
Local de tratamento, espaço de trabalho, espaço de amizade e sociabilidade;
enfim, a associãoLoucos pela Vida” possuiltiplas facetas. Estas variadas
possibilidades de relacionamento com a associão são, como dissemos anteriormente,
perpassadas por aspectos simlicos que, em última instância, têm a função de proteção
frente às mudanças, para pontuar a loucura e a sanidade.
BLEGER (1984) aponta que sendo as organizações formadas por pessoas, o ser
humano encontra nas distintas instituições um suporte e um apoio, um elemento de
segurança, de identidade e de inserção social ou pertença. A partir do ponto de vista
psicológico, a instituição forma parte de sua personalidade (...)” (p. 55).
Assim, as instituições não são somente instrumentos de regulação social, mas,
também, instrumento de regulação e equilíbrio da personalidade do sujeito. Neste
sentido as defesas da personalidade são fortemente reproduzidas na instituição.
Psicodinamicamente, BLEGER (1984) nos aponta que “as organizações institucionais
tendem a ser depositárias das partes mais imaturas da personalidade” (p. 58) e, deste
modo, tendem a evitar mudanças que, em última instância, podem levar à desagregação
psíquica de seus membros.
Assim, apesar dos conflitos, das idas e vindas, a relação entre o ASM-MC e
associação “Loucos pela Vida” segue padrões parecidos, pois como cita SCARCELLI
(1998): “diante da mudança vive-se uma experiência de medo frente à novidade, ao
desconhecido. Podemos dizer que há uma propensão na experiência institucional em se
manter a estrutura atual, em repetir o conhecido das velhas estruturas” (p. 132).
BLEGER (1984) aponta que a existência de conflitos na instituição não é
necessariamente um indicador ruim, pois “o melhor ‘grau de dinâmica’ de uma
instituição não é dado pela ausência de conflitos, mas sim pela possibilidade de
explicitá-los, manejá-los e resolvê-los dentro do limite institucional, quer dizer, pelo
111
grau em que são realmente assumidos por seus atores e interessados no curso de suas
tarefas e funções” (p. 51-2).
Neste sentido, avaliamos a existência de uma crise entre as instituições
Associação “Loucos pela Vida” e o ASM-MC, pois os momentos de oposição têm sido
mais freqüentes que os momentos de parceria. Em nosso ver, esta crise, reflete um
amadurecimento da instituição Associação “Loucos pela Vida” que vem buscando novos
horizontes, necessitando de mais espaço para suas ações, pois podemos inferir que o
ASM-MC representa a tradição da atenção em saúde mental, a organização rígida e
hierarquizada; enquanto a associão “Loucos pela Vida” traz consigo a energia do
novo, a motivação para enfrentar desafios e possibilitar novas construções. Neste
movimento, já não há mais parceria possível, pois como defende SCARCELLI (1998)
no processo de construção de novas práticas no campo da saúde mental,posições
antagônicas não convivem pacificamente: o velho deve ser superado ou a produção do
novo não é atingida” (p. 140).
112
“Loucos ou não, somos todos cidadãos
17
”.
Ao tratar sobre a questão da percepção dos direitos de cidadania e
comportamento político na Associação “Loucos pela Vida” observamos que existe uma
distância entre o que é entendido e vivenciado pelos associados-usuários e pelos
associados-trabalhadores.
Os primeiros percebem-se cidadãos a partir da possibilidade de trabalhar e de,
conseqüentemente, adquirir reconhecimento social. Já para os associados-trabalhadores,
a luta é por alcançar a idéia de cidadania que está na Constituição brasileira. Neste
sentido, percebemos que a cidadania para os associados-usuários se aproxima mais da
definição de SARACENO (2001); ou seja, é construída no cotidiano.
BEZERRA JR. (1992) aponta que vivemos sob o “império da razão”, o que
revela a existência de uma relação de oposição entre a noção de cidadania e de loucura.
Enquanto “cidadania” implica liberdade, igualdade, autonomia e racionalidade, a
loucura representa constrangimento, diferença, dependência, irracionalidade. Assim, o
autor cita que “o cidadão – expressão universal de uma subjetividade racional – se
contraporia ao louco, manifestação radical da singularidade subjetiva, rebelde,
desviante” (p. 115).
Deste modo, a superação do paradoxo existente entre loucura e cidadania implica
a construção de novas concepções de sujeito, pois:
É necessário fecundar a idéia da democracia como
invenção permanente e reconhecer que produzir novos
vocabulários, novas práticas subjetivas é indispensável
para a construção de uma sociedade mais tolerante. Uma
sociedade em que a noção de cidadania implique não
apenas o reconhecimento de direitos ou proteção da
singularidade, mas um processo ativo de ampliação da
capacidade de todos e de cada um em agirem de modo
17
Frase tema das festividades do Dia da Luta Antimanicomial do ano de 1999.
113
livre e participativo, e, portanto, onde a loucura não
implique impossibilidade (BEZERRA JR., 1992, p. 124).
Neste sentido faz-se importante efetuarmos uma reflexão sobre a participação da
associaçãoLoucos pela Vida” no Conselho Municipal de Saúde (COMUS).
Acompanhar as poticas de saúde e, mais especificamente, de saúde mental é um dos
pressupostos contidos no estatuto social da associação.
Para realizar tal tarefa, a associação vem buscando efetivamente empenhar-se na
função, como participante do movimento de usuários do SUS, de agente de controle
social. Na área da saúde controle social é concebido comocontrole que a sociedade
deve ter sobre as ações do Estado e, conseqüentemente, sobre os recursos públicos,
colocando-os na direção dos interesses da coletividade” (CORREIA, 2000, p. 12).
Assim, ao ser eleita para representar o segmento dos usuários da saúde mental no
Conselho Municipal de Saúde, a associação “Loucos pela Vida” tinha por objetivo lutar
por mais espaço para estes usuários que já são tão marginalizados. Infelizmente, apesar
dos esforços, no cotidiano esta representação não tem conseguido alcançar seus
objetivos. Os associados-usuários que estão representando a associação “Loucos pela
Vida” vêm apresentando dificuldades em efetivamente participar deste processo, como
nos exemplificou Lia: - Eles votam! eles só votam”.
CORREIA (2000) nos alerta para o fato de que “os mecanismos de participação
institucionalizada na área da saúde, os conselhos e conferências, apesar de terem sido
conquistados sob pressão, podem, por um lado, se constituir em mecanismos de
legitimação do poder dominante e de cooptação dos movimentos sociais. Por outro lado,
podem ser espaços de participação e controle social, na perspectiva de ampliação da
democracia” (p. 63).
Neste sentido, os associados-trabalhadores apresentam-se mais críticos quanto à
atuação no COMUS, seja pela falta de iniciativa ou pela falta de compreensão dos temas
abordados, o fato é que a participação da associação “Loucos pela Vida” no COMUS
o tem gerado os resultados inicialmente esperados, pois “nos conselhos estão
114
representados diferentes interesses que se confrontam, e vence a proposta dos setores
mais articulados, que têm maior poder de barganha” (CORREIA, 2000, p. 129).
Avaliamos que a questão da cidadania e do comportamento potico ocorre -
contrariando parte de nosso pressuposto inicial - em vários locais e de diferentes formas,
não somente nas instâncias determinadas para tal. Neste sentido, a participação no
COMUS se torna enfadonha e aborrecida para os associados-usuários, pois esta
concepção de cidadania é carregada pelo significado imposto pelos associados-
trabalhadores; ou seja, é exterior a eles.
Para os associados-usrios entram em jogo outros valores, pois é no cotidiano
de trabalho e de participação na comunidade que se constrói, verdadeiramente, a noção
de cidadania.
115
CAPÍTULO VII
Considerações finais.
116
Nosso objetivo ao longo deste estudo foi analisar a trajetória de uma associação
civil em saúde mental: a associação “Loucos pela Vida” de Mogi das Cruzes – SP.
Tivemos a preocupação de registrar o movimento, os descaminhos, os momentos de
união e de desorganização desta instituição, a fim de possibilitar uma melhor
compreensão deste dispositivo participativo, pois se observa que a organização de
associações civis em saúde mental é crescente na atualidade, sendo que, em uma grande
parte, estas entidades nasceram a partir do trabalho dos serviços substitutivos e revelam
uma necessidade de ampliação das possibilidades de intervenção na esfera do trabalho,
da moradia, do lazer, etc.
Adotamos como estratégia não somente consultar documentos, em contentarmo-
nos com a “versão oficial” dos fatos, mas, para além disso, buscamos ouvir aos
diferentes atores protagonistas deste processo de construção de um novo lugar social
para os indivíduos marcados pela experiência da loucura.
Mas por que dar a palavra a estas pessoas? Ou como, nos provoca BOSI (2003):
por que dar voz às camadas da população que foram excluídas da história ensinada na
escola? E a resposta é: para termos a possibilidade de nos aproximarmos do cotidiano,
para poder chegar bem próximo daquela vivência, pois a história, que se apóia
unicamente em documentos oficiais, não pode dar conta das paixões individuais que se
escondem atrás dos episódios” (BOSI, 2003 p. 15).
Como profissional de psicologia, nosso interesse se volta, freqüentemente para os
aspectos subjetivos, para as emoções envolvidas nos comportamentos dos indiduos,
daí nosso ímpeto em ir am do oficial.
Percebemos que a participação de usuários, familiares e trabalhadores da saúde
mental nas associações civis em saúde mental constitui uma riqueza de ação; uma
prática humanista, em que os mais fortes e organizados apóiam os mais frágeis. Por
outro lado, não podemos deixar de reconhecer que, tal composição heterogênea é,
tamm, fonte de contradições internas, já que os diferentes atores que comem as
associações civis em saúde mental, apresentam motivações e interesses marcadamente
diferenciados.
117
No entanto, pensamos que, na atualidade, há questões mais graves e urgentes a
serem tratadas. E neste sentido, uma tendência das associações civis em saúde mental
em efetuar pressão política em favor de novos olhares sobre a loucura, lutando pela
garantia dos direitos de cidadania dos portadores de transtornos mentais.
Assim sendo, percebemos um ponto de diferenciação entre as associações civis
em saúde mental e o poder público: o poder público tem focado sua atenção na questão
da assistência às pessoas com sofrimento psíquico, enfatizando uma parte do ideal do
Movimento de Reforma Psiquiátrica. Já as associações civis em saúde mental também
lutam por uma assistência digna, porém, cremos que a atuação conjunta destas entidades
pode representar maior força no processo de modificação do lugar social historicamente
atribdo aos sujeitos em sofrimento psíquico.
Especificamente no município de Mogi das Cruzes – SP, a Associação “Loucos
pela Vida tem se empenhado no contato com a comunidade, mas tamm, tem se
esforçado em atuar como agente de controle das ações do Estado, através de participação
no Conselho Municipal de Saúde.
Tendo surgido a partir de uma movimentação inicial de profissionais do ASM-
MC, percebemos que a relação entre o ASM-MC e a associão “Loucos pela Vida”
vem se desgastando, pois as restrições e as limitações decorrentes desta ‘relação de
dependência’ tem incomodado os membros da associação que vêm, nos últimos tempos,
buscando mais espaço de ação. Assim, tem sido forte a movimentação para a busca de
uma sede própria.
Os relatos orais nos permitiram visualizar os pontos considerados de maior
importância na associação, tanto pela ótica dos associados-usuários, quanto pela ótica
dos associados-trabalhadores. Neste sentido, o trabalho revelou-se como estratégia
fundamental para o acesso ao mundo, considerado em sua multidimensionalidade,
englobando aspectos econômicos, sociais e psíquicos.
Avaliamos criticamente que nossa militância na associação “Loucos pela Vida”
pode ter deixado pouco à vontade, ou até mesmo inibido os depoentes, principalmente os
associados-usuários em expressar-se. Assim, cremos que podem ter evitado criticar,
118
“falar mal” de certos aspectos da associação. Há, também, o receio em desentender-se
com o profissional e não ser atendido quando precisar. Fizemos o possível para
minimizar impressões deste tipo, mas cremos que este pode ter sido um fator negativo
em nosso processo de pesquisa.
Nesta trajetória, percebemos que não há respostas prontas, mas que nós,
enquanto participantes da associação “Loucos pela Vida” e, num aspecto mais amplo, do
Movimento da Luta Antimanicomial, estamos construindo um caminho, como nos disse
o poeta espanhol Antonio Machado:
Caminhante, são tuas pegadas
O caminho e nada mais;
Caminhante, não há caminho,
Faz-se caminho ao andar.
Ao andar faz-se o caminho,
e ao olhar-se para trás
vê-se a senda que jamais
se há de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
Somente sulcos no mar.
119
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Liberdade: O Melhor Remédio. 2. ed. o Paulo, 1997.
MOGI DAS CRUZES. Prefeitura Municipal. Secretaria Municipal de Saúde. Proposta de
Atenção em Saúde Mental na Rede Básica e Centro de Saúde I. Mogi das Cruzes, jun.
2003.
129
ANEXOS
130
CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Pesquisadora: Letícia de Souza Lucas Profissão: Psiloga
R.G.:
Instituição: Faculdade de Saúde Pública - USP Fone para contato:
Você está sendo convidado a participar de um estudo que pretende analisar a
trajetória da Associação “Loucos pela Vida” no município de Mogi das Cruzes/SP. Para
isto estamos entrevistando pessoas que participam desta associação. Sua participação
consiste em relatar sobre a sua experiência na Associação “Loucos pela Vida”. Estas
entrevistas serão utilizadas para realização de Dissertação de Mestrado que será
apresentada na Faculdade de Saúde Pública da USP.
A entrevista é sigilosa e as informações apresentadas serão utilizadas unicamente
para a realização desta pesquisa. Solicitamos, ainda, autorização para que seu relato seja
gravado em fitas cassete e posteriormente transcrito, de maneira que possamos garantir que
as informações coletadas não se percam. O material coletado permanecerá sob
responsabilidade desta pesquisadora.
A sua participação não é obrigatória e o(a) senhor(a) pode se recusar a responder
a qualquer pergunta. Sua valiosa participação será apresentada sem mencionar o seu nome.
Assim, suas respostaso prejudicarão seu atendimento (ou o atendimento de seu parente;
ou seu trabalho) e nem sua relação com a associão, pelo contrio, poderão fornecer
alternativas para ajudar a melhorá-los.
Declaro, que após ter sido esclarecido sobre a pesquisa, consinto em participar na
qualidade de voluntário desse projeto de pesquisa.
São Paulo, de de .
______________________ ______________________
Sujeito da Pesquisa Entrevistadora
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